“Não se trata de um relato que procura verossimilhança, uma história de bichos e caçadas.
O que quis foi
incorporar uma dessas mulheres e contar a história da sua condição histórica e social. As mulheres rurais de Moçambique há muito que estão sendo devoradas por um sistema de patriarcado que as condena a uma situação marginal e de insuportável submissão”; “Inventei apenas alguns (os personagens). O caçador é inspirado numa figura real, um amigo meu que foi, de fato, chamado a intervir para matar os leões. Mas a história que ele atravessa é toda ficcional. Assim, o meu amigo, inspirador da personagem, já não mais está presente. O escritor tem um pouco de mim, mas ele vive uma narrativa que nada tem a ver comigo. Inspirei-me em situações, mais do que em pessoas.” “Conhecia alguma coisa (os mitos e tradições), sim. Sou biólogo, já percorri grande parte do território do país e fi-lo em visitas demoradas que me permitem mergulhar no universo das pessoas. Não vou lá como um turista. Contudo, na aldeia de Palma (que no romance surge como Kulumani) eu tive que permanecer mais tempo. Só o tempo torna possível que os aldeões se abram para um estranho. Depois, não sei se devemos falar em mitos e tradições quando falamos desses povos. Eles têm pensamentos e religiosidades próprias que valem tanto e são tão dinâmicas como as lógicas da cidade e da modernidade.” No livro, há diversos momentos de mistura entre o real e a fantasia. As próprias personagens muitas vezes questionam se o que veem e pensam é real ou fruto da imaginação. Você desejava brincar com essas fronteiras? “Toda a literatura faz isso o tempo inteiro. A ficção é um caminhar nesse limiar de mundos, um convite a redesenhar essas fronteiras.” “Essa condição de exclusão e opressão é ainda muito presente em Moçambique. Em geral, as sociedades rurais são muito patriarcais e a mulher vive numa situação em que não tem direito à palavra, não tem direito à presença senão mediatizada por um homem. O que refiro no livro, nesse aspecto, é um retrato da realidade. As jovens rapidamente são tidas como mulheres. Mas só no sentido sexual e da maternidade. Porque não chegam a ser respeitadas como mulheres. As velhas e, sobretudo as viúvas, são olhadas com desconfiança e muitas vezes tratadas como feiticeiras.” Narrado em primeira pessoa, ora por Arcanjo, ora por Mariamar, eles vão se alternando capítulo a capítulo; Mariamar e Arcanjo: “É na loucura que eles representam a si mesmos porque vivem uma situação limite e, para superá-la, precisam cruzar a fronteira da chamada “normalidade”. Eles precisam olhar o seu lugar a partir de fora. E esse “fora”, essa exterioridade só se alcança a partir da outra margem.” (Mia Couto); Kulumani é uma terra de "assimilados", um grupo minoritário de moçambicanos negros que assumiram a cultura dos portugueses. Em todo o país é um grupo minoritário e na aldeia de Kulumani reduz a apenas uma ou duas famílias. O colonialismo português formatou esse grupo social para que reproduzisse a ação do aparelho de estado colonial. Curiosamente, foi esse grupo que acabou se revoltar contra a dominação colonial; Arcanjo tem de lidar e enfrentar com o ego das autoridades, mitos, lendas, costumes e tradições locais, e a desconfiança e amor retraído de Mariamar, uma moça da aldeia que nutre pelo caçador uma paixão reprimida; Apesar dos dois olhares distintos (Arcajo e Mariamar), eles se entrelaçam e tornam-se um; Tudo está ligado: passado, presente e futuro confundem-se e alternam-se no relato dos dois; Enredo com ar de drama e suspense, até o final; Na última frase Mia Couto revela quem verdadeiramente é a leoa e é compreensível o título “A Confissão da Leoa”; Sociais: retrata e denuncia os maus tratos, indiferença, submissão, traição, assassinato e a opressão sexual a que as mulheres são impostas e submetidas diariamente, e muitas vezes, com a conivência e participação das autoridades; A Confissão da Leoa não é um romance alegórico; Não é sobre uma determinada condição da mulher africana no sentido do exotismo e da mitificação sociocultural; Gira em torno dos direitos das mulheres africanas ao próprio corpo e a palavra; e aos direitos da própria ficção na literatura; Na aldeia de Kulumani, rondam as casas os leões comedores de gentes, ou melhor, de mulheres, que são as maiores vítimas, este fato também não é puramente alegórico: carrega o traço da mulher africana em relação ao homem africano – há um abismo; Fervor social na ânsia pela eliminação dos leões; Arcanjo: luta internamente com seu passado e presente (com o tempo e o espaço); O livro se articula no discurso poético e no político; Poético: jamais permite ser invadido por facilidades narrativas, como aquelas de escritores que pensam que o romance é um encadeamento de fatos coerentes, cuja estrutura e cuja lógica devem obedecer a prescrições maiores (fluxo da narração para prender o leitor); Mia Couto desdobra o ritmo; transborda o fantástico na sua mistura com o real sem perder a poesia que escorre ali mesmo, por todos os cantos. Fruição psicológica que permeia as histórias (porque, aqui, nesta África, são muitos mundos em um só) para depois perdê-las novamente; Não há conclusões a cada final de parágrafo; Potencialização do discurso passado: torna cada momento no momento mais importante; Confusão de realidades e aparências, de sonhos e encontros furtivos no meio da noite nas florestas, urge uma precisão pulsante, até cirúrgica, na condução dos acontecimentos. Jornada de autocrítica; Angústias e dúvidas dos personagens; As mulheres de Kulumani sabem segredos; Os conflitos e os dramas internos de cada personagem carregam a força do romance, que, a partir da aproximação do imaginário com o real, num entrelaçamento difícil de separar, assaltam o pensamento lógico do leitor; Mia Couto bem sabe que os problemas da África não dizem respeito apenas ao passado colonial, mas que também é a África responsável por seus dramas. Aquilo que pensamos conhecer talvez não seja nada disso. Essa é, aliás, sua beleza. O corpo e o espírito, sempre em sentidos múltiplos, para além dos dogmas religiosos e das deduções científicas, se mostram pulsantes; http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2012/11/10/mia-couto-fala-sobre-confissao-da-leoa- 474310.asp
A Ressubjetivação Da Mulher e A Desconstrução Do Mito Do Homem Moderno em "Como Se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas", de Elvira Vigna Por Suzane Silveira