RESUMO
O artigo rama como referência a noção de miro
conto, por exemplo? A pers-
pectiva através da qual se si-
tuam o mito e a crença no que
1987), à história das socie- como porta enrreaberta para compreender os está sendo "contado":
dades ditas arcaicas (Eliade, senrimenros humanos em colerividade. Considera Há mais de meio século,
1957), à história das civiliza- que o projero de rransferência da capiral e a os especialistas ocidentais situ-
ções antigas (Hamilton, 1978; cidade de Brasília foram, para JK, versões do aram o estudo do mito numa
Vernant, 1974; Grimal, 1983), miro da nação. Miro partilhado por ourros que, perspectiva que contrastava
mesmo nos nossos dias, conrinuam a represenrar
à literatura (Dumézil, 198 7), sensivelmente com a do sécu-
Brasília com base nas quesrões de inreriorização,
à antropologia (Lévi-Strauss, de desenvolvimenro, de soberania, e brasilidade. lo XIX. Em vez de, como seus
1958, 1963) e, de fato, menos Brasília sinreriza a chegada de uma nova era, sendo antecessores, tratarem o mito
à sociologia e à compreensão rambém a ilusão de um mundo melhor, à imagem na acepção usual do termo,
dos fenômenos sociais típicos de rodas as uropias que fizeram o Novo Mundo. ou seja, enquanto 'fábula' 'in-
das sociedades modernas. A ABSTRACT venção', 'ficção', aceitaram-no
segunda metade do século XX The article referred ro rhe norion of myrh as a parh tal como ele era entendido nas
viu, contudo, a noção de mito ro comprehend human senrimenrs in collecriviry. sociedades arcaicas, nas quais,
ultrapassar definitivamen- Ir conrended rhar ro Juscelino Kubisrchek, rhe pelo contrário, o mito designa
te seus domínios clássicos e consrrucrion of Brasilia and irs rransformarion uma 'história verdadeirà e, so-
inro a capiral, was a version of rhe narional myrh.
abordar novos e contemporâ- bretudo, altamente preciosa,
Such a myrh, shared by orhers, conrinues ro be
neos fenômenos como a políti- porrrayed as a reference ro inreriorizarion issues, porque sagrada, exemplar e
ca (G irardet, 1986), as cenas da developmenr, sovereignry and brasilieness. Brasilia significativa (Eliade, 1986: 9).
vida cotidiana (Barthes, 1957) synrhesized rhe dawn of a new era by being a Essa "história verdadei-
ou temas históricos (Todorov, perceprion of a berrer world, an image of ali ra" diferencia claramente um
1982), entre outros. Essa pers- uropias rhar invenred rhe New World. mito de um conto: no primeiro
pectiva foi apontada por Eliade Doutor em Sociologia e professor do Programa acredita-se, no segundo, não.
de Pós-graduação em Sociologia da Universidade
(1963: 11) e também por Lévi- Federal do Paraná.
É apenas uma ficção. Aproxi-
Strauss (1964, 1967, 1968), mamo-nos, assim, do sentido
abrindo um novo campo para a utilização da noção. pelo qual as ciências sociais, em geral e a etnologia,
Mas, de que mito se fala? Como se define? A em particular, passaram a considerar o mito:"( ... ) ~le
palavra mito, em grego, muthos, quer dizer recito ou fornece modelos para o comportamento e, por isso
narrativa. Malgrado as múltiplas acepções e usos nas mesmo, confere significado e valor para a existência
mais diversas culturas e países, este sentido original humana" (Eliade, 1986: 10).
tem sido mantido. Assim, todo mito é uma narrati- Avançando nessa mesma direção, Lévi-Strauss
va, oral ou escrita, mas sempre narrativa. Como toda (1958: 232) afirmou que o essencial do mito é "a his-
narrativa, o mito "conta" uma estória, descreve fatos tória que aí está contada". Não uma história qualquer,
e apresenta personagens em uma trama provida de mas uma história que é percebida como "mito por
sentido. A semelhança dos m itos com as narrativas todo leitor no mundo inteiro" porque seu sentido
literárias (ficcionais) é evidente. O que diferenciaria permanece, "a despeito da pior tradução': Partindo
então uma "narrativa mítica" de outra literária, um desta hipótese, o antropólogo francês procurou en-
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contrar as razões para a permanência do sentido no A CONSTRUÇÃO DE BRASÍLIA: A PRESENÇA
interior da narrativa mítica. Chegou à conclusão que DE UMA NARRATIVA MÍTICA
o mito "é formado de unidades constitutivas" e que
Quando o governo JK lançou seu projeto, a
são elas que têm seu sentido guardado. Denominan-
idéia de transferir a capital para uma cidade a ser
do tais unidades de "mitemas': Lévi -Strauss (1958)
construída causou um grande e negativo impacto.
elaborou um método de isolá-las. Afirmou que as
mesmas não poderiam ser compreendidas isolada- Israel Pinheiro - presidente da Companhia de Ur-
mente, mas que, ao contrário, o pesquisador deveria banização da Nova Capital (NOVACAP) e verda-
buscar as "relações entre elas", ou melhor, buscar os deiro "patrão" do canteiro de obras durante todo o
"pacotes de relações, e que é somente sob forma de período da construção - afirma que três perguntas
combinações de tais pacotes que as unidades cons- foram incansavelmente repetidas, no momento ini-
titutivas adquirem uma função significante" (Lévi- cial e durante os trabalhos de construção: Por que
Strauss, 1958: 234). mudar a capital tão precipitadamente? Brasília era
A descoberta de Lévi-Strauss não tardou a responsável pela inflação? Brasília estaria pronta no
inspirar seguidores. O filósofo e antropólogo, tam- dia da inauguração? No dizer de muitos, era mesmo
bém francês, Gilbert Durand (1960) foi um deles. um absurdo, um capricho ou simplesmente um pro-
Partindo da mesma hipótese sobre a importância jeto fadado ao fracasso. Tanto na sociedade quan-
dos pacotes de relações entre os mitemas na busca to no Parlamento, e isto durante todo o período da
do significado de um mito e, se valendo de um cer- construção, tantos foram os que trabalharam contra
to "estruturalismo': propôs "o caráter mítico da his- Brasília, utilizando argumentos de peso tais como a
tória". Em seguida, empregou a noção de mito para corrupção e o personalismo (Carlos Lacerda), o cus·
analisar a trajetória da história européia, das artes e to e a inflação (Eugênio Gudin), a inoportunidade
da cultura. Seu polêmico postulado foi simples: e a impossibilidade técnica (Gustavo Corção), entre
outros, que até hoje paira um certo mistério sobre as
(. ..) é o mito quem, de certa forma, razões do sucesso de ]K. De fato, o esperado era que
distribui os papéis da história, e permite a transferência fosse esquecida ou que ela fosse jul-
decidir o que 'ja z' o momento histórico, gada, como o foi, uma "solução" onerosa e vaidosa.
a alma de uma época, de um século, de
Que uma vez as obras iniciadas, as dificuldades e as
uma idade da vida. O mito é o módulo
oposições levassem a melhor e que as poucas obras
da história, não o inverso (Durand,
concluídas se transformassem em ruínas ou, na me-
1979: 31).
lhor das hipóteses, numa cidade universitária, como
disseram alguns à época.
Através do resgate da noção de "longa dura-
Ciente das inúmeras dificuldades, durante o
ção" desenvolvida por Fernand BraudeP , Durand
período de edificação da cidade, o governo ]K foi
( 1996: 77) indicava a necessidade de se ultrapassar
apresentando Brasília como um fato destinado ·a
a sociologia das pesquisas de opinião, dos instan-
tâneos para ir "( ... ) além das modas vestimentárias marcar definitivamente a história do Brasil - pois,
ou eleitorais para chegar a uma sociologia que, ela afinal, tratava-se de construir uma cidade que deve-
também, trabalhe na urgrund 2 do imaginário e dos ria se tornar a nova e definitiva capital do Brasil. Bra-
mitos". Ultrapassar os instantâneos, procurar senti- sília foi apresentada, também, como a conseqüência
dos perenes. É exatamente este partido que se assu- direta de uma análise que compreendia o Brasil de
me aqui, através do exame dos discursos e análises então como uma nação ainda em formação, pois
pronunciados sobre a cidade de Brasília durante o subdesenvolvida, apenas localmente industrializada,
processo mesmo de sua construção e da transferên- não tendo efetivamente conquistado seu grande ter-
cia da capital. ritório, e desprovida de um projeto nacional. Para
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'narrativa mítica' de Mito da nação, ou seja, um mito tempo que dissolvendo um certo mistério que ainda
que exprimiria o desejo de fazer do Brasil uma (ver- pairava sobre o ex-presidente, sobretudo se levarmos
dadeira) nação; ou simplesmente um mito que ex- em conta as obscuras circunstâncias que envolveram
prime a busca e/ou a construção da nação. Este mito, o acidente automobilístico que ceifou sua vida, em
em sua narrativa, estaria sempre agenciando sim- 1976.
bolicamente o desejo de ser nação, apresentando-se Os antecedentes da posse de JK como o 19°
sócio-historicamente decomposto em dois mitemas presidente do Brasil são conhecidos. Foram difíceis.
(Lévi-Strauss, 1958: 233-236). No primeiro desses Sua campanha fora contestada. Carlos Lacerda teria
mitemas, o "não-ser" da nação, seu caráter incom- mesmo afirmado: "Se for candidato, não será eleito;
pleto, sem identidade ou povo etc, momento no qual se for eleito; não tomará posse; se tomar posse, não
são apresentados os fatos históricos que teriam leva- governará!". Por que um candidato assim intimado
do o Brasil (ou o povo brasileiro) a não formar sua teria abraçado a espinhosa causa da transferência da
nação. Já no segundo, o "ser uma nação a condição capital?
que ...", onde eram apresentadas as condições (sempre A promessa de transferir a capital do Brasil
atuais) graças às quais o Brasil (ou o povo brasileiro) da cidade do Rio de Janeiro para o planalto central
lograria construir sua nação. Concluindo, tratava-se surgiu, inusitadamente, durante o primeiro comício
de uma narrativa indo do "não ser da nação" ao "ser eleitoral da campanha presidencial, realizado no dia
uma nação a condição que .. :', formando, assim, os 4 de abril de 1955, na cidade de Jataí, interior do es -
dois tempos da noção de Mito da nação. tado de Goiás. Neste, como nos outros comícios que
Definido esse mito comum, passemos, agora, seriam realizados, JK afirmara alto e forte que respei-
à sua procura no discurso daquele que sem dúvida taria a Constituição caso fosse eleito. Num momen-
alguma foi o grande artífice da construção, o ex- to de perturbação da ordem institucional, mais que
presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902- uma frase de efeito, esta promessa soava mais como
1976). um compromisso democrático de candidato do que
como uma plataforma de governo. Mas, num hábito
JK E A CONSTRUÇÃO DE BRASÍLIA
que lhe marcaria o estilo, ao encerrar seus discursos,
Até o ano de 1999, existiam apenas trabalhos JK franqueou ao público o direito de intervir e fazer
esparsos sobre a trajetória pessoal de JK (Barbosa, perguntas. Foi neste momento que surgiu a inespe-
1988). Além desses, existia apenas uma curta biogra- rada questão sobre a mudança da capital. Veja~os
fia, e, mesmo esta, baseada em depoimentos pessoais como o próprio JK (1976, tomo 2, p. 368), em suas
(Carneiro e Silva, 1983). Esta única biografia exis- memórias, relata este episódio:
tente se explica quando inserida no bojo da Coleção
Presidentes do Brasil. Não nos ensina muito mais do Quando, ao terminar o discurso,
que é usualmente encontrado nas obras de sociólo- indaguei se alguém desejava fazer-me
gos ou de historiadores que se debruçaram sobre o alguma pergunta, um popular adiantou-
período, ficando mesmo aquém do depoimento que se e me interpelou: '7á que o senhor se
o próprio JK deixou de si e de seu governo (Oliveira, declara disposto a cumprir integralmente
1976). Contudo, em 2000, foi publicada em livro a a Constituição, desejava saber se irá por
dissertação de mestrado de Josanne Guerra Simões em prática aquele dispositivo da Carta
(2000). Em seguida, em 2001, quase cem anos após Magna, que determina a transferêncic
o nascimento de ex-presidente, foi publicada uma da capital da República para o planalto
.
gorano .?".
excelente biografia sobre JK (Bojunga, 2001), re-
dimensionando o papel de sua trajetória de vida e A pergunta era, na realidade,
sua atuação na presidência da República, ao mesmo embaraçosa. Desde que me candidatara
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REVISTA DE CitNCIAS SOCIAIS v.36 n. 1/2 2005
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e da Mudança da Capital Federal, 1956, e futuro di- o herói civilizado vence o selvagem bárbaro. Pode-
retor da NOVACAP) que, com a ajuda de um mapa, se aqui fazer a relação entre a passagem de JK e o
explicou a JK, durante o trajeto de avião do Rio de mito de Prometeu. Assim como aquele em sua luta
Janeiro para o local, onde deveria ser construída a incansável contra Zeus, o prometeu kubitschekiano
nova capital, todos os trabalhos que os governos lutaria contra a selvajaria e contra a incivilidade. Aos
anteriores já haviam realizado em prol da mudança mortais brasileiros dos sertões, JK prometia a luz da
(Silva, 1987: 73). Nesta sua primeira visita à região redenção econômica. As imagens kubitschekianas
do planalto, pousando no aeroporto Vera Cruz, resgatavam também o mito das origens da civiliza-
construído e batizado pelo Marechal Pessoa, ele as- ção brasileira, quando o colonizador civilizado teria
sim explicou o significado de Brasília: vencido a natureza e as populações indígenas selva-
gens.
É um ideal histórico: o dos bandeirantes À diferença das interpretações que vinculam a
dos séculos XVII e XVIII. Brasília significa construção de Brasília apenas aos ideais industriais
uma revolução política e uma revolução (Lopes, 1996), é possível associar essas imagens do
econômica. Estamos erguendo-a com interior e do centro aos interesses dos produtores
aquele espírito de pioneiros antigos dos rurais do interior e à "Marcha para Oeste': de inspi-
homens que desbravaram os sertões ração de goianos e de Cassiano Ricardo 5 , e também
modernos em nossas almas ansiosas às imagens simbólicas da intimidade, do verdadeiro
por fundar uma civilização no coração e da essência.
do Brasil [. .. ] Politicamente, Brasília
1957
significa a instalação do Governo Federal
no coração da nacionalidade4 • No dia 3 de maio de 1957, o governo JK or-
dena a celebração da primeira missa católica, no sí-
Ideal histórico dos bandeirantes: fundar uma tio da nova capital. Segundo dados oficiais, 15.000
civilização no coração do Brasil, no coração da na- pessoas teriam se dirigido a Brasília para participar
cionalidade; revolução político-econômica: as gran- desse evento. Para oficiar a missa, foi convidado o
des imagens kubitschekianas sobre Brasília estavam arcebispo de São Paulo, Dom Carlos Carmelo de
criadas. A partir desse momento, e a cada oportu- Vasconcelos Mata. O mito esteve à altura do acon-
nidade que se apresentava, estas mesmas imagens tecimento. JK não perderia a ocasião para declarar a
de conquista e de criação da civilização brotariam, estreita ligação de Brasília com o cristianismo:
quase que espontaneamente, dos discursos de JK. À
medida que a cidade ia sendo realmente construí- (. ..) Hoje é o dia de Santa Cruz, dia
da, aquelas imagens soariam cada vez mais naturais, em que a capital recém-nascida recebe
como se o imaginário nacional fosse, pouco a pouco, o seu batismo cristão; [. .. ] Este é o dia
se acostumando com o resgate dos grandes mitos da do batismo do Brasil novo. É o dia da
descoberta e da fundação do Brasil. esperança, o dia da Ressurreição da
As imagens do centro, do coração associa- Esperança. É o dia da cidade que nasce.
das àquelas de fundação e de civilização revelam Plantamos, com o Sacrifício da Santa
a relação entre o sentido simbólico do interno, do Missa, uma semente espiritual neste
verdadeiro (em oposição às falsidades externas ou sítio, que é o coração da pátriaó.
aparentes) e o sentido histórico do progresso e da
revolução (a chegada da civilização em oposição ao A substituição dos termos tradicionais do mito
vazio demográfico e selvagem goiano), com o mito da fundação por aqueles do universo vocabular tipi-
das grandes epopéias e dos grandes embates, onde camente católico não surpreende: dia de Santa Cruz,
A criação de uma nova capital pervagava no Estes trechos traduzem perfeitamente tanto
domínio dos mitos. JK não poderia ter escolhido o sentimento de incompleição da nação quanto seu
fórmula melhor. Embora utilizando a palavra mito glorioso destino. Em meio a esta trajetória, a con"-
em sua acepção vulgar, ou seja, como fantasia irre- dição: Brasília. A interiorização é o instrumento,
alizável, JK fazia eco à função mítica de sua obra, etapa indispensável capaz de transformar o arquipé-
ca do novo e do melhor e a coragem de imaginar e BO]UNGA, Cláudio (2001). JK, o artista do impossível. Rio de
de Brasília. Olhando do hoje para o ontem, um dos CARNEIRO, Maria C. R e SILVA, Hélio ( 1983). Os Presidentes,JK,
pioneiros, um carpinteiro, assim compreendeu os 19 Presidentes do Brasil. São Paulo: Grupo de Comunicação
Três.
tempos da construção: "Era uma boa época porque
COUTO, Ronaldo C. (2001). Brasília Kubitschek de Oliveira.
a época que nós chegou era uma época de ilusão, né?
Brasília: Rio de Janeiro/São Paulo: Record.
A época da esperança" (Ribeiro apud Souza, 1983:
DUM!:ZIL, Georges (1987) . Du mythe au roman, 3• edição.
30).
Paris: PUF.
Durante a construção da cidade de Brasília,
DURAND, Gilbert (1979) . Figures mythiques et visage de
anunciou-se a chegada de uma nova era, de um novo
I' oeuvre. Paris: Berg Inlernational.
homem, no seio de uma nova nação. Mas, Brasília,
_ _ . (1996). Introduction à la mythologie. Paris: Albin
no dizer de um homem simples, se revelou apenas
Michel.
eterna esperança ou ilusão de um mundo melhor, _ _ . (1984). Les structures anthropologiques de /'imaginaire,
à imagem de todas as utopias que fizeram o Novo 10• edição. Paris: Dunod.
Mundo. ELlADE, Mircea (1986). Aspectos do mito. Lisboa: Edições 70.