“O homem é um ser social e sua vida não tem sentido se não se insere na
sociedade. Mas, se a sociedade é injusta? Uma sociedade fundada sobre a injustiça
educa para a injustiça. Donde se conclui que a sociedade tem que ser reeducada para
poder educar.”
Ferreira Gullar – Congresso Mundial da Educação/1983
Introdução
Uma das discussões muito comuns na comunidade escolar trata, quando não resvala para
o reducionismo de meras questões disciplinares, da questão da apatia, indiferença ou
alheamento dos estudantes. Contudo, como quase sempre, no ambiente escolar, nada se
discute de forma aprofundada, tais características dos discentes são reunidas e rotuladas
como desinteresse. Pronto, muito simples e rapidamente, o diagnóstico está definido e as
causas de tal desinteresse não importam, pois cabe aos desinteressados e seus familiares
resolverem o problema.
Importa observar que tal situação não é privilégio da escola pública, uma vez que na rede
particular o problema também ocorre, ainda que na primeira aconteça com maior
incidência.
Na esfera oficial, os responsáveis pela implementação de políticas públicas educacionais,
auxiliados por certos profissionais da educação, sugerem as soluções mais absurdas, as
quais, quando não são descoladas da realidade, banalizam a relação docente/discente, ao
visarem à transformação do docente num mero animador de plateia, como se a sala de aula
fosse um circo ou programa de auditório.
A docência, por outro lado, embora reaja às propostas oficiais, quando formula algum
questionamento acerca do problema, tal formulação é eivada de histórias de vida, no estilo
saudosista do no meu tempo ou na minha época. Algo que soa como uma certa
perplexidade diante das transformações históricas ou um desejo de que a história se repita
ou não exista, o que dá no mesmo.
Da esfera oficial, nada se pode esperar acerca dessa dificuldade, pois esta, segundo seu
propósito, cumpre seu papel, o de administrar as contradições da ordem vigente, ainda que
isso implique em desumanização crescente da comunidade escolar.
E mais, embora a luta por um melhor aparelhamento da escola seja justa, pois que tais
condições materiais são benéficas, por si só, isso não confere sentido à escola. Do que
valem as melhores condições materiais de uma escola, se elas são postas a serviço da
reprodução do sem-sentido que grassa socialmente? Se o inverso é verdadeiro, como se
explica o índice crescente, entre jovens, de criminalidade e usuários de drogas nos estratos
sociais mais abastados? Dos que creditam tal fenômeno à falta de educação ou perda de
valores, poucos o fazem ingenuamente, a maioria opina de forma oportunista, por
comodidade ou defesa de interesses. Ainda que como polo privilegiado de expressão do
nonsense social, a escola pode e deve forjar sentido, motivação ou estímulo, mas tal
sentido, por sê-lo, deve necessariamente conflitar com a sociedade do espetáculo, que
semeia a cultura do corpo, sublimação da sexualidade, homogeneização, a competição
econômica do ao vencedor as batatas, em suma, a alienação cuja raiz está localizada na
forma de organização econômica capitalista.
Como podemos perceber, queiramos ou não, as raízes da apatia, indiferença ou
alheamento do discente são profundas. Não são o aparato tecnológico, a aquisição de uma
inteligência prática necessária ao mercado de trabalho, o discurso vago de cidadania e
respeito às diferenças que vão erradicá-las, mas sim sua abordagem, no estudo sistemático e
discussão, no sentido de transplantá-las para o ambiente pedagógico.
A considerar a amplitude do tema, aqui nos deteremos a um de seus aspectos, a questão
do tempo. Aspecto de fundamental importância cuja abordagem no ambiente pedagógico,
sobretudo em Português e História, o que não isenta as demais disciplinas, mesmo as
exatas, via de regra, é feita de forma precária, o que contribui para a reprodução do sem-
sentido.
Tempo histórico
Segundo Eric Robsbawm, em “Era dos Extremos-O breve século XX/1914-1991”:
Baseado no que diz o historiador, do que serve uma certa aprendizagem de linguagem,
sobretudo a função verbal, e conceitos históricos, se como diz Robsbawm, para muitos
jovens, o presente é contínuo. Ora, presente contínuo é atemporalidade, eternidade. Nesse
sentido, do que serve a história? Quais tipos de aulas de Português, gramática ou literatura,
e História, por exemplo, os estudantes têm, que não interferem nessa situação? Ainda que
consideremos só os bons alunos aprovados com louvor, tais aulas são questionáveis. Do
contrário, onde estão eles? Na universidade pública? Bem empregados? Não engrossam o
rol dos sem-tempo?
Cabe destacar que a observação do historiador não se restringe à juventude, pois engloba
adultos, sobretudo especialistas da área de História. Ao comentar a visita do presidente
Mitterand a Sarajevo, em 28 de junho de 1992, cuja visita teve como propósito lembrar o
assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando da Áustria-Hungria, o que levou à eclosão
da Primeira Guerra Mundial, diz que quase ninguém captou a alusão, exceto uns poucos
historiadores profissionais e cidadãos mais idosos. A memória histórica já não estava
viva.
O intuito das citações acima não é o de pôr em discussão quaisquer aspectos qualitativos
acerca da disciplina de História ou desempenho dos historiadores, nem tampouco
questionar a relevância de datas históricas, mas o de destacar a constatação que Robsbawm
faz acerca da relação do ser humano com o tempo histórico no final do século XX.
Como podemos ver, é necessário algo mais, além da inteligência prática vinculada ao
tempo cotidiano, trata-se do tempo histórico. Podemos perceber que não só os jovens
padecem dessa dificuldade, mas também os adultos, sobretudo os escolarizados e
integrantes dos quadros educacionais. Se é assim, o que se pode esperar da juventude,
uma vez que seus referenciais, os adultos, vivem enredados num presente contínuo e,
portanto, sem memória histórica? Cobrar consciência histórica de estudantes sem tê-la
equivale à cobrança de leitura e produção de texto quando não se lê e nem tampouco se
escreve. É um disparate, senão uma farsa.
Como dito acima, aqui, o interesse não é o de discutir a causa dessa generalização do
apagamento do tempo histórico, a alienação econômica originária das contradições entre
capital e trabalho, mas um de seus aspectos, a alienação do homem em relação ao tempo,
este, na condição de categoria absolutizada.
Deste modo, cabe destacar que a natureza da constatação de Eric Robsbawm não é
novidade. Além de o tempo ter sido objeto de estudo desde a Antiguidade, como categoria
relacionada ou não ao espaço e movimento, posteriormente, a relação do homem comum
com o tempo passou a ser objeto de preocupação, como por exemplo, em Literatura ( crítica
literária ou obra literária ) e Lingüística. É certo que os estudos ou abordagens dessa relação
sempre foram determinadas pela concepção ideológica do que seja o tempo, se algo que se
auto-explica ou categoria que se define a partir de sua relação com espaço e movimento.
Tempo e história
Em linhas gerais, até nossos dias, foram duas as formas de relação do homem com o
tempo, o tempo cíclico e o tempo linear. Da Antiguidade até meados da Idade Média, o
ciclo das estações e fatos meteorológicos eram utilizados como referência temporal das
atividades. Ainda na Idade Média, com o surgimento embrionário do capitalismo, o tempo
passou a ser objeto de medida, assume a característica de linearidade em razão da
necessidade de ser otimizado. Acerca do instante de transição dentre esses dois momentos,
do tempo medieval ao tempo moderno, Jacques Le Goff, em “Para um novo conceito de
Idade Média-Tempo, Trabalho e Cultura no Ocidente”, diz o seguinte:
Por certo, esta brevíssima distinção de cada um dos momentos e respectiva transição, por
si só, não responde ao que queremos, embora seja algo significativo, uma vez que nos
mostra um momento de grande transformação cuja razão econômica vem, de forma
crescente, causando impactos psicológicos.
O texto literário, sobretudo a poesia e o romance, ao longo da história da literatura, vem
expressando as inquietações decorrentes das constatações do processo de fragmentação do
tempo na relação do homem comum com a temporalidade. Dentre várias obras importantes,
“Em busca do tempo perdido” ( Marcel Proust ), a poética do heterônimo Alberto Caeiro (
Fernando Pessoa ) e “A Paixão Segundo G.H.” ( Clarice Lispector ), destacam-se nesse
viés. Como veremos abaixo, exceto Proust, que problematiza a questão diretamente,
Fernando Pessoa e Clarice Lispector o fazem de forma implícita, ao sugerirem a tensão
embutida no problema.
Como citado acima, vemos que a concepção goetheana de tempo não o percebe ( o tempo
) de forma compartimentada, mas vinculado ao espaço, às coisas e ao movimento.
Conforme já mencionado acerca da concepção de tempo, desde a Antiguidade estudava-
se a questão, e, segundo Jacques Le Goff, Aristóteles já propunha que o tempo é o número
do movimento. Ora, a considerar que o movimento não se refere a outra coisa senão à
matéria, não há como se desvincular tempo da matéria. Deste modo, o tempo e o espaço,
assim como movimento e relação, são condições de existência da matéria, das coisas.
Durante bom período da Idade Média cujo poder político era da Igreja, ainda conforme
Le Goff, a concepção de tempo é completamente esvaziada de historicidade, e afirma:
Como vemos, Marx estabelece uma analogia entre os modos quantitativos de existência
do movimento e do trabalho, que são respectivamente o tempo e o tempo de trabalho.
Cumpre destacar que a diferenciação entre as concepções de tempo, materialista e
idealista, não é uma questão menor, uma vez que, por exemplo, as várias abordagens
pedagógicas em quaisquer disciplinas, para serem completas, devem ser perpassadas por
essa diferenciação.
Em “As Astúcias da Enunciação-As categorias de pessoa, espaço e tempo”, o professor
José Luiz Fiorin, ao apresentar uma belíssima teoria acerca da demarcação e sistematização
do tempo cujo núcleo trata da enunciação como eixo ordenador da categoria topologia
concomitância vs não-concomitância, a última articulada em anterioridade vs
posterioridade, fundamenta filosoficamente sua proposta com base em Santo Agostinho,
para quem o tempo é produto do espírito.
Tal fundamentação está na abertura do capítulo referente ao tempo, o tempo dominado,
cuja epígrafe, Le temps est invention, ou il n’est rien du tout ( Bergson ), por si só, já sugere
o teor idealista que, embora não ofusque em nada a eficácia da proposta, compromete a
fundamentação.
Do exposto acima, podemos concluir que a diferença entre Goethe e Proust, sob o aspecto
do tempo, é radical. No segundo, o passado se perde e só é passível de percepção a partir de
sensações acidentais, com base numa memória involuntária. A relação entre passado e
presente é de rompimento e o resgate do passado implica em saída da ordem
temporal.Enquanto para Goethe, passado, presente e futuro fundem-se nas coisas; para
Proust, as coisas têm apenas a condição de despertar sensações. Se a presentificação do
passado só se torna possível em razão de situações fortuitas, sobretudo um passado calcado
em experiências individuais, o tempo histórico não existe. Na perspectiva prousteana, o
presente mais parece a eternidade, o que não muda. Por sua vez, as coisas, exceto em
determinadas circunstâncias, nada têm a dizer. Disto deriva o tédio, a pasmaceira do mundo
de Proust: o olhar alienado sobre as coisas.
Por outro lado, Fernando Pessoa ( Alberto Caeiro ) e Clarice Lispector optam, por via de
construções metafóricas, pela desconstrução dos simulacros, como o processo de nomeação
e perspectiva utilitária, que encobrem as coisas. A grande metáfora pessoana e clariceana
resulta da atribuição de vida às coisas cujo propósito é o de nos conclamar a que, ao
olharmos, desnudemos as coisas dos coágulos de vida que as submetem, e passemos a ver o
passado que as impregna, como também as possibilidades de futuro. Em “Paixão Segundo
G.H.”, Clarice Lispector diz:
Fernando Pessoa ( Alberto Caeiro ), por sua vez, num momento flagrante e inusitado, nos
diz:
Considerações finais
Rompida a relação utilitarista do homem com as coisas, proposta pela ordem vigente,
podemos perceber a importância das coisas, do objeto mais banal à pintura de Rembrandt,
no que diz respeito aos papéis que estas desempenham no desenvolvimento filogenético (
da espécie ) e ontogenético ( do ser ) do homem, no âmbito de seu processo de apropriação
e objetivação. Assim como as flores de Caeiro não sorriem, a coisa não fala, mas em seu
silêncio ela nos comunica um passado e possibilidades de futuro, além do que, ao percebê-
la nestas condições, nos re-conhecemos e ampliamos nossa humanidade, acessamos o
tempo histórico e assumimos a condição de herdeiros de um patrimônio de conhecimento
acumulado pela humanidade cuja tendência é a continuidade num crescente.
Para tanto, não há necessidade de rompimento com o cotidiano, pois é nele que a história
está ancorada. Mais do que rechaçar o cotidiano, é necessário entendê-lo e captar suas
relações dialéticas com a história. Nesse sentido, em Dialética do Concreto”, Karel Kosik
nos diz o seguinte:
Referências bibliográficas