Instituto de Psicologia
Lacan:
psicanálise, ontologia e política
1
FROMM, Erich; Arbeiter und Angestelle am Vorabend des Dritten Reiches, Stutgart: Deutsche
Verlags-Anstalt, 1980, p. 110. Para uma discussão sobre as primeiras colaborações de Erich Fromm ao
Instituto de Pesquisas Sociais, ver JAY, Martin; The dialectical imagination, California University
Press, 1996
2
Daí porque Adorno lembrará: “Freud mostrou de maneira bem convincente que as forças que
assumem a função do cimento irracional de grupos, como lembrada por autores tais como Gustave Le
Bon, são atualmente efetivas no interior de cada participante do grupo e não pode ser compreendida
como entidades independentes das dinâmicas psicológicas” (ADORNO, Theodor; Vermischte
Schriften I, p. 279).
racionalização social das experiências materiais de interação tendo em vista
problemas de satisfação e reconhecimento.
Emancipação
Mas eu poderia começar este curso ainda de outra maneira, não apenas
lembrando que a psicanálise modificou a compreensão ocidental do que política
significa, redimensionando o escopo da crítica social ao tematizar a sociedade
inconsciente de si mesma, mas que ela nos permitiu pensar em outras bases o
processo de emancipação social. Esta é uma dimensão muitas vezes ignorada, no
entanto decisiva. A psicanálise é solidária do redimensionamento da noção de
emancipação, ao conservar a temática de uma liberdade possível, de uma crítica
possível da alienação, mas impedindo-a de ser pensada como a realização social
da autonomia da consciência. A noção psicanalítica de inconsciente nos obriga à
reformulação profunda do conceito de autonomia, reformulação a respeito da qual
ainda não medimos de forma efetiva suas consequências. Isto não poderia deixar
de trazer consequências para a noção de ação política. Pois o que é uma ação
política que não se coloca mais como ação de uma consciência, seja ela individual
ou consciência de classe? O que é uma ação política que não pode mais apelar a
conceitos de deliberação racional tal como entendemos este conceito até agora?
Insistir na existência de uma reflexão psicanalítica sobre as condições de
emancipação social significa recusar a noção, muito presente entre nós, de que a
psicanálise freudiana poderia, no máximo, nos fornecer uma visão deceptiva da
vida social. Se há emancipação possível, ela deve se realizar como instauração de
laços sociais que possam dar conta de expectativas de liberdade. O que significa
recusar a ideia de que só seria possível pensar laços sociais a partir das exigências
de contenção possível de uma violência imanente à vida comum. Por exemplo,
creio que vocês todos conhecem afirmações como:
O ser humano não é uma criatura branda, ávida de amor, que no máximo
pode se defender quando atacado, mas ele deve sim incluir, entre seus
dotes instintuais, também um forte quinhão de agressividade. Em
consequência disso, para ele o próximo não constitui apenas um possível
colaborador e objeto sexual, mas também uma tentação para satisfazer a
tendência à agressão, para explorar seu trabalho sem recompensá-lo, para
dele se utilizar sexualmente contra sua vontade, para usurpar seu
patrimônio, para humilhá-lo, para infligir-lhe dor, para torturá-lo e matá-
lo. Homo homini lupus3.
3FREUD, Sigmund; O mal-estar na civilização, São Paulo: Companhia das Letras, pp. 76-77.
Lembremos ainda do tom claramente hobbesiano da descrição da violência do “estado de
natureza” que leva Freud a afirmar: “a principal tarefa da cultura, sua razão própria de existência,
consiste em nos defender contra a natureza” (FREUD, Sigmund; Der zukunft einer Illusion, In:
Gesammelte Werke XIV, Frankfurt: Fischer, 1999, p. 336)
permanente de ameaça à integração social. O que teria levado alguém como
Derrida a afirmar que “se a pulsão de poder ou a pulsão de crueldade é irredutível,
mais velha, mais antiga que os princípios (de prazer ou de realidade, que são no
fundo o mesmo, como gostaria eu de dizer, o mesmo na diferença) então nenhuma
política poderá erradicá-la” 4 . Tal crueldade não pareceria ser completamente
maleável de acordo com transformações sociais. Daí porque Freud dirá: “Sempre
é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras
contra as quais se exteriorize a agressividade”5. Ou seja, os vínculos cooperativos
baseados no amor ou em alguma forma de intersubjetividade primária só seriam
realmente capazes de sustentar relações sociais alargadas à condição de dar
espaço à constituição de diferenças intoleráveis alojadas em um exterior que será
objeto contínuo de violência. Tais vínculos de amor permitiriam a produção de
espaços de afirmação identitária a partir de relações libidinais de identificação e
investimento. Mas a constituição identitária seria indissociável de uma regulação
narcísica da coesão social, o que explica porque Freud fazia questão de lembrar
que “depois que o apóstolo Paulo fez do amor universal aos homens o fundamento
de sua congregação, a intolerância extrema do cristianismo ante os que
permaneceram de fora tornou-se uma consequência inevitável” 6 . Não é difícil
compreender como tal exteriorização da agressividade, assim como toda e
qualquer aceitação de restrições pulsionais só poderá ser feita apelando ao medo
como afeto político central. Medo do exterior, do poder soberano, da despossessão
produzida pelo outro ou ainda da destruição produzida por si mesmo.
Neste ponto, Freud poderia parecer prisioneiro de um certo núcleo
metafísico da política, presente nesta forma de radicalizar a irredutibilidade da
violência como constante antropológica. Podemos falar em “núcleo metafísico”
porque a violência irredutível das relações interpessoais, além de ser elevada a
paradigma intransponível do político, pareceria fadada a só se realizar de uma
forma, a saber, como experiência da vulnerabilidade diante da agressividade vinda
do outro. Tal invariabilidade das figuras da violência parece expressão de uma
certa crença metafísica na essência intransponível das relação humanas.
No entanto, esta leitura é errada e não faz jus àquilo que a psicanálise
produziu de pontencialidades a respeito de uma teoria da emancipação. Pois há
de se lembrar que a psicanálise não é apenas uma crítica social, ela é uma reflexão
sobre as possibilidades de emergência de corpos políticos capazes de bloquear os
sistemas de alienação e suas formas de sofrimento social. Eu diria que sem este
horizonte em vista não é possível entender o sentido de textos como Moisés e o
monoteismo, Por que a guerra? Ou O futuro de uma ilusão.
4 (DERRIDA, Jacques; Estados de alma da psicanálise, Rio de Janeiro: Relume Dumará, p. 34)
5 FREUD, Der Zukunft einer Illusion, p. 81
6 FREUD, O mal-estar na civilização, op. cit. p. 81
O destino das consequências políticas do pensamento lacaniano é algo que
está longe de ser estabelecido sem problematizações. Críticas significativas foram
desenvolvidas por leitores de Lacan como Guattari, Deleuze, Foucault, Derrida,
Castoriadis, entre outros. No entanto, eu gostaria de insistir que tais críticas erram
de alvo e que uma leitura atenta dos textos pode nos mostrar uma outra imagem
do pensamento.
Para tanto, neste curso, gostaria de desenvolver quatro eixos de
organização das relações entre psicanálise e política a partir da obra de Jacques
Lacan. Tais eixos respondem por problemas constitutivos da experiência política
e já foram, cada um a sua maneira, elaborados ou criticados por teóricos e filósofos
que se confrontaram com a obra lacaniana. No entanto, gostaria de insistir que, a
meu ver, todos esses eixos encontram-se ainda subaproveitados em suas
potencialidades imanentes. Eles carecem ainda de maior sistematização.
Estes eixos visam dar conta do que poderíamos chamar de “os quatro
conceitos fundamentais da política a partir da psicanálise lacaniana”. Eles acabam
por cobrir, à sua maneira, problemas centrais para a teoria política como: a
questão da emergência e da mobilização, da crítica da situação e da organização.
Os conceitos são: identificação, ato, gozo e reconhecimento. A sua maneira, eles
desdobram o campo organizado por aquilo que Lacan chamou de “os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise”, a saber: a transferência, a repetição, o
inconsciente e o objeto a.
O primeiro eixo que gostaria de analisar com vocês diz respeito a uma
teoria das identificações políticas que se desdobra em uma concepção sobre
modalidades de instauração de corpos políticos. Neste eixo, encontramos
inclusive reflexões sistemáticas sobre processos de organização política advindos
das exigência que Lacan se impôs de constituir um vínculo social renovado através
da transformação do problema da comunidade de analistas em um problema
interno à clínica, isto ao constituir a Escola Freudiana de Psicanálise. O que de fato
produziu problemas suplementares dificilmente resolúveis.
Lacan parte de um diagnóstico social referente àquilo que ele chama de
“declínio da imago paterna” e dos efeitos sociais que tal declínio produziria. Como
gostaria de mostrar já na aula que vem, longe de estarmos diante um tópico social
vinculado ao colapso das autoridades tradicionais devido ao processo de
modernização social e a potencial anomia que tal desregulação das normas sociais
produziria (como vemos, por exemplo, em Durkheim), tópico articulado
normalmente com demandas de instauração de um institucionalismo forte, temos
em Lacan uma reflexão original vinculada à consciência do advento de uma era
histórica na qual o declínio da imago paterna não equivalerá à liberação dos
sujeitos de estruturas patriarcais fortemente normativas, mas à consolidação de
outra forma de sujeição social vinculada à redução das relações sociais às formas
imaginárias do conflito, da agressividade e da rivalidade narcísica.
A promessa de liberação advinda do fim da sociedade patriarcal não se
realizou, é o que diz Lacan. Na verdade, nós já viveríamos em uma sociedade sem
pais, pois as figuras paternas estariam necessariamente reduzidas à condição de
rivais narcísicos. Sociedades nas quais o verdadeiro pai só pode ser um pai morto.
O que produz um efeito social de generalização do narcisismo como estrutura de
defesa contra a fragilidade do Eu em uma situação na qual as identificações
simbólicas tendencialmente não conseguem operar enquanto tais. Antes da
temática das sociedades narcísicas tomar conta da sociologia dos anos sessenta,
Lacan apontava para um problema estruturalmente semelhante como a
verdadeira forma de reprodução social das sociedades capitalistas
contemporâneas, sem ter que referendar a crítica ao hedonismo que muitas vezes
acompanham tais críticas, transformando-as muitas vezes em críticas morais do
capitalismo.
Há de se salientar ainda que a compreensão lacaniana do narcisismo
generalizado apontava para dois fenômenos sociais fundamentais. Primeiro, a
submissão dos sujeitos a um tipo de injunção superegóica não mais vinculada à
repressão advinda de figuras paternas de autoridade, mas a uma demanda
indeterminada de satisfação que só poderia levar ao colapso depressivo da
capacidade individual de ação. Segundo, a possibilidade de produção generalizada
de demandas por figuras superegóicas de autoridade em clara chave autoritária.
Isto mostra como tal economia psíquica trará consequências maiores para
o campo político. A sua maneira, Lacan tentará lidar com elas desde seu texto de
1947 “A psiquiatria inglesa e a guerra” no qual saúda o experimento de Bion e
Rickmann a respeito de grupos sem chefe. Em uma era de declínio da imago
paterna, sua aposta parece caminhar em direção à possibilidade não de
fortalecimento das figuras paternas de autoridade, mas de constituição de laços
sociais a partir da identificação a um lugar vazio, algo que de certa forma veremos
se realizar com um filósofo político leitor de Lacan, a saber, Claude Lefort. O
mesmo Lefort que tentará desenvolver uma teoria da democracia a partir de uma
apropriação das distinções lacanianas entre os registros do simbólico e do
imaginário. Daí afirmações como:
O terceiro eixo, talvez o mais discutido pela fortuna crítica, nos fornece uma
crítica da economia libidinal do capitalismo através do uso extensivo de um
conceito de gozo forjado na relação entre psicanálise freudiana e teoria social de
Georges Bataille (de onde o conceito realmente vem). Lacan acredita que a crítica
social do capitalismo deve estar inicialmente atenta às formas de incitação
libidinal necessárias à reprodução das formas sociais. A compreensão das
articulações entre instauração da vida psíquica e modos de sujeição social passam,
no caso de Lacan, por uma dinâmica que não é legível através dos problemas
ligados aos destinos dos processos repressivos, mas aos modos de expropriação
das experiências de gozo.
Na verdade, Lacan parte inicialmente da perspectiva batailleana relativa à
compreensão dos processos de reprodução material da vida sob o capitalismo
através da elevação dos princípios utilitaristas de maximização do prazer e de
afastamento do desprazer. Em Bataille, tal tópica servia para lembrar que o
capitalismo deveria procurar eliminar do horizonte da vida social todos estes fatos
totais que não poderiam ser pensados através da estrutura calculadora do prazer,
em especial o erotismo e o sagrado. Pois sagrado e erotismo seriam fatos sociais
motivados pelo gozo, não pelo prazer.
Esta distinção entre prazer e gozo será transposta para o interior da teoria
psicanalítica por Lacan, principalmente a partir do Seminário VII, sobre a ética da
psicanálise. Na ocasião, Lacan fará uma importante elaboração a respeito da
experiência analítica como uma prática dirigida por uma ética que, no entanto, não
promete forma alguma de adaptação possível entre virtudes privadas e virtudes
públicas nas condições atuais. “Il n’y a aucune raison que nous nous fassions les
garants de la rêverie bourgeoise”11. Nas condições atuais, a realização do gozo só
pode se dar de forma disruptiva em relação às exigências de auto-conservação dos
indivíduos. No entanto, ele é abertura para a possibilidade de realização de ações
que não se mesurem mais ao princípio do prazer. Desta forma, a existência de um
12 DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian; La nouvelle ordre du monde, op. cit., p. 437
13 Desenvolvi este ponto em SAFATLE, Vladimir; Cinismo e falência da crítica, op. cit.
14 Desta forma, “não se trata de assegurar aos indivíduos uma cobertura social dos riscos, mas de
conceder a cada um uma espécie de espaço econômico dentro do qual podem assumir e enfrentar
riscos” (FOUCAULT, Michel; O nascimento da biopolítica, op. cit., p. 198)
Para tanto, trabalharemos sessões dos Seminários VII, A ética da
psicanálise, e XVII, O avesso da psicanálise. Neste ponto, gostaria de retomar as
críticas de Foucault à “desqualificação dos prazeres” feita por Lacan e de
Deleuze/Guattari a sua teoria do capitalismo.
Por fim, o último eixo de reflexão sobre a relação entre política e psicanálise em
Lacan diz respeito à forma com que ele tematiza práticas de organização. A partir
de 1964, são vários os textos nos quais Lacan se confronta com problemas de
organização na qual seria necessário pensar a possibilidade de constituição de
laços sociais em situações nas quais a travessia da fantasia teria se realizado. Uma
organização que, por isto, deveria ser capaz de fazer circular a angústia, e não se
defender dela, que deveria ser capaz de afirmar o desamparo, e não construir
representações superegóicas que visam realizar promessas de amparo. Ou seja, há
principalmente uma pergunta a respeito do circuito de afetos próprios a
organizações e grupos que queiram ser espaços de atos analíticos, o que poderia
ser uma matriz para a compreensão de grupos capazes de realizar expectativas de
emancipação.
No entanto, a prática de organização de Lacan termina sob a égide de um
fracasso representado pelo autodissolução de sua Escola. O eixo da explosão de
sua Escola foi, de forma sintomática, a tentativa de reintroduzir algo dos processos
de comunicação e intersubjetividade através da noção de “passe”. Eu gostaria de
terminar o curso pensando as dimensões políticas deste fracasso a fim de
compreendermos o que ele nos diz, quais os desafios que ele nos deixa para uma
teoria geral de grupos e organizações. Principalmente, em que condições
poderemos pensar a inscrição comum da posição de sujeitos. Esta será uma
maneira de demonstrar a necessidade de conservar, no interior do pensamento
lacaniano, a temática do reconhecimento como horizonte normativo de realização
de demandas políticas.
Lacan: psicanálise, ontologia e política
Aula 2
Um dos principais diagnósticos sociais de Jacques Lacan, e que poderá nos auxiliar
a introduzir nossas reflexões sobre as relações entre clínica e política em sua obra,
será claramente enunciado já em 1938, a ocasião da publicação do texto Os
complexos familiares na formação do indivíduo: ensaios sobre a formação de uma
função em psicologia. Ele diz respeito ao que será conhecido como o “declínio da
imago paterna”. Tentemos compreender melhor este ponto.
Inicialmente, o topos lacaniano parece referendar um modelo de crítica
social que insistiria nas consequências desagregadoras do enfraquecimento do
sistema de autoridades tradicionalmente constituídas. Como se o
enfraquecimento das normas sociais responsáveis pela regulação das condutas e
socialização dos sujeitos fosse a causa de modalidades de sofrimento social que
poderiam levar a consequências políticas regressivas. Não foram poucos aqueles
que viram uma espécie de pressuposição durkheimeana neste diagnóstico social
lacaniano15. Ela seria a marca indelével de uma pretensa tendência falocêntrica e
patriarcal que assombraria a psicanálise lacaniana durante todo seu
desenvolvimento. Por isto, tal filiação indicaria muito a respeito das estratégias
que realmente norteariam Lacan em suas estratégias de crítica social.
Lembremos, inicialmente, como em Durkheim, o problema central, quando
é questão de análise de patologias sociais, será a maneira com que a experiência
da modernidade traria em seu bojo uma potencial desregulação das normas
devido à perda de adesão em relação a padrões tradicionais de conduta e
valoração. Isto implicaria no enfraquecimento das normas com sua capacidade de
limitação, de determinação de obrigações e de individualização. Este
enfraquecimento só poderia produzir um tipo de sofrimento social a ser chamado
de “anomia”. Sabemos que temos anomia quando as demandas sociais deixam de
ser determináveis, deixam de ter forma específica, pois elas não podem mais se
referir a um campo de codificação e significação comum socialmente partilhada.
Neste contexto entra-se em um “estado de indeterminação”16 no qual nenhuma
individualização é socialmente bem sucedida, podendo este colapso das ações
potenciais levar até mesmo ao suicídio (o suicídio por anomia será uma das
modalidades de suicídio analisadas por Durkheim). Contra isto, seria necessário
um fortalecimento dos quadros normativos a fim de permitir a definição de
processos de obrigação e assunção social através da limitação da indeterminação
produzida pelo impacto social da crítica moderna à reprodução de formas
tradicionais de vida. Os sujeitos devem ser redirecionados a quadros
institucionais fortes, que permitam o desenvolvimento de individualidades
reguladas pela assunção comum de processos produtores de mutualidade e
cooperação, isto se quisermos evitar o sofrimento social produzido pelo impacto
da modernidade.
Notemos, no entanto, que o tipo de diagnóstico fornecido por Lacan não
pode ser confundido com análises desta natureza, de cunho durkheimeano. Isto é
importante para compreendermos qual é, afinal, a estrutura das modalidades de
15 Neste sentido, a leitura mais conhecida é de ZAFIROPOULOS, Mark; Lacan et les sciences
sociales
16 DURKHEIM, Emile; Le suicide, Paris: PUF, 2005, p. 275
sofrimento que o declínio da imago paterna, ao menos segundo Lacan, produziria.
Primeiro, há de se notar como tal declínio é produzido por aquilo que poderíamos
chamar de “quebra das consequências da contração da família paterna (a família
extensa normalmente submetida à autoridade do pai) na figura da família conjugal
(apenas pai, mãe e filhos)”. A principal consequência da quebra das consequências
de tal contração será a perda da produtividade de certa antinomia. Pois esta
família conjugal, encarnada entre nós na família burguesa possui uma antinomia
de funções no eixo paterno. A este respeito, lembremos como, para o pai da família
conjugal, convergem duas funções imediatamente contraditórias, a saber, a
repressão (ele inibe a função sexual de forma inconsciente através do supereu) e
a sublimação (ele preserva a função social através do ideal do eu). O pai é aquele,
ao mesmo tempo, responsável pela determinação social dos ideais e pelas relações
de rivalidade sexual no interior da estrutura do complexo de Édipo. Apesar de
insistir, contrariamente a Freud, na necessidade de distinguir claramente o que é
da ordem do supereu, com suas injunções fantasmáticas, da ordem do ideal do eu,
com suas funções de transmissão simbólica de identificações, apesar de recusar a
estratégia de psicanalistas como Ferenzci de diferenciar um supereu saudável de
um supereu patológico, Lacan entende que a sobreposição da contradição na
figura paterna tem uma função maior na maturação psíquica. Pois:
17 Idem, p. 59
no nível dos processos sociais de identificação. O que lhe leva a afirmar: “quão
forte o ímpeto de sublimação está dominado pela repressão quando essas duas
funções estão separadas”18.
Assim, e esta seria uma espécie de vantagem da família conjugal para Lacan,
ao produzir uma antinomia ligada à figura paterna, a família burguesa se apoiaria
em uma determinação contraditória. Pois o pai é o lugar de uma contradição que
permitiria ao sujeito fazer da contraposição ao próprio pai a contraposição à lei.
Por isto, Lacan deve afirmar: “é por crises dialéticas que o sujeito se cria, ele
mesmo e seus objetos” 19 . Tais crises dialéticas são descritas como subversões:
“Por encarnar a autoridade na generalidade a mais vizinha e sob uma figura
familiar, a família conjugal coloca tal autoridade ao alcance imediato da subversão
criadora”20.
Ou seja, a peculiaridade da posição de Lacan vem do fato dele afirmar que
a família conjugal é aquela que permite identificações que subvertem, vínculos à
Lei que transgridam a própria Lei. Assim, a função da lei paterna é permitir a
subversão das autoridades constituídas em nome de um ideal que nunca se
encarna completamente. Pois ao encarnar a Lei na figura familiar mais próxima, a
família conjugal incita a transgressão da Lei, mas paradoxalmente em nome da
própria Lei, já que as relações de rivalidade fazem com que o pai seja percebido
sempre não estando à altura das injunções da função paterna. O que explica
porque: “os ideólogos que, no século XIX, levaram contra a família paternalista as
críticas as mais subversivas não são os que menos tem a influência desta mesma
família”21.
Notem que esta antinomia relativa à figura paterna é possível porque Lacan
partem de um pressuposto central, a saber, há uma espécie de transcendência da
lei que impulsiona os sujeitos a transgredirem as encarnações empíricas da lei. No
entanto, esta transcendência é, de forma paradoxal, uma espécie de
transcendência negativa. Ou seja, a lei social não é caracterizada pelo conjunto
positivo de normas e regras que ela enuncia, mas pela inadequação que ela produz
em relação aos seus portadores. Esta inadequação é fundamental para que a
socialização não seja uma simples conformação a normas, mas uma possibilidade
de entrar em dinâmicas individualizadoras de subversão criadora.
Este ponto é decisivo no argumento de Lacan. De certa forma, a Lei
funciona bem quando ela não legifera, mas quando simplesmente autoriza o
conflito em relação a seu próprio sentido. Neste sentido, quando Lacan afirma que
a “grande neurose” contemporânea expressa o fato da personalidade do pai ser
sempre “ausente, humilhada, dividida ou postiça”, provocando com isto uma
carência capaz de: “tanto secar o ímpeto instintivo quanto tarar a dialética da
sublimação” 22 , não se trata de defender que a cura da neurose estaria no
fortalecimento do caráter normativo da lei paterna. Na verdade, e este me parece
o ponto realmente importante aqui, Lacan compreende que não se trata
simplesmente de um “declínio” da autoridade, mas de uma eliminação da
transcendência. O pai é humilhado na contemporaneidade porque ele se reduziu
a ser apenas um rival.
18 Idem, p. 57
19 LACAN, Jacques; Autres écrits, p. 59
20 Idem,
21 Idem, p. 60
22 Idem, p. 61
Isto leva sujeitos ao fortalecimento de formas de compensação da ausência
da transcendência através da consolidação do narcisismo. Pois a redução da lei à
figura das demandas do rival, das demandas do outro que está na mesma posição
que eu mesmo, reduzem toda autoridade à expressão de representações
superegóicas que visam mascarar impossibilidades de amparo. Uma autoridade
superegóica se sustenta por sustentar relações de demanda de amparo. Não
haverá assim internalização de ideais, haverá apenas a internalização de figuras
superegóicas que se servirão da fragilização narcísica dos indivíduos, produzindo
identificações imaginárias visando reforçar um Eu enfraquecido, reduzindo assim
todo conflito à forma de um atentado à integridade narcísica e fazendo de toda
afirmação uma afirmação narcísico-identitária.
Este diagnóstico lacaniano estará presente em várias outras análises
sociais que procuraram mobilizar a psicanálise para compreender fenômenos de
regressão social. Por exemplo, em seus estudos sobre a ascensão do fascismo,
Theodor Adorno falará da especificidade do líder fascista. Pois estamos diante: “do
alargamento da própria personalidade do sujeito, uma projeção coletiva de si
mesmo, ao invés da imagem de um pai cujo papel durante a última fase da infância
do sujeito pode bem ter decaído na sociedade atual”23. Adorno explora tal traço ao
afirmar que “uma das características fundamentais da propaganda fascista
personalizada é o conceito de ‘pequeno grande homem’, uma pessoa que sugere,
ao mesmo tempo, onipotência e a ideia de que ele é apenas mais um do povo, um
simples, rude e vigoroso americano, não influenciado por riquezas materiais ou
espirituais” 24 . Pois as identificações não são construídas a partir de ideais
simbólicos. Elas são basicamente identificações narcísicas que parecem
compensar o verdadeiro sofrimento psíquico do “declínio do indivíduo e sua
subsequente fraqueza”25, um declínio que não é apenas apanágio de sociedades
abertamente totalitárias. Isto talvez explique porque este “mais um do povo”
possa ser expresso não apenas pela simplicidade, mas às vezes pelas mesmas
fraquezas que temos ou que sentimos, pela mesma revolta impotente que
expressamos26.
Neste sentido, Adorno é um dos primeiros a compreender a funcionalidade
do narcisismo enquanto modo privilegiado de vínculo social em uma sociedade de
enfraquecimento da capacidade de mediação do eu, adiantando em algumas
décadas problemas que levarão às discussões sobre a “sociedade narcísica”27. Ele
sabe como tal fraqueza permite, através da consolidação narcísica da
personalidade com suas reações diante da consciência tácita da fragilidade dos
EHRENBERG, Alain; La société du malaise: le mental et le social, Paris: Odile Jacob, 2010
ideais do eu, aquilo que ele chama de expropriação do inconsciente pelo controle
social, ao invés de transformar o sujeito consciente de seu inconsciente.
Outro diagnóstico convergente ao de Lacan foi fornecido por Alexander
Mitscherlich em seu livro Em direção a uma sociedade sem pais (Auf dem weg zur
vaterlosen Gesellschaft), de 1963. Partindo do diagnóstico frankfurtiano do
declínio da autoridade paterna devido às mutações na sociedade capitalista do
trabalho, à generalização do modelo burocrático de autoridade e à insegurança
produzida pela ausência de “seguranças de caráter paternalista” (paternistischer
Sicherung) 28 na constituição de modelos para processos de decisões a serem
tomadas pelos indivíduos (o que suscitará décadas depois a temática da
“sociedade de risco”), Mitscherlich poderá afirmar que o advento de uma
sociedade sem pais já teria sido, à sua maneira, realizada pelo capitalismo. A
desaparição do pai é um destino, não cansará de dizer Mitscherlich. No entanto, a
comunidade de irmãos não teria redundado em novas formas de organização
política. Na verdade, à estrutura da rivalidade edípica entre pai e filho substitui-se
um comportamento de afirmação de si entre irmãos, expressos através de ciúme
e concorrência com suas patologias ligadas ao culto da performance e à pressão
narcísica dos ideias29. Mesmo as figuras paternas no interior do núcleo familiar
seriam cada vez menos representantes de modelos patriarcais de autoridade e
cada vez mais próximas de figuras fraternas concorrentes. Desta forma, a
sociedade capitalista teria sido capaz de sobreviver ao se transformar em uma
sociedade sem pais organizada em chave narcísica, cujas patologias deixarão de
se constituir a partir dos conflitos neuróticos com as interdições da Lei para se
constituírem a partir dos conflitos narcísicos diante da impotência de realizar
ideais. É pensando em fenômenos semelhantes que Lacan afirmará que tal
fortalecimento do narcisismo será responsável pelo recrudescimento de
regressões sociais como: a xenofobia, a segregação e a procura por figuras
superegóicas de autoridade.
Notemos então dois pontos fundamentais. Primeiro, por mais paradoxal
que inicialmente possa parecer, Lacan afirma que o declínio da imago paterna
impede a subversão da autoridade, fixando o sujeito em um fortalecimento
fantasmático de figuras superegóicas de autoridade. No entanto, Lacan precisa
defender a tese de que a função da lei paterna é permitir a transgressão contra ela
mesma, sem que isto implique necessariamente perpetuação de uma situação de
desagregação. Segundo, Lacan diz muito pouco a respeito das causas de tal
declínio ou do momento histórico em que a imago paterna não teria declinado.
Pois para a tese do “declínio” funcionar, seria necessário um momento histórico
no qual, a lei paterna teria funcionado como mera potência de transcendência,
descolada dos enunciados normativos que definem as condutas e
comportamentos que lhe seriam conformes. Não será no passado que Lacan
poderá encontrar tal modelo de funcionamento, o que não lhe impede de procurar,
de certa forma, no futuro.
28 MITSCHERLICH, Alexander; Auf dem Weg zur vaterlosen Gesellschaft, In: Gesammelte Schriften,
Frankfurt; Suhrkamp, 1983, p. 250
29 Daí afirmações como “a necessidade de performance, o medo de ser ultrapassado e de ficar
30 Idem, p. 101
31 Idem p. 109
As colocações são bastantes significativas. Ao preservar o lugar do poder como um
lugar simbolicamente vazio, ou seja, lugar que pode ser ocupado por qualquer um
que se disponha a tanto mas que encontra-se determinado em condições
simbólicas partilhadas, Bion permitira ao grupo “tomar consciência de suas
dificuldades de existência”, isto a ponto de instaurar uma transparência do grupo
a si mesmo. Se Lacan fala de uma “legibilidade perfeita” é porque o grupo se
confronta com sua própria possibilidade de desaparição, com sua falta de
fundamento natural, sem no entanto ser levado ao pânico produzido pelo
sentimento de perda do que garantia sua sedimentação enquanto grupo. Isto é
possível porque, para além do esvaziamento imaginário do lugar do poder, há uma
sustentação simbólica quer permanece. Bion está presente de forma silenciosa,
mas o enquadre simbólico da instituição do exército e do hospital ainda continuam
lá.
Neste sentido, o que houve não foi uma perda de liderança, mas uma
tomada de consciência da possibilidade de funcionamento a despeito de uma
representação imaginária do poder. Este esvaziamento do lugar central permitiria
assim a consolidação de um sistema de relações igualitárias capaz de abrir o
espaço a formas renovadas de cooperação. Lacan chega mesmo a falar de um
“princípio de cura de grupo”, isto para lembrar posteriormente:
32 Idem, p. 111
33 Idem, p. 120
possível. A política emancipa quando ela nos leva a nos identificarmos com um
lugar vazio.
A dimensão clínica
Este lugar que nós procuramos apreender, definir, coordenar, que nunca foi
identificado até agora em seu desdobramento ultra-subjetivo, é o lugar
central da função pura do desejo34.
Este desejo puro foi um dispositivo que serviu durante um certo tempo
como orientação para o desejo do analista. Lembremos de afirmações como: "o
lugar puro do analista, enquanto podemos defini-lo no e pelo fantasma, seria o
lugar do desejante puro"35. A posição deste desejo puro parece abrir o espaço a
uma liberação possível dos sujeitos que define certos caminhos para a
emancipação.
A respeito do desejo puro, notemos que, na teoria lacaniana, a característica
principal do desejo é ser desprovido de todo procedimento natural de
objetificação. Ele é fundamentalmente sem objeto, desejo de "nada de
nomeável" 36 . Aqui, escutamos o leitor atento de Kojève. O mesmo Kojève que
tentava costurar o ser-para-a-morte heideggeriano à Begierde hegeliana a fim de
afirmar que a verdade do desejo era ser “revelação de um vazio” 37, ou seja, pura
negatividade que transcendia toda aderência natural e imaginária. Um desejo
incapaz de se satisfazer com objetos empíricos e arrancado de toda possibilidade
imediata de realização fenomenal. Mas por que esta pura tendência que insiste
para além de toda relação de objeto transformou-se em algo absolutamente
incontornável para Lacan? Nós podemos fornecer aqui uma explicação geral.
Lacan desenvolveu uma teoria da constituição dos objetos a partir
sobretudo de considerações sobre o narcisismo. Neste momento do pensamento
lacaniano, tanto os objetos quanto os outros indivíduos empíricos são sempre
projeções narcísicas do eu. Lacan chega a falar do caráter egomórfico dos objetos
do mundo empírico. De onde se segue um narcisismo fundamental guiando todas
as relações de objeto, assim como a necessidade de atravessar este regime
narcísico de relação através de uma crítica ao primado do objeto na determinação
do desejo. Lacan é claro a respeito deste narcisismo fundamental. Ele dirá, por
exemplo, que: “A relação objetal deve sempre submeter-se à estrutura narcísica e
aí se inscrever”38. E ele dará um caráter epistemológico a sua crítica do primado
O desejo é uma relação do ser à falta. Esta falta é falta de ser propriamente
dita. Não se trata de falta disto ou daquilo, mas falta de ser através da qual o
ser existe42.
Neste caso, esta estranha falta que não é disto ou daquilo é o próprio regime de
experiência subjetiva da estrutura transcendental do desejo. Transcendental
porque a falta-a-ser é uma condição a priori de constituição do mundo dos objetos
do desejo humano. Podemos falar aqui de a priori porque a falta não seria derivada
de nenhuma perda empírica. Para Lacan, não há nada parecido a uma origem
empírica do desejo. O que explica por que Lacan parece tentar fazer uma
verdadeira ' dedução transcendental' do desejo puro. Contrariamente a Freud, ele
não identifica a causa da falta à perda do objeto materno produzida pela interdição
vinda da Lei do incesto43. É verdade que Lacan afirmará: "o objeto da psicanálise
desejo lacaniano nesta afirmação de Judith Butler: "Para Lacan, o sujeito vem a existência somente
através do recalcamento originário dos prazeres incestuosos pré-individuais com o corpo materno
(agora recalcado)" (BUTLER, Gender trouble, New York: Routledge, 1999, p. 57)
44 LACAN, AE, p. 211
Lacan: psicanálise, ontologia e política
Aula 3
Problemas de transferência
Sujeitos e objetos
Fiz esta digressão porque gostaria de pedir a vocês para terem tais debates
em mente a fim de entender porque uma discussão sobre a estrutura da
transferência ocupa lugar tão central em um texto de Lacan dedicado ao
funcionamento de uma organização. A transferência é indissociável de uma
reflexão sobre o destino de relações políticas ligadas a autoridade e à força de
sugestão. Não por outra razão, a posição do analista em transferência é
caracterizada por uma relação de poder descrita por Lacan como: “sujeito suposto
saber”.
Mas antes de discutir este ponto, lembremos como como Lacan necessita
afirmar que a existência da transferência produz uma objeção clara à noção de
intersubjetividade. Entre transferência e intersubjetividade há uma relação de
refutação. Esta é uma afirmação importante, já que a noção de intersubjetividade
foi, ao menos até o começo dos anos sessenta, o eixo principal da racionalidade do
processo analítico para Lacan. Dentre tantas afirmações, lembremos de como
Lacan dizia: ““O sujeito começa a análise falando de si sem falar a você, ou falando
a você sem falar de si. Quando ele for capaz de falar de si a você, a análise estará
terminada” 57 . Ou seja, neste momento, o final de análise está relacionado à
emergência de uma relação intersubjetiva de reconhecimento entre sujeitos. No
entanto, o eixo da transferência não se encontra em uma relação de
reconhecimento entre sujeitos, mas entre sujeito e objeto. A transferência não se
realiza em uma relação de reconhecimento entre sujeitos, este é um ponto central
que merece ser salientado. Ela se realiza em uma relação de reconhecimento entre
sujeito e um objeto que causa seu desejo.
Isto explica porque Lacan inicia lembrando que a transferência não é
exatamente uma relação entre dois sujeitos mas entre um sujeito e um sujeito
suposto saber. “O sujeito suposto saber é para nós o pivô a partir do qual se
articula tudo o que é da ordem da transferência”58. Há um Outro, que define o lugar
do analista, caracterizado por ser efeito de uma suposição e por ser suporte de
uma expectativa de saber. Na transferência, o Outro aparece como capaz de um
saber sobre a verdade do desejo do sujeito. Ou seja, a suposição em questão é
crença na associação entre saber e verdade, entre articulação significante, com sua
possibilidade de inscrição simbólica do desejo e de seu objeto, e experiência de
verdade. Esta crença é uma espécie de efeito de estrutura, ou seja, efeito da
capacidade do analista ocupar certos lugares, ouvir a partir de certos lugares
manejar certos sistemas de repetição. O que explica porque Lacan afirma: “Um
sujeito não supõe nada, ele é suposto. Suposto pelo significante que o representa
para um outro significante” 59 . Neste sentido, o processo analítico poderá ser
descrito como uma dessuposição de saber. Dessuposição esta que não afetará
simplesmente a figura imaginária específica do analista, mas a estrutura
56 idem, p. 97
57 LACAN; E, p. 373
58 LACAN, Autres écrits, p. 248
59 Idem, p. 248
significante que o supõe. O que pode começar a nos auxiliar a entender o que tal
dessuposição pode realmente significar, quais são seus efeitos esperados.
Lacan então recupera sua leitura de O Banquete, de Platão, a fim de falar da
especificidade do processo transferencial. Como vocês sabem, esta havia sido a
estratégia principal do seminário VIII, dedicado exatamente à transferência. De
certa forma, a leitura de Lacan faz de Sócrates o primeiro analista, assim como faz
da resposta de Sócrates ao desejo de Alcebíades a primeira lição de manejo da
transferência que teríamos conhecido.
Notemos, inicialmente, como esta escolha tem uma clara conotação
política. Nos diálogos de Platão, Alcebíades não é apenas aquele que não sabe
como governar a si mesmo. Ele é aquele espera poder governar a pólis, governar
os outros. De certa forma, Sócrates é aquele que tenta mostrar a Alcebíades como
ele não será capaz de governar a cidade enquanto não for capaz de governar a si
mesmo. No entanto, o governo de si neste contexto não se confunde, ao menos
para Lacan, com uma dominação de si com suas dinâmicas de controle. Na
verdade, podemos mesmo dizer que governar a si mesmo é indissociável da
capacidade de reconhecer: “este resto que como determinando a divisão do
sujeito, o faz decair de seu fantasma e o destitui como sujeito” 60 . Se Sócrates
mostra algo a Alcebíades é como não haverá governo de si enquanto ele não for
capaz de confrontar com o objeto que causa seu desejo, mas confronta-lo em um
ponto no qual tal relação ao objeto se constitui em um campo onde o fantasma
decaiu e o próprio sujeito foi destituído.
Por isto, Lacan insiste na maneira com que Sócrates afirma que Alcebíades
se engana a respeito de seu desejo, pois apesar de suas demonstrações e louvores
não é exatamente ele, Sócrates, que Alcebíades deseja, mas os agalmatas que ele
porta. O que Sócrates faz pois é uma operação de separação, na medida em que ele
tenta mostrar a Alcebíades uma distância entre I e a, entre o ideal do Eu e o objeto
que o sustenta. Ao expor tal distância, Sócrates produz uma espécie de curto-
circuito no sistema de identificações que sustentava a posição de Alcebíades, já
que o ideal do Eu não aparece mais, como aparecia outrora, como o ponto de
transcendência necessário à afirmação da emancipação em relação aos objetos
imaginários. Ele aparece como uma vestimenta que sustenta o sujeito por impedi-
lo de se confrontar com um objeto sem lugar que, no entanto, nos causa e nos
constitui.
Antes de continuar, lembremos algumas considerações importantes sobre
esta noção de agalma. Há várias maneiras de introduzi-la, mas talvez poderíamos
apreender algo importante de sua dimensão se partirmos de uma afirmação de
Lacan como:
Não sei porque, após ter dado uma conotação tão pejorativa ao fato de
considerar o outro como objeto, nunca se tenha notado que considerá-lo
como um sujeito não é melhor (...) se um objeto equivale a outro, para um
sujeito a situação é bem pior. Pois um sujeito não vale simplesmente por
um outro – um sujeito, de maneira estrita, é um outro. Um sujeito
estritamente falando é alguém a quem podemos imputar o que? Nada mais
do que ser como nós (...) do que poder entrar em nosso cálculo como
alguém que opera combinações como nós (LACAN, 2001, pp. 178-179).
60 Idem, p. 249
Não por acaso, esta afirmação está no Seminário VIII. Lacan afirmarque ser
objeto no amor não é, necessariamente, ser submetido à vontade de um sujeito,
mas pode significar simplesmente ser objeto para outro objeto. Ou seja, a reflexão
sobre o amor ( e há de se lembrar que a transferência é uma espécie de “amor de
laboratório”) mostra a Lacan a possibilidade da existência de relações construídas
através da circulação do “que não entra em nosso cálculo como alguém que opera
combinações como nós”. Na citação acima, é claro que a dimensão comum do
“como nós” aparece como espaço de sobreposição narcísica. Como se não
houvesse “como nós” capaz de ser outra coisa que imposição identitária de
sujeição. O que nos levaria a afirmar a sujeição própria à tentativa de “amar o
outro como a si mesmo”. Para Lacan, isto significa que, se algo como o amor é
possível, então não será o amor do que é “como nós”, pessoas, mas como o que é
nosso avesso, objetos. Esta é uma maneira de dizer que o amor não é apenas
abertura à alteridade de uma outra pessoa, que no fundo seria “como nós”. Ele é
abertura a uma alteridade mais radical, pois abertura àquilo que, em nós, nos
destitui da condição de pessoas.
Neste sentido, é compreensível que Lacan descreva tais objetos que
constroem relações amorosas como agalmata. Lendo O banquete, de Platão, Lacan
percebe como Alcebíades apaixona-se pelos agalmata que Sócrates porta. O termo
grego implica a noção de objetos que portam valor e “exprime na maioria das
vezes uma ideia de riqueza, mas especialmente de riqueza nobre”61. Apaixonar-se
pelos agalmata é ser tocado por aquilo que, em Sócrates, age à sua revelia, longe
de sua deliberação consciente, pois se configuram como objetos dotados da
capacidade indutora de operar transferências de valor, como se fosse o caso de
objetos que, por vias próprias, impõem relações de transposição de afetos e
atitudes a sujeitos. Como se, no amor, fossem os objetos que agissem, não os
sujeitos. Apaixonar-se pelos agalmata é, assim, reconhecer que, no amor, os
objetos agem à revelia dos sujeitos, portando relações sociais à sua revelia.
Neste sentido, há de se lembrar que tais objetos a pensados como agalmata
operam incorporações, mas tais incorporações não são representações
personalizadas que determinam totalidades, o que apenas a imagem do corpo
próprio poderia fazer. Por indicar o modo de vínculo ao Outro que deve ser
continuamente negado para que a autonomia do Eu e sua identidade corporal
possam se afirmar, tais objetos só podem incorporar o que se põe na
irredutibilidade de sua retração ao todo, criando relações a respeito das quais o
Eu nada quer saber e que não saberia como integrar. Ninguém entendeu melhor
as consequências da função dos objetos a no desejo lacaniano do que Deleuze e
Guattari ao afirmarem que “o desejo é este conjunto de sínteses passivas
maquinadas pelos objetos parciais, pelos fluxos e pelos corpos, e que funciona
como unidade de produção”62. Objetos parciais produzem sínteses passivas, ou
seja, que não são a expressão da atividade de uma subjetividade constituinte com
suas ilusões de autonomia. No entanto, a proliferação de tais sínteses passivas nos
Destituição subjetiva
63 Idem, p. 50
64 Idem, p. 252
65 Idem, p. 254
externa, que nunca fundará uma autonomia. Neste sentido, o reconhecimento de
si neste objeto é feito de forma tal a reduzir o nome do sujeito a um significante
qualquer, ou seja, seu nome, aquilo que estabelece relações de filiação e
transmissão, aquilo que porta a marca de sua inscrição no horizonte de uma
constelação familiar decai à condição de significante qualquer, isto no sentido de
uma inscrição meramente contingente, sem lugar no interior de uma cadeia de
necessidades. Assim, a contingência se revela no interior de um desejo que abre
uma clareira para fora de toda segurança ontológica. No entanto, talvez não esteja
claro para alguns de vocês porque este processo não seria apenas um processo
depressivo. O que faz dele um processo, ao contrário, de afirmação da liberdade e
da emancipação? E como será possível constituir laços sociais após uma
experiência desta natureza. Esta são questões que Lacan tentará responder na
sequência de seu texto.
Lacan: psicanálise, ontologia e política
Aula 4
67 Idem, p. 249
atentado, em todo caso dar o pretexto à objeção de princípio?”68. Pois o que pode
ser um laço constituído a partir de uma liquidação da transferência que parece
impossibilitar toda identificação simbólica, que não pode mais mobilizar
produção fantasmática alguma, isto a ponto de Lacan afirmar:
Transferência e emancipação
Para responder tais questões, comecemos por nos perguntar sobre como se
liquida um processo transferencial. É claro que esta pergunta só poderá ser
respondida em um nível genérico, já que os caminhos de uma análise são sempre
singulares. O que não significa que tal genericidade seja desprovida de
importância e interesse, que ela não revele traços de estrutura. Diremos então que
68 Idem, p. 252
69 Idem, p. 254
a transferência é liquidada quando ocorre aquilo que Lacan chama de “ato
analítico”.
Veremos de forma mais detalhada a teoria lacaniana do ato no próximo
módulo. Por enquanto, insistamos em um ponto: um ato analítico sempre produz
uma destituição subjetiva. Uma analisanda ou um analisando pode agir de três
formas, a saber, produzindo um acting out, uma passagem ao ato ou um ato efetivo.
Ou seja, é possível agir produzindo um acting out, agindo de maneira imaginária,
respondendo a necessidades de transformação através de ações que não tem a
força de modificação da estruturas, como o paciente de Ernst Kris que, ao invés de
afirmar a oralidade desmedida do objeto que causa seu desejo e que o destitui de
todo lugar simbólico possível como autor, contenta-se em comer miolos frescos.
Nesse nível, a ação se resume à encenação imaginária de uma demanda ao Outro.
Encenação que simplesmente deixará intocada a estrutura que provocou o
sofrimento que gerou a ação. Mesmo comendo miolos frescos, o paciente de Kris
continuará em sua paralisia.
Por outro lado, pode-se agir de forma tal a suspender todo processo
possível, como em uma espécie de negação sem sequencia. Age-se então por
passagem ao ato como suas formas não-dialéticas de negação, de destruição sem
produtividade. Ao lado de uma negatividade, ou seja, de uma negação que é
atividade e processo, há sempre uma negação bruta, negação sem atividade, como
as tentativas de suicídio ou as passagens em direção às formas de auto-destruição
bruta.
Mas pode-se ainda afirmar o caráter sem lugar que o reconhecimento de si
no objeto que causa seu desejo produz. Ou seja, pode-se parar de agir e permitir
que objetos ajam, criando com isto outra forma de deliberação e prática. O que
implica compreender que não é o sujeito suposto saber aquele que detém a prática
sobre o que causa meu desejo. Todo verdadeiro ato é sempre uma dessuposição
de saber e só assim ele pode ser uma reconfiguração do poder.
De fato, não há ato possível que não seja uma dessuposição de saber. Mas,
e este é um ponto decisivo, isto não implica simplesmente deslocar o saber
anteriormente pressuposto no Outro para um saber agora presente na consciência
do sujeito. Não significa reapropriar-se do saber. Pois este deslocamento seria
apenas a reiteração de um mesmo regime de saber e de ação, só que agora
disponível à consciência. De nada adiante louvar a prática se essa prática ainda é
dependente da mesma gramática de saber que havia nos sujeitado. Pouco importa
quem realmente age, quando sempre se age a partir da mesma gramática. Em
todos os casos, é a gramática que age, são os sistemas de regra e existência que
agem. Uma prática emancipada não é o resultado da transferência de uma saber
que supunhamos no outro e que agora nos o reapropriamos. A emancipação não é
uma transferência de saber que nos permitiria recuperar a enunciação do saber
para nós, melhor deliberar conscientemente. Como se tivéssemos agora a posse
de uma saber nos foi negado. A emancipação é, antes, uma deposição do saber.
Notemos o sentido de uma afirmação decisiva como:
Assim o ser do desejo reencontra o ser do saber para renascer nisto em que
eles se juntam em uma tira feita de um lado só no qual se inscreve uma falta
só, esta que sustenta o agalma70.
A religião do sentido
É claro que esta noção de sentido com a qual Lacan trabalha tem sua
especificidade. Afinal, o que pode ser uma linguagem que não é uma linguagem do
sentido, mas uma linguagem de um acontecimento da verdade? Dentre as várias
formas de discutir este problema complexo, insistamos em uma que expõe a
dimensão política deste debate. Lembremos quando Lacan afirma, em um texto no
qual é questão do ato político de dissolução de uma instituição que ele próprio
criou:
71 Idem, p. 334
72 Idem, p. 328
Esta é a maneira lacaniana de dizer que o verdadeiro problema político
com o qual devemos lidar é a recrudescência da dimensão teológico-política do
poder. Sendo a religião uma forma de sustentar vínculos sociais através da
redução da dimensão política das demandas à demanda de amparo, de
constituição de autoridade através das figuras do poder pastoral, afirmar que o
sentido é sempre religioso significa dizer que a psicanálise deve ser capaz de fazer
emergir o que não se ampara por não ser pensável no interior de relações de
necessidade, de confirmação do originário, do destino teleológico, da unidade
substancial da redenção. Lacan não teme em falar aqui da religião, de um certo
marxismo e da burocratização dos vínculos sociais através de uma Internacional
(no caso, a IPA) que se sustenta apenas por seu medo do ato analítico.
Estes casos demonstram que, para Lacan, as operações de produção de
sentido são produções de relações de necessidade estruturadas a partir de
dinâmicas teleológicas no interior das quais apenas se desdobra a expressão de
uma origem em seu processo de realização destinal. Sentido é uma relação de
necessidade garantida por um fundamento situado na origem. O sentido
reinstaura o que foi perdido, ele cura fazendo-nos retornar a um estado original.
Neste contexto, a principal contraposição é entre sentido e acontecimento. Uma
contraposição a respeito da qual Lacan insiste em suas consequências políticas. Se
Lacan critica o marxismo aqui é por compreender sua teoria da revolução
dependente de uma escatologia histórica na qual o proletariado aparece como
sujeito-objeto enfim reconciliado. Nesta escatologia, todo acontecimento é
anulado diante do peso de um tempo que não é outra coisa que a projeção de uma
escatologia do progresso. Esta não é a única leitura que podemos fazer da teoria
da revolução em Marx.
Mas diante da crítica da religião, da política utópica e da ascensão da
burocracia, o que a psicanálise poderia oferecer? Neste sentido, se voltarmos a
pergunta sobre como sabemos que não estamos simplesmente diante da
estilização de uma posição depressiva, deveremos insistir na relação entre ato e
gozo. Pois o que leva a um ato desta natureza, um ato para além do sentido, é a
deslocalização e a despersonalização que a experiência de gozo necessariamente
produz. Não poderia deixar de haver uma relação entre o ato e a tentativa de fazer
do impossível do gozo a figura de uma forma de relação por vir. Por isto, na
transferência não seria possível ao sujeito não ser impulsionado pela emergência
de seu próprio gozo para além das formas de inscrição simbólica do desejo. É
exatamente isto que permite a liquidação da transferência, sua não consolidação
em uma simples relação de sugestão e dependência.
Insistamos neste ponto: há uma emergência do caráter sem lugar do gozo
no interior da transferência, como se vê por exemplo no gozo oral do paciente de
Ernst Kris, assombrado pelo seu desejo de plágio e sua decomposição das ilusões
de ser autor, ou no gozo do homem dos ratos diante da descrição das sevícias
chinesas. A transferência, em sua suposição de saber, deve permitir a emergência
de tal gozo, por mais que ele seja angustiante e desamparador. Mas ela deve
permitir sua emergência não para assegurar o sujeito de que, afinal, seu gozo não
é assim tão ameaçador, não para mostrar que há um lugar para ele na
administração possível da vida tal como ela se dá na situação atual. Na verdade, a
psicanálise tenta extrair deste gozo uma política, tenta mostrar como o caráter
desamparador deste gozo traz em si uma verdade política, a saber, a verdade de
que as condições de reprodução material da vida às quais o sujeito se submeteu
só podem se exercer porque, deste gozo, ele não pode nada saber, com ele não é
possível nada fazer. Ou seja, o caráter sem inscrição, a natureza real deste gozo faz
da transferência um processo que é fadado a sua própria auto-dissolução, isto se
o sujeito for capaz de assumir, de produzir um ato que é a forma mesma da não-
inscrição. Neste sentido, podemos entender melhor a importância de uma
afirmação como: “o gozo é o que a verdade encontra ao resistir ao saber”73.
Se ele é o que a verdade encontra ao resistir ao saber, então a deposição do
sujeito suposto saber só pode ser feito em seu nome.
O passe
Mas deste gozo há ainda uma palavra que circula e se produz, há uma
singularidade que deve encontrar lugar, e esta era a função do passe. A análise
procura fazer emergir este gozo a respeito do qual o sujeito nada quer saber
porque ela acredita que daí sairá uma palavra. Por isto, a Escola deveria ser o lugar
no qual a liquidação da transferência poderia ser “comunicada”: ”esta experiência
não pode ser eludida, seus resultados devem ser comunicados”, dirá Lacan74. Se
os resultados devem ser comunicados, é porque o desvelamento do caráter sem-
lugar do gozo que impulsiona a dejeção do analista e de seu saber suposto não leva
a uma posição de simples isolamento. Dirá Lacan:
O que este passo, de ter sido feito só (seul), tem a ver com o único (le seul)
que se acredita ser ao segui-lo? Não me fiaria eu à experiência analítica, ou
seja, ao que me vem de quem se virou só? Acreditaria eu ser o único a te-la,
então para quem eu falaria? 75
Neste contexto, Lacan fala de seu ato de fundação da EFP, mas é claro que se trata
aqui também da natureza mesma do ato analítico. Ato que se faz só, mas que pode
mesmo assim constituir um laço pressuposto nesta exigência de “comunicação”. E
há de se sentir esta tensão extrema entre gozo e comunicação, uma tensão que
talvez não possa ser de fato resolvida, que só poderia terminar na dissolução do
espaço de comunicação, o que é outra maneira de compreender a questão da
dissolução da Escola. Mas a dissolução do espaço de comunicação será, de forma
paradoxal, a última aposta na possibilidade institucional da política, como
veremos em outra aula.
Lembremos aqui do que estava em jogo no dispositivo do passe. Segundo o
procedimento do passe, um final de análise permite ao analisando “contar sua
análise” a três passantes que irão então passá-la a um júri. A primeira questão
relativa a este procedimento encontra-se na noção de “contar uma análise”. Em
outros momentos, Lacan falará de um ato que possa ser “legível” por todos. Mas
que tipo de fala e de legibilidade é esta? O que se conta aqui? E para que forma de
espaço comum? Pois percebam a tensão real do problema. Há algo de
transmissível no final de uma análise, mas como dirá Lacan: “como fazer
reconhecer uma estatuto legal a uma experiência da qual não se sabe sequer
73 Idem, p. 358
74 Idem, p. 255
75 Idem, p. 263
responder?”76. Esta é uma maneira de se perguntar: como fazer reconhecer o que
só se inscreve como falta, como fazer reconhecer um gozo do qual a linguagem não
quer e parece não pode nada saber? Lacan aposta em uma transmissão possível
chegando mesmo a descrever aquilo que é integralmente transmissível, a saber,
um matema, termo inspirado nos mitemas de Lévi-Strauss: unidades mínimas de
articulação formal de relações pressupostas pelos mitos. Ou seja, a fala sobre a
análise deveria ser a constituição de um matema capaz de passar a dois níveis de
transmissão. O ato analítico parece se realizar na constituição de um matema.
De fato, só há comunicação se podemos falar em dois níveis de transmissão.
Se conto algo para alguém e esta mesma pessoa não pode contar isto para uma
terceira pessoa, não há comunicação alguma, pois não há garantia alguma de que
o enunciado inicial foi, de fato, entendido. A comunicação demonstra que o sentido
é a perpetuação da referência para além da modificação de seus enunciadores.
No entanto, a inscrição do ato em uma transmissão não deve ser sua
submissão ao sentido, e neste ponto encontra-se a complexidade da exigência.
Podemos mesmo nos perguntar se isto não invalidaria necessariamente toda e
qualquer comunicação. Lacan acredita que esta irredutibilidade do ato ao sentido
é a única forma de garantir que não voltaremos a um “efeito de grupo”. A
associação entre “efeito de grupo” e “sentido” não poderia ser diferente. O que
funda o grupo é a possibilidade da unidade da referência, é a partilha dos modos
de interpretação de enunciados e práticas. O grupo é a expressão máxima da
crença em uma gramática comum e a uma referência que não se transforma a
partir da modificação dos seus enunciadores. Por isto, podemos de fato nos
perguntar se a experiência do passe poderia ter outro destino que o fracasso.
Entendamos o que leva Lacan a esta aposta que talvez não possa ser paga.
O apelo lacaniano à legibilidade e à comunicação neste momento é sua forma de
dizer: há algo no ato que tem força de implicação, ele dessupõe o saber mas não
abole a relação social. Daí esta estrutura do passe. Para não ser apenas a reiteração
de uma posição depressiva, a transferência deve levar a um reconhecimento. No
entanto, demandas de reconhecimento tem como condição de existência o apelo à
universalidade, mesmo que seja uma universalidade não-toda. Pois elas tem a
característica de serem genéricas, elas exigem validade para além de todo e
qualquer contexto. Não há sentido algum em exigir ser reconhecido no interior de
um contexto específico, no interior de um grupo limitado. Mas este
reconhecimento genérico talvez não seja objeto possível de uma comunicação.
76 Idem, p. 262
Lacan: psicanálise, ontologia e política
Aula 5
77 Para a relação entre Lefort e Lacan, ver FLYNN, Bernard; The philosophy of Claude Lefort:
interpreting the political, Northwestern University Press, 2005
78 LEFORT, Claude; A invenção democrática: os limites do totalitarismo, São Paulo: Brasiliense,
1983
79 Idem, p. 54
80 Idem, p. 68
profundamente antagônica da vida social. A democracia seria, assim “uma
sociedade sem determinação positiva, irrepresentável na figura de uma
comunidade” 81 que, por funcionar a partir da institucionalização do conflito,
precisaria ser capaz de suportar uma “quase-dissolução das relações sociais” nos
momentos de manifestação da vontade popular.
Servindo-se da ideia lacaniana do universo simbólico como composto de
significantes puros que são a expressão da ausência de denotação exterior e, por
isto, reenviam a estabilização do processo de produção de sentido a significantes
contíguos no interior de uma cadeia, até que sejam basteados por um significante-
mestre que é expressão de um lugar vazio82, Lefort afirmará que a democracia
caracteriza-se por conservar o lugar simbólico do poder como um lugar vazio.
Desta forma:
96 Idem, p. 195
97 Idem, p. 95
98 ZIZEK, Slavoj; Em defesa das causas perdidas, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 247
do lugar. Ele “simplesmente expressa o fato de que toda unificação populista tem
lugar em um terreno social radicalmente heterogêneo”99.
No caso, multiplicidade de demandas concretas de diferentes grupos
distintos, muitas vezes contraditórias entre si, mas capaz de ser agenciada em uma
rede de equivalências que permite, ao mesmo tempo, a constituição de uma
identidade popular-coletiva e a determinação de linhas antagônicas de exclusão
(agora politizadas). Assim, Laclau poderá afirmar:
99 Idem, p. 128
100 LACLAU, Ernesto; idem, p. 104
101 Idem, p. 128
independente da forma de sua articulação política e é sua presença que
percebemos intuitivamente quando denominamos “populista” um discurso ou
uma mobilização”102. Tais símbolos são “significantes flutuantes” cujo caráter de
“flutuação” vem do fato de poderem aparecer organizando o discurso de
perspectivas políticas muitas vezes radicalmente distintas entre si.
As elaborações de Laclau são precisas em mais de um ponto. Elas mostram
como a perspectiva freudiana e seus desdobramentos permitem compreender,
com clareza, os processos identificatórios no campo político não apenas como
regressivos, mas também como constitutivos da própria dinâmica transformadora
das lutas sociais. Não há política democrática sem o reconhecimento de dinâmicas
constituídas no ponto de não-sobreposição entre direito e demandas sociais, entre
legalidade e legitimidade. Não há política democrática sem um excesso de
antagonismo em relação às possibilidades previamente decididas pela estrutura
institucional, e é isto que a experiência populista nos mostra, embora Slavoj Zizek
lembre com propriedade que o populismo não é o único modo de existência do
excesso de antagonismo sobre a estrutura democrático-institucional103. De toda
forma, Laclau nos permite compreender como a reflexão política freudiana pode
nos ajudar a sublinhar a complexidade da relação entre institucionalidade e
demandas que se alojam em um espaço anti-institucional. A irredutibilidade da
posição da liderança implica reconhecimento de um lugar, não completamente
enquadrado do ponto de vista institucional, marcado pela presença da natureza
constituinte da vontade política. Tal lugar pode tanto impedir que a política se
transforme na gestão administrativa das possibilidades previamente
determinadas e constrangidas pelo ordenamento jurídico atual quanto ser o
espaço aberto para a recorrência contínua de figuras de autoridade e liderança
que parecem periodicamente se alimentar de fantasias arcaicas de segurança,
proteção e de medo. Esta ambivalência lhe é constitutiva, pois ela é, na verdade, a
própria ambivalência da incorporação em política.
No entanto, Laclau deveria explorar com mais sistematicidade a natureza
profundamente ambígua das estratégias populistas e sua necessária limitação.
Ambiguidade entendida não no sentido da polaridade, sempre alimentada pelo
pensamento conservador, entre democracia com instituições fortes e
autoritarismo personalista, mas no sentido de uma oscilação contínua, interna a
todo movimento populista, entre transformação e paralisia. Por sustentar a
necessidade de sujeitos políticos se expressarem como povo constituído através de
cadeias de equivalências entre demandas concretas muitas vezes contraditórias,
o populismo é assombrado continuamente pelo risco da paralisia dos processos
de transformação social devido ao fato de alcançarmos rapidamente um ponto de
equilíbrio no qual demandas conflitantes começam a se vetar mutuamente. O
populismo avança em situações nas quais há um cálculo possível que permite a
várias e determinadas demandas mais fortes serem, em algum nível,
contempladas. No entanto, ele se depara rapidamente com uma situação na qual
processos de transformação se estancam devido ao equiílbrio impossível entre
demandas conflitantes, o que faz do processo de liderança uma gestão contínua do
imobilismo e da inércia, desviada pela construção pontual de antagonismos
setorizados com grupos exteriores. Faz parte da dinâmica do populismo a
O ato analítico, nem visto nem conhecido antes de nós, ou seja, nunca
notado, muito menos colocado em questão, eis o que supomos no momento
eletivo em que o psicanalisante passa ao psicanalista104.
Não há diferença, uma vez o processo engajado, entre o sujeito que se vota
à subversão até produzir o incurável no qual o ato encontra seu fim próprio
e o que do sintoma adquire efeito revolucionário, simplesmente por não
mais andar com a varinha marxista106.
De certa forma, eu gostaria de usar a aula de hoje para comentar esta proposição
de forma demorada.
Um ato de subversão
Tal discussão nos remete à potência de negação própria a todo ato. Isto
levava Lacan a insistir que “revolução” significa normalmente, como sabemos a
respeito dos movimentos astronômicos, “voltar ao mesmo lugar”. Ao comentar a
revolução copernicana, tão usada como metáfora de mudança epistêmica na
filosofia (Kant e a crítica como revolução copernicana) e mesmo na psicanálise
(Freud e a revolução copernicana do inconsciente), Lacan se perguntava: “o que
há de revolucionário no recentramento do mundo solar em torno do Sol?” 109 .
Maneira de afirmar que não havia mudança alguma através da conservação da
hierarquia, da unidade e da centralidade que a noção de movimento esférico
enquanto forma celeste perfeita representava. A verdadeira revolução
encontrava-se o advento do movimento elíptico, ou seja, da noção de dois centros
enquanto forma dos movimentos celestes. No que se vê que a revolução, se não
quiser ser um retorno ao mesmo lugar, é indissociável de uma mudança na
estrutura do saber, não nos lugares que cada elemento ocupa no interior de uma
estrutura dada, não nos detentores do saber e do poder. Lembremos a este
respeito de um poema caro a Lacan que lhe aparecia como expressão da “fórmula
geral do ato”, trata-se de A uma razão, de Arthur Rimbaud:
Stalin, que sabia bem o que significa assassinar uma revolução, recusa que
a linguagem seja uma superestrutura porque ela não deve ser nem o veículo nem
o resultado de um processo revolucionário. Ela deve permanecer tal e qual, sob o
risco de desencadear anarquia e desintegração. No entanto, há de se perguntar
que tipo de revolução é este que vê as instaurações no campo da linguagem como
algo fora de seu escopo. Pois afirmar que a linguagem não se modifica é a maneira
mais segura de afirmar que uma revolução não altera aquilo que aparece como a
condição prévia (ao menos para os sujeitos falantes) de toda experiência possível.
Para a restauração, é fundamental afirmar que a linguagem desconhece dinâmicas
políticas por ela expressar a “totalidade” da sociedade. No entanto, digamos que,
se Stalin houvesse lido Nietzsche, ele saberia que: “nunca nos desvencilharemos
de Deus enquanto acreditarmos na gramática”. Esta era uma forma astuta de
afirmar haver uma metafísica implícita na gramática e o que faz uma revolução é
dissolver esta metafísica implícita que orienta os processos mais elementares de
nossa forma de vida. É com isto em mente que podemos nos voltar ao poema de
Rimbaud e a seu uso por Lacan.
Primeiro, lembremos do título: “a uma razão”. A fórmula geral do ato é
vinculada a um poema intitulado: “a uma razão”. O que mais se evidencia aqui é a
ideia de “uma razão”, e não de “a razão”. Como se fosse questão de dizer “cada um
tem sua razão”. Mas uma frase desta natureza normalmente parece significar: “não
O sintoma e a cura
Ato e castração
Partamos então do fim de uma dos textos mais importantes de Lacan a respeito da
linguagem, a saber, Lituraterre: “Uma ascese da escritura parece-me só poder
passar ao encontrar um “está escrito” através do qual se instauraria a relação
sexual”119. Esta é a maneira lacaniana de dizer que há um exercício de escritura
que permite a realização de uma literalização, ou seja, uma passagem a existência
em ato capaz de instaurar aquela que é a relação disjuntiva por excelência, a saber,
a relação sexual. Esta instauração do que, até então, não cessava de não se
inscrever só é possível à condição de uma modificação estrutural que Lacan
chama, neste contexto, de ascese. Uma ascese da escritura.
Mas tentemos compreender melhor este ponto. A instauração da relação
sexual é aquilo que permite ao gozo constituir relações. Relações sexuais não são
apenas relações de desejo, mas relações de gozo. No entanto, esta instauração não
pode se realizar de forma a produzir unidades, a assegurar identidades, a
prometer o retorno a alguma forma de unidade indiferenciada. Elas são uma
paradoxal relação disjuntiva, que conserva a diferença como modo de relação
A castração, a saber que o sujeito realiza que ele não tem o órgão do que eu
chamaria de o gozo único, unitário, unificador. Trata-se propriamente do
que faz um o gozo na conjunção de sujeitos do sexo oposto, ou seja, daquilo
que insisti no ano passado em relevando o fato de não haver realização
possível do sujeito como elemento, como parceiro sexual no que se imagina
a unificação no ato sexual121.
Escrita e gozo
significativa da função fálica enquanto falta essencial da junção da relação sexual com sua
realização subjetiva" (LACAN, S XIV, sessão do 22/02/67)
129 LACAN, S XIV, sessão de 24/05/67
causalidade, de produção de síntese que orientará o sujeito em seus processos de
rememoração e simbolização.
Neste sentido, ao discutir a literatura de vanguarda, Lacan procura, na
verdade, fornecer um outro horizonte de narrativa para a clínica analítica. Sua
insistência em pensar uma literatura organizada a partir da letra que,
diferentemente do significante, não se organiza em sistema diferencial-opositivo,
não constitui totalidades, mas opera por repetição e inscrição, permite-lhe pensar
outra forma de operação linguística relacionada à literalização do sujeito e de sua
expressão. Este outro horizonte de narrativa para a clínica analítica é indissociável
de uma possibilidade de reconciliação entre sujeito e linguagem que não poderia
deixar de ter consequências políticas.
Neste conceito de letra está articulado as duas dimensões do ato analítico,
a saber, o ato como dissolução das relações anteriores e como instauração. Sua
dimensão de dissolução está ligada à condição da letra como rasura. Ela está logo
presente na citação que Lacan faz de um jogo de palavras de Finnegans Wake, de
Joyce, entre letter e litter. A importância que Lacan dá a tal jogo de palavras vem
do fato de estarmos em um regime de linguagem marcado pela dissolução da
linguagem em sua dimensão comunicacional a uma exposição de ruínas. A
lembrança de Beckett neste contexto não deixa dúvidas. Pois quem melhor do que
Beckett expôs o caráter atualmente arruinado da linguagem que socialmente se
impõe a nós. Uma linguagem que só por meio da mais brutal violência pode nos
fazer ainda confiar nas relações de causalidade, na certeza produzida pelo efeito
que segue a causa, na recognição produzida pela memória, na continuidade
narrativa com sua orientação de ação pelas noções de necessidade e
desenvolvimento.
Desta forma, a linguagem que pode falar do sujeito será agora uma
linguagem inicialmente marcada pela força de arruinar a linguagem da
comunicação. Ela trará balbucios, gagueiras, palavras gastas que se apresentam
como gastas, impossibilidades de narrativa, recusas ou ainda prazer fonético,
aproximações sonoras. Em suma, rasuras. Como se fosse questão de mostrar como
é impossível continuar a usar a linguagem como até agora se utilizou. Daí esta
maneira lacaniana de dizer que a letra produz um buraco na linguagem, expõe um
saber em fracasso, um saber em questão (“savoir en échec”). A letra como o que
desenha a borda do buraco do saber, dirá Lacan. Neste sentido, se o verdadeiro
ato só se realiza ao fracassar, há de se lembrar como a literatura deve fazer a forma
romance fracassar para poder realizar sua força expressiva. Mas, como dirá Lacan:
Rasura de nenhum traço que seja anterior, é o que faz terra do litoral. Litura
pura, é o literal. Produzi-la, é reproduzir esta metade sem par através da
qual o sujeito subsiste130.
Ou seja, fica claro como a utilidade aparece não apenas enquanto modo de
descrição da racionalidade própria a um sistema sócio-econômico determinado,
mas principalmente como o princípio fundamental de definição moral da natureza
dos sujeitos próprios a tal sistema. Os sujeitos racionais no interior do capitalismo
são aqueles que organizam suas ações tendo em vista sua auto-conservação, a
conservação de seus bens, o cálculo econômico de seus esforços e a fruição de
formas moderadas de prazer, ou seja, formas de prazer que não nos coloquem fora
de nosso próprio domínio. Eles são aqueles que se julgam racionais por sempre
submeterem sua afetividade à reflexão sobre a utilidade e a medida. Dessa forma,
como dirá Marx a respeito do problema do fetichismo da mercadoria, as relações
entre pessoas acabarão por se submeterem a racionalidade instrumental da
relações entre coisas. Algo que Bataille, à sua forma, recupera ao afirmar que: “a
humanidade, no tempo humano, antianimal do trabalho é em nós o que nos reduz
a coisas”140. Tempo antianimal porque tempo que se acumula, que conta, que se
dispõe como unidade bruta de contagem, tempo disciplinar do cálculo dos meios
em relação a fins. Desta forma, como lembra Lukàcs: “o tempo perde o seu caráter
qualitativo, mutável e fluido: ele se fixa num continuum delimitado com precisão,
quantitativamente mensurável, pleno de ‘coisas’ quantitativamente
mensuráveis”141.
Contra essa sociedade do trabalho, Bataille quer apelar a tudo o que ela
compreende como excessivo, tudo capaz de mobilizar um gozo que não se
confunde com o cálculo do prazer e desprazer e, principalmente, toda ação social
que aparece como improdutiva. Pois devemos inicialmente entender por “gozo”
aquilo que está para além do prazer, aquilo que dissocia desprazer e dor, prazer e
alegria. Daí o sentido de uma afirmação como:
É tendo algo parecido em vista que Lacan, ao discutir a ética da psicanálise, trará
o conceito de gozo para o centro de suas indagações. Recusando a defesa de uma
liberação naturalista do desejo que levaria à afirmação do “homem do prazer”,
Lacan não faz, por isto, alguma forma de profissão de fé na necessidade de auto-
legislação e auto-governo. Sua estratégia será trazer o gozo para dentro de uma
reflexão ética sobre a direção da clínica.
Neste sentido, ele começará por insistir cada vez mais que a experiência
humana não é um campo de condutas guiadas apenas por imagens ordenadoras
(Imaginário), por estruturas sócio-simbólicas (Simbólico) que visam garantir e
assegurar identidades, mas também por uma força disruptiva cujo nome correto
é Real. Aqui, o Real não deve ser entendido como um horizonte de experiências
concretas acessíveis à consciência imediata. O Real não está ligado a um problema
de descrição objetiva de estados de coisas. Ele diz respeito a um campo de
experiências subjetivas que não podem ser adequadamente simbolizadas ou
colonizadas por imagens fantasmáticas. Isto nos explica porque o Real é sempre
descrito de maneira negativa, como se fosse questão de mostrar que há coisas que
só se oferecem ao sujeito sob a forma de negações.
O nome lacaniano do modo de acesso ao Real é “gozo”144. Seguindo Bataille,
Lacan insiste que a lógica do comportamento humano não pode ser totalmente
explicada a partir do cálculo utilitarista de maximização do prazer e de
afastamento do desprazer. Há atos cuja inteligibilidade exigem a introdução de um
outro campo conceitual com sua lógica própria, um campo que desarticula
distinções estritas entre prazer e desprazer por colocar o Eu sempre diante de
uma certa dissolução de si que produz, ao mesmo tempo, satisfação e terror.
Indistinção entre satisfação e terror que Lacan chama de “gozo”. Dissolução da
auto-identidade que ele chama de “destituição subjetiva” e que, de uma maneira
ou de outra, sempre estaria presente em todo final de análise.
144Para uma análise exaustiva do conceito lacaniano de gozo, ver Christian Dunker, O cálculo
neurótico do gozo (São Paulo: Escuta, 2002)
Este campo que visa fornecer a inteligibilidade de atos através dos quais o
sujeito procura se confrontar com o que faz vacilar as certezas identitárias de seu
Eu é animado por uma dinâmica pulsional própria à pulsão de morte. Tal ideia de
uma tendência, interna a todo organismo, de retorno ao inorgânico, é um conceito
freudiano extremamente criticado por mais parecer um entulho metafísico. No
entanto, ele é central em Lacan, isto a ponto dele afirmar que “toda pulsão é
virtualmente pulsão de morte”145.
Há uma estratégia ética neste uso da pulsão de morte, por mais
contraintuitivo que isto possa parecer. Lembremos de Lacan afirmando: “O que é
o instinto de morte? O que é esta forma de lei para além de toda lei, que só pode
se colocar como uma estrutura última, um ponto de fuga de toda realidade
possível a alcançar?”146. A colocação é clara: a pulsão de morte aparece como um
lei para além de toda lei, uma estrutura última que abre o espaço a uma linha de
fuga em relação a toda realidade socialmente organizada. Ela abrirá o espaço a
uma ação que desestabiliza as determinações da estrutura e que é descrita como
realização de uma “verdade liberadora”147 que expressa o caráter imperioso do
desejo.
Mas o que pode significar que a pulsão de morte é uma verdade liberadora?
Estaria Lacan a colocar um gozo mortífero como horizonte de final de análise,
como vários comentadores criticaram? De fato, Lacan quer conservar a ideia da
pulsão como retorno em direção à morte, mas é o próprio conceito de “morte” que
se transforma. Ao invés da morte como retorno à origem inorgânica, morte
pensada a partir do modelo objetivo de uma matéria indiferente inanimada, Lacan
procura a possibilidade de satisfazer a pulsão através de uma “morte simbólica”
ou “segunda morte”. Freud falava de uma auto-destruição da pessoa própria à
satisfação da pulsão de morte. Digamos que, para Lacan, a morte procurada pela
pulsão é realmente a “auto-destruição da pessoa”, mas à condição de entendermos
por pessoa a identidade do sujeito no interior de um universo simbólico
estruturado. Esta morte é pois o operador fenomenológico que nomeia a
suspensão do regime simbólico e fantasmático de produção de identidades. Por
isto, ela não descreve o destino de nossa presença física, mas uma transformação
de ordem moral.
Se tal operador fenomenológico descreve uma operação de ordem moral, é
porque ele fornece o fundamento para o advento de outras formas de
relacionalidade. A descoberta, em si mesmo, de algo que se manifesta como auto-
destruição da pessoa não nos leva, necessariamente, à defesa compulsiva contra
tudo o que poderia colocar em questão nossa identidade. Ela pode nos levar, ao
contrário, à abertura a uma alteridade que nos constitui e que procura se realizar
para além dos sistemas de propriedade e identidades da pessoa. Daí porque Lacan
deve reposicionar o problema do gozo e da pulsão de morte no interior de uma
discussão organizada a partir de dinâmicas de reconhecimento da alteridade. Este
é o sentido do problema da relação entre sujeito e das Ding, que ocupa um lugar
central no Seminário VII.
Lacan irá encontrar das Ding em um manuscrito de Freud, Projeto para uma
psicologia científica. Após o Seminário VII, das Ding vai praticamente desaparecer
dos textos lacanianos, já que, de uma certa maneira, sua função será absorvido
Gozo e crítica
No Seminário VII, Lacan afirma que a pulsão não se limita a ser um conceito
psicológico, mas se trata de um conceito ontológico absolutamente central que
responde a uma crise da consciência que seria própria ao nosso tempo. Esta era
sua forma de afirmar que a pulsão expressa uma estratégia crítica ao primado da
consciência. Primado este a ser situado não apenas como atribuição geral de um
conceito psicológico, mas como estratégia ontológica de definição das condições
gerais de forma de vida. A consciência traz consigo um modo de presença, de
determinação de objetos, de definição das condições da ação, de autonomia, de
deliberação. Insistir em sua crise é colocar em questão todas essas operações.
Lacan se confronta a tal crise pensando as estruturas da consciência
desejante. Daí porque ele insistirá que a psicanálise é uma alusão perpétua à
fecundidade do erotismo na ética. Este erotismo tende a vincular o prazer à
inscrição simbólica ao qual o sujeito se submete e a definir o gozo como aquilo que
se orienta por um lugar que “padece do significante”. No entanto, como vimos
anteriormente, o que está para além do prazer tem relações necessárias com a
pulsão de morte. No que nosso problema se torna assim o que significa integrar
politicamente a pulsão de morte. O uso do gozo como conceito crítico é, do ponto
157 Neste sentido: “o prestígio, a glória, a posição não podem ser confundidos com o poderio. Ou,
se o prestígio é poderio, ele o é na medida em que o próprio poderia escapa às considerações de
força ou de direito a que habitualmente é submetido (…) A glória, consequência de uma
superioridade, é outra coisa além de um poder de tomar o lugar de outrem oude se apoderar de
seus bens: ela exprime um momento de frenesi insensato, de dispêndio de energia sem medida,
que o ardor do combate pressupõe” (BATAILLE, Georges; idem, p. 79)
158 LACAN, Jacques; Seminaire XX, Paris: Seuil, 1973, p. 10
159 idem, p. 100
Lacan: psicanálise, ontologia, política
Aula 10
Gozo e capitalismo
Este esquema se complexifica com os seminários XVI e XVII. Pois neles, Lacan
apresenta uma outra faceta política do conceito de gozo, a saber, sua função no
interior de uma teoria da estrutura libidinal do capitalismo. A tese fundamental
de Lacan é de que a dinâmica libidinal do capitalismo, seus modos de adesão
subjetiva às injunções próprias à racionalidade econômica, não pode ser
compreendida a partir da temática dos processos de repressão e de conformação
disciplinar do desejo. Pois o capitalismo nunca poderia ser um modo de existência
baseado na simples renúncia ao gozo. Na verdade, não há modo de existência
social que construa suas dinâmicas de adesão através da simples renúncia. O
capitalismo se funda no que Lacan chama de “espoliação do gozo”, ou seja, na
inscrição de seu excesso no interior das dinâmicas de reprodução social: “O que
Marx denuncia na mais-valia é a espoliação do gozo. E no entanto esta mais-valia
é o memorial do mais-gozar, seu equivalente do mais-gozar”161. Há de se entender
então como tal espoliação se dá, como este excesso anima o capitalismo por dentro
e para tanto Lacan se serve de homologias fundamentais entre a crítica marxista
da economia política e a crítica psicanalítica da economia libidinal do capitalismo.
Há quatro pontos fundamentais na leitura feita por Lacan do capitalismo.
Primeiro, há o que podemos chamar de “espoliação do gozo através da produção
do mais-gozar”. Segundo, temos a defesa lacaniana de uma forclusão da castração
pelo capitalismo. Terceiro, temos a compreensão do capitalismo trazer uma nova
forma de dominação e mestria vinculada à relação saber/poder. Por fim, Lacan
fará uma crítica a crença marxista do proletariado como sujeito revolucionário por
162 Bem percebido, como veremos no próximo capítulo, por Axel Honneth em HONNETH, Axel;
Das recht der Freiheit, Frankfurt: Suhrkamp, 2013.
163 FOUCAULT, Michel; O nascimento da biopolítica, op. cit., p. 222
164 BROWN, Wendy; Les habits neufs de la politique mondiale: néolibéralisme et néo-conservatisme,
podemos encontrar em BECKER, Gary; Human Capital: a theoretical and empirical analysis with a
special reference to education, University of Chicago Press, 1994
166 Cf. GOLEMAN, Daniel; Inteligência emocional, Rio de Janeiro: Objetiva, 1996
167 DARDOT e LAVAL: La nouvelle raison do monde, op. cit, p. 440.
suas estruturas disciplinares a partir do final dos anos 20. A brutalidade do
modelo taylorista de administração de tempos e movimentos, assim como a
impessoalidade do modelo burocrático weberiano haviam paulatinamente dado
lugar a um modelo “humanista” desde a aceitação dos trabalho pioneiros de Elton
Mayo, fundados nos recursos psicológicos de uma engenharia motivacional na
qual “cooperação”, “comunicação” e “reconhecimento” se transformavam em
dispositivos de otimização da produtividade. Esta “humanização” da empresa
capitalista, responsável pela criação de uma zona intermediária entre técnicas de
gestão e regimes de intervenção terapêutica, com um vocabulário entre a
administração e a psicologia, permitiu uma mobilização afetiva no interior do
mundo do trabalho que levou à “fusão progressiva dos repertórios do mercado
com as linguagens do eu”168. As relações de trabalho foram “psicologizadas” para
serem melhor geridas, até chegar ao ponto em que as próprias técnicas clínicas
de intervenção terapêutica começaram por obedecer, de forma cada vez mais
evidente, padrões de avaliação e de gerenciamento de conflitos vindos do universo
da administração de empresas. Sem tal movimento prévio, não teria sido possível
ao neoliberalismo reconstruir processos de socialização, em todas as esferas
sociais de valores, através da internalização de um ideal empresarial de si.
170 Idem, p. 19
171 LACAN, SXVI, p. 19
172 DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian; La nouvelle ordre du monde, op. cit., p. 437
173 LACAN, SXVII, p. 207
anteriormente pressuposta. Antes, ele é o infinito ruim do que é sempre
assombrado por um para além que nunca se encarna, para além cuja única função
é marcar a efetividade com o selo da inadequação, do gosto amargo do “ainda não”.
A análise do capitalismo sempre precisou de uma teoria dos dois infinitos. É neste
ponto que talvez fique mais clara uma afirmação centra de Lacan como:
Uma leitura incorreta desta afirmação nos levaria a crer que Lacan acusa o
capitalismo de desconhecer a impossibilidade de satisfação do desejo, sua falta
constitutiva, isto através de uma proliferação de meios de incitação e prazeres. Um
pouco como se estivéssemos a ver mais uma versão de uma crítica moral ao
pretenso hedonismo capitalista. No entanto, o erro aqui consiste em não entender
como a problemática da castração funciona neste momento do pensamento
lacaniano. Veremos melhor este ponto na aula que vem, quando for questão de
uma discussão a respeito de elaborações importantes do Seminário XX. Por
enquanto, lembremos como Lacan afirma: “a castração, que é o signo que adorna
a confissão de que o gozo do Outro, do corpo do Outro só se promove da
infinitude”174. Ou seja, por mais contraintuitivo que isto possa parecer, a
castração aparece aqui como condição para a realização de certa infinitude ligada
ao gozo. Porque, neste contexto, a castração indica que a relação sexual não pode
se realizar como unidade, como afirmação do primado do Um, como constituição
de relações de complementaridade, de simetria, mas como relação em disjunção:
única forma, aos olhos de Lacan, para realizar uma relação à diferença que, como
vimos desde o seminário VII, é um tópico fundamental da contribuição ética da
psicanálise. Desta forma, a castração deverá aparece como o que impede a relação
sexual entre sujeitos que tiveram seus desejos inscritos sob a forma do Falo se
realizar. Mas esta é uma maneira, como veremos na aula que vem, de abrir a
experiência à possibilidade de um gozo outro.
Neste sentido, a afirmação de que o capitalismo forclui a castração significa
insistir que, em seu interior, não há espaço para uma infinitude que não se dá sob
a forma infinito ruim do mais-gozar e de sua maximização de performances, da
procura infinito ruim pelo mais-gozar. Uma infinitude que nos lembra que sua
atualização só pode se dar à condição da dissolução dos modos de relação como
até agora se constituíram e até agora permitiram a reprodução material de nossa
vida social. Por isto que o capitalismo nada sabe sobre as coisas do amor, pois
como o erotismo em Bataille, o amor não saberia o que fazer no interior de um
infinito contábil. Por outro lado, a ideia da forclusão aqui apela a uma noção de
expulsão da ordem simbólica e de retorno no real sob as formas múltiplas do
delírio social. O gozo expulso da ordem simbólica não é simplesmente eliminado,
ele retorna como o que parece a todo momento colocar tal ordem em cheque de
fora, ela a assombra com todas as formas paranóicas do delírio (perseguição,
grandeza, destruição etc.).
O impasse proletário
177Idem, p. 34