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04/05/2017 Recriando um estado de natureza ­ Fundo Brasil

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Recriando um estado de natureza

10 OUTUBRO 2016

­ POR ANA VALÉRIA ARAÚJO ­

No dia 3 de setembro, um sábado, visitei o Acampamento José Lutzenberger, no município de
Antonina, no litoral paranaense. A viagem foi feita a convite do meu querido amigo Carlos Marés,
com quem iniciei meu duro aprendizado na tarefa de defender direitos indígenas no Judiciário ainda
no final dos anos 80. Além de Marés, devidamente acompanhado dos seus jovens e entusiasmados
alunos do mestrado e doutorado na PUC de Curitiba, faziam parte do grupo de visitantes os
antropólogos Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski, do Rio de Janeiro, a professora de
direito da UFG Maria Cristina Vidotte e Sergio Leitão, do Instituto Escolhas.

Para chegar até o Acampamento, descemos de carro pela Estrada da Graciosa, construída ainda no
tempo do Império, antiga ligação de Curitiba com os portos daquele estado. Graciosa hoje é o que se
chama de uma Estrada Parque, protegida pela legislação, onde é proibido, por exemplo, o tráfego
pesado de caminhões. Ao percorrê­la é possível perceber a exuberância e toda a beleza da Mata
Atlântica, com suas árvores de copas majestosas, sequências de hortênsias, além de fontes e
riachos que escoam água pura vinda do alto da Serra do Mar. Creio que apreciar de verdade a
paisagem só é possível em situações como essa, já que quem percorre as estradas atuais de descida
para o Litoral na Serra do Mar, antes de mais nada, precisa tentar dar conta da disputa de espaço
entre o transporte individual e o de cargas.

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O acampamento José Lutzenberger existe há cerca de 15 anos e foi constituído por trabalhadores
rurais que há muito viviam naquele pedaço de Mata Atlântica.  Eles reivindicaram a ocupação da
área sob a qual incidia a Fazenda São Rafael, com 200 hectares de extensão, onde era explorada a
criação de búfalos.

Para além do que já é comum nos conflitos fundiários no Brasil, como a dúvida sobre a legalidade e
legitimidade do título de terra que ampararia o suposto direito de propriedade de quem se diz dono
do imóvel, a este caso se acrescenta algo novo, que merece ser destacado: o debate sobre o mau
uso que se faz da terra, ecologicamente falando.

Essa história começa pela introdução do criatório de búfalos na Mata Atlântica, prática que tantos
problemas já causou na Ilha do Marajó, no Pará, e no estado do Maranhão. A região da Mata
Atlântica onde está Antonina, em razão da floresta ainda contar com um alto grau de preservação,
além das especificidades da topografia do local, tem um dos maiores índices de chuvas constantes
do país. Isso faz com que o lençol freático ali se situe praticamente à flor da terra.

Nessas condições, o pisoteio de um animal de grande porte como o búfalo sobre a terra bastante
umedecida faz com que a água aflore, cobrindo sua superfície, o que deixa o solo totalmente
encharcado e impõe a completa modificação do funcionamento daquele ecossistema.

Junto com o búfalo, o criador traz o seu principal alimento, o Capim Braquiária, outra espécie
igualmente exótica também chamada de “assassino de biomas”. O Capim se desenvolve de forma
incontrolável e acaba por se transformar em praga, da qual é quase impossível se livrar. A Braquiária
toma conta do terreno e não permite que nenhuma outra espécie subsista.

Foi por isso que, para os trabalhadores rurais que reivindicaram coletivamente a posse da área da
Fazenda São Rafael, se iniciou uma dupla batalha: a luta pela terra e o enfrentamento dos efeitos da
alteração das condições ecológicas do espaço onde viviam.

A luta pela terra continua ainda hoje na Justiça, com ações judiciais que se prolongam, deixando
sempre uma sombra de ameaça de que a situação do Acampamento ainda possa sofrer uma
reversão e os trabalhadores sejam expulsos de seu chão. Outra frente que visa solucionar a questão
pela via da desapropriação no âmbito do Executivo Federal permanece também em aberto, com as
idas e vindas da burocracia ditadas pela letargia governamental em resolver o que deveria ser
prioritário.

Mas o que fazer com os búfalos e a Braquiária? Os búfalos foram retirados da terra onde está o
Acampamento, embora permaneçam na região. Tive oportunidade de vê­los numa propriedade
vizinha. Quando os búfalos se vão, porém, o capim fica, com todos os seus efeitos perversos
potencializados, para impedir que qualquer outra planta viceje por onde ele estende os seus
domínios.

Os trabalhadores rurais, fazendo uso de todos os seus conhecimentos mais tradicionais, fruto da
longa convivência com a natureza, usaram técnicas que permitiram iniciar a recuperação de um

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espaço que tinha sido profundamente agredido e praticamente devastado. Não se trata aqui de
mera figura de retórica e, para tanto, gostaria de comparar as duas imagens a seguir.

A primeira é uma foto da fazenda antes da sua ocupação pelos trabalhadores rurais que está
pendurada na parede da casa que até então lhe servia de sede, como uma espécie de testemunho
da devastação. A segunda foi tirada por mim e permite ver o mesmo lugar da foto antiga, agora
completamente modificado pela recuperação da natureza, com o replantio das árvores e a volta da
paisagem quase que original.

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Tudo isso sem que a terra tenha deixado de ocupar o seu lugar como espaço para atividades
produtivas, como assim a entendemos, onde se produzem coisas que são comestíveis,
comercializáveis no mercado, ou na feira. A grande diferença está, portanto, em ser possível
demonstrar que não é preciso fazer isso com a destruição do ambiente.

Hoje, uma parte da produção do Acampamento é consumida nas escolas públicas da região,
comercializada por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), criado pela lei
11.947, de 16/6/2009, que estabelece que, do valor total que é repassado pelo Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação (FNDE) para o Programa, no mínimo 30% deve ser utilizado nas
compras de gêneros alimentícios provenientes da agricultura familiar (para saber mais sobre o Pnae
no Paraná veja­se o artigo “Programa de Compras da Merenda Escolar com Foco na Agricultura
Familiar: Uma Análise Espacial do seu Efeito no Desenvolvimento Socioeconômico Paranaense”, de
autoria de Augusta Pelinski Raiher, Hermes Yukio Higachi e Alex Sander Souza do Carmo).

É bom que se diga que o PNAE se adequa completamente aos Objetivos do Desenvolvimento
Sustentável da ONU (SAG15) na parte em que trata dos ecossistemas sustentáveis, que recomenda
expressamente o aumento da “capacidade das comunidades locais de buscar oportunidades de
subsistência sustentáveis”, amparado na “estreita relação com a natureza de muitas sociedades em
desenvolvimento” (veja­se o artigo “Um círculo virtuoso pela preservação”, de autoria de Arancha
González e John E.Scanlon, publicado no Valor, edição de 4/10/16, pág. A17).

Para produzir corretamente, o Acampamento José Lutzenberger simplesmente vem aplicando os
ensinamentos do chamado SAF – Sistema Agroflorestal, que se baseia na forma de uso da terra
onde árvores ou arbustos são utilizados em conjunto com o cultivo agrícola numa mesma área, e
cujo plantio das espécies é escalonado no tempo de acordo com suas exigências e com a
funcionalidade no sistema.

Neste caso, diversidade é a palavra­chave. Não se cultiva uma coisa só e sabe­se que ter árvores é
igualmente importante para que as condições ecológicas de um lugar permaneçam, permitindo a
integração das funções de cada uma delas. A vantagem dessa diversificação é a “forma como as
plantas se ajudam”, como se pode ler no delicioso artigo “História e Plantas”, de Tatiana Levy (Valor,
16/9/16, pág.35).

Não é à toa que o nome do Acampamento é justamente o do agrônomo José Lutzenberger, ex­
ministro do Meio Ambiente, falecido em 2002, que se destacou por chamar a atenção para os
desmandos que a sociedade fazia com o meio ambiente: “Está claro que a espécie humana não
poderá continuar por muito tempo com a sua cegueira ambiental e com sua falta de escrúpulos na
exploração da Natureza”.

Foi interessante ver o uso do manancial de conhecimentos locais para dar conta de restaurar as
funções ecológicas e domar o Capim que parecia invencível. Experiências como a do Acampamento
precisam ser conhecidas para ajudar o Brasil na tarefa de recuperar o seu imenso passivo de
florestas destruídas, aproximadamente 20 milhões de hectares, ao que estamos obrigados não

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apenas em razão da nossa legislação, mas também por sermos signatários do Acordo de Paris para
a Proteção do Clima.

Trata­se de valorizar este como modelo do que pode e deve ser feito em várias regiões do país. O
Acampamento Lutzenberger é a prova clara de que os trabalhadores rurais impactam positivamente
a região e, como tal, devem ser vistos como exemplo de boas práticas capazes de garantir o uso
sustentável da terra e de beneficiar o país como um todo.

Muito se fala da oposição aparentemente radical entre homem e natureza, o que por sua vez
justificaria a impossibilidade do social conviver com o ambiental. Pelo menos em Antonina, no
Acampamento José Lutzenberger, isso parece menos verdade do quem sempre poderá ter sido. O
que se vê é uma comunidade usando todo o seu manancial de informações, a sua cultura aqui
entendida como acervo de conhecimentos e práticas, para restaurar as funções ecológicas do lugar
onde vive e garantir uma vida melhor. O antropólogo Marshall Sahlins diz que é preciso muita cultura
para criar um estado de natureza. Parafraseando­o, podemos então dizer que sem cultura de fato é
impossível recriar um estado de natureza.

Ana Valéria Araújo é coordenadora executiva do Fundo Brasil de Direitos Humanos

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