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CARTA AOS HEBREUS E CATÓLICAS

CURSO DE BACHARELADO EM TEOLOGIA – EAD


Carta aos Hebreus e Católicas – Prof. Ms. Pe. Mauro Negro

Saudações! Meu nome é Mauro Negro. Sou padre da Con-


gregação dos Oblatos de São José. Essa Congregação tem
como um dos objetivos a catequese e a formação. Assim,
tento cumprir essa missão encantadora: ensinar e levar à
adesão de valores e verdades vividas. Sou professor de Te-
ologia Bíblica na Pontifícia Universidade Católica, Faculdade
Nossa Senhora da Assunção, onde leciono Antigo e Novo
Testamento. Também leciono em cursos livres, inclusive em
outras cidades. Amo a Sagrada Escritura e desejo partilhar
com os alunos da EAD um pouco da riqueza da Carta aos
Hebreus e das Cartas Católicas. Espero que todos aceitem e
cresçam com esta disciplina. Bom estudo!
e-mail: mauronegro@uol.com.br
Prof. Ms. Pe. Mauro Negro

CARTA AOS HEBREUS E CATÓLICAS

Plano de Ensino
Caderno de Referência de Conteúdo
Caderno de Atividades e Interatividades
© Ação Educacional Clareana, 2010 – Batatais (SP)
Trabalho realizado pelo Centro Universitário Clareano de Batatais (SP)

Curso: Bacharelado em Teologia


Disciplina: Carta aos Hebreus e Católicas
Versão: jul./2010

Reitor: Prof. Dr. Pe. Sérgio Ibanor Piva


Vice-Reitor: Prof. Ms. Pe. Ronaldo Mazula
Pró-Reitor Administravo: Pe. Luiz Claudemir Bo!eon
Pró-Reitor de Extensão e Ação Comunitária: Prof. Ms. Pe. Ronaldo Mazula
Pró-Reitor Acadêmico: Prof. Ms. Luís Cláudio de Almeida

Coordenador Geral de EAD: Prof. Areres Estevão Romeiro


Coordenador do Curso de Bacharelado em Teologia: Prof. Ms. Pe. Vitor Pedro Calixto
dos Santos
Coordenador de Material Didáco Mediacional: J. Alves

Corpo Técnico Editorial do Material Didático Mediacional


Preparação Revisão
Aletéia Patrícia de Figueiredo Felipe Aleixo
Aline de Fátima Guedes Isadora de Castro Penholato
Camila Maria Nardi Matos Maiara Andréa Alves
Cáa Aparecida Ribeiro Rodrigo Ferreira Daverni
Dandara Louise Vieira Matavelli Vanessa Vergani Machado
Elaine Aparecida de Lima Moraes
Elaine Cristina de Sousa Goulart
Josiane Marchiori Marns Projeto gráfico, diagramação e capa
Lidiane Maria Magalini Eduardo de Oliveira Azevedo
Luciana A. Mani Adami Joice Cristina Micai
Luciana dos Santos Sançana de Melo Lúcia Maria de Sousa Ferrão
Luis Henrique de Souza Luis Antônio Guimarães Toloi
Luiz Fernando Trentin Raphael Fantacini de Oliveira
Patrícia Alves Veronez Montera Renato de Oliveira Violin
Rosemeire Cristina Astolphi Buzzelli Tamires Botta Murakami
Simone Rodrigues de Oliveira Wagner Segato dos Santos

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução, a transmissão total ou parcial por qualquer
forma e/ou qualquer meio (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação e distribuição na
web), ou o arquivamento em qualquer sistema de banco de dados sem a permissão por escrito do
autor e da Ação Educacional Claretiana.

Centro Universitário Claretiano


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SUMÁRIO

PLANO DE ENSINO
1 APRESENTAÇÃO.................................................................................................. 7
2 DADOS GERAIS DA DISCIPLINA........................................................................... 9
3 CONSIDERAÇÕES GERAIS ................................................................................... 11
4 BIBLIOGRAFIA BÁSICA ........................................................................................ 13
5 BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR ........................................................................ 13

CADERNO DE REFERÊNCIA DE CONTEÚDO


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 15
2 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA DISCIPLINA ................................................. 17

UNIDADE 1 ! CARTAS CATÓLICAS E NOVO TESTAMENTO


1 OBJETIVOS.......................................................................................................... 39
2 CONTEÚDOS....................................................................................................... 40
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE .................................................... 40
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE .................................................................................. 41
5 AS CARTAS CATÓLICAS E O NOVO TESTAMENTO ................................................ 43
6 SITUAÇÃO DA IGREJA DAS ORIGENS .................................................................. 49
7 CORRENTES TEOLÓGICAS: HERANÇAS DIVERSAS ............................................... 54
8 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ............................................................................ 56
9 CONSIDERAÇÕES ................................................................................................ 57
10 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 58

UNIDADE 2 ! CARTA DE TIAGO


1 OBJETIVOS.......................................................................................................... 59
2 CONTEÚDOS....................................................................................................... 59
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE .................................................... 60
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE .................................................................................. 61
5 CARTA DE TIAGO ................................................................................................ 61
6 DATA E LUGAR DA COMPOSIÇÃO: DESTINATÁRIOS ........................................... 70
7 ESTRUTURA DA CARTA DE TIAGO....................................................................... 72
8 O TEXTO DA CARTA DE TIAGO ............................................................................ 73
9 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ............................................................................ 86
10 CONSIDERAÇÕES ................................................................................................ 87
11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 87
UNIDADE 3 ! CARTA AOS HEBREUS
1 OBJETIVOS.......................................................................................................... 89
2 CONTEÚDOS....................................................................................................... 89
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE .................................................... 90
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE .................................................................................. 90
5 A CARTA AOS HEBREUS ...................................................................................... 91
6 O TEXTO DA CARTA AOS HEBREUS ..................................................................... 97
7 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ............................................................................ 128
8 CONSIDERAÇÕES ................................................................................................ 130
9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 130

UNIDADE 4 ! AS CARTAS DE PEDRO


1 OBJETIVOS.......................................................................................................... 131
2 CONTEÚDOS....................................................................................................... 131
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE .................................................... 132
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE .................................................................................. 132
5 CARTA DE PEDRO ............................................................................................... 133
6 CARTA DE PEDRO ............................................................................................... 149
7 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ............................................................................ 159
8 CONSIDERAÇÕES ................................................................................................ 159
9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 160

UNIDADE 5 ! CARTAS DE JOÃO E CARTA DE JUDAS


1 OBJETIVOS.......................................................................................................... 161
2 CONTEÚDOS....................................................................................................... 161
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE .................................................... 162
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE .................................................................................. 162
5 PRIMEIRA CARTA DE JOÃO ................................................................................. 163
6 SEGUNDA E TERCEIRA CARTAS DE JOÃO ............................................................ 182
7 CARTA DE JUDAS ................................................................................................ 187
8 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS ............................................................................ 191
9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 192
Plano de Ensino

1
PE

1. APRESENTAÇÃO
Seja bem-vindo(a)! Você está iniciando o estudo da disci-
plina que enfoca a Carta aos Hebreus e as chamadas Cartas Ca-
tólicas. Elas compõem, junto a outros escritos, o cânon do Novo
Testamento. Esta matéria faz parte do curso de Bacharelado em
Teologia oferecido na modalidade EAD do Claretiano.
O cristianismo desenvolveu-se, gradativamente, após o
Evento Jesus Cristo. Por Evento Jesus Cristo, entende-se a presen-
ça histórica de Jesus Cristo na Palestina, desde o início de sua pre-
gação, na Galiléia, até os últimos acontecimentos em Jerusalém,
conforme relatados nos Evangelhos Canônicos. As marcas de sua
presença ficaram muito vivas em seus discípulos.
Esses discípulos foram, aos poucos, difundido a mensagem
de sua vida e de seus ensinamentos. Esse conjunto de mensagens
e de ensinamentos, aliado às memórias diversas de sua presen-
ça, palavra e ação, eles chamaram Evangelho. Nos primeiros anos
8 © Cartas aos Hebreus e Católicas

após o Evento Jesus Cristo, não há produção de textos a respei-


to do Evangelho, o que coincide com os inícios da expansão dos
cristãos, como eles passaram a ser chamados. Aos poucos, porém,
em função de situações localizadas e estímulos diversos (circuns-
tâncias sociais, políticas e teológicas), foram surgindo os primeiros
escritos a respeito de Jesus e, especialmente, da ética que nascia
do seu seguimento. Foram as cartas ou epístolas os primeiros es-
critos cristãos.
Figura de destaque desse período é o judeu (fariseu) Paulo
de Tarso, com sua prática de anunciar o Evangelho entre os pagãos
ao invés de fazê-lo entre os judeus. É claro que Paulo não é o único
a expandir a mensagem cristã, mas, seguramente, deixou muitas
marcas. Em meados do primeiro século, suas cartas começaram a
ser difundidas, primeiro nas comunidades ou Igrejas que ele fun-
dou por meio de sua atividade missionária e depois entre as outras
Igrejas.
Os discípulos de Jesus, alguns chamados apóstolos, vão se
distanciando no espaço geográfico da bacia do Mediterrâneo, e
o Evangelho que anunciavam vai se difundindo entre os judeus e,
especialmente, entre os não judeus. Entretanto, foi moldando um
modo novo de ser, um estilo específico de crer em Deus e uma
ética que, aos poucos, se estabeleceu entre os mais simples, escra-
vos e pobres, mas também entre os livres, até entre altas esferas
sociais.
Os primeiros textos cristãos começaram a ser difundidos
mais intensamente. Foram, maiormente, partilhados entre as co-
munidades. São as cartas de Paulo às Igrejas. Elas passam a ser
patrimônio não apenas das Igrejas para as quais foram escritas,
mas de outras que foram encontrando, naqueles escritos, ânimo,
orientação e certezas. Com o passar do tempo, surgiram outros
escritos atribuídos a outros seguidores de Jesus. Sua mensagem
fundamental, sua “boa nova”, expressa na palavra de origem grega
“evangelho”, foi aos poucos escrita conforme a necessidade dos

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© Plano de Ensino 9

pregadores e dos ouvintes. Surgiram muitos textos, e as comuni-


dades vão se beneficiando deles. Alguns escritos negativos ou er-
rados a respeito da Pessoa e da Missão de Jesus também surgiram,
em um processo bem natural de crescimento de uma doutrina.
A Carta aos Hebreus e as chamadas Cartas Católicas foram
compostas em épocas diversas, atribuídas a escritores cristãos di-
versos. Algumas são, provavelmente, de autoria ou inspiração lite-
rária ligada aos apóstolos ou aos discípulos de apóstolos. A autoria
de cada carta singular é sempre um problema difícil, senão impos-
sível, de ser solucionado, dado as dificuldades envolvidas.
Essas cartas, seja a Carta aos Hebreus, sejam as chamadas
Cartas Católicas, juntamente aos outros escritos que compõem o
Novo Testamento, correspondem às tradições diversas, ligadas,
originalmente, aos discípulos e apóstolos do Jesus Cristo histórico,
que fez acontecer o Evento Jesus Cristo, mas que somente pode
ser hoje reconhecido por meio dessa literatura. São, verdadeira-
mente, os documentos fundamentais e fundantes da experiência
religiosa e cultural do que se chama cristianismo.
As Cartas Católicas e a Carta aos Hebreus foram compostas
em função de situações específicas, próprias de seu tempo, dos
seus ouvintes partindo da realidade e da experiência de seus es-
critores. Cridas como inspiradas pelo Espírito Santo, essas cartas
são testemunhos ricos, múltiplos e até contraditórios do fenôme-
no de grande força e presença chamado “cristianismo”. A leitura
e o estudo dessas obras são de fundamental importância para a
compreensão desse fenômeno.

2. DADOS GERAIS DA DISCIPLINA


Ementa
Últimos escritos do cânone bíblico do Novo Testamento.
A formação das Cartas Católicas que procuraram responder aos
problemas e aos desafios. Escritos e correntes teológicas nas dife-
10 © Cartas aos Hebreus e Católicas

rentes Igrejas das comunidades da segunda e da terceira gerações


cristãs. Heranças paulina, petrina e joanina nas novas comunida-
des. Os textos de Tiago, Pedro e Judas.

Objetivo geral
Os alunos da disciplina Carta aos Hebreus e Católicas na
modalidade EAD do Claretiano, dado o Sistema Gerenciador de
Aprendizagem e suas respectivas ferramentas, terão condições de
compreender o momento histórico em que esses escritos surgem,
a situação eclesial que os gera e sua importância no cânon do Novo
Testamento.
Os alunos serão informados dos problemas relevantes para
a compreensão de cada escrito em particular e direcionados, se-
gundo seus interesses, para estudos mais específicos sobre pon-
tos controversos. Serão estimulados a ler todos os textos e acom-
panhados, nessa leitura, com oportunas e breves introduções às
diversas partes menores dos textos. Poderão sentir o desenvol-
vimento dos argumentos e a sua importância no quadro do cris-
tianismo nascente, bem como suas dificuldades de aceitação, de
estabelecimento e adaptação.
Com esse intuito, os alunos contarão com recursos técnico-
pedagógicos facilitadores de aprendizagem − como material didá-
tico, bibliotecas físicas e virtuais e ambiente virtual −, e acompa-
nhamento do tutor, complementado por debates no Fórum e por
troca de mensagens na Lista.
Ao final desta disciplina, de acordo com a proposta orienta-
da pelo tutor, os alunos terão condições de interagir com opiniões
diversas e diversificadas a respeito do tempo cronológico aborda-
do, do momento cultural e político de então e dos textos em ques-
tão.

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© Plano de Ensino 11

Competências, habilidades e atitudes


Ao final deste estudo, os alunos do curso de Bacharelado em
Teologia contarão com uma sólida base teórica para fundamen-
tar, criticamente, sua prática profissional. Adquirirão não somente
as habilidades necessárias para cumprir seu papel nesta área do
saber, mas também estarão capacitados para agir com ética e res-
ponsabilidade social, contribuindo, assim, para a formação inte-
gral do ser humano.

Modalidade
( ) Presencial ( X ) A distância

Duração e carga horária


A carga horária da disciplina Carta aos Hebreus e Católicas
é de 60 horas. O conteúdo programático para o estudo das cinco
unidades que a compõem está desenvolvido no Caderno de Refe-
rência de Conteúdo, anexo a este Plano de Ensino, e os exercícios
propostos constam no Caderno de Atividades e Interatividades.

É importante que você releia no Guia Acadêmico do seu curso as


informações referentes à Metodologia e à Forma de Avaliação
da disciplina Cartas aos Hebreus e Católica, descritas pelo tutor
na ferramenta “cronograma” na Sala de Aula Virtual – SAV.

3. CONSIDERAÇÕES GERAIS
A Carta aos Hebreus e as Cartas Católicas não são textos
muito consultados na vida cristã e até nos estudos teológicos. A
riqueza do epistolário paulino e as cores e imagens dos evangelhos
canônicos obscurecem o brilho das obras literárias aqui analisa-
das.
12 © Cartas aos Hebreus e Católicas

As Cartas Católicas e a Carta aos Hebreus são testemunhos


de tradições específicas, algumas ligadas a outros textos do Novo
Testamento (a 1 João), mas, na sua maioria, independentes desses
textos. Elas demonstram que o cristianismo não teve uma única
vertente − a paulina, por exemplo −, ou motivação ligada ao após-
tolo Paulo, mas teve outras expressões que deixaram, também,
suas marcas.
O cristianismo é, fundamentalmente, um discipulado, isto
é, um seguimento. Segue-se a uma pessoa e imita-se sua missão.
A Pessoa é Jesus Cristo e a sua Missão é a presença de Deus na
história. O fiel, tomado pela amizade com Deus expressa na pala-
vra “graça”, deve buscar a Jesus Cristo como caminho de encontro
com Deus e fonte de inspiração para a vida. A ética que nasceu
desse seguimento foi uma proposta que precisou ser, aos poucos,
criada pelas comunidades. Aquelas que estavam ligadas ao juda-
ísmo não encontraram tanta dificuldade, pois já tinham uma ética
de grande alcance; mas as comunidades que nasciam no mundo
helenizado, sob influências de outras culturas, especialmente as
orientais, precisavam estabelecer seus parâmetros em função do
seguimento de Jesus Cristo.
As Cartas Católicas e a Carta aos Hebreus são partes do tes-
temunho literário do nascimento do cristianismo, de sua proposta
ética, dos desafios que lhe foram impostos e das soluções encon-
tradas.
Sugerimos que você leia as Cartas Católicas e a Carta aos
Hebreus juntamente com este material. A leitura direta do texto
bíblico nunca pode ser deixada de lado. Não tem sentido estudar a
Bíblia sem ler a Bíblia! Isto é contraditório e errado: estudar sobre
a Bíblia e não ler a Bíblia. Portanto, junto ao estudo aqui apresen-
tado, propomos o que parece muito óbvio: a leitura do texto das
Cartas Católicas e da Carta aos Hebreus. Tenha uma boa tradução
da Bíblia e caminhe. O sucesso depende, em grande parte, de seu
empenho e desejo de progresso.

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© Plano de Ensino 13

Sugerimos, também que o estudante tome dois ou três li-


vros indicados na bibliografia e os consulte. Note que alguns itens
dela são partes de um único livro. Assim, um volume pode trazer
artigos diversos sobre as cartas individuais. A leitura de um bom
comentário bíblico é sempre útil e oportuna.
Bom trabalho!

4. BIBLIOGRAFIA BÁSICA

A Bibliografia Básica apresenta obras gerais, abrangentes, de in-


trodução aos temas propostos. Já a Bibliografia Complementar
apresenta estudos específicos sobre cada carta analisada.

BORNKAMM, G. Bíblia, Novo Testamento. Introdução aos seus escritos no quadro da


história do cristianismo primitivo. Tradução de João Rezende Costa. 3. ed. São Paulo:
Teológica/Paulus, 2003.
KÜMMEL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. Tradução de Isabel Fontes Leal Ferreira
e João Paixão Neto. São Paulo: Paulinas, 1982. (Nova Coleção Bíblica)
SCHREINER, J. DAUTZENGERG, G. Forma e exigências do Novo Testamento. Traduçâo de
Benôni Lemos. São Paulo: Paulinas, 1977. (Nova Coleção Bíblica)

5. BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
DUSSAUT, L. A epístola aos hebreus. In: COTHENET, E. et al. Os escritos de São João e a
epístola aos Hebreus. Tradução de M. Cecília de M. Duprat. São Paulo: Paulinas, 1988.
(Coleção: Biblioteca de Ciências Bíblicas).
LE FORT, P. As epístolas. In: ______. Os escritos de São João e a epístola aos Hebreus.
Tradução de M. Cecília de M. Duprat. São Paulo: Paulinas, 1988. (Coleção: Biblioteca de
Ciências Bíblicas)
SCHLOSSER, J. A primeira epístola de Pedro. In: MARGUERAT, D. (Org). Novo Testamento:
história, escritura e teologia. Tradução de Margarida Oliva. São Paulo: Loyola, 2009.
______. A segunda epístola de Pedro. In: ______. Novo Testamento: história, escritura e
teologia. Tradução de Margarida Oliva. São Paulo: Loyola, 2009.
______. A epístola de Judas. In: ______. Novo Testamento: história, escritura e teologia.
Tradução de Margarida Oliva. São Paulo: Loyola, 2009.
TRIMAILLE, M. As epístolas católicas. In: CARREZ, M. et al. As cartas de Paulo, Tiago, Pedro
e Judas. Tradução de Benôni Lemos. São Paulo: Paulinas, 1987. (Coleção: Biblioteca de
14 © Cartas aos Hebreus e Católicas

Ciências Bíblicas)
TUÑI, J. O. As cartas de João. In: TUÑI, J. O.; ALEGRE, X. Escritos Joaninos e cartas católicas.
Tradução de Alceu Luis Orso. São Paulo: Ave Maria, 1999. (Coleção: Introdução ao Estudo
da Bíblia, 8)
TUÑI, J. O.; ALEGRE, X. Cartas católicas. In: ______. Escritos joaninos e cartas católicas.
Tradução de Alceu Luis Orso. São Paulo: Ave Maria, 1999. (Coleção: Introdução ao Estudo
da Bíblia, 8)
VOUGA, F. A epístola aos Hebreus. In: MARGUERAT, D. (Org.). Novo Testamento: História,
Escritura e Teologia. Tradução de Margarida Oliva. São Paulo: Loyola, 2009.
______. A epístola de Tiago. In: ______. Novo Testamento: história, escritura e teologia.
Tradução de Margarida Oliva. São Paulo: Loyola, 2009.
______. A carta de Tiago. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Loyola, 1996. (Coleção
Bíblica Loyola, 7a)
ZUMSTEIN, J. As epístolas de João. In: MARGUERAT, D. (Org). Novo Testamento: história,
escritura e teologia. Tradução Margarida Oliva. São Paulo: Loyola, 2009.

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Caderno de
Referência de
Conteúdo

CRC

1. INTRODUÇÃO
O Novo Testamento é parte constitutiva dos escritos identi-
ficados como “sagrados”, isto é, aqueles que remetem a um am-
biente relacionado com o divino ou que dão a conhecer o que está
relacionado ao divino, ou seja, ao “sacro”. Ele é parte do conjunto
chamado “Sagrada Escritura” ou “Bíblia” − o conjunto de livros que
são reunidos e classificados em do Antigo e do Novo Testamento.
O Antigo Testamento é o conjunto de textos, de épocas di-
ferentes e circunstâncias específicas que retratam, em linguagem
teológica e em formas literárias diversas, a experiência religiosa do
Povo de Israel, desde os seus primórdios até À proximidade da era
cristã. Já o Novo Testamento é a experiência dos discípulos de Je-
sus Cristo expressa, sempre, em conceitos teológicos com formas
literárias também diversas.
A Igreja Católica afirma, na Constituição Dogmática Dei Ver-
bum (“Palavra de Deus”, em latim) a respeito da importância de
Jesus Cristo como centro da Revelação bíblica:
16 © Cartas aos Hebreus e Católicas

Depois de ter falado muitas vezes e de muitos modos pelos Profetas,


Deus “ultimamente, nestes dias, falou-nos pelo Filho” (Hb 1,1–2).
Com efeito, Ele enviou Seu Filho, o Verbo eterno que ilumina todos
os homens, para que habitasse entre os homens e lhes expusesse
os segredos de Deus (cf. Jo 1,1–18). Jesus Cristo, portanto, Verbo
feito carne, enviado como “homem aos homens”, “profere as pa-
lavras de Deus” (Jo 3,34) e consuma a obra salvífica que o Pai lhe
confiou (cf. Jo 5,36; 17,4). Eis por que Ele, ao qual quem vê também
o Pai (cf. Jo 14,9), pela plena presença e manifestação de Si mesmo
por palavras e obras, sinais e milagres, e especialmente por Sua
morte e gloriosa ressurreição dentre os mortos, enviado finalmen-
te o Espírito de verdade, aperfeiçoa e complementa a revelação e
a confirma com o testemunho divino que Deus está conosco para
libertar-nos das trevas do pecado e da morte e para ressuscitar-
nos para a vida eterna (Concílio Ecumênico Vaticano II. Constitui-
ção Dogmática “Dei Verbum” Sobre a Sagrada Revelação, nº. 4a.
In: KLOPPENBURG, Boaventura (Org.). Compêndio do Vaticano II:
Constituições, decretos, declarações. Petrópolis : Vozes, 2000, 29.
ed. p. 123.).

O que não se deve esquecer é que o Antigo e o Novo Testa-


mento são interdependentes. Em poucas palavras, o Antigo Testa-
mento encontra seu complemento no Novo Testamento. O mesmo
documento Dei Verbum afirma mais adiante:
Deus, pois, inspirador e autor dos livros de ambos os Testamentos,
de tal modo dispôs sabiamente, que o Novo Testamento estivesse
latente no Antigo e o Antigo se tornasse claro no Novo. Com efeito,
embora Cristo tenha fundado a Nova Aliança em seu sangue (cf. Lc
22,20; 1 Cor 11,25), contudo os livros todos do Antigo Testamento,
recebidos íntegros na pregação evangélica, obtem e manifestam
seu sentido completo no Novo Testamento (cf. Mt 5,17; Lc 24,27;
Rm 16,25–26; 2 Cor 3,14–16), e por sua vez o iluminam e explicam
(Dei Verbum, nº. 16. In: KLOPPENBUG, Boaventura (Org.), op. cit.,
p.133).

O Antigo e o Novo Testamento encontram o seu centro na


pessoa de Jesus Cristo. E, por meio dele, têm-se as informações, os
relatos e as considerações que vão formar as tradições escritas a
seu respeito. Elas são iluminadas ou encontram seu sentido no An-
tigo Testamento e apontam para o futuro, propondo perspectivas
e considerando a vida do homem e a sua relação cultural, social e
religiosa.

Centro Universitário Claretiano


© Caderno de Referência de Conteúdo 17

Os escritos do Novo Testamento podem ser divididos em três


partes distintas, tendo como referência o estilo de escrita ou gêne-
ro literário. Primeiro, são os textos narrativos; depois são os textos
epistolares e, por fim, o texto apocalíptico. Compõem o conjunto
de textos narrativos do Novo Testamento os quatro Evangelhos e
o livro de Atos dos Apóstolos; as cartas compõem o conjunto dos
chamados “textos epistolares”; e o livro do Apocalipse é o único
texto completo de gênero apocalíptico do Novo Testamento.
No grupo de cartas do Novo Testamento, estão os textos de
Paulo ou atribuídos a ele. Mas há, também, outros textos, atribuí-
dos a outros autores e com tendências e argumentos complemen-
tares ou relativamente diferentes dos apresentados por Paulo. São
estes os textos: Carta aos Hebreus e Cartas Católicas, que iremos
estudar nesta disciplina. Eles serão especialmente introduzidos em
suas temáticas e em sua história; portanto, sugerimos que você
aprofunde os conceitos e temas apresentados consultando outros
livros, especialmente os indicados na Bibliografia Básica e na Bi-
bliografia Complementar.

2. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA DISCIPLINA


Abordagem Geral da Disciplina
Neste tópico, apresenta-se uma visão geral do que será es-
tudado nesta disciplina. Aqui, você entrará em contato com os
assuntos principais deste conteúdo de forma breve e geral e terá
a oportunidade de aprofundar essas questões no estudo de cada
unidade. No entanto, essa Abordagem Geral visa fornecer-lhe o
conhecimento básico necessário a partir do qual você possa cons-
truir um referencial teórico com base sólida – científica e cultural
– para que, no futuro exercício de sua profissão, você a exerça com
competência cognitiva, ética e responsabilidade social. Vamos co-
meçar nossa aventura pela apresentação das ideias e dos princí-
pios básicos que fundamentam esta disciplina.
18 © Cartas aos Hebreus e Católicas

A abordagem de Carta aos Hebreus e Católicas é dividida em


duas partes. Na primeira parte, faz-se uma contextualização histó-
rica da Carta aos Hebreus e das Cartas Católicas; na segunda par-
te, faz-se uma apresentação ou introdução bem objetiva de cada
texto em particular.
As introduções são temáticas e históricas. Não são exausti-
vas, pois o interesse é levar você a pesquisar o texto da disciplina
e, de modo especial, estimular à leitura do texto da disciplina no
Ensino a Distancia e ao texto dos livros bíblicos em questão, bem
como à consulta de alguma obra indicada nas bibliografias.
Vamos lá?
Apresentaremos uma introdução a um conjunto de livros
muito interessantes do Novo Testamento. Trata-se da Carta aos
Hebreus e das chamadas “Cartas Católicas”.
As décadas que se seguiram ao Evento Cristo foram tempos
notáveis de experiência cristã. Elas são a referência constante e
fecunda do ser e viver do cristianismo.
Logo após a Paixão, Morte e Ressurreição − o conjunto de
fatos que chamamos “Mistério Pascal”, iniciou-se, no círculo de
discípulos, um movimento de testemunho e de afirmação de sua
nova identidade. Eles se identificavam com seu Mestre e Senhor,
emocionavam-se com o fato de tê-lo seguido e conhecido. Alguns
o tocaram, o ouviram e foram ouvidos por Ele. O grupo dos após-
tolos era privilegiado, pois tinha vivido muito próximo com Ele, co-
tidianamente.
A ausência súbita de Jesus deixou em todos o desejo de tor-
ná-lo conhecido entre outros que não o conheciam ainda. Come-
çou, então, uma partilha de experiências, e essa partilha reunia as
comunidades. Aos poucos, os discípulos mais destacados, os que
receberam o nome de apóstolos, eram o centro das comunidades
que se formavam para fazer a Memória do Senhor. Eram grupos de
judeus que recordavam aquele que reconheciam como Messias,

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© Caderno de Referência de Conteúdo 19

palavra hebraica que foi traduzida para o grego como Cristo e que
significa “ungido”, “escolhido”. O grupo dos discípulos, aliás, era
ainda minoria absoluta no judaísmo, mas, aos poucos, ia se impon-
do e fazendo notar sua opção.
O livro Atos dos Apóstolos tenta ser uma testemunha desse
tempo e desses personagens. Ele foi escrito muito tempo depois
dos fatos que apresenta. Dessa forma, já é uma interpretação dos
mesmos fatos e das suas consequências. Apresenta-se como uma
sequência de testemunhos feitos pelos apóstolos e discípulos de
Jesus em contato com o mundo judaico e com os pagãos.
Os apóstolos passaram a ter seguidores, imitadores, e os
grupos por eles formados vão caminhando, à luz de Jesus Cristo,
com base na experiência de alguém que o conheceu e com Ele
conviveu de alguma forma. Um apóstolo ou um discípulo ou, até
mesmo, um conjunto de discípulos mantém a unidade dos segui-
dores de Jesus. Os instrui, anima, explica e tenta manter e formar
um estilo de crer, de ser.
Nesse processo, há sempre a referência às Escrituras judai-
cas. O grupo de discípulos que, aos poucos, se amplia é ainda um
grupo fundamentalmente judaico. Eles veem em Jesus o cumpri-
mento das profecias e o sentido da esperança de uma nova Israel.
Nesse sentido, é significativa a questão levantada por eles
em Atos (1,6): “Estando, pois, reunidos, eles assim o interrogaram:
‘Senhor, é agora o tempo em que irás restaurar a realeza em Isra-
el?’”.
A ideia do grupo, que Atos testemunha por escrito, é de uma
Israel renovada, com uma realeza que, estabelecida sobre as tribos
e em meio às nações, vivencia a plenitude das promessas feitas
aos pais.
O texto Atos dos Apóstolos, escrito após os Sinóticos e muito
tempo depois das cartas paulinas, é um testemunho teológico do
tempo apostólico. Houve, necessariamente, uma elaboração his-
20 © Cartas aos Hebreus e Católicas

tórica e teológica para os fatos, dos ditos e os personagens. Situ-


ações complexas, seguramente frutos de diversos movimentos e
interpretações dos ditos de Jesus, de sua mensagem transmitida
pelos seguidores e ao lado das Escrituras judaicas, foram simpli-
ficadas e consignadas, de modo a fazer que tudo tivesse lógica e
fosse facilmente compreendido por leitores que não viveram na-
queles tempos.
Um pequeno sinal disso tudo se encontra no episódio de Es-
tevão, entre os capítulos seis e oito de Atos. Inicialmente, os após-
tolos, que não são claramente citados, mas aparecem aqui como
um corpo coeso, identificados como “o grupo dos Doze” (vers. 2),
convocam a multidão para solucionar a questão do serviço e da
organização, bem como do anúncio da Palavra. Eles não tinham
mais tempo para esse anúncio na medida em que tinham de orga-
nizar a “multidão” ou o serviço às mesas. Então, eles escolheram
sete homens de boa reputação, repletos do Espírito e de sabedo-
ria, para que essa função do serviço às meses fosse realizado (vers.
3-5). Depois de escolhidos e nomeados (vers. 5), os apóstolos lhes
impuseram as mãos (vers. 6). Temos, então, os diáconos.
Logo em seguida, aparece, de modo destacado, a figura de
Estevão, homem decidido em fazer o caminho de Jesus Cristo e a
dele dar testemunho. O versículo sétimo afirma: “Estevão, cheio
de graça e de poder, operava prodígios e grandes sinais entre o
povo”. Isto é curioso, pois ele deveria é “servir às mesas”, pois foi
para isto que havia sido escolhido como diácono. Mas lá estava
ele, disposto a anunciar o Evangelho de Jesus, e por conta de seu
ímpeto e decisão foi logo preso na perseguição iniciada por judeus
de diversas origens. Curiosamente, esses judeus de origens diver-
sas são oriundos dos locais citados na manhã de Pentecostes. An-
tes, tinham recebido o Espírito; agora, são oposição a Estevão.
Bem, a sua defesa foi brilhante e decisiva, e a sentença foi
a condenação à morte. Ela foi como um fim emocionante, com a
presença, vista por ele, de Jesus em glória (At 7,56).

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© Caderno de Referência de Conteúdo 21

E assim, Estêvão dá o testemunho de Jesus Cristo. Mas, note-


se o fato: Estêvão não é do grupo apostólico. É um diácono, discí-
pulo dos apóstolos, dependente de seu testemunho dos apósto-
los. Não foi um deles, um dos apóstolos, que foi martirizado e deu
o testemunho com a vida, foi alguém “menor” do que eles. Isto
seguramente gerou uma espécie de crise interna.
O texto de Atos dos Apóstolos simplifica tudo com uma se-
quência narrativa que une momentos e circunstâncias bem diver-
sas. Em 7,60, conclui-se o martírio de Estevão: “depois, caindo de
joelhos, gritou em voz alta: ‘Senhor, não lhes leve em conta este
pecado’. E dizendo isto, adormeceu”. Logo em seguida, tem-se a
menção a Paulo, ainda chamado de Saulo: ora, Saulo estava de
acordo com a sua execução (8,1a). No mesmo versículo, a sequên-
cia narrativa já estabelece outro caminho: “Naquele dia, desenca-
deou-se uma grande perseguição contra a Igreja que estava em Je-
rusalém. Todos, com exceção dos apóstolos, dispersaram-se pelas
regiões da Judéia e da Samaria” (vers. 1).
Parece que, para resgatar a situação, os apóstolos agora
ficam em Jerusalém, prontos para o testemunho que Estevão já
dera. Mas o que primeiro enfrentou a dificuldade do seguimento
do Senhor foi um que não era dos Doze.
Isso tudo deve refletir a situação da Igreja das origens, aquela
de Jerusalém. As atitudes não estavam ainda coordenadas. Parece
que a perseguição que se seguiu ao martírio de Estevão pegou a
todos de surpresa, deixando à mostra uma realidade inesperada: a
hostilidade à mensagem do Evangelho.
Seria de se esperar que Israel aceitasse Jesus Cristo como
seu Senhor. Eles, os apóstolos e os seguidores das primeiras horas
eram as testemunhas deste novo tempo. Contudo, isto não acon-
teceu: Jerusalém não aceitou a mensagem evangélica; as autorida-
des não souberam ver neles uma esperança de futuro.
A perspectiva para um futuro entre os judeus, especialmen-
te em Jerusalém, deveria não ser muito estimulante. Parece que
22 © Cartas aos Hebreus e Católicas

também a capacidade de compreender os passos futuros da Igre-


ja não existia ainda, pois Pedro terá dificuldades em justificar-se
perante os cristãos de origem judaica com relação à sua atitude
em Jope, na casa de Cornélio. Este é o tema de Atos (10): Pedro é
chamado para a visita a um pagão, Cornélio. Ele entra em sua casa,
toma contato com ele e outros pagãos e, por fim, senta-se à mesa
com eles. Quando Pedro volta para Jerusalém, é questionado pelo
grupo dos apóstolos e irmãos a respeito de sua conduta.
Esse questionamento não deixa de causar estranheza em
nós, leitores do livro Atos, pois nele, em 1,8, lê-se: “mas recebe-
reis uma força, a do Espírito Santo que descerá sobre vós, e sereis
minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e a Samaria,
e até os confins da terra”. Quem fala é Jesus, quando da despedida
de seus discípulos.
Olhando a reação dos que questionaram Pedro em Atos, o
que se pode imaginar é que ser testemunha não implica, necessá-
ria ou diretamente, fazer discípulos “até nos confins da terra”.
Após esse episódio, em que Pedro precisa justificar-se, tem-
se a notícia da fundação da Igreja em Antioquia (At 11,19ss). Essa
Igreja síria será o centro irradiador do cristianismo, base de Paulo e
promotora do crescimento da comunidade. A Igreja mãe, em Jeru-
salém, não parecia muito adaptada às mudanças necessárias para
a difusão do Evangelho.
Após esse episódio de Antioquia, o personagem volta a ser
Pedro: ele é preso e, milagrosamente, solto. Em seguida à sua li-
bertação, ele desaparece da trama narrativa de Atos dos Apósto-
los, apenas aparecendo no capítulo 15, quando da Assembleia de
Jerusalém, em que deve novamente enfrentar a questão dos pa-
gãos e de sua entrada na Igreja.
O que está em jogo não é, simplesmente, a entrada ou não
dos gentios na Igreja. Curiosamente é algo que, no modo de ver
moderno, pode ser até mesquinho: o ato de um judeu sentar-se à
mesa com um pagão.

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© Caderno de Referência de Conteúdo 23

Isto implicava reconhecimento de igualdade, comunhão.


Como aceitar isto em uma mentalidade em que o judeu é parte
de uma raça eleita, escolhida para seguir o Santo, que é o Deus de
Israel? E ser “santo”, na mentalidade bíblica, é ser separado, isto é,
distinto de outros, especialmente distinto ou diferente de outros
deuses. O Deus de Israel é o único, e Israel, por isso, é, também,
o povo único de Deus. Isto implica diferença de relacionamentos
com a sociedade e com a natureza: modos de alimentar-se, de
relacionar-se, de vestir-se, de fazer o culto. Tudo isto marcava um
judeu e deixava à mostra sua identidade de parte da Aliança.
Assim, sentar-se à mesa com um pagão era, para um judeu,
compor um quadro de conivência, de intimidade impensável para
quem desejava seguir a Torá, que era a Lei de Moisés, e os seus
mandamentos. Era inconcebível, pois implicava entrar em comu-
nhão com os opressões, os romanos de língua grega e de outros
lugares e influências.
A Igreja começava a encontrar dificuldades na compreensão
de sua própria missão antes mesmo de encontrar sua própria iden-
tidade. O povo da Nova Aliança não precisava estar sob os cos-
tumes da antiga Aliança. Esta tivera o seu valor e, seguramente
ainda tinha, mas Jesus Cristo superava tudo isso. Nesse ponto, foi
fundamental a intervenção de Paulo.
Paulo estabeleceu, com a sua atuação missionária e os seus
escritos, uma realidade surpreendente. É difícil dizer que o que ele
criou era pensado no início da Igreja. Ele inovou.
As Cartas de Paulo, o chamado “Corpus Paulinum”, são os
primeiros escritos do Novo Testamento. São anteriores aos textos
que chamamos “Evangelhos”. Isto vale dizer que, antes do teste-
munho da experiência com Jesus e do escrito de suas atividades
e de sua mensagem, foi Paulo que apresentou a doutrina sobre
Jesus.
Este é outro assunto muito interessante. Mas vamos ficar
com este dado: Paulo levou uma grande parte dos discípulos e se-
24 © Cartas aos Hebreus e Católicas

guidores da mensagem de Jesus para uma compreensão específica


e uma vivência concreta. Paulo criou uma história, um estilo de vi-
ver, de ser, de se expressar. Mas ele não foi o único nem o caminho
que ele apresentou foi o único.
É aqui que entram os textos que vamos estudar no ensino
a distancia. As Cartas Católicas e a Carta aos Hebreus nascem de
contextos diferentes daquele contexto que vimos em torno de
Paulo. Esta será a segunda parte dessa apresentação.
O nome dos livros bíblicos é uma questão que envolve diver-
sos fatores.
No caso dos livros cujo estudo estamos introduzindo, a Carta
aos Hebreus é assim chamada em função do conteúdo que apre-
senta. Esse conteúdo é marcado por argumentos que partem do
judaísmo e de sua prática. A tradição cristã sempre viu isto como
um indicativo dos destinatários da carta e, por isso, ela passou a
ser chamada “Carta aos Hebreus”.
Já o conjunto formado pelas cartas de Tiago, as duas de Pe-
dro, as três de João e a de Judas é chamado “Cartas Católicas”. Não
se trata aqui de um atributo eclesial das cartas, ou seja, não é que
elas são da Igreja Católica ou que falem dela. O caso é que “católi-
co” é um termo que significa “universal”, “de todo o mundo”. “Car-
tas Católicas” são, então, cartas dirigidas a todos, independente-
mente de onde estejam, quem sejam e o que pensam.
Unimos o texto de Cartas Católicas e Carta aos Hebreus por
uma questão prática de divisão do cânon do Novo Testamento. De
fato, tirando as nossas Cartas Católicas e a Carta aos Hebreus, to-
das as outras cartas são atribuídas a São Paulo: elas compõem o
Corpus Paulinum.
Costumeiramente, não identificamos a Carta aos Hebreus
como uma Carta Católica por uma questão histórica: por muito
tempo, a Carta aos Hebreus foi tida como de Paulo; portanto, par-
te do Corpus Paulinum. Então, na mentalidade antiga, ela seria

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© Caderno de Referência de Conteúdo 25

paulina. Com o desenvolvimento da Teologia Bíblica e da Exegese,


sabemos que ela não é paulina, mas continua tendo um destaque
notável devido à sua argumentação e consequências.
As Cartas Católicas e a Carta aos Hebreus são expressões de
correntes teológicas diversas daquela expressada pelo Corpus Pau-
linum. Sobressaem os modos de pensar e de propor o cristianismo
como algo paralelo ao judaísmo ou, até mesmo, como uma parte
constitutiva do judaísmo.
Talvez seja muito ingênuo, do ponto de vista exegético e
da teologia bíblica, afirmar que essas cartas são as heranças dos
apóstolos Pedro, Tiago e João. Não podemos simplificar as coisas
assim. Afirmar que os textos atribuídos ou que levam os nomes
dos outros apóstolos ou discípulos são deles mesmo é deixar de
considerar muitas questões e muitas dificuldades. Os inícios do
cristianismo foram muito complexos, como são complexos os mo-
vimentos humanos e culturais. A clareza da mensagem cristã ainda
não tinha atingido sua plenitude, e a unidade com o judaísmo era
muito forte.
Jesus Cristo foi um judeu; os apóstolos foram judeus; as pri-
meiras comunidades eram de origem judaica; e a argumentação
fundamental a respeito de Jesus e de seu Evangelho tinha como
pano de fundo as promessas cultivadas no Judaísmo. É o apóstolo
Paulo quem dá passos decisivos para uma mudança substancial.
Ele é apenas um pregador; seguramente, o maior pregador de seu
tempo: atuava na Ásia Menor, na Grécia e, depois, em Roma. Seus
escritos iam se difundindo e seu pensamento fazia adeptos além
dos limites das comunidades judaicas.
O judaísmo, por sua vez, paralelamente à atuação de Paulo,
continuou sendo tocado e questionado pelo anúncio do Evange-
lho. As respostas que surgiam vinham não de raciocínios ou de
considerações teológicas, muito menos filosóficas. Elas nasciam
da experiência concreta das comunidades e dos indivíduos. Mes-
mo com as redes romanas de comunicação terrestre, haviam os
limites de espaço e tempo para a difusão das ideias. Em muitos
26 © Cartas aos Hebreus e Católicas

lugares, o judaísmo não via com bons olhos essa nova corrente de
pensamento, essa “seita” chamada de cristianismo.
Em contrapartida, muitos grupos judaicos simpatizavam com
o Evangelho e desejavam fazer uma síntese. Aliás, não devemos
pensar que isto fosse um problema claro para os que o viviam. A
questão não era, como dissemos, puramente conceitual. Era uma
questão de prática: como ser judeu e seguir novas determinações,
frutos do seguimento de um judeu inspirado − Jesus − que foi sen-
tenciado em Jerusalém pelo poder romano e que era seguido por
muitos, de diversas orientações e tendências? Haveria conflito?
Seria possível ser cristão e seguir a Torá, a lei dos judeus?
Vemos as respostas a estas e a outras questões aparecendo
nas Cartas Católicas e na Carta aos Hebreus. Não são respostas
acadêmicas, teóricas, mas, sim, práticas. Talvez, na Carta aos He-
breus, as soluções, feitas em forma de propostas, são as mais cla-
ras e com maior nível de elaboração teológica. Mas, no geral, são
respostas e propostas nascidas da experiência concreta.
A leitura dessas cartas vai formar novos quadros conceituais,
novas impressões e, até mesmo, surpresas. É mais comum servir-
se do Corpus Paulinum para o conhecimento da proposta cristã. A
Carta aos Hebreus e as Cartas Católicas apresentam argumentos
interessantes e nos farão compreender ou, pelo menos, intuir a
complexidade do cristianismo original, do qual somos hoje herdei-
ros. A leitura desses textos é muito interessante, embora alguns
trechos e até obras inteiras possam nos surpreender, pois é muito
diferente do que se lê no Novo Testamento.
Pensemos aqui na visão de adesão ao Mistério de Jesus e no
resultado disto na visão da Carta de Tiago. Parece muito diferen-
te do que lemos no Corpus Paulinum, especialmente na Carta aos
Romanos. Pensemos, também, na Segunda Carta de Pedro, que é
completamente diferente da Primeira Carta de Pedro e dos outro
escritos. A Carta de Judas é tão diferente de outros escritos e tão
reduzida em argumentos que parece nem ser citada normalmen-
te.

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© Caderno de Referência de Conteúdo 27

A Carta aos Hebreus é assim chamada desde muito cedo. É


um escrito que centraliza em Jesus Cristo, identificado como supe-
rior aos anjos e a Moisés, a importância de tudo e o sentido das Es-
crituras. Nela, são apresentados heróis da fé, que, pela argumen-
tação apresentada, levam à espera da figura que reconhecemos
como Messias em Jesus.
A Carta aos Hebreus é uma carta cheia de surpresas e com
elementos muito interessantes. Podemos, inclusive, considerá-la
um resumo do jeito de ser e de pensar do Antigo e do Novo Tes-
tamento. Pode ser uma espécie de “grande conclusão” da Bíblia.
Portanto, a importância de ler e sentir o texto.
A Carta de Tiago é um escrito curioso. Tudo nela é curio-
so, começando pela identificação do tal Tiago, seu suposto autor.
Quem é ele? Será um apóstolo? Há dois “Tiagos” no grupo dos
apóstolos. Mas poderia ser outro Tiago. Paulo, em 1ª aos Corín-
tios (15), quando fala do testemunho de Jesus Cristo ressuscitado,
apresenta uma aparição de Jesus a Pedro e, depois, aos Doze, que
são os apóstolos, e, em seguida, a outros discípulos −, em desta-
que, a um tal Tiago. Parece que esse Tiago será um líder muito
importante em Jerusalém. Mas quem é ele? Será ele o autor da
carta que leva seu nome? E a questão da justificação: o que justifi-
ca, isto é, santifica, torna feliz o ser humano é a fé ou são as obras?
Há contradição nisto? Tais questionamentos são tão importantes
que já se disse que o motivo da separação das Igrejas no ociden-
te, a chamada Reforma Protestante, tem muito a ver com o modo
de ler essa carta. Vamos ver o que podemos descobrir da leitura
desse texto.
Temos, na sequência, as duas Cartas de Pedro. A primeira
é muito interessante e nos ajuda a compreender o cristianismo
das origens e o modo de ver uma parte dele. Essa Primeira Carta
de Pedro parece mais uma homilia batismal: uma exposição dos
motivos de crer em Jesus Cristo e como se adere a Ele e à sua Men-
sagem, que é o Evangelho.
28 © Cartas aos Hebreus e Católicas

Já a Segunda Carta de Pedro é, inclusive, estranha pelas con-


denações ou ameaças que apresenta.
As três Cartas de João, em seu conjunto, compõem o único
caso, na Bíblia, de três textos atribuídos ao mesmo autor. Mas ex-
ceto a primeira carta, as outras são pequenos textos.
A Primeira Carta de João apresenta o tema do conhecimento
de Jesus Cristo sob um ponto de vista existencial. Deve-se conhe-
cer pela experiência concreta e pela vivência de seu Mistério. Es-
pecialmente, deve-se conhecer por meio da experiência do amor.
É uma carta muito interessante e que nos ajuda a muito compre-
ender do pensamento de João.
As outras duas cartas são bem curtas: na realidade, são bi-
lhetes que apresentam algumas recomendações para a vida e para
a história de cada um em contato com os irmãos.
Por fim, temos a Carta de Judas, que é composta de apenas
um capítulo, que apresenta argumentos relativos à conduta cristã
e às tensões muito próprias de quem segue o Mestre Jesus Cristo.
Ela apresenta elementos curiosos, inclusive misturados com tra-
dições judaicas tardias e pensamentos que fogem muito do que
costumeiramente se costuma ver no cristianismo e no Novo Tes-
tamento.
O conjunto formado pela Carta aos Hebreus e pelas Cartas
Católicas é de notável importância para compor um quadro míni-
mo de compreensão do Novo Testamento e das origens do cris-
tianismo. O Corpus Paulinum é o local onde se encontram os mais
antigos testemunhos a respeito de Jesus Cristo e de sua obra salva-
dora. Mas essas cartas aqui analisadas deixam à mostra as outras
tendências que havia no cristianismo original.
As possibilidades de compreensão do fenômeno cristão ten-
dem a aumentar com a leitura e o estudo de Hebreus e das Cartas
Católicas. É conveniente a sua leitura sistemática, acompanhada
de um indicador temático, como o que aqui apresentamos, ou um
comentário teológico.

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© Caderno de Referência de Conteúdo 29

O cristianismo não pôde restringir-se nem à proposta de


Paulo nem à proposta de outras correntes mais abertas ou mais
fechadas. Ele é a adesão a Jesus Cristo, morto e ressuscitado. As
consequências éticas que daí derivam são parte da herança teoló-
gica e literária que encontramos nas cartas em questão.
Para concluir essa pequena introdução à Carta aos Hebreus e
às Cartas Católicas, afirmamos que o conhecimento desses textos,
em um processo de fé e de adesão ao Mistério de Jesus Cristo, é
um passo importante e que deve ser seriamente considerado no
conjunto dos estudos teológicos. A devida importância ao estudo
dos Evangelhos, de Atos dos Apóstolos e das Cartas de Paulo, bem
como do Apocalipse, não pode marginalizar a Carta aos Hebreus
e as Cartas Católicas. Elas são parte da história do cristianismo e
compõem a compreensão de Deus dos primeiros pais na fé e no
seguimento do Senhor.

Glossário de Conceitos
Este glossário permite a você uma consulta rápida e preci-
sa das definições conceituais, possibilitando-lhe um bom domínio
dos termos técnico-científicos utilizados na área de conhecimento
dos temas tratados na disciplina Carta aos Hebreus e Católicas.
Veja, a seguir, a definição dos principais conceitos desta dis-
ciplina:
1) Comunidades/Igrejas primitivas: foram os primeiros
grupos, relativamente organizados, de discípulos de Je-
sus e de discípulos dos discípulos de Jesus. Não havia, no
início, a consciência de que eles estavam formando ou-
tro grupo, mas isto foi se formando aos poucos. Na Carta
aos Hebreus e nas Cartas Católicas, vemos uma espécie
de transição: de grupos ligados ao judaísmo, passa-se a
grupos centrados em Jesus Cristo, em sua Pessoa e em
sua Missão. Alguns textos apresentam uma consciência
grande de um novo caminho, distinto do judaísmo. Ou-
tros textos estão muito dependentes do judaísmo e de
suas estruturas. Isto indica que as obras analisadas nesse
30 © Cartas aos Hebreus e Católicas

estudo estão no período da transição entre as comuni-


dades cristãs marcadas pelo judaísmo e as comunidades
distintas deles.
2) Corpus Paulinum: é o conjunto dos textos de autoria ou
atribuídos ao apóstolo Paulo. Isto já foi estudado na dis-
ciplina Atos dos Apóstolos e Cartas Paulinas.
3) Epístola e carta: usamos essas duas palavras como sinô-
nimas e dependentes uma da outra. Também no caso
das cartas em questão, falamos ora “carta” aos Hebreus,
ora “epístola” aos Hebreus. O uso é, na prática, indife-
rente, mas pode ser melhor precisado, especialmente,
por um motivo metodológico: a índole do escrito. Por
“carta”, entende-se uma composição mais espontânea,
coloquial, sem grandes preocupações com o estilo ou
mesmo com o conteúdo. É um escrito de momento, de
situação concreta, não preparado ou pensado longa-
mente. Encontra-se no Dicionário Houaiss entre as defi-
nições para “epístola”: “composição poética em verso ou
prosa de temática variada, composta em feitio de carta”
(s/d). Já entre as definições para “carta”: “mensagem,
manuscrita ou impressa, a uma pessoa ou a uma orga-
nização, para comunicar-lhe algo” (s/d). Pode-se intuir
que as expressões não são, como muitas vezes se suge-
re, equivalentes. Elas são complementares.
4) Evento Jesus Cristo e Comunidades/Igrejas primitivas:
Embora a expressão “Evento Jesus Cristo” não apareça
com muita frequência nesse estudo, ele está presen-
te em todo momento. Por Evento, entende-se um fato
que aconteceu no passado e definiu a história seguinte,
mantendo suas marcas em todo o tempo e sendo ainda
vivamente sentido e proposto. O Evento Jesus Cristo é o
anúncio de sua Encarnação, da pregação do Evangelho e
da Ressurreição. É sobre esses pontos que os escritos do
Novo Testamento são apresentados aos seus leitores.
5) Homilia: pregação em estilo familiar que busca explicar
um tema ou texto evangélico. Tais definições são apenas
fundamentais, não decisivas do ponto de vista neotesta-
mentário e teológico.

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© Caderno de Referência de Conteúdo 31

6) Dispersão: diz-se, também, “diáspora”. Trata-se do con-


junto de fiéis judeus que deixaram a terra da Palestina
em função das perseguições e dificuldades do período
grego de dominação. No caso em questão − a palavra
aparecendo em um escrito cristão − quer significar os
discípulos de Jesus, que, assim como os antigos judeus,
estão espalhados pelo mundo de então. Esses discípulos
podem também ser identificados como judeu-cristãos.
7) Encíclica: é uma carta-circular, um documento feito com
um tema, isto é, um argumento central de importância
comum a muitas ou a todas as Igrejas, e que apresen-
ta uma proposta ou uma série de princípios que devem
ser observados ou valorizados. As encíclicas ou as car-
tas encíclicas, como também são chamadas, são um dos
modos de comunicação do Magistério do Papa para com
toda a Igreja.
8) Hapax legomena: são palavras ou expressões que apa-
recem uma única vez em um texto bíblico. Podem, tam-
bém, ser únicos em todo o texto bíblico. Os hapax lego-
mena dão muito a entender a respeito da redação de
um texto, de suas influências, suas dependências e suas
independências.
9) Eulogia: significa “palavra boa”. O sentido é o de uma
bênção, um elogio, uma boa notícia ou uma ação de gra-
ças.
10) Homilia: é um discurso de exortação, de instrução, de
ânimo, dito em ambiente litúrgico. Atualmente, a homi-
lia acontece em praticamente todas as celebrações litúr-
gicas, em especial, nos sacramentos. Na Antiguidade,
as homilias eram momentos de intensa catequese, nas
quais os famosos pregadores apresentavam sua inter-
pretação da Escritura, bem como a doutrina que os fiéis
deveriam seguir.
11) Neófito: são os recém-batizados, os que há pouco fo-
ram introduzidos no Mistério de Jesus Cristo. Quando a
pessoa está se preparando para o Batismo, ela é um ca-
tecúmeno. Quando esta já foi batizada, passa a ser um
neófito. Essa condição não tem tempo determinado de
duração.
32 © Cartas aos Hebreus e Católicas

12) Parenética/Parênese: é uma exortação moral ou, tam-


bém, uma defesa de princípios, o que pode seguir a ideia
de apologia. Exortações parenéticas são, portanto, exor-
tações de índole moral, ética.
13) Perícope: trecho da Escritura tanto do Antigo quanto
do Novo Testamento, com início, meio e fim e com ar-
gumentação coerente.Gnosticismo: é uma doutrina de
índole filosófica que se caracteriza pela compreensão,
pelo conhecimento da natureza, da história e, especial-
mente, do homem. O Evangelho segundo João teve di-
ficuldades em ser aceito pelas Igrejas em razão das co-
notações gnósticas que apresentava. Na realidade, João
deseja combater esta doutrina que identificava o conhe-
cimento como o passo mais importante do ser humano.
No gnosticismo, é o conhecimento que salva. Para obtê-
lo, é necessário ser iniciado, apresentado a segredos e
adquirir uma realidade nova de vida

Esquema dos Conceitos-chave


Para que você tenha uma visão geral dos conceitos mais im-
portantes deste estudo, apresentamos, a seguir (Figura 1), um Es-
quema dos Conceitos-chave da disciplina. O mais aconselhável é
que você mesmo faça o seu esquema ou, até mesmo, seu mapa
mental. Esse exercício é uma forma construir seu conhecimento,
ressignificando as informações com base em suas próprias percep-
ções.
É importante ressaltar que o propósito desse Esquema dos
Conceitos-chave é representar, de maneira gráfica, as relações en-
tre os conceitos por meio de palavras-chave, partindo dos mais
complexos para os mais simples. Esse recurso pode auxiliar você
na ordenação e na sequenciação hierarquizada dos conteúdos de
ensino.
Com base na teoria de aprendizagem significativa, entende-
-se que, por meio da organização das ideias e dos princípios em
esquemas e mapas mentais, o indivíduo pode construir seu conhe-

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© Caderno de Referência de Conteúdo 33

cimento de maneira mais produtiva e, assim, obter ganhos peda-


gógicos significativos em seu processo de ensino e aprendizagem.
Aplicado a diversas áreas do ensino e da aprendizagem es-
colar, tais como planejamentos de currículo, sistemas e pesquisas
em Educação, o Esquema dos Conceitos-chave baseia-se, ainda, na
ideia fundamental da Psicologia Cognitiva de Ausubel, que estabe-
lece que a aprendizagem ocorre pela assimilação de novos concei-
tos e de proposições na estrutura cognitiva do aluno. Assim, novas
ideias e informações são aprendidas, uma vez que existem pontos
de ancoragem.
Tem-se de destacar que “aprendizagem” não significa, ape-
nas, realizar acréscimos na estrutura cognitiva do aluno; é preci-
so, sobretudo, estabelecer modificações para que ela se configure
como uma aprendizagem significativa. Para tanto, é importante
considerar as entradas de conhecimento e organizar bem os mate-
riais de aprendizagem. Além disso, as novas ideias e os novos con-
ceitos devem ser potencialmente significativos para o aluno, uma
vez que, ao fixar esses conceitos em suas já existentes estruturas
cognitivas, outros serão também relembrados.
Nessa perspectiva, partindo-se do pressuposto de que é
você o principal agente da construção do próprio conhecimento,
por meio de sua predisposição afetiva e de suas motivações in-
ternas e externas, o Esquema dos Conceitos-chave tem por ob-
jetivo tornar significativa a sua aprendizagem, transformando o
seu conhecimento sistematizado em conteúdo curricular, ou seja,
estabelecendo uma relação entre aquilo que você acabou de co-
nhecer com o que já fazia parte do seu conhecimento de mundo
(adaptado do site disponível em: <http://penta2.ufrgs.br/eduto-
ols/mapasconceituais/utilizamapasconceituais.html>. Acesso em:
11 mar. 2010).
34 © Cartas aos Hebreus e Católicas

TEOLOGIA BÍBLICA NOVO


TESTAMENTO
Compreensão do JESUS
Texto. Atualização. CRISTO
Aplicação ética, etc.
NOVO
TESTAMENTO

Textos Narrativos
Evangelhos Sinóticos
Evangelhos segundo João
Atos dos Apóstolos

Epístolas Paulinas
Textos Epistolares Corpus Paulinum
(Cartas)
Carta aos Hebreus
Cartas Católicas
Apocalipse

Hebreus
Literatura
Estrutura Tiago

Teologia 1 e 2 Pedro
Perspectivas
1, 2 e 3 João
éticas
Judas
Figura 1 Esquema dos Conceitos-chave da disciplina Carta aos Hebreus e Católicas.

Como você pode observar, esse Esquema dá a você, como


dissemos anteriormente, uma visão geral dos conceitos mais im-
portantes desse estudo. Ao segui-lo, você poderá transitar entre
um e outro conceito desta disciplina e descobrir o caminho para
construir o seu processo de ensino-aprendizagem.
O sentido é este: a Teologia Bíblica, que é parte da ciência
Teologia, está dividida em dois pontos principais (há outros, mas
não os veremos nesta disciplina): Antigo Testamento e Novo Tes-
tamento. Ambos têm Jesus Cristo como centro, direção ou fun-

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© Caderno de Referência de Conteúdo 35

damento. O Antigo Testamento aponta para alguém especial, que


deveria dar sentido a tudo, e o Novo Testamento é o testemunho
escrito de quem viveu ou experimentou esse alguém especial, que
se crê e confessa ter sido Jesus. Para a compreensão da mensagem
de Jesus Cristo ou sobre Jesus Cristo, temos, no Novo Testamento,
os textos narrativos, os textos epistolares e os textos apocalípticos.
O que nos interessa neste estudo são os textos epistolares. Eles
são divididos em Corpus Paulinum, ou o conjunto dos escritos de
Paulo ou atribuídos a ele e as outras cartas. Elas são chamadas de
“Cartas Católicas”. São as Cartas aos Hebreus, de Tiago, duas de
Pedro, três de João e uma de Judas. O estudo delas está em função
de compreender a seu respeito os seguintes aspectos: Literatura,
Estrutura, Teologia e Perspectivas éticas.
O Esquema dos Conceitos-chave é mais um dos recursos de
aprendizagem que vem se somar àqueles disponíveis no ambien-
te virtual, por meio de suas ferramentas interativas, bem como
àqueles relacionados às atividades didático-pedagógicas realiza-
das presencialmente no polo. Lembre-se de que você, aluno EAD,
deve valer-se da sua autonomia na construção de seu próprio co-
nhecimento.

Questões Autoavaliativas
No final de cada unidade, você encontrará algumas questões
autoavaliativas sobre os conteúdos ali tratados, as quais podem
ser de múltipla escolha ou abertas com respostas objetivas ou dis-
sertativas. Vale ressaltar que se entendem as respostas objetivas
como as que se referem aos conteúdos matemáticos ou àqueles
que exigem uma resposta determinada, inalterada.
Responder, discutir e comentar essas questões, bem como
relacioná-la pode ser uma forma de você avaliar o seu conheci-
mento. Assim, mediante a resolução de questões pertinentes ao
assunto tratado, você estará se preparando para a avaliação final,
que será dissertativa. Além disso, essa é uma maneira privilegiada
36 © Cartas aos Hebreus e Católicas

de você testar seus conhecimentos e adquirir uma formação sólida


para a sua prática profissional.
Você encontrará, ainda, no final de cada unidade, um gabari-
to, que lhe permitirá conferir as suas respostas sobre as questões
autoavaliativas (as de múltipla escolha e as abertas objetivas).

As questões dissertativas obtêm por resposta uma interpretação


pessoal sobre o tema tratado. Por isso, não há nada relacionado a
elas no item Gabarito. Você pode comentar suas respostas com o
seu tutor ou com seus colegas de turma.

Bibliografia Básica
É fundamental que você use a Bibliografia Básica em seus es-
tudos, mas não se prenda só a ela. Consulte, também, as bibliogra-
fias apresentadas no Plano de Ensino e no item Orientações para o
estudo da unidade.

Figuras (ilustrações, quadros...)


Neste material instrucional, as ilustrações fazem parte inte-
grante dos conteúdos, ou seja, elas não são meramente ilustrativas,
pois esquematizam e resumem conteúdos explicitados no texto.
Não deixe de observar a relação dessas figuras com os conteúdos
da disciplina, pois relacionar aquilo que está no campo visual com
o conceitual faz parte de uma boa formação intelectual.

Dicas (motivacionais)
O estudo desta disciplina convida você a olhar, de forma
mais apurada, a Educação como processo de emancipação do ser
humano. É importante que você se atente às explicações teóricas,
práticas e científicas que estão presentes nos meios de comunica-
ção, bem como partilhe suas descobertas com seus colegas, pois,
ao compartilhar com outras pessoas aquilo que você observa, per-
mite-se descobrir algo que ainda não se conhece, aprendendo a

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© Caderno de Referência de Conteúdo 37

ver e a notar o que não havia sido percebido antes. Observar é,


portanto, uma capacidade que nos impele à maturidade.
Você, como aluno do curso de Bacharelado em Teologia na
modalidade EAD e futuro profissional da educação, necessita de
uma formação conceitual sólida e consistente. Para isso, você con-
tará com a ajuda do tutor a distância, do tutor presencial e, sobre-
tudo, da interação com seus colegas. Sugerimos, pois, que organi-
ze bem o seu tempo e realize as atividades nas datas estipuladas.
É importante, ainda, que você anote as suas reflexões em
seu caderno ou no Bloco de Anotações, pois, no futuro, elas pode-
rão ser utilizadas na elaboração de sua monografia ou de produ-
ções científicas.
Leia os livros da bibliografia indicada, para que você amplie
seus horizontes teóricos. Coteje-os com o material didático, discu-
ta a unidade com seus colegas e com o tutor e assista às videoau-
las.
No final de cada unidade, você encontrará algumas questões
autoavaliativas, que são importantes para a sua análise sobre os
conteúdos desenvolvidos e para saber se estes foram significativos
para sua formação. Indague, reflita, conteste e construa resenhas,
pois esses procedimentos serão importantes para o seu amadure-
cimento intelectual.
Lembre-se de que o segredo do sucesso em um curso na
modalidade a distância é participar, ou seja, interagir, procurando
sempre cooperar e colaborar com seus colegas e tutores.
Caso precise de auxílio sobre algum assunto relacionado a
esta disciplina, entre em contato com seu tutor. Ele estará pronto
para ajudar você.
EAD
Cartas Católicas
e Novo Testamento

1. OBJETIVOS
• Compreender a situação do cânon do Novo Testamento e
a sua importância no conjunto da Escritura cristã.
• Considerar os critérios de inspiração e de canonicidade
para o entendimento da formação do cânon neotesta-
mentário.
• Compreender e estudar os momentos histórico, religio-
so e social da redação da Carta aos Hebreus e das Cartas
Católicas.
• Conhecer e introduzir o estudo da Carta aos Hebreus e
das Cartas Católicas, pontuando sua oportunidade e sua
necessidade.
40 © Cartas aos Hebreus e Católicas

2. CONTEÚDOS
• Conceitos fundamentais de inspiração e canonicidade.
• Situação da Igreja na gênese das Cartas Católicas.
• Correntes teológicas.
• Heranças diversas na origem da Carta aos Hebreus e das
Cartas Católicas.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) O tema da identificação das cartas ou epístolas é muito
interessante. Depois de lê-las, sugerimos que você faça,
por sua conta, uma identificação dos padrões literários
delas, determinando alguns aspectos presentes nesses
escritos e acrescentando a esse pequeno conjunto ou-
tras configurações que lhe pareçam adequadas.
2) Sugerimos, também, que você faça uma pesquisa na
própria Bíblia, usando um recurso que normalmente
está presente em quase todas as suas edições. Geral-
mente, no final do volume da Bíblia, está colocado o
chamado “vocabulário bíblico”, “índice temático” ou ou-
tros nomes que sugiram uma relação de termos bíblicos
e suas explicações. Nessa lista, pesquise tais vocábulos e
expressões: "carta", "epístola", "judaísmo", "mesa" (ou
"sentar-se à mesa") e “Nova Aliança".
3) Uma obra de fôlego a respeito do cristianismo que pode
ser oportunamente consultada é: CROSSAN, J. D. O nas-
cimento do cristianismo: o que aconteceu nos anos que
se seguiram à execução de Jesus. São Paulo: Paulinas,
2004.
4) Você pode consultar um interessante comentário sobre a
formação do cânon do Novo Testamento, em especial no
que diz respeito às cartas. Ele encontra-se em: DUPONT-
ROC, R. O texto do Novo Testamento. In: MARGUERAT,

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© Cartas Católicas e Novo Testamento 41

D. Novo Testamento: história, escritura e teologia. São


Paulo: Loyola, 2009, p. 607-634.
5) Uma obra muito interessante que aborda os assuntos
tratados nesta unidade é: DUNN, J. D. G. Unidade e di-
versidade no Novo Testamento: um estudo das carac-
terísticas dos primórdios do cristianismo. Santo André:
Academia Cristã, 2009.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
A disciplina que se inicia tem como objeto de análise uma
parte significativa dos livros do Novo Testamento. Referimo-nos à
Carta aos Hebreus e às Cartas Católicas.
O título “Carta aos Hebreus” é tradicional e consta dos ma-
nuscritos antigos. Tal escrito é assim conhecido e, durante muito
tempo, fora atribuído ao apóstolo Paulo. Hoje não há mais essa
atribuição. Sua posição no cânon do Novo Testamento é particular,
pois, não sendo paulina, também não pertence à categoria das Car-
tas Católicas, embora seja frequentemente analisada com elas.
A bastante comum expressão “Cartas Católicas" evidencia o
destinatário dos textos que estão sob essa denominação. O termo
“católico" significa "universal", “amplo”, “para o mundo” ou “do
mundo”, sendo esse mundo o espaço geográfico ou humano (sem
a conotação negativa de contraposição a "espírito"). Alguns dizem
"Cartas Universais" para não usar a palavra “católicas”, pois isto dá
a entender que os escritos são de posse ou uso de uma confissão
cristã − no caso, a Igreja Católica de Rito Latino. Esta não parece
ser a melhor solução; por isso, aqui usaremos a expressão consa-
grada “Cartas Católicas”.
É comum, como já notamos anteriormente, que a Carta aos
Hebreus seja analisada com o grupo das Cartas Católicas. É o que
faremos no presente estudo.
42 © Cartas aos Hebreus e Católicas

A Carta aos Hebreus e as Cartas Católicas ocupam espaço


significativo no cânon do Novo Testamento. Este, por sua vez, é
composto por 27 livros, estes podendo ser divididos da seguinte
maneira:
Textos narrativos
Evangelho segundo Mateus
Evangelho segundo Marcos
Evangelho segundo Lucas
Evangelho segundo João
Atos dos Apóstolos

Cartas ou Epístolas
Corpus Paulinum (13 cartas)
Carta aos Romanos
Carta 1 aos Coríntios
Carta 2 aos Coríntios
Carta aos Gálatas
Carta aos Efésios
Carta aos Filipenses
Carta aos Colossenses
Carta 1 aos Tessalonicenses
Carta 2 aos Tessalonicenses
Carta a Filêmon
Carta 1 a Timóteo
Carta 2 a Timóteo
Carta a Tito
Carta aos Hebreus (uma carta)
Cartas Católicas (sete cartas)
Carta de Tiago
Carta 1 de Pedro
Carta 2 de Pedro
Carta 1 de João
Carta 2 de João
Carta 3 de João
Carta de Judas
Livro apocalíptico

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© Cartas Católicas e Novo Testamento 43

Apocalipse
Dos livros que compõem o Novo Testamento, 21 são cartas
ou epístolas. Destas, 13 são de autoria paulina ou atribuída a Pau-
lo. Os outros oito livros são parte importante do cânon neotesta-
mentário.
Não é o caso de comparar, muito menos de medir, a impor-
tância do Corpus Paulinum, o conjunto das cartas paulinas, e das
Cartas aos Hebreus e Católicas. Cada grupo de escritos tem sua
importância e aponta para situações específicas. Cabe aos leito-
res, de todos os tempos e de todos ambientes, compreender sua
mensagem e saber extrair dos escritos o que de melhor eles ofe-
recem.
A respeito dessas afirmações, é notável que as Cartas Ca-
tólicas não sejam muito evidentes no dia a dia de uso da Bíblia.
Os motivos são vários, tais como: o desconhecimento das mesmas
cartas, a proeminência da mensagem de Paulo sobre os outros es-
critos epistolares, a atualidade ou a praticidade das cartas paulinas
etc.

ATENÇÃO!
O modo e a sequência dos livros do Novo Testamento não são os
mesmos em todas as edições da Bíblia, especialmente se consi-
derarmos as edições mais antigas. Sugerimos, portanto, que você
pesquise em bibliotecas algumas edições antigas e veja como o
cânon é organizado.

5. AS CARTAS CATÓLICAS E O NOVO TESTAMENTO


Jesus Cristo é o centro do Novo Testamento. Este é a expres-
são de fé em Jesus, em sua Pessoa e em sua Missão. É o testemu-
nho (em grego, martiria) dos primeiros seguidores de Jesus e de
seus discípulos de segunda e terceira gerações. Conforme afirmou
o Concílio Ecumênico Vaticano II no importante documento sobre
a Revelação Divina Dei Verbum:
44 © Cartas aos Hebreus e Católicas

O cânon do Novo Testamento contém igualmente além dos quatro


Evangelhos, as Epístolas de S. Paulo e outros escritos apostólicos
redigidos por inspiração do Espírito Santo, com os quais, segundo o
plano da sabedoria divina, é confirmado o que diz respeito a Cristo
Senhor, é explicada mais e mais a sua genuína doutrina, é pregada a
virtude salvadora da obra divina de Cristo, são narrados os começos
da Igreja e a sua admirável difusão, e é anunciada a sua consuma-
ção gloriosa.

Como visto anteriormente, os livros do Novo Testamento po-


dem ser divididos em três seções ou classes: textos narrativos, tex-
tos epistolares e Apocalipse. Tais escritos compõem um conjunto
rico de imagens, de relatos de fatos e de apresentações de pessoas
que se entrelaçam, completam-se, acrescentam e até demonstram
diferenças interessantes nos modos de ver, sentir e propor a fé.
Quando nos referimos a essas classificações, não queremos
abordar o gênero literário, que é outro aspecto importante dos
textos. Essa questão da nomenclatura de tais gêneros encontra
certas dificuldades nos estudos bíblicos. Fazemos essa divisão
em razão da praticidade e enfocando o fundamental dos textos: a
identificação de algo como sua "roupagem final". Segundo a classi-
ficação apresentada, os textos narrativos englobam os evangelhos.
Um evangelho é um gênero literário composto de muitos outros
gêneros literários. Uma carta ou epístola pode ter um texto descri-
tivo, uma narração ou um poema. Estes, por sua vez, são gêneros
literários. Portanto, o desejo aqui é demonstrar a índole dos gru-
pos de texto e a sua articulação interna com os textos semelhan-
tes, bem como o significado e a importância externa na força de
seu anúncio.

Textos narrativos
Por textos narrativos, entendem-se aqueles que têm uma
sequência de histórias e fatos para descrever e de pessoas para
apresentar. Há um enredo, uma trama, um desenvolvimento.
Contudo, um texto narrativo não é, fundamentalmente, um
texto biográfico. Os evangelhos não são − nem nunca foram − bio-

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© Cartas Católicas e Novo Testamento 45

grafias de Jesus. Da mesma forma, o livro Atos dos Apóstolos não


é uma descrição jornalística, um diário da Igreja primitiva, um re-
gistro de fatos e de pessoas.
Um texto narrativo basicamente é, na complexidade de
gêneros que apresenta e em que é formado, uma declaração de
intenções, uma apresentação teológica, uma história em que as
evidências não são os personagens, mas, sim, as intervenções de
Deus na história.
No Novo Testamento, os textos narrativos estão presentes
nos quatro evangelhos e no livro Atos dos Apóstolos. Encontram-
-se, nesses livros, diversos gêneros textuais: genealogia, anúncio,
relatos de milagres e de sinais, poesias, teofanias, testemunhos da
paixão e de encontros com O Ressuscitado etc. Todos esses tipos
de escritos servem ao livro e formam um tecido narrativo de ex-
pressões múltiplas.
Esse modo de apresentar os argumentos surgiu da neces-
sidade em deixar claro o que aconteceu no passado, envolvendo
pessoas e circunstâncias já longes no tempo. Pode-se dizer que os
textos narrativos aparecem em razão da necessidade de aproximar
as novas gerações dos eventos originais, dos personagens que for-
maram os primeiros passos da experiência que agora todos vivem.
Em outras palavras, tais textos "nascem" quando os testemunhos
originais estão “morrendo”.
É significativo o fato de que os evangelhos e o livro Atos dos
Apóstolos foram escritos após a maioria das cartas paulinas. Se-
guramente, eles foram escritos após as cartas protopaulinas. Es-
sas cartas paulinas e, até mesmo, as deuteropaulinas não se pre-
ocupam com a grande maioria das argumentações presentes nos
evangelhos e em Atos dos Apóstolos. Os motivos ou as intenções
que levaram à redação do chamado “Corpus Paulinum” não são os
mesmos que levaram à escrita dos evangelhos. As diferenças são
ditadas pelas situações históricas concretas que envolviam seus
autores, bem como as comunidades originais que as recebiam e
46 © Cartas aos Hebreus e Católicas

aqueles que, eventualmente, as partilhavam. Diferenças podem


ser encontradas, inclusive nos próprios textos narrativos, quando
comparados internamente.
Vejamos o evangelho de redação mais seguramente antiga:
o de Marcos. Neste, não se encontra um relato de anunciação nem
uma descrição de fatos surpreendentes relativos a Jesus, seja jo-
vem, seja criança. A entrada em cena de Jesus é, praticamente,
abrupta: Ele vem de Nazaré da Galiléia e é batizado por João Batis-
ta no Rio Jordão (Mc 1,9); é assim descrito, sem uma contextuali-
zação prévia. Se há algo como uma contextualização, esta é relati-
va a João Batista, fato que vem ao encontro do projeto literário do
Evangelho de Marcos: a declaração do profetismo de Jesus, herda-
do de João Batista − sinal da maturidade dos tempos messiânicos.
Já no Evangelho segundo Mateus, encontramos algo diferen-
te: a identidade judaica de Jesus é intensamente declarada. Ele
está inserido na história de Israel desde os mais longínquos tem-
pos patriarcais (Mt 1,1-2) até um digno e justo descendente de
Davi (Mt 1,16). Ele é anunciado ao justo José (Mt 1,18-25) e nasce
em Belém da Judéia, cumprindo, assim, as expectativas judaicas
(Mt 2,1). Deve ir ao Egito, refazendo o caminho dos antigos pa-
triarcas que para lá desceram (Mt 2,12-15) e depois retornar à Ter-
ra Prometida − assim como o fez Moisés com o povo que saía da
escravidão (Mt 2,19-23) −, assumindo a humilde origem galilaica.
Vários são os sinais de maturidade na narrativa de Mateus quando
a comparamos à de Marcos. Também, o foco de atenção, ou seja,
os ouvintes originais imaginados em Mateus, são, conforme se ob-
serva pelas tradições do texto, os judeus.
Em Lucas, encontra-se, também, uma visão e uma descrição
das origens de Jesus, porém, sob outro foco narrativo e com ou-
tros personagens. As referências à Maria e à humanidade de Je-
sus inserem-no no ambiente amplo da humanidade. Ele é quem
dá sentido e rumo para o conjunto das culturas humanas, embora
esteja nas expectativas judaicas, fato esse que não passa desper-
cebido.

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© Cartas Católicas e Novo Testamento 47

Comparando-se os textos narrativos de Mateus e de Lucas


com aquele texto de Marcos, nota-se um crescendo no tecido nar-
rativo. As poucas indicações aqui apresentadas são, apenas, as mais
evidentes para termos de distinção. O próprio desenvolvimento da
narração é diferente: em Marcos, os episódios são mais individuais
e se sucedem rapidamente, isto é, são rápidos na descrição e nas
consequências. Já em Mateus e em Lucas, nota-se uma valoriza-
ção maior das pessoas e dos fatos e uma maior desenvoltura das
narrações.
Entretanto, se olharmos para João, veremos uma maturida-
de ainda maior. Nos últimos anos do século 1º, as dúvidas e os
erros a respeito da Pessoa de Jesus já apareceram e deram traba-
lho aos discípulos dos discípulos de Jesus. É necessário declarar a
identidade divina de Jesus com mais intensidade, com a profundi-
dade que lhe é devida. Então, tem-se o magnífico prólogo de João,
que não se limita às origens judaicas ou humanas de Jesus, mas o
relaciona com o Verbo, a Palavra Eterna do Pai, apresentando-o
como o Eterno Filho.
Essas diferenças, aqui, apenas esboçadas, vão deixando à
mostra os tempos diversos dos escritos e os argumentos que eram
apresentados aos leitores originais. Era necessário contar as histó-
rias que poderiam ser esquecidas, pois os testemunhos oculares
estavam desaparendo. Dessa maneira é que surgiram os textos
narrativos.

Textos epistolares
As cartas não nascem da necessidade de expor a história.
Quem a vivenciou está próximo, acompanha a comunidade e pode
contar como foram os fatos e como eram as pessoas. Elas devem
orientar as comunidades e as pessoas singulares em função de
suas escolhas, de suas ações e do modo de se organizarem. Tais
cartas não são, em sua grande maioria, uma literatura pensada,
bem elaborada. São esporádicas, sem muitos esquemas preesta-
belecidos, exceto aqueles próprios do gênero epistolar.
48 © Cartas aos Hebreus e Católicas

Mas não é por essa aparente simplicidade que as cartas dei-


xam de expressar as circunstâncias eclesiais e os pensamentos
teológicos à época. De fato, as cartas mostram por meio de seus
argumentos as tendências, as tensões e, até mesmo, as divergên-
cias que havia nas comunidades primitivas e nos grupos que se
reuniam em torno às ideias de Jesus e de seu seguimento.
Podemos identificar as cartas sob os seguintes aspectos:
1) Comunicação de princípios ou de experiências funda-
mentais de um personagem para uma pessoa ou uma
comunidade que, com este, tem alguma forma de rela-
cionamento.
2) Apresentação de argumentos doutrinais ou parenéticos
de um autor para uma pessoa ou um grupo de pessoas.
3) Comunicação afetiva de um personagem ao seu grupo
de origem ou a um grupo que com ele mantém depen-
dência ou deveria manter.
4) Informações ou exposições mais ou menos organizadas
de elementos teológicos ou de aspectos históricos de di-
versas índoles.

Cartas ou epístolas?
Há alguma dificuldade no uso dos termos "cartas" ou "epís-
tolas". Na liturgia latina pré-conciliar, havia o uso muito difundido
da palavra "epístola". O uso hodierno agora está em “carta”. O que
se pode perguntar é: essas obras são, efetivamente, "cartas" ou
"epístolas"?
Façamos a distinção que parece ser a mais adequada. Em-
bora as palavras “carta” e “epístola” possam ser equivalentes, elas
denotam realidades diferentes. A carta é um escrito de índole in-
formativa; é indicativa de fatos e transmissora de impressões. Ela
não consta de um plano literário elaborado, mas corresponde às
necessidades do momento de quem escreve.
Uma epístola, por sua vez, é uma obra escrita sob um plano
literário, que possui uma argumentação central e que visa a uma

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© Cartas Católicas e Novo Testamento 49

construção conceitual específica, sendo que esta pode ser a trans-


missão de experiências, de expectativas, de propostas etc. Sob
essa delimitação, podemos dizer que o texto chamado “Romanos"
é uma epístola, pois ele segue esse esquema-estilo.
Então, todos os outros escritos do Novo Testamento que pos-
suem a mesma índole estão mais para cartas. Uma exceção pode
ser feita para as direcionadas aos Hebreus, que podem também
ser identificadas como epístolas, embora muitos autores as defi-
nam como “homilias”.
Portanto, posto tudo isto, ficamos com a seguinte prática:
chamaremos essas obras de “cartas” e usaremos, quando neces-
sário, o adjetivo "epistolar". Faremos isto com muita liberdade,
sabendo dos limites conceituais envolvidos, mas optando por ca-
minhar pela relativa simplificação de um tema que não é dos mais
importantes no conjunto.

6. SITUAÇÃO DA IGREJA DAS ORIGENS


Na gênese das Cartas Católicas
As décadas que sucederam o Evento Cristo foram tempos no-
táveis de experiência cristã e são a referência constante e fecunda
do ser e do viver no cristianismo. Logo após a Paixão, a Morte e a
Ressurreição de Jesus, iniciou-se, no círculo de discípulos, um mo-
vimento de testemunho e de afirmação da sua nova identidade.
Eles se identificavam com seu Mestre e Senhor e emocionavam-se
com o fato de tê-lo conhecido e seguido. Alguns o tocaram, o ouvi-
ram e foram ouvidos por Ele. O grupo dos apóstolos era privilegia-
do, pois viveu, cotidianamente, muito próximo a Ele.
Sua ausência súbita deixou em todos o desejo de torná-lo
conhecido entre aqueles que não o conheciam ainda. A partilha da
experiência com o Mestre reunia as comunidades. Aos poucos, os
discípulos mais destacados, isto é, os que foram nomeados após-
tolos, eram o centro das comunidades que se formavam para fa-
50 © Cartas aos Hebreus e Católicas

zer memória ao Senhor. O grupo dos discípulos ainda era minoria


absoluta no judaísmo, mas, aos poucos, ia se impondo e fazendo
notar sua opção.
O livro Atos dos Apóstolos tenta ser uma testemunha desse
tempo e desses personagens. Os apóstolos passaram a ter segui-
dores, e os grupos por eles formados foram caminhando à luz de
Jesus Cristo, partindo-se da experiência de alguém que o conheceu
e com Ele conviveu de alguma forma. Mas sempre há a referencia
às Escrituras judaicas. O grupo de discípulos que se ampliou aos
poucos é, ainda, um grupo fundamentalmente judaico, que vê em
Jesus o cumprimento das profecias e o sentido da esperança de
uma nova Israel. Nesse sentido, é significativa a questão levantada
pelos discípulos em Atos (1,6): “estando, pois, reunidos, eles assim
o interrogaram: ‘Senhor, é agora o tempo em que irás restaurar a
realeza em Israel?’”. A ideia do grupo, que, nos Atos dos Apóstolos,
é testemunhada por escrito, é de uma Israel renovada, com uma
realeza que vivencia a plenitude das promessas feitas aos pais, res-
tabelecida sobre as tribos e em meio às nações.
Os Atos dos Apóstolos, escritos após os Sinóticos e bem de-
pois das cartas paulinas, é um testemunho teológico do tempo
apostólico. Houve, necessariamente, uma elaboração histórica e
teológica para os fatos, os ditos e os personagens. Situações com-
plexas, que são, seguramente, frutos de diversos movimentos e de
várias interpretações dos ditos de Jesus, de Sua mensagem, trans-
mitida pelos seguidores e ao lado das Escrituras judaicas, foram
simplificadas e consignadas, de modo a fazer que tudo tivesse lógi-
ca e fosse facilmente compreendido por leitores que não viveram
naqueles tempos.
Um pequeno sinal disso tudo se encontra no episódio de
Estevão, descrito entre os capítulos 6-8 de Atos. Inicialmente, os
apóstolos, que não são claramente denominados, mas aparecem,
aqui, como um corpo coeso − o grupo dos Doze (vers. 2) −, convo-
cam a multidão, e não a Igreja, para solucionar a questão do ser-

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© Cartas Católicas e Novo Testamento 51

viço e da organização, bem como do anúncio da Palavra. Eles não


tinham mais tempo para esse anúncio na medida em que tinham
de organizar a "multidão" ou o serviço às mesas. Então, foram es-
colhidos sete homens de boa reputação, repletos do Espírito e de
sabedoria, para que essa função do serviço às mesas fosse rea-
lizada (vers. 3-5). Depois de escolhidos e nomeados (vers. 5), os
apóstolos impuseram a eles as mãos (vers. 6). Têm-se, então, os
diáconos, que, decididamente, não são os que hoje a Igreja enten-
de por diáconos.

Nas Igrejas, sejam elas de ritos orientais, sejam de ritos ocidentais,


há o Ministério do Diaconato. Na Igreja de Rito Latino ou Igreja
Católica, o Ministério do Diaconato está fundamentalmente rela-
cionado à liturgia. Nos tempos apostólicos, esse ministério era em
função da organização das comunidades, o serviço de formação
e de assistência. Assim, não é adequado fazer um paralelo entre
os diáconos do Novo Testamento e os diáconos dos tempos mo-
dernos.

Em seguida, aparece destacada a figura de Estevão, homem


decidido a fazer o caminho de Jesus Cristo e a dar testemunho
dele. O versículo sete afirma: “Estevão, cheio de graça e de poder,
operava prodígios e grandes sinais entre o povo”. Tal fato é curioso,
pois ele deveria "servir às mesas"; ora, foi para isto que havia sido
escolhido como diácono. Mas lá estava ele, disposto a anunciar o
Evangelho de Jesus. Por conta de seu ímpeto e de sua decisão, foi
logo preso na perseguição iniciada por judeus de diversas origens.
Curiosamente, são oriundos dos locais citados na manhã de Pen-
tecostes. Agora, são opostos a Estevão.
Sua defesa foi brilhante e decisiva, fato que não o livrou da
condenação. A sentença foi de morte; como um fim, foi emocio-
nante, com a presença, vista por ele, de Jesus em glória (At 7,56).
Assim, Estevão dá o testemunho de Jesus Cristo. Mas atentemos
para isto: Estevão não é do grupo apostólico! É um diácono, um
discípulo dos apóstolos, dependente de seu testemunho. Não foi
52 © Cartas aos Hebreus e Católicas

um deles que foi martirizado e deu o testemunho com a vida, foi


um "menor" do que eles.
Seguramente, isto gerou uma espécie de crise interna. O tex-
to de Atos dos Apóstolos simplifica tudo com uma sequência narra-
tiva que une momentos e circunstâncias bem diversos. No sétimo
capítulo, versículo 60, conclui-se o martírio de Estevão: “depois,
caindo de joelhos, gritou em voz alta: ‘Senhor, não lhes leve em
conta este pecado’”. E, dizendo isto, adormeceu. Em seguida, tem-
se a menção a Paulo, ainda chamado Saulo: “ora, Saulo estava de
acordo com a sua execução” (At 8,1a).
Ainda no mesmo versículo, a sequência narrativa já estabe-
lece outro caminho: “naquele dia, desencadeou-se uma grande
perseguição contra a Igreja que estava em Jerusalém. Todos, com
exceção dos apóstolos, dispersaram-se pelas regiões da Judéia
e da Samaria” (vers. 1). Parece que, para resgatar a situação, os
apóstolos agora ficam em Jerusalém, prontos para o testemunho
que Estêvão já dera. Mas o que primeiro enfrentou a dificuldade
do seguimento do Senhor foi um que não era dos Doze.
Isto deve refletir a situação da Igreja das origens, aquela de
Jerusalém. As atitudes ainda não estavam coordenadas. Parece
que a perseguição que se seguiu ao martírio de Estevão pegou
a todos de surpresa, deixando à mostra uma realidade inespera-
da: a hostilidade à mensagem do Evangelho. Esperava-se que Is-
rael aceitasse Jesus Cristo como seu Senhor. Eles, os apóstolos e
os seguidores das primeiras horas, eram as testemunhas desse
novo tempo. Contudo, isto não aconteceu: Jerusalém não aceitou
a mensagem evangélica; as autoridades não souberam ver neles
uma esperança de futuro.
A perspectiva para um futuro entre os judeus, especialmente
em Jerusalém, não deveria ser muito estimulante. Também parece
que a capacidade de compreender os passos futuros da Igreja não
existia ainda, pois Pedro teve dificuldades em justificar-se perante
os cristãos de origem judaica quando da sua atitude em Jope, na
casa de Cornélio.

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© Cartas Católicas e Novo Testamento 53

Este é o tema do capítulo décimo de Atos: Pedro é chamado


para visitar um pagão, Cornélio. Ele entra em sua casa, toma con-
tato com ele e com outros pagãos e, por fim, se senta à mesa com
eles. Quando Pedro volta a Jerusalém, é questionado pelo grupo
dos apóstolos e irmãos (At 11,1) a respeito de sua conduta. Isto
não deixa de causar estranheza, pois, em Atos (1,8), lê-se: "mas
recebereis uma força, a do Espírito Santo que descerá sobre vós,
e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judéia e a
Samaria, e até os confins da terra". Quem fala é Jesus, quando da
despedida de seus discípulos. Olhando esses dois lugares de Atos,
o que se pode imaginar é que ser testemunha não implica, neces-
sária ou diretamente, fazer discípulos "até nos confins da terra".
Após esse episódio, no qual Pedro precisa justificar-se, tem-
-se a notícia da fundação da Igreja em Antioquia (At 11,19ss). Essa
Igreja síria será o centro irradiador do cristianismo, base de Pau-
lo e promotora do crescimento da comunidade. A Igreja mãe, em
Jerusalém, não parecia muito adaptada às mudanças necessárias
para a difusão do Evangelho. Após esse evento em Antioquia, o
personagem volta a ser Pedro: ele é preso e, milagrosamente, sol-
to. Após a sua libertação, ele desaparece da trama narrativa de
Atos dos Apóstolos, aparecendo, apenas, no capítulo 15, quando
da Assembleia de Jerusalém, na qual ele novamente enfrentará a
questão dos gentios e sua entrada na Igreja.
O que está em jogo não é, simplesmente, a entrada ou não
dos gentios na Igreja. Curiosamente, é algo que, no modo de ver
moderno, pode ser até mesquinho: o ato de um judeu sentar-se à
mesa com um pagão. Isto implicava o reconhecimento de igualda-
de em comunhão. Como aceitar tal fato em uma mentalidade na
qual o judeu é parte de uma raça eleita, escolhida para seguir o
Santo, que é o Deus de Israel?
Ser “santo”, na mentalidade bíblica, é ser separado, isto é,
distinto de outros, especialmente distinto ou diferente de outros
deuses. Ele é o único em Israel; por isso, também é o povo único
54 © Cartas aos Hebreus e Católicas

de Deus, o que implica a diferença de relacionamentos com a so-


ciedade e a natureza: modos de alimentar-se, de relacionar-se, de
vestir-se, de fazer o culto. Tudo o que marca um judeu e deixa à
mostra sua identidade de membro da Aliança.
Sentar-se à mesa com um pagão era, para um judeu, compor
um quadro de conivência impensável para quem desejava seguir
os mandamentos da Torá. Impensável, pois implicava entrar em
comunhão com os opressores, os romanos de língua grega e de
outros lugares e outras influências.
A Igreja já começava a encontrar dificuldades na compreen-
são de sua própria missão antes mesmo de sua própria identidade.
O povo da Nova Aliança, fundamentada em Jesus Cristo e na expe-
riência de seu seguimento, não precisava estar sob os costumes da
antiga Aliança. Esta tivera seu valor − e seguramente ainda tinha,
mas Jesus Cristo superava tudo isto. Nesse ponto, foi fundamental
a intervenção de Paulo.
Mas esta não era a corrente única no cristianismo nascente.
Serão, justamente, as Cartas Católicas que darão a conhecer que
havia outros modos de pensar e vivenciar a fé em Jesus Cristo.

7. CORRENTES TEOLÓGICAS: HERANÇAS DIVERSAS


As Cartas Católicas e a Carta aos Hebreus são expressões de
correntes teológicas diversas daquela expressa pelo Corpus Pauli-
num. Sobressaem os modos de pensar e de propor o cristianismo
como algo paralelo ao judaísmo ou, até mesmo, como uma parte
constitutiva dele. Talvez seja muito ingênuo, do ponto de vista exe-
gético e da teologia bíblica, afirmar que essas cartas são as heran-
ças dos apóstolos Pedro, Tiago e João. O início do cristianismo foi
complexo, assim como são complexos os movimentos humanos e
culturais. A clareza da mensagem cristã ainda não atingira sua ple-
nitude, e a unidade com o judaísmo era muito forte.

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© Cartas Católicas e Novo Testamento 55

Jesus Cristo foi um judeu; os apóstolos foram judeus; as pri-


meiras comunidades eram de origem judaica; e a argumentação
fundamental a respeito de Jesus e de seu Evangelho tinha como
pano de fundo as promessas cultivadas no judaísmo. É o apóstolo
Paulo quem dá passos decisivos para uma mudança substancial.
Ele é, apenas, um pregador, mas, seguramente, o maior pregador
de seu tempo: atuou na Ásia Menor, na Grécia e, em seguida, em
Roma. Seus escritos iam se difundindo e seu pensamento fazia
adeptos além dos limites das comunidades judaicas.
Contudo, o judaísmo continuou sendo tocado e questionado
pelo anúncio do Evangelho. As respostas que surgiam não vinham
de raciocínios ou considerações teológicas, muito menos filosófi-
cas. Elas nasciam da experiência concreta das comunidades e dos
indivíduos. Mesmo com as redes romanas de comunicação terres-
tre, havia os limites de espaço e tempo para a difusão das ideias.
Em muitos lugares, o judaísmo não via com bons olhos essa nova
corrente de pensamento, essa “seita” chamada “cristianismo”.
Em contrapartida, muitos grupos judaicos simpatizavam com
o Evangelho e desejavam fazer uma síntese. Aliás, não devemos
pensar que isto fosse um problema claro para os que o viviam. A
questão não era, como dissemos, puramente conceitual; era uma
questão de prática: como ser judeu e seguir novas determinações
que são frutos do seguimento de um judeu inspirado, sentenciado
em Jerusalém pelo poder romano e seguido por muitos, de diver-
sas orientações e de várias tendências? Haverá conflito? Será pos-
sível ser cristão e seguir a Torá?
Vemos as respostas a estas e a outras questões aparecendo
nas Cartas Católicas e na Carta aos Hebreus. Não são respostas
acadêmicas, mas práticas. Talvez, na Carta aos Hebreus, as solu-
ções, feitas em forma de propostas, são as mais claras e com o
maior nível de elaboração teológica. No geral, são respostas e pro-
postas nascidas da experiência concreta.
56 © Cartas aos Hebreus e Católicas

A leitura dessas cartas nos informará novos quadros concei-


tuais, novas impressões e, até mesmo, surpresas. É mais comum
servir-se do Corpus Paulinum para o conhecimento da proposta
cristã. A Carta aos Hebreus e as Cartas Católicas apresentarão ar-
gumentos interessantes e nos farão compreender − ou, pelo me-
nos, intuir − a complexidade do cristianismo original, do qual so-
mos herdeiros hoje.

8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Sugerimos, neste tópico, que você procure responder às
questões a seguir, que tratam da temática desenvolvida nesta uni-
dade, bem como que as discuta e as comente.
A autoavaliação pode ser uma ferramenta importante para
testar seu desempenho. Se encontrar dificuldades em responder
a essas questões, procure revisar os conteúdos estudados para
sanar suas dúvidas. Este é o momento ideal para você fazer uma
revisão do estudo desta unidade. Lembre-se de que, na Educação
a Distância, a construção do conhecimento ocorre de forma coo-
perativa e colaborativa. Portanto, compartilhe com seus colegas
de curso suas descobertas.
Confira, na sequência, as questões propostas para verificar
seu desempenho no estudo desta unidade:
1) Quais são as diferenças e semelhanças entre o Corpus
Paulinum e o grupo formado pela Carta aos Hebreus e
as Cartas Católicas?
2) Os textos narrativos evidenciam a história de índole te-
ológica. E os textos epistolares, apresentam o quê? Co-
mente sobre os dois gêneros de escrita presentes no
Novo Testamento.
3) Quais são as diferenças fundamentais entre as cartas e
as epístolas? Como podem ser chamados os textos atri-
buídos a Paulo e os textos analisados nesta disciplina?

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© Cartas Católicas e Novo Testamento 57

4) Lendo a história teológica apresentada nos evangelhos


e, sobretudo, no livro Atos dos Apóstolos, pode-se seguir
o desenvolvimento da Igreja primitiva e os seus primei-
ros desafios. Aponte alguns desses desafios ou proble-
mas que a Igreja das origens enfrentou.
5) No processo de formação do Novo Testamento, quais
textos foram produzidos primeiro? Por quê?
6) O Corpus Paulinum apresenta uma visão, ainda que não
organizada ou coerente, do ponto de vista dos argumen-
tos teológicos. De fato, as cartas de Paulo ou a ele atribu-
ídas eram ocasionais, não programadas, exceto a Carta
aos Romanos. Dentre as cartas chamadas “católicas”, há
pontos em comum ou cada uma enfoca um aspecto par-
ticular?
7) Descreva a tendência chamada "judaizante" presente
na Igreja das origens e, também, as diversas tendências
que despontam no grupo da Carta aos Hebreus e Cartas
Católicas.
8) Considerando os costumes judaicos e a tendência judai-
zante de parte da Igreja das origens, qual foi o grande
problema enfrentado pelos cristãos que, assim como
Paulo, estavam abertos à convivência com os pagãos
convertidos?
9) Como identificar o livro Atos dos Apóstolos em relação à
Igreja das origens e quais são suas intenções?
10) De modo geral, quais eram os interesses dos autores da
Carta aos Hebreus e das Cartas Católicas?

9. CONSIDERAÇÕES
O conjunto formado pela Carta aos Hebreus e pelas Cartas
Católicas é de notável importância para compor um quadro míni-
mo de compreensão do Novo Testamento e das origens do cris-
tianismo. O Corpus Paulinum é o local onde se encontram os mais
antigos testemunhos (martiria) a respeito de Jesus Cristo e de sua
obra salvadora. Mas essas cartas aqui analisadas deixam à mostra
as outras tendências existentes no cristianismo original.
58 © Cartas aos Hebreus e Católicas

As possibilidades de compreensão do fenômeno cristão ten-


dem a aumentar com a leitura e o estudo da Carta aos Hebreus e
das Cartas Católicas. Sua leitura sistemática é conveniente, acom-
panhada de um indicador temático, como aqui apresentamos.
O cristianismo não pôde restringir-se à proposta de Paulo
nem à proposta de outras correntes, sejam mais abertas, sejam
mais fechadas. O cristianismo é a adesão a Jesus Cristo, morto e
ressuscitado. As consequências éticas que daí derivam são parte
da herança literária que encontramos nas cartas em questão.
Na próxima unidade, conheceremos a Carta de Tiago. Então,
até lá!

10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


CROSSAN, J. D. O nascimento do cristianismo: o que aconteceu nos anos que se seguiram
à execução de Jesus. Tradução de Bárbara Theoto Lambert. São Paulo: Paulinas, 2004.
DUNN, J. D. G. Unidade e diversidade no Novo Testamento: um estudo das características
dos primórdios do cristianismo. Traduçao de José Roberto C. Cardoso. Santo André:
Academia Cristã, 2009.
DUPONT-ROC, R. O texto do Novo Testamento. In: MARGUERAT, D. (Org.). Novo
Testamento: história, escritura e teologia. Tradução de Margarida Oliva. São Paulo:
Loyola, 2009.

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EAD
Carta de Tiago

2
1. OBJETIVOS
• Conhecer e identificar os elementos fundamentais da
Carta de Tiago.
• Compreender e analisar as principais questões relativas
ao texto e, sobretudo, os problemas que lá aparecem,
como a datação e a contradição entre a Carta de Tiago e o
pensamento paulino.
• Apresentar e avaliar as diversas partes da Carta de Tiago
com comentários teológicos que podem ser ampliados
pelo estudo da bibliografia.

2. CONTEÚDOS
• Carta de Tiago.
• Data e lugar da composição e seus destinatários.
• Estrutura da Carta de Tiago.
• O texto da Carta de Tiago.
60 © Cartas aos Hebreus e Católicas

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


1) Para que você possa se contextualizar com o tema, é ne-
cessário ler a Carta de Tiago. Sem a leitura desse texto
bíblico, não haverá a sua adequada compreensão. Pode
parecer redundante, mas, para estudar um texto, é ne-
cessário que ele seja lido!
2) É importante que você saiba que o que se segue aqui e
em outros textos é um comentário teológico, que não
dispensa, absolutamente, a leitura da carta. Sirva-se de
uma boa tradução em português.
3) É conveniente que você já tenha um conhecimento pré-
vio do Corpus Paulinum para que possa fazer um quadro
comparativo entre ele e as Cartas Católicas, especial-
mente a Carta de Tiago, analisada nesta unidade.
4) Para um melhor conhecimento do período Patrística,
que é quando começam as notícias, a aceitação e a re-
jeição de textos, que vão se tornando canônicos ou não,
sugerimos que consulte esta obra clássica: ALTANER, B.;
STUIBER, A. Patrologia − vida, obra e doutrina dos pa-
dres da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1972.
5) Para outra introdução da Carta de Tiago, sugerimos a lei-
tura das introduções das Bíblias, especialmente da Bíblia
de Jerusalém. Sugerimos, também, a interessante e es-
quemática obra de TRIMAILLE, M. As epístolas católicas.
In: CARREZ, M. et al. As cartas de Paulo, Tiago, Pedro e
Judas. São Paulo: Paulinas, 1987, p. 287-302.
6) Outra introdução de grande valor você encontrará em:
KÜMMEL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. São
Paulo: Paulinas, 1982, p. 531-546.
7) Um texto bem recente, sem novidades quanto às origens
da Carta de Tiago, mas com um bom comentário sobre
seus supostos temas polêmicos, é: TUÑI, J. O.; ALEGRE,
X. Escritos joaninos e Cartas Católicas. São Paulo: Ave
Maria, 2007, p. 263-294.
8) Para um aprofundamento da forma das cartas neotesta-
mentárias, você pode consultar o clássico: SCHREINER,

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© Carta de Tiago 61

J.; DAUTZENBERG, G. Forma e exigências do Novo Testa-


mento. São Paulo: Paulinas, s/d.
9) Sugerimos que você leia, também, o texto de Romanos
(3,1; 5,11).
10) Consulte bons dicionários de teologia bíblica para o cor-
reto entendimento do conceito de parusia. Como suges-
tão, oferecemos: VAN DEN BORN. A. Dicionário enciclo-
pédico da Bíblia. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1983, colunas
1122-1130.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
No estudo da unidade anterior, você foi subsidiado por con-
teúdos relacionados às Cartas Católicas e ao Novo Testamento.
Já nesta segunda unidade, você conhecerá a Carta de Tiago,
que é a primeira obra das chamadas “Cartas Católicas”. Ela tende
a ser muito mais comentada do que as outras, em função da apa-
rente contradição com a teologia de Paulo. Aqui, você encontrará
uma análise histórica, literária e teológica dessa carta, o que não
dispensa a consulta a alguma obra de referência. Para isso, sugeri-
mos que faça a leitura e o estudo de algum título apresentado na
bibliografia.

5. CARTA DE TIAGO
O primeiro livro das Cartas Católicas é a Carta de Tiago. Ela
é um escrito deuterocanônico do Novo Testamento e é atribuída
a Tiago, o irmão do Senhor, constando de cinco capítulos e 108
versículos. Esse texto, datado de antes do ano 70 d.C., encontrou
algumas dificuldades em sua aceitação por parte das Igrejas. Essas
dificuldades são, fundamentalmente, de duas ordens:
• O desconhecimento do texto por parte de algumas Igre-
jas, o que pode ser intuído pela ausência de indicação em
alguns cânones antigos.
62 © Cartas aos Hebreus e Católicas

• As dificuldades ou os contrastes de argumentos relativos


aos escritos paulinos, especialmente com relação aos ro-
manos.
A Carta de Tiago ou algumas de suas partes são citadas por:
1) Clemente Romano, bispo de Roma, isto é, o papa, em 1
Clemente (há dúvidas a respeito);
2) Pastor de Hermas (há dúvidas a respeito);
3) Orígenes, prolífico escritor e teólogo do século 2º;
4) Hilário de Poitiers, bispo de renome;
5) São Jerônimo, o tradutor das Escrituras;
6) Santo Agostinho, grande escritor e filósofo cristão.
Estes, porém, negam sua canonicidade:
1) Eusébio de Cesaréia, bispo e historiador;
2) Tertuliano, escritor romano.
Já no Cânon de Muratori, de cerca de 200 d.C., nem sequer
está presente.
Em certo passo, mais precisamente no capítulo dois, versícu-
los de 14 a 26, o texto é, diametralmente, oposto a Paulo. Talvez
isto não fosse tão importante, mas bastou para que Lutero des-
considerasse essa carta, passando a chamá-la "epístola de palha".
Mesmo assim, Tiago faz parte do cânon da Reforma Protestante.
A Carta de Tiago é um escrito único no Novo Testamento.
Nela, estão ausentes as questões mais comuns dos demais textos,
como, por exemplo, a cristologia, a doutrina da encarnação, a so-
teriologia e a doutrina trinitária. Essa carta é um escrito de ordem
eminentemente prática, parenética, e está muito próxima dos es-
critos relacionados à sabedoria como era entendida no Antigo Tes-
tamento. O estilo do texto é de sentenças curtas ou de pensamen-
tos que raramente têm ligação e solução de continuidade.
A Carta de Tiago foi escrita em grego koiné. Do ponto de
vista literário, é rica de hapax legomena − ao todo, 63 −, sendo
que 13 palavras são neologismos. Usa muitas citações do Antigo

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© Carta de Tiago 63

Testamento, como se encontra na Septuaginta. É uma espécie de


carta circular, com argumentos suficientemente amplos para sa-
tisfazer às necessidades de leitores das mais diversas localidades,
e, ao mesmo tempo, apto para convencer um leitor singular de
seu compromisso social, nascido da adesão à fé. Todavia, um leitor
desavisado, habituado às argumentações paulinas, seguramente
ficará decepcionado com a série de considerações de feições sa-
pienciais sem muito nexo. Mas a carta é identificada como um tex-
to parenético, feito por um cristão, certamente de origem judaica,
e convencido da importância da lei como ponto de partida para a
salvação.

Questões de autoria
O autor identifica-se, no capítulo um, versículo um, como
“Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo”, o que nos leva
à questão: quem é esse Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus
Cristo? Seria o apóstolo? Vejamos o que é possível saber sobre o
referido Tiago.
Tiago Maior
É chamado de “Maior” apenas para ser distinguido do “Me-
nor”. Esse “Maior" não consta no texto bíblico. É um dos "filhos de
Zebedeu". Em Mateus (4,21), encontra-se a menção ao chamado
desse Tiago e de seu irmão, João: “passando adiante, [Jesus] viu
outros dois irmãos: Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João, que
estavam com seu pai Zebedeu consertando as redes”. Em Marcos
(3,17, grifos nossos), lê-se que receberam o nome de "Filhos do
Trovão": “Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão, aos quais pôs
o nome de Boanerges, que quer dizer Filhos do Trovão”. Esse apeli-
do deve ser pelo fato recordado em Lucas (9,51-56), especialmen-
te no versículo 54.
Segundo os sinóticos, esse Tiago, seu irmão João e, ainda,
Simão Pedro, foram as testemunhas privilegiadas de momentos
muito significativos da vida de Jesus: a transfiguração (Mt 171;
64 © Cartas aos Hebreus e Católicas

Mc 9,2; Lc 9,28) e a agonia no Monte das Oliveiras (Mt 26,37; Mc


14,33). Na crucificação de Jesus, lemos em Marcos (15,40): “acha-
vam-se ali também umas mulheres, observando de longe, entre as
quais Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, o Menor, e de José,
e Salomé”. No mesmo passo, na narração de Mateus (27,56) lê-se:
“entre elas se achavam Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago e
de José, e a mãe dos filhos de Zebedeu”. Isto indica que a "mãe dos
filhos de Zebedeu" (citada em Mateus) não é a "mãe de Tiago, o
Menor, e de José e Salomé” (citada em Marcos).
Em Atos dos Apóstolos (12,2), no contexto da perseguição
de Herodes Agripa I à Igreja de Jerusalém, lê-se a respeito do mes-
mo Herodes: “mandou matar a espada Tiago, irmão de João”. Isto
pode ser datado de 44 d.C. Esse Tiago, dito Maior, não pode ser o
autor da Carta de Tiago, que data de um tempo bem posterior a
essa data.
Tiago Menor
É um dos filhos de Alfeu, conforme se lê em Mateus (10,3):
“Filipe e Bartolomeu; Tomé e Mateus, o Publicano; Tiago, o filho
de Alfeu, e Tadeu”. Em Marcos (3,18), encontra-se, também, essa
indicação de "filho de Alfeu" logo após o texto mencionar Tiago,
filho de Zebedeu e irmão de João, ambos apelidados de "Filhos do
Trovão" no versículo anterior. Em Lucas (6,15), esse Tiago é mais
uma vez mencionado como "filho de Alfeu", sendo que o Tiago
anterior, irmão de João, e inclusive este, não recebem mais indica-
ções. Ele foi confundido, desde São Jerônimo, com o Tiago "irmão
de Jesus", porque, em Marcos (15,40), lê-se: “entre elas, Maria
Madalena, Maria, mãe de Tiago, o Menor, e de Joset, e Salomé”.
Mas vê-se, claramente, que esse Tiago, mesmo sendo apelidado
de “Menor", é o filho de Maria e o irmão de Joset e Salomé, não
sendo identificado em nenhum lugar como “filho de Alfeu”. Assim,
o Tiago “Menor" é o filho de Alfeu, um dos Doze. Após essas pou-
cas informações, ele desaparece do Novo Testamento.

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© Carta de Tiago 65

Tiago, o irmão de Jesus


Assim ele pode ser identificado, por referência cruzada, em
Mateus (13,55): “não é ele o filho do carpinteiro? Não se chama a
mãe dele Maria e os seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas?” No
passo paralelo de Marcos (6,3), lê-se: “não é este o carpinteiro,
o filho de Maria, irmão de Tiago, Joset, Judas e Simão?“ Ele é o
irmão do Senhor e parece ser filho de uma Maria.
Em Mateus (27,53), ele é identificado como filho de Maria,
também mãe de José. “Entre elas se achavam Maria Madalena e
Maria, mãe de Tiago e de José, e a mãe dos filhos de Zebedeu”.
Como se pode notar, a mãe dos filhos de Zebedeu e a Maria, mãe
de Tiago e de José, são pessoas diferentes.
O mesmo passo narrativo − a Paixão de Jesus − de João
(19,25) indica: “junto à cruz de Jesus estavam de pé sua mãe, a
irmã de sua mãe, Maria, mulher de Cléofas, e Maria Madalena”.
Então, o que se tem é o seguinte: essa Maria, mulher de Cléofas,
parece ser irmã da mãe de Jesus e também se chama Maria. Essa
confusão de "duas Marias" e dos filhos dessa Maria mãe de Joset,
Judas e Simão serem chamados, indiretamente, de irmãos de Je-
sus (Mc 6,3) é que causa transtorno quanto à identidade da mãe
de Jesus e desse seu "irmão", que parece ser "primo" de Jesus. É
ele que é chamado de "Menor” em Mateus (15,40). Esse apelido
“Menor” pode ser por sua estatura ou para contrapô-lo ao outro
Tiago, o filho de Alfeu, ou mesmo o Tiago, irmão de João e filho de
Zebedeu. Dessa forma, há um terceiro Tiago, alguém muito perto
de Jesus e participante de sua intimidade, pois é membro de sua
família humana.
Contudo, é preciso admitir que há algumas dificuldades em
identificar esse Tiago, o irmão do Senhor, e o Tiago da Carta de
Tiago. Os evangelhos recordam que os "irmãos de Jesus" não o
tinham em grande consideração. Em Marcos (3,21), lê-se: “quando
os seus o souberam, saíram para o reter; pois diziam: ‘Ele está fora
de si ’”. Estes, "os seus", pelo contexto em que aparecem, devem
66 © Cartas aos Hebreus e Católicas

ser os tais irmãos de Jesus, seus parentes. Em contrapartida, em


João (7,5), lê-se: “com efeito, nem mesmo os seus irmãos acredi-
tavam nele”.
Esta é uma informação que pode levar à confusões pelo con-
texto em que aparece, no qual, mais à frente, é usado o mesmo
termo "irmãos", talvez para identificar os discípulos. É difícil con-
firmar essa ideia partindo do texto. É certo, porém, que os Doze,
claramente chamados assim, e não sob a identidade de "irmãos",
estão já enfrentando dificuldades pelo seguimento de Jesus. Eles
são mencionados em João (6,70).
O que parece muito claro é o fato de que o Novo Testamento
não identifica os "parentes" ou "irmãos" de Jesus como apóstolos
ou discípulos. Pode-se ver isto em Atos (1,13s):
Tendo entrado no cenáculo, subiram ao quarto de cima, onde cos-
tumavam permanecer. Eram eles: Pedro e João, Tiago, André, Filipe,
Tomé, Bartolomeu, Mateus, Tiago, filho de Alfeu, Simão, o Zelador,
e Judas, irmão de Tiago. Todos eles perseveravam unanimemente
na oração, juntamente com as mulheres, entre elas Maria, mãe de
Jesus, e os irmãos dele.

Inicialmente, são citados os discípulos de Jesus; na sequên-


cia, no final na informação, vêm os seus irmãos. Em 1º aos Corín-
tios (9,5), Paulo questiona seus leitores a respeito de um direito
que ele poderia ter em levar consigo uma "mulher irmã", assim
como o fazem os outros apóstolos e, até mesmo, Cefas, destacan-
do à parte os irmãos do Senhor: “caso não temos nós direito de
deixar que nos acompanhe uma mulher irmã, a exemplo dos ou-
tros apóstolos e dos irmãos do Senhor e de Cefas?”.
O que pode ser muito significativo nesse debate é a informa-
ção de Paulo em 1º aos Coríntios (15,7). Esse importante capítulo
de Coríntios é uma das mais antigas declarações de fé e de ade-
são ao Evento da Ressurreição. Paulo indica o processo de tradição
como meio de testemunhar os valores e as verdades que estão
sendo por ele vividas e que já foram por outros. Ele inicia dizendo:
“eu vos transmiti primeiramente o que eu mesmo havia recebido”

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© Carta de Tiago 67

(1Cor 15,3) e passa a elencar os fatos e as situações, bem como as


pessoas que estiveram envolvidas com o Evento da Ressurreição.
No sétimo versículo, ele faz uma importante e significativa descri-
ção. Veja os versículos 3-8 para ter mais claro o contexto:
Eu vos transmiti primeiramente o que eu mesmo havia recebido:
que Cristo morreu por nossos pecados,
segundo as Escrituras;
foi sepultado, e ressurgiu ao terceiro dia,
segundo as Escrituras;
apareceu a Cefas,
e em seguida aos Doze.
Depois apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma vez,
dos quais a maior parte ainda vive (e alguns já são mortos);
depois apareceu a Tiago,
em seguida a todos os apóstolos.
E, por último de todos, apareceu também a mim, como a um abor-
tivo (1Cor 15,3-8).
Desse texto, pode-se tirar algumas conclusões:
1) Cefas, isto é, Pedro, tem destaque notável no testemu-
nho de Paulo a respeito da Ressurreição e da experiência
com O Ressuscitado.
2) Os Doze é um grupo específico; nem são chamados de
apóstolos aqui. Seguramente, são os que acompanham
Jesus desde o início.
3) Há outros que foram apóstolos. Resta saber se são cha-
mados "apóstolos" em função dessa experiência com O
Ressuscitado aqui indicada ou se eram antes da Ressur-
reição.
4) Finalmente, Tiago aparece em destaque, separado do
grupo dos Doze, o que deve provavelmente indicar que
pode não ser nem o Tiago filho de Alfeu nem o Tiago
filho de Zebedeu. Deve ser o Tiago irmão do Senhor.
Pode-se levantar a hipótese de que esse Tiago, depois de ter
visto O Ressuscitado, se converteu e o aceitou como Cristo, cum-
pridor das Escrituras (insistentemente recordadas por Paulo no
texto 1º aos Coríntios). Talvez, o parentesco com Jesus, provavel-
mente de primo "em primeiro grau", aliado a algum tipo de prestí-
68 © Cartas aos Hebreus e Católicas

gio anterior, deu destaque a ele e, aos poucos, liderança também.


O certo é que um Tiago é o líder da Igreja de Jerusalém.
Isto é lembrado em Atos dos Apóstolos (15,13ss), quando
acontece a Assembleia de Jerusalém, na qual são decididos os ru-
mos da evangelização. Tiago aparece como quem decide além da
própria autoridade de Pedro, que, por sua vez, defende os princí-
pios de Paulo.
Também em Gálatas (12,7-10), Paulo, ao narrar as memórias
de sua conversão, sua adesão e sua missão em meio aos pagãos,
recorda a presença de Tiago, indicando-o em primeiro lugar, antes
mesmo de Cefas e de João. A esse grupo ele chama “colunas da
Igreja”. Assim, lê-se: “Tiago, Cefas e João, que são considerados as
colunas, reconhecendo a graça que me foi dada, deram as mãos a
mim e a Barnabé em sinal de pleno acordo”.
O que é curioso e não passa de especulação são as afirma-
ções de Paulo quando vistas isoladamente. Em Gálatas (2,6), quan-
do Paulo apresenta a narração da decisão em apoiá-lo na evangeli-
zação dos pagãos, ele afirma: “quanto aos que eram de autoridade
− o que antes tenham sido não me importa, pois Deus não se deixa
levar por consideração de pessoas −, estas autoridades, digo, nada
me impuseram”.
Quais autoridades eram estas? O que elas eram antes? Pro-
vavelmente, seriam coisas muito significativas, suficientes a ponto
de influenciar alguns; exceto Paulo, a quem isto não importava,
“[…] pois Deus não se deixa levar por consideração de pessoas
[…]”. Aqui, não pode haver uma menção implícita a alguma prer-
rogativa, a algum prestígio familiar da parte de Tiago ou de seus
companheiros?
No entanto, no início da carta, no versículo um, lê-se: “Tiago,
servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo, às doze tribos da disper-
são, saúde!”. Por que ele usa o título "servo de Deus e do Senhor
Jesus Cristo"? Não poderia usar o título "irmão do Senhor", como
é chamado por Paulo quando narra em Gálatas (1,19) sua primeira

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© Carta de Tiago 69

ida para Jerusalém, logo após sua conversão e na sequência da


perseguição, bem como da saída de Pedro da cidade?
Diante de tudo isso, é muito provável que o autor da chama-
da “Carta de Tiago” seja esse Tiago, chefe da Igreja de Jerusalém.
Ele se dirige às Doze tribos da Dispersão (Tg 1,1), o que é argumen-
to de índole judaica. Tiago seria um parente de Jesus, um dos que
antes o achavam louco, mas que, aos poucos, foram mudando seu
modo de pensar. Teria o testemunho de sua mãe, irmã da mãe de
Jesus, que acompanhou o Senhor muito tempo. Isto lhe dava pres-
tígio na Igreja, um prestígio que Paulo não considera, pois se sente
livre dos laços de sangue, apenas confiando na graça da presença
do Ressuscitado.
Após a Ressurreição e Pentecostes, ele passou a ser um ju-
deu cristão, alguém que aceitou a identidade messiânica de Jesus
e que compreendeu sua importância e seu alcance nos horizontes
do Povo de Israel, mas que não percebeu o alcance muito além dos
limites da experiência e da esperança judaica. Tiago era o chefe
da comunidade herdeira dos primeiros convertidos: habitantes de
Jerusalém, judeus piedosos que esperavam a vinda do Messias e
que o encontraram em Jesus.
Tiago é mencionado uma última vez em Atos dos Apóstolos
(21,18), no contexto da visita de Paulo a Jerusalém. Este vai até a
casa de Tiago, e o texto de Atos informa que era lá que se reuniam
os anciãos, isto é, os responsáveis pela comunidade de Jerusalém.
O texto que se segue não cita palavras suas, apenas mostra que
eles, os anciãos, certamente junto a Tiago, louvavam o que acon-
tecia na evangelização dos pagãos. Afirmam, porém, que a men-
sagem de Paulo era de negação a Moisés, abandono dos costumes
judaicos e rejeição aos seus valores.
Isto era, seguramente, uma constante na abordagem de Pau-
lo e de sua mensagem por parte dos judeus cristãos. Tiago não
aparece nessa controvérsia; não é ele quem faz as observações
de Atos (21,20-21): o texto sugere que foram os anciãos. Eles so-
70 © Cartas aos Hebreus e Católicas

brepõem o que Paulo afirmava sobre a conversão dos pagãos − a


notícia de que “milhares de judeus” abraçam a fé.
É difícil não entrever nessas linhas muita tensão e descon-
fiança. Eles pedem que Paulo vá até o Templo com alguns outros
devotos e que com eles se purifique, cumprindo, assim, as prescri-
ções judaicas. O final desse encontro é uma recordação das pres-
crições feitas aos pagãos convertidos na Assembleia de Jerusalém,
no capítulo 15 de Atos. Os pagãos convertidos devem preservar-se
das carnes imoladas aos ídolos, do sangue, das carnes sufocadas e
das uniões ilegítimas (At 21,25). Não se fala em cuidar dos pobres,
como Paulo cita em Gálatas (2,10).
A continuação do episódio é conhecida e muito dramática.
Paulo é feito prisioneiro, e a autoridade de Tiago não aparece em
nenhum passo para tentar libertá-lo. A partir desse ponto, as in-
formações a respeito de Tiago não existem mais, e Paulo segue em
Roma seu caminho de testemunho de Jesus Cristo. Teria Tiago algo
a ver com essa situação conflituosa? Poderia tê-la evitado? Essas
questões são totalmente impossíveis de serem respondidas.
A Carta de Tiago seria uma tentativa de comunicação desse
líder da Igreja de Jerusalém com os judeus dispersos pelo mundo
mediterrâneo, como se pode ler em Tiago (1,1).

6. DATA E LUGAR DA COMPOSIÇÃO: DESTINATÁ


RIOS
A língua usada pelo autor é o grego, mas a mentalidade, os
princípios e o estilo são hebraicos. Isto sugere que o autor seja de
origem judaica. A clara reação aos princípios paulinos da justifica-
ção pela fé reforça os pontos de apoio à autoria judaica da carta.
Se seu autor é Tiago, dito irmão do Senhor, citado em alguns luga-
res de Atos dos Apóstolos, é lógico que tenha essa postura crítica
diante do pensamento paulino.

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© Carta de Tiago 71

Entretanto, a questão da data da composição tem uma difi-


culdade. Sabe-se que Tiago foi morto no ano 62 d.C., em Jerusa-
lém, como indica Flávio Josefo. A Carta Paulina aos Romanos, na
qual se encontram os princípios da justificação, já teria, naquele
tempo, uma divulgação tão ampla? Teria ela já apresentado difi-
culdades para os cristãos de origem judaica a ponto de Tiago es-
crever contra?
O lugar principal das ideias contrárias da justificação pela
fé estão em Tiago (2,14-26). Poderia ser uma interpolação tardia,
o que tornaria a carta bem menos insistente contra a mensagem
paulina. De fato, excetuando essa perícope, A Carta de Tiago tem
um caráter parenético.
Em contrapartida, com a destruição do Templo em 70 d.C.,
deixou de existir a ideia das "tribos da dispersão" para identificar
Israel e o judaísmo. Essa ideia existiu enquanto havia o centro, ou
seja, Jerusalém, e o Templo. Lá, concentravam-se os integralistas
que se opunham a Paulo e à sua mensagem. Logo, essa Carta de
Tiago não pode ser posterior ao ano 70 d.C.
Tem-se, então, uma referência teórica provável: a carta
pode ser anterior a 62 d.C., considerando-se sua autoria, e pode
ser, também, anterior a 70 d.C., o ano da destruição do Templo
e dissolução do grupo integralista de Jerusalém. A carta poderia
ser de Tiago, redigida antes de 62 d.C., sem a perícope polêmica
de 2,15-6. Isto poderia ser acrescentado até 70 d.C., especialmen-
te antes de 66 d.C., quando as hostilidades com os romanos se
tornaram intensas. Todavia, com a dissolução dos integralistas de
Jerusalém, o polo que predominou certamente foi o paulino, com
sua maior abertura e liberdade. A carta não poderia ser difundida
após 70 d.C. sem provocar reações por parte das Igrejas fundadas
por Paulo. De fato, isto é o que parece ocorrer em algumas fontes:
a rejeição de Tiago em função da oposição a alguns pontos do pen-
samento paulino.
72 © Cartas aos Hebreus e Católicas

É notável que a corrente “vencedora” da história e de seus


limites, das oposições e perseguições, foi a corrente paulina, com
a liberdade perante a lei e a justificação em Jesus Cristo, não no
cumprimento dos princípios legais. Isto certamente não foi muito
fácil de compreender, uma vez que, afinal, Jesus foi judeu, foi iden-
tificado como Messias para Israel; cumpriu as promessas feitas aos
pais de Israel. Além disso, esse povo sempre foi fechado às influ-
ências externas, pois isto colocava em risco sua própria adesão
a Deus, o Deus único. Os fatos que sucederam a Ressurreição de
Jesus e a difusão de Seu Evangelho, especialmente pela vertente
evangelizadora dirigida aos gentios, surpreende, ainda hoje, quem
observa com atenção a história.
Se a autoria da Carta de Tiago é do conhecido Tiago, irmão
do Senhor, personagem de fama e destaque em Jerusalém, então,
ela deve ser anterior a 70 d.C. e, provavelmente, antes de 62 d.C.
Sua redação deve ter acontecido em Jerusalém, e o interesse era
animar os cristãos de origem judaica. Se a Carta de Tiago é pseudo-
epigráfica, então, poderia ser datada de fins do século 1º e início
do século 2º, o que justificaria a dificuldade de sua aceitação por
parte de algumas Igrejas.
Talvez por tudo isto, pelas dificuldades de compreensão das
tensões internas da carta e, especialmente, pelo que "não está es-
crito" ao seu respeito, mas é “suspeito”, a Carta de Tiago encon-
trou a resistência de muitas partes. Ela entrou para fazer parte do
cânon das Igrejas apenas no final do século 4º.

7. ESTRUTURA DA CARTA DE TIAGO


A Carta de Tiago não possui estrutura! Ela pode ser enten-
dida como uma sucessão de ideias, muitas vezes, sem conexão,
expostas com vistas a formar uma espécie de manual de conduta e
de ações inspiradas na observância da lei.

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© Carta de Tiago 73

Isto pode ser estranho de ser afirmado, mas o que vem da


carta justamente é a falta de um plano lógico. Excetuando-se o
primeiro capítulo e o primeiro versículo, nos quais encontra-se o
endereço e uma pequena saudação, não há um sinal de que seja
uma carta, um escrito destinado a um grupo específico. O que é
certo é a seriedade do autor a respeito da conduta de seus ouvin-
tes. Ele é exigente e, ao mesmo tempo, realista sobre a vida e as
situações que ela apresenta.
Embora ela não tenha um plano lógico, pode-se fazer uma
divisão em temas. É o que se sugere:
Estrutura básica
1,1 Saudação
1,2-4 A tentação
1,5-8 A súplica pela esperança
1,9-11 O rico
1,12-15 A provação e a superação
1,16-21 A retidão da Palavra
1,22-25 A prática da Palavra
1,26-27 A verdadeira religião
2,1-9 Os pobres
2,10-13 Os mandamentos e [a] sua observância
2,14-26 Fé e obras
3,1-12 A linguagem, seus perigos e [suas] riquezas
3,13-18 A sabedoria
4,1-10 As discórdias e [os] seus motivos
4,11-12 Maledicência
4,13-5,6 Aos ricos: exortações
5,7-11 A vinda do Senhor
5,12 Não jurar
5,13-18 A oração e a enfermidade
5,19-20 Epílogo: o caminho da verdade

8. O TEXTO DA CARTA DE TIAGO


Saudação: 1,1
A saudação é ao modo das Cartas Paulinas, que, por sua vez,
seguem o esquema clássico: o autor ou o remetente e os destina-
74 © Cartas aos Hebreus e Católicas

tários. Tiago intitula-se “servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo”.


Ele não se chama "apóstolo", assim como faz Paulo na introdução
de suas cartas. Tiago dirige-se às doze tribos da dispersão (em gre-
go, diáspora), o que indica a migração dos judeus palestinos para
o Egito, a Síria, a Macedônia e para outras regiões.
A "dispersão" começou muito antes do primeiro século; o
exílio já é um passo da dispersão no sentido de que muitos dos exi-
lados não retornaram à Terra Prometida após o edito de Ciro. Mais
significativo para a dispersão foi o período de Alexandre Magno e
do helenismo. Os judeus espalharam-se por toda a bacia do Medi-
terrâneo, criando comunidades fortes nas grandes cidades, como
em Alexandria, no Egito, na Antioquia da Pisídia, em Roma etc.
Tiago dirige-se às tribos da dispersão; portanto, aos judeus,
mas não apenas judeus. São judeus e cristãos, marcados pela acei-
tação da Pessoa e da Missão de Jesus. Talvez essa carta de Tiago
deveria ser chamada “Carta aos Hebreus”, pois ela é, claramente,
dirigida a eles.

A tentação: 1,2-4
Tiago inicia o argumento da tentação indicando que os ir-
mãos, os cristãos judeus que ouvem sua palavra, são objeto de
múltiplas tentações. Não está claro quais seriam essas tentações,
mas, sim, as consequências delas surgidas: a provação da fé. Essa
perseverança produz, segundo o versículo quatro, uma obra per-
feita. Trata-se, então, de uma fé provada, comprovada pelas con-
tradições. Aqui, já está o sentido do debate quanto às obras e à fé
que será apresentado mais adiante.
No pensamento de Tiago, os homens perfeitos e íntegros
nascem da provação da fé e da perseverança em seu caminho.
Como será notado, a fé tem implicações práticas de compromisso
que, hoje, podem ser chamados “sociais”.

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© Carta de Tiago 75

A súplica pela esperança: 1,5-8


O argumento da sabedoria é apresentado. Para compreen-
der a ação de Deus e receber algo dele, é necessário sabedoria.
Esta é indispensável para a constância e a retidão. Isto é perfeita-
mente compreensível, conforme a ideia judaica da perfeição: estar
em Deus e manter a comunhão com Ele é a perfeição, mas ela só é
alcançada pela retidão das obras.

O rico: 1,9-11
Em uma perícope não muito clara, a Carta de Tiago inicia sua
crítica aos ricos, que são comparados à flor da erva perante o sol:
este as faz secar e cair da planta. Essa perícope é uma introdução
ao tema da riqueza e de sua ilusão. Talvez esses versículos expres-
sem a continuação do argumento do versículo oitavo do capítulo
quinto, quando Tiago cita a pessoa que busca a sabedoria sem fé.
Ela é comparada às ondas do mar (vers. 6), e, provavelmente, por
essa inconstância, o rico é igual.
A "sorte" do rico será retomada mais adiante, no início do
segundo capítulo da carta.

A provação e a superação: 1,12-15


Em seguida, sem muito motivo para tanto, a carta muda o
foco de sua atenção. A paciência passa a ser elogiada como neces-
sária para vencer a tentação. Tiago nega a tentação como vinda
de Deus. Pelo contrário, declara que ela vem do próprio homem,
de sua tendência para o pecado que ele chama “concupiscência”
(vers. 14).
Aparece uma sequência interessante para a queda do pe-
cado: a concupiscência leva o homem ao pecado seduzindo-o;
depois, ela "dá a luz ao pecado”, e este, crescendo, gera a morte
(vers. 14-15). É uma descrição interessante, quase lógica, do fato
do pecado e de suas ocasiões.
76 © Cartas aos Hebreus e Católicas

A retidão da Palavra: 1,16-21


A carta interrompe, mais uma vez, o argumento e passa a
elogiar a ação de Deus em sua Palavra. Esta vem do alto, do “Pai
das luzes” (Tg 1,17). A "Palavra da Verdade" será a condutora da
vida do fiel.
Seria possível dizer que Tiago interrompe, constantemente,
seu argumento. Mas é difícil fazer tal afirmação, pois não há, clara-
mente, um plano lógico, uma argumentação sequencial no texto.
Em função da Palavra, que veio ao encontro dos homens,
Tiago exorta seus ouvintes a serem “prontos para ouvir, mas tardio
para falar e tardio para encolerizar-se” (Tg 1,19), identificando a
cólera como incapaz de cumprir a vontade de Deus, a qual a carta
chama, aqui, de “justiça”.
Para receber essa Palavra, o ouvinte deve ser humilde e lim-
po (vers. 21). Sugere-se, aqui, uma prática ritual, ainda que não ex-
plícita, de pureza. No judaísmo, a pureza era um ponto de grande
importância. Ela era conseguida com vários rituais. Tiago não fala
deles; antes, sugere uma certa pureza interior, pois fala da liberta-
ção da maldade (vers. 21).

A prática da Palavra: 1,22-25


Tiago lança uma notável invectiva: "tornai-vos praticantes da
Palavra e não simples ouvintes, enganando-vos a vós mesmos!"
(Tg 1,22). Não basta ouvir a Palavra, é necessário que ela seja se-
guida, cumprida e vivenciada. O homem não pode simplesmente
seguir seus instintos e suas opiniões, como um espelho que reflete
quem o olha. Ele precisa buscar a Palavra da liberdade.
Em seguida, a carta indica a necessidade do homem em de-
dicar-se ao estudo da lei da liberdade (vers. 25). Isto é bem ao
modo judaico de pensar: o estudo, a aproximação do texto e sua
perscrutação serão uma nota característica do judaísmo no futuro.
Aqui, já é apresentada como um modo de conhecer a Palavra, cha-
mada “Lei da liberdade” nesse texto.

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© Carta de Tiago 77

A verdadeira religião: 1,26-27


Esse argumento parece estar ligado à ideia da verdadeira
religião. O homem que ouve a Palavra está ligado à verdadeira re-
ligião, e esta o leva a refrear a língua (vers. 26). Tem-se aqui, final-
mente, uma ligação interna explícita. Essa ideia de língua está em
referência à ideia do "lento para falar" de alguns versículos atrás.
Contra uma possível impressão de legalismo absoluto que
possa surgir do contexto de algumas partes da carta, aqui se en-
contra um mandamento de alto teor social: a religião verdadeira,
que Tiago chama “verdadeira e sem mácula”, "é assistir os órfãos e
as viúvas em suas tribulações e guardar-se da corrupção do mun-
do” (Tg 1,27).
Isto está em acordo com o pensamento profético e, até mes-
mo, com o projeto do Êxodo. Lá, em 22,21ss, se encontra a imposi-
ção do compromisso de apoio, de ajuda, de socorro e de promoção
humana alicerçados na Aliança. Não se trata de uma observância
vã dos costumes legais, mas, sim, de um vivência interior com di-
mensões práticas da fé.

Os pobres: 2,1-9
Tiago retoma a argumentação que ocupará grande parte da
carta: a situação dos pobres. O princípio que é exposto parte da fé
em Jesus Cristo − ela não admite a acepção de pessoas, a distinção
entre uns e outros, especialmente se o critério for o das posses
ou das aparências. O exemplo citado nos versículos 2-4 é muito
eloquente: a exaltação do rico, daquele que tem aparência ou que
ostenta posses, e a humilhação de quem é humilde. A clareza do
argumento é o caminho de uma séria reflexão ética para todos os
leitores da carta.

É interessante o fato de que a Carta de Tiago cita Jesus Cristo


apenas duas vezes: no endereço e na saudação (1,1) e, nesse
passo (2,1), quase que de modo passageiro, para compor o argu-
mento introdutório.
78 © Cartas aos Hebreus e Católicas

Tiago anuncia que os pobres são os amados de Deus (vers.


5). Em contrapartida, os ricos são acusados por Tiago de levar os
fiéis aos tribunais (vers. 6). Esse argumento reflete, seguramente,
alguma situação concreta vivida na comunidade de Tiago. Além
dessa perseguição empreendida pelos ricos, Tiago cita a blasfêmia
(vers. 7) contra o nome de Deus, que ele indica como o "nome
sublime". A distinção entre ricos e pobres e o privilégio daqueles
sobre estes está contra a vontade de Deus, e Tiago invoca como
fundamento para esse princípio moral o mandamento do amor a
Deus, primeiro mandamento do decálogo. A essa perícope, corres-
ponde a perícope de 4,13-5,6.

O amor ao próximo –––––––––––––––––––––––––––––––––––


Contrariamente ao que muitos pensam, o mandamento do amor ao próximo não
é exclusivo do Novo Testamento. Esse mandamento se encontra no contexto de
Mateus (22,34-40), especialmente no versículo 39. A situação é de questiona-
mento sobre Jesus, sobre qual é o maior mandamento da lei. Jesus responde ci-
tando parte do Shemá Israel, o credo histórico de Israel, que se inicia com: “ouve
Israel, o Senhor teu Deus é o único Senhor” (Dt 6,4). E logo vem o mandamento
em questão: “amarás o Senhor, teu Deus, de todo o coração, com toda a alma
e com toda a mente” (6,5). Em Levítico (19,18), encontra-se o mandamento do
amor ao próximo. “Amarás a teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor”.
Esses dois mandamentos − o primeiro claramente estabelecido como identidade
da Aliança de Deus com Israel, e o segundo como uma consequência da adesão
a essa Aliança −, são unidos na novidade do Evangelho que Jesus anuncia.
Tiago recorda a necessidade desse amor ao próximo em função da adesão ao
Mistério de Jesus Cristo, tema inicial dessa perícope.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Os mandamentos e sua observância: 2,10-13


A citação do mandamento do amor a Deus e ao próximo dá
a oportunidade de Tiago fazer uma consideração importante a res-
peito da observância do conjunto dos mandamentos que ele espe-
cifica bem: os “mandamentos da lei” (vers. 10).
Esse tema é complexo para a compreensão de um cristão,
especialmente quando colocado junto à teologia de Paulo: a liber-
dade perante a lei. A Carta de Tiago começa a adentrar o núcleo da
argumentação que oferece mais dificuldades: a fé e as obras. Este
será o tema da perícope a seguir.

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© Carta de Tiago 79

Entretanto, ainda na perícope dos mandamentos e de sua


observância, Tiago coloca outros dois mandamentos do decálogo:
a proibição do adultério e a proibição de matar. Ele alerta que,
sendo ambos verdadeiros mandamentos, devem ser observados
em sua inteireza. A observância de um e a inobservância do outro
é a negação de ambos (vers. 11).
Curiosamente, Tiago (2,12) cita um texto de orientação pau-
lina: a liberdade que a lei propõe. Nesse versículo, lê-se: “falei,
pois, e agi como os que hão de ser julgados pela lei da liberdade”.
O tema é muito marcante em Paulo, como, por exemplo, em Ro-
manos 2. É claro que tudo está sendo preparado para a questão da
lei e das obras − o tema da próxima perícope.

Fé e obras: 2,14-26
Este é o ponto da suposta polêmica entre Tiago e a teolo-
gia de Paulo a respeito da fé. Trata-se do tema da justificação: a
identidade da relação do fiel com Jesus Cristo e sua graça. Mas é
necessário informar, antes de tudo, que a polêmica é suposta ou
aparente. Deve-se observar, claramente, o campo ou o contexto
em que as palavras de Tiago são apresentadas.
Em Tiago (2,14), este inicia seu argumento contrapondo
obras e fé. Não se trata, porém, de uma contraposição teológica,
mas, sim, parenética, isto é, prática, ética. Talvez seja difícil com-
preender isto logo à primeira vista em função da pergunta retórica
no final do versículo: “acaso esta fé poderá salvá-lo?”. Essa per-
gunta não faz ligação clara com o versículo seguinte, que é, por
sua vez, eloquente na questão: um necessitado que está à vista
sem ser atendido ou apenas ouvido, sem uma resposta coerente
e concreta. Essa situação, sem uma resposta oriunda da fé, teste-
munha contra ela própria. É nesse sentido que Tiago insiste nas
"obras da fé", afirmando: “a fé, se não tiver obras, é morta em si
mesma” (vers. 17). Em outras palavras, isto é facilmente compre-
ensível: não se trata das "obras da lei”, que, aliás, Tiago não as cita.
80 © Cartas aos Hebreus e Católicas

Trata-se das obras de compromisso social, que estão evidentes no


corpo da carta, especialmente no final.
Por sua vez, Paulo, especialmente em Romanos, insiste na
justificação como uma adesão não às obras da lei ou à própria
lei, mas, sim, à Pessoa de Jesus Cristo em Seu Mistério. Paulo é
eminentemente teológico, com uma profundidade notável e en-
tusiástica. Tiago é prático, observador das ações e das possíveis
declarações de um fiel a respeito de sua fé. Esta precisa ser coe-
rente. Não se trata − e isto é claro − da adesão às obras da lei, mas,
sim, às obras de solidariedade, de fraternidade ou, na palavra que
compromete a compreensão, de justiça. Mas de "justiça", nesse
sentido, ética e social.
Em Tiago (4,21-23), este usa o exemplo de Abraão e chega
à mesma conclusão programática de Romanos (4,3): “Abraão creu
em Deus e isto lhe foi imputado como justiça”. Paulo insiste em
dizer que foi pela adesão da fé; Tiago afirma que foi pela obra de
oferecer o sacrifício de seu filho. Um e outro dependem de uma
decisão interior, de uma segurança absoluta que nasce da intimi-
dade com o centro da fé, que é Deus. Dependem, também, da prá-
tica da moção interior. Não há contradição, mas, sim, complemen-
taridade.
A citação de Raab no versículo 25, no qual ele recorda o epi-
sódio do assédio a Jericó, no capítulo dois de Josué, vai, também,
por essa linha: uma obra de compromisso. Essa obra deve estar ali-
cerçada na graça que vem pela identificação com O Ressuscitado,
o que Paulo repete insistentemente.

A linguagem, seus perigos e suas riquezas: 3,1-12


Nessa longa perícope, o foco está no uso da fala. É um ponto
muito prático e que certamente toca a todos os fiéis. A retidão no
falar e a consequente exclusão do pecado da fala é um dom que
controla todo homem (vers. 2). Os exemplos do cavalo e do na-
vio são no sentido de evidenciar a necessidade de uma condução

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© Carta de Tiago 81

da fala. É isto o que desenvolvem os versículos 5-6: a importância


da língua como antonomásia da capacidade de falar com discer-
nimento. O exemplo do fogo e do incêndio é, também, muito elo-
quente para a consciência da presença em um grupo.
Tiago afirma que a mesma boca provém bênção e maldição
(vers. 10). É necessário velar sobre o que se diz, pois, aqui, pode
estar a fonte da felicidade ou a fonte da infelicidade. A questão é,
profundamente, prática e atual. Os exemplos da natureza, fonte
da água e das árvores (vers. 11-12) são bem eloquentes para a
conclusão da perícope e de seu argumento.

A sabedoria: 3,13-18
O tema da sabedoria vem como um coroamento do que co-
meçou com a fé e com as obras. Após a necessidade de demons-
trar a fé pelas obras e de ter temperança na linguagem humana,
que é tocada pela ação de Jesus Cristo, tudo isto é apresentado
− ou, pelo menos, sugerido − como sendo fruto da sabedoria, que
é a adesão a Deus.
Tiago inicia com uma pergunta retórica sobre a sabedoria e
o entendimento (vers. 13). Continua evidenciando que a inveja, o
egoísmo e a mentira são impedimentos para a sabedoria. O texto
faz a contraposição entre as virtudes que levam à sabedoria e a
inveja, a preocupação egoísta: isto causa desordens e más ações
(vers. 16). Em contrapartida, o que é puro, pacífico, indulgente e
conciliador é sinal de justiça (vers. 17-18).
Aqui está claro o que deseja a Carta de Tiago: conduzir à ob-
servância das virtudes da lei como sinal de eleição de Deus e de
aliança com Ele. Essa aliança é a continuação da Aliança do Antigo
Testamento e empenha o interior da pessoa; não apenas as suas
aparências.
82 © Cartas aos Hebreus e Católicas

As discórdias e os seus motivos: 4,1-10


Aqui, Tiago inicia sua argumentação relativa às discórdias.
Começa com a pergunta retórica da origem das guerras e lutas
(vers. 1), querendo citar, claramente, os problemas localizados na
comunidade ou nas comunidades da dispersão. A essa pergunta
da origem das guerras e das lutas, segue a resposta que indica os
prazeres. Dois vícios e suas motivações são elencados: a cobiça,
resultado do não ter, e a morte, resultado da avidez. Em outras
palavras, o desejo sem medida e sem limites. O vers. 3 afirma que
os leitores e os ouvintes de Tiago não sabem pedir; por isso, não
recebem o que lhes convém.
Na sequência, o texto apresenta a palavra mais severa, talvez,
de toda a carta. "Adúlteros" (vers. 4) é o adjetivo usado por Tiago
para se referir aos que não pedem bem e, consequentemente, não
recebem bem. O tema “adultério” e o tema correlato "prostitui-
ção" são recorrentes nos profetas e estão bem em sintonia com
a negação da Aliança. Aqui não surge o argumento da Aliança de
modo claro, mas, sim, o da “amizade com Deus” (vers. 4).
A humildade é necessidade para o recebimento da graça.
Isto é afirmado na citação de Provérbios (3,34) conforme o texto
grego da Septuaginta; o texto hebraico é um pouco diferente, e as
Bíblias modernas seguem-no.
Tiago indica com firmeza o caminho: a sujeição a Deus e a
fuga do Diabo (vers. 7). Certamente, é um mandamento forte. Ele
evidencia, pelo contexto, que o soberbo está submisso ao Diabo
(vers. 5-7). Em seguida, vem uma série de invectivas, espécies de
convites feitos no modo imperativo, expressando sua urgência e
absoluta necessidade (vers. 8-10):
Aproximai-vos de Deus, e Ele se aproximará de vós.
Lavai as mãos, pecadores, e purificai os vossos corações, ó homens
de dupla atitude.
Reconhecei a vossa miséria, afligi-vos e chorai.
Converta-se o vosso riso em pranto e a vossa alegria em tristeza.
Humilhai-vos na presença do Senhor, e Ele vos exaltará.

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© Carta de Tiago 83

Por que Tiago tão intensamente insiste nesse ponto? Estaria


ele percebendo que a conduta dos fiéis estava deixando o caminho
da sujeição a Deus bem nos moldes da sujeição desejada pela lei
imposta pelos costumes judaicos? Isto poderia ser um fruto − in-
direto, ao menos − da teologia de Paulo, que impunha a adesão a
Jesus Cristo de modo incondicional e que qualificava os costumes
relacionados à lei como inúteis.

Maledicência: 4,11-12
São em poucos versículos que Tiago condensa o problema
da discórdia verbal, da calúnia e dos desentendimentos. Segundo
ele, falar mal do outro indica falar mal da lei, o que é inadmissível
(vers. 11). A lei é para ser praticada, não julgada.
Percebe-se que o pano de fundo, nesses versículos todos, é
a convivência comunitária ou o empenho em estar unido na obser-
vância da lei. Resta saber o lugar que Jesus Cristo ocupa nessa si-
tuação, pois Ele não aparece em qualquer lugar, a não ser no início
do capítulo dois. Tiago fala para os judeus que estão empenhados
na observância da lei como um sinal de unidade.

Aos ricos: exortações: 4,13;5,6


Após os arroubos relacionados à observância da lei e à ne-
cessidade da amizade com Deus, Tiago dirige-se, novamente, aos
ricos. Inicia sugerindo uma vida de tranquilidade, vinda dos negó-
cios e dos empenhos econômicos (vers. 13). Isto tudo é engano,
pois nem o dia de amanhã é conhecido. Tiago indica os ricos como
sendo "vapor" (vers. 14). É necessário humildade e o reconheci-
mento da ação de Deus. Subitamente, vem a imagem do bem e do
mal e da necessidade de se fazer o primeiro (vers. 16-17).
Os ricos são convidados a chorar, pois o que possuem é pe-
recível. Numa sequência de versículos, Tiago toca em questões
muito delicadas: o salário dos trabalhadores, as necessidades dos
humildes, o abuso de uns sobre os outros (vers. 4-5). Ele conclui
84 © Cartas aos Hebreus e Católicas

com a imagem do justo posto à morte (vers. 5). No que − ou em


quem − Tiago estaria pensando ou se referindo? Ele certamente
não inventa esses problemas, mas os apresenta como uma reali-
dade palpável.

A vinda do Senhor: 5,7-11


Sem qualquer transição, o texto passa da condenação dos
ricos e de seus abusos para a exortação da espera do Senhor. Ini-
cia, aliás, com o convite à paciência (vers. 7). Usa o exemplo do
lavrador e de sua prática agrária de plantar e esperar os frutos.
Tiago fala da vinda do Senhor (vers. 8), isto é, a parusia, o final dos
tempos, quando o Senhor será tudo em todos. Parece que Tiago
tenta recolocar o eixo central de sua exposição no Senhor, que não
tem seu nome citado, mas se supõe ser Jesus.
Em seguida, retorna, ainda que brevemente, à questão da
maledicência (vers. 9) relacionada ao julgamento. Tiago indica que
o juiz está às portas. Cita, depois, os profetas, como exemplos de
vida e de sofrimento. Estará ele citando os profetas do Antigo Tes-
tamento ou os profetas cristãos − que, também eles, claramente
falam em nome do Senhor (vers. 10) −? No final, Tiago cita Jó e o
propõe como exemplo de paciência (vers. 11).

Não jurar: 5,12


Vem quase como um apêndice esse convite ao "não jura-
mento". O que é necessário é o sim ser sim e o não ser não. Aqui
se tem um eco do Evangelho de Mateus (5,34). Talvez esse convite
ou esse mandamento de não jurar está em função do sofrimento
e da paciência: trata-se da defesa da verdade a todo custo pela
própria palavra, pelo empenho pessoal. Nesse caso, não se pode
dizer que é um apêndice do argumento, mas, sim, uma consequ-
ência deste.

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© Carta de Tiago 85

A oração e a enfermidade: 5,13-18


O final da Carta de Tiago guarda, ainda, surpresas para um
leitor não avisado. Ela enfoca a oração, a enfermidade e o enfermo
sem quaisquer sinais literários anteriores; simplesmente pergunta,
sempre retoricamente, se há algum contratempo, alguma dificul-
dade (vers. 13). A solução é a oração. Para a alegria, Tiago sugere
não como "solução" − obviamente −, mas como reconhecimento
do estado de espírito, a canção. Essas duas situações − a tribulação
e a alegria − podem parecer contrapostas e formam, à primeira
vista, uma sequência frágil de argumentação. Contudo, elas são
partes opostas da afetividade humana: tribulação gera tristeza; e a
alegria é o contrário da tristeza. A oração é necessária para a supe-
ração da tribulação; e o canto é o testemunho da alegria. As duas
situações têm sequência literária.
Então, vem a questão da enfermidade e a solução proposta
por Tiago: a oração dos presbíteros, sua imposição de mãos e un-
ção com óleo em nome do Senhor (vers. 15). Aqui está, em parte,
ao menos, o argumento bíblico para a Unção dos Enfermos como
sinal sacramental. Oração, imposição de mãos, unção e perdão dos
pecados, com a possível cura do enfermo.
O versículo 16 fala da confissão mútua dos pecados, bem
como da oração. Parece não se tratar da confissão sacramental,
mas, sim, de uma prática humilde de reconhecimento dos erros e
dos limites. O dado da oração é importante, pois compõe, com a
confissão dos pecados, a situação da cura.
Tiago cita a imagem de Elias, profeta do Antigo Testamento,
que, segundo ele, orou com insistência para que não chovesse e,
depois, para que chovesse. Sua oração foi aceita, e o que ele pediu
aconteceu (vers. 17). Talvez Tiago esteja fazendo alguma referên-
cia ao terceiro versículo do quarto capítulo: “pedis e não recebeis,
porque pedis mal, com o fim de satisfazerdes as vossas paixões”.
Certamente, o tema é a oração e sua necessidade.
86 © Cartas aos Hebreus e Católicas

Epílogo: o caminho da verdade: 5,19-20


Tiago não termina como se faz em uma carta comum; ele
interrompe a sequência de argumentos. Isto é bem de acordo com
a própria índole literária da carta, que se apresenta como uma se-
quência de argumentos, algumas vezes, desencontrados.
O final é uma exortação à condução da verdade (vers. 19).
Segundo Tiago, isto é um sinal de salvação e uma remissão de pe-
cados (vers. 20). Não há despedida, recordações ou outro sinal
epistolar. Exceto no primeiro versículo do capítulo um, no qual se
tem o endereço e a saudação inicial, não há quaisquer sinais que
indiquem o início ou o final da carta.

9. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
1) Por que a Carta de Tiago é um texto deuterocanônico do
Novo Testamento?
2) Qual é ou quais são os motivos que levaram os refor-
madores, especialmente Lutero, a desprezar a Carta de
Tiago?
3) Qual é o personagem do Novo Testamento que pode ser
identificado como o autor da Carta de Tiago?
4) Tente descrever como se chega à conclusão de que esse
personagem é o autor de tal carta.
5) Qual é o sentido da expressão "doze tribos da dispersão"
presente no início da Carta de Tiago?
6) Quais são os problemas encontrados na datação da Car-
ta de Tiago?
7) Tente descrever, como em uma apresentação para quem
não conhece a carta, o texto de Tiago em sua estrutura e
em seus argumentos fundamentais.
8) Qual é o grande problema da Carta de Tiago em relação
ao Corpus Paulinum?
9) Qual é a ideia teológica ou ética que a Carta de Tiago
expressa sobre a vivência da Palavra?

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© Carta de Tiago 87

10) Como solucionar o problema da aparente contradição


entre a fé pelas obras e a fé independente delas? Faça
um comentário, baseando-se na comparação dos textos
relacionados a esses pontos.

10. CONSIDERAÇÕES
A Carta de Tiago é um texto de grande importância. O uso e a
vivacidade do Corpus Paulinum fizeram dela um corpo distante do
Novo Testamento, quando não contraditório. É necessário resgatar
essa situação e colocar Tiago em seu justo contexto: a expressão
de um cristão judeu ou de um judeu que abraçou o cristianismo
nascente com intensidade e que expôs seus motivos com vivacida-
de, mas no estilo sapiencial, como era conhecido e usado.
Nesta unidade, pudemos ver que a Carta de Tiago é a primei-
ra das ditas “católicas", bem como perceber que é a mais aberta
para muitas e diversificadas situações. Ela satisfaz a curiosidade do
pesquisador, a necessidade do leitor e a devoção do fiel.
Com tais conhecimentos, estamos aptos a estudar, na próxi-
ma unidade, a Carta aos Hebreus. Então, até lá!

11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


KÜMMEL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. Tradução de Isabel Fontes Leal Ferreira
e João Paixão Neto. São Paulo: Paulinas, 1982.
TUÑI, J. O. ALEGRE, X. Escritos joaninos e cartas católicas. Tradução de Alceu Luis Orso.
São Paulo: Ave Maria, 1999.
VOUGA, F. A carta de Tiago. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Loyola, 1996.
______. A epístola de Tiago. In: MARGUERAT, D. (Org.). Novo Testamento: história,
escritura e teologia. Tradução de Margarida Oliva. São Paulo: Loyola, 2009.
EAD
Carta aos Hebreus

3
1. OBJETIVOS
• Introduzir o estudo da Carta aos Hebreus, apresentando a
situação atual da pesquisa ao seu respeito.
• Considerar a história do texto e sua situação atual.
• Comparar a teologia da Carta aos Hebreus com a teologia
paulina.
• Introduzir os temas mais importantes da carta em uma
leitura sequencial do texto.
• Ler o texto da Carta aos Hebreus, considerando suas par-
tes e suas particularidades.

2. CONTEÚDOS
• Questões introdutórias da Carta aos Hebreus.
• Apresentação do texto da Carta aos Hebreus.
90 © Cartas aos Hebreus e Católicas

• Data e lugar da composição e seus destinatários.


• Estrutura da Carta aos Hebreus.
• O texto da Carta aos Hebreus.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


1) É muito conveniente que, antes do estudo da Carta aos
Hebreus, bem como do conjunto das chamadas “Cartas
Católicas”, você tenha estudado o Corpus Paulinum. As-
sim, a comparação do estilo e da teologia destas será
mais espontânea.
2) É indispensável a leitura da Carta aos Hebreus. O ideal
seria que isto ocorresse antes do estudo desta unidade.
Para tanto, procure servir-se de uma tradução o mais li-
teral possível.
3) Após o estudo dos primeiros pontos desta unidade, pas-
saremos a estudar a própria Carta aos Hebreus. Desse
modo, recomendamos que você, no decorrer da leitura
dos comentários aqui apresentados, acompanhe o texto
da carta.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
A Carta aos Hebreus é um dos escritos mais interessantes do
Novo Testamento. Ela apresenta uma espécie de resumo do An-
tigo Testamento, mostrando suas figuras, seus eventos, seus mo-
mentos fundamentais e seu desenvolvimento, completando com o
personagem mais importante − Jesus Cristo −, que é apresentado
como Sacerdote, como Pontífice da Fé.
A Carta aos Hebreus, embora seja muito importante no câ-
non do Novo Testamento e na Teologia, não é muito valorizada no
dia a dia pastoral. Infelizmente, ela não é devidamente utilizada
nas catequeses e não tem as devidas considerações quando é pro-
clamada em assembleia litúrgica, especialmente na dominical. Isto
talvez se deva à linguagem e às imagens que o texto apresenta,

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© Carta aos Hebreus 91

que nem sempre são acessíveis de imediato para quem não está
familiarizado com o pensamento de índole hebraica.
Além disso, a Carta aos Hebreus não apresenta um conjun-
to de perícopes tão direcionadas à ética e ao comportamento de
pessoas e de comunidades, e isto é algo que o Corpus Paulinum
apresenta em muitos momentos. A Carta aos Hebreus é mais mar-
cante no aspecto doutrinário, teológico − e isto nem sempre atrai
a atenção dos leitores comuns.
Contudo, a leitura da Carta aos Hebreus abre um horizonte
muito interessante para a teologia bíblica e à própria teologia, pois
se trata de uma visão diferente da paulina, apesar de desta muito
depender. Tal fato dá a entender que, embora haja uma diferença,
também há uma orientação comum em ambos os textos: a Pessoa
e a Identidade de Jesus.
Desejamos que o estudo desse texto bíblico seja marcante e
que o desta unidade seja útil e oportuno a você!

5. A CARTA AOS HEBREUS


Com 13 capítulos e 303 versículos, a Carta aos Hebreus apa-
rece logo após o Corpus Paulinum, do qual, um dia, ela fez parte,
segundo a concepção antiga de que ela era de natureza paulina.
Tal carta é, certamente, um dos escritos mais interessantes do con-
junto dos textos não narrativos do Novo Testamento.
O antigo documento chamado “Codex Chester Beatty II”,
identificado como P46, coloca Hebreus entre as cartas paulinas,
as aos Romanos e a 1ª aos Coríntios, praticamente declarando que
ela é um texto paulino. Com efeito, pela argumentação bem arti-
culada e pelo conteúdo denso, o escrito que a tradição mais antiga
já identificava como Carta aos Hebreus foi considerado uma epís-
tola de Paulo aos judeus da Igreja mãe de Jerusalém.
92 © Cartas aos Hebreus e Católicas

Corpus Paulinum –––––––––––––––––––––––––––––––––––––


Esse termo significa “corpo de Paulo” e se refere ao conjunto de suas cartas. A
palavra corpus é comum na teologia bíblica: temos o corpus profeticum, o corpus
evangelicum etc. O conjunto de escritos que guarda algum tipo de unidade de
autoria, de temática, de gênero, de intensidade ou de outra ordem pode ser cha-
mado de corpus, isto é, de corpo.
Sabemos, porém, que nem todas as cartas atribuídas a Paulo são, inquestiona-
velmente, dele. Temos, assim, as chamadas “cartas protopaulinas” ou aceitas
como autenticamente de Paulo. Temos, ainda, as cartas “deuteropaulinas” ou
atribuídas a Paulo, mas não com a certeza absoluta. Há muita controvérsia a
respeito.
A questão da autoria não se limita ao texto e à materialidade da mensagem. Al-
guém pode, muito bem, ser o autor de um escrito, de uma pintura ou de uma obra
de arte sem ter, necessária ou materialmente, o realizado. O que pode estar lá
expresso é o seu pensamento, os seus valores, as suas intenções etc. A autoria
vai além da materialidade da escrita: ela está no sentido, isto é, no pensamento
expresso.
Assim, o Corpus Paulinum pode ser dito de Paulo, embora algumas cartas não te-
nham, provavelmente, a sua origem nele, mas em seus discípulos. Seguramente,
são paulinas as cartas: aos Romanos; as 1ª e 2ª aos Coríntios; Gálatas; Filipen-
ses; 1ª aos Tessalonicenses; e a Filêmon. Estas são as “cartas protopaulinas”. As
outras, que são chamadas “deuteropaulinas”, conforme visto anteriormente, são:
a 2ª aos Tessalonicenses; Colossenses; Efésios; as 1ª e 2ª a Timóteo; e Tito. Não
há um consenso entre os estudiosos a respeito dessa classificação.
Hebreus, por sua vez, excetuando algumas afirmações no passado e algumas
declarações da Igreja Católica, não foi aceita como paulina.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Complexa em sua concepção argumentativa e em sua lingua-
gem alegórica, bem escrita na língua grega, pontuada por uma te-
ologia de promessa e de cumprimento que se concentra na Pessoa
do Filho e em sua Missão Sacerdotal, Hebreus é um estímulo aos
seus ouvintes e leitores para ter perseverança. Ela pode ser resu-
mida de muitos modos e com muitos dos seus 303 versículos – em
especial, um deles: “somos homens de fé, para a conservação da
alma” (10,39).

Introdução: importância e colocação no cânon


Como vimos, Hebreus já ocupou um lugar proeminente no
Corpus Paulinum. Sua colocação atual − no final do conjunto das
cartas paulinas − sugere a dificuldade de identificar o texto de He-
breus com um escrito paulino autêntico. Além disso, há a questão
da índole do próprio texto: carta ou epístola? Discurso ou homilia?

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© Carta aos Hebreus 93

O texto de Hebreus está mais para uma homilia, para uma


espécie de discurso feito a uma assembleia preparada para ouvir,
que já conhece as partes dos argumentos e que recebe a mensa-
gem de alguém que relaciona essas partes por meio de sua habi-
lidade e do testemunho de sua experiência. Assim, seria possível
falar “Homilia aos Hebreus” ou “Discurso aos Hebreus”, mas isto
tornaria tocante ao preciosismo e cansativo o uso do termo. Dessa
forma, o presente comentário vai identificar o texto como “carta”,
sabendo que, assim, sua índole é mais marcante.

Questões introdutórias
Canonicidade
Houve alguma dificuldade na aceitação canônica da Carta
aos Hebreus. Alguns padres da Igreja questionaram sua autenti-
cidade como escrito cristão e como escrito ortodoxo. O chamado
“Fragmento Muratoriano” cita 13 cartas de Paulo, excluindo He-
breus do conjunto. Ela foi atribuída por alguns, como Tertuliano,
a Barnabé. Outros escritores, como Pelágio e Ambrosiastro, não
citam o texto. São Jerônimo aponta dificuldades na aceitação de
Hebreus por parte dos latinos, mas ele mesmo não dá muita aten-
ção a isto e considera Hebreus um texto canônico. Curiosamente,
Agostinho não reconhece Hebreus como um escrito paulino.
O Oriente cristão − as Igrejas ligadas às antigas Igrejas de lín-
gua grega − está quase sempre a favor da canonicidade de Hebreus
e, além disso, de sua suposta autoria paulina. Assim, encontra-se
essa ideia em Clemente de Alexandria, em Panteno, em Eusébio de
Cesaréia e em Orígenes, que reconhecem em Hebreus um redator
distinto de Paulo que teria ditado o texto.
Autoria, época da composição e destinatários
Autoria: algumas evidências: a própria Carta aos Hebreus
não menciona qualquer autor. Há somente duas informações que
podem fornecer alguma pista para uma dedução.
94 © Cartas aos Hebreus e Católicas

• No trecho 2,1, encontra-se a afirmação: “por isso, é ne-


cessário prestarmos a maior atenção à mensagem que
temos recebido, para não acontecer que nos desviemos
do caminho reto”. O autor, no início da exortação à fideli-
dade, sugere que recebeu junto aos seus ouvintes a men-
sagem à qual deve ser fiel e não deve dela se desviar. Há
uma sugestão de transmissão, como em Paulo, na 1ª aos
Coríntios (15,1-2). A ideia é que o autor possa ser da se-
gunda geração cristã.
• Outro dado a ser considerado é a menção a Timóteo
(13,23): “sabei que nosso irmão Timóteo foi posto em li-
berdade; se ele voltar a tempo, irei com ele ver-vos”. Se-
ria esse Timóteo o colaborador de Paulo que recebe duas
cartas no Corpus Paulinum? Não pode ter havido, apenas,
um Timóteo nos círculos cristãos primitivos. Além disso,
essa informação pode ser uma inserção tardia no texto
− isto para justamente dar-lhe um sentido − embora seja
muito pouco provável.
Hipóteses de autoria: algumas hipóteses foram levantadas
durante a história e outras são levantadas pela moderna teologia
bíblica.
1) Paulo: é a hipótese mais antiga. Hebreus foi muito citada
como um escrito paulino na Antiguidade e manteve essa
identidade, especialmente na Igreja Católica. Hoje, ela é
praticamente abandonada por todos. Contudo, é signifi-
cativo que o pensamento do escrito apresente grandes
influências paulinas. A ficção literária criou a ideia de
uma autoria indireta de Paulo.
2) Lucas: há alguma semelhança de estilo entre Hebreus e
Atos dos Apóstolos. Isto levou Clemente de Alexandria
a supor que Paulo teria escrito em hebraico uma carta,
que depois foi traduzida por Lucas. Todavia, Hebreus não
parece ser uma tradução; embora possa haver algumas
semelhanças entre essa carta e o texto de Atos, as dife-
renças são mais relevantes.

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© Carta aos Hebreus 95

3) Clemente Romano: esta é uma hipótese levantada por


Orígenes, que pensou, em outro momento, na autoria
lucana de Hebreus. Há algumas afinidades entre a 1ª
Carta de Clemente e a Carta aos Hebreus. Aliás, esse ter-
ceiro bispo de Roma, que foi o sucessor de Pedro, cita
Hebreus nessa sua citada primeira carta.
4) Apolo: era um judeu-cristão de Alexandria, instruído
na retórica grega (cf. At 18,24ss). Assumiu, também, o
empenho missionário, mas não junto a Paulo (cf. 1Cor
1,12;3,4ss;16,12). No entanto, não há qualquer menção
a uma prática epistolar de Apolo.
5) Barnabé: essa hipótese, já levantada por Tertuliano,
é muito destacada. O cipriota Barnabé era da tribo de
Levi, fato que o tornava conhecedor das tradições sa-
cerdotais. Algumas dificuldades podem ser levantadas a
respeito: Barnabé deveria ter evoluído muito na capaci-
dade de expressão e de eloquência para poder compor
Hebreus; então, teria ele superado tão intensamente as
questões relativas ao culto e ao sacerdócio levítico como
apresenta o texto de Hebreus? Sobre a autoria de He-
breus, podemos concordar com Kümmel:
Na realidade, já não é possível determinar a identidade do autor.
Esta conclusão foi tirada por Orígenes […]. A tese […] de que Hb,
dentro do NT, se acha mais estreitamente ligada a Lc e At lingüísti-
ca e conceptualmente, adapta-se às condições mais aceitas apenas
num sentido muito limitado, e prova somente que Hb, como o au-
tor de Lc e At, foi influenciada pela visão de mundo da cristandade
gentílica posterior (1983, p. 528).

Época do escrito: não há menção ao Templo de Herodes, que


tanto deve ter impressionado os visitantes de Jerusalém, assim
como impressionou até aos apóstolos. Não se diz nada a respeito
da catástrofe do ano 70 d.C., quando Roma destruiu o lugar san-
to. Mas parece claro que o texto se serve da ideia e das imagens
do santuário ideal − aquele do Antigo Testamento, independente-
mente de sua realidade física.
Constata-se que o clima vivido pelos fiéis é de perseguição
e de provação, provavelmente após o período de Paulo. O que pa-
rece certo é que Hebreus foi escrita antes da 1 Clemente, datada
96 © Cartas aos Hebreus e Católicas

do ano 96 d.C. Se Timóteo, citado no trecho 13,23, é o discípulo de


Paulo, então ele ainda está vivo, seguramente já ancião. As perse-
guições supostas com a afirmação de 2,1 podem ser as ocorridas
no tempo de Domiciano, entre os anos 81 d.C. e 96 d.C. Esse esta-
do de coisas sugere que o texto tenha sido composto entre os anos
80 d.C. e 90 d.C. Isto coloca Hebreus como um dos últimos escritos
cristãos canônicos.
Quanto ao local no qual o texto foi escrito, as opiniões va-
riam: Roma, Alexandria, Éfeso, Antioquia etc. Todos estes eram
centros cristãos de irradiação da mensagem evangélica. Em 13,24,
encontra-se o dito: “os irmãos da Itália vos saúdam”. Isto pode su-
gerir uma origem romana. Mas não é necessário que por detrás
desse grupo não definido "da Itália" esteja o ambiente de origem.
Esses "da Itália" podem ser um grupo específico em uma comuni-
dade maior; talvez alguns conhecidos dos destinatários ou pode,
até mesmo, ser uma menção indireta dos próprios destinatários.
De qualquer forma, também não há uma indicação clara do
local de origem da composição da carta, a não ser que este era
um local tomado por perseguições e por dificuldades oriundas da
própria vivência da identidade cristã.
Hipóteses de destinatários: aqui está uma das diferenças que
saltam aos olhos entre a Carta aos Hebreus e o Corpus Paulinum.
Enquanto Paulo dirige suas cartas às Igrejas e pessoas, Hebreus
não apresenta destinatário. Este poderia ser qualquer cidade com
uma importante e notável comunidade cristã: Roma, Corinto, Éfe-
so, Antioquia, Alexandria etc.
A favor do destinatário romano, pode-se citar os seguintes
fatores:
• A citada menção aos "da Itália" (13,24) sugere pela ques-
tão da afinidade a possibilidade de que a carta seja dirigi-
da a Roma ou às Igrejas da península itálica.
• A Carta aos Hebreus foi citada por Clemente Romano, o
terceiro bispo de Roma, portanto, papa. Ele a aponta em
1 Clemente 2 − carta essa dirigida aos Coríntios.

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© Carta aos Hebreus 97

• Além disso, no capítulo 13 de Hebreus, aparece em três


lugares a expressão “os que vos guiam” ou algo seme-
lhante (cf. tradução): “lembrai-vos de vossos guias” (vers.
7); “sede submissos e obedecei aos que vos guiam” (vers.
17); “saudai a todos os que vos guiam e a todos os san-
tos” (vers. 24). Essa fórmula é encontrada diversas vezes
na 1 Clemente − o que pode sugerir semelhança literária,
origem/autoria comum ou conceitos aproximados, bem
como destinatários, o que levaria Hebreus a ser destinada
aos Coríntios!
O que parece certo é que Hebreus é destinada aos cristãos
com boa formação nas Escrituras judaicas, de segunda ou de ter-
ceira geração, que enfrentaram ou enfrentam perseguições ou di-
ficuldades pela sua identidade.

6. O TEXTO DA CARTA AOS HEBREUS


Características
Hebreus apresenta uma curiosa estrutura, difícil de ser in-
tuída de imediato, mas que, aos poucos e com diversas leituras,
passa a ser percebida. Nota-se, fundamentalmente, além de uma
introdução (1,1-4) e um epílogo (13,1-25), três partes ou centros
de atenção.
• O Filho superior aos anjos e a Moisés − parte que pode
ser identificada em 1,5-3,6.
• O Sumo Sacerdócio de Jesus − entre 3,7-10,18, parecendo
ser este o núcleo do texto.
• A Fé dos antigos e em Jesus, consequência do que veio
antes − em 10,18-12,29.
Além disso, no tecido do texto, encontram-se diversas in-
terrupções parenéticas, ou seja, instruções éticas ou morais. Elas
estão nos seguintes passos: 2,1-4; 3,7-4,11; 4,14-16; 5,11-6,12;
98 © Cartas aos Hebreus e Católicas

10,19-39; 12,1-13,17. Parece que a parte dogmática ou a exorta-


ção à adesão ao mistério está em sintonia com as consequências
morais que impõem.

Divisão
São muitas as possibilidades de divisão de Hebreus.
1) Por exemplo, pode-se considerar duas partes fundamen-
tais:
• Primeira parte: 1,1-10,18 − parte dogmática.
• Segunda parte: 10,19-13,25 − parte moral.
2) Outro plano estrutural de Hebreus pode ser uma divisão
em três partes:
• Primeira parte: 1,1-4,13 − o Filho revela-se.
• Segunda parte: 4,14-10,18 − o Sacerdócio de Cristo.
• Terceira parte: 10,19-13,25 − a fidelidade na fé.
3) Outra possibilidade de divisão é obtida pelo plano literá-
rio, bem no estilo das exortações gregas:
• Primeira parte: 1,4-4,13 − introdução e apresentação
dos temas.
• Segunda parte: 4,14-6,20 − exposição demonstrati-
va.
• Terceira parte: 7,1-10,18 − argumentos e exortações.
• Quarta parte: 10,19-13,25 − conclusões.
Apresentamos na caixa de texto ao lado um esquema funda-
mental do texto de Hebreus, que parece ser conforme à sua índole
e adequado à exposição que se seguirá.

Esquema fundamental de Hebreus ––––––––––––––––––––––


1,1–4 Prólogo
1,5—2,18 O Filho e os anjos
2,5–18 A redenção: obra do Filho
2,1–4 Exortação à fidelidade
1,5–14 A Escritura anuncia o Filho

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© Carta aos Hebreus 99

3,1—5,10 Jesus Cristo, Sumo Sacerdote


3,1–6 Cristo e Moisés
3,7–19 Estar perante Deus
4,1–13 Ouvir a Palavra
4,14—5,10 Jesus: o Filho e sumo sacerdote
5,11—10,18 Jesus Cristo e a Nova Aliança
5,11–14 Introdução
6,1–8 Motivos
6,9–20 Estímulos e encorajamento
7,1–3 A figura de Melquisedec
7,4–10 Melquisedec recebe o reconhecimento de Abraão
7,11–14 O novo sacerdócio
7,15–25 Sacerdote para sempre!
7,26–28 O sacerdote perfeito
8,1–5 Sacerdócio e santuário
8,6–13 Cristo: o mediador
9,1–14 Cristo: o herdeiro do santuário eterno
9,15–28 Cristo: seu sangue sela a Aliança
10,1–19 Os sacrifícios antigos foram superados

10,19—12,29 A Fé e a perseverança
10,19–25 Exortação à fidelidade
10,26–31 O perigo da apostasia
10,32–39 Exortação à perseverança
11,1–40 A fé dos antigos
12,1–4 A fidelidade de Cristo
12,5–13 A educação em Cristo
12,14–17 O perigo da infidelidade
12,18–29 As duas Alianças

13,1–25 Conclusões
13,1–16 Recomendações
13,17–19 Obediência aos guias
13,20–25 Despedida
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

1,1-4: prólogo
O texto de Hebreus começa de modo diferente das outras
obras epistolares do Novo Testamento. Não há um destinatário,
100 © Cartas aos Hebreus e Católicas

uma apresentação pessoal ou uma motivação específica, como é


comum, por exemplo, nos textos paulinos. Todavia, assim como
em João 1,1-18, no chamado "prólogo" do Evangelho joanino,
também em Hebreus 1,1-4 se encontra um denso resumo de al-
guns temas que serão apresentados no corpo da carta.
v. 1: – Revelação histórica: muitos já comunicaram Deus;
— Acento nos Profetas.
v. 2: – Últimos tempos: revelação através do Filho;
– O Filho é "herdeiro de tudo", isto é, "Senhor";
– Por ele foi feito o tempo, isto é, mais uma afirmação de seu
"senhorio".
v. 3: – Filho: "resplendor da glória" e expressão ou "revelação" do
ser de Deus;
– Mantém o universo ou o mundo criado através de sua palavra,
isto é, sua existência;
– Realizou a "purificação dos pecados", isto é, restabeleceu a
ordem original ou fez o papel do sacerdote;
– Glorificação do Filho: identificou-se com Deus e tudo o que
fez e realizou foi obra de Deus, a "Majestade".
v. 4: – O Filho é superior aos anjos, mensageiros de Deus;
– Seu "nome" ou identidade é herdado de Deus, isto é, Ele vem
diretamente de Deus!
Essas ideias servem como uma introdução aos temas que
serão abordados na carta. O centro de tudo é o Filho e a sua co-
municação com o homem, especialmente com Israel, o Povo da
Promessa. Deus sempre se comunicou com esse povo, e agora é o
Filho quem se dá a conhecer. Não são seres intermediários que se
relacionam com o homem para levá-lo a conhecer Deus: é o pró-
prio Filho. Ele está na mesma tradição dos Profetas de Israel que,
no passado, foram testemunhas.
Alguns pontos devem ser aqui recordados: em primeiro lu-
gar, nos tempos da composição de Hebreus, não havia uma clareza
absoluta a respeito da identidade de Jesus. As afirmações de He-
breus são muito fortes para seus ouvintes originais. Além disso, o
autor parte de uma matriz hebraica; ele usa elementos hebraicos,
como, por exemplo, a figura dos antigos como modelos de adesão
à vontade de Deus.

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© Carta aos Hebreus 101

1,5-2,18: o Filho e os anjos


Essa primeira parte do texto de Hebreus, segundo a divisão
apresentada aqui, se trata de um tema importante para seus pri-
meiros leitores. Talvez hoje não seja tão evidente o problema, mas,
naqueles tempos, o assunto “anjos” tinha notável destaque.

Anjos–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A palavra “anjo” é uma possível tradução do hebraico mal’āk e do grego ágge-
los, que significam “mensageiro”. O aportuguesamento da palavra grega fixou
o substantivo “anjo”. Os conceitos são os mais variados possíveis, pois é uma
palavra de amplo e diversificado uso. No Antigo Testamento, um anjo pode ser
um mensageiro de Deus ou o próprio Deus, como em Josué (5,14s). No livro
deuterocanônico Tobias, aparece um anjo que acompanha o jovem que dá nome
a esse livro (Tb 5,5). No texto de Josué, o mensageiro de Deus confunde- se com
o próprio Deus; no texto de Tobias, eles são figuras distintas. No Novo Testa-
mento, os anjos distinguem-se de Deus como nos textos de anunciação: a José,
em Mateus (1,18-25), e a Maria, em Lucas (1,26-46). O certo é que o anjo é um
anunciador de algo importante e decisivo; é como um arauto: porta uma notícia
que dá um rumo novo ou confirma a história, o fato, a pessoa, a missão etc.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

1,5-14: a Escritura anuncia o Filho


A perícope inicia com duas perguntas retóricas a respeito da
eleição do Filho: “pois a quem dentre os anjos disse Deus alguma
vez: tu és meu Filho; eu hoje te gerei?” (vers. 5); e “eu serei seu
Pai e ele será meu Filho?”. A ideia é que os anjos, aqui entendidos
como "mensageiros" de Deus ou, mais propriamente, mensagei-
ros da revelação de Deus, não têm um status igual ao do Filho. O
Filho tem a prerrogativa de ser o maior de todos, superando os
tais anjos.
As interrogações retóricas continuam nos versículos seguin-
tes, sempre contrapondo os "anjos" ao Filho e considerando a im-
portância desse último diante daqueles. Os tais anjos são “espíritos
ao serviço de Deus, que lhes confia missões para o bem daqueles
que devem herdar a salvação” (vers. 14).
Encontra-se aqui uma informação subliminar: parece que,
nos ambientes judeu-cristãos do final do primeiro século, havia
102 © Cartas aos Hebreus e Católicas

alguma influência do pensamento acerca dos anjos maior do que


era de se esperar. O autor de Hebreus inicia seu discurso com ar-
gumentos a favor da proeminência do Filho.

2,1-4: exortação à fidelidade


Após a introdução ao tema inicial de Hebreus, seu autor faz
uma pausa para a exortação, como que sabendo da necessidade
de seus leitores/ouvintes. A insistência é na observância cuidado-
sa dos ensinamentos (vers. 1). O tema dos anjos ainda continua
latente, pois eles são, agora, quase que contrapostos aos que ou-
viram a pregação do Senhor e dos que o ouviram − supostamente
as primeiras gerações de discípulos.
v. 1: — Observar com cuidado os ensinamentos;
– Para que aconteçam extravios.
v. 2: — A Palavra anunciada por anjos entrou em vigor;
– Transgressão e desobediência foram punidas.
v. 3: – Também não escaparão os que negligenciarem a salvação;
– A Salvação foi anunciada pelo Senhor;
— Ela foi fielmente anunciada pelos que a ouviram.
v. 4: – Foi testemunhada por sinais, prodígios, milagres e dons do
Espírito Santo.
Nessa pequena perícope de apenas quatro versículos, en-
contra-se uma possível alusão à autoria de Hebreus. No terceiro
versículo, o texto alude à transmissão da salvação feita, como que
em um segundo momento, a quem escreve e aos seus supostos
leitores: “tão grande salvação. Esta começou a ser anunciada pelo
Senhor. Depois, foi-nos fielmente transmitida pelos que a ouvi-
ram”. Isto sugere que o autor de Hebreus e seus leitores originais
são da segunda geração cristã, provavelmente os discípulos dos
apóstolos, herdeiros de sua pregação.

Nesse último parágrafo, foi utilizada a tradução de “A Bíblia de


Jerusalém”, que apresenta o texto com mais fidelidade ao original
grego. Nele, encontra-se uma formulação passiva do verbo com o
pronome da primeira pessoa do plural. A Bíblia da Ave Maria sim-
plesmente traduz: “anunciada primeiramente pelo Senhor e depois
confirmada pelos que a ouviram”. Nessa tradução, o autor e seus

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© Carta aos Hebreus 103

leitores não estão inseridos no texto, ou seja, “os que a ouviram”


são terceiros. Na tradução da Bíblia de Jerusalém, a ideia é que o
anúncio foi feito a quem escreve e a quem lê o presente texto.

25-18: a redenção: obra do Filho


Essa primeira parte de Hebreus está chegando ao seu ponto
alto. Pela primeira vez, aparece o nome Jesus, no versículo nono,
e a argumentação, que tem por fundo os anjos, continua. Mas o
acento está na ação do Filho.
Em primeiro lugar, o texto, citando alguns pensamentos do
Antigo Testamento e alguns das cartas paulinas, apresenta o ser
humano e a sua situação de dependência perante a criação. Tudo
está submetido a Deus: “se lhe sujeitou todas as coisas, nada dei-
xou que não lhe ficasse sujeito” (2,8). Jesus Cristo, feito um pouco
menor do que os anjos, faz parte do que está submetido a Deus.
Ele sofre a morte e depois é coroado de glória.
O autor de Hebreus lança mão da ideia de dependência e
relação entre os seres. É isto o que ele chama de "dependência"
e de "submissão". O Filho submete-se à morte e a todo tipo de
sofrimento e, assim fazendo, tem submetido a si mesmo todo o
universo. Ele conduz tudo à gloria (vers. 10).
Vêm as qualidades de Santificador e de santificados, concei-
tos aplicados, respectivamente, a Jesus e aos fiéis. Todos depen-
dem da ação de Jesus. Hebreus dá voz a Jesus, atribuindo-lhe ditos
que, por sua vez, são a expressão do que o autor compreende a
respeito do mistério de seu anúncio. Assim, lê-se: “– Anunciarei
teu nome a meus irmãos, no meio da assembleia cantarei os teus
louvores” (vers. 12); “– Quanto a mim, ponho nele a minha con-
fiança; e: eis-me aqui, eu e os filhos que Deus me deu” (vers. 13).
O texto segue com o raciocínio de equivalente. Assim como
os filhos têm igualdade – isto é, carne e sangue − entre si, e se o
Filho assumiu essa situação de submissão perante Deus, então ele
104 © Cartas aos Hebreus e Católicas

pode, com base na experiência de dependência, levar os homens


até à sua condição de libertados. Nesse ponto − e, certamente, em
outros da carta −, Hebreus aproxima-se muito da teologia do Evan-
gelho de João. Neste, o Verbo ou a Palavra, a Revelação de Deus,
torna-se fato concreto, vira pessoa humana em Jesus, conforme
declara o Prólogo (Jo 1,1-18). Essa revelação ou demonstração da
Verdade de Deus e, consequentemente, do próprio homem divini-
zado se torna a libertação dele mesmo e de seu futuro.
A Carta aos Hebreus insiste, ainda, na questão dos anjos,
agora para mostrar que a ação salvífica não foi dirigida a eles, mas
à "descendência de Abraão" (vers. 16). De modo indireto, o texto
refere-se, aqui, aos seus leitores originais. Sendo eles a "descen-
dência de Abraão", é a eles que a ação de Deus se dirigiu. Outra
vez, a argumentação é semelhante àquela do Evangelho segundo
João, quando o texto declara: “convinha que ele se tornasse em
tudo semelhante aos seus irmãos” (vers. 17). Tais “irmãos" são os
seres humanos.
No trecho 2,17, Hebreus introduz, ainda que mencionando
apenas, o tema do sacerdócio de Jesus Cristo. Sem citar o nome
de Jesus, o texto identifica-o como o sacerdote misericordioso e
fiel, que expia os pecados do povo. Esse ponto está em grande
acordo com a teologia da morte do Cordeiro, que está expressa
nas primeiras páginas de João (1,36): “e, avistando Jesus que ia
passando, [João Batista] disse: eis o Cordeiro de Deus”. O Cordeiro
é o animal sacrificado que, com o sangue derramado, satisfaz a
culpa do pecado cometido pelo homem que o oferece. Esta será
a teologia expressa em Hebreus mais adiante; aqui, ela começa a
ser esboçada.

3,1-5,10: Jesus Cristo, Sumo Sacerdote


3,1-6: Cristo e Moisés
O autor de Hebreus dirige-se aos seus leitores/ouvintes e
convida-os a considerar a figura de Jesus em relação à de Moisés.
Ele identifica Jesus como "apóstolo" e "sumo sacerdote" da fé.

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© Carta aos Hebreus 105

Apóstolo –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A palavra “apóstolo” é de origem grega e significa, fundamentalmente, “enviado”.
O termo é geralmente aplicado para os Doze discípulos escolhidos por Jesus,
como visto em Mateus (10,2). Paulo utiliza tal verbete de modo mais dinâmico:
“apóstolo” é todo aquele que é chamado, como em Romanos (1,1), por exem-
plo, em que ele se declara “chamado para ser apóstolo”. Pode ser, também,
um membro da Igreja, conforme se lê em Atos dos Apóstolos (16,4): “comunica-
va aos irmãos os decretos dados pelos apóstolos e presbíteros de Jerusalém,
recomendando-lhes que fossem observados”. Finalmente, a palavra “apóstolo”
pode ser aplicada ao próprio Jesus, assim como é o caso deste passo de He-
breus (3,1): “Jesus é o apóstolo, o enviado. Se é o enviado, Ele o é por alguém”.
Seguramente, o autor de Hebreus atribui esse envio a Deus.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
As figuras de Moisés e de Jesus são comparadas. Um e outro
são fiéis na missão que receberam. Contudo, Jesus tem maior hon-
ra, pois, na comparação, ele é o arquiteto, e Moisés, a casa. Um
passo depois no texto e o arquiteto passa a ser Deus, e Moisés é o
habitante da casa, sendo Jesus, o Filho. São comparações rápidas,
metáforas dependentes umas das outras, que fazem que as ima-
gens se sucedam rapidamente.
3,7-19: estar perante Deus
Essa perícope se inicia com a menção ao Salmo 95(94), des-
tacando, poeticamente, o final da citação em que se encontra a
ideia de "repouso". A dureza de coração, que é lembrada na con-
tinuação da citação do Salmo, parece ser a incredulidade. Esta foi
a situação dos que saíram do Egito liderados por Moisés. Devido
a essa incredulidade, todos os que de lá saíram e passaram pelo
deserto durante os 40 anos não puderam entrar no "repouso", que
parece ser a comunhão com Deus.
O texto faz menção ao período do deserto citando um passo
de Números (14,29), no qual Deus afirma que os saídos do Egito
e adentrados no deserto não chegarão até à terra prometida, mas
perecerão no deserto. Parece que a comparação é clara: não basta
sair do Egito para estar com a salvação garantida; é necessário pas-
sar pela provação do deserto e aderir ao Deus salvador.
106 © Cartas aos Hebreus e Católicas

Ao falar de deserto, o autor de Hebreus está citando um con-


ceito e uma realidade conhecidos na Escritura. No deserto, Israel
é provado, como se lê em todo o evento Êxodo. Ao deserto, gran-
des figuras bíblicas vão para encontrar-se consigo mesmas e com
o Deus da Aliança, como no caso de Elias, em 1ª dos Reis (19,1-
18). Para o deserto vai Jesus, imediatamente antes do início de sua
pregação − como nos contam os Evangelhos Sinóticos, como, por
exemplo, em Mateus (4,1ss).
Talvez o autor de Hebreus esteja sugerindo de um modo
velado que as dificuldades de seus leitores em seguir a Jesus na
sociedade na qual viviam fosse como os tempos de deserto. A per-
severança na fé introduz ao repouso em Deus, que é a identidade
com Ele, a segurança Nele − a libertação que se segue ao deserto
para os que são fiéis. A incredulidade, por sua vez, impede a entra-
da no “repouso” em Deus.
4,1-13: ouvir a Palavra
Para tudo isso, é necessário ouvir a palavra. Hebreus passa
a falar, particularmente, aos seus ouvintes, e o faz incluindo-se,
usando a primeira pessoa do plural. Eles, o autor e os seus ouvin-
tes, abraçaram a fé (vers. 3) e devem entrar no repouso. Os que
não aceitaram a Boa Nova não entrarão no repouso devido à in-
docilidade.
Ser indócil parece não estar em sintonia, ou seja, não acei-
tar a mensagem da salvação. Isto não ficou no passado de Israel:
outros hão de entrar no repouso de Deus no lugar de Israel, pois a
uma nova chance, um novo dia, um ‘hoje’ (vers. 7) em que se pode
ouvir a voz de Deus. O autor continua a citar o Salmo 95(94) em
sua argumentação.
Os antepassados são mencionados como modelos para a
queda. Eles caem, pois não ouviram a voz de Deus. Nesse ponto,
vem um texto citado na 1ª de Pedro (1,23). Aqui, esse texto apa-
rece em (4,12):

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© Carta aos Hebreus 107

Porque a palavra de Deus é viva, eficaz, mais penetrante do que


uma espada de dois gumes e atinge até a divisão da alma e do cor-
po, das juntas e medulas, e discerne os pensamentos e intenções
do coração.

A Palavra é a comunicação de Deus; primeiro por meio de


Moisés, já citado nos passos anteriores; depois por meio de Jesus.
Hebreus vai, aos poucos, concentrando sua argumentação em Je-
sus.
4,14-5,10: Jesus: o Filho e Sumo Sacerdote
O texto afirma: “temos, portanto, um grande Sumo Sacerdo-
te que penetrou nos céus, Jesus, Filho de Deus. Conservemos fir-
me a nossa fé” (vers. 14). Depois de abordar a incredulidade como
motivação para não entrar no "repouso" em Deus, Hebreus exorta
à firmeza na fé.
Contudo, o Sumo Sacerdote Jesus não é insensível às fraque-
zas humanas; Ele sabe que os fiéis são frágeis e que, portanto, se
compadecem das mesmas fraquezas, pois ele também padeceu
delas, menos no pecado (vers. 15). Aparece a imagem do "trono
da graça" no sentido de fonte da vida divina. Certamente, é uma
referência à Pessoa de Jesus Cristo, Sumo Sacerdote misericordio-
so.
Em seguida, Hebreus faz uma série de considerações a res-
peito do sacerdócio hebraico. Inicia afirmando: “todo pontífice é
escolhido entre os homens e constituído a favor dos homens como
mediador nas coisas que dizem respeito a Deus, para oferecer dons
e sacrifícios pelos pecados” (5,1).
Entretanto, Jesus é um sacerdote diferente, pois não depen-
de de uma linhagem, mas, sim, de um chamado. Os sacerdotes
dependiam não de sua vontade, mas da linhagem de Aarão. Jesus
não depende de algo parecido, mas herda do Pai a filiação e se
torna, no pensamento de Hebreus, sacerdote.
108 © Cartas aos Hebreus e Católicas

Nesse ponto, a Carta aos Hebreus usa do Salmo 110(109) em


uma leitura real-messiânica. O Salmo tem, dessa forma, uma in-
terpretação que vai além de uma elegia para um rei: é um hino de
glória (lembre-se do "trono da graça”) para o Messias, que aparece
revestido da qualidade de sacerdote por uma identidade eterna,
uma geração divina.
É mencionado o personagem Melquisedec como sacerdote
eterno (vers. 6). Sua menção é para destacar a figura do Cristo −
Ele sim, o verdadeiro sacerdote que se compadece dos seres hu-
manos, que se identifica com eles para poder resgatá-los. Sobre
Jesus, diz-se: “nos dias de sua vida mortal, dirigiu preces e súplicas,
entre clamores e lágrimas, àquele que o podia salvar da morte,
e foi atendido pela sua piedade” (vers. 6). Logo depois, Jesus é
identificado como Filho obediente que realiza a vontade do Pai,
aprendendo com submissão a viver o sofrimento (vers. 7-8). Por
experimentar tudo isso, ele se torna a fonte de salvação.
No final da perícope, volta a imagem de Melquisedec: Je-
sus recebe de Deus, no pensamento de Hebreus, o título de Sumo
Sacerdote segundo a ordem de Melquisedec. Isto lhe dá um sa-
cerdócio que vai além das tradições judaicas – o que torna Jesus
independente de quaisquer convenções.

Jesus Sacerdote –––––––––––––––––––––––––––––––––––––


Jesus não era de família sacerdotal, mas, sim, da família de Judá, segundo a
tradição bíblica. José, seu pai, era, declaradamente, da casa de Davi, isto é,
um descendente longínquo da herança real. Decididamente, não havia ligações
familiares de Jesus com o clero de Jerusalém. Assim, Ele nunca foi comparado
aos sacerdotes. Ao contrário, foi severamente questionado por eles nos relatos
dos Evangelhos. Dessa forma, a apresentação de Jesus como Sumo Sacerdote
poderia fazer incorrer confusão nos leitores de Hebreus. A ideia de um sacerdó-
cio não aarônico, isto é, não dependente de tradições familiares e de heranças,
mas, sim, de um personagem misterioso, quase mítico como Melquisedec, foi
uma ideia válida. O sacerdócio de Jesus é como o de Melquisedec: depende,
unicamente, de Deus; não das convenções, mesmo que daquelas das tribos.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

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© Carta aos Hebreus 109

5,11-10,18: Jesus Cristo e a Nova Aliança


Esta é a parte central da carta ou do discurso/homilia aos
Hebreus. Trata-se de apresentar Jesus como o sujeito da Nova
Aliança.
5,11-14: introdução
O autor introduz o importante tema da Aliança em Jesus
Cristo, chamando a atenção de seus ouvintes/leitores para os en-
sinamentos dos mestres. Ele distingue entre os infantis, que pre-
cisam de leite, e os adultos, que desejam o alimento sólido. Claro
está que ele se dirige a quem é adulto na experiência de fé.
Curiosamente, a exortação constata que os leitores se tor-
naram, de alguma forma, lentos na compreensão! O texto serve,
então, para reanimar os que estão desanimados.

6,1-8: motivos
O autor anuncia que não vai apresentar argumentos elemen-
tares a respeito de Cristo (vers. 1) e convida seus ouvintes a elevar
seu espírito. Os que são iluminados recebem o dom do Espírito
Santo e passam a conhecer a beleza da Palavra de Deus. Não por
isso, esses mesmos deixaram de cair e perder tudo o que é de me-
lhor, elencado anteriormente. O sinal da aceitação ou da rejeição
são os frutos, e não os abrolhos (vers. 7-8).
6,9-20: estímulos e encorajamento
O autor sabe que seus ouvintes, embora tenham falhas, es-
tão do lado certo e têm reta intenção (vers. 9). Deus está disposto
a continuar a agir na história e na vida dos fiéis como agiu na vida
de Abraão (vers. 13). A figura de Abraão surge como sinal da fide-
lidade necessária. Ele foi fiel, pois tinha esperança (vers. 19). No
final dessa perícope, tem-se a menção de Melquisedec.
110 © Cartas aos Hebreus e Católicas

7,1-3: a figura de Melquisedec


O texto apresenta a figura misteriosa de Melquisedec, iden-
tificando-o como “o rei de Salém" − entendendo-se essa Salém
como sendo Jerusalém. Ele é sacerdote do Deus altíssimo. Abraão,
já mencionado no pó passo anterior, é lembrando em sua ação de
sair ao encontro de Melquisedec, em Gênesis (14), e oferecer o
dízimo de tudo o que possuía. Melquisedec faz disto uma bênção.
Assim, tem-se um sacerdote do Deus da Aliança antes do es-
tabelecimento da Aliança e antes do sacerdócio. Hebreus afirma:
“sem pai, sem mãe, sem genealogia, a sua vida não tem começo
nem fim; comparável sob todos os pontos ao Filho de Deus, per-
manece sacerdote para sempre” (vers. 3).

7,4-10: Melquisedec recebe o reconhecimento de Abraão


Melquisedec recebe de Abraão o dízimo de tudo que este
tinha. Essa afirmação, em termos de memória histórica de texto,
valoriza a figura de Melquisedec para os argumentos posteriores e
destaca Abraão em sua identidade de origem da Aliança.

Melquisedec –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Esse Melquisedec, um nome certamente cananeu, é um personagem apto para
ser um tipo teológico. Sua presença na Escritura é reduzida, mas a leitura tipoló-
gica feita por Hebreus torna sua imagem de notável importância. Ele se encontra,
em termos narrativos, em Gênesis (14), quando Abraão, ainda Abrão, retorna de
uma batalha contra um tal Codorlaomor (14,12-16). No retorno dessa batalha,
Abraão encontra-se com Melquisedec, o rei de Salém (14,18). O Salmo 76,3, a
tradição judaica e as tradições dos Santos Padres sempre identificaram essa Sa-
lém como sendo Jerusalém. Abraão agradece a vitória oferecendo um sacrifício.
Melquisedec é o sacerdote que faz esse sacrifício. Gênesis (14,18) identifica-o
como “sacerdote do Deus altíssimo”. Se Abraão reconhece em Melquisedec a
dignidade sacerdotal, é porque reconhecia o Deus que ele cultuava, chamado
“Deus altíssimo”. Deverá ser o mesmo Deus de Abraão! Isto é complicado de
compreender, pois, sendo Abraão o primeiro a seguir esse Deus, Melquisedec
entraria na história sem as devidas considerações literárias e teológicas com
alguma dificuldade. Enfim, o texto de Gênesis, embora importante em seu con-
junto, não tem desenvolvimento.
O capítulo 14 é isolado do conjunto dos outros capítulos no ciclo de Abraão. A
figura de Melquisedec estaria, dessa forma, isolada do resto da Escritura, exceto
por uma menção indireta no Salmo 76(75),3, na qual se fala na realidade de
“Salém” como lugar da tenda de Deus; e no Salmo 110(109),4, um Salmo real,

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© Carta aos Hebreus 111

em que o rei é indicado pelo salmista como “sacerdote para sempre, segundo a
ordem de Melquisedec”. Será a Carta aos Hebreus, nos capítulos aqui analisa-
dos, que destacará sua figura e lhe dará relevo.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

7,11-14: o novo sacerdócio


Aqui estamos: no núcleo dessa parte e de toda a Carta aos
Hebreus. Trata-se de apresentar a nova situação inaugurada com
Jesus Cristo, o Filho do Pai, superior aos anjos, superior a Moisés,
que é o Sumo Sacerdote de uma ordem eterna, simbolizada por
Melquisedec.
O sacerdócio levítico não é perfeito, pois houve necessidade,
segundo o autor de Hebreus, de um novo sacerdócio, não depen-
dente da carne. Esse sacerdócio é o de Melquisedec, não o de Aa-
rão. Com um novo sacerdócio, vem uma nova lei. Isto é claro para
Hebreus, pois o sacerdócio antigo dependia da família de Levi, da
descendência de Aarão; o novo sacerdócio começou com um des-
cendente de Judá, nada tendo a ver, diretamente, com Moisés.

7,15-25: Sacerdote para sempre!


O novo sacerdócio que Hebreus propõe não depende da lei
nem das tradições levíticas. Tudo isso está abolido em função da
nova situação, ou seja, com “este outro sacerdote, que surge à
semelhança de Melquisedec” (vers. 15). Agora há um sacerdócio
para sempre, “segundo a ordem de Melquisedec” (vers. 17). E, as-
sim, surge uma esperança melhor, que aproxima o fiel de Deus.
É fundamental que se compreenda que Hebreus deseja
apresentar Jesus, já declarado superior aos anjos, superior tam-
bém aos sacerdotes levitas e ao próprio sacerdócio estabelecido e
conhecido por seus ouvintes. Ele é superior, pois tem uma origem
também superior: Deus. E isto vem pela imagem de Melquisedec
− essa figura quase mítica, que simboliza algo além desse tempo e
de seus limites.
112 © Cartas aos Hebreus e Católicas

O autor de Hebreus, mais uma vez, serve-se do Salmo


110(109), agora atribuindo a Deus um juramento a respeito do sa-
cerdócio do rei. Jesus já é o superior aos anjos, é o revelador de
Deus. Ele agora é “sacerdote para sempre” (vers. 21). Tornou-se,
então, a garantia da Aliança, que agora é melhor que a antiga. Ele
não morre como os outros sacerdotes; é sacerdote para sempre, e
“por isso que lhe é possível levar a termo a salvação daqueles que
por ele vão a Deus, porque vive sempre para interceder em seu
favor” (vers. 25).

7,26-28: o sacerdote perfeito


Hebreus passa, então, a elencar as virtudes desse Sumo Sa-
cerdote: “santo, inocente, imaculado, separado dos pecadores e
elevado além dos céus“ (vers. 26). Ele não precisa renovar os sa-
crifícios assim como os outros sacerdotes, pois se ofereceu a si
mesmo uma vez por todas (vers. 27).
Lei e Palavra − essa última no sentido de revelação feita por
meio de Jesus Cristo no Novo Testamento − são contrapostos: a lei
estabeleceu sacerdotes limitados; a Palavra estabeleceu um “Filho
eternamente perfeito” (vers. 28). É assim que o Sumo Sacerdote é
o Filho de Deus, como já fora abordado nas passagens introdutó-
rias de Hebreus.

8,1-5: sacerdócio e santuário


A Carta aos Hebreus fala de uma “tenda verdadeira”, arma-
da por Deus, e não pelos homens. Certamente, a referência é à
tenda da reunião, em que as tribos que formavam o Povo de Israel
deviam encontrar-se antes da construção do Templo. Essa tenda
era o Santuário, que depois evoluiu para o formato de Templo. A
imagem é do encontro entre Deus e o seu povo, com a mediação
de um sacerdote. Na exposição de Hebreus, esse sacerdote está
sentado ao lado do trono de Deus. É clara uma menção a um sa-
cerdote com funções reais; não apenas um representante de Deus
no meio do povo, mas uma presença do próprio Deus.

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© Carta aos Hebreus 113

A carta apresenta de um modo escatológico o sacerdote,


que é a ponte entre Deus e os homens. Ele não é como os que já
oficiam o culto: é superior a eles, pois eles são a sombra (vers. 5),
e esse sacerdote é a verdade. Enquanto Moisés, a anterior origem
da relação de Deus com seu povo no Antigo Testamento, precisa-
va imitar o modelo ideal do Templo, agora, o verdadeiro lugar de
culto, de encontro, é Cristo. Este é o sentido do início da perícope
seguinte.

8,6-13: Cristo: o mediador


O ministério de Cristo é superior, pois Ele é o mediador da
Aliança bem melhor. O texto da perícope apresenta uma profecia,
que é marcada pelo pensamento e pelas palavras textuais de Je-
remias.
O texto de Jeremias apresenta o futuro de uma nova Aliança,
quando Deus conduzirá o seu povo pela mão, demonstrando inti-
midade e responsabilidade. Será uma Aliança diferente, superior
àquela surgida com a libertação do Egito. Não será uma aliança de
comportamento; ela será mais profunda. O texto diz que:
Esta é a aliança que estabelecerei com a casa de Israel depois da-
queles dias: imprimirei as minhas leis no seu espírito e as gravarei
no seu coração. Eu serei seu Deus, e eles serão meu povo (vers.
10).

O conhecimento do Senhor será a chave da Aliança. Com


uma "nova Aliança", a antiga torna-se "velha". E aqui está uma
afirmação complexa e difícil em Hebreus: “ora, o que é antiquado
e envelhecido está certamente fadado a desaparecer” (vers. 13).
O texto fala do desaparecimento da Aliança que se tornou
velha. Trata-se da Aliança do Antigo Testamento em detrimento
àquela que acontece no Sumo Sacerdote, sentado à direita do tro-
no de Deus. A Antiguidade e a consequente ultrapassagem da An-
tiga Aliança estão em função de sua limitação diante da plenitude
da Nova Aliança. Ela é feita com o Sumo Sacerdote, da mediação
da Aliança em Cristo (vers. 6). É fundamental isto: a superação
114 © Cartas aos Hebreus e Católicas

da Aliança do Antigo Testamento está em função da plenitude na


Nova Aliança em Cristo.

9,1-14: Cristo: o herdeiro do santuário eterno


Hebreus apresenta, agora, três longas perícopes, todas ten-
do como pano de fundo o sacerdócio do Antigo Testamento e as
suas práticas. Nessa primeira perícope, vê-se as imagens:
Santuário terrestre
Tenda
Santo e Santo dos Santos
Altar e objetos destinados ao culto
Sacerdote e sumo sacerdote
Ritos e oferendas
Cristo e a obra que realiza em si mesmo
Esses temas são o tecido que compõem essa recapitulação
de tudo o que foi dito até agora. Hebreus começa a concluir seus
temas e o faz apresentando de maneira plástica (descritiva) o San-
tuário e as funções que o sacerdote lá realiza. O sacrifício realizado
no Sumo Sacerdote da Nova Aliança não é dependente de objetos
e sinais, mas é realizado nele mesmo.

9,15-28: Cristo: seu sangue sela a Aliança


Hebreus deixa claro que não é pelo sacrifício de animais e
pelo uso de objetos distintos da pessoa do sacerdote que o sa-
crifício perfeito se realiza, mas, sim, no próprio Sumo Sacerdote
da Nova Aliança. Ele é o sacrifício, o local de encontro, a própria
Aliança. Isto pelo seu sangue, o “sangue da aliança que Deus vos
ordenou” (vers. 20).
Para os leitores da carta ou da homilia ou, ainda, da exorta-
ção destinada aos Hebreus, esse ponto é de notável importância
e compõe, com 7,11-14, dois eixos que sustentam a revelação da
Nova Aliança. Ela acontece na pessoa de Cristo, que é a realidade
que antes, no regime da Antiga Aliança, devia acontecer com sinais
e símbolos. Em 9, 26, lê-se:

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© Carta aos Hebreus 115

Do contrário, lhe seria necessário padecer muitas vezes desde o


princípio do mundo; quando é certo que apareceu uma só vez ao
final dos tempos para destruição do pecado pelo sacrifício de si
mesmo.

A Aliança realiza-se em Cristo. Em 7,11–14 e nas perícopes


anteriores e posteriores a ela, a ideia do sacerdócio de Jesus Cris-
to ser eterno, dependente de Deus e não das condições humanas
históricas, foi declarada e fundamentou o papel do Cristo, do Mes-
sias. Agora Hebreus declara que a Aliança acontece nele, pois ele é
o sacerdote. Vem, então, as consequências desse estado de coisas.
Serão os assuntos da próxima perícope.

10,1-18: os sacrifícios antigos foram superados


Os sacrifícios realizados à luz da Antiga Aliança foram su-
perados, pois dependiam de ofertas e vítimas que não levavam à
perfeição quem as oferecia. Hebreus cita o Salmo 40(39),7-9, que
declara:
Não quiseste sacrifício nem oblação, mas me formaste um cor-
po. Holocaustos e sacrifícios pelo pecado não te agradam. Então
eu disse: Eis que venho (porque é de mim que está escrito no rolo
do livro), venho, ó Deus, para fazer a tua vontade.

Esses versículos são citados por Hebreus em chave ou em


compreensão cristológica. São aplicados a Jesus Cristo, como cum-
pridor das promessas e centro da verdadeira Aliança. É o corpo de
Jesus Cristo, sacrifício e sacerdote, que se encontra a santificação,
a comunhão com Deus, desejada na Antiga Aliança e realizada na
Nova. “Foi em virtude desta vontade de Deus que temos sido san-
tificados uma vez para sempre, pela oblação do corpo de Jesus
Cristo” (vers. 10).
O trecho seguinte, dos versículos de 11 a 18, é a afirmação
de tudo o que foi dito até agora. Parece a conclusão do argumen-
to. De fato, nos próximos versículos, inicia-se a última parte, que
aborda a fé e o seu testemunho. No versículos 11, o texto afirma
que os sacerdotes são incapazes de anular os pecados. Em contra-
116 © Cartas aos Hebreus e Católicas

partida, é Cristo quem o faz de modo decisivo, sendo Ele próprio


uma oferenda perfeita.
O versículo 18 é uma conclusão lapidar da argumentação:
“ora, onde houve plena remissão dos pecados, não há por que ofe-
recer sacrifício por eles”.

10,19-12,29: a Fé e a perseverança
O texto de Hebreus poderia ser dividido em duas partes: de
10,19 a 10,39, com algumas exposições de motivos para o ânimo
diante do inesperado da vida. De 11,1 a 12,29, vários exemplos e
argumentos relativos à perseverança na fé.

10,19–25 Exortação à fidelidade


O autor de Hebreus inicia com uma inferência: ele garante a
"entrada no Santuário" por meio do sangue de Jesus. É um modo
metafórico de indicar a identidade de Jesus, o verdadeiro e pleno
sacerdote e, ao mesmo tempo, a oferenda. Hebreus concentra sua
atenção cada vez mais na Pessoa e na Missão de Jesus. No versí-
culo 21, ele é chamado de "sacerdote eminente", com autoridade
sobre a casa de Deus. Essa retidão vem da fé que é, por sua vez,
adesão interior, de inteligência e de vontade ao mistério de Deus
revelado em Jesus Cristo.
Para manter essa situação, é necessário que o fiel seja per-
severante, estimulado à caridade que é, fundamentalmente, uma
relação que se tem com Deus. Essa relação deve ser comunitária,
e, nesse sentido, Hebreus insiste na participação das assembleias.
Na prática, insiste na identidade de quem crê com o grupo que
professa a fé em Jesus Cristo.
Nesse ponto, aparece a ideia de “dia”.

Dia do Senhor –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––


Essa expressão, “Dia do Senhor” ou Dia de Yhwh tem múltiplos significados. O
texto é este: “não abandonemos a nossa assembleia, como é costume de alguns,
mas admoestemo-nos mutuamente, e tanto mais quando vedes aproximar-se o

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© Carta aos Hebreus 117

Grande Dia” (10,25). A questão da “assembleia” não deve aqui se restringir a um


ambiente celebrativo, mas deve ser ampliada para a própria realidade da Igreja.
Trata-se de uma possível apostasia em função das dificuldades da escolha. Já
o termo “Dia” ou a expressão “Grande Dia” tem algo a ver com o Antigo Testa-
mento. Pode ser o momento da justiça de Deus, quando Ele deverá fazer que
tudo seja esclarecido e dado a conhecer; pode ser o tempo da ira, quando Deus
deverá manifestar sua autoridade em favor dos eleitos. O contexto parece aqui
sugerir uma manifestação de Deus que determinará toda a história.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

10,26-31: o perigo da apostasia


Apostasia é a negação da fé e do modo de crer já feito ante-
riormente. Essa situação é comentada com cores fortes pelo au-
tor de Hebreus quando, partindo de Moisés e de sua lei, chama
o exemplo de alguém que transgride a mesma lei. Ele precisa ser
excluído da comunidade que crê. Duas ou três testemunhas de-
vem ser apresentadas para a acusação da transgressão da Aliança.
O castigo que Hebreus sugere é fruto da ação: “quanto pior castigo
julgais que merece quem calcar aos pés o Filho de Deus, profanar
o sangue da aliança, em que foi santificado, e ultrajar o Espírito
Santo, autor da graça!” (vers. 29).
Profanação do sangue da Aliança e ultraje do Espírito Santo:
parecem ser estas as piores atitudes de apostasia. Quando ocor-
rem, elas merecem uma vingança. Nesse ponto, Hebreus apresen-
ta a difícil argumentação do castigo (vers. 30) e conclui com uma
afirmação lapidar: "é horrendo cair nas mãos de Deus vivo” (vers.
31).

A situação apresentada em Hebreus é sugestiva. Se há essa men-


ção da apostasia e da situação que ela cria nos fiéis e nas comuni-
dades, é porque existia, efetivamente, o fato. Deixar a comunhão
da Igreja ou deixar a assembleia (vers. 25) deveria ser algo muito
doloroso. Hebreus compara com o ato de pisar o Filho de Deus
e calcar o sangue da Aliança. É o rompimento com a Pessoa de
Jesus Cristo, chamado, aqui, de Filho de Deus, e com sua mis-
são, identificada com o sangue da Aliança (vers. 29). Isto deveria
acontecer em tempos difíceis, de perseguição e consequente pro-
vação. Essa circunstância provoca, segundo Hebreus, o ultraje do
Espírito da graça. Considere-se uma situação de animosidade de
muitos grupos sociais sobre a Igreja nascente!
118 © Cartas aos Hebreus e Católicas

10,32-39: exortação à perseverança


O autor de Hebreus dirige-se aos seus ouvintes com uma in-
tensa intimidade: traz-lhes à lembrança as origens de sua experi-
ência religiosa com Jesus Cristo (vers. 32). Recorda-lhes o fato de
serem apresentados como "espetáculo" em função da adesão a
Jesus Cristo (vers. 33). Talvez a ideia aqui fosse que os cristãos es-
tariam em inferioridade, seriam menos inteligentes ou capazes...
ao mesmo tempo, os fiéis eram solidários com os sofredores que
encontravam.
Ao que parece, a sociedade do tempo da Carta aos Hebreus
era acentuadamente marcada por perseguições e contradições,
frutos da adesão a Jesus Cristo. No pensamento do autor da carta,
é fundamental que os lideres da fé em Jesus Cristo tenham condi-
ções de indicar o caminho e de ser firmes e decididos na adesão
ao Senhor.
A carta faz menção, ainda que não claramente articulada,
a alguns fatos dolorosos: prisões e espoliações (vers. 34). Certa-
mente, são lembranças de acontecimentos que marcaram a ex-
periência de fé dos ouvintes da mensagem agora lida. Tudo isso
tem como consequência uma recompensa que deve ser sempre
recordada (vers. 35).
A perseverança é um tema recorrente na carta. Os ouvintes
devem perseverar, o que dá a entender que alguma dificuldade
pudesse haver. A insegurança da fé em um mundo violento, egoís-
ta e absurdamente impessoal, no qual o poder é o que determina
os fatos. Essa esperança pode ser relacionada com a justiça e a fé.
Em 10,38, a carta afirma: “meu justo viverá da fé. Porém, se ele
desfalecer, meu coração já não se agradará dele”. Assim dizendo,
Hebreus faz entender que as dificuldades do discípulo, vindas da
própria decisão de seguir o Mestre, não são motivos para uma de-
serção, mas, sim, para a perseverança.

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© Carta aos Hebreus 119

11,1-40: a fé dos antigos


O capítulo 11 de Hebreus é rico de imagens, de memórias da
História da Salvação expressas no Antigo Testamento. Ela é uma
história de fé e adesão ao Deus da Aliança feita por homens frá-
geis, mas que permitem que a ação divina ocorra em sua vida. Des-
sa forma, a história pessoal transforma-se em história de salvação,
não apenas para quem a vive, mas para quem está próximo, para
quem depende ou tem relação pessoal com os "heróis" da fé.

A Carta aos Hebreus é assim chamada pela tradição em torno de


seu texto e pelo conteúdo que apresenta. Não teria muita lógica
entendê-la como sendo dirigida aos pagãos que, originalmente,
não têm a formação adequada na Escritura e não poderiam com-
preender, de imediato, os exemplos que o capítulo 11 apresenta.
Note o estudante que o autor da carta aos Hebreus faz uma conci-
sa, mas muito válida, memória da caminhada de Israel como povo
e comunidade de fé.

O texto do capítulo 11, um verdadeiro elogio dos "heróis",


começa com uma definição de fé de grande envergadura: “a fé é
o fundamento da esperança, é uma certeza a respeito do que não
se vê” (vers. 1).
• Fé: Fundamento da esperança;
Certeza do que não se vê.
• Fundamento da esperança: fundamento é base, apoio
elementar e estrutural. Dizer que a Fé é fundamento da
esperança é declarar que, sem fé, é impossível olhar o fu-
turo com confiança. A esperança é um dom que necessi-
ta, por sua vez, de ser alimentado. O que pode alimentar
a esperança do fiel é a fé. Ela o leva a compreender os
limites, mesmo que eles estejam além de sua possibilida-
de de acesso.
• Certeza do que não se vê: certeza é a segurança de algo
que está proposto. Já a certeza do que não se vê é de-
clarar que há coisas além do que se observa diretamente
120 © Cartas aos Hebreus e Católicas

neste mundo. Algo está proposto e não pode ser ainda


visto. A certeza do que não se vê é a posse de seguranças
ou de vitórias ainda não alcançadas. A certeza do que não
se vê deve ser alimentada na comunidade que viu Jesus
ou que recebeu o seu testemunho de outros.
Esperança que determina a relação com o mundo e a visão
de algo que ultrapassa o próprio mundo. Hebreus (1,1) apresen-
tou uma definição de fé que surpreende pela amplitude e inten-
sidade. No versículo seguinte, lê-se que foi pela fé que houve o
testemunho dos antigos. Partindo dessa afirmação, apresentada
como confirmação da existência do dom da fé, a carta propõe os
exemplos.
• Criação (vers. 3): primeiro é a criação que é declarada
como obra da Palavra. Ela cria o mundo gera das rela-
ções.
• Abel (vers. 4): sua ação, um sacrifício motivado pela fé,
agradou a Deus, que a aceitou.
• Henoc (vers. 5-6): é uma figura citada apenas de passa-
gem em Gênesis (5,22ss). No judaísmo daqueles tempos,
sua figura era importante e muito valorizada.

Assim como há os livros apócrifos relativos ao Novo Testamento, às


suas figuras e aos seus acontecimentos, também há os apócrifos
relativos ao Antigo Testamento. Dentre o conjunto dos chamados
“Apócrifos Judaicos”, que citam o Antigo Testamento, encontram-
se muitos textos atribuídos ou que citam Henoc. Alguns deles são:
Livro dos segredos de Henoc, Livro Hebraico de Henoc, Livro dos
Vigilantes, Epístola de Henoc e outros. No chamado Livro dos Vi-
gilantes, encontram-se muitas histórias de anjos, com os nomes e
funções as mais diversas. Isto influenciou muito algumas correntes
de pensamento judaico nos primeiros séculos de nossa era.

• Noé (vers. 7): é o herói do dilúvio. Segundo Hebreus, foi a


fé que o levou a realizar a salvação da espécie humana e
das espécies animais quando da inundação do dilúvio.

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© Carta aos Hebreus 121

• Abraão (vers. 8-12): o pai de Israel partiu e construiu a


história de Israel das origens. O que o levou a seguir o
chamado foi a fé. Hebreus apresenta, também, Sara, os
filhos de Abraão, e fundamenta tudo na perspectiva da
promessa: Abraão e seus filhos acreditaram na Palavra
do Senhor e olharam para o futuro com segurança. Esse
futuro foi comparado a um céu estrelado, e os descen-
dentes de Abraão foram comparados, numericamente, às
estrelas.
A realização da Promessa (vers. 13-16): a fé demonstrou, na
vida de Abraão, a busca da terra prometida. Hebreus fala dessa
procura da parte dos descendentes de Abraão e anuncia que, se
houve a busca da pátria terrestre, seguramente há uma pátria ce-
leste.
A provação de Abraão (vers. 17-19): o episódio do quase sa-
crifício de Isaac, em Gênesis (22), foi motivado pela fé. Por ela,
Abraão recuperou seu filho e a promessa seguiu definitivamente.
Os Patriarcas (vers. 20-22): Hebreus cita a bênção de Isaac
sobre Esaú e Jacó, e deste sobre seu filho, José. Já o patriarca José
levou seus irmãos, germe do futuro Israel, para o Egito, de onde
sairiam no futuro e, pela mesma fé, deu ordens, segundo Hebreus,
a respeito desse momento ainda por vir.
Moisés em sua vida antes do Êxodo (vers. 23-26): Hebreus
apresenta a atuação de Moisés antes do Êxodo como sendo mo-
tivada pela fé. Desde seu nascimento, passando pelo resgate das
águas até o retorno para o grupo dos hebreus.
Moisés no Êxodo (vers. 27-29): a fé motivou ou animou Moi-
sés no embate com o Faraó. Levou-o a celebrar a Páscoa, a aspergir
o sangue para que o anjo exterminador poupasse os primogênitos
dos hebreus. Conduziu-o até o Mar Vermelho para a fuga através
de suas águas.
122 © Cartas aos Hebreus e Católicas

Na terra de Canaã (vers. 30-31): foi a fé que levou à conquis-


ta da terra de Canaã, com a tomada de Jericó e a intervenção de
Raab.
Após esses detalhes de fatos, de pessoas e de suas ações
motivadas pela fé, Hebreus faz uma inferência ao seu respeito. Re-
corda, brevemente, personagens diversos, como Gedeão, Barac,
Sansão, Jefté, Davi, Samuel e os profetas, afirmando que foi a fé
que eles realizam suas ações, como a conquista de reinos, prodí-
gios diversos, bravura, resistência na tortura etc. A ideia é que a fé
cria a história.
É nesse sentido que a definição de fé no início do capítulo é
de fundamental importância. Ela não se apresenta como uma de-
finição meramente conceitual, mas como um expressão concreta
do fato de crer – certeza, posse.
O final do capítulo apresenta o sentido que o autor desejava
apresentar: algo maior era esperado por aqueles que ele elogiou.
Assim também deve ser com seus ouvintes: eles estão agora imer-
sos nas dificuldades da adesão a Jesus Cristo; mas deverão receber
uma recompensa enorme se mantiverem sua decisão de segui-lo.
Isto lhes será dado como resposta de fé, pois, agora, eles vivem
neste caminho: o caminho da fé.

12,1-4: a fidelidade de Cristo


O argumento central dessa perícope já foi introduzido pe-
las considerações anteriores na perícope da fé e da memória dos
antigos. Eles fizeram sua história, agora compete aos que creem
fazerem a sua própria. Curiosamente, o modelo de fidelidade é o
próprio Jesus Cristo.
O desprezo das vantagens e a aceitação da cruz é paradigma
de seguimento da vontade de Deus para a Carta aos Hebreus. Je-
sus realiza a vontade de Deus na contradição da vida, e, assim, faz
real a salvação.

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© Carta aos Hebreus 123

12,5-13: a educação em Cristo


O argumento aqui é a correção como expressão de educa-
ção. O autor insiste na ideia que Deus corrige o pecador, e essa
correção, tal como um pai faz com seu filho, é para a responsabili-
dade da vida e gera a segurança do futuro.
Talvez o autor de Hebreus esteja pensando na correção de
seus próprios ouvintes. A adesão a Jesus Cristo é exigente e deve
ser constante, decidida. Não pode haver um abandono, um arrefe-
cer da fé. Talvez os ouvintes originais de Hebreus estivessem dei-
xando o desânimo tomar conta de sua expectativa e esperança,
balançando na fé. Por isso, o autor recorda que é necessária a cor-
reção paterna para que aconteça a liberdade da maturidade.

12,14-17: o perigo da infidelidade


É nesse sentido que essa perícope deve ser lida. Os fiéis em
Jesus Cristo devem ser perseverantes, não desistindo de sua iden-
tidade, do modo como Esaú desistiu da bênção paterna por uma
refeição. O tamanho do dom recebido com a fé é maior do que se
pode esperar humanamente. Mas a possibilidade de abandonar
esse projeto de vida e de seguimento é sempre muito real, pois os
fiéis estão sendo, continuamente, postos à prova.

A adesão a Jesus Cristo é exigente e não produz vantagens ime-


diatas para quem a faz. Por isso, o autor de Hebreus recorda das
dificuldades que ela poderá impor. Lembre-se de que o cristia-
nismo nascente encontrou muitas dificuldades no mundo judaico
e no mundo pagão. O cristianismo não era hegemônico; antes,
apresentava-se fragmentado por tendências diversas. Hebreus
encontra-se, seguramente, em uma situação na qual a adesão ao
Mistério de Jesus Cristo poderia ser prejudicada em função das
divergências e diversidades dos fiéis.

12,18-29: as duas Alianças


Concluindo essas argumentações relativas à fé e à adesão do
Mistério de Jesus Cristo como sinal dessa fé, Hebreus apresenta
124 © Cartas aos Hebreus e Católicas

a imagem das duas alianças. A primeira aliança, aquela do Antigo


Testamento, que, seguramente, os ouvintes de Hebreus conhe-
ciam muito bem, era assinalada pelos grandes sinais da presença
da Deus. A segunda aliança é a que nasce da proximidade com o
monte Sião e a Cidade do Deus vivo, identificada com Jerusalém.
O mundo visível é passageiro, efêmero. Hebreus está decla-
rando para seus leitores que tudo isso passará e, por isso, é ne-
cessário estar fiel ao caminho que Jesus Cristo estabeleceu. Tudo
desaparecerá, mas ficará o reino inabalável de Deus, para o qual é
necessário guardar o bem e a graça (vers. 28).

13,1-25: conclusões
Depois de enlencar modelos de fé e exemplos de abandono
da fé e depois de apresentar as motivações para o seguimento de
Jesus Cristo, o Sacerdote e Senhor, a Carta aos Hebreus inicia o tom
de conclusão. São apontadas algumas considerações a respeito da
conduta dos fiéis, o que é interessante, visto que a parte ética da
carta não é muito desenvolvida. Em seguida, são apontados, mais
uma vez, alguns elementos indispensáveis para a vida do discípulo
e fiel em Cristo. Finalmente, são feitas algumas recomendações
quanto ao respeito dos líderes. A carta vai ser concluída com dois
epílogos.

13,1-16: recomendações
A hospitalidade e os anjos: nos primeiros versículos (1-3), a
Carta aos Hebreus considera a necessidade do amor fraterno, cer-
tamente como sinal da adesão a Jesus Cristo. Esse amor parece ser
testemunhado com a hospitalidade. Nesse ponto, a carta cita pas-
sagens do Livro do Gênesis, de Juízes e de Tobias, livro deuteroca-
nônico do Antigo Testamento. O assunto é o ato de ser hospitaleiro
e suas vantagens, pois alguns personagens do Antigo Testamento
receberam anjos, mensageiros de Deus. São essas as passagens
que Hebreus recorda:

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© Carta aos Hebreus 125

– Gênesis 18,1ss: A teofania de Mamrê, quando o Senhor se apre-


senta para Abraão na forma de três visitantes misteriosos que
anunciam a próxima gravidez de Sara.
– Gênesis 19,1ss: Os anjos da teofania anterior vão até Sodoma
e Gomorra, cidades pecadoras no julgamento de Gênesis. Lá eles
são acolhidos pelo sobrinho de Abraão, Ló. Acolhidos e defendidos
corajosamente. Isto dá a Ló a possibilidade de fugir da destruição
iminente.
– Juízes 6,11s: Aqui aparece a vocação de Gedeão, importante juiz
de Israel pré-monárquico. Um anjo lhe aparece e o vocaciona.
– Tobias 5,4ss: O filho de Tobit, Tobias, encontra o anjo Rafael que
se propõe acompanha-lo em sua missão.

Nesses episódios, o tema é a presença dos anjos, mensa-


geiros de Deus e protetores dos personagens que, por ser justos
e íntegros, têm a proteção dessas criaturas misteriosas. O que é
fundamental nesses versículos não é tanto a imagem dos anjos, a
consideração de sua existência ou não: o que é mais importante
é a afirmação da proteção do Deus da Aliança sobre quem é fiel.
Abraão foi fiel à sua vocação de ser o pai do Povo Eleito; Ló foi fiel
na proteção de seus hóspedes; Gedeão foi atento ao chamado de
Deus; Tobias e Tobit foram fiéis aos costumes de seus antepassa-
dos por respeito a Deus.
Dessa forma, Hebreus sugere que a hospitalidade, sinal de
abertura e sinceridade, é uma atitude que determina a história.
Os anjos são aqui apresentados não como seres superiores, mas
como sinais da presença do Deus da Aliança e da história.
1) O matrimônio: o versículo 4 afirma a necessidade da fi-
delidade ao compromisso do matrimônio. A menção do
leito conjugal é não apenas uma metáfora para o com-
promisso dos esposos, mas uma imagem real da fideli-
dade.
2) Amor ao dinheiro: Hebreus 13,5-6 alerta para que seus
ouvintes não tenham amor ao dinheiro ou que este não
seja o determinante de sua conduta.
3) Fidelidade à Palavra: os dirigentes da comunidade que
recebe a Carta aos Hebreus são apresentados como
126 © Cartas aos Hebreus e Católicas

anunciadores da Palavra. O texto faz uma alusão ao tér-


mino da vida destes dirigentes, e não desenvolve o as-
sunto com alguma indicação clara a respeito. Talvez seja
o martírio. Ele é proposto como ideal a ser seguido.
Nesse ponto, inspirado na ideia do testemunho, Hebreus
apresenta a exortação que, no cristianismo, se tornou axioma: “Je-
sus Cristo é sempre o mesmo: ontem, hoje e por toda a eternida-
de” (vers. 8). Em função da identidade de Jesus Cristo e do seu
seguimento, o fiel é convidado a não seguir doutrinas falsas.
1) Diversas recomendações: entre os versículos 9b e 16,
são apresentadas diversas recomendações. Partindo das
ideias de conduta alimentar, muito próprias do judaís-
mo, Hebreus exorta a confiar em Jesus Cristo, não no uso
de alimentos.
Jesus é apresentado, mais uma vez, como santificador que
sai fora do acampamento, sinal do sacrifício de redenção, como o
sacrifício de vítimas (animais imolados ritualmente). Também os
fiéis devem sair e se expor aos riscos do seguimento de Cristo. Afi-
nal, eles, o autor e os leitores de Hebreus, estão aqui, nessa terra,
de passagem. O versículo 14 afirma, em outra passagem, que se
tornou axioma: “não temos aqui cidade permanente, mas vamos
em busca da futura”.
Para concluir essa passagem, Hebreus faz uma consideração
muito oportuna. Visto que o judaísmo se servia de sacrifícios ani-
mais na liturgia do Templo, e isto era função eminentemente sa-
cerdotal, aqui, Hebreus dá um salto teológico: afirma como mais
importante a beneficência e a comunhão, certamente relativa ao
Mistério de Jesus Cristo. Esses elementos são mais importantes do
que os sacrifícios.

13,17-19: obediência aos guias


Os guias são os dirigentes da comunidade. Segundo Hebreus,
eles velam pela vida dos fiéis. Não são citados ministérios especí-
ficos, como em alguns lugares do Corpus Paulinum e das Cartas

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© Carta aos Hebreus 127

Católicas. Eles são, ainda que indefinidos nesse texto, os responsá-


veis pela condução da comunidade, os que devem dar o testemu-
nho de vida e de fé.
O versículo 18 sugere que o autor, pelo uso que faz da pri-
meira pessoa do plural, no recurso do plural majestático, esteja in-
cluído no grupo desses dirigentes. A sugestão é que ele está longe
da comunidade para a qual se dirige. Não há referência a qualquer
nome, pelo menos, nesse ponto.
O que aqui pode estar acontecendo é uma intervenção re-
dacional, pois no versículo 23 é citado Timóteo, que teria sido li-
bertado. Sua presença nesse versículo e a ideia de que o autor
de Hebreus será libertado forma a imagem de Paulo nas cadeias,
escrevendo para uma comunidade ou um conjunto de comunida-
des.

13,20-25: despedida
Hebreus apresenta duas conclusões, o que é curioso e faz
levantar algumas hipóteses. A mais evidente é, como em muitos
passos da Escritura, uma intervenção redacional. Esse tipo de re-
curso literário é usado para completar um texto ou parte de um
texto que, no modo de ver de um escriba ou um copista, pode ter
ficado vago. O escriba ou copista,então, muda o texto, “melhora”
o texto, em sua maneira de pensar. Nem sempre é realmente uma
melhora. O que pode acontecer é aparecerem mais dificuldades
ou desviar o sentido da mensagem.
Aqui o que parece é uma intervenção redacional no sentido
de relacionar o texto da Carta aos Hebreus com São Paulo, nos
tempos de seu cárcere, provavelmente o segundo cárcere roma-
no. Este não é o tempo anotado pelo livro de Atos dos Apóstolos
(28). A tradição da Igreja antiga afirma que Paulo, depois de liberto
do primeiro cativeiro romano, teria, ainda, viajado até a região do
que hoje é a Espanha e, somente então, voltado para Roma, onde
teria sido, mais uma vez, preso, e, nessa segunda vez, condenado
128 © Cartas aos Hebreus e Católicas

à morte. Assim, essa segunda finalização do texto de Hebreus pa-


rece relacionar Paulo a Timóteo, discípulo de Paulo. Este estaria na
Itália, isto é, Roma. Estaria recentemente libertado, como afirma
o versículo 23.
• Primeiro epílogo: esta parece ser a despedida original da
Carta aos Hebreus. O autor faz uma ação de graças a Jesus
Cristo (vers. 21). Ele tornou os ouvintes da carta dignos e
aptos para seguir sua vocação, seu chamado.
• Segundo epílogo: este parece ser colocado pelo redator.
Tenta-se seguir o estilo paulino (vers. 22). Timóteo é cita-
do sem qualquer outra referência (vers. 23). No versículo
24, volta o estilo supostamente paulino, com a lembrança
da saudação de "os da Itália". O versículo 25 oferece a
graça em uma bela saudação que conclui todo o texto da
Carta aos Hebreus: “a graça esteja com todos vós”. Alguns
manuscritos acrescentam a expressão "Amém", dando ao
texto uma conotação de prece ou louvor.

7. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Nosso estudo não estaria completo sem uma averiguação
dos conhecimentos adquiridos nesta unidade. A leitura do texto
da Carta aos Hebreus e o estudo do que aqui foi apresentado deve
ser acrescentado de mais pesquisas e, oportunamente, debates
com outros estudantes.
O que apresentamos aqui são as questões autoavaliativas,
uma proposta para ser realizada individualmente, na modalidade
Ensino a Distancia, ou na mesma modalidade, mas em grupos de
estudo, sendo usado como roteiro de debate e aprofundamento.
Para um adequado conhecimento do texto da Carta e das
considerações teológicas e literárias ao seu respeito, é muito opor-
tuno esse item, as questões autoavaliativas. No decorrer do es-

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© Carta aos Hebreus 129

tudo para as respostas, o estudante deve partilhar suas opiniões,


comparar e seguir conforme acredita, considerando que a Escri-
tura tanto do Antigo quanto do Novo Testamento são fontes de
conhecimento e vida para o estudante e o fiel.
1) Existe alguma evidência de que Hebreus seja um texto
paulino?
2) Qual é o tema fundamental de Hebreus, ao redor do
qual tudo está relacionado na carta?
3) Tendo em vista a argumentação da Carta aos Hebreus,
intensamente relacionada com o pensamento hebraico,
pergunta-se: é possível considerar essa carta como um
escrito para judeus de um cristão de origem judaica que
deseja expor sua fé aos convertidos do judaísmo?
4) A imagem que Hebreus faz de Jesus Cristo é múltipla.
Cite algumas dessas imagens.
5) Por que Jesus Cristo é comparado aos anjos na Carta aos
Hebreus?
6) A atitude de Jesus Cristo, na aceitação de sua vocação
como sacerdote, apresenta sua Pessoa e sua Missão de
qual forma, segundo o pensamento da Carta aos He-
breus?
7) Quais personagens do Antigo Testamento são citados na
Carta aos Hebreus e relacionados a Jesus?
8) Qual é o papel de Melquisedec na argumentação da Car-
ta aos Hebreus?
9) Em que sentido Jesus Cristo é apresentado como Sumo
Sacerdote?
10) Depois de ler o texto bíblico da Carta aos Hebreus e de
ter estudado esta unidade, bem como consultado algu-
mas obras que lhe dizem respeito, como pensar a Carta
aos Hebreus com base no Antigo e no Novo Testamento?
Em outras palavras: pode-se dizer que ela é uma espécie
de resumo dos dois testamento?
130 © Cartas aos Hebreus e Católicas

8. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, conhecemos a Carta aos Hebreus e a sua es-
trutura, seus textos e a data de sua elaboração.
Já na Unidade 4, analisaremos as Cartas de Pedro.
Vamos lá?

9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DEN BORN, A. van (Org.). Dicionário enciclopédico da Bíblia. Petrópolis: Vozes, 1985.
DUSSAUT, L. A Epístola aos Hebreus. In: COTHENET, E. DUSSAUT, L. FORT, P. le. PRIGENT, P.
Os escritos de São João e a Epístola aos Hebreus. (Tradução de M. Cecília de M. Duprat).
São Paulo: Paulinas, 1988.
JEREMIAS, J. Jerusalém no tempo de Jesus: pesquisas de história econômico-social no
período neotestamentário. (Tradução de M. Cecília de M. Duprat). São Paulo: Paulinas,
1983.
HAWTHORNE, G. F.; MARTIN, R. P. (Org.). Dicionário de Paulo e suas cartas. São Paulo:
Vida Nova; Paulus e Loyola, 2008.
LÉON–DUFOUR, X. Vocabulário de Teologia Bíblica. Petrópolis: Vozes, 1972.
MONLOUBOU, L., DU BUIT, F.M. Dicionário bíblico universal. Petrópolis: Vozes, 1997.
VANHOYE, A. Sacerdotes antigos e sacerdote novo: segundo o Novo Testamento.
(Tradução de Ronaldo Brito). São Paulo: Academia Cristã; Loyola, 2007.
VAUX, R. de. Instituições de Israel no Antigo Testamento. (Tradução de Daniel de Oliveira).
São Paulo: Teológica; Paulus, 2003.
VOUGA, F. A epístola aos Hebreus. In: MARGUERAT, Daniel. Novo Testamento: história,
escritura e teologia. São Paulo: Loyola, 2009.

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EAD
As Cartas de Pedro

4
1. OBJETIVOS
• Apresentar os dois textos classificados como “Cartas de
Pedro” em suas identidades histórica, literária e teológi-
ca.
• Analisar os textos das duas Cartas de Pedro em sua forma
literária e em seu conteúdo teológico.
• Comparar as Cartas de Pedro aos outros escritos do Novo
Testamento.
• Despertar o desejo pelo conhecimento dos textos episto-
lares do Novo Testamento e de seu conteúdo teológico.

2. CONTEÚDOS
• Primeira Carta de Pedro.
• Segunda Carta de Pedro.
132 © Cartas aos Hebreus e Católicas

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


1) Para que você tenha facilidade em compreender o es-
tudo que esta unidade traz, é necessário, assim como
nas outras unidades deste material, que o texto bíblico
enfocado seja lido. Portanto, é indispensável ler a Pri-
meira Carta de Pedro e, em seguida, a Segunda Carta de
Pedro.
2) Sugerimos, também, que, depois de ler os textos bíbli-
cos em questão, bem como esta unidade, você consul-
te um ou mais textos dos indicados na bibliografia para
completar seu conhecimento.
3) Como sugestão, convidamos você a ler, atentamente, a
Primeira Carta de Pedro e a fazer sua própria divisão do
texto. Para tanto, conforme se faz a leitura, é necessário
ir estabelecendo títulos e subtítulos, que vão formando
uma estrutura fundamental. Lembre-se de que não há,
nessa Carta de Pedro, um plano preestabelecido, o que
pode dificultar a realização de uma divisão esquemáti-
ca.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
As Cartas de Pedro são parte do cânon do Novo Testamento.
Atribuídas ao apóstolo Pedro, essas cartas contêm um interessante
material a respeito do pensamento das primeiras comunidades.
Na compreensão do conjunto do Novo Testamento, as Cartas
de Pedro não são a palavra mais importante. De fato, comparando-
as com o Corpus Paulinum ou, por exemplo, com a Carta aos He-
breus, as Cartas de Pedro passam em segundo plano, pois aquelas
são mais marcantes do ponto de vista teológico e literário. Mas a
tradição da Igreja sempre considerou esses dois textos − a Primeira
Carta de Pedro e a Segunda Carta de Pedro − textos dignos de ade-
são e de compreensão. Por isso, somos convidados a estudá-las, o
que aqui fazemos.

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© As Cartas de Pedro 133

5. CARTA DE PEDRO
Após a Carta de Tiago, o cânon do Novo Testamento apre-
senta a 1 Carta de Pedro. Assim como aquela, esta é uma espécie
de encíclica; uma carta dirigida a muitas Igrejas, podendo-se dizer
uma “carta circular”. Foi visto que a Carta de Tiago não apresen-
ta uma estrutura − ou esta não é clara. Fica difícil encontrar um
sentido lógico nessa Carta de Tiago. Na 1 Carta de Pedro, também
não há esse esquema visível, que leva ao leitor o conhecimento do
conteúdo sob um olhar na estrutura. A 1 Carta de Pedro é uma co-
leção de exortações, ditos e reflexões dedicados a quem conhece
o argumento central, que é Jesus Cristo, e o seu contexto, que é a
Escritura judaica.
Há, em 1 Pedro, certa divisão "natural", que, por sua vez,
pode ser questionada. Trata-se dos trechos 1,3;4,11, que se sepa-
ram de 4,12;5,11. Segundo muitos comentaristas, a primeira seção
seria uma espécie de "homilia batismal”, e a segunda parte seria
uma coleção de exortações parenéticas. Mas há dificuldades para
encontrar unidade na primeira parte, especialmente porque há
muitas exortações aos comportamentos adequados em situações
específicas, como com as autoridades, no matrimônio etc.
Por isso, é conveniente uma divisão mais detalhada, como a
que se segue:
Possível divisão de 1 Pedro
Endereço e Eulogia 1,1-2
Estar em Cristo [1] 1,3-12
Santidade em Cristo 1,13-23
O fiel e a Palavra 1,22-2,10
Condutas específicas 2,11-3,17
Estar em Cristo [2] 3,18-4,19
Exortações 5,1-11
Saudações finais 5,12-14
Embora não exista um plano lógico e coeso em na 1ª de Pe-
dro, os textos vão se sobrepondo e criando ideias concretas de
adesão a Jesus Cristo e de conduta. Lendo-a, parece que se ouve a
134 © Cartas aos Hebreus e Católicas

palavra de alguém que viveu uma experiência intensa e que, ago-


ra, deseja partilhar aquilo que viveu. A 1 Carta de Pedro parece
ser, em grande parte, uma catequese pré-batismal ou uma homilia
batismal. Talvez ela seja um texto de instrução de neófitos, algo
como uma citada homilia batismal acrescentada de outros textos,
especialmente textos de índole parenética e exortativa.

A diferença existente entre a catequese pré-batismal e a homilia


batismal é o fato de que, naquela, é feito um anúncio de Jesus
Cristo, da necessidade de uma adesão ao seu Mistério. Os argu-
mentos necessários para essa adesão são o Evangelho e a boa
nova do Senhor. Já na homilia batismal, partindo dos ritos que são
feitos, são apresentadas as consequências concretas do Batismo;
sua realidade presente e decisiva na vida de quem foi batizado,
isto é: já não se trata de um conjunto de ideias, mas, sim, de uma
adesão de vida.

Autoria
Se a carta não é da autoria direta de Pedro, deve depender
de algum autor cristão de notável inspiração e sensibilidade. A Pri-
meira Carta de Pedro tem grande aceitação como original. Segun-
do as informações dos trechos 1,1;5,1.12, o autor é Pedro, auxilia-
do por um tal Silvano.
1,1: Pedro, apóstolo de Jesus Cristo, aos eleitos que são estran-
geiros
5,1: Eis a exortação que dirijo aos anciãos que estão entre vós;
porque sou ancião como eles, fui testemunha dos sofrimentos de
Cristo
e serei participante com eles daquela glória que se há de manifes-
tar.
5,12: Por meio de Silvano, que estimo como a um irmão fiel,
vos escrevi essas poucas palavras.
Minha intenção é de admoestar-vos e assegurar-vos
que esta é a verdadeira graça de Deus, na qual estais firmes.

Atestam a autoria de Pedro os antigos escritores da Igreja:


Tertuliano, Ireneu e Clemente de Alexandria.

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© As Cartas de Pedro 135

Alguns problemas podem surgir a respeito da autoria se for


considerada a linguagem: trata-se de um grego bem elaborado, até
elegante, semelhante ao usado pela edição da LXX. Dentre os 62
hapax legomena que a 1 Pedro possui, em relação ao Novo Testa-
mento, 35 deles são oriundos da LXX. Aliás, a 1 Pedro é, proporcio-
nalmente, um dos textos do Novo Testamento que mais se utiliza
do Antigo Testamento, sempre em sua versão da Septuaginta.
Quanto à utilização do Antigo Testamento, a 1 Pedro é re-
lativamente pródiga em termos de citação e de referência, sendo
estas explícitas, mas também, muitas vezes, implícitas. Veja:
Citações explícitas:
Em 2,5.9: Êxodo 19,5
1,16: Levítico 19,2
2,7: Salmo 118,22 [LXX 117,22]
2,22-25: Isaías 52,3-12
Citações implícitas e imagens do Antigo Testamento:
1,13: cingir os rins para o caminho
1,19: o êxodo e o cordeiro sem mancha
2,22-25: inspirada em Isaías 53,9.7.4.5.6 (com a inversão de versí-
culos!)
3,20: Noé e a arca
3,6: Sara e Abraão
3,10-12: citação implícita de Salmo 34,12-16
Citações implícitas e explícitas do Novo Testamento:
1,13: Lucas 12,35
1,8: João 20,29
2,12: Mateus 5,16
3,14: Mateus 5,10
5,2-3: Lucas 12,42-45
A relação da 1 Pedro com o Corpus Paulinum também é evi-
dente, especialmente com Romanos e Efésios. Vale considerar a
introdução da 1 Pedro, que tem um tom quase paulino.

Introdução da 1 Pedro–––––––––––––––––––––––––––––––––
Texto da 1 Pedro 1,1-9
1 Pedro, apóstolo de Jesus Cristo,
aos eleitos que são estrangeiros
e estão espalhados no Ponto, Galácia, Capadócia,
136 © Cartas aos Hebreus e Católicas

Ásia e Bitínia
2 eleitos segundo a presciência de Deus Pai,
e santificados pelo Espírito, para obedecer a Jesus Cristo
e receber a sua parte da aspersão do seu sangue.
A graça e a paz vos sejam dadas em abundância.
3 Bendito seja Deus, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo!
Na sua grande misericórdia
ele nos fez renascer pela ressurreição
de Jesus Cristo dentre os mortos,
para uma viva esperança,
4 para uma herança incorruptível, incontaminável
e imarcescível, reservada para vós nos céus;
5 para vós que sois guardados pelo poder de Deus,
por causa da vossa fé, para a salvação que está pronta
para se manifestar nos últimos tempos.
6 É isto o que constitui a vossa alegria,
apesar das aflições passageiras
a vos serem causadas ainda por diversas provações,
7 para que a prova a que é submetida a vossa fé
(mais preciosa que o ouro perecível,
o qual, entretanto, não deixamos de provar ao fogo)
redunde para vosso louvor, para vossa honra
e para vossa glória, quando Jesus Cristo se manifestar.
8 Este Jesus vós o amais, sem o terdes visto; credes nele,
sem o verdes ainda, e isto é para vós
a fonte de uma alegria inefável e gloriosa,
9 porque vós estais certos de obter,
como preço de vossa fé, a salvação de vossas almas.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Romanos 1,1-7: introdução da carta


Como podemos notar, essa relação é de imitação, não de au-
toria. Não é possível atribuir a Paulo a 1 Pedro, pois isto iria contra
toda a tradição e a informação acumulada no passado. Além disso,
o estilo de Paulo é incisivo, analítico, ao passo que o estilo da 1
Pedro é imediato, sem grandes considerações e evoluções teoló-
gicas.

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© As Cartas de Pedro 137

Da análise dessas citações e de seus padrões, pode-se enten-


der que o autor de 1 Pedro é alguém familiarizado com a versão
grega do Antigo Testamento e que conhece os costumes judaicos,
mas sem a eles se apegar intensamente. Claramente, é, antes, um
cristão de matriz judaica que escreve aos cristãos conhecedores
do Antigo Testamento, mas não necessariamente judeus. É um
cristão mergulhado nas tradições que representa, alguém com
grande competência e conhecimento do judaísmo, de suas tradi-
ções e suas escrituras.
A carta possui muita semelhança com Romanos e Efésios,
embora ela tenha material próprio. O que não é possível é a acei-
tação pura e simples de uma autoria petrina. Não aparecem as
questões da lei e de seu cumprimento − que são tão próprias da
mentalidade judaico-cristã − nem há qualquer menção a uma ex-
periência histórica com Jesus Cristo; o grego é muito bom, com
grandes diferenças dos outros escritos neotestamentários, que
dependem de uma tradução. Ora, sabe-se que Pedro, como figura
histórica, não era letrado. Até poderia ser um líder de grande de-
senvoltura, mas teria lá suas dificuldades literárias e de expressão.
Assim, fica difícil identificar o autor da 1 Pedro com o histórico
apóstolo de Jesus, o qual chamamos Pedro.
O que parece é que a 1 Pedro tenha sido escrita por alguém
próximo do pensamento paulino e sido atribuída a Pedro, em fun-
ção de sua autoridade. Se a data de sua composição for entre 60
d.C. e 65 d.C., então há problemas na compreensão de alguns ar-
gumentos. Segundo os estudos feitos, ela seria bem ambientada
nos anos 90 d.C., sob o império de Domiciano. Nesse caso, ela cer-
tamente não seria de autoria petrina. De fato, considerando-se o
martírio de Pedro em Roma pelo ano 64 d.C., não teria sido possí-
vel a sua escrita pelo apóstolo!
As semelhanças de estilo e de vocabulário podem ser devi-
das ao estilo cristão que pode ter sido estabelecido. Silvano, clara-
mente redator da carta, pode ter se servido de modelos já existen-
tes. Isto posto, e seguindo a tendência comum, considera-se a data
138 © Cartas aos Hebreus e Católicas

provável de sua composição o ano 64 d.C. e o local de realização


a cidade de Roma, em função da notícia e da saudação dirigidas
aos leitores desde a “Babilônia” − o modo de identificar Roma no
século 1º.

O texto da 1 Pedro
Já foi apresentada uma possível divisão da 1 Pedro. Segue,
na caixa de texto, outra divisão, estabelecida com base na leitura
do texto e de seus relacionamentos internos.

Possível divisão da 1Pedro ––––––––––––––––––––––––––––


1,1-2 Endereço e saudação
1,3-5 Louvor e ação de graças
1,6-9 Estar em Cristo
1,10-12 O Espírito
1,13-16 A vida nova
1,17-21 Resgatados para a vida
1,22-2,3 A Palavra
2,4-10 O sacerdócio
2,11-12 Os cristãos entre os gentios
2,13-17 Sobre as Autoridades
2,18-25 Senhores exigentes
3,1-7 Sobre o Matrimônio
3,8-12 Sobre a comunidade dos fieis
3,13-17 A perseguição
3,18-22 A ressurreição
4,1-6 Romper com o pecado
4,7-11 A parusia
4,12-19 Sofrer com Cristo
5,1-4 Exortação aos presbíteros
5,5-11 Exortação aos fiéis
5,12-14 Saudações e aviso
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Endereço e saudação: 1,1-2


Pedro apresenta-se como apóstolo de Jesus Cristo. É notável
a semelhança entre essa introdução e o modo paulino de intro-
duzir seus escritos. O esquema é fundamental, comum a muitas

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© As Cartas de Pedro 139

obras epistolares; não é exclusivo das cartas paulinas. O que cha-


ma a atenção é quando o texto foge desse estilo, o que não é o
caso da 1 Pedro.
Quem recebe o texto são os "estrangeiros da dispersão".
Da mesma forma que ocorre na Carta de Tiago, o texto é para os
que estão na dispersão (cf. Tg 1,1). Contudo, aqui aparece o termo
“estrangeiros”, que sugere que o destinatário dessa carta são os
habitantes não fixos ou naturais de certa região. Os dois conceitos
formam, então, um todo teológico: os estrangeiros da dispersão
são aqueles sem morada fixa, pois a morada fixa do fiel é junto ao
Senhor na Eternidade; estão na dispersão, em vários lugares do
mundo, mas sempre ligados pela graça de Jesus Cristo.
Em seguida, a 1 Pedro indica alguns lugares específicos: Pon-
to, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia. São regiões amplas, que indi-
cam muitas comunidades de fiéis. A carta dirige-se a uma grande
quantia de discípulos de Jesus. Na compreensão da carta, estes
são os “eleitos” escolhidos pela presciência de Deus Pai, ou seja,
o conhecimento anterior do Senhor, por meio da ação do Espírito
Santo.
Assim, a carta não é dirigida aos neófitos, novatos na fé. É
para os eleitos que participam do sangue da aspersão. É uma ima-
gem ligada ao Êxodo 24,6-8, em que Moisés sela a Aliança com o
povo aspergindo sobre ele o sangue das vítimas. O sangue do qual
a 1 Pedro se refere deve ser, pelo contexto, o sangue de Jesus, que,
mais adiante, será chamado Senhor Jesus Cristo.
A saudação conclui com o tradicional "graça e paz", muito
usado por Paulo e comum nas cartas. A imitação é flagrante. Segu-
ramente, ela legitima o texto, pois estabelece um paralelo estilísti-
co entre ele e o Corpus Paulinum.

É nesse sentido que fica difícil considerar a 1 Pedro aos neófitos:


ela é dirigida a quem já tem experiência no seguimento de Jesus
Cristo. Se fosse escrita aos neófitos, não haveria esse tipo de ar-
gumento.
140 © Cartas aos Hebreus e Católicas

Louvor e ação de graças: 1,3-5


A 1 Pedro usa a fórmula de bênção própria do judaísmo. A
ação de Deus é reconhecida e, por isso, Ele é louvado, bendito,
chamado de bom. A bênção aqui é pela intervenção de Jesus na
história humana, que é feita por meio da Ressurreição. Por isso,
o fiel tem uma "herança” incorruptível, imaculada e imarcescível
(vers. 4). Essa herança é a salvação (vers. 5).

É interessante que você faça uma comparação entre os textos de


introdução das cartas paulinas e a introdução da 1 Pedro. Se for
possível, transcreva as diversas introduções e compare o estilo e
as palavras.

Estar em Cristo: 1,6-9


Conforme a 1 Pedro, o tempo é de alegria, embora possa ha-
ver contradições, frutos das tentações (vers. 6). Mas a fé, adquirida
pela provação, é preciosa e conduz à salvação. A perícope expressa
alegria do início ao fim, propondo-se de modo muito positivo.

O Espírito: 1,10-12
A 1 Pedro afirma que a revelação vivida pelos fiéis em Cristo
foi antes buscada, anunciada e esperada pelos profetas. O Espírito
Santo, enviado do céu (vers. 12), é o revelador, sendo que a revela-
ção, isto é, o conhecimento de Deus, é dada por ele.
Contudo, ainda não é possível falar da ideia da Terceira Pes-
soa da Santíssima Trindade. Quando o texto fala de Espírito Santo,
está falando do próprio Deus, sem considerar a doutrina trinitária
que será elaborada muito tempo depois.

A vida nova: 1,13-16


A perícope apresenta a metáfora do “cingir os rins da mente”.
O ato de cingir os rins é sinal de pôr-se a caminho. "Cingir os rins da

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© As Cartas de Pedro 141

mente" é abrir-se ao Mistério de Jesus Cristo. Por isso, os que fo-


ram tocados por Ele devem deixar as paixões de outrora (vers. 14)
e buscar a santidade, que é, fundamentalmente, Deus (vers. 16).

Resgatados para a vida: 1,17-21


Os fiéis que receberam a graça da revelação e que aceitaram
o Mistério de Cristo estão na vida nova. Devem se deixar conven-
cer pelo cordeiro sem defeito − o Cristo. Assim, todos estarão em
Deus, na segurança de sua presença. “Que a vossa fé e a vossa
esperança estivessem postas em Deus” (vers. 21) − é assim que
a perícope termina: com o desejo de que Ele mantenha a adesão
dos fiéis.

A Palavra: 1,22-2,3
A obediência à verdade, que certamente é a adesão a Jesus
Cristo e à sua Palavra, leva o fiel ao amor sem falsidade. Todos os
que foram chamados ao seguimento do Senhor devem olhar para
Ele e encontrar o sentido e a fonte da vida, como a erva ou a flor
encontra sua fonte na terra.
A Palavra anunciada transforma o fiel que a ouve. Ele deve
rejeitar o mal, a mentira e a hipocrisia, bem como tudo o que des-
trói a graça. Deve somente desejar a graça para manter a salva-
ção.

O sacerdócio: 2,4-10
Este é um momento importante da 1 Pedro. O autor da carta
exorta os seus leitores ou ouvintes a aproximarem-se de Jesus Cris-
to (vers. 4), o sujeito lógico do argumento, embora seja nomeado
somente no final do quinto versículo. Ele é identificado como a
“pedra viva”, subtendida “pedra angular”, rejeitada pelos constru-
tores (vers. 4). O texto sugere Lucas (20,17), que, por sua vez, é
uma citação do Salmo 118 (117,22). A pedra angular é o funda-
mento da construção; aqui, na 1 Pedro, ela é "pedra viva". Tocado
142 © Cartas aos Hebreus e Católicas

por esta, 1 Pedro convida todos a se deixarem tocar pelo Senhor,


tornando-se "sacrifícios espirituais" (vers. 5).
Se a "pedra angular" é tesouro precioso para o fiel (vers. 7),
para quem não crê, ela é pedra de tropeço (vers. 7-8). A descrença
da Palavra gera a queda.
Mas os fiéis que ouvem e que leem a 1 Pedro são a "raça
eleita", o "sacerdócio santo", a "nação santa" (vers. 9) − todas as
imagens tomadas do Antigo Testamento e aplicadas ao conjunto
dos discípulos em Jesus Cristo.

Informação complementar –––––––––––––––––––––––––––––


É notável que o cristianismo primitivo se reconhecia como herdeiro direto do
judaísmo e como sua continuação. Até o cristianismo que se desenvolvia em
ambiente pagão tinha um forte conteúdo judaico, pois, ali, estavam os profetas,
as promessas e a revelação do Cristo. Demorou para o cristianismo cortar sua
dependência com o judaísmo − o que é bom e ruim: ruim no sentido de limitar
muito o desenvolvimento da Igreja e bom no sentido de dar-lhe uma identidade
ligada às promessas e à Aliança.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Os cristãos entre os gentios: 2,11-12


Nesse ponto da 1 Pedro, há uma ruptura textual: até agora, o
que se leu foi uma sequência de exortações ligadas ao Mistério de
Cristo e de sua Palavra. Os fiéis são exortados a estarem inseridos
nessa Palavra e nela perseverarem. A partir do trecho 2,11, têm-
se novos argumentos e um novo rumo: exortações parenéticas de
diversos tipos. São dirigidas aos gentios (2,11-13), aos cônjuges
(3,1-7) e aos irmãos em geral, isto é, aos fiéis em Cristo (3,8-12);
são também comentados atitudes ou princípios relativos às auto-
ridades (2,13-17) e aos senhores (3,18-21 [25]). Outras exortações
seguirão no final.
Os fiéis, aqui chamados “amados” (vers. 11), são exortados
a comportarem-se como "peregrinos e forasteiros", dando a en-
tender que a vida cristã é uma espécie de exílio. O comportamen-
to entre os pagãos deve ser irrepreensível para conduzir outros a
Deus.

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© As Cartas de Pedro 143

Sobre as Autoridades: 2,13-17


A 1 Pedro aborda a questão da autoridade, que é identifi-
cada como "instituição humana" (vers. 13). São citados o rei e os
governadores. A ideia é um pouco ingênua se tomada sem qual-
quer comentário: eles são os responsáveis pela ordem e pelo bem
comum. Claro que é um princípio correto, embora sua aplicação
quase sempre não seja correspondente.
Certamente, o argumento final é o testemunho dos fiéis:
eles devem observar as leis e os compromissos políticos para de-
monstrar comunhão e responsabilidade com a sociedade de seu
tempo. Eles o fazem inspirados pelo Senhor (vers. 13). Nesse sen-
tido, pode-se entender a insistência na obediência às autoridades,
especialmente considerando o convite ao comportamento "como
homens livres" (vers. 16), com autonomia e responsabilidade. As-
sim, essa perícope é muito positiva e significativa para a presença
e a atuação dos cristãos na sociedade de seu tempo.

Senhores exigentes: 2,18-25


O status cristão é, seguramente, complexo. O fiel é cidadão
de um mundo, mas pertencente de outro que ainda não se mani-
festou plenamente. Por isso, ele está dividido. Se o fiel deve estar
submisso às autoridades de seu tempo, deve também estar de-
pendente de seus "senhores" – entendendo-se por “senhores” os
donos de escravos ou servos.
A situação proposta pela 1ª de Pedro é de opressão e até de
injustiça, que deve ser suportada dignamente e com perseverança.
A perícope comporta um hino (vers. 21b-25), no qual o Cristo so-
fredor é exaltado: por seu sofrimento, ele resgata os que também
sofrem e torna todos curados de suas dores (vers. 25). O hino é
muito significativo, pois exalta Jesus, em sua realidade de servo
sofredor, bem ao estilo do capítulo 19 de João, que resgata Isaias
52,13-53,12 (quarto canto do Servo).
144 © Cartas aos Hebreus e Católicas

Sobre o Matrimônio: 3,1-7


As mulheres são exortadas à sujeição aos maridos, mesmo
que eles não lhes sejam fiéis (3,1). Essa sujeição, no pensamento
da 1 Pedro, pode conduzir esses mesmos maridos infiéis à con-
versão. Elas são também exortadas a adornarem-se de qualida-
des interiores, como sinais de beleza, em vez de adornos externos
(3,3-4).
Em seguida, são lembradas as mulheres do Antigo Testamen-
to e apresentadas como modelos para as ouvintes. Citada, de fato,
é somente Sara (3,6), e as leitoras da 1 Pedro são exortadas a ser
como ela, praticantes do bem.
Os maridos são exortados a agirem com sabedoria na vida
conjugal. Devem honrar suas esposas como coerdeiras da graça
da vida. Isto é notável, pois são colocados, no mesmo plano, mu-
lheres e homens: ambos herdaram a "graça da vida". Há algumas
variantes nessa expressão, tais como “da graça que dá a vida”, mas
essa formulação parece ser a melhor.

Informação complementar –––––––––––––––––––––––––––––


As questões de gênero sempre são complicadas de ler e compreender, mais ain-
da de expor para ouvintes e leitores do século 21, que estão “bem esclarecidos”
e que não têm ranços de machismo. Além disso, as “leitoras” são, geralmente,
mais numerosas do que os “leitores”, o que causa certo embaraço em algumas
indicações bíblicas, tais como “vós, mulheres, sujeitai-vos aos vossos maridos“.
Embora isso tudo possa ser real, não se deve esquecer a situação vital em que
o texto foi produzido. Em função disso, ele deve ser lido como foi escrito, pois
forçar o texto a dizer algo que não deseja é errado do ponto de vista da inter-
pretação. A 1 Pedro depende da cultura de seu tempo e dos condicionamentos
sociais que lhe são conhecidos. O cristianismo soube enfrentar os desafios da
sociedade de seu tempo não se opondo frontalmente, mas superando com uma
ética de compaixão, de fraternidade e de compromisso. Isto é de se notar, clara-
mente, na história, embora não seja claro nos textos bíblicos.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Sobre a comunidade dos fiéis: 3,8-12


Todos são exortados à unanimidade, à compassividade, à
fraternidade, à misericórdia e à humildade (3,8). A docilidade co-

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© As Cartas de Pedro 145

munitária, expressa pelo “não pagueis o mal por mal” (3,9) e ou-
tras atitudes de abertura são uma novidade em uma sociedade
marcada pela vingança.
A perícope incorpora o Salmo 34(35),13-17 como texto exor-
tativo à moral pessoal em função da vida feliz. Isto dá abertura
para o texto seguinte, que olha os perseguidos.

A perseguição: 3,13-17
A perseguição é uma constante no cristianismo nascente; se
não de modo ostensivo, então de modo não ostensivo − mas cons-
tante.
No pensamento da 1 Pedro, a perseguição não deve causar
medo aos fiéis, pois a adesão a Cristo, o Senhor (vers. 15) dá força e
dá coragem. Aqui se encontra uma frase que se tornou axioma do
cristianismo diante das contradições: “[...] estando sempre pron-
tos a dar razão da vossa esperança a todo aquele que vos pede”
(vers. 15). Razão da esperança é um sentimento, mas, seguramen-
te, uma certeza interior de futuro. Há aqui uma nota de escatolo-
gia não explícita, mas presente: o futuro do fiel está relacionado à
sua posição, sua "esperança" neste mundo.
O texto continua com exortações à mansidão, ao respeito, à
boa consciência e ao comportamento, tudo em função de Cristo.
Para concluir, a perícope apresenta um motivo que parece lógico:
é preferível sofrer por praticar o bem a sofrer por praticar o mal.

A ressurreição: 3,18-22
Novamente, o foco da atenção muda: passa de exortações
éticas para uma exposição doutrinal. O assunto é a ressurreição de
Cristo. A 1 Pedro recorda que ele “morreu uma vez pelos pecados,
o justo pelos injustos, a fim de vos conduzir a Deus” (vers. 18).
Isto tem a ver com a perseguição, que fora abordada na perícope
anterior.
146 © Cartas aos Hebreus e Católicas

As imagens aqui usadas são interessantes, pois elas estão


marcadas por certa mítica. Segundo a 1 Pedro, Jesus Cristo, morto
na carne e vivificado no espírito, foi pregar aos que estavam longe
de Deus, na "prisão" que seria o Sheol, a morada dos mortos, tam-
bém chamada Hades ou “inferno”. Pela morte de Jesus, até os que
foram incrédulos antes de sua vinda podem ser salvos.
A perícope conclui com a imagem do batismo, não como um
sinal de pureza exterior, mas interior. Isto pelo fato de que a pala-
vra “batismo” vem do verbo grego baptizeo, que significa "mergu-
lhar". A ideia do batismo é mergulhar em Jesus Cristo e ter uma
boa consciência nele (vers. 21), o que deve significar uma vida co-
erente com o Mistério da vida de Jesus. Todo esse texto tem muito
a ver com uma catequese batismal, que devia ser feita nos tempos
da 1 Pedro.

Romper com o pecado: 4,1-6


A 1 Pedro toma as supostas atitudes dos pagãos como sinais
de pecado. A dissolução, a cobiça, a embriaguez, a glutonaria, as
bebedeiras e as idolatrias são citadas como práticas que contras-
tam com a vida nova do cristianismo. Os pagãos admiram-se de
que os que antes praticavam tudo isto agora tenham uma vida di-
ferente. Isto é, certamente, o modo novo de viver em Cristo.
O sexto versículo cita a pregação do Evangelho aos mortos.
Isto pode significar o anúncio da palavra aos que estão longe da
graça de Cristo − os pagãos promotores dos vícios antes elencados.
De outra forma, é difícil de ser compreendido.

A parusia: 4,7-11
Finalmente, o tema da parusia de modo claro e significativo.
Nos tempos da 1 Pedro, o final da história é algo quase iminente: o
fim de todas as coisas está próximo (vers. 7). O interessante é que
a proximidade da parusia impõe compromissos éticos, e não sen-
timentos ou atitudes desligados do mundo circundante. Os fiéis

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© As Cartas de Pedro 147

devem decididamente aceitar as dificuldades e superá-las. O amor,


segundo a 1 Pedro, “cobre uma multidão de pecados” (vers. 8). A
hospitalidade é exortada; o serviço mútuo é motivado (vers. 10).
Subitamente, o foco discursivo muda. Os que anunciam ou
ensinam, identificados como “os que falam” (vers. 11) no texto,
são exortados a fazê-lo como se estivessem pronunciando orácu-
los, isto é, palavras proféticas. Em seguida, os que servem, suben-
tendendo-se os que servem à comunidade dos fiéis, devem fazê-lo
com toda capacidade (vers. 11).
É bem claro que a 1 Pedro exorta as comunidades a perse-
verarem a fé em tempos de dificuldades e de perseguições. Elas
devem olhar para o modelo, que é Jesus Cristo (vers. 11). A Ele, é
feita uma doxologia nesse último versículo: ”Jesus Cristo, a quem
pertencem a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém”.

Sofrer com Cristo: 4,12-19


A 1 Pedro cita um "incêndio" entre os fiéis ao referir-se às
perseguições de toda espécie. É claro que esse "incêndio" também
poderia ser interpretado como as provações pessoais e os conflitos
internos da comunidade, o que é pouco provável. O certo é que,
para essa situação, a carta propõe a alegria pela participação nos
sofrimentos de Cristo (vers. 13), o que está bem de acordo com o
pensamento paulino, como em Romanos (5,3ss) e em Colossenses
(3,4). Trata-se, aqui, do sofrimento pelo testemunho de Jesus Cris-
to. Todavia, o sofrimento pelo erro não deve existir. Ele deve ser
pela coerência de ser cristão.
O final da perícope fala do juízo e da recusa em obedecer
ao Evangelho. É o tema da parusia que retorna, ainda que muito
brevemente e sob outra forma: a retribuição. Um versículo de Pro-
vérbios, citado conforme a tradução grega da Septuaginta, destaca
o justo e a salvação que ele merece, como também lança dúvidas
sobre a sorte do pecador e do ímpio. A resposta vem do sofrimen-
to em comunhão com a vontade de Deus.
148 © Cartas aos Hebreus e Católicas

Exortação aos presbíteros: 5,1-4


A 1 Pedro reinicia as exortações. Já foram feitas exortações
aos fiéis em meio ao mundo pagão (2,11-12), perante as autorida-
des (2,13-17), perante os senhores (2,18-25), perante as famílias
(3,1-7), perante os fiéis da comunidade (3,8-12) e perante os per-
seguidos (3,13-17). Agora, a exortação é aos presbíteros.

Ministérios na Igreja primitiva ––––––––––––––––––––––––––


Um tema complexo para análise é a situação dos ministérios da Igreja primitiva.
Antes do final do primeiro século, não há clareza quanto à realidade de cada mi-
nistério, de modo que os títulos “presbítero”, “epíscopo” e “diácono”, encontrados
nos textos do Novo Testamento e da literatura cristã, não poderiam ser aplicados
aos que hoje recebem esses nomes.
Pode-se ter uma ideia mais clara sobre o diácono como auxiliar na pregação
especialmente na própria pregação. Mesmo assim, o ministério de diácono pre-
sente no Novo Testamento não deve limitar-se à ideia moderna de diácono. O
ministério hodierno está ligado, com destaque, à prática litúrgica. Já o ministério
do passado está relacionado à organização das comunidades.
O ministério de presbítero, que aparece na 1 Pedro aplicado ao próprio autor, e o
ministério de epíscopo muitas vezes se confundem, pois nem sempre o sentido
está na atividade de quem se identifica como tal, mas, sim, na própria identida-
de. O presbítero é o ancião, o cristão experiente; por isso, ele assume certas
lideranças.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A 1 Pedro dirige-se aos presbíteros e exorta-os a uma lide-
rança ou a um pastoreio coerente com o dom de Deus. Os presbí-
teros devem liderar com dedicação e responsabilidade.

Exortação aos fiéis: 5,5-11


Nesse ponto, vem as exortações aos fiéis. Os jovens são ci-
tados e exortados (vers. 5) para se sujeitarem aos anciãos. Eles
devem "revestir-se de humildade", e o sentido está na atenção de
Deus sobre aquele que é humilde.
As exortações continuam dirigidas aos jovens ou a todos os
ouvintes/leitores da carta. A vigilância e a sobriedade são indi-
cadas como estilo de vida, sendo que esta é apresentada como
uma batalha não apenas espiritual, mas também real, entre forças
opostas, representadas pelo bem e pelo mal.

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© As Cartas de Pedro 149

A perícope parece que conclui o texto de 1 Pedro, quando


é feita uma doxologia a Jesus Cristo entre os finais dos versículos
nono e décimo.

Saudações e aviso: 5,12-14


A carta termina citando Silvano, indicando-o como "irmão
fiel", o que significa o tratamento ao companheiro de caminhada
cristã, certamente de evangelização.
Em seguida, a 1 Pedro cita a Igreja de "Babilônia" ou que lá
está (vers. 13). É um modo de referir-se à cidade de Roma, o que
legitima o texto como do indicado "bispo de Roma", que é Pedro.
É difícil, porém, servir-se apenas dessa indicação para a identifica-
ção da autoria.
Cita-se, também: “Marcos, meu filho” (vers. 13). O final é
um convite à saudação. O ósculo é um sinal de comunhão e de
discipulado.

6. CARTA DE PEDRO
Índole da carta
A Segunda Carta de Pedro começa com uma saudação so-
lene indicando sua autoria e insistindo na índole da experiência
direta com Jesus Cristo: Simão Pedro, servo e apóstolo de Jesus.
Àqueles que, pela justiça do nosso Deus e do Salvador Jesus Cristo,
alcançaram por partilha uma fé tão preciosa como a nossa, graça
e paz vos sejam dadas em abundância por um profundo conheci-
mento de Deus e de Jesus, nosso Senhor! (1,1-2).

No trecho 1,14, o texto sugere uma comunicação direta entre


Jesus Cristo e Simão Pedro − certamente de ordem mística, como
se poderia pensar, mas talvez uma menção ao final do Evangelho
segundo João. Em João (21,18-19), encontra-se esta informação
no estilo de previsão:
150 © Cartas aos Hebreus e Católicas

Em verdade, em verdade te digo: quando eras mais moço, cingias-


te e andavas aonde querias. Mas, quando fores velho, estenderás
as tuas mãos, e outro te cingirá e te levará para onde não queres.

Por essas palavras, ele indicava o gênero de morte com o


qual havia de glorificar a Deus. Depois de ter assim falado, acres-
centou: “segue-me!”
Na 2 Pedro (3,15-16), há uma alusão ao "caríssimo irmão
Paulo" e às suas cartas: “reconhecei que a longa paciência de nos-
so Senhor vos é salutar, como também vosso caríssimo irmão Pau-
lo vos escreveu, segundo o dom de sabedoria que lhe foi dado”. É
isto o que ele faz em todas as suas cartas que falam desse assunto.
Nelas, há algumas passagens difíceis de entender, cujo sentido os
espíritos ignorantes ou pouco fortalecidos deturpam para a sua
própria ruína, como o fazem, também, com as demais Escrituras.
Curiosamente, embora a 2 Pedro faça essa alusão a Paulo, ela não
apresenta qualquer trecho do Corpus Paulinum. É, apenas, uma
menção ao que Paulo escreve, sem continuidade.

Autoria e tempo da redação


Na 2 Pedro (3,1), é feita uma referência suposta à 1 Pedro:
“caríssimos, esta é a segunda carta que vos escrevo”. Mas não há
quaisquer indicações de textos de outros livros do Novo Testamen-
to como há com relação ao epistolário paulino. A 2 Pedro é qua-
se um escrito independente do resto do Novo Testamento. Além
disso, observando-a com atenção, ela é como um testamento; um
testemunho sincero de quem a escreve, imerso nas preocupações
e nas contradições de um mundo ou uma sociedade alheia aos va-
lores da fé ou, ainda, pior do que isto: simuladora desses mesmos
valores.
É nisso tudo que estão as dificuldades para a aceitação da
autoria da carta. Tudo compõe um quadro muito "claro" e "se-
guro" que deve questionar, justamente, pela clareza e segurança
que expressa! Esse questionamento já foi feito muitas vezes, e a 2

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© As Cartas de Pedro 151

Pedro sempre encontrou dificuldades de aceitação por parte das


Igrejas. Essa carta não foi mencionada durante o século 2º.
A Segunda Carta de Pedro é um escrito deuterocanônico e
pseudoepigráfico, muito embora ela afirme, categoricamente, ter
sido escrita por Pedro, o apóstolo, e apresente, já na saudação,
motivos de identificação com a experiência direta de Pedro. Segu-
ramente, pode-se considerar 2 Pedro como sendo redigido após a
queda do Templo de Jerusalém e após muita evolução na evange-
lização dos pagãos.

Características
Há uma relação intensa entre a 2 Pedro e a Carta de Judas.
Isto foi notado muitas vezes e demonstra uma dependência direta:
a Carta de Judas parece ter sido composta com base na 2 Pedro.
Pode-se ver tal dependência em um quadro sinótico:

Quadro 1 Comparação entre a 2Carta de Pedro e a Carta de Judas


COMPARAÇÃO ENTRE A 2CARTA DE PEDRO E A CARTA DE JUDAS
2 Pedro
Judas
(capítulos e Tema comum
(Somente versículos)
versículos)
2,1 4 Falsos mestres, intrusos
2,4 6 Os anjos caídos são castigados
2,6 7 Sodoma e Gomorra castigadas
Justos são salvos, ímpios são
2,9 6
condenados.
2,10 7-8 Intrusos desregrados
2,11 9 Os anjos e sua ação
2,12 10 Comportamento de animais
2,13 12 Abuso de comida
2,15 11 Balaão
2,17 13 Fontes (nuvens) sem água
3,2 17 Profetas e apóstolos
3,3 18 Previsão da Escritura
Fonte: adaptado de TUÑI; ALEGRE (2007, p. 325).
152 © Cartas aos Hebreus e Católicas

A 2 Pedro é um escrito diferente da 1 Pedro. Enquanto aque-


la apresenta muita parênese, o mais evidente nesta são os con-
juntos de alertas que o autor faz quanto ao desvio da doutrina.
Isto parece ser bem o reflexo de uma etapa posterior de redação
em relação àquela da 1 Pedro. Reflete, também, a situação em
que o cristianismo de fins do primeiro século enfrentava com o
surgimento de heresias e perseguições. Dessa forma, a 2 Pedro,
mesmo sendo pseudoepigráfica, é um testemunho eloquente de
seu tempo e da evolução da fé, bem como da difusão de escritos
anteriores, especialmente dos escritos paulinos.

O texto da 2 Pedro
Não há um plano claro na composição da 2 Pedro. Os temas
vão se sucedendo sem muita lógica ou sequência às vezes. Propõe-
se o seguinte esquema fundamental:

Quadro 2 Esquema fundamental da 2 Pedro.


Esquema fundamental da 2 Pedro

1,1-2 Endereço e eulogia

1,3-4 Participar da natureza divina


1,5-11 A natureza divina
1,12-18 O testemunho de Pedro
1,18-21 A profecia
2,1-3 Falsos doutores
2,4-10 O passado
2,11-22 O castigo
3,1-2 O dia do Senhor

3,3-10 Doutores falsos

3,11-16 Convite à santidade


3,17-18 Saudação e encerramento
Fonte: elaborado pelo próprio autor.

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© As Cartas de Pedro 153

Endereço e eulogia: 1,1-2


O autor identifica-se como Simão Pedro, do grupo apostólico
de Jesus. Seria o primeiro das listas de apóstolos, como em Mateus
(10,2) e em Atos dos Apóstolos (1,13). Como se sabe, essa atribui-
ção é pseudoepigráfica.
O autor dirige-se "àqueles que, pela justiça do nosso Deus
e do Salvador Jesus Cristo, alcançaram por partilha uma fé tão
preciosa como a nossa” (vers. 1), envolvendo, nessa afirmação, os
conceitos de justiça e fé. Certamente, a "justiça" aqui anotada é
a participação na história da salvação por meio de Jesus Cristo,
afirmado como Salvador. A fé é a adesão a essa participação. O
resultado dessa situação é a graça: “graça e paz vos sejam dadas
em abundância por um profundo conhecimento de Deus e de Je-
sus, nosso Senhor!” (vers. 2). A graça e a paz seguramente vêm
do conhecimento não somente afetivo, mas do integral, que é a
experiência da vida.
Esse "conhecimento de Jesus Cristo" é um tema presente em
toda a carta. Isto pode ser visto como um estágio da gnose, corren-
te de pensamento e de ação que esteve muito presente no início
do cristianismo. Mas não se trata disto, senão de um conhecimen-
to, como o dito acima − integral −, em que o afeto e a inteligência
estão em comunhão. Diversamente, seria difícil compreender o
conjunto da carta.

Participar da natureza divina: 1,3-4


A 2 Pedro declara que os fiéis têm as condições necessárias
para compreender o mistério de Jesus Cristo. Em outras palavras,
o homem é capaz de encontrar Deus, de estar com Ele. A carta
declara que os fiéis podem participar da “natureza divina” (vers.
4) − o que é partilhar a divindade de alguma forma. Isto não pode
ser de um modo “mágico”, e, sim, livre, com a adesão da vontade
e da inteligência.
154 © Cartas aos Hebreus e Católicas

Essa perícope está como uma abertura para a seguinte, na


qual se encontram as características dessa adesão da vontade e
da inteligência. Não é uma participação envolta em misticismo,
em fatos ou em verdades intocadas, mas, sim, necessitada de uma
identificação do homem fiel com O Revelador, Jesus Cristo. Ele é o
que dá o dom da fé, conforme lembrado na eulogia inicial: “alcan-
çaram por partilha uma fé tão preciosa como a nossa” (vers. 1).

A natureza divina: 1,5-11


A carta elenca as características da natureza divina: a fé, a
virtude, o conhecimento − citado novamente −, o autodomínio, a
perseverança, a piedade, o amor fraternal e a caridade (vers. 5-7).
Tais virtudes levam ao conhecimento de Jesus Cristo.
A posse dessas virtudes deve acontecer pelo esforço dos que
tem o chamado da fé. Quem não as possui é, no dizer da 2 Pedro,
míope, cego. Não pode ter seus pecados purificados e não está na
vocação ou no chamado ao Reino Eterno. Nesse ponto, no versícu-
lo 11, a carta fala de nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo. É pre-
ciso estar nele, ter nele a ligação. No décimo versículo, ela fala de
eleição e de vocação como sinônimos de pertença ao Reino. Esse
Reino parece além dessa terra.

O testemunho de Pedro: 1,12-18


Como em outros pontos do Novo Testamento, a 2 Pedro usa
o argumento da memória como testemunho. O autor, usando a
imagem de Pedro, lembra seus ouvintes da necessidade de seguir
as admoestações apresentadas e por ainda apresentar. Alega que
está próximo o seu fim e que os seus conselhos serão sempre ne-
cessários.
No passo seguinte, a carta faz lembrança à transfiguração de
Jesus. No versículo 17, o texto recorda a manifestação teofânica
com voz de afirmação a respeito de Jesus: “este é o meu Filho mui-
to amado, em quem tenho posto todo o meu afeto”. Em seguida,

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© As Cartas de Pedro 155

no versículo 18, o autor afirma ter diretamente ouvido essa voz. A


menção a esse texto demonstra memórias próprias dos apóstolos
ou testemunhas oculares do Evento Jesus Cristo ou, ainda, conhe-
cimento dos textos dos evangelhos. Essa afirmação não relaciona
de per si o texto da 2 Pedro ao histórico personagem Pedro.

A profecia: 1,18-21
O texto lembra a palavra profética resgatando a imagem dos
profetas do Antigo Testamento. Ela é como luz na escuridão (vers.
19). Na sequência, o texto faz uma consideração, que será um
axioma cristão relativo à revelação e à inspiração:
Antes de tudo, sabei que nenhuma profecia da Escritura é de in-
terpretação pessoal. Porque jamais uma profecia foi proferida por
efeito de uma vontade humana. Homens inspirados pelo Espírito
Santo falaram da parte de Deus (vers. 20-21).

A Palavra, isto é, a comunicação de Deus aos homens, desde


a comunicação da Aliança até o Evangelho, é obra do Espírito San-
to que vem de Deus. A inspiração não é um dom natural ou uma
vontade humana, mas uma revelação. Isto é interessante, pois le-
gitima a intervenção de Deus a respeito de seu uso.

Falsos doutores: 2,1-3


Essa perícope inicia todo um longo trecho da carta que está
presente em Judas. O trecho em questão é da 2ª de Pedro (2,1-3,3)
− com algumas variações, mas com semelhança no conjunto.
O autor recorda que, no passado, houve falsos profetas em
meio ao povo da aliança. Assim, também eles podem existir em
meio à comunidade de fé, expondo doutrinas falsas (vers. 1). O
início do cristianismo apresentou o fenômeno das heresias: modos
de pensar diversos do usual; maneiras de compreender e propor
verdades de forma diferente do que era no grupo cristão. O autor
da 2 Pedro traça um quadro da situação: doutrinas dissolutas, ava-
reza, fingimento e negociatas com os fiéis (vers. 2-3).
156 © Cartas aos Hebreus e Católicas

Essa perícope é a introdução de um longo período de refle-


xões a respeito da sorte dos que negam o Senhor ou que apresen-
tam a mentira com a roupagem da verdade.

O passado: 2,4-10
A carta cita, de modo não claro, um episódio do Livro dos
Jubileus , no qual se encontra a queda dos anjos. Cita, aliás, alguns
personagens do Antigo Testamento como modelos de adesão à
vontade de Deus: Noé (vers. 5) e Ló (vers. 7). Eles são apresenta-
dos como cumpridores da vontade soberana de Deus, ao passo
que os seus contemporâneos não foram fiéis a Ele.
A perícope evidencia que, entre os ímpios, existe um justo,
um homem de Deus. Os fiéis são chamados a ser justos em meio a
uma geração corrompida.

O castigo: 2,11-22
Tem-se aqui uma longa perícope com um tema de fundo co-
mum: o castigo. Este vem em função dos vícios e dos erros cometi-
dos por quem se arvora no direito de julgar até os anjos, criaturas
que estão em Deus. A 2 Pedro cita o episódio de Balaão em Núme-
ros 22, que deveria amaldiçoar o Povo de Israel, mas foi contido
pelo animal que montava.
Nos versículos de 17 a 22, a descrição dos infiéis continua
com cores bem fortes. São comparados às fontes secas de água;
vivem nas coisas fúteis, dissolutos, imersos nas paixões da carne.
Buscam a liberdade, mas se mantêm na escravidão.
A 2 Pedro descreve a situação dos fiéis que, depois de conhe-
cer e aceitar Jesus Cristo, deixam o caminho da vida pelas paixões
que os controlam. No versículo 21, há a afirmação: “melhor fora
não terem conhecido o caminho da justiça do que, depois de tê-lo
conhecido, tornarem atrás, abandonando a lei santa que lhes foi
ensinada”. Seguem-se imagens grotescas, metáforas de queda, de
desvio do caminho da salvação e de ida para caminhos de perdi-

Centro Universitário Claretiano


© As Cartas de Pedro 157

ção. Fala-se do "cão que retorna ao seu vômito" e da "porca que,


depois de limpa, volta para a lama". A 2 Pedro está se referindo
àqueles que entraram na comunidade e tiveram a experiência da
graça, mas que a deixaram e entraram no mundo da negação de
Deus e da salvação em Jesus Cristo.

O dia do Senhor: 3,1-2


O tema e a expressão "dia do Senhor" é muito caro entre os
profetas do Antigo Testamento. Trata-se de um conceito duplo: o
dia do Senhor pode ser de salvação, pois é quando o Senhor se re-
vela e estabelece o seu Reino; e pode ser o dia do castigo, quando
Ele demonstra o erro e pune os que erraram.
No primeiro versículo, o autor alega que já escreveu uma
carta anterior, sendo esta, portanto, a segunda. Ao que parece, é
uma menção à 1 Pedro, mas é notável a diferença de linguagem e
de conceitos implícitos. Essa afirmação é reiterada da pseudoepi-
gráfica 2 Pedro.

Doutores falsos: 3,3-10


Essa perícope é uma visão escatológica de impacto para os
leitores originais. O texto parte do anúncio de escarnecedores −
gente desejosa de enganar os outros. A argumentação usada será
no sentido de cobrar o cumprimento das promessas da vinda de
Jesus (vers. 4), e o argumento que se segue apresenta imagens
bíblicas da criação e do poder de Deus sobre tudo. Com uma ar-
gumentação bem elástica, a carta apresenta o seu ponto de vista:
assim como os céus e a terra foram feitos com os elementos físi-
cos, tais como a água e o fogo, entrando em sua realidade, assim
também a terra e os céus encontrarão em Deus, isto é, na Palavra
de Deus, a ordem para o Juízo. É uma visão de parusia, de retorno
decisivo de Jesus Cristo e de julgamento do mundo.
Para alertar os ouvintes a respeito da realidade futura da vin-
da do Senhor, independentemente do tempo em que isto ocorrer,
158 © Cartas aos Hebreus e Católicas

a 2 Pedro lança mão de um versículo do Salmo 90(89),4: “um dia


diante do Senhor é como mil anos, e mil anos, como um dia“ (vers.
8). O tempo pertence a Deus e à sua decisão, a demora em vir é
apenas aparente, e os tempos prometem a vinda gloriosa. Para a
espera do Senhor em seu dia, o qual será como o ladrão, segue-se,
no décimo versículo, uma descrição assustadora do "Dia do Se-
nhor”.

Convite à santidade: 3,11-16


A 2 Pedro questiona a postura moral de seus ouvintes. Per-
gunta sobre a santidade da vida dos fiéis, habitantes de um mundo
com dificuldades e provações. A santidade dos leitores da carta
apressa o Dia de Deus, quando tudo será, na visão da carta, “en-
quanto esperais e apressais o Dia de Deus, esse dia em que se hão
de dissolver os céus inflamados e se hão de fundir os elementos
abrasados!” (vers. 12). Contudo, aos fiéis estão reservados “novos
céus e uma nova terra, nos quais habitará a justiça” (vers. 13). Isto
deve ser esperado com uma conduta adequada, inspirada na dedi-
cação que o Senhor demonstra.
Nesse ponto, a 2 Pedro cita o "amado irmão Paulo" e os seus
escritos. Segundo o versículo 15, Paulo escreveu ao grupo ouvinte
da 2 Pedro. No dizer do versículo 16:
Nelas [nas Cartas de Paulo] há algumas passagens difíceis de en-
tender, cujo sentido os espíritos ignorantes ou pouco fortalecidos
deturpam, para a sua própria ruína, como o fazem também com as
demais Escrituras.

Saudação e encerramento: 3,17-18


A carta termina com um alerta contra os ímpios que detur-
pam as Escrituras. Mais uma vez, é lembrado o conhecimento de
Jesus Cristo, que é glorificado na última palavra da carta. O texto
termina como uma prece, com a assertiva "amém" (vers. 18).

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© As Cartas de Pedro 159

7. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
1) Quais são os temas principais da Primeira Carta de Pe-
dro?
2) Quais são os temas principais da Segunda Carta de Pe-
dro?
3) Essas duas cartas podem tranquilamente ser atribuídas
ao apóstolo Pedro?
4) Qual é a importância do tema "memória" na argumenta-
ção da Segunda Carta de Pedro?
5) Comente o tema dos falsos profetas e as consequências
de sua mensagem conforme a Segunda Carta de Pedro.
6) Em quais pontos a Segunda Carta de Pedro corresponde
à Carta de Judas?
7) Como entender a imagem dos "presbíteros", presente
na Primeira Carta de Pedro?
8) A Primeira Carta de Pedro apresenta o argumento do so-
frimento conforme Jesus Cristo em certa altura do texto.
Qual é a argumentação a respeito?
9) Comente os temas "obediência à verdade", "sacerdócio"
e "vida nova", presentes na Primeira Carta de Pedro.
10) Qual é a compreensão da autoria da Primeira Carta de
Pedro?

8. CONSIDERAÇÕES
Embora atribuídas a Pedro, as duas cartas que recebem seu
nome devem ser de escritores diferentes. Seguramente, não são
do apóstolo Pedro. Talvez a 1 Pedro pudesse ter influências ou,
até mesmo, uma autoria indireta do apóstolo. Mas é impossível
afirmar ou negar. O que sobressai da leitura das duas cartas são as
diferenças que possuem e as situações concretas que refletem.
A 1 Pedro apresenta-se como um conjunto de exortações pa-
renéticas baseadas no querigma cristológico. A 2 Pedro é um es-
crito doutrinal com enfoque na fidelidade à doutrina e à coerência
na vida cristã.
160 © Cartas aos Hebreus e Católicas

9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORNKAMM, G. Bíblia, Novo Testamento. Introdução aos seus escritos no quadro da
história do cristianismo primitivo. Tradução de João Rezende Costa. 3. ed. São Paulo:
Teológica, Paulus, 2003.
SCHLOSSER, J. A primeira epístola de Pedro. In: MARGUERAT, D. (Org.). Novo Testamento:
história, escritura e teologia. Tradução de Margarida Oliva. São Paulo: Loyola, 2009.
SCHLOSSER, J. A segunda epístola de Pedro. In: MARGUERAT, D. (Org.). Novo Testamento:
história, escritura e teologia. Tradução de Margarida Oliva. São Paulo: Loyola, 2009.
TRIMAILLE, M. As epístolas católicas. In: CARREZ, M. et al. As cartas de Paulo, Tiago,
Pedro e Judas. Tradução de Benôni Lemos. São Paulo: Paulinas, 1987. (Coleção: Biblioteca
de Ciências Bíblicas)
TUNÎ, J. O.; ALEGRE, X. Escritos joaninos e cartas católicas. 2. ed. São Paulo: Ave Maria,
2007.

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EAD
Cartas de João e
Carta de Judas

5
1. OBJETIVOS
• Apresentar as últimas cartas do conjunto das Cartas Ca-
tólicas.
• Introduzir as três Cartas de João e a Carta de Judas em sua
história, literatura e teologia.
• Conduzir à leitura das três Cartas de João e da Carta de
Judas.

2. CONTEÚDOS
• A Primeira Carta de João.
• Data, lugar da composição e autoria da carta.
• Teologia da Primeira Carta de João.
• A Segunda e a Terceira Carta de João.
• Data, lugar da composição e autoria das cartas.
162 © Cartas aos Hebreus e Católicas

• Teologia da Segunda e Terceira Carta de João.


• A Carta de Judas.
• Data, lugar da composição e autoria da carta.
• Teologia da Carta de Judas.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


1) É importante ressaltar que, embora sejam aqui abor-
dadas quatro obras do Novo Testamento, a quantia de
texto é pequena, pois tais cartas não são extensas. Por-
tanto, recomendamos que você as leia antes de iniciar o
estudo desta unidade, pois, assim, poderá acompanhar
mais profundamente os temas aqui desenvolvidos.
2) Alertamos que é de fundamental importância que as
questões autoavaliativas sejam respondidas, pois elas
podem se tornar o ponto de partida de debates, de ou-
tros trabalhos e de pesquisas. Você deve estar sempre
motivado a descobrir e aprofundar seus conhecimentos,
partilhando-os oportunamente.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Os textos em questão são os últimos do grupo chamado de
Cartas Católicas. Embora colocados juntos nesta apresentação e
em outros lugares onde são analisados, eles não apresentam mui-
tas semelhanças entre si. São também os últimos escritos do Novo
Testamento em ordem canônica, se excetuarmos o Livro do Apo-
calipse.
A Primeira Carta de João é um escrito muito interessante. Re-
toma, aparentemente, alguns pontos do Evangelho segundo João,
apesar de os especialistas não aceitarem que ela seja do mesmo
autor. Essa Primeira Carta de João é quase sempre analisada em
separado das outras.

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© Cartas de João e Cartas de Judas 163

A Segunda e a Terceira Carta de João são escritos muito bre-


ves, com poucos elementos teológicos dignos de nota. São quase
que uma a cópia da outra e, segundo os biblistas, não são do mes-
mo autor da primeira carta.
A última carta do grupo das Cartas Católicas e o último Livro
do Novo Testamento é a Carta de Judas. Esse texto é quase que
desconhecido dos fiéis, pois, além de ser pequeno em extensão,
também é pobre de ideias teológicas marcantes.
Esses escritos, mesmo que não muito consultados no dia a
dia teológico e pastoral, são os últimos testemunhos canônicos do
tempo neotestamentário. Merecem uma olhada e algum estudo.

5. PRIMEIRA CARTA DE JOÃO


Identidade e canonicidade
O que se chama a "Primeira Carta de João" não pode ser, a ri-
gor, considerada uma carta. Faltam elementos fundamentais para
esta identificação: o destinatário e a saudação final. Identificá-la
com o estilo "epístola" no sentido já apresentado em unidades
anteriores também não é o mais correto, pois ela não apresenta
um corpo de doutrina orgânica, com desenvolvimento lógico ou
coerente. O que ela parece ser, à primeira vista, para quem toma
contato inicial com ela, é uma exortação intensa, uma declaração
de fé e adesão ao mistério de quem é anunciado por ela mesma:
Jesus Cristo.
Quanto à canonicidade, é notável que há uma longa série de
testemunhos a respeito da autoria da Primeira Carta ou Epístola
de João. Desde o século 2º, encontra-se a afirmação que esta carta
é do apóstolo João, filho de Zebedeu, o mesmo que teria escrito o
quarto Evangelho.
Policarpo, bispo de Esmirna (†155), utiliza, em sua Carta aos
Filipenses, argumentos e imagens que se encontram na 1 João.
164 © Cartas aos Hebreus e Católicas

São elas: "anticristo", "confessor", "testemunhar", "ser do demô-


nio" etc. Encontram-se, também, em Justino (†165), passagens
praticamente idênticas à 1 João. Santo Ireneu († 220) cita a 1 João
como fonte de doutrina segura, atribuindo-a ao apóstolo João. Eu-
sébio de Cesaréia († 339) citando Pápias, possivelmente entre os
anos 130 d.C. e 135 d.C., afirma também ser esta carta ou epístola
do apóstolo João. No final do século 2º, o Cânon de Muratori indi-
ca duas cartas atribuídas a João, transcrevendo 1 João (1,1) como
introdução. Estes também confirmam a autenticidade joanina da
Primeira Carta de João: Clemente de Alexandria († 215) e o grande
Orígenes († 253/4).

Semelhanças e diferenças
Uma questão importante da 1 João é sua semelhança ou não
com o Evangelho de João. Muitos já afirmaram que existe um pa-
rentesco imediato entre os dois escritos. Alguns até afirmam que a
1 João é uma espécie de apresentação ou conclusão do Evangelho
segundo João.
Essas semelhanças não são claras quando se analisa uma tra-
dução do texto. O que aqui se anota pode ser observado com o
texto grego. Pode-se encontrar:
1) Semelhanças gramaticais: disposição das partes da ora-
ção; uso raro de pronome relativo; alguns detalhes gra-
maticais como uso de determinadas partículas (preposi-
ções, conjunções etc.).
2) Estilo da escrita: algumas construções fraseológicas são
semelhantes às do quarto Evangelho, como paralelis-
mos, inclusões, palavras chaves, ritmo da escrita etc.
3) Índole semítica do texto: embora os termos semitas e o
pensamento dessa ordem não esteja tão claro, à primei-
ra vista, sob uma análise mais detalhada, encontram-se
elementos que levam a supor uma origem ou ao menos
um modo de pensar semita.
4) Analogia de conteúdo: os temas presentes no Evangelho
de João e na 1 João são semelhantes.

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© Cartas de João e Cartas de Judas 165

5) Índole do texto: trata-se de algo mais relacionado ao es-


tilo do pensamento do autor. Em 1 João, como no Evan-
gelhos segundo João, encontram-se textos produzidos
por alguém marcado pela mística, que encontra no seu
Deus o sentido dos fatos e das pessoas.
Isso tudo posto, ficam ainda dúvidas quanto à correspondên-
cia entre o quarto Evangelho e essa carta. As semelhanças podem
ser fruto de um ambiente comum ou com influências partilhadas.
Na análise atenta do texto grego, pode-se observar que as frases
do Evangelho segundo João são mais expressivas, mais "vivas", ao
passo que as da 1 João são estereotipadas, parece que "pré-pensa-
das", correspondendo ao que muito já se disse. Os estudos que, no
passado, identificavam com facilidade os textos como muito próxi-
mos, hoje em dia apontam mais para as diferenças.
Também no que diz respeito à época da composição do tex-
to, encontram-se dificuldades de datação. Uma pequena parte dos
estudiosos afirma ser a carta anterior ao Evangelho, e outra parte
identifica a carta como tendo sido escrita depois.
Não se sustenta a proposta, feita algumas vezes, de identi-
ficar a 1 João como uma espécie de introdução ao Evangelho de
João. Tudo isso posto, o que se conclui é que não há uma posi-
ção clara e inquestionável a respeito da origem, comum ou não, e
da articulação entre os dois escritos. Não obstante, a 1 João, bem
como as outras duas cartas, são geralmente introduzidas junto ao
Evangelho, formando o que se convencionou chamar "Corpo Joa-
neo". A esses textos, junta-se, muitas vezes, o Apocalipse, também
atribuído a um certo João.

Destinatários
Diversamente das outras duas cartas ditas de João, essa
primeira carta não foi escrita a uma pessoa em particular. O que
parece é que foi escrita para um conjunto grande de Igrejas que,
provavelmente, viviam em uma mesma região geográfica ou sob
problemas e desafios comuns.
166 © Cartas aos Hebreus e Católicas

Talvez o autor conheça, intimamente, seus ouvintes, pois


sabe dos problemas com uma certa precisão. É possível que o au-
tor se comunique com seus discípulos após um certo tempo de
distância. Uma hipótese já apresentada quando se atribui a 1 João
ao apóstolo João é a de uma comunicação entre ele e as Igrejas da
Ásia Menor. De Éfeso, cidade onde teria se radicado, João teria se
comunicado com os cristãos que, mesmo não tendo sido desper-
tados em sua fé por ele, teriam por ele veneração.
O que parece certo é que os destinatários da Primeira Carta
de João são fiéis que vivem intensamente sua fé em meio a gran-
des provações e dificuldades. A verdade não era clara, os falsos
discípulos confundem os fiéis. Há o perigo de anticristos, repre-
sentantes dos contra valores evangélicos, mentirosos, distantes da
salvação. O autor da 1 João propõe uma postura clara de adesão
ao mistério de Jesus Cristo que ele apresenta na clareza deste mis-
tério.

O texto da 1 João
O texto da 1 João e o das outras duas cartas ditas dele estão
presentes nos melhores códices: o Codex Vaticanus, representado
por B; o Codex Sinaiticus, representado por S; o Codex Ephremi,
representado por C; o Codex Alexandrinus, representado por A. Há
representantes do texto antigo em forma de textos unciais ou com
letras maiúsculas e existem, também, representantes de texto mi-
núsculo, com letras minúsculas.
Os testemunhos antigos do texto são muitos e, em geral, em
harmonia. As variantes de um texto antigo para outro são poucas.
Uma exceção digna de nota é o chamado "comma iohanneum”.
Trata-se de uma inserção no texto que, vista sob o ponto de
vista de estilo e de doutrina, aparece, claramente, como um acrés-
cimo posterior. Esse acréscimo acontece entre os versículos séti-
mo e oitavo do quinto capítulo. Aqui está o texto com o acréscimo,
no destaque, entre aspas:

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© Cartas de João e Cartas de Judas 167

7
São, assim, três os que dão testemunho: "no céu: o Pai, o Verbo e
o Espírito Santo, e esses três são um só; e há três que testemunham
na terra:” 8 o Espírito, a água e o sangue; estes três dão o mesmo
testemunho. 9 Aceitamos o testemunho dos homens. Ora, maior é
o testemunho de Deus, porque se trata do próprio testemunho de
Deus, aquele que ele deu do seu próprio Filho.

As edições bíblicas modernas não apresentam esse acrésci-


mo − o comma (parte ou membro de um período, em latim) iohan-
neum (de João).
Esse acréscimo não combina com o tempo da carta e com a
sua argumentação. É atestado com clareza por manuscritos (códi-
ces) minúsculos a partir do século 11. É um acréscimo de história
textual complicada: não existia na antiga Vulgata de São Jerônimo;
está presente, contudo, em um escrito atribuído a São Cipriano, do
século 14, na região da Espanha; tem sua presença em uma edição
da Vulgata do ano 800 d.C. e vai aos poucos se estabelecendo nas
traduções e suas cópias até a invenção da impressa. Foi uma fonte
de debates e confrontos entre estudiosos e até entre a Igreja Ca-
tólica e as Igrejas da Reforma. Atualmente, são poucas as edições
bíblicas que o apresentam, inclusive as de editoras católicas.
A divisão do texto da Primeira Carta de João, como também
de outros livros bíblicos, depende muito da sensibilidade do tradu-
tor ou editor. Aqui apresentamos uma divisão básica partindo da
leitura fluente do texto. É perfeitamente possível outras divisões,
inclusive com grupos de perícopes mais extensos.

Estrutura básica da carta ––––––––––––––––––––––––––––––


1,1-4 Prólogo
1,5-7 Caminhar na luz (segundo prólogo)
1,8-2,2 Rompimento com o pecado
2,3-11 Observar os Mandamentos
2,12-17 Cuidado com a atração do mundo
2,18-23 Preservar-se dos anticristos
2,24-29 Estar em Cristo
3,1-2 Filiação divina
3,3-10 Romper com o pecado
168 © Cartas aos Hebreus e Católicas

3,11-24 Amar sinceramente


4,1-6 Não ouvir os anticristos
4,7-21 A virtude do Amor
5,1-4 Fé em Jesus Cristo
5,5-13 A fonte da Fé
5,14-17 Oração pelos pecadores
5,18-21 Epílogo
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Prólogo: 1,1-4
Os primeiros versículos da 1 João lembram muito o Prólogo
do Evangelho segundo João. Em uma estrutura que concentra os
elementos, esses versículos, também aqui chamados de "prólogo",
destacam a afirmação do ver e do testemunho.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
1
O que era desde o princípio, o que temos ouvido,
o que temos visto com os nossos olhos, o que temos contemplado
Experiência direta A
e as nossas mãos têm apalpado
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
no tocante ao Verbo da vida —
Deus que se revela B
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
2
porque a vida se manifestou, e nós a temos visto;
Testemunho C
damos testemunho e vos anunciamos a vida eterna,
Fundamental
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
que estava no Pai e que se nos manifestou —,
Deus que se revela B’
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
3
o que vimos e ouvimos nós vos anunciamos,
Experiência direta A'
para que também vós tenhais comunhão conosco.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Ora, a nossa comunhão é com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo.
Primeira conclusão D
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

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© Cartas de João e Cartas de Judas 169

4
Escrevemo-vos estas coisas para que a vossa alegria seja completa. Segun-
da conclusão E
Esta estrutura, como foi dito atrás, demonstra-se concêntrica:

A
B
C

B’
A’

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Inicialmente, anuncia-se uma experiência direta (A). Essa ex-
periência direta se equipara com a sua reafirmação (A’). O Verbo
da vida (B) é recordado, não com essa expressão, mas com a ideia
de sua manifestação (B’). Isso tudo se concentra no principal: “por-
que a vida se manifestou, e nós a temos visto, damos testemunho
e vos anunciamos a vida eterna” Tem-se, então: (a) vida que se
manifesta; (b) visão que dela se tem; (c) testemunho de quem viu;
(d) anúncio da vida eterna.
O prólogo da 1 João evidencia a experiência direta de quem
fala, talvez atribuída também a quem ouve, experiência direta com
Jesus, apresentado como o Verbo da vida. O resultado é a alegria
do fiel que deve ser, por isso mesmo, completa.

1,5-7: Caminhar na luz (segundo prólogo)


Após uma primeira palavra com o intuito de incentivar tes-
temunhando, o texto apresenta, segundo nosso modo de ver, um
segundo prólogo relacionado à luz.
A 1 João declara que "Deus é luz". Certamente, este é um
tema presente no Evangelho de João, como no prólogo e no texto
do cego de nascença (1Jo 9). Em 1 João (6-7), é feita uma con-
170 © Cartas aos Hebreus e Católicas

traposição de conduta no estilo de paralelismo poético hebraico:


uma proposta ou uma ideia com uma contraproposta ou uma ideia
complementar ou contraditória. Aqui o que se tem é a afirmação
de que se anda na luz (vers. 6), mas o que se vive são trevas: isto
demonstra uma mentira de vida ou uma falsidade. O contrário, no
sétimo versículo, afirma que o que vive ou caminha na luz está em
comunhão com outros, que certamente são os que seguem a Jesus
Cristo, o Verbo.
Essa perícope é aqui identificada como segundo prólogo
pois, ao que parece, soa como introdução a diversos temas pre-
sentes nos textos a seguir. Além disso, parece compor, com o pri-
meiro prólogo, um conjunto coerente.
Após essas duas introduções ou prólogos, o que vem a seguir
é um primeiro passo, necessário para quem deseja estar no cami-
nho da Luz.

1,8-2,2: Rompimento com o pecado


Essa perícope usa um discurso de retórica, usando outra vez
um paralelismo de contradição: o autor, que apresenta o assunto e
propõe o tema, evidencia que a declaração de isenção de pecado
leva à mentira e ao engano. Já o contrário faz e vive quem o con-
fessa, entendendo-se que o ato de confessar os pecados significa
admiti-los de alguma forma. Quem os confessa tem o perdão e será
purificado. A postura de não confessar os pecados e afirmar que
não tem pecado, segundo o versículo 10, determina a ausência da
Palavra na vida de quem a assumiu. Essa Palavra é, certamente, a
revelação que traz o Verbo de Deus ao ser humano.
Aqui aparece uma expressão interessante: "meus filhinhos"
(2,1), denotando intimidade ou prova de confiança recíproca. Pode
ainda indicar a filiação espiritual: o autor foi o fundador ou um dos
primeiros mestres da Igreja ou dos que recebem seu escrito. Essa
expressão, "filhinhos", irá aparecer várias vezes no texto a partir
de agora.

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© Cartas de João e Cartas de Judas 171

Jesus Cristo é chamado de "justo", citado como advogado


(2,1) e apresentado como "vítima de expiação" (vers. 2), fazendo
uma alusão aos sacrifícios religiosos, especialmente judaicos.

2,3-11: Observar os Mandamentos


Essa perícope começa com o tema do conhecimento de Je-
sus Cristo. E "conhecimento" pode dar a entender gnosticismo,
doutrina que incomodou muito o cristianismo nascente.
O conhecimento que a 1 João lembra e apresenta como ne-
cessário é o conhecimento de Jesus Cristo, que, por sua vez, se
demonstra pela adesão aos mandamentos. Trata-se, sem dúvida,
não apenas dos mandamentos como é entendido o conjunto das
leis do Antigo Testamento, mas sim da mensagem evangélica, es-
pecialmente do amor mútuo. Isto o gnosticismo não apresentava!
Ter a verdade em si (vers. 4) é estar na intimidade com o
Cristo. E o fruto desta intimidade é, no pensamento da 1 João,
como já foi visto atrás, o amor mútuo, alicerçado em Jesus Cristo.
Essa realidade é tão forte e marcante que, no nono versículo, se
lê: “aquele que diz estar na luz, e odeia seu irmão, jaz ainda nas
trevas”. Em contraste, no formato de paralelismo poético, o versí-
culo dez: “quem ama seu irmão permanece na luz e não se expõe
a tropeçar”.

2,12-17: Cuidado com a atração do mundo


Os versículos de 12 a 14 apresentam uma sequência de afir-
mações que compõem o quadro dos destinatários da carta.
V. 12: “filhinhos”: tiveram seus pecados perdoados;
V. 13a: "pais": pelo conhecimento daquele que é "desde o princí-
pio";
13b: “jovens”: porque eles venceram o maligno;
V. 14a: “filhinhos”, mais uma vez: pelo conhecimento do Pai;
14b: "pais": pelo conhecimento daquele que é "desde o princí-
pio";
14c: "jovens": porque eles são fortes, tendo a Palavra de Deus neles
permanece.
172 © Cartas aos Hebreus e Católicas

Parece clara uma repetição entre os segmentos 13a e 14b.


A repetição de "filhinhos" nos segmentos 12 e 14a criam uma at-
mosfera de intimidade entre o autor da carta e seus ouvintes, mes-
mo os ouvintes atuais que fazem, naturalmente, a transposição da
expressão para a sua leitura.
Em seguida, nos versículos 15-17, aparece a figura do "mun-
do". Parece que ela está aqui em contraposição com a Palavra de
Deus. Enquanto esta gerou as situações anotadas acima, na pri-
meira parte da perícope, essa segunda parte centraliza a ideia do
mundo como contraposição aos valores referentes a Deus.
O mundo tem os males, luta contra a Palavra, contra o Pai.
Aparece a expressão muito forte: "concupiscência" (vers. 16). Essa
é a adesão aos valores do mundo, às suas figuras e sentimentos.
Este mundo tem uma existência vaga, pois ele passa, ficando, so-
mente, os que fazem a vontade de Deus (vers. 17).

2,18-23: Preservar-se dos anticristos


Essa situação, a dos "anticristos", parece ser muito presente
no tempo da redação da 1 João. Anticristo é tudo ou todo que vai
contra o Cristo; é o contrário: ao invés de salvação, a perdição; ao
invés de luz, as trevas; ao invés da verdade, a mentira. No versículo
22, o anticristo, seja ele quem for, é mentiroso naturalmente.

A ideia de anticristo ou de um Anticristo é muito presente em di-


versas fases da história. Trata-se de uma realidade contrária aos
valores, à mensagem e à doutrina sobre Cristo. Em muitos mo-
mentos da história, essa ideia foi muito marcante e ocupou mais
espaço que a própria ideia de Cristo. É inevitável comparar figuras
históricas famosas com o anticristo. Mas ele pode ser a própria
comunidade em seus limites e erros! A afirmação mais clara da
natureza do anticristo é a que se encontra no versículo 22: “quem
é mentiroso senão aquele que nega que Jesus é o Cristo? Esse é
o Anticristo, que nega o Pai e o Filho”.

A 1 João alerta seus ouvintes que esse anticristo vem do meio


da comunidade dos fiéis. Isto é significativo, pois fazendo uma re-

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© Cartas de João e Cartas de Judas 173

ferência à própria comunidade dos fiéis como berço da contradi-


ção a carta alerta para a necessidade da "unção" (vers. 20), sinal da
escolha, da decisão pelo Cristo.

2,24-29: Estar em Cristo


A situação do anticristo é contraposta com a exortação a es-
tar no Pai. Ele precisa permanecer na comunidade dos fiéis, e, por
isso, o fiel deve estar aberto a Ele. O versículo 24 indica que é ou-
vindo a Palavra que o fiel terá a convivência com o Pai e o Filho.
Surge o termo "Promessa". Ela é o mistério que envolve o
ouvinte da Palavra. Parece ser a intimidade com as realidades que
vêm da Palavra, que são apresentadas e propostas pela Palavra.
No versículo 25, a Promessa é definida como "vida eterna".
No versículo 27, o autor da 1 João indica que alguns desejam
desencaminhar a respeito desse conteúdo de fé. Ele estaria prova-
velmente falando dos gnósticos ou representantes de correntes de
pensamento diversas do cristianismo original, que, seguramente,
a carta reflete.
Nesse mesmo versículo, é citada a "unção" mais uma vez.
Ela dá condições ao fiel de permanecer na amizade ou intimida-
de com Deus. Tal permanência é fundamental, pois, em breve, no
pensamento da 1 João, embora ainda indefinidamente, acontece-
rá a vinda de Cristo. A perícope termina com a afirmação da justiça
como sinal de permanência em Deus.

Observe que a Primeira Carta de João usa com muita frequência


os pronomes pessoais. Uma prática interessante e necessária na
leitura de um texto como este é estar sempre recordando de quem
se fala e que é expresso com o pronome. Aqui, o sujeito do prono-
me é Deus ou o Pai.

3,1-2: Filiação divina


Subitamente, a carta apresenta uma mensagem exaltada,
174 © Cartas aos Hebreus e Católicas

convidando seus ouvintes a compreender a prova de amor que o


Pai deu aos seus filhos: o próprio fato de poder ser chamados de
"filhos de Deus" (vers. 1). Em seguida, o texto apresenta mais uma
sequência de ideias: o fato de o mundo não conhecer os filhos de
Deus é porque não conhece a Deus. A 1 João relaciona os ouvintes
da carta, junto ao seu autor, com os filhos de Deus, contrapostos
pelo mundo.
Enquanto os fiéis são, neste mundo, filhos de Deus, devem
esperar ser mais alguma coisa. Isto eles saberão quando houver
a "manifestação" – momento que parece ser o final da história.
O segundo versículo afirma, no final, que os que estiverem nele
durante o tempo poderão vê-lo como é. Esta é uma afirmação in-
teressante, embora não surpreendente. De fato, a 1 João insiste na
experiência direta com o revelador do Pai, como pode ser lido no
trecho 1,1-3. Para estar nesta realidade nova de comunhão ou vi-
são direta são necessárias, algumas condições que a carta começa
agora a propor.

3,3-10: Romper com o pecado


O rompimento com o pecado é fundamental. Para poder
romper com o pecado, é necessário estar na presença ou na inti-
midade dele, que, certamente, pelo contexto de 3,1, é o Pai.
Pecado e iniquidade são tornados equivalentes. Se equidade
é a virtude de quem está na verdade e pode ser também sinônimo
de atitude religiosa, quando esta é orientada para o bem, então a
iniquidade é a contravirtude, a falta de caráter, a irreligiosidade.
O fiel, para estar na comunhão com o Pai, precisa romper com o
pecado, não praticando a iniquidade.
O versículo oito afirma que o pecador é posse do diabo. Este
é identificado como pecadora desde o início. Para combatê-lo é
que o Filho de Deus se manifesta.
Os versículos nono e décimo apresentam a relação inversa de
estar em Deus e cometer pecado. Quem está em Deus não pode
cometer pecado, pois tem uma "semente" (vers. 9).

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© Cartas de João e Cartas de Judas 175

Depois de apresentar essa argumentação, o texto afirma, de


modo apodítico: “é nisto que se conhece quais são os filhos de
Deus e quais os do demônio: todo o que não pratica a justiça não
é de Deus, como também aquele que não ama o seu irmão”. Esse
tema da justiça e do amor abre o argumento para a perícope se-
guinte.

3,11-24: Amar sinceramente


Nesta longa perícope o tema central é o amor. Trata-se do
amor entre irmãos, motivado e mantido pela ação de Jesus Cristo
no fiel. A perícope tem oito partes, podendo ser assim apresenta-
da em uma estrutura concêntrica, tendo a atitude de Jesus Cristo
como centro da anunciação da do amor:
vv. 11-12 Introdução: história
vv. 13 1ª parte: o ódio do mundo
vv. 14-15 2ª parte: o motivo do amor
v. 16 Centro: "Ele deu sua vida por nós."
vv. 17-18 3ª parte: o amor concreto
vv. 19-22 4ª parte: ser da verdade
vv. 23-24 Conclusão: exortação ao mandamento do amor

Os versículos 11 e 12 introduzem o tema anunciando a histó-


ria partindo de uma passagem e um personagem do Antigo Testa-
mento. Eles deviam ser conhecidos dos leitores originais da carta,
o que sugere que pudessem ser de ascendência judaica. São ci-
tados o personagem Caim e o episódio do fratricídio, em Gênesis
(4,8ss). A história aponta para a situação de quem está sob o poder
do Maligno.
O versículo 13 é como uma inferência: o autor interroga aos
leitores sobre a situação do ódio do mundo. Certamente, o motivo
é a ação do maligno na história.
Os versículos 14 e 15 apresentam a situação dos que estão
na presença de Deus. Eles dão testemunho disto com a vivência
176 © Cartas aos Hebreus e Católicas

do amor. E o versículo 15 liga-se à introdução, nos versículos 11 e


12, quando coloca em paralelo a ideia do homicídio de Caim e o
ódio aos irmãos que é comparável ao homicídio ou de onde este
deriva.
O versículo 16 é, ao que parece, o centro literário e teológico
dessa perícope. Aqui é anunciado o motivo do amor que deve ser
vivido entre irmãos. Esse motivo não é uma ação filantrópica ou
um compromisso social; antes, isto é a consequência. O motivo
fundamental é: “nisto temos conhecido o amor: [Jesus] deu sua
vida por nós. Também nós outros devemos dar a nossa vida pelos
nossos irmãos”. O amor entre fiéis no Pai depende da motivação
de Jesus Cristo que dá a sua vida por eles. O centro da perícope,
portanto, tem expressão cristológica.
Os versículos 17 e 18 falam do amor concreto, partindo de
uma situação de miséria. Um necessitado que precisa ser socor-
rido, mas é deixado de lado pelo fiel. Deus não estará nesse fiel,
pois ele estará amando apenas em palavras, com a língua, e não na
verdade dos seus atos.
Os versículos 19 e 22 apresentam-se como uma reflexão so-
bre as consequências dessa situação de amor: o ser da verdade.
Isto oferece ao fiel a possibilidade de estar na presença de Deus.
Finalmente, os versículos 23 e 24 concluem o tema da perí-
cope exortando aos ouvintes e aos leitores a guardarem os man-
damentos, diversamente do modelo citado na introdução (Caim),
que não foi fiel.
O tema do amor voltará ainda na 1 João e parece ser de
grande importância no texto. Realmente, ele parece contradizer a
mentalidade de que essa carta pudesse ser de orientação gnóstica:
o amor não é apenas palavra, mas é ato e coerência.

Essa estrutura apresentada na perícope anterior é de uso muito


comum nos estudos bíblicos. Ela evidencia as partes do texto, de-
monstrando que os argumentos vão se concentrando até formar
uma verdade ou um anúncio decisivo ao redor do qual tudo gira.

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© Cartas de João e Cartas de Judas 177

4,1–6: Não ouvir os anticristos


O tema dos anticristos retorna sob nova roupagem. No ver-
sículo primeiro, o autor exorta os ouvintes a não darem ouvidos a
qualquer espírito. Certamente, ele se refere às ideias e tendências
de seu tempo, muito marcadas pelas religiões e seus mitos. Isso
tudo, no dizer desse versículo, não é certo.
Os versículos dois e três propõem o critério decisivo para o
discernimento: a confissão de Jesus Cristo.
Todo espírito que proclama que Jesus Cristo se encarnou é de Deus;
todo espírito que não proclama Jesus esse não é de Deus, mas é o
espírito do Anticristo de cuja vinda tendes ouvido, e já está agora
no mundo.

O versículo quatro parece ser o centro da perícope quando


evidencia, com uma linguagem coloquial, a dependência dos fiéis,
os "filhinhos" do autor da Primeira Carta de João. Eles são de Deus
e têm, dentro de si, o que é maior do que o mundo: “Vós, filhinhos,
sois de Deus, e os vencestes, porque o que está em vós é maior do
que aquele que está no mundo”.
Os versículos cinco e seis contrapõem os que são do mundo,
que vivem na dependência dos anticristos (vers. 5) e os que são de
Deus, pois ouvem a Deus e o conhecem.

4,7-21: A virtude do Amor


Ainda sobre o tema do amor, essa longa perícope se apre-
senta como uma expressão do coração do autor da carta. Pode-se
também ver, nessa perícope, uma estrutura concêntrica, com um
anúncio cristológico central:
vv. 7–8 Introdução: Exortação ao amor
vv. 9–11 1ª parte: O amor de Deus: a perfeição
vv. 12–14 2ª parte: Contemplar a Deus no amor
v. 15 Centro: Confessar Jesus
Cristo
v. 16 3ª parte: Deus é amor!
vv. 17–18 4ª parte: A perfeição do amor: confiança
vv. 19–21 Conclusão: Exortação ao amor
178 © Cartas aos Hebreus e Católicas

A introdução, nos versículos sete e oito, propõe a ideia de


amor como a identidade de quem nasceu de Deus, visto que o
amor vem de Deus. A essa introdução, corresponde a conclusão,
nos versículos de 19 a 21, que são uma exortação ao amor motiva-
do pela proximidade do fiel com Deus. Nessa conclusão, encontra-
se o versículo que se tornou axioma cristão: “Se alguém disser:
amo a Deus, mas odeia seu irmão, é mentiroso. Porque aquele que
não ama seu irmão, a quem vê, é incapaz de amar a Deus, a quem
não vê” (vers. 20).
A 1ª parte, nos versículos de 9 a 11, apresenta o amor de
Deus na vida e existência dos fiéis. Deus é quem ama primeiro,
dando o primeiro passo, o que leva seus amados a amar também.
A essa parte corresponde a 4ª parte, nos versículos 17 e 18: trata
da perfeição do amor que é fruto da sua própria vivência e da pre-
sença de Deus na vida do fiel.
A 2ª parte, dos versículos de 12 a 14, convida os ouvintes
a contemplar a Deus no amor. O amor, que leva o Pai enviar o Fi-
lho, leva, também, o Espírito aos fiéis. A essa parte, corresponde
a 3ª parte, versículo 16, na qual o autor declara o conhecimento
do amor de Deus. Aqui tem-se, também, outro pensamento que
marca o ser cristão: “Deus é amor, e quem permanece no amor
permanece em Deus e Deus nele”.
O centro dessa perícope, como foi indicado atrás, está no
versículo 15: “todo aquele que proclama que Jesus é o Filho de
Deus, Deus permanece nele e ele em Deus”. A confissão de Jesus
Cristo é a aceitação de sua presença na vida, na história, na consci-
ência. Aqui está a raiz de tudo: o Cristo, o enviado do Pai pelo amor
que este tem pelos fiéis, é o motivo de tudo existir. A perícope, que
pode ser bem um hino, tem sentido cristológico.

Filiação divina:–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
É interessante que o texto fale, frequentemente, da filiação divina. Parece que o
autor da 1João insiste em declarar que os fiéis, os que aceitam amar, motivados
pela adesão a Jesus Cristo, assumem a condição de filhos. Talvez isto não tenha
muita repercussão na atualidade, quando tal anúncio não causa tanto impacto.

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© Cartas de João e Cartas de Judas 179

Mas em uma sociedade violenta, marcada pelo ateísmo e pelo domínio político
militar, como era a sociedade no mundo romano na bacia do Mediterrâneo, essas
afirmações têm grande efeito. Mais ainda pelo fato de valorizar, intensamente,
o amor fraterno, coisa não muito destacada naqueles tempos; aliás, até negada
pela sociedade do poder e da opressão. Nesse sentido, o conteúdo da 1 João é
forte e provocativo.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

5,1–4: Fé em Jesus Cristo


Esta é a perícope que conclui o tema do amor sem, contudo,
fechá-lo. Parece ser uma perícope de transição. No versículo pri-
meiro, o autor declara ser nascido de Deus quem declara sua fé em
Jesus Cristo. Isto tem como consequência, no próprio fiel, a certe-
za da filiação divina e uma exigência concreta: a observância dos
mandamentos (vers. 2). O terceiro versículo declara que o amor
de Deus ou devido a Deus é expresso na observância dos manda-
mentos, que, por sua vez, não são pesados. No versículo quarto,
declara-se a vitória de quem nasceu de Deus, pois tem fé.

5,5-13: A fonte da Fé
A perícope anterior fechava o assunto do amor e, ao mesmo
tempo, abre agora o tema da fé e de suas consequências. Na par-
te da questão do chamado "comma iohanneum”, que já foi vista
anteriormente, é fundamental destacar a insistência na realidade
do Espírito, citado, muitas vezes, nessa perícope. É uma perícope
cristológica, mas que tem o Espírito como motivação.
Partindo de uma pergunta retórica (vers. 5), o autor decla-
ra que o vencedor do mundo é Jesus Cristo. Ele veio pela água e
pelo sangue (vers. 6), o que parece citar o episódio da Paixão no
Evangelho segundo João, quando do lado aberto de Cristo jorrou
sangue e água (1Jo 19,34).
Então, nos versículos 7 e 8, o autor raciocina com a imagem
do Espírito, da água e do sangue, como fontes do testemunho. Cla-
ramente, o que se vê é a menção da tradição literária da paixão de
Jesus e do símbolo usado para apresentá-la.
180 © Cartas aos Hebreus e Católicas

No nono versículo, o autor intervém em seu próprio pen-


samento com uma consideração em estrutura de contradição: o
testemunho de Deus é maior que o testemunho dos homens e o
testemunho de Deus é o testemunho de seu Filho. Nota-se que a
carta assumiu um tom fortemente cristológico, retornando, clara-
mente, aos primeiros versículos que apresentavam o Verbo e sua
ação testemunhada pelos que o acompanharam. Supostamente, o
autor da carta está entre eles.
O décimo versículo fala dos que creem no Filho e na vida que
possuem. Isto é o testemunho de que eles possuem mutuamente:
a vida dos que vivem na adesão ao Filho, isto é, a própria vida que
possuem é o testemunho que dão.
Os versículos de 11 a 13 concluem a perícope com uma se-
quência de ideias, fruto do que antes foi exposto: No versículo 11,
é anunciado o testemunho do Filho que tem a vida eterna. No ver-
sículo 12, o autor declara que ter o Filho, certamente estar na sua
presença ou viver na sua graça, é ter a vida. E no versículo 13,
encontra-se uma espécie de epílogo disto tudo com a declaração
do autor e de sua intenção original: levar à fé no Filho de Deus e à
posse da vida eterna.

5,14-17: Oração pelos pecadores


Algumas traduções bíblicas apresentam como título dessa
perícope a identidade "oração". Quem tem confiança em Deus
pode pedir-lhe e obter o que pediu (vers. 14). Ser ouvido por Deus
é estar na sua presença (vers. 15).
A consequência disto é que todo fiel tem uma responsabili-
dade grande sobre os pecadores (vers. 15). Os versículos 16 e 17
falam de um pecado que conduz à morte e de outro que não con-
duz. E, como em um diálogo coloquial, o autor afirma que não é
este o seu assunto.

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© Cartas de João e Cartas de Judas 181

Há divergências nesses últimos versículos. Alguns testemunhos


textuais falam de um pecado que conduz à morte, e outras ver-
sões falam o contrário: um pecado que não conduz à morte. Se-
guramente, a atual dificuldade da compreensão do texto já estava
presente nos antigos copistas, que não entendiam direito essas
ideias.

5,18-21: Epílogo
Finalmente, a Primeira Carta de João chega ao seu fim. Mas
não tem roupagem de fim, parecendo mais uma interrupção do
discurso. Algumas traduções bíblicas identificam essa perícope
como um resumo da carta.
Quem nasce de Deus não pode pecar, pois o Gerado por
Deus, que é Jesus Cristo, guarda o fiel, ao qual o maligno não pode
atingir (vers. 18). O autor da carta e seus ouvintes e leitores sabem
que são nascidos de Deus e que estão em um mundo corrompido
(vers. 19). Isto impõe sobre eles a adesão ao Filho de Deus como
caminho da Verdade (v. 20).
O último versículo da carta parece ser uma interrupção do
discurso. Volta a expressão "filhinhos”, seguida da exortação a se
guardar dos ídolos, que não foram citados no corpo da carta. Talvez
esse versículo iniciasse outro argumento e a carta fosse mais longa
em sua origem, ou esses ídolos estão no posto do maligno, fazen-
do uma ponte com o paganismo. Difícil saber o que pode ser.
A Primeira Carta de João é um longo discurso de confiança e
apresentação dos motivos de adesão à mensagem cristã. Mais do
que uma carta, ela é um estímulo no estilo dos primeiros discípu-
los frente aos valores do mundo de sua época.

Note bem que os textos epistolares do Novo Testamento são es-


porádicos, quase que acidentais. Não foram pensados para formar
um corpo de doutrina, mas são usados pelo cristianismo como tal,
pois expressam a experiência original da adesão a Jesus Cristo e
à sua comunidade de fé.
182 © Cartas aos Hebreus e Católicas

6. SEGUNDA E TERCEIRA CARTAS DE JOÃO


A chamada Primeira Carta de João é, como foi visto, mais
do que uma carta, um discurso ou uma pregação, é uma exorta-
ção à fidelidade, ao amor e à adesão ao mistério de Jesus Cristo,
revelado pelo amor do Pai. À semelhança do amor de Deus ma-
nifestado em Jesus Cristo, os fiéis devem amar-se uns aos outros,
sendo testemunhas em um mundo corrompido pelo pecado e pelo
maligno.
Curiosamente, as outras duas cartas atribuídas a João, ape-
sar de sua brevidade (a segunda tem 13 versículos e, a terceira,
15 versículos), são, propriamente, cartas, pois têm estrutura e ele-
mentos próprios de uma carta. Mas não são do mesmo autor da
1 João nem expressam conteúdos doutrinários como ela. Seu uso
no dia a dia da liturgia da Igreja é bem reduzido, pois o texto é
também reduzido.

Canonicidade
Não há unanimidade nos testemunhos da tradição a respei-
to dessas duas cartas. Santo Ireneu de Lião cita a 1 João e a 2 João,
não a 3 João. Clemente de Alexandria (†211) cita a 1 João como
"carta de João mais longa", o que sugere uma carta curta. O Cânon
de Muratori fala de "epístolas" de João, portanto, mais de uma,
sem esclarecer que sejam duas ou três. Orígenes (†245) e Eusébio
de Cesaréia (†339/340) expressam incertezas quanto à inspiração
da segunda e da terceira cartas. São Jerônimo († 420) indica, tam-
bém, que havia incertezas a respeito dessas cartas.
Contudo, partindo de Eusébio de Cesaréia, no Oriente, e de
Jerônimo, no Ocidente, as duas cartas atribuídas a João passam
a ser reconhecidas como parte do cânon do Novo Testamento. O
que é certo é que a segunda carta foi unanimemente aceita desde
fins do século 3º, e a terceira carta, desde fins do século 4º.

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© Cartas de João e Cartas de Judas 183

Autoria e destinatários
Nas duas cartas, o autor identifica-se como "presbítero", pa-
lavra que significa "ancião". Não se trata, necessariamente, de um
ancião em termos de idade, de anos vividos. Pode ser ancião no
sentido de experiência acumulada, portanto, de vivência. Assim,
o ancião pode não ser, forçosamente, um idoso, mas, sim, uma
pessoa experiente, provada pelas circunstâncias.
Eusébio de Cesaréia, citando Pápias, bispo de Hierápolis,
apresenta uma informação que fez muita influência na interpreta-
ção da autoria dessas cartas. Segundo ele, citando o antigo Bispo,
o autor dessas cartas seria um tal "João presbítero", distinto do
João, apóstolo do Senhor.
A tradição católica, seguida pela tradição bíblica das Igrejas
da Reforma, identifica o autor dessas duas cartas com o discípulo
João, apóstolo, filho de Zebedeu. A afirmação de sua ancianidade
expressa bem uma provável situação do apóstolo João, que, se-
gundo a tradição da Igreja antiga, morreu centenário.
O autor dessas duas cartas é uma personalidade segura
de seu testemunho (3Jo 12), consciente de sua autoridade (2Jo
8.9.10.12), autoconsiderado pai dos membros das comunidades,
aos quais chama “filhos” (3Jo 4), e preocupa-se com a ortodoxia e
a fé (3Jo 2s.12; 2Jo 1-4).
Isso tudo posto, é ainda necessário considerar que não há
segurança a respeito da autoria dessas duas cartas. Elas compõem
com a 1 João e o Apocalipse, o que se convencionou chamar “escri-
tos joaninos” mesmo que possam ser de autoria diversa.
O destinatário da 2 João é uma certa "senhora eleita", ex-
pressão que deve identificar uma comunidade cristã conhecida do
autor. Tal destinação dá a essa carta uma conotação eclesiológica
notável.
Já o destinatário da 3 João é um certo Gaio, membro de uma
comunidade. A ele, o autor da 3 João pede a assistência aos prega-
184 © Cartas aos Hebreus e Católicas

dores da Palavra. Ele louva Caio e a sua conduta, lamentando um


episódio com um tal Diótrefes. Depois, elogia um certo Demétrio,
seguramente um missionário que teria sofrido pela atuação desse
tal Diótrefes.
Ambos os textos têm um início e um fim bem próprio de car-
ta. Dentre o grupo das chamadas "Cartas Católicas", são os textos
que mais se aproximam do gênero carta. Em geral, elas são intro-
duzidas juntas, como aqui foi feito.

O texto da 2 João
A 2 João pode ser dividida em quatro partes bem distintas e
bem articuladas. A seguir, apresenta-se uma proposta de divisão.

Note que, tendo apenas um capítulo, a 2 João e a 3 João são


citadas apresentando, apenas, os versículos. Assim, 2 João (10)
significa Segunda Carta de João − versículo dez, sem considerar
o capítulo, que é apenas um. Se houver sequência, é, também,
entre versículos, como 3 João (4-6) ou Terceira Carta de João −
versículos de quatro a seis, sem menção de capítulo.

Divisão da 2 João
1-3: Saudação e introdução
4-6: A necessidade do amor
7-11: Os an!cristos
12-13: Epílogo ou conclusão

1-3: Saudação e introdução


A carta inicia-se com a menção do remetente, "o ancião", e a
destinatária, "a senhora eleita e seus filhos". Trata-se, seguramen-
te, de alguém prestigiado pelo testemunho que se dirige e uma
Igreja que chama de "senhora eleita". Esta deve ser uma menção à
conduta da comunidade.
O autor declara-se conhecedor da Verdade, o que se pode
supor que seja a experiência da vida cristã. Não apenas ele, como
se autodeclara, mas também os outros. Estaria falando ele de ou-

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© Cartas de João e Cartas de Judas 185

tros discípulos? Seguramente, sendo ele uma personagem impor-


tante na Igreja antiga.
Segue uma saudação original, ligeiramente próxima das tra-
dicionais saudações paulinas mas acrescidas de elementos especí-
ficos (vers. 3).

4-6: A necessidade do amor


O autor da 2 João expressa sua alegria por saber que seus
filhos, seguramente antigos discípulos, estão na verdade, isto é,
observam os mandamentos. Ele recorda à senhora, a Igreja, con-
forme as interpretações mais comuns e seguras, que existe um
mandamento antigo que deve ser observado: o amor e a necessi-
dade do amor mútuo. E ele explica o que é amor: viver conforme
os mandamentos. Há uma insistência na observância dos manda-
mentos e no amor.

7-11: Os anticristos
O tema do anticristo é apresentado. Ele é identificado como
os que não confessam Jesus Cristo e são chamados também de
"Sedutor". Não estar na doutrina de Jesus Cristo é não possuir a
Deus. Os fiéis devem evitar o convívio com estes que negam a Je-
sus, pois participar de suas obras é assemelhar-se com eles.

12–13: Epílogo ou conclusão


A conclusão é breve. O autor reconhece que tem mais as-
suntos para tratar, mas prefere fazê-lo pessoalmente. Anuncia um
encontro próximo, declarando ser ele motivo de alegria. E mencio-
na a saudação "dos filhos de tua irmã Eleita", que deve ser outra
Igreja, talvez a Igreja de Éfeso, se considerarmos que essa carta
seja, autenticamente, de João, o discípulo.
186 © Cartas aos Hebreus e Católicas

O texto da 3 João
A Terceira Carta de João tem, como a Segunda Carta de João,
uma estrutura simples. Pode-se chamá-la “bilhete”, mais do que
carta, embora tenha uma estrutura bem clara de carta.
Divisão da 3 João
1-2 Saudação
3-8 Gaio e o testemunho
9-11 Diótrefes e o mal exemplo
12 Demétrio é elogiado
13-15 Epílogo

1-2: Saudação
Assim como na 2 João, quem escreve é o Ancião ou Presbíte-
ro. Ele se dirige a um tal de Gaio − certamente um discípulo seu.

3-8: Gaio e o testemunho


O autor alegra-se com a conduta de seu discípulo, que, como
outros de seus discípulos, vive na verdade. Exorta-o a ser fiel aos
seus compromissos e a servir os irmãos em suas viagens. Trata-
se, provavelmente, de missionários itinerantes que precisam de
apoio nas caminhadas. Segundo o autor, eles fazem sua missão
pelo "Nome", Nome do Senhor, o que deve fazer referência a Jesus
Cristo.

9-11: Diótrefes e o mal exemplo


Nesse ponto, surge um tal de Diótrefes, que, pela argumen-
tação da carta, deve ser um líder da Igreja que se opõe aos en-
viados do ancião. Além disso, ele propaga ideias falsas a respeito
dele. O ancião exorta Gaio a não imitar o mal, mas, sim, o bem,
pois o mal não vem de Deus.

12: Demétrio é elogiado


Surge um tal Demétrio, um membro importante da Igreja.

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© Cartas de João e Cartas de Judas 187

Talvez o portador dessa terceira carta. Ele recebe um elogio signi-


ficativo do autor da carta. Demétrio recebe bom testemunho de
todos. O autor identifica seu testemunho com a verdade.

13-15: Epílogo
Após isso tudo, o autor declara que tem, ainda, muitos as-
suntos a tratar, mas o fará pessoalmente. Deseja a Gaio a paz e
transmite a mensagem dos amigos. No final, pede que Gaio saúde
a cada irmão pelo próprio nome, o que pode indicar uma intimida-
de notável entre o autor e os membros desta Igreja.

A respeito da 2 João e da 3 João, sugerimos, como ótimo comen-


tário, esta obra: ZUMSTEIN, J. As epístolas de João. In: MARGUE-
RAT, D. (Org.). Novo Testamento: história, escritura e teologia. Tra-
dução de Margarida Oliva. São Paulo: Loyola, 2009, p.471-492.

7. CARTA DE JUDAS
A Carta de Judas é deuterocanônica, isto é, aceita pelas Igre-
jas como parte do cânon apenas em um segundo momento.
Clemente de Roma provavelmente cita Judas (25) em sua
Primeira Carta aos Coríntios e no escrito chamado “Martírio de
Policarpo”. O Cânon de Muratori insere a carta entre os escritos
canônicos. Já Tertuliano cita Judas, contudo, para defender uma
suposta inspiração do Livro de Henoc. São Jerônimo apresenta a
questão de modo claro: algumas Igrejas e alguns personagens im-
portantes rejeitam a carta justamente pelo apoio que ela dá ao
texto apócrifo Livro de Henoc; outros a aceitam por uma suposta
antiguidade. Orígenes e Clemente de Alexandria citam a Carta de
Judas várias vezes.
Trata-se de um escrito pouco visitado pelos leitores do Novo
Testamento. Não apresenta o prestígio de um escrito paulino ou
de algum outro escrito com elementos doutrinais significativos.
188 © Cartas aos Hebreus e Católicas

Mas é um testemunho escrito de valor, pois indica um período em


que havia vários erros doutrinários surgindo nas Igrejas que, aos
poucos, vai tendo de se posicionar. São muitos os mestres falsos
que vão surgindo e desviando os fiéis do caminho apostólico.
A data da composição da Carta de Judas deve ser o final do
século 1º, talvez antes do ano 70 d.C. ou imediatamente após, em-
bora se fosse assim o texto poderia fazer alusão à destruição do
Templo.
O autor se identifica como "Judas, irmão de Tiago" (vers. 1).
Encontra-se em Marcos e Mateus a menção de Judas entre "os
irmãos do Senhor" (Mr 6,3: “não é este o carpinteiro, o filho de
Maria, irmão de Tiago, Joset, Judas e Simão?”; Mt 13,55: “Não é
ele o filho do carpinteiro? Não se chama a mãe dele Maria e os
seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas?”). Sendo um parente pró-
ximo de Jesus, poderia muito bem conhecer particularidades de
sua personalidade, o que não apresenta.
O que parece é ser o autor da Carta de Judas um judeu de
tradição ou de origem que aceita a fé em Jesus Cristo como deter-
minante, mas não esquece sua origem própria.

O texto da Carta de Judas –––––––––––––––––––––––––––––


Divisão de Judas
1-2 Prólogo, saudação
3-4 O combate da fé
5-7 O cas!go para os falsos
8-16 Perversidades dos falsos
17-19 Fidelidade necessária
20-23 O amor de Deus
24-25 Despedida e louvor
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

1-2: Prólogo, saudação


A carta começa com uma saudação inicial, em que o autor
se apresenta como "Judas, irmão de Tiago" (vers. 1). Como já visto
na análise da Carta de Tiago, esse personagem tinha, na Igreja das

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© Cartas de João e Cartas de Judas 189

origens, grande reputação, representando a corrente "conserva-


dora" do cristianismo.
O texto é dirigido aos "amados por Deus Pai e guardados em
Jesus Cristo". A ideia parece ser os se reconhecem marcados pela
ação de Deus que se revela em Cristo, portanto, aos cristãos, sem
uma identificação particular. A eles, são desejadas "misericórdia,
paz e caridade" (vers. 2).

3-4: O combate da fé
O autor faz referência a um momento de sua atividade epis-
tolar: quando escrevia, esta ou outra carta, não é possível saber.
Nessa ocasião, ele foi levado a exortar seus leitores contra os des-
vios da fé. Alguns homens ímpios teriam entrando na comunidade,
confundindo seus membros. Eles negam Jesus Cristo e propõem
atos licenciosos (vers. 4). A situação deveria ser de confusão entre
os membros da Igreja.

5-7: O castigo para os falsos


O autor recorda momentos da história do Antigo Testamen-
to: a saída do Egito e a entrada na Terra Prometida. No Egito, se-
gundo Judas, foram destruídos os incrédulos. Em seguida, cita os
anjos que, rebelados contra Deus, se perderam eternamente. Nes-
se ponto, Judas cita o Livro de Henoc, apócrifo do Antigo Testa-
mento muito prestigiado no judaísmo tardio.
O texto continua recordando agora as cidades ímpias de So-
doma e Gomorra, que foram destruídas por sua própria impieda-
de. Com isso, Judas deseja chamar a atenção sobre os que desviam
da fé e sua sorte por vir. Os fiéis não devem segui-los.

8-16: Perversidades dos falsos


Nesse ponto, Judá afirma que os males que os ímpios reali-
zam são como a revolta dos anjos. Lembra Miguel, o anjo que com-
190 © Cartas aos Hebreus e Católicas

bate e que vence o diabo, até na disputa pelo corpo de Moisés.


Nesse ponto, Judas parece estar citando outro apócrifo do Antigo
Testamento: a Assunção de Moisés, que relata justamente esta
disputa entre o diabo e Miguel pela posse do corpo de Moisés.
Judas lamenta por eles, os ímpios, pois trilham o "caminho
de Caim", que é o caminho da ruína. Cita Balaão e Core, persona-
gens revoltosos ou ambíguos do Antigo Testamento. E identifica
Henoc, como o sétimo dos patriarcas desde Adão. Judas cita, ainda
que modo indireto ou de memória, o já lembrado Livro de Henoc:
Eis que o Senhor veio com as suas santas milícias, exercer o julga-
mento sobre todos os homens e arguir todos os ímpios de todas as
obras de impiedade que praticaram e de todas as palavras duras
que proferiram contra ele os pecadores ímpios.

A ideia é que esses ímpios, que desviam a comunidade da


verdade de Jesus Cristo, terão a mesma sorte dos que se revoltam
contra Deus.

17-19: Fidelidade necessária


Em contrapartida, os destinatários da Carta de Judas devem
lembrar-se das palavras partilhadas pelos apóstolos e lembradas
como vindas de Jesus Cristo. O texto apresenta uma afirmação
cujo contexto amplo pode ser tomado de muitos passos do Novo
Testamento e que alertam para a situação insegura dos fiéis diante
do mundo hostil.

20-23: O amor de Deus


Judas exorta seus ouvintes a estarem firmes e unidos no
amor a Deus. Conforme a situação de cada um, o texto convida
a uma ação, seja o convencimento dos hesitantes, a salvação dos
perdidos (os que estão no fogo), a misericórdia etc.

24-25: Despedida e louvor


Finalmente, o texto conclui-se com uma doxologia. Ele louva

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© Cartas de João e Cartas de Judas 191

o Deus único, identificado como salvador. Reserva para Jesus Cris-


to os atributos de majestade, poder e domínio por toda a eterni-
dade.

A respeito da Carta de Judas, sugerimos, como complemento da


compreensão de seu conjunto, o texto: SCHLOSSER, J. A epístola
de Judas. In: MARGUERAT, D. (Org.). Novo Testamento: histó-
ria, escritura e teologia. Tradução de Margarida Oliva. São Paulo:
Loyola, 2009, p. 559-567.

A Carta de Judas é um escrito que, não sendo muito usado


no dia a dia do cristianismo, também não é bem conhecido. Não é
apresentando, também, elementos doutrinais evidentes e oportu-
nos como em outras cartas; ela corre o risco de passar despercebi-
da. Mas é parte do cânon do Novo Testamento e é o testemunho
de um momento da Igreja das origens, quando o encontro com
Jesus Cristo havia deixado suas marcas e o resultado disto evoluía
e se difundia.

8. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
As questões autoavaliativas são propostas para que você
tenha a possibilidade de pensar sobre os conceitos expostos nas
unidades. Elas o conduzem, mais uma vez, ao texto da unidade ou
do livro bíblico em questão. Com o ato de respondê-las, seu apren-
dizado fica mais fixado.
O necessário é compreender os princípios e relacioná-los
entre si. Dessa forma, formam-se quadros de compreensão que
podem se desenvolver com leituras posteriores.
Assim, convidamos você a responder a essas questões auto-
avaliativas. Se for possível, partilhe com os colegas do EAD as res-
postas e as possibilidades que as questões levantadas propõem.
Bom estudo e reflexão.
192 © Cartas aos Hebreus e Católicas

1) A Primeira Carta de João tem um plano lógico ou ela vai


desenvolvendo argumentos conforme os temas vão se
fazendo notar?
2) Quais são os critérios para definir as Cartas de João
como "cartas" ou como escritos de outra índole? Assim,
a 1, a 2e a 3 João podem ser chamadas, todas as três, de
cartas?
3) O tema do amor é muito forte na 1 João. De quais for-
mas ele pode ser definido nesse texto?
4) Qual é a importância do prólogo da 1 João e como ele
está articulado?
5) O pecado, as trevas, a luz, o rompimento com o pecado
− todos são temas da 1 de João. Esses temas tem a ver
com algum outro escrito do Novo Testamento? Se sim,
quais são os pontos de convergência?
6) A 1 João pode ser considerada uma carta com forte
orientação cristológica? Por quê?
7) Quem podem ser os anticristos, citados na 1 João e na
2 João?
8) A 2 João e a 3 João são cartas menores do grupo das Car-
tas Católicas. Elas podem ser relacionadas com a 1 João?
Em quais pontos elas estão próximas da 1 João?
9) Exponha os elementos que concorrem para a canonici-
dade das Cartas de João e da Carta de Judas.
10) Qual(is) é(são) o(s) tema(s) central(is) da Carta de Ju-
das?

9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KÜMMEL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. Tradução de Isabel Fontes Leal Ferreira
e João Paixão Neto. São Paulo: Paulinas, 1982. (Nova Coleção Bíblica)
SCHLOSSER, J. A epístola de Judas. In: MARGUERAT, D. (Org.). Novo Testamento: história,
escritura e teologia. Tradução de Margarida Oliva. São Paulo: Loyola, 2009, p. 559-567.
TUÑI, J. O. As cartas de João. In: TUÑI, J. O.; ALEGRE, X. Escritos Joaninos e cartas
católicas. Tradução de Alceu Luis Orso. São Paulo: Ave Maria, 1999, p. 153-189. (Coleção:
Introdução ao Estudo da Bíblia, 8)
ZUMSTEIN, J. As epístolas de João. In: MARGUERAT, D. (Org.). Novo Testamento: história,
escritura e teologia. Tradução de Margarida Oliva. São Paulo: Loyola, 2009, p.471-492.

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