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O

SEGREDO
DE UMA
PROMESSA
The Promise

Danielle Steel
Tradução de
A.B PINHEIRO LEMOS
Editora Record, 2004
ISBN 8501015644
Digitalização: Thalita Costa
Versão ePub: AZ
CAPÍTULO 1

O sol do começo da manhã incidia em suas costas quando pegaram as


bicicletas diante da Heliot House, no campus de Harvard. Pararam por um
momento, a fim de sorrirem um para o outro. Era maio e os dois eram muito
jovens. Os cabelos curtos da moça brilhavam ao sol. Os olhos dela encontraram
os dele, no momento em que começou a rir.
— E então, Doutor em Arquitetura, como se sente?
— Pergunte-me isso dentro de duas semanas, depois que eu conseguir o
doutorado.
O rapaz sorriu para ela, sacudindo da testa uma mecha de cabelos louros.
— Seu diploma que se dane! Estava me referindo à noite de ontem!
Ela sorriu novamente. O rapaz deu-lhe uma palmada no traseiro.
— Ahn... E você, como se sente, Miss McAllister? Ainda pode andar? Ainda
pode andar?
Os dois estavam passando a perna por cima das bicicletas e a moça fitou-o
com uma expressão zombeteira.
— E você pode?
E com isso partiu, distanciando-se rapidamente na pequena bicicleta que
ele lhe dera de presente no aniversário, poucos meses antes. Ele estava
apaixonado pela moça. Sempre estivera apaixonado por ela. Sonhara com ela
por toda a sua vida E a conhecia há dois anos.
Fora um tempo solitário que ele tivera em Harvard antes disso. Já no
segundo ano do curso de doutorado estava resignado a continuar assim. Não
queria o que os outros desejavam. Não queria uma jovem de Radcliffe, Vassar ou
Wellesley na cama a seu lado. Para Michael, havia sempre algo que faltava.
Queria algo mais. Estrutura, substância, alma. Resolvera o problema
temporariamente no verão anterior, tendo um caso com uma amiga de sua
mãe. A mãe nada soubera, é claro. E fora extremamente divertido e satisfatório.
Era uma mulher muito atraente, de trinta e tantos anos, bem mais moça que a
mãe, é claro. E era uma editora da Vogue. Mas fora simplesmente um
passatempo agradável. Para ambos. Com Nancy, porem, era diferente.
Ele o compreendera desde o primeiro momento em que a vira, na galeria
de Boston que estava expondo os quadros dela. Havia uma solidão obcecante nas
paisagens rurais, uma ternura solitária nas pessoas retratadas. Michael sentiu-se
dominado por uma profunda compaixão, com vontade de consolar aquelas
pessoas e a mulher que as pintara. Ela estava na galeria naquele dia, com uma
boina vermelha e um velho casaco de pele de guaxinim, a pele delicada ainda
luzindo da caminhada até a Charles Street, com os olhos brilhando, o rosto cheio
de vida. Michael jamais desejara outra mulher tanto quanto a desejara.
Comprara dois quadros e a levara para jantar no Lockober´s. Mas o resto levara
muito mais tempo. Nancy McAllister Não era uma mulher propensa a ceder
prontamente seu corpo ou seu coração. Fora solitária demais por tempo demais
para se entregar facilmente. Aos 19 anos, já era uma mulher sábia e calejada na
dor. A dor de estar só. A dor de ser abandonada. Era o que a atormentada desde
que fora colocada num orfanato, ainda bem pequena. Não mais podia recordar o
dia em que a mãe a deixara no orfanato, pouco antes de morrer. Mas lembrava-
se nitidamente do frio horrível dos salões. Do cheiro das pessoas estranhas. Dos
sons pela manhã, enquanto deitada na cama, lutava para conter as lagrimas. Iria
recordar-se dessas coisas pelo resto de sua vida. Por muito tempo, pensara que
nada poderia preencher o vazio que havia dentro de si. Mas agora tinha Michael.
O relacionamento entre eles nem sempre fora fácil. Mas era um
relacionamento muito forte, baseado no amor e no respeito. Haviam fundido os
mundos de cada um e disso resultara algo belo e raro. E Michael também não
era nenhum tolo. Conhecia os perigos de se apaixonar por alguém "diferente",
como sua mãe insistia em ressaltar... sempre que tinha oportunidade. Mas não
havia nada de "diferente" em Nancy. A única coisa, diferente era o fato de que
ela era uma artista, não uma simples estudante. Nancy não estava mais na fase
de procura, já era o que desejava. E ao contrário das outras mulheres que
Michael conhecia, ela não estava experimentando candidatos, mas
simplesmente escolhera o homem a quem amava. Em dois anos, Michael jamais
a desapontara. E ela tinha certeza de que isso jamais aconteceria. Afinal,
conheciam-se muito bem. O que poderia haver que ela já não soubesse? Sabia de
tudo. As coisas engraçadas, os segredos tolos, os sonhos da infância, os medos
desesperados. E, através dele, Nancy passara a respeitar sua família. Até mesmo
a mãe.
Michael nascera na tradição, condicionado desde a infância a herdar um
trono. Não era algo que ele encarasse com leviandade. Nem mesmo gracejava a
respeito. Havias ocasiões em que isso chegava até a assustá-lo. Teria
capacidade de se mostrar à altura do mito? Mas Nancy não tinha a menor
dúvida quanto a isso. O avô de Michael, Richard Cotter, fora um arquiteto. O pai
dele também. Fora o avô que fundara um império. Mas havia sido a fusão do
império Cotter com a fortuna Hillyard, através do casamento dos pais de
Michel, que criara o império Cotter-Hillyard de hoje. Richard Cotter soubera
como ganhar dinheiro, mas fora o dinheiro Hillyard, um dinheiro antigo,
tradicional, que proporcionara os rituais e tradições do poder. Havia ocasiões em
que era um manto incômodo de se usar, mas não se podia dizer que Michael não
gostasse. E Nancy também o respeitava. Ela sabia que Michael estaria um dia
no comando do império Cotter-Hillyard. No princípio, haviam conversado a
respeito incessantemente. Mais tarde, voltaram a conversar constantemente,
quando compreenderam como era profunda e séria a ligação que os unia. Mas
Michael sabia que encontrara uma mulher que podia assumir tudo, tanto as
responsabilidades de família quanto as funções nos negócios. O orfanato nada
fizera a fim de preparar Nancy para o papel que Michael sabia que ela iria
desempenhar, mas a base parecia estar fixada na própria alma dela.
Michael contemplava-a agora com um orgulho quase insuportável,
enquanto ela se distanciava a sua frente, segura de si, forte, as pernas ágeis
pedalando vigorosamente, virando a cabeça para trás de vez em quando a fim
de fitá-lo e rir. A vontade de Michael era aumentar a velocidade e alcançá-la...
tirá-la da bicicleta... ali... na grama... da maneira como tinham feito na noite
anterior... da maneira... Ele tratou de afastar o pensamento de sua mente e
disparou atrás dela.
— Ei, espere por mim, sua bruxinha!
Michael estava emparelhado com ela um momento depois. Continuaram
a pedalar, agora um pouco mais devagar. Michael estendeu a mão pelo curto
espaço que os separava.
— Está linda hoje, Nancy. — A voz dele era uma carícia no ar da
primavera. Ao redor deles, o mundo era verde e viçoso.
— Sabe quanto a amo?
— Não seria a metade do que o amo, Mr. Hillyard?
— Isso demonstra o quanto sabe, Miss Nancy Calçalinda!
Ela riu, como sempre fazia, ao ouvir o apelido. Michael sempre a fazia
feliz. Ele fazia coisas maravilhosas. Nancy sempre pensara assim desde o
primeiro momento, quando ele entrara na galeria e ameaçara tirar as próprias
roupas, todas, se ela não lhe vendesse todos os quadros.
— Acontece que a amo pelo menos sete vezes mais do que me ama.
— Essa não! — Nancy sorriu-lhe novamente, nariz no ar e disparou à
frente outra vez.
— Eu o mais, Michael.
— Como sabe?
Ele estava acelerando para alcançá-la.
— Papai Noel me contou.

E com isso, Nancy se distanciou novamente. Desta vez, Michael deixou-a
ir na frente pelo caminho estreito. Estavam num animo festivo e ele gostava de
contemplá-la. A forma esguia dos quadris na calça de jeans, a cintura fina, os
ombros impecáveis com o suéter vermelha amarrada frouxamente e o balanço
maravilhoso dos cabelos pretos. Michael podia contemplá-la por anos a fio. Na
verdade, era justamente isso o que estava planejando fazer. O que o fazia
lembrar... tinha planejado conversar com ela a respeito naquela manhã.
Diminuiu novamente a distância que os separava e bateu no ombro de Nancy
gentilmente.
— Com licença, Sra. Hillyard.
Ela teve um sobressalto ao ouvir as palavras, depois sorriu timidamente, o
sol incidindo em seu rosto. Michael podia ver as sardas no rosto dela, quase
como poeira de ouro deixada por duendes na superfície cremosa da pele.
— Eu disse... Sra. Hillyard...
Michael pronunciou as palavras com infinito prazer. Tinha esperado por
dois anos.
— Não está querendo precipitar um pouco as coisas, Michael?
Ela parecia hesitante, quase temerosa. Michael ainda não falara com
Marion. E enquanto isso não acontecesse, não importava o que ele e Nancy
pudessem ter acertado entre si.
— Não acho que esteja precipitando coisa alguma. E já tem duas semanas
que estou pensando em fazer isso. Logo depois da formatura.
Há muito que haviam combinado um casamento pequeno, intimo. Nancy
não tinha família e Michael queria partilhar o momento com ela, não com um
elenco de milhares de pessoas ou um exército de fotógrafos da sociedade.
— Para dizer a verdade, estava planejando seguir esta noite para Nova
York a fim de conversar com Marion.
— Esta noite?
Havia um eco de medo na voz de Nancy. Ela deixou bicicleta fosse
diminuindo a velocidade lentamente, até parar.
Michael assentiu em resposta. Nancy estava cada vez mais pensativa,
enquanto contemplava as colinas luxuriantes ao redor.
— O que acha que ela vai dizer? Nancy estava com medo de olhar para
Michael. Com medo de ouvir a resposta.
— Sim, é claro. Está mesmo preocupada com isso?
Era uma pergunta sem sentido e ambos sabiam disso. Tinham muito com
que se preocupar. Marion não era uma mera dama de honra. Era a mãe de
Michael e tinha toda a ternura do Titanic. Era uma mulher de força,
determinação, concreto e aço. Havia assumido os empreendimentos da família
com a morte do pai e voltara a fazê-lo, com renovada determinação, depois que
o marido morrera. Nada podia deter Marion Hillyard. Absolutamente nada.
Certamente não uma garota esguia ou seu filho único. Se não queria que os dois
casassem, nada a faria dizer aquele "sim", embora Michael simulasse não ter a
menor dúvida a respeito. E Nancy sabia exatamente o que Marion Hillyard
pensava dela.
Marion jamais tentara esconder seus sentimentos. Ou pelo menos não o
fizera a partir do momento em que chegara à conclusão de que o caso de
Michael com "aquela artista" podia ser algo sério. Chamara Michael a Nova
York e o lisonjeara, persuadira e seduzira, para depois brigar, ameaçar e
pressionar. E finalmente se resignara. Ou pelo menos dera tal impressão.
Michael encarara essa posição como um indício encorajador, mas Nancy não
tinha tanta certeza assim. Tinha a impressão de que Marion sabia o que estava
fazendo e decidira, por enquanto, ignorar a "situação". Não foram feitos convites,
não foram formuladas acusações, nunca foram apresentadas desculpas por coisas
ditas a Michael no passado. Mas também não surgiram novos problemas. Para
ela, Nancy simplesmente não existia. E, estranhamente, Nancy sempre se
surpreendia ao descobrir como isso a magoava. Não tendo família, ela sempre
acalentara sonhos estranhos em relação à Marion. Que podiam ser amigas, que
Marion gostaria dela, que ela e Marion iriam fazer compras para Michael... que
Marion seria... a mãe que ela não tivera ou conhecera. Mas Marion não se
enquadrava facilmente nesse papel. Em dois anos, Nancy tivera muitas
oportunidades para compreender isso. Somente Michael se apegava
obstinadamente à posição de que a mãe acabaria por ceder, que as duas se
tornariam grandes amigas, a partir do momento em que Marion aceitasse o
inevitável. Mas Nancy nunca tivera tal certeza. Ela chegara mesmo a forçar
Michael a discutir a possibilidade de Marion nunca aceitá-la, jamais concordar
com o casamento. O que fariam então?
— Nesse caso, pegamos o carro e seguimos para o juiz de paz mais
próximo. Afinal, já somos ambos maiores de idade.
Nancy sorrira com a simplicidade daquela solução. Sabia que nunca
poderia ser tão fácil assim. Mas que diferença fazia? Depois de dois anos juntos,
eles já se sentiam de qualquer forma casados.
Ficaram parados em silêncio por um longo momento, contemplando a
paisagem. Depois, Michael pegou a mão de Nancy e murmurou:
— Eu a amo, querida.
— Também o amo.
Nancy fitou-o com expressão preocupada e Michael silenciou os olhos dela
com um beijo. Mas nada podia sufocar as dúvidas que ambos tinham. Isto é,
nada exceto a conversa com Marion. Nancy deixou a bicicleta cair e com um
suspiro aconchegou-se lentamente entre os braços de Michael.
— Gostaria que fosse tudo mais fácil, Michael.
— E será. Vai ver só. E agora vamos adiante. Vamos dar um passeio ou
ficamos parados aqui o dia inteiro?
Michael deu-lhe novamente uma palmada no traseiro. Nancy sorriu,
enquanto ele pegava a bicicleta dela. E no momento seguinte estavam de novo
pedalando, rindo, brincando, cantando, fingindo que Marion não existia. Só que
ela existia. Sempre existiria. Marion era mais uma instituição do que uma
mulher. Marion era eterna. Pelo menos na vida de Michael. E agora na vida de
Nancy.
O sol subiu mais alto pelo céu enquanto eles pedalavam pelos campos,
alternadamente adiantando-se um ao outro ou ficando emparelhados, em um
momento gracejando exuberantemente, no outro ficando silenciosos e
pensativos. Já era quase meio-dia quando alcançaram a Revere Beach e
avistaram o rosto fami1iar vindo em sua direção. Era Ben Ayery, com uma nova
garota a seu lado. Outra loura de pernas compridas. Todas pareciam rainhas
colegiais. E muitas eram mesmo.
— Oi, vocês dois! Estão indo para a feira?
Bem sorriu-lhes e depois, com um gesto vago da mão, apresentou
Jeannette. Trocaram cumprimentos. Nancy protegeu os olhos com a mão e
olhou na direção da feira. Ainda faltavam alguns quarteirões para alcançá-la.
— Vale a pena parar?
— E como vale! Ganhamos um cachorro rosa. — Bem apontou para a
criatura horrenda na cesta de Jeannette.
— ... uma tartaruga verde que deu jeito de se perder, e duas latas de
cerveja. Além do mais, eles têm milho cozido que está sensacional.
— Acaba de me convencer. — Michael olhou para Nancy e sorriu. —
Vamos até lá?
— Claro. Vocês já estão voltando?
Mas Nancy podia ver claramente que estavam. Bem tinha um brilho
irreconhecível nos olhos e Jeannette parecia estar de pleno acordo. Nancy sorriu
para si mesma ao observá-los
— Já, sim. Estamos andando desde as seis horas desta manhã. Estou
exausto. Por falar nisso o que vocês vão fazer no jantar esta noite? Não querem
visitar-me para uma pizza? O quarto de Bem ficava próximo do quarto de
Michael.
— O que vamos fazer no jantar esta noite, señor?
Nancy olhou para Michael com um sorriso brejeiro. Mas ele estava
sacudindo a cabeça.
— Tenho de resolver alguns problemas essa noite. Vamos deixar para
outra ocasião.
Era um rápido lembrete do encontro com Marion.
— Está certo. Até mais tarde.

Ben e Jeannette acenaram e depois se afastaram, enquanto Nancy olhava
para Michael.
— Vai mesmo procurá-la esta noite?
— Vou, sim. E pare de se preocupar com isso. Tudo vai dar certo. Por
falar nisso, mamãe diz que ele conseguiu o lugar.
— Ben?
Nancy levantou os olhos inquisitivamente, enquanto recomeçavam a
pedalar, a caminho da feira.
— Isso mesmo. Começamos ao mesmo tempo. Em áreas diferentes, é
verdade, mas começamos no mesmo dia.
Michael parecia satisfeito. Conhecia Ben desde o tempo do curso
preparatório e eram como irmãos.
— Bem já sabe?
Michael sacudiu a cabeça, com um sorriso de conspirador. — Achei que
seria melhor deixá-lo experimentar a emoção de receber a notícia oficialmente.
Não quis estragar-lhe esse prazer.
Nancy também sorriu.
— Você é um bom sujeito e eu o amo, Hillyard.
— Obrigado, Sra. H.
— Pare com isso, Michael.
Nancy queria demais aquele sobrenome para ouvi-lo pronunciado como
um gracejo, até mesmo por Michael.
— Não vou parar. E é melhor começar logo a se acostumar. Ele parecia
subitamente sério.
— E vou-me acostumar... quando chegar o momento certo. Mas até lá,
no entanto, Miss McAllister soa melhor.
— Por mais duas semanas, para ser exato. Aposto que posso vencê-la na
corrida!
E os dois dispararam em frente, lado a lado, ofegando e rindo. Michael
alcançou a entrada da feira cerca de 80 segundos antes de Nancy. Ambos
pareciam bronzeados, saudáveis e despreocupados.
— E então, meu caro senhor, o que vamos fazer primeiro?
Mas Nancy já adivinhara o que seria e estava absolutamente certa.
— Ao milho cozido, é claro! Precisava perguntar?
— Não.
Deixaram as bicicletas perto de uma árvore, sabendo que ali, nos campos
sonolentos, ninguém iria roubá-las. Foram andando de braços dados. Dez
minutos depois estavam se lambuzando com a manteiga que escorria, enquanto
comiam o milho cozido. Em seguida comera cachorros-quentes e tomaram
cerveja gelada. Nancy acompanhou tudo com uma gigantesca porção de
algodão-doce.
— Como pode comer essa porcaria?
— Fácil ... porque é delicioso.
As palavras saíram meio truncadas através do algodão-doce, rosado
pegajoso, mas Nancy tinha a expressão deliciada de uma criança de cinco anos.
— Já lhe falei ultimamente como você é bonita?
Nancy sorriu-lhe, exibindo o rosto todo salpicado de algodão.
Michael pegou um lenço e limpou-lhe o queixo.
— Se conseguisse limpar-se, poderíamos tirar uma fotografia.
— É mesmo? Onde?
O nariz de Nancy desapareceu novamente por trás de outra porção que
ela abocanhou
— Você é impossível, querida. A fotografia é ali.
Michael apontou para uma barraca em que podiam meter as cabeças
através de buracos redondos e tirar uma foto sobre trajes exóticos... Foram até
lá e escolheram Rhett Butler e Scarlet O'Hara. E por mais estranho que pudesse
parecer, nem mesmo pareciam tolos na fotografia. Nancy ficou linda sobre o
traje pintado meticulosamente. A beleza delicada de seu rosto e a precisão das
feições se ajustou perfeitamente ao traje imensamente feminino da beldade
sulista. E Michael ficou parecendo um jovem libertino. O fotógrafo entregou-lhes
a foto e recebeu o seu dólar, comentando:
— Eu deveria ficar com essa foto. Vocês dois saíram muito bem
— Obrigada.
Nancy ficou comovida com o elogio, mas Michael limitou-se a sorrir. Ele
sempre sentia o maior orgulho de Nancy. Apenas mais duas semanas e... Mas
Nancy puxou-lhe a manga freneticamente, arrancando-o dos devaneios.
— Olhe ali! Um jogo de argolas!
Nancy sempre quisera jogar as argolas na feira quando era criança, mas as
freiras do orfanato invariavelmente alegavam que era muito caro.
— Podemos?
— Mas é claro, minha querida!
Michael fez-lhe uma reverência, ofereceu o braço e tentou levá-la a
caminhar tranqüilamente na direção da barraca. Mas Nancy estava excitada
demais para andar normalmente. Estava quase pulando como uma criança e o
excitamento dela deliciava-o.
— Podemos jogar agora?
— Claro, meu amor!
Michael estendeu um dólar e o homem por trás do balcão entregou a
Nancy quatro vezes a quantidade habitual de argolas. A maioria dos fregueses
pagava apenas 25 cents. Mas Nancy era inexperiente no jogo e todas as suas
tentativas malograram. Michael observava-a divertido.
— Exatamente que prêmio está querendo?
— As contas.— Os olhos de Nancy brilhavam como os de uma criança e as
palavras saíam quase como um sussurro. Nunca tive antes um colar
espalhafatoso!
Era algo que ela sempre desejara ter quando era menina. Algo bem
vistoso, brilhante, frívolo.
— Não resta a menor dúvida de que é uma pessoa fácil de contentar, meu
amor. Tem certeza de que não prefere o cachorrinho rosa?
Era igual ao que Jeannette levava na cesta. Mas Nancy sacudiu a cabeça,
determinada.
— Quero as contas.
— Seu desejo é uma ordem para mim.
E Michael arremessou todas as três argolas perfeitamente no alvo. Com
um sorriso, o homem por trás do balcão entregou-lhe as contas. Imediatamente,
Michael colocou-as no pescoço de Nancy.
— Voilà, mademoiselle! Tudo seu! Acha que devemos fazer um seguro de
seu colar?
— Quer parar de gozar as minhas contas? Acho que elas são maravilhosas!
Nancy tocou-as suavemente, encantada por saber que estavam faiscando
em seu pescoço.
— Acho que você é maravilhosa. Seu coração deseja mais alguma coisa?
Nancy sorriu.
— Mais algodão-doce.
Michael comprou outro chumaço de algodão-doce e depois foram
voltando lentamente para as bicicletas.
— Está cansada?
— Não muito.
— Não quer seguir um pouco mais adiante? Há um maravilhoso aqui
perto. Podemos ficar sentados lá por tempo, contemplando o mar.
— Boa idéia.
Partiram novamente, só que desta vez mais devagar. O clima de carnaval
desaparecera e estavam ambos imersos em seus próprios pensamentos, a maior
parte sobre o outro. Michael estava começando a desejar que estivessem de
volta à cama e Nancy não teria discordado. Estavam-se aproximando de Nahant
quando ela avistou o local que Michael escolhera na extremidade de uma ponta
de terra, sob uma árvore antiga aprazível. Nancy ficou contente por terem
coberto aquela última etapa do passeio.
— Oh, Michael, é lindo! .
— Não é mesmo?
Sentaram-se na relva, pouco antes da estreita ponta de terra começar. À
distância, podiam observar as ondas quebrarem suavemente sobre um recife
logo abaixo da superfície.
— Sempre quis trazer você até aqui.
— E estou contente que me tenha trazido.
Ficaram sentados em silêncio por algum tempo, de mãos dadas. Depois,
Nancy se levantou abruptamente.
— O que foi?
— Quero fazer uma coisa.
— Pode ir até ali, atrás das moitas.
— Não é isso, seu chato!
Nancy saiu correndo pela praia. Michael seguiu-a lentamente, sem ter a
menor idéia do que ela pretendia fazer. Nancy parou ao lado de uma pedra
grande na areia e tentou deslocá-la, mas não conseguiu
— Deixe-me ajudá-la, sua tolinha. O que está pretendendo fazer?
Michael estava aturdido.
— Quero apenas afastá-la por um segundo... assim.
A pedra cedera sob a pressão de Michael, revelando uma depressão úmida
na areia. Rapidamente, ela tirou as contas azuis do pescoço, segurou-as por um
momento, de olhos fechados, depois largou-as na areia, no lugar sobre o qual a
pedra estava antes.
— Muito bem, Michael, pode pôr a pedra de volta no lugar.
— Em cima das contas?
Ela assentiu, os olhos não se desviando do vidro azul a faiscar.
— Essas contas seria o nosso vínculo, um vínculo físico, enterradas
enquanto esta pedra, esta praia e estas árvores continuarem aqui. Combinado?
— Combinado. — Michael sorriu gentilmente. — Estamos sendo muito
românticos.
— Por que não? Quando se é afortunado o bastante para se ter amor,
temos de comemorar! Fazer com que tenha um lar!
— Tem razão, tem absoluta razão. Muito bem, aqui é o ninho do nosso
amor.
— E agora vamos fazer uma promessa. Prometo que nunca esquecerei o
que está aqui nem esquecerei o que representa. E agora é a sua vez.
Nancy tocou na mão dele, que sorriu-lhe novamente. Michael nunca a
amara tanto
— Eu prometo... prometo nunca dizer adeus a você...
E depois, sem qualquer razão em particular, os dois riram. Porque era
maravilhoso ser jovem, ser romântico, até mesmo banal. O dia inteiro havia sido
maravilhoso.
— Vamos voltar agora?
Nancy assentiu. De mãos dadas, voltaram para o lugar em que haviam
deixado as bicicletas. E duas horas depois estavam no pequeno apartamento de
Nancy, na Spark Street, perto do campus. Michael olhou ao redor ao cair,
sonolento, no sofá, compreendendo mais uma vez o quanto gostava do
apartamento dela, o quanto representava um lar para ele. O único lar verdadeiro
que já conhecera. O apartamento gigantesco da mãe em Nova York nunca lhe
dera realmente a impressão de lar. O que acontecia com o minúsculo
apartamento de Nancy. Que possuía todos os toques afetuosos e maravilhosos de
Nancy. Os quadros que ela pintara ao longo dos anos, as cores simples que
escolhera, um sofá de veludo castanho, um tapete felpudo que ela comprara de
um amigo. Havia sempre flores por toda parte, muitas plantas, às quais ela
dedicava um cuidado meticuloso. Lá estavam a pequena mesa de tampo de
mármore impecável onde comiam e a cama de latão que rangia de prazer
quando faziam amor.
— Tem alguma idéia do quanto amo este apartamento, Nancy?
— Claro que tenho. — Ela olhou ao redor, nostalgicamente. — Também
amo muito. O que vamos fazer quando nos casarmos?
— Levar todas essas suas coisas lindas para Nova York e encontrarmos um
pequeno lar aconchegante para recebê-las.
E foi nesse momento que algo atraiu a atenção de Michael — O que é
isso? Algo novo?
Ele estava olhando para o cavalete de Nancy, onde estava um quadro
ainda nos estádios iniciais, mas já apresentando uma qualidade fascinante. Era
uma paisagem de árvores e campos. Mas quando se aproximou, Michael
percebeu que havia um menino escondido numa árvore, com as pernas
pendendo.
— O menino vai continuar a aparecer depois que puser folhas na árvore?
— Provavelmente. De qualquer forma, porém, saberemos que está na
árvore. Gosta do quadro?
Os olhos de Nancy brilhavam, enquanto ela observava a aprovação de
Michael. Ele sempre compreendera perfeitamente o trabalho dela.
— Adoro.
— Então será o seu presente de casamento... quando estiver terminado.
— Negócio fechado. E por falar em presentes de casamento... — Michael
olhou para o relógio. Já eram cinco horas da tarde e ele queria estar no
aeroporto às seis. — Está na hora de eu partir.
— Precisa mesmo ir esta noite?
— Tenho, sim. É importante. Voltarei dentro de algumas horas. Devo
chegar ao apartamento de Marion por volta das sete e meia ou oito horas,
dependendo do trânsito em Nova York. Posso pegar o último vôo de volta, às
onze horas, chegando em casa por volta da meia-noite. Está bem assim, minha
linda angustiada?
— Está bem. — Mas Nancy estava hesitante, apreensiva pela partida
dele. Não queria que Michael fosse a Nova York e ao mesmo tempo não sabia
por quê.
— Espero que tudo corra bem.
— Tenho certeza de que vai correr.
Mas ambos sabiam que Marion só fazia o que queria, só escutava o que
desejava ouvir e compreendia apenas o que lhe convinha. Mas Michael sabia
que, de alguma forma, iriam vencê-la. Tinham de fazê-lo. Ele precisava ter
Nancy. E nada mais importava. Abraçou-a uma última vez, antes de ajeitar uma
gravata no colarinho da camisa esporte e pegar um casaco leve nas costas de
uma cadeira. Deixara-o ali naquela manhã. Sabia que estaria fazendo calor em
Nova York, mas sabia também que tinha de aparecer no apartamento de Marion
de paletó e gravata. Marion não tolerava "hippies" ou pessoas insignificantes...
como Nancy. Ambos sabiam o que ele estava enfrentando quando se deram um
beijo de despedida na porta.
— Boa sorte.
— Eu a amo.
Por longo tempo, Nancy ficou sentada no apartamento silencioso olhando
para a fotografia que haviam tirado na feira. Rhett e Scarlet, amantes imortais,
naqueles trajes absurdos pintados na madeira, os rostos metidos através de
buracos. Mas não pareciam tolos. Pareciam felizes. Nancy se perguntou se
Marion seria capaz de compreender isso, se ela saberia a diferença entre ser
feliz e tolo, entre o real e o imaginário. Tinha dúvidas se Marion poderia
entender qualquer coisa.
CAPÍTULO 2

A mesa da sala de jantar brilhava como a superfície de um lago. A


perfeição cintilante só era interrompida na beira da praia, onde estava um único
jogo de linho irlandês de cor creme, adornada por porcelana azul e dourada.
Havia um serviço de café de prata ao lado do prato, assim como um pequeno
sino todo ornado. Marion Hillyard recostou-se na cadeira, deixando escapar um
pequeno suspiro, enquanto exalava a fumaça do cigarro que acabara de acender.
Estava bastante cansada naquele dia... Os domingos sempre a cansavam. Havia
ocasiões em que ela pensava que trabalhava mais em casa do que no, escritório.
Sempre passava os domingos cuidando de sua correspondência pessoal,
examinando as contas que a cozinheira e a governanta mantinham
rigorosamente em dia, fazendo listas do que julgava ser necessário consertar no
apartamento e dos artigos que precisava para completar seu guarda-roupa além
de planejar os cardápios da semana. Era um trabalho tedioso; mas há anos que
ela o fazia, mesmo antes de começar a dirigir o império da família. Depois que
assumira o lugar do marido, continuara a passar os domingos a cuidar da casa e
a tomar conta de Michael, no dia de folga da babá. A recordação fê-la sorrir.
Fechou os olhos por um momento. Aqueles domingos haviam sido preciosos,
umas poucas horas em companhia do filho sem que ninguém interferisse; sem
que ninguém aparecesse para afastá-lo dela. Mas seus domingos já não eram
mais assim; haviam deixado de ser há muitos anos. Uma pequena lágrima
brilhante insinuou-se entre as pestanas, enquanto Marion permanecia imóvel na
cadeira, vendo o filho como fora dezoito anos antes, um garoto de seis anos e
todo dela. Como havia amado aquele menino! Teria feito qualquer coisa por ele.
E fizera mesmo. Mantivera um império para Michael, preservando o legado de
uma geração para a seguinte. Era o seu presente mais valioso para Michael
Cotter-Hillyard. E ela passara a amar o império quase tanto quanto amava o
filho.
— Está linda, mamãe.
Os olhos dela se abriram bruscamente, em surpresa, deparando com o
filho parado na entrada em arcada da sala de jantar revestida de lambris. A visão
dele naquele momento quase a fez chorar. Sentiu vontade de abraçá-lo, como o
fizera por todos aqueles anos. Em vez disso, porém, limitou-se a sorrir
lentamente para o filho.
— Não ouvi você chegar.
Não era um convite para Michael se aproximar, não havia qualquer indício
do que ela estava sentindo. Com Marion, ninguém jamais sabia o que se passava
dentro dela.
— Usei minha chave. Posso entrar?
— Claro. Quer uma sobremesa?
Michael avançou lentamente para ela, um sorriso nervoso tênue a lhe
contrair os lábios. Depois, como um garotinho, deu uma espiada no prato da
mãe.
— Hum... o que era? Parece alguma coisa à base de chocolate...
Marion soltou uma risadinha e sacudiu a cabeça. Michael jamais
Cresceria. Ou pelo menos não em algumas coisas.
— Profiteroles. Quer um pouco? Mattie ainda está lá na copa
— Provavelmente comendo o que sobrou.
Ambos riram, pelo que sabiam ser provavelmente verdadeiro.
Mesmo assim, Marion tocou o sino.
Mattie apareceu um instante depois, de uniforme preto, guarnecido de
renda, rosto pálido. Ela passara a vida inteira correndo, buscando, fazendo coisas
para os outros, com apenas um breve domingo semanal a que podia chamar de
todo seu. E quando chegava o “dia” tão cobiçado, ela descobria que nada tinha
para fazer.
— Pois não, madame.
Traga café para Mr Hillyard, Mattie. E... quer sobremesa, querido?—
Michael sacudiu a cabeça-Apenas café então.
Por um momento, Michael se perguntou, como já fizera muitas vezes
antes, por que a mãe nunca dizia obrigado às empregadas. Como se elas
tivessem nascido para cumprir suas ordens. Mas ele sábia que era exatamente
isso o que a mãe pensava. Marion sempre vivera cercada por criados,
secretárias, toda espécie de empregados que se podia imaginar. Tivera uma
criação solitária, mas das mais confortáveis. A mãe morrera quando ela tinha
três anos, num acidente que vitimara também o único irmão de Marion, que
seria o herdeiro do trono arquitetônico da família. O acidente deixara apenas
Marion para assumir o papel de filho substituto. E ela o assumira eficazmente.
— Como vai a escola?
— Quase acabando, graças a Deus. Só faltam mais duas semanas.
— Sei disso. E estou muito orgulhosa de você. Um doutorado é algo
maravilhoso para se ter, especialmente em arquitetura.
Por alguma razão, aquelas palavras despertaram em Michael o desejo de
exclamar, "Oh! Mamãe!", como fazia quando tinha nove anos de idade.
— Vamos é entrar em contato com o jovem Avery nesta semana, para
acertarmos o emprego dele. Não lhe contou nada, não é mesmo?
Marion parecia mais curiosa do que austera. Na verdade, não se,
importava com tal detalhe. Julgara um tanto infantil que Michael pensasse que
era tão importante fazer uma surpresa a Ben.
— Não, não contei. Ele vai ficar muito contente.
— Não é para menos. Afinal, é um excelente emprego.
— Ele merece.
— Espero que sim. — Marion jamais cedia um centímetro sequer. — E
você? Está pronto para começar a trabalhar? Sua sala estará pronta na próxima
semana.
Os olhos dela brilharam ao pensar nisso. Era um lindo gabinete, todo
revestido de madeira, como teria sido o do pai de Michael, com gravuras que
haviam pertencido ao pai de Marion, um impressivo conjunto de sofá e poltronas
de coura, móveis antigos. Ela os comprara em Londres, nas suas férias.
— Está ficando maravilhoso, querido.
— Ótimo. — Ele sorriu para a mãe por um momento, antes de
acrescentar: — Tenho algumas coisas que quero mandar emoldurar, mas vou
esperar até dar uma olhada na decoração.
— Não vai haver qualquer necessidade. Já providenciei tudo o que vai
precisar para as paredes.
E Michael também tinha. Os quadros de Nancy. Havia agora um fogo
súbito em seus olhos, um ar de vigilância e cautela nos olhos de Marion. Ela
percebera algo no rosto do filho.
— Mamãe. ... — Ele se sentou perto da mãe, soltando um pequeno suspiro
e esticando as pernas, enquanto Mattie chegava com o café. — Obrigado,
Mattie?
— É sempre bem-vindo, Mr. Hillyard.
Ela lhe sorriu tão afetuosamente quanto sempre o fazia. Ele era sempre
amável, como se detestasse incomodá-la, muito diferente da...
— Deseja mais alguma coisa, madame?
— Não. Para dizer a verdade... Michael, não quer tomar o café na
biblioteca?
— Está certo
Talvez fosse mais fácil conversar lá. A sala de jantar da mãe sempre o
fizera recordar os salões de baile que vira em mansões ancestrais. Não era
propício a conversas íntimas, muito menos a uma suave persuasão. Ele se
levantou e seguiu a mãe para fora da sala, descendo três degraus atapetados e
entrando na biblioteca, à esquerda. De lá, tinha-se uma vista esplêndida da
Quinta Avenida e de parte considerável do Central Park. Mas havia também na
sala uma lareira aconchegante e duas paredes cobertas de livros. A quarta
parede era dominada por um retrato do pai de Michel. Mas era um retrato de
que ele gostava, em que o pai parecia extremamente simpático, como alguém
que se tinha vontade de conhecer. Quando menino, Michael ia muitas vezes
olhar para aquele retrato e "conversava" em voz alta com o pai. A mãe o
descobrira assim certa ocasião e dissera-lhe que isso era um absurdo. Mais
tarde, porém, Michael descobrira-a a chorar naquela sala, olhando para o
retrato, da mesma forma como ele fazia.
A mãe se acomodou em seu lugar de sempre, uma cadeira Luís XV forrada
em damasco bege e de frente para a lareira. Naquela noite, o vestido dela era
quase da mesma cor. Por um momento, ao clarão da lareira, Michael julgou-a
quase bonita. Marion já o tinha sido e não fazia muito tempo. Ela estava agora
com 57 anos. Michael nascera quando a mãe tinha 33 anos. Ela não tivera
tempo para ter filhos antes disso. Marion era muito bonita naquele tempo.
Possuía os mesmos cabelos louros, quase cor de mel, que Michael tinha só que
agora estavam cada vez mais grisalhos. E a vida em seu rosto se desvanecera.
Fora substituída por outras coisas. Principalmente pela preocupação com os
negócios. E os olhos outrora de um, azul sereno pareciam quase cinzentos agora.
Como se o inverno tivesse finalmente chegado.
— Tenho o pressentimento de que veio aqui esta noite para falar-me
sobre algo importante, Michael. É isso mesmo?
Será que ele engravidara alguma mulher? Teria destruído o carro? Ferira
alguém? Nada era irreparável, é claro, contanto que Michael lhe contasse tudo.
Ela estava contente pelo fato do filho ter vindo procurá-la,
— Não é nada de grave. Mas há algo que preciso discutir com você.
Errado. Michael encolheu-se quase visivelmente diante de suas palavras.
“Discutir." deveria ter falado que havia algo que queria contar e não discutir. Oh,
diabo!
— Achei que já era tempo de sermos francos um com o outro.
— Fala como se geralmente isso não acontecesse.
— Em algumas coisas, não acontece mesmo.
Todo o corpo de Michael estava agora tenso. Ele se inclinou para frente,
consciente de que o pai olhava por cima de seu ombro.
— Não somos francos em relação à Nancy, mamãe.
— Nancy?
Ela parecia ignorar inteiramente o nome. Por um instante, Michael sentiu
um impulso de levantar-se e esbofeteá-la. Detestava a maneira como a mãe
pronunciara o nome de Nancy. Como se não passasse de uma criada.
— Nancy McAllister. Minha amiga.
— Ah, sim... — Houve uma pausa interminável, enquanto Marion mudava
a posição da colher esmaltada no pires. — E em que não somos francos em
relação a Nancy?
Os olhos dela estavam agora velados por uma mortalha de gelo cinzento.
— Tenta fingir que ela não existe. E procuro não incomodá-la com isso.
Mas a verdade, mamãe, é que... vou casar-me com ela. — Ele respirou fundo e
recostou-se, antes de arrematar: — Dentro de duas semanas.
— Entendo. — Marion Hillyard estava perfeitamente imóvel. Os olhos não
se mexiam nem as mãos nem o rosto. Nada. — E posso perguntar por quê? Ela
está grávida?
— Claro que não!
— O que é muita sorte. Sendo assim, posso perguntar por que vai-se casar
com ela? E por que dentro de duas semanas?
— Porque estarei formado então, mudando-me para Nova York e,
começando a trabalhar. Porque faz sentido.
— Para quem?
— O gelo estava-se endurecendo e uma perna foi cruzada
cuidadosamente sobre a outra, com o ruído de seda Michael sentiu-se
constrangido sob a firmeza do olhar da mãe. Ela não desviara os olhos dele uma
única vez. Como nos negócios, Marion estava se mostrando implacável. Era
capaz de fazer qualquer homem encolher-se e finalmente desmoronar.
— Faz sentido para nós, mamãe.
— Pois não faz para mim. Fomos chamados a construir um centro médico
em São Francisco, pelo mesmo grupo que está por trás do Hartford Center. Não
terá tempo para uma esposa. Estou contando muito com sua ajuda pelo próximo
ano. Francamente, querido, gostaria que esperasse.
Era a primeira vez que Michael via a mãe abrandar um pouco uma
posição, o que o levou a pensar que talvez houvesse alguma esperança.
— Nancy será útil para nós dois, mamãe. Não será uma distração para
mim nem um estorvo para você. Ela é uma moça maravilhosa.
— É possível. Mas quanto a ser útil. Por acaso já pensou no escândalo?
Havia agora um brilho de vitória nos olhos de Marion. Ela estava-se
preparando para o bote e subitamente Michael prendeu a respiração como presa
indefesa, sem saber por que lado a mãe iria atacar. Ou como.
— Que escândalo?
— Ela lhe contou quem é, não é mesmo?
Oh, Deus! O que viria agora?
— O que está querendo insinuar com esse quem ela é?
— Exatamente isso, posso ser mais específica.
Com um movimento suave, felino, Marion largou a xícara numa mesinha
e deslizou até sua escrivaninha. Tirou uma pasta da última gaveta e entregou-a
a Michael, sem dizer nada. Ele segurou a pasta, indeciso, com medo de ver o
que havia dentro.
— O que é isso?
— Um relatório. Contratei um investigador particular para saber quem
era a sua amiguinha pintora. Não estava muito satisfeita.
O que era uma atenuação da verdade. Marion ficara furiosa.
— Por favor, Michael, sente-se e leia.
Ele não se sentou, mas relutantemente abriu a pasta e começou a ler. Nas
primeiras doze linhas, descobriu que o pai de Nancy fora morto na prisão quando
ela ainda era bebê, e que a mãe morrera dois anos depois, como alcoólatra.
Estava também explicado que o pai dela fora condenado a sete anos de prisão
por assalto a mão armada.
— Não acha que eram pessoas encantadoras, querido?
A voz dela era ligeiramente desdenhosa. Abruptamente, Michael Jogou a
pasta em cima da escrivaninha. O conteúdo deslizou rapidamente para o chão.
— Não vou ler esse lixo.
— Não quer ler... mas vai casar-se com esse lixo.
— Que diferença faz quem foram os pais dela? Por acaso é culpa de
Nancy?
— Não. E o infortúnio dela. E o seu, se casar com ela. Seja sensato,
Michael. Vai entrar para um negócio em que milhões de dólares estão
envolvidos em cada transação. Não pode mais expor-se ao risco de um
escândalo. Poderia nos arruinar. Seu avô fundou esse império há mais de 50 anos
e vai agora destruí-lo por causa de um romance? Não seja absurdo. Está na hora
de crescer, meu rapaz. Mais do que na hora. Os tempos de aventuras vão se
acabar para você exatamente dentro de duas semanas.
Marion estava agora inflamada, sem tirar os olhos do filho. Não ia perder
aquela batalha, não importava o que tivesse de fazer.
— Não quero discutir esse problema com você, Michael. Não tem
alternativa.
— Marion sempre lhe dissera aquilo. Sempre...
— Uma ova que não tenho! — Era um súbito rugido, enquanto ele andava
pela sala. — Não vou me inclinar diante de você e de suas regras pelo resto da
vida, mamãe! De jeito nenhum! O que está pensando exatamente? Que vai me
levar para o negócio, paparicar-me até se aposentar e depois continuar a me
controlar como um títere de seu quarto? Pois saiba que isso não vai acontecer!
Vou trabalhar para você e mais nada! Não é dona de minha vida, nem agora nem
nunca! E tenho o direto de me casar com quem quiser!
— Michael!
Foram interrompidos pelo som abrupto da campainha da porta. Os dois
estavam de pé, olhando-se, como jaguares numa jaula. O jaguar velho e o novo,
cada um ligeiramente temeroso do outro, ambos famintos pela vitória, ambos
lutando pela sobrevivência. Estavam ainda parados em lados opostos da sala,
tremendo de raiva, quando George Calloway entrou, percebendo prontamente
que viera deparar com uma cena de paixão intensa. Homem suave, elegante, de
cinquenta e tantos anos, ele era há muita tempos o braço-direito de Marion.
Mais do que isso, era em grande parte a força por trás da Cotter-Hillyard. Mas
ao contrario de Marion, raramente aparecia na linha de frente. Preferia exercer
sua força das sombras. Há muito que aprendera os méritos da força discreta.
Isso lhe valera a confiança e admiração de Marion há vários anos, assim que ela
assumira o lugar do marido na empresa. Marion fora então apenas uma figura de
proa e George é que realmente dirigia a Cotter-Hillyard pelo primeiro ano,
enquanto resolutamente, conscienciosamente, ensinava tudo a ela; E George
fizera um bom trabalho. Marion aprendera tudo o que lhe ensinara e muito mais.
Era agora uma força por si mesma, mas ainda se apoiava em George em todas
as operações de grande monta. Isso significava tudo para ele. Saber que Marion
ainda precisava dele depois de todos aqueles anos. Saber que ela sempre
precisaria. George podia agora compreender isso. Formavam uma equipe,
silenciosa, inseparável, cada um mais forte que o outro. Algumas vezes George
se perguntava se Michael sabia o quanto eram unidos. Duvidava muito Michael
sempre fora o centro da vida da mãe. Por que iria perceber até que ponto
George estava envolvido? Sob certos aspectos, a própria Marion não chegava a
compreender. Mas George aceitava tudo. Dedicava seu afeto e energias à
empresa. E talvez algum dia... George olhou agora para Marion com uma
preocupação imediata. Aprendera a reconhecer a contração nos cantos da boca
e a estranha palidez por baixo do pó-de-arroz e rouge cuidadosamente
aplicados.
— Você está bem, Marion?
George conhecia mais a respeito da saúde dela do que qualquer outra
pessoa. Marion lhe confidenciara tudo, anos atrás. Alguém tinha de saber, pelo
bem da empresa. Ela tinha uma pressão assustadoramente alta e um problema
cardíaco.
Por um momento não houve resposta. Depois, ela desviou os olhos do filho
para fixá-los no associado e amigo de muitos anos.
— Estou... estou bem. Desculpe. Boa noite, George. Pode entrar.
— Acho que cheguei num momento errado.
— Absolutamente, George. Eu já estava saindo.
Michael virou-se para fita-lo e nem ao menos conseguia exibir um
arremedo de sorriso. Depois, olhou novamente para a mãe, mas não fez qualquer
menção de se aproximar dela.
— Boa noite, mamãe.
— Telefono para você amanhã, Michael. Podemos discutir o problema
pelo telefone.
Michael sentiu vontade de dizer algo odioso para a mãe, deixá-la
amedrontada. Mas não podia, não sabia como. E de que isso adiantaria?
— Michael...
Ele não respondeu. Apertou solenemente a mão de George e depois saiu
da sala, sem olhar para trás. Não chegou a ver a expressão nos olhos da mãe ou a
preocupação nos de George, enquanto ela afundava lentamente de volta na
cadeira e erguia as mãos trêmulas ao rosto. Havia lágrimas nos olhos dela, que
ocultou até mesmo de George.
— O que aconteceu?
— Ele vai fazer uma loucura.
— Talvez não. Todos nós ameaçamos fazer loucuras de vez em quando.
— Em nossa idade, ameaçamos. Na idade de Michael, eles fazem.
Todos os meus esforços para nada pensou Marion. Os relatórios do
investigador particular, os telefonemas, os... Ela suspirou e recostou-se
lentamente na cadeira.
— Já tomou o seu remédio hoje, Marion? — Ela sacudiu a cabeça, quase
imperceptivelmente.
— Onde está?
— Na minha bolsa. Atrás da escrivaninha.
George foi até lá, sem fazer qualquer comentário sobre as páginas do
relatório espalhadas sobre a mesa e o chão. Encontrou a bolsa de crocodilo
preto, com um fecho de ouro de 18 quilates. Conhecia bem aquela bolsa. Fora
um presente de Natal dele, três anos antes. Encontrou o remédio e voltou para
junto de Marion, com duas pílulas brancas na mão. Ela ouviu o barulho da xícara
de café a seu lado e abriu os olhos. Desta vez, Marion sorriu-lhe.
— O que eu faria sem você, George?
— E o que eu faria sem você? — George não podia sequer suportar tal
pensamento. — Devo ir embora agora? Você precisa descansar.
— Se ficar sozinha, vou pensar em Michael e me tornarei cada vez mais
angustiada.
— Ele ainda vem trabalhar na firma?
— Vem, sim. O problema é outro.
Ou seja, a moça. George também estava a par disso, mas não queria
pressionar Marion naquele momento. Ela estava bastante angustiada, mas pelo
menos a cor estava agora voltando a seu rosto. Depois de engolir as pílulas, ela
pegou um cigarro. George acendeu-o, enquanto observava o rosto dela. Marion
era uma linda mulher. Ele sempre o achara. Mesmo agora, quando ela se
tornava cada vez mais cansada e doente. Ele se perguntou se Michael saberia o
quanto a mãe estava doente. Provavelmente não sabia, caso contrário não a
deixaria transtornada daquela maneira.
O que George não sabia era que Michael estava igualmente desesperado e
angustiado naquele momento. Lágrimas ardentes lhe queimavam os olhos,
enquanto seguia de táxi para o aeroporto.
Ele telefonou para Nancy assim que chegou ao terminal. Seu avião partiria
dentro de 20 minutos.
— Como foi o encontro?
Nancy não pudera perceber coisa alguma pela maneira como ele a
cumprimentara.
— Tudo bem. Agora, quero que você entre em ação. Prepare uma mala,
vista-se, esteja pronta dentro de uma hora meia, quando estarei chegando aí.
— Pronta para quê?
Nancy estava aturdida, sentada no canto do sofá, toda enroscada, com o
fone na mão. Michael fez uma breve pausa, sorrindo em seguida. Era o seu
primeiro sorriso em duas horas.
— Para uma aventura, meu amor. Vai descobrir quando chegar a hora.
— Acho que ficou doido.
Ela estava rindo, aquela sua risada suave e maravilhosa.
— Isso mesmo, estou doido por você.
Michael sentiu que voltava a ser ele próprio. Novamente, tudo começava
a fazer sentido. Estava de volta a Nancy. Ninguém poderia jamais tirar isso dele.
Nem sua mãe. Nem um relatório confidencial. Ninguém. Nada. Ele prometera
naquele dia, na praia, quando haviam enterrado as contas, que nunca diria adeus
para Nancy. E estava falando sério.
— Muito bem, Nancy Calçalinda; trate de se mexer! Ah, sim... e não se
esqueça de usar algo novo, algo velho...
Ele não estava apenas sorrindo agora; estava transbordando de felicidade.
— Está querendo dizer... a voz de Nancy se desvaneceu no espanto.
— Estou querendo dizer que vamos nos casar esta noite. Está certo para
você?
— Está, sim. Mas...
— Mas coisa nenhuma, mocinha. Levante esse rabo daí e comece a se
comportar como uma noiva no dia do casamento.
— Mas por que esta noite?
— Por uma questão de instinto. Confie em mim. Além do mais, é uma
noite de lua cheia.
— Deve ser.
Nancy também estava sorrindo agora. Ia casar-se. Ela e Michael iam
casar-se
— Eu a verei dentro de uma hora, meu bem. Só mais uma coisa, Nancy...
— O que é?
— Eu a amo.
Michael desligou e correu para o portão. Foi o último passageiro a
embarcar no avião para Boston. Nada podia detê-lo agora.
CAPÍTULO 3

Ele estava batendo na porta há quase 10 minutos, mas não ia desistir.


Sabia que Ben estava lá dentro
— Ben! Vamos, abra a porta! Ben! Pelo amor de Deus, cara, abra logo essa
porta
Outra saraivada de batidas e depois o som de passos, seguido por um
súbito estrondo. A porta se abriu para revelar um Ben sonolento, parado ali,
inteiramente atordoado, de cueca, esfregando a canela.
— São apenas 11 horas, Ben. O que está fazendo dormindo a uma, hora
dessas? — O sorriso no rosto de Ben revelou tudo, a um segundo olhar. — Ei,
você está chumbado!
— Até as pontas dos dedos dos pés!
Ben olhou para os pés, com um sorriso malicioso e as pernas balançando
tropegamente.
— Pois vai ter de ficar sóbrio bem depressa, companheiro. Preciso de
você.
— Quero que você se dane! Tomei seis Beefeaters com tônica e acha que
vou desperdiçar tudo isso? Essa não!
— Esqueça tudo o mais e trate de se vestir.
— Estou vestido! — Ele contraiu os olhos, com uma cara de infeliz,
quando Michael acendeu a luz.
— Ei, que diabo está fazendo?
Mas Michael limitou-se a sorrir, enquanto se encaminhava para a pequena
cozinha, na desordem mais total.
— O que andou fazendo por aqui, Ben? Detonou uma granada de mão?
— Isso mesmo. E vou meter uma pelo seu...
— Ora, ora, esta é uma ocasião especial, Ben.
Michael virou-se para sorrir-lhe, da entrada da cozinha. Por um
momento, houve um brilho de esperança nos olhos de Ben.
— E podemos beber por conta dessa ocasião?
— Tudo o que quiser. Só que depois.
— Essa não!
Ben desabou numa poltrona e deixou que a cabeça recostasse nas
almofadas.
— Não quer saber qual é a ocasião, Ben?
— Não, se eu não puder beber por conta. Vou terminar o curso de
doutorado. E isso é algo pelo qual posso beber.
— E eu vou-me casar.
— Isso é ótimo. ... — No instante seguinte, Ben se endireitou na poltrona,
arregalando os olhos. — Você o quê?
— Ouviu direito o que eu falei. Nancy e eu vamos nos casar.
Michael falou com o orgulho sereno de um homem que sabe o que quer.
— E vamos para uma festa de noivado?
Ben exibia agora uma expressão de satisfação. Ali estava algo que valia
pelo menos outra meia dúzia de Beefeaters. Talvez até uns sete ou oito.
— Não é uma festa de noivado, Ben Avery. Já lhe disse. É um casamento.
— Agora? — Confusão novamente. Hillyard era de fato um pé no saco. —
Por que agora?
— Porque queremos. Além do mais, você está chumbado demais para
entender qualquer coisa. Pode dar um jeito para ficar de pé pelo tempo
suficiente para ser nosso padrinho?
— Claro. Ora, seu filho da mãe, você vai mesmo...
Ben levantou-se de um pulo da poltrona, cambaleou perigosamente, bateu
com o dedão na mesinha do café.
— Mas que merda!
— Trate de vestir algumas roupas sem se matar, Ben. Vou fazer um café
para você.
— Está bem.
Ele ainda estava murmurando consigo mesmo quando desapareceu no
quarto, mas já estava ligeiramente mais controlado quando voltou. Chegara
mesmo a por uma gravata sobre a T-shirt listrada, de azul e vermelho. Michael
fitou-o e sacudiu a cabeça, com um sorriso.
— Poderia pelo menos ter escolhido uma gravata que combinasse com
essa camisa.
A gravata era marrom escura, com padrões beges e pretos.
— Preciso mesmo de uma gravata? — Ben parecia subitamente
preocupado. — Não consegui encontrar nenhuma que combinasse.
— Basta agora levantar o zíper da calça e estaremos prontos. E talvez
seja bom descobrir onde está seu outro sapato.
Ben olhou para os pés e descobriu que estava só com um sapato. Desatou
a rir.
— Está certo, estou chumbado. Mas por acaso eu sabia que ia precisar de
mim esta noite? Poderia ter me contado esta manhã.
— Eu ainda não sabia esta manhã.
Tal resposta provocou uma expressão de seriedade nos olhos de Ben.
— Não sabia?
— Não.
— Tem certeza do que está fazendo?
— Absoluta. E não me venha com sermões. Já ouvi bastante esta noite.
Trate apenas de terminar de se arrumar decentemente para podermos ir buscar
Nancy.
Michael entregou ao amigo uma caneca de café fumegante.
Ben tomou um gole prolongado e depois fez uma carranca.
— Mas que desperdício de um bom gim!
— Pagaremos quantos você puder tomar depois do casamento.
— Por falar nisso, onde é que vai se casar?
— Já vai descobrir. É uma cidadezinha linda, pela qual estou apaixonado
há anos. Passei um verão lá quando era menino. É o lugar perfeito.
— Tem uma licença?
— Não há necessidade. É uma dessas cidadezinhas malucas em que as
pessoas podem casar-se com a cara e a coragem. Está pronto?
Ben engoliu o resto do café e assentiu.
— Acho que sim. Puxa estou começando a ficar nervoso.
Não está apavorado?
Ele olhou para o amigo, mais sóbrio agora. Mas Michael parecia
estranhamente calmo.
— Nem um pouco.
— Talvez saiba o que está fazendo. Não sei. ... é que... o casamento... —
Ben sacudiu a cabeça e olhou novamente para os pés, o que o fez recordar que
ainda precisava encontrar o outro sapato. — Mas Nancy é uma garota
sensacional.
— Muito mais do que isso. — Michael avistou o outro sapato debaixo do
sofá, e pegou-o. — Ela é tudo o que sempre desejei.
— Então espero que o casamento proporcione aos dois tudo o que
querem, Michael. Para sempre.
Havia um brilho de ternura nos olhos de Ben e por um momento Michael
segurou-o pelos braços.
— Obrigado.
E no instante seguinte os dois desviaram o olhar, ansiosos em partirem,
para rirem novamente, para saborearem o momento com alegria, ao invés de
solenemente.
— Estou direito?
Ben apalpou a calça para verificar se estava com a carteira depois
procurou as chaves.
— Está deslumbrante.
— Ora, vá... Mas onde é que se meteram as minhas chaves?
Ben olhou ao redor, desolado, enquanto Michael ria. As chaves estavam
presas numa das presilhas de cinto da calça dele.
— Vamos logo embora, Avery. Já estamos atrasados.
Os dois partiram, de braços dados, entoando canções de cervejaria de
verões anteriores. Todo o prédio podia ouvi-los, mas ninguém se importava
realmente. Era povoado por estudantes que iriam nas proximidades do campus e
todos andavam promovendo os maiores tumultos, quando faltavam duas
semanas para terminarem as aulas.
Dez minutos depois, estavam diante do prédio de Nancy, na Spark Street.
Ela acenou nervosamente da janela quando Michael buzinou. Tinha a sensação
de que estava pronta há horas. Um momento depois, estava parada ao lado do
carro. Por alguns segundos, os dois rapazes ficaram em silêncio. Foi Michael o
primeiro a falar:
— Deus do céu, Nancy… você está maravilhosa! Onde conseguiu esse
vestido?
— Eu o tinha.
Eles trocaram um sorriso prolongado. Nenhum dos dois se mexeu. Nancy
sentiu-se de repente uma noiva da cabeça aos pés, apesar da hora tardia e das
circunstâncias heterodoxas. Usava um vestido branco comprido e tinha sobre os
cabelos pretos lustrosos pequena touca azul de cetim. O vestido fora comprado
quando servira como dama de honra no casamento de uma amiga, três anos
antes, mas Michael nunca o tinha visto. Ela estava de sandálias brancas e levava
um lenço de renda muito antigo e bonito.
— Está vendo, Michael? Algo velho, algo novo... o lenço era de minha avó.
E a pequena touca era azul. Ela estava tão bonita que, por um momento,
Michael ficou sem saber o que dizer. Até mesmo Ben parecia ter ficado
completamente sóbrio pela contemplação dela. .
— Está parecendo uma princesa, Nancy.
— Obrigada, Ben.
— Ei, você tem algo emprestado?
— Como assim?
— Não está lembrada? Algo velho, algo novo... algo em prestado... —
Nancy riu e sacudiu a cabeça. — Pois aqui está algo emprestado.
Ben inclinou a cabeça para frente e começou a mexer em algo no
pescoço. Um momento depois, ele exibiu uma corrente de ouro delicada e
bonita.
— É apenas um empréstimo. Minha irmã me mandou de presente de
formatura, mas abri antes. Pode tomar emprestado para o casamento.
Ele se inclinou para fora do carro a fim de prender a corrente no pescoço
de Nancy. Terminava um pouco acima da gola rendada do vestido.
— É perfeito.
— Assim como você.
O comentário foi de Michael, que saiu do carro nesse momento e abriu a
porta para Nancy entrar. Ele ficara tão atordoado pela aparência dela que por
algum tempo fora incapaz de pensar.
— Vá para trás, Avery. Você senta na frente, querida.
— Ela não pode sentar no meu colo?
Ben murmurou um débil protesto, enquanto se transferia para o banco
traseiro. Michael sacudiu-lhe o dedo.
— Não precisa ficar nervoso, cara. Apenas pensei que por ser o padrinho
podia...
— Vai acabar virando um homem morto se não tomar mais cuidado,
Avery.
O ânimo de ambos era da mais intensa alegria, sendo ali palavras
pronunciadas em tom zombeteiro. Nancy acomodou-se no banco da frente e
fitou radiante o homem com quem estava prestes a casar. Sentiu um momento
de apreensão ao pensar em Marion, mas tratou de afastar o problema de sua
mente. Aquele era um momento para pensar apenas em si mesma. E em
Michael. — Que noite mais doida... mas estou adorando!
Alternadamente, gracejaram e ficaram em silêncio, no caminho para a
pequena cidade em que Michael estava pensando. Chegou finalmente o
momento em que nenhum dos três falou mais qualquer coisa. Tinham uma
porção de coisas em que pensar. Michael estava recordando o encontro com a
mãe, enquanto Nancy pensava em tudo o que aquele dia representava para ela.
— Ainda falta muito, amor?
Nancy estava começando a ficar nervosa e o lenço da avó parecia cada
vez mais amarrotado, espremido entre as mãos.
— Faltam apenas sete ou oito quilômetros. Estamos quase chegando... —
Michael acariciou por um momento a mão de Nancy. — Só mais alguns
minutos, querida, e estaremos casados.
— Pois então trate de acelerar, mister, antes que eu fique de pés frios —
cantarolou Ben, no banco de trás.
Michael calcou o acelerador e entrou na curva seguinte, enquanto os três
riam. Mas as risadas rapidamente se transformaram em arquejos, enquanto
Michael dava uma guinada desesperada no volante, tentando inutilmente evitar
um caminhão que ocupava as duas pistas; avançando na direção deles, depressa
demais, quase descontrolado. O motorista devia estar meio adormecido. Nancy
recordou-se depois de ter ouvido o grito angustiado de Ben:
— Oh, não!
E sua própria voz, ressoando em seus ouvidos. E depois houve o barulho
interminável de vidro espatifado, metal rangendo, sendo destroçado, motores se
encontrando, couro e plástico sendo rasgado, tudo se cobrindo com uma
mortalha de fragmentos de vidro. E depois, finalmente, tudo parou, o mundo
ficou totalmente escuro.
Parecia que se haviam passado muitos anos quando Ben despertou, a
cabeça comprimida contra o painel, um latejar horrível nos ouvidos. Tudo
estava escuro ao seu redor e parecia haver um punhado de areia em sua boca.
Teve a sensação de que transo correram mais algumas horas antes que
conseguisse abrir os olhos. O esforço deixou-o terrivelmente enjoado, sentindo-se
mal. A princípio, não pôde compreender o que viu. Nada parecia fazer sentido.
Depois, compreendeu que olhava para o olho direito de Michael. Estava no
banco da frente com ele, mas tudo o que podia ver era Michael. E havia um
filete de sangue escorrendo lentamente pelo lado do rosto de Michael,
continuando pelo pescoço. Era estranho ficar observando, mas por algum tempo
foi tudo o que Ben fez... observar... Michael... sangrando... Santo Deus! Ocorreu-
lhe finalmente o que estava acontecendo. Acidente... houvera um acidente... ele
e Michael estavam no carro e. ... Ben levantou a cabeça e tentou divisar mais
alguma coisa, mas um golpe, que parecia de uma barra de ferro, obrigou-o a
baixá-la novamente. Alguns minutos se passaram antes que ele conseguisse
recuperar o fôlego e pudesse abrir os olhos novamente. Michael ainda estava
caído no mesmo lugar, sangrando. Mas Bem pôde agora constatar que o amigo
estava respirando. Desta vez, quando ele se mexeu, nada aconteceu. Pôde
levantar a cabeça. O que viu, além de Michael, foi o caminhão que os abalroara,
à beira da estrada, capotado. O que ele não viu foi o motorista, sob a cabina do
caminhão, morto. Algum tempo se passaria antes que alguém visse isso. E
depois Ben compreendeu algo mais, que estava vendo tudo através de janelas
abertas. Não restava mais vidro intacto em qualquer lugar do carro. O vidro
estava por cima deles, espatifado em pequenos fragmentos ao redor deles. E no
lado de Michael também não havia porta. No instante seguinte, Ben recordou-se
de mais uma coisa. Havia outra pessoa no carro... Nancy estava com eles, e para
onde estavam indo?
Era muito difícil lembrar-se das coisas, ver tudo direito. A cabeça de Ben
doía terrivelmente. Quando ele se mexeu, uma dor terrível subiu-lhe pela perna,
continuou pelo lado do corpo. Ele se mexeu para o outro lado, a fim de se livrar
da dor. E foi nesse momento que a viu. Nancy... oh, Deus... era Nancy, numa
espécie de roupa vermelha e branca, caída sobre o capô, o rosto virado para
baixo... Nancy... ela só podia estar morta... Ben já não se importava mais com a
dor em sua perna. Arrastou-se por cima do painel, aproximando-se dela. Ele
tinha de virá-la... alcançá-la... ajudá-la... Nancy... E foi então que percebeu a
poeira tênue que cobria os cabelos de Nancy. Ela estava usando o pára-brisa por
cima do vestido, sobre a nuca, sobre... Santo Deus! Com suas últimas reservas de
energia, ele a rolou lentamente para o lado. E depois, desoladamente, com um
garotinho aterrorizado.
— Oh, Deus...

Não mais havia qualquer rosto por baixo da touca azul de cetim ensopada
de sangue. Ele não podia dizer se Nancy estava morta ou viva. Mas, por um
instante horrível, esperou que ela estivesse morta. Porque simplesmente não
existia mais nenhuma Nancy. Não restava absolutamente mais ninguém ali, nem
mesmo um remanescente do rosto outrora bonito. E depois,
misericordiosamente, entre o sangue de Nancy e as suas próprias lágrimas, Ben
desmaiou.
CAPÍTULO 4

Ele parecia terrivelmente pálido, com a mãe sentada ali a observá-lo.


Marion Hillyard, sentada num canto do quarto, tinha uma expressão desolada. Já
estivera ali antes, naquele quarto, naquele dia, observando aquele rosto... não
realmente aquele rosto ou aquele quarto, mas ela tinha a sensação de que nada
mudara. Era exatamente como na ocasião em que Frederick tivera o infarto
fulminante que o matara em poucas horas. Ela ficara sentada ali, igualmente
imóvel, igualmente apavorada, igualmente sozinha. E ele acabara... Frederick...
Marion sentiu novamente um soluço subir por sua garganta e respirou fundo. Não
podia chorar. Não podia deixar-se dominar por aqueles pensamentos. O marido
morrera. Michael não ia morrer. Nada aconteceria a Michael. Ela não deixaria
que coisa alguma lhe acontecesse. Estava agora fazendo-o resistir com as
últimas reservas de energia que podia dar.
Por um momento, ela desviou o olhar para o rosto da enfermeira. A
mulher estava observando Michael atentamente, mas não havia qualquer sinal
de alarme em sua atitude. Ele passara o dia inteiro em estado de coma, desde o
acidente na noite anterior. Marion chegara ali às cinco horas da manhã.
Telefonara para um serviço de limusine que funcionava 24 horas por dia e viera
de carro de Nova York. Mas teria vindo a pé, se fosse necessário. Nada a
impediria de ficar ao lado de Michael. Tinha de estar ali para mantê-lo vivo.
Michael era agora tudo o que ela tinha Michael e a firma... e a firma era para
ele. Fizera tudo para Michael... isto é, nem tudo por ele, mas a maior parte. Era
o maior presente que podia dar ao filho. O presente do poder, do sucesso.
Michael não podia jogar tudo fora por causa daquela sem vergonha... assim
como não podia perder tudo morrendo. Oh, Deus! Era tudo culpa dela, daquela
maldita mulher. Ela provavelmente persuadira Michael a fazer aquilo. Ela...
A enfermeira levantou-se abruptamente e puxou as pálpebras de Michael.
Marion ficou tensa e esqueceu tudo o que estava pensando. Ela também se
levantou, silenciosamente, indo postar-se ao lado da enfermeira. O que quer que
houvesse para ver, ela queria ver. Mas não havia nada. Nenhuma mudança. A
mulher inexpressiva de branco pegou o pulso de Michael por um momento e
depois formou com a boca as mesmas palavras de sempre:
— Continua na mesma.
Ela fez um gesto na direção do corredor e Marion seguiu-a para fora do
quarto. Desta vez, a preocupação da enfermeira não era com Michael, mas sim
com a mãe.
— O Dr. Wickfield pediu-me que lhe dissesse que devia partir às cinco
horas, Sra. Hillyard. E, infelizmente... Ela olhou ameaçadoramente para o
relógio e depois sorriu, como se pedisse desculpas. Eram 5h15min. Marion
estava ao lado de Michael há exatamente 12 horas. Ficara sentada ali durante o
dia inteiro, ininterruptamente, com apenas duas xícaras de café para se manter.
Mas não estava cansada, não estava com fome, não estava coisa alguma. E não
ia embora.
— Obrigada pela gentileza. Vou andar um pouco pelo corredor e depois
voltarei.
Ela não ia deixar Michael. Nunca mais. Deixara Frederick.
Apenas por uma hora, para jantar. Havia insistido que ela comesse alguma
coisa e fora nessa ocasião que Frederick morrera. Morrera enquanto ela estava
ausente. O que não ia acontecer desta vez. Ela sabia que Michael não morreria
enquanto estivesse sentada ali no quarto. As lesões haviam sido principalmente
internas, mas o próprio Wickfield achava que Michael poderia em breve emergir
do estado de coma. De qualquer forma, Marion não estava disposta a correr
qualquer risco. Haviam também pensado que Frederick iria em breve se
recuperar. Havia agora lágrimas nos olhos dela, enquanto ficava parada ali, os
olhos vazios fixados na parede azul-clara por trás da enfermeira.
— Sra. Hillyard?— A mulher tocou-lhe gentilmente o braço e Marion
estremeceu. — Deve descansar um pouco. O Dr. Wickfield reservou-lhe um
quarto no terceiro andar.
— Não há necessidade.
Marion sorriu inexpressivamente para a enfermeira e afastou-se pelo
corredor. O sol ainda brilhava na janela na extremidade do corredor. Ela se
sentou cuidadosamente no peitoril da janela, para fumar o seu primeiro cigarro
em horas e contemplar o sol se pôr atrás de uma igreja branca naquela
agradável cidadezinha da Nova Inglaterra. Graças a Deus que a cidade apenas
parecia remota, quando na verdade estava a menos de uma hora de carro de
Boston. Não houvera a menor dificuldade em trazer os melhores médicos para
examinarem Michael. Assim que estivesse em condições Michael seria
transferido para um hospital em Nova York. Até lá, ela sabia que; pelo menos, o
filho estaria em boas mãos. Em termos médicos, foi Michael quem mais sofrera.
O rapaz Avery saíra bastante machucado do acidente, mas estava desperto e
vivo. O pai levara-o de ambulância para Boston, naquela tarde. Ele quebrara um
braço, uma perna, um pé e uma clavícula, mas iria recuperar-se inteiramente.
E, a moça... ora, tudo fora culpa dela, não havia razão para que devesse. ...
Marion apagou o cigarro com um movimento vigoroso do pé. A moça também
ficaria boa. Isto é, pelo menos viveria. A única coisa que ela perdera havia sido o
rosto. E talvez tivesse sido até melhor assim. Por uma fração de segundo,
Marion quis combater a raiva que sentia, desejou sentir pena da moça... para o
caso de toda aquela baboseira sobre caridade cristã ser verdadeira, para o caso
de seus sentimentos fazerem alguma diferença para Michael... e pela
possibilidade de haver um Deus que pudesse puni-la. Mas não conseguiu. Odiava
a moça até o fundo de seu coração.
— Pensei ter deixado ordens para que fosse descansar um pouco.
Marion virou-se na direção da voz, com um sobressalto — riu, cansada, ao
deparar com o seu Dr. Wickfield. Wicky.
— Será que nunca acata o que os outros dizem, Marion?
— Não, se puder evitá-lo. Como está Michael?
Ela estava com o cenho franzido, enquanto pegava outro cigarro.
— Acabei de dar uma olhada. Ele continua estável. Já lhe disse que ele vai
sair do estado de coma, mas é preciso dar-lhe algum tempo. Todo o seu
organismo recebeu um tremendo choque.
— Foi o que também aconteceu comigo, quando recebi a notícia. — O
médico assentiu, com uma expressão compreensiva.
— Tem certeza de que não haverá lesões permanentes? — Marion fez
uma breve pausa, antes de acrescentar as palavras terríveis: — Lesões
cerebrais?
Wickfield afagou-lhe o braço e sentou-se a seu lado no peitoril da janela.
Por trás deles, a cidadezinha era um cenário digo no de um cartão-postal.
— Já lhe falei tudo, Marion. Na medida em que podemos prever, ele ficará
inteiramente bom. Mas é claro que muito vai depender do tempo em que
permanecer em estado de choque.
Mas posso afirmar-lhe que ainda não estou assustado.
— Mas eu estou.
Eram três palavras bem pequenas na boca de uma muito forte.
Surpreenderam o seu médico, que à fitou mente. Havia facetas de Marion
Hillyard de que ninguém jamais suspeitava.
— Como está a moça? — indagou ela.
Agora ela era novamente a Marion que Wickfield sempre conhecera os
olhos estreitados por trás da fumaça do cigarro, o rosto duro, o medo dissipado.
— Não há muita coisa que possa mudar para ela. Ou pelo menos não por
enquanto. O estado dela permaneceu estável durante o dia inteiro, mas não há
absolutamente nada que possamos fazer por ela. Por um lado, porque ainda é
muito cedo; por outro, porque só existem dois homens em todo o país que
podem cuidar desse tipo de reconstrução total. Não restou absolutamente nada
no rosto dela, nem um único osso intacto, nervo ou músculo. Somente os olhos é
que não foram totalmente destruídos.
— Melhor assim, porque dessa forma ela poderá contemplar a si mesma.
O Dr. Wickfield teve um sobressalto com o tom de voz de Marion.
— Michael é que estava dirigindo, Marion. Não era ela. Mas Marion
limitou-se a assentir em resposta. Não havia sentido em insistir no assunto com
Wickfield. Ela sabia de quem era a culpa. Era toda da moça.
— O que acontece com alguém nesse estado se o trabalho de
reconstrução não for feito? Ela viverá?
— Infelizmente sim. Mas levará uma vida trágica. Não se pode pegar uma
moça de 20 anos e transformá-la num horror desse tipo esperando que se ajuste.
Ninguém pode ajustar-se. Ela era... bonita antes do acidente?
— Acho que era. Mas não sei com certeza. Nunca nos encontramos.
A voz de Marion era dura como rocha, assim como os olhos.
— Entendo. Seja como for, ela vai enfrentar uma terrível realidade. Farão
tudo o que for possível aqui no hospital, assim que ela melhorar um pouco. Mas
não poderá ser muita coisa. Ela por acaso tem dinheiro?
— Nenhum.
Marion pronunciou a palavra como se fosse uma sentença de morte. Era a
pior coisa que podia dizer a respeito de qualquer pessoa.
— Então ela não tem muitas opções. Infelizmente, os homens que fazem
esse tipo de trabalho não são de fazer caridade.
— Já pensou em alguém em particular?
— Conheço alguns nomes. Dois, para ser mais exato. O melhor está em
São Francisco. — Um pequeno fogo ateou-se no coração do Dr. Wickfield. Com
todo o seu dinheiro, Marion Hillyard podia... se ao menos... — O nome dele é
Peter Gregson. Nós nos conhecemos há alguns anos. É realmente um homem
extraordinário.
— Ele seria capaz de fazer um trabalho desses?
Wickfield sentiu um impulso de admiração pela mulher. Sentiu vontade de
abraçá-la, mas não se atreveu.
— É bem possível que ele seja o único homem capaz de fazê-lo. Devo...
quer que eu entre em contato com ele?
Ele hesitou em dizer as palavras. Marion fitou-o com seus olhos frios e
calculistas e Wickfield ficou sem saber o que ela estava pensando. A onda de
admiração quase se transformou em medo.
— Eu lhe direi quando chegar o momento.
— Está certo. — Wickfield olhou para o relógio e depois se levantou. —
Gostaria que descesse agora e descansasse um pouco. Estou falando sério.
— Sei disso. — Marion presenteou-o com um sorriso frio. — mas
acontece que não vou descansar. E você sabe disso também. Tenho de ficar ao
lado de Michael.
— Mesmo que se matasse fazendo isso?
— Não vou me matar. Sou ruim demais para morrer, Wicky.
Além disso, ainda tenho muito trabalho a fazer.
— E vale a pena?
Wickfield fitou-a com curiosidade por um momento. Se tivesse um
décimo da ambição dela, teria sido um grande cirurgião. Mas não tinha e por
isso não era. E nem mesmo tinha certeza se a invejava.
— E vale a pena?
Na segunda vez, ele falou mais suavemente. Marion assentiu. — Claro que
vale. Jamais duvide disso, por um segundo sequer. Tem-me dado tudo o que
quero da vida.
A menos que eu perca Michael. Marion fechou os olhos, tratando de
afastar o pensamento da mente.
— Muito bem, vou deixá-la mais uma hora com Michael e depois voltarei
para cá. E vou obrigá-la a descansar nem que tenha de aplicar-lhe Nembutal e
arrastá-la pessoalmente para fora do quarto. Entendido?
— Está certo. — Marion levantou-se, deixou cair o outro cigarro no chão,
esmagou-o com o pé, afagou o rosto dele ligeiramente.
— E Wicky... — Ela o fitou sob as pestanas castanhas compridas. Por um
momento, era toda suavidade e beleza castanha. — ... obrigada.
Ele a beijou gentilmente no rosto, apertou-lhe o braço e depois recuou por
um momento.
— Ele vai ficar bom, Marion. Você vai ver.
Ele não se atreveu a mencionar a moça novamente. Poderiam voltar a
falar a respeito disso mais tarde. Limitou-se a sorrir o afastou-se, enquanto
Marion continuava parada no mesmo lugar, parecendo vulnerável e solitária.
Wickfield sentiu-se contento por ter-se lembrado de telefonar para George
Calloway, pouca horas antes. Marion precisava de alguém a seu lado. Wickfield
não parou de pensar nela enquanto avançava pelo corredor. Marion ficou parada,
observando-o afastar-se. Só depois que ele sumiu é que ela começou a avançar
pelo corredor, um vulto solitário, a caminho do quarto de Michael, passando por
portas abertas e fechadas, por desesperos que estavam para chegar e esperanças
que jamais se concretizariam. E umas poucas que sobreviveriam. Aquele andar
estava reservado para os doentes em estado crítico e não saía qualquer ruído dos
quartos pelos quais ela passava, lentamente. Já estava na metade do corredor
quando ouviu soluços convulsivos saindo por uma porta aberta. Os sons eram tão
baixos que a princípio Marion não teve certeza se estava mesmo ouvindo
alguma coisa. E foi então que viu o número do quarto e compreendeu tudo.
Estacou abruptamente, como se tivesse esbarrado numa parede invisível. Olhou
para a porta e para a escuridão além.
Podia avistar a cama no canto, os contornos meio indefinidos. Mas o
quarto estava às escuras. Todas as persianas e cortinas estavam fechadas, como
se a paciente não pudesse ser atingida pela luz. Marion ficou parada ali por um
longo tempo, com receio de entrar no quarto, mas sabendo que tinha de fazê-lo.
Lentamente, um pé depois do outro, suavemente, quase deslizando, ela avançou
um pouco pelo quarto. E parou novamente. Os soluços eram um pouco mais
altos agora e soando a intervalos mais rápidos, com ligeiros arquejos de pânico.
— Há alguém aí?
Toda a cabeça da jovem estava envolta por ataduras e a voz soava
abafada e estranha.
— Há alguém aí? — A voz tornou-se um pouco mais alta.
— Não posso ver.
— Seus olhos estão apenas cobertos por ataduras. Não há nada de errado
com seus olhos. — Mais tais palavras foram recebidas por novos soluços. — Por
que está acordada?
Marion falava num tom impassível. Não eram palavras visando a
tranqüilizar, mas sim palavras inteiramente destituídas de toda e qualquer
emoção. A própria Marion tinha a sensação de que estava falando num sonho.
Mas sabia que tinha de estar ali. Não havia outro jeito. Pelo bem de Michael.
— Não lhe deram nada para dormir?
— Não funciona. Continuo acordando a todo instante.
— A dor é terrível demais?
Não. Sinto o corpo todo dormente. Quem... quem é você?
Marion ficou com medo de dizer. Em vez disso, aproximou-se da cama e
sentou-se na cadeira azul estreita que alguma enfermeira devia ter deixado ali.
As mãos da moça também estavam envoltas em ataduras e pediam nos lados,
inúteis. Marion recordou-se de que Wicky lhe dissera que a moça naturalmente
usara as mãos para proteger o rosto. As lesões na mãos eram tão grandes quanto
no rosto, o que seria terrível para ela, por ser uma pintora. Em suma, toda a vida
daquela moça estava praticamente liquidada. A juventude, a beleza, o trabalho.
E o seu romance. Mas agora Marion sabia o que tinha de dizer.
— Nancy. ... — era a primeira vez que ela pronunciava o nome, mas
agora isso não tinha importância. Não havia alternativa. — Eles...
Marion fez uma pausa. Sentada ali, ao lado da jovem mutilada, sua voz
era suave e insinuante.
Houve um silêncio total no quarto por um tempo interminável. Depois,
um pequeno soluço angustiado emergiu do meio das ataduras.
— Já lhe falaram sobre o terrível estado em que seu rosto ficou?
Marion sentiu o estômago revirar-se ao pronunciar tais palavras, mas não
podia parar agora. Tinha de libertar Michael. Se o libertasse, ele viveria. Ela
podia sentir isso no fundo de si mesma.
— Já lhe contaram como seria impossível reconstituí-la com perfeição?
Os soluços eram agora furiosos.
— Mentiram para mim! Disseram...
— Só há um homem que pode realizar o trabalho com perfeição, Nancy. E
custaria centenas de milhares de dólares. Não tem condições de pagar. Nem
Michael.
— Eu jamais permitiria que Michael pagasse! — Ela estava agora furiosa
com a voz, assim como se revoltava contra o destino. — Nunca permitiria. . .
— E o que vai fazer então?
Os soluços recomeçaram
— Poderia enfrentá-lo desse jeito? — Demorou alguns minutos para que o
“não” sufocado saísse do meio das ataduras.
— Acha que ele iria amá-la desse jeito?Mesmo que ele tentasse, por sentir
algum vinculo de lealdade, alguma obrigação, quanto tempo acha que poderia
durar?Quanto tempo você suportaria saber como se parece e o que está fazendo
com ele?
Os sons que Nancy emitia agora eram assustadores. Ela dava a impressão
de que estava passando muito mal e Marion perguntou-se qual teria sido sua
reação naquelas circunstancias.
— Não restou nada de você, Nancy. Absolutamente nada. Nada restou da
vida que você tinha antes deste dia.
As duas permaneceram num silêncio interminável. Marion tinha a
impressão de que iria ouvir aqueles soluços para sempre. Mas tinha que ser
doloroso, caso contrário não daria certo.
— Já o perdeu, Nancy. Não pode fazer uma coisa dessas com ele. E ele...
ele merece muito mais do que isso. Se o ama, sabe disso. E... e você também
merece. Mas pode ter uma vida nova, Nancy.
A moça nem mesmo se deu ao trabalho de responder, continuando a
soluçar.
— Pode ter uma vida nova, Nancy. Um mundo inteiramente novo. —
Marion esperou, até que os soluços se tornaram novamente furiosos e depois
cessaram. — Um rosto inteiramente novo, Nancy.
— Como?
— Há um homem em São Francisco que pode torná-la bonita novamente.
Que pode fazê-la capaz de pintar outra vez. Levaria muito tempo, um dinheiro
incalculável. Mas valeria a pena, Nancy... não acha?
Havia agora um sorriso incipiente nos cantos da boca de Marion. Estava
em terreno familiar. Era como fazer uma transação de muitos milhões de
dólares. Uma transação de 100 milhões de dólares. No final, era tudo a mesma
coisa.
Um pequeno suspiro entrecortado emergiu das ataduras.
— Nós não temos condições para um tratamento desses.
Marion quase estremeceu ao ouvir o "nós". Não eram mais um "nós".
Nunca haviam sido. Ela, Marion, e Michael é que eram o "nós". Não aquela...
aquela... Marion respirou fundo, tratando de recuperar o controle. Tinha um
trabalho a fazer. Era a única maneira pela qual podia pensar sobre o caso. Não
podia pensar na moça. Apenas em Michael.
— Vocês não podem, Nancy. Mas eu posso. Sabe agora quem eu sou, não é
mesmo?
— Sei.
— Pode compreender que já perdeu Michael? Que ele não pode sobreviver
à pressão e tragédia do que lhe aconteceu, se é que conseguirá escapar com vida
do acidente? Pode compreender isso, não é mesmo?
— Posso.
— E sabe que seria uma iniqüidade tentar submetê-la a essa provação,
fazê-lo demonstrar a sua lealdade para com você?
Marion não queria dizer a palavra "amor". Aquela moça não era digna de
tanto. E isso era algo em que Marion tinha de acreditar de qualquer maneira.
— Pode compreender isso, Nancy? — Houve um momento ele silêncio. —
Pode, Nancy?
Desta vez, a resposta foi uma palavra, desesperada, exausta, desolada:
— Posso.
— O que significa que já perdeu tudo o que podia perder, não é mesmo?
— É, sim.
Novamente a voz soava destituída de inflexão, sem qualquer vida. Era
como se a própria vida estivesse se escoando da moça.
— Nancy, eu gostaria de lhe propor um pequeno acordo.
Era Marion Hillyard no melhor de sua classe. Se o filho pudesse ouvi-la
naquele momento, sentiria vontade de matá-la.
— Gostaria que pensasse sobre aquele rosto novo. Sobre uma nova vida,
uma nova Nancy. Pense nisso. Sobre o que poderia representar. Seria bonita
novamente, poderia outra vez ter amigos, poderia ir a lugares... restaurantes,
cinemas, lojas... poderia vestir roupas bonitas e sair com homens. A alternativa...
as pessoas se encolhendo e recuando quando você se aproximar. Não poderia ir a
lugar nenhum, não poderia fazer coisa alguma, não seria ninguém. As crianças
chorariam se a vissem. Pode imaginar o que seria viver assim? Mas tem uma
opção.
Marion parou de falar, dando tempo para que a moça absorvesse suas
palavras.
— Não, não tenho.
— Tem, sim. Quero dar-lhe essa opção. Eu lhe darei essa nova vida. Um
novo rosto, um novo mundo. Um apartamento em outra cidade, enquanto o
trabalho estiver sendo realizado... qualquer coisa que precisar, qualquer coisa
que quiser. Não haverá qualquer dificuldade. Dentro de um ano mais ou menos,
Nancy, o pesadelo estará terminado.
— E depois?
— Você estará livre. A. nova vida lhe pertencerá.
Houve uma pausa interminável, enquanto Marion se preparava para
desfechar o golpe de misericórdia que Nancy estava esperando.
— Contanto que você nunca mais volte a entrar em contato com
Michael. O novo rosto será seu somente se renunciar a Michael. Mas se não
aceitar... meu presente, sabe que de qualquer maneira já o perdeu. Assim, por
que viver o resto de sua vida como uma aberração, se não tem necessidade?
— E, se Michael não quiser respeitar o acordo? E se eu me afastar dele,
mas Michael não quiser ficar longe de mim?
— Tudo o que quero de você é a promessa de que ficará longe dele. O que
Michael quiser fazer é problema dele.
— E você vai respeitar isso? Se Michael me quiser... se vier atrás de
mim... então é tudo com ele?
— Respeitarei isso.
Deitada ali, Nancy sentiu-se vitoriosa. Conhecia Michael infinitamente
melhor que a mãe dele. Michael jamais renunciaria a ela. Acabaria por
encontrá-la e insistiria em ajudá-la a superar a provação. A esta altura, ela já
estaria a caminho de se tomar a mesma Nancy de antes. A mãe dele não
poderia vencer, por mais que tentasse. Aceitando o acordo, Nancy estaria de
certa forma trapaceando, pois já sabia qual seria o resultado. Mas tinha de
aceitar. Não havia alternativa.
— Vai aceitar?
Marion quase perdeu a respiração, enquanto esperava pela palavra por
que estava rezando, a palavra que libertaria Michael... E finalmente essa palavra
chegou.
Mas seria uma palavra de vitória, não de derrota. Estaria impregnada
com toda a fé que Nancy depositava em Michael. Ela se recordou das palavras
que Michael lhe dissera na praia, na manhã anterior, ao esconderem as contas:
"Prometo nunca dizer adeus". Ela sabia que ele jamais o faria.
— Qual é a sua resposta, Nancy?
Marion não podia esperar por mais tempo. O coração dela não suportaria.
— Sim.
CAPÍTULO 5

Marion Hillyard estava parada à entrada do hospital num vestido preto de


lã e com um casaco preto de Cardin, observando os homens que embarcavam a
moça em uma ambulância. Eram seis horas da manhã e ela não voltara a falar
com Nancy. Assim que haviam concluído o acordo na noite anterior, Marion
imediatamente pedira a Wicky que telefonasse para o homem que ele conhecia
em São Francisco. Wickfield ficara na maior alegria. Ele beijara Marion no rosto
e depois tratara de entrar em contato com Peter Gregson, encontrando-o em
casa. Gregson concordara em realizar o trabalho. E pedira que Nancy seguisse
imediatamente para a Califórnia. Marion providenciara um compartimento
especial de primeira classe e duas enfermeiras, num jato que partia para São
Francisco às oito horas da manhã.
— Ela é uma moça de sorte, Marion.
Wickfield contemplou-a com expressão de admiração, enquanto ela
esmagava outro cigarro.
— Também acho. E não quero que Michael saiba, Wicky. Entendido? —
Wickfield entendia, assim como a insinuação do "ou então" na voz dela. — Se
alguém contar alguma coisa a Michael, cancelo imediatamente o tratamento
dela.
— Mas por quê? Ele tem o direito de saber o que você fez pela moça.
— Fica entre nós duas. Ou melhor, entre nós quatro, incluindo você e
Gregson. Michael não precisa saber de nada. Quando ele sair do estado de coma,
não deve mencionar-lhe a moça. Só serviria para deixar-lo nervoso.
Se é que Michael ia sair do estado de coma. Marion cochilara numa
cadeira ao lado dele durante a noite inteira, apesar dos protestos de Wicky. Mas
sentira-se estranhamente revigorada depois de sua conversa com Nancy.
Finalmente libertara Michael. Agora ele podia viver. De certa forma, dera a vida
a ambos. E sabia que estava certa ao agir como fizera.
— Não vai dizer coisa alguma, não é mesmo, Robert? Marion nunca o
chamava assim, exceto para recordar-lhe o que o dinheiro Hillyard fizera por
seu hospital.
— Claro que não, se é isso o que você quer.
— É, sim.
Houve o estrépito seco da porta da ambulância sendo fechada. A
derradeira manta azul que envolvia a moça desapareceu, assim como as duas
enfermeiras. Elas ficariam com Nancy pelos primeiros seis ou oito meses em São
Francisco. Depois disso, dissera Gregson, a moça não mais precisaria delas. Mas
durante esses seis ou oito meses ela passaria a maior parte do tempo com os
olhos vendados, enquanto ele trabalhava nas pálpebras e nariz, testa e faces. Era
preciso reconstruir inteiramente o rosto. E havia outras despesas envolvidas.
Nancy precisaria dos cuidados quase constantes de um psiquiatra, para poder
enfrentar o choque emocional de se transformar numa nova pessoa. Não havia a
menor possibilidade de Gregson restaurar o mesmo rosto que ela tivera antes.
Ele tinha de criar uma mulher inteiramente nova. Marion achou que a idéia não
podia ser melhor. Assim, a moça ficaria ainda mais apartada de Michael. Estava
eliminada a possibilidade de um encontro por acaso num aeroporto, cinco anos
depois. Marion não queria que isso acontecesse. Ela repassou mentalmente as
providências que havia acertado pelo telefone com Gregson, às quatro horas
daquela madrugada, uma hora em São Francisco. Ele dera a impressão de ser
inteligente e dinâmico, um homem na casa dos 40 anos, com reputação
internacional extraordinária em seu campo. Nancy era uma moça de muita
sorte.
Gregson dissera que mandaria sua secretária cuidar dos detalhes. O
apartamento, as roupas. Haviam rapidamente calculado o custo de 18 meses de
cirurgia e as despesas adicionais de cuidados psiquiátricos, enfermeiras
permanentes por algum tempo e até mesmo medidas de apoio de caráter geral.
Terminaram por fixar-se em 400 mil dólares como uma cifra razoável. Marion
telefonaria para seu banco às nove horas e mandaria transferir a quantia para a
conta de Gregson em São Francisco. O dinheiro já estaria lá quando o banco dele
abrisse, às nove horas. Não que Gregson estivesse preocupado com isso. Sabia
quem era Hillyard. Quem não sabia?
— Por que não entra agora e come alguma coisa, Marion?
Wickfield estava perdendo a esperança de ter qualquer influência sobre ela
e Calloway dissera que não poderia deixar Nova York antes daquela manhã.
Wickfield não sabia que Marion dissera a Calloway que não viesse. Ela queria
estar sozinha para poder acertar devidamente os termos do "negócio". E tudo
saíra à perfeição.
— Marion?
— O que é?
— Vai tomar o café?
— Mais tarde, Wicky. Quero antes ver como Michael está. — Vou subir
para dar uma olhada nele agora.
Marion parou por um momento no banheiro, enquanto Wickfield seguia
em frente para ver Michael. Mas ele não esperava qualquer mudança imediata.
Afinal, examinara-o apenas uma hora antes.
Mas havia um estranho silêncio quando Marion entrou no quarto cinco
minutos depois. Wicky estava afastado da cama, com expressão solene, a
enfermeira não estava mais no quarto.
O sol da Nova Inglaterra incidia sobre a cama e de algum lugar vinha o
barulho de água pingando numa pia. Tudo estava quieto demais. Subitamente,
Marion sentiu que o coração lhe subia à boca. Era como na ocasião em que
Frederick... oh, Deus!... a mão de Marion subiu involuntariamente para o coração
e ela ficou paralisada na porta, olhando de Wicky para a cama. E depois ela o viu
e seus olhos se encheram de lágrimas. Estava sorrindo para ela... o seu menino.
Não era absolutamente como Frederick. Um soluço ficou preso em sua garganta
e ela se encaminhou para a cama, as pernas trêmulas. Inclinou-se e tocou o
rosto dele com as mãos.
— Oi, mamãe.
Eram as palavras mais lindas que ela já tinha ouvido e as lágrimas
escorreram por suas faces enquanto sorria.
— Eu o amo, Michael.
— Também a amo.
Até mesmo Wickfield tinha lágrimas nos olhos enquanto os observava. O
rapaz, tão jovem e bonito e vivo novamente, a mulher que tanto dera de si nos
últimos dois dias. Ele saiu discretamente do quarto e nenhum dos dois ouviu-o
retirar-se.
Marion ficou abraçando o filho gentilmente por longo tempo, depois
passou a mão pelos cabelos dele.
— Não precisa mais se preocupar, mamãe. Está tudo bem. Puxa, como
estou com fome!
Marion riu. Michael parecia estar muito bem. Estava vivo novamente. E
era todo dela.
— Vamos oferecer-lhe o maior e mais supercafé da manhã que já
conheceu em toda a sua vida, se Wicky achar que não há problema.
— Wicky que se dane. Estou morrendo de fome.
— Michael!
Mas Marion não podia zangar-se com ele. Podia apenas amá-lo. Mas
depois, enquanto ela o contemplava, viu o rosto de Michael tornar-se
abruptamente sombrio, como se recordasse de repente por que estava ali. Antes
disso, ele se comportara como se tivesse acabado de despertar depois que lhe
haviam arrancado as amígdalas. Tudo o que queria era sorvete e a mãe. Mas
agora havia muito mais coisas no rosto de Michael. Ele tentou sentar-se na
cama. Não sabia como dizer as palavras, mas tinha de perguntar de qualquer
maneira. Examinou atentamente o rosto de Marion, que manteve os olhos
fixados nos dele, segurando-lhe a mão firmemente.
— Fique calmo, querido.
— Mamãe... os outros... a noite passada... estou me lembrando do que
aconteceu...
— Ben já voltou para Boston com o pai. Ele ficou bastante machucado,
mas vai-se recuperar. O estado dele não era tão grave quanto o seu.
Marion pontuou tais palavras com um suspiro e apertou ainda mais a mão
do filho. Ela já sabia o que viria em seguida. Mas estava preparada para a
pergunta.
— E... Nancy? — O rosto dele estava branco como marfim ao pronunciar
o nome da moça. — E Nancy, mamãe?
As lágrimas já apareciam nos olhos de Michael. Ele podia divisar a
resposta no rosto da mãe, enquanto ela se sentava cuidadosamente na cadeira
ao lado da cama e passava a mão gentilmente pelos contornos do rosto dele.
— Ela não conseguiu se salvar, querido. Fizeram tudo o que era possível.
Mas as lesões que ela sofreu haviam sido grandes demais. — Marion fez uma
pausa por uns poucos segundos e depois acrescentou: — Ela morreu esta
madrugada.
— Você a viu? .
Michael ainda estava imóvel, observando atentamente o rosto da mãe, à
procura de algo mais.
— Passei algum tempo sentada com ela na noite passada.
— Oh, Deus... e eu não estava lá! Oh, Nancy...
Michael virou a cabeça contra o travesseiro e chorou como uma criança,
enquanto Marion lhe segurava firmemente os ombros. Ele murmurou o nome
dela vezes sem conta, interminavelmente, até que finalmente não podia mais
continuar a chorar. Enquanto se virou a fim de olhar novamente para a mãe, ela
viu algo no rosto de Michael que nunca antes conhecera. Era como se ele tivesse
perdido alguma coisa de si mesmo durante aqueles momentos em que ficara
murmurando o nome de Nancy. Como se uma parte dele se tivesse esvaído e
morrido.
CAPÍTULO 6

Nancy ouviu o barulho do trem de aterrissagem sendo baixado. Pela


centésima vez, desde que o vôo começara, sentiu o contacto da mesma mão
que já lhe tocara o braço antes. Era estranhamente reconfortante sentir a mão
da enfermeira e ficou satisfeita ao constatar que já podia reconhecer a diferença
entre as duas. Uma das mulheres tinha mãos finas e delicadas, com dedos
compridos, as mãos estavam sempre frias, mas havia um indício de grande força
na maneira como seguravam Nancy. E faziam com que Nancy se sentisse
corajosa novamente, pelo simples contato. A outra enfermeira tinha mãos
quentes, gorduchas, macias, que a faziam sentir se segura e amada. Ela afagava
constantemente o braço de Nancy. Fora ela quem aplicara em Nancy as duas
injeções contra a dor. Possuía voz suave e tranqüilizadora. A primeira mulher
tinha um ligeiro sotaque. Nancy já estava gostando das duas.
— Agora não vai demorar muito, minha cara. Já podemos ver a baía. Mais
alguns minutos e estaremos aterrissando.
Mas o avião ainda levaria 20 minutos para pousar. Era o tempo que Paul
Gregson estava contando, enquanto avançava rapidamente pela freeway em seu
Porsche preto. A ambulância iria encontrar-se com ele no aeroporto. Mais
tarde, ainda naquela manhã, poderia mandar uma das moças do escritório
buscar o seu carro. Gregson queria ir para a cidade junto com a moça. Estava
intrigado. Ela devia ser Alguém para que Marion Hillyard se interessasse tanto
pelo seu caso. Afinal, 400 mil dólares era uma quantia e tanto. E apenas 300 mil
seriam para ele. Os outros 100 mil dólares serviriam para manter a moça
confortavelmente, pelo próximo ano e meio. O que de fato aconteceria. Fora o
que ele prometera a Marion Hillyard. De qualquer forma, teria mesmo
providenciado isso. Era parte do trabalho que fazia. Precisaria conhecer até a
própria alma da moça. Iriam tornar-se mais que amigos; ele passaria a
representar tudo para a moça e vice-versa. Tinha de ser assim, porque ela seria
a pessoa com que ia parecer no momento em que seu novo rosto nascesse.
Peter Gregson ia dar à luz a Nancy McAllister, depois uma gravidez de 18 longos
meses. Ela teria de ser uma moça bastante corajosa. Mas certamente seria. Ele
providenciaria para que assim fosse. Enfrentariam a tudo juntos. A própria idéia
excitou-o. Ele amava o que fazia e, de uma estranha maneira, já amava Nancy.
Amava aquilo em que a transformaria. O que ela seria. Iria dar a Nancy tudo o
que ele tinha para dar.
Gregson olhou para o relógio e pisou mais ainda no acelerador. O carro era
uma de suas válvulas de escape prediletas. Ele também pilotava seu próprio
avião, dedicava-se à caça submarina sempre que tinha tempo, esquiava, já havia
escalado diversas montanhas da Europa. Era um homem que gostava de
alcançar as culminâncias, por todos os meios possíveis. Gostava de desafiar o
impossível e vencer. Era por isso que amava seu trabalho. Muitas pessoas
acusavam-no de bancar Deus. Mas não era realmente isso. Era a emoção dos
percalços insuperáveis que o estimulava. E até hoje ele nunca fora derrotado.
Nem pelas mulheres, pelas montanhas ou pelo céu. Nem mesmo por uma
paciente. Aos 47 anos, havia conquistado tudo em que tocara. E ia vencer
novamente agora. Os cabelos pretos de Gregson agitavam-se ao vento e os olhos
quase transbordavam de vida. Ainda tinha um bronzeado da semana que passara
recentemente no Tahiti. Vestia calça esporte cinza e suéter de casimira azul-
clara, da cor de seus olhos. Estava sempre impecavelmente vestido, as roupas
combinando perfeitamente. Era um homem de aparência excepcionalmente
atraente, mas tinha algo mais do que isso. Era a sua vitalidade, a sua
exuberância, que atraíam a atenção das pessoas muito mais que a aparência.
Ele encostou o carro no meio-fio, diante do aeroporto, exatamente no
momento em que o avião de Nancy tocava na pista. Exibiu um passe especial
para um guarda, que assentiu e prometeu ficar de olho no carro. Até mesmo o
guarda sorriu para Gregson. Peter Gregson era um homem que ninguém podia
ignorar possuía um encanto quase irresistível e uma força que transparecia em
tudo o que fazia. E despertava nas pessoas a vontade de estarem perto dele.
Avançou rapidamente pelo saguão do aeroporto e foi falar com um
supervisor. O homem pegou um telefone e momentos depois Peter foi levado por
uma porta, desceu um lance de escada e embarcou em um pequeno veículo do
aeroporto. Foi levado pela pista até o local em que a ambulância estava parada,
com os atendentes esperando que a paciente fosse desembarcada do avião.
Agradeceu ao motorista que o trouxera e depois seguiu apressadamente para a
ambulância. Verificou rapidamente o interior da ambulância, a fim de conferir se
suas ordens haviam sido cumpridas. E haviam, ao pé da letra. Lá estava tudo o
que ele precisava. Era difícil imaginar em que estado a moça poderia ter ficado
depois do vôo. Mas ele a queria em São Francisco imediatamente, a fim de
poder supervisionar tudo de perto. Tinha muito planejamento a fazer e o
trabalho iria começar dentro de poucos dias.
Os outros passageiros foram retidos por mais alguns minutos enquanto
Nancy era retirada do avião. As aeromoças recuaram, com expressões sombrias,
desviando o olhar dos vidros e tubos de transfusão que pendiam sobre a moça
envolta em ataduras, mas as enfermeiras pareciam estar conversando com a
paciente, enquanto a acompanhavam para fora do avião. Peter Gregson gostou
da aparência das enfermeiras. Eram jovens, mas competentes pareciam
trabalhar bem como uma equipe. Era justamente o que ele desejava. Todos
iriam fazer parte de uma equipe pelo próximo ano e meio e cada pessoa tinha a
sua importância. Não havia lugar para relutância ou incompetência. Todos
tinham que ser o melhor de que eram capazes, inclusive Nancy. Mas disso ele
cuidaria. Nancy ia ser a estrela do espetáculo. Ele ficou observando enquanto a
levavam para longe do lugar em que estava e esperou até que a maca fosse
ajeitada suavemente no interior da ambulância Sorriu para as enfermeiras, mas
não disse nada. Ergueu a mão, gesticulando para que esperassem um pouco,
enquanto entrava na ambulância e sentava-se em um banco ao lado de Nancy.
Pegou a mão dela e suspendeu-a ligeiramente.
— Olá, Nancy. Sou Peter. Como foi a viagem?
Como se ela fosse algo concreto. Como se ainda fosse alguém e não
apenas uma massa informe. Nancy sentiu um alívio imenso invadi-la ao ouvir a
voz de Peter Gregson.
— Foi tudo bem. É o Dr. Gregson?
Ela parecia cansada, mas interessada.
— Exatamente. Mas acho que Peter soa um pouco menos formal entre
duas pessoas que vão trabalhar juntas.
Nancy gostou da maneira como ele falou; se pudesse, teria sorrido.
— Veio ao aeroporto para me receber?
— Não teria feito a mesma coisa?
— Teria. — Nancy queria sacudir a cabeça em assentimento, mas não
podia. — Obrigada.
— Estou contente por ter vindo esperá-la. Já esteve em São Francisco
alguma vez antes, Nancy?
— Não.
— Pois vai adorar a cidade. E vamos arrumar-lhe um apartamento de que
vai gostar tanto que nunca mais vai querer ir embora. Talvez já saiba que a
maioria das pessoas nunca deixa São Francisco. A partir do momento em que
chegam aqui, as pessoas querem ficar para sempre. Eu próprio vim de Chicago
há cerca de 15 anos e nada neste mundo me faria voltar.
Nancy riu pela maneira como ele falou. Peter sorriu e indagou:
— Você é de Boston?
Ele a estava tratando como se tivessem sido apresentados por amigos
comuns. Mas queria que ela relaxasse depois do 10hs de vôo. E uns poucos
minutos sem movimento iriam fazer-lhe bem. As enfermeiras também estavam
contentes pela oportunidade de esticarem as pernas por algum tempo, enquanto
conversavam com os dois atendentes da ambulância a fim de verificarem se o
Dr. Gregson ainda estava conversando com Nancy. Já tinham simpatizado com
ele. O Dr. Gregson irradiava simpatia.
— Não. Eu era de New Hampshire. Ou pelo menos foi lá que cresci. Num
orfanato. Mudei-me para Boston quando estava com 18 anos.
— Parece muito romântico. Ou será que o orfanato era uma instituição
saída diretamente de Dickens?
Ele imprimiu à indagação um toque leve, uma conotação feliz. Nancy não
pôde deixar de rir da pergunta referente a Dickens.
— Absolutamente. As freiras eram maravilhosas. E de tal forma que por
muito tempo pensei em me tomar freira.
— Essa não! Quero que saiba de uma coisa... — Nancy riu novamente, por
causa do tom com que ele falava. — Quando terminarmos com o nosso projeto,
minha jovem, estará prontinha para Hollywood. Se for esconder-se em algum
convento, eu... eu... eu... ora, vou-me atirar da ponte! É melhor prometer logo
de uma vez que não vai sair daqui para virar freira em algum lugar. Era uma
promessa fácil de fazer. Ela tinha de ficar preparada para Michael. Os sonhos de
se tornar a Irmã Agnes Marie haviam-se dissipado há anos, mas ela queria
provocar Gregson mais um pouco. Já, estava gostando dele.
— Está bem, está bem...
Nancy falou relutantemente, mas havia um indício de riso em sua voz.
— Isso é uma promessa? Vamos, quero que diga uma coisa: eu prometo.
— Eu prometo.
— O que está prometendo?
Ambos estavam agora rindo.
— Prometo não ser uma freira.
— Assim está melhor.
Ele fez sinal para que as duas enfermeiras embarcassem na ambulância.
Os atendentes seguiram para a frente do veículo. Nancy estava agora pronta
para ir e ele não queria cansá-la com conversa demasiada.
— Porque não me apresenta a suas amigas, Nancy?
— Deixe-me ver... as mãos frias são de Lily e as quentes de Gretchen. Os
quatro riram.
— Muito obrigada, Nancy.
Lily riu afavelmente, enquanto Nancy sorria para si mesma. Sentia-se
segura com seus novos amigos é tudo o que podia pensar, naquele momento era
como pareceria para Michael, depois que tudo estivesse terminado. Já estava
gostando de Peter Gregson e subitamente compreendeu que ele iria fazê-la
alguém muito especial, porque se importava com a sorte dela.
— Seja bem-vinda a São Francisco, mocinha.
As mãos frias de Lily foram substituídas pelas mãos fortes e gentis de
Peter Gregson. Ele manteve a mão pousada de leve sobre o ombro de Nancy
durante toda a viagem até a cidade. Estranhamente, ele fazia com que Nancy
sentisse que havia chegado em casa.
CAPÍTULO 7

As portas da ambulância abriram-se e levaram a maca para o hotel. O


gerente estava esperando para recebê-los, tendo reservado uma suíte de
cobertura para atendê-los. Estavam planejando ficar apenas um ou dois dias,
mas o hotel proporcionaria um intervalo necessário entre o hospital e a casa.
Marion tinha algumas reuniões de negócios em Boston e, além disso, por alguma
razão inexplicável, Michael insistira em passar alguns dias num hotel, antes de
voltar para casa. E a mãe estava disposta a atender a todos os caprichos dele.
Os atendentes da ambulância puseram-no cuidadosamente na cama.
Michael fez uma careta.
— Pelo amor de Deus, mamãe, não há nada de errado comigo! Disseram
que já estou bem!
— Mas não há necessidade de exagerar.
-Exagerar?
Michael correu os olhos pela suíte e resmungou, enquanto Marion dava
uma gorjeta aos atendentes da ambulância, que prontamente desapareceram. O
quarto estava repleto de flores e havia uma imensa cesta de frutas numa
mesinha perto da cama. A mãe era a proprietária do hotel. Comparara-o anos
antes, como um investimento.
— Procure relaxar agora, querido. Não fique excitado demais. Vai querer
alguma coisa para comer?
Marion quisera manter a enfermeira, mas até mesmo o médico dissera
que era desnecessário e que só serviria para agravar ainda mais o estado nervoso
de Michael. Tudo o que ele precisava agora era descansar por outras duas
semanas e depois podia começar a trabalhar. Mas ele tinha de fazer uma coisa
antes.
— Não gostaria de almoçar agora, querido? — indagou Marion.
— Quero, sim. Escargots. Ostras Rockefeller. Champanha. Ovos de
tartaruga e caviar.
Michael sentou-se na cama, como uma criança travessa.
— Mas que combinação horrível, meu amor! — Mas Marion não estava
realmente escutando. Deu uma olhada no relógio, antes de acrescentar
— Mas pode pedir o que quiser. George deve estar chegando. Nosso
encontro no centro é à uma hora.
Ela saiu do quarto, meio distraída, a fim de procurar sua mala. Michael
ouviu a campainha tocar na porta da frente da suíte. Um momento depois,
George Calloway entrou no quarto dele.
— E então, Michael, como está-se sentindo?
— Depois de duas semanas no hospital sem fazer absolutamente nada,
estou-me sentindo principalmente constrangido.
Ele tentava não dar muita importância à situação, mas ainda havia uma
expressão desolada em seus olhos. Marion havia percebido tal expressão, mas
atribuíra à fadiga. Afastara dos pensamentos a possibilidade de qualquer
explicação alternativa. E ela e Michael jamais discutiam o assunto.
Conversavam sobre os negócios, sobre o projeto para o centro médico em São
Francisco.
Jamais sobre o acidente.
— Estive em sua sala esta manhã, Michael. Ficou realmente muito boa.
George sorriu, sentando-se ao pé da cama.
— Não tenho a menor dúvida quanto a isso.
Michael observou a mãe entrar no quarto. Ela usava um costume Chanel
cinza-claro, com blusa de seda azul, brincos de pérolas e três fieiras de pérolas
no pescoço.
— Mamãe tem muito bom gosto.
— Também acho.
George sorriu afetuosamente para Marion, mas ela acenou nervosamente
a indicar que estava na hora de irem embora.
— Pare de jogar confete. Já estamos atrasados. Trouxe os documentos de
que precisamos, George?
— Claro.
— Então vamos embora. Ela se aproximou rapidamente da cama de
Michael e inclinou-se para beijar-lhe o alto da cabeça. — Descanse, querido. E
não se esqueça de pedir o almoço.
— Sim, madame. E boa sorte na reunião.
Marion levantou a cabeça e sorriu de pura expectativa.
— A sorte nada tem a ver com os resultados.
Os dois homens riram e Michael ficou observando-os se retirarem.
Depois, sentou-se na cama.
Ficou sentado em silêncio, pacientemente esperando e pensando. Sabia
exatamente o que ia fazer. Há duas semanas que vinha planejando. Vivera para
aquele momento. Era a única coisa em que podia pensar. Fora por isso que
sugerira ficarem um pouco no hotel, chegara mesmo a insistir, recomendara à
mãe que comparecesse pessoalmente às reuniões para tratar do projeto da nova
biblioteca pública de Boston. Michael precisava daquela tarde só para si. Não
queria estragar coisa alguma com a possibilidade de irem atrás dele. Queria ter
certeza de que ninguém iria impedi-lo. Por isso, ficou sentado exatamente onde
estava por meia hora. E depois teve certeza de que eles tinham ido mesmo.
Ensaiara tudo mentalmente uma centena de vezes. Foi rapidamente à sua mala
no estrado ao pé da cama e tirou o que precisava. Calça cinza, camisa azul,
sapatos de lona, meias, cueca. Parecia que se haviam passado mil nos desde que
se vestira assim pela última vez. Ficou surpreso ao constatar como estava
trêmulo ao vestir-se. Teve de sentar-se três ou quatro vezes, a fim de recuperar
o fôlego. Era ridículo sentir-se tão fraco assim e ele não estava disposto a se
entregar. Não iria esperar mais um dia. Ia até lá agora, de qualquer maneira.
Levou quase meia hora para vestir-se e pentear os cabelos. Depois, telefonou
para a portaria e pediu um táxi. Estava extremamente pálido ao descer do
elevador, mas o excitamento pelo plano que estava executando fazia com que
sentisse melhor. A simples perspectiva proporcionava-lhe ânimo novamente,
como nenhuma outra coisa o fizera em duas semanas. O táxi estava a sua espera,
encostado no meio-fio.
Michael deu o endereço ao motorista e recostou-se, com um sentimento
de imensa exultação. Era como se tivessem marcado um encontro, como se ela
estivesse a sua espera, como se ela soubesse. Michael foi sorrindo para si mesmo
durante toda a viagem e deu ao motorista uma gorjeta generosa. Não lhe pediu
que esperasse. Não queria que ninguém ficasse esperando por ele. Ficaria ali
sozinho, por tanto tempo quanto quisesse. Chegara mesmo a pensar na
possibilidade de continuar a pagar o aluguel do apartamento, a fim de que
pudesse ir para lá sempre que desejasse. Era apenas uma hora de vôo de Nova
York e dessa maneira ficaria sempre com o apartamento deles. O apartamento
deles... Ele contemplou o prédio com um calor familiar. Quase contra a vontade,
ouviu-se a si mesmo pronunciar as palavras que estava pensando:
— Oi, Nancy Calçalinda, cheguei!
Dissera aquelas palavras mil vezes antes, ao passar pela porta e encontrá-
la sentada diante do cavalete, mãos e braços borrados de tinta, ocasionalmente
o rosto também. Se estava profundamente envolvida no trabalho, havia ocasiões
em que Nancy não o ouvia chegar.
Ele subiu lentamente a escada, cansado, mas animado pela sensação de
estar chegando em casa. Queria simplesmente subir e sentar-se no
apartamento, perto dela, com ela... com as coisas dela... Todos os mesmos
cheiros familiares impregnavam o prédio, havia o barulho de água correndo, de
uma criança, um gato miando no corredor lá embaixo, uma buzina tocando
insistentemente na rua. Michael podia ouvir uma canção italiana no rádio. Por
um estranho momento, imaginou que o rádio estava no estúdio dela. Tinha a
chave na mão quando finalmente chegou ao patamar do andar em que ficava o
apartamento. Parou ali, por um longo tempo. Pela primeira vez, em todo aquele
dia, sentiu lágrimas a lhe arderem nos olhos. Ainda não sabia a verdade. Ela não
estaria lá dentro. Fora-se para sempre. Estava morta.
Michael ainda tentava pronunciar a palavra em voz alta de tempos a
tempos, apenas para se obrigar a dizê-la, para se forçar a saber. Não queria ser
uma dessas pessoas doidas que se recusam a enfrentar a verdade, que se
entregavam a jogos de fingimento.
Ela teria desdenhado tal atitude. Mas de vez em quando ele deixava que o
conhecimento se dissipasse, só para tê-la de volta como um golpe forte, um
impacto violento. Como acontecia naquele momento. Ele girou a chave na
fechadura e esperou, como se alguém, no final das contas, pudesse vir abrir a
porta. Mas não havia ninguém ali. Michael abriu a porta lentamente e deixou
escapar uma exclamação de espanto.
— Oh, Deus! Onde está... onde...
Tudo desaparecera. Cada mesa, cadeira, as plantas, os quadros, o
cavalete, as tintas. As roupas dela, as...
— Nancy!
Michael ouviu-se chorando furiosamente, as lágrimas lhe queimando o
rosto, enquanto abria as portas. Nada. Até mesmo a geladeira sumira. Ele
continuou parado ali por um momento completamente atordoado, depois
desceu correndo a escada, de dois em dois degraus, até chegar ao apartamento
do zelador, no porão.
Bateu insistentemente na porta, até que o homenzinho abriu-a, apenas
pela largura da corrente de segurança, olhando com expressão de medo nos
olhos. Reconheceu Michael imediatamente, abriu toda a porta e começou a
sorrir, até que Michael agarrou-o pela gola e pôs-se a sacudi-lo.
— Onde estão as coisas dela, Kowalski? Onde está tudo? O que fez com
elas? Foi você quem as tirou? Quem foi então? Onde estão as coisas dela?
— Que coisas? Quem... oh, Deus... não, não, eu não peguei coisa alguma!
Eles apareceram há duas semanas. E me disseram... .
Ele estava tremendo de terror. Michael também tremia, só que de raiva.
— Quem eram eles?
— Não sei. Alguém telefonou e disse que a apartamento, seria
desocupado. Que Miss McAllister estava... tinha... — Ele percebeu as lágrimas
ainda brilhando no rosto de Michael e ficou com medo de continuar. — Já sabe o
que aconteceu. Eles me informaram e acrescentaram que o apartamento seria
desocupado até o final da semana. Duas enfermeiras apareceram aqui e
pegaram algumas coisas e o caminhão da Goodwill chegou na manhã seguinte.
— Enfermeiras? Que enfermeiras?
Michael não estava entendendo nada. E a Goodwill? Quem a chamara?
— Não sei quem elas eram. Mas pareciam enfermeiras... estavam todas
de branco. Não levaram muita coisa. Apenas aquela sacola pequena e os
quadros. A Goodwill levou o resto. Não peguei nada. Juro que não peguei. Jamais
faria uma coisa dessas. Não para uma moça tão simpática como. . .
Mas Michael não estava escutando. Já estava subindo a escada para a rua,
completamente atordoado, enquanto a velho zelador observava-o, sacudindo a
cabeça. Pobre coitado. Provavelmente acabara de receber a notícia.
— Ei. ... ei! — Michael virou-se e o velho baixou a voz para acrescentar:
— Sinto muita.
Michael limitou-se a assentir e saiu para a rua. Como as enfermeiras
sabiam? Como podiam ter feita tal coisa? Provavelmente haviam levado as
poucas jóias que Nancy possuía, quase tudo fantasia, e os quadros. Talvez alguém
lhes tivesse contado alguma coisa no hospital. Eram como abutres, recolhendo o
que ficara.
Oh, Deus, Se ele as tivesse visto, iria. ... Michael cerrou as mãos nos lados
do corpo, depois levantou bruscamente o braço a fim de fazer sinal para um táxi.
Pelo menos... talvez... valia a pena tentar. Ele entrou na táxi, ignorando a dor
intensa que começava a sentir, a nuca latejando terrivelmente.
— Onde fica a Goadwill mais próxima?
— Goadwill o quê?
O motorista tinha na boca um charuto todo babado e não estava
particularmente interessado em qualquer espécie de Goadwill
— As lojas Goodwill. A que compra roupas usadas, móveis velhos, coisas
assim.
— Ah, sim... Está certo.
O garoto não parecia um freguês habitual da Goadwill, mas uma corrida
era uma corrida. Era uma viagem de cinco minutos do apartamento de Nancy à
loja. O vento batendo no rosto de Michael ajudou-o a se recuperar do choque que
experimentara ao encontrar o apartamento totalmente vazio. Havia sido como
verificar o pulso e descobrir de repente que o coração tinha parado de bater.
— É aqui.
— Michael agradeceu, distraidamente, pagou o dobra do preço da corrida
e saltou. Nem mesma tinha certeza se queria entrar na loja. Queria ver as coisas
no apartamento de Nancy, que era o lugar a que pertenciam. Não em alguma
loja velha, cheia de mofo, malcheirosa, com etiquetas de preço... E o que iria
fazer? Comprar tudo? E depois o quê? Ele entrou na loja sentindo-se solitário,
cansado e confuso. Ninguém se ofereceu para ajudá-lo. Michael pôs-se a vaguear
pela loja, sem encontrar nada que conhecia, sem ver nada familiar, sentindo-se
subitamente angustiado, não pelas coisas que lhe haviam parecido tão
importantes naquela manhã, mas pela jovem que as possuíra. Ela se fora e nada
do que encontrasse ou deixasse de encontrar jamais faria qualquer diferença. As
lágrimas começaram a escorrer por suas faces, enquanto voltava lentamente
para a rua.
Desta vez ele não fez sinal para um táxi. Simplesmente saiu andando... Às
cegas, sozinho, numa direção que as pés pareciam conhecer, mas a cabeça
desconhecia. A cabeça já não conhecia mais nada. Dava a impressão de haver se
transformado numa massa informe. Todo o corpo parecia uma papa, mas a
coração era como pedra. Subitamente, naquela loja velha e fétida, sua vida
chegara ao fim. Compreendia agora o que tudo, aquilo significava. E enquanto
estava parado num sinal vermelho, esperando que mudasse, sem dar qualquer
importância a que isso acontecesse ou não, acabou desmaiando.
Acordou um momento depois, com uma multidão ao seu redor, deitado
num pequeno gramado, para onde alguém o levara. Um guarda estava parado
por cima dele, fitando-o nos olhos. — Está bem, filho?
O guarda tinha certeza de que o rapaz não estava bêbado nem sob a ação
de tóxicos, mas estava terrivelmente pálido. Era mais provável que estivesse
doente. Ou talvez apenas com fome. Ou qualquer coisa no gênero. Mas o rapaz
dava a impressão de que tinha dinheiro. Portanto, não podia ser um simples caso
de inanição.
— Estou, sim. Saí do hospital esta manhã e acho que exagerei querendo
andar demais.
Michael sorriu tristemente. Os rostos ao seu redor começaram a girar
quando tentou se levantar. O guarda percebeu o que estava acontecendo e
insistiu para que a multidão se dispersasse. Depois, virou-se novamente para
Michael e disse:
— Vou chamar um carro para levá-lo em casa.
— Não precisa. Estou bem agora.
— Não há nenhum problema. Mas diga uma coisa: não prefere voltar para
o hospital?
— Não!
— Está certo. Neste caso, vamos levá-lo para casa. — O guarda falou por
um pequeno ualkie-talkie e depois agachou-se ao lado de Michael. — O carro já
vai chegar. Está doente há muito tempo?
Michael sacudiu a cabeça, depois olhou para as mãos e murmurou:
— Há duas semanas.
Ainda havia uma pequena cicatriz perto de sua têmpora, tão pequena que
não dava para o guarda perceber
— É melhor se cuidar, rapaz.
O carro da polícia encostou no meio-fio e o guarda ajudou Michael a
levantar-se. Ele já estava melhor agora. Ainda bastante pálido, mas bem mais
firme que a princípio. Michael virou a cabeça para olhar o guarda e tentou sorrir,
balbuciando:
— Obrigado.
Mas a tentativa De sorriso só serviu para deixar o guarda Imaginando o
que estaria errado. Havia um desespero visível nos olhos do rapaz.
Michael deu aos homens do carro da polícia um endereço a um quarteirão
do hotel e agradeceu-lhes quando saltou. Percorreu a pé o quarteirão final. A
suíte ainda estava vazia quando ele lá chegou. Por um momento, Michael
pensou em tirar as roupas e voltar para a cama. Mas de nada serviria continuar
empenhado naquele jogo. Já fizera o que tinha querido fazer. Não o levara a
parte alguma, mas pelo menos realizara o que havia imaginado. O que fora
procurar havia sido Nancy. Já devia saber que não a encontraria no apartamento.
Nem em qualquer outro lugar. Só poderia encontrá-la no único lugar em que ela
ainda vivia: no seu coração.
A porta da suíte abriu-se enquanto ele estava olhando pela janela. Por um
momento, ele não se virou. Não queria realmente vê-los nem ouvir notícias
sobre a reunião ou ter de fingir que estava se sentindo bem. Não estava bem. E
talvez nunca mais voltasse a ficar.
— O que está fazendo de pé, Michael?
A mãe falava como se ele fosse fazer sete anos dentro de mais alguns dias,
ao invés de 25 anos. Michael virou-se lentamente e não disse nada a princípio.
Depois, com um ar de exaustão completa, sorriu para George.
— Já está na hora de eu começar a me levantar, mamãe. Não posso
passar o resto da vida na cama. Na verdade, vou partir para Nova York esta
noite.
— Vai o quê?
— Vou para Nova York.
— Mas por quê? Não queria ficar aqui?
Marion estava totalmente confusa.
— Já teve a sua opinião, mamãe. — E eu tive a minha. Não temos motivo
para continuarmos por aqui. E eu quero estar no escritório amanhã. Certo,
George?
George fitou-o nervosamente, assustado pela angústia e desespero que via
nos olhos do rapaz. Talvez lhe fizesse bem ter alguma coisa com que se ocupar.
É verdade que Michael ainda, não parecia bastante forte, mas fora-lhe muito
difícil passar todo aquele tempo deitado. Tinha assim muito tempo para pensar.
— É bem possível que seja melhor assim, Michael. E sempre pode
trabalhar apenas meio expediente, no início.
— Acho que os dois estão doidos — interveio Marion — Afinal ele saiu do
hospital esta manhã.
— E você, evidentemente, é famosa por sempre tomar cuidado consigo
mesma. Certo, mamãe?
Michael inclinou a cabeça na direção dela. Marion afundou lentamente no
sofá.
— Está bem, está bem... — murmurou ela, com um sorriso hesitante.
— Como foi a reunião?
Michael sentou-se ao lado dela e procurou dar a impressão de que o
assunto o interessava. Teria de comportar-se assim muitas vezes, porque
naquela tarde tomara uma decisão. Dali por diante ia viver para uma coisa e
somente por uma coisa. Seu trabalho. Nada mais lhe restava na vida.
CAPÍTULO 8

— Está pronta?
— Creio que sim.
Ela não podia sentir coisa, alguma acima dos ombros. Era como se a
cabeça. Tivesse sido cortada. As luzes intensas da sala de operações
despertaram em Nancy a vontade de cerrar os olhos, mas nem isso ela podia
fazer. Tudo o que podia ver era o rosto de Peter, enquanto se inclinava sobre ela,
a barba impecavelmente aparada coberta por uma máscara cirúrgica azul, os
olhos deslocando-se rapidamente de um lado para outro. Ele passara quase três
semanas estudando as radiografias, medindo, avaliando, projetando, planejando,
preparando tudo e conversando com Nancy.
A única fotografia de Nancy de que ele dispunha era a que fora tirada na
feira, no dia do acidente. Mas o rosto estava parcialmente obscurecido pelo
tapume de madeira, com os trajes tolos pintados, no qual ficavam os buracos
pelos quais, ela e Michael haviam metido a cabeça, a fim de tirarem a foto. Pelo
menos proporcionava uma idéia geral a Peter, um ponto de partida. Mas ele
teria de ir muito além. Nancy seria uma moça diferente quando tudo
terminasse, uma pessoa que qualquer mulher sonharia ser. Peter sorriu
novamente para ela, observando que as pálpebras começavam abaixar.
— Vai ter de permanecer acordada agora e ficar falando comigo. Pode
ficar sonolenta, mas não pode dormir.
Afora isso, Nancy podia sufocar em seu próprio sangue. Mas ela não
precisava saber disso. Peter tratou de mantê-la distraída, contando histórias e
anedotas, fazendo perguntas, obrigando-a a pensar em coisas, a vasculhar a
mente em busca de respostas, a recordar os nomes de todas as freiras que
conhecera quando era, menina.
— E tem certeza de que continua não querendo ser a irmã Agnes Marie?
— Claro que tenho. Não prometi?
Os dois ficaram gracejando um com o outro durante as três horas em que
durou o trabalho, as mãos de Peter não parando por um momento sequer. Para
Nancy, era como assistir a um balé.
— Pense só que mais duas semanas e já leremos providenciado um
apartamento só para você, talvez um apartamento com uma linda vista... Ei,
sonolenta, o que acha da vista? Não gostaria de contemplar a baía do quarto?
— Claro que gostaria. Por que não?
— Apenas "claro"? Quer saber de uma coisa, Nancy? Acho que está ficando
estragada pela vista que tem do seu quarto aqui no hospital.
— Isso não é verdade. Estou adorando tudo.
— Neste caso, vamos sair juntos e descobrir algo ainda melhor.
Combinado?
— Combinado. — Mesmo com a voz sonolenta, Nancy parecia satisfeita
— Ainda não posso dormir?
— Só mais um pouco, Princesa. Mais alguns minutos e a levaremos de
volta para seu quarto. Poderá então dormir tanto quanto quiser.
— Ótimo.
— Já está cansada de me ouvir?
Nancy soltou uma risada, pelo tom zombeteiro de quem estava magoado
usado por Peter.
— Pronto, amor, já está tudo terminado.
Ele olhou para seu assistente e acenou com a cabeça, recuando em
seguida por um momento, enquanto uma enfermeira se adiantava e aplicava
uma injeção na coxa de Nancy. Peter voltou a postar-se ao lado dela e sorriu
para os olhos que já conhecia tão bem. Nem mesmo via o resto. Ainda não. Mas
via os olhos. E os conhecia intimamente. Tão bem quanto conhecia os seus
próprios olhos.
— Sabia que hoje é um dia especial?
— Sabia.
— Sabia mesmo? E como sabia?
Porque era aniversário de Michael, mas Nancy não queria dizer-lhe isso.
Michael estava completando 25 anos naquele dia. Nancy perguntou-se o que ele
estaria fazendo.
— Simplesmente sabia
— Pois é um dia muito especial para mim porque assinala o princípio.
Nossa primeira cirurgia juntos, nosso primeiro passo por uma estrada
maravilhosa que levará a uma nova você. O que acha disso?
Peter sorriu para ela. Nancy fechou os olhos e adormeceu. A injeção tinha
um efeito rápido.

— Feliz aniversário, chefe.
— Não me chame de chefe, seu palhaço. Puxa, você está parecendo
nojento, Ben.
— Muito obrigado.
Ben ficou olhando para o amigo enquanto avançava pela sala de muletas e
com a ajuda de uma secretária. Ela o sentou numa cadeira e depois retirou-se
da sala luxuosa e revestida de lambris de Michael.
— Então é este o lugar que ajeitaram para você, hein? O meu vai ser
igual?
— Se não for, pode ficar com este. Eu o detesto.
— Isso é ótimo. Quais são as novidades?
A conversa entre os dois ainda era tensa. Haviam-se encontrado duas
vezes desde que Ben chegara de Boston, mas o esforço de evitar qualquer
referência a Nancy era quase demasiado para ambos. Era tudo em que
pensavam.
— O médico disse que posso começar a trabalhar na próxima semana.
Michael riu e sacudiu a cabeça.
— Está parecendo completamente doido, Ben
— E você não está?
Uma nuvem toldou os olhos de Michael por um momento.
— Não quebrei nada. — Ou pelo menos nada que se pudesse ver. — Já lhe
disse que pode esperar mais um mês. Ou dois, se for necessário. Por que não vai
para a Europa com sua irmã?
— Para fazer o quê? Ficar sentado numa cadeira de rodas sonhando com
biquínis? Quero começar a trabalhar logo. Posso começar daqui a duas semanas?
— Vamos ver.
Houve um silêncio prolongado e depois, abruptamente, Michael fitou o
amigo com uma expressão de amargura que Bem nunca vira antes.
— E depois o quê?
— O que está querendo dizer com esse depois o quê? Michael?
— Exatamente isso. Trabalhamos até não poder mais pelos próximos 50
anos, trepamos com quantas mulheres pudermos, ganhamos tanto dinheiro
quanto conseguirmos... e depois o quê? O que fazemos com tudo isso?
— Está com um ânimo maravilhoso. O que aconteceu? Prendeu o dedo na
gaveta esta manhã?
— Pelo amor de Deus, Ben, por que não pode ser sério uma vez, para
variar? Estou falando sério. Já pensou nisso alguma vez? Que diabo significa tudo
isso?
Ben estava entendendo perfeitamente e não havia agora como evitar as
perguntas.
Não sei, Michael. O acidente também me fez pensar nisso. Levou-me a
perguntar a mim mesmo o que é importante em minha vida, em que acredito.
— E qual foi a resposta que encontrou?
— Não tenho certeza. Acho que me sinto simplesmente grato por estar
aqui. Talvez tenha me ensinado como a vida é importante, como é bom vivê-la,
enquanto podemos. — Havia lágrimas nos olhos de Ben enquanto ele falava. _
Ainda não entendo por que aconteceu daquela maneira. Eu gostaria... gostaria...
— E foi com um fio de voz, quase inaudível, que ele arrematou: —
Gostaria que tivesse sido eu.
Michael fechou os olhos para conter suas próprias lágrimas e depois
contornou lentamente a mesa, aproximando-se do amigo.
Ficaram se olhando em silêncio por um momento, as lágrimas escorrendo
pelos rostos de ambos, sentindo a amizade de dez anos reconfortá-los como
nenhuma outra coisa conseguiria.
— Obrigado, Ben.
— Ei, escute! — Ben enxugou as lágrimas do rosto com a manga do
casaco. Não quer sair e tomar um porre? Afinal, é o seu aniversário. Por que não?
Michael riu por um minuto. Depois, como um garotinho chamado para
uma conspiração, assentiu.
— Já são quase cinco horas dá tarde. Não tenho mais reuniões a que
deveria comparecer. Vamos para o Oak Room e tomaremos um porre
memorável.
Ele ajudou Ben a levantar-se e sair da sala. Pegaram um táxi e meia hora
depois estavam a caminho de um porre inesquecível. Michael só chegou de volta
ao apartamento da mãe depois de meia-noite. Precisou da ajuda do porteiro
para conseguir subir. Na manhã seguinte, ao entrar em seu quarto, a empregada
encontrou-o adormecido no chão. Mas pelo menos ele conseguira sobreviver ao
aniversário. .
Michael mal conseguia ver alguma coisa quando se sentou à mesa para o
café da manhã. A mãe já estava ali, de vestido preto, lendo The New YorkTimes.
Michael teve vontade de vomitar ao sentir o cheiro do café.
— Deve ter-se divertido muito ontem à noite. O tom de Marion era
glacial.
— Saí com Ben
— Foi o que sua secretária me disse. Espero que não transforme isso num
hábito.
— Oh. Deus! Por que não?
— O quê? Tomar um porre?
— Não. Deixar o escritório mais cedo. E, para ser franca, a outra coisa
também. Devia estar com uma aparência encantadora quando chegou em casa.
— Não consigo lembrar.
Michael estava tentando desesperadamente não engasgar com o café.
— Há mais uma coisa de que não se lembra. — Marion largou o jornal em
cima da mesa e fitou-o com expressão furiosa. — Tínhamos um compromisso
para jantar ontem à noite, no Vinte-e-Um. Fiquei a esperá-lo por duas horas.
Com nove outras pessoas. Era o seu aniversário... está lembrado?
Oh, Deus! Isso teria sido tudo o que ele precisaria para explodir.
— Não me falou nada sobre as outras nove pessoas. Apenas convidou-me
para jantar. Pensei que seríamos apenas nós dois. É claro que se tratava de um
argumento dos mais discutíveis.
— E sendo apenas eu, não haveria problema em me deixar esperando sem
avisar nada? E isso o que está querendo dizer?
— Não, mamãe. Simplesmente esqueci-me por completo. Não era
exatamente o meu aniversário predileto.
— Sinto muito.
Mas Marion não dava a impressão de se recordar por que aquele
aniversário era diferente. Ou pelo menos não se importava. E estava
visivelmente irritada.
— Isso nos leva a um outro problema, mamãe.
Vou sair daqui, passar a morar em meu próprio apartamento.
Marion ficou aturdida.
— Por quê?
— Porque estou com 25 anos. Trabalho para você, mamãe. Mas não sou
obrigado a viver com você.
— Não é obrigado a fazer coisa alguma. Marion estava começando a ter
dúvidas quanto ao rapaz Avery e tipo de influência que exercia sobre Michael.
Aquilo parecia ser idéia dele.
— Não vamos discutir isso agora, mamãe. Estou com uma dor de cabeça
monumental
— Ressaca. — Marion olhou para o relógio e levantou-se. — Eu o verei no
escritório, dentro de meia hora. Não se esqueça da reunião com o pessoal de
Houston. Estará em condições de comparecer?
— Estarei, mamãe. E mais uma coisa, lamento muito sobre o
apartamento, mas acho que já é tempo.
Ela o fitou firmemente por um momento e depois deixou escapar um
pequeno suspiro.
— Talvez seja, Michael, talvez seja... Feliz aniversário, por falar nisso.
Ela se abaixou para beijá-lo. Michael chegou a sorrir, apesar da dor
terrível em sua cabeça.
— Deixei um pequeno presente em sua mesa.
— Não deveria.
Nenhum presente tinha mais qualquer importância. Bem compreendera
isso e nada lhe dera.
— Aniversários são aniversários no final das contas, Michael. Vejo-o mais
tarde no escrit6rio.
Depois que a mãe se retirou, Michael continuou sentado na sala de jantar
por longo tempo, contemplando a vista. Sabia exatamente como era o
apartamento que desejava. Só que ficava em Boston. Mas faria tudo o que fosse
humanamente possível para encontrar um apartamento igual em Nova York.
Em algumas coisas, ainda não renunciara totalmente ao sonho. Embora
soubesse que era uma loucura apegar-se a ele.
CAPÍTULO 9

— Oi, Sue. Mr. Hillyard está?


Ben tinha a expressão das cinco horas da tarde ao chegar à porta da sala
de Michael: não estava inteiramente desgrenhado, mas bastante aliviado pelo
fato de estar quase terminando o dia. Mal tivera tempo de sentar-se durante o
dia inteiro, muito menos de relaxar.
— Está, sim. Devo avisá-lo de que está aqui?
Ela lhe sorriu. Ben contemplou o corpo cuidadosamente oculto da jovem.
Marion Hillyard não aprovava secretárias sensuais, nem mesmo para o próprio
filho... ou seria especialmente para o filho? perguntou-se Ben, enquanto sacudia a
cabeça.
— Não, obrigado. Eu mesmo me anunciarei.
Ben passou pela secretária, carregando as pastas que eram seu pretexto.
Bateu na porta de carvalho.
— Alguém em casa?
Não houve resposta e por isso ele bateu novamente. Continuou a não
haver resposta. Ele se virou para a secretária, com um olhar inquisitivo.
— Tem certeza de que ele está?
— Absoluta.
— Está certo.
Ben tentou novamente e desta vez um resmungo rouco mandou-o entrar.
Ele abriu a porta cautelosamente e olhou ao redor.
— Estava dormindo ou algo assim?
Michael levantou os olhos e sorriu para o amigo.
— Bem que gostaria. Olhe só para essa mixórdia...
Michael estava cercado por pastas, maquetes, plantas, relatórios. Era o
suficiente para manter dez homens ocupados durante um ano inteiro.
— Sente-se, Ben.
— Obrigado, chefe.
Ben não podia resistir a zombar do amigo.
— Ora, não enche! O que há nessas pastas que estão-me trazendo?
Michael passou a mão pelos cabelos e recostou-se na cadeira forrada de
couro a que já se acostumara. Acostumara-se até mesmo às gravuras
impessoais nas paredes. Não tinha mais nenhuma importância. Ele não ligava
absolutamente. Nunca olhava para as paredes, para a sala, para a secretária... ou
para a própria vida. Olhava para o trabalho em sua mesa e bem pouco mais
além disso. Já se haviam passado quatro meses.
— Por favor, não me diga que está trazendo mais problemas com aquele
maldito centro comercial em Kansas City. Isso está-me levando à loucura.
— E você está adorando. Diga-me uma coisa, foi o último filme a que
assistiu? A Ponte do Rio Kwai ou fantasia? Será que nunca sai daqui?
— Quando eu tiver uma oportunidade — respondeu Michael, examinando
alguns papéis enquanto falava. — E então, o que há nessas pastas?
— São apenas um estratagema. Queria entrar aqui para conversar com
você.
— E não pode fazer isso sem uma desculpa?
Michael sorriu-lhe novamente. Era como se fossem garotos novamente,
visitando um ao outro no estudo sob o pretexto de consultas sobre deveres de
casa.
— Estou sempre me esquecendo de que sua mãe não é como o velho
Sanders lá na escola.
— Graças a Deus.
Na verdade, ambos sabiam que Marion era pior, mas nenhum dos dois
podia admitir tal coisa. Ela detestava ver pessoas "zanzando" pelos corredores,
como dizia, apressando-se em verificar quais eram as pastas que estavam
levando.
— Quais são as novidades, Ben? Como vão os Hamptons este verão?
Ben sentou-se, ficando imóvel por um momento, observando-o, antes de
responder:
— Realmente se importa?
— Com você ou com os Hamptons?
O sorriso de Michael era artificial e ele apresentava a palidez lúgubre de
dezembro, não de setembro. Era evidente que ele não tinha ido a lugar nenhum
naquele verão.
— Eu me importo muito com você, Ben.
— Mas não com você mesmo. Tem-se olhado no espelho ultimamente?
Está com uma cara que assustaria a mãe de Frankenstein.
— Obrigado.
— Não precisa agradecer. De qualquer forma, é justamente por isso que
estou aqui.
— Por conta da mãe de Frankenstein?
— Por minha própria conta. Queremos que você passe este fim de semana
no Cape. Eles querem, eu quero, todos nós queremos. E se disser não, vou pular
por cima dessa mesa e arrastá-lo à força. Precisa sair daqui de vez em quando.
Ben não estava mais sorrindo. Estava bastante sério e Michael sabia disso.
Mesmo assim, sacudiu a cabeça.
— Eu adoraria, Ben, mas não posso. Tenho de cuidar de Kansas City. São
47 mil problemas que ainda não conseguimos resolver. E você sabe disso. Esteve
na reunião ontem.
— Assim como 23 outras pessoas. Deixe que elas cuidem dos problemas.
Pelo menos por um fim de semana. Ou será que seu ego é tão grande que não
pode permitir que ninguém mais toque em seu trabalho?
Mas ambos sabiam que não era esse o caso. O trabalho tornara-se o tóxico
de Michael. Deixava-o atordoado para tudo o mais. E ele vinha abusando do
trabalho desde o dia em que entrara naquela sala.
— Vamos, Michael, seja indulgente consigo mesmo. Apenas esta vez.
— Não posso, Ben.
— Mas que diabo, cara! O que preciso dizer-lhe? Olhe para si mesmo! Será
que não se importa? Está-se matando... e para quê?
A voz dele ressoou pela sala e atingiu Michael com um impacto quase
físico. Ben observou o rosto do amigo ficar convulsionado pela emoção.
— De que vai adiantar tudo isso, Michael? Mesmo que se mate, isso não a
trará de volta. E você está vivo. Com 25 anos de idade e vivo... e desperdiçando
sua vida, matando-se de tanto trabalhar, como a sua mãe. É isso o que você
quer? Ser como ela? Viver, comer, dormir, beber e morrer por essa maldita
firma? É isso o que lhe serve agora? Ficou assim? Pois não acredito. Sei que
existe outra pessoa nessa sua pele... e adoro essa outra pessoa. Mas você a está
tratando como a um cão, algo que não posso permitir. Sabe o que deveria estar
fazendo? Deveria estar saindo, vivendo. Deveria estar saindo e divertindo-se com
a sua secretária gostosa ou dez outras mulheres que encontra nas melhores
festas da cidade. Levante o rabo dessa cadeira, Michael, saia de casa, antes... .
Mas Michael interrompeu-o antes que ele pudesse terminar. Estava meio
debruçado sobre a mesa, tremendo, ainda mais pálido do que antes.
— Saia da minha sala, Ben, antes que eu o mate! Saia!
Era o rugido de um leão ferido. Por um momento, os dois homens ficaram
a se olhar, abalados e assustados pelo que estavam sentindo e dizendo.
— Desculpe. — Michael voltou a afundar na cadeira e baixou a cabeça
para as mãos. — Por que não deixamos as coisas como estão por hoje?
Ele não voltou a olhar para Bem, que atravessou lentamente a sala,
apertou-lhe ombro e depois saiu fechando a porta. Não restava mais nada a
dizer.
A secretária de Michael olhou par Ben inquisitivamente quando ele
passou, mas não disse nada. Ela ouvira o rugido de Michael ao final. Todo o andar
poderia ter ouvido, se as pessoas estivessem prestando atenção. Ben passou por
Marion no corredor, ao voltar para sua sala. Mas ela estava ocupada com algo
que Calloway lhe mostrava e Ben não estava com disposição para as
amenidades habituais. Não mais suportava Marion e o que ela estava deixando
que Michael fizesse consigo mesmo. Podia servir aos objetivos dela fazer com
que Michael trabalhasse daquele jeito; era bom para a firma, para o império,
para a dinastia... e deixava Ben Avery enojado.
Ele deixou o escritório às seis e meia. Na rua, olhando para cima, verificou
que as luzes na sala de Michael continuavam acesas. Sabia que ainda estariam
acesas até 11 horas ou meia-noite. E por que não? Para que ele voltaria para
casa? A fim de encontrar o apartamento vazio que alugara três meses antes?
Michael encontrara um apartamento pequeno e aconchegante em Central Park
South. Ao visitá-lo, Ben lembrara-se do apartamento de Nancy em Boston.
Tinha certeza de que Michael também percebera a semelhança. Talvez tivesse
sido por isso que ele ficara com o apartamento. Mas depois algo acontecera. A
pouca vida que ainda restava em Michael se desvanecera. Ele começara a
trabalhar como um doido, uma verdadeira maratona de loucura. Por isso, jamais
se dera ao trabalho de fazer qualquer coisa com o apartamento. Continuava do
mesmo jeito, frio, vazio e solitário.
Os únicos móveis que Michael providenciara haviam sido duas cadeiras
dobráveis, uma cama e um velho abajur horrendo, que ficava no chão. Todo o
apartamento ressoava com os ecos do vazio. Parecia até que o inquilino fora
despejado naquela manhã.
Ben ficava deprimido só de pensar em ir para uma casa assim e podia
perfeitamente imaginar qual era o efeito em Michael... se é que ele ainda era
capaz de notar o ambiente em que se encontrava, o que Ben estava começando
a duvidar. Dera três plantas a Michael para o apartamento em princípio de julho
e todas tinham morrido ao final do mês. Como o abajur horrível, as plantas
simplesmente tinham ficado no chão, desamadas e esquecidas.
Ben não gostava do que estava acontecendo, mas não havia nada que
alguma pessoa pudesse fazer. Ninguém podia ajudar, à exceção de Nancy. E
Nancy estava morta. Pensar nela ainda provocava em Ben uma dor quase física,
como as pontadas que sentia no tornozelo e quadril quando ficava cansado. Mas
as fraturas haviam-se reparado rapidamente com a ajuda da juventude. Ben
ainda acalentava a esperança de que a mesma coisa pudesse acontecer com
Michael. Mas o problema de Michael era diferente. As fraturas dele eram de
partes que não se podia ver, não estavam à mostra. A não ser nos olhos. Ou no
rosto ao final de um dia... ou na contração da boca em um momento
desprevenido, quando Michael estava sentado a sua mesa e ficava olhando para
a distância, para a extensão interminável da vista.
CAPÍTULO 10

— E então, minha jovem? Acha que cumpri minha promessa? Não tem a
vista mais espetacular da cidade?
Peter Gregson estava sentado no terraço junto com Nancy. Os dois
trocaram um olhar afetuoso. O rosto dela ainda estava coberto por ataduras,
mas os olhos estavam descobertos e brilhavam intensamente. E as mãos,
estavam livres. Pareciam diferentes, mas eram maravilhosas enquanto ela fazia
um gesto para abranger tudo ao redor. Do lugar em que estavam sentados,
podiam avistar toda a baía, com a Ponte Golden Gate à esquerda, Alcatraz à
direita, Marin County diretamente em frente no outro lado do terraço, havia
também uma vista espetacular da cidade, para o sul e leste. O terraço
proporcionava a Nancy a contemplação tanto do pôr-do-sol como do nascer e
um prazer ilimitado.
Ela passava quase o dia inteiro sentada ali. O tempo estava glorioso desde
que chegara ao apartamento. Peter é que o encontrara, exatamente como
prometera.
— Quer saber de uma coisa? Estou ficando terrivelmente mimada.
— E merece. O que me fez lembrar que trouxe uma coisa para você.
Nancy bateu palmas, como uma garotinha. Peter sempre lhe trazia
alguma coisa. Era uma pilha de revistas, livros, um chapéu engraçado, uma
écharpe para usar sobre as ataduras, braceletes maravilhosamente ruidosos para
comemorar as mãos novas. O fluxo de presentes era constante, mas o daquele
dia era o maior de todos. Com misteriosa expressão de prazer, Peter atravessou
o terraço e entrou no apartamento. A caixa que trouxe de volta era bastante
grande e dava a impressão de ser muito pesada. Quando ele a pôs em seu colo,
Nancy descobriu que adivinhara corretamente.
— O que é isso, Peter? Parece uma pedra.
Nancy sorriu através das ataduras e Peter soltou uma risada.
— E é mesmo... a maior esmeralda que consegui encontrar na loja da
esquina.
— Maravilhoso!
Mas o presente era ainda mais maravilhoso do que Nancy desconfiava. O
conteúdo da misteriosa caixa era uma máquina fotográfica extremamente cara
e altamente sofisticada.
— Mas que presente espetacular, Peter! Não posso...
— Claro que pode. E espero ver algum trabalho sério feito com essa
máquina.
Ambos sabiam como Nancy andava atormentada porque não tinha mais
vontade de pintar. E agora ela nem tinha mais o pretexto das mãos envoltas por
ataduras. Mas não podia pintar. Havia algo nela que a fazia desistir cada vez que
pensava em tentar. Os quadros que as enfermeiras haviam trazido de seu
apartamento de Boston ainda estavam encerrados no grande portfólio preto, no
fundo de um armário. Nancy não queria vê-los, muito menos trabalhar neles.
Mas uma câmara podia ser diferente. Peter percebeu o brilho nos olhos dela e
rezou para que lhe tivesse aberto uma nova porta. Ela estava precisando de
novas portas. Nenhuma das antigas iria revelar o que ela desejava encontrar do
outro lado. Seria melhor, que ela começasse tudo de novo.
— Há um folheto de instruções terrivelmente complicado, para o qual 10
anos de faculdade de medicina não conseguiram me preparar. Talvez você
consiga entende-lo.
— Claro que conseguirei!
Nancy olhou para o folheto grosso e concentrou-se por algum tempo,
segurando a máquina, o amigo inteiramente esquecido. Depois, sacudiu o folheto
distraidamente e disse:
— É fantástico, Peter! Olhe esta coisa aqui. ... se puxar isso, vai
conseguir...
Ela se fora, totalmente fascinada. Peter recostou-se, com um sorriso
satisfeito. Passou-se meia hora antes que Nancy voltasse a notá-lo. Ela levantou
os olhos subitamente e Peter percebeu pela expressão como estava grata.
— É o presente mais maravilhoso que já recebi.
Exceto pelas contas azuis de Michael na feira... mas Nancy rapidamente
afastou o pensamento da mente. Peter estava acostumado às nuvens repentinas
que toldavam os olhos dela, quando pensamentos antigos retornavam para
atormentá-la. Ele sabia que, com o tempo, tais pensamentos acabariam por
deixá-la.
— Trouxe filme?
— Claro. — Ele pegou uma caixa menor no meio do embrulho e largou-a
no colo de Nancy. — Eu poderia esquecer do filme?
— Não. Nunca se esquece de coisa alguma.
Nancy apressou-se em carregar a câmara e começou a tirar fotografias
dele, da vista e depois uma série de um pássaro que passou voando pelo terraço.
— Provavelmente vão sair horríveis, mas é um começo.
Peter ficou a observá-la por longo tempo. Depois, passou o braço pelos
ombros dela e entraram no apartamento.
— Tenho outro presente para você hoje, Nancy.
Um Mercedes. Está vendo? Já começo a adivinhar as coisas.
Não. Desta vez é sério. — Ele a fitou com um sorriso gentil e cauteloso. —
Vou partilhar uma amiga com você. Uma pessoa muito especial.
Por um momento insano, Nancy sentiu uma onda de ciúme correr por sua
espinha. Mas algo no rosto de Peter disse-lhe que não precisava sentir-se assim.
Ele percebeu que Nancy o observava atentamente, enquanto
acrescentava:
— O nome dela é Faye Allison e fomos colegas na faculdade de medicina.
Ela é indubitavelmente uma das mais competentes psiquiatras da Califórnia,
talvez do País. É grande amiga minha e uma pessoa muito especial. Tenho
certeza de que vai gostar dela.
— E...?
Nancy ficou esperando, tensa mas curiosa.
— E. ... acho que seria uma boa idéia você conversar com ela por algum
tempo. Sabe disso — Já conversamos a respeito antes.
— Não acha que estou-me ajustando bem?
Nancy parecia magoada e largou a máquina para fitá-lo mais seriamente.
— Acho que está-se saindo admiravelmente bem, Nancy. Mas mesmo que
não houvesse qualquer outro motivo, precisa de uma pessoa para conversar.
Tem Lily, Gretchen e a mim, mas isso é tudo. Não gostaria de ter outra pessoa
com quem conversar?
Gostaria, sim. Michael. Ele tinha sido o melhor amigo dela por muito
tempo. Mas, no momento, Peter era suficiente.
— Não sei.
— Acho que vai gostar, assim que conhecer Faye. Ela é incrivelmente
simpática e gentil. E desde o início que vem-se interessando pelo seu caso.
— Ela sabe a meu respeito?
— Desde o começo.
Ela estava em companhia de Peter na noite em que Marion Hillyard e o
Dr. Wickfield haviam telefonado, mas Nancy não precisava saber disso. Ele e
Faye eram amantes, intermitentemente, há vários anos, mais por uma questão
de companheirismo e conveniência do que em decorrência de uma grande
paixão. Eram principalmente amigos.
— Ela virá tomar café conosco esta tarde. Há algum problema para você?
Mas Nancy sabia que tinha pouca opção.
— Não.
Ela ficou pensativa, enquanto se acomodava na sala de estar. Não tinha
certeza se lhe agradava aquele acréscimo ao cenário, especialmente por se
tratar de uma mulher. Experimentava um sentimento instantâneo de
competição e desconfiança.
Até que conheceu Faye Allison. Nada que Peter dissera a preparara para a
simpatia que sentiu imediatamente pela outra mulher. Faye era alta, esguia,
loura, angulosa, mas todas as linhas da rosto eram suaves. Os olhos eram
afetuosos e alertas; naqueles olhos, havia sempre um graceja à espera, uma
resposta imediata, uma risada pronta para se manifestar. Ao mesmo tempo,
podia se perceber que estavam também sempre prontos para se mostrarem
sérios e compassivos. Peter deixou as duas sozinhas depois da primeira hora e
Nancy ficou até contente por isso.
Conversaram sobre mil coisas, em nenhum momento a respeito do
acidente. Boston, pintura, São Francisco, crianças, pessoas, faculdade de
medicina. Faye partilhou coisas de sua vida e Nancy revelou coisas de sua vida
que nunca contara a ninguém por muito tempo, pela menos desde que
conhecera Michael. Falou do orfanato, contando suas angústias, não as
acontecimentos divertidos que contara para Peter. A solidão, as indagações
sobre quem realmente era, por que fora deixada lá, a que significava ser
totalmente sozinha. E depois, sem qualquer motivo que pudesse compreender,
contou a Faye sobre o acordo que fizera com Marion Hillyard. Não houve
choque, não houve censura, não houve outra coisa além de simpatia e
compreensão na maneira como Faye Allison escutou. Nancy descobriu-se a
partilhar sentimentos que abrangiam anos, não apenas os últimos quatro meses.
Mas o alívio por contar sobre Marion Hillyard foi enorme.
— Não sei, parece estranho dizer isso, mas... — Ela hesitou, sentindo-se
tola e parecendo infantil na maneira coma olhou para sua nova amiga. — Mas
eu. ... eu nunca tive qualquer tipo de família, sendo criada no orfanato. A madre
superiora foi a pessoa mais próxima de uma mãe que tive e era mais coma uma
tia solteirona. Mas apesar do que eu sabia a respeito de Marion, pelas
informações de Michael, de seu amigo Ben, apesar do que eu podia pressentir...
apesar de tudo, sempre tive sonhos loucos, fantasias absurdas, esperava que ela
fosse gostar de mim, que seriamos amigas.
Os olhos dela encheram-se de lágrimas inesperadas. Ela desviou o olhar.
— Pensava que ela poderia tomar-se sua mãe?
Nancy assentiu silenciosamente e depois afastou as lágrimas com uma
risada tensa.
— Não é um absurda?
— Absolutamente. Era uma suposição normal. Estava apaixonada por
Michael. Não tem família. Era normal que quisesse adotar a família dele. É por
isso que o acordo com Marion a magoa tanto? Mas ela já sabia qual era a
resposta, assim como Nancy.
— Exatamente. Foi a prova do quanto ela me odiava.
— Eu não chegaria tão longe, Nancy. Levando-se tudo em consideração
ela fez muito por você. Afinal, mandou-a para cá, a fim de que Peter lhe
proporcionasse um novo rosto
Para não falar da vida extremamente confortável que Marion estava
proporcionando a Nancy durante o processo.
— Contanto que eu renunciasse a Michael. Ela estava me rejeitando para
ele... e para si mesma. Compreendi então que jamais tivera a menor
possibilidade de conquistar Marion. Foi um momento horrível. — Ela suspirou e
a voz tornou-se mais suave. — Mas acho que já perdi antes e consegui
sobreviver.
— Lembra-se de ter perdido seus pais?
— Não de alguma forma concreta. Era muita pequena para me recordar
de qualquer coisa quando meu pai morreu e não era muita mais velha quando
minha mãe deixou-me no orfanato. Mas lembro-me do dia em que me
contaram que ela havia morrido. Chorei muito, mas não tenho muita certeza
por que chorei. Não creia que me lembrasse dela. Talvez simplesmente me
sentisse abandonada.
— Coma se sente agora?
Era apenas um palpite, mas dos bons.
— E possível. Aquele sentimento insondável do "mas quem vai tomar
conta de mim agora?" Penso nisso de vez em quando. Naquela ocasião, eu sabia
que o orfanato tomaria conta de mim até que crescesse. E agora sei que Peter o
fará, assim como o dinheiro de Marion, até que eu esteja inteiramente
remendada. Mas o que acontecerá depois?
— E o que me diz de Michael? Acha que ele voltará para você?
Às vezes penso que sim. Ou melhor, na maior parte do tempo penso que
sim.
Houve uma pausa prolongada.
— E o resto do tempo?
— Estou começando a ter dúvidas. A princípio, pensei que talvez ele
estivesse com medo da maneira como eu parecia, da maneira como isso o faria
sentir-se em relação a mim. Mas, agora ele já sabe sobre a cirurgia e deve
calcular que houve alguma melhoria. Por que então ainda não veio procurar-
me? Ela se virou subitamente para fitar Faye nos olhos e acrescentou: — É nisso
que estou pensando agora.
— Já encontrou alguma resposta para essa indagação?
— As coisas que me ocorreram não foram das mais agradáveis. Às vezes
penso que ela conseguiu convencê-lo de que uma moça com os meus
"antecedentes condenáveis" iria prejudicá-lo profissionalmente. Marion Hillyard
ajudou a construir um império e está contando com Michael para continuar a
manter as melhores tradições da família. Isso não inclui casar-se com uma
moça anônima que saiu de um orfanato e pintora ainda por cima Ela quer que o
filho se case com alguma herdeira debutante que possa ser-lhe útil nos negócios.
— Acha que isso tem alguma importância para ele?
— Não tinha importância antes, mas agora... não sei.
— E se o perdesse?
Nancy titubeou, mas não respondeu. Contudo, seus olhos diziam tudo.
— E se ele não se sentisse capaz de enfrentar tudo por que você está
passando? É uma possibilidade, Nancy. Alguns homens não são tão bravos como
gostaríamos de pensar que são.
— Não sei. Talvez ele esteja esperando até que tudo termine.
— Não ficaria ressentida nesse caso? Por não estar aqui quando você
precisava dele?
Nancy deixou escapar um longo suspiro em resposta.
— Talvez. Mas não sei com certeza. Penso muito nisso tudo, mas não
consigo tirar conclusões absolutas.
— Somente o tempo proporciona todas as respostas. Tudo o que você
precisa saber é como se sente. Isso é tudo. Como se sente em relação a você? À
nova você? Está excitada? Assustada? Furiosa por saber que vai ficar diferente?
Aliviada?
— Todas as coisas que acabou de falar. — Ambas riram pela franqueza de
Nancy. — Para dizer a verdade, estou aterrorizada. Pode imaginar olhar-se no
espelho depois de 22 anos e deparar com uma pessoa diferente? Oh, céus, é
como uma aberração!
Ela riu novamente, mas havia um medo concreto por trás de sua reação.
— É isso o que sente?
— Às vezes. Na maior parte do tempo, procuro não pensar a respeito.
— E pensa em quê?
— Sinceramente?
— Claro.
— Em Michael.. Algumas vezes em Peter. Mas principalmente em
Michael.
— Está-se apaixonando por Peter
Não houve hesitação na pergunta. Quem estava falando agora era a Dra.
Allison e não Faye. Ela estava naquele momento pensando exclusivamente em
Nancy
— Não. Não posso apaixonar-me por Peter. Ele é um homem
maravilhoso, um grande amigo. O tipo de pai que eu nunca tive. Está sempre me
trazendo presentes. Mas... estou apaixonada por Michael.
— Pois vamos ver o que acontece.
Faye Allison olhou para o relógio e ficou espantada. As duas estavam
conversando há quase três horas. Já passavam das sete horas da noite.
— Deus do céu! Sabe que horas são?
Nancy também consultou o relógio e seus olhos se arregalaram de
surpresa.
— Puxa! Como foi possível? — E depois ela sorriu.
Vai voltar para conversar comigo, Faye? Peter estava certo. Você é uma
pessoa muito especial.
— Obrigada. Eu adoraria voltar. Na verdade... Peter estava pensando que
poderíamos manter um contato numa base regular. O que acha da idéia?
— Acho que seria maravilhoso ter alguém para conversar como fizemos
hoje.
— Nem sempre posso prometer-lhe que ficarei três horas com você.
As duas riram e Nancy acompanhou-a até a porta.
— O que me diz de três vezes por semana, durante uma hora,
profissionalmente? E podemos encontrar-nos também em outras ocasiões, como
amigas. Está bem assim?
— Está maravilhoso!
Apertaram-se as mãos na porta e Nancy ficou surpresa ao descobrir que já
estava impaciente pela próxima sessão, dentro de dois dias.
CAPÍTULO 11

Nancy acomodou-se confortavelmente na poltrona perto do fogo e


suspirou, enquanto recostava a cabeça. Ela havia chegado cinco minutos mais
cedo hoje estava ansiosa em conversar com Faye. Ouviu o barulho dos saltos
altos de Faye atravessando o corredor a caminho do estúdio que usava para
receber os pacientes. Nancy sorriu e empertigou-se na cadeira. Queria que Faye
visse tudo de saída.
— Bom dia, pássaro madrugador. Está muito bem de vermelho hoje. —
Ela parou abruptamente na porta e sorriu. — Esqueça o vermelho. Deixe-me
ver o novo queixo.
Faye avançou lentamente, contemplando a parte inferior do rosto de
Nancy. Depois, com um sorriso vitorioso, os olhos se encontraram com os de
Nancy.
— O que acha?
Mas Nancy podia ver perfeitamente a resposta no rosto de Faye.
Admiração pelo trabalho de Peter e prazer pela moça.
— Nancy, você está linda... maravilhosa!
Já podia ver agora o pescoço adorável, subindo graciosamente dos ombros
esguios, o queixo delicado e gentil, a boca sensual. E o que se podia ver era
primoroso e perfeitamente apropriado à personalidade da moça. Os desenhos e
esculturas intermináveis de Peter não haviam sido em vão
— Ei, também vou querer igual!
Nancy riu de alegria e recostou-se de novo na cadeira, escondendo o resto
do rosto, que ainda estava coberto por ataduras, por trás do chapéu de feltro
marrom-escuro que tinham comprado algumas semanas antes. Combinava com
o novo casaco marrom de lã e as botas marrons que estava usando com o
vestido de tricô vermelho. Estava até começando a se sentir bonita, agora que
podia ver algo do que estava para vir. Peter estava cumprindo sua promessa.
— E muito embaraçoso, Faye. Estou-me sentindo tão bem que tenho até
vontade de gritar. E o mais estranho de tudo é que não parece absolutamente
comigo, mas estou adorando.
— Fico contente por isso. Mas qual é o problema de não estar parecendo
com você? Isso por acaso a incomoda, Nancy?
— Não tanto quanto eu pensava que iria acontecer. Mas talvez eu ainda
espere que o resto se pareça comigo. Esta é apenas uma parte isolada e de
qualquer forma jamais gostei mesmo de minha boca. Talvez pareça mais
estranho quando o resto também parecer com outra pessoa. Não sei direito.
— Quer saber de uma coisa, Nancy? Talvez deva simplesmente recostar-
se e desfrutar. Talvez deva aprofundar-se mais um pouco. Seguir adiante.
— Como assim ?
— Vou tentar explicar . Você está-se empenhando em ser Nancy e
procuramos um ajustamento abandonando algumas coisas dessa Nancy no
processo. Talvez deva simplesmente recuar e contemplar o quadro inteiro. Por
exemplo: você gostava do seu jeito de andar antes?
Nancy assumiu uma expressão de perplexidade enquanto pensava a
respeito. Era uma idéia inteiramente nova, algo que jamais haviam discutido nos
quatro meses em que se encontravam.
— Não sei, Faye. Nunca pensei antes a respeito de minha maneira de
andar.
— Pois pense a respeito. E o que me diz da voz? Já pensou alguma vez em
apurar a voz? Possui uma voz maravilhosa, suave e melodiosa. Talvez possa,
com um pouco de adestramento, apurá-la ainda mais. Por que não exploramos o
que você possui para tentarmos tirar o máximo de proveito? É o que Peter está
fazendo. Por que você própria não faz a mesma coisa?
O rosto de Nancy iluminou-se com a idéia e ela começou a se deixar
contagiar pelo entusiasmo de Faye.
— Eu poderia desenvolver todas as espécies de novos aspectos de mim
mesma, não é? Tocar piano... arrumar um novo jeito de andar. . — Podia até
mudar o nome.
— Mas não vamos nos precipitar. Não vai querer sentir que se perdeu a si
mesma. Ao contrário, deve querer sentir-se que está acrescentando alguma
coisa a si mesma. Vamos pensar com muito cuidado a respeito de tudo. Tenho o
pressentimento de que isso vai levar-nos por algumas direções das mais
interessantes.
— Quero uma voz nova. — Nancy soltou uma risadinha. — Como esta.
Ela baixou a voz várias oitavas e Faye não pôde deixar de rir.
— Se fizer isso, Peter talvez tenha que lhe providenciar uma barba.
— Sensacional!
Estavam subitamente dominadas por intensa alegria. Nancy levantou-se e
andou pela sala, quase aos pinotes. Em ocasiões como aquela Faye recordava-se
de como ela era realmente jovem. Tinha apenas 23 anos. O aniversário dela
chegara e passara e Nancy estava amadurecendo em muitas coisas que a
maioria das pessoas jamais precisava. Mas, por baixo da superfície, ela ainda era
quase uma garota.
— Mas quero que você esteja perfeitamente consciente de uma coisa,
Nancy.
A voz de Faye era agora bastante séria.
— O que é? .
— Acho que deve compreender por que se mostra tão disposta a tentar
tornar-se uma nova pessoa. Não é excepcional para os órfãos, como você,
sentirem-se inseguros de suas identidades. Não sabe direito como eram seus
pais. Em decorrência, sente que uma parte de você está faltando, um vínculo
com a realidade.
Assim, é muito mais fácil para você desistir de partes da pessoa que foi
antes. O mesmo não aconteceria com alguém que tivesse mantido imagens
muito nítidas dos pais... e todas as responsabilidades que isso acarreta. Sob
certos aspectos, isso pode fazer com que as coisas sejam mais fáceis para você.
Nancy ficou calada. Faye sorriu e afundou-se na poltrona aconchegante
perto do fogo. Era uma sala maravilhosa para as conversas com os pacientes,
pois deixava qualquer pessoa imediatamente à vontade. Faye aproveitara os
tapetes persas da avó na sala, que tinha as paredes revestidas de madeira e
candelabros de parede antigos, de bronze, para as lâmpadas. A lareira era
guarnecida de bronze, as cortinas eram antigas e de rendas, havia prateleiras de
livros, pequenos quadros em cantos inesperados, por toda parte havia uma
profusão de samambaias. Parecia a casa de uma mulher interessante e era
justamente esse o efeito a que Faye visava.
— Mas vou dar-lhe tempo para pensar a respeito, Nancy. No momento,
temos de cuidar de outra questão importante. O que vamos fazer nos feriados?
— O que há com os feriados?
Os olhos de Nancy fecharam-se como duas portas e o riso de momentos
antes agora desaparecera por completo. Faye já sabia que tal aconteceria e por
isso mesmo o assunto tinha de ser abordado. .
— Como se sente em relação aos feriados? Esta assustada?
— Não.
O rosto de Nancy permanecia impassível, enquanto Faye a observava
atentamente
— Está triste?
— Não.
— Muito bem, chega de adivinhação, Nancy. É melhor dizer-me. Como se
sente?
— Quer saber como me sinto? — Nancy subitamente a fitou nos olhos. —
Quer mesmo saber? — Ela foi até o outro lado da sala e voltou. — Eu me sinto
furiosa.
-Furiosa?
— Isso mesmo, furiosa. Superfuriosa. Furiosa que não acaba mais.
— Com quem?
Nancy tornou a afundar-se na poltrona e olhou para o fogo.
Desta vez, quando falou, a voz era suave e triste:
— Com Michael. Pensei que, a esta altura, ele já deveria ter-me
encontrado. Afinal, já se passaram mais de sete meses.
Pensei que ele já estaria aqui.
Ela fechou os olhos, para conter as lágrimas.
— Com quem mais está furiosa? Com você mesma?
— Exatamente.
— Por quê?
— Por ter feito o acordo com Marion Hillyard em primeiro lugar. Odeio a
atitude dela, mas acho; que a minha foi ainda pior. Eu me vendi.
— Tem certeza?
— Acho que sim. E tudo por um novo queixo.
Ela falou com desprezo, quando pouco antes se manifestara com orgulho.
Mas estavam agora penetrando mais fundo.
— Não concordo com você, Nancy. Não assumiu tal atitude por um novo
queixo, mas sim por uma nova vida. Acha que é tão errado assim na sua idade? O
que pensaria de outra pessoa que tomasse a mesma decisão?
— Não sei. Talvez eu pensasse que era uma estupidez. Ou talvez
compreendesse.
— Há poucos minutos, estávamos falando sobre uma nova vida. Uma voz
nova, um jeito de andar novo, rosto novo, nome novo. Tudo novo, exceto uma
coisa. — Nancy esperou, não querendo ouvir o que Faye ia dizer. — Michael. O
que me diz de uma nova vida sem Michael? Por acaso já pensou nisso?
— Não.
Mas os olhos de Nancy estavam cheios de lágrimas e ambas sabiam que
ela estava mentindo.
— Nunca?
— Nunca penso em outros homens. Mas, às vezes, penso em não ter
Michael.
— E como se sente nessas ocasiões?
— Gostaria de estar morta.
Mas ela não pensava realmente assim e ambas também sabiam disso.
— Mas não tem Michael agora, Nancy. E não é tão ruim assim, não é
mesmo?
Nancy limitou-se a dar de ombros em resposta. No momento seguinte,
Faye voltou a falar, a voz infinitamente suave:
— Talvez esteja precisando pensar de verdade a respeito de tudo isso,
Nancy.
— Está pensando que ele não vai voltar para mim?
Nancy estava novamente furiosa, desta vez com Faye, por que não havia
mais ninguém em que descarregar sua raiva.
— Não sei, Nancy. Ninguém sabe a resposta para tal questão, a não ser o
próprio Michael.
— Tem razão... o cachorro...
Nancy levantou-se e começou novamente a andar pela sala. Depois, como
um boneco de corda que vai perdendo a força, o ímpeto dos passos foi
diminuindo, até que ela parou diante do fogo, as lágrimas escorrendo pelo rosto,
as mãos apertando com toda força a tela diante da lareira.
— Oh, Faye, estou tão apavorada!
— Com o quê? A voz atrás dela estava mais suave do que nunca.
— De ficar só. De não ser mais eu. De. ... Fico-me perguntando se não fiz
uma coisa terrível pela qual serei punida. Renunciei ao amor por meu rosto.
— Mas pensava que já havia perdido tudo. Não pode culpar-se pela opção
que fez. E é possível que, ao final, se sinta contente por essa opção.
— É possível... — Novos soluços soaram junto à lareira
Faye ficou observando os ombros esguios se sacudirem, sem dizer nada. —
Sabe, Faye, estou também apavorada com esses feriados do fim do ano. É pior
do que no tempo em que eu estava no orfanato. Desta vez, não há ninguém. Lily
e Gretchen partiram no mês passado e você vai esquiar. Peter vai passam uma
semana na Europa e...
Nancy não podia mais conter as lágrimas. Mas essas eram agora as
realidades de sua vida. Tinha de enfrentá-las. Faye não deveria sentir-se culpada
por deixá-la naquele momento. Nem Peter. Eles tinham suas próprias vidas,
assim como o tempo que passavam ao lado dela.
— Talvez tenha chegado o momento de você sair e fazer alguns amigos,
Nancy.
— Deste jeito? — Ela se virou novamente para Faye e tirou o chapéu,
deixando à mostra as ataduras. — Como posso sair e encontrar-me com alguém
assim? os outros ficariam mortalmente apavorados. Ei, pessoal, chegou o
Drácula!
— A aparência não é assustadora, Nancy. E vai desaparecer com o tempo.
Não é permanente. Não passam de ataduras. As outras pessoas certamente
compreenderão.
— Talvez. — Mas Nancy ainda não estava disposta a acreditar em tal
possibilidade. — De qualquer forma, não preciso de amigos. Mantenho-me
ocupada com a minha câmara.
O presente de Peter fora uma dádiva extraordinária.
— Sei disso. Vi a sua última batelada de fotos outro dia no gabinete de
Peter. Ele está orgulhoso do seu trabalho e mostra as fotos a todo mundo. E
devo dizer que é de fato um trabalho excepcional, Nancy.
— Obrigada. — Um pouco da raiva dissipou-se com a conversa sobre o
trabalho dela. — Oh, Faye... — Nancy sentou-se novamente na poltrona e
estendeu as pernas. — O que vou fazer com a minha vida?
— Não é justamente para descobrir isso que estamos trabalhando?
Enquanto isso, por que não pensa um pouco a respeito do que conversamos hoje?
O treinamento da voz, aulas de música. ... algo para diverti-la e tudo parte da
pessoa que vai se tornar.
— Está certo, vou pensar um pouco a respeito. Por falar nisso, quando
você vai voltar?
— Dentro de duas semanas. Mas deixarei um telefone onde poderá
encontrar-me em caso de emergência.
Faye estava mais preocupada com o impacto dos feriados de fim de ano
em Nancy do que estava disposta a admitir. Era uma época sempre propícia à
depressão, até mesmo ao suicídio. Mas Nancy parecia estar em condições de
resistir, pelo menos no momento. Ela apenas não queria que Nancy ficasse
histérica em sua solidão. Era muito azar que ela e Peter resolvessem viajar na
mesma ocasião. Por outro lado, Nancy tinha de aprender a não depender tanto
deles.
— Podemos marcar novo encontro para dentro de duas semanas. E
quando eu voltar quero ver uma porção de fotografias novas.
— Isso me lembra uma coisa.
Nancy levantou-se novamente e saiu da sala. Foi até o vestíbulo, onde
deixara um embrulho em papel pardo. Voltou e estendeu-o sorridente para Faye.
— Feliz Natal.
Faye abriu, com uma expressão de satisfação. E ficou impressionada. O
presente era uma fotografia dela própria, dando a impressão de que passara
horas posando, para que a fotógrafa pudesse captar o olhar certo, o ânimo certo.
Possuía uma característica de sonho, impressionante. Ela estava de pé no
terraço de Nancy... o vento agitando seus cabelos, com uma blusa de seda rosa-
clara, o sol se pondo atrás dela em tons vermelhos e rosas. Ela se recordava do
dia, mas não se lembrava de Nancy tirando a fotografia.
— Quando foi que tirou a foto?
— Quando você não estava olhando.
Nancy parecia satisfeita consigo mesma e tinha todo o direito de estar. A
fotografia era sensacional. Ela própria a revelara e ampliara, depois a
emoldurara. Era uma fotografia tão expressiva quanto um quadro.
— Você é incrível, Nancy! É um presente maravilhoso!
— Tive um bom tema.
As duas se abraçaram. Foi com pesar que Nancy voltou a vestir o casaco.
— Espero que se divirta bastante esquiando.
— Pode estar certa de que vou-me divertir. E lhe trarei um pouco de
neve.
— Quero ver!
Nancy abraçou-a novamente e se desejaram Feliz Natal. Faye ficou
sentindo um aperto no coração depois que ela se foi. Nancy era uma moça linda.
Por dentro. Onde importava.
CAPÍTULO 12

— Mr. Calloway está no telefone, Mr. Hillyard.


A neve estava caindo há cinco ou seis horas sobre as ruas de Nova York,
mas Michael não notara coisa alguma. Estava sentado a sua mesa desde as seis
horas da manhã e agora já passavam de cinco da tarde. Ele pegou o telefone,
continuando a assinar uma pilha de cartas para sua secretária despachar. Pelo
menos o trabalho de Kansas City já não estava mais sob sua responsabilidade.
Tinha agora de preocupar-se com Houston e na primavera arrumaria uma
úlcera por causa do centro médico de São Francisco. O trabalho dele era um
fluxo incessante de dores de cabeça e exigências, contratos, problemas e
reuniões. Graças a Deus.
— George? Michael. Qual é o problema?
— Sua mãe está neste momento numa reunião, mas pediu-me que lhe
telefonasse para avisar que voltaremos de Boston esta noite, se a neve permitir.
Se não, amanhã.
— Está nevando aí?
Michael parecia surpreso, como se fosse o mês de junho e a neve fosse um
absurdo.
— Não. — George ficou momentaneamente confuso. — Mas disseram que
está havendo uma nevasca em Nova York... Não está?
Michael olhou pela janela e sorriu.
— Está, sim. É que eu não tinha olhado. Desculpe.
O rapaz estava se matando, assim como a mãe sempre fizera. George se
perguntou por um momento o que haveria naquela família que levava todos os
seus membros a serem tão exigentes consigo mesmos e com as pessoas que os
amavam.
— Seja como for, agora que esse problema está resolvido, podemos cuidar
do resto. — George soltou uma risadinha, antes de acrescentar: — Sua mãe
pediu que lhe telefonasse a fim de confirmar a sua presença em casa para a ceia
de Natal amanhã. Ela convidou uns poucos amigos e naturalmente quer que
você esteja presente.
Michael suspirou fundo enquanto escutava. Uns poucos amigos. ... Isto
significava vinte ou trinta pessoas, com as quais ele antipatizava ou não
conhecia. Além da inevitável moça solteira de boa família, para fazer-lhe
companhia. Parecia uma maneira horrível de passar o Natal. Ou qualquer outro
dia.
— Sinto muito, George. Devo uma desculpa a mamãe. Mas já assumi um
compromisso.
— É mesmo?
George parecia desconcertado
— Eu pretendia dizer a ela na semana passada, mas esqueci-me
inteiramente. Estava tão absorvido pelo centro de Houston que nem pensei a
respeito. Mas tenho certeza de que ela vai compreender.
Ele estava realizando verdadeiros milagres com o cliente de Houston e
por isso era melhor que a mãe compreendesse mesmo. Ele sabia que esse era
um instrumento que sempre podia usar contra Marion.
— É claro que ela vai ficar desapontada, mas ficará também satisfeita por
saber que você tem outros planos. Alguma coisa... ahn. ... alguma coisa
excitante, pelo que imagino.
— Exatamente, George. Um estouro.
— Algo sério?
George parecia agora preocupado. Oh, Deus, será que não havia como
satisfazê-los?
— Não, nada que possa preocupar. Apenas uma diversão saudável.
— Excelente. Bom, Michael, Feliz Natal e tudo o mais.
— O mesmo para você. E dê lembranças minha a mamãe. Telefonarei
para ela amanhã.
— Está certo.
George estava sorrindo quando desligou, satisfeito por constatar que o
rapaz estava finalmente se recuperando. Michael levara uma vida muito
estranha por algum tempo... Marion também ficaria aliviada, embora
indubitavelmente fosse irritar-se intensamente por alguns minutos, ao saber que
o filho não compareceria a sua ceia de Natal. Mas, no final das contas, Michael
era jovem. Tinha o direito de divertir-se um pouco. George sorriu para si
mesmo, enquanto tomava um gole do scotch e recordava um Natal em Viena há
25 anos. E depois, como sempre, seus pensamentos voltaram a fixar-se na mãe
de Michael.
Na sala de Michael, o telefone não parava de tocar. Ben ligou, querendo
certificar-se de que ele tinha planos para o Natal. Michael assegurou-lhe que iria
para a festa da mãe, tediosa, mas esperada. Diversos clientes telefonaram
também, para se queixarem, darem os parabéns ou desejarem Feliz Natal. Ao
desligar, depois do último telefonema, Michael murmurou para si mesmo: —
Ora, que vão todos para o inferno I
Ele levantou a cabeça, surpreso, ao ouvir uma risada desconhecida na
porta. Era a nova designer de interiores que Ben contratara. E era também uma
moça bonita, com cabelos castanhos avermelhados caindo em ondas até os
ombros, realçando ainda mais a pele leitosa e os olhos azuis. É claro que Michael
nunca tinha notado. Nunca notava coisa alguma, a menos que estivesse em sua
mesa e precisando de assinatura.
— Sempre deseja Feliz Natal às pessoas dessa maneira?
— Somente às pessoas de quem gosto realmente de ouvir votos de Feliz
Natal.
Ele sorriu para a moça e ficou imaginando o que ela estaria fazendo ali.
Não pedira para vê-la e a moça não tinha nenhum assunto a tratar diretamente
com ele, pelo menos ao que soubesse
— Há alguma coisa que eu possa fazer por você, Miss. . .
Oh, diabo! Ele não conseguia recordar o nome dela. Qual seria mesmo?
— Wendy Towsend. Vim apenas desejar-lhe um Feliz Natal.
Ah, uma puxa-saco! Michael estava divertido e acenou para que a moça
se sentasse.
— Não lhe disseram que sou o original Scrooge? (Famoso personagem
avarento de uma história de Natal de Charles Dickens. )
— Foi o que imaginei, quando não apareceu na festa do escritório nem no
jantar de Natal ontem à noite. Dizem também que trabalha demais.
— Faz bem para a pele.
— Outras coisas também fazem.
Ela cruzou uma perna linda sobre a outra. Michael desviou os olhos. Não
lhe interessava, assim como nenhuma outra coisa o interessara desde maio.
— Queria também agradecer pelo aumento que acabei de receber.
Ela exibiu dentes impecáveis e Michael retribuiu ao sorriso.
Estava começando a se perguntar o que a moça estaria realmente
querendo. Uma gratificação? Outro aumento?
— Terá de agradecer a Ben Avery por isso. Não tive nada a ver com o seu
aumento.
— Entendo.
A conversa não ia levar a nada e ela sabia disso. Levantou-se, pesarosa,
depois olhou para a janela. Havia quase 20 centímetros de neve empilhada no
peitoril da janela.
— Parece que, no final das contas, vai ser mesmo um Natal branco. E
também vai ser praticamente impossível chegar em casa esta noite.
— Talvez tenha razão. E provavelmente não vou sequer tentar. —
Michael apontou para o sofá de couro com um sorriso. Acho que foi por isso que
puseram esse sofá. Só para me manter, preso no escritório.
Não, meu caro, você é que está fazendo isso consigo mesmo. A moça
limitou-se a sorrir, desejando-lhe um Feliz Natal. Michael voltou a assinar
cartas. E cumprindo sua palavra, passou a noite no sofá. E a noite seguinte
também. Servia-lhe perfeitamente. O Natal caía num fim de semana naquele
ano e assim ninguém sabia onde ele estava. Até mesmo o zelador e as faxineiras
estavam de folga. Somente o vigia noturno soube que Michael não deixara o
escritório da sexta-feira até o final da noite de domingo. E, á esta altura, o Natal
já havia acabado. Quando ele voltou a seu apartamento vazio, nada mais tinha a
temer. O Natal, com todas as suas recordações e fantasmas, já era uma coisa do
passado. Havia uma poinsétia grande e vistosa murchando diante de sua porta,
enviada pela mãe. Michael deixou-a ao lado da lata de lixo.

Em São Francisco, Nancy passou o Natal mais confortavelmente que
Michael, mas em igual solidão. Cozinhou um frango, entoou cantigas de Natal no
terraço, sozinha, depois que voltou da igreja, na noite de Natal. Dormiu até tarde
no dia de Natal. Havia acalentado a esperança de evitar que esse dia chegasse,
mas não havia como escapar. Era inexorável, com seus enfeites e suas árvores,
promessas e mentiras. Pelo menos, em São Francisco. O tempo não a fazia
lembrar-se tanto dos Natais que passara na costa do Atlântico. Era quase como
se todas aquelas pessoas estivessem fingindo que era Natal, quando ela sabia
muito bem que tal não acontecia. A estranheza fazia com que se tornasse um
pouco mais fácil suportar tudo. E ela recebera dois presentes naquele ano: uma
linda bolsa de Gucci dada por Peter e um livro cômico de Faye. Ela se acordou
numa poltrona com o livro de tarde, depois que comeu o frango recheado, com
um molho especial. Era como comemorar o Natal na Schrafft's, com todas as
velhas senhoras, as esperanças de vida guardadas numa sacola de compras.
Nancy sempre tentara imaginar o que havia naquelas sacolas. Talvez velhas
cartas, fotografias, quinquilharias, troféus ou sonhos.
Já eram mais de seis horas quando finalmente largou o livro e esticou as
pernas. Seria maravilhoso dar um passeio. Estava precisando respirar um pouco
de ar fresco. Vestiu o casaco, pegou o chapéu e a câmara, sorriu para si mesma
no espelho. Continuava a gostar de seu novo sorriso. Era um sorriso maravilhoso.
Fazia-a pensar em como pareceria o resto de seu rosto, quando Peter
terminasse. Era um pouco como tornar-se a mulher aos sonhos dele. Certa
ocasião, Peter chegara mesmo a dizer-lhe que a estava transformando em seu
"ideal". O que era um sentimento um tanto constrangedor. De qualquer forma,
ela gostava de seu novo sorriso. Nancy pendurou a câmara no ombro, saiu do
apartamento e desceu no elevador.
Era um final de tarde frio, com o vento soprando, sem nevoeiro. Nancy
sabia que seria uma excelente noite para tirar fotografias. Encaminhou-se
lentamente para o cais. As ruas estavam praticamente desertas. Todos estavam
se recuperando da ceia de Natal, instalados em poltronas ou sofás, roncando
diante dos aparelhos de TV. A visão que criou na própria mente fez Nancy sorrir.
Subitamente ela tropeçou, soltando um grito estridente ao cambalear. Peter
advertira-a desse perigo. Agora, quase caíra na rua. Estendeu os braços para se
amparar e conseguiu recuperar o equilíbrio antes de bater na calçada. Só no
instante seguinte é que percebeu que não tinha sido a única a gritar. Tropeçara
num cachorrinho peludo, que parecia estar profundamente ofendido. Sentou-se
agora, sacudiu a pata para Nancy e latiu. Era uma pequena bola de pêlo
emaranhado, em tons marrons e beges. Ficou olhando para Nancy e latiu
novamente.
— Está bem, está bem... Desculpe. Mas a verdade é que você também
me assustou.
Ela se abaixou para afagar o cachorro, que sacudiu o rabo e latiu mais,
uma vez. Era um cachorrinho cômico, pouco maior que um filhote. Nancy
lamentou nada ter para lhe dar de comer. O bicho parecia muito faminto. Ela o
afagou novamente, sorriu e depois se levantou, satisfeita por não ter deixado a
câmara cair. O cachorrinho latiu novamente e ela voltou a sorrir.
— Está bem. ... adeus.
Ela começou a afastar-se, mas o cachorro foi atrás, correndo a seu lado.
Nancy parou e olhou-o.
— Escute, cachorrinho, volte para sua casa. Vá embora. Mas cada vez
que ela dava um passo, o cachorro dava também; e quando ela parava, o
cachorro sentava-se, esperando na maior felicidade que o passeio recomeçasse.
Nancy parou novamente e riu para o cachorro. Era realmente um cachorrinho
ridículo, mas também extremamente simpático. Ela se abaixou para afagá-lo
novamente e tateou o pescoço à procura de uma coleira, mas nada encontrou.
Era um cachorro totalmente despido. E depois, num súbito impulso, divertida,
ela decidiu tirar algumas fotografias do cachorro. Ele demonstrou ser um
modelo natural, empinando-se, posando, abanando o rabo, divertindo-se a valer.
Nancy tinha feito um novo amigo. Ao final de meia hora, o cachorro ainda
não dera qualquer sinal de que estava disposto a abandoná-la.
— Está certo, pode vir comigo.
E assim seguiram os dois até a beira do cais, onde Nancy tirou fotografias
de barracas de caranguejo e vendedores de camarão, turistas e Papais Noéis
embriagados, embarcações e pássaros, de outros cachorros. Divertiu-se
intensamente e em momento nenhum conseguiu livrar-se de seu novo amigo. O
cachorrinho permaneceu ao lado dela até que Nancy finalmente parou para
tomar um café. Tornara-se bastante hábil em entrar em cafés e lanchonetes,
abaixando a cabeça a fim de ocultar a maior parte do rosto sob o chapéu e assim
pedindo o que desejava. Agora, tinha até mesmo um sorriso para acompanhar o
obrigado, que já não era tão difícil de exibir como antes. Nancy pediu café puro
para si e um hambúrguer para o cachorro. Pôs o prato de papel vermelho na
calçada, ao lado dele. O cachorro devorou tudo e depois latiu em
agradecimento. — Isso significa obrigado ou que você está querendo mais? O
cachorro latiu novamente e ela riu. Um homem parou para afagar o cachorro e
perguntou o nome dele a Nancy.
— Não sei. Ele acabou de me adotar.
— Já comunicou?
— Ainda não.
O homem explicou como deveria fazer e Nancy agradeceu.
Telefonaria do apartamento, se o cachorrinho continuasse a segui-la até
lá. E foi justamente o que aconteceu. Ele parou na porta do prédio, como se
também morasse ali. Nancy levou o cachorro para cima e telefonou para a
Associação Protetora dos Animais. Mas ninguém procurara a Associação para
informar ter perdido um cachorro como aquele. Sugeriram que ela se resignasse
a ficar com o cachorro ou o levasse para o depósito da prefeitura, onde dariam
um jeito nele. Nancy ficou indignada com tal perspectiva e passou um braço
protetor pelo cachorro, ambos sentados no chão, lado a lado.
— Quer saber de uma coisa, garoto? Está com uma aparência horrível. O
que me diz de tomar um banho?
Ele abanou a língua e o rabo ao mesmo tempo. Nancy pegou-o no colo e
levou-o para a banheira. Ela tinha de tomar todo cuidado para não ser
respingada, pois as ataduras em seu rosto não podiam ficar molhadas. Mas o
cachorrinho submeteu-se ao banho sem qualquer resistência. Já no meio do
banho, ela descobriu que a cor dele não era marrom e bege, mas sim marrom e
branco. E o marrom era claro, da cor de chocolate com leite, enquanto o branco
era da cor da neve. Era de fato um cachorrinho adorável e Nancy começou a
torcer para que ninguém comunicasse que o tinha perdido. Nunca antes tivera
um cachorro e já estava apaixonada por aquele. Não pudera ter um, cachorro no
orfanato e os bichos de estimação não eram permitidos no prédio de
apartamentos em que fora morar em Boston. Mas a administração daquele
prédio em São Francisco não tinha qualquer objeção a bichos de estimação.
Nancy sentou-se sobre os calcanhares e esfregou-o novamente com a toalha,
enquanto ele rolava para ficar de costas, sacudindo as quatro patas. E depois ela
começou a pensar em um nome para o seu novo amigo. Não demorou a
encontrá-lo. Seria o mesmo nome de um cachorro de que Michael lhe falara, o
primeiro filhote que ele tivera quando era menino. De certa forma, parecia o
nome perfeito para aquele cachorrinho independente.
— O que acha do nome Fred; meu pequeno amigo? Está bom para você?
Ele latiu duas vezes e Nancy encarou tal reação como um sim.
CAPÍTULO 13

Nancy meteu a cabeça pela porta e sorriu para Faye, já instalada


comodamente perto do fogo.
— O que trouxe escondido na manga hoje, minha cara?
Faye retribuiu o sorriso, aliviada ao constatar que Nancy parecia estar
muito bem.
— Trouxe um amigo.
— É mesmo? Eu passo duas semanas fora e você aproveita para arrumar
um novo amigo? E onde está o seu amigo?
Fred entrou na sala, obviamente orgulhoso de sua nova coleira e da
correia vermelha. Ninguém comunicara tê-lo perdido e a partir daquela manhã
ele pertencia oficialmente a Nancy. Tinha uma licença, cama, tigela e dezessete
brinquedos. Nancy o estava cumulando de carinho.
— Faye, quero apresentar-lhe Fred. .
Ela sorriu para o cachorrinho com um orgulho maternal e Faye não pôde
deixar de rir.
— Ele é lindo, Nancy. Onde foi que o conseguiu?
— Ele me adotou no dia de Natal. Deveria ter-lhe dado o nome de Noel,
mas Fred me pareceu mais apropriado.
Por um momento, Nancy sentiu-se embaraçada em explicar a Faye por
quê. estava começando a sentir-se como uma tola por se apegar à esperança de
Michael.
— Também trouxe alguns trabalhos meus para você ver.
— Puxa, como você esteve ocupada! Talvez eu devesse ausentar-me com
mais freqüência.
— Se quer-me fazer um favor, não faça isso.
Os olhos de Nancy revelaram a Faye como ela se sentira solitária. Mas
pelo menos conseguira sobreviver ao Natal. E sozinha. O que não era pouca coisa
para qualquer pessoa.
— E... — Nancy fez uma breve pausa, com evidente orgulho. — ... já
providenciei tudo para fazer um curso de aprimoramento da voz. Peter diz que
tudo faz parte do acordo. Começo amanhã, às três horas. Ainda não posso tomar
aulas de dança porque meu rosto não está acabado. Mas poderei começar no
próximo verão.
— Estou orgulhosa de você, Nancy.
— Também estou.
Tiveram uma boa sessão naquele dia e pela primeira vez, em oito meses,
não falaram de Michael. Para espanto de Faye, já estavam na primavera quando
Nancy voltou a mencioná-lo. Era quase como se ela estivesse determinada a não
fazê-lo. Agora, Nancy só falava a respeito de seus planos. As aulas para
aprimorar a voz. Fotografia. O trabalho que ela queria fazer com fotografia
assim que suas técnicas se tornassem mais sofisticadas. Na primavera, ela e Fred
saíam para longos passeios pelo parque, através das roseiras e pelos caminhos
mais remotos, perto da praia. De vez em quando, ia de carro com Peter para
praias distantes e desertas, onde não havia ninguém para ver as ataduras. Pouco
a pouco, o rosto novo dela estava emergindo, assim como a sua nova
personalidade. Era como se, ao remodelar as faces, testa e nariz de Nancy, ele
estivesse também revelando mais da alma que estivera oculta pela juventude.
Ela amadurecera consideravelmente no ano que havia transcorrido desde o
acidente.
— Já passou um ano?
Faye estava atônita, enquanto olhava para Nancy, uma tarde. Peter
estava trabalhando na região em torno dos olhos dela e Nancy usava imensos
óculos escuros, que escondiam as faces, assim como os olhos.
— Exatamente. Aconteceu em maio do ano passado. E estou vendo há
oito meses, Faye. Acha realmente que estou fazendo algum progresso?
Ela parecia desanimada. O que era natural, pois ainda estava cansada da
última cirurgia, realizada apenas três dias antes.
— Duvida de seu progresso?
— Às vezes. Quando penso demais em Michael.
Era uma confissão extremamente árdua para Nancy. Ela ainda estava-se
agarrando aos últimos resquícios de esperança de que Michael iria finalmente
encontrá-la e o acordo com a mãe dele ficaria então automaticamente
cancelado.
— Não sei por que ainda faço isso comigo mesmo, mas a verdade é que
faço.
— Espere só até começar a sair mais um pouco pelo mundo, Nancy. Não
tem mais nada para fazer agora além de olhar para trás, contemplando as coisas
de que se recorda, ou para frente, imaginando as coisas que ainda não conhece.
É perfeitamente natural que passe um tempo considerável olhando para trás.
Não tem outras pessoas em sua vida neste momento, mas terá quando chegar o
momento. Seja paciente.
Nancy deixou escapar um suspiro cansado.
— Estou cansada de ser paciente, Faye. Tenho a sensação de que este
trabalho em meu rosto vai durar para sempre. Há ocasiões em que odeio Peter
por isso, mesmo sabendo que não é culpa dele. Ele está procurando fazer tudo o
mais depressa que é possível.
— Valerá a pena o tempo que você está investindo. Já está.
Faye sorriu para Nancy, que retribuiu... O formato delicado do rosto da
moça já emergira e a cada semana parecia haver mudanças. O aprimoramento
da voz também estava indo muito bem, a voz de Nancy era agora de um tom
mais baixo muito bem modulada. Ela possuía um controle maior sobre a
suavidade de sua voz do que poderia acontecer sem o treinamento. O que deu
uma idéia a Faye.
— Já pensou em tornar-se atriz depois que tudo tiver acabado? A
experiência pode proporcionar-lhe uma profundidade interior considerável.
Nancy sorriu e sacudiu a cabeça.
— Posso fazer filmes, mas não atuar neles. Prefiro ficar no outro lado da
câmara.
— Foi apenas uma idéia. O que tem na sua agenda para esta semana?
— Combinei com Peter tirar algumas fotografias para ele. Vamos de
avião para Santa Bárbara, onde passaremos o domingo.
Ele quer encontrar-se com algumas pessoas de lá e ofereceu-me uma
carona.
— Eu gostaria de poder levar uma vida assim... — Faye olhou para o
relógio, antes de acrescentar: — Até quarta-feira.
— Está bem, madame.
Nancy despediu-se com um sorriso e Fred saiu correndo da sala com a
coleira na boca. Ele estava acostumado às sessões no consultório de Faye. Nancy
nunca o deixava em parte alguma.
Saindo do consultório de Faye, Nancy decidiu percorrer a pé os poucos
quarteirões que a separavam de um pequeno parque próximo, a fim de verificar
se não havia crianças no playground para fotografar. Já fazia algum tempo que
não tirava fotografias de crianças. Ao chegar, encontrou um amplo suprimento
de temas, subindo, pulando, empurrando, correndo. Nancy ficou sentada num
banco por algum tempo, a observá-las. Era um lindo dia e ela se sentia em paz
com a vida.

— Vem aqui com freqüência?
Sentado no banco, Michael levantou abruptamente a cabeça, surpreso.
Escapara para o parque por uma hora, apenas para se afastar do escritório e
poder ver algum verde. Havia sempre algo mágico naqueles primeiros dias de
primavera, quando Nova York passava do cinzento para o verde viçoso, arbustos,
árvores e flores explodindo de vida. Mas estava convencido de que ficaria
sozinho naquele lugar isolado em que encontrara um banco desocupado. A voz
súbita surpreendeu-o. Deparou com Wendy Townsend, a designer de. interiores
do escritório.
— Não, eu... para dizer a verdade, quase nunca. Mas estava tendo hoje um
caso raro de febre da primavera.
— Eu também.
Ela parecia um tanto constrangida, parada ali, segurando um picolé.
Depois, rapidamente, deu urna lambida no sorvete, a fim de não perder uma boa
porção de chocolate.
— Está parecendo delicioso. Michael sorriu para a moça no ar ameno da
primavera
— Quer um pouco?
Ela estendeu o sorvete como uma colegial amistosa, mas Michael sacudiu
a cabeça.
— De qualquer forma, obrigado pelo oferecimento. Não gostaria de
sentar-se um pouco?
Ele se sentia um pouco tolo por ter sido surpreendido no parque, mas era
um dia tão bonito que não se importava de partilhá-lo, especialmente com uma
jovem tão simpática. Os caminhos de ambos haviam-se cruzado por diversas
vezes desde que ela entrara na sala dele, cinco meses antes, para desejar Feliz
Natal. Wendy Townsend sentou-se ao lado de Michael e terminou rapidamente o
sorvete.
— No que está trabalhando atualmente? — perguntou ele.
— Houston e Kansas City. Meu trabalho está sempre cinco ou seis meses
atrás do seu. É muito interessante seguir em seus calcanhares dessa maneira.
— Não tenho muita certeza como devo encarar tal declaração. Mas a
verdade é que Michael não estava muito preocupado com isso.
— Como um elogio.
Ela sorriu por baixo das pestanas que também eram de uma tonalidade
castanho-avermelhada.
— Obrigada. Ben a está tratando decentemente ou é o feitor de escravos
que eu lhe digo para ser?
— Ele não saberia como fazê-lo.
— Sei disso. — Michael sorriu ao pensar no assunto. — Nós nos
conhecemos pela metade de nossas vidas. Ben é como meu irmão.
— Ele é um homem tremendamente simpático.
Michael assentiu silenciosamente, pensando como poucas vezes vira Ben
no último ano. Nunca tinha tempo. Nunca dava um jeito de arrumar tempo.
Nem mesmo sabia o que estava acontecendo na vida de Ben. Havia muitos
meses que não se dava ao trabalho de arrumar tempo para descobrir. Começou
de repente a sentir-se culpado, por estar sentado ao lado da jovem e imerso em
seus próprios pensamentos. Mas muita coisa mudara para ele ao longo do último
ano. Ele próprio mudara.
— Está muito longe daqui, Mr. Hillyard. Só espero que seja em algum
lugar agradável.
Michael deu de ombros.
— A primavera faz estranhas coisas comigo. É como se me obrigasse a
parar a cada ano para fazer um bom suprimento. É justamente o que estou
fazendo hoje.
— É uma boa idéia. Por alguma razão, sempre faço isso também em
setembro. Acho que a noção do "ano escolar" me marcou para sempre. A
maioria das outras pessoas prefere revigorar-se para enfrentar o resto do ano em
janeiro. Mas acho que a primavera faz mais sentido. É na primavera que tudo
começa novamente. Por que então não deveríamos começar nossas vidas
novamente a cada primavera?
Trocaram um sorriso e Michael olhou para o pequeno lago, sereno,
ocupado por uns poucos patos, que pareciam felizes da vida. Não havia qualquer
outra pessoa à vista.
— O que estava fazendo nesta mesma época no ano passado, Mr.
Hillyard?
Era uma pergunta inocente, mas penetrou em Michael como uma faca
afiada. Um ano atrás, naquele dia. . .
— Nada muito diferente do que estou fazendo agora. — Ele franziu a
testa, olhou para o relógio e levantou-se. — Infelizmente, tenho uma reunião
dentro de 10 minutos. É melhor eu voltar para o escritório. Foi um prazer
conversar com você.
Michael mal sorriu ao se afastar. A jovem continuou sentada onde estava,
imaginando o que teria dito de errado. Tinha de perguntar a Ben qual era o
problema de Michael. Não era possível aproximar-se a menos de mil
quilômetros dele.
CAPÍTULO 14

Para surpresa de Michael, Wendy havia sido convocada para a mesma


reunião, 10 minutos depois. Iam discutir o projeto preliminar para o Centro
Médico de São Francisco e a parte de design interior seria um fator importante.
Uma parcela considerável da arte local seria aproveitada para realçar o projeto
básico. Ben iria encarregar-se de encontrar essa arte pessoalmente, mas Wendy
ficaria incumbida da coordenação na frente interna. E o faria numa escala maior
que a habitual, já que Ben passaria muito tempo em São Francisco. Ainda faltava
muito para a apresentação do projeto definitivo, mas já era tempo de começar a
elaborar os planos, enquadrar os problemas e esmiuçar os detalhes.
Foi uma reunião demorada, absorvente, interessante, dirigida em grande
parte por Marion, com a ajuda de George Calloway. Mas Michael teve uma
participação quase igual. Aquele projeto era dele, como a mãe quisera desde o
início. Todas as grandes firmas de arquitetura do país haviam tentado obter
aquele contrato e Marion tencionava agora utilizá-lo para projetar
definitivamente o nome e reputação de Michael.
Já era quase seis horas quando a reunião terminou. Wendy estava
esgotada. Apresentara suas idéias de maneira segura, resistira a Marion quando
não havia outro jeito, seus argumentos haviam impressionado Michael. Ben
estava orgulhoso dela e apertou-lhe afetuosamente o ombro, ao se retirarem.
— Bom trabalho, menina. Saiu-se muito bem.
Ele foi chamado por sua secretária nesse momento e continuou sozinha
pelo corredor. Ficou bastante surpresa Michael também a deteve.
— Fiquei bastante impressionado com o seu trabalho, Wendy. Tenho
certeza de que vamos realizar juntos um grande trabalho em São Francisco.
— Também tenho. — Ela estava radiante com o elogio, ainda mais
porque partira de Michael. — Eu... Michael, eu... lamento muito se disse alguma
coisa que o deixou ofendido esta tarde. Não tencionava realmente intrometer-
me em sua vida e se foi uma pergunta imprópria lamento profundamente...
Michael sentiu algum remorso pelo constrangimento dela e levantou a
mão para impedi-la de continuar, ao mesmo tempo que lhe sorria gentilmente.
— Fui um tanto grosseiro li peço desculpas. Acho que a febre da
primavera me deixa meio doido, além de sonhador. Posso compensar
convidando-a para jantar esta noite?
Ele ficou tão surpreso quanto ela no instante mesmo em que as palavras
saíram de sua boca. Jantar? Ele não jantava com uma mulher há um ano! Mas
ela era uma jovem simpática, estava fazendo um bom trabalho e suas intenções
eram boas. E estava a fita-lo naquele momento com as faces coradas e
visivelmente embaraçada.
— Eu... não precisa...
— Sei que não preciso, mas gostaria — E desta vez Michael estava
falando sério. — Não tem algum outro compromisso?
— Não. E também adoraria.
Ótimo. Irei buscá-la em seu apartamento dentro de uma hora. Ele anotou
o endereço nas costas de seu bloco e sorriu enquanto Wendy retornava
apressadamente à sala dela. Era um absurdo fazer aquilo, mas por que não?
Michael chegou pontualmente no apartamento dela, uma hora depois, e
gostou do que viu. Era um prédio pequeno e bem cuidado, com uma porta preta
reluzente e uma grande aldrava de latão. Tinha quatro apartamentos e o de
Wendy era o menor, mas ela se gabava de possuir um pequeno jardim nos
fundos. O apartamento dela era uma maravilhosa mistura de antigo e novo, o
antigo autêntico e o moderno válido. Era dominado por cores suaves,
i1uminação indireta, muitas flores e velas. Wendy parecia ter grande predileção
por prataria antiga, que polira à perfeição de espelho. Ele olhou ao redor com
satisfação e sentou-se para saborear os hors’ d'oeuvres que ela preparara.
Tomaram Bloody Marys e trocaram comentários sobre os diversos projetos em
que trabalhavam. Uma hora voou numa conversa descontraída. Michael
detestou ter de interrompê-la a fim de saírem para jantar, mas fizera reservas
num restaurante Francês das proximidades e jamais guardavam as mesas dos
retardatários por mais de cinco minutos.
— Vamos ter de correr, se quisermos chegar a tempo. Ou será que
realmente nos importamos com isso?
Michael ficou surpreso ao ouvi-la formular seus próprios pensamentos e
não sabia direito o que significava o brilho malicioso nos olhos dela. Fazia tanto
tempo que não se encontrava com uma mulher que ficou com receio de
interpretar erroneamente e tomar a iniciativa errada.
— Em que exatamente está pensando, Miss Townsend? Será que o
pensamento é tão abominável quanto a expressão em seu rosto?
— Pior ainda... Estava pensando que podíamos providenciar alguma coisa
para fazermos um piquenique, enquanto contemplamos os barcos no East River.
— A idéia parece maravilhosa. Por acaso tem manteiga de amendoim?
— Claro que não! — Ela parecia ofendida. — Faço o meu próprio patê,
Mr. Hillyard. E tenho pão preto.
Ela parecia bastante orgulhosa de si mesma e Michael ficou devidamente
impressionado.
— Confesso que eu estava pensando mais em termos de manteiga de
amendoim e geléia. Ou cachorros-quentes.
— Jamais!
Com um sorriso, Wendy desapareceu na cozinha. Em 10 minutos, ela
havia reunido o piquenique perfeito para duas pessoas.
Havia uma sobra de rattatouille, o patê prometido, um pão preto, uma
porção considerável de Brie, três pêras maduras, algumas uvas e uma garrafa de
vinho.
— Acha que é suficiente?
Ela parecia preocupada e Michael não pôde conter uma risada.
— Está falando sério? Nunca comi tão bem desde que tinha 12 anos. Vivo
basicamente de sanduíches de sobra de rosbife e do que minha secretária me
alimenta, quando não estou olhando. Provavelmente comida para cachorro.
Nunca notei.
— É de admirar que não esteja morrendo de inanição. Michael não estava
morrendo à míngua, mas certamente estava muito magro. — Podemos partir?
Wendy olhou ao redor da sala e pegou um xale bege, enquanto Michael
recolhia a cesta do piquenique. E saíram. Percorreram a pé os poucos
quarteirões que os separavam do East River, encontraram um banco e ali
acomodaram-se alegremente para contemplarem os barcos que passavam. Era
uma noite quente e agradável, o céu cheio de estrelas e o rio bastante povoado
por rebocadores, iates e até mesmo barcos à vela, que passavam de vez
enquanto num passeio noturno. Michael e Wendy não eram os únicos atingidos
pela febre da primavera.
— É o seu primeiro emprego, Wendy?
Michael estava com a boca cheia de patê e parecia mais jovem que em
qualquer outra ocasião do último ano. Ela assentiu, com expressão feliz.
— É, sim. E também o primeiro a que me candidatei. Fiquei muito
contente em obtê-lo. Fui trabalhar com vocês assim que saí da Parsons.
— Isso é ótimo. É também o meu primeiro emprego.
Michael estava morrendo de vontade de indagar o que ela achava de sua
mãe, mas não se atreveu. Não teria sido justo. Além do mais, se a moça tinha
um mínimo de bom senso não podia deixar de detestar Marion. Afinal, Marion
Hillyard era um verdadeiro monstro em questões de trabalho, o que Michael
sabia perfeitamente.
— E tudo indicava que vai ter bastante sucesso e ir longe que na firma,
Michael...
Ela estava novamente a provocá-lo e Michael riu.
— O que pretende fazer depois disso? Casar-se e ter filhos
— Não sei, mas é possível. De qualquer forma, não penso nisso por longo
tempo. Quero primeiro consolidar uma carreira. Sempre posso ter filhos depois,
na casa dos 30 anos.
-Puxa, como as coisas mudaram. Antigamente, todas as garotas viviam
ansiosas por se casarem.
Michael sorriu para sua nova amiga.
— Algumas garotas ainda estão ansiosas por se casarem. Ela retribuiu o
sorriso e. pegou um pedaço de Brie. Fora um piquenique maravilhoso.
— E você, quer-se casar?
Ela ficou observando Michael com a maior curiosidade, enquanto ele
sacudia a cabeça, contemplando os barcos.
— Nunca?
Ele virou a cabeça para fita-la. Lentamente, sacudiu outra vez a cabeça.
Havia uma espécie de súplica nos olhos de Michael. Wendy não sabia se devia ou
não insistir na pergunta. Decidiu interrogar Michael a respeito.
— Devo perguntar por quê ou devo parar por aqui?
— Talvez já não tenha mais importância. Há um ano inteiro que estou
fugindo disso. Cheguei mesmo a fugir de você hoje, na hora do almoço. Não posso
continuar a fugir para sempre.
Michael fez uma pausa, baixou os olhos para suas mãos, depois tornou a
fita-la.
— Eu ia me casar no ano passado... No caminho, Ben Avery... minha...
minha noiva e eu... sofremos um acidente. O outro motorista morreu e
também... Ela também morreu.
Michael não chorou, mas teve a sensação de que tudo por dentro lhe fora
arrancado. Wendy olhava para ele fixamente, os olhos arregalados, horrorizados.
— Oh, Michael, que coisa horrível! Parece um pesadelo.
— E foi mesmo. Passei dois dias em estado de coma e quando saí ela já
tinha morrido. Eu. ... eu... — Michael quase que não podia pronunciar as
palavras, mas tinha de fazê-lo agora tinha de contar a alguém. Jamais contara
nem mesmo a Ben.
Voltei ao apartamento dela quando saí do hospital, duas semanas depois.
Mas já estava vazio. Alguém chamara a Goodwill e 05 quadros dela... haviam
sido roubados por duas enfermeiras do hospital. Ela era pintora.
Os dois ficaram sentados em silêncio por longo tempo. Depois, Michael
voltou a falar, como se desejasse ele próprio compreender melhor.
— Não restou nada. Acho que nem de mim. .
Quando ele levantou a cabeça, deparou com lágrimas escorrendo pelas
faces de Wendy.
— Lamento muito, Michael.
Ele assentiu e, pela primeira vez em um ano, também chorou. As
lágrimas deslizavam lentamente por seu rosto quando a abraçou.
CAPÍTULO 15

— Michael, o que acha daquela mulher que está dirigindo o escritório de


Kansas City e...
Wendy olhou para ele, acomodado em uma cadeira de lona em seu
jardim. Michael não estava ouvindo.
— Michael. . .
Os dois estavam sentados em trajes de banho, ao sol quente de Nova York.
Wendy sabia que ele também não estava prestando atenção à edição dominical
do jornal.
— Michael. . .
— Ahn? O que foi?
— Eu lhe estava fazendo uma pergunta sobre aquela mulher do escritório
de Kansas City.— Mas Wendy sabia que já o tinha perdido e fitou-o com
expressão irritada. — Quer outro Bloody Mary?
— Hem? Quero, sim... Acho que vou voltar para o escritório daqui a
pouco.
Ele olhou além dela, para um ponto qualquer acima de seu ombro.
— Maravilhoso.
— Como assim?
Michael estava agora observando-a atentamente e não sabia direito o que
significava a expressão no rosto dela. Se se esforçasse um pouco, poderia
entender prontamente. Mas nunca tentava.
— Nada, nada...
— O centro médico de São Francisco vai-me exigir o máximo de trabalho
pelos próximos dois anos. É um dos maiores projetos já realizados no país.
— E se não fosse isso, seria alguma outra coisa. Não precisa arrumar
desculpas. Está tudo bem.
— Então não procure dar a impressão de que estou batendo o relógio de
ponto toda vez que apareço aqui.
Michael empurrou o jornal com o pé e fitou-a com expressão furiosa. Ela
não se conteve mais.
— Pare com isso, Michael! Só apareceu aqui ontem depois de meia-noite
e meia. Tínhamos um jantar marcado com os Thompson e você só me telefonou
às 9h45min. Eu deveria ter saído com os Thompsons mesmo sem você.
— Então por que não saiu? Não precisa ficar sentada aqui à minha espera.
— É verdade, não preciso. Mas acontece que estou, apaixonada por você.
E o pior é que nem ao menos tenta ter alguma consideração. O que há com
você? Tem medo de estar em outro lugar que não seja em sua mesa de
trabalho? Tem medo de que alguém possa tomar o seu lugar? Ou está com medo
de também se apaixonar por mim? Será que isso seria tão horrível assim?
— Não seja ridícula. Sabe como meu trabalho é absorvente. E sabe disso
melhor que qualquer outra pessoa.
— Claro que conheço o seu trabalho... e é justamente por isso que sei que
metade das horas que a ele dedica não tem a menor razão de ser. Usa o seu
trabalho como um lugar para se esconder, um meio de vida. Usa-o para me
evitar. E evitar a si mesmo.
E também a Nancy. Mas Wendy não acrescentou esse comentário.
— Isso é ridículo;
Michael levantou-se e andou pelo jardim estreito e bem cuidado, as lajes
de pedra bastante quentes sob seus pés. Era setembro, mas ainda fazia calor em
Nova York. Depois das primeiras semanas felizes de romance, ele e Wendy
haviam passado um verão, difícil. Michael passara a maior parte do tempo
trabalhando, mas haviam conseguido pelo menos um fim de semana em Long,
Beach.
— Além do mais, o que está esperando de mim? Pensei que tivéssemos
deixado isso bem claro desde o início. Eu lhe disse expressamente que não
queria...
— Você me disse que não, queria envolver-se demais, que tinha medo, de
ficar ainda mais magoado. Não, tinha certeza se queria casar-se algum dia.
Nunca me disse que tinha medo de estar vivo, que tinha medo de gostar, que
tinha medo de ser um ser humano. Passa mais tempo com seu ditafone do que
comigo. Michael. E provavelmente trata melhor ao ditafone.
— E daí?
Wendy sentiu um calafrio, subir pela espinha enquanto, observava o rosto
dele. Michael realmente não se importava. E ela estava louca para ficar com
ele. Havia algo, em Michael, uma beleza estranha, uma força intensa, uma
tristeza profunda, que a atraía como um ímã. E mais do que isso, ela podia sentir
como era grande angústia dele, a carência. Queria atingi-lo bem fundo, mostrar-
lhe que era amado. Mas Michael não se importava. Ela não era Nancy. E ambos
sabiam disso.
Wendy levantou-se em silêncio, e saiu do jardim, entrando no
apartamento a fim de que ele não visse as lágrimas brilhando em seus olhos. Na
cozinha, serviu-se de outro Bloody Mary e ficou parada ali por um momento, os
olhos fechados, o corpo tremendo, desejando poder alcançá-lo, finalmente
encontrá-lo. Mas estava começando a pensar que isso jamais seria possível.
Michael nunca mais se abriria para qualquer pessoa.
Ela tomou todo o drinque em goles grandes e pôs o copo vazio em cima
da pia, enquanto sentia as mãos de Michael flutuarem gentilmente sobre sua
pele bronzeada. Wendy passava todo os fins de semana no jardim, bronzeando-se
sozinha. Michael nada disse naquele momento, continuando parado, logo atrás
dela. Wendy podia sentir o calor do corpo dele. Queria-o, desesperadamente,
mas estava cansada de Michael saber disso e poder tê-la sempre que desejava.
Já estava na hora de ela começar a tornar as coisas um pouco mais difíceis para
ele.
— Eu a quero, Wendy.
Todo o corpo dela ansiava por aquelas palavras, mas não iria entregar-se.
Permaneceu de costas para ele, odiando a suavidade das mãos dele a
acariciarem suas costas e as nádegas, dando a volta para frente e subindo para
os seios.
— Como, você disse antes: e daí?
— Sabe que não posso agüentar esse tipo de pressão. A voz de Michael era
tão suave quanto a pele de Wendy.
— Não, é pressão Michael. É amor. E o mais triste é que você não
conhece a diferença. Era assim também com ela?
Wendy sentiu as mãos dele pararem de repente, os braços ficarem rígidos.
Mas ela não podia deter-se agora. Queria feri-lo fundo, também.
— Também tinha medo de amá-la? Agora não, precisa amar ninguém e
pode passar o resto de sua vida escondendo-se por trás da tragédia do quanto
sente saudade dela. Isso resolve todos os seus problemas, não é mesmo?
Ela virou-se lentamente para fitá-lo, e descobriu que os olhos dele
transbordavam de ódio.
— Como pode dizer uma coisa dessas? Como se atreve?
Por um momento Michael pareceu a Wendy como a mãe dele, quase tão
implacável, quase tão cruel. Mas não o bastante. Ninguém podia igualar Marion.
— Como tem coragem de distorcer dessa maneira as coisas que lhe
contei?
— Não estou distorcendo coisa alguma, apenas perguntando. Se estou
enganada, lamento muito. Mas estou começando a duvidar da possibilidade de
estar enganada.
Wendy encostou-se na pia, olhando, para ele. Michael agarrou-a
subitamente pelos ombros e puxou-a para si.
— Michael. . .
Mas ele não, disse nada, apenas comprimiu a boca contra a dela, ao
mesmo, tempo, em que arrancava a parte de cima do biquíni. Depois, puxou
com toda força a parte de baixo, que no mesmo instante saiu em sua mão. Os
fechos dourados nos lados haviam quebrado. A esta altura, Wendy já estava
alcançando o chão da cozinha, nos braços dele, odiando mais a si mesmo do que
o odiava, por saber no fundo do coração que era justamente o que estava
querendo. Pelo menos Michael estava vivo, pelo menos estava fazendo amor
com ela, qualquer que fosse o motivo, o que quer que custasse. Mas custava
muito e Wendy sabia disso. Estava custando uma parte de sua alma.
E dez minutos depois ainda estavam deitados no chão da cozinha,
ofegantes e cobertos de suor. Wendy podia ouvir o tique-taque do relógio da
cozinha no silêncio. Michael não disse nada. Apenas olhava para o jardim,
parecendo estranhamente triste.
— Você está bem?
Michael é que deveria estar fazendo essa pergunta, mas foi ela quem a
formulou. Todo o caso era uma loucura total e Wendy sabia disso, mas nada
podia fazer para se conter. Às vezes, ela se perguntava o que aconteceria
quando acabasse. Talvez ele mandasse Ben Avery despedi-la. Ela quase que
esperava por isso.
— Michael...
— Hum? Eu... eu sinto muito, Wendy. Há ocasiões em que me comporto
como um asno incomparável.
Havia lágrimas brilhando nos olhos dele.
— Não tenho certeza se posso discordar dessa declaração.
Wendy fitou-o com um sorriso triste e depois beijou-o na ponta do queixo.
— Mas eu o amo, apesar de tudo.
— Pode conseguir alguma coisa melhor, Wendy. — Pela primeira vez em
meses, Michael contemplou-a e parecia estar realmente vendo-a. — Há
ocasiões em que odeio a mim mesmo pelo que lhe estou fazendo. Mas eu...
Michael não conseguiu continuar e Wendy pôs um dedo sobre os lábios
dele.
— Eu sei.
Ele assentiu silenciosamente e levantou-se, enquanto Wendy continuava a
fita-lo do chão da cozinha.
— Michael. . .
— O que é?
O rosto dele estava agora mais suave do que meia hora antes. No final das
contas, Wendy fizera algo por ele.
— Ainda sente saudade dela durante todo o tempo? Michael esperou por
um longo momento antes de assentir, com expressão angustiada nos olhos. E
depois, sem dizer mais nada, ele foi para o quarto, a fim de se vestir. Wendy
levantou-se lentamente. Não se preocupou com o biquíni arrebentado. Afinal, já
lhe servira bastante durante todo o verão e os pequenos fechos dourados
provavelmente não poderiam ser consertados. Sentou-se, nua, num dos bancos.
do bar que separava a cozinha da sala, pensando no que vira nos olhos de
Michael. Quando ele voltou à cozinha, alguns momentos depois, encontrou-a
ainda sentada ali, imersa em seus pensamentos. Wendy levantou a cabeça e no
instante seguinte ficou pesarosa, ao vê-lo usando jeans e uma camisa branca
apertada no pescoço. Michael segurava sua pasta numa das mãos e uma suéter
na outra. A pasta revelou a Wendy que ele iria mesmo para o escritório, apesar
de tudo, apesar de ser um domingo. O suéter servia para indicar que ele ficaria
no escritório até tarde. Nenhuma das duas coisas era uma boa notícia para
Wendy.
— Vai voltar mais tarde?
Wendy odiou a si mesma pela pergunta. Estava pedindo. . . suplicando. E o
pior é que Michael estava sacudindo a cabeça negativamente.
— Provavelmente vou trabalhar até duas ou três horas da madrugada e
depois irei para o meu apartamento. De qualquer forma terei de estar lá pela
manhã a fim de me vestir.
O momento de suavidade de minutos antes havia desaparecido. Era
novamente o mesmo Michael de antes, sempre fugindo. Wendy já o havia
perdido nos 10 ou 15 minutos que haviam transcorrido desde que tinham feito
amor. Era uma situação sem esperança, mas ela detestava ter de renunciar à
luta. Aquele tipo de rejeição só servia para fazê-la querer tentar ainda mais
arduamente, dar ainda mais de si.
— Então até amanhã, no escritório.
Ela se esforçou em não parecer desolada, tentou até mesmo sorrir
enquanto o acompanhava até a porta. Mas sentiu-se satisfeita quando Michael
deixou-a rapidamente, roçando os lábios por sua testa e partindo sem olhar para
trás, porque ela já estava chorando ao fechar a porta. Michael Hillyard era uma
causa perdida.
CAPÍTULO 16

Os campos passavam velozmente por eles, enquanto Peter calcava até o


fundo o acelerador do Porsche preto. Era uma sensação deliciosa, quase como
voar. E não havia mais ninguém na estrada. Agora, saíam para um passeio quase
todos os domingos. Peter pegava-a por volta das 11 horas e seguiam para o sul,
tão longe quanto queriam. Acabavam parando em algum lugar para almoçar e
depois passeavam por algum tempo de mãos dadas, rindo das histórias do
passado que ambos contavam. Finalmente voltavam para casa. Era um ritual
que Nancy passara a adorar. E, de maneira estranha, estava começando
também a amá-lo. Peter era agora uma pessoa muito especial em sua vida.
Estava-lhe devolvendo todos os seus sonhos, assim como lhe proporcionava
alguns novos.
Naquele dia haviam parado perto de Santa Cruz, em um pequeno
restaurante à beira da estrada, decorado como uma estalagem francesa.
Haviam almoçado quiche e salada niçoise, junto com vinho branco bastante
seco. Nancy estava começando a se acostumar a refeições como aquela. Era
algo muito longe da Nova Inglaterra, feiras rurais e contas azuis. Peter Gregson
era um homem de considerável sofisticação. O que era uma das coisas que
Nancy gostava nele. Fazia com que ela se sentisse maravilhosamente frívola,
mesmo com as ataduras e os chapéus esquisitos. Mas já se podia agora ver mais
um pouco de seu rosto. Toda a parte inferior do rosto estava acabada. Somente
a área em torno dos olhos ainda estava coberta por ataduras e esparadrapos,
mas os óculos ocultavam a maior parte. A testa também estava em grande
parte coberta. Contudo, pelo que se podia ver, chegava-se à conclusão de que
Peter Gregson não apenas realizara um milagre, como também fizera um
trabalho primoroso. A própria Nancy estava consciente disso e o simples fato de
saber como começava a parecer proporcionava-lhe uma sensação de confiança
cada vez maior. Usava agora os chapéus em ângulos mais garbosos e passara a
comprar roupas mais vistosas, de um corte mais sofisticado do que antes.
Emagrecera mais três quilos e parecia comprida e esguia, como um lindo gato
da selva. E usava constantemente a sua nova voz. Estava gostando cada vez
mais da nova pessoa em que se estava transformando.
— Quer saber de uma coisa, Peter? Estive pensando em mudar meu
nome.
Nancy fez tal declaração com um sorriso tímido, ao tomar um gole de
vinho. Por algum motivo, a idéia parecera menos absurda ao conversar a
respeito com Faye. Agora, arrependeu-se no mesmo instante por ter abordado o
assunto. Mas Peter prontamente deixou-a a vontade.
— Isso não me surpreende. Você é agora uma moça inteiramente nova,
Nancy. Por que não um novo nome? Já lhe ocorreu algum nome especial?
Peter fitou-a afetuosamente, enquanto acendia um Don Diego da Dunhill's.
Nancy passara a gostar do aroma deles, especialmente depois de uma boa
refeição. Peter a estava introduzindo às melhores coisas da vida. Era uma
maneira deliciosa de amadurecer.
— E então, quem é a minha nova amiga? Como ela se chama?
— Ainda não tenho certeza, mas estou pensando muito em adotar ó nome
de Marie Adamson. O que acha?
Peter pensou por um momento e depois assentiu.
— Nada mau... para dizer a verdade, gosto bastante. Muito mesmo. Como
lhe ocorreu?
— O nome de solteira de minha mãe e o nome de minha freira predileta.
— Mas que, combinação exótica!
Ambos riram e Nancy recostou-se na cadeira com um sorriso satisfeito.
Marie Adamson. Ela gostava muito de seu novo nome.
Observando-a através do véu de fumaça azul, Peter indagou:
— E quando está pensando em mudar o nome?
— Não sei. Ainda não decidi.
— Por que não começa a usá-lo imediatamente? Experimente para ver se
lhe agrada. Poderia, por exemplo, usá-lo em seu trabalho.
Peter parecia excitado com a idéia. Sempre se mostrava excitado quando
conversava a respeito do trabalho dela ou de seu próprio. E para surpresa e
prazer de Nancy, encarava o trabalho dela, à mesma luz que o dele, como se
fossem igualmente importantes. Aprendera a respeitar profundamente o talento
de Nancy.
— Falando sério, Nancy, por que não começa logo?
— A assinar Marie Adamson nos trabalhos que lhe dou? Nancy achava
divertida a maneira séria com que ele encarava tudo o que ela fazia. Peter e
Faye eram as únicas pessoas que conheciam o seu trabalho.
— Pode alargar um pouco seus horizontes.
Não era um assunto novo entre os dois. Nancy levantou a mão, e sacudiu a
cabeça firmemente, sorrindo.
— Não comece novamente.
— Vou continuar a insistir até que seja um pouco mais sensata no assunto,
Nancy. Não pode ficar-se escondendo para sempre. É uma artista, quer trabalhe
com tintas ou com filmes. É um crime esconder seu trabalho da maneira como
está fazendo. Tem de realizar uma exposição.
— Não. Nancy tomou outro gole de vinho e contemplou a vista. — Já tive
todas as exposições que desejava.
— Isso é ótimo... eu a recupero inteiramente para que se esconda num
apartamento pelo resto da vida, tirando fotografias para mim.
— É um destino tão terrível assim?
— Para mim, não. — Ele sorriu gentilmente e segurou-lhe a mão. — Mas
para você, é, sim. Tem talento demais, não deve ser avara com ele. Não o
esconda. Não faça isso a si mesma. Por que não faz uma exposição com o nome
de Marie Adamson? Poderia assim manter o anonimato. Se não gostar da
exposição ou do que lhe acarretar, risque o nome de Marie Adamson e volte a
tirar fotografias para mim. Mas pelo menos faça uma tentativa. Até mesmo
Greta Garbo foi um sucesso antes de se tornar uma reclusa. Dê a si mesma pelo
menos uma chance.
Havia um tom de súplica na voz de Peter que a atraiu. E Peter tinha
razão ao alegar o anonimato de seu novo nome. Talvez isso fizesse toda a
diferença. Mas Nancy ainda sentia que haviam passado por aquilo mil vezes
antes, sem que houvesse qualquer conclusão. Algo nela resistia à idéia de se
tornar novamente uma artista profissional. Fazia com que se sentisse vulnerável.
Fazia-a... pensar em Michael.
— Vou pensar a respeito.
Era a resposta mais positiva que Peter já obtivera em relação a tal
assunto, o que o deixou satisfeito.
— Espero que acabe se decidindo favoravelmente. ... Marie.
Peter fitou-a com um sorriso radiante e ela não pôde deixar de rir.
— É uma sensação estranha ter um novo nome.
— Por quê? Tem um novo rosto. Também estranha isso?
— Não. Ou pelo menos não mais. Graças a Faye e a você consegui
acostumar-me.
A maioria das mulheres daria o braço direito para se acostumar àquele
rosto e ela sabia disso.
— Devo começar a chamá-la de Marie?
Peter estava apenas provocando, até ver uma nova luz nos olhos dela. Era
um brilho travesso, maravilhoso, de vida a borbulhar.
— Para ser franca... deve. Acho que vou fazer a experiência.
— Certo, Marie. Se eu cometer um deslize, pode dar-me um pisão no pé.
— Não há problema. Em vez disso, vou acertá-lo na cabeça com a minha
câmara.
Peter pediu a conta e trocaram um sorriso prolongado e terno. Depois,
passaram pela pequena cidade à beira do mar, espiando as lojas, embrenhando-
se pelas vielas estreitas, entrando em galerias quando encontravam alguma
coisa que lhes parecesse interessante. E por toda parte aonde iam Fred corria
logo atrás deles, igualmente acostumado ao ritual do domingo. Ele sempre
esperava no carro enquanto os dois almoçavam e os acompanhava nos passeios
a seguir.
— Cansada?
Peter fitou-a atentamente, depois que já estavam passeando há uma hora.
Embora ela estivesse gradativamente aumentando a sua resistência, Peter
sabia, mais que qualquer outra pessoa, como se cansava facilmente. Nos
dezessete meses que haviam transcorrido desde o acidente, Nancy fora
submetida a quatorze operações. Mais outro ano se passaria antes que ela
voltasse a ser como antes. Mas quem não a conhecesse bem, não iria suspeitar
de suas fadigas ocasionais. Nancy sempre parecia bastante animada, mas uma
hora de passeio ainda lhe exigia muito esforço.
— Já quer voltar? .
— Por mais que eu deteste admitir, quero, sim.
Ela assentiu tristemente, enquanto Peter lhe pegava a mão. — Daqui a
um ano, Marie, vai conseguir vencer-me em qualquer corrida.
Ela riu, tanto da idéia como da maneira fácil com que ele usou seu novo
nome.
— Aceitarei isso como um desafio.
— Infelizmente, creio que vai ganhar. Possui uma grande vantagem do
seu lado.
— Qual é?
— A juventude.
— O que você também tem.
Ela falou fervorosamente, provocando uma risada de Peter, que sacudiu
lentamente a cabeça bonita.
— Espero que me encare sempre através de olhos tão generosos, minha
cara.
Mas quando ele virou a cabeça, havia uma sombra de tristeza a lhe toldar
os olhos. Ela apenas vislumbrou, mas já conhecia o problema. Não havia como
negar a diferença de idade entre os dois. Não importava o quanto se gostassem,
quão íntimos se houvessem tornado, não se podia negar a diferença, de vinte e
três anos que os separava. Mas Nancy descobrira que não se importava com isso,
até mesmo gostava. Já o dissera antes a Peter e algumas vezes ele chegara a
acreditar. Tudo dependia do ânimo em que estivesse no momento. Mas ele
jamais admitia o quanto isso o perturbava. Nancy era a primeira moça que o
fizera querer ser jovem novamente, livrar-se de uma década ou talvez duas em
sua idade. Haviam sido décadas que ele apreciara intensamente, mas que
descobria agora serem um fardo incômodo diante da juventude dela.
— Nancy...
O novo nome havia sido subitamente esquecido, enquanto ele a fitava com
extrema seriedade, uma indagação em seus olhos.
— O que é?
— Você... ainda sente saudades dele?
Havia tanta angústia nos olhos de Peter ao fazer a pergunta que ela sentiu
vontade de abraçá-lo e dizer-lhe que estava tudo bem. Mas também não podia
mentir para ele. Ficou surpresa ao descobrir que a pergunta lhe trouxe lágrimas
aos olhos, enquanto assentia e dava de ombros.
— Às vezes. Nem sempre.
Era uma resposta sincera.
— Ainda o ama?
Nancy fitou-o firmemente nos olhos, antes de responder:
— Não sei. Lembro-me dele como era, de nós como éramos. Mas nada
disso continua a ser real. Não sou mais a mesma pessoa e ele também não pode
ser. O acidente deve ter deixado nele uma marca profunda. Talvez, se
voltássemos a nos encontrar, acabássemos por descobrir que nada mais restou
do que tínhamos juntos. É algo muito difícil de dizer. A gente fica apenas com
sonhos do passado. Há ocasiões em que eu gostaria de tornar a encontrá-lo só
para deixar tudo para trás. Mas eu acabei chegando à conclusão... de que nunca
mais voltarei a vê-lo.
Ela falou com dificuldade, mas também incisivamente. Fez uma pausa,
antes de arrematar:
— E por isso tenho simplesmente de esquecer os sonhos. — O que não se
consegue facilmente. A angústia nos olhos de Peter era agora ainda maior. De
repente, Nancy começou a se perguntar se ele não teria passado por alguma
experiência similar. Talvez fosse por isso que ele sempre compreendera o que
ela sentia.
— Peter, por que nunca se casou? — Os dois estavam agora caminhando
lentamente pela praia, com Fred em seus calcanhares, inteiramente esquecido.
— Ou não devo perguntar?
— Não, pode perguntar. Acho que foi por muitas razões aparentemente
sensatas. Sou egocêntrico demais. Sempre andei muito ocupado com meu
trabalho, que me absorveu totalmente a vida. Tudo isso e mais alguma coisa:
sempre estou em movimento, não sou o tipo de homem de se acomodar.
— Não sei por que, não acredito nessas alegações.
Nancy fitou-o atentamente e ele sorriu.
— Também não acredito. Mas há um pouco de verdade em todas as
alegações. — Peter fez uma pausa que parecia interminável e depois suspirou.
— Há outras razões também. Há doze anos, apaixonei-me por alguém. Era uma
paciente quando nos conhecemos e senti-me profundamente atraído. Mas evitei
qualquer envolvimento pessoal. Ela nunca soube o que eu sentia até... até muito
mais tarde. E parecíamos fadados a estar nos encontrando constantemente. Em
cada festa, jantar, em todas as reuniões sociais ou profissionais. É que o marido
dela também era médico. Pois ela era casada. Resisti à "tentação", como se
poderia dizer, durante um ano. E depois não consegui mais. Nós nos
apaixonamos e passamos a nos encontrar em segredo. Foi maravilhoso. Falamos
em nos casar, fugir juntos, ter um filho. Mas nunca o fizemos. Queríamos
simplesmente que tudo continuasse como estava. E foi o que aconteceu, por
doze anos. Não posso compreender como conseguimos manter nosso
relacionamento por tanto tempo, mas imagino que é assim mesmo que as coisas
acontecem. Vão simplesmente continuando e continuando até que um dia a
gente acorda e descobre que já se passaram dez anos. Ou onze ou doze anos.
Continuamos a. encontrar motivos para não nos casarmos, para que ela não se
divorciasse... por causa do marido dela, minha carreira, sua família. Havia
sempre motivos. Talvez preferíssemos da maneira como era. Não sei direito.
Peter jamais admitira aquilo antes e Nancy ficou a observá-lo atentamente
enquanto ele falava. Peter olhava para o horizonte e parecia estar a mil
quilômetros de distância dali, mesmo enquanto falava com ela.
— Por que não pararam de se ver? Ou... Talvez tivessem. Nancy corou
quando o pensamento lhe ocorreu. Talvez estivesse se intrometendo. Era
possível que houvesse muita coisa na vida, de Peter que ela não conhecia e não
tinha o direito de inquirir. Nunca pensara nisso antes.
— Desculpe. Eu não deveria ter perguntado.
— Não diga bobagem. — Os olhos e pensamentos de Peter voltaram a se
concentrar nela, com a gentileza habitual. — Não há nada que não possa me
perguntar. Não, ela morreu. Há quatro anos, de câncer. Passei a maior parte do
tempo a seu lado, exceto no último dia. Acho. ... acho que Richard já sabia de
tudo, ao final. Mas não tinha mais qualquer importância. Ambos a tínhamos
perdido. Tenho a impressão de que ele estava grato pelo o fato de ela não tê-lo
deixado anos antes. Nós a choramos juntos. Era uma mulher extraordinária...
muito parecida com você.
Havia lágrimas nos olhos dele quando olhou para Nancy. Ela sentiu que as
lágrimas também, afloravam a seus próprios olhos. Sem pensar, Nancy levantou
a mão e gentilmente removeu as lágrimas do rosto dele. Depois, sem retirar a
mão de seu rosto, inclinou-se e beijou-o suavemente, nos lábios. Ficaram
parados ali por longo momento, em silêncio, os olhos fechados. E depois ela
sentiu que os braços de Peter a enlaçavam. Foi invadida por uma sensação de
paz como há mais de um ano não sentia. Peter beijou-a com a paixão
acumulada de quatro anos. Ele tivera outras mulheres depois que Lívia morrera,
mas não amara a nenhuma. Até conhecer Nancy.
— Sabe que eu a amo?
Peter deu um passo para trás e fitou-a com um sorriso que ela nunca vira
antes. Fê-la sentir-se ao mesmo tempo feliz e triste porque não tinha certeza se
já estava preparada para lhe dar tudo o que estava recebendo. Ela o amava, mas
não... não da maneira como os olhos de Peter diziam que ele a amava.
— Eu também o amo, Peter. À minha maneira peculiar. — O que é
suficiente, por enquanto.
Lívia também lhe dissera a mesma coisa, no início. Havia ocasiões em que
era assustador como as duas se pareciam.
— Faye ajudou-me muito quando ela morreu. Foi por isso que pensei que
Faye poderia também ajudá-la.
Faye o ajudara também por outros meios, mas isso não importava, não
agora.
— E tinha toda razão, Peter. Ela tem sido maravilhosa. Os dois têm sido.
Nancy pegou a mão dele e começaram a subir pela praia.
— Peter. ... eu... eu não sei como dizer isso, mas... . não quero magoá-la.
Eu o amo, mas ainda estou presa ao meu passado. Tenho de me libertar, pouco a
pouco, passo a passo. Pode demorar ainda algum tempo. .
— Não estou com pressa. Sou um homem de extrema paciência.
— O que é ótimo, pois quero que esteja a meu lado quando eu estiver
preparada.
— Pode estar certa de que irá me ver a seu lado. Não se preocupe com
isso.
E a maneira como ele falou fez com que Nancy se sentisse feliz e
satisfeita. Perguntou se não seria possível que o amasse mais do que imaginava.
E enquanto caminhavam pela praia ocorreu-lhe um pensamento súbito.
Assustou-a e ao mesmo tempo excitou-a. Mas ela sabia que queria fazê-lo.
Peter percebeu o brilho nos olhos dela quando o fitou, ao voltarem para o carro.
— E o que exatamente tem escondido na manga?
— Não importa.
— Oh, o que vai ser agora? — Algumas semanas antes, ela lhe telefonara
ao amanhecer, para dizer que ele tinha de se levantar para contemplar o
maravilhoso nascer do sol. — Nancy. . . não, Marie. Daqui por diante, é Marie e
apenas Marie. Mas diga-me uma coisa: Marie é tão extravagante quanto Nancy?
— Mas ainda. Ela tem todos os tipos de novas idéias.
-Oh, não! Por favor, me poupe! — Mas Peter não dava a impressão de que
queria mesmo ser poupado. Jamais. — Não quer dar alguma pista do que está
pensando? Só uma pequena indicação?
Mas ela se limitou a sacudir a cabeça e rir, enquanto Fred pulava em seu
colo e Peter ligava o motor.
— Pois eu também tenho uma idéia para você. O trabalho em seu rosto
será feito no fim do ano. O que me diz de começar o novo ano com uma
exposição de arfe fotográfica de Marie Adamson? Concordaria com essa idéia?
— Pode ser
Ela estava na verdade começando a gostar da idéia. Algo acontecera
naquela tarde que a fazia sentir-se brava novamente. Talvez fosse por ter
contado a Peter como se sentia em relação a Michael, por ter ouvido falar da
mulher que ele amara... por estar nos braços dele, sendo de novo beijada por um
homem.
Vou pensar nessa exposição.
— Pensar, não, tem de prometer. Na verdade... — Peter tirou a chave da
ignição, meteu-a debaixo do seu corpo no assento e virou-se para ela, sorrindo.
— Não vou levá-la para casa até concordar com a exposição. E espero que seja
uma dama para não lutar comigo a fim de pegar a chave.
— Está bem. Você venceu. — Ela afagou o pêlo de Fred e soltou uma
risada. — Eu desisto. Farei a exposição.
— Tão fácil assim?
Peter estava surpreso.
— Tão fácil assim. Mas como vou poder aparecer pessoalmente na
exposição?
— Deixe isso comigo. Negócio fechado?
— Fechadíssimo
Ela confiava nele com seu trabalho, assim como confiara com seu rosto e
sua vida.
— Garanto que não vai-se arrepender, querida. Gentilmente, Peter pegou
o rosto dela entre as mãos, beijou-a e depois tornou a ligar o carro. Fora um dia
maravilhoso.
Voltaram para casa lentamente pela costa. Foi com pesar que Peter
parou o carro diante do prédio dela, às seis horas. Detestava ver aquele dia
terminar, mas queria que ela descansasse.
— Muito bem, minha jovem, tenha um sono tranqüilo esta noite. Quero
vê-la amanhã bem cedo no consultório, alegre e viçosa.
Ele iria remover mais ataduras no dia seguinte e mais duas operações
estavam marcadas para os próximos dois meses. Em dezembro a cirurgia já
estaria encerrada e ela seria "descoberta" em janeiro.
— Não quer subir?
Ela não tinha realmente certeza se queria que ele subisse e ficou aliviada
quando Peter disse que não.
— Vamos jantar em algum dia desta semana. Até lá, já terei notícias para
lhe dar a respeito da exposição.
— Não ficarei desapontada se não tiver.
Peter sorriu e ela e Fred saltaram do carro. Nancy acenou ao se
encaminhar para o prédio. Mas já estava pensando em outra coisa. Pensara a
respeito na praia, ao se encaminharem para o carro, sabia agora que era algo
que tinha de fazer. Algo que queria fazer. Foi diretamente para o armário, sem
tirar o casaco, remexeu atrás das roupas até encontrar. Tirou e ficou olhando
por longo momento, antes de abrir. Estava coberto de poeira e ela sentia medo
de abrir, mas tinha de fazê-lo. Lentamente, puxou o zíper e o portfólio preto
abriu-se a seus pés, revelando esboços, alguns quadros pequenos, trabalhos por
terminar. O que estava procurando encontrava-se no alto da pilha. Sentou-se no
chão e ficou contemplando o trabalho, pensativa. Tencionara dá-lo a Michael
como presente de casamento, um ano e meio antes. A paisagem com o menino
escondido na árvore. Ficou sentada no chão, olhando para o quadro, as lágrimas
escorrendo lentamente por suas faces. Levara dezoito meses para enfrentar
novamente aquele trabalho. Mas tinha conseguido fazê-lo agora e ia terminar o
quadro. Para Peter.
CAPÍTULO 17

Era um dia frio, mas agradável. Marie baixou a aba do chapéu, levantou a
gola do casaco vermelho de lã e percorreu rapidamente os últimos quarteirões
até o consultório de Faye Allison, Fred estava a seu lado, como sempre, a coleira
e a correia exatamente do mesmo tom de vermelho do casaco. Nancy sorriu
para o cachorro, ao virarem a última esquina. Ela estava bastante animada,
com uma disposição que nem mesmo o nevoeiro conseguia arrefecer. Subiu
correndo os degraus do consultório de Faye e entrou.
— Ei, cheguei!
A voz ressoou pela casa simpática e aconchegante e um momento depois
houve uma pronta resposta lá de cima. Marie tirou o casaco. Estava usando um
vestido branco simples, de lã, com o broche de ouro que Peter lhe dera alguns
meses antes. Quase que distraidamente, ela se contemplou no espelho e ajeitou
o chapéu para um ângulo mais gracioso, sorrindo pelo que via. Os óculos haviam
finalmente desaparecido e podia contemplar olhos ao se ver no espelho.
Somente uns poucos esparadrapos estreitos ainda permaneciam em seu rosto,
no alto da testa. E esses também desapareceriam, dentro de poucas semanas.
Estaria tudo acabado. O trabalho chegaria ao fim.
— Está satisfeita com o que vê, Nancy?
Ela percebeu subitamente que Faye estava parada logo atrás, com um
sorriso afetuoso no rosto. Assentiu.
— Acho que estou. Agora, já estou até acostumada comigo mesma. Mas
você não está!
Havia malícia em seus olhos quando se virou e olhou brejeiramente, para
a amiga.
— Como assim?
— Continua a me chamar de "Nancy". É Marie agora, está lembrada?
Oficialmente.
— Desculpe. — Faye sacudiu a cabeça e levou-a para a sala aconchegante
onde sempre conversavam. — Estou sempre me esquecendo.
— Exatamente. — Mas Marie não parecia aborrecida ao acomodar-se
em sua poltrona predileta. — Acho que é muito difícil romper com os velhos
hábitos.
O rosto dela se tornou sombrio ao pronunciar tais palavras e Faye esperou
pelo resto dos pensamentos.
— Estive pensando muito nisso ultimamente. Mas acho que finalmente
consegui superá-lo.
Ela falou baixo, olhando para o fogo, com expressão pensativa.
— A Michael? — Marie limitou-se a assentir e depois finalmente virou a
cabeça, com expressão de intensa seriedade. — o que a leva a pensar que
consegui superá-lo, Marie?
— Acho que tomei essa decisão. Não tenho muita opção. A verdade, Faye;
é que já se passaram quase dois anos desde o acidente. Para ser mais exata,
dezenove meses. E Michael ainda não me encontrou. Não disse à mãe que fosse
para o inferno, que ele tinha de ficar a meu lado e nada mais importava. Em vez
disso, ele simplesmente me deixou de lado. — Os olhos dela procuraram os de
Faye e neles se fixaram. — Ele me largou. E agora tenho de largá-lo também.
— Não é fácil. Esperou muito dele e por muito tempo.
— Por tempo demais. E ele me abandonou.
— E como isso a faz sentir-se em relação a si mesma?
— Acho que bem. Estou furiosa com ele e não comigo.
— Não está mais zangada consigo mesma pelo acordo que fez com a mãe
dele?
Faye estava pressionando numa área delicada e sabia disso, mas era um
problema que não podia ser ignorado.
— Não tive alternativa.
A voz de Marie era dura e fria.
— Mas não censura a si mesma?
— Por que deveria fazê-lo? Acha que Michael censura a si mesmo por ter-
me abandonado? Por nunca ter-se dado ao trabalho de me procurar depois do
acidente? Pensa que isso por acaso o faz passar as noites sem dormir?
— Ainda faz você passar as noites sem dormir, Nancy? É isso o que me
interessa.
— Marie, de uma vez por todas! E não, não faz. Decidi esquecer os
sonhos. Tenho vivido com esse absurdo em mim por tempo demais.
Ela parecia convincente, mas Faye ainda não tinha certeza absoluta de
como a moça realmente se sentia.
— E o que vai fazer agora?
O que tomaria o lugar de Michael? Ou quem? Peter?
— Agora vou trabalhar. Primeiro, vou tirar umas férias no sudoeste,
durante os feriados de Natal. Há algumas paisagens deslumbrantes, por lá e
quero fotografá-las. Já fiz meus planos. Arizona, Novo México. Posso até pegar
um avião e passar uns dois dias no México.
Marie parecia satisfeita ao falar, mas ainda havia alguma dureza em seu
rosto, mascarando uma tristeza. Acabara de sofrer outra perda, ao renunciar
finalmente de modo completo a Michael. Levara muito tempo para chegar a
esse ponto.
— Vou passar cerca de três semanas viajando. Com isso, terei resolvido o
problema dos feriados de fim de ano.
— E depois?
— Trabalho, trabalho e mais trabalho. Isso é tudo o que me preocupa no
momento. Peter já providenciou a exposição para mim. Vai ser em janeiro. E é
melhor você comparecer!
Faye sorriu.
— Acha mesmo que eu perderia sua exposição por alguma coisa deste
mundo?
— Espero que não. Já escolhi para a exposição alguns trabalhos que amo
de verdade. Ainda não viu a maior parte. Nem Peter. Espero que ele também
goste.
— Peter vai gostar. Ele adora tudo o que você faz. O que me leva a uma
indagação, Nan... desculpe, Marie. E Peter? Como se sente em relação a ele?
Marie suspirou, tornou a olhar para o fogo.
— Sinto uma porção de coisas diferentes em relação a Peter.
— Você o ama?
— De certa forma.
— Ele pode algum dia substituir Michael em sua vida?
— Talvez. Estou sempre tentando deixá-lo ocupar o lugar de Michael,
mas algo sempre me impede. Não estou ainda preparada. Não sei, Faye... eu me
sinto culpada por não ter dado mais a Peter. Ele faz tanto por mim... E... sei o
quanto se preocupa comigo.
— Ele é um homem muito paciente.
— Talvez paciente demais. Tenho medo de magoá-lo — Ela fitou
novamente Faye nos olhos. Seus próprios conturbados. — Eu gosto muito dele.
— Então simplesmente terá de conferir o que acontece. Talvez se sinta
mais livre agora que decidiu deixar Michael sair de sua vida. — Faye percebeu
que os músculos em torno da boca de Marie se contraíram, quando ela ouviu tais
palavras. — Marie? Não vai renunciar às pessoas, não é mesmo? Não vai
renunciar ao amor?
— Claro que não. Porque iria fazê-lo?
Mas a resposta foi apressada demais e excessivamente volúvel.
— Não deve jamais fazer uma coisa dessas: Michael lhe falhou quando
mais precisava dele, é verdade. Mas não se esqueça de que ele é apenas um
homem, não todos os homens. É algo que precisa sempre ter em mente. Há
alguém neste mundo para você. Talvez seja Peter, talvez seja algum outro
homem. É unia moça muito bonita e está com 23 anos. Tem uma vida inteira
pela frente.
— É o que Peter também diz. — Mas Marie não dava a impressão de que
acreditava nisso. E quando olhou novamente para Faye, foi com um sorriso
nervoso, que procurava disfarçar ao mesmo tempo o medo e o pesar. — Tomei
também outra decisão.
— Qual foi?
— Em relação a nós. Acho que já consegui fazer o que precisava, Faye.
Falei tudo o que queria por longo tempo. Agora, estou pronta a sair daqui,
empenhar-me a fundo e vencer o mundo.
— Por que não simplesmente desfrutá-lo?
Havia alguma coisa na jovem que ainda preocupava Faye. Ela renunciara
a alguma coisa. Havia algo em que ela não mais acreditava. Fora traída e, em
certo sentido, estava desistindo. Estava disposta a lutar por seu trabalho, mas
não por si mesma.
— Você recebeu um presente maravilhoso, Marie. O presente da beleza.
Não queira escondê-lo por trás de uma câmara.
Mas Marie a estava fitando com expressão dura e implacável.
— Não foi um presente, Faye. Paguei por isso com tudo o que eu tinha.
As duas trocaram votos de Feliz Natal quando Marie foi embora. Mas
ainda havia um eco falso nas palavras, um vazio que ainda perturbava Faye,
quando Marie Adamson ajeitou o chapéu branco e deixou a casa com um aceno
jovial para a sua amiga de dois anos e caminhando para nova vida, deixando para
trás tudo o que outrora amara.
CAPÍTULO 18

Ao deixar o consultório de Faye, Marie pegou um táxi e seguiu direto para


a Union Square. Já fizera a reserva e tudo o de que precisava agora era passar na
loja e pagar a passagem. Seria a primeira viagem que faria em anos, a primeira
desde o fim de semana que passara com Michael nas Bermudas. Fora na Páscoa
e... Ela forçou o pensamento a deixar sua mente, enquanto o táxi descia pela
Post Street, no tráfego intenso do centro da cidade. Fred estava sentado em seu
colo, olhando para os carros que passavam e virando a cabeça de vez em quando
para fitar a dona. Podia sentir algo diferente. Havia uma vivacidade em Marie
que até mesmo o cachorrinho podia perceber. Ela tirou um cigarro da bolsa e
acendeu-o.
— Está bom. aqui, moça?
O motorista havia parado na esquina da Post com a Powell, perto do Saint
Francis Hotel. Marie apressou-se em assentir.
— Está, sim
Ela pagou a corrida, abriu a porta do táxi e deixou Fred pular para a
calçada. Seguiu-o rapidamente, deixou o cigarro cair no chão e apagou-o com o
pé. A loja ficava a poucos passos de distância e um momento depois ela estava lá
dentro. Para variar, não havia fila. Mas também ainda era cedo. Afinal, seus
encontros com Faye eram sempre às 8h45min. Eram... tinham sido... Ela
compreendeu mais uma vez que tudo acabara agora. Estava livre. Não mais iria
consultar uma psiquiatra. O pensamento deixou-a um pouco assustada. Sentia-se
tanto liberta como solitária, assim como comemorar e chorar ao mesmo
tempo.
— Em que posso servi-la? — A moça por trás do balcão fitou-a com um
sorriso, que Marie retribuiu. — Veio pegar passagens?
— Exatamente. Fiz reserva na semana passada. Adamson. . . isto é,
McAllister.
Era estranho usar novamente seu nome antigo. Há dois meses que não o
fazia. Mas até mesmo a viagem era simbólica. Legalmente, seu nome só
mudaria a 1.° de janeiro. Ao voltar, não seria mais Nancy McAIlister, mas sim
Marie Adamson. Para sempre. Mas quando partisse, ainda seria Nancy. Era
quase como uma viagem de núpcias, em que ela iria sozinha. Era o passo final no
processo interminável que se prolongara por quase dois anos. Marie Adamson ia
finalmente nascer. Oficialmente. E Nancy McAllister poderia ser esquecida para
sempre. Michael a esquecera; agora, ela poderia também esquecer-se a si
mesma. Não restava ninguém para lembrar. Peter providenciara tudo. Ninguém
que a conhecera antes poderia reconhecê-la agora. O rosto delicado e
perfeitamente delineado era o de alguém que outras mulheres sonhavam ser,
mas não o de uma pessoa que ela tivesse conhecido ao longo dos últimos 24
anos. Não era mais uma estranha, mas também não era Nancy McAllister. E a
voz também era diferente, mais suave, mais profunda, mais controlada. Era
uma voz sutil, com tons sensuais. Ela gostava da maneira como as pessoas a
escutavam agora, como se tivesse mais a dizer depois que passara a ter uma
maneira diferente de falar. As mãos eram graciosas e delicadas, os movimentos
mais suaves e ágeis, depois das aulas de balé que Peter finalmente lhe permitira
tomar, depois que o trabalho dele ficara bastante adiantado. O ioga acrescentara
algo mais ao todo. E tudo contribuía para rematar a imagem de Marie
Adamson.
— O preço é cento e noventa e seis dólares.
A moça atrás do balcão olhou para o computador e depois para a cliente
de pé a sua frente. Não conseguia tirar os olhos dela. Tinha as feições perfeitas,
um sorriso cativante, uma graciosidade que prendia a atenção de todos quando
se movia. Tudo naquela mulher dava vontade de perguntar: “quem é ela?” Marie
preencheu o cheque, recebeu a passagem e saiu para o sol de dezembro na
Union Square. Levava Fred nos braços, a fim de que ele não se metesse entre
suas pernas enquanto andava. Sorriu para si mesma ao atravessar a praça. Era
um dia maravilhoso e ela tinha uma vida maravilhosa. Ia viajar durante os
feriados de fim de ano, chegara ao fim daquelas operações intermináveis, estava
começando uma vida nova, uma carreira nova. Tinha um apartamento que
amava, um homem a quem amava. Não podia pedir muito mais. Entrou numa
loja com um sorriso no rosto e passos vigorosos, decidida a comprar algo bonito
para si mesma. Um presente de Natal para si. Ou talvez algo para a viagem.
Vagueou de andar para andar da loja de departamentos, experimentando
chapéus, pulseiras, écharpes, casacos, bolsas, um par de botas e um par de
sapatos dourados. Finalmente se decidiu por uma suéter branca de casimira, que
a fez ficar parecendo com Branca de Neve, por sua pele sedosa e os cabelos
pretos. A idéia divertiu-a. E sabia que Peter iria gostar. A suéter moldava seu
corpo de forma bastante atraente. Até mesmo seu corpo mudara ao longo do
último ano, com o balé e o jogo. Parecia ter-se tornado mais rijo e flexível,
fazendo-a parecer comprida e esguia, maravilhosamente esbelta.
Marie desceu novamente para o andar principal, vendo os artigos em
exposição, observando as pessoas. Parou novamente a fim de comprar uma
caixa de bombons para Faye. Era um presente festivo apropriado para o último
dia de tratamento. Escreveu apenas no cartão: "'Obrigada. Com amor, Marie." O
que mais poderia dizer? Obrigada por ajudar-me a esquecer Michael? Obrigada
por me ajudar a sobreviver? Obrigada... Enquanto se entregava a tais
pensamentos, parou abruptamente. Parecia ter visto um fantasma. Quando a
vendedora lhe devolveu o cartão de crédito, ela continuou a olhar fixamente.
Ben Avery estava parado a poucos passos de distância, olhando algumas malas
de mulher bastante caras. Marie permaneceu no mesmo lugar pelo que lhe
pareceu uma eternidade. Depois, chegou mais perto. Tinha de vê-lo, tocá-lo,
ouvir o que ele estava dizendo. Por um momento angustioso, perguntou-se se
ele a reconheceria. Rezou para que tal acontecesse, mas no instante seguinte
compreendeu que era impossível e forçou-se a ficar contente por isso. Assim,
poderia observá-lo, ficar perto dele, por tanto tempo quanto desejasse.
Perguntou-se se Ben teria visto Michael recentemente, se acabara aceitando o
emprego na firma. Aproximou-se, do lugar em que estava Ben e fingiu examinar
algumas pastas de camurça. Os olhos dela não se afastavam do rosto de Ben. De
repente, ele se virou para fitá-la, exibindo seu sorriso jovial de sempre. Mas não
houve qualquer brilho de reconhecimento. Em vez disso, ele a contemplou com
admiração e depois estendeu a mão para, Fred.
— Oi, companheiro.
A voz era tão familiar que Marie sentiu-se quase a desfalecer.
Continuou parada onde estava sentindo o calor da mão de Ben a afagar o
cachorro. Nunca teria imaginado que o simples fato de ver um amigo de Michael
a deixaria assim. Mas era o primeiro vínculo que tinha com ele desde... Ela
piscou os olhos rapidamente, para conter as lágrimas, depois olhou para as malas
que Ben estivera examinando. Sem pensar, Marie levou a mão à corrente que
Ben lhe dera no dia em que deveria casar-se e que ainda usava no pescoço.
— Comprando presentes de Natal?
Ela se sentiu meio tola ao puxar conversa daquela maneira, mas queria
falar um pouco com Ben. Perguntou-se novamente se ele não iria reconhecê-la,
desta vez pela voz. Mas até mesmo ela sabia como sua voz soava diferente
agora. E ele a presenteou novamente com o mesmo sorriso impassível que dois
estranhos costumam trocar.
— Isso mesmo. É para uma jovem, mas não consigo decidir o que
comprar.
— Como é ela?
— Sensacional.
Marie não pôde deixar de rir. Era o mesmo Ben de sempre.
Ela sentiu vontade de perguntar-lhe se desta vez era a sério, mas sabia
que não podia
— Ela tem os cabelos vermelhos e é. mais ou menos de sua altura.
Ele estava novamente contemplando Marie, os olhos percorrendo o corpo
dela quase sofregamente. Marie não sabia se devia rir ou ficar perturbada.
Aquela era uma atitude típica de Ben.
— Tem certeza de que ela está querendo uma mala?
Parecia um presente inteiramente insípido para Marie. Ela estava
esperando ganhar algum presente mais cativante de Peter. Talvez uma nova
lente.
— Vamos fazer uma viagem juntos e por isso eu pensei. . . E a viagem é
uma espécie de surpresa. Por isso, pensei em esconder as passagens na mala.
Cerca de 500 dólares numa mala importada para esconder algumas
passagens? Mas que extravagância, Benjamin Avery! Os últimos dois anos
deviam ter sido muito bons para ele.
— Ela é uma moça de sorte.
— Não. Eu é que sou um cara de sorte.
— Por acaso é uma lua-de-mel?
Marie ficou embaraçada por sua bisbilhotice, mas era maravilhoso
receber todas aquelas notícias dele. E talvez. ... talvez Ben pudesse. ... Ela
manteve o sorriso frio, simpático e impessoal, enquanto ele sacudia a cabeça.
— Não. É apenas uma viagem de negócios. Mas ela ainda não sabe disso.
E então, qual é sua opinião? Levo a mala de camurça marrom ou aquela verde
escura?
— A de camurça-marrom, com a listra vermelha. Acho que é
maravilhosa.
— Também acho.
Ben concordou alegremente com a escolha de Marie e fez sinal para a
vendedora. Comprou três malas da mesma coleção e pediu que fossem enviadas
de avião para Nova York. O que significa que era lá que ele estava morando. O
que deu o que pensar a Marie.
— Obrigado pela ajuda, Miss...
— Adamson. Gostei muito de nossa conversa e peço desculpas se fiz
perguntas demais. É que os feriados de fim de ano sempre produzem um
estranho efeito em mim.
— Em mim também. Mas isso é compreensível, por que é uma das
épocas mais agradáveis do ano. Até mesmo em Nova York, o que já é dizer
muito.
— Mora em Nova York?
— Quando estou em casa. Viajo constantemente, em função de meu
trabalho.
O que ainda não dizia a Marie se ele estava trabalhando para Michael.
Mas ela sabia que não podia perguntar. E subitamente, isso a deixou angustiada,
estar parada ali, tão perto de Ben, querendo saber de alguém que não mais
existia para ela... ou não deveria existir. Ben contemplou-a novamente, como se
houvesse alguma coisa nela que o perturbava. Por um momento, Marie sentiu o
coração parar. Mas o sorriso dele mostrava que não tinha a menor idéia de
quem ela era. Marie puxou um pouco o chapéu para certificar-se de que ele não
poderia ver o último esparadrapo que ainda tinha no rosto. Apertou Fred um
pouco mais nos braços, enquanto Ben continuava a fita-la.
— Sei que é uma loucura perguntar isso, mas. ... posso convidá-la para
tomar um drinque em algum lugar? Meu avião vai partir dentro de algumas
horas, mas podemos dar um pulo até o St. Francis, se...
Marie retribuiu o sorriso, mas já estava sacudindo a cabeça.
— Infelizmente, também tenho de pegar um avião. De qualquer forma,
obrigada pelo convite, Mr. Avery.
E nesse momento o sorriso de Ben dissipou-se lentamente. — Como soube
o meu nome?
— Ouvi a vendedora dizê-lo.
Ela deu a resposta prontamente e Ben deu de ombros, passando a fitá-la
com pesar. Era uma jovem extraordinariamente bonita. E não importava o
quanto ele passara a amar Wendy nos três meses em que mantinham um
romance, ainda podia tomar um drinque com uma moça bonita. Era uma pena
que ela também estivesse deixando a cidade. E depois um pensamento ocorreu-
lhe.
— Para onde está indo, Miss Adamson?
— Santa Fé, Novo México.
Ben pareceu ficar desapontado como um colegial, e ela riu da expressão
dele.
— É uma pena. Eu estava torcendo para que fosse também para Nova
York. Poderíamos pelo menos desfrutar o vôo juntos.
— Tenho certeza de que a jovem que vai ganhar as malas há de apreciar
uma viagem em sua companhia.
Os olhos dela eram de censura, mas sem exagero. Os dois riram desta vez.
— Touché. Talvez na próxima vez possamos voar juntos. — Vem a São
Francisco com freqüência?
Marie estava intrigada.
— Não, mas passarei a vir. — E depois, olhando para as malas e sorrindo,
Ben acrescentou: — Nós passaremos a vir. Minha firma está iniciando um
grande projeto aqui. Provavelmente passarei mais tempo em São Francisco do
que em Nova York.
— Então é possível que voltemos a nos encontrar.
Mas a voz dela soava quase triste. No final das contas, era apenas Ben.
Não importava com que freqüência o visse, ele jamais poderia ser Michael. A
vendedora interrompeu seus devaneios e Marie compreendeu que já estava na
hora de ir embora. Ficou olhando para Ben, enquanto ele preenchia o cheque no
valor indicado pela vendedora. Depois, silenciosamente, apertou o braço dele.
Ben virou a cabeça, surpreso, e Marie sussurrou, a voz quase inaudível
— Feliz Natal.
E no instante seguinte afastou-se do lugar em que tinha ficado a conversar
por quase meia hora. Ben olhou ao redor depois que acabou de preencher o
cheque e ficou surpreso ao constatar que a jovem havia desaparecido. Ela se
afastara abruptamente. Ben ainda procurou pela loja repleta dos fregueses de
Natal, mas não a viu em parte alguma. Marie saíra por uma porta lateral e
naquele momento fazia sinal para um táxi. Sentia-se cansada e deprimida. Fora
uma longa manhã.
Ela deu ao motorista o endereço do veterinário, deixou Fred lá e voltou no
mesmo táxi para seu prédio de apartamentos. Já tinha arrumado a mala. Tudo o
que precisava fazer era pegá-la e seguir para o aeroporto. Sentia-se um pouco
cruel ao deixar Fred para trás, mas desta vez não o queria realmente em sua
companhia. Ia parar em muitos lugares nas três semanas. Era uma viagem que
precisava fazer sozinha. Seus últimos momentos como Nancy McAllister, o fim
de uma vida antiga, o início de uma vida nova. Ela deu uma última olhada pelo
apartamento antes de partir, como se esperasse nunca mais tornar a vê-lo da
mesma maneira. Ao fechar a porta, lentamente, sussurrou uma única palavra.
Disse-a para si mesma, para Ben e Michael, para todas as pessoas que tinha
outrora amado e conhecido... adeus. Havia lágrimas em seus olhos quando
desceu rapidamente a escada, com a sacola da câmara pendurada no ombro e
apertando com força a alça da mala.
CAPÍTULO 19

Ela não permitiu que Peter fosse recebê-la no aeroporto. Assim como
partira sozinha, queria agora voltar sozinha. Houve algo mágico na viagem.
Havia sido um período, de paz e de trabalho árduo. Não conversava com quase
ninguém., limitando-se a observar, a mergulhar nos próprios pensamentos. Mas
à medida que os dias passavam, os pensamentos iam-se tornando menos tensos
do que no dia em que deixara São Francisco. Ver Ben Avery novamente fora um
golpe. Revivera recordações demais. Mas agora estava tudo acabado. E ela
sabia disso. Podia conviver com as recordações. Sua nova vida começara.
O dia de Natal perdeu-se entre muitos outros, enquanto ela tirava
fotografias na neve, em torno de Taos. Sentiu-se tentada a esquiar, mas não o
fez. Prometera a Peter evitar o risco de um acidente ou sol em demasia. E
cumprira a promessa. Assim como Peter também o fizera. Marie o avisara da
data em que voltaria, mas pedira-lhe que não fosse esperá-la no aeroporto. E
Peter não fora. Ela correu os olhos pelo aeroporto, aliviada. Estava sozinha entre
um exército de estranhos. Era confortador estar perdida na multidão. Fazia-a
sentir-se invisível e segura. Passara muito tempo aprendendo a ser invisível no
último ano e meio. Coberta por ataduras na maior parte do tempo, pensava que
era muito importante não ser vista. Agora, atraía mais atenção do que na época
em que estava envolta por ataduras. A maneira como se movia, o chapéu preto
de aba larga que comprara na viagem para ocultar as últimas ataduras na testa,
a calça Levis preta e o casaco de pele de carneiro, tudo contribuía para
aumentar sua visibilidade, simplesmente porque era difícil ocultar o tipo de
aparência que ela possuía. Mas Marie ainda não estava consciente de como era
atraente.
Pegou um táxi ao sair do terminal, deu o endereço ao motorista e
recostou-se no assento, com um suspiro. Estava cansada. Eram quase 11 horas e
levantara-se às cinco horas daquela manhã para tirar fotografias. Olhou para o
relógio e prometeu que estaria na cama por volta de meio-dia. Tinha de estar.
Amanhã seria outro grande dia. Ficara fora até o último momento. Às nove
horas da manhã seguinte, Peter removeria a última atadura. Ninguém mais
percebia que ela ainda estava usando uma atadura. Mas Marie sabia. E agora
até mesmo isso iria desaparecer. Iria passar a manhã sozinha, depois de sair do
consultório de Peter, em seguida voltariam a encontrar-se para um almoço de
comemoração. Não haveria mais operações, pontos, ataduras e esparadrapos.
Era agora como qualquer outra pessoa. Até mesmo seu novo nome tornara-se
legal. Marie Adamson nascera.
O motorista deixou-a na frente do prédio e ela subiu lentamente a escada,
como se estivesse esperando encontrar um apartamento diferente do que
deixara. Mas era o mesmo e Marie ficou um tanto surpresa por experimentar
uma sensação de anticlímax. E depois riu de si mesma. O que estava querendo?
Dissera a Peter que não devia ficar a sua espera. Por acaso esperava uma banda
toda uniformizada escondida no quarto? Peter debaixo da cama? Esperava
alguma coisa, não sabia direito o quê. Tirou as roupas e deitou-se na cama,
pensando no que viera encontrar. Tinha muita coisa na mente. Como seria a sua
vida agora que o trabalho de Peter em seu rosto terminava? E se ela nunca mais
tornasse a vê-lo? Mas isso era absurdo e Marie o sabia. Ele é que providenciara a
exposição dos trabalhos dela, que seria inaugurada no dia seguinte à "revelação"
final do rosto de Marie. Ele gostava dela como pessoa, não apenas como um
trabalho de reconstrução. E Marie sabia disso. Mas sentia-se estranhamente
insegura, deitada em seu quarto, no escuro, querendo a presença de alguém que
lhe dissesse que estava tudo bem, que não estava sozinha, que conseguiria seguir
em frente como Marie Adamson.
— Oh, diabo! Que importância tem se estou sozinha?
Ela se levantou bruscamente e foi contemplar-se no espelho, ao dizer as
palavras. Irritada, pegou a câmara e quase a acariciou. Era tudo o que
precisava. Estava simplesmente cansada da viagem. Era uma estupidez
preocupar-se com a possibilidade de se sentir solitária, com o futuro com Peter.
Com um suspiro, Marie voltou para a cama. Tinha coisas melhores em que
pensar como o seu trabalho.
Marie acordou por volta de seis horas da manhã seguinte. Vestiu-se e saiu
de casa às sete e meia. Ao chegar ao consultório de Peter, às nove horas, já
estivera no mercado de legumes e frutas e no mercado de flores, para tirar
fotografias. E acrescentara mais algumas fotos à sua coleção de Chinatown. E
finalmente fora buscar Fred no veterinário.
— Ei, mas como você parece animada esta manhã... e linda também!
Adorei o casaco!
Peter contemplou com admiração o casaco feito de pele de coiote que
Marie comprara a um preço ínfimo numa reserva do Novo México. Ela estava
ainda de jeans, com uma suéter preta de gola roulê e botas. E usara o chapéu
preto de aba larga até chegar ao consultório. Agora, Marie segurou o chapéu nas
mãos por um momento e sorriu de um jeito que Peter nunca vira antes. Depois
ela equilibrou o chapéu sobre a cesta de papel por uma fração de segundo, antes
de empurrá-lo até o fundo, amassando-o completamente.
— Esta, Dr. Gregson, foi a última vez e nunca mais usarei um chapéu.
Ele assentiu. Podia compreender como aquele gesto era importante.
— Nunca mais terá de usar.
— Graças a você.
Marie sentia vontade de beijá-lo, mas seus olhos diziam tudo o que Peter
precisava saber. E enquanto o fitava, ela descobriu que sentira saudade dele
durante a viagem. Peter era agora uma pessoa diferente para ela. Não mais
continuaria a ser seu médico, depois daquela manhã. Seria um amigo e qualquer
coisa a mais que Marie lhe permitisse. Ainda não haviam resolvido isso, apesar
das muitas vezes com que Peter lhe dissera que a amava. Marie ainda não dera
o último passo e Peter nunca a pressionara.
— Senti muita saudade de você, Peter.
Ela tocou no braço dele gentilmente, ao sentar-se na cadeira que tanto
conhecia. Fechou os olhos e ficou esperando.
Peter contemplou-a por um momento, parado na frente dela. Depois,
sentou-se na cadeira giratória que sempre ocupava.
— Está com pressa esta manhã.
— Depois de 20 meses, também não estaria?
— Eu compreendo, querida, eu compreendo...
Marie ouviu o barulho dos instrumentos delicados na pequena bandeja de
metal e sentiu o esparadrapo sendo lentamente arrancado de sua testa e linha
dos cabelos. A cada milímetro de pele que era libertada, ela se sentia muito
mais livre, até que finalmente percebeu que tudo se desprendia.
— Pode abrir os olhos agora, Marie. E dê uma olhada no espelho. Ela
fizera a mesma coisa mil vezes. A princípio, apenas para ler um pequeno
vislumbre, uma mera promessa, para que em seguida pedaços cada vez maiores
do quebra-cabeças se fossem enquadrando em seus lugares. Porém jamais vira o
rosto de Marie Adamson livre de esparadrapo, ataduras, pontos ou qualquer
outro lembrete do que estava sendo feito. Não via o seu rosto inteiramente
desobstruído desde que havia sido o rosto de Nancy McAllister, quase dois anos
antes.
— Vamos, dê uma olhada.
Era absurdo. Ela estava quase que com medo de olhar. Mas,
silenciosamente, levantou-se e caminhou lentamente até o espelho. Parou ali,
com um sorriso amplo, dois filetes de lágrimas brilhando nas faces. Peter estava
de pé atrás dela, a alguma distância. Queria deixá-la sozinha. Aquele momento
era dela.
— Oh, Peter, está lindo! Ele riu suavemente.
— Não é "está lindo" e sim você está linda, sua tolinha. É agora você.
Marie só podia assentir. Depois, virou-se para fita-lo. Não era tanto o fato
dos últimos esparadrapos terem sido removidos de sua testa, pois não
representara uma mudança tão grande em seu rosto, mas sim porque estava
tudo acabado. Ela era agora inteiramente Marie.
— Oh, Peter...
Sem dizer mais nada, Marie foi aconchegar-se nos braços dele e apertou-o
com força. Ficaram assim, no consultório dele, por longo tempo. Depois, Peter
desvencilhou-se do abraço e gentilmente enxugou as lágrimas dela.
— Está vendo, Peter? Posso até ficar molhada e não me derreto.
— E pode também tomar sol, embora não excessivamente. E pode fazer
tudo o que quiser pelo resto da vida. Qual é a primeira coisa da agenda?
— Trabalho.
Marie soltou uma risada e sentou-se na pequena cadeira giratória que ele
abandonara. Erguendo as pernas até o queixo deu impulso para ficar rodando.
— Oh, Deus, isso é tudo o que estou precisando agora! Ela vai quebrar a
perna no meu consultório!
— Mesmo que eu quebre, querido, de qualquer maneira sairei andando
daqui. Tenho uma vida nova para comemorar esta manhã. .
— Fico contente em saber disso.
E aparentemente Fred também estava contente. Começou a pular,
abanando o rabo, como se tivesse compreendido o que sua dona dissera. Ambos
riram e Peter abaixou-se para afagar a cabeça do cachorro.
— Nosso almoço ainda está de pé?
Havia uma expressão de ansiedade nos olhos dele e Marie ficou comovida.
Compreendia o que ele estava sentindo também. Abandono. Ansiedade. Será que
ela ainda iria querê-lo em sua vida, quando não mais precisasse dele? Peter
parecia-lhe extremamente vulnerável, parado ali. Marie estendeu-lhe a mão.
— Claro que vamos almoçar juntos, seu tolo. Peter... Os olhos de Marie
estavam fixados nos dele. — Sempre haverá tempo na minha vida para você.
Sempre. Espero que saiba disso. Você é a única razão pela qual tenho uma vida.
— Não. Alguém mais é responsável por isso.
Marion Hillyard. Mas Peter sabia o quanto ela detestava ou vir o nome
daquela mulher e por isso absteve-se de pronunciá-lo. Jamais havia
compreendido por que Marie reagia daquela maneira, mas fazia-lhe a vontade
na questão.
— Estou contente por me encontrar em condições de ajudar. E sempre
estarei pronto para ajudar, se precisar de mim... para... para outras coisas.
— Ótimo. Então não se esqueça de que vai ter de me alimentar ao meio-
dia e meia. — A conversa já tinha sido séria por tempo suficiente. Marie
levantou-se e vestiu o casaco de pele de coiote. — Onde vamos nos encontrar?
Peter sugeriu um novo restaurante na zona do porto, de onde poderiam
contemplar rebocadores, barcas e petroleiros cruzando a baía, além das colinas
de Berkeley além.
— Está bom assim?
— Está ótimo. Sou capaz de passar toda a manhã por lá, tirando
fotografias.
— Eu ficaria desapontado se decidisse fazer qualquer outra coisa.
Peter abriu a porta da sala de exame com uma mesura e Marie piscou-lhe
um olho ao sair. Mas ela não foi diretamente para a área do porto como dissera
que faria. Em vez disso, foi para o centro, a fim de fazer compras. Subitamente,
sentira o desejo de comprar algo fabuloso para usar no almoço com Peter. Era o
dia mais especial de sua vida e queria desfrutá-lo plenamente. No táxi, verificou
o talão de cheques e sentiu-se feliz por ter conseguido ganhar algum dinheiro
antes do Natal, com seu trabalho. Isso lhe permitiria ser extravagante para si
mesma e ainda comprar alguma coisa para Peter. Encontrou um vestido bege
de casimira que se moldava em seu corpo de maneira espetacular, sob o casaco
de pele. Parou em um cabeleireiro e ajeitou os cabelos. Era a primeira vez em
anos que usava os cabelos penteados para trás, revelando todo o seu rosto.
Comprou brincos de ouro grandes e um cordão bege de cetim com uma concha
de ouro pendurada. Com mais os sapatos e uma bolsa, de camurça e beges, além
do perfume que mais gostava, e estava pronta para o almoço com o Dr. Peter
Gregson ou com qualquer outra pessoa. Era uma mulher que teria paralisado o
coração de qualquer homem.
Sua última parada foi na Shreve's, onde encontrou, como se fosse algum
plano pré-estabelecido, exatamente o que estava procurando, mas não
imaginava que poderia descobrir. Era uma pequena medalha de ouro, feita para
berloque de corrente de relógio. Marie sabia que Peter possuía um relógio de
bolso de que gostava muito e usava ocasionalmente. Ela mandaria gravar a data
mais tarde, mas por enquanto isso seria suficiente. Mandou embrulhar para
presente, pegou um táxi e chegou no restaurante no instante mesmo em que
Peter estava sentando. Ela teve a sensação de que poderia explodir de alegria ao
observar o rosto dele contemplando-a enquanto se aproximava. Havia diversos
outros homens no restaurante que também a contemplavam com admiração,
mas nenhum com a ternura de Peter Gregson.
— É mesmo você?
— Cinderela ao seu dispor. Aprova?
— Se aprovo? Estou atordoado. O que fez esta manhã? Andou fazendo
compras?
— Exatamente. Este é um dia muito especial.
Marie fazia coisas com os sentimentos dele que Peter pensara que fossem
impossíveis. Ele sentiu vontade de beijá-la ali mesmo no restaurante. Em vez
disso, apertou-lhe a mão com força e sorriu, um sorriso prolongado e feliz.
— Estou imensamente contente por vê-la feliz, querida.
— E pode estar certo de que me sinto mesmo muito feliz.
Mas não é apenas por causa do rosto. Há também a exposição amanhã e...
e meu trabalho, minha vida... e... você.
Ela pronunciou a última palavra suavemente.
Aquele momento significava tanto para Peter que ele tinha ele atenuar a
solenidade.
— Eu só entro depois de todas essas coisas, hem? E onde Fred se inclui?
Ambos riram e Peter pediu Bloody Marys. Depois, pensou melhor e mudou
o pedido para champanhe.
— Champanhe? Santo Deus!
— Por que não? E fechei o consultório pelo resto da tarde. Estou tão livre
quanto é possível... a menos, é claro... — Peter nem mesmo pensara antes em
tal possibilidade. — ... que você tenha outros planos.
— Para fazer o que, pelo amor de Deus?
— Trabalhar?
Peter sentiu-se acanhado só de fazer a pergunta.
— Não seja bobo. Vamos divertir-nos bastante hoje.
Ele riu ao ouvir a resposta.
— O que, por exemplo? Diga o que mais gostaria de fazer. Marie pensou
um pouco, mas não conseguiu encontrar qualquer boa idéia. Depois, porém,
fitou-o com um sorriso brejeiro e disse:
— Vamos à praia.
— Em janeiro
— Claro. Afinal de contas, estamos na Califórnia e não em Varmont.
Podemos ir de carro até Stinson e darmos um passeio pela praia.
— Está certo. Não resta a menor dúvida de que você é uma pessoa fácil
de satisfazer...
Mas os passeios pela praia com Peter haviam-se tornado algo muito
especial para Marie e ela queria um lugar bastante especial para entregar-lhe o
presente. Só que não tinha certeza se conseguiria resistir até lá. Mas o fez.
Esperou até o final da tarde, quando estavam passeando de mãos dadas pela
praia varrida pelo vento. O casaco de pele protegia Marie da brisa constante que
passara a soprar com a chegada do nevoeiro.
— Tenho uma coisa para você, Peter.
Ele a fitou com uma expressão de surpresa quando ela parou de andar.
Parecia não estar entendendo direito, até que ela lhe estendeu a caixa pequena.
— Mandarei gravar depois, se não se incomodar...
— Marie, isso é demais. Não deveria... eu não queria... Peter estava
comovido e constrangido ao abrir a caixinha. Ficou deliciado ao ver o lindo
berloque. Passou o braço pelos ombros dela, apertando firmemente.
— Por que fez uma coisa dessas? — murmurou ele, em tom suave de
censura.
— Porque você é um imprestável que nunca fez nada por mim.
Peter sorriu da expressão maliciosa nos olhos dela e desta vez abraçou-a,
para um beijo longo e terno, que dizia tudo o que sentia. E desta vez também
Marie beijou-o como nunca o fizera antes, com todo o seu corpo, assim como
com o coração. O que o fez desejá-la com intensidade que mal podia controlar.
— É melhor tomar cuidado, minha jovem, ou vou violentá-la aqui na
praia.
Marie abriu o casaco com um sorriso provocante e riu.
— E daí?
Peter apenas riu e tornou a abraçá-la. Marie era uma mulher
extraordinária e valera a pena esperar por ela. Ele podia agora deixar que seus
sentimentos aflorassem, pois Marie não era mais sua paciente.
— Marie... querida...
Ela o silenciou com um beijo demorado e faminto. Peter desvencilhou-se
por um momento, perguntando-se se não estaria vendo na reação dela
simplesmente o que estava querendo. Mas havia uma corrente de desejo intenso
entre os dois, a tal ponto que ele sabia que não estava imaginando.
— Vamos. ... talvez seja melhor voltarmos.
Marie assentiu e seguiu-o de volta ao carro. Mas a expressão dela não era
tão sombria quanto a de Peter— E quando chegaram ao apartamento dela,
Marie virou-se para Peter com um sorriso.
— Tenho mais uma coisa para você, Peter. Gostaria que subisse, se tiver
tempo.
— Tem certeza de que é isso o que quer?
— Absoluta.
Ela subiu a escada na frente dele, em silêncio. Ao abrir aporta do
apartamento, não acendeu a luz. Atravessou a sala de estar, virou o cavalete
junto à janela e depois acendeu a luz. O que Peter viu foi a paisagem com o
menino sentado na árvore, parcialmente oculto pela folhagem. Marie acabara o
quadro para ele antes de partir de férias, mas o estava reservando para aquele
dia, se não mesmo para aquele momento — Peter fitou-o como se não estivesse
compreendendo.
— É para você, Peter. Comecei-o há muito tempo. E acabei-o para você.
— Oh, querida...
Peter aproximou-se do quadro com os olhos brilhando e uma expressão
gentil no rosto, como se não pudesse acreditar no que Marie fizera por ele. Fora
um dia repleto de emoções e surpresas. Para os dois...
— Não posso aceitar. Já tenho uma boa parte do seu trabalho. Se ficar
dando tudo para mim, não terá coisa alguma para a exposição.
— Você tem fotografias, Peter — Isso é diferente. É um sinal do meu
renascimento. É a primeira vez que voltei a pintar. E esse quadro...
representava muito para mim. Quero que fique com ele. Por favor. Havia
lágrimas nos olhos dela agora. Peter foi abraçá-la.
— É um quadro maravilhoso. Muito obrigado. Não sei direito o que dizer.
Você tem sido maravilhosa para mim.
— Não precisa dizer nada.
Marie beijou-o de uma maneira que dizia tudo e desta vez Peter teve
certeza. Não precisava perguntar. Simplesmente levou-a para o quarto e,
trêmulo de desejo, tirou-lhe as roupas. À luz suave do crepúsculo, com a música
das buzinas de nevoeiro soando à distância, eles se amaram.
CAPÍTULO 20

— Pode levantar o zíper, querido?


Ela lhe virou as costas graciosas e Peter beijou-a no ombro.
— Eu preferia baixar o zíper ao invés de levantar.
— Ora, Peter, não temos tempo para isso agora.
Marie fitou-o afetuosamente e ambos riram. Peter estava vestindo
smoking e Marie usava um lindo vestido preto decotado, com mangas largas e
justo na cintura, de um tecido que permitia divisar sua silhueta, embora nada
mais além. Era um vestido espetacular e Peter estava devidamente
impressionado.
— Detesto dizer-lhe isso, meu amor, mas ninguém vai olhar para o seu
trabalho. Todos a estarão contemplando.
— É mesmo?
Peter riu diante da incredulidade óbvia dela e ajeitou a gravata que usava
sobre a camisa azul-clara. Juntos, formavam um casal extremamente atraente.
— Penduraram tudo da maneira como você queria? Ainda não tive tempo
de perguntar.
Quando Peter acordara, às oito horas daquela manhã, Marie já tinha saído.
Mas ao final da tarde, ele chegara ao apartamento dela e uma hora na cama
mostrara a ambos que mal tinham começado a saciar a fome de um pelo outro.
Depois, haviam partilhado meia hora no banho, comentando um para o outro o
que tinham feito durante o dia. Era quase como se vivessem daquela maneira há
anos.
Marie sorriu enquanto o observava terminar de se arrumar.
— Penduraram, sim. Tudo foi ajeitado exatamente como eu queria.
Graças a você. Tenho a impressão de que você lhes disse que tomassem todo
cuidado "ou então". Você ou Jacques. — O dono da galeria era um dos mais
antigos e íntimos amigos de Peter. — Eu me sinto totalmente mimada. A
própria artiste.
— É assim mesmo que deve sentir-se. Seu trabalho vai ser muito
importante, querida. Vai ver só.
E Marie realmente viu. As críticas nos jornais do dia seguintes foram
espetaculares. Estavam sentados no apartamento dela, tomando o café da
manhã, sorrindo enquanto liam.
— Eu não disse? — Peter parecia ainda mais satisfeito consigo mesmo do
que com Marie. — Você é uma estrela.
— Ficou doido, Peter?
Marie sentou-se no colo dele, amarrotando o jornal. Tinha no rosto um
sorriso de felicidade.
— Espere mais um pouco. Todo agente de fotógrafo do país estará lhe
telefonando para você na próxima semana.
— Acho que perdeu o juízo, querido.
Mas Peter não se enganara. Já na segunda-feira Marie estava recebendo
telefonemas de Los Angeles e Chicago. Ela não podia aceitar as ofertas, mas
estava-se divertindo intensamente com tudo. E cada telefonema que recebia
deixava-a ainda mais satisfeita. Até o telefonema de Ben Avery. Foi na tarde de
quinta-feira, quando ela estava revelando alguns filmes. Ouviu o telefone tocar,
enxugou as mãos e foi atender na cozinha. Pensava que fosse Peter. Ele dissera
que telefonaria para informar a que horas poderiam encontrar-se naquela noite.
Peter tinha alguma reunião marcada para o final da tarde. Mas Marie tinha
trabalho suficiente em seu laboratório para mantê-la ocupada até o encontro
com Peter. Recebera uma verdadeira avalanche de encomendas como
conseqüência da exposição.
— Alô?
— Miss Adamson?
— Ela mesma.
Marie não reconheceu a voz e o sorriso que estava exibindo para Peter
rapidamente se desvaneceu.
— Não sei se já nos conhecemos ou não, mas encontrei uma certa Miss
Adamson na última vez em que estive aqui. Na loja de departamentos Maxim's.
Eu estava fazendo algumas com pras de Natal... comprei umas malas e... Ben
sentia-se um idiota rematado e Marie não disse nada, pelo que pareceu uma
eternidade. .
Então era. Ben. Oh, diabo! Como ele a descobrira? E por que se dera ao
trabalho de procurá-la?
— Eu. ... era a mesma pessoa?
Marie sentiu-se tentada a dizer que não. Mas por que mentir?
— Creio que pode ter sido.
— Ótimo. Assim, pelo menos já nos conhecemos. Estou telefonando
porque acabei de ver o seu trabalho na Galeria Montpelier, na Post Street. Fiquei
bastante impressionado, assim como minha colega, Miss Townsend.
Marie ficou subitamente curiosa. Seria a moça para quem ele comprara
as malas? Mas ela sentia que não podia perguntar. Em vez disso, soltou um
suspiro e sentou-se
— Fico satisfeita que tenha gostado, Mr. Avery.
— Está lembrada do meu nome!
Oh, Deus!
— Tenho excelente memória para nomes.
— O que é muita sorte minha. Minha memória é como uma peneira e
pode estar certa de que no meu negócio isso é uma tremenda desvantagem. De
qualquer forma, eu gostaria muito de nos encontrarmos, para discutirmos o seu
trabalho.
— Em que sentido?
Que diabo havia para discutir?
— Estamos fazendo um centro médico aqui em São Francisco, Miss
Adamson. É um projeto de grandes proporções e gostaríamos de aproveitar o
seu trabalho em todos os prédios com o tema básico da decoração. Não sabemos
ainda direito como, mas temos certeza de que queremos as suas fotos. E
gostaríamos de discutir o assunto consigo. Pode ser a grande tarefa de sua
carreira.
Ben falava com um tremendo orgulho e estava obviamente esperando por
uma exclamação de espanto no outro lado da linha, um grito de entusiasmo,
qualquer coisa enfim... menos o que ouviu.
— Entendo. E qual a firma que está representando? .
Ela esperou, prendendo a respiração. Mas já sabia a resposta, antes
mesmo que Ben falasse:
— Cotter-Hillyard, de Nova York.
— Não, obrigada, Mr. Avery. Não é minha seara.
— Por que não? — Ben parecia desconsertado. — Não estou
compreendendo.
— Não quero entrar em detalhes, Mr. A very, mas posso assegurar-lhe de
que não estou interessada.
— Podemos encontrar-nos para discutir o assunto?
— Não.
— Mas já falei com... eu...
— A resposta é não. Obrigada por seu telefonema.
E depois, sem dizer mais nada, Marie repôs o fone no gancho o voltou até
a porta de seu laboratório improvisado. Não ia trabalhar para eles. Era tudo o
que precisaria agora. Não podia mais ouvir falar de Michael Hillyard. Ele não a
quisera como esposa, ela não o queria como seu patrão. Ou como qualquer outra
coisa.
O telefone voltou a tocar antes que ela fechasse a porta do laboratório.
Sabia que só podia ser Ben novamente, mas queria resolver o problema de uma
vez por todas. Voltou à cozinha, pegou o fone e quase gritou:
— A resposta é não! Já lhe disse isso!
Mos a voz do outro lado da linha era a de Peter e não a de Ben.
— Mas o que eu fiz?
Peter estava meio rindo, meio aturdido. Marie sentiu que relaxava ao
ouvir a voz dele.
— Oh, querido, desculpe! É que acabei do receber um telefonema que me
deixou irritada.
— Uma decorrência da exposição?
— Mais ou menos.
— A galeria não deveria estar fornecendo o seu telefone para malucos.
Por que eles não se limitam a anotar os recados?
Peter parecia contrariado.
— Acho que vou sugerir isso a Jacques.
Peter ficou transtornado ao pensar em algum maluco procurando Marie.
— Você está bem?
— Estou, sim. .
Mas ela parecia abalada e Peter podia perfeitamente. percebê-lo.
— Estarei aí dentro de uma hora. Não atenda ao telefone até eu chegar.
Cuidarei de tudo, se alguém telefonar depois disso.
— Obrigada, meu amor.
Os dois trocaram mais algumas palavras e depois desligaram. Marie
descobriu-se dominada por um sentimento de culpa por não ter contado a
verdade a Peter. Ben Avery não era nenhum maluco, apenas trabalhava para
Michael Hillyard. Mas ela não queria revelar a Peter que fora justamente isso
que a deixara transtornada. Ele não precisava saber como ela ainda ficava
abalada com qualquer coisa que tivesse relação com Michael. De qualquer
forma, estava melhorando a cada dia. Felizmente, Ben não voltou a telefonar
naquela noite. Mas voltou a surpreendê-la no dia seguinte, quando ela se
aprontava para começar a trabalhar.
— Oi, Miss Adamson. Sou eu, Ben Avery, novamente.
— Pensei que já tivesse deixado tudo isso acertado ontem à noite. Não
estou interessada.
— Mas nem mesmo sabe qual é o trabalho em que não está interessada!
Por que não almoça com minha colega e comigo, para podermos discutir o
assunto? Isso não pode prejudicá-la em nada, não é mesmo?
Claro que pode, Ben! E como pode!
— Lamento muito, mas estou ocupada e não posso aceitar o trabalho.
Marie não estava cedendo um palmo sequer. Sentado em seu quarto no
hotel, Ben virou os olhos para Wendy. Não havia qualquer esperança. E ele não
podia compreender por quê. Que diabo ela tinha contra a Cotter-Hillyard? Não
fazia o menor sentido.
— E não podemos nos encontrar amanhã?
-Escute, Ben... Mr. Avery ... eu não quero aceitar a missão. Não estou
interessada. E não quero discutir o assunto com você nem com sua colega nem
com qualquer outra pessoa. Estou sendo bem clara?
— Infelizmente, sim. Mas acho que está cometendo um tremendo erro
profissional. Se tivesse um agente, tenho certeza de que ele lhe diria justamente
isso.
— Mas acontece que não tenho um agente. Portanto, não tenho de ouvir
qualquer pessoa que não a mim mesma.
— É exatamente esse o seu engano, Miss Adamson. Mas continuaremos
em contato.
— É muita gentileza sua interessar-se por meu trabalho, mas pode estar
certo de que a insistência de nada adiantará.
— Está bem, está bem. Mas vou-lhe deixar um cartão. Se mudar de idéia,
pode me telefonar. Aqui ou em Nova York. Ficarei no Saint Francis até o final do
mês e depois voltarei ao meu escritório em Nova York. Há bastante tempo para
discutirmos o assunto.
Talvez para você, mas não para mim, pensou Marie. São dois anos tarde
demais.
— Infelizmente, não concordo com a sua opinião.
E, novamente, Marie desligou. Desta vez, ao voltar para o laboratório ela
deixou o fone fora do gancho.
CAPÍTULO 21

Era uma noite gelada de fevereiro quando Ben Avery, aconchegado em


seu casaco como uma tartaruga, correu da saída do metrô até seu escritório na
Park Avenue. Estaria nevando antes do final do dia, algo que Ben podia sentir no
ar. Estava tão escuro que parecia que a luz do dia mal conseguira emergir.
Ainda não eram oito horas da manhã. Mas ele tinha muito trabalho a fazer. Era
o seu primeiro dia no escritório desde que voltara da Califórnia e a grande
reunião com Marion estava marcada para as 10h30min daquela manhã. De
modo geral, ele só tinha praticamente boas notícias para Marion.
Já havia várias pessoas no saguão do prédio e o elevador estava quase
cheio quando ele subiu. Mesmo àquela hora, o mundo dos negócios já estava em
atividade. Depois do ritmo mais lento de São Francisco e até mesmo de Los
Angeles, era um choque estar de volta ao próprio centro das atividades
incessantes. Em Meca, as pessoas começavam cedo. Mas pelo menos parecia
não haver ninguém mais trabalhando no andar de Ben, pois não notou atividade
alguma enquanto percorria o corredor comprido e atapetado, revestido de
madeira, até a sala que Marion lhe dera quando ingressara na firma. Era menor
e não tão bonita quanto a sala de Michael, mas era muito bem decorada. Marion
não poupava despesas nas salas da Cotter-Hillyard.
Ben olhou para o relógio enquanto tirava o casaco. Depois, esfregou as
mãos; para esquentá-las um pouco. Não havia a menor possibilidade de
acostumar-se aos ventos gelados e ao frio úmido de Nova York. Havia invernos
em que se perguntava se algum dia voltaria a se sentir quente e por que
suportava tudo aquilo se havia cidades como São Francisco, em que as pessoas
viviam num mundo de sonho temperado, durante o ano inteiro. Até mesmo a
sua sala parecia gelada. Mas ele não tinha tempo a perder. Esvaziou o conteúdo
da pasta em cima da mesa e começou a separar os documentos e relatórios.
Tudo transcorrera esplendidamente. com uma única exceção, de importância
menor. E talvez ainda pudesse fazer algo para remediá-la. Ele olhou novamente
para o relógio depois de algum tempo e ficou pensativo. Depois, resolveu tentar.
Seria um grande golpe se pudesse entrar na reunião com aquela última boa
notícia.
Ben trouxera algumas amostras do trabalho de Marie Adamson. Tivera de
comprá-las na galeria. Mas não tivera a menor dúvida de que o investimento
valera a pena. Assim que Marion e Michael dessem uma olhada no trabalho dela,
verificassem a qualidade extraordinária, a própria Marion provavelmente
entraria em cena e persuadiria a jovem a aceitar o contrato. Ele sorriu ao
pensar nisso, sem saber que a possibilidade provocaria um calafrio na espinha de
Marie.
Ele discou o número e ficou esperando. Era uma loucura o que estava
fazendo. Eram 5h15min da manhã em São Francisco, mas talvez, se a pegasse
meio adormecida...
— Alô?
Ela parecia meio tonta de sono ao atender o telefone.
— Ahn. Miss... Miss Adamson, lamento profundamente telefonar a esta
hora. Aqui é Ben Avery, de Nova York. Vou ter uma reunião esta manhã com a
diretora da nossa firma e desejo mais que qualquer outra coisa, comunicar que
vai trabalhar conosco no centro médico. E pensei que...
Mas Ben já sabia, a esta altura, que cometera um tremendo erro. Podia
senti-lo no silêncio que o subjugou no outro lado da linha. Um momento depois,
Marie Adamson começou a falar:
— Às cinco horas da manhã? Telefonou para falar-me de sua reunião
com... pelo amor de Deus, mas que loucura é essa? Já não lhe disse que não? Que
diabo terei de fazer agora? Arrumar um telefone que não conste do catálogo?
Enquanto a escutava, Ben fechou os olhos, e parte por constrangimento,
em parte por algo mais. A voz. Era estranha. Não sabia por que, mas parecia-lhe
familiar. E não soava como a voz de Marie Adamson. Era uma voz mais alta,
mais jovem, diferente o bastante para despertar-lhe uma recordação que o
perturbou. Com quem ela parecia? Mas Ben não conseguiu se lembrar.
— Será que não entendeu meu recado?
As palavras furiosas trouxeram-no de volta ao presente e à realidade de
que estava de fato falando com Marie Adamson, a qual estava longe de se
mostrar satisfeita com o seu telefonema.
— Lamento muito. Sei que foi um absurdo telefonar a esta hora, mas tinha
a esperança de que...
— Já lhe dei a resposta: não. Não quero escutar, discutir, pensar ou voltar
a falar consigo a respeito de seu centro médico. E agora me deixe em paz!
E com isso Marie desligou. Ben ficou imóvel, com o telefone mudo na
mão, sorrindo envergonhado.
— Muito bem, pessoal, estraguei tudo.
Ele pronunciou tais palavras para si mesmo. Ou pelo menos foi o que
pensou. Não tinha visto Michael encostado tranqüilamente na porta aberta.
— Seja bem-vindo de volta ao lar, Ben. O que você estragou?
Michael não parecia particularmente preocupado. Ao contrário, parecia
bastante satisfeito por ver o amigo. Entrou na sala e foi acomodar-se numa das
confortáveis poltronas de couro
— É um prazer vê-lo de volta, Ben.
— E eu sinto o maior prazer em voltar. Mas faz um frio tremendo nesta
cidade. Depois de São Francisco, é capaz de eu nunca mais me ajustar.
— Pois daqui por diante. vamos tomar cuidado de mantê-lo na rota
sulista, ó delicado. — Michael sorriu para o amigo, antes de acrescentar: — E o
que era o telefonema que acabou de dar?
— O único cabelo em minha sopa nesta viagem. — Bem passou a mão
pelos cabelos, num gesto de irritação, e recostou-se na cadeira — Tudo
transcorreu absolutamente como queríamos. Sua mãe vai ficar extasiada com
os relatórios. Só houve uma exceção. Admito que se trata de um problema
menor, mas eu queria que tudo fosse perfeito.
Devo começar a me preocupar?
— Não. Estou apenas contrariado. Encontrei uma artista, uma jovem que
é uma fotógrafa maravilhosa. Ela possui de fato um talento espetacular, não é
apenas uma garota com uma Browie. É sensacional. Vi a exposição que ela está
realizando neste momento em São Francisco e pensei em contratá-la para a
decoração do saguão de todos os prédios. Era a base fotográfica com que todos
concordamos na última reunião, antes de eu partir.
E o que aconteceu?
— E ela me disse que não estava interessada, nem mesmo em discutir o
trabalho.
Ben estava desolado ao dar a informação.
— Por quê? É comercial demais para ela?
Michael parecia não estar impressionado...
— Nem mesmo sei por quê. Ela simplesmente ficou furiosa logo na
primeira vez em que telefonei. Simplesmente não faz o menor sentido.
Mas Michael estava sorrindo, com expressão divertida.
— Claro que faz sentido, meu ingênuo amigo. Ela está-se resguardando
para conseguir mais dinheiro. Sabe quem somos e por isso calcula que, se bancar
a difícil, pode arrancar-nos um contrato vultoso. Ela e mesmo tão boa assim?
— A melhor que existe. Trouxe algumas amostras de seu trabalho. Tenho
certeza de que você vai adorar.
— Neste caso, é possível que ela consiga o que está querendo, Mostre-me
as amostras depois. Primeiro, há algo que preciso pergunta-lhe
Michael parecia momentaneamente sério. Era um assunto que há
semanas estava pensando em levantar.
— Algum problema?
Ben havia percebido imediatamente o ânimo do amigo.
— Não. Para dizer a verdade, eu me sinto um idiota só de perguntar.
Mostra como tenho estado por fora das coisas. Mas. . . há alguma coisa entre
você e Wendy?
Ben esquadrinhou o rosto dele por um momento, antes do responder.
Michael parecia curioso, mas não magoado. É claro que Ben soubera do caso de
Wendy com Michael. Mas não era segredo que Michael jamais gostara
realmente dela. Mesmo assim, Ben achara um tanto estranho ficar com o refugo
do amigo. Era a primeira vez que isso acontecia e desde o início não tinha a
menor idéia de como Michael reagiria, ao descobrir. E a verdade era que ele e
Wendy estavam apaixonados. Haviam passado um mês sensacional juntos, na
viagem de negócios à Califórnia. Zombeteiramente, Wendy classificara a viagem
de lua-de-mel.
— E então, Avery, o que está havendo? Ainda não respondeu a minha
pergunta.
Mas agora havia um pequeno sorriso contraindo os lábios de Michael. Ele
já sabia qual era a resposta.
— Eu me sinto um idiota por não ter-lhe contado antes. Mas a resposta é
sim. Isso o incomoda, Michael?
— Por que deveria? Sinto-me um tanto constrangido por admitir. ... ora,
que não me tenho mantido muito a par das coisas. Tenho certeza de que Wendy
lhe contou como fui maravilhosa mente atencioso e gentil.
Ele parecia amargurado ao pronunciar as últimas palavras, mas o tom
com que Ben lhe respondeu foi extremamente gentil.
— Wendy nunca disse nada, exceto que pensava que você não era um
homem muito feliz. Isso não chega a ser exatamente um choque para nós dois,
não é mesmo, companheiro? — Michael assentiu, em silêncio. — Não me
intrometi em seu caso com ela, Michael. Quero que tenha certeza disso. Vocês
dois já tinham deixado de se encontrar há algum tempo. E se quer saber a
verdade, sempre tive uma queda por Wendy.
— Desconfiei disso quando a contratou. Wendy é uma moça sensacional.
Melhor do que eu merecia. — Michael sorriu nova. mente. — E provavelmente
melhor também do que você merece. Ei, espere um instante! — Havia agora
um brilho de pura malícia em seus olhos. — Por acaso a coisa é séria?
Ben sorriu também para o amigo e depois assentiu.
— Acho que sim.
É mesmo? Está pensando em casar-se?
Michael estava aturdido. Onde estivera? Por que não havia notado coisa
alguma? É claro que Ben passara um mês fora, mas mesmo assim... A verdade é
que ele não prestava a menor atenção às coisas assim há dois anos.
— Essa não! Vai mesmo casar-se, Avery? Tem certeza?
Não falei que já está acertado. Mas estamos pensando a respeito. E eu
diria que todas as probabilidades são a favor. Tem alguma objeção?
Mas ambos sabiam que ele estava apenas brincando. O momento de
constrangimento já havia passado.
— Não tenho absolutamente qualquer objeção. — Michael continuou
sentado, sacudindo a cabeça e sorrindo. — Tenho a impressão de que perdi uma
página aqui e ali. Ou será que vocês foram excepcionalmente discretos?
— De jeito nenhum. É que você tem andado excepcionalmente ocupado.
Só pensa em trabalhar, jamais em se divertir. Isso o deixará rico e famoso, mas
totalmente fora de contato com as fofocas do escritório.
Ben estava agora zombando apenas parcialmente de Michael e sabia
disso,
— Poderia ter-me contado tudo, Ben.
— Tem razão e sinto muito. Mas quando chegar o momento da grande
notícia, eu lhe direi. Por falar nisso, não quer ser meu...
Ben parou de falar abruptamente. Teve vontade de morder a língua pelo
que começara a perguntar. Ia ser o padrinho de casamento de Michael na noite
do acidente e agora quase pedira ao amigo que fosse o seu padrinho.
— Não tem importância. Há bastante tempo para se pensar nessas coisas.
Michael levantou-se, assentiu e foi apertar a mão do amigo. Mas havia
novamente algo sombrio oculto em seus olhos. Ele sabia perfeitamente o que
Ben estivera prestes a perguntar.
— Parabéns, meu caro. — O sorriso era genuíno, assim como a angústia.
— E não se preocupe com a fotógrafa de São Francisco. Se ela é realmente tão
boa quanto você diz, vamos oferecer-lhe um contrato vultoso e um bom negócio
de tal forma que ela não poderá deixar de ceder. Ela está simplesmente
bancando li difícil para arrancar-nos mais dinheiro…
— Espero que você esteja certo.
— Confie em mim, pois estou mesmo certo.
Michael retirou-se, enquanto Ben ficava pensando no que haviam
conversado. Sentia-se melhor agora que Michael sabia. Lamentava apenas., sua
falta de tato. Mesmo depois de todo aquele tempo, qualquer referência a Nancy
causava explosões de agonia nos olhos do amigo. Odiava a si mesmo por ter
provocado tal situação, mas parecera uma pergunta bastante natural para fazer
e não pensara duas vezes. Sacudiu a cabeça, pesaroso, depois voltou a se
concentrar no trabalho em sua casa. Tinha apenas uma hora antes da grande
reunião com Marion. Teve a impressão de que se haviam passado apenas alguns
momentos quando Wendy bateu na porta aberta e chamou-o com um sorriso.
— Vamos embora, Ben. Temos de estar na sala de Marion dentro de cinco
minutos.
— Já? — Ele levantou os olhos nervosamente do trabalho e sorriu ao
contemplá-la. Wendy era tudo o que sempre desejara — Antes que eu me
esqueça, contei a Michael esta manhã.
Ele parecia bastante satisfeito consigo mesmo.
— Contou o quê?
A mente de Wendy estava totalmente concentrada no centro médico de
São Francisco e na reunião com Marion. As reuniões com a grande deusa branca
da arquitetura sempre a deixavam apavorada.
— Contei a nosso respeito, sua tola. E tenho a impressão de... que ele até
ficou satisfeito.
— Fico contente por isso.
Wendy na verdade não se importava, mas sabia que isso significava muito
para Ben. Ela não mais se importava absolutamente com Michael, de um jeito
ou de outro. Ele fora cruel e insensível, totalmente ausente de todos os
momentos que haviam passado juntos. Era quase como se nada jamais tivesse
acontecido com os dois.
— Está pronto para a reunião?
— Mais ou menos. Tentei conversar novamente com a tal Adamson esta
manhã. Ela me mandou para o inferno.
— O que é uma pena.
Conversaram a respeito enquanto seguiam pelo corredor até o elevador
particular que dava acesso à torre de marfim de Marion, na cobertura do prédio.
Tudo ali era da cor de areia, até mesmo o elevador, totalmente atapetado,
chão, teto e paredes. Era como viajar para cima em um útero silencioso,
luxuoso. Chegaram finalmente ao andar que alojava o gabinete de Marion, com
uma vista espetacular. Wendy podia sentir as palmas das mãos ficarem úmidas
de suor na pasta que estava levando. Marion Hillyard sempre a fazia sentir-se
assim, não importava o quão simpática se mostrasse. É que Wendy já vira o que
havia por baixo de todo o controle e charme de Marion.
— Está nervosa?
Ben fez a pergunta num sussurro, enquanto dobravam o corredor e se
aproximavam da porta de vidro e cromo que dava para a sala de reuniões de
Marion.
— Pode apostar que sim.
Ambos riram um do outro e depois ocuparam seus lugares na sala
comprida, repleta de plantas. Havia um Mary Cassatt numa parede, um Picasso
no período inicial em outra e à frente dele estendia-se toda Nova York, uma
vista espetacular, que sempre deixava Wendy estonteada, toda vez que sentava
ali, no 65º andar. Era como decolar num avião, exceto pelo silêncio. Marion
parecia estar sempre cercada pelo silêncio.
Havia vinte e duas pessoas sentadas ao longo da mesa de reuniões de
tampo de vidro fumê, quando Marion finalmente entrou na sala, flanqueada por
George, Michael e sua secretária Ruth. Ruth carregava diversas pastas e George
e Michael estavam conversando. Pouco a pouco, George vinha entregando o
comando da firma a Michael e estava surpreso ao descobrir como isso o aliviava.
Somente Marion parecia interessada no grupo e correu os olhos pelos rostos,
para certificar-se de que estavam todos presentes. Parecia ter naquele dia a
mesma cor de areia da decoração, mas Wendy presumiu que fosse
simplesmente a palidez típica de Nova York. Ficara tão acostumada a ver rostos
bronzeados na Califórnia que era um pequeno choque retornar a Nova York e
compreender como todos estavam pálidos em pleno inverno da costa do
Atlântico.
Mas Marion parecia tão elegante quanto sempre, num vestido que devia
ser Givenchy ou Dior, bem simples, de lã preta, contrastando com as quatro
fieiras de pérolas grandes e perfeitamente iguais. O verniz das unhas era escuro e
ela parecia estar usando pouca maquilagem. Até mesmo Michael estava
achando Marion extremamente pálida, provavelmente por estar trabalhando
demais naquele projeto e em dez outros ao mesmo tempo. A mãe fazia questão
de envolver-se em todos os trabalhos da firma. Ela era assim e estava acabado.
E Michael parecia estar seguindo em suas pegadas. Marion admirava a
dedicação total do filho ao trabalho, nos últimos dois anos. Era assim que os
impérios bem sucedidos se mantinham saudáveis, recebendo o sangue daqueles
que o acalentavam. Os guardiões sagrados. Os que cuidavam do Santo Graal.
Marion foi a primeira a falar. Pegou a primeira pasta na frente de Ruth e
começou a interrogar os participantes da reunião, departamento por
departamento, discutindo os vários problemas que haviam surgido desde a
última reunião, verificando as soluções. Tudo transcorreu sem problemas, até
que ela chegou a Ben. Marion ficou imensamente satisfeita com o que ele e
Wendy haviam alcançado em São Francisco, os resultados de suas, reuniões,
todos os novos desenvolvimentos. Marion foi conferindo as informações com
uma lista que tinha a sua frente, olhando de vez em quando para Michael, com
extrema satisfação. O trabalho de São Francisco ia aos poucos adquirindo uma
forma esplendida
— Só tivemos um problema.
Ben falou um pouco baixo demais e todos os olhos prontamente se fixaram
nele.
— É mesmo? E qual foi?
— Uma jovem fotógrafa. Vimos o trabalho dela e gostamos muito.
Queríamos discutir a possibilidade de contratá-la para o trabalho de arte do
saguão de todos os prédios do centro. Mas ela não quis nem mesmo conversar
conosco.
— O que isso significa?
Marion estava visivelmente contrariada.
— Apenas isso. Quando soube por que eu estava telefonando, ela quase
bateu o telefone na minha cara.
Marion alteou as sobrancelhas, inquisitivamente.
— Ela sabia quem você representava?
Como se isso pudesse mudar tudo. ... Michael disfarçou um sorriso, assim
como Ben. Marion tinha um orgulho tão grande da firma que estava convencida
de que todos desejavam trabalhar com eles.
— Sabia. Mas receio que isso não a fez mudar de idéia. Se houve alguma
mudança, foi aparentemente a de deixá-la ainda mais irritada.
— Irritada?
Pela primeira vez naquela manhã havia um pouco de cor no rosto de
Marion, embora sua expressão fosse sombria. Quem essa tola jovem pensava que
era, recusando-se a trabalhar para a Cotter-Hillyard?
— Talvez irritada seja a palavra errada. Talvez fosse mais apropriado
dizer que isso a apavorou.
Não era bem isso, mas atendia à necessidade do momento. Para
apaziguar Marion. As duas manchas vermelhas nas faces dela começaram a se
desvanecer, para alívio de todos, especialmente de Ben.
— Vale a pena insistir nela?
— Acho que sim. E, trouxemos algumas amostras de seu trabalho para
apresentar. Creio que todos vão concordar comigo.
— Como conseguiu as amostras do trabalho, dela se a jovem nem mesmo
quis discutir com você a possibilidade de trabalhar para nós?
— Compramos as fotos na galeria que está expondo os trabalhos dela. Foi
uma extravagância, mas se houver algum problema, terei a maior satisfação em
comprar pessoalmente, da firma. Ela trabalha excepcionalmente. Wendy foi até
uma mesa perto da parede dos fundos e voltou com um portfólio de tamanho
considerável, do qual tirou três fotografias a cores excepcionais, que Marie tirara
em São Francisco. Uma delas era uma cena no parque, uma composição
bastante simples. Mostrava um velho sentado num banco, contemplando
algumas crianças a brincarem. A foto poderia ter sido sentimental, mas não o
era. Transmitia uma imensa compaixão. A segunda era uma cena a beira do
cais, a vitalidade da multidão não conseguindo ofuscar o sorridente vendedor de
camarões que aparecia em primeiro plano. E finalmente havia uma vista
tremeluzindo ao crepúsculo, a cidade como turistas e habitantes adoravam ver.
Ben não disse nada. Simplesmente arrumou as fotografias de pés e depois
recuou. Estavam ampliadas e assim todos podiam ver como o trabalho era
excepcional. Até mesmo Marion ficou em silêncio por longo tempo, antes de
finalmente assentir.
— Você tem razão. Vale a pena insistir para que ela trabalhe conosco.
— Fico contente que tenha concordado. — Michael?
Marion virou-se para o filho, mas ele parecia inteiramente absorvido em
seus pensamentos, enquanto contemplava as fotografias. Havia algo de
obcecante e familiar na qualidade daquela arte, na natureza dos temas. Michael
não sabia direito o que era, mas imediatamente deixou-o pensativo e ele se
empenhou em livrar-se de tal ânimo. Não sabia explicar por que as fotografias o
perturbavam daquela maneira, mas não podia deixar de concordar também que
se tratava de um trabalho extraordinário e iria contribuir favoravelmente para
qualquer prédio que levasse a assinatura da Cotter-Hillyard.
— Gosta das fotografias tanto quanto eu, Michael? — insistiu Marion. Ele
olhou para mãe e assentiu, silenciosamente, com uma expressão sombria.
Marion não perdeu tempo. — Ben, o que temos de fazer para contratá-la?
— Eu gostaria de saber.
— Dinheiro, é claro. Que tipo de mulher é ela? Chegou a encontrá-la
pessoalmente?
— Por mais estranho que possa parecer, conheci-a na vez anterior em
que estive em São Francisco. É uma jovem de beleza impressionante. De uma
maneira. quase irreal. Eu diria que é quase perfeita demais. Tudo o que se pode
fazer é ficar a contemplá-la. É equilibrada, simpática... quando quer ser... e
obviamente talentosa. Era pintora antes de começar a dedicar-se à fotografia.
As roupas pareciam dispendiosas e por isso imagino que não está exatamente
passando fome. Na verdade, o dono da galeria comentou que ela tem uma
espécie de patrocinador. Um homem mais velho. Se não me engano, ele falou
que era médico, um cirurgião plástico famoso. De qualquer forma, ela não
precisa do dinheiro. E isso é realmente tudo o que sei.
— Então talvez a resposta não seja o dinheiro. — Mas subitamente
Marion parecia tão pensativa quanto o filho. Ocorrera-lhe um pensamento
absurdo, irracional. Seria uma coincidência horrível, mas se fosse mesmo... —
"Qual é a idade dessa moça?
— É difícil dizer. Ela estava usando um chapéu grande na primeira vez
que a encontrei, ocultando parcialmente o rosto. Mas eu diria que tem... não sei
direito, talvez seus 24 ou 25 anos. No máximo 26. Por quê?
Ben não conseguia absolutamente entender o motivo daquela pergunta.
— Estava apenas curiosa. Tenho certeza de que você e Wendy fizeram o
melhor que era possível, Ben. É bem possível que loja inteiramente inútil
qualquer esforço de contratar essa jovem. Mas eu gostaria de tentar. Deixe-me
todas as informações e entrarei em contato com ela pessoalmente. Tenho
mesmo de ir a São. Francisco, no decorrer das próximas semanas. Talvez ela se
sinta mais constrangida Por repelir uma velha do que um rapaz. Ben sorriu ao
ouvir a referência a "velha". Marion Hillyard podia parecer qualquer coisa menos
uma velha. Talvez uma mulher vigorosa de meia-idade, um verdadeiro dínamo,
mas jamais seria uma vovó encarquilhada. Mas o sorriso dele tornou-se sombrio
ao observar o rosto de Marion. Ela estava-se tornando mais pálida a cada
momento e ele subitamente se perguntou se Marion não estaria doente. Mas
Marion não lhe deu tempo nem a qualquer outra pessoa de indagar qualquer
coisa. Levantou-se, manifestou sua satisfação pela reunião, pegou as informações
de que precisava com Ben e agradeceu o comparecimento de todos. Quando ela
se retirou, a reunião estava encerrada. A parta margeada de latão da sala de
Marion fechou-se silenciosamente atrás de Ruth um momento depois, enquanto
os outros encaminhavam-se lentamente para o elevador, comentando os
progressos do trabalha em São. Francisco... Todos pareciam satisfeitos e
aliviadas pelo fato de Marion também estar. Geralmente, sempre havia alguém
que lhe provocava a fúria. Mas naquele dia ela se mostrara excepcionalmente
suave e Ben descobriu-se novamente a imaginar que talvez Marion estivesse
doente. Ele foi um dos últimos a deixar a sala de reuniões, depois que Wendy já
descera. Abruptamente, Ruth saiu correndo da sala de Marion e fez sinal para
Michael. Ela parecia terrivelmente assustada.
— Mr. Hillyard! Sua mãe... está...
Mas foi George quem reagiu primeiro, correndo literalmente para a sala
de Marion, com um Michael aterrado e Ben em seus calcanhares. E assim que
entraram na sala, foi George novamente quem sabia o que fazer. Sabia onde
estavam as pílulas, que deu prontamente a Marion, com um copo com água,
amparando-a, com a ajuda de Michael, da cadeira na mesa até o sofá. Marion
tinha uma palidez entre cinza e esverdeada e parecia encontrar a maior
dificuldade para respirar. Por um momento de terror, Michael descobriu-se a
pensar que a mãe estava morrendo... As lágrimas afloraram a seus olhos. Ele
correu para a telefone a fim de chamar o Dr. Wickfield, mas Marion acenou
debilmente do sofá e falou num sussurro quase inaudível:
— Não, Michael, não chame Wick. Acontece... a todo instante.
Michael olhou imediatamente para George. Aquilo era novidade para ele,
mas não. devia ser para George. Se fosse, George não saberia onde encontrar as
pílulas, o que fazer. Oh, Deus! Até que ponto se tornara totalmente alheio ao
mundo ao seu redor nos últimos meses? Olhando para a mãe, pálida e trêmula no
sofá, Michael se perguntou qual seria a gravidade da doença dela. Sabia que
Marion procurava freqüentemente o Dr. Wickfield, mas sempre imaginara que
fosse para certificar-se de que estava em boas condições físicas, não porque
tivesse algum problema mais grave. E o problema dela certamente parecia ser
grave. Um olhar para o pequeno vidro de pílulas que George deixara em cima da
mesa confirmou os temores de Michael. As pílulas eram de nitroglicerina, o
tratamento habitual de problemas cardíacos.
— Mamãe... — Michael sentou-se numa cadeira ao lado dela e segurou-
lhe a mão...— Isso acontece com freqüência?
Ele estava quase tão pálido quanto Marion, mas ela abriu os olhos e sorriu-
lhe, depois para George. Era evidente que George sabia de tudo.
— Não se preocupe com isso — A Voz ainda era suave, mas um pouco
mais forte agora. — Estou bem.
— Sei que não está bem. E quero saber mais sobre o que você tem
Parado ali perto. Ben ficou achando que estava a se intrometendo onde
não. devia , mas também não queria retirar-se. Estava aturdido demais pelo que
presenciara. A grande Marion Hillyard, no final das contas, era humana. E
parecia terrivelmente vulnerável e frágil, deitada ali, no vestido preto elegante e
caríssimo, que contribuía para fazê-la parecer ainda mais pálida. Ela estava que
nem papel enquanto conversava com o filho, mas os olhos estavam mais vivos
que um momento antes.
— Mamãe... Michael pretendia obviamente insistir no assunto, mas
Marion não o deixou continuar:
— Está tudo bem, querido, está tudo bem...
Ela procurou respirar um pouco mais fundo e lentamente sentou-se no
sofá, voltando a pôr os pés no chão e fitando diretamente os olhos do filho único.
— É o meu coração. Sabe que há anos, tenho problemas.
— Mas nunca foi sério.
— Pois agora é. — Marion falou como se isso não tivesse qualquer
importância. — Posso viver para me tornar uma velha implicante. Como posso
também não chegar até lá. Somente o tempo poderá dizer. Enquanto isso, as
pílulas ajudam-me a continuar e vou seguindo em frente. Isso é tudo o que há
para se dizer.
— Há quanto tempo isso vem acontecendo?
— Há algum tempo. Wick começou a se preocupar há cerca de dois anos,
mas o problema agravou-se bastante este ano.
— Pois então eu quero que você pare de trabalhar. — Michael parecia um
garoto obstinado, olhando para a mãe com uma expressão preocupada. —
Imediatamente.
Ela se limitou a rir para o filho e depois sorriu para George. Mas desta vez
o rosto do seu aliado indicava que ele também estava extremamente
preocupado.
— Não há a menor possibilidade, querido. Continuarei aqui, até não
agüentar mais. Há muito o que fazer. Além do mais, eu acabaria enlouquecendo
se ficasse em casa. O que iria fazer durante o dia inteiro? Assistir a filmes
horríveis na televisão e ler revistas de cinema?
— Parece perfeito para você. — Todos riram. — Ou então. ... — Michael
olhou atentamente para a mãe e depois para George, antes de acrescentar: —
Vocês podiam aposentar-se e casar-se, começando a se divertirem um pouco,
para variar.
Era a primeira vez que Michael reconhecia abertamente as atenções que
George dispensara a Marion ao longo dos últimos vinte anos. George ficou
vermelho, mas não parecia contrariado.
— Michael! — A mãe parecia quase ser novamente a mesma Marion de
sempre. — Você está constrangendo George.
Mas, estranhamente, ela também não parecia chocada ou assim com a
idéia.
Seja como for, a minha aposentadoria está fora de questão. Sou jovem
demais para isso, quer esteja ou não doente. Acho que ainda vai ter de me aturar
por muito tempo.
Michael já sabia que perdera a batalha. Mas só ia ceder depois de opor o
máximo de resistência.
Neste caso, pelo menos seja um pouco sensata e pare de viajar. Não
precisa ir a São Francisco. Posso cuidar de tudo pessoalmente. Não queira fazer
tudo por si mesma. Fique em casa e cuide um pouco mais de si mesma.
Marion limitou-se a rir e levantou-se, caminhando até sua mesa. Parecia
abalada, cansada e pálida ao sentar-se na cadeira, enquanto todos a observavam
com profunda preocupação.
— Eu gostaria que vocês se retirassem e parassem de parecer tão
sentimentais. Todos vocês. Tenho muito trabalho a fazer. O que,
aparentemente, não acontece também com vocês.
— Vou levá-la para casa, mamãe. Pelo menos por hoje. Michael parecia
beligerante enquanto a fitava, mas Marion sacudiu a cabeça firmemente.
— Não vou, Michael. E agora trate de sair daqui ou mandarei George
expulsá-lo. — George achou graça da idéia. — Posso ir embora mais cedo, mas
não vou sair agora. Assim sendo, agradeço a sua preocupação e tudo o mais.
Ruth!
Ela apontou para a porta, que a secretária obedientemente abriu. Um por
um, impotentes, todos saíram. Marion era mais forte que todos eles e sabia
disso...
— Marion...
George parou na porta, com uma expressão preocupada nos olhos
— Pois não?
O rosto de Marion suavizou-se ao fitá-lo e ele sorriu.
— Não quer ir para casa agora?
— Daqui a pouco.
Ele assentiu.
— Voltarei dentro de meia hora.
Marion sorriu, mas mal pôde esperar que a porta se fechasse atrás dele.
Não havia em sua mente a menor dúvida sobre o motivo que causara o ataque.
Não podia mais ficar excitada com coisa alguma. Estava realmente se tornando
um transtorno terrível. Ela olhou para o relógio, enquanto discava o número que
Ben lhe fornecera. Escutou o telefone tocar três ou quatro vezes. Não sabia por
que tinha tanta certeza. Desde o momento em que Ben começara a descrever
Marie Adamson... Tentaria encontrar-se com a moça quando fosse a São
Francisco. Talvez então pudesse ter certeza absoluta. Ou talvez não. Talvez as
mudanças tivessem sido grandes demais. Perguntou-se se realmente saberia. E
nesse momento a moça atendeu o telefone. Marion respirou fundo, fechou os
olhos e falou suavemente. Ninguém poderia imaginar, ao ouvi-la, que sofrera um
ataque apenas meia hora antes. Como sempre, Marion Hillyard estava no
controle total de si mesma.
— Miss Adamson? Aqui é Marion Hillyard, de Nova York. A conversa foi
breve, fria e constrangida. Ao desligar, Marion não sabia nada mais que antes.
Mas iria saber. Dentro de três semanas exatamente. Haviam marcado um
encontro para as quatro horas da tarde de terça-feira, dentro três semanas.
Marion anotou em sua agenda, depois recostou-se na cadeira e fechou os olhos.
O encontro poderia nada revelar-lhe, mas por outro lado. . . havia algumas coisas
que ela tinha de dizer. Só esperava viver por mais três semanas.
CAPÍTULO 22

O relógio parecia bater interminavelmente, na sala de estar da suíte do


Fairmont. A vista da baía e do Condado de Marin além era espetacular, mas
Marion Hillyard não estava interessada em paisagens. Estava pensando na
moça. O que teria acontecido com ela? Como seria a sua aparência agora? Será
que Gregson realmente operara as maravilhas que prometera dois anos antes?
Bem Avery vira uma estranha ao se encontrar com Marie Adamson. Mas será
que Michael poderia ainda reconhecê-la? E será que ela agora estava agora
apaixonada por outro homem ou então, como Michael, tornara-se amargurada e
afastada do mundo? Marion pensou novamente no filho, enquanto esperava pela
estranha que poderia ser na realidade a moça que Michael outrora amara. E se
não fosse? Podia ser qualquer pessoa, uma fotógrafa de São Francisco que atraíra
a atenção de Ben Avery. Talvez a teoria dela estivesse errada. Talvez...
Marion cruzou e descruzou as pernas, depois pegou novamente a bolsa
para tirar outro cigarro. A cigarreira era nova. George lhe dera de presente de
Natal. Uma cigarreira de ouro, com as suas iniciais gravadas com safiras
maravilhosas. Marion acendeu o cigarro com o isqueiro que combinava com a
cigarreira, deu uma tragada profunda e depois recostou-se na poltrona por um
momento, os olhos fechados. Estava exausta. Fora um longo vôo pela manhã e
deveria ter proporcionado a si mesmo um dia de descanso, antes de encontrar-
se com a jovem. Mas estava ansiosa demais para adiar o encontro por mais um
dia. Tinha de saber de qualquer maneira.
Ela olhou novamente para o relógio em cima da cornija da lareira. Eram
16h15min. Ou seja, 19h15min em Nova York, Michael ainda devia estar
trabalhando. Avery já teria saído para namorar aquela jovem do departamento
de design de interiores. Marion contraiu os lábios ao pensar neles. Avery não era
um rapaz compenetrado, como Michael. Mas também... Ela suspirou. Mas
também Avery não era infeliz como Michael. Será que ela cometera um erro?
Teria feito uma loucura dois anos antes? Teria exigido demais da moça? Não.
Provavelmente não. Era a moça errada para Michael. E com o tempo, talvez
ele encontrasse outra. Não havia razão para que isso não acontecesse. Michael
certamente possuía tudo o que era necessário: aparência, dinheiro, posição. Ia
ser o presidente de uma das principais firmas da América. Era um homem de
poder e talento, simpatia e charme.
O rosto, de Marion abrandou-se novamente, enquanto pensava no filho.
Como Michael era bom e forte... e como era solitário. Ela também podia
percebê-lo. Ele chegava até mesmo a manter certa distância da própria mãe.
Era como se uma parte dele jamais houvesse voltado ao convívio das outras
pessoas. Pelo menos as bebedeiras e os períodos de isolamento haviam cessado,
mas apenas para serem substituídos por uma determinação sombria e
angustiada, que transparecia visivelmente nos olhos de Michael. Como um
homem que se empenhara por tempo demais a vencer o deserto, determinado a
consegui-lo, mas não mais sabendo por quê. E, no entanto, Michael tinha tudo
para ser feliz, todos os motivos para desfrutar a vida. Mas jamais tirava tempo
para desfrutar qualquer coisa. Marion nem mesmo tinha certeza se o filho
gostava do trabalho, pelo menos da maneira como ela gostava. Ou da maneira
como o pai e o avô de Michael haviam gostado. Ela voltou a pensar no marido,
com profunda ternura. Depois, lentamente, seus pensamentos se deslocaram
para George. Como George fora maravilhoso com ela nos últimos anos. Teria
sido impossível continuar em seu trabalho sem a ajuda de George. Ele removia
os fardos dos ombros dela tão freqüentemente quanto era possível, deixando-lhe
apenas as decisões importantes, o trabalho criativo. E a glória. Marion sabia
quantas vezes George fizera isso por ela. Era um homem de grande força e, ao
mesmo tempo, de profunda humildade. Ela se perguntou por que não prestara
maior atenção a todas as virtudes de George uma dúzia de anos antes. Mas
nunca houvera tempo. Para George ou para qualquer outro. Não desde a morte
do pai de Michael. Talvez, no final das contas o filho não fosse tão diferente dela.
Marion estava sorrindo para si mesma quando a campainha da porta da
suíte interrompeu-lhe os pensamentos. Ela teve um sobressalto, como se
houvesse esquecido por um momento onde estava. Eram 16h25min. A moça
estava 25 minutos atrasada. Mas, secretamente, Marion sentia-se satisfeita por
ter podido passar esse tempo sozinha.
Ela ajeitou o rosto numa máscara distinta e caminhou calmamente até a
porta. O vestido de seda azul-marinho e as quatro fileiras de pérolas caíam nela
à perfeição, assim como as unhas impecáveis, a maquilagem discreta que a fazia
parecer mais com 45 anos do que beirando os 60 anos. Ainda seria uma bela
mulher dentro de 20 anos, se vivesse até lá. Nada podia vencer Marion Hillyard,
nem mesmo o tempo. Ela deu os parabéns a si mesma por isso enquanto abria a
porta para a jovem elegante com o portfólio de artista nas mãos.
— Miss Adamson?
— Exatamente. — Marie assentiu com um pequeno sorriso tenso. — Sra.
Hillyard?
Mas ela sabia. Não vira Marion naquela noite de maio porque seus olhos
estavam vendados, mas a conhecia bastante das fotografias no apartamento de
Michael. Teria reconhecido a mãe dele até num beco escuro em Tóquio. Aquela
era a mulher que atormentara seus sonhos por dois anos. Aquela era a mulher
que quisera outrora como sua mãe e amiga. Mas isso não mais acontecia.
— Como tem passado? — Marion estendeu a mão fria e firme.
Apertaram-se as mãos cerimoniosamente, ainda na porta, antes que Marion
fizesse um gesto na direção do interior da suíte.
— Não quer entrar?
— Obrigada.
As duas mulheres se fitaram com interesse e cautela. Marion sentou-se
numa cadeira perto da mesa. Mandara providenciar chá e refrescos para a sua
convidada. Parecia muito trabalho para uma jovem que já lhe custara quase
meio milhão de dólares. Se é que se tratava da mesma moça. Ela a fitou
atentamente, mas nada conseguiu descobrir. Não havia qualquer semelhança
com nenhuma das fotografias que vira ao longo dos anos. Aquela não era a
mesma moça. Ou pelo menos não parecia ser. Mas Marion recostou-se para
observá-la e escutar. Jamais esqueceria aquela voz entrecortada e abalada da
ocasião em que tinham. feito o acordo.
— O que posso oferecer-lhe pra beber? Chá? Soda! Ou podemos pedir um
drinque, se preferir.
— Não, obrigada, Sra. Hillyard. Prefiro apenas...
Mas a voz de Marie se desvaneceu, enquanto as duas se fitavam, o
pretexto do encontro quase esquecido, a mulher mais velha avaliando a mais
moça, observando-lhe os movimentos, a textura e jeito dos cabelos, tomando a
contemplar novamente a impressão global. Era uma jovem extremamente
bonita, em roupas visivelmente dispendiosas. Marion descobriu-se a perguntar a
si mesma se o dinheiro que fornecia para a moça sobreviver não estaria sendo
gasto em trajes assim. O vestido de lã era obviamente de Paris, a bolsa de
camurça e os sapatos eram de Gucci, a capa bege era simples, revestida com
uma pele escura que Marion julgou ser de gambá americano.
— Está usando um casaco muito bonito, que deve ser mais do que
suficiente para esta cidade. Invejo imensamente o clima ameno de São
Francisco. Quando parti, Nova York estava sob meio metro de neve. — Marion
exibiu um sorriso cativante para a jovem, antes de acrescentar: — Conhece
Nova York?
Era uma pergunta com segundas intenções e Marie sabia disso. Mas podia
responder com toda sinceridade. Vivera na Nova Inglaterra, mas passara muito
pouco tempo em Nova York. Se tivesse casado com Michael, teria ido viver em
Nova York. Mas isso não acontecera. O rosto impassível e a voz um pouco mais
dura, ela respondeu:
— Não conheço muito bem. Não sou realmente uma pessoa que aprecie a
cidade grande. Não tenho o traquejo de cidade grande.
Ela era agora pura Marie, não havia o menor vestígio de Nancy
— É difícil de acreditar, pois me parece tão elegante quanto a melhor
mulher de cidade grande.
Marion tornou a sorrir, mas era o sorriso de uma barracuda contemplando
um tenro barrigudinho.
— Obrigada.
Sem dizer mais nada, Marie pegou o portfólio, pôs em seu colo, enquanto
Marion observava, e puxou o zíper. Sorridente, entregou Marion um grosso livro
preto, com cópias de seus trabalhos. O livro era grande e difícil de manejar, a
mulher mais velha pareceu titubear ao pegá-lo. Foi só nesse momento que
Marie notou como as mãos dela tremiam. O tempo não fora generoso com
Marion Hillyard, no final das contas. Seria possível que algumas de suas preces
mais horrendas houvessem sido atendidas? Ela ficou observando a mulher
atentamente, mas Marion pareceu recuperar o controle, enquanto virava as
páginas, em silêncio. Só depois de um tempo é que ela comentou:
— Posso entender por que Ben Avery ficou tão ansioso em contratá-la
para o nosso centro. Seu trabalho é extraordinário. Deve ter uma experiência de
muitos anos.
Para variar, era uma pergunta inocente. Marie sacudiu a cabeça.
— Não. A fotografia é uma atividade nova para mim. Eu era pintora antes.
— É isso mesmo. Ben tinha-me falado.
Contudo, Marion parecia surpresa. Esquecera-se na verdade de que podia
estar falando com Nancy McAllister, de tão absorvida que ficara ao contemplar
os trabalhos.
— É tão boa assim em pintura?
— Eu pensava que era.
Marie sorriu para a mulher. Uma transformação quase fantástica estava-
se processando. Ela sentia que estava observando Marion Hillyard através de um
espelho de truque: podia ver Marion claramente, mas a pessoa que Marion via
era na verdade uma outra. Marie pensou que era a única a conhecer o segredo.
— E agora gosto da fotografia tanto quanto gostava antes da pintura.
— Por que mudou? — indagou Marion, levantando a cabeça, intrigada.
— Porque tudo na minha vida mudou, abruptamente, a tal ponto que me
tornei uma pessoa nova. A pintura era parte da vida antiga, do meu outro eu.
Doía demais levá-la para a nova vida.
Marion quase estremeceu, ao ouvir essas palavras.
— Entendo. Seja como for, pelo que estou vendo, o mundo não sofreu uma
perda. É uma fotógrafa maravilhosa. Quem a iniciou na carreira?
Indubitavelmente, só pode ter sido um dos grandes fotógrafos locais. Há muitos
por aqui.
Mas Marie limitou-se a sacudir a cabeça, sorrindo. Era muito estranho.
Fora até ali para odiar aquela mulher, mas agora descobriu que não podia. Não
de todo. É verdade que não gostava dela, mas também não podia odiá-la.
Marion parecia extremamente cansada e frágil por trás da atitude arrogante e
das pérolas. Usava uma máscara mortuária cuidadosamente oculta sob a
maquilagem. Mas por baixo do verniz podia-se perfeitamente perceber, que as
tristezas do outono estavam à espreita, com o inverno, já se avizinhando. Marie
forçou a mente a se concentrar na pergunta da mulher, tentando recordar qual
era. Ah, sim. . .
— Não foi, não. Para dizer a verdade, foi um amigo quem me iniciou. Meu
médico, para ser mais exata. Ele foi o responsável pela minha carreira de
fotógrafa. É um homem que conhece todo mundo nesta cidade.
— Peter Gregson.
As palavras saíram suavemente dos lábios de Marion, como num sonho,
dando a impressão de que ela não tivera a menor intenção de pronunciá-las. As
duas ficaram tão chocadas que passaram algum tempo em silêncio, finalmente
rompido por Marie:
— Conhece-o?
Por que a mulher dissera aquilo? Será que ela sabia? Mas não era possível.
Será que Peter... Não, ele jamais faria uma coisa dessas.
— Eu... conheço... — Marion hesitou por um longo momento e depois
fitou a moça nos olhos. — Conheço-o, sim, Nancy. Ele fez um excelente trabalho
em você.
Era um tiro no escuro. Mas Marion não podia deixar de dizê-lo, mesmo
que assim bancasse a tola. Precisava saber de qualquer maneira.
— Deve haver algum mal-entendido. Meu nome é Marie. . . E no instante
seguinte, como uma boneca de trapos, ela desmoronou. Havia lágrimas em seus
olhos quando se levantou e foi até a janela, ficando de costas para a sala.
— Como soube?
A voz estava abalada e zangada. A mesma voz de dois anos atrás. Marion
recostou-se na cadeira, cansada mas aliviada. De certa forma, confortava-a
saber que acertara. Não fizera aquela viagem difícil a troco de nada. Marie
insistiu:
— Alguém lhe contou?
— Não. Simplesmente adivinhei. Nem mesmo sei por quê. Mas tive o
pressentimento logo na primeira vez em que Ben mencionou seu nome. Os
detalhes se ajustavam.
Oh, diabo! Marie tinha vontade de perguntar à mulher como estava
Michael. Queria... Será que aquilo nunca sairia de sua vida? Será que eles nunca
iriam embora?
— Por que veio até aqui? Para reafirmar o nosso acordo. Marie virou-se
bruscamente a fim de olhar para a mulher que tanto a atormentara — Para
certificar-se de que cumprirei minha promessa?
— Já provou isso. — A voz de Marion era cansada e gentil, estranhamente
velha. — Não, não foi por isso. Nem mesmo sei por que, mas tinha de vê-la. Falar
com você. Descobrir como é realmente você.
— Por que agora? Por que eu deveria ser tão interessante depois de dois
anos? — Subitamente, havia veneno na voz de Marie e ódio em seus olhos. O
ódio que ela sonhara despejar tantos meses. — Por que agora, Sra. Hillyard? Ou
estava apenas curiosa em dar uma olhada no trabalho de Gregson? Foi isso? Pois
o que está achando de sua obra de quatrocentos mil dólares? Valeu a pena?
— Por que você mesma não responde a essa pergunta? Valeu a pena? Está
satisfeita?
Era o que Marion esperava. Subitamente, desesperadamente, era o que
ela esperava. Todos haviam pago um preço muito alto pelo novo rosto dela. Fora
um erro. De repente, Marion tinha certeza disso. Mas era tarde demais. Não
eram as mesmas pessoas. Ela podia ver isso na moça, tanto quanto podia ver em
Michael
Era tarde demais, muito tarde mesmo, para qualquer dos dois. Teriam de
ir procurar seus sonhos em algum outro lugar.
— É uma linda moça agora, Marie.
— Obrigada. Tem razão, sei que Peter fez um bom trabalho. Mas foi
como fazer um acordo com o demônio. Um rosto por uma vida. Com um suspiro
entrecortado, Marie afundou numa poltrona.
— E eu sou o demônio. — A voz de Marion tremia, enquanto ela olhava
para a moça. — Imagino que é algo repulsivo dizer isso agora, mas na ocasião
pensei que estivesse fazendo o que era mais certo.
— E agora? — Marie fitou-a nos olhos. — Michael está feliz? Valeu a pena
livrar-se de mim, Sra. Hillyard? A missão foi um sucesso?
Oh, Deus, ela queria ferir fundo aquela mulher. Queria massacrá-la,
destruí-la, com todo aquele vestido de grande dama, todas as pérolas.
— Não, Marie, Michael não está feliz, assim como você também não está.
Sempre pensei que ele fosse recomeçar a vida. E que o mesmo aconteceria com
você. Mas algo me diz que isso não lhe aconteceu. Não que eu tenha o direito de
perguntar.
— Não, não tem. E Michael? Ele não está casado?
Marie detestou-se por isso, mas rezou para que a resposta fosse não.
— Está, sim. — Marie soltou uma exclamação de desespero, mas
conseguiu se controlar a tempo. — Michael está casado com o seu trabalho.
Vive, come, dorme e respira o trabalho. Como se esperasse perder-se no
trabalho para sempre. Quase não o vejo.
Isso é muito bom, sua miserável! Muito bom mesmo!
— Diria então que estava errada? Eu o amava, sabe disso. Mais que a
qualquer coisa na vida.
Exceto o meu rosto. ... oh, Deus. ... exceto...
— Claro que sei. Mas pensei que passaria.
— E passou?
— Talvez. Ele nunca a menciona.
— E alguma vez tentou-me encontrar?
Marion sacudiu lentamente a cabeça.
— Não.
Mas ela não explicou o motivo para isso. Não contou que Michael pensava
que ela estava morta. A mentira lhe pesou no momento mesmo em que dizia a
palavra, observando o rosto da moça contrair-se numa máscara de ódio.
— Mas por que estou aqui? Apenas para satisfazer a sua curiosidade?
Mostrar-lhe o meu trabalho? Por quê?
— Não tenho certeza, Nancy. Desculpe... Marie. Simplesmente tinha de
vê-la. Saber como fora para você. Imagino que seja um tanto sentimental dizer
isso, mas a verdade é que estou morrendo.
Marion parecia estar sentindo um pouco de pena de si mesma, mas no
instante seguinte ficou aborrecida por ter falado. Marie não pareceu ficar
comovida. Ficou olhando fixamente para a mulher por longo tempo, antes de
voltar a falar, a voz suave, hesitante:
— Lamento saber disso, Sra. Hillyard. Mas eu morri há dois anos. E tenho
a impressão de que a mesma coisa aconteceu com seu filho. Assim, somos dois.
Nas suas mãos, Sra. Hillyard. Para ser sincera, é muito difícil para mim sentir
alguma simpatia por si. Creio que deveria pelo menos ser grata... Talvez devesse
agradecer-lhe porque os homens viram a cabeça para me olhar todos os dias, ao
invés de saírem correndo horrorizados. Talvez devesse sentir uma porção de
coisas. Mas não sinto. Não sinto nada por si agora, a não ser pena, porque
arruinou a vida de Michael e sabe disso. Para não falar do que fez com a minha
vida.
Marion assentiu em silêncio, sentindo todo o impacto da censura da
jovem. Ela própria já sabia de tudo aquilo. Secretamente, já o sabia há dois anos.
Pelo menos em relação a Michael. Não o sabia em relação à moça. Talvez
tivesse ido procurá-la justamente por isso.
— Não sei o que dizer.
— Adeus seria ótimo.
Marie pegou o casaco e o portfólio e encaminhou-se para a porta da suíte.
Parou ali por um momento, a mão na maçaneta, a cabeça baixa, as lágrimas
começando a escorrer pelas faces. Virou-se lentamente e viu que também havia
lágrimas no rosto de Marion: A mulher mais velha estava oprimida e silenciosa
por sua agonia particular, mas a jovem conseguiu respirar fundo e murmurar:
— Adeus, Sra. Hillyard. E transmita... transmita a Michael... o meu amor.
Marie fechou a porta silenciosamente ao sair. Mas Marion Hillyard não se
mexeu. Sentia o coração bater forte contra os pulmões, em pontadas de dor
prolongadas, que pareciam dilacerar-lhe o peito. Ofegando para respirar,
cambaleou até a campainha que chamaria uma criada. Conseguiu apertá-la
uma vez antes de desmaiar.
CAPÍTULO 23

Os passos de George ecoavam pelo corredor do hospital enquanto ele


quase corria para o quarto dela. Por que Marion insistira em ir sozinha? Por que
sempre tinha de ser tão terrivelmente independente, mesmo depois de todos
aqueles anos? Ele bateu de leve na porta e uma enfermeira abriu-a com
expressão inquisitiva.
— É o quarto da Sra. Hillyard? Sou George Calloway. Ele parecia nervoso,
cansado e velho. E era também assim que se sentia. Já não agüentava mais todo
aquele absurdo. E era o que ia dizer a Marion assim que a visse. Já o dissera a
Michael antes de deixar Nova York.
A enfermeira sorriu ao ouvir o nome dele.
— É, sim, Mr Calloway. Estávamos a sua espera. Marion estava no
hospital desde as seis horas da tarde. George conseguira chegar a São Francisco
por volta das onze horas da noite, horário local. Agora, passavam alguns minutos
de meia noite. Era praticamente impossível fazer a viagem mais depressa. O
sorriso de Marion reconhecia esse fato quando a enfermeira abriu a porta para
deixar George entrar, ao mesmo tempo em que saía para o corredor.
— Olá, George.
— Olá, Marion. Como se sente?
— Cansada, mas viverei. Pelo menos foi o que me disseram. O ataque não
foi dos maiores.
— Desta vez. Mas como será na próxima?
George parecia invencível ao avançar pelo quarto, fitando-a com uma
expressão furiosa. Não se deteve nem mesmo para beijá-la. Tinha muito o que
dizer.
— Vamos deixar para nos preocupar com a próxima vez quando
acontecer. E agora sente-se e relaxe, George. Está-me deixando nervosa. O que
o está incomodando? Pedi à enfermeira que lhe guardasse um sanduíche.
— Não posso comer.
— Pare com isso! Nunca o vi desse jeito, George. Não foi nada sério. Não
precisa ficar assim.
— Não me diga como devo estar, Marion Hillyard. Venho observando-a
destruir-se a si mesma há tempo demais e agora não vou mais admitir.
— Vai-me deixar? — Marion sorriu-lhe da cama. — Por que não se
aposenta?
Ela estava achando graça da cena, até o momento em que George virou-
se para fitá-la com expressão decidida. .
— É exatamente o que vou fazer, Marion. Aposentar-me.
Ela percebeu que era sério. E era tudo o que lhe faltava naquele
momento.
— Não seja ridículo.
Mas Marion não tinha certeza se conseguiria demovê-lo. Ela se sentou na
cama, com um sorriso nervoso.
— Não estou sendo, Marion. É a primeira decisão inteligente que tomo
nos últimos vinte anos. E quer saber quem mais vai-se aposentar também?
Você, Marion. Nós dois vamos nos aposentar. Imediatamente. Já conversei a
respeito com Michael, a caminho do aeroporto. Ele teve a gentileza de me levar
ao aeroporto e pediu para dizer-lhe que lamenta não poder vir também, mas
está preso em Nova York neste momento. Michael acha que nossa
aposentadoria é uma excelente idéia. E é o que eu também penso. Para ser
franco, ninguém está interessado no que você pensa, Marion. A decisão já foi
tomada.
— Ficou doido. George? E o que pensa exatamente que vou fazer com o
meu tempo se me aposentar? Ficar tricotando?
— Não seria uma idéia das piores. Mas a primeira coisa que vai fazer é
casar-se comigo. Depois disso, pode fazer qualquer coisa que lhe aprouver.
Menos... — A voz de George se alteou ameaçadoramente. — ... trabalhar. Está
bem claro, Sra. Hillyard?
— Não vai ao menos me pedir para casar-me com você? Ou
simplesmente está-me dizendo e pronto? Será que isso é também uma ordem
de Michael?
Mas Marion não estava zangada. Ao contrário, estava comovida. E
aliviada. Já não agüentava mais. Já fizera o bastante, em todos os sentidos, os
piores e os melhores. E também sabia disso. O encontro com Marie naquela
tarde a levara a compreender tudo.
— Temos a aprovação de Michael, se é que isso faz alguma diferença. —
E um momento depois a voz de George se abrandou, enquanto se aproximava da
cama e pegava a mão de Marion, apertando-a gentilmente. — Quer casar-se
comigo, Marion?
Ele estava quase que com medo de perguntar, depois de todos aqueles
anos. Mas finalmente conversara com Michael a respeito, nos momentos
ansiosos antes do vôo. Michael dissera-lhe algo estranho a respeito de "celebrar
o amor de vocês". George não compreendera, mas ficara grato pelo estímulo.
— E então, quer casar-se comigo?
Ele apertou a mão de Marion um pouco mais firmemente, enquanto
aguardava a resposta. Ela assentiu lentamente, com um sorriso cansado, mas
afetuoso, uma expressão quase de pesar.
— Deveríamos ter pensado há muitos anos, George. Marion queria dizer
algo mais... que não estava certa se tinha o direito... não depois...
— Pensei nisso há muitos anos, mas nunca me passou pela cabeça que
você pudesse aceitar.
— Provavelmente eu não teria aceitado. Porque sou uma idiota. Oh,
George... — Marion suspirou e tornou a recostar-se nos travesseiros. — Tenho
feito tantas coisas estúpidas na vida. . .
O rosto dela deixou subitamente transparecer toda a agonia da tarde.
George ficou a observá-la atentamente, aturdido pelo tormento que via no rosto
de Marion, misturado com a fadiga.
— Não diga tamanha bobagem. Não consigo lembrar-me de uma única
besteira que você tenha feito em todos esses anos em que nos conhecemos. —
Ele continuava a segurar a mão de Marion, afagando-a afetuosamente. Há anos
que queria fazer isso, exatamente daquela maneira. — Não se atormente com
as bobagens do passado.
Mas Marion havia-se novamente sentado na cama e fitava-o nos olhos, a
mão fria e tensa.
— E se uma bobagem dessas, como você chama, tiver destruído as vidas
de outras pessoas? Tenho o direito de esquecer isso também, George?
— Ora, Marion, o que você poderia ter feito para destruir a vida de outra
pessoa?
George começou subitamente a pensar que o médico talvez tivesse
aplicado uma droga bem forte a Marion. Ou talvez o último ataque a tivesse
afetado mentalmente. O que ela dizia não fazia o menor sentido.
Marion voltou a se acomodar entre os travesseiros e fechou os olhos.
— Não compreende, George.
— E deveria?
A voz dela era extremamente gentil, no quarto quase às escuras.
— Talvez. Se soubesse, tenho certeza de que não estaria tão ansioso em
casar-se comigo.
— Não diga bobagem. Mas se é assim que se sente, então acho que tenho
o direito de saber o que a está perturbando. Qual é o problema?
George ainda não tinha largado a mão dela. Marion finalmente voltou a
abrir os olhos. Fitou-o em silêncio por longo tempo, antes de falar:
— Não sei se posso contar-lhe.
— Por que não? Não posso imaginar qualquer coisa que seja capaz de me
chocar. E não posso também imaginar qualquer coisa a seu respeito que eu
ainda não conheça. — Há anos que não tinham segredos um para o outro. —
Estou começando a pensar que o ataque desta tarde deixou-a profundamente
abalada.
— A verdade que tive de enfrentar é que causou o ataque. .
O tom de Marion era diferente de tudo o que George conhecera antes.
Havia lágrimas nos olhos dela. George sentiu vontade de abraçá-la, fazê-la
sentir-se melhor. Mas compreendia agora que Marion tinha realmente algo
muito importante para contar-lhe. Seria possível que ela tivesse mantido um
romance com outro homem durante todos aqueles anos? A idéia deixou-o
abalado. Mas poderia aceitar até mesmo isso. Ele a amava. Sempre a amara.
Esperara tempo demais por aquele romance para permitir agora alguma coisa o
estragasse.
— Alguma coisa especial aconteceu esta tarde?
George ficou a observá-la atentamente, esperando pela resposta. Marion
voltou a fechar os olhos, as lágrimas escorrendo silenciosamente por suas faces.
Ao final, ela assentiu e murmurou:
— Aconteceu.
— Entendo. Pois trate de relaxar agora. Não vamos ficar excitados só por
causa disso.
George estava começando a ficar preocupado com o estado dela... Temia
que tivesse outro ataque.
— Vi a moça.
— Que moça?
Mas, afinal, de que moça Marion estava falando?
— A moça pela qual Michael estava apaixonado. — As lágrimas cessaram
por um momento. Marion sentou-se outra vez na cama e fitou-o. — Lembra-se
da noite do acidente de Michael, em que ele foi a Nova York para conversar
comigo? Você apareceu no meu apartamento e ele foi embora. Estava furioso.
Michael tinha ido dizer-me que pretendia casar-se com aquela moça. E eu lhe
mostrei... o relatório que tinha mandado preparar a respeito dela...
A voz dela se desvaneceu por um momento, enquanto recordava a cena.
George franziu a testa ainda mais. Era evidente que Marion estava confusa em
decorrência de alguma droga. Era a única explicação. A moça a que ela estava-
se referindo havia morrido no acidente.
— Marion, querida, não pode ter visto a moça. Pelo que me recordo, ela...
ela... ahn... faleceu no...
Mas Marion sacudiu a cabeça firmemente, os olhos jamais se afastando
dos olhos de George.
— Não, George, ela não morreu. Falei que ela morreu e Wick ficou de
boca fechada. Mas a moça sobreviveu. Com o rosto inteiramente destruído. À
exceção dos olhos.
George não disse nada, embora estivesse escutando atentamente. Era
uma Marion perturbada, uma Marion angustiada, mas não era uma Marion
desvairada. George sabia que ela estava dizendo a verdade.
— Fui até o quarto dela naquela noite e propus um acordo. Ele continuou
esperando, em silêncio. Marion fechou os olhos, como se estivesse sentindo uma
dor intensa. George apertou-lhe a mão ainda mais firmemente.
— Você está bem, Marion?
Ela assentiu, tornando a abrir os olhos.
— Estou, sim. Talvez eu me sinta melhor depois que lhe contar tudo.
Ofereci um acordo à moça. O rosto dela em troca de Michael. Há diversas
maneiras mais bonitas de dizê-lo, mas no final tudo se resume a isso. Wick disse
que conhecia um homem no país que podia restaurar o rosto dela. Custaria uma
fortuna, mas o tal médico poderia fazê-lo. Propus à moça pagar o tratamento e
tudo o mais que ela precisasse, até que todas as operações acabassem. Ofereci-
lhe uma vida inteiramente nova, uma vida que ela nunca tivera antes, desde que
concordasse nunca mais procurar Michael.
— E ela concordou?
— Concordou.
— Neste caso, ela não devia amá-lo tanto assim. E você tomou uma
atitude elogiável ao se oferecer para pagar a cirurgia. Não podemos nos
esquecer de que se os dois se amassem tanto jamais teriam aceitado um acordo
assim.
— Não esta compreendendo, George.— O tom de Marion era agora
gelado. Mas sua raiva estava dirigida contra si mesma e não contra George. —
Não fui honesta com nenhum dos dois. Disse a Michael que ela havia morrido. E
sabia perfeitamente que a moça tinha certeza de que Michael jamais respeitaria
o acordo. Foi provavelmente por isso que ela concordou. Por isso e pelo fato de
que não tinha alternativa. Nada mais lhe restava. Exceto eu. . oferecendo-lhe
um acordo com o demônio, como ela própria classificou esta tarde. George,
você sabe muito bem que Michael jamais teria aceitado um acordo desses, se
soubesse da verdade. Teria voltado para a moça sem a menor hesitação.
— Ele não sofreu tanto assim. E já se recuperou. É possível também que
os dois nem mesmo continuassem a se amar agora.
George estava procurando desesperadamente por um bálsamo para as
feridas de Marion... Mas não podia deixar de admitir que era uma ferida profunda
e devia ter sido muito difícil suportá-la. Sabia que Marion pensara que estava
defendendo os interesses de Michael, mas ela jogara com a vida do filho.
— É verdade, Marion. Provavelmente os dois se tornaram bastante
diferentes. Podem nem mesmo querer saber um do outro agora
— Sei disso. — Marion recostou-se nos travesseiros, com suspiro —
Michael está obcecado por seu trabalho. Não tem amor, não tem ternura, não
tem tempo, não tem nada. Nada lhe restou e sei disso melhor que qualquer outra
pessoa. E ela. ... — Marion recordou dolorosamente os acontecimentos daquela
tarde. — Ela é bonita, elegante. E amargurada e furiosa, dominada pelo ódio.
Formam um casal encantador.
— E você se julga a responsável por tudo isso?
— Sabendo o que sabe agora, não concorda? — Contra a sua vontade, os
olhos de Marion voltaram a se encher-se de lágrimas. Cometi um erro terrível
ao me intrometer entre os dois, George.
— Talvez os danos possam ser reparados. E nesse intervalo, você
devolveu a vida à moça. E uma vida melhor, sob certos aspectos.
— E ela me odeia por isso.
— Então é uma tola.
Marion sacudiu a cabeça.
— Não, George. Ela está certa. Eu não tinha o direito fazer o que fiz. E se
tivesse alguma coragem, por menor que fosse, contava tudo a Michael.
Mas apesar de seus princípios, George esperava que ela jamais chegasse a
isso. A ira de Michael destruiria Marin. O filho nunca mais voltaria a respeitá-la
como antes.
— Não conte nada a Michael, querida. Agora, não iria adiantar coisa
alguma.
Marion percebeu o medo nos olhos dele e sorriu.
— Não se preocupe. Não sou tão corajosa assim. Mas Michael vai acabar
descobrindo. Com o tempo. Darei um jeito para que isso aconteça. Ele tem o
direito de saber. Mas espero que ele ouça tudo por intermédio da moça, no
momento em que ela o aceitar de volta. Talvez assim ele possa perdoar-me.
— Acha que há alguma possibilidade da moça aceitar Michael de volta?
— Creio que não. De qualquer forma, devo fazer o que puder.
— Oh, Deus...
— Fui eu que comecei tudo isso. Agora, devo aos dois alguma coisa.
Talvez nada resulte disso tudo, mas tenho a obrigação de tentar.
— Por acaso manteve-se em contato com a moça durante todo esse
tempo?
— Não. Tornei a vê-la e falar-lhe pela primeira vez hoje.
— Estou entendendo agora. E como foi que isso aconteceu?
— Marquei um encontro. Não tinha certeza se era ela mesma, mas
desconfiava. E estava certa.
Marion parecia satisfeita consigo mesma e George sorriu pela primeira
vez na última meia hora.
— Deve ter sido um encontro e tanto.
George compreendia agora por que Marion tivera um novo ataque. Era de
admirar que não a tivesse matado.
— Poderia ter sido pior. — A voz dela era outra vez gentil, os olhos
voltaram a se encher de lágrimas. — Poderia ter sido muito pior. Tudo o que
realmente fez foi mostrar-me como eu estava errada, que destruíra a vida dela,
assim como a de Michael...
— Pare com isso, Marion. Não destruiu nenhum dos dois. Deu a Michael
uma carreira pela qual qualquer homem sacrificaria a própria vida e deu à moça
algo que ninguém mais podia ter.
— O quê? Desespero? Angústia?
— Se é assim que ela se sente, então é uma ingrata. O que me diz de um
rosto novo? Uma vida nova? Um mundo novo?
— Desconfio que seja um mundo extremamente vazio, exceto pelo
trabalho dela. Nesse sentido, ela é muito parecida com Michael.
— Nesse caso, talvez eles possam novamente construir algo juntos. Mas,
até lá, o que está feito, está feito. Não pode continuar a se punir para sempre por
causa disso. Fez o que pensou que era certo na ocasião. E eles são jovens,
querida. Ambos possuem uma vida inteira pela frente. Se a desperdiçarem, a
culpa será deles. O que não devemos fazer é desperdiçar a nossa. George queria
dizer que "resta-nos pouco tempo”, mas não o fez. Inclinou-se em direção a
Marion, enquanto ela se estendia na cama e levantava os braços para ele.
George apertou-a firmemente, sentindo todo o calor do corpo dela em seus
braços.
— Eu a amo, querida. Lamento que tenha passado por tudo isso sozinha,
sem me contar. Deveria ter-me falado tudo há muitos anos.
— Você ter-me-ia odiado.
A voz de Marion estava abafada por seus próprios soluços e pulo ombro de
George.
— Nunca. Nem naquela ocasião nem agora. Jamais seria capaz de
qualquer outro sentimento que não o de amá-la. E a respeito profundamente por
me contar tudo agora. Eu jamais teria sabido.
— Mas eu saberia, George. E tinha de descobrir o que você pensava.
— Acho que tudo isso foi uma agonia para todos. Agora faça o que puder
para remediar a situação e depois não pense mais assunto. Afaste-o de sua
mente, do coração, da consciência. Está acabado. E nós dois temos uma vida
nova para começar. Temos o direito a essa vida. Você pagou caro por tudo o que
fez. Não tem de punir-se a si mesma por coisa alguma. Vamos casar-nos e ir
embora, viver a nossa vida. Deixemos que eles cuidarem de suas próprias vidas.
— Será que tenho realmente o direito a isso?
Marion parecia mais jovem outra vez quando George contemplou-lhe o
rosto.
— Tem, meu amor, claro que tem. — E no instante seguinte ele a beijou,
gentilmente a princípio, depois sofregamente. Ao diabo com Michael, a moça e
tudo o mais. Ele queria Marion com tudo o que ela tinha de bom e de ruim, com
seu gênio e seu excessos. — E agora você vai-se esquecer de tudo e tratar de
dormir. Amanhã, vamos sentar-nos e planejar o casamento. Comece a pensar
em coisas mais sensatas, como o tipo de vestido que vai encomendar e quem vai
providenciar as flores. Entendido?
Marion fitou-o nos olhos e riu.
— George Callaway, eu o amo.
— O que é ótimo. Mesmo que não me amasse, eu me casaria com você
de qualquer maneira. Nada me deteria agora. Entendido?
— Sim, senhor.
Estavam-se olhando radiantes, quando a enfermeira meteu a cabeça pela
porta. Era uma hora da madrugada. E com instruções especiais do médico ou
não, ele tinha de se retirar. George assentiu para indicar que compreendia deu
um beijo de leve em Marion, apertou-lhe a mão e presenteou-a com um sorriso
que nada poderia ofuscar, deixando o quarto relutantemente. Deitada na cama,
Marion sentiu-se enormemente aliviada. Ele a amava de qualquer maneira. E
lhe devolvera um pouco de sua própria fé em si mesma.
Olhando para o relógio, Marion decidiu telefonar para Michael. Talvez
pudesse fazer imediatamente alguma coisa para remediar a situação. Ao inferno
com a diferença de horário. Não tinha um momento a desperdiçar. Nenhum
deles tinha. Ela pegou o telefone no quarto às escuras e discou para o
apartamento de Michael em Nova York. O telefone tocou quatro vezes antes
que Michael atender balbuciasse, sonolento:
— Alô?
— Sou eu, querido
— Mamãe? Você está bem?
Michael acendeu rapidamente a luz e fez um esforço para ficar
inteiramente desperto.
— Estou ótima. E tenho uma coisa para lhe dizer.
— Já sei. George me falou.
Michael bocejou e sorriu ao telefone, depois olhou para o relógio. Puxa!
Eram cinco horas da manhã em Nova York. Duas horas da madrugada em São.
Francisco. Que diabo Marion estava fazendo acordada e onde se metera a
enfermeira dela?
— Você aceitou?
— Claro. As duas propostas. Vou até me aposentar. Isto é, mais ou menos.
Michael não pôde deixar de rir ao ouvir as últimas palavras. Era típico de
Marion. George ia ter o maior trabalho para contê-la. Mas ele se sentia satisfeito
pelos dois.
— Mas estou telefonando por outro motivo.
Marion parecia novamente firme e profissional. Michael soltou um
resmungo. Já conhecia aquele tom.
— Não me venha tratar de negócios a essa hora! Por favor!
— Não diga bobagem. Isso não é hora para tratar de negócio. Queria
dizer-lhe que me encontrei com a jovem.
— Que jovem?
A mente de Michael estava em branco. Fora um dia extremamente difícil.
Três reuniões, cinco encontros e a notícia de que a mãe sofrera outro ataque,
sozinha em São Francisco.
— A fotógrafa, Michael. Acorde.
— Ah, sim... E daí?
— Nós a queremos.
— Queremos?
— Absolutamente. Não posso insistir agora, porque George ficaria uma
fera comigo. Mas você pode.
— Deve estar brincando. Tenho muito o que fazer aqui em Nova York.
Ben pode cuidar do problema.
— Ela já o repeliu, Michael. E é uma jovem de classe, inteligência e
caráter. Não vai querer tratar com subalternos.
— Pois ela está-me parecendo insuportável.
— Era a mesma impressão que eu tinha. Preste atenção, Michael, não
importa o que tenha de fazer, quero que a contrate de qualquer maneira.
Lisonjeie-a, conquiste-a, pegue um avião o venha até aqui, convide-a para
jantar. Seja o mais encantador que puder. Ela vale a pena.— Quero o seu
trabalho no centro. Faça isso por mim.
Marion estava engabelando o filho suavemente, o que era uma novidade.
Ela sorriu para si mesma.
— Ficou doida, mamãe, e não tenho tempo a perder com essas coisas. —
Michael estava deitado na cama, sorrindo. Não havia a menor dúvida de que a
mãe tinha perdido o juízo. Por que não o faz pessoalmente, mamãe?
— Não posso. E se você não fizer, vou voltar ao escritório em tempo
integral e vai ver só o que acontece.
Ela parecia estar falando sério e Michael teve de rir.
— Está bem, mamãe. Farei o que está-me pedindo.
— Vou exigir o cumprimento da promessa.
— Juro que farei. Está satisfeita agora? Posso voltar a dormir?
— Pode. Mas quero que comece a trabalhar nisso imediatamente.
— Como é mesmo o nome dela?
— Marie Adamson.
— Está certo. Cuidarei disso amanhã.
— Ótimo, querido. E... obrigada.
— Boa noite, sua coruja doida. E por falar nisso, parabéns. Posso levar a
noiva ao altar?
— Claro que pode. Eu jamais aceitaria outro qualquer. Boa noite, querido.
Ambos desligaram. Em São Francisco, Marion Hillyard finalmente estava
em paz. Talvez não funcionasse. Talvez fosse tarde demais. Os dois anos haviam
cobrado um pesado tributo a ambos.
Mas era tudo o que ela podia fazer agora. Não, isso não era verdade. Ela
poderia ter contado a verdade a Michael. Mas com um pequeno suspiro, antes
de cair no sono. Marion admitiu para si mesma que ainda não estava preparada
para assumir a santidade. Iria ajudá-los um pouco. Mas não iria além disso. Não
contaria a Michael o que fizera. Ele provavelmente acabaria descobrindo, mas
talvez, a esta altura, já houvesse felicidade suficiente para amortecer o golpe.
CAPÍTULO 24

George beijou-a ternamente na boca e a música suave recomeçou.


Marion contratara três músicos para tocarem no casamento, em seu
apartamento. Havia cerca de 70 convidados e a sala do jantar fora transformada
em pista de dança. O bufê estava arrumado na biblioteca. E era um dia perfeito.
O último do mês de fevereiro, um dia claro, frio e magnífico em Nova York.
Marion estava inteiramente recuperada do pequeno contratempo em São
Francisco e George parecia exultante. Michael beijou a mãe nas duas faces e ela
posou entre o marido e o filho para o fotógrafo do Times. Marion usava um
vestido de renda que caía até o chão e tanto Michael como George estavam
vestidos formalmente de calça listrada e fraque. George usava um cravo branco
na lapela enquanto o de Michael era vermelho. A noiva tinha um ramo de
orquídeas beges, que tinham vindo de avião da Califórnia especialmente para a
ocasião, juntamente com as flores viçosas espalhadas pelo apartamento. O
decorador de Marion cuidara disso pessoalmente.
— Sra. Calloway?
Era Michael, oferecendo o braço à mãe para conduzi-la ao bufê. Marion
riu como uma menina ao ouvir o seu novo nome e depois sorriu para George.
Estavam comemorando, como Nancy dissera que se devia fazer. Michael estava
satisfeito por ambos. Mereciam aquilo. E iam agora passar dois meses na
Europa, para descansarem. Ele não podia deixar de pensar como a mãe se
mostrara sensata ao se retirar da firma. Talvez, no final das contas, Marion
estivesse mesmo preparada para se aposentar. Ou talvez o coração finalmente a
tivesse apavorado, depois de todo aquele tempo. Mas tanto ela como George
haviam-se mostrado duas pessoas maravilhosas com que se trabalhar, enquanto
transferiam todo o poder para as mãos dele, Michael. Ele era agora o presidente
da Cotter-Hillyard e não podia deixar de reconhecer que não se importava com
a sensação que isso proporcionava. Presidente... aos 27 anos. Fizera a capa do
Time. O que também fora extremamente agradável. Ele imaginava que a mãe e
George dariam a capa de People, com o casamento.
— Está muito elegante, querido.
A mãe fitou-o com uma expressão radiante, enquanto seguiam para a
biblioteca. Estava repleta de flores e mesas com comida. E as paredes pareciam
revestidas de criados adicionais.
— Você também está muito atraente. E o apartamento não faz por
menos.
— Não está mesmo lindo?
Marion parecia surpreendentemente jovem ao se afastar dele para falar
com alguns convidados e dar as últimas instruções aos criados. Estava
inteiramente em seu elemento, tão excitada como garota. Sua mãe, a noiva.
Michael sorriu para si mesmo, ao pensar nisso.
— Está parecendo muito satisfeito consigo mesmo, Mr Hillyard
A voz era suave e familiar. Michael virou-se e deparou com Wendy a sua
direita. Não mais se sentia constrangido ao vê-Ia. Ela estava com o diamante
solitário que Ben lhe dera no Dia dos Namorados, ao ficarem noivos. Iam casar-
se no verão seguinte. E ele seria o padrinho.
— Ela não está maravilhosa?
Wendy assentiu e sorriu-lhe novamente. Por uma vez, Michael parecia
feliz também. Wendy jamais conseguira entendê-lo direito, mas pelo menos isso
não mais a perturbava, agora que tinha Ben. Ben fazia-a mais feliz que qualquer
outro jamais conseguira.
— Mas tenho certeza de que você estará igualmente maravilhosa no
próximo verão. Tenho uma fraqueza por noivas.
Parecia algo improvável nele e Wendy voltou a sorrir. Gostava muito mais
dele agora que partilhava a sua amizade com Ben
— Tentando conquistar minha noiva, companheiro? — Era Ben ao lado
deles, segurando três taças de champanhe. — Aqui está, para vocês dois. E tem
uma coisa que lhe quero dizer, Michael estou apaixonado por sua mãe.
— É tarde demais. Eu a entreguei a outro homem esta manhã. — Ben
estalou os dedos, como se tivesse acabado de sofrer uma grande perda. Todos
três riram, enquanto a música começava a tocar na sala de jantar. — Ei, acho
que isso é um aviso para mim. O filho tem direito à primeira dança e depois
George me substitui. Emily Post diz...
Ben soltou uma risada e deu-lhe um empurrão na direção da porta e de
suas obrigações.
— Ele parece feliz hoje — murmurou Wendy, depois que Michael se
afastou.
— E acho que está mesmo, para variar. — Pensativo, Ben tomou um gole
de champanhe e um momento depois sorriu novamente para Wendy. — Você
também parece feliz hoje.
— Estou sempre feliz, graças a você. Por falar nisso, voltou a procurar
aquela fotógrafa de São Francisco? Há algum tempo estou querendo perguntar-
lhe, mas nunca tenho tempo.
Mas Ben estava sacudindo a cabeça.
— Não. Michael disse que iria encarregar-se pessoalmente do problema.
— E ele tem tempo para isso?
Wendy parecia surpresa.
— Não. Mas provavelmente dará um jeito de arrumar. Conhece Michael.
Ele vai a São Francisco na próxima semana, por isso e quatro mil outras razões.
Não, pensou Wendy consigo mesma, não conheço Michael. Ninguém
conhece. Exceto talvez Ben. Mas às vezes ela se perguntava se Ben realmente o
conhecia tão bem quanto ele gostava de pensar. Talvez antigamente. Mas será
que Ben, continuava a conhecê-lo ?
— Gostaria de dançar minha cara?
Ben largou a taça e passou o braço pela cintura dela, a fim conduzi-la à
outra sala.
— Adoraria.
Mas estavam dançando há apenas um momento quando Michael bateu no
ombro de Ben:
— E a minha vez.
— É uma ova. Mal começamos. Pensei que estivesse dançando com sua
mãe.
— Ela me trocou por George.
— Muita sensatez da parte dela.
Os três estavam-se deslocando juntos pela pista de dança e Wendy estava
começando a rir. Ver os dois juntos daquela maneira era como vislumbrar
Michael e Ben de anos atrás. Era o tipo de situação em que ambos se
mostravam exultantes. Uma dose generosa de champanhe, uma ocasião para
comemorar e lá estavam eles. — Escute, Avery, vai sumir daqui ou não? Quero
dançar com sua noiva.
— E se eu não quiser que você dance?
— Então dançarei com os dois... e minha mãe nos expulsará. Wendy
estava sorrindo novamente. Eram como dois garotos, dispostos a qualquer coisa
para provocar confusão numa festa de aniversário. Os dois estavam começando
a entoar uma canção sobre uma garota de Rhode lsland, o que a deixou
preocupada.
— Escutem vocês dois! Eu estava esperando que fosse duas vezes mais
divertido. Em vez disso, estou tendo os dois pés pisados ao mesmo tempo. Por
que não vamos todos comer o bolo de casamento?
— Vamos?
Ben e Michael. se fitaram, assentiram ao mesmo tempo e
obsequiosamente se apossaram dos braços de Wendy, um de cada lado,
conduzindo-a para fora da sala. Michael olhou para Ben por cima da cabeça dela
e piscou um olho.
— Ela é bastante elegante, mas acho que é meio cambaia. Reparou na
maneira como dançava? Meus sapatos estão praticamente estragados.
— Devia ver os meus.
Ben falou num sussurro, por cima do ombro esquerdo dela.
Bruscamente, Wendy meteu os cotovelos em ambos.
— Escutem, seus palhaços, alguém por acaso reparou: nos meus sapatos?
Sem falar nos meus pés doloridos, por ter dançado com dois caipiras de porre.
— Caipiras?
Ben fitou-a com uma expressão horrorizada e Michael começou a rir,
enquanto pegava os três pratos com bolo de casamento que uma empregada
uniformizada oferecia. Pôs-se a brincar com os pratos e quase deixou cair dois.
— Não dê importância a ela. O bolo parece sensacional. Tomem aqui.
Michael entregou os pratos a Wendy e Ben. Os três se encostaram numa
coluna e ficaram observando o movimento, enquanto comiam, vendo as velhas
matronas em vestidos rendados cinza, as moças de chiffon rosa, cascatas de
pérolas, as mais variadas pedras preciosas.
— Puxa, já pensaram no que poderíamos conseguir se os assaltássemos?
Michael parecia fascinado pela idéia.
— Nunca tinha pensado nisso. Era o que deveríamos ter feito anos atrás.
Na escola, quando estávamos duros.
Ambos assentiram um para o outro, enquanto Wendy os observava com
um sorriso desconfiado.
— Não tenho certeza se poderei deixar vocês dois sozinhos quando for
empoar o nariz.
— Não se preocupe. Ficarei de olho nele, Wendy.
Michael piscou para ela sorridente e pegou outra taça de champanhe.
Wendy nunca o vira daquele jeito, mas estava gostando. Ben tinha razão. No
final das contas, Michael era humano. Vê-lo daquela maneira, meio tonto e
bancando o tolo, era conhecê-lo como cinco anos antes. Ou mesmo dois anos.
— Não creio que os dois consigam desvirar os olhos o suficiente para
verem qualquer coisa, muito menos um ao outro.
— Ora. ... não enche, Wendy. Estamos em grande forma. Ben pegou mais
duas taças de champanhe, entregando uma a Michael e acenando para que sua
noiva seguisse na direção do banheiro.
— Ela é uma garota e tanto, Michael. Fico contente que não tenha ficado
furioso quando lhe contei a nosso respeito.
— Como poderia ficar furioso? Ela é a garota certa para você. Além do
mais, ando muito ocupado para essas coisas.
— Um dia desses não vai mais estar
— É possível. Enquanto isso, vocês podem-se mandar e casar-se. Mas eu
tenho de ficar, para dirigir a firma.
Mas, por uma vez, Michael não parecia sombrio ao dizer isso. Olhou por
cima da taça de champanhe com um sorriso e depois fez um brinde ao amigo:
— A nós.
CAPÍTULO 25

O avião pousou suavemente em São Francisco, enquanto Michael fechava


sua pasta. Tinha mil e uma coisas a fazer no decorrer da próxima semana.
Encontros com médicos, reuniões a que comparecer, locais de obras a visitar,
arquitetos a organizar, pessoas, projetos, conferências, tudo exigindo a sua
atenção e... oh, diabo... e também a tal fotógrafa. Perguntou-se como
conseguiria arrumar tempo para tudo. Mas daria um jeito. Sempre dava.
Deixaria de comer, dormir ou qualquer outra coisa assim. Ele pegou a capa na
prateleira por cima de sua cabeça, onde a deixara dobrada, pendurando-a no
braço e seguindo os outros passageiros de primeira classe para fora do avião.
Sentia os olhos das aeromoças fixados nele. Era o que sempre acontecia.
Ignorou-as. Elas não o interessavam. Além do mais, ele não tinha tempo. Olhou
para o relógio. Sabia que haveria um carro a sua espera no terminal. Passavam
vinte minutos das duas horas da tarde. Conseguira realizar um dia inteiro de
trabalho em apenas meio expediente no escritório em Nova York e agora tinha
tempo para pelo menos quatro ou cinco reuniões em São Francisco. Na manhã
seguinte, já havia marcado um encontro para tratar de negócios durante o café
da manhã, às sete horas. Era assim que sua vida transcorria. Era assim que ele
gostava. Tudo o que se importava era com seu trabalho. Do trabalho e de um
punhado de pessoas. Duas das quais estavam naquele momento desfrutando uma
imensa felicidade em Majorca, na casa de amigos, enquanto a outra estava nas
boas mãos de Wendy, em Nova York. Todas estavam sob bons cuidados. Assim
como ele. Tinha o centro médico para absorvê-lo. E tudo estava correndo às mil
maravilhas. Michael sorriu para si mesmo, enquanto se encaminhava para o
terminal. Aquela era uma obra sua.
— Mr. Hillyard? — O motorista reconheceu-o imediatamente e Michael
assentiu. — O carro está ali.
Michael recostou-se no assento, enquanto o motorista ia buscar sua
bagagem no caos do terminal. Era bastante agradável estar novamente em São
Francisco. Era um dia de março de frio intenso em Nova York quando ele
partira. Agora, eram 6h15min da tarde em São Francisco e tudo ao seu redor
estava verde, viçoso e maravilhoso. Em Nova York, as árvores ainda estavam
desfolhadas, cinzentas, o verde continuaria a ser uma cor esquecida por mais um
mês. Era muito difícil esperar a primavera em Nova York. Sempre se tinha a
impressão de que jamais chegaria. E no momento mesmo em que se estava
desistindo, chegando-se à conclusão de que nada voltaria a ficar verde, os
primeiros botões apareciam, traziam de volta a esperança. Michael havia-se
esquecido de como a primavera era agradável. Nunca notara. Não tinha tempo.
O motorista levou-o diretamente para o hotel, onde algum funcionário
subalterno da firma já o registrara e providenciara para que a suíte estivesse
devidamente preparada para a primeira reunião. Ele reservara duas suítes, uma
para poder ficar em paz, a outra para as reuniões. E se houvesse necessidade, as
reuniões poderiam ser realizadas simultaneamente nas duas suítes. Eram nove
horas da noite quando ele terminou todo o trabalho do dia. Cansado, ligou para o
serviço e pediu um filé. Era meia-noite em Nova York e ele estava exausto. Mas
havia sido umas poucas horas bastante proveitosas e. Michael estava satisfeito.
Recostou-se no sofá, tirou a gravata, pôs os pés em cima da mesinha e fechou os
olhos. E depois teve a impressão de ouvir a voz da mãe na sala: "Já ligou para a
moça?" Oh, Deus! As palavras pareciam ecoar pela sala, que ainda recendia a
fumaça de cigarro e à roda de scotches que pedira ao final. Mas a moça... por que
não? Tinha tempo, enquanto esperava o filé. Podia impedi-lo de cair no sono. Ele
pegou a pasta, encontrou o número do telefone numa ficha e discou do sofá
mesmo. O telefone tocou três ou quatro vezes, antes que ela atendesse.
— Alô?
— Boa noite, Miss Adamson. Aqui é Michael Hillyard. Marie quase soltou
um grito de espanto e teve de fazer um tremendo esforço para controlar a
respiração.
— Entendo. Está em São Francisco, Sr. Hillyard?
A voz dela era brusca, parecia quase furiosa. Talvez ele tivesse ligado num
momento errado. Ou então ela não gostava de receber telefonemas de negócios
em casa. Mas Michael não se importava.
— Estou, sim, Miss Adamson,. E estava imaginando que poderíamos
encontrar-nos. Temos algumas coisas a discutir.
— Não, não temos absolutamente nada a discutir. Pensei que tivesse
deixado isso bem claro para sua mãe.
Marie estava tremendo toda e apertando o fone com força.
— Se falou, é possível que ela tenha esquecido o recado.
Michael estava começando a parecer tão tenso quanto ela. — Ela sofreu
um pequeno ataque cardíaco logo depois do encontro que tiveram. . Tenho
certeza de que nada teve a ver com o encontro, mas a verdade é que ela não
me disse muita coisa a respeito do que conversaram. O que é compreensível, em
vista das circunstâncias.
— É sim. — Marie fez uma breve pausa. — Lamento saber disso. Ela está
bem agora?
— Está, sim. — Michael sorriu. — Casou-se na semana passada e neste
momento está em Majorca.
Essa é ótima! A desgraçada arruína minha vida e parte em lua-de-mel!
Marie sentiu vontade de ranger os dentes ou bater com o telefone.
— Mas isso não tem importância para nós... Quando podemos nos
encontrar?
— Já dei a resposta: não podemos!
Marie quase cuspiu as palavras pelo telefone, voltando a fechar os olhos.
Mas Michel estava cansado demais para se incomodar com qualquer outra
coisa.
— Está certo. Aceito a sua recusa, pelo menos por enquanto. Estou no
Fairmont. Se mudar de idéia, pode telefonar-me.
— Não vou telefonar.
— Como quiser.
-Boa noite, Mr. Hillyard.
— Boa noite, Miss Adamson.
Marie estava surpresa ao descobrir como Michael encerrara rapidamente
a conversa. E não parecia absolutamente com Michael. Parecia cansado, como
realmente não se importasse com coisa alguma. O que teria acontecido com ele
nos últimos dois anos? Depois que desligou, ela ficou sentada em silêncio por
longo tempo, pensando.
CAPÍTULO 26

— Querida, você está com uma aparência terrivelmente solene. Algum


problema?
Peter fitou-a através da mesa do almoço. Marie sacudiu a cabeça,
mexendo distraidamente com o copo de vinho.
— Não. Estou apenas pensando num novo trabalho. Quero iniciar um novo
projeto amanhã. E isso sempre me deixa preocupado.
Mas ela estava mentindo e ambos sabiam disso. Desde que Michael
telefonara, na noite anterior, Marie fora lançada de volta ao passado. Tudo o que
podia pensar era naquele último dia. O passeio de bicicleta, a feira, as vistosas
contas azuis, enterradas na praia, depois o vestido branco comprido e a touca
azul de cetim para fugir e casar-se com Michael... e depois a voz da mãe dele no
hospital, quando estava com o rosto coberto por ataduras, os olhos vendados.
Era como ter um filme exibido constantemente diante de seus olhos. Ela não
podia escapar.
— Você está bem, querida?
— Estou, sim. Desculpe estar sendo uma companhia tão desagradável
hoje. Talvez eu esteja simplesmente cansada.
Mas Peter percebera a expressão angustiada e o franzido perturbado
entre os olhos de Marie.
— Tem visto Faye ultimamente?
— Não. Estou sempre para telefonar e convidá-la para almoçar, mas
parece que nunca tenho tempo. Desde a exposição. . . — Marie fez uma breve
pausa, contemplando-o com um sorriso de agradecimento. — ... que passo a
metade do tempo no laboratório e a outra metade correndo pela cidade com a
câmara.
— Eu não me estava referindo a um encontro social, mais profissional.
— Claro que não. Já lhe contei que encerramos o tratamento antes do
Natal.
— Nunca me disse se a decisão de suspender as sessões foi sua ou dela.
— Minha. Mas Faye não discordou. — Marie sentiu-se ligeiramente
magoada pelo fato de Peter pensar que ela estava precisando de mais sessões
psiquiátricas. — Estou apenas cansada, Peter. Não há mais nada.
— Não tenha tanta certeza assim. Às vezes, acho que ainda se sente
atormentada pelos... pelos acontecimentos de dois anos atrás.
Peter falou cautelosamente, observando-a atentamente. E ficou
consternado quando a viu quase se encolher, visivelmente.
— Não diga bobagem.
— E perfeitamente normal, Marie. As pessoas ficam atormentadas por
coisas assim durante dez ou vinte anos. E uma experiência terrivelmente
traumática para se viver. Alguma parte de você, bem lá no fundo, irá sempre
recordar o que aconteceu, mesmo tendo ficado inconsciente depois do acidente.
Se conseguir fazê-la descansar, estará livre.
— Já pus para descansar e estou livre.
— Somente você mesma pode julgar isso. Mas quero que tenha certeza.
Caso contrário, sutilmente, irá afeta-la pelo resto da vida. Limitará a sua
capacidade, prejudicará sua vida... Seja como for, não há necessidade de
continuar. Pense no problema com todo cuidado. Pode querer continuar a se
encontrar com Faye por mais algum tempo. Não faria mal algum.
Peter parecia preocupado.
— Não preciso.
A boca de Marie estava contraída numa linha firme. Peter afagou-lhe a
mão. Mas não pediu desculpas por ter abordado o assunto. Não estava gostando
do ânimo de Marie.
— Está certo. Vamos embora?
Ele sorriu para ela mais gentilmente e Marie retribuiu o sorriso. Mas é
claro que Peter certo. Marie estava obcecada por ter falado com Michael.
Peter pagou a conta e ajudou-a a vestir o blazer de veludo azul-marinho
usada com saia Cacharel branca e a graciosa blusa de seda. Marie estava
impecavelmente vestida, como sempre. Peter adorava a companhia dela
— Quer que eu a leve para casa?
— Não, obrigada. Pensei em dar um pulo até a galeria. Quero discutir
alguns problemas com Jacques. Estou com vontade de mudar algumas das
peças. Muitos trabalhos anteriores meus estão, tendo agora mais destaque que
os recentes. Estou querendo inverter essa situação.
— O que faz sentido.
Peter passou o braço pelos ombros dela, enquanto caminhavam ao sol da
primavera. O nevoeiro da manhã já se dissipara e estava fazendo um dia quente
e maravilhoso. O manobreiro trouxe o Porsche preto rapidamente e Peter abriu
a porta para Marie entrar. Ela ajeitou a saia e sorriu-lhe, enquanto ele se
sentava ao volante. Sabia agora o quanto Peter tinha importância para ela. Às
vezes, porém, perguntava-se se ele a amava porque a criara ou talvez porque
ela permanecia de certa forma inatingível. Freqüentemente, Marie sentia-se
culpada por não ser mais franca com Peter. Mas apesar da afeição que sentia
por ele, havia sempre uma sombra de reserva entre os dois. Marie sabia que era
sua a culpa. E talvez Peter estivesse certo. Talvez ela estivesse condenada a
ficar para sempre atormentada e abalada pelo acidente. Talvez devesse voltar a
procurar Faye.
— Não parece com muita disposição para falar hoje, meu amor. Ainda
pensando no novo projeto?
Ela assentiu, com um sorriso constrangido. Depois, passou a mão
gentilmente pela nuca de Peter.
— Às vezes me pergunto por que você me atura.
— Porque tenho muita sorte em tê-la. É uma pessoa muito especial para
mim. Espero que saiba disso.
Mas por quê? Havia ocasiões em que Marie ficava pensando nisso. Será
que era parecida com a outra mulher a quem ele amara? Será que Peter a fizera
assim deliberadamente? Era uma idéia terrível.
Marie recostou-se no assento por um momento e fechou os olhos,
tentando relaxar. Mas abriu os olhos subitamente, ao sentir Peter dar uma
guinada busca no pequeno carro. Tudo o que viu foi um Jaguar vermelho
avançando na direção do lado do carro em que ela estava, de frente, o seu
motorista ultrapassando um caminhão estacionado em ma dupla. Por algum
motivo, o motorista do Jaguar fora além do necessário e entrara na contramão,
até ficar bem perto de Marie. Ela ficou olhando, os olhos arregalados pelo horror,
apavorada demais para emitir qualquer som. Mas o incidente foi contornado em
um rápido instante. Peter conseguiu evitar o outro carro e o Jaguar vermelho
afastou-se na direção oposta, avançando um sinal vermelho. Marie ficou
paralisada no assento, aterrorizada, agarrando o painel com força, os olhos
fixados à frente, a boca tremendo, as lágrimas prestes a se derramarem, a
mente voltando a algo que testemunhara vinte e dois meses antes. Peter
compreendeu imediatamente O que estava acontecendo. Parou o carro e
inclinou-se para abraçá-la. Mas Marie estava rígida demais para se mover. No
instante em que ele a tocou, Marie começou a gritar. Os gritos vinham do fundo
de sua alma e Peter teve de sacudi-la, envolvê-la em seus braços, para subjugá-
la.
— Calma, querida, calma... Está tudo bem agora. Está tudo bem. Fique
calma. Já acabou. Nada igual jamais voltará a acontecer. Está tudo acabado.
Marie desmoronou em soluços de terror, as lágrimas escorrendo pelo
rosto, todo o corpo tremendo. Peter abraçou-a firmemente. Quase meia hora se
passou antes que Marie parasse de chorar, recostando-se no assento, exausta.
Peter ficou a observá-la em silêncio por algum tempo, afagando-lhe o rosto e os
cabelos, segurando-lhe a mão, deixando-a sentir que estava de fato segura. Mas
ele estava profundamente perturbado pelo que presenciara. Confirmava o que
vinha pensando. Quando Marie finalmente parou de tremer e relaxou, ao lado
dele, Peter pôs-se a falar-lhe, suavemente, mas firmemente, enquanto Marie
fechava os olhos:
— Tem de voltar a se encontrar com Faye. Ainda não está superado para
você. E não estará enquanto não enfrentar o problema e alcançar a cura.
Mas quanto mais ela podia enfrentar? E o que havia para curar? O amor de
Marie por Michael? Como ela poderia curar isso? Como poderia contar a Peter
que falara com Michael pelo telefone e que isso lhe despertara uma vontade
intensa de abraçá-lo, beijá-lo, sentir novamente as mãos dele em seu corpo?
Como poderia dizer uma coisa dessas a Peter? Em vez disso, Marie fitou-o com
expressão cansada e assentiu em silêncio.
— Vou pensar nisso.
— Ótimo. Quer que eu a leve para casa?
A voz de Peter era extremamente gentil e ela concordou. Não tinha
forças para ir até a galeria agora. Não voltaram a falar até chegarem ao prédio
em que Marie morava.
— Quer que eu a leve até o apartamento, Marie?
Mas ela se limitou a sacudir a cabeça e beijou-o no rosto. E só disse uma
palavra ao saltar do carro:
— Obrigada.
Não olhou para trás ao atravessar a calçada. Subiu lentamente a escada, o
fardo dos vinte e dois meses solitários pesando terrivelmente em seus ombros.
Se ao menos Michael jamais tivesse telefonado. ... Isso lhe trouxera de volta
toda a angústia. E para quê? De que adiantava? Talvez ele não se importasse
com coisa alguma, no final das contas. Queria simplesmente as fotografias dela.
Pois que o desgraçado comprasse o trabalho de qualquer outra pessoa. Por que
diabo não podia deixá-la em paz?
Marie entrou no apartamento e foi direto para a cama. Fred foi pulando a
seus pés e subiu na cama. Mas Marie não estava com disposição para brincar.
Empurrou Fred para o chão e ficou deitada na cama por muito tempo, pensando
se deveria ligar para Faye ou se isso também de nada adiantaria. Estava
começando a cochilar, numa exaustão irrequieta, quando o telefone tocou. Ela
teve um sobressalto e levantou-se. Não queria atender. Mas provavelmente era
Peter, querendo saber como ela estava e não tinha direito de deixá-lo ainda
mais preocupado do que já o fizera naquela tarde. Lentamente, estendeu a mão
para o telefone.
— Alô?
A palavra saiu trêmula de seus lábios.
— Miss Adamson?
Oh, Deus, não era Peter! Era... Marie fechou os olhos para conter as
lágrimas, enquanto um suspiro interminável sacudia todo o seu corpo.
— Pelo amor de Deus, Michael, deixe-me em paz!
Ela desligou. No outro lado da linha, Michael ficou olhando para o fone, na
mais total confusão. O que estaria acontecendo? E por que ela o chamara de
Michael?
CAPÍTULO 27

Marie parecia cansada e tensa na manhã seguinte, ao entrar na galeria


com Fred. Usava uma calça preta e uma suéter verde, cores que lhe ficavam
muito bem. Mas parecia extremamente pálida depois de uma longa noite sem
dormir, durante a qual revivera, pelo menos dez mil vezes, o seu último dia com
Michael e o acidente. Tinha a sensação de que jamais conseguiria escapar, nem
que vivesse mil anos. E sentia-se pelo menos com cem anos de idade naquela
manhã.
— Parece que andou trabalhando demais, meu amor. Jacques sorriu-lhe
de trás da escrivaninha em seu escritório.
Estava usando o seu uniforme habitual: uma calça jeans francesa de corte
impecável, justa no corpo, blusa preta de gola roulê e casaco de camurça St.
Laurent. Nele, a combinação parecia perfeita.
— Ou será que ficou acordada até tarde com o nosso médico predileto?
Ele era um velho amigo de Peter e já gostava imensamente de Marie. Ela
sorriu em resposta e tomou um gole do café que Jacques lhe servira. Era um café
puro, bem forte, o único que ele tomava. Trazia-o da França, juntamente com
outros artigos preciosos, sem os quais não podia sobreviver. Marie adorava
caçoar dele por seu chauvinismo e pelos gostos dispendiosos. Como presente de
aniversário, dera-lhe papel higiênico com o logo tipo da Gucci impresso. E
também uma pasta da Hermes, que era mais ao estilo de Jacques: Mas ele
gostara também do presente de brincadeira.
— Não, não fui a lugar nenhum com Peter. Acho que passei tempo demais
trancada no laboratório.
— Mas que garota mais doida! Uma mulher como você deveria estar
sempre dançando.
— Mais tarde. Depois que eu trabalhar mais um pouco.
Marie começou a descrever sua nova idéia para uma série de fotografias
sobre a vida nas ruas de São Francisco. Jacques assentiu em aprovação,
visivelmente satisfeito.
— Ça me plaite, Marie. É uma excelente idéia. Deve começar assim que
puder.
Ele estava prestes a entrar em detalhes quando bateram na porta da sala.
Era a secretária, gesticulando discretamente.
— Provavelmente é uma das suas namoradas, Jacques.
Marie adorava caçoar dele por causa disso. Jacques deu de ombros,
sorrindo, enquanto contornava a mesa para ir falar com a secretária, além da
porta. Escutou as palavras que ela lhe sussurrou e depois concordou, parecendo
extremamente satisfeito. Fez um gesto afirmativo e depois voltou para a sala e
sentou-se, olhando para Marie como se estivesse prestes a conceder-lhe um
presente maravilhoso.
— Tenho uma surpresa para você, Marie. — Nesse momento, soou outra
batida na porta — Alguém muito importante está interessado em seu trabalho.
A porta abriu-se antes que Marie tivesse tempo de compreender
plenamente o significado daquelas palavras ou suas implicações. Subitamente,
ela se descobriu a virar a cabeça para deparar com Michael. Quase soltou um
grito e sentiu a xícara de café fumegante tremer em sua mão. Ele estava muito
bonito, num terno azul marinho, camisa branca, gravata escura, parecia em
tudo o magnata que na realidade era.
Marie largou a xícara para apertar a mão estendida de Michael. Ele ficou
impressionado ao constatar como ela parecia serena e controlada ali no
escritório de Jacques. Não parecia absolutamente a mesma mulher que atendera
ao telefone na noite anterior, com angústia na voz, suplicando que a deixasse em
paz. Talvez ela tivesse outros problemas, provavelmente com homens. Talvez
estivesse embriaga da na ocasião. Com artistas, nunca se podia saber. Mas
nenhum desses pensamentos transpareceu no rosto de Michael, assim como
Marie não demonstrou o seu terrível constrangimento.
— Estou extremamente contente por finalmente encontrá-la. Exigiu-me
muito trabalho, Miss Adamson. Mas talentosa como é, imagino que tem esse
direito.
Ele sorriu indulgentemente e Marie olhou para Jacques, que estava de pé
atrás da mesa, estendendo a mão para Michael. Ele estava muito impressionado
pelo interesse da Cotter-Hillyard no trabalho de Marie. Michael explicara
claramente à secretária que seu interesse era profissional, não para a sua própria
coleção particular ou para seu gabinete. Queria o trabalho dela para um dos
maiores projetos que sua firma já realizara e Jacques estava aturdido. Mal podia
esperar pelo momento em que Marie saberia. Mesmo a fria reserva dela seria
destruída por uma notícia tão espetacular. Mas só que Marie parecia agora tão
impassível quanto antes, pelo menos naquele instante. Ela estava imóvel na
cadeira, evitando o olhar de Michael e com um sorriso frio nos lábios.
Posso ir direto ao ponto e explicar aos dois o que tenho em mente?
— Claro que pode!
Jacques acenou para que a secretária servisse café a Michael e depois
recostou-se para escutar. Michael pôs-se a explicar em detalhes o que estava
querendo fazer com o trabalho de Marie. Era um projeto pelo qual qualquer
fotógrafo teria lutado arduamente. Mas no final da exposição, Marie ainda
parecia indiferente. Sacudiu a cabeça ligeiramente e virou-se a fim de olhar para
Michael.
— Sinto muito, mas minha resposta ainda é a mesma, Mr Hillyard.
— Já conversaram sobre isso antes?
Jacques estava confuso e Michael apressou-se em explicar:
— Um dos meus companheiros, minha mãe e até mesmo eu já entramos
em contato com Miss Adamson, no apartamento dela. Já lhe falamos do projeto,
embora apenas de passagem, mas a resposta dela foi invariavelmente não. Eu
tinha a esperança de fazê-la mudar de idéia.
Jacques olhou para Marie, aturdido. Ela estava sacudindo a cabeça.
— Lamento muito, mas não posso aceitar o trabalho.
— Mas por que não?
As palavras eram de Jacques. Ele estava quase frenético.
— Porque não quero.
— Pode pelo menos informar-nos seus motivos?
A voz de Michael era extremamente suave e tinha algo novo., o
conhecimento de seu próprio poder. Marie ficou irritada ao descobrir que
gostava desse aspecto da voz dele. Mas isso em nada contribuiu para fazê-la
mudar de idéia.
— Pode chamar-me de um artista temperamental, se quiser. De qualquer
coisa. A resposta continua a ser não. E jamais deixará de ser não.
Marie largou a xícara em cima da mesa, olhou para os dois homens e
levantou-se. Estendeu a mão para Michael e sacudiu novamente a cabeça, com
expressão sombria.
— De qualquer forma, obrigada por seu interesse. Tenho certeza de que
encontrará a pessoa certa para o seu projeto. Talvez. Jacques possa recomendar
alguém. Há muitos artistas e fotógrafos excepcionais ligados à galeria.
— Mas, infelizmente, queremos apenas você.
Michael parecia agora obstinado e Jacques estava quase apoplético. Mas
Marie não ia perder aquela batalha, de jeito nenhum. Já perdera demais.
— É uma atitude irracional de sua parte, Mr. Hillyard. E infantil. Vai ter
de encontrar outra pessoa. Não vou trabalhar consigo. E ponto final.
— Estaria disposta a trabalhar com outra pessoa da firma? Marie tornou a
sacudir a cabeça e encaminhou-se para a porta.
— Pode pelo menos considerar um pouco a proposta?
Ela estava de costas para Michael ao parar por um instante na porta, mas
novamente sacudiu a cabeça. No instante seguinte, eles ouviram a palavra não,
enquanto ela se retirava com o cachorro. Michael não perdeu um momento,
sequer com o aturdido dono da galeria, que continuou sentado atrás da mesa.
Ele saiu correndo para a rua, atrás dela, gritando:
— Espere um instante!
Nem mesmo sabia por que estava fazendo aquilo, mas sentia que
precisava. Alcançou-a enquanto ela se afastava apressadamente.
— Posso acompanhá-la por um momento?
— Se quiser. Mas não vai adiantar.
Marie olhava fixamente para frente, evitando os olhos de Michael, que
seguia a seu lado, obstinadamente.
— Por que está fazendo isso? Simplesmente não faz o menor sentido. É
pessoal? Alguma coisa que sabe a respeito de nossa firma? Uma experiência
desagradável por que passou? Algo relacionado comigo?
— Não faz a menor diferença.
— Mas claro que faz! — Michael deteve-a, segurando-lhe firmemente o
braço. — Tenho o direto de saber.
— Tem mesmo? — Ambos pareceram ficar parados ali por uma
eternidade, até que finalmente Marie atenuou sua atitude. — Está certo. É
pessoal.
— Pelo menos sei agora que não é doida.
Marie riu e fitou-o com expressão divertida.
— Como pode ter certeza? Talvez eu seja.
— Infelizmente, não creio que seja. Tenho a impressão de que
simplesmente odeia a Cotter-Hillyard. Ou a mim.
O que era um absurdo. Nem ele nem a firma jamais haviam tido qualquer
publicidade desfavorável. Não estavam envolvidos em projetos controvertidos ou
com governos suspeitos. Não havia motivo para que ela se comportasse daquela
maneira. Mas talvez a moça tivesse tido um romance com algum empregado
do escritório local da Cotter-Hillyard e isso provocara todo o seu ressentimento.
Tinha de ser algo assim. Nada mais fazia sentido.
— Não o odeio, Mr. Hillyard.
Marie esperou por longo tempo para dizer isso, enquanto continuavam a
andar.
— Não é essa a impressão que dá.
Michael sorriu e pela primeira vez parecia novamente um garotinho.
Como o que costumava caçoar dela, quando estava em seu apartamento, junto
com Ben. Aquele vislumbre do passado foi um impacto no coração de Marie, que
tratou de desviar os olhos.
— Posso convidá-la para tomar uma xícara de café em algum lugar?
Marie ia recusar, mas mudou de idéia, achando que talvez assim fosse
melhor, pois poderia acabar com aquilo de uma vez por todas. Talvez então ele
a deixasse em paz.
— Está certo.
Ela sugeriu um lugar no outro lado da rua e atravessaram para lá, com
Fred em seus calcanhares. Ambos pediram expressos. Sem pensar, Marie
entregou-lhe o açúcar. Mas ele se limitou a agradecer, serviu-se e largou o
açucareiro. Não lhe pareceu estranho que Marie soubesse que ele tomava café
com açúcar.
— Não consigo explicar direito, mas acho que há algo estranho em seu
trabalho. Algo que me deixa obcecado. Como se eu já o tivesse visto antes,
como se já o conhecesse, como se compreendesse o que estava querendo
mostrar e o que viu ao tirar as fotografias. Faz algum sentido para você?
Faz, sim. E muito sentido. Michael sempre demonstrara uma
compreensão maravilhosa dos quadros dela. Marie suspirou e assentiu.
— Acho que faz. Sempre espero que minhas fotos despertem essa
impressão nas pessoas.
— Mas elas fazem algo mais comigo. Não consigo explicar direito. Como
se eu já conhecesse o seu trabalho, digamos assim. Não sei direito. Parece
absurdo, quando falo nisso.
Mas será que não me reconhece? Não reconhece esses olhos?
— Pode pelo menos considerar um pouco a proposta?
Marie descobriu-se a querer formular-lhe tais perguntas, enquanto
tomavam café e conversavam sobre o trabalho dela.
— Tenho o pressentimento terrível de que não vai ceder. Não vai, não é
mesmo? — Tristemente, Marie sacudiu a cabeça. — É por causa de dinheiro?
— Claro que não.
— Não pensei que fosse.
Michael nem mesmo mencionou o contrato fabuloso que tinha no bolso.
Sabia que de nada serviria e talvez pudesse até agravar a situação.
— Eu gostaria de saber qual o motivo.
— Apenas minha excentricidade. Minha maneira de me vingar do
passado.
Marie ficou chocada com a própria sinceridade, mas Michael parecia não
ter reparado.
Estavam ambos tranqüilos agora, sentados no pequeno restaurante
italiano. Havia também uma tristeza imensa naquele encontro, um laivo de
amargura e ternura que Michael não conseguia compreender.
— Minha mãe ficou muito impressionada com o seu trabalho. E ela não é
uma mulher fácil de se satisfazer.
Marie sorriu pela escolha das palavras dele.
— Sei que não é. Foi o que ouvi dizer. Ela sempre exige o máximo.
— Tem razão. Mas foi assim que ela levou a firma ao ponto em que se
encontra hoje. É um prazer receber a firma das mãos dela. Como um barco
perfeitamente comandado.
— O que é muita sorte sua.
A moça parecia novamente amargurada e outra vez Michael não
entendeu. Num pequeno gesto nervoso, ele passou a mão por uma pequena
cicatriz na têmpora. Abruptamente, Marie largou a xícara em cima da mesa e
observou-o.
— O que é isso?
— Isso o quê?
— Essa cicatriz.
Ela não conseguia despregar os olhos da cicatriz. Sabia exatamente o que
significava. Tinha de ser do. . .
— Não é nada. Já a tenho há algum tempo.
— Não parece muito antiga.
— Tenho há uns dois anos. — Michael parecia constrangido — Mas não foi
nada importante. Um pequeno acidente, em companhia de alguns amigos.
Ele estava tentando descartar-se do assunto e Marie sentiu vontade de
jogar o café em sua cara. Mas que desgraçado! Um pequeno acidente...
Obrigada, meu caro. Sei agora tudo o que precisava saber. Ela pegou a bolsa,
fitou-o friamente por um momento e depois estendeu-lhe a mão.
— Obrigada por um momento adorável, Mr. Hillyard. Espero que aprecie
a sua estada em São Francisco.
— Já vai? Falei alguma coisa errada?
Oh, Deus, ela era mesmo impossível! Que diabo havia de errado com ela
agora? O que ele teria dito para deixá-la assim? E no instante seguinte ele ficou
chocado ao fitá-la nos olhos.
— Para ser franca, disse, sim. — Agora, era Marie quem estava chocada,
ao ouvir suas próprias palavras. — Li a respeito do acidente que sofreu e não
posso admitir que alguém o classifique como algo sem importância. As duas
pessoas que estavam em sua companhia ficaram bastante machucadas, pelo que
sei. Não se importa absolutamente com isso, Michael? Será que não se importa
com mais nada além de sua maldita firma?
— Mas qual é o seu problema? Onde está querendo chegar?
— Sou um ser humano e você não é. É por isso que o odeio.
— Você está doida.
— Não, meu caro, não estou mais.
Marie levantou-se bruscamente e afastou-se. Michael ficou a olhar para
ela, aturdido. E depois, como se impelido por uma força invisível, descobriu-se
de pé, a correr atrás dela. Deixara uma nota de cinco dólares na mesinha de
mármore e foi no encalço de Marie Adamson. Tinha de contar para ela. Tinha
de. ... Não, não fora um pequeno acidente. A mulher a quem ele amava morrera.
Mas que direito aquela jovem tinha de saber alguma coisa? Michael não teve a
oportunidade de contar, porque Marie acabara de entrar num táxi quando ele
chegou à rua.
CAPÍTULO 28

Marie tinha acabado de chegar à praia e estava armando o tripé quando


avistou o vulto se aproximar. A atitude determinada do homem deixou-a
perplexa, até que descobriu quem era. Michael. Ele desceu à praia e subiu a
pequena duna, parando diante dela e bloqueando-lhe a vista.
— Tenho uma coisa para lhe dizer.
— Não quero ouvir.
— O problema é seu, pois vou dizer de qualquer maneira. Não tem o
direito de se intrometer em minha vida particular e dizer-me que espécie de ser
humano sou. Nem mesmo me conhece.
As palavras de Marie haviam-no atormentado durante a noite inteira. E
ele descobrira, através do serviço de recados telefônicos de Marie, onde podia
encontrá-la. Nem mesmo tinha certeza por que fora até ali, mas sabia que
precisava fazê-lo.
— Que direito tem de fazer qualquer julgamento a meu respeito?
— Absolutamente nenhum. Mas não gosto do que vejo.
Marie parecia fria e distante, enquanto trocava a lente da câmara.
— E o que exatamente vê?
— Uma casca vazia. Um homem que não se importa com coisa alguma, a
não ser com o seu trabalho. Um homem que não se importa com ninguém, não
ama nada, não dá nada, não é nada.
— O que você sabe sobre o que sou, sobre o que faço, como me sinto? O
que a faz pensar que é toda-poderosa para saber de tudo? — Marie contornou-o
e focalizou a câmara na duna seguinte. — Faça o favor de me escutar!
Michael estendeu a mão para a câmara e ela o empurrou, virando-se para
ele, dominada por uma fúria intensa.
— Por que não sai de minha vida?
Como fez nos últimos dois anos, desgraçado!
— Não estou em sua vida! Estou apenas tentando comprar alguns
trabalhos seu. É tudo o que quero! Não quero os seus julgamentos sobre a minha
personalidade, minha vida ou qualquer outra coisa! Quero apenas comprar
algumas de suas malditas fotografias!
Michael estava quase tremendo, de tão furioso. Mas Marie simplesmente
passou por ele, e foi até o portfólio que estava sobre uma manta na areia. Abriu-
o consultou uma ficha e depois pegou um negativo. Levantou-se e entregou-o a
Michael.
— Aqui está. É seu. Faça o que bem quiser com essa foto. E agora me
deixe em paz.
Sem dizer mais nada, Michael virou-se bruscamente e voltou para o carro
que deixara estacionado à beira da estrada.
Marie não virou a cabeça para olhá-lo, concentrando-se em seu trabalho.
Ficou na praia até que o crepúsculo chegou e não havia mais claridade suficiente
para continuar a trabalhar. Voltou para o seu apartamento, preparou alguns ovos
mexidos, esquentou um café e. comeu. Depois, foi para o laboratório. Foi deitar
às duas horas da madrugada e não atendeu quando o telefone tocou. Mesmo que
fosse Peter, ela não se importava. Não queria falar com ninguém. E ia voltar
para a praia às nove horas daquela manhã. Ligou o despertador para oito horas e
adormeceu no instante seguinte. Libertara-se de alguma coisa lá na praia. E
tinha de ser franca consigo mesma: mesmo que o odiasse, pelo menos o vira. De
uma estranha maneira, isso era um alívio.
Na manhã seguinte, ela tomou um banho de chuveiro e vestiu-se em
menos de meia hora. Estava usando roupas de trabalho surradas. Tomou um
café enquanto lia o jornal. Deixou o apartamento na hora que havia prevista,
alguns minutos antes das nove horas. Já estava pensando no trabalho ao descer
apressadamente a escada, acompanhada por Fred. Foi somente quando chegou
lá embaixo que levantou os olhos e soltou uma exclamação de surpresa. No
outro lado da rua havia um enorme cartaz, montado num caminhão, dirigido por
Michael Hillyard. Ele estava sorrindo ao observá-la. Marie sentou-se no último
degrau e começou a rir. Michael era mesmo doido. Pegara a fotografia que ela
lhe dera, mandara ampliar e montara no caminhão, depois a levara até a porta
dela. Ele estava sorrindo ao sair do caminhão e ao aproximar-se de Marie, E ela
ainda estava rindo quando Michael se sentou no degrau a seu lado.
— Está gostando?
— Acho que você é doido.
— É possível. Mas não ficou bom? Pense só como os seus outros trabalhos
vão ficar, ampliados e montados nos prédios do centro médico. Não seria
sensacional?
Michael é que era sensacional, mas Marie não podia dizer-lhe isso.
— Vamos tomar um café e aproveitaremos para conversar.
Naquela manhã, Michael não estava disposto a receber um não como
resposta. Ele adiara todas as reuniões, reservando a manhã inteira para Marie
Adamson. E ela achou a determinação dele comovente ao mesmo tempo que
divertida.
— Eu deveria dizer não. Mas não vou dizer isso.
— Assim é melhor. Posso dar-lhe uma carona?
— Naquilo?
Marie apontou para o caminhão e começou a rir novamente.
— Claro. Por que não?
E assim os dois entraram na cabina do caminhão e seguiram para o Cais
dos Pescadores, a fim de tomarem o café da manhã. Os caminhões eram uma
paisagem familiar ali e ninguém ia se impressionar com uma fotografia daquele
tamanho.
Surpreendentemente, o café da manhã transcorreu de modo agradável.
Ambos suspenderam a guerra, pelo medos até que o cafezinho final foi servido.
— E então, consegui persuadi-la?
Michael parecia muito seguro de si mesmo, enquanto a contemplava,
sorridente, por cima da xícara.
— Não. Mas reconheço que foi um momento dos mais agradáveis.
— Imagino que eu deveria sentir-me grato por esses pequenos favores,
mas não é o meu estilo.
— E qual é o seu estilo? Pode dizer, em suas próprias palavras.
— Está querendo dizer que me dá uma chance de explicar-me, ao invés
de ficar dizendo o que sou?
Michael falava em tom jocoso, mas havia uma ponta de amargura em sua
voz. Ela chegara perto demais do problema com alguns dos seus comentários no
dia anterior.
— Está certo, vou-lhe dizer. Sob certos aspectos, você tem razão. Vivo
para o meu trabalho.
— Por quê? Não tem mais nada em sua vida?
— Não. A maioria das pessoas bem sucedidas provavelmente não tem.
Não há lugar para isso.
— O que é uma estupidez. Não precisa trocar a sua vida pelo sucesso.
Algumas pessoas têm as duas coisas.
— Você tem? .
— Não inteiramente. Mas talvez algum dia eu possa ter.
De qualquer forma, sei que é possível.
— Talvez seja. E talvez meu estímulo já não seja o que era antes.
Os olhos de Marie se abrandaram quando ela ouviu tais palavras.
— Minha vida mudou consideravelmente nos últimos anos. Não realizei
nenhuma das coisas que outrora planejei. Mas... tive algumas boas
compensações. Como tornar-se presidente da Cotter-Hillyard, só que Michael
ficou constrangido de dizê-lo.
— Entendo. Presumo que não é casado.
— Não, não sou. Não tenho tempo. Nem interesse.
Essa era ótima! Portanto, no final das contas, provavelmente havia sido
melhor que não tivessem mesmo casado.
— Dá a impressão de que nada o atrai.
No momento, é isso mesmo o que acontece. E você?'
— Também não sou casada.
— Quer saber de uma coisa? Apesar de toda a sua condenação ao meu
modo de vida, não é tão diferente assim. Está tão' obcecada por seu trabalho
quanto estou pelo meu, igualmente solitária, igualmente encerrada em seu
pequeno mundo. Então por que é tão exigente comigo? Isso não é justo.
A voz de Michael era gentil, mas tinha um tom de censura
— Desculpe. Talvez você esteja certo.
Era muito difícil discutir aquele problema. E depois, enquanto Marie
pensava no que ele acabara de dizer, sentiu a mão de Michael na sua. Foi como
uma faca a penetrar em seu coração. Ela puxou a mão, com uma expressão
angustiada nos olhos. Michael parecia novamente infeliz.
— Você é uma mulher muito difícil de compreender
— Creio que tem razão. Há muita coisa que seria impossível explicar.
— Deve tentar algum dia. Não sou o monstro que parece imaginar.
— Tenho certeza de que não é.
Fitando-o, tudo o que Marie queria era chorar. Era como dizer adeus para
Michael. Era saber, novamente, o que ela nunca poderia ter. Mas talvez ela
compreendesse melhor agora. Talvez finalmente fosse capaz de largá-la. Com
um pequeno suspiro. Marie olhou para o relógio.
— Tenho de ir trabalhar agora.
— Cheguei por acaso mais perto de um sim como resposta à nossa
proposta?
— Infelizmente, não.
Michael detestava ter de admitir mais seria forçado a desistir. Sabia agora
que ela jamais mudaria de idéia. Todos os seus esforços haviam sido em vão...
Ela era uma mulher obstinada. Mas ele gostava dela. E estava surpreso ao
descobrir quanto, no momento em que ela baixava a guarda. Havia nela uma
suavidade e uma ternura que o atraíam intensamente, como há anos não se
sentia atraído por ninguém.
— Acha que eu poderia convencê-la a jantar comigo este noite, Marie?
Não poderia ser uma espécie de prêmio de consolação, já que não consegui o que
queria?
Marie riu baixinho ao ver a cara dele e afagou-lhe a mão.
— Bem que eu gostaria, mas neste momento não será possível.
Infelizmente, terei de viajar.
Oh, diabo! pensou Michael. Estava realmente perdendo a luta, um round
depois do outro.
— Para onde vai?
— Vou voltar ao leste. Para cuidar de alguns problemas pessoais.
Marie tomara a decisão na última meia hora. Mas sabia agora o que
precisava fazer. Não era uma questão de enterrar o passado, mas sim de
desenterrá-lo. E ela tinha certeza agora. Tinha de se curar do passado.
— Telefonarei para você da próxima vez que vier a São Francisco. Espero
ter melhor sorte.
Talvez. E talvez também, a esta altura, eu já seja a Sra. Peter Gregson.
Talvez eu já esteja curada. E não terá mais qualquer importância.
Absolutamente nenhuma.
Voltaram em silêncio ao caminhão e Michael deixou-a no prédio em que
ela morava. Marie quase não falou ao se despedirem. Agradeceu pelo café da
manhã, sacudiu lentamente a cabeça e subiu para seu apartamento. Michael
perdera. E observando-a afastar-se, ele sentiu uma imensa tristeza. Era como se
tivesse perdido algo muito especial. Não sabia muito bem o quê. Um negócio,
uma mulher, uma amiga? Alguma coisa. Pela primeira vez em muito tempo, ele
se sentiu insuportavelmente só. Dando a partida no caminhão, voltou para o
hotel.
Assim que entrou no apartamento, Marie ligou para Peter Gregson. .
— Esta noite? Ora, querida, tenho uma reunião.
Ele parecia desconcertado e estava com pressa, atendendo ao telefone
entre dois pacientes.
— Então venha depois da reunião é importante. Vou viajar amanhã.
— Para onde? Por quanto tempo!
Peter estava agora preocupado.
— Eu lhe direi quando chegar aqui. Esta noite?
— Está bem, está bem. Por volta das onze horas. Mas isso é realmente
absurdo, Marie. Será que não pode esperar?
— Não.
Esperara por dois anos e ela fora doida em deixar assim por todo esse
tempo.
— Está certo. Eu a verei esta noite.
Peter desligou apressadamente. Marie telefonou para uma companhia
aérea, a fim de reservar a passagem, depois foi ao veterinário para acertar a
estada de Fred.
CAPÍTULO 29

Marie teve sorte. Houve um cancelamento naquela tarde e por isso


estava sentada agora na sala aconchegante e familiar que há meses não visitava.
Recostou-se no sofá e estendeu as pernas na direção da lareira apagada, por puro
hábito. Olhou distraidamente para os pés metidos em sandálias. Os pensamentos
estavam tão longe dali que nem ouviu Faye entrar.
— Está meditando ou apenas começando a dormir?
Marie levantou os olhos com um sorriso, enquanto Faye sentava-se a sua
frente.
— Apenas pensando. É muito bom voltar a vê-la. .
Na verdade, Marie estava surpresa por se sentir tão bem em voltar. Só de
estar ali experimentava uma sensação de voltar para casa, uma extrema
serenidade por se ajustar novamente e um lugar feliz. Tivera bons momentos
naquela sala, assim como outros difíceis.
— Devo dizer-lhe que está maravilhosa ou já se cansou de ouvir o
comentário?
Faye fitava-a com uma expressão radiante e Marie não pôde deixar de rir.
— Nunca me canso de ouvir. — Somente com Faye ela tinha coragem de
ser franca. — Creio que está querendo saber por que vim até aqui.
O rosto dela tornou-se sóbrio, enquanto fitava Faye nos olhos.
— Não posso deixar de admitir que a pergunta me passou pela cabeça.
Elas trocaram um rápido sorriso e depois Marie pareceu ficar novamente
imersa em seus pensamentos, por algum tempo até murmurar:
— Tenho visto Michael.
— Ele a encontrou?
Faye estava aturdida e mais do que um pouco impressionada.
— Sim e não. Encontrou Marie Adamson. Isso é tudo o que ele sabe. Um
dos empregados dele estava querendo me contratar. A Cotter-Hillyard está
fazendo um centro médico aqui em São Francisco e querem fotografias minhas
ampliadas para comporem a decoração.
— O que é extremamente lisonjeiro, Marie.
— E quem se importa com isso, Faye? O que pode importar-me o que ele
acha do meu trabalho?
Mas isso também não era toda a verdade. Ela sempre apreciara os elogios
de Michael e mesmo agora experimentava uma certa satisfação por saber que
novamente atraíra a atenção dele com seu trabalho.
— A mãe dele esteve aqui há algum tempo e eu disse a mesma coisa que
já havia falado ao tal empregado. Não. Não estou interessada. Não vou vender
nada para eles. Não quero trabalhar para eles. E ponto final.
— E eles insistiram?
— Demais até.
— O que deve ser ótimo. Algum deles sabe quem você é?
— Ben não percebeu. Mas a mãe de Michael descobriu. Acho que foi por
isso que ela marcou um encontro comigo.
Nancy ficou calada, olhando para seus pés. Estava muito longe, de volta ao
quarto de hotel, no dia em que se encontrara com Marion.
— Como se sentiu ao vê-la?
— Muito mal. Fez-me lembrar de tudo o que ela me havia feito. Eu a
odeio.
Mas havia algo mais em sua voz e Faye percebeu-o.
— E...?
— Está bem. — Marie levantou os olhos, com um suspiro. — Fez com que
tudo doesse novamente. Lembrou-se do quanto eu quis outrora que ela gostasse
de mim, até mesmo me amasse, pelo menos me aceitasse como esposa de.
Michael.
— E ela ainda a rejeitava?
— Não tenho certeza, mas creio que não. É agora uma mulher doente.
Parece diferente. Quase como se estivesse arrependida do que fizera. Aposto que
Michael não tem sido particularmente feliz nos últimos dois anos.
— E como você se sente em relação a isso?
— Aliviada. — Ela deixou escapar um suspiro de cansaço.
— E depois compreendi que não faz a menor diferença o que ele tem
passado. Está tudo acabado para nós, Faye. Tudo aconteceu há anos. Éramos
pessoas diferentes. E a verdade é que ele nunca veio me procurar.
Provavelmente não estaria agora insistindo em contratar meus serviços se
soubesse quem sou... quem eu era. Mas não sou mais Nancy McAllieter, Faye. E
ele não é o Michael que conheci.
— Como sabe?
— Eu o vi. Está insensível, frio, impiedoso. Não sei, mas é possível que
tudo isso seja uma conseqüência. Mas há também muita coisa nova.
— E o que me diz de dor? Sensação de perda? Desapontamento? Angústia?
— Não, Faye. Por que não falamos de traição, abandono, deserção,
covardia? Não acha que são as verdadeiras questões?
— Não sei. Serão mesmo? É assim que se sente quando o vê?
— É, sim. — A voz dela estava novamente dura. — Eu o odeio.
— Neste caso, ainda deve importar-se muito com ele.
Marie fez menção de contestar, mas depois sacudiu a cabeça, enquanto as
lágrimas afloravam a seus olhos. Ficou olhando em silêncio para Faye por longo
tempo.
— Você ainda o ama, Nancy?
Faye havia usado o nome antigo deliberadamente. A jovem suspirou
profundamente e deixou a cabeça descair contra o encosto do sofá, antes de
responder. E quando o fez, estava olhando para o teto e a voz não tinha qualquer
inflexão:
— Talvez Nancy ainda o ame, o pouco dela. Marie não o ama. Tenho
agora uma vida nova. Não posso me permitir amá-lo.
Ela olhou para Faye com uma expressão de pesar.
— Por que não?
— Porque ele não me ama. Porque não é algo real. Tenho de me desligar
de tudo agora. Totalmente. Sei disso. Não foi para isso que vim aqui hoje, a fim
de chorar em seu ombro por estar ainda apaixonada por Michael. Precisava
contar a alguém como me sinto. E não posso realmente falar com Peter a
respeito. Iria deixá-lo transtornado. Mas eu precisava de qualquer maneira tirar
isso do peito.
— Estou contente que tenha vindo procurar-me, Marie. Mas não tenho
certeza se pode decidir livrar-se de tudo com essa simplicidade que está
imaginando, deixar tudo para trás de um momento para outro.
— Na verdade, tudo ficou para trás há dois anos. Eu é que não permiti que
isso se consumasse, até agora. Disse a mim mesma que o tinha feito, mas não
era verdade. Por isso... — Marie empertigou-se novamente no sofá e fitou Faye
nos olhos. — Estou indo para Boston amanhã, a fim de resolver o problema de
uma vez por todas.
— Como assim?
— O problema de deixar tudo para trás. — Marie sorriu, pela primeira vez
em uma hora. — Há algumas coisas que ficaram inacabadas por lá, algumas
coisas que Michael e eu partilhávamos. Deixei-as ficarem como um monumento
a nós, porque sempre pensei que ele voltaria. Agora, tenho de ir a Boston para
cuidar disso. .
— Acha que está realmente preparada para tomar tal decisão?
— Estou, sim.
Marie parecia segura de si mesma, até para Faye.
— É o que realmente está querendo?
— É. sim.
— Não quer dizer a Michael quem... quem você era, para ver o que
acontece?
Marie quase estremeceu.
— Nunca! Isso está acabado. Para sempre. Além do mais...— Ela fez uma
pausa, suspirando novamente e olhando para as mãos. — ... não seria justo com
Peter.
— Deve pensar em ser justa com a Marie.
— É por isso que vou partir para Boston amanhã. Continuo pensar que,
depois disso, talvez eu esteja livre para assumir um compromisso de verdade
com Peter. Ele é um homem maravilhoso, Faye. E tem feito muito por mim.
— Mas você não o ama.
Era assustador ouvir alguém mais dizer aquelas palavras e Marie
imediatamente sacudiu a cabeça.
— Não! Não! Eu o amo!
— Então por que o problema de assumir um compromisso?
— Michael sempre se interpôs entre nós. .
— Isso não é problema, Marie. Basta não deixar.
— Não sei..., — Ela fez uma pausa prolongada. — Alguma coisa sempre
me deteve. Há alguma coisa... que não está certa. Talvez eu não me tenha
empenhado de verdade. Por um lado, fiquei esperando por Michael. Por outro...
não sei, Faye, simplesmente tenho o pressentimento de que não está certo.
Talvez a culpa seja minha.
— Porque sente que não parece certo?
— Não tenho certeza, mas às vezes fico com a impressão de que Peter
não me conhece. Isto é, ele conhece a mim, Marie Adamson, porque é a pessoa
que ajudou a criar. Não conhece a pessoa que eu era ou as coisas que tinham
importância para mim antes do acidente.
— Não poderia ensinar-lhe isso, Marie? .
— É possível. Mas não tenho certeza se ele quer saber. Peter me fez
sentir amada, mas não por mim mesma.
— Não se esqueça de que há muito peixe no mar, Marie.
— Sei disso. Mas ele é um homem maravilhoso e não há razão para que
não dê certo.
— Não, não há... a menos que você não o ame.
— Mas eu o amo
Marie estava começando a ficar nervosa, à medida que a conversa
prosseguia.
— Pois então relaxe-se e deixe que esse problema se resolva por si
próprio. Pode voltar para cá e discuti-lo comigo, se quiser. Mas primeiro vamos
cuidar dos seus sentimentos em relação a Michael.
— Quero apenas fazer essa viagem ao leste. E depois estarei livre.
— Está certo. Faça a viagem, mas venha procurar-me assim que voltar.
Está bem assim?
— Está bem.
De certa forma, Marie estava satisfeita por volta. Era um alívio.
Faye olhou para o relógio com uma expressão pesarosa e levantou-se. Já
se havia passado uma hora e meia que estavam conversando e ela tinha uma
aula da universidade dentro de um hora.
— Vai telefonar para marcar uma sessão assim que voltar?
— Imediatamente.
— Ótimo. E seja boa com você mesma enquanto estiver no leste. Não se
atormente por causa do passado. E se tiver algum problema, trate de me
telefonar.
Era um alívio saber que podia recorrer a isso. Ao se retirar, Marie sentia-
se mais animada que em qualquer outro momento daquela tarde. A conversa
iria tornar mais fácil explicar sua decisão a Peter.
CAPÍTULO 30

— Boston? Mas por quê, Marie? Não estou compreendendo.


Peter parecia cansado e irritado, o que raramente acontecia. Mas fora um
dia comprido e tivera uma reunião cansativa. Todas aquelas bobagens sobre o
novo centro médico. E tivera de encontrar-se com os arquitetos pela manhã.
Por que tinha de estar no comitê? Certamente tinha coisas melhores a fazer
com seu tempo.
— Acho que é uma loucura fazer essa viagem.
— Não é, não. Tenho de fazê-la. E estou preparada. O passado acabou
para mim. Completamente.
— Tão completamente que outro dia, quando quase tivemos um acidente
de carro, você ficou histérica por mais de uma hora. Não, Marie, não acabou.
— Confie em mim, querido. Vou fazer a única coisa que deixei inacabada
e depois estarei livre. Voltarei depois de amanhã.
— Continuo a achar que é uma loucura.
— Não é, não.
A voz de Marie era tão serena e firme que Peter não mais insistiu,
recostando-se no sofá, com um suspiro cansado. Talvez, no final das contas, ela
soubesse o que estava fazendo.
— Está certo. Não entendo, mas tenho de esperar que você saiba o que
está fazendo. Tem certeza de que estará tudo bem quando voltar para lá?
— Claro! Confie em mim.
— E eu confio, querida. Não se trata de desconfiança. É que ... ora, não sei
direito. Não quero que fique magoada. Posso fazer-lhe uma pergunta totalmente
absurda?
Marie esperava que não fosse a pergunta que temia. Ainda não. Mas não
era nisso que Peter estava pensando, enquanto a observava atentamente do
sofá.
— Pode, sim.
Ela ficou esperando, como pela cirurgia.
— Já sabe que Michael Hillyard está em São Francisco?
— Já, sim.
Marie estava estranhamente calma.
— Você se encontrou com ele?
— Encontrei-me. Ele foi à galeria. Quer que eu faça um trabalho para o
novo projeto que está realizando aqui. Recusei a proposta.
— Ele soube quem você era?
— Não.
— Por que não lhe disse?
Agora era o momento para Marie contar-lhe sobre o acordo que fizera
com a mãe de Michael. Mas era tarde demais. Não tinha mais importância
alguma.
— Isso não fazia qualquer diferença. O passado está encerrado.
— Tem certeza?
— Tenho. É por isso que estou indo para Boston.
— Neste caso, fico contente. — E no instante seguinte Peter ficou
momentaneamente preocupado. — A viagem tem alguma relação com
Hillyard?
Mas ele sabia que isso não era possível. Tinha uma reunião marcada pela
manhã com Michael Hillyard. Marie sacudiu firmemente a cabeça.
— Não. Não da maneira como está pensando, com o meu passado, Peter.
E tem a ver somente comigo. Não quero dizer mais nada além disso.
— Respeitarei a sua vontade.
— Obrigada.
Peter queria amá-la naquela noite, mas não o fez Em vez disso, retirou-se
logo depois, beijando-a gentilmente. Sentia que ela precisava ficar sozinha.
Foi uma noite tranqüila e Marie ainda se sentia assim quando deixou Fred
no veterinário na manhã seguinte. Sabia exatamente o que estava fazendo e por
que, sabia que era o certo.
Pegou o avião com toda calma e chegou a Boston às nove horas da noite.
Pensou em pegar um carro e seguir para o local naquela mesma noite, mas seria
pedir demais da sorte. Por isso, adiou o resto da viagem até a manhã seguinte. Já
havia alugado o carro. Tudo o que precisava fazer agora era ir até lã e depois
voltar. Poderia pegar o último avião de volta a São Francisco.
Sentia-se como uma mulher com uma missão sagrada ao deitar-se
naquela noite no quarto do motel. Não tinha o menor desejo de ver a cidade, de
procurar quem quer que fosse, de ir a algum lugar. Não estava realmente ali. Era
tudo como um sonho, um sonho de dois anos, que ela iria reviver pela última
vez.
CAPÍTULO 31

— Dr. Gregson? — Pois não?


Ele ainda estava distraído quando sua secretária entrou na sala. Acabara
de falar com Marie no aeroporto. Tinha um pressentimento desagradável em
relação à viagem, mas não podia deixar de respeitar os sentimentos dela em
algo tão pessoal. Mesmo assim, só iria sentir-se melhor quando ela voltasse, no
dia seguinte. Ele levantou a cabeça e tentou prestar atenção em sua enfermeira,
repetindo:
— Pois não?
— Um certo Mr. Hillyard está aqui, querendo falar-lhe. Disse que tem um
encontro marcado. E veio junto com três outros homens.
— Mande-o entrar.
Oh... Deus, isso era o que mais estava precisando agora! Mas por que não?
Pelo menos poderia conhecer o rapaz. Ele era na verdade jovem o bastante para
ser seu filho. Mas que pensamento miserável! Peter se perguntou se Marie
alguma vez já pensara nisso.
Os quatro homens entraram na sala e apertaram a mão do médico. A
reunião foi iniciada imediatamente. Queriam recrutar o apoio dele para que o
novo centro médico fosse um sucesso total. Já contavam com quinze ou mais
médicos ilustres em sua “equipe” e não restava a menor dúvida de que as prédios
teriam uma localização ideal e instalações magníficas. Era uma opção fácil de
fazer. Gregson concordou em instalar seu novo consultório no centro e declarou-
se disposto a conversar a respeito com alguns colegas. Mas embora suas
respostas fossem mecânicas, ele ficou observando Michael, fascinado, durante
toda a reunião. Então aquele era Michael Hillyard. Não parecia um oponente tão
formidável assim. Mas parecia jovem e atraente, bastante seguro e confiante.
De uma maneira desconcertante, Peter começou a compreender como ele era
parecido com Marie. Havia uma semelhança de energia, determinação, até
mesmo de humor. A compreensão fez Peter calar-se subitamente,
compreendendo tudo. Ficou sentado em silêncio por longo tempo, observando
Michael. Nem mesmo estava mais prestando qualquer atenção à reunião.
Estava apenas se ajustando à realidade que evitara por tanto tempo. E pensando
também no motivo que levara Marie a viajar para o leste naquela manhã. Teria
sido realmente para destruir os últimos vestígios do passado ou para prestar-lhes
uma homenagem?
Pela primeira vez, Peter perguntou-se se teria o direito de interferir.
Apenas de observar Michael, sentia que estava vendo o outro lado de Marie, um
lado do qual não tinha o menor conhecimento. Aquele homem representava
uma parte da vida de Marie que ele nem sequer compreendia, uma parte que
jamais quisera conhecer. Ele sempre quisera que ela fosse Marie Adamson. Ela
nunca fora Nancy para ele. Havia sido uma nova pessoa, uma pessoa que nascera
de suas mãos. Mas agora reconhecia que havia alguém mais. Todas as peças do
quebra-cabeças começavam a se ajustar e Peter experimentava uma sensação
de resignação, assim como de perda. Estivera travando uma guerra que não
podia vencer, tentando reconstituir o seu próprio passado. Marie era realmente
uma nova pessoa, mas havia nela vislumbres da mulher que ele outrora amara,
da mulher que morrera. Acalentar a esses vislumbres de Lívia, assim como da
jovem que trouxera para a vida. Talvez não tivesse o direito de fazer isso. Jamais
tivera antes tanta liberdade com qualquer paciente, porque Marie não tinha
ninguém em quem se apoiar. A não ser ele. Permitira-lhe que fosse tudo para
ela... tudo, exceto, o que ele queria ser agora. Observando Michael, podia,
compreender que seu próprio papel na vida de Marie fora multo parecido com o
de um pai. Ela ainda não havia percebido isso, mas um dia compreenderia.
A reunião terminou e eles se levantaram, apertando-se as mãos. Os três
companheiros de Michael já estavam na ante-sala, a sua espera, enquanto ele
trocava as últimas amenidades com Gregson. Subitamente, tudo parou. Michael
olhava fixamente para algo por cima do ombro do homem mais velho. Era o
quadro que ela estava pintando há dois anos, antes... iria ser o seu presente de
casamento. ... fora roubado do apartamento depois que ela morrera, pelas duas
enfermeiras. E agora estava no consultório daquele homem e terminado!
Hipnotizado, Michael aproximou-se do quadro, antes que Gregson pudesse detê-
lo. Mas nada poderia tê-lo detido. Ele ficou parado ali, olhando para a assinatura,
como se já soubesse o que iria ver. No canto, em letras pequenas, estava o
nome. Marie Adamson.
— Oh, Deus... Deus Michael estava completamente aturdido, enquanto
Gregson o observava.
— Mas como? Não é. . . oh, Deus. ... por que ninguém me falou? O que. . .
Mas ele compreendia agora. Haviam-lhe mentido. Ela estava viva.
Diferente, mas viva. Não era de admirar que o tivesse odiado. Ele nem sequer
desconfiara. Mas durante todo o tempo sentira-se atraído por alguma coisa nela,
nas fotografias. Havia lágrimas em seus olhos quando se virou e fitou Gregson.
Peter contemplava-o tristemente, com receio do que estava para
acontecer.
— Deixe-a em paz, Hillyard. Está tudo acabado para ela agora. Ela já
sofreu demais.
Mas mesmo enquanto ele falava, as palavras careciam de convicção. Só
de olhar para Michael naquela manhã, Peter ficara sem saber se ele deveria
mesmo manter-se afastado de Marie. E algo no fundo dele queria revelar onde
ela estava.
Michael continuava a fitá-lo com uma expressão de espanto.
— Eles mentiram para mim, Gregson. Sabia disso? Mentiram para mim.
Disseram que ela estava morta. — Os olhos dele transbordavam de lágrimas.—
Passei dois anos como um morto, trabalhando como um robô, desejando ter
morrido no lugar dela, E durante todo esse tempo... .
Por um momento, ele não conseguiu continuar a falar. Gregson desviou os
olhos.
— E quando a encontrei esta semana, não pude imaginar. Eu... isso deve
ter sido uma morte para ela. ... não é de admirar que me odeie. Ela me odeia,
não é mesmo?
Michael afundou numa poltrona, olhando para o quadro.
— Não, Hillyard, ela não o odeia. Apenas quer deixar o passado para trás.
E ela tem esse direito.
E eu tenho o direito a ela. Peter queria dizer essas palavras, mas não
conseguiu. Mas, subitamente, era como se Michael tivesse ouvido seus
pensamentos. Michael acabara de lembrar-se do comentário que ouvira a
respeito de Marie, que ela tinha um patrocinador, um cirurgião plástico. As
palavras ressoaram de repente em seus ouvidos e também subitamente a ira e a
angústia de dois anos invadiram-no. Ele se levantou de um pulo e agarrou
Gregson pelas lapelas.
— Ei, espere um pouco! Que direito você tem de dizer que ela quer deixar
o passado para trás? Como pode saber? Como pode sequer começar a entender o
que tivemos juntos? Como pode imaginar o que tudo aquilo significou para ela ou
para mim? Se eu sair da vida dela sem dizer nada, então você poderá ter o que
quiser. Não é isso mesmo, Gregson? Não é justamente isso o que está querendo?
Pois vá para o inferno! É com a minha vida que está jogando e acho que já houve
pessoas suficientes manejando-a a vontade. A única pessoa que pode dizer-me
que quer tudo acabado entre nós é Nancy.
— Ela já lhe disse para deixá-la em paz.
A voz de Peter era serena, enquanto ele fitava Michael nos olhos. Michael
recuou, mas havia agora um brilho de esperança em seus olhos, misturado com
a raiva e a confusão. Pela primeira vez em dois anos, havia um pouco de vida
naqueles olhos.
— Não, Gregson. Marie Adamson me disse para deixá-la em paz. Nancy
McAllister não me disse uma só palavra há dois anos. E ela vai ter muito o que
explicar. Por que não me telefonou?
Por que não me escreveu? Por que não me informou que estava viva? E
por que me disseram que ela estava morta? Isso foi idéia dela ou. ... ou de
alguma outra pessoa? E por falar nisso. ... Michael hesitou por um instante, não
querendo fazer a pergunta, porque já sabia qual seria a resposta. — ... quem
pagou a cirurgia?
Os olhos dele não se afastaram do rosto de Gregson por um instante
sequer.
— Não conheço as respostas para algumas de suas perguntas, Mr.
Hillyard.
— E quais são as que conhece as respostas? .
— Não tenho permissão para. . .
— Não me diga isso!
Michael avançou novamente para cima dele e Peter levantou a mão.
— Sua mãe pagou todas as intervenções cirúrgicas e as despesas de
estada dela desde o acidente. Foi um presente realmente extraordinário.
Era isso o que Michael temia, mas não chegou a se constituir um choque
tão grande. Ajustava-se ao resto do quadro que podia perceber agora. Talvez, de
alguma maneira insana, totalmente desvirtuada, a mãe pensasse que estava
agindo assim pelo bem dele. Mas pelo menos ela o conduzira agora de volta a
Nancy. Ele olhou novamente para Gregson e assentiu.
— E o que me diz de você? Qual é exatamente o seu relacionamento com
Nancy?
Agora, Michael queria saber de tudo.
— Não vejo por que isso seja de sua conta.
— Escute aqui!
As mãos de Michael agarraram novamente o casaco de Peter, que
levantou a mão numa admissão de derrota.
— Por que não paramos logo com isso? Todas as respostas estão com
Marie. O que ela quer, quem ela quer. Afinal, ela pode até não querer nenhum
dos dois. Por quaisquer que sejam os motivos, você não a procurou por dois anos.
Quanto a mim, tenho quase o dobro da idade dela e, por tudo o que sei, estou
sofrendo de um complexo de Pigmalião.
Peter sentou-se na cadeira trás de sua escrivaninha e sorriu tristemente.
— Estou começando a pensar que ela pode arrumar algo melhor que um
de nós dois.
— É possível, só que desta vez quero ouvir isso pessoalmente dela. —
Michael olhou para o relógio. — Vou até o apartamento dela imediatamente.
. — Não vai adiantar. — Peter ficou olhando para o rapaz, a cofiar a
barba. Quase que desejava que Michael tivesse sorte. Quase.
— Ela me telefonou esta manhã do aeroporto, pouco antes de você
chegar aqui.
Mais uma vez, Michael pareceu ficar chocado.
— Como assim? Para onde ela estava indo?
Por um longo momento. Peter Gregson hesitou. Não precisava dizer nada.
Não tinha de...
— Ela foi para Boston.
Michael fitou-o em silêncio por algum tempo e depois um sorriso se
insinuou em seus olhos, enquanto corria para a porta Parou ali, olhou para trás e
saudou Peter com um sorriso exultante.
— Obrigado.
CAPÍTULO 32

Marie acordou ao amanhecer. Desperta, viva. Sentia-se melhor que em


qualquer outra ocasião há anos. Estava quase livre agora. Dentro de poucas
horas, estaria inteiramente livre. Como se aquela promessa infantil a tivesse
prendido por todo esse tempo. E somente porque ela própria permitira. Seu
único poder era o que ela mesma lhe concedera.
Não se deu ao trabalho de comer alguma coisa. Limitou-se a tomar duas
xícaras de café e entrou no carro alugado. Poderia chegar lá em duas horas. Ou
seja por volta das dez horas. Estaria de volta ao hotel em torno de meio-dia.
Poderia pegar um avião para São Francisco e estar em casa ao final da tarde.
Poderia até mesmo ir buscar Peter no consultório, fazer-lhe uma surpresa. O
pobre Peter mostrara-se bastante paciente em relação àquela viagem...
Descobriu-se a pensar em Peter enquanto guiava, desejando ter-lhe dado
mais, desejando ter sido capaz de fazê-lo. Talvez, depois daquele dia, isso
também mudasse. Ou será que... Marie não se permitiu terminar a indagação. É
claro que ela o amava. Não era essa a questão.
Ela seguiu em frente pelos campos da Nova Inglaterra, mal notando
qualquer coisa por que passava. A paisagem ainda era cinzenta e escura, as
folhas novas ainda não haviam surgido. Era como se os campos também
tivessem ficado enterrados por dois anos. Já eram nove e meia quando ela passou
pela Revere Beach, onde a feira fora realizada. Sentiu um pequeno aperto no
coração ao reconhecer o lugar. Seguiu por uma estrada antiga, que ia
serpenteando ao longo da costa, até que finalmente parou e saltou do carro.
Estava tensa, mas não cansada. Estava exultante e nervosa. Tinha de fazer
aquilo... tinha de fazer... já podia ver a árvore do lugar em que estava. Ficou
parada a contemplá-la por um longo tempo, como se a árvore guardasse todos
os segredos, conhecesse a fundo a sua história, estivesse esperando por seu
retorno. Encaminhou-se lentamente para a árvore, como se fosse encontrar
uma velha amiga. Mas não era mais uma amiga. Como tudo e todos que outrora
amara, era uma estranha. Era apenas outra marca no túmulo de Nancy
McAllister.
Ela parou ao alcançar a árvore, ficando ali por um momento, antes de
atravessar a areia até a pedra. Ainda estava ali. Não se mexera. Nada saíra do
lugar. Somente ela e Michael haviam-se movido, em direções opostas e para
mundos diferentes. Ficou imóvel ali por muito tempo, como se procurasse reunir
a força e a coragem para fazer o que precisava. E finalmente abaixou-se e
começou a empurrar a pedra, que se moveu um pouco. Rapidamente, com um
pedaço de pau, ela escavou a areia por baixo, em busca do que procurava. Mas
não havia nada ali. Ela largou a pedra, ofegante. Depois de um momento, com
vigor renovado, tornou a empurrar a pedra, até certificar-se de que não havia
mais nada ali embaixo. Alguém levara as contas. Ela deixou a pedra voltar para
o lugar e nesse momento ouviu a voz dele.
— Não pode tê-las. Elas pertencem a outra pessoa. A alguém que amei. A
alguém que nunca esqueci.
Havia lágrimas nos olhos de Michael enquanto ele falava. Esperara
metade da noite pela chegada dela. Fretara um jato para trazê-lo antes que ela
chegasse ali. Mas teria voado com as próprias asas, se houvesse necessidade.
Michael estendeu a mão e ela viu as contas, ainda com a areia grudada. Os olhos
dela também se encheram de lágrimas ao vê-las.
— Prometi nunca dizer adeus. E nunca disse.
Os olhos de Michael não se despregavam dos olhos dela. — Nunca tentou-
me encontrar.
— Disseram-me que estava morta.
— Prometi nunca mais tornar a vê-lo se… se me dessem um novo rosto.
Prometi porque sabia que você me encontraria. E depois... você não me
encontrou.
— Teria encontrado, se soubesse. Lembra-se da promessa que me fez?
Ela fechou os olhos e falou solenemente, como uma criança. Pela primeira
vez, em muito tempo, era a voz de Nancy McAllister, a voz que ele amara, não
A voz nova e suave que ela aprendera.
— Prometo nunca esquecer o que está enterrado aqui. Nem o que
representa.
— Havia esquecido?
As lágrimas estavam escorrendo lentamente dos olhos de Michael. Ele
estava pensando em Gregson e nos dois anos que haviam passado. Mas ela
sacudiu a cabeça.
— Não. Mas tentei esquecer.
— Está disposta a recordar agora? Nancy, está… Mas ele não conseguiu
continuar falando. Aproximou-se dela e abraçou-a, levando algum tempo para
murmurar:
— Oh! Nancy, como eu a amo! Sempre amei. Pensei que ia morrer quando
você... quando pensei que você tinha morrido. E, de certa forma, morri mesmo
quando me disseram.
Ela estava chorando demais para falar, recordando os intermináveis dias,
meses e anos de espera, até desistir de toda e qualquer esperança. Agarrou-se
firmemente a Michael, como uma criança a uma boneca, como se nunca mais
pretendesse largá-lo. . E finalmente recuperou o fôlego e sorriu.
— Querido, eu também o amo. Sempre pensei que me encontraria.
— Nancy. ... Marie... qualquer que seja o seu nome... — Ambos riram
como crianças, entre as lágrimas. — Pode dar me a honra de tornar-se minha
esposa? Desta vez, como pessoa civilizadas, num casamento com convidados,
música e...
Michael estava pensando no casamento da mãe, apenas algumas semanas
antes. Era estranho como estava totalmente livre de qualquer sentimento de
raiva. Deveria odiar a mãe pelo que ela fizera. Em vez disso, queria perdoar.
Tinha Nancy de volta. E isso era tudo o que importava. Sorriu para Nancy, ainda
em seus braços, pensando no casamento deles. Mau ela estava sacudindo a
cabeça e Michael teve a sensação de que seu coração iria parar.
— Temos mesmo de esperar tanto tempo? Temos de aceitar toda essa
história de convidados, música e... .
— Está sugerindo... . .
Michael não se atreveu a concluir a frase, mas Nancy assentiu.
— Estou, sim. Por que não? Agora. Não quero esperar novamente. Não
poderia suportar. A cada momento ficaria com medo de que alguma coisa
pudesse acontecer. Talvez a você, desta vez.
Michael concordou silenciosamente e. apertou-a com mais força ainda,
enquanto as ondas deslizavam pela praia e o sol pálido a leste espiava através
das nuvens. Ele podia compreender.

Fim

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