CLIFFORD GEERTZ
Reitor
Aloisio Teixeira
Vice-Reitora
Sylvia Vargas
Coordenadora de Produção
J anise Duarte Tradução
Conselho Editorial
Vera Ribeiro
Carlos Nelson Courinho (presidente)
Charles Pessanha
Diana Maul de Carvalho
José Luís Fiori
José Paulo Netto
Leandro Konder
Virgínia Fontes
3a edição
EDITORA UFRJ
2009
i
<) capítulo 2
ISBN 978-85-7108-248-9
Apoio
ponto de constituir a norma, é inexato, evidentemente. Tenho exerceram um efeito substancial sobre a forma [mal do que
plena ciência de que a arqueologia, a lingüística comparativa, aparece aqui. Sou grato a todos os que investiram tempo na
a antropologia física e várias outras formas de estudo que tentativa de me ajudar a encontrar a saída de meu próprio
não se baseiam - ou não necessariamente se baseiam - na vidro de insetos.
etnografia existem e têm tanto direito a reivindicar sua inclusão Por fim, em vez de uma dedicatória, que seria pretensiosa,
na rubrica da "antropologia" quanto a "etnografia" e suscitam
eu gostaria meramente de mencionar o nome do homem que
questões de discurso que lhes são peculiares. Utilizo o termo não é citado em parte alguma do corpo do texto, e que não
para me referir à antropologia sociocultural e, em particular,
teve nenhuma ligação direta com ele ou comigo, mas cujo
à parte dela que tem uma orientação etnográfica, meramente
trabalho serviu de inspiração mestra em quase todos os mo-
em nome da conveniência expositiva. Esse emprego não im-
mentos: Kenneth Burke.
plica qualquer sugestão de que o tipo de trabalho que discuto
c.G.
esgote o referente do termo, ou que tal trabalho seja mais
Instituto de Estudos Avançados
digno dele do que os demais tipos. Princeton, N. J.
Fevereiro de 1987
A segunda advertência é que, embora um material bio-
gráfico e histórico entre inevitavelmente em minha discussão,
em numerosos pontos, este estudo, em si mesmo, não pretende
ser biográfico nem histórico, interessando-se primordialmente
por "como escrevem os antropólogos" - ou seja, ele se orienta
para o texto. Devo enfatizar que não me incluo entre os que
acreditam em textos "ontológicos", inteiramente autônomos,
e que, sem dúvida, o material biográfico e histórico está longe
de ser irrelevante para a interpretação das obras de antropolo-
gia. Minha ênfase aqui, todavia, recai sobre outras questões,
"literárias", se quisermos, às quais normalmente se dedica
muito menos atenção nas discussões da antropologia.
<) 9 <)
<) capítulo 1
ESTAR LÁ
questões literárias. A preocupação exagerada - que, na prática, pressão mais ou menos sagaz de opiniões. A etnografia, dizem,
costuma significar qualquer preocupação - com a maneira torna-se um mer~ jogo de palavras, como se presume que
como são construídos os textos etnográficos parece constituir sejam os poemas e os romances. Expor de que modo a coisa
um ensimesmamento doentio, conducente à perda de tempo, é feita equivale a sugerir que, tal como a mulher serrada ao
na melhor das hipóteses, ou hipocondríaco, na pior delas. O meio, ela simplesmente não se faz. ~
que nos importa conhecer são os tikopianos e os talensis, e
.. -
Essas concepções são irrazoáveis, porque não se baseiam
não as estratégias narrativas de Raymond Firth ou o aparato
retórico de Meyer Fortes. na experiência de ameaças presentes e efetivas, ou que sequer
estejam assomando, mas em imaginar as possíveis ameaças que
Outra objeção, esta proveniente sobretudo dos consu- ocorreriam se, de repente, tudo fosse diferente do que é ago-
midores, é a de que os textos de antropologia não são dignos ra. Se os antropólogos parassem de informar como são feitas
dessa atenção esmerada. Uma coisa é investigar como um as coisas na África e na Polinésia, se, em vez disso, gastassem
Conrad, um Flaubert ou até um Balzac obtêm seus efeitos; seu tempo tentando encontrar tramas duplas em Alfred Kroe-
investir numa empreitada dessas a respeito de um Lowie ou ber ou narradores não fidedignos em Max Gluckman, e se
um Radcliffe-Brown, para falar apenas dos mortos, parece viessem seriamente a afirmar que as histórias de Edward Wes-
cômico. Alguns antropólogos - Sapir, Benedict, Malinowski rcrmarck sobre o Marrocos e as de Paul Bowles relacionam-
e, ultimamente, Lévi-Strauss - podem ser reconhecidos como se com seu tema do mesmo modo, com os mesmos recursos e
dotados de um estilo literário singular, não se acanhando em as mesmas finalidades, as coisas realmente ficariam numa
usar uma ou outra figura de linguagem ocasional. Mas isso é si I uação lamentável.
inusitado e um tanto prejudicial para eles - sugestivo até de
Mas é difícil acreditar que tudo isso viria a ocorrer, se a
uma prática ardilosa. Os bons textos de antropol~gia são sim-
escrita antropológica fosse levada a sério como escrita. As
ples e despretensiosos. Não convidam a uma minuciosa leitura
raizes do temor devem estar noutro lugar: talvez no sentido
o literocrítica, nem tampouco a recompensam.
\ Iv que, se houvesse um entendimento melhor do caráter li-
\)
Talvez a objeção mais vigorosa, no entanto, proveniente rrrário da antropologia, alguns mitos profissionais sobre como
de toda parte e, a rigor, bastante generalizada na vida intelec- \·1:1 consegue ser persuasiva tornar-se-iam insustentáveis. Em
tual dos últimos tempos, seja a de que concentrar nosso olhar I\:\riirular, talvez fosse difícil defender a visão de que os textos
nas maneiras como são enunciadas as afirmações de um saber IIH'gráficos convencem, na medida em que chegam a ser con-
solapa nossa capacidade de levar a sério qualquer dessas afir-
I
~- . .
VIIHTI1ICS, pelo simples poder de sua substancialidade factual.
mações. De algum modo, supõe-se que atentar para coisas A ordenação de um imenso número de detalhes culturais su-
como imageria, as metáforas, a fraseologia ou a voz leva a 1\I.IIllL·l1lc específicos tem sido a principal maneira pela qual a
um relativismo corrosivo, no qual tudo não passa de uma ex-
~-------- 11i.u l'ncia de verdade - a verossimilhança, a vraisemblance, a
V 12 V
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o OBRAS E VIDAS
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Wahrscheinlichkeit - é buscada nesses textos. Qualquer dúvida foi uma torre imponente como poucas, está basicamente em
induzida no leitor pela estranheza do material deve ser supe- ruínas, mas ele continua a ser o supra-sumo do etnógrafo. A
rada por sua simples abundância. Mas a verdade é que o grau qualidade algo ultrapassada que hoje parecem ter as espe-
de credibilidade, alto, baixo ou de outra natureza, efetivamen- culações psicológicas e de cultura-e-personalidade formuladas
te conferido à etnografia de Malinowski, Lévi-Strauss ou qual- por Mead (Balinese character foi financiado por uma verba des-
quer outro não se assenta, ao menos não primordialmente, tinada ao estudo ~mência precoçe, que os balineses supos-
nessas bases. Se assim fosse, J. G. Frazer, ou pelo menos Oscar tamente exibiriam numa forma ambulante) não parece retirar
Lewis, seria de fato um rei, e seria inexplicável a suspensão grande coisa do poder de convicção de suas observações, das
da descrença que muitas pessoas (inclusive eu) concedem aos quais nenhum de nós fica à altura, sobre como são os balineses.
Sistemas políticos da alta Birmânia, de Edmund Leach, com sua 1\0 menos uma parte do trabalho de Lévi-Strauss sobreviverá
pobreza de dados, ou ao ensaio impressionista de Margaret à dissolução do estruturalismo em seus ardorosíssimos suces-
Mead intitulado Balinese character. Os etnógrafos talvez pensem, sores. Todos continuarão a ler Os nuer, mesmo que, como vem ,/
realmente, que ganham credibilidade pela extensão de suas des- tendendo a fazer, a teoria segmentar se cristalize num dogma. M
crições. (Leach tentou responder aos ataques empiristas desfe-
A capacidade dos antropólogos de nos fazer levar a sério '
ridos contra seu livro sobre a Birmânia escrevendo um livro
() llue dizem tem menos a ver com uma aparência factual, ou
carregado de dados factuais sobre o Sri Lanka, mas este rece-
r<)111 um ar de elegância conceitual, do que com sua capaci-
beu muito menos atenção. Mead afirmou que as centenas de
d:llk: de nos convencer de que o que eles dizem resulta de
fotografias feitas por Gregory Bateson demonstravam suas
haverem realmente penetrado numa outra forma de vida (ou,
teses, mas praticamente ninguém, inclusive Bateson, concor- ~,. você preferir, de terem sido penetrados por ela) - de real-
dou muito com ela.) Talvez se devesse acreditar nos etnógrafos 1lH'11Il' haverem, de um modo ou de outro, "estado lá". E é aí,
pela extensão de suas descrições, mas não parece ser assim 10 I\():i convencer de que esse milagre dos bastidores ocorreu,
que a coisa funciona.
'1111' e-ntra a escrita.
Por que persiste a idéia de que funciona assim, é difícil <) <) <)
o 14 o <) 15 <)
o OBRAS E VIDAS
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em grande parte em asseverações incorrigíveis. A natureza situação do que, na maioria dos outros tipos de estudos em-
altamente situacional da descrição etnográfica - um dado etnó-
píricos, seria considerado uma contradição direta (Robert
grafo, em tal época e tal lugar, com tais informantes, tais com- Redfield e Oscar Lewis falando de Tepotzlan, por exemplo),
promissos e tais experiências, representante de uma dada a tendência, quando se trata de dois estudiosos de renome, é
cultura e membro de uma certa classe - confere ao grosso do considerar que o problema advém do fato de tipos diferentes
que é dito um caráter do tipo "é pegar ou largar". "Focê echteve de mentes abordarem partes diferentes do elefante - e uma
lá, Sharlie?", como costumava dizer o Barão de Munchausen terceira opinião só faria acentuar esse embaraço. Não significa
de ] ack PearF
que tudo o que os etnógrafos dizem seja aceito de uma vez
Ainda que, como vem acontecendo cada vez mais, outros por todas, pelo simples fato de eles o dizerem. Uma enorme
profissionais trabalhem na mesma área ou com o mesmo parcela, graças a Deus, não é aceita. Mas ocorre que as razões
grupo, de tal sorte que se faz possível ao menos uma veri- da aceitação ou da recusa são extremamente específicas de
ficação geral, é muito difícil invalidar o que foi dito por alguém cada pessoa. Impossibilitados de recuperar os dados imediatos
que não seja obviamente desinformado. Podemos tornar a do trabalho de campo para uma reinspeção empírica, damos
examinar os azandes, mas, se não for encontrada a complexa ouvidos a algumas vozes e ignoramos outras.
teoria da paixão, do conhecimento e da causalidade que Evans- Isso seria escandaloso, se déssemos ouvidos a uns e não
Pritchard disse ter descoberto lá, é mais provável que duvi- :I outros - a questão é relativa, é claro - por capricho, por
demos de nossos próprios poderes de observação do que dos hábito ou (o que é uma das explicações favoritas hoje em dia)
dele - ou, quem sabe, que concluamos simplesmente que os por preconceito ou desejo político. Mas, se o fizermos por que
azandes já não são os mesmos. Seja qual for o estado da re- alguns etnógrafos são mais eficientes do que outros em criar
flexão sobre a natureza das trocas do Kula no momento atual,
:t impressão, em sua prosa, de que tiveram um contato estreito
e ela vem-se modificando rapidamente, a imagem fornecida ( (111) vidas distantes, a situação talvez seja menos desespera-
dessas trocas em Os argonautas do Pacijico oczdental continua dora. 1\0 descobrirmos de que modo, numa determinada mo-
indelével, para todos os fins práticos. Aqueles dentre nós que II()grafiaou artigo, essa impressão é criada, descobriremos, ao
desejarem reduzir sua força terão de dar um jeito, de algum mesmo tempo, por quais critérios julgá-Ios. Assim como a cri-
modo, de deslocar nossa atenção para outras imagens. Até na Iltalla ficção e da poesia brota melhor do compromisso imagi-
II,IIIVOcom a própria ficção e com a poesia do que de idéias
Illqlnrladas sobre como estas devem ser, a crítica dos escritos
2Jack Pearl foi um veterano dos palcos norte-americanos que, tendo estreado
no rádio em 1932, no programa "Ziegfield Follies of the Air", teve uma 1111I opo\ógicos (que, num sentido estrito, não são uma coisa
onda de sucesso em 1933-1934, levando ao ar um Barão de Munchausen de mm outra, e, num sentido lato, são ambas as coisas) deve bro-
sotaque carregado e grande comicidade. (N. da T)
1.11 dt, um engajamento semelhante com eles, e não de pre-
o 16 o (> 17 (>
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concepções sobre como deve ser a antropologia para se quali- políticos verbais), em que, na maioria dos casos, tal função
ficar como ciência.
não se preserva. Esse não é um dado constante, nem mesmo
Pela natureza de nossos julgamentos nessas questões, dentro de nossa própria tradição: na Idade Média, a maioria
que é específica de cada pessoa (e não "pessoal"), o lugar das narrativas ficcionais - como a Canção de Rolando - não
óbvio para iniciar esse engajamento é a questão do que vem a tinha autor, enquanto a maioria dos tratados científicos - como
ser um "autor" na antropologia. Pode ser que, noutros campos o Almagesto - o tinha. Mas
de discurso, o autor Guntamente com o homem, a história, o .., ocorreu uma inversão no século XVII ou XVIII. Os dis-
eu, Deus e outros petrechos da classe média) esteja morrendo, cursos científicos começaram a ser aceitos por eles mesmos,
mas ele, ou ela, ainda está vivíssimo entre os antropólogos. no anonimato de uma verdade estabelecida ou sempre rede-
'monstrável; sua inserção num conjunto sistemático, e não a
Em nossa ingênua disciplina, talvez uma episteme atrasada,
referência ao indivíduo que os produzira, colocou-se como
como de praxe, ainda é muito importante saber quem está sua garantia. A função-autor esmaeceu, servindo o nome do
falando. inventor apenas para batizar um teorema, uma proposição
o 18 O
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No decorrer de meu trabalho de campo, esses ritos "exó-
retórica em 1982. Mas existem semelhanças ainda maiores,
ticos" adquiriram sentido, tornaram-se até alternativas atraentes
para a experiência da morte tal como eu a conhecia. Sentado lodas derivadas de um topos comum - o estabelecimento
junto ao cadáver de um homem que havia morrido horas delicado, mas bem-sucedido, de uma sensibilidade familiar,
antes, e ouvindo sua mulher, suas irmãs e suas filhas prantearem multo parecida com a nossa, num lugar intrigante mas des-
sua morte, imaginei aqueles ritos sendo praticados e aqueles
conhecido, que em nada se assemelha ao nosso. O drama fir-
lamentos sendo entoados na morte de meus parentes, em
minha própria morte. (...) Quando o irmão do morto entrou thiano da chegada ao pais termina em seu encontro com o
no aposento, as mulheres (...) começaram a entoar um lamen- chefe, que é quase uma audiência real. Depois disso, sabemos
to sobre dois irmãos que eram violentamente separados lllle eles se entenderão e tudo ficará bem. As reflexões ator-
quando se agarravam um ao outro, sentados nos galhos de
uma árvore arrastada por uma enxurrada furiosa. Pensei em
mentadas de Danforth sobre a Alteridade terminam em seu
meu irmão e chorei. A distância entre o Eu e o Outro havia- luto em eco, que é mais fantasia do que empatia. Depois disso,
se tornado realmente pequena. (Danforth, 1982, p. 5-7)6 subcrnos que o abismo se reduzirá, que a comunhão está pró-
Há grandes diferenças, é claro, nessas duas descrições xima. Os etnógrafos precisam convencer-nos (como fazem
do cenário e nesses posicionamentos do sujeito: uma é um I'HSl'Sdois, de maneira muito eficaz) não apenas de que eles
modelo de romance realista (Trollope? nos mares do Sul), a Illl'SIl10Srealmente "estiveram lá", mas ainda (como também
outra, um modelo de meditação filosófica (Heidegger na Gré- 1,1i',l'm,se bem que de modo menos óbvio) de que, se hou-
cia); uma é a preocupação científica de não ser suficientemente VI'SSl'1l10Sestado lá, teríamos visto o que viram, sentido o
neutro, outra, a preocupação humanista de não estar suficien- '1I1t'sentiram e concluído o que concluíram.
temente engajado. Expansividade retórica em 1936, seriedade Mas nem todos os textos etnográficos, e nem sequer a
1IIIIImiadeles, começam travando um combate com o dilema
di .issinarura de maneira tão enfática quanto esses dois. A
L. Danforth, T he death rituais of rural Greece, Princeton, N. J. Para uma queixa
6
111,111111:1,
ao contrário, tenta mantê-Io à distância, começando
moderna ou pós-moderna semelhante sobre "a antropologia da morte",
nascida de uma experiência pessoal - a morte acidental de sua esposa no 1'"1 descrições extensas e, não raro (em vista do que virá a
campo -, ver R. Rosaldo, "Grief and a headhunter's rage: on the cultural force (111),excessivamente detalhadas sobre o meio ambiente
of emotions", in E. Bruner (org.), Text,plC!)!,and story, 1983, Proceedings of the IlIIllIlllI, :I população e coisas semelhantes, ou por extensas
American Ethnological Society, Washington, 1984, p. 178-195: "[Na] maioria
IIMIWI!.Cll'S
teóricas às quais não se volta a fazer muita refe-
dos estudos antropológicos da morte, os analistas simplesmente eliminam
as emoções, assumindo a posição do mais neutro observador. Sua postura 111111.I\s representações explícitas da_prese~ça _do autor ten-
também equipara o ritualístico ao obrigatório, desconhece a relação entre o klll. t r uuo outros embaraços, a ficar relegadas aos prefácios,
ritual e a vida cotidiana e mistura o processo ritual com o processo do luto. A
tIL\!\ 1111:Ipêndices.
regra geral (...) parece consistir em que se deve arrumar as coisas ao máximo,
secando as lágrimas e ignorando os acessos de raiva" (p. 189).
~111~:I questão sempre aparece, por mais que se resista a
7 AnthonyTrollope (1815-1882), romancista inglês. (N. da T.)
1"/1 1l1aisque seja disfarçada. "O viajante da África Oci-
<) 28 <)
c 29 o
V OBRAS E VIDAS
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dental que penetra nesta região, vindo do sul", escreve Meyer cxcêutrico, Naven, parece consistir sobretudo em largadas frus-
Fortes na primeira página de seu estudo sobre os talensis (tal- II':IS e reconsiderações - preâmbulo após preâmbulo, epílogo
vez o mais rigorosamente objetivado de todos os grandes ~lp<'>S epílogo). De um modo ou de outro, contudo, ainda que
textos etnográficos - ele soa como um texto de direito escrito ,Iv maneira irreflexiva, e sejam quais forem os receios a respeito
por um botânico), "impressiona-se com o contraste com o
,10 adequação disso tudo, todos os etnógrafos conseguem fazê-
cinturão florestal. Conforme suas preferências, ele a verá com
I,). I ':xistem livros sumamente maçantes na antropologia, mas
prazer ou desalento, depois da escuridão maciça e gigantesca pOllCOS (se algum) murmúrios anônimos.
da floresta" (Fortes, 1967, p. 1).8 Não há dúvida sobre quem
é esse "viajante" ou a quem pertencem essas ambivalências, v v v
nem sobre o fato de que voltaremos a ouvir essa mesma nota, A outra questão preliminar ("de que o autor é autor?",
mais ou menos abafada como nesse ponto. "A Rodovia 61 ()lI () problema do discurso, como a chamei) também é pro-
estende-se por trezentos e vinte quilômetros de ricas terras posla, de maneira mais geral, no ensaio foucaultiano "Que é
negras, conhecidas como o Delta do Mississipi", começa o 11111 autor?" e num texto de Roland Barthes (mais sutil, a meu
belo livro que William Ferris escreveu, alguns anos atrás, sobre ver), "Autores e escritores", publicado cerca de dez anos antes.
os músicos negros do Sul rural, Blues from the Delta, "onde (Ibrlhes, 1982, p. 185-193).10
ftleiras de quilômetros de algodão e soja irradiam-se de suas
I'oucault enuncia a questão em termos de uma distinção
margens e cercam cidadezinhas ocasionais, como Lula, Alli-
entre os autores (a maioria de nós) "a quem a produção de
gator, Panther Burn, Nitta Yuma, Anguilla, Arcola e On-
IIltI texto, um livro ou uma obra pode ser legitimamente atri-
ward"(Ferris, 1979, p. 1).9 Fica bem claro (mesmo para quem
lu.kla" e aquelas figuras, de peso bem maior, que "são autoras
não sabe que Ferris nasceu no Delta) quem é a pessoa que
(...) de muito mais do que um livro"; são autoras de "( ...) uma
veio percorrendo essa rodovia.
Ii'mia, uma tradição ou uma disciplina em que outros livros e
Entrar em seus textos (isto é, introduzir-se neles repre- nuorcs, por sua vez, encontrarão seu lugar" (Foucault, op.
sentacionalmente) talvez seja tão difícil para os etnógrafos ,11., p. 153). Ele faz uma série de afirmações discutíveis sobre
quanto entrar numa cultura (ou seja, penetrar nela imaginati- l'IINt' fenômeno: diz que seus exemplos dos séculos XIX e XX
vamente). Para alguns, é possível que isso seja ainda mais (~1.lrx, Freud etc.) são tão radicalmente diferentes dos ante-
difícil (vem-nos à lembrança Gregory Bateson, cujo clássico til ires (Aristóteles, Santo Agostinho etc.) que não devem ser
v 30 v v 31 v
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comparados com eles; que o fenômeno não ocorre nas obras
"rir" 11111
objetivo (demonstrar, explicar, instruir), do qual a
de ficção; e que Galileu, Newton ou Einstein, embora (talvez
liilHllIlHl'1l)é meramente um meio; para ele, a linguagem
sabiamente) Foucault não mencione este último, não são
\I~III1LIurna práxis, mas não se constitui numa práxis. (00') É
exemplos adequados desse fenômeno. Todavia, o fato de que
k\'lllvlda il natureza de instrumento de comunicação, veículo
os "fundadores da discursividade", como ele bem os denomina
I" '1'I'IIS:lr'" (Barthes, 1982, p. 187, 189).12
- autores que produziram não apenas suas obras, mas que, ao
produzi-Ias, "produziram algo mais: as possibilidades e as ludo isso nos faz lembrar bastante a professora de "re-
regras de formação de outros textos" -, são cruciais não só 111,1111
íircional" de Pictures from an institution, de~ndal1 Jar-
para o desenvolvimento de disciplinas intelectuais, mas para 1111,1\qllc dividia as pessoas em "autores" e "pessoas", sendo
a própria natureza destas, é algo que, uma vez afIrmado, fica '1'I1 IIH autores eram pessoas e as pessoas não o eram. Na
flagrantemente óbvio. "Freud não é apenas o autor de A 11I11I11'()logia,
entretanto, é difícil negar o fato de que alguns
interpretação dos sonhos ou de Chistes e suas relações com o inconsciente; wllvfdllOS, como quer que os chamemos, instituem os termos
Marx não é somente o autor do Manifesto comunista ou de O .1,1cll~H urso em que, a partir daí, os outros passam a se mover
capital: os dois fundaram uma possibilidade interminável de 11111,menos por algum tempo, e à sua maneira. Todo o nosso
discurso" (ibid., p. 154). I IIl1pn diferencia-se nesses termos, quando enxergamos além
d.11II uhricas convencionais da vida acadêmica. Boas, Benedict,
Talvez ela apenas pareça interminável, mas sabemos o
~11I1I1\()wski,Radcliffe-Brown, Murdock, Evans-Pritchard,
que Foucault quer dizer. A maneira como Barthes formula
11lilldl' e Lévi-Strauss, para manter a lista curta, pretérita e
tudo isso consiste em distinguir o "autor" do "escritor" (e,
IIll'gada, remetem não só para determinadas obras (Padrões
noutro ponto, a "obra", que é aquilo que o "autor" produz, e
ltura, Social structure ou O pensamento selvagem), mas tam-
o "texto", que é o que produz o "escritor" (Barthes, 1979, P:
111111
para u~a forma de abordar as coisas antropológicas: eles
73-82)).11 O autor cumpre uma função, diz Barthes; o escritor
.huurrcarn a paisagem intelectual, diferenciam o campo de
exerce uma atividade. O autor participa do papel do sacerdote
dllll urso, It por isso que tendemos a descartar seus prenomes,
(Barthes o compara a um feiticeiro maussiano), o escritor, do
til I'IIIS de algum tempo, e a adjetivar seus sobrenomes:
papel exercido pelo escriba. Para um autor, "escrever" é um
IHIIt',I:lIlOou griaulista, ou, numa cunhagem sarcástica de Tal-
verbo intransitivo - "ele é um homem que absorve radi-
11III Parsons (ele próprio uma espécie de auteur barthesiano
calmente o porquê do mundo num como escrever". Para o escritor,
II1 1I11('i<
Ilogia), que sempre me agradou bastante, antropologia
"escrever" é um verbo transitivo - ele escreve algo. "Ele esta-
lu ru-dirina.
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<) 33 <)
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Essa distinção entre "autores" e "escritores", ou, na ver-
1'111lermos do discurso, como um até que ponto e de que
são de Foucault, entre fundadores de discursivi~ade e pro-
tuuncira compô-lo imaginativamente.
dutores de textos particulares, não tem propriamente um vaIo:.
intrínseco. Muitos dos que "escrevem" segundo tradições das v v v
quais outros foram "autores" podem superar em muito os seus
Considerando tudo isso, quero tomar como exemplos
modelos. Firth, e não Malinowski, é, provavelmente, nosso 11111'1
rativos quatro figuras muito diferentes - Claude Lévi-
melhor malinowskiano. Fortes obscurece Radcliffe-Brown a "Ir:tllSS, Edward Evan Evans-Pritchard, Bronislaw Malinowski
tal ponto que ficamos a nos indagar como pode tê-lo tomado I Rut h Benedict -, que, diga-se o que mais se disser a seu res-
como mestre. Kroeber fez o que Boas apenas prometeu. O I"'11I>,certamente são "autores" no sentido "intransitivo" de
fenômeno tampouco é bem apreendido na idéia simplista de lum ladores de discursividade; são estudiosos que assinaram
"escola", que o faz parecer uma questão de formação grupal, 1I1'IIS
textos com certa determinação e construíram teatros de
de nadar em cardume atrás de um peixe líder, e não o que ele 111IF,11:lgem
em que um grande número de outros, de maneira
é: uma questão da formação de um gênero, do movimento no IIIIIISou menos convincente, apresentaram-se, apresentam-
sentido de explorar possibilidades recém-reveladas de repre- ~I' I" sem dúvida, ao menos por algum tempo, continuarão a
sentação. Por último, também não se trata de um choque entre 'li' .iprcsentar.
tipos puros e absolutos. Aliás, Barthes encerra "Autores e escri-
I>retendo lidar com meus exemplares de maneira bem
tores" afirmando que a figura literária característica de nossa
dlll'Il"llle, não só porque eles são muito diferentes - um rnan-
época é um tipo bastardo, o "autor-escritor": o intelectual
.1'111111
da intelectualidade parisiense, um membro graduado
profissional, apanhado entre o desejo de criar uma estrutura
.I. ()x 1()I"(I,um polonês andarilho e uma intelectual nova-ior-
verbal fascinante, de entrar no que Barthes chama de "teatro
,,\Iili.! , mas porque, através deles, quero examinar questões
de linguagem", e o desejo de transmitir fatos e idéias, de co-
I•• "I diferentes. Lévi-Strauss, que discuto em primeiro lugar,
mercializar a informação, e que acaba se entregando, inter-
11111111":1
ele seja o mais recente, o mais obscuro e, em termos
mitentemente, a um ou a outro desses anseios. Seja como for,
IIltl"IIIlS, o mais radical dos quatro, coloca-nos dentro do tema
no caso do discurso propriamente literário ou no do discurso
111ulussima velocidade, em particular se nos concentrarmos,
propriamente científico, que ainda parecem inclinar-se, de
[111111
pretendo fazer, nesse livro anômalo que é Tristes Trá-
maneira bastante clara, para a linguagem como práxis ou para
11 1\ natureza extremamente textualiste desse livro, que faz
a linguagem como meio, o discurso antropológico decerto
,1111
~~i:lir:1 lodo momento seu caráter literário, fazendo eco
continua empacado como uma mula entre as duas alternativas.
I 111111111>
gêneros, um após outro, e não se enquadrando bem
A incerteza que aparece, em termos da assinatura, como um
1I11I1'ltlllll11acategoria senão a que lhe é própria, faz com que
até que ponto e de que maneira invadir o próprio texto, aparece,
11.1, tulvcz, () texto antropológico mais enfaticamente auto-
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referente de que dispomos, aquele que mais descaradamente
1111, dl'roroso, eles sejam tão astutos em sua construção
absorve o "porquê" do mundo num "como escrever". Além
I' 11111111 os de Lévi-Strauss, e igualmente instrutivos.!" Os
disso, como toda a obra de Lévi-Strauss, a relação desse texto
1111 III~ solidos que se dissolvem sob um olhar fixo não são
com a "realidade cultural" (seja isto o que for) é oblíqua, dis-
!lI 11I1~ inscinantes do que os objetos fantasmagóriéõs' que se
tante e complexamente tênue - um aparente aproximar-se
'11111111111. t" talvez se revelem ainda mais perturbadores.
que, na verdade, é um recuar -, de modo que questiona com
proveito as concepções aceitas sobre a natureza da etnografia. Nc I C:lSO de Malinowski, estarei menos interessado no
Lévi-Strauss tem, sem dúvida, um modo característico de "es- lIilCIl1l'Il1 si, sobre quem muito já se escreveu, do que naquilo
tar lá". Pensem os antropólogos o que pensarem de Tnstes 111i1 1,11' moldou. ''Autor'' barthesiano da observação parti-
Trópicos - que é uma bela história, uma visão reveladora, ou 111111111'. da tradição da escrita etnográfica calcada no "Não
mais um exemplo do que deu errado com os franceses _, pou- 1",111111 vsrivc lá, como fui um deles e falo com sua voz" (em-
cos saem de sua leitura sem ser ao menos um pouquinho des- Ili 11'I 11:10 Icnha sido o primeiro a praticá-Ia, é claro, assim
construídos. 111111 [nyrc, digamos, não foi o primeiro a usar a narrativa do
'li I. ti d,' consciência, nem Cervantes o primeiro a usar o pica-
Evans-Pritchard, é claro, é um caso completamente dife-
'-11), Malinowski fez da etnografia um assunto curiosamente
rente: um autor para cujo estilo - seguro, direto e arquitetônico
,111111" para dentro, uma questão de autotestagem e auto-
- parece ter sido inventado o grande oximoro "clareza ence-
1i1l1~r"lll1ação, e fez da redação dela uma forma de auto-
guecedora". Etnógrafo-aventureiro, deslocando-se com expe-
1111,010. A quebra da confiança epistemológica (e moral),
riente facilidade pelo mundo imperialista, como observador e
IUt, 1'1 H'sa r de toda a sua vociferação externa, começou com
ator, ele se dispôs a tornar clara a sociedade tribal, visível
lI! I "1110 podemos ver por seu Diário, de publicação mais
mesmo, como uma árvore frondosa ou um estábulo; seus li-
U~III, • desembocou agora numa quebra similar da con-
vros são retratos daquilo que descrevem, esboços da vida real.
illlll,il ""positiva e produziu uma enxurrada de remédios mais
O fato de esses livros, esses supostos modelos do que George
11 1111 110S desesperados. O toque meditativo da "Introdução"
Marcus e Dick Cushman chamaram de "realismo etnográfico",
Iti I 1l1111g Danforth (Quem sou eu para dizer estas coisas,
em sua resenha dos experimentos recentes nos textos antro-
1111 1]11" direito e com que finalidade, e como posso, enfim,
pológicos, haverem-se transformado em alguns dos textos
1111111',1111' dizê-las com franqueza?) é hoje ouvido por toda
mais intrigantes de toda a antropologia - lidos à larga e inces-
1111', ,'111 várias formas e com vários graus de intensidade.
santemente discutidos, vistos como ciência ou arte de alto
nível, enaltecidos como clássicos permanentes ou como expe-
rimentos heterodoxos, citados como exemplos por filósofos
li. ~I,IIII1S l" 1), Cushman, "Lthnographics as texts", in B. Siegel (org.),
ou celebrados por ecologistas - só faz sugerir que, em seu
111/(N°/MIII/ /III/};mp()/q~y, v. 2, Palo Alto, Califórnia, 1982.
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Escrever etnografia "do ponto de vista do nativo" dramati-
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de agulhas invisíveis em palheiros invisíveis.
zou, para Malinowski, suas esperanças de transcender a si
111"1,1111
ora 1 do "estar lá" vem ficando cada vez mais
mesmo; para muitos de seus mais fiéis descendentes, dra-
I, ,\ v:lIl1agcm de ~sviarmos para o fascínio da escrita
matiza o medo que eles têm de se iludir.
i( 111
I !'I Il:l ri c da atenção que temos dedicado ao fascínio
Finalmente, nos retratos esquemáticos e nas avaliações I.lh,dl\( I tlt' campo, que nos manteve aprisionados por tanto
sucintas de Benedict, mais um aspecto da natureza auto-re- Íljl'lIlol nao apenas em que essa dificuldade será entendida
flexiva do texto antropológico - onde estou eu, onde estão IYllli •• c lurcza, mas também em que aprenderemos a ler
eles - ressalta com particular clareza: o modo como essa escrita ulhar mais perspicaz, Cento e quinze anos de prosa
11111
sobre outras sociedades é sempre, ao mesmo tempo, uma es- 1i111V:l
t· inocência literária (se datarmos nossa profissão
pécie de comentário esópico sobre a sociedade do próprio i til .Iv 'l'y 1or, como se convenciona fazer) são mais do
sujeito. Para um norte-americano, resumir os zunhis, os kwa- ItlIIIVI1Ic.:S.
kiutl, os dobus ou os japoneses, em sua totalidade e intei-
reza, é, ao mesmo tempo, resumir os norte-americanos em
sua totalidade e inteireza; é torná-Ias tão provincianos, tão
extravagantes, tão cômicos e tão arbitrários quanto os feiticei-
ros e os samurais. O famoso relativismo de Benedict era menos
uma postura filosófica sistematicamente defendida, ou sequer
coerentemente sustentada, por falar nisso, do que o produto
de um modo particular de descrever os outros, um modo no
qual as esquisitices distantes eram levadas a questionar
pressupostos domésticos.
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