Uma definição ou um
convite?
Alguns anos atrás, em um seminário sobre
Semiótica, realizado em uma das cidades do Brasil,
um aluno que permanecia ainda muito curioso,
apesar de já ter assistido a algumas palestras,
subitamente me perguntou: — "Mas, afinal, o que é
Semiótica?".
Assim, de chofre, tomada de surpresa no
corredor de passagem de uma sala a outra, devo ter
respondido algo parecido com isto: — "Quando
alguma coisa se apresenta em estado nascente, ela
costuma ser frágil e delicada, campo aberto a muitas
possibilidades ainda não inteiramente consumadas e
consumidas. Esse é justamente o caso da Semiótica:
algo nascendo e em processo de crescimento. Esse
algo é uma ciência, um território do saber e do
conhecimento ainda não sedimentado, indagações e
investigações em progresso.
Primeiro passos para a Um processo como tal não pode ser traduzido
Semiótica................... ....................... 01 em uma única definição cabal, sob pena de se perder
O legado de C. S. justo aquilo que nele vale a pena, isto é, o
Peirce......................................................... 03 engajamento vivo, concreto e real no caminho da
Para se ler o mundo como instigação e do conhecimento. Toda definição
linguagem..................................... 05 acabada é uma espécie de morte, porque, sendo
Abrir as janelas: olhar para o fechada, mata justo a inquietação e curiosidade que
mundo...................................... 07 nos impulsionam para as coisas que, vivas, palpitam
Para se tecer a malha dos e pulsam".
signos ........................................ 11 Sei que, em vez de dar uma resposta direta e
Outras fontes e positiva (função que provavelmente me cabia na
caminhos....................................................... 15 ocasião), estava tentando armar uma estratégia de
Indicações para sedução. Em lugar de saciar ã sua curiosidade, só
leitura ........................................................... 18 queria aumentá-la. Contudo, o peso das certezas ó
sempre mais forte que o das dúvidas. Recebi, por
PRIMEIROS PASSOS PARA A isso, uma segunda pergunta que, aliás, não era mais
uma pergunta, mas uma crítica só levemente velada:
SEMIÓTICA — "Que importância pode ter isso para nós? Nós que
temos a resolver um problema muito mais. prioritário
Semi-ótica — ótica pela metade? ou Simiótica — e urgente, o da miséria e da fome?".
estudo dos símios? Acenei, então, mais uma vez com uma
Essas são, via de regra, as primeiras traduções, a sugestão de resposta: — "Há duas espécies de fome:
nível de brincadeira, que sempre surgem na abordagem a da miséria do corpo, esta, mais fundamental e
da Semiótica. Aí, a gente tenta ser sério e diz: — "O determinante, visto que interceptadora de quaisquer
nome Semiótica vem da raiz grega semeion, que quer outras funções, necessidades e realizações humanas;
dizer signo. Semiótica é a ciência dos signos.". Contudo, mas há também a carência de conhecimento, este,
pensando esclarecer, confundimos mais as coisas, pois outro tipo de fome. Nossa luta tem de ser travada
nosso interlocutor, com olhar de surpresa, compreende sempre simultaneamente em ambas as direções. A
que se está querendo apenas dar um novo nome para a Semiótica está rapidamente se desenvolvendo em
Astrologia. todas as partes do mundo. Por que haveremos nós de
Confusão instalada, tentamos desenredar, cruzar os braços, ficando à espera dos restos de sopa
dizendo: — "Não são os signos do zodíaco, mas signo, científica que os outros poderão, porventura, nos
linguagem. A Semiótica é a ciência geral de todas as deixar de sobra?"
linguagens". Mas, assim, ao invés de melhorar, as
coisas só pioram, pois que, então, o interlocutor, desta
vez com olhar de cumplicidade — segredo desvendado
—, replica: — "Ah! Agora compreendi. Não se estuda só Linguagens verbais e não-
o português, mas todas as línguas".
Nesse momento, nós nos damos conta desse verbais
primordial, enorme equívoco que, de saída, já ronda a
Semiótica: a confusão entre língua e linguagem. E para Antes de tudo, cumpre alertar para uma
deslindá-la, sabemos que temos de começar as coisas distinção necessária: o século XX viu nascer e está
de seus começos, agarrá-las pela raiz, caso contrário, testemunhando o crescimento de duas ciências da
tornamo-nos presas de uma rede em cuja tessitura não linguagem. Uma delas é a Lingüística, ciência da
nos enredamos e, por não nos termos enredado, não linguagem verbal. A outra é a Semiótica, ciência de
toda e qualquer linguagem. As principais relações representação do mundo.
fundamentais de semelhança e oposição entre ambas Portanto, quando dizemos linguagem,
são problemas que tentaremos ir focalizando queremos nos referir a uma gama incrivelmente
oportunamente no decorrer do percurso que iremos intrincada de formas sociais de comunicação e de
efetuar neste livro. significação quê inclui a linguagem verbal articulada,
Como ponto de partida, porém, que tentemos mas absorve também, inclusive, a linguagem dos
desatar o nó de um equívoco de base: a diferença entre surdos-mudos, o sistema codificado da moda, da
língua e lingua-gem em conexão com a diferença, que culinária e tantos outros. Enfim: todos os sistemas de
buscaremos discriminar, entre linguagens verbais e produção de sentido aos quais o desenvolvimento
não-verbais. dos meios de reprodução de linguagem propiciam
Tão natural e evidente, tão profundamente hoje uma enorme difusão.
integrado ao nosso próprio ser é o uso da língua que De dois séculos para cá (pós-revolução
falamos, e da qual fazemos uso para escrever — língua industrial), as invenções de máquinas capazes de
nativa, materna ou pátria, como costuma ser chamada produzir, armazenar e difundir linguagens {a
—, que tendemos a nos desaperceber de que esta não é fotografia, o cinema, os meios de impressão gráfica,
a única e exclusiva forma de linguagem que somos o rádio, a TV, as fitas magnéticas etc.) povoaram
capazes de produzir, criar, reproduzir, transformar e nosso cotidiano com mensagens e informações que
consumir, ou seja, ver-ouvir-ler para que possamos nos nos espreitam e nos esperam. Para termos uma idéia
comunicar uns com os outros. das transmutações que estão se operando no mundo
É tal a distração que a aparente dominância da da linguagem, basta lembrar que, ao simples apertar
língua provoca em nós que, na maior parte das vezes, de botões, imagens, sons, palavras (a novela das 8,
não chegamos a tomar consciência de que o nosso um jogo de futebol, um debate político...) invadem
estar-no-mundo, como indivíduos sociais que somos, é nossa casa e a ela chegam mais ou menos do mesmo
mediado por uma rede intrincada e plural de linguagem, modo que chegam a água, o gás ou a luz.
isto é, que nos comunicamos também através da leitura E claro que no sistema social em que vivemos
e/ou produção de formas, volumes, massas, interações estamos fadados a apenas receber linguagens que
de forças, movimentos; que somos também leitores não ajudamos a produzir, que somos bombardeados
e/ou produtores de dimensões e direções de linhas, por mensagens que servem à inculcação de valores
traços, cores... Enfim, também nos comunicamos e nos que se prestam ao jogo de interesses dos
orientamos através de imagens, gráficos, sinais, setas, proprietários dos meios de produção de lingua-gem e
números, luzes...Através de objetos, sons musicais, não aos usuários. Contudo, a discussão dessas
gestos, expressões, cheiro e tato, através do olhar, do contradições seria assunto para um outro livro que,
sentir e do apalpar. Somos uma espécie animal tão aliás, já consta desta coleção Primeiros Passos (cf. O
complexa quanto são complexas e plurais as linguagens que é Indústria Cultural).
que nos constituem como seres simbólicos, isto é, seres Assim, que passemos aqui para a observação
de linguagem. mais cuidadosa da extensão que um conceito lato de
Cumpre notar que a ilusória exclusividade da linguagem pode cobrir. Considerando-se que todo
língua, como forma de linguagem e meio de fenômeno de cultura só funciona culturalmente
comunicação privilegiados, é muito intensamente porque é também um fenômeno de comunicação, e
devida a um condicionamento histórico que nos levou à considerando-se que esses fenômenos só comunicam
crença de que as únicas formas de conhecimento, de porque se estruturam como linguagem, pode-se
saber e de interpretação do mundo são aquelas concluir que todo e qualquer fato cultural, toda e
veiculadas pela língua, na sua manifestação como qualquer atividade ou prática social constituem-se
linguagem verbal oral ou escrita. O saber analítico, que como práticas significantes, isto é, práticas de
essa linguagem permite, conduziu à legitimação produção de linguagem e de sentido.
consensual e institucional de que esse é o saber de Iremos, contudo, mais além; de todas as
primeira ordem, em detrimento e relegando para uma aparências sensíveis, o homem — na sua inquieta
segunda ordem todos os outros saberes, mais sensíveis, indagação para a compreensão dos fenômenos —
que as outras linguagens, as não-verbais, possibilitam. desvela significações. E no homem e pelo homem
No entanto, em todos os tempos, grupos que se opera o processo de alteração dos sinais
humanos constituídos sempre recorreram a modos de (qualquer estímulo emitido pelos objetos do mundo)
expressão, de manifestação de sentido e de em signos ou linguagens {produtos da consciência).
comunicação sociais outros e diversos da linguagem Nessa medida, o termo linguagem se estende aos
verbal, desde os desenhos nas grutas de Lascaux, os sistemas aparentemente mais inumanos como as
rituais de tribos "primitivas", danças, músicas, linguagens binárias de que as máquinas se utilizam
cerimoniais e jogos, até as produções de arquitetura e para se comunicar entre si e com
de objetos, além das formas de criação de linguagem o homem (a linguagem do computador, por
que viemos a chamar de arte: desenhos, pinturas, exemplo}, até tudo aquilo que, na natureza, fala ao
esculturas, poética, cenografia etc. E, quando homem e é sentido como linguagem. Haverá, assim,
consideramos a linguagem verbal escrita, esta também a linguagem das flores, dos ventos, dos ruídos, dos
não conheceu apenas o modo de codificação alfabética sinais de energia vital emitidos pelo corpo e, até
criado e estabelecido no Ocidente a partir dos gregos. mesmo, a linguagem do silêncio. Isso tudo, sem falar
Há outras formas de codificação escrita, diferentes da do sonho que, desde Freud, já sabemos que também
linguagem alfabeticamente articulada, tais como se estrutura como linguagem.
hieróglifos, pictogramas, ideogramas, formas estas que
se limitam com o desenho.
Em síntese: existe uma linguagem verbal, Até onde vai a Semiótica
linguagem de sons que veiculam conceitos e que se
articulam no aparelho fonador, sons estes que, no Aqui tocamos um ponto que nos permite
Ocidente, receberam uma tradução visual alfabética retornar à questão de onde partimos. As linguagens
(linguagem escrita), mas existe simultaneamente uma estão no mundo e nós estamos na linguagem, A
enorme variedade de outras linguagens que também se Semiótica é a ciência que tem por objeto de
constituem em sistemas sociais e históricos de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja,
que tem por objetivo o exame dos modos de
constituição de todo e qualquer fenômeno como de lingua-gem tendem a se comportar como sistemas
fenômeno de produção de significação e de sentido. vivos, ou seja, eles reproduzem, se readaptam, se
Seu campo de indagação é tão vasto que chega a transformam e se regeneram como as coisas vivas.
cobrir Caracterizado o campo de abrangência da
o que chamamos de vida, visto que, desde a descoberta Semiótica, podemos repetir que ele é vasto, mas não
da estrutura química do código genético, nos anos 50, indefinido. O que se busca descrever e analisar nos
aquilo que chamamos de vida não é senão uma espécie fenômenos é sua constituição como linguagem. Neste
de linguagem, isto é, a própria noção de vida depende sentido, embora a Semiótica se constitua num campo
da existência de informação no sistema biológico. Sem intrincado e heteróclito de estudos e indagações que
informação não há mensagem, não há planejamento, vão desde, a culinária até a psicanálise, que se
não há reprodução, não há processo e mecanismo de intrometem não só na meteorologia como também
controle e comando. No caso da vida, estes são na anatomia, que dão palpites tanto ao cientista
necessariamente ligados a uma linguagem, a uma político quanto ao músico, que imprevistamente
ordenação obtida a partir de um compartimento invadem territórios que se querem bem protegidos
armazenador da informação como a DNA (substância pelas bem demarcadas fronteiras entre as ciências,
universal portadora do código genético). Portanto, os isso não significa que a Semiótica esteja
dois ingredientes fundamentais da vida são: energia sorrateiramente chegando para roubar ou pilhar o
(que torna possíveis os processos dinâmicos) e campo do saber e da investigação específica de
informação (que comanda, controla, coordena, reproduz outras ciências. Nos fenômenos, sejam eles quais
e, eventualmente, modifica e adapta o uso da energia). forem — uma nesga de luz ou um teorema
Sem a linguagem seria impossível a vida, pelo menos matemático, um lamento de dor ou uma idéia
como a conceituamos agora: algo que se reproduz, que abstrata da ciência —, a Semiótica busca divisar e
tem um comportamento esperado e certas propensões. deslindar seu ser de linguagem, isto é, sua ação de
Nessa medida, não apenas a vida é uma espécie signo. Tão-só e apenas. E isso já é muito.
de linguagem, mas também todos os sistemas e formas