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PLUMA E A TEMPESTADE

Aristides Vargas

Tradução: Hugo Villavicenzio

PERSONAGENS:

PAI

MÃE

PLUMA

GIGOLÔ

GLORIA NACIONAL

PROSTITUTA VELHA

TRÊS POLICIAIS

SENHORA

BÊBADO

CACHORRO

OPERÁRIA PERDIDA

POETISA MORTA

PROFESSORA VELHA

TRÊS ALUNOS VELHOS

HOMEM COM VIRGEM

HOMEM

Com exceção do PAI, a MÂE e PLUMA, o resto das personagens pode ser dobrado. A
personagem PLUMA pode ser interpretada por um ator ou por uma atriz, ou pode ainda
desdobrar-se em dois, sendo representado por um ator e por uma atriz.

As diferentes fases pelas que passa a personagem PLUMA vão transformando-a física e
psiquicamente; é um ser urbano que encontra a sua individualidade por meio da experiência.

CENA I

PLUMA NASCE DE FORMA MÁGICA NUM LAR MISERÁVEL

PLUMA, sentado no meio do palco assiste a discussão dos pais. A MÂE tem uma
barriga descomunal onde supostamente ele se encontra.
MÃE: Estou farta de você ficar bêbado com o meu dinheiro, estou farta deste lugar
malacafento e de que você fique à toa como um sonâmbulo, um idiota de um porco
sonâmbulo. Você é um bosta. Isso é vida pra você?

PAI: As putas não brilham pela boa educação.

MÃE: Nem os cafajestes pelo bom humor.

PAI: Está se queixando do que? Tirei você do lugar asqueroso onde morava. Dei uma casa
decente pra você.

MÃE: Decente? Você já reparou nos vizinhos da gente? Tem a cara tão remendada que quando
os vejo eu me pergunto: esse pessoal vai ao pronto socorro quando tem a cara cortada? Não,
não vão, eles costuram aqui mesmo, no alfaiate da esquina. As suturas e as cicatrizes não
deixam ver o boa gente que eles poderiam ter sido.

PAI: Cala essa boca! Para de encher!

MÃE: Não calo a boca, não! Olha minha barriga, você encheu de fraldas o meu futuro.

PAI: Parir é um milagre de Deus, uma graça divina.

MÃE: Tá mais pra desgraça equina!

PAI: Não blasfema mulher!

MÃE: Fica sabendo, parir neste lugar não tem graça nenhuma, é piada de mau gosto, é
palhaçada de Deus.

PAI: Vai acontecer algo ruim com a gente. Você está esculhambando o Senhor. Vai acontecer
uma desgraça com a gente, já to sentindo.

MÃE: (Fria) Vou matar quando nascer.

PAI: Que bobagem você tá falando?

MÃE: (Quase chorando) Foi você quem me arrastou até aqui, quem me convenceu que era um
bom lugar pra morar, mas é um péssimo lugar pra morrer, isso sim.

PAI: Você perdeu a vergonha, tá fodida.

MÃE: Tamos fudidos!

PAI: A palavra é paciência.

MÃE: É isso ai.

PAI: O que?

MÃE: Paciência.

PAI: É isso ai!


MÃE: O que?

PAI: Paciência.

MÃE: É, acho que era algo desse jeito.

PAI: Você é que não tem jeito.

MÃE: E você não tem vergonha.

PAI: Cala essa boca, estou cheio dessa voz.

MÃE: Você vai dormir?

PAI: Como é?

MÃE: To perguntando se você vai dormir.

PAI: Pergunta por quê?

MÃE: Você pede pra eu calar a boca e eu pergunto se você vai dormir.

PAI: Não vou, quem sabe vou rezar pra que tudo acabe bem com a gente.

MÃE: Eu vou encher a cara pra esquecer tudo.

PAI: Falei pra parar de beber, isso não é bom pra criança. Você tá querendo parir um deficiente
no lugar da criança. Tá querendo isso, é? Vai encher a cara, vai! Vou ter que amarrar tuas mãos
pra você melhorar. Você tá doente, sabia? Muito doente.

MÃE: Doente de fome e solidão. É este lugar, não tem outra coisa que vingue aqui.

PAI: Acha que eu gosto de morar desse jeito? Acha que a maioria do pessoal adora este lugar?
Não, minha querida, todo mundo apodrece e mija nas suas malocas. Pode abrir a janela para
se olhar no espelho. Vou ter que bater para você perceber?

MÃE: Você não sabe em quem bater e acaba sobrando pra mim. Joga socos a esmo e eu
apanho porque estou perto. Não dá pra amar ninguém só por que está perto e apanha da
gente. Acho que nosso amor também tá doente.

PAI: Tem vez que a gente gosta porque não sabe fazer outra coisa, é como acreditar em Deus
porque não sabemos em quem acreditar. Então, tudo que a gente faz na vida não tem
convicção, você faz porque não tem outro jeito.

MÃE: Olha, estou surpresa.

PAI: Surpresa por quê?

MÃE: Cheguei a sentir ternura por você. Bobagem! Agora não estou sentindo mais nada, foi só
um instante, já passou.
PAI: Antigamente, muito antigamente, você conseguia me machucar. Agora não machuca
mais.

MÃE: Tem hora que a gente fecha a janela e dorme.

PAI: Tenho trancado a porta também. Não vai poder entrar no meu coração, você ficou de
fora, ao relento, pra sempre.

MÃE: Uma hora todo mundo dorme. O mundo enche de trevas e o silêncio toma conta das
casas, as pessoas voltam a ser inocentes quando sonham, não são perturbados por nada
porque de certa forma estão mortos. Não gosto mais de você.

PAI: O sonho é mais forte do que o amor.

MÃE: Agora eu tenho que ir trabalhar. Você pode continuar dormindo.

PAI: Eu queria que você não fosse mais a esse bar.

MÃE: Faça alguma coisa: arruma um emprego, vira encanador ou palhaço de circo, faz alguma
coisa, sei lá...

PAI: Eu tinha era vontade de arrebentar você a pontapés.

MÃE: Por que não tenta! Vai sair barato me arrebentar a pontapés, depois de ter arrebentado
meu coração e encher o meu futuro de fraldas.

PAI: Falar do futuro, como é que pode?

MÃE: Posso, porque posso vê-lo aqui na minha cabeça.

PAI: Olha o futuro, meu amor. Leia o jornal, não tem futuro. Chegamos ao fim da picada. Antes
a gente podia até pensar em melhorar, vivendo com dignidade na miséria por que
acreditávamos que existia o futuro. Hoje vivemos o presente, tamos condenados ao presente.

MÃE: Fecha essa matraca!

PAI: Não vou mexer um dedo pra esse futuro!

MÃE: Vai acontecer esta noite, tenho um pressentimento. Não existe mal que dure cem anos.
Queria voltar pra casa da minha mãe, queria ser cuidada por alguém, queria ver a minha mãe
aguando as sempre-vivas. Então o medo ia embora porque no dia seguinte a minha mãe
voltaria a aguar as sempre-vivas e elas voltariam a florescer. No meu pai florescia a afeição que
tinha por ela.

PAI: Era outro tempo e outra gente. Com certeza todos já morreram, até a sempre-viva.

MÃE: Certamente. A palavra certa é resignação?

PAI: Não sei não, não lembro dela.

MÃE: (Pausa) De noite canta, sabia?


PAI: Quem?

MÃE: O que tenho aqui. (Apontando pra barriga)

PAI: Canta?

MÃE: Sim.

PAI: Não.

MÃE: Sim.

PAI: Como alguém pode cantar num tempo desses!

MÃE: Isto aqui. Você quer ouvir?

PAI: Mas, tem certeza que canta?

MÃE: Tenho, chega mais, venha... Está ouvindo?

PAI: (Aproximando o ouvido ao ventre da mãe) Por que diabo canta tanto? Parece com o
vento, forte com a tempestade e ao mesmo tempo leve como uma pluma.

MÃE: É uma pluma na tempestade.

Os pais adormecem ouvindo a canção esquisita que ecoa desde o ventre da MÃE.
PLUMA começa a movimentar-se, vai nascendo, os seus movimentos são imprecisos e amorfos,
finalmente fica em pé e cresce.

CENA II

PLUMA SE APRESENTA E DECLARA O QUE VAI FAZER

PLUMA: Eu sou Pluma, e isso significa muito, porque tem outros que chegam ao mundo e não
são nada. Pelo menos eu sou Pluma. Cheguei ao mundo enquanto meus pais dormiam, minha
mãe fez força, ninguém esperava por mim, cheguei por conta própria. Esse é o céu, essa é a
terra, esses são meus pais, - seu eu soubesse não vinha. Este lugar é fedorento, fiquei meses
ouvindo meus pais brigarem. Acho podres as palavras deles, tem empesteado este lugar aqui.
Eu sou Pluma, nasci e cresci nos abismos do tempo. Levou alguns minutos para adquirir este
aspecto; - eu sei que não é dos melhores, mas também, este mundo carece de tanta coisa. Esta
é a noite e estes são meus pés; não existe farol no submundo, não há milagres nem luz. Pulo
da escuridão do ventre materno para a escuridão da noite, rumo às ruas. Esta é minha cabeça!
Este é o meu coração e estes são meus pés! Este é meu grito! (Grita e foge pela janela, da
casa, pendurando-se no sistema de fios elétricos.)

CENA III

PLUMA AFASTA-SE DOS PAIS E DESCOBRE OS PERIGOS DA CIDADE


GIGOLÔ: (Enquanto veste PLUMA de prostituta.) Não tem que se preocupar com nada, eu vou
ensinar tudo da vida pra tu. Quer saber por quê? Porque tu és uma alma vazia, uma alma que
não sabe nada da vida; e aquele que nada sabe nada quer. Vai se divertir muito comigo, eu
sempre vou estar por perto pra te proteger; nas noites de frio vou dar alento e conforto, nas
noites quentes vou dar água de manancial pra tu lavar aquele lindo passarinho que levas entre
as pernas, que ainda não canta, mas que vai cantar quando eu mandar cantar; terão que botar
dinheiro aqueles que queiram ouvir esse pássaro cantar no manancial. Tu és muito criança e
ainda não entendes as coisas da vida. Tu vai ver como a gente se diverte as pampas, tu e eu.

PLUMA: É mesmo, isso está muito engraçado.

GIGOLÔ: O que está engraçado?

PLUMA: Isso, as coisas da vida.

GIGOLÔ: Como é idiota!

PLUMA: Idiota e engraçado, as coisas da vida. Antes daqui, trabalhei num banco, mas fui
mandado embora porque me divertia muito. Acontece que as notas me faziam rir, quer dizer,
a cara dos sujeitos que botam nas notas. Parecem que estão com dor de barriga, os
libertadores, as rainhas, os heróis, todos parecem que estão com dor de barriga. Que mania de
enfiar a história nas notas, como se as péssimas lembranças tivessem algum valor.

GIGOLÔ: (Suavemente, segurando a raiva.) Cala essa boca.

PLUMA: Mas, não é pra gente se divertir? Não é não?

GIGOLÔ: Cala boca. Por que tu falas tanto? Acha que as palavras vão te salvar?

PLUMA: Isso não tem graça nenhuma.

GIGOLÔ: É uma paisagem da alma.

PLUMA: O quê?

GIGOLÔ: Estou falando da brincadeira.

PLUMA: Não estou entendendo.

GIGOLÔ: Tu entendeu o cheiro delicioso que tem esta parada? Entendeu? Só tem que se
largar no cheiro, deixar que ele governe, que atravesse, que te possua. O sujeito sem cheiro
nenhum está condenado a morrer de frio. Vou fazer de tu o que nunca tu imaginou fazer por
tu mesmo.

PLUMA: Muito obrigado senhor.

GIGOLÔ: Não agradece, não. Virá o tempo de devolver o favor. De onde tu és?

PLUMA: De um bairro triste e miserável.

GIGOLÔ: Tem família?


PLUMA: Meus pais dormem faz tempo.

GIGOLÔ: Por que não acorda eles?

PLUMA: Fico com medo deles, também fico com medo das enfermeiras que não conseguem
aplicar uma injeção, que fazem uma carnificina antes de encontrar a veia da gente. Eu fui
enfermeiro e não...

GIGOLÔ: Tu és mentiroso isso sim. Nunca trabalhou como enfermeiro, nem nunca foi bancário.
Tu não me enrola, porque eu sei tudo da vida. Pra mim ela passa por um único lugar. É bom tu
ficar sabendo disso.

PLUMA: Passa pelos seus sapatos.

GIGOLÔ: Por que tá falando disso?

PLUMA: Pelo som da sola no cimento, é o som de um sapato que conhece tudo da vida.

GIGOLÔ: Tu é bem esquisito.

PLUMA: Aqui todo mundo é bem esquisitos: a gente se abraça de jeito esquisito, ama de jeito
esquisito e o mais esquisito de tudo, quando a gente está longe do outro, não sentimos
saudade. Muito esquisito, não é?

GIGOLÔ: Percebo certo nervosismo, tu tens fibra. Como foi quando criança?

PLUMA: Não sei, acho que nunca fui criança.

GIGOLÔ: Aquele que esqueceu o tempo da criança não sabe de que está feito. Perdeu o
paraíso. Mas não tem importância, tu ganhou outro céu ou outro inferno, isso depende do
ponto de vista. Céu e inferno é a mesma bobagem, num surge o pecado, noutro é aplicado o
castigo. (Cheirando cocaína.) Esta farinha me da uma luz incrível, com três quilos eu acabava
escrevendo um tratado filosófico. Tu vai ser muito feliz neste lugar!

PLUMA: Acho que não, quer dizer, eu duvido da felicidade. Caminhando pela rua percebo que
as pessoas não precisam ser felizes, o gozado é que agem com certa preguiça, como se fosse
um alívio. A felicidade deixou de ser um grande projeto de vida.

GIGOLÔ: Cala essa boca! Não me deixa deprimido, faz favor, não me deixa deprimido. Não
quero que fique falando no ouvido da minha freguesia. Tu não vai aconselhar ninguém,
entendeu? Tu é uma puta, então, se eu faturo tu faturas. Vai por mim, eu conheço bem a vida,
isso é o que me faz ser um homem feliz.

PLUMA: Fico contente pelo senhor.

GIGOLÔ: Tá vendo? Tu é feito eu, fica contente com a felicidade alheia. Nosso ofício consiste
em ajudar o pessoal solitário. Não pensa que nunca fiquei triste, fiquei, mas não gosto de
lembrar quando.

PLUMA: Nunca ninguém se preocupou tanto pela minha felicidade, mas tenho que me
apressar.
GIGOLÔ: Pra que?

PLUMA: Pra cumprir suas ordens, não quero desapontar o senhor.

GIGOLÔ: Isso parece sensato e chique. Gostei, gostei.

PLUMA: (Com malícia.) To parecendo um paciente que vai ser operado da cabeça quando na
verdade está doente do fígado. Não quero decepcionar o médico falando da verdade.

GIGOLÔ: Ta me deixando muito nervoso. O médico sou eu por acaso?

PLUMA: Não, o senhor é um pai de família, quer dizer, deve ter alguns filhos. O que vai
responder quando um dia eles perguntarem: “Pai, o que o senhor fez pela felicidade dos
homens?” Como vai se sentir quando tenha que responder como se estivesse vendo sua vida
na televisão? “Nada, naquele momento tive que levantar-me pra ir no banheiro.”

GIGOLÔ: Cala essa boca!

PLUMA: Eu só estava refletindo.

GIGOLÔ: Fecha essa maldita matraca! E fica calmo.

PLUMA: E que tenho que me apressar.

GIGOLÔ: Relaxa! Sabe o que é isso? Re-la-xa! Ninguém melhor do que tu par conhecer a
palavra esperar, tem que sentar no balcão e esperar, ficar na esquina e esperar, estar na vida e
esperar que o silêncio vire alguém. Então, apoiando a cabeça no peito dele, tu deves esperar.
Eles vão acreditar que te possuem por que esperas. Então, gemendo suavemente faz tremular
teu corpo e com o sangue-frio de um açougueiro mostra os peitos que são tão lívidos que nem
duas luas, e tuas coxas tão pálidas que nem duas palmeiras. Espera! Choverão babas furiosas,
mas tu é inatingível. Espera! Eles vão-te ver ardendo de desejo, mas tudo não vai passar de
uma ilusão, de um jogo. O desejo é tão intenso que eles só conseguem enxergar no
enceguecimento do desejo. É um jogo de ilusões, um cretino, ardente e aborrecido jogo de
ilusões. Eles vão urrar excitados e serão felizes, enquanto tu ficarás longe desse lugar, gelada,
loira e borbulhante.

PLUMA: Feito uma cerveja.

GIGOLÔ: Criança, idiota! Não entendeu nada.

PLUMA: Entendi sim senhor. É alguma coisa como estar e não estar.

GIGOLÔ: Isso mesmo.

PLUMA: É dar e não dar.

GIGOLÔ: Isso mesmo.

PLUMA: Gritar, mas não gritar.

GIGOLÔ: Isso mesmo.


PLUMA: Quer dizer que os homens deitam com um cadáver e além do mais pagam.

GIGOLÔ: Por isso, tu tens que entregar a grana pra mim.

PLUMA: Por quê?

GIGOLÔ: Porque os cadáveres não têm preocupações materiais.

PLUMA: Um cretino, ardente e aborrecido jogo de ilusões.

GIGOLÔ: Agora vai fazer esses homens felizes!

CENA IV

PLUMA É AVISADO SOBRE O PERIGO DO LUGAR

Uma PROSTITUTA velha dança bolero com PLUMA. Ela fala muito enquanto dança,
leva uma caixa de sapatos pendurada no pescoço, está “alegre”.

PROSTITUTA: Sou velha neste ofício.

PLUMA: Dá pra perceber.

PROSTITUTA: Olha meu vestido, foi um presente de um “doutor” que tinha um bigode tão
perfumado que quando eu beijava, parecia que eu estava levando a boca uma porção de
morangos. Você tem que ir embora daqui.

PLUMA: Não tenho motivo nenhum pra ir embora. Se bem que, também não tenho nenhum
pra ficar.

PROSTITUTA: Eu sou velha e sei do que estou falando. Você é jovem e aqui vai ficar virgem pra
sempre. Perde-se a inocência para ganhar o amor – aqui ninguém nunca ganhou o amor, por
causa disso a inocência envelhece. Eu cheguei na cidade pensando em perder a inocência pra
ganhar o amor. A única coisa que consegui foi uma boca pendurada da minha cara, uns olhos
pendurados da minha cara. É como se meu rosto tudo quisesse cair pelo chão. Somente o
amor pode te sustentar no ar. Eu vim pra cidade e às vezes a minha mãe mandava um pão pra
mim. Quando botava na boca parecia que voltava a floresta onde nasci. Era miraculoso, o pão
da minha mãe multiplicava-se em lembranças. Agora ela não manda mais nada, mas a vida é
assim mesmo. Às vezes deito com homens de outros lugares e peço pra eles falarem de onde
são. Então, escrevo o que eles contam em papeis que guardo nesta caixa de sapatos. Esse é
meu tesouro, uma caixa de sapatos cheia de paisagens que não são minhas. Você tem que ir
embora daqui e pairar no ar feito pluma.

CENA V

PLUMA MATA DE DESGOSTO UMA GLORIA NACIONAL


Pluma está sentado no colo de um velho deputado da República. Ele tem o aspecto de uma
criança e o deputado parece um avô lascivo.

NOBRE DEPUTADO: É incrível, mas com o passar do tempo acabei transformando este bordel
no meu segundo lar. Muito mais do que isso, foi neste lugar que eu virei propriamente um
homem. Foi o meu pai quem me trouxe aqui pela primeira vez. Até parece que o estou vendo
ali sentado numa cadeira, esperando que façam de mim o que sou agora: um homem.

PLUMA: “É um jogo idiota e ilusório”.

NOBRE DEPUTADO: O que você está falando garotinha?

PLUMA: Estou falando do que o senhor está falando.

NOBRE DEPUTADO: Estou falando do meu pai e daquela cadeira vazia, sem ele. Quero lhe
confessar uma coisa.

PLUMA: “Escuto, espero, sou uma cerveja que escuta e espera”.

NOBRE DEPUTADO: Não sei como falar.

PLUMA: Eu também não.

NOBRE DEPUTADO: Não consigo ficar excitado, essas lembranças que voltam, o meu pai, a
cadeira, impedem que me apaixone.

PLUMA: Acontece que a cadeiras não costumam ser muito excitantes.

NOBRE DEPUTADO: Não é isso o que quis dizer.

PLUMA: Eu também não. Já temos alguma coisa em comum: nos dois falamos coisas que não
queremos falar.

NOBRE DEPUTADO: Quer dançar?

PLUMA: Tá bom, “leve tremor do corpo e gemidos”. (Dança de forma assimétrica)

NOBRE DEPUTADO: O que acontece com você? Está passando mal?

PLUMA: Não consegue se excitar?

NOBRE DEPUTADO: Não.

PLUMA: Então, beba alguma coisa.

NOBRE DEPUTADO: Não posso, minha profissão não permite, sou deputado da República.

PLUMA: Somos colegas, então.

NOBRE DEPUTADO: Como é?

PLUMA: O pessoal que não bebe costuma ser boba e muitas vezes cobarde. Não tem filhos
porque suas noites de amor não foram molhadas por um bom copo de rum.
NOBRE DEPUTADO: O rum esquenta o sangue e faz a gente falar bobagens.

PLUMA: A bobagem é rápida e imaginativa; se não acredita, veja esse pessoal que tem o fígado
branco e imaculado, eles têm a cara transparente e a cabeça é incapaz de articular uma única
frase inteligente. Entretanto, um bom beberrão, corado, cheio de vida, arrotador, sempre está
propenso à gargalhada franca, carregando a gozação à flor da pele. Beba que eu garanto, eu to
falando, “eu que sei tudo da vida”.

NOBRE DEPUTADO: (Bebendo) Você me convenceu, vou beber um copo.

PLUMA: Então, como esta se sentindo?

NOBRE DEPUTADO: Péssimo, não bebo nunca. Além do mais, tenho que dar o exemplo ao
povo que votou em mim.

PLUMA: Não pense que ser abstêmio melhora a sua imagem perante o povão. Muito pelo
contrario, isso o desqualifica como seu digno representante, agora se eles chegam a saber que
o senhor não consegue ficar excitado, não só vai perder os votos do povão como também o
direito a fazer discursos. Eu to falando, “eu que sei tudo da vida”.

NOBRE DEPUTADO: Vai ver que você tem razão, dizem que a razão está sempre do lado dos
fracos.

PLUMA: É fácil dar a razão a eles, evita dar-lhes dinheiro.

NOBRE DEPUTADO: Acho que você está passando dos limites.

PLUMA: Acho que o senhor está ficando excitado.

NOBRE DEPUTADO: (Bebendo) Ainda não, mas estou no atalho.

PLUMA: Acho que com um par de copos mais vai deixar o atalho e entrar na autoestrada.

NOBRE DEPUTADO: Vamos acreditar no destino histórico.

PLUMA: O destino não é histórico, ele é destino e nada mais, até os bobos tem destino.

NOBRE DEPUTADO: Você vai continuar falando besteiras?

PLUMA: “Relaxa! Sabe o significado disso? Re-la-xa!”

NOBRE DEPUTADO: Mas...

PLUMA: Desculpa, não é com o senhor, é comigo mesma. Quando eu olho para um homem,
posso ver na sua cara a quantidade de bobagens que carrega.

NOBRE DEPUTADO: Você está falando de mim?

PLUMA: Não, estou falando do homem em geral, do homem universal.

NOBRE DEPUTADO: Estou ficando de saco cheio desta conversa e não consigo ficar excitado.
PLUMA: É melhor descansar, acho que o senhor gosta de cadeiras.

NOBRE DEPUTADO: Gosto muito mais de garotas que o fazem pela primeira vez.

PLUMA: Ah espertinho! Gosta de virgens, das almas que ainda não foram desencantadas.
Vejam vocês o nobre deputado!

NOBRE DEPUTADO: Você não está parecendo...

PLUMA: Sou e acho que vou continuar sendo pelo resto da minha vida.

NOBRE DEPUTADO: O que você está falando?

PLUMA: De nada. Se o senhor não ficar excitado, não tem jeito.

NOBRE DEPUTADO: Acontece que fico muito tempo sentado.

PLUMA: Agora estou entendendo a sua relação com as cadeiras.

NOBRE DEPUTADO: Não é nada disso, é a sonolência que acaba comigo. Sentado faço meus
discursos, sentado eu como e rio, sentado fico chateado e depois desanuviado, no final do dia
não quero mais levantar.

PLUMA: O que o senhor faz então?

NOBRE DEPUTADO: Escorrego para debaixo do assento, espero todo mundo ir embora e que
alguém apague a luz do Congresso. Depois recobro a dignidade do nobre deputado sentado e
durmo na solidão do Congresso, lembrando os velhos discursos que algum dia salvarão a
pátria.

PLUMA: Voltando aos pensamentos tristes?

NOBRE DEPUTADO: Pertenço à outra época, tenho um carinho todo especial pelas velhas
instituições: a Previdência Social, o Instituto Nacional do Seguro Social, o Correio Central.
Tenho descoberto que os homens passam, e diferentemente do que sempre se pensou, as
instituições também passam. A vida passa, eu também passo.

PLUMA: O senhor passa sentado.

NOBRE DEPUTADO: Não fica gozando, mas eu padeço de outono precoce. É uma doença que
ataca os corredores do Congresso Nacional.

PLUMA: É por isso que não consegue ficar excitado. Quando o sexo fica parado por muito
tempo e além do mais amarrotado pela bunda, o bicho encolhe, fica doente e morre.

NOBRE DEPUTADO: Como você é vulgar e maledicente!

PLUMA: (Com agressividade) Tenho tentado ser boa e agradável, mas o senhor não fez outra
coisa do que ficar falando do seu traseiro. Por que não falou isso aos seus eleitores? O senhor
teria ganhado uma cadeira para sentar e tirar os piolhos da cabeça como os papagaios.
NOBRE DEPUTADO: Não vou discutir com você este assunto! Chama o gerente! Vim aqui à
procura de um estímulo que desperte a minha virilidade. E o que é que encontro? Uma puta
que dá conselhos. Eu tenho um monte de assessores querida, pode guardar seus comentários
para quem peça. Fiquei nervoso, muito nervoso, você já era. Você não serve para coisa
alguma!

PLUMA: Nenhuma mulher consegue servir um homem, nem sequer um homem consegue
servir outro homem. Os homens de segunda classe são os que conseguem servir aos homens
de primeira. Os grandes homens sentam-se por cima os homens capacho, é por isso que
depois não querem mais se levantar.

NOBRE DEPUTADO: É muito tarde, tenho que ir embora. (Caminha perdido) Onde terei deixado
o meu casaco? Sempre acabo esquecendo em algum lugar. Não vou responder a tuas
provocações. Eu sou velho e adoro as velhas instituições. Não vou te pagar, para você
apreender a tratar dos clientes. Onde terei deixado o meu casaco? Sem ele, a rua fica muito
fria. É um casaco velho porem muito bom, esta noite vai ter tempestade, sem meu casaco a
umidade vai corroer os meus ossos. Menina idiota! Olha como tem me deixado! (Encontra seu
casaco) Onde você se escondeu rapaz? Temos que ir embora. Estou nervoso, e este
nervosismo nãoé meu, deve ser teu. É incrível, os casacos ficam nervosos, vamos embora
companheiro. Você está cansado? Vamos descansar então. Hoje também não consegui ficar
excitado. Como bom pai da pátria, sou metade mortal e metade imortal, a metade mortal tem
bebido demais. Vamos descansar, velho amigo, vamos descansar.

PLUMA: (Encosta o velho deputado no seu colo e canta)

O sol já se ocultou.

As flores caíram dos galhos.

E a vida passa e passa.

A terra é um cobertor.

As sombras cantam.

E a vida passa.

A alma ficou viúva do corpo

Vaga por sobre as arvores.

E a vida passa e passa.

CENA VI

PLUMA É EXPULSO DO PARAÍSO OU DO INFERNO, DEPENDE DO OLHAR.

GIGOLÔ: (Entrando no quarto, onde Pluma cuida do cadáver do Nobre deputado) O que você
fez?
PLUMA: Nada.

GIGOLÔ: Está morto!

PLUMA: Morreu apenas o corpo mortal. A alma imortal vagueia pelos bastidores do Congresso
Nacional.

GIGOLÔ: E agora, o que vou fazer? A polícia vai chegar para investigar.

PLUMA: Diga que ele não era um homem, que era uma bunda.

GIGOLÔ: Bem que eu desconfiava, você é um idiota completo. Dei casa e profissão pra você,
olha como você paga; ensinei tudo o que você tinha que apreender, eu confiei em você, eu
amei como um filho, mas o único que consegui foi criar um sujeito desprezível que agora
ameaça destruir-me. Quando chegar a polícia, não vou excitar um instante sequer para
entregar você. Eles é que sabem fazer o seu trabalho, e a gente vai levar este assunto até as
últimas consequências. Quando falamos neste bordel até as ultimas consequências, estamos
falando de autores, cúmplices e colaboradores. A polícia não perdoa, ascenderá um clarão no
meio da tua cara que se apagará pra sempre. Ninguém consegue superar essa barra. Você vai
acabar na cadeia, cheio de juventude e soberbia. Vai embora daqui! Rua! Vai com as putas de
quinta categoria, com os veados, vai com o frio e o vento! Você não tem futuro nas nossas
casas decentes, garoto idiota, você perdeu a grande oportunidade de ser alguém na vida.

PLUMA: Não vou mexer um dedo por causa de futuro nenhum.

GIGOLÔ: A chuva da noite vai corroer teus ossos. Você vai morrer num beco escuro, cheio de
ratos, você vai ficar congelado que nem aquelas caixas de comida que chegam do norte,
porque lá ninguém consegue comer. E aqui também ninguém consegue comer, ninguém
consegue comer essa bosta de comida porque ninguém consegue engolir em lugar nenhum, é
uma bosta que apodrece sozinha nas geladeiras dos supermercados ou mesmo nas lixeiras da
cidade. Vai embora, fiquei deprimido, você ganhou sua liberdade, porém perdeu um emprego
garantido.

PLUMA: Se você fosse a pessoa certa, eu teria de me defender e prestar conta de tudo, mas,
acontece que você não é o mandachuva. Você só toma conta das mulheres e organiza as
orgias, não manda nada aqui. Falar com você é mesma coisa que falar com ninguém. Você não
é ninguém, você não é nada, é um lugar vazio aonde chega gente como eu, cansada e morta
de fome, um lugar sem alma aonde uma lâmpada vermelha se transforma em coração! Você é
isso, esse lugar. Você tampouco é homem, é mais um anúncio de neon, uma luz noturna que
engana as mulheres solitárias, como aquela que está aí. (Aponta para a velha prostituta que
começou a queimar a caixa de sapatos) Ela é uma melodia que estouraria nossa alma com seu
canto triste, muito mais triste do que qualquer canção sobre a amargura humana. (Começa a
caminhar, a ir embora.)

CENA VII

PLUMA SE ENVOLVE NUMA BRIGA E DÁ DE CARA COM A LEI


Pluma e outros habitantes da noite são surpreendidos no meio da rua. Escuta-se um rock
estridente saindo de um boteco.

POLICIAL I: Tudo mundo contra a parede!

POLICIAL II: Documentos na mão, senhores.

BEBADO: Chefe, o senhor não se lembra de mim? Eu era o boxeador...

CHEFE: Façam calar a boca desse pessoal, por favor!

BEBADO: O senhor arrumou meus papeis quando fui lutar no Panamá.

POLICIAL I: Cala essa boca. Não ouviu o chefe falar?

CHEFE: É uma vistoria de rotina, senhores. Aconteceram coisas esta noite.

SENHORA: (Ela não tem nada com isso, mas é intrometida.) Que tipo de coisas?

POLICIAL I: Senhora, não atrapalhe.

SENHORA: São vocês que estão atrapalhando.

BEBADO: Os novos valores do esporte das luvas, não tem chance nenhuma. Isso acontece.

CHEFE: É uma verificação...

SENHORA: Acho que são várias. Esta cidade está estragada, antes não era assim, hoje tem
muito estrangeiro, muito bêbado.

PLUMA: E muita velha.

BEBADO: E muita má sorte.

SENHORA: Prefiro um gato a ter filhos como vocês.

POLICIAL I: Senhora, por favor.

SENHORA: Filho é outra bobagem das mulheres. Um gato é muito mais útil e não fica drogado.

POLICIAL I: Ninguém ouviu? Vamos, documentos, por favor.

SENHORA: Pedir, por favor, é sinal de fraqueza.

POLICIAL II: (Para outro revistado.) Cala a boca ou quebro a tua cara.

PLUMA: Não adianta, estão perdendo tempo me revistando, eu não tenho nada. Estão
desperdiçando o tempo à toa, quando poderiam aproveitar esse tempo com suas belas
mulherzinhas.

BEBADO: De jeito maneira. Veja, o corpo policial é o único corpo assexuado. (É dobrado por um
chute.)
CHEFE: Calma...

POLICIAL I: Isso é para você apreender. (Para PLUMA.) Vou quebrar sua cara também.

PLUMA: É que dá muito na vista, deveria existir cueca pra’ cara.

SENHORA: Seu policial, quebre as mãos dele.

POLICIAL II: Não estou entendendo.

SENHORA: Porque não está prestando atenção direito. É muito simples, se você quebra as
mãos dele, primeiro, serve de exemplo pra os outros, e segundo, você impede que amanhã
essas mãos fiquem pedindo esmola.

PLUMA: Velha filha da puta!

POLICIAL I: Sua mulher na linha, chefe.

CHEFE: Dá um tempo.

BEBADO: (No chão.) Tenho que levantar antes que contem dez.

SENHORA: (Para PLUMA.) Com certeza, você é estrangeiro. Cadê o respeito, hein?

CHEFE: (Falando ao telefone.) Alô?

POLICIAL I: E o respeito?

PLUMA: O respeito saiu correndo rua abaixo, eu vi. Deveriam prendê-lo e pendura-lo no
pescoço desta dona.

SENHORA: Ele está drogado, senhor delegado.

CHEFE: (No telefone.) Não, não estou em nenhum cabaré.

SENHORA: Esses drogados proliferam que nem fungos, senhor delegado.

CHEFE: (No telefone.) É sim, não, não é outra mulher, é uma senhora que...

SENHORA: Senhorita, sou senhorita.

CHEFE: (No telefone.) Não, não fica assim, não estou mentindo pra você.

SENHORA: Chefe! Chefe!

CHEFE: Dá um tempo. (Para os policiais.) Dá um jeito nessa mulher, pelo amor...

POLICIAL I: Senhora...

CHEFE: É sim,sim, sim. A gente faz esta noite, eu prometo.

SENHORA: Todos esses rapazes são perigosos. Ser jovem, já é uma prova de disposição
presidiária.
PLUMA: Velha nojenta! (Vai encima dela, mas os policiais o prendem.)

CHEFE: (Para os policiais.) Que bagunça é essa? (No telefone.) O que você falou?

PLUMA: Não bota a mão em mim!

SENHORA: Se fica nervoso assim é porque tem culpa no cartório. Ninguém que tenha as mãos
limpas grita desse jeito.

POLICIAL I: Segura ele! (Pluma resiste retorcendo o corpo.)

CHEFE: (No telefone.) Não, estou falando que não! A gente não está estuprando ninguém. O
que você acha que a gente é?

POLICIAL II: É escorregadio que nem um peixe.

SENHORA: Esses negócios que eles cheiram deixa a pele deles gelatinosa.

CHEFE: (No telefone.) Um coelho!

BEBADO: (Sentado no chão.) Um gancho no fígado e outro no peito, isso que é a vida.

CHEFE: (Histérico, para os policiais.) Falem sem fazer ruído, caralho! Não estou conseguindo
ouvir! (No telefone.) De jeito nenhum, já falei para você que não quero nenhum coelho na
minha casa.

BEBADO: Fui um grande boxeador, agora sou uma sombra, uma marca roxa na cara.

POLICIAL I: Pega as pernas dele!

CHEFE: (No telefone) Essa escolha é ridícula, não pode me comparar com um coelho, faz favor.
É, tive que matar o antigo coelho, mas não foi chacina, ele estava doente.

SENHORA: Foi um coelhocídio.

POLICIAL I: Por favor, senhora.

POLICIAL II: Este filho da puta acabou de me morder!

CHEFE: (No telefone.) Prefiro uma filha a um coelho. Como que para que?

SENHORA: (Para o policial que foi mordido.) Tome cuidado, o sujeito pode ser venenoso. Onde
foi que estudou para ser policial? Não sabia que se punha a mão na boca no suspeito, ele
poderia morder? Agora dê uma porrada na nuca dele, como a gente faz com os coelhos.

CHEFE: (No telefone.) Não, coelho, não!

SENHORA: Isso mesmo, os coelhos enchem a casa de bosta, gato é melhor. O lar de um policial
deve ser limpo como sua consciência.

PLUMA: (Retorcendo-se.) Eles tem morado muito tempo nos seus uniformes, lá dentro a
temperatura é insuportável.
SENHORA: Calem a boca dele, suas falas vão acabar envenenando o bairro, ele não tem os pés
fincados no chão.

PLUMA: Meus pés caminham pelas nuvens.

CHEFE: (No telefone.) Chega! Não quero mais papo com você. Não dá para entender que estou
trabalhando? (Desliga.)

POLICIAL I: O que a gente faz, chefe?

BEBADO: Poderíamos ir embora, mão é?

SENHORA: (Por causa do silêncio do Chefe.) Está acontecendo alguma coisa, senhor delegado?

CHEFE: (Como se estivesse em outro lugar.) Parece que vai chover... (Tudo mundo olha para o
céu.) Vamos embora, pode liberar tudo mundo, hoje não foi um bom dia para mim não. Acho
melhor ir embora tomar uma cerveja. Talvez a chuva ilumine meus pensamentos. Não sei o
que está errado, não sei de que lado do marco da porta eu estou. Você abre uma porta e dá de
cara com um crime, abre outra porta e encontra a sua mulher, abre outra porta e está na rua.
Então, você não quer abrir mais nenhuma porque tem medo de encontrar com você mesmo
do outro lado da próxima porta trancada. É isso aí, acho que o melhor é ir embora tomar uma
cerveja. (Todos vão embora, menos Pluma que fica no chão retorcendo-se convulsivamente
sem emitir nenhum som.)

CENA VIII

OS PAIS DE PLUMA DESCOBREM QUE ELE FUGIU, MAS ELES NÃO LIGAM A MÍNIMA.

MÃE: (Acordando.) Acorda, olha o que aconteceu.

PAI: (Bocejando) Desgraça adora pobre.

MÃE: Eu falei que a gente não podia dormir. O que é que a gente faz agora? Nossa filha sumiu
da minha barriga.

PAI: Deve estar trabalhando num bordel por aqui perto.

MÃE: Você não tem vergonha de falar assim da sua filha?

PAI: Por aqui, a creche é trocada pelo bordel nem piscar de olhos.

MÃE: Você não tem coração.

PAI: Tinha, mas deixei não sei onde.

MÃE: Deveria cair tua cara de tanta vergonha.

PAI: Não cai, está grudada.

MÃE: Como a de Frankenstein.


PAI: Tem vezes que quero me livrar de você, mas não sei como. Por que a gente não vai à
sacada?

MÃE: Melhor, por que não tenta achar sua filha?

PAI: A gente poderia tomar a fresca na sacada.

MÃE: Quando você era jovem costumava me convidar para dançar. Você comprava uma
garrafa de rum e a gente dançava a noite toda. Não sei se a gente era feliz, mas éramos bem
diferentes. Casei com aquele homem, não com o de agora que morre de medo e quer me levar
à sacada a toda hora.

PAI: O que tem noutros lugares que não tenha nossa sacada, hein?

MÃE: Recuso respirar aquela fumaça de merda que enche nossos pulmões. Acorda querido,
nossa filha fugiu da minha barriga, não é tempo de romance na sacada.

PAI: Se você não quer, tudo bem. Mas, na sacada poderíamos vigiar o horizonte, quem sabe a
encontramos na linha do horizonte. Voltar, tenho certeza que volta, mas grávida como é de
praxe. A gente entrega uma filha para a cidade e ela devolve uma prenha. Se formos à sacada
podemos descobrir o tipo de sujeito que engravidou nossa filha.

MÃE: Não quero ir à sacada, entendeu? Não tenho vontade, estou cheia.

PAI: Puta que pariu! Os outros casais vão a sacada quando tem problemas, abraçam-se ao ar
livre e sentem-se protegidos pelo céu imenso. Dá para suportar desgraças, o amor fica muito
poderoso quando apoiado na fragilidade de uma laje. Percebeu porque eu quero ir à sacada?

MÃE: Percebi, porém, não ligo mais.

PAI: Por que nunca faz o que eu peço? Não estou convidando você para tomar a fresca na
Sibéria. Só estou pedindo par ir à sacada, a dois passos do próprio quarto.

MÃE: Não vou assomar na porra dessa sacada! Entendeu?

PAI: Tudo bem, tudo bem, dane-se. Desse jeito nunca saberemos onde está nossa filha. Nunca
nosso amor pousará numa sacada, como uma pombinha gelada.

MÃE: Por que você quer me matar?

PAI: Matar você?

MÃE: É, me matar.

PAI: Você?

MÃE: Sim, eu, tua pombinha gelada.

PAI: Tudo bem, vamos supor que eu quero ir a sacada para te jogar no vazio, vamos supor
também que desse jeito te afasto do meu caminho. Acaso esse sentimento de liberdade
irreprimível, não é a coisa mais autêntica que existe?
MÃE: Bem que eu desconfiava.

PAI: Desconfiava porque possui uma imaginação corrompida. Imaginar o que os outros
imaginam é algo mórbido.

MÃE: Se ambiciona tanto o patrimônio da imaginação, eu dou de presente para você.

PAI: Não aceito esse presente. Eu só queria que a gente fosse até a sacada, mas você acabou
de estragar tudo com sua atitude.

MÃE: Talvez se fosse de dia e minha filha estivesse aqui, eu teria aceitado ser jogada no vazio.
Porém, é de noite e a minha filha não está.

PAI: Eu não mandei você ficar dormindo. Foi culpa sua, não minha. Você nunca aceita nada...
Muito menos sair na sacada.

MÃE: Tudo bem, vamos à sacada para você me jogar no vazio de uma maldita vez.

PAI: Assim também não, reclamando, não. Alem do mais, não quero acabar fazendo seus
caprichos. Assim, o assassinato perde o fator surpresa, desse jeito perde a magia, desse jeito
não me interessa mais.

MÃE: (Desde a beirada do palco.) Pode me jogar!

PAI: Você quer mesmo que eu faça?

MÃE: Desde aqui, a vista da cidade não é bonita.

PAI: De costas, não dá para fazer. Estaria traindo você.

MÃE: (Vira o corpo para o pai.) Está bem assim?

PAI: (Olhando fixamente para ela.) Posso imaginar você morta, é, posso imaginar você morta,
mas não consigo imaginar a vida sem você.

MÃE: Se não pode me fazer feliz, pode me fazer voar.

PAI: Não faz sentido. Esta noite vai ter tempestade e nada vai fazer sentido.

MÃE: (Escutando o canto de Pluma ao longe.) É nossa filha.

PAI: Não podemos procurar por ela, a cidade está cheia de perigos.

MÃE: Ela está cantando?

PAI: Não, está chorando.

MÃE: Esta noite nada faz sentido.

CENA IX

PUMA DESCOBRE A RELIGIÃO, MAS NÃO SE ARREPENDE DE NADA.


Um homem caminha desnorteado, carrega nas suas costas uma Virgem sentada numa cadeira.
Parece que anda numa procissão. Pluma deixou de contorcer-se compulsivamente e agora
procura, sem conseguir, uma posição apropriada para dormir.

HOMEM: Quer andar comigo?

PLUMA: Aonde?

HOMEM: Não sei. Sem é bom caminhar acompanhado. (Caminham.)

PLUMA: Estava tentando dormir, mas não consigo. Por mais que tento, eu não consigo.

HOMEM: Eu também.

PLUMA: Dormir?

HOMEM: Não, largar.

PLUMA: Quem?

HOMEM: A virgem.

PLUMA: Ah!

HOMEM: É eterna.

PLUMA: Não podemos ficar carregando a eternidade para cima e para baixo, não é?

HOMEM: É sim.

PLUMA: Muitas promessas?

HOMEM: Não, tradição. Quando meu pai morreu falou, toma conta da Virgem e eu tomei.

PLUMA: Se não tivesse tanto sono eu ajudava você.

HOMEM: Fica sossegado, a inocência é leve. Além do mais, sempre é bom sofrer um pouco.

PLUMA: O alívio depende das circunstâncias.

HOMEM: Cria fama e deita na cama.

PLUMA: Você é famoso?

HOMEM: Sou. Em Roma.

PLUMA: Em Roma?

HOMEM: Todos os caminhos conduzem a Roma.

PLUMA: Você é muito original.


HOMEM: Fui para Roma com a intenção de deixa-la, mas quando repararam nela disseram que
parecia mais uma índia do que uma Virgem. Também, sendo daqui queriam que parecesse o
que?

PLUMA: Por que não deixa numa igreja?

HOMEM: Já tentei. Mas, é só me afastar uns passos para sentir que ela me prende, de tal
maneira com seu olhar que se a deixa-se o meu corpo seria tomado pelos desejos mais
esdrúxulos. Se eu caminho devagar, sem pressa nenhuma, não é por prudência; é porque não
sei para onde ir. Você tem pecado?

PLUMA: Tenho, sim.

HOMEM: Está arrependido?

PLUMA: Não.

HOMEM: Não tem importância. O fato de ter me acompanhado um momento perdoa todos
seus pecados.

PLUMA: Você é um homem caridoso.

HOMEM: Não, eu sou um mamífero. A caridade é uma forma de pobreza santificada, que você
alcança, no melhor dos casos, depositando moedas numa mão, e no pior, num cotoco. Toda
moeda é redonda como as hóstias, quando a entregamos alcançamos a pureza caridosa; só por
um momento, esquecemos-nos da fome e do frio e ficamos puros. Ser caridoso custa apenas
umas moedas, é por isso que os caridosos proliferam. Depois, esses seres caridosos vão para
suas casas, apoiados nas suas bengalas, para estabelecer uma cumplicidade cotidiana com
Deus. É a mesma cumplicidade que se estabelece entre os loucos e seus guardiões, que por
força do convívio fazem brotar dos seus pobres corações um jeito melancólico de alívio. Muito
obrigado por caminhar ao meu lado. Adeus. (Pluma observa como o Homem se afasta.)

CENA X

PLUMA CONHECE A FRUSTRAÇÃO.

Uma operária de começo de século caminha com uma bandeira. Ela está perdida.

OPERÁRIA: (Reparando em Pluma.) Olha que esquisito!

PLUMA: O que você acha esquisito?

OPERÁRIA: A sua cara, ela é da mesma cor da minha bandeira.

PLUMA: Parece que é.

OPERÁRIA: Eu vinha numa passeata e mesmo parecendo estranho, acabei me perdendo.

PLUMA: Parece que foi.

OPERÁRIA: Você deve estar se perguntando o que eu estava fazendo.


PLUMA: O que você estava fazendo?

OPERÁRIA: Caminhava pela rua com meus companheiros. A gente não estava alegre como
outras vezes, mas estávamos juntos. De repente baixou um nevoeiro no meio da gente, não
dava para enxergar um palmo de distância. Esquisito! A gente não conseguia enxergar um ao
outro, talvez pelo fato de não estarmos de braços dados como em outras épocas, mas a gente
marchava tudo mundo junto. Esquisito! Como fui me perder? Antigamente, quando baixava o
nevoeiro eu me orientava pelas arvores. Agora não tem mais arvores e as que existem estão
escurecidas pelo piche e o cimento. Acho que a gente deveria plantar arvores. Agora que me
perdi, está sobrando tempo. Certamente, você perguntará para que.

PLUMA: Para que?

OPERÁRIA: Para me orientar quando baixe o nevoeiro. Eu sofro muito com esse negócio do
nevoeiro, tanto que quando vai embora continuo sofrendo. Não, não é o nevoeiro que me faz
sofrer, nem sequer a falta de amor e de amizade. Não, é... Não faço ideia, não faço ideia de um
monte de coisas. No rádio, por exemplo, a música vem pelo ar, as notícias vêm pelo ar, então
pimba!, uma antenazinha as pega e nos faz ouvir. Eu pergunto, se todas essas coisas voam pelo
ar, por que a gente não vê? Esse negócio é foda, não é? Você deve ficar se perguntando, o que
tem a ver uma coisa com a outra.

PLUMA: O que tem a ver uma coisa com a outra?

OPERÁRIA: Não faço ideia, é essa ignorância que me faz sofrer. A gente aguenta um monte de
coisas nesta vida, mas o que não dá para aguentar é não saber por que não podemos ser
felizes. Eu sei com certeza quando está doendo minha cabeça ou meu estomago, mas essa
outra dor... Surgiu justo quando me perdi dos meus companheiros. Companheiro... É uma
palavra bonita, mas agora quase ninguém a usa, porém é uma palavra bonita. Não sei de onde
vem esta dor. Se eu encontrar o meu marido vou pedir para ele me aplicar um emplasto. Você
deve estar querendo por que fazíamos passeata.

PLUMA: Por que faziam passeata?

OPERÁRIA: Porque fecharam a fábrica. Era uma fábrica de bonecos de madeira, aqueles de dar
corda, como antigamente. Olhe, aqui tenho um. (Faz andar o bonequinho de corda, ela o fica
olhando absorta.) É, fecharam, e então... Não vai dar para perguntar aos meus companheiros
onde se enfiaram, por que nos perdemos. A gente protestava com prazer, mas pouco a pouco
nos fomos calando, como se a cidade estivesse vazia e gritar as nossas palavras de ordem não
fizesse o menor sentido. Baixou o nevoeiro sob nossas cabeças. Gritei quando percebi que
estava só, não conta a injustiça que o tem bem merecido, gritei para verificar se ainda
estávamos vivos, eu e meus companheiros. Ninguém respondeu. Escute: Companheiros!
Percebeu? Ninguém. Tal vez continue gritando até calar e morra desalentada. Eu vou
continuar gritando até o desalento porque não tenho vontade de ficar calada. Estou perdida,
não faço ideia de como voltar para minha casa, para que meu marido acalme esta dor com um
emplasto. Você deve estar se perguntando...

PLUMA: Não vou perguntar nada! Fiquei doente, você acaba de me contaminar com essa sua
história.
OPERÁRIA: Não chora. Já estou indo embora. Não foi a minha intenção deixa-lo desse jeito
com minhas histórias. (Sai.)

PLUMA: Coriza, rios de muco, mares de muco. Alguém tem coragem de fechar as janelas do
esquecimento? Coriza, muita coriza escorrendo do meu nariz, muitas lagrimas escorrendo dos
meus olhos. Existe tanta água assim nas nossas lembranças? Não consigo olhar para o céu. Por
que esta operária perdida me deixou tão triste? Acabei de apreender o que é o fracasso: é algo
que nubla os olhos de lágrimas que impedem você de enxergar o céu. Alguém tem coragem de
fechar as portas do esquecimento? (Lança um choro muito triste.)

CENA XI

PLUMA DESCOBRE UM AMOR IMPOSSÍVEL.

Enquanto Pluma chora, o cadáver de um poeta surge boiando no rio. Ele está declamando.

POETA: A fome não entende de razões, nem de luas penduradas na noite. Não, não convence;
faz tempo que procuro pelo poema certo, mas não consigo encontrar.

PLUMA: Os poetas deste lugar morrem desse jeito?

POETA: Não, alguns morrem nas suas camas, rodeados pelos seus entes queridos, entre
apertos de mão e efusivos pêsames.

PLUMA: Leva-me contigo.

POETA: Aonde?

PLUMA: No meio do mar.

POETA: Você terá de se deixar matar, como eu.

PLUMA: Porque te mataram?

POETA: Por roubar um livro, um ótimo livro cheio de poemas maravilhosos para melhorar as
pessoas. A polícia me prendeu e bateu até fazer-me duvidar se tinha valido a pena roubar esse
monte de palavras impressas.

PLUMA: Leva-me contigo. Só quero boiar a teu lado até o meio do mar.

POETA: Mesmo querendo, não posso. Mina vontade ficou do outro lado da vida, sou um corpo
desprovido de vontade que fica conduzido pelas correntezas contaminadas deste rio. Agora,
não importa mais nada, meu faro também ficou no outro nariz. Não sei por que as pessoas
adoram coisas malcheirosas. O cheiro do dinheiro, por exemplo. É, não posso levar você.
Antes, gostava dos homens no entardecer, quando o sol ficava quase tocando o chão. Então eu
sentava na contraluz e olhava como os raios solares atravessavam suas camisas, deixando a
mostra suas formas volumosas e quentes, Isso é meio esquisito, mas... O que eu posso fazer?

PLUMA: Você não gosta de mim?

POETA: Gosto, mas você está muito longe.


PLUMA: Como se chama isto que estou sentindo por você?

POETA: Necrofilia.

PLUMA: Não é para rir.

POETA: Você sabe o que eu daria por voltar a rir? Não soube morrer alegre e no exame de
consciência tirei zero. Não deixei nada para a posteridade, exceto algum soneto, nada prático,
porém tão necessário como o amor que costuma vir acompanhado da solidão. Isso não serve
para nada, mas mesmo assim amamos e isso é bom. Como você se chama?

PLUMA: Pluma.

POETA: (Enquanto vai embora boiando.) Pluma está na margem do rio que representa o
tempo. Fragilizado pelas lembranças por nunca tê-lo abraçado com paixão nem ter apertado
sua mão com força. Olha-me frágil e eu o observo, renunciando em silêncio. O rio do tempo
corre sem maiores desassossegos. Percebeu? Acabei de achar o poema que buscava. (Vai
embora.)

PLUMA: (Caminhando de um lado para outro na beira do rio.) Não vai embora, fala mais um
pouco comigo! Ou melhor... Leva-me contigo! Quero apenas boiar a teu lado, à deriva. Leva-
me contigo... Tudo bem, vai embora se é o que você quer fazer. Não precisa me chamar, não
vou não. Não insista! Volta por favor. Como fui besta, eu a deixei partir. Você é apenas uma
poetiza afogada! Eu fico completamente asfixiado sem tuas palavras. Não gosto mais de você!
Mentira, eu gosto de você, sim. Não tem remorso de deixar-me aqui afogado nos relógios, sem
fôlego e sem poesia? Não peça para eu acompanhar você! Peça, pelo amor de Deus! (Começa
a movimentar-se com gestos assimétricos.) É agora que não consigo parar mais, não adianta
mandar meus músculos pararem, eles não me obedecem mais. Tudo por causa do que?
Porque conhecia a perdição... Agora sim que estou perdido. E essas cores? Esses cheiros? Esses
suores? O amor não é nada higiênico. Não insista que eu não vou! Por que a deixei partir? Por
causa do medo que tenho de sentir prazer. Porque não tenho coragem de experimentar o
maior prazer do mundo. Mas, por que ninguém fala disso? Preferem ficar falando de pratos
típicos, de esportes, do que falar de amor. Sendo que o amor pode compensar todas as
sujeiras do mundo. O que estou falando? Perdi a compostura? Completamente, estou suando,
suando em bicas, quente, fervendo. Sou uma fauna sem propósito nenhum, uma sauna
anoréxica. Preciso uma mulher! Preciso uma mulher! (Cai, exausto.)

CENA XII

PLUMA AGRIDE A EDUCAÇÃO

Uma professora muito velha e uns alunos também muito velhos chegam marchando e
cantando muito apáticos. Pluma não tem duvida e se incorpora a eles.

TODOS: “Um canto de amistad, de buena vecindad, unidos nos tendrá eternamente”...1

1
Hino das Américas. Washington, 1890. “Um canto de amizade, de boa vizinhança, unidos nos deixará
eternamente”
PROFESSORA: Parem! Parem! Vamos parar para descansar. (Todos param, perante um rio.)
Alguém de vocês pode me dizer o que é isto? (Os velhos alunos não sabem o que responder.) O
que é um monte de água correndo na mesma direção? Nasceu na montanha e vai morrer no
mar? (Os alunos ficam angustiados por que não conseguem responder.) Um rio, isto é um rio.
Estou muito cansada, vocês tem reprovado muitas vezes o segundo primário, sem
percebermos acabamos envelhecendo e não tenho conseguido inculcar em vocês os valores
necessários para conviver em sociedade. Agora é demasiado tarde e fico tomada por maus
pressentimentos.

VELHO 1: Quando a gente é criança apreende tudo com facilidade e mais gosto, porém agora
já era.

VELHO 2: Somos gente do primário que nunca conseguiu sair do primário. (Risadas
disfarçadas.)

PROFESSORA: Silêncio, silêncio! Fiquem em silêncio. É o reino do silêncio. (Todos os alunos


ficam petrificados olhando para o rio. Pluma grita, derruba os alunos e provoca uma revoada
com as folhas dos cadernos.)

PROFESSORA: (Recompondo-se.) Acho que fomos desfolhados.

VELHO 3: (Entregando-lhe um ramo de flores secas.) Eu... Sempre fui apaixonado pela senhora,
mas morria de medo da senhora. Trouxe estas flores, mas estou tremendo. Esse tremor me
acompanhou a vida toda, e hoje não quero deixar de tremer.

PROFESSORA: O que demonstra que o senhor tem um imenso sentido de responsabilidade.


Pode tremer González, trema se isso faz bem para o senhor.

VELHO 1: Eu queria saber o que é sentido de responsabilidade?

PROFESSORA: Senhor Martínez, não precisa saber tantas coisas assim, aliás, quanto menos
souber, melhor.

VELHO 2: Eu também virei um medroso. Às vezes, quando estou sentado no banco da sala,
costumo medir a distancia que existe entre o meu caderno e o meu coração. São quatro
dedos. Depois meço a distancia entre o caderno e minha cabeça, são oito dedos. Perceberam?
O caderno fica mais perto do meu coração do que da cabeça, e isso me dá muito medo, tanto
que enfio o caderno na minha cara. Perceberam?

PROFESSORA: (Como se estivesse saindo de uma ausência momentânea.) Desculpe, acabei


dormindo. Não escutei o que o senhor falou. Tenho déficit de atenção quando as frases são
muito longas. Quando as palavras são vazias falo para mim, são palavras vazias, um buraco
onde cabem palavras, um buraco de palavras, um buraco onde cabe a minha cama. É nesse
momento que fico dormida, no vazio das palavras. (Pluma joga um aluno velho no rio.) Mas, o
que está fazendo González no rio?

PLUMA: Nada.

PROFESSORA: Mas, González não sabe nadar!


PLUMA: Quer dizer, nada de nada.

PROFESSORA: Meu Deus, perdemos González.

PLUMA: Mas, ganhamos tranquilidade. Não está sentindo-se melhor?

PROFESSORA: Um pouquinho.

PLUMA: Deveria estar. Sem González a vida é outra coisa.

PROFESSORA: Estou me sentindo esgotada. Mas... Quem é o senhor?

PLUMA: (Enquanto joga outro velho no rio.) Um ex-aluno.

PROFESSORA: Não estou lembrando... Mas, o que o senhor está fazendo?

PLUMA: Descarregando responsabilidades.

PROFESSORA: É melhor o senhor ficar sabendo que não sou nenhuma idiota. Sou uma
professora laica, livre e obrigatória. (Pluma joga o terceiro velho no rio.) Não, Martínez não!

PLUMA: Agora é tarde. Como está se sentindo?

PROFESSORA: Como uma mãe que a acabou de perder seus filhos. A sabedoria universal... O
que vou fazer agora com a sabedoria universal? Para quem vou ensinar tudo o que eu sei?
Acabei de ficar sem minhas responsabilidades. Não tenho mais o que decidir, nem sobre quem
decidir. Por que tenho tolerado sua conduta, por que tenho tolerado a sua conduta? (Pluma a
vai submergindo lentamente no rio.)

PLUMA: Escreva na lousa cem vezes: “Sinto-me só”. Escreva: “Eu era uma folha em branco que
caiu de uma janela”. Escreva: “Pelos pátios e os alpendres, pelas ruas lúgubres”. Escreva: “O
vento arrastou-me pelas calçadas e os bueiros”. Escreva: “Agora sou uma folha manchada de
rua e de noite”. Escreva: “À vezes tenho saudade da minha mãe, do jeito que ela tinha saudade
da mãe dela e assim sucessivamente até as origens da existência”. Pergunte para você: Este é
o momento que viver significa afastar-se do amanhã? Responda para você: As latas de lixo não
foram trocadas, ficaram intocadas. O mesmo lixo de ontem somasse ao de hoje e enquanto
ninguém recolher não existirá o amanhã.

Pluma terminou de submergir a Professora no rio, ela apresentou um rosto aprazível.

CENA XIII

PLUMA DECIDE NÃO MEXER UM DEDO PELO SEU FUTURO,

MAS FICA COM FOME E ATACA A NATUREZA

Pluma ficou numa posição estática, parece estar paralisado.

PLUMA: Na rua sinto-me como se estivesse no ventre da minha mãe: tem frio, tensão, fico
esperando que alguém me jogue em algum bueiro. Não vou mexer um dedo sequer pelo meu
futuro, não vou pedir esmola, não vou chorar, não vou rir. Vou ficar aqui, tenso, com frio,
esperando como quando estava no ventre da minha mãe. Irei descobrindo como sobreviver
neste mundo humano, sendo desonesto fingindo ser um santo, apresentando a maior
bobagem como sendo algo sábio, entrar na corrupção, trair meus princípios, bancar o idiota,
comprar roupa de grife, sentar de pernas cruzadas, descruzar o espírito, retorcer os desejos e
falar: “que toque mais maravilhoso, é uma joia de engenharia, um poço de sabedoria, é um
toque do caralho.” Depois dessa palhaçada toda, respiro fundo, tiro os fones de ouvido, tiro os
óculos escuros, dispo a minha pele e ponho à dormir a minha estrutura óssea no mundo
humano. Como seria fácil conviver com o gênero humano. Mas, não posso, não mexerei um
dedo sequer para conviver com o gênero humano. Meus ossos estão ficando atrofiados. Para
ficar parado é bom não mexer-se. Excelente conclusão! Estou com fome, com muita fome, vou
ter que me mexer para procurar comida. A fome faz os músculos se mexerem e põe os homens
em movimento. Só vou me mexer por causa do estomago. (Aparece um cachorro e dança. O
cachorro tem as características das personagens que costumam aparecer nas festas
populares.) Desculpa descarregar toda a minha fúria em você, mas estou completamente
dominado pela fome. Não penso mais com a cabeça, penso com o estomago e ele não pensa,
apenas estoura. Desculpa que estoure contra você, nunca tinha experimentado uma vontade
tão violenta saindo do meu estomago. Desculpa descarregar em você toda a vontade do meu
estomago. (Pluma devora o cachorro e fica parado com a boca cheia de sangue, como as
personagens do teatro oriental.)

CENA XIV

OS PAIS LAMENTAM-SE PELA ÚLTIMA VEZ E TAMBÉM NÃO FAZEM NADA.

PAI: Consegue ouvir? Emudeceu, acho que estou ouvindo os passos da sonâmbula.

MÃE: Está nesse bar.

PAI: Esse bar é o fim da linha.

MÃE: Enfrentar a vida, ganhar a rua.

PAI: Ninguém a salva desse lugar.

MÃE: Porque aqui, ninguém salva ninguém.

PAI: Não sou louco de ir busca-la. Deste lugar, a cidade parece um galinheiro, um galinheiro
estúpido e sujo.

MÃE: Pluma, minha coitada Pluma, caindo no ar sem sangrar. Já não consigo te ouvir, já não
consigo te ver minha filha, caindo no ar.

PAI: Foi muito azar.

MÃE: Tem relâmpagos no céu. Não vai conseguir sobreviver a tempestade.

PAI: Nesta casa estava protegida. Não sei por que saiu.

MÃE: Deu as costas para nós. Por que?


PAI: Porque acreditou que lá fora tudo fosse diferente.

MÃE: Nada é diferente perante os costumes.

PAI: Nunca obedeceu a gente, eis o castigo. Você quer comer alguma coisa?

MÃE: Quero sim, batatas fritas com ketchup. Nunca gostou da gente.

PAI: Acho que nos odeia. Quebrou os laços que nos uniam. Maionese?

MÃE: Sim, maionese, ketchup, batatas fritas...

CENA XV

PLUMA DESAPARECE DE UM JEITO MÁGICO.

A velha prostituta da cena do bordel está no balcão de um bar e fala com Pluma.

PROSTITUTA: Chega mais, não vou fazer com você nada que a rua já tenha feito. Procuras por
um pretexto? A privada está cheia de pretextos. As calçadas estão cheias de pretextos
cobertos de papelão. Neste lugar os pretextos morrem de desnutrição e se enxergares direito
perceberas um pretexto pedindo esmola para você.

PLUMA: Isso não me diz respeito.

PROSTITUTA: Então na precisa pagar uma bebida para mim. Mas, se pagar dou um bom motivo
para você viver. Sabe por que o bicho da seda faz a seda?

PLUMA: Não sei.

PROSTITUTA: Para enfiar a cabeça lá.

PLUMA: Não entendi.

PROSTITUTA: Se você fosse meu filho, ia apanhar por ter envelhecido tão depressa.

PLUMA: Meus pais estão dormindo.

PROSTITUTA: Não. Teus pais estão comendo batatas fritas e vendo televisão com o aparelho
desligado, imaginando o amor por capítulos, a dor em séries, Deus no final da noite nos
acordes do hino nacional. Fala uma coisa, a tristeza é nobre ou plebeia?

PLUMA: A minha é nobre.

PROSTITUTA: Errado. Plebeia, porque é ignorante quando não enxerga a tristeza nobre dos
outros. Ter um horizonte de expectativas é um bom motivo para viver, mas para enxerga-lo
você tem que abrir bem os olhos. Você tem que conseguir enxergar apesar dos confortáveis
casacos. Nunca permita que enfiem um casaco desses em você porque o calor que provoca
incuba vício e corrupção. (Outro casal que se encontra no bar começa uma briga.) Olha como
batem naquela mulher. (A Prostituta defende a mulher.)

HOMEM: Imbecil! O que está fazendo?


PROSTITUTA: Não bata nela, está bêbada!

HOMEM: E você com isso?

PLUMA: Ela só tentava me dar um bom motivo para viver.

PROSTITUTA: (Pegando na mão do Homem.) A corrente de ouro esconde a mão! A corrente de


ouro impede a mão de acariciar nem semear ou que a mão ajude alguém. A corrente de ouro
acorrentou a tua mão.

HOMEM: Você está querendo apanhar.

PLUMA: Largue!

HOMEM: É louca e amargurada.

PLUMA: Não!

HOMEM: (Batendo na Prostituta.) Vai apanhar até cuspir toda a mágoa que leva dentro.

PLUMA: Não bata nela, por favor! (A briga transfere-se para a rua, onde começou a chover e a
ventar forte. Os corpos engalfinham-se no meio da tempestade e a briga assume contornos
estranhos. O corpo da Prostituta fica estendido no chão. Pluma fica chorando no meio da
tempestade.)

PLUMA: Cresci no meio da rua. Um pouco de violência me fez homem. Às vezes convivo com
marginais, e compartilhando suas fogueiras não consigo nada imaginar. Tenho prestado
atenção nas pessoas de casacos elegantes e também com eles não tenho conseguido nada
imaginar. Só aqui, no meio da tempestade, posso sentir o som da calmaria; o vento gelado
aclara a minha mente. Quando o temporal acabar vou construir a minha casa com o que a
tempestade deixar. Então vou poder falar e você me irá escutar. Quando o vento pare de
assobiar e as janelas parem de se agitar. Agora você não está me escutando porque aumentou
a chuva. Só no meio da tempestade é possível respirar. Temos que apreender a viver no meio
da tempestade.

A tempestade aumenta e ele continua falando. Deixamos de ouvi-lo. Pluma desaparece no


meio da tempestade.

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