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DESIDÉRIO MURCHO

1 JDEJAS
FJLOSÔFJCAS
QUE TODA A
GENTE DEVERIA
CONHECER

EDITORIAL BIZÂNCIO
LISBOA, 2011
T ítulo: Sete ideias filosóficas que toda a gente deveria conhecer
© Autor e Editorial Bizâncio
1.ª edição: Outubro de 2011
Revisão: Sandra Pereira
Capa: Editorial Bizâncio sobre imagem de piccerella/istockphoto
Composição e paginação: Editorial Bizâncio
Impressão e acabamento: Rolo e Filhos II, S. A. - Indústrias Gráficas
Depósito legal n.11 334 771/11
ISBN: 978-972-53-0495-2
Todos os direitos para a publicação desta obra em Portugal
reservados por Editorial Bizâncio, L,da
Largo Luís Chaves, 11-llA, 1600-487 Lisboa
Tel.: 21 755 02 28/Fax: 21 752 00 72
E-mail: bizancio@editorial-bizancio.pt
URL: www.editorial-bizancio.pt
Índice

Prefácio 9

1. Penso, logo existo 13

2. Só sei que nada sei 27

3. No meio é que está a virtude 39

4. A guerra de todos contra todos 57

5. O despertar do sono dogmático 75

6. Uma rosa com outro nome 95

7. Maior do que o qual nada pode ser pensado 113

Conclusão - Para que serve a filosofia? 135

Sugestões de leitura 139


Prefácio

A FILOSOFIA É UMA ÁREA DE ESTUDOS VASTÍSSIMA, COM


uma produção bibliográfica ímpar em sofisticação e quase
ininterrupta desde o século V a. C. No século XX, sobre,
tudo depois da Segunda Guerra Mundial, a filosofia co,
nheceu um incremento muitíssimo acentuado, não apenas
na quantidade, mas também na qualidade, precisão e so,
fisticação dos trabalhos publicados; ao mesmo tempo, ex,
pandiu,se imenso, incluindo mais e mais áreas especiali,
zadas de territórios cada vez mais díspares - filosofia da
economia, da religião e da arte, epistemologia da fé e do
testemunho, filosofia da física e da biologia, ética aplicada
e filosofia política, lógica filosófica, filosofia da linguagem
e metafísica da modalidade (que estuda os modos da ver,
dade: a contingência, a necessidade e a possibilidade) .
Apresentar a filosofia ao grande público, em poucas
páginas e sem a caricaturar, é um desafio considerável.
A solução encontrada foi escolher apenas algumas áreas
e apresentá,las com o pormenor suficiente para o leitor

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SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

as poder ver a uma luz favorável e pensar um pouco


por si. Se esse trabalho foi bem feito, o leitor sentir-se-á
encorajado a conhecê-las melhor, e a reflectir mais pro­
fundamente, deitando mão das sugestões de leitura no
final do livro.
No meu livro anterior, Filosofia, em Directo (Funda­
ção Francisco Manuel dos Santos, 201 1 ) , resolvi não
incluir quaisquer referências históricas; neste, pelo con­
trário, fiz questão de as incluir. Em ambos, contudo, viso
mostrar que o cerne da filosofia é a discussão paciente,
criativa e rigorosa de problemas que só filosoficamente
podem ser fecundamente abordados.
A ordem dos capítulos não obedeceu à cronologia,
mas antes ao grau de abstracção dos temas abordados.
Assim, começamos com Descartes, recuamos a Sócrates,
avançamos para Aristóteles, saltamos para o século XX,
recuamos a Kant e ao século XVIII e terminamos no sé­
culo XI, com Anselmo.
Os primeiros dois capítulos ajudam a esclarecer a
natureza da filosofia e põem em causa algumas incom­
preensões comuns. Os dois capítulos seguintes abordam
temas cuja importância é óbvia para qualquer leitor.
Depois, os capítulos tornam-se progressivamente mais
exigentes, quer pelo grau de abstracção do que está em
causa, quer pela sofisticação do raciocínio envolvido.
Esta organização cronológica tem a vantagem de
contrariar uma leitura comum da história da filosofia,
em que se pensa que Kant superou ou ultrapassou Aris-

10
PREFÁCIO

tóteles, sendo Kant por sua vez superado por Quine, por
exemplo. Deste ponto de vista, a história da filosofia é
uma sucessão de resultados defuútivos, à imagem da his­
tória da ciência - ou do que se pensa, algo superficial­
mente, que é a história da ciência.
Ora, a história da filosofia não é assim. Isto porque
não temos em filosofia o género de resultados consen­
suais que temos na ciência. A filosofia é fundamental­
mente especulação sistemática e rigorosa, e não apre­
sentação de resultados consensuais. Foi por essa razão
que Kant defendeu que não se pode aprender filosofia
como se aprende física. Se aprender física for uma ques­
tão de aprender os resultados consensuais desta área,
então não podemos aprender filosofia como aprendemos
física, porque não há em filosofia resultados consensuais;
mas podemos aprender a fazer filosofia. Este livro é um
primeiro passo nessa direcção.
Agradeço a Jorge Reis-Sá a ideia para escrever este
livro, e à Bizâncio a disponibilidade para a sua publica­
ção. A lago Bozza Francisco, Matheus Silva Martins,
Luiz Helvécio Marques Segundo, Faustino Vaz, José Car­
los Soares, Artur Polónio, Sagid Salles Ferreira, Rodrigo
Alexandre de Figueiredo, Aires Almeida e Sérgio R. N.
Miranda agradeço a leitura atenta, as objecções e as su­
gestões, que me permitiram melhorar sobremaneira uma
primeira versão do texto.
A Rolando Almeida, além da leitura e dos comentá­
rios, agradeço também a preciosa ajuda com as traduções

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SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

portuguesas citadas, que em dois casos foram ligeira,


mente adaptadas, para benefício sobretudo dos leitores
mais jovens. Agradeço ainda, e muito, os comentários e
sugestões de Teresa Mouzinho, que me permitiram intro,
duzir inúmeras alterações que esclarecem, espero, as per,
plexidades do leitor comum.
Tenho uma dívida de gratidão mais geral para com
a Universidade Federal de Ouro Preto e o seu Departa,
mento de Filosofia, que me têm proporcionado um ex,
celente ambiente para estudar e escrever, e onde é um
privilégio ser professor. Espero não desmerecer a mara,
vilhosa oportunidade que me é dada todos os dias por
este departamento desta universidade e nesta cidade.

Desidério Murcho
Ouro Preto, 14 de Agosto de 201 1

12
1

Penso, logo existo

EsTAMOS EM 1 637. HÁ ESCASSOS QUATRO ANOS, GALILEU


GAlilei ( 1564, 1642) , professor de Matemática na Uni,
versidade de Pisa, foi condenado a prisão domiciliária
pelo Santo Ofício da Igreja Católica Apostólica Romana
- depois de ser obrigado a abjurar do suposto pecado
de declarar cientificamente mais adequado o modelo de
sistema solar proposto pelo polaco Nicolau Copérnico
(1473 , 1 543) , no qual a Terra orbita em torno do Sol e
não o inverso. Passaram entretanto quarenta e cinco
anos da pérfida denúncia de Giovanni Mocenigo, que
acusou de heresia o seu professor, o astrónomo italiano
Giordano Bruno (1548, 1 600) , que por isso foi conde,
nado pelo Santo Ofício à horrível e dificilmente imagi,
nável morte na fogueira.
Há cento e vinte anos, no dia 3 1 de Outubro de
15 17, Martinho Lutero (1483, 1546) pôs em marcha a
segunda grande cisão cristã. Segundo a história contada
por Filipe Melâncton, provavelmente apócrifa, Lutero

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SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

depositou nesse dia as suas noventa e cinco teses à porta


da Igreja do Castelo, em Wittenberg, na Alemanha. Lu­
tero criticava não apenas algumas ideias teológicas, mas
também o que via como a corrupção das práticas da
igreja católica. Para a cisão terá contribuído o estudo cui­
dadoso da Bíblia, usando recursos históricos e linguísti­
cos, posto em prática pelo holandês Desidério Erasmo
(1469- 1536) , seguido por outro holandês, mas de origem
portuguesa: o filósofo Bento de Espinosa (1632- 1 677) .
Assim, em 1 637 o clima cultural europeu era a um
tempo opressivo e estimulante. Opressivo, porque nunca
se sabia bem, ao publicar um livro ou artigo, se isso seria
considerado herético pelas autoridades religiosas. Mas
também estimulante, porque novas e promissoras ideias
científicas, matemáticas e filosóficas, eram propostas e
discutidas. E foi nesse ano que o filósofo e matemático
francês René Descartes (1596- 1 650) publicou um tra­
tado constituído por três estudos científicos (dióptrica,
meteorologia e geometria) , antecedidos por uma intro­
dução filosófica cujo título completo é Discurso do Mé­
todo de Bem Conduzir a Razão e Procurar a Verdade nas
Ciências. Este tratado foi publicado em francês, e não em
latim, a língua académica europeia dessa época, porque
Descartes queria ser lido não apenas por universitários,
mas também por outros intelectuais que, como ele, não
tinham lugar nas universidades.
Católico convicto, Descartes foi um dos grandes
inovadores do seu tempo em matemática e filosofia, e

14
PENSO, LOGO EXISTO

ainda hoje as suas contribuições são, num e noutro caso,


actuais. São dele as palavras «Penso, logo existo»:

«E notando que esta verdade: penso, logo existo, era


tão firme e tão certa que todas as extravagantes su,
posições dos cépticos não eram capazes de a abalar,
julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para pri,
meiro princípio da filosofia que procurava.» (Dis,
curso do Método, p. 50)

Mas que quer isto dizer e por que razão algo que pa,
rece banal tem sequer importância? O que está em causa?

Conhecimento e ilusão

O que está em causa tem a vantagem de ilustrar uma


preocupação filosófica importante. O leitor sabe, ou crê
que sabe, várias coisas. Sabe, por exemplo, ou crê que
sabe, que a Terra é maior do que a Lua. Mas terá talvez di,
ficuldade em explicar por que razão realmente sabe, em
vez de apenas crer que sabe sem saber. Isto porque, nesse
caso, o leitor depende do que lhe disseram outras pessoas,
oralmente ou por escrito. De modo que temos de pergun,
tar se essas pessoas sabem realmente o que crêem saber.
Esta pergunta é menos exótica do que parece. Em
muitas circunstâncias o leitor pergunta,se se realmente
sabe o que parece que sabe, e toma medidas para eliminar,

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SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

ou pelo menos diminuir, a possibilidade de erro. Por exem­


plo, lembra-se de ter fechado a porta da sua casa à chave;
mas, como não se lembra muito bem, volta atrás e vai ver
se realmente a fechou. Todos os dias fazemos coisas des­
tas. Também nas ciências fazemos este género de pergunta:
será que realmente a Terra está parada, como parece?
A diferença é que em filosofia fazemos uma per­
gunta mais geral. Perguntamos, por exemplo, se acaso as
nossas memórias serão todas falsas, tendo nós começado
a existir há apenas cinco minutos. Afinal, se algumas me­
mórias são falsas, por que razão não serão todas elas fal­
sas? E enquanto na física perguntamos se uma certa in­
formação que julgamos obter pelos sentidos é ilusória­
como a imobilidade aparente da Terra - em filosofia
perguntamos se acaso toda a informação que julgamos
obter pelos sentidos será ilusória.

Pôr a pergunta em causa

Se o leitor está a pensar que este género de pergunta fi­


losófica muito geral é algo disparatada, não está sozinho.
Há quem pense que não vale a pena fazer perguntas, a
menos que estejamos já a ver como poderemos respon­
der-lhes. Ora, quando fazemos perguntas muito gerais,
não se vê como poderíamos responder-lhes. Por isso, con­
clui o raciocínio, é algo disparatado fazer tais perguntas.
Este raciocínio antifilosófico, todavia, é curioso. Ba-

16
PENSO, LOGO EXISTO

seia,se - ironicamente - na ideia bastante geral de que


não vale a pena fazer perguntas a menos que estejamos
já a ver como podemos responder,lhes. Ora, se este prin,
cípio geral fosse seguido sempre, nunca teria surgido a
própria ciência. São as perguntas a que ainda não sabe,
mos responder que nos fazem desenvolver a ciência; não
é a ciência, depois de constituída, que detém o mono,
pólio das perguntas legítimas.
Além disso, o próprio princípio nega a atitude cien,
tífica, aproximando,se ironicamente do mesmo género
de obscurantismo de que foram vítimas cientistas como
Galileu. A atitude científica é seguir a nossa curi<;:>sidade
até onde nos levar e tentar saber, e voltar a tentar, e vol,
tar a tentar. A esta atitude opõe,se o caricatural mestre,
,escola, que só permite que os seus alunos façam per,
guntas que ele sabe previamente responder, sabendo ele
responder apenas às perguntas cuja resposta esteja no
manual escolar que seria incapaz de escrever. Esta ati,
tude é um formidável obstáculo à descoberta precisa,
mente porque parece defender a atitude científica,
quando na realidade é incompatível com ela.
Outra maneira de neutralizar as perguntas filosóficas é
apoucar a importância das respostas e cantar cantos líricos
às maravilhas da interrogação interminável e da pergunta
permanente. A sugestão é que as respostas não têm qual,
quer interesse: o que verdadeiramente conta é a pergunta.
Esta não é uma posição particularmente lúcida.
Apesar de podermos estar moderadamente convictos de

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SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

que não seremos bem-sucedidos ao tentar algo, temos


de ter pelo menos alguma esperança, por fraca que seja,
de que seremos bem-sucedidos - caso contrário, seria
uma tolice não desistir. Assim, quem tiver a convicção
céptica de que as respostas filosóficas são inalcançáveis,
tem de aceitar também a possibilidade, ainda que re ­
mota, de que não são inalcançáveis, para que a sua pro­
cura faça sentido. Ninguém no seu perfeito juízo desata
a saltar para tentar chegar à Lua se não tiver a mais leve
esperança de que é possível chegar à Lua aos saltos, só
porque saltar para chegar à Lua, parecendo que não, tem
a sua graça.
Além disso, que é possível dar resposta às perguntas
filosóficas é algo que está provado historicamente, pois
abundam as respostas dadas por filósofos, ao longo da
história da humanidade. E se cremos que nenhuma des­
sas respostas tem valor, ou que são meramente subjecti­
vas, só porque não sabemos quais são verdadeiras, se é
que algumas o são, teremos de mostrar tal coisa, ao invés
de nos limitarmos a pressupô-lo. E a ironia é que ao ten­
tar mostrá-lo já estaremos a filosofar.

O génio maligno

Muito bem; aceitemos então que não é insensata a per­


gunta filosófica muito geral «Será que sabemos real­
mente o que cremos saber?» Mas o que está em causa?

18
PENSO, LOGO EXISTO

Quatro anos apenas depois da publicação do Dis­


curso, Descartes publicou - em latim, desta vez - uma
obra filosófica mais pormenorizada, cujo título completo
é Meditações sobre a Filosofia Primeira, nas quais são De­
monstradas a Existência de Deus e a Distinção entre a Alma
e o Corpo. Foi nesta obra que Descartes inventou o fa,
moso génio maligno, ajudando a compreender melhor o
que está em causa:

«Vou supor, por consequência, não o Deus suma­


mente bom, fonte da verdade, mas um certo génio
maligno, ao mesmo tempo extremamente poderoso
e astuto, que pusesse todo o seu engenho em me en­
ganar. Vou acreditar que o céu, o ar, a Terra, as
cores, as figuras, os sons, e todas as coisas exteriores
não são mais do que ilusões de sonhos com que ele
arma ciladas à minha credulidade.» (Meditações
sobre a Filosofia Primeira, pp. 1 13- 1 14)

O génio maligno é um ser poderoso, mas tão per­


verso, que nos engana continuamente: sempre que cre­
mos ver algo, estamos a ser vítimas de uma ilusão, de
maneira que esse algo não existe ou é totalmente dife­
rente do que nos parece.
Sem dúvida que a hipótese do génio maligno é es­
quisita. Não é o género de hipótese que consideramos
todos os dias. Imagine-se o leitor a justificar a sua falta
ao emprego no dia anterior com as seguintes palavras:

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SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

«Como sabe que realmente eu não estive cá? Talvez um


génio maligno o tenha enganado e, por causa disso, não
me viu ! » Não seria de espantar que o seu empregador
recusasse pagar-lhe, no fim do mês, com o argumento de
que no mês passado lhe pagou o dobro, mas o leitor não
o viu devido a uma ilusão provocada pelo génio maligno.
E assim por diante.
De modo que a hipótese do génio maligno pode pa­
recer ociosa. Não é, certamente, o género de hipótese que
levemos a sério quotidianamente. Contudo, nenhumas
interrogações são levadas a sério em quotidianos estéreis,
se não forem imediatistas: imagine o que seria o leitor jus­
tificar a sua falta ao emprego dizendo que ficou em casa
preocupado com a questão histórica lancinante de saber
se Nefertari foi realmente a esposa preferida de Ramsés II.
Sem dúvida que a preocupação filosófica com a hi­
pótese do génio maligno é de maior generalidade. Mas a
sua estranheza não resulta tanto da sua generalidade
quanto da sua atípicidade, quando comparada com as
preocupações dos quotidianos estéreis, pondo-a a par de
qualquer preocupação que não seja imediatista. Quem
manifestar impaciência com a hipótese do génio maligno
mas não com problemas da história ou da química é por
considerar que só vale a pena fazer perguntas a que já
sabemos responder. Mas esta atitude, como vimos, não é
particularmente recomendável.
A hipótese do génio maligno torna mais nítido um
problema central de uma área da filosofia a que se chama

20
PENSO, LOGO EXISTO

« teoria do conhecimento» ou «epistemologia» (que


deriva do termo grego episteme, que significa «conheci,
mento») . Entre outras coisas, nesta disciplina trata, se de
investigar qual é a justificação última das nossas cren,
ças. Mas o que é isso de «justificação última» ? E, já
agora, o que é uma crença?

Crença e justificação última

Uma crença não é o mesmo que uma crença religiosa.


Todas as crenças religiosas são obviamente crenças, mas
muitas crenças não são religiosas: são crenças matemá,
ricas, científicas, históricas ou de senso comum. O lei,
tor tem a crença de que está a ler este livro e de que Es,
panha é maior do que Portugal. Uma crença é apenas
uma representação, verdadeira ou falsa, que alguém faz
de algo.
Por sua vez, a justificação última é aquele tipo de
justificação que não depende de qualquer outra. A ma,
neira mais simples de o leitor entender esta ideia é dar,
,se conta de que a crença que tem de que está a ler este
livro depende da sua crença de que as percepções visuais
e tácteis, em circunstâncias perceptivas normais que
ainda falta especificar, são fidedignas. Mas então a sua
crença de que está a ler este livro depende de duas cren,
ças: primeiro, do princípio geral de que em circunstân,
cias perceptivas normais as percepções são fidedignas;

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SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

segundo, da crença de que a circunstância em que está


a ler este livro é uma dessas circunstâncias perceptivas
normais - o leitor não está, por exemplo, a sonhar.
Como vê, a justificação da sua simples crença de que
está a ler este livro depende da justificação de outras
duas crenças - ambas algo exóticas. Por outras pala,
vras, dizer apenas «sei que estou a ler um livro porque
é isso que vejo e sinto» não é uma justificação última.
É uma justificação, e não é de modo algum uma má jus,
tificação, mas não é uma justificação última - porque
depende de outras crenças que, por sua vez, precisam
também de ser justificadas.
Se lhe ocorre agora que ao raciocinar dessa maneira
nunca conseguiremos parar porque nunca descobrire,
mos justificações últimas, já está a pensar filosofica,
mente. Só que �inda não considerou cuidadosamente se
realmente não descobriríamos tais justificações. O me,
lhor a fazer é então responder a esse desafio e tentar des,
cobri,las. Foi o que fez Descartes.

O cogi.to

Descartes estava convencido de ter descoberto pelo


menos uma crença cuja justificação não depende de
quaisquer outras crenças: a crença de que ele mesmo
existe. Na gíria académica chama,se «cogito cartesiano»
a esta crença, devido à expressão latina cogiw, ergo sum

22
PENSO, LOGO EXISTO

(penso, logo existo) , e ao nome latino de Descartes: Re­


natus Cartesius.
O raciocínio de Descartes é que mesmo sob a extra­
vagante suposição de que um génio maligno me engana
sistematicamente, ele não me pode enganar se eu não
existir:

«Mas há um [génio] enganador, não sei qual, suma­


mente poderoso, sumamente astuto, que me engana
sempre com o seu engenho. No entanto, não há dú­
vida de que também existo, se me engana; que me
engane quanto possa, nunca conseguirá que eu seja
nada enquanto eu pensar que sou alguma coisa. De
maneira que, depois de ter pesado e repesado muito
bem tudo isto, se deve por último concluir que esta
"--- proposição Eu sou, eu existo, sempre que proferida
por mim ou concebida pelo espírito, é necessaria­
mente verdadeira.» (Meditações sobre a Filosofia Pri­
meira, p. 1 19)

Sempre que creio vejo árvores, talvez não existam


árvores na realidade; sempre que me lembro de algo tal­
vez se trate de uma falsa memória; quando sinto e vejo
ter um corpo com certas características talvez esteja ilu­
dido - quem sabe se, de facto, me pareço com lagarti­
xas ou besouros, e não com um símio sem pêlos?
Talvez tudo isso ocorra, pensa Descartes, se a hipó­
tese do génio maligno for verdadeira. Mas para que todas

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SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

essas ilusões possam existir, para que o génio maligno me


possa enganar, é preciso que eu exista.
A crença de que existo não pode ser falsa em qual­
quer das circunstâncias em que pondero se existo ou não
- ou em que pondero seja o que for. Claro que há mui­
tas circunstâncias possíveis, mas não realizadas, em que
não existo - circunstâncias em que os meus pais nunca
se conheceram, por exemplo. Mas em nenhuma dessas
circunstâncias me posso perguntar se existo ou não. In­
sistir em que talvez eu não exista na circunstância em
que pondero se existo seria uma contradição pragmática�
como alguém que grita «Não estou a gritar! »

Conclusão

É isto que significa o famoso «penso, logo existo» - q�e


na versão das Meditações perdeu a aparência inferencial
e passou a ser apenas «eu sou, eu existo». A ideia é que
a crença de que existo como ser pensante é, por um lado,
insusceptível de refutação e, por outro, constitui - por
isso mesmo - a justificação última de todas as nossas
crenças. Vejamos brevemente este segundo aspecto.
Tome-se uma crença perceptiva, como a de que o
leitor está com este livro na mão. Trata-se de uma crença
muito diferente das crenças matemáticas. Estas últimas
não se justificam recorrendo à experiência, mas antes ao
cálculo matemático: ao pensamento puro.

24
PENSO, LOGO EXISTO

Já no que respeita às crenças perceptivas, faz sen­


tido justificá-las recorrendo à experiência perceptiva: o
leitor sabe que está com este livro na mão porque é isso
que sente e vê. Mas Descartes considera que esta justi­
ficação, apesar de perfeitamente adequada, não é última
- pois se formos vítimas do génio maligno, o facto de
parecer que o leitor vê e sente o livro é compatível com
a inexistência do livro. O que justifica a confiança nos
sentidos terá de ser outro conjunto de considerações que
Descartes procura retirar do próprio cogito. Daí que Des­
cartes pense que a justificação última das nossas cren­
ças, incluindo as perceptivas, não repousa nos sentidos.
Deste modo se vê que uma posição filosófica apa­
rentemente absurda - como poderá alguém crer que o
conhecimento do que vemos não se baseia inteiramente
nos sentidos? - não é, afinal, tão absurda assim. Poderá
ser falsa, mas é avisado começar por compreendê-la bem
para tentar então defender que o é.

25
2

Só sei que nada sei

ESTAMOS EM 399 A. C. VIVE-SE NA GRÉCIA UM PERÍODO


de inovação científica e cultural. Heródoto (c. 484-420
a. C.) introduzira na Europa, havia menos de um século,
a história científica - isto é, o relato e explicação de
acontecimentos do passado recorrendo a documentos e
fontes fidedignas, procurando separar o mito do facto.
O teatro, a escultura e a arquitectura atingem grande so­
fisticação e originalidade.
Um século mais tarde, ocorrerá um dos maiores fei­
tos intelectuais dos muitos que marcaram a Grécia An­
tiga: a sistematização científica da geometria levada a
cabo por Euclides, por volta de 300 a. C. Claro que al­
guns conhecimentos práticos de geometria eram desde
há muito usados pelos egípcios - de quem os gregos re­
ceberam a disciplina, segundo Heródoto - mas esta não
fora objecto de uma sistematização com o grau de gene­
ralidade e precisão presentes no trabalho de Euclides.
Poucas décadas depois, com base na geometria e muito

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SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

engenho, Eratóstenes (c. 276, 194) calculou a dimensão


da Terra, com surpreendente precisão.
Infelizmente, nem tudo é um mar de rosas. A men­
talidade grega é imperialista e guerreira, o que dá origem
a guerras constantes com os seus vizinhos - os bárbaros,
cujo termo grego original significa literalmente «que bal­
bucia», ou seja, que não fala grego. Como os norte-ame­
ricanos, muitos séculos depois, a arrogância grega con,
duzirá a aventuras militares desastrosas. Mesmo depois
de se tornarem uma mera província do império romano,
persistia a arrogância grega, a que os romanos achavam
graça, como talvez os chineses um dia acharão graça à ar,
rogância norte-americana.
Além disso, a vida dos intelectuais não é isenta de
perigos. Sócrates é acusado de impiedade e de cor­
romper os jovens, sendo condenado à morte em 399
a. C., com 70 anos, por uma maioria não muito signi­
ficativa dos 5 0 1 concidadãos que o julgaram. Este gé,
nero de perseguição não é a primeira, nem será a úl,
tima: há uma predisposição popular para crer que os
filósofos são ateus. Na comédia As Nuvens (423 a. C.) ,
publicada vinte e quatroanos antes da condenação de
Sócrates, Aristófanes retrata-o como um ateu que
ofende os deuses perscrutando os segredos dos corpos
celestes. Cerca de cinquenta anos antes da condena­
ção de Sócrates, Anaxágoras (c. 500,428 a. C.) fora
acusado de ateísmo, sendo obrigado a fugir de Atenas,
em grande parte por ter ousado declarar que o Sol -

28
SÓ SEI QUE NADA SEI

o deus Hélio, na religião grega - era uma massa de


metal incandescente um tudo-nada maior do que a re­
gião do Peloponeso.

Sócrates

Quando uma sacerdotisa do templo de Delfos declara que


nenhum ateniense é mais sábio do que Sócrates, este fica
perplexo, pois não defende teoria alguma, pelo menos ex­
plicitamente, ao contrário de muitos outros filósofos. Não
tem uma teoria sobre a natureza última da realidade, como
Heraclito (c. 500 a. C.) , Parménides (c. 5 15-445 a. C.) ou
os atomistas Leucipo (c. 450-420 a. C.) e Demócrito (c.
460-37 1 a. C.) . Não desenvolveu a geometria nem a ma­
temática, que no seu tempo não se distinguia da filosofia.
De modo que Sócrates parte em busca de outros
homens (não lhe ocorreu procurar mulheres!) que sejam
mais sábios do que ele, para poder apresentá-los à sacer­
dotisa como refutação da sua estranha afirmação. Mas
não encontra senão homens que se julgam sábios
quando, afinal, não o são. Sócrates faz, então, a seguinte
reflexão, depois de conversar com um deles:

«Sou, sem dúvida, mais sábio que este homem.


É muito possível que qualquer um de nós nada saiba
de belo nem de bom; mas ele julga que sabe alguma
coisa, embora não saiba, ao passo que eu nem sei

29
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

nem julgo saber. Parece,me, pois, que eu sou algo


mais sábio do que ele, na precisa medida em que não
julgo saber aquilo que ignoro.» (Apologia, 2 ld)

É desta passagem da Apologia que nos chegou a fa,


mosa expressão «SÓ sei que nada sei». No entanto, Só,
crates não diz exactamente o que lendariamente lhe é
atribuído. Ainda que possa tê,lo dito, não temos disso
qualquer prova documental; o que mais se aproxima da
lenda são estas palavras da Apologia. Acresce que esta
obra é da autoria de Platão (427,347 a. C.) , que tinha
vinte e oito anos quando Sócrates morreu, e não sabe,
mos até que ponto reproduz aproximadamente o dis,
curso de defesa de Sócrates, aquando da condenação à
morte por envenenamento.
Platão escreveu inúmeras obras filosóficas, sob a
forma de diálogo, nas quais Sócrates surge como perso,
nagem e muitas vezes protagonista. Dessas obras, e de
outros relatos, incluindo os de Xenofonte (c. 430,354
a. C.) e de Aristóteles (384,322 a. C.) , que nasceu
quinze anos depois da morte de Sócrates, é possível ter
uma ideia, ainda que não muito precisa, do género de
conversas que Sócrates mantinha com os seus concida,
dãos e também de algumas das suas ideias.
Tanto quanto sabemos, Sócrates abordava na rua as
pessoas que professavam saber algo e, fazendo perguntas
e levantando dificuldades, fazia,as darem,se conta de
que afinal não sabiam o que julgavam saber. Como se ve,-

30
SÓ SEI QUE NADA SEI

ao colocar as nossas crenças em causa com a ajuda do


seu génio maligno, mais de dois mil anos depois, Des­
cartes não fará algo invulgar em filosofia. Colocar as
nossas crenças em causa é recorrente, em filosofia, pre­
cisamente porque queremos descobrir a sua justificação
última - ou descobrir que não há tal coisa.

Cepticismo

Quem defende que as nossas crenças - em qualquer


área ou apenas em algumas - não têm justificação ade­
quada, tem a designação de «céptico» . Este termo é
infelizmente ambíguo, hoje em dia.
Originalmente, o termo grego, que está na sua raiz,
significava apenas «investigador», o que está em harmo­
nia com as ideias defendidas por Pirro {c. 360-272 a. C.) ,
natural da cidade de Élis, o fundador da tradição céptica
grega. Não temos qualquer obra de Pirro; conhecemos as
suas supostas ideias pela obra de Sexto Empírico {c. 1 50-
-225 ) , que escreveu quase quatrocentos anos depois
dele. Ora, nos textos de Sexto, surge muitas vezes a ideia
de que os cépticos, ao contrário dos filósofos que julgam
ter já encontrado a verdade, estão ainda procurando,
investigando. Daí o significado do termo grego original.
Contudo, o termo «cepticismo» passou depois a ser
usado não no sentido de alguém que investiga, mas antes
de alguém que paralisa a investigação precisamente na

31
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

medida em que põe tudo em causa - quer numa dada


área apenas, quer em todas. O termo «cepticismo» pas,
sou assim, em filosofia, a significar a paralisia da investi,
gação, e não a atitude de investigar.
Não sabemos bem até que ponto Sócrates era um
céptico. Platão não parece tê,lo sido, e Aristóteles cer,
tamente não o era. Mas a escola de filosofia fundada por
Platão, conhecida como «Academia» - daí o termo
ainda hoje usado para falar de universidades - acabou
por adoptar o cepticismo, para melhor reflectir a suposta
atitude original de Sócrates. De modo que <<académico»
foi, durante muito tempo, sinónimo de «céptico» - sig,
nificado que voltou a perder mais tarde. O livro Contra
os Académicos, do filósofo e teólogo númida Agostinho
de Hipona (354'430) , é precisamente uma discussão do
cepticismo; e o filósofo e historiador escocês David
Hume ( 1 7 1 1 , 1 776) deu à Secção XII do seu livro Inves,
tigação sobre o Entendimento Humano o título «Da Filo,
sofia Académica ou Céptica», indicando a palavra «OU»
duas designações alternativas da mesma coisa.
O termo «céptico» é hoje usado em alguns contex,
tos no sentido grego original de alguém que está inves,
tigando, procurando provas e rejeitando ideias ina,
dequadamente justificadas ou sem justificação. Isto
provoca alguma confusão porque, em filosofia, desde há
séculos que se usa o termo nO'Selltido de alguém que pa,
ralisa a investigação e rejeita o empreendimento humano
da teorização cuidadosa e sistemática.

32
SÓ SEI QUE NADA SEI

Crença verdadeira justificada

Há pelo menos duas perguntas cruciais a fazer perante


alguém que afirme só saber que nada sabe. A primeira
diz respeito à sua coerência. Não será incoerente afirmar
que sabe que nada sabe? Afinal, sabe algo ou não?
A segunda diz respeito não à sua coerência mas à
sua possibilidade. Será possível alguém saber apenas que
nada sabe? Claro que se for incoerente saber que nada se
sabe, será também impossível saber apenas que nada se
sabe. Mas mesmo que seja coerente afirmar tal coisa, po­
derá ser impossível saber apenas que nada sabemos.
É uma boa ideia começar por clarificar o conceito
de conhecimento, ou saber. Quem o fez pela primeira vez
foi, precisamente, Platão, na obra Teeteto.
É razoável defender que há três condições necessá­
rias para que algo seja conhecimento. Contudo, no diá­
logo Teeteto, Platão rejeita que estas sejam também con­
dições suficientes, defendendo que há casos em que as
três condições se verificam mas não há conhecimento.
Em todo o caso, mesmo que as três condições se ­
guintes não sejam suficientes para que haja conheci­
mento, é razoável pensar que são necessárias. Essas con­
dições são as seguintes: se algo for conhecimento, então
1) é uma crença (ou seja, uma representação verdadeira
ou falsa que alguém tem de algo) , 2) essa crença é ver­
dadeira, e 3) essa crença verdadeira está justificada.
Mas o que quer isto dizer?

33
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

Considere o leitor a sua crença de que Sócrates era


ateniense. Esta crença pode ser verdadeira ou falsa.
Imaginemos que é falsa. Nesse caso, Sócrates não era
ateniense e, por isso mesmo, o leitor não pode saber
que ele era ateniense - pode é crer erradamente que
o sabe.
Imaginemos agora que a crença é verdadeira. Nesse
caso, Sócrates era realmente ateniense. Mas isso não
basta para que o leitor o saiba; pois se a sua crença for
verdadeira por mero acaso, como quem acerta no toto,
loto, não é razoável dizer que o leitor sabia genuina,
mente que Sócrates era ateniense: apenas tinha essa
convicção, algo à toa, e por sorte acertou na verdade.
Assim, para que a sua crença de que Sócrates era
ateniense constitua conhecimento é preciso que, além
de ser verdadeira, esteja justificada. Neste caso, a justi,
ficação é que o leu nos livros, por exemplo. Certamente
que esta justificação não é última - depende de outras
justificações - mas é razoável.

A possibilidade do cepticismo

Afirmar que só sei que nada sei seria obviamente incoe,


rente se a ideia fosse, literalmente, que nada sei - afir,
mando de seguida que o sei. Isso seria como afirmar que
toda a gente é loura, mas eu não: se toda a gente, lite,
ralmente, é loura, eu também sou. Mas esta não é uma

34
SÓ SEI QUE NADA SEI

boa interpretação da afirmação. Ao invés, a ideia é que


há uma e uma só coisa que sei: que nada sei, excepto isto
mesmo.
Interpretada assim, esta afirmação parece captar o
que o céptico pensa. Ele põe em causa as nossas teoriza­
ções acerca da natureza da realidade; põe em causa as
nossas convicções morais e as nossas memórias. E ao
fazê-lo não é incoerente, porque não afirma nada saber,
mas antes que sabe uma e uma só coisa: que não sabemos
tudo o resto que julgamos saber.
A primeira dificuldade desta posição é um mero por­
menor - mas na teorização os pormenores são muito
importantes, podendo fazer a diferença entre uma boa e
uma má teoria. A dificuldade é esta: como se contam co­
nhecimentos?
Esta pergunta é estranha, mas considere o leitor o
seguinte: há coisas que podemos contar, e há coisas que
não podemos contar. Tecnicamente, diz-se que as pri­
meiras são discretas ou contáveis e as segundas contí­
nuas ou não-contáveis.
Por exemplo, as maçãs são contáveis, porque cada
maçã é uma unidade. Uma dada quantidade de maçãs é
composta por várias unidades, que podem ser contadas.
Já a manteiga não é contável, porque não é com­
posta por unidades. O que podemos contar são porções
de manteiga, o que contrasta com as maçãs, que podem
ser contadas directamente, sem formar primeiro porções
de maçãs.

35
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

Este pormenor é importante porque o céptico afirma


que só sabe uma coisa, o que pressupõe que os conheci­
mentos podem ser contados, como as maçãs. Mas se os
conhecimentos podem ser contados, então o céptico não
sabe só uma coisa, ao contrário do que afirma. Afinal,
para cada crença nossa, o céptico assevera saber que não
há justificação adequada para ela. Portanto, em rigor, o
céptico sabe, pelo menos, tantas coisas quantas as que
cremos saber: sempre que alguém afirma saber algo, o
céptico afirma que não há justificação adequada para
essa crença.
Esta dificuldade não é muito significativa, mas su­
gere outra que o é - constituindo, aliás, uma ilusão
cognitiva recorrente. Se o céptico não souber que é pre­
ciso haver justificação adequada para que haja conhe­
cimento, nenhum dos seus raciocínios tem qualquer
relevância. Os raciocínios cépticos põem em causa as
justificações que invocamos a favor das nossas crenças.
Mas isto só é relevante se aceitarmos que sem justifica­
ção adequada não há conhecimento. Portanto, o cép­
tico tem de aceitar esta tese filosófica quanto à relação
entre a justificação e o conhecimento - não pode saber
apenas que nada sabe. Para saber que nada sabe tem de
saber, além disso, que sem justificações adequadas nada
se sabe.
Mas mesmo isto não basta. Se o céptico soubesse
apenas que nada sabe e que sem justificação adequada
nada se sabe, não saberia que os seus raciocínios estão

36
SÓ SEI QUE NADA SEI

correctos. Ora, se o céptico não souber que os seus ra­


ciocínios estão correctos, não saberá também que os ou­
tros não sabem o que julgam saber - pois isso é o que
ele conclui com os seus raciocínios.

Conclusão

O céptico professa saber apenas que nada sabe, mas isso


é logicamente impossível. Isto porque ou o céptico sabe
que sem justificação adequada não há conhecimento e
que os seus raciocínios são correctos, ou não o sabe. Se
sabe qualquer destas coisas, então não sabe apenas que
nada sabe. E se não sabe qualquer destas coisas, não sabe
que nada sabe. Ora, se não sabe que nada sabe, também
não sabe apenas que nada sabe. Logo, em qualquer caso,
o céptico não sabe apenas que nada sabe.
Do mesmo modo que não podemos escrever uma
gramática da língua portuguesa sem usar uma qualquer
língua - portuguesa ou outra qualquer - também não
podemos suspender de uma vez só todas as nossas cren­
ças para pô-las em causa, sem professar quaisquer cren­
ças. A ilusão de que o podemos fazer resulta de estarmos
habituados a, ao pôr outras crenças em causa, aceitar
inúmeras crenças, sem reparar nelas. Por isso, não repa­
ramos que o céptico faz precisamente o mesmo: aceita
inúmeras crenças ao pôr outras em causa. Foi isso que
viu Bertrand Russell (1872- 1970) :

37
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

«É claro que é possível que todas ou qualquer uma das


nossas crenças possa estar errada, e consequente,
mente todas devem ser adoptadas com pelo menos um
ligeiro elemento de dúvida. Mas não podemos ter
razão para rejeitar uma crença excepto com base nou,
tra crença qualquer.» (Os Problemas da Filosofia, p. 87)

Assim, apesar de a lenda atribuir a Sócrates uma


afirmação memorável, há fortes razões para pensar que
nem ele nem ninguém pode saber apenas que nada sabe.
Talvez devido a críticas deste género, o referido
Sexto Empírico insistiu em distinguir o cepticismo aca,
démico do seu próprio cepticismo, chamado pirrónico.
Segundo Sexto, são os primeiros que caem na armadilha
de afirmar algo - nomeadamente, que nada sabem. E são
por isso vulneráveis a algo como a argumentação aqui
apresentada contra eles.
Sexto esforça,se então por explicar que não sabe
que nada sabe; apenas lhe parece, perante cada afirma,
ção de hipotético saber, que não é saber. Deste modo,
Sexto não afirma nada saber, mas apenas que lhe parece
nada saber.
Poderá esta diferença bloquear realmente o género
de argumentação aqui apresentada contra o céptico?
Esta é uma pergunta a que o leitor pode tentar respon,
der por si.

38
3

No meio é que está a virtude

CERCA DE SEIS SÉCULOS DEPOIS DA CONDENAÇÃO DE Só­


crates, o cristão Clemente de Alexandria (c. 150-2 19) ,
padre da igreja, faria uma analogia entre a sua morte e a
de Jesus, no debate que grassava na altura sobre se a fi,
losofia e a cultura gregas deveriam ser rejeitadas em
bloco ou parcialmente absorvidas pelos cristãos. Cle­
mente defendia que a palavra divina só se revelara ple­
namente com a encarnação de Jesus, mas que o logos
grego (termo que quer dizer, entre outras coisas, palavra,
mas também razão e argumento) fora uma antecipação
do verbo divino. Sócrates, como Jesus, procurara trazer
o logos, ou verbo, aos seres humanos.
Contudo, apesar da posição de Clemente, o impe­
rador romano cristão Justiniano acabou por ordenar, em
529, o encerramento das escolas de filosofia gregas. Pôs
assim fim a uma tradição intelectual única na humani­
dade, que começara novecentos e catorze anos antes,
com a fundação da Academia de Platão em 385 a. C.

39
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

Escolas de filosofia na Antiguidade

Um viajante que se aproximasse de Atenas em 300 a. C.,


vindo do noroeste, para entrar na cidade pela porta
dupla, ou Dipilon, passaria em primeiro lugar pela Aca,
demia de Platão, a mais antiga escola de filosofia da Gré,
eia. O nome resultou de esse local ter sido consagrado ao
herói ático Academo.
Seguindo em direcção à cidade, encontraria logo à
sua esquerda O Jardim, escola de filosofia fundada se,
tenta e nove anos depois da Academia, em 306 a. C., por
Epicuro (341 ,270 a. C.) , que passou os primeiros trinta
e cinco anos da sua vida na Ásia. Nesta escola de filoso,
fia, ao contrário do que acontecia nas outras, as mulhe,
res eram admitidas por regra e não por excepção. Hedo,
nista, Epicuro considerava que só o prazer era um bem
em si. Não recomendava, contudo, uma vida de entrega
aos prazeres mais frívolos, mas antes uma vida moderada,
de contenção e recolhimento, precisamente para ser
mais aprazível. Privilegiava a amizade e os prazeres sim,
pies, considerando que o principal obstáculo à felicidade
humana era o medo infundado, incluindo o medo da
morte: na justamente famosa Carta a Meneceu, argu,
menta que nada há a recear da morte porque, enquanto
estamos vivos, a morte não está obviamente presente; e
quando a morte estiver presente, não o estaremos nós.
Depois de uma caminhada de cerca de um quiló,
metro, o viajante chegaria à porta dupla da cidade.

I
40
NO MEIO É QUE ESTÁ A VIRTUDE

Cerca de quinhentos metros depois, junto à praça cen­


tral de Atenas, a ágora, encontraria a escola de filoso­
fia dos estóicos - cujo nome resulta de se terem esta­
belecido junto do Stoa Poikile (Pórtico Pintado, em
grego) . Fundada dois anos antes do Jardim por Zenão
de Cítio, em 308 a. C., teve uma influência gigantesca
no mundo antigo - no império romano era pratica­
-
mente a filosofia oficial, tendo mesmo o imperador
Marco Aurélio ( 1 2 1 - 180 d. C.) sido um dos seus se­
guidores. Materialistas e partidários da apatheia, im­
passibilidade perante a adversidade, desenvolveram as­
pectos cruciais da lógica proposicional - consti­
tuindo, até ao século XIX, uma das mais importantes
contribuições para o desenvolvimento da lógica depois
de Aristóteles.
Deixando o Pórtico dos estóicos à esquerda e a
ágora à direita, o viajante que quisesse visitar o Liceu, a
escola de filosofia fundada em 335 a. C. por Aristóteles
(384-322 a. C.) , teria de caminhar ainda cerca de um
quilómetro para leste. Com 49 anos, Aristóteles reunira
à sua volta um grupo de estudiosos que partilhava con­
sigo o amor pela descoberta de todas as coisas. Ao con­
trário da Academia de Platão, não era uma espécie de
clube privado: o Liceu estava aberto à participação de
qualquer pessoa, e muitas das suas lições eram gratui­
tas.

41
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

Aristóteles

Autor de uma obra prodigiosa que abrange praticamente


todos os domínios disciplinares - a própria ideia de do­
mínios disciplinares foi em parte introduzida por ele
mesmo - Aristóteles exerceu forte influência nas uni­
versidades medievais, até ao advento da ciência mo­
derna. A partir dessa altura, contudo, o seu nome ficou
associado a uma certa concepção livresca e não experi­
mentalista, nem matemática, da ciência. Com a rejeição
dessa concepção, os modernos deitaram fora muitos
bebés com a água do banho - Aristóteles foi um deles.
Infelizmente, à excepção de alguns fragmentos, não
nos chegaram quaisquer obras de Aristóteles a que na
altura se chamava exotéricas: obras para o exterior, isto é,
para serem lidas por qualquer pessoa, algumas das quais
foram escritas na forma então popular do diálogo. O que
nos chegou de Aristóteles constitui o que se chamava
obras acroamáticas: textos usados por Aristóteles para
leccionar oralmente na sua escola. Isto significa que não
são textos elegantes, têm muitas repetições e, em certas
passagens, parecem ou são mesmo incongruentes.
Uma das áreas onde mais temos a aprender hoje
com Aristóteles é a ética. Mas a sua abordagem é tão di­
ferente das abordagens posteriores que não é fácil com­
preender as suas ideias, nem difícil distorcê-las. Quando
pensamos hoje em ética é habitual ter em mente um
conjunto de proibições e de regras desagradáveis. E a

42
NO MEIO É QUE ESTÁ A VIRTUDE

ideia é que se pudéssemos viver sem elas, a vida seria me­


lhor: o que é bom, diz o povo, ou faz mal ou é pecado. Do
ponto de vista de Aristóteles, todavia, a ética não é um
sistema de proibições e regras que nos dificultam a vida;
pelo contrário, é o que nos permite ter uma vida boa.
Temos três textos de Aristóteles sobre ética, e os
dois últimos sobrepõem-se parcialmente: Magna Moralia,
Ética Nicomaqueia e É tica Eudemiana. Cada uma destas
obras, como muitas outras de Aristóteles, está dividida
em partes a que se chama livros. Os livros V, VI e VII da
Ética Nicomaqueia são iguais aos livros IV, V e VI da Ética
Eudemiana.
A razão de ser do título destas duas obras não é in­
teiramente conhecida, mas não resulta de serem obras
dedicadas ao filho de Aristóteles, Nicómaco, e ao seu
aluno, Eudemo de Rodes, como enganosamente suge­
rem os títulos alternativos portugueses (« Ética a Nicó­
maco» e «Ética a Eudemo») . O mais provável é que o
nome resulte de terem sido eles os compiladores origi­
nais dos volumes.

Bem, excelência e virtude

A ética, ou filosofia moral, ocupa-se de dois problemas


centrais interligados: qual é o bem último e como deve­
mos agir. A resposta a estes dois problemas deverá dizer­
-nos como será uma vida boa - que é muito diferente

43
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

da boa vida. A chamada «boa vida» é uma vida dedicada


a prazeres frívolos, incapaz de dar lugar a uma vida
humana genuinamente feliz, compensadora e realizada.
Mas como poderemos descobrir o que é o bem úl,
timo? Na abordagem adoptada por Aristóteles, o ponto
de partida é muitíssimo modesto: para procurar o bem
último começamos por reflectir cuidadosamente sobre a
natureza dos bens corriqueiros. O que faz uma flauta ser
boa, por exemplo, ou um cavalo?
Uma boa flauta é a que cumpre o melhor possível
a sua função: produzir sons de flauta. Um bom cavalo
é o que tem mais desenvolvidas as características de
um equídeo. Estes exemplos são meramente indicati,
vos - não são generalizáveis cegamente. Por exemplo,
se usarmos uma moeda para desaparafusar, valorizare,
mos não as características que fazem dela uma boa
moeda, mas antes as que permitem usá,la como uma
chave de fendas.
O que realmente conta é a ideia de excelência da
função. Não precisamos de admitir que todas as coisas
têm uma função natural, mas precisamos de admitir que
valorizamos as coisas em termos da função que quere,
mos que desempenhem. Quando queremos que o vinho
seja refrescante, no Verão, podemos valorizar aspectos
-
diferentes de quando quererríoS que seja aconchegante,
no Inverno. Mas a valorização das coisas parece con,
ceptualmente ligada à excelência do desempenho da sua
função, ou da função que queremos que desempenhe.

44
NO MEIO É QUE ESTÁ A VIRTUDE

Bem, função e excelência são, pois, conceitos pro­


fundamente ligados entre si. Acontece que o termo
grego para excelência é aretê, que significa também «vir­
tude». Assim, a virtude de algo é a sua excelência, e algo
é tanto mais excelente quanto melhor desempenhar a
sua função, ou a função que lhe atribuirmos.

Bem último

A análise preliminar do bem mostra que valorizamos


várias coisas, e que, para as valorizarmos reflectida­
mente, é crucial considerar a função e a excelência.
Mas é óbvio que valorizamos algumas coisas porque são
meramente instrumentais, ao passo que outras valori­
zamos por si mesmas. É natural pensar que pelo menos
uma coisa, ou várias, será valorizada por si mesma. Se
assim for, será o bem último, o bem em função do qual
os outros existem:

«Assim, se o que fazemos tem algum fim que quere­


mos por si e se tudo o mais que queremos é devido
a esse fim; e se não escolhemos tudo devido a outra
coisa (porque isto levaria a uma sequência infinita,
tornando os nossos desejos infrutíferos e vãos},
então é claro que isto será o bem, na verdade, o bem
principal.» (Ética Nicomaqueia, 1 094a}

45
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

Procurar o bem último é fazer dois géneros de coisas.


Primeiro, partimos do que, ponderadamente, valoriza,
mos; depois, reflectimos cuidadosamente para saber, em
cada caso, se o valorizamos por si ou devido a outra
coisa. O dinheiro, por exemplo, só irreflectidamente po,
derá ser valorizado por si; uma pessoa reflectida valori,
zará o dinheiro apenas instrumentalmente, porque per,
mite obter outras coisas que valorizamos.
Um bem é meramente instrumental quando é valo,
rizado exclusivamente por ser um meio para outra coisa
que valorizamos. Mas um bem pode ser instrumental sem
ser meramente instrumental, como é o caso da saúde:
uma pessoa reflectida valoriza,a por ser importante para
uma vida feliz, mas também a valoriza por si.
Se houver um bem que nunca seja sequer instru,
mental, será o mais importante bem - o alvo de todas
as nossas valorizações. E ainda sem saber o que é tal
bem, ou sequer se existe, podemos ver que, a existir, será
completo, no sentido de nada nos faltar se o tivermos.
Ora, a felicidade é algo que não valorizamos instru,
mentalmente e que, se a tivermos, nada nos falta; Aris,
tóteles conclui que a felicidade é o bem último que pro,
curávamos:

«A felicidade, em particular, é considerada completa


sem restrições, pois escolhemo,la sempre por si e
nunca devido a outra coisa.» (É tica Nicomaqueia,
1 097a,b)

46
NO MEIO É QUE ESTÁ A VIRTUDE

Felicidade e truísmo

Aristóteles reconhece que a conclusão de que o bem úl­


timo é a felicidade - ideia em que John Stuart Mill
(1806- 1 873) irá insistir mais de dois mil anos depois -
parece um truísmo. Todavia, é algo que só pode ser al­
cançado depois de uma análise cuidadosa dos conceitos
de bem último e instrumental.
Além disso, aceitar que o bem último é a felicidade
implica rejeitar duas ideias: que sem Deus tudo é permi­
tido, e que, se Deus não existir, nenhum valor objectivo
existirá.
Para começar pela segunda ideia, se o raciocínio de
Aristóteles estiver correcto, exista ou não qualquer di­
vindade, o valor existirá objectivamente - incluindo
não apenas o valor instrumental, mas mesmo o valor úl­
timo. Pois o valor último é apenas o que nós valorizamos
em si e não apenas instrumentalmente, depois de uma
reflexão cuidadosa. E, se não nos enganarmos a racioci­
nar, esse valor será objectivo no sentido em que é real­
mente último e não uma ilusão da nossa parte.
Quanto à primeira ideia, se Aristóteles tiver razão,
exista ou não qualquer divindade, nem tudo é permitido,
no sentido em que nem tudo contribui instrumental­
mente para o bem último. Claro que se não houver uma
divindade castigadora, não seremos castigados se promo­
vermos o mal e não o bem; todavia, promover o mal e não
o bem é, em si, mau. Claro que podemos pensar promover

47
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

o bem para nós à custa de provocar mal aos outros -


mas isto é admitir que não estamos, de facto, a promover
o bem, irrestritamente, mas apenas o bem pessoal.
Além disso, Aristóteles não concebe a felicidade corno
um estado interior e subjectivo, mas antes corno urna ac­
tividade de acordo com a nossa natureza. Ora, a nossa na­
tureza é tal que precisamos não apenas de satisfazer as nos­
sas necessidades mais elementares, corno a alimentação, a
diversão e o conforto, mas também as nossas necessidades
intelectuais e emocionais. Esta concepção é perfeitamente
compatível com a plasticidade dos seres humanos, que
tanto podem ser pianistas ou futebolistas, filósofos ou pa­
deiros, professores ou políticos. Mas é incompatível com
urna vida dedicada a satisfazer apenas as nossas necessida­
des físicas, por exemplo - não por um qualquer moralismo
provinciano da parte de Aristóteles, mas apenas porque
um ser humano não pode sentir-se plenamente realizado se
não realizar o seu potencial enquanto ser humano.

Teorização ética

Aristóteles tinha plena consciência do que era desen­


volver teorias com elevado grau de precisão. Ele mesmo
desenvolveu, com extrema precisão, um tipo de lógica
formal a que hoje chamamos «silogística» - da palavra
grega usada por Aristóteles e que significa aproximada­
mente «dedução». Um par de décadas depois da sua

48
NO MEIO É QUE ESTÁ A VIRTUDE

morte, Euclides desenvolveu um exemplo tocante de


precisão teórica, baseando,se em parte em trabalhos
anteriores - incluindo trabalhos estudados e publica,
dos na Academia de Platão e que Aristóteles conhecia.
Neste género de teorização partimos de alguns prin,
cípios e construímos uma teoria que nos dá respostas
para todos os problemas da área. No caso da geometria,
por exemplo, podemos demonstrar qualquer resultado
partindo apenas dos dez princípios originalmente usados
por Euclides. A física é, hoje, uma teoria deste género:
partindo de um conjunto limitado de princípios gerais,
podemos prever qualquer ocorrência física, com elevado
grau de precisão.
Se for possível fazer o mesmo em ética, teremos uma
teoria que nos diz, em cada situação da vida, o que é cor,
recto fazer. Tem sido assim que se tem entendido a teori,
zação em ética, desde o século XVIII. As duas teorias éticas
mais debatidas e desenvolvidas entre os filósofos con,
temporâneos são o utilitarismo, que tem em Mill um dos
seus primeiros proponentes, e a ética deontológica (termo
derivado do grego deon, que significa «dever» ou «obri,
gação») , cuja versão mais famosa devemos ao filósofo ale,
mão lmmanuel Kant (1724, 1804) . Nas suas versões mais
habituais, trata,se de teorias que visam estabelecer uma
maneira de decidir o que é correcto fazer em cada caso.
Muito simplificadamente, o utilitarismo determina
que temos sempre o dever de fazer o que tiver mais pro,
habilidades de promover a felicidade do maior número

49
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

de pessoas afectadas pelas nossas acções. E o deontolo­


gismo determina que temos sempre o dever de agir de
tal modo que pudéssemos querer que a máxima que
orienta a nossa acção fosse uma lei universal.
Aristóteles, contudo, vê a teorização em ética de modo
diferente. Logo no início da Ética Nicomaqueia (Livro I,
Cap. 3), adverte que não devemos exigir mais precisão,
numa dada área, do que o objecto de estudo permite:

«É uma marca da pessoa instruída procurar em cada


área apenas aquele grau de precisão que a natureza
do tema permite. Aceitar de um matemático afir­
mações que sejam meras probabilidades é como exi­
gir demonstrações de um retórico.» (Ética Nicoma­
queia, 1094b)

Ora, Aristóteles considera que em ética não é pos­


sível o grau de precisão que há noutras áreas, porque a
realidade relevante é demasiado diversificada: uma dada
acção pode ser correcta numa dada circunstância, mas
não noutra; um princípio moral poderá promover a vida
boa em certos casos, mas não noutros. Assim, temos de
adoptar uma postura a que hoje chamamos particula­
rismo, que exige que deliberemos em cada caso sem pre­
tender aplicar princípios gerais:

«As esferas de acções e do que é bom para nós,


como acontece na saúde, estão longe de ser fixas.

50
NO MEIO É QUE ESTÁ A VIRTUDE

Dado que a explicação geral não tem precisão, a ex­


plicação ao nível dos aspectos particulares é ainda
menos precisa. Pois não constituem uma qualquer
habilidade ou conjunto de regras: os agentes preci­
sam sempre de ver o que é apropriado em cada caso,
à medida que acontece, como fazem os médicos e
navegadores.» (É tica Nicomaqueia, 1 104a)

Assim, teorizar em ética é esclarecer o que é uma


pessoa virtuosa; será então ela a decidir, em cada caso, o
que é correcto fazer. Mas a teoria em si não pode dizê-lo
directamente porque a realidade é demasiado diversifi­
cada. A virtude está, assim, no centro da teoria de Aris­
tóteles, mas não como um princípio que possa dizer-nos,
por si, o que é correcto fazer em cada caso.

Educação moral

Aristóteles propõe um guia educativo para a formação de


um ser humano virtuoso que, depois de formado, deci­
dirá o que é correcto fazer em cada situação. A educação
moral consiste em parte em discutir vários casos paradig­
máticos de excessos e defeitos: um excesso de coragem é
um vício, mas a falta de coragem também o é, por exem­
plo. Daí que se atribua a Aristóteles, algo irresponsavel­
mente, a ideia de que no meio é que está a virtude. Mas
isto é uma simplificação grosseira, pois Aristóteles não

51
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

pensa nem que em todos os casos há um meio, nem que


a sua teoria tenha por missão estabelecer esse meio.
Aristóteles mostra que em muitos casos podemos
errar por excesso ou por defeito, e por isso devemos ter
em consideração este aspecto. Mas qualquer simplifica,
ção grosseira desta ideia terá resultados inaceitáveis em
muitas circunstâncias: matar apenas duas pessoas ino,
centes para lhes roubar o dinheiro, em vez de quatro ou
nenhuma, não é uma acção virtuosa.
Eis o que defende Aristóteles:

«A virtude é um estado que envolve escolha racio,


nal, consistindo num meio,termo relativo a nós e
determinado pela razão [ . . . ] » (É tica Nicomaqueia,
1 1 06b, 1 1 07a)

A virtude envolve escolha racional: trata,se de es,


colher ponderadamente, invocando razões. E consiste
num meio,termo relativo a nós: ou seja, consiste em evi,
tar o que, relativamente a nós, ao que somos, peca por
excesso ou por defeito. Do mesmo modo que a mesma
quantidade de alimento pode ser um excesso para uma
pessoa e insuficiente para outra, sendo o meio,termo re,
lativo a cada pessoa, também a virtude é relativa a cada
pessoa. Por exemplo, para uma pessoa pobre, é virtuoso
dar cinco euros para ajudar outra pessoa em dificuldades;
mas para uma pessoa muito rica esse não é o meio,termo
virtuoso da ajuda, dado dispor de bastante mais riqueza.

52
NO MEIO É QUE ESTÁ A VIRTUDE

Aristóteles defende, pois, que a virtude consiste


num meio,termo relativo a nós. Mas como se determina,
em cada caso, o que é o meio,termo relativo a nós? Aris,
tóteles defende que esse meio,termo é determinado pela
razão - «a razão» acrescenta Aristóteles, «por referên,
eia à qual a pessoa de sabedoria prática o determinaria»
(idem) .
O que isto significa é que a razão que determina o
meio,termo não emana da teoria de Aristóteles, mas
antes, em cada caso, da pessoa de sabedoria prática. É ela,
e não a teoria de Aristóteles, que determina qual é o
meio,termo, invocando uma razão ou justificação. E é
isso que conta. O contraste com as teorias éticas poste,
riores, como o utilitarismo ou o deontologismo, não
podia ser maior. Estas teorias visam precisamente esta,
belecer a razão última que fundamenta a correcção de
uma dada acção. Aristóteles pensa que quem estabelece
tal razão é a própria pessoa que age, avaliando cuidado,
sarnente a circunstância em que se encontra.
Numa leitura superficial, a ética de Aristóteles
poderia parecer pura arbitrariedade pessoal: cada qual
invocaria as suas razões, segundo os seus interesses. Mas
isso seria não compreender o que é uma razão. Quando
alguém tem uma razão para considerar que cinco mais
sete são doze, esta razão é por definição universal e é
acessível a todos os que quiserem considerar o cálculo
em causa. E cinco mais sete são sempre doze, não va,
riando consoante sou eu que tenho de pagar doze mil

53
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

euros, ou é outra pessoa que tem de mos pagar a mim.


O mesmo ocorre na fundamentação da acção moral: se
tenho uma razão para agir de um modo em vez de outro
porque cheguei a essa conclusão raciocinando cuidado­
samente e não me enganei, essa razão não é uma mera
arbitrariedade pessoal.
Assim, o melhor que temos a fazer para sermos vir­
tuosos é desenvolvermos a excelência das nossas capa­
cidades humanas para o raciocínio prático, responsável
por determinar como agir. Num certo sentido, é virtuoso
quem se esforça genuinamente por ser virtuoso, desen­
volvendo as suas capacidades para o raciocínio prático
ponderado, e procurando assim atingir a excelência.
Treinamo-nos a nós mesmos para sermos virtuosos mo­
ralmente, tal como nos treinamos para ser músicos vir­
tuosos.

Conclusão

Talvez seja possível fazer em ética teorias que determi­


nem satisfatoriamente, em cada caso, o que é correcto
fazer. Até hoje, parece que não se conseguiu tal coisa -
mas talvez surja entretanto uma teoria que consiga fazê­
-lo. Enquanto esperamos, é avisado levar a sério a hipó­
tese de Aristóteles de que a realidade é demasiado com­
plexa para que isso seja possível. E nada se perde em
apostar na educação moral.

54
NO MEIO É QUE ESTÁ A VIRTUDE

A educação moral genuína, contudo, não é o que


os políticos têm em mente quando pensam em transmi,
tir, por exemplo, «valores ecológicos» às crianças, ou
quando pensam na «educação para a cidadania» . Este
género de educação é doutrinação, e não educação
moral. A genuína educação moral é ensinar a raciocinar
em termos de fins e meios, a ponderar razões e a justifi,
car correctamente o que valorizamos - em suma, ensi,
nar a pensar eticamente, e não ensinar a repetir slogans
ecológicos, igualitários, nacionalistas, multiculturalistas
ou outros.

55
4

A guerra de todos contra todos

ESTAMOS EM 197 1 . A GUERRA FRIA ENTRE os EUA E o


bloco soviético conduzira, dois anos antes, em 20 de
Julho de 1969, Neil Armstrong e Buzz Aldrin à Lua -
e seis anos antes, em 1965, ao envolvimento activo dos
EUA na guerra do Vietname, que começara em 1955.
Foi também em 1 969 que Sir lsaiah Berlin (1909- 1 997)
publicou Quatro Ensaios sobre a Uberdade, introduzindo
a importante distinção entre liberdade positiva e liber­
dade negativa, e argumentando que é em nome do pri­
meiro tipo de liberdade, ainda que distorcida, que os re­
gimes opressores pretendem justificar os seus ultrajes.
Há apenas um ano, em 1970, Bertrand Russell, filó­
sofo, matemático, prémio Nobel da Literatura em 1950
e activista, morrera com a provecta idade de 98 anos -
depois de ter ajudado a mudar drasticamente a filosofia
do século XX, juntamente com G. E. Moore (1873- 1958) ,
Gottlob Frege (1848- 1925) e Ludwig Wittgenstein (1889-
-195 1 ) . Foi nesse mesmo ano que Saul Kripke, com apenas

57
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

30 anos, proferiu as famosas palestras de Princeton, «No­


mear e Necessidade», formulando fortíssimas objecções
a algumas ideias de Russell e Frege - e introduzindo
uma revolução filosófica que só mais tarde começará a
tornar-se evidente. Porque Kripke não escreveu as pa­
lestras, limitando-se a falar com comovente precisão, foi
necessário transcrevê-las a partir da sua gravação. Uma
das pessoas que fizeram esse trabalho foi o filósofo Tho­
mas Nagel (n. 1937) . Dois anos depois, em 1972, Nagel
publicou o artigo «Guerra e Massacre», que começa com
a seguinte frase:

«Da reacção apática às atrocidades cometidas no


Vietname pelos Estados Unidos e seus aliados, pode­
mos concluir que as restrições morais à conduta na
guerra inspiram quase tão pouca simpatia entre o
grande público quanto a de que gozam entre quem
tem a responsabilidade de dar forma à política mili­
tar norte-americana.»

Este artigo foi publicado na revista académica Phi­


losophy & Public Affairs, fundada em 197 1 especifica­
mente para que matérias de interesse público sejam in­
vestigadas e discutidas pelos filósofos. E é nesse mesmo
ano que John Rawls ( 1 92 1 -2002) , orientador de dou­
toramento de Nagel, publicou o livro que mais contri­
buiu para revitalizar a filosofia política: Uma Teoria da
Justiça.

58
A GUERRA DE TODOS CONTRA TODOS

Contratualismo

Rawls não aceita o pensamento utilitarista - não con­


fundir com utilitário - que é comum não apenas entre
filósofos, mas também na justificação de decisões políti­
cas. O seu argumento principal é que o pensamento uti­
litarista, ao defender que a acção correcta é a que tiver
as melhores consequências para o maior número de
pessoas, é compatível com a mais completa iniquidade.
É compatível, por exemplo, com uma situação na qual,
para dar a maior felicidade possível a mil pessoas, se ex­
ploram dez pessoas.
Rawls reactiva então a teoria contratualista. Origi­
nalmente formulada pelos filósofos ingleses setecentis­
tas Thomas Hobbes (1588- 1 679) e John Locke ( 1 636-
- 1704) , esta teoria foi adoptada pelo filósofo genebrino
oitocentista Jean- Jacques Rousseau ( 17 12- 1778) , e tam­
bém por Kant.
A teoria contratualista pode ajudar a responder a
três problemas de filosofia política: a justificação da
autoridade do Estado, o problema das mãos sujas e a dis­
tribuição justa da riqueza. Rawls está particularmente
preocupado com o último, mas nós começaremos pelo
primeiro.

59
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

Genealogia da moral

Em crianças, não temos plena liberdade para fazer o que


nos dá na telha: os nossos pais ou educadores têm auto,
ridade sobre nós. Mas também não a temos depois de
adultos: outros adultos, em nome de instituições como a
polícia, os tribunais e o parlamento, têm imenso poder
sobre nós. Essas instituições fazem parte do Estado. O que
poderá justificar que o Estado tenha tal poder sobre adul,
tos autónomos? Terá a autoridade do Estado uma boa
justificação?
Thomas Hobbes imaginou o que seria viver sem Es,
tado e considerou que uma circunstância dessas seria a
guerra de todos contra todos:

«Com isto toma,se manifesto que, durante o tempo


em que os homens vivem sem um poder comum
capaz de os manter a todos em respeito, eles se en,
contram naquela condição a que se chama guerra; e
uma guerra que é de todos os homens contra todos
os homens.» (Leviatã, Cap. XIII, p. 1 1 1)

John Locke era menos pessimista: considerava que


sem Estado não seria exactamente a guerra de todos con,
tra todos, mas não seria mesmo assim possível desenvol,
ver todas as coisas que tomam a vida humana melhor,
como a medicina ou as artes, porque bastariam algumas
pessoas mal,intencionadas para se estragar a écloga.

60
A GUERRA DE TODOS CONTRA TODOS

Tanto Locke como Hobbes eram cristãos. Mas o


segundo está mais interessado em pensar no que
ocorre quando consideramos os seres humanos inde,
pendentemente de qualquer sentido moral natural que
possam eventualmente ter, ao passo que Locke racio,
cina pressupondo que as pessoas têm, na sua maior
parte, um sentido moral natural, a que chama lei da
natureza.
As duas abordagens são esclarecedoras: a de Locke
mostra que basta que uma pequena minoria de pessoas
tenha comportamentos injustos para precisarmos da pro,
tecção do Estado; a de Hobbes mostra como as próprias
ideias de moralidade poderão surgir de uma mentalidade
amoral.
Uma explicação hobbesiana da origem da morali,
dade consiste em começar por considerar um conjunto
de pessoas sem qualquer sentido moral. Isto significa que
nada impede que uma delas mate, roube ou explore
qualquer outra, desde que disponha da força suficiente.
Só que qualquer das outras pode fazer o mesmo. E, por
isso, o resultado é ficarem todas pior.
Assim, é melhor instituir contratos, fazer alianças,
criar regras e leis - em resumo, o Estado. A morali,
dade e o Estado resultam ambos de simples racionali,
dade: todos vivemos melhor com regras morais e esta,
dos do que sem eles. A experiência mental conhecida
como dilema do prisioneiro ajuda a clarificar o que está
em causa.

61
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

O dilema do prisioneiro

Imaginemos dois prisioneiros amorais - isto é, pessoas


que não regem os seus comportamentos por quaisquer
considerações morais, mas apenas pelas suas vantagens e
desvantagens pessoais. Foram ambos presos em celas se­
paradas, acusados de conspiração contra o governo. Ima­
ginemos que realmente conspiraram, mas que os acusa­
dores não têm como prová-lo sem que o confessem, pelo
que propõem o seguinte a cada um dos prisioneiros:

Se você denunciar o outro prisioneiro, fica livre - e


ele apanha dez anos de cadeia. A menos que o outro
também o denuncie a si, caso em que ambos cumpri­
rão penas de cinco anos. Se nenhum denunciar o
outro, só podemos mantê-los presos por seis meses.

Estando o leitor nesta situação desagradável, e re­


lembrando que deve pensar amoralmente, tendo em
conta apenas o seu interesse próprio, como raciocinaria?
Dado saber que esta proposta foi feita ao outro prisio­
neiro, e continuando a pressupor que ele também pensa
amoralmente, tem de ter isso em conta.
Se o leitor não o denunciar mas ele o denunciar a si,
ele fica livre e o leitor terá de ficar dez anos na cadeia.
Terrível. É preciso evitar tal coisa; o melhor, pois, é de­
nunciá-lo. Neste caso, tudo vai depender de ele também
o denunciar ou não: se não o fizer, é uma maravilha por-

62
A GUERRA DE TODOS CONTRA TODOS

que o leitor fica livre - e ele cumprirá dez anos na pri,


são. Mas ... é óbvio que ele fez exactamente o mesmo ra,
ciocínio, pelo que vai denunciá,lo também. Que chatice!
Isto significa que apanham ambos cinco anos de cadeia.
Se o leitor pudesse coordenar a sua decisão com a do
outro prisioneiro, o melhor para ambos seria ficarem ca,
lados - seis meses de prisão para cada um, em vez de
cinco anos. Mas, sem garantias de que o outro irá coope,
rar, ficar calado é para si muito arriscado - pois se o fizer
e ele o denunciar, ele ficará livre e o leitor ficará dez anos
na cadeia. E, claro, uma vez mais, o outro prisioneiro
está a fazer precisamente o mesmo raciocínio - e tam,
bém ele não tem maneira de garantir que o leitor irá
cooperar. O resultado é que a menos que o leitor e o seu
companheiro pensem moralmente, nomeadamente,
cooperando, ficarão pior.
A genealogia da moral é agora óbvia, e é isto que
Hobbes parece ter em mente. Em certas circunstâncias,
pensar e agir moralmente produz melhores resultados do
que pensar e agir amoralmente. Não está em questão
saber se terá sido essa a genealogia histórica do pensa,
mento moral e do estado, mas antes mostrar a sua ge,
nealogia racional.
lmagine,se agora que o leitor e o seu companheiro
pensam moralmente. Ambos serão solidários e nenhum
confessa. Mas surge um perigo: explorar a boa vontade
do outro. Se o leitor for um pulha e puder safar,se sem
ser apanhado, será tentado a confessar - pois assim

63
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

ficará livre, em vez de ficar seis meses na cadeia - pre­


cisamente por saber que o seu companheiro, por solida­
riedade, não irá confessar.
Isto significa que sem sistemas de protecção da
acção moral - sem a vigilância e o castigo dos prevari­
cadores - a acção moral é uma estupidez, porque quem
age moralmente será sistematicamente explorado por
quem não o faz.
A arte de bem governar consiste em fazer leis e fun­
dar instituições públicas que promovam o comporta­
mento moral e castiguem o imoral. Para isso, contudo, é
crucial que quem faz essas leis e funda essas instituições
esteja genuinamente bem-intencionado. Caso contrário,
teremos estados falhados enquanto instituições morais,
que acabam por promover a imoralidade e a exploração
de quem age moralmente.

O problema das mãos sujas

O filósofo norte-americano Michael Walzer (n.


1935) publicou, em 1973, na referida Philosophy and Pu­
blic Affairs, o artigo «Acção Política: O Problema das
Mãos Sujas» , que deu os contornos e até o nome à dis­
cussão contemporânea do que poderíamos designar por
«maquiavelismo».
Nicolau Maquiavel (1469- 1 527) ficou famoso por
ter retratado em O Príncipe (153 2) o pensamento amoral

64
A GUERRA DE TODOS CONTRA TODOS

dos dirigentes políticos. Mas a convicção de que estes


são fundamentalmente amorais, agindo apenas em ter,
mos estratégicos, e excluindo quaisquer considerações
morais, é recorrente na história da humanidade. É assim
que muitas pessoas vêem hoje os políticos, com ou sem
razão, e era esta a mentalidade existente na Grécia da
Antiguidade, a que Platão dá voz e que procura refutar
no livro I de A República. Maquiavel, todavia, expôs de
modo sistemático essa maneira amoral de pensar - a
que hoje se chama por vezes Realpolitik.
Walzer usou a peça de teatro As Mãos Sujas (1948) ,
do dramaturgo e filósofo existencialista francês Jean, Paul
Sartre (1905, 1980) , que versa precisamente sobre a pos,
sibilidade de governar obedecendo a restrições morais.
A ideia subjacente de que não é possível fazê,lo dá ori,
gem à expressão o problema das mãos sujas.
O dilema do prisioneiro ajuda uma vez mais a es,
clarecer o que está em causa. Numa das suas versões
mais simples, o dilema constitui um bom modelo não
apenas das relações entre pessoas, mas também entre
estados.
Nessa versão, o dilema ocorre reiteradamente. !ma,
gine,se que o leitor tem vários hectares de terra e vive da
agricultura. Sempre que é tempo de recolher os frutos
do seu trabalho, teria muito a ganhar em poder contar
com a ajuda do seu vizinho - que, quando chega a al,
tura de fazer as colheitas, precisa também da sua ajuda.
Quando o seu vizinho lhe vem pedir ajuda, o leitor

65
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

poderá ajudar ou não. Se ajudar, está a perder o seu


tempo - mas seria óptimo se, na altura própria, ele o
ajudasse também. Contudo, será terrível se, chegada a
altura, ele não o ajudar. O que fazer? Cooperar ou não?
Este problema do dilema reiterado do prisioneiro
foi estudado pelo norte,americano Robert Axelrod (n.
1943) , especialista em ciência política. A questão que se
colocou foi a de saber que estratégia seria mais vanta,
josa. Sempre pressupondo que estamos a decidir sem ter
em conta considerações morais, qual é a melhor ma,
neira de agir? Evidentemente, cooperar é o melhor -
mas como evitar que o leitor seja explorado pelo seu vi,
zinho? O problema é saber como castigar a falta de coope,
ração e recompensar a cooperação de modo a impedir
dois extremos: que a pessoa seja explorada ou que se dê
origem a um ciclo de não,cooperação, em que todos
ficam pior.
Várias estratégias complicadas foram propostas.
A que se mostrou mais vantajosa em muitíssimas situa,
ções é tão simples - e intuitiva - que surpreendeu
muita gente. Consiste em começar por cooperar, e casti,
gar cada não,cooperação da outra pessoa com igual não,
,cooperação - mas voltar a cooperar na circunstância
seguinte. Portanto, quando o seu vizinho lhe pede ajuda,
o leitor ajuda. Se quando chegar a altura de o ajudar a si
ele se recusar, o leitor faz o mesmo na próxima vez que
ele pedir ajuda. Mas se ele voltar a cooperar, volta a
cooperar também. A estratégia é só isto.

66
A GUERRA DE TODOS CONTRA TODOS

Por que razão funciona tão bem? Três são as razões


principais. Primeiro, não permite que o leitor seja explo,
rado pelo seu vizinho. Segundo, não dá origem a ciclos
de não,cooperação - em que o leitor acaba em guerra
com o seu vizinho, ficando ambos pior. Mas o mais im,
portante é a terceira razão: é uma estratégia transpa,
rente, pelo que o seu vizinho vê claramente o que se
passa e, portanto, sabe que ficará melhor se cooperar e
em maus lençóis no caso contrário.
A descoberta de que esta estratégia, a que se chama
«pagar na mesma moeda» , funciona tão bem em algu,
mas circunstâncias é muitíssimo importante. Em pri,
meiro lugar, é uma refutação do princípio cristão de dar
sempre a outra face: se cooperarmos sempre, seremos ex,
piorados pelos pulhas, e isso dá origem a uma sociedade
iníqua. Em segundo lugar, é também a refutação do ma,
quiavelismo: se não formos transparentemente coopera,
tivos, ficaremos todos pior. Aristóteles parece ressurgir
aqui: nem Jesus nem Maquiavel, mas antes um meio,
,termo entre ambos.
Assim, pode ser um erro crer, como Maquiavel, que
é vantajoso agir amoralmente quando não há institui,
ções superiores que nos possam castigar, como ocorre nas
relações entre os estados. O dilema do prisioneiro
mostra que, em muitas circunstâncias, a guerra de todos
contra todos entre estados pode ser evitada, com vanta,
gens comuns, e ainda que não existam instituições su,
periores aos estados: isso consegue,se encetando uma

67
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

estratégia transparente de pagar na mesma moeda, o que


é incompatível com mentiras, jogos de bastidores, de­
sinformação, espionagem e todos os restantes truques de
caserna rotineiramente usados por estadistas antigos e
contemporâneos.

Justiça distributiva

O Carlos e o seu irmão, Juvenal, gostam ambos de lite­


ratura. Estudam dedicadamente, e cedo começam a pu­
blicar os seus trabalhos - pequenos contos, primeiro, e
depois romances de maior fôlego.
Contudo, o Carlos conquista cada vez mais leitores,
o que não acontece com o seu irmão. Com o passar dos
anos, o Carlos pode dedicar-se apenas à escrita. Ganha
prémios, incluindo o Nobel. Os seus romances são tra­
duzidos em várias línguas importantes e acabam por ser
adaptados ao cinema. O seu abastado nível de vida
permite-lhe viajar, passar férias nos melhores hotéis e ter
uma casa de sonho, ao passo que o seu irmão se limita a
ter uma vida modesta, que não lhe permite sequer pas­
sar férias no estrangeiro nem ter mais do que um pe­
queno apartamento, arrendado, nos subúrbios.
Entretanto, ambos casaram e tiveram filhos. O Car­
los tem a possibilidade de pagar as melhores escolas para
os seus filhos, em qualquer parte do mundo. O J uvenal
só poderá educar modestamente os seus, enviando-os

68
A GUERRA DE TODOS CONTRA TODOS

para más escolas públicas da zona onde mora. Assim,


mesmo que os filhos do Carlos sejam menos talentosos e
honestos, os filhos do J uvenal não têm hipótese de ul­
trapassar o abismo de oportunidades que os separa. Mas
certamente ninguém agiu injustamente: o Carlos seria
até um mau pai se não desse a melhor educação possível
aos seus filhos; o Juvenal não pode fazê-lo; e as pessoas
que preferem os livros de um aos do outro não agem in­
justamente.
Este é um dos aspectos da injustiça económica:
apesar de ninguém agir injustamente, partimos de uma
situação de igualdade e chegamos a uma situação de
desigualdade económica que parece ofender o nosso
sentido de justiça. Será injusta uma sociedade que per­
mita que isto ocorra?
Note-se que não se trata de considerar que a riqueza
de um é conseguida à custa da exploração do outro. Isso
certamente não ocorre no nosso exemplo. A riqueza de
um é apenas o resultado de ele fazer algo que muitos
milhares de pessoas apreciam, ao passo que o outro faz
algo que só poucas pessoas apreciam.
O debate sobre se uma situação deste género é ou
não injusta ganha clareza com uma experiência mental
proposta por John Rawls. Imaginemos que vamos deci­
dir, entre todos, como organizaremos as nossas insti­
tuições sociais - vamos instituir um contrato social.
Sabemos que na nossa sociedade teremos médicos e fu­
tebolistas, estrelas de cinema e historiadores, taxistas e

69
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

políticos. O que não sabemos é qual o papel que iremos


nós mesmos desempenhar nessa sociedade: estamos sob
um «véu de ignorância». Assim, o leitor não sabe se será
um modesto taxista ou um famoso futebolista. Nesta cif,
cunstância, o leitor decide instituir uma sociedade igua,
litária, ou não?
Por «sociedade igualitária» entende,se uma socie,
dade que usa mecanismos para redistribuir a riqueza: os
impostos, por exemplo, não serão usados exclusivamente
para manter o funcionamento do Estado, polícias e exér,
cito, mas também para ajudar os mais pobres. Desse
modo, os mais ricos, quer queiram quer não, financiam
os mais pobres por meio dos impostos.
Rawls considera que na experiência mental descrita,
porque estamos sob um véu de ignorância, só é racional
escolher uma sociedade que obedeça ao seguinte prin,
cípio: só serão aceitáveis as desigualdades em que as
pessoas em piores circunstâncias estão melhor do que
estariam se houvesse menos desigualdades. Por outras
palavras: a sociedade terá de eliminar tanto quanto pos,
sível as desigualdades, até ao ponto em que continuar a
eliminá,las faria as pessoas mais pobres ficar mais pobres
ainda.
lmagine,se duas sociedades: uma com menos e
outra com mais desigualdades. As pessoas que vivem
pior na que tem menos desigualdades são mais pobres do
que as que vivem pior na outra. Como é evidente, a so,
ciedade com mais desigualdades é preferível, mesmo para

70
A GUERRA DE TODOS CONTRA TODOS

quem está pior. Mas todas as desigualdades que puder­


mos eliminar sem provocar esse efeito indesejável de tor­
nar mais pobres ainda os que já são pobres, devem ser
eliminadas.
Para eliminar as desigualdades , recorremos aos
impostos: o dinheiro dos mais ricos financia assim os
mais pobres. Deste modo, os filhos do Juvenal poderão
frequentar uma escola melhor do que ele poderia pagar,
por exemplo, porque essa escola é financiada com o
dinheiro dos impostos pagos pelo Carlos.
Rawls considera que, sob o véu da ignorância, seria
irracional da minha parte rejeitar que a riqueza dos mais
ricos beneficie os mais pobres porque não sei se serei,
por exemplo, um famoso romancista ou um romancista
pobre. Claro que se eu soubesse que seria um roman­
cista rico, raciocinando em termos puramente amorais,
não teria qualquer razão para dar parte da minha ri­
queza aos romancistas pobres. Só que não sei se serei
um ou outro.
Rawls terá razão? Seria certamente irracional, ao
instituir um contrato social sob o véu da ignorância,
votar a favor de uma sociedade na qual as pessoas com
uma dada cor da pele serão discriminadas, não sabendo
eu qual será a cor da minha pele. Mas, em contraste com
este caso, não parece irracional votar a favor de uma so­
ciedade em que a riqueza produzida por cada um per­
tence tão-somente a cada um - sendo sobreerogatório
(ou seja, indo além do obrigatório) que os mais ricos

71
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

ajudem os mais pobres. Não parece irracional concordar


que é louvável ajudar os mais pobres, ao mesmo tempo
que se rejeita que tal ajuda seja obrigatória - mesmo
que eu não saiba se serei uma das pessoas a precisar dessa
ajuda.
Este aspecto torna,se mais claro se nos pusermos
no lugar de Juvenal, o romancista pobre: nesse caso, cer,
tamente não consideramos que quem é mais rico tem o
dever de nos dar parte da sua riqueza. Pois se o consi,
derássemos, seria difícil explicar a gratidão que senti,
ríamos quando uma pessoa mais rica nos desse parte da
sua riqueza. E se acaso recebêssemos essa riqueza como
se de um direito se tratasse, sem mostrar qualquer gra,
tidão, seríamos apropriadamente vistos como ingratos.
E não é talvez uma boa ideia fundar uma sociedade na
ingratidão.
Compare,se com outro caso: uma pessoa monta um
supermercado na sua cidade, e cedo conhece o sucesso.
Em cinco anos fica milionária - mas os seus trabalha,
dores mal conseguem pagar a renda da casa, porque
ganham o ordenado mínimo. É óbvio que, sob o véu da
ignorância, qualquer pessoa racional quererá legislar de
modo a que isto não seja possível - porque essa pessoa
não sabe se será o dono do supermercado ou o trabalha,
dor explorado. Mas nos casos em que a maior riqueza
não se deve a qualquer injustiça, não é igualmente óbvio
que, sob o véu da ignorância, a decisão racional seja
tirar,lhe parte dessa riqueza, por meio de impostos, para

72
A GUERRA DE TODOS CONTRA TODOS

financiar os mais pobres. Contudo, talvez outras razões


a favor da obrigatoriedade de os mais ricos ajudarem os
mais pobres sejam mais sólidas.

Conclusão

Um utilitarista não terá dificuldade em argumentar que


a justificação contratualista do estado está longe de ser
última, ainda que seja adequada. Não é última porque
depende inteiramente das consequências: é porque vi,
veríamos supostamente pior sem Estado que se justifica
a sua existência. Apesar disso, podemos concordar que
a abordagem contratualista explica a racionalidade do
pensamento moral e permite compreender a justificação
do Estado.
No caso do problema das mãos sujas, o pensamento
contratualista parece militar fortemente a favor da es,
tratégia transparente de pagar na mesma moeda, dando,
,nos razões poderosas para abandonar o maquiavelismo.
Contudo, no caso da distribuição da riqueza, o argu,
mento contratualista a favor da sociedade igualitária não
tem o mesmo grau de persuasão. Parece defensável que a
riqueza de cada um a cada um pertence e que, apesar de ser
louvável que os mais ricos ajudem os mais pobres, tal como
é louvável que sejamos simpáticos com os nossos vizinhos,
isso não é de modo algum obrigatório - pelo que é ilegí,
timo torná,lo obrigatório recorrendo aos impostos.

73
5

O despertar do
sono dogmático

ESTAMOS EM 1783. PASSARAM APENAS OITENTA E TRÊS


anos desde a fundação da Academia Prussiana das Ciên,
cias, cujo primeiro presidente foi Gottfried Wilhelm
Leibniz ( 1 646, 1 7 16) . O primeiro rei da Prússia, Frede,
rico I (1657, 1 713), criara as condições para a transfor,
mar numa das mais importantes potências económicas,
militares e culturais europeias. A língua alemã, que no
tempo de Leibniz ainda não era vista como uma língua
culta - razão pela qual este filósofo escrevia sobretudo
em francês e latim - rapidamente se estabeleceu como
uma das mais importantes da Europa: o filósofo, mate,
mático e cientista Christian Wolff (1679, 1754) foi um
dos seus instigadores, escrevendo vários tratados em ale,
mão, o que contribuiu para estabelecer a solidez cultural
da sua língua.
Assim, quando, depois de vários anos de silêncio
editorial, Kant escreveu em alemão a sua obra,prima, a
Crítica da Razão Pura, esta língua era já vista como um

75
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

veículo cultural. A Crítica viria a ter uma influência tal


que mesmo quem a não leu, ou leu sem entender, tende
a admirá,la como um monumento do intelecto humano.
A sua recepção, contudo, não foi particularmente calo,
rosa, inicialmente, e o que estava em causa ficou por
compreender. Kant decidiu então explicar,se melhor,
numa linguagem mais simples e, sobretudo, num tratado
de menor dimensão, hoje conhecido como Prolegómenos
a Toda a Metafísica Futura (1783) , mas cujo título com,
pleto acrescenta que possa Apresentar,se como Ciência.
A palavra «ciência» do título completo é para ser
entendida literalmente, apesar de hoje poder parecer
surpreendente a mistura com a metafísica. No tempo de
Kant, contudo, a filosofia e a ciência não tinham co,
nhecido o divórcio que viria a tornar,se a marca de
grande parte da filosofia alemã e francesa dos séculos XIX
e XX. Como Wolff, Leibniz e Descartes, Kant tinha si,
multaneamente interesses filosóficos e científicos. Na
verdade, a sua opção pela filosofia ficou a dever,se so,
bretudo à falta de laboratórios da universidade da
sua cidade natal, Kõnigsberg (que hoje se chama Kali,
ningrado e pertence à Rússia) . Mesmo assim, em História
Geral da Natureza e Teoria dos Céus ( 1755) , Kant con,
jectura que o sistema solar se formou a partir de uma
imensa nuvem de gás e poeiras - teoria que ainda hoje
é considerada correcta.

76
O DESPERTAR DO SONO DOGMÁTICO

Metafísica

De todas as áreas da filosofia, a metafísica é talvez a mais


incompreendida hoje. Originalmente, o termo «rnetafí,
sica» não era usado pelos mais importantes rnetafísicos
da Antiguidade grega, corno Parménides, Heraclito, Pia,
tão ou Aristóteles. Estes limitavam,se a publicar tratados
que exploravam ternas rnetafísicos, sem dar a esse estudo
qualquer designação especial; Aristóteles chama «filo,
sofia primeira» ao que hoje vemos corno urna mistura de
ternas fundacionais de metafísica, epistemologia e filo,
sofia da lógica e da linguagem; e muitos dos filósofos pré,
,socráticos davam apenas o título «Sobre a Natureza»
aos seus tratados.
Foram os responsáveis pela Biblioteca de Alexan,
dria, e talvez também Andrónico de Rodes (c. 60 a. C.) ,
que deram à obra de Aristóteles em catorze livros o título
grego de «O que está depois da física» - expressão que,
em grego, inclui as palavras meta physica. Este acaso his,
tórico contribuiu para dar a ideia falsa de que a rnetafí,
sica é o estudo esotérico de matérias espirituais para lá da
física ou da materialidade, relacionadas com a condição
humana. O desenvolvimento subsequente da física ex,
perirnental deu origem a outra ideia falsa da metafísica:
corno esta procede principalmente por raciocínio intenso
e não, corno a física, por experimentação, ficou a ideia de
que o metafísico é urna pessoa algo tola, que considera
ilusoriamente poder fazer qualquer coisa parecida à

77
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

física, mas sem se incomodar com a experimentação nem


a quantificação.
A metafísica, contudo, não é nem um discurso espi­
ritualista sobre a condição humana, ou sobre o reino do
além, nem uma rejeição do experimentalismo científico.
Em metafísica estudam-se problemas filosóficos sobre os
aspectos mais gerais da realidade. Por se tratar de proble­
mas filosóficos, não podem ser tratados experimental­
mente, como se faz com os problemas científicos; por se
tratar dos problemas mais gerais da realidade, a metafísica
não tem grande coisa a dizer sobre a condição humana,
pois os seres humanos estão longe de estar no centro da
realidade; e dá bastante mais atenção à natureza da rea­
lidade física, do que a uma eventual realidade que esteja
para lá da física, pela simples razão de que a realidade fí­
sica já levanta suficientes perplexidades filosóficas.
A física e astrofísica actuais são herdeiras directas da
metafísica, tal como esta era feita pelos filósofos gregos da
Antiguidade. Se estes se tivessem inibido de especular me­
tafísicamente, esperando primeiro que a ciência experi­
mental se desenvolvesse, esta nunca teria surgido: foi a
curiosidade que levou os seres humanos a desenvolver a
ciência experimental, não foi a ciência experimental que
determinou em absoluto o rumo da curiosidade humana.
Contudo, com o avanço extraordinário da ciência
experimental a partir dos séculos XVII e XVIII, a tentação
de abandonar a metafísica como se de uma infantilidade
se tratasse não se fez esperar. Esta atitude não é particu-

78
O DESPERTAR DO SONO DOGMÁTICO

larmente sábia, pois muitos problemas fundacionais


sobre a realidade - e sobre a própria ciência experi­
mental - são insusceptíveis de estudo científico, se com
isso queremos dizer experimental ou matemático. Esses
problemas são metafísicos, e só a teorização e argumen­
tação cuidadosa e sistemática poderá ajudar-nos.

Empirismo e racionalismo

Foi nos Prolegómenos que, exagerando talvez um pouco,


Kant declarou:

«Desde os ensaios de Locke e de Leibniz, ou antes,


desde a origem da metafísica, tanto quanto alcança
a sua história, nenhuma ocorrência teve lugar que
pudesse ser mais decisiva, a respeito do destino desta
ciência, do que o ataque que David Hume lhe mon­
tou.» (p. 4:257)

Kant refere-se ao Ensaio sobre o Entendimento Hu­


mano, de Locke, publicado em 1 690, e aos Novos Ensaios
sobre o Entendimento Humano, de Leibniz, originalmente
redigido em francês, e que data de 1704, apesar de só
alguns anos depois ter sido publicado. A segunda obra,
escrita sob a forma de diálogo, visa refutar a primeira,
livro a livro e capítulo a capítulo. O que está em causa é
o famoso conflito, tantas vezes mal compreendido e

79
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

caricaturado, entre o empirismo de Locke e de Hume e


o racionalismo de Leibniz.
Segundo a caricatura comum, os filósofos empiristas
defendem que todo o conhecimento é a posteriori, ou
seja, resulta da experiência, ao passo que os racionalistas
defendem que todo o conhecimento é a priori, ou seja, é
independente da experiência. Que isto é uma caricatura
torna,se evidente quando se considera que um raciona,
lista teria de explicar como sabemos, pelo raciocínio ape,
nas, que está a chover, por exemplo, tendo um empirista
de explicar como sabemos, pela experiência apenas, que
o número cinco é ímpar. Nenhuma das alternativas é
particularmente promissora. Além disso, esta caracteri,
zação sugere que a oposição é uma questão de saber qual
é a origem do conhecimento; mas o que está realmente
em causa é o processo de justificação envolvido.
Na verdade, como vimos no caso de Descartes
(Cap. 1 ) , os racionalistas não defendem que podemos
saber, pelo raciocínio apenas, que está a chover, por exem,
plo, o que não seria particularmente judicioso. O que de,
fendem é que só o raciocínio puro constitui a justificação
última de todo o conhecimento, empírico ou não. Assim,
os racionalistas não negam que só por meio dos sentidos
podemos saber que está a chover; mas negam que pos,
samos saber tal coisa pelos sentidos apenas, sem uma jus,
tificação independente da experiência.
Por outro lado, os empiristas não têm de negar que
a justificação envolvida no conhecimento matemático

80
O DESPERTAR DO SONO DOGMÁTICO

envolva exclusivamente o raciocínio; mas negam que tal


constitua um conhecimento substancial da realidade fí,
sica. E defendem que sempre que ternos conhecimento
substancial da realidade física, a justificação envolvida
depende inevitavelmente da experiência.
Kant ficou bastante mais impressionado com a de­
fesa do empirismo levada a cabo por Hurne do que com
a de Locke. Daí que acabe por admitir famosamente que
foi o primeiro quem o despertou do sono dogmático:

«Confesso francamente: foi a advertência de David


Hurne que, há muitos anos, interrompeu o meu
sono dogmático e deu às minhas investigações no
campo da filosofia especulativa urna orientação
inteiramente diversa.» (p. 4:260)

O sono dogmático

O sono dogmático de Kant é a tese racionalista de que


podemos justificar pelo pensamento apenas o nosso co­
nhecimento de aspectos substanciais da realidade física.
É contra esta ideia que Hurne argumenta, insistindo em
que um dos conceitos fundamentais para compreender a
realidade - e para fazer física- é inteiramente empí­
rico: o conceito de causalidade. Kant ficou impressio­
nado com as ideias de Hurne, e viu nelas duas conse­
quências importantes.

81
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

Em primeiro lugar, se Hume tivesse razão, as ciên,


cias empíricas, precisamente por serem empíricas, nada
de estritamente universal ou necessário poderiam dizer,
,nos sobre a realidade: teriam de ser meras descrições de
regularidades contingentes, e não corpos de verdades ne,
cessárias e estritamente universais, como a geometria.
Isto não parece particularmente promissor, dado que nos
obriga a rever a convicção de que a ciência revela as,
pectos fundamentais da natureza, e não apenas meras
contingências. A afirmação científica de que uma dada
porção de água é H20 não parece estar ao mesmo nível
da afirmação de que essa porção de água está em Lisboa.
O mundo tem muitíssimos factos e a ciência não parece
uma mera enumeração de quaisquer factos, mas antes
uma selecção dos que são particularmente centrais e im,
portantes, reveladores da natureza profunda das coisas.
Em segundo lugar, não seria possível a própria me,
tafísica, tal como era tradicionalmente concebida, pois
trata,se de estudar problemas filosóficos sobre a reali,
dade, insusceptíveis de estudo empírico. Se Hume tiver
razão, nenhum raciocínio puro permitirá descobrir quais,
quer verdades fundamentais sobre a realidade. Na ver,
dade, Hume encerra com as seguintes palavras a sua ln,
vestigação sobre o Entendimento Humarw, obra publicada
trinta e cinco anos antes dos Prolegómenos, em 1 748:

«Ao passarmos os olhos pelas bibliotecas, persuadi,


dos destes princípios, que devastação devemos fazer?

82
O DESPERTAR DO SONO DOGMÁTICO

Se pegarmos num volume de teologia ou de metafí,


sica escolástica, por exemplo, perguntemos: Contém
ele algum raciocínio acerca da quantidade ou do nú,
mero? Não. Contém ele algum raciocínio experimental
relativo à questão de facto e à existência? Não. Lançai,
'º às chamas, porque só pode conter sofisma e ilu,

são.» (p. 165) .

Do ponto de vista de David Hume, só há dois tipos


de conhecimento: empírico, sobre questões de facto,
onde encontramos ciências como a física; e a priori, sobre
relações de ideias, onde encontramos a matemática. Ne,
nhum cruzamento entre estes domínios é possível e con,
sequentemente ou a metafísica nada nos diz sobre a es,
trutura fundamental da realidade - deixando por isso
mesmo de ser propriamente metafísica - ou transforma,
,se em mera ciência empírica, deitando, se às chamas
toda a tradição metafísica europeia. Que a própria obra
de Hume seria quase certamente lançada às chamas,
pelos seus critérios, parece evidente - pois não encon,
tramos nela nem matemática nem física, mas antes es,
peculação filosófica tradicional.
Despertar do sono dogmático é deixar de tomar
como óbvio que podemos justificar pelo pensamento
puro o nosso conhecimento de aspectos fundamentais
da realidade física. Mas se nos limitarmos a despertar do
sono dogmático, caímos num pesadelo céptico, no qual
nem a ciência nem a metafísica, tal como tradicional,

83
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

mente concebidas, são possíveis. A engenhosa saída de


Kant para esta dificuldade foi a responsável, em parte,
pela sua fama como filósofo.

Sintético a priori

Hume não distingue, nos seus textos, entre três catego,


rias filosóficas importantes: o necessário, o a priori e o
analítico. A tudo isto chama Hume simplesmente «re,
lações de ideias» , que contrastam com as questões de
facto, onde também não distingue o contingente, o a
posteriori e o sintético. É uma questão de facto que está
agora a chover, por exemplo, mas basta relacionar
ideias, pensa Hume, para saber que cinco é um número
ímpar.
Kant introduziu uma distinção entre o a priori e o
necessário, por um lado, e o analítico, por outro. Apesar
de continuar a não distinguir com rigor o a priori do ne,
cessário, como fazemos hoje, distinguiu cuidadosamente
o analítico deste par conceptual. Usando a concepção
contemporânea de analítico, que é ligeiramente dife,
rente da de Kant, uma afirmação é analítica quando po,
demos saber se é verdadeira, ou falsa, com base apenas
no significado das palavras que nela ocorrem, e é sinté,
tica caso contrário. Assim, «Nenhum solteiro é casado»
é uma afirmação analítica, mas «Nenhum solteiro é feliz»
é sintética.

84
O DESPERTAR DO SONO DOGMÁTICO

Contudo, Kant via a diferença entre o analítico e o


sintético de modo algo diferente: considerava que numa
afirmação analítica nada se acrescenta na segunda parte
da afirmação que a primeira não contenha já, ao passo
que é precisamente isso que faz uma afirmação sintética.
Assim, dado o conhecimento que temos do que é ser
solteiro, já sabemos que nenhum solteiro é casado; mas
esse conhecimento não nos diz se os solteiros são felizes.
Neste sentido, as afirmações analíticas não seriam in­
formativas, ou ampliativas, ao passo que as sintéticas o
seriam.
Quanto ao necessário e ao a priori, trata-se de con­
ceitos que hoje distinguimos claramente, mas que Kant
trata como se fossem irmãos gémeos. O a priori é um con­
ceito que diz respeito ao modo como conhecemos:
quando conhecemos algo recorrendo exclusivamente ao
pensamento, como é o caso da matemática, trata-se de
conhecimento a priori; quando conhecemos algo recor­
rendo pelo menos parcialmente à experiência, trata-se
de conhecimento a posteriori.
A introdução deste par conceptual constituiu um
desenvolvimento crucial na história da filosofia, e deve­
-se em parte a Kant. Filósofos como Locke e Descartes
usavam ao invés os conceitos de conhecimento inato e
adquirido. Ora, apesar de ser razoável defender que não
nascemos a saber que cinco é um número ímpar, por
exemplo, pelo que este não é um conhecimento inato,
sabemo-lo sem recorrer à experiência, raciocinando ape-

85
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

nas sobre os conceitos relevantes - ao passo que por


mais que raciocinemos sobre os conceitos relevantes,
nunca saberemos, raciocinando apenas, qual é a veloci­
dade da luz. Deste modo, quem defender a tese de que
há conhecimento a priori pode rejeitar a tese mais im­
plausível de que há conhecimento inato.
Porque Hume não distinguia o par analítico/sinté­
tico do par a priori/a posteriori, estava condenado a con­
siderar que tudo o que sabemos a priori é analítico. Mas
se considerarmos que as verdades analíticas não são
informativas ou ampliativas, torna-se óbvio que a mate­
mática, dado ser muitíssimo informativa, não pode ser
analítica nesse sentido, apesar de parecer a priori. Kant
defendeu então que há verdades sintéticas que no en­
tanto são conhecíveis a priori e considerou que a tarefa
preliminar a toda a metafísica consistia em explicar como
era isso possível: como podemos alargar o nosso conhe­
cimento por meio do raciocínio puro?
Explicar como é possível o sintético a priori é tam­
bém explicar como é possível a metafísica - pois esta é
tradicionalmente concebida como uma disciplina a priori
que, no entanto, alarga o nosso conhecimento; e é ex­
plicar também como podem as verdades científicas fun­
damentais, apesar de serem obviamente sintéticas, ser
necessárias (considerando, como Kant, que o necessário
e o a priori são irmãos gémeos) .

86
O DESPERTAR DO SONO DOGMÁTICO

A revolução copemiciana

No prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura,


publicada quatro anos depois dos Prolegómenos, em 1 787,
Kant propõe uma inversão de perspectiva para explicar
o que de outro modo parece inexplicável:

«Até hoje admitia,se que o nosso conhecimento se


devia regular pelos objectos; porém, todas as tenta,
tivas para descobrir a priori, mediante conceitos,
algo que ampliasse o nosso conhecimento, malogra,
vam,se com este pressuposto. Tentemos, pois, uma
vez, experimentar se não se resolverão melhor as ta,
refas da metafísica admitindo que os objectos deve,
riam regular,se pelo nosso conhecimento [ ... ] .
Trata,se aqui de uma semelhança com a primeira
ideia de Copérnico; não podendo prosseguir na ex,
plicação dos movimentos celestes enquanto admi,
tia que toda a multidão de estrelas se movia em
tomo do espectador, tentou se não daria melhor re,
sultado fazer antes girar o espectador e deixar os as,
tros imóveis. Ora, na metafísica, podemos tentar o
mesmo, no que diz respeito à intuição dos objectos.»
(p. B XVJ,XVII)

Considere ,se o caso da geometria. Esta é muitís,


simo informativa (ou seja, sintética, na terminologia de
Kant) apesar de ser a priori. Mas se a geometria disser

87
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

respeito à estrutura da realidade física, não parece


possível que possamos fazer geometria sem recolher in,
formação empírica sobre tal realidade. Contudo, é pre,
cisamente isso que fazemos, à primeira vista. Logo, a
geometria não diz respeito à estrutura da realidade fí,
sica: diz respeito, antes, às nossas estruturas cognitivas,
que projectam sobre a realidade como que uma matriz
espacial.
Sob esta hipótese, não é surpreendente que possa,
mos fazer geometria a priori, pois estamos a explorar as
nossas estruturas cognitivas, digamos. Mas, ao mesmo
tempo, este conhecimento é ampliativo, porque não nos
limitamos a explicitar conceitos espaciais.

Conhecimento condicional

O caso da geometria é o mais favorável à posição de


Kant, mas mesmo aqui se levanta uma dúvida crucial:
será mesmo verdade que sabemos a priori qual é a estru,
tura geométrica da realidade? Claro que fazemos geo,
metria a priori, mas há muitas geometrias; como sabemos
qual delas descreve a geometria da realidade a não ser
pela observação empírica?
No tempo de Kant só a geometria euclidiana era
levada a sério, ainda que algumas alternativas fossem
conhecidas; quem apresentou com rigor a geometria
não euclidiana foi o matemático russo Nikolai Loba,

88
O DESPERTAR DO SONO DOGMÁTICO

chevsky ( 1 792- 1856) , que nasceu quando Kant tinha


sessenta e oito anos. Mas mesmo no tempo de Kant se
poderia argumentar que tudo o que sabemos a priori
raciocinando em termos de geometria é que se deter­
minados postulados forem verdadeiros, então deter­
minados resultados serão verdadeiros; mas não pode ­
mos saber a priori se a realidade obedece a esses ou
outros postulados. O conhecimento que a geometria
nos dá da realidade talvez seja inteiramente condi­
cional.
Considere-se uma pessoa que não se lembra bem se
hoje é quinta ou sexta-feira. Apesar de ela não saber em
que dia está, tem o seguinte conhecimento condicional:
se hoje for quinta-feira, então é véspera de sexta; e se, ao
invés, for sexta-feira, então é véspera de sábado.
Algo análogo pode ocorrer no caso da geometria:
sabemos a priori que, se determinados postulados forem
verdadeiros, então certos resultados serão verdadeiros.
Mas daqui não se infere que sabemos que esses postula­
dos são verdadeiros, pelo que não se infere também que
sabemos que tais resultados são verdadeiros.
Para sustentar a teoria de Kant não basta que te­
nhamos este género de conhecimento condicional da
geometria; precisamos de saber a priori que os postulados
da geometria euclidiana são realmente verdadeiros, isto
é, que descrevem a estrutura do espaço. Mas a história
da ciência parece contrariar a tese de Kant: aparente­
mente, só descobrimos a posteriori que os postulados de

89
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

Euclides não se aplicam ao espaço porque este é curvo e


não plano. Claro que sabíamos a priori que se o espaço
fosse plano, então os postulados de Euclides seriam ver­
dadeiros. Mas isto é diferente de saber a priori que os pos­
tulados de Euclides são verdadeiros.
Assim, a posição de Kant parece implicar que a geo­
metria da realidade é conhecível a priori; mas há razões
para pensar que isto não é verdade; logo, há razões para
pensar que a posição de Kant é falsa.

Uma dificuldade central

A teoria de Kant enfrenta uma dificuldade mais central,


que é tanto mais difícil de nos darmos conta dela quanto
mais a sua teoria se parece com algo que todos aceita­
mos. Todos aceitamos que vemos a realidade de várias
perspectivas diferentes, e que essas perspectivas nos dão
imagens diferentes da realidade: «O caminho a subir e a
descer», escreveu Heraclito, «é um e o mesmo», depen­
dendo de onde estamos nós. (A afirmação de Heraclito
foi-nos transmitida por Hipólito, um teólogo romano do
século III, e é hoje conhecida como fragmento DK 108.)
Assim, quando Kant faz a sua revolução coperni­
ciana e afirma que visa explicar o nosso conhecimento
fazendo os objectos da cognição depender das nossas es­
truturas cognitivas, ao invés do contrário, a ideia parece­
-nos plausível. Parece que tudo o que Kant está a dizer

90
O DESPERTAR DO SONO DOGMÁTICO

é que as nossas estruturas cognitivas influenciam o modo


como vemos a realidade, o que parece bastante pacífico.
Só que Kant não está apenas a afirmar isso. Afirma
também que o próprio tempo e espaço são estruturas por
nós projectadas sobre a realidade. Isto significa que entre
a nossa representação da realidade e a realidade ne,
nhuma relação espácio,temporal pode existir.
Kant está por isso muitíssimo longe da nossa ideia
banal de que vemos de maneiras diferentes a mesma
coisa: é que esta ideia pressupõe a existência de uma re,
lação causal entre a realidade e a nossa representação
dela. A nossa ideia banal é que vemos o mesmo cami,
nho ora a subir ora a descer porque a nossa localização
espacial é diferente, relativamente ao mesmo caminho,
num e noutro caso; a relação causal entre o caminho e
a nossa percepção dele é por isso diferente, nos dois
casos.
Segundo a teoria de Kant, contudo, nenhuma
relação espácio,temporal poderá existir entre a nossa
representação da realidade e a realidade, dado que é o
próprio espaço e tempo que são projecções da nossa es,
trutura cognitiva. Kant fica assim com um dilema desa,
gradável: ou elimina a realidade independente da nossa
representação dela, o que ele de modo algum quer fazer,
opondo,se veementemente a esta hipótese; ou admite
que a sua teoria deixa por explicar o mais importante
que teria de explicar: a relação existente entre a reali,
dade e a nossa representação dela.

91
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

Afinal, este é o problema de fundo que está em


causa no debate entre os racionalistas e os empiristas.
Ao passo que os segundos defendem que nada de subs,
tancial podemos saber sobre a realidade excepto em re,
sultado do contacto causal com ela, os primeiros insistem
em que podemos ter conhecimento de aspectos cruciais
da realidade por meio do pensamento puro. O preço a
pagar pelo empirismo é a incapacidade para explicar
como poderemos saber algo de fundamental sobre a rea,
lidade, como é o caso das leis da física, ao invés de meras
contingências que se sucedem entre si sem qualquer real
conexão. O preço a pagar pelo racionalismo é a dificul,
dade de explicar o processo que nos permite ter conhe,
cimento de aspectos fundamentais da realidade por meio
do pensamento puro.
A teoria de Kant deixa este dilema filosófico na
mesma. Não explica, nem pode explicar, como conhe,
cemos nós seja o que for sobre a realidade em si; e não
explica, nem pode explicar, que relação existe entre a
nossa representação da realidade e a realidade em si.

Conclusão

Os filósofos empiristas são muitíssimo convincentes na


sua defesa da ideia de que só a posteriori podemos ter co,
nhecimento da realidade física. Por outro lado, sobre,
tudo face aos desenvolvimentos científicos actuais, os

92
O DESPERTAR DO SONO DOGMÁTICO

racionalistas parecem ter razão ao insistir que a mate­


mática, apesar de ser conhecível a priori, nos fornece co­
nhecimento sobre a realidade física. Com o sintético a
priori, Kant tentou conciliar os dois pontos de vista.
Ainda que a sua tentativa não tenha sido inteiramente
bem-sucedida, é um bom exemplo do género de trabalho
sofisticado que fazem os filósofos para tentar compreen­
der melhor aspectos fundamentais da realidade e da
nossa representação dela.

93
6

Uma rosa com outro nome

QUE COISA MAIS DESINTERESSANTE E ÓBVIA PODERÁ HAVER


do que a queda de objectos? No entanto, descobrir como
ocorre exactamente e porquê foi crucial para o desen­
volvimento da física contemporânea - que, por sua vez,
nos deu uma compreensão muitíssimo mais profunda da
realidade do que alguma vez tivemos. Analogamente,
saber como o nome próprio «Heraclito» refere Heraclito
e porque poderá parecer insípido, mas é crucial para uma
compreensão mais profunda da linguagem.
Considere-se como é estranho que o leitor consiga
referir Heraclito usando um mero som - que aparente­
mente não descreve coisa alguma. O leitor refere facil­
mente uma certa pessoa que morreu por volta de 480
a. C., muito antes do seu nascimento - mas como? Se
passasse amanhã por ele na rua não o reconheceria; não
o refere, pois, por conseguir identificá-lo se o vir.
Além disso, o nome «Heraclito» não parece referir
Heraclito à custa de quaisquer atributos que este tenha

95
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

e aquele indique. O nome não parece descrever coisa


alguma, contrastando com termos corno «verde» . Neste
último caso, a referência depende do facto de as coisas
verdes serem verdes. Mas Heraclito não é um heraclito.
Usamos apenas esse nome para o referir. Mas corno fa,
zernos tal coisa?
O filósofo e matemático alemão Gottlob Frege não
considerava certamente que a referência dos nomes pró,
prios era coisa de somenos importância. Os seus estudos
na área viriam a exercer urna influência tal na história da
filosofia do século XX que só a partir da década de se,
tenta algumas das suas ideias foram seriamente postas
em causa.
Modesto professor de matemática na Universidade
de lena, o seu trabalho nunca foi reconhecido pelos
seus colegas. Urna excepção foi Bertrand Russell, que o
reconheceu desde cedo. Mas quando este o convidou
para um congresso em Cambridge, que decorreria em
1 9 1 2, Frege rejeitou o convite, talvez por estar depri,
rnido com o facto de os seus colegas ignorarem o seu
trabalho.
Juntamente com Russell e outros, Frege foi um dos
fundadores de urna das lógicas modernas, a que chama,
mos dássica - apesar de, corno a física clássica, não ter
sido feita na Antiguidade. As suas investigações versa,
varn principalmente sobre a fundamentação da aritrné,
tica - corno Russell, defendia que o fundamento das
verdades da aritmética era a lógica. Contudo, as suas

96
UMA ROSA COM OUTRO NOME

investigações conduziram-no a reflexões importantes


para lá dessa área restrita, abrangendo aspectos cruciais
da filosofia da linguagem.

Convencionalismo e naturalismo

Na tragédia Romeu e Julieta ( 1599) , William Shakespeare


(c. 1564- 1 6 1 6) escreveu:

«Que tem um nome? O que chamamos rosa


Seria igualmente doce com qualquer outro nome;
Assim, caso Romeu não se chamasse Romeu,
Continuaria a ter a querida perfeição ... »

A ideia aqui presente é que os nomes das coisas são


meramente convencionais, não tendo qualquer relação
com a natureza das coisas designadas. Mas a pura con­
vencionalidade dos nomes (incluindo aqui nomes pró­
prios como «Romeu» e substantivos comuns como
«rosa») nem sempre foi pacífica em filosofia.
Na Antiguidade Grega discutia-se se os nomes eram
puramente convencionais ou se, pelo contrário, revela­
vam a natureza do que referem. No diálogo Crátilo, de
Platão, o protagonista homónimo defende esta última
posição, a que hoje chamamos naturalisnw. Hermógenes,
em contraste, defende a posição contrária, a que cha­
mamos hoje convencionalisnw.

97
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

A discussão não era particularmente profícua, por


duas razões. Primeiro, porque é evidente que os nomes
são convencionais se com isso queremos dizer que se
chama água à água mas poderia chamar-se outra coisa
- dado que noutras línguas se chama realmente outra
coisa, como water, em inglês, ou eau, em francês. O pro­
blema genuíno não pode ser este, mas antes a questão
de os nomes referirem descritivamente ou não. Mas que
problema é esse?
Um nome refere descritivamente quando refere por
meio de descrições de atributos da coisa referida,
referindo-a precisamente por ela ter esses atributos. Por
exemplo, «satélite natural da Terra» refere a Lua descri­
tivamente, porque a refere em virtude de ela ter os atri­
butos mencionados: é um satélite natural da Terra. Mas
o nome «Lua» não parece referir a Lua por meio de
quaisquer atributos, pelo menos explicitamente presen­
tes no nome. Assim, o problema é saber se os nomes re­
ferem descritivamente, ainda que de modo disfarçado,
ou se referem de qualquer outro modo.
Em segundo lugar, na Antiguidade não se distinguia
entre substantivos comuns, nomes próprios e adjectivos,
nem entre termos singulares e termos gerais. Considere­
-se o termo singular «Lua» e o termo geral «satélite na­
tural da Terra» . Ambos referem a mesma coisa, mas
fazem-no de modo aparentemente diferente. No se­
gundo caso, a referência resulta de a coisa referida ter os
atributos descritos: ser um satélite natural da Terra. Os

98
UMA ROSA COM OUTRO NOME

termos gerais referem o que referem deste modo descri,


tivo, abrangendo seja o que for que tenha os atributos
descritos.
Em contraste, termos singulares como os nomes pró,
prios não parecem referir descritivamente, nomeada,
mente porque em muitos casos não parecem descrever
quaisquer atributos: que atributos são descritos por «He,
raclito» ou «Lua» ? Sem dúvida que usamos o termo geral
«lua» - com minúscula - para falar de qualquer saté,
lite natural de qualquer planeta, mas, mesmo conside,
rando que esse conteúdo descritivo está presente no
termo singular «Lua», isso não seria suficiente para refe,
rir apenas o satélite natural da Terra: referiria qualquer
lua, incluindo as luas de Júpiter. Além disso, um dia po,
<leríamos descobrir que a Lua era afinal uma nave extra,
terrestre muito sofisticada, e não uma lua; mesmo nesse
caso, o termo singular «Lua» continuaria a referir essa
nave, o que não aconteceria com o termo geral «lua».
Assim, não é muito avisado discutir se os termos
referem descritivamente ou não sem distinguir primeiro
diferentes tipos de termos. Isto porque pode ocorrer que
alguns termos refiram descritivamente (os termos gerais)
e outros não (os termos singulares) .
Shakespeare fala indiferentemente do termo geral
«rosa» e do termo singular «Romeu», sem se dar conta
das diferenças. No que respeita ao termo geral «rosa» , o
aspecto convencional diz apenas respeito ao facto de
qualquer outra palavra - nomeadamente, de outra lín,

99
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

gua - poder referir o mesmo que «rosa». Mas o termo


em si só refere as rosas porque descreve o atributo rele,
vante que todas as rosas têm: são rosas. Contudo, no que
respeita ao termo singular «Romeu», o aspecto conven,
cional não diz apenas respeito ao facto de Romeu poder
ter outros nomes. Além disso, o seu nome não parece
referi,lo por meio de qualquer descrição de atributos.
Mas então, como o refere?

John Stuart Mill

No século XIX, John Stuart Mill defendeu que os nomes


próprios são meras etiquetas, não referindo por meio de
descrições:

«Üs nomes próprios [ ... ] denotam os indivíduos que


se chamam desse modo; mas não indicam ou impli,
cam quaisquer atributos que pertençam a tais indi,
víduos. Quando damos o nome 'Paulo' a uma
criança, ou a um cão o nome 'César', estes nomes
são apenas marcas que usamos para permitir que tais
indivíduos possam ser objecto do nosso discurso.»
(Sistema de Lógica, Livro I, Cap. ii, § 5)

Porém, há casos em que os nomes próprios parecem


descrever atributos. Usando o exemplo de Mill, «Dart,
mouth» parece descrever algo que fica na foz (nwuth, em

100
UMA ROSA COM OUTRO NOME

inglês) do rio Dart. Talvez fosse devido a casos deste gé­


nero que Crátilo argumentava que os nomes captavam
a natureza das coisas, não sendo puramente convencio­
nais. Mas Mill tem um argumento contra esta ideia:

«Pode-se dizer, efectivamente, que tivemos de ter


uma razão para lhes dar aqueles nomes em vez de
outros; e isto é verdadeiro; mas o nome, uma vez
atribuído, é independente da razão. [ . . ] Uma cidade
.

pode se chamar 'Dartmouth' por estar situada na foz


do Dart. Mas não faz parte do significado do nome
'Dartmouth' [ .. ] que esteja situada na foz do Dart.
.

Caso a foz do rio fique assoreada, ou um terramoto


mude o seu percurso, afastando-o da cidade, o nome
da cidade não mudaria necessariamente.» (Sistema
de Lógica, Livro I, Cap. ii, § 5)

Mill defende que podemos dissociar as duas coisas: a


razão que nos fez dar um certo nome a algo, e o que faz
esse nome referir o que refere. O que faz o nome referir o
que refere é independente das razões que eventualmente
presidiram à escolha desse nome. Essas razões podem,
efectivamente, estar associadas ao que é descrito pelas pa­
lavras que constituem o nome. Acontece apenas que não
é essa descrição a responsável por esse nome referir o que
refere. Afinal, o nome «Organização das Nações Unidas»,
por exemplo, refere perfeitamente bem uma instituição na
qual as nações não estão de modo algum unidas.

101
SETE IDEIAS ALOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

Um planeta com dois nomes

O planeta Vénus é o primeiro corpo celeste brilhante,


visível a olho nu, a aparecer pela tarde, ao pôr-do-sol, e
o último a desaparecer de manhã, pouco antes de o Sol
nascer. Hoje sabemos que é o mesmo corpo celeste, mas
no passado as pessoas não o sabiam. Então, deram o
nome «Véspero» ao corpo celeste que aparece à tarde, e
«Fósforo» ao que aparece de manhã - dando, sem saber,
dois nomes à mesma coisa.
Se Mill tivesse razão e os nomes próprios fossem
meras etiquetas, reflectiu Frege, afirmar que Véspero é
Véspero e afirmar que Véspero é Fósforo deveria ser
igualmente informativo. Mas não é igualmente informa­
tivo: a segunda afirmação é uma importante descoberta
astronómica, mas a primeira não. Logo, Mill não tem
razão.
O problema, a que por vezes se chama «quebra-cabe­
ças de Frege», é explicar como pode uma das afirmações
ser informativa e a outra não. Para o fazer, Frege deitou
mão dos sentidos (Sinn, em alemão) . A ideia é que os
nomes próprios afinal não são meras etiquetas: diferentes
nomes têm diferentes significados, chamados sentidos, que
são responsáveis pela sua referência - mesmo que refi­
ram a mesma coisa. Daí que seja informativo afirmar que
Véspero é Fósforo, mas não que Véspero é Véspero: ape­
sar de estarmos nos dois casos a falar da mesma coisa,
Vénus, estamos a falar dela de modos diferentes.

102
UMA ROSA COM OUTRO NOME

Para desempenhar adequadamente o seu papel,


contudo, os sentidos associados aos nomes não podem
ser meras idiossincrasias pessoais - caso fossem, o lei­
tor não entenderia o que estou a dizer ao falar de Vénus,
pois eu poderia associar a este nome um sentido pes­
soal diferente do seu. E corno, nesta teoria, o sentido
determina a referência, o leitor não saberia o que estou
referindo se desconhecesse o meu sentido pessoal de
«Vénus» .
Assim, Frege volta a introduzir a ideia de que os ter­
mos singulares são corno os termos gerais: referem por
meio de descrições de atributos. Os sentidos dos termos
singulares dão-lhes os mesmos mecanismos de referência
dos termos gerais. O sentido de «Véspero», por exemplo,
seria algo corno «primeiro corpo celeste brilhante a
surgir à tarde, ao pôr-do-sol» . O sentido de «Lua» seria,
talvez, «satélite natural da Terra» . E assim podemos ex­
plicar corno consegue o leitor referir Heraclito: porque o
sentido do nome deste filósofo descreve atributos que só
ele tinha.

Sentidos vagos

Imagine-se que alguém lhe diz casualmente que a Mimi


já é mãe. Corno o leitor não sabe de quem se trata, per­
gunta «Quem é a Mimi?» É óbvio que o leitor está a
fazer urna pergunta acerca da Mimi - apesar de não

103
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

fazer a mais pálida ideia de quem se está a falar. Aliás,


não sabe sequer se é um nome de pessoa, cadela ou gata,
entre outras possibilidades. É difícil sustentar que
quando o leitor usa o nome «Mimi» a referência ocorre
por meio de qualquer sentido. Que sentido é esse, pú­
blico ou não?
Vejamos outro caso. Qual é o sentido - público -
que as pessoas comuns associam a Heraclito? Um filó­
sofo da Antiguidade Grega, talvez. Mas isto não é sufi­
ciente para referir inequivocamente Heraclito. Aliás,
mesmo pessoas com formação em filosofia têm dificul­
dade em dizer quais são os atributos de Heraclito que o
distinguem de outros filósofos.
O que está em causa é que, na teoria de Frege, os
nomes referem por meio dos seus sentidos. Mas estes
sentidos, para poderem desempenhar esse papel, não
podem ser ideias vagas. Quando o leitor ouve falar da
Mimi tem a ideia vaga de que será uma pessoa; mas isso
não basta para referir a Mimi, segundo Frege. Quando
falamos de Heraclito temos ideias vagas sobre quem era
esse filósofo; mas isso não basta para referir Heraclito,
segundo Frege. A teoria de Frege exige que cada nome
tenha sentidos muitíssimo precisos. Mas parece falso que
os nomes tenham sentidos com tal precisão. Por isso, a
teoria de Frege parece falsa.

104
UMA ROSA COM OUTRO NOME

Significado e referência

É importante distinguir uma teoria do significado dos


nomes próprios de uma teoria da sua referência - o que
é tanto mais delicado porque não se via a diferença entre
as duas coisas, até muito recentemente.
Uma teoria da referência visa explicar como se dá a
referência dos nomes próprios; procura explicar como se
estabelece a ligação entre o nome próprio e a coisa que
o nome refere.
Uma teoria do significado, em contraste, visa escla­
recer o significado dos nomes próprios. Assim, podemos
defender, por exemplo, que o significado de «fósforo» é
«O último corpo celeste visível ao amanhecer». Para que
isto seja um resultado correcto de uma teoria do signifi­
cado, a frase «Fósforo é o último corpo celeste visível ao
amanhecer» terá de ser uma verdade analítica, como
«Nenhum solteiro é casado».
Historicamente, não se distinguia muito bem as
duas coisas porque Frege, como Russell, tinha uma só
teoria para o significado e para a referência dos nomes
próprios. Frege defendia que os nomes referem por meio
dos seus sentidos constituindo estes o significado dos
nomes. Temos assim uma teoria elegante que explica as
duas coisas. Perguntamos o que significa «Lua» e a res­
posta é «satélite natural da Terra» , por exemplo; per­
guntamos como o nome refere, e a resposta é que refere
por meio do seu sentido, que por sua vez descreve os

105
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

atributos que só a Lua tem, e por isso se aplica apenas


à Lua.
Em contraste, se rejeitarmos que os nomes tenham
sentidos, porque superficialmente parecem meras eti­
quetas, precisamos de explicar adequadamente como
podemos referir Heraclito, mais de dois mil anos depois
da sua morte. Daí que, apesar das dificuldades óbvias da
teoria de Frege, esta permanecesse indisputada até muito
recentemente. Poderemos nós explicar a referência dos
nomes próprios, contudo, sem recorrer a algo como os
sentidos de Frege?

Intencionalidade coordenada

Imagine que um dia de manhã o leitor vai à cozinha


e encontra escrito no chão a palavra «Mimi» . Fica
surpreendido e tenta descobrir quem escreveu tal
coisa. Acaba por descobrir que o frigorífico tem uma
avaria e o fluido escuro que dele sai formou por puro
acaso essa palavra no chão. Pergunta obtusa: quem é
a Mimi?
A pergunta é obtusa porque é óbvio que a palavra
não refere coisa alguma. Rigorosamente falando, não é
sequer uma palavra. É apenas um conjunto de traços no
chão, que o leitor interpretou como uma palavra. Mas
não refere coisa alguma, porque o frigorífico não tinha
qualquer intenção comunicativa.

106
UMA ROSA COM OUTRO NOME

O que isto significa é que não há fenómenos lin­


guísticos - não há nomes, palavras, frases, perguntas,
afirmações - sem intenção. Afinal, a parte física da
linguagem - sons, inscrições - são em si objectos tão
alinguísticos quanto as árvores e as pedras. O que con­
fere significado a certos objectos físicos são as nossas
intenções.
Contudo, há razões para pensar que a intencionali­
dade não basta. Na obra póstuma Investigações Filosóficas
( 1 953) , Ludwig Wittgenstein parece argumentar contra
urna concepção da linguagem que a veja corno um fe­
nómeno privado. A sua ideia, aparentemente, é que seria
impossível constituir as regras de funcionamento de urna
linguagem privada porque não haveria garantia de es­
tarmos a segui-las adequadamente, sem nos enganarmos.
Por exemplo, urna pessoa sozinha decide chamar
«vercinal» a um certo tipo de dor de cabeça que tem por
vezes. Mas, porque nunca o diz seja a quem for e porque
ninguém pode ver se ela se engana ou não, ela mesma
não sabe se ao usar de novo o mesmo termo está a aplicá­
-lo ao mesmo género de dor de cabeça ou não. Isto sig­
nifica que não conseguiu constituir urna linguagem, pois
para haver linguagem tem de haver regularidade: se
«Vercinal» refere um certo género de dor de cabeça, não
pode referir seja o que for, arbitrariamente, noutras cir­
cunstâncias.
Se aceitarmos a primeira ideia, segundo a qual é ne­
cessário haver intencionalidade para haver linguagem,

107
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

e também a segunda ideia, segundo a qual não há lin,


guagens logicamente privadas, concluiremos talvez que
uma linguagem é um sistema de intenções coordenadas.
Não basta que uma pessoa, privadamente, tenha a in,
tenção de usar um certo som, ou uma certa inscrição,
para falar da Mimi; é preciso que outras pessoas tenham,
coordenadamente, a intenção de usar um som ou ins,
crição do mesmo tipo para falar também da Mimi. Só
temos uma linguagem quando várias pessoas com inten,
ções comunicativas coordenam entre si os usos de certos
sons ou inscrições.

Cadeias causais

Se este entendimento da linguagem estiver correcto, o


problema de como um dado nome refere é o problema de
como originalmente um certo som ou inscrição foi coor,
denadamente usado com a intenção de referir e como
esse uso coordenado com essa intenção chegou até nós.
No caso do nome «Heraclito» , posso usá,lo para
falar de uma pessoa há muito desaparecida, e que eu não
reconheceria mesmo que a visse, porque aprendi este
nome, com este uso, de outras pessoas e livros. E se for,
mos ver onde essas pessoas e livros aprenderam este
nome com esse uso, vemos que é de outras pessoas e li,
vros: uma sucessão que vai dar ao próprio Heraclito, na
altura em que na Grécia Antiga alguém, presumivel,

1 08
UMA ROSA COM OUTRO NOME

mente os pais, lhe começou a chamar o equivalente


grego de «Heraclito».
Quem sugeriu esta explicação da referência dos
nomes próprios foi o filósofo Saul Kripke, na mencionada
série de palestras de Princeton intituladas «Nomear e Ne,
cessidade», que só em 1980 foram publicadas em livro.
Quando explicamos a referência deste modo, volta,
mos a não precisar de sentidos para explicar como po,
derá o leitor referir Heraclito, sem estar na sua presença.
E podemos aceitar que alguns nomes próprios são intro,
<luzidos ou estipulados descritivamente: por exemplo,
podemos decidir chamar «Octávio» ao primeiro ser hu,
mano que descobrir extraterrestres inteligentes. Mas não
só muitos nomes não são introduzidos desta maneira
como, mesmo que o sejam, como neste exemplo, as pes,
soas que posteriormente usarem o nome «Octávio»
podem desconhecer a descrição usada para estipular a
referência do nome e, apesar disso, referir correctamente
o Octávio.
Contudo, como resolver o quebra,cabeças de Frege?
Por que razão é informativo dizer que Véspero é Fósforo
mas não é informativo dizer que Véspero é Véspero?

Heróis vespertinos e madrugadores

Eis um princípio, muitíssimo abreviado, de uma tenta,


tiva de resposta.

109
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

Se aceitarmos que um dos aspectos necessários da lin­


guagem é a intencionalidade coordenada, compreende­
mos como é possível alguém referir a Mimi sem conhecer
qualquer descrição da Mimi que seja suficiente para a
identificar. Isso é possível porque a pessoa precisa apenas
de ter a intenção de referir seja o que for que a outra pes­
soa, de quem ouviu originalmente o termo, estava a refe­
rir. O nome não precisa de incluir qualquer descrição para
referir. Aliás, rigorosamente falando, não são os. nomes
que referem: são as pessoas, usando nomes com certas in­
tenções, quando essas intenções estão adequadamente
coordenadas com as intenções de outras pessoas.
Nos casos em que é informativo descobrir que Vés­
pero é Fósforo, a pessoa associa certamente informações
diferentes a um e a outro nome. Mas daí não se conclui
correctamente que é em virtude dessas informações que
ela consegue usar os nomes para referir correctamente.
Aliás, a pessoa pode até associar informações falsas aos
dois nomes, e mesmo assim a afirmação de que Véspero
é Fósforo será informativa, num certo sentido, ao passo
que a afirmação de que Véspero é Véspero não o será.
Vejamos um exemplo.
Imagine o leitor que nunca tinha ouvido falar de
Véspero nem de Fósforo, e que ouve uns amigos a usar
estes nomes numa conversa. Por qualquer razão, fica
convicto de que se trata de dois heróis de banda dese­
nhada, costumando o primeiro aparecer à tarde, para
salvar a cidade, e o segundo pela manhã. Quando ouve

110
UMA ROSA COM OUTRO NOME

dizer que Véspero é Fósforo isto será para si informativo,


porque associa informações diferentes aos dois nomes.
Contudo, nenhuma dessas informações permite referir
correctamente Vénus. Logo, o que torna informativa a
afirmação de que Véspero é Fósforo não é o que lhe per,
mite usar os dois nomes para referir Vénus.
Poder,se,ia defender que, na circunstância descrita,
o leitor não refere Vénus com qualquer dos nomes, mas
antes heróis de banda desenhada. Mas isto é muitíssimo
implausível, pois se o leitor disser aos seus amigos, nessa
circunstância, que Véspero não passa de uma ficção, es,
tará a dizer uma falsidade sobre Vénus, e não uma ver,
dade sobre um herói de banda desenhada. Mesmo que,
no momento em que o disser, um autor tenha acabado
de inventar, na sala do lado, dois heróis de banda dese,
nhada chamados «Véspero» e «Fósforo», o leitor não terá
uma crença verdadeira sobre estes heróis da sala do lado,
ao crer que são ficções, mas antes uma crença falsa sobre
Vénus, que, quando está mais próximo da Terra, fica a
quarenta milhões de quilómetros.

Conclusão

O estudo do que parece uma minúcia sensaborona po,


derá ser encarado como um academismo doentio, visto
que a linguagem é muito mais complexa e interessante
do que isto.

111
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

Sem dúvida que muitas vezes os investigadores -


sejam filósofos, cientistas ou historiadores - se perdem
em minúcias irrelevantes. Contudo, nem todas as minú­
cias são irrelevantes: a queda dos corpos é muitíssimo
menos excitante do que o Big Bang, mas o estudo profi­
ciente do segundo depende crucialmente dos resultados
alcançados no estudo do primeiro. O mesmo acontece
no caso da linguagem: queremos compreender os seus
aspectos mais profundos, mas dificilmente o conseguire­
mos se formos incapazes de explicar uma coisa tão ele­
mentar como a referência dos nomes próprios.
A história da investigação mostra que o estudo
cuidadoso de minúcias pode ser bastante mais enrique­
cedor, pela compreensão aprofundada que proporciona,
do que discursos sedutores sobre generalidades vácuas.
É entre o excesso das minúcias irrelevantes e o defeito
das generalidades vácuas que está o meio-termo da
investigação virtuosa das coisas.

112
7

Maior do que o qual


nada pode ser pensado

MUITOS VIAJANTES SE CRUZARAM CERTAMENTE COM ELE,


sem fazer ideia da importância que viria a ter na filoso­
fia europeia. Nascido em 1033, abandonou a casa do pai,
com quem nunca se deu bem, depois da morte da mãe.
E foi assim que em 1 056, com apenas 23 anos, Anselmo
- mais tarde Bispo da Cantuária, canonizado em 1 163
- se entregou a uma viagem de mais de setecentos qui-
lómetros, de Aosta, na sua Itália natal, em direcção à
actual França.
O seu objectivo era algo indefinido, o que não é
invulgar quando se tem a sua idade: oscilava entre a
atracção que sentia pela vida monástica e por uma car­
reira intelectual. Mas as duas opções não eram incom­
patíveis: no seu tempo, uma parte importante da vida
intelectual ocorria sob a protecção dos muros dos mos­
teiros, com as suas ricas bibliotecas. E era no mosteiro
beneditino de Bec, na Normandia, que estava o italiano
Lanfranc ( 1 005 , 1 089) , famoso pela sua sapiência e

113
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

ensino, de quem Anselmo pretendia receber instrução.


Pôs, por isso, pés a caminho em direcção a Bec e a Lan,
franc.

Idade das trevas?

O mundo em que Anselmo vivia era tumultuoso. Sob a


aparente complacência dos ritmos feudais escondia,se
um conturbado reajuste político entre reis, imperadores
e poderes eclesiásticos. Dois anos antes de Anselmo se
fazer ao caminho, o papa católico Leão IX e o patriarca
de Constantinopla, Miguel Cerulário, tinham,se exco,
mungado entre si, marcando assim o grande cisma cris,
tão, que dura até hoje, entre a igreja católica e a orto,
doxa.
Além disso, há muito que tinham desaparecido os
centros de investigação da Antiguidade grega e romana.
As escolas de filosofia gregas tinham sido extintas há
cerca de quinhentos anos; a Biblioteca de Alexandria,
que era igualmente um centro de estudos, e não apenas
um repositório de livros, fora destruída há trezentos anos.
Das cinzas da civilização clássica europeia, come,
çavam a despontar os grandes centros de estudo da Eu,
ropa medieval. A primeira universidade propriamente
dita, com diferentes áreas de estudo, foi fundada na ltá,
lia, em Bolonha, em 1088, quando Anselmo tinha 55
anos. Seguiu,se,lhe a Universidade de Paris, fundada

1 14
MAIOR DO QUE O QUAL NADA PODE SER PENSADO

primeiramente em 1 150, e a Universidade de Oxford,


pouco depois.
Porque se aceita acriticamente a rejeição da cultura
medieval promovida pelos modernos, a investigação fi,
losófica e científica ocorrida desde o tempo de Anselmo
até ao despontar do mundo moderno, por volta do sé,
culo XVII, é muitas vezes negligenciada. Em 1328, por
exemplo, o Doctor Profundus, Thomas Bradwardine
( 1 290, 1349) , apresentou o primeiro tratamento mate,
mático do movimento, no Tratado das Proporções ou sobre
as Proporções das Velocidades no Movimento; e João Buri,

dano ( 1300, 1358) desenvolveu a teoria do ímpeto, cru,


cial para o desenvolvimento da física. O primeiro mo,
delo heliocêntrico do universo, por outro lado, não é um
produto da cultura moderna: foi proposto por Nicolau
Oresme ( 1 3 20, 1 382) . E as cartas de navegação, que
teriam sido muitíssimo úteis aos gregos e romanos da
Antiguidade, surgiram igualmente em plena Idade
Média, em 1 270.

Anselmo em busca da compreensão

Anselmo teve um papel crucial no desenvolvimento da


filosofia medieval, sendo considerado o primeiro esco,
lástico - termo que ainda hoje, nas zonas mais débeis da
cultura, é entendido pejorativamente, por influência dos
modernos. Insistindo na importância da expressão clara

115
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

e do rigor, Anselmo afastou-se definitivamente do mis­


ticismo neoplatónico, na altura dominante, com origem
em Plotino (205-270) .
Chegado a Bec, em 1059, Anselmo fez os seus votos
monásticos e foi como monge que escreveu as obras que
viriam a torná-lo influente e famoso durante séculos:
Monologion (monólogo) e Proslogion (termo inventado
por Anselmo, que significa «discurso apresentado a
outrem») .
O estilo das duas obras é bastante diferente, apesar
de em ambos os casos se tratar de descobrir as razões a
favor da crença em Deus. Porém, enquanto a primeira é
uma argumentação directa, sem adornos, a segunda é
como que uma oração, uma súplica a Deus para que este
permita ao crente compreender a sua fé. Os títulos al­
ternativos das duas obras são reveladores: à primeira deu
Anselmo o título «Cânone para meditar sobre as razões
da fé» ; e à segunda «A fé em busca da compreensão»,
uma expressão que colheu de Agostinho.

O argumento ontológico

Os medievais conheciam o argumento a favor da exis­


tência de Deus que Anselmo apresentou na segunda das
obras mencionadas simplesmente como argumentum An­
selmi: o argumento de Anselmo. Mas Kant chamou-lhe
argumento onto"lógico, designação que se tornou comum.

1 16
MAIOR DO QUE O QUAL NADA PODE SER PENSADO

O termo «ontologia» deriva dos termos gregos to on


e ontos que significam aproximadamente «O que algo é»
ou «O ser de algo». O adjectivo «ontológico» é usado em
filosofia para falar da natureza última das coisas, e o subs,
tantivo designa uma subdisciplina filosófica que trata de
estabelecer as categorias mais gerais da realidade.
O argumento ontológico tem esta designação por,
que parte de uma reflexão sobre a natureza última desse
ser hipotético a que chamamos Deus, e conclui, nessa
base apenas, e sem apelar para quaisquer outros factos
sobre a realidade, que esse ser existe. Este argumento
contrasta assim com dois outros grupos de argumentos
tradicionais a favor da existência de Deus, denominados
«argumentos do desígnio» e «argumentos cosmológicos».
O termo «Cosmologia» poderá ser surpreendente
neste contexto, se pensarmos apenas na cosmologia
científica do século XX. Mas a cosmologia, enquanto teo,
ria sobre a estrutura geral do cosmos, existia muito antes
da recente cosmologia científica. Os argumentos cos,
mológicos a favor da existência de Deus pretendem con,
cluir que Deus existe com base em certos aspectos da es,
trutura geral do cosmos.
Tanto os argumentos do desígnio como os cosmoló,
gicos partem de alguns factos sobre a realidade espácio,
,temporal e concluem que sem a hipótese de Deus não
se consegue explicá,los adequadamente. Precisamente
porque estes argumentos incluem informações empí,
ricas, são denominados argumentos a posteriori. Isto

117
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

contrasta com os argumentos ontológicos, cujas premis,


sas podem ser conhecidas exclusivamente com base no
pensamento, recebendo por isso a designação de argu,
mentas a priori.

Redução ao absurdo

Há diferentes versões de argumentos ontológicos a favor


da existência de Deus. A versão de Anselmo é um tipo
de raciocínio já conhecido na Antiguidade grega a que
se chama redução ao absurdo, ou reductio ad absurdum,
em latim. Raciocinar ou argumentar por redução ao
absurdo é partir do oposto do que queremos estabelecer
e mostrar que dessa hipótese se conclui correctamente
uma contradição: um absurdo. O que fizemos foi mos,
trar que aceitar tal hipótese obrigaria a aceitar uma con,
tradição. Se agora quisermos rejeitar a contradição,
teremos de rejeitar a hipótese de partida.
O cogito de Descartes, que visitámos brevemente no
Capítulo 1, pode ser apresentado como uma redução ao
absurdo. Aceite,se a hipótese de que todas as minhas
crenças são falsas: há um génio maligno que me engana
constantemente. Daqui conclui, se correctamente que é
falsa a minha crença de que existo. Mas para o génio
maligno me poder enganar, para que eu tenha crenças
falsas, é preciso que eu exista. Logo, é verdadeira a
minha crença de que existo. Eis a contradição: fomos

1 18
MAIOR DO QUE O QUAL NADA PODE SER PENSADO

levados a concluir que uma mesma crença («eu existo»)


é verdadeira e falsa. Se agora quisermos rejeitar esta con­
tradição, teremos de rejeitar a hipótese de partida: a hi­
pótese de que todas as minhas crenças são falsas, sendo
produzidas por um génio maligno que me engana cons­
tantemente.
Eis outro exemplo deste género de raciocínio. Ima­
gine o leitor que o seu amigo crê que não há verdades:
tudo é ilusão. Perplexo com tal posição, o leitor começa
por aceitá-la, procurando mostrar que dela se conclui
correctamente uma contradição, para então a negar. E isso
não é difícil fazer, pois se não há verdades, é verdade que
não há verdades. Eis a contradição: por um lado não há
verdades, mas por outro é verdade que não há verdades.
Para rejeitar esta contradição, o leitor nega a hipótese
de partida, a crença do seu amigo de que não há verda­
des, e conclui que há verdades.

Refutar o insensato

Anselmo procura mostrar que o insensato bíblico, que


diz no seu coração que Deus não existe (Salmos 14 e 53) ,
também se contradiz, como o amigo do leitor. A natureza
de Deus é tal que a hipótese da sua inexistência é contra­
ditória. E que natureza é essa? Deus, considera Anselmo,
é um ser de tal modo grandioso que não conseguimos
conceber outro que seja ainda mais grandioso.

119
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

Anselmo formula esta ideia usando uma expressão


que ficou famosa: Deus é o ser maior do que o qual nada
pode ser pensado. Contudo, Anselmo não tem em mente
a grandeza física, mas antes a grandiosidade, excelência
ou esplendor. A ideia é que Deus é o mais excelente dos
seres, ou o mais grandioso; tão grandioso, que a hipótese
da sua inexistência implica uma contradição:

«Assim, mesmo o insensato tem de admitir que algo


maior do que o qual nada pode ser pensado existe
pelo menos no seu entendimento, dado que ele o
entende quando o ouve, e o que é entendido existe
no entendimento. E certamente que aquilo maior
do que o qual nada pode ser pensado não pode exis,
tir apenas no entendimento. Pois se existisse apenas
no entendimento, poder,se,ia pensar que existia na
realidade também, o que seria ainda maior. Logo, se
aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado
existe apenas no entendimento, então a própria
coisa maior do que a qual nada pode ser pensado é
algo maior do que o qual algo pode ser pensado. Mas
isto é claramente impossível. Logo, não há dúvida
de que o maior do que o qual nada pode ser pen,
sado tanto existe no entendimento como na reali,
dade.» (Proslogion, Cap. 2, p. 82)

O texto de Anselmo é maravilhosamente claro, pre,


ciso e directo, mas sofisticado. Acompanhemos o seu

120
MAIOR DO QUE O QUAL NADA PODE SER PENSADO

pensamento, passo a passo, com a mesma solicitude com


que Anselmo percorreu mais de setecentos quilómetros
em busca da compreensão.
O insensato admite que as pessoas pensam em Deus,
ainda que este não exista realmente. Isto significa que
Deus existe no pensamento ou entendimento, ainda que
não exista na realidade. O mesmo se pode dizer de qual,
quer ficção: é algo que existe no pensamento ou enten,
dimento do seu criador - um romancista, por exemplo
- mas não existe na realidade. E é isto que o insensato
pensa que é Deus: uma mera ficção.
Contudo, Deus é por definição aquele ser, seja ele
qual for, exista ou não, que é tão grandioso que é impos,
sível conceber outro que seja ainda mais grandioso. E o
insensato aceita também esta ideia - apenas continua
a insistir que esse ser é uma fantasia, não existindo na
realidade.
Ora, é aqui que Anselmo desfere o seu golpe mortal.
Se Deus existisse apenas no entendimento, poderia
haver outro ser, exactamente como ele, mas que existisse
também na realidade. Este ser seria certamente mais
grandioso do que Deus, pois teria existência real, o que
é certamente uma excelência.
Se virmos bem, chegámos a uma contradição. Isto
porque admitimos que Deus é por definição o ser mais
grandioso do que o qual nenhum pode ser pensado, e de,
pois pensámos num ser mais grandioso do que Deus.
Para negar esta contradição, rejeitamos a hipótese de

121
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

partida: a ideia do insensato de que Deus, o ser mais


grandioso do que o qual nada pode ser pensado, não
existe. Logo, Deus existe.

Duas objecções clássicas

Gaunilo, um monge beneditino da abadia de Marmou,


tier, contemporâneo de Anselmo, apresentou uma objec,
ção famosa ao argumento ontológico, a que Anselmo
responde e que fez questão de ver publicada juntamente
com a sua obra. Gaunilo argumenta que com o mesmo
tipo de raciocínio alguém poderia defender que existe a
ilha mais perfeita, dado que esta pode ser pensada, e não
seria a mais perfeita se existisse apenas no pensamento.
Mas esta ilha não existe; logo, conclui Gaunilo, perante
este argumento «não saberia quem devo pensar que é
mais insensato: eu próprio, se lhe conceder tal conclu,
são, ou ele, se pensar que estabeleceu a existência de tal
ilha» . (Em Nome do Insensato, § 6, p. 102)
Anselmo, todavia, tem uma resposta para esta
objecção: é que nem tudo é tal que seja o mais grandioso
do que o qual nada possa ser pensado. Um exemplo
torna isto claro: não há um número maior do que o qual
nenhum possa ser pensado, pois para cada número po,
demos sempre pensar num número maior. Do mesmo
modo, não há uma ilha mais perfeita do que a qual ne,
nhuma se possa pensar, pois podemos sempre pensar

122
MAIOR DO QUE O QUAL NADA PODE SER PENSADO

numa mais perfeita do que a anterior. O conceito de


Deus, contudo, é precisamente o de o ser mais grandioso
do que o qual nada pode ser pensado. Logo, a objecção
de Gaunilo não é tão obviamente bern,sucedida corno
pode parecer à primeira vista.
Se insistirmos em que nada nos garante que Deus seja
o ser mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado,
Anselmo tem também urna boa resposta: o que está em
causa é mostrar que existe o ser mais grandioso do que o
qual nada pode ser pensado, seja ele ou não a divindade
cristã. Depois de provada a sua existência, poderemos
então tentar descobrir se os atributos do ser mais gran,
dioso do que o qual nada pode ser pensado correspondem
ou não aos atributos tradicionais da divindade cristã.
Outro género de objecção inspira,se em Kant que,
na Crítica da Razão Pura, obra publicada pela primeira
vez em 1 78 1 , procura refutar a versão de Descartes e de
Leibniz do argumento ontológico. A objecção baseia,se
na ideia de que a existência não é um predicado genuíno,
corno «é grandioso» ou «é ateniense». Nestes dois casos,
trata,se de exprimir urna propriedade que um existente
pode ou não ter. Mas a existência não é urna propriedade
que um existente pode ou não ter, dado que todo o exis,
tente existe; a existência é, ao invés, a condição de pos,
sibilidade de toda a predicação. Logo, o predicado da
existência não pode conferir grandiosidade, dado não ser
sequer um predicado genuíno, no mesmo sentido em que
«é ateniense» é um predicado.

123
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

Contudo, mesmo que a existência não seja um


predicado genuíno (o que está longe de ser pacífico) ,
desta tese não poderá resultar que a afirmação banal
«Ü Pai Natal não existe, mas poderia ter existido» seja
destituída de significado. Esta afirmação tem obvia­
mente significado e diz algo muito simples: que, tal
como as coisas são, o Pai Natal não existe, mas pode­
ria ter existido se as coisas fossem diferentes. Podemos
ter razões para pensar que o Pai Natal não poderia ter
existido; mas mesmo para pensar tal coisa temos de
aceitar que a afirmação não é destituída de significado.
Ora, nesse caso, também a afirmação de que Deus não
poderia não existir não é destituída de significado. E isso,
como veremos, é tudo o que precisamos para apresen­
tar uma versão plausível do argumento ontológico de
Anselmo.

A possibilidade de um ser necessário

Independentemente de as objecções clássicas ao argu­


mento de Anselmo serem bem-sucedidas ou não, pode­
mos hoje reconstruir o seu argumento de um modo que
o tome imune a elas. Nesta versão, abandonamos dois
aspectos da argumentação de Anselmo. Primeiro, não
usaremos um argumento por redução ao absurdo. Se­
gundo, substituiremos o conceito de pensável pelo con­
ceito de possível.

124
MAIOR DO QUE O QUAL NADA PODE SER PENSADO

Um existente necessário é algo que existe e não po­


deria não ter existido. Isto contrasta com os existentes
contingentes, como os seres humanos ou os rios: estes
existem mas poderiam não ter existido. Ora, Deus é tra­
dicionalmente considerado um existente necessário, e o
ateu parece poder concordar com a ideia de que se Deus
existisse, seria um existente necessário; acontece apenas
que não existe, pensa o ateu. De modo que o ateu parece
poder conceder a seguinte premissa: é possível que Deus
exista necessariamente. Isto corresponde aproximada­
mente à ideia de Anselmo de que mesmo o insensato
concede que é capaz de pensar no ser mais grandioso do
que o qual nada pode ser pensado (isto é, tal ser é possí­
vel) , ainda que não exista.
Se o ateu conceder tal coisa, contudo, está em maus
lençóis: pois há razões para pensar que é correcto con­
cluir imediatamente, sem usar quaisquer outras premissas,
que Deus existe. Esta versão do argumento de Anselmo
é incrivelmente simples:

É possível que Deus exista necessariamente.


Logo, Deus existe.

Como responder a este argumento? Será correcto?


Se o for, e se aceitarmos a premissa, o que à primeira
vista parece razoável, temos uma demonstração tão certa
de que Deus existe quanto um cálculo geométrico.

125
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

Mundos possíveis

Compreende,se e discute,se melhor esta versão do argu,


rnento de Anselmo se usarmos o conceito de mundos pos,
síveis, que foi inicialmente explorado por Leibniz. Este
conceito tornou,se muitíssimo importante na filosofia
contemporânea, tendo recebido tratamentos bastante
sofisticados em lógica. Mas a ideia crucial pode ser en,
tendida sem dominar a lógica.
Há várias concepções de mundo possível. Para com,
preender urna das mais promissoras, considere, se pfi,
meiro o modo corno as coisas são: Sócrates nasceu em
Atenas e ontem choveu numa cidade da Síria. Estes
acontecimentos são modos de ser das coisas: as coisas
são desse modo.
Quando as coisas não são de um dado modo, mas
poderiam sê,lo, estamos a falar do que poderia ter ocor,
rido mas não ocorreu. Por exemplo, Sócrates poderia ter
nascido no Egipto, mas não nasceu; ontem poderia não
ter chovido numa cidade da Síria, mas choveu. Esses são
modos de ser das coisas porque as coisas poderiam ser
desse modo, mas não são.
É aos modos de ser das coisas que chamamos «mundos
possíveis», o que inclui o modo corno as coisas são e os mui,
tos modos como as coisas poderiam ter sido mas não são.
Ao modo corno as coisas são chamamos «mundo
efectivo» ; aos modos corno as coisas poderiam ter sido,
mas não são, chamamos «mundos meramente possíveis».

126
MAIOR DO QUE O QUAL NADA PODE SER PENSADO

O mundo efectivo é um dos mundos possíveis, só que


não é meramente possível: além de possível, é efectivo.
Por «mundo» não entendemos, pois, o planeta
Terra, e nem sequer o universo (com tudo o que contém,
como árvores e rios, estrelas e átomos) , mas antes um
modo de ser das coisas. Assim, ao afirmar que Sócrates
poderia ter nascido no Egipto apesar de ter nascido em
Atenas, estamos a falar de dois modos de ser de Sócra,
tes: um modo como Sócrates poderia ter sido mas não é,
e um modo como ele é.
Podemos agora traduzir os conceitos de contingên,
eia, possibilidade e necessidade na linguagem dos mun,
dos possíveis e vice,versa:

• «Sócrates nasceu contingentemente em Atenas»


quer dizer, na linguagem dos mundos possíveis, que
no modo como as coisas são, no mundo efectivo, Só,
crates nasceu em Atenas, mas há modos como as
coisas poderiam ter sido, outros mundos possíveis,
em que Sócrates nasceu noutra cidade.
• «Sócrates poderia ter nascido no Egipto» quer dizer
que há pelo menos um modo como as coisas pode,
riam ter sido, ou seja, um mundo possível, em que
Sócrates nasceu no Egipto.
• «Sócrates é necessariamente um ser humano» quer
dizer que ele é um ser humano em todos os mundos
possíveis em que existe.
• «Sócrates é um existente contingente» quer dizer

127
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

que Sócrates existe no mundo efectivo, mas não em


todos os mundos possíveis.

Assim, afirmar que Deus é um existente necessário


é afirmar que Deus existe em todos os mundos possíveis.
Deus contrasta com os existentes contingentes - como
o leitor e eu. Nós somos existentes contingentes porque,
apesar de existirmos, poderíamos não ter existido, ou
seja, há vários mundos possíveis em que não existimos.
Ora, parece razoável que o ateu conceda que poderia
existir um ser, Deus, que existisse em todos os mundos
possíveis, apesar de tal ser não existir. Contudo, se o ateu
aceitar isto, o argumento anselmiano conclui imediata­
mente que Deus existe. Será este argumento correcto? Se
for possível que algo exista em todos os mundos possíveis,
conclui-se correctamente que existe no mundo efectivo?
Note-se que esta última pergunta é diferente da per­
gunta «Se algo existe em todos os mundos possíveis, con­
clui-se correctamente que existe no mundo efectivo?»
Esta última pergunta tem uma resposta banal: sim, se
algo existe em todos os mundos possíveis, então existe
também no mundo efectivo, dado que este é um dos
mundos possíveis.
A pergunta que nos interessa não é esta; o que que­
remos saber é se da possibilidade de algo existir em todos
os mundos possíveis se conclui correctamente que existe
no mundo efectivo. Esta é a pergunta que corresponde
ao argumento anselmiano.

1 28
MAIOR DO QUE O QUAL NADA PODE SER PENSADO

Reiterações modais

O que está em causa no argumento ansehniano é a reite,


ração ou repetição do que se chama em filosofia «opera,
dores modais». Os operadores modais são advérbios como
«necessariamente», «contingentemente» ou «possível,
mente». Ora, no que respeita aos conceitos de necessidade,
contingência e possibilidade, ocorre algo curioso com o es,
pírito humano: apesar de nos casos mais simples, mesmo
sem qualquer formação filosófica, conseguirmos raciocinar
correctamente, nos casos mais complexos ficamos à deriva.
É como o que acontece com a multiplicação: toda a gente
multiplica quase automaticamente, de cabeça, 5 com 3,
mas para multiplicar 237 com 1623 já temos de recorrer
ao lápis e ao papel, ou a uma calculadora.
No caso dos operadores modais, é fácil ver que é
correcto concluir que Sócrates era humano partindo da
premissa de que ele era necessariamente humano; e é
fácil ver que é correcto concluir que Sócrates era possi,
velmente ateniense da premissa de que ele era ateniense.
No primeiro caso, é óbvio que a verdade se conclui cor,
rectamente da necessidade; no segundo, que a possibili,
dade se conclui correctamente da verdade.
Também é óbvio que a necessidade não se conclui
correctamente da verdade, nem esta da possibilidade.
Isto porque, no primeiro caso, não se conclui correcta,
mente que Sócrates era necessariamente ateniense do
simples facto de ele ser ateniense - dado que talvez o

129
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

tenha sido contingentemente. Quanto ao segundo caso,


não se conclui correctamente que Sócrates era egípcio
da possibilidade de o ter sido - dado que apesar de ser
possível que tivesse nascido no Egipto, daí não se conclui
correctamente que nasceu de facto nesse país.
Assim, perante alguns raciocínios que envolvem
conceitos modais - os conceitos de necessidade, possi,
bilidade e contingência - sabemos dizer, mesmo sem
formação filosófica, se acaso são correctos ou não. Con,
tudo, quando reiteramos ou repetimos os conceitos mo,
dais ficamos perplexos e sem saber o que pensar. Será
correcto concluir que algo é necessário partindo da pre,
missa de que é possível que seja necessário? E será cor,
recto concluir que algo é necessariamente necessário da
premissa de que é necessário?
A reiteração de conceitos modais torna,se mais
compreensível recorrendo à linguagem dos mundos pos,
síveis. Afirmar que é possível que Sócrates seja ateniense
é afirmar, na linguagem dos mundos possíveis, que há
pelo menos um mundo possível, seja ou não o mundo
efectivo, em que ele é ateniense; e afirmar que é neces,
sário que seja possível que Sócrates seja ateniense?
Esta última afirmação torna,se mais compreensível
quando vemos que é equivalente a afirmar que em todos
os mundos possíveis é possível que Sócrates seja ate,
niense. Mas que quer isto dizer?

1 30
MAIOR DO QUE O QUAL NADA PODE SER PENSADO

Possibilidade relativa

O que está em causa é saber se a possibilidade e a ne­


cessidade são relativas aos mundos possíveis. Se não
forem, desde que haj a um mundo possível em que
Sócrates é ateniense, ele será possivelmente ateniense
em todos os mundos possíveis; ou seja, em todos os mun­
dos possíveis será verdade que Sócrates é possivelmente
ateniense.
Contudo, se a possibilidade e a necessidade forem
relativas aos mundos possíveis, mesmo que haja um
mundo possível em que Sócrates é ateniense, haverá
outros mundos possíveis em que Sócrates não é possi­
velmente ateniense. Isto ocorrerá se os mundos possíveis
em que Sócrates é ateniense não forem possíveis relati­
vamente a todos os mundos possíveis.
É deste aspecto muitíssimo abstracto e de razoável
sofisticação e complexidade cognitiva que depende a
correcção ou incorrecção do argumento anselmiano.
Pois este argumento afirma que da premissa de que é
possível que Deus exista necessariamente se conclui cor­
rectamente que existe. Se todo o mundo possível for
possível relativamente a qualquer outro, o argumento
anselmiano é correcto; caso contrário, não o é.
Vejamos em que condições o argumento anselmiano
não é correcto. Imagine-se que é possível que Deus
exista necessariamente. Isto significa que há pelo menos
um mundo possível, chamemos-lhe D, no qual Deus é

131
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

um existente necessário. Por sua vez, isto significa que


Deus existe em todos os mundos possíveis que sejam pos­
síveis relativamente a D. Contudo, se o mundo efectivo
não for um desses mundos possíveis, a inexistência de
Deus é compatível com a possibilidade da sua existência
necessária. Assim, caso D seja possível relativamente ao
mundo efectivo, mas este não seja possível relativamente
a D, o argumento anselmiano não será correcto.
Para decidir se o argumento anselmiano é correcto,
precisamos de saber duas coisas. Primeiro, precisamos de
saber se a possibilidade é ou não relativa a mundos pos­
síveis. Segundo, precisamos de saber, caso o seja, se a
possibilidade relativa é ou não simétrica. A simetria é
uma propriedade que algumas relações têm e outras não.
Por exemplo, a relação de ser irmão é simétrica, pois se
Pedro é irmão de Maria, esta também é sua irmã; já a re­
lação de ser mãe não é simétrica, pois se Maria for mãe
de Rosa, esta não é sua mãe. Se a relação de possibili­
dade entre mundos possíveis não for simétrica, o argu­
mento anselmiano é incorrecto porque o facto de D ser
possível relativamente ao mundo efectivo não implica
que este o seja relativamente a D.
De maneira que uma questão crucial - saber se
Deus existe - depende de uma questão filosófica mui­
tíssimo esotérica, e aparentemente irrelevante, estudada
na metafísica da modalidade.

132
MAIOR DO QUE O QUAL NADA PODE SER PENSADO

Conclusão

Alguns crentes, perante argumentos complexos sobre


questões religiosas, afirmam que a religião está para lá
da razão; invocam até o matemático, físico e pensador
religioso Blaise Pascal (1623 - 1 662) , afirmando que o co­
ração tem razões que a razão desconhece.
Contudo, a ideia de acolher a crença religiosa sem
razões - e consequentemente sem compreensão, diria
Anselmo - não é pacífica. Em qualquer caso, desde­
nhar da razão apenas quando desconfiamos de que esta
não sancione o que gostaríamos de ver sancionado difi­
cilmente é uma atitude recomendável. Se afectamos des­
prezar a razão, é incoerente fazê-lo apenas quando não
sanciona as nossas crenças mais queridas, aplaudindo-a
calorosamente quando as sanciona.
Em busca da compreensão da sua fé, Anselmo per­
correu mais de setecentos quilómetros, deixando-nos um
testemunho eloquente do que consegue um ser humano
que não foge da responsabilidade de pensar arduamente
sobre questões que considera de suprema importância.
Em comparação, é um esforço relativamente pequeno,
da nossa parte, percorrer os caminhos do raciocínio com­
plexo sobre matérias religiosas - sejamos ou não crentes.

1 33
Conclusão

Para que serve a.filosofia?

À EXCEPÇÃO DOS CAPÍTULOS 3 E 4, ENCONTRÁMOS NESTE


livro temas bastante arredados de qualquer aplicação
prática; mas nestes dois capítulos abordámos temas de
óbvio interesse prático. Assim, a ideia de que a filosofia
é inútil porque não tem aplicação prática é historica­
mente falsa.
Em qualquer caso, muitas das actividades a que nos
dedicamos são inúteis: a amizade e os jogos de compu­
tador, o futebol e o teatro, a matemática pura e o mon­
tanhismo. Dedicamos tantas energias a actividades que
não têm aplicação prática porque nos realizam e porque
gostamos de satisfazer a nossa curiosidade.
Efectivamente, uma vida vale tanto mais a pena
quanto menos tempo somos obrigados a dedicar à nossa
sobrevivência ou bem-estar primário. Isto devia ser
óbvio; mas, quando se menciona a filosofia, tende a ser
esquecido, exigindo-se-lhe uma aplicação prática au­
sente da maior parte das actividades que as pessoas mais

135
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

valorizam. É irónico que assim seja, pois a reflexão sobre


a vida boa, de que vimos um exemplo, dificilmente po­
deria ser mais prática.
Os capítulos 1, 2 e 5 mostram a falsidade histórica
da ideia de que a filosofia trata de questões humanas -
que estuda o Homem, corno por vezes se diz, na lingua­
gem gasta do machismo. A verdade histórica é que em fi­
losofia ternos estudado, ao longo dos séculos, vários tipos
de problemas insusceptíveis de investigação científica,
sendo poucos os que têm que ver com os seres humanos.
Os seres humanos são com certeza interessantes,
mas há muitas outras coisas interessantes. Queremos
saber, por exemplo, se há alguma coisa de comum - a
vermelhidão - em todas as coisas vermelhas, e, caso
haja, o que é isso; queremos saber se há identidade das
coisas ao longo do tempo e, caso haja, corno ocorre; e
queremos saber se duas coisas diferentes - urna estátua
e um pedaço de barro - podem ocupar o mesmo espaço
ao mesmo tempo.
Assim, apesar de ser verdadeiro que em alguns casos
investigamos em filosofia problemas relacionados com
os seres humanos (capítulos 3 e 4) , muitos outros casos
há em que isso não é verdadeiro (capítulos l , 2 e 5) ; e
noutros casos (capítulos 6 e 7) só tangencialrnente se
trata de problemas relacionados com os seres humanos.
Este livro inclui informação histórica, mas ficou pa­
tente que, sem compreender os aspectos teóricos em
causa, nenhuns elementos históricos nos permitirão

1 36
PARA QUE SERVE A FILOSOFIA?

fazê-lo. Os problemas filosóficos, assim como as teorias


que lhes dão resposta, surgem certamente em contextos
históricos, e poderão até ser motivados por eles. Mas só
nos seus próprios termos podemos compreendê-los cor­
rectamente. Qualquer redução dos problemas filosófi­
cos, e das teorias que lhes dão resposta, a explicações
históricas é uma simplificação grosseira.
O contexto histórico que permitiu o desenvolvi­
mento de lentes e de telescópios permitiu também os
estudos astronómicos de Galileu, mas as suas teorias
astronómicas só podem ser entendidas em termos astro­
nómicos, e não históricos; o mesmo ocorre em filosofia.
Se não a entendermos em termos filosóficos, o resultado
será o género de simplismo caricatural de que se quei­
xava Kant:

«Mais ou menos como se alguém, que nunca tivesse


ouvido falar ou nada tivesse visto de geometria, ao
encontrar um exemplar de Euclides e sendo-lhe pe­
dido um juízo a seu respeito, dissesse, depois de, ao
folhear, ter notado muitas figuras: 'o livro é uma ins­
trução sistemática para o desenho: o autor serve-se
de uma língua particular para dar prescrições obs­
curas, incompreensíveis, que, no fim, nada mais
podem conseguir do que o que cada um pode fazer
mediante um bom olhar seguro natural, etc.'»
(Prolegómenos a Toda a Metafísica Futura, p. A204-
-205)

137
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

Kant insurge-se contra a atitude de quem desconhece


a filosofia, mas para não o deixar transparecer faz co­
mentários laterais sobre contextos históricos, etimologia
de palavras, mitologia grega, etc. - evitando cuidado­
samente explicar e discutir os problemas, teorias e argu­
mentos especificamente filosóficos que estão no texto.
Os problemas filosóficos são insusceptíveis de in­
vestigação adequada por quaisquer outros métodos que
não os filosóficos. Enfrentar a sua complexidade e difi­
culdade exige o melhor de nós, e a experiência dessa en­
trega é maravilhosa. Todavia, quando não se vê da filo­
sofia senão simplismos caricaturais, quando não se vê o
que os filósofos efectivamente têm feito, e continuam fa­
zendo, torna-se difícil compreender o deslumbramento e
realização pessoal que a filosofia pode proporcionar. Per­
gunta-se então para que serve a filosofia, e sugere-se que
não serve para coisa alguma. Mas a pergunta está feita ao
contrário porque a filosofia não é como um rio que já
existe e acerca do qual perguntamos para que serve; a fi­
losofia é antes como uma casa que construímos para res­
ponder às nossas necessidades. Assim, a pergunta cor­
recta é por que fazem os filósofos filosofia. E a resposta é
que a fazem porque essa é a única maneira de responder
a problemas que nos fascinam e que queremos esclarecer
tanto quanto possível, mesmo que sejamos incapazes de
lhes dar respostas definitivas.

1 38
Sugestões de leitura

Primeiras leituras

Blackbum, S. ( 1 999) Pense: Uma Introdução à Filosofia.


Trad. A. Infante et al. Lisboa: Gradiva, 200 1.
Crítica: Revista de Filosofia, criticanarede.com.
Kenny, A. (2004) Nova História da Filosofia Ocidental,
4 vols. Trad. P. Galvão et al. Lisboa: Gradiva, 20 10.
Kolak, D. e Martin, R. ( 199 1 ) Sabedoria sem Respostas.
Trad. C. Teixeira. Lisboa: Temas e Debates, 2004.
Mautner, T., dir. (2005) Dicionário de Filosofia. Lisboa:
Edições 70, 20 10.
McGinn, C. (2002) Como Se Faz Um Filósofo. Trad. C. Tei,
xeira. Lisboa: Bizâncio, 2007.
Murcho, D. (2003) O Lugar da Lógica na Filosofia. Lis,
boa: Plátano.
Murcho, D. (2006) Pensar Outra Vez: Filosofia, Valor e
Verdade. Vila Nova de Famalicão: Edições Quasi.

139
SETE IDEIAS FILOSÓFICAS QUE TODA A GENTE DEVERIA CONHECER

Murcho, D. (201 1) Filosofia em Directo. Lisboa: Funda­


ção Francisco Manuel dos Santos.
Nagel, T. ( 1 987) Que Quer Dizer Tudo Isto? Trad. T. Mar­
ques. Lisboa: Gradiva, 1 995.
Racheis, J. (2004) Problemas da Filosofia. Trad. P. Galvão.
Lisboa: Gradiva, 2009.
Racheis, J. (2006) Elementos de Filosofia Moral. Trad. E Z.
A. Gonçalves. Lisboa: Gradiva, 2004.
Rowe, W. L. (2006) Introdução à Filosofia da Religião.
Trad. V. Guerreiro. Lisboa: Verbo, 201 1 .
Russell, B . ( 1 9 1 2) Os Problemas da Filosofia. Trad. D . Mur­
cho. Lisboa: Edições 70, 2008.
Swinbume, R. (1996) Será Que Deus Existe? Trad. D. Mur­
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Warburton, N. (2004) Elementos Básicos de Filosofia.
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SUGESTÕES DE LEITURA

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