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A R T I G O

O USO DA NOÇÃO DE MITO EM SOCIOLOGIA: ANALISANDO


OS DISCURSOS SOBRE BRASÍLIA

A noção de mito tem


sido sempre associada
ao estudo das religiões (Eliade,
MÁRCIO DE OLIVEIRA•

RESUMO
O artigo rama como referência a noção de miro
conto, por exemplo? A pers-
pectiva através da qual se si-
tuam o mito e a crença no que
1987), à história das socie- como porta enrreaberta para compreender os está sendo "contado":
dades ditas arcaicas (Eliade, senrimenros humanos em colerividade. Considera Há mais de meio século,
1957), à história das civiliza- que o projero de rransferência da capiral e a os especialistas ocidentais situ-
ções antigas (Hamilton, 1978; cidade de Brasília foram, para JK, versões do aram o estudo do mito numa
Vernant, 1974; Grimal, 1983), miro da nação. Miro partilhado por ourros que, perspectiva que contrastava
mesmo nos nossos dias, conrinuam a represenrar
à literatura (Dumézil, 198 7), sensivelmente com a do sécu-
Brasília com base nas quesrões de inreriorização,
à antropologia (Lévi-Strauss, de desenvolvimenro, de soberania, e brasilidade. lo XIX. Em vez de, como seus
1958, 1963) e, de fato, menos Brasília sinreriza a chegada de uma nova era, sendo antecessores, tratarem o mito
à sociologia e à compreensão rambém a ilusão de um mundo melhor, à imagem na acepção usual do termo,
dos fenômenos sociais típicos de rodas as uropias que fizeram o Novo Mundo. ou seja, enquanto 'fábula' 'in-
das sociedades modernas. A ABSTRACT venção', 'ficção', aceitaram-no
segunda metade do século XX The article referred ro rhe norion of myrh as a parh tal como ele era entendido nas
viu, contudo, a noção de mito ro comprehend human senrimenrs in collecriviry. sociedades arcaicas, nas quais,
ultrapassar definitivamen- Ir conrended rhar ro Juscelino Kubisrchek, rhe pelo contrário, o mito designa
te seus domínios clássicos e consrrucrion of Brasilia and irs rransformarion uma 'história verdadeirà e, so-
inro a capiral, was a version of rhe narional myrh.
abordar novos e contemporâ- bretudo, altamente preciosa,
Such a myrh, shared by orhers, conrinues ro be
neos fenômenos como a políti- porrrayed as a reference ro inreriorizarion issues, porque sagrada, exemplar e
ca (G irardet, 1986), as cenas da developmenr, sovereignry and brasilieness. Brasilia significativa (Eliade, 1986: 9).
vida cotidiana (Barthes, 1957) synrhesized rhe dawn of a new era by being a Essa "história verdadei-
ou temas históricos (Todorov, perceprion of a berrer world, an image of ali ra" diferencia claramente um
1982), entre outros. Essa pers- uropias rhar invenred rhe New World. mito de um conto: no primeiro
pectiva foi apontada por Eliade Doutor em Sociologia e professor do Programa acredita-se, no segundo, não.
de Pós-graduação em Sociologia da Universidade
(1963: 11) e também por Lévi- Federal do Paraná.
É apenas uma ficção. Aproxi-
Strauss (1964, 1967, 1968), mamo-nos, assim, do sentido
abrindo um novo campo para a utilização da noção. pelo qual as ciências sociais, em geral e a etnologia,
Mas, de que mito se fala? Como se define? A em particular, passaram a considerar o mito:"( ... ) ~le
palavra mito, em grego, muthos, quer dizer recito ou fornece modelos para o comportamento e, por isso
narrativa. Malgrado as múltiplas acepções e usos nas mesmo, confere significado e valor para a existência
mais diversas culturas e países, este sentido original humana" (Eliade, 1986: 10).
tem sido mantido. Assim, todo mito é uma narrati- Avançando nessa mesma direção, Lévi-Strauss
va, oral ou escrita, mas sempre narrativa. Como toda (1958: 232) afirmou que o essencial do mito é "a his-
narrativa, o mito "conta" uma estória, descreve fatos tória que aí está contada". Não uma história qualquer,
e apresenta personagens em uma trama provida de mas uma história que é percebida como "mito por
sentido. A semelhança dos m itos com as narrativas todo leitor no mundo inteiro" porque seu sentido
literárias (ficcionais) é evidente. O que diferenciaria permanece, "a despeito da pior tradução': Partindo
então uma "narrativa mítica" de outra literária, um desta hipótese, o antropólogo francês procurou en-

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contrar as razões para a permanência do sentido no A CONSTRUÇÃO DE BRASÍLIA: A PRESENÇA
interior da narrativa mítica. Chegou à conclusão que DE UMA NARRATIVA MÍTICA
o mito "é formado de unidades constitutivas" e que
Quando o governo JK lançou seu projeto, a
são elas que têm seu sentido guardado. Denominan-
idéia de transferir a capital para uma cidade a ser
do tais unidades de "mitemas': Lévi -Strauss (1958)
construída causou um grande e negativo impacto.
elaborou um método de isolá-las. Afirmou que as
mesmas não poderiam ser compreendidas isolada- Israel Pinheiro - presidente da Companhia de Ur-
mente, mas que, ao contrário, o pesquisador deveria banização da Nova Capital (NOVACAP) e verda-
buscar as "relações entre elas", ou melhor, buscar os deiro "patrão" do canteiro de obras durante todo o
"pacotes de relações, e que é somente sob forma de período da construção - afirma que três perguntas
combinações de tais pacotes que as unidades cons- foram incansavelmente repetidas, no momento ini-
titutivas adquirem uma função significante" (Lévi- cial e durante os trabalhos de construção: Por que
Strauss, 1958: 234). mudar a capital tão precipitadamente? Brasília era
A descoberta de Lévi-Strauss não tardou a responsável pela inflação? Brasília estaria pronta no
inspirar seguidores. O filósofo e antropólogo, tam- dia da inauguração? No dizer de muitos, era mesmo
bém francês, Gilbert Durand (1960) foi um deles. um absurdo, um capricho ou simplesmente um pro-
Partindo da mesma hipótese sobre a importância jeto fadado ao fracasso. Tanto na sociedade quan-
dos pacotes de relações entre os mitemas na busca to no Parlamento, e isto durante todo o período da
do significado de um mito e, se valendo de um cer- construção, tantos foram os que trabalharam contra
to "estruturalismo': propôs "o caráter mítico da his- Brasília, utilizando argumentos de peso tais como a
tória". Em seguida, empregou a noção de mito para corrupção e o personalismo (Carlos Lacerda), o cus·
analisar a trajetória da história européia, das artes e to e a inflação (Eugênio Gudin), a inoportunidade
da cultura. Seu polêmico postulado foi simples: e a impossibilidade técnica (Gustavo Corção), entre
outros, que até hoje paira um certo mistério sobre as
(. ..) é o mito quem, de certa forma, razões do sucesso de ]K. De fato, o esperado era que
distribui os papéis da história, e permite a transferência fosse esquecida ou que ela fosse jul-
decidir o que 'ja z' o momento histórico, gada, como o foi, uma "solução" onerosa e vaidosa.
a alma de uma época, de um século, de
Que uma vez as obras iniciadas, as dificuldades e as
uma idade da vida. O mito é o módulo
oposições levassem a melhor e que as poucas obras
da história, não o inverso (Durand,
concluídas se transformassem em ruínas ou, na me-
1979: 31).
lhor das hipóteses, numa cidade universitária, como
disseram alguns à época.
Através do resgate da noção de "longa dura-
Ciente das inúmeras dificuldades, durante o
ção" desenvolvida por Fernand BraudeP , Durand
período de edificação da cidade, o governo ]K foi
( 1996: 77) indicava a necessidade de se ultrapassar
apresentando Brasília como um fato destinado ·a
a sociologia das pesquisas de opinião, dos instan-
tâneos para ir "( ... ) além das modas vestimentárias marcar definitivamente a história do Brasil - pois,
ou eleitorais para chegar a uma sociologia que, ela afinal, tratava-se de construir uma cidade que deve-
também, trabalhe na urgrund 2 do imaginário e dos ria se tornar a nova e definitiva capital do Brasil. Bra-
mitos". Ultrapassar os instantâneos, procurar senti- sília foi apresentada, também, como a conseqüência
dos perenes. É exatamente este partido que se assu- direta de uma análise que compreendia o Brasil de
me aqui, através do exame dos discursos e análises então como uma nação ainda em formação, pois
pronunciados sobre a cidade de Brasília durante o subdesenvolvida, apenas localmente industrializada,
processo mesmo de sua construção e da transferên- não tendo efetivamente conquistado seu grande ter-
cia da capital. ritório, e desprovida de um projeto nacional. Para

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o governo JK, portanto, Brasília passou a ser a ma- as razões aventadas pelo governo JK para a constru-
neira mais rápida e eficaz de desenvolver o interior, ção da no'va CapitaP. Sintomático foi observar que
de modernizar e integrar o país; enfim, de corrigir e JK não havia sido o primeiro, nem tão pouco teria
reordenar o curso de nossa história, num processo sido o único a desejar construir um "novo Brasil':
logo intitulado "a construção de um novo Brasil". Ao contrário, dizer que o Brasil não era uma ver-
Contudo, seria verdadeiro dizer que o Brasil dadeira nação, desejar e trabalhar para construí-la,
desta primeira metade dos anos 50 era uma nação eram idéias bastante correntes na trajetória do pen-
assim tão subdesenvolvida, tão inexistente, a ponto samento social e político brasileiro (Oliveira, 1994;
de ser possível ao governo falar na construção de Oliveira, 1997). Tratava-se de um tipo de análise que
um "novo Brasil"? Imaginando que assim o fosse, considerava o Brasil, visto sempre, de uma maneira
não haveria outras maneiras de desenvolver o país? geral, como uma nação em formação, sem povo, sem
O destino daquele Brasil estava realmente ligado à identidade, inacabada e/ou incompleta.
transferência da sede do poder da República? Teria O desejo de construir a nação, surgido nes-
sido realmente necessário construir toda uma cidade ses contextos, parecia, assim, associar-se menos às
para transferir a capital? Não teria sido mais sensa- estruturas da lógica científica que às estruturas das
to, econômico e politicamente mais viável aproveitar narrativas míticas. Construir o Brasil, fazer do país
alguma cidade já existente? uma verdadeira nação parecia ser uma espécie de
A hipótese geral deste artigo é: os argumen- guia para a reflexão e para a ação; um ponto de par-
tos mudancistas desenvolvidos pelo governo JK fo- tida e não o ato final da análise. Em outras palavras,
ram paulatinamente conquistando apoio popular, a associação das idéias, nação sem identidade/in-
intelectual, econômico, político e militar, durante o completa I Brasil construído (moderno, integrado,
período que vai do início da construção até a inau- industrializado), surgia não como a conseqüência
guração, porque reverberaram positivamente na de determinadas análises, mas como sua própria
imagem geral que se tinha do Brasil de então. Um causa, desempenhando a função de um verdadeiro
país descontínuo, sem ligações terrestres; uma nação mito "modulador" da história brasileira, ou seja, de
falsamente agrária, pois adormecida no arcaísmo de uma estrutura que sustenta simbolicamente uma
suas tradições rurais; uma nação pouco industriali- determinada forma de pensar. A partir deste mito
zada, e cuja população concentrava-se nas regiões "modulador", a inexistência da nação brasileira e
litorâneas, enquanto os sertões - tão brasileiros e o diagnóstico dos graves problemas nacionais se
fundamentais aos olhos de Euclides da Cunha e de transformariam e seriam apresentados sempre como
tantos outros - permaneciam isolados e parcamente "dados" sobre os quais nada se podia opor. As diver-
conhecidos. Devia-se concluir, assim, que a idéia de sas soluções ou as diversas propostas (e/ou projetos
construir Brasília, de povoar e desenvolver a nação nacionais) para solucionar os problemas nacionais
por inteiro - tal como paulatinamente apresentada sendo distintos apenas por representarem os diver-
pelo governo JK - não era mais que a resposta jus- sos grupos e contextos histórico-sociais, nos quais
ta para uma análise meticulosa da realidade, e que foram produzidas.
a construção do "novo Brasil" não deveria ser con- Com base nesta hipótese, a vontade de "cons-
siderada apenas mais um, entre tantos slogans de truir o Brasil" manifestada pelo governo JK deve ser
campanha, mas uma necessidade urgente e vital. também considerada como a expressão deste mes-
Contudo, em seguida a uma primeira aborda- mo mito. Um mito, ou seja, uma narrativa que agen-
gem de algumas das inúmeras análises sociopolíticas cia em seu interior símbolos perenes na sociedade
sobre a realidade nacional, produzidas a partir da se- brasileira. Tendo trabalhado teoricamente a noção
gunda metade do século XIX, foi possível questionar de mito, alhures (Oliveira, 1993), denominamos essa

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'narrativa mítica' de Mito da nação, ou seja, um mito tempo que dissolvendo um certo mistério que ainda
que exprimiria o desejo de fazer do Brasil uma (ver- pairava sobre o ex-presidente, sobretudo se levarmos
dadeira) nação; ou simplesmente um mito que ex- em conta as obscuras circunstâncias que envolveram
prime a busca e/ou a construção da nação. Este mito, o acidente automobilístico que ceifou sua vida, em
em sua narrativa, estaria sempre agenciando sim- 1976.
bolicamente o desejo de ser nação, apresentando-se Os antecedentes da posse de JK como o 19°
sócio-historicamente decomposto em dois mitemas presidente do Brasil são conhecidos. Foram difíceis.
(Lévi-Strauss, 1958: 233-236). No primeiro desses Sua campanha fora contestada. Carlos Lacerda teria
mitemas, o "não-ser" da nação, seu caráter incom- mesmo afirmado: "Se for candidato, não será eleito;
pleto, sem identidade ou povo etc, momento no qual se for eleito; não tomará posse; se tomar posse, não
são apresentados os fatos históricos que teriam leva- governará!". Por que um candidato assim intimado
do o Brasil (ou o povo brasileiro) a não formar sua teria abraçado a espinhosa causa da transferência da
nação. Já no segundo, o "ser uma nação a condição capital?
que ...", onde eram apresentadas as condições (sempre A promessa de transferir a capital do Brasil
atuais) graças às quais o Brasil (ou o povo brasileiro) da cidade do Rio de Janeiro para o planalto central
lograria construir sua nação. Concluindo, tratava-se surgiu, inusitadamente, durante o primeiro comício
de uma narrativa indo do "não ser da nação" ao "ser eleitoral da campanha presidencial, realizado no dia
uma nação a condição que .. :', formando, assim, os 4 de abril de 1955, na cidade de Jataí, interior do es -
dois tempos da noção de Mito da nação. tado de Goiás. Neste, como nos outros comícios que
Definido esse mito comum, passemos, agora, seriam realizados, JK afirmara alto e forte que respei-
à sua procura no discurso daquele que sem dúvida taria a Constituição caso fosse eleito. Num momen-
alguma foi o grande artífice da construção, o ex- to de perturbação da ordem institucional, mais que
presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902- uma frase de efeito, esta promessa soava mais como
1976). um compromisso democrático de candidato do que
como uma plataforma de governo. Mas, num hábito
JK E A CONSTRUÇÃO DE BRASÍLIA
que lhe marcaria o estilo, ao encerrar seus discursos,
Até o ano de 1999, existiam apenas trabalhos JK franqueou ao público o direito de intervir e fazer
esparsos sobre a trajetória pessoal de JK (Barbosa, perguntas. Foi neste momento que surgiu a inespe-
1988). Além desses, existia apenas uma curta biogra- rada questão sobre a mudança da capital. Veja~os
fia, e, mesmo esta, baseada em depoimentos pessoais como o próprio JK (1976, tomo 2, p. 368), em suas
(Carneiro e Silva, 1983). Esta única biografia exis- memórias, relata este episódio:
tente se explica quando inserida no bojo da Coleção
Presidentes do Brasil. Não nos ensina muito mais do Quando, ao terminar o discurso,
que é usualmente encontrado nas obras de sociólo- indaguei se alguém desejava fazer-me
gos ou de historiadores que se debruçaram sobre o alguma pergunta, um popular adiantou-
período, ficando mesmo aquém do depoimento que se e me interpelou: '7á que o senhor se
o próprio JK deixou de si e de seu governo (Oliveira, declara disposto a cumprir integralmente
1976). Contudo, em 2000, foi publicada em livro a a Constituição, desejava saber se irá por
dissertação de mestrado de Josanne Guerra Simões em prática aquele dispositivo da Carta
(2000). Em seguida, em 2001, quase cem anos após Magna, que determina a transferêncic
o nascimento de ex-presidente, foi publicada uma da capital da República para o planalto
.
gorano .?".
excelente biografia sobre JK (Bojunga, 2001), re-
dimensionando o papel de sua trajetória de vida e A pergunta era, na realidade,
sua atuação na presidência da República, ao mesmo embaraçosa. Desde que me candidatara

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BCH-UF'-:
PERIODICOS
à presidência, havia organizado, com a da capital, mas, sobretudo, como construtor da cida-
cooperação de uma equipe de técnicos, de, resgatando sua conhecida e já demonstrada vo-
um programa de Governo que, se eleito, cação para as grandes obras. Niemeyer e Lúcio Costa
iria realizar. Tratava-se do Plano de são testemunhos da tenacidade e do espírito de em-
Metas, que englobava todos os setores preendimento com o qual JK se dedicava ao estudo
das atividades do país. Em nenhuma e ao acompanhamento da construção de Brasília.
das 30 metas, porém, havia qualquer Enquanto o primeiro se lembra daquele personagem
referência à mudança da capital. Desde
estudando cada detalhe dos projetos arquitetônicos
muito tempo, já me habituara a ver,
e sempre pronto a propor soluções e exemplos num
no mapa do Brasil, aquele retângulo
clima de exaltação (Niemeyer, 1981 ), o segundo se
colorido, assinalando o local do futuro
lembra de JK referir-se a Brasília como um brinque-
Distrito Federal. A idéia sempre me
do que gostaria de ver montado e iluminado pouco
parecera utópica, irrealista. Entretanto,
mais de 3 anos depois do início da construção. Sodré
naquele comício de fataí vi-me, de súbito,
posto frente a frente com o desafio. O (1978: 6), insistindo sobre o caráter "imperialista" do
aparteante, sendo goiano, tinha interesse 'Programa de Metas: ressalta, porém, que a constru-
no problema. Além do mais, a mudança ção de Brasília era a meta de JK e não necessaria-
estava prevista na Constituição. Não mente de seu governo.
hesitei um segundo e respondi com Couto (2001: 198-205) afirma que havia ain-
firme za: "Acabo de prometer que da um outro desejo político explícito em JK: afas-
cumprirei, na íntegra, a Constituição, tar o poder central da cidade do Rio de Janeiro. JK,
e não vejo razão para ignorar este embora convictamente democrático, tinha horror
dispositivo. Durante o meu qüinqüênio, de manifestações, em especial de manifestações es-
farei a mudança da sede e construirei a tudantis. Transferir a capital para o distante planal-
nova capital" (.. .) As 30 metas iniciais to central seria, de fato, uma (ousada) forma de se
seriam mantidas, mas a elas havia sido distanciar da arena política que se tornara o Rio de
acrescentada a da construção de Brasília, Janeiro, desde o suicídio de Vargas. Couto (2001)
que eu iria denominar a Meta -Síntese. afirma que, para JK, instalar a capital no Planalto
Central seria, ainda, a forma de distanciar o poder
Como uma idéia que ao próprio JK sempre dos mandarins da imprensa brasileira e das constan-
parecera utópica, irrealista, o projeto nem ao menos
tes acusações e intrigas políticas, próprias ao Rio de
figurava no 'Programa de Metas: Tudo parecia indi-
Janeiro. De fato, em muitos discursos, JK associou a
car o acaso ... Mas, como acreditar que o aparte num
imagem de Brasília àquela da democracia. Ou, ain-
comício, fruto de uma necessidade eleitoral (ou elei-
da, referiu-se à imagem Brasília como a cidade da
toreira) muito circunstancial, fosse galvanizar tanto
"nova democracia".
esforço e interesse de JK?
É possível, contudo, pensar que JK tenha se
O argumento personalista em relação a Brasí-
convencido da necessidade da transferência da ca-
lia não pode ser menosprezado. A obra, no dizer de
muitos, era de JK. O crítico de arte Mário Pedrosa, pital e da construção de Brasília, exatamente por ela
escrevendo sobre Brasília à época de sua construção, ter lhe parecido a forma de construir a nação ina-
afirmava que JK queria deixar seu nome gravado cabada, subdesenvolvida e falsamente agrícola que
com Brasília (Pedrosa, 1981: 339). Pode-se pensar era o Brasil de então, fazendo eco à narrativa mítica
que JK queria deixar seu nome "gravado" não apenas construtora da nação. Em suas memórias, o próprio
como artífice político e/ou viabilizador da mudança JK (Oliveira, 1974: 8-9) afirma:

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(. ..)Havia visto o Brasil de cima- do bordo [. .. } o Brasil só se tornou adulto depois
de um avião - e pude sentir o problema da construção de Brasília. Durante toda
em todas as suas complexas implicações. sua história - do descobrimento até o
Dois terços do território nacional ainda meu governo - vivemos, para aproveitar
estavam virgens da presença humana. aqui uma observação de nosso primeiro
Eram os "vazios demográficos" de que historiador, Frei Vicente do Salvador,
falavam os sociólogos. "arranhando a areia das praias, como
O grande desafio da nossa História estava caranguejos". O litoral foi, de Jato, uma
monovidência nacional. Vivia-se por ele.
ali: seria forçar-se o deslocamento do eixo
Agia-se em Junção dele. E o que ocorria
do desenvolvimento nacional. Ao invés
em relação ao resto do Brasil?
do litoral - que já havia alcançado certo
A resposta é simples: o deserto sem fim[. ..}
nível de progresso -povoar-se o Planalto
Em face dessa realidade cruel {o Brasil
Central. O núcleo populacional, criado
deveria} voltar as costas para o oceano
naquela longínqua região, espraiar-se-
e empenhar-se em tomar posse efetiva
ia como uma mancha de óleo, fazendo do seu território, de cuja existência só
com que o interior abrisse os olhos para tinha conhecimento através dos mapas.
o futuro grandioso do país. Assim, o [. .. ] o Brasil deveria extinguir seus
brasileiro poderia tomar posse do seu espaços vazios [. .. ]fazer a aproximação
imenso território. E a mudança da dos núcleos populacionais pela abertura
capital seria o veículo. O instrumento. das estradas [. .. ] atrair capitais externos
O fator que iria desencadear novo ciclo [.. ] irrigar-se, através de uma intensa
bandeirante. política de açudagem, a terra seca do
Nordeste [. .. ] e, por fim, mudar-se a
As imagens utilizadas por JK eram sociologi- sede das decisões governamentais,
camente defensáveis e miticamente coerentes. Lon- construindo-se a nova capital no centro
gínqua região, desenvolvimento espraiando-se como geográfico do país.
mancha de óleo; desafio de nossa História, instru-
mento do novo ciclo bandeirante, a posse do territó- A história do Brasil seria dividida em dois
rio (... ). Todos os ingredientes estavam ali reunidos momentos: antes e depois de Brasília. A marcha para
para resgatar os tempos da descoberta, da fundação o interior era o fator capaz de reordenar o sentido
do Brasil. O que impressiona, portanto - sobretudo da ocupação. Voltar-se-iam as costas ao litoral e a
esta espécie de pré-história. Finalmente, a socieda-
quando se sabe que o desejo de transferir a capital do
de brasileira lograria fixar seu ponto de partida, seu
litoral para o interior era antigo, de mais de um sé-
mito das origens. Mas, se estas reflexões são post Jac-
culo - é a atualidade das imagens de conquista e de
to, o que dizer daquelas realizadas durante mesmo
fundação que lhe foram associadas. Trata-se de uma
a construção de Brasília, ou seja, entre 1956 e 1960?
confluência das dimensões histórica e simbólica.
Apresentamos, agora, a análise de alguns discursos
Para JK, Brasília se tornaria o símbolo de um novo
de JK para cada ano em questão.
país. Sua realidade não se limitaria apenas a deslocar
o eixo de desenvolvimento do país, mas deveria mu- 1956
dar toda a sua história. JK (Oliveira, 1974: 12-13), Foi Ernesto Silva (ex-secretário da Comissão
à época, incorporou essa simbologia, e mesmo em de Localização da Nova Capital, 1951-53, ex- presi-
suas memórias continuou a acreditar que: dente da Comissão de Planejamento da Construção

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r
D\.-
PEf-<100i(.;U:_
e da Mudança da Capital Federal, 1956, e futuro di- o herói civilizado vence o selvagem bárbaro. Pode-
retor da NOVACAP) que, com a ajuda de um mapa, se aqui fazer a relação entre a passagem de JK e o
explicou a JK, durante o trajeto de avião do Rio de mito de Prometeu. Assim como aquele em sua luta
Janeiro para o local, onde deveria ser construída a incansável contra Zeus, o prometeu kubitschekiano
nova capital, todos os trabalhos que os governos lutaria contra a selvajaria e contra a incivilidade. Aos
anteriores já haviam realizado em prol da mudança mortais brasileiros dos sertões, JK prometia a luz da
(Silva, 1987: 73). Nesta sua primeira visita à região redenção econômica. As imagens kubitschekianas
do planalto, pousando no aeroporto Vera Cruz, resgatavam também o mito das origens da civiliza-
construído e batizado pelo Marechal Pessoa, ele as- ção brasileira, quando o colonizador civilizado teria
sim explicou o significado de Brasília: vencido a natureza e as populações indígenas selva-
gens.
É um ideal histórico: o dos bandeirantes À diferença das interpretações que vinculam a
dos séculos XVII e XVIII. Brasília significa construção de Brasília apenas aos ideais industriais
uma revolução política e uma revolução (Lopes, 1996), é possível associar essas imagens do
econômica. Estamos erguendo-a com interior e do centro aos interesses dos produtores
aquele espírito de pioneiros antigos dos rurais do interior e à "Marcha para Oeste': de inspi-
homens que desbravaram os sertões ração de goianos e de Cassiano Ricardo 5 , e também
modernos em nossas almas ansiosas às imagens simbólicas da intimidade, do verdadeiro
por fundar uma civilização no coração e da essência.
do Brasil [. .. ] Politicamente, Brasília
1957
significa a instalação do Governo Federal
no coração da nacionalidade4 • No dia 3 de maio de 1957, o governo JK or-
dena a celebração da primeira missa católica, no sí-
Ideal histórico dos bandeirantes: fundar uma tio da nova capital. Segundo dados oficiais, 15.000
civilização no coração do Brasil, no coração da na- pessoas teriam se dirigido a Brasília para participar
cionalidade; revolução político-econômica: as gran- desse evento. Para oficiar a missa, foi convidado o
des imagens kubitschekianas sobre Brasília estavam arcebispo de São Paulo, Dom Carlos Carmelo de
criadas. A partir desse momento, e a cada oportu- Vasconcelos Mata. O mito esteve à altura do acon-
nidade que se apresentava, estas mesmas imagens tecimento. JK não perderia a ocasião para declarar a
de conquista e de criação da civilização brotariam, estreita ligação de Brasília com o cristianismo:
quase que espontaneamente, dos discursos de JK. À
medida que a cidade ia sendo realmente construí- (. ..) Hoje é o dia de Santa Cruz, dia
da, aquelas imagens soariam cada vez mais naturais, em que a capital recém-nascida recebe
como se o imaginário nacional fosse, pouco a pouco, o seu batismo cristão; [. .. ] Este é o dia
se acostumando com o resgate dos grandes mitos da do batismo do Brasil novo. É o dia da
descoberta e da fundação do Brasil. esperança, o dia da Ressurreição da
As imagens do centro, do coração associa- Esperança. É o dia da cidade que nasce.
das àquelas de fundação e de civilização revelam Plantamos, com o Sacrifício da Santa
a relação entre o sentido simbólico do interno, do Missa, uma semente espiritual neste
verdadeiro (em oposição às falsidades externas ou sítio, que é o coração da pátriaó.
aparentes) e o sentido histórico do progresso e da
revolução (a chegada da civilização em oposição ao A substituição dos termos tradicionais do mito
vazio demográfico e selvagem goiano), com o mito da fundação por aqueles do universo vocabular tipi-
das grandes epopéias e dos grandes embates, onde camente católico não surpreende: dia de Santa Cruz,

OLIVEIRA, M. O uso da noção de mito em sociologia ... p. 105-116


I 111
dia do batismo do Brasil novo, dia da Ressurreição 1958
da Esperança, da cidade que nasce. As referências
O ano de 1958 inicia-se com a inauguração de
simbólicas e o paralelo buscado entre essa missa e a uma ponte sobre o "Rio das Garças", na rodovia Bra-
primeira missa realizada em terras brasileiras - mis- sília-Anápolis. Esta primeira inauguração seria bem
sa que o imaginário pátrio registrou como sendo o aproveitada por JK que, inclusive, retomaria aqui
ato da fundação do Brasil - são evidentes. JK tinha, um de seus hábitos mais bem explorados: inaugurar
inclusive, convidado alguns índios para participarem partes de uma obra para dar publicidade à constru-
da cerimônia. Tal como ocorrera quando da primei- ção da cidade. Por se tratar de uma ponte, importan-
ra missa, a civilização kubitschekiana continuava al- te elemento de ligação da rodovia estrategicamente
mais importante para o governo, seu discurso real··
cançando e salvando pelo batismo os "selvagens".
çou os seguintes elementos simbólicos:
Quando foi sancionada a Lei 3.273/57 - lei
que autorizou a mudança da capital - JK declarou: O ideal da mudança da Capital para o
centro geográfico do território brasileiro
Este ato representa o passo mais viril, não teve senão esse motor inicial:
mais enérgico, que a nação dá após a sua aproximar os brasileiros, distribuir fontes
independência política, para o própria de riqueza, criar no País um sistema em
afirmação, como povo que tomou a seus que as condições, o acesso ao trabalho,
à produção e ao bem estar deixassem
ombros uma das mais extraordinárias
de conhecer [. .. ] disparidades e os
tarefas que a história contemporânea
paradoxos infelizmente ainda comuns
viu atribuir-se a uma coletividade: existente em nosso território. [. .. ] A
a de povoar e civilizar as terras que ponte de concreto armado que hoje vos
conquistou, vastas como um continente; entrega o Governo é[. .. ] símbolo de uma
[. .. ] Sendo este ato ao mesmo tempo o era de ressurgimento e de renovação 8•
maior e o mais severo compromisso que
o Brasil toma consigo mesmo (. ..Y. As imagens do centro foram empregadas nes-
ta oportunidade para reforçar o sentido da ligação,
da aproximação de todos os brasileiros, da melhor
O tom é grandiloqüente como de costume.
distribuição das riquezas. Cabe assinalar, também, a
Os verbos povoar e civilizar, se somam à imagem transformação de uma ponte em um símbolo de uma
do passo mais viril após a independência do país. A era de ressurgimento e de renovação, o que reforça-
inauguração de Brasília é a própria imagem de um va o caráter mítico que o governo JK emprestaria a
segundo nascimento. Depois de Brasília, 3 datas po- qualquer obra inaugurada por seu governo durante
deriam resumir a história do Brasil: 22 de abril de os anos da construção. Tem-se, aqui, um claro exem-
1500, 7 de setembro de 1822 e 21 de abril de 1960. plo do aspecto mítico de Brasília, ou seja, sua capaci-
dade de servir de referência às origens (mitologia da
Com Brasília, a nação não estaria somente constru-
fundação), fazendo despertar no imaginário nacio-
ída, mas sua história conhecida e apreendida. Do-
nal os cenários da descoberta.
ravante, o Brasil teria uma história, uma trajetória e Vejamos, agora, como o sentido mítico de
um destino: Brasília. O imaginário do "progressis- Brasília repercutia no imaginário nacional, fazendo
mo" cíclico - ou seja, aquele que retoma às origens com que outras realizações - como, por exemplo, o
para revigorar, e alcança o presente para reorientar lançamento do primeiro reator atômico brasileiro,
o movimento da história - se encaixa perfeitamente obra que nada tinha a ver com a nova capital - pu-
no discurso de JK. dessem ser utilizadas para explicar a nova Capital:

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BCH-U 7 '~
PERIODICOS
(... ) Brasília será a integração de mais de ou seja, à função de guia ou de modelo. Havia um
6 milhões de quilômetros na comunhão mito Brasília, um mito de transferir, de desenvolver
brasileira [. .. ] O esforço que Brasília o país, de inaugurar uma nova era, um mito, enfim,
representa é exatamente o de integrar, de construir a nação. Voltando ao discurso, nota-se,
na comunhão brasileira, brasileiros e ainda, a expressão marco de uma nova era. JK não
territórios que nada influem no progresso precisava (mais) insistir. A cada discurso, tem-se a
e na riqueza deste país 9. impressão que o imaginário da fundação, já resga-
tado, faria sua parte, ou seja, despertaria no incons-
O tom dos discursos presidenciais é mesmo ciente do escritor ou do orador o desejo de construir,
monótono. JK parecia ter um quadro pronto (uma de recomeçar.
espécie de formulário eletrônico), no qual bastaria
1959
preencher espaços em branco para que o novo dis-
curso se adaptasse à nova circunstância. Repetimos Na abertura do ano parlamentar, JK envia uma
aqui: esta é a condição básica da narrativa mítica; ou mensagem ao Congresso Nacional, prestando contas
seja, sua capacidade de compreender o novo utili- de todas as obras que seu governo havia realizado
zando a lógica e os argumentos do já instituído. Dito em Brasília. Encontram-se, ainda, nessa mensagem
de outra maneira, o empréstimo da narrativa míti- dados sobre as obras rodoviárias e ferroviárias e so-
ca de uma para outra circunstância ou para outro bre investimentos na área de produção de energia
contexto sócio-histórico não consegue alterar seu elétrica. Na introdução desta mensagem, encontra-
sentido central. Lévi-Strauss (1958) afirma que a mos a referência ao significado de Brasília:
narrativa mítica faz tender a zero os problemas de
tradução. Foi curiosamente isto que JK percebeu A interiorização da Capital da República
instintivamente quando, por ocasião do segundo é etapa indispensável, senão a própria
aniversário de seu governo, falando ao seu próprio chave do desenvolvimento apto a
ministério, declarou: transformar este arquipélago econômico,
que um progresso desordenado criou 110
Quando assumi o Governo, a criação Brasil, em continente unido, interligado,
de uma nova capital no centro do País sem os desníveis de riqueza, injustos
pervagava do domínio dos mitos. Durante e irremediáveis, que um dia poderão
décadas, a única solução dada ao ameaçar a própria unidade nacional[. .. }.
problema fora meramente cartográfica: A clara consciência de nossa realidade
nos mapas do País desenhava-se econômica egeopolítica discerniu, em sua
um retângulo de cor assinalando a edificação, não apenas o cumprimento
localização do futuro Distrito Federal. de um preceito da Lei Magna, mas
[. .. ] Brasília é uma realidade. Não um imperativo de sobrevivência, uma
preciso insistir em que a transplantação condição, para que o Brasil cumpra sua
da Capital para o seu sítio próprio é o vocação unitária e não venha faltar ao
marco de uma nova era 10• seu destino de grande Naçãou.

A criação de uma nova capital pervagava no Estes trechos traduzem perfeitamente tanto
domínio dos mitos. JK não poderia ter escolhido o sentimento de incompleição da nação quanto seu
fórmula melhor. Embora utilizando a palavra mito glorioso destino. Em meio a esta trajetória, a con"-
em sua acepção vulgar, ou seja, como fantasia irre- dição: Brasília. A interiorização é o instrumento,
alizável, JK fazia eco à função mítica de sua obra, etapa indispensável capaz de transformar o arquipé-

OLIVEIRA, M. O uso da noção de mito em sociologia ... p. 105-116


\ 113
lago econômico. O governo não estava apenas cum- fim de uma era do Brasil. Dirigindo-me
prindo um dispositivo constitucional - argumento para a porta do palácio, peguei os dois
tantas vezes evocado, mas aqui rebaixado a variável portões de ferro da entrada e os puxei
secundária- mas, trabalhando em direção a um im- lentamente, e com solenidade, até que se
perativo de sobrevivência para alcançar o destino de fechassem. Naquele momento, o Catete
grande Nação. O tom ufanista se mistura às tradicio- deixaria de ser a sede do governo. Estava
nais imagens do centro, da fundação etc. fechado simbolicamente. Dali em diante,
a residência oficial do presidente da
1960
República seria o Palácio da Alvorada,
No dia 8 de abril, JK assina um decreto trans- em Brasília. Ao fechar aqueles pesados
formando o Palácio do Catete no Rio de Janeiro, portões, eu o fiz com intensa emoção.
sede do Executivo federal desde 1896, em Museu da O que fazia não era efetivamente cerrar
República. No dia 19 de abril, em seu discurso de a entrada de um palácio, mas virar
despedida da então sede da assembléia dos depu- uma página da história do Brasil. [. .. ]
tados da cidade do Rio de Janeiro, ainda capital do Naquele momento, outro [período] se
Brasil, JK afirma: iniciava: a era da interiorização, da
posse integral do território, do verdadeiro
É com extraordinária emoção, senhores desenvolvimento nacional (Oliveira:
membros da Câmara do Distrito Federal, 1974: 281).
que, em nome do Brasil, inicio as minhas
despedidas. [. .. ] Esta despedida é, na A recordação da despedida da cidade do Rio
realidade, menos uma despedida que de Janeiro fora carregada de simbolismo. Mas, as
um encontro. É o encontro do Brasil de palavras escolhidas são velhas conhecidas. Encontro,
sempre com o Brasil novo, representado Brasil novo, fim de uma era, página virada da histó-
por Brasília (Oliveira, 1974: 280). ria: JK acreditava realmente que após a inauguração
de Brasília, o Brasil de sempre encontraria um novo
Era o Brasil de sempre encontrando com o país. JK não poderia ter sintetizado melhor o mito
novo Brasil. Nesse momento de despedida, fonte da nação que o acompanhara durante todo o perío-
inestimável de reflexões e sentimentos sobre aqueles do da construção. Os momentos que antecederam o
que foram os últimos momentos da cidade do Rio de 21 de abril foram, assim, simbolicamente percebidos
Janeiro como capital do Brasil, é interessante retornar e vividos. Para JK, seus objetivos haviam chegado ao
às memórias do ex-presidente. Quando as portas da fim. A civilização litorânea da cidade do Rio de Ja-
antiga capital começavam a ser fechadas, JK parecia neiro - dava lugar à era da interiorização - da cidade
se inebriar no vinho mítico da inauguração. Ao dei- de Brasília. As imagens do centro, do recomeço e da
xar o Palácio do Catete (há poucos dias transforma- fundação, da era que chegava ao final se misturam,
do em Museu da República, embora com início das aqui, aos gestos das portas fechadas e das páginas vi-
novas funções previstas para o dia 15 de novembro radas. Nova era, novo Brasil: a narrativa do Mito da
daquele ano de 1960), no dia 20 de abril em direção nação se encontra aí inteiramente descrita.
ao aeroporto, para apanhar o avião presidencial que
À GUISA DE CONCLUSÃO
o levaria definitivamente a Brasília, recorda:
A noção de mito sempre nos pareceu uma
Havia um ato que ainda desejava praticar, porta entreaberta para compreendermos uma re-
antes de tomar o carro que nos levaria ao alidade para a qual a sociologia (talvez mesmo
aeroporto. Era assinalar, com um gesto, o as ciências sociais) ainda está( ão) relativamente

114 I REVISTA DE CiENCIAS SOCIAIS v.36 n. 1/2 2005


desaparelhada(s). Talvez, seja preciso dizer que, com 2 Em alemão no original. Significa origem, causa, primária.
a noção de mito, quisemos entender os sentimentos 3 Queremos nos referir aqui às análises de cunho cientifico e/
ou político cujo tema central gravitava em torno dos temas
humanos em coletividade. Estes sentimentos de au-
"realidade nacional", "questão nacional", "identidade nacional"
sência e de progresso que parecem ainda atravessar ou "desenvolvimento nacional" .
a alma nacional, quando diante de uma realidade 4 JK, in Diário de Bmsília 1956-195 7, Serviço de Documentação
sempre julgada como movimento, como busca. da Presidência da República, Rio de Janeiro: 1960, p.l85.
O projeto de transferência da capital e a ci- 5 A Marcha para o Oeste, de C. Ricardo, foi publicada originalmente
em 1940. A terceira edição do livro foi publicada em 1959.
dade de Brasília foram, para JK, versões do mito da
Nesta ocasião, o autor concedeu uma entrevista apoiando o
nação. A história da construção da nação brasileira projeto de JK.
aparentemente ali esteve por se concluir. Não é de se 6 JK, in Revista bmsília, Rio de Janeiro: Publicação da NOVACAP,
estranhar assim que, mesmo nos nossos dias, mui- n° 5 (mai/57), p. 1.
tos continuem a representar Brasília sobre a base das 7 JK, in Revista bmsília, Rio de Jan eiro: Publicação da NOVACAP,
n° I O (out/57), p. 1O.
questões de interiorização, de desenvolvimento, de
8 JK, in Coleção Brasília. Diário 1958, Serviço de Documentação
soberania, de brasilidade. Mas, e quanto às promes-
da Presidência da República , Rio de Janeiro: 1%0, p. 14-15.
sas engendradas por Brasília? Verificou-se um po-
9 Id. Ibidem, p. 22-23.
voamento do interior do país? A nação encontra-se,
1OJ K, in Revista brasília, Rio de Janeiro: Publicação da NOVACAP,
mesmo, construída e unificada? O fato de colocar n° 14 (fev/58), p. 20.
nossos dirigentes nacionais no "coração da nacio- 11 JK, in Diário de Brasília, 1959, Serviço de Documentação da
nalidade" modificou-lhes a maneira de enxergar o Presidência da República, Rio de Janeiro: I 960, p. 48/49.
país? Eis aí muitas questões curiosamente abando-
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1161 REVISTA DE C1~NCIAS SociAIS v. 36 n. 1/2 2005

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