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Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN.
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Ao falar comunidade surda, significa referir-se aos próprios surdos, aos pais, familiares e amigos de
surdos, e aos intérpretes e tradutores da Libras (Tils).
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chamar atenção do Ministério da Educação, questionando o método da escola inclusiva
e propondo alternativas que levam em consideração as idiossincrasias que envolvem as
metodologias de ensino de crianças surdas.
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Trata os movimentos sociais como uma forma específica de política
contenciosa – contenciosa, no sentido de que os movimentos sociais
envolvem a elaboração coletiva de reivindicações que, alcançando sucesso,
conflitariam com os interesses de outrem; política, no sentido de que
governos, de um ou outro tipo, figuram de alguma forma nesse processo, seja
como demandantes, alvos das reivindicações, aliados desses alvos, ou
monitores da contenda. (McADAM,TARROW e TILLY, 2001 apud TILLY,
2010)
Tilly também se vale da expressão confronto político para fazer menção aos
movimentos sociais devido a sua amplitude, abrangendo categorizações tais como
“revoluções”, “ciclo de protestos” e “ações coletivas”, utilizadas também entre analistas
e estudiosos para referir-se aos grupos que reivindicam interesses específicos, e que tem
como principal adversário o detentor do poder, geralmente o governo vigente (TILLY,
TARROW, McADAM, 2009). A nomenclatura confronto político é uma tentativa de
reportar-se teoricamente às ações sociais relacionadas a reivindicações por demandas,
buscando sintetizar algumas dessas interações empíricas em favor de uma análise
ampliada.
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públicas denominadas de VUNC (valor, unidade, números e comprometimento), que
expressariam as características dos participantes. (2010, p. 137)
Na visão de Tilly, o que confere status de movimento social a uma ação coletiva
é a combinação relativamente coesa e lógica entre campanha, repertório e
demonstrações de VUNC. Não necessariamente toda ação social configura um
movimento social; o autor argumenta que alguns elementos não fazem parte do cerne de
um movimento, mas que, na realidade, são apenas ações outras que podem ajudar a
fomentar a organização, como por exemplo, redes de apoio, campanhas, e quaisquer
iniciativas que atraiam adesão à causa. O que deve ser analisado quanto movimento
social, além das formas de intercessão dos três elementos citados anteriormente, é a
dinâmica interna, suas interações entre componentes, líderes, autoridades, pautas e as
intensas manobras e realinhamentos que permeiam o interior do movimento.
Segundo o autor, o repertório pode ser entendido como “um conjunto limitado
de rotinas que são aprendidas, compartilhadas e postas em ação por meio de um
processo relativamente deliberado de escolha.” (Tilly, 1995, p.26 apud Alonso, 2009,
p.7). Devido ao seu caráter estrutural, esse conceito, portanto, teria como escopo a ideia
pragmática de que há modelos de ação que são apropriados por diferentes agentes,
possibilitando que vários grupos utilizem das mesmas ferramentas em suas
mobilizações. Por meio dessa perspectiva, a noção de repertório começa a considerar o
potencial de agência do ator que será compelido a escolher as melhores estratégias de
ação segundo a conjuntura política e as oportunidades vigentes. As possibilidades de
ação estão relacionadas às condições sociais, econômicas, políticas e histórico-culturais;
na medida em que mudam as estruturas sociais – e vale considerar que essas
transformações são lentas e contínuas –, paulatinamente, as estratégias de ação são
reformuladas, ressignificadas e, se menos eficazes, vão caindo em desuso.
5
posto em prática através dos arranjos sociais, nas interações face to face e na
performance entre os atores envolvidos. De acordo com o autor, “Como suas
contrapartes teatrais, repertórios de ação coletiva designam não performances
individuais, mas meios de interação entre pares de grandes conjuntos de atores. Uma
companhia, não um indivíduo, mantém um repertório” (Tilly, 1995, p.27 apud Alonso,
2012, p. 25).
3
Mesmo após a tentativa de Tilly de ampliar o espaço da cultura na noção de repertório com a
incorporação das ideias interacionistas, a crítica que ainda prevalecia girava em torno, principalmente,
sobre o caráter prático e objetivo e da ausência do caráter simbólico e ritual que a noção de cultura
poderia contribuir nas análises das mobilizações. Nos anos 2000, Tilly reconsidera as críticas ao teor
estruturalista da sua abordagem, buscando ampliar ainda mais o espaço de agency, acionando com mais
entusiasmo o conceito de performance, atentando-se para as invariâncias de formas de ações em
diferentes contextos, e como os agentes se apropriam desses repertórios e o manejam em suas
mobilizações. (Alonso, 2012, p. 28)
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flexibilidade das performances é mais evidenciada quando a intenção das ações é
“surpreender”; geralmente essa estratégia é utilizada pelos que estão desafiando o poder,
pois procuram em repertórios mais flexíveis maneiras de inovar, desestruturando o
modo como os detentores do poder irão reagir a tais mobilizações. Em contrapartida, os
detentores do poder, de certo modo, tendem a reproduzir repertórios rígidos baseados
em sua eficácia no passado. (Alonso, 2012, p. 30)
Quanto mais “modular” for o caráter das performances do repertório, maior será
o seu nível de transposição. Algumas estratégias de mobilização só fazem sentido em
contextos específicos, pois foram desenvolvidos partindo de situações particulares, e
quando são transpostos para situações diversas, perdem o sentido reivindicatório.
Portanto,
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uma história única4 dos surdos, com fatos intrinsecamente interligados, conectando
todos os eventos registrados historicamente como sendo a legítima história do
“Movimento Social Surdo”, sendo constantemente recontada entre seus líderes e
participantes.
No entanto, por mais que haja um arremate político na linearização dos fatos
históricos, ainda assim, se faz necessário considerar tais dados do discurso padrão sobre
as lutas dos surdos, sendo desde já importante salientar que a construção da memória do
povo surdo atribui sentido às suas mobilizações, fortalecendo a identidade do grupo,
denominada por eles de identidade surda. A gênesis das organizações de instituições de
e para surdos no Brasil remete a uma reivindicação internacional de uma cultura e visão
de mundo próprias dos surdos, e fomenta o argumento da sua principal mobilização
política atual: o direito à escolas bilíngues.
4
Sobre a expressão “história única”, uso o sentido dado pela escritora nigeriana Chimamanda Adichie,
em “O perigo da história única”, disponível em: <http://www.ted.com/talks/lang/pt-
br/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html> Data de acesso: 26/01/2014.
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Em um primeiro momento após sua fundação, o instituto utilizou a língua de
sinais na metodologia de ensino e sociabilização, porém, a partir de 1911, passou a
adotar o método oralista5, obedecendo às ordens do Congresso de Milão6 que proibia o
uso da língua de sinais. Em 1957, por influência da diretoria do instituto, foi proibido
qualquer tipo de uso, mesmo informal, da língua de sinais, impedindo até mesmo o
contato de alunos mais velhos com os novatos. Mesmo com essa proibição,
clandestinamente muitos professores e ex-alunos que frequentavam bastante o instituto
construíram focos de resistência e manutenção da língua de sinais.
5
Método que prioriza o uso de ferramentas no intuito de reabilitar a pessoa com surdez e torna-la capaz
de aprender a língua oral. É utilizado nesse método o uso de aparelhos auditivos, sessões de
fonoaudiologia, leitura labial, e rechaça o uso de gestos na comunicação.
6
Congresso realizado no período de 06 a 11 de setembro de 1880, onde educadores de surdos se fizeram
presentes para debater o melhor método de ensino, sendo votado o método oral. Cf. QUADROS (org.),
2006.
7
A primeira associação de surdos foi a Associação Brasileira de Surdos-Mudos, no Rio de Janeiro, em
1930, mas brevemente desativada. Em 1954, foi fundada a Associação dos Surdos de São Paulo, que atua
até hoje. (RAMOS, 2004)
8
As associações também são consideradas espaços de resistência da língua de sinais no período em que
não era permitido o seu uso nas escolas para surdos.
9
Fonte: http://www.feneis.org.br/
9
ouvintes, e cuja a responsabilidade administrativa da entidade lhes pertencia. O teor
dessa instituição era de caráter assistencialista e de apoio aos deficientes auditivos.
Brito (2013) descreve que um dos principais fatos que marcou o início das
articulações entre pessoas com deficiência no Brasil foi a iniciativa da Organização das
Nações Unidas (ONU) anunciar que o ano de 1981 seria o Ano Internacional das
Pessoas Deficientes, cujo lema era “participação plena em igualdade de condições”.
Com base no material divulgado e distribuído pela ONU, algumas associações voltadas
para pessoas com deficiência começaram a se articular em nome da igualdade de
direitos e reconhecimento social. Um fator importante que distinguiu tal articulação das
outras que já existiam foi o protagonismo das pessoas com deficiência, ocupando as
lideranças das mobilizações, que fora denominada “movimento social das pessoas com
deficiência”. (LANNA JÚNIOR, 2010) Como afirmou Brito,
10
e o poder de decisão sobre suas próprias vidas. A defesa da Libras se tornou prioridade
entre os agentes surdos, e essa bandeira de luta específica fez com que o grupo criasse
autonomia diante o movimento de pessoas com deficiência.
11
estendem desde à assessoria jurídica gratuita e capacitações de instrutores surdos para o
ensino, até a disponibilização de intérpretes e cursos de formação em Libras, dentre
outros. O principal intuito da FENEIS foi continuar a disseminar o conhecimento da
língua de sinais brasileira, como também assuntos relacionados às suas atividades e
projetos, eventos esportivos e culturais, porém com o teor político mais aflorado,
principalmente devido as lideranças que assumiram a instituição e seu envolvimento
com o movimento social de pessoas com deficiência. Nesse momento, as atividades dos
agentes surdos se direciona para a conquista de direitos, constituindo uma agenda
política que, mais tarde, tomaria força e visibilidade através dos atos públicos e
reivindicações.
***
10
Sobre o processo histórico com detalhes sobre essa conquista da Comunidade Surda, cf. BRITO, 2013.
12
O coletivo nacional denominado “Movimento Surdo em favor da Educação e da
Cultura Surda” surgiu em contraposição a uma das diretrizes do Plano Nacional de
Educação (PNE), um projeto de lei proposto no ano de 2010 pelo Poder Executivo que
tem como objetivo o desenvolvimento de projetos que se referem à educação escolar no
país em seus vários níveis, modalidades e etapas educacionais, além de propor
estratégias específicas para a inclusão das minorias, que vigoraria entre os anos de 2011
e 2020.
11
Projeto em tramitação no Congresso Nacional - PL nº 8.035/2010. Apresenta o Projeto de Lei 8530/10
de autoria do Poder Executivo, que institui o Plano Nacional de Educação (PNE). Disponível em:
<http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/5826>. Acesso em: 14 de setembro de 2012.
13
Estas questões geram polêmica entre muitos estudiosos, profissionais,
familiares e entre as próprias pessoas com surdez. Aqueles que defendem a
cultura, a identidade e a comunidade surda apoiam-se no discurso das
diferenças, alegando que elas precisam ser compreendidas nas suas
especificidades, porém, pode-se cair na cilada da diferença, como refere
Pierucci (1999), que em nome da diferença, pode-se também segregar.
(SEESP / SEED / MEC, 2007, p. 14)
Foi com a divulgação dessa notícia, realizada por uma liderança com grande
representatividade na Comunidade Surda Brasileira, que as discussões via redes sociais
começaram a ganhar força, e a mobilização promovida por alguns surdos no país
culminou na manifestação política nos dias 18 e 19 de maio de 2011, em Brasília,
organizada pelo “Movimento Surdo em favor da Educação e da Cultura Surda.”
14
manifestações não é inédito a esse movimento; o que pode ser elencado como uma
apropriação autêntica dessa estratégia é a tentativa de desconstruir a relação
surdez/silêncio. Os manifestantes assumiram tal estratégia a fim de expor que eles
“também têm voz” e “querem se fazer ouvir” pelas autoridades. A regência dos
compassos musicais tocados pelos percussionistas surdos era feita de maneira visual,
sem o auxílio de ouvintes, situação que causava espantos entre os funcionários do
governo que os observavam pelas janelas do prédio.
Outras faixas apresentavam frases em favor das escolas bilíngues para crianças
surdas, e outras contra o modelo inclusivo sugerido pelo MEC: “Não à inclusão
12
Em 1993, James Charlton publica “Nothing about Us without Us: Disability Oppression and
Empowerment”, uma das primeiras produções que se dispôs a realizar um panorama teórico que
debatesse a questão das opressões à deficiência, realizando comparações entre outros tipos de opressão,
dentre eles o racismo, o sexismo e o colonialismo.
13
“Garantindo que a educação de pessoas, em particular crianças cegas, surdocegas e surdas, seja
ministrada nas línguas e nos modos e meios de comunicação mais adequados ao indivíduo e em
ambientes que favoreçam ao máximo seu desenvolvimento acadêmico e social.” Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência, Brasília, 2007.
15
homogeneizadora”. Essa é uma das pautas mais polêmicas trazida pela comunidade
surda porque, diante das lutas defendidas principalmente pelos movimentos de pessoas
com deficiência, a necessidade da inclusão é um fator primordial para que tais sujeitos
sejam reconhecidos como cidadãos, possuidores de direitos e deveres como qualquer
outro indivíduo; a inclusão plena seria o ápice da conquista dos direitos das pessoas
com deficiência à cidadania.
14
Fernando César Capovilla, pesquisador e professor em psicologia (USP), realiza a mais de 10 anos
pesquisas sobre neuropsicolinguística cognitiva, desenvolvendo estudos que apresentam em seus
resultados fatores que comprovam a eficácia do ensino da língua de sinais na primeira infância para que a
criança surda consiga construir o léxico necessário para a compreensão de mundo, e posteriormente possa
associar os significados aos códigos escritos do português em um segundo momento.
16
movimento surdo divergiu do seu grupo político mais próximo, configuração que
diverge das análises tillyanas, que afirmam:
Jovens surdos com nariz de palhaço carregavam mais faixas, escrito “Respeito à
Cultura Surda”, e em vermelho “Fora Martinha Clarete”, até então diretora de Políticas
de Educação Especial, “Professores Surdos Já!”; esse era o cenário das primeiras
movimentações da quinta feira, 19, em frente ao prédio do MEC.
15
Fonte: <http://m.g1.globo.com/pa/para/noticia/2013/11/movimentos-sociais-realizaram-ato-no-dia-da-
consciencia-negra > Acesso em: 28/01/2014.
17
significando a luz que ilumina o caminho da escuridão indicando o caminho a ser
seguido – “onde houver trevas, que eu leve a luz”, segundo a oração de São Francisco
de Assis; a vela simboliza o Cristo ressuscitado, “a verdade, o caminho e a luz”. Esse
ato simbólico de indicar o caminho verdadeiro através da luz emitida pela vela foi
utilizado, por exemplo, contra o ministro da suprema corte, em frente ao Superior
Tribunal Federal, em maio de 2009, onde manifestantes acenderam cerca de 5 mil velas
diante a entrada do STF, para “iluminar” a postura do magistrado. 16 Em alguns
protestos, o ritual do velório é realizado denunciando a morte de algo, por exemplo,
como no uso de caixões onde fora escrito “democracia” em atos contra a não paridade
nas eleições para Reitor das universidades federais e estaduais.
16
Fonte: < http://noticias.terra.com.br/brasil/manifestantes-acendem-5-mil-velas-em-protesto-contra-
mendes,04b94999eed4b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html> Acesso em: 28/01/2014
18
os ouvintes que também estavam presentes na manifestação. O apoio desses agentes era
de fundamental importância, principalmente na passeata pela avenida rumo ao
congresso nacional devido à segurança dos manifestantes durante o fluxo de automóveis
no lugar.
***
19
atingiu seu objetivo principal – atrair a atenção dos passantes e das autoridades – quanto
serviu para reinterar o discurso da identidade surda.
Outro exemplo é o caso do uso das velas, onde o elemento trazido do campo
religioso se remeteu a um fato histórico de resistência do uso da língua de sinais no
Brasil, trouxe algumas evidências de que elementos de outros campos podem ser
incorporados na mobilização política devido ao fato de que seu significado é
compreendido dentro do contexto cultural e temporal em que fora realizado.
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