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HÉUA CORREIA

Durante muito tempo. nin-


guém ousou falar na festa de S.
Jorge. Uns trancados por dentro
de uma grande vergonha, outros
guardando com volúpia e avare-
za a incomunicável memória do
prazer. Só !rene lançava a sua
gargalhada. de costas para ·o
mar. estendendo os braços na
direcção do monte que não se
via mas se adivinhava para lá
das colinas: verde-negro. enro-
lado num sono de bicho lamen-
toso. de urso preso a correntes,
·' com o sangue animado tão-só
pela saudade, pelo seu muito
antigo instinto .de pulsar.
Na vila, vaporavam-se as marés: iodo e sais espicaçando o
ar. Alastravam os dias. clareando Jonjuras. E sentavam-se os
velhos pelos bancos. com as suas enormes· orelhas transpa-
rentes. as suas mãos mases. na esperança do sol.

imagem do corpo
Hélia Correia

.MONTEDEMO

imagem do corpo n.0 7


Obras da autora:

·O Separar das Águas•, Romance, (Regra do Jogo, 1981) .


.. Q Número dos Vivos», Romance, (Relógio de Água, 1982).

«Montedemo», Novela, (Uimeiro, 1983).

Há mais coisas no céu e na terra,


Horácio, do que a tua filosofia pode
conceber.

·HAMLET" de W. Shakespeare

Apartado 4152 - 1504 LISBOA Codex - Telefs. 713209/713240

Ficha Técnica:
Título: MONTEDEMO
Autora: Hélia Correia
Colecção: Imagem do Corpo, n.o 1
Capa: Ana Leão
Editor responsável: José A. Ribeiro
1." Edição: Novembro de 1983
Tiragem: 2200 exemplares
© Ulmeiro e Hélia Correia
Composição e Impressão: Tipografia A União .. Lda. - Torres Vedras
Mais tarde alguns lembraram que tudo começou naquele
domingo seco em que a terra tremeu. Coisa sem impor-
tância, num instante sentida noutro instante acalmada, nem
mesmo !rene a tonta pensou que lhe servisse de mote em
pregação. Um tremor ligeirinho no afrouxar da noite, hora
de moribundos e de bêbedos, todos pensando que se balou-
çavam em líquidos maternos, quentes e protectores. Os
outros, muito poucos, que estavam acordados: mulheres
suspensas do tossir das crias, velhos apunhalados por insó-
nias, tinham ficado em dúvida se fora realmente o chão
que se ondeara numa sacudidela ou se tontura provocada
por um sangue de repente engrossado ao de cima dos olhos.
O padre chegou mesmo a confessar que achara muito estra-
nho terem tocado os sinos apenas com aquele abanãozico.
Mas a manhã nasceu radiosa e gelada, e o próprio mar

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parecia tão sem peso, tão dançarino e limpo de pecado, razões a despropósito e contrárias à fé. Que eram algas,
que o assunto passou ao esquecimento. diziam, miúdas como pó. Que já assim, milhares de anos
Mais numerosos são os que dataram o m1c1o de tudo atrás, tinham tingido o Nilo; fazendo o faraó, com males
naquele dia em que os gatos correram pelos becos como de consciência e dado a terrores cósmicos, acreditar que
se os perseguissem cães raivosos. E com a ligeireza, o o rio se transmutara em sangue por praga de Moisés. Isto
desespero de quem assenta as patas sobre ferros em brasa. afirmavam o Tenório farmacêutico, o Esteves escrivão, mais
Com o pêlo descolado do lombo pelo medo ou por ares dois ou três. Exemplos de soberba, porque mesmo os mais
esquisitamente eléctricos numa tarde sem nuvens nem ru- sábios, gente com instrução, muitas noites de estudo a
mores, sem o abafamento normal da trovoada. Saltitando queimar as pestanas: os médicos em estágio, os jovens
e bufando, por telhas e quintais, não se sabendo ao certo professores, todos tinham olhado a vastidão purpúrea com
se e de que fugiam, se e o que demandavam. Quase todos um tremor no corpo arrepiado. Cada qual com seus medos
partiram para longe da vila, atravessaram estradas, mete- -ou os de fim do mundo ou os de urânio à solta. No
ram-se ao pinhal. Só os mais temerosos ou os mais depen- estado de desgraça que atinge a criatura quando mais
dentes dos caixotes do lixo retomaram no dia seguinte os não lhe é dado para além da certeza da sua pequenez.
seus lugares: murozitos discretos, soleiras de viúvas. Ao quarto dia madrugou o mar com seus tons de cin-
Há pessoas pacatas, pouco dadas a turbilhões e fantas- zento e espumas altas, franjadas pelo vento como crinas.
magorias, que insistem em explicar essa espantosa pertur- Estava a população cansada de prodígios e ninguém deu
bação felina com razões muito térreas, materiais: ouvidos a !rene .que, de joelhos sobreo areal •.. invocou sem
-Então se era Janeiro ... Não haviam de estar os bichos pararCle-use_s.. e astróii..Rress€J.ntindo miliores. assombrações..
assanhados!. .. Mais irrequietos, sim, que noutros anos, mas Já vinha -p~rto a festa de S. Jorge.
a força do cio pode dar com um homem, ou com um gato,
em doido. São hormonas.
E passeiam os dedos pelas têmporas, inchados de ciên-
cia e de serenidade: se os gatos não voltaram é porque
acharam poiso que lhes agradou mais. Decerto alguma aldeia
pobre de cães e rica em passarada.
Até para o facto de o mar ter aparecido três manhãs
de Fevereiro com grandes ondas roxas que pareciam imó-
veis e mal faziam espuma ao tocar as areias, tendo as
águas o brilho gorduroso da túnica de Cristo na procissão
dos Passos, até para tal mistério tiveram esses homens

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Era à boca dos vales pomareiros que se alteava o monte.
Um bico enorme, arquitectura de rochedos e cavernas,
com vertentes perigosas como pântanos, assim tão reco-
bertas daquela pasta negra e borbulhante, feita de folhas,
bichos, fungos mortos: o caldo azedo e fértil da decom-
posição.
Ali pegava toda a espécie vegetal, semente que viesse
pelo ar, ou no pêlo da raposa, ou no dorso da cobra, tron-
quinho disparado por criança, tudo deitava ao chão raiz
para se manter e ao céu frutos e flores, sua forma de
amar. Urzes e madressilvas, medronheiros, carvalhinha,
eucalipto, rosas bravas, laranjeiras e silvas, figueiras do
diabo e outras tantas misturas de flora da montanha e
flora do deserto entrançadas, em luta contra a pedra, devo-
rando aquele húmus e em húmus se tornando. Num frene-

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dos do enleio ou da frescura daqueles ares de inverno onde Saltitantes, suadas e cobertas de um quente cheiro a ninho.
esvoaçam já veludos fecundados, mimosas e giestas de Investindo nas coxas dos adultos como pequenos bodes
amarelos pagãos. matinais.
E instalam-se, cercando Montedemo. Com fogueiras o O que há para além disso, e há tanta coisa, nunca foi
cercam, com aromas, com fumos de alecrim, salva resina. perguntac!o.OIJ respondido. J'orq(Je aquilo que as palavras-
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Engrossando o novelo do calor com azuladas folhas ~e euca- não cobriram, mesmo que exista, não se reproduz_.__
lipto, estralejantes agulhas de pinheiro. Todo o dia se come,
e se bebe, e se dança, que sempre vem a banda sem que
ninguém lhe pague, mais um que toca harmónica, e um
outro acordeão. E se volta a comer e a beber e a dançar
até que cai a hora em que se pode olhar de frente para o
sol, a tarde fica espessa e fria como um túmulo, os bra-
seiros hesitam e adormecem. Esteve assim Montedemo
rodeado de corpos que festejam nel11
efes-sal:iem o _quê:
o respirar.
-Eram estes domingos a data ritual para pedir namoro
e um ano depois convidar os padrinhói; e outro ano depois
baptizar descendência. Nos tempos de hoje, andando solt~~
os costumes e vendo-se eles e elas pouco menos que nus,
deitados lado a lado em tudo o que é areia, está bem de
ver que casam sem namoro e às vezes criam filhos sem
casar. Isto dizem as velhas mordiscando pinhões e acom-
panhando a música com os dedos dos pés. Pois pouco
interessam virgindade e sacramento perto de Montedemo:
tendo os olhos tal carrego de brilho e sofrendo os sentidos
tão fino apuramento que cada um se sente luz e fera.
As encostas do monte ninguém sobe. Talvez, sim, as
crianças. Quem_ conhece gs seus __ pactos____\' ... s.e9J:Sl!:IO.s.L.S:it
lá vã à, rião --o contam. Muitos são. os momento.s em que
escapam à vigília das mães e das avós. Mas sempre respon-
deram à chamada quando a festa termina e se regressa.

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Juram alguns que foi às três da tarde, às três exactas
horas da tarde de s, Jorge, quando iam já Os vinhos m~uit~
em meiO. ~Cresciàm~soo o céu marés de nuvens, espessas.
roladas, como feitas de óleo. Pareceu que de repente a
música da banda soava dentro de água, aos borbotões,
entre os ais do golfinho e os risos da medusa, e ali estava
o abismo: -Que é isto, Virgem Santa?- Nervura de corais,
fulgores de rocha. O verde e o negro, o nácar salvador.
São algas ou serpentes, peixes cegos? Estamos nós
balançando, livres de todo o peso, diria até: nascidos sem
pecado. Como se fosse a vida leite e espuma, e pelo cheiro
eu procurasse o se.r amado, ~e orate~encontro e nunca mais
te-perco, tomemos nós. o J11UncJ() por lençol. Aí soam tam·
bores, dança, oh, dança, desenlaça os cabelos, beija, e
grita. E escuta longamente o coração.

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Que delírio foi esse? Ninguém sabe.
Entreolham-se, ofegam, compõem os casacos. E obrigam-
-se os velhos a fechar o sorriso, dissolvida que foi essa
visão. E enrodilham-se os novos em pudor, voltando a si,
corados da viagem. Os músicos, e todos, espreitando para
trás, depois mirando o monte como quem desconfia sabe-se
lá de quê: de um espírito excessivo dentro dos garrafões.
Desvendaram-se os ares, mostrou-se o sol; vai descaindo
para o horizonte, vermelho como um pássaro africano sus-
penso sobre os galhos desbotados. Já se prepara a noite,
sai da toca, silenciosa e astuta na sua negridão •. com o seu
pulo macio de pantera a galgar a distância, a tragar Mon-
tedemo. E à sua frente, como espavoridos, vão correndo os
festeiros para a vila numa pressa sem nome, num pavor.

Dona Ercília Silveira só deu por falta da sobrinha quando


:as irmãs Ferrão a deixaram em casa. Com certeza Milena
apanhara baleia noutro carro, pensou enquanto abria as
portas dos armários procurando o saquinho da tília para o
chá. Oh, como pode a alma segregar tal desgosto, turvar-se
numa tal corrente de agonia, quando não houve mais do
que uma exaltação, um leve tom de rosas sobre a face?
Sentou-se na cozinha, coberta de crepúsculo, odiando
Milena sem grande convicção, só para justificar aquele
rumor de nervos. Por causa dela se metera ao caminho,
sujara a pele em cheiro de ciganos, suportara o sorriso
ousado das peixeiras que estendiam garfadas de arroz a
toda a gente. Não que Milena lhe pedisse alguma vez, oh,
não, para ir à festa. Nunca, que se lembrasse, ela pedira
nada, mesmo quando dobrara os trinta anos. Rapariga de-
cente: nem modas, nem namoros, nem pinturas na cara.

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Talvez um tudo-nada decente em demasia - disse uma; As pancadas na porta fizeram dona Ercília estremecer.
voz cruzando o cérebro de dona Ercília que se ergueu assus- 'Era preciso ter chegado aos sessenta anos para se pôr a
tada com a má direcção dos próprios pensamentos. E acen- pecar dessa maneira. Persignou-se, gemeu e esperou um
deu as luzes até ao corredor. ·instante para ter a certeza de não levar nos olhos nenhum
-Talvez ela tivesse nascido para freira. E eu não iria' ,brilho suspeito. Mas a sobrinha, mal entrou em casa, diri-
contra isso, nunca -murmurou, pondo a água a aquecer-. giu-se para o quarto sem lhe dar atenção. Disse apenas
Não me passou tal coisa pela cabeça, foi o que foi. Senão :que estava quase a dormir em pé. Cambaleava um pouco,
agora, e já é tarde. Mas talvez ela sinta a falta de um con-· com as mãos na cabeça. A tia percebeu que ela evitava
vento e é por isso que está a definhar ... :a sala porque tinha o vestido rasgado na cintura. E deixou-a
Olhou pela janela para um traço de véu azul violento. .seguir. ouviu-lhe os passos arrastando os tacões enlameados.
esse azul comedor de sóis, de cumes, de asas, de trans-
-Afinal, não há nada para dizer- considerou, fechan-
parências, de horizontes. Depois fechou-se inteiramente a
,do a porta à chave.- Talvez deva amanhã confessar-me,
noite. Mas se Milena regressara a pé, não teria chegado ·não sei.
ainda ao rés da vila. Ao menos. viesse ela com alguém de·
respeito. Voltou para a cozinha e engoliu mais chá com a vora-
Deixou cair as folhas na água fumegante, viu como pare- «:idade ruidosa dos velhos. Receava que a noite perdurasse
ciam ganhar vida. a maciez e o brilho de cobras aquáticas -durante horas e horas, horas do coração, lentas, sangradas,
sacudindo o cetim de anéis eternos. >como sempre que alguém se encontra a sós com o remorso
'OU com a ansiedade. De manhã, tudo se esclareceria.
Quando bebeu o chá. estava preocupada. Milena por
chegar e ela sem conseguir esquecer aquela tarde em que A consciência também. Pois que fizera? Fora com a sobri-
dançara nas areias de S. Jorge com o Tó cauteleiro. maltra- ·nha que lhe andava amarela e consumida sem que os mé-
pilho, aleijado das mãos e ainda por cima livre pensador. 'dicos dessem com doença palpável. Fora, a conselho das
Não, nem sequer em sonhos poderia lembrar de novo esse irmãs Ferrão. senhoras da mais digna sociedade, com algu-
momento em que não fora Ercília. velha e virgem, mas ·mas leituras e muita opinião em curas naturais, até aos
uma bem amada rapariga. cabelos de oiro, saias de organdi ·populares festejos de S. Jorge onde o ar muito limpo e as
sopradas pelo vento contra as pernas gulosas, leves e finas queimas aromáticas davam revivescência aos organismos
pernas de gazela prontas a dar abrigo ao amor macho, a -emurchecidos pela inacção.
esse corpo de homem, tão quente e tão salgado, saudosos, E sucedera essa loucura. essa vertigem. De onde ela
ele e ela, das épocas lendárias em que eram um só ser. ·se escapou com as amigas num atropelo. numa ânsia de
ansiosos. ela e ele, por se fundirem. com a bênção da terra, -abelhitas a esgarçarem caminho entre teias de gente. Dona
esmagando a flor das urzes. Usaura Ferrão. tão requebrada de maneiras, tão mimosa.

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calcando no pedal e buzinando, numa exasperação de
carroceiro.
Agora, a salvo, com os nervos distendidos, percebendo,.
pela própria espessura do silêncio, que Milena dormia muita
tranquilamente, dona Ercília pensou que no dia seguinte•
não restaria mais do que o alívio que há na evocação de
um pesadelo.
Enquanto acarinhava as contas do rosário, desejou que·
morresse o cauteleiro a quem, por desbocada inspiração·
do diabo, enlaçara e beijara como mulher perdida. Nunca,
por nunca ser, sofreria cruzar-se com ele numa esquina.
Benzeu-se e decidiu que só voltava à rua depois que lhe
trouxessem notícias do enterro.
O que até hoje não aconteceu.

Durante muito tempo, ninguém ousou falar na festa de


S. Jorge. Uns trancados por dentro de uma grande vergonha,
outros guardando com volúpia e avareza a incomunicável
memória do prazer. Só !rene lançava a sua gargalhada, de
costas para o mar, estendendo os braços na direcção do
monte que não se via mas se adivinhava para lá das colinas:
verde-negro, enrolado num sono de bicho lamentoso, de
urso preso a correntes, com o sangue animado tão-só pela
saudade, pelo seu muito antigo instinto de pulsar.
Na vila, vaporavam-se as marés: iodo e sais espicaçando
o ar. Alastravam os dias, clareando lonjuras. E sentavam-se
os velhos pelos bancos, com as suas enormes orelhas
transparentes, as suas mãos lilases, na esperança do sol.
Foi por estes inícios de calor que a ausência de Ercília
causou apreensão. Era pessoa muito vista nas esplanadas.
fazendo enormes malhas amarelas, abarcando os segredos

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dos passantes com uns olhitos de ave predadora. Um pouco -Trinta e muitos. E muitos! Um pãozinho sem sal
para trás, comida pela sombra que sempre a revestia como -dizia o farmacêutico- e olhem que mulherão, da noite
um tule, a sobrinha fincava as unhas nos joelhos, meio cega para o dia! Ali, o que anda é muita vitamina.
pelos altos ruídos do verão. O seu rosto severo, cor de
terra, de sobrancelhas rudes e boca fatigada, permanecia
toda a tarde sem expressão, sem mais do que um aceno
às amigas da tia que se acercavam e ficavam para o chá.
Mas estavam os bálsamos no seu auge de flor, começa-
vam a vir os estrangeiros com chapeuzinhos claros e gritos
infantis, dispunham-se as senhoras com rendas e malícia
nas mesas da praceta - e dona Ercília ainda encasulada
no seu primeiro andar grave e mofento.
As visitas da casa e a mulher a dias tinham para o mis-
tério explicações comezinhas: reumático, preguiça, incha-
ção dos artelhos. E sobretudo um grande, um fundo enôjo
pelas conversazinhas de café. Davam-lhe, ao que parecia,
crises de violento ardor religioso, embora nem para a missa
tolerasse sair. la o padre em pessoa dispensar-lhe assistên·
cia: confessá-la e lembrar-lhe, entre suspiros, que nos tem-
pos presentes não há paróquias ricas.
Tranquilizada assim, desiludida, voltou a vila as aten-
ções para Milena. Viam-na, perto do entardecer, caminhar
pela costa com um passo levíssimo, um esvoaçar de saias,
demorando, como num esforço para pisar de novo, para não
ser engolida pelos ares.
E atravessava as ruas com o peito atrevido num garbo
de égua brava. Os olhos fulgurantes, espantosamente belos,
•.,.,.. negros e luminosos como águas feiticeiras.
-Tem os seus trinta e tais- murmuravam os homens
em grupos nas esquinas.- Trinta e tais, e agora é que dá
que pensar ...

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Eram meses de verão, fartos de ventos, saturados de
pó e de aridez. Milena passeava todo o dia uma inesperada
e alarmante beleza. No seu encalço atropelavam-se ânsias
de homens, invejas de mulheres. !rene habituara-se a se-
gui-la, chinelando, obstinada, com um riso beato ..
Pelas irmãs Ferrão veio Ercília a saber de como os ino-
centes percursos da sobrinha inquietavam as almas a pont::>
de nas ruas se sentirem pairar morrinhas de pecado.
Surpreendeu-se a velha, pois pouco tinha dado pelas saí·
das de Milena e muito menos pelo esplendor tardio daquele
corpo. Vivia ensimesmada, em árduas rezas, para tentar
redimir-se dos seus sonhos em que homens de ombros nus
a derrubavam sobre um amontoado de cautelas.
Começou a espreitar os passos da sobrinha, a farejar·
-lhe a roupa de onde se levantavam vapores enjoativos.

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Aplicadamente, durante horas, abriu a canivete uma fresta iluminações verdes como olhos de felino. Teve medo e
na porta do quarto de Milena. benzeu-se, pensando que as batalhas de Deus e do Diabo
Sete noites a fio, enquanto a lua enchia, viu-a deitar-se se travavam tão perto dos humanos que às vezes apareciam
sobre a colcha de algodão e adormecer no seu insuportável a vistas desarmadas. Entrou no quarto da sobrinha e viu,
e tranquilo sorriso. Até que, encalorada por um luar ter- dentro da luz marinha do crepúsculo, a cama por fazer, o
níssimo, Mile_11a ~e despiu e o seu ventre redondo, tenso e armário revolvido, as gavetas abertas e caídas no chão.
resplandecente como uma madrepérola, varou os olhos és- -Então, já cá não está. Tanto melhor- comentou dona
piões de Ercília. Era um ventre de grávida. Ercília. E assentou a mão esquerda sobre o peito, a confor-
A púdica senhora quase perdeu a fala. E a ninguém da tar um coração vazio.
sua intimidade deixou adivinhar a causa verdadeira da pros-
tração a que se condenou. A sobrinha passava pela mulher
a dias, pelas velhas amigas em visita, com uma leve agita-
ção de pálpebras interpretada como um cumprimento. Comia
muito pouco, ia à cozinha mastigar hortelã, miúdos de aves.
Os seus fatos austeros, de cores secas, apareciam leves.
avivados, agarrando-se aos seios, enroscando nas pernas com
lampejos, carícias de cetim.
Quando a barriga começou a levantar-se num inchaço
arrogante por debaixo das saias e a vila se pasmou <la
maravilha, Milena abandonou a casa onde crescera. Exacta-
mente dois minutos antes de Ercília decidir que a expul-
saria, sentindo, pela dor que lhe açoitava as fontes, ,que
dali em diante ninguém nem força alguma poderia obrigá:la
a tomar decisões ou sequer a manter conhecimento sobre
coisas lastimáveis e hostis. Ficou então dotada de surdez
selectiva, de modo que os ouvidos decifravam apenas as
falas optimistas e qualquer má notícia ou mero incómodo
esbarravam numa incompreensão argelical.
Naquele sereno entardecer de Junho, preparando-se em
vão para reacções de lágrimas e cenas de romance, a velha
atravessou o corredor. Pareceu-lhe que no escuro faiscavam

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Da noite para o dia veio a vila a saber que Milena .
ocl)para a ..cabana. . da . tonta. Ficava muito a sul, no abrigo
das dunas e dos canaviais, construída em madeira de caixa·
tes sobre torrões de mica. lrene reforçou o peditório de
dinheiro e comida aos veranearltes, assaltava os turistas
com gestos catastróficos, um puxar de cabelos, uns arran-
cos que os divertiam e incomodavam, razão dobrada para
lhe darem esmola. la com velhas latas às traseiras de hotéis
esperar que lhe deitassem os restos de comida. E altas
horas andava por pomares roubando fruta e emudecendo os
cães com meios que ninguém conseguia perceber.
Milena nunca mais se aproximou das casas. Diziam al-
guns moços que a. tinham avistado sobre-praias selvagens
que ninguém procurava a não ser para salgadas exaltações
da carne com francesinhas em demanda de aventuras.

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Viam-na sobre os altos das areias ou, mais longe, rom- Andou sem pressa até perder de vista os últimos case-
pendo a flor da espuma. De ágeis pernas doiradas, orgu- bres das peixeiras. Sentia-se excitado e com remorsos por-
lhosas, como colunas sustentando o mundo. Saltitava e sor- que impiedosamente s~ esquecera de Milena e da sua gravi-
ria, detinha-se por vezes, de cabeça inclinada sobre o peito. dez durante os densos meses estivais.
E dimanava dela, do seu rasto, do seu voar de cabra um tal Avistoua cabana quando o sol se enrolava num círculo
ardor que os pares de ocasião se consumiam em apetites cinzento e sem calor. Vinha de sobre as águas um ar gélido,
nunca experimentados. O que fez com que as dunas, como picado de luzeiros sem matéria que absorviam cor e clari-
antes certas pedras ou nós de algumas águas, passassem dade. Ao afastar o pano da entrada, reconheceu o ar tem-
desde então por bênçãos de Afrodite:. Dando aos corpos perado e acre das camas de animais. E ainda antes de en-
mais viço que gemas de ovo em mel ou cebolada. xergar Milena já uma grande paz, como um quebranto, lhe
Afora estas notícias e as incursões de !rene, entre a amortecera a vibração dos nervos. Somente pela folga das
cabana e a vila, durante os meses quentes, não existiu madeiras soprava às vezes um vapor lilás. Era a inquieta-
nenhuma ligação. Enervados, insones, de ventas dilatadas, ção de lrene: ela rondava, escondida pela noite, tiritando,
donos de restaurantes e de balcões diversos batiam os pas- tornada inofensiva naqueles temores de avó.
seios cheirando o movimento, a nota farta. - Espere, -disse Milena- que eu acendo uma luz.
Novos conquistadores, escudados tão-só na própria luz, Sorriu então, imersa numa seiva alaranjada e trémula_
espalham-se os turistas pelas vielas. Imitam, riem, fotogra- Pareceu por instantes coberta de resina, de uma conden-
fam, gastam. Alugam quartos, compram aventais, abrindo o sação de âmbares levíssimos. A chama do pavio numa lata
seu caminho entre cobiças. atirava às paredes com vultos desmedidos. E tudo era redon-
Azafamado nesse cortejar, mal atentou o povo naqueles do e latejante qual uma massa lêveda, um seio erotizado.
pássaros, gaivotas de um azul nevado e triste que vieram Tenório procurou assento num caixote e ouviu o restolha1·
morrer junto aos rochedos. E só meses mais tarde inferi- da palha em que Milena se recostara para o atender. Pôde
ram maus agoiros das vozes que se ouviam certas noites, então ver-lhe o rosto macerado e a sua beleza indecifrável.
fechadas na espessura da neblina, como quem se doesse No entanto era apenas uma mulher sozinha com um ventre
ou muito amasse sobre os leitos do mar. tão cheio que parecia animado de vida independente.
Pelos fins de Setembro, Tenório o farmacêutico sentiu -Vim vê-la porque, enfim, -explicou Tenório- será
que lrene lhe pedia auxílio. Seguia-o, espiava-o, hesitante, preciso preparar as coisas. A menina tem de ir para o
como que coxeando sob um fardo. E no seu feio rosto sem hospital. ..
idade brilhava a palidez dos ansiosos. Tenório preparou uma Calou-se envergonhado, sonolento. Com certeza que, fora
maleta e ao entardecer meteu-se à praia com -um susto in- da cabana, o vento se enroscava e distendia numa raiva
fantil no coração. divina, como um potro. Mas ali repousava uma doçura, uma

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lembrança de arcas, de porões. Milena riu e olhou-o com
bondade:
- Fo.Lp.ena incomodar-se. Ele vai nascer aqui.
E pelo tom da voz, pela dilatação das asas do nariz,
Tenório percebeu que tudo estava dito. Em quaisquer outras
circunstâncias da sua vida, ele teria insistido, invocado a
razão. Mas o fio dos seus próprios pensamentos criava nexos
que ele desconhecia. Como se tudo fosse muito simples e a
memória o fizesse perder tempo.
-Está bem. Eu passo cá todos os dias.
Examinou-a com circunspecção de médico. Assobiava
quando, ao despedir-se, tirou dois frascos com drageias da
maleta. À saída deteve-se no escuro.
-Tem sempre pronto o lume e água limpa. Lume e
muita água limpa - repetiu.
Nada o informara da proximidade de lrene mas ele tinha Sentia-se Tenório remoçar com aquelas surtidas clan-
a certeza de que lhe bastaria voltar-se de repente para a ·:destinas. A sua magra vida de solteiro escorrera até então
tocar. ceamo uma linfa: sem sabor, vagamente repulsiva. Chegara à
quase meia idade atravessando inúmeras securas, floreadas
rde onde em onde por arrebatamentos tão interiores que só
se adivinhavam no anormal volume das artérias.
Tinha muitas leituras e convicções políticas que haviam
irritado á ditadura e agora o malquistavam com todos os
'·governos. Fossem eles quais fossem, costumava dizer, joga-
'Va contra.
-Não há chuva que não molhe nem poder que não opri-
'ma. Foi, sempre assim na história - repetia. Tomava duches
frios às cinco da manhã para expulsar terrores que o assom-
'bravam. Temia a espera e a solidão da morte.
Pensava nas mulheres como em entes alienígenas, cria-
tturas viscosas e bulhentas que a toda a hora entravam na

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farmácia com as mãos postas em adoração. Ele atendia-as·
com severidade, mais sabedor que os médicos, experiente.
Não _namorara nunca e os seus orgasmos eram. sensações·
puras, .. absolutas, sem interferência de_ imaginações. Com·
amigos, nos bancos da praceta, encenava suspiros, ares·
fogosos. Desnecessariamente, pois os outros viam-no como
um ser à parte, assexuado, um cérebro implantado num·
suporte pouco sujeito às leis dos organismos. ·
A idade -que mal se lhe notava porque nunca soubera·
parecer jovem- tornara-o saturado das ciências. Tinha fra-
gilidades afectivas em que ninguém havia reparado porque,
provindas dele, seriam tão chocantes, mesmo tão duvidosas,
que a vila preferiu ignorar o incómodo. Oferecia às crianças·
pastilhas de mentol e alimentava os velhos cães vadios.
Dedicou-se a Milena com tal vivacidade que tinha de·
esforçar-se por apagar dos olhos uma cintilação reveladora.
Ansiava pela hora de deixar a farmácia e, quando o escalo- Caíam as primeiras chuvadas do outono quando Tenório
navam para os serões, prolongava a demora do jantar. Fa-- ·recebeu recado de Dulcinha Ferrão, marcando encontro. Ao
zia-se às areias com o peito a minguar de frio e de ternura. <contrário de lsaura, delicada, Dulcinha era pesada e larga de
Próximo da cabana estava !rene, com a saia estalada· ·ossos, um sargentão, diziam, gracejando com a sua voz grave
pelo vento, colada contra a noite, muda e negra. Tenório não e o seu buço guerreiro. Por ironia, como irmã mais nova,
podia ver-lhe o rosto mas sentia, no brusco ardor da aragem, nunca se libertara daquele diminutivo que lhe ficava tão
que ela o esperava com inquietação. desalinhado como um laço de seda na cabeça. Vivia com
Milena recebia-o sorrindo, com o seu ventre enorme e o· lsaura que ensinava meninos e fazia questão de adquirir
rosto alucinante, doloroso de olhar-se como o rosto de Deus. confortos, já que perdera esperanças de marido. Esterili-
Ele trazia-lhe roupas, refeições. E ficav~, embaladopor V(o)r:~ zadas nessa vida a sós e fatigadas de religiões de que
tigens, maravilhado com as harmonias que há no pulsar .do' 'haviam provado quatro heterodoxias, estavam a cultivar-se
sangue, com os cheiros fantásticos da pele. ·em naturismo. E davam assistência a dona Ercília que,
entre apuradas crises de idiotia, continuava a interessar-se
~por mezinhas .
.A saída da vila, noite escura, Tenório viu chegar o vulto

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de Dulcinha e pensou com alívio que não podiam ver-se·,
mutuamente as feições. Ela falou-lhe sem hesitação:
-leve-me a ver Milena .. Tenho pensado muito. Além·
de si, é lá precisa uma mulher.
Ele não fez perguntas porque lhe pareceu que as horas·-
avançavam muito rapidamente e o tempo reservado às inter--
rogações ficava para trás, sorvido, aniquilado. Pensou uni-
camente que já não estava só e que o corpo sem graça de·
Dulcinha preenchia vazios incontáveis.
TaJ11bém !rene se sentiu tranquilizada com aquela pre--
sença feminina. Começou a mostrar-se mais visível e aca--
bou por entrar com eles na cabana.
As longas caminhadas pela praia. tacteando, ocultando o•
rosto ao vento. depressa se tornaram para Dulcinha e Tenó-
rio uma alegria e um enamoramento. Tanto mais fervorosos·
quanto eles próprios sabiam que estavam a escapar-se à·
boca da velhice, soltando as gargalhadas e simulando os· Foi por .. essas !llturas gue os.inc.êndi.os_ se. deciaravarrL
mimos dos vinte anos. apesárâas d1uvas e se extinguiam antes que os bombeiros
Em breve. ao regressarem lentamente. talvez porque trou-- li\lesserri sequer tempo de intervir. lembravam fogos fátuos
xessem nos sentidos uns restos do fascínio de Milena. afun- escorrendo dos telhados como ouro liquefeito ou penugens
davam-se em beijos e gemidos. desprezando o ridículo de· solares. Passavam para dentro das cozinhas e derretiam bal-
serem descobertos. des, alguidares, tudo o que fosse de matéria plástica. Sem
Quando lsaura, rompendo a timidez, disse à irmã que lhe discriminação, noite após noite, punham em sobressalto as
encontrava um-ar es-qúisitó e que os vizinhos C:orriéÇalla-m a· casas térreas ou as ricas vivendas das encostas: formando
estranhar vê-la sair sem falta ao pôr do sol, Dulcinha anun- alegres caudas saltitantes, ou flores de labaredas, ou
ciou que se casava. E foi olhar-se ao espelho tão absorta. cometas.
que não chegou a esclarecer com quem. Sete noites duraram estas aparições, deixando apenas de
memória e prejuízo as formas amibóides, como lavas, como
coagulações de caramelo - dos objectos de plástico, fun-
didos: cores grossas. porosas. repelentes, despenhadas nas
mesas e no chão, avançando tentáculos, sustidas numa imo-

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bilidade transitória. Haviam sido rosas e folhagens, molas de ções caseiras. Nem o papa os faria confessar que lrene os
prender roupa, funis, caixas. assustara mais do que as tempestadas.
Até - e isto era muito de assustar- figurinhas de san- Milena não pareceu intimidada e fez rir os amigos dos
tas, crucifixos, as senhoras de Fátima com sua fluorescência terrores e das coragens em que oscila a multidão.
se tinham deformado como cera, tomando a cor cin~enta das -Amanhã -disse- hão-de vir alguns de dia. Outros
o~ssadas. depois, e perdem o interesse.
Ora, havendo Tenório recusado dar as suas razões para Estava embrulhada num casaco de lã verde que lhe dava
tais sucessos, ele que sempre acalmara os conterrâneos com à barriga contornos de colina. E os seus grandes olhos de
a sua ferrenha erudição; tendo ele próprio um sorriso e uma lenhite prendiam-se no vago, desatentos.
impaciência que o mostravam a nu como um menino- - A honra de Dulcinha é que ficou desf_eita.- ousou Te-
logo as suas saídas clandestinas, os seus encontros com nório. ~-Bem ·selcfue ·nãó se~Hga )if muito a essas coisas.
Dulcinha, as compras de ambos, que incluíam fraldinhas e Mas sumir-se com um homem de noite pela praia ...
babeiros, se tornaram o centro das suspeitas. Lamentando-se Dulcinha, que aquecia um caldo de cenoura, sentiu-se
os mais encarniçados de que a volta dos frios e o adorme- enrubescer como uma adolescente.
cimento com que a vila tentava recompor-se dos excessivos -Agora já não há remédio - disse.
meses de turismo tivessem permitido que se passassem -Não é doença --.,- ~observou~~Mi l_ena. ,..- Posso jurar qu?
coisas livres de vigilâncias e de escárnios. nunca se sentiram tão bem. Para que falam de remédios?
Nunca um mistério foi tão fácil de aclarar, pois Dulcinha Amem-se.
e Tenório andavam como noutra densidade, resplrimâo are-s !rene, acocorada junto ao lume, pressentiu que, por baixo
de lua. meio cegos a tudo o que não fosse os seus amores do silêncio de repente espalhado na cabana, havia enleios,
e o parto de Milena. pressas, alegrias. Começava a cantar e a bater palmas quan-
E assim lhes seguiram as passadas mulheres e rapazio, do Milena se cobriu de. palidez e anunciou que o filho ia
pescadores, por um anoitecer de céu pesado quando do mar nascer.
apenas se sabia o rouco arfar de macho adormecido. O único
sinal na escuridão era a candeia com que lrene orientava ao
longe os visitantes. Mas, farejando o povo que os seguia,
uivou a louca com tal fundo ~cl~~ aflição que os curiosos se
ben~~ram ~ ~~ta~ar~m.TOre'ejando por acender isqueiros,
fósforos, contra os redemoinhos que os cercavam. Tendo em
seguida recobrado alento para regressar à vila com um enco-
lher de ombros preparado para reduzir a história a propor-

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Estava a vila a gozar-se do sossego que finalmente reco-
brira as coisas quando veio a notícia e fez rugir até os
corações mais tolerantes. A perdida sobrinha de Ercília Sil-
veira dera à luz um menino tão de cor como se houve~se
sido concebido sobre um chão de senzala, por pais pretos.
Em vão foram pedir explicações· a Tenório que se babava
num sorriso de parente.
- É uiT1belo_menino - repetia.
Dulcinha andava muito azafamada, passando horas segui-
das na cabana e ocupando o tempo que Ihe ficava livre a
costurar cortinas e cobertas para tornar a casinha de Tenó-
rio agradável a olhos femininos. lsaura reagira friamente à
ideia de viver sem a irmã:
-Vai custar-te passar sem automóvel -comentou.-
Eu não trocava um carro velho nem por um homem de trinta
anos.
Fora obrigada a entender-se secretamente com o gerente
do banco para que ele evitasse o acesso de Dulcinha à conta
de ambas. Com efeito, a irmã gastara como louca em enxoval
de luxo para o bebé e em caprichos histéricos de noiva.
Quando lsaura interveio, já as grandes despesas estavam
feitas. Ela sentiu-se muito defraudada, mas pensou com alívio
que a vida da irmã deixava para sempre de enredar:se na -
sua. Nunca julgara ser assim tão fácil separar-se sem dor e
sem despeito.
Visitaram-se as duas. com seca polidez, logo após que
Dulcinha se casou. Ainda hoje lsaura janta todos os domin-
gos à mesa da irmã e do cunhado e, desculpando-se com
erupções nos dedos, leva trouxas de roupa para lavar.
Está a cobrar assim, pacientemente, fazendo anotações
num"Câôerninho, os dinheiros que a irmã tirou _<lo banco.

O na_:>c;imento do menino negro veio levantar de novo


ódios, pavores~ O grariâe -ênervamento provocado por quase
um ano inteiro de estranhezas rebentou as comportas da
consciência e transformou os homens em feras assustadas.
As crianças, sentindo o cheiro_ a medo, e ouvindo as\
mães rememorar com as vizinhas tudo o que de intrigante
acontecera desde o tremor de terra inicial. deixavam de
comer e estremeciam, olhando ansiosamente para trás.
Só os leais amigos de Tenório tentavam reduzir a níveis
controláveis aquelas perigosas pulsações de terror:
-Que a rapariga ousasse ter um filho sem a bênção do
padre ou do notário, isso podia a vila perdoar. Os terrijJós
vão mudados eas massas civilizam-se. Que ela tenha fugido
para- a tonta, não é Sinal senão de outra IOÜcura e só .de.s-
pertaria compaixão. Agora tudo isso e um filho rT!~I~to ...

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é de mais. Só por obra do diabo - satirizava o Esteves escri-
vão. E porfiava, com despesas generosas de9~~1:~~. cl~ pala-
vras e bagaços, em convencer os renitentes populares de que
Milena se deixara seduzir por algum retornado das antigas
colónias.
Ninguém o atendia, tanto mais que não se recordavam
de ter visto Milena, ao tempo em que morava com a tia,
dirigir a palavra a homens brancos para além de alguns
velhos que ainda usavam chapéu. O que tornava muito im-
provável qualquer contacto, mesmo que superficial, com
aqueles negros bêbedos e pobres, carregados de filhos e
incapazes de levar na conversa fosse que mulher fosse.
Também ficaram surdos a construções da lógica quando
a excessiva irritação dos nervos abriu feridas na pele dos
mais sensíveis: pequenas chagas rubras nos braços e. nas
coxas, redondas, como abertas por cigarros. Os médicos
mandavam que tomassem calmantes mas era o mesmo que Três s=.manas depois de o menino nascer, os que, apesar
falarem noutra língua. As pessoas olhavam osesHgmafizaaos do frio; espiavam a cabana, contaram que Milena comecara
com~O se eles transportassem uma peste e espalhassem nos a sair com o bei:Jé nos braços e ali mesmo, no alto de ~ma
ares a contaminação. As mulheres evitavam o toque dos duna, se despia e lhe dava de mamar. ·
seus homens, afastavam-se as mãEls dos próprios filhos: Aquela exibiçãode um corpo feminino com a sua nudez
Houve um torrencial consumo de lexívia. implacável; essa. criança escura, parida sem ter nome raca
Tudo isto se passou com um certo pudor e muita discri- ou .. p.ate-rnidade, foram um desafio que a vila, enfur~cid.a,
ção porque até os eventos demoníacos eram fraquezas a guar· não pôde ignorar. Tinham os habitantes atingido aquele esta·
dar portas adentro, longe de intromissões de forasteiros. do em que a insegurança inventa, do seu nada, recursos bes-
Quem, aos domingos, passeasse pela vila, não chegaria nunca tiais de força e crueldade.
a perceber por que razão se enchera de suor naquele outono Ainda hoje confessam alguns deles - talvez os mais
anormalmente gelado. necessitados de inocência- que por estas alturas não eram
já senhores da moderação dada pelo discernimento, tão frá-
geis como vidro se sentiam, tão ressoados eram os seus
medos.

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Contam - a estranhos não, mas a parentes que, por as pálpebras descidas do menino. Mais que o temor, foi essa
andarem meses embarcados ou buscarem a sorte nas amé- esplêndida beleza que deteve um instante a multidão.
ricas, podem tocar apenas a memória dos acontecimerltos._ Mas _lrene,__E!!lg§?gada em maldições, com_ a terrível.voca-
E mesmo essa memória tantas vezes passou pelas palavras, ção dos perseguidos,acicatou de novo os humores hostis.
pelos sonhos, pelo secreto transtorno da vaidade que vai A serpente gemeu e estilhaçou-se: corriacàda qual conforme
tomando formas improváveis, com as grandes cores móveis a sua idade, a sua ligeireza e a força dos seus ódios, trope-
do delírio. Contam, pois, como quem atravessou as humi- çando e caindo nas depressões da praia, para atingir Milena.
dades mágicas da noite: ainda arrepiados, mal dormidos, e a louca, e a criança, tudo o que lhes andara desconcer-
sacudindo dos braços uma saudade absurda. tando a vida. O que iriam fazer, não o sabiam. Mas por menos
Contam o longo anoitecer em que, sem ordem, com pou- do que isso, muito menos, há histórias de matanças e
cas falas e nenhum aviso, avançaram ao longo das areias aflições.
na direccão do sul e de Mifena. Eles avançavam, homens e Os mais adiantados olharam para_MilenaE)yiram-na sor-
mulhere~. empurrados por dentro~pelo·saedosdo sangue,· rir. Estavam a cillco, a quatro metros dela. Passavam-lhes já
exigindo olltro sangue com avidez de cio. Corcovados os pE>Fto alguns torrões de mica com que lrene tentava afu-
ombros nas tarefas tão milenárias da destruição. gentá-los.
Corriam como lobos e cordeiros, cada um transportando Foi quando aquela espécie de lamento ou de acordar de
ao mesmo tempo a morte e o pavor dela; de olhos como fera, subterrâneo, atravessou a vila e os atingiu. A leste,
planetas. luminosos, mas vazios das nascentes que h_á na para além do casaria, do lugar onde se ergue Montedemo,
luz. Ofegantes, calados. confundidos num corpo monstruoso irrompeu um clarão alucinante, como um incêndio verde,
com o seu odor próprio, a sua excitação. Eram órgãos, teci- um ardor de águas cuspido para o céu, cobrindo tudo.
dos, de um enorme animal, uma serpente. E o chão abanou duas, três vezes, e viraram-se as gentes
para o mar que se compadeceu. Não lançou de si, pois,
Uma serpente, um réptil gigantesco, eis.o... que... lrene.viu
aquelas vagas com o peso do chumbo e o alcance de canhões
quando espreitou porque sentirag!"nte e era cedo para a
a cujo abraço nem os barcos nem os homens nem as portas
chegáda dê Temór'io e de Dulcinha. Com o susto, deixou res-
das casas se conseguem escapar durante as iras e os espas-
valar a candeia. E soltou das entranhas umtal grito que_
mos de dor da natureza.
ainda hoje aqueles que o escutaram encontram muitas vezes-
Estavam as ondas estranhamente fixas e azeitadas. De-
o seu eco dentro da vastidão dos pesadelos.
pois avermelharam como um espelho de cobre. Talvez devido
Ouvindo o grito, apareceu Milena com o filho nos braços. à queda da candeia, as tábuas da cabana haviam-se envol-
rodeada por uma zona de serenidade. E tão nítida estava, vido num fogo irrecusável, esfomeado e veloz. Das suas
tão diurna que podiam distinguir-lhe a cor dos lábios e habitantes não ficara vestígio.

48 49
Sob os pés, houve ainda quem sentisse mais afrouxadas
vibrações da terra. Ao longe, desfazia-se o fulgor, adensa-
va-se o véu do horizonte.

Que Tenório e DulciJ1ha não tenham ostentado desgosto


nem sequer preocupaçã() pelo desaparecimento de Milena e
do menino foi durante alguns ..tempos explicado na vila pelo
saudável egoísmo do namoro. Há, no entanto, quem afirme
tê:ros visto a coberto da noite, encapuçados, tomarem pela
estrada que leva a Montedemo, carregando cestinhos e
embrulhos.
Dona Ercília Silveira continua encerrada no seu primeiro
andar até que a morte, do cauteleiro ou sua, lhe venha
abrir as portas de saída. Pensa às vezes, de si para consigo,
que aquela teimosia é uma forma de paixão - e ri-se. lsaura
continua a visitá-la. Afiança que a velha se esqueceu da
sobrinha e que não tem a mais pequena ideia daqueles desa-
gradáyeis sucessos outonais.
:J.I'en~)apareceu, meses mais tarde, muito calma e dotada
de-um sorriso que lhe desenrugava a pele do rosto. Recea-

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vam-na tanto que optaram por§m<Ha. Ela .faz,_co111o sempre.
rezas, genuflexões, virada p~ra o s.ol. _iij)riga-se nos barcos
e, ao cair das chuvas, vai-se de novo embora. Tem rigorosa:
mente os mesmos dias pára chegar e partir que as aves
migratórias.
Ainda resta da cabana um espaço de brilho negro e de
ervas sempre em flor devorando umas cinzas infindáveis.
Nunca mais houve a festa de .. S_ Jorge. Substituem-na
agora por assadas numa praia deserta, mais ao norte,_ De
Molltedemo. pouco se diz, pouco se sabe.
1 As vezes, quando os gatos se assanhamsem razão e as
, crianças inclinam a cabeça escutando o l3()_1!l_~ algum des-
lumbramento, as pessoas murmuram: -{É do Monte) ·
E nos meses macios da primavera vão~g-rupos silenciosos
a passeio, pela beira da estrada. recobertos de paz. A dis-
tância contemplam Montedemo, a tumidez ruidosa dos seus
flancos, os seus emaranhados cabelos vegetais.
Reclama o padre que se está a dar início a coisas peri- LIVROS PUBL!CP,DOS NESTA COlECÇÃO:
gosas, a bruxedos, como se não bastasse o desarranjo em
que andam as repúblicas do mundo. N." 1 -Entre Fronteiras, António Júlio Valarinho
Ouvem-no pouco e distraidamente. Têm a sua história e N." 2-As Confissões de um caçador de dinossauros, Miguel Barbos::l
vivem dela - da paixão. da rudeza. do remorso e de insolú- N." 3 - Mágico Novembro, Raúl de Carvalho
veis interrogações. Há quem tenha avistado umamulherbelís,
N." 4-Pássaro Pesado de Sal, A. M. Freire Valente
sima levando ao colo um rapazinho escuro por entre o fer-
N." 5- Estátua de Sal, Maria Ondina Braga
vilhar do matagal. Esta notícia comoveu a multidão.
-Mantenham-se tranquilos -recomenda Tenório.- Se N.o 6-lsabe/, Isabel, Isabel, Noémia Seixas
os de fora suspeitam. metem-se por aí com cães e gases. N." 7- Montedemo, Hélia Correia
O que não é maneira de decifrar enigmas. Não há li111ites
e
para oque humano.
-Ame-m-se-- diz Dulcinha.- Nunca se sabe o fim.

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