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Pensando sobre sexo:

Notas para uma teoria radical da política da


sexualidade*

Gayle S. Rubin**

I - As guerras sexuais

Consultado, o Dr. J. Guerin afirmou que, depois de ter


experimentado em vão outros tratamentos, ele
conseguira curar meninas viciadas em onanismo
queimando os seus clitóris com um ferro quente... Eu
aplico a ponta quente três vezes em cada grande
lábio e uma no clitóris... Depois da primeira operação,
o número de espasmos voluptuosos, que era de
*
In: ABELOVE,Henry; BARALE, Michèle Aina e HALPERIN, David. The Lesbian
and Gay Studies Reader. London/New York, Routledge, 1992. Gayle
S.Rubin, Publicado pela primeira vez em VANCE, Carole S. (ed.) Pleasure
and Danger: Exploring Female Sexuality, 1984.
**
Antropóloga feminista que escreveu sobre uma vasta gama de
assuntos, entre os quais teoria antropológica, sexo sadomasoquista e
literatura lésbica moderna. Neste ensaio, publicado pela primeira vez
em 1984, Rubin afirma que no Ocidente, a década de 1880, a década de
1950 e a era contemporânea foram períodos de pânico sexual, períodos
nos quais o Estado, as instituições médicas e a mídia popular se
mobilizaram para atacar e oprimir aqueles cujos gostos sexuais diferem
dos que são aceitos pelo modelo vigente de correção sexual. Ela afirma
também que na era contemporânea o ataque mais feroz é dirigido
contra aqueles que praticam sexo sadomasoquista e intergerações.
Rubin sustenta que se temos que desenvolver uma teoria que explique
o surgimento e a orientação do pânico sexual, temos que fundamentar
a teoria não apenas no pensamento feminista. Embora o pensamento
feminista explique as injustiças de gênero, ele por si só não pode
explicar, de forma completa, a opressão das minorias sexuais.
Atualmente Gayle S. Rubin está trabalhando numa coletânea de seus
ensaios – inclusive seu famoso trabalho teórico “Traffic in Women” – e
num trabalho etnográfico e histórico sobre a comunidade homossexual
masculina leather de San Francisco.

cadernos pagu (21) 2003: pp..


Pensando sobre sexo

catorze a quinze vezes por dia, diminuiu para três ou


quatro... Acreditamos, pois, que em casos
semelhantes àqueles que nos foram apresentados,
não se pode hesitar em recorrer ao ferro quente, e o
mais cedo possível, para combater o onanismo
clitoriano e vaginal em meninas. (Demetrius
Zambaco1)

Chegou a hora de pensar sobre sexo. Para alguns, a


sexualidade pode parecer um assunto sem importância,
um desvio frívolo de problemas mais graves como
pobreza, guerra, doença, racismo, fome ou destruição
nuclear. Mas é precisamente em épocas como essa,
quando vivemos sob a ameaça de uma destruição
inimaginável, que as pessoas ficam perigosamente
enlouquecidas com a sexualidade. Os conflitos
contemporâneos relacionados aos valores sexuais e ao
comportamento erótico têm muito em comum com os
conflitos religiosos de séculos passados. Eles adquirem um
imenso peso simbólico. Discussões sobre o
comportamento sexual muitas vezes são meios de
esquivar-se de preocupações sociais e descarregar as tensões
sociais que as acompanham. Assim sendo, a sexualidade
devia ser tratada com especial cuidado em tempos de
grande stress social.
O reino da sexualidade também tem sua própria política
interna, suas desigualdades e modos de opressão. E,
juntamente com outros aspectos do comportamento
humano, as formas institucionais concretas da sexualidade
em determinado tempo e lugar são produtos da ativi dade
humana. Elas são permeadas por conflitos de interesses e por
1
ZAMBACO, Demetrius. Onanism and Nervous Disorders in Two Little Girls.
In: PERALDI, François. (ed.) Polysexuality, Semiotext(e), vol. IV, nº 1,
1981, pp.31, 36.

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Gayle S. Rubin

manobras políticas, tanto deliberadas como acidentais.


Nesse sentido, o sexo é sempre político. Mas há também
períodos históricos em que as disputas em torno da
sexualidade são mais acirradas e mais abertamente
politizadas. Nesses períodos, o domínio da vida erótica é
renegociado.
A Inglaterra e os Estados Unidos viveram um período
como esse no final do século XIX. Nessa época, vigorosos
movimentos sociais preocuparam-se com “vícios” de todo
tipo. Havia campanhas educacionais e políticas para
promover a castidade, eliminar a prostituição e
desestimular a masturbação, especialmente entre os
jovens.Cruzados da moralidade atacavam a literatura
pornográfica, os nus na pintura, music-halls, o aborto,
informações sobre controle de natalidade e casas de
dança.2 A consolidação da moralidade vitoriana, assim como
o aparato social médico e jurídico que a respaldavam, eram
conseqüência de um longo período de luta cujos
resultados, desde então, têm sido objeto de uma disputa
feroz.
As conseqüências desses grandes paroxismos morais
do século XIX ainda estão presentes entre nós. Elas
deixaram uma marca profunda nas atitudes em relação a
sexo, nos procedimentos médicos, na educação das

2
GORDON, Linda e DUBOIS, Ellen. Seeking Ecstasy on the Battlefield:
Danger and Pleasure in Nineteenth Century Feminist Sexual Thought.
Feminist Studies, vol. 9, nº 1, primavera de 1983; MARCUS, Steven. The
Other Victorians. Nova York, New American Library, 1974; RYAN, Mary.
The Power of Women´s Networks: A Case Study of Female Moral Reform
in America. Feminist Studies, vol. 5, nº 1, 1979; WALKOWITZ, Judith R.
Prostitution and Victorian Society. Cambridge, Cambridge University
Press, 1980; e Male Vice and Feminist Virtue: Feminism and the Politics
of Prostitution in Nineteenth-Century Britain. History Workshop Journal,
nº 13, primavera de 1982; WEEKS, Jeffrey. Sex, Politics and Society: The
Regulation of Sexuality Since 1800. Nova York, Longman, 1981.

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Pensando sobre sexo

crianças, nas preocupações dos pais, na ação da polícia,


na legislação sobre sexo.
A idéia de que masturbação prejudica a saúde é parte
dessa herança. No século XVIII era crença geral que um
interesse “prematuro” por sexo, a excitação sexual e, acima
de tudo, a liberdade sexual, prejudicavam a saúde e
comprometiam o amadurecimento de uma criança. Os
teóricos divergiam sobre as reais conseqüências da
precocidade sexual. Alguns achavam que ela levava à
loucura, outros achavam que prejudicava o crescimento.
Para proteger os jovens do desp ertar prematuro para o
sexo, os pais amarravam as crianças à noite para que não
pudessem se tocar; os médicos amputavam os clitóris das
meninas que se masturbavam. 3 Embora as técnicas mais
terríveis tenham sido abandonadas, as atitudes e pontos
de vista que as motivaram persistem. A idéia de que o sexo,
em si mesmo, é prejudicial aos jovens se materializou em
estruturas sociais e jurídicas destinadas a afastar os jovens
do conhecimento e da experiência sexual.
Muito da legislação ainda vigente relativa a sexo data
das cruzadas morais do século XIX. A primeira lei federal
contra a obscenidade nos Estados Unidos foi aprovada em
1873. A Lei Comstock – que leva o nome de Anthony
Comstock, um velho ativista contra a pornografia e
fundador da New York Society for the Suppression of Vice –
tornou um crime federal fazer, anunciar, vender, possuir,
enviar pelo correio ou importar livros com ilustrações
consideradas obscenas. A lei também proibia as drogas e
dispositivos anticoncepcionais e abortivos, assim como a
divulgação de informações sobre eles. 4 Na esteira da lei
3
BARKER-BENFIELD, G.J. The Horrors of the Half-Known Life. Nova York,
Harper Colophon, 1976; MARCUS, S. The Other Victorians. Op. cit.; WEEKS,
J. Sex, Politics and Society… Op. cit., principalmente páginas 48-52;
ZAMBACO, D. Onanism and Nervous... Op. cit.
4
BESSERA, Sarah Senefield; FRANKLIN, Sterling G. e CLEVENGER, Norma.
(eds.) Sex Code of California. Sacramento, Planned Parenthood Affiliates
of California, 1977, p.113.

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Gayle S. Rubin

federal, muitos Estados criaram suas próprias leis contra a


obscenidade.
Na década de 1950, a Suprema Corte começou a
limitar o alcance da lei Comstock tanto nos estados como no
âmbito Federal. Em 1975, a proibição do uso de métodos
anticoncepcionais e da veiculação de informações sobre
estes se tornou inconstitucional. Não obstante, embora as
disposições legais tenham sido modificadas, sua
constitucionalidade fundamental foi preservada. Assim,
continua sendo crime fazer, vender, enviar pelo correio ou
importar material com a finalidade exclusiva de provocar
excitação sexual.5
Embora as disposições legais sobre a sodomia datem
de estratos mais antigos da lei, quando elementos do
direito canônico foram incorporados aos códigos civis, a
maioria das leis que determinavam a prisão de
homossexuais e prostitutas deriva das campanhas
vitorianas contra a “escravidão branca”. Essas campanhas
levaram às miríades de proibições: contra abordagem de
potenciais clientes pelas prostitutas, comportamento
indecente, vagabundear para fins imorais, atos que só são
considerados criminosos em função da idade de quem os
pratica, bordéis e casas de tolerância.
Em sua discussão sobre o medo britânico da “escrava
branca”, a historiadora Judith Walkowitz observa:

Pesquisas recentes indicam uma vasta discrepância


entre relatos jornalísticos horripilantes e a realidade
da prostituição. Há poucos registros de prisão de
moças em Londres e em outras cidades.6 6

Contudo, a fúria do público com esse pretenso problema...

5
ID., IB., pp.113-17.
6
WALKOWITZ, J. R. Male Vice and Feminist Virtue. Op. cit., p.83. Toda a
discussão de Walkowitz sobre Maiden Tribute of Modern Babylon e suas
consequências (pp.83-5) é muito esclarecedora.

5
Pensando sobre sexo

...levou à promulgação da Emenda do Direito Penal


de 1885, uma lei bastante abrangente e
particularmente odiosa e perniciosa. A lei de 1885
elevou de 13 para 16 a idade do consentimento, e
também ampliou muitíssimo o poder da polícia sobre
as mulheres e crianças pobres das classes
trabalhadoras... ela continha uma cláusula que
criminalizava os atos indecentes praticados de
comum acordo por homens, criando assim as bases
legais para que se pudessem processar
homossexuais homens na Grã Bretanha até 1967... as
cláusulas da nova lei foram aplicadas principalmente
contra as mulheres da classe trabalhadora, e
disciplinavam mais o comportamento sexual dos
adultos que o dos jovens.7
Nos Estados Unidos, a Lei Mann, também conhecida
como Lei do Tráfico de Escravas Brancas, foi promulgada
em 1910. Posteriormente, todos os estados da União
aprovaram uma legislação contra a prostituição. 8
Na década de 1950, nos Estados Unidos, aconteceram
mudanças mais importantes em relação à organização da
sexualidade. Em vez de se concentrar na prostituição e na
masturbação, as preocupações da década de 1950
voltaram-se mais especificamente para o fantasma da
“ameaça homossexual” e o dúbio espectro do “criminoso
sexual”. Pouco antes e pouco depois da Segunda Guerra
Mundial, o “criminoso sexual” se tornou objeto do temor e
da vigilância pública. Muitos estados e cidades, inclusive
Massachusetts, New Hampshire, Nova Jersey, Estado de
Nova York, Cidade de Nova York e Michigan, iniciaram
programas para colher informações sobre essa ameaça à
segurança pública.9 O termo “criminoso sexual” às vezes
7
ID., IB., p.85.
8
BESSERA, S. S. et alii (eds.) Sex Code of California. Op. cit., pp.106-7.
9
COMMONWEALTH OF MASSACHUSETTS. Preliminary Report of the Special
Commission Investigating the Prevalence of Sex Crimes, 1947; ESTADO
DE NEW HAMPSHIRE. Report of the Interim Commission of the State of New
Hampshire to Study the Cause and Prevention of Serious Sex Crimes,

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Gayle S. Rubin

era aplicado aos estupradores, às vezes aos “molestadores


de crianças” e finalmente passou a designar, em
linguagem cifrada, os homossexuais. Em suas versões
burocráticas, médicas e populares, o discurso sobre o
criminoso sexual tendia a apagar as distinções entre
ataque sexual violento e atos ilegais, mas consensuais,
como sodomia, por exemplo. A justiça criminal incorporou
essas idéias quando uma onda de leis relativas a
psicopatas sexuais assolou a legislação dos Estados. 10
Essas leis deram às profissões ligadas à psicologia um
maior poder de polícia sobre os homossexuais e outros
“desviados”.
Do final da década de 1940 até o começo da década
de 1960 as comunidades eróticas cujas atividades não se
coadunavam com o sonho americano do pós-guerra
sofreram intensa perseguição. Os homossexuais,
juntamente com os comunistas, foram objeto da caça às
bruxas e dos expurgos que se davam em nível federal.
Inquéritos parlamentares, decretos-lei e denúncias
públicas sensacionalistas objetivavam banir os
homossexuais do serviço público. Milhares perderam seus
empregos, e até hoje ainda existem restrições ao emprego
de homossexuais no serviço público federal. 11 O FBI
1949; CIDADE DE NOVA YORK. Report of the Mayor´s Committee for the
Study of Sex Offences, 1939; ESTADO DE NOVA YORK. Report to the
Governor on a Study of 102 Sex Offenders at Sing Prison, 1950;
HARTWELL, Samuel. A Citizen´s Handbook of Sexual Abnormalities and
the Mental Hygiene Approach to Their Prevention. Estado de Michigan,
1950; ESTADO DE MICHIGAN, Report on the Governor´s Study Commission
on the Deviated Criminal Sex Offender, 1951. Aqui temos apenas uma
amostra.
10
FREEDMAN, Estelle B. “Uncontrolled Desire”: The Threat of the Sexual
Psychopath in America, 1935-1960. Trabalho apresentado no Encontro
Anual da American Historical Association, San Francisco, dezembro de
1983.
11
BÉRUBÉ, Allan. Behind the Spectre of San Francisco. Body Politic, abril
de 1981; e Marching to a Different Drummer. Advocate, 15 de outubro
de 1981; D´EMILIO, John. Sexual Politics, Sexual Communities: The

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Pensando sobre sexo

começou a vigiar e a importunar de forma sistemática os


homossexuais, e isso durou pelo menos até a década de
1970.12
Muitos estados e cidades grandes conduziram suas
próprias investigações, e a caça às bruxas em âmbito
federal refletiu-se em grande número de punições severas
locais. Em Boise, Idaho, em 1955, um professor primário
sentou-se para tomar café e leu no jornal que o vice-
presidente do First National Bank de Idaho fora preso sob
acusação de ter praticado felonia e sodomia; o promotor
local afirmou pretender eliminar completamente o
homossexualismo na comunidade. O professor não
terminou de tomar o café.

Ele pulou da cadeira, arrumou suas malas o mais


depressa que pôde, pegou o carro e foi direto para
San Francisco... Os ovos frios, o café e as torradas
ficaram em sua mesa por dois dias, antes que alguém
da escola viesse ver o que se passara.13
Em San Francisco a polícia e a mídia moveram guerra
contra os homossexuais ao longo de toda a década de
1950. A polícia fazia batidas em bares, patrulhava regiões
onde se faziam encontros, vasculhava ruas e anunciava
aos quatro ventos sua intenção de banir as bichas de San
Francisco.14 Punições severas contra indivíduos, bares e
áreas de convivência aconteciam em todo o país. Embora

Making of the Homosexual Minority in the United States, 1940-1970.


Chicago, University of Chicago Press, 1983; KATZ, Jonathan. Gay
American History. Nova York, Thomas Y. Crowell, 1976.
12
D´EMILIO, J. Sexual Politics... Op. cit., pp.46-7; Allan Bérubé,
comunicação pessoal.
13
GERASSI, John. The Boys of Boise. Nova York, Collier, 1968, p.14.
Agradeço a Allan Bérubé por ter me chamado a atenção para esse
incidente.
14
Allan Bérubé, comunicação pessoal; D´EMILIO, J. Sexual Politics... Op.
cit.; e Gay Politics, Gay Communitiy: San Francisco´s Experience.
Socialist Review, nº 55, janeiro-fevereiro de 1981.

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Gayle S. Rubin

as cruzadas contra os homossexuais sejam os exemplos


mais bem documentados de repressão erótica na década
de 1950, uma pesquisa futura poderia revelar padrões
semelhantes de repressão crescente contra materiais
pornográficos, prostitutas e desviantes eróticos de todos
os tipos. É necessário fazer uma pesquisa para avaliar
todo o alcance da perseguição policial e da reforma da
legislação.15

15
Os exemplos seguintes apontam alguns caminhos para novas
pesquisas. Encontra-se um relato de uma ação repressiva local na
Universidade de Michigan em Tsang, Daniel. Gay Ann Arbor Purges.
Midwest Gay Academic Journal, vol. 1, nº 1, 1977; e em Ann Arbor Gay
Purges part. 2. Midwest Gay Academic Journal, vol. 1, nº 2, 1977. Na
Universidade de Michigan, o número de professores demitidos por
suposto homossexualismo revela-se próximo do número de demitidos
por supostas tendências comunistas. Seria interessante poder analisar
dados estatísticos sobre o número de professores que perderam seus
cargos nessa época por crimes políticos, comparando-os com os que os
perderam por delitos sexuais. Na reforma da legislação, muitos estados
aprovaram leis proibindo a venda de bebidas alcoólicas a “notórios
pervertidos sexuais” ou determinando o fechamento de bares que
atendiam a uma clientela de “pervertidos sexuais”. Uma lei desse tipo
foi aprovada na Califórnia em 1955, e declarada inconstitucional pela
Suprema Corte em 1959 (Allan Bérubé, comunicação pessoal). Seria
muito interessante saber exatamente que estados aprovaram leis como
essas, as datas de sua aprovação, a discussão que as precedeu, e
quantas ainda estão em vigor. Sobre a perseguição de outros grupos
eróticos, há provas de que John Willie e Irving Klaw, os dois primeiros
produtores e distribuidores de bondage erótica nos Estados Unidos do
final da década de 1940 até o início da década de 1960, tiveram muitos
problemas com a polícia e que Klaw foi submetido a um inquérito
parlamentar conduzido pelo Comitê Kefauver. Devo à comunicação
pessoal de J.B. Rund as informações sobre as carreiras de Willie e Klaw.
São raros os textos publicados sobre o assunto, mas vejam-se WILLIE,
John. The Adventures of Sweet Gwendoline. Nova York, Belier Press,
1974; RUND, J.B. Preface. Bizarre Comix, vol. 8, Nova York, Belier Press,
1977; Preface. Bizarre Fotos, vol. 1, Nova York, Belier Press, 1978; e
Preface. Bizarre Katalogs, Nova York, Belier Press, 1979. Seria muito útil
ter informações mais sistemáticas sobre mudanças jurídicas e sobre
ações policiais que afetaram a dissidência erótica não gay.

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Pensando sobre sexo

O momento presente tem semelhanças incômodas


com as décadas de 1880 e de 1950. A campanha de 1977
para revogar as leis que garantiam direitos gays em Dade,
Flórida, deu início a uma nova onda de violência,
perseguição pelo Estado e medidas jurídicas dirigidas
contra minorias sexuais e contra a indústria do sexo. Nos
últimos seis anos, os Estados Unidos e o Canadá sofreram
uma grande repressão sexual, no sentido político e não
psicológico. Na primavera de 1977, poucas semanas antes
da votação de Dade, os noticiários da mídia estavam
cheios de reportagens sobre batidas em áreas de
encontros homossexuais, detenções por prostituição e
investigações sobre a produção e distribuição de materiais
pornográficos. Desde então, a ação policial contra a
comunidade gay cresceu de forma exponencial. A
imprensa gay documentou centenas de prisões, em
lugares como as bibliotecas de Boston, as ruas de Houston
e as praias de San Francisco. Mesmo as comunidades
urbanas gays de grande porte, organizadas e
relativamente poderosas, não conseguiram evitar esses
ataques. Saunas e bares de gays eram depredados numa
freqüência assustadora, e a polícia ficou mais atrevida.
Num incidente especialmente dramático, os policiais de
Toronto fizeram uma batida nas quatro saunas de gays da
cidade. Eles arrombaram cubículos com pés-de-cabra e
arrastaram para as ruas frias quase trezentos homens
envoltos em suas toalhas. Nem a “liberada” San Francisco
ficou imune. Instauraram-se processos contra muitos
bares, fizeram-se muitas prisões em parques e, no outono
de 1981, a polícia deteve mais de 400 pessoas numa série
de batidas em Polk Street, artéria de maior movimento da
vida noturna gay local. Agredir homossexuais se tornou um
dos maiores divertimentos para os jovens machões da
cidade. Eles entravam nas zonas de concentração gay
armados com tacos de beisebol e procurando confusão,

10
Gayle S. Rubin

sabendo que seus responsáveis adultos os aprovariam


secretamente ou olhariam para o outro lado.
A repressão da polícia não se limitou aos
homossexuais. A partir de 1977, passou-se a aplicar com
maior freqüência as leis já existentes contra a prostituição
e a obscenidade. Além disso, os estados e municípios
começaram a tomar novas e mais rigorosas medidas
jurídicas para controle do sexo comercial. Promulgaram-se
leis restritivas, alteraram-se leis de zoneamento,
reformaram-se regulamentos referentes a alvarás de
funcionamento e segurança, multiplicaram-se as
sentenças e reduziram-se as exigências probatórias. Essa
sutil manobra jurídica para um controle mais rigoroso
sobre o comportamento sexual dos adultos foi
praticamente ignorada fora da imprensa gay.
Por todo um século, nenhum meio para despertar
uma histeria erótica foi mais eficiente que conclamar as
pessoas para proteger as crianças. A atual onda de terror
erótico penetrou mais fundo nas áreas que de certa forma
confinam, ainda que apenas simbolicamente, com a
sexualidade dos jovens. O lema da campanha pela
revogação das já referidas leis de Dade era “Salvem
Nossas Crianças” – de um suposto aliciamento
homossexual. Em fevereiro de 1977, pouco antes da
votação de Dade, uma preocupação súbita com o tema da
“pornografia infantil” sacudiu a mídia nacional. Em maio, o
Chicago Tribune publicou durante quatro dias uma sombria
série com manchetes garrafais que pretendia denunciar
um grupo de delinqüentes organizados para atrair e
recrutar meninos para a prostituição e pornografia. 16 Em
16
Chigago is Center of National Child Porno Ring: The Child Predators;
Child Sex: Square in New Town Tells it All; U.S. Orders Hearings On Child
Pornography: Rodino Calls Sex Racket an “Outrage” “Hunt Six Men,
Twenty Boys in Crackdown, Chicago Tribune, 16 de maio de 1977;
Dentist Seized in Child Sex Raid: Carey to Open Probe; How Ruses Lure
Victms to Child Pornographers, Chicago Tribune, 17 de maio de 1977;
Child Pornographers Thrive on Legal Confusion; U.S. Raids Hit Porn

11
Pensando sobre sexo

todo o país, os jornais publicaram histórias semelhantes,


com a duvidosa credibilidade do National Enquirer. No fim
de maio, estava em curso um inquérito parlamentar.
Algumas semanas depois, o governo federal promulgou
uma extensa lei contra a “pornografia infantil” e muitos
estados a acompanharam, aprovando suas próprias leis.
Essas leis restabeleceram restrições a materiais de tema
sexual que tinham sido abrandadas por uma das
importantes decisões da Suprema Corte. Por exemplo, a
Corte estabeleceu que nem a nudez nem o ato sexual em
si eram obscenos. Mas as leis sobre pornografia infantil
definem como obscena qualquer representação de
menores nus ou entregues à prática sexual. Isso significa
que fotografias de crianças nuas em livros-texto de
antropologia e muitos dos filmes etnográficos exibidos nas
escolas são tecnicamente ilegais em muitos estados. Na
verdade, os monitores podem sofrer uma acusação
adicional de felonia por mostrar essas imagens a alunos
com menos de 18 anos. Embora a Suprema Corte tenha
determinado ser um direito constitucional possuir material
obsceno para uso particular, algumas leis contra
pornografia infantil proíbem mesmo a posse privada de
qualquer material sexual que envolva menores.
As leis geradas pelo pânico da pornografia infantil são
mal elaboradas e mal direcionadas. Elas implicam
alterações de longo alcance na legislação sobre o
comportamento sexual e revogam importantes liberdades
sexuais civis. Mas poucos perceberam quando elas
assolaram o Congresso e as Assembléias estaduais. Com
exceção da North American Man/Boy Love Association e da
American Civil Liberties Union, ninguém ensaiou um
protesto.17

Sellers, Chicago Tribune, 18 de maio de 1977.


17
Para mais informações sobre o “pavor da pornografia infantil”, ver
CALIFIA, Pat. The Great Kiddy Porn Scare of ´77 and Its Aftermath.
Advocate, 16 de outubro de 1980; e A Thorny Issue Splits a Movement.

12
Gayle S. Rubin

Um novo e ainda mais duro projeto de lei federal


contra a pornografia infantil acaba de chegar ao Senado.
Ela revoga a exigência, feita aos promotores, de provar
que a suposta pornografia infantil estava sendo distribuída
para ser comercializada. Se o projeto for transformado em
lei, uma pessoa que simplesmente possua a fotografia de
seu namorado(a) de dezessete anos despido, pode ir para
a cadeia e cumprir quinze anos de pena e pagar uma
multa de 100.000 dólares. O projeto foi aprovado na
Câmara por 400 votos a 1.18
A caso da fotógrafa de arte Jacqueline Livingston
mostra bem o clima criado pelo pânico da pornografia
infantil. Professora assistente de fotografia da
Universidade de Cornell, Livingston foi demitida em 1978
por ter exposto fotografias de pessoas do sexo masculino
nuas, inclusive a de seu filho de sete anos se
masturbando. As revistas Ms. Magazine, Chrysalis e Art
News se recusaram a publicar anúncios dos pôsteres de
Livingston mostrando homens nus. A certa altura, a Kodak
confiscou alguns de seus filmes e, por muitos meses,
Livingston viveu sob a ameaça de sofrer um processo com
base nas leis contra a pornografia infantil. O Departamento
de Serviço Social de Tompkins investigou se ela era capaz
de exercer convenientemente a maternidade. Os pôsteres
de Livingston foram comprados pelo Museum of Modern
Art, o Metropolitan, e por outros grandes museus. Mas ela

Advocate, 30 de outubro de 1980; MITZEL. The Boston Sex Scandal.


Boston, Glad Day Books, 1980; RUBIN, Gayle. Sexual Politics, the New
Right, and the Sexual Fringe. In: TSANG, Daniel. (ed.) The Age Taboo.
Boston, Alyson Publications, 1981. Sobre a questão dos relacionamentos
entre gerações diferentes, ver também MOODY, Roger. Indecent Assault.
Londres, Word is Out Press, 1980; O´CARROLL, Tom. Paedophilia: The
Radical Case. Londres, Peter Owen, 1980; TSANG, D. The Age Taboo. Op.
cit.; e WILSON, Paul. The Man They Called A Monster. New South Wales,
Cassell Australia, 1981.
18
House Passes Though Bill on Child Porn. San Francisco Chronicle, 15
de novembro de 1983, p.14.

13
Pensando sobre sexo

pagou um preço muito alto – teve que suportar a


perseguição e a ansiedade – por seu esforço para registrar
em filme o nu masculino, sem censura, em diferentes
idades.19
É fácil reconhecer numa pessoa como Livinston uma
vítima das campanhas contra a pornografia infantil. É mais
difícil para a maioria das pessoas simpatizar com os
homens que gostam de meninos. Como os comunistas e os
homossexuais na década de 1950, eles são tão
estigmatizados que é difícil achar quem defenda suas
liberdades civis, sem falar em sua orientação erótica.
Conseqüentemente, a polícia abusou deles o quanto quis.
As polícias locais, o FBI e zelosos inspetores dos correios se
juntaram para criar um gigantesco aparato com o único
objetivo de limpar a comunidade de homens que amam
jovens de menor idade. Dentro de uns vinte anos, quando
a poeira tiver baixado, será mais fácil mostrar que esses
homens foram vítimas de uma imerecida caça às bruxas.
Muitas pessoas se sentirão constrangidas por sua
colaboração com essa perseguição, mas será tarde demais
para fazer alguma coisa de bom para esses homens que
passaram suas vidas na prisão.
A desgraça dos homens que amam meninos afeta
pouca gente, mas o outro legado duradouro da revogação
de leis de Dade afeta quase todo mundo. O sucesso da
campanha anti-gay alimentou um ódio duradouro da
direita americana, e foi o estopim que deu origem a um
amplo movimento para estreitar os limites do
comportamento sexual aceitável.
O fato de a ideologia da direita associar sexo fora do
âmbito familiar a comunismo e debilidade política não é
uma coisa nova. No período macartista, Alfred Kinsey e
seu Instituto para Pesquisas sobre Sexo foram atacados

19
STAMBOLIAN, George. Creating the New Man: A Conversation with
Jacqueline Livingston. Christopher Street, maio de 1980; Jacqueline
Livingston. Clothed With the Sun, vol. 3, nº 1, maio de 1983.

14
Gayle S. Rubin

por debilitar o ânimo moral dos americanos, tornando-os


mais vulneráveis à influência do comunismo. Em 1954,
depois de inquéritos parlamentares e campanhas de
difamação pela imprensa, a subvenção de Rockefeller ao
instituto de pesquisa de Kinsey foi cortada. 20
Por volta de 1969, a extrema direita descobriu o Sex
Information and Education Council of the United States
(SIECUS). Em livros e panfletos como The Sex Education
Racket: Pornography in the School e SIECUS: Corrupter of
Youth, a direita acusou o SIECUS e a educação sexual de
serem uma estratégia comunista para destruir a família e
debilitar o ânimo da nação.21 Outro panfleto, Pavlov´s
Children (They may be Yours), afirma que a UNESCO está
de conluio com o SIECUS para solapar os tabus religiosos,
promover a aceitação de relações sexuais anormais,
degradar os padrões morais absolutos e para “destruir a
coesão racial” pela exposição de pessoas brancas
(principalmente as mulheres brancas) aos supostos
padrões sexuais “mais baixos” dos negros. 22
A Nova Direita e a ideologia neoconservadora
atualizaram esses temas e apostam na estratégia de
associar comportamento sexual “imoral” ao suposto
declínio do poder da nação americana. Em 1977, Norman
Podhoretz escreveu um ensaio acusando os homossexuais
pela suposta incapacidade dos Estados Unidos de
enfrentar os russos.23 Com isso, estabelecia-se uma clara
20
GEBHARD, Paul H. The Institute. In: WEINBERG, Martin S. (ed.) Sex
Research: Studies from the Kinsey Institute. Nova York, Oxford
University Press, 1976.
21
COURTNEY, Phoebe. The Sex Education Racket: Pornography in the
Schools (An Exposé). Nova Orleans, Free Men Speak, 1969; DRAKE, Dr.
Gordon V. SIECUS: Corrupter of Youth. Tulsa, Oklahoma, Chistian
Crusade Publications, 1969.
22
Pavlov´s Children (They May Be Yours). Impact Publishers, Los
Angeles, Califórnia, 1969.
23
PODHORETZ, Norman. The Culture of Appeasement. Harper´s, outubro
de 1977.

15
Pensando sobre sexo

relação entre “a luta anti-gay no âmbito nacional e as lutas


anticomunistas na política externa”.24
A oposição da ala direita à educação sexual, ao
homossexualismo, à pornografia, ao aborto e ao sexo
antes do casamento passou da zona mais periférica para o
centro da arena política a partir de 1977, quando os
estrategistas da direita e os fundamentalistas religiosos
descobriram que as massas eram muito receptivas a esses
temas. A reação sexual teve um papel importante no
sucesso eleitoral da direita em 1980.25 Organizações como
Moral Majority and Citizens for Decency conquistaram
multidões de adeptos, vultosos recursos financeiros e uma
inimaginável força política. A Emenda de Igualdade de
Direitos foi derrotada, criaram-se novas restrições legais
contra o aborto e cortaram-se verbas para programas
como o de Planejamento Familiar e educação sexual.
Promulgaram-se leis e regulamentos para dificultar o
acesso das adolescentes ao aborto e a preservativos. O
retrocesso sexual foi explorado em ataques bem-sucedidos
ao Programa de Estudos Femininos da California State
University em Long Beach.
A iniciativa mais ambiciosa da direita em termos de
legislação foi a FPA (Lei de Proteção à Família),
apresentada ao Congresso em 1979. Essa lei constitui um
24
WOLFE, Alan e SANDERS, Jerry. Resurgent Cold War Ideology: The Case of
the Committee on the Present Danger. In: FAGEN, Richard. (ed.)
Capitalism and the State in U.S.- Latin American Relations. Stanford,
Stanford University Press, 1979.
25
BRESLIN, Jimmy. The Moral Majority in Your Motel Room. San Francisco
Chronicle, 22 de janeiro de 1981, p.41; GORDON, Linda e HUNTER, Allen.
Sex, Familiy, and the New Right. Radical America, inverno 1977-8;
GREGORY-LEWIS, Sasha. The Neo-Right Political Apparatus. Advocate, 8 de
fevereiro de 1977; Right Wing Finds New Organizing Tactic. Advocate, 23
de junho de 1977; Unravelling the Anti-Gay Network. Advocate, 7 de
setembro de 1977; KOPKIND, Andrew. America´s New Right. New Times,
30 de setembro de 1977; PETCHESKY, Rosalind Pollack. Anti-abortion,
Anti-feminism, and the Rise of the New Right. Feminist Studies, vol. 7,
nº 2, verão de 1981.

16
Gayle S. Rubin

amplo ataque ao feminismo, aos homossexuais e às


famílias não convencionais e à privacidade sexual dos
adolescentes.26 Muito provavelmente a FPA não vai ser
aprovada, mas os parlamentares conservadores continuam
a implementar o seu programa de forma mais gradual.
Talvez o símbolo mais evidente dos tempos é o Adolescent
Family Life Program. Também conhecido como Programa
de Castidade dos Adolescentes, ele recebe 15 milhões de
dólares de subvenção federal para desestimular os
adolescentes a ter relações sexuais, para convencê-los a
não usar anticoncepcionais quando fazem sexo e evitar o
aborto em caso de gravidez. Nos últimos anos, houve
inúmeros conflitos localizados em relação a direitos dos
gays, educação sexual, direito de aborto, livrarias para
adultos e currículo da escola pública. Não há indícios de
que o retrocesso sexual tenha acabado, e nem ao menos
de que já atingiu o seu ponto máximo. A menos que haja
uma mudança radical, é muito provável que nos próximos
anos assistamos a uma exacerbação dessa tendência.
Períodos como a década de 1880 na Inglaterra e a de
1950 nos Estados Unidos reformulam as relações de
sexualidade. As lutas travadas deixam um resíduo
expresso em leis, práticas sociais e ideologias que afetam
a forma como se vivencia a sexualidade, muito tempo
depois de os conflitos se terem encerrado. Tudo indica que
o período atual é mais um divisor de águas na política do
sexo. O legado da década de 1980 terá um impacto num
futuro distante. É absolutamente necessário, portanto,
entender o que está acontecendo e o que está em jogo
para tomar decisões fundamentadas sobre que política
apoiar e que política combater.
É difícil tomar essas decisões na falta de um coerente
e inteligente corpus de pensamento radical sobre sexo.
Infelizmente, as análises políticas progressistas da
26
Brown, Rhonda. Blueprint for a Moral America. Nation, 23 de maio de
1981.

17
Pensando sobre sexo

sexualidade ainda são muito incipientes. Muito do material


do movimento feminista contribuiu para a confusão que
envolve o assunto. É necessário urgentemente
desenvolver pontos de vista radicais sobre a sexualidade.
Paradoxalmente, houve uma verdadeira irrupção de
escritos políticos e eruditos muito interessantes sobre sexo
nesses anos sombrios. Na década de 1950, iniciou-se e
desenvolveu-se o ainda incipiente movimento pelos
direitos dos gays, ao mesmo tempo em que os bares
sofriam batidas policiais e se promulgavam leis anti-gays.
Nos últimos seis anos, desenvolveram-se novas
comunidades eróticas, alianças e análises políticas em
meio à repressão. Neste ensaio, proponho elementos de
um quadro descritivo e conceitual para refletir sobre sexo
e política. Espero contribuir para a urgente tarefa de criar
uma criteriosa, humana e genuinamente libertária reflexão
sobre a sexualidade.

II - Reflexões sobre sexo

“Sabe, Tim”, disse Phillip de repente, “o que você diz


não é razoável. Suponha que eu admita que o
homossexualismo é justificável em determinados
casos e com algumas restrições. Mas aí temos um
problema: até onde vai a justificação e onde começa
a degeneração? A sociedade deve condenar para
proteger. Permita-se um lugar de respeito mesmo a
um homossexual intelectual e cai a primeira barreira.
Então vem a seguinte, depois outra, até que o sádico,
o flagelador, os malucos criminosos vão reivindicar o
seu lugar, e a sociedade deixa de existir. Então eu
pergunto novamente: qual a linha que separa uma
coisa da outra? Onde começa a degeneração senão
no começo da liberdade individual nesses assuntos?”
(Trecho de uma discussão entre dois homens gays

18
Gayle S. Rubin

tentando decidir se podiam se amar, de um romance


publicado em 1950.27)

Uma teoria radical do sexo deve identificar,


descrever, explicar e denunciar a injustiça erótica e a
opressão sexual. Essa teoria requer instrumentos
conceituais refinados que possam apreender o tema e
colocá-lo em pauta. Deve apresentar ricas descrições da
sexualidade tal como ela existe na sociedade e na história.
Ela exige uma linguagem crítica convincente que possa
comunicar a barbaridade da perseguição sexual.
Vários traços duradouros do pensamento sobre o sexo
inibem o desenvolvimento de uma teoria como essa. Essas
idéias permeiam de tal forma a cultura ocidental que
raramente são questionadas. Assim, elas terminam por
ressurgir em contextos políticos diferentes, valendo-se de
outro estilo para se exprimir, mas reproduzindo suas
premissas básicas.
Um desses axiomas é o essencialismo sexual – a idéia
de que o sexo é uma força natural que existe antes da vida
social e molda as instituições. O essencialismo sexual
baseia-se na sabedoria popular das sociedades ocidentais,
que considera o sexo eternamente imutável, associal e não
histórico. Dominado por mais de um século pela medicina,
pela psiquiatria e pela psicologia, o estudo acadêmico do
sexo reproduziu o essencialismo. Esses campos de estudo
classificam o sexo como propriedade de indivíduos.
Certamente ele está em seus hormônios e em suas
psiques. Ele pode ser considerado como fisiológico ou
psicológico. Mas dentro dessas categorias etnocientíficas,
a sexualidade não tem história nem determinantes sociais
importantes.
Nos últimos cinco anos, uma sofisticada cultura
histórica e teórica desafiou o essencialismo sexual de
forma explícita e também implícita. A história gay,
27
Barr, James. Quatrefoil. Nova York, Greenberg, 1950, p.310.

19
Pensando sobre sexo

especialmente o trabalho de Jeffrey Weeks, liderou esse


ataque mostrando que o homossexualismo tal como o
conhecemos é um complexo institucional relativamente
moderno.28 Muitos historiadores chegaram a considerar as
formas institucionais contemporâneas de
heterossexualismo como ainda mais recentes.29 Uma das
pessoas que muito contribuíram para essa nova cultura é
Judith Walkowitz, cuja pesquisa demonstrou o quanto a
prostituição sofreu transformações por volta da virada do
século XIX para o século XX. Ela apresenta descrições
minuciosas de como a interação de forças sociais como a
ideologia, o medo, a agitação política, a reforma jurídica, e
a clínica médica podem mudar a estrutura do
comportamento sexual e suas conseqüências. 30
A História da Sexualidade, de Michel Foucault, foi o
texto mais influente e mais emblemático desse novo
conhecimento sobre sexo. Foucault critica a forma
tradicional de entender a sexualidade como um desejo
natural libidinal de livrar-se das peias sociais. Ele afirma
que os desejos não são entidades biológicas pré-
existentes, mas são constituídos no curso de práticas
sociais específicas, determinadas historicamente. Ele
ressalta mais os aspectos geradores da organização social
do sexo que seus elementos repressivos, mostrando que
novas sexualidades estão sempre sendo produzidas. Ele

28
Quem primeiro formulou essa idéia foi MCINTOSH, Mary. The
Homosexual Role. Social Problems, vol. 16, nº 2, outono de 1968; a
idéia foi desenvolvida em WEEKS, Jeffrey. Coming Out: Homosexual
Politics in Britain from the Nineteenth Century to the Present, Nova York,
Quartet, 1977, e Sex, Politics and Society… Op. cit.; ver também D
´EMILIO, J. Sexual Politics, Sexual Communities... Op. cit.; e RUBIN, Gayle.
Introduction. In: VIVIEN, Renée. A Woman Appeared to Me. Weatherby
Lake, Mo., Naiad Press, 1979.
29
HANSEN, Bert. The Historical Construction of Homosexuality. Radical
History Review, nº 20, primavera/verão 1979.
30
WALKOWITZ, J.R. Prostitution and Victorian Society… Op. cit.; e Male
Vice and Female Virture… op. cit.

20
Gayle S. Rubin

identifica uma maior descontinuidade entre sistemas de


sexualidade baseados em parentesco e formas mais
modernas.31
O novo conhecimento sobre o comportamento sexual
dotou o sexo de uma história e criou uma alternativa
construtivista ao essencialismo sexual. Subjacente ao
conjunto desse trabalho há o pressuposto de que a
sexualidade se constitui na sociedade e na história, não
sendo biologicamente determinada. 32 Isso significa que a
sexualidade humana não pode ser compreendida em
termos puramente biológicos. Organismos humanos com
cérebros humanos são necessários para culturas humanas,
mas nenhum exame do corpo ou de suas partes pode
explicar a natureza e variedade dos sistemas sociais
humanos. A fome do estômago não dá nenhuma pista para
as complexidades da culinária. O corpo, o cérebro, a
genitália, e a capacidade de linguagem são todos
necessários para a sexualidade humana. Mas eles não
determinam seu conteúdo, suas experiências, ou suas
formas institucionais. Além disso, nunca nos deparamos
com o corpo sem as mediações que as culturas lhe
acrescentam. Parafraseando Lévi-Strauss, minha posição
sobre a relação entre a biologia e a sexualidade é um
“kantismo sem uma libido transcendental.” 33
É impossível pensar com um mínimo de clareza sobre
a política racial e de gênero enquanto os consideramos
antes como entidades biológicas que como construto
sociais. Da mesma forma, a sexualidade é refratária à
análise política enquanto for concebida basicamente como
31
FOUCAULT, Michel. The History of Sexuality. Nova York, Pantheon,
1978.
32
Encontra-se uma discussão muito útil desses temas em PADGUG,
Robert. Sexual Matters: On Conceptualizing Sexuality in History. Radical
History Review, nº 20, primavera/verão 1979.
33
LÉVI-STRAUSS, Claude. A Confrontation. New Left Review, nº 62,
julho/agosto 1970. Nessa conversa, Lévi-Strauss chama sua posição de
“um kantismo sem um sujeito transcendental.”

21
Pensando sobre sexo

um fenômeno biológico ou um aspecto da psicologia


individual. A sexualidade é um produto humano tanto
quanto as dietas, os meios de transporte, as regras de
etiqueta, formas de trabalho, tipos de divertimentos,
processos de produção e formas de opressão. Quando
entendemos o sexo em termos de análise social e
compreensão histórica, torna-se possível uma política
sexual mais realista. Pode-se pensar então a política
sexual em termos de fenômenos como populações,
regiões, modelos de povoamento, migração, conflitos
urbanos, epidemiologia e técnicas de repressão policial.
Estas são categorias de pensamento mais fecundas que as
mais tradicionais, como pecado, doença, neurose,
patologia, decadência, corrupção ou o declínio e queda de
impérios.
Examinando minuciosamente as relações entre as
populações eróticas estigmatizadas e as forças sociais que
as regulam, trabalhos como os de Allan Bérubé, John
d’Emilio, Jeffrey Weeks e Judith Walkowitz contêm
categorias implícitas de análise e crítica política. Não
obstante, a perspectiva construtivista mostrou uma certa
fraqueza política. Isso ficou mais evidente nas
interpretações errôneas da posição de Foucault.
Devido à ênfase que dava às formas como se produz
a sexualidade, Foucault se tornou vulnerável a
interpretações que negam ou minimizam a realidade da
repressão sexual num sentido mais político. Foucault deixa
bastante claro que não nega a existência da repressão
sexual, inscrevendo-a numa dinâmica mais ampla. 34 A
sexualidade nas sociedades ocidentais foi estruturada
dentro de um contexto social extremamente punitivo, e foi
submetida a controles formais e informais bastante
efetivos. Cumpre reconhecer o fenômeno repressivo sem
nos reportarmos às hipóteses essencialistas da linguagem
da libido. É importante focalizar as práticas sexuais
34
FOUCAULT, M. The History of Sexuality. Op. cit., p.11.

22
Gayle S. Rubin

repressivas, ainda que as situando numa outra totalidade e


no contexto de uma terminologia mais precisa. 35
Boa parte do pensamento radical sobre sexo se insere
no modelo de instintos e de suas restrições. Idéias de
opressão sexual encontravam-se no bojo dessa forma mais
biológica de entender a sexualidade. É sempre mais fácil
voltar a uma noção de uma libido natural submetida a uma
repressão inumana que reformular conceitos de injustiça
sexual num quadro mais construtivista. Mas é essencial
que façamos isto. Precisamos de uma crítica radical dos
arranjos sexuais que tenham a elegância conceitual de
Foucault e a paixão evocativa de Reich.
O novo conhecimento sobre sexo trouxe a idéia, bem-
vinda, de que os termos sexuais devem ficar limitados aos
seus devidos contextos sociais e históricos, e um prudente
ceticismo em relação a generalizações temerárias. Mas é
importante ser capaz de indicar grupos de comportamento
erótico e tendências gerais no âmbito do discurso erótico.
Além do essencialismo sexual, existem pelo menos cinco
outras formações ideológicas cuja influência sobre o
pensamento sexual é tão forte que deixar de discuti-las é
resignar-se a continuar enredado em suas teias. Estamos
falando da negatividade sexual, das falácias da escala
deslocada, da classificação hierárquica dos atos sexuais,
da teoria do dominó do perigo sexual e da falta de um
conceito de variação sexual benigna.
Desses cinco, o mais importante é a negatividade do
sexo. As culturas ocidentais em geral consideram o sexo
uma força perigosa, destrutiva e negativa. 36 Boa parte da
tradição cristã, seguindo São Paulo, sustenta que o sexo é
em essência pecaminoso. Ele pode ser redimido se
praticado no casamento para a procriação e se não se der
uma atenção muito grande ao aspecto do prazer. Essa
forma de encarar o sexo está implícita na idéia de que a
35
Ver a discussão em WEEKS, J. Sex, Politics and Society… Op. cit. p.9.
36
ID., IB., p.22.

23
Pensando sobre sexo

genitália é uma parte do corpo intrinsecamente inferior,


muito mais baixa e menos sagrada que a mente, a “alma”,
o “coração”, ou mesmo a parte superior do sistema
digestivo (o status dos órgãos excretores é bem próximo
do da genitália).37 Essas idéias atualmente adquiriram vida
própria e já não dependem da religião para continuar a
existir.
Essa cultura sempre encara o sexo com desconfiança.
Ela analisa e julga quase todas as práticas sexuais em
termos de sua pior expressão. O sexo é culpado até prova
em contrário. Praticamente todo comportamento erótico é
considerado mau, a menos que se estabeleça uma razão
específica que o inocente. As desculpas mais aceitáveis
são o casamento, a reprodução e o amor. Em alguns casos,
a curiosidade científica, a experiência estética ou uma
relação íntima duradoura podem servir. Mas o exercício da
aptidão, da inteligência, da curiosidade ou criatividade
eróticas exigem pretextos que não se exigem para outros
prazeres, como a apreciação da comida, da ficção ou da
astronomia.
O que chamamos de falácia da escala deslocada é
um corolário da negatividade do sexo. Susan Sontag certa
vez comentou que uma vez que o cristianismo “considerou
o comportamento sexual como a raiz da virtude, todas as
coisas a ele relacionadas se tornaram um caso especial em
nossa cultura.”38 A legislação relativa a sexo incorporou a

37
Ver, por exemplo, Pope Praises Couples for Self-Control, San
Francisco Chronicle, 13 de outubro de 1980, p.5; Pope Says Sexual
Arousal Isn´t a Sin If It´s Ethical, San Francisco Chronicle, 6 de
novembro de 1980, p.33; Pope Condemns “Carnal Lust” As Abuse of
Human Freedom”, San Francisco Chronicle, 15 de janeiro de 1981, p.2;
Pope Again Hits Abortion, Birth Control, San Francisco Chronicle, 16 de
janeiro de 1981, p.13; e Sexuality, Not Sex in Heaven, San Francisco
Chronicle, 3 de dezembro de 1981, p.50. Ver também, mais adiante,
nota 62.
38
SONTAG, Susan. Styles of Radical Will. Nova York, Farrar, Straus &
Giroux, 1969, p.46.

24
Gayle S. Rubin

crença religiosa de que o sexo herético é um pecado


especialmente hediondo, que merece a mais rigorosa
punição. Ao longo de quase toda a história da Europa e da
América a simples penetração anal, praticada de comum
acordo pelos parceiros, era motivo para execução. Em
alguns estados americanos, a sodomia ainda acarreta
sentenças de vinte anos de prisão. Fora do âmbito da lei, o
sexo também é uma categoria que inspira uma certa
suspeita. Pequenas diferenças na forma de encará-lo e
praticá-lo são sempre consideradas como ameaças
universais. Embora as pessoas possam se mostrar
intolerantes, estúpidas ou ousadas no que diz respeito ao
que constitui uma dieta adequada, as diferenças no
cardápio raramente provocam o tipo de ódio, preocupação
e pavor que normalmente acompanham as diferenças no
gosto erótico. Os atos sexuais são sobrecarregados com
um excesso de significados.
As sociedades ocidentais modernas avaliam os atos
sexuais de acordo com um sistema hierárquico de valor
sexual. Os casais heterossexuais, ligados pelo casamento,
estão sozinhos no topo da pirâmide erótica. Muito mais
embaixo, nessa escala, estão os casais heterossexuais
monogâmicos não casados, seguidos pela maioria dos
outros heterossexuais. O sexo solitário oscila
ambiguamente. O terrível estigma do século XIX sobre a
masturbação continua em formas mais brandas e
alteradas, como a idéia de que a masturbação é um
substituto inferior para o encontro de parceiros. Casais
estáveis, de lésbicas e de gays estão próximos da
respeitabilidade, mas lésbicas de bares e homossexuais
promíscuos estão pouco acima dos grupos que ficam na
parte mais baixa da pirâmide. As castas sexuais mais
desprezadas atualmente são os transexuais, os travestis,
os fetichistas, os sadomasoquistas, os trabalhadores do
sexo como prostitutas e modelos pornôs e, abaixo de todas

25
Pensando sobre sexo

os outros, aqueles cujo erotismo ultrapassa as fronteiras


das gerações.
Os indivíduos cujo comportamento os situa na escala
mais alta dessa hierarquia são recompensados com o
reconhecimento de sua saúde mental, respeitabilidade,
legitimidade, mobilidade social e física, apoio institucional
e benefícios materiais. À medida que se vai descendo na
escala dos comportamentos sexuais ou ocupações, os
indivíduos que os praticam tendem a ser considerados
doentes mentais e criminosos, têm sua mobilidade social e
física cerceada, sofrem sanções econômicas e carecem de
apoio institucional.
O estigma extremo e punitivo mantém alguns
comportamentos sexuais num status bem baixo, e isso
constitui uma sanção bastante efetiva contra aqueles que
os adotam. A intensidade desse estigma tem raízes nas
tradições religiosas do ocidente. A maioria de seus
conteúdos contemporâneos, porém, deriva de opróbrio
médico e psiquiátrico.
Os velhos tabus religiosos baseavam-se inicialmente
nas formas de parentesco da organização social. Eles
visavam a impedir uniões indesejáveis e garantir um
modelo de parentesco adequado. As leis sexuais extraídas
dos textos bíblicos visavam a evitar que se
estabelecessem relações inadequadas: com parentes
consangüíneos (incesto), com pessoa de mesmo gênero
(homossexualismo), com animais (bestialidade). Quando a
medicina e a psiquiatria adquiriram amplos poderes sobre
a sexualidade, elas se preocuparam menos com cônjuges
inadequados que com formas inadequadas de desejo. Se
os tabus do incesto eram o traço mais característico dos
sistemas de parentesco da organização social, a mudança
para uma ênfase nos tabus contra a masturbação era mais
adequada aos sistemas mais novos, organizados em torno
das qualidades da experiência erótica. 39
39
Ver FOUCAULT, M. História da Sexualidade. Op. cit., pp.106-7.

26
Gayle S. Rubin

A medicina e a psiquiatria multiplicaram as


categorias de má conduta sexual. A seção sobre distúrbios
psicossexuais no Diagnostic and Statistical Manual of
Mental and Physical Disorders (DSM) [Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais] da American
Psychiatric Association (APA) é um mapa bastante confiável
da atual hierarquia moral das atividades sexuais. A lista da
APA é muito mais acurada que a tradicional condenação da
prostituição, sodomia e adultério. A edição mais recente,
DSM-III, tirou o homossexualismo da lista dos distúrbios
mentais, ao cabo de uma longa luta política. Mas
fetichismo, sadismo, masoquismo, transexualismo,
travestismo, exibicionismo, voyeurismo e pedofilia estão
firmemente estabelecidos como disfunções psicológicas. 40
Ainda se escrevem livros sobre a gênese, a etiologia, o
tratamento e a cura dessas várias “patologias”.
A condenação psiquiátrica de comportamentos
sexuais se vale de conceitos de inferioridade emocional e
mental e não de categorias de pecado sexual. Práticas
sexuais que gozam de um baixo status são tachadas de
doenças mentais ou sintomas de um desajuste de
personalidade. Além disso, os termos psicológicos
combinam dificuldades de funcionamento psicodinâmico
com formas de conduta erótica. Eles tratam como
equivalentes o masoquismo sexual e os padrões de
personalidade autodestrutiva, o sadismo sexual e a
agressão emocional, o homoerotismo e a imaturidade.
Essas confusões terminológicas tornaram-se poderosos
estereótipos que são aplicados indiscriminadamente a
indivíduos com base em sua orientação sexual.
A cultura popular é permeada de idéias de que a
variação erótica é perigosa, insalubre, depravada e
constitui uma ameaça contra tudo, desde as criancinhas

40
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION Diagnostic an Statistical Manual of
Mental and Physical Disorders. 3ª ed. Washington DC, American
Psychiatric Association.

27
Pensando sobre sexo

até a segurança nacional. A ideologia sexual popular é um


cozido malsão feito de idéias de pecado sexual,
inferioridade psicológica, anticomunismo, histeria de
massas, acusações de bruxaria e xenofobia. Os meios de
comunicação de massa alimentam essas posições com
uma propaganda incessante. Eu consideraria esse sistema
de estigma erótico como a última forma socialmente
respeitável de preconceito, se as velhas formas não
mostrassem tamanha vitalidade, e se as novas não se
tornassem cada dia mais conspícuas.
Todas essas hierarquias de valor sexual – religioso,
psiquiátrico e popular – funcionam de forma muito
semelhante às dos sistemas ideológicos do racismo,
etnocentrismo, e chauvinismo religioso. Eles racionalizam
o bem-estar dos sexualmente privilegiados e o infortúnio
da ralé sexual.
A figura 1 representa uma versão geral do sistema de
valores sexual. Segundo esse sistema, a sexualidade
“boa”, “normal” e “natural” deveria ser, em termos ideais,
heterossexual, conjugal, monogâmica, reprodutiva e não
comercial. Deveria ocorrer num casal, no contexto de uma
relação afetiva, entre pessoas da mesma geração e dentro
de casa. Deve excluir a pornografia, objetos de fetiche,
brinquedos sexuais de qualquer espécie, e papéis que não
os de homem e mulher. Qualquer forma de sexo que viole
essas regras é “má”, “anormal” ou “não natural”. O mau
sexo é homossexual, fora do casamento, promíscuo, não
visa à reprodução ou é comercial. Ele pode ser
masturbatório ou acontecer em orgias, pode ser ocasional,
praticado entre pessoas de gerações diferentes, pode
ocorrer “em público”, no mato ou em saunas. Ele pode
fazer uso de pornografia, objetos de fetiche, brinquedos
sexuais ou papéis não convencionais (ver Figura 1).

28
Gayle S. Rubin

Os grupo dos eleitos:


Sexualidade Boa, Normal, Natural, Abençoada
Heterossexual
Conjugal
Monogâmica
Procriadora
Não comercial
Entre casais
Num relacionamento
Mesma geração
Em particular
Sem pornografia
Só os corpos
Pasteurizada

[No círculo menor] [No círculo maior]


Heterossexual Homossexual
No casamento Em pecado
Monogâmica Promíscua
P/ procriação Não-procriativa
Não paga Por dinheiro
Casal Sozinho ou em grupo
Num relacionamento Ocasional
Inter-gerações Mesma geração
Em casa No parque
Sem pornografia Pornografia
Só os corpos Com acessórios
Pasteurizada Sadomasoquista

Os excluídos:
Sexualidade Má, Anormal,

29
Pensando sobre sexo

Não natural,
Condenável

Homossexual
Fora do casamento
Promíscua
Não-procriativa
Comercial
Sozinho ou em grupo
Ocasional
Entre gerações
Em público
Pornografia
Com acessórios
Sadomasoquista

FIGURA 1. A hierarquia sexual: os eleitos versus os


excluídos

A Figura 2 apresenta um outro aspecto da hierarquia


sexual: a necessidade de traçar e manter uma linha
imaginária entre o bom e o mau sexo. A maioria dos
discursos sobre sexo, seja ele religioso, psiquiátrico,
popular ou político, reconhece apenas uma pequena
porção do potencial sexual humano como sendo puro,
seguro, saudável, maduro, legal ou politicamente correto.
A “linha” separa este tipo de sexo de todos os outros
comportamentos eróticos, que são vistos como obra do
demônio, perigosos, psicopatológicos, infantis ou
politicamente incorretos. Discute-se então “onde traçar a
linha” e como determinar que outras atividades podem
entrar no círculo dos que são aceitáveis. *
*
Nota de 1992. Em todo este ensaio tratei o comportamento
transgênero e os indivíduos em termos de sistema sexual e não em
termos de sistema de gênero, embora os travestis e os transexuais
claramente ultrapassem as fronteiras de gênero. Fiz isso porque as
pessoas que saem dos limites de seu gênero são estigmatizadas,

30
Gayle S. Rubin

Todos esses modelos adotam um teoria do dominó do


perigo sexual. A linha parece se colocar entre a ordem e o
caos sexual. Ela expressa o receio de que, permitindo-se
que algo ultrapasse essa “zona desmilitarizada”, a barreira
contra o sexo pavoroso se rompa e uma coisa terrível
passe por ela.
A maioria dos sistemas que enunciam juízos de valor
sobre sexo – religiosos, psicológicos, feministas ou
socialistas – procura decidir sobre em que lado da linha
fica um determinado ato. Só se atribui complexidade moral
aos atos que se situam do lado bom da linha. Por exemplo,
os encontros heterossexuais podem ser sublimes ou
desagradáveis, livres ou à força, benéficos ou destrutivos,
românticos ou mercenários. Desde que não viole outras
regras, reconhece-se que o heterossexualismo pode
apresentar toda a gama da experiência humana. Em
contrapartida, todos os atos do lado mau da linha são
considerados absolutamente repulsivos e faltos de todo
matiz emocional. Quanto mais se distanciam da linha,
mais eles são descritos como uma experiência
absolutamente má.

Sexo “bom”:
Normal, Natural, Saudável, Abençoado
Heterossexual
No casamento “A Linha”
Monogâmico
Para reprodução
Em casa

importunadas, perseguidas e tratadas normalmente como “desviantes”


e pervertidas. Mas isto é um exemplo de como meu sistema
classificatório não dá conta de todas as complexidades existentes. A
apresentação esquemática das hierarquias sexuais da Figura 1 e 2 foi
simplificada para fins de demonstração. Embora a demonstração
continue válida, as verdadeiras relações de poder no âmbito da
variação sexual são muito mais complexas.

31
Pensando sobre sexo

Área mais controversa

Casal heterossexual não casado


Heterossexuais promíscuos
Masturbação
Casais estáveis de homossexuais
masculinos e femininos
Lésbicas de bares
Gays promíscuos de saunas e parques.

Sexo “mau”:
Anormal, Não natural,
Doentio, Pecaminoso, “Avançado”

Travestis
Transexuais
Fetichistas
Sadomasoquistas
Por dinheiro
Entre gerações

Melhor - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Pior

Figura 2. A hierarquia sexual: a disputa sobre onde


traçar a linha.

Como resultado das lutas travadas na última década,


alguns comportamentos sexuais que se encontravam fora
do limite da respeitabilidade estão começando a se tornar
mais aceitos. Casais não casados que vivem juntos,
masturbação e algumas formas de homossexualismo
tendem a se tornar respeitáveis (Figura 2). A maior parte

32
Gayle S. Rubin

dos tipos de homossexualismo encontra-se ainda do lado


mau da linha. Mas quando se trata parceiros
monogâmicos, a sociedade está começando a reconhecer
que a relação comporta toda a gama de interações
humanas. O homossexualismo promíscuo, o
sadomasoquismo, o fetichismo, o transexualismo e
encontros entre pessoas de gerações diferentes ainda são
considerados como horrores desregrados, que não
comportam afeição, amor, livre escolha, ternura ou
transcendência.
Esse tipo de moral sexual é mais próximo das
ideologias racistas que da verdadeira ética. Ele atribui
virtudes aos privilegiados e o vício aos desfavorecidos.
Uma moral democrática deveria julgar os atos sexuais pela
forma como os parceiros tratam um ao outro, pelo grau de
respeito mútuo, pela presença ou ausência de coerção e
pela quantidade e qualidade dos prazeres que eles
propiciam. O fato de o ato sexual ser gay ou não, aos
pares ou em grupo, sem roupa ou com roupas íntimas,
comercial ou não, com ou sem vídeo, não deveria ser
objeto de preocupações éticas.
É difícil desenvolver uma ética sexual pluralista sem
uma concepção de variação sexual benigna. A variação é
uma propriedade fundamental de toda vida, do mais
simples organismo biológico às mais complexas
organizações sociais humanas. Não obstante espera-se
que a sexualidade se conforme a um padrão único. Uma
das idéias mais arraigadas a respeito de sexo é que só
existe uma forma de praticá-lo, e que todo mundo devia se
guiar pelo padrão.
A maioria das pessoas acha difícil entender que o que
quer que gostem de fazer, em termos sexuais, pode ser
totalmente repulsivo para uma outra pessoa, e que o que
as repugna pode constituir um prazer indizível para uma
outra pessoa, em algum lugar do mundo. Uma pessoa não
precisa gostar de praticar ou praticar um determinado tipo

33
Pensando sobre sexo

de ato sexual para reconhecer que os outros podem fazê-


lo e que essa diferença não indica uma falta de gosto, de
sanidade mental ou de inteligência, de um ou de outro
lado. A maioria das pessoas comete o erro de tomar suas
preferências sexuais por um sistema universal que
funciona, ou deveria funcionar, para todo mundo.
Essa idéia de uma sexualidade ideal única caracteriza
a maioria dos sistemas de pensamento sobre sexo. Para a
religião, o ideal é um casamento com fins de procriação.
Para a psicologia, é um heterossexualismo maduro.
Embora seu conteúdo varie, o modelo de um padrão
sexual único é continuamente retomado em outras
estruturas teóricas, inclusive no feminismo e no
socialismo. É tão questionável insistir que todas as
pessoas deviam ser lésbicas, não monogâmicas ou
pervertidas, como acreditar que todos deveriam ser
heterossexuais, casados, ou “certinhos” – embora esta
última corrente de opinião seja respaldada por uma força
muito mais coercitiva que a primeira.
Os progressistas se envergonhariam de se revelar
chauvinistas culturais em outras áreas, mas o fazem
normalmente em relação às diferenças sexuais. Nós
aprendemos a reconhecer culturas diferentes como
expressões únicas da criatividade humana e não como
hábitos inferiores ou desagradáveis de selvagens. Da
mesma forma, precisamos de um entendimento
antropológico das diferentes culturas sexuais.
A pesquisa sexual empírica é um campo que deve
incorporar um conceito positivo de variação sexual. Alfred
Kinsey acercou-se do estudo do sexo com a mesma
curiosidade desenvolta com que se dedicou ao estudo de
uma espécie de vespa. Sua imparcialidade científica deu
ao seu trabalho uma neutralidade pouco comum que
enfureceu os moralistas e provocou uma imensa

34
Gayle S. Rubin

controvérsia. 41 Entre os seguidores de Kinsey, John


Gagnon e William Simon foram pioneiros na aplicação de
critérios sociológicos à diversidade sexual. 42 Mesmo a
velha sexologia tem algo de aproveitável. Embora seu
trabalho esteja eivado de intragáveis crenças eugênicas,
Havelock Ellis era um observador agudo e dotado de
grande empatia. Seu monumental Estudos de Psicologia
do Sexo é exuberante de particularidades e minudências. 43
Muitos escritos políticos sobre a sexualidade revelam
completa ignorância a respeito da sexologia clássica e da
moderna pesquisa sobre sexo. Isto talvez se explique pelo
fato de que poucas faculdades e universidades se
preocupam em ensinar sexualidade humana, e também
pelo estigma que marca mesmo a pesquisa acadêmica
sobre sexo. Nem a sexologia nem a pesquisa sobre sexo
ficaram imunes ao sistema de valores dominante referente
a sexo. Ambas têm pressupostos e informações que não
deveriam ser aceitos de forma acrítica. Mas a sexologia e a
pesquisa sobre sexo apresentam grande profusão de
detalhes, uma promissora serenidade e uma grande
capacidade para tratar a diversidade sexual antes como
algo que existe que como algo que deva ser abolido. Esses
campos de estudo podem propiciar uma base empírica
para uma teoria radical da sexualidade mais profícua que a
combinação de psicanálise e princípios elementares de
feminismo, a que tantos textos recorrem. *

41
KINSEY, Alfred; POMEROY, Wardell e MARTIN, Clyde. Sexual Behavior in
the Human Male. Filadélfia, W.B. Saunders, 1948; KINSEY, Alfred;
POMEROY, Wardell e MARTIN, Clyde e GEBHARD, Paul Sexual Behavior in the
Human Female. Filadélfia, W.B. Saunders, 1953.
42
GAGNON, John e SIMON, William. Sexual Deviance. Nova York, Harper &
Row, 1967; The Sexual Scene, Chicago, Transaction Books, Aldine, 1970;
Gagnon, John. Human Sexualities. Glenview, Illinois, Scott, Foresman,
1977.
43
ELLIS, Havelock. Studies in the Psychology of Sex (dois volumes). Nova
York, Random House, 1936.

35
Pensando sobre sexo

III - Transformação sexual

Tal como definida pelo direito civil e canônico, a


sodomia era uma categoria de atos proibidos; os que
praticavam esses atos eram apenas os sujeitos
jurídicos dos mesmos. O homossexual do século XIX
se tornou um personagem, um passado, uma
anamnésia e uma infância, além de ser um modo de
vida e uma morfologia, com uma anatomia pouco
discreta e uma fisiologia misteriosa... O sodomita foi
uma aberração temporária; o homossexual agora era
uma espécie. (Michel Foucault44)

*
Nota de 1992. A pretensão desta seção não era invocar autoridade
científica, nem cobrar objetividade científica da sexologia, e muito
menos privilegiar modelos biológicos como “instrumentos para pesquisa
social” (VALVERDE, Mariana. Beyond Gender Dangers and Private
Pleasures: Theory and Ethics in the Sex Debates. Feminist Studies, vol.
15, nº 2, verão de 1989, pp. 237-54). Era apresentar a idéia de que a
sexologia poderia ser um rico filão a ser explorado para análises da
sexualidade, embora nunca me tenha ocorrido que aqueles que o fazem
pudessem deixar de submeter os textos de sexologia a um rigoroso
exame. Eu queria dizer que os estudos de sexologia eram muito mais
relevantes que as intermináveis releituras de Freud e de Lacan em que
se baseou boa parte do pensamento feminista sobre sexo. Eu achava
então, e ainda acho, que muito das análises feministas sobre sexo
derivam, a priori, de princípios elementares do feminismo mesclados
com psicanálise. Essas topografias são um pouco como os mapas mundi
da Europa de antes de 1492. Elas se ressentem da falta de dados
empíricos. Não acredito em “fatos” não mediados por estruturas
culturais de interpretação. Acredito, porém, que as teorias da ciência
social que não reconhecem, não assimilam e não explicam as
informações relevantes são meros exercícios calistênicos. Com exceção
da matemática, a maioria das teorias baseia-se numa série de dados
selecionados, e o feminismo psicanalítico não pode ser uma exceção.
Para uma história feminista exemplar da sexologia americana do século
XX, ver IRVINE, Janice. Disorders of Desire. Filadélfia, Temple University
Press, 1990.
44
FOUCAULT, M. História da Sexualidade. Op. cit., p.43.

36
Gayle S. Rubin

Apesar de guardarem muitas relações de


continuidade com formas ancestrais, os arranjos sexuais
modernos têm um caráter distinto que os distanciam dos
modelos pré-existentes. Na Europa Ocidental e nos
Estados Unidos, a industrialização e a urbanização
transformaram as populações rurais e camponesas numa
nova força de trabalho para o setor industrial e de
serviços. Elas geraram novas formas de organização do
Estado, reorganizaram as relações familiares, alteraram os
papéis de gênero, tornaram possíveis novas formas de
identidade, produziram novas formas de desigualdade
social e criaram novas modalidades de conflito ideológico
e social. Deram origem também a um novo sistema sexual
caracterizado por diferentes pessoas sexuais, populações,
estratificação, e conflito político.
Os escritos do século XIX sobre sexologia indicam o
surgimento de um processo de formação e fixação de
novas espécies eróticas. Independentemente da
estranheza de suas explicações, os primeiros sexologistas
estavam assistindo ao surgimento de novos tipos de
pessoas eróticas e à formação de suas primeiras e
rudimentares comunidades. O moderno sistema sexual
contém uma série dessas populações, estratificadas pela
ação de uma hierarquia ideológica e social. Diferenças em
valores sociais criam atritos entre esses grupos, que se
engajam em lutas políticas para modificar ou manter seu
lugar no ranking. A política sexual contemporânea devia
ser reformulada em função do processo de
desenvolvimento, ainda em curso, desse sistema, em
função também de suas relações sociais, das ideologias
que o interpretam e dos tipos específicos de conflito a que
dá origem.
O homossexualismo é o melhor exemplo desse
processo de especiação erótica. O comportamento
homossexual está sempre presente entre os seres

37
Pensando sobre sexo

humanos. Mas em diferentes sociedades e épocas ele


pode ser estimulado ou punido, exigido ou proibido, pode
ser uma experiência passageira ou algo para toda a vida.
Em algumas sociedades da Nova Guiné, por exemplo, as
atividades homossexuais são obrigatórias para os homens.
Os atos homossexuais são considerados uma coisa
extremamente masculina, os papéis se baseiam na idade e
os parceiros são determinados a partir das relações de
parentesco.45 Embora os homens se entreguem a
atividades homossexuais e pedófilas, eles não são nem
homossexuais nem pederastas.
Tampouco o sodomita do século XVI era homossexual.
Em 1631, Mervyn Touchet, conde de Castlehaven, foi
julgado e executado por sodomia. Fica claro, lendo-se as
peças do processo, que o conde não se via como alguém
que fosse um tipo especial de pessoa sexual.

Embora do ponto de vista do século XX Lorde


Castlehaven evidentemente sofresse de problemas
psicossexuais que exigiam os cuidados de um
analista, do ponto de vista do século XVII ele
contrariara deliberadamente a lei de Deus e as leis
da Inglaterra, o que demandava os modestos serviços
de um carrasco.46

O conde não saia saltitando, com seu casaco mais


apertado, para ir encontrar-se com seus companheiros
45
HERDT, Gilbert. Guardians of the Flutes. Nova York, McGraw-Hill, 1981;
KELLY, Raymond. Witchcraft and Sexual Relations. In: BROWN, Paula e
BUCHBINDER, Georgeda. (eds.) Man and Woman in the New Guinea
Highlands. Washington, DC, American Anthropological Association,
1976; RUBIN, Gayle. Coconuts: Aspects of Male/Female Relationships in
New Guinea. manuscrito inédito, 1974; resenha de Guardians of the
Flutes. Advocate, 23 de dezembro, 1982; VAN BAAL, J. Dema. The Hague,
Nijhoff, 1966; WILLIAMS, F.E. Papuans of Trans-Fly. Oxford, Clarendon,
1936.
46
BINGHAM, Caroline. Seventeenth-Century Attitudes Toward Deviant Sex.
Journal of Interdisciplinary History, primavera de 1971, p.465.

38
Gayle S. Rubin

sodomitas na taverna gay mais próxima. Ele ficava em seu


solar e sodomizava seus servos. A autoconsciência gay,
bares de gays, a percepção da existência de um grupo
com características comuns e mesmo o termo
homossexual não faziam parte do universo do conde.
O homem solteiro da Nova Guiné e o nobre sodomita
têm apenas uma leve aproximação com um gay, que pode
migrar da região rural do Colorado para San Francisco para
viver num bairro gay, trabalhar num negócio gay e
participar de uma experiência complexa que compreende
uma identidade autoconsciente, solidariedade de grupo,
uma literatura, uma imprensa, e um alto nível de atividade
política. Nas sociedades ocidentais industriais modernas, o
homossexualismo adquiriu muito da estrutura institucional
de um grupo étnico.47
O deslocamento do homoerotismo para essas
comunidades quase étnicas, concentradas, sexualmente
constituídas é, em certa medida, conseqüência dos
movimentos de populações provocados pela
industrialização. Como os trabalhadores estavam migrando
para trabalhar nas cidades, havia maiores oportunidades
para a formação de comunidades organizadas por vontade
própria. Homens e mulheres com tendências
homossexuais, que se encontrariam vulneráveis e isolados
em aldeias pré-industriais, começaram a se congregar em
pequenos redutos nas cidades grandes. A maioria das
grandes cidades da Europa ocidental e dos Estados Unidos
tinha áreas em que os homens podiam vagar à procura de
outros homens. As comunidades lésbicas parecem ter-se
aglutinado mais lentamente e em escala menor. Não
obstante, na década de 1890 havia vários cafés em Paris,
perto da Place Pigalle, que atendiam a uma clientela

47
MURRAY, Stephen O. The Institutional Elaboration of a Quasi-Ethnic
Community. International Review of Modern Sociology, julho/dezembro
de 1979.

39
Pensando sobre sexo

lésbica, e é provável que existissem lugares semelhantes


em outras grandes capitais da Europa ocidental.
Áreas como essa adquiriram má reputação, o que
alertou outros indivíduos interessados para sua existência
e localização. Nos Estados Unidos, havia territórios lésbicos
e gays bem estabelecidos em Nova York, Chicago, San
Francisco e Los Angeles na década de 1950. Migrações
sexualmente motivadas para lugares como Greenwich
Village se tornaram um fenômeno sociológico de
proporções consideráveis. No final da década de 1970, a
migração sexual se dava numa escala tão grande que
começou a ter um efeito notável na política urbana dos
Estados Unidos, sendo San Francisco o exemplo mais
notório e mais conspícuo.48
A prostituição sofreu uma metamorfose semelhante.
Ela começou mudar: de trabalho temporário, passou a ser
uma ocupação permanente, em decorrência da agitação,
da reforma jurídica e da perseguição policial do século XIX.
As prostitutas, que em geral pertenciam à classe
trabalhadora, foram ficando cada vez mais isoladas
enquanto membros de um grupo proscrito. 49 Prostitutas e
outros trabalhadores do sexo diferem de homossexuais e
de outras minorias sexuais. O trabalho sexual é uma
profissão, enquanto que um desvio sexual é uma
preferência erótica. Não obstante, eles partilham algumas
características de organização social. Como os
homossexuais, as prostitutas são um grupo sexual
estigmatizado com base na atividade sexual. Em toda
parte, as prostitutas e os gays são as principais vítimas da
48
Para uma análise mais acurada desses processos, ver: BÉRUBÉ, A.
Behind the Spectre of San Francisco. Op. cit., Marching to a Different
Drummer. Op. cit.; D´EMILIO, J. Gay Politics, Gay Community… Op. cit.;
Sexual Politics, Sexual Communities… Op. cit.; FOUCAULT, M. História da
Sexualidade. Op. cit.; HANSEN, B. The Historical Construction of
Homosexuality. Op. cit.; KATZ, J. Gay American History. Op. cit.; WEEKS, J.
Coming Out… Op. cit.; e Sex, Politics and Society. Op. cit.
49
WALKOWITZ, J.R. Prostitution and Victorian Society. Op. cit.

40
Gayle S. Rubin

polícia.50 50
Como os gays, as prostitutas ocupam
territórios urbanos bem delimitados e lutam com a polícia
para defender e manter esses territórios. A perseguição,
pela Justiça, dos homossexuais e das prostitutas, é
justificada por uma ideologia que os classifica como
pessoas perigosas, inferiores e indesejáveis que não
devem ser deixadas em paz.
Além de organizar homossexuais e prostitutas em
aglomerados populacionais localizados, a “modernização
do sexo” gerou um sistema de contínua etnogênese
sexual. Outras populações de dissidentes eróticos – que
têm as assim chamadas “perversões” ou “parafilias” –
também começam a se aglutinar. As sexualidades
continuam se afastando do Manual Diagnóstico e
Estatístico para entrar nas páginas da história social.
Atualmente, muitos outros grupos estão tentando repetir o
sucesso dos homossexuais. Bissexuais, sadomasoquistas,
indivíduos que preferem relações com pessoas de outra
geração, transexuais e travestis encontram-se em
diferentes estágios de formação de comunidades próprias
e de aquisição de identidade. As perversões não proliferam
no mesmo ritmo que sua luta para conseguir espaço
social, pequenos negócios, recursos políticos e um pouco
de alívio das punições por heresia sexual.

IV - Estratificação sexual

Toda uma sub-raça nasceu, diferente – apesar de


certos laços de parentesco – dos libertinos do
passado. Do fim do século XVIII até o nosso, seus
indivíduos circularam pelos poros da sociedade; eles
sempre eram perseguidos, mas nem sempre pela
Justiça; eram sempre presos, mas nem sempre em

50
Os agentes das delegacias de costumes também perturbam todos os
negócios relacionados a sexo, sejam bares ou saunas gays, livrarias
para adultos e produtores e distribuidores de arte comercial erótica, ou
clubes de swing.

41
Pensando sobre sexo

cárceres; eram vítimas, doentes talvez, mas


escandalosas e perigosas, presas de um estranho mal
que também tinha o nome de vício e às vezes de
crime. Eram crianças mais espertas do que se podia
esperar de sua idade, menininhas precoces, escolares
ambíguos, criados e preceptores duvidosos, maridos
cruéis ou maníacos, colecionadores solitários,
passeadores com impulsos bizarros; eles
freqüentavam as casas de correção, as colônias
penais, os tribunais e os asilos; eles levavam sua
infâmia aos médicos e sua doença aos juízes. Era a
numerosa família de pervertidos que mantinha boas
relações com os delinqüentes e tinha afinidades com
os loucos. (Michel Foucault51)

A transformação industrial da Europa ocidental e da


América do Norte trouxe novas formas de estratificação
social. As desigualdades de classe que dela derivaram são
bem conhecidas e foram exaustivamente exploradas por
um século de estudos. A construção de modernos sistemas
de discriminação racial e a injustiça étnica foram bem
documentadas e bem analisadas. O pensamento feminista
analisou a organização predominante da opressão de
gênero. Mas embora grupos eróticos específicos, como
militantes homossexuais e trabalhadores do sexo, tenham
se mobilizado contra os maus-tratos que sofriam, não
houve uma tentativa semelhante para situar variedades
específicas de perseguição sexual dentro de um sistema
mais geral de estratificação sexual. Não obstante, esse
sistema existe, e em sua forma contemporânea é uma
conseqüência da industrialização do Ocidente.
A legislação referente a sexo é o mais implacável
instrumento de estratificação social e de perseguição
erótica. O Estado intervém rotineiramente no
comportamento sexual, em um nível que não seria
tolerado em outras áreas da vida social. A maioria das
51
FOUCAULT, M. História da Sexualidade. Op. cit., p.40.

42
Gayle S. Rubin

pessoas não tem consciência do alcance da legislação


sobre sexo, da quantidade e características do
comportamento sexual ilegal, e do caráter punitivo das
sanções legais. Embora os órgãos federais possam agir em
casos de obscenidade e prostituição, a maioria das leis
relativas a sexo são promulgadas em nível estadual e
municipal, e cabe à polícia local, em larga medida, fazer
com que sejam cumpridas. Assim, as leis variam de forma
extraordinária de lugar para lugar. Além disso, a aplicação
das leis relativas a sexo varia de forma impressionante de
acordo com o clima político local. Minha discussão da
legislação sexual não se aplica a leis contra a coerção
sexual, à agressão sexual ou ao estupro. Ela diz respeito à
miríade de proibições relativas ao sexo consensual e aos
atos que só são considerados crimes em função da idade
das pessoas envolvidas, como por exemplo o estupro por
presunção de violência.
A legislação sobre sexo é dura. As penas pela
violação de suas regras são, em toda parte,
desproporcionais a qualquer dano social ou individual. Um
único ato de sexo consensual mas ilícito, como colocar os
lábios na genitália de um parceiro excitado, é punido em
muitos estados com mais severidade do que estupro,
espancamento ou assassinato. Cada beijo genital como
esse, cada carícia lúbrica, é um crime classificado de
forma diferente. Portanto, é muito fácil cometer vários
tipos de felonia no curso de uma única noite de paixão
ilegal. Uma vez que alguém é acusado de algum crime
sexual, se praticar pela segunda vez o mesmo ato é
enquadrado com reincidente, e nesse caso as penas são
ainda mais severas. Em alguns estados, alguns indivíduos
foram qualificados de reincidentes por terem tido relações
homossexuais em duas ocasiões diferentes. Quando uma
atividade erótica é proscrita pela legislação sexual, todo o
poder do Estado é mobilizado para garantir o respeito aos
valores corporificados nessas leis. As leis relativas a sexo

43
Pensando sobre sexo

são aprovadas com uma facilidade notável, uma vez que


os legisladores temem ser brandos com o vício. Uma vez
inscritas nos livros, é extremamente difícil revogá-las.
A legislação sobre sexo não reflete de forma perfeita
as avaliações morais predominantes do comportamento
sexual. A variação sexual em si é vigiada de forma
explícita por profissionais de saúde mental, pela ideologia
popular e pela prática social extralegal. Alguns dos
comportamentos sexuais mais odiados, como o fetichismo
e o sadomasoquismo, não são tão regulamentados pela
justiça criminal quanto outras práticas relativamente
menos estigmatizadas como o homossexualismo. Áreas do
comportamento sexual entram no campo de ação da lei
quando se tornam objeto de preocupação social e de
agitação política. Cada susto em relação ao sexo e cada
campanha de moralização deixa uma novo estrato de
regulamentos como uma espécie de resíduo fóssil de sua
passagem. O sedimento jurídico é mais denso – e a
legislação sexual é mais vigorosa – em áreas relacionadas
a obscenidade, dinheiro, menores e homossexualismo.
As leis contra a obscenidade impõem um poderoso
veto contra a representação direta de atividades eróticas.
A ênfase que atualmente se dá à forma como a
sexualidade se tornou o foco da atenção social não deve
ser usada indevidamente para invalidar a crítica a essa
proibição. Uma coisa é criar um discurso sexual na forma
de psicanálise, ou no curso de uma cruzada moral. Outra
muito diferente é representar graficamente atos sexuais
ou genitália. A primeira é muito mais aceitável
socialmente do que a outra. O discurso sexual é obrigado à
reticência, ao eufemismo e à referência indireta. A questão
da liberdade de falar sobre sexo é uma exceção às
proteções da Primeira Emenda, que nem ao menos se
considera aplicável a asserções puramente sexuais.
As leis contra a obscenidade também fazem parte de
um grupo de estatutos que torna quase todo comércio

44
Gayle S. Rubin

sexual ilegal. A legislação sexual estabelece uma rigorosa


proibição contra a mistura de sexo e dinheiro, exceto no
casamento. Além das disposições contra a obscenidade,
outras leis que interferem no comércio sexual são as leis
contra a prostituição, a regulamentação sobre bebidas
alcoólicas, e as disposições sobre a localização e
funcionamento de estabelecimentos “para adultos”. A
indústria do sexo e a economia gay conseguiram contornar
um pouco essa legislação, mas esse processo não foi fácil
nem simples. O caráter essencialmente fora da lei do
empreendimento comercial dedicado ao sexo fá-lo
marginal, subdesenvolvido, distorcido. O negócio do sexo
só pode operar nos brechas deixadas pela lei. Isso leva a
que o nível dos investimentos se mantenha baixo e desvia
a atividade comercial para o objetivo de se manter fora
das grades, em vez de concentrar-se na distribuição de
bens e prestação de serviços. Isso também torna os
trabalhadores do sexo mais vulneráveis à exploração e a
más condições de trabalho. Se o comércio do sexo fosse
legal, os trabalhadores do sexo teriam mais chances de
organizar-se e lutar por melhor remuneração, melhores
condições de trabalho, mais autonomia e menos estigma.
Independentemente do que se pense sobre as
limitações do comércio capitalista, uma exclusão tão
extrema do processo de mercado dificilmente seria
aceitável em qualquer outro ramo de atividade. Imagine,
por exemplo, que fosse ilegal pagar em dinheiro
atendimento médico, informação farmacológica e
aconselhamento psicológico. A prática médica se faria em
condições muito mais precárias se médicos, enfermeiras,
farmacêuticos e terapeutas pudessem ser metidos na
cadeia por decisão da “patrulha médica” local. Mas essa é,
essencialmente, a situação de prostitutas, trabalhadores
do sexo e empresários sexuais.
O próprio Marx considerava o mercado capitalista
uma força revolucionária, embora limitada. Ele afirmava

45
Pensando sobre sexo

que o capitalismo era progressista na medida em que


eliminava as superstições e preconceitos pré-capitalistas e
os grilhões dos modos de vida tradicionais. “Daí a grande
influência civilizadora do capital, a criação de um estágio
da sociedade comparado com o qual todos os anteriores
se nos afiguram como mero progresso local e idolatria da
natureza.”52 Impedir o sexo de levar a efeito os progressos
da economia de mercado dificilmente levará a uma
economia socialista.
A lei é especialmente implacável ao estabelecer uma
fronteira entre a “inocência” da infância e a sexualidade
“adulta”. Em vez de reconhecer a sexualidade dos jovens e
tentar dar-lhe suporte de forma prudente e responsável,
nossa cultura nega e pune o interesse e atividade erótica
de qualquer pessoa que não atingiu a maioridade. O
volume de disposições legais destinadas a proteger os
jovens de um exercício prematuro da sexualidade é
espantoso.
O principal mecanismo para garantir a separação das
gerações sexuais são as leis de maioridade. Essas leis não
fazem distinção entre o estupro mais brutal e o mais terno
dos romances. Uma pessoa de 20 anos acusada de ter
mantido relações sexuais com outra de 17 sofrerá uma
pesada pena em quase todos os estados americanos,
independentemente da natureza do relacionamento. 53 Os
menores tampouco podem ter acesso à sexualidade dos
adultos por outras vias. Eles são proibidos de ler livros,
assistir a filmes ou a programas de televisão nos quais a
sexualidade é representada de forma “realista” demais. Os
jovens podem assistir a terríveis cenas de violência, mas é
ilegal ver representações explícitas da genitália. Os jovens
52
Karl Marx. In: MCLELLAN, David. (ed.) The Grundisse. Nova York, Harper
& Row, 1971, p.94.
53
NORTON, Clark. Sex in América. Inquiry, 5 de outubro de 1981. Esse artigo é
uma síntese magistral de boa parte da legislação sexual em vigor e deveria ser
lido por todos os que se interessam por sexo.

46
Gayle S. Rubin

sexualmente ativos muitas vezes são encarcerados em


casas de correção, ou punidos por sua “precocidade”.
Os adultos que se desviam demais dos padrões
convencionais de comportamento sexual normalmente são
afastados das crianças, mesmo tratando-se de seus filhos.
As leis de custódia permitem que o Estado roube os filhos
de qualquer pessoa cujas atividades eróticas pareçam
questionáveis a um juiz da vara de família. Inúmeras
lésbicas, gays, prostitutas, adeptos do sexo grupal,
trabalhadores do sexo e mulheres “promíscuas” foram
declarados incapazes de exercer de forma adequada a
maternidade ou paternidade, em função dessa sua
condição. Os trabalhadores da educação são estreitamente
vigiados, para detectar ocasionais sinais de desvio de
comportamento. Em muitos estados americanos, as leis
determinam que os professores presos por crimes sexuais
percam seus empregos e suas credenciais. Em alguns
casos, um professor pode ser demitido simplesmente
porque seu estilo de vida não convencional chegou ao
conhecimento dos funcionários da escola. A depravação é
uma das poucas justificativas legais para a anulação da
licença para lecionar. 54 Quanto mais influência uma pessoa
tem sobre a geração seguinte, mais rigoroso é o controle
de sua conduta e de suas opiniões. O poder de coerção da
lei garante a transmissão dos valores sexuais
conservadores através desses controles que se exercem
sobre pais e educadores.
O único comportamento sexual adulto legal em todos
os estados é a introdução do pênis na vagina, no âmbito
do casamento. A situação legal de adultos que fazem sexo
consensual tem melhorado em pouco mais da metade dos
estados. A maioria dos estados impõe severas penas
contra sodomia consensual, contato homossexual próximo
da sodomia, adultério, sedução e incesto entre adultos. As
leis sobre sodomia variam muito. Em alguns estados, elas
54
BESSERA, S. S. et alii (eds.) Sex Code of California. Op. cit., pp.165-7.

47
Pensando sobre sexo

se aplicam tanto a parceiros homossexuais como a


heterossexuais, independentemente de serem ou não
casados. Em alguns estados, a Justiça determina que
casais casados têm o direito de praticar sodomia em
particular. Em outros, só a sodomia homossexual é ilegal.
Algumas leis sobre sodomia proíbem o sexo anal e o
contato oral-genital. Há estados em que se fala de
sodomia apenas em relação à penetração anal, e o sexo
oral é tratado à parte. 55
Leis como essas criminalizam o comportamento
sexual escolhido livremente e buscado avidamente. A
ideologia a elas subjacente reflete as hierarquias de
valores acima referidas. Isto é, alguns atos sexuais são
considerados tão intrinsecamente vis que não se pode
permitir que ninguém, em hipótese alguma, os pratique. O
fato de que indivíduos concordem com eles e mesmo que
os prefiram é considerado mais uma prova de depravação.
Esse sistema de legislação sexual é semelhante ao
racismo legalizado. A proibição, pelo Estado, de contato
sexual entre pessoas do mesmo sexo, de penetração anal
e de sexo oral faz dos homossexuais um grupo criminoso
sem as prerrogativas da plena cidadania. Com essas leis,
processar é perseguir. Mesmo quando elas não são
aplicadas estritamente, como em geral acontece, os
membros das comunidades sexuais criminalizadas ficam
vulneráveis diante da possibilidade de detenção arbitrária,
ou de períodos em que eles se tornam objeto de ondas de
pânico social. Quando estas acontecem, as leis estão a
postos e a ação da polícia é rápida. Mesmo a aplicação
esporádica serve para lembrar aos indivíduos que eles são
membros de uma população subalterna. A prisão ocasional
55
BESSERA, S. S; JEWEL, Nancy M.; MATTHEWS, Melody West e GATOV,
Elizabeth R. (eds.) Sex Codes of Califórnia. Public Education and
Research Committee of California, 1973, pp.163-8. Essa edição mais
antiga do Sex Code of California é anterior à lei sobre o consentimento
de adultos, de 1976, por isso dá uma visão melhor das leis sobre
sodomia.

48
Gayle S. Rubin

por sodomia, por comportamento lascivo, por tentar aliciar


clientes (as prostitutas) ou por sexo oral mantém todo
mundo assustado, nervoso e cauteloso.
O Estado também resguarda a hierarquia através de
normas burocráticas. A polícia de imigração ainda proíbe a
entrada de homossexuais (e outros “desviantes” sexuais)
nos Estados Unidos. Os regulamentos militares impedem
que os homossexuais integrem as Forças Armadas. * O fato
de os gays não poderem se casar legalmente significa que
eles não podem gozar dos mesmos direitos que os
heterossexuais, em muitos campos, como herança,
tributação, proteção às testemunhas, e aquisição de
direito de cidadania para parceiros estrangeiros. Estes são
apenas alguns exemplos de como o Estado reflete e
mantém as relações sociais ligadas à sexualidade. A
Justiça reforça as estruturas de poder, códigos de
comportamento e formas de preconceito. Em seu pior
aspecto, a legislação sobre sexo é simplesmente um
apartheid sexual.
Embora o aparato legal do sexo esteja um tanto
vacilante, a maior parte do controle social do dia-a-dia é
extralegal. Impõem-se sanções sociais menos formais, mas
bastante efetivas, aos membros dos grupos sexuais
“inferiores”.
Em seu excelente estudo etnográfico da vida gay na
década de 1960, Esther Newton observou que a população
homossexual dividia-se no que ela chamava de “abertos”
e “encobertos”. “Os abertos vivem toda a sua vida
profissional dentro do contexto da comunidade [gay]; os
encobertos vivem toda a sua vida não-profissional naquele
contexto”.56 À época do estudo de Newton, a comunidade
gay oferecia muito menos empregos do que agora, e o

*
Nota de 1992. Para uma excelente história das relações entre os gays e
o exército americano, ver BÉRUBÉ, Allan. Coming Out Under Fire: The
History of Gay Men and Women in World War II. Nova York, The Free
Press, 1990.

49
Pensando sobre sexo

mundo do trabalho não gay era quase absolutamente


intolerante com o homossexualismo. Havia alguns
indivíduos afortunados que podiam ser abertamente gays
e ganhar salários dignos. Mas a grande maioria dos
homossexuais tinha que escolher entre uma pobreza
honesta e a tensão de manter uma identidade falsa.
Embora essa situação tenha mudado bastante, ainda
há uma feroz discriminação contra os gays. Para o grosso
da população gay, assumir o homossexualismo no trabalho
é praticamente impossível. Em geral, quanto mais
importante e elevado o cargo, menos a sociedade tolera
um desvio erótico aberto. É difícil para os gays achar
emprego onde não tenham que fingir, e é dupla ou
triplamente difícil para indivíduos que têm preferências
eróticas mais exóticas. Os sadomasoquistas deixam suas
roupas-fetiche em casa, e sabem que devem buscar
esconder ao máximo sua verdadeira identidade. Um
pedófilo que fosse descoberto seria expulso do trabalho. É
um grande fardo ser obrigado a viver uma vida com tal
grau de dissimulação. Mesmo aqueles que se contentam
com uma vida clandestina correm o risco de ser
acidentalmente descobertos. Indivíduos não convencionais
do ponto de vista erótico correm o risco de ficar sem
emprego ou de não poder seguir a carreira que
escolheram.
Funcionários públicos ou qualquer um que ocupe uma
posição de certa importância são especialmente
vulneráveis. Um escândalo sexual é o método mais
eficiente de expulsar alguém de seu emprego ou destruir
uma carreira política. O fato de que se espera que pessoas
com cargos importantes se conformem aos mais estritos
padrões de comportamento erótico desestimula os
pervertidos de todos os tipos a procurar ocupá-los. Ao

56
NEWTON, Esther. Mother Camp: Female Impersonators in America.
Englewood Cliffs, Nova Jersey, Prentice-Hall, 1972, p.21, grifo do
original.

50
Gayle S. Rubin

contrário, os dissidentes eróticos se encaminham para


funções que têm menos impacto nas mais importantes
atividades sociais e na opinião pública.
A expansão da economia gay na última década criou
algumas alternativas de emprego e um certo alívio da
discriminação contra homossexuais no mercado de
trabalho. Mas a maioria dos empregos da economia gay é
de baixa qualificação e paga salários baixos. Os gays são
garçons, ajudantes em casas de sauna e disc-jóqueis, mas
não diretores de banco ou executivos de empresa. Muitos
dos migrantes sexuais que afluem para lugares como San
Francisco descem na escala social. Eles enfrentam uma
grande concorrência na disputa pelos cargos. A afluência
de migrantes sexuais fornece uma reserva de mão-de-obra
barata e explorável para os negócios da cidade, tanto gays
como não gays.
As famílias exercem um papel crucial na tarefa de
assegurar a conformidade aos padrões sexuais
convencionais. Há uma grande pressão social para que se
negue aos dissidentes sexuais os confortos e os recursos
proporcionados pela família. A ideologia popular sustenta
que as famílias não devem produzir nem acolher o
inconformismo erótico. Muitas famílias reagem tentando
recuperar, punir ou banir os membros que não se
conformam aos padrões sexuais vigentes. Muitos
migrantes sexuais foram expulsos de casa por suas
famílias, e muitos outros estão fugindo da ameaça da
institucionalização. Qualquer grupo aleatório de
homossexuais, trabalhadores do sexo ou pervertidos de
vários tipos pode nos contar histórias estarrecedoras de
rejeição e de maus tratos por parte de famílias
horrorizadas. O Natal é a grande festa da família nos
Estados Unidos, sendo portanto um momento de grande
tensão na comunidade gay. Metade dos moradores dessas
comunidades vai visitar as suas famílias de origem; muitos

51
Pensando sobre sexo

dos que permanecem nos guetos gays não podem fazer o


mesmo, e revivem toda a sua raiva e sua amargura.
Além das punições econômicas e da tensão nas
relações familiares, o estigma da dissidência erótica cria
áreas de atrito em outros níveis da vida cotidiana. O
público em geral ajuda a punir a discrepância erótica
quando, seguindo os valores que lhes foram ensinados, os
locadores se recusam a alugar suas casas, os vizinhos
chamam a polícia, arruaceiros promovem pancadarias. As
ideologias da inferioridade erótica e do perigo sexual
diminuem a força dos pervertidos sexuais e dos
trabalhadores do sexo em lutas sociais de todo tipo. Eles
têm menos proteção contra comportamentos
inescrupulosos ou criminosos, menos acesso à proteção da
polícia, e têm menos chances de recorrer à Justiça. Suas
relações com instituições e burocracias – hospitais, polícia,
magistrados, bancos, funcionários públicos – são mais
difíceis.
Sexo é um vetor de opressão. O sistema de opressão
sexual atravessa outros modos de desigualdade social,
separando indivíduos e grupos segundo sua própria
dinâmica intrínseca. Ele não pode ser reduzido a classe,
raça, etnia ou gênero, nem pode ser entendido nesses
termos. Riqueza, pele branca, gênero masculino e
privilégios étnicos atenuam os efeitos da estratificação
sexual. Um pervertido branco e rico em geral é menos
afetado que uma pervertida pobre e negra. Mas mesmo os
mais privilegiados não ficam imunes à opressão sexual.
Algumas das conseqüências do sistema de hierarquia
sexual são meros aborrecimentos. Outras são muito
graves. Em suas manifestações mais sérias, o sistema
sexual é um pesadelo kafkiano no qual as infelizes vítimas
se transformam em hordas de gado humano cuja
identificação, vigilância, detenção, tratamento,
encarceramento e punição criam empregos e auto-
satisfação para milhares de agentes das delegacias de

52
Gayle S. Rubin

costumes, funcionários da carceragem, psiquiatras e


assistentes sociais.57

V - Conflitos Sexuais

O pânico moral cristaliza os medos e ansiedades


amplamente difundidos, e em geral tenta enfrentá-los
sem procurar as verdadeiras causas dos problemas e
as condições de que são reflexo, mas projetando-as
sobre “Folk Devils” [demônios populares] de
determinado grupo social (sempre o “imoral” ou
“degenerado”). A sexualidade teve um papel muito
importante nesse tipo de pânico, e os desviantes
sexuais sempre foram, em toda parte, os eternos
bodes expiatórios.(Jeffrey Weeks58)

O sistema sexual não é uma estrutura monolítica e


onipresente. Travam-se incessantes batalhas quanto a
definições, avaliações, acordos, privilégios e custos do
comportamento sexual. A luta política sexual assume
formas bastante específicas.
A ideologia sexual tem um papel fundamental na
experiência sexual. Em conseqüência, as definições e
avaliações do comportamento sexual são objeto de acerba
disputa. Os confrontos entre o movimento de liberação
gay, em seus primórdios, e o establishment psiquiátrico
são o melhor exemplo desse tipo de luta, mas há
constantes escaramuças. Acontecem batalhas recorrentes
entre o principais produtores da ideologia sexual – as
igrejas, a família, os psiquiatras e psicanalistas e a mídia –

57
D´Emilio traz uma excelente discussão da opressão dos gays na década de
1950, cobrindo muitas das áreas que mencionei. As dinâmicas que ele descreve,
porém, funcionam também, em formas modificadas, em relação a outros grupos
eróticos, e em outros períodos. O modelo específico da opressão contra os gays
precisa ser generalizado para se aplicar, com as devidas modificações, a outros
grupos sexuais. D´EMILIO, J. Sexual Politics... Op. cit., pp.40-53.
58
WEEKS, J. Sex, Politics and Society… Op. cit., p.14.

53
Pensando sobre sexo

e os grupos cuja experiência eles rotulam, distorcem e


ameaçam.
As leis que regulam o comportamento sexual são
outro campo de batalha. Há mais de um século, Lysander
Spooner dissecou o sistema de coerção moral sancionado
pelo Estado, num texto inspirado principalmente pelas
campanhas contra o alcoolismo. Em Vices Are Not Crimes:
A Vindication of Moral Liberty [Vícios Não São Crimes: Uma
Defesa da Liberdade Moral], Spooner afirmou que o
governo devia proteger os cidadãos contra o crime, mas
que era insensato, injusto e tirânico legislar contra o vício.
Ele discute racionalizações que ainda se ouvem em defesa
do moralismo traduzido em leis – como a de que os
“vícios” (Spooner refere-se à bebida, mas aqui caberia
também homossexualismo, prostituição ou uso de drogas
como diversão) levam a crimes, devendo portanto ser
evitados; que aqueles que se entregam ao “vício” são non
compus mentis, devendo, portanto, ser protegidos da
autodestruição pela destruição perpetrada pelo Estado; e
que as crianças devem ser resguardadas contra
conhecimentos supostamente nocivos. 59 Esse discurso
sobre crimes sem vítimas não mudou muito. A luta jurídica
em torno da legislação sobre sexo vai continuar até que se
consigam garantias de liberdades básicas de ação e
expressão sexual. Isso exige a revogação de todas as leis
sexuais exceto as poucas que se aplicam à coerção real,
não sendo meramente estatutárias; e isso implica a
abolição de delegacias de costumes, cuja função é fazer
cumprir a legislação moral.
Além das guerras jurídicas e guerras em torno de
definições, existem formas menos evidentes de conflito
político sexual que chamamos de territoriais ou de
fronteiras. Os processos pelos quais as minorias eróticas
formam comunidades e a existência de forças que se lhe
59
SPOONER, Lysander. Vices Are Not Crimes: A Vindication of Moral
Liberty. Cupertino, Cal., Tanstaafl Press, 1977.

54
Gayle S. Rubin

opõem levam a lutas que têm por objeto a natureza e os


limites das zonas sexuais.
A sexualidade dissidente é mais rara e mais
estreitamente vigiada nas cidades pequenas e na zona
rural. Conseqüentemente, a vida metropolitana atrai os
jovens pervertidos. A migração sexual cria aglomerados de
parceiros, amigos e sócios. Ela permite que os indivíduos
criem uma rede de relações adultas, semelhantes a
relações de família, nas quais vivem. Mas os migrantes
sexuais têm que superar muitas barreiras.
Segundo a mídia mais influente e o preconceito
popular, os mundos sexuais marginais são tristes e
perigosos. Descrevem-nos como pobres, feios e habitados
por psicopatas e criminosos. Os novos imigrantes devem
estar suficientemente motivados para resistir ao impacto
de imagens tão desanimadoras. As tentativas de
neutralizar essa contrapropaganda por meio de
informações mais fidedignas em geral são obstruídas pela
censura, e há uma luta ideológica incessante em torno de
que representações das comunidades sexuais devem
entrar na mídia.
Restringem-se também informações sobre como fazer
para encontrar os mundos sexuais e para neles viver. Os
guias também são escassos e deficientes. No passado,
boatos, mexericos e propaganda negativa eram as formas
disponíveis para localizar comunidades eróticas semi-
clandestinas. No fim da década de 1960 e começo da
década de 1970 tornaram-se acessíveis informações mais
confiáveis. Novos grupos como a Maioria Moral desejam
reconstruir as muralhas ideológicas em volta dos
submundos sexuais e dificultar ao máximo o movimento
de entrada e de saída nessas comunidades.
A migração custa caro. Os custos do transporte, as
despesas com o deslocamento e a necessidade de
encontrar um novo emprego e moradia são dificuldades
econômicas que os migrantes sexuais precisam enfrentar.

55
Pensando sobre sexo

Essas são as barreiras mais difíceis para os jovens, que em


geral têm um desejo ardente de mudar-se. Não obstante,
há acessos para as comunidades eróticas que abrem
picadas no matagal da propaganda e oferecem um certo
amparo econômico no caminho. Nível superior de
educação pode ser um caminho para os jovens de famílias
abastadas. Apesar de sérias limitações, a informação sobre
comportamento sexual em muitos colégios e
universidades é muito melhor que em outros lugares, e a
maioria dos colégios e universidades abrigam pequenas
redes eróticas de todos os tipos.
Para os rapazes mais pobres, o exército é a maneira
mais fácil de livrar-se do ambiente aversivo em que se
encontram. As proibições militares contra o
homossexualismo tornam esse caminho perigoso. Embora
jovens homossexuais constantemente procurem o exército
para fugir de situações intoleráveis em suas cidades de
origem e para se aproximarem de comunidades gays
funcionais, eles correm o risco de ser descobertos, de
corte marcial e de dispensa desonrosa.
Uma vez nas cidades, as populações eróticas tendem
a se aglutinar e a ocupar um território regular e visível.
Igrejas e outras forças moralizadoras constantemente
pressionam as autoridades locais para conter essas áreas,
torná-las menos visíveis ou expulsar seus habitantes da
cidade. Há batidas periódicas em que as delegacias de
costumes se encarniçam contra as populações sob sua
jurisdição. Os grupos de gays, prostitutas e às vezes
travestis são concentrados e numerosos o bastante para
travar intensas batalhas com os policiais por determinadas
ruas, parques e alamedas. Essas guerras de fronteiras
raramente são decisivas, mas resultam em muitas baixas.
Durante boa parte do século XX, os submundos
sexuais foram marginais e pobres, seus moradores
submetidos a stress e exploração. O sucesso espetacular
dos empresários gays na criação de uma economia gay

56
Gayle S. Rubin

diversificada mudou a qualidade de vida no interior do


gueto gay. É sem precedentes o nível de conforto material
e de organização social alcançado pela comunidade gay
nos últimos quinze anos. Mas é importante lembrar o que
aconteceu com milagres semelhantes. O crescimento da
população negra em Nova York no início do século XX levou
a um renascimento do Harlem, mas esse período de
criatividade foi sufocado pela Depressão. A relativa
prosperidade e florescimento cultural do gueto gay talvez
seja igualmente frágil. Como os negros que fugiram do sul
para o leste metropolitano, os homossexuais podem
simplesmente ter trocado os problemas rurais por
problemas urbanos.
O pioneiros gays ocuparam áreas que ficavam no
centro das cidades mas que estavam degradadas. Assim,
ele se estabeleceram próximo a regiões pobres. Os gays,
principalmente os de baixa renda, terminam por concorrer
com outros grupos de renda igualmente baixa pela
escassa oferta de moradias baratas e razoáveis. Em San
Francisco, a disputa por moradias baratas exacerbou o
racismo e a homofobia, e é uma das razões por que se vê
tanta violência nas ruas contra homossexuais. Em vez de
se encontrarem isolados e passarem despercebidos como
na área rural, os gays da cidade agora são numerosos e
alvos muito visíveis para as frustrações urbanas.
Em San Francisco, a construção desenfreada de
arranha-céus no centro da cidade e os condomínios caros
estão acabando com as moradias acessíveis. Construções
milionárias estão criando uma pressão sobre todos os
moradores. Inquilinos gays pobres são visíveis nas áreas
de moradores de baixa renda; empreiteiros
multimilionários não. O espectro da “invasão
homossexual” é um bode expiatório conveniente que
desvia a atenção dos bancos, dos departamentos de
obras, do establishment político e das grandes
empreiteiras. Em San Francisco, o bem-estar da

57
Pensando sobre sexo

comunidade gay é obstado pela alta política imobiliária


urbana.
No centro comercial da cidade, a expansão afeta toda
a área do submundo erótico. Em San Francisco e em Nova
York, as construções de alto investimento e a revitalização
urbana interferiram nas principais áreas de prostituição,
pornografia e bares leather. Os empreiteiros estão com
olho gordo no Times Square, no Tenderloin e no que sobrou
de North Beach e South of Market. A ideologia anti-sexo, a
lei contra a obscenidade, as normas sobre prostituição e
sobre bebidas alcoólicas estão todas sendo usadas para
expulsar os negócios “sujos” para o público adulto, os
trabalhadores do sexo e os adeptos do leather. Dentro de
dez anos, a niveladora já terá passado pela maioria dessas
áreas, tornando-as adequadas para a construção de
centros de convenções, hotéis internacionais, sedes de
empresas e residências para ricos.
O tipo mais importante de conflito sexual é o que
Jeffrey Weeks chamou de “pânico moral”. Episódios de
pânico moral são os “momentos políticos” do sexo, nos
quais opiniões difusas são orientadas no sentido de uma
ação política e daí para a mudança social. 60 A histeria da
escravidão branca da década de 1880, as campanhas
contra os homossexuais da década de 1950 e o pânico da
pornografia infantil do final da década de 1970 foram
pânicos morais típicos.
Como a sexualidade é muito mistificada nas
sociedades ocidentais, as lutas que se travam em torno
desse tema se dão de uma forma oblíqua, visando a alvos
falsos, e são conduzidas por ódios orientados na direção
errada; além disso, são extremamente simbólicas. As
atividades sexuais sempre funcionam como símbolos para
os medos e apreensões sociais e pessoais com os quais
não têm relação. Durante um período de pânico moral,
60
Adotei essa terminologia da utilíssima discussão que se encontra em
WEEKS, J. Sex, Politics and Society... Op. cit., pp.14-15.

58
Gayle S. Rubin

esses medos se prendem a alguma prática sexual ou a um


segmento desafortunado da população. A mídia se enche
de indignação, o público age como uma turba irada,
aciona-se a polícia, e o Estado promulga novas leis e
regulamentos. Passado o furor, algum grupo erótico
inocente terá sido dizimado, e o Estado terá estendido seu
poder a novas áreas do comportamento sexual.
O sistema de estratificação sexual fornece vítimas
fáceis que não têm forças para se defender, e um aparato
pré-existente para controlar seus movimentos e restringir
suas liberdades. O estigma contra os dissidentes sexuais
os torna moralmente indefesos. Todo pânico moral tem
conseqüências em dois níveis. A população alvo é a que
mais sofre, mas todos são afetados pelas mudanças
sociais e jurídicas.
Os pânicos morais raramente atenuam algum
problema real, porque investem contra quimeras e
símbolos. Eles recorrem a uma estrutura discursiva pré-
existente que inventa vítimas para justificar o fato de
tratarem “vícios” como crimes. Racionaliza-se a
criminalização de comportamentos inócuos como
homossexualismo, prostituição, obscenidade ou o uso de
drogas para fins de divertimento, apresentando-os como
ameaças à saúde e à segurança, aos homens e às
mulheres, à segurança nacional, à família ou à própria
civilização. Mesmo quando se sabe que a prática não é
nociva, considera-se que deve ser banida porque “leva” a
algo muito pior (outra manifestação da teoria do
dominó).61 Construíram-se grandes e imponentes edifícios
com base nesses fantasmas. Em geral, a eclosão de um
pânico moral é precedida de uma intensificação dos
ataques a bodes expiatórios.

61
Ver SPOONER, L. Vices Are Not Crimes… Op. cit., pp.25-29. O discurso
feminista contra a pornografia encaixa-se perfeitamente na tradição de
justificar as tentativas de controle moral afirmando que assim se
protegem mulheres e crianças da violência.

59
Pensando sobre sexo

É sempre arriscado profetizar. Não é preciso, porém,


muita capacidade de previsão para detectar potenciais
pânicos morais em duas tendências atuais: os ataques
contra sadomasoquistas da parte de um segmento do
movimento feminista e o uso cada vez maior da AIDS, por
parte da direita, para incitar uma homofobia violenta.
A ideologia feminista contra a pornografia sempre
continha uma condenação velada, e às vezes aberta, ao
sadomasoquismo. As imagens de pessoas trepando ou se
chupando, que constituem o grosso do material
pornográfico, podem ser chocantes para pessoas que não
estão familiarizadas com elas. Mas é difícil demonstrar que
elas são violentas. As primeiras mostras de imagens
contra a pornografia usavam exemplos cuidadosamente
selecionados de cenas de sadomasoquismo para inculcar
uma análise superficial. Fora de seu contexto, essas
imagens são sempre chocantes. A força desse impacto era
usada cruelmente para assustar o público e fazê-lo aceitar
o ponto de vista contra a pornografia.
Grande parte da propaganda contra a pornografia
insinua que o sadomasoquismo é a “verdade” subjacente e
fundamental para a qual tende toda a pornografia.
Considera-se que a pornografia leva ao sadomasoquismo
pornográfico; este, por sua vez, leva ao estupro. Essa é
uma história que recupera a idéia de que são os
pervertidos sexuais que cometem crimes, não as pessoas
normais. Não há indícios de que os leitores da literatura
pornográfica sadomasoquista ou que os praticantes do
sadomasoquismo cometam um grande número de crimes
sexuais. A literatura antipornográfica acusa uma minoria
sexual impopular e seu material de leitura de problemas
que ela não cria.
O uso de imagens de sadomasoquismo no discurso
antipornográfico excita os ânimos. Ele leva a acreditar que
a forma de tornar o mundo um lugar seguro para as
mulheres é eliminar o sadomasoquismo. O uso de imagens

60
Gayle S. Rubin

de sadomasoquismo no filme Not a Love Story era o


equivalente moral de usar imagens de negros estuprando
mulheres brancas, ou de judeus velhos, a baba a escorrer-
lhes da boca, agarrando jovens árabes, para provocar a
histeria racista ou anti-semita.
O discurso feminista tem uma lamentável tendência a
ressurgir em contextos reacionários. Por exemplo, em 1980
e 1981 o papa João Paulo II fez uma série de
pronunciamentos reafirmando seu compromisso com uma
visão mais conservadora, mais próxima do pensamento do
apóstolo Paulo, da sexualidade humana. Ao condenar o
divórcio, o aborto, a prática de coabitar por algum tempo
antes de casar, a pornografia, a prostituição, o controle da
natalidade, o hedonismo desenfreado e a luxúria, o papa
usou, em larga medida, a retórica feminista sobre a
objetificação sexual. Num estilo que lembrava o da
polemista feminista lésbica Julia Penelope, Sua Santidade
explicou que “encarar uma pessoa com luxúria faz dessa
pessoa um objeto sexual e não um ser humano a quem se
deve respeito”.62
A direita rejeita a pornografia e já adotou elementos
do discurso feminista contra a pornografia. O discurso
contra a pornografia sadomasoquista desenvolvido no
movimento feminista pode muito bem funcionar como
instrumento para uma caça às bruxas. Ele apresenta uma
população indefesa, pronta para servir de alvo. Ele
apresenta motivos para a recriminalização de materiais
sexuais que ficaram fora do alcance das leis atuais contra
a obscenidade. Seria por demais fácil aprovar leis contra a
arte masoquista semelhantes às que existem contra a
pornografia infantil. O objetivo confesso dessas leis seria
62
Pope´s Talk on Sexual Spontaneity, San Francisco Chronicle, 13 de novembro
de 1980, p.8; ver também, acima, nota 37. Julia Penelope afirma que “não
precisamos de nada que se autodenomine puramente sexual” e que “a fantasia,
enquanto um aspecto da sexualidade, pode ser uma ´necessidade´ falocêntrica
da qual não estamos livres...” PENELOPE, Julia. And Now For the Really Hard
Questions. Sinister Wisdom, nº 15, outono de 1980, p.103.

61
Pensando sobre sexo

reduzir a violência pela eliminação da chamada


pornografia violenta. Uma intensa campanha contra a
ameaça leather também pode levar à aprovação de leis
que criminalizem comportamentos sadomasoquistas que
atualmente não são ilegais. O resultado final desse pânico
moral seria legalizar a violência contra uma comunidade
de pervertidos inofensivos. É pouco provável que essa
caça às bruxas traga alguma contribuição apreciável para
a redução da violência contra as mulheres.
Ainda mais provável é um pânico da AIDS. Quando o
medo de uma doença incurável se mistura ao terror
sexual, o resultado é bastante explosivo. Um século atrás,
tentativas para erradicar a sífilis levaram, na Inglaterra, à
aprovação das Leis sobre Doenças Contagiosas. Essas leis
baseavam-se em teorias médicas errôneas e em nada
contribuíram para evitar a propagação da doença. Mas
elas infelicitaram a vida de centenas de mulheres que
foram encarceradas, submetidas a exame vaginal
obrigatório e estigmatizadas, pelo resto da vida, como
prostitutas.63
Aconteça o que acontecer, a AIDS trará
conseqüências duradouras para o sexo em geral e para a
homossexualidade em particular. A doença terá um
impacto muito grande nas opções feitas pelos gays. A
migração para os santuários gays diminuirá, por medo da
doença. Aqueles que já vivem nos guetos vão evitar
situações que os exponham a riscos. A economia gay e o
aparato político que a ampara talvez se revelem muito
frágeis. O medo da AIDS já afetou a ideologia sexual.
Exatamente quando os homossexuais estavam
conseguindo resultados positivos em sua luta para livrar-se
do estigma da doença mental, eles se vêem
metaforicamente associados à imagem da degradação
física fatal. A síndrome, suas características específicas e
63
Ver principalmente WALKOWITZ, J.R. Prostitution and Victorian Society…
Op. cit., e WEEKS, J. Sex, Politics and Society... Op. cit.

62
Gayle S. Rubin

forma de transmissão estão sendo usadas para fortalecer


velhos medos de que a atividade sexual, o
homossexualismo e a promiscuidade levem à doença e à
morte.
A AIDS é uma tragédia pessoal para os que contraem
a síndrome e uma calamidade para a comunidade gay. Os
homófobos se comprouveram em voltar essa tragédia
contra suas vítimas. Um colunista afirmou que a AIDS
sempre existiu, que as proibições bíblicas da sodomia
visavam a proteger da AIDS, e que portanto a AIDS é uma
punição adequada para a violação dos códigos levíticos.
Usando o medo da infecção como justificativa, a ala direita
local tentou impedir a realização do rodeio gay de Reno,
no estado de Nevada. Um número recente da Moral
Majority Report mostrou uma foto de uma família branca
“típica” usando máscaras cirúrgicas. Na manchete se lia:
“AIDS: A DOENÇA HOMOSSEXUAL AMEAÇA AS FAMÍLIAS
AMERICANAS.”64 Há pouco tempo, Phyllis Schlafly publicou
um folheto afirmando que aprovação da Emenda de
Igualdade de Direitos nos impediria de nos proteger, “em
termos legais, da AIDS e de outras doenças de
homossexuais”.65 A literatura da direita atual propõe o
fechamento de saunas gays, a decretação de uma lei
proibindo os homossexuais de trabalharem com
manipulação de alimentos e a proibição, pelo Estado, da
doação de sangue pelos gays. Essas medidas exigiriam
que o governo identificasse todos os homossexuais e lhes
impusesse distintivos legais e sociais facilmente
reconhecíveis.
Já é muito ruim que a comunidade gay tenha que
enfrentar a infelicidade de ter sido o primeiro segmento da
população em que a doença se disseminou e se fez notar.
64
Moral Majority Report, julho de 1983. Agradeço a Allan Bérubé por me
chamar a atenção para essa foto.
65
apud BUSH, Larry. Capitol Report. Advocate, 8 de dezembro de 1983,
p.60.

63
Pensando sobre sexo

Pior é ter que enfrentar, além disso, as conseqüências


sociais. Mesmo antes do pavor da AIDS, a Grécia aprovou
uma lei que autoriza a polícia a prender suspeitos de
serem homossexuais e submetê-los a um exame para
detectar doenças sexualmente transmissíveis. Muito
provavelmente, até que se conheçam os processos de
transmissão, haverá de surgir todo tipo de proposta para
erradicação da doença recorrendo-se à punição da
comunidade gay e ao ataque a suas instituições. Quando
se desconhecia a causa da legionelose, a doença dos
legionários, ninguém propôs submeter a quarentena os
membros da Legião Americana ou fechar seus locais de
reunião. As Leis das Doenças Contagiosas da Inglaterra
pouco fizeram para erradicar a sífilis, mas causaram muito
sofrimento às mulheres que por elas foram atingidas. A
história do pânico que acompanhou as novas epidemias, e
as baixas sofridas por seus bodes expiatórios, deviam
fazer que todo mundo parasse para considerar com
extrema desconfiança quaisquer tentativas de justificar
medidas políticas baseadas na AIDS.*

VI Os limites do feminismo

*
Nota de 1922. A literatura sobre a AIDS e suas seqüelas sociais
multiplicou-se desde a publicação deste ensaio. Alguns dos textos
importantes são AIDS: CRIMP, Douglas. Cultural Analysis, Cultural
Ativism. Cambridge, Mass., MIT Press, 1988; CRIMP, Douglas e ROLSTON,
Adam. AIDS DEMOGRAPHICS. Seattle, Bay Press, 1990; FEE, Elizabeth e
FOX, Daniel M. AIDS: The Burdens of History. Berkeley, University of
California Press, 1988; e AIDS: The Making of a Chronicle Disease.
Berkeley, University of California Press, 1992; PATTON, Cindy. Sex and
Germs: The Politics of AIDS. Boston, South End Press, 1985; e Inventing
AIDS. Nova York, Routledge, 1990; WATNEY, Simon. Policing Desire:
Pornography, AIDS, and the Media. Minneapolis, University of Minnesota
Press, 1987; CARTER, Erica e WATNEY, Simon. Taking Liberties: AIDS and
Cultural Politics. Londres, Serpent´s Tail, 1989; BOFFIN, Tessa e GUPTA,
Sunil. Ecstatic Antibodies. Rivers Oram Press, 1990; e KINSELLA, James.
Covering the Plague: AIDS and the American Media. New Brunswick,
Rutgers University Press, 1989.

64
Gayle S. Rubin

Sabemos que na maioria esmagadora dos casos, o


crime sexual está ligado à pornografia. Sabemos que
os que praticam crimes sexuais são claramente
influenciados por ela. Creio que, se pudermos
eliminar a distribuição desse tipo de material entre
crianças impressionáveis, haveremos de reduzir
consideravelmente nossa assustadora taxa de crimes
sexuais. (J. Edgar Hoover66 )

Na falta de uma teoria radical do sexo mais


articulada, muitos progressistas procuraram uma
orientação no feminismo. Mas a relação entre o feminismo
e o sexo é complexa. Uma vez que a sexualidade é um elo
das relações entre gêneros, muito da opressão das
mulheres é gerada e mediada pela sexualidade, e
constituída no interior desta. O feminismo sempre teve um
interesse vital em sexo. Mas houve duas correntes de
pensamento feminista sobre esse assunto. Uma tendência
criticava as restrições ao comportamento sexual das
mulheres e condenava o alto custo imposto às mulheres
por serem sexualmente ativas. Essa tradição do
pensamento sexual feminista lutava por uma liberação
sexual feminina que funcionasse para as mulheres da
mesma forma que para os homens. A segunda tendência
considerava que a liberação sexual era, essencialmente,
uma extensão do privilégio dos homens. Essa tradição é
afim do discurso conservador, anti-sexual. Com o advento
do movimento contra a pornografia, ela conseguiu uma
hegemonia temporária na análise feminista.
O movimento contra a pornografia e seus textos
foram a expressão mais ampla desse discurso. 67 Além
66
apud HYDE, H. Montgomery. A History of Pornography. Nova York, Dell,
1965, p.31.
67
Ver, por exemplo, LEDERER, Laura. (ed.) Take Back the Night. Nova
York, William Morrow, 1980; DWORKIN, Andrea. Pornography, Nova York,
Perigee, 1981. O Newspage, do grupo Women Against Violence in
Pornography and Media, de San Francisco, e o Newsreport, do grupo

65
Pensando sobre sexo

disso, os que defendiam esse ponto de vista condenaram


praticamente toda expressão sexual variante como anti-
feminista. Dentro desse quadro, o lesbianismo
monogâmico no âmbito de relações íntimas duradouras e
que excluem o desempenho de papéis polarizados
substituiu o heterossexualismo procriador no topo da
hierarquia de valores. O heterossexualismo foi rebaixado
para uma posição intermediária. Afora essa mudança, tudo
o mais parece mais ou menos familiar. As posições mais
baixas são ocupadas pelos grupos e comportamentos de
sempre: prostituição, transexualismo, sadomasoquismo e
relações entre pessoas de gerações diferentes. 68 A maioria
dos comportamentos do homossexual masculino, todo
sexo ocasional, promiscuidade e lesbianismo em que
existam papéis não convencionais ou que excluam a
monogamia também são condenados. 69 Mesmo a fantasia

Women Against Pornography, de Nova York, são fontes excelentes.


68
BARRY, Kathleen. Female Sexual Slavery. Englewood Cliffs, Nova Jersey,
Prentice-Hall, 1979; Raymond, Janice. The Transsexual Empire, Boston,
Beacon, 1979; BARRY, Kathleen. Sadomasochism: The New Blacklash to
Feminism. Trivia, nº 1, outono de 1982; LINDEN, Robin Ruth; PAGANO,
Darlene R.; RUSSEL, Diana E.H. e STARR, Susan Leigh. (eds.) Against
Sadomasochism. East Palo Alto, Cal., Frog in the Well, 1982; e Rush,
Florence. The Best Kept Secret, Nova York, McGraw-Hill, 1980.
69
GEARHART, Sally. An Open Letter to the Voters in District 5 and San
Francisco´s Gay Community, 1979; Rich, Adrienne. On Lies, Secrets,
and Silence. Nova York, W.W. Northon, 1979, p.225. (“Por outro lado,
existe uma cultura patriarcal homossexual, uma cultura criada por
homens homossexuais, que reflete esses estereótipos masculinos como
a dominação e a submissão como modos de relacionamento, e a
separação de sexo do envolvimento emocional – uma cultura permeada
pelo profundo ódio contra as mulheres. A cultura masculina ´gay´
ofereceu às lésbicas a imitação dos papéis estereotipados de ´sapatão´
e ´lady´, ´ativo´ e ´passivo´, ‘caçar´, sadomasoquismo e o mundo
violento e autodestrutivo dos bares ´gays´.”); PASTERNACK, Judith. The
Strangest Bedfellows: Lesbian Feminism and the Sexual Revolution.
WomanNews, outubro de 1983; RICH, Adrienne. Compulsory
Heterosexuality and Lesbian Existence. In: SNITOW, Ann; STANSELL,
Christine e THOMPSON, Sharon. (eds.) Powers of Desire: The Politics of

66
Gayle S. Rubin

sexual durante a masturbação é considerada um resquício


falocêntrico.70
Esse discurso sobre a sexualidade é menos uma
sexologia que uma demonologia. Ele apresenta a maioria
dos comportamentos sexuais em seu pior aspecto
possível. Suas descrições do comportamento erótico
sempre usam o pior exemplo disponível como se ele fosse
representativo. Ele apresenta a pornografia mais
repugnante, as formas de prostituição mais exploradas e
as menos aceitáveis ou as mais chocantes manifestações
da variação sexual. Essa tática de convencimento falseia a
sexualidade humana em todas as suas formas. O
panorama da sexualidade humana que se descortina a
partir dessa literatura é invariavelmente feio.
Além disso, essa tática de convencimento contra a
pornografia é um exercício da atribuição de todos os males
a bodes expiatórios. Ela critica os atos de amor não
rotineiros em vez de criticar os atos rotineiros de opressão,
exploração ou violência. Essa demonologia/sexologia
canaliza para indivíduos, práticas e comunidades
inocentes a legítima revolta das mulheres contra a falta de
segurança pessoal. A propaganda contra a pornografia
afirma que o sexismo tem origem dentro da indústria do
sexo e em seguida contamina todo o resto da sociedade.
Do ponto de vista sociológico, isso é um contra-senso. Não
se pode dizer que a indústria do sexo seja uma utopia
feminista. Ela reflete o sexismo que existe na sociedade
como um todo. Precisamos analisar e combater as
manifestações de desigualdade de gênero característica
da indústria do sexo. Mas isto não é o mesmo que procurar
eliminar o sexo comercial.
Da mesma forma, as minorias eróticas, como as
sadomasoquistas e os transexuais por exemplo, têm tanta
tendência a apresentar atitudes sexistas quanto quaisquer
Sexuality. Nova York, Monthly Review Press, 1983.
70
PENELOPE, Julia. And Now For the Really Hard Questions. Op. cit.

67
Pensando sobre sexo

outros grupos sociais. Mas afirmar que eles são


intrinsecamente anti-feministas é pura fantasia. Boa parte
da literatura feminista atual atribui a opressão das
mulheres às representações realistas de sexo, à
prostituição, à educação sexual, ao sadomasoquismo, ao
homossexualismo masculino e transexualismo. E onde
ficam a família, a religião, a educação, a mídia, o Estado, a
psiquiatria, a discriminação no mercado de trabalho e a
falta de paridade salarial?
Em última análise, o chamado discurso feminista
recria uma moral sexual muito conservadora. Por mais de
um século, travaram-se lutas para determinar o quanto de
vergonha, dor e sofrimento se deveria impingir à atividade
sexual. A tradição conservadora combateu a pornografia, a
prostituição, o homossexualismo, todas as variantes
eróticas, a educação sexual, a pesquisa sobre sexo, a
aborto e os anticoncepcionais. A tradição oposta, pró-sexo,
contou com indivíduos como Havelock Ellis, Magnus
Hirschfeld, Alfred Kinsey e Victoria Woodhull, e também
com o movimento pela educação sexual, com
organizações de prostitutas e homossexuais militantes,
com o movimento pelos direitos de reprodução e com
organizações como a Sexual Reform League da década de
1960. Esse grupo bastante diversificado de reformadores
sexuais, educadores e militantes sexuais misturaram
registros sobre temas feministas e sexuais. Mas
certamente eles estão mais próximos do espírito do
feminismo moderno que os cruzados morais, o movimento
pela pureza social e as organizações de combate ao vício.
Não obstante, a demonologia sexual feminista atual em
geral eleva os cruzados contra o vício a posições de honra,
ao mesmo tempo em que condena a tradição mais
libertária como sendo anti-feminista. Num ensaio que dá
bem uma mostra dessas tendências, Sheila Jeffreys critica
Havelock Ellis, Edward Carpenter, Alexandra Kolontai, “que
crêem na alegria do sexo de todas as facções políticas

68
Gayle S. Rubin

possíveis”, e o congresso de 1929 da World League for Sex


Reform, por “por ter contribuído, em larga medida, para a
derrota do feminismo militante.”71*
O movimento contra a pornografia e seus avatares
pretendem falar por todo o feminismo. Felizmente, eles
não falam. A liberação sexual foi e continua sendo um
objetivo feminista. O movimento das mulheres pode ter
produzido alguns dos mais retrógrados pensamentos sobre
sexo deste lado do Vaticano. Mas ele produziu também
uma estimulante, inovadora e articulada defesa do prazer
sexual e da justiça erótica. Esse feminismo “pró-sexo” foi
liderado por lésbicas cuja sexualidade não se conforma aos
padrões de pureza (principalmente lésbicas
sadomasoquistas e lésbicas tipo sapatão e lady), por
heterossexuais que não fazem apologia de sua opção
sexual e por mulheres que se alinham mais com o
feminismo radical clássico que com as celebrações
revisionistas da feminilidade atualmente tão comuns. 72
71
JEFFREYS, Sheila. The Spinster and Her Enemies: Sexuality and the
Last Wave of Feminism. Scarlet Woman, nº 13, parte 2, julho de 1981,
p.26; encontra-se uma formulação mais desenvolvida dessa tendência
em PASTERNACK, J. The Strangest Bedfellows... Op. cit.
*
Nota de 1992. Essas tendências agora estão muito mais articuladas.
Alguns dos textos-chave são JEFFREYS, Sheila. The Spinster and Her
Enemies: Feminism and Sexuality 1880-1930. Londres, Pandora Press,
1985; Anti-Climax. Londres, The Women´s Press, 1990; COVENEY, Lal;
JACKSON, Margaret; JEFFREYS, Sheila; KAY, Leslie e MAHONY, Pat. The
Sexuality Papers: Male Sexuality and the Social Control of Women.
Londres, Hutchinson, 1984; e LEIHOLDT, Dorchen e RAYMOND, Janice G.
The Sexual Liberals and the Attack on Feminism. Nova York, Pergamon,
1990.
72
CALIFIA, Pat. Feminism vs. Sex: A New Conservative Wave. Advocate, 21
de fevereiro, 1980; Among Us, Against Us – The New Puritans.
Advocate, 17 de abril de 1980; The Great Kiddy… Op. cit.; A Thorny
Issue Splits a Movement… Op. cit.; Sapphistry. Tallahassee, Florida,
Naiad, 1980; What Is Gay Liberation. Advocate, 25 de junho de 1981;
Feminism and Sadomasochism. Co-Evolution Quarterly, nº 33,
primavera de 1981; Response to Dorchen Leidholdt. New Women´s
Times, outubro de 1982; Public Sex. Advocate, 30 de setembro, 1982;

69
Pensando sobre sexo

Embora as forças contra a pornografia tenham tentado


expulsar do movimento as vozes discordantes, o fato é
que o pensamento feminista continua profundamente
polarizado.73
Onde quer que haja polarização, há uma lamentável
tendência a pensar que a verdade está em algum ponto
mediano. Ellen Willis comentou sarcasticamente que “a
tendência do feminismo é achar que as mulheres são
iguais aos homens, e a dos chauvinistas, que as mulheres
são inferiores. A verdade está em algum ponto entre as
duas posições.”74O mais recente avanço nas guerras
Doing It Together: Gay Men, Lesbians, and Sex. Advocate, 7 de julho de
1983; Gender-Bending. Advocate, 5 de setembro de 1983; The Sex
Industry. Advocate, 13 de outubro de 1983; ENGLISH, Deirdre; HOLLIBAUGH,
Amber e RUBIN, Gayle. Talking Sex. Socialist Review, julho-agosto de
1981; Sex Issue. Heresies, nº 12, 1981; HOLLIBAUGH, Amber. The
Erotophobic Voice of Women: Building a Movement for the Nineteenth
Century. New York Native, 26 de setembro/9 de outubro, 1983; HOLZ,
Maxine. Porn: Turn On or Put Down, Some Thoughts on Sexuality.
Processed World, nº 7, primavera de 1983; O’DAIR, Barbara. Sex, Love,
and Desire: Feminists Struggle Over the Portrayal of Sex. Alternative
Media, primavera de 1983; ORLANDO, Lisa. Bad Girls and “Good” Politics.
Village Voice, Literary Supplement, dezembro de 1982; RUSS, Joanna.
Being Against Pornography. Thirteenth Moon, vol. VI, nos. 1 e 2, 1982;
SAMOIS. What Color is Your Handkerchief, Berkeley, Samois, 1979;
SAMOIS. Coming to Power, Boston, Alyson, 1982; SUNDAHL, Deborah.
Stripping For a Living. Advocate, 13 de outubro de 1983; WECHSLER,
Nancy. Interview with Pat Califia and Gayle Rubin. parte 1, Gay
Community News, Book Review, 18 de julho de 1981, e parte II, Gay
Community News, 15 de agosto de 1981; WILLIS, Ellen. Beginning to See
the Light. Nova York, Knopf, 1981. Para uma excelente síntese da
história das mudanças ideológicas do feminismo que afetaram os
debates sexuais, ver ECHOLS, Alice. Cultural Feminism: Feminist
Capitalism and the Anti-Pornography Movement. Social Text, nº 7,
primavera e verão de 1983.
73
ORLANDO, Lisa. Lust at Last Spandex! Invades the Academy. Gay
Community News, 15 de maio de 1982; WILLIS, Ellen. Who Is a Feminist?
An Open Letter to Robin Morgan. Village Voice, Literary Supplement,
dezembro de 1982.
74
WILLIS, Ellen. Beginning to See the Light… Op. cit., p.146. Agradeço a
Jeanne Bergman por me chamar a atenção para esta citação.

70
Gayle S. Rubin

sexuais feministas é o surgimento de um “meio” que


procura evitar os perigos do fascismo antipornográfico, de
um lado, e um suposto libertarismo do “vale tudo”, de
outro.75 Embora seja difícil criticar um ponto de vista ainda
não totalmente consolidado, gostaria de chamar a atenção
para alguns problemas preliminares. *
Essa posição intermediária que está surgindo baseia-
se numa caracterização falseada dos pólos do debate, que
75
Ver, por exemplo, BENJAMIN, Jessica. Master and Slave: The Fantasy of
Erotic Domination. In: SNITOW, A. et alii (eds.) Powers of Desire... Op. cit.,
p.297; e RICH, B. Ruby. resenha de Powers of Desire. These Times, 16-22
de novembro de 1983.
*
Nota de 1992. A denominação “feminismo libertário” ou “libertarismo
sexual continua a ser aplicada às radicais sexo-feministas. A
denominação é errônea e enganosa. É verdade que o Libertarian Party é
contra o controle, pelo Estado, do comportamento sexual consensual.
Concordamos quanto ao caráter pernicioso da atuação do Estado nessa
área, e considero a proposta libertária de revogação de boa parte da
legislação sobre sexo superior às propostas de quaisquer outras facções
políticas. Mas a concordância fica por aí. As radicais sexo-feministas
baseiam-se em conceitos de desigualdades sistêmicas e socialmente
estruturadas e em poderes diferenciais. Nesta análise, a
regulamentação do sexo pelo Estado é parte de um sistema mais
complexo de opressão que ela reflete, reforça e influencia. O Estado
também desenvolve suas próprias estruturas de interesses, poderes e
recursos na regulamentação do sexo.
Como explicamos neste ensaio e em outros textos, o conceito de
consentimento tem papel diferente, na legislação sobre sexo, do que
tem no contrato social ou num acordo salarial. O caráter, a extensão e a
importância da intervenção e regulamentação do sexo por parte do
Estado devem ser analisados no contexto, e não podem ser
equiparados grosseiramente a análises derivadas da teoria econômica.
Determinadas liberdades básicas que são ponto pacífico em outros
setores da vida não existem no campo do sexo. As que existem não
permitem o acesso, em condições de igualdade, às diferentes
populações sexuais e são aplicadas de forma desigual a várias
atividades sexuais. As pessoas não são chamadas de “libertárias” por
lutar pelas liberdades básicas e por igualdade jurídica para grupos
étnicos ou raciais; não vejo nenhuma razão para negar a certos grupos
sexuais mesmo os parcos benefícios das sociedades capitalistas
liberais.

71
Pensando sobre sexo

considera ambos os lados como igualmente extremistas.


Segundo B. Ruby Rich, “o desejo de uma linguagem da
sexualidade levou as feministas a territórios (pornografia,
sadomasoquismo) por demais estreitos ou determinados
para propiciarem uma discussão proveitosa. O debate
descambou para a briga.”76 De fato, as lutas entre a
Women Against Pornography (WAP) e as sadomasoquistas
lésbicas pareciam conflitos de gangues. Mas o principal
responsável por isso é o movimento contra a pornografia,
e sua recusa a estabelecer uma discussão sóbria. As
lésbicas sadomasoquistas foram obrigadas a lutar para
manter seu grupo no movimento e para defender-se de
calúnias. Nenhuma porta-voz autorizada das
sadomasoquistas lésbicas postulou uma supremacia S/M,
nem defendeu a idéia de que todos devem ser
sadomasoquistas. Além de se ocuparem da própria defesa,
as lésbicas sadomasoquistas exigiram que se levasse em
conta a diversidade sexual e que se fizesse uma discussão
mais aberta da sexualidade.77 Tentar encontrar um meio
termo entre a WAP e Samois é como dizer que a verdade
sobre a homossexualidade está entre as posições da
Maioria Moral e as do movimento gay.
Na vida política, é fácil demais marginalizar os
radicais e tentar ganhar adesões a uma posição moderada
tachando os outros de extremistas. Durante anos, os

Duvido que alguém quisesse chamar Marx de liberal ou libertário, mas


ele considerava o capitalismo um sistema social revolucionário, embora
limitado. “Daí a grande influência civilizadora do capital, a criação de
um estágio da sociedade comparado com o qual todos os anteriores se
nos afiguram como mero progresso local...” (MARX, Karl. The Grundisse,
Nova York, Harper Torchbooks, 1971, pp.94-95). Deixar de apoiar as
liberdades sexuais democráticas não vai levar ao socialismo; só
contribui para manter algo mais próximo do feudalismo.
76
RICH, B. R. resenha de Powers of Desire. Op. cit., p.76.
77
SAMOIS. What Color Is... Op. cit.; e Coming To Power… Op. cit.;
Califia, Pat. Feminism and Sadomasochism... Op. cit.; e Sapphistry... Op.
cit.

72
Gayle S. Rubin

liberais fizeram isso com os comunistas. Os radicais


sexuais abriram os debates sobre sexo. É uma vergonha
negar sua contribuição, falsear suas posições e acentuar o
estigma que pesa sobre eles.
Ao contrário das feministas culturais, que querem
simplesmente expulsar os dissidentes sexuais, os
moderados sexuais pretendem defender os direitos
políticos dos não-conformistas eróticos. Não obstante, essa
defesa de direitos políticos está ligada a um sistema de
condescendência ideológica.* O debate tem dois pontos
principais. O primeiro é a alegação de que os dissidentes
sexuais não prestaram atenção bastante ao significado, às
fontes ou à construção histórica de sua sexualidade. Essa
ênfase no significado parece funcionar como funcionou a
questão da etiologia nas discussões sobre a
homossexualidade. Isto é, a homossexualidade, o
sadomasoquismo, a prostituição ou o amor por meninos
são considerados como misteriosos e problemáticos,
diferentemente do que acontece com sexualidades mais
respeitáveis. A busca de uma causa é a busca de algo que
poderia mudar as coisas de tal forma que esses erotismos
“problemáticos” simplesmente deixariam de existir. Os
militantes sexuais responderam a essas formulações que,
embora a questão da etiologia ou da causa tenha um
interesse intelectual, não é um item prioritário de seu
programa político e que, além disso, privilegiar esse tipo
de questão constitui um retrocesso político.
O segundo ponto da posição “moderada” se
concentra em questões de consentimento. Os sexuais
*
Nota de 1992. Um exemplo recente de condescendência ideológica é o
seguinte: “Os sadomasoquistas não são inteiramente ‘desprovidos de
valores’, mas eles se mostraram refratários a quaisquer valores que
limitassem sua liberdade e que fossem além do mero julgamento por
parte de um terceiro; e nisto eles revelam sua incompreensão das
exigências da vida em comum.” Fonte: Identity Politics: Lesbian
Feminism and the Limits of Community, Filadélfia, Temple University
Press, 1989, p.133.

73
Pensando sobre sexo

radicais de todos os tipos reivindicaram a legitimação


social e jurídica do comportamento sexual consensual. As
feministas os criticaram por abusar de artifícios em
questões como “os limites do consentimento” e “restrições
estruturais” ao consentimento.78 Embora existam
problemas graves no discurso político do consentimento, e
embora haja restrições estruturais à escolha sexual, essa
crítica foi usada sistematicamente de forma incorreta nos
debates sobre sexo. Ela não leva em conta o conteúdo
semântico muito específico que o consentimento tem na
legislação e na prática sexual.
Como disse anteriormente, boa parte da legislação
sobre sexo não faz a distinção entre comportamento
consensual e sob coação. Somente a lei sobre o estupro
faz essa distinção. A lei do estupro baseia-se no
pressuposto, em minha opinião correto, de que a atividade
heterossexual pode ser escolhida livremente ou imposta
pela força. As pessoas têm o direito de se entregar a
práticas heterossexuais desde que isso não contrarie
outras determinações legais e desde que isso seja
agradável para ambas as partes.
Não é isso que acontece na maioria dos outros atos
sexuais. As leis sobre a sodomia, como disse acima,
baseiam-se na idéia de que os atos proibidos são “um
abominável e detestável crime contra a natureza.” A
criminalidade é intrínseca aos próprios atos,
independentemente dos desejos dos participantes. “Ao
contrário do que acontece com o estupro, a sodomia ou
um outro ato sexual não natural ou pervertido pode
ocorrer entre duas pessoas de comum acordo e,
independentemente de quem é o agressor, os dois devem

78
ORLANDO, Lisa. Power Plays: Coming To Terms Whith Lesbian S/M.
Village Voice, 26 de julho de 1983; WILSON, Elizabeth. The Context of
“Between Pleasure and Danger”: The Barnard Conference on Sexuality.
Feminist Review, nº 13, primavera de 1983, principalmente pp.35-41.

74
Gayle S. Rubin

ser processados.”79 Antes da aprovação, na Califórnia, do


estatuto sobre o consentimento entre adultos, em 1976,
amantes lésbicas podiam ser processadas por praticar
cópula oral. Se ambas as parceiras fossem legalmente
responsáveis, ambas recebiam a mesma punição. 80
As leis sobre o incesto entre adultos funcionam da
mesma forma. Ao contrário do que supõe a mitologia
popular, essas leis têm pouco a ver com a proteção de
crianças contra a agressão sexual da parte de parentes
próximos. Essas leis proíbem o casamento ou a relação
sexual entre adultos que são parentes próximos. Os
processos são raros, mas dois vieram a público
recentemente. Em 1979, um fuzileiro naval de 19 anos veio
a conhecer sua mãe, de 42 anos, de quem fora separado
desde o nascimento. Eles se apaixonaram e se casaram.
Os dois foram processados e considerados culpados de
incesto, o que, pelas leis da Virgínia, pode levar a até dez
anos de cadeia. Durante o julgamento o fuzileiro afirmou:
“Eu a amo muito. Acho que duas pessoas que se amam
deviam poder viver juntas.” 81 Em outro caso, um irmão e
uma irmã que tinham sido criados separados se
conheceram e decidiram casar-se. Eles foram presos e
acusados de incesto. A pena foi suspensa, sob a condição
de não voltarem a viver juntos como marido e mulher. Se
eles não tivessem aceitado, teriam que cumprir vinte anos
de prisão.82
Num famoso caso de sadomasoquismo, um homem
foi declarado culpado de agressão grave por ter
chicoteado uma pessoa numa sessão de sadomasoquismo.
79
Taylor v. State, 214 Md. 156, 165, 133 A. 2d 414, 418. Essa citação é
de uma opinião dissidente, mas consta da lei vigente.
80
BESSERA, S. S. et alii (eds.) Sex Code of California. Op. cit., pp 163-5.
Ver nota 55 acima.
81
Marine and Mom Guilty of Incest. San Francisco Chronicle, 16 de
novembro de 1979, p.16.
82
NORTON, C. Sex in América. Op. cit., p.18.

75
Pensando sobre sexo

Nenhuma vítima prestou queixa. As sessões tinham sido


filmadas e ele foi acusado com base no filme. O homem
recorreu da decisão judicial argumentando que participara
de um encontro sexual consensual e que não agredira
ninguém. O tribunal não aceitou o recurso, afirmando que
uma pessoa não pode consentir em ser agredida “exceto
numa situação que normalmente envolve contato físico ou
pancadas que são normais em esportes como futebol,
boxe ou lutas em geral.”83 O tribunal acrescentou que “o
consentimento de uma pessoa sem capacidade jurídica
para tal, como no caso de uma criança ou de um louco, é
inválido” e que “Todo mundo sabe que uma pessoa normal
e em pleno gozo de suas faculdades mentais não consente
livremente em ser submetida a agressões que lhe causem
grandes danos físicos.”84 Assim, qualquer um que consinta
em ser chicoteado deve ser considerado non compos
mentis e legalmente incapaz de consentimento. No sexo
sadomasoquista em geral se usa muito menos força que
na média dos jogos de futebol, e os danos físicos que dele
resultam são muito menores que os provocados pela
maioria dos esportes. Mas para os tribunais os jogadores
de futebol são normais, e os masoquistas não.
As leis sobre sodomia, as leis sobre incesto entre
adultos e as interpretações jurídicas como as que
comentamos acima interferem no comportamento
consensual e punem legalmente. No que tange à lei, o
consentimento é um privilégio de que gozam apenas
aqueles que se situam nos patamares mais altos da
hierarquia dos comportamento sexuais aceitos. Os que
pertencem a um status sexual mais baixo, não gozam
desse direito. Além disso, sanções econômicas, pressões
da família, estigma erótico, discriminação social, ideologia
negativa e escassez de informações sobre o
comportamento erótico – tudo isso torna mais difícil, para
83
People v. Samuels, 250 Cal. App. 2d 501, 513, 58 Cal. Rptr. 439, 447 (1967).
84
People v. Samuels, 250 Cal. App. 2d em 513-514, 58 Cal. Rptr. At 447.

76
Gayle S. Rubin

as pessoas, a opção por comportamentos sexuais não


convencionais. Não há dúvida de que existem certas
restrições de caráter estrutural que impedem a livre
escolha sexual, mas elas não atuam no sentido de coagir
alguém a se tornar um pervertido. Ao contrário, elas
atuam no sentido de obrigar a todos à normalidade.
A “teoria da lavagem cerebral” explica a diversidade
erótica partindo do pressuposto de que alguns atos
sexuais são tão repulsivos que ninguém desejaria praticá-
los. Portanto – continua o raciocínio – se alguém os pratica
deve ter sido forçado ou enganado. Mesmo a teoria sexual
construtivista foi obrigada a explicar por que indivíduos
racionais têm um comportamento sexual não
convencional. Outro ponto de vista ainda não totalmente
estruturado usa as idéias de Foucault e de Weeks para
concluir que as “perversões” são um aspecto detestável
da construção da sexualidade moderna.85 Há ainda outra
versão da idéia de que os dissidentes sexuais são vítimas
de sutis maquinações do sistema social. Weeks e Foucault
não aceitariam essas interpretações, uma vez que suas
teorias consideram toda sexualidade como construída,
tanto a convencional como a não convencional.
A psicologia é o último recurso daqueles que se
recusam a admitir que os dissidentes sexuais são tão
conscientes e livres quanto quaisquer outros grupos de
pessoas que praticam sexo. Se os que praticam formas
não convencionais de sexo não estão sendo vítimas das
manipulações do sistema social, então talvez a causa de
suas escolhas incompreensíveis devam ser procuradas
numa infância infeliz, numa socialização imperfeita ou
numa falha na formação da identidade. Em seu ensaio
sobre a dominação erótica, Jessica Benjamin recorre à
psicanálise e à filosofia para explicar por que o que ela

85
VALVERDE, Mariana. Feminism Meets Fist-Fucking: Getting Lost in
Lesbian S & M. Body Politic, fevereiro de 1980; WILSON, P. The Man They
Called A Monster. Op. cit., p.38.

77
Pensando sobre sexo

chama de “sadomasoquismo” é algo alienado, distorcido,


insatisfatório, sem vigor, sem próposito, e uma tentativa
de “compensar um primeiro esforço de diferenciação
frustrado.”86 Esse ensaio não usa os meios mais comuns
de depreciar o erotismo dissidente, mas lhe atribui uma
inferioridade psicofilosófica. Um crítico chegou a afirmar
que a tese de Benjamin mostra que o sadomasoquismo
não passa de “uma repetição obsessiva da luta infantil
pelo poder.”87
A atitude de quem defende os direitos políticos dos
pervertidos mas que procura entender sua sexualidade
“alienada” é certamente preferível aos banhos de sangue
no estilo WAP. Mas, em sua maioria, os moderados sexuais
ainda não conseguiram vencer o mal-estar que lhes
causam as opções sexuais diferentes das suas. Não se
pode redimir o chauvinismo erótico travestindo-o numa
teoria marxista construtivista ou valendo-se de uma
psicologia barata e retrógrada.
Qualquer que seja a posição feminista em relação
sexo – direita, esquerda ou centro – que termine por se
impor sobre as demais, a existência de uma discussão tão
rica constitui uma prova de que o movimento feminista
sempre haverá de ser uma fonte de reflexões
interessantes sobre o assunto. Não obstante, discordo da
idéia de que o feminismo é ou deveria ser o espaço
privilegiado para uma teoria da sexualidade. O feminismo
é uma teoria da opressão de gênero. Concluir que isso a
faz uma teoria da opressão sexual é mostrar-se incapaz de
fazer a distinção entre gênero, de um lado, e desejo
erótico, de outro.
Em inglês a palavra sex tem dois significados muito
diferentes. Ela significa gênero e identidade de gênero,
86
BENJAMIN, J. Master and Slave… Op. cit., p.292, mas ver também
pp.286, 291-7.
87
EHRENREICH, Barbara. What Is This Thing Called Sex. Nation, 24 de
setembro de 1983, p.247.

78
Gayle S. Rubin

como em “the female sex” [o sexo feminino] ou “the male


sex” [o sexo masculino]. Mas o termo refere-se também a
atividade sexual, sensualidade, relações sexuais e
excitação, como na frase “to have sex” [fazer sexo]. Essa
mistura semântica reflete o pressuposto cultural de que a
sexualidade pode ser reduzida à relação sexual e que é
uma função das relações entre mulheres e homens. A
fusão cultural de gênero com sexualidade deu origem à
idéia de se pode derivar uma teoria da sexualidade de
uma teoria do gênero.
Num ensaio anterior, “The Traffic in Women”, usei o
conceito de um sistema de sexo/gênero definido como
“uma série de acordos pelos quais a sociedade transforma
a sexualidade biológica em produtos da atividade
humana.”88 Cheguei a afirmar que “O sexo tal como o
conhecemos – identidade de gênero, desejo e fantasia
sexual, conceitos de infância – é ele próprio um produto
social.”89 Naquele ensaio eu não fazia a distinção entre
sensualidade e gênero, considerando a ambos como
modalidades do mesmo processo social subjacente.
“The Traffic in Women” foi inspirado pela literatura
sobre sistemas sociais de organização baseados no
parentesco. Àquela época, parecia-me que gênero e desejo
confundiam-se sistematicamente nessas formações
sociais. No que se refere às relações entre sexo e gênero
nas organizações tribais, essa observação pode, ou não,
ser válida. Mas com certeza não é uma formulação
adequada à sexualidade nas sociedades industriais do
ocidente. Como observou Foucault, um sistema de
sexualidade se originou das primeiras formas de
parentesco e adquiriu grande autonomia.

88
RUBIN, Gayle. The Traffic in Women. In: REITER, Rayna R. (ed.) Toward
an Anthropology of Women. Nova York, Monthly Review Press, 1975,
p.159.
89
ID., IB., p.166.

79
Pensando sobre sexo

A partir do século XVIII, principalmente, as sociedades


ocidentais criaram e desenvolveram um novo aparato
que se sobrepôs ao que existia antes e que, sem
suplantá-lo completamente, contribuiu para diminuir
sua importância. Estou falando do desenvolvimento
da sexualidade... No primeiro [parentesco], o que
importa é a relação entre os parceiros e
determinadas normas; a segunda [sexualidade]
preocupa-se com as sensações do corpo, a qualidade
dos prazeres e a natureza das impressões.90

O desenvolvimento de um sistema sexual teve lugar


num contexto de relações de gênero. Parte da moderna
ideologia considera que a sensualidade é o território do
homem, e a pureza, o das mulheres. Não é por acaso que
a pornografia e as perversões foram consideradas como
parte do domínio masculino. Na indústria do sexo, as
mulheres foram excluídas de boa parte do consumo e da
produção, sendo permitido que participassem
principalmente como trabalhadoras. Para participar das
“perversões”, as mulheres tinham que superar sérias
limitações em sua mobilidade social, em seus recursos
econômicos, e em suas liberdades sexuais. O gênero afeta
o funcionamento do sistema sexual, e o sistema sexual
tem manifestações específicas de gênero. Mas embora
sexo e gênero estejam relacionados, eles não são a
mesma coisa e constituem a base de dois diferentes
campos de prática social.
Diferentemente do que afirmei em “The Traffic in
Women”, agora afirmo que é essencial separar, em termos
analíticos, gênero e sexualidade, para pensar de forma
mais acurada em sua existência social separada. Isso vai
contra o espírito de boa parte do pensamento feminista
contemporâneo, que considera a sexualidade como algo
que decorre do gênero. Por exemplo, a ideologia feminista
lésbica analisou a opressão das lésbicas principalmente
90
FOUCAULT, M. The History of Sexuality. Op. cit., p.106.

80
Gayle S. Rubin

em termos da opressão das mulheres. Contudo, as lésbicas


também são oprimidas enquanto praticantes de uma
modalidade sexual não convencional e enquanto
pervertidas, em decorrência da estratificação sexual, e não
de gênero. Embora seja doloroso para muitas lésbicas
pensar sobre isso, a verdade é que elas partilharam muitos
traços sociológicos e sofreram muitas das punições sociais
impostas aos gays, sadomasoquistas, travestis e
prostitutas.
Catherine MacKinnon fez a mais categórica tentativa
de incorporar a sexualidade ao âmbito do pensamento
feminista. Segundo MacKinnon,

A sexualidade é para o feminismo o que o trabalho é


para o marxismo... a configuração, a orientação e a
expressão da sexualidade organiza a sociedade em
dois sexos, homens e mulheres.91

Por sua vez, a estratégia de análise baseia-se numa


decisão de “usar sexo e gênero de forma relativamente
intercambiável.”92 É essa mescla das definições que eu
pretendo contestar.*
Há uma analogia reveladora na história da
diferenciação do pensamento feminista contemporâneo
em relação ao marxismo. O marxismo é provavelmente o
mais simples e o mais poderoso sistema conceitual que
existe para analisar a desigualdade social. Mas as
tentativas de fazer do marxismo o único sistema de
análise das desigualdades sociais fracassaram. O
91
MACKINNON, Catherine. Feminism, Marxism, Method and the State: An Agenda
for Theory. Signs, vol. 7, nº 3, primavera de 1982, pp.515-16.
92
ID. Feminism, Marxism, Method and the State: An Agenda for Theory.
Signs, vol. 8, nº 4, verão de 1983, p.635.
*
Nota de 1992. A obra de MacKinnon continua a crescer: Toward a
Feminist Theory of the State, Cambridge, Mass., Harvard University
Press, 1989; Feminism Unmodified Discourses on Life and Law,
Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1987.

81
Pensando sobre sexo

marxismo é mais efetivo nos setores da vida social para os


quais ele foi desenvolvido originalmente – as relações de
classe sob o capitalismo.
Nos primórdios do movimento contemporâneo das
mulheres, deu-se um conflito sobre a questão da
aplicabilidade do marxismo à estratificação de gênero.
Como a teoria marxista é um instrumento relativamente
poderoso, ela de fato detecta aspectos importantes e
interessantes de opressão de gênero. Ela funciona melhor
para os aspectos de gênero mais estreitamente
relacionados às questões de classe e de organização do
trabalho. Os temas mais específicos da estrutura social de
gênero estão fora do alcance da análise marxista.
A relação entre o feminismo e uma teoria radical da
opressão sexual é semelhante. Os instrumentos
conceituais do feminismo foram desenvolvidos para
identificar e analisar hierarquias baseadas em gênero. Na
medida em que estas coincidem com as estratificações
eróticas, a teoria feminista tem um certo poder de
elucidação. Mas à medida que os temas se afastam de
gênero e se aproximam da sexualidade, a análise feminista
vai se tornando mais equívoca e muitas vezes irrelevante.
O pensamento feminista simplesmente carece de ângulos
de visão que abranjam por completo a organização da
sexualidade. O critério de relevância no pensamento
feminista não lhe permite ver ou avaliar relações de poder
cruciais no campo da sexualidade.
Em longo prazo, a crítica feminista da hierarquia de
gênero pode se incorporar a uma teria radical do sexo, e a
crítica da opressão sexual pode enriquecer o feminismo.
Mas é preciso desenvolver uma teoria autônoma e uma
política específica da sexualidade.
É um erro substituir o marxismo pelo feminismo como
a última palavra em teoria social. O feminismo, tanto como
o marxismo, não pode oferecer uma análise definitiva e
completa de toda desigualdade social. Tampouco o

82
Gayle S. Rubin

feminismo é a teoria residual que pode dar conta de tudo


aquilo de que Marx não se ocupou. Essas ferramentas
críticas foram desenvolvidas para lidar com áreas
específicas da atividade social. Outras áreas da vida social,
suas formas se poder e seus modos específicos de
opressão exigem seus próprios instrumentos conceituais.
Neste ensaio, defendi um pluralismo teórico e sexual.

VII - Conclusão

...esses prazeres que chamamos levianamente de


físicos...(Colette93)

Assim como o gênero, a sexualidade é política. É


organizada em sistemas de poder, que recompensam e
estimulam alguns indivíduos e atividades, enquanto
punem e reprimem outros. Como a organização capitalista
do trabalho e sua distribuição de recompensas e poderes,
o sistema sexual moderno foi objeto de luta política desde
que surgiu e se desenvolveu. Mas se as disputas entre
trabalho e capital são mistificadas, os conflitos sexuais são
completamente camuflados.
A reforma jurídica que ocorreu no fim do século XIX e
nas primeiras décadas do século XX foi uma resposta ao
surgimento do sistema erótico moderno. Durante aquele
período, formaram-se novas comunidades eróticas. Tornou-
se mais fácil que em qualquer outra época ser um
homossexual masculino ou uma lésbica. A arte erótica de
massa se tornou acessível, aumentaram as possibilidades
para o comércio sexual. Formaram-se as primeiras
organizações de defesa dos direitos homossexuais, e
formularam-se as primeiras análises da opressão sexual. 94

93
COLETTE. The Ripening Seed. traduzido e citado em ALDERFER, Hannah; JAKER,
Beth e NELSON, Marybeth. Diary of a Conference on Sexuality. Nova York, Faculty
Press, 1982, p.72.

83
Pensando sobre sexo

A repressão da década de 1950 foi, em certa medida,


um retrocesso para a expansão das comunidades e das
possibilidades sexuais que se verificou durante a Segunda
Guerra Mundial.95 Na década de 1950 surgiram as
organizações de defesa dos direitos gays, publicaram-se os
relatórios Kinsey, e a literatura lésbica floresceu. A década
de 1950 foi um período de formação e ao mesmo tempo de
repressão.
A atual contra-ofensiva da direita sexual é, em parte,
uma reação à liberação sexual da década de 1960 e do
início da década de 1970. Além disso, ela acarretou uma
coalizão unificada e autoconsciente dos radicais sexuais.
Em certo sentido, o que está acontecendo agora é o
surgimento de um novo movimento sexual, preocupado
com novos temas e em busca de uma nova base teórica.
As lutas sexuais que se travaram nas ruas foram em parte
responsáveis por um novo foco na sexualidade. Mais uma
vez, o sistema sexual está mudando e estamos vendo
muitos sintomas dessa mudança.
Na cultura ocidental, o sexo é encarado com
excessiva seriedade. Uma pessoa não é considerada
imoral, não é mandada para prisão e não é expulsa da
própria família por gostar de pratos apimentados. Mas um
indivíduo pode sofrer tudo isso e ainda mais por ter fixação
erótica em sapatos. Afinal de contas, que importância
social pode ter o fato de uma pessoa gostar de se
masturbar diante de um sapato? Pode não ser uma coisa
consensual mas, assim como não pedimos autorização aos
sapatos para calçá-los, não me parece necessário
conseguir autorização para usá-los sexualmente.
Se por um lado o sexo é visto com excessiva
seriedade, a perseguição sexual não é vista com seriedade
94
LAURITSEN, John e THORSTAD, David. The Early Homosexual Rights
Movement in Germany, Nova York, Times Change Press, 1974.
95
D´EMILIO, J. Sexual Politics... Op. cit., BÉRUBÉ, A. Behind the Spectre of
San Francisco. Op. cit.; e Marching to a Different… Op. cit.

84
Gayle S. Rubin

bastante. Maltratam-se de forma sistemática indivíduos e


comunidades com base no gosto ou no comportamento
erótico. Há sérias punições contra aqueles que pertencem
às várias castas profissionais sexuais. Nega-se a
sexualidade dos jovens e sempre se trata a sexualidade
adulta como uma espécie de lixo nuclear, e a
representação realista do sexo se faz em meio a um
charco de circunlóquios jurídicos e sociais. Grupos
específicos sofrem o impacto do atual sistema de poder
erótico, mas sua perseguição sustenta um sistema que
afeta todo mundo.
A década de 1980 já fora uma época de grande
sofrimento sexual. Foi também uma época de
efervescência e de novas perspectivas. Cabe a todos nós
procurar evitar mais ações bárbaras e estimular a
criatividade erótica. Aqueles que se consideram
progressistas devem analisar as próprias preocupações,
atualizar sua educação sexual e tomar conhecimento da
existência e do funcionamento da hierarquia sexual. É
tempo de reconhecer as dimensões políticas da vida
erótica.

Agradecimentos

É sempre com grande prazer que, no curso de um


trabalho, chego ao momento de agradecer àqueles que
contribuíram para a sua elaboração. Muitas das minhas
idéias sobre a formação de comunidades sexuais me
ocorreram pela primeira vez durante um curso ministrado
por Charles Tilly sobre “A Urbanização da Europa de 1500 a
1900.” Poucos cursos foram capazes de despertar tanto
entusiasmo, de trazer tanto estímulo e riqueza conceitual
como esse de Charles Tilly. Daniel Tsang me alertou para a
importância dos acontecimentos de 1977 e me ensinou a
prestar atenção à legislação sobre sexo. Pat Califia fez que
eu aprofundasse minha análise da variedade sexual

85
Pensando sobre sexo

humana e me ensinou a respeitar o difamado campo da


pesquisa e da educação sexual. Jeff Escoffier partilhou sua
grande compreensão e conhecimento da história e da
sociologia gay, e eu aproveitei, de modo especial, seu
conhecimento da economia gay. O trabalho de Allan
Bérubé, ainda em curso, sobre a história gay me permitiu
refletir com maior clareza sobre a dinâmica da opressão
sexual. As conversas com Ellen Dubois, Amber Hollibaugh,
Mary Ryan, Judy Stacey, Kay Trimberger, Rayna Rapp e
Martha Vicinus influenciaram minhas reflexões.
Sou muito grata a Cynthia Astuto por seus pareceres
e pesquisas na área jurídica, e a David Sachs,
extraordinário livreiro, por me apresentar os folhetos da
extrema-direita sobre sexo. Sou grata a Allan Bérubé,
Ralph Bruno, Estelle Freedman, Kent Gerard, Barbara Kerr,
Michael Shively, Carole Vance, Bill Walker e Judy Walkowitz
por referências várias e informações factuais. Não tenho
como agradecer às pessoas que leram e comentaram as
várias versões deste trabalho: Jeanne Bergman, Sally
Binford, Lynn Eden, Laura Engelstein, Jeff Escoffier, Carole
Vance e Ellen Willis. Além de editar o texto, Mark Leger
desempenhou funções heróicas de secretariado,
preparando os originais. Marybeth Nelson auxiliou
bastante nos problemas gráficos que surgiram de última
hora.
Agradeço especialmente a dois amigos cuja atenção
aliviou um pouco a tensão do ato de escrever. E.S. me deu
apoio logístico e me orientou nos momentos em que sofri
brancos homéricos no trabalho de redação. As muitas
atenções de Cynthia Astuto e seu apoio incansável me
permitiram continuar trabalhando num ritmo absurdo por
muitas semanas.
Nenhuma dessas pessoas deve ser responsabilizada
por minhas opiniões, mas sou grata a todas elas pela
inspiração, informação e ajuda.

86
Gayle S. Rubin

Uma nota sobre as definições

Em todo este ensaio, usei termos como homossexual,


trabalhador do sexo e pervertido. Uso “homossexual”
referindo-me tanto a homens como a mulheres. Quando
quero ser mais precisa, uso termos como “lésbica” ou
“homossexual masculino”. O termo “trabalhador(a) do
sexo” pretende ser mais abrangente que “prostituta”, para
englobar os muitos trabalhos da indústria do sexo. Ele
inclui dançarinas eróticas, strippers, modelos pornô,
mulheres nuas que falam com clientes através de um
circuito telefônico interno e que podem ser vistas, mas não
tocadas, profissionais do tele-sexo e vários outros
empregados do negócio do sexo como recepcionistas,
zeladoras e encarregadas de atrair o público em altos
brados. Obviamente, o termo também se aplica às
prostitutas, michês e “modelos masculinos”. Eu uso o
termo “pervertido” para designar todas as orientações
sexuais estigmatizadas. Ele costumava se aplicar também
ao homossexualismo masculino e feminino, mas, como
estes se tornaram menos infamantes, agora se aplica cada
vez mais a outros “desvios”. Termos como “pervertido”, e
“desviantes” em geral são usados com uma conotação de
reprovação, repulsa e desagrado. Uso esses termos em
sentido denotativo, sem nenhuma intenção de
desaprovação de minha parte.

Pós-escrito

Terminei de escrever “Thinking Sex” no início da


primavera de 1984. Para esta nova impressão, corrigi erros
tipográficos, fiz algumas pequenas mudanças editoriais e
acrescentei várias notas de pé de página. O ensaio
continua praticamente o mesmo, mas o trabalho de
repassá-lo de ponta a ponta aumentou minha percepção
da extensão das mudanças que ocorreram nos contextos

87
Pensando sobre sexo

social, político e intelectual da sexualidade nos oito anos


desde que ele foi escrito. Além disso, o ritmo dessa
mudança parece estar se acelerando vertiginosa e
exponencialmente.
Há apenas quatro meses escrevi um longo posfácio
para acompanhar uma outra reimpressão de “Thinking
Sex” [KAUFFMAN, Linda. (ed.) American Feminist Thought,
1982-1992. Oxford, Basil Blackwell, no prelo]. Nesse
posfácio mostrei como se deram algumas mudanças na
política e no pensamento sexual, desde que o ensaio foi
publicado. Não preciso retomá-las aqui. Não obstante,
desde que enviei o posfácio, em meados de fevereiro,
aconteceram vários avanços que ilustram o que está em
jogo nos conflitos relacionados a sexo, e a forma
vertiginosamente rápida como ocorrem. Três áreas em que
se desenvolve a atividade crítica são: a expressão de
idéias antipornográficas em lei, a crescente criminalização
da representação e da prática sadomasoquista, e número
assustador de espancamentos de gays que aconteceu nas
eleições norte-americanas de 1992.
No final de fevereiro, a Suprema Corte do Canadá
apoiou a legislação sobre obscenidade numa decisão
(Butler v. Her Majesty the Queen) que redefiniu a
obscenidade seguindo a linha defendida, desde o final da
década de 1970, pelas feministas que lutam contra a
pornografia.96 1
A justiça canadense adotou uma
linguagem semelhante às definições dos assim chamados
“regulamentos dos direitos civis antipornográficos”
MackKinnon/Dworkin. No Canadá, a definição jurídica de
obscenidade agora se baseia, em parte, na descrição de
comportamentos sexuais considerados “desumanos e
degradantes”. Essa definição foi rejeitada pela Suprema

96
LEVIN, Tamar. Canada Court Says Pornography Harms Women and Can
Be Barred. New York Times, 28 de fevereiro de 1992, p.1; LANDSBERG,
Michele. Canada: Antipornography Break-through in the Law. Ms.,
maio/junho de 1992, pp.14-15.

88
Gayle S. Rubin

Corte dos Estados Unidos por contrariar a Primeira


Emenda. O Canadá não tem nada equivalente à Carta de
Direitos, e tem menos proteções legais para o direito de
expressão política.
Embora a situação jurídica do Canadá seja diferente
da dos Estados Unidos, a Suprema Corte americana, cada
dia mais dominada pelos direitistas, pode se deixar
influenciar pela decisão canadense da próxima vez que for
reexaminar os termos da lei referentes ao mesmo assunto.
A lógica do Projeto de lei 1521 (Lei de Indenização a
Vítimas de Pornografia) baseia-se nos mesmos
pressupostos errôneos da decisão Butler. O projeto passou
na Comissão Jurídica do Senado no final de junho e agora
vai a plenário.
Além disso, a decisão Butler, ao que parece, foi
facilitada pela lenta acumulação de precedentes jurídicos
em casos de menor importância. Nos Estados Unidos, os
ativistas contra a pornografia e os procuradores estão
buscando construir um corpus semelhante de precedentes
a partir de casos que à primeira vista pouco têm a ver com
a lei contra a obscenidade. Feministas que lutam contra a
censura e advogados defensores dos direitos civis devem
estar atentos a uma certa linguagem que trata a
pornografia como algo intrinsecamente “nocivo” e “anti-
mulher” em casos como o de assédio sexual, por exemplo
(a pornografia, como as latas de Coca-Cola ou grande
número de outros objetos, pode de fato ser usada para o
assédio sexual; mas é muitíssimo mais fácil considerar a
pornografia como nociva, independentemente do contexto,
que fazer o mesmo em relação a objetos menos
demonizados).
Muitos ativistas gays do Canadá advertiram que as
novas definições de obscenidade iriam ser usadas de
forma parcial contra as mídias gay e lésbica. A Glad Day
Books, a livraria gay e lésbica de Toronto, sofreu durante
uma década a intervenção da polícia, e confiscos na

89
Pensando sobre sexo

alfândega impediram a circulação de muitas publicações


gays e lésbicas no Canadá. Estimulada pelas definições
Butler, a polícia invadiu a Glad Day em 30 de abril e
acusou o gerente da livraria de violar a lei contra a
obscenidade por vender Bad Attitude, uma revista erótica
lésbica americana que mostrava cenas de bondage e
penetração. Em 4 de maio o proprietário e a empresa
também foram acusados de obscenidade.97 2
Essa nova definição de obscenidade torna os
materiais pornográficos sadomasoquistas totalmente
ilegais no Canadá, uma vez que estes se aproximam da
categoria de pornografia “desumana e degradante”. 98 3
Além disso, os materiais sadomasoquistas dos
homossexuais masculinos parecem ter contribuído de
forma decisiva para que a Justiça adotasse os novos
critérios de classificação da obscenidade. Um artigo de
jornal elogiando a decisão da justiça canadense traz uma
afirmação perturbadora, feita por uma das procuradoras
vitoriosas. O artigo diz que ela atribui o sucesso de seu
pleito ao fato de ter mostrado aos juízes “filmes gays
violentos e degradantes. Argumentamos que os homens
violentados nesses filmes estavam sendo tratados como
mulheres – e os juízes entenderam assim. De outro modo
os homens não conseguem se colocar em nosso lugar.” 99 4
Se essa informação é correta, as feministas fizeram valer o
seu ponto de vista usando filmes de homossexuais
masculinos sadomasoquistas para incitar a previsível
intolerância que o filme despertaria entre homens
heterossexuais. Por muitos anos, as feministas que
lutavam contra a pornografia exploraram a ignorância e
97
SYMS, Shawn e WOFFORD, Carrie. Obscenity Crackdown: Using obscenity laws,
U.S. customs begins new tactic of seizing gay magazines; Toronto police raid a
gay bookstore. Gay Community News, 22 de maio - 4 de junho de 1992, pp.1,7.
98
DIAZ, Kathryn E. The porn debates reignite. Gay Community News, 6-19
de junho de 1992, pp.3,5.
99
LANDSBERG, M. Canada: Antipornography… Op. cit., p.15, grifo meu.

90
Gayle S. Rubin

intolerância em relação ao sadomasoquismo, na falta de


provas convincentes; explorando a ignorância e a
intolerância contra o homossexualismo masculino, elas
foram ainda mais fundo na irresponsabilidade política e no
oportunismo.
Isso é especialmente preocupante, considerando-se
que acontece na esteira de uma recente decisão da justiça
da Inglaterra e no contexto da ampla campanha anti-gay
das eleições americanas de 1992. Na Inglaterra, em 1990,
quinze homens foram acusados de vários delitos por se
terem entregado a práticas homossexuais
sadomasoquistas. Muitos foram condenados, alguns
receberam penas de até quatro anos e meio. Nenhum dos
participantes fez nenhuma denúncia nem prestou queixa;
os homens foram presos depois que a polícia apreendeu as
fitas de vídeo, gravadas em casa, que documentavam suas
práticas.100 5 Os acusados recorreram da sentença. No
final de fevereiro, o tribunal de apelação confirmou as
sentenças, argumentando que “a questão do
consentimento é irrelevante”, confirmando na prática que
atividades sadomasoquistas são ilegais na Inglaterra. 101 6
Embora essa decisão se baseie em leis antigas, esse tipo
de processo, até então, era extremamente raro. O fato de
tantos homossexuais terem sido condenados a penas de
prisão tão longas por práticas sexuais consensuais entre
adultos é muito mau sinal.

100
Sado-masochists jailed for “degrading” sex acts. The Guardian, dezembro de
1990; WOCKNER, Rex. SM Crackdown in London. Bay Area Reporter, 24 de
janeiro de 1991, p.16; London S/M Gays Fight Opression. Bay Area Reporter, 21
de fevereiro de 1991, p.20; Taking Liberties. Marxism Today, março de 1991, p.16;
FELDWEBEL, T.A. Two Steps Backward. DungeonMaster 43, p.3; SM Gays – SM
and the Law. DungeonMaster 43, 4.
101
WOODS, Chris. SM sex was a crime, court rules. Capital Gay, 21 de
fevereiro de 1992; HAMILTON, Angus. Criminalizing gay sex. The Pink
Paper, 23 de fevereiro, 1992, p.9; S & M is illegal in England. Growing
Pains, maio de 1992, pp.1-2.

91
Pensando sobre sexo

Nos Estados Unidos, a homofobia se tornou uma das


mais importantes táticas políticas neste ano de eleições.
Em fevereiro, as eleições primárias para a presidência
ainda estavam começando a esquentar. À medida que
avançava o processo eleitoral, o National Endowment for
the Arts – NEA [Fundo Nacional das Artes], a emissora
pública dos EUA (PBS), os representantes da
homossexualidade, e a própria homossexualidade se
tinham tornado os principais alvos da campanha. Fizeram-
se críticas às verbas destinadas ao PBS, e o presidente da
NEA foi demitido (por acreditar na Constituição e na Carta
de Direitos). Do palavreado neo-nazista de Patrick
Buchanan à ênfase eufêmica nos “valores da família” de
Dan Quayle, ataques abertos ou velados ao
homossexualismo foram táticas largamente usadas na
campanha eleitoral de 1992.102 7
No Oregon, a organização de direita Oregon Citizens
Alliance (OCA) está tentando fazer aprovar dois projetos de

102
Buchanan´s New Anti-Bush Ad Shows Gay Scenes From PBS. San
Francisco Chronicle, 27 de fevereiro de 1992, p.A-2; YOACHUM, Susan.
Buchanan Calls AIDS “Retribution”. San Francisco Chronicle, 28 de
fevereiro de 1992, p.1; KOLBERT, Elizabeth. Bitter G.O.P. Air War Reflects
Competitiveness of Georgia Race. New York Times, 28 de fevereiro de
1992, p.A-9; Hitler´s ‘Courage’ Etc. San Francisco Examiner, 8 de março
de 1992, p.A-12; Schmitz, DAWN. Riggs, Buchanan battle for public TV.
Gay Community News, 5-18 de abril de 1992, p.5; ROBERTS, Jerry. Quayle
Blames Riots on Decline of Family Values. San Francisco Chronicle, 20
de maio de 1992, p.1; IRVING, Carl. Quayle: Marriage is a key to ending
poverty. San Francisco Examiner, 20 de maio de 1992, p.A-14; GINSBURG,
Marsha e HATFIELD, Larry D. “Murphy Brown” furor grows. San Francisco
Examiner, 20 de maio de 1992, p.1; ROBERTS, Jerry. Uproar Over
Comments By Quayle. San Francisco Chronicle, 21 de maio de 1992,
p.1; RAINE, George. Quayle planned attack on “Murphy”. San Francisco
Examiner, 21 de maio de 1992, p.A-1; Bush Links Big-City Woes To
Collapse of the Family. San Francisco Chronicle, 10 de março de 1992,
p.A-4; OSBORN, Torie e SMITH, David M. Are Gays Being Made ‘92´s Hate
Symbol?. San Francisco Chronicle, 9 de março de 1992, p.A-21;
HERSCHER, Elaine. Gays Under Fire in Presidential Race. San Francisco
Chronicle, 26 de junho de 1992, p.1.

92
Gayle S. Rubin

emenda à Constituição que iriam definir, em termos legais,


o homossexualismo, o sadomasoquismo, a pedofilia, o
bestialismo e a necrofilia como “anormais, imorais, não
naturais e perversos”. Se aprovada, a nova legislação iria
impedir que esses grupos usassem os serviços públicos,
que gozassem da proteção dos direitos civis garantida às
minorias sexuais e proibiria que uma visão positiva desses
comportamentos fosse ensinada em qualquer escola,
colégio ou universidade financiada pelo Estado.
Ainda que a OCA afirme que seu projeto não iria
mudar o direito penal ou aumentar as penas contra esses
comportamentos, em muitos aspectos ele nos lembra a
legislação nacional-socialista. Se aprovados, os projetos da
OCA iriam privar as minorias sexuais de direitos iguais de
cidadania, torná-las “inferiores” nos termos da lei e das
políticas públicas, e fazer que se ensinasse nas instituições
públicas de ensino que elas são inferiores; a aprovação
levaria também a que se proibisse a divulgação de
opiniões ou de provas que contradissessem essa
inferioridade expressa pela lei.103 8
Estou me preparando agora para enviar este pós-
escrito no começo de julho. Ainda faltam quatro meses
para as eleições de 1992. Sabe-se lá que histerias e que
medos serão provocados, que hostilidades e antagonismos
serão incitados, a que baixos níveis o processo político
chegará para manter o poder, a riqueza e os privilégios tão
concentrados quanto possível. Quem pode dizer quantas
pessoas inocentes serão presas, banidas, importunadas,
financeiramente destruídas ou agredidas fisicamente?
Quem saberia dizer por que pessoas sabidamente
progressistas e bem-intencionadas continuam a se omitir
na luta contra políticas retrógradas com conseqüências

103
As informações sobre esses projetos baseiam-se em folhetos
publicados pelo Right to Privacy PAC e pela Campanha por um Oregon
Livre do Ódio, de Portland, Oregon.

93
Pensando sobre sexo

sérias devastadoras? A essa altura eles deviam estar mais


bem avisados.
Sintonizem seus aparelhos no próximo ano para mais
um emocionante episódio.
Gayle Rubin
San Francisco, 4 de julho de 1992.

94

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