Félix Ravaisson é um modelo de análise filosófica, que evidenciou sobretudo em dois volumes sobre Aristóteles (Ensaio Sobre a Metafísica de Aristóteles). Para além disso, escreveu pouco, sendo de referir dois pequenos livros, Do Hábito e o Testemunho Filosófico, que veremos aqui. Para a compreensão do que vem a seguir, deve ser lida a seguinte tradução parcial do Testemunho Filosófico. http://www.seminariodefilosofia.org/system/files/ravaisson+-+testamento+filosofico.pdf Este texto é um dos mais densos que existe a respeito da filosofia antiga, contendo vários níveis que se encaixam ou entremesclam. Ravaisson começa por evocar algumas personagens mitológicas e históricas. A distinção entre História e mitologia não era muito clara no ambiente greco-latino. Júlio César, por exemplo, considerava-se descendente carnal da deusa Vénus. Daqui ele tira algumas conclusões de ordem moral, de onde também saem algumas distinções psicológicas. Havia os filhos dos deuses (Hércules, Teseu, Aquiles), que eram chamados de heróis porque se acreditavam nascidos para o mundo inteiro, eram tocados pela sorte dos demais e dispunham- se a ir em socorro dos mais fracos. Estes são aqueles que eram tocados pelo “impulso originário”, que Bossuet dizia ser aquela bondade que Deus colocou nas entranhas humanas em primeiro lugar. A mitologia antiga também exprime isto de alguma forma, dado que nela está sempre presente a crença na beneficência divina. Entre os homens e as famílias, mais do que desconfiança e ódio, era a hospitalidade que era considerada uma coisa sagrada. Mas é também preciso reconhecer que a maioria dos homens sempre cedeu às “tentações do egoísmo”, algo que apenas reforça a tendência natural de cada um cuidar de si em primeiro lugar. Mas esta tendência pode ser contrariada voluntariamente, porque todos temos a capacidade de sacrifício em prol de algo maior, o que invalida a tese hobbesiana. 340 Hobbes ignorava a existência do “impulso original” de bondade no ser humano (que até se assiste em quase todas as guerras entre os lados adversários, porque na guerra o que prevalece é o medo), e achava que apenas uma agressão maior do que todas as outras podia acabar com o estado “natural” de agressividade generalizada e trazer a bondade. A grandeza de alma é algo que o homem do vulgo não consegue vislumbrar, porque ele não tem força para ajudar os outros e nem sequer tem capacidade para resolver os seus próprios problemas, assim, vive em função do medo e sempre buscando segurança. Então, o homem vulgar projecta em tudo o que vê a sua própria fraqueza e pequenez. Schuon dizia que o pecado tem três etapas: a ignorância (desconhecimento da verdadeira estrutura da realidade e da verdadeira constituição do homem); a fraqueza (o medo que conduz à busca de auto-protecção e à recusa da solidariedade dos outros); e a maldade (que começa de forma negativa e torna-se depois activa, eventualmente iniciada como forma de defesa da posição de resguardo contra algum medo imaginário). O sujeito habituado à auto-defesa física logo procura a auto-defesa psíquica, tornando-se obcecado por um estado de equilíbrio, de homesostase. Assim, afasta-se de qualquer notícia negativa ou da visão do perigo, porque são coisas que o deixam desequilibrado. Isto é estrutural no ser humano mas agravou-se muito nas sociedades contemporâneas com a multiplicação de mecanismos de protecção colectivos e estatais, que tornam os indivíduos incapacitados de enxergar os perigos, sobretudo o risco supremo, que é aquele salientado por Bernanos: morrermos como idiotas. Diz Meira Pena que vivemos numa sociedade que substituiu o tabu do sexo pelo tabu da morte. Apesar dos últimos séculos estarem cheios de guerras e de revoluções devastadoras, os indivíduos precisam de acreditar que existe uma estabilidade na sociedade como um todo que possa sustentar a sua ilusão de estabilidade interna. Para sustentar esta crença, existe a ideia de autoridade, mas tem que ser uma autoridade impessoal, porque os homens vulgares passaram também a ser lisonjeados e iludidos de que agora são livres, ninguém manda neles e cada um “pensa pela sua própria cabeça”. Então, a autoridade passou a ser a ciência, a tecnologia, ou a universidade que supostamente sabe ou um dia tudo saberá, o que deprime nas pessoas a vontade de fazer perguntas. A estes dois tipos de personalidade (a heroica e a do vulgo) correspondem dois tipos de filosofia. Os homens pequenos reduzem a filosofia à sua própria pequenez, criam filosofias que podiam ser ditas niilistas porque eles, sendo eles “homens de nada”, facilmente admitem que tudo se formou a partir do nada. Contentam-se em prolongar as suas existências precárias, preocupando-se apenas em adquirir, e se admitem a existência de potências invisíveis que os influenciam, desconfiam que destas apenas se pode esperar “pouco de bom e muito de mau”. Para eles, o mundo compõe-se essencialmente de corpos inertes e esparsos, sendo esta a marca das filosofias materialistas que reconhecemos na antiguidade em Demócritos e Epicuros, as filosofias ditas pobres, pequenas ou plebeias, baseadas nos sentidos e no entendimento. Estas filosofias buscam os seus princípios nas coisas inferiores, que são os materiais para as formas superiores onde aparece a ordem e a beleza. Para o epicurismo, assumindo que apenas pode ser conhecido aquilo que é dado pelo testemunho dos sentidos – que revelam apenas corpos e seus acidentes –, a consequência é o encerramento do homem em si mesmo, o que já ecoava a proclamação sofista das sensações serem a medida de todas as coisas. Cada indivíduo considera- se como que um todo fechado, como uma realidade em si mesma que não se comunica realmente com os outros. Então, como pode acreditar este homem na existência do mundo exterior? A questão colocada por Descartes parece um 341 problema filosófico real depois de já existirem muitas pessoas com uma concepção corporalista da realidade, acreditando elas mesmas serem reais mas que o mundo talvez não o seja, o que é evidente psicose de quem já esqueceu que não é eterno, que veio de outro corpo e assim por diante. Nunca o mundo esteve fora de nós e nem nós fora do mundo, que são apenas hipóteses que só existem no pensamento mas que depois são colocadas como se fossem a realidade. Mas as filosofias pequenas ainda permanecem e induzem questões de todo o género, por exemplo, na física pergunta-se do que são feitas as coisas ou do que são compostas. A resposta pode ser “de átomos” ou qualquer outra, mas a resposta não diz nada, porque na pergunta já solicita a noção de forma, no fim de contas é a questão sobre a causa formal de Aristóteles, e responder com uma base material é claramente insuficiente. Os homens de elite, aqueles ditos “generosos” por Descartes e Leibniz, têm “uma alma cujo carácter é ser simpática a todas as outras”, cada um deles é consciente de “portar em si uma força pela qual ele é senhor de si mesmo, que constitui a sua dignidade e constitui igualmente a dignidade de todos os outros”. Os indivíduos grandes criam imagens do universo que expressam não a sua própria grandeza mas a grandeza do universo, do qual se reconhecem apenas receptores. Custa a crer que estes homens não acompanhem Tales na crença de que tudo está cheio de almas, cada uma com raiz divina. De homens como Sócrates, Platão e Aristóteles saíram as filosofias ditas reais ou aristocráticas, mas também apelidadas espirituais ou espiritualistas dado que viam deuses ou potências ocultas dirigindo o mundo. Ravaisson faz depois, num única e densa página, um resumo histórico da evolução fundamental da ontologia desde Sócrates a Aristóteles, de onde vai tirando centos princípios do método filosófico. Diz ele que Sócrates percebeu que as sociedades não podiam subsistir apenas com doutrinas materialistas, estando persuadido de que as coisas sensíveis dependiam de outras que apenas se podiam conhecer pela inteligência. Viu que havia regras para discernir o justo do injusto, o bem do mal, e provou que havia uma ciência acima das conveniências, baseada nas generalidades comuns aos indivíduos. Platão, indo mais além, disse que as coisas sensíveis são modelos inteligíveis das suas qualidades, as famosas formas ou ideias imutáveis. Mas se as coisas da Natureza revestem-se passageiramente destas formas, estas tornam-se causas, embora sejam extractos tirados das coisas pelo entendimento – que tem a faculdade da abstracção de destacar coisas que estão juntas, mas que depois podemos esquecer do ponto de partida e tomar cada coisa como existente por si mesma – e que apenas têm existência real nos indivíduos (são actos de inteligência), é o “forjamos e ao mesmo tempo cremos”, erro apontado por Tácito. Aristóteles observou que o geral não existe em si mas é criado pelo pensamento, pelo que só o indivíduo pode ser um princípio e uma causa de existência. As abstracções são apenas causa de imobilidade, não podem explicar o movimento e a vida. Então, Aristóteles substituiu as ideias puras pelas almas como “fontes de movimento e de vida”. Platão podia ser desculpado por não ter ainda à sua disposição uma dialéctica suficiente para distinguir os diversos sentidos da palavra “ser”. O entendimento busca uma razão de ser para tudo, mas as coisas mais altas conhecem-se imediatamente por intuição e por analogia, o que Aristóteles traduziu numa distinção entre as diferentes categorias, ele que, perceptor do último herói grego (Alexandre, o grande), avançou na via do antigo heroísmo, que deseja o ser e “não se contenta com sombras, ídolos ou fantasmas”. α93