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Anais da XIII Jornadas Andinas de Literatura

Latinoamericana

Organização
Gerson Rodrigues Albuquerque
Raquel Alves Ishii
Marcello Messina

Nepan Editora
Rio Branco - Acre
2018
Núcleo de Estudos das Culturas Amazônicas e Pan-Amazônicas - Nepan

Projeto Gráfico e Arte final: Raquel Alves Ishii


Diagramação: Marcelo Ishii
Copidesque: Ana Souza, Francemilda Lopes, Marcello Messina,
Nina Veras, João Luckner.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Elaborada pela Biblioteca da UFAC

J828s Jornadas Andinas de Literatura Latinoamericana (13. : 2018 :


Rio Branco, AC)
Anais da XIII Jornadas Andinas de Literatura Latinoameri-
canas, 06 a 11 de agosto, Rio Branco / organização Gerson Ro-
drigues de Albuquerque, Raquel Alves Ishii, Marcello Messina.
– Rio Branco: Nepan, 2018.
1302 p.: il.
Inclui referências bibliográficas.
ISBN: 978-85-68914-33-5
1. Literatura – Eventos, Congressos – Acre. 2. Memória –
Eventos, Congressos. 3. Linguagem – Eventos, Congresso. 4. I.
Albuquerque, Gerson Rodrigues de. II. Ishii, Raquel Alves, III.
Messina, Marcello. IV. Título.
CDD: 401
Bibliotecária: Maria do Socorro de Oliveira Cordeiro. CRB-11/600.
Sumário

APRESENTAÇÃO
Gerson Rodrigues de Albuquerque (ufac) - Secretário-Brasil...................................................... 17

RELIGIÃO E LITERATURA NA AMAZÔNIA: PRÁTICAS AFROINDÍGENAS


EM DALCÍDIO JURANDIR
Agenor Sarraf Pacheco (ufpa).................................................................................................... 18

A TRADUÇÃO E AS IMAGENS: JUANA E PRAT, DE MANUELA INFANTE


Aléxia Prado (ufmg).................................................................................................................. 35

EN EL CORAZÓN DE LA AMÉRICA DE JULIO QUIÑONES:


CONFLUENCIAS ENTRE LA VOZ DE ORIGEN UITOTO Y EL
TESTIMONIO
Alexis Uscátegui Narváez (universidad mariana)............................................................................ 44

A LINGUAGEM DESENHANDO A AMAZÔNIA: IMPRESSÕES DE


EUCLIDES DA CUNHA E LEANDRO TOCANTINS
Ana Cláudia de Souza Garcia (ifac), Vera Lúcia de Magalhães Bambirra (ufac)................................ 55

MARCADOS PARA VIVER: INDÍGENAS CONTEMPORÂNEOS NA CENA


NACIONAL
Ana Lígia Leite e Aguiar (ufba)........................................................................................................................................... 62

HISTORIZAR EL MITO, MITIFICAR LA HISTORIA: UNA LECTURA


PARÓDICA DEL CICLO NOVELÍSTICO LA GUERRA SILENCIOSA DE
MANUEL SCORZA
Ana Lucía Salazar Vilela (unmsm)............................................................................................... 72

NATUREZA E ESPAÇO HISTÓRICO NA TRILOGIA INDIANISTA DE JOSÉ


DE ALENCAR
Ana Maria Amorim Correia (uff)................................................................................................. 84

A LINGUAGEM DO CORPO E DO CABELO NEGRO: DIÁLOGOS SOBRE


IDENTIDADE NEGRA E A APROPRIAÇÃO DA CULTURA AFRO-
BRASILEIRA
Andressa Queiroz da Silva (ufba), Mauricio dos Santos Lopes Júnior (ufac).................................... 92

O TEATRO COMO MEDIAÇÃO PEDAGÓGICA PARA O ENSINO DA


LÍNGUA PORTUGUESA: ESTIMULO A LEITURA, INTERPRETAÇÃO E
PRODUÇÃO DE TEXTO
Ane Caroline R. dos Santos Fonseca (unir)............................................................................... 106
EL BRAMIDO ANIMAL DE LA POESÍA TESTIMONIAL EN COLOMBIA,
UNA TRADICIÓN AL MARGEN
Angélica Patricia Hoyos Guzmán (universidad del magdalena)...................................................... 115

AFIRMAÇÃO DE VIDA EM “DOS TRAPOS CORAÇÃO (I)” DE SALGADO


MARANHÃO
Anny Beatriz Machado Lopes (uneb).......................................................................................... 124

O ESPAÇO DA POBREZA E DA RESISTÊNCIA NAS OBRAS DE


CAROLINA MARIA DE JESUS, ELZA SOARES E MARIA AUXILIADORA
DA SILVA
Beatriz Schmidt Campos (unb), Sidney Barbosa (unb).................................................................. 132

ENTRE BECOS E TERRAS: MOVIMENTOS E ESCREVIVÊNCIAS NA


OBRA DE CONCEIÇÃO EVARISTO
Calila das Mercês (unb).......................................................................................................... 144

LLAMADO A ALGUNOS DOCTORES DE JOSÉ MARIA ARGUEDAS: UM


CONVITE À ANTROPOFAGIA
Carlos David Larraondo Chauca (ufac) ,Suerda Mara Monteiro Vital Lima (ufac).......................... 153

CONEXÕES E DESCONEXÕES ENTRE O CAMPO E A CIDADE NO


FILME COLOMBIANO PISINGAÑA (1985)
Carlos-Germán van der Linde (universidad de la salle)............................................................... 168

TUÍRA – POLÍTICA E SONORIDADE DA LÍNGUA CAIAPÓ PARA O


TEATRO EM MINIATURA
Cássia Macieira (uemg)............................................................................................................ 175

REPRESENTAÇÕES DO SERINGUEIRO EM EUCLIDES DA CUNHA


E MÁRIO DE ANDRADE: OLHARES PRETÉRITOS E PERCURSOS
ARTÍSTICOS CONTEMPORÂNEOS
Cesar Garcia Lima (ufrj)......................................................................................................... 183

CARTOGRAFIA DA MELANCOLIA NA (DES) CONSTRUÇÃO DE MANAUS


NA OBRA DE MILTON HATOUM
Cristiane de Mesquita Alves (unama)......................................................................................... 193

RUBEM FONSECA: DEL CONFLICTO SOCIAL AL “CONFLICTO DE SÍ”.


OTRA MANERA DE LEER LA NOVELA NEGRA
Dahanna Borbón Hernández (universidad de la salle)................................................................. 201

CORONÉIS EM FOCO: EXERCÍCIOS DE PODER DOS SERINGALISTAS


EM RIO BRANCO, ACRE
Daniel da Silva Klein (ufac)..................................................................................................... 207
ÁFRICA E DIÁSPORA: LEITOR, LEITURA, FORMAÇÃO DO LEITOR E
INTELECTUALIDADE FEMININA NA LITERATURA
Denilson Lima Santos (unilab).................................................................................................. 220

LA TIRANA: TEATRALIDADE ANDINA


Douglas Henrique de Oliveira (ufmg)........................................................................................ 230

AS MEMÓRIAS DAS FAMÍLIAS ASSENTADAS NA DÉCADA 90 EM


ANAPU / PA
Edisa Assunção Corrêa (ufsc), Marcos Fabio Freire Montysuma (ufsc)......................................... 236

HISTÓRIAS EM LÍNGUA GERAL DO AMAZONAS: EXEMPLO DE


TRADUÇÃO LITERÁRIA EM LÍNGUA INDÍGENA SUPRAÉTNICA
Eduardo de Almeida Navarro (usp)........................................................................................... 244

O EMPODERAMENTO DA REDE DE ECONOMIA SOLIDÁRIA EM SANTA


CATARINA – REFLEXÕES SOBRE A INCUBADORA TECNOLÓGICA DE
COOPERATIVAS POPULARES (ITCP-UNISUL) DA UNIVERSIDADE DO
SUL DE SANTA CATARINA
Elisete Gesser Della Giustina Da Correggio (unisul), João Antolino Monteiro (unisul)................. 257

DOMINGO FAUSTINO SARMIENTO Y LA BARBARIE DE LA


CIVILIZACIÓN ILUMINISTA
Elton Emanuel B. Cavalcante (unir)......................................................................................... 269

LOS SABERES MILENARIOS ANDINOS VS EL CONOCIMIENTO


CIENTÍFICO-ACADÉMICO: CHOZA COMO DISCURSO INTERCULTURAL,
LA APROPIACIÓN DE LOS MECANISMOS DEL OTRO CULTURAL Y LA
REIVINDICACIÓN DE LA CULTURA ANDINA
Evelyn Huarcaya Gutierrez (unmsm)......................................................................................... 296

SANGAMA (1942): LA SABIDURÍA ANCESTRAL Y SELVÁTICA EN LA


AMAZONIA PERUANA
Felipe de Jesús Ricardo Sánchez Reyes (unam).......................................................................... 307

POÉTICAS ORAIS AMAZÔNICAS: POSSIBILIDADE DE


DESCOLONIZAÇÃO DE IMAGINÁRIOS (E CURRÍCULOS?)

CONJECTURAS ACERCA DAS TRADUÇÕES DE CULTURAS VIVAS, DA


VOZ VIVA, PARA O CONTEXTO DA EDUCAÇÃO DE CRIANÇAS
Fernanda Cougo Mendonça (ufac), Evânia Maria Ferraz Araújo (ufac)......................................... 315

CASMERIM: UM ENCANTO DA FLORESTA


Fernanda Cougo Mendonça (ufac), Evânia Maria Ferraz Araujo (ufac)......................................... 332
SOBRE A RECONFIGURAÇÃO DO CONCEITO DE LITERATURA NA
POÉTICA DE DYONÉLIO MACHADO
Fernando Simplício dos Santos (unir)........................................................................................ 342

AS REPRESENTAÇÕES COMO PROCESSO CULTURAL: UM ESTUDO


SOBRE A NARRATIVA JORNALÍSTICA DO G1/ACRE (2013 - 2016)
Francielle Maria Modesto Mendes (ufac), Karolini de Oliveira (ufac).......................................... 355

O PROCESSO JUDICIAL COMO FONTE E CONSTRUÇÃO DA


NARRATIVA HISTÓRICA
Francisco Pereira Costa (ufac)................................................................................................ 367

SÍMBOLOS INTERAMAZÔNICOS DO SAGRADONO CORTEJO DA


“VIRGEM DE SANTA ROSA” E NA PROCISSÃO DO “BOM JESUS DO
ABUNÔ
Geórgia Pereira Lima (ufac)..................................................................................................... 378

O ESTEREÓTIPO, A DISCRIMINAÇÃO E O DISCURSO DE EMBATE


PRESENTES EM MEMES REFERENTES À AMAZÔNIA
Geovânia de Souza Andrade Maciel (unir), Lusinilda Carla Pinto Martins Pinto (unir).................... 388

NARRATIVAS DEL RETORNO POSGUERRA EN PERÚ Y CONGO: LOS


TEXTOS DE JULIÁN PÉREZ HUARANCA Y DE CHARLES DJUNGU-
SIMBA
Gilbert Shang Ndi (universidad de los andes)............................................................................ 399

CURRÍCULO NA FRONTEIRA: REFLEÇÕES SOBRE O CURRÍCULO


DE MATEMÁTICA NAS CIDADES DE GUAJARÁ-MIRIM (RONDÔNIA-
BRASIL) E GUAYARAMERÍN (BENI-BOLÍVIA)
Gislaina Rayana Freitas dos Santos (ifam), André Pereira Lopes (ifam).......................................... 409

RE-DESCOBRINDO O ACRE “EXISTIDO”


Glauco Capper da Rocha (ufac)................................................................................................ 420

TRADUÇÃO E TEATRO: A PERSONAGEM BLANCHE DUBOIS, DE


A STREETCAR NAMED DESIRE, EM TRÊS TRADUÇÕES PARA O
PORTUGUÊS DO BRASIL
Guilherme Pereira Rodrigues Borges (unb)................................................................................332

A REPRESENTAÇÃO VISUAL DA FLORESTA E DO SACI NA


LITERATURA PARA CRIANÇAS: O FANTÁSTICO E A NARRATIVA
VISUAL
Hanna Araujo (ufac)............................................................................................................... 448

LA CARTADE PERO VAZ DE CAMINHA: UNA APROXIMACIÓN A LA


EXOTIZACIÓN DE LOS NATURALES DE LA TERRA DE VERA CRUZ
Haydee Mercedes Salcedo Fonseca (unmsm).............................................................................. 458
A TRADUÇÃO DE ARTES VERBAIS AMERÍNDIAS: ESPECIFICIDADES E
DESAFIOS
Helena Lúcia Silveira Barbosa (usp)......................................................................................... 470

SER SOCIAL E CONSCIÊNCIA: UMA ABORDAGEM SOCIOLÓGICA DA


CONSTRUÇÃO HISTÓRICO-SOCIAL DA “CONSCIÊNCIA AMBIENTAL”
NA AMAZÔNIA-ACREANA
Israel Pereira Dias de Souza (ifac)........................................................................................... 484

O ESCRITOR CANIBAL: DEVORAÇÃO COMO SÍMBOLO DE


RESISTÊNCIA POLÍTICA
Ivana Teixeira Figueiredo Gund (uneb)....................................................................................... 502

LA DISFORME DISTANCIA: INJUSTICIA IMPERIAL E INDIGENEIDAD


EN DOS MANIFIESTOS DE VICENTE MORA CHIMO
Jaime Vargas Luna (casa de la literatura peruana)...................................................................... 513

DIÁRIO DE UMA FAVELADA: O QUE A DESVALORIZAÇÃO DA OBRA DE


CAROLINA MARIA DE JESUS TEM A DIZER?
Jaine Araújo da Silva (ufac), José Tarisson Costa da Silva (ufpe)................................................ 529

A CIÊNCIA DOS ENCANTADOS: COSMOLOGIAS AFROINDÍGENAS NO


NORDESTE PARAENSE
Jerônimo da Silva e Silva (unifesspa)........................................................................................ 539

LA VIRGEN DE LOS SICARIOS DE FERNANDO VALLEJO Y SU VISIÓN


CRONOTÓPICA DE “MEDALLO” COMO SINÉCDOQUE DEL MAL
Jesús José Diez Canseco Carranza (universidad césar vallejo).................................................... 555

HORTA-OCA: ESPAÇO DE CONVIVÊNCIA, TROCAS, APRENDIZAGEM E


CULTIVO DE IDEIAS
Joana da Costa Lyra (ines), Maria Lucia Vignoli Rodrigues de Moraes (ines)................................. 564

MANAUS E A MODERNIDADE: UMA CIDADE EM CAOS E UM “HERÓI


PROBLEMÁTICO” NA NARRATIVA DE ERASMO LINHARES
Angélio Nunes de Lima (ufam), Joanna da Silva (ufam)................................................................. 572

O APLICATIVO DUOLINGO COMO FERRAMENTA DE ENSINO NO CAP:


UMA ANÁLISE SOB O OLHAR DOS ALUNOS
João Romário Sinhasique (ufac), Marileize França (ufac)............................................................ 582

LIMITES E POSSIBILIDADES ENTRE A EDUCAÇÃO BÁSICA E


UNIVERSITÁRIA: CONCEPÇÕES DE ALUNOS(AS) DO ENSINO MÉDIO
SOBRE A POSSIBILIDADE DE INGRESSO NA UNIVERSIDADE
Jorge Fernandes (ufac), Ângela Maria Bastos de Albuquerque (ufac).......................................... 593
CACHUELA ESPERANZA, O IMPÉRIO DA “GOMA”: HISTÓRIA,
CULTURA E IDENTIDADES
José de Ribamar Muniz Ribeiro Neto (unir), Auxiliadora dos Santos Pinto (unir)............................ 603

MEMÓRIA, HISTÓRIA E NARRATIVA


José Otavio Lobo Name (uff)................................................................................................... 614

DE SCORZA A COLCHADO: POÉTICAS FRENTE AL ACONTECIMIENTO


DE LA COLONIZACIÓN Y EL PASO DE LA ÉTICA INDIGENISTA A LA
ESTÉTICA ANDINA
Juan Carlos Almeyda Munayco (unmsm)..................................................................................... 625

REPRESENTACIONES PARÓDICAS EN ROSAS MATINALES, DE NELLY


FONSECA
Judith Mavila Paredes Morales (unfv)...................................................................................... 639

A COLÔNIA CINCO MIL, O DAIME E OS “CABELUDOS”:


CARTOGRAFIAS NÃO MAPEADAS
Julia Lobato Pinto de Moura (ufac).......................................................................................... 650

A COLONIALIDADE DO SABER E SEUS REFLEXOS NO ENSINO DE


LÍNGUA PORTUGUESA EM CONTEXTO LITERÁRIO
Julianne Rodrigues Pita (uece)................................................................................................. 661

VIOLÊNCIA E GÊNERO EM RETÁBULOS DE EDILBERTO JIMÉNEZ:


OLHARES SOBRE A GUERRA NO PERU
Karina Lima Sales (uneb)......................................................................................................... 674

SOSTENIENDO EL BARCO CONTRA VIENTO Y MAREA – O PAPEL


DE EDITORAS INDEPENDENTES PARA A CIRCULAÇÃO DE OBRAS
LITERÁRIAS NA AMÉRICA LATINA: O CASO DA EDITORA ARGENTINA
FINAL ABIERTO
Karina Lima Sales (uneb)......................................................................................................... 682

MULHERES E REFORMA AGRÁRIA: DO LUTO À LUTA DESENHAM SUA


CORAGEM
Laíse Rabêlo Cabral (unb), Tamiris Lima de Sá (unb).................................................................... 694

MÁS ALLÁ DE LA CULPA O LA FORMULACIÓN DE UNA JUSTICIA


ALTERNATIVA EN EL DESIERTO, DE CARLOS FRANZ
Lenin Lozano Guzmán (university of wisconsin madison)............................................................... 702

ROBERTO ARLT: LITERATURA COMO TRANSGRESSÃO


Leonardo Lani de Abreu (ufac)................................................................................................. 721
FLAUSINO VALLE: QUESTÕES DA NATUREZA E INFÂNCIA EM SEUS
POEMAS
Leonardo Vieira Feichas (ufac), Letícia Porto Ribeiro (ufac)........................................................ 727

A CANÇÃO DE PROTESTO “LATINO”-AMERICANA DAS DÉCADAS DE


60 E 70: TRÂNSITOS E DISSOLUÇÕES FRONTEIRIÇAS
Letícia Porto Ribeiro (ufac), Marcello Messina (ufac)................................................................ 737

TECENDO A TRAMA DAS NARRATIVAS GUAJAJÁRA/TENETEHÁRA: A


ESTRUTURA DE UMA TRADIÇÃO
Lilian Castelo Branco de Lima (uemasul)................................................................................... 760

A(S) LEITURA(S) DA MÚSICA “DESPACITO” COMO RECURSO PARA


O ENSINO DE E/LE: A TRANSIÇÃO DE SABERES E CULTURAS NA
MÚSICA “DESPACITO”
Luciana Aparecida da Silva (creja)............................................................................................ 777

“O BAILE DO JUDEU”, DE INGLÊS DE SOUSA, OU APONTAMENTOS


SOBRE REALISMO MÁGICO EM UMA NARRATIVA BRASILEIRA
Márcio Antonio de Souza Maciel (uems).................................................................................... 787

¿CULTURA PORTEÑA DEL PACÍFICO SUR? SÍ. TRES RAZONES Y UNA


MUESTRA
Marco Chandía Araya (ufpa)..................................................................................................... 793

FANFICS NO ENSINO DE LITERATURA NA ESCOLA BÁSICA


Margarete Edul Prado de Souza (ufac).................................................................................... 804

HISTÓRIA, NATUREZA E ETNOGRAFIA NOS RELATOS DE TASTEVIN E


PARRISIER
Maria Ariádina Cidade Almeida (ufac), Larissa Oliveira dos Santos (ufac)..................................... 813

UM LUGAR PARA MARIA BONITA NA CIDADE DAS DAMAS, DE


CHRISTINE DE PIZAN
Maria Carreiro Chaves Pereira (unb)........................................................................................ 822

ENCUENTROS CON EL OTRO: ELEMENTOS DE RUPTURA Y LA


DESCONFIANZA DE LA PALABRA EN LA VANGUARDIA ANDINA
PERUANA, EL CASO DE ANDE (1926) DE ALEJANDRO PERALTA
María de los Angeles Morales Isla (unmsm)............................................................................... 830

DO CHÃO DA ÁFRICA PARA O CHÃO DO BRASIL: TEMPO, MEMÓRIA E


TRADIÇÃO NAS OBRAS DE MIA COUTO E RADUAN NASSAR
Maria de Nazaré Barreto Trindade (ufpa).................................................................................. 842
DU BLEUE DE LA MER AU BLANC DE LA NIÈGE: VESTÍGIOS DA
ESCRITA DE SI EM PHILOSOPHIE DE LA RELATION (2009), DE
ÉDOUARD GLISSANT
Maria Fernanda Isidoro Chaves (ufrj)....................................................................................... 854

IMÁGENES DE LA AMAZONÍA: BRASIL, 1950-1960


María Florencia Donadi (unc)................................................................................................... 865

EL ARTE DE LOS CONFINES DE GONZALO KENNY: ¿TRADUCCIÓN


HIPERMEDIA O “POSTRADUCCIÓN”?
María Inés Arrizabalaga (unc).................................................................................................. 883

AS CONSEQUÊNCIAS PERNICIOSAS DO BULLYING NO CONTO


RAQUINHO, DE JOHN BARROSO
Maria Ivonete Santos Silva (ufu).............................................................................................. 900

CAIS NÃO DORME: O PORTO NO CONTO-REPORTAGEM: “UM DIA NO


CAIS”, DE JOÃO ANTÔNIO
Mariana Filgueiras de Souza (uff)............................................................................................ 908

HINO DO SERINGUEIRO: MÚSICA CANTADA PELOS SERINGUEIROS


DE XAPURI NOS EMPATES COMO ENFRENTAMENTO AO PODER
Marilene Nascimento da Silva (uff)........................................................................................... 917

DEUS NO ROMANCE EL HABLADOR DE MÁRIO VARGAS LLOSA


Marinete Luzia Francisca de Souza (ufmt)................................................................................. 925

DECONSTRUCCIÓN DE LA IMAGEN POÉTICA EN JAIME SAENZ:


EL CONCEPTO DE ‘FRAGMENTACIÓN DEL SER’ DE BACHELARD A
PARTIR DEL ESPACIO COTIDIANO DE LA CASA EN LA NOVELA LOS
CUARTOS DE JAIME SAENZ
Melisa Balderrama Siles (umsa)............................................................................................... 934

O PAPAGAIO SUL-AMERICANO E O RACIONAL EUROPEU: UMA


LEITURA DE “THE PARROT AND DESCARTES” DE PAULINE
MELVILLE
Miguel Nenevé (unir).............................................................................................................. 943

LITERATURA E ECOCRÍTICA: RIO VERMELHO: A LITERATURA DE


CORA CORALINA COMO INSTRUMENTO DE CONSCIENTIZAÇÃO
HUMANA EM RELAÇÃO AO SEU ESPAÇO NATURAL – NÃO HUMANO
Mislainy Patrícia de Andrade (ueg)........................................................................................... 951

NATUREZA VIVA E O DESENHO DISPARADOR DE CONVERSAS


Nena Balthar (ufrj), Lucia Vignoli (ines)................................................................................... 959
OS SABERES DOS TERREIROS DE CANDOMBLÉ: O LUGAR DA
ORALIDADE E DA ESCRITA
Océlio Lima de Oliveira (unesp)................................................................................................ 968

CULTURA, DEMOCRACIA E DIREITOS HUMANOS NA OBRA A NOITE


DA ESPERA, DE MILTON HATOUM: REVISITANDO O APRENDIZADO
DA DEMOCRACIA BRASILEIRA
Patrícia Helena dos Santos Carneiro (unir), Júlio César Barreto Rocha (unir)............................. 975

¿CÉSAR VALLEJO, POR BULERÍAS?


Pedro Granados (vasinfin)....................................................................................................... 988

ALGUNOS APUNTES SOBRE LAS ESTRUCTURAS EMOCIONALES


TRANSMITIDAS POR LAS FIGURAS MATERNAS EN BALÚN CANÁN DE
ROSARIO CASTELLANOS
Pilar Osorio Lora (university of massachusetts)......................................................................... 997

OCO DO MUNDO: O DESMORONAR DA FANTASIA EM UM CONTO


AMAZÔNICO
Raelisson do Nascimento Walter (ifac), Maria José da Silva Morais Costa (ufac)........................ 1005

A RECEPÇÃO DE QUARTO DE DESPEJO NA ALEMANHA, ASPECTOS


DE UM DESLOCAMENTO DE INTERESSE A PARTIR DA ANÁLISE DE
PARATEXTOS
Raquel Alves dos Santos Nascimento (usp).............................................................................. 1017

MEUS DOCUMENTOS E FORMAS DE VOLTAR PARA CASA: O ATO


CONFESSIONAL E O TRAÇO AUTOBIOGRÁFICO EM ALEJANDRO
ZAMBRA
Raianny de Andrade Amaral (ufrj).......................................................................................... 1028

CONTRA LA REDUCCIÓN NOMINAL: TENSIONES DE LA MEMORIA Y


RECONFIGURACIÓN DE LAS IDENTIDADES EN FORMAS DE VOLVER A
CASA DE ALEJANDRO ZAMBRA
Raúl Estrada (unmsm)........................................................................................................... 1042

ASPECTOS DA FORMAÇÃO INTELECTUAL DO CIMARRÓN DO SÉCULO


XXI
Rogerio Mendes (ufrn).......................................................................................................... 1055

NATUREZA E SOBRENATUREZA: A SERPENTE NO IMAGINÁRIO


POPULAR NO QUILOMBO DE MATA CAVALO, Nª Sª DO LIVRAMENTO –
MT
Ronaldo Henrique Santana (ufpa), Mario Cezar Silva Leite (ufmt).............................................. 1063
A LITERATURA MARGINAL-PERIFÉRICA NOS ANOS INICIAIS DO
ENSINO FUNDAMENTAL: UM ESTUDO DE CASO
Sandra Cristina da Silva Rebelo (uscs),Ana Silvia Moço Aparício (uscs)...................................... 1078

O PAPEL DA TRADUÇÃO NA DIFUSÃO DA LITERATURA NAHUATL


Sara Lelis de Oliveira (unb)................................................................................................... 1093

OUTRAS ARTES DE CURAR NO ACRE TERRITORIAL: DIÁLOGOS COM


LEGISLAÇÕES E MATÉRIAS DE JORNAIS
Sérgio Roberto Gomes de Souza (ufac)................................................................................... 1102

RUEDAS DE CONVERSASIONES: UM ESPAÇO DE INTERAÇÃO


BILÍNGUE E PEDAGÓGICA COM PROFESSORES BOLIVIANOS NA
FRONTEIRA DO BRASIL COM A BOLÍVIA
Silene Espinosa Quintão Alencar (unijipa), Zuila Guimarães Cova dos Santos (unir)...................... 1121

LITERATURA E ECOCRÍTICA NO PANTANAL DE MATO GROSSO DO


SUL
Susylene Dias de Araujo (uems) ............................................................................................ 1133

A (IN)VISIBILIDADE DO TRADUTOR NA OBRA THE EMPEROR OF THE


AMAZON
Tamara Afonso dos Santos (ufac)........................................................................................... 1141

ANÁLISE DE CAPITAL SOCIAL NUMA PERSPECTIVA


SOCIOAMBIENTAL: UMA PROPOSTA DE ESTUDO COM MULHERES NA
RESEX CHICO MENDES – ACRE - BRASIL
Tânia Gomes Façanha (ufsc), Marcos Fábio Freire Montysuma (ufsc).......................................... 1155

O NOVO REALISMO E SEUS EFEITOS NA OBRA “LUGARES QUE NÃO


CONHEÇO, PESSOAS QUE NUNCA VI”, DE CECÍLIA GIANETTI
Tatiele Freitas (ufu)............................................................................................................. 1167

POVOS INDÍGENAS, CIVILIZAÇÃO E TRABALHO NO ALTO JURUÁ


Teresa Almeida Cruz (ufac), Gaby Gama da Mota Lima (ufac)..................................................... 1172

REPRESENTAÇÕES DOS POVOS INDÍGENAS EM ARQUIVOS DE RIO


BRANCO
Teresa Almeida Cruz (ufac), Danilo Rodrigues do Nascimento (ufac).......................................... 1187

EL ESTEREOTIPO DEL MATRIARCADO EN LAS OBRAS LITERARIAS


RIACHO DOCE, DE JOSÉ LINS DO REGO Y LOS FUNERALES DE LA
MAMÁ GRANDE, DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ
Terezinha de Jesus Rodrigues Barbagelata (unama), Alba Lúcia da Costa de López (seduc)........... 1198
ENTRE SABERES, MARACÁS E DECOLONIALIDADE: PRÁTICAS
EDUCATIVAS DA PAJELANÇA
Thaís Tavares Nogueira (uepa)................................................................................................ 1215

ENTRE DISCURSOS E IDENTIDADES: A INFLUÊNCIA DO MOVIMENTO


AUTONOMISTA NA FORMAÇÃO DA JURUAENSIDADE
Thiago Muniz da Silva (ufac).................................................................................................. 1229

O DIREITO AO CORPO E À CURA: ESCRAVIDÃO DOENÇA E MORTE


NO VALE DO GUAPORÉ - SÉCULOS XVIII - XX
Uílian Nogueira Lima (ifro), Tatilene Silva Oliveira (unir).......................................................... 1238

DEZOITO DE ESCORPIÃO: FICÇÃO CIENTÍFICA, INDÍGENAS E


BIOPOLÍTICA
Vítor Castelões Gama (unb)................................................................................................... 1247

NATALIE BOOKCHIN E JORGE LUÍS BORGES: A LITERATURA


ELETRÔNICA E O SENTIDO DE AGÊNCIA
Vítor Castelões Gama (unb), Verônica Maria Biano Barbosa (unb).............................................. 1254

A UTILIZAÇÃO DAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E


COMUNICAÇÃO NO ENSINO DE HISTÓRIA EM EXPERIÊNCIAS DO
PIBID HISTÓRIA UFAC/2017
Wálisson Clister Lima Martins (ufac), Maria Rosana Lopes do Nascimento (ufac)......................... 1261

LUNA CALIENTE: DESEJO E VIOLÊNCIA NA ENCRUZILHADA


INTERARTES DE GIARDINELLI E ARANDA
Wellington R. Fioruci (utfpr)................................................................................................ 1269

DSOPPINEJE: SISTEMA DE SAÚDE MADIJA (KULINA) E O USO DE


SUBSTÂNCIAS SAGRADAS
Wladimyr Sena Araújo (pmrb)................................................................................................. 1278

CARTOGRAFIAS DE UMA ESCOLA NA FRONTEIRA DO BRASIL COM


A BOLÍVIA: CURRÍCULO, PRÁTICA DOCENTE, INTERCÂMBIO E
RESISTÊNCIA
Zuíla Guimarães Cova dos Santos (unir).................................................................................. 1296
APRESENTAÇÃO

La Paz, Bolívia (1993); Tucumán, Argentina (1995); Quito, Equador (1997);


Cuzco, Peru (1999); Santiago de Chile (2001); Lima, Peru (2004); Bogotá, Colômbia
(2006); Santiago de Chile (2008); Niterói, Brasil (2010); Cali, Colômbia (2012);
Heredia, Costa Rica (2014); La Paz, Bolívia (2016). Esse é o percurso histórico-
geográfico das Jornadas Andinas de Literatura Latinoamericana – JALLA, que, em
J 2018, estão sendo realizadas em Rio Branco – Acre, no coração da floresta amazônica.
Uma floresta com cidades, rios, seres humanos e não-humanos em constantes
A diálogos, conflitos e intercâmbios de saberes, encantamentos e desencantamentos.
Uma floresta que atravessa e é atravessada pelo Brasil, Bolívia, Peru,
L Equador, Venezuela, Colômbia, Guianas, Suriname e Guianas Francesas. Portanto,
com pluriversos linguísticos, étnicos e culturais impossíveis de dimensionarmos,
impossíveis de serem apreendidos ou decifrados mesmo em tempos de globalidades
L
totalitárias que teimam em mercantilizar a vida (os rios, as florestas, as cidades, os
seres e saberes), transformando-a em objeto ou coisa com valor de uso e troca no
A “bazar global”.
Mais que um congresso de estudiosos, JALLA é um acontecimento de
relações fraternas, partilhas solidárias, inquietações, problematizações, lugares
de enunciação, formulação e proposição no terreno das literaturas e das práticas
culturais. A palavra e a escrita, a gestualidade e a musicalidade, a performance,
• a oralidade e a tradição oral estão presentes nesse acontecimento, refletindo a
16 crioulização e as muitas outras misturas que caracterizam os universos de nossas
• Américas, com todas as suas fronteiras espaciais, temporais, linguísticas e culturais.
Estudos arqueológicos, paleontológicos, etnobotânicos, etnolinguísticos,
entre outros, têm permitido surpreender uma milenar relação entre as Amazônias e
os Andes. Culturas, línguas, saberes e conhecimentos, bens simbólicos, patrimônios
materiais e imateriais sempre estiveram na base dos contatos, trocas e misturas
2 entre povos das terras altas e povos das terras baixas dessas macro-regiões e seus
amplos territórios que viriam a ser grafados como parte do continente americano e,
depois, latinoamericano. Na base da relação desses povos e culturas com a terra e
0
os demais seres não humanos reside uma força intensa e profunda, aqui pensada
como uma poética da vida, sinalizando a necessidade de retomada dos caminhos
1 e “rotas perdidas”, interditadas ou estraçalhadas pela lógica dos colonizadores que
devassaram o continente a partir do século XVI. A realização das Jornadas Andinas
8 de Literatura Latinoamericana na Amazônia acreana, em 2018, é aqui pensada
como uma metáfora da retomada de caminhos, estradas, varadouros, furos e rotas
de intercâmbios entre os inseparáveis mundos andinos-amazônicos.
JALLA - Amazônia 2018 acontece em um contexto político instável, de
violentos processos de segregação, mortes e sofrimentos aos povos de várias partes
do mundo. Segregações, mortes e sofrimentos movidos pela estupidez das velhas
e sempre renovadas hierarquias raciais com seus variados matizes interditando
a possibilidade da construção ou reinvenção da comunidade humana: uma
comunidade prenhe de igualdade no partilhar e compartilhar de suas diferenças
em toda a face da terra.
Não podemos deixar de considerar, ainda, que JALLA - Amazônia 2018
acontece em um contexto histórico marcado pela contínua espetacularização da
justiça e da política no Brasil, de sérios ataques aos direitos e conquistas sociais
nas Américas e de fabricação da guerra em escala mundial, evidenciando que a
lógica de parte significativa dos governantes e seus “podres poderes” continua a
ser movida pela força bruta e pelo lamentável divórcio entre suas palavras e suas
ações.
J JALLA - Amazônia 2018 é um convite à partilha, ao encontro, diálogos,
afetos e reflexões. Um convite para continuarmos as jornadas no afagar da grande
A planície e floresta, das cordilheiras, correntes fluviais e marítimas, portos e cidades.
Um convite para continuar nos misturando sem receios de deixar de ser o que somos
L e continuar a continuar não como poetas de “um mundo caduco”, nas palavras de
Carlos Drummond de Andrade, mas como poetas dos tempos presentes, da vida

presente, das mulheres, homens e demais seres que habitam a terra no mundo
L presente: “o presente é tão grande, não nos afastemos, não nos afastemos muito,
vamos de mãos dadas”.
A Gerson Rodrigues de Albuquerque - Presidente das JALLA-Amazônia
Secretário-Brasil


17

2

0

1

8

J

A

L RELIGIÃO E LITERATURA NA AMAZÔNIA: PRÁTICAS
AFROINDÍGENAS EM DALCÍDIO JURANDIR
L
Agenor Sarraf Pacheco (UFPA)
A RESUMO:O trabalho analisa narrativas de experiências religiosas interculturais
comungadas por indígenas e africanos em zonas de contato na Amazônia
Marajoara sob o olhar da produção literária do romancista paraense, Dalcídio
Jurandir(1909-1979). Nesses mundos cruzados da literatura com a religião e
das cosmologias indígenas com as cosmologias africanas em cenário amazônico,
• procuracartografa narrativas, práticas e saberes de religiosidades afroindígenas no
romance “Três Casas e Um Rio” (1958) do literato em tela. Focalizando atenção às
18
tramas do fenômeno religioso de matriz afroindígena em território estratégico da
• Amazônia Oriental, o arquipélago de Marajó, o diálogo empreendido articula Estudos
Culturais, Pós-Coloniais e Decoloniais com o campo da Teopoética. Inspirado em
Serry (2004, p. 129), é possível assinar que a pesquisa “tenta compreender as
relações da religião e da literatura, trazendo à luz a sociogênese de dois sistemas de
crenças, cujas lógicas próprias partilham um poder similar de ordenar o mundo” e
2 com isso permitem leituras de vivências em zonas de contato na região.
Palavras-chave: Práticas Afroindígenas. Dalcídio Jurandir. Teopoética. Amazônia
0 Marajoara.
Apresentação
1 O complexo sistema religioso que constitui e orienta vivências,
sensibilidades de mundo (MIGNOLO, 2017) e posicionamentos sociopolíticos de
8 instituições, grupos e pessoas em territórios amazônicos revela fenômenos de
crenças desafiadores para análises monolíticas e monoculturais. Desde o período
colonial, os primeiros padres que se estabeleceram na região sentiram embaraços
para enquadrar indígenas e depois africanos na ritualística do catolicismo português.
Regidos pela incorporação seletiva (WILLIAMS, 1976; CERTEAU, 1998;
MARTÍN-BARBERO, 2001; HALL, 2003), indígenas e africanos misturaram com
maestria elementos de suas religiões com elementos da religião colonizadora.
Nessas zonas de contato (PRATT, 2009), para além das formas de estranhamento,
dominação, violência, hierarquia, emergiram traduções culturais em práticas de
afetamento de lá e de cá, sociabilidades e complementaridades, gestando religiões
de matriz afroindígena em territórios da diferença colonial (MIGNOLO, 2013) que
desestabilizaram padrões e normas da teologia cristã ocidental. Não por acaso, a
forte perseguição e o preconceito contra pajés, pais de santo, adivinhos, exorcistas,
entre outros, no período colonial ainda hoje compõem o imaginário das religiões
hegemônicas em renitentes práticas de intolerância de norte a sul no Brasil (SILVA,
2014).
Marcio Goldman (2015, p. 645) em diálogo com Roger Bastide (1976
J [1973], p. 32) observou que a literatura especializada sobre religiões no Brasil
pouco enfrentou o “encontro e casamento dos deuses africanos com os espíritos
A indígenas”. Quando isso ocorreu, o ponto de vista dominante foi o do “branco
europeu”, deixando nas sombras a capacidade de afros e indígenas agenciarem
L e recriarem, em imprevisíveis criatividades, seu complexo sistema de crenças,
costumes e tradições (DELEUZE e GUATTARI, 1995; GLISSANT, 2005; WAGNER,

2012).
L
Intelectuais de ponta e de peso como Manuel Nunes Pereira, Arthur Cezar
Ferreira Reis, Vicente Salles, Marcos Carneiro de Mendonça, Antonio Carreira,
A Anaíza Vergolino-Henry e Arthur Napoleão Figueiredo, Rosa Elizabeth Acevedo
Marin, primeiros estudiosos da presença negra naAmazônia, e depois Flávio
dos Santos Gomes, José Maria Bezerra Neto, Rafael Chambouleyron, Patrícia
Sampaio, Agenor Sarraf Pacheco, entre outros, centraram suas preocupações
em visibilizar o“enegrecimento das paisagens humanas” nesta parte norte do
• Brasil. Essesintelectuais, duvidando do “vazio humano africano”, enfrentaram
19 percepçõesapressadas e restritas de estudiosos nacionais e internacionais que
procuraramreforçar o mito da “Amazônia: Terra de Índio”, “paraíso isolado e parado

no tempo”, por não se enquadrar no modelo da plantation verificada no centro-sul
do país.
Assim, a constituição das religiões de matriz afroindígena em circuito
marajoara, por exemplo, fez-se em práticas e saberes de tradições orais (HAMPATÉ
2 BÂ, 2011) com nações indígenas e a presença negra (PEREIRA, 1952; SALLES,
2005 [1971]; SARRAF-PACHECO, 2009).Neste contexto, interessado em mergulhar
nas experiências religiosas interculturais comungadas por indígenas e africanos
0 em zonas de contato na Amazônia sob o olhar da produção literária do romancista
paraense e marajoara, Dalcídio Jurandir1,este trabalho procura cartografar
1 narrativas, práticas e saberes em territórios de religiões afroindígenas na Amazônia
Marajoara no romance “Três Casas e Um Rio”, do literato em tela.
8 Centrando na área de Dinâmicas Territoriais e Sociedade na
AmazôniaEstudos e vinculando à linha de pesquisa Produção Discursiva e
Dinâmicas Socioterritoriais na Amazônia, a escolha por trabalhar um dos romances
que compõem o chamado Ciclo do Extremo-Norte de Jurandir justifica-se por sua

1  Dalcídio Jurandir nasceu em 10 de janeiro de 1909, na vila de Ponta de Pedras, arquipélago de


Marajó, e faleceu no dia 16 de junho de 1979, no Rio de Janeiro. Durante sua trajetória escreveu
onze romances, 10 deles compõem aquilo que denominou de Ciclo do Extremo Norte. São eles:
Chove nos campos de Cachoeira (1941), Marajó (1947), Três casas e Um Rio (1958), Belém do Grão-
Pará (1960), Passagem dos Inocentes (1963), Primeira Manhã (1967), Ponte do Galo (1971), Chão dos
Lobos (1976), Os Habitantes (1976) e Ribanceira (1978).
ambientação em plurais realidades Amazônicas, seja em paisagens do norte ou
do sul da região, em áreas de florestas, campos e cidades, as quais permitem
reconstituir complexas tramas do fenômeno religioso de matriz afroindígena nessa
densa e extensa região. A investigação apreende esses territórios amazônicos na
perspectiva de um “pensamento arquipélago e fronteiriço” (GLISSANT, 2005; HALL,
2003) preocupado com a emergência de “histórias alternativas” (MIGNOLO, 2003)
paridas em fronteiras liminares, as quais levam em conta e procuram valorizaros
J outros das histórias ocultas e suas potencialidades não apenas físicas, mas também
cognitivas, inventivas e espirituais.
A Assim, no mapeamento de nomes e trabalhos de literatos brasileiros,
sejam eles romancistas ou cordelistas, estudados por pesquisadores da Teopoética
L (CANTARELA, 2014), não foi encontrado nenhum trabalho focalizando os
eixos “Religião, Literatura, Território, Oralidade e Escrita” para apreender o

afroindigenismo que vem se revelando como plasmador de um modo amazônico,
L brasileiro e latino-americano de estar no mundo. Do ângulo da enunciação do
autor deste como descendente de judeus na Amazônia que se esparramaram por
A pluriversos territoriais marajoaras no espocar do século XIX, “somos alinhavados
em nossas cosmologias cotidianas pelos conhecimentos domundo indígena e
africano em profundas interconexões” (SARRAF-PACHECO, 2012, p. 200).
No cartografar de uma historiografia do afroindigenismo no Brasil desde
a Amazônia, uma diversidade de pesquisas tem se enveredado por temáticas da
• linguagem, etnicidade, religiosidade, saberes, fazeres, formas de habitar, pensar,
20 compartilhar, lutar e construir a existência física e espiritual dentro de outros padrões
de identificação, cuja matriz nem sempre é étnica, mas sociopolítica. “Acompreensão

desse processo, contudo, não é negar as tradicionais identidadesculturais com as
quais os habitantes da região operam para falar de si, de suahistória e cultura, mas
abrir brechas nos discursos essencialistas eguetizadores sobre identidade”. Nestes
quadros, “apostamos na existência de uma dicção afroindígena, assim como em
performances, vocábulos, culinárias, estéticas, crenças, costumes e tradições que
2 diferenciam a constituição de homens, mulheres e crianças amazônidas, quando
seapresentam em ambientes intersticiais” (SARRAF-PACHECO, 2012, p. 200).
0 Para ler o Marajó articulado à Amazônia e urdir linhas de territorialidades
de narrativas de religiões/religiosidades de matriz afroindígena, este escrito parte
1 de Dalcídio Jurandir, um dos maiores romancistas brasileiros, na percepção de
seus principais estudiosos e críticos literários como Marli Furtado, WilliBolle,
8 Gunter Karl Pressler, Paulo Nunes, Olinda Batista Assmar, para citar os principais.
Sobre o lugar e importância de documentos literários e poéticos como
poderosos acervos de leitura de realidades humanas e não-humanas em interstício,
Antônio Cândido defende a literatura como uma indispensável chave de leitura
da experiência social e “forma de pesquisa e descoberta do país” (CANDIDO,
1981, p. 112). Por esse ângulo, na percepção de WilliBolle (2011, p. 44), ler os
romances do Ciclo do Extremo Norte de Dalcídio Jurandir permite um mergulho no
“conhecimento da Amazônia no século XX”, centrando-se em territórios de “Belém,
Marajó e do Baixo Amazonas”, traz as interrelações do oral com o escrito, do sagrado
com o profano, da injustiça com a justiça, do bem e com o mal, como dimensões
amalgamadas da vida material e simbólica, na contramão de abissalidades exercidas
pela epistemologia ocidental racionalista (SANTOS, 2010).
A despeito do rico acervo acadêmico e da fortuna crítica que a obra de
Jurandir tem produzido nas três últimas décadas, no que tange a relação religião,
literatura e território, até o presente momento, foi identificada apenas a dissertação
de mestrado “Do Dilúvio à Vida: Chove nos Campos de Cachoeira”, de Sandra
Terezinha Perlin (2013) e o projeto de mestrado, “Belém do Grão-Pará: análise
J dos aspectos religiosa na literatura de Dalcídio Jurandir”, de Daniela dos Santos
Brandão (2016), vinculados ao Mestrado em Ciências da Religião, da Universidade
A do Estado do Pará (UEPA), sob a orientação do Prof. Dr. Douglas Rodrigues da
Conceição.
L Considerando a importância do conceito de território nesta pesquisa, ele
é apreendido como um espaço de encontros, construções, mediações, disputas,
negociações, sociabilidades e interculturalidades sem fronteiras fixas. Na apreensão
L
de Rodrigo Vidal (1997), toda prática política, cultural e social se traduz numa
“produção territorial”. Os territórios são elaborações de mulheres e homens a
A partir de seus desejos e necessidades em ambientes de concretudes simbolizadas e
significadas em representações carregadas de sentidos da existência.
O território, comenta Vidal (1997), é produzido dentro de um sistema
cultural e, acrescenta-se, sempre aberto e movente, mas que se projeta, segue
o autor, como uma prática cultural que acontece em espaços terrestres. Nesse
• entendimento, amplia-se esses espaços para o aquático, sideral, invisível, onde a
21 relação de homens e mulheres com o sagrado deita longo intercâmbio, entendimento
• e historicidade. Uma profunda relação afetiva entre o humano e o não-humano com
o planeta terra e outros habitares visibiliza-se. As potencialidades e problemáticas
do campo do território como lugares praticados para apreender evidências de
narrativas sobre religiões de matriz afroindígena na Amazônia desvelam mundos
cruzados em complexidades.
2 Frente ao exposto, a preocupação em cartografar a dimensão religiosa
seja ela de tradição cristã ou de tradição oral afroindígena na saga romanesca
dalcidiana faz-se necessária. A pesquisa entende por religiões de matriz afroindígena
0
o cruzamento entre o pluriversal mundo dos encantados, caruanas e o mundo
dos orixás, voduns e inquices, sem esquecer, do ponto de vista afroindígena, a
1 incorporação de santos do catolicismo popular e práticas do espiritismo, assim como
os novos sentidos espirituais que passaram a ganhar entidades em celebrações
8 afroindígenas (MAUÉS, 1995; PRANDI, 2006; SARRAF-PACHECO, 2009; SILVA,
2014).
Em radiografia produzida por Cantarela (2014) sobre pesquisas em
Teopoética, vê-se que a maioria dedicou atenção ao estudo da Bíblia ou a obras de
filósofos e literatos europeus, latino-americanos, africanos ou de literatos brasileiros.
O esforço do pesquisador em repertoriar à exponencial produção acadêmica no
Brasil na interface religião-literatura, nas últimas décadas, incentiva o estudo de
outros literatos, literaturas e temáticas fundamentais à compreensão de diferentes
realidades sociais brasileiras. Para Serry (2004, p. 129), “tentar compreender as
relações da religião e da literatura é trazer à luz a sociogênese de dois sistemas de
crenças, cujas lógicas próprias partilham um poder similar de ordenar o mundo”.
Nesses mundos intersticiais do “fato religioso com o fazer literário”
(CANTARELA, 2012b, p. 5) para sondar cosmologias indígenas e africanas em
fusões no cenário da Amazônia Marajoara este texto cartografanarrativas, práticas
e saberes de religiões de matriz oral afroindígena emergentes no romance “Três
Casas e Um Rio”, de Dalcídio Jurandir.
J Para uma melhor apresentação dessa cartografia, nas duas próximas
sessões o texto discutirá as inter-relações religião, literatura e zonas de contato
A entre afros e indígenas, para, então, explorar aspectos importantes de práticas e
saberes de religiões/religiosidades de matriz afroindígena no romance escolhido
L para o estudo, trazendo à baila o mundo visível e sensível das populações da
Amazônia Marajoara.
L Religião e Literatura
Na última década, o autor desse texto tem se dedicado a estudar
A experiências socioculturais e práticas de religiosidade popular de tradição oral e
devocional de populações marajoaras, atentando especialmente para o cotidiano

dos modos de acreditar, festejar, trabalhar e lutar pela existência física e espiritual
(SARRAF-PACHECO, 2004; 2009). Sem recortes temporais definidos, mas partindo
de inquietações do presente, as pesquisas no campo da História em interfaces com
• a Antropologia Pós-Moderna, fundamentadas nos Estudos Culturais Britânicos,
Latino-americanos, Pós-Coloniais e Decoloniais (HOGGART, 1973; WILLIAMS,
22
1979; HALL, 2003; QUIJANO, 1992; MIGNOLO, 2003; GLISSANT, 2005; LANDER,
• 2005) tem permitido indagar relatos de crônicas, viajantes, literatos, jornalistas e
outros narradores sobre os modos de vida e de luta no maior arquipélago flúvio-
marinho do mundo. A ênfase tem sido dada ao entendimento da presença de
poderes eclesiásticos portugueses e espanhóis em permanentes contatos, querelas
e negociações com religiões de matriz oral afroindígena (SARRAF-PACHECO, 2010).
2 Semelhante a outras tempos e lugares, na Amazônia asreligiões sejam
elas alinhadas à colonialidade ou à decolonialidade orientam a vida de mulheres e
0 homensde traços multiétnicos e condições socioeconômicas distintas. Nesse circuito
da cultura, Dalcídio Jurandir ao fazer-se voz contra antigas e renovadas práticas
1 de colonialismo, compõe poderosa estética literária, valorizando saberes e fazeres
de outros sistemas de crenças em meio a presença de grupos e instituições de

poder, defensores da religião oficial, num exercício de “desobediências epistêmicas”
8 (MIGNOLO, 2008) de códigos canônicos e eruditos, para contaminar o escrito nas
sonoridades, ritmos, performances e estéticas do oral afroindígena, trazendo à cena
outras histórias, memórias, saberes e religiosidades em suportes do letramento
ocidental e modernizante (ANTONACCI, 2001).
Dalcídio Jurandir nasceuno arquipélago de Marajó, filho de uma mãe
negra com um pai descendente de português de classe baixa. Ao longo de sua
trajetória, Dalcídio sofreu influências do pensamento de esquerda marxista
leninista e humanista e recriou à luz da cultura de sua gente miúda e das canoas,
um projeto de literatura que primava, além de outros aspectos, pela denúncia das
injustiças sociais no mundo amazônico. Na compreensão de WilliBolle (2001, p. 3),
Dalcídio “renovou com sua obra a imagem literária da Amazônia”. Ultrapassando
as representações míticas, lendárias e a preponderância das florestas, águas e
animais, o romancista deu centralidade ao drama humano, psicológico, religioso e
social vivido em território de uma profunda “semântica das contradições históricas,
políticas e econômicas” (PRESSLER, 2010, p. 236). A perspectiva de Jurandir abdica
do regionalismo fechado em si para fazer-se universal. Ao recompor a angústia que
J constrói e destrói o humano em diferentes temporalidades e territorialidades, o
romancista “mesmo usando o belo pano de fundo da Amazônia paraense e todos os
seus mistérios, não se preocupou em falar do suposto homem (e da mulher) daqui
A
e sim de todo e qualquer ser humano que tem na angústia do viver a sua única e
mutante existência” (LOUREIRO, 2015).
L
As inter-relações entre literatura e religião em territorialidades

construídas e significadas, em outras palavras, “entre o fazer teológico e o fazer
L literário” ultrapassam fronteiras disciplinares. No balanço preliminar realizado por
Cantarela (2014, p. 1246) identifica-se
A uma imprecisão de limites entre o discurso literário, objeto da fruição esté-
tica e da crítica literária, e o discurso religioso, objeto da fruição religiosa e
da teologia. O texto literário não se oferece como objeto de leitura apenas à
crítica literária, assim como o texto de caráter religioso não se reduz a mero
objeto de estudo da teologia. (...) a literatura, ao “redescrever” o mundo com
seu poder heurístico, se oferece como fértil terreno para a teologia.

23 Conceição (2013), por sua vez, salienta a necessidade de se preservar a
crítica à religião cristã presente no texto literário para deixar vir à tona percepção
• de outras teologias que se libertem das hermenêuticas eclesiásticas e dogmáticas.
Assim, um exercício de leitura atenta no romance “Três Casas e Um Rio”, abre um
leque de possibilidade de interação e interpretação com as teologias de matriz oral
afroindígena na Amazônia Marajoara.
Neste contexto, a polifonia do texto literário e religioso abre portas para se
2 garimpar uma multiplicidade de experiências sociais e seus sentidos. Considerando
a inserção de Dalcídio Jurandir no circuito do romance de crítica social que pipocou
0 no Brasil a partir dos anos de 1930, a grande maioria de seus personagens tecem
sinuosos modos de estar, acreditar e construir relações socioculturais e conflitivas
1 no e com o mundo. Para Silva (2015, p. 1) não é possível enrijecer o campo da
linguagem que açambarca religião e literatura.
8 As tradições religiosas judaico-cristãs nascem literariamente; que a litera-
tura pode criar um homem livre das interpretações dogmáticas das institui-
ções cristãs sem desconsiderar o elemento religioso; e que os textos literá-
rios podem estar sempre abertos a novas interpretações, mesmo quando em
diálogo com os textos ditos sagrados.

Em outra direção, Galvão (2006, p. 1-2) argumenta que


Nosso pensamento social constituiu-se às voltas com nossa formação pluri-
étnica e com a mestiçagem, reflexão que se reconhece em seu próprio cerne.
Por isso, a crítica literária brasileira vê-se, amiúde, obrigada a recorrer aos
estudos de religiãopara não desfigurar seus objetos: poucas literaturas do
mundo estarão tão impregnadas da presença de diferentes hibridismos re-
ligiosos.

Perlin (2013) partindo do entendimento de que as escrituras sagradas


são basilares na gestação das literaturas ocidentais, mapeou no romance“Chove
nos Campos de Cachoeira”, de Dalcídio Jurandir, elementos bíblicos afetados e em
consonância com a vida marajoara. Neste exercício hermenêutico da linguagem
religiosa, o simbolismo da água e do fogo atravessa diferentes agentes em suas
J práticas e saberes culturais. O romance traz, então, “um mundo de campos
queimados, (...) que além deencharcados, continha também um mundo de ardidos
A e chamuscados pelofogo, delineados no texto dalcidiano, a partir da força simbólica
das imagens” da água e do fogo (PERLIN, 2013, p. 10).
L A obra literária ao reconstituir dimensões da vida sagrada questiona
ortodoxias da matriz judaico-cristã e permite combinações entre arte, filosofia,
L religião, história, antropologia (MAGALHÃES, 2009; SPERBER, 2011; CONCEIÇÃO,
2013; SILVA, 2008; SILVA, 2015), entre outros campos do saber. Por esses termos,

ela provoca reflexões, tomadas de atitude e combate ao controle do desenvolvimento
A livre do ethos religiosos de cada ser humano. É possível lembrar, no entanto, que
“a análise dos vínculos entre literatura e religião não pode se contentar com uma
análise da produção como tal, mesmo relacionada ao contexto. Ela requer uma
reconstrução do quadro sociohistórico das relações dessas duas realidades sociais”
(SERRY, 2004, p. 149). O centro da relação entre literatura e religião ou “os
• múltiplos intercâmbios entre o vocabulário da arte e o vocabulário sacramental”
24 está em seu caráter transcendental, porque implode com “o domínio da causalidade,
• do explicável. Em outras palavras: que escaparia a toda racionalidade exterior”
(SERRY, 2004, p. 129).
Nestes quadros, Conceição (2012, p. 40) em diálogo com Paul Tillich
(2001) defende a compreensão da religião como lugar onde se experimenta o
incondicionado. “É no seu interior que a fé se apresenta como o estado em que
2 se é possuído por algo que nos toca incondicionalmente”. Em última instância,
homens e mulheres que se orientam pela dimensão espiritual tem em Deus, santos,
encantados ou orixás, a maior preocupação de sua existência física e simbólica.
0
Religiões de Matriz Afroindígena
1 Os estudos que se debruçaram sobre o campo religioso na Amazônia,
especialmente nas áreas de História e Antropologia, constituíram duas perspectivas
interpretativas sobre os modos de crer, trabalhar e viver na região. De um lado,
8
encontramos trabalhos centrados especialmente no indígena com seus deuses,
caruanas e encantados, conformando o campo da etnologia indígena; e de outro
lado, localizamos pesquisas com foco no negro africano ou afroamazônico com
seus orixás, voduns, inquíces, constituindo o campo das religiões de matrizes
africana na região (BASTIDE, 1976; MAUÉS, 1995; PRANDI, 2005; SILVA, 2014).
A preocupação com as zonas intersticiais onde homens e mulheres etnicamente
diferenciados misturaram costumes, crenças, lutas por liberdade e pela existência
tem recebido pouco investimento acadêmico.
Trabalhos focados nas zonas de mestiçagem, em linhas gerais, trouxeram
à tona os modos de constituição do caboclo da Amazônia, categoria complexa,
multifacetada, polêmica e pouco esclarecedora sobre a visibilidade das interações
étnico-raciais. De acordo com Gandon (1997, p. 135), “a presença do índio na
mestiçagem do povo brasileiro, bem que nitidamente visível, permanece como uma
ficção, o caboclo sendo muitas vezes percebido apenas como imagem ideológica – o
que é sem dúvida um dos seus aspectos – como entidade etérea, ou como figura
lendária”. A visibilidade da cor do branco e do negro não visibiliza a cor do caboclo.
J Já Véronique Boyer (1999, p. 30) em pesquisa sobre o pajé e o caboclo, situando
sua experiência etnográfica na cidade de Belém aponta que, em linhas gerais, o
termo caboclo carrega sentido negativo. Ele refere-se ao morador do espaço rural,
A
“crédulo e idiota”.

L Enquanto alguns estudiosos se dedicaram à defesa e/ou à crítica ao
termo caboclo (SILVA FILHO, 2011), outros alinharam-se a perspectivas dos

estudos indigenistas ou afro-brasileiros, seja para analisar trajetórias históricas ou
L modos de vida, seja para compreender religiões de matriz oral indígena ou africana.
Ao investirem esforços para ler na documentação oficial presença e agência de
A indígenas ou negros, atentos em boa medida nas “dualidades índios/brancos ou
negros/brancos” (ARRUTI, 2001, p. 217), os pesquisadores recortaram as teias de
relacionalidades ou conflitualidades costuradas por esses grupos étnicos em luta
por sua existência e reprodução física, simbólica e espiritual em diferentes estados
brasileiros.
• Stuart B. Schwartz ao investigar uma nova tentativa de revolta em
25 defesa da liberdade promovida por escravos haussás muçulmanos em tempos de
insurreições escravas na Bahia, no correr de 1814, deixa ver como “as comunidades

quilombolas locais, que incluíam alguns caboclos e índios, foram incorporadas
no plano de revolta” (SCHWARTZ, 2003, p. 13). O pesquisador norte-americano
narra que a presença das populações indígenas no movimento dos escravos da
diáspora africana em Salvador poderia lhes garantir a reconquista das terras sob
a custodia dos portugueses. Mesmo que suas visibilidades fossem incomuns na
2 vida soteropolitana de uma capital que se enegrecia ao longo de sua história,
os indígenas estavam visibilizados nas lutas dos insurretos negros. Apesar das
0 zonas de intersecção entre indígenas e negros da diáspora ao longo da história do
Brasil e da Amazônia terem sido alinhavadas desde o período colonial, com pesar
1 o autor comenta que pouco sabemos “o que os negros e os indígenas pensavam,
uns sobre os outros”. E tornou-se “difícil de desvendar, já que a documentação
8 sobre o relacionamento mútuo é esparsa e sempre filtrada pelo olhar atento dos
colonizadores” (SCHWARTZ, 2003, p. 14).
O exercício da crítica documental permite dizer que se as pistas do
passado são politicamente produzidas com vigilância e jogos de interesses, não
menos complexas eram as estratégias inventadas pela coroa portuguesa para criar
climas hostis entre indígenas e negros. A complexidade dessas relações expressa-
se nas posições e papeis que esses agentes históricos assumiam na organização
do vigiado cotidiano colonial. A despeito disso, “a condição comum de oprimidos e
despossuídos contribuía inexoravelmente para aproximá-los. Um testemunho da
época colonial diz que os índios tanto podiam ser os melhores aliados dos negros
como os mais eficazes caçadores de escravos fugitivos” (GANDON, 1997, p. 140).
Se a Bahia se tornou conhecida como o mais forte território da negritude
brasileira, os intercâmbios entre indígenas e negros na história do litoral norte deste
estado não ficaram sem registro. Em pesquisa acerca deste estado, Gandon defende
que os interstícios físicos e culturais gestados por esses dois grupos humanos
deixaram “traços marcantes nos corpos, na língua, nas práticas – cotidianas e
J festivas – na religiosidade, no imaginário e nas expressões artísticas de uma vasta
área” (GANDON, 1997, p. 138).
A Pelo ângulo das práticas religiosas, Jerônimo Silva (2014) depois de
resenhar trabalhos de diversos historiadores e antropólogos sobre as religiões
L de matriz indígena e africana como a pajelança, a Mina, a Jurema, o Catimbó,
a Umbanda, o Candomblé, entre outras, sem negar especificidades, apreendeu
pontos de conexão entre cosmologias indígenas e africanas em ambientes
L
migrantes e da diáspora. Com base nessa compreensão, o pesquisador interagiu
e procurou compreender sentidos do viver, acreditar, fazer e estar no mundo de
A diferentes mulheres e homens que se deslocaram, na segunda metade do século
XX, do nordeste brasileiro para a região bragantina no Pará. Assim, no veio de
“memórias de pajés, mães e pais de santo, rezadeiras e exorcista”, reconstituindo
lutas históricas que “remetem a massacres de populações indígenas e de origem
africana, fugas e revoltas de migrantes ou descendentes de cearenses, piauienses
• e paraibanos” (SILVA, 2014, p. 48), o pesquisador “intuiu o trânsito das entidades
26 de religiões ameríndias e africanas a partir de processos migratórios e crenças em
suas ancestralidades” (SILVA, 2014, p. 53). Neste contexto, insere-se a entidade

Tupinambá, defensor do trapiche do Moconha em Melgaço, no arquipélago de
Marajó. Historicamente convencionou-se pensar a representação dessa entidade
como um indígena, alto, forte e valente guerreiro. Contudo, sua descrição física
e seus poderes sobrenaturais, narrados por Dona Celeste, pajé da cidade e mãe
da corrente da encantaria, indicam mesclas de culturas indígenas e africanas na
2 constituição das identidades marajoaras (SILVA e SARRAF-PACHECO, 2012).
Já Vanzolini (2014, p. 271), por exemplo, ao estabelecer relações “entre
0 modos de fazer e pensar a feitiçaria num contexto ameríndio e em algumas casas de
religião de matriz africana no Brasil”, sugere que pelas intersecções dos pluriversos
1 do “axé” e do “perspectivismo ameríndio” emerge um “pensamento afroindígena”
em contraposição às formas como interpretamos a realidade sócio-espiritual vivida
8 no ocidente. Observando “os limites analíticos e teóricos da polarização, corrente
na literatura de ciências sociais no Brasil, entre os classificadores ‘raça’ e ‘etnia’”,
em outras palavras entre indígenas e negros, Arruti (1997, p. 7), por sua vez,
sugere pensarmos em uma “plasticidade identitária” para a construção de novas
etnicidades e invenções culturais produzidas por esses dois grupos humanos, uma
vez que nos últimos tempos “produção científica, criação jurídica e ação política”
têm se tornado ações contínuas para trazer à tona histórias, lutas, dificuldades e
conquistas de direitos sociais por indígenas, negros e quilombolas.
Nesta viagem em busca das escritas de historiadores e antropólogos
sobre ameríndios e africanos em zonas de intersecção, um dos primeiros trabalhos
que segue na contramão da divisão desses mundos é o clássico e atual estudo de
Roger Bastide “Américas Negras” de 1967. Conforme ensina Arruti (2001, p. 217),
o pesquisador “aponta para a importância das trocas entre negros e indígenas na
conformação de todo um tipo de cultura americana”.
Práticas Afroindígenas em “Três Casas e Um Rio”
Para captar repertórios de narrativas, saberes e práticas de religiosidades
de matriz afroindígena no romance “Três Casas e Um Rio”, o texto a partir de
J agora embarca canoa da Cartografia. A compreensão de cartografia que ele adota
caminhará na contramão da cartografia moderna dual que criou linhas abissais e
A excluiu do direito à memória o subalterno e o ilegítimo, denunciada por Boaventura
Santos (2010). Orienta-se, desse modo, por compreensões de Deleuze e Guattari
L (1995), Boaventura Santos (2002), Martín-Barbero (2004) e Glissant (2005). Sobre
o princípio da cartografia, Deleuze e Guattari (1995, p. 22), assinalaram que o
L mapa possibilita múltiplas dimensões e aberturas. “Ele pode ser rasgado, revertido,
adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo,
um grupo, uma formação social (...). Uma das características mais importantes do
A rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas”.
Na perspectiva de Boaventura Santos (2002) a cartografia revela múltiplos
campos do saber que estruturam representações sobre a realidade social. Em
Martín-Barbero (2004, p. 13) são “mapas cognitivos que traduzem outras figuras
como a do arquipélago, desprovidas de fronteiras que os una. Com isso, o continente

se desagrega em ilhas múltiplas e diversas, que se interconectam”. Já em Glissant
27 (2005, p. 54) sob a metáfora do rizoma, a cartografia se faz dentro do “pensamento
• arquipélago, não sistemático, indutivo, que explora o imprevisto da totalidade-
mundo, e que sintoniza, harmoniza a escrita à oralidade, e a oralidade à escrita”,
a literatura à religião, e a religião à literatura, assim como indígenas de africanos.
Investigar dimensões do sagrado afroindígena em estéticas, poéticas,
escritas e oralidades politicamente comprometida de Dalcídio Jurandir pelo
2 universo da cartografia permite ampliar as experiências de “namoro entre religião e
literatura” (CANTARELA, 2012b, p. 5).Por meio do mapeamento e interpretação de
0 enunciados que trazem o mundo das religiões de matriz oral afroindígena nessas
escrituras e oralidades de Marajó, a cartografia poderá gestar conhecimentos nas

interfacesde teorias nômades que combatem convenções do pensamento moderno.
1 Para este campo, religião e literatura, sagrado e profano e oral e letrado expressam
múltiplas relações, saberes e práticas locais que não são puras, pois tradições são
8 sempre reinventadas e as etnias historicamente misturadas.

Apreendendo a literatura como uma produção do mundo da arte e


da linguagem criadora de sentidos compartilhados na compreensão da vida em
sociedade, nessa cartografia literária se pode dizer que “o universo particular das
tradições religiosas e das espiritualidades não se estabelece fora da linguagem;
e que o fenômeno religioso pode ser mais bem compreendido quando situado no
conjunto das outras manifestações culturais, incluindo as expressões do mundo da
arte” (CANTARELA, 2014, p. 1229). Em outra direção, Dalcídio aliando realidade e
ficção, documentação e criação literária procurou “evocar os fatos mais significativos
através da ordem casual de rememorações espontâneas, que são inseridas na
narrativa em forma de fragmentos” (BOLLE, 2011, p. 45).
Personagem emblemática nos romances dalcidiano é D. Amélia, a mãe
negra de Alfredo, o personagem central do Ciclo do Extremo Norte, com exceção do
romance Marajó. Amélia é detentora de múltiplos saberes e fazeres orais capaz de
hibridizar mitos e ritos do cristianismo, da pajelança e do candomblé, os quais, do
ponto de vista subalterno, conforma o rico acervo de crenças das religiões de matriz
J afroindígena. “A tradição oral não apenas enriquece como funda e dá vitalidade à
escrita literária africana”, assinala Cantarela (2012a, p. 137).
A Em Três Casas e Um Rio, durante o espetáculo de apresentação dos
bois Garantido e Caprichoso em Cachoeira do Arari, D. Amélia entrou em transe.
L Aproveitando o intervalo da comédia, no salão de terra batida, teto de palha,
lamparina de pavios enormes nos esteios, e enquanto o dono da casa servia café e
cachaça aos brincantes, Dalcídio narra que a mãe negra, subitamente, apanhou o
L
maracá de um índio, arrancou dos ombros de uma cabocla um pano azul, enfaixou
a cintura e surgiu no meio do salão, cantando e dançando, em passo lento.
A A sonoridade da cantoria, a performance e a voz de dona Amélia fizeram
Alfredo abandonar sua súbita cólera e vergonha, ao ver a mãe sozinha no salão
interpretando aquele desconhecido papel. Inspirada em meio a palmas que nasciam
do salão, depois de consertar a garganta, em comunicação gestual para o violão, a
personagem conduziu os espectadores para outros universos de práticas culturais
• afroindígenas nos espaços marajoaras.
28 Aproveitando o intervalo da comédia, no salão de terra batida, teto de
• palha, lamparina de pavios enormes nos esteios, e enquanto o dono da casa servia
café e cachaça aos brincantes, Dalcídio narra que dona Amélia, subitamente,
apanhou o maracá de um índio, arrancou dos ombros de uma cabocla um pano
azul, enfaixou a cintura e surgiu no meio do salão, cantando e dançando, em
passo lento. Surpreendendo a todos com uma atitude desconhecida, para quem
2 acompanhava seu cotidiano em Cachoeira, mas que não se perdeu de suas vibrantes
memórias, mesmo sendo esposa do secretário da Intendência Municipal, dona
Amélia após cantar e dançar com o som da orquestra do bumba,como que em transe,
0
incorporada por uma entidade africana, pediu ao violista que a acompanhasse e se
pôs a cantar baixo entre um silêncio geral.“Tu já vais/ Tu já me deixas/ Deus te
1 leve a salvamento/ Que por cá torne a voltar” (JURANDIR, 1994, p. 132).
A melodia tornava-se inteligível para quem compartilhou lembranças e
8 heranças vividas em idas e vindas entre territórios de culturas africanas em seus
encontros com culturas amazônidas, como o amo do Boi, Situba, que, ao voltar da
cozinha, contemplou-a, sorrindo compreensivamente. A sonoridade da cantoria, a
performance e a voz de dona Amélia fizeram Alfredo abandonar sua súbita cólera e
vergonha, ao ver a mãe sozinha no salão interpretando aquele desconhecido papel. O
garoto passou a construir imagens onde aparecia embalado numa rede, num canto
da saleta de seu chalé de morada, adormecendo pelo ninar da mãe negra. “Tu já
vais/ Tu já me deixas/ O mar se vire em areia/ que não possa navegar”(JURANDIR,
1994, p. 132).
Sintonizado com as melodias puxadas por sua mãe, das memórias de
Alfredo brotavam novos versos que eram cantados no salão. “Se o mar se virar em
areia/ que não possa navegar/ Tornarei para teus braços/ Para sempre te adorar”
(JURANDIR, 1994, p. 133). Inspirada em meio a palmas que nasciam do salão,
depois de consertar a garganta, – talvez pela distância daquela prática que foi tão
familiar quando habitava Muaná, município entre a floresta e os campos–, em
comunicação gestual para o violão, a personagem conduziu os espectadores para
J outros universos de práticas culturais negras recriadas nos espaços marajoaras.
“Estive num delicioso baile/ na fazenda Arari/ Donde tinha uma menina/ Muito
dançadeira de valsa/ De lundu e contradança”.
A
Os elementos expressos, nestas cantorias e dançares, correspondem
L tanto às características do lundu, especialmente nos versos “tornarei para teus
braços, para sempre te adorar”, quanto aos cantos de encantarias em religiões

afro-brasileiras. As referências ao mar e a areia, constantes em cantos de liturgias
L incorporativas, recompõem polos de partidas e chegadas e podem ainda situar
memórias negras em diáspora, que deixando portos africanos, tomaram rotas para
A alçar portos e praias brasileiras, amazônicas e marajoaras. Esse canto tem um
lugar especial no ritual de incorporação, pois se refere à partida ou despedida da
entidade do seu receptor, “cavalo” como se diz no candomblé ou “aparelho”, como
em rituais da floresta praticados por benzedores marajoaras.
Inspirada pela comédia do boi Garantido, que a fez reencontrar suas raízes
• identitárias, expondo encontros (Áfricas/Marajós), separações (mar/rio) e perdas
29 (liberdade ou filho tragado pelas águas), o transe vivido pela mãe negra ainda permite
comparar versos de seus cantos com prédica de Antonio Conselheiro, no sentido

de que “o mar vai virar sertão”. Ao final desse primeiro ato, dona Amélia “emendou
para uma história meio cantada meio falada, aprendida nas ilhas quando, ainda
donzela, em companhia do irmão cortava seringa e engravidou misteriosamente”.
Trazia a queixa do rio em virtude da partida da cobra que o deixou sem vida, seco
e desolado. “Numa voz evocativa soltava a história no silêncio da sala e envolvia
2 todos numa atmosfera de sortilégio”.Neste canto, Jurandir reconstitui um enredo
carregado de um misticismo amazônico, com seus lendários personagens de vida
0 aquática, cenários de rios, florestas e animais.
Era a queixa de um rio à cobra, sua mãe, que o abandonava. O rio se lamen-
1 tava soturnamente no meio do mato. Cobra grande não me abandone. A ter-
ra crescia na água. O rio secava. Os estirões, largos outrora, se estreitavam
e as margens se fundiram, balançando na rede dos cipoais. Cobra grande
8 não me abandone. A cobra dormia no fundo do rio e de repente acordou,
era meia noite e deu um urro: vou-me embora pras águas grandes. Então
os peixes, todos os bichos, os caruanas, as almas dos afogados, os restos
de trapiches, as montarias também seguiam pra águas grandes. Os restos
de cemitério que tombavam nas beiradas também partiam pras águas gran-
des. Adeus, ó limo da cobra grande, adeus ó peixes, adeus, marés, tudo vai
embora pras águas grandes. Até a lama há de partir, os aningais, as velhas
guaribas, tudo seguindo pras águas grandes. O rio se queixava, se queixava,
secando sempre: não me abandones, mea mãe cobra, me amamenta nos
teus peitos, vomita em meu peito o teu vômito, enche os meus poços, alaga
as margens, quero viver, quero as marés, mãe cobra grande. Ninguém ouvia
o agonizante rio. A cobra foi se arrastando, secando o rio. Contavam que
duas piaçocas iam pousadas na sua cabeça. E também uruás, carangue-
jos, siris, ninhos de tucunarés, muçuns, um filhotão de garça. Tudo indo
embora pra águas grandes. Lá vão. Lá vão. Ouvia-se a voz das garças mais
brancas do que nunca, e os guarás não trariam mais nas asas a vermelha
madrugada para mirar-se na enchente. Lá vão, lá vão, pras águas grandes,
pras águas grandes. Os assistentes como que viam a cobra grande cami-
nhando como cedro do Amazonas, de bubuia, embandeirada de aves, e sua
J tripulação de bichos, com toda a vida do rio no seu bojo. E apenas o caboclo,
na tapiri, á beira do rio morto, se abraçava com o leito do rio, ficava com ele,
chamava-o, meu mano. Chorava com o rio, ah, caboclo sentido. Quem lhe
A dera que as suas lágrimas o enchessem de novo, lhe dessem marés, fossem
águas vivas, águas prospeixes-bois e matupiris. Ah, mano. Só ficou o cabo-
L clo, o cachorro, a mulher, a seringueira, o portinho no seco e lá da lonjura
chamando se ouvia ainda, as águas grandes, chamando (JURANDIR, 1994,
p. 133-4).
L
O texto evidencia uma representação do encolhimento do rio, frente ao
avanço do mar. Nesse sentido, a composição permite lê-la como uma espécie de
A profecia indígena dos descaminhos trilhados pela Amazônia quando o Atlântico
português, seguido de outras nações européias e dos Estados Unidos, passaram a
estabelecer contatos, trocas culturais e formas de destruição do patrimônio humano,
natural e histórico da região. Dalcídio, através do personagem Alfredo, interpreta a
narrativa como o aflorar de lembranças de dona Amélia, quando habitou a região

de Ilhas, como a chorar a perda de seu primeiro filho, tragado pelas águas, o qual
30 teria se transformado em “pele de mururé, polpa de aninga, semente de ilha no bico
• de jaçanã”.
Na reconstituição do imaginário marajoara, Dalcídio permite entrever
como o filho morto em afogamento, pode transformar-se em entidade das águas
para livrar os habitantes de sua região das malinezas do mundo terreno e aquático.
A expressão de sofrimento e os olhos cheios de lágrimas da mãe negra, ao encerrar
2 a “estranha história e velha cantiga” pareciam traduzir não apenas uma história
de personagens lendários a se distanciar, mas inversamente, uma evocação de
fenômenos da dominação, duramente submetidas a africanos em suas diásporas
0
para terras amazônidas.Além da perda do filho e de saudades de experiências
comungadas com seus familiares, formadores de sua comunitária identidade negra,
1 interrompida e associada a dificuldades de sua infância e adolescência, enquanto
afrodescendente, ainda é possível ler a “velha cantiga” entoada como evocação de
8 um passado de difícil convivência. Rumores do que só pode ser relembrado com
traumáticos sussurros e murmúrios (BRESCIANI e NAXARA, 2001).
Permitindo sentir injunções oral/letrado, cultura/natureza, Marajó/
África, chulas desenroladas da cabeça de afroindígenas marajoaras, em meio ao
ardil cotidiano das fazendas de gado no Marajó dos Campos, permitem alcançar
horizontes de sabedorias populares. Reinventadas a partir das novas relações, em
constituição nesses ambientes de trabalho e moradia, constroem artimanhas para
viver e reafirmar identidades culturais afroindígenas, na contramão de poderes
vigilantes. Essas linguagens históricas também se constituíram em canais de
contestações contra modos de vigiar e punir populações locais assentadas em seus
índices de transmissão oral. No romance Marajó, por exemplo, Dalcídio traz vida
de Ramiro, excelente curtidor, cujo verdadeiro ofício era enversar e tocar chulas,
alegrando vaqueiros, mulheres, trabalhadores e moradores do entorno das fazendas
e salões de festas entre campos e florestas. “Tinha a mão curada para tirar tudo
que queria dos instrumentos” (JURANDIR, 1992, p. 208).
Depois de perder a mulher mordida por jararaca e os dois filhos comidos
pelos vermes e febres na beira do rio Anajás, Ramiro pegou o que lhe restou de
J uma vida miserável, a viola sem corda, as perneiras de couro cru e fez-se um negro
andante. A partir daquelas perdas, sua família era o mundo (JURANDIR, 1992, p.
A 209). Não levava no currículo a fama de ladrão de gado, mas para vingar-se do mau
pagamento de fazendeiros, quando feitor, sangrou reses e distribuiu entre seus
L semelhantes, lembrando práticas desenvolvidas por quilombolas desde os séculos
XVIII e XIX.

Após compor uma nova chula e tocar para vaqueiros da beirada e
L
pescadores do toldo das geleiras, o feitor Manuel Raimundo o expulsou das fazendas
do coronel Coutinho. A notícia correu longe. Sem Ramiro, as festas perderiam
A graça e animação, ficariam mortas, porém, o regime de exploração, mantido nos
cercos da gadaria, estaria assegurado. “Medo da língua e da música de Ramiro,
seus instrumentos lhe davam aquela liberdade, aquela cadência, aquela franqueza
que os brancos temiam. As chulas de Ramiro falavam dos vaqueiros, visagens,
assombrações, podres dos brancos, davam vida” (JURANDIR, 1992, p. 244). Em
• meio às chulas enquanto cantos de liberdade e de crítica social, híbridas orações
31 fortes também foram recompostas no veio da literatura marajoara como linguagens
reveladoras de sabedorias para enfrentar enfermidades.

Rezas para curar malinezas, como práticas que relacionam mundos
visíveis e invisíveis em vozes fluentes e rimadas de pajés e pais de santo,
conduzem a sensíveis culturas vocais que desconhecem apartações entre códigos
de religiosidades ibéricas e experiências em cosmologias afroindígenas.Nesse
2 entremeio, outros códigos de convivências de universos nativo e em diáspora,
misturados ao do catolicismo ibérico emergem das escrituras literárias.

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8

J

A

L A TRADUÇÃO E AS IMAGENS: JUANA E PRAT, DE MANUELA
INFANTE
L
Aléxia Prado (UFMG)
A RESUMO: O trabalho teve como objetivo analisar o processo de tradução das obras
dramatúrgicas da chilena Manuela Infante, levando em consideração o contexto
proposto pela autora e o contexto receptor em diálogo, Brasil, já que o texto
original foi publicado no Chile e a tradução foi feita ao português. Esse vínculo
latino-americano estabelecido pela realidade e experiências vividas se misturam
• às imagens que aparecem postas na dramaturgia de Infante, tanto no campo do
processo da tradução executado quanto na literatura, e como ambas se relacionam.
35
Infante em Juana y Prat, as obras traduzidas, questiona conceitos arraigados
• na sociedade, seja em um macro ou micro sistema, utilizando os personagens
históricos (Juana de Arco e Arturo Prat) e suas vivencias, que apesar de suas
diferentes nacionalidades e pesos dialogam com o presente, traçando um paralelo
entre o passado e o contemporâneo às obras.
Palavras-chave: Tradução. Dramaturgia. América-latina. Imagens.
2
O processo da tradução de Juana e Prat

As obras dramatúrgicas de Manuela Infante, Juana y Prat, foram ambas
0
publicadas no ano de 2004, no Chile. O trabalho presente está sendo feito (2018) como
Trabalho de Conclusão de Curso para concluir o curso de Letras com habilitação
1 em Espanhol-Tradução, orientado pela professora Sara Rojo. Para traduzir as
obras foi necessário levar em conta o contexto original, além da preocupação ao
8 transpassar esse contexto ao outro: o brasileiro. Logo, a preocupação se direcionou
nos diálogos existentes e não existentes entre os dois países, onde a linguagem se
torna uma fronteira, mas ao mesmo tempo se vincula a diversos elementos, como
os culturais, de experiência e no âmbito social e político. O campo histórico também
foi de extrema preocupação, já que Infante apropria de personagens emblemáticos:
Juana de Arco, a famosa francesa conhecida por defender sua pátria, que agora se
involucra também a um contexto chileno e com características peculiares, e Arturo
Prat, o “herói chileno” cujo dever militar e social é questionado e ridicularizado.
Manuela Infante é dramaturga e diretora, logo, seus textos além de
literatura são pensados para o palco, para a cena teatral. Esse foi outro ponto
crucial e fundamental para se levar em consideração durante o processo da
tradução, por isso se fez necessário um olhar analítico a partir dos elementos para-
textuais presentes na dramaturgia, tais como as autoras Tereza Virgínia Ribeiro
Barbosa, Anna Palma e Ana Maria Chiarini, no livro Teatro e Tradução de Teatro
(2016) defendem:
“[…] é impossível pensar funcionalmente a tradução teatral sem contextualizá-
la e, tal como exorta Patrice Pavis (2008), admitimos que o tradutor de teatro
J é também um dramaturgo que olha a peça a ser traduzida em sua totalidade
artística: traços específicos e discursivos das personagens, o espaço cênico,
tempo e ritmo da encenação, ponto de vista ideológico, analogias possíveis
A à época do autor e estranhamentos necessários para o enquadramento e
provocação do espectador.” (2017. p. 8)
L Dessa forma a tradução tem como objetivo reunir o contexto original e o
contexto receptor e assim relacionar os referentes em comum, ou os referentes que
L se divergem. Como se trata de América Latina, onde problemas sócio-políticos são
constantes e históricos e interferem na vida diária da população, as imagens que
A se produzem, seja na tradução ou na cena, são páreas e de comum entendimento.
Grande parte das imagens, assim como o processo tradutório no que se refere a
linguagem e, por conseguinte a cultura, pertencem ao mesmo mundo tanto no
Chile como no Brasil, por mais que sejam diferentes em alguns aspectos. De acordo
com Curràs (2017), o “enfrentamento cultural” também faz parte da tradução. Nas
• palavras da autora:
“Começam a conceber a tradução como uma confrontação, já que as tra-
36 duções não só projetam imagens da obra que se traduz e do mundo ao
• que pertence a obra, mas também protegem seu próprio mundo contra
aquelas imagens que são radicalmente diferentes, bem adaptando-as ou
atenuando-as. A consideração de como os aspectos macro textuais incidem
nesse enfrentamento intercultural o leva a utilizar o termo rewriting o “re-
escrita” (Lefevere, 1992b, p.4) para referir-se ao processo resultante da tra-
dução, já que se supõe uma adaptação e manipulação do texto original para
2 ajusta-lo as correntes ideológicas e poéticas da época. Entre os fatores que
incidem nessa manipulação estão o poder. Esses são os que “reescrevem” a
literatura e ordenam seu consumo por parte do público.” (CURRÀS, Rosa.
0 p. 238, 2017.)1

1 A escolha da tradução dessas obras foi pautada também na questão
política, por acreditar nos diálogos possíveis entre o Chile e o Brasil –assim como a
integração da América Latina- e nesse reconhecimento do teatro, na possibilidade
8
1  “Se empieza a concebir la traducción como una confrontación, ya que las traducciones no
solo proyectan imágenes de la obra que se traduce y del mundo al que pertenece la obra, sino
también protegen su propio mundo contra aquellas imágenes que son radicalmente diferentes,
bien adaptándolas o atenuándolas. La consideración de cómo los aspectos macrotextuales inciden
en este enfrentamiento intercultural le lleva a utilizar el término rewriting o “reescritura” (Lefevere,
1992b, p.4) para referirse al proceso resultante de la traducción, ya que supone una adaptación y
manipulación del texto original para ajustarlo a las corrientes ideológicas y poéticas de la época.
Entre los factores que inciden en esta manipulación están el poder, la ideología, la institución y la
manipulación, así como los agentes en puestos de poder. Éstos son los que “reescriben” la literatura
y ordenan su consumo por parte del público.”
de trazer ao contexto brasileiro peças como Prat e Juana, fomentando os referenciais
comuns e também em divergência. Escolher uma dramaturga contemporânea e ao
mesmo tempo duas obras que carregam o peso histórico que carregam, justamente
para relacionar o passado e o presente, e questionar assim os “conceitos absolutos”.
Por um lado os referentes comuns ajudaram no processo da tradução,
por outro os que entram em divergência dificultaram um pouco o processo, como
esperado. A coloquialidade presente na linguagem escolhida por Infante em Prat,
J onde o universo masculino naval era exposto, trouxe uma certa dificuldade, mas
nada que não pudesse ser traspassado a outras palavras de acordo com o contexto.
A Também aparecem palavras carregadas e violentas e expressões coloquiais como
“filho mal parido da santíssima puta” (p.30). Os nomes obviamente não foram
L mudados, as cidades também não, já que Prat faz parte do Chile e Juana da França,
mudar esses fatos históricos e cruciais não foi uma escolha porque perderia o

sentido aoser traduzido.
L
A linguagem, como a gramática, foi objeto de extremo cuidado, seja para
adequar ao português (sistema que requere mais virgulas do que o espanhol, por
A exemplo) ou para a construção de sentido, como: “BUCAREST / O senhor me cai
bem pelo sotaque. / JUÁREZ / Não, se eu nasci em Santiago.” (p.37), estabelecendo
a diferença entre os dois entre a nacionalidade, visto que na apresentação dos
personagens, Juárez está descrito como Espanhol e o nega nesse diálogo. Isso foi
algo impossível de se traduzir para o contexto do Brasil, obviamente pelo caráter
• histórico de Prat. O uso do pronome “vós” em Juanaem decorrência também do
37 contexto e a separação entre o idioma francês e o utilizado: espanhol, o que no
prólogo da peça Infante coloca, de uma maneira poética: “Os galhos, contrariamente

ao seus costumes, como porta-vozes de uma notícia que cruzava o seu idioma e o
nosso, cantaram aquele dia, o dia do seu nascimento” (p. 53).
Contextualizando as obras: Juana e Prat
Prat
2 A obra Prat foi a primeira obra de Manuela Infante, publicada em 2004
no livro Prat seguida de Juana. Foi o primeiro trabalho da Compañía de Teatro de
0 Chile, estreada no ano 2002.A partir de um personagem emblemático para o Chile,
Arturo Prat (1848-1879), que foi um militar, marinheiro e advogado, considerado
1 hoje o maior herói chileno naval, o tema da peça contorna as imagens, verdades e
memórias da história contadas como absolutas sobre este personagem, e Infante
quebra com esses conceitos através do personagem fictício. No prólogo do livro,
8
escrito pelos atores da Compañía de Teatro de Chile, María José Parga, Cristián
Lagreze, Juan Pablo Peragallo, Héctor Morales, Rodrigo Sobarzo e Fernando
Briones, afirmam que:
“Não é difícil entender porque é Prat o primeiro que Manuela escolhe para
esse jogo, não precisam contar a ninguém quem foi Prat nem o que aconteceu
dia 21 de maio de 1979. Conhecemos ele muito bem, como país construímos
um herói, um estandarte do patriotismo, a coragem, o serviço público e a fe
religiosa” (INFANTE, 2004, p.10)2

2  “No es difícil entender por qué es Prat el primero que Manuela escoge para este juego, a nadie
hay que contarle quién fue Prat ni qué pasó el 21 de mayo de 1879. Lo conocemos bien, como país
Infante desconstrói a visão desse herói a partir de sua proposta
contemporânea para esse personagem, apresentado por Infante por um adolescente
de 16 anos. A dramaturga começa a sua obra traçando um paralelo com a realidade
do personagem histórico, no prólogo de Prat a primeira frase é “Houve uma época
em que sentíamos medo dos peruanos” (p.15) e o cenário da obra todo se baseia
em um universonaval, em um navio de guerra. O Arturo Prat histórico também
comandou uma batalha contra o Peru,precisamente onde morre. Prat, além de
J visto como um adolescente medroso, traz algumas atitudes que questionam a sua
sexualidade, elemento de ruptura da imagem do herói, já que nesse universo de
Arturo Prat a homossexualidade não se encaixava aos padrões.
A
O cenário da obra é marcado por ambientes externos do navio, os diálogos
L mais intensos e mais frequentesque as rubricas –que obviamente também são
essenciais para toda a construção da obra-, a subjetividade então é estabelecida

através deles. O tempo, através da descrição do cenário, é irregular, marcando
L a fragmentação dos espaços temporais, logo a interrupção das ações. Às vezes o
tempo é determinado pela presença da hora exata, outras não, talvez Infante jogue
A mesmo com um elemento crucial para os navegantes: a precisão da hora, mas
que também, para o caso da dramaturgia contemporânea, não seja tão necessária
para seguir linearmente, já os saltos temporais são frequentes e procura-se
quebrar justamente com essa linearidade.Prat é de fato uma obra intensa, onde a
subjetividade e as várias questões presentes a englobam e a fazem de uma riqueza
• enorme de imagens, e apesar de ser uma obra de total e absoluta presença do
38 universo masculino, questiona o próprio espaço da mulher e o final da peça, onde
a mãe “invisível” de Prat comanda o navio é o ponto crucial para essa crítica.

Juana
Juana é a segunda obra de Manuela Infante, publicada no livro Prat
seguida de Juana em 2004, e também é o segundo trabalho da Compañía de Teatro
de Chile. Nessa obra a dramaturga não abre mão da fábula de Joana d’Arce a conta
através da presença de elementos contemporâneos. Considerando a personagem
2 histórica para trazer ao contexto de Infante, sabemos que Joana d’Arc era
camponesa, analfabeta, que chegou a ser chefe militar durante a Guerra dos Cem
0 Anos, e foi executada na fogueira, como punição religiosa. Hoje é considerada uma
figura mítica por sua trajetória e dados importantes em sua biografia. A imagem
1 de Joana d’Arc foi reconhecida obviamente após sua morte, -após aqueles tempos
onde a Igreja matava deliberadamente àqueles, que como ela, não respondiam aos
conceitos e normas estabelecidas-, e então foi considerada heroína da França, e
8 santa da Igreja Católica, ironicamente. Alguns escritores utilizaram de sua figura,
entre eles Shakespeare,que a representou como feiticeira em sua obra Henrique VI.

Em Juana a figura de Joana d’Arc é construída através dos contextos que
a rodeavam, primeiro sua família e logo os homens mais poderosos do poder na
França, e como foi desenvolvendo suas “habilidades”, como foram aparecendo as
“vozes” em sua cabeça, construindo a partir de marcos históricos (como o espirito
nacionalista que rodeava os franceses pós Primeira Guerra Mundial e as batalhas

hemos construido un héroe, un estandarte del patriotismo, el coraje, el servicio público y la fe


religiosa.” (p. 10)
enfrentadas com Juana, personagem fictício de Infante, comandando) que vão se
intervindo no limite entre realidade e história, como em Prat.
A construção do texto dramatúrgico em Juana é feito a partir de diálogos,
em uma estrutura descontinua onde a linearidade não é uma preocupação.
O tempo e as ações se intercalam e não seguem um plano estruturado, outro
elemento presente nesse resgate do passado para “criar um novo mundo” no
contemporâneo, um novo conceito a partir da arte, que também não é um conceito
J absoluto. As rubricas continuam, como em Prat, com menos frequência que os
diálogos, mas obviamente compõe a estrutura e o sentido da dramaturgia, como
A na cena inicial onde aparecem crianças sem nomes, onde a rubrica marca a falta
de especificidade:“(Poderia se repetir em todos os grupos de pessoas)”, demarcando

assim as inúmeras possibilidades a partir de cada contexto.
L
O sobrenatural é tratado na obra contemporânea de Infante de uma
maneira mais ligada a cosmovisão, ou seja, a maneira que um indivíduo ou uma
L
sociedade vê o mundo.Juana, em um diálogo com um soldado responde sobre “como
são as vozes”, mas responde “JUANA / Céus, Duque!, quem vos disse que eram
A vozes...? Isso soa algoaterrorizante. / D’ALECON / Vós me dissestes. / JUANA /
Eu vos disse a voz, D’alecon, avoz.” (p. 94).
A dramaturgia como ato político
As “coincidências” entre o real e a arte de Manuela Infante não se
• estabelecem apenas nesse aspecto, e justamente a partir dessa verossimilhança,
porém não a defendida pelo drama-aristotélico, que a crítica é construída, apesar
39
de não se estabelecer apenas por esse viés. São vários os vieses em que essa peça
• possibilita aos espectadores, ou o texto aos leitores, de crítica social, histórica e
política, e como Sara Rojo afirma:
“A questão da estética, entendida como uma forma de pensar a arte, está
ligada à possibilidade de refletir sobre a existência ou não de algum tipo de
utopia, ou melhor de heterotopia, dentro do objeto artístico a ser pensado, e
isso muda de acordo com os contextos históricos específicos. Por outro lado,
2 a história e a arte sofrem de uma tensão produzida pela ruptura de frontei-
ras definidas.” (ROJO, 2016, p.29)
0
Para entender a dramaturgia de Manuela Infante, que além de dramaturga
é diretora, é necessário entender que o seu texto foi feito para ser representado,
1 e essa ligação com o ato cênico é muito importante para entender o papel dos
“dispositivos” (RACIÈRE, 2010) e do papel do teatro. Infante nega a história e ao
8 mesmo tempo a constrói de outras formas a partir de Juana e Prat, negando pelo
sentido de romper com o conceito de que existe apenas uma versão única ou correta
da história, e mesmo da própria dramaturgia.
A partir das imagens que Manuela Infante recria de dois nomes de peso e
considerados, seja mundialmente como Joana d’Arc ou para um país, Chile, como
Arturo Prat, que se estabelecem as respectivas obras, no contexto latino-americano
do século XXI. Também se faz necessário demarcar sua posição como mulher, onde
o campo seguia e segue sendo escasso para as dramaturgas; onde os problemas
sociais e políticos seguem constantes. Os problemas de 2004 seguem refletidos nos
de agora em um círculo vicioso.
O dramático em Infante não é considerado como “a forma canônica do
teatro ocidental, desde a célebre definição de tragédia pela Poética de Aristóteles: (...),
imitação que é feita pelas personagens em ação” (PAVIS, 2005, p.110). Não é aquela
dramaturgia fechada feita para o mundo burguês, e sim um teatro contemporâneo
que se estabelece através de figuras, que se assemelham bastante ao teatro do
absurdo. É visto que a encenabilidade é um fator importante ao traduzir uma
obra, já que o teatro marca uma relação importante entre a obra apresentada e
J o espectador, marcando assim possíveis diálogos com o público a partir de um
teatro construído como o de Infante, onde a subjetividade é um elemento crucial.
Se ressalta a influência moderna pela necessidade social de se fazer política, de se
A
pensar no teatro como ato político, relacionando-se assim ao espectador, crítico
necessário na contemporaneidade.
L
Para se imaginar um teatro mais imagético onde o realismo tenha mais

sentido que a verossimilhança proposta pela dramaturgia linear e dramática, foi
L criado em Prat e Juanao caráter dos protagonistas proposto pelo teatro do absurdo.
A linguagem do teatro do absurdo não diverge da utilizada no teatro dramático,
A porém se determinam como aquele que debate a existência, e isso se constrói
bastante nas duas obras. Ambos discursos falam sobre a “situação da vida”, como
por exemplo no discurso do personagem Prat (como um bom “politico”), onde
assume a posição de enfrentamento com ele mesmo: “O que é isso de Arturo, se eu
de Arturo não tenho nada” (p.45), e em Juana com a questão proposta pela própria
• Juana em um monólogo “Não sou ninguém e quero que nada seja como é, nem eu”
40 (p. 79).Martin Esslin (1918-2002) em sua obra O teatro do absurdo (1968) propôs
que

“Em termos filosóficos gerais, o absurdo representa a condição de ininteli-
gibilidade a que chegou o homem moderno em face de suas pretensões hu-
manísticas e da realidade em que vive (...) [Nestas dramaturgias,] as frases
não fazem o sentido convencional a que estamos habituados. Cria-se um
mundo à parte, auto-suficiente, embora semelhante ao nosso. A intenção
2 dos dramaturgos do Absurdo é, porém, mais ambiciosa. Querem que rela-
cionemos suas abstrações linguísticas à essência da nossa condição huma-
na, como a experimentamos como indivíduos.” (ESSLIN, 1968, p.10).
0
É necessário destacar, como afirmou Didi-Huberman (p.29, 2010), que

“o que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha”, ou seja, a
1 imagem nos olha ao mesmo tempo em que olhamos para ela, cada um com sua
própria vivencia de acordo com aquele preciso tempo. Rojo (p. 32, 2016) destaca
8 também que o tempo é também essencial para esse estabelecimento das imagens
e da dialética presente: “o espaço do olhar se constrói como um tempo único, mas,
por sua vez, aberto a outros sucessivos e não determináveis a priori”, o que é de
fato essencial para a análise das imagens construídas por Infante.Em Juana e Prat,
porque as imagens “possuem uma dupla condição, pois respondem a duas ordens
diferentes (a da arte e a do imaginário)” (ROJO, p. 33. 2016). Dentro do imaginário
social já seconhece os personagens históricos trazidos pela dramaturga, isso se
constrói de uma maneira onde as imagens já estão carregadas do que cada um
conhece sobre Joana d’Arco e Arturo Prat.
A imagem cumpre um papel muito importante também nessa luta para
a preservação e “conhecimento” das experiências, e se faz necessário traduzir e
conhecer obras como essas para queas vivências possam ser trocadas, dialogadas,
assim como aqueles que também não se reconhecem e aqueles que não pertencem.
Segundo Walter Benjamin:
“O índice histórico das imagens diz, pois, não apenas que elas pertencem
a uma determinada época, mas, sobretudo, que elas só se tornam legíveis
J numa determinada época. E atingir essa legibilidade constitui um determi-
nado ponto crítico específico do movimento em seu interior. Todo o presente
é determinado por aquelas imagens que lhe são sincrônicas: cada agora é o
A agora de uma determinada cognoscibilidade. Nele, a verdade está carregada
de tempo até o ponto de explodir. (...) Não é que o passado lança sua luz so-
L bre o presente ou que o presente lança luz sobre o passado; mas a imagem
é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma
constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade.
L Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente tempo-
ral, a do ocorrido com o agora é dialética – não de natureza temporal, mas
imagética. Somente as imagens dialéticas são autenticamente históricas,
A isto é, imagens não arcaicas. A imagem lida, quer dizer, a imagem no agora
da cognoscibilidade, carrega no mais alto grau a marca do momento crítico,
perigoso, subjacente a toda leitura.” (BENJAMIN, 2006.)

Logo, a partir da imagem, dessa “mídia” composta pela arte de Infante


–e outras-, a memória, as vivências de cada experiência se tornam cada vez mais

fortes. Se estabelece assim uma relação importante entre o passado e presente,
41 quebrando padrões que já não cabem em uma sociedade carente de espaço para
• novos diálogos e novos conceitos.
Construção das imagens nas obras
Através de um teatro contemporâneo, porém com uma relação com a
história, Infante cria seus personagens através da mesma estrutura: personagens
“reais” em um ambiente diferente, tornando reais agora em outra perspectiva: a
2 da arte, e onde existe crítica e indignação a respeito do modelo social proposto e
exigido. Prat agora carrega o ar de um adolescente que precisa de sua mãe para
0 se sentir protegido, ou seja, ele comanda, mas é necessária a figura materna para
guia-lo. Outro elemento que caracteriza essa visão diferente entre os personagens,
1 Prat literário e Prat histórico, é a presença dessa “amizade carinhosa” entre ele e
o Graziet, dando margem a interpretá-la uma possível relação homossexual, que
vinculada a um “herói” com o peso histórico de Arturo Prat por todo o Chile, não
8
é nada agradável para os conceitos arraigados que rondam a sociedade e excluem
àqueles que não se enquadram. Manuela Infante tenta quebrar justamente com
os padrões impostos, com as caracterizações impostas a partir de conceitos
impostos. Talvez não muito certa a escolha da palavra “amigos”, mas como crítica
social talvez seja pertinente que Infante a tenha utilizado, quando descreve o ato
“GRAZIET – PRAT. OS AMIGOS” (p.31), onde as ações e tensões existentes entre
ambos personagens saem a luz, e talvez “amigos” pela impossibilidade de serem
algo mais. Em um diálogo de Graziet, quando o próprio violenta o espanhol Juárez),
confessa que: “Um instinto não é uma provocação, a faz possível somente” (p.30),
onde o “instinto” é colocado como algo que está, mas que por algum motivo não é
possível, como o caso da homossexualidade nesse universo.A dramaturga e diretora
também apresenta um mundo onde a linguagem é extremamente importante, seja
para o teatro ou para o texto. O subtítulo de Prat é “Guia para a criação de um
mundo”. “Um” mundo específico, onde o contexto se estabelece de acordo com as
experiências de Prat e o navio que comanda.
Outro ponto crucial e importante é a imagem da mulher em Prat,
J considerado já de escassez. A mãe do comandante é um personagem de importância
significativa, mas é ocultada desde o mais mínimo detalhe no começo da obraaté o
A desenrolar final da peça. Ao detalhar os personagens, Manuela Infante especifica
a idade de cada e sua ocupação, mas a mãe aparece como “DONA MARÍA DEL
L ROSARIO CHACÓN BARRIOS”, e não aparece em toda a obra por não pertencer
aquele universo masculino. Dessa forma, critica a invisibilidade e o falso lugar

ocupado pela mulher, que não era reconhecida, não tinha voz. “ROBINSON / A
L senhora o fechou, eu a vi e estava chorando também, as duas coisas.” (p.18),
melhor dizendo, as ações e as descrições da mãe de Prat são feitas pelos outros
A personagens; Prat a chama; conversa com ela a partir de monólogos chegando
a confessar que ele não faria nada, porque não tem vontade e nem forças,mas a
presença da mãe não chega a solidificar-se.
Por fim, importante destacar a desconstrução do herói feita através de
Prat, em contraste com o personagem histórico. “Escuta, não tenho idade para ter
• honra. Não tenho idade para querer outra mulher que não seja minha mãe.” (p.
42 28), essa fala do personagem de Infante demarca já a quebra da imagem do herói a
partir da falta das características fundamentais para que um herói exista: a honra,

acima de tudo, e a presença de uma “donzela”, de um amor feminino ao lado do
bom “cavaleiro” (termos apropriados ao pensamento e a construção do herói). Prat
quebra também, além do esperado para um comandante naval, com o esperado
masculino ao não proceder com o determinado ao não comandar devidamente o
navio e ao inclusive deixar que outro homem o agrida fisicamente, mas que ao
2 mesmo tempo não perde sua posição de superior frente aos demais personagens:

“JUÁREZ
0 Veio me buscar para que nos tornemos heróis.
BUCAREST
Não, Juárez, o herói sempre é o capitão.
1 JUÁREZ
E o cozinheiro?
BUCAREST
8 É o que o alimenta para ele ser herói.
JUÁREZ
E o engenheiro?
BUCAREST
É o que calcula para que ele seja herói sem nenhum incidente.
JUÁREZ
Então, também temos algo de heróis.
BUCAREST
Sim, também temos.” (INFANTE, 2004, p. 38)

Já em Juana, as imagens se constroem de acordo com a subjetividade


(também muito frequente em Prat), visto que Manuela Infante joga com as
possibilidades do que é e do que não é, melhor dizendo, Infante joga com as
possibilidades inúmeras que cada “fato” pode assumir. Foi a partir da presença de
crianças que a crítica começa a ser perceptível em Juana, já que instituições como
a Igreja e também as leis impostas são questionadas. Em paralelo a uma Juana
que precisa defender e liberar a França dos ingleses e a necessidade de seguir suas
próprias intuições, vemos também a imagem de uma Juana cotidiana e totalmente
atual, desde a opinião alheia como o pedido de seu pai para o irmão de sufoca-la
caso ocorre-se o que ele sonhou: Juana como prostituta do exército. Isso relaciona-
J secoma atitudes de Juana que não correspondem ao esperado da época: Juana
rechaça seus pretendentes; vai em contra a opinião e aos mandos do pai; defende
A suas próprias vontades e crenças:
“JUANA
Escuto vozes que me dizem o que fazer. Vêm de Deus.
L BRADRICOURT
Vêm de vossa imaginação.
JUANA
L Claro, é como as ordens de Deus chegam a nosso conhecimento.” (p. 76)

E para finalizar, apesar de existirem inúmeras imagens dessas obras,
A a imagem da mulher determinada que consegue comandar a homens poderosos
que não a conheciam, faze-los até se confessarem com ela, chegar a lugares onde
não tinha espaço construído por suas crenças e pensamentos. Juana de fato é
umadramaturgia que, através de diálogos e monólogos que “jogam” com alguns
padrões estabelecidos socialmente, reforçam o vínculo e o diálogo estabelecido
• entre arte, mídia e história. Essa relação é importante e presente nas obras desde
os nomes, que diferentes um pouco -sem o sobrenome-, marcam a diferença entre
43
personagens. Alémdo final das obras, mostrando ao público uma nova possibilidade
• nesse mundo onde o padrão heteronormativo é imposto socialmente de maneira
geral.
Referências
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J

A

L EN EL CORAZÓN DE LA AMÉRICA DE JULIO QUIÑONES:
CONFLUENCIAS ENTRE LA VOZ DE ORIGEN UITOTO Y EL
L TESTIMONIO

A Alexis Uscátegui Narváez (UNIVERSIDAD MARIANA)
RESUMO: En el corazón de la América virgen (1924) de Julio Quiñones es la primera
novela amazónica en Colombia, primera no tanto por la cronología (La vorágine de
José Eustasio Rivera es también de 1924), sino por la densidad etnográfica que
entrega esta obra a la literatura nacional. Además, porque es la primera en —idear
• la heterogeneidad cultural por el intercambio de experiencias y conocimientos
44 ancestrales entre las comunidades bosquesinas y el mundo mestizo—, esta
particularidad se debe gracias a la voz testimonial de su autor quien convivió durante
• cuatro años (1907-1911) con el clan indígena Uitoto en la Amazonía colombiana.
Palabras clave: Novela. Selva. Julio Quiñones. Voz de origen. Testimonio.
La heterogeneidad de En el corazón de la América virgen frente a otras
novelas, se debe a su densidad etnográfica, por el modo de representar a la comunidad
2 indígena Uitoto y más específicamente el clan de los nonuya1, con quienes su autor
convivió durante cuatro años en la Amazonía colombiana, según se lee en una nota
introductoria a la primera edición: “L’auteur est resté pendant quatre ans, de 1907
0 à 1911, parmi les peuplades sauvages de l’Amazone et ayant appris leur langage,
a pu étudier leurs moeurs et connaître leurs traditions” (QUIÑONES, 1924, p.6).
1 Quiñones al aprender de la Weltanschauung de este clan amazónico, entrega a
inicios del siglo XX a la literatura colombiana (y latinoamericana) una historia
8 altamente metafórica, en la que dirá que el corazón de la América del sur es la
selva, un espacio ostentoso de imaginarios ancestrales.
En la obra de Quiñones acaece un espacio y tiempo particular,
heterogéneo con relación a otras novelas. La conexión narrativa entre mito y
testimonio, manifiesta sin dudas, una crisis en lo que se denomina literalmente
como cronotopo, “a la conexión esencial de relaciones temporales y espaciales
asimiladas artísticamente en la literatura” (BAJTÍN, 1989, p.237). Dicha acotación

1  Habitantes de la región del río Caraparaná, en el Amazonas. El término nonuya corresponde a


las lenguas mɨnɨka y mɨka del grupo lingüístico uitoto, en donde nonuiai significa: gente de achiote
(ECHEVERRI Y LANDABURU, 1995, p. 43).
en relación con el relato novelesco de Quiñones, se produce una especie de ―tiempo
cíclico―, es decir, una historia anterior al tiempo presente que vuelve y se conecta
al punto de partida, “esto es un proceso hermenéutico, y por lo tanto, es circular.
Lo importante es entrar en él y dejarse interpelar por él, ya que, por exótico y lejano
que parezca, también nos puede hablar” (LANDABURU Y PINEDA, 1984, p.38). Se
puede analizar entonces, una trayectoria temporal heterogénea, donde primero se
hace alusión a las huellas míticas del héroe Gitoma2 como tradición ancestral de
J los Uitoto, y segundo la historia sobre la guerra de los jaguares que devela el inicio
de la invasión cauchera como referencia del etnocidio más atroz en la historia de la
Amazonía durante los primeros decenios del siglo XX.
A
La particularidad en esta novela radica en que dos voces se alternan en
L la voz narrativa para relatar una historia singular en dos planos argumentales. Por
un lado, está la voz narrativa que se apoya de la cosmovisión de la cultura Uitoto

para develar de manera metafórica las muertes del clan ocasionadas por un jaguar.
L Por otro, se encuentra la voz testimonial implícita de Quiñones que rememora su
aprendizaje adquirido en la selva. La confluencia heterogénea de estas dos voces
A (la una mitológica y la otra testimonial) muestra una sugestiva historia dentro
de una unidad narrativa que se encuentra encriptada y que representa el locus
de enunciación del espació amazónico, sus habitantes, sus tradiciones y sus
costumbres de vida que han perdurado desde su voz de origen tal y como lo suscita
“Gitoma”.
• Así, entonces, la primera línea argumental gira en torno a la imposibilidad
45 de Fusicayna (líder de la tribu nonuya) por vencer a su enemigo metamorfoseado
en forma de jaguar que devoraba a los habitantes de la comarca con el propósito

de vengar antiguas guerras. Trampas bien elaboradas y ubicadas en puntos
estratégicos no eran suficientes para atrapar a este felino devastador, que sabía
perfectamente cómo apresar con cautela a sus víctimas. Sin embargo, dos valientes
guerreros de la tribu de los emuas liberaron las afligidas almas de los nonuyas
al derrotar aquel jaguar en un duelo cuerpo a cuerpo. En tributo a la osadía de
2 estos dos jóvenes guerreros, Fusicayna ofreció a Quega, su hija Moneycueño como
futura esposa; pero la historia no termina allí, pues tras la muerte del felino, se
0 propagó una terrible epidemia que acabó con la vida del jefe nonuya.
Como segunda línea argumental, Moneycueño debe realizar un rito
1 especial durante su boda con Quega, consistente en ingerir las cenizas de su
padre —víctima de la epidemia ocasionada por el jaguar— con el fin de seguir los
8 mandatos del clan y así perpetuar la existencia metafísica de Fusicayna. Luego de
un año debía cumplirse la ceremonia que no se efectuó, ya que un extranjero llegó
a esta tribu enamorando a Moneycueño; poco después de cumplirse el himeneo, la
nativa decidió quitarse la vida, dejando a Quega triste, desolado, y a su tribu sin la
reencarnación y representación totémica de su líder.
Para interpretar la primera secuencia argumental de En el corazón de la
América virgen, es fundamental recurrir al relato mítico llamado “Gitoma”, que en
este caso particular, preferimos denominarlo ―voz de origen― porque es un relato
2  También significa “sol, padre, rey de los witotos y héroe civilizador, algunas veces actúa como
hombre, pero puede transformarse en tigre” (RODRÍGUEZ, 1981, p.25).
oral que vislumbra el universo amazónico de los uitotos de una manera más cercana
a lo autóctono, ya que es un saber significativo en el que confluyen diversos saberes
fundamentales para reinterpretar el mundo, y no desde la perspectiva exotista,
sobrenatural, fantástica e idealista sobre lo que representa el mito para occidente.
Para ello, nos apoyaremos de la versión más completa que Hugo Niño recopiló en
la Amazonía colombiana, ya que su trabajo in situ, acredita más de diez años de
estudio sobre dicha voz, lo que facilitó en el presente estudio, diversos elementos
J para desencriptar el contenido metafórico presente en la novela de Quiñones,
menester que la crítica literaria especializada aún no ha realizado.
A “Gitoma” es un texto oral (etnotexto) que “adopta una forma de
representación que llamamos mítica, encierra un sistema de encriptamiento que
L pone al descubierto, una vez decodificado, la crónica secreta de una cadena de
guerras de frontera por la quina primero y por el caucho, la madera o simplemente,

la tierra después” (NIÑO, 2008, p.273). Además, es un relato que admite en la
L novela objeto de estudio, la comprensión de la desarticulación tribal a raíz de los
enfrentamientos ocasionados en la Amazonía colombiana. De esta manera, en la
A novela de Quiñones se puede encontrar diversos discursos dicotómicos que oscilan
entre lo mítico a través de la voz de origen “Gitoma”, y lo histórico por medio
del archivo que recrea la voz testimonial del autor. Dicho fenómeno narrativo lo
podemos categorizar como una confluencia heterogénea, donde existe una suerte
de heterodiscursividad, múltiples voces que se entrelazan dentro de una misma
• narración; en otras palabras, una “naturaleza polimórfica de la novela, un discurso
46 sin límites o fronteras […] la novela, camaleónica en su capacidad para confundirse
con otros discursos” (GONZÁLEZ, 2011, p. 16).

Al estudiar “Gitoma”, facilitó un ejercicio hermenéutico para revalorar
el contenido estético que presenta En el corazón de la América virgen, ya que esta
voz de origen “deja ver las absorciones de una historia de barbarie, en donde, el
intento por introducir a los uitotos en la historia occidental se ha hecho mediante
el expediente de la masacre, la enajenación y la desterritorialización que deja ver
2 el relato y en el que se ve quien narra y recibe el relato” (NIÑO, 2008, p. 277-278).
Esto permite corroborar la representación que Julio Quiñones expone a través
0 de su testimonio, así como también se puede ver la participación de diálogos con
personajes como Gitomanqueño, el mayor sabedor del clan de los nonuyas, “el gran
1 maestro del éxtasis” como diría (ELIADE, 2016, p.22), quien además funge como
heredero de la palabra mayor de Gitoma-precursor, porque “cuando el narrador
8 uitoto cuenta la historia de Gitoma, él es Gitoma. Cada acción de realización
incluye la versión de quien actúa y revive la memoria a través del relato, bien como
narrador o como auditorio” (NIÑO, 2008, p.278).
Por otra parte, en la novela de Quiñones está presente la metáfora del
jaguar. Para analizar su simbología es dable trabajar la noción de jaguarización,
para comprender el rol del jaguar representado en la novela amazónica. En algunas
comunidades amerindias, este felino en su condición metafísica se considera como
el artífice o demiurgo de los clanes aborígenes. Al revisar algunos postulados
antropológicos que permiten interpretar mucho mejor este objeto literario, se halla
por ejemplo, La mirada del jaguar de Eduardo Viveiros de Castro, quien considera
que el jaguar es de suma importancia para la mayoría de comunidades amerindias,
pues es uno de los elementos más significativos para comprender la cosmología
amazónica. El antropólogo brasileño según su teoría sobre el perspectivismo, señala
que el felino deviene persona y viceversa, es decir, “los jaguares son personas porque,
al mismo tiempo la jaguaridad es una potencialidad de las personas” (VIVEIROS DE
CASTRO, 2014, p.p.21-22). Por ello, también colige que un jaguar, “es más que un
simple jaguar; cuando está solo en la selva, se saca su ‘ropa’ animal y se muestra
J como humano. Todos los animales tienen un alma que es antropomorfa: su cuerpo,
en realidad, es una especie de ropa que esconde una forma fundamentalmente
humana. […] Sabemos que, cuando estamos desnudos, somos todos animales”
A
(VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p.57).

L La imaginería del jaguar es, pues, ambivalente, a saber, “primeramente,
se cree que un chamán puede volverse jaguar a voluntad y utilizar la forma de este

animal como disfraz bajo el cual puede obrar como ayuda, protector o agresor.
L Después de la muerte el jaguar puede volverse jaguar para siempre” (REICHEL-
DOLMATOFF, 1978, p.52). Paralelamente, en la novela de Quiñones el jaguar
A representa la venganza de antiguas tribus que fueron profanadas en guerras que
datan desde la época colonial:
Justamente, mucho tiempo después, ya en el tiempo de los hombres, du-
rante las guerras del caucho, los uitotos buscarán los territorios originarios
de La Chorrera para dar allí la batalla final contra los esbirros de la Casa
Arana, en una acción dialéctica de inmolación para recuperar el tiempo y el

espacio perdidos. La resistencia de los uitotos en aquel holocausto fue real,
47 pero, sobre todo, fue ritual. Los uitotos absorbieron la realidad de la guerra
y la esclavitud impuesta por los caucheros y se armaron incluso con armas

de fuego y desarrollaron estrategias de lucha guerrillera de la selva. Pero
también absorbieron su propia memoria y por eso su guerra tuvo siempre
un modo ritual. Por eso darían la batalla final en el territorio señalado por
las narraciones orales como aquél donde habían habitado por primera vez
el mundo. No obstante que muchísimos uitotos murieron en aquella lucha
2 y en las persecuciones posteriores, la memoria de aquellos acontecimien-
tos ha operado como aglutinador de las búsquedas actuales de cohesión.
(NIÑO, 2008, p.253)
0
Por esta razón, se puede decir que la novela de Quiñones actúa como una
cripta que resguarda de manera metafórica la memoria de los uitotos, por eso se
1
puede considerar como amazónica, porque confluye con la voz de origen “Gitoma”
y porque el nativo puede liberarse de su opresión a través de su tecnología de
8 la palabra ancestral, de allí que la emancipación es ritual tal y como lo aclaró
anteriormente Niño; es decir, hay una línea de fuga para las comarcas selváticas

representadas en la narrativa, la cual, en la historia de la literatura colombiana
desvirtúa la idealización del indio. En el corazón de la América virgen se materializa
al jaguar como el enemigo, el invasor cauchero que intentó exterminar la comarca
de Fusicayna; dicha alegoría es una alternativa encriptada que advierte sobre el
peligro que asecha al clan de los nonuyas:
Cada día el tigre hacía una nueva víctima y sembraba por todas partes el
dolor; se hubiese dicho que la terrible fiera no se saciaba nunca; tan elevado
era el número de sus víctimas. Su sed de sangre humana no se apagaba
jamás. El seguía con ojo ávido los pasos de los indígenas, recorriendo los
caminos y senderos, y sus huellas se encontraban en todas partes sobre la
tierra húmeda. (QUIÑONES, 1948, p.17)

El fragmento de Quiñones permite comprender que el territorio amazónico


se encuentra amenazado por un otorongo que está a punto de exterminar a los
nonuyas. Al retomar el concepto de jaguarización se puede comprender que existen
dos tipos de jaguar dentro de la cosmología amerindia que podría validar la postura
J crítica en el presente análisis. Hay un jaguar bueno (nativo amazónico) y uno malo
(colono). El primero como se ha ejemplificado más arriba, es el protector del clan
A y la selva ante los regímenes de poder occidental, es decir, el jaguar también es
una metamorfosis del chamán que deviene animal para combatir con otros clanes
L guerreros, puesto que “la transformación pasajera en animal es signo del poder
que tienen sobre la naturaleza algunos héroes mitológicos, ya sean dioses o brujos”

(RODRÍGUEZ, 1981, p.32). El segundo, en cambio, es aquel que ingresa a la
L manigua sin permiso y profana sus leyes sagradas agrediendo a sus habitantes.
Con esta ilustración, el jaguar que se recrea en la novela de Quiñones es
A el animal que camufla distintos verdugos que ha tenido la comunidad amazónica
en diferentes épocas, como el caso del combate entre Gitoma y Nokaido como
se suscita en “Gitoma”, también los colonos que fueron enviados por la corona
española para apoderarse de las selvas de América del Sur y seguidamente de
los foráneos que ambicionaron apoderarse de la quina y la hevea amazónicas
• respectivamente: “vosotros sabéis todos, que el tigre es una metamorfosis de brujos
48 de tribus ignoradas, que apoyadas por los espíritus de las víctimas derribadas bajo
la potencia de nuestros golpes, buscan su revancha bajo la forma de un tigre feroz”

(QUIÑONES, 1948, p.20). Este tipo de jaguarización como lo muestra la novela de
Quiñones, se puede hallar referenciada en la cosmología amazónica de los uitotos,
ya que el jaguar desliga múltiples propiedades y comportamientos, en el caso de
las antiguas guerras entre clanes amazónicos, los brujos trasmutaban en jaguares
para cumplir sus venganzas, “andaban por muchas partes y se comían a la gente.
2 Llegaban a los puertos sobre los ríos a esperar a la gente que se bañaba, y a los
niños. Y cuando llegaban a bañarse, ahí mismo se los comían…” (LANDABURU Y
0 PINEDA, 1984, p. 228).
“El tigre, entonces, bebe a largos tragos la sangre chorreante y engulle
1 sin descanso la carne que arranca a jirones, luego se aleja, gana a pasos lentos un
arroyo y, después de haber calmado su sed siempre inmitigable, retorna a devorar
8 los restos de su víctima rugiendo de furor” (QUIÑONES,1948, p.18). Es un enemigo,
al que el líder de los nonuyas, Fusicayna, no puede dar muerte, pues sus trampas
y lanzas parecen ser obsoletas ante el sagaz felino. Se puede observar también,
que toda la comunidad se encontraba aterrada, porque creían que en cualquier
instante el jaguar encontraría su oportunidad, de tal manera que aquí se establece
otra suerte de línea de fuga para el clan, pues la mayoría de sabedores acudían a la
yera3, planta de conocimiento que les permite entrar en un estado enteógeno para

3  Tabaco líquido que todavía se usa a diario en las comunidades Uitoto de hoy, “es fundamental en
las prácticas rituales y de brujería de los uitotos. Por su intermedio se establece comunicación con
vaticinar el futuro y así evitar más desgracias, también les admite llegar al origen
de la palabra, gracias a ella se puede resguardar la vida ante el peligro.
En la novela de Quiñones se puede ver a través de este primer paraje
narrativo, que la yera permite a los nativos uitotos liberarse de manera ritualística
de aquella opresión que los aflige, pues Oyma, uno de los sabedores dice después
de probar el brebaje negro: “en mi triste visión aparecen todavía muchas víctimas,
pero antes de la próxima luna el tigre será derribado” (QUIÑONES, 1948, p.21).
J Asimismo, Gitomanqueño, el mayor intelectual y sabio de la selva, pregunta a Oyma
sobre el destino de los nonuyas, quien presagia que luego de la muerte del jaguar
A vendrán más tragedias: “una violenta epidemia que el tigre al morir engendrará con
su aliento pestilente, propagándola en todas las tribus de nuestra raza. Ese sería
L el último esfuerzo de su odio y de su mortal venganza” (QUIÑONES, 1948, p.22).
Con esto se puede destacar otro elemento relevante en la novela en mención, pues

aquella epidemia se trata de las enfermedades que trajeron los colonos caucheros
L a la selva, viruelas que también ocasionaron innumerables muertes.
Para predecir si el jaguar causaría alguna otra desgracia entre la
A tribu, es relevante resaltar que la yera brindó la posibilidad de establecer una
intercomunicación metafísica entre los nativos, de tal manera que Oyma (de la tribu
Jeduas), al beber esta planta sagrada, realizó un vuelo chamánico y afirmó que el
tigre sería derrotado por un joven guerrero, pero que el felino dejaría una terrible
desgracia: la epidemia que exterminaría la floreciente comunidad de los nonuya,
• esto es el etnocidio cauchero. Asimismo, la esperanza de un mejor mañana entre
49 los nativos se prolongó cuando Fusicayna invitó a su tribu a dialogar, y dicho acto
se fortaleció con el yera, sobre todo cuando el anciano Gitomanqueño compartió

su sabiduría a los más jóvenes de la tribu. En su virtud de gran sabedor, expresó:
“¡amo las supersticiones tan queridas a las almas delicadas; respeto mis tradiciones,
porque no reniego de mis antepasados; amo siempre la luz nueva del sol siempre
viejo! El sol, ese eterno amor, cuyo calor es la vida de los seres” (QUIÑONES, 1948,
p.37).
2
Se puede decir que las anteriores palabras dejan ver una nueva aurora,
la luz de un mundo resguardado por la naturaleza, un espacio que sabe cuidar
0 del bienestar colectivo y de los seres que lo habitan. En su propia construcción
de nación, los nonuya no necesitan gobernantes, porque su mandato es respetar
1 las tradiciones de sus antepasados; los ritos y plantas sagradas les ofrecen paz
interior y armonía selvática, porque es la madre natura quien les da el jágɨyɨ4, un
8 soplo ancestral que ayuda a conservar el verdadero origen de la vida y a renovar la
sapiencia que les permite cohabitar con destreza en la infinita floresta; además, la

el jaguar u otros brujos” (PINEDA, 2000, p.166).


4  Este término escrito en lengua mɨnɨka significa “aliento de vida” y pertenece al jagagɨ, un género
poético de los hijos del tabaco, la coca y la yuca. Es un canto dialogado que permite sustentar la
existencia de “los clanes, los ríos, los pozos, las cascadas, las plantas sagradas, los alimentos;
donde se ponen a prueba las leyes morales, intelectuales, los órdenes ecosistémicos” (VIVAS, 2015,
p.21). Del mismo modo, Quiñones reitera el uso del yera como iniciador de las grandes narraciones
de los nonuyas.
coca que mascan los sabedores durante el rafue (canto de poder), representa otra
fuente de conocimiento de los nonuya, porque:
Si hay rafue, hay abundancia y salud en la comunidad. Durante el rafue
se construyen y divulgan los saberes del entorno físico conocido (plantas,
animales, territorio, enfermedades, recursos naturales, chagra, etc.) y las
obras de creación colectiva, dentro de las que se destacan los cantos y las
danzas de armonización. Canto y danza son los lenguajes empleados por
los sabedores del bosque tropical húmedo para expresar sus conocimientos
J del mundo y su gratitud con la Madre Tierra. El rafue fija las reglas de edu-
cación, de comportamiento colectivo e individual y de administración de la
A cultura. (VIVAS, 2015, p.90)

Es importante reconocer el rol que cumple Gitomaqueño en esta historia,


L su nombre y su conocimiento honra la palabra mayor de Gitoma-padre, su misión
es muy importante porque él maneja la sabiduría del Bakakɨ que significa “palabra
L mayor”, a saber, el secreto que permite administrar la selva y sus leyes sagradas.
Esto se pudo comprender gracias al trabajo de Niño (2008) sobre la recuperación
del relato “Gitoma”, del cual no se puede prescindir su contenido, pues sin duda,
A ayudó a explicar mucho mejor la confluencia heterogénea en la novela de Quiñones.
Niño, gracias al testimonio de Gitoma Safiama, hijo del gran chamán Gitoma
que vivió en La Chorrera ubicada a orillas del río Igaráparaná, lugar donde Julio
Quiñones convivió junto a los Nonuyas, logró reconstruir la versión completa de
“Gitoma” como voz de origen. El primer episodio tiene que ver con Juttíñamuy el

modelador del universo y el mundo, quien además procreó la descendencia de los
50 uitotos, entre ellos a Gitoma, el nominador de las leyes de la uitocia. No obstante,
• estos nativos sublevaron el mandato mayor, lo cual, fueron enviados a la superficie
de la tierra tal y como sucedió con el relato cristiano de “El paraíso” a la cabeza de
Adán y Eva:
Juttíñamuy otorga la vida y el señorío de los hombres sobre la tierra, a
cambio de la servidumbre de ellos hacia él, representada en el ejercicio del
atributo de la memoria, que a su vez es puesta en acción a través del len-
2 guaje, es decir, el relato. Los hombres rompieron el contrato y Juttíñamuy
los deshizo. Confiscó las plantas de coca, de tabaco, la ayawasca, todas las
0 plantas esenciales y las escondió. Entonces designó a Tigre Gáimoi como
carcelero guardián de los uitotos, encargado de no dejaros salir de su reduc-
ción sepulta. (NIÑO, 2008, p.251)
1
Por otra parte, “Gitoma” comparte la historia sobre el incesto político,
8 donde Nokaido, hermano de Gitoma, enamoró a su mujer, generando innumerables
enfrentamientos. Juttíñamui, gran deidad del aliento de vida, al ver que los uitotos
profanaron sus mandatos, entre ellos, Nokaido quien rompió los lazos de amor
entre Gitoma y su mujer, decidió nombrar a Gáimoi como guardián de los uitotos,
su fuerza representada en forma de jaguar5 le permitió custodiar a la tribu; por
tanto, “las nuevas condiciones de los uitotos les impondrían hacer frente a nuevos

5  Como se puede observar, Gáimoi representa un devenir animal de jaguar, aquel que impedirá que
la comunidad Uitoto sea libre, desde allí se puede comprender cómo surge parte de la jaguarización,
pues se trata en un primer momento del castigo que impone Juttíñamuy a la desobediencia. De
alguna manera, este referente valida la idea en la novela de Quiñones, de que el jaguar simbolizaba
adversarios que quebrarían también la homogeneidad de la vida comunitaria, para
producir un nuevo equilibrio basado en contraindicaciones que antes no existían”
(NIÑO, 2008, p.254).
La anterior referencia que comparte Niño (2008), es un punto fundamental
para comprender el etnocidio ocasionado en la Amazonía colombiana con los
indígenas Uitoto. Primero, el mandato de Juttíñamui se entiende como una ley para
garantizar el equilibrio en el mundo selvático, como se mencionó más arriba, el
J incesto político ocasionó la primera profanación de aquel mandato sagrado, lo que
generó la expulsión de Nokaido hacia el espacio terrenal de los hombres blancos,
A que posteriormente tomará venganza contra los uitotos en forma de jaguar. Así,
todo lo que parecía ser un génesis de cultura aborigen pasó a ser un apocalipsis de
L sangre y devastación:
Por un lado se encontraban Gitoma y sus hermanos Muruima y Muinaima,
que serían las cabezas de los troncos clánicos de los Murui y los Muina-
L ne. Por otro lado estaban sus restantes hermanos: Nokaido, con quien se
inició la ruptura desde el seno de Tierra, y Guéquetirai, segundo en poder
entre los uitotos y quien también se apartaría de ellos por celos de poder
A hacia Gitoma y se convertiría en Yarókagiroi Gusano Gigante, que sería el
azote de sus hermanos de creación y aliado de la Casa Arana muchos años
después. De esta manera quedó armada una nueva estructura de poder a
causa de aquellas rencillas de autoridad y amor, personificada en este grupo
de agonistas que, desde entonces, están en lucha permanente. (NIÑO, 2008,
• p.254)

51 La cita de Niño evidencia los ciclos de exterminio que padeció la


• Amazonía colombiana, sin embargo, gracias a “Gitoma”, los uitotos han logrado
resistir dichas devastaciones ocasionadas por sus hermanos Nokaido (jaguar) y
Guéquetirai (gusano). Por eso, este tipo de voces sin duda ayudan a comprender el
contenido encriptado en la novela de Quiñones, sobre todo porque se puede ver que
el jaguar que ataca la comunidad Nonuya, es la representación metafísica producto
del cúmulo de odios y venganzas aplazadas en tiempos remotos.
2
El propósito de Gitoma en perpetuar la memoria de su clan a través de
las reuniones en el mambeadero, se extrapola con el ritual que se lleva a cabo
0
en la novela de Quiñones con el sabedor Gitomanqueño y Fusicayna. El hijo de
Gitoma al heredar la sabiduría de su padre, tiene la misión de propagarla al resto
1 de su comarca, lugar donde se convoca al rito y la intercomunicación chamánica
producto del chupe de yera y el mambeo de coca. De esta manera, “Gitoma”
8 confluye sobremanera entre los primeros capítulos de la novela de Quiñones,
develando gran parte de la historia de enfrentamientos telúricos en la Amazonía
colombiana, de tal manera que su resistencia a través de la intercomunicación
entre la coca y el tabaco, facilitó mecanismos de liberación frente aquellos sistemas
que invadieron e intentaron abolir las culturas ancestrales de la selva. Lo mismo
se puede observar con el personaje Gitomanqueño quien convoca a la reunión del
tabaco para interpretar los acontecimientos del jaguar.
Tanto en el relato oral de “Gitoma” como en la novela En el corazón de

la venganza de antiguas deidades.


la América virgen, la palabra durante en el mambeadero pasa a ser Bakaki; es
decir, la palabra mayor que permite entender el secreto del conocimiento, en el
confluyen “los relatos portentosos de la creación, transacción de las historias, el
poder de los bailes, la potencia de las señales en la piel, la fuerza de las máscaras
y el mandato de proteger la selva” (NIÑO, 2008, p.262). Este tipo de ritual, tiene
la función de mantener en pleno equilibrio la comunidad, les permite coordinar
sus cosmovisiones entre cultura y naturaleza como un eje primordial de sabiduría
J sagrada. El Bakaki les accede el conocimiento necesario para controlar las
devastaciones que los acorralan hacia el exterminio tal y como se observa con las
prevenciones que toman Gitomanqueño y Fusicayna frente al jaguar; en breves
A
palabras, es la mayor tecnología para prever los detrimentos de sus naciones
selváticas, por ello, se actualiza gracias al rito de acuerdo a nuevas necesidades y
L amenazas.

Bajo esta comprensión, las creencias de este clan son las que confluyen
L indiscutiblemente con el relato mítico de “Gitoma”, es allí donde se puede clarificar
el argumento de este primer plano de la novela de Quiñones. Precisamente con
A este paraje narrativo, se puede colegir que su propuesta es un trasunto en el
que efectivamente prevalece un diálogo entre la voz de origen de “Giotma” y el
testimonio del autor, por tanto, suscita una marca singular dentro de la novelística
colombiana.
Se observa otro punto clave en la historia donde se presenta un salto de
• umbral, se trata de una confluencia entre la voz de origen “Gitoma” y lo testimonial,
52 es decir, con la experiencia del autor en la selva que funciona como latencia en el
segundo tramo narrativo de la novela. Recuérdese que el testimonio es un recurso

particular en la narrativa latinoamericana, es una tendencia por la cual, el autor
se apoya de recursos documentales, históricos, antropológicos y periodísticos
con el fin de agregar veracidad a lo narrado. La novela testimonial se apoya de
diversos discursos como la historia, la antropología, la etnografía o el periodismo
con el objeto de otorgar mayor verosimilitud al relato (OCHANDO, 1998, p.30). En
2 el corazón de la América virgen tiene ese aire de testimonio donde su protagonista
comparte en su versión una realidad cultural; sin embargo, hay que recordar que
0 en ella también confluye la voz de origen lo que hace que su estética sea más
sugestiva y diste de otro tipo de tradición novelística.
1 Para comprender los innumerables imaginarios que Julio Quiñones
comparte en su novela, es menester conocer un poco de sus experiencias de vida
8 en la selva, pues esto permitió corroborar diversos aspectos que constituye la
voz testimonial en su novela. Dichos datos biográficos han sido muy difíciles de
conseguir, sobre todo porque el autor de En el corazón de la América virgen no fue
un escritor consagrado, y en los pocos estudios que aparece referenciado, ninguno,
con certeza, ofrece una biografía completa que suministre información sobre su
vida y su obra. Por tanto, cabe señalar, que la información que a continuación
se comparte surge de una exhaustiva revisión documental y archivos literarios
recuperados de hemeroteca.
En la segunda parte de Putumayo: la vorágine de las caucherías. Memoria
y testimonio publicado en 2014 por el Centro Nacional de Memoria Histórica, se
enceuntra una declaración clave sobre los atropellos de los colonos peruanos
cometidos en lo que hoy se reconoce como región amazónica de Colombia. Gabriel
Martínez el 2 de noviembre de 1093 expresó que Julio Quiñones fue una de las
personas que presenció las atrocidades (asesinatos y correrías de nativos uitotos)
ocasionadas por la Casa Arana tanto en La Chorrera como en El Encanto. Asimismo,
Rogelio Becerra en 1908 declara: “los soldados dicen que oyeron a Sumaeta, que dijo
al Inspector que Antonio Ordóñez les había mandado a avisar con Julio Quiñones,
J que el Inspector Don Gabriel Martínez, se iba llevando como cuarenta salvajes de
los huidos y que Don Gabriel dijo que quería poner su honor en limpio” (p. 200).
A La anterior referencia permite validar la hipótesis de que Quiñones
comparte en su novela diversos parajes testimoniales, por eso describe con maestría
L los sucesos que vivenció en la selva durante cuatro años de su juventud, tal y
como se puede evidenciar a través de la forma inusual de cómo suscita en su

narración las reuniones que se realizan en el mambeadero por ejemplo, donde se
L practica el ejercicio del pensar a través del chupe de yera y donde se puede ver
cómo Fusicayna, que existió realmente (Jusɨcaɨna), logró mantener la esperanza en
A su clan frente a la devastación del jaguar.
Luego de conocer la anterior experiencia selvática de Quiñones, es
fundamental desarrollar la segunda secuencia argumental de En el corazón de la
América virgen en confluencia con el aporte de la voz testimonial del autor. Par ello,
primero es importante traer a colación el tema del incesto y el don. Estos factores,
• al ser heredados ancestralmente, están ligados a prohibiciones tribales, que se
53 ejemplifican en las vivencias nativas representadas en la novela de Quiñones. En
esta misma línea, Quiñones al representar este tipo de tradiciones en su novela,

también reivindica la imaginería amazónica de un determinado clan, aspecto
cultural que no fue tenido en cuenta por ningún otro novelista colombiano durante
el siglo XX.
Quiñones escribió esta historia en tributo por la buena acogida que
2 recibió por parte de los Nonuyas. El Ichareyma (forastero) que aparece en la novela
tras huir de la esclavitud impuesta por la empresa de Arana, es la perfecta escena
que recrea la experiencia que tuvo Quiñones en la selva, el mismo que fue curado
0 y atendido por este clan amazónico, principalmente por Moneycueño, la primera
mujer que le ofreció cazabe y pescado para que recuperara su energía: “él creía
1 soñar. Tenía ante él a la diosa de esas selvas, tan llena de gracia y juventud”
(QUIÑONES, 1948, p.103).
8 Para terminar, es valioso ver cómo la voz narrativa cumple su rol
testimonial cuando se explica en diversos parajes el significado ancestral de cada
aspecto ceremonial, por ejemplo, la Okima, culto que figura el bautismo de sangre
de los nativos que eligen sus caminos como intelectuales, y el juego de pelota6. Todos
los clanes invitados a la fiesta del Rodorite, al igual que el sabedor Gitomanqueño

6  Este es otro de los factores que logra recuperar Quiñones con su novela, una tradición que casi
se pierde con la conquista del caucho en la Amazonía. Según se puede leer en Preuss (1994), este
tipo de juego-ritual tiene como objeto para los uitotos recordar las enseñanzas de los ancestros,
recuperar el lugar de origen (komuiyano) compartiendo en armonía con los canes aledaños, sin esta
fiesta sagrada la gente de la selva sería triste, pues en ella también se baila y se agradece por la
esperaban ansiosos que Moneycueño otorgara después de un largo año de espera
la felicidad entre su raza, porque “ese día tomará un esposo para hacer revivir en
su próxima generación a su padre difunto” (QUIÑONES, 1948, p.198). Pero, Willy
que no estaba enterado de este acontecimiento, y luego de que Moneycueño le
contara toda la historia sobre su compromiso con Quega, él comprendió que pronto
perdería a su amada nativa y aunque planearon fugarse ella debía cumplir con
lealtad ante las tradiciones de su tribu: “¡Huir!, ¡huir!, dijo ella al fin. ¡No! ¡yo no
J puedo huir, yo soy la hija de Fusicayna!” (QUIÑONES, 1948, p.209). En suma, En
el corazón de la América virgen posee un carácter mítico (GONZÁLEZ, 2011, p.52),
en el sentido en que su voz de origen funciona como un suceso singular dentro la
A
novelística colombiana y latinoamericana y porque además, en su trasfondo está
latente el proyecto cultural de la historia de la Amazonía.
L
Referencias
L bAJTÍN, M. Teoría y estética de la novela. Madrid: Taurus, 1989.
ECHEVERRI, J y LANDABURU, J. Los nonuya del Putumayo y su lengua: Huellas
de su historia y circunstancias de un resurgir. In: PABÓN, M. La recuperación de
A lenguas nativas como búsqueda de identidad étnica. Bogotá: CCELA- Uniandes,
1995, p. 39–60.
ELIADE, M. El chamanismo y las técnicas arcaicas del éxtasis. México: Fondo
de Cultura Económica, 2016.
GONZÁLEZ, R. Mito y archivo: una teoría de la narrativa latinoamericana. Méxi-
• co: Fondo de Cultura Económica, 2011.
54 LANDABURU, J e PINEDA, R. Tradiciones de la gente del hacha. Bogotá: Insti-
• tuto Caro y Cuervo, 1984.
NIÑO, H. El etnotexto: las voces del asombro. La Habana: Casa de las Américas,
2008.
OCHANDO, C. La memoria en el espejo. Barcelona: Anthropos, 1998.
PINEDA, R. Holocausto en el Amazonas. Bogotá: Planeta, 2000.
2 PREUSS, K. Religión y mitología de los uitotos. Bogotá: Universidad Nacional,
1994.
0 QUIÑONES, J. Au Coeur de I’ Amerique vierge. Paris: Peyronnet, 1924.
QUIÑONES, J. En el corazón de la América virgen. Bogotá: ABC, 1948.
1 RODRÍGUEZ, M. Muestra de literatura oral en Leticia, Amazonas. Bogotá: Ins-
tituto Caro y Cuervo, 1981.
8 REICHEL-DOLMATOFF, G. El chamán y el jaguar. México: Siglo XXI Editores,
1978.
VIVAS, S. Komuya uai. Medellín: Sílaba, 2015.
VIVEIROS DE CASTRO, E. La mirada del jaguar: introducción al perspectivismo
amerindio. Buenos Aires: Tinta de Limón, 2013.

abundancia de los alimentos.


J

A

L A LINGUAGEM DESENHANDO A AMAZÔNIA: IMPRESSÕES DE
EUCLIDES DA CUNHA E LEANDRO TOCANTINS
L
Ana Cláudia de Souza Garcia (IFAC)
A Vera Lúcia de Magalhães Bambirra (UFAC)
RESUMO: O presente texto tem como objetivo apresentar o resultado de um estudo,
de caráter bibliográfico, das obras “À margem da história”, de Euclides da Cunha
(1967), e “O rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia”, de Leandro
Tocantins (1973), tentando desvendar os olhares voltados à Amazônia. Para isso,
• foi necessário recorrer a escritores como Wallace (1979),Henry Bates (1979), entre
outros. Ademais, como suporte teórico, para o estudo da linguagem, foi essencial
55
recorrer a Bakhtin (1997). Ao término desta pesquisa, mesmo observando que
• Euclides da Cunha descreveu poeticamente a Amazônia, o fez, porém, sem abrir
mão da visão de republicano. Aspectos poéticos também são perceptíveis na
narrativa de Leandro Tocantins, que acaba reproduzindo (pré)-conceitos igualmente
apresentados em outros discursos. Portanto, nas obras analisadas, foi possível
observar que não ocorre a superação do antagonismo Inferno X Paraíso que acabou
2 fincando raízes no imaginário das pessoas.
Palavras-chave: Amazônia. Narrativas amazônicas. Euclides da Cunha. Leandro
0 Tocantins.
A pretensão deste texto é fazer uma abordagem acerca das obras “À
1 Margem da História”, de Euclides da Cunha (1967), e “O rio comanda a vida: uma
interpretação da Amazônia”, de Leandro Tocantins (1973), a partir das impressões
8 desses autores sobre o espaço amazônico, que foi tão bem demarcado pelas letras
desses escritores, e nos chega aos olhos como uma tela e não como um texto. Cada
palavra, cada sentença, cada parágrafo tecido por Euclides da Cunha e Tocantins
constroem o monumento amazônico, que ainda hoje se encontra intacto, talvez com
pequenas rachaduras, mas ainda firme, imponente, preservando a forma que, não
só esses dois autores, mas vários outros cronistas, lhe deram ao longo do tempo.
A questão aqui não é, pois, discorrer sobre a estrutura e os elementos da
narrativa, mas uma tentativa de entender como o estereótipo amazônico foi sendo
produzido por meio da linguagem e se cristalizando no nosso imaginário como um
lugar aquém das expectativas do ser humano civilizado.
Compreender melhor (pré) conceitos tecidos sobre o espaço amazônico
requer mergulhar na imaginação, nas impressões e conclusões dos autores que
se dispuseram a “conhecer” e a narrar sobre esse lugar. Euclides da Cunha,
considerado uma referência na descrição sobre a Amazônia, traz em seu livro,
publicado apenas após a sua morte (em 1909), a imagem do mundo amazônico,
pintada por palavras recheadas de poesia e conotações.
O livro “À Margem da História”é fruto dos relatos da viagem feita
J por Euclides da Cunha, no ano de 1905, quando veio chefiando a comitiva de
reconhecimento do Alto Purus. É dividido em quatro partes: “Na Amazônia, terra sem
A história”, “Vários Estudos”, “Esbôço de História Política” e “Estrêlas Indecifráveis”,
mas é na primeira parte – “Na Amazônia, terra sem história” – onde mais se destaca
L o olhar do escritor sobre essa parte do país, ressaltando, por muitas vezes, o que já
foi visto (embora não experimentado, vivenciado) e narrado por outros escritores,

como Wallace, Humboldt, Bates, Agassiz, Orellana, entre outros.
L
O olhar euclidiano é o olhar de fora, que permite analisar, fazendo
comparações com outras realidades, com outras geografias, com outros sujeitos.
A Assim, o que Euclides da Cunha nos apresenta sobre a Amazônia tem muito mais
a ver com as percepções do autor que com o cenário amazônico.
Antíteses, metáforas e hipérboles são alguns dos diversos recursos
utilizados pelo escritor, que, por meio do signo linguístico, materializa o caos das
paragens amazônicas, marcado pela desarmonia entre homem e natureza. Para
• o próprio autor, “Parece que ali a imponência dos problemas implica o discurso
56 vagaroso das análises: às induções avantajam-se demasiado os lances da fantasia.
• As verdades desfecham em hipérboles.” (CUNHA, 1967, P. 14).
Diante dessas “verdades” que “desfecham em hipérboles”,
bakhtinianamente concordamos que há, entre as pessoas,
A aptidão para ver o tempo, para ler o tempo no espaço, e, simultaneamen-
te, paraperceber o preenchimento do espaço como um todo em formação,
como um acontecimento, e não como um pano de fundo imutável ou como
2 um dado preestabelecido. A aptidão para ler, em tudo — tanto na natureza
quanto nos costumes do homem e até nas suas idéias (nos seus conceitos
0 abstratos) -, os indícios da marcha do tempo. O tempo se revela acima de
tudo na natureza: no movimento do sol e das estrelas, no canto do galo, nos
indícios sensíveis e visuais das estações do ano. Tudo isso é relacionado com
1 os momentos que lhe correspondem na vida do homem (com seus costumes,
sua atividade, seu trabalho) e que constituem o tempo cíclico. O crescimento
8 das árvores e do rebanho, as idades do homem, todos eles indícios visíveis
que se referem a períodos mais amplos. (BAKHTIN, 1997, p. 243)
Nesse sentido, o espaço não é apenas “um pano de fundo”, pois na
narrativa euclidiana, a natureza se sobrepõe ao homem. Ela coordena as ações
humanas, seus deslocamentos ou sua imobilidade. Toda a sua imponência é descrita
por adjetivos, como: “devastadora”, “impiedosa”, “opulenta”. O rio, elemento que
mereceu destaque especial nos relatos de Euclides, é retratado como determinante
na vida do homem amazônico. Com “a sua inconstância tumultuária” (CUNHA,
1967, p.20), o rio vai guiando o homem pelo espaço e ditando as regras para a
fixação de moradia, para as plantações, colheitas, enfim, para o fluxo da vida.
O rio é símbolo de vida no solo amazônico. Às margens dele, os homens se
agrupam e constroem suas famílias, pois o rio lhes proverá o alimento. Além disso,
o rio é a sua estrada. Junto com os varadouros, o rio constitui as vias de acesso do
homem amazônico. Por outro lado, o rio se apresenta “sempre desordenado, e revolto,
e vacilante, destruindo e construindo, reconstruindo e devastando (...)” (CUNHA,
1967, p.20), impondo ao homem uma condição de vida também desordenada, sem
fixidez. Assim, Euclides descreve o “progresso tìpicamente amazônico” (CUNHA,
J 1967, p.21),
Tudo vacilante, efêmero, antinômico, na paragem estranha onde as pró-
prias cidades são errantes, comos homens, perpètuamente1 a mudarem de
A sítio, deslocando-se à medida que o chão lhes foge roído das correntezas, ou
tombando nas “terras caídas” das barreiras...Vai-se de um a outro século
na inaturável mesmice de renitentes tentativas abortadas. (CUNHA, 1967,
L p. 21)

O texto euclidiano permite inferir que o expedicionário demonstra certa
L frustração e um tédio ao olhar o mundo amazônico. Previamente, foi o exótico que
o motivara - assim como motivou tantos outros – a seguir rumo à Hileia brasileira,
A mas a monotonia da paisagem rendeu-lhe essas sensações e o fez retratar, muitas
vezes, uma imagem empalidecida da Amazônia, distante da exuberância das cores
de sua fauna e flora.
Sobe o grande rio; e vão-se-lhe os dias inúteis ante a imobilidade estranha
das paisagens de umasó côr, de uma só altura e de um só modêlo, com a
sensação angustiosa de uma parada na vida: atônicas todas as impressões,
• extinta a idéia de tempo, que a sucessão das aparências exteriores, unifor-
mes, não revela – e retraída a alma numa nostalgia que não é apenas a sau-
57 dade da terra nativa, mas da Terra, das formas naturais tradicionalmente
vinculadas às nossas contemplações; que ali não se vêem, ou se não desta-
• cam na uniformidade das planuras... (CUNHA, 1967, p.43)

Ainda é possível perceber que o viajante busca ver coisas diferentes, mas
sempre tendo como parâmetro um espectro pré-definido, que o permite observar,
analisar e avaliar a nova paisagem. Na passagem acima, tem-se, ainda, a impressão
2 que o autor se sente abduzido em solo amazônico, que o lugar não faz parte do
nosso planeta, que o colorido virou cinza.
0 Alfred Russel Wallace (1979), assim como Euclides, em viagem pelos rios
amazônicos, também busca o diferente, sem abrir mão da visão eurocêntrico. Em
1 seu discurso, acaba deixando transparecer isso claramente:
Quando fico pensando no quanto é fácil transformar esta floresta virgem em
verdejantes campinas e produtivas plantações, exigindo-se para tanto uma
8 concentração mínima de trabalhos e esforços, dá até vontade de reunir meia
dúzia de amigos entusiasmados e diligentes e vir para cá tirar desta terra
tudo aquilo que ela nos pode propiciar com fartura. Juntos, mostraríamos à
gente do país como seria possível criar aqui um verdadeiro paraíso terrestre
a curto prazo, abrindo-lhes os olhos para uma realidade que eles até então
jamais conceberam que fosse capaz de existir. (WALLACE, 1979, p. 208)

Desse modo, nem a exuberância das cores da fauna e flora amazônicas,


entre tantos outros aspectos da vasta região verde, impediram que o olhar de
Wallace ignorasse a existência de uma sociedade tipicamente amazônica, fruto da
1  As citações estão de acordo com o texto que foi utilizado como fonte.
mistura da empresa colonial com os nativos indígenas. Ele e outros viajantes que
percorreram os rios da Amazônia brasileira entre os séculosXVIII e XIX, acabaram
propagando, a partir de seus relatos, a imagem equivocada e distorcida de uma
região que, devido às condições insalubres e a existência de nativos com costumes
rudes, caberia ao “homem civilizado” o papel de “cuidar” daquele espaço promissor.
Henry Bates (1979), apesar de apresentar a Hileia como um lugar com
“temperatura amena”, com um clima por ele considerado “um dos mais privilegiados
J da face da terra”, também acaba lançando um olhar para a região como o lugar em
que os nativos são apresentados como óbice ao “progresso”, uma vez que, para ele,
A a:
(...) inflexibilidade de caráter do indígena e sua total incapacidade de se
adaptar a novas situações irão causar, infalivelmente, a sua extinção, à
L medida que forem aumentando as levas de imigrantes – todos eles dotados
de uma organização mais flexível – e a civilização for avançando pela região
L amazônica. Entretanto, como as diferentes raças se misturam facilmente,
tornando-se muitas vezes ilustres cidadãos brasileiros os descendentes de
brancos e negros, há poucos motivos para lamentar o destino dessa raça.
A (BATES, 1979, p.40)

Assim, Bates, mesmo apresentando a sua visão sobre a Amazônia, como
um lugar aprazível, não deixa de fazer uma previsão, felizmente equivocada, de
que, com o avanço da civilização, o indígena estava fadado à extinção.
• Além do rio, Euclides da Cunha dedica um capítulo de sua obra ao clima
da Amazônia, adjetivando-o como “caluniado” e atribuindo-lhe a função “seletiva”
58
para os que ali ficaram, pois “(...) reconheçamos naquele clima uma função
• superior. (...) Eliminou e elimina os incapazes, (...) (...) prepara as paragens novas
para os fortes, para os perseverantes e para os bons.” (CUNHA, 1967, p. 56). Nessa
“seleção natural”, o povoamento do Acre merece destaque, pois, com a remessa de
tantos desterrados de outras regiões do país para terras acreanas, esse território foi
designado como o lugar para essas pessoas morrerem, em virtude da insalubridade
2 do local. O clima, dessa forma, contribuiu para fortalecer a imagem mórbida da
paisagem, onde só os fortes sobreviveram, por meio de uma “ “seleção telúrica”,
0 de que nos fala Kirchoff: uma sorte de magistratura natural, ou revista severa
exercida pela natureza nos indivíduos que a procuram, para só conceder o direito
1 da existência aos que se lhe afeiçoam” (CUNHA, 1967, p. 50).
Com isso, o autor também evidencia sua visão republicana a respeito
das terras amazônicas, percebendo que ali a civilização ainda não chegou, mas
8
é necessária. Euclides salienta que “a terra é, naturalmente, desgraciosa e triste,
porque é nova. Está em ser. Faltam-lhe à vestimenta de matas os recortes artísticos
do trabalho.” (CUNHA, 1967, p. 44). Então, faltava-lhe a ação do homem para as
mudanças na terra. Colonizar a Amazônia era amansar o grande deserto. (CUNHA,
1967, p. 44). Porém, nesse processo de colonização, não há uma imposição
tão evidente do colonizador. A terra é quem dita as regras, já que “o primitivo
explorador vai, afinal, ajustando-se ao solo, sôbre o qual pisou durante tanto tempo
indiferente.” (CUNHA, 1967, p. 53). Nesse sentido, somente a partir da presença do
homem (Estado), a história do lugar passaria a ser escrita.
O livro trata de outras questões, como o seringueiro e o seu modo de vida,
fazendo, além da descrição objetiva do espaço insalubre e de uma análise subjetiva
sobre as sensações desse homem em relação ao lugar e em relação a si mesmo,
uma denúncia sobre as condições de trabalho do seringueiro. Ao fazer uma análise
da conta de um seringueiro que saiu do estado do Ceará, o autor infere que:
Dela ressalta impressionadoramente a urgência de medidas que salvem a
sociedade obscura e abandonada: uma lei do trabalho que nobilite o esfôrço
J do homem; uma justiça austera que lhe cerceie os desmandos; uma forma
qualquer do homestead que o consorcie definitivamente à terra (CUNHA,
1967, p. 27).
A
O capítulo “Judas Ahsverus”, por sua vez, faz o debate no campo

psicológico sobre a degradação do homem na Amazônia, ao relatar o evento do
L
Sábado de Aleluia, quando realidade e representação se fundem, numa tentativa de
expurgo das tristezas do seringueiro em relação à terra. O episódio “é um doloroso
L triunfo. O sertanejo esculpiu o maldito à sua imagem. Vinga-se de si mesmo: pune-
se, afinal, da ambição maldita que o levou àquela terra; (...)” (CUNHA, 1967, p.76)
A Em suma, À Margem da História nos apresenta uma Amazônia vista e
descrita pelo olhar estrangeiro, do que vem de fora e observa que ali há a ausência
de civilização, que tem necessidade do ordenamento estatal. Por outro lado, traz
uma narrativa envolvente, ancorada em uma estilística que ratifica, de vez, o espaço
amazônico estereotipado: o distante, o exótico, o intocável, o selvagem.
• Leandro Tocantins, por sua vez, no livro O rio comanda a vida: uma
59 interpretação da Amazônia, faz uma descrição poética, romântica e fantástica do
mundo amazônico, mas não deixando de difundir/reproduzir o discurso de muitos

autores que se empenharam em narrar sobre a Hileia brasileira. Assim, expressões
como “deserto de clorofila”, “verdes solidões”, “mundo à parte”, “não civilizado” são
utilizadas para significar esse espaço do Brasil, distante de tudo, já que o ponto de
referência é onde há “civilização”. Por outro lado, é válido ressaltar que o autor é
conhecedor dessas paragens - já que nasceu em Belém do Pará e, aos nove meses,
2
veio para o Acre, lugar onde seus pais administraram seringais -, e lança um olhar
a partir de seu tempo. Porém, mesmo escrevendo de dentro, o olhar é conduzido
0 pelas matrizes dos olhares estrangeiros.
Na obra de Tocantins, a natureza da Amazônia é sempre destacada, a fim
1 de demonstrar que, por toda a sua opulência, vários viajantes se aventuraram em
busca de desvendar os mistérios que esse mundo maravilhoso guardava. Mas as
8 expedições relatadas, a exemplo dos relatos de Euclides da Cunha, apresentaram
situações bastante adversas daquelas imaginadas por quem trilhou os caminhos
da selva. O autor esclarece que “as mesmas dificuldades de Pizarro sofreu Orellana
em sua jornada: encontro hostil com índios, padecimentos de fome e de cansaço”
(TOCANTINS, 1973, p. 27).
Além disso, esse universo, composto por floresta, animais e água, constitui-
se em um criatório ideal de fantasias, lendas e mistérios. Todo o cenário amazônico
convida para o fantástico, o maravilhoso, “o véu mitológico e supersticioso que
paira no subconsciente do homem” (TOCANTINS, 1973, p. 50).
Pois bem, essa herança espalhada por todos os quadrantes do globo, exal-
tada e colorida pela imaginação de quantos povos a usufruíram, teve na
Amazônia o cenário mais propício aos seus significados inescrutáveis. Os
bichos, as águas, as matas, foram o melhor agente adaptativo, bem ao calor
da fantasia, à idéia do mistério, ao clima indefinido dos sortilégios (TOCAN-
TINS, 1973, p. 50)

Leandro Tocantins aborda vários temas nesse livro, mas cada relato, cada
descrição particulariza o modo amazônico de se viver. O folclore, as brincadeiras,
J a culinária, a religiosidade são espectros de um mundo bastante singular,
desconhecido, inexplorado. Assim, seja qual for o foco em uma narrativa sobre a
Amazônia, o que vem sempre à tona é o diferente, o que ainda não se viu, o que
A
está fora do mundo civilizado e urbanizado, acentuando que a descaracterização
dessa região é o que, de fato, a caracteriza. As adjetivações recorrentes, portanto,
L produziram/produzem uma imagem protegida pelos vidros blindados do simbólico
narrativo.
L O rio, obviamente, também é destacado na narrativa de Tocantins, que vai
descrevendo as singularidades dos cursos d’água que predominam na Amazônia.
A Os rios amazônicos são como fios condutores. Condutores de vida, de sonhos, de
morte, de renascimentos. O autor atribui ao curso de água um poder ímpar sobre
a dinâmica da vida na região. Poeticamente, Tocantins descreve o leito caudaloso,
como:
Veias do sangue da planície, caminho natural dos descobridores, farnel do
• pobre e do rico, determinante das temperaturas e dos fenômenos atmosféri-
cos, amados, odiados, louvados, amaldiçoados, os rios são a fonte perene do
60 progresso, pois sem eles o vale se estiolaria no vazio inexpressivo dos deser-
• tos. Esses oásis fabulosos tornaram possível a conquista da terra e assegu-
ram a presença humana, embelezam a paisagem, fazem girar a civilização
– comandam a vida no anfiteatro amazônico (TOCANTINS, 1973, p. 281).

O rio é o elemento que traz e que leva, em um movimento constante,


pulsante, determinante. O fenômeno das cheias e das baixas do rio conduz a
2 vida dos que estão às suas margens, modificando os seus hábitos, suas vidas.
Porém, as transformações não vêm como ondas avassaladoras, mas em banzeiros
0 intermitentes, bem de acordo com a monotonia do lugar. Tocantins ressalta a
imponência das vias fluviais diante das limitações humanas. A natureza toma a
frente e conduz...
1
Porque o homem, diante do cenário grande demais pra a sua pequenez, sen-
te-se impotente, inapto para transformar as energias atuantes no meio em
8 proveito próprio, e lhe avassala o espírito a angústia das distâncias tirânicas
que os rios ainda mais aumentam no sinuoso deflúvio. E se torna rendido,
senão à terra, mas fatalmente ao rio, poderoso gerador de fenômenos sociais
(TOCANTINS, 1973, p. 278).

Com isso, o livro permite entender o que representa a Amazônia, mas


não o que ela é efetivamente. São metáforas e hipérboles que se sobrepõem em
uma narrativa que se instituiu para apresentar a região ao mundo civilizado.
São interpretações da Amazônia contaminadas por outras interpretações, e que,
provavelmente, conduzirão outros olhares.
Por meio desse discurso, tecido por Euclides da Cunha, Leandro Tocantins
e tantos outros escritores e viajantes, constituiu-se a identidade amazônica, cujo
foco não é o homem, mas a natureza grandiosa e determinante. Assim, todos os
adjetivos que alcunham o amazônida advêm do domínio da natureza sobre ele, o
“homem errante, sedentário, gentes que ali vagam” (CUNHA, 1967, p. 23).
Portanto, a tela amazônica foi pintada e exposta ao mundo, a partir
dos vários olhares daqueles que se dispuseram a “conhecer” esse lugar insólito,
J grandioso e misterioso. Desse modo, as pessoas compraram essa imagem e, então,
cristalizou-se um estereótipo da hileia brasileira. Porém, mesmo sendo um retrato
A com várias nuances de conceitos pré-estabelecidos, as obras de Euclides da Cunha
– À margem da história – e de Leandro Tocantins – O rio comanda a vida: uma
L interpretação da Amazônia – configuram uma bela apresentação do espaço
amazônico, pela habilidade ímpar de conduzirem suas tintas pelo detalhamento e

pela poesia.
L
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 2’ ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
A
BATES, Henry W. Um naturalista no rio Amazonas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1979.
CUNHA, Euclides da.À Margem da História. 1ª ed. Lello Brasileira S.A.1967.
TOCANTINS, Leandro. O rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia. Rio de
Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1973.
• WALLACE, A. R. Viagens pelos rios Amazonas e Negro. Belo Horizonte: Itatiaia, 1979.

61

2

0

1

8

J

A

L MARCADOS PARA VIVER: INDÍGENAS CONTEMPORÂNEOS NA
CENA NACIONAL
L
Ana Lígia Leite e Aguiar (UFBA)
A RESUMO:Propõe-se, neste artigo, um deslizamento por algumas cenas que nos
provocam a rever os termos das genealogias do Outro. Achugar mostra as diversas
possibilidades de começo, mapeando: Colombo, Cabral, Shakespeare, Montaigne,
Renan. Ou: Las Casas, José Martí, Che Guevara, Frantz Fanon, Guamán Poma
de Ayala. Ou Rodó e Fernández Retamar. (Cf. Planetas sem boca, p. 31). Neste
• caso específico, o Outro é o outro índio. O primeiro disparador é a publicação das
palavras de Davi Kopenawa Yanomami na obra A queda do céu. Junto a outros
62
escritores, como Daniel Munduruku, Marcelino Freire, Verônica Sigger, que
• exercem uma escrita literária crítica sobre o presente, aliando-os ao pensamento
crítico-teórico de Ailton Krenak, Patricio Guzmán, Claudia Andujar, Cildo Meireles,
Vincent Carelli, apresenta-se como diferentes campos da cultura utilizam suas
vozes para fabricar desobediências epistêmicas no que concerne às identidades dos
povos originários do Brasil.
2 Palavras-chave: Crítica cultural. Indígenas. Desobediência epistêmica. Brasil.

Afinal, sou um letrado branco, classe média,
0 marginalmente ocidental, - mas, que, no entanto,
compartilha a experiência da ferida ou da humilhação ou do desprezo.
1 Hugo Achugar. Planetas sem boca, p .14.

A literatura pode ser percebida como uma infindável pesquisa de campo,


8 e o nosso trabalho - nessas idas e vindas ao campo - consistiria em ler e desler,
revisitar imagens e locais que habitam nosso imaginário, conhecer diferentes

espaços, e conversar, observar,escutar. Modificar. Observação participante. Isso
quando se pretende acentuar os efeitos da descontinuidade da história, reservando-
nos ao direito de sermos”estranhos professores de literatura”, como Gumbrecht
se autodenominou em uma certa entrevista: “sou um professor de Literatura
estranho. Gosto muito de Literatura, mas fico muito mais fascinado com História e
Filosofia. Percebo que alguma coisa mudou, é difícil explicar” (GUMBRECHT, 2012,
p. 54).1 Gostamos de literatura, mas tanto quanto gostamos de história, de filosofia,
de biografias, de artes visuais (imagens, fotografias, cinema, pintura, design,
arquitetura, etc) e de outros campos artísticos (artes cênicas, arte conceitual, arte
têxtil). Aqui, buscamos estabelecer um diálogo cada vez mais próximo com outros
orbes, como naquele paralelo que o cineasta chileno Patricio Guzmán traçou entre
os astrônomos, o deserto do Atacama e a ditadura no Chile em sua obra fílmica
Nostalgia da luz(2010). Viver em estado de busca e de escavação é compreender
J que a ideia de uma literatura sem espaço definido significa que ela não somente
pode estar em qualquer lugar, travestida, quanto a ideia de que ela é o próprio
assentamento de outros espaços sociais.
A
Em busca de atividades que eviscerem alguns marcos históricos
L permanentes como problemas, caminhar pela paisagem nacional, como quem
caminha em uma pintura de Adriana Varejão, em que a ferida continua sempre

aberta, faz-se não só um caminho indispensável, como deseja refletir sobre a
L natureza dos problemas que agitam o país neste momento. Como se tratam de
problemas de toda ordem, mais ainda se torna necessária a presença de estranhos
A professores em todas as áreas.
Proponho, então, um deslizamento por algumas cenas que nos provocam
a rever os termos das genealogias do Outro.2 Neste caso específico, o Outro é o
outro índio.
O primeiro disparador é a publicação das palavras de Davi Kopenawa
• Yanomami na obra A queda do céu. [Um adendo: usarei o termo “homem branco”,
63 aqui, nunca como cor da pele ou gênero, mas, sempre, como posição epistêmica].
• Residindo na dialética entre o aparentemente simples daquilo que o homem branco/
homem das mercadorias deveria fazer para rever sua conduta (com os povos
originários, com o planeta, consigo mesmos), ao mesmo tempo em que Kopenawa
apresenta a complexidade da sua cosmogonia, o xamanismo, suas designações e
relação com o universo, antevê-se a indisponibilidade de escuta (quase geral) para
2 tal discurso.
Não sou um ancião e ainda sei pouco. Entretanto, para que minhas palavras
sejam ouvidas longe da floresta, fiz com que fossem desenhadas na língua
0 dos brancos. talvez assim eles afinal as entendam, e, depois deles seus fi-
lhos, e mais tarde ainda, os filhos de seus filhos. Desse modo, suas ideias a
1 nosso respeito deixarão de ser tão sombrias e distorcidas e talvez até percam
a vontade de nos destruir.(KOPENAWA, 2015, p.76)

8 No filme Martírio(2017), de Vincent Carelli3 - cuja montagem nos insere em
um panorama simbólico dos dramas indígenas atuais coma carga “ancestral” que

1  É digno de nota o pensamento que Achugar retoma de Eneida Maria de Souza, em uma epígrafe
que abre o seu Planetas sem boca: “Ressalte-se, ainda, a condição fronteiriça de todo intelectual -
embora em alguns esse traço seja mais forte - o que confirma a indeterminação dos saberes atuais,
considerando-se que fazer crítica, hoje, implica permutar, transitar ou viajar por espaços incertos
e, muitas vezes, efêmeros.” (SOUZA apud ACHUGAR, 2006, p. 9)
2  Inspirada em Achugar, que mostra as diversas possibilidades de começo, mapeando: Colombo,
Cabral, Shakespeare, Montaigne, Renan. Ou: Las Casas, José Martí, Che Guevara, Frantz Fanon,
Guamán Poma de Ayala. Ou Rodó e Fernández Retamar(ACHUGAR, 2006, p. 31).
3  Desde 1986,Vicent Carelli dirige o projeto Vídeo nas Aldeias.
500 anos de Brasil lhes fornece -, suspeita-se que as retomadas, as publicações e
suas divulgações, o vídeo nas aldeias, enfim, todos esses processos muito positivos
não caminhem na mesma velocidade que a legislação e as canetadas da cultura do
homem branco, a devastação da terra pelo agronegócio, pelas mineradoras e pelas
usinas. Como teria dito Eduardo Viveiros de Castro prefaciando A queda do céu, a
própria comunidade científico-antropológica talvez leve anos para compreender o
abalo sísmico que a narrativa de Davi Kopenawa promove ao campo. Trata-se de
J “um acontecimento político e espiritual” (VIVEIROS DE CASTRO apud KOPENAWA,
2015, p. 15).
A Nessa mesma linha, Martírio, como um documento fílmico sobre os povos
indígenas, recorre ao arquivo numa abjeta demonstração de como se desaparecer
L com o Outro.O genocídio brasileiro permanece, atualizando a imagem crítica
proposta por Adriana Varejão, na medida em que silvícolas e descendentes de

negros revivem a constante violência imposta a sua condição, não em fins do século
L XIX, mas no começo do século XXI. O legado do jogo da democracia racial nos envia
um convite capcioso à reflexão: para onde terá ido aquele sujeito híbrido embebido
A depositividade, construído no século passado?
Digna de nota é a breve reportagem feita pela BBC, de que os Yanomami
fizeram um ritual para a saída de Romero Jucá, quando este fora nomeado ministro
do Planejamento do governo interino de Michel Temer.45Jucá, presidente da Funai
de 1986-1988, governador de Roraima em 1989 designado por José Sarney, e visto
• hoje como o “maior inimigo dos povos indígenas do Brasil”, é a quem se deve a
64 expansão sem precedentes do garimpo na região dos Yanomami. 1988 foi a época
em que a Constituinte votava os direitos indígenas e também quando nos surgiu

diante de várias câmeras a imagem potente do jovem Ailton Krenak, trajando
indumentária do homem branco e fazendo uso da pintura de guerra/ luto6 para
denunciar que a mesma constituinte que demarcava os direitos indígenas, coabitava
com um executivo (formado basicamente por Romero Jucá e Sarney) que queria
definir quem era índio no Brasil. Povos indígenas que já haviam se “miscigenado”
2 eram vistos como aculturados, logo, não eram índios. Krenak denuncia essa lógica
imposta pelas políticas que regem as vidas, construtoras de um lugar no limbo: o
0 marco temporal do que se entende por índio no Brasil deseja o purismo e condena
o hibridismo, e nem um nem outro são assimilados como partes de uma categoria
1 nacional.

8

4  Confira aqui: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-36375984
5 O parlamentar foi ministro de Lula, líder (no senado) dos governos de Fernando Henrique
Cardoso, Lula e Dilma, ocupou cargos nos governos de Sarney e de Collor. Disponível em: http://
opalcoeomundo.blogspot.com.br/2016/05/desarquivando-o-brasil-cxxiv-notas.html
6 Krenak assim respondeu, via Facebook, em 25 de janeiro de 2018: “[...] agradeço por buscar
informar-se além das manchetes de jornais, pois graxa de luto, é invenção de jornalista. Usei pintura
de jenipapo-luto, Rin’tá= pintura, manifesto; em um gesto de protesto público diante da ameaça
contra direitos em debate na Constituinte”.
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Figura 1 - Índios Xavantes e Romero Jucá

Um fotografia que, certamente, deveria aparecer em todo livro de história


do Brasil, mostra índios Xavantes em reunião com um presidente da Funai que

nunca havia pisado em uma aldeia, Romero Jucá, em 27 de agosto de 1987, data de
65 publicação da foto.7Ornamentados com a gravata emblema dos Xavantes usada em
• cerimoniais (danhorebdzu-a), altivamente focados, um índio - Alexandre Tsereptse
- tem uma borduna (tacape) levantada, de onde duas mãos - sendo uma a de
Romero Jucá e a outra a de um Xavante - fazem sinal contrário ou de interrupção.
Um círculo emerge desta imagem: as reivindicações dos nativos - e a borduna,
neste contexto, é uma metonímia - são observadas pelos braços cruzados de um
2 mestiçode paletó branco e crachá, gesto que se desdobra na negação de Jucá e
no histórico de suas assinaturas, e a caneta na mão de Jucá é a prova disso. E
o gravador sobre a mesa - metáfora de um plano onde se jogam as liberdades
0
-atesta a materialidade do desencontro, uma vez mais, tal como a câmera que
captura esse instante, reiterando o dispositivo que testemunha e documenta essa
1 não alteração da luta indígena, ao mesmo tempo em que abala a soberania do
discurso do colono por uma fotografia que teima em não desaparecer. Os mais
8 de 500 anos de resistência indígena (e a prova deste fato é a própria existência
desses povos) são contrapostosa essa imagem de 1987, não viralizada na internet
30 anos depois, mas que, tal como um povo, se recusa a desaparecer, e cá está
ela, desrecalcando o gesto temeroso-intolerante de uma sucessão de governose de
genealogias familiares que aprofundam a ignorância acerca da história indígena e
recuperam a simbologia do índio inimigo-selvagem, como boa parte dos textos e da
iconografia - principalmente quinhentista e seiscentista - se esmerou em produzir.8

7  Devo e agradeço muito a Bernard Belisário, que foi quem me apresentou essa imagem.
8  Inacreditável é a sistematização desses dados na entrevista dada por Eduardo Viveiros de Castro,
quando dos conflitos na reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, em 2008. Disponível em: http://
Em agosto de 1987 e outubro do mesmo ano, o presidente da Funai,
Jucá, autorizou desmatamento em território Yanomami.
As palavras de Kopenawa, feito esse rápido contexto, operam entre a
elegância altiva do conhecimento que ele tem de sua/nossa história e a denúncia.
A queda do céu, que tenta dizer o que alguns povos têm feito para sustentar o
céu antes que ele desabe sobre nossas cabeças,pretende cooptar a comunidade
de leitores de “peles de papel” para rever o destino comum.9 O livro de Kopenawa,
J o gravadordo índio e deputado Juruna na mesa de Romero Jucá,10 a imagem que
captura esse interregno: todos são marcados como sobrevivências. Como também
A na série Marcados, as fotografias que Claudia Andujar fez dos Yanomamisentre
1981 e 1983.
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66
Figura 2 - Yanomamis fotografados por Claudia Andujar

2

0

1 Figura 3 - Yanomamis fotografados por Claudia Andujar

Com um grupo de salvação composto por uma fotógrafa e dois médicos, Claudia
8 procurou dar atendimento aos indígenas vítimas das “consequências desastrosas do con-
tato” com o branco (SENRA apud ANDUJAR, 2009, p. 127)durante a criação da Perimetral
Norte, uma estrada que faria parte do plano de integração nacional elaborado pela dita-

alias.estadao.com.br/noticias/geral,nao-podemos-infligir-uma-segunda-derrota-a-eles,159735
9  O espetáculo memorável da Companhia de Dança Lia Rodrigues fez a tentativa de operar nesse
limiar em Para que o céu não caia (2017).
10  “Sempre munido de um gravador, que se tornou sua marca, registrava suas conversas com
políticos e funcionários do alto escalão do governo.” Saiba mais sobre a trajetória do deputado
Juruna aqui: http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/juruna-unico-indio-eleito-no-
congresso-nacional-gravava-promessas-de-politicos-21564758#ixzz4zUvdldol
dura, ligando o Amapá à Colômbia, e onde jazidas minerais foram detectadas na região.11
Rotineiramente, o término da rodovia é reivindicado nas mídias nacionais por jornalistas
e autoridades com alto grau de desinformação. Viveiros de Castro sinaliza para a ideia do
bem comum, espaço comum que está em questão nesse jogo de colonizações remixadas.
As seis famílias que invadem o território indígena no norte do país, o fazem na condição
de grileiros, de futuros latifundiários. Mas quando se demarcam terras para os povos
indígenas, estas continuam sendo da União, os índios fazem usufruto, mas ela está lá,
J como uma flutuação de um bem comum, um espaço suspenso para uma outra lógica da
utilidade.
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67
• Figura 4 - Foto de Bruce Albert dos Yanomami na Perimetral Norte

Em 1977, Claudia Andujar e outros grupos que davam assistência aos


Yanomami foram proibidos “de ingressar em terra indígena pelo Conselho de
Segurança Nacional” (Albert, p. 683, nota 13). Com as epidemias em pleno vapor,
2 o governo expõe os Yanomami ao contato (causado pela construção da rodovia) e
retira a ajuda dos que tentavam reparar os efeitos do contato.
0 A “epidemia do ouro” em terras Yanomami, como Kopenawa define
nosso tempo, carrega consigo a epidemia de sarampo, de varíola, de gripes, a
1 prostituição, os trapos ou roupas usadas e devidamente infectadas por outras
populações, a contaminação por mercúrio do garimpo. As imagens produzidas por
Andujar buscavam identificar esses habitantes da floresta e “coletar dados para a
8 futura demarcação de seu território. Como os Yanomami não respondem a nome
próprio, foi adotado o método consagrado desde o século XIX para a identificação
dos chamados povos nativos: uma fotografia com um número preso ao corpo”
(SENRAapud ANDUJAR, 2009, p. 127). Neste caso específico, Stella Senra, ao
comentar as imagens de Claudia Andujar, chama a atenção sobre o fato de os
Yanomami terem sido marcados para viver e não para morrer.12 Também é percebida
11  Mais sobre o assunto aqui: https://pib.socioambiental.org/pt/povo/yanomami/575
12  Significativo, para este trabalho, lembrar, em diferença, das marcações que recebiam os Judeus
(um número, uma estrela) e as marcações feitas a ferro e foto nos corpos dos escravizados, no Brasil.
As marcações feitas por Andujar, usando um método de uma mentalidade violenta, o subverte para
a alteração que se dá entre a fotografia que começa antropológica e termina em
retrato, potencializando marcas de subjetivação, inscritas principalmente pelos
corpos das crianças, valorizando o detalhe, conseguindo enquadramentos mais
flexíveis, ora mostrando apenas o rosto, ora o corpo inteiro.
É por isso que a pose se torna um dos elementos mais significativos de Mar-
cados.[...] o trabalho de Claudia tem [...] o dom de produzir o trauma: pois
se o retrato supõe um rosto - essa invenção do branco -, longe de restituir
J aos Yanomami a “humanidade” subtraída pelo contato, é o fato de esses
índios “acenderem” ao retrato, ou seja, de terem “adquirido” um rosto, que
constitui uma das mais sutis e violentas manifestações do contato. (SENRA
A apud ANDUJAR, 2009, p. 135)
Marcados reproduz o drama de esses povos serem realocados diariamente
L como inimigos de um projeto desenvolvimentista da nação. Os arquivos, sendo
atualizados por novos dados, mantêm o olhar da coisificação. No conto Yamami, de
L Marcelino Freire, temos a conversa de um estrangeiro com o seu interlocutor, que
procura saber do viajante suas impressões sobre o norte do país:
A Você chega, estanca seu olhar em volta, seu olhar em cada buraco, estopa,
saco. E vê no mercado. Um extenso mercado no centro da cidade. A puta
que você vê tem onze anos. Ou menos. Parece. Não cresce. Vive seminua,
sujinha e deliciosa, esperando a lotação da balsa. Há tucanos para vender.

E corpos.

• Vivi Yamami lá.


68 Indiazinha típica de uns 13 anos. As unhas pintadas, descalçadas. Tintas
• extintas na cara. Coisinha de árvore. A pele vermelha e ardente. Virei um
canibal, de repente. Não é tão deliciosa a carne de um tamanduá-bandeira.

[...] Virei amante de Yamami, ao ar livre. Dei dinheiro para Yamami, joias,
espelhos, colares. Fiz Yamami vestir calcinhas coloridas. Minha menina.[...]
Yamami não tem nada a ver com o Brasil. O Brasil é São Paulo, uma cidade
longe, parecida com esse continente de gelo. (FREIRE, 2005, p. 106-109)
2
As abordagens ácidas e verossímeis feitas ao Brasil são cenas que convivem
0 com o imaginário sobre a nação (não somente com a nossa, mas, especificamente
com a nossa neste caso): a prostituição infantil, comer a carne de uma espécie em
1 extinção,a venda de um tucano. Sobre o mundo das possibilidades infinitas que
recaem sobre os nativos no pós-contato, uma nota no artigo de Stella Senra sobre
as fotos de Andujar chama a atenção pela semelhança narrada pelo estrangeiro no
8 conto de Marcelino Freire:
Um anúncio publicado na seção de animais dos classificados da Folha de
Boa Vista diz respeito ao destino cruel que o mundo branco pode dar a es-
sas crianças. “Vendem-se filhotes de Yanomami com um ano e seis meses.
R$1.000,00” [...], está no jornal. O responsável pelo anúncio, Paulo César
[Cavalcanti Lima], acusado de ato discriminatório contra a população indí-
gena e de incitação à segregação racial, foi condenado a dois anos de prisão,
substituídos por sanções restritivas de direito.Folha de Boa Vista: Venda de

a defesa e mapeamento do viver e não do morrer.


Yanomami. Juiz condena anunciante por preconceito, 31/ 03/ 2005.(SEN-
RA apud ANDUJAR, 2009, p. 137)

Relatada pelo réu como uma “mera brincadeira, algo que está arraigado
na cultura brasileira”,13 (palavras dele e de onde se entende que nenhum Yanomami
estaria à venda, de fato. Será?) visualizamos como esse tipo de imaginário nacional
predomina. Estaríamos impregnados daquilo que Benjamin Moser chamou de
autoimperialismo, em seu livro homônimo? O Brasil não se cansa de se autocolonizar
J e, portanto, a subtração do índio persiste como efeito de dominação? Em Meu avô
Apolinário, o escritor Daniel Munduruku sintomatiza os efeitos dessa diminuição,
A em formato memorialístico, fabricando uma espécie de romance de formação: como
me tornei índio em um país que não se cansa de odiá-los?
L Nós sempre moramos na periferia de Belém. Nossa maloca não era nossa e
muitas vezes tivemos que mudar de lugar, de casa e de bairro.[...] Fui ven-
dedor de doces, paçocas, sacos de feira, amendoim [...]. Fazia tudo isso com
L alegria. [...] Só não gostava de uma coisa: que me chamassem de índio. Não.
Tudo, menos isso! Para meu desespero, nasci com cara de índio, cabelo de
índio [...], tamanho de índio. [...] E por que eu não gostava que me chamas-
A sem de índio? Por causa das ideias e imagens que essa palavra trazia. Cha-
mar alguém de índio era classificá-lo como atrasado, selvagem, preguiçoso.
(MUNDURUKU, 2001, p. 10)

Sempre trabalhador, como o escritor mesmo atesta, é no contato com o


• avô que essa imagem se ressignifica. Mas essa memória imagética que, de alguma
forma, se transfigura ao longo dos séculos, grosso modo falando, não costuma
69
alcançar espaços simbólicos positivos, por ser significativa a falta de familiaridade
• que temos com a nossa própria história. No caso do negro, o professor Domício
Proença Filho, em seu artigo “A trajetória do negro na literatura brasileira”, mapeia
os adjetivos atrelados a esse personagem: vingativo, infantil, serviçal, subalterno,
demônio, secundário, escravo nobre (branqueado), resignado, pervertido, exilado
de sua cultura. Essa imageria poderia servir para o caso dos índios, que aparecem
2 na literatura brasileira com alguns desses indícios perturbadores e a repercussão
dessas imagens é recuperada a partir da escuta que ecoa no senso comum, como
0 quando a escritora Veronica Stiggerprensa em Delírios de damasco a fala que
recai em um desses estereótipos perigosos: “Coitados dos índios! Viviam em paz.
Chegaram os seres humanos e mataram todos” (STIGGER, 2012, p. 45). Por onde
1 começar a aula sobre essa retificação necessária? Pela humanidade dos índios,
pelo seu perspectivismo, pela desumanidade dos brancos genocidas ou pela
8 desmistificação da dizimação de um povo? Morre uma prática - como é o caso da
antropofagia tupinambá (e nascem tantas outras) - mas morre um povo? Ailton
Krenak nos atenta para os povos originários do Japão em seu artigo “O eterno
retorno do encontro”:

No norte do Japão tem uma lha que se chama Hokaido, lá vive o povo Ainu,
tem um porto nessa ilha que se chama Nibutani, é uma palavra ainda que
dá nome para esse lugar, assim como aquela montanha bonita lá em Tó-
quio, no Japão, o monte Fuji, também reporta a uma história muito antiga

13  Disponível também em: https://pib.socioambiental.org/es/noticias?id=14970


do povo Ainu, uma história muito bonita, de uma mãe que ficou sentada
esperando o filho que foi para a guerra e que não retornava, passou o in-
verno, passaram as estações do ano e ela ficou cantando, esperando o filho
voltar e o filho demorava demais, então ela chorava de saudade do filho;
as lágrimas dela foram formando aquela montanha e o lago, e toda aquela
paisagem linda é dessa mãe que ficou com saudade do filho que saiu para
a guerra e que não voltou, então ficou chorando por ele. Os Ainu estão lá
em Hokaido há mais ou menos uns oitocentos anos, talvez mais um pouco,
J porque eles foram tendo que subir lá para cima, que é o lugar mais gelado,
liberando aqueles territórios cá de baixo para a formação desses povos que
vieram subindo. O Japão agora no final do século XX é uma das nações
A mais tecnológicas, digamos assim, do mundo, mas eles não puderam negar
a existência dos Ainu, eles negaram isso até agora. Na década de 70 alguns
L Ainu conseguiram chegar à comissão da ONU que trata desses assuntos
e apresentaram uma questão para o governo do Japão: querem reconhe-
cimento e respeito pela sua identidade e cultura. Quinhentos anos não é
L nada. (KRENAK, 1999, p.31)

Acerca do Brasil, Doris Sommer sintetizaria: “A questão é saber por
A que tupi constitui um resto tão teimoso dessa subtração. Por que uma identidade
indígena sobrevive em uma cultura que continua a exterminar os índios de carne
e osso?”(SOMMER, 2004, p. 166). Como provocar aquilo que Barthes chamava de
uma idiorritmia, um viver junto em que os corações possam bater não iguais, mas
sintonizados em uma frequência em que se respeitem? Como aproximar homens
• do pensamento da mercadoria com outros povos de outras tradições? Como ir à
70 campo, como sugeria Sally Price, em sua obra Arte primitiva em centros civilizados,
em busca de uma dimensão estética da vida?

Como no pacto etnográfico firmado entre Davi Kopenawa e Bruce Albert,
como fazer dois mundos aparecerem e conviverem? Pois, se tem sido possível esse
devir índio no indígena que se insere na retomada, tampouco me parece possível
essa esse devir índio por parte do branco. Como tirar proveito desse encontro entre
2 dois mundos distintos? Um dado que me parece extremamente relevante é que
alguns indígenas estejam fazendo grandes investidas na literatura infantil e juvenil

(Munduruku, Eliane Potiguara, Olívio Jekupé, Graça Graúna, Lia Minapoty).14 Não
0 nos iludamos: a história está lá, para adultos e crianças, para além do rótulo.
Mas, profanando o gesto dos colonizadores quinhentistas, em que a Companhia
1 de Jesus decide atuar com as crianças indígenas em suas missões de catequese e
não com adultos - pois nestes últimos o “mau-costume” era muito mais difícil de se
8 retirar uma vez que eram vistos pelo estrangeiro como inconstantes - , escritores
indígenas fazem a mesma aposta em um projeto de intenções que pretende capturar
- quem sabe - os pequenos, as novas gerações, uma nova comunidade de leitores,os
olhares que antropofagizam tudo, capazes de ver constelações nos lugares mais
improváveis, já que os preconceitos virão só a posteriori. Só assim para o sujeito
híbrido partir para outras cosmogonias, outros pontos de luz?
Ao que tudo indica, mas é muito cedo para afirmar, e olhando daqui,
de um lugar não-índio mas com grande desejo se pensar e repensar juntos esse
14  Respectivamente: O Karaíba; Metade cara, metade máscara; A mulher que virou Urutau;Criaturas
de Nanderu; Com a noite veio o sono.
campo, me parece que os nativos continuam apostando na alteridade, é o que
sinaliza a obra de Kopenawa, o vídeo nas aldeias, esses autores sociais que buscam
a identidade e o trânsito. É certo: aprendeu-se muito com os efeitos genocidas do
primeiro encontro. Mas isso não significa, é o que aprendo com os índios e com
as palavras de Kopenawa, especificamente, que se deva desistir do outro. Afinal,
como nos mostra a história, esse momento do país é um momento em que devemos
reconhecer quais são os tópicos da nossa luta e esbravejar por união. Não deixa de
J ser uma aposta, por parte dos indígenas, uma aposta mais uma vez na alteridade,
e que ela resulte em um outro hibridismo.
A Referências
ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: Escritos efêmeros sobre arte, cultura e literatura.
L Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.
BARTHES, Roland. Como viver junto? São Paulo: Martins Fontes, 2013.
L CARELLI, Vincent. É no trato com os índios que o Brasil se revela. Sociedade. 2017.
Carta Capital. 04 mai. 2017. Entrevista concedida a Maria Rita Kehl.
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/e-no-trato-com-os-indios-
A -que-o-brasil-se-revela-diz-cineasta. Acesso em: 24 fev. 2018.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Excesso de passado. 2011. Revista de História. 01 nov. 2011.
Entrevista concedida a Bruno Garcia.
FREIRE, Marcelino. Contos negreiros. Rio de Janeiro: Reccord, 2005.

• JORNAL DO BRASIL. 1987. Xavantes pedem a cabeça de Romero Jucá Filho. 26 de


agosto de 1987, p.5.
71
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. São
• Paulo: Companhia das Letras, 2015.
KRENAK, Ailton. O eterno retorno do encontro. In: NOVAES, Adauto (Org.). A outra mar-
gem do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
KRENAK, Ailton. Índio cidadão? Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=kWMHiwdbM_Q. Acesso em: 25 de nov. 2017.
2 MOSER, Benjamin. Autoimperialismo: Três ensaios sobre o Brasil. São Paulo: Crítica,
2016.
0 MUNDURUKU, Daniel. Meu avô Apolinário. São Paulo: Studio Nobel, 2001.
PRICE, Sally. Arte primitiva em centros civilizados. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2000.
1 PROENÇA FILHO, Domício. A trajetória do negro na literatura brasileira. In: PEREIRA,
Edimilson de Almeida (Org.). Um tigre na floresta de signos: Estudos sobre poesia e de-
mandas sociais no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2010.
8
retportagem BBChttp://www.bbc.com/portuguese/brasil-36375984
SENRA, Stella. O último círculo. In: ANDUJAR, Claudia. Marcados. São Paulo: Cosac Nai-
fy, 2009.
STIGGER, Veronica. Delírios de damasco. São Paulo: Cultura e barbárie, 2012.
SOMMER, Doris. Ficções de fundação: Os romances nacionais da América Latina. Belo
Horizonte: Ed. UFMG,2004.
J

A

L HISTORIZAR EL MITO, MITIFICAR LA HISTORIA: UNA LECTURA
PARÓDICA DEL CICLO NOVELÍSTICO LA GUERRA SILENCIOSA
L DE MANUEL SCORZA

A Ana Lucía Salazar Vilela (UNMSM)
RESUMEN: El presente artículo se propone demostrar la existencia de un
acercamiento paródico al género épico en las cinco novelas que componen el ciclo
novelístico La guerra silenciosa (1971-1979) del peruano Manuel Scorza, como
modelo explicativo de su carácter oscilante entre los límites de lo mítico y lo histórico.
• Por el lado de la teoría literaria, se partirá de una concepción de la parodia como
72 modalidad intertextual constructiva, síntesis de lo antiguo con lo nuevo que enfatiza
la diferencia por medio de la ironía. Tras identificar los ejercicios paródicos sobre
• los tropos de tiempo y personajes, se explicará cómo estos permiten la inscripción
en la historia de la gesta de Yanacocha y el resto de comunidades campesinas.
Por último, se propondrá una segunda operación de actualización del mito como
finalidad última del proyecto scorziano, relativizando la dicotomía mito-historia
para una mayor comprensión de la diégesis compartida por este macrotexto.
2 Palabras clave: Mito e historia.Narrativa peruana. Teoría literaria.Manuel Scorza.
La guerra silenciosa.
0 Allá por el año 1971, un joven Tomás G. Escajadillo se refería en su tesis
doctoral a los aportes técnicos a la temática tradicional del indigenismo como “odres
1 nuevos para una constante que había agotado el molde viejo” (ESCAJADILLO,
1971, p. 34). En esta metáfora, tomada del chileno Juan Loveluck1, era Carlos
8 Eduardo Zavaleta quien hacía las veces de “odres nuevos”, y Manuel Scorza venía
a ser un caso anómalo de ruptura excesiva con los ideales y propósitos del ciclo
indigenista. Siete años después, Escajadillo retoma la metáfora en un artículo
de marcado carácter reconciliador y sobre todo reivindicatorio; esta vez, el autor
sugiere a Scorza como “ese otro odre”, si bien incide en las sospechas que su estilo
“herético” inspiraba a los críticos de la época (ESCAJADILLO, 1994, p. 217). No
sería la primera vez que el proyecto narrativo de Manuel Scorza, materializado

1  “[El indio] como personaje y problema, es una “constante”. Solo que, agotado el molde viejo, esa
constante ha necesitado otro odre [...]” (LOVELUCK, 1963, p. 156).
en el discretamente célebre2 ciclo novelístico La guerra silenciosa, haría de él una
suerte de heresiarca problemático con respecto a los límites entre lo indigenista y lo
neoindigenista, lo testimonial y lo pragmático, y –claro está– lo mítico y lo histórico.
Entre las cuatro características del neoindigenismo señaladas por
Escajadillo en su tesis (ESCAJADILLO, 1971, p. 19), dos resultaban especialmente
problemáticas para la crítica hasta el punto de concentrar en ellas la posible
transformación o cancelación del indigenismo: la ampliación del espacio de la
J representación3 y la complejización del arsenal técnico narrativo. De ambas podemos
extraer respectivamente dos elementos reconocidos y estudiados en la pentalogía
A de Scorza: la progresiva inscripción en la Historia y el empleo de la ironía y la
parodia. Nuestra propuesta consiste en trabajar conjuntamente ambos elementos
L pero a un nivel más intertextual, a nivel de género literario. Consideramos que
gran parte del carácter heterogéneo del ciclo La guerra silenciosa puede explicarse

mediante la existencia de un acercamiento paródico al género épico, género del
L que Scorza toma prestadas modalidades de tiempo, espacio y personajes que
posteriormente pasará a invertir con propósitos pragmáticos. Cabe resaltar que si
A bien ya ha habido un número considerable de asedios a la ironía y la parodia en la
narrativa scorziana casi todos están restringidos a Redoble por Rancas, además de
orientar la aproximación paródica a su vinculación con el indigenismo –resultando
en su filiación genética con el neoindigenismo– y no con el género épico. En forma
paralela, también se ha estudiado la progresiva historización de la pentalogía, mas
• no como manifestación paródica.
73 Parodia e ironía: una aproximación teórica

• Para Linda Hutcheon, voz imprescindible en lo relativo a las formas del


humor en la teoría literaria, la parodia consiste en la articulación de una síntesis
de lo antiguo con lo nuevo con énfasis en la diferencia, marcando la desviación
de una norma literaria que termina siendo interiorizada por el texto en cuestión
(HUTCHEON, 1992, p. 177). Nos damos cuenta de la inexistente referencia al ridículo
2 con que suele asociarse el término en el discurso cotidiano. Esto es debido a lo que
Hutcheon denomina ethos paródico no marcado4: de acuerdo con los dos sentidos
de la raíz para (“contra” y “al lado de” respectivamente), el ejercicio paródico puede
0
tener múltiples valoraciones, desde un ethos respetuoso hasta el más contestatario
posible (HUTCHEON, 1992, p. 178). De aquí se desprende la noción de parodia
1 como “repetición con diferencia”, la cual nos acompañará en el apartado práctico.
A diferencia de otras modalidades como la sátira, la parodia –como
8
2 En torno a la denominada “conspiración del silencio” en torno a Manuel Scorza, sugerimos
revisar los textos de Gonzalo Soltero (“Manuel Scorza, responsabilidad y olvido”) y Tomás Escajadillo
(“Scorza: nadie es profeta en su tierra”).
3  “El crecimiento del espacio de la representación narrativa en consonancia con las transformaciones
reales de la problemática indígena, cada vez menos independiente de lo que sucede a la sociedad
nacional como conjunto” (ESCAJADILLO, 1971, p. 19).
4 Hutcheon también propone una lectura alterna del ethos paródico en la que estaría marcado
de forma neutra o lúdica, es decir, un grado cero de agresividad. La introducción de la dimensión
lúdica por Hutcheon nos hace pensar en una posible vinculación con la noción de texto literario
como objeto lúdico de Wladimir Krysinski (Encrucijada de signos), en la cual profundizaremos más
adelante.
modalidad intertextual– solo puede tener como blanco un texto o convención
literaria5, lo cual nos eleva nuevamente al nivel del género. De esta forma, nos
referimos menos a un ataque que a una forma legítima de autorreflexividad, la cual
implica una distancia crítica entre el texto parodiado y el texto parodiante señalada
por un fenómeno intratextual análogo: la ironía. Haciendo eco del ethos paródico,
esta ironía puede ser tanto lúdica como ridiculizadora, tanto constructiva como
destructiva. Corresponde a la teoría literaria responder cómo este gesto lúdico
J propio de la ironía se manifiesta textualmente en la novela; para ello Wladimir
Krysinski propone la categoría de parabase permanente o ironía actualizada por la
voz del narrador. Esta modalidad irónica –la cual consideramos pertinente al texto
A
scorziano y a la vez al ethos paródico lúdico6– es ejercida a nivel intratextual sobre
los tropos de lugar, persona y tiempo, en contraposición a la epifanía permanente
L o el “ocaso del relato” (KRYSINSKI, 1997, p. 247).

En base a lo expuesto, encontramos puntos de contacto entre el
L funcionamiento de la parodia en la teoría literaria y el proyecto narrativo scorziano.
El mismo Scorza, en la que probablemente sea la entrevista definitiva en torno a
A La guerra silenciosa antes de su muerte, le plantea a Tomás Escajadillo –quien aun
con cambio de apreciaciones termina consolidándose como principal espectador
crítico de la pentalogía, a decir de Scorza– una hipótesis sobre la existencia de dos
lecturas del macrotexto7 en conjunto, una a través de los mitos y otra a través de la
historia (ESCAJADILLO, 1991, p.106). Esta doble dinámica de Scorza con respecto
• a los límites de lo mítico y lo histórico podría entenderse como un ejercicio paródico
74 en el que la conciencia mítica propia de las construcciones épicas –cuyo rasgo
constitutivo como género (independientemente de su origen occidental o andino)
• es la transferencia del mundo que representa al mundo del pasado épico absoluto,
el cual constituye la única fuente y comienzo de todo lo “primero” y esencialmente
bueno (BAJTÍN, 1989, p. 460)– es asimilada por el texto parodiante (scorziano). Así,
5  Esto último hace también que la parodia apele a la competencia literaria del lector, lo cual le
permitirá apreciar los ecos intertextuales con que juega el texto parodiante(BARRERAS GÓMEZ,
2 2001, p. 254). El lector ideal scorziano sería capaz de identificar los nexos –repetición– con la
tradición mitológica andina (nivel intratextual) y los cantares de gesta que remiten al género épico
0 (nivel intertextual), para posteriormente centrarse en su diferencia, generándose así el efecto
paródico.
6 Para garantizar su coherencia con el ethos paródico lúdico, consideramos necesario justificar
1 (así sea brevemente) la condición lúdica del macrotextoscorzianode acuerdo a lo propuesto por
Krysinski. Partiendo de los tres casos de estudio del capítulo quinto (“Variaciones sobre Bajtín y
8 los límites del carnaval”), donde Krysinski busca demostrar una mayor adecuación del juego sobre
la fiesta carnavalesca a la hora de medir el impacto cognitivo e intertextual de la novela, podemos
extrapolar algunos factores que harían de las cinco novelas de Scorza textos de código lúdico.
Entre estos figuran: la fuerte carga deíctica de la narración, el cuestionamiento de sus fuentes
referenciales, la manipulación del relato oficial en sus componentes tópicos, la distribución rítmica
y los planos de ironía. Para una lectura más minuciosa sugerimos al lector remitirse al capítulo en
cuestión (KRYSINSKI, 1997, p. 225).
7 Empleamos el término macrotexto ya que si bien existen referencias intertextuales entre las
“baladas” y “cantares” que componen el ciclo que obedecen a una problemática compartida, es
posible la lectura y comprensión individual de cada uno; además de existir una problemática en
torno al ordenamiento de los libros, sobre la cual el mismo Scorza ha dado declaraciones bastante
curiosas (ESCAJADILLO, 1991, p. 100, últimas líneas).
al hacer énfasis en su diferencia con la diégesis scorzianaabre paso a la conciencia
histórica, de la cual el género novelístico constituye su manifestación por excelencia.
Primer acto: acercamiento paródico a lo mítico
Un sector importante de los estudiososde la narrativa scorziana –entre
los que contamos a Dunia Gras Miravet, Antonio Cornejo Polar, Roland Forgues y
Mabel Moraña– considera que la incorporación de elementos míticos parte de una
intencionalidad más pragmática que antropológica. Cornejo Polar señala en ello
J una cierta “ambigüedad” que en cierto sentido torna más compleja y conflictiva la
heterogeneidad indigenista8 (CORNEJO POLAR, 1984, p.557) en comparación con
A el carácter tensivo del neoindigenismo en el que inscribe a Scorza.
El universo de creencias míticas que despliega el ciclo de Scorza no repre-
L senta la expresión de contenidos míticos efectivamente vividos por el pueblo
quechua del centro, salvo en el caso de las referencias al mito de Inkarri9,
sino de construcciones libres elaboradas por el narrador a partir de la diná-
L mica general de este tipo de racionalidad, lo que implica que la intencionali-
dad básica no es la de testimoniar las plasmaciones históricas de esa mítica,
A sino la de internalizar su estructura mental y hacerla discurrir inventiva-
mente por nuevos cauces (CORNEJO POLAR, 1984, p. 556-557)

La coherencia del elemento mítico en Scorza no residiría entonces en
una pragmática vacía, sino en su rol sostenedor de la propia lógica del texto,
independientemente de su posición respecto a una realidad efectiva (GRAS MIRAVET,
• 2003, p. 251). Así, el mito pasa a ser parte de la estrategia de ruptura con el orden
75 real (representado en el orden ficticio), revelando ser producto de una “deliberada
voluntad creadora del escritor” y no tanto de elementos naturales (FORGUES, 1991,

p. 67).Lo anterior nos remite a la idea de la parodia como transcontextualización,
de la cual se desprende el principio de “repetición con diferencia” trabajado por
Hutcheon.
No está de más enfatizar que el ejercicio paródico no se cierne sobre
personajes o mitos en específico, sino sobre el género épico en sí. El texto parodiante
2 no pertenece al género parodiado, ya que este último pasa a ser el objeto representado

0 8  La “historificación del mito” en la novela indigenista ya había sido tratada anteriormente por
Cornejo Polar, en referencia a textos indigenistas canónicos como El mundo es ancho y ajeno y
Todas las sangres (CORNEJO POLAR, 1980, p. 74-80). Esta característica es compartida con la
1 narrativa neoindigenista de Scorza, salvo por el hecho de que en esta última se manifiesta mediante
el ejercicio paródico, manifestado a su vez mediante la ironía.
8 9  El caso del mito de Inkarri resulta significativo al reforzar el carácter ambiguo con respecto al mito.
Afirma Dunia Gras: “En Scorza, los miembros descuartizados y enterrados del Inkarri son cinco,
como cinco son las novelas que escribe. La referencia al Inkarri es situada por el autor al inicio de
La tumba del relámpago, como presagio del desenlace de esta, aunque puede ser considerada como
símbolo central del ciclo, ya que representa los distintos intentos de Chacón, Garabombo, Herrera,
Agapito y Ledesma de unir a las comunidades indígenas y crear una fuerza colectiva para que la
promesa de Inkarri pueda cumplirse” (GRAS MIRAVET, 2003, p. 256). Esto se hace extensivo a las
menciones del mito de Pariacaca (SCORZA, 1991b, p. 187), el canto elegíaco Apu InkaAtawallpaman
(SCORZA, 1991b, p. 207-209) y un fragmento del compendio de mitos quechuas Dioses y hombres
de Huarochirí (SCORZA, 2001, p. 212). Si bien se trata de citas específicas y no de asedios al género
épico en sí, Scorza pone en funcionamiento su valor como símbolo colectivo y como instrumento de
toma de conciencia.
(BAJTÍN, 1989, p. 421); de esta forma, el género épico se establece como “héroe de
la parodia” en términos bajtinianos:
[...] la parodia convive difícilmente con otros géneros. No se puede hablar de
armonía alguna sobre la base de la limitación y la complementación recípro-
cas. La novela parodia otros géneros (precisamente, en tanto que géneros),
desvela el convencionalismo de sus formas y su lenguaje, excluye a algunos
géneros, incluye a otros en su propia estructura, interpretándolos y reacen-
tuándolos10. (BAJTÍN, 1989, p. 451)
J
Por consiguiente, en las cinco novelas de Scorza identificamos un primer
movimiento paródico de acercamiento al mito que va siendo contenido por la
A
progresiva historización de la lucha y el cuestionamiento metanarrativo propio de
lo histórico. Remitiéndonos nuevamente a la parabase permanente de Krysinski,
L encontramos que este ejercicio paródico –del que la ironía forma parte– se ejerce
sobre los tres tropos referidos anteriormente: tiempo, espacio y personajes. Tomando
L como referencia la definición de Hutcheon, cada uno de estos ejercicios paródicos
consta de tres partes:
A Repetición: superposición primera de textos, mediante la alusión inter-
textual al texto parodiado y su repetición consciente por el texto

parodiante.

Diferencia: énfasis del desdoblamiento paródico, planteamiento de la


distancia crítica entre el texto parodiado y el texto parodiante.

*manifestación de la distancia crítica mediante la inversión irónica.
76
• Historización: fin último de enfatizar la diferencia.

Tales ejercicios paródicos constituirían una suerte de radiografía de


cómo el nivel mítico no niega el nivel histórico, sino que profundiza en él de forma
más sutil y desenfadada, iluminando al mismo tiempo las dimensiones ideológicas,
axiológicas y espectaculares del texto narrativo scorziano.El humor encarnado en
2 la parodia e ironía nogarantiza la obtención de tal efecto: novelas de raigambre
similar como Cien años de soledad terminan con resultados distintos. Scorza
0 mismo lo declara:
García Márquez utiliza parte de la historia para llegar al mito; yo parto del
1 mito para llegar a la historia. Es exactamente el movimiento opuesto [...].
Él viaja de la realidad para llegar al mito; yo tomo el mito para de alguna
manera llegar a la realidad, porque a mí me parece que ahí hay un estado
8 de locura colectiva que no podía ser expresado si no a través del mito (ES-
CAJADILLO, 1991, p. 111).

Para una mayor comprensión de esta dinámica, desarrollaremos a
continuación dos de los ejercicios paródicos propuestos, en torno a los tropos de
tiempo y personajes.

10  Si bien el párrafo completo está orientado a la gestación histórica de la novela, consideramos
pertinente la afirmación de Bajtín para nuestros propósitos.
Tiempo
Se podría decir que el tiempo de la narrativa de Scorza es completamente
ajeno al de la historia. A primera vista resulta así. Anteriormente hicimos mención
de la tendencia a asociar el pasado mítico con un estado de armonía primigenia y
lo “esencialmente bueno”; es decir, en una relación de necesidad y correspondencia
con sus protagonistas. Cabe preguntarnos entonces: ¿presenta un cariz uniforme
este supuesto tiemposubordinador? ¿Quiénes son los verdaderos agentes y
J beneficiarios de tal “subordinación”: los comuneros o las autoridades?
El ejercicio paródico identificado en primer lugar en este tropo tiene como
A objeto la finalidad pragmática tratada anteriormente: la inscripción en la Historia
de la lucha de los pobladores de Yanacocha y el resto de comunidades campesinas,
L superando y problematizando los límites de la memoria colectiva. Esto mediante la
pretensión de atemporalidad –que remite claramente al género épico– que alcanza
L su clímax simbólico en El jinete insomne; y su posterior desestabilización en La
tumba del relámpago11.

Respecto a la primera alusión intertextual al género épico o repetición,
A esta la encontramos en la pretensión de atemporalidad mítica mencionada antes.
No obstante, cabe especificar a qué nos referimos exactamente por atemporalidad.
Integrada dentro de la noción de lo mítico como lo esencialmente bueno en su
estado primigenio, la atemporalidad a la que se alude –por el momento– es aquella
sistematización cíclica atesorada en la memoria colectiva de comunidades como

las de Pasco, antes de los acontecimientos de Redoble por Rancas. Es parte del
77 patrimonio colectivo de Yanahuanca y Yanacocha como lo fue de las antiguas
• sociedades inmortalizadas en los cantares de gesta; es el tiempo característico de
las “civilizaciones integradas” en términos de Lukács. Tiempo metahistórico, pero
aun así tiempo (BARABAS, 2002, p. 68):
La temporalidad del mito, como Lévi-Strauss ha destacado, resulta de la
conjugación del pasado, el presente y el futuro dentro de una totalidad sim-
bólica que unifica la diacronía y la sincronía. [...] Aunque cíclico, el tiempo
2 mítico no supone una repetición mecánica y conservadora de lo dado por el
mito, sino una vivencia de lo sagrado en tiempo presente, que constituye la
0 fuerza del hombre para renovarse y conectarse otra vez con la gesta inicial.
(BARABAS, 2002, p. 68, énfasis míos)

1 Sin embargo es aquí donde entra a calar la diferencia. La atemporalidad


descrita anteriormente no es la que gobierna las vidas de los personajes de los cinco
8 libros; es una atemporalidad corrupta la que impera sobre ellos. No estamos hablando
de una atemporalidad que inspire esta “vivencia de lo sagrado en tiempo presente”
en los pobladores de Rancas, Chinche o Yanacocha, sino de una que se propone
anular el devenir histórico para anularlos a ellos mismos como individuos; una que
no mantiene una relación recíproca con sus protagonistas legítimos sino que es
manipulada por los intereses de las autoridades corruptas encarnadas en el doctor
Montenegro, doña Pepita y el resto del aparato burocrático y militar yanacochano.
Roland Forgues lo explica en términos de una “petrificación” o podredumbre del

11  La “desestabilización” a la que nos referimos incluye un proceso opuesto de re-mitificación, el


cual será tratado a profundidad más adelante.
tiempo a partir de la muerte de Atahualpa (FORGUES, 1991, p. 51-55), por lo que
emplea la denominación “tiempo mítico” en un sentido peyorativo; consideramos que
su interpretación como un ejercicio paródico contribuiría a atenuar esta dicotomía
tiempo mítico acelerado/tiempo histórico paralizado propuesta por Forgues, pues
al fin y al cabo aquello que denomina tiempo mítico no es sino un no-tiempo. O en
palabras del mismo Scorza, “un archipiélago de tiempos detenidos” (ESCAJADILLO,
1991, p. 105).
J El énfasis en la diferencia establecido previamente se manifiesta mediante
la inversión irónica. Destacan en El jinete insomne escenas como la plaga que
A afecta a los relojes del doctor Montenegro y las autoridades (SCORZA, 1991b, p.
33), o la alteración del calendario por parte de los mismos personajes (SCORZA,
L 1991b, p. 136). Este segundo ejemplo resulta doblemente irónico en su pretensión
de alcanzar un estado permanente de fiesta mediante el adelanto de las fechas,

suerte de metáfora de un estado cíclico carnavalesco. Al forzar a los yanacochanos
L a apadrinar festividades que les son suyas por tradición lo que se logra es el efecto
contrario, el de subordinarlos a una festividad que procede a deshumanizarlos al
A volver imposible su posicionamiento en el tiempo.Un tercer ejemplo significativo
es la inclusión de la “masacre” como una quinta estación debido a su periodicidad
adquirida en la sistematización del tiempo de los yanacochanos: “En el mundo
hay cuatro; en los Andes cinco: primavera, verano, otoño, invierno y masacre”
(SCORZA, 1991a, p. 22)
• Para cerrar el ejercicio paródico, se consigue la progresiva historización
78 de la lucha. Forgues sitúa el punto de inflexión entre un tiempo y otro al final de
Cantar de Agapito Robles, al reestablecerse el efecto del tiempo en la fisionomía del

doctor Montenegro:
El aire arrebató el sombrero del doctor Montenegro. Nadie nunca lo había
visto sin sombrero. Asombrados contemplaron su cabeza cana y compren-
dieron que el tiempo nunca en verdad se había detenido. ¡Los ríos corrían y
el doctor Montenegro envejecía! (SCORZA, 1991b, p. 201).
2
Personajes
0 Este segundo ejercicio paródico tiene como objetivo reforzar la dimensión
ideológica de los destinos de los personajes principales, haciéndolos partícipes del
devenir histórico por su accionar propio y no por su investidura mítica. En cada
1 una de las cinco novelas que componen el ciclo existe un protagonista sobre el
que recae la mayor parte del compromiso heroico, mas no necesariamente por su
8 condición sobrenatural (como en el quinto caso). En Redoble por Rancas tenemos a
Héctor Chacón (nictalopía); en Garabombo el Invisible al mismo Garabombo o Fermín
Espinoza (invisibilidad); en El jinete insomne a Raymundo Herrera (insomnio); en
Cantar de Agapito Robles al mismo Agapito Robles (mutabilidad); y en La tumba del
relámpago a Genaro Ledesma (sin poder sobrenatural)12.
Comenzando con la repetición, la alusión intertextual realizada aquí es al
héroe mítico del cantar de gesta/epopeya: como es sabido, más allá de su investidura

12  En el caso de La tumba del relámpago la investidura sobrenatural recaería sobre doña Añada
(profecía), y por extensión sobre sus ponchos tejidos.
sobrenatural en forma de poderes contienen un valor axiológico altamente
idealizado. El personaje épico no solo muestra un carácter ejemplar demostrado
en actos heroicos, sino que cumplen una función metafórica y metonímica (en su
identificación con los intereses de la comunidad más allá del plano político, en el
caso scorziano). Scorza hace explícita tal intención y lo problemático de adaptarla
a individuos reales en la entrevista con Escajadillo:
Yo quería presentar caracteres ejemplares. A mí me parece muy importante
J que un pueblo combata. Y de manera deliberada escogí algunos hombres
que estaban vivos y a otros que estaban muertos. Y corrí un riesgo cuando
tomé a Héctor Chacón como personaje, o a Genaro Ledesma, que está vivo.
A Para equilibrar o perfeccionar esta imagen escogí también a hombres muer-
tos, cuya imagen era inmutable. Garabombo, Raymundo Herrera y Agapito
L Robles, que es un hombre tan ejemplar. Yo he revisado el Libro de Actas
de la Comunidad de Yanacocha, y en diez años de pedidos Agapito Robles
jamás ha hecho un pedido personal. Es una cosa impresionante [...] Todo es
L real, simplemente que Raymundo Herrera realiza en la realidad un viaje de
veintiocho días. Sale tosiendo de Yanacocha, llega y muere” (ESCAJADILLO,
1991, p. 105)
A
Obedeciendo a esa finalidad metafórica, los personajes de Scorza están
configurados en función de su oposición al gamonalismo representado en el doctor
Montenegro; al ser sus conflictos los de la comunidad, su vida privada se torna casi
imperceptible (OSORIO, 2016).
• Pasando al énfasis en la diferencia, nos damos cuenta de un fracaso
79 perpetuo de los personajes que genera su inscripción ya no solo en el plano de la
idealización, sino también como parte de una problemática que supera los confines

del uniforme conflicto comunitario para adentrarse a un espacio de mayores
contradicciones13, donde las condiciones objetivas no cuadran con las subjetivas
(en palabras de Ledesma). La función metafórica inicial del personaje pasa a ser
inscrita dentro de una gran “metáfora de la impotencia” (MORAÑA, 1983, p. 182).

2 El inevitable fin de estos héroes dotados de cualidades sobrenaturales tiene


un resultado significativo: otorgar una función ideológica a los efectos metafórico

y metonímico del personaje (MORAÑA, 1983, p. 184). Así, el fracaso del héroe
0 como fracaso del conglomerado indígena se torna metáfora de un determinismo
histórico14 (MORAÑA, 1983, p. 190) que condena apriorísticamente los intentos de
1 sublevación de los yanacochanos.

8 13 En concordancia con laampliación del espacio de representación narrativa propia del
neoindigenismo, de acuerdo con la tesis de Escajadillo.
14  Moraña entiende este “determinismo histórico” como una reducción de la rebeldía campesina
a una mera manifestación prerracional que no llega a alterar significativamente su condición ya
de por sí fatalista (MORAÑA, 1983, p. 190). La autora atribuye esto a una convención ya existente
en Scorza previa a la escritura de sus novelas, por lo que no existiría un verdadero desmontaje
ideológico de la cosmovisión dominante. Como el en caso de Forgues y el tiempo mítico, nos
atrevemos a proponer una interpretación de este síntoma como ejercicio paródico. Después de todo,
en palabras de Ezequiel Maldonado, estamos lejos de que la obra scorziana sea sociológicamente
exacta, moralmente edificante y políticamente eficaz (MALDONADO, 2014, p. 75) (si bien la referencia
de Maldonado está dirigida a La tumba del relámpago, nos tomamos la libertad de hacerla extensiva
a la pentalogía entera).
Continuando con la inversión irónica por la cual se manifiesta lo anterior,
proponemos como ejemplo a Raymundo Herrera como metáfora paradigmática de
la imposibilidad de “demostrar nada”, como lo expresa al final de su peregrinaje de
medición de hitos geográficos. La impotencia contenida en él resulta mucho más
aplastante en comparación al resto de héroes por el insomnio que o ha acompañado
por casi 430 años (a partir de la Conquista española):
–He probado lo que quería probar.
J –¿Y qué quería probar?

–¡He probado que no podemos probar nada! Y cuando todos los hombres
A comprendan que es imposible probar una causa justa entonces comenzará
la rabia. Les dejo de herencia lo único que tengo: mi rabia (SCORZA, 1991b,
L p.203).
Una figura mucho más pragmática es la del Ingeniero, metáfora del
L capitalismo emergente que se desliza ágilmente entre los intereses del caduco
gamonal y el efervescente comunero; en su caso, la ironía reside en el tratamiento de
A su labor como una empresa digna de un héroe mítico, atribuyéndose conocimientos
tan científicos como ocultistas a manera de gracia sobrenatural.
Finalizamos el ejercicio paródico con la historización. El resultado de
este “fracaso ideologizante” del personaje es señalado por el mismo Scorza en la
entrevista con Escajadillo. Estos personajes que aspiran a fundirse con el mito por
• mera definición toman consciencia de su situación no-mítica antes de morir, que el
80 mito no es su vida sino protección ante una verdad intolerable: la desaparición de la
persona, el saqueo del ser (SCORZA, 1991b, p.102). En términos de Lukács, el salto
• de lo mítico a lo novelístico-histórico reside en la consolidación del personaje en
base a su propia individualidad; salto que será tomado en un último, insospechado
movimiento de re-mitificación que explicaremos a continuación.
La novela comprende la esencia de su totalidad entre el comienzo y el final y
allí nace un individuo capaz de elevarse hasta el infinito, que debe crear un
2 mundo entero a través de su experiencia y que debe mantener a este mundo
en equilibrio – un infinito que ningún héroe epopéyico, ni siquiera los héroes
dantescos, pueden alcanzar; pues el individuo épico debe su importancia a
0 la gracia que le ha sido concedida, no a su pura individualidad. (LUKÁCS,
2010, p. 79)
1
Segundo acto: actualización del mito

8 Por mucho tiempo, las lecturas predominantes del ciclo La guerra


silenciosa en su conjunto giraron en torno a la anulación de la dimensión mítica
ante la llegada del tiempo histórico, por más que se reconociera el valor simbólico
del mito como herramienta de resistencia ante la opresión colonial. La imagen de
Remigio Villena prendiendo fuego a los ponchos de doña Añada permanece como
poderosa metáfora de esa lectura: el rechazo a un devenir dictado por profecías y
la aceptación de su condición de sujetos agentes que sufrirán las consecuencias de
su lucha para bien o para mal.
En las últimas décadas, ya no resulta llamativo el que los estudiosos de
la obra scorziana hablen de una re-mitificación15 en sus diversas manifestaciones.
Por nuestro lado, planteamos una ruta alterna hacia tal re-mitificación como
posible consecuencia acumulada del ethos paródico ejercido en las cinco novelas,
especialmente en La tumba del relámpago. Al tratarse de un distanciamiento
constructivo y no destructivo con origen en la ironía, entendemos que la intención
última del autor no es minar el mito por completo, sino buscar su “independencia
en sí mismo” (ESCAJADILLO, 1991, p.106).
J Según Juan González Soto, el propósito de la escritura de La tumba del
relámpago para Scorza –más allá de la denuncia testimonial– era demostrar el
A porqué de la pervivencia de mitos en nuestro continente (GONZÁLEZ SOTO, 1996,
p. 164). Previamente a la publicación del libro, Scorza ya era consciente del cambio
L de paradigma que implicaba al hacer que el mito se reflexione a sí mismo y resuelva
ser la lucidez (ESCAJADILLO, 1991, p. 106). Así, interpretamos la última frase

como una retroalimentación del mito novelesco tras haber cortado sus vínculos
L con la realidad concreta; el mito regresa ya no solo como instancia transformada
sino también transformadora, generando el sentido intuido premonitoriamente por
A el novelista (FORGUES, 1991, p. 149):
La manera cómo el escritor saca provecho de ambas narraciones quechuas
[Apu InkaAtawallpaman y Dioses y hombres de Huarochirí], reactualizando
su mensaje ideológico, para proponer la resistencia activa como conducta
de liberación me parece sumamente ilustrativo de su ansia de ir a buscar
en el mito la fuerza de vencer el presente para construir un Perú moderno

(FORGUES, 1991, p. 66).
81
Otra manifestación de esta actualización del mito la encontramos a nivel
• de personajes. Al final del segundo ejercicio paródico correspondiente señalábamos
la toma de conciencia de su condición no-mítica antes de su muerte como una
muestra de la historización haciendo efecto en el relato. Sin embargo, la muerte
marca una nueva inflexión en la condición del personaje: tras haberlo despojado
de sus poderes míticos, le permite ascender nuevamente a la categoría de mito,
2 solo que esta vez gracias a su propio actuar y no por su investidura sobrenatural
a priori. El héroe scorziano se eleva a sí mismo hacia tal condición; es mito y
0 utiliza el mito para significar con su desaparición el forjamiento de una nueva
épica basada en la conciencia (GONZÁLEZ SOTO, 1996, p. 165). Por consiguiente,
1 este mito actualizado sí permite alcanzar esa fuerza del hombre para renovarse y
conectarse nuevamente con la gesta inicial que brinda una articulación coherente a

8 15  Si bien Gras Miravet ya habla de re-mitificación en su tesis doctoral (Manuel Scorza y la
construcción de un mundo posible) le da un sentido distinto del que nosotros planteamos en este
artículo. Para la autora este consiste en el empleo literario de elementos folklóricos entendido
como transformación y no como recuperación: “En cierto modo, con ello Scorza relacionaba el
proceso de toma de conciencia, con la remitificación al distinguir entre la persistencia de mitos
y símbolos colectivos, y la conciencia individual de la historia” (GRAS MIRAVET, 2003, p. 255).
Entendido así por Gras Miravet, este procedimiento corresponde a lo que conocemos como función
transcontextualizadora de la parodia (en términos de Hutcheon). La re-mitificación a la que nos
referimos en este apartado está situada fuera del ejercicio paródico y a la vez es hecha posible por
este; proponemos –a modo de segunda hipótesis– una actualización del mito a favor de la lucidez
más allá de la referencia intertextual, resultado que vemos proyectarse hacia el final de La tumba
del relámpago y que operaría a través de los cinco textos.
las cinco novelas –evidenciada en el final de La tumba del relámpago que nos remite
nuevamente a la gestación inicial de la lucha–; una actualización conseguida gracias
a la agencia reactivada de sus héroes. Así, la estación andina de la masacreya no
toma el cariz de un patético determinismo histórico, sino el de reactivación de una
resistencia en la que ninguna gota de sangre queda sin ser recogida por la tierra,
amable madre mítica.
La visión diurna, es decir, la meramente histórica, es forzosamente limitada.
J [...] Mis novelas, pues, tienen dos niveles: un nivel histórico y un nivel oní-
rico. El nivel histórico muestra la realidad tal como es y, salvo excepciones,
la recoge a través de personajes que figuran con sus nombres verdaderos en
A los libros. En tal sentido son testimonios; pero, al mismo tiempo, son –insis-
to– máquinas de soñar, porque para mostrar mejor la realidad, yo la sueño.
L La visión racionalista de la realidad, es decir, la visión que nos proporcionan
nuestros sentidos, es incompleta (ESCAJADILLO, 1991, p. 111).

L A modo de conclusión
Partiendo de los ejercicios paródicos desarrollados anteriormente,
A consideramos que el empleo de las nociones de ironía y parodia, en diálogo con la
teoría literaria aplicada a la novela, constituye una alternativa válida y prometedora
para explicar la doble dinámica de Manuel Scorza como narrador con respecto a
los límites de lo mítico y lo histórico. Con esta primera aproximación, dejamos la
puerta abierta para la identificación y problematización de más ejercicios paródicos
• sobre distintos tropos, con la pretensión de alcanzar una mayor comprensión de la
estrategia diegética scorziana a nivel de género literario.
82

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83

2

0

1

8

J

A

L NATUREZA E ESPAÇO HISTÓRICO NA TRILOGIA INDIANISTA DE
JOSÉ DE ALENCAR
L
Ana Maria Amorim Correia (UFF)
A RESUMO: Dentre as obras destacadas do escritor José de Alencar, estão aquelas que
compõem a chamada trilogia indianista: O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara
(1874). A ideia de contar as histórias e lendas fundacionais do povo brasileiro, filho
do solo americano, traz aspectos de nacionalidade e, em consequência, de afirmação
de independência a Portugal, que aparecem no tema e na forma. Neste artigo,
• pretende-se mostrar esta trilogia como um processo de “caminhos e fronteiras”
(HOLANDA, 2017), resultando em um movimento. A natureza, assim, é formada
84
em uma ideia de spatialhistory (CARTER apud BEWELL, 2017), com os espaços
• físicos compreendidos não como preexistentes, mas trazidos, através do ato da
escrita, a uma declaração cultural presentificada. As paisagens se modificam na
forma apresentada em cada obra, mas trazem elementos uníssonos do projeto do
escritor, que não coloca em ambivalência este pendor romântico com uma ideia de
modernização.
2 Palavras-chave: José de Alencar. Natureza. Paisagem. Patrimônio. Romantismo.

0 Falar que a escrita de José de Alencar - e aqui de forma ampla, sem
restringir às suas obras chamadas de indianistas - possui um descritivismo da
natureza, com afinco pelo detalhe da paisagem natural em suas narrativas, é
1
possivelmente a mais decorada premissa literária do nosso aprendizado escolar.
Pensadas dentro da estética do Romantismo, sendo José de Alencar o mais notável
8 nome da produção assim catalogada no Brasil, as obras indianistas, que mais
possuem tal pendor, têm esta característica pinçada para demonstração de uma
leitura de tais obras através de lentes de fontes e influências, nas perspectivas dos
estudos das literaturas nacionais. Assim, não raro é pensar os textos de O Guarani
(1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1974) pelo viés da imitação. Isto não é um dado
posterior à obra. O próprio autor, ciente, escreve sobre as chamadas referências.
Disse alguém, e repete-se por aí de outiva, que O Guarani é um romance
ao gosto de Cooper. Se assim fosse, haveria coincidência, e nunca imitação;
mas não é. Meus escritos se parecem tanto com os do ilustre romancista
americano, como as várzeas do Ceará com as margens do Delaware.
A impressão profunda que em mim deixou Cooper foi, já lhe disse, como
poeta do mar.

[...]

O modelo para mim ainda hoje é Chateaubriand; mas o mestre que eu tive,
foi esta esplêndida natureza que me envolve, e particularmente a magnifi-
cência dos desertos que eu perlustrei ao entrar na adolescência, e foram o
pórtico majestoso pôr onde minha alma penetrou no passado de sua pá-
J tria. (ALENCAR, 1998, p.45-6, negrito nosso)
Neste jogo deimitação, para usar o termo do autor nesta mesma obra,
A podemos lançar mão de um entendimento do Romantismo brasileiro para além
do comparativismo que condena a literatura das antigas colônias a uma relação
L deficitária com as metrópoles. Aqui, nos interessa mais o espírito flexível das obras
indianistas - por assim dizer, a emulação, a criação que o gesto de imitação carrega
L e que, não ironicamente, os próprios europeus usufruíam. Na ideia aqui proposta,
não nos cabe pensar o que tais elementos da escrita indianista invocam de outros
escritores, o que o Romantismo brasileiro ramificado Romantismo francês, alemão,
A inglês ou norte-americano, troncos tratados como sólidos e originais (especificamente
os três primeiros). Em outras palavras: nos interessa ler a natureza das obras
indianistas de José de Alencar pelas lentes nacionais - já que a própria ideia de
nação estava em voga e embandeirada na proposta do autor, percebendo aqui que,
sem negar as semelhanças entre os movimentos, nos interessa as características

próprias que esta natureza pode ter ou pode ser performada. Assim, vamos perceber
85 a natureza das obras indianistas através de uma abordagem de espacialização
• do país, adentrando pelos “sertões” e usando da projeção de uma passado para
imprimir história a estes espaços agora explorados na ficção de tons fundacionais.
Por fim, diferentemente de um ideia de reclusão do homem no espaço bucólico,
perceber como este movimento reflete uma veia modernizante.
Tempo e espaço: movimento e fronteira
2 O aspecto do tempo é claro: O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara
(1874) avançam cronologicamente no tempo de escrita, recuam no tempo da
0 narrativa. Alencar volta, cada vez mais, para o passado. Em paralelo, o aspecto do
espaço também se desloca: do entorno do Rio de Janeiro, passando pelo Ceará e ao
1 interior das matas brasileiras. O movimento resultante é este: para antes, para o
interior. Assim, a escrita mapeia espaços do território, o veste de nação e imprime
ideia de história aos relatos.
8
Quando José de Alencar tece críticas à Confederação dos Tamoios,
de Gonçalves de Magalhães, podemos pinçar em seus argumentos tanto o
adentramento espacial da paisagem brasileira como o contundente tom de defesa
de uma descrição da natureza brasileira de forma mais condizente com a sua
magnificência. O poema é criticado por Alencar em oito cartas publicadas no Diário
do Rio de Janeiro, assinadas sob o pseudônimo de Ig, e dentre as críticas está o fato
do poema, em sua opinião, não lograr com o seu objetivo épico, não servindo assim
ao seu ideal fim de consagrar a nação através de uma epopeia brasileira, liberta
das marcas de dependência a Portugal. Entre as críticas, Alencar pondera que a
forma de apresentar o país não condiz com a exuberância esperada. Na primeira
carta, por exemplo, assim demarca Alencar a sua crítica:
Um poema épico, como eu o compreendo, e como tenho visto realizado, deve
abrir-se por um quadro majestoso, por uma cena digna do elevado assunto
que se vai tratar.

Não se entra em um palácio real por uma portinha travessa, mas por um
pórtico grandioso, por um peristilo magnífico, onde a arte delineou algumas
J dessas belas imagens que infundem admiração. [...]
Devemos confessar que a causa do poema, o princípio da ação não está de
A modo algum nas regras da epopéia. Derivar de um fato acidental e sem im-
portância a luta de duas raças, a extinção de um povo e a conquista de um
país, é impróprio da grandeza do assunto. (ALENCAR in BUENO; ERMAKO-
L FF, 2005, p. 23, itálicos do autor, negrito nosso)

L É interessante observar o movimento de entrada para a cena - além do
espelhamento da natureza com a arquitetura já esboçada nas críticas anteriores
às obras indianistas. Este apontamento crítico de Alencar será incorporado em O
A Guarani, que começa com o capítulo intitulado “Cenário” em que percebemos o
esforço de Alencar em pintar o tal quadro de natureza:
De um dos cabeços da Serra dos Órgãos desliza um fio de água que se dirige
para o norte, e engrossado com os mananciais que recebe no seu curso de
dez léguas, torna-se rio caudal.

É o Paquequer: saltando de cascata em cascata, enroscando-se como uma
86 serpente, vai depois se espreguiçar na várzea e embeber no Paraíba, que rola
majestosamente em seu vasto leito. (ALENCAR, 2014, p.51)

Como continua o autor, “tudo era grande e pomposo no cenário que a
natureza, sublime artista, tinha decorado para os dramas majestosos dos elementos,
em que o homem é apenas um simples comparsa” (ALENCAR, 2014, p.52). O rio
Paquequer carrega o ambiente de interior como selvagem e recluso, de “beleza
2 selvática”, entrando em descrições de calma e serenidade ao encontro da costa.
Nada de especial, ao se considerar o curso de um rio; mas em termos de narrativa,
0 uma demarcação espacial da altivez do interior, ainda “filho indômito desta pátria
da liberdade”. Distinção mar e terra que continua em Iracema, em contraponto dos

“verdes mares bravios” com o “além, muito além daquela serra”.
1
Em Ubirajara, o retorno a um tempo pré-Cabral torna-se ainda mais

interessante ao nos atentarmos para a forma do romance-lenda. Como apontado
8 por João Cezar de Castro Rocha, estamos diante de uma narrativa que já se
diferencia das demais, inclusive se distancia do que o próprio José de Alencar
criticara na Confederação dos Tamoios. Em Ubirajara, o corte é dado e a ação inicia
a obra. Mas não é somente este o aspecto de diferença: nesta obra, como dito, o
tempo é marcado por ser anterior ao dos portugueses chegarem ao país e, assim,
a estrutura da narrativa, apoiada na descrição da natureza aqui usada, vai usar
de aspectos cíclicos, como um mito campbeliano (CASTRO ROCHA, 2015, p.164).
Na tentativa de organizar a base estruturante das narrativas de mitos, Campbell
percebe assim o aspecto cíclico que seria o pilar comum de todas:
Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios
sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva;
o herói retorna de sua misteriosa aventura com o poder se trazer benefícios
aos seus semelhantes (CAMPBELL, 2007, p.36).

Em Ubirajara, o aspecto cíclico da narrativa ressoa na natureza, na


imagem das árvores, que não raro são usadas para formar metáforas dos corpos
dos indígenas, com a imagem das florestas formadas nesta mesma constante cíclica
J das gerações indígenas. A grandiosidade e quantidade das árvores são espelho dos
povos que ali habitam: “Sua geração vai assim crescendo de tronco em tronco; e
A forma uma floresta de guerreiros, onde o último cedro se ergue mais frondoso e
robusto, porque recebe a seiva de seus avós” (ALENCAR, 2001, p. 77). É interessante

observar que a história de evolução dos indígenas até o cedro mais frondoso é dado
L
em par com a construção da nossa natureza.

Sendo cíclico, também podemos perceber que a narrativa reporta a um
L passado expandível - um aspecto tido como pedra angular para a constituição de
“comunidades imaginadas” (ANDERSON: 2008). Ou seja, equiparando a idade de
A nossas florestas ao desenvolvimento de nossos indígenas, forma-se uma Antiguidade
para o país, o que a engrandece. Forma-se o passado comum, “um passado heroico,
de grandes homens e de glória (estou falando de glória autêntica) - eis aí o capital
social sobre o qual repousa uma ideia nacional” (GUIBERNAU, 1997, p.173)
Pensando nas obras como conjunto, percebemos o movimento pelo
• mapabrasileiro: da fronteira porosa entre a civilização e a mata em um Rio de
87 Janeiro, de O Guarani, passando pelo litoral à entrada das serras distantes do
estado do Ceará, em Iracema, até as matas de florestas ancestrais de Ubirajara.

Os deslocamentos de tempo e espaço nos remetem a uma ideia de movimento
e, pensando na unidade nacional - formada através de distintos recursos, como
a unidade identitária e evocação de um outro - isso resulta na percepção das
fronteiras (o mar incluso). Em outras palavras: a comunidade imaginada brasileira
é tracejada. Isso nos recorda a ideia de Sérgio Buarque de Holanda, em Caminhos
2 e Fronteiras, que desenha os deslocamentos dos bandeirantes pelo interior do país
como um projeto de direções e limites da civilização que se impõe.
0 Durante os primeiros tempos da colonização do Brasil, os sítios povoados,
conquistados à mata e ao índio, não passam, geralmente, de manchas dis-
1 persas ao longo do litoral, mas plantadas na terra e quase independentes
dela. Acomodando-se à arribada de navios mais do que ao acesso do inte-
rior, esses núcleos voltavam-se inteiramente para o outro lado do oceano.
8 (HOLANDA, 2017, p. 13, negritos nossos)

Nesta passagem o autor demonstra aspectos interessantes: o pareamento


do índio com a mata em termos de conquista, igualando-os; coloca a civilização como
pequenas manchas dispersas e que por vezes se configurava com independência
daquela terra, com um olhar voltado mais ao mar do que às serras interioranas.
Podemos perceber esta configuração na obra indianista de Alencar: a paisagem
de litoral que evoca os portugueses e o interesse em mirar, cada vez mais, ao
interior do país, não simplesmente formando-o, como atestando-o. Isso porque ele
vai demonstrar a grandeza do povo que constitui a origem do povo brasileiro como
algo realmente relacionado à essas paisagens, dentro das fronteiras, como delimita
Holanda:
Se o aceno ao caminho, ‘que convida ao movimento’, quer apontar exata-
mente para a mobilidade característica, sobretudo nos séculos iniciais, das
populações e do planalto paulista - em contraste com as que, seguindo a
tradição mais constante da colonização portuguesa, se fixaram junto à ma-
rinha -, o fato é que essa própria mobilidade é condicionada entre elas e irá,
por sua vez, condicionar a situação implicada na ideia de ‘fronteira’. Fron-
J teira, bem entendido, entre paisagens, populações, hábitos, instituições,
técnicas, até idiomas heterogêneos que aqui se defrontavam. (HOLANDA,
A 2017, p. 17)

Traçando um paralelo entre a ideia de movimento e fronteira de Holanda


L com o desenho espacial e temporal de Alencar na obra indianista, portanto,
entendemos que a ideia de formar um espaço histórico é uma pedra angular da
L obra. A constituição da paisagem como um orgânico nacional, com a delimitação de
sua paisagem como expressão de seu povo e de sua vocação, além do levantamento
de hábitos e línguas, são traços das obras que convergem com a ideia de formação
A nacional. Alencar adentra no país como quem descobre ao mesmo tempo que cria
a nação.
A ideia de spatialhistory, que muito nos lembra esse esforço das
obras indianistas, é assim apresentada por Paul Carter em Road toBotanyBayii:
“thespatialformsand fantasies throughwhich a culture declares its presence”

(CARTER apud BEWELL, 2017, p.15). A presença declarada, nos escritos indianistas,
88 parte na ambiguidade de mostrar a diversidade da natureza (índios inclusos) e a
• unidade de caráter nacional. Assim Bewell endossa a ideia de spatialhistory:
Carter isinterested in howphysicalspaces do notpreexistbutinstead are brou-
ghtintobeingthroughspatialacts of writingandnaming. [...] Whatmakes-
Carter’swork of particular interestisthatherecognizesthatspatialinscriptions
are polyvocal, potentiallycontainingthe traces of manyvoicesandcultures.
Everyinscriptionisalso a form of erasure, everypossessionanact of dispos-
2 session, everysettlement a form of unsettlement, as onenameorone material
naturesupplantsanddisplacesanother. (BEWELL, 2017, p.15-6, negrito nos-
0 so)

A querela do ato de nomear não é nenhuma exclusividade brasileira1, mas


1 aqui temos uma questão interessante, ao pensarmos na linguagem. Isto porque
nos três livros de Alencar somos colocados diante de um emaranhado de notas
8 explicativas do autor para termos ligados aos costumes, plantas, objetos, rituais
e lugares dos indígenas. Mas o ato de nomear com o uso da língua do outro não
deixa de ser uma nomeação da própria cultura de Alencar, visto que aqui os termos
tupis não passam de uma etiqueta nacionalista para a obra, não significando uma
plurivocalidade. Ainda sobre a linguagem, se em Iracema e em Ubirajara a temos de
forma recorrente pelos usos do tupi, em O guarani temos, além desta presença, um
trecho que bem demonstra como a linguagem indígena é percebida como plasmada
com a natureza – e como essa natureza é culturalmente fincada a uma ideia cristã:
Álvaro fitou no índio um olhar admirado. Onde é que este selvagem sem

1  Todorov coloca o ato de nomear como um processo relacionado à conquista da América.


cultura aprendera a poesia simples, mas graciosa; onde bebera a delicadeza
de sensibilidade que dificilmente se encontra num coração gasto pelo atrito
da sociedade?

A cena que se desenrolava a seus olhos respondeu-lhe; a natureza brasilei-


ra, tão rica e brilhante, era a imagem que produzia aquele espírito virgem,
como o espelho das águas reflete o azul do céu.

Quem conhece a vegetação de nossa terra desde a parasita mimosa até o


J cedro gigante; quem no reino animal desce do tigre e do tapir, símbolos da
ferocidade e da força, até o lindo beija-flor e o inseto dourado; quem olha
este céu que passa do mais puro anil aos reflexos bronzeados que anunciam
A as grandes borrascas; quem viu, sob a verde pelúcia da relva esmaltada de
flores que cobre as nossas várzeas deslizar mil répteis que levam a morte
L num átomo de veneno, compreende o que Álvaro sentiu.
Com efeito, o que exprime essa cadeia que liga os dois extremos de tudo
L o que constitui a vida? Que quer dizer a força no ápice do poder aliada à
fraqueza em todo o seu mimo; a beleza e a graça sucedendo aos dramas
terríveis e aos monstros repulsivos; a morte horrível a par da vida brilhante?
A
Não é isso a poesia? O homem que nasceu, embalou-se e cresceu nesse
berço perfumado; no meio de cenas tão diversas, entre o eterno contraste
do sorriso e da lágrima, da flor e do espinho, do mel e do veneno, não é um
poeta?

• Poeta primitivo, canta a natureza na mesma linguagem da natureza; ig-


norante do que se passa nele, vai procurar nas imagens que tem diante dos
89 olhos, a expressão do sentimento vago e confuso que lhe agita a alma.
• Sua palavra é a que Deus escreveu com as letras que formam o livro da cria-
ção; é a flor, o céu, a luz, a cor, o ar, o sol; sublimes coisas que a natureza
fez sorrindo.

A sua frase corre como o regato que serpeja, ou salta como o rio que se des-
penha da cascata; às vezes se eleva ao cimo da montanha, outras desce e
2 rasteja como o inseto, sutil, delicada e mimosa (ALENCAR, 2014, p.220-1,
negrito nosso)

0 A linguagem indígena é mais uma parte da natureza, como podemos ver.


A natureza que é banhada em uma perspectiva religiosa e, portanto, cultural, com
1 os anseios do cristianismo. Não dá para negar este aspecto religioso, quando o que
motiva o protagonista Peri é a imagem de Nossa Senhora que o deixa impactado.
8 Portanto, o ato de escrita da natureza, a construção das paisagens na trilogia
indianista de Alencar, suscita uma formação de espaços, de história, de unidade
nacional: paisagens que formam um “enunciado cultural” (CAUQUELIN, 2007, p.
119).
Considerações finais: natureza para progresso
“As letras têm, como a política, um certo caráter geográfico” (TÁVORA,
1973, p.27). A ideia de Távora, outro romântico escritor brasileiro, é demonstrar
como ao norte é abundante uma literatura propriamente brasileira. Não atacada
pelos estrangeiros, demonstra a pureza de uma expressão nacional. A ideia é pesar
a criatividade de variadas regiões do país para o quadro literário (e político) que se
forma. Pensando por este viés, está aqui uma passagem de concordância com o que
José de Alencar vem desenvolvendo em sua literatura, e assim também podemos
ler por tal prisma a escrita dos romances indianistas, como vemos desenhando até
o momento.
Como demonstramos, nas obras indianistas temos o entrelaçamento de
dois pontos importantes para a representação da natureza: a ideia de formação da
nação (a formação de uma tradição e de uma antiguidade que engrandeça o país) e
J o desenhar de caminhos para o mapa do Brasil (a unidade nacional). Voltemos às
cartas de Alencar para pensar a representação das paisagens brasileiras com tais
A fundamentos agora voltados para mais um pilar – pilar este que pode parecer um
pouco controverso se recordarmos dos preceitos dos demais romantismos. Ainda
L na primeira carta sobre a Confederação dos Tamoios, diz o jovem Alencar:
Brasil, minha pátria, por que com tantas riquezas que possuis em teu seio,
não dás ao gênio de um dos teus filhos todo o reflexo de tua luz e de tua
L beleza? Por que não lhes dás as cores de tua palheta, a forma graciosa de
tuas flores, a harmonia das auras da tarde? Por que não arrancas das asas
de um dos teus pássaros mais garridos a pena do poeta que deve cantar-te?
A
E entretanto a civilização vem aí: o wagon do progresso fumega e vai preci-
pitar-se sobre essa teia imensa de trilhos de ferro que em pouco cortarão as
tuas florestas virgens; os turbilhões de fumaça e de vapor começam a eno-
velar-se, e breve obscurecerão a limpidez dessa atmosfera diáfana e pura.
(ALENCAR in BUENO; ERMAKOFF, 2005, p. 21, itálico do autor)

90 Em seguida, pondera que, talvez, a natureza tenha que um pouco ceder
para que se possa surgir aqui uma civilização:

Quem sabe! Talvez isso seja necessário. O Brasil, em toda a sua beleza
natural, ofusca o pensamento do homem como a luz forte, que deslumbra
a vista e cega; é preciso que essa luz perca um pouco de sua intensidade
para que olhos humanos possam se habituar a ela. (ALENCAR in BUENO;
ERMAKOFF, 2005, p. 22)
2 Se para o Alencar que está diante das letras parece haver alguns tons
do bucólico romantismo que se volta para a natureza como um ideal de vida, a
0 posição vacilante do trecho acima citado é reforçado pelas posturas do Alencar
homem público que foi, cronista presente sobre os costumes e assuntos políticos
1 da época do Rio de Janeiro, em anos próximos ao que escrevera a crítica e lançou
O Guarani (em folhetim de jornais). Em 10 de dezembro de 1854, antes da querela
com Gonçalves de Magalhães e três anos antes de seu primeiro romance indianista,
8
assim opinava José de Alencar nos jornais sobre a escassez de gêneros alimentícios
no país e medidas para rever esta situação:
Com estas medidas e outras tendentes a favorecer a criação dos gados, isen-
tando-a dos direitos de passagem e de barreiras, é de esperar que o governo
consiga prevenir essas faltas de gêneros alimentícios, que não se deviam
dar num país novo, de grandes recursos, e extraordinariamente produtivo,
como é o nosso.

Estes fatos, porém, servem de despertar ainda mais a nossa atenção para
a colonização, para a navegação de grandes rios, principalmente do Ama-
zonas, cujas várzeas imensas estão aí incultas, e encerram nas suas matas
virgens um manancial de riqueza, que convém quanto antes ser explorado.
(ALENCAR, 2003, p. 74-5)

Alencar continua citando os viajantes empreendedores que percorriam os


“sertões” brasileiros. A característica enaltecida pelo romântico escritor é a deles
terem “espírito de louvável ambição, que é o móvel das grandes empresas” (ALENCAR,
2003, p. 75). Assim, o autor se distancia da “conventional view that the discovery of
nature was intrinsically an antimodern gesture, see in gecological sentiments and
J modern social demands as being pitted against each other” (BEWELL, 2017, p.5).
Bewell prossegue mostrando que a representação da natureza romântica podia ser
A vista como um produto ou como uma expressão da relação da modernidade com
a natureza, pensando as obras inglesas. Mas, em Alencar, o recurso da natureza,
L considerando as obras indianistas em diálogo com os pilares aqui apresentados, não
é de negar a modernidade, mas de aprofundá-la. Isto porque o retorno ao passado
está focado no presente. Em Alencar, a tradição não briga com a modernidade, a
L
funda e a projeta.

Bibliografia
A
ALENCAR, José de. Como e por que sou romancista: uma autobiografia literária em for-
ma de carta. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998.
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91 ______. O Guarani. Cotia: Ateliê Editorial, 2014.


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8 Chapecó: Argos, 2015.
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GUIBERNAU, Montserrat. Nacionalismos: o estado nacional e o nacionalismo do séc. XX.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1997. 
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2017.
TÁVORA, Franklin. O Cabeleira. São Paulo: Editora Três, 1973.
J

A

L A LINGUAGEM DO CORPO E DO CABELO NEGRO: DIÁLOGOS
SOBRE IDENTIDADE NEGRA E A APROPRIAÇÃO DA CULTURA
L AFRO-BRASILEIRA

A “A apropriação cultural é uma forma racista de dizer que isso ou aquilo não
pode ser negro, mas brasileiro ou multicultural”.

Leci Brandão

Andressa Queiroz da Silva (UFBA)


• Mauricio dos Santos Lopes Júnior (UFAC)
RESUMO: Os turbantes e penteados afros(tranças afros, o blackpower e dreadlocks)
92
que outrora eram característico do cabelo da população negra por possuírem o
• cabelo crespo ou encaracolado e também símbolo de resistência e luta por ser fora do
padrão de beleza liso, ganham destaque e aceitação no século XXI, entretanto, essa
aceitação muitas vezes só é direcionada quando os estilos de cabelos anteriormente
citados são usados por pessoas brancas. Assim, o presente estudo objetiva realizar
diálogos acerca da apropriação cultural afro-brasileira, especificamente sobre o
2 corpo e cabelo negro. Para alcançar tal objetivo utilizaremos para embasamento
teórico Laraia (2009), Gomes (2006) e Amanda Braga (2014), entre outros. Chegamos
0 à conclusão de que para compreendermos a apropriação cultural diante de um
país multicultural como o Brasil precisamos compreender que apropriação é uma
relação de poder e/ou colonização entre cultura inferior, dominada, negra, versus
1
cultura superior, dominante, branca, analisados sob o ponto de vista coletivo, não
individual.
8 Palavras-chave: Identidade Negra. Cultura afro-brasileira. Corpo Negro. Cabelo
Negro.
Introdução
Iniciamos este ensaio relembrando notícias que foram bastante veiculadas
em virtude dos debates nas redes sociais sobre o tema da apropriação cultural, são
eles: o caso da coleção de primavera/verão 2017 de Marc Jacobs, coleção primavera/
verão 2014 de Ronaldo Fraga e ensaio fotográfico “Carmem Miranda Reloaded” da
Vogue Brasil edição fevereiro de 2013,dentre muito outros, todos “acusados” de
apropriação cultural por terem modelos brancas utilizando adereços ou penteados
que são reconhecidamente da cultura africana.O presente trabalho não pretende
definir quem pode ou não fazer uso das tranças afros, turbantes, dreadlocks ou
blackpower no cabelo ou “julgar”se os exemplos citados são casos de apropriação
cultural, assim objetivamos realizar diálogos acerca da apropriação da cultura
afro-brasileira, especificamente sobre o cabelo negro (crespo e encaracolado).
Este texto é uma proposta interdisciplinar resultantes dos debates
desenvolvido pelo “Grupo de Pesquisa O processo de construção do Docente em
J História: Possibilidades e desafios da formação inicial e da formação continuada do
fazer-se historiador em sala de aula” da Universidade Federal do Acre – UFAC formado
A por professores, acadêmicos e pesquisadores ligados a outras instituições,da linha
de pesquisa “História e Cultura Africana e Afro-brasileira”.
L Organizamos este trabalho da seguinte maneira: primeiramente fazemos
um resgate histórico da estética negra utilizando como aporte teórico os trabalhos
sobre a estética negra realizados pela antropóloga Nilma Lino Gomes principalmente
L
o livro Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolo da identidade negra, bem
como o livro fruto da tese de doutorado de Amanda Braga História da Beleza Negra
A no Brasil: discursos, corpos e práticas; posteriormente falaremos sobre identidade,
cultura e ideologia para enfim chegamos a discussão sobre a apropriação cultural.
É válido definir que para esse trabalho utilizamos os termos“corpo e
cabelo negro” porque sabemos da existência de uma diferença de tratamento para
pessoas brancas que possuem o cabelo crespo ou encaracolado.

Ademais, sabemos do passado histórico de escravização do Brasil e seu
93 processo de miscigenação e de branqueamento da população e por isso definir a
• cultura africana e afro-brasileira e quem é negro no país, ainda mais pelo racismo
ainda presente,uma difícil tarefa e por isso falar e compreender a apropriação
cultural se torna complexo pois muitos não tem conhecimentodesse panorama
histórico, esperamos proporcionar reflexões sobre esse assunto e uma abertura
para debate.
2 Breve análise da beleza negra
Cabelo de Bombril, palha de aço, cabelo ruim, cabelo duro, cabelo pixaim,
0 são alguns dos adjetivos pejorativos e racistas muito usados cotidianamente para
se referir ao cabelo de negros e negras. Sabemos que o conceito de beleza muda de
1 acordo com o tempo e o lugar que se vive, quando direcionamos para a beleza negra
precisamos compreender a história do continente africano e da escravização para
entender a beleza negra atual.
8
Gomes (2006) ao fazer esse resgate histórico do corpo e cabelo negro,
inicia no continente Africano aonde o penteado poderia ter diferentes significados,
através do cabelo podia-se saber o estado civil, etnia, religião, classe social, local
geográfico ao qual pertence, status dentro da própria tribo e outros detalhes do
indivíduo. O cabelo era uma expressão individual e uma forma de linguagem “O
significado social do cabelo era uma riqueza para o africano. Dessa forma, os
aspectos estéticos assumiam lugar de importância na vida cultural das diferentes
etnias.” (p. 351).
Na África a cabeça raspada também possuía significação na estética dos
penteados africanos, de cunhoreligioso e de transformação e muitas vezes envolvia
cerimonia para raspar a cabeça, ao chegar em terras brasileiras os africanos
escravizados são obrigados a raspar a cabeça por motivos de higiênicos mas
acabaram perdendo dessa forma parte de sua identidade.
No processo de escravização, a primeira coisa que os comerciantes de es-
cravos faziam com sua carga humana era raspar a cabeça, se isso já não ti-
nha sido feito pelos seus captores. Era uma tremenda humilhação para um
J africano ser capturado por um membro de outra etnia ou por um mercador
de escravos e ter seu cabelo e sua barba raspados, dando-lhe a aparência
de um prisioneiro de guerra. Nesse sentido, quanto mais elementos simbó-
A licos fossem retirados, capazes de abalar a auto-estima dos cativos, mais
os colonizadores criavam condições propícias para alcançar com sucesso a
empreitada comercial. (GOMES, 2006, p. 359).
L
O corpo negro foi coisificado durante a escravização com “castigos
L corporais, os açoites, as marcas de ferro, a mutilação do corpo, os abusos sexuais”,
mas diante de tal situação o povo negro sempre buscou maneiras de resistir diante
de tal violência com “as danças, os cultos, os penteados, as tranças, a capoeira”
A (GOMES, 2002, p. 42), essa relação corpórea do corpo negro de objetificação perdura
até hoje e ainda influencia a ideologia da sociedade brasileira onde impera o mito
da força bruta animalesca e da resistência à dor do corpo negro.
Amanda Braga (2014) ao analisar imagens do século XVIII sobre os
negros constatou que o corpo negro era visto como exótico e até animalesco, sendo

expostos em circos, feiras e teatros como anormalidades, o corpo da mulher negra
94 era hiperssexualizado, sendo explorado sexualmente, muitas mulheres negras
• escravizadas foram estupradas por seus senhores o que corroborou para o atual
discurso da promiscuidade da mulher negra.
Um dos casos mais conhecidos é de Saartjie Baartman conhecida como
a “Vênus Negra”, uma mulher negra e gorda do povo africano Khoisan, uma das
mais antigas etnias do África meridional que foi dominada por europeus, Saartjie
2 foi levada para Londres em 1810 pelo cirurgião Dunlop para fazer uma turnê
pela Europa, suas características físicas típicas das mulheres do seu povo foram
0 consideradas como exóticas para o padrão europeu, Amanda Braga (2014) afirma
que a diferença racial foi preponderante para gerar essa dicotomia entre europeus
e africanos, civilizados versus selvagens.
1
No Brasil, as negras escravizadas eram usadas para iniciar a vida

sexual dos filhos dos senhores e quando casados pediam para que suas esposas
8 utilizassem as roupas de sua “amante” negra para conseguir satisfazer-se, como
descreve Freyre (2006), há também a presença dos filhos ilegítimos entre negras
e brancos criando os mulatos que por possuir a pele mais clara que a negra mas
ainda não branca eram mais estimados no sistema escravagista.
Os panos usados pelas negras expressavam, além da estética, a
identidade de quem os portava, os turbantes usados pelas negras no século XIX,
segundo Amanda Braga (2014) estão associados ao status social da negra que
se juntaram com brancos e de suas filhas mestiças, podemos perceber que “a
prática de manipular e enfeitar os cabelos foi sendo, aos poucos sob o domínio da
escravidão, transformada e ressignificada. Os africanos escravizados não perderam
o seu objetivo de enfeitar os cabelos e fazer deles uma assinatura”. (GOMES, 2006,
p. 360).
Gomes (2006) afirma que critérios como cabelo e tom da pele eram
decisivos no sistema escravagista para definir seu “lugar” nele. O padrão de beleza
europeu muito representado desvalorizava, ou melhor, rejeitava o cabelo crespo
herança africana e com a miscigenação surge o cabelo cacheado e com este a
J prática de alisamento dos cabelos para se diferenciar e hierarquizar-se, esse
processo eugenista realizado no país tinha como objetivo a busca por status social.
A Amanda Braga (2014) define esse período para a estética negra como
uma “beleza castigada”:
L Os séculos escravocratas construíram uma beleza castigada, ligada ao cor-
po e bifurcada entre o olhar do negro sobre o negro e o olhar dobranco sobre
o negro: as escarificações, as marcas tribais, os penteados africanos, oacha-
L tamento do nariz e a limagem dos dentes são elementos exaltados apenas
pelo olhar donegro sobre o negro. Num olhar inverso, que faz do branco o
observador, apenas o seumodelo deveria ser posto enquanto conceito de be-
A leza, daí as seleções eugênicas. Esses sãocorpos marcados (na maioria das
vezes, literalmente) pela história, pela identidade, pelageografia, pela esté-
tica e, principalmente, pela diversidade. Aquilo que os singulariza – sinais-
de nação, tatuagens, penteados, narizes, dentes – é também aquilo que os
pluraliza: são nomesperdidos numa multidão de rostos negros, tão diversos
• quanto dispersos. (BRAGA, 2014, p. 107).

95 Mesmo após a abolição da escravatura em 1888 com a Lei Áurea ainda


• permanece o racismo institucionalizado na sociedade e o imaginário de inferiorização
da cultura e da beleza negra. Impera-se, segundo Braga (2014), um sentimento de
“reeducação da raça” e de ajustamento aos “códigos de civilidades” para se tornar
belo, ou seja, aceito. Nasce assim com esse processo de reeducação um sentimento
de negação dos traços negros e de inferiorização da estética negra não somente
2 pelos brancos, mas também pelos próprios negros que passam a acreditar na
ideologia das teorias evolucionistas daquele período.A mídia negra daquela época,

a imprensa negra, busca auxiliar através de suas publicações com que a população
0 negra se “adequasse” aos padrões de comportamento aceitos.
Braga (2014), diz que os concursos de belezas naquele período também
1 foram formas encontradas para moldar e regular o comportamento dos negros,
ademais a concepção de beleza nesses concursos procurava juntar o físico com
8 as virtudes morais, assim não há uma beleza negra mas um corpo negro que se
enquadra em determinados valores morais daquela sociedade. É nesse período,
anos 20 e 30, que ocorre a explosão do alisamento de cabelos crespos, a manipulação
do corpo negro para se ajustar nos padrões de beleza da época, ou seja, a estética
branca. Sobre o alisamento Gomes (2006) fala que “esse comportamento também
pode ser visto como integrante de um estilo de o negro usar o cabelo, construído
dentro de um sistema opressor, porém, com características que são próprias da
comunidade negra e do seu padrão estético”. (p. 203).
Surge posteriormente a Frente Negra Brasileira e o Teatro Experimental
Negro que se destacaram por possuírem uma maior consciência política,estes
começam a realizar ações para conscientização da população negra quanto a
inferiorização em relação à população branca, promovendo assim a igualdade racial
através da inserção da população negra no mercado de trabalho e valorizando a
cultura de origem africana. Apesar dos esforços do movimento negro e da mídia
em mudar a visão sobre o corpo negro ainda persistia nos concursos de belezas o
estereótipo da mulata, esse discurso persiste até hoje século XXI no imaginário do
brasileiro, um grande exemplo é a nossa “Globeleza” que aparecia até 2016 coberta
J apenas por tinta.
Assim, em termos de Brasil, a exaltação da mulata pode ser pensada por
diversas perspectivas. A princípio, desde o período escravagista, como já
A falamos anteriormente, a mulata figurava enquanto corpo cobiçado, sexual-
mente disponível. [...] Por outro lado, essa mesma mulata também figurou
L enquanto signo de uma nação, principalmente no momento de sua rede-
mocratização: era o “produto” positivo de nossa miscigenação racial, prova
final de que vivíamos em democracia racial. A mesma mulata cujo cabelo
L não negava a cor, tinha também um sabor bem do Brasil, a alma cor de anil.
(BRAGA, 2014, p. 174).
A As ações do movimento negro na década de 60 e 70 tinham como objetivo
romper com a rejeição da estética negra consequente do histórico de escravidão
através do uso natural do cabelo crespo, com turbante ou compenteados (tranças
afros, dreadloocks e blackpowers) como forma de afirmação política, símbolo da
beleza negra e do orgulho negro. Essa ressignificação da beleza negra eclodiu no

Brasil graças aos bailes para a juventude, como os da Renascença Clube no Rio de
96 Janeiro. Nos anos 90 a valorização do cabelo natural acompanhou os movimentos
• corporais que se baseavam nas técnicas corporais africanas, influenciados pela
música Hip Hop e rap e nas artes plásticas pelo grafite.
Assim, hodiernamente, o conceito de beleza negra consiste na resistência
e busca de identidade e reconhecimento, pois esta como falei anteriormente é
definida de acordo com o tempo e o lugar que se vive e é influenciada pelo discurso
2 da mídia, do mercado, da política e também pela moda. Gomes (2003c) fala que:
Até mesmo hoje, depois de adultas, mulheres negras continuam enfren-
tando um verdadeiro “patrulhamento ideológico” em relação à sua estética.
0 Alguns as desejam com o cabelo “crespo natural”, considerado por um gru-
po como autêntica expressão da negritude; outros querem-nas de tranças,
1 por julgarem que esse penteado aproxima a mulher (e o homem negro) de
suas raízes africanas; outros, com o cabelo alisado, por considerarem que
tal penteado aproxima as mulheres negras do padrão estético branco, visto
8 socialmente como o mais belo. (p. 176).

Em suma, esse tipo de limites impostos para a estética do corpo e do


cabelo negro só nos mostra que ainda estamos imersos no racismo onde impera
a introjeção do branqueamento, opiniões e desejos sobre a estética do corpo e do
cabelo negro como as citadas por Gomes (2003c) acima são na realidade julgamentos
que revelam que a questão do racismo ainda intrínseco em nossa sociedade ao
ponto de quepenteados de origem afros que são simbólicos para a cultura de um
grupo são apropriados e o indivíduo negro nesse processo sofre apagamento como
veremos mais adiante.
A importância do cabelo para a construção e ressignificação da identidade
negra
Agora que compreendemos através da contextualização histórica
as transformações que a beleza negra sofre ao longo do tempo, temos que nos
questionar: Quem são e o que é ser negro no Brasil? Qual a importância do corpo e
cabelo negro e seus penteados para a identidade negra? e Existe uma cultura afro-
brasileira? Essas são algumas perguntas que pretendemos responder a contento
J ao longo do texto e que são fundamentais para compreender apropriação cultural
afro-brasileira.
A O corpo e cabelo negro como vimos é um veículo de linguagem e que faz
parte da identidade, cultura e resistência do povo negro, Gomes (2012) afirmar que
L estes são “expressões e suportes simbólicos da identidade negra no Brasil” (p. 02).
A antropóloga adiciona ainda que corpo e cabelo são categorias para definir quem
L é branco e quem é negro no país, por isso são mais que traços estéticos, essas
categorias são identitárias.

O cabelo é um marcante indício de procedência étnica, é um dos principais
A elementos biotipológicos na construção da pessoa na cultura. O negro quan-
do assume o seu cabelo de negro assume também o seu papel na sociedade
como uma pessoa negra. E ser negro no Brasil e no mundo, convenhamos, é
ainda um duro caminho trilhado por milhares de afro descendentes. (LODY,
R. 2004, p.125).

• Gomes (2002) afirma que a identidade negra é uma construção social,


97 histórica, política e cultural, consiste na construção gradativa e continua de
como um indivíduo se ver e como o seu “eu” é visto pelos outros. No Brasil essa

construção da identidade negra sofre conflito em sua trajetória, é construído pela
nossa cultura um estereótipo sobre esse indivíduo negro que é generalizado para
todo o grupo que compartilha a mesma cor de pele.
Não é fácil construir uma identidade negra positiva convivendo e vivendo
num imaginário pedagógico que olha, vê e trata os negros e sua cultura de
2 maneira desigual. [...] são vistos como “excluídos”, como alguém que devido
ao seu meio sociocultural e ao seu pertencimento étnico/racial, já carrega
0 congenitamente “dificuldade” de aprendizagem e uma tendência a “desvios”
de comportamento, como rebeldia, indisciplina, agressividade e violência.
(p. 41-42).
1
Munanga (2003), ratifica que a cor da pele (concentração de melanina
que possuímos), é um critério relativamente artificial para fazer a classificação
8
de uma raça e que o conceito de raça de uma perspectiva biológica não é válido,
a ciência não reconhece na humanidade a divisão de raças. Assim, o conceito de
raça no Brasil possui cunho político e ideológico, e não biológico. O antropólogo
ainda adiciona que devido a ideologia introjetada em nossa sociedade do “desejo de
branqueamento” a questão da identidade negra é um processo doloroso.
Embora o Brasil seja uma nação miscigenada que difundi o discurso
de democracia racial, sabemos que na realidade é bem diferente. Em entrevista
intitulada pela revista como A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil, o
antropólogo Kabengele Munanga (2004) fala sobre como se declarar como negro é
uma decisão política. Aproveitamos o momento para ir de encontro com o título que
a revista deu para a entrevista, não consideramos difícil definir quem é negro no
país, difícil é negros se reconhecerem como tal em um país racista onde a cor da pele
ainda é fator decisivo para o modo como o indivíduo é visto e tratado na sociedade, a
pele negra ainda está rodeada de estereótipos pejorativos e preconceitos, ela ainda
é sinônimo de pobreza, marginalidade, criminalidade, promiscuidade e maldade.
[..] a representação negativa do papel das minorias dominadas (e, em alguns
J países, maiorias) for consistente com os interesses dos grupos dominantes
não possuírem muitos contatos étnicos alternativos ou informações, como
é também normalmente o caso em muitas partes da Europa e América La-
A tina, a representação negativa de acontecimentos étnicos e de pessoas pode
facilmente influenciar as mentes dos receptores. Estes últimos formarão,
L portanto, modelos mentais tendenciosos de acontecimentos étnicos especí-
ficos que leem ou ouvem. Esses modelos podem, por sua vez, ser generali-
zados para atitudes negativas e ideológicas sobre os Outros. (DIJK, 2013,
L p.19-20).

No Brasil “ser negro” é “tornar-se negro”, o racismo no país é ambíguo,
A sócio historicamente explicado, e por isso essa identidade negra é construída através
de planos simbólicos como valores, crenças, rituais, mitos e linguagem. Assim, o
corpo e cabelo negro são expressões dessa marca identitária, estes evocam uma
ancestralidade africana que foi/é reinventada e ressignificada no Brasil. (GOMES,
2012, p. 02-03).

Sabemos que a cultura é reformulada a todo momento, ela é resultado das
98 “vivências concretas dos sujeitos, à variabilidade de formas de conceber o mundo,às
• particularidades e semelhanças construídas pelos seres humanos ao longo do
processo histórico e social” (GOMES, 2003b, p. 01). Cultura é “o modo de ver o
mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos
sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos de uma herança cultural,
ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura”. (LARAIA, 2001, p.
2 68). Portanto, a cultura abrange as regras, normas, valores e convenções sociais
do sociedade a qual pertencemos e que nos emitem uma lógica simbólica sem que

muitas vezes percebamos.
0
Laraia (2001) diz que um indivíduo age de acordo com os padrões

culturais da sociedadeque pertence, este indivíduo é resultado dessa sociedade,
1 logo diante de um histórico de inferiorização da cultura negra e na valorização da
eurocêntrica esses foram os valores que foram introjetados em nossa sociedade e
8 estão presentes até hoje.
Sobre cultura Laraia (2001) conclui que:

[...] cada sistema cultural está sempre em mudança. Entender esta dinâmi-
ca é importante para atenuar o choque entre as gerações e evitar compor-
tamentos preconceituosos. Da mesma forma que é fundamental para a hu-
manidade a compreensão das diferenças entre povos de culturas diferentes,
é necessário saber entender as diferenças que ocorrem dentro do mesmo
sistema. Este é o único procedimento que prepara o homem para enfrentar
serenamente este constante e admirável mundo novo do porvir. (p. 128).

A cultura também se relaciona com o corpo e é ela que normatiza a sua


relação com a sociedade, Gomes (2002apud Rodrigues, 1986, p. 45) sobre a relação
cultura e corpo fala que:
As diferentes crenças e sentimentos, que constituem o fundamento da vida
social, são aplicadas ao corpo. Temos, então, no corpo, a junção e a sobre-
posição do mundo das representações ao da natureza e da materialidade.
[...] É a cultura que, à sua maneira, inibirá ou exaltará esses impulsos,
selecionando dentre todos os quais serão os exaltados e ainda quais serão
os considerados sem importância e, portanto, tenderão a permanecer des-
J conhecidos. (p. 41-42).

O passado histórico e a formação sociocultural do Brasil sofreu muita
A influência da diáspora africana, afinal foram cerca de 12,5 milhões de negros
africanos que foram trazido para terras brasileiras sob a condição da escravização,
L influencias estas que estão além da comida, dança, música, língua etc.
A cultura negra pode ser vista como uma particularidade cultural constru-
L ída historicamente por um grupo étnico/racial específico, não de maneira
isolada, mas no contato com outros grupos e povos. Essa cultura faz-se pre-
sente no modo de vida de brasileiros, seja qual for o seu pertencimento ét-
A nico. Todavia, sua predominância se dá entre os descendentes de africanos
escravizados no Brasil, ou seja, o segmento negro da população. (GOMES,
2003b, p. 77).

A cultura africana presente no Brasil logicamente não é a mesma da


presente na África, os negros que foram escravizados e vieram para o país

construíram uma nova identidade que chamamos de cultura afro-brasileira ao
99 inserirem elementos da cultura africana no dia-a-dia da labuta, esta cultura se
• adaptou, se reinventou, se remodelou para que pudessem existir. Desde o início
da escravização estes povos foram proibidos de expressarem sua cultura, foi
resistindo e achando outras formas de lembrar de seus ancestrais que os africanos
influenciaram os costumes brasileiros, sendo o cabelo um deles.
A força simbólica do cabelo para os africanos continua de maneira recriada
2 e ressignificada entre nós, seus descendentes. Ela pode ser vista nas práti-
cas cotidianas e nas intervenções estéticas desenvolvidas pelas cabeleireiras
e cabeleireiros étnicos, pelas trançadeiras em domicílio, pela família negra
0 que corta e penteia o cabelo da menina e do menino. Pode ser vista também
nas tranças, nos dreads e penteados usados pela juventude negra e branca.
Se no processo da escravidão o negro não encontrava no seu cotidiano um
1 lugar, quer fosse público ou privado, para celebrar o cabelo como se fazia na
África, no mundo contemporâneo alguns espaços foram construídos para
8 atender a essa prática cultural. (GOMES, 2006, p.128).

As tranças afros, o blackpower e dreadlocks que outrora eram


característico da cultura do cabelo da população negra por possuírem o cabelo
crespo ou encaracolado e também símbolo de resistência e luta por ser fora do
padrão de beleza liso, ganham destaque e aceitação no século XXI. Entretanto, essa
aceitação muitas vezes só é direcionada quando os estilos de cabelos acima citados
são usados por pessoas brancas, o que gera bastante debate sobre apropriação
cultural e/ou apagamento cultural do povo negro.Reiteramos que o uso desses
penteados pela população negra são mais que valores estéticos, são questões de
identidade que possuem valores simbólicos.
O uso das tranças pelos negros, além de carregar toda umasimbologia ori-
ginada de uma matriz africana ressignificada no Brasil,é, também, um dos
primeiros penteados usados pela negra eprivilegiados pela família. Fazer as
tranças, na infância constitui umverdadeiro ritual para esta família. Elabo-
rar tranças é uma tarefaapreendida e desenvolvida pelas mulheres negras.
(GOMES, 2006, p.171).
J
Existe um discurso muito difundido, produto da ideologia do mito da
democracia racial, que afirmaa não existência de uma “cultura afro-brasileira”
A
e sim uma “cultura brasileira” e por isso usar determinados aspectos da nossa
cultura, como os penteados citados anteriormente, não pode ser considerado
L apropriação uma vez que somos todos brasileiros. Esse tipo de discurso só parece
ser válido quando nos referimos a cultura africana, no sul do país a cultura italiana
L e alemã são identificadas e exaltadas demostrando novamente traços racista de
nossa sociedade.
A Laraia (2001) ao citar o Manifesto sobre acultura realizado em 1953na
Universidade de Stanford, afirma que existem dois tipos de mudança cultural,
o primeiro caso é quando essa mudança é realizada de maneira lenta e poupo
perceptível (é interna) e o segundo caso é rápido e brusco (é externo), um exemplo dado pelo
autor é dos indígenas com a chegada dos Portugueses, mas Laraia afirma tambémque essa
• troca de padrões culturais ocasionado pelo choque de duas ou mais culturas pode
100 acontecer de maneira mais branda e menos radical.
Assim, qualquer sistema cultural está em constante mudança e sofre

influências internas e externas, nenhuma cultura de um povo é completamente
isolada para não sofrer influências externas e ser transformada. As causas externas
das mudanças culturais são bastantes estudadas e foi aí que surgiu o conceito de
aculturação que podemos compreender como as mudanças em um sistema cultural
de um povo consequente do contato entre uma ou mais culturas, comprovando
2 novamente a característica dinâmica da cultura.
Não podemos negar que a cultura afro-brasileira é resultado do processo
0 de aculturação da cultura africana no Brasil, aderindo a abordagem de Clifford
Geertz (1978 apud Laraia, 2001, p. 59) que considera a cultura como sistema
1 simbólico podemos então afirmar que a cultura afro-brasileira recriada no Brasil
pelos descendentes africanos ou afrodescendentes – nesse caso do corpo e cabelo
8 negro – possui símbolos e significados que são compartilhados entre os membros
desse grupo.
O processo de continuidade e recriação de elementos da cultura africana
no Brasil sofre influências não só devido à experiência da diáspora, mas
ao contexto histórico, às mudanças econômicas, à globalização, à exclusão
social, às transformações do mundo da moda e às atuais condições de vida
da população. Porém, mesmo que de forma parcial, os negros, através das
suas técnicas corporais, guardam como evidência de uma tradição africana
o lugar ocupado pelo cabelo na estruturação de sua vida social e psíquica.
(GOMES, 2003b, p. 83).
Assim, como fala Gomes (2003b) brancos e negros são iguais geneticamente,
mas se analisarmos estes atores de maneira histórica, social e cultural é possível
inferir que foi construído ao longo da história, como já falamos anteriormente, uma
hierarquização desses indivíduos, grupos e povos pelas diferenças culturais e que
são expressões socialmente com a valorização de uma cultura e a rejeição de outra,
voltamos novamente às dicotomia entre europeus e africanos, civilizados versus
selvagens.
J No caso do negro brasileiro, a classificação e a hierarquização racial hoje
existentes, construídas na efervescência das relações sociais e no contex-
to da escravidão e racismo, passaram a regular as relações entre negros e
A brancos como mais uma lógica desenvolvida no interior da nossa sociedade.
(GOMES, 2003b, p. 76).
L
Portanto, o uso de determinados aspectos da cultura africanano Brasil
por negros – como os penteados afros - é uma forma de construção do eu e do
L “nós”, é empoderamento, afirmação política, é resistência é algo que é relativo “à
consciência cultural, à estética, à corporeidade, à musicalidade, à religiosidade,
A à vivência da negritude, marcadas por um processo de africanidade e recriação
cultural. [...] o posicionamento do negro diante do outro, [...] da sua história e de
sua ancestralidade”. (GOMES, 2003b, p. 79).
Assim, o uso de determinados aspectos da cultura africana no Brasil por
brancos – como os penteados afros –de maneira descontextualizada, desprovido
• de significação e sem dar a devida valorização histórica e cultural é uma forma de
101 apagamento, é esquecimento, é indiferença, é apropriação, é desmemória de um povo
que sofre/sofreu com os efeitos nefastos do racismo com a rejeição e negação do

corpo e do cabelo negro.
Mercado, consumo, moda e apropriação da cultura afro-brasileira
“Proibir” ou “determinar” que indivíduos, grupos e povos possam ou não
possam usar determinados aspectos da cultura afro-brasileira não é o significado
2 de apropriação cultural, esta é uma questão mais profunda, está além de uma
pessoa branca usar penteados afros, turbantes ou outros tipos de acessórios que
0 são tradicionalmente ligados à cultura africana. Apropriar-se significa usurpar,
tomar, apossar-se, apoderar-se, adequar, adaptar e etc, no caso da apropriação
cultural está ligado ao uso da cultura africana e afro-brasileira e da estética negra
1 que outrora era usado como maneira simbólica, de resistência e de combate ao
racismo e apagar e silenciar esse grupo.
8 A apropriação cultural é uma relação de poder (cultura inferior X cultura
inferior como já explicamos anteriormente), é um fenômeno estrutural e sistêmico

que funciona da seguinte maneira: a estrutura dominante determina que certos
elementos de uma cultura já não são mais inferiores e estes ganham status de
exótico, assim esse elemento se torna popular e ao mesmo tempo lucrativo para
que a estrutura dominante comercialize. Um exemplo é o samba:
[...] durante muito tempo, o samba foi criminalizado, tido como coisa de
“preto favelado”, mas, a partir do momento que se percebe a possibilidade
de lucro do samba, a imagem muda. E a imagem mudar significa que se em-
branquece seus símbolos e atores para com o objetivo de mercantilização.
Para ganhar dinheiro, o capitalista coloca o branco como a nova cara do
samba. (RIBEIRO, 2016).

Por trás do uso dos penteados afros como já falamos anteriormente existe
elementos simbólicos de um povo, é necessário lembrar do passado histórico e as
ações do grupo branco sob os negros. Temos que lembrar ao falar de apropriação
sobre o imperialismo, colonialismos e genocídio, o povo negro desde sempre teve
sua cultura reprimida.
J Nos últimos anos os penteados afros vem ganhando visibilidade, mas
isso não significa que traz visibilidade para o negro, pelo contrário dá uma falsa
A ideia de aceitação e quando um negro usa esses penteados não recebem a mesma
apreciação que uma pessoa branca usa.
L Logo, não é bem visto em suas mãos tanto quanto é bem visto em outras
quando essas são brancas. Sendo assim, uma forma de manter negros em
seu lugar lhes dizendo quando eles podem ou não podem ser vistos, ao redu-
L zir os elementos culturais e as culturas não hegemônicas a uma visão dis-
torcida, vista de fora para dentro. Ao falar de apropriação cultural, estamos
A questionando um ramo dessa «árvore do racismo estrutural», que atinge
diversos povos não brancos, criticados, perseguidos e massacrados por sua
identidade não branca. (RIBEIRO, 2017).

A problemática da apropriação cultural afro-brasileira não é culpa


do indivíduo que utiliza seus elementos de maneira vazia, para compreender a
• apropriação é preciso ver não do ponto de vista particular mas no nível coletivo, um
102 indivíduo que usufrui dos elementos culturais de um grupo ou povo do qual não
pertence ou compreende suas expressões culturais. Ocorre ao mesmo tempo em
• um nível coletivo um processo de silenciamento e marginalização de um grupo ou
povo na estrutura quando seus elementos culturais são usufruídos.
O contexto capitalista, mercado e consumo, dever ser apontado uma vez
que a indústria da moda utiliza elementos culturais afro-brasileiros em modelos
e atrizes brancas tonando esses elementos populares e cool mas também apaga e
2 silencia a simbologia dessa cultura. Ademais, o uso desses penteados desprovido
de significação e monetizado de culturas que são historicamente oprimidas traz
0 consequências:
A nossa luta política é sistematicamente minada por poderes midiáticos.
1 Não é mimimi, não é vitimismo. Não é não. É um esforço hercúleo para re-
construir um pertencimento, uma identidade cultural neste Brasil podendo
trazer a nossa ancestralidade africana como um bem, como algo positivo. É
8 uma luta nesse sentido. (TEODORO, 2017).

Quando elementos culturais como os penteados afros são


“embranquecidos”, sendo utilizados por grupos que historicamente são dominante
se perde a resistência, a simbologia e a história desse povo. Por muitos anos negros
de cabelo encaracolado ou crespo utilizaram diferente maneiras de alisarem o cabelo
para se adaptar ao que era imposto sociedade e no século XX temos visto homens e
mulheres assumindo seus cabelos, mas isso não é apenas uma questão estética, é
revolução, é luta, é aceitação. Quando brancos utilizam esses penteados por fazer
parte de uma tendência, por estar na moda, torna-se ultrajante para negros que
lutaram tanto para assumir esses penteados e continuam sofrendo diariamente os
efeitos dessa decisão política devido ao racismo.
Por isso deve-se levar em conta essa diversidade das experiências culturais
negras, calçadas pela história e pelos contatos, jogos de poder e estratégias
de sobrevivência e resistência cultural com outros grupos étnicos ou so-
ciais, pra entender que o que deve estar em questão não é apenas o uso ou
apropriação de determinadas práticas, mas o entendimento que a cultura
negra, ou culturas negras, não se encerram em si como categorias que não
J dialogam com outras culturas, ou então limitadas a produtos para consu-
mo ou apreciação, apenas. Elas são importantes instrumentos de gestão
A de políticas culturais para os negros que, ainda que os observadores mais
desanimados tendem a pensar que estão longe de concretizar seus propósi-
tos, têm obtido nas significativas e numerosas discussões e contraposições
L apontadas nos diversos meios e redes de comunicação e mídia, ao menos
espaço para levantar com criticidade temas que em outros tempos eram
L invisíveis aos olhos do poder hegemônico global. (PINHEIRO, 2015, p. 14).

A apropriação da cultura afro-brasileira acontece quando o protagonista


A dessa cultura, nesse caso o corpo e o cabelo negro, devido ao uso “fashion” e sem
valor simbólico por pessoas brancas querecebem tratamento diferenciado ao usar

esse elemento cultural em decorrência do racismo. Assim, retornamos a epígrafe
deste trabalho “A apropriação cultural é uma forma racista de dizer que isso ou
aquilo não pode ser negro, mas brasileiro ou multicultural”.(BRANDÃO, Leci).
• Considerações finais
103 É mister que o Brasil é um país multicultural, já vimos que nenhum
• cultura é inerte no tempo, ela sofre influência e transformações ao longo do tempo,
a cultura ainda determina valores, normas, regras e as conversões sociais que
ditam até como devemos nos relacionar com o corpo. A questão racial é em nossa
sociedade um dos fatores que regem nossas relações sociais, assim o corpo e o
cabelo negro em uma sociedade estruturalmente e historicamente racista é tratado
de maneira diferenciadas, no caso inferiorizada e rejeitada.
2
O tema da apropriação da cultura afro-brasileira está dentro dessas
relações sociais, sabemos que cultura afro-brasileira é a cultura africana reinventada
0 no Brasil pelos afrodescendentes com a aculturação sofrida e que o cabelo negro
é mais que simples adereço estético, ele possui simbologia dentro desse grupo. No
1 caso dos turbantes e penteados afros (tranças afros, o blackpower e dreadlocks)
por preponderância do mercado da moda por pessoas brancas é apropriação, uma
8 vez que não possuem valor simbólico para este grupo e quando usados por negros
ainda é considerado não-belo.
É claro que ainda existe uma banalização e distorção do que é apropriação
da cultura afro-brasileira e também em decorrência do mito da democracia racial
e da única “cultura brasileira”, entretanto devemos lutar contra esses discursos
pois devemos manter a representatividade cultural afro-brasileira para que assim
evitemos de que esta seja apagada, silenciada ou distorcida.
Como falamos anteriormente não queremos definir quem pode ou não
usar adereços e penteados de origem cultural afro-brasileira, queremos mostrar a
importância destes itens como forma de manter laços culturais ancestrais desse
grupo que ainda é minoria no quesito representatividade e que ainda sofrem com
o racismo e a relação cultura dominada versus cultura dominante. A questão da
apropriação cultural não é do indivíduo que escolheu usar um adereço de uma
cultura sem saber seu valor simbólico por desinformação, a questão é do sistema
que utiliza esse adereço para fins lucrativos e como consequência acaba realizando
o apagamento cultural de um grupo minoritário.
J Assim, se faz necessário que os indivíduos desse sistema criem senso
crítico e consciência para que ele julgue se ele pode usar ou não esse adereço que
A pode conter grande valor simbólico para um determinado grupo e ele estará usando
apenas por estética, debater essa temática na escola e em espaços acadêmicos,
L como determina a lei nº 10.639/2003 que obriga o ensino da cultura e história
africana e afro-brasileira, é um início para evitar a reprodução de discursos de senso

comum e argumentos distorcidos perpetuem em tal sistema e evitar o apagamento
L cultural desse grupo. Ademais, o debate do tema pode evitar também estereótipos
e representações negativas sobre o corpo e o cabelo negro que são circuladas e
A apreendidas pelos indivíduos na sociedade.
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L

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1

8

J

A

L O TEATRO COMO MEDIAÇÃO PEDAGÓGICA PARA O ENSINO DA
LÍNGUA PORTUGUESA: ESTIMULO A LEITURA, INTERPRETAÇÃO
L E PRODUÇÃO DE TEXTO

A Ane Caroline R. dos Santos Fonseca (UNIR)
RESUMO:O presente artigo visa compreender como o teatro pode influenciar
na aprendizagem e compreensão da língua portuguesa (leitura, interpretação e
produção de texto) de alunos do 6º ano do ensino fundamental, da Escola Durvalina
Estilbem de Oliveira, como parte do Subprojeto/PIBID “Alfabetização Científica
• Interdisciplinar de Leitura”. Para isso, elencamos como objetivo: Utilizar o teatro
106 visando contribuir de forma prática e efetiva no aprendizado da língua portuguesa.
Como base metodológica, utilizamos a pesquisa bibliográfica e a pesquisa-ação.
• Utilizamos como base teórica, Silva (2011), Cunha (2005) e Silva e Leão (2015). As
atividades realizadas ampliaram as relações sociais além de proporcionar aos alunos:
a) Aprendizado de forma dinâmica e prática sobre as normas da língua portuguesa
e b) Melhora na produção e interpretação textual. Utilizando o teatro como processo
metodológico a sala de aula se torna um espaço de interação comunicativa e troca
2 de experiências entre os envolvidos no processo ensino-aprendizagem.
Palavras-chave: Língua Portuguesa. Teatro. Leitura. Produção Textual. Ensino.
0
Introdução
1 Este artigo apresenta os resultados obtidos na implementação da
produção didático-pedagógica, com esse intuito, desenvolveu-se um projeto que
8 buscou influenciar alunos a verem a língua portuguesa como uma disciplina
necessária e importante. Para que isso ocorresse, buscou-se desenvolver um teatro
instigante, lançando-se mão de recursos musicais entre outros meios pedagógicos,
para estimular os alunos a participarem da peça teatral, buscando ensiná-los sobre
a importância da língua portuguesa da forma mais intrigante possível.
A meta principal do projeto foi levar o aluno a adquirir uma experiência
mais interativa possível com a língua portuguesa e, com isso, ampliar suas
percepções sobre quais são as regras e normas de sua língua.
O projeto desenvolvido foi direcionado aos alunos do 6º ano do ensino
fundamental da Escola EstadualDurvalina Estilbem de Oliveira, da cidade de
Guajará-Mirim(RO), como parte integrante das atividades do Subprojeto/PIBID
“Alfabetização Científica Interdisciplinar de Leitura”, atividade essa idealizada pelos
bolsistas do projeto, pertencentes ao curso de letras da Fundação Universidade
Federal de Rondônia UNIR, e coordenado pelos professores supervisores Janine
Felix da Silva e Jacinto Pinto Leão.
Para a realização da atividade relatada neste artigo tivemos como objetivo
geral: Utilizar o teatro visando contribuir de forma prática e efetiva no aprendizado
J da língua portuguesa (leitura, interpretação e produção de texto) e como objetivos
específicos: II) elaborar e executar um teatro motivacional, relacionado ao cotidiano
A das crianças com a prática de leitura e escrita; III) promover a interação dos alunos
com a língua portuguesa através de atividades lúdicas; IV) ler textos de diferentes
L tipologias, para a elaboração de diversos resumos, sínteses e textos dissertativos;
v) desenvolver habilidades indispensáveis de leitura, interpretação e oralidade; VI)

elaborar peças que facilitem a aprendizagem das normas da língua materna.
L
Para o desenvolvimento da proposta utilizamos como metodologia a
pesquisa bibliográfica e pesquisa-ação. Para a elaboração dessa pesquisa fizemos
A uso do recurso lúdico teatro como mediação pedagógica e foram desenvolvidas em
três etapas: a) na primeira etapa foram realizadas leituras de teóricos que refletem
sobre o tema da pesquisa, a concepção de ensino de língua, leitura e produção
textual, bem como a utilização do teatro como mediação pedagógica; b) na segunda
etapa, foram realizados encontros para organização e criação da estrutura do
• teatro, o qual foi elaborado baseado no conto intitulado “A branca de fome e os
107 sete anões”, de Mauricio de Souza, o qual traz uma linguagem bastante moderna,
entretanto estruturada dentro das normas da língua portuguesa padrão, estando

presentes contextos gramaticais e semânticos. Portanto, a temática central se deu
ao em torno da necessidade da utilização da língua padrão.
Durante os ensaios trabalhava-se a leitura e interpretação do conto,
assim como a escrita de resumos dos acontecimentos da história; c) na terceira
2 etapa desenvolvemos o teatro como parte do projeto escolar “Todo dia e dia de ler”.
O presente trabalho se fundamentou nas observações efetuadas e nos resultados
obtidos com o projeto realizado, assim como na fundamentação teórica que serviu
0 de apoio para a realização da atividade.

Ensino de Língua Portuguesa e o teatro
1
Desde 1980 discute-se uma “reformulação” no ensino de língua

portuguesa, mas, apesar dessa discussão, observa-se uma grande dificuldade dos
8 alunos que estão no ensino fundamental e médio em produzir e interpretar textos.
Muita escola tem ensinado aos seus alunos a utilizarem a leitura e a escrita de
forma mecânica e sistemática, e estes apresentam apenas resultados superficiais e
insuficientes para sua efetiva aprendizagem.
Sendo de suma importância que o professor em sala de aula mostre aos
alunos que para elaborar um texto não é preciso apenas colocar palavras no papel,
mas, sim, organizá-las de uma maneira que o seu interlocutor possa compreendê-
lo. (PARANÁ, 2008, p. 68). Segundo Pécora (1983, p.68, citado por PARANÁ, 2008,
p.69), o aluno, muitas vezes, por não saber para que ou para quem escrever, acaba
utilizando a chamada “estratégia de preenchimento”, preenche as linhas, mas não
produz um texto. (PARANÁ, 2008, p. 68).
A língua portuguesa é a nossa ferramenta de comunicação e por meio
dela podemos expressar nossas emoções, pensamentos, certezas e incertezas,
frustrações e vitórias. É através da língua falada ou escrita que podemos nos
comunicar com pessoas de diferentes lugares do mundo, conhecer e valorizar
culturas.
J Para isso, é mister que o ensino de língua materna se desvincule de
práticas antiquadas de mera classificação gramatical, transformando-se em algo
A realmente útil para a vida do aluno, conforme preconizam os PCN:
Língua é um sistema de signos específico, histórico e social, que possibilita
L a homens e mulheres significar o mundo e a sociedade.

Aprendê-la é aprender não somente palavras e saber combiná-las em ex-


L pressões complexas, mas apreender pragmaticamente seus significados cul-
turais e, com eles, os modos pelos quais as pessoas entendem e interpretam
a realidade e a si mesmas. (BRASIL, 1998, p 20).
A
O que vemos hoje em nossas salas é uma desvalorização da nossa
língua, pois ao adentramos em uma sala de aula percebemos o desinteresse e o
desgosto dos alunos ao estudarem a língua portuguesa, isso porque, ele ainda tem
uma visão que estudar língua portuguesa é estudar normas e regras gramaticais
• descontextualizadas. Eles trazem enraizados dentro de si a ideia que não sabem
falar o português. O aluno se vê frustrado no seu esforço de estudar e, quase
108
sempre, abandona a escola, no entanto, eles devem perceber que o uso padrão da
• língua tem hora e lugar para acontecer e é papel da escola possibilitar esse universo
da leitura, para que a língua padrão seja utilizada nas produções de textos e em
situações comunicativas que exijam sua utilização.
Entretanto, para que este cenário mude, faz-se necessário que haja um
maior incentivo a produções de textos que possam ser expostos, no qual os alunos
2 terão a possibilidade de exporem e apresentarem suas produções seja de forma oral
ou escrita, ou neste caso através de teatro, dando-lhes a possibilidade de verem
0 que seus estudos estão de certa forma contribuindo para sociedade, através de
uma conscientização em diversos aspectos. É por meio de demonstrações públicas
de seus conhecimentos que os alunos terão interesse em ampliar seu vocabulário,
1
suas perspectivas, opiniões, visões e concepções, pois o teatro permite a apreensão
de informações e o entendimento de como a língua se organiza, entre outras coisas.
8
Uma questão importante a se responder é, como provocar a descoberta
de que a língua é imprescindível para agir no mundo e, com isso, possibilitar aos
estudantes da educação básica o desenvolvimento de habilidades e de competências
linguísticas? O teatro, incluindo o texto teatral/dramático, é defendido como uma
das possibilidades.
Para especialistas, existem muitas oportunidades de aprendizagem a
partir do estudo da linguagem do teatro, considerando desde o conhecimento das
especificidades do texto dramático até a atenção à linguagem corporal, inclusive,
abordando questões como a adaptação de contos e crônicas — textos de tipologia
predominantemente narrativa — para o texto teatral.
“A respeito do texto teatral, deve ser destacado o tratamento linguístico
diferenciado para a palavra escrita, pois essa é, desde o início, projetada para o
palco. Vale também a distinção entre o texto teatral e os demais textos/gêneros;
o reconhecimento de que o texto teatral narra um acontecimento que ocorre no
presente enquanto os demais gêneros narrativos narram um acontecimento que
J ocorreu no passado — esse assunto possibilitará a abordagem do uso dos tempos
verbais, das finalidades desses usos e das marcas dos discursos direto e indireto”.
A Na prática, a adaptação de um texto dramático exigirá que o professor
oriente os alunos na construção das rubricas para as falas das personagens com
L as indicações de sentimentos e de comportamentos, para a composição do cenário,
para a divisão da peça em atos e para a entrada e a saída das personagens. “Ao
produzir um texto teatral/ dramático, os alunos também deverão ser orientados a
L
revisá-lo quanto à organização gráfica e estrutural própria do gênero, como quanto
aos aspectos convencionais da escrita: ortografia, acentuação, concordância,
A regência, colocação pronominal.
Após a apresentação, é necessária a avaliação, em que os alunos sejam
chamados a refletir sobre suas expectativas, experiências e aprendizado no decorrer
do trabalho. “Quando a Língua Portuguesa sobe ao palco, as possibilidades de
construção de conhecimento, compromisso e responsabilidade, próprios das aulas
• de arte como o teatro, invadem as salas de aula”.
109 As crianças bem como os adolescentes possuem inúmeras formas de
• aprender determinado conteúdo, sendo assim, quanto mais prática e dinâmica for
está aprendizagem mais fácil será de se obter resultados satisfatórios e visíveis.
Uma das formas dinâmicas de ensino-aprendizagem tem sido o teatro, o qual auxilia
os alunos em suas áreas cognitivas e motoras, as quais influenciam fortemente na
capacidade de compreender e analisar determinados fatores, sendo o teatro um
2 forte aliado na aquisição de saberes e de cultura.
A linguagem artística utilizada em atividades lúdicas possibilita um maior
0 impacto na assimilação de uma informação.As atividades lúdicas fazem com que
as crianças reproduzam/transformem o real de acordo com o seu próprio desejo,

proporcionando experiências de tal maneira que elas adquiram conhecimento.
1 Portanto, a utilização do teatro, dinamiza o processo de ensino-aprendizagem e
facilita o processo de entendimento e adesão da língua portuguesa.
8 Para os alunos, o teatro ajuda no seu desenvolvimento e formação,
despertando o desejo pelo conhecimento, e é por isso que ele pode ser um ótimo
complemento na educação básica, pois ele auxilia trazendo a informação e
entretenimento de uma forma mais prazerosa e divertida. Como todo tipo de arte,
o teatro traz consigo uma carga enorme de aprendizado, entretenimento, inclusão
e principalmente cultura.
Dessa forma, levar o teatro até as aulas de Língua Portuguesa, proporciona
os alunos a chance de interagir com diversas variantes sem atitude preconceituosa
oportunizando discussão das diferenças culturais a partir dos usos linguísticos.
O mundo da leitura
A importância da Leitura na Formação Social do Indivíduo, é feita
por meio de várias leituras que através das mesmas podemos formar cidadãos
críticos, para que tenham condições indispensáveis para o exercício da cidadania,
tornando-se o indivíduo capaz de compreender o significado das inúmeras vozes
que se manifestam no debate social tendo consciência de todos os seus direitos e
sabendo lutar por eles.
J O ato de ler é representado por meio da escrita e cada leitor possui
características e experiências próprias em seu cotidiano. Por meio da leitura
A resgatamos nossas lembranças mais especiais, como também nossa cultura
que tem finalidade a formação de cidadãos críticos e conscientes de seus atos,
L respeitando, no entanto a diversidade cultural de cada indivíduo.
Trabalhar com textos de tipologia diversa e produzidos por diferentes
L setores da cultura nacional significa, em última análise, dar aos alunos meios e
instrumentos para uma leitura plural do mundo.

A Define-se de uma forma bem simples e objetiva o que é ler, mostrando


que este ato não é simplesmente um aprendizado qualquer, e sim uma conquista
de autonomia, que permite a ampliação dos nossos horizontes. O leitor passa
a entender melhor o seu universo, rompendo assim as barreiras, deixando a
passividade de lado, encarando melhor a face da realidade.
• Não podemos nos esquecer de que na sociedade onde estamos inseridos
somos peças fundamentais do processo cultural. A leitura, no entanto faz parte
110
deste contexto social, pois é através dela que conduzimos nos pensamentos,
• nossas ideias e ir até onde nossa imaginação possa nos levar. A leitura em si é uma
atividade prazerosa e poderosa, pois desenvolve uma enorme capacidade de criar e
ampliar cada vez mais os nossos conhecimentos.
São importantes que sejam incentivadas as leituras também das
entrelinhas, que sejam exercitadas as diferentes formas de se abordar um mesmo
2 conteúdo ou uma mesma sequência de fatos, imaginando-se a história contada de
outros pontos de vista, por exemplo, que se comparem textos diferentes sobre um
0 mesmo assunto, que se busquem referências a outros textos neste que está sendo
lido (intertextualidade), que se incentive o posicionamento do aluno a respeito da
1 (s) ação (ões) de algum personagem, bem como o que ele imagine outra solução
para o seu problema, e assim por diante, garantindo que, além de identificarem
ou reconhecerem, os alunos utilizem e exercitem níveis superiores de pensamento,
8 como a inferência, a comparação, a formulação de perguntas, de uma ideia ou
conclusão, a busca de justificativas ou argumentação, o estabelecimento de
relações, a imaginação etc. Elizabeth Baldi (2009, p. 46).
O hábito da leitura é muito importante para o desenvolvimento do
intelecto e também o caminho mais curto para adquirir conhecimento. A leitura
é um instrumento necessário para possibilitar ao aluno certas garantias em uma
sociedade letrada. O processo de leitura e escrita deve ser permanente e exercitado
com continuidade, pois, somente com a prática, o leitor passivo tornar-se-á crítico.
A importância do teatro no processo de aprendizagem
O teatro, como arte, foi formalizado pelos gregos, passando dos rituais
primitivos das concepções religiosas que eram simbolizadas, para o espaço cênico
organizando, como demonstração de cultura e conhecimento. É, por excelência, a
arte do homem exigindo a sua presença de forma completa: seu corpo, sua fala,
seu gesto, manifestando a necessidade de expressão e comunicação.
O homem sempre teve a necessidade de representar. Representar
J suas tristezas, angústias, alegrias, etc. Seja inicialmente para cultuar deuses e
posteriormente uma atividade dramática cultural encenada por muitos povos, o
A fato é que a partir de então o teatro faz parte da nossa cultura. Desde os tempos
de Platão o teatro vem sendo abordado com a intenção de educar. (ARCOVERDE,
L 2008, p. 600)
Segundo os PCNS (2001, p. 84) o teatro, no processo de formação da
L criança, cumpre não só a função integradora, mas dá oportunidade para que ela
se aproprie crítica e construtivamente dos conteúdos sociais e culturais de sua
comunidade mediante trocas com os seus grupos. No dinamismo da experimentação,
A da fluência criativa propiciada pela liberdade e segurança, a criança pode transitar
livremente por todas as emergências internas integrando imaginação, percepção,
emoção, intuição, memória e raciocínio.
Trabalhar com o teatro na sala de aula, não apenas fazer os alunos
• assistirem as peças, mas representá-las, inclui uma série de vantagens obtidas:
o aluno aprende a improvisar, desenvolve a oralidade, a expressão corporal, a
111 impostação de voz, aprende a se entrosar com as pessoas, desenvolve o vocabulário,
• trabalha o lado emocional, desenvolve as habilidades para as artes plásticas
(pintura corporal, confecção de figurino e montagem de cenário), oportuniza
a pesquisa, desenvolve a redação, trabalha a cidadania, religiosidade, ética,
sentimentos, interdisciplinaridade, incentiva a leitura, propicia o contato com obras
clássicas, fábulas, reportagens; ajuda os alunos a se desinibirem-se e adquirirem
2 autoconfiança, desenvolve habilidades adormecidas, estimula a imaginação e a
organização do pensamento. Enfim, são incontáveis as vantagens em se trabalhar
0 o teatro em sala de aula. (ARCOVERDE, 2008, p.601).
Segundo os PCNs o teatro no ensino fundamental proporciona experiências
que contribuem para o crescimento integrado da criança sob vários aspectos. No
1
plano individual, o desenvolvimento de suas capacidades expressivas e artísticas.
No plano do coletivo, o teatro oferece, por ser uma atividade grupal, os exercícios
8 das relações de cooperação, diálogo, respeito mútuo, reflexões sobre como agir com
os colegas, flexibilidade de aceitação das diferenças e aquisição de sua autonomia

como resultado do poder agir e pensar sem coerção.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais buscam identificar os diversos
argumentos sobre a importância do conhecimento artístico. A abordagem dramática
na educação admite a importância do teatro infantil e considera-o como base da
educação criativa. O teatro na escola, de acordo com os PCNS, tem o intuito de que
o aluno desenvolva um maior domínio do corpo, tornando-o expressivo, um melhor
desempenho na verbalização, uma melhor capacidade para responder às situações
emergentes e uma maior capacidade de organização de domínio de tempo.
Neste contexto, mostrar a importância do teatro na formação e
no desenvolvimento da criança, adolescente, levando em consideração sua
individualidade, seu modo de pensar sentir e agir diante das circunstâncias da
vida. O teatro auxilia a criança no seu crescimento cultural e na sua formação
como indivíduo, assim o teatro passa a ser fundamental para o desenvolvimento
J perceptivo da criança.
Compete à escola junto com seu P.P.P oferecer espaço para a realização de
A atividades, mais flexível para que os alunos possa criar, representar e encenar suas
criações de forma espontânea através de seu próprio saber.Pois o teatro estimula o
L indivíduo no seu desenvolvimento mental e psicológico.
O teatro, a partir da nossa experiência com projeto, se mostrou um ótimo
L instrumento no processo de ensino aprendizagem. Constatou-se que, muito mais
que ensino de língua materna, esses alunos precisam de atividades que permitam
refletir sobre suas escolhas na sociedade, o respeito ao próximo, o carinho e o
A amor. Segundo os PCN de Arte:
“A experiência do teatro na escola amplia a capacidade de dialogar, a ne-
gociação, a tolerância, a convivência com a ambiguidade. No processo de
construção dessa linguagem, o jovem estabelece com os seus pares uma
relação de trabalho combinando sua imaginação criadora com a prática e a
• consciência na observação de regras”. (1998, p. 88).

112 Considerações finais


• O principal objetivo dessa atividade foi observar a interação dos alunos
com os diversos aspectos da língua portuguesa, através do teatro. E apesar de
alguns alunos apresentarem dificuldades em alguns quesitos como leitura e escrita,
os resultados obtidos foram satisfatórios tendo em vista que os alunos participarão
da atividade, lendo o conto a branca de fome com muito entusiasmo fazendo o
2 resumo e debatendo sobre o conto, no qual contribuirão com sugestões para o
roteiro da peça. Foi possível perceber que entenderam e participaram efetivamente
0 das atividades que lhes foram propostas.
Pretendemos que esse projeto tenha estimulado nos alunos um processo
1 de leitura permanente, para estarem continuamente atualizados frente aos desafios
e perspectivas do mundo, explorando os sentimentos e emoções que o cercam,

podendo então vivenciar experiências que propiciem os conhecimentos para seu
8 próprio processo de aprendizagem.
Com o trabalho realizado verificou-se que o teatro contribui no
desenvolvimento do aluno e proporciona aprendizados, e auxilia o aluno a
desenvolver suas próprias potencialidades, seja na parte artística ou pedagógica.
Além disso, o teatro também proporciona ao educando o conhecimento de outros
gêneros textuais.
Constatou-se também que o teatro usado como recurso pedagógico para
aprendizagem da língua portuguesa, favorece o processo de educação e motivação
para a leitura e escrita de textos. E percebeu-se através da prática a necessidade
de constituição de sujeitos leitores/produtores de textos. E que é necessário
desenvolver nos alunos suas próprias capacidades leitoras e produtoras, por meio
de reflexões que podem ser obtidas no teatro, ou em outros métodos pedagógicos.
Mas para que uma mudança ocorra, de fato, faz-se necessário, em
primeiro lugar, uma formação adequada para os futuros professores e a formação
continuada para aqueles que já são graduados, para que depois esses professores
levem para sala de aula essa concepção de língua viva, dentro de um contexto
J real para os alunos. Nessa perspectiva, usar novas metodologias de ensino torna-
se imprescindível, tudo o que os alunos vivenciam no cotidiano faz diferença na
A hora de produzirem um texto. Dentro dessa concepção espera-se que através do
teatro o aluno amplie seu conhecimento, não apenas o conhecimento gramatical,
L mas também seu conhecimento de mundo, para que compreenda os discursos da
sociedade em que vive, saiba analisa-los criticamente e interfira nela para melhora-

la.
L
É interessante refletir sobre a importância da boa formação do professor
para que este seja capaz de cumprir o seu papel de mediador nos processos de
A ensino aprendizagem. Segundo os PCN de Língua Portuguesa:
“A formação de professores se coloca, portanto, como necessária para que a
efetiva transformação do ensino se realize. Isso implica revisão e atualização
dos currículos oferecidos na formação inicial do professor e a implementa-
ção de programas de formação continuada que cumpram não apenas a fun-
• ção de suprir as deficiências da formação inicial, mas que se constituam em
espaços privilegiados de investigação didática, orientada para a produção
113 de novos materiais, para a análise e reflexão sobre a prática docente, para a
• transposição didática dos resultados de pesquisas realizadas na linguística
e na educação em geral” (1998, p. 67).

É importante deixar bem claro que não está sendo proposto um vale-tudo
para o ensino da língua, mas uma nova perspectiva de análise da organização,
sistematização e funcionamento da mesma, a fim de possibilitar que o aluno adquira
2 conhecimento dos elementos gramaticais, lexicais, semânticos e morfossintáticos
da língua, de uma forma diferenciada.
0 Entendemos que o teatro é uma forma lúdica em dar um recado educativo,
sério e socializador, sendo um recurso fundamental no incentivo ao estudo da
1 língua. Como o projeto desenvolvido faz parte do subprojeto PIBID/UNIR/GM, não
poderíamos concluir esse artigo sem agradecer a CAPES pelo financiamento do

subprojeto em questão, sem o qual não teríamos a possibilidade de testar as teorias
8 aprendidas no âmbito universitário.
Referências
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CRIANÇA – PUCPR, 2008.
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114

2

0

1

8

J

A

L EL BRAMIDO ANIMAL DE LA POESÍA TESTIMONIAL EN
COLOMBIA, UNA TRADICIÓN AL MARGEN
L
Angélica Patricia Hoyos Guzmán (UNIVERSIDAD DEL MAGDALENA)
A RESUMEN: Esta propuesta pone en discusión la ubicación dentro del campo
literario de una tradición al margen la de la poesía testimonial. Interpreto un
corpus de poesía contemporánea escrita en Colombia que durante finales del siglo
XX y lo que va del XXI manifiestan una estética de la sobrevivencia, desde la cual
se piensan las huellas de las violencias vividas en el país. La poesía testimonial
• moviliza políticas afectivas que interpelan a los lectores desde la ontología de la
lengua resto o lengua del testimonio. Esta tradición es híbrida, entre la lírica y la
115
crónica y se ubica dentro de las escrituras posautónomas, respondiendo también
• a la sensibilidad que amplía la imaginación pública sobre los sujetos marcados por
el trauma de la guerra. Con todo esto la poesía testimonial transgrede no solo lo
canónico literario sino los discursos hegemónicos de la memoria de la violencia en
Colombia.
Palabras clave: Poesía testimonial. Poesía colombiana. Sobrevivencia
2 La poesía testimonial propone abiertamente una manera de escribir el
país desde lo político, ético y estético respondiendo a los temas del desplazamiento y
0 la migración interna a causa de la violencia, la desaparición forzada, la marginación
de los otros y una escritura colindante en la subjetividad de quienes sobreviven a
1 esta realidad y del poeta testigo como sujetos enunciadores de discurso afectivo
frente a la violencia.
8 En el análisis propuesto desde la crítica de la memoria y el giro afectivo,
encuentro que las comunalidades trazadas por la poesía testimonial dibujan en
el país un mapa de intensidades, donde la animalidad es la salida militante que
propone la poesía ante lo que resta de la guerra, la única forma de restituir lo
perdido por la violencia, tanto las vidas, como los derechos, es el ruido como
agente del resto, como configuración de los cuerpos ausentes, como lenguaje del
testimonio, la única posibilidad de dignificar y sobrevivir afectivamente al trauma.
Esta propuesta literaria altera la sensibilidad oficial de la poesía y altera también las
posibilidades de representación del dolor, al mismo tiempo que crea lazos comunes
frente a la falta, aliados a través del amor, la amistad, la esperanza, el miedo, la
vergüenza y la culpa.
El animal poético emerge en los textos testimoniales para sobrevivir ante
la destrucción, el poeta testigo se vale del lenguaje fallido, del bramido, para crear
y a partir de allí decir y poner a decir a las víctimas que no son más objeto de
memoria, sino ya sujetos de discurso. Las fronteras entre lo narrativo y lo lírico
también recrean este devenir sobreviviente en la escritura, son coherentes con la
J misma articulación de lo ruidoso posible únicamente a través del recuerdo que
la poesía recrea hacia el presente, como fuerza vital y movediza ante el olvido por
A acumulación.
Poesía testimonial una tradición al margen: tres momentos de la poesía
L Con la poesía testimonial como forma estética, cuyo brote tiene asideros
en los periodos seculares de la violencia, se abre el camino para lo que actualmente
L puede considerarse como un poeta al margen tanto de la institución literaria como
de la militancia partidista. La poesía es militante de lo popular que se desdibuja
desde el resto religioso, político, histórico, colectivo e individual de la experiencia
A
del recuerdo. En vez de desdeñar estas formas, es necesario nombrarlas para
reconocer lo que en ellas ha sido la intención de afectar al lector para intervenir de
alguna manera en la realidad social, para hacer justicia desde la poesía y a través
de la imaginación pública.
• Bien entrado el siglo XX, en las dos últimas décadas se vive también el
clímax de lo que lo que Daniel Pécaut (2001) llama la violencia generalizada, allí
116
también aparecen los poetas para pensar la realidad social, la seguidilla de autores
• que militan con la palabra con influencias de la poesía comprometida de Mario
Rivero, de Gaitán Durán y de otros siempre al margen de la poesía oficial. Estos
poetas surcan nuevas influencias líricas y a través de festivales poéticos, derivan
en la proliferación no deliberada, de constelaciones de poetas que indistintamente
de su proceso creativo individual están unidos por el lazo de lo común de la vivencia
2 de la guerra, de una lengua de la sobrevivencia.
No hizo falta en Colombia el expresionismo como emergente desde el
0 romanticismo, como en Europa porque ya la poesía había dado el testimonio, ya se
había hablado de los primeros poetas testimoniales, ya las violencias hacían urgente
1 el vehículo afectivo de la poesía para expresar sus políticas afectivas. Esto es lo que
identifico como una estética de la sobrevivencia, cuyas formas se dan desde el resto

y lo común de la herida, desde la presencia de guerra en las poblaciones rurales,
8 desde la presencia del estado a través del miedo instaurado en ellas, como entiende
la marginación la antropóloga Margarita Serje (2012).
Agrupo entonces, a través de la estructura sentimental de la época
(Williams, 1980), la sensibilidad que proponen los poetas testigos, durante el
llamado período más fuerte de la violencia en Colombia,1 no quiere decir que aquí
estén todos, ni que sean los únicos, sino que son los que he encontrado y que

1  Según el Informe Basta Ya, del Centro Nacional de Memoria Histórica, se entiende que esta época
inicialmente va desde 1982-1996, se distingue por la proyección política, expansión territorial y
crecimiento militar de las guerrillas, el surgimiento de los grupos paramilitares, la crisis y el colapso
conforman este corpus (cuerpo-palabra herida), el cual he estado investigando en
los últimos años y en donde he identificado una estética a partir de la manifestación
poética alrededor de la violencia como forma de vida y de sobrevida, como formas
de dignidad y de justicia frente al trauma vivido por las poblaciones al margen en
el país.
Me dedico al corpus de los poetas testigo, entendiendo que no están
distantes en sus intencionalidadades poéticas y políticas, entendiendo política desde
J Ranciére (2005) como todo aquello que desordena, es decir como esa colindancia
entre la lírica y la crónica, en la lengua del resto que es también una lengua literaria
A y que implica un creador al margen. Por ello, los primeros poetas testigo los agrupo
a finales del siglo XX, durante la época de la guerra contra el narcotráfico, las
L masacres paramilitares y los enfrentamientos entre estos y las guerrillas, entre los
ejércitos. Los llamo también poetas asesinados, o suicidas porque se atrevieron

a ejercer el derecho a decir a pesar de la amenaza que asumieron por su virtual
L peligrosidad. Es el caso de Julio Daniel Chaparro, Tirso Vélez, Edwin López, Gersón
Gallardo.
A Otras formas de sobrevivencia las exponen familiares y amigos de las
víctimas de asesinatos, desapariciones forzadas y desplazamiento. Poetas dolientes
que hacen de la poesía un vehículo para el duelo colectivo, a partir del afecto
íntimo de la pérdida registran la intensidad de la violencia en el colectivo de la
nación colombiana, nombran otras voces, las incorporan y desapropian (Rivera
• Garza, 2015) su dolor para entregarlo a un registro común. En este segundo grupo
117 podemos ubicar el trabajo de: “Conversación a Oscuras” (Benavides, 2014); Rostro
que no se encuentra (Gómez Mantilla, 2009); “Lección de Olvido” (Gómez Mantilla,

2007); “Palabras como cuerpos. Antología de poemas en memoria de Edwin López,
Gerson Gallardo y Tirso Vélez” (Gómez Mantilla, 2013); Regresemos a que nos
maten amor (Ariza Navarro, 2008); “Amazonía y otros poemas” (Galeano, 2011).
También existe una política de sobrevivencia en aquellos poetas testigo
2 que se conduelen, asumen el dolor de los otros y con ello crean un registro poético
testimonial desde su propia voz que es otros en nosotros, desde la empatía como
política y creación verbal (Bajtín, 2000). Incorporan sus afecciones, las sienten y
0 buscan hacer sentir a los lectores con ellas. En el tercer grupo entonces puedo
ubicar a los siguientes trabajos: El sol y la carne (Charry Noriega, 2015); Asma
1 (Delgado Fabio, 2015)(2015); Seré tu voz (Romero, 2015); Al otro lado de la guerra
(Acosta, 2010),Tempus (Vargas Carreño, 2014); Soportar la joroba (Valcke, 2011)
8 Péndulos (Valbuena, 2010); Memorial del árbol (Gómez, 2013);El falso llanto del
granizo (Pardo, 2014); Poemas de la guerra (Torres, 2000); Música lenta (Romero
Guzmán, 2015); Puerto calcinado (Cote, 2003), Circulando (Andrade, 2009).
La edad de los poetas se presenta como una sensibilidad que posibilita

parcial del Estado, la irrupción y propagación del narcotráfico, el auge y declive de la Guerra Fría
junto con el posicionamiento del narcotráfico en la agenda global, la nueva Constitución Política de
1991, y los procesos de paz y las reformas democráticas con resultados parciales y ambiguos. El
tercer periodo (1996-2005) marca el umbral de recrudecimiento del conflicto armado. Por esto se
toman para el estudio poemas y poemarios publicados entre 1980 y 2015, atendiendo además al
período de postconflicto.
los afectos poetizados con el testimonio, distinta a la llamada institucionalmente
como memoria histórica2 del conflicto. A contrapelo del discurso banal del archivo
acumulativo, la poesía se obstina en destacar las épicas de la sobrevivencia. Crea
un imaginario de lo irrepresentable del dolor, con la lengua resto, la lengua del
testimonio (Agamben 2000). Además, hay un cuestionamiento con la palabra en la
primera forma de sobrevivir en y con la poesía, una resistencia a pesar de la muerte,
una intermitencia, tal como define la sobrevivencia (Didi-Huberman, 2012).
J La mirada del poeta testigo y la imaginación pública
Lo que resuelve la poesía testimonial no es solo la evidencia del resto como
A militancia posible, sino también el duelo colectivo, el pueblo que falta (Deleuze
& Guattari, 1996), con ello una reterritorialidad de las víctimas, de los despojos
L de la guerra a la población. Se entiende pueblo desde la noción de “sujetos de
proceso político” que enmarca Alain Badiou (2014) en el sentido de los pueblos de
L excepción. El pueblo existe como sujeto de justicia, indistintamente del despojo
de los derechos que denuncia la poesía, de la animalidad y la condición de resto
que restituye y vindica este despojo, porque a través de la imaginación se ejercen
A políticas de justicia. Por ello la sobrevivencia es militancia desde la poesía, en este
caso. La mirada del poeta testigo, la exhibición de las imágenes que se conduelen
crean un imaginario público que se enfrenta a las cifras, resiste al archivo pues no
busca acumular sino traer siempre al presente el dolor de los otros.
Interpretar el país desde esta imaginación creada, siempre en presente,

permite ejercer la política de la empatía con el dolor y tal vez alguna posibilidad de no
118 repetición y restitución simbólica de lo acontecido, tal vez no sólo acostumbrarnos
• a la guerra, sino que con este lenguaje, hay una decisión política, un gesto que
es ejercido por los poetas testigos, que es el de volverse a mirar los restos de la
violencia, hablar de ello, atenderlo, escucharlo y reconocer los afectos y sus políticas
como alianza para superar las violencias.
En este momento, esta escucha activa, la ejerce la poesía desde una política
2 del amor que hace posible la escritura para la justicia, la creación desapropiada
como ideal de lo real, como deseo de intervención y transformación posible de
0 la realidad. Las relaciones entre justicia y literatura se dan como respuesta a la
pregunta por la sensibilidad que emerge como sobrevivencia, como resistencia

frente a la destrucción. La edad de los poetas entrega una noción de sobreviencia-
1 en-común que parte de esa creación conjunta, del documento del que hacemos
parte como país, de la contraimaginación que hacemos ante el archivo y el lenguaje
8 banal de la violencia.

La animalidad y el bramido como formas al margen


Según lo presentado hasta aquí, tengo entonces que la definición de la
2  En este marco también, como una obligación del Estado en el nuevo milenio, emerge la política
pública de la memoria en Colombia que se encarga de recuperar los testimonios de las víctimas de
la violencia, regulado mediante la denominada “Ley de víctimas y restitución de tierras” en donde
desde el artículo 146 de la Ley 1448 de 2011 se crea y se regula el Centro Nacional de Memoria
Histórica (CNMH). La misión de esta institución no es de naturaleza judicial ni sancionatoria, es
decir, no incide en la tramitación de procesos judiciales a los posibles victimarios de los procesos.
La definición de la memoria es la de ser “histórica” acumulativa.
poesía colombiana contemporánea a partir un lenguaje animal que hace parte de la
estética de la sobrevivencia. La literatura como salud, el rastro de las intensidades
afectivas, el balbuceo y la resonancia de imágenes de lo animal y de lo orgánico del
resto como centro del análisis de lo poético. Así, más que una representación con la
letra, la poesía está en el testimonio, en la fuerza del olvido que jalona el recuerdo al
momento de escribir, en lo no dicho, en lo que se presenta y en el tiempo presente
traído desde el pasado y la huella. El testimonio es entonces escritura poética
J para alguien, para un lector, para un doliente, para una víctima, es el texto de la
sobrevivencia.
A El poemario Conversación a oscuras (Benavides, 2014) manifiesta el dolor
personal por la muerte que se vuelve colectivo (Buttler, 2010) a través de la estética
L de lo que sobrevive con las rupturas al lenguaje, con lo directo de las imágenes
violentas, con las conversaciones que se dan en el poemario, con el uso de un

registro coloquial. Podría decirse que la elegía es la forma lírica con la que se crea
L esta poesía, pero noto que el lirismo se reinventa y agencia las múltiples memorias
que toman cuerpo en lo animal, en la naturaleza y en los cuerpos del dolor, también
A restos en el nivel de lo político y de otras tradiciones y continuidades de la poesía.
La poesía testimonial está, por decirlo de algún modo, contaminada con
los afectos, con a hibridez de la crónica y su lenguaje, porque no es típicamente una
lírica que se crea a partir de la condición tradicional de este género, con otras formas
conceptuales, imaginísticas, pero lo que guardan en común es la sobrevivencia
• como filosofía. Lo que me interesa hacer visible es esto que no se representa, este
119 flujo de intensidades que buscan cuerpo en las palabras, en el poema como forma
de decirse, a pesar de lo que no se puede recordar.

Por ello, hablemos de los afectos y del testimonio y su lenguaje de lo
animal, como tema recurrente dentro de este mandala del lenguaje3 que constituyen
los poemas seleccionados. Según la definición de dolor y de guerra que nos propone
Scary (1985), el marco de guerra tiende a la desaparición de los cuerpos y el dolor
2 es inexpresable. Para poder representar esta lógica de lo animal, el bramido es una
imagen que me sirve bien, por ello aludo a unos versos del poemario Conversación
a oscuras (2014) fragmento del poema Vendrá el mar que dice:
0
y apagada la lámpara

oiremos bramar el monstruo oscuro (Benavides, 2014)
1
Para definir el bramido voy a utilizar la definición etimológica que
8 propone Bordelois sobre ello: “Bramar es un verbo que significa dar gritos de dolor
o de cólera, pero también expresa el celo de los ciervos y otros animales salvajes”
(Bordelois, 2006). Es desde lo salvaje, desde la dualidad erótica, tanática que el
grito por lo indecible se escucha, deliberadamente desde el poeta testigo, donde
el noto con el bramido de las intensidades que son incómodas se incorpora en la
imagen, en una representación múltiple de la memoria que conmociona al lector.
Así, en la selección que hago encuentro indicios de la resistencia, ante
lo que borra la guerra, atendiendo al proceso de conflicto armado y de impunidad.

3  Bordelois Ivonne (Bordelois, 2006, pág. 32), define lengua en el sentido del mandala primordial,
mente colectiva, proceso social inconsciente.
Desde lo anterior, el lenguaje testimonial que se utiliza para hacer la poesía de la
memoria constituye una catarsis en la medida en que es un registro contemporáneo
de lo abyecto que se purifica con la exposición de estas imágenes de muerte
violenta (Kristeva, 1997), oscuras, dolosas y le restituyen la función a la poesía
como purificadora del dolor colectivo.
El sonido del animal, la manada que se territorializa en el poemario, crea
una resonancia donde se escucha:
J el grito de algún torturado
y el chapoteo de los caimanes en el pozo
A disputándose los muertos (Benavides, 2014)
Se dicen las voces y los llantos que el dolor expresa desde una singularidad
L pero que se colectivizan en lo múltiple del devenir:
Lloró y se quejó mientras la sangre se le iba
L y nadie pudo auxiliarla. (Benavides, 2014)

El lenguaje poético testimonial es cercano aquí al lenguaje suicida, del
A discurso periodístico, del que habla Paz (1956), y que trae consigo la modernidad.
Pero no en el sentido en que destruye la poesía, aunque podría hablarse de terror
divino como síntoma de época también, desde Agamen (2012), cuando el arte retoma
formas de la destrucción para hacerse, sino en el sentido en que se entiende que:
“Lo poético es poesía en estado amorfo; el poema es creación, poesía erguida” (Paz,
• 1956). A lo mejor la valoración tradicional, del siglo XX, esencialista y conservadora
120 sobre lo literario, de lo que es lo poético y el poema, es lo que genera que el aparato
• crítico tradicional valore con tenor de lo que debe ser o no un buen poema y la falta
de calidad literaria a la poesía política colombiana, pues se atiende a la forma, la
representación, antes que lo amorfo de las emociones que cristaliza la palabra,
antes que a los silencios, que siguiendo la metáfora sería lo poético relacionado
con las multiplicidades femeninas, de origen, receptoras.
2 Lo que logro identificar en este corpus es que lo “no erguido” o lo no
representativo es también poema y poesía. La lengua se sale de la estructura
simbólica patriarcal representativa, ni siquiera se alcanza a representar la memoria
0 porque en principio hacer memoria implica hacer olvido, no todo se recuerda tal y
como sucede, la mímesis es fallida. Lo que quiero aquí estudiar como poesía, como
1 esa fuerza desterritorializada que busca cuerpo en las palabras, es precisamente
la multiplicidad de fracciones que se dan para crear un lenguaje y afectar con él,
8 después de todo como dice Jelin (2002), se testimonia para alguien. Como lo he
señalado, eso analizo en esta sensibilidad diferente, que se conforma de varios
elementos que no son necesariamente la representación: los afectos, la animalidad,
el resto, lo común, la sobrevivencia.
Dice Derrida (2003) que la escritura como muerte también es sobrevivencia,
pues desborda más allá de la vida del autor y de la misma escritura. En este sentido,
la propuesta de sobrevida que define la poesía puede relacionarse con esta función,
en relación con los afectos íntimos que se colectivizan a partir de los hechos y
testimonios de la violencia. El lenguaje de la poesía testimonial colombiana crea
una salida política, que pretende intervenir la realidad con el duelo; que afecta al
lector y habla del afecto más que de la cifra, o que el lenguaje banal de los medios.
Es político también, valerse de la estética de la sobrevivencia para decir. Para hacer
resonar, con los poemas, este bramido monstruoso en la medida en que muchos
poetas también fueron asesinados por poetizar sobre la violencia. Se escribe la
poesía testimonial para hacer justicia desde lo originario de la herida, lo comunal
y fragmentario del silencio, desde la acumulación de la memoria como capital de
la destrucción.
J Esta oscuridad de lo contemporáneo se vuelve tangible con sus luces, con
su resistencia. La estética de la sobrevivencia se instala en el lugar poético para
A emitir los bramidos monstruosos. Así la poesía se posesiona en lo contemporáneo
con la palabra herida y fragmentada entre el testimonio político y lo común del dolor
L que favorece el decir. Es poesía política en el sentido en que funciona desde lo que
el yo testimonia sobre los otros y lo que afecta a los otros, tal como lo comprende

Kamentzain (2007) sobre la poesía del testimonio.
L
Es un lenguaje anómalo hasta para la misma tradición poética, que
se recrea desde el dolor, del grito que perturba la normalidad, que incomoda a
A las regulaciones estatales y los olvidos sistemáticos de la impunidad. Desde la
narrativa del siglo XX, Gabriel Giorgi (2014) ha conceptualizado esta animalidad
como resonancia de las operaciones del biopoder en relación con la tanatológica de
la muerte en contextos de violencia en Latinoamérica. La poesía, en mi investigación,
tiene una intención política desde el horror como elemento de contagio del dolor,
• de los duelos, y de la sobrevivencia y sus afectos. En este sentido considero el
121 análisis de las imágenes desde el resto como potencia política, desde el umbral
de la muerte y la memoria como agente afectivo. Este universo de intensidades

reales, o cercanas a realidades vividas por los enunciadores son memoralizadas
por quienes sobreviven, hacen sobrevivir a otros, crean la conexión de lo común.
Entonces puedo decir que la expresión del dolor, de la culpa, del miedo,
del amor y la esperanza como afectos de esta estética de la sobrevivencia tienen
2 un lenguaje animal, incómodo, monstruoso, que registra las intensidades de todos
aquellos marcados por distintas guerras, bien sea por que ya están ausentes de
la vida, o porque el trauma de la pérdida, del horror colectivo, hace posible la
0 escritura para sobrevivir.
Según lo anteriormente expuesto, la sobrevivencia se presenta como una
1 condición política perdurable a través de la palabra, a través de la energía afectiva.
Las múltiples relaciones que se conectan a partir de estas formas poéticas dejan
8 claro, que en lo contemporáneo sobrevivir es atestiguar la violencia, posesionarse
políticamente para hacer memoria apropiando la voz a la comunidad que habla en
la lengua del resto.
Estos sobrevivientes viven y atraviesan el umbral de la muerte (Derrida,
2003) devienen lo no-humano, y su tránsito hacia lo humano lo articula el cuerpo,
la palabra, el ruido y el bramido monstruoso, animal, de lo indecible. Pero también
existe otra manada de poetas que sobreviven, utilizan la escritura no con el préstamo
de la voz lírica del testigo absoluto, del sobreviviente que puede decir, sino desde
su propia voz que se actualiza y crea el poema la memoria en el presente, reutiliza
los restos, lo fragmentado para conformar el mensaje y el animal para agenciarlo.
Algo sobre lo que debe indagarse es esa característica del testimonio
desde el sobreviviente, el que supera la condición de la nuda vida, y es el hecho
de que esta se apropia de la voz para que el que sobrevive, o sea, el que vive el
horror, pueda decirlo. En este sentido, se necesita indagar por el lenguaje inscrito
en este cuerpo de poemas. La estética del sobrevivir-en-común se da en el conjunto
de percepciones e imágenes sobre el dolor que militan políticamente en la poesía
contemporánea y la ética del testimonio, la memoria afectiva que allí se hace cuerpo-
J texto con la imagen, como régimen sensible.
En el devenir sobreviviente en la escritura, interviene una forma de
A escribir y un escritor político acompañado de la voces diferentes, y con ello el
lugar del testimonio se enuncia con sus propias particularidades, lo que reúne los
L testimonios es la condición de lo común, la intensidad del dolor y la ontología de la
herida fundamental que hace de esta estética una manifestación de la comunidad

(2007) como un fenómeno de la herencia y de la huella de la guerra, de la memoria
L individual que se hace en duelo colectivo, desde la común condición de existir en y
después del trauma.
A Bibliografía
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quilla: Travesías, 2009.
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J

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2

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1

8

J

A

L AFIRMAÇÃO DE VIDA EM “DOS TRAPOS CORAÇÃO (I)” DE
SALGADO MARANHÃO
L
Anny Beatriz Machado Lopes (UNEB)
A RESUMO: O prazer, por vezes indissociável da experiência poética propiciada pela
arte, aparece como um carro-chefe em muitos dos escritos de Salgado Maranhão.
Este poeta negro e maranhense traz no jogo poético que constrói uma experiência
de afirmação de vida e resistência, seja por meio de um forte traço erótico-amoroso,
seja no ato estético-politico que encontra, na poesia, um lugar de potência para os
• sujeitos marcados pela dor e pelo cansaço de viver.Um de seus poemas, “Dos trapos
coração”,escrito em 1989 e publicado em Punhos da Serpente (MARANHÃO, 1989),
124
permite uma análise de como as palavras, aqui postas pelo poeta, distribuem a
• partir de si o prazer e jorram uma vontade de vida. Fez-se então um estudo sobre
as possibilidades percorridas por este poema e seus possíveis significados, levando
em conta sua produção de saúde (DELEUZE, 2011), e sua potência para afirmar a
Vida.
Palavras-chave: Poesia lírica. Salgado Maranhão. Produção de saúde. Afirmação de
2 Vida.

Introdução
0
O artigo presente faz parte de uma pesquisa mais ampla e recentemente
iniciada, que busca dentro do texto poético, do escritor Salgado Maranhão, traços
1 de uma potência denominada afirmação de vida. Este artigo, em especifico, se
propõe a pensar como ocorre tal potência pela via da poesia e do prazer. Vida e
8 poesia se encontram em muitos pontos afins. E como é potente este encontro. Ele
acontece e impacta diretamente nos corpos como força motriz, para produzir mais
vida e mais poesia. Salgado Maranhão, homem negro advindo do Nordeste, traz,
em sua poesia, marcas destas aberturas e a possibilidade de outras fissuras, que
podem ser percorridas por aqueles a quem a vida relega apenas dor e miséria, sem
mostrar nenhuma alternativa.
De fato, as aberturas teóricas e artísticas propostas pelo nosso tempo
encontram cada vez mais espaços de emergência para o surgimento de uma potência
estético-política, que funciona enquanto arma de resistência, de produção de vida
e liberdade, mesmo que sejaem espaços de tamanho irrisório em contrapartida aos
sistemas de opressão e cerceamento com os quais somos forçados a conviver. É
justamente neste espaço ínfimo que precisamos investir, pois, “As MinimaLumina,
de que os pirilampos são a imagem exemplar, ensinam-nos que é útil ser pequeno
para escapar aos poderes.” (DIDI-HUBERMAN, 2015, s.p.).
A análise proposta neste breve artigo, da poesia “Dos trapos coração
(I)”, disposta no livro Punhos da serpente (MARANHÃO, 1989), pensa em como
se instaura o movimento que promove a transformação “dos trapos ao coração”.
J Percebendo desde as mazelas que afligem e submetem os corpos a dores afins, até
como a poesia e os outros usos do corpo podem ser chaves de contestação, poder
A de resistência e sobrevivência perante a vida, funcionando como escapes, linhas
de fuga que promovem o Viver. Este não é apenas um simples exercício de leitura
L poética, em vez disso, pensa muito mais na relevância política, de potência e de
força que o espaço da poesia pode nos fornecer. Encontrando neste momento, o

movimento que transforma os mais singelos trapos em um símbolo máximo de
L vida: o coração.

De como se esfarrapam corações:um viver que nos transforma em trapos
A
O nosso tempo, chamado contemporâneo, impõe, aos artistas
principalmente, que se enxergue a escuridão, “o facho de trevas”, para usar a
metáfora do Agamben (2013). Para o teórico italiano, ser contemporâneo envolve
não só enxergar a escuridão, como também agir contra ela, debater-se na escuridão
para encontrar uma luz que é inalcançável. Ser contemporâneo, portanto, é existir

na ferida da sociedade. Aos poetas contemporâneos, então, o tempo surge como
125 uma necessidade de uma narrativa de si, na qual, ao olhar para ele, o tempo, se
• percebam as dores que esta vivência coloca para nós. A poesia percebe a escuridão
enquanto a imensa maioria vive cega pelas grandes luzes dos holofotes.
Sabendo disso, podemos pensar em como o texto poético “Dos trapos
coração (I)” exemplifica este olhar para a escuridão, e as tentativas de debater-se
nela. Os primeiros versos apresentam:
2 custa muito caro
pra um poeta do meu tempo
ter que vassourar o lixo
0 dessa história toda
de ossos podres no esgoto. (MARANHÃO, 19899, p. 14)
1 O uso da palavra custa no primeiro verso do poema, indica a ideia de
dívida, depagamento: um sacrifício que o poeta inserido neste tempo precisa estar
8 disposto a pagar, para, como continua o poeta, “vassourar o lixo”. A palavra aqui
posta pode ser entendida como vasculhar, buscar o que está escondido, como
também se atém à noção de limpeza. Os dois significados possíveis correspondem
ao papel designado ao poeta nestes versos, que revela o “lixo da história” e, ao
mesmo tempo, postula caminhos outros, mais limpos, à revelia das sujeiras que
somos forçados a engolir.
muito caro mesmo
pra um poeta como a gente
com esta cara larga e triste
de paraíba de obras
com a cabeça chata e tudo
do peso do concreto
destas construções intermináveis. (MARANHÃO, 1989, p. 14)

A realidade social colocada pelo poeta nos versos supracitados


corresponde diretamente ao lugar social ocupado, historicamente, por muitos, com
essas mesmas características.A “cara larga” e “a cabeça chata” são vocabulários
J normalmente utilizados com fins pejorativos para o povo nordestino, estes que,
nas grandes metrópoles do sul e sudeste do nosso tão desigual país, geralmente
A exercem cargos de operários nas construções civis. Trabalhadores que adquirem,
além da “cara larga”, o adjetivo “triste” e que é pelo “peso do concreto” que as
L cabeças se achatam em “construções intermináveis”, onde o local do servil é sempre
deste “paraíba de obras”. Passam-se gerações e a obrigatoriedade deste lugar social
L massacrante continua sendo designado às mesmas pessoas, por uma estrutura
hierárquica que se mantém.

ter que vir trazendo
A As emoções pingando de vontades
e subnutrição sentimental (MARANHÃO, 1989, p.14)

O nosso mundo é decididamente um mundo atravessado de doenças.


Das físicas às psíquicas, vivemos em um fio tênue entre a saúde e as patologias.
• Deleuze(2011, p.13) escreve que “o mundo é o conjunto dos sintomas cuja doença
se confunde com o homem.” Ou seja, fomos condicionados a uma vivência que
126
instaura em nós, por meio dos cerceamentos constantes dos afetos, padecimentos
• emocionais e corporais. Maranhão usa o termo “subnutrição sentimental”. De
fato, estamos todos em um estágio de fome afetiva e sentimental, analfabetos das
próprias emoções, como escreve Pelbart (2008, p. 10) :
Seja como for, poderíamos dizer que na pós-política espetacularizada, e com
o respectivo sequestro da vitalidade social, estamos todos reduzidos ao so-
2 brevivencialismo biológico, à mercê da gestão biopolítica, cultuando formas
de vida de baixa intensidade, submetidos á morna hipnose, mesmo quando
a anestesia sensorial é travestida de hiperexcitação.
0
A forma como levamos a vida externada sempre em uma baixa intensidade
advém do fato de que, em nossa sociedade, somos ensinados que as emoções nos
1
expõem ao ridículo, são verdadeiros impasses, ações primitivas, resguardados
apenas as crianças e aos loucos. (DIDI-HUBERMAN, 2013) As paixões, nesta
8 sociedade capitalista/cartesiana, são recolhidas, censuradas e reprimidas a um
lugar de não concretização, onde as vontades pulsantes são recalcadas e os nossos

desejos são capturados, até sobrar um simples corpo, racionalizado, subnutrido
dos sentimentos.Existe, nesta poesia de Maranhão, o clamor de um corpo que já
não aguenta mais:
[...] o que o corpo não aguenta mais é a docilização que lhe foi imposta pelas
disciplinas, nas fábricas, nas escolas, no exercito, nas prisões, nos hospitais
pela maquina panóptica... [...] Em suma e num sentido muito amplo, o que
o corpo não aguenta mais é a mortificação sobrevivencialista, seja no estado
de exceção, seja na banalidade cotidiana.(PELBART, 2008, p.11-12).
A mais simples banalidade cotidiana num mundo de repressões colocaos
corpos em estado de docilização, submetidos ao controle das várias instituições de
natureza estatal, que retiram a possibilidade das grandes revoluções, pois o poder
de dominação está agora instituído no próprio corpo, nos levando a não só viver
como subalternos, mas a reproduzir as hegemonias que tolhem os nossos espaços
de vida e liberdade.
e sobretudo ter que conservar
J ao mesmo tempo
o corpo para a labuta
e o coração apaixonado. (MARANHÃO, 1989, p. 10)
A
Como conservar a possibilidade do corpo que sente? Que vive? E que
L se afeta? O que poderia ainda nos manter vivos, se a vida como está e é posta
só produz em nós um sobrevivencialismo do “corpo para a labuta”? Então, como
L manter “o coração apaixonado”? Como manter aquilo que pulsa vida mesmo diante
das inúmeras mortes?

A De como o prazer instaura possibilidades outras à vida que jaz em farrapos


Uma das possibilidades de resposta é apresentada nos versos seguintes
da mesma poesia. Maranhão encontra aberturas e promove desvios por meio
de pequenas fugas, utilizando do mesmo corpo que outrora era prisão, que em
pequenos momentos de prazer, faz-se escape. A poesia “Dos trapos coração (I)”
• promove um desvio ao encontrar outros usos possíveis para um corpo, que jaz
designado apenas como manutenção do sistema atuante. Este corpo foge, escapa
127
à sua utilização comum de “paraíba de obras” e procura para si pequenos espaços
• onde pode ser aquilo que deseja, exercendo suas vontades à revelia do que foi
programado para ser e fazer. Mais do que isso, este corpo desviante instaura
uma potência de contestação a partir do seu prazer, pelo movimento em que faz
para conservar o “coração apaixonado”diante das “subnutrições sentimentais”
que anestesiam os corpos para as emoções e os afetos. As paixões viscerais não
2 alimentam o capitalismo, por isso, elas mesmas constituem rasuras, falhas no
sistema, fissuras, que atuam na condição de linhas de fuga para a sobrevivência
0 dos corpos, como se expõe nos versos seguintes:
ou furtar que os olhos dancem

1 analfabestamente no teu corpo

como se deseja a manga rosa

8 no quintal dos outros,


destas que a gente
quer morder só com a saliva:
mas que doa, doa, doa, doa
até sofrer.
e que em vez de dor seja prazer.
mas que sangre, sangre, sangre, sangre
até jorrar
caldo de cana
em vez de sangue. (MARANHÃO, 1989, p. 14)
O desejo, a vontade, o querer são utilizados nesses versos como forças de
resistência perante a dor. O verbo “furtar”, no verso acima, já indica a noção de
transgressão, da atitude que é proibida, assim como também é proibido o “desejo
pela manga rosa que está no quintal dos outros”, como um prazer que é ilícito e
não pertencente ao eu lírico da poesia. Há aqui aocupação de um lugar que não lhe
pertence: o lugar do prazer, ao qual não lhe foi concedido usufruir, mas que “furta”,
rouba, em raros instantes, desde a dança dos olhos sobre o corpo cobiçado, a água
J na boca da saliva que instiga ainda mais a vontade de usufruir deste prazer, até
os sublimes momentos de ápice, em que a dor vira prazer e o sangue que jorra das
feridas vira “caldo de cana”.
A
Pensando neste sentindo, pode-se começar a entender a resposta das
L questões postuladas anteriormente. O corpo, mesmo que no macro sofra as mais
tiranas opressões, pode encontrar no micro, nos pequenos espaços e curtos instantes,

potências que lhe permitam resistir e sobreviver, inclusive por fazer outros usos
L deste mesmo corpo, usos que objetivem o prazer, distanciando-se de seus usos
comuns e restituindo seu corpo ao que lhe é mais humano e próprio, como explica
A Pelbart(2008, p. 12) “Diante disso, seria preciso retomar o corpo naquilo que lhe
é mais próprio, sua dor no encontro com a exterioridade, sua condição de corpo
afetado pelas forças do mundo, e capaz de ser afetado por elas: sua afectibilidade”.
A condição do corpo de ser afetado. Esta é a condição basilar e fundamental
para continuar a ser corpo, corpo vivo. Os afetos é que podem mover-nos em
• contrapartida às mortes já elegidas anteriormente pela sociedade para nós. A
128 capacidade de continuar a sentir apesar de. Isto é o que esta poesia instaura, propõe
que diante das dores e sofrimentos o corpo possa, ainda que em poucos espaços,

sentir, gozar, pulsar, jorrar vida. Trata-se de “instaurar outra relação com a vida” a
partir desses outros usos do corpo, que desafia o poder das dominações sobre ele,
se rebela, e então pode ser um corpo com “o poder de começar” (PELBART, 2008).
São estas ações que expurgam a potência política encontrada “nos corpos nos
gestos e nos desejos de cada um” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.24-25), esses corpos
2 marginalizados se reconstituem a si mesmos, se voltam aos seus desejos e exercem
a sua sexualidade, e, por conseguinte, o sexo, o desejo e o prazer, nesses corpos,
0 assumem um caráter de posição política, mesmo que o ato não seja executado com
essa finalidade.
1 A estrutura que a poesia segue e o jogo poético que o autor constrói
também revelam o movimento cíclico que envolve todo o processo de abrir fissuras
8 neste muro de sofrimentos. Mesmo depois de expor seu desejo pelo prazer o poeta
continua com os versos: “e voltando àquele papo/de gritos no porão”, realizando
um movimento de ida e volta entre o sofrimento e o alívio. Nos versos seguintes
a este, Maranhão monta imagens de feridas que não cessam, com versos como
“eternamente manchas no assoalho/sangue que nem cora mais”, colocando as
dores como inacabáveis. Mesmo que existam alguns momentos de prazer e escape,
as dores retornam, como um ciclo, onde o esmagamento é constante, e sobreviver
é o mais alto grau de rebeldia.
O máximo que o eu lírico desta poesia pode fazer é encontrar locais
mínimos de respiro e uma discreta liberdade perante as prisões, por isso, o poema
se volta ao movimento de continuar abrindo fissuras. Quando se lê “mas voltando
àquele verso/da santa inquisição poética”, percebe-se uma tenacidade por parte
do eu lírico que resiste, e que constrói, nessa poesia, possibilidades outras alémda
vida que lhe foi imposta, produzindo saúde perante este mundo de doenças. Sobre
isso Deleuze escreve: “Mas ele [o escritor]é a medida da saúde quando invoca essa
raça bastarda oprimida que não para de agitar-se sob as dominações,de resistir
a tudo o que esmaga e aprisiona e de, como processo, abrirum sulco para si na
J literatura.” (DELEUZE, 2011,p. 15)
A literatura nos possibilita o desvio, a possibilidade de fazer ranhuras,
A “abrir sulcos”, diante do que nos esmaga e aprisiona. Resistir se utilizando dela, a
literatura, como mola propulsora, que se encarrega de nos impulsionar em direção
L contrária às dominações doentias do mundo atual. Por isso a literatura, e neste
caso mais especifico a poesia, são elementos que em si mesmas funcionamcomo

um ato estético-politico que instauram o sobreviver enquanto potência. A poesia
L pode ser esta pequena luz que escapa entre a escuridão e os grandes holofotes,
afirmando, nos espaços ínfimos, a vida.
A Luminescência e sobrevivências: A potência da poesia enquanto pequena luz
que afirma a Vida
Georges Didi-Huberman (2011) apresenta a metáfora dos vaga-lumes, das
pequenas luzes, que, numa instância do micro, do pequeno, constituem resistências
à escuridão, apesar dela e apesar das grandes luzes que ofuscam e cegam a maioria

dos seres humanos. Um dos meios de acender essa parca luminescência está na
129 arte e, por consequência, na poesia – “lampejos, eróticos, alegres e inventivos”
• (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 20-21). Estes são visíveis, sobretudo nos tempos das
mais tenebrosas escuridões, pois, segundo o teórico,“a dança dos vaga-lumes se
efetua justamente nas trevas” (DIDI—HUBERMAN, 2011, p. 55), criando em curtos
espaços-tempos lugares nos quais se adquirem forças para sobreviver:
Linguagens do povo, gestos, rostos: tudo isso que a história não consegue
2 exprimir nos simples termos da evolução ou da obsolescência. Tudo isso
que, por contraste, desenha zonas ou redes de sobrevivências no lugar mes-
mo onde se declaram sua extraterritorialidade, sua marginalização, sua re-
0 sistência sua vocação para a revolta. (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 74)
As “zonas ou redes de sobrevivência” surgem dos locais fora do centro, à
1 margem da sociedade, pois é justamente onde não se fixam os olhos que o desvio
pode ocorrer, não nos grandes gestos em luzes gigantescas e ofuscantes como as
8 da espetacularização das grandes mídias, mas, sim, no que passa despercebido
ao grande público. Temos de aprender, então, a procurar a potência oculta nos
menores gestos, nos gestos discretos e por vezes silenciosos; não visíveis, porém,
existentes. Principalmente nos tempos de maior obscuridade. Opessimismo
pode ser organizado para produzir lampejos e esperanças, tornando-nos, como
nomeou Didi-Huberman,Povos-vaga-lumes,que “fazem o impossível para afirmar
os seus desejos, emitir seus próprios lampejos.” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.155)
Exatamente como continua fazendo o poeta maranhense em “Dos trapos coração
(I)”, ao finalizar a poesia com os seguintes versos:
como se arrebata
a fruta do quintal dos outros,
destas que a gente
quer morder só com a saliva
mas que doa, doa, doa, doa
até sofrer,
e que em vez de dor
seja prazer,
J suaves navalhadas de prazer. (MARANHÃO, 1989,p. 11)
O fechamento desta poesia revela um otimismo, não ingênuo, que persiste
A e que é tenaz. O “desejo pelo fruto que existia apenas no quintal dos outros”,
expressado em versos anteriores, agora nestes versos é substituído por “arrebata”,
L que atribui o sentido de levar, de possuir, como uma ação que não corresponde
mais apenas ao imaginário, mas agora é também da ordem do concreto.Atitude
L esta que consiste em transformar dor em prazer, “suaves navalhadas de prazer”.
Navalhadas que significam cortes, como a confirmação de que a dor e o sangue
ainda estarão lá, mais do que isso, é a partir deles, ou por causa deles, que pode
A se adquirir o prazer. Como coloca o teórico francês,“aconteceu até mesmo de as
palavras sombrias não serem as palavras do desaparecimento absoluto, mas as de
uma sobrevivência apesar de tudo, quando escritas do fundo do inferno.” (DIDI-
HUBERMAN, 2011, p.131) Por isso a importância da poesia enquanto afirmação
de vida e resistência, ela pode “fazer livremente aparecerem palavras quando as

palavras parecem prisioneiras de uma situação sem saída.”(DIDI-HUBERMAN,
130 2011, p. 130)
• Como nos escreve Didi-Huberman (2011, p.155), precisamos “dizer sim
na noite atravessada de lampejos e não se contentar apenas em descrever o não da
luz que nos ofusca”. É mais do que observar as grades que nos cercam, é olhar para
a poesia com o intuito de encontrar as fissuras que ela nos dá para furar os muros
que restringem a nossa vida. Pois “há sem duvida motivos para ser pessimista,
2 contudo é tão mais necessário abrir os olhos na noite, se deslocar sem descanso,
voltar a procurar os vaga-lumes.” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 49).Derivando dos
0 potentes encontros entre poesia e Vida, os sins, fluir o que for luz nos mínimos
espaços, e continuar a (r)existir.

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L O ESPAÇO DA POBREZA E DA RESISTÊNCIA NAS OBRAS
DE CAROLINA MARIA DE JESUS, ELZA SOARES E MARIA
L AUXILIADORA DA SILVA1

A Beatriz Schmidt Campos (UNB)
Sidney Barbosa (UNB)
RESUMO: Este trabalho apresenta a análise de parte do diário Quarto de despejo
(1960) de Carolina Maria de Jesus, da canção Meu guri (1997) interpretada por Elza
Soares, e do quadro Natividade (1971) de Maria Auxiliadora da Silva, por meio do
• estudo da espacialidade na literatura e outras artes. As artistas expressam-se via
132 suas experiências de vida e apresentam uma visão de mundo e uma crítica social
que se relacionam diretamente com suas biografias. Por intermédio do estudo da
• espacialidade em suas obras, e de alguns cruzamentos intermidiáticos, intenciona-
se compreender a temática política e de protesto na representação artística das
três modalidades, Literatura, Música e Pintura, bem como nas práticas sociais
no contexto de um Brasilsegregador e de altos índices de diferença social. Para
tanto, busca-se apoiarem vertentes teóricas que levem em conta a espacialidade
2 na literatura e nas duas artes citadas e nas visões críticas que relacionem a
espacialidade às questões sociais.
0 Palavras-chave: Espaço da pobreza e da resistência. Cruzamentos intermidiáticos.
Vivências pessoais. Crítica social. Autora literária, pintora e cantora.
1
Introdução
8 As relações entre a literatura e outras artes têm abrangido variados
estudos que caracterizam uma ampliação aos estudos comparativistas literários.
Segundo Tania Franco Carvalhal(2017), os estudos comparatistas que ocorriam e
ocorrem entre literaturas diferentes, ou campos literários diversos, atravessando as
fronteiras nacionais, passaram a integrar os estudos entre outras artes e campos
das ciências humanas nas últimas décadas. A autora reflete que as discussões
interartísticas iniciaram pela necessidade de se compreender os fenômenos
artísticos. Nessa via, a autora ressalta que:
Vista a questão de outro ângulo, o de sua definição, é ainda numa pers-

1  O presente texto provém de pesquisa em desenvolvimento para tese de Doutorado.


pectiva histórica que se poderia dizer que se antes a especificidade da Li-
teratura Comparada era assegurada por uma restrição de campos e modo
de atuação, hoje, essa mesma especificidade é lograda pela atribuição à
disciplina da possibilidade de atuar entre várias áreas, apropriando-se de
diversos métodos, próprios aos objetos que ela coloca em relação. Este novo
modo de entendimento acentua, então, um traço de mobilidade na atuação
comparativista enquanto preserva sua natureza “mediadora”, intermediária,
característica de um procedimento crítico que se move “entre” doisou vários
J elementos, explorando nexos e relações. Fixa-se em definitivo, seu caráter
interdisciplinar (CARVALHAL, 2017, p. 10).

A Desse modo, há aí uma ampliação dos estudos comparativistas, entretanto,


Carvalhal (2017) ressalta que a literatura torna-se“mediadora” dos estudos entre as
L artes, sem perder sua atuação, embora cada arte mantenha suas especificidades.
Sob esse olhar, outras questões passam a ser colocadas, como o entendimento
do crítico a mais de uma arte ou mídia para analisar as obras e relacioná-las,
L
pois, ainda que haja uma compreensão advinda das visões de Santaella (2001)
e deClüver (2006), entre outros, de que todo objeto artístico é composto de um
A “texto”,é preciso entender seus códigos para que se tenha um juízo dos objetos a
serem pesquisados e suas relações.
Para além disso, Carvalhal reflete sobre a importância da presença do
literário nos estudos comparativistas que relacionam esta com as outras artes e
mídias. Para a pensadora:
• Todavia, guarda ainda o comparativismo a exigência de que um desses meios
133 de expressão seja o literário mas, pouco a pouco, perde a perspectiva domi-
nante desse sobre as outras formas de expressão artística. E sobretudo é a
• primeira manifestação clara de que a comparação não é um fim em si mes-
ma mas apenas um instrumento de trabalho, um recurso para colocar em
relação, uma forma de ver mais objetivamente pelo contraste, pelo confronto
de elementos não necessariamente similares e, por vezes mesmo, díspares.
Além disso, fica igualmente claro que comparar não é justapor ou sobrepor
2 mas é, sobretudo, investigar, indagar, formular questões que nos digam não
somente sobre os elementos em jogo (o literário, o artístico) mas sobre o que
os ampara (o cultural, por extensão, o social)(CARVALHAL, 2017, p. 11).
0
Por meio desse pensamento, refletimos que nem sempre há um predomínio

do literário nos estudos comparativistas. O literário poderá tornar-se apenas
1 um instrumento;uma forma de apresentar os estudos comparativos. E, segundo
a autora, o diálogo da literatura com outras artes,mídias e teorias das ciências
8 humanas ocorre dentro danecessidade do entendimento do objeto a ser estudado.
Nessa via, refletimos que um dos pontos de encontro entre diferentes

artes seria partir do princípio de que tudo é texto. ClausClüver argumenta que:
[...] uma obra de arte é entendida como uma estrutura sígnica – geralmen-
te complexa -, o que faz com que tais objetos sejam denominados “textos”
independente do sistema sígnico a que pertençam. Portanto um balé, um
soneto, um desenho, uma sonata, um filme e uma catedral, todos figuram
como textos que se “lêem” (CLÜVER, 2006, p. 15).

Por meio desse pensamento, temos a compreensão de que, se tudo é


texto, mesmo sabendo que um “texto” musical provenha de um código sonoro
próprio,e que esse deve ser entendido pelo crítico, no mesmo contexto em que uma
pintura possui códigos visuais que criam uma imagem narrativa,capaz também de
ser compreendida pelo crítico. Ainda assim, esses textos sonoros e visuais serão
descritos e analisados pelo crítico via código textual e literário. Portanto, há uma
relevância em entender que o comparativismo advém do literário, ainda que nele
não esteja presente.
J Em outra via, Solange Ribeiro de Oliveira (2012) inclui os estudos entre
literatura, artes e mídias. Para a pesquisadora,
A Ao dialogar com as visões de mundo de seu tempo – nunca tão várias e in-
trigantes como no presente – o artista da palavra interage com outras artes
e mídias, em formas tradicionais ou em configurações mais recentes, de es-
L tatuto estético não raro contestado. Em outras palavras, o estudo da relação
entre a Literatura, as artes e mídias oferece uma entrada promissora para
L a compreensão de um tempo – o nosso – cuja proximidade desafia o olhar
(OLIVEIRA, 2012, p.15).

A Sob esse olhar,o diálogo entreas artes da pintura, da voz (e da canção) e
do gênero literário - o diário -,permite compreender a representação de um mundo
realque é injusto, no qual as artistas vivem e representamem suas obras de modo
crítico e engajado.
Seguindo essas reflexões, o presente trabalho relaciona três diferentes
• artes, portanto, três diferentes linguagens ou textos, ou, ainda, três “estruturas
134 sígnicas”: a pintura, a música e a literatura. E, para aprofundara compreensão do
objeto de estudo proposto,optou-se por aplicar um aspecto da teoria da literatura,
• a espacialidade, nas análises das três artes como ponto de encontro e divergência
das reflexões que serão apresentadas.
Nesse sentido, percebe-se nas três obras acima citadas, elementos do
espaço da pobreza e da resistência por meio do entre cruzamento entre elas e por
intermédio das teorias que transitam entre as artes e que abordam as relações
2 homólogas entre os signos musicais, visuais e literários. Não esquecendoque, além
da literatura, a música e a pintura são também linguagens, ainda que não verbais,
0 e constituem discursos. Nessa via, Lucia Santaella (2001), afirma que os conceitos
linguísticos passaram a ser aplicados a variados sistemas de linguagem, como as
1 artes visuais, a música, a literatura, o romance gráfico e o cinema.Portanto, por
meio dos estudos dos signos das três artes e de seus elementos de espacialidade,
8 com todas as suas complexidades e embricadas relações, poderá despontar uma
compreensão mais aprofundada da temática principal presente nas três obras em
questão.
A espacialidade na literatura e outras artes
O estudo da espacialidade na literatura tem sido recorrente nas pesquisas
acadêmicas nos últimos anos e tem realizado inúmeros avanços. Segundo Borges
Filho, “[...] devemos admitir que o interesse pela questão do espaço na literatura
vem crescendo de forma bastante acentuada nos últimos trinta anos” (BORGES
FILHO, 2007, p.12).
Estudar o espaço na literatura abre um leque de possibilidades ao
entendimento, por exemplo, de um romance, de sua construção e organização
textual, além de lançar luzes importantes sobre sua temática. Primeiramente
pode-se observar o espaço geográfico “onde” se passa uma obra: uma cidade, um
bairro, uma rua, uma favela ou, ainda, um espaço interno, como uma casa e seus
objetos; um quarto, um barraco ou, ao contrário, um enredo que se desenvolva
fora, isto é, ao ar livre, numa floresta ou numa situação espacial singular de
J localização. São inúmeras as possibilidades e, por meio do estudo desses espaços,
pode-se enriquecer a análise de uma obra, buscando-lhe os sentidos, suas
mensagens subliminares ou não, medianteo entendimento do comportamento das
A
personagensnesse ambientes. Vale ressaltar que, para Borges Filho, “O espaço é
indiferente ao problema da realidade ou irrealidade” (BORGES FILHO, 2007, p. 17),
L portanto, não é necessário que o lugar exista efetivamente, mas a imagem que é
construída a partir de sua descrição no universo imaginário. No entanto, nas obras
L das artistas podemos observar que a representação da realidade em um contexto
de protesto e crítica faz parte de seus “estilos” de criação.
A Ainda para Borges Filho: “a noção de espaço é dada pela inter-relação entre
entidade situada, entidade de referência e um observador” (BORGES FILHO, 2007,
p. 17). Nessa perspectiva, percebe-se a valorização do “onde se passa uma obra”
para um melhor entendimento desta e do comportamento de seus personagens.
Borges Filho afirma ainda que “Muitas vezes, o espaço influencia a personagem a
• agir de determinada maneira” (BORGES FILHO, 2007, p. 37).
135 Nessa via, na obra literária de Carolina Maria de Jesus, percebe-se
por meio das descrições do local onde a personagem-narradorae também autora

morava, que as imagens de pobreza descritas pela artistae como suas características
influenciame alteram seu comportamento. Suas descrições sobre a fome e a luta
para sair de sua situação por meio da escrita,como a autora mesmo afirma: “Vou
escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. [...] Estou
residindo na favela. Mas se Deus me ajudar hei de mudar daqui.” (JESUS, 1960,
2 p. 17),dialogam com as obras da pintora e da cantora nas imagens de resistência e
luta que elas criavam em suas pinturas e em sua voz e, ao mesmo tempo, situam
0 suas obrascom relação à realidade social de nosso país. Essas questões serão
aprofundadas na análise realizada no item seguinte.
1 Como ponto de partida, para a proposta deste trabalho, lembremos
que Carolina Maria de Jesus descreve aspectos da favela e da cidade, os quais
8 estão igualmente presentes em algumas canções interpretadas por Elza Soares e
representados nas pinturas de Maria Auxiliadora da Silva. Nesse aspecto, pode-
se incluir inúmeros elementos descritos e apresentados nas obras das artistas a
serem observadas como elementos de espacialidade: os cheiros, as passagens sobre
a fome, a falta de sapatos, o frio e outros desconfortos que a pobreza proporciona.
São elementos que nos remetem aos gradientes sensoriais propostos por Borges
Filho:
Por gradientes sensoriais, entendem-se os sentidos humanos: visão, audi-
ção, olfato, tato, paladar. O ser humano se relaciona com o espaço circun-
dante através de seus sentidos. Cada um deles estabelece uma relação de
distância/proximidade com o espaço. Portanto, efeitos de sentido importan-
tes são manifestados nessa relação sensorialidade-espaço (BORGES FILHO,
2007, p. 69).

Seguindo a perspectiva apresentada, para além dos estudos da


espacialidade na literatura, a referida teoria tem sido aplicada no diálogo entre
literatura e outras artes,tais como o cinema, a canção, as artes visuais, entre outras.
Inúmeros trabalhos acadêmicos têm sido publicados nesse sentido, e percebe-se
J que isso possibilita uma ampliação para a análise dos objetos interartísticos, tal
como Wink reflete:
A É fato conhecido que o espaço, como conceito teórico, ganhou nova atenção
nas ciências culturais e sociais, pelo menos desde o chamado spatialturn,
datado, geralmente, no final dos anos 1980. Por este entende-se, principal-
L mente, a revalorização do espaço como categoria analítica na teoria social,
uma categoria que, no passado foi subjugada, à primazia da categoria tem-
L poral (WINK, 2015, p. 22).

Portanto, pode-sededuzir que é relevante estudar obras artísticas sob o


A olhar da teoria da espacialidade, uma vez que essa abordagem poderá proporcionar
um entendimento mais aprofundado de todos os tipos de “textos”, neste caso,
musicais, pictóricos e textuais, e de seus contextos sociais.
Desse modo, percebe-se elementos da espacialidade da pobreza e de
resistência nas cores de Maria Auxiliadora, no timbre vocal de Elza Soares e na
• escrita realista e ao mesmo tempo poética de Carolina de Jesus. São pontos de
136 encontro que possibilitam entender e aprofundar em um modo de criação que
ocorre por meio da descrição, da expressão, da vivência e da interpretação de um

dos mais efetivos aspectos da realidade brasileira.
Em vista disso, os elementos de espacialidade presentes nas obras das três
artistas aqui mencionadas e seus diálogos permitem entender um reconhecimento
temático e estético comum inspirado numa constante da realidade social e cultural
do Brasil.
2
Nesse sentido, segundo os estudos da temática e da tematologia na
literatura comparada, a temática abrangente nas obras das três artistas é a
0
“pessoal”. Em Brunel, Pichois e Rousseau a referida temática é lembrada como
uma
1 Confissão aberta ou criptograma, a obra literária é tecida com fios de uma
temática pessoal que Barthes define como a estrutura de uma existência.
8 [...] A vida de um escritor é sua biografia. [...] Sua existência é sua emergên-
cia no instante: a página que escreve é inseparável do instante que ele vive,
mas também de um passado no qual ele mergulha suas raízes (BRUNEL,
PICHOIS, ROUSSEAU, 1990, p. 112).

Nessa via, percebe-se uma temática originariamente pessoal mas estável


nas obras da escritora, da cantora e da pintora. No entanto, não se trata apenas de
uma temática de vivências pessoais presente em suas obras, mas também de uma
crítica social e de protesto que tem o feito de denunciar, de chamar a atenção por
meio das três modalidades artísticas .
Essa temática comum está presente nos textos de Carolina Maria de
Jesus, na pintura de Maria Auxiliadora da Silva e na voz e nas escolhas de canções
de Elza Soares. Trata-se de um dos pontos de encontro das obras para reflexão e
análise, advindo das imagens que elas criam no diário, na pintura e na canção.
Desse modo, a temática principal advém do fato de que as três artistas
nasceram no começo do século passado no Brasil e apresentam uma história de
vida semelhante, que está essencialmente presentes em suas obras e fazem parte
integrante de seus textos estéticos.
J Embora Elza Soares seja intérprete e compositora, será analisada aqui
sua interpretação de uma canção de Chico Buarque, acima mencionada. A escolha
A dessa canção foi feita pela a artista erelaciona-se com a temática supracitada. Pois,
ainda que a composição não seja da cantora, entende-se que a artista apropria-
L sede letras de outros compositores, por meio da identificação e, sobretudo, de sua
interpretação. Na letra há “uma fala de si” que vem do coletivo, numa aparente
contradição, e fala de uma relação direta com os espaços de pobreza e de resistência
L
que se relacionam com a própria história de vida de Elza Soares. A voz e o timbre
da cantora enfatizam a crítica social advinda das letras das canções. Em Cavarero
A (2011) há uma singularidade na voz, “que, por si só, é capaz de atestar a unicidade
de cada ser humano” (CAVARERO, 2011, p. 17). Portanto, a voz e seu uso na
interpretação torna-se um elemento crucial na arte de Elza Soares. E, ainda, sua
voz de crítica e de resistência se apresenta nas letras das peças que canta, bem
como em suas melodias e, principalmente, em seu timbre vocal.
• Para Pedro de Souza:
137 Tudo o que importa é focar no que se diz, na possibilidade de narrar o canto
e a canção como experiência. Aí, pelos discursos que se faz a propósito de

performances vocais, interessa mostrar como a voz se problematiza e se te-
matiza sobretudo pelo modo de emitir (SOUZA, 2011, p. 105).

No caso de uma artista como Elza, seja por sua especificidade como
intérprete, seja por sua permanência e longevidade nos palcos, e finalmente por
2 sua grandeza artística, como integrante do cenário musical brasileiro,permite-se
colocá-la também como sendo parte constituinte de uma arte que se produz para
trazer à tona uma crítica social relevante, tal como ocorre com as artistas Carolina
0
Maria de Jesus e Maria Auxiliadora da Silva em suas obras, a literária e a pictórica.

Seguindo essa perspectiva, Borges Filho afirma: “Apesar de os espaços a
1 que estamos expostos durante nossa existência serem variados, ainda mais variada
que eles é a percepção que cada um tem do espaço em que se localiza” (BORGES
8 FILHO, 2007, p. 71). Portanto, no presente trabalho há uma observação centrada
no espaço das obras das três artistas. Esse trabalho de percepção dos referidos
espaços visa colaborar com o enriquecimento dos estudos interartísticos e com a
função crítica dessas três obras para a sociedade.
Por fim, a escrita de Carolina é poética, a realidade cantada por Elza
torna-se poética por sua letra, melodia e voz e também nas cores de Auxiliadora
podemos perceber poesia. E é por meio dessa poética que o leitor/ouvinte/
espectador reconhece a obra como sendo arte, além de identificar-se com ela e
endossá-la como denúncia e protesto. Segundo Bachelard:
[...] a imagem chegou às profundidades antes de movimentar a superfície.
Isso é verdade, mesmo na simples experiência de leitor. Assim a imagem que
a leitura do poema nos oferece faz-se verdadeiramente nossa. Enraíza-se em
nós mesmos. Recebemo-la, mas nascemos para a impressão de que poderí-
amos cria-la, que deveríamos cria-la. A imagem se transforma num ser novo
de nossa linguagem, exprime-nos fazendo-nos o que ela exprime, ou seja, é
ao mesmo tempo um devir de expressão e um devir de nosso ser. No caso,
ela é a expressão criada do ser (BACHELARD, 1978, p. 188).
J
No item abaixo será apresentada uma análise textual que busca refletir
sobre as três obras mencionadas acima,com a finalidade de ampliar o entendimento
A do diálogo entre artes que possuem uma temática semelhante por meio do estudo
de elementos da espacialidade presente em seus “textos”.
L A análise
Nos termos da perspectiva abordada acima, podemos observar a presença
L de personagens crianças nas obras das três artistas, e também seus olhares
dirigidos para a pobreza por meio do sofrimento dos filhos de Carolina Maria de
A Jesus, relatado por ela inúmeras vezes em Quarto de despejo (1960), na letra e na
voz de Elza Soares na canção “Meu guri” de Chico Buarque, gravada em 1997, e no
quadro “Natividade” (1971) de Maria Auxiliadora da Silva.Nesses três discursos, o
literário, o musical e o pictórico, as artistas apresentam reflexões sobre a pobreza
advindas de descrições da fome, da falta do nome do pai e da falta de sapatos, como
• será analisado abaixo.
138 Em Quarto de despejo(1960), Carolina Maria de Jesus ressalta inúmeras
vezes o desespero de passar fome e de não poder alimentar suas crianças. São

momentos de tensão que vão se agravando na medida que a narrativa avança. A
autora desabafa: “Estou tão indisposta que se eu pudesse deitar um pouco! Mas
eu não tenho nada para os meninos comer” (De JESUS, 1960, p. 80).Na página
seguinte ela relata: “Fui no frigorífico, ganhei uns ossos. Estou indisposta” (DE
JESUS, 1960, p. 81), e seguindo a leitura, Carolina reflete: “Como é horrível levantar
2 de manhã e não ter nada para comer. Pensei até em suicidar. Eu suicidando-me
é por deficiencia de alimentação no estomago. E por infelicidade eu amanheci de
0 fome (De JESUS, 1960, p. 89). E ainda: “Deixei o João e levei só a Vera e o José
Carlos. Eu estava tão triste! Com vontade de suicidar” (DE JESUS, 1960, p. 92).
1 Nesse sentido, à medida que a escritora segue seus breves relatos diários, percebe-
se que o tema vai se tornando crescente e recorrente no livro, como um acorde
8 musical suspenso que não soluciona.
Na canção “O meu guri”,de Chico Buarque, interpretada por Elza Soares
no disco Trajetória(1997) pela gravadora Universal Music, representada na partitura
abaixo2a personagem anuncia a pobreza do filho já na hora de seu nascimento “Já
foi nascendo com cara de fome/ E eu nem tinha nome pra lhe dar”. Na versão do
disco, a cantora é acompanhada por um piano, e a melodia torna-se ainda mais
intimista do que em outras versões realizadas pelo compositor. Na voz “chorosa”
e cheia de dor da cantora percebe-se a imagem de uma mãe que sofre por não
poder dar comida a seu filho, assim como no texto de Quarto de despejo.O “nome”

2  Extraída do site: www.partituras.com.br


presente na letra da canção seria a falta de um reconhecimento de paternidade e
de uma linhagem familiar. Do mesmo modo, na obra de Carolina Maria de Jesus,
muitas vezes a autora relata a falta do pai na vida de seus filhos: “[...] preciso ser
tolerante com os meus filhos. Eles não tem ninguém no mundo a não ser eu. Como
é pungente a condição de mulher sozinha sem um homem no lar” (DE JESUS,
1060, p.19), e, na voz de Elza Soares, a artista enfatiza a falta do nome como
uma representação da pobreza de inúmeras mães brasileiras que criam seus filhos
J sozinhas.

A

L

L
Partitura da melodia referente a primeira parte da canção3
A
Ainda no diário, Carolina Maria de Jesus evidencia a falta de sapatos
das crianças, como um sinal de pobreza. No primeiro parágrafo do livro, como
retratado abaixo em manuscrito, a autora relata: “Aniversário de minha filha
Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos
• generosalimenticios nos impede a realização de nossos desejos. Atualmente somos
escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos para ela no lixo, lavei e
139
remendei para ela calçar” (DE JESUS, 1960, p. 9.). Em outro momento, seu filho
• vai à escola sem sapatos, no frio, e a escritora reflete: “Estou com frio. E não tenho
sapatos para calçar. Os sapatos dos meninos estão furados” (DE JESUS, 1960, p.
40). A autora cria imagens de angústia por não poder proporcionar-lhes sapatos.

2

0

1

8

3  “Quando, seu moço, nasceu meu rebento/ Não era o momento dele rebentar / Já foi nascendo
com cara de fome/ E eu não tinha nem nome pra lhe dar”(Chico Buarque, 1997).
J

A

L

L

A

Manuscrito do primeiro parágrafo de Quarto de Despejo4



Seguindo esse olhar, na obra “Natividade”, de Maria Auxiliadora da Silva
140 (exposta abaixo), as crianças que acompanham o nascimento de Jesus estão com
• vestimentas simples e descalças, assim como seu pai e sua mãe,sugerindo um
ambiente de pobreza. No entanto, ainda que o nome de Jesus não seja mencionado
no título da obra, esta representa uma criança que nasceu pobre e no anonimato,e
que, não obstante, foi reconhecida nos dois últimos milênios como filho de Deus
e fundador da religião cristã por meio de suas palavras controversas às tradições
2 existentes e de seus atos revolucionários à época, diferentemente de “Meu guri” e
dos filhos de Carolina Maria de Jesus mencionados em Quarto de despejo. A obra
0 de Maria Auxiliadora da Silva remete a um momento de resistência ao sofrimento e
esperança por meio da representação de um líder que se tornou representante dos

pobres e oprimidos.
1

8

4  Manuscrito disponível em: https://br.pinterest.com/pin/440438038539639055/?lp=true


J

A

L
Figura 1. Natividade (1972)
L Guache sobre cartão colado em tela5

Por meio desses diálogos entre as três artes, constata-se a presençado
A
espaço da pobreza e da marginalidade nas obras supracitadas configurada no
relato da fome, da faltados sapatos e na inexistência do nome do pai. No entanto,
percebe-se que na obra de Maria Auxiliadora, a temática é abordada por uma
ótica diferente, que contrasta com a das outras artistas, porém, ainda assim, as
artistas constroem imagens que indicam situações rotineiras das vidas nas favelas.

Os olhares das artistas/personagens, no caso do diário e da canção, sobre seus
141 filhos e sobre as crianças apresentadas na pintura, demonstram uma realidade e
• uma tensão cotidiana de quem vive no estado de pobreza. Sob esse olhar,Sales e
Barbosa afirmam:
Figurando a relação do sujeito com o objeto, do homem com o seu campo
de experiência, a representação, fenômeno complexo, e sempre ativado na
vida em ação, comporta em si mesmo elementos diversos, que reportam des-
de crenças, valores, atitudes, ideologias à organização dessas experiências
2 como um campo do saber que diz algo sobre a realidade [...] Sob a fina crosta
das representações sociais, os indivíduos significam sua realidade (SALES,
0 BARBOSA, 2015, p. 20).

Nesse contexto percebe-se uma representação da realidade social presente


1 nas três obras e em seus cruzamentos. No entanto,podemos refletir que não há
distinção entre a realidade apresentada nas obras artísticas e na própria vida das
8 artistas.
Elza Soares, ao gravar essa canção,foi perguntada se “Meu guri” remetia
a seu filho, e ela respondeu: “Eu conheço esse guri, ele existe na minha vida.
Tive um filho que perdi por causa de fome6”. Do mesmo modo, Carolina Maria de
Jesusmenciona que é sobre a realidade sua abordagem emQuarto de despejo.
Em seu próprio livro, a autora relata: “Um sapateiro perguntou-me se o meu
livro é comunista. Respondi que é realista. Ele disse-me que não é aconselhavel
escrever a realidade” (DE JESUS, 1960, p. 96). E, nas obras de Maria Auxiliadora
5  Disponível no site: https://www.catalogodasartes.com.br
6  Entrevista concedida à Folha de São Paulo- 02/09/1997
da Silva,nota-se constantemente a presença de temas religiosos,devido sua relação
com as religiões Católica, Umbanda e Candomblé. Segundo Frota:
A temática de Maria Auxiliadora é variada. [...] Inúmeras são as motivações
de ordem religiosa na pintura de Maria Auxiliadora, que correspondem a um
comportamento idêntico na vida por parte da artista. A começar dos temas
católicos, como a Sagrada Família, gradativamente abandonados pelos de
candomblé, como se num paulatino reconhecimento de antiga herança ani-
mista, realizado por ela e sua mãe: casa de caboclo, umbanda, espiritismo,
J candomblés baianos (FROTA, 1978, p.78).

Desse modo, constata-se a presença das vivências cotidianas nas obras
A das artistas, como temas e como pontos de reflexão da pobreza e de resistência.
Seguindo essa perspectiva, Borges Filho afirma nos estudos da
L espacialidade que: “Apesar de os espaços a que estamos expostos durante nossa
existência serem variados, ainda mais variada que elesé a percepção que cada um
L tem do espaço em que se localiza” (BORGES FILHO, 2007, p. 71). Desse modo,
reflete-se que as autoras apresentam em suas obras observações e reflexões de
A suas próprias realidades e experiências vivenciadas e, por consequência, há uma
segunda via de observação dessas vivências e experiências que são realizadas pelos
pesquisadores por meio da “leitura” das obras e da aplicação de uma teoria, nesse
caso, da espacialidade na literatura e outras artes, a qual ocorrerá por meio da
própria percepção dos analistas. Portanto, conclui-se que pesquisar obras que
• advêm da temática da experiência real,resulta também como elemento de reflexão,
e permite “uma via de mão dupla”, pois haverá sempre a percepção das artistas,
142
das pesonagens e de quem as analisa.

Considerações finais
O presente trabalho buscou apresentar uma análise de parte de obras de
três artistas que apresentam suas experiências de vida como temática principal
por meio dos estudos da espacialidade na literatura e outras artes. Nessa via, per-
2 cebeu-se a presença de um diálogo temático que ocorre via três códigos sígnicos:
a pintura, a música e a escrita. Considera-se que a possibilidade de tal realização
0 ocorre quando se leva em conta que toda expressão artística produz um “texto”,
nesse caso, visual, verbal e auditivo e, por meio da percepção dos referidos signos,
1 pode-se analisar, refletir e compreender as reflexões abordadas pelas artistas e,
para além disso, entender mais profundamente expressões artísticas que buscam
8 resistir à desigualdade social e à extrema pobreza por meio da própria Arte.

Referências
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143

2

0

1

8

J

A

L ENTRE BECOS E TERRAS: MOVIMENTOS E ESCREVIVÊNCIAS NA
OBRA DE CONCEIÇÃO EVARISTO
L
Calila das Mercês (UNB)
A RESUMO: Por meio de escrevivências, conceito alcunhado pela escritora e
pesquisadora negro-brasileira, Conceição Evaristo, o artigo apresenta diálogos sobre
trânsitos, movimentos e as ficções da memória produzidas pelo imaginário e pela
vivência de uma mulher negra e de outros corpos negros, frente a miséria, a fome,
a pobreza e as complicações da sociedade desigual e preconceituosa, mas também
• frente a solidariedade, a histórias, a quilombos e a ternura em Becos da memória
(2006). Evaristo traça pluralidade de personagens e de visões sobre estar e ser de um
144
lugar afastado do considerado centro, e discorre sobre afetos e vivências ancestrais,
• e o mover-se contemporâneo. O artigo tem como proposta discutir as relações,
presentes na narrativa, de corpos negros com a terra, compreendendo esta como
negação, movimento e também como lugar-geográfico, lugar-pertencimento e lugar-
afeto, experenciadas ou coletadas por meio da escuta da narradora-personagem,
Maria-Nova. Romance publicado após vinte anos de escrito, por falta de atenção do
2 mercado editorial, traz aspectos intertextuais que também são diálogos possíveis
sobre ser mulher negra e escritora em terras brasileiras marcadas por problemas
0 sistêmicos e de estrutura como o racismo e o machismo.
Palavras-chave: Autoria negra. Conceição Evaristo. Escrevivência. Movimentos.
1 Resistência.
Chão de verdade
“A natureza reclamou,
Vento que venta não ventou,
8 O sol que brilha não brilhou,
hoje trovejou.
Eu me recolhi ao chão do senhor (...)”
Os Tincoãs

O que seriam os becos de uma memória? Seriam como ruas estreitas


e curtas ou sem saída, ou pouco apropriada para trânsitosde lembranças? Ou
becos da memória podem ser centros de grande movimento da memória de quem
nasceu e foi criada circulando por todo o morro, de barraco em barraco, ouvindo e
observando o que se passava nas janelas, portas, abertas dos vizinhos, parentes e
amigos?
Ao pegar a terceira edição, publicada pela editora Pallas,deBecos da
memória (2006) da escritora e pesquisadora negro-brasileira, nascida em Belo
Horizonte, Minas Gerais, Conceição Evaristo (1946), é impossível não se atentar
aos aspectos intertextuais. Deparo-me, inicialmente, com uma fotografia antiga na
capa do livro de uma senhora negra, segurando uma criança e com outras duas,
uma em cada lado, também negras, sorridentes. E a foto da capa junta-se com
outras em preto e branco da contracapa e por dentro delas.
J As fotografias são todas de pessoas negras: homem na porta de um casa
sem rebocos em momento de afeto com três crianças; outro mais jovem sentado
A no chão, com um chapéu de palha na cabeça, olhando para a lente; uma senhora
de cabelos black power brancos sentada entre duas crianças, segurando forte uma
L mão de cada como quem guarda algo muito precioso próximo do ventre; outro jovem
na janela de uma casa sem rebocos, pousando sorridente; 3x4 de mulher, homem,

adolescente; alguém na máquina de costura; foto de duas senhoras com vários
L jovens com semblantes alegres; criança vestida com roupas de primeira comunhão;
jovens em frente a uma casasimples; outro jovem de chapéu com fisionomia alegre;
A um senhor em pé em frente a um portão de madeira; duas mulheres bem vestidas
de mãos dadas; um casal jovem abraçado; três senhoras em frente a casa simples;
um casalde cabelos black power; uma senhora segurando uma criança no colo
com mais três crianças ao redor (como na capa do livro); outra 3x4 de uma mulher
jovem; outras fotos de mulheres...
• Angela Davis no artigo Subexposto: a fotografia e a história afro-americana
145 discorre sobre as relações de racismo dentro da arte nos Estados Unidos, mesmo
dentro de “percepções e definições culturais aparentemente progressistas”. O artigo

revela os bastidores de uma exposição fotográfica intitualada Harlem on My Mind:
Cultural Capital of Black America, 1900-1968sobre um dos locais mais negros dos
Estados Unidos e a presença insignificantede fotógrafas negras e fotógrafos negros
neste evento, nesta curadoria de olhares que revelaria a cultura negra do Harlem.
A exposição foi em 1969 nos EUA, mas até hoje, e até mesmo no Brasil, eventos
2 e espaços que atendem por nomes negros ainda exigem critérios embranquecidos
para a nossa presença. A curadoria da maioria das pesquisas e artes sobre pessoas
0 negras ainda não é feita por pessoas negras. Nem tudo que diz respeito a nossa
existência, somos nós quem assinamos, ou melhor, nem em lugares, assuntos,
1 temáticas que deveriam ser debatidas majoritariamente por nós, pessoas negras,
transitamos com tranquilidade. Somos sempre o outro na concepção da branquitude.
8 Quando Conceição Evaristo, seleciona do seu acervo fotografias, imagens
antigas de um pertencimento pessoal e ao mesmo tempo coletivo, de negras e
negros em momentos íntimos e pessoais, a autora aborda e ratifica no lugar de
curadora, mesmo em registros de fotógrafos-autores diversos,uma realidade negra
que ela, mulher negra, pertencente àquela terra, escolheu mostrar. Realidade que
não imita ou copia um modo ou estilo branco de vida. Pode-se dizer que as milhares
de pessoas negras escravizadas e em diáspora foram colonizadas de corpo e alma.
E descolonizar o corpo e o pensamento é um desafio constante para os negros em
diáspora.
É incomum encontrarmos capas de livro de literatura brasileira
contemporânea como a deBecos da memória, com pessoas negras perpetuando o
afeto em uma ambiência de ausências socioeconômicas. Fotografias de pessoas
negras, de homens negros sorridentes, de casais negros, de famílias negras, que
fazem seus registros quase sempre do lado de fora das suas moradias modestas,
raramente sentadas em bonitas namoradeiras e cadeiras com seus filhos e netos
com trajes europeizados. Quem enxerga os raros registros de famílias negras – sem
um patriarca bem vestido cheio de pompas ao centro – como dignos de nota? Quem
J se interessa por fotografias de negras e negros sem a exploração do sofrimentoque
naturalizaram como nosso lugar, nossa terra?
A As fotografias têm o poder de fixar em um pedaço de papel ou em nuvens
lembranças que pode ficar para posteridade e que ao olharmos pode nos trazer
L recordações e sentimentos variados, elas trazem vestígios de (auto)representação.
As fotos juntamente com a dedicatória deu pistas de que a obra,
supostamente, trata de algo familiar, partindo de um lugar de pertencimento. Ela
L
dedica o livro ao companheiro, a filha e aos de sua família, “tios e tias, ancestrais
profundamente inscritos em minha memória” e desenvolve para cada ente o motivo
A da importância para ela. Nos agradecimentos, celebra a terceira edição, salienta a
importância das editoras e do público leitor junto a pessoas amigas que fizeram
parte deste projeto desde antes de ser publicado.
Na apresentação, intitulada Da construção de Becos, que segue a esta
linha do afeto, Conceição Evaristo, em um texto breve,revela que a narrativa nasceu
• entre os anos de 1987 e 1988, antes de escrever Ponciá Vivêncio1 (2003), que é o seu
146 primeiro livro publicado, mas que somente foi publicado vinte anos depois, mesmo
• o processo de escrita tendo sido rápido, “tenho dito que Becos da memória é uma
criação que pode ser lida como ficções da memória. E, como a memória esquece,
surge a necessidade da invenção” (EVARISTO, 2017).
A palavra construção remete a ideia de elaborar, compor, traçar, imaginar,
desenhar, existir num espaço. E também quando se pensa em construção, lembra-
2 se sempre de onde se começa a dar forma, como uma construção de uma casa, que
se faz sempre de baixo, de um alicerce ligado à terra, ao chão.
0 A autora arrisca-se a dizer que a origem de Becos da memóriapode estar
numa crônica, Samba-favela2, que escreveu em 1968, em um texto que tinha a

intenção de descrever a favela. De fato, Becos da memória descreve a ambiência
1 de uma favela com detalhes atentosdo lugar, as pessoas que fazem parte,sem
performar estereótipos destes indivíduos negros, costumeiramente ancorados em
8 perfis figurativos e negativos na maioria das obras literárias brasileiras publicadas
antes. A favela é a terra e a Terra na narrativa. E é naquele chão de lavar e quarar
roupas das patroas, de vãos e de subidas e decidas para buscar latas de água que
as mulheres, as lavadeiras, inscrevem-se e escrevem-se na narrativa, no mundo.

1  A autora tem poemas e contos publicados em Cadernos negros e em antologias literárias brasileiras
e no exterior. Os livros já publicados após Ponciá Vivêncio e Becos da memória:Insubmissas lágrimas
de mulheres (2011), Poemas das recordações e outros movimentos (2008), Olhos d’água (2017).
2  Publicado no Diário Católico de Belo Horizonte e em uma revista católica do Rio Grande do Sul.
Nem mentira, nem verdade: ficções da memória
A base do que está narrado em Becos da memória foi vivenciada pela
autora e pelos seus parentes, como ela afirma “escrever Becos foi perseguir uma
escrevivência. Por isso também, busco a primeira narração que veio antes da escrita.
Busco a voz, a fala de quem conta, para se misturar à minha. Assim nasceu a
narrativa Becos da memória.” (EVARISTO, 2017)
Ver, viver e se ver pode simplificar a ideia de escrevivência que tanto tem
J sido referenciada em estudos que relacionam arte com o corpo de mulher negra
e da comunidade negra de forma abrangente. Escrevivência, conceito criado por
A Conceição Evaristo, reforça em literatura a ideia da marcação de um corpo negro
de mulher negra que é autor e escreve suas experiências e a dos seus ancestrais
L unindo isso às suas subjetividades e criações. Perspectivas de criação artística e
resistência de uma mulher negra, o olhar de quem se desloca social e espacialmente.
L Uma ficção que traz a escrevivência e os movimentos de corpos negros
sobre a terra como mote, apresenta consigo intersecções da vida da autora, da
personagem que narra a história, bem como da história de negras e negros que
A viram, viveram e podem se ver em histórias inventadas e/ou reais. “A literatura
marcada por uma escrevivência pode con(fundir) a identidade da personagem
narradora com a identidade da autora. Esta con(fusão) não me constrange.”
(EVARISTO, 2017)

• A escritora afirma que a mãe dela, D. Joana, que deu a ela a frase que
ela começa a narrativa: “Vó Rita dormia embolada com ela” e a coloca em contato
147 com o eu-menina que lembra vivências pessoais da favela que já não existe como
• descrita em Becos da memória, com memórias de um passado vivido. “E como lidar
com uma memória ora viva, ora esfacelada? Surgiu então o invento para cobrir
os vazios de lembranças transfiguradas. Invento que atendia ao meu desejo de
que as memórias aparecessem e parecessem inteiras. E quem me ajudou nesse
engenho? Maria-Nova.”Evaristo ainda enfatiza que a favela da narrativa “acabou e
2 acabou. Hoje as favelas produzem outras narrativas, provocam outros testemunhos
e inspiram outras ficções.” (EVARISTO, 2017)
0 O conceito de escrevivência juntamente com as obras de Conceição
Evaristo rememoram a ideia ancestral de coletividade, de trabalhos que embora,
possam até ser apresentados por um único indivíduo, nunca são e nunca serão
1
pautados no individualismo, compactuando com a filosofia ubuntu. Outros vieram
antes, outros virão, sempre coletivamente.
8
Becos, vozes-mulheres e a terra
Relações de corpos negros com a terra. Terra como negação, movimento
e também como lugar-geográfico, lugar-pertencimento e lugar-afeto. Ser de um
lugar considerado ruim e não querer sair dele. O corpo pedir a terra. Não ser de
lugar nenhum, mas ser dali. Querer ir embora, mas não conseguir. Ser obrigado a
ir embora e ponto.
São movimentos as próprias ficções da memória produzidas pelo imaginário
e pela vivência de uma mulher negra e dos seus, outros corpos negros, frente a miséria,
a fome, a pobreza e as complicações da sociedade desigual e preconceituosa, mas
também frente a solidariedade, a histórias, a quilombos e a ternura em Becos da
memória. E existe também muitos trânsitos e deslocamentos descritos na história
que mescla vários personagens negros, que surgem intercalando-se aparentemente
sem uma ordem consciente, e sendo descritos pela voz da narradora-personagem,
a jovem Maria-Nova, e de outra narradora, que conta a história do lado de fora, mas
que conhece os fatos e todos que fazem parte o que complementa as observações.
Evaristo traça pluralidade de personagens e de visões sobre estar e ser
J de um lugar afastado do considerado centro, e discorre sobre afetos e vivências
ancestrais, e o mover-se contemporâneo. A narrativa começa com o contar de Maria-
A Nova já numa perspectiva adulta sobre como era a vida na favela e a discorrer
sobre a outra, a que dormia embolada com a sua avó Rita e a relação delas com a
L terra, com o ver mundo à sua volta, com a falta de graça daquele lugar.
Tudo era tão sem graça. Grandes mundos!... Uma bitaquinha que vendia
pão, cigarro, cachaça e pedaço de rapadura. (...) A torneira, a água, as la-
L vadeiras, os barracões de zinco, papelões, madeiras e lixo. Roupas das pa-
troas que quaravam ao sol. Eu tinha nojo de lavar o sangue alheio. E nem
entendia nem sabia que sangue era aquele. Pensei, por longo tempo, que as
A patroas, as mulheres ricas, mijassem sangue de vez em quando. (...). Hoje
a recordação daquele mundo me traz lágrimas aos olhos. Como éramos po-
bres! Miseráveis talvez! Como a vida acontecia simples e como tudo era e é
complicado! (EVARISTO, 2017, p. 17)

Nesse trecho a visão de mundo era resumida àquela favela, àquela morada,

àquela bitaquinha, àquela gente, a torneira, a água, as lavadeiras, as roupas das
148 patroas quarando no sol, os barracões de zinco, papelões, madeiras e lixo. Logo no
• começo ela descreve a sua marcação social. Pobre, favelada, limitada. Existe no
pensamento de Maria-Nova uma ideia de que aquele mundo era sem graça, mas
que “havia as doces figuras tenebrosas”, que deram a ela algumas memórias para
seu “desejoso dolorido de escrever”.
Becos da memória descreve seus personagens individualmente e suas
2 perspectivas de como chegara àquele lugar e suas relações com o desfavelamento
que estava por vir. Uma das pessoas que Maria-Nova mais gostava de ouvir, além
0 da vó Rita, era o Tio Totó, que não sabia de onde era, nem de onde seus pais eram,
mas que eram escravos e que ele já nascera na “lei do ventre livre”3. Ele já tinha
transitado bastante, casado três vezes, perdido suas companheiras e uma filha,
1
era inconformado com estes acontecimentos trágicos que obrigaram ele a mudar
de terra, a mudar a vida.E mais uma vez, já idoso, estava sendo confrontado com o
8 que mais o deixava triste, a ideia de trocar de morada, sair da favela:
Por que a gente não podia nascer, crescer, multiplicar-se e morrer numa
mesma terra, num mesmo lugar? Se a gente sai por aí, por este mundo de
déu em déu e não volta, o que vale é o respeito, a fé toda quando se está
distante, no que para trás ficou? Para que a crença na volta ao lugar onde
se enterra o umbigo? Verdade fosse! Tio Totó estava inconsolável: já velho,

3  A lei do ventre livre, segundo o Dicionário da escravidão e liberdade,foi criada em 26 de setembro


de 1871, por causa das grandes pressões dos movimentos abolicionistas. Empregado com aspas
para enfatizar uma medida que como uma criança nascida sob essa lei teria liberdade de fato, se os
pais ainda eram escravos?
mudar de novo, num momento em que seu corpo pedia terra. Ele não sairia
da favela. Ali seria sua última morada. Ele olhava o mundo com o olhar de
despedida. (EVARISTO, 2017, p. 18)

A narrativa centra-se em relações de deslocamentos, que nos estudos


sobre cultura, arte, ciências sociais, especialmente, remete a “diferentes formas de
mobilidade, física, espiritual, linguística; a diversas práticas de emigração, exílio,
diáspora, êxodos, nomadismos, circulações humanas; é pensar em translados e
J trânsitos de todo o tipo, em políticas do movimento e em economias da viagem”
(GONZÁLEZ, 2010, p. 109) Pensar em deslocamentos plurais que ocorrem ao
A mesmo tempo.
O primeiro deslocamento diz respeito a própria autora, que se muda de
L Belo Horizonte para o Rio de Janeiro e também das personagens de Becos da
memória, que mesmo os ancestrais já terem sofrido uma das maiores violências
que é a escravidão, ainda necessitaram lidar com deslocamentos forçosos em uma
L
terra que passou a ser também morada, mas que os moradores dela parecem o
tempo todo lutar por auto agenciamento.
A Pensar na mobilidade espiritual que vai além da física e linguística
também é algo agregador para entender comunidades negro-brasileiras. O corpo
negro que pede terra para muitos de nós está na contramão de corpos negros
executados, como ocorre todos os dias no Brasil.
O silêncio – estratégico e o forçado – é um aspecto presente na vida das

mulheres negras, tanto no passado, no período da escravidão, quanto no período
149 pós-emancipação até a contemporaneidade. Quando Conceição Evaristo, tendo
• sua obra emudecida por 20 anos, e tendo reconhecimento da crítica aos 70 anos,
ela está de certo modo marcando as suas escrevivências, mas também explicitando
com esse hiato de atenção os problemas de desigualdade e racismo existentes deste
país que sublima estas questões, optando ainda em utilizar máscaras da harmonia
racial.
2 Sabe-se que devido todas as violências ocorridas e narrativas construídas
no período colonial em relação às mulheres negras, estagnou-se no imaginário da
0 maioria da população brasileira a ideia de negras como sendo corpos objetificados
e alegorizados. Corpos que assumem funções sexuais e servis. Hoje, apesar de
avanços, graças às lutas comnstantes da comunidade negra em diáspora, ainda
1 nos deparamos com índices4 de violências que ainda ratificam as fortes cicatrizes
que a população negra carrega em seus corpos.
8 Naturalizar a desigualdade para estagnar a população e fazê-la acreditar
que não há nada a ser feito, esta é uma estratégia do racismo.
Aos que vieram, aos que virão
Romance publicado após vinte anos de escrito, por falta de atenção do
mercado editorial, Becos da memória traz aspectos intertextuais que também são
diálogos possíveis sobre ser mulher negra e escritora em terras brasileiras marcadas
por problemas sistêmicos e de estrutura como o racismo e o machismo.

4  Ler Atlas da violência de 2017 e Mapa da violência de 2016.


Essa desatenção do mercado editorial não é inconsciente,o que faz
recordar uma indagação de Davis publicada em Mulheres, cultura e política,
“como reconhecemos de maneira coletiva o legado da nossa cultura popular e o
transmitimos para as massas de nosso povo, a quem, em sua maioria, tem sido
negado o acesso aos espaços sociais reservados à arte e à cultura?” e emendo
“por que ainda temos dificuldade de enxergar em prateleiras de grandes livrarias
obras de artistas literárias negras? Por que escritoras como a Conceição Evaristo,
J Carolina Maria de Jesus, Maria Firmina dos Reis, entre outras, passam longe de
serem vistas como cânone, como representantes de um país de maioria negra, assim
como ela, mulher negra de origem pobre? Por que é tão difícil termos mudanças
A
significativas que perpassam a modinha da “festa da representatividade”propagada
por parceiros progressistas não-negros em seus (dis)cursos decoloniais?
L
Comungo com Davis a afirmação de que a arte pode sensibilizar e catalisar

as pessoas de maneira que elas se envolvam em movimentos de mudanças sociais
L radicais e até de emancipação cultural. No Brasil, podemos exemplificar isso com
o movimento hip hop, o rap, os saraus, os slams. Conceição Evaristo, enquanto
A artista literária negra, promove, por meio de sua literatura, além de reflexões que
suas obras oferecem, influência para que mais mulheres negras atuem frente a
uma arte negada a nós como protagonistas e criadoras, gerando um movimento de
continuidade, de resistência, de progresso, de emancipação, de vozes-mulheres, de
terra-ancestral.
• Uma arte que reivindica, que denuncia, que fala de quem sempre teve voz
150 de outra perspectiva, que pluraliza os que sempre foram emudecidos e que sempre
foram ancorados numa zona de paralisia.

Durante o período de escravidão, as pessoas negras foram vítimas de uma
estratégia deliberada de genocídio cultural, que proibiu praticamente todos
os costumes africanos, com exceção da música. Se escravas e escravos re-
ceberam permissão para cantar enquanto labutavam nos campos e para
incorporar a música em seus rituais religiosos, isso se deu porque a escra-
2 vocracia não conseguiu apreender a função social da música em geral e,
em particular, seu papel central em todos os aspectos da vida na sociedade
africana ocidental. Em consequência disso, o povo negro foi capaz de criar
0 com sua música uma comunidade estética de resistência que, por sua vez,
encorajou e nutriu uma comunidade política de luta ativa pela liberdade.
1 (DAVIS, 2017, p. 167)

Davis afirma numa perspectiva dos Estados Unidos, que sim, vivenciaram
8 e vivenciam aspectos peculiares no sistema escravocrata e também na compreensão
da afirmação de negritude, mas que neste quesito, relacionado ao genocídio cultural,
se aproxima historicamente do que ocorreu e ocorre no Brasil. Ela ratifica que a
arte progressista é capaz de mudar a chave, dando às comunidades negras um
sentido de emancipação social.
Embora nem toda arte progressista tenha de lidar com problemas explici-
tamente políticos – na verdade, uma canção de amor pode ser progressista
se incorporar certa sensibilidade em relação à vida de mulheres e homens
da classe trabalhadora –, quero explorar especificamente os significados so-
ciopolíticos evidentes da arte com o objetivo de definir o papel que ela pode
representar na aceleração do progresso social. (DAVIS, 2017, p. 166-167)

Uma obra de arte que fala de uma terra de difícil morada e que não
existe mais geograficamente, mas na memória dos que a conheceram. O que quer
a escritora Conceição Evaristo elucidando e ilustrando este lugar, estas pessoas
negras e diferentes uma das outras?
A narradora, Maria-Nova, desde o início, antes de começar a jornada que
J escava passados, rememora notícias, histórias, casos, cores, cheiros, sabores, ela
como um gesto ancestral mostra uma sensibilidade e ao mesmo tempo honestidade
A no que diz respeito a história que será contada, homenageia a todos que “se
amontoaram” dentro dela, como eram os barracos do seu chão, da sua terra.
L Escrevo como uma homenagem póstuma à vó Rita, que dormia embolada
com ela, a ela que nunca consegui ver plenamente, aos bêbados, às putas,
aos malandros, às crianças vadias que habitam os becos de minha memó-
L ria. Homenagem póstuma às lavadeiras que madrugavam os varais com
roupas ao sol. Às pernas cansadas, suadas, negras, aloiradas de poeira do
A campo aberto onde aconteciam os festivais de bola da favela. Homenagem
póstuma ao Bondade, ao Tião Puxa-Faca, à velha Isolina, à D. Anália, ao Tio
Totó, ao Pedro Cândido, ao Sô Noronha, à D. Maria, mãe do Aníbal, ao Ca-
tarino, à Velha Lia, à Terezinha da Oscarlinda, à Mariinha, à Donana do Pa-
din. Homens, mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim, como
amontoados eram os barracos da minha favela. (EVARISTO, 2017, p. 17)

O meu corpo é a minha terra e/ou a minha terra é o meu corpo?Becos da
151
memória faz lembrar um adinkra antigo,sankofa, que é olhar para atrás e perceber
• nas vivências anteriores aspectos que podem agregar as vivências do presente.
Isto lembra tantas outras narrativas reais de artistas negros como a do cantor e
compositor baiano Mateus Aleluia que fala sobre o grupo musical negro-baiano que
surgiu na década de 1960, do qual fez parte,Os Tincoãs, e sua viagem do Recôncavo
da Bahia para Luanda em 1983 com os parceiros Dadinho e Badu, e o retorno
2 novamente nos anos 2000 para o Recôncavo.Ele fala que a música feita por eles,
os Tincoãs, se encontra no plano do sensível, da delicadeza e que a grande arma é
0 a gentileza e a arte. No trecho deChão de verdade dos Tincoãs,apresenta uma ideia
de como o mundo pode estar configurado para alguns. Nem tudo está apresentado

de forma sistemática e racionalizada, como fomos treinados a acreditar e a pensar.
1 Aleluia fala que “me recolhi ao chão” remete a ideia de voltar para unidade, para
liberdade plena, “pois é no chão que está na minha entidade. Eu não falo que a
8 entidade está no altar. O altar é chão. O rei está no chão. O discurso daquele rei é
o grito daquele plebeu.” (ALELUIA, 2017, p. 132)

Conceição Evaristo nos ensina em Becos da memória, com a arma da
escrita e a curadoria de fotografias pessoais, uma estratégia de guardar e ensinar
conhecimentos ancestrais com ternura mesmo diante da dor das marcas e das
surras reais e simbólicas, e dos constantes assaltos aos nossos direitos. Mesmo com
a mudança, e com muitos cadernos e anotações que se perderam com a destruição
da favela que nasceu e morou, como está explícito no documentário Ocupação,
Evaristo não deixa de fortalecer com sua narrativa os mais novos e aqueles que
antes mesmo de Maria-Velha fez valer àquele chão, àquela favela que já nem existe
de fato. E este chão de verdade éterra, Terra e resistência. E assim, neste chão,
planto sementes-questões para continuar.
Referências
ALELUIA, Mateus. Nós, os Tincoãs. 1ª ed. Salvador: Sanzala Artística, 2017.
DAVIS, Angela. Mulheres, cultura e política. Tradução Heci Regina Candiani. 1ª edição.
São Paulo: Boitempo, 2017.
J
GONZÁLEZ, Elena Palmero. Deslocamento. In: Dicionário das mobilidades culturais:
percursos americanos. Org. Zilá Bernd. Porto Alegre: Literalis, 2010.
A EVARISTO, Conceição. Becos da memória. 1ª edição. Rio de Janeiro: Editora Pallas, 2017.
PAIXÃO, M.; GOMES, F. Histórias das diferenças e das desigualdades revisitadas: notas
L sobre gênero, escravidão, raça e pós-emancipação. In: XAVIER, G.; FARIAS, J. B. e GO-
MES, F. Mulheres negras no Brasil escravistae do pós-emancipação. São Paulo: Selo
L negro, 2012, p. 297-313.
SANTOS, Gevanilda. Relações racias e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo negro,
2009.
A


152

2

0

1

8

J

A

L LLAMADO A ALGUNOS DOCTORES DE JOSÉ MARIA ARGUEDAS:
UM CONVITE À ANTROPOFAGIA
L
Carlos David Larraondo Chauca (UFAC)
A Suerda Mara Monteiro Vital Lima (UFAC)
RESUMO:Propomos uma leitura do poema “Llamado a algunos doctores” (1966) do
intelectual, escritor, indígena e peruano José Maria Arguedas, analisado a partir do
conceito de antropofagia, o devorar o outro, que segundo a lógica indígena significa
reconhecê-lo como igual, como aquilo que me falta, que dá continuidade à vida
• desafiando o espaço/tempo. No poema Arguedas, ergue sua voz de amauta para
argumentar com o próprio corpo multiplicado, com a natureza, desenhando uma
153
cartografia andina permeada pelo íntimo relato dos seres vivos que aí coexistem.
• Sem dúvidas um campo discursivo que nos permite problematizar os efeitos da
colonização que se perpetuam nos contextos nacionais “latino-americanos”,
sistematizando a destruição dos valores culturais de povos que não se encaixam
nos projetos da modernidade.
Palavras-chave: José Maria Arguedas. Antropofagia. Literatura hispano-americana
2
A intenção do presente escrito confabula, mesmo que indiretamente,
0 com as transgressões pioneiras de pensadoras e pensadores que munidos pela
necessidade de tecer outras narrativas que relativizem as grandes narrativas
históricas nos abrem as portas para um outro entendimento, não contrário, nem
1
paralelo às lógicas cientificas e modernas que filtram e constroem nosso olhar e
entendimento ocidentalizado, mas confluente, indissociável, adotando uma lógica
8 de paridade ou yanantin1,por usar uma alegoria andina (da qual trataremos mais à
frente), onde o visível está permeado pelo invisível, o consciente pelo inconsciente, o
material pelo espiritual, o racional pelo afetivo (etc.). Estes pensamentos configuram
uma narrativa da outridade, que foge à linearidade naturalizada do espaço-tempo
da história, uma vez que tal superficialidade não poderia conter as curvas, espirais,
circunferências e as profundidades da multiprodução cultural líquida e gaseiforme
que os corpos-discursos manifestam na sua oralidade, na escrita, nos silêncios,
1  Para Ninanturmanya (2013 apud. FEHLAUER 2016, p.58) Yanantinsugere um sentido de
atração entre pares complementários que engendram sabedorias do invisível, do indeterminado.
Uma dualidade complementária inerente ao mundo.
na inercia e em seus movimentos dentro dos marcos geopolíticos, especificamente,
daquilo que é denominado Latino-América.
Doravante, estimulados pela intenção explicitada, propomos a leitura do
texto “Llamado a algunos doctores” de José Maria Arguedasque, nestas páginas,
se limita apenas a destacar algumas possíveis arestas da escrita poligonal do
antropólogo peruano e sua densidade poética resultante dos seus trânsitos, suas
negociações identitárias maceradas a seu trabalho linguístico, filosófico, histórico
J e social. O intuito não é centralizar nossa interpretação a determinado aspecto
dedutivo do texto de Arguedas sob uma ótica hermética dos estudos literários,
A mas, articulando-nos ao pensamento rizomático2de Gilles Deleuze e Félix Guattari
(1995), procurar as polifonias e a multiplicidade, o devir da sua escrita e as
L conexões que nos permitam, pelas suas ramificações e prolongações, associá-la à
categoria de análise proposta: a antropofagia, uma metáfora teórica que parte de

um contra-discurso eurocentrado eque, em seus desdobramentos, nos possibilita
L problematizar nosso olhar ante a modernidade3 e ler o texto como um intersubjetivo
e afetuoso convite a novas compreensões ontológicas e epistêmicas,intrínsecas à
A alteridade do corpus arguediano reconhecido dentro do campo intelectual e crítico
da literatura peruana e latino-americanacomo discurso da outridade, tendo em
vista os compromissos éticos e políticos que o escritor assumiu em vida e na sua
condição de “blanco aculturado por losindios” (RAMA, 1985, p.209).
José María Arguedas nasceu no Peru em 1911 na cidade de Andahuaylas,
• departamento de Apurimac.Sua infância é marcada pelo sentimento de orfandade
154 causado tanto pela morte de sua mãe, quanto pela constante ausência paterna
(ULFE, 2011, p.55), encontrando conforto na servidão indígena que o acolheu

nos espaços marginais da casa que sua madrasta regia e onde ele era confinado.
Para Garcia Morales (2011), os estudos da obra do escritor apontam que muitos
dos seus romances surgem das suas vivências pessoais, nutridas principalmente
na infância, que o próprio Arguedas fez questão de explicitar em algumas das
entrevistas que concedeu:
2 Voy a hacerles una confesión un poco curiosa: yo soy hechura de mi ma-
drastra. Mi madre murió cuando yo tenía dos años y medio. Mi padre se
0 casó en segundas nupcias com una mujer que tenía tres hijos; yo era el
menor y como era muy pequeño me dejó en la casa de mi madrastra, que
era dueña de la mitad del pueblo; tenía mucha servidumbre indígena y el
1 tradicional menosprecio e ignorancia de lo que era un indio, y como a mí me
tenía tanto desprecio y tanto rencor como a los indios, decidió que yo había
8 de vivir con ellos en la cocina, comer y dormir allí. (ARGUEDAS, 1992, p.09)
apud. MORALES 2011, p.52)

2  DELUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Introdução: rizoma, In: _____. Mil Plâtos: capitalismo e
esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 3, 1995. p.11-37.
3  Para Walter Mignolo “A configuração da modernidade na Europa e da colonialidade no resto do
mundo (com exceções, por certo, como é o caso da Irlanda), foi a imagem hegemônica sustentada na
colonialidade do poder que torna difícil pensar que não pode haver modernidade sem colonialidade;
que a colonialidade é constitutiva da modernidade, e não derivativa.” (MIGNOLO, 2005, p. 38).
Dessa forma o discurso da modernidade se estabelece como uma hegemonia de pensamento que
domina e submete corpos e discursos que não se adaptam às logicas eurocêntricas.
Essas experiências com a comunidade indígena dos Andes peruanos,
nos espaços relegados do ambiente familiar, nos permitem ter uma noção da sua
identificação com os corpos abjetos, coisificados, silenciados e invisibilizados nas
grandes narrativase entender a voz que projeta destes entre-lugares de branco e
de índio, uma voz que nasce marginalizada e carregará este estigma no decorrer
dos seus (des)caminhos. Essa situação, de entre-lugar, permite entender como o
escritor, desde a infância,cria profundos laços afetivos com as vivências indígenas e
J como elas se estabelecem como o fundamento importante da sua formação humana
e profissional.
A A criação com os indígenas possibilitará que Arguedas aprenda a língua e
assimile o pensamento quéchua, nutrindo-se de um entendimentomágico-religioso
L da natureza e da realidade presentes na cosmovisão andina que no transcurso da
sua vida se impregnará no seu processo formativo e intelectual.Para Morales:

Este recorrido capacita a Arguedas para emprender una tarea hasta enton-
L ces inédita: rescatar para la lengua y la mirada occidental los elementos de
la cultura quechua, que él siente como propios. Tenemos que comprender,
A primeramente, que Arguedas, frente a otros autores de la tradición indige-
nista, no parte de la realidad blanca para después realizar un acercamiento
más o menos profundo al ámbito indígena. Su camino, y esto es lo que le
hace a nuestros ojos un autor tan especial e inimitable, es el contrario: él
parte desde la cultura quechua para ir hacia el ámbito occidental. La difi-
cultad que encuentra no es entonces cómo llegar a comprender lo indígena,
• sino cómo abrir el marco de ese mundo para hacerlo accesible al lector en
español.(MORALES, 2011, p.53).
155
• Arguedas sente como índio, assim é narrado e assim se narra a si
próprio, em seus posicionamentos políticos como escritor e antropólogo, nas
suas declarações abertas nas entrevistas que concedia e nas cartas que, desde
a intimidade, escreve para seus entes mais próximos, nas quais se destacam a
convivência com os indígenas e sua partilha dos profundos laços afetivos advindos
do sentimento de abandono e negligência que ele sentia em relação à sua família e
2
estes em relação à sua condição de marginalizados.Assim observamos na carta que
escreve para seu irmão Arístides Arguedas em 1969:
0 Tú sabes cómo ha sido nuestra vida, cómo por causas, algunas claras, mi
permanencia en San Juan cuando era muy niño mientras tú estabas en
1 Puquio con papá, por mi infantilismo y sentimiento de gran orfandad, tú
eras fuerte de carácter, yo me arrimé a los indios e indias y aprendí de ellos
todo o casi todo su maravilloso y casi indescriptible mundo. Yo canto como
8 ellos, como ellos hablo, pero al mismo tiempo también sentí, desde Puquio
hasta en todos los pueblos en que estuve con el viejo y en Lima, a la otra
gente. Mis trabajos son la flor de esa vida, y de la de Viseca, donde aunque
descalzos nunca fuimos infelices sino todo lo contrario. (PINILLA 1999, p.
285 apud NÚÑEZ 2016, p.66)

Tais narrativas constroem o perfil do escritor situando-o como discurso da


outridade no campo intelectual. Gabriela Núñez em seu estudo intitulado “Memorias
de infancia y nación imaginada en la correspondencia de José María Arguedas”,
analisa o vasto corpus de cartas que Arguedas intercambiou com familiares
e amigos e assume que, o caráter privado destas, permite tecer uma “narração
retrospectiva” que serve como um “fio condutor biográfico” que pode ser analisado
“como autorretratos” do autor “donde dicequién es élcon un lenguajecargado de
emociones” (NÚÑEZ 2016, p.64).
A pesquisa de Núñez, nos permite um olhar atento aos discursos que
constroem Arguedas como símbolo das lutas indígenas e da literatura denominada
indigenista, mediante este estudo a filósofa conclui que as correspondências do
escritor, carregadas de emotividade, rememoram sua infância e autorretratam
J os sentimentos ambíguos de dor e sofrimento, “destacando la necesidad de
protección, la identificacióncon la cosmovisión andina y la creación de un nuevo
A sentido de “otredad”, una más relacionada conlas emociones que con la cultura
per se.” (NÚÑEZ 2016, p.78). Há de concordar que Arguedas se coloca, mas que
L no trânsito, no embate entre duas “naturezas” e enuncia desde uma fronteira não
traçada, esvanecida pela afetividade e sua escolha de narrar o outro, que também

é ele, o indígena.
L
Nessa difícil relação identificamos o que Eni Puccinelli Orlandi define
como política do performativo, cujo componente fundamental é “fazer ver o que não
A existe. Produzir o efeito do real. Passar do invisível para o manifesto.” (ORLANDI,
2017, p.65). Ou ainda segundo a visão de Michel Pêcheux, sustentada pela língua
do vento4, esta política do performativo coloca “a questão de saber quem está ‘no
direito’ de produzir enunciados performativos” (PÊCHEUX, 2011, p.89). Dessa forma
na condição de mestiço, seu hibridismo e filosofia de fronteira, mas principalmente
• sua experiência cognoscitiva e afetiva fazem que Arguedas fale com propriedade
156 dos condicionamentos do indígena no emaranhado das relações de poder social.
As memorias da sua infância “son a su vez determinantes para que el escritor

se asuma como representante de los encuentro culturales de la nación peruana
(NÚÑEZ, 2016, p.78).
Aludindo a essa condição de homem fronteiriço, Arguedas pode ser
associado ao pensamento crítico de fronteira de Ramón Grosfoguel, quando
2 firma que aresposta epistêmica do subalterno ao projeto eurocêntrico, não é
fundamentalista, mas

ao invés de rejeitarem a modernidade para se recolherem num absolutismo
0 fundamentalista, as epistemologias de fronteira subsumem/redefinem a re-
tórica emancipatória da modernidade a partir das cosmologias e epistemo-
1 logias do subalterno, localizadas no lado oprimido e explorado da diferença
colonial, rumo a uma luta de libertação descolonial (...). O pensamento de
fronteira não é um fundamentalismo antimoderno. É uma resposta trans-
8 moderna descolonial do subalterno perante a modernidade eurocêntrica.
(GROSFOGUEL, 2010, p.457)

Talvez, possa ser perigoso enquadrar a Arguedas, totalmente, ao
pensamento gorsfogueliano, mesmo o escritor se imaginando como o Perú mismo,
4  Para Courtine (2003, p. 25) As línguas de vento se opõem à língua de madeira (línguas duras
e herméticas) do direito e da política. Dessa forma Consideramos que José Maria Arguedas, se
identifica mais com a noção de língua de vento, por fugir dos campos enunciativos do direito e da
política, não no sentido que sua escrita ou sua produção discursiva seja facilmente digerida, mas
pela sua preocupação de quechualizar o espanhol e procurar uma fluidez no seu discurso que possa
ser entendido por indígenas e brancos.
por ter dentro de si“incrustados la historia de la mitología andina, la cultura del
imperio inca, el período colonial y republicano, incluyendolas intersecciones,
encuentros y desencuentros de diferentes clasessociales y razas (indígenas, blancos
y mestizos).”(NÚÑEZ 2016, p.78). Ou ainda, segundo Núñez, seu posicionamento
como o ponto de encontro das diferentes fases da sociedade peruana.É ainda mais
notável sua crítica dos processos de modernização, os quais, com seus mecanismos
e tecnologias, são vorazes e destroem qualquer ponte de integração entre povos.
J Como exemplo, podemos citar seu enfrentamento e crítica à Ley de
Conscripción Vial de 19205. Segundo Ulfe (2011, p. 51) é José María Arguedas
A quem sugere que as construções de carreteiras de tal legislação que sucederam
entre 1920 e 1940, ao contrário de impulsionar o comercio rural, trouxe mais
L isolamento e pobreza às comunidades indígenas. Na análise de Arguedas a tal
modernizaçãoauspiciada pelo governo ditatorial de Legía, trouxe, além de um sistema

de trabalho obrigatório da construção das carreteiras que afetava apenas aos mais
L pobres, na sua maioria indígenas, uma marcante e acentuada desigualdade social,
que fortalecia a centralização, construindo junto com tais estradas, um silencioso
A sistema de segregação que transformou à população interiorana em cidadão de
segunda classe. (ULFE, 2011, p. 52).
O ceticismo de Arguedas ante as armadilhas do discurso da modernidade
energizam sua voz crítica que, manifestada na sua pena de tinta indelével, persiste ao
tempo e insiste em gritar, desde as fronteiras, a indignação e sofrimento individual/
• coletivo da alma indígena. E não enuncia estranho ou alheio a esta realidade, em
157 sua obra “la cultura indígena es elpunto de partida, es lopropio; de este modo, la
voz arguediana se particulariza por evidenciar elesfuerzo de um creador formado

en el mundo quechua por adaptar para éstelos recursos comunicativos de la
sociedadoccidental” (MORALES, 2011, p.56).
Consequentemente, sua poética telúrica, sua escrita híbrida de quéchua
e espanhol, faz-nos acreditar que se nutre do espaço que habita: a região andina
2 do Apurimac, departamento onde nasceu. Nome dado, desde os tempos pré-
hispânicos, ao rio que forma a bacia hidrográfica que cobre 70% da região do
sudoeste peruano, em plena Cordilheira dos Andes, nome advindo de um vocábulo
0 quéchua, que significa “la divinidad que habla” fazendo referência “al estruendo que
hacenlas aguas del torrentosorío al golpear contra las paredes rocosas del cañón
1 que atraviesa, pero que a su vez lehabríaotorgado un carácter sagrado, dentro de
lascreencias religiosas de los habitantes del Perú prehispánico” (AMOROS, 2016,
8 p.02).
Arriscamos dizer que o discurso arguediano é esse apurimac: a correnteza
estrondosaque colide comas rochas dos grandes discursos com uma força
avassaladora procurando a, talvez utópica, fissura que o permita corroer por dentro
a solidez das narrativas hegemônicas legalizadas pela história. Uma luta de poder

5  Segundo Mario Meza Bazán (2003) as carreteiras criadas por essa legislação serviriam para abrir
os caminhos da modernidade e conectar diferentes regiões peruanas desde as localidades mais
carentes aos grandes centros urbanos. No entanto as negociações obtusas do governo ditatorial de
Legía, privilegiaram as elites, condicionando as comunidades indígenas ao trabalho gratuito semi-
escravista de construção de carreteiras.
no campo enunciativo que se bem injeta a vida e o frescor de um novo entendimento,
também,implica colocar seu corpo ao risco eminente, à morte em potência que a
força da correnteza sugere. Um embate constante daquele que sempre se soube
dividido entre dois mundos e cuja tentativa de “alcanzarun diálogo entre esas
dos realidades, físicamentecercanas, pero social e ideológicamente enfrentadas,
le acarreará consecuencias trágicas.Después de varios intentos fracasados, José
María Arguedas acaba com su vida em 1969” (MORALES, 2011, p.53).
J Três anos antes de decidir suicidar-se, Arguedas escreve, em língua
quéchua, o poema “Huk Doctorkunaman Qayay” (1966), que em espanhol traduziu
A para “Llamado a algunos doctores”publicado,em língua espanhola, no jornal “El
comercio” em julho de 1966. O surgimento deste poema e de outros, que mais
L tardefariam partedo copilado intitulado Katatay y otros poemas (1972), se justificam,
segundo a pesquisa de Tara Daly (2012), por dois motivos: o primeiro seria uma

“reacción a la antropología desarrollista, un movimiento que por sucreencia en la
L modernización occidental impactó directamente las culturas indígenas del Perú”
(DALY, 2012, p.64); e o segundo, seria uma resposta pessoal à Mesa Redonda
A referente a seu último livro Todas las sangresem Lima no dia 23 de junho de 1965,
o qual foi duramente criticado.Deixandoo escritor profundamente fendido: “casi
demostrado por dos sabios sociólogos y un economista, también hoy, de que mi
libro Todas las sangres es negativo para el país, no tengo nada que hacer ya en este
mundo. Mis fuerzas han declinado creo que irremediablemente” (ESCOBAR, 1965,
• p.67).
158 Para Daly (2012), no momento da publicação do poema “Llamado a
algunos doctores”, Arguedas experimentavauma crisepessoaladvinda darejeição do

seuúltimoromance,Todas las sangres,pelos doutores, sociólogose críticos literários
que questionaramo “tipo de novela que escribió en vez de criticar o problematizar
la realidad que representó. La implicación parece haber sido que el arte debe
representar el mundo de un modo particular.” (DALY 2012, p. 65)Em outras
palavras, a crítica ao romance de Arguedas era maispolítica que literária, uma
2 vez que sua obra era contraria à agenda progressista do paradigma desarrollista
peruano da década de 1950.
0 O posicionamento político de Arguedas e as situações que o estimularam
a escrever “Llamado a algunos doctores” explicitam o lugar do qual o eu lírico
1 enuncia: o âmbito andino; a alteridade da sua escrita, sua oposição à modernidade
ocidentalizada, nos permitem realizar uma leitura a partir da perspectiva de uma
8 lógica indígena: a antropofagia, pois consideramos que o chamado de Arguedas é
um convite para que o homem moderno olhe o outro,para que (re)conheça o indígena
e sua cosmovisão.
Ao mesmo tempo, usar da antropofagia como um pensamento que
governe uma análise e postura acadêmica, nos permite, acreditamos, ser partícipes
do posicionamento de Arguedas, pois usar dessa categoria como perspectiva
epistemológica e hermenêutica intenciona dessacralizar a lógica ocidental, uma
vez que remete a recorrer ao “selvagem”, àquilo que no/pelo discurso hegemônico é
entendido como não civilizado, não cientifico, inculto, inumano, inválido.
Tais adjetivações associadas ao indígena e aos âmbitos de produção de
sentido que o circundam e que o homem ocidental, moderno, usa para construir-
se na antítese desta categorização, vale ressaltar, inventada por ele mesmo, se
percebem nas primeiras estrofes do poema. Aquia lógica etnocêntrica é questionada
pelo eu lírico e nos introduz ao confronto ideológico que se fará presente no decorrer
da narração.
Dicen que no sabemos nada, que somos el atraso, que nos han de cambiar
la cabeza por otra mejor. /Dicen que nuestro corazón tampoco conviene a
J los tiempos, que está lleno de temores, de lágrimas, como el de la calandria,
como el de un toro grande al que se degüella, que por eso es impertinen-
te./Dicen que algunos doctores afirman eso de nosotros, doctores que se
A reproducen en nuestra misma tierra, que aquí engordan o que se vuelven
amarillos.(ARGUEDAS, 1966).
L É interessante observar as significações que o efeito anafórico do verbo
“dicen” nos permite tecer, sua repetição pode ser entendida como o reclamo de
L uma voz individual/coletiva, que questiona a constante produção de sentidos e
sua repercussão histórica e social que afincam no imaginário popular a associação
A dos indígenas com o atraso do moderno. O verbo conjugado em terceira pessoa do
plural, desenha uma fronteira discursiva entre um nós (indígenas) e um eles (o
homem branco, o homem moderno) que indica “as posições de sujeito fortemente
marcadas por relações de poder6” (tadeu da silva). O embate que o eu poético propõe
é relativizar a capacidade e desnaturalizar as verdades que o discurso dos doutores
• ou homens da ciência produzem.
Sua crítica não tange apenas aos doutores do norte do globo, cuja
159
natureza “hierárquica das relações Norte-Sul permanecem cativas das relações
• capitalistas e imperiais” (MENESES, 2008, p. 5) e no qual “os ‘outros’ saberes,
para além da ciência e da técnica, têm sido produzidos como não existentes e,
por isso, radicalmente excluídos da racionalidade moderna” (MENESES, 2008,
p. 05), mas também aos “doctores que se reproducen en nuestra misma tierra”,
acadêmicos, urbanos, que compartilham dessa mesma lógica, como aqueles que
2 criticaram seu romance Todas las sangres: “doctores educados en centros urbanos
y desconectados de losotros sectores rurales de Perú llegan a estas mismas regiones
0 con la intención de practicarmetodologías e imponer soluciones occidentales a
problemas que requieren intervenciones alternativas” (DALY 2012, p. 65). E nessa
lógica violenta, a catequização da ciência ocidental que se estabelece por dicotomias
1
(razão e emoção, mente e corpo, divino e secular), sugere trocar as cabeças e
inutilizar o impertinente coraçãodo indígena,se desfazer dos seus conhecimentos
8 sempre atrelados a sua vivência e afetuosidade com a natureza.
Nos próximos versos, a resposta ante as afirmações dos doutores da
ciência vem carregada de ironia “Que esténhablando, pues: que esténcotorreando,
si esolesgusta” (ARGUEDAS, 1966), o coloquialismo cotorreando significa falar
excessivamente, sem filtro, sem reflexão, entendemos a escolha desse vocábulo

6  Tadeu da Silva (2000) indica que dividir o mundo social entre “nós” e “eles” significa classificar e
tal processo, central para a vida social, é um ato de significação pelo qual dividimos e ordenamos
o mundo social em grupos, em classes. E tais classificações obedecem a uma lógica de poder, pois
são feitas a partir do ponto de vista da identidade hegemônica.
como uma subversão, onde o discurso hegemônico é ridicularizado, uma burla
que fabrica o riso e que relativiza o poder, uma vez que “É preciso rir do inimigo
e do que dele ficou dentro de nós [...] É preciso rir o riso crítico que denuncia a
comicidade dos protagonistas, conquistadores e conquistados, na vã tentativa de
vestir, e de impor, a apertada roupa cultural de quem manda ou pensa mandar.”
(MARTINS, 1993, p.16).
Assim sendo, o verso anterior que no riso fissura o discurso hegemônico,
J dá abertura para que o eu lírico questione tal lógica com perguntas cuja
materialidade orgânica coloca em evidência que as categorizações feitas por atos
A de criação linguística, aquelas que coisificam e encaixotam os corpos-discursos
indígenas no conceito de subumano da modernidade, desmoronam ante a evidência
L material de um corpo “¿De quéestánhechos mis sesos? ¿De qué está hecha la carne
de mi corazón?” (ARGUEDAS, 1966). Essas indagações também as entendemos

como uma tentativa de aproximação, um vínculo biótico, um comum denominador
L capaz de aproximar os seres, mesmo em um mundo fragmentado.É possível tal
aproximação? Nos próximos versos Arguedas propõe que sim: “Saca tu larga vista,
A tusmejoresanteojos. Mira, si puedes.” (ARGUEDAS, 1966).
A condição necessária, proposta pelo autor, para tal aproximação, é que
o homem ocidental e/ou ocidentalizado precisa problematizar sua subjetividade,
sua faculdade evidente da história, incomodar seu olhar governado pelos filtros da
cultura ocidental, “sacar su larga vista”, seus “mejoresanteojos”, espreitar além
• da superfície visível e mergulhar em outras experiências sensitivas: uma relação
160 concreta com a existência conforme indicado no fragmento a seguir
Quinientas flores de papas distintas crecen en los balcones de los abismos

que tus ojos no alcanzan/ sobre la tierra en que la noche y el oro, la plata y
el día se mezclan. / Esas quinientas flores, son mis sesos, mi carne./¿Por
qué se ha detenido un instante el sol, por qué ha desaparecido la
sombra en todas partes, doctor?/ Pon en marcha tu helicóptero y sube aquí,
si puedes. Las plumas de los cóndores, de los pequeños pájaros se han con-
2 vertido en arco iris y alumbran./ Las cien flores de la quinua que sembré
en las cumbres hierven al sol en colores, en flor se ha convertido la negra
ala del cóndor uy de las aves pequeñas./ Es el mediodía; estoy junto a las
0 montañas sagradas: la gran nieve con lampos amarillos, con manchas roji-
zas, lanzan su luz a los cielos./ En esta fría tierra, siembro quinua de cien
colores, de cien clases, de semilla poderosa. Los cien colores son también mi
1 alma, mis infaltables ojos.(ARGUEDAS, 1966)

8 Nos versos supracitados identificamos o que Estermann (2008) denomina
como filosofia andina, cujo estatuto filosófico de pensamento contrário à filosofia
ocidental não se estabelece mediante um entendimento dual da realidade e não
tende a ser uma representação conceitual, mas simbólica. As basesdesta filosofia
se encontram nos princípios da relacionalidade, da complementaridade, da
correspondência e da reciprocidade. Tal simbolismo relacional, nessa cosmovisão,
recebe o nome de Yanantin, uma cosmogonia ou pensamento paritário andino.
Tércio Felahuer (2016), citando a Lajo (2006), explica que na etimologiaquéchua
o vocábuloYanan’significa “‘enamorado’, ‘cautivo del amor’ (sea hombre o mujer),
una esclavitud ‘voluntaria’, forzosa e irrenunciable. [...] Con la unión del sufijo ‘tin’
se refuerza el sentido aglutinante, proyectando Yanantin como la idea de ambos
amantes juntos” (LAJO, 2006, p.88 apud. FELAHUER, 2016, p.58). Ainda, as
possibilidades etimológicas dessaterminologia, segundo Ninanturmanya (2013),
podequalificar a atração “enamorada Yanan como determinada por lo invisible,
donde yananes el complemento de lo invisible, especie de mundo no tangible
de los afectos [...] ‘complemento-sabiduria’ de si, o también, como su ‘fuente de
transformación” (NINANTURMAYA, 2013 apud FELAHUER, 2016, p.58).
J A lógica de atração dos pares complementários que “engendran sabidurías
de lo invisible, de lo indeterminado”(NINANTURMANYA, 2013 apud FELAHUER,
A 2016, p.58), reflete-se nos simbolismos que Arguedas usa para confeccionar os
versos, ondeelenca elementos da naturezaa seu proprio corpo, por exemplo em
L “Esas quinientas flores, son mis sesos, mi carne”. No poema existe uma inserção
mítica e a “(re) presentación cúltica y ceremonial simbólica de la misma. La realidad

se ‘revela’ en la celebración de la misma, lo que es más que una representación,
L puesto que es más un ‘recrear’ que un ‘repensar’”. (ESTERMANN, 1998, p.92).
Diferente da lógica ocidental, na lógica andina não existe uma partição entre o vivo e
A o inerte, entre o céu e a terra, entre o religioso e o profano.Percebemosa proximidade
entre o divino e o humano no verso “estoy junto a lasmontañas sagradas”. Dessa
forma, como enuncia Estermann, na cosmogonia andina “não há vida de uma
forma isolada, mas apenas por meio de uma rede de relações complementares”
(ESTERMANN, 2008, p. 32).
• Assim, o Yanantin como categoria de entendimento mais amplo, evoca
161 o pensamento paritário andino perpassado pela natureza espiritual e material
do mundo. O que significa que nesse paradigma de pensamento o mundo se

estabelece em um cosmos par, além da noção de universo da cultura ocidental,
mas como um duo-verso (LAJO, 2006, p.79 apud. FELAHUER, 2016, p. 61), cujas
relações complementaresnão são estáticas, pois obedecem a um movimento que no
estudo de Felahuer (2016), se identifica com a terminologia quéchua Yanantinkuy,
na qual à raiz Yanan(paridade cósmica) se lhe agrega o sufixo tinkuy(encontrar,
2 alcançar), que traduz a potência e a complexidade da cosmologia andina e seu
sentido dinâmico no encontro dos pares em movimento, no aqui e agora.
0 Essaideia está impregnadano poema de Arguedas e pode ser identificada
nasimagens poéticas: “sobre la tierra en que la noche y el oro, la plata y el día se
1 mezclan”, “Por qué se ha detenido un instante el sol”, “Pon en marcha tu helicóptero
y sube aquí, si puedes.” E também se encontram nos versos subsequentes:
8 Yo, aleteando amor, sacaré de tus sesos las piedras idiotas que te han hun-
dido. /El sonido de los precipicios que nadie alcanza, la luz de la nieve ro-
jiza, de espantado, brilla en las cumbres. / El jugo feliz de los millares de
yerba, de millares de raíces que piensan y saben, derramaré tu sangre, en
la niña de tus ojos. / El latido de miradas de gusanos que guardan tierra y
luz; el vocerío de los insectos voladores, te los enseñaré hermano, haré que
los entiendas. /

Las lágrimas de las aves que cantan, su pecho que acaricia igual que la au-
rora, haré que las sientas y las oigas (ARGUEDAS, 1966).

Esses movimentos, desde o mais íntimo, convergem em sinergias que


relacionam e colocam em um mesmo patamar todos os entes da natureza, há um
significado oculto a ser desvendado, um significado que o eu líricoandino conhece,
pois o sente no seu corpo multifacetado, na sua condição de par correspondente
e que está disposto a oferecer ao outro, ao homem branco, não de um modo
impositivo, mas afetuoso “Yo, aleteando amor, sacaré de tussesoslaspiedras
idiotas que te hanhundido”. A relação simbólica que o eu líricoestabelece, com
as sementes, com o “palpitar dos olhares das minhocas que guardam terra e
J luz”, “com os insetos”, com “o sussurro que canta no peito das aves”, tudo isso
corresponde a uma epistemologia que se fabrica no íntimo relato das espécies,
que indica que a totalidade da natureza pode habitar no menor dos seres, que o
A
mais ínfimo pode conter o extenso. E nesse sentido de pertença recíproca cria um
vínculo comunitário que perpetua a existência mediante uma genética do espaço,
L do duo-verso em movimento, na sua relação com a exterioridade, não apenas com
um outro também humano, mas com a comunidade cósmica: animais, vegetais,
L montanhas, paisagens, espíritos e forças. Que conecta o pequeno com o grande, o
micro com o macro.
A Para Manuel Tavares (2013) o paradigma do pensamento filosófico andino
não obedece a um sistema que se constrói a través da experiência do outro, mas com
a própria experimentação do mundo, não é uma filosofia de ideia, ruminante, mas
que se constrói a partir da “vida e do contato direto com a realidade multifacetada,
vivida e pensada por mulheres e homens que vivem nos Andes em comunhão com
• a natureza (Pachamama) e com todas as esferas do universo” (TAVARES, 2013,
162 p.208). Tal sentido da existência é compartilhado pelo eu líricodo poema nos
seguintes versos: “Ninguna máquina difícil hizolo que sé, lo que sufro, lo que gozar
• del mundo gozo. Sobre la tierra, desde la nieve que rompe los huesos hasta el fuego
de las quebradas, delante del cielo, con su voluntad y con mis fuerzas hicimos todo
eso.” (ARGUEDAS, 1966).
Nesses versos identificamos, também, o triunfo do homem sobre a máquina
(símbolo das revoluções e inovações tecnológicas do ocidente) que não consegue
2 superar o misticismo-religioso da natureza. Jeferson Estermann, em entrevista
concedida a Mateus Tavares (2013), afirma que há de fato certa fascinação pelas
0 maravilhas da tecnologia em certos membros das comunidades indígenas e acredita
na existência de um materialismo andino, mas à diferença do sentido que a cultura
1 ocidental lhe atribui.O materialismo na cosmovisão andina,“se conjuga con lo
espiritual, por lo que es al mismo tiempo sumamente religioso. Es un materialismo
8 de lo tangible, lo sensitivo, lo concreto(no hay nociones en quechua o aimara para
entidades abstractas), de la inmanencia de lo “natural”. (TAVARES, 2013, p.231).
Namesma entrevista , Estermann, afirma que “El capitalismo de consumo
tiene entrada libre en el mundo indígena, no tanto por el afán de acumulación que
tienen los pueblos indígenas, sino por la curiosidad, el interés, la fascinación por
el ‘misterio’” (TAVARES, 2013, p.231).Tal afirmação, demostra certa predisposição
do homem andino que facilitou a digestão da cultura eurocêntrica, não que tal
assimilação tenha sido um processo pacífico, pelo contrário “os povos que foram
colonizados participaram da modernidade pela violência, exclusão e discriminação
que a modernidade lhes impôs (SANTOS, 2006), no entanto há de se considerar o
caráter antropofágico do indígena e seu interesse de devorar o outro.
A proposta inicial do nosso trabalho, o que nos dispusemos a tecer ao
longo do presente texto, é a ideia de que Arguedas, mediante o poema “Llamado
a algunos doctores”, propõe ao homem branco, ocidental, moderno, devorar o
indígena. Esta intenção parece-nos evidente nas estrofes que continuam
No huyas de mí, doctor, acércate. Míramebien, reconóceme. ¿Hasta cuán-
J dohe de esperarte? Acércate a mí; levántame hasta la cabina de tu helicóp-
tero. Yo te invitaré el licor de mil savias diferentes. /Curaré tu fatiga que a
veces te nubla como bala de plomo, te recrearé con la luz de las cien flores
A de quinua, con la imagen de su danza al soplo de los vientos; con el pequeño
corazón de la calandria en que se retrata el mundo, te refrescaré con el agua
L limpia que canta y que yo arranco de la pared de los abismos que templan
con su sombra a nuestras criaturas.

L Percebemos que a intenção do eu lírico é deslocar o outro, o doutor da


ciência, para novas experimentações, é convite para que o homem ocidental permita-
A se contagiar de outro sentido de existência e isto será possível, unicamente, se
este estiver disposto a reconhecer o homem andino como seu igual-diferente. A

voz arguediana pede que o doutor se aproxime, que o reconheça, que beba do
seu “licor de mil savias diferentes” e assim, habitando dentro dele o “curará”, o
“recriará”, o “refrescará” como as aguas limpas de uma outra ontologia. Essa é a
• lógica antropofágica que identificamos no discurso arguediano.
Para especificar melhor esse sentido ontológico da antropofagia, pensamos
163
em José de Sousa Martins e seu texto “Antropofagia e o barroco na cultura latino-
• americana” (1993), no qual levanta questionamentos que nos desafiam a desconstruir
nosso olhar marcado por estereótipos construídos pela herança colonizadora. Para
tal empreendimento usa e contrapõe os imaginários que circundam o conceito
de antropofagia visto desde o prisma cristão do colonizador e os das cosmologias
de comunidades indígenas da “América-Latina”. Para o sociólogo “O canibalismo
2 ritual dos índios da América no século da Conquista era um modo de reconhecer
a humanidade do inimigo. Os inimigos eram comidos para que os vencedores se
0 apropriassem simbolicamente de sua força, de sua humanidade.” (MARTINS, 1993,
p.19).
1 Martins afirma que a América-Latina sempre foi um território
antropofágico, antes e, ainda mais, depois da conquista. No entanto a pedagogia
jesuíta cotidiana na época da invasão, cristã europeia, transformou os valores do
8
canibalismo ritual em negativos e díspares com a sociabilidade do novo mundo
e tal negatividade foi implantada nas raízes das sociedades latino-americanas
“sepultada repressivamente com a poligamia nos terrenos profundos do proibido e
do ocultado” (MARTINS, 1993, p.16). Entre outros apontamentos, Martins define
o canibalismo indígena como “prática ritual do perene renascimento do homem no
seu semelhante” (MARTINS, 1993, p.17).
A ideia do semelhante está presente no convite arguediano a um
canibalismo epistemológico e ontológico, que no poema se evidenciam nas estrofes
consequentes
¿Trabajaré siglos de años y meses para que alguien que no me
conoce y a quien no conozco me corte la cabeza con una máquina
pequeña?/ No, hermanito mío. No ayudes a afilar esa máquina contra mí,
acércate, deja que te conozca, mira detenidamente mi rostro, mis venas, el
viento que va de mi tierra a la tuya es el mismo; el mismo viento que respi-
ramos; la tierra en que tus máquinas, tus libros y tus flores cuentas, baja
de la mía, mejorada, amansada.

J É importante levar em consideração que na lógica andina só reconhecendo


o outro como semelhante será possível digeri-lo.Por tal motivo o eu lírico insiste
em aproximar os doutores ao homem andino. Para Martins “na consciência
A dos brancos, dos conquistadores, não havia de fato a concepção do outro; eles
não ‘descobriram o outro na ‘descoberta’ da América.” (MARTINS, 1993, p.19).
L Eles não o descobriram porque para o ocidental, os índios eram inassimiláveis,
mesmo despindo-os brutalmente das suas crenças, esfolando seus sentidos de
L existência, catequizando-os a sua imagem, não conseguiram ver neles o seu outro,
o semelhante-diferente. Apenas o totem que serviu para construir sua identidade
A de homem moderno em contraposição ao “confinamento no estamento servil que
os tornava uma humanidade diferente da dos brancos. Não eram por tanto o outro”
(MARTINS, 1993, p.19.)
As histórias do canibalismo ritual na “América-Latina”, não são história
de terror, como indica Martins (1993, p.20), são histórias de amor. Devorar o outro é
• um ato de reconhecê-lo como igual, como aquilo que me falta.O ritual antropofágico
é uma transformação cosmogónica da mística cristã da morte para um perspectiva
164
não-cristã que dá continuidade à vida, que desafia o espaço/tempo. Devorar o
• corpo do outro é mantê-lo vivo dentro de nós, para refazê-lo, de dentro para fora.
Esta incrível metáfora nos permite sensibilizar-nos e estar abertos a outras lógicas
e sentidos que (in)conformem nosso olhar por novas experiências dentro das
logicas e relações de comunidades renegadas historicamente às margens do social,
nos permite também, perceber os movimentos, deslocamentos e as sinergias que
2 convergem em outros pensares e sentimentalidades dos espaços e tempos.
O etnocentrismo que rege nossas leituras, acaba muitas vezes, aniquilando
0 no discurso academista lógicas não ocidentais, mesmo quando se discute a
antropofagia: sempre se tem a ideia do indígena devorando o branco. No “Manifesto
1 Antropofágico” (1976) de Oswald de Andrade, por exemplo, se afirmam sentenças
como “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”;

“Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana
8 aventura. A terrena finalidade”; “Nunca fomos catequizados. Vivemos através de
um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.”
Sem dúvida em tais enunciados há uma transgressão do pensamento ocidental.
No entanto, acreditamos que Arguedas propõe um movimento outro, não são os
indígenas que devem devorar o conhecimento ocidental, mas ao contrário, é o
ocidental que precisa devorar o conhecimento indígena. O escritor não pretende
que o eu lírico andino se branqueie, mas ao contrário ele procura uma indigenização
do branco. Por que podemospensar em um Jesusque nasce na Bahia, e não nos
atrevermos a pensar no Inti (o deus solar inca) iluminando a Europa?
Nas últimas estrofes do poema percebemos um tom de fatalidade, uma
impossibilidade de realização de tudo aquilo que o eu lírico vinha construindo no
decorrer dos seus versos. Háuma beleza na dolorosa poética arguediana, uma
reivindicação que no jogo de oposição da vida e da morte, constrói um poderoso
discurso dedecolonialidade
Que afilen cuchillos, que hagan tronar zurriagos; que amasen barro para
desfigurar nuestros rostros; que todo eso hagan. /No tememos a la muerte,
J durante siglos hemos ahogado a la muerte con nuestra sangre, la hemos
hecho danzar en caminos conocidos y no conocidos. /Sabemos que preten-
den desfigurar nuestros rostros con barro; mostrarnos así, desfigurados,
A ante nuestros hijos para que ellos nos maten. /O sabemos bien qué ha de
suceder. Que camine la muerte hacia nosotros; que vengan esos hombres a
L quienes no conocemos. Los esperaremos en guardia, somos hijos del padre
de todos los ríos, del padre de todas las montañas ¿es que ya no vale nada
el mundo, hermanito doctor?/ No contestes que no vale. Más grande que mi
L fuerza en miles de años aprendida; que los músculos de mi cuello en miles
de meses; en miles de años fortalecidos, es la vida, la eterna vida mía, el
mundo que no descansa, que crea sin fatiga; que pare y forma como el tiem-
A po, sin fin y sin principio. (ARGUEDAS, 1966)

Acreditamos que o caráter reivindicatório de Arguedas, nas últimas
estrofes do poema, está nutrido da sua própria experiência de antropólogo no meio
acadêmico. Seu trabalho nas dobras dos sentidos-outros da ciência, lugar desde
• onde defende as comunidades e as cosmovisões andinas. Por outro lado, o discurso
que o torna ocidental, é também o discurso que legaliza e valida seus pensamentos,
165
práticas e estudos, que paradoxalmente, possibilitam que produza os contra-
• discursos da sua alteridade. Tal empreitada, fissura-o completamente, não existe
uma Arguedas humano e o doutor, ele é indissociável. Há de ser esse o motivo
das suas constantes crises existências que o levaram a suicidar-se. Seu suicídio
serviria como a metáfora da impossibilidade de conciliar o indígena e o ocidental,
uma metáfora que transpassa sua corporeidade e se plasma na fatalidade e a atroz
2 situação que a comunidade indígena, andina, amazônica, ainda enfrenta.Arguedas
não compactua com uma visão epistemológica e ontológica unidimensional, ele
0 procura emancipar-se das armadilhas terminológicas, academicistas mediante o
instrumento da sua poeticidade emotiva e sensibilidade de olhar os relatos íntimos
dos corpos sem vozes.E pede aos senhores da ciência, que “no afilen sus cuchillos”
1
que escolham o lado da história que privilegie e respeite as cosmovisões da sua
tradição indígena, mística, comunitária.
8 Neste sentido percebemos no poema de José Maria Arguedas um convite
a antropofagia, permeado pela afetividade de um eu-lírico que na voz individual/
coletiva de corpos e espaços andinos, defende seu posicionamento e provoca os
doutores da ciência e do conhecimento institucionalizado, a devorar seu corpo, a
permitir-lhe entrar dentro de si, a conhecer e reconhecer uma outra experiência
sensitiva e cognitiva que os faça problematizar seu olhar e (des)construir-se
epistêmica e ontologicamente. Maria Arguedas, ergue sua voz de amauta para
argumentar com o próprio corpo multiplicado, com a natureza, desenhando uma
cartografia andina permeada pelo íntimo relato dos seres vivos que aí coexistem.
Sem dúvidas um campo discursivo que nos permite problematizar os efeitos
nefastos da colonização que se perpetua nos mecanismos da colonialidade nos
contextos nacionais “latino-americanos”, sistematizando a destruição dos valores
culturais de povos que não se encaixam nos projetos da modernidade
Dessa forma, entendemos que o paradigma do pensamento andino e
sua cosmovisão construída mediante complexas relações do homem-natureza,
sempre atrelado a uma ideia de paridade encontra-se no poema de Arguedas.
J Esse olhar alternativo às epistemologias e ontologias ocidentais, impregnam seus
versos, e identificam um eu-lírico que enuncia desde complexos atravessamentos
A identitários, mas com um posicionamento claro do seu pensamento político.
Escolha que lhe permite uma interpelação do pensamento e da lógica ocidental,
L sem intenção de invalidá-los, mas como uma possibilidade-outra de entender o
cosmos. A antropofagiaserá uma hermenêutica diatópica, capaz de construir um

diálogo para além dos dualismos que governam nossos sentidos ocidentalizados.
L Para Estermann (2008) “os conceitos da filosofia andina, como a solidariedade, a
compaixão, a sensibilidade, o cuidado e a corresponsabilidade, sem grande impacto
A na ética ocidental, podem contribuir para a construção de uma ética não dualista,
cosmocêntrica, que privilegia o cuidado pela ordem cósmica, a preservação da vida
e a reciprocidade como fundamento da solidariedade.” (ESTERMAN 2008 apud
TAVARES, 2013, p.206)
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J

A

L CONEXÕES E DESCONEXÕES ENTRE O CAMPO E A CIDADE NO
FILME COLOMBIANO PISINGAÑA (1985)
L
Carlos-Germán van der Linde (UNIVERSIDAD DE LA SALLE)
A RESUMO: O filme colombiano Pisingaña, de Leopoldo Pinzón (1985), recria um
episódio verossímilna história colombiana do conflito armado entre exércitos
insurgentes e oficiais. Essa violência produziu deslocamentos humanos forçados
dos campos para as cidades. O drama de uma mulher estuprada, Pisingaña, no
contexto de uma guerra rural, continua na cidade quando é abusada por seu
• empregador. Este agressor da cidade é, por sua parte, uma vítima dentro do sistema
econômico burguês. Assim, o conflito de guerra nos campos é entretecido com o
168
vazio familiar e profissional de uma classe pequeno-burguesa insatisfeita. Nesta
• linha de leitura do filme, este trabalho pretende demonstrar que Pisingaña encena
lugares distópicos e disfóricos sem conexão causal entre o espaço rural ou urbano.
Consequentemente, não é possível analogias romantizantes como “o campo é para
a cidade o que a liberdade é para a constrição”, ou analogias modernistas como
“a cidade é civilização na mesma medida que a selva é a barbárie”. Em conclusão,
2 o filme concebe um topos nacional marcadamente desencorajador e, sobretudo,
frustrante.Eu destaco do filme as tensões que podem habitar um lugar diverso como
0 a nação colombiana. Assim, começo, teoricamente, com Michel Foucault a prestar
atenção ao não-lugar habitado pela alteridade, ou seja, a camponesa na cidade e
1 o assalariado na sociedade burguesa. A tensão em Pisingaña é indubitavelmente
distópica. No entanto, uma estranha afinidade entre Pisingaña e seu padrão parece
ser a possibilidade de outro tipo de sociedade, ou talvez seja a oportunidade de uma
8 pequena heterotopia: a experiência da reconciliação. A grande questão deixada
pelo final do filme, em termos de David Harvey, é se essa heterotopia pode escapar
da dominação da classe.
Palavras-chave: Heterotopia. Cinema Colombiano. Violência. Ciudade. Campo.
Pisingaña.

Pisingaña, de Leopoldo Pinzón (1985), é um filme colombiano sobre o


conflito armado interno que é travado especialmente nas áreas rurais. Vários
agentes participaram do conflito, como organizações camponesas armadas,
guerrilheiros, grupos de autodefesa e paramilitares e o exército nacional. A origem
do conflito armado que perdura até hoje, segundo Berquist (1992) e Ortiz (1985),
deve-se principalmente a uma luta pela terra empreendida pelos trabalhadores
rurais. Rapidamente, os partidos políticos dominantes encobrem essas tensões e
ideologizam uma guerra entre o pensamento conservador e o liberal. O resultado
é, por um lado, uma longa e complexa história de violência política na Colômbia
e um deslocamento massivo do campesinato para as cidades. O filme Pisingaña
relembra a persistência histórica do conflito através das seguintes palavras: “a
J primeira violência, o Bogotazo, a segunda violência. Sempre a violência”. Esta
frase é dita igual por dois personagens pertencentes a duas gerações diferentes:
Uma que nasceu no início do século XX (representada pela mãe de Jorge) e outra
A
geração que nasceu em meados do século (representada por um colega de trabalho
de Jorge, seu contemporâneo). Isso significa que o século XX colombiano tem sido
L a história de uma violência constante, e tanto a mãe quanto o colega de Jorge
são testemunhas disso. Por outro lado, Graciela, personagem principal do filme,
L representa camponeses deslocados e mulheres rurais simbolicamente e fisicamente
violentadas. Ela deve fugir de sua terra natal e migrar para a cidade em busca de
A refúgio. É na cidade que Graciela (Pisingaña)se tornaempregada doméstica na casa
de Jorge (o co-protagonista), eas duas histórias de vida se cruzam. O encontro
destes dois substratos humanos permite compreender as conexões e desconexões
entre os representantes do campo e da cidade.
Em herança da visão romântica da natureza, criam-se imagens idealizadas
• do rural (Elias, 1989, 244, 250). Especialmente a partir da distância da cidade,
169 uma paisagística é recriadae parece evocar um paraíso perdido. Nesse sentido, o
filme fornece dois conteúdos. O filho adolescente do casamento de Jorge e Helena
• diz: “A mí sí me parece una animalada venirse a esta ciudad inmunda, donde
no cabe otro tugúrio [favela]. Y además, dejar la vida sana y la tranquilidad del
campo”(PINZÓN, 1985, min. 33:13-33:23). O outro conteúdo é a cena inicial que
abre o filme: ela mostra um céu azul, arbustos de banana, animais de capoeira
e, finalmente, uma galinha põe um ovo. Toda a cena corre sem a presença de
2 seres humanos, só os sons da natureza existem. Ambas as visões bucólicas são
rapidamente canceladas. E o campo idealizado abruptamente se transforma em um
0 cenário distópico: a primeira cena continua, agora, com aqueles animais mortos, é
possível ver as botas militares andando e atirando balas em cadáveres de animais.
1 Assim, o filme funda-se na impossibilidade de um campo como sinal de liberdade e
realização (locus amoenus), ou seja, o pacto narrativo do filme é negar a vida rural
como uma experiência de romantismo. Neste ponto, é importante lembrar que,
8 justo quando o adolescente acabou de dizer “uma vida saudável e tranquilidade do
campo”, sua mãe interrompe e conta o estupro de Graciela Alvarado, Pisingaña, a
camponesa. Pouco a pouco a cena do estupro aumenta em intensidade e drama.
Antes o público sabia que Graciela estava sendo vigiada, agora se confirma que a
olhada espreitante é de um grupo armado que não corresponde ao exército, porque
não tem insígnia oficial; nem pode ser a guerrilha, porque acusam Graciela de
colaborar com os “bandidos” e os “subversivos”. Estes são rótulos usados para ​​
nomear os guerrilheiros. Assim, sem afirmar isso expressamente, o filme está
colocando a força paramilitar no centro da destruição. A câmera mostra os rostos
sorridentes dos guerreiros, enquanto eles invadem a casa de Graciela. Então, eles
destroem a casa, o que eu interpreto como um símbolo: destruir a casa é equivalente
à destruição da humanidade, deixando-a sem um lugar para habitar seu mundo.
Claro, o filme é responsável por mostrar que esse ataque não está apenas
no nível do simbólico. Graciela, como um corpo feminino, é apropriado como um
espólio de guerra, então seu corpo se torna o objeto de um estupro em massa. Assim,
o campo nunca mais será um lugar de liberdade. Por causa da violência do conflito
J armado, tornou-se um locus terribilis(GUTIÉRREZ GIRARDOT, 1987). A distopia
que aniquila a vida no campo deixa de ser um mero dado, um acontecimento num
A território remoto. O filme busca que a experiência violenta seja compartilhada por
seu espectador, então, através de um plano subjetivo do ponto de vista de Graciela,
L o espectador está localizado no lugar da vítima. O comandante do esquadrão militar
deita-se em Graciela e, ao fazê-lo, os espectadores permanecem sob a sujeição do

verdugo. Um beijo grotesco do comandante, no close-up, torna-se uma enorme boca
L que nos devora. A tela derrete em preto. O espectador não vê nada, apenas ouve os
gritos da mulher sendo estuprada. Com a tela preta, esses gritos são sentidos como
A se estivessem dentro de nossas cabeças ou dentro de nossos corações. Agora, a dor
da alteridade é minha dor, a arte nos coloca na experiência dos outros.
Aqueles que não são homens de guerra devem deixar seu lugar original
se quiserem sobreviver. Isso é relatado pelo filme e, por exemplo, outra expressão
artística, como La multitud errante, romance de Laura Restrepo, reafirma isso
• tambem. No plano da realidade, a história da Colômbia sabe muito bem disso.
170 Segundo o agência da Unidade de Vítimas, até 1984 havia um total de 60.285
pessoas deslocadas(unidadvictimas.gov.co). Em 1985, o ano da estréia Pisingaña,

houve14.334 deslocados (unidadvictimas.gov.co), e no período 1985-2012 (o ano
do cessar-fogo acordado na mesa de negociações de paz entre as guerrilhas das
FARC e o governo colombiano, que deliberou até 2016 em Havana), 5.712.506
pessoas foram deslocadas pelo conflito(centrodememoriahistorica.gov.co). Sendo
este o caso, a Colômbia é o lugar onde se verifica a opinião de David Harvey de
2 que, apesar de todos os males da cidade, as áreas urbanas servem de refúgio
para a opressão rural(HARVEY, 2015, p. 185). Aqui está a ordem causal pela
0 qual Graciela chega à cidade, talvez, na esperança de encontrar um lugar seguro
para estar salva. No entanto, o filme bloqueia a ideia da cidade como o espaço da
1 civilização e do progresso. Nesse contexto, o cineasta Leopoldo Pinzón contradiz
os postulados da modernidade intelectual promovidos por Sarmiento em Facundo.
8 Bogotá, antes de ser uma cidade letrada, é a ocasião da opressão de uma classe
empresarial-executiva sobre a classe pequeno-burguesa (não se fala da classe
trabalhadora). Jorge Castro é um representante da classe média burocrática
colombiana. É um trabalhador de escritório em uma posição de gerência a meio
nivel quem compartilha com seu classe os sonhos pequeno-burgueses como ter
tempo de lazer através do acesso a um serviço de empregada domestica, viagens e
comprar um TV de mais recente tecnologia. Em busca da realização desse sonho,
ele deve submeter-se aos maus tratos de seu chefe, um alto executivo do setor
empresarial. Jorge é removido de sua posição e colocado em um lugar mais baixo
por não ter reproduzido as práticas de dominação em seus próprios subordinados.
O balanço de sua vida profissional é de profunda insatisfação e um vazio vital.
Em sua vida familiar, as coisas não vão melhor: sua vida sentimental é tão
monótona e burocrática como sua vidano trabalho. Helena, sua esposa, é anêmica,
o que interpreto como uma somatização da infelicidade que sua vida sentimental
produz. Sem esquecer que ela é hipocondríaca. A vida familiar e emocional de
Helena parece um espelho da história de vida de sua sogra: as mulheres persistem
J em manter o casamento para garantir que as crianças sejam educadas ao lado de
seus pais. Os homens, por outro lado, recorrem a amantes ou prostitutas como
A substitutos dos vazios deixados por suas esposas. É legítimo pensar, então, que
é uma história repetida geração após geração: esposas e maridos insatisfeitos em
L seus lares. A falsa ideia de realização pessoal através da consagração ao trabalho
rouba tempo para o amor. Isso é visto na cena em que, após oito meses de não

ter encontros sexuais, por um breve momento, a conversa dos cônjuges enche-se
L de tensão sexual, mas isso não se desenvolve porque não há tempo para o amor
(PINZÓN, 1985,min. 1:26:48). Cinematograficamente falando, a câmera face um
A zoom-in e um zoom-out para enquadrar a tensão sexual que é detonada pelo erotismo
de umseiosemi-exposto. As únicas belas palavras do casal, ditas ao longo do filme,
acontecem naquele momento. Trocam um par de elogios, mas rapidamente ocorre
o momento anticlimático em que, para Jorge, a data do campeonato de seu time de
futebol é mais memorável do que a data denascimentode sua esposa. Sem dúvida,
• a última vez que fizeram amor foi devido à sua euforia pelo triunfo de seu time de
171 futebol e não como uma verdadeira manifestação de amor.
Até aqui se constata uma visão pessimista do filme, a partir da qual não

são possíveis asanalogias romantizantesnem as modernistas, como”o campo é a
liberdade o que cidade a de constrição” ou “a cidade é a civilização o que a selva
é barbárie “, respectivamente. Como resultado, as imagens utópicas do campo e
da cidade são insustentáveis. Os sentidos econômicos, políticos ou psíquicos que–
acreditava-se–habitavamordenadamente esses espaços estão vazios, exato como a
2 experiência frustrante doeu (sujeito masculino que habita o centro) e da alteridade
(sujeito feminino que habita o campo). Nesse ponto, o filme optou por uma posição
0 crítica de desconstrução de qualquer utopismo que, segundo Harvey(2015, p. 187),
reprimiria a dialética do progresso social. Foucault e Harvey não acreditam no
1 modelo da utopia como uma imagem esperançosa e restauradora. Em vez disso,
eles consideram que o dinamismo contínuo está fora da utopia. Eu entendo de
8 Foucault que a utopia seria um modelo corretivo da realidade social, seria sua
imagem invertida.Dessa torção resulta uma sociedade melhorada (FOUCAULT,
1986, p. 24). Harvey é mais radical e considera que a utopia é um artifício que
teme o caos e se assegura em ordem e imobilidade. Consequentemente, o utopismo
para assegurar esse tipo de perfeição tende ao autoritarismo e ao totalitarismo
(HARVEY. 2015, p.187-190).
O filme Pisingaña denuncia que, tanto na cidade como no campo, existem
forças opressivas que produzem indivíduos insatisfeitos ou derruídos, porque os
seus habitats não são locais de realização: Don Jorge sente vertigem e tem uma
constante impressão de que perdeu alguma coisa, e Graciela tem pesadelos que
revivem seu estupro. Acredito que essa condição inicial de sujeição e opressão
é ativada positivamente e estimula o reconhecimento empático do outro. Aqui
o filme abandona seu tom desesperançado e ensaia um espaço diferente que,
seguindo a Foucault (1986), pode ser considerado heterotópico. A localização é
a seguinte: tornou-se uma tradição que os empregadores ou seus filhos possam
agredir sexualmente empregados domésticos. Respondendo a essa naturalização
de assédio, Jorge beija Graciela. Ela inevitavelmente reage rejeitando-o, ainda que
J já tenha insinuado que poderia sentir alguma atração por seu empregador. Graciela
desmaia com obeijo e quando ela se recupera ela tenta cometer suicídio. É claro que
ela prefere a morte a outra violação carnal. Naquele exato momento, Jorge entende
A
que sofreu por mais tempo, mas ela sofreu mais dolorosamente (PINZÓN, 1985,
min.53:19-53:23). Esse entendimento produz um giro afetivo. O homem deixa de
L ser um predador, e a brincadeira infantil da pisingaña, título do filme, também será
o apelido da menina. Este jogo produz uma abertura de sentimentos por parte de
L Graciela, nunca antes vista no filme: Graciela revela seu medo mais profundo: o
medo de se apaixonar e talvez verificar que ela não pode amar (PINZÓN, 1985, min.
A 57:15).
Este ponto axial do filme permite que Jorge e Graciela vivam por um
curto espaço de tempo um espaço de esperança: Um homem idoso, emocionalmente
vazio, e profissionalmente fracassado, e de uma camponesa pobre, estuprada e
emocionalmente devastada, apaixonam-se. O quarto de Graciela é a sede dessa
• heterotopia (segundo o terceiro princípio exposto por Foucault, 25), que ocorre na
172 mesma casa do matrimônio. Ou seja, a esperançosa heterotopia se abre na distopia
daquele lar infeliz. Com alto requinte, o filme leva muito tempo para a construção
• do encontro. Jorge aguarda ansiosamente de fora do quarto de Graciela, enquanto
aproveita a força e a determinação para uma experiência tão importante. Graciela,
por outro lado, decorou a sala para ele (como um século antes María fizesse para
Efraín, em María de Jorge Isaacs). Uma vez que Jorge está dentro da sala, uma
imagem poética simboliza o desejo e o medo de Graciela: ela cobre o rosto com o
2 cobertor (1:06:49). Ela escreveu em um caderno o nome de Jorge como se fosse
um exercício de caligrafia e como se fosse uma oração. Tudo indica que os dois
0 estão vivendo uma paixão sincera e livre, fora das convenções sociais castradoras
e fora da tirania masculina sobre o corpo feminino. Há algum tempo Graciela está
1 esperando não por seu chefe, não pelo assédio sexual que um homem com (pouco
ou muito) poder submete a seu subordinado. Ela tem esperado por um homem para
amar e por quem ser amada. Jorge descobre seu rosto e chama de Pisingaña e ela
8 sorri de amor. Essa rebatização, como uma refundação do ser, repara as afeições
da mulher que foi previamente danificada. Pisingaña, agora, aceita o homem com
o delicado gesto de fechar os olhos enquanto é beijada. Aqui o nome de Pisingaña
é um sinal de reconciliação com o passado, com o outro masculino. É também
um sinal de reparação espiritual. Naquela noite, naquela pequena habitação, uma
nova sociedade aconteceu. Essequarto deve ser entendido como um microcosmo.
A representação de um microcosmo não é uma versão em miniatura da realidade.
É a possibilidade de outro mundo desejável com capacidade universalizante
(FOUCAULT, 1986, P. 26). Assim como a pintura de Bosch, o Jardim das Delícias
Terrenas (que aparece no filme), não é um mundo em miniatura, é um universo
localizado em outro espaço (é um “contra-sítio”, um counter-site. FOUCAULT, 1986,
p. 24).
A próxima pergunta é se essa heterotopia pode escapar das forças
petrificantes do passado, das convenções inventadas e da dominação de classe. O
filme deixa bem claro que não é possível.Paradoxalmente a heterotopia se gora no
momento de sua realização, porque Helena os descobre. Helena expulsa Graciela
J da casa. Pela segunda vez, ela é expulsa do seu lugar de cumprimento (locus
amoenus). Esta expulsão também significa, para Graciela, desistir do seu nome de
A Pisingaña. De tal ato de expulsão –interpreto–, a esposa não reivindica fidelidade;
ao contrário, é a guardiã das boas maneiras, que nada mais procuram manter as
L aparências. Neste jogo, os maridos podem ser infiéis, mas fora de casa. Portanto,
não é o desejo ou o direito da realização de Helena que colide com a experiência

reparadora de Graciela. É a imposição do patrono que bloqueia a felicidade de
L subalterno: a empregada doméstica deve sair de casa. Por outra parte, o padrão
renunciou a sua felicidade com Pisingaña para respeitar as tradições da família,
A ou seja, uma convivência vazia, que escassamente tem insatisfações; mas a partir
de uma perspectiva conservadora insiste em preservar. É o que Harvey chama
de “utopia burguesa”: uma ordenação das práticas sociais familiares, do lar e da
moradia, da economia doméstica (tanto do dinheiro como dos sentimentos) e do
bairro, que corresponde a uma idéia de desempenho exógenamente aprendido.
• Depois da noite da impossibilidade de heterotopia, seus gestores são
173 destruídos simbólica e materialmente: Jorge é afastado do cargo, o que significa
ficar em uma posição de maior vulnerabilidade econômica, ou seja, uma falha

como um sujeito burguês. Ademais Jorge fica preso na vida familiar de rotina
(ao contrário de Santiago, que também ficou com sua amante, Laura, mas pelo
menos se livrou de sua esposa Josefina no filme colombiano Confesión a Laura,
de Osorio). Também é descoberto que Graciela cometeu suicídio. Ainda que não
haja evidência convincente em filme, atrevo-me a afirmar que isso foi feito como
2 uma reação a um novo assédio sexual. Se minha hipótese é certa, proponho que as
forças devastadoras da cidade, como um espaço distópico, destruíssem Pisingaña.
0 Finalmente, o filme termina com a camponesa morta e o burguês preso no abúlico
trabalho diário e no matrimônio. Pisingaña não elabora nenhum tipo de imagem
1 nostálgica de um passado que uma utopia gostaria de recuperar e projetar ao futuro.
O sentido profundo do filme é:Colômbia não é uma nação heterotópica.Colômbia
8 não é uma nação de diversidade geo-cultural, onde o rural e o urbano expressam
valores vitais e são lugares onde as pessoas podem realizar-se e ser felizes. Em um
lugar e no outro, a violência (militar ou econômica) destrói seus habitantes (rurais
e urbanos). O intento da heterotopia foi esperançoso e parcialmente bem-sucedido,
porque horizontalizou as relações de poder e foi uma ocasião para a reparação
espiritual, mas nunca poderia tornar-se uma prática duradoura. Então, nós, os
espectadores, ficamos sem umlocus amoenus e, em vez disso,Pisingaña, deixa-nos
um locus terribilis aqui e ali. A violência devora tudo, como a boca do comandante
que estupra Graciela e com ela a nós.
Referências
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spective. Delaware: SR Books, 1992.
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Trad. Ramón García Cotarelo.Madrid: FCE, 1989.
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L HARVEY, D. Espacios de esperanza. Trad. Cristina Piña Aldao. Madrid: Akal, 2015.
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RESTREPO, L. (2001). La multitud errante. Buenos Aires: Planeta, 2001.
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plazamiento. Acceso em 11/05/2018

174

2

0

1

8

J

A

L TUÍRA – POLÍTICA E SONORIDADE DA LÍNGUA CAIAPÓ PARA O
TEATRO EM MINIATURA
L
Cássia Macieira (UEMG)
A RESUMO:Tuíra:Índia Kaiapó– espetáculo em caixa miniatura ou teatro lambe
lambe1, institui-se como tradução intersemiótica pela transcriação da fotografia
em dramaturgia. Espectadores, hoje,relembram a resistência à construção de
hidrelétricapela recuperação fotojornalística da época, acrescida da sonoridade da
língua caiapó. Na cena, repete-se o gesto político de Tuíra,com terçadono rosto do
• Diretor de Planejamento e Engenharia da Eletronorte. Reapresentar esta imagem
advém da perplexidade dianteda usina erguida, além da repúdia pela violação dos
175
direitos indígenas.

Palavras-chave: Adaptação. Transcriação. Tuíra-Kaiapó. Bonecos. Caixa Miniatura.

Discute-se nesta pesquisa o processo poético adotado na montagemTuíra:


Índia Kaiapó– espetáculo em caixa miniatura –, da imagem geradora ao storyboard,
e deste à montagem. A montagem (operação poética) institui-se de um processo de
2 criação com diferentes procedimentos: apropriação (uso) e deslocamento (mudança
de contexto) da imagem fotojornalística, para a cena e desta, recriada com bonecos.
0 Privilegiou-se, assim, que a repúdia à violação dos direitos indígenas continuasse
como objeto dinâmico na dramaturgia, visando ao público infantil.
1 Sobre o registro fotojornalístico, tomado como empréstimo ou imagem
geratriz :trata-se de sua inserção à cena tal como é. Na imagem, há o enfrentamento
2

da Índia Tuíra (etnia Kayapó/Tu-Irá) ao poderio político-econômico estadual, federal,
8 de mineradores, industriais e empreiteiros, representando por um engenheiro/

1  Caixa miniatura ou Teatro lambe-lambe – gênero do Teatro de Formas Animadas. A cena acontece
dentro de uma pequena caixa, manipulada por um bonequeiro, sendo infinitas as possibilidades da
narrativa visual, ou verbal, ou verbo-visual. A duração do espetáculo varia entre 1 e 10 minutos.
As pioneiras desta técnica antiga no Brasil são as baianas Ismine Lima e Denise Di Santos. O
mapeamento brasileiro desta linguagem, realizado pelo Grupo Girino Teatro de Bonecos, pode ser
visto em: https://festim.art.br/mapeamento. Acesso em: 20/02/2012.
2  Foto histórica de Paulo Jares, de 1989. Disponível em: https://acervoh.wordpress.
com/2015/02/24/energia-problematica/uhe-belo-monte-no-xingu-11. Acesso em: 20/02/2018.
diretor da Eletronorte.A fotografia de Paulo Jares3, veiculada tanto nacional quanto
internacionalmente, contribuiu para protelar a construção da Usina Hidrelétrica
de Belo Monte (UHE/Belo Monte) por uma década. A cena congelada revela
o momento em que Tuíra empunhou o seu facão (terçado), tocando o rosto do
presidente da Eletronorte, durante o Encontro dos Povos Indígenas em Altamira,
em 1989, durante audiência pública nesta cidade paraense contra a construção da
referida hidrelétrica.
J A imagem fotojornalística revela uma mesa de madeira bruta que
configurava a divisão do encontro: o diretor da Eletronorte, José Antônio Muniz
A Lopes, de um lado, enquanto Tuíra, aos 19 anos, corpo nu, empunhavaseu facão
contra o rosto dele. Ao lado do diretor e em pé, o marido de Tuíra, Paulinho Paiakã,
L a observa. Há presença ainda de outras testemunhas. O flagrante foi apontado por
alguns jornais como ameaça e, para outros, como defesa em nome da alteridade.

No dia que o engenheiro Muniz compôs a mesa diretora dos trabalhos no
L ginásio coberto de Altamira, vários índios vieram se manifestar ali mesmo
em frente à mesa, alguns falando em sua língua ao microfone e sendo tra-
A duzidos. Tu-Ira,prima[esposa} de Paiakan, se aproximou gesticulando forte
com seu terçado (tipo de facão com lâmina bem larga, muito usada na mata
e na roça, gritando em língua caiapó). Mirou o engenheiro, seu rosto redon-
do de maças salientes, traços de algum antepassado indígena, e pressionou
uma e outra bochecha do homem com lâmina do terçado para espanto geral.
Um gesto inaugurador. Situação que merece uma palavra-chave dos índios
• Araweté da Terra Ipixuna, no médio Xingu, recolhida pelo antropólogo Vi-
veiros de Castro: ‘Tenotãmõ significa: o que segue à frente, o que começa’4
176
(FILHO SEVÁ, 2005, p.32).

O congelamento temporal de Tuíra e seu facão (fotografia) pode ser
entendido como “embrião narrativo”, pois foi um vestígio que gerou desdobramentos
desse protesto de 1989. Tal resistência imagética voltaria a se repetir, 21anos
depois, registrada em outra fotografia5de Eraldo Peres,durante audiência pública
na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, em Brasília (DF).Esta
2 imagem, mais hierárquica e da época daimplantação de Belo Monte, mostra
Tuíra agora vestida6, em pé, sem facão, gesticulando ao falar com seu opositor,
0
3  Paulo Jares nasceu em Belém/PA em 1968. Entre 1986 e 1989 foi fotógrafo do jornal A Província
do Pará, veículo onde foi publicada a foto em questão. Disponível em: http://www.frmaiorana.org.
1 br/2002/p71.html. Acesso em: 26/05/2018.
4  “Tenotãmõ significa: o que segue à frente, o que começa”. Essa palavra designa o termo inicial de
8 uma série: o primogênito de um grupo de irmãos, o pai em relação ao filho, o homem que encabeça
uma fila indiana na mata, a família que primeiro sai da aldeia para uma excursão na estação
chuvosa. O líder araweté é assim o que começa, não o que comanda; é o que segue na frente, não
o que fica no meio. Toda e qualquer empresa coletiva supõe um Tenotãmõ. Nada começa se não
houver alguém em particular que comece. Mas entre o começar do Tenotãmõ, já em si algo relutante,
e o prosseguir dos demais, sempre é posto um intervalo, vago mas essencial: a ação inauguradora
é respondida como se fosse um polo de contágio, não uma autorização” (FILHO SEVÁ, 2005, p. 32).
5  Foto de Eraldo Peres. Disponível em: https://noticias.bol.uol.com.br/internacional/2010/02/23/
belo-monte-o-brasil-promete-a-primeira-grande-hidreletrica-verde.jhtm?x=-26&y=-272.Outro
ângulo da mesma cena. Disponível em: http://blogapib.blogspot.com.br/2009/12/conversa-de-
surdos.htm. Acesso em: 20/02/2018.
6  A vestimenta indígena das mulheres Caiapós é detalhada na obra Vida capital (PELBART, 2003,
de terno, sentado, Aloysio Guapindaia, diretor da FUNAI, que a ouve. Na foto,
outro integrante, sentado, hostil, revela o seu desinteresse pela língua Kaiapó.
Neste encontro foram confirmadas, pela FUNAI, as mentiras e ocultações sobre a
construção da hidrelétrica.
Ao anunciar os investimentos na região ‘em uma defesa apaixonada’, o di-
retor da Eletronorte é, para a revista, surpreendido com a ação da índia
KayapóTuíra. ‘Gritando incompreensíveis frases em caiapó – não precisamos
J de energia, vocês querem tomar a terra do índio, não interessa o progresso –,
Tuíra investiu com um terçado, o facão longo utilizado na roça, contra Mu-
niz Lopes (Veja, 1989, p. 69). Para a publicação, ‘[...] se um homem branco
A manuseasse um revólver ao discutir com índio seria certamente acusado de
truculento [...].’ Como quem agrediu foi uma índia não faltaram sofisticadas
explicações para que o pescoço do diretor da Eletronorte fosse ameaçado
L pelo facão selvagem. ‘Aquilo foi umalição *...’, explicou o cacique Paulinho
Paiacan [...](Veja, 1989, p. 69).Assim, no discurso de Veja, o uso da palavra
L pelo índio somente pode produzir uma formulação ‘sofisticada’ quando pro-
cura explicar o incompreensível, estando ele nas frases proferidas pela índia
Tuíra ou mesmo na ação do seu ‘facão selvagem’. Essa ‘agressividade da
A índia’, segundo a revista, chegou a Brasília produzindo algumas alterações.
Após o ocorrido, os diretores da Eletronorte decidiram não mais usar um
grito de guerra Kayapó – o Kararaô– para dar nome à usina. A partir daquele
momento ela passaria a se chamar Belo Monte, mas permanecia inadmissí-
vel, para a publicação, qualquer argumento vindo dos índios contra a cons-
trução da barragem (SAIDLER, 2017, p.11).

177 A similaridade de ambas as fotografias confirma que o modo de resistência
de Tuíra se fez legítimo e necessário e que tal registro está sacralizado, independente

da intenção do modo de recepção e produção, poético ou não poético, dos autores
das imagens:
Há sempre, além dos objetivos particulares de cada um, uma espécie de
dupla vontade global: por um lado, integrar a imagem fotográfica, com suas
características próprias, numa espécie de grande amálgama de suportes,
2 como se essa imagem devesse ser dessacralizada, trazida de volta à con-
dição de objeto (quase que de consumo) e até de dejeto, em todo caso, de
vestígio e de um ingrediente de composição qualquer; e, por outro, a essa
0 mixagem de materiais [...] (DUBOIS,1993, p.268-269).

1 Tuíra com o seu terçado confirma que pertence a um senso comum,
partilhado no ato de subjetivação realizado em nome da igualdade, e o faz através
do que lhe é próprio: agir. Talvez desconheça (ou não) que seu ato denuncia os
8 jogos de poder (dos brancos) que atuam nas relações impostas aos indivíduos
(brancos e não brancos), eacabam sendo interiorizados nos sistemas das crenças

e dos sentimentos. Para Hanna Arendt, no mundo comum7a comunidade ideal de
fala) não há espaço para formas diferenciadas, pois o que se assiste são excessos
de assimetrias e acirradas disputas entre as camadas sensíveis de sentido (vozes
excluídas) e de dominação (formas autorizadas de discurso).

p. 237).
7  ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 3ª edição. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária, 1987, p. 62-67.
A atividade política é configurada pela constante tensão entre o dissenso
(resistência permanente) e o consenso (ordem estabelecida), na medida em que
a pretensa igualdade que deveria existir entre os sujeitos não é conferida. É na
percepção sensível que se instaura odissenso e se percebemos desacordos acerca
da situação; o sujeito incluído na comunidade– sujeito político – é o interlocutor em
uma cena polêmica8 de dissenso.
É desse lugar que se torna visível a criação do espetáculo Tuíra: do
J fotojornalismo à ficção pulsionada pela fotografia (signo não-verbal).Tal transposição
foi definida por Roman Jakobson como sendo aquele tipo de tradução que “consiste
A na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não verbais”
(PLAZA, 2001, introdução), ou de um sistema de signos para outro; por exemplo,
L da arte verbal para a música, a dança, o cinema, a pintura, ou vice-versa.
A fotografia midiatizada tornou-se citação sob a perspectiva de não
determinar um lugar para a Índia Tuíra como mártir, porém é notório que
L
qualquer “imagem como choque e imagem como clichê são dois aspectos da
mesma presença” (SONTAG, 2003, p.24), e que todas elas “esperam sua vez de
A serem explicadas ou deturpadas por suas legendas (SONTAG, 2003, p. 14)”.Ao
reivindicar a fotografia à tradução intersemiótica, têm-se a ideologia (ethos) e o
afeto (pathos): no aprisionamento e captura da imagem como história, provocando
o desencadeamento do processo criativo, e na premissa de arrancar o ‘percepto’ da
fotografia, o ‘afecto’, das afeições, como transição de um estado a outro.
• O afecto não é a passagem de um estado vivido a um outro, mas um devir
178 não humano do homem. [...] não é uma imitação, uma simpatia vivida, nem
mesmo uma identificação imaginária. Não é a semelhança, embora haja
• semelhança. É antes uma extrema contiguidade, num enlaçamento entre
duas sensações sem semelhança [...] (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 224-
25).

Entende-se, então, que na produção poética do mini espetáculo houve


diferentes processos: iniciou-se com a apropriação da imagem, inserindo-a
2 tal como é, porém,a mudando de contexto para, em seguida, gerar um novo
“texto-alvo” (cena teatral). Como resultado, deu-se uma operação dialógica ou
0 procedimento tradutório pela apropriação e citação da imagem na cena teatral em
outro contexto semiótico e adicionado à sonoridade. E de transcriação ou novo
1 “texto” intersemiótico, referente à criação das cenas com bonecos, levando a Caixa
Miniatura –Tuíra: Índia Kaiapó à condição de visibilidade.
8 Tal tradução intersemiótica (ou re-imaginação)“apologiza”, “propagandeia”
e “prega” a insatisfação pela barbárie de Belo Monte, ainda quelonge de alcançar a
cosmologia indígena:nela, o tempo se orienta e atualiza o presente. Para os Kaiapós,
“o mero contar, a mera recitação de um mito significa relembrar e meditar sobre
a essência daquilo que é, sobre o próprio ser e os motivos transcendentais de sua
razão (...)” (LUKESCH, 1976, p.236). A luta contra a Usina de Belo Monte continua
mesmo porque a hidrelétricagera muito menos energia do que prometeram, e por
isso setornaum dever político acompanhar e propagar a “barbárie”.

8  MACIEIRA, 2014, p. 32. O tema foi tratado na tese da autora.


As discussões sobre Belo Monte9, ou Kararaô (nome de origem Kaiapó),
ocorrem desde o governo militar, em 1975.Para sua efetiva construção, tomaram-
se100km do Rio Xingu – morada de povos indígenas – visando à obtenção de lucro
para empresas de alumínio e ao abastecimento de energia para o centro-sul do
país. Trata-se da maior obra do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do
governo federal, transformando o rio em um “mercado megawatts (MW) e kilowatts
(kW)” ou “lobby hidrelétrico”, dando continuidade ao modelo colonialista, no Brasil.
J Projetada para ser instalada no rio Xingu, a 40 km rio abaixo da cidade de
Altamira, estado do Pará, na região conhecida por Volta Grande (área em
que o rio dá um giro de quase 270 graus e tem desnível de mais de 100
A metros), [Belo Monte] tem potência instalada de 11.233 MW, sendo a maior
usina hidrelétrica inteiramente brasileira e a terceira maior do mundo, po-
L rém com capacidade média de apenas 4.428 MW, ou seja, 39% do potencial
máximo, devido à redução da vazante do Xingu nos períodos de junho a
outubro, conhecido localmente como época do verão amazônico (OLIVEIRA,
L 2013, p. 290).

A apropriação dessa região transformada em hidrelétrica infelizmente
A teve o apoio do IBAMA10. A hidrelétrica de Belo Monte foi instalada no Amazônia,
na Volta Grande do Rio Xingu, na cidade de Altamira/PA,à custa de diferentes
modos de violação, e permeada por um processo de desenvolvimento contraditório.
Altamira, sob a perspectiva fisiográfica do vale do Xingu (vegetação, recursos hídricos
e relevo), tem, segundo o IBGE, 159.533,328 Km², um dos maiores municípios11do

mundo e com presença de 16 etnias indígenas, excluídas dos processos decisórios.
179 Sobre essas etnias, entende-se que o “Parque Indígena do Xingu engloba, em sua
• porção sul, a área cultural conhecida como Alto Xingu, formada pelos povos Aweti,
Kalapalo, Kamaiurá, Kuikuro, Matipu, Mehinako, Nahukuá, Naruvotu, Trumai,
Wauja e Yawalapiti12”.
Muitos conflitos ambientais acabam resultando em luta,uma vez que são
decididos, estrategicamente, a partir da ‘noção de verdade’dos grupos de políticos
2 e empreiteiros envolvidos, baseada em discursos de eficácia, produtividade e
rendimento financeiro local e global, impondo-se como força hegemônica e ignorando
as propriedades alheias, em nome de uma dada ‘razão’.
0
9 Há um conjunto de planejamentos estratégicos do governo federal que prevê a implantação de
1 30 hidrelétricas até 2020 na área correspondente à Amazônia legal, de um total de 48 usinas a
serem instaladas em todo o Brasil, como parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do
8 Plano Decenal de Energia (2011-2020) e do Plano Nacional de Energia. O novo desenvolvimentismo
brasileiro reforça o papel do território amazônico enquanto fronteira de expansão do capitalismo,
pela exploração dos recursos agrominerais e hídricos, projetandoXingu) como medidas necessárias
para a seguridade energética da nação. A UHE Belo Monte só entrou em processo de planejamento
efetivo para construção em 2005, após ser definida como a “menina dos olhos” do PAC do governo
Lula. (OLIVEIRA, 2013).
10  “O IBAMA (2010) destaca que o licenciamento é um processo que estabelece condições,
restrições e medidas para proteger o meio ambiente, em três etapas distintas: (I) Licença Prévia –
LP; (II) Licença de instalação – LI; (III) Licença de operação – LO” (FAINGUELERNT, 2016, p. 260).
11  Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pa/altamira/panorama. Acesso em:
20/02/2018.
12  Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Xingu. Acesso em: 20/02/2018.
De acordo com Zhouri, nos espaços da audiência pública, que são prati-
camente a única oportunidade de se ter de fato a possibilidade de opinar e
‘participar’, ocorre um ‘jogo de cenas’ que forja uma aparência ‘democrática
e participativa’ com relaçãoa decisões. Como a própria antropóloga relata,
são audiências programadas enquanto o próprio processo de licenciamento
já está em curso; ocorrem de forma contrária, uma vez que deveriam ante-
ceder todo um processo de avaliação e de validade e mesmo levar em consi-
deração as propostas e decisões indicadas pela sociedade civil (BARAÚNA;
J MARIN, 2011, p.95).
Apesar da “recente e imatura” democracia brasileira, a lógica
A desenvolvimentista permanece na Amazônia, apesar dos diferentes governos e do
tempo transcorrido (FAINGUELERNT, 2016, p. 260).Desdea década de 1970, neste
L contexto perverso, castanheiros, indígenas, ribeirinhos, seringueiros, quilombolas,
ambientalistas e o Movimento Xingu Vivo para Sempre (MXVPS) lutaram contra a
L implementação do projeto da hidrelétrica de Belo Monte no rio Xingu.
No entanto, a história mostra que a luta tem sido em vão, tomando por
base a intervenção dos últimos governos brasileiros em Belo Monte: na gestão de
A Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), a usina foi reconhecida como estratégica
pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) para o desenvolvimento
da hidroeletricidade até 2010. Durante omandato de Luís Inácio Lula da Silva
(2003-2010), produziu-seo relatório O Lugar da Amazônia no Desenvolvimento do
Brasil. Belo Monte, após a concessão para sua instalação, em 2011, está erguida,

e desde então várias ações judiciais foram impetradas por ambientalistas e
180 procuradores públicos, conscientes dos danos causados pela maior hidrelétrica do
• mundo, orçada em 16 bilhões de reais.Uma construção irresponsável, cujo caráter
etnocida é defendido, inclusive, pelo Ministério Público do Pará: “[evidenciado]
pela destruição da organização social, costumes, línguas e tradições dos grupos
indígenas impactados”13.
Considerações finais
2 Qualquer representação estética que recorra aos signos, artefatos,
geometrias ou invenções dos povos indígenas retoma a discussão sobre a
0 comercialização de alteridades e traz contribuições sobre a reflexão do “consumo
de representações”. Na tentativa de não reduzir a complexidade da realidade da
1 vida, tampouco de não omitir as contradições capitalistas em uma representação,
ao “traduzir” o gesto de Tuíra pretendeu-se, pelo modo estético, denunciar os
impasses hegemônicos que forjam uma aparência democrática na construção de
8 hidrelétricas. A marginalidade e a miséria são concomitantes com as construções de
hidrelétricas nas cidades.Para investigar denúncias de violações de direitos, existe,
desde 1964, o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH),e uma
de suas Comissões Especiais foi designada para abrir inquérito contra desmandos
apontados pelo Movimento dos Atingidos por Barragens – (MAB) (FAINGUELERNT,
2016, p.254).
Entende-se que a realidade é construída sobretudo pela troca de

13  Disponível em: http://www.prpa.mpf.mp.br/news/2015/mpf-denuncia-acao-etnocida-e-pede-


intervencao-judicial-em-belo-monte. Acesso em: 20/02/2018.
conhecimento,constituído por objetos estéticos, encontros, práticas discursivas
sociais e ideológicas, frente a lógica da racionalidade, e acionando a configuração
de outra realidade.
A caracterização da situação das crianças e dos adolescentes, da rede de
proteção e das políticas públicas voltadas para o público infanto-adoles-
cente no contexto do município de Altamira, tendo em vista os impactos
sociogeracionais ocasionados pela construção da UHE Belo Monte, retoma
e reforça a discussão a respeito dos modelos de desenvolvimento historica-
J mente implantados na Amazônia e das consequências produzidas para as
populações locais (OLIVEIRA, 2013, p. 299).
A Traduzir e transcriar a imagem fotojornalística, ou tomar a voz por
Tuíra, evoca uma “re-presentação” (darstellung) vinculada a dimensões estéticas,
L eisso pode incorrer no erro da desconexão com as contradições locais e com as
dimensões ideológicas. Contudo, não se trata de forçar uma cumplicidade entre as
L dimensões da representação política (vertretung) e da “re-presentação” (darstellung)
(SPIVAK,2010, p. 35-43).
A Para os povos indígenas, toda a dimensão capitalística dada já exibe a
dificuldade de se apropriar efetivamente das condições materiais de existência,
não pela descontinuidade entre a dimensão da consciência e sua transformação,
mas pelo modo como opera o poder capital. Tuíra, com seu gesto reverberado e
midiatizado, conseguiu adiar por 10 anos a construção de Belo Monte e reafirmou
• seupróprio agenciamento: enfrentando a cadeia hegemônica de signos, resistindo à
violação dos direitos de seu grupo, dispensando representantes e sendo protagonista
181
– em Tenotãmõ - o que segue à frente, o que começa. A Caixa Miniatura, operação
• poética e tradução intersemiótica, sempre será vista como uma “intrusa”; porém,é
uma miniatura de mínima-política, na tentativa de apresentar à infância uma
forma demolidora da visão hegemônica e legitimar a efetividade do pensamento no
qual está contida a base de toda política.
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0

1

8

J

A

L REPRESENTAÇÕES DO SERINGUEIRO EM EUCLIDES DA CUNHA
E MÁRIO DE ANDRADE: OLHARES PRETÉRITOS E PERCURSOS
L ARTÍSTICOS CONTEMPORÂNEOS

A Cesar Garcia Lima (UFRJ)
RESUMO: Ao percorrer as representações do seringueiro em À margem da história, de
Euclides da Cunha (1909), e Dois poemas acreanos (I- Descobrimento e II – Acalanto
do seringueiro), de Mário de Andrade (1927), este trabalho busca relacioná-las a
produtos culturais do século XXI como o documentário audiovisual e a encenação
• teatral, sob a perspectiva do Novo Comparatismo e suas possibilidades de vincular
183 literatura e imagem, a partir da abordagem de Eduardo F. Coutinho(2016) e da
questão da subalternidade problematizada por GayatriChakravortySpivak (2012). A
• pesquisa averigua, assim, como a ansiedade de integração nacional do modernista
Mário e o cientificismo de Euclides, ao fazerem circular retratos distanciados dos
seringueiros durante o século XX, abriram caminho para a fala dos chamados
“soldados da borracha” e converteram-se também na antropofágica montagem de
suas histórias em performance teatral que estiliza e fragmenta narrativas, fugindo
2 da catarse.
Palavras-chave: Literatura.Documentário. Teatro. Novo Comparatismo.
0
Introdução
1 Ao analisar as representações do seringueiro na literatura brasileira e
em outras expressões culturais em momentos diversos da nossa história, propõe-
8 se aqui percorrer a linha temporal que vai do início do século XX, durante a
Primeira República, ao momento atual, de crise de representação democrática,
em que sujeitos ex-cêntricos, como a mulher, a comunidade LGBT e o índio, entre
outros, buscam estabelecer suas estratégias narrativas e lugar de fala. A situação
contemporânea, influenciada pelo excesso de presentificação proporcionado pela
internet, é de crise da própria crítica e de questionamento, a partir dos Estudos
Culturais, da capacidade da arte de produzir discursos legítimos por outrem que não
os próprios envolvidos. A aclimatação de modelos de representação ou de restrição
da legitimidade de vozes de expressão, no entanto, por mais que pareça se adequar
à trajetória dos seringueiros, transformando a história do trabalho na Amazônia
em causa, parece insuficiente para exprimir todoo percurso da figura ex-cêntrica
do seringueiro,à margem da própria periferia, mas cuja produção foiimportante
sobretudo em dois momentos econômicos do Brasil – o primeiro e o segundo ciclo
da borracha – , constituindo mote para a produção de escritores como Euclides
da Cunha e Mário de Andrade, e servindo de pretexto para as artes plásticas do
ex-seringueiro Hélio Melo, para o documentário Soldados da Borracha e para a
montagem teatral Arigós - Primeiros Riscos da Borracha, abordados neste texto, que
J configura uma proposta inicial para uma pesquisa mais abrangente.
Propõe-se, assim, investigar qual lugar coube à figura do seringueiro,
A personagem fundamental para a construção econômica do país, desde seu espaço
de trabalho na floresta amazônica, aos relatos oficiais de Euclides da Cunha e
L seu desalentado “Judas-Asvero” (ou “Judas-Ahsverus”, conforme a edição de Um
paraíso perdido), na primeira década do século XX, e aos poemas melancólicos de

Mário de Andrade, durante o Modernismo heroico, em que o nacionalismo irrestrito
L motivava as artes brasileiras em um resgate do primitivo, de ímpeto romântico.
Nas trocas culturais estabelecidas nesse vasto segmento temporal de pouco mais
A de um século, a figura do seringueiro emergiu em diversos meios culturais como
as artes plásticas, o cinema e o teatro, possibilitando um Novo Comparatismo em
que a literatura estabelece um elo com a cultura em geral, como discutido por
Eduardo F. Coutinho (2016), trazendo ainda elementos desse passado de abandono
e impossibilidade, em que o trabalhador da floresta é visto pelo olhar do outro,
• estrangeiro ou brasileiro de outras terras.
184 A questão da subalternidade é inserida neste debate a partir da pesquisa
de GayatriChakravortySpivak, professora da Universidade Columbia, de Nova York,

de base marxista, cuja discussão parte do encontro “Os intelectuais e o poder:
conversa sobre Michel Foucault e Gilles Deleuze”, problematizando os limites da
luta dos trabalhadores ao lidar com o capitalismo global, mais especificamente
da mulher indiana. Sem adentrarmos a estratégia desconstrucionista, as teorias
feministas e o pós-colonialismo usados por Spivak, nos apropriamos de sua questão
2 central – Pode o subalterno falar? A partir de Deleuze no debate com Foucault, em
que o primeiro declara: “Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Não tem nada
0 a ver com o significante”, complementando que “Não há mais representação, não há
nada além da ação” (In: SPIVAK, 2012, p. 38), Spivakcomenta o “falar por”, usado
1 na política, e o “re-presentar”, a partir da produção literária e cultural. Partimos,
assim, desse “re-presentar” retomado por Spivak para refletir sobre a produção de
8 sentidos que emergem ao se destacar o seringueiro predominantemente por sua
condição de extrator de látex, migrante e desprovido de recursos próprios.
Euclides e Mário: diferentes aproximações do seringueiro
O primeiro momento de projeção do seringueiro como marginalizado
surge, ironicamente, de uma missão governamental. Designado como chefe da
Comissão Brasileira do Alto Purus para o reconhecimento de fronteiras entre 1904
e 1905, Euclides da Cunha empreende, concomitante ao mapeamento geográfico
da região amazônica, uma viagem informal de estudos em que se destaca o olhar
retrospectivo fundamentado por relatos de naturalistas e a visada etnográfica sobre
o seringueiro do Acre durante o primeiro ciclo da borracha, iniciado em 1877 e que
perduraria até aproximadamente 1912. No Relatório da Comissão Mista Brasileiro-
Peruana, Euclides dá relevo à precariedade local e traça um retrato do seringueiro,
descrevendo-o sob o ponto de vista de seu lugar social:
O rude seringueiro é duramente explorado, vivendo despeado do pedaço de
terra em que pisa longos anos e exigindo, pela situação precária e instável,
urgentes providências legislativas que lhe garantam melhores resultados a
tão grandes esforços. O afastamento em que jaz, agravado pela carência de
comunicações, reduz-lo, nos pontos mais remotos, a um quase servo, à mer-
J cê do império discricionário dos patrões. A justiça é naturalmente serôdia
e nula. Mas todos esses males, que fora longo miudear, e que não velamos,
A provêm acima de tudo, do fato meramente físico da distância. Desapare-
cerão, desde que se incorpore a sociedade sequestrada ao resto do país.
(CUNHA.In: Arruda, 2018)
L
No entanto, ao justificar a condição servil do seringueiro pela distância do
L Acre do “resto do país”, Euclides sucumbe ao argumento de que o fim do isolamento
da região cessaria mazelas de injustiça social, justifica o caráter oficial de sua visita

à região, delimitando as fronteiras nacionais.
A A partir de sua temporada amazônica, Euclides escreve sobre a expressão
“inferno verde” que dá título a um livro de Alberto Rangel, lançado em 1907, dizendo
que “a Amazônia é a última página, ainda a escrever-se, do Gênese.” (CUNHA,
1998, p.219), como um território em que subsistiria certa pureza, mas “bárbaro” e
“estranho”. Ainda persistia, apesar do olhar inclemente, a ideia da Amazônia como

“um paraíso perdido”, título do livro que deixou inacabado.
185 Ainda que visse a Amazônia como palco de um futuro grandioso,
• Euclides não era condescendente com sua realidade. Em “Entre os seringais”, ele
descreve a divisão de lotes de abertura de um seringal como “diabólica geometria”,
referindo-se à construção da chamada estrada, que nada tem a ver com o espaço
rodoviário atual, mas nomeia o percurso da mata designado para o trabalho de
cada seringueiro:
2 Perdido na mata exuberante e farta, com o intuito exclusivo de explorar a
haevea apetecida, o seringueiro compreende, de pronto, que a sua ativida-
de se debaterá inútil na inextrincável trama das folhagens, se não vingar
0 norteá-la em roteiros seguros, normalizando-lhe o esforço e ritmando-lhe o
trabalho tão aparentemente desordenado e rude. É-lhe, ademais, indispen-
1 sável que os seus numerosos camaradas, fregueses ou aviados, destinados
a agires isoladamente, não se embaralhem, às tontas, pelos desvios da flo-
resta. (CUNHA, 1998, p. 229)
8
Ao observar de perto a lógica latifundiária de funcionamento de um
seringal, Euclides constatou que, na época, a abertura de 16 “estradas” em uma
légua quadrada era explorada por apenas oito seringueiros. Mais do que observar
a figura do seringalista, Euclides relacionou-se com o espaço selvagem da floresta
e com seus exploradores entre os quais destaca o seringueiro, preso no sistema
capitalista de exploração do trabalho, no qual quase sempre estava em dívida
com o patrão. A adesão e recuo que Euclides percorreu em relação à formação e
desenvolvimento da República, sua juventude abolicionista, a formação positivista
e a preocupação social contrastavam em um intelectual difícil de definir.
Seu espírito se identifica com os dois pontos extremos mais distantes do es-
pectro cultural de nossa época. Euclides da Cunha possui igualmente vivos
entre si, com o mesmo calor, exatamente os dois mundos que se negavam
um ao outro. Eram dois tempos, duas idades que se opunham pela própria
raiz de sua identidade; o século XIX literário, romântico e idealista; e o sécu-
lo XX, científico, naturalista e materialista. (SEVCENKO, 1999 p. 133)

À lógica do engenheiro e matemático sobrepõe-se o escritor de arraigado


J cientificismo, que expõe as estruturas de disfarçada escravidão. Sua estratégia
de representação do seringueiro se dá, geralmente, pela descrição objetiva de
suas relações de trabalho e sujeição ao processo de exploração da borracha.
A Em “Judas-Asvero”, no entanto, publicado postumamente, Euclides despe-se de
sua autoimpostapredileção por perscrutar o espaço e as relações do seringueiro,
L descrevendo o ritual de preparação de um Sábado de Aleluia na floresta. Como se
mimetizasse uma liturgia em negativo, o texto estabelece uma relação do seringueiro
L com o mito do judeu errante e sem paradeiro, o Ahsverus, que teria negado água a
Jesus durante a caminho da crucificação. O personagem mereceu duas referências
A anteriores na literatura brasileira: em Castro Alves (1997), com o poema “Ahasverus
e o Gênio”, e em Machado de Assis (1962), no conto “Viver!” Samuel Rawet (1970)
retoma o personagem na novela “Viagens de Ahasverus à terra alheia em busca de
um passado que não existe porque é futuro que já passou porque sonhado”.
Classificado, geralmente, como conto, “Judas-Asvero” detém muitas
• características da crônica por seu caráter de observação dos hábitos dos seringueiros,
ao mesmo tempo que detém a linguagem de vigor ensaístico, investigandoo caráter
186
estoico dos habitantes das margens do rio Purus:
• Não tiveram missas solenes, nem procissões luxuosas, nem lava-pés tocan-
tes, nem prédicas comovidas. Toda a semana-santa correu-lhes na mesmice
torturante daquela existência imóvel, feita de idênticos dias de penúrias, de
meios-jejuns permanentes,de tristezas e de pesares, que lhes parecem uma
interminável sexta-feira da Paixão, a estirar-se, angustiosamente, indefini-
da, pelo ano afora. (CUNHA, 1998, p. 109).
2
Alterando o ápice da Semana Santa, que é a ressureição de Cristo na
0 Páscoa, Euclides promove o Sábado de Aleluia a data redentora, tipificando o
seringueiro – do mesmo modo que fez com o sertanejo em Os sertões–como um
conformista recalcado que repete Miguel Ângelo ao re-criar o boneco à sua imagem
1
e semelhança:
Mas não se rebelam, ou blasfemam. O seringueiro rude, ao revés do italiano
8 artista, não abusa da bondade de seu deus desmando-se em convícios. É
mais forte; é mais digno. Resignou-se à desdita. Não murmura. Não reza. As
preces ansiosas sobem por vezes ao céu, levando disfarçadamento o travo
de um ressentimento contra a divindade; e ele não se queixa. Tem a noção
pratica, tangível, sem raciocínios, sem diluições metafísicas, maciça e inexo-
rável – um grande peso a esmagar-lhe inteiramente a vida – da fatalidade; e
submete-se a ela sem subterfugir na cobardia de um pedido com os jorlehos
dobrados. Seria um esforço inútil (...). (CUNHA, 1998, p. 110).

O autor, que debela-se contra o artifício ficcional ao usar apenas elementos


tangíveis da realidade cotidiana do Purus, revela uma dualidade: seringueiro
e sertanejo, afinal, são a mesma pessoa, já que os povoadores da região eram
predominantemente migrantes nordestinos. Do mesmo modo, o boneco do Judas
se converte em Ahsverus por sua trajetória errante ao descer o rio, adquirindo aos
poucos a face do próprio homem que o confeccionou, como se o objetivo de todo o
ritual fosse uma autoimolação:
É um doloroso triunfo. O sertanejo esculpiu o maldito à sua imagem. Vinga-
se de si mesmo; pune-se, afinal, da ambição maldita que o levou àquela
J terra; e desafronta-se da fraqueza moral que lhe parte os ímpetos da
rebeldia recalcando-o cada vez mais ao plano inferior da vida decaída onde
a credulidade infantil o jungiu, escravo, à gleba empantanada dos trafican-
A tes, que o iludiram. (CUNHA, 1998, p. 112).
Em sua narrativa, Euclides da Cunha adota a voz de um narrador
L distanciado, meticuloso na descrição dos fatos, mas abundantemente comprometido
em investigar a alma do habitante do Purus, em tom dramático e fatalista,
L evidenciando a influência da literatura russa em sua obra. O escritor amazonense
Milton Hatoum enfatiza o caráter investigativo do texto:
A [...] em “Judas Ahsverus” há um olhar sobre a história, a geografia, a reli-
gião e o meio socioeconômico, mas sem a intromissão de um narrador que
pretenda enquadrar numa hierarquia de valores os seres de quem fala. Por
tudo isso, e também pela construção da narrativa, com ênfase na vida dra-
mática dos personagens, o relato tende a ser muito mais literário e menos
explicativo ou assertivo, ainda que refratário a um gênero literário específi-
• co. (HATOUM, 2002, p. 319)
187 Em “Dois poemas acreanos” (I- Descobrimento e II – Acalanto do
• seringueiro), poemas de encerramento do livroClã do Jabuti, a estratégia
de aproximação do seringueiro elaborada por Mário de Andrade (1927) é de
cumplicidadee estranhamento, com trechos destacados a seguir:
I
Descobrimento
2 Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
0 De sopetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido

1 Com o livro palerma olhando pra mim.

Não vê que me lembrei lá no norte, meu Deus!


8 Muito longe de mim,
Na escuridão ativa da noite que caiu,
Um homem pálido, magro de cabelo escorrendo nos olhos
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu...

II
ACALANTO DO SERINGUEIRO
Seringueiro brasileiro,
Na escureza da floresta
Seringueiro, dorme
Ponteando o amor eu forcejo
Pra cantar uma cantiga
Que faça você dormir.
Que dificuldade enorme!
J Quero cantar e não posso,
Quero sentir e não sinto
A A palavra brasileira
Que faça você dormir...
L Seringueiro, dorme...
Como será a escureza
L Desse mato-virgem do Acre?
Como serão os aromas
A A macieza ou a aspereza
Desse chão que é também meu?
Que miséria! Eu não escuto
A nota do uirapuru!...
Tenho de ver por tabela,
• Sentir pelo que me contam,
188 Você, seringueiro do Acre,

• Brasileiro que nem eu.


Na escureza da floresta
Seringueiro, dorme
[...]
(ANDRADE, 1993, p. 203-204).
2 Em “Descobrimento”, escrito como confidência, o cenário do espanto do
eu lírico diante da realidade do seringueiro é a casa do próprio poeta, na rua Lopes
0 Chaves, no bairro da Barra Funda, em São Paulo. Elaborado com o despojamento
formal modernista, sem rimas ou metrificação, o poema, no entanto, resgata o olhar
1 do colonizador pelo título, como se empreendesse uma nova descoberta do Brasil,
“aportando” no Norte. A diferença entre o intelectual confortavelmente instalado
8 em sua escrivaninha contrasta com a precariedade do trabalhador que acabou de
produzir uma pele de borracha. A última estrofe, de apenas um verso, surpreende
o leitor com o afago de uma irmandade recém-constatada, ao mesmo tempo que
soa como uma denúncia da própria condição burguesa do intelectual e de tom
informal: “Esse homem é brasileiro que nem eu”...
Em “Acalanto do seringueiro”, o eu lírico adota um tom ainda mais
paternalista, como uma cantiga de versos livres que tenta sentir (e não sente) “a
palavra brasileira”, em um movimento de apaziguamento de diferenças, mas que
explodem logo adiante:
Seringueiro, eu não sei nada!
E no entanto estou rodeado
Dum despotismo de livros,
Estes mumbavas que vivem
Chupitando vagarentos
O meu dinheiro o meu sangue
E não são gosto de amor.. [...]
(ANDRADE, 1993, p. 203-204).
J
Nas palavras de Marlene de Castro Correia, “Acalanto do Seringueiro” no

conjunto da literatura brasileira,
A destaca-se como poema em que mais se dramatiza a condição do poeta (e,
por extensão, a do escritor e a do intelectual) num país subdesenvolvido de
L cultura dependente – o seu dilaceramento entre a formação européia e o
país de origem, o seu despaisamento enfim, e a distância que o separa do
povo, coisificado pelo trabalho alienante [...]. (CORREIA, 2010, p.88).
L
O interesse etnocêntrico de Mário de Andrade, expresso nos “Dois poemas
A acreanos” e depois no livro O Turista Aprendiz, de 1927, com diários de viagens
ao Norte e Nordeste, particularizam o projeto nacionalista do escritor paulista.
Esse nacionalismo derramado se manifestou mais diretamente em “Noturno de
Belo Horizonte”, outro poema de Clã do Jabuti, que mapeia de modo exaltado as
diferenças entre osestados brasileiros.
• Vozes das florestas

189 A partir do final dos anos 1970, o trabalho do artista plástico Hélio Melo
ganhou destaque em Rio Branco, Acre, depois que o ex-seringueiro amazonense

passou a expor suas réplicas de barcos e pinturas sobre o cotidiano do seringueiro.
Depois de fazer contato formal com a pintura em curso com o pintor Genésio
Fernandes, mineiro à época radicado no Acre, Melo expandiu sua produção artística,
experimentando tintas elaboradas por ele a partir da própria floresta, retratando,
entre muitos outros, temas surrealistas em que fauna e flora aparecem misturados
2 em formas híbridas.
Melo também era músico e publicara os livretos O caucho e a seringueira,
0 Histórias da Amazônia,Osmistérios da mata, Os mistérios dos répteis e dos peixes,
A experiência do caçador, Os mistérios dos pássaros e Via Sacra da Amazônia,
1 reunidos em volume único em 2000, com apoio da Fundação Elias Mansur,
mantida pelo governo do Estado do Acre. Os livretos reuniam pequenos verbetes
8 sobre a floresta e chamavam atenção pelas ilustrações do próprio autor, tornando-
se uma história peculiar entre os muitos seringueiros que trocaram a floresta
pela capital do Acre, escreveram suas histórias em cordel e foram vendê-las pelas
ruas do centro de Rio Branco. Ao analisar esses livretos, chama atenção como
Melo, à maneira dos naturalistas que percorreram a Amazônia, procura mapear
fauna, flora, discorrendo também sobre a população local e as mudanças ocorridas
durante a Segunda Guerra Mundial, como no texto “Praia dos Paus”:
Importante é que a guerra lá fora continuava rolando e os americanos nem
se preocupavam, passeando o tempo de barco e avião.
Dizem que eles se engraçaram de um lugar a Praia dos Paus e, de tempos
em tempos, iam lá, fazendo pouso na água. Não se sabe até hoje o porquê.
Também, quando chegou a notícia do término da guerra, eles logo venderam
as embarcações e os aviões foram vendidos para a FAB.
Dos nordestinos que vieram trabalhar em benefício da nação, ainda alguns
ainda continuam batalhando. São eles os chamados “Soldados da Borra-
cha”, sem patente e nem divulgação. (MELO, 2000, p. 56).

J Os soldados da borracha formavam justamente, o contingente de mais


de 55 mil homens convocados pelo governo Getúlio Vargas, a partir dos Acordos de
A Washington, assinados em março de 1942, para fornecer borracha para os Aliados,
de modo a substituir a produção do Sudeste Asiático, sob controle do Eixo. A partir
dos anos 1970, quando se acentua o declínio dos seringais e a agropecuária avança
L
na região amazônica, os soldados da borracha migraram em peso para as capitais
da Amazônia, especialmente para Rio Branco, levando em consideração que o Acre
L foi o estado que mais recebeu os alistados durante a Segunda Guerra, advindos
sobretudo do Rio Grande do Norte e do Ceará.
A O seringueiro comprometia-se a trabalhar seis dias por semana, quer na
época apropriada à extração do látex, quer no período de entressafra. Toda
borracha produzida deveria ser entregue ao seringalista. Da borracha pro-
duzida pelo seringueiro, lhe seriam creditados no mínimo 60% sobre o preço
oficial que vigorava nas praças de Manaus e Belém. O seringueiro também
teria direito aos animais abatidos e poderia cultivar um hectare de terra,
• livre de qualquer ônus.
190 Um contrato “para inglês ver” ou, neste caso, para norte-americano ver. (...)
(SECRETO, 2007, p. 94).

A saga dos soldados da borracha, contratados com a promessa de voltar
para o Nordeste ao final da guerra, se tornou um dos maiores logros sociais da
história brasileira. Nesse caso, o governo Vargas convocou os milhares de voluntários
assumindo a forma política de “falar por” de que nos fala Spivak. Mais da metade
2 desses homens morreu durante a guerra e os remanescentes só conseguiram o
benefício social de dois salários-mínimos a partir da Constituição de 1988, além de
0 uma indenização de R$ 25 mil em 2014.
Diferentes narrativas surgiram a partir dessa aventura conhecida como
Batalha da Borracha, durante o segundo ciclo da mesma, sendo que em 2010,
1
sob minha direção e roteiro, foi lançado o média-metragem Soldados da Borracha,
produzido com recursos do prêmio ETNODOC, da Associação Cultural de Amigos
8 do Museu de Folclore Edison Carneiro, no Rio de Janeiro. Ao centralizar a narrativa
em seringueiros nordestinos e em nascidos no Acre, que ganharam direito ao

benefício social por terem extraído borracha durante a guerra, o filme deteve-se nos
depoimentos dos soldados da borracha, com um prólogo sobre as diversas fases
de produção do filme. De seus lugares de fala, os personagens do documentário
se alternam para contar sua própria história, semelhante em muitos pontos, mas
sempre permeada pela subjetividade, como no depoimento de Vítor de Oliveira, em
que o soldado da borracha avalia a própria amplitude de sua trajetória:
Nós não tivemos direitos a quartel, não tivemos direito a médico, o nosso
quartel foi a floresta.
O que eu espero dessa história, que hoje nós estamos conversando aqui, é
que ela se espalhe no mundo inteiro, até no estrangeiro. (OLIVEIRA, Víctor
de. In: LIMA, 2010)

Por contraponto a essa tomada da palavra pelos próprios seringueiros,


tendo como marco inicial a publicação de livretos de Hélio Melo e depois a projeção
dos soldados da borracha no audiovisual, a Amazônia mítica de Euclides da Cunha
retomou ao meio artístico com o espetáculo Arigós - Primeiros Riscos da Borracha,
J da Companhia MunduRodá, de São Paulo, em 2018, baseado em textos de Murilo
de Paula e excertos de À margem da história, de Euclides da Cunha. Composta
A como uma colagem de trechos narrativos e com apenas uma cena em que discutem
seringueiro e patrão, a montagem não assume a voz dos seringueiros, re-presenta-
L os, adotando o olhar de quem passeia pela região “de bubuia” (flutuando, a partir
do tupi-guarani).

Em todas esses textos e produções culturais assume-se o “re-presentar”
L
sem o intuito do “falar por”, com maior ou menor aproximação na re-presentação
do seringueiro, com a dramaturgia recente optando por um “falar com”, em que o
A gesto, a dança, a música e a mímica re- constituem no palco uma Amazônia ainda
misteriosa. O Acre, como sinédoque dessa floresta, era, para Euclides, a fronteira
de um Brasil que se opõe ao litoral:
Para ele essa transformação se daria acima de tudo através da sua incor-
poração definitiva à Nação e pelo auxílio do conhecimento técnico-científi-
• codos homens de saberes formais, entre os quais aquele renomado escritor
se incluía. Assim, ele procurar ser o tradutor para os brasileiros do litoral
191
desse Brasil “estrangeiro” e ignorado, tal como fez anos antes com os gro-
• tões nordestinos e suas gentes ao mostra-los na sua obra autonomeada de
vingadora, Os sertões. Sua expedição ao Acre é formalmente diplomática e
científica, mas ele, em particular, aponta para uma perspectiva “civilizató-
ria”, ao mostrar que esse chão há pouco tornado brasileiro ainda se encon-
trava “à margem da história”e necessitava ser integrado na nacionalidade
brasileira e no ordenamento estatal. Era como se houvesse dois Brasis em
2 descompasso. (MAIA, 2008 In: SILVA, 2013, p. 199-200).

Uma polifonia emergiu a partir dos relatos dos naturalistas que
0 percorreram a Amazônia: o verbo rigoroso e abrangente de Euclides da Cunha, a
aproximação curiosa de Mário de Andrade Ambos verbalizaram enfaticamente a
1 preocupação com a figura do seringueiro. Desde o Modernismo houve uma mudança
de registro em que outras artes como o cinema - com a própria voz dos soldados da
8 borracha -, e o teatro, que mimetiza os gestos do seringal, surgem novos caminhos
de re-presentação, abrindo a história a seus sujeitos, sem que o escritor, o poeta, o
prosador, o dramaturgo sejam colocados na perspectiva do colonizador, mas como
agentes da fabulação da floresta, que ainda está longe de ser totalmente decifrada.
Referências
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ALVES, Castro. Ahasverus e o Gênio. In: Obra completa. Org. Eugênio Gomes. Rio de Ja-
neiro: Nova Aguilar, 1997. (Edição comemorativa do sesquicentenário).
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SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte:Editora UFMG,
192 2012.
• Cinematográficas
Soldados da Borracha. Direção e roteiro: Cesar Garcia Lima. Brasil, 2010. 27 minutos.

2

0

1

8

J

A

L CARTOGRAFIA DA MELANCOLIA NA (DES) CONSTRUÇÃO DE
MANAUS NA OBRA DE MILTON HATOUM
L
Cristiane de Mesquita Alves (UNAMA)
A RESUMO: O objetivo deste artigo é apresentar a cartografia da melancolia de
Manaus no processo de transformação comercial e (des) formação identitária da
cidade a partir do olhar melancólico de Nael, narrador e personagem do romance
Dois Irmãos (2000) de Milton Hatoum, com base no método cartográfico social
(DELEUZE & GUATTARI, 1995) que desenha o mapeamento das relações humanas,
• como uma estratégia de análise crítica diante da (des) construção da cidade no
processo de desenvolvimento urbano-industrial dos espaços flutuantes, que são
193
apresentados de formas despedaçadas (BAUMAN, 2005), tanto quanto as vidas das
• personagens que convivem neste espaço. Desse modo, a cidade acaba refletindo
o processo melancólico vivenciado pela personagem principal que narra (ALVES,
2017) o romance; assim a melancolia resulta como um espelho mútuo que reflete
as formas e as criaturas que se postam a sua frente (STAROBINSKI, 2014), no caso
desta investigação, de Nael frente a Manaus e vice-versa.
2 Palavras-chave: Cartografia. Melancolia. Manaus. Espelho.

0 Introdução
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
1 Há tal soturnidade, há tal melancolia,

Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia

8 Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.


(VERDE, 2003, p. 70).
A cidade na ficção pós-moderna, cada vez mais ganha espaço de
referência de análise nas produções literárias, como uma forma de representação
de uma sociedade marcada pelo desenvolvimento tecnológico, pelo caos social, pela
multiplicação de um repertório de imagens voltado para a valorização do consumo
e bens materiais, confrontando com um universo de experiências humanas,
aglomerado em relações cada vez mais individualistas, em que se evidenciam o
choque, a desestruturação do indivíduo e a instabilidade urbana, que refletem
no espaço geográfico, na arquitetura, na economia da cidade, e na interioridade
do sujeito que vive e compartilha com o lugar onde habita suas experiências
cotidianas, nesse espaço em constante desterritorialização, em virtude dos avanços
da modernidade.
Nesse sentido, a cidade perde sua configuração geográfica e identitária,
sua experiência de conjunto é questionada e sua noção de território físico e afetivo
é deformada, passando a perder sua representação de delimitado, mudando a
concepção de urbano, que se entrelaça aos movimentos de comunicação, à economia
J globalizada, aos “palcos que se comunicam entre si – o que leva a redesenhar-
se o estudo das culturas urbanas, em que se leva em conta não só a definição
A sociodemográfica e espacial da cidade, mas a definição sociocomunicacional.”
(GOMES, 2009, p. 22).
L Diante dessa desfiguração espacial da cidade, os indivíduos que também
são componentes desse cenário urbano, sofrem modificações tão desastrosas
quanto à destruição do espaço citadino, uma vez que na literatura, a cidade é
L
encorpada como personagem nas narrativas da pós-modernidade. E, dentre essas
narrativas, a escolhida para este estudo, que sofre um processo de simbiose com
A as personagens no romance é a cidade de Manaus, sobretudo, a partir da leitura
de Dois Irmãos de Milton Hatoum.
Neste romance, “a cidade se dá em espetáculo a seus habitantes, é o
espetáculo da civilização em sua história e sua atualidade; seu solo é o espelho que
registra nossas ações” (GOMES, 2009, p. 20), por este motivo, a cidade contracena
• com seus habitantes, em especial o flâneur que circula pelas ruas, Nael. Este narrador
194 e personagem central desse relato (ALVES, 2017), é o responsável por mapear a
• cartografia da cidade, não só do ponto de vista geográfico, mas, principalmente do
ponto de vista da cartografia social (DELEUZE & GUATTARI, 1995) que delineia
o mapeamento não físico, mas das relações objetivas e subjetivas humanas, bem
como as práticas de resistências, a estetização de si mesmo, dentro de uma análise
discursiva.
2 Assim, esse mapeamento social assume uma forma de análise crítica frente
à situação de (des) construção da cidade nos contextos históricos da Belle Époque,
das Guerras Mundiais e da Ditadura Militar; consequentemente, o processo de
0
desenvolvimento urbano-industrial dos espaços flutuantes identitários da cidade
são apresentados de formas fragmentadas, melancolicamente relembradas pelas
1 memórias individuais e coletivas (HALBWACHS, 2013) do narrador, que vê sua
vida desperdiçada, semelhante à vida da cidade por todas essas mudanças sociais e
8 econômicas impostas pela modernidade, que cada vez mais despreza o passadismo
com seu insistente discurso de valorização do novo (BAUMAN, 2005). Desse modo,
este artigo articula essa discussão, com o intuito de refletir como se formula o
processo melancólico vivenciado pelo narrador e a melancolia como resultado de
um espelho mútuo que reduz a superfície refletora (STAROBINSKI, 2014), de Nael
frente Manaus, diante de sua (des) construção identitária.

Cartografando a melancolia da cidade


A cidade de quem passa sem entrar é uma; é outra para quem é aprisionado
e não sai mais dali; uma é a cidade à qual se chega pela primeira vez, outra
é a que se abandona para nunca mais retornar. (CALVINO, 1990, p. 73).

A cidade de Manaus na narrativa de Dois Irmãos vive o mesmo dilema


protagonizado pelo narrador da história Nael, ambos buscam compreender seu
processo de identificação e se veem diante de uma realidade de fraturas e destruição
de sua identidade. Nael perambula pelas ruas da cidade, construindo uma teia
de narrativa formada por espaços flutuantes de rios, de matos, de palafitas e de
J pessoas, as quais podem trazê-lo respostas de sua origem, de quem seria filho, ou
seja, de um dos irmãos gêmeos da família libanesa em que ele e sua mãe, viviam
A na casa trabalhando como domésticos.
Paralelamente a esse conflito individual, a cidade que, muitas vezes,
L ouvia e via as dores do curumim manauara protagoniza seu próprio colapso,
vendo-se destruída pelo progresso iminente do discurso do Plano de Metas, do
L desenvolvimento dos projetos dos governos militares para a região Amazônica.
Nesse sentido, forma-se uma linha narrativa no romance em que se
misturam fragmentos memorialísticos, nostálgicos e melancólicos das dores
A provenientes das perdas do narrador e do espaço que reflete sua própria degradação,
formando uma simbiose de sensibilidades, e afetuosidades melancólicas entre os
dois, que os levam a se refletirem numa espécie de espelho subjetivo capaz de refletir
a dor um do outro, fazendo com que a melancolia refletida na descrição cartográfica
subjetiva da cidade, resultasse em uma alegoria responsável por personificar a

cidade, com seus traços estruturados de forma objetiva, em uma leitura cartográfica
195 mapeada pelas novas atribuições sensitivas e subjetivas formadas no olhar de Nael
• sobre a cidade e na observação da cidade sobre Nael, configurando-se no retrato
das relações e afetuosidades humanas entre eles.
A partir dessa reflexão, percebe-se a existência de uma nova configuração
do mapa da cidade, mas uma descrição subjetiva em que o novo cartógrafo-
narrador irá desenraizar os novelos de sua teia memorialística com base na escrita
2 rizomática, que consiste em “aumentar seu território por desterritorialização,
estender a linha de fuga até o ponto em que ela cubra todo o plano de consistência
0 em uma máquina abstrata” (DELEUZE & GUATTARI, 2011, p. 29), favorecendo
a interpretação múltipla de possibilidade da leitura de um texto, o que justifica

nesse estudo, olhar a cartografia de Manaus pelo viés subjetivo e de afetividades
1 humanas dessa nova representação.
Desse modo, observa-se que a cidade vivencia de forma desmedida a
8 desestruturação da arquitetura identitária de seu passado, afetando as relações
com o humano que também se identifica como o mesmo. Isso pode ser exemplificado

pela ação e comportamentos do narrador em relação às mudanças condicionadas
pelo fenômeno do desenvolvimento urbano da cidade flutuante, em seus aspectos
sociais, políticos, econômicos e culturais, em que o narrador se demonstra
profundamente angustiado, triste, amargurado, numa rebeldia de incapacidade
de não poder fazer nada diante das mudanças trágicas para o espaço manauara,
assim como diante de seus próprios problemas individuais. Mediante a isso, “o
signo da mudança identificado ao progresso e atrelado ao novo, alteram-se não
só o perfil e a ecologia urbanos, mas também o conjunto de experiências de seus
habitantes.” (GOMES, 2009, p. 23), isso pode ser comprovado no romance, na
passagem em que o narrador descreve a destruição do porto da cidade flutuante
para dá espaço ao progresso urbano-industrial da nova identidade da cidade.
Assistiam, atônitos, à demolição da Cidade Flutuante. Os moradores xinga-
vam os demolidores, não queriam morar longe do pequeno porto, longe do
rio. Halim balançava a cabeça, revoltado, vendo todas aquelas casinhas se-
J rem derrubadas. Erguia a bengala e soltava uns palavrões, gritava “Por que
estão fazendo isso? Não vamos deixar, não vamos”, mas os policiais impe-
diam a entrada no bairro. Ele ficou engasgado, e começou a chorar quando
A viu as tabernas e o seu bar predileto, A Sereia do Rio, serem desmantelados
a golpes de machado. Chorou muito enquanto arrancavam os tabiques, cor-
tavam as amarras dos troncos flutuantes, golpeavam brutalmente os finos
L pilares de madeira. Os telhados desabavam, caibros e ripas caíam na água
e se distanciavam da margem do Negro. Tudo se desfez num só dia, o bairro
L todo desapareceu. Os troncos ficaram flutuando, até serem engolidos pela
noite. (HATOUM, 2000, p. 211).

A Na narração, somada revolta e perdas pela identidade do lugar, cidade e


habitantes se veem flutuando, desnorteados pela destruição do lugar, devastado
em nome de um desenvolvimento imposto brutalmente por um capitalismo
selvagem, comandado por um governo autoritário, entusiasmado pelo projeto de
modernidade periférico, com seus “projetos repletos de riscos [por] desintoxicar,
• neutralizar ou afastar da vista os “danos colaterais” produzidos por esse processo
no passado.”(BAUMAN, 2005, p. 35, grifos do autor), sem se preocupar com a vida
196
da e na cidade e das relações de afetos construídas pela ideia de lugar, local de
• cultura e memória pela multidão da cidade, que tem os rios confluindo com ruas,
como traço forte de sua cultura, de seu cenário citadino.
Diante dessa ruptura, a cidade vai emoldurando-se em um quadro
melancólico, tanto quanto o seu andarilho que a lê para o leitor, por meio de imagens
passageiras, tão quanto às águas escuras do rio que a cerca, a banha e que ainda
2 guarda os deuses e os mitos que de uma certa forma, ainda a protege, já que a
cidade é feita “das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos
0 do passado.” (CALVINO, 1990, p. 11), e em cada noção e cada ponto do itinerário
narrado por Nael, pode-se estabelecer uma relação de afinidades entre eles, que
1 sirva de evocação à memória.
E na construção dessa memória melancólica tecida por Nael, dele e da
8 cidade, verifica-se que há um diagrama formando-se por meio de um arquivo de
recordação de um passado glorioso que a cidade teve, e que ele (o narrador), em
poucas lembranças também, como as citações dos momentos em que viveu ao lado
de sua mãe Domingas e de seu avô Halim, assim como a cidade teve seus instantes
de glória como o período do Ciclo da Borracha que a elevou a titulação de Paris das
Selvas.
Esse diagrama memorialístico elaborado por Nael em seu percurso pelas
ruas e pelos rios da cidade é o mapa, a cartografia de todo o seu campo social.
É a máquina abstrata no entender de Deleuze e Guattari (2011), detentora de
funções e matérias informes, que ignora a distinção de forma entre um conteúdo e
uma expressão, entre uma formação discursiva e uma formação não discursiva. É
uma máquina quase muda e cega, apesar de ela vê e se expressar subjetivamente
dentro de um texto, como a cidade de Manaus se alagando em dor, diante de suas
constantes modificações frente aos projetos de urbanização e industrialização. Seu
mapeamento é um mapa aberto,
é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetí-
vel de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, reverti-
J do, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um in-
divíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede,
concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política ou como
A uma meditação. Uma das características mais importantes do rizoma talvez
seja a de ter sempre múltiplas entradas; (...) Um mapa tem múltiplas entra-
L das contrariamente ao decalque que sempre volta ao ‘mesmo’. (DELEUZE &
GUATTARI, 1995, p. 22).

L Por este motivo, afirma-se que no romance a cartografia que se faz da
cidade e de seus problemas, vai além da forma objetiva e geográfica do espaço
urbano; na narrativa de Hatoum, Manaus em seu novo rizoma, traz uma raiz de
A dor e de melancolia, refletida no olhar do flâneur que a vê.

A melancolia que há em nós
Às vezes o espelho aumenta o valor das coisas, às vezes anula. Nem tudo o
que parece valer acima do espelho resiste a si próprio refletido no espelho.
(CALVINO, 1990, p. 34).

197 A melancolia é uma sensação e uma condição propensa para o
temperamento metafórico no processo de criação da arte e da filosofia, para Benjamin

a melancolia está associada ao “corpo social [...], um embotamento sufocante [que]
nos persegue.” (BENJAMIN, 2012, p. 82), dentro do espaço social em que se está
inserido; ainda para o filósofo alemão, os indivíduos, em especial, aos que são
propensos para a poesia, desde cedo travaram conhecimento, com esta “singular
variedade de desespero” (BENJAMIN, 2012, p. 80). O homem não se satura de ser
2 melancólico, e a situação social em que ele se encontra em um universo moderno,
cada vez mais individualizado, contribui para o aumento desse desespero, da crise
0 existencial do indivíduo, em intersecção com a crise social, que reflete na cidade e
nele mesmo.
1 Mediante a este pressuposto, insere-se Nael e Manaus, dois fios condutores
da narrativa, costurados e interligados em um destino de perda de referenciais de
8 sua cartografia afetiva, diante da destruição da memória da cidade- água, que
corrobora também para a destruição de sua história, enquanto habitante e leitor
do espaço manauara, como se observa no trecho:
Mirava o rio. A imensidão escura e levemente ondulava me aliviava, me de-
volvia por um momento a liberdade tolhida. Eu respirava só de olhar para o
rio. E era muito, era quase tudo nas tardes de folga. Às vezes Halim me dava
uns trocados e eu fazia uma festa. Entrava no cinema, ouvia a gritaria da
plateia ficava zonzo de ver tantas cenas movimentadas, tanta luz na escu-
ridão. Depois eu cochilava e dormia uma, duas sessões e despertava com a
lanterninha chocoalhando meu ombro. Era o fim. O fim de todas as sessões,
o fim do meu domingo. (HATOUM, 2000, p. 81-82).
Nesse romance, o que se observa é que a cidade e o seu leitor estão
intrinsecamente ligados, os dois fragmentados e misturados em sua dor de perda,
destituídos e não inseridos no novo, tão caro a modernidade; fechados em suas
lamentações de vidas desperdiçadas, ambos reclusos nas ruínas de seus mundos
que não se adaptaram ao projeto de modernidade, que consiste na “rejeição do
mundo tal como ele tem sido até agora e à decisão de transformá-lo [...] na mudança
compulsiva obsessiva.” (BAUMAN, 2005, p. 34). Desse modo, tanto Manaus quanto
J Nael ainda estão interligados a sua história, sua cultura, suas crenças e seus
mitos; pois “a cidade e suas questões determinam nosso cotidiano e dão forma aos
nossos quadros de vida.” (GOMES, 2000, p. 67).
A
A cidade de Manaus representa uma rede de memórias que serve de
L passagem cotidiana e, também sustentáculo para Nael. E, no romance, ela encarna o
espaço físico da narração, mas também, torna-se personagem, embora coadjuvante,

ou muito secundário da vida das demais personagens do texto hatouniano, e que
L pouca importância dava a si próprio, aparentemente, uma vez que o conflito da
trama de Hatoum se concentra no fio condutor da paternidade e das intrigas dos
A irmãos gêmeos Yaqub e Omar; no decorrer da narrativa, o leitor vê-se de repente
diante da alegoria da cidade, transformada no centro das atenções.
E, essa delegação alegórica de Manaus, confluindo-se ao eu de Nael,
“materializando-o, convertendo-o em objeto [...]. A alegoria desta feita, não se
vincula mais à personificação: ela é despersonificada, devitalizante. Tornar-se
• espelho” (STARONBINSKI, 2014, p. 33), por este motivo, analisa-se a melancolia de
198 Nael refletida na de Manaus ou vice-versa. Sendo assim, tem-se nesse texto, um
sujeito que se funde ao próprio espaço da cidade, que na impossibilidade de ser

sujeito, tem seu discurso expressado no desdobramento do discurso do narrador,
responsável por:
Desemaranhar as linhas de um dispositivo é, em cada caso, traçar um
mapa, cartografar, percorrer terras desconhecidas, é o que Foucault chama
de ‘trabalho de terreno’. É preciso instalarmo-nos sobre as próprias linhas,
2 que não se contentam apenas em compor um dispositivo, mas atravessam-
-no, arrastam-no, de norte a sul, de leste a oeste ou em diagonal. (DELEU-
ZE, 2005, p. 1).
0
E ao (re) desenhar as curvas da cidade, o narrador redistribui suas
1 mordazes críticas em relação ao contexto histórico da cidade, aos descasos do
governo em relação a como ficou a cidade, depois da devastação ambiental causada
8 pela entrada do capital estrangeiro e dos planos de desenvolvimento governamental
na Amazônia, motivos apontados pelo narrador, como um dos responsáveis pela
configuração de tristezas e desgraças da cidade, tais como as Guerras Mundiais:
Por ali circulavam carroças, um e outro carro, cascalheiros tocando triângu-
los de ferro; na calçada, cadeiras em meio círculo esperavam os moradores
para a conversa do anoitecer; no batente das janelas, tocos de velas ilumi-
nariam as noites da cidade sem luz. Fora assim durante os anos da guerra:
Manaus às escuras, seus moradores acotovelando-se diante dos açougues e
empórios, disputando um naco de carne, um pacote de arroz, feijão, sal ou
café. Havia racionamento de energia, e um ovo valia ouro. (HATOUM, 2000,
p. 22-23).
Além do Período da Ditadura Militar, causador de profundas atrocidades
não só no espaço estrutural da cidade, como também na violência contra as
pessoas, em especial, ao personagem Laval, professor do narrador de Dois Irmãos,
humilhado e morto pelas forças armadas, por ser comunista:
Humilhado no centro da Praça das Acácias, esbofetado como se fosse um
cão vadio à mercê da sanha de sangue feroz. Seu paletó branco explodiu de
vermelho e ele rodopiou no centro do coreto, as mãos cegas procurando um
J apoio. [...] A vaia e os protestos de estudantes e professores do liceu não inti-
midaram os policiais. Laval foi arrastado para um veiculo do Exército, e logo
depois as portas do Café Mocambo foram fechadas. Muitas portas foram
A fechadas quando dois dias depois soubemos que Antenor Laval estava mor-
to. [...] Na manhã da caçada ao mestre eu apanhei a pasta surrada, perdida
na beira do lago. Dentro da pasta, os livros e as folhas com poemas, cheias
L de manchas. [...] Ele não queria ser chamado de poeta, não gostava disso.
Detestava pompa, ria dos políticos. (HATOUM, 2000, p. 189-190).
L
Diante desses contextos históricos desoladores e desesperadores para
Manaus, para o Brasil, para Nael e para as pessoas queridas do narrador, formam-
A se uma profunda condição de melancolia, provocada pelo esvaziamento do eu
inerente ao esvaziamento do espaço da cidade, representado pelo modo de pensar
e de narrar de Nael ancorado entre dois espaços vazios: sua vida com a morte da
mãe e do avô e a decepção paterna, de descobrir que seu pai não era quem ele se
identificava e almejava ter como pai (ALVES, 2017), e os lugares de sua cidade,
• destruídos pela modernidade.
199 Perante a esse quadro, toda a narração toma um rumo de uma experiência
• sensível que destece quase de forma desvanecida, a interioridade do narrador
por meio de um relato de fragmentos submergida na escuridão do ser de Nael,
que o faz se queixar diante da solidão de sua vida e de sua cidade imersa no
abandono e no descaso público. Ele se vê diante de si, num esvaziado de desejos
e de esperanças que se faz crer igual ao de Manaus. Este esvaziamento do eu de
ambos está relacionado à falta das referências identificatórias, isto é, Nael não
2
aceita sua referência paterna, depois de uma busca incessante de desvendar sua
origem e Manaus flutua em sua floresta e rios cada vez mais depredados.
0
Notas Conclusivas
1 Assim, mediante ao que foi exposto nos tópicos acima, chega-se a apontar
algumas considerações conclusivas sobre esse processo de formação e (des)
construção do espaço de Manaus, concomitantemente, a degradação identitária de
8 Nael. Logo, o que se pode perceber é que os dois são representados melancolicamente
diante de sua realidade, como uma refração refletora (STARONBINSKI, 2014), nos

eu corporal e eu espiritual de ambos que são cartografados subjetivamente por
meio de novos enraizamentos de significação, o que remete à teoria rizomática de
Deleuze e Guattari (2011).
Esse Eu corporal projeta-se na superfície da desterritorialidade que o
espaço citadino apresenta como se fosse uma extensão constante do movimento
constitutivo do próprio narrador do romance, frente à composição e reconstituição de
sua identidade, dentro de um percurso memorialístico, constituído por uma mescla
da memória individual e da coletiva (HALBWACHS, 2013), em que a identidade
individual é o resultado das memórias do grupo social em que o indivíduo pertence.
Portanto, diante desse mapeamento que se faz da cidade pelo viés da
melancolia, conclui-se que estes sujeitos (Nael e Manaus) buscam compor-se, sem
ilusões, buscando um território marcado pelo desejo longínquo, de reviver um
passado impossibilitado, desperdiçado pela ação do desenvolvimento capitalista
imposto a força na cidade, despedaçando vidas (BAUMAN, 2005), desvalorizando a
J cultura e, consequentemente a identidade de seu povo, no caso de Manaus e pela
indiferença e pela morte das pessoas, no caso de Nael.
A Referências
ALVES, Cristiane de Mesquita. A voz do Narrador e da personagem através da memória
L em Machado de Assis e Milton Hatoum. 1ª ed. São Paulo: Paco Editorial, 2017.
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de
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L
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2 , p. 19-30, jul/dez, 2009.
2
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tamento da cena moderna? In: Alceu, Revista do Departamento de Comunicação Social
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1 Paulo: Centauro, 2013.
HATOUM, Milton. Dois Irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
STARONBINSKI, Jean. A melancolia diante do espelho: três leituras de Baudelaire.
8 Trad. Samuel Titan Jr. 1ª ed. São Paulo: Editora 34, 2014.
VERDE, Cesário. O livro de Cesário Verde. Porto Alegre: L&PM, 2003.
J

A

L RUBEM FONSECA: DEL CONFLICTO SOCIAL AL “CONFLICTO DE
SÍ”. OTRA MANERA DE LEER LA NOVELA NEGRA
L
Dahanna Borbón Hernández (UNIVERSIDAD DE LA SALLE)
A RESUMEN: El presente texto tiene como objetivo analizar la obra de Rubem Fonseca
Y de este mundo prostituto y vano sólo quise un cigarro entre mi mano, con la guía
teórica del curso Hermenéutica del sujeto, de Michel Foucault. Específicamente
con la noción de “inquietud de sí”. Esta se entenderá como una actitud que puede
adoptar el sujeto para la transformación de su vida, más allá del escenario político,
• social o cultural de cada sujeto. En este caso la inquietud de sí se relacionará con
Amanda, quien es no solo el personaje que encarna de mejor manera la noción
201
foucaultiana , sino que, además, es gracias a esta actitud de vida de Amanda, al
• arte y a la literatura que ella le da una nueva expresión a la novela negra. La novela
negra en Latino América, tradicionalmente, ha sido uno de los géneros literarios
que acogió en su narrativa la exposición de problemas sociales, culturales, políticos
de cada país, dando reconocimiento en estas obras sucesos históricos que marcan
el presente y el futuro de cada región. De acuerdo con esto, se ha venido mostrando
2 y leyendo la novela negra como un género que, por medio del crimen, el complot y el
enigma, presenta una memoria literaria -de régimen realista- sobre la historia del
0 continente. Entonces, vale la pena apostar por otra manera de ver la novela negra,
y a su vez, reconocer que existe otra forma de abordar la historia que configura a
1 nuevos sujetos latinoamericanos por medio de la narrativa.
Palabras clave: Memoria. Arte. Literatura. Inquietud de sí.
8 Cuando hay acercamiento a la novela negra, de crímenes o policíaca, se
cae en el juego del enigma, del miedo, del complot, de una víctima, de un victimario
y de una solución. Aun hoy, existen concepciones que se toman la palabra acerca
de una única manera de concebir la novela de este género en Latinoamérica,
entendiéndola como un reflejo de las sociedades que hoy acontecen, modificando
algunos criminales, atendiendo a conflictos sociales y políticos que configuran toda
una manera de ver y entender las obras. Muchas de aquellas obras que han sido
interpretadas bajo el lente del conflicto social y político, no han dado permiso a
obras literarias que puedan entenderse mejor, bajo el lente del arte mismo. La
relación entre el género negro y el propio ejercicio del arte de la literatura, resulta
mejor cuando se pregunta ¿Cuáles son los requisitos básicos para escribir? ¿Qué
impulsa a hacerlo?
Para el año 1997 se publica por primera vez en Brasil E do meio do mundo
prostituto só amores guardeiaomeu charuto(1997), Traducida en Colombia como:
Y de este mundo prostituto y vano sólo quise un cigarro entre mi mano de Rubem
Fonseca. Algunas novelas del autor ya han sido trabajadas bajo el lente ya antes
denunciado, sociopolítico (Efrén Giraldo, Gustavo Forero), sin embargo, esta obra
J ha sido poco trabajada, al carecer de contribuciones al formato que se ha venido
presentando. La distinción que estoy haciendo entre novela negra leída bajo el
A lente del conflicto y por otro lado el arte, facilita el acercamiento al gran objetivo de
mi propuesta, dar una reinterpretación al género negro latinoamericano, por medio
L de la fractura que se encuentra en esta obra.
Con la introducción a este nuevo acercamiento puedo dirigirme a la obra
literaria que será desde este momento el referente clave para hacer realmente
L
atractivos los hechos y personajes de lo que aquí está aconteciendo. No sin antes
advertir, que cuento con una guía teórica que servirá de herramienta para dar
A más potencia al personaje que he considerado como el referente que permite la
consideración del arte, de la literatura, como una fractura de lo ya establecido.
Amanda es el personaje que en Y de este mundo prostituto y vano… juega
a ser la presunta asesina, ella encarna la gran fractura de esta obra. Apostar por
interpretar de esta manera a este personaje, es apostar por enaltecer la figura del
• arte, del posible creador y dar una reinterpretación de la novela de género negro.
202 Amanda mujer con cuerpo bastante provocador, es la primera que tiene contacto
• con los crímenes que allí acontecen, la que permite el vínculo entre el abogado del
caso (Mandrake) y el primer implicado por los crímenes de sus amantes (Gustavo
Flavio), la que formula la pregunta que da el giro a esta historia: ¿cuáles son los
requisitos básicos para escribir?
Amanda responde a una configuración enigmática, sus aportes como
2 personaje son muy cortos, poca actividad tiene, su puesta en escena carece de
momentos totalmente álgidos, es mejor decir que, desde su lugar de enunciación,
sus aportes a veces impertinentes en el tejido de la narración, son la potencia de su
0
personaje en relación con ese objeto del deseo de esta novela, el arte, la literatura,
el creador. ¿Qué debo hacer para convertirme en escritora? Pregunta Amanda
1 a su ex esposo, Gustavo Flavio, Pedante erudito, carente ahora de imaginación,
escritor Honoris causa, ex amante de las mujeres que en esta novela terminan con
8 un destino fatal para la cotidianidad, posiblemente rico en representación para
el arte. Los asesinatos de bellas mujeres, ex amantes de un hombre inteligente y
afortunado en el amor, es el caso que se va a tratar de resolver en esta obra.
Existe una dimensión que no es del todo revelada, al mismo tiempo que
se trata de dar con el paradero del asesino de estas mujeres, se va tejiendo un
sujeto que no es percibido por los hombres que harían el rol de personajes propios
del género negro, es decir, el investigador, en este caso, el abogado criminalista
encargado, la ayuda policial por parte del estado (Raúl), pareciera que vivieran
ajenos a las inquietudes de esta mujer.
Amanda invita a Mandrake a cenar con ella y Gustavo, todo con el ánimo
de que estos dos hombres se conozcan un poco más, a medida que avanza la cena
Mandrake presencia una charla entre dos personas que pretenden llegar a eso que
hace a un escritor, realmente escritor, en este caso el aprender a ver es la lección,
o en palabras de Gustavo Flavio “a ver lo que no se ve” (FONSECA, 2007:53).
¿Quién es Mandrake en esta cena? Un lector, un espectador que escucha a dos
personas que están interesadas en eso que él lee en la cama o en su escritorio, es
J un personaje inactivo, no propio de un abogado (CHESTERTON, 2011:49), pues
esta charla no lo hace pensar en nada que sirva para el caso, tan solo se muestra
como un hombre que escucha a dos amantes del arte.
A
Todavía no he hablado de un requisito necesario para el escritor, que es la
imaginación: ¿o sí lo hice?
L
El diálogo con ellos, debo reconocerlo, fue intelectualmente estimulante.
Después de la cena, Gustavo sugirió que fuéramos a la casa de Amanda a
L fumar unos churchills de la Punch, sus favoritos. (FONSECA, 2007:53)

La cita es relevante, en la medida en que permite dar un acercamiento
A a dos cosas que he querido resaltar, la pregunta por el creador, unos cuantos
requisitos, como es aprender a ver, y utilizar la imaginación. Esta escena transcurre
frente al abogado, el que hallará al asesino, este no sospecha nada de Amanda,
nunca sus interrupciones, sus actitudes nuevas lo hacen dudar de ella, como si
este hecho careciera de importancia, como si todos estuvieran atrapados bajo el

velo de un creador, que los ha puesto ahí y ellos no pudieran pensar en él.
203 Todo lo anterior tiene una razón, quiero que se vaya entendiendo el sutil
• cambio estructural, narrativo de la obra que presenta Fonseca desde un aparente
juego doble de circunstancias, desde cambios en los personajes, entre otros. Poco
a poco voy mostrando cómo se va configurando un nuevo mundo. Ahora bien,
quiero pasar a pensar los elementos antes enunciados como el arte de la creación,
la literatura y qué significan en esta obra.
2 El arte ante el mundo del crimen
Gustavo Flavio había dejado escribir novelas ya hace algún tiempo, a
0 causa de un “accidente” que le bloquea la creatividad. Desde entonces, ha dejado
de lado la novela y se ha embarcado en el género del ensayo. Cuando Gustavo
1 entra en contacto con Mandrake, quien es al abogado que le ayudará con el caso,
se empieza a narrar un desagrado por los personajes tanto de sus novelas o como
8 la de otros autores:
Ya no escribo novelas, como quizá sabe, doctor Mandrake. Antes incluso de
dejar de escribirlas ya detestaba a mis personajes, y detestaba también a los
personajes de los otros autores; y, como es bien sabido, ama a tu personaje
como a ti mismo es un precepto importante para que uno disfrute escribien-
do, y para hacer que el lector disfrute lo que uno escribe. (FONSECA, 2007,
p.17)

Gustavo deja ver una importante reacción a la manera en que se debe


y es concebida para él la literatura, mas cabe advertir, que si bien este personaje
choca con eso que una vez él fue, nunca, va a tener la misma repulsión frente a una
manifestación artística como lo es la poesía. Es clave advertir esto, porque de esta
manera logro construir por completo a este personaje, es decir, hay un tránsito
entre el novelista, el ensayista y el amante de la poesía, cualquier poesía, la razón
de amar la poesía va directamente al núcleo de lo que hoy he querido presentar, el
arte.
Estoy haciendo el recorrido artístico desde Gustavo y no directamente
desde Amanda, porque ella bebe de este hombre el contenido necesario para llegar
J a dar pistas de su posible involucramiento en los asesinatos que se han venido
ejecutando al paso de la obra. Ahora bien, ¿Qué es la poesía? ¿Por qué hacerse
A escritor? Estas preguntas dejan ver y ser a Gustavo, al mismo tiempo, lograrían
dejar ver el grado artístico y consciente de la obra frente a lo que es el ejercicio de
L crear, de hacer y hacerse obra.
Gustavo dice en una carta en respuesta a Mandrake, que luego será
enviada a Amanda, que su impulso por escribir se lo dan las mujeres, la pasión
L
que siente por ellas se asemeja a la emoción que le dan ciertos poemas “Nunca
rompo libros de poesía, ni siquiera los lacrimosos, repletos de quejas de amor”(
A FONSECA, 2007, p.70), las mujeres para él son el mundo, como el mundo que se
logra encontrar en la poesía, ningún poema se parece a otro, cada uno logra recrear
experiencias diferentes. De la manera en que se presenta este impulso de escribir
y esos gustos, aflora una de las inspiraciones para seguir escribiendo en respuesta
de ¿Por qué escribir, y cómo me hago escritora, que es la pregunta de Amanda?
• Dándose así la posibilidad de advertir que quien escribe, el artista debe devorar
204 lo establecido, lanzarse a encontrar la libertad que lo reglamentado no permite,
ejecutar un crimen, por ejemplo.

Cuando hablo de fracturar lo establecido, como un sujeto que busca la
libertad, me es imposible dejar de traer a la mente el trabajo foucaultiano, sobre
la hermenéutica del sujeto o en otras palabras epimeleiaheautou, inquietud de sí.
Foucault aquí hace un recuento de cómo ha sido abordado a través de la historia
2 este concepto, mas es bastante reiterado la preocupación por abordar este concepto
como una actitud que centra su mirada en el sí mismo del sujeto, implicando una
mirada a los otros, al mundo, acciones que permitan la transfiguración de las
0 practicas del sujeto. Esta actitud se puede vincular directamente con el personaje
de Amanda quien a partir de los elementos dados por Gustavo quien sería su mentor
1 artístico, lo supera, rompe con lo estipulado por él, no solo recoge características
que el novelista le ha dado para hacerse escritora, sino que ella, en ese misma
8 actitud de crearse y crear, se vale de un valor no concebido, ni entendido por aquel
hombre, dicho valor, podría ser la gran pista para poder suponer que ella es la
autora de los crímenes llevados a cabo en la obra, como una marca de creador.
Amanda pregunta a Gustavo si el escritor debe escribir sobre la realidad
que ve
Te dije que el escritor debe saber ver. Puedes utilizar la realidad, como lo
hicieron Balzac, Zola. Si tú, como escritora, quieres usar tu experiencia, los
incidentes de tu vida, estupendo, nadie puede liberarse de su yo; pero no
exageres, recuerda lo que dijo Gide, un mal escritor escribe sobre su vida,
un buen escritor escribe sobre sus vidas posibles, vidas en plural. Usa la
Vida, la tuya y la de los otros (FONSECA, 2007, p.83)

Si tal como lo propone Gustavo, el artista, el creador está en plena libertad


de tomar la Vida y hacer de ella una obra, crear, imaginar, valerse de la imaginación
es uno de los consejos posteriores de Gustavo, imaginar es la capacidad de inventar
eso que no se ve, eso que no se oye, muchas veces advierte Gustavo, esa capacidad
te hará profundamente infeliz, más el precio que se juega al hacer eso es entrar
J realmente al mundo de la ficción, de la literatura “La imaginación es la madre
de la ficción, es la madre de la poesía, e inclusive, como afirmaron Mommsem
A y Burckhardt, la madre de la historia” (FONSECA, 2007, p.84). Entonces, esto
podría dar a entender que,posiblemente Amanda sea primero creadora y después
L asesina.
La novela revela que la primera persona en descubrir la identidad de la
L primera mujer asesinada es Amanda. Mandrake, el narrador, investigador, no da
mayor detalle en ello, tan solo lo enuncia, pasa algún tiempo, y antes de saber como

lectores, quién es la víctima, y cómo ha muerto, Amanda realiza la pregunta que
A hemos venido siguiendo hasta ahora a Gustavo, luego, sin importar lo absurdo de
la pregunta, Amanda, en un momento importante del relato, pues se ha revelado no
solo una primera asesinada, sino una futura muerte, ella pregunta ¿A un escritor
le hace falta la bondad?
Me parece de particular interés que estos hechos sean contados, porque

lo siguiente que quiero mostrar es que, por más que estos elementos se estén
205 dando, el resto de personajes, el resto de la narración pareciera ajeno a estas
• indicaciones, el caso de las mujeres asesinadas, sigue por resolverse, de hecho se
encuentran pistas que dan con los presuntos asesinos, como Darcy Ramos, joven
que coincide con los días de las muertes, con la intención de matar, mas el arma
con que son asesinadas estas mujeres no corresponde al hombre. Se piensa en
Gustavo, como posible implicado, pero carece de tal valor, ama tanto a las mujeres
2 que no podría accionar un arma contra ellas. ¿Entonces, quién, por qué pensar en
Amanda como presunta asesina?
0 Me aventuro a hacer de Amanda la presunta asesina, porque ella al
estar interesada en eso que hace ser a un escritor, realmente escritor, reúne los

elementos nombrados, la bondad, la inteligencia, la imaginación, y como buen
1 personaje de la novela de enigma y de crímenes, no revela su intención de manera
directa, tan solo pica al lector a pensar, a seguir pensando, para qué preguntar por
8 ello, por qué la novela termina sin un culpable, tan solo con un señalamiento, dice
Gustavo a Mandrake:
Recordé algo que me está perturbando. Algo horrible. Un día estaba conver-
sando con Amanda, acerca de los prerrequisitos necesarios para que alguien
se convierta en escritor…

-sí…

- entonces… entonces Amanda me preguntó, ¿y el valor de matar? No enten-


dí lo que quería decirme, y Amanda agregó, tengo el valor de matar, ¿eso me
ayuda? (FONSECA, 2007, p.116)
Ya había anotado que el artista es el que va contra lo establecido, es ella
la creadora de un posible asesino, un asesino perfecto, que no deja rastro, que no
se logra encontrar, es posible que ella, sea una asesina, el arte es crimen, pues
deviene irrespeto, fractura a lo que nadie quiere ver, a lo que nadie quiere oír. El
artista, el creador, debe tener el valor de decir aquello que no puede decirse, el
valor a no querer merecer premios o reconocimiento por su obra. Lo anterior lo dice
Gustavo a Amanda, él carece de valor, de imaginación, se ha inscrito a un género,
el ensayo, que solo presupone erudición, pero no valor, y no hablo en términos de
J carecer de miedo, sino valor a hacer lo impensable. Estas palabras, estas pistas
podrían dar a pensar que la autora de todo esto es Amanda, la asesina perfecta
A que rompe con la aparente estructura de la novela de crímenes, con el personaje de
asesino vinculado a una emoción de venganza o justicia social.
L Con lo reconstruido hasta el momento, me atrevo a decir que se debe
entender que en esta novela lo importante no es el crimen por sí mismo, ni cómo
se logra resolver, sino la motivación de pensarse a sí misma, dando reconocimiento
L a una nueva manera de concebirse como novela, de la mano de los personajes y
en este caso, de la presunta asesina. En Y de este mundo prostituto y vano..puedo
A acceder a mucho más que un crimen, que, a una historia personal, la narración de
esta obra es una invitación al replanteamiento de la crítica y la teoría del género
negro, a la evaluación de los sujetos en sí mismos, al que hacer hoy del escritor.
Buena parte de lo que he dicho hasta el momento está ligado a la
formulación que se ha hecho reconocida al concebir la novela de este género en
• Latinoamérica como un campo donde los político y social tiene mayor valides,
que posiblemente, el mismo juego al que invita la novela, la sagacidad mental, el
206
reconocimiento estético, estos valores se han perdido al ir tras el reconocimiento
• de un solo lente de entendimiento. Para terminar, hallé pertinente el acopio de los
hechos de la obra, algunos elementos filosóficos y críticos alrededor del género,
dados algunos tácitamente, para llegar a considerar una nueva novela negra, donde
el arte y el crimen deban estar juntos.
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Ciudad-Bogotá: Norma. Traducción de Elkin Obregón, segunda edición, Bogotá: 2007.
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de Miguel T. García, 2011.
J

A

L CORONÉIS EM FOCO: EXERCÍCIOS DE PODER DOS
SERINGALISTAS EM RIO BRANCO, ACRE
L
Daniel da Silva Klein (UFAC)
A RESUMO: O texto procura interpretar as ações de execução de poder vinculadas
a práticas econômicas e sociais de um grupo de seringalistas do vale do Rio
Acre no início do século XX, debatendo como estruturas gerais determinantes
são criadas no cotidiano em redes de socialização. O foco será direcionado para
práticas de coerção e submissão que reforçam, ampliam e espraiam os domínios
• de uma determinada elite da Amazônia, a saber, aquela proprietária de seringais e
que detinham cargos nas mais variadas esferas do Estado. Como pano de fundo,
207
iremos propor o argumento de que tais relações foram fundamentais no processo
• de construção da república brasileira, garantindo assim a continuidade nos
meandros do poder pelas elites locais em pleno século XXI. Para a investigação
foram utilizados processos do arquivo do Tribunal de Justiça do Acre, sobretudo
os vinculados a empresa N & Maia e Companhia, telegramas trocados entre o
governo federal e o local bem como bibliografia de apoio tanto especializada quanto
2 metodológica. Como método de abordagem, debateu-se em um segundo plano com
a chamada microhistória de inspiração italiana, principalmente a noção de que os
0 indivíduos socialmente organizados criam redes estruturantes de determinação
social. Com o texto esperamos ampliar os debates sobre os métodos historiográficos
1 e as contribuições para compreensão das amazônias.
Palavras chave: Seringalistas. Amazônia. Poder.
8 Introdução
O tema do coronelismo parece gasto na historiografia brasileira, mas,
contudo, apresenta-se como central na contemporaneidade visto que as complexas
relações entre os poderes centrais e regionais do Brasil continuam fortes no sentido
de manterem determinadas elites no controle do Estado, em setores da economia,
cultura e etc. Nos mais diversos maios da mídia assiste-se a um vai e vem de
negociações e trocas de favores envolvendo, por exemplo, presidentes, ministros e
demais membros que ocupam posições em Brasília com pares, aliados e agregados
de estados e municípios.
Procuramos, portanto, reforçar a tese de que as elites locais tiveram, ao
longo do desenrolar da república brasileira, participação central na construção do
sistema presidencialista de coalizão que o país possui. No início do século XXI esse
arranjo governamental encontra-se consolidado, visto que Brasília e todo o seu
status quo não sobrevive sem os acordos com lideranças regionais e seus grupos.
Tais relações envolvem desde negociações de cargos do governo federal em algum
município do interior até a publicação de editais para contratação de alguma
J empreiteira para obras públicas.
Ousamos dizer que esse texto é apenas um trampolim para outros, já que
A procura as bases de atuação de um grupo de coronéis que teima em permanecer
ativo no Acre até a contemporaneidade. Por isso arriscamos a dizer que o rastreio
L desse conjunto de pessoas irá demonstrar como foram eficazes em dar continuidade
aos seus projetos de manutenção de uma coalização hegemônica.

Deixamos claro, porém, que utilizamos aqui uma investigação que
L
não pretende estabelecer uma tipificação de coronelismo como sustentáculo do
republicanismo brasileiro, mas demonstrar elementos de sua constituição. Devemos
A a tensão no próprio termo coronelismo a uma leitura conceitual de José Murilo de
Carvalho (CARVALHO, 1997). Desse autor, retemos, também, a noção de que os
coronéis só estão em atividade porque se adaptaram aos dias atuais (CARVALHO,
2001).
Coronéis de barranco em conflito

A N & Maia exercia um poder que sobrepujava seus concorrentes,
208
reafirmando sua posição junto a seus pares com atividades econômicas e políticas
• dominantes. O exercício de esse poder era ilimitado quando seus adversários
provinham de camadas sociais inferiores, mas tinha seus limites quando enfrentava
concorrentes de sua mesma estirpe, membros da elite de Rio Branco.
Esse jogo de imposição de seu poder em camadas sociais diferentes
pode ser verificado em dois casos distintos, quando a empresa massacrou alguns
2 funcionários públicos menos graduados e quando teve que se explicar perante o
primeiro governador do Território Federal do Acre.
0 Nesses exemplos do exercício do poder que a N & Maia poderia executar
temos aquela que consideramos a peça documental mais exótica que foi levantada,
1 mas que, por sua vez, é a maior evidência da influência da empresa contra seus
adversários menos graduados. Trata-se de um processo aberto pelo prefeito
departamental Deocleciano Coelho para que sejam investigadas as causas de um
8
espancamento sofrido por Neutel Maia no início de 1910, que era então um dos
delegados da capital (Processo n. 1702, Petição inicial).
O caso parece rocambolesco na medida em que ouvimos os depoimentos
das testemunhas. A pergunta a que todos deveriam responder era se sabiam “sobre
o espancamento que foi victíma o coronel Neutel Newton Maia, na noite de dezesseis
de janeiro do corrente ano às dez horas da noite no logar mais público desta vila”
(Processo n. 1702, Autos de depoimentos abertos em 18 de fevereiro de 1910).
Há vários depoimentos contraditórios, mas dois indicam os culpados
sobre o caso. Um deles é o de Joaquim Simões, que viu uma turba de soldados
bêbados e trôpegos saindo do Bar Acreano com Manoel Baptista e Josias Lima.
Todos eles foram para Pennapolis. Quando esse grupo passava em frente ao lugar
onde estava, fitou no meio deles o criminoso Deusdete, que disparou antes de
atravessarem o rio Acre: “O que é? Estamos indo para a villa Rio Branco a fim
de fazer um serviço no senhor Neutel Maia” (Processo n. 1702, Depoimento de
Joaquim Simões).
O responsável por identificar todos os agressores, por sua vez, foi o cabo
J do exercito, Gentil de Oliveira, que disse que na tarde do dia descêsseis Josias Lima
apareceu no quartel e pediu audiência com o tenente Goulart. Ambos conversaram
A durante muito tempo e saíram juntos. Antes de sair, porém, o tenente havia
lhe pedido para cuidar da guarnição até o dia seguinte, quando viria lhe render
L (Processo n. 1702, Depoimento do cabo Gentil de Oliveira).
Mais tarde, de noite, o tenente voltou e chamou os cabos João José, Pedro
Ferreira, Antônio Balthasar, Quintiliano Pereira e Manoel Galdino para que fossem
L
a sua sala. De lá todos se vestiram a paisana e saíram como civis do quartel. De
manhã, ainda segundo o cabo Gentil de Oliveira, o grupo voltou e todos estavam
A armados com porretes nas mãos. Ouviu do tenente Goulart que deram uma surra
danada no seu Neutel (Processo n. 1702, Depoimento do cabo Gentil de Oliveira).
Na perícia criminal feita em Neutel Maia no dia vinte e seis de fevereiro,
o médico José Fabiano Alves afirmou que o mesmo fora encontrado minutos
depois da agressão, estava desacordado e sangrando muito. Seu tórax ficou ferido,
• estava roxo, com muitas escoriações e a cabeça cheia de hematomas. Neutel
209 Maia não apresentava então um bom estado de sanidade mental e demoraria
• aproximadamente quarenta dias para ficar são novamente (Processo n. 1702,
Autos de perícia e sanidade em Neutel Maia feitos pelo Dr. José Fabiano Alves em
26 de fevereiro de 1910).
O processo caminha para a incriminação de todos, sendo que em outubro
a Promotoria Pública pede a prisão por dez anos dos acusados e a destituição da
2 farda do oficial e dos soldados envolvidos no crime. Pouco mais de dois meses depois
o juiz confirma o parecer da promotoria e manda executar a sentença (Processo
1702, Parecer da promotoria publica em 19 de outubro/Sentença final em 30 de
0
dezembro de 1910).

Ao longo do processo não ficou explicitado quais os motivos que levaram
1 os agressores a espancarem Neutel Maia. O que se vê é que após a agressão, eles
são logo presos e recebem uma pena dura. O problema é que eles foram presos na
8 carceragem da capital, que era dirigida então pelo próprio Neutel Maia. Os presos
estariam sob os cuidados do desafeto, que era uma das pessoas mais influentes de
todo o Vale do Rio Acre.
Em 1911 o advogado João Duarte de Oliveira entra com um pedido de
mudança desses presos para outras instalações, alegando que o ex-tenente Ricardo
Goulart e os demais vinham sendo constantemente espancados dentro das celas
da carceragem e submetidos as mais deploráveis condições de higiene, à fome
e outros constrangimentos (Processo 1702, Petição de recurso). Tais alegações
demonstram que os presos estavam sendo colocados nas mais depreciativas
condições físicas. Mesmo assim, o tribunal recusa o pedido do advogado e arquiva
o processo (Processo 1702, Despacho de recurso).
Na lógica do exercício desse poder coronelístico, temos aqui uma
reafirmação do paternalismo, que segundo o historiador Sidney Chalhoub são ações
praticadas pelos membros da elite que visavam à subordinação de seus dependentes
a partir da violência formal ou da retórica do convencimento (CHALHOUB, 2003,
p. 49). Nesse caso, aquele grupo de bêbados conseguiu vingar-se do desafeto por
J algum motivo. A questão é que o agredido sobreviveu e submeteu todos os seus
agressores a mais brutal submissão. Todos foram imediatamente presos e postos
A aos cuidados de Neutel Maia, que pôde usar de toda a violência que tinha a seu
alcance. Chancelado pelos seus pares, Neutel Maia executou a perfeição seus
L domínios paternalistas para com aqueles adversários, os colocando sob as mais
perversas penas na carceragem da cidade.

Mas o uso dessa violência senhorial era dirigida somente aos membros
L
menos destacados da sociedade. Os agressores de Neutel Maia não eram grandes
funcionários, políticos e nem possuíam alguma empresa de porte na região, logo,
A poderiam ser submetidos de imediato às mais variadas formas de violência em
uma masmorra de Rio Branco. Mas esse poder total tinha seus limites quando
os adversários se equivaliam. Podemos ver esse limite na querela em que Neutel
Maia se envolveu contra o primeiro governador do Território Federal do Acre,
Epaminondas Jácome em 1921.
• Jácome chegou ao Acre no bojo de uma das muitas escaramuças
210 guerrilheiras montadas pelos seringalistas contra os bolivianos em 1900. Ele
• seguia o líder Rodrigo de Carvalho, que comandava a Expedição dos Poetas. Essa
expedição nada mais era do que um apanhado de jovens literatos ricos e intelectuais
de Manaus, que tentaram expulsar os bolivianos do Acre. Depois da incorporação
do território ao Brasil, Jácome assumiu vários cargos políticos (RIBEIRO, 2008, p.
87).
2 Logo que o Acre é incorporado ao Brasil, a região passa a ser administrada
por três prefeituras departamentais distintas, que respondiam diretamente ao
governo federal. Em 1920 o território é enfim unificado a partir de uma única
0
capital, Rio Branco, e até 1962 todos os seus governadores eram nomeados pelo
presidente da república. Epaminondas Jácome foi o primeiro desses governadores
1 territoriais (COSTA, 1998, p. 206-207).
Essa nomeação já demonstra que esse político regional tinha uma grande
8 influência não só no Acre, mas no Palácio do Catete, tendo em vista que foi o
primeiro governador escolhido pelo governo federal. Logo que assumiu o cargo
Jácome enfrentou uma grande calamidade, pois no inverno daquele ano o rio Acre
passou por uma grande cheia.
Rio Branco foi literalmente invadida pelas águas e o governo federal
enviou para o território uma grande soma de recursos, que deveriam ser usados
para o socorro dos flagelados. O conflito entre Neutel Maia e o governador começa
nesse ponto.
Em agosto de 1921 Epaminondas Jácome entrou com um processo
exigindo que Neutel Maia prestasse explicações e pedisse desculpas públicas,
pois o mesmo estava lhe lançando acusações em diversos pontos da cidade de Rio
Branco. Segundo o então governador, Neutel Maia lhe acusou de ter construído
um edifício público para atender crianças e não os mendigos atingidos pela cheia
(Processo n. 0808 de 1921. Petição inicial).
Jácome justifica-se ainda informando que os recursos do governo federal
foram usados para a construção de uma escola, entendendo que assim poderia
J prestar socorro aos flagelados da cheia oferecendo estudo a seus filhos e não
apenas entregando alimentos ou construindo abrigos. Segundo ele as acusações
A de Neutel Maia eram levianas, porque não desviou o destino da verba pública de
seus objetivos de socorro aos flagelados (Processo n. 0808 de 1921. Petição inicial).
L Poucos dias após o processo ter sido aberto, Neutel Maia é chamado a
depor sobre o caso. O comerciante declara então ter sessenta e dois anos, ser casado,
sabendo ler e escrever, morar em Rio Branco e possuir diversos empreendimentos
L
no território. Após, disse que em momento algum instigou os sócios da União
Operária de Rio Branco para que prestassem declarações contra o governador no
A jornal A Capital. Informou ainda que não pode ser culpado por ter incitado esses
trabalhadores nas manifestações que montaram na praça central de Rio Branco
(Processo n. 0808, Depoimento de Neutel Newton Maia).
Depois tratou de acusar o presidente da União Operária de ser um
verdadeiro mentiroso, porque fazia tais acusações sobre sua pessoa. Para Neutel
• Maia esse presidente, o senhor Rochelano Brigido, era uma pessoa inculta e
211 incapaz de dirigir partidos. Perguntado sobre as acusações com relação às obras
• do governador, disse que
efetivamente censurou o governador, publicamente pelo facto delle mandar
construir o grupo escolar com dinheiro que o governo da república concedeu
para os socorros dos flagelados desta região; que não é injusta esta censura
porque com a construção do grupo escolar, elle não socorreu nenhum in-
digente que andam morrendo de fome pelas ruas e nos seringais (Processo
2 0808, Depoimento de Neutel Newton Maia).
Neutel Maia censura Epaminondas Jácome também pelos custos da
0 referida obra, porque permitiu que o chefe de seu gabinete, o senhor Freire de
Carvalho, recebesse por fora pela construção, destinando a chefia da mesma ao
1 senhor João Batista de Aguiar, um homem sem escrúpulo algum.
Afirmou que percebeu a falta de escrúpulos de João Batista quando este
8 procurou a N & Maia há alguns meses para pedir um empréstimo. Desde então não
havia pagado nenhuma parcela, mas logo após o início da construção do grupo,
o devedor compareceu na sede de sua empresa exibindo doze contos em mãos,
quitando todas as suas dívidas.
A partir daí Neutel Maia diz que passou a considerar o governador um
homem vacilante, porque há mais de trinta anos o conhece, tendo por ele um afeto de
irmão e não poderia acreditar que seu governo tomaria o rumo da corrupção. Neutel
Maia encerra seu depoimento ao informar que investigou como se deu o desvio das
verbas destinadas aos flagelados, chegando a seguinte conclusão: a construção do
grupo escolar foi avaliada em cinquenta contos de réis, pagos a empresa Castro e
Pinto que teria dado cinco contos ao chefe do gabinete do governador como propina
(Processo 0808, Depoimento de Neutel Newton Maia).
Ou seja, temos aí uma calamidade pública, a enchente do rio Acre em
1920. A calamidade pública foi usada para captação de recursos junto ao governo
federal. Os recursos eram destinados ao socorro dos flagelados, mas foi usado
para a construção de uma escola. Neutel Maia, que conhecia o governador há
mais de trinta anos o denuncia por fraudes na destinação da verba pública, acusa
J seu gabinete de roubo e põe em dúvida a capacidade administrativa de seu velho
amigo, que considera um irmão. Epaminondas Jácome sentindo-se agredido pelas
A acusações solicita em juízo explicações de Neutel Maia e um pedido público de
desculpas.
L O que se percebe nesse caso é que Neutel Maia se sentiu preterido na
escolha que o governador fez de uma empresa que não era a sua. As acusações que
dirigiu ao governo podem ser mera retórica para esconderem seu descontentamento,
L
tendo em vista que procurou saber quanto à obra valia como se deram as transações
de desvio e favorecimento da firma Castro e Pinto.
A A emergência do conflito entre esses dois agentes da elite regional
evidenciam as relações que havia entre empresas concorrentes pelo acesso às
verbas públicas. O governo do território era um meio de captação de verbas e um
mediador na distribuição desses recursos, favorecendo aliados e compadres. Ao
que parece o gabinete de Epaminondas Jácome não sabia negociar barganhas tão
• bem nesse papel.
212 Ao favorecer uma empresa, Epaminondas Jácome preteria outras, nesse
• caso a N & Maia e Companhia. O problema é que essa empresa era uma firma
grande e tinha influência no cenário social regional, logo seu proprietário tratou de
confrontar diretamente o governador e sua política de troca de favores. O resultado
dessa contenda pode ser visto no que sucedeu dentro da última audiência sobre o
caso.
2 Após o depoimento de Neutel Maia o juiz José Coelho Pereira Leite
marcou uma audiência entre as partes interessadas no processo. O juiz começou a
0 audiência perguntando a Neutel Maia o que achava do governador. Maia respondeu
que o considerava um amigo, irmão até, tendo por ele o melhor conceito possível.

Sobre o caso só reiterava que a verba era destinada aos flagelados, mas que o
1 governador não desviou os recursos da obra e nem recebeu propina (Processo n.
0808, Termo de audiência).
8 A seguir o juiz arguiu o governador se ele teria algo a responder a
Neutel Maia. Epaminondas Jácome limitou-se a dizer que aquilo tudo era um mal
entendido, que se sentia satisfeito com o processo e pediu arquivamento da peça.
O processo foi encerrado e totalmente arquivado em 1926 (Processo n. 0808, Termo
de arquivamento em 14 de maio).
Ao serem confrontados Epaminondas Jácome conseguiu o que queria
desde o início, que Neutel Maia lhe desse explicações em juízo. Nesse conflito de
posições, temos dois grandes coronéis de barranco se confrontando. O resultado da
querela? Pode-se dizer que houve um empate técnico. Ambas as partes eram fortes
demais, tinham grande influência na política regional, portanto não poderiam
adentrar em uma briga fratricida, tendo em vista que poderiam perder suas bases
de sustentação.
O que vemos nesse caso é que o exercício do poder paternalista desses
coronéis de barranco do Acre tinha seus limites, que eram colocados pela posição
hierárquica de seus adversários. Se um coronel fosse confrontado por um agente
social oriundo de uma camada social menos influente e rica, ele poderia exercer
J seus domínios quase que irrestritamente, mas se o adversário possuísse um poder
equivalente, a margem de conflito entre as partes era mínima. No caso de Neutel
A Maia e Epaminondas Jácome o resultado da contenda ficou somente no controle do
capital simbólico, tendo em vista que Neutel Maia teve apenas que se explicar em
L juízo sobre as acusações que fez.
O que essa querela demonstra também é o uso do Estado no Acre para os
benefícios privados da elite, o que também está vinculado à extensão dos domínios
L
que os coronéis de barranco tinham dentro das instituições públicas. Na crônica
regional, Epaminondas Jácome sempre foi considerado um político corrupto e seu
A gabinete um exemplo de como os coronéis de barranco usavam a maquina pública
para benefícios pessoais.
Océlio de Medeiros, que chegou a ser contemporâneo de Epaminondas
Jácome, registrou certa vez que o gabinete do ex-governador era repleto de ladrões
do erário público, sendo o mais destacado de todos o senhor João Batista de Aguiar.
• Segundo esse autor Jácome teria construído alguns campos de pouso no Vale do
213 Rio Acre, para usá-los no tráfico de entorpecentes e produtos ilícitos através da
• fronteira do Brasil com a da Bolívia, chegando a contratar o aviador João Donato
para executar essa tarefa (MEDEIROS, 1990, p. 12 e segs).
Há inclusive um paralelo entre as acusações de Neutel Maia com
as de Medeiros, tendo em vista que o cronista também se refere aos desvios de
verba pública na construção de uma escola em Rio Branco pela administração
2 de Epaminondas Jácome. Océlio de Medeiros e Neutel Maia acusam as mesmas
pessoas inclusive (MEDEIROS, 1990, p. 12 e segs). Para além do exercício de poder
dos coronéis de barranco, podemos dizer que o Acre do início do século XX era uma
0
região onde o Estado estava a serviço das elites regionais e pelo que se percebe esse
beneficiamento parecia não ter limites.
1
Negociando na era Vargas

Com o advento da ditadura Vargas na década de 1930, a N & Maia se
8
transforma em mediadora privilegiada junto ao regime, negociando uma posição de
articuladora local. A empresa atinge nesse momento uma posição de destaque ao
se colocar no Acre como porta voz de Getúlio Vargas. Pode-se dizer que a empresa
chega nesse momento seu ápice político, tendo em vista que desde a crise da
borracha ao longo das décadas de 1910 e 1920 ela já era a maior e mais influente
firma econômica de todo o Acre.
Nesse período nota-se que Neutel Maia sai cada vez mais de cena na
gerência da empresa. Em seu lugar desponta cada vez mais a figura de Guilhermino
Bastos, que era bem mais novo que seu sócio.
Guilhermino Bastos assume a direção da Legião Autonomista, única
agremiação partidária autorizada a funcionar no Acre por Getúlio Vargas. Em
1933 Bastos e Mario de Oliveira enviam ao palácio do catete uma comunicação
agradecendo o presidente por essa autorização, dizendo ainda que todo o Acre
encontra-se pacificado e apoiando o novo governo federal. O texto dessa missiva
diz ainda que a Legião é apoiadora do regime e dava vivas ao período revolucionário
por que estava passando o Brasil (Telegrama urgente ao gabinete da presidência.
J Assis Vasconcellos, Palácio do Catete. 28 de janeiro de 1933. Arquivo Nacional).
A Legião Autonomista surge a partir do início de 1933 com aspirações de
A modificar gradativamente a economia do território, para que região fosse cada vez
mais autônoma e a partir de então pudesse ser transformado em estado federado
L como os outros do país.
Além desse objetivo a Legião se colocava como defensora dos ideais
da família brasileira, da civilização e das classes laboriosas do Acre. A luta pela
L
autonomia acreana estaria no germe da incorporação do Acre ao Brasil, pois a alma
do acreano, segundo os lideres da agremiação, motivou uma luta contra os domínios
A bolivianos em prol da nação brasileira (Telegrama ao gabinete da presidência. Flávio
Batista et all. 25 de maio de 1934. Arquivo Nacional).
O que o aparecimento da Legião Autonomista demonstra é que no Acre o
governo de Getúlio Vargas teria que negociar com determinados membros da elite
regional. Naquela região do país o poder de Vargas não poderia ser exercido sem
• essa mediação, tendo em vista que o Acre era distante demais e sua política poderia
214 ser enfraquecida.
• Desde a incorporação do Acre ao Brasil, as elites locais não se deram
ao luxo de poder gerir, na chamada República Velha, o processo de escolha de
seus representantes políticos. Não havia eleições para prefeitos departamentais ou
governadores do território, porque o presidente da república era quem nomeava
todos esses cargos, ou seja, desde há muito as elites regionais acreanas tiveram
2 que lidar com as negociações onde a imposição de um filtro centralizador era
preponderante, no caso as escolhas do Palácio do Catete.
0 As elites locais sabiam lidar com a política varguista, mais centralizadora
que a dos seus antecessores, somente trouxe alguns poucos ingredientes nas

lógicas de negociação que já vinham sendo feitas entre as elites do Acre com o
1 poder central. Essa normalidade com o trato do centralismo político, porém, não
era comum para outras regiões do Brasil. Na explicação de Daniel Aarão Reis, o
8 país viu surgir a partir de 1930 um acelerado processo de centralização do poder
que
pôs em questão o domínio da cultura política elaborada pelas oligarquias
tradicionais, até então hegemônicas. Elas tiveram que se adaptar e o país
todo teve que se readaptar e se redefinir, modificando as estruturas políti-
cas, sociais, culturais, reestruturando-as em virtude do fenômeno da mo-
dernização e da urbanização acelerada da sociedade (REIS, 2007, p. 90).

O autor diz ainda que o projeto de nação que emerge a partir de 1930 se
contrapõe a antiga lógica da republica dos governadores, passando a evidenciar
um tratamento diferenciado de favorecimento para com os grandes investidores
industriais (REIS, 2007, p. 94).
Como o Acre era ligado administrativamente à presidência da república
desde sua incorporação ao Brasil, essa elite política regional sempre teve que
lidar com as negociações junto a um poder central. Mesmo com as modificações
verificadas ao longo de 1930, essa elite não viu surgir nem no âmbito do território
nem no da região Amazônica a presença dos industriais.
J O vale do Acre permaneceu, portanto, uma região marginal, precária e
dependente do governo federal e seus projetos nacionais. A centralização operada
A pelo governo Vargas significou para as outras elites do país certa interdição junto
ao governo federal. Como o Acre era um Território Federal, ou seja, a rigor uma
L zona de ocupação militar, as elites já tinham manejo calejado com o centralismo
desde 1903.
L O grande diferencial foi que a partir de Getúlio Vargas o governo central
passou a vigiar mais de perto seus administradores no longínquo Território do
Acre, elegendo como seu mediador na região a Legião Autonomista, que é investida
A de poderes especiais, maiores até do que os governadores nomeados pelo Palácio
do Catete. A questão era tentar controlar a independência dessa elite e dos
governadores/interventores nomeados pelo gabinete da presidência.
Nesse caso é exemplar quando o gabinete do Palácio do Catete envia a
Legião um pedido de informações a respeito do juiz federal José Moreira Brandão

Castelo Branco Sobrinho em agosto de 1934. Ao receber a comunicação Guilhermino
215 Bastos e outros dez comerciantes respondem imediatamente dizendo que Castelo
• Branco goza de apoio irrestrito de todas as classes sociais, sendo ele um homem
justiceiro, integro e honrado (Telegrama ao gabinete da presidência. Guilhermino
Bastos et all. Agosto de 1934. Arquivo Nacional).
A força da Legião é tão considerável que em março de 1935 eles constituem
uma malta de opositores ao interventor João Felipe Sabóia Ribeiro e atacam sua
2 residência, exigindo que fosse embora do Acre. Através de um depoimento da
esposa do então interventor, dona Ana Damasceno, fica-se sabendo como foi a
0 cena e qual a extensão do poder da Legião (Telegrama ao gabinete da presidência.
Ana Damasceno. 16 de março de 1935. Arquivo Nacional ).

1 Damasceno diz que no dia quinze o Procurador da República, Mario
de Oliveira, o comerciante Guilhermino Bastos, o juiz federal Severino Souza

procuraram ainda de madrugada a delegacia de polícia, saindo de lá com uma
8 malta de capangas com mais de quinze homens. Segundo o relato bradavam em
urros que o interventor era um traidor e deveria deixar o Acre. Saindo da delegacia,
a malta rumou para a casa do desembargador Jayme Mendonça, que foi espancado
até quase a morte.
De lá o grupo trouxe o desembargador desacordado, arrastando-o pelas
ruas até chegarem à frente da casa de Sabóia Ribeiro. Nesse momento o senhor
Flaviano Flávio Batista começou a incitar os presentes a invadir a residência, mas
dona Ana Damasceno e outras mulheres conseguiram impedir a invasão. O grupo
se dispersou e somente aí se conseguiu ajudar no socorro do desembargador, que
foi deixado no chão.
Na manhã seguinte Ana Damasceno descreveu a cena em um telegrama e
o enviou ao gabinete da presidência. Após a descrição ela solicitou, “por obsequio”,
providências e segurança aos lares acreanos, denunciando os atos da Legião
Autonomista e a malta de capangas por eles liderados (Telegrama ao gabinete da
presidência. Ana Damasceno. 16 de março de 1935. Arquivo Nacional).
J Pouco tempo depois os diretores da Legião, Guilhermino Bastos e o
ex-governador do território, Cunha Vasconcelos, enviaram uma comunicação
A ao presidente prestando esclarecimento sobre o ocorrido. Dizem que a esposa
do interventor inventou notícias sem fundamento a respeito da Legião, porque
L tanto ela quanto seu esposo estavam se filiando a pessoas contrarias ao regime
revolucionário. A seguir assumem que atacaram o interventor, mas minimizam as
violências informando que a dona Ana Damasceno procurou jogar com as palavras
L
para aumentar o teor do ataque. Concluem dizendo que a Legião procurou somente
advertir o interventor sobre suas alianças (Telegrama ao gabinete da presidência.
A Guilhermino Bastos e Cunha Vasconcellos. 19 de março de 1935. Arquivo Nacional).
De todo modo Saboia Ribeiro foi deposto do cargo um mês depois,
sendo convocado a prestar esclarecimentos sobre o ocorrido no Palácio do Catete.
Interinamente foi substituído por Manoel Martiniano Prado (Telegrama ao gabinete
da presidência. Guilhermino Bastos e Flávio Batista. 21 de fevereiro de 1937.
• Arquivo Nacional ).
216 Todo esse processo de ataque ao interventor em 1935 é uma evidência
• de que a Legião se portava no Acre como o braço de vigilância de Getúlio Vargas.
Alguns integrantes da agremiação ocupavam cargos de destaque no governo federal,
como Mario de Oliveira que era Procurador da República. Investidos desses direitos
especiais, Guilhermino Bastos e seus aliados atingiam o ápice de seus poderes
locais, conseguindo impor inclusive suas vontades aos políticos nomeados pelo
2 próprio presidente Getúlio Vargas.
Esse papel conferia aos membros da Legião certa independência perante
0 o governo central, porque poderiam agir como vigilantes dos governadores/
interventores do território. Essa independência relativa pode ser demonstrada

quando o gabinete da presidência procura a Legião, logo após a retirada de
1 Martiniano Prado do cargo, para que indique um nome para administrar o Acre.

A resposta da Legião diz que naquele momento seus sócios não indicariam
8 nenhum nome ao presidente, porque procuravam se manter neutros e defensores dos
ideais revolucionários em vigor no Brasil. O documento assinado por Guilhermino
Bastos e Flávio Batista encerra dizendo que
Diante do pedido de demissão do interventor Martiniano Prado, os abaixo
assinados, interpretes das famílias acreanas, classes liberais, conservado-
res, comparecem diante do presidente para indicar a nomeação para o cargo
alguém alheio a competição eleitoral do território, senão serão reproduzidos
os tristes acontecimentos desenrolados no governo interino de João Felipe
Saboia Ribeiro (Telegrama ao gabinete da presidência. Guilhermino Bastos
e Flávio Batista. 21 de fevereiro de 1937. Arquivo Nacional).
Procurando não indicar nomes, mas apenas uma diretriz de que o novo
interventor fosse alguém alheio aos interesses das elites locais, os interlocutores da
Legião davam a entender ao governo central que gostariam de continuar no papel
de vigilantes autorizados da administração territorial. Exigindo que o interventor
fosse um personagem neutro, a Legião mandava um recado de que gostaria que o
governo ficasse de fora dos seus assuntos.
A tarefa de vigilância pode ser verificada em mais um caso, envolvendo o
J substituto de Martiniano Prado, Epaminondas Martins. A Legião em um primeiro
momento apoia o novo interventor, mas logo que esse começa a administrar o Acre
A sem negociar a nomeação de cargos junto com a agremiação, a oposição começa a
aflorar.
L Após alguns meses de iniciado o governo, a Legião Autonomista faz uma
reunião e envia uma carta conjunta, em que informa ao gabinete da presidência
as ações do interventor, que apesar dos bons trabalhos têm persistido para com a
L
prática de afastar o apoio popular ao governo. Na carta a agremiação afirma que o
governador agiu indevidamente ao nomear um analfabeto como juiz municipal, o
A senhor Zacarias Abreu.
Abreu foi nomeado para juiz da vila de Mâncio Lima, mas segundo a direção
da Legião o mesmo não sabe ler nem escrever. No vale do Juruá Abreu é conhecido
por sua falta de compostura e tem o apelido de Mucuim, por andar sempre sujo
e mal vestido. A Legião informava que agindo dessa forma, o interventor colocaria
• em risco a legitimidade do governo revolucionário em todo o Acre (Telegrama ao
217 gabinete da presidência. Legião Autonomista Acreana. 8 de setembro de 1937.
• Arquivo Nacional ).
No início de outubro o interventor é chamado às pressas ao Rio de
Janeiro para responder um inquérito sobre suas atividades no Acre. A Legião
congratula o presidente pala ação em reprimir os excessos de Martins, informando
que os acreanos esperam confiantes que o presidente restituirá a tranquilidade e
2 segurança da região (Telegrama ao gabinete da presidência. Diretório Central da
Legião Autonomista. 4 de outubro de 1937).
0 Especificamente no Acre a ditadura de Getúlio Vargas tinha que manter
uma interlocução com uma determinada parcela da elite regional. Nesse cenário

onde o poder central negociava com seus aliados na região, Guilhermino Bastos
1 aparece como um dos protagonistas, exercendo cargos na direção da Legião
Autonomista. Pode-se concluir daí que a empresa onde era um dos associados
8 possuía uma posição política privilegiada ao longo da década de 1930, atingindo,
junto com seus aliados, o ápice do exercício de seu poder político.

A articulação que propomos ao longo dessa breve exposição é como a
lógica paternalista foi executada por membros de uma determinada elite local.
Os contextos gerais, determinantes, são eles próprios determinados por filtros
conscientemente colocados por indivíduos em suas relações sociais. Nos casos aqui
demonstrados as práticas sociais de coerção e submissão são mediadas sempre
por problemas cotidianos onde as pessoas se defrontam com outras em diversos
níveis, onde umas têm mais poderes que outras, alguns se equivalem e certas forças
externas devem passar pelo crivo local. Esse movimento inspira-se teoricamente
nas proposições expostas em O queijo e os vermes, sobretudo no rastreio que há
entre uma cultura de um tempo e as interações que a produz (GINZBURG, 1987,
p. 12).
Considerações finais
Retomando alguns pontos, fica claro que o exercício de poder dos
seringalistas na cidade de Rio Branco era pautado pelo uso da violência seja
J ela direta, como nos casos envolvendo o espancamento de Neutel Maia e Jayme
Mendonça, ou subliminar. O confronto entre o próprio Neutel Maia e o então
A governador Epaminondas Jácome trata dos conflitos que ficavam nas entrelinhas,
expondo inclusive desvios de verba pública e tráficos de influência. Os casos da Era
L Vargas lançam uma luz no que diz respeito ao alcance que o poder dos seringalistas
atingiu naqueles anos, fazendo com que o regime negociasse nas terras acreanas
L com esse grupo.
Como observado brevemente, tais atividades são parte essencial de um
processo histórico de constituição de uma rede hegemônica das elites regionais
A
dessa parte do Brasil, que se conectavam a outras e lançaram bases para que seus
herdeiros pudessem atuar até a contemporaneidade. Longe de verificarmos o fim
dos coronéis, o desenrolar do período republicano brasileiro viu fortalecer os laços
entre aqueles que ocupam o poder central com os que estão nas várias regiões do
país.

218
Referências
CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão con-
• ceitual. In: Revista Dados, Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 40, n. 2,
1997, pp, 229-250.
________________________. As metamorfoses do coronel. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro.
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CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis historiador. São Paulo: Companhia das Letras,
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1 pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
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RIBEIRO, Napoleão. O Acre e seus heróis. Brasília: Senado Federal, 2008.
Fontes.
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1910. Petição inicial.
Arquivo Histórico do Tribunal de Justiça do Acre. Processo n. 0808 de 1921. Agosto de
1921. Petição Inicial.
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de janeiro de 1933. Arquivo Nacional.
Telegrama ao gabinete da presidência. Flávio Batista et all. 25 de maio de 1934. Arquivo
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Telegrama ao gabinete da presidência. Guilhermino Bastos et all. Agosto de 1934. Arquivo
Nacional.
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Nacional.
J Telegrama ao gabinete da presidência. Guilhermino Bastos e Cunha Vasconcellos. 19 de
março de 1935. Arquivo Nacional.
A Telegrama ao gabinete da presidência. Guilhermino Bastos e Flávio Batista. 21 de fevereiro
de 1937. Arquivo Nacional.
L Telegrama ao gabinete da presidência. Legião Autonomista Acreana. 8 de setembro de
1937. Arquivo Nacional.

Telegrama ao gabinete da presidência. Diretório Central da Legião Autonomista. 4 de ou-
L
tubro de 1937. Arquivo Nacional.

A


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J

A

L ÁFRICA E DIÁSPORA: LEITOR, LEITURA, FORMAÇÃO DO LEITOR
E INTELECTUALIDADE FEMININA NA LITERATURA
L
Denilson Lima Santos (UNILAB)
A RESUMO:A literatura permite estabelecer diálogos múltiplos. Nesse contexto,
apresenta-se as autoras Isabel Ferreira (Angola), Conceição Evaristo (Brasil),
Amalia Lú Posso Figueroa (Colômbia) e MaríaNsuéAngüe (Guiné Equatorial) como
exemplos de mulheres escritoras que elaboram narrativas em que se pode observar
e refletir sobre três categorias, a saber, o leitor, a leitura e a formação do leitor, no
• processo criativo textual e no espaço da intelectualidade feminina africana e afro-
latino-americana. Para isso, lança-se mão da literatura comparada como método
220
de investigação com o objetivo de compreender o texto em uma perspectiva ampla
• e capaz de formar outras epistemologias e estéticas. Faz-se necessário entender
e visibilizar outras vozes e letras no cenário da arte escrita. Por esta razão, as
narrativas destas autoras podem ser consideradas como mote para perceber e
dialogar sobre o papel da mulher no processo de criação das estruturas e formas
literárias na contemporaneidade. Assim, podemos dizer que as escritoras se inserem
2 na discussão da tradição da palavra prenhe de saberes africanos e diaspóricos
presentes nos contos e romances.
0 Palavras-chave: Leitor. Leitura. Formação do leitor. Intelectualidade feminina.
Narrativa
1 Introdução
Narrar é viver, talvez é possível entender a sobrevivência e a permanência
8 de Sherazade em “Mil e uma noites”. A mulher que narra, conta eressignifica as
tramas da vida. É sob a perspectiva de uma prosa elaborada por mulheres que
nessas linhas se refletirá sobre a leitura, o leitor e sua formação, bem como o
processo de construção da intelectualidade feminina afrodiaspórica – tal expressão
será utilizada para delimitar o continente africano e o outros países, sobretudo,
os da América Latina onde estão presentes os descendentes dos africanos, que
sequestrados em seus territórios, foram trazidos na condição de escravo para essas
terras.
Para entender as tramas do processo entre narrar e as estratégias
de leituras, abarcando a formação e o papel do leitor, pretende-se fazer uma
aproximaçãode África e da Diáspora. Do outro lado do Atlântico dialoga-se nesse
ensaio comMaríaNsuéAngüe, da Guiné Equatorial e com Isabel Ferreira, de Angola.
Desse lado das Américas, a conversa se dá com Conceição Evaristo,do Brasil e com
Amalia Lú Posso Figueroa, da Colômbia. Essas quatros mulheres e em especial
suas obras, na respectiva ordem,Ekomo (1995 [2007]), O Guardador de Memórias
(2007), Becos da Memória (2006) e Veave mis nanas negras (2001[2011]) serão
analisadas a partir da perspectiva da construção do narrador e das personagens.
J Para traçar um percurso comparativo, lançamos mão do conceito de narrador
exposto por Walter Benjamim (1993) e Silviano Santiago (2002).Além de refletir
sobre a tríade autor-texto-leitor de Cândido (2006).
A
Pensar a narrativa afro-diaspórica é pensar na tradição literária a partir
L da tríade autor-texto-leitor mais além das raias da escrita. Muito além da letra,
resguarda um repositório de memórias e saberes. Especificamos esses saberes

aqui como corpus, isto é, “a complexidade [da] textualidade oral e oralitura da
L memória, os rizomas ágrafos africanos inseminaram o corpus simbólico europeu
e engravidaram as terras das Américas” (Martins, 1997, p.25). Não tratamos de
A oralidade impressa no papel, mas na oralitura que transcende o texto africano e
afro-latino-americano.
Outro ponto importante é o narrador e aqui será pensado a partir das
indagações sugeridas por Santiago (2002): “Quem narra uma história é quem a
experimenta, ou quem a vê? Ou seja: é aquele que narra ações a partir da experiência
• que tem delas, ou é aquele que narra ações a partir de um conhecimento que
221 passou a ter delas por tê-las observado em outro?” (p. 44). Nesse percurso, pensa-
sena narração como relatar uma experiência ou como a observação configurada

na transcendência da palavra. É estar no papel de autor e leitor e estabelecer um
vínculo de cumplicidade com quem ouve.Pode-se pensar aqui o narrador como
mediador.
O ato de narrar, ou melhor, a figura do narrador se dilata em dois grupos:
2 o que viaja e tem o que contar e aquele que conhece suas tradições. Como assevera
Benjamin (1994), “quem viaja tem muito que contar’, diz o povo, e com isso imagina
o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o
0 homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas
histórias e tradições” (p.198). É nesse segundo grupo de narrador que dialogaremos
1 com as categorias de leitor e sua formação por meio das histórias e tradições afro-
diaspóricas. Para isso pensa-se o narrador como formador de leitor. Como aquele
8 que fará a leitura da tradição e ao mesmo tempo promove a formação crítica de
quem ouve as histórias. Nesse contexto, reflete-se também sobre o processo de
formação intelectual das personagens no aspecto da narração e da leitura das
tradições.
Narrar tradições e formar leitores
Na perspectiva de narrar e ao mesmo tempo formar leitores, isto é,
dialogar com as tradições, observa-se na obra de Isabel Ferreira, O guardador de
memórias, as figurações de mulheres que questionam a cultura e tradição de uma
Luanda moderna, porém calcada no patriarcalismo. Talvez seja por essa trama que
a narradora, no início do livro, se apresenta a partir de uma roupagem dramática
e crítica.
Estendida na cama à espera que chegue o meu hoje!
Bem no escuro da noite me ponho a pensar. Me ponho a rogar e praguejar.
A falar sozinha. A sussurrar. A reclamar com todo mundo. Sinto um quê de
revolta interior...
Nesta hora... Hum!
J Amaldiçoo tudo. Tudo me incomoda. Abro os olho e tu não está.
Estou presa ao amor de verdade. Todos os dias acordo e tu não estás.
A Sinto o meu corpo morno, e o meu desejo a esquentar nas veias. Passo a
mão no teu lado... não estás!

L A música toca
Um assobio meu é para esquecer o que não posso falar!

O coro musical me faz despertar a memória dos afectos que ainda vive em
L mim.
Estou cidrada a ouvir! Mas ... De repente...
A — Para! Não quero ouvir não quero ouvir ! Nunca dantes tinha sentido tre-
mendo pesar musical. Suspenso a ira. Balbucio uma asneira. Finjo um riso
como nos teatros. Sinto dentro de mim um certo incômodo.
Amo! Amo! Amo muito. Um amor que me consome as vísceras...Incomoda
mesmo é amar tanto! Amar... Amar... Amar...
• Amar é amar... amar a pessoa. Amar a cidade! Amo a minha cidade. Passo
todo ano na minha cidade. Não troco por nenhuma do mundo.
222
Ela tem ... Tem tudo! Tem tudo para alguns e nada para os zés-ninguéns.
• Por vezes é uma cidade vivendo do imaginário, do faz de conta que é, e não é
(FERREIRA, 2008, p.50).

Percebe-se na voz da narradora o incômodo de falar de uma cidade


que é algo, porém ao mesmo tempo pode ser nada. É possível que essa maneira
2 angustiada de ver a cidade seja a materialização da cidade diversa, como é Luanda.
Como afirma Tânia Macedo (2008), “a particularidade africana de Luanda permite
defini-la como multiplicidade, na medida em que ela seria, na realidade, a junção
0 de três cidades distintas” (p. 13). Pode-se dizer que são três nuances da cidade
capital de Angola: a antiga cidade colonial, o musseque (correspondente as nossas
1 favelas) e o subúrbio de luxo. Com essa formação, Luanda é símbolo de Angola,
diversa, musical e contraditória. É nesse contexto que a narradora de O guardador
8 de memórias construirá sua narração e apresentação das personagens que estão
rodeadas que conflitos e questionamentos.
Nesse sentido, o leitor é levado pelo prazer do texto. Por meio da descrição,
ou melhor, da palavra que tange a tradição essa aqui concebida em consonância com
Laura Cavalcanti Padilha (2007), que a partir do pensamento de Gerd Bornheim,
ao afirmar que a tradição é a compreensão do
‘conjunto dos valores dentro dos quais estamos estabelecidos’, valores estes
que, pelo dito ou escrito, passam de geração em geração. Assim ela adquire
um ‘caráter de permanência’, fazendo-se ‘princípio de determinação’. Nesse
sentido, o significante ajusta-se aos propósitos da leitura, que quer surpre-
ender alguns desses ‘vínculos de permanência’, bem como algumas de suas
formas de transmissão nos texto ficcionais angolanos do século XX (2007,
p. 21)

Assim, a narradora de O guardador de memórias lança mão dos


significantes, ajustando-os aos propósitos da leitura, nesse contexto, de uma
cidade complexa. Dessa forma, dizemos que o texto de Isabel Ferreira propõe um
leitor que ressignifique a tradição a partir da transmissão do narrador, ou seja, a
J mediação crítica daquele que conta a história.
Em correlação com a obra citada anteriormente, pode-se observar
A também no livro Becos da memória, de Conceição Evaristo,nas teias da narrativa,
a multiplicidade de vozes e os propósitos de leitura reordenados a partir dos
L significantes expressos na narração: “homens, mulheres, crianças que se amontoam
dentro de mim, como amontoados eram os barracos de minha favela” (2006,
p.21). Em cada personagem, encontra-se as linhas que bordam e costuram os
L
vínculos de permanência das tradições. Especificamente em Evaristo, a narração
se estabelece por meio da escrevivência (MACHADO, 2014), isto é, o narrador é
A aquele que participa de todo o aspecto da existência. No caso da narrativa de Becos
da Memória, o leitor está em contato com o cotidiano da população negra e no
contrafluxo da exclusão socioeconômica, a resistência circunscreve nas palavras e
nos afetos, mediada pela voz narrativa. Assim, o significante favela, por exemplo,
dilata o significado, como nos apresenta a narradora:
• Bondade conhecia todas as miséria e grandezas da favela. Ele sabia que há
223 pobres que são capazes de dividir, de dar o pouco que têm e que há pobres
mais egoístas em suas misérias do que os ricos na fatura deles. Ele conhecia
• cada barraco, cada habitante. Com jeito, ele acabava entrando no coração
de todos. E quando se dava fé, já se tinha contado tudo ao Bondade. Era
impressionante como, sem perguntar nada, ele acabava participando do se-
gredo de todos. Era um homem pequeno, quase miúdo, não ocupava muito
espaço. Daí, talvez, a sua capacidade de estar em todos os lugares. Bondade
ganhou o apelido que merecia (EVARISTO, 2006, p.38).
2
Percebe-se, no exceto acima, a palavra como ressignificação simbólica
0 dos atributos da empatia e afetividade. De fato, o leitor aqui é parte da relação
dialógica do texto, isto é, o discurso do narrador, neste caso chama-se “eu” e se
relaciona com o discurso do“outro” (BAKHTIN, 1999). A personagem Bondadepode
1
ser lida como a alteridade no espaço-favela. Do mesmo modo, a narradora invade,
recria e apresenta ao leitor a narrativa do cotidiano, das reminiscências e de outras
8 infindáveis experiências do povo marginalizado.
A partir do exposto anteriormente, o leitor da tradição afro-diaspórica
das obras aqui analisadas, participa do processo de criação intelectual que as
narradoras apresentam e constroem nas tessituras das histórias. As personagens
e narradoras são elementos das fotografias da tradição oral (HAMPATÉ BÂ, 1980,
p.167) na escrita em que mulheres e homens se reconstroem e ressignificam as
tradições.
Negras, belas e intelectuais: o lugar das personagens
Pensar o processo de formação intelectual requer, muitas vezes,
posicionar-se no lugar ocidental deste conceito. No entanto, ainda que as autoras
aqui analisadas se insiram no espaço da grafia ocidental, requer, neste ensaio,
estabelecer o conceito de intelectualidade como aquela que recupera as tradições
a partir dos aspectos estéticos e políticos (SANTOS, 2015, p. 15). Assim, além
dos aspectos leitor e leitura, as duas obras que se apresenta a seguir – Ekomo e
Vean, vé, mis nanas negras – dialogam com O Guardador de memórias e Becos
da memória não só no processo de significância da tradição, mas no que se pode
J observar como o papel das personagens no processo de construção intelectual por
meio da narrativa.
A Em Ekomo, da guineense-equatoriana MaríaNsuéAngue, a narradora
e protagonista, Nnanga, tem que realizar uma busca, por meio de uma imensa
L viagem para conseguir a cura para o seu marido, Ekomo, que padece de uma
infecção na perna. Nessa travessia, a história do povo fang é narrada e rememorada

por Nnanga. Além disso, a personagem terá que vencer o tabu de enterrar seu
L esposo. Nesse processo, percebe-se a construção da mulher intelectual negra como
assevera Bell Hooks: “Sem jamais pensar no trabalho intelectual como de algum
A modo divorciado da política do cotidiano optei conscientemente por tornar-me uma
intelectual pois era esse trabalho que me permitia entender minha realidade e o
mundo em volta encarar e compreender o concreto” (1995, p. 466). Daí, ao narrar
seu cotidiano, Nnanga reconstrói as teias da tradição, assim se pode dizer. Além
disso, a narradora reconta e estabelece como elo entre a tradição e a luta política
• dos sujeitos envolvidos nas tramas do romance. Nesse sentido, Nnanga tem um
224 papel intelectual de entender o mundo a sua volta e reordenar o papel da mulher
na tradição fang.

Entre tradições e narrativas, a escrita de MaríaNsueAngue aponta
questões políticas, como exemplo, no capítulo I, há uma passagem em que os
homens da comunidade discutem a questão da liberdade na África. A comunidade
reunida, olham os sinais do céu: nuvens carregadas e cinzentas cobrem a aldeia e
o terror se espalha nos olhos dos homens, mulheres e crianças. Os sinais do tempo
2 apontam para as dificuldades que advirão sobre ogrupo.
Es unmilagro que se realiza enelcielo. Sobre unfondoceniciento una nube
0 negra, ribeteada de naranja, vadibujando una forma extraña; mientraselcie-
lo, poquito a poco, se acerca a latierra. Todos siguenel curso de los aconte-
cimentos hasta que, entre unpoco de sombra y un sol muerto, queda bien
1 marcada una forma. Alguien grita assustado:

8 — ! Es una lámpara! !Miradsu forma! (ANGUE, 2008, p. 21).

A narradora de Ekomoapresenta a leitura do tempo, do ambiente e da


tradição. Podemos dizer que a escrita de MaríaNsueAngue é a fotografia do saber
conforme postula HAMPATE BÂ (1980) ao destacar a tradição em África. De fato, o
saber latente da comunidade aparece na voz da narradora como estratégia de leitura
dos fatos circundantes. Nesse momento, o papel da intelectualidade feminina é
trazer para o romance os matizes políticos que estão envolvidos no texto e por
extensão na formação do leitor. Outra vez vemos a narradora como mediadora
entre os mundos, ou seja, o cotidiano da aldeia e as notícias de outras terras.
Nesse contexto, há um diálogo emblemático entre o personagem viajante
Nfumbá’ae o chefe. Os prenúncios interpretados pelo chefe vão além das questões
da natureza.
EntoncesNfumbá’a, aquel que hacíapocohabía regressados de Europa, acer-
candóse al anciano, lepreguntó:
— ¿Significa, padre, que alguien de nosotrovamorir?
Flotala pregunta enel ambiente. Brillala pregunta enla mirada de los pre-
J sentes. El interrogante está enlos lábios de Oshá que humedecen inquietos.
— Significa — responde elviejo — que un poderoso de África abandonará la-
tierra para unirse a losancestros. Su partida será violenta e injusta. El cielo
A domina laextensión de latierra. Haymuchos que son poderosos pero... yo me
pregunto: ¿ Quiénessonlospoderos de latierra? Porque habréis de entender
L que, cuandohablo de latierra, hablo de África y no lo digo por decir, ya que
hacemuchotiempo que los africanos abandonaron África y África a los afri-
canos. EnÁfrica ya no hay poderosos.
L [...]
— ¿ Quiénpuede ser hoyel poderoso que haga volver lafuerza de la natura-
A liza a estas tierras que, hasta ellasmismas, se hanvuelto rebeldes a suas
hijos, los africanos, de tal modo que enelcielo se dibujelagranseñal? Oímos
que enel Congo unjovenllamadoLumumba se está volvendo contra el invasor
y lucha por lalibertaddel africano pero ... ¿quién nos assegura que eso es
cierto?
Entonces, Nfumbá’a, acercándosenuevamente al ancianole disse:

— Padre, yoheoídohablar de Lumumba, tengobuenas referencias de él. Sen-
225 tiríamucho que fueseélquien há de morir, porque verdadeiramente está lu-
• chando por África y por los africanos. ¡ Lá libertad! ¡África tiene que volver a
sulibertad! El africano debe luchar para que eso se realice. Se hablamucho-
del Congo y de la lucha que está llevando a cabo para liberarse. África, como
culaquier outro continente del mundo, necessita evolucionar y nosostroslos
africanos hemos de luchar para conserguilo(2008, p.22-3).

2 A narrativa acima ganha um caráter de “senso prático” (BENJAMIN,


1994, p. 200), ou seja, de utilitário para construir o contexto histórico do espaço

simbólico da etnia fang e de muitos percalços de muitos personagens que a
0 narradora apresentará por todo o romance. Especificamente na passagem citada
anteriormente, aparece a figura histórica de Patrice Lumumba:
1 Primeiro Ministro do congo, assassinado em um complô urdido pelos esta-
dos Unidos, a Bélgica e a França. Lumumba foi executado em Katanga, sob
8 ordens diretas do Coronel Joseph Désiré Mobutu, marionete dos Estados
Unidos e da Bélgica, e aos cuidados dos traidores MoiseTchombe e Gode-
froidMunongo. Junto com Lumumba, foram assassinados Maurice Mpolo e
Joseph Okito. Jean-Pierre Finanat, que fora capturado com Lumumba, Oki-
to e Mpolo, seria executado separadamente na região do Kasai pelo fantoche
Albert Kalonji (MOORE, 2008, p.49).

Com esse jogo entre a ficção e os fatos históricos, a construção do texto de


MaríaNsueAngue se dá tanto pelo viés da tradição reinventada pela escrita ocidental
como pelo campo da política. O papel da mulher intelectual negra (HOOKS, 1995,
p. 466) é relatar a narrativa histórica e literária pelo olhar do feminino. Ainda que
os papeis na sociedade fang sejam definidos pelo patriarcado, Nsuere escreve os
fatos históricos pelo traço da oralitura, isto é, “rasura da linguagem, alteração
significante, constitutiva da alteridade dos sujeitos, das culturas e de suas
representações simbólicas.” (MARTINS, 2001, p. 83). Nesse caso, a voz feminina
é quem dá ao leitor a possibilidade de olhar o ambiente pelos olhos da narradora
que questiona uma África como revolucionária, mas só pela ação do próprio povo
africano. Assim, torna-se subversiva tanto a narrativa quanto o narrador, por meio
J dos influxos e rasuras das palavras.
Do mesmo modo, Amalia Lú Posso Figueroa em Veave mis nanas
A negras(2011), nos apresenta 26 personagens femininas que representam ritmos
na narrativa e na vida. Cada uma delas simbolizam uma cadência, desde os seios,
L passando pelo ato de semear, umbigo, olhar entre outros. No conto “Secundina
Caldón”, o ritmo da nana Secundina é o semear. Nesse processo de lida com a

terra, a personagem constrói sua leitura de mundo.
L Secundina Caldón, la nana Caldondina, teníael ritmo enelsembrar o, como
decían todas las gentes: teníabuena mano.
A Lo que tocabala nana Caldondinaembarnecía, florecía, engrosaba y se
enhiestaba, por esoen una época se pensó que podíahacertratamientoscu-
ando a loshombres no lesfuncionabaelcarrizo, pero la nana Caldondinane-
cesitabalatierra como elemento de embarnecira, lafrondosidad, espesura y
lospalos erguidos se lograban pero saliendosiempre de latierra y quedándo-
seenella. A laorilladel San Juan, enSamurindó, pueblo donde nació Secun-
• dina, decían que ellalehabíahechoflorecerlavarita a san José (FIGUEROA,
226 2011, p.23).

• O ritmo de semear era nato a Caldondina e por isso tinha ante a comunidade
o prestígio de boa mão para plantar. A sabedoria de plantar e manejar a terra é
ancestral e o conhecimento de Secundina Caldón se misturou com o conhecimento
científico quando ela aprendeu aler com o botânico FloremiroAgualimpiaCañadas.
Ele descobriu que Secundina não sabia ler e passou a lhe ensinar as letras e a
2 decifrar o conhecimento livresco da obraCiencias de laTierra. O ato de ler para
a personagem se tonou complexo, pois nana “Caldondinapensaba que eso de
0 aprender a leer era complicadísimo y para qué se aprende si lo que una lee es una
arrecheradurísima que naidesentende” (FIGUEROA, 2011, p. 25). É possível que a

relação da personagem com a leitura é a de produção de sentidos. Assim
1 [n]essa perspectiva, o sentido de um texto é construído na interação texto-
-sujeitos e não algo que preexista a essa interação. A leitura é, pois, uma
8 atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, que se
realiza evidentemente com base nos elementos linguísticos presentes na su-
perfície textual e na sua forma de organização, mas requer a mobilização de
um vasto conjunto de saberes no interior do evento comunicativo (KOCH,
2006, p.11).

O evento comunicativo, na narrativa de Amalia Lú Posso Figueroa, pode


ser compreendido por dois caminhos: O primeiro a interação dos conjuntos de
saberes entre Caldondina e Floremiro, mediado por um livro científico:
El libro decía que dizqueelmaíztiene al tiempo flores masculinas y femeni-
nas, que no necesita de otroárbol cerca y que lapapayatiene flores femeninas,
masculinas y hermafroditas, ¡que corrompisiña!; que el Cativo prioriacopai-
fera es monosperma (¿sólo una?), que elCucharo colorado da flores conun
solo pétalo y es amarillo no colorado, que elVitexcooperitruntagotieneinflo-
rescencias axilares (¿como gente?) flores concáliz cupuliforme, pubérulo y
fruto drupáceo negro hasta de 13 mm.de largo (eso si no es delgrandor de mi
gente ), que elcorcho da fruto negro y se llama peine de mono, que elHura-
crepitans es laceibablanca, arenillero o lo que ellallamabamilpesos, que se-
creta savialechosa, tóxica e irritante, que tiene flores unisexuales (¿cómoasí,
J yoconyo?), que su fruto es una cápsula discoide, dehiscenteconviolencia,
originando una pequeñadetonaciónconsemillas aplanadas que son purgan-
tes. Por lahostia, ¡quémaravilla! (FIGUEROA, 2011, p.25)
A
O mundo do saber tradicional, do conhecimento ancestral da terra e seu
L plantio interagia com a ciência botânica na percepção de Secundina Caldón, “pois
a leitura é um ato social, entre dois sujeitos –leitor e autor – que interagem entre

si obedecendo a objetivos e necessidades socialmente determinados” (KLEIMAN,
L 1997, p.10).
O segundo caminho para entender o evento comunicativo no conto
A Secundina Caldónde Figueroa, é a construção da leitura e do erotismo que a
narradora expõe para explicar a leitura de mundo das nanas. Dessa forma, pode-se
perceber que as plantas e a terra têm a mesma possibilidade de seduzir, de procriar
e de corporificar. Talvez a leitura do conto se estabeleça por outro nível de leitura,
a saber, a erótica.
• Caldondina se quedóenSamurindó al cuidado de la casa y de losárboles, de
227 flores, frutos, enredaderas, pouterias, pubescentes, tomentosas, adulterinas
y puritanas, sinsospechar que elconocarpus de Floremirolohabía enfermado
• porque era al tiempopalo de balso, Bursera simaruba y Brosimunutile.
Floremiro nunca regresó a Samurindó y cuandollegóunnuevobotánico a re-
emplazarlo, Secundina metióen una chuspa dos blusas, una falda, miles de
piececitos de todo lo que estabasembrado, y el libro “Ciencias de laTierra” y
se embarcóhaciaQuibdó. Vino a trabajar a mi casa, llenólapaliadera de rit-
2 mos de luz, movimiento, color y olor, con todo lo que sembró y sólocuando
se percató de laarrecheradelmeneo que se veía donde se amabanlospalos de
borojó, supo que todo su ritmo se desasosegócuandoFloremiroAgualimpia-
0 Cañadas, leenseñó a leer que la calentura, el amor y laarrechera, tienenel-
mismo ritmo enloshombres, enlasmujeres, enlosárboles, enlas flores, enlos
frutos, y lo más revelador para ella: enelConocarpuserectus y no sóloene-
1 lenvés sino enelraquis tomentoso. Desde ese momento, ellasiempresoñóenl-
legar a ser como elsapotillo para encontrar a Floremiro y tenerconélun fruto
8 pero con ritmo de cáliz persistente (FIGUEROA, 2011, 29-0).

A formação da intelectualidade de Secundina Caldón se estabelece pela


mediação do corpo. Semear a terra é ler, é decifrar grafias do ritmo da sedução.
Dominar os conceitos científicos é correlacionar o que determina a escrita por meio
das normatizações técnicas. No entanto, o humor da personagem é uma estratégia
de compreender e reler seu mundo, seu cotidiano. A leitura do manual de botânica
deu-lhe subsídios para entender que seu conhecimento prévio do ato de semear
era o mesmo que acontecia entre homem e mulher, semente e terra. Tudo era ato
e potência dos corpos.
Considerações finais
Repensar a tradição literária afrodiaspórica é reler as tradições que são
construídas por meio da escrita. De fato, há uma subversão estética e política nas
narrativas de Isabel Ferreira (Angola), Conceição Evaristo (Brasil), Amalia Lú Posso
Figueroa (Colômbia) e MaríaNsuéAngüe (Guiné Equatorial).
As pautas abordadas aqui são provocações para refletir sobre o papel da
mulher africana e afro-diaspórica na construção da narrativa e das personagens que
J se posicionam num papel de intelectualidade ressignificando a leitura do cotidiano.
São mulheres que desconstroem o patriarcalismo e o sexismo das tradições. As
A subversões que as narrativas apontam desaguam no papel de interação do leito-
texto. Daí, podemos afirmar que ler é um ato de subverter o poder, pois “o ato de
L ler é um ato perigoso àqueles que ilegitimamente dominam o poder” (SILVA, 1995,
p.12).
L Não há dúvida que as quatro obras aqui analisadas propõem um leitor
que interatua com o texto a partir de sua vivência, construção social, econômica
e cultural. Em outras palavras, o leitor faz parte do processo de escrevivência do
A autor e as narradoras têm o papel de mediação no processo de formação do leitor.
De fato, as narrativas das autoras afro-diaspóricas são fotografias
das tradições: assim mesmo, no plural. Neste sentido, o texto, o narrador, as
personagens se transformam emsignificante fotografia. As palavras tanto nas
• margens da escritaou no leito das histórias são rasuras orais e simbólicas que
apontam para a formação do leitor e da intelectualidade feminina (autoras) nesse
228 processo de produção literária, ou seja, tudo isso é significado. É possível que isso
• seja a magia da palavra, mas esse tema poderá ser abordado em outro momento.
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L

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229

2

0

1

8

J

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L LA TIRANA: TEATRALIDADE ANDINA

L Douglas Henrique de Oliveira (UFMG)
RESUMO: A festa de La Tirana, celebração andina que acontece no meio do Deserto
A do Atacama, no Chile, é composta por coloridas manifestações de fé principalmente
de danças religiosas. São por volta de duzentos grupos que cada ano se dedicam

a reverenciar a imagem de Nuestra Señora del Carmen. As coreografias são uma
fusão entre antigas cerimônias incas e danças típicas em honra a Virgen del
Socavón, padroeira dos mineiros bolivianos. Com o passar do tempo, os grupos
• foram transformando em associações de fiéis, também chamadas de “irmandades”.
Este trabalho relaciona as manifestações das irmandades com os conceitos de
230
teatralidade. Teatralidade não é, em nenhum caso, um sinônimo de Teatro e sim
• um conceito que busca chamar a atenção sobre a encenação de imaginários sociais.
Entre suas características destaca-se a performatividade e sua potência política.
Ou seja, seu caráter construtor de repercussão na realidade. 
Palavra-chave: La Tirana. Teatralidade. Festa.

2 ¡El Diablo!, dijo y la botó al fondo de la quebrada, convencido de que era el mismo demônio, mien-
tras sujetaba la cabalgadura, presa por espanto en un sendero tan estrecho como peligroso que
pudo acarrear una caída mortal.
(El diablo disfrazado de guagua, lenda de Tarapacá)
0
As imagens difundidas sobre a festa da Virgen del Carmen de La Tirana
1 ilustram os coloridos trajes usados por bailarinos e suas coreografias, instrumentos
musicais e expressões de um sacrifício devoto ao se pagar alguma promessa. Ainda
8 assim, a mídia se concentra nas representações das “diabladas”, que lançam mão
de enormes máscaras, roupas coloridas e bordadas. É essa expressão que chama a
atenção de devotos, viajantes e comerciantes durante os dias da festa. Com o passar
dos anos, as “diabladas” se tornaram o maior símbolo para recordar, descrever e
imaginas a festa popular.
La Tirana é um povoado, com aproximadamente 800 habitantes, que
fica no norte do Chile, mais precisamente a região denominada Norte Grande, é
onde o deserto do Atacama é escaldante pelo dia e gelado durante a noite. Região
de Tarapacá, marcada pela extração mineral e pela presença resistente de povos
autóctones, onde os povoados são oásis entre a Cordilheira Domeyko e o Oceano
Pacífico. É nesse pequeno oásis que existe uma das maiores expressões culturais
chilenas, a Fiesta de La Tirana.
As origens de La Tirana partem de lendas e histórias orais coletadas
e registradas pelo historiados peruano Rómulo Cúneo Vidal, estão datadas
aproximadamente pelo ano 1535, no meio da efervescência da conquista do Chile,
quando o capitão Don Diego de Almargo, vindo de Cuzco, entrou no norte do
país com 550 espanhóis e por volta de 10 mil índios. Entre eles dois de grande
J relevância: Paulino Tupac, príncipe da família imperial dos Incas e Huillac Huma,
último sacerdote do “culto ao Sol”, junto com a sua filha, a princesa Ñusta Huillac.
A Na tropa haviam também, sigilosamente infiltrados, vários “wilcas” – capitães dos
antigos exércitos imperiais incas – que planejavam seus planos de vingança contra
L os conquistadores.
Com emboscadas formadas pelos “wilcas”, o príncipe Inca foi morto. O
sacerdote Huillac Huma fugiu e sua filha também conseguiu escapar do desmonte
L
da tropa de Almargo, refugiando-se com um grupo de guerreiros em um bosque
de tamarugos, árvores típicas do deserto. Ñusta, nesse contexto, se converteu em
A capitã de um grupo cada vez mais numerosos de indígenas. O refúgio negava toda
a influência de colonização religiosa pelos espanhóis, inclusive Ñusta se tornou
sacerdotisa dos cultos Incas no tamarugal.
Tudo seguia em harmonia no refúgio até que apareceu pela região um
mineiro português chamado Vasco de Almeyda, que buscava a lendária “Mina
• del Sol”. A princesa se deixou levar por sentimentos amorosos que sentia com
231 o português a ponto de que se convertesse ao cristianismo. Seus guerreiros
• desconfiados, ao ver que a capitã renegava a religião inca, os mataram a flechadas.
Ainda assim, respeitaram a última vontade da princesa, colocando uma cruz em
sua sepultura.
Anos mais tarde, o missionário Frei Antônio de Rondón encontrou a cruz
e levantou no mesmo lugar uma ermida à Virgem do Carmem. A etapa de conversão
2 dos povos originários e sua evangelização foram, como sabemos, especialmente
complexos.
Si bien las formas del culto católico y su canto provocaron fascinación entre
0 los indígenas, tal como narran los primeros cronistas, no resultó fácil pues
no era solo el cambiar el nombre de um dios, sino que implico el cambio de
1 una cosmovisión ancestral a la que el nativo de continente no renuncio y no
ha renunciado nunca em su totalidad. Esto gênero la consolodación hacia el
siglo XVII de lo que conocemos como catolicismo popular, tan arraigado en
8 el alma latinoamericana. La Ñusta es expresión de ese proceso. (Museu de
la Vivencia Religiosa del Norte Grande)

Durante alguns séculos essa pequena ermida se manteve apenas como
centro de peregrinação familiar para os moradores da região que manifestavam sua
veneração pela imagem seus ritos, cantos e danças.
Em 1830 a região começou a viver uma grande transformação pelo
auge da exploração de salitre, gerando a fundação de vários centros de “oficinas
salitreras” que contratavam abundante mão de obra de todo o país, assim, esses
trabalhadores se habituaram a visitar a ermida de Nuestra Señora del Carmen.
Com o tempo, resolveram iniciar uma campanha de angariação de materiais para a
construção de uma igreja, a qual foi inaugurada no dia 16 de julho de 1886. Porém,
em 1930, o ocaso da exploração salitreiras chegou e as empresas foram fechadas.
Mesmo depois disso, os trabalhadores mantiveram a tradição de visitar a igreja
ao menos uma vez ao ano, no aniversário de sua inauguração. Hoje, essa visita
tradicional ganhou forma e é o que conhecemos como “La fiesta de La Tirana”.
As “diabladas” são as principais formas de expressão da festa. É evidente
J certa presença colonial ressignificada pelos povos autóctones na figura do diabo.
Na Europa se havia propagado a imagem do diabo com duas fortes variáveis: o
A maligno, que causava os pecados e a morte da alma, e a sátira como forma de
julgamento das diferenças sociais. Desse mesmo modo, a América colonizada,
L difundiu essa imagem do diabo europeu, levando em conta a representação da
figura no teatro religioso, a fim de catequizar as populações nativas. Os europeus

também trouxeram consigo o culto aos santos, a devoção à Virgem, o carnaval e o
L medo ao diabo. Essa configuração do diabo colonial seguia as formas e atributos do
mundo europeu, sendo representado por chifres, rosto de homem com elementos
A de bode, um rabo e uma malícia em seu modo de agir. Na região andina da colônia,
os indígenas perceberam no diabo uma figura ambivalente quanto ao seu poder.
Para eles, o diabo poderia gerar maldade ou fazer o bem, o que distanciou a ideia de
medo como acontecia na Europa e permitiu um diálogo com o demônio, assim como
faziam com seus ídolos e antepassados. Os ídolos escondidos entre os altares cristãos
• simbolizavam a hibridez de um pensamento religioso em constante transformação.
232 Para os teólogos coloniais, o anjo caído encontrou refúgio na América, lugar onde
era adorado por infiéis nativos. (ARAYA, 2011, p. 72)

2

0

1
Figura 1. “Los indios conversan con el demonio”. A figura mostra um diálogo entre os nativos e o demônio,
que possui características humanas e animais. (Cieza de León, 1553)
8
Os diabos da festa da Tirana têm uma configuração de grupos organizados.
São por volta de duzentos grupos que cada ano se dedicam a reverenciar a
imagem de Nossa Senhora do Carmo. As coreografias são uma fusão entre antigas
cerimônias incas e danças típicas em honra a Virgem del Socavón, padroeira dos
mineiro bolivianos. A “Fiesta Grande” acontece no dia de Nossa Senhora do Carmo,
feriado nacional no Chile, mas as danças e os preparativos começam em março,
com a confecção dos vistosos figurinos e os ensaios da coreografia. Com o passar do
tempo, os grupos foram transformando em associações de fiéis, também chamadas
de “irmandades”.
Podemos relacionar as manifestações das irmandades com os conceitos
de teatralidade. Teatralidade não é, em nenhum caso, um sinônimo de teatro e
sim um conceito que busca chamar a atenção sobre a encenação de imaginários
sociais. Entre suas características destaca-se a performatividade e sua potência
política. Ou seja, seu caráter construtor de repercussão na realidade. Por isso,
a teatralidade tem tanto a ver com os elementos artísticos e estéticos afetados
pela realidade. Assim podemos relacionar o conceito de teatralidade com rituais,
J cerimônias, festas, outras expressões culturais de um povo, além das artes, como
a dança, o cinema, litearatura e, até mesmo, o próprio teatro. A teatralidade é
definida pela estudiosa canadense Josette Féral como “um ato de transformação
A
do real, do sujeito, do corpo, do espaço, do tempo, portanto um trabalho a nível de
representação; um ato de transgressão do cotidiano pelo ato da criação”. (FÉRAL,
L 2004)

A teórica brasileira Sílvia Fernandes retoma Pavis para fazer a sua
L construção da teatralidade para o teatro:
Para o espectador aberto às experiências da cena, a teatralidade por ser, por
A exemplo, uma maneira de atenuar o real para torná-lo estético, ou erótico,
ou uma terapia de choque destinada a conhecer esse real, e a compreender
o político, ou ainda um embate potente de regimes ficcionais que parecem
disputar a primazia de constituição do teatro, ou simplesmente, e por que
não, o discurso linear de um narrador tencionado para o final do mito, mas
que volta sempre ao princípio. (FERNANDES, 2010, p. 102)

Aproximando o pensamento para as manifestações artísticas e populares,
233
como a festa, temos um espectador, aquele ser que assiste ao espetáculo e uma
• cena, a festa em si, profundamente ligadas às raízes do povo. Mais que uma
maneira de atenuar o real para torná-lo estético, é uma forma de reafirmar que
o estético faz parte do real. O espectador não é só aquele que vê, porém é aquele
que fomenta com sua experiência os significados daquilo que vê, já que a festa
também é aqueles indivíduos, o que é facilitado pela disposição do acontecimento:
2 a rua. A visão horizontal, a possibilidade de interação direta e os acontecimentos
próprios da rua marcam a participação ativa desse espectador. A cena, que na
0 festa seria as coreografias e outras manifestações, por mais ensaiada que seja,
é passível de mudanças, intervenções e de uma construção de mão-dupla junto
com o espectador. A teatralidade aplicada precisamente à Fiesta de La Tirana,
1
ganha sentidos artaudianos quanto à participação de um público do ritual cênico,
ritual, esse, com profundas bases religiosas. O público, formado por devotos em
8 sua maioria, compreende através dessa manifestação, a potência política do lugar
onde vive, já que se vê em comunhão de um mesmo acontecimento que o fortalece

como grupo e lhe dá uma identidade. O mito e a fábula da festa é comum a todos.
Fernandes também retoma a Roland Barthes ao dizer que o teórico vê
na “teatralidade o teatro menos o texto, essa ‘espessura de signos e sensações’
que liga a uma espécie de ‘perecepção ecumênica de artifícios sensuais, gestos,
tons, distâncias, susbstâncias, luzes, que submerge o texto sob a plenitude de
uma linguagem exterior” (FERNANDES, 2010, p. 102). Na festa não existe uma
dramaturgia específica que a configura teatro, mas existe um imaginário comum
que já espera – e vê – a luta entre o bem e o mal, no caso das “diabladas”, e outros
conceitos fundamentais para as outras danças. Cada coreografia ou manifestação
dançada dos grupos trazem já seus conceitos definidos a pesar de variar os figurinos
e os passos.
A festa de “La Tirana” traz muitos elementos do carnaval andino.
Martin Lienhard nos ajuda a entender um pouco as práticas carnavalescas nas
manifestações culturais andinas e como essas práticas se aplicam à festa devota à
J Nossa Senhora do Carmo.
No existe ningún abismo entre actores y espectadores de la fiesta (estas
A funciones son intercambiables), y la igualdad y reciprocidad domina las re-
laciones sociales en los momentos específicos de la celebración. En los car-
navales propiamente dichos – situados entre el fin del invierno y el comienzo
L de la primavera, se festeja la muerte de lo antiguo (el invierno, el pasado, la
injusticia, los sufrimientos) y se propicia la llegada de lo nuevo (la primave-
L ra, el porvenir, la justicia, la abundancia). La celebración de la ambivalencia
de la vida y de la muerte deja transparentar un optimismo colectivo invenci-
ble: los recién nacidos substituirán a los muertos, la abundancia seguirá a
A la escasez, etc. (LIENHARD, 1990, p. 130)

Ao carregarmos as definições do conceito de teatralidade e carnavalização


à “Fiesta de La Tirana”, podemos encontrar danças como “Antawaras”, que são
realizadas na ponta dos pés e com os braços levantados, elementos retirados
das cerimônias incaicas do culto ao Sol, o que explica o caráter invocativo dos

braços apontando para o céu. Existe também o “baile chino”, vindo do santuário
234 de Andacollo (La Serena, Norte Chico), no qual vestem figurinos, que remetem aos
• antigos mineiros da região, de cor escura, especialmente bordados, com ferramentas
na cintura e capachos (pedaços de couro para carregar mineral) nas costas.
Mostrando que “La Tirana” não é só uma festividade religiosa, mas também uma
expressão de traços históricos daquela sociedade. Já o baile “Gitano”, como diz seu
nome, traz a memória de grupos ciganos com figurinos coloridos e dando destaque
2 para lenços. As “diabladas” são as mais vistosas por seu figurino completamente
colorido e seus atrativos passos de dança. Se inspiram na “diablada”. Baseia-se

principalmente em filas de “cholas” (mujeres) y diablos (homens) que diante da
0 imagem da Virgem dançam a representação da luta do bem e do mal.

1

8

Figura 2. Máscara usada nas diabladas.

Ainda existe a influencia do cinema mudo estadunidense que chegava aos


teatros das indústrias salitreiras. O baile chamado “Indios” imitam as representações
hollywoodianas de indígenas apaches e pele vermelha. O figurino remete ao cocares
de plumas e o uso de lança para marcar o compasso da música. Quando chega a
noite, realizam fogueiras em torno das quais se dançam recordando aos filmes de
velho-oeste.
Cada elemento pensado para modificar a realidade e dar um significado
específico na coreografia ou ainda na representação de algum elemento cultural dá
J ao ato a potência de teatralidade, ou seja, o aproveitamento de elementos e adereços
tratados como figurino, gestual do corpo durante a coreografia, maquiagem,
A máscaras e até mesmo o uso deliberado de cores faz com que esse elemento ou
adereço deixe de ser isolado e passa a integrar um sentido global de uma obra que
L tem como objetivo representar. O simples gesto de apontar a mão para o céu, por
exemplo, ganha elementos de memória à religião incaica, seus cultos e deixa de ser

um gesto para ser uma parte imprescindível para a representação de todos esses
L elementos.
Devido a tal potencia de representação de elementos pelo viés da
A teatralidade das festas da celebração religiosa, podemos atribuir a tal teatralidade
a função de também fazer parte da composição do sujeito andino chileno. A
pesquisadora Carla Dameane Pereira de Souza atribui ao termo sujeito andino
como
aqueles indivíduos remanescentes do Tawantisuyo inca na América Latina,
• que vivem no contorno geográfico transnacional que corresponde à Cordi-
lheira dos Andes, uma macrorregião do continente americano. Esse termo,
235
já utilizado pela crítica, relaciona-se à concepção do andino como “uma
• identidade geográfica” que, como nos explica Juan Ossio (1983), relaciona-
-se à cultura, a alguns conceitos e formas de comportamento (cosmogonia)
dos povos que vivem nessa região. (SOUZA, 2017, p. 17)

Em suma, a Fiesta de la Tirana com de seus elementos teatralizados


que representam o universo e a cosmogonia do deserto chileno serve, além de
2 manifestar as crenças e a religiosidade de um sujeito andino, para auto afirmar a
identidade desse povo enquanto unidade cultural.
0
Referências
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LIENHARD, M. Cultura andina y forma novelesca: zorros y danzantes en la última no-
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SOUZA, C. A encenação do sujeito e cosmogonia andinos: César Vallejo e Yuyachkani.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017.
ARAYA, A. En la pampa los diablos andan sueltos. Demonios danzantes de la fiesta del
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2011.
MIRANDA, S. La presencia indígena en el enclave salitrero de Tarapacá: una reflexión en
torno a la Fiesta de La Tirana. In: Chungará, Revista de Antropología Chilena. Arica, v.
38, nº1, p. 35-49, 2006.
J

A

L AS MEMÓRIAS DAS FAMÍLIAS ASSENTADAS NA DÉCADA 90 EM
ANAPU / PA
L
Edisa Assunção Corrêa (UFSC)
A Marcos Fabio Freire Montysuma (UFSC)
RESUMO: O objetivo deste ensaio é elaborar um debate sobre a importância
da memória parauma pesquisa de tese cujo lócus situa-se em comunidades
situadas ao longo rodovia transamazônica(BR-230), a luz de autores como
Halbwachs (2013),Yates (2007), Le Goff (1990), Bérgson (1999), que são teóricos
• que trabalham com a temática memoria, e destacam os conceitos e a importância
dela para compreender o passado de um povo,comunidade e/ou de um indivíduo.
236
Além disso, apresenta-se os fundamentos que levaram a escolha da história oral
• como metodologia de pesquisa adequada cujo o campo situa-se dentro de um
contexto histórico singular, uma vez que as vozes a serem buscada serão pessoas
que participaram deste processo, mas que não fazem parte do registro na história
oficial, como as famílias assentadas no período da década de 1990.
Palavras-chave: Memoria, Amazônia, História Oral.
2
As memórias que conta o passado no presente

O que são memorias? como elas podem recontar a história de uma
0
localidade, de uma comunidade?

Começamos com estes questionamentos porque partimos do pressuposto
1
que a memória é responsável por armazenar os acontecimentos das experiências
ora vivida por um determinado sujeito, ora por uma coletividade, no qual somos
8 capazes de revisitá-las, de interpretá-las, ou mesmo de priorizar umas e esquecer
outras. Intui-se que a constituição da memória é composta por aquilo que ficou
de bom ou ruim de uma dada experiência. Nesse processo a experiência ocupa
papel relevante porque dela advém os fatos que poderão ser evocados por uma
imagem, pelos sentidos, um dado evento e como elas contar uma nova perspectiva
da história oficial
Halbwachs (2013),Yates (2007), Le Goff (1990), Bérgson (1999), são
teóricos que abordam essa temática em seus estudos, dando destaque aos conceitos
elaborados dentro da perspectiva teórica a que cada autor se filia, dentro de seu
campo de estudo. A memória é um elemento essencial para a construção histórica
de um povo, comunidade, família. É por meio dela que valores, hábitos, costumes
podem ser transmitidos.
O conceito de memória encontra conceituações diversas situando-se
no foco do estudo de cada autor. De acordo com Nora (1993) A memória é um
fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente. Para ela a“memória
não se acomoda a detalhes que a confortam: ela se alimenta de lembranças vagas,
J telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as
transferências, cenas, censuras ou projeções (Nora,1993, p.16). Montenegro (2010)
A por sua vez, ver a memória num constante movimento, pois ao mesmo tempo que os
sujeitos históricos rememoram, também analisam e reelaboram suas percepções.
L Já Legoff (1990) aponta que ela (a memória) se constitui num “conjunto de funções
psíquicas, graças as quais o homem pode atualizar impressões ou informações do

passado” (LEGOFF,1990, p.419), mas também a memória pode ser compreendida,
L segundo Halbwachs (1990) como uma construção social, por mais pessoal que
seja. Em resumo “a memória é sempre uma construção feita no presente a partir
A das vivências/experiências ocorridas no passado”. (KESSEL, 2008, p.2).
As definições sobre memoria encontradas nesses autores, dada as
escolhas das palavras, são diversificadas em si, contudo indicam que a memória
é sempre uma constituição feita no presente a partir de vivências ocorridas no
passado. Isso significa, que retroceder para alguma parte do passado depende das
• intenções do agora, que pode relacionar-se com datas, perguntas ou mesmo gerado
237 pelos órgãos do sentido (paladar, visão, audição, olfato, tato).
• Ao falarmos de memória temos a ideia que é apenas um conceito,
aocontrário do que pensamos, podem existir vários tipos delas. Frances Yates
(2007) em seu livro “a arte da memória coloca que podemos distinguir dois tipos de
memória: a natural e a artificial. A natural é aquela “inserida em nossas mentes,
que nasce ao mesmo tempo que o pensamento”(YATES, 2007, p.21) e a artificial
2 constitui aquela “reforçada e consolidada pelo treinamento”(YATES, 2007, p.21).
Salienta ainda que, “a memória artificial fundamenta-se em lugares e imagens(...),
e que um lócus é um lugar facilmente aprendido pela memória (...) e as imagens
0 são formas, signos distintos, símbolos daquilo que queremos lembrar” (YATES,
2007, p.23).
1 Mesmo que a memória, num primeiro momento possa parecer uma
construção individual, de certa forma é se consideramos o sujeito é si, ela também é
8 uma construção coletiva e ambas ocupam papeis importantes e com características
distintas na vida social, diga-se de passagem que a segunda além de importante é
uma ferramenta forte na construção do imaginário social. A memória constitui-se
num dos principais fatores para a construção da identidade individual e coletiva.
A memória individual ou subjetiva abre a possibilidade para que a
singularidade de cada sujeito apareça, fato esse que não é bem aceito pela memória
coletiva. A singularidade pode ser compreendida como as experiências individuais
de cada pessoa que as significa de acordo com seu contexto pessoal ou “diríamos
voluntariamente que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória
coletiva.” (HALBWACHS, 1990, p.51). Dentro deles estão incluídos os afetos, os
valores, os princípios que terão influência direta na forma como tais experiências
irão ser sedimentas na memória. Assim, o individual perpassa pela necessidade
de que é preciso que haja uma pessoa que presenciou o fato, que possa lembra-lo,
resgata-lo em algum momento. Contudo, a memória individual depende diretamente
da coletiva na medida em que:
Ela não está inteiramente isolada e fechada. Para evocar seu próprio passa-
do, em geral a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras, e se trans-
J portar a pontos de referência que existem fora de si, determinados pela
sociedade. Mais do que isso, o funcionamento da memória individual não é
possível sem esses instrumentos que são as palavras e as ideias, que o indi-
A víduo não inventou, mas toma emprestado de seu ambiente (HALBWACHS,
2013, p. 72).
L Diante disso, entende-se que não podemos falar da memória individual,
sem que a memória coletiva faça parte da discussão porque está se sobrepõe a ela
L pela própria dimensão social que ocupa. Isso não significa que a individual deixa
de existir, mas que continua ocupando diferentes contextos, pela participação de
A diferentes sujeitos, o que permite que a memória passe da natureza pessoal para ser
convertida num conjunto de acontecimentos partilhados por um grupo, passando
de uma memória individual para uma memória coletiva.
Ao falarmos desta passagem, não se estar afirmando que o individual
deixa de existir, mas que a memória do grupo se destaca em relação a do indivíduo,
• isso é um fato, pois a coletiva engloba a memória do grupo e cada componente
desse grupo com ela se identifica. Dessa forma, a memória coletiva possui uma
238
função importante, que seria de contribuir para o sentimento de pertencimento a
• um grupo de passado comum, que compartilha memórias. A memória modifica-se e
se rearticula conforme a posição que ocupamos e as relações que estabelecemos em
diferentes grupos dos quais participamos (KESSEL, 2014). Assim, para Halbwachs
(2006) o indivíduo participaria duas espécies de memorias, porém com atitudes
diferenciadas.
2 Mas conforme participe de uma ou de outra, adotaria duas atitudes mui-
to diferentes (..) se essas duas memorias se penetram frequentemente: em
0 particular se a memória individual pode, para confirmar algumas lacunas,
apoiar-se na memória coletiva(..) a memória coletiva, por sua vez envolve as
memorias individuais, mas não se confunde com elas. Ela evolui segundo
1 suas leis, e se algumas lembranças individuais penetram algumas vezes
nele, mudam de figura assim que sejam recolocadas no conjunto que não é
mais uma consciência pessoal (HALBWACHS, p 53-54, 2006).
8
Nesse processo, a coletiva sobressai-se sobre a individual,à medida
que é grupo quem detém o controle sobre memória e, esta é aceita como verdade
por meio das relações que são criadas dentro do próprio grupo. É no contexto
dessas relações que construímos as nossas lembranças e elas estão impregnadas
das memórias dos que nos cercam, de maneira que, ainda que não estejamos em
presença destes, o nosso lembrar e as maneiras como percebemos e vemos o que
nos cerca se constituem a partir desse emaranhado de experiências. E como diz
Bosi(1979):
A memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com
a classe social, com a escola, com a Igreja, com a profissão; enfim, com os
grupos do convívio e os grupos de referências peculiares a esse indivíduo.
(...). A menor alteração do ambiente atinge a qualidade íntima da memória.
(BOSI, 1979. p.17).

Assim, considerando o pensamento Halbwachs (2006) e Bosi (1979)


a memória coletivas vão se construindo na junção de espaços, lugares, e
referênciascompartilhadas.São essas memorias que nos interessam e por isso nós
J direcionamos para a comunidade Anapuense, que na década de 1990 recebeu
famílias oriundas de diversas partes do país para residir na localidade, o que
A nospermite discutir as experiências dos sujeitos acerca do entendimento da história
local e dos sentidos que atribuem às suas vidas naqueles espaços amazônicos, que

foram sendo construídas no entrelaçamento das relações entre a coletividade e o
L
individual

L A escolha da metologia da historia oral para a pesquisa

Ao mergulharmos na história da abertura da rodovia transamazônica,


percebe-se que muitos equívocos foram cometidos em prol de um progresso de
A desenvolvimentista, que aos olhos do governo e dentro da sua concepção de
planejamento parecia perfeita para a região, mas que na verdade representa para
os estudiosos da área como Hebette (2000), Loureiro (2014),Becker (2001) entre
outros, o fracasso de um planejamento realizado longe da realidade amazônica.
A chegada dessas pessoas de diversas partes do país, atraídas pelo

sonho de prosperidade, permitiu o surgimento das comunidades ao longo da
239 rodovia Transamazônica, o que mais tarde daria origem a diversas cidades, dentre
• elas Anapu-Pa, localidade em que diversas famílias foram assentadas na década
1970, lócus de pesquisa. Entretanto, apesar de terem se instalado nesta época,
é somente a partir da década de 90, que a ideia de assentamentos com um olhar
mais sustentável para agricultura passa a gestado. Nesse movimento, mesmo
diante da dura realidade, diversas famílias foram assentadas e passaram cultivar,
2 produzir e de lá tirar seu sustento. Todavia, esse processo não se configurou fácil
e nem sempre contou com apoio do poder público para que pudessem estabelecer
0 relações adequadas de exploração e preservação com a natureza.
O município de Anapu-PA é geralmente visto pela sociedade sob a ótica
da violência e conflitos de terras e pouco se conhece das histórias, dos cuidados,
1
das estratégias desenvolvidas pelas famílias durante o processo de abertura da
transamazônica, que receberam lotes e hoje fazem uso dos recursos naturais
8 através do cultivo da terra como forma de subsistência, bem como para fins
econômicos, muitas vezes no viés da sustentabilidade, sem perceber que estão

adotando a prática. É importante compreender o contexto das motivações que os
fizeram fazer deste lugar sua morada, mesmo com tantas dificuldades financeiras
e de infraestrutura. Por desconhecer, julgamos a localidade baseados apenas nas
reportagens midiáticas, que o rotulam como violento e conflituoso, levando-nos a
um olhar restrito, esquecendo que nesta localidade reside famílias que vivenciaram
a história, que sob seus olhares podem contar uma versão diferente da história
oficial.
Dar voz a estas famílias, que compõe a sociedade anapuense, é uma
maneira de dar visibilidade para aquelas foram esquecidas e possibilitar outro olhar
para ahistória do município. Éuma também, forma de demonstrar a influência
destas famílias ao longo do tempo para o desenvolvimento econômico local, para
geração de renda, emprego, além de, contribuir para desmitificar que nesta
localidade não existe outras práticas além da extração da madeira e fazendeiros, e
conflitos. E para esse fim, memória e a história oral cumpre um importante papel
J para entender em profundidade essa relação. Elas podem nos apresenta fatos que
outrora estavam esquecidos em memórias nunca antes navegadas
A Já sabemos que a memória é uma construção individual, subjetiva, que
pode ser compartilhada vindo ou não a tornar-se coletiva, de acordo com a situação
L histórica na qual os sujeitos estão envolvidos. Por isso vamos tomar memória como
uma fonte de conhecimento que possibilita trazer para o debate, nesse caso para

a pesquisa de campo de uma tese, a interpretação de fatos históricos, através
L dos sujeitos, com seus testemunhos, que de certa forma, foram excluídos de um
processo ou colocados no anonimato. Neste projeto recorreremos à história oral
A como base metodológica para a pesquisa de campo da tese.
Para este tipo estudo, a metodologia da história oral representa um ganho,
à medida que busca valorizar a memória humana e sua habilidade de recordar
o passado, isto é, enquanto procedimento metodológico, a história oral procura
registrar as impressões, as vivências e as lembranças daqueles indivíduos que se
• dispõem a compartilhar sua memória com a coletividade e, dessa forma, permitir
240 acessar um mundo de conhecimentos muito mais rico e dinâmico sobre situações
que ainda é desconhecido para nós.

Montysuma e Moser (2015) apontam que, está metodologia nos apresentar
novas perspectivas de abordagem das questões, projetando memórias locais sob
diferentes óticas, além de, trazer conteúdos relativos a acontecimentos e processos
que não encontram-se registrados em outros tipos de documentos e, ainda,
2 apresentando-se como outra possibilidade de escrita da história, que confronta
o caráter estático do documento escrito. Ela comporta adentrar em contato com
experiências e processos específicos vividos ou testemunhados pelos sujeitos.
0
No entendimento de Alberti (1989) a história oral é definida como:
Um método de pesquisa (histórica, antropológica, sociológica) que privilegia
1 a realização de entrevistas com pessoas que participaram de, ou testemu-
nharam acontecimentos, conjunturas, visões de mundo, como forma de se
8 aproximar do objeto de estudo. Trata-se de estudar acontecimentos históri-
cos, instituições, grupos sociais, categorias profissionais, movimentos, etc.
(ALBERTI, 1989, p. 52)

O olhar sobre os momentos experimentados mesmo que sejam coletivos


são entendidos e internalizados por cada sujeito de forma bastante singular, sendo
possível que se escreva diferentes versões de um mesmo fato, já que as visões
dependem dos olhares de cada um. Matos e Sena (2011) salientam que não se
pode falar de um história verdadeira, mas podemos afirmar que se trata de uma
percepção verdadeira do real, emitida pelo depoente, que assim compreende e se
apropria do mundo ao seu redor. Ao tornar pública sua percepção, estar de alguma
forma, contribuindo para a elucidação parcial de alguma situação (MATOS, 2011;
SENA, 2011).
Como objetivo da pesquisa irá pautar-se na análise das mudanças sociais
ambientais e econômicas ocorridas ao longo da transamazônica, através dos relatos
das comunidades que se estabeleceram ao longo da rodovia, presenciando as
transformações e impactos do crescimento da região amazônica na década 90 até
os dias atuais, no trecho do município de Anapu-Pa, fazer a opção por compreender
J esse processo a partir de sujeitos que o vivenciaram (agricultores, moradores,
mulheres) é admitir esses pressupostos históricos, reconhecendo a impossibilidade
A de construir “a história”, mas buscando uma (re)construção de um cenário histórico
a partir de depoimentos de pessoas que vivenciaram determinadas situações, sem
L desprestigiar, no entanto, fontes oficiais (GARNICA, 2005). O indivíduos neste caso
é parte singular da história, Goldenberg(2003) enfatiza que:

[...] cada indivíduo é uma síntese individualizada e ativa de uma sociedade,
L uma reapropriação singular do universo social e histórico que o envolve. Se
cada indivíduo singulariza em seus atos a universalidade de uma estrutura
A social, é possível “ler uma sociedade através de uma biografia” [...] (GOL-
DENBERG, 2003, p. 36).

A história oral permite da voz a diversos sujeitos que no decorrer da pesquisa
podem aparecer e enriquece-la com informações que outrora foram esquecida,
como as mulheres agricultores, dentre outros, que no processo de ocupação da
• região tiveram um papel importante, mas quase nunca são consideradas durante
241 as pesquisas, ou mesmo pela própria história da transamazônica. As mulheres
serão neste projeto de tese uma parte relevante para compreender as dinâmicas

estabelecidas com a região e a história da localidade ao longo do tempo.
De acordo com Salvaciati (2000) as mulheres nunca foram consideradas
nos documentos inscritos, sendo estes a única fonte válida para a história e que
a maioria dos conhecimentos históricos que se tem conhecimento é produzida
por homens, deixando as mulheres ausentes ou sendo encontradas dentro do
2
discursos do homens. Para a pesquisa, as mulheres são excelentes fontes por
serem naturalmente mais falantes, então dar voz é uma forma de contribuiu para
0 expandir as fronteiras da história, trazendo para o debate características que estão
ligadas a vida cotidiana da mulher,tão comum na vida coletiva.
1 Considerando a história das comunidades que se estabeleceram ao
longo da transamazônica, atraídos pelo sonho de prosperidade nesta região, o fluxo
8 migratório foi intenso. Inclui-se neste fluxo as mulheres, onde elas construíram
suas biografias junto com o processo histórico da abertura e o surgimento das
comunidades e, tratando-se de mulheres que encontra-se inseridas num contexto
cujo o ambiente, a agricultura e muitos fatores são determinante para a formação
da personalidade e das relações sociais naquele lugar, não olha-las e segregá-las
da história.
A história da Amazônia nos mostra que as mulheres são invisibilizadas,
isto é, não fazem parte dos registros históricos, mas elas existem precisam ser
ouvidas e acima de tudo, ocupar um espaço que os anos lhe roubaram. Suas
memórias, seus conhecimentos e todo registro que guardam precisam se tornar
público e quebrar a hegemonia masculina que vigora no registro da história.
Assim, a metodologia da história oral permite que todas as vozes de uma
localidade apareçam e por isso que ela configura-se como a melhor opção para o
projeto de tese, que terá as famílias assentadas em a partir da década de 90, no
município de Anapu-Pa, o lócus de pesquisa.
Algumas considerações
J
Por ser uma pesquisa em curso, as memorias e as vozes não apareceram

ao longo dessa discussão, em função do trabalho de campo ainda não ter inciado,
A porém já fica evidente a importância que as memórias terão para composição da
tese, bem como os sujeitos que tenderão a ser ouvidos ao longo do processo. Esse
L será um caminho árduo, de idas e vindas para que a história possa ser recontada
a luz de personagens que fizeram parte do processo da história da Amazônia, mas
L que poucas vezes ocuparam papel de destaque na história.
As memórias destas famílias são nossas fontes, registra-las é uma forma
A de garantir que a história não se perca, e que as riquezas nelas contidas sejam
perpetuadas e compartilhadas com os demais cidadãos da sociedade. É também,

uma forma de dar voz a sujeitos que foram silenciados pela história oficial.
Referências
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• Vargas, 1990.
242 BECKER, B.K. Revisão das políticas de ocupação da Amazônia: é possível identificar
modelos para projetar cenários? IN: Modelos e cenários para a Amazônia: o papel da ciên-

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243

2

0

1

8

J

A

L HISTÓRIAS EM LÍNGUA GERAL DO AMAZONAS: EXEMPLO DE
TRADUÇÃO LITERÁRIA EM LÍNGUA INDÍGENA SUPRAÉTNICA
L
Eduardo de Almeida Navarro (USP)
A RESUMO: O nheengatu é falado ainda no Amazonas, no Vale do Rio Negro, por cerca
de 6000 pessoas. É a língua minoritária de maior importância histórica no Brasil.
Desde o século dezenove têm sido feitas tentativas de sua revitalização por meio
de publicação de gramáticas (como a de Simpson, de 1876), de dicionários (como
o de Stradelli, de 1929), de literatura oral (como a obra “O Selvagem”, de Couto de
• Magalhães, de 1876). Recentemente, por iniciativa da Área de Línguas Indígenas
do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo,
244
têm sido elaboradas traduções para o nheengatu de obras literárias. Em 2017 foi
• publicada a obra “Histórias em Língua Geral do Amazonas”, que enfeixa traduções,
feitas por alunos, de contos, lendas, mitos de diferentes partes do mundo. Busca-
se, assim, revitalizar o nheengatu e incentivar seu emprego como língua literária.
Palavras-chave: Nheengatu. Literatura. Tradução. Amazônia

2 Introdução
O nheengatu é a terceira fase de desenvolvimento histórico do tupi antigo
que foi falado na costa do Brasil no século XVI por diferentes grupos indígenas.
0
Este foi o idioma usado em algumas das primeiras povoações e aldeamentos
coloniais em solo brasileiro e que deu origem a, pelo menos, duas línguas gerais
1 que se expandiram por vastos territórios: a língua geral paulista e a língua geral
amazônica.
8 O processo de formação da língua geral amazônica ou nheengatu, como
a língua ficou conhecida a partir de meados do século XIX, remonta ao início da
colonização nas terras do Grão-Pará, em 1616, ano em que as primeiras tropas
portuguesas se estabeleceram na região da Costa do Salgado, fundando o Forte
do Presépio, núcleo original de Belém. Ao chegarem à região litorânea dos atuais
estados do Maranhão e Pará, os colonizadores se depararam com tupinambás,
falantes de variante dialetal da mesma língua tupi com a qual já haviam entrado
em contato na costa atlântica de Pernambuco. Esta se tornou a principal língua
a ser falada nos aldeamentos missionários que se formaram, então, na região,
para a catequização dos indígenas. Conforme tais aldeamentos passaram a subir
os rios amazônicos e reduzir indígenas das mais variadas proveniências étnicas
e linguísticas, a língua foi perdendo o caráter de idioma étnico dos tupinambás
e transformando-se num vernáculo supraétnico, servindo à comunicação entre
europeus e autóctones de variadas etnias. Ao longo desse processo, o idioma teve
sua tipologia gradativamente afastada daquela do idioma dos tupinambás, devido,
justamente, às influências resultantes de constantes contatos com outros sistemas
linguísticos.
J A propagação da Língua Geral Amazônica foi inicialmente fomentada pela
Coroa portuguesa, pelo benefício que uma unidade linguística em região tão vasta
A e diversa poderia proporcionar para as pretensões coloniais. Esse quadro começa a
se alterar na década de vinte do século XVIII, quando principiam as tentativas de se
L introduzir o português na região. Uma carta régia de 1727, por exemplo, proíbe o uso
da Língua Geral Amazônica nas povoações e aldeias de repartição, determinando

que, tanto os moradores quanto os missionários, deveriam organizar o ensino
L do português aos índios (FREIRE, 2011, p. 122). As políticas de lusitanização da
Amazônia acentuaram-se no período pombalino, culminando com a proibição do
A idioma em 1757, medida que, entretanto, não surtiu o efeito pretendido no Grão-
Pará, onde a língua continuou pujante e seu uso se expandiu, ainda, por novos
territórios.
Em 1823, o Grão-Pará aderiu à independência do Brasil, tendo passado
por todo o período colonial sem que o uso da língua portuguesa se difundisse
• por seu território. O idioma da antiga metrópole só iria sobrepujar o nheengatu
245 como língua veicular da Amazônia a partir de meados do século XIX, devido a
uma conjunção de diversos fatores. Entre as causas dessa importante alteração

sociocultural podemos citar os conflitos durante a Cabanagem, ocorridos entre
1835 e 1840, onde foram mortos quarenta mil habitantes do Grão-Pará, número
que representava um quarto da população recenseada da província, a maioria,
provavelmente, falante da Língua Geral Amazônica (FREIRE, 2011, p. 244). Outro
importante fato ocorreu em 1853, com o estabelecimento da primeira linha de
2 vapores no rio Amazonas, que reduziu o tempo da viagem entre Belém e Manaus, até
então com duração estimada entre um mínimo de quarenta dias e um máximo de
0 até três meses, dependendo da época do ano, para apenas oito dias (BATES, 1979,
pp. 91-2). Com a facilitação do transporte pela região, coincidindo com uma época
1 em que tem início o ciclo da borracha, com secas a assolar o sertão nordestino,
numerosa população monolíngue em português desloca-se de outras partes do
8 Brasil para a região amazônica, com o que a língua herdada dos portugueses,
enfim, se impôs como o principal idioma falado nessas terras. Os vapores levaram
para a região amazônica cerca de 500 mil nordestinos, no período entre 1872 e
1910 (FURTADO, 1961, pp. 152-53), todos eles falantes da língua portuguesa.
Apesar da forte diminuição do número de seus falantes, o nheengatu
continua sendo usado, sobretudo na bacia do Rio Negro, em territórios do Brasil,
da Venezuela e da Colômbia.Houve, até mesmo, a promulgação de uma lei, a de
número 145/2002, aprovada no dia 22/11/2002, que concedeu a esse idioma,
junto com o tukano e o baniwa, a condição de língua co-oficial do município de São
Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas. Há ainda, também, alguns poucos
falantes em outras regiões da Amazônia, como no Baixo Rio Madeira e nos rios
Andirá e Maraú, na região do Médio Amazonas. Na região do Baixo Rio Tapajós,
onde a língua deixou de ser falada no século XX, há projetos em andamento para
que o idioma seja reaprendido por populações locais.
O nheengatu é, quase exclusivamente, uma língua de utilização oral.
O aumento do intercâmbio da população falante do nheengatu com a maioria
nacional, falante exclusivamente do português, continua provocando o retrocesso
J do número de falantes da língua geral. A chegada dos meios de comunicação de
massa e das instituições burocráticas brasileiras ao alto Rio Negro é inevitável e
A já vem acontecendo em grande escala. Se as informações e os documentos que
atingem esses meios utilizarem apenas o português e se as escolas não estiverem
L capacitadas para ensinar o nheengatu, a língua corre o risco de enfraquecer-se e,
eventualmente, desaparecer.

L A tradução como meio de revitalização linguística: alguns exemplos

Em diversas épocas, em diferentes lugares, a tradução serviu como um


meio para o fortalecimento das línguas/culturas alvo. Podemos buscar, então,
A
paralelos com contextos tradutórios onde metas similares foram perseguidas, em
outras épocas e lugares. Como exemplo dessa concepção de tradução, podemos citar
o papel que ela desempenhava para os romanos. Susan Bassnett (2003) discorre
sobre essa função de enriquecimento que era atribuída à tradução pelos romanos,
direcionada, sobretudo, às obras gregas, que serviam de modelo para os escritores

de Roma. Segundo Bassnett, “o princípio subjacente de enriquecer a língua e a
246 literatura nativas por meio da tradução fez com que a ênfase fosse colocada nos
• critérios estéticos do produto na língua de chegada e não nas noções mais rígidas
de ‘fidelidade’” (BASSNETT, 2003, p. 82). A autora complementa a explicação desse
conceito de tradução com o fato de os romanos letrados serem capazes de ler as
obras originais, em grego. Nesse contexto,
“para os tradutores romanos a tarefa de transferir um texto de uma língua
2 para outra pode ser entendida como um exercício de estilística comparada,
uma vez que não lhes era exigido ‘dar a conhecer’ nem a forma nem o con-
teúdo per se e, consequentemente, não tinham de se sujeitar à estrutura do
0 original” (BASSNETT, 2003, p. 83).
Vale mencionar que situação análoga existe no caso do nheengatu, ou
1 seja, muitos falantes desse idioma, sobretudo os alfabetizados, conhecem também a
língua portuguesa. Sendo assim, os originais, quando em português, são acessíveis
8 aos leitores e, portanto, a tradução não funciona como via única de acesso à forma
e ao conteúdo dessas obras. Esse aspecto contextual pode ser percebido como
um elemento a favor de escolhas tradutórias que se desprendam da estrutura do
original, quando estes afastamentos resultarem em melhorias no texto na língua-
alvo.
Em vários contextos históricos onde a tradução foi conceituada como
meio de enriquecimento linguístico ou cultural podemos notar a importância
dos movimentos complementares de ida em direção ao “Outro” e de retorno ao
seio doméstico. O contato com outra língua/cultura permite a contemplação
e o aprendizado de novos pensamentos e estéticas. O retorno evita a perda de
identidade, colocando os novos elementos assimilados em diálogo com as tradições
culturais preexistentes. A alternância entre tendências preferenciais a um desses
movimentos pode ser percebida no caso dos franceses: no século XVI, como mostra
Esteves (2012, p. 148), houve na França escritores que “defendiam a ideia de que
os grandes autores clássicos deveriam ser imitados em suas técnicas e estilos e
esse procedimento tornaria a língua francesa mais capaz de expressar grandes
obras clássicas” (ESTEVES, p. 148, 2012). Um século depois, podia-se já notar
J uma mudança de orientação no trato com as obras estrangeiras, que passaram
a ser adaptadas segundo o molde doméstico: esta é a concepção de tradução que
ficou rotulada como “bellesinfidèles”. Segundo Esteves “depois que os franceses se
A
sentiram estabelecidos em sua cultura e língua, passaram a impor seus próprios
moldes aos textos estrangeiros que chegavam” (ESTEVES, p. 152, 2012).
L
Outro contundente exemplo da mescla e balanceamento entre os percursos

de exploração do alheio e volta às origens pode ser visto no contexto da tradução na
L época do romantismo alemão. “De formas não idênticas, Goethe, Schleiermacher, os
irmãos Schlegel e Tieck, entre outros, adotaram uma ética de expandir as fronteiras
A de sua língua nacional, recebendo e incorporando a influência e os traços de outras
culturas”. (ESTEVES, p. 164, 2012) Entretanto,
[...] o movimento em busca da experiência do Outro [...] não pode culminar
numa total simbiose com o Estrangeiro. O Outro, o Alheio é meio de aprimo-
ramento para o retorno a Si-mesmo, entendido esse meio tanto no sentido
de instrumento quanto no de elemento em que tal confronto tem lugar. Uma

total simbiose significaria o apagamento, a perda da identidade; significaria,
247 portanto, o contrário do que se quer buscar. (AZENHA JÚNIOR, 2006, p. 51)
• Os exemplos acima apresentam situações em que a motivação inicial das
traduções é o contato com o elemento alheio. A preocupação com a preservação
da própria identidade surge num segundo momento. Já no caso das traduções
português- nheengatu, o estágio atual não se caracteriza por uma situação de
afastamento entre as duas culturas, onde a tradução se estabeleça por meio de um
2 impulso motivado, em princípio, pela possibilidade de um encontro enriquecedor
com o “diferente”. Tem-se, neste caso, o oposto, pois o processo de tradução que
0 visa ao enriquecimento da língua e da literatura em nheengatu a partir de traduções
do português, parte de uma situação de forte contato entre as duas línguas/
1 culturas, onde o impulso que origina a motivação para o processo tradutório é
justamente a possibilidade de um afastamento, o retorno a “si mesmo” que permita

a sobrevivência autônoma da língua. Em outras palavras, o contato entre as duas
8 línguas/culturas, resultante de eventos históricos complexos e dos mais diversos,
encontra-se fortemente estabelecido. A tradução pode, é claro, “organizar” essa
situação de contato, e até trazer elementos novos. Sua função principal talvez
seja a de servir como uma espécie de filtro desta relação intensa, selecionando
os elementos do idioma português cuja assimilação é julgada importante para a
evolução da língua geral, enquanto propõe alternativas domésticas para ideias
que o sistema linguístico-cultural do nheengatu seja apto de abarcar “por conta
própria”.
A situação descrita acima não é exclusiva das traduções português–
nheengatu: conjunturas análogas são encontradas em projetos de tradução para
outras línguas que também são menos prestigiadas dentro do território nacional
ao qual pertencem. O caso do mirandês, língua falada por cerca de dez a quinze
mil pessoas no extremo nordeste de Portugal, é um bom exemplo disso. A língua,
antes estigmatizada e considerada por muitos como um “português mal falado”, foi
oficializada em 1998 e traduções a partir do português têm sido feitas com a intenção
de fortalecer o idioma com base no reconhecimento de seu caráter autônomo. É
J como se a situação de contato entre as duas línguas demonstrasse a necessidade
de um afastamento para se colocar sobre novas bases mais sólidas e equilibradas:
os dois idiomas/culturas estavam próximos, mantinham relações, mas as trocas
A
entre ambos eram desequilibradas e os resultados eram desprezíveis para a língua
portuguesa e prejudiciais para o mirandês. Às vezes, certo afastamento entre as
L línguas/culturas permite o reconhecimento daquele “Outro” que está sufocado pelo
contato estreito e “descuidado” com um idioma/cultura de maior prestígio. Este
L “Outro” que é “minorizado” nem sempre é minoritário, como é o caso do Paraguai,
onde o guarani, língua com o maior número de falantes no país, foi oficializado
A apenas em 1992 e agora passa por um momento semelhante de emancipação em
relação ao castelhano.
Muitas traduções para o guarani paraguaio buscaram a referida
emancipação por meio de um processo de pesquisa lexical que possibilitasse a
retomada de termos guaranis em desuso, já que, ao falar o guarani, seus falantes
• atuais recorrem frequentemente a empréstimos do castelhano. Esses empréstimos
248 reiterados renderam ao idioma a alcunha de jopara (mescla, mistura). Essas traduções
aproveitam-se do fato de o guarani ser uma língua muito bem documentada, e
• que possui um arcabouço literário expressivo, se comparado com outras línguas
ameríndias, para promover um enriquecimento do idioma por meio da retomada de
termos que foram sendo esquecidos pela cultura oral. Além disso, os dicionários de
guarani que se multiplicaram no Paraguai após a oficialização do idioma, incluem
em seus verbetes muitos neologismos criados para abarcar conceitos e objetos
2 que não possuíam significantes em guarani. Estes são, normalmente, produtos da
tecnologia ou termos técnicos que, por não fazerem parte do contexto tradicional
0 paraguaio, não possuíam vocábulos correspondentes nessa língua. O mesmo se
dá, por exemplo, com os animais exóticos. A partir da produção de vocábulos com
1 mecanismos pertencentes ao próprio sistema linguístico do guarani, foram criadas
palavras que, dos dicionários passam para textos escritos, muitos dos quais são
traduções, e destes podem chegar à própria língua falada.
8
Outro exemplo de contexto tradutório que se deu em paralelo a uma
pesquisa lexical é o caso dos Guarani Mbya. Em seu artigo Tradução Bíblica numa
Sociedade Minoritária, Bob Dooley (2009) trata de suas experiências como ajudante
de uma equipe de tradutores guaranis que traduziu a Bíblia para o guarani mbya.
Segundo Dooley, “na sua tradução, eles queriam uma linguagem que não incluísse
tantos empréstimos do português que usavam no dia-a-dia” (DOOLEY, 2009, p. 51).
Sendo assim, “eles eram forçados a pesquisar o léxico da sua língua, geralmente
junto a falantes mais idosos” (DOOLEY, 2009, p. 51). O autor acrescenta ainda
que os trabalhos envolvidos nessa tradução deram início a um processo de estudo
linguístico que se estendeu durante décadas, o que ele compara com uma situação
análoga ocorrida com relação à língua zulu, falada em território africano:
[...] a tradução da Bíblia em Zulu deu ímpeto a um grande interesse pela
língua, inclusive pelo léxico e pela literatura oral. A tradução em guarani
produziu um resultado semelhante. Um dos tradutores [...] mantinha e ain-
da mantém um dicionário que registra os resultados da sua pesquisa na
língua. Dentro da equipe de tradução, havia debate constante sobre o léxi-
co e a gramática. Essa reflexão linguística levou quase 30 anos (DOOLEY,
J 2009, p. 52).

A Língua Geral Amazônica, assim como o guarani, possui, entre
A dicionários, narrativas e demais textos, relevante conjunto de obras escritas, se
comparada com outras línguas ameríndias. Consultas a esses materiais, aliadas a
L pesquisas junto aos falantes mais experientes do idioma, podem levantar muitos
vocábulos que têm caído em desuso. Essas palavras vêm sendo, muitas vezes,
L substituídas por empréstimos do português ou, então, têm seus significados
abarcados por outros termos que sofrem, assim, uma expansão semântica. As
A traduções para o nheengatu, se aliadas a pesquisas lexicais, podem contribuir
para um enriquecimento do vocabulário desse idioma, o que seria propício para o
desenvolvimento de uma variante escrita e literária da Língua Geral Amazônica.
É interessante notar que, em todos os contextos em que a tradução foi
utilizada como meio de enriquecimento, tal meta foi conceituada pelo contraste
• existente entre a língua/cultura a ser valorizada e outros idiomas/culturas
considerados mais vigorosos, mais estabelecidos ou mais desenvolvidos em algum
249
aspecto específico. Muitas vezes esses idiomas/culturas têm papéis especiais como
• fontes de apoio e de fomento para o desenvolvimento das línguas mais frágeis e,
paradoxalmente, representam também as maiores ameaças à autonomia dessas
línguas, tornando-se constantemente elementos a serem superados. Assim,
os romanos imitaram os gregos para poderem sobrepujá-los. Da mesma forma,
os franceses, que admiravam os clássicos, “condenavam os escritores [...] que
2 optavam por escrever em latim por julgarem essa língua mais nobre e ilustrada”
(ESTEVES, p. 164, 2012), pois, afinal, isto não contribuía para que o idioma francês
0 desbancasse o posto do latim. O mesmo é visível na Inglaterra, onde o tradutor
PhilemonHolland, ao mesmo tempo em que representava o “pleno florescimento da
crença primordial dos humanistas do século XVI, a de que os grandes clássicos da
1
Grécia e de Roma deviam ser lidos por seus valores éticos” (MATTHIESSEN, 1931,
p. 177), condenava os que eram contra as traduções dos clássicos para a língua
8 inglesa, com as seguintes palavras:
[...] Se fossem bem intencionados, deveriam desejar lutar com todos os meios
para triunfar sobre os romanos, sobrepujando sua literatura com o traço da
pena inglesa, dando-lhes o troco por sua conquista desta terra, conquista
que fizeram pelo fio da espada. (HOLLAND, 1601, s/p)

Esse mesmo jogo, o de apoiar-se numa língua/cultura com vistas a


superá-la, pode ser percebido, evidentemente em outras escalas, no que acontece
hoje com o mirandês e o guarani. Nestes casos, a superação pode ser entendida
como a conquista de uma maior independência, de uma emancipação, e não
necessariamente numa equiparação do arcabouço literário, já que tal meta pode estar
distante demais para guiar as ações presentes. Desta forma, muitas das traduções
para o mirandês partem da língua portuguesa. Amadeu Ferreira, um dos principais
tradutores para o mirandês, já traduziu obras como Os Lusíadas, de Camões, e
Mensagem, de Fernando Pessoa. Muitas das traduções para o guarani paraguaio,
por sua vez, têm como língua fonte o castelhano: Félix de Guarania, talvez o mais
conhecido tradutor contemporâneo de obras literárias para o guarani paraguaio,
J traduziu Don Quijote, de Cervantes, além de obras de Bécquer e García Lorca.
Ambas as línguas/culturas apoiam-se sobre os mesmos idiomas que “ameaçam”
suas respectivas autonomias. Essa constatação serve de complemento à ideia
A
apresentada mais acima, ou seja, a dos movimentos de ida ao encontro do “Outro”
e de retorno ao familiar. O mirandês e o guarani, ao utilizarem a tradução como
L meio de voltar-se para suas raízes, aproveitam-se dos elementos positivos daqueles
contatos já previamente estabelecidos. Por outro lado, essas traduções explicitam
L a existência dos idiomas e a distância que se quer estabelecer, ou reconhecer,
entre as duas línguas/culturas: se há uma tradução do castelhano para o guarani
A é porque existe o castelhano, existe o guarani e um é diferente do outro. Faz-se
a ressalva de que explicitar as diferenças não significa condenar a mescla, mas
sim ter mais consciência da forma como a miscigenação ocorre e dos efeitos que
tem para todos os participantes. Essas considerações são válidas para pensarmos
o caso das traduções português-nheengatu, já que se trata de situações muito
• semelhantes em diversos aspectos. A escolha pela tradução de uma obra a partir
de um original em português enquadra-se nesta estratégia de “aproveitamento” dos
250
contatos culturais existentes entre os dois idiomas envolvidos na tradução.
• A publicação de textos de literatura oral em nheengatu acentuou-se no
último quartel do século XIX e no início do século XX, e tinha como objetivo o
revigoramento de uma língua que já se percebia em refluxo. Com efeito, o Ciclo da
Borracha atraiu para a Amazônia centenas de milhares de nordestinos, fugidos
da seca e da miséria, os quais levavam consigo a língua portuguesa. Em 1877, o
2 português tornou-se língua mais falada que o nheengatu naquela região do Brasil,
desaparecendo de importantes centros urbanos, como Belém e Manaus (a antiga
0 Barra do Rio Negro). Autores como Couto de Magalhães, Barbosa Rodrigues e Brandão
de Amorim publicaram obras de grande importância para a memória nacional. A
1 mesma coisa foi feita, na mesma época, em outros países. Isso demonstra que,
para além das fronteiras brasileiras, houve, nesse período, um despertar para o
interesse pelo folclore, pelas narrativas orais e pelas línguas indígenas ou ágrafas,
8 e as traduções desempenharam importante papel nesse contexto. Para se citar um
exemplo, pode-se mencionar a obra “Folk-Tales of Angola”, do suíço HéliChatelain,
publicado em 1894. O autor aprendeu o idioma quimbundo, falado em vasta região
de Angola, e coletou cinquenta narrativas durante o tempo em que viveu no país
africano. Seu texto foi publicado em formato bilíngue (quimbundo/inglês), tal como
as obras em nheengatu citadas anteriormente.
As Histórias em Língua Geral do Amazonas
O desenvolvimento de uma variante escrita para o nheengatu pode
ser um fato fundamental para a sobrevivência dessa língua de inestimável valor
histórico para a formação da civilização brasileira. No contexto atual, à medida que
surge a necessidade de utilização da escrita pela população do alto Rio Negro, o
nheengatu perde espaço para o português. Surgem, assim, discussões a respeito da
possibilidade de traduções para a língua geral que visem a ajudar na consolidação
da vertente escrita da língua e no desenvolvimento de uma literatura nesse idioma.
A publicação do livro Histórias em Língua Geral do Amazonas enquadra-se nesse
projeto de se traduzir com o objetivo de fortalecer a língua/cultura alvo.
J O curso de nheengatu surgiu na USP em 2008. Desde então, a Universidade
de São Paulo converteu-se no principal núcleo de estudos dessa língua no Brasil,
A com importantes publicações e pesquisas. Já foram traduzidas as obras literárias
O Pequeno Príncipe, de Saint-Éxupery, A Terra dos Meninos Pelados, de Graciliano
L Ramos, foi publicado o Curso de Língua Geral, com distribuição de 3.500 volumes
no Alto Rio Negro, com a ajuda da diocese de São Gabriel da Cachoeira, comandada

pelo bispo D. Edson Damian. Encontra-se em curso a elaboração de um grande
L dicionário de nheengatu, a ser publicado nos próximos anos.
O livro Histórias em Língua Geral do Amazonas, publicado em 2017,
A consiste na tradução de contos para a língua geral como língua-alvo. Tal trabalho
foi levado a efeito por alunos do curso de nheengatu da Universidade de São Paulo,
cujo locus específico é a Área de Línguas Indígenas da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas. Tais traduções foram feitas como instrumentos de avaliação
do desempenho acadêmico dos estudantes na disciplina acima mencionada.
• A publicação do livro foi custeada pelo Centro Angel Rama de Estudos Latino-
251 Americanos da USP. Cerca de 2.000 volumes foram enviados para São Gabriel da
Cachoeira para distribuição gratuita.

A diversidade cultural enfeixada pelo referido livro pode ser aquilatada
quando se observa a origem das histórias que dele constam:

1. A origem das árvores - mito indiano


2. O touro e o homem - conto folclórico brasileiro
2
3. Um homem na floresta - mito amazônico
0 4. A verdadeira grandeza - conto folclórico paulista
5. A cigarra e a formiga - fábula de Esopo
1 6. O rapaz feito de gordura - conto folclórico da Groenlândia
7. A galinha que botava ovos de ouro - fábula de Esopo
8
8. O guaraná - lenda amazônica
9. A lenda da noite - lenda amazônica
10. O dinheiro das estrelas - conto dos irmãos Grimm
11. A cobra branca - conto dos irmãos Grimm
12. O senhor das onças – conto japonês (adaptado)
13. O cão e o cajueiro - fábula de Fedro (adaptada)
14. A onça e o veado - fabula de Fedro (adaptada)
15. As árvores e o machado - conto amazônico
16. De quanta terra precisa um homem? - conto de Tolstoi
17. Os músicos de Bremen - conto dos Irmãos Grimm
18. As lágrimas de Potira - lenda indígena brasileira
19. O pescador flautista - fábula de Esopo
20. A lenda do tambatajá - lenda amazônica
J
21. A lenda do besouro – conto do folclore paulista

A 22. O cão e o lobo - conto dos irmãos Grimm


23. Os três porquinhos - conto de Joseph Jacobs
L 24. O sapo e a cobra - lenda africana
25. A toca da onça - conto folclórico brasileiro
L
26. A pomba de colar –fábula da obra indiana Calila e Dimna

27. O rato do campo e o rato da cidade - fábula de Esopo
A
28. O amigo de Paicará - conto folclórico brasileiro

29. Chapeuzinho Vermelho - conto dos Irmãos Grimm
30. Dinhanga Dia Ngombe e o veado - conto folclórico de Angola

• 31. O coelho da lua - conto folclórico japonês

252 32. O elefante e a rã - conto folclórico de Angola


33. O parto da montanha - fábula de Esopo

34. A pequena sereia - conto de R. Belli e C. Marques
35. Os segredos da nossa casa - conto africano
36. História do pescador e do espírito da mata camarada - conto de Décia Prado
Marques
2
37. História do Curupira - lenda amazônica
0 O propósito dessas traduções é ajudar na formação e consolidação de uma
literatura em nheengatu, que possa, por sua vez, contribuir para o fortalecimento
1 daquela língua. Por outro lado, a escolha das histórias traduzidas para a Língua
Geral Amazônica e publicadas em 2017 objetiva, como parte de seu público-alvo, as
8 crianças falantes da língua, que muitas vezes carecem de materiais diversificados
para leitura em nheengatu durante seu período escolar. O livro, entretanto, destina-
se também aos falantes adultos, já que, num estágio de adaptação à variante
escrita da língua, uma obra muito extensa ou com conteúdo muito complexo e
linguagem sofisticada não seria o adequado. Essa tradução pode servir também
como um material útil para aqueles que estão aprendendo a língua. Isso expande
seu público-alvo dos moradores do Alto Rio Negro para outras regiões da Amazônia
onde existem movimentos de incentivo ao fortalecimento ou renascimento da Língua
Geral Amazônica: os Muras, no Rio Madeira, que querem reaprender a língua, hoje
falada apenas por alguns idosos; alguns grupos Mundurucus e Arapiuns, da foz
dos rios Tapajós, que também têm intenção de reaprender a língua, falada por seus
ancestrais até o começo do século XX.
Entre os interessados em aprender o idioma há também, é claro, pessoas
de todo o Brasil, e até mesmo estrangeiros, a maioria dos quais é atraída pelo
valor histórico do nheengatu.Com efeito, o nheengatu foi muito importante para a
história da literatura brasileira, já que textos nele escritos serviram como inspiração
para o movimento modernista, não só pela linguagem, mas também pelas tramas
J pioneiras. Segundo Bessa Freire (2011, p. 146), Mário de Andrade, com Macunaíma,
e Raul Bopp, com Cobra Norato, talvez tenham sido os escritores que mais dívidas
A contraíram com os autores desses textos. A obra de Guimarães Rosa também foi
influenciada pelos registros em nheengatu e suas traduções, o que é mais patente
L na no conto Meu tio Iauaretê.
Atualmente, vivemos um novo momento de visibilidade do nheengatu, o
que foi corroborado e intensificado pela aprovação da lei 145/2002, que concedeu
L
a esse idioma, junto com otukano e o baniwa, a condição de língua co-oficial do
município de São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas. Como consequência
A dessa lei, todos os documentos devem ser traduzidos do português para aquelas
línguas indígenas e os órgãos públicos devem ter funcionários habilitados para
atender os cidadãos nesses idiomas. Este momento pode ser também propício
para as traduções de obras literárias, conforme tem ocorrido com outras línguas
que recentemente ganharam maior respaldo oficial, como é o caso do já citado
• mirandês, em Portugal, e do guarani, no Paraguai. Este último idioma pode
253 servir de exemplo para ilustrar como é importante o momento de evidenciação
de algumas línguas ameríndias, ao menos do ponto de vista legal.Com efeito, o

guarani, após ser oficializado no Paraguai, em 1992, foi também oficializado na
Província de Corrientes, na Argentina, em 2004, e mais recentemente, em 2010,
na cidade brasileira de Tacuru, no Mato Grosso do Sul. Além disso, em proposta
aprovada na XXIII Reunião do Mercosul Cultural, realizada no Rio de Janeiro em
novembro de 2006, o guarani foi declarado um dos idiomas oficiais dos países que
2 fazem parte daquela instituição, em igualdade de condições com o português e
o castelhano, o que, em princípio, obriga a tradução de todos os documentos do
0 grupo para, pelo menos, uma das variedades do idioma (pois há variações dialetais,
como o Guarani Mbya, o Guarani Nhandeva, o Guarani Kaiowá, o Chiriguano
1 e o Guarani paraguaio ou avañe’ẽ) (FREIRE, 2009, p. 330-1). Para que as leis
saiam do papel e línguas como o guarani e o nheengatu possam atingir, ao menos
8 em certas localidades, a pretendida igualdade de condições com os idiomas de
maior prestígio, a consolidação de uma literatura escrita nessas línguas pode ser
essencial e as traduções, neste caso, serão primordiais.
Um problema que envolve a publicação de textos em nheengatu é a
ausência de uma cultura letrada na região em que aquela língua ainda é falada.
Em São Gabriel da Cachoeira não há atualmente as condições necessárias para
a publicação de livros. Existe a demanda, por parte de instituições locais, pela
construção de uma pequena gráfica no município, que atenderia especialmente às
publicações de materiais em línguas indígenas, sobretudo destinados à educação.
Por enquanto, qualquer livro que chegue à cidade tem de ser publicado a, pelo
menos, 850 quilômetros de lá, ou seja, em Manaus. Se o público-alvo para os
livros consiste nas populações ribeirinhas de São Gabriel, é quase imprescindível
o subsídio do governo para suas publicações e distribuições, que devem ser feitas
sem fins lucrativos, já que o comércio de livros ainda é incipiente na região. Na
área urbana do município não existem, por exemplo, lojas especializadas na
venda de livros. Mesmo que existissem, o acesso a essas lojas seria restrito, já
que o município é muito vasto (sua área é maior que a de Portugal), havendo
J comunidades que se localizam a distâncias consideráveis da cidade. As publicações
devem ter, assim, apoio institucional. Como exemplo disso, podemos citar o livro
Yasuyaleryyanébeubeusa (Vamos ler nossa história), escrito por crianças da
A
comunidade indígena de Anamuim, localizada no Rio Xié, um afluente do Rio Negro,
que foi publicado em Minas Gerais, em 2007, com o apoio da Faculdade de Letras
L da UFMG e com subsídios da Comissão Nacional de Apoio à Produção de Material
Didático Indígena (CAPEMA). Uma alternativa menos burocrática, mas, talvez, não
L menos difícil, é custear uma publicação independente e distribuir os livros pela
região, como foi feitocom o Curso de Língua Geral (Nheengatu ou Tupi Moderno),
A publicado pela primeira vez em 2011 e já em segunda edição.
A dispersão geográfica que a Língua Geral Amazônica atingiu outrora
e suas influências no português brasileiro possibilitam que materiais compostos
em nheengatu possuam também demanda em outras localidades do país,
principalmente em se tratando de textos bilíngues (português/nheengatu). A
• publicação e distribuição de materiais nesta língua por meio de editoras “comerciais”
254 pode ser uma estratégia interessante pela possibilidade de disseminação dos textos
por áreas geográficas maiores, o que resultaria numa consequente divulgação mais
• abrangente dos conhecimentos sobre o idioma. Por outro lado, o acesso a esses
textos por ribeirinhos de São Gabriel da Cachoeira e de outras regiões amazônicas
poderia ser dificultado pelo valor econômico que seria agregado ao livro.
Na história da Língua Geral Amazônica, podemos dizer que muitos
tradutores estiveram envolvidos com atividades missionárias, com projetos
2 políticos de incorporação das populações indígenas e com movimentos de exaltação
nacionalista e patriótica. No passado, o acesso a materiais sobre a língua geral
0 era muito limitado, o que dificultava o aprendizado dela por pessoas que não
residissem na Amazônia. Hoje, vive-se, como dito acima, um momento de renovado
1 interesse por aquela língua, e os novos meios de comunicação, como a INTERNET,
possibilitaram um acesso muito mais fácil a materiais para leitura e mesmo para
8 arquivos de áudio, que facilitam o aprimoramento dos conhecimentos sobre a Língua
Geral Amazônica. O idioma tem sido estudado em universidades brasileiras por
alunos de graduação e extensão, como é o caso da USP, onde são ministradas aulas
de nheengatu, complementando, assim, o estudo do tupi antigo. Na Universidade
Federal do Oeste do Pará (UFOPA), tem sido ministradas aulas de nheengatu para a
formação de professores da rede pública de ensino, mas os cursos são abertos para
todos os interessados. Tudo isso resulta no envolvimento de heterogêneos grupos
de pessoas com a língua, possibilitando a formação de tradutores com variadas
experiências e interesses: falantes nativos e aqueles que aprenderam o nheengatu
com mais idade; professores e jovens estudantes; missionários, políticos e poetas.
Conclusão
Durante muito tempo, a política brasileira em relação às populações
indígenas consistiu na tentativa de incorporação desses povos à chamada
“civilização”. Neste contexto, assim como aconteceu com várias línguas étnicas
indígenas, a política vigente em relação ao nheengatu consistia na tentativa de
eliminação do idioma com a sua substituição pelo português, a língua da sociedade
“civilizada” brasileira e um dos maiores fatores da identidade nacional. Essa política
J implantou na região amazônica uma ideologia segundo a qual o português associa-
se à cultura e ao progresso, enquanto o nheengatu remete à ignorância e ao atraso.
A Apesar das várias mudanças recentes na política oficial brasileira quanto ao trato
com as minorias étnicas e culturais, aquelas ideias ainda têm grande repercussão,
L estando ainda presente em alguns falantes da língua geral o sentimento de vergonha
por se expressarem neste idioma.
L Por outro lado, a Língua Geral Amazônica sofre também com o preconceito
de alguns por seu caráter de língua supra-étnica e sua história ligada ao contato

dos nativos com o homem branco. Falantes da língua geral que perderam seu
A idioma étnico e hoje têm o nheengatu como primeira língua são, às vezes,
estigmatizados por falarem um idioma que muitos consideram como “não indígena”
e que, por uma grande simplificação de sua formação histórica, é muitas vezes
descrito como uma língua artificial, que teria sido inventada pelos jesuítas para a
aculturação das populações indígenas. Como se vê, a miscigenação que caracteriza
• a história da Língua Geral Amazônica lhe “rende” ataque por todos os lados: ora
255 por ser considerado idioma indígena, atrasado; ora por ser considerado idioma
“não indígena”, de aculturados. Deve-se dizer, no entanto, que essas mesmas

características são também o que instiga a curiosidade de muitos pelo nheengatu.
Com efeito, sua origem indígena e seu caráter supraétnico atraem indígenas e não
indígenas ao estudo desse idioma, estudo que, muitas vezes,faz-se associado a
aspectos literários, culturais e históricos, o que não ocorre com as demais línguas
indígenas brasileiras, cujas pesquisas soem restringir-se a descrições linguísticas
2
voltadas a acadêmicos e, às vezes, a seus falantes nativos.

0 Referências
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ferença. In: Revista Literatura e Sociedade. São Paulo, n° 9, pp. 44-59, 2006.
1
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BATES, H. W. Um naturalista no Rio Amazonas. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo:
8 Edusp, 1979.

DOOLEY, B. Tradução Bíblica numa Sociedade Minoritária. In: Revista Antropos, vol. 3,
n° 2, pp. 49-61,2009.
ESTEVES, Lenita Maria Rimoli. Atos de tradução: éticas, intervenções, mediações. Tese
de livre-docência. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. São Paulo,
2012.
FREIRE, J. R. B. Rio Babel – A história das línguas na Amazônia. Rio de Janeiro:
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_______ Tradução e interculturalidade: o passarinho, a gaiola e o cesto. In: Revista Alea.
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FURTADO, C. Formação Econômica do Brasil. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.
HOLLAND, P. The Preface to the Reader. In: The Historie of the World. Commonly colled,
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NAVARRO, E. A. Curso de Língua Geral (Nheengatu ou Tupi Moderno). São Paulo: 2011.
A

L

L

A


256

2

0

1

8

J

A

L O EMPODERAMENTO DA REDE DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
EM SANTA CATARINA – REFLEXÕES SOBRE A INCUBADORA
L TECNOLÓGICA DE COOPERATIVAS POPULARES (ITCP-UNISUL)
DA UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA
A
Elisete Gesser Della Giustina Da Correggio (UNISUL)
João Antolino Monteiro (UNISUL)
RESUMO: O artigo tem como principal objetivo apresentar algumas considerações
sobre a trajetória, os atores e a relevância da Incubadora Tecnológica de Cooperativas
• Populares da Unisul (ITCP-Unisul) no processo de construção e de empoderamento
257 da rede de economia solidária no Sul de SC. A metodologia utilizada foi pesquisa
documental, realizada nos relatórios de atividades da ITCP-Unisul. O período para o

estudo foi de março de 2014 a setembro de 2017. A preocupação central é conhecer o
que mantém a ITCP-Unisul, buscando compreender as forças sociais que mobilizam
ou enfraquecem e que produzem também outras articulações. Através da análise é
possível identificar as mudanças que ocorreram com a implantação da incubadora
bem como perceber que é um espaço de participação e qualificação da vida dos/as
2 envolvidos/as e manifestam-se como caminhos possíveis para a construção de uma
sociedade socialmente justa, economicamente viável e ecologicamente sustentável,
0 na certeza de que “uma outra economia acontece”.
Palavras-chave: Economia Solidária. Fórum. Movimentos Sociais. Redes.
1
O ponto de partida

8 Nas últimas décadas, como os avanços da tecnologia e a economia


globalizada ocorreram muitas transformações, provocando alterações significativas
na vida social, principalmente nas relações de trabalho.
A partir daí, surge um movimento de entidades, pesquisadores e da
sociedade, que buscam criar possibilidades reais de geração de trabalho e de renda
e inclusão produtiva dos trabalhadores excluídos do processo de desenvolvimento,
a ES.
São iniciativas que entre outros embates, buscam fazer frente à crise do
trabalho “formal” assalariado por meio da geração de novas formas de produção
que possam incluir produtivamente os trabalhadores e trabalhadores que não
conseguem se adequar ao mercado de forma global.
Um novo movimento social coletivo que emerge neste contexto no cenário
das forças sociais brasileiras. A economia solidária virou prática em várias cidades
e estados do país. Estamos presenciando algo novo, no qual já vários de nós
estamos envolvidos. Uma dinâmica está se constituindo que pode marcar uma
etapa importante de organização, de participação do povo na transformação e
J construção da sociedade que queremos no exercício do poder popular.
Nesta perspectiva elaborou-se um projeto de extensão como objetivo geral
A de implantar uma incubadora social, como programa de extensão permanente,
melhorando o relacionamento com a comunidade externa, pois os projetos de
L extensão atuais são pontuais, tendo dia e hora para acabar, e assim aproximar
a Universidade dos cidadãos excluídos do mercado formal de trabalho, de
vulnerabilidade social, através de apoio técnico a iniciativas de ES desenvolvida
L
por cooperativas, associações, grupos de trabalho coletivo, na região da Amurel
(Associação dos municípios da Região de Laguna).
A Para início traçamos objetivos desafiadores que tinham como meta
a implantação da incubadora social; assessorar a criação de projetos sociais;
permitir de forma ampliada a participação dos alunos de graduação nos projetos
da incubadora social e dar assessoria inicialmente a dois projetos sociais, na
constituição e acompanhamento dos empreendimentos de economia solidária,
• através de cooperativas e ou associações visando desenvolvimento local sustentável
258 na região da Amurel.
• Porém, quando colocado para conhecimento das comunidades, gerou
uma demanda maior que o que tínhamos previsto e isto comprovou a necessidade
de um programa dessa natureza na Universidade.
A partir da aprovação do projeto, pensou-se numa linha de ação que
tivessem como norteador a economia solidária e em criar relações de parceria com
2 o setor público através das secretarias de assistência social e desenvolvimento
econômico dos municípios da região e com a Cáritas Diocesana, haja visto o
0 protagonismo desta em ações de economia solidária.
A Economia Solidária surge como forma de resistência aos avanços do
1 capitalismo sobre o trabalho e tem como fundamento a solidariedade em contraponto
ao individualismo presente nas relações econômicas capitalista, valorizando o

ser humano em detrimento do capital, porém, sabe-se que as práticas de ações
8 solidárias não são suficientes para o sucesso do empreendimento, e nesse sentido
faz-se necessário apoio técnico para a correta gestão e dessa forma garantir a
viabilidade do negócio.
A economia solidária num contexto de transformações no mundo do trabalho
A partir da revolução industrial ocorrida no século XVIII na Inglaterra, o
capitalismo industrial se instalou como modo de produção, modificou a estrutura
social e econômica, revolucionou os processos produtivos e, entre os avanços
protagonizados, fez surgir às fábricas capitalistas na Inglaterra, que substituíram
a produção artesanal. Nas fábricas, a produção foi ampliada, a rotina de trabalho
era extenuante e a jornada chegava há 14 horas ou mais de trabalho, aliada às más
condições de trabalho.
Com o avanço do uso de tecnologias, fruto da revolução industrial e do
aumento da concorrência entre os empresários, a fábrica permitiu o aumento da
produção e a redução do tempo gasto para produzir bens e serviços e, dessa forma,
diminuiu a importância do trabalho e aumentou a exploração do trabalhador, que
se torna um simples assessório da máquina.
J Além da redução da importância do trabalhador no contexto da revolução
industrial em função do aumento do uso de tecnologias produtivas, a busca por
A melhores condições de vida fez com que trabalhadores do campo viessem para
a cidade buscar novas oportunidades de trabalho, o que levou ao inchaço das
L cidades. Com isso, o aumento do contingente de pessoas nas cidades dispostas a
uma vaga de trabalho era maior do que as vagas oferecidas nas fábricas inglesas,
aumentando os índices de desemprego de forma considerável.
L
O desemprego caminhava numa perspectiva inversa ao aumento de
produtividade que ocorria na economia capitalista a partir da revolução industrial
A em função do uso de tecnologias poupadoras de mão de obra, levando a uma crise
no mundo do trabalho.
O mundo de trabalho passa por mudanças significativas desde a
revolução industrial e se agrava com o advento do neoliberalismo na década de
80: na Inglaterra, no governo de Margareth Thatcher, e, nos Estados Unidos, com

Ronald Reagan. O neoliberalismo, segundo (Gaviraghi: 2010: 28), vai proporcionar
259 a “transformação estrutural, denominada de reestruturação produtiva do capital”.
• No Brasil, o neoliberalismo se solidifica nos Governos Collor e Fernando
Henrique Cardoso, no final da década de oitenta e década de noventa e, como
resultado, as privatizações, a flexibilização, a precarização do trabalho, o aumento
do desemprego e, consequentemente, da exclusão social, uma vez que esse novo
modelo de trabalho exige dos trabalhadores qualificação e produtividade.
2 Vê-se, então, que esse movimento de economia solidária surge como
estratégia de enfrentamento das condições de exclusão dos trabalhadores do
0 mercado de trabalho e como possibilidade de inclusão produtiva. Os membros
desses movimentos se orientavam por um conjunto de princípios, cuja base é o
1 trabalho associado e a autogestão, realizado no interior dos empreendimentos de
economia solidária.

Segundo Magalhães:
8
um novo padrão de acumulação capitalista começa a se esboçar a partir
da década de 70 e transformar profundamente a estrutura dos sistemas de
produção, as relações de trabalho e o papel do Estado em todo o mundo. A
globalização e a inovação tecnológica, e a partir daí, a constituição de um
novo patamar de competitividade, forçam a reorganização dos sistemas pro-
dutivos. A descentralização da produção, a terceirização e a subcontratação,
além de aduzir custos, são estratégias de adequação a um novo mercado.
(MAGALHÃES, 2000, p.02).

Os empreendimentos de economia solidária, segundo a Secretária


Nacional de Economia Solidária (SENAES, 2013, p. 21), devem representar:
Uma organização de autogestão cujos participantes ou sócios exerçam co-
letivamente a gestão das atividades econômicas e a decisão sobre a partilha
dos seus resultados, através da administração transparente e democrática,
soberania da assembleia e singularidade de voto dos sócios, cumprindo o
seu estatuto ou regimento interno.

Nessa perspectiva, os empreendimentos de economia solidária são


espaços dentro das quais são esperadas relações humanas muito diversas
J daquelas promovidas por uma organização social essencialmente competitiva, ou
seja, esperam-se relações de trabalho que priorizem a igualdade, a colaboração e a
preocupação com o bem-estar do ser humano como valor essencial.
A
Nesse sentido, o valor central da economia solidária é o trabalho, não

como ação de produzir bens e serviços com finalidade acumulativa, mas como
L
ação social de valorizar o trabalho e o trabalhador, como protagonista de uma
alternativa econômica coletiva de produção e distribuição de riqueza.
L
O trabalho, no seio da economia solidária, segundo a (SENAES: 2013: p.
27), “vai se dar nos empreendimentos de economia solidária de forma associada e
A colaborativa, através da autogestão e da posse coletiva dos meios de produção, na
cooperação e na solidariedade”.
A economia solidária dá ao trabalho outra conotação dentro dos
empreendimentos, buscando como elemento prioritário a qualidade do trabalho.
Como afirma (Singer, 2000, p. 4), “a empresa solidária é basicamente de
• trabalhadores, que apenas secundariamente são seus proprietários. Por isso,
260 sua finalidade básica não é maximizar lucro mas a quantidade e a qualidade do
• trabalho”.
Porém, mesmo com outra perspectiva de vida, alicerçada na solidariedade
e na cooperação, percebe-se, na organização dos empreendimentos de economia
solidária, resistência que impede o seu fortalecimento e autonomia.
A partir das constatações apresentadas sobre o mundo do trabalho e sobre
2 o processo de exclusão social a que está sujeito o trabalhador que não consegue
atender profissionalmente às necessidades do capital, tem se claro que a economia
0 solidária é um movimento de resistência.
A economia solidária surge a partir da resistência dos trabalhadores ao
processo de exclusão patrocinado pelas empresas capitalistas na busca de melhores
1
resultados e maior produtividade, com a utilização em massa de tecnologias
poupadoras de mão de obra.
8
As múltiplas formas de economia solidária contestam radicalmente o
princípio central do capitalismo que é a primazia do dinheiro. Esses novos espaços
e formas – empreendimentos de economia solidária - de reflexão e partilha liberam
novas energias de organização e transformação.
As iniciativas da economia solidária ressurgem com uma das formas de
enfrentamento, de reação, de resistência da população.
“A Economia Popular Solidária, se fortalece como um dos atores que
constroem, em médio prazo, uma verdadeira política nacional de enfrentamento
da pobreza, amparada numa sólida opção por um modelo de desenvolvimento
endógeno e uma conseqüente inserção ativa na mundialização” (LISBOA, 2000,
p.60).
Para se manter no mercado de trabalho, o empregado precisa estar sempre
em busca de qualificação, visando a atender as necessidades das empresas, porém,
sabe-se que por mais que se qualifique, o trabalhador corre o risco de ficar de fora,
dado a baixa demanda e a alta oferta de trabalho.
Nesta perspectiva, a economia solidária surge como modelo econômico
J que promove a inclusão produtiva, criando estratégias de geração de emprego e
renda, a partir da ação dos próprios sujeitos excluídos, como afirma (Caviraghi:
A 2010: 43)
Frente ao grande número de pessoas que sofrem com as refrações da questão
L social, em destaque os desempregados, os pobres e excluídos socialmente,
reaparece o trabalho coletivo como fonte alternativa de geração de trabalho
e renda, no qual o cooperativismo está presente. A Economia Solidária rea-
L parece na sociedade, no Brasil, principalmente em meados da década de 90
do século XX, como uma forma diferenciada de geração de trabalho e renda.

A O trabalho coletivo reaparece na economia solidária como antítese ao


trabalho individualizado da economia capitalista, assumindo assim uma nova
forma de ser e fazer e a economia trazendo para o centro do processo o homem em
detrimento do capital, pensando na sustentabilidade ambiental.
A ES não é uma coisa nova, porém no Brasil surge de forma esparsa na
• década de 1980 e tomou impulso crescente a partir da segunda metade dos anos
261 1990, como movimentos de trabalhadores assumindo a gestão de empresas falidas
• e através da Cáritas, entidade da igreja Católica com seus Projetos Alternativos
Comunitários.
Ela resulta de movimentos sociais que reagem à crise de desemprego
em massa, como aconteceu e teve início em 1981 e se agrava com a abertura do
mercado interno às importações, a partir de 1990. (SINGER, 2000).
2 Surge para inserir produtivamente os trabalhadores e trabalhadoras que
o mercado não precisa, em função das diversas modificações que passou o mundo
0 de trabalho, como relata Bertucci:
A reestruturação econômica e o reajustamento social advindo da flexibili-
zação do mercado e dos processos de trabalho nas décadas de 70 e 80 con-
1 fluem para uma gradual desmontagem do estado do bem-estar e para um
crescente aumento do desemprego estrutural, do trabalho informal e precá-
8 rio, da subcontratação e dos contratos temporários. (BERTUCCI, 2005, p.
29)
Nesta perspectiva a Economia Solidária é uma resposta de parte da
sociedade civil às crises das relações de trabalho e o aumento da exclusão social e
vai encontrar nas Incubadoras sociais fomento e assessoria para o desenvolvimento
dos empreendimentos econômicos solidários.
O apoio técnico é uma ação comum no Brasil e tem como agente principal
o Serviço Brasileiro de Apoio a Micro Empresa (SEBRAE) e as incubadoras de
empresas, iniciativas das Universidades e no que tange aos empreendimentos de
economia solidária recentemente começaram a surgir as Incubadoras Tecnológicas
de Cooperativas Populares (ITCP).
Muitas são as debilidades que a ES busca superar. As relações entre
trabalho-educação-cultura-humanização-emancipação, na forma como elas
acontecem na formação dos trabalhadores e trabalhadoras dos empreendimentos
de economia solidária, tem sido uma preocupação constante da nossa prática de
formação/educação na economia solidária desenvolvida através do trabalho de
J formação, mobilização e intervenção em políticas públicas e apoio às comunidades
e grupos de geração de trabalho e renda no Estado de Santa Catarina, trabalho
A intitulado Mini-Projetos Alternativos.
A economia solidária abrange várias iniciativas: cooperativas, associações,
L empresas autogestionárias ou co-gestionárias, é mediada por princípios de
cooperação, democracia, autogestão. Para SINGER:
L “a construção de uma economia solidária depende essencialmente da popu-
lação, sua vontade de experimentar e aprender, aderindo aos princípios da
solidariedade, da igualdade e da democracia, a sua vida cotidiana” (SINGER,
A 2006, p.111).

A ES hoje configura um expressivo e dinâmico movimento social, capaz


de interagir com a Secretaria de Economia Solidária (SENAES) do governo federal e
de influenciar a formulação das políticas públicas brasileiras.

• Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares - ITCP


Na década de 80 surgem as primeiras incubadoras de empresas no Brasil
262
com objetivo de fomentar o desenvolvimento de pequenos negócios. Apoiadas e
• estruturadas por centros universitários que possuem boa infraestrutura científica
e tecnológica com disponibilidades de recursos humanos qualificados que
possibilitem assessoria, treinamento, acesso às informações, recursos materiais e
o compartilhamento de equipamentos e espaços físico. (GUIMARÃES et al. 2010).
As incubadoras tecnológicas de cooperativas populares, conhecidas com
2 ITCPs ou popularmente como incubadora social assumem fundamental importância
ao levarem as comunidades mais carentes e aos trabalhadores excluídos, que se
0 organizam em grupos formais e informais visando gerar renda através do trabalho
coletivo, conhecimento técnico, gerencial e organizacional dando consistência e
1 fortalecimento a esses grupos.
A primeira ITCP, com este nome e esta sigla, e que impulsionou o
8 surgimento das demais, apareceu na Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), em 1996, liderada pelo professor Gonçalo Guimarães, que trabalhava
num dos centros de pesquisa da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação
em Engenharia (COPPE) da UFRJ, um dos centros de pesquisas tecnológicos
mais prestigiados do Brasil. Nasceu diretamente de uma demanda da Fundação
Osvaldo Cruz, que estava às voltas com problemas relacionados à delinquência nos
morros que rodeavam seu campus, com repercussões sobre o quotidiano da vida
universitária.
Nessa perspectiva as ITCPs se constituem como instrumento de fomento
ao desenvolvimento local e sustentável, quando ao permitirem aos empreendimentos
e empreendedores e empreendedoras tornarem seus negócios rentáveis, gerando
assim, além da renda, cidadania, empoderamento e inclusão produtiva.
A incubadora social da UNISUL
A ideia do programa da Incubadora Social da UNISUL nasce a partir
de um projeto de extensão, buscando promover a interação universidade com
a sociedade no seu meio de atuação, permitindo que o conhecimento gerado na
Universidade seja levado a sociedade, criando assim campo de experimentação
J aos professores e estudantes envolvidos no processo de incubação, sendo dessa
forma um programa contínuo de extensão, diferenciando-se assim dos projetos de
A extensão que acontecem dentro da Universidade e que tem duração determinada e
que geralmente não tem continuidade.
L Nesta perspectiva a Incubadora Social da Unisul busca ser um programa
que possa estabelecer uma relação duradoura com as comunidades no entorno
L da universidade, fundamentando-se num programa que visa apoiar, auxiliar e
assessorar iniciativas de economia solidária, através do fomento do associativismo,
cooperativismo e autogestão dos grupos organizados articulando com a gestão
A
pública estratégias e ações voltadas à inclusão social, geração de emprego e renda.

A incubadora social da Unisul pretende ser um elo permanente de encontro
da comunidade com a universidade, intercambiando o conhecimento científico com
o conhecimento popular, que se encontra no seio das comunidades e que precisa
• ser valorizada, como forma de resgate da cidadania.
Ao socializar o conhecimento produzido no meio acadêmico com a
263
realidade local e regional, a universidade realiza o processo de troca de saberes,
• experimentando assim a validade desses conhecimentos como instrumento de
fomento a novas formas de organização sociais não excludentes, que permitam ao
homem se realizar na plenitude, através da autonomia e faz isso acontecer através
da formação e capacitação continuada.
Além de valorizar e potencializar os recursos existentes, as incubadoras
2 resgatam o capital social existentes nas comunidades, permitindo e favorecendo
o enredamento, o desenvolvimento local sustentável, implantando mecanismos
0 de cooperação, resgatando a confiança, o trabalho em grupo e a organização
comunitária, como afirma (Fukuyama, 1996, p. 21) “a capacidade de as pessoas
1 trabalharem em conjunto, em grupos e organizações que constituem a sociedade
civil, para a persecução de causas comuns”.
8 Ações e resultados
O trabalho da Incubadora Social iniciou através do projeto de extensão do
Programa FUMDES – Art. 171 que tinha como objetivo criar uma Incubadora Social
e trabalhar com pelo menos dois empreendimentos de base social, com assessoria
em gestão dos empreendimentos sociais, gerando assim emprego e renda.
O primeiro empreendimento que detectamos foi uma cooperativa de
catadores de lixo. No mapeamento feito foi descoberto que ela não existia, os
agentes (catadores) queriam se formalizar, mas por forças políticas, não tinham
infraestrutura para realizar as suas atividades. A Incubadora começou o seu
trabalho, na realização de reuniões com os catadores, buscou parcerias, divulgação
junto a Universidade, elaborou projeto para conquistar recursos para fazer um
galpão de Reciclagem, conquistou um galpão juntamente a prefeitura para os
catadores.
A realização de parcerias foi muito importante. Destacando-se a parceira
da Cáritas Diocesana de Tubarão, que assessorava 22 empreendimentos de
economia solidária, como relacionados a seguir: seis grupos de mulheres artesãs,
que trabalham com artesanato tradicional, utilização de material coletado nas
J praias da região, 01 grupo de extração de polpa de butiá e produção de doces
e geleias de butiá, que vai além da simples produção de geleia, mas tem papel
A fundamental na preservação do butiá, uma espécie vegetal, que produz um fruto
carnoso, encontrado no litoral de Santa Catarina, conhecido com o butiá capitata
L odorata também é conhecido como butiá-da-praia, butiá-miúdo e butiá-pequeno
e que tem importância fundamental na região, reconhecido a partir de 2008 como

símbolo do município de Laguna, estado de Santa Catarina.
L
Destacam-se ainda quatro grupos de padarias comunitárias, um grupo
de produção de mandioca, formado por povos tradicionais das areias da Ribanceira,
A no município de Imbituba, Estado de Santa Catarina.
No âmbito das entidades fomentadoras de empreendimentos, é importante
destacar também a atuação da Cáritas, órgão do Conselho Nacional de Bispos
do Brasil - CNBB, que, por meio dos Projetos Alternativos Comunitários – PACs,
apoiou iniciativas variadas para sobrevivência de comunidades pobres de diversas
• partes do Brasil .
264 A Cáritas Brasileira, fundada em 1956, é um organismo sócio-pastoral
• ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e filiado à Cáritas
Internacional, é precursora em ações de fomentos a grupos de produção,
iniciando na década de setenta com projetos comunitários, conhecidos como
Projetos Alternativos Comunitários, que visavam gerar renda para os excluídos
através de pequenos projetos de panificação, projetos de agricultura em pequenas
2 propriedades, construções de cisternas e sistemas de irrigação, projetos de costura
e artesanato.
0 A partir dos anos oitenta, muitos projetos desenvolvidos por setores do
movimento popular e pastorais sociais, nas chamadas comunidades eclesiais de

base, desenvolveram ações comunitárias de geração de trabalho e renda, conhecidos
1 como Projetos Alternativos Comunitários (PACs ou MPAS). Eram experiências
– em sua maioria nas periferias urbanas – que se pautavam não somente na
8 geração de renda. O eixo central era o conceito de construção da cidadania.
Então, essas organizações, tentando atender as demandas concretas do público
alvo, desenvolviam toda a temática relacionada à cidadania a partir da geração de
trabalho e renda, cujo princípio norteador era “ensinar a pescar e não dar o peixe”.
Os Mini-Projetos Alternativos (MPAS) em Santa Catarina nasceram
em 1989 inseridos neste contexto social, sob a administração da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) – Regional Sul IV, hoje inseridos na
Cáritas Brasileira Regional Santa Catarina, como um trabalho de assessoria,
acompanhamento e formação/capacitação de grupos compreendendo: projetos de
produção e comercialização, promoção de cooperativas, instalação de armazéns
na zona rural e urbana, criação de aves, animais e peixes. Desenvolvimento de
ações permanentes de formação e de apoio às organizações comunitárias. Apoio
às iniciativas comunitárias de geração e melhoria de renda. Projetos de visam o
fortalecimento de organizações da sociedade civil para acesso e democratização de
políticas públicas e trabalhos na realização de campanhas de solidariedade nos
momentos emergenciais de calamidade pública, que agravam a situação estrutural
J de miséria e pobreza do povo catarinense.
São iniciativas de desenvolvimento local, onde seus protagonistas
A utilizam recursos e valores locais, sob o controle de instituições e de pessoas do
local, resultando em benefícios para as pessoas e para o meio ambiente local.
L Os Mini-Projetos Alternativos contemplam a visão, conforme o vídeo: a
relação entre educação popular e construção histórica dos sujeitos, de que o povo
é sujeito, pois tem cultura. O povo não é destinatário e sim produtor de educação/
L
cultura. O povo é produtor de sua própria história.

Com essa parceria, coube a nascente Incubadora acompanhar na
A elaboração do plano de negócio desses grupos, organização de uma feira Juntamente
com a Cáritas diocesana de Tubarão, estado de Santa Catarina, sendo que a feira
oportunizou aos empreendimentos a comercialização de seus produtos estimulando
o consumo ético justo da economia solidária.
Ressalta-se que a incubadora nesse momento ainda era uma ideia, e

fazia parte de um projeto de extensão com um orientador e uma bolsista.
265
Essas ações foram o ponto de partida para as ações da nova incubadora,
• que mesmo não sendo uma ideia nova no Brasil, no contexto da universidade do
Sul de Santa Catarina, assume lugar de inovação social.
Considerando que a Incubadora é um projeto novo, entendemos que
alcançamos os objetivos propostos para o primeiro ano, sendo que a mesma vem
ganhando espaço junto à prefeitura municipal, junto a Fundação de Assistência
2 social e Fundação do meio Ambiente de Tubarão-SC, junto ao Instituto Federal de
educação – IFSC campus Tubarão, onde tem-se realizado diversas atividades junto
0 aos estudantes do Pronatec, Mulheres Mil e Mulheres Sim, visando à formação em
Economia Solidária dos e das estudantes.
1 Além dos empreendimentos dos econômicos solidários acompanhados, a
ITCP tem contribuído enormemente para o desenvolvimento da política pública de
Economia Solidaria no município de Tubarão, na medida em que tem contribuído
8
para a formulação Lei municipal de Ecosol, em ações junto ao Território Serra
mar, um dos territórios de cidadania, onde temos assento, na contribuição da
política municipal de resíduos sólidos como entidade participante do comitê de
sustentabilidade, no acompanhamento e organização dos catadores de material
reciclado de Tubarão.
Os processos educativo-formativos dos trabalhadores e trabalhadoras
têm como princípio e, ao mesmo tempo como horizonte, os valores e práticas
de Economia Solidária – economia esta que existe não apenas como projeto de
novas relações econômicas e sociais, mas também como realidade construída e
reconstruída, cotidianamente, pelos sujeitos que a constituem.
O ponto de partida dos processos educativo-formativos é a ação solidária,
compreendida como atividade humana que, contrapondo-se aos princípios da
competição e do individualismo, orienta-se na horizontalidade das relações entre
os seres humanos.
A educação para a Economia Solidária, seguindo os princípios da
J solidariedade e autogestão, contribui para o desenvolvimento de um país mais
justo e solidário. Ela deverá valorizar as pedagogias populares e suas metodologias
A participativas e os conteúdos apropriados à organização, na perspectiva da
autogestão, tendo como princípio a autonomia. Deve viabilizar tecnicamente as suas
L atividades sociais e econômicas e despertar a consciência crítica dos trabalhadores.
A complexidade desta formação inclui estes princípios, enquanto ferramentas
para o empoderamento dos sujeitos. Deve contribuir para o desenvolvimento de
L
uma subjetividade, enraizada na contribuição de uma liberdade compartilhada,
na construção de projetos comuns que respeitem a diversidade dos atores, que
A promova a paz através do diálogo como meio para a solução de conflitos e que
universalize a irmandade e a solidariedade nas relações interpessoais e sociais.
Outro segmento importante em que a Incubadora foi inserida foi o Fórum
Regional de Economia Solidária de Tubarão - SC é um espaço estratégico onde
participam efetivamente os empreendimentos econômicos solidários, as entidades
• apoiadoras e o poder público. Continua sendo imprescindível sua atuação na
266 mobilização, articulação, debate e fortalecimento do movimento e da política pública
• em Tubarão e região.
O Fórum regional está ligado ao Fórum brasileiro de Economia Solidária-
FBES, sendo este a principal instância popular de incentivo e assessoramento da
economia solidária no Brasil é o Fórum, que foi criado a partir dos movimentos
sociais, reunidos no I Fórum social Mundial realizado em Porto Alegre em 2001,
2 com a criação do Grupo de Trabalho Brasileiro (GTBrasileiro), resultado de uma
luta histórica dos movimentos sociais no Brasil.
0 No caso específico do Município de Tubarão articula-se juntamente com
o Fórum Regional a formação de fóruns municipais nos municípios onde existem

empreendimentos de economia solidária, mesmo que esses empreendimentos não
1 estejam sendo incubados.

Com o alcance obtido, a ação da Incubadora nascente não pode parar
8 e inicia-se assim um trabalho de consolidação da ideia dentro da Universidade,
visando constituir além de um espaço de assessoria aos empreendimentos, um
lugar de reflexão acerca das transformações que ocorrem na sociedade atual e
que afetam diretamente o mundo do trabalho, inserindo-se efetivamente na luta
por uma outra economia, buscando gerar conhecimento e uma metodologia que
permita uma relação igualitária com os empreendimentos.
A metodologia segue num primeiro contato a sensibilização e apresentação
da Incubadora e de como esta pode estar assessorando os empreendimentos, a
partir sempre da necessidade do grupo e dos membros dos grupos.
Além das ações aos empreendimentos assessorados, busca-se ainda levar
a economia solidária a ser conhecida junto as comunidades da região, sendo que
durante o ano de 2014 24 oficinas em 8 comunidades das áreas de abrangência
da Incubadora e do Fórum Regional de Economia Solidária, com a temática do
empreendedorismo, associativismo, cooperativismo e Economia solidária, sendo
este o contato inicial com os grupos, e a partir deste contato inicial com as
comunidades faz-se conhecer a economia solidária e a Incubadora.
J Após a sensibilização se inicia os trabalhos de assessoria que buscam
atender as necessidades dos grupos, como marketing, identidade visual como
A criação de logotipos, cuidados nutricionais dos produtos, rotulagem e informações
nutricionais, padronização dos produtos, adequação de embalagens, identificação
L de custos e formação de preços, organização do trabalho entre os membros dos
empreendimentos, criação de POP – procedimentos operacionais padronizados e

outros que surgem em função da demanda do empreendimento.
L
A metodologia em face de ser o primeiro ano da Incubadora ainda está
em adequação a realidade onde estamos inseridos, vistos que os grupos são na sua
A totalidade informais.
Conclusão
Avolumam-se, cada vez mais as diferentes práticas que, sob nomes diversos,
propõem-se a integrar um movimento de identidade que supere o isolamento em
• que a maioria está confinada. Romper o isolamento, buscar visibilidade e avançar
na identidade do Movimento da Economia Solidária são tarefas que exigem, entre
267
outros esforços, criar e/ou aproveitar as experiências de articulações, redes e
• fóruns em curso. Mas também significa enfrentar o desafio de buscar unidade ou
convergência, respeitando a diversidade e especificidade de cada organização. E,
sobretudo, enfrentar nossa cultura corporativista para a superação de interesses
parciais. E dar rosto, cara e voz a um novo “sujeito social” representativo dos
trabalhadores/as desse setor próprio da atividade humana: a economia solidária.
2 A ES é uma forma de economia que muitas pessoas encontraram diante
desse capitalismo que exclui as pessoas, que gera desigualdades, é uma proposta
0 de organização da produção alternativa ao modo de produção capitalista. Tem
por base os princípios de autogestão, cooperação e solidariedade, democracia,
1 à distribuição equitativa das riquezas produzidas coletivamente, o respeito pela
natureza e a valorização do ser humano.

Muitos trabalhadores encontraram no cooperativismo a solução para o
8
desemprego, quando as empresas em que trabalhavam entravam em falência. É
uma forma muito comum nos dias de hoje, um grupo de pessoas se reúne e monta
uma empresa, mas em forma de cooperativa pela isenção de alguns impostos e pela
facilidade de formalizar.
O desenvolvimento local vai depender da estratégia de cada cidade, de
extrair as suas potencialidades, de interagir com os fatores internos e externos,
da cooperação entre grupos de empreendimentos, a articulação com centros de
tecnologia e acesso a mercados.
A educação para a Economia Solidária, seguindo os princípios da
solidariedade e autogestão, contribui para o desenvolvimento de um país mais
justo e solidário. Ela deverá valorizar as pedagogias populares e suas metodologias
participativas e os conteúdos apropriados à organização, na perspectiva da
autogestão, tendo como princípio a autonomia. Deve viabilizar tecnicamente as suas
atividades sociais e econômicas e despertar a consciência crítica dos trabalhadores.
A complexidade desta formação inclui estes princípios, enquanto ferramentas
para o empoderamento dos sujeitos. Deve contribuir para o desenvolvimento de
J uma subjetividade, enraizada na contribuição de uma liberdade compartilhada,
na construção de projetos comuns que respeitem a diversidade dos atores, que
promova a paz através do diálogo como meio para a solução de conflitos e que
A
universalize a irmandade e a solidariedade nas relações interpessoais e sociais.

L As Incubadoras têm papel fundamental, na organização de ideias de
negócios e transformá-las em oportunidades, sendo em seus diversos seguimentos,

nos variados tipos de incubadoras. A incubadora Social para esse projeto teve
L grande importância, por poder trabalhar com a inclusão social, geração de emprego
e renda, diminuição das desigualdades socioeconômicas, cidadania, a educação, o
A desenvolvimento local, e outras. São iniciativas importantes nos debates teóricos e
práticos para o desenvolvimento de experiências solidárias, fundamentalmente de
bases populares.
Destaca-se que as trajetórias não são lineares. Os debates metodológicos
têm avançado, especialmente em relação às ações mais integradas, ou seja,
• envolvendo temas como desenvolvimento local, tecnologia social, finanças solidárias,
268 moedas sociais, comunidades tradicionais etc. A continuidade da Incubadora
Social poderá trazer grandes benefícios para Tubarão e região, gerando muito mais

trabalho e renda, tirando famílias de situações de vulnerabilidades sociais.
Referências
BERTUCCI, Jonas de Oliveira. A Economia Solidária do Pensamento Utópico ao Con-
texto Atual: um estudo sobre experiências em Belo Horizonte. 2005. 126 p. Dissertação
2 (Mestrado em Economia)-Universidade Federal de Minas Gerais, 2005.
FUKUYAMA, F. Confiança: as virtudes sociais e a criação da prosperidade. Rio de Janeiro:
Rocco, 1996.
0
Gaviraghi, F. J. Empreendimentos de Economia Solidária: caminhos da (in) visibilida-
de? . Porto Alegre: Faculdade de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio
1 Grande do Sul, 2010.
LISBOA, Armando de Melo. Os desafios da Economia Popular Solidária. In: Cadernos do
8 CEAS. Salvador, 2000. n.189 p.51-67.
MAGALHÃES, Reginaldo Sales. A nova economia do desenvolvimento local. 2000 p.17
(mimeo)
SINGER, P. Introdução à Economia Solidária. 2. ed. São Paulo: Editora Fundação Perseu
Abramo, 2006
_______, Paul. Introdução à economia solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2000.
J

A
DOMINGO FAUSTINO SARMIENTO Y LA BARBARIE DE LA
L
CIVILIZACIÓN ILUMINISTA

L Elton Emanuel B. Cavalcante (UNIR)
RESUMEN: Este artículo tiene como objeto analizar el concepto de civilidad y
A barbarie en el pensamiento de Domingo Faustino Sarmiento. Este fue uno de los
más polémicos ensayistas argentinos, ejerció la carrera de periodista por largos

años hasta llegar a la Presidencia de la República. Su vida coincidió con un periodo
de gran agitación social en el país: desde la Revolución del 25 de mayo de 1810, cuya
insurgencia en contra de la corona española había marcado el inicio del proceso de
independencia argentina, hasta la organización estructural y gubernamental del

nuevo país, cuyo epicentro era decidirse que forma política republicana se adoptaría,
269 es decir, si se crearía una confederación, en la cual no habría un poder centralizado,
• algo semejante a la de los Estados Unidos; o, al contrario, una federación cuya sede
se encontraría en Buenos Aires. A los defensores del primer grupo se les llamaban
federales, mientras que el otro, unitarios. Sin lugar a dudas, esta guerra civil fue
tan sangrienta cuanto la librada contra España, por lo que, desde la cuna, la
vida de Sarmiento estuvo impregnada por manifestaciones sociales violentas que le
hicieron reflexionar sobre el porqué de tanta confusión. En 1845 escribió uno de los
2 libros más importantes para comprenderse la Argentina, “Facundo: civilización y
barbarie”, en el que se demuestran las paradojas y contradicciones entre el campo
0 y la ciudad, entre los dos mundos que forjaron la nación argenta, es decir, el
mundo rural, donde el indio y el gaucho son las máximas expresiones, y el urbano,
donde Buenos Aires se destaca como el polo irradiante del progreso y acercamiento
1 al nuevo paradigma socio-cultural impuesto por los métodos científicos. Este libro
nos permite una visión profunda y a la vez panorámica de las fuerzas sociales que
8 aún hoy vigoran en argentina, en vista de los distintos enfrentamientos sociales
que se puede observar en los discursos de peronistas y liberales, por ejemplo.
Pero no se puede comprender tal libro si no se miran las fuerzas antagónicas que
se agredían desde hace siglos en Europa y que vinieron a continuar sus choques
aquí en América. De esta forma, comprender a fondo el “Facundo” de Sarmiento
es una invitación para el entendimiento de las ideas que conforman el mundo
contemporáneo y, por supuesto, el actual imperialismo político y económico en
boga.
Palabras clave: Sarmiento. Civilización. Barbarie. Facundo.
Introducción
Domingo Faustino Sarmiento representó la imagen contradictoria de un
tiempo oscuro que le tocó vivir. Aunque considerado brillante pensador, para sus
enemigos, empero, tal brillo no floreció en los demás rasgos de su carácter, pues
lo consideraban libertino, rencoroso, racista e impío. De familia pobre, nació en la
provincia de San Juan, Argentina, en 1811, poco después de la Revolución del 25
de mayo de 1810, cuya insurgencia en contra de la corona española había marcado
J el proceso de independencia del país. Por su férrea voluntad, logró superar la
escasa educación formal, imponiéndose a sí mismo el autodidactismo, de modo
A que aprendió filosofía, política y, sobre todo, a escribir. Sus escritos eran como una
ametralladora que se disparaba hacia todas las direcciones, incluso en las de sus
L propios aliados. No por casualidad, le apodaron “el loco”.
Además, su ruda personalidad lo llevó a posicionarse sobre temas
L polémicos, lo que, en efecto, le garantizaba a menudo conflictos, por cuanto
perjudicaba los intereses de los de los caudillos y hacendados. Debido a eso, ganó

enemigos, los cuales le propinaron varios escarmientos, por lo que se vio obligado
A un par de veces a exiliarse a Chile y Brasil. Entre sus opositores más acérrimos se
encontraban Juan Manuel de Rosas y el gaucho Juan Facundo Quiroga. Combatía
a estos porque los veía como líderes de hordas salvajes de gauchos e indios, cuyo
remedio no podía ser otro sino cambiarles la mentalidad, incluso usando la fuerza.
Por todo eso, sus contrincantes le decían “gaucho” que luchaba en contra de los
• gauchos, por cuanto renegaba de todo lo que le recordaba el mundo campesino. Por
270 lo demás, imaginaba que el vivir en la ciudad era sinónimo de civilidad, mientras
la vida rural se acercaba al barbarismo; y que gauchos e indios eran pobres por

pereza o villanía, por lo que los reprochaba el no adecuarse a las nuevas filosofías y
ciencias iluministas oriundas de Francia e Inglaterra, de donde, según él, las luces
habrían de partir a alumbrar la oscuridad medieval en la cual aún se hallaba la
América española.
2 Gracias a ese dualismo entre lo civilizado y lo bárbaro, en 1845 escribió
uno de los libros fundamentales para comprenderse la Argentina, Facundo:

civilización y barbarie, en el que se demuestran las contradicciones entre el campo
0 y la ciudad, es decir, el mundo rural, donde el indio y el gaucho eran las máximas
expresiones; y el urbano, donde Buenos Aires se destacaba como el polo irradiante
1 del progreso y acercamiento al nuevo paradigma sociocultural impuesto por las
ideas iluministas. El libro brinda un estudio de las fuerzas sociales que aún hoy
8 vigoran en la Argentina, en vista de los enfrentamientos políticos entre peronistas
y radicales, por ejemplo.
Sarmiento empezó su análisis sociológico partiendo de la biografía
de un personaje pintoresco de su país: Juan Facundo Quiroga. El autor, en la
introducción, hace una síntesis poética del objeto del libro:
¡Sombra terrible de Facundo, voy a evocarte, para que, sacudiendo el
ensangrentado polvo que cubre tus cenizas, te levantes a explicarnos la vida
secreta y las convulsiones internas que desgarran las entrañas de un noble
pueblo! Tú posees el secreto: ¡revélanoslo! Diez años aún después de su trá-
gica muerte, el hombre de las ciudades y el gaucho de los llanos argentinos,
al tomar diversos senderos en el desierto, decían: ‘¡No, no ha muerto! ¡Vive
aún! ¡Él vendrá!’ ¡Cierto! Facundo no ha muerto; está vivo en las tradiciones
populares, en la política y revoluciones argentinas; en Rosas, su heredero,
su complemento: su alma ha pasado a este otro molde, más acabado, más
perfecto; y lo que en él era sólo instinto, iniciación, tendencia, convirtióse en
Rosas en sistema, efecto y fin. La naturaleza campestre, colonial y bárba-
ra, cambióse en esta metamorfosis en arte, en sistema y en política regular
capaz de presentarse a la faz del mundo, como el modo de ser de un pueblo
J encarnado en un hombre, que ha aspirado a tomar los aires de un genio
que domina los acontecimientos, los hombres y las cosas […]. Necesítase,
empero, para desatar este nudo que no ha podido cortar la espada, estudiar
A prolijamente las vueltas y revueltas de los hilos que lo forman, y buscar en
los antecedentes nacionales, en la fisonomía del suelo, en las costumbres
L y tradiciones populares, los puntos en que están pegados. (SARMIENTO,
1973, p. 06).

L Así que la meta era la de explicar cómo surgió el caudillismo en Argentina
y de qué forma se plasmó en nombres como los de Rosas y Facundo. Por lo tanto,
se debía averiguar la esencia argentina a partir del espacio geográfico, de las
A
costumbres tradicionales y de la mentalidad del pueblo.
Por las tesis expuestas, Sarmiento es amado y odiado a la vez. Los de las
izquierdas, por lo general, lo llaman de prejuicioso y racista; por su turno, los de
las derechas lo apodan de pionero de la educación científico-tecnológica. Con todo,
• desgraciadamente, muchos jóvenes argentinos hoy no lo conocen. Sin embargo,
¿qué tiene Sarmiento a aportar a un no argentino? En verdad, a su obra no se le
271
puede comprender si no se observan las fuerzas antagónicas que se combatían
• desde hace siglos en Europa y que trasladaron sus pugnas al Nuevo Continente.
Por ello, comprender el “Facundo” es una invitación al entendimiento de las fuerzas
contradictorias que conforman el mundo contemporáneo y, por supuesto, el actual
imperialismo político-económico que se esparce por América.
La Argentina después de la revolución de 1810
2 Para contextualizar el libro, hay que remontarse a la Argentina luego
de su Independencia, pues, concretizada esta, se había tornado imprescindible
0 una nueva organización gubernamental, lo que vino, empero, con otro conflicto
armado, cuyo epicentro sería la elección del tipo de república que se adoptaría. En
1 definitiva, el país estaba divido en dos bandos: los que querían una confederación,
en la cual no hubiera un poder administrativo central; y los que, al contrario,
8 anhelaban una federación centralizada, cuya capital fuese Buenos Aires. A los
defensores del primer grupo se les llamaban federalistas, porque rechazaban el poder
central porteño y reivindicaban más autonomía en las provincias, las cuales debían
tener sus propias constituciones, aunque limitadas a asuntos específicos, como,
por ejemplo, las relaciones internacionales. Por lo general, tal grupo era formado
por gauchos, indígenas, provincianos y caudillos, de entre los más distinguidos
fueron Facundo Quiroga y Rosas, siendo este último el responsable por la toma de
Buenos Aires y la implantación de una dictadura, con la que se expulsó muchos
intelectuales de derechas, incluso a Sarmiento. En cuanto al otro bando, el de los
unitarios, se ligaba a los intereses de Gran Bretaña y de la burguesía porteña,
componiéndose, en su mayoría, de militares, hacendados, banqueros, empresarios
y mercaderes.
El conflicto era también económico, debido a que, durante la colonización,
los españoles en la región de lo que hoy es Argentina exportaban sus productos
exclusivamente por el Puerto de Buenos Aires. Con la independencia, empero,
las provincias cuestionaron la tributación impuesta por Buenos Aires, pues la
burguesía de esta había empezado a exigir tributos sobre las mercancías que
J venían de las demás provincias con destino al exterior. Todas las carretas iban a
dar a Buenos Aires porque solamente en ella había un puerto internacional, por lo
A que las provincias interioranas estaban a merced de la burguesía porteña. Así que
se percataron que Buenos Aires les iba a explotar más de lo que España les había
L hecho. De ahí que los conflictos eran inminentes.
Es en este el contexto que se debe ubicar Sarmiento, ya que cuando San
Juan había sido tomada por los federalistas, aquel, abatido y entre los prisioneros,
L
veía ingresar a Facundo Quiroga y sus tropas por las calles de la derrotada provincia.
Este caudillo hizo tremenda demostración de poder, incluso matando sin causa,
A puesto que creía que una de las formas de mantenerse el pueblo obediente sería
imponiéndole el terror. Esta imagen le seguiría a Sarmiento de por vida, hasta el
punto de le haber hecho reflexionar sobre el porqué de hombres sanguinarios como
Facundo Quiroga fueren ovacionados por el “gauchaje” e la “indiada”. Así, Quiroga
es descripto no como un individuo, a raíz de que él no era
• un caudillo simplemente, sino una manifestación de la vida argentina, tal
272 como la han hecho la colonización y las peculiaridades del terreno, a lo cual
creo necesario consagrar una seria atención, porque sin esto la vida y he-
• chos de Facundo Quiroga son vulgaridades que no merecerían entrar, sino
episódicamente, en el dominio de la historia (SARMIENTO, 1973. p. 09).

Esta manera de pensar estaba presente en otros pensadores argentinos.


Esteban Echeverría (2004), en “La Cautiva”, describe a los indios como ebrios, sin
cordura y malos por naturaleza. Y el mismo Echeverría (2004), en “El Matadero”,
2
demuestra como la Buenos Aires en la época de la dictadura de Rosas estaba
dominada por el salvajismo. De esta manera, en el “caudillaje”, la “indiada” y
0 “gauchaje” estaban en la esencia misma de los problemas del país, pues, aunque
durante la guerra de independencia habían sido excelentes soldados, en tiempos
1 de paz no poseían el ingenio para la industria, porque se distinguirían “por su
amor a la ociosidad y su incapacidad industrial. Con ellos la civilización es del todo
8 irrealizable, la barbarie es normal” (SARMIENTO, 1973, p. 10). Las costumbres
rurales actuarían como barrera al ascenso económico y eran impulsadas por la
existencia de enormes páramos inhabitados:
El mal que aqueja a la República Argentina es la extensión: el desierto la
rodea por todas partes, y se le insinúa en las entrañas; la soledad, el des-
poblado sin una habitación humana, son, por lo general, los límites incues-
tionables entre unas y otras provincias. Allí, la inmensidad por todas partes:
inmensa la llanura, inmensos los bosques, inmensos los ríos, el horizonte
siempre incierto […] (SARMIENTO, 1973, p. 11).

Mientras existieran tantas tierras improductivas o deshabitadas, “la


barbarie” continuaría a existir. La solución para tal problema fue presentada en tres
tópicos: la expansión urbana; la inmigración planeada de blancos; y la educación
basada en principios iluministas.
Expansión urbana e inmigración
Sarmiento veía las ciudades y los campos como dos realidades opuestas,
siendo que en las primeras estarían la cumbre de las civilizaciones; al revés, fuera
de las ciudades, el hombre se empequeñecía y degradaba. Entonces, quería a toda
J costa la expansión urbana, por lo mismo se propone la inmigración masiva de
europeos, los cuales, acostumbrados con la civilidad, servirían de freno al atraso:
A “¿Hemos de cerrar voluntariamente la puerta a la inmigración europea que llama
con golpes repetidos para poblar nuestros desiertos, y hacernos, a la sombra de
L nuestro pabellón, pueblo innumerable como las arenas del mar?” (SARMIENTO,
1973, p. 11).
L No obstante, esta inmigración tenía por fin otro objetivo a largo plazo: el
blanqueamiento de la raza por medio de una especie de recolonización europea,
política usada por algunas naciones americanas durante los siglos XIX e XX. Se
A
supone que el mestizaje debería ser combatido, porque en Argentina la
fusión de estas tres familias (blanco, indio y africano) ha resultado un todo
homogéneo, que se distingue por su amor a la ociosidad e incapacidad in-
dustrial, cuando la educación y las exigencias de una posición social no
vienen a ponerle espuela y sacarla de su paso habitual” (SARMIENTO, 1973,
• p. 11).
273 Así, según él, España hizo mal en incorporar al indígena en la vida
• colonial: “Mucho debe haber contribuido a producir este resultado desgraciado la
incorporación de indígenas que hizo la colonización” (SARMIENTO, 1973, p.11).
Así, la crítica se dirige a tres grupos de personas: uno, al indígena que no
se adaptó al modo de ser burgués; dos, al africano, iracundo ante la esclavitud; y
tres, al blanco (sobre todo el gaucho) aferrado a las costumbres rurales:
2 Las razas americanas viven en la ociosidad, y se muestran incapaces, aun
por medio de la compulsión, para dedicarse a un trabajo duro y seguido.
Esto sugirió la idea de introducir negros en América, que tan fatales resul-
0 tados ha producido. Pero no se ha mostrado mejor dotada de acción la raza
española, cuando se ha visto en los desiertos americanos abandonada a sus
1 propios instintos (SARMIENTO, 1973, p. 12).
Po lo tanto, la Argentina debería avergonzarse de eso y mirar hacia las
8 colonias germanas que vivían en su territorio, pues en estas
las casitas son pintadas; el frente de la casa, siempre aseado, adornado
de flores y arbustillos graciosos; el amueblado, sencillo, pero completo; la
vajilla, de cobre o estaño, reluciente siempre; la cama, con cortinillas gra-
ciosas, y los habitantes, en un movimiento y acción continuos. Ordeñando
vacas, fabricando mantequilla y quesos, han logrado algunas familias hacer
fortunas colosales y retirarse a la ciudad, a gozar de las comodidades (SAR-
MIENTO, 1973, p. 13).

Por otro lado, la villa argentina


es el reverso indigno de esta medalla: niños sucios y cubiertos de harapos
viven en una jauría de perros; hombres tendidos por el suelo, en la más
completa inacción; el desaseo y la pobreza por todas partes; una mesita
y petacas por todo amueblado; ranchos miserables por habitación, y un
aspecto general de barbarie y de incuria los hacen notables (SARMIENTO,
1973, p. 13).

Lo que Sarmiento parece decir en las interlíneas es que Argentina debía


haber sido colonizada por los pueblos de origen germánica o sajona, a lo mejor los
J ingleses, puesto que en donde estos se instalaron hubo progreso, sea en el norte,
Estados Unidos y Canadá, sea en el sur, Australia o Nueva Zelanda. Con todo,
para lograr, ellos tuvieron que hacer una política de extermino indígena a la vez
A
que no se mezclaban, manteniendo sus rasgos y costumbres originales. Es una
política maquiavélica, pero no es fue la realidad de Latinoamérica, a raíz de que las
L poblaciones de España y Portugal eran escasas para garantizaren la colonización
de una tan vasta extensión de tierra, como es América. Por lo tanto, el mestizaje
L fue una herramienta necesaria para las coronas de estos dos países. Pero basta
una mirada cuidadosa para que uno se dé cuenta que la mayoría de los conflictos
A en este continente son raciales. El problema no es el mestizaje en sí mismo, sino
la manera como se da. Los indígenas fueron desapropiados de sus tierras; los

africanos fueron traídos a la fuerza a trabajar en una tierra inhóspita; y ambos bajo
el mando de una etnia blanca y preocupada con la riqueza material. Así, mientras
los dominados estaban bajo el yugo, los conflictos eran mínimos, sin embargo,
• cuando ellos comenzaron a organizarse y consiguieren ascender económicamente,
políticamente y culturalmente, comenzaron a la vez quitarles espacio a los blancos.
274
Por lo tanto, la solución para muchos de los problemas latinoamericanos quizá
• esté en el reverso del preconizado por Sarmiento (1973), es decir, la población debe
mezclarse para pronto llegar a una sociedad homogénea.
Otrosí, en casi todos los países han habido dos tipos de inmigrantes,
los que se vienen con su familia a trabajar con el anhelo de fijar residencia y ahí
prosperar; y los que vienen solo en forma transitoria, hacer algo de dinero y volver
2 a su región. Estos no crían vínculos duraderos con la tierra, de ahí que se sienten
menos responsables por el progreso de la nación, pues su corazón late por otro
0 sitio. Las colonias alemanas y anglosajonas muy probablemente estaban, en el
ejemplo de Sarmiento, subvencionadas o hayan sido seleccionadas en sus patrias
1 de origen. Al revés, los indígenas, africanos y los gauchos pocas veces tuvieron
estos privilegios. Además, si se trajeran grupos familiares seleccionados entre los

indianos, árabes, marroquíes, etc. a lo mejor los resultados sean los mismos que
8 los de las antedichas.
En su pensamiento está implícito que se la forma ancestral de vivir de
los indígenas, africanos y gauchos no cambiase habría que eliminarlos. Sarmiento
(1973) no admitía otra forma de vivir que no fuera la inspirada en el glamour y
racionalismo de las ciudades europeas y estadunidenses. Para una mentalidad
colonizadora eso no está mal, pero para el colonizado eso es una afrenta insoportable.
No obstante, Sarmiento traía una dura verdad: o si dejaba los pueblos vivieren a su
modo, incluso les devolviendo las tierras, o se unificaba la mentalidad argentina,
pues si así no ocurriera era probable que la nación se derrumbara, dejara de
existir o fuese anexada por naciones más poderosas. No se debe olvidar que en
ese entonces la Argentina vivía constantemente en guerras civiles o en guerras
contra otras naciones. La unidad territorial, administrativa, política y cultural
era imprescindible. En eso punto, nadie discordaba de Sarmiento. La cuestión
era la siguiente: unidad, sí, pero ¿bajo cuál perspectiva? ¿La de Córdoba y de las
montoneras o de Buenos Aires con su ligación a los valores iluministas?
La civilización oriunda de Córdoba, conforme Sarmiento (1973), estaba
J obsoleta, pues pertenecía a una realidad que se aislaba de los valores preconizados
por las naciones ricas e industrializadas de la época. Aunque Sarmiento fuese
A hombre del interior argentino, veía con clareza que el futuro de las naciones estaba
en adecuarse al nuevo orden mundial, es decir, industrialización, globalización,
L sistema educacional de masas, orden y progreso. En suma, las bases de una
visión positivista. Para lograr eso, no solo la inmigración sería suficiente, pues era

imprescindible que el Estado argentino interviniera y crease un sistema educativo
L semejante al de las naciones industrializadas.
Lo extraño de todo eso es que, en el mismo periodo, algunos escritores del
A Romanticismo buscaban realzar el valor de sus naciones, sobre todo volviéndose
al pasado. En España, Alemania, Portugal, Italia, por ejemplo, durante el siglo
XIX, la figura idealizada del caballero medieval era habitual en la literatura. Tal
tendencia vino a América y, como ahí no hubo una Edad Media en los moldes
europeos, los románticos latinoamericanos intentaron sustituir la ausencia del
• caballero medieval por tipos regionales, es ahí que entran el indio y el gaucho
275 como representantes de las naciones emergentes. La intención era que estos
héroes nacionales ayudasen a consolidar el proceso de independización. En Brasil,

el escritor José de Alencar (2018) describió al indio y el gaucho como personajes
llenos de honor y valor, poniéndolos como los verdaderos héroes nacionales. La
intención era igual, mostrar que América no había comenzado con Colombo y que
no se podía entender Latinoamérica sin darles la misma importancia al hombre
del campo y al urbano. Por su turno, en Argentina va a surgir el Martín Fierro, de
2 José Hernández (1930), cuyo intento era combatir a Sarmiento, demostrándole que
las acciones violentas de algunos gauchos eran provocadas por el total abandono
0 que el Estado se les imponía. En efecto, Hernández (1930) relata un gaucho de
buen corazón que es humillado por las estructuras sociales obligándolo a vivir
1 marginalizado. Hernández posee una visión socialista, mientras Sarmiento es
capitalista. Uno cree ser el hombre fruto de un determinismo social, víctima de un
8 sistema maligno que obliga a los más débiles a vivir en la ignorancia y servilismo;
en tanto, el otro defiende el libre albedrio, cabiéndole al hombre elegir la forma que
le plazca vivir. Ese conflicto entre el campo y lo urbano, entre lo culto y lo inculto
va a tener una síntesis en Don Segundo Sombra, de Guiraldes (2007), ahí el gaucho
no es un monstruo ni tampoco una víctima, no es explorado, es solamente una
persona que vive en paz con las bellezas de la naturaleza sin renegar del mundo
civilizado. Es como si el gaucho ahí no fuese ni el de Sarmiento, ni el de Hernández,
sino uno poético, más allá de las cuestiones políticas.
La reforma educacional
El caudillaje, según Sarmiento (1973), existía gracias a la herencia
española. Para él, España jamás se había liberado de las costumbres feudales,
debido a que ella mantendría la noción católica de que la pequeña producción
agrícola debía estar por encima de la industrial. En consecuencia, los gauchos
eran rudos porque desde la cuna el Estado, la Iglesia y la Escuela les enseñaban
a serlo. Por ello, se había de acabar con las costumbres gauchas, y para eso se
proponía a sí mismo dos formas posibles: la una era exterminar a los gauchos a las
bravas; la otra, educarlos en la mentalidad iluminista, contraria a las enseñanzas
J religiosas. Sarmiento, algunas veces, propuso la primera, en vista de que, en carta
a Bartolomé Mitre, le aconsejaba no “economizar sangre de gauchos. Este es un
abono que es preciso hacer útil al país. La sangre es lo único que tienen de seres
A
humanos esos salvajes” (SARMIENTO apud GUTIÉRREZ, 1940, p. 167). Tampoco
era compasivo con los indígenas: “Quisiéramos apartar de toda cuestión social
L americana a los salvajes por quienes sentimos sin poderlo remediar un invencible
repugnancia” (SARMIENTO apud GUTIÉRREZ, 1940, p. 169).
L Felizmente, en otros momentos, Sarmiento dice que solo la educación
formal puede quitar la ignorancia, por lo que le germina la noción de un sistema
A educacional moderno. Él comenzó a pensar en los cambios educacionales cuando
de su exilio en Chile. Ahí logró suceso como periodista y maestro, por lo que, entre
1845 y 1847, el Presidente de Chile le encargó de hacer una gira por diversos
países con el objeto de que aprendiera las modernas técnicas de educación y
desarrollo económico y que después se las emplease en Chile. Este viaje le ayudó
• a mensurar hasta qué punto las sociedades latinoamericanas estaban atrasadas
276 en comparación con las desarrolladas. En su recorrido advirtió que las naciones
liberales y tolerantes al protestantismo se sobresalían en términos de progreso
• material, mientras las católicas estaban bajo una civilización pseudocientífica. Su
preferencia por Francia, Inglaterra y Estados Unidos era el mejor ejemplo de ello,
inclusive habiéndole llegado a desear que la colonización de Argentina se hubiera
dado a manos de los ingleses, por cuanto solo así el país tendría organización y
disciplina.
2 Por lo tanto, el Estado debería intervenir en la formación del “nuevo
hombre”, crear una mentalidad que se volviera a la razón y a la ciencia y cambiar la
0 visión “española y cordobesa”, cristiana, adoradores de la civilización humanística,
lectores de san Agustín y Tomás de Aquino, de la Escolástica y patrística. En fin,
1 había que frenar el avance de la “barbarie’. Quería llevar la educación de las elites
para el pueblo, pero sin hacerse con que este respingara sus malas costumbres a
8 aquellos. En 1844 crea la ley de la educación pública, laica, obligatoria y gratuita.
En verdad, las ideas del pensador argentino prevalecieron en las políticas
públicas de su país. Los gauchos fueron perseguidos y hoy hay solo resquicios de lo
que fueron; en cuanto a los indios, lenta y gradualmente las persecuciones fueron
aumentando hasta desembocarse en los hechos de Julio Argentino Roca, décadas
más tarde. A la vez, la migración masiva de europeos fue realizada y la educación
formal se basó completamente en los moldes franceses e norte-americanos, como
lo deseaba Sarmiento. Eso conlleva creer que este tuvo el coraje para expresar lo
que muchos argentinos pensaban y no se animaban a hablar. Pese a eso, el avance
educacional ofrecido por él hizo el país encuadrarse entre las grandes naciones.
Hoy en Latinoamérica se pide una educación que esté a altura de la ofrecida por
Inglaterra y Estados Unidos, pero cuando se mira tales países uno se da cuenta de
que por detrás del progreso vienen males aterradores. Eso pasa porque la educación
actual prima por la individualidad y la riqueza material. La ciudad de Córdoba se
oponía a ellos creía ser la formación humanística y religiosa la adecuada al hombre.
Y fue por eso que Sarmiento se enojaba a menudo con ella.
Contrario a córdoba
J Para Sarmiento, Córdoba era, de entre todas las ciudades americanas, la
más fiel a la costumbre española. Con todo, para describirla, comienza alabándole
A los encantos paisajísticos con indisimulable admiración:
Córdoba era, no diré la ciudad más coqueta de la América, porque se ofen-
L dería de ello su gravedad española, pero sí una de las ciudades más bonitas
del continente. Sita en una hondonada que forma un terreno elevado, llama-
do Los Altos, se ha visto forzada a replegarse sobre sí misma, a estrechar y
L reunir sus regulares edificios. El cielo es purísimo, el invierno, seco y tónico;
el verano, ardiente y tormentoso (SARMIENTO, 1973, p. 20).
A En términos de bellezas naturales, la ciudad estaría a gusto. Sin embargo,
al describir la arquitectura direcciona al lector a advertirse del oscurantismo
medieval reflejado en la labor católica, principalmente la de la Compañía de Jesús:
En la plaza principal está la magnífica catedral de orden gótico, con su enor-
me cúpula recortada en arabescos, único modelo que yo sepa que haya en
• la América del Sur de la arquitectura de la Edad Media. A una cuadra está
277 el templo y convento de la Compañía de Jesús, en cuyo presbiterio hay una
trampa que da entrada a subterráneos que se extienden por debajo de la
• ciudad, y van a parar no se sabe todavía adónde; también se han encontra-
do los calabozos en que la Sociedad sepultaba vivos a sus reos. Si queréis,
pues, conocer monumentos de la Edad Media y examinar el poder y las
formas de aquella célebre Orden, id a Córdoba, donde estuvo uno de sus
grandes establecimientos centrales de América. (SARMIENTO, 1973, p. 21).

2 Además, para contrastar con la belleza inicial, quiere demostrar que


Córdoba toda es una cárcel:
0 la ciudad es un claustro encerrado entre barrancas; el paseo es un claustro
con verjas de fierro; cada manzana tiene un claustro de monjas o frailes;
los colegios son claustros; la legislación que se enseña, la Teología; toda
1 la ciencia escolástica de la Edad Media es un claustro en que se encierra y
parapeta la inteligencia, contra todo lo que salga del texto y del comentario.
8 Córdoba no sabe que existe en la tierra otra cosa que Córdoba (SARMIENTO,
1973, p. 23).
Incluso el cotidiano de los antiguos moradores de Córdoba no se escapan
al sarcasmo:
En cada cuadra de la sucinta ciudad hay un soberbio convento, un monas-
terio o una casa de beatas o de ejercicios. Cada familia tenía entonces un
clérigo, un fraile, una monja o un corista; los pobres se contentaban con
poder contar entre los suyos un betlemita, un motilón, un sacristán o un
monacillo” (SARMIENTO, 1973, p.23).
La ironía atinge incluso a uno de los líderes cordobeses, el Deán Funes y
a la Universidad de Córdoba:
Andando un poco en la visita que hacemos, se encuentra la célebre Uni-
versidad de Córdoba, fundada nada menos que en el año 1613, y en cuyos
claustros sombríos han pasado su juventud ocho generaciones de doctores
en ambos derechos, ergotistas insignes, comentadores y casuistas. Oiga-
mos al célebre Deán Funes describir la enseñanza y espíritu de esta famosa
Universidad, que ha provisto durante dos siglos de teólogos y doctores a una
J gran parte de la América: «El curso teológico duraba cinco años y medio. La
Teología participaba de la corrupción de los estudios filosóficos. Aplicada
A la filosofía de Aristóteles a la Teología, formaba una mezcla de profano y
espiritual. Razonamientos puramente humanos, sutilezas y sofismas en-
gañosos, cuestiones frívolas e impertinentes; esto fue lo que vino a formar el
L gusto dominante de estas escuelas.» Si queréis penetrar un poco más en el
espíritu de libertad que daría esta instrucción, oíd al Deán Funes todavía:
L «Esta Universidad nació y se creó exclusivamente en manos de los jesuitas,
quienes la establecieron en su colegio llamado Máximo, de la ciudad de Cór-
doba.» (SARMIENTO, 1973, p.19).
A
¿Qué mal hay en una universidad prestigiar el Derecho o basar sus
enseñanzas en Aristóteles? El avance científico es importante, pero no lo es más
que el respeto a la vida humana. Las grandes universidades que primaron por el
desarrollo científico-tecnológico del mundo occidental fueron, desafortunadamente,
las responsables también por crear armas de destrucción masivas, en especial la

bomba atómica. ¿Cuántas armas de este tipo las universidades latinas hicieron?
278 Pero, después de Sarmiento, la enseñanza superior en Argentina va a cambiar,
• lo que dará frutos en el siglo XX, pues es ahí donde habrá un “boom” de genios
argentinos que pasarán a ser admirados por las demás naciones. Por lo tanto,
Sarmiento tenía razón en un punto central cuando su crítica se ensancha a la
producción literaria:
Muy distinguidos abogados han salido de allí; pero literatos, ninguno que
2 no haya ido a rehacer su educación en Buenos Aires y con los libros moder-
nos. Esta ciudad docta no ha tenido hasta hoy teatro público, no conoció la
ópera, no tiene aún diarios, y la imprenta es una industria que no ha podido
0 arraigarse allí. El espíritu de Córdoba hasta 1829 es monacal y escolástico;
la conversación de los estrados rueda siempre sobre las procesiones, las
fiestas de los santos, sobre exámenes universitarios, profesión de monjas,
1 recepción de las borlas de doctor. Hasta dónde puede esto influir en el espí-
ritu de un pueblo ocupado de estas ideas durante dos siglos, no puede de-
8 cirse; pero algo ha debido influir, porque ya lo veis, el habitante de Córdoba
tiende los ojos en torno suyo y no ve el espacio (SARMIENTO, 1973, p.26).

No obstante, una de las causas reales por la que se tiraban petardos
hacia esa ciudad es que ella fue fiel a sus raíces al no aceptar guerrear con su
matriz, es decir, con España:
La revolución de 1810 encontró en Córdoba un oído cerrado, al mismo tiem-
po que las provincias todas respondían a un tiempo al grito de: «¡A las ar-
mas! ¡A la libertad!» En Córdoba, empezó Liniers a levantar ejércitos para
que fuesen a Buenos Aires a ajusticiar la revolución; a Córdoba mandó la
Junta, uno de los suyos y sus tropas, a decapitar a la España (SARMIENTO,
1973, p. 07).

Se subraya que España fue un imperio invasor y esclavista. Por lo tanto,


los indígenas y africanos tienen todo el derecho de ver en España algo negativo y
desear la independencia. Sin embargo, lo mismo no se puede decir de los blancos
que aquí vivían. Estos eran españoles, aunque nacidos en América, le juraron
fidelidad a la bandera española, así que había algo de traición a la patria el hecho de
J rebelarse ante la metrópolis. Si la independencia hubiese partido de los indígenas o
africanos, sería otra historia, pero no, los cabezas de la independencia eran blancos,
A educados, inclusive en Europa, y acomodados.
La España católica se reflejaba en Córdoba, por ende se ve allí una fuerte
L cultura basada aun hoy en los principios más tradicionales del catolicismo ortodoxo.
Sin embargo, fue a causa de este que España no pudo alejarse de la Edad Media,
L por cuanto se metía día tras día en una corriente contraria al progreso científico.
Por ende, la ciudad era a la vez civilizada e incivilizada, pues no quería quitarse

de encima las ideas que la mantenía en retraso. Era bella en términos literarios,
A filosóficos, artísticos e, incluso, religiosos; no obstante, estaba bajo la ignorancia
religiosa que no la dejaba acompañar las ideas iluministas francesas e inglesas.
Por su turno, Buenos Aires era todo lo contrario: ciudad brillante, llena de hombres
alineados a las nuevas ideas, lectores de Diderot y Voltaire, adeptos de los grandes
científicos y aptos al comercio mundial.

Este dualismo no fue exclusivo a Sarmiento, en casi toda la América
279 pos-colonialista hubo, en efecto, este fenómeno. Sin embargo, pocos fueron los
• pensadores que lo expusieron de forma tan profunda y literaria. El conflicto no se
puede comprender fuera de su macro contexto, es decir, el del Iluminismo y del
liberalismo. No es secreto que el proceso de independencia americano estuvo bajo
la orden de grupos de intereses y de sociedades secretas, muchas de las cuales
eran contrarias a la Iglesia católica y a la monarquía, incluso a la autodenominada
2 esclarecida. La iglesia representaba la búsqueda de la salvación espiritual y de la
mejora del hombre mientras estuviera en este mundo; por su vez, el liberalismo
pregonaba que el hombre debía construir su propio rumbo sin carecer de entidades
0 espirituales.

La iglesia representaba el apego a la tierra y a los valores morales
1 tradicionales, los liberales decían ser la ciudad el centro del avance y progreso y
que los valores morales, incluso la noción de familia tradicional, representaban
8 la manera que la iglesia y a la monarquía poseían para dominar al pueblo. Los
liberales creían en el poder de la educación formal y científica para construir una
sociedad mejor, desechándose del valor de la educación religiosa, pues esta trajo
al humano la noción de pecado originario, es decir, el que trasparece cuando al
hombre le es dado la libertad plena para actuar. La iglesia contestaba a Rousseau
en cuanto a su discurso que decía ser el hombre bueno por naturaleza, siendo la
sociedad la que lo corrompiera. Los curas siempre supieron ver sin engaños que la
democracia es una trampa sutil, pues cuanto más el hombre se cree el dueño del
juego político menos darse cuenta de las fuerzas que lo manipulan.
Sarmiento era un hombre que veía en la Revolución Francesa, en el
liberalismo y en la ciencia la mejor manera de educar y hacer el pueblo huir de
la barbarie. Sin embargo, para que esto pasara era necesario destruir los restos
de la religiosidad que todavía impregnaba a la gente. De pronto le vino la idea de
combatir a la barbarie, por medio de las armas o por la educación. La barbarie,
para él, se encontraba enraizada en el campo, plasmada en los indígenas y, sobre
todo, en los gauchos. Estos debían ser eliminados, sus sangres debían chorrear
J como cascadas, pues de otra manera la civilización no habría de acercarse.
Por detrás del intento de Sarmiento en “mejorar” el mundo había una
A luz que le impedía de ver la devastación producida en las sociedades altamente
industrializadas. Y contra esa industrialización y materialismo irracionales, España
L y la Iglesia reaccionaron pronto. Por eso, es importante que se conozca a fondo
lo que pasó en aquel país desde la Antigüedad para comprenderse sus hechos,

buenos y malos, desde su formación en cuanto estado nacional.
L
Oposición a la cultura española
Si se pudiese apuntarle a Sarmiento algunos blancos favoritos, seguro
A
que se encontrarían entre ellos los caudillos Facundo y Rosas por sus costumbres
gauchas, las cuales serían nomás la continuidad de la ruda mentalidad ibérica.
Por lo tanto, su enojo transcendía la realidad meramente argentina dirigiéndose
hacia España.
• Sin embargo, y un poco paradojal, él no niega la contribución de España
a la cultura universal, por cuanto de ella surgieron grandes talentos, especialmente
280
durante el “Siglo de Oro”, el que correspondió al momento áureo del imperio
• español. Para él, empero, el resplandor del Siglo de Oro español sería a la vez la
el resplandor y descenso de la civilización española. Así, dicho país no se había
adecuado a los cambios contemporáneos, manteniéndose, al revés, atado a una
visión cristiana en la cual el hombre debería buscar el mundo espiritual y olvidarse
de las riquezas materiales. Mientras tanto, las naciones liberales adoptaron en larga
2 escala las ideas propugnadas por las reformas religiosas, por lo que han puesto
el racionalismo científico por encima de la religión. Por lo tanto, Sarmiento (1973)
0 creía haber dos grandes civilizaciones: las semejantes a la española, decadentes
por cuanto ligadas a valores medievales, principalmente el teocentrismo; y las

liberales, cuyo antropocentrismo era la columna vertebral. En Argentina, Córdoba
1 era la representante de las primeras, mientras Buenos Aires, de las segundas.
Sarmiento decía, por lo tanto, que el problema de la Argentina fue haber sido
8 colonizada por España,
esa rezagada a la Europa, que, echada entre el Mediterráneo y el Océano,
entre la Edad Media y el siglo XIX, unida a la Europa culta por un ancho
istmo y separada del África bárbara por un angosto estrecho, está balan-
ceándose entre dos fuerzas opuestas, ya levantándose en la balanza de los
pueblos libres, ya cayendo en la de los despotizados; ya impía, ya fanática;
ora constitucionalista declarada, ora despótica impudente; maldiciendo sus
cadenas rotas a veces, ya cruzando los brazos, y pidiendo a gritos que le im-
pongan el yugo, que parece ser su condición y su modo de existir. ¡Qué! ¿El
problema de la España europea, no podría resolverse examinando minucio-
samente la España americana, como por la educación y hábitos de los hijos
se rastrean las ideas y la moralidad de los padres? (Sarmiento, 1973, p. 08).

De ahí que, mientras la Argentina estuviera ligada al pensamiento de


la ex metrópolis, tendría que soportar el desarrollo de sus vecinos en cuanto
ella permanecería en la oscuridad. Sarmiento asimismo creía que le faltaba a la
Argentina un pensador como Alexis de Tocqueville, lo cual pudiera explicar las
idiosincrasias y paradojas de aquella nación. Pues si aquél hubiera vivido en el
J país platense a lo mejor hubiera podido explicar:
el misterio de la lucha obstinada que despedaza a aquella República; hubi-
A éranse clasificado distintamente los elementos contrarios, invencibles, que
se chocan; hubiérase asignado su parte a la configuración del terreno y a
los hábitos que ella engendra; su parte a las tradiciones españolas y a la
L conciencia nacional, inicua, plebeya, que han dejado la Inquisición y el ab-
solutismo hispano; su parte a la influencia de las ideas opuestas que han
L trastornado el mundo político; su parte a la barbarie indígena; su parte a
la civilización europea; su parte, en fin, a la democracia consagrada por la
revolución de 1810; a la igualdad, cuyo dogma ha penetrado hasta las capas
A inferiores de la sociedad (SARMIENTO, 1973, p. 08).
En definitiva, el problema de la Argentina sería compartido por las demás
ex colonias españolas, y para comprobarlo Sarmiento da el ejemplo del dictador
paraguayo José Gaspar Rodríguez de Francia, alias el Doctor Francia:
¡Qué! ¿No significa nada para la historia y la filosofía esta eterna lucha de

los pueblos hispanoamericanos, esa falta supina de capacidad política e
281 industrial que los tiene inquietos y revolviéndose sin norte fijo, sin objeto
preciso, sin que sepan por qué no pueden conseguir un día de reposo, ni qué

mano enemiga los echa y empuja en el torbellino fatal que los arrastra, mal
de su grado y sin que les sea dado sustraerse a su maléfica influencia? ¿No
valía la pena de saber por qué en el Paraguay, tierra desmontada por la mano
sabia del jesuitismo, un sabio educado en las aulas de la antigua Universidad
de Córdoba abre una nueva página en la historia de las aberraciones del
2 espíritu humano, encierra a un pueblo en sus límites de bosques primitivos,
y, borrando las sendas que conducen a esta China recóndita, se oculta y
esconde durante treinta años su presa, en las profundidades del continente
0 americano, y sin dejarla lanzar un solo grito, hasta que muerto, él mismo,
por la edad y la quieta fatiga de estar inmóvil pisando un suelo sumiso,
1 éste puede al fin, con voz extenuada y apenas inteligible, decir a los que
vagan por sus inmediaciones: ¡vivo aún!, ¡pero cuánto he sufrido!, ¡quantum
mutatus ab illo! ¡Qué transformación ha sufrido el Paraguay; qué cardenales
8 y llagas ha dejado el yugo sobre su cuello, que no oponía resistencia! (SAR-
MIENTO, 1973, p. 09).

Mírese que se apunta al doctor Francia como víctima de una educación
cuyos matices se encontrarían en la mentalidad jesuítica de la Universidad de
Córdoba. Sin esta mentalidad, según Sarmiento, no hubiera podido surgir un
dictador como Francisco Solano López, responsable de la guerra entre Paraguay
y la triple alianza. Los dos dictadores citados son descriptos como salvajes; sin
embargo, la ironía está en que eran letrados y con ideas cercanas a de los pensadores
iluministas franceses. No se discute aquí las consecuencias de los hechos de estos
dos hombres para Paraguay, lo que sí se hace, es decir que discrepaban de Sarmiento
con relación a la creencia de que el liberalismo económico, como lo imponían las
naciones europeas, era la mejor opción económica para Latinoamérica. Además,
el simple acto de haber existido una dictadura en Paraguay no conlleva creer que
esta fuese mala o que sus idealizadores fuesen ignorantes. En efecto, muchos
de los países alabados por Sarmiento habían pasado por momentos dictatoriales
vergonzosos, como es el caso de Francia, cuyo periodo conocido por “Terror” generó
J una de las carnicerías más sangrientas de la Historia.
Personajes como el Doctor Francia y Solano López son difíciles de escrutar,
A pues, así como el propio Sarmiento, vivieron en épocas de dualismos profundos, de
ahí que una sola perspectiva sobre ellos quizá no sea suficiente para descifrarles
L el alcance de sus ideas. Lo mismo se debe decir de la cultura española; no hay
que mirarla bajo una perspectiva solamente, puesto que España es, como se dijo,

una región de contacto entre dos mundos: el franco-germánico (para Sarmiento el
L civilizado) y el africano (“rudo”), por consiguiente ella nos es ni una cosa ni otra,
sino ambas a la vez. Si a Sarmiento le hubiera dado la capacidad de ver las dos
A grandes guerras que asolaron el mundo en el siglo XX, tal vez cambiase de parecer,
pues ambas fueron el resultado del racionalismo científico y del progreso material
tan alabados por el pensador argentino. Por otro lado, es injusto criticarlo por
anhelar que su país se adaptara al nuevo paradigma político-económico, en vista
de que las demás naciones circunvecinas ya lo estaban logrando. No se puede
• olvidar que la Argentina de aquel entonces era grande en extensión pero con altos
282 índices de analfabetismo y pobreza. A lo mejor el error de Sarmiento estuviese en
aceptar ciegamente el progreso científico y desechar las enseñanzas religiosas.

España frente al Iluminismo
En los siglos XVI y XVII podríamos dividir Europa en dos grandes bloques:
el uno de cuño católico; y el otro protestante. Los países protestantes vivenciaban
el avance del Renacimiento cultural y científico; mientras tanto, los católicos
2 desconfiaban que la ciencia y el comercio pudieran ser fuente de desarrollo humano.
Eso reflejaba incluso en el arte, pues en los países católicos prevaleció el Barroco,
cuya base era la Contrarreforma, financiada por la Iglesia, por lo tanto, más cerca
0
del sacro, por eso no es error decir que el Barroco fue un enfrentamiento entre
la cultura latino-católica tradicional y los germanos-protestantes para asegurar
1 quién quedaría con hegemonía económica y cultural en Europa. Por su turno, el
arte de los países protestantes iba de la mano con el clásico greco-romano, por lo
8 que irradiaba una visión pagana y, en algunos casos, profana.
Para Sarmiento, los Estados protestantes favorecían la burguesía y
andaban de la mano con los nuevos paradigmas científicos y comerciales. Mientras
que los católicos eran propensos a mantenerse bajo las tradiciones medievales y,
por consiguiente, hostiles al progreso científico iluminista. Y sería este el caso de
España, pues, habiendo surgido gracias a los influjos del catolicismo, no había
como desarraigarse de este, pues su surgimiento en cuanto reino en la Edad
Media sería incomprensible si se ignorase haber en ese entonces algo similar a
una cruzada en contra de los musulmanes que habían conquistado la Península
desde el siglo VII. Esta, antes de la conquista, estaba al mando del reino cristiano
de los visigodos, lo cual, por peleas internas, dejó que los árabes lo conquistaran
en menos de cinco años. Los visigodos huyeron para el norte, escondiéndose en
la Cordillera Cantábrica y en los Pirineos. Allí surgió el primer foco de insurgencia
hacia los invasores, el reino católico de Astur, predecesor de la España actual. Desde
entonces, surgieron varios reinos en la franja norte de la región, en su mayoría
católicos, y que poseían un enemigo común. Gracias a eso, las figuras del rey, del
noble, del sacerdote y, más adelante, del burgués se tornarían fundamentales para
J derrotar a los musulmanes.
Mientras los demás sitios de Europa en los siglos XV y XVI se hallaban en
A paz con los musulmanes, en la Península Ibérica el espíritu cruzado todavía ardía
con intensidad, pues el reino de Al-Andaluz aún existía en la parte sur de la región.
L Así, en cuanto los países germánicos se preparaban para la Reforma Luterana,
en la tierra de Cervantes la unidad católica era fundamental para fomentar el

patriotismo y garantizar la reconquista total. Así que el catolicismo estaba enraizado
L a lo máximo a punto de ser unos de los elementos de la creación de los dos primeros
estados nacionales modernos, Portugal y España. El surgimiento de esta en cuanto
A nación es impensable sin el apoyo la Iglesia, responsable directa por el casamiento
de los reyes Fernando I de Aragón y Isabel de Castilla. Estos disminuyeron las
tensiones internas al conciliar las clases sociales, y no dieron de espaldas al
desarrollo científico y tecnológico. Los que vinieron tras ellos, tuvieron la misma
política conciliatoria y progresista. Así que España era un reino que surgía para
• ser el bastión de la cristiandad católica, y, por lo tanto, no podía aceptar un nuevo
283 paradigma social que contestara los cimientos de la Iglesia. Pronto los intelectuales
católicos se dieron cuenta de la relación entre el avance de los ideales iluministas
• y renacentistas con el surgimiento de protestantismo, por lo tanto enfrentarse a
este era también sinónimo de combatir el avance de los dos primeros. Por esta
perspectiva, España y también Portugal no eran atrasados, simplemente buscaban
una forma alternativa para el avance liberal.
No obstante, expulsado el musulmán en 1492, otro enemigo religioso
2 surgía en 1517, desafiando la unidad católica, la Reforma Protestante. España
podría haber sido sofocada, pues del extremo norte venían los ideales protestantes,
0 mientras que del norte de África irradiaban los ideales musulmanes. Así la península
no tuvo elección que cerrarse ideológicamente, manteniéndose bastantes rasgos
1 del feudalismo en plenos siglos XVI y XVII. Es ese feudalismo que Cervantes (1984)
va a criticar en su “Quijote”, en vista de que Don Quijote representa la mismísima
8 España anclada en un período romántico e idealizado, sin embargo, lejos de la
modernidad. Cervantes ya prenunciaba el conflicto que vivenciaría la generación
de Ortega y Gasset, puesto que este, en el primer cuarto del siglo XX, intentaba
que España mirase hacia la Europa industrializada y científica, que cambiase de
perspectiva, pues solo así lograría salir de la crisis existencial por la cual pasaba
entonces. Ortega y Gasset (1999) piensa igual que Sarmiento. En efecto, no por
acaso surgió en España la más feroz enemiga del protestantismo, del Iluminismo
anticatólico, de la masonería, del islam y de las sociedades secretas contrarias al
dogma romano: la Compañía de Jesús. En ese entonces se tornó imprescindible
crearse argumentos que defendiesen el credo católico, de la misma forma como
había hecho la Patrística y la Escolástica en ante el paganismo greco-romano.
Escuelas, universidades y la expansión territorial se hicieron materializar para
la consolidación del catolicismo. No por menos se crearon diversas universidades
católicas en América Latina, siendo la de Córdoba una de las principales.
Esto provocó en España una doble consecuencia, una favorable y otra
desfavorable. Favorable porque el país durante los siglos XVI, XVII y XVIII, bajo la
batuta católica logró en la cultura el famoso “Siglo de Oro”, cuya miríada de autores
J fantásticos revela lo cuanto España era de hecho una superpotencia mundial. Sin
embargo, en el campo propiamente científico no hubo más que algunos bosquejos
A de suceso a lo largo de los últimos siglos.
Esa civilización basada en la filosofía y literatura medievales, en grandes
L pintores barrocos, pero la indisposición al progreso en el campo de las ciencias
experimentales es la principal causa del enojo que sentía Sarmiento. En efecto, en
el siglo XVIII España ya demostraba señales de declive, a causa de no poseer las
L
herramientas para competir con las otras grandes naciones ascendientes, Inglaterra,
Francia y Holanda. Así, Sarmiento renegó del mundo de tradición española para
A colgarse en la tradición germánica, adoptándola como la mejor. No obstante, hay
que preguntarse si todos los dogmas y valores de la Iglesia medievales estaban de
hecho tan ultrapasados y perniciosos a la vez. Hay fundamento en la pregunta si se
la mira por una perspectiva crítica, pues es conocido el adagio “La historia no está
hecha por los vencidos, sino por los vencedores.” Sí así lo es, hay que indagar sobre
• quiénes han escrito tesis y más tesis en contra de los valores medievales, sobre
284 todo los valores religiosos. Es muy probable que uno los halle entre los burgueses,
los comunistas, los materialistas, existencialistas, iluministas, renacentistas, es

decir, liberales en general, a los cuales era imprescindible un cambio de rumbo
social, por lo que les era importante hacer propagandas ideológicas contrarias
a sus enemigos declarados: la Iglesia, el Feudalismo, el Teocentrismo, la Fe, la
monarquía, los valores tradicionales religiosos. La iglesia hoy está en la defensiva
y vencida por los valores renacentistas.
2
Era necesario crearse un aura de fetiche y encantamiento para atraer a la
gente, proponiéndola el paraíso terrenal y una vida sin opresiones y desarraigada de
0 reglas férreas. El Iluminismo era ese aura y trajo un ambiente donde los cafés, los
bares y las sociedades secretas se constituían en el charme con lo cual cualquiera
1 debía de encuadrarse para lograr ser considerado un verdadero caballero. Un
movimiento que empezó a finales de la edad Media y que todavía no ha terminado,
8 pues la contemporaneidad no hubiera llegado al enmarañado global en el que se
halla si no tuviera como eje central una idea sencilla: la razón prevalece sobre la fe.
El mundo actual se basa en eso, incluso muchísimas iglesias protestantes parecen
pregonar eso mientras se preocupan más con las ganancias y el enriquecimiento.
Un ejemplo de ese fenómeno se halla en el hecho de que no pocos judíos ortodoxos
y ultra ortodoxos estén contra la creación y la continuidad del Estado de Israel,
pues ellos le dicen falsos religiosos a los que comandan los rumbos de aquel país
hoy, y argumentan que son los judíos alemanes y rusos, los askenazis, los que
presionaron para el advenimiento del país, incluso hiriendo algunos preceptos
fundamentales que les fueron dados por Dios. Según los ultra-ortodoxos, estos
falsos judíos están destruyendo la religión de la misma forma que los cristianos
desmenuzan la suya. No por otro factor, hay muchos judíos ortodoxos aliados a los
musulmanes, pues creen aquellos que estos aún mantienen los mandamientos con
mayor celo que los cristianos y judíos liberales.
El judaísmo askenazi (o sionista) es un claro ejemplo de como el
materialismo ha impregnado las religiones, pero ese hito ha llegado a la cumbre a
partir de finales del siglo XVIII y comienzos del XIX, cuando hubo las independencias
J de los países americanos. Al fin y al cabo, ¿quiénes fueron los que tanto deseaban la
independencia? Los mismos que hicieron las revoluciones religiosas, industriales,
A liberales, económicas, morales, políticas y culturales, es decir, grupos, sociedades
secretas e intelectuales dispuestos a todo para derrumbar el antiguo régimen, lo
L que pronto lograron. Desde entonces, Europa se vio presionada por una onda de
protestas contra las monarquías europeas y que luego se esparcieron por América

también.
L
El objetivo de esas protestas y reuniones secretas era la destrucción del
Absolutismo. La Revolución Francesa lo hizo, Napoleón Bonaparte continuó en
A Europa. Sin embargo, había los bastiones de defensa del absolutismo y de la Iglesia,
la Península Ibérica y, por supuesto, sus colonias, sobre todo las americanas.
Históricamente España y Portugal fueron los países en los cuales el catolicismo
más se ha enraizado. Por lo que el movimiento de destrucción del antiguo régimen
debería expandirse a las colonias. La oportunidad llegó cuando Napoleón Bonaparte
• invadió España, derribando el rey y poniendo su hermano, Fernando Bonaparte,
285 como el nuevo rey español, un rey muy favorable a los intereses de la Revolución
Francesa. A la vez, la corte portuguesa huyó a Brasil, cuya ubicación geográfica era

ideal para luchar contra las tropas napoleónicas.
Este momento fue una oportunidad de oro para los opositores del antiguo
régimen, pues hubo una explosión de ideas nuevas, divulgadas principalmente por
masones y republicanos. Los grandes próceres de la Independencia, tales como
2 Belgrano, San Martín, etc. formaban parte de tales sociedades.
Lograda la independencia, la masonería trabajó duro para idealizar una
forma liberal de gobierno, ya anunciada con euforia por Rousseau o Montesquieu.
0
La lucha entre partidarios del antiguo régimen y los del nuevo fue encarnizada.

Sarmiento pertenecía a este segundo grupo, era masón de alto rango,
1 y defendía los valores del iluminismo por encima de los valores pregonados
ancestralmente por España. De ahí, su rencor por España, la que, según él, era la
8 cuna de una gran civilización del pasado.

Córdoba, en Argentina, representaba ese mundo español, los valores que,


para los iluministas y masones, muchos de los cuales ateos declarados hasta la
muerte, era imprescindible destruir.
Eso empeoró cuando del surgimiento de la Revolución Industrial, la
cual exigió un mercado globalizado, con reglas más flexibles, lo que disminuyo la
autoridad del Rey. Este pasó a ser un estorbo, y la burguesía se utilizó de todos
los medios para botarlo fuera. Los periódicos, el arte del Romanticismo y los
filósofos pregonaban un liberalismo extremado, donde el “yo” pudiese expresarse
sin trabas, de ahí que el Estado no debería intervenir en la economía, dejando que
la “mano invisible del mercado” lo hiciera. Esta sería la forma como las naciones
iban a enriquecerse, según Adam Smith (2011). Y tenía razón, no hay duda. Sin
embargo, la riqueza cada vez más quedaba en manos de unos pocos, mientras la
mayoría pasaba hambre. Además, el empuje capitalista logró que los campesinos
vendieran sus fincas a las grandes empresas productoras de granos, cuyo intento
era sostener la grande cantidad de gente que vivía en las ciudades, las cuales
J rellenas comenzaron a presentar los más diversos problemas sociales: desempleo,
bajos ingresos, vandalismo, ociosidad, pandillas, drogadicción, trabajo infantil etc.
A Los burgueses, empero, atribuían esa situación al autoritarismo del rey
y a la interferencia de la Iglesia. De ahí que estos dos, en buena medida, sirvieron
L de chivo expiatorio. Hubo reyes malos, por supuesto, pero no se puede olvidar
que el clero y el rey, por lo general, se oponían a los excesos de la burguesía, por

ello la propaganda tuvo la clara intención de desprestigiarlos, mostrándoles como
L pervertidos, fanfarrones, ebrios, tontos, glotones, incompetentes. Sin embargo
se debe aclarar que la humanidad durante casi toda la historia estuvo bajo el
A comando de la monarquía. ¿Cómo es que solo a partir del siglo XVII es que uno
se dio cuenta de que la monarquía era inviable? Tal pregunta se hacía en los
defensores de los dogmas cristianos y de la monarquía, sobre todo España, pues,
mientras en el mundo germánico y anglosajón la reacción a la Iglesia y al rey
recrudecía, en la Península Ibérica la alianza entre el Rey, la Iglesia, la Nobleza y la
• Burguesía no tuvo mayores incidentes, puesto que, mientras los reyes sostenían el
286 poder y garantizaban la expansión territorial, lograban asimismo agradar a griegos
y troyanos. Los quehaceres estaban muy bien arreglados en la Iberia: la nobleza
• se ocupaba de la guerra, de los botines y de la posesión de tierras; mientras los
comerciantes buscaban nuevas rutas y mercados, siéndoles permitido el libre
tránsito comercial; en cuanto a la Iglesia, le era garantizada a esta la posibilidad
de expansión de su reino espiritual entre los pueblos conquistados y, también, la
posesión de tierras.
2
El paganismo: raíces profundas de las ideas se sarmiento

Durante casi dos milenios, la cristiandad y el paganismo han librado
0
una guerra sin tregua ni cuartel. La Iglesia tuvo en contra suyo distintos tipos de
oponentes: había los paganos romanos y germanos; las herejías dentro del propio
1 cristianismo; y, por fin, las dos otras grandes religiones judaísmo e islam. Sin
embargo, la cristiandad jamás se había enfrentado a una ola gigantesca de ateísmo
8 como la que surgió desde el siglo XIX. Esa ola fue la que permitió, por ejemplo, el
albor de las ideologías de Sarmiento. No se debe olvidar que él era un Iluminista,
con lo que compartía el anticlericalismo, el materialismo y la aceptación de órdenes
secretas enemigas de la cristiandad, principalmente la francmasonería. Esta y la
Iglesia católica son enemigas inclusive hoy. Los países donde el catolicismo era
más entrañado hicieron frente al desarrollo de los ideales iluministas propalados
por los francmasones. España era uno de esos países, y Sarmiento uno de los
ilustres representantes de la francmasonería en Argentina. De esta forma, es
necesario comprender las causas y agentes involucrados en la batalla ideológica
entre la Iglesia y sus enemigos, pues de un lado había los católicos, afines a un
mundo menos materialista; del otro, los paganos de las antiguas religiones fenicias,
griegas, romanas y germánicas y los judíos (interesados en fomentar el comercio) y
los árabes (interesados en reconquistar la Península Ibérica).
Influencia fenicia, griega, romana y germánica
El Cristianismo se esparció rápidamente por el Imperio Romano, cuyos
líderes no tuvieron elección sino la de combatir la nueva religión. En los orígenes,
muchos de sus fieles fueron ajusticiados, sin embargo, prefirieron la muerte a
J renegar de su fe. Esto acaeció hasta la venida de los emperadores Constantino e
Teodosio I. Al primero se le ocurrió dar libertad de culto a todas las instituciones
A religiosas. El segundo, tornó el cristianismo la religión oficial del Imperio. Teodosio
I se había dado cuenta de que el número de cristianos recrudecía, mientras el
L paganismo se desvanecía, además la Iglesia poseía una estructura administrativa
jerárquicamente compacta y fiable, a punto de rivalizar con la propia administración
L imperial. Mirando estos dos rasgos y deseando a la vez garantizar la manutención
de un imperio que ya daba señales de debilidad, Teodosio, en el año 392, por
intermedio del Edicto de Tesalónica, prohibió totalmente el paganismo y elevó el
A cristianismo al estatus de religión oficial y única de Roma. Esta actitud, empero,
no se dio solamente por fidelidad a la nueva fe, sino también para garantizarse
la unidad nacional y combatirse las oleadas de bárbaros invasores. Por lo tanto,
era vital hallarse una nueva fuerza unificadora, y solo el cristianismo poseía los
atributos necesarios para ello.

Con todo, hubo protestas contra la aprobación del referido edicto,
287 debido a que los seguidores del paganismo romano le atribuían al cristianismo la
• responsabilidad por el descenso de la economía y el haber debilitado el vigor de
los romanos al pregonar la humildad y pobreza. En efecto, el politeísmo había
coincidido con largos periodos de prosperidad económica, de modo tal que era
común relacionarse la protección de los dioses con la buena ventura de los
romanos. Sin embargo, para contrarrestar ello, San Agustín escribió “La Ciudad de
2 Dios”, cuya idea central es la de apuntar las causas de la caída de Roma. Según
él, dos siglos anteriores a la era común el Imperio ya había dejado la religiosidad,
puesto que las alabanzas a los dioses eran meramente un obligación política, pues
0
la mayoría de la población ya no creía en sus divinidades. Sin embargo, el Estado
continuaba a loarles solo por respeto a la tradición guerrera. Agustín (1981) decía
1 que los dioses romanos eran promiscuos e inmorales, conque servían de mal
ejemplo para la población, y que el respeto a los antepasados ya había mucho que
8 se perdiera, en vista de que los soldados no luchaban más por la gloria, sino por la
riqueza y el bienestar materiales. Eso fue la consecuencia por haberse adoptado
las costumbres griegas, pues, de Grecia, Roma trajo el hedonismo, escepticismo,
relativismo, lujuria, sensualismo, ateísmo, agnosticismo, materialismo, etc.
Sin reglas ni respeto no había, decía San Agustín (1981), manera de evitarse el
derrumbe romano, por cuanto las familias más nobles se dejaban llevar por la
depravación, mientras el pueblo era incentivado a juegos sangrientos, en los cuales
las matanzas eran recibidas con euforia bestial.
En suma, lo que estaba en contraste eran dos bloques que se repudian
desde los comienzos de la historia humana. Uno representado por la Ciudad de
Dios, donde el orden y sabiduría son muy estimados; la otra, por la ciudad del
hombre, donde la búsqueda por riquezas, por veces, genera la corrupción moral y
las guerras. Ejemplo de eso fueron los fenicios (cananeos en la Biblia), los cuales
obligaban a sus mujeres a prostituirse al menos una vez en el los templos dedicados
a sus dioses. Se creían que los sacrificios de niños al dios Baal podría generarles
abundantes cosechas. Después que los niños eran quemados vivos, había una
especie de bacanal dedicada al mismo dios, lo que tenía como meta garantizar
J que la fertilidad de las mujeres fuera asegurada. No eran ateos, con todo, sus
dioses existían para darles solamente satisfacción carnal. No por casualidad, los
fenicios fueron grandes constructores y hábiles científicos, cuyo fin era esparcir sus
A
mercancías por el mundo, por lo que desarrollaron las técnicas de navegación. Ellos
colonizaron la isla de Creta, la cual influyó netamente en el espíritu griego, y este,
L como ya se dijo arriba, en el espíritu romano. Fenicios, griegos y romanos fueron
grandes conquistadores y por donde fueron se llevaron consigo la destrucción, el
L progreso científico y el anhelo de riquezas. Cuando se vuelve la mirada hacia atrás
en la Historia uno se da cuenta de que los rituales religiosos de estos pueblos
A estaban a la par con la codicia de sus políticos y mercaderes.
Más allá del paganismo fenicio-greco-romano, hubo también durante la
Edad Media el de los celtas y germanos, cuyos sacerdotes fueron perseguidos por
brujería. Aunque muchos pueblos germánicos aparentemente hayan abdicado de
sus antiguos dioses, se guardaban sus creencias en lo más fondo de su corazón.
• Los anglos, por ejemplo, con sus sacrificios humanos recordaban a los fenicios; por
288 su turno, los francos y germanos, por su amor a la lujuria, las guerras y al vino,
parecían Roma en su peor momento.

Por lo tanto, el cristianismo durante la Edad Media tuvo que aprender
a convivir con el paganismo. Miles de herederos de las tradiciones romanas, por
ejemplo, no se olvidaron de su religión y de lo que representaba, es decir, una
tradición orgullosa, guerrera por naturaleza y poco acostumbrada a arrodillarse.
Por lo que rápido se sublevarían contra la Iglesia y el imperador por medio de
2 sociedades secretas, las cuales serían responsables por un sinfín de herejías a lo
largo de la historia cristiana. Tales sociedades se quedaron por siglos a la espera
0 de una oportunidad de volverse al poder. Mientras tanto, una de sus tácticas
de contraataque era la infiltración de sus creencias en el seno de la Iglesia y la
1 propagación de filosofías griegas paganas; en consecuencia, buena parte de la Edad
Media estuvo más cerca del pensamiento platónico-aristotélico que del de Jesús.
8 Así, el paganismo acechaba y aguardaba el momento oportuno para combatir
directamente al cristianismo.
Estos paganismos poseen una visión antropocéntrica contundente, y, más
allá de eso, sus seguidores se creen pequeños dioses en la Tierra. Una ejemplificación
de ello es la leyenda greco-romana de Prometeo, dios griego rival de Zeus y que
había creado la humanidad. Zeus enojado por el hecho de que Prometeo sería
alabado por los humanos resuelve entonces perseguirlos, tirándoles enfermedades
y plagas. Prometeo les roba el fuego a los dioses y lo repasa a la humanidad,
haciéndolo para garantizar el desarrollo de los hombres. Zeus, temeroso que los
humanos llegasen a ser dioses, decide escarmentarlo encadenándolo colgado a una
peña, donde los buitres durante el día le comerán el hígado, y este por las noches
se recompondrá. Este mito de un dios malo y otro bueno también había entre los
fenicios y los ocultistas. Para estos, YHWH sería el malo, mientras Lucifer (la
luz) sería el líder de una revolución contraria a los dictámenes de Dios. El ángel
caído sería el libertador de la humanidad, dándole el conocimiento necesario para
no necesitar de las migas de un Dios verdadero. No por casualidad el movimiento
iluminista en Europa ponía la razón humana (es decir, “la luz” de la razón) por
J encima de la religión, principalmente la cristiana. La masonería de Baviera
(Illuminati), la francmasonería, la Enciclopedia y casi todos los pensadores de la
Ilustración pregonaban en contra de YHWH, pues Lo veían como un ser autoritario
A
y cruel. Por ello difundían tales ideas de forma secreta, llevándolas primero a los
nobles esclarecidos, después, gradualmente, a la población en general. Por lo tanto,
L no es que los cristianos estuviesen en contra de la ciencia o del desarrollo, sino
que luchaban contra ese tipo de desarrollo que pone todo por encima de Dios.
L La historia atestigua que cuando eso ocurre, pronto viene una ola de progreso y
prosperidad, la cual deja la gente boquiabierta con tamañas hazañas, sin embargo
A enseguida vienen las temporadas de devastación y calamidades.
Entonces, hay que situar Sarmiento en un contexto de incentivo al
paganismo, cuyos objetivos se mezclan al de incentivar las ideas del Iluminismo
francés y de la francmasonería a que se irradien por todo el Mundo. En Argentina
ese ideal estaba presente en casi todos los próceres de la Independencia y de la
• República. Y fue Córdoba uno de los centros de América en contra de eso. Por ello,
289 Sarmiento satiriza tanto contra los cordobeses que no aceptaron la Independencia
de la forma como se pasó, véase lo que dijo:

Añádase que durante toda la revolución, Córdoba ha sido el asilo de los
españoles en todas las demás partes maltratados. ¿Qué mella haría la re-
volución de 1810 en un pueblo educado por los jesuitas y enclaustrado por
la naturaleza, la educación y el arte? ¿Qué asidero encontrarían las ideas
revolucionarias, hijas de Rousseau, Mably, Raynal y Voltaire, si por fortuna
2 atravesaban la pampa para descender a la catacumba española, en aquellas
cabezas disciplinadas por el peripato para hacer frente a toda idea nueva;
en aquellas inteligencias que, como su paseo, tenían una idea inmóvil en el
0 centro, rodeada de un lago de aguas muertas, que estorbaba penetrar hasta
ellas? (SARMIENTO, 1973, p.30).

1 Nótese lo cuanto el hace hincapié en los ideales iluministas, ello conlleva el


surgimiento de teorías conspiratorias. Estas dicen que los ideales ingleses de crear
8 un mercado libre eran incompatibles con las ideas de autonomía de las metrópolis
España y Portugal. El capital inglés había sido utilizado para fomentar discordias
entre las coronas y sus súbditos americanos, y una de las formas de propagación
de la discordia eran las ideas liberales pregonadas por las sociedades secretas, en
especial la francmasonería. Esta es una noción que tanto los izquierdistas cuanto
los de la derecha comparten. En Argentina, los militares, por ejemplo, dicen que
el capital inglés fue y es el principal responsable de las distintas discordias en el
país, incluso la de los indígenas en la Patagonia. Los sacerdotes católicos de aquel
país dicen que el capital inglés, en comunión con la logia masónica de Londres,
vienen destruyendo la cristiandad desde el siglo XVI, y que la mejor prueba sería el
hecho de que el cristianismo hoy estaría dividido en miles y miles de sectas, cada
una diciéndose ser la dueña única de la salvación espiritual. En las universidades
de Córdoba, no pocos alumnos y maestros hablan con odio del capitalismo y,
sobre todo, del pregonado por Inglaterra y Estados Unidos; dicen que los “gringos”
se infiltraron en el país y propagaron sus ideas liberales, creando una sociedad
consumista y sumisa al capital internacional.
Por esta perspectiva, Sarmiento podría ser odiado tanto por la derecha y la
J izquierda. Lo que comprueba que no están tan alejadas como se creen. Sin embargo,
quienes lucharon contra las ideas preconizadas por Sarmiento fueron aquellos que
A se dicen ultraderechistas. No fue por azar que Hitler, Franco, Salazar, Mussolini
en Europa decidieron aliarse al núcleo duro de la Iglesia católica y expulsar todos
L aquellos de derecha e de izquierdas que estuviesen a la par con los ideales de la
francmasonería, el deseo exagerado por ganancias individuales (como lo hacían los

banqueros alemanes, por ejemplo, mientras el pueblo estaba en completa miseria).
L
Si Sarmiento viviera en la España de Franco, por ejemplo, con seguridad
seria encarcelado o exilado, pues, aunque sea considerado de derecha, pregonaba
A algo que transcendía la cuestión meramente económica, atingiendo la moral
cristiana. Él, como es sabido, llegó al grado 33 de la masonería, es decir, era un
gran Maestro. Es por eso que persigue tanto a la Iglesia Católica, incluso habiendo
llegado al colmo de insinuar que toda la Orden de los Jesuitas y la Iglesia en
general, en la Ciudad de Córdoba estaban en un sinfín de promiscuidad:
• Cada convento o monasterio tenía una ranchería contigua, en que estaban
290 reproduciéndose ochocientos esclavos de la Orden: negros, zambos, mula-
tos y mulatillas de ojos azules, rubias, rozagantes, de pierna bruñida como
• el mármol; verdaderas circasianas dotadas de todas las gracias, con más,
una dentadura de origen africano, que servía de cebo a las pasiones hu-
manas: todo para mayor honra y provecho del convento a que estas huríes
pertenecían (SARMIENTO, 1973, p.35).

Se debe tener claro que esa era (y es todavía) una de las tácticas que
2 los enemigos de la cristiandad tenían, es decir, desmoralizar, desvalorizar, crear
chismes y hacer pasar por ridículo a los sacerdotes, católicos o protestantes. No se
0 puede negar que a lo largo de la historia clérigos católicos, y ahora desgraciadamente
también los protestantes, no participaron de cosas escalofriantes, pero lo que se
1 nota es que hay un ataque sistemático con el intento de decir que sirve más ser
ateo que un cristiano, pues los más depravados serían los propios sacerdotes. Así
un caso de escándalo vivido por un sacerdote sirve de prueba para decir que toda
8
la cristiandad es mala. Sin embargo, la forma como los noticieros reproducen las
noticias no dejan márgenes para que tales sacerdotes hagan sus alegatos. Es decir,
antes de ser juzgados por el Judiciario ya lo han hecho los reporteros.
La Iglesia contra el nuevo orden mundial
Las Cruzadas fueron el motor de dos fenómenos importantes: una
mentalidad crítica y el remamiento comercial. Ellas les permitieron a los
europeos el contacto con culturas más prominentes, por lo que algunos de los
que volvieron empezaron a cuestionarse sobre el papel de la Iglesia en su vida.
Otros se aprovecharon del conflicto para hacer negocios, ya que los ejércitos y los
peregrinos europeos necesitaban provisiones, cosa que las grandes ciudades del
medio oriente no podían ofrecerles, sea por hallarse desgastadas por los conflictos,
sea por hostilidad. Eso fue la cuna de una clase de mercaderes privados, aptos a
comerciar no solo con los cristianos, sino también con los demás pueblos, así la
burguesía renacía.
En pocos siglos, el renacimiento comercial proporcionó la aparición
de las primas bancas. Mercaderes y banqueros pronto se atesorarían grandes
J fortunas, lo que hizo surgir una clase poderosa, la burguesía. Entre los burgueses
más destacados estaban los judíos, quienes a lo largo de la Edad Media sufrieron
A prejuicios, pues, por lo general, se les perseguían por usureros, avaros y culpables
de la muerte de Jesús. Así que Iglesia se les constituía en doble estorbo: uno
L religioso y otro económico. En este último caso, los judíos la criticaban por permitir
extensos latifundios en las manos de unos cuantos nobles, por lo que los mercaderes

para poder ganarse la vida comerciando tenían que pagar altos peajes cada vez que
L ingresaban en un feudo. En contrapunto, sus enemigos le decían hipócrita, puesto
que en cuanto ella era donataria de tierras y recibía tributos por eso, pregonaba la
A pobreza material. Sin embargo, se les olvidaban que siempre hubo a lo largo y ancho
de Europa instituciones católicas que ayudaban directamente a los pobladores,
ofreciéndoles bienestar social, de lo que se infiere que no fue la Iglesia un antro de
corrupción a fines de la Edad Media, sino que su cúpula estaba corrompida.
Mientras la Iglesia quería mantener el régimen feudal, los burgueses
• deseaban exterminarlo. En un primer momento, la burguesía pregonaba solamente
291 el liberalismo comercial, en tanto la Iglesia decía que la población debería la
producción rural, y, por tanto, alejada de la codicia capitalista. Había una batalla

entre dos formas distintas de comprender la vida: la una, cristiana, teocéntrica,
acostumbrada a la obediencia, basada en la producción rural de cuño campesina;
la otra, comercial, antropocéntrica, deseosa de los goces materiales y tolerante a la
libertad promovida por el paganismo greco-romano y germánico. Por consiguiente,
muchas manifestaciones dispares se unieron en oposición al régimen feudal y la
2 Iglesia: los defensores del paganismo greco-romano, los mercaderes, los banqueros
judíos descontentos con el cristianismo y las constantes persecuciones a su fe, los
0 herejes, los musulmanes deseosos de la caída de los reinos cristianos, los filósofos
y literatos ansiosos de libertad de expresión, los herejes etc.; todos buscaban una
1 grieta que fuera en los actos de la iglesia para crear una escaramuza. No obstante,
aunque juntos, no les tocó enfrentarse a la Iglesia abiertamente, y prefirieron actuar
8 a través de instituciones secretas, las cuales, con el tiempo, ayudaron a consolidar
el pacto entre la Burguesía y los reyes europeos. Tal alianza marcó el surgimiento
del absolutismo político moderno y de la caída del sistema feudal, pues, desde
que el rey no se indispusiera contra los intereses del comercio, era una entidad
bienvenida entre los círculos burgueses.
Desde un punto de vista político-económico dicha alianza garantizó
ascenso del capitalismo e intensificó los cambios que venían ocurriendo desde el
siglo XIII, los cuales favorecían un arte seglar, que se plasmó en el movimiento
conocido como Renacimiento. Este fue un retorno gradual a las costumbres
y filosofías griegas y romanas. No por casualidad se dio el advenimiento de un
pensamiento liberal, que preconizaba el hombre como el ser más importante del
universo y cuyo destino era el de dominar las fuerzas de la naturaleza para de ella
dispusiera de la manera que le complaciera.
Todos estos hechos iban a crear el contexto para el gran cisma de la Iglesia
occidental, encabezado por Lutero en 1517, es decir, la Reforma. Sin embargo,
esta no fue solamente religiosa, sino también política. Y hay una explicación para
ello. Ella se dio en la Germania, región donde hoy se ubica Alemania. Esa región
J fue tradicionalmente guerrera y no se dejó doblegar ante Roma y su heredera, la
Iglesia. De ahí que en el siglo VIII, Carlo Magno, en represalia y anhelando expandir
A su impero más al norte, conquistó la Germania y masacró a los que persistían en
sus rituales paganos. Pero estos jamás fueron extintos de todo, se quedaron en la
L clandestinidad. Así que siete siglos después, al renegar de las ordenanzas católicas,
Martín Lutero sin darse cuenta ayudará al paganismo ascender. Lutero le exigió al

Papa que cambiara la iglesia haciéndola volver al cristianismo primitivo, y muchos
L aristócratas, disgustados con el emperador Carlos V, se aprovecharon de las
protestas religiosas para añadir las suyas de cuño político. Además, había interés
A en el confisco de las tierras de la Iglesia. Por consiguiente, la Reforma representaba
una reacción a los resquicios de Roma que todavía existían en la figura del Papa,
de forma que, en el mundo germánico, vino para romper en definitiva los lazos con
el feudalismo y el poder católico. La reforma se esparció por el mundo germánico y
anglosajón como un rayo. Eso ha permitido que muchas ideas religiosas que antes
• eran vistas como herejías viniesen a luz de nuevo.
292 Si Lutero fue un golpe duro para la Iglesia, peor sería uno de sus
continuadores, Calvino. Habiendo hecho germinar el movimiento más pernicioso

al catolicismo, el capitalismo moderno, quizá Calvino sin advertirse de ello ha sido
el teórico de una clase social que tuvo por marca el haberse olvidado del bien
común en cambio del progreso individual. Calvino, según Weber (1984), basaba
su teología en algunos temas centrales y no siempre comunes al cristianismo: la
noción de predestinación. Desde entonces, la salvación no vendría por los hechos
2 o la fe, sino por la capacidad de uno en dar lo mejor de sí para que su empresa
obtuviera suceso. Ser rico era la señal que Dios había elegido a uno. Así que
0 ahorrar, aprender a invertir y a lucrar debería ser el blanco del cristiano. Eso parece
ser bueno, sin embargo, fue lo que propició la aparición de fortunas colosales
1 en manos de algunas pocas familias, las cuales iban a intervenir en las políticas
públicas siempre en forma arbitraria. Ese afán por riqueza va a ser el motor de
8 inconmensurables conflictos hasta desembocar en la agonía provocada por las dos
grandes guerras mundiales. Sin embargo, la Iglesia no quedó inerte y luego empezó
la Contrarreforma, cuyo centro irradiador fue la Península Ibérica. Y no podía ser
distinto, en vista de que la Iglesia Católica fue la gran institución unificadora de
los varios reinos visigodos que lucharon en contra de los musulmanes.
Conclusión
De todo lo dicho arriba, se infiere que Sarmiento era el típico masón
ilustrado del siglo XIX, combatiente de la Iglesia Católica, favorable al progreso
material positivista y racionalista. Su odio hacia Córdoba, España, los indígenas,
los gauchos y los mestizos está en el hecho de que estos eran considerados la causa
del retraso argentino de entonces. Hay cierta verdad en ello, no se debe negarlo,
pues las naciones estaban bajo la disputa capitalista y era necesario adecuarse
al nuevo mundo si se desease tornarse competitivo. Argentina era rural, vivía a
lo mejor alejada de la ciencia moderna y poseía un sistema educativo pésimo.
Sarmiento ayudó a cambiar esta realidad, puesto que sus reformas educativas, aun
hoy, sirven al desarrollo argentino. También es verdad que la barbarie provocada
por los gauchos e indígenas era perjudicial al erario público, pues ambos grupos
J robaban ganado, asesinaba inocentes y destruían cosechas.
Sin embargo, no eran todos los gauchos e indios que aprontaban de las
A suyas. Es eso que José Hernández (1930) en su Martín Fierro parece apuntar a
Sarmiento, es decir, la causa de la torpeza estaría radicada en la manera como el
L Estado argentino trataba a los más pobres. Hernández (1930) describe a un gaucho
sencillo, bondadoso, respetuoso, amante de su familia y trabajador. Pero se le vino

encima la obligación de servir al ejército en las distantes fronteras de la nación,
L en vista de que los indígenas la amenazaban. Él fue arrestado para ello, pero le
juraron que su familia estaría protegida mientras peleaba. Gracias a los maltratos,
A tuvo que huir del cuartel. Al volver, supo que su mujer tuvo que dejar los hijos con
alguien para que no murieran de hambre, siendo que ella misma se había ido con
otro hombre. La tapera estaba destruida. En tanto, las patrullas lo perseguían por
desertor. Así, tuvo que huir otra vez más. Como en su propio país no era bienvenido,
fue a vivir a las tierras de los indígenas, donde tuvo acogida. Los indígenas, por
• su turno, estaban bajo presión, pues los argentinos día tras día se les tomaban
293 las tierras, obligándolos a desplazarse a menudo. Es decir, el deseo capitalista de
los herederos europeos se mantenía recio con relación a posesión de tierras y oro.
• Para la mayoría de los gauchos, indígenas y mestizos la independencia no había
cambiado en nada las cosas.
¿Entre Sarmiento y Hernández quién estaba con la razón? Ambos. Así
como Sarmiento generaliza, lo mismo hace Hernández, puesto que no eran todos
los gauchos e indios buenos y pacientes. En definitiva, había bandoleros que
2 extorsionaban a los hacendados. Muchas mujeres eran secuestradas por los indios
a trabajar en la labranza; muchos gauchos asesinaban por vanidades, robaban y
0 eran peligrosos. Pero no todos. El error de Sarmiento era usar de la fuerza para
agredir a todos, derramándoles la sangre. El error de Hernández (1930) era creer
1 que todas las actitudes malas de gauchos e indios eran provocadas por el Estado
y la sociedad burguesa.
8 En esta pelea intelectual hay un dilema más profundo, pues hay
pensadores que pregonan que se debe preservar a toda costa la cultura de los otros
pueblos. Entonces, luchan por mantener a los indígenas, por ejemplo, alejados
de la sociedad blanca a vivir en comunión con la naturaleza. Los indígenas, para
estos pensadores, sirven como objeto de estudio. Los antropólogos desean estudiar
sus costumbres; los lingüistas ven en sus lenguas una fuente de riqueza inmensa.
Y algunos de ellos van a vivir en las tribus, pasan décadas viviendo, apuntando,
aprendiendo con los indígenas, hasta que un día los dejan y vuelven a sus ciudades
a publicar sus descubrimientos geniales. Mientras tanto, los indígenas ven a los
blancos poseer carros, aviones, medicinas, herramientas etc.; y se preguntan por
qué no pueden obtener lo mismo, es decir, por qué no pueden participar de la
sociedad capitalista blanca. La respuesta les es dada por los mismos pensadores,
que sonaría algo así: Porque su modo de vivir es puro, cerca de la naturaleza
y no deben mezclarse con nuestra sociedad depravada y llena de vicios. En el
fondo, quienes piensan así no respetan de verdad a los indios, pues estos no son
animales de zoo, son humanos y deben elegir si quieren vivir como sus antepasados
o integrarse a la sociedad contemporánea. No hay marcha atrás para el proceso
J de domino realizado por los españoles. Muchos de los que están para defender
la cultura indígena son herederos de la tradición europea, que viven de lo que
sus antepasados dejaron, es decir, ciudades, predios, la nación; y, en un falso
A
remordimiento, les acusan a los españoles de ser los culpables de las desgracias
indígenas. Sin embargo, ¿ellos también no lo son? ¿Algún blanco habla de destruir
L sus ciudades y devolvérselas a los indios? Son muy pocos los que lo hacen. Las
ciudades están ahí, son un hecho, y pueden ser invadidas por otros pueblos, es
L verdad, pero estos tendrán que haber logrado un grado bélico igual o superior al
de los actuales pobladores.
A Es por ello que el mestizaje es lo mejor para América. Si hubiera una
inmigración masiva para Japón, por ejemplo, en un siglo habría problemas entre los
herederos de los inmigrantes y los japoneses. Sin embargo, estos tendrían algunas
soluciones: o expulsarlos, o eliminarlos o mezclarse con la intención de formar un
pueblo homogéneo. Esta es la única salida para América Latina. Hoy se habla mucho
• de multiculturalismo, con todo, cada vez más se ven grupos raciales pregonando
294 el honor a su raza o color: los neonazis dicen que no van a mixturarse; grupos
negros dicen que mezclarse es sinónimo de pérdida de identidad; norteamericanos
• impiden a inmigrantes latinos ingresar a USA; indígenas quieren aislarse y formar
nuevos países. Es decir, cada vez más recrudece el odio hacia el diferente, aunque
el discurso en contra sea masivo.
Todo eso existe a causa de la sociedad materialista y egocéntrica deseada
por Sarmiento. Fue el capitalismo que esclavizó a la gente, que quitó las tierras
2 indígenas, que provocó miles de guerras en la actualidad. Sin embargo, fue el
capitalismo que trajo medicinas, posibilidades de viajar en avión, grande cantidad
0 de producción agropecuaria, escuelas, universidades, etc. El comunismo, por su
turno, pregona que traería la verdadera igualdad, sin embargo no hubo muchas
1 diferencias con respecto al capitalismo. La URSS de Lenin y Stalin fue responsable
mor miles de muertos que no aceptaban el régimen; los mismo con la China de
8 Mao. Quizá el mejor sistema fuese uno que conciliase los dos, intentando quitar
los errores. Sin embargo, este sistema maravilloso seria comandado por hombres
y mujeres, blancos o no, gauchos o no, indios o no, negros o no y, debido a eso,
siempre habría una forma de división por grupos, familias o costumbre. Eso es de
la naturaleza misma del humano.
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295

2

0

1

8

J

A

L LOS SABERES MILENARIOS ANDINOS VS EL CONOCIMIENTO
CIENTÍFICO-ACADÉMICO: CHOZA COMO DISCURSO
L INTERCULTURAL, LA APROPIACIÓN DE LOS MECANISMOS
DEL OTRO CULTURAL Y LA REIVINDICACIÓN DE LA CULTURA
A ANDINA

Evelyn Huarcaya Gutierrez (UNMSM)
RESUMEN: En el presente trabajo, se analiza la figura del hablante lírico en Choza,
poemario del escritor puneño Efraín Miranda. Para este cometido se observa los
• mecanismos discursivos que utiliza el hablante lírico para expresarse. Se busca así
296 examinar de qué forma el autor, Efraín Miranda, articula un discurso de procedencia
indígena y occidental. Se tiene cómo hipótesis que el hablante lírico en Choza se

apropia de los mecanismos discursivos del Otro como la escritura y el español para
entablar un proceso comunicativo que le permita dirigirse al Otro (detentador de
poder), y formular su proyecto de reivindicación de los saberes y aportes de la cultura
milenaria andina. Desmitifica así signos como la Escuela, critica la naturalización
de la supuesta “superioridad occidental”, desarticula imágenes preconcebidas del
2 indígena, la postura aculturadora de la Escuela y la negación del valor de lo andino
en el engranaje del “progreso” o la “modernidad”. Para este propósito, utiliza la
0 lengua del conquistador, pero a nivel de la estructura profunda del pensamiento
podemos observar la presencia de los principios de la lógica andina que le confieren
1 mayor riqueza a sus poemas. Para este estudio contamos con la edición de Choza
(1978) publicada en los talleres gráficos de Empresa Editora Humboldt.
8 Palabras claves: Mecanismos discursivos. Hablante lírico. Interculturalidad.
Cultura andina. Principios andinos.

El presente artículo, se divide en dos apartados: el primero dedicado a
delimitar la categoría de “generación del 50” en la que se inscribe críticamente
a Efraín Miranda y el segundo centrado en describir algunos de los poemas de
Choza en función a analizar los mecanismos que utiliza el escritor para establecer
su propuesta: reivindicar la cultura andina y su aporte milenario a la humanidad
frente a una mirada que identifica a la cultura andina y su estilo de vida, como
símbolo del pasado y el fracaso.
Delimitaciones teóricas: Efraín Miranda y los escritores de la generación
del 50
Resulta pertinente rotular que partimos de la concepción de que toda
obra literaria responde a su tiempo, y por ende, entra en constante diálogo con
él, sea de forma directa o indirecta. Antonio Cornejo Polar en su artículo titulado
“Testimonio” (1989), realiza un análisis de la pertinencia del uso de la categoría
“generación” para aludir a toda la producción cultural de una época que se articula
J o responde en función a una coyuntura histórica social específica.
El autor de Escribir en el aire, realiza algunas reflexiones que resultan
A pertinentes tomar a consideración. A saber, el hecho de que se agrupe a un
conjunto de individuos y su producción artística bajo una categoría, no niega la
L particularidad de cada uno de los integrantes, ya que de lo contrario, se caería en
una simplificación y homogeneización de los mismos.
L ¿Entonces, qué entendemos por “generación del 50”? Una agrupación
de estudiosos y artistas de distintas ramas del conocimiento que se enfrentan a
la desestructuración de un orden social (el “Perú Oligárquico”) y la construcción
A de un orden social distinto (la “Burguesía”). Ahora bien, como ya lo señalamos,
Cornejo afirma que el término “generación” es muy amplio, pues en dicha noción
se incluirían también filósofos, artistas plásticos, historiadores, poetas, etc. Por
lo tanto, este no es un proceso unilateral. Asimismo, dentro del propio grupo de
los “escritores de la generación del 50”, tenemos narradores, poetas, dramaturgos

y ensayistas. Miguel Gutierrez (2008), identifica tres promociones dentro de esta
297 generación de escritores: Jorge Eduardo Eielson, Javier Sologuren, Sebastián
• Salazar Bondy, Efraín Miranda y Eleodoro Vargas Vicuña conforman la primera
promoción; Blanca Varela, Washington Delgado, Francisco Bendezú, Manuel
Scorza, Julio Ramón Ribeyro, la segunda promoción; y Oswaldo Reynoso, Enrique
Congrains, Cecilia Bustamante, Arturo Corcuera y Mario Vargas Llosa, la tercer
promoción. En nuestro caso, nos centraremos en los “poetas” del primer grupo,
2 específicamente, Efraín Miranda. Cabe aclararse que el hecho de que se agrupe a
un conjunto de escritores dentro de la categoría de “generación”, no quiere decir

que todos se inscriban en un proceso desestratificado y homogéneo; ya que en un
0 mismo grupo existen diversos grupos sociales y perspectivas. Ya lo dijo Miguel
Gutierrez (2008): «…Existen rasgos comunes y una común tradición literaria que
1 da precisamente el tono generacional a toda la poesía del 50, por lo demás tan
heterogéneo y rica en cuanto a temperamentos y personalidades» (GUTIERREZ,
8 2008, p. 62). En este trabajo, se hace mención a la categoría de “generación”
para evidenciar la relación entre los escritores, la obra literaria y su impacto en la
sociedad frente a una problemática en común que los engloba en esta década: El
paso de la vieja Oligarquía a la gran burguesía, y las nuevas concepciones que se
derivan en torno a la migración y la idea de nación.
¿Qué sucedía en el Perú en la década del 50? ¿Y qué implicancias tuvo en
la literatura? Desde los años cuarenta, comenzó el movimiento migratorio masivo
del campo a la ciudad, especialmente hacia la capital. Es decir; se llevó a cabo
la movilización de los sectores populares andinos, principalmente, a Lima. Esto
produjo un desequilibrio de la estructura social, política y cultural del Perú. A
nivel de la literatura se produce la modernización de la narrativa urbana. Además,
surgieron interrogantes y sentires al respecto de la nueva situación del país y la
necesidad de articular de mejor manera la idea de nación. Ideas que incluyen a estos
escritores. El pequeño mundo “blanco” de la capital estaba siendo “invadido” por
diferentes grupos sociales específicamente provenientes de la Sierra peruana. Esto
produjo más cuestionamientos sobre las grandes narrativas de nación. Aquellas
posturas que afirmaban que una nación estaba regida por una sola comunidad que
J hablaba una sola lengua y profesaba una sola religión (“nación criolla”). Es decir,
una república criolla donde se niega la universalización de los derechos ciudadanos
a las poblaciones originarias, los indígenas y las tribales. El investigador José Matos
A
(1990), describe el proceso de migración como «consecuencia del incremento de la
población y de la expansión del latifundio o gran propiedad de la tierra. La creciente
L población campesina expulsada de sus comunidades de origen, pasó en los últimos
cincuenta años a formar parte del conglomerado urbano» (MATOS, 1990, p. 3).
L Esto dio como resultado la aparición de la figura del “sujeto migrante”, no solo en
la realidad peruana, sino también en la literatura: «La ciudad da brazos al pueblo
A joven/ que deriva en barriada de tugurios» (MATOS, 1990, p. 55). En los poemas
de Choza de Efraín Miranda, vamos a encontrar un hablante lírico que se dirige a
la ciudad («¡Alpaquerito!. Me gritan y señalan/ los pasajeros […] Tengo diez años al
pie de las nieves/ y 120 meses lejos de donde crecen/ la papa, el haba y la quinua»,
MIRANDA, 1978, p. 37) y luego regresa al campo, al espacio de la Choza («Cuando
• regreso:/ mi choza es prolongación del suelo,/ mis enseres son residuos,/ mis
animales, mi tierrita/ yo,/ la miseria», MIRANDA, 1978, p. 171). Esa figura que
298
había sido silenciada o negada, se desplaza a la capital buscando reconocimiento
• por parte del gran Otro (la clase limeña).
Todo discurso trata de colmar un deseo a través de la escritura. Por ello,
se tiene como hipótesis que el sujeto que se construye en la enunciación, se bate
o divide entre la solidaridad y la aversión ante la figura que representa el poder (la
cultura occidental, el sujeto blanco y limeño de la capital). El autor no está en contra
2 de la cultura occidental, pero sí de la naturalización de su supuesta “superioridad”,
de la postura aculturadora de la Escuela y la negación del valor de lo andino en
0 el engranaje del “progreso” o la “modernidad”. Recordemos que para textos como
los de Efraín Miranda, los límites entre el autor y el sujeto de la enunciación son
1 borrosos o difuminados debido a la concepción andina del principio de continuidad
del ser con la naturaleza y lo que se produce en ella.
8 Esta instancia discursiva trata de conciliar dos entes irreconciliables como
la oficialidad y todo lo aceptado (nación criolla o mestiza) versus la marginalidad
(nación que considere otras culturas además de la occidental como la indígena, como
valiosas por sí mismas), siendo más precisos aquel a través de su discurso trata
de concertar colectividades distintas e —incluso— contrarias para poder concebir
—de esta manera— un proceso comunicativo que concluya con la aceptación de
una unidad o una totalidad heterogénea conflictiva (CORNEJO, 1983, p.37-50 ),
pero con la necesidad de una proclamación de la igualdad de los derechos y los
valores de todas las culturas, especialmente, la andina. Cuestión que se busca
llegue a la práctica y no se quede solo en la escritura (la teoría). No obstante, este
proceso comunicativo y proyecto queda trunco: «Perdón, perdón, perdón, Intitata-
Pachamama/Préstenme este préstamo, / me falta para pagarles,/ incompletos
están ruta, fatigas, intentos…» (MIRANDA, 1978, p. 207, «L R»).
Veamos a continuación, más detenidamente, cómo se lleva a cabo el
proyecto de Efraín Miranda y los recursos o mecanismos de los que se vale para
construir un discurso alternativo que considere lo subalterno y lo marginado como
parte de la nación.
J Efraín Miranda y su proyecto de nación en contra las grandes narrativas
excluyentes
A Primero, grafiquemos el esquema de la teoría de la comunicación:

L

L

A
El autor del poemario Choza es el literato puneño, Efraín Miranda.
Escritor que vivió en la provincia de Chucuito y trabajó en la comunidad de
Jacha-Huinchoca. El poeta de Muerte cercana fue profesor de primaria y escritor
comprometido. Según los estudios del investigador Gonzalo Espino (2008), la vida
de Miranda se desarrolló en Collao por el lago Titicaca. Desde temprana edad,

Miranda crece en el entorno quechua. Viaja al poblado de Jacha Huinchoja, se
299 convierte en comunero y comparte su vida en esta comunidad aymara.
• Dentro de los poemas de Choza, identificamos a un hablante que está
en constante desplazamiento, por ello la categoría de sujeto migrante. Sobre este
asunto, nos dice Cornejo que «el discurso migrante es radicalmente descentrado,
en cuanto se construye alrededor de ejes varios y asimétricos, de alguna manera
incompatibles y contradictorios de un modo no dialéctico. Acoge no menos de dos
2 experiencias de vida que la migración, contra lo que se supone en el uso de la
categoría de mestizaje, y en cierto sentido en el del concepto de transculturación,
0 no intenta sintetizar en un espacio de resolución armónica» (3). Este discurso
migrante, le ofrece al hablante lírico la oportunidad de expresarse desde más de

un lugar de enunciación, sin manifestar ninguna pretensión armónica (lo que sí
1 proponen el mestizaje o la transculturación). El hablante lírico de Choza, reconoce
las tiesuras que existen. Por eso, el hablante enuncia desde la choza y la ciudad.
8 Este hablante lírico mantiene la tensión entre ambas culturas al
apropiarse del español y de la escritura para deslegitimar la visión prejuiciosa y

estereotipada del indio y su cultura. En otras palabras utiliza los mecanismos
del otro como la “escritura” y el “español” para hacer escuchar su voz, pues su
intención es comunicativa. Este hablante es consciente de que si quiere entablar
lazos de comunicación entre él y el otro, ambos deben compartir un mismo código.
Por ello, se debe utilizar la lengua del detentador del poder. Asimismo, a pesar
de que el código establecido por el hablante es el español, esto no restringe al
hablante lírico para mantener algunos términos en su lengua, especialmente para
la enunciación de los nombres de sus divinidades como “Pachamama” o “Inti”.
El siguiente paso, es establecer el canal. La oralidad es canal que funciona solo
cuando ambos interlocutores se encuentran en un mismo espacio, uno al frente de
otro. Por ende el medio más práctico y estratégico que se elige es la escritura. La
escritura es símbolo de poder en la cultura occidental (LIENHARD, 1992, p.11-12).
Sin embargo, esto no quiere decir que no se encuentren marcas de la oralidad en
Choza.
J Tenemos así un hablante lírico que toma la pluma, escribe en español y
desafía la visión tradicional, prejuiciosa o estereotipada del indio.
A El hablante lírico es consciente de ello, y afirma:
Aprovecho modelos extranjeros
L Adaptándolos a mis patrones terrígenos
Encerrándolos en la choza de mis sentimientos,
L Examinándolos a la luz de mis estrellas internas,

Exponiéndolos a la intemperie de mi modo de ser,


Incrementándoles con mi sabiduría antigua,
A
Modificándolos en el equilibrio del viejo pensamiento (MIRANDA, 1978, p.
57)

Repetimos, esto no quiere decir que no encontremos marcas de oralidad


en los poemas de Efraín Miranda. El estudioso Walter Ong (2009) identifica una
• oralidad primaria en aquellas culturas enteramente ágrafas, es decir aquellas
300 culturas que no llegaron a crear un sistema de notación o transcripción gráfica o
alfabética del discurso; también identifica una oralidad construida o escrita, en
• aquella producción donde los personajes o hablantes del discurso responden a
procesos sicodinámicos de la oralidad primaria. El poemario del escritor puneño
Efraín Miranda Luján, se inscribiría en este segundo tipo de oralidad. El contar y
recordar determinados acontecimientos requiere apelar a la memoria, a fórmulas
y mecanismo retóricos, por ello el hablante lírico de Choza utiliza constantemente
2 el estilo aditivo:
Están educados para ejercitar supremacía anti-andina
0 y gritarnos que sigamos masticando piojos,
y hacernos patear porque somos depósitos de basura
1 y atacar nuestra imagen con figuritas cortantes
de familias en pleno… (MIRANDA, 1978, p. 152)
8 Esta característica también se relaciona con la tendencia a las numeraciones
formulaicas: «Nosotros tenemos fauna, flora, entierros, festividades…/En mi hogar
hay: peine, trapo, jabón, lavador…» (161). El hablante lírico de Choza, busca
desestructurar la imagen que ha sido creada sobre él por el Otro limeño.
El discurso del sujeto de los andes, desmitifica la seriedad del indio,
característica de su discurso con la que muchas veces ha sido retratado. La voz que
se manifiesta en Choza, es una voz que también utiliza el humor y la ironía para
criticar la imagen que ha sido creada por el Otro limeño.
¡Das cólera!
¡No desmuentes del caballo:
Ambos hacen un animal de dos pisos! (MIRANDA, 1978, p. 115)

Y para los genealogistas, regalo en mi choza


Lustrosos pergaminos de animales pur sang,
Con el árbol verde virgen, a partir de un tronco nobiliario (MIRANDA, 1978,
p. 20)

J Forastero, ¿eres un visitante…?


Sirvete confiadamente del plato de mi cariño
A No tengo silleta, ni cubierto, ni alcuza, ni radio…

¡Carajo, tú, me creas necesidades! (MIRANDA, 1978, p. 113)


L El hablante lírico de Choza reta a su alocutario, utilizando términos en
francés como “pur sang” para desestructurar esa imagen del indio como un ser que
L solo habla en su lengua originaria. Ojo, esto no quiere decir que la propuesta que
se manifiesta en este poemario, sea la de dejar de hablar su lengua, solo que es
A posible ser indio, valorar las costumbres de tu cultura, y tomar los aportes de otras
culturas como mecanismos que nos permiten relacionarnos con el otro y poner en
cuestión sus estudios o miradas sobre el propio indio, desde una perspectiva que
se pretende india.
Así, el hablante lírico rompe con la imagen del indio creada comúnmente:
• «y estos mismos (…) crean un indio mental, supuesto, irreconocible, / incongruente,
viviente pero vacío» (131). El indio se apropia de las herramientas del otro y
301
demuestra que también puede expresarse utilizando términos grandilocuentes.
• Mis genes y proteínas ardieron
en la materia orbital pre-genésica;
mis progenitores, Inti-Pachamama, me mueven
(micrométrica y superlativamente;
los acontecimientos se me hacen ínfimos o descomunales;
2 y no estoi en un extremo de la humanidad,
(la imaginación intelectualista inventa gradaciones)
0 y, tampoco, me griten que soi algo particular.
Soi espacio, tiempo materiales;
1 materia uniexitente,
unísola. (MIRANDA, 1978, p. 21)
8 El hablante lírico de este poema, utiliza términos como “micrométrica”,
“genes”, “proteínas”, y crea a su vez nuevos vocablos como “uniexistente”, pues su
función principal es demostrar que él es tan capaz de utilizar los recursos del Otro
como los de su propia lengua (trata de rescatar a nivel fonético el lexema /i/ sobre
la /y/). De ahí que el hablante lírico, a través de la imagen que crea de sí mismo,
como 1) indio, 2) que utiliza con destreza el español y 3) que no es un aculturado,
busca demostrar utilizando los mecanismos del otro el valor de la cultura andina
y todos sus aportes a la humanidad. Contribuciones que deben ser reconocidas
como tal y no negadas, ni mucho menos consideradas como atrasos para la nación.
El hablante lírico trata de demostrar que no existe un solo y único camino para
el progreso. Que no existe una sola forma de “civilización” o un solo camino a la
“modernidad”.
De esta forma, el primer contrargumento del hablante lírico de Choza es
cuestionar la idea de que un indio no puede ser también intelectual, pensador que
genere cambios para una sociedad.
No te culpes; no tenemos culpa;
J No hai culpables;
¡juzguémonos con neutral impasibilidad!
A ¿Acaso preconcebimos? ¡ No somos autores intelectuales? (MIRANDA, 1978,
p. 107)
L El hecho de saber leer, escribir, y de conocer otros mecanismos, no deben
ser motivo, según el hablante lírico de olvidar sus raíces y aculturarse. El hablante
L lírico trata de demostrar con su propia experiencia que se puede ser indio en todos
los sentidos de la palabra y ser intelectual. Cuestiona así al otro cultural («Crezco
A con suficientes derechos salvajes/ y sin ningún derecho civilizado», pág. 53, “ET”),
sin negar su cultura, este hablante lírico aprende a cantar en otras lenguas.

Así el locutor escribe en la lengua del conquistador:
Mi lengua resiste, se refugia, lo persiguen,
Lo desmembran.

En tantos siglos de guerra intercultural
302 Todas las batallas hemos perdido.
• Ellos tienen todos los elementos a su alcance:
Su estado mayor en la real academia
Y sus soldados intelectuales;
Los nuestros, nada, un agrupamiento pasivo,
Al modo tupacamaru segundo.
2
En mi choza ha caído la mano perdida del Manco de Lepanto

Con vidrios, ácidos, alfileres
0 Que contorsionan mi lengua
Y sangran mi boca. (MIRANDA, 1978, p. 127)
1
El camino para que la comunidad del hablante lírico y él mismo aprendan
el español ha sido marcado con sangre. La imposición de esta lengua no ha sido
8
pacífica, sin embargo él la utiliza a su favor. No obstante, el hablante lírico enfatiza
que saber leer y escribir no ha hecho que el hablante lírico se olvide de sus raíces
y su cultura.
Al leer mis hijos sus libros
No son mis hijos;
Pierden mi paternidad, otros papás me desplazan
Los que adoptarán.4

Terminan la lectura, no me ven:


No soi su padre, no somos su familia,
No somos los parientes descritos en el libro.
Lo han entendido. 8

Comienza a separarse;
Se despiden, de la ropa nuestra, con el uniforme,
Retiran sus facciones de mi somática,
Adquieren movimientos para sus poses 12

J De la gente dominante;
Hablan de lo que no sé si existe,
Tocan otro mundo
A
En el que me dicen que soi una momia. 16

L Cuando leyeron sus libros, mis hijos,
Se les desprendieron las bayetas del cuerpo.
L El que lee y escribe está en la corriente del progreso.

Compraran camiones, casas, negocios… (MIRANDA, 1978, p.125)

A En el verso 10, podemos observar cómo el hablante lírico alude a la


escuela como una institución dedicada a occidentalizar a la comunidad andina y
así llevarlos al camino del progreso. Lo que el hablante lírico cuestiona, ya que él
defiende el conocimiento milenario de la comunidad andina al cual considera con
tanta validez como el conocimiento científico-académico.
• Revalora también la necesidad de que los hombres de poder conozcan las
303 lenguas nativas:
…en la página central—, un presidente braza a un indígena.

¿Por qué lo abraza?
¿Y por qué se hace abrazar?
¿Han hablado? ¿Y en qué idioma?
Los presidentes no hablan lenguas nativas (MIRANDA, 1978, p.187)
2
Opone así, hombres poderosos a los no poderosos, los primeros hablan en

lenguas distintas de las nativas, los otros hablan lenguas aborígenes. En hablan-
0
te lírico habla ambas, utiliza términos en quechua y español: «Yo, indiecito…/ no

porque no hable español…/ sea un incomunicado/ también te ofrezco un follaje de
1
idiomas» (MIRANDA, 1978, p. 43).

8 La memoria y la tradición oral son valores que el hablante lírico busca revalo-
rar: «Por tradición doméstica/ sé prepara mis alimentos. / Ninguna receta nuestra
figura en los libros,/ ¡Al fugo los tratados de culinaria!» (MIRANDA, 1978, p. 73).

El autor trata de demostrar que las costumbres, la cultura y modo de ser de


las comunidades andinas son una forma de vida tan válida como la citadina, tan
válida como la vida occidental; por lo tanto es necesario una política que la preser-
ve y que no la elimine mediante una educación “genocida” culturalmente:

a ella es a quien educa el Maestro.


Lloro porque soi india y tengo una niña blanca
Que el Maestro ha creado en mí; …
El Maestro le da fuerzas y sustento…
El Maestro se olvida de mí, de todos los alumnos
Y dice que para los indios no se ha inventado nada (MIRANDA, 1978, p. 46)

Mediante el lexema “Maestro” escrito en mayúscula, el autor textual alude


J no a un simple maestro, sino a la institución de la Educación, la “Escuela” como
un órgano que representa un saber occidental que se opone al saber milenario de
la cultura andina. Así la educación occidental criticada por el autor es aquella que
A ve lo andino como una causa perdida, destinada al fracaso, cómo si no tuviera
su propio progreso, cómo si su única salvación fuera la modernidad occidental
L (visto como él único camino posible). Esto evidencia la falta de una educación
intercultural que tome los valores y conocimientos de las culturas tradicionales
L como parte de su constitución. Asimismo, para este cometido el autor textual del
poemario, opone el saber milenario frente a un saber institucional-académico.
La cría nave húmeda y desmayada,
A
Los ojos cerrados y las extremidades plegadas.
La madre muerde y corta el nexo vital
Interrumpiendo para siempre el vínculo directo.
La madre atiende serenamente detalle a minuciosidad

• Como una experta médico-obstetra


Egresada de la universidad de la naturaleza
304
Con antigüedad de cien millones de años;
• Y, todavía es analfabeta
Y no hai manera de hacerle saber
Del conocimiento intelectual de la biología
Acerca del óvulo y del espermatozoide.
La madre lame y relame la piel sensorial (MIRANDA, 1978, p. 31)
2
El hablante lírico del poema “EK”, opone dos tipos de saberes. Uno
0 tradicional, empírico, natural, casi milenario y otro institucional, académico,
sistemático. El saber milenario proviene de la experiencia del hombre y su contacto

con la naturaleza, ese saber instintivo es igualmente de válido que el académico:
1 “universidad de la naturaleza”, “experta médico-obstetra”, “y todavía es analfabeta”.
Un animal no necesita del saber académico, del conocimiento intelectual para
8 comprender la vida y desempeñarse bien en ella, por ello el hablante lírico nos
presenta de forma bastante gráfica cómo ese conocimiento instintivo, empírico
también tiene base, tiene valor, son años de conocimiento que lo avalan. Esta
asociación de los conocimientos de los animales y la cultura andina («somos
animales en sus concepciones sociales, filosóficas, mercantiles/ somos elementos
vivos de experiencias milenarias») trata de fundamentar que la cultura occidental
no es el único sendero para el progreso, no es el único camino selecto del porvenir
humano. De esta forma, el hablante lírico critica el creer que una cultura sea mejor
que otra, y que lo occidental sea naturalmente superior a lo andino («Nos gritan con
sus ojos azules/… que su tecnología ha vencido por siempre a nuestro empirismo»,
MIRANDA, 1978, p. 23).
En otras palabras, el hablante lírico defiende este saber cómo símbolo de
los aportes de la cultura milenaria a la humanidad: “Hacemos una consulta/ las
generaciones consagradas a la soberanía de nuestro saber” (MIRANDA, 1978, p.
97).
Si bien, los poemas de Choza están enunciados en la lengua del
J conquistador, a nivel de la estructura profunda del pensamiento podemos observar
la presencia de los principios de la lógica andina. Tanto positiva como negativa. Por
A ejemplo, observamos la constante presencia del principio de reciprocidad:
Ven a vivir al centro de mi pueblo.
L Trae tu ser desgarrado
Y mi pueblo se desgarrará;
L Haz demolición de las murallas, de política, religión,

Estética, derecho y otros misterios


Y mis ceros caerán.
A
Vive con nosotros y viviremos contigo. (MIRANDA, 1978, p. 163)

¡Si te entrego a mi hija, la fecundarías;
Si me das a tu hija, la empreñarías! (MIRANDA, 1978, p. 113)

• También se alude a este principio pero de forma negativa en otros


apartados donde no hay un trabajo conjunto entre el Estado y la comunidad. Las
305
decisiones las toma el Estado sin escuchar o tomar en cuenta el punto de vista de
• la sociedad implicada. Aquí se lleva a cabo una relación de reciprocidad negativa:
“idénticamente, sus tecnócratas,/ proyectan planes tangenciales a nuestra
realidad;/ los organismos internacionales dan empréstitos/ y, ni gota de inversión
riega los suelos” (MIRANDA, 1978, p. 93).
Por otro lado, el principio de la identidad relacional constituye un aspecto
2 cultural predominante en el corpus poético de Choza.
El viento junta la broza amarilla
0 Y la traslada a las selvas,
Las selvas traducen a los bosques,
1 Los bosques interpretan a los cultivos,

Los cultivos comunican a los hombres

8 Y los hombres trasfieren a la humanidad (MIRANDA, 1978, p. 99)

Además de la relación de complementariedad: “cuando al otro lado del


mundo anochece/ aquí amanece” y la idea del sacrificio también, muy presente en
este poemario como el simulacro de un ritual (GONZÁLES, 2016, p.59).
En síntesis, lo que se ha demostrado en este artículo es que a pesar de
que el poemario esté escrito en castellano, Choza se constituye como un discurso
intercultural que se prende indio, pero que se vale de los mecanismos y recursos de
la cultura occidental para validar el valor de la cultura andina (su saber, sus leyes,
sus principios), sin perder su auto reconocimiento con esta cultura milenaria. No
obstante es un poemario que se nutre de ambas tradiciones, reclama y fundamenta
el valor de las costumbres, formas de organización, cultura y saberes tradicionales
frente a los occidentales a través de recursos retóricos como el estilo aditivo,
formulaico, la ironía y el humor. Así el hablante lírico fundamenta la igual valía de
un saber milenario frente a uno científico-académico- occidental, pues este primero
tiene la garantía de millones de años que se amparan en la experiencia de la madre
naturaleza.
J BIBLIOGRAFÍA
CORNEJO POLAR, Antonio. Testimonio. Equipo de investigación de la UNE (compilado-
A res) La Generación del 50 en la literatura del siglo XX. Lima: Universidad Nacional de Edu-
cación Enrique Guzmán y Valle, 1989.
L -----------------------------------«Una heterogeneidad no dialéctica: sujeto y discurso
migrante en el Perú moderno». Revista iberoamericana. Vol. LXII. Núms. 176-177 (julio –
diciembre 1996): 837-844, 1996.
L
ESTERMAN, Josef. Filosofía andina. Sabiduría indígena para un nuevo mundo. La Paz:
ISEAT, pp. 97-149, 2006.
A GONZÁLES, Guissela. Choza, de Efraín Miranda: rito y decolonialidad. Tesis para optar
el Grado Académico de Magister en Literatura Peruana y Latinoamericana. Lima: Fondo
Editorial UNMSM, 2016.
GUTIERREZ, Miguel.. “La generación del 50” y “La poesía del 50”. La generación del
50. Un mundo dividido. Lima: Arteidea, pp. 49 – 84, 2008.
• LARRÚ, Manuel. Oralidad y representación: la otra voz en la narrativa de Ciro Alegría.
306 En Letras, Vol. 80. N* 115, pp. 47-62, 2009.
• LIENHARD, Martin. «Cap. I: La irrupción de la escritura en el escenario americano». La voz
y su huella. Lima: Editorial Horizonte, pp. 25-42, 1992.
MATOS MAR, José. (1990). Las migraciones campesinas y el proceso de urbanizaci-
ón en el Perú. Disponible en: < https://centroderecursos.cultura.pe/sites/default/files/
rb/pdf/Las%20migraciones%20campesinas%20y%20el%20proceso%20de%20urbaniza-
cion%20en%20el%20Peru%20Matos%20Mar.pdf>. Accedido: 15 /06/ 2017.
2
MIRANDA LUJÁN. E. Choza. Puno, 1978.

ONG, Walter. Oralidad y escritura: tecnologías de la palabra. México: Fondo de Cultura
0 Económica, 2009.

1

8

J

A

L SANGAMA (1942): LA SABIDURÍA ANCESTRAL Y SELVÁTICA EN
LA AMAZONIA PERUANA
L
Felipe de Jesús Ricardo Sánchez Reyes (UNAM)
A RESUMEN: Debido a que esta novela de Arturo Hernández se considera la más
representativa de la amazonia y la más leída en su país, en este texto se la analiza
y se centra en dos tipos de sabiduría que propone Sangama: la sabiduría ancestral
y la selvática en la amazonia peruana. Para ello, primero se aborda la zona
geográfica, el contexto histórico y datos biográficos del autor, con la finalidad de
• ubicar al lector. Segundo, la sinopsis de la novela y los estratos sociales, para saber
a qué clase representa Sangama, y comprender las razones por las que exalta la
307
sabiduría ancestral y selvática. Y tercero, la sabiduría ancestral y selvática que él
• propone. Con ello se pretende descubrir qué tan importante resultan estos dos tipos
de sabiduría en la mentalidad de la cultura peruana, sobre todo, en la sabiduría
ancestral, presente en su idiosincrasia. 
Palabras clave: Amazonia. Sabiduría. Ancestral. Selvática.

2 Llegaron doce que pelean como capitanas de los indios contra los
españoles, y hacen tanta guerra como diez indios. Estas mujeres son altas, andan
0 desnudas y tapan sus vergüenzas con arcos y flechas en las manos. Cuando el
capitán español, Francisco de Orellana toma preso a un indio, éste le informa que
estas indias viven en setenta pueblos; que cuando les vienen ganas de procrear,
1
hacen guerra, capturan a los hombres, los llevan a sus tierras y, una vez preñadas
por ellos, los regresan a sus tierras; que si paren hijo, lo matan, pero si paren hija,
8 se quedan con sus madres y le enseñan las cosas de la guerra; y que son mujeres
muy altas que no tienen más de un pecho. A estas indias las llaman las Amazonas,
confiesa el dominico Fray Gaspar de CARBAJAL, (2002, p. 72, 76-78) en su relación
del primer viaje de navegación por este río. De allí que el capitán español, Francisco
de Orellana, llamara a este río, el Amazonas, descubierto el 12 de febrero de 1542.
Acerca del Amazonas, unos autores afirman que la selva es una prisión
o cárcel verde que ahoga, pero no una morada para el hombre, ni para obtener
aprendizajes ni valores ancestrales, tema que abordaré en este texto titulado:
Sangama: la sabiduría ancestral y selvática, en la novela de Arturo Hernández,
Sangama.
¿Por qué razón elegí este tema? Porque Sangama, personaje de la novela,
los manifiesta al declarar: “Yo vine muy joven a las márgenes del Ucayali y aprendí,
además de los amplios conocimientos que se esmeraron en proporcionarme
[sabiduría ancestral y occidental], los secretos que encierra la selva [sabiduría
selvática] (HERNÁNDEZ, p. 196)”. Por esta razón me centraré en ambos tipos
J de sabiduría que propone Sangama: la ancestral de los incas y la selvática de
la amazonia peruana. Para ello, primero abordaré la zona geográfica, el contexto
A histórico y los datos biográficos del autor, relacionados con su obra, con la finalidad
de ubicar al lector. Segundo, la sinopsis y los estratos sociales de la novela. Y
L tercero, la sabiduría ancestral y selvática, representada por Sangama.
Primero: la zona geográfica, el contexto histórico y datos biográficos del
L autor, relacionados con su obra

Comencemos con la primera parte: ubicar la zona geográfica en que se


desarrolla la acción de la novela. Inicia en Santa Inés, pueblo de Iquitos, continúa
A
en la selva, localizada entre los ríos Ucayali y el Huallaga, y termina en la montaña
andina de las alturas. En cuanto al contexto histórico, la obra nos proporciona tres
elementos históricos.
Uno nos sitúa en 1895 y se refiere al segundo periodo de Nicolás de
• Piérola Villena, apodado El Califa, que gobierna el Perú de 1879 a 1881 y de 1895 a
1899, años en que desarrolla la expansión económica, acorde con los intereses de la
308
burguesía. La novela lo menciona así: “Acaso con el nuevo triunfo de Piérola”, afirma
• Portunduaga. –Todos ellos se hundirán. Todos los gobiernos actuales, animados
sólo por la ambición y las conveniencias, exclama Sangama” (HERNÁNDEZ, p. 82).
El otro dato, se refiere a las fronteras de litigio de Perú con Brasil entre 1902-
1909 por las tierras del caucho a través de esta cit0a de la novela (HERNÁNDEZ, p.
328): “Apolinario López recordó que era peruano y que debía ocupar los territorios
2 que poseía a nombre de la patria. Para estimular el patriotismo de los hombres,
nada es tan eficaz como trasladarlos al extranjero y devolverlos, a unas fronteras
0 en litigio”. Y el último, relata el auge del caucho, las casas de crédito en Iquitos y el
despilfarro del dinero en Manaos:
1 Del departamento peruano de San Martín salió, atraído por el caucho, un
mestizo rebelde Apolinario López. […] en un año de trabajo en la selva rea-
lizó ganancias y se granjeó a las casas habilitadoras de Iquitos. Internado
8 en las selvas del Alto Ucayali […] extrajo grandes cantidades de goma elás-
tica. […] bajó hasta la ciudad de Manaos, por entonces [1879-1912] uno
de los centros gomeros más importantes del Mundo. […] López aprende a
beber champaña y a jugar la pinta con maestría, hasta que […] tornó a sus
dominios de Yurúa en lancha propia, donde estableció grandes almacenes
comerciales(HERNÁNDEZ, p. 327-328).

Ahora pasemos a los datos biográficos del autor, relacionados con su


obra. La novela Sangama de Arturo Hernández “fue publicada en Perú en 1942,
por el Comité encargado de las Celebraciones del IV Centenario del Descubrimiento
del Río Amazonas”, afirma Federico Morante (2014). Además consideran Elizabeth
Pacheco y Ángel Gómez (2015, p. 7) que la novela Sangama“es un trabajo monográfico
que presentó Hernández en el curso de Geografía Humana, en 1929, cuando era
estudiante de la Universidad Nacional Mayor de San Marcos”.
Esta aseveración no sólo es confirmada por las palabras del autor geógrafo
en su novela: “Habíamos penetrado en una zona térmica distinta a la que dejamos
horas antes y que confinaba con el sistema hidrográfico del río Huallaga, cuya
topografía es diferente a la del Bajo Ucayali (p. 234)”, sino también, porque de 1943
J a 1951, cuando retorna a Iquitos, él ejerce como maestro de Historia General y
Geografía en el Colegio Nacional.
A Hernández nace en 1903 en Sintico, poblado indígena y de caucheros en
el departamento de Loreto, Iquitos, y lo confirma, “yo nací, hace veinticinco años,
L en la margen oriental de este río (HERNÁNDEZ, p. 7)”. Pasa su niñez y adolescencia,
durante el auge del caucho en Iquitos. Queda huérfano de madre,estudia la
primariay ayuda a su padre cauchero en la recolección de látex. Luego, al quedarse
L
huérfano de padre, trabaja y estudia su educación media en Iquitos. Afirma que
todo lo ha aprendido trabajando, primero con su padre, luego en otros trabajos. A
A los 26 años (1929) estudia para abogado.
Él asevera, en su entrevista con Eduardo More (1960), que todos los
personajes de su novela Sangama son reales, excepto el propio Sangama, porque
para Hernández, “escribir es recordar, es una manera de ponerme en contacto
nuevamente con mi niñez”. Así su novela es obra del recuerdo de su infancia y del
• mundo de su niñez, como lo demuestra esta cita de la novela:
309 Hace muchos años, muy joven realicé este accidentado viaje [por la selva,
a través del río Pacaya]. Y si bien lo recuerdo hoy con la claridad de lo inol-

vidable, declaro que muchos de los detalles no pueden ser narrados con
minuciosa propiedad. […]el tremendo drama que viví está vertido con toda
fidelidad (HERNÁNDEZ, p. 139).

En 1957 manifiesta a Eduardo More (1960): “Hoy aspiro solamente a


2 interpretar la voz y el mensaje de la selva, mensaje fraterno de lucha, dolor e
inconformidad”.

0 Segundo: sinopsis de la novela y los estratos sociales

Ahora abordemos en esta segunda parte, la sinopsis de la novela. Sangama


1 se desarrolla en la Amazonia peruana, llena de exuberantes parajes ycostumbres
selváticas. Narra la historia de Abel Barcas que viaja desde Iquitos en un vapor por

el río Ucayali con rumbo a Santa Inés, para trabajar como contador del Gobernador
8 siringuero, Portunduaga, y hacer fortuna.
Allí se desenvuelve la trama, él se enamora de Chuya y será el
protagonista de uno de los dramas más intensos de la selva. Los personajes son,
primero,Sangama, su hija Chuya y sus sirvientes, luego el feroz Portunduaga y sus
guardaespaldas, El Toro y el Piquicho, enseguida, el padre misionero Gaspar y su
enamorada Tula, más tarde, su amigo Matero, Trini, la coqueta, Apolinario López
y sus hijos belicosos. En ella encontramos historias de muerte, historias de amor,
costumbres de la selva y la búsqueda de Sangama de la estatua de Huiracocha,
escondida en la selva,así como la restauración del Tahuantinsuyo.
El relato transcurre, primero, en el poblado de Santa Inés, después, una
larga estancia de nueve meses –de verano a invierno- en la selva, entre los ríos
Ucayali y el Huallaga, y termina en la montaña andina, cuando Abel reencuentra
a su amada Chuya, Sangama se arroja al abismo y es tragado por la sombra. La
novela posee además dos elementos que atrapan al lector atento.
Uno, las enseñanzas de vida que nos proporciona el autor a través de las
reflexiones de sus personajes, como por ejemplo, el capricho inexorable del río: “Lo
J que el río ha puesto, se lo llevará cuando quiera -me contestó sentenciosamente-.
Estamos sobre una restinga formada por sedimentación de las crecientes contra
A la que cualquier día cargará el ímpetu de las aguas. Nada hay estable aquí. Todo
se subordina al capricho del poderoso río... ¡Y es inexorable como el Destino!
L (HERNÁNDEZ, p. 314)”; y el primer desengaño amoroso que Tula confiesa a Abel
Barcas: “Recordamos el primer desengaño, que nos pareció irresistible; después,

cansadas de llorar inútilmente y comprendiendo que las puertas de la honradez
L nunca vuelven a abrirse cuando se cierran tras de una, seguimos por la vida como
flores arrancadas de la planta, a prendernos en la más cercana solapa (HERNÁNDEZ,
A p. 58)”.
Terminada la sinopsis, abordemos los cuatro estratos sociales quenos
presenta el autor en su novela. El primero es el indígena o autóctono de la selva,
representado por Ahuanari -el sirviente de Sangama-, ser resignado e ignorante de
todo aquello que no sea la selva. Él representa a las tribus de la selva que carecen
• de historia, anhelos, y desconocen su origen pasado:“Nace, crece sin risas, con
310 ese dolor heredado que lo deprime y lo envejece a poco de haber nacido. […] En su
mente tarda vive el confuso recuerdo ancestral […] es la memoria compleja de toda

la raza que protesta del gran drama histórico que protagonizaron sus antepasados”
(HERNÁNDEZ, p. 282).
El otro es el cauchero, explorador de la selva o el forjador de la época de la
goma elástica, como El Matero y Apolinario López. Es el selvático noble, supersticioso
2 y conformista, “buenos pero ignorantes y sugestionables (HERNÁNDEZ, p. 91)”,
hombre satisfecho, experto en la exploración de la selva virgen, que se proyecta hacia
el porvenir.El siguiente está conformado por los civilizados que vienen de Iquitos:
0 los viciosos que carecen de valores morales, como el Gobernador Portunduaga,El
Toro y El Pichico, cobardes, asesinos de caucheros y violadores de mujeres.De estos
1 citadinos Sangama se expresa así: “en el aspecto cultural, el hombre de la ciudad
ha retrocedido (HERNÁNDEZ, p. 112)”.Y los bondadosos, nobles y con valores
8 morales, como Abel Barcas, el narrador que posee rectitud y respeto por todos.
Y el último es la mezcla de esas tres culturas, Sangama, noble ysentencioso
soñador e inadaptado. Él es el resultado de esas tres culturas: la andina lo impulsa
a su cosmovisión andina y a la restauración del Tahuantinsuyo; la civilizada,
porque vive su infancia en la ciudad donde aprende la cultura inca y la civilizada,y
escribe notas en su cuaderno, poseenumerosos librosen su casa, admira al erudito
italiano, al científico alemán y al naturalista francés que estudia la vida de los
coleópteros; y la selvática que aprendeen su juventud y estancia en la selva, “donde
aprende los secretos que encierra la selva” (HERNÁNDEZ, p. 196). Sin embargo, en
lo práctico domina la selvática; en lo culto, la civilizada; y en su esencia, la cultura
inca, pues vive por y para el pasado, quiere restaurar el antiguo imperio en la selva
y, ante su fracaso, se autoinmola en los Andes que dio origen a su estirpe.
Para terminar esta segunda parte, él considera que no existe diferencia
en la conducta de los animales de la selva y las personas civilizadas, y se expresa
así: “Competencia leal, ambición desenfrenada,traición, locura, virtud, vicio, todo
se encuentra aquí. […] Todos y cada uno de los animales de la selva representan
su correspondiente tipo de la colectividad civilizada” (HERNÁNDEZ, pp. 111-112).
J Y tercero: la sabiduría ancestral inca y selvática, representada por
Sangama
A Ahora pasemos a la parte central de este artículo: la sabiduría ancestral
inca, de la cualél revalora dos elementos, necesarios para mejorar al hombre de
L su tiempo en las ciudades: la moral y la religión, y la restauración del Imperio. En
primer lugar, al ver que en su época impera la agonía de toda una raza amante del
L trabajo, que roba y miente, considera que la moral y la religión incas son un pilar
básico, porque ambas
sustentaron un poderoso Imperio de gentes felices, de civilización única, que
A han sido puestas de lado. ¡Moral y Religión, supremas columnas sobre las
que podría levantarse una humanidad mejor, y sin las cuales el derrumbe
de lo actual sobrevendrá inevitable. La restauración de ese gran Imperio
está dentro de la órbita de mis proyectos. […] Era la síntesis de la agonía de
toda una raza amante del trabajo, que no robaba ni mentía; raza de civili-
• zación ejemplar sustentada en la Moral y en la Religión, […] cuyos himnos
a Huiracocha, se han convertido en llanto (HERNÁNDEZ, pp. 113 y 281).
311
En lo moral, elogia el trabajo y la verdad, que no permite robar, mentir

ni ser perezoso, porque no respetan el “gran mandato que encierra la sabiduría de
los antiguos: no seas ladrón, ni perezoso, ni mentiroso (HERNÁNDEZ, p. 82)”; y en
la religión considera que el hombre de la ciudad se ha convertido en materialista,
ansioso de poder, por eso manifiesta,
La luminaria de la fe se ha consumido hasta extinguirse, porque la religión
2 se ha hecho costumbre intrascendente. El proceso educativo humano se ha
invertido. Se dirige de lo material a lo espiritual.Antes de elevarse en pos del
0 ideal, el hombre satisface sus aspiraciones materiales, sacia todos sus ape-
titos, se rodea de riqueza, de poder, de egoísmo. Tal la actitud de las fieras:
después del hartazgo miran la luna”(HERNÁNDEZ, pp. 112-113).
1
Y en segundo lugar, la restauración del Imperio inca que posee una moral
8 y religión impecable, que mantiene feliz a su raza, y que le proporciona poder y
sabiduría, hasta antes de la Conquista:
A ti, que llevas en las venas la sangre de nuestra raza […].Aquí te he es-
perado luna tras luna con la ilusión de que vendrías a recoger la herencia
de poder y sabiduría que guarda la Estatua de Oro, guía protectora de tus
antepasados, con la cual nos conducirás a la reconquista […] (HERNÁN-
DEZ, pp. 250-251); La restauración de ese gran Imperio […] tendrá como
marco geográfico la selva en que vivimos y gran parte de lo que abarcaba el
Tahuantinsuyo(HERNÁNDEZ, p. 113).

¿Por qué resalta el autor estos dos elementos? Uno, porque considera
que el mundo civilizado se ha vuelto ambicioso y está dominado por el oro: “ese
metal que enciende el alma de codicia y conduce al crimen. Por eso no lo busques:
es la muerte. […]Ten presente, señor, que el oro en las arcas de los países es
ambición, guerra, exterminio, y en las de los hombres, vicio, degeneración, locura
(HERNÁNDEZ, pp. 253- 254)”.
Dos, ante el mundo civilizado, denigrante, codicioso y criminal de las
autoridades y de los caucheros ambiciosos, que no respetan y vejan a toda persona,
J que violan a las mujeres como aChuya o que las inducen al camino del mal como
a la joven Tula, que trafican y matan de hambre o enfermedad a los niños, que son
A más salvajes que los animales, que no respetan nada y que carecen de moral y
religión, como nos muestran las conductas de sus personajes, piensa que la única
L solución es rescatar los antiguos valores incas heredados, para convertirse en una
sociedad sana y menos dañina.

Tres, considera que el mundo civilizado ha invertido los valores morales
L
de su antigua raza: la moral y religión por lo inmoral y la costumbre, el amor al
trabajo y la verdad por el ocio y la mentira. Se ha olvidado del antiguo imperio que
A fue y de su antigua raza, heredera de poder y sabiduría, por eso quiere restaurar el
imperio inca en la selva. Pues reconoce que se ha extinguido “ese florecimiento de
guerreros incanos. Sus descendientes viven escépticos, solitarios y silenciosos entre
los picachos nevados […] son los hijos soberbios de los indomables de antaño, y su
aislamiento constituye la manifestación de la heredada indocilidad (HERNÁNDEZ,
• p. 281)”.
312 Por último, reconoce que Sangama, heredero de la antigua estirpe, fue
• vencido por la cruel realidad, y que, al no poder restaurar el antiguo imperio,
decide suicidarse. Con ello nos manifiesta que el mundo civilizado ya no puede
retornar a su pasado glorioso, que debe adaptarse al mundo actual, inmoral, y
carente de escrúpulos. Manifiesta que sólo la religión inculca valores espirituales,
mediatiza las barbaridades y convierte a los inmorales en humanos, como sucede
2 en el pueblo inmoral de Santa Inés cuando llega el sacerdote.
Si de sus ancestros incas sólo rescata los elementos anteriores, en
cambio dela selva nos muestra más elementos de sabiduría, necesarios para la
0
sobrevivencia, porque es la que más conoce. En primer lugar, incluye, comoun
elemento de sabiduría popular o sentido común, su experiencia de vida acerca de
1 la mujer bella y recatada, que cuenta su desdicha y su visión del hombre dañino
con ellas. La confesión de Tula es una reflexión acerca de la vida del ser humano:
8 ¿Quién no tiene su historia? Nuestra historia va tejiéndose sin darnos cuen-
ta. Los caminos tienen idas y regresos. Pero la vida no es camino, ya que
vamos sin saber si avanzamos o retrocedemos. Y, en el momento menos
pensado, nos encontramos muy abajo con abrumadora carga de miseria a
cuestas. Esto me ha pasado. Lo primero que ocurre a una mujer es tropezar
con el hombre. Después sigue el hombre. […] hay dos clases: el que hunde
y el que redime […]. La peor maldición que pesa sobre una mujer es nacer
bella (HERNÁNDEZ, pp. 57-58).

En segundo lugar, si, por un lado, manifiesta los efectos negativos que
produce la selva en la mujer bella, por el otro, el civilizado se despoja de su máscara
social, saca sus instintos reprimidos, se convierte en un ser salvaje que da rienda a
sus deseos: “Aquí el civilizado se despoja de la máscara con que engaña al mundo,
no teme la represión ni la censura social (HERNÁNDEZ, p. 59). “Nada hay que
se oponga al hombre libre de la selva, quien toma de ella lo que desee, lo que
instintivamente necesita (HERNÁNDEZ, p. 106)”.
Pero también considera que el amor es simple, porque carece de las
convenciones sociales:“En la selva el amor es simple como el de los pájaros que
J se encuentran un día en una rama y desde entonces vuelan juntos. Dos seres se
conocen sin previo propósito. Ese mismo día se comprenden y al siguiente amanecer
A despiertan juntos, para vivir inseparables (HERNÁNDEZ, p. 294)”.
En tercer lugar, el autor incluye otros elementos de sabiduría cotidiana
L que le ayudan a sobrevivir en la selva, pues sin ese conocimiento del medio perecería
una persona citadina. Como la sabia naturaleza ha puesto junto a la enfermedad
el remedio, integra, como parte de su conocimiento, algunas hierbas selváticas
L
curativas, necesarias para la subsistencia en ese medio tan salvaje y mortal:
Por eso se entrega tranquilo al examen de la extraña enredadera que purifica
A la sangre, de la planta acuática que prolonga la vida, de la que da la muerte
instantánea, de la seta que cura el mal de ojo, del tubérculo que cicatriza las
heridas y de las hojas que predisponen al amor. […] Escogió entre la maleza
unas hojas puntiagudas, cuyo jugo hacía desprenderse inmediatamente a
los anélidos o sanguijuelas(HERNÁNDEZ, pp. 115 y 148).

• Para terminar, el autor censura el materialismo del ser humano de su


313 época, pues considera que si el oro conduce a la muerte al hombre ambicioso,
éste arrastra a los países a la locura, guerra y exterminio. También reflexiona y

considera que no existe diferencia en los vicios, agresión y mezquindad del ser
humano de la selva y de la ciudad, ambos son similares:
La selva tiene lugares de atmósfera irrespirable que envenenan el cuerpo e
intoxican el alma, como la ciudad tiene sus tabernas y lupanares. Regiones
inhospitalarias de donde los animales huyen porque en ellos la vida se les
2 imposibilita. Zonas en que los árboles en vez de frutos dan espinas, porque
temen ser de improviso atacados y necesitan estar dispuestos a la defensa;
igual que en ciertas razas viejas y gastadas donde todos los hombres son
0 agresivos y mezquinos, y cierran sus puertas al paso de los necesitados ca-
minantes(HERNÁNDEZ, p. 112).
1
Y concluye: “Amo la selva porque aprendí a comprenderla e interpretarla.
Es el libro de la Naturaleza abierta ante mis ojos ávido.” (HERNÁNDEZ, p. 378).
8 Porque allí él encuentra el fecundo y maravilloso regazo de la Madre Tierra: la selva
de las Amazonas. Amazonas que abordamos al principio del texto y que ahora

retomamos.
Las amazonas son hermosas de cuerpo, rostro y piel limpia. Andan
siempre desnudas. Hermosas con sus genitales afeitados, altos y cerrados, limpias
de vellos, con tanta inocencia descubierta y sin impudicia. Su único seno está
siempre erguido, cada una tiene una cicatriz perfecta en su pecho derecho. En su
arte erótico ellas son las activas. Su arte no reside en desbordar sus expansiones
manuales y bucales en los placeres introductorios, sino en estirar el goce, durante
la noche entera. Al menos así nos las describe en su Utopía salvaje, el antropólogo
que vive durante diez años en las aldeas indias de la Amazonia, Darcy Ribeiro
(1990).
Referencias
BADINI, R. Recuperación simbólica de la ayahuasca entre política y prácticas de
autorrepresentación. En: Revista peruana de Literatura, Año XI, Num. 9-10, julio 2015,

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314 MORANTE TRIGOSO, F. El novelista de la selva. En: El pueblo, el Diario, Arequipa, 2 de
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2 RIBEIRO, D. Utopía salvaje. Argentina: Ediciones del Sol, 1990. Traducción de Osvaldo
Pedroso
0 VIRHUEZ, R. Sangama, una novela de aventuras.Consultado en http://virhuez-1.blogs-
pot.mx/2008/01/sangama-una-novela-de-aventuras.html. Acceso el

16/11/2017.
1
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http://amazoniaperu.blogspot.mx/2007/08/el-caucho-iquitos-y-la-amazonia-por-ral.
8 html. Acceso el 16/11/2017.

J

A

L POÉTICAS ORAIS AMAZÔNICAS: POSSIBILIDADE DE
DESCOLONIZAÇÃO DE IMAGINÁRIOS (E CURRÍCULOS?)
L CONJECTURAS ACERCA DAS TRADUÇÕES DE CULTURAS VIVAS,
DA VOZ VIVA, PARA O CONTEXTO DA EDUCAÇÃO DE CRIANÇAS
A
Fernanda Cougo Mendonça (UFAC)
Evânia Maria Ferraz Araújo (UFAC)
RESUMO: A pesquisa aqui destacada constitui uma imersão em poéticas orais
produzidas nas Amazônias, onde a vida e a linguagem narrativa são perpassadas
• por diferentes cosmologias, diferentes formas de percepção. Ao invés de ser lida
315 a partir das lentes etnocêntricas, essencialistas e dicotômicas da modernidade
ocidental, a literatura/poesia oral daimista-amazônica que se pretende fazer ecoar

é entendida como “repertório de resistência”(HALL, 2003). O objetivo aqui consiste
em apresentar aspectos da referida pesquisa, que tem como foco a pessoa de Luiz
Mendes; as memórias gravadas em seu corpo e a voz poética que desse corpo
emana, no interior e a partir de culturas amazônicas. Eapresentar conjecturas que
impulsionam novas pesquisas direcionadas para adescolonizaçãode currículos,
2 percepções, comportamentos. Indaga-se se, e de que maneira as poéticas de Luiz
Mendes podem ser adequadamente traduzidas para o contexto da educação de
0 crianças em Amazônias e Brasis.
Palavras- chave: Poesia/literatura oral. Culturas amazônicas. Descolonização.
1 Educação. Luiz Mendes.
Notas iniciais
8 A pesquisa destacada neste artigo foi tecida no interior e a partirdo
Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade da Universidade

Federal do Acre, em sua linha de pesquisa Cultura e Sociedade tem como foco a
pessoa de Luiz Mendes. As memórias gravadas em seu corpo e a voz que desse
corpo emana. Corpo e voz que trazem à tona sua poética, sua visão de mundo.Uma
voz que ressoa no interior e a partir da doutrina do Daime, de êxtases místicos, de
contextos amazônicos (MENDONÇA, 2016). No interior e a partir da epistemologia
da Ayahuasca ou lógica xamânica. Um tipo de conhecimento que se estabelece
a partir do uso da Ayahuasca/Daime: “um conjunto de saberes e práticas que
ocorrem numa zona que transcende os domínios do pensamento lógico e linear,
bem como que transcende tradicionais dicotomias que marcam a razão moderna”
Onde há concordância entre natureza e cultura, entre homem e natureza; entre o
mundo dos mortos e dos vivos. “A experiência da ayahuasca, pode-se dizer, é uma
forma radical de possibilidade de um ensinamento que estilhaça a lógica cartesiana”
(ALBUQUERQUE, 2014, p.181,183).
O objetivo aqui consiste em apresentar um breve recorte da poesia oral de
J Luiz Mendes, bem como nossas representações, nossa análise cultural em diálogo
com tal literatura. E apresentar ainda algumas conjecturas que impulsionam
A novas pesquisas onde o foco é direcionado para o contexto da educação trazendo à
tona a necessidade de descolonização de currículos, percepções e comportamentos
L (MENDONÇA, 2016b). Indagando se, e de que maneira as artes verbais de Luiz
Mendes podem ser adequadamente traduzidas para o contexto da educação de

crianças em Amazônias e Brasis.
L
Notasda poesia oral amazônica/daimista de Luiz Mendes
canto– “A Humildade É Sublime”
A A humildade é sublime
A flor do lótus é real
Desabrochou no jardim
Do reino imperial
No reino imperial

Deus está a falar
316
Com palavras de amor
• Quem quiser pode escutar
Palavras lá no astral
Palavras bem secundárias
Palavras com gentilezas
Palavras estagiárias
2 Estamos dentro deste estágio
No mundo material
0 Aprendendo a trabalhar
E se defendendo do mal
1 (Hino nº 06 do “Novo Horizonte” de Luiz Mendes)

***
8
Conto– O dom de receber hinos 1

Fernanda: Sempre que o senhor recebe um hino, o senhor escuta ele? Como é?2
Luiz: É, é. Tem, tem diversas formas... De, de se receber, né. Eu já recebi hino

1  O presente conto, bem como os cantos inseridos no artigo foram retirados da dissertação tecida
durante a pesquisa de mestrado no PPGLI-UFAC. Optamos por manter o texto tal como ali transcrito,
sem recuo e com o mesmo tamanho de fonte (MENDONÇA, 2016a).
2 Estávamos, eu, Carlos Pila, seu Luiz, Dona Rizelda, seu filho Luiz Brito, uma visitante de São
Paulo, na varanda de seu Luiz, aguardando a chegada de mais pessoas para fazermos uma oração.
mirando, né. Mirando quer dizer, vendo! Já recebi hino sonhando, né. Aí, também,
intuindo, né. Intuindo.
Dona Rizelda: [bem baixinho] “intuindo e clareando”.3
[Canto - Eu Andava Viajando
Eu andava viajando
Parei num santo salão
Concentrei-me no meu mestre
J Passou-me uma lição
Só Deus sabe nós sentimos
A A força da intuição
Intuindo e clareando
L No alcance da visão
Que para estar junto ao poder
L É preciso confiar
Ser solidário com os outros

A E tudo pode acrescentar


No crescente eu já me vou

Balanceia, balanceia
Vou alcançando o santo brilho
Da louvada lua cheia
• Lua cheia consagrada

317 Concentrou nesta passagem


Clareai nosso caminho

No percurso da viagem]
(Hino nº16, “Novo Horizonte”, Luiz Mendes)

Luiz Mendes: Intuindo você sabe como é que é, né?


Fernanda: Explica aí, como é que é.
2 Luiz Mendes: He, he, he, É aquilo que a gente num vê, nem pega, mas sente. Chama-
se intuição. E, agora, o a, a as fórmulas, é que são diferentes. Tem hinos que chega
0 pra você, assim, gra-cio-samente... Eu tenho uns, especiais, aí. Seria ingrato em
dizer que num tenho. Mas, na maioria, tudo é sofrimento. Tudo é sofrimento. Num
1 é muito de graça não. São registros, da, da trajetória! Né, da gente. Nem tudo são
flores. [Pausa longa]
8 Tudo, de início, eu aceitei e acreditei, porque num tinha como num
acreditar! Mas tinha uma coisinha que, eu num desacreditava totalmente, mas,
tinha umas dúvidas assim. Era a coisa de receber hino. Hé, hé, hé, hé... Eu achava
assim que, a pessoa adquiria por aí umas palavras... montava... tal, depois aí, uma

Seu Luiz estava contando sobre quando ele recebeu o primeiro hino do “Novo horizonte”. Um das
poucas oportunidades em que Dona Rizelda permaneceu por um bom tempo em uma roda de
conversa.
3  Dona Rizelda é esposa de Luiz Mendes e faz referência ao hino nº16, “Novo Horizonte”, Luiz
Mendes.
musiquinha... eu acho que... é isso aí. Isso era o que eu imaginava que fosse. Aí
rolou aí uns dias, uns anos. Demorei um pouco a receber hinos. Eu acho que sim.
Dona Rizelda: Demorou nada, menino!

Luiz Mendes: Não? He, he, he...


Rizelda: Logo tu recebeu ...
Luiz Mendes: He, he, he a mulher lembra mais do que eu. Aí quando é um dia, eu,
J de rede atada, trabalho em casa. Aí tomei um copo de Daime, nesse tempo era de
rotina... A gente podia tomar um copo de Daime. É... assim quisesse, n’era. Num é
A hoje que é limitado é regrado, né. Ele deixou uma regra. Mas nesse tempo a regra
era, cheio. Copo cheio. As mulheres era um pouquinho a menos. Mas era naquela
L risca, que a gente chama ¾.
E aí num copo cheio desse Daime, aí eu saí, né. Saí uma viagem e lá vai,
lá vai, lá vai, lá vai... Até que eu cheguei assim num... num patamar! Assim. Aí eu
L
olhava, aquela imensidãããoo assim... Aí quando eu vou olhando assim na minha
frente e num era muito longe não, começou a nascer, uns alicerces. Assim, duma
A casa, né. E eu me abismei com aquilo e aquilo foi crescendo! E foi crescendo. E
foi crescendo assim como, quatro colunas pra uma caixa d’água. E foi crescendo
e foi, com um pouquinho já estava lá em cima [olha bem pro alto] aí foi armando,
armando, armando, aí: era um trono! Era um trono. E eu fiquei abismado! Aí tinha
uma janela. Tinha uma janela. De cá eu olhava [olha bem para o alto] e via aquela
• claridade dentro daquele trono que chega me incandiava!
318 Aí nessa daí, nasceu um fiozinho. Vinha, vinha, vinha [faz o gesto como
• se o fio viesse “serpenteando”] vinha, vinha, vinha, vinha, vinha aí ligava aqui
em mim [em cima do peito], aquele fio. Mas na proporção que aquele fio vinha,
também vinham umas palavras... Vendo o fio, e as palavras, né. E aí foi montando,
montando, montando, montando... E aí foi que eu fui entender, que o fio era a
música. Em forma de fio, né. E as palavras, eu lia bem. Ainda mais que eu sei ler.
Porque dentro dessa doutrina do Mestre, num... o, o cego também vê! Hé, hé, he,
2
he, he. Ai eu, eu comecei a ler as palavras, e o, e o fio era, era a música, né. Aí
quando aquilo ligou, aquilo tudo em mim, eu, já abri foi o bocão cantando, né. Hé,
0 hé, hé, he, he, he. Aí... Foi lá em casa ou foi na casa da tua mãe?
Rizelda: Não. Foi lá em casa. Foi lá ainda naquela casa antiga do papai. Nós nem
1 morava lá.
Luiz Mendes: E aí, rapaz, eu fiquei muito animado! Mas rapaz! E aí, e acreditando.
8 “Agora eu acredito que a gente recebe hino mesmo, porque, ô coisa fantástica! Que
é “O rei”, né. “O rei me mandou”. E é bem pequenininho. Aí, logo fui, corri lá no
padrinho fui cantar pra ele:
_ Tá bom, Luiz. Tá bom.
“O rei me mandou, para eu cantar assim”.
[Canto - O Rei Me Mandou
O rei me mandou
Para eu cantar assim
Para eu bem aprender
E amar a mãe divina]
(Hino nº 1, “O Centenário”, Luiz Mendes)
(Comunidade Fortaleza, Capixaba, Acre, 02/06/2015.)

***
Canto 39 - É Deus!
Luiz Mendes: É Deus
J Todos Cantando:
É Deus em tudo
É Deus em todos
A
É Deus no céu

É Deus de ouro
L
No estábulo das palavras

Eu só tenho que firmar
L Junto ao mestre ensinador
A ele eu quero escutar
A Luiz Mendes: É Deus
Todos Cantando:
É Deus em tudo
É Deus em todos
É Deus no céu

É Deus de ouro
319 Eu escutando o Mestre disse
• A simplicidade entra em todo canto
Amiga da verdade Naná Nonô
Naná Nonô é a flor do encanto
Luiz Mendes: É Deus
Todos Cantando:
2 É Deus em tudo
É Deus em todos
0 É Deus no céu
É Deus de ouro
1 (Hino nº28, “Novo Horizonte”, Luiz Mendes)

Análise cultural: diálogos, traduções e representações


8 eu creio no poder das palavras, na força das palavras, em que fazemos coi-
sas com as palavras e também que as palavras fazem coisas conosco. (LAR-
ROSA, 2004, p.152)

A voz poética assume a função coesiva e estabilizante sem a qual um grupo


social não poderia sobreviver. [...] A memória, por sua vez, é dupla: coletiva-
mente fonte de saber; para o indivíduo, aptidão de esgotá-la e enriquecê-la.
Dessas duas maneiras a voz poética é memória. (ZUMTHOR, 1993, p.139)

Compartilhando das proposições em epígrafe mergulhamos na voz poética


e na arte das palavras praticada pelo orador do Mestre Irineu. E me deparo com
relações entre (e questões sobre) linguagens, culturas e identidades; oralidades e
escrituras; corpo, voz, memória. Importa ressaltar que os cantos, contos e preleções
de Luiz Mendes, estão diretamente relacionados com suas experiências e memórias
vivas, dinâmicas, que têm como único suporte o seu corpo. Corpo que realiza suas
performances. E cada performance é uma “obra de arte única, na operação da
voz” (ZUMTHOR, 1993, p.240). Uma obra viva que só existe naquele aqui/agora,
na presença de intérprete e interlocutores, onde “o som vocalizado vai de interior
J a interior e liga, sem outra mediação, duas existências” (ZUMTHOR, 2010, p.13).
Obra viva que não pode ser desvinculada de seu contexto (no caso, a doutrina do
Daime, mais especificamente a irmandade do CEFLI, amigos e simpatizantes) e
A
da função que ali exerce. Obra que abrange, além de palavras, risos, gestos, sons,
expressões, tons, ritmos, texturas e etc. Nela tudo acrescenta significado ao texto,
L “tudo é linguagem” (ZUMTHOR, 1993, p.229).
Em poéticas e políticas orais o corpo fala, não só porque a voz emana do
L corpo, que emite sons, ritmos, sinais, pulsações, mas porque a memória oral
faz do corpo seu suporte. Torna-se possível dizer que o corpo se constitui em
texto, por onde transitam experiências e narrativas encarnadas, com práti-
A cas corporais mentalizadas e imersas na subjetividade e história de corpos
comunitários. (ANTONACCI, 2014, p.62)

Cientes da impossibilidade de trazer aqui a totalidade/vivacidade das


performances, e ouvindo o alerta do poeta ao assinalar que “poesia não é para
• entender” (BARROS, 1990, p.212) não pretendemos explicar os poemas e narrativas
que serão contemplados. Até porque “o texto poético oral, na medida em que engaja
320
um corpo pela voz que o leva, rejeita, mais que o texto escrito, qualquer análise.
• Essa o dissociaria de sua função social e do lugar que ela lhe confere na comunidade
real” (ZUMTHOR, 2010, p.40). Assim, procuramos aqui traduzir para a escrita os
sentidos que os cantos, contos ou preleções despertaram (ou despertam). Traduzir
minhas impressões como ouvinte (mas também como transcritora e leitora) diante
das experiências vividas/memórias encarnadas de Luiz Mendes, por ele narradas,
2 cantadas, dramatizadas (e aqui escritas, pelo menos em parte). Sempre lembrando
que a obra viva, a performance, aberta às refuncionalizações de acordo com os
0 ouvintes e as circunstâncias em que é simultaneamente pronunciada e percebida
exige uma interpretação nômade (ZUMTHOR, 2010, p.292). Quanto mais a poesia
oral musical/ritual e/ou narrativa/cotidiana da Ayahuasca ou, especificamente
1
aqui, daimista.

Iniciamos a apreciação direcionando o olhar (ou os ouvidos) para o “Canto
8 - A humildade é o símbolo da nobreza” e o “Canto - É Deus” registrados no item
precedente. São hinos recebidos/percebidos por Luiz Mendes e que fazem parte
de seu hinário “Novo Horizonte”. Ressaltamos que os hinos, poemas espirituais/
musicais, representam experiências de êxtases místicos e também cotidianas,
inseparáveis da pessoa que as vivencia e de seus contextos (físicos, espirituais,
sociais, históricos, políticos e culturais). Experiências que se desdobram em
entendimentos/conhecimentos acerca de si e do universo. Cantados, tocados,
bailados, vividos ritualmente pela irmandade, sob o efeito do Daime, os hinos
compõem performances rituais coletivas que constituem a escola da oralidade
daimista. Corpos de mulheres e homens, crianças, jovens e anciões em movimento;
coral de vozes que se elevam em uníssono, harmonizadas com os solos e acordes
de violões (e algumas vezes de guitarras, bandolins, flautas, acordeões e etc.); na
pulsação rítmica marcada pelos maracás; percepções ampliadas pelo professor
vegetal; simultânea transmissão e recepção das mensagens poéticas/sagradas,
continuamente refuncionalizadas; ininterrupta atualização e afirmação dos
saberes daimistas; da cultura e identidade de seus praticantes. Nas palavras de
J Albuquerque (2015, p.670), “como momento sagrado de recriação e atualização da
tradição, o ritual expressa os códigos considerados essenciais na construção das
identidades”.
A
Posto isso, dentre as múltiplas leituras que os referidos cantos
L possibilitam, ou podem vir a possibilitar, destacamos alguns pontos que me
chamam a atenção dentro do tema aqui em questão. Ambos afirmam a presença

de Deus, e fazem recordar que estão inseridos em um contexto “religioso”, ou
L melhor, em uma cosmologia do sagrado. E Deus, assim como o Mestre, está a falar.
E se Deus, afirma o poeta/xamã, está em tudo e em todos, então nos voltamos
A às palavras de Hampàtê Bá (2003, p.31)e à velha África, onde “tudo fala, tudo é
palavra, tudo procura nos comunicar um conhecimento...”; nos voltamos também
a São Francisco de Assis (2015) que com sua voz poética/cristã recria o catolicismo
rompendo barreiras entre Deus, os homens e a natureza (BAKHTIN, 1987, p.50)
e em seu “Cântico das Criaturas” louva a Deus, louvando o sol, a lua, as estrelas,
• a água, o ar e a terra, considerando-os seus (nossos) irmãos e irmãse permaneço
321 em uma epistemologia ayahuasqueira onde se estabelece um efetivo diálogo, uma
comunicação horizontal dos homens entre si e entre eles e a natureza - com seus
• seres visíveis e invisíveis; onde o homem é ele mesmo natureza e a natureza é, ela
mesma, cultura; é, ela mesma, Deus.
E nos referidos hinos, portanto, Luiz Mendes estabelece, ou traduz, seu
diálogo com o Mestre e/ou com Deus em tudo e em todos manifestado. Usando uma
linguagem metafórica o poeta vai caracterizando as palavras. Como um rebanho
2 elas estão em um estábulo, talvez aguardando quem lhes venha tratar ou de seus
préstimos se valer. Mas ele também adverte: há palavras que desabrocham como
0 flores em amor, humildade e simplicidade; mas há também palavras secundárias,
palavras estagiárias. É preciso, portanto, afinar o diapasão corpóreo para escutar
1 e discernir com clareza. E, na escola viva, escola da oralidade, da experiência,
aprendida e ensinada pelo Mestre Irineu, aprender os encantos das palavras e com
8 elas encantar. Escola em que Luiz Mendes é aluno e também professor.
No “Conto” “O dom de receber hinos”, não estamos inseridos em uma
situação ritual. Aqui, em uma conversa cotidiana, poucas pessoas na varanda de
sua casa, impulsionado por uma pergunta seu Luiz conta um pouco sobre suas
primeiras lições nessa escola da experiência. Para contextualizar o saber que vai
transmitir, afirma que os hinos são registros de sua trajetória e foram recebidos/
percebidos de diversas formas: mirando – vendo, ouvindo, sentindo – sonhando,
intuindo, etc. Constituindo sentidos junto com o narrador, dona Rizelda, que
naquele momento era ouvinte e portanto, interlocutora, traz à tona o “Canto: Eu
andava viajando” que reafirma o lugar da intuição na constituição dos saberes de
Luiz Mendes e, consequentemente, da comunidade estabelecida ao seu redor. O
narrador me interpela e explica então, com a descontração e simplicidade que lhe é
inerente, o que é intuição: “He, he, he, É aquilo que a gente num vê, nem pega, mas
sente. Chama-se intuição.” Ao me inserir nessa forma de conhecimento intuitivo
recordo de Fritojf Capra para quem:
O racional e o intuitivo são modos complementares de funcionamento da
mente humana. O pensamento racional é linear, concentrado, analítico. Per-
J tence ao domínio do intelecto, cuja função é discriminar, medir, classificar.
Assim, o conhecimento racional tende a ser fragmentado. O conhecimento
intuitivo, por outro lado, baseia-se numa experiência direta, não intelectual,
A da realidade, em decorrência de um estado ampliado de percepção conscien-
te. Tende a ser sintetizador, holístico e não linear. Daí ser evidente que o
L conhecimento racional é suscetível de gerar atividade egocêntrica, ou yang,
ao passo que a sabedoria intuitiva constitui a base da atividade ecológica,
ou yin. (CAPRA, 2012, p.37)
L
Continuando a apreciar o “Canto: Eu andava viajando” encontramos

expressões que vão ao encontro da proposição de Capra. Dentro de uma viagem
A xamânica, de uma experiência mística vivida em um “estado ampliado de percepção
consciente” aqui proporcionado pelo Daime, Luiz Mendes concentra-se em seu
Mestre, e na força da intuição, dentro do alcance de sua visão recebe uma lição:
Confiar e ser solidário, para poder acrescentar. E pelo que foi possível observar
em campo, a solidariedade é uma característica do orador. O próprio ato de
• transmitir suas experiências, seus saberes por meio da palavra falada (ou cantada)
322 é, de acordo com Albuquerque (2015, p.661) “um processo solidário que envolve,
• necessariamente, o(s) outro(s)”. Como coloca Benjamim (1994), o narrador, em seu
“ofício manual” está sempre na presença daqueles que lhe ouvem. Constituindo
sentidos dentro de uma linguagem poética, cantada, que penetra no âmago
dos ouvintes, Luiz Mendes reatualiza e afirma seus saberes e fazeres holísticos,
ecológicos.4
2 Após a contextualização introdutória seu Luiz faz uma longa pausa. E
do “silêncio matriarcal” (ZUMTHOR, 2005, p.63) sua voz emerge e traz à tona uma

extraordinária narrativa a respeito da miração em que ele recebe o primeiro de seus
0 quase duzentos hinos: o “Canto - O Rei Me Mandou”. No desempenho de sua arte
verbal cotidiana ele proporciona que os ouvintes “experimentem” sua experiência
1 lembrada/narrada. Meus sentidos são tocados, sensibilizados pelos ritmos, gestos,
expressões, tons e cores de sua performance. Como coloca Zumthor (2005, p.63)
8 “A voz jaz no silêncio; [...] Ora nesse silêncio ela amarra os laços com uma porção
de realidades que escapam à nossa atenção despertada; ela assume os valores

4  Os conceitos de holístico e ecológico são empregados por Capra para destacar formas de ser/
estar, ou uma visão de mundo que vai além do paradigma estabelecido pela modernidade ocidental,
para além das dicotomias e reducionismos cartesianos. Uma visão de mundo que pode ser embasada
pela física quântica: “teoria que considera o mundo em função da inter-relação e interdependência
de todos os fenômenos” que nos aproxima da “Ecologia de saberes” proclamada por Boaventura
Santos, da “Poética da Diversidade” proposta por Glissant, e das culturas diaspóricas afirmadas por
Hall. Cf. CAPRA, 2012, p.41; SANTOS, 2009; GLISSANT, 2005; HALL, 2003.
profundos que vão em seguida, em todas as suas atividades, dar cor àquilo que por
seu intermédio, é dito ou cantado.”
Buscando nos arquivos de sua memória (ou em suas memórias sem
arquivo) experiências vividas em tempos remotos, sua narrativa começa com
uma afirmação positiva acerca da escola em que está “matriculado”, a saber, a
doutrina do Daime: “Tudo, de início, eu aceitei e acreditei, porque num tinha como
num acreditar!” Logo em seguida ele coloca um contraponto ao ponderar que seu
J aprendizado acerca de receber hinos começa com uma dúvida: “Era a coisa de
receber hino. Hé, hé, hé, hé... Eu achava assim que, a pessoa adquiria por aí umas
A palavras... montava... tal, depois aí, uma musiquinha... eu acho que... é isso aí.
Isso era o que eu imaginava que fosse”. Até que certo dia, mediado pelo Daime, seu
L professor vegetal/espiritual, Luiz Mendes sai em uma viagem extática e vive uma
experiência sensória em que caminha, vê, se abisma, ouve, lê, entende e canta. Em

suas palavras “ô coisa fantástica!”
L
Nos deparamos com uma situação de inter-relação entre o som e a
grafia; entre a oralidade e a escritura. No ápice da experiência, tal como a recorda
A e transmite o narrador, o neófito vê o que entendo ser a linha melódica, o fio que
sai do trono irradiante e vem em sua direção. Aos poucos vai entendendo que
aquele fio é a música, que ele pode escutar. Ao mesmo tempo, acompanhando a
linha melódica ele vê algumas palavras escritas, que ele lê bem. E quando melodia
e texto se ligam em seu peito ele já abre o “bocão” cantando. Destaco, por ora,
• que embora se trate de uma experiência do êxtase ela não se restringe à esfera do
323 mental; antes é percebida/vivida a partir dos/nos sentidos do corpo. Experiência
viva profundamente gravada em sua memória e que será repassada ao Mestre e,

posteriormente aos demais sendo continuamente reatualizada por meio de sua
presença/voz: do canto ritual e do conto cotidiano. Experiência que não pode ser
apreendida por uma lógica fundamentada em bases epistemológicas do pensamento
moderno ocidental.

2 Possibilidade de descolonização de imaginários

Cabe ressaltar que percebemos as memórias narradas de Luiz Mendes


0 como artes verbais; como literatura oral daimista e amazônica; como “performances
e literaturas insurgentes” que subvertem “sistemas de avaliações e classificações”

da modernidade norte ocidental. Suas narrativas não se enquadram em gêneros
1 literários canônicos euro e etnocêntricos, excludentes e exclusivistas. Embora
gravadas em entrevistas e conversas cotidianas não as escutamos/lemos como
8 simples relatos, porque são providas de arte, de poesia e por isso decidimos chamá-
las de contos. Mesmo que versem sobre suas experiências de vida, experiências
cotidianas e extáticas e, portanto, não possam ser tomadas como ficção, elas
também não trazem o real vivido porque estão inseridas na linguagem. E dentro
dos referenciais adotados, a linguagem é, em si mesma, ficcional e subjetiva.
(ANTONACCI, 2014, p.333; HALL, 2003; WILLIAMS, 1979; ZUMTHOR, 1993; 2005;
2010).
Ao narrar suas histórias vividas, cotidianas ou extáticas o ancião conhecido
como o orador de Mestre Irineu, exerce a função social que lhe é própria: “a de
lembrar. A de ser a memória da família, do grupo, da instituição, da sociedade” (BOSI,
1994, p.63). Ao recordar e narrar a partir do presente as experiências passadas,
ele atribui sentidos e as faz significativas para si e para os que o escutam. Estamos
diante do que Bosi (1994, p.481) considera “um movimento peculiar à memória do
velho que tende a adquirir, na hora da transmissão aos mais jovens, a forma de
ensino, de conselho, de sabedoria, tão bem esclarecida na interpretação que Walter
Benjamim fez da arte narrativa”.
J E, no caso dos contos e cantos de Luiz Mendes, essa arte de narrar
se amplia fazendo parte de uma “tradição narrativa da Ayahuasca” (LANGDON,
A 2002). Ou ainda do que Ana Pizarro (2015) entende por “literatura amazônica”:
uma literatura produzida na “Amazônia” que, de acordo com a pesquisadora, pode
L ser exemplificada pelas narrativas orais constituídas a partir da Ayahuasca (com
seus muitos nomes e usos), onde a vida é perpassada por diferentes formas de

percepção e ocorre uma transposição de linguagem. Uma linguagem narrativa que
L incorpora outras formas de mundo, ou outros mundos, outras cosmologias. Pizarro
a diferencia de uma literatura escrita fora da “Amazônia” e que versa sobre ela. No
A caso uma literatura de tema amazônico, produzida a partir de um olhar externo
que na maioria dos casos folcloriza as Amazônias, suas culturas e habitantes.
A diferenciação colocada por Pizarro é significativa e remete à embates
político-culturais na linguagem e às questões apontadas no primeiro capítulo
acerca de “regionalismos”, de discursos forjados para a nação. No Brasil, de acordo
• com Antonacci, Gilberto Freyre, entre outros, tece e dá visibilidade à
324 representação de uma sociedade homogênea, com noção de patrimônio
cumulativo. [Freyre] Concebeu uma cultura nacional na somatória de eru-
• ditos, meio letrados e iletrados, enquanto segmentos isolados, sem reco-
nhecer que esses termos comportam relações e classificam os Outros sob
a ótica do “poder letrado”, como fronteira entre governantes e governados.
[...] configurou unidade nacional composta por justaposição de diferenças.
Nessa perspectiva de unidade cultural e cultura nacional, a literatura oral é
estudada enquanto adjetivo. (ANTONACCI, 2014, p.65-66)
2
Assim, sob a ótica e os interesses dominantes, dos “homens de letras”,
0 “eruditos”, dos governantes inventa-se e registra-se uma “memória da nação”, uma
“unidade nacional brasileira” composta por “práticas regionais” estratificadas,
1 também inventadas5. Tal concepção/ação marginaliza e/ou silencia as experiências
vivas e as pessoas também vivas que constituem (e são constituídas por) as

muitas “culturas da oralidade” existentes em Brasis (e suas imbricadas relações
8 com “culturas letradas”) emparedando-as “na rubrica de folclore da cultura
brasileira”(ANTONACCI, 2014, p.65-66).
De acordo com Zumthor, o termo folclore é empregado por uma “elite
literária” consolidada a partir da modernidade ocidental para qualificar o seu
Outro. Elite culturalmente etnocêntrica que funda a “literatura” como instituição
totalitária onde prevalece a hegemonia da escrita e dos modelos socioculturais do
dominador europeu (governantes, burgueses, colonizadores...). Cria-se e difunde-
se um discurso total e homogêneo que veicula uma visão de mundo que serve

5  Como bem explicado por Durval Muniz Albuquerque Júnior(2011).


aos interesses dominantes. Discurso que traça estratificações e oposições binárias
tais como “erudito” x “popular”, “literatura” x “o resto”. Corpos e vozes foram, e
continuam sendo, ativamente marginalizados; tidos como algo “distante” (no tempo
e no espaço); “atrasado”, “popular”. Seus saberes e práticas culturais tomados como
objetos de adorno da “cultura nacional”. Alegorias que não exercem mais nenhuma
função social. São, enfim, folclorizados. Por isso Zumthordescarta a expressão
literatura oral para assumir o termo poesia oral. (ZUMTHOR, 1993; 2005;2010)
J Compartilhamos de suas proposições. Mesmo que neste artigo a expressão
literatura oral (como em Pizarro e Antonacci) seja utilizada, ela não deve ser lida
A como adjetivo, como folclore oposto aos “cânones literários”. Deve ser apreendida
sob a perspectiva dos Estudos Culturaiscomo múltiplos textos que fazem parte
L de culturas vivas; que trazem à tona vozes aviltadas, silenciadas(CEVASCO,
2003; HALL, 2003; WILIAMS, 1979); “performances e literaturas insurgentes que

vêm abalando o predomínio norte ocidental com seus sistemas de avaliações e
L classificações” (ANTONACCI, 2014a, p.333). Enfim, ao invés de ser lida a partir
das lentes etnocêntricas, essencialistas e dicotômicas da modernidade ocidental
A (“alto ou baixo” “popular ou erudito”, “escritura ou oralidade”, “centro ou periferia”,
“memória ou história”, etc.) a literatura oral amazônica-daimista que procuro fazer
ecoar (a saber os contos e cantos de Luiz Mendes) passa a ser lida como “repertório
de resistência” (HALL, 2003, p.229).
Repertório constituído em tensão, mas não em oposição aos repertórios
• dominantes. Que ao apresentar em si mesmo as estratégias dialógicas inerentes às
325 estéticas diaspóricas “burla a essencialização da diferença dentro das duas oposições
mútuas ou/ou” e pode “deslocar-nos para um novo tipo de posição cultural” (HALL,

2003, p. 344). Uma posição que adota como propósito a substituição do “ou” “pela
potencialidade e pela possibilidade de um ‘e’ o que significa a lógica do acoplamento
em lugar da lógica da oposição binária” (HALL, 2003, p.345).
Expressões vivas de uma“desobediência epistêmica”que evidenciam a
2 necessidade de trazer à tona epistemologias “outras”, considerando que “a opção
descolonial é epistêmica, ou seja, ela se desvincula dos fundamentos genuínos dos
conceitos ocidentais” o que significa, “entre outras coisas, aprender a desaprender,
0 já que nossos (um vasto número de pessoas ao redor do planeta) cérebros tinham
sido programados pela razão imperial colonial” (MIGNOLO, 2008, p.290). Repertório
1 inseridos em uma poética da Relação ou da Diversidade tal como pensada por
Glissant (epraticada por Luiz Mendes); uma poética constituída a partir de culturas
8 compósitas (GLISSANT, 2005). Distanciando-se das culturas atávicas (SANTOS,
2009) e aproximando-se de estéticas diaspóricas (HALL, 2003) são culturas
constituídas a partir da modernidade, das diásporas, da circularidade de pessoas e
saberes no mundo, de imbricadas relações que escapam aos objetivos da colonização
e produzem novas culturas, novas identidades. Identidades diaspóricas; identidades
relações ou “rizoma”: “identidade não mais como raiz única, mas como raiz indo ao
encontro de outras raízes” (GLISSANT, 2005, p.25).
Repertórios que podem contribuir para transformar o imaginário;
descolonizar mentes, percepções e comportamentos. E currículos?
Conjecturas acerca das traduções de culturas vivas, da voz viva, para o
contexto da educação de crianças
Em consonância com os referenciais expostos, ainda que resumidamente
no item anterior, entendemos que um dos maiores desafios que enfrentamos ao
pensar/propor uma tradução da cultura viva, da voz viva, da poesia/literatura
oral daimista/ayahuasqueira/ amazônica de Luiz Mendes para o contexto da
educação de crianças, consiste em não esvaziar, não folclorizar as práticas, o
J repertório literário/cultural em questão.Entendemos que tal repertório abrange/
está inserido em/dialoga com culturas, oralidades, literaturas afro-brasileira e
A indígenas conforme pudemos observar em nossa pesquisa (MENDONÇA, 2016a).
E por esse veio consideramos possível sua inserção em projetos educacionais com
L crianças da Educação Infantil e do Ciclo de Alfabetização, anos iniciais do Ensino
Fundamental; inclusive respaldadas pelo suporte legal proporcionado pelasLeis
11.645 (BRASIL, 2008).Bem como pelas Diretrizes Curriculares Nacionais da
L Educação Básica(BRASIL, 2013).Nesse sentido colocamos algumas questões
que impulsionam e direcionam futuras pesquisas a serem compartilhadas com
A crianças:6
Considerando a centralidade e o protagonismo das crianças nos
processos de ensino-aprendizagem e o papel de mediador exercido pelo professor,
a aproximação lúdica e interativa das crianças com poesias/literaturas a partir
do corpo vivo, da voz; da leitura/percepção/ expressão sensorial; da exploração/
• vivência de possíveis caminhos performáticos de/com tais textos, favorece a
326 educação do ser poético e a formação de crianças amantes/praticantes da leitura?
De que maneira?

A abordagem das poesias/literaturas daimistas/ayahuasqueiras/
amazônicas de Luiz mendes, na perspectiva adotada (de repertórios de resistência,
abordados sob uma perspectiva não hierárquica, não sujeita a inventários e
binarismos essencialistas e excludentes, perspectiva aliada ao tratamento lúdico e
2 interativo) contempla identidades e culturas de crianças participantes? Possibilita
também o contato com outras identidades e culturas de maneira mais aberta,

receptiva? Proporciona a constituição de percepções e comportamentos (e currículos)
0 descolonizados, de identidades rizoma, inseridas em estéticas diaspóricas? O
repertório e a abordagem estimulam sua aproximação prazerosa com a poesia/
1 literatura; sua formação como leitora?
O processo educacional pautado na perspectiva dialógica (na concepção
8 de linguagem como campo de lutas e de alfabetização como espaço/tempo de
conscientização) favorece a participação ativa das crianças nos processos de
ensino-aprendizagem e sua formação como leitora crítica? Possibilita inserir-se
verdadeiramente como sujeito no processo histórico-social; capaz de ler, refletir,
dialogar com textos e contextos?

6  A expressão “intervenção pedagógica” (apesar de ser nos termos “científicos”, talvez, a terminologia
mais indicada para nomear o método ou tipo de pesquisa) não soa bem nossos sentidos. Talvez a
pesquisa possa ser considerada uma “pesquisa com-partilha-ação”. É no contato, no diálogo com
as crianças que a pesquisa se fará.
Explicitamos a seguir algumas considerações acerca da proposta de
pesquisa:
Educação do ser poético é uma proposição de Carlos Drummond de
Andrade que chega aos nossos ouvidos em tom de alerta e também de esperança.
“Por que motivo as crianças, de modo geral, são poetas e, com o tempo, deixam de
sê-lo?”. Com essa questão Drummond inicia um pequeno texto que, devido à sua
profundidade, se desdobra em múltiplas possibilidades! (ANDRADE, 1974). As
J palavras do poeta vêm ao encontro de nossos anseios de uma “educação pela arte”.
Nesse sentido, intentamos que as ações a serem realizadas com as crianças ao longo
A da pesquisa, sejam perpassadas pelas artes, em especial aqui as artes verbais. A
partir das conjecturas de Zumthor (2014) no que se refere à performance, recepção
L e leitura, proponho uma aproximação das crianças com poesias/literaturas afro-
brasileiras e indígenas, a partir do corpo e da voz; da leitura/percepção/expressão

sensorial. Considerando a centralidade e o protagonismo das crianças nos processos
L de ensino-aprendizagem e o papel de mediador exercido pelo professor, pretendo
percorrer/compartilhar com as crianças possíveis caminhos performáticos do texto
A poético/literário, como estratégia para mediar a leitura e formar crianças leitoras;
amantes e praticantes da leitura.
Trata-se de “introduzir nos estudos literários a consideração das percepções
sensoriais, portanto, de um corpo vivo [...]” (ZUMTHOR, 2014, p.31);de proporcionar
às crianças atividades lúdicas e interativas com a palavra escrita/lida/contada,
• falada/escutada, gesticulada, cantada, dançada, dramatizada. Brincadeiras com o
327 corpo, a voz, o texto.7 Propomos, pois, a imersão em situações poéticas que trazem à
tona o jogo simbólico, o imaginário, a brincadeira, a expressividade, a curiosidade,

o espanto, o questionamento, a inventividade, o encantamento... Que compõem a
forma peculiar das crianças apreenderem o mundo e com ele dialogar constituindo
suas identidades, criando e recriando seus saberes, produzindo cultura (BRASIL,
2013. SARMENTO, 2003).

2 Em consonância com Stuart Hall (2003) ressaltamos que, a partir das


grandes diásporas sofridas por/na modernidade ocidental, no mundo hoje somos
todos seres diaspóricos. E dentro de estéticas diaspóricas não nos é mais possível
0 retornar a um essencialismo de culturas puras. Também não faz sentido falarmos
em identidade cultural se por ela entendemos algo pronto, fechado em si mesmo.
1 Somos seres em constante transformação e essa se dá pelo contato, pelo intercâmbio.
Culturas e identidades que se entrecruzam e produzem novas culturas; identidades
8 fluidas. Nesse sentido, considero que a educação do ser poético deve se dar no
âmbito de uma poética da diversidade.
A pesquisa/”com-partilha-ação”será conduzida, portanto, no intuito de
sensibilizar os sentidos das crianças para a diversidade cultural e identitária, no
interior e a partir da perspectiva dos Estudos Culturais. Sob esse viés supomos
que a abordagem dos repertórios poéticos/literários de Luiz Mendes, em diálogo
com repertórios africanos, afro-brasileiros, indígenas (com os saberes e fazeres,
performances e conteúdos que trazem à tona) permitirão às crianças apreciações e
7 Citamos algumas dentre as inumeráveis referências possíveis de serem exploradas nesses
momentos: ABRAMOVICH, 1997; REVERBEL, 1996; SISTO, 2012; SPOLIN, 2006.
vivências éticas e estéticas; leituras/experiências que lhes possibilitem o acesso a/
constituição de imaginários, de “espelhos outros” que melhor representem, reflitam
suas/nossas imagens de habitantes das Américas (Brasis, Amazônias) herdeiros
das diásporas (HALL, 2003; MIGNOLO, 2008; QUIJANO, 2005)
No que se refere especificamente ao Ciclo de Alfabetização, como o próprio
nome sugere, há que ser dada atenção especial ao processo de alfabetização e
letramento. Nesse sentido, gostaríamos de destacar que as notas que procuramos
J fazer soar estão imersas e emergem da parceria Educação, Linguagem e
Conscientização. Aqui a importância da palavra. A palavra em suas dimensões de
A ação e reflexão (FREIRE, 2014). Da palavra como terreno de lutas (HALL, 2003;
LARROSA, 2004; WILLIAMS, 1979). Assim, apreendemos a palavra não apenas
L como vocabulário mas como premissa de comportamento. A linguagem verbal é lida
aqui como uma produção humana subjetiva onde se estabelecem embates político-

sociais, lutas de poder, de sentidos. Por isso diversos pensadores nos convidam
L a desnaturalizar a ordem dada. Um convite a dialogar com o mundo; convite à
“reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (FREIRE, 2014,
A p.52).
Nesse sentido, propomos que a abordagem dos repertórios poéticos/
literários seja pautada no diálogo com as crianças. Diálogos fundamentados
na participação, na problematização; na contextualização histórica, social,
geográfica, cultural de tais repertórios; no desenvolvimento do espírito crítico, na
• conscientização; “conscientização que lhe possibilita [no caso, à criança] inserir-se
328 no processo histórico, como sujeito” (FREIRE, 2014, p.52).
• E mais uma vez destacamos a importância de tornar acessível e aprazível
às crianças o contato com textos que ampliem seu repertório literário/cultural e
alimentem seus imaginários com poéticas da diversidade. Textos que permitam
apreciações éticas e estéticas, e também políticas. Para que seus sentidos não
sejam subjugados pelos sentidos do opressor; e seu pensamento não se torne
2 fechado e sua voz (como criadora potencial de textos/mundos) não faça soar um
brado atávico. Trata-se de uma proposta em consonância com a lei 11.645 onde
a leitura poética/literária é fim, e também meio; uma ferramenta que permita às
0 crianças constituírem percepções e comportamentos descolonizados.
Se a linguagem, assim como a educação, não é neutra; se ambas são
1 terrenos onde se estabelecem lutas, temos que alfabetização é (ou deveria ser)
conscientização! Ao lidar com as crianças dentro dessa perspectiva, estamos
8 lindando com sua formação humana integral. Formação que lhes proporcione prazer
em se tornar leitoras e, em diálogo com diferentes textos, pessoas e culturas, ler o
mundo em que vivem, interpretá-lo. Explorando a ideia/experiência de performance
inerente à linguagem poética8 as crianças serão convidadas a dialogar ativa e
corporalmente com os textos, preenchendo os espaços vazios, compreendendo-os,
reconstruindo-os. A proposta é intensificar de forma prazerosa, lúdica, sensorial, o
contato das crianças com a leitura para que elas possam “descobrir” e se encantar
com a função simbólica da linguagem e, em especial, da escrita. E desejarem

8  ZUMTHOR, 2014,
aprender as regras desse jogo da letra e da voz.9 E a partir dessa leitura ativa e
crítica de textos e contextos possam dizer a sua palavra, recriando a si mesmas e
a esse mundo; produzindo novas culturas.
Notas finais
É como arte do cotidiano que percebemos as literaturas/poesias orais
vivas, centradas na pessoa de Luiz Mendes. E ao penetrarmos nessa cultura
amazônica/daimista viva, nos deparamos com saberes/práticas que, embora
J sutilmente e dentro do processo de conformismo e resistência, subvertem padrões
hegemônicos e podem contribuir para descolonizar o imaginário. Saberes onde foi
A possível perceber traços de culturas da letra e da voz, de florestas e cidades; de
Amazônias e Nordestes; de Brasis, Europas e Áfricas... Saberes constituídos no
L interior e a partir da epistemologia da Ayahuasca (ALBUQUERQUE, 2011) donde
floresce a poética daimista de Luiz Mendes do Nascimento, o orador do Mestre
L Irineu.
Suspeitamos que o diálogo com tais repertórios(no interior e a partir
de uma abordagem teórico-metodológica voltada para a educação do ser poético
A
(ANDRADE, 1974); fazendo soar o tom de poéticas da diversidade(GLISSANT,
2005), estéticas diaspóricas(HALL, 2003), ecologias de saberes(SANTOS, 2009)e
considerando a parceria entre “Educação, Linguagem e Conscientização”) pode
contribuir para despertar sensibilidades poéticas e libertar os sentidos, os modos
de ver, ler e de viver; libertá-los do opressor internalizado (FREIRE, 2014) para

que, uma vez libertos, possam, verdadeiramente, entrar em contato com o “outro” e
329 encantar-se com a diversidade da vida; diversidade de vozes, culturas, literaturas;
• de paisagens poéticas. Nesse sentido, apresentamos algumas conjecturas; algumas
questões e proposições de pesquisas, de diálogos, de traduções de poéticas orais
amazônicas para o contexto da educação de crianças. Nosso objetivo consiste em
contribuir para a descolonização de currículos e imaginários (MIGNOLO, 2008;
QUIJANO, 2005).
2 Referências
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0 mento, o orador do Mestre Irineu. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade, da Universidade Federal do Acre. Rio
1 Branco, 2016.
HINOS
8 Luiz Mendes, Novo Horizonte, Hinos nº 06, 16, 28.
Luiz Mendes, O Centenário, Hino nº 01.

J

A

L CASMERIM: UM ENCANTO DA FLORESTA

L Fernanda Cougo Mendonça (UFAC)
Evânia Maria Ferraz Araujo (UFAC)
A RESUMO: A performance/história/dramatização/presença de Casmerim, ser
encantado da floresta, nos chega por meio das memórias ancoradas no corpo de Luiz

Mendes e da voz poética que desse corpo emana. Uma voz que ressoa no interior e a
partir da doutrina do Daime, de êxtases místicos, de contextos amazônicos. Nosso
objetivo, no presente trabalho é trazer à tona um pequeno recorte da literatura/
• poesia oral viva; da poética daimista/ayahuasqueira/amazônica de Luiz Mendes.
E sob a inspiração do encanto de Casmerim, aliada a nosso encantamento em
332
relação às poéticas, às culturas da infância, e ao desejo de subverter modelos
• educacionais de opressão, modelos do colonizador,apontamos possibilidades de
tradução dessa poética amazônica para poéticas educacionaisdirecionadas para a
formação cultural ampla das crianças.
Palavras-chave: Casmerim. Poesia/literatura oral. Poéticas daimistas/amazônicas.
Poéticas educacionais. Formação cultural de crianças.
2
Casmerim

Em algumas cerimônias com o Daime o senhor Luiz Mendes nos presenteia
0 com a presença, a performance de Casmerim. Iniciada sempre por um belo canto
coral do hino “Casmerim”, acompanhado de violões e maracás. Algumas vezes
1 conta com uma breve explicação a respeito de quem é Casmerim esclarecendo
que, em certas ocasiões, ela se aproxima e irradia Luiz Mendes para que ele possa,
8 então, executar sua “Dramatização”.Nesse pequeno texto temos a honra de lhes
apresentar, ainda que introdutoriamente, Casmerim.
Canto– Casmerim
Contemplando a natureza
E vendo toda a sua forma
Natureza ela é viva
Se agredida ela chora
A natureza é o conjunto
Na formação de uma só
Todas são obras de Deus
O dono da força maior
No revoo da natureza
Casmerim foi quem partiu
Ostentando a beleza
Sorriu, sorriu, sorriu
No adeus da despedida
J Saudade fica, saudade vai
Casmerim se despediu
A Foi pra casa de papai
Vá pra casa de papai
L Que lá tem muitas moradas
Casmerim estou contigo
L Sempre, sempre será lembrada

(Hino nº 30, “Novo Horizonte”, Luiz Mendes)

A Casmerim, assim como nós que aqui nos encontramos, também já esteve
encarnada neste mundo chão; já vestiu essa mesma veste tão generosamen-
te emprestada pela mãe Terra. Aqui neste plano chamava-se Maria, filha da
madrinha Rizelda, fruto de um relacionamento anterior ao casamento com
padrinho Luiz. Foi uma pessoa muito batalhadora: cedo casou e constituiu
uma numerosa família. Sempre muito estimada por todos, pois era uma
• pessoa muito alegre e positiva! Apesar de todas as adversidades que teve
333 que enfrentar na vida, como a luta pela subsistência de sua família e uma
doença com a qual teve que conviver por um tempo considerável... Mesmo
• assim, não era pessoa de reclamar e tinha como cartão de visitas sempre um
franco e iluminado sorriso no rosto. Apesar de não ser filha consanguínea
do padrinho Luiz, desde muito pequena alimentava por ele um sincero cari-
nho paternal. Sentimento esse que sempre foi recíproco.

E assim o tempo passou até que Maria desencarnou, ainda jovem... Após
2 lutar meses a fio em um leito de hospital. Até hoje ainda é bem vivo na me-
mória do padrinho Luiz o significante olhar de despedida que Maria lhe lan-
çou ao dar o último aperto de mão em meio à agonia do desenlace próximo.
0
Mas, como a vida é uma continuação, meses depois de sua passagem, o
padrinho Luiz, em uma bela miração, de repente sentiu tudo a sua volta
1 balançar! Os elementos naturais ao seu redor ficaram mais radiantes... As
árvores ganharam movimentos! Folhas e flores tinham uma coloração mais
8 intensa. E que sensação agradável provocada pelo frescor da brisa perfuma-
da da floresta.... Assim, contemplando a natureza e vendo toda a sua forma,
sentia tudo vibrar em um poderoso revoo da natureza.

Em meio a esta visão reconheceu um semblante familiar: era Maria, sua


querida filha do coração, que se apresentava nesse emocionante reencontro!
Toda iluminada, ostentando uma beleza singular, própria dos que empre-
gam esforços para a evolução do nosso planeta; que já estão no patamar de
lutar pelo bem comum. Em seguida, em palestra telepática com o padrinho,
Maria se identificou pelo nome espiritual de Casmerim. E discorreu que, de
volta à casa do pai, agora habitando uma de suas maravilhosas moradas, se
tornou um ser encantado da falange dos protetores da natureza. Criaturas
divinas que protegem animais, plantas, ar, fogo, solos, águas das chuvas,
dos rios, dos oceanos... Cada um dentro da sua especificidade. Uma multi-
dão de olhos invisíveis que espreitam e vigiam, inspirando boas ações e/ou
disciplinando aqueles que, motivados pela ambição, destroem os recursos
naturais.

Na sua missão Casmerim atua como protetora da floresta lutando incan-


savelmente contra sua devastação. Procurando despertar nos homens uma
nova consciência. Fazendo o trabalho do beija-flor que, apesar de todas as
J adversidades, não desanima, na esperança de atingir seu intento. Dessa for-
ma, por toda empatia que já sentia pelo padrinho Luiz, Casmerim encontrou
A nele um canal aberto para levar sua mensagem para o mundo, eternizando
sua mensagem para sempre, sempre ser lembrada; Casmerim se faz pre-
sente por meio de uma irradiação, quando Luiz Mendes performatiza sua
L “Dramatização”. (NASCIMENTO, 2015)1

Dramatização
L A floresta tem de tudo!
Tem de tudo! E a gente aprova...
A Com a luz do sol nascente,
É uma verdejante rosa...
A floresta foi criada!
E entregue na nossa mão! ...
Mas, muitos só a destroem! ...

Por pura, e sangrenta ambição...
334 A floresta é benéfica!
• Ajuda na purificação deste ar! ...
Tão castigada pelo homem! ...
Ignorante, ao ignorar...
A floresta é um colosso! ...
Com todos os seus mananciais! ...
2 Tão maltratada pelo homem! ...
Meus irmãos! Isso não se faz ...
0 A floresta é uma riqueza! ...
Não podemos dizer que não! ...
1 Ofereço! A todos vocês...

Esta ligeira, e singela dramatização...

8 Salve o verde da floresta! ...


Salve o verdão do mar! ...
Salve toda a natureza!
Que é a quem a gente deve amar...
Mas, aqui eu me despeço! ...
Externando! A minha saudação...

1  A história, no formato aqui transcrito, constitui uma releitura poética de Suzirene Nascimento, neta
de Luiz Mendes, acerca das memórias narradas de/por seu avô, e me foi contadadurante pesquisa
de campo. O próprio Luiz Mendes compartilhou a história conosco, conforme transcrevemos mais
adiante.
Até quando Deus quiser! ...
Tchau, tchau! Meus queridos irmãos.
(Luiz Mendes/Casmerim, 2015)

Durante a pesquisa de campo certo dia pedi ao ancião:


Conto – Casmerim2
Fernanda: Eu queria que o senhor contasse um pouco sobre a Casmerim.
J Luiz Mendes: [Após uma pausa] É, são seres que quando se revela ou se revelam,
é... Traz curiosidade. Muita gente fica curiosa até porque uma palavra assim, eu digo
A mesmo dentro do contexto da irmandade, né, Casmerim, Casmerim, Casmerim. E
aí a gente tem que, como o Saturnino tem feito, até descrever pelo menos um tanto

do quanto ela representa. Justamente ela faz parte, dos seres encantados. É, como
L
protetora da, da floresta! Zeladora da floresta. Não só ela, mas ela também faz parte
desse grupo, né, de espíritos evoluídos. De uma evolução tão sublime que a gente
L pode dizer, encanto, é um ser encantado da floresta. Mas foi um ser, foi não, é um
ser que foi originário de uma pessoa, que trouxe pra encarnação dela esse espírito,
A esse espírito. Então, a gente teve todo um relacionamento pra justamente chegar a
essa condição de contar com esse ser entre nós.
Quando eu casei com a mulher, aí ela já vinha de outro relacionamento.
E desse outro, duas filhas. Uma chamava-se Rizelmar, chamava-se não, chama-se,
que ela é viva. Rizelmar e a outra, Maria. E aí eu sabia da existência dessas crianças
• por notícia. Porque quando eles, é, terminaram o relacionamento elas ficaram na
335 guarda do pai! Então quando eu casei com a Rizelda ela tinha essas filhas mas não
fui eu quem criei essas meninas, foi. Mas aí eu tinha tanta vontade de conhecer

essas meninas, o pai não era do Daime e aí morava distante pra aqui, pra ali, pra
acolá, arrumou um, um outro relacionamento, terminou enviuvando lá, e essas
meninas assim. Mas ele sempre, elas sempre na guarda dele. E quando foi um dia
coincidiu, num sei precisar aonde, aí aconteceu de eu encontrá-las e com o pai. Aí
achei elas tão legal. Aquelas caboclinhas! E aí, cresceram, chegaram a fase adulta
2 e eu sempre fazendo algum acompanhamento, mas todas as duas se casaram. A
Rizelmar essa que é viva, o que acho que o que faltou na mulher minha ter filhos a
0 Rizelmar completou. Teve dez! He, he, he, he, he, he. Parece que é! Muitos filhos a
Rizelmar, né? E a Maria também casou, era a mais nova. Essa Maria gostava tanto
1 de mim! Periodicamente ela ia lá em casa, as duas, mas mais a Maria, né. Quando
não a gente ia visitar lá a casa delas, né. E aí ela casou lá com um rapaz e, o rapaz
legal, bom, mas viviam assim muito sacrificados. Ela sem emprego, ele também,
8
trabalhava numa colônia, mas enfim, viveram e criaram uns filhos, né. Eu só num
sei dizer quantos a Maria teve. É tanto que a minha mulher pelo que consta, com
certeza, né, tá ganhando de mim na questão de ser, bisavó. Ela já é e tem, e tem
uma porção de, de bis... É bisneto né, depois do neto?
Fernanda: Isso.
Luiz Mendes: É. E ela tem uma porção. Eu só tenho uma. Mas ela tem já uma

2  O presente conto (bem como o cantoe a dramatização) inserido no artigo foi retirado da dissertação
tecida durante a pesquisa de mestrado no PPGLI-UFAC. Optamos por manter o texto tal como ali
transcrito, sem recuo e com o mesmo tamanho de fonte (MENDONÇA, 2016a).
porção. Mas ela sempre doentinha... Daime, o velho nunca quis saber, elas
tomaram quando eram ainda menininha e tal. E aí era difícil. Adoeceu com um
problema e terminou numa cirrose. Não sei o que era uma coisa aí. Parece que teve
hospitalizada algumas vezes, num sei, eu sei que numa vez que ela hospitalizou-
se aí daí já saiu levada, eu fiz uma visita pra ela. Foi a derradeira vez que eu vi ela
com vida. Mas aí quando eu cheguei lá ela me reconheceu, conversou um tantinho
comigo tal né. Aí na despedida eu dei a mão pra ela, ela quase não solta a minha
J mão... Me olhando, pegada na minha mão. Aquilo chega eu sai, rolando. Mas eu
sabendo que aquela é, mesmo, tava mesmo pra se desencarnar, como aconteceu.
Aí a gente já veio embora sempre naquele cuidado tendo uma noticiazinha, aí
A
poucos dias ela faleceu...

L E aí passou um tempo, não tanto tempo, aí eu tive uma visão com ela.
Eu tive uma visão com ela. Mirando, encontrei aquele ser, se identificando, se

identificando como Casmerim, que veio na carne com a Maria. Então identificou-
L se como a Casmerim. Aí, entre outras, me repassou alguns conhecimentos que
representa... o que que ela representava e tal, enfim, aí foi assim uma conferência
A muito bonita que eu tive com esse ser. Aí quando eu bem num pensei, eu já tava
é cantando esse hino. E aí isso com certeza gratifica a gente né. Devemos ter, ter
influído alguma coisa dentro dessa história pra que ela ficasse até mais comprida
ainda. He, he, he, he. Então a Casmerim é um ser encantado, como tantos outros,
defensora da floresta. Num ofenda não porque eu não sei o que vai ser, que ela é
• braba! É rispi! Aí quando ela declama aquela poesia, a gente nota que ela num tem
336 pena do couro de ninguém. He, he, he, he, he.
Fernanda: E aí, toda vez que o senhor declama a poesia, né, ela se faz presente?

Luiz Mendes: Ah, se faz presente, sim. É, a gente classifica isso, como é que eu
quero dizer... intui! Né. Intui, mas tem outra palavra que ainda encaixa melhor, é...
ah, não vou lembrar.
Fernanda: Irradiação?
2 Luiz Mendes: Isso! Irradia! Irradia. Mas a gente consciente, na certeza que ela tá,
tá presente. Aí foi ela que me deu esse hino, agora dentro disso aí teve toda uma
0 história. Lá quando iniciou. Aí é que eu digo, que nossa amizade, o querer bem,
é, se imortaliza. É desde daqui à eternidade. Se você é meu amigo, nessa vida

materializada, se houver um desencarnamento, é natural acontecer, lá a gente é
1 mais amigo ainda. Lá a gente ainda é mais amigo. O querer bem.
(Comunidade Fortaleza, 29 de, Capixaba, Acre. 29/07/2015.)
8
Diálogos e representações
A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um
sabiá
mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força
Existem
Nos encantos de um sabiá.
Quem acumula muita informação perde o condão de
Adivinhar: divinare.
Os sabiás divinam. (BARROS, 1996)

Em camposentimos os encantos do sabiá (ou será que escutei os cantos


do rouxinol?) Para nós bastaria a experiência que proporcionaram. Não somos
cientistas. Queremos antes ser sabiás e “seguir cantando o cantar do rouxinol”.
Aqui, porém começa o desafio de verdejar.(MENDONÇA, 2016a).
Nosso objetivo, no presente trabalho é trazer à tona um pequeno recorte
J da literatura/poesia oral viva, poética daimista-amazônica de Luiz Mendes, ancião
conhecido como o orador do Mestre Irineu. Buscamos formas éticas e estéticas para
A compartilhar a performance/história/dramatização/presença de “Casmerim”: ser
encantado da floresta, que nos chega por meio das memórias ancoradas no corpo
L de Luiz Mendes e da voz poética que desse corpo emana. Trata-se de um pequeno
recorte do diálogo estabelecido com o narrador, suas memórias e artes verbais,
L durante a pesquisa de mestrado realizada no interior e a partir do Programa de
Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade, da Universidade Federal do
Acre (MENDONÇA, 2016a).
A
Não temos a intenção de trazer à tona, aqui, os sentidos que a
performance de Luiz Mendes despertou ou desperta. São muitos e estão abertos
às refuncionalizações de acordo com cada situação e com a experiência que
proporcionam a cada ouvinte (ou mesmo leitor).
Liberada, portanto, aos caprichos do tempo, a obra poética oral oscila na

indeterminação de um sentido que ela não cessa de desfazer e recriar. O
337 texto oral pede uma interpretação também movente. A energia que o sustém
e compõe suas formas, a cada performance, recupera a experiência vivida e

a integra a seu material (ZUMTHOR, 2010, p.292).

Além disso, é preciso destacar que sua voz ressoa no interior e a partir
da doutrina do Daime. A organização da vida de Luiz Mendes e comunidade se dá
a partir do uso do referido chá no contexto ritual implantado por Raimundo Irineu
2 Serra. Seus cantos e narrativas sobre mirações e outras vivências versam sobre
experiências cujo eixo central é o Daime, um professor vegetal, e os estados de
0 consciência por ele proporcionados. Tais estados permitem tanto ao orador como
aos seus ouvintes percepções mais profundas ou mais ampliadas da experiência
vivida e/ou narrada-cantada.
1
Temos, pois, que a obra viva, a performance, aberta às refuncionalizações
de acordo com os ouvintes e as circunstâncias em que é simultaneamente
8 pronunciada e percebida exige uma interpretação nômade (ZUMTHOR, 2010).
Quanto mais a poesia oral musical/ritual e/ou narrativa/cotidiana da Ayahuasca

ou, especificamente aqui, daimista.
Cabe ressaltar que percebemos as memórias narradas de Luiz Mendes
como artes verbais; como literatura oral daimista e amazônica; como “performances
e literaturas insurgentes” que subvertem “sistemas de avaliações e classificações”
da modernidade norte ocidental. Suas narrativas não se enquadram em gêneros
literários canônicos euro e etnocêntricos, excludentes e exclusivistas. Embora
gravadas em entrevistas e conversas cotidianas não as escutamos/lemos como
simples relatos, porque são providas de arte, de poesia e por isso decidimos chamá-
las de contos. Mesmo que versem sobre suas experiências de vida, experiências
cotidianas e extáticas e, portanto, não possam ser tomadas como ficção, elas
também não trazem o real vivido porque estão inseridas na linguagem. E dentro
dos referenciais adotados, a linguagem é, em si mesma, ficcional e subjetiva.
(ANTONACCI, 2014, p.333; HALL, 2003; WILLIAMS, 1979; ZUMTHOR, 1993; 2005;
2010).
J Durante a pesquisa já referida notamos que ao procurar realizar
uma apreciação cultural da literatura oral de Luiz Mendes, que é ela mesma
A representação, em uma linguagem humana, de vivências profundamente interiores
com o sagrado, de suas mirações, muito se esvai. E aí o desafio de lidar com a
L experiência proporcionada pela poética de Luiz Mendes; de verdejar, pois, como
lembra o poeta, “poesia não é para compreender, mas para incorporar. Entender

é parede: procure ser árvore” (BARROS, 1990). Importa ressaltar que enfrentamos
L ainda o desafio de escapar à “miopia intelectual” (ZUMTHOR, 2010), escapar ao
pensamento abissal (SANTOS, 2009) fundamentado na ilusão do cientificismo, do
A exclusivismo da ciência moderna ocidental, inclusive com seus cânones literários
(ANTONACCI, 2014;CAPRA, 2012).
Nos encontramos, pois, no entrecruzar de múltiplas traduções
(BENJAMIM, 2008; LARROSA, 2004; ZUMTHOR, 1993; PORTELLI, 2010): A
tradução realizada pelo próprio Luiz Mendes, das experiências vividas/lembradas
• (experiências cotidianas e extáticas) para a linguagem humana; para a voz viva, a
338 voz poética. A tradução (que realizamos/sofremos enquanto pesquisadoras) dessa
voz viva, dinâmica, nômade, para a escritura com seus traços gráficos, fixos. E

novamente, na comunicação oral que tecemos, a tradução da escritura para a voz
encarnada. Sofremos ainda os processos de tradução de contextos: do sagrado ao
cotidiano; da comunidade estabelecida ao redor de Luiz Mendes para a academia;
da cultura viva daquela comunidade, para a interpretação cultural em outros
espaços e tempos....
2
A riqueza e diversidade do material colhido em campo permite múltiplas
leituras.Lidamos com múltiplas subjetividades e, nesse sentido, não houve a
0 possibilidade (e nem a intenção) de oferecer uma descrição ou uma análise objetiva
acerca dos textos e contextos de Luiz Mendes, mas sim nossas representações.
1 Na pesquisa privilegiamos a linguagem entendendo-a como campo de lutas;
de contínua constituição de sentidos, identidades e culturas. Como ocorreu de
8 a cultura nos “arrebatar a alma” nos movemos na tensão dessa contínua “área
de deslocamento”(HALL, 2003; WILIAMS, 1979). Dentro dela as artes da voz
(ZUMTHOR, 1993; 2005; 2010), os saberes da Ayahuasca/Daime (ALBUQUERQUE,
2001), as estéticas diaspóricas (HAAL, 2003), poéticas da Diversidade (GLISSANT,
2005), ecologia de saberes (SANTOS, 2009) ao nos cativarem, balizaram nossa
percepção e direcionaram nosso olhar e, consequentemente, nossa escrita.Todavia,
parafraseando Hall (2003), ao procurarmos, durante a pesquisa/dissertação, realizar
essa análise cultural sentimos na pele a transitoriedade, insubstancialidade, o
pouco que conseguimos registrar, e tivemos que nos conformar com a incompletude
de nossa escritura.
Casmerim verde-escola
Sob a inspiração do encanto de “Casmerim”, aliada a nosso encantamento
em relação às poéticas, às culturas da infância (SARMENTO, 2003) e no desejo
de subverter modelos educacionais de opressão, modelos do colonizador (FREIRE,
2014; MIGNOLO, 2008; QUIJANO, 2005) vislumbramos a possibilidade mais uma
tradução: dessa poética amazônica, dessa obra viva, para poéticas educacionais
com o intuito de contribuir para a amplitude da formação cultural de crianças.
J Consideramos que a história/dramatização/presença de Casmerim encerra em si
uma expressão viva do ser poético (ANDRADE, 1974)de uma poética da diversidade
A (GLISSANT, 2005), uma alfabetização ecológica (CAPRA, 2006; 2012). Da palavra
em suas dimensões de ação e reflexão; de conscientização (HALL, 2003; WILLIAMS,
L 1979; FREIRE, 2014).
E foi nesse sentido que “Casmerim Verde-Escola” começou a desabrochar.
L Olhando pelas lentes de estéticas surgidas a partir das diásporas,de poéticas da
diversidade, ecologia de saberese colocando em cena o corpo, com suas memórias,

poética, gestos e vozestamos continuamente à procura de formas para, junto com
A as crianças, desconstruir e romper a lógica que naturaliza narrativas hegemônicas
e fazer soar vozes e gestos silenciados. Na perspectiva das artes na educação, da
educação do ser poético; dentro de uma abordagem própria do Estudos Culturaise
trabalhando de forma transversal a educação ambiental, a alfabetização ecológica,
na Casmerim Verde-Escola tecemos atividades inseridas na pluralidade de saberes,
• fazeres e seres presentes em Brasis, Américas, Áfricas, Europas, Orientes...
339 A criança é aqui percebida como ser histórico-social que, imaginando,
• brincando e interagindo com o ambiente e com as pessoas, constitui suas poéticas
produzindo cultura. Atenta para a centralidade da criança nos processos de ensino/
aprendizagem buscamos, pois, estratégias para favorecer sua formação integral
como pessoa humana; como cidadã planetária, articulando o local ao global.
Estratégias que favoreçam a consolidação de princípio éticos, políticos e estéticos
2 (BRASIL, 2003).
Inspiradas pelas palavras, presença, performance, história de “Casmerim”
0 a intenção é conduzir as atividades de modo poético e lúdico, a fim de tocar os
sentidos dos participantes; surpreendê-los; fazê-los transbordar. Libertar os
sentidos de cada um, e do grupo como um todo, da colonização interior para que,
1 uma vez libertos, possam maravilhar-se e encantar-se com a diversidade da vida;
com culturas vividas e poetizadas por diferentes pessoas em diversos “cantos”
8 de Amazônias, Brasis, Américas, Mundos...(FREIRE, 2014; MENDONÇA, 2016b;
MIGNOLO,2008; QUIJANO, 2005)

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Capixaba, Acre, em 29/07/2015e 02/01/2015, respectivamente. IN:MENDONÇA, F. C.
Memórias e artes verbais de Luiz Mendes do Nascimento, o orador do Mestre Irineu. Dis-
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Hino nº 30, Novo Horizonte, Luiz Mendes.
J

A

L

L

A


341

2

0

1

8

J

A

L SOBRE A RECONFIGURAÇÃO DO CONCEITO DE LITERATURA NA
POÉTICA DE DYONÉLIO MACHADO
L
Fernando Simplício dos Santos (UNIR)
A RESUMO: O objetivo deste trabalho é verificar a maneira pela qual as concepções
de história e política; tradição e modernidade firmam uma acepção de arte literária
sui generis, fornecendo um tom particular à poética do escritor Dyonelio Machado
(1895-1985). Especificamente, o intuito é analisar como os conceitos de aura e
desauratização; crítica e alegoria estão estabelecidos nos romances “O louco do
• Cati” (1942) e “Sol subterrâneo” (1981), contribuindo para compreender melhor
os projetos estético e ideológico do autor.Por meio das teorias destacadas neste
342
texto, percebe-se que, nas narrativas em pauta, o estudo das fontes históricas,
• econômicas e políticas permite identificar um rico diálogo entre textos (ficcionais)
e subtextos (não-ficcionais). Nesse sentido,constata-se que, na poética dyoneliana,
a concepção de literatura passa por uma redefinição ampla, a qual, a fim de se
constituir, configura-se a partir de outros discursos, reafirmando, sobretudo, a
necessidade de reconhecer aarte como expressão crítica.
2 Palavras-chave: Dyonélio Machado. Crítica e alegoria. Literatura e autoritarismo.

Introdução
0
A tese intitulada “História, política e alegoria na prosa ficcional de Dyonelio
Machado” (2013), entre outros aspectos, teve o mérito de resgatar a esquecida
1 produção literária do romancista, médico e político gaúcho, considerado por
muitos estudiosos como um “escritor maldito”, em especial, devido à perseguição
8 político-ditatorial (com a consequente recusa editorial) por ele sofrida durante a sua
trajetória. De modo geral,o objetivo do trabalho foi analisar a tetralogia romanesca,
composta por O louco do Cati (1942), Desolação (1944), Passos perdidos (1946) e
Nuanças (1981), comparando-os com a trilogia constituída por Deuses econômicos
(1966), Sol subterrâneo (1981) e Prodígios(1980). No trabalho de pesquisa, verificou-
se como é possível esquematizar as fases da produção literária do autor, sugerindo
que, na poética dyoneliana, é possível identificar uma acepção de arte peculiar,
estritamente vinculada ao seu projeto ideológico.
De qualquer forma, com o presente artigo,a ideia é mapear esta acepção
de literatura na produção de Dyonelio Machado, só quea partir da apreciação do
romance O louco do Cati, publicado em 1942, e de certo trecho do livro Sol subterrâneo,
de 1981.Para a consecução de nossos objetivos, valemo-nos das teorias a respeito:
1) da definição de literatura e de sua reconfiguração nos séculos XX e XXI, como,
por exemplo, as destacadas por Antonio Candido (1995), Umberto Eco (2003),
Antoine Compagnon (2007), Tzvetan Todorov (2009), Walter Benjamin (1985); 2) da
fortuna crítica de Dyonelio Machado, fizemos uma pesquisa de textos de Antonio
Hohlfeldt (1987), Moisés Velhinho (2001), Maria Zenilda Grawunder (1997), Regina
J Zilberman (1992), entre outros;3) escritos elaborados acerca do contexto histórico
no qual a produção literária do autor de Passos perdidos foi composta, tais como:
livros de Carlos Cortés (2007), Antônio Ferreira Prestes Guimarães (1987), Diorge
A
Alceno Konrad (1989), Sandra Jatahy Pesavento (1990).

L Dyonelio Machado
Dyonelio Machado nasceu em Quaraí (1895) e faleceu em Porto Alegre
L (1985). Como homem público, foi escritor, médico, militante e críticodo Estado
Novo (1937-1945), da Ditadura Militar (1964-1985) e da política do Rio Grande do
Sul. Entre 1935 e 36, foi preso e torturado no Rio de Janeiro, ao lado de outros
A companheiros, como, por exemplo, Graciliano Ramos – com quem conviveu na
cadeia.Em seus livros O cheiro de coisa viva (1995) e Memórias de um pobre homem
(1990), Dyonelio Machado conta certos detalhes de sua prisão:
Muita gente me pergunta o que foi pior nesses anos de cadeia. Fui levado
para o Rio, no porão de um grande navio, em pleno inverno, numa travessia
• que durou dez dias. Perdi doze quilos, todos os dentes e algumas unhas.
343 Nada disso, porém, me modificou. Na prisão, eu revelava um humor tão
elevado, que parecia estar enamorado da cadeia. Não me abati, nem com a
• manchete do Correio do povo: ‘Pena de morte para os subversivos’. O pior
foi algo que nem é muito dramático: o primeiro passo de um habeas cor-
pus, para mim, em plena vigência do Estado de Guerra. Este pedido para
o Governo do Estado, que respondeu concisamente que não conhecia meu
paradeiro. Isto me aterrorizou, porque era a preparação do terreno para o
meu assassinato [...]
2
Minha prisão? Para reação, foi boa. Colocaram-me num quarto escuro du-
rante o dia, em que havia luz durante a noite. Esperei horas na antessala do
0 gabinete de tortura, onde a única medida de defesa, a meu alcance, era tirar
os óculos e esconder na minha roupa, para que as pauladas na cara não
1 quebrassem os vidros, me furando os olhos. (MACHADO, 1995, pp. 17-18)

Em 2010, fizemos uma pesquisa nos Arquivos das Polícias Políticas


8 do Rio de Janeiro. Nos documentos, consta que Dyonelio Machado foi detido em
27/11/1935, acusado de ter sido um dos mentores intelectuais do Movimento
Comunista, presidente da Aliança Nacional Libertadora (ANL), no Rio Grande do
Sul, além de ter participado da tentativa de introduzir um golpe político, cujos
efeitos atingiriam todo território nacional. No entanto, apenas em 08/06/1936,
sendo brutalmente torturado nos porões do navio Itambé (conforme explica o trecho
sublinhado acima), Dyonelio Machado foi transferido para Casa de Detenção do Rio
de Janeiro.
Em meio aos intelectuais que sofreram perseguição política pelo governo
autoritário de Vargas1, destacam-se: Aníbal Machado, acusado de ter conspirado
contra o regime em vigor, defendendo o ideal humanista, revolucionário e social da
arte; Caio Prado Júnior, acusado de presidir a Aliança Nacional Libertadora(ANL),
em São Paulo; Candido Portinari, indiciado por ter liderado determinados setores
do Partido Comunista Brasileiro (PCB); Oscar Niemeyer foi acusado de corromper
a juventude a partir das doutrinas do socialismo; Sérgio Buarque de Holanda,
visto como um perigoso “intelectual de esquerda”, por terdefendido “doutrinas
J revolucionárias”; Graciliano Ramos, preso em Alagoas, foi transferido, em 1935,
para a Casa de Detenção do Rio de Janeiro, sendo incriminado por ter feito partedo
PCB; por fim, Dyonelio Tubino Machado, acusado de ter desempenhado várias
A
atividades políticas de destaque, como, por exemplo, a presidência da Aliança
Nacional Libertadora, no Rio Grande do Sul, bem como a liderança daComissão
L Nacional do Partido Comunista Brasileiro.

Ainda que tenha convivido neste ambiente de violência e de perseguição,
L Dyonelio Machado nunca se filiou a nenhuma ideologia artística específica, nem
mesmo ao Movimento Modernista. Apesar das frequentes recusas de publicações
A de seus livros pelas editoras da época, o autor d’Os ratos nunca desistiu da escrita;
acreditava, sobretudo, no poder da literatura agir sobre a sociedade, conquanto
tenha sido muito criticado por defender seus ideais.
A arte como expressão crítica
Para entendermos melhor o modo pelo qual a definição de arte poética

está configurada na obra de Dyonelio Machado, é interessante retomar um debate
344 que revisita a antiga questão em torno da literatura e suas funções.
• Comumente, o nome de Tzvetan Todorov ainda é associado ao
estruturalismo do século XX, sobretudo ao da década de 1970, tendo influenciado
abordagens metodológicas da literatura, da filosofia, da sociologia, da psicologia,
entre outras áreas das ciências humanas. Como se sabe, o estruturalismo privilegiava
uma leitura que destacava a imanência do texto artístico, a despeito de seu diálogo
2 com o mundo. Sem dúvida, isso estabeleceu um impasse salutar entre aqueles que
defendiam a apreciação do mundo fechado da obra versus aqueles que acreditavam
0 no diálogo desta última com o universo social, ampliando, assim, seus horizontes
de interpretação. Pode-se dizer que, no contexto de Dyonelio Machado, a validade

estética de suas narrativas foi questionada, por parte da crítica tradicional, por
1 conta deste ponto de vista que tendia a separar a “literatura do mundo”.

Em A literatura em perigo (2009), Tzvetan Todorov chama atenção para
8 o fato de que a crise pela qual passa, atualmente, o objeto literário talvez esteja
relacionada ao modo como o próprio estruturalismo conceituou os mecanismos que
giram em torno da apreciação e da leitura. Então, em pleno auge de sua maturidade
intelectual, Todorov sugere não apenas uma revisão das formas predeterminadas
pelo estruturalismo rígido, mas também de seu próprio percurso intelectual,

1  Todas as informações sublinhadas acima foram verificadas a partir da pesquisa que fizemos
no Departamento Federal de Segurança Pública – Divisão de Polícia Política e Social, do Arquivo
Estadual do Rio de Janeiro.
afirmando que um dos equívocos de tal corrente teórica foi tolher a relação entre
arte, vida e interpretação.
Por sua vez, no texto “Sobre algumas funções da literatura” (2003, pp.
9-23), Umberto Eco sublinha que uma das características do trabalho literário é
que ele ainda representa um bem imaterial, pois traduz um aparato de textos que
são produzidos pelos homens, porém sem fins “práticos” ou “lucrativos”. Para Eco,
a literatura difere de registros gerais (voltados para causas específicas, tais como:
J fórmulas científicas, atas de reuniões, jornais de cunho técnicos, etc.), porque
ela, a arte do texto literário, expressa em si um tipo de “amor gratuito”, que visa
A transcender o palpável, o tangível. Isso ocorre em virtude do poder que a arte
literária tem de “elevação espiritual”, sendo capaz suprir certas necessidades dos
L homens, por exemplo.
Não obstante, Umberto Eco não deixa de frisar a importância social
da literatura, ao afirmar que, “de certa maneira, alguns personagens tornaram-
L
se coletivamente verdadeiros, porque a comunidade neles depôs, no correr dos
séculosou dos anos, investimentos passionais”. (ECO, 1994, p. 20), ou seja, o mundo
A literário, embora ficcional, atinge com contundência o ambientesocial, econômico e
cultural, no qual os leitores estão inseridos. Não sem motivo, personagens, como,
por exemplo, Naziazeno, o louco do Cati, um pobre homem, Maneco Manivela, entre
outros que fazem parte da galeria da produção artística dyoneliana, questionam
com contundência as discrepâncias da alienação, do autoritarismo, do capitalismo
• e da desumanização.
345 Por seu turno, nos textos “A literatura e a formação do homem” (1972)
• e “O direito à literatura” (1995), Antonio Candido ressalta certas funções da arte
da escrita, como, por exemplo, grifando o seu papel humanista, ao afirmar que,
na medida em que ela instrui, a um só tempo deleita e humaniza. Nesse sentido,
Candido nota que a literatura pode ser vista como uma categoria que, atuando na
formação do homem, está pautada em certo projeto de “experiência”, estritamente
2 vinculando à arte e sua função social. De qualquer modo, o aspecto a grifar é que
Candido acredita que a literatura seja capaz de problematizar duas categorias-
chave: a primeira é aquela que edifica o leitor; e a segunda é aquela que lhe
0 representa as vicissitudes da vida. Sob tal enfoque, “a literatura humaniza e faz
viver”, porque apresenta, sem véus ou disfarces, um profundo embate entre o bem
1 e o mal; o real e o fictício.
De seu lado, no livroPara quê literatura? (2009), Antoine Compagnon
8 faz, entre outras, as seguintes indagações: a) quais valores a literatura é capaz
de transmitir para sociedade atual? b) a literatura ainda é significativa para a
vida? c) hoje, a literatura é indispensável ou ela pode ser facilmente substituída?
Sob essa perspectiva, em vez de se perguntar: “o que é literatura? ”, Compagnon
muda a célebre questão, passando a questionar: “literatura para quê?”, buscando
saber o que ela pode fazer por nossa sociedade contemporânea. Em um mundo
devastado por uma crise geral, a proposta de Compagnon é defender o conhecimento
literário, visando identificar se ainda há necessidade da literatura para a vida, para
o conhecimento, para a autotransformação. Neste ponto, poder-se-ia dizer que,
apesar de historicamente muito distantes, as observações de Compagnon sobre
as funções da literatura aproximam significativamente de uma das propostas
abstraídas da análise do trabalho literário dyoneliano.
Para Antoine Compagnon, atualmente, a literatura está em crise não
apenas por causa de certa desvalorização de seu métier, mas por falta de uma
sistematização eficaz dos estudos literários. Ao contrário do que geralmente se
pensa, segundo o crítico francês, a arte da escrita é uma forma peculiar de se
adquirir conhecimento, porque emancipa o homem, esclarecendo-o sobre as
J contradições da história e, sobretudo, de seu tempo:
A literatura, exprimindo a exceção, oferece um conhecimento diferente do
A conhecimento erudito, porém mais capaz de esclarecer os comportamentos
e as motivações humanas. Ela pensa, mas não como a ciência ou a filosofia.
Seu pensamento é heurístico (ela jamais cessa de procurar), não algorítmi-
L co: ela procede tateando, sem cálculo, pela intuição, com faro... A literatura
nos ensina a melhor sentir, e como nossos sentidos não têm limites, ela
L jamais conclui, mas fica aberta... (COMPAGNON, 2009, p. 51)

Em sentido profundo,Tzvetan Todorov, Umberto Eco, Antonio Candido e


A Antoine Compagnon reformulam determinadas funções da literatura, partindo do
pressuposto de que a arte do texto poético não tem apenas um conceito específico;
não deixou de estabelecer o seu diálogo com o mundo. Os críticos citados enfatizam
a função social da arte literária, considerando-a como expressão crítica e, assim,
garantindo para a literatura sua permanência em seu local clássico, desde suas
• origens, por contraditório que isso possa parecer.
346 A partir da esteira reflexiva de tais constatações, verificaremos como
é possível identificar n’O louco do Cati (1942) e num trecho de Sol subterrâneo
• (1981) certo diálogo com tais teorias, enfatizando, concomitantemente,a concepção
de arte literária muito particular a todo o conjunto poético de Dyonelio Machado,
uma vez que, para o autor, a literatura não era apenas concebida como um sistema
fechado, mas dialogava, intensamente, com certa acepção de “experiência”, de
“vida”, baseadas na praxis, ou seja, na transformação social e humanamente ativa.
2
Do universosem esplendor

O romance O louco do Cati tem como pano de fundo o temada perseguição
0
política, isto é, não se sabe exatamente do que ou de quem as personagens
estão fugindo. O louco2 aparece como um homem estranho; sem força ativa; um
1 ente impotente.Na narrativa, há um clima funesto e lutuoso que contribui para
compreender determinada concepção de literatura, abstraída da prosa ficcional de
8 Dyonelio Machado – a qual vai de encontro a um tradicional discurso vigente não
só no período em que o romancista escreveu suas narrativas, porém predominante
em nossa atualidade. Para nós, tal concepção é muito impactante e significativa, ao
contrário do que pensam alguns críticos literários d’O louco do Cati.
Por exemplo, ao comentar o estilo de Dyonelio Machado, no texto intitulado
“Do conto ao romance”, publicado pela primeira vez durante a década de 60, além
das críticas que tece contra o projeto estético dyoneliano, Moysés Vellinho (2001,

2  Aqui, tal como em algumas edições do romance, o nome do louco está escrito com letra minúscula,
sobretudo, para acentuar o aspecto que demarca a sua desumanização.
p. 102) afirma que “o autor... não cede de sua importuna solicitude, inexorável na
perseguição do alvo que se propôs. Nenhuma diversão lateral, nenhuma frincha
para uma tomada de alento. A mesma tonalidade seca, sempre igual, cinza sobre
cinza”. Sob tal ponto de vista, nota-se que queVellinho sonda, mas sem penetrá-lo
com profundidade, um dos temas principais da poética de Dyonelio Machado; aquele
que representa o tom melancólico, obscuro, sem luz, sobretudo de suas obras que
abrangem sua primeira fase literária. Se, segundoVellinho, esse traço primordial
J não permite a existência de “brechas de libertação”, acreditamos, no entanto, que
este ambiente lúgubre e sem esplendor nos autoriza a identificar“alguns raios de
claridade” em meio à desilusão, à dor, e à desesperança – aspectos fundamentais
A
para a compreensão da poética dyoneliana.

L Neste artigo, uma das ideias sustentadas é que Dyonelio Machado
conhecia muito bem o deslocamento do conceito clássico de arte, de literatura, o

qual, por exemplo, foi analisado com propriedade por Walter Benjamin, ao definir
L a crise da experiência representada entre a relaçãoda transmissão clássica da
narração e a composição de objetos artísticos na modernidade:
A Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não
mais o vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e concepções do mundo
do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores cul-
turais podem nos conduzir, quando a experiência nos é subtraída, hipócrita
ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar
nossa pobreza. Sim: é preferível confessar que essa pobreza de experiência
• não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova bar-
347 bárie. (BENJAMIN, 1994, p. 115)

• Segundo Benjamin, a arte de narrar passa por uma crise, porque, para o
filósofo alemão, o conteúdo épico – o qual fornecia magia às narrativas antigas, ao
mundo mítico –, desde o século XX, está cada vez mais se definhando, identificando,
assim, sintomas de uma “nova barbárie”. Para Benjamin, o conceito de aura pode
ser sistematizado como “a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que
2 ela esteja” (1994, p. 169). Com isso, Benjamin pretende observar que outrora a “arte
autêntica” estava protegida, por exemplo, por uma instância mítica (a aura) que a
0 protegia de certa banalização de seu valor de culto, de seu poder transformador,
de sua essência vital. No mundo moderno, ao contrário disso, a desauratização

equivale não apenas à destituição do valor do culto, mas, também, é capaz de (re)
1 sistematizar, com contundência, toda a tradição.

Todavia, essacaracterística não é apenas uma constatação que revela certo
8 tipo de decadência, mas fornece um tom de “beleza”, ainda que paradoxal, à arte
do século XX e muito provavelmente à do século XXI. Nesse sentido, sustentamos
que alguns romances de Dyonelio Machado, bem como a história do louco do Cari,
estão vinculados a tal transformação ocorrida, de maneira geral, no âmbito artístico
e cultural, ou seja, a desauratização do universo artístico equivale à pobreza que
fornece um tom paradoxal de “beleza triste” a uma nova era, contraditoriamente,
explicada a partir de um processo de desestruturação do que se compreendia por
histórico, canônico, explicitando um impasse entre tradição e modernidade.
No romance, o louco é apresentado no contexto em que a coerção política
se faz presente. O protagonista é um homem sem identidade e sem um lugar de
moradia fixa; não tem nome, não é capaz de se expressar, não tem vontade própria.
Desse modo, ele é arrastado por outras personagens em meio a um ambiente em
que a figura de Deus está ausente – assim como é possível depreender do poema
publicado no romance em pauta:
“Almas Penadas”
(Sugestões do Cárcere)
J Não se sabe quem foi. Nem sequer se foi Deus.
Ou se foi o Demônio Engenhoso e Magano.
Ou mesmo um Poeta triste e por isso com seus
A Sorrisos de Comédia, entre divino e humano.
Não se sabe quem foi. Só se sabe que os Céus
L Um dia se fecharam: que um profundo oceano
De fogo e de sofrer se abriu para esses réus.
L – O Inferno, assim criado, entronizava o Insano.

Uma a uma, depois, vieram todas as almas.


– Almas sem esperança, ímpias almas penadas:
A É do fado amargar dores mudas e calmas.
Todas têm um sinal: são possessas, danadas.
Mas passam, sem ouvir o apuro ou as palmas...
– A tristeza que há nessas faces geladas!
(MACHADO, 2003, pp. 108-9, grifo nosso)
• Desde o princípio da trama d’O louco do Cati, ninguém (nem mesmo o
348 narrador) sabe ao certo quem é esse “pobre maluco”: se ele cometeu algum crime;
• quem são seus parentes; se é uma pessoa influente ou simplesmente alguém que
está à mercê da dor, do sofrimento – conforme descrito neste poema. No decorrer
da história, esse homem sem face distinta junta-se com várias pessoas, inclusive
àqueles que fogem da repressão, porém, mesmo no momento em que isso ocorre,
imediatamente, ele se encontra abandonado, como se fosse um mero bicho.
2 No que se refere à estilística do autor, percebe-se que, propositadamente,
há a representação de uma crise da linguagem, especialmente, traduzida pela
falta de voz deste triste e melancólico bicho-humano, que, perante os eventos da
0 narrativa, é transformado em um “homem decaído”.Portanto, tem-se a história de
um ente sem face, sem passado, que vaga pelo “mundo da desilusão”, “um universo
1 sem esplendor”, elucidado pelas melhores obras de Dyonelio Machado.Sem dúvida,
devido a essas e outrasparticularidades, a crítica literária do período em que O
8 louco do Cati foi escrito não compreendeu bem a proposta desta sui generis poética.

Da Revolução Federalista (1892-1895)


Na obra, o Cati está traduzido como o “culpado” por torturas, por mortes,
arrastando os homens para a escuridão e aniquilando os seus sonhos. Aliás,
“Cati” era uma das poucas palavras que o louco podia pronunciar. Esse velho
castelo (símbolo da tradição, mas, na narrativa, da violência), historicamente, era
o subestado, mais significativo do que o “Estado oficial”, localizado em Santana do
Livramento, no Rio Grande do Sul, junto à fronteira com o Uruguai.
O Cati era um lugar em que se matavam presos políticos, mulheres
e até mesmo crianças, durante a Revolução Federalista, que ocorreu no Rio
Grande do Sul entre 1892 e 1895. Essa tentativa de se instaurar uma insurreição
marcou profundamente parte da história nacional; organizou-se com o objetivo
de consolidar autonomia do Rio Grande, em especial, em face da recém-formada
República. N’O louco do Cati, este lugar aparece como um ambiente que sintetiza as
incongruências do estado opressor. Esse velho castelo (com seus profundos poços,
nos quais os corpos dos encarcerados eram jogados como tentativa de se apagar
J “os rastros da violência”) fez com que o Cati se tornasse uma lenda no Rio Grande.
Daqui, propagam-se certas particularidades que contribuíram para que Dyonelio
Machado construísse seu singular “personagem maluco”: o “homem-cão” – que,
A
embora tenha feito inúmeras viagens, estas não traçam um destino certo.

L Da animalização da “vida” e da “crise da experiência”

N’O louco do Cati, sob a perspectiva do sujeito da enunciação, o maluco


L não se transforma apenas em um “ser doente”; não apresenta somente “problemas
psíquicos”. Não obstante a tudo isso, ele éamiúdehumilhado, até tornar-se o
referido“bicho bruto”. Retiram-se, assim, seus traços de sua humanidade. Isso
A está vinculado ao tratamento com o qual o narrador apresenta o estado mental
deste singular louco – “pobre de experiência”; cuja transmissão de qualquer tipo
de narrativa seria incapaz de fazer;completamente em silêncio, tal como um títere,
por causa de seu constante trauma, só pode articular sofregamentea frase: “Isto
é o Cati”. Ou seja, como se fosse o Cati uma coisa dolorosa e profunda, apenas
• traduzida pelos males da vida, do mundo.No contexto autoritário, seu silêncio está
349 vinculado não apenas à censura, à coerção, mas, de forma geral, a toda a crise
• e pobreza da experiência, propagadas pelas guerras, matanças, aniquilações ou
ditaduras do século XX e XXI, que, infelizmente, até hoje persistem em perdurar.
Em analogia às observações feitas por Freud (1974, pp. 326-27), nota-se
que a personagem principal apresenta um tipo de “fixação” ou “desejo paradoxal
inconsciente”, que é constituído em um tempo remoto de seu passado: justamente
2 quando convivia com o Cati profundo e desolador, embora não se saiba quando isso
tenha ocorrido exatamente. As reminiscências traumáticas destacam alucinações
que fazem com que este pobre louco seja transformado em um homem sem voz,
0
sem rosto e sem passado, um genuíno “ser sem sentimentos”. Aqui, sem dúvida,
“a pobreza e a crise da experiência”, conforme as teoriza Walter Benjamin, surgem
1 com toda “sua beleza decadente”.
É por isso que talvez o diálogo dyoneliano com a vida e com o mundo,
8 representado por uma espécie singular e contraditória de desrealização, talvez
seja capaz de traduzir “a verdade”, ainda que tal verdade seja uma ilusão. Aqui,
a relação da arte literária com a vida, com o mundo se torna tão expressivo que,
paradoxalmente, vai de encontro com as correntes críticas tradicionais, obrigando-
nos a revê-las a partir de outros pontos de vista.
Um indivíduo sem representação
Na capa da publicação d’O louco do Cati, editada pela Ática (1981), estão
representadas duas figuras: um cão e um homem, de modo a lembrar, de antemão,
a desumanização metafórica que ocorre deste pobre maluco que vive em plena “crise
da experiência de vida”. Todavia, em contraposição a isso, na capa da edição da
Editora Planeta (2003), existe uma figura que está relacionada à impossibilidade de
forneceruma identidade fixa ao bicho-homem, já que sua imagem está em ruínas,
isto é, desfragmentada: há tão-somente uma ideia longínquo de que é a figura de
um humano.
Além disso,a capa da edição de 2003 está vinculada ao tom expressionista
presente em toda a narrativa d’O louco do Cati. O Expressionismo (sobremodo o
J abstrato) apareceunos Estados Unidos, por volta de 1940. Seus adeptos pretendiam,
entre outras façanhas, tecer uma crítica à tradição, em especial, por meio da
A incerteza, inexatidão, sejam traduzidos pelos traços profundos das telas, sejam
através de suas disformes figuras, interligadas a um mundo em ruínas, sem luz,
L em que a experiência se torna pobreza da própria vida, da expressão, da linguagem
pictórica.

Após as duas grandes guerras, inúmeros artistas valeram-se das fontes
L
do Expressionismo, cujos membros mais expressivos são ArshileGorky, Jackson
Pollock, Philip Guston, Willem de Kooning, ClyffordStille, Wassily Kandinsky.
A Em suas telas, há o destaque da individualidade de cada pintor, sem deixar de
sublinhar a liberdade poética. Esta arte vanguardista está sobreposta, com efeito,
a inúmeros temassociais, políticos, culturais, eclodidos na “Era dos Extremos”.
Assim como Dyonelio Machado faz no plano da linguagem, todos esses poetas da
imagem tratam da “crise da experiência”, da “pobreza do mundo”. Além destes,
• igualmente Iberê Camargo (1914-1994), no Brasil, traz em suas telas a decadência
350 da vida em seu esplendor: tal como estão representadas nas capasd’O louco do Cati
(2003) eDesolação (2005), elaboradas pela Editora Planeta.

A alegoria como mecanismo crítico
No contextod’O louco do Cati, a reestruturação política brasileira passou a
englobar uma forma de vida autoritariamente imposta, suscitada com a instauração
do Estado Novo (1937-1945). Além disso, a batalha contra o imperialismo moderno
2 tornou-se peculiar, pois os intelectuais perceberam que a ascensão do domínio
capitalista trazia consigo inúmeras contradições. A luta contra (o cerceamento dos
0 direitos civis; a perseguição política e religiosa; a perda dos poderes legislativo,
executivo e judiciário; a censura da imprensa, bem como a defesa da expressão

artística em geral) era sintomática. Portanto, nesse contexto, vários autores não
1 tinham liberdade de criticar, explicitamente, a política governamental e, muitas
vezes, recorriam à alegoria como recurso crítico e estilístico, pois ela reconhece a
8 correlação subentendida entre eventos eclodidos no presente, mas sobrepostos,
de certo modo, a distantes episódios históricos3. Na literatura nacional, vários
escritores elaboraram livros que podem ser interpretados a partir dos mecanismos
alegóricos – tal como acontece com o romanceO louco do Cati.

3  Segundo Fletcher Angus (2002, p. 11), uma vez que a alegoria “diz uma coisa para significar outra”,
a sua praxe interpretativa nos auxilia a ir além da “expectativa normal que temos da linguagem”,
questionando a concepção de que “as palavras ‘significam somente o que dizem’”. Por outro lado,
como salienta Jeanne Marie Gagnebin (2009, p. 40), “num contexto determinado, a alegoria pode,
sim, remeter a uma significação precisa entre outras”.
A cartografia da coerção sob a luz da alegoria e sob a misteriosa função
do “fim”
No derradeiro capítulo d’O louco do Cati, cujo título é “Já não chovia”,
existe uma impactante cena que faz com que o maluco se veja diante dos escombros
do antigo castelo. Antes do fim de seu percurso, o louco perpassa pelas cidades
do Rio de Janeiro, São Paulo, Florianópolis, Caxias do Sul, Livramento. Por assim
dizer, o trajeto do louco e de seus amigos representa, alegoricamente, os caminhos
J a partir dos quais é possível delinear o mapa ficcional e não ficcional da coerção
política, difundida por Vargas. Neste ponto, literatura e vida se sobrepõem, porque,
A além de Dyonelio Machado, muitos intelectuais passaram por este mesmo caminho
do sofrimento, da desumanização: que vai do Rio Grande do Sul ao Rio de Janeiro
L – cidade do cárcere para o qual os presos políticos do país eram levados durante o
Estado Novo (1937-1945).
L Por um lado, somente no “fim”, o animalizado homem-cão tornar-se-á um
ser humano; apenas no fim, o homem decaído e humilhado poderá reconhecer a

libertação; só nas últimas descrições do romance, descobre-se que o maluco “vazio
A de experiências” é um singelo jovem, ou seja, um homem como “todos nós”. Por
outro lado, ele não aparecerá mais nas narrativas seguintes, as quais completam a
tetralogia romanesca que são compostas por Desolação, Passos perdidos e Nuanças.
Assim, ao passo que o louco se liberta, ele tem que apagar-se para todo o sempre
do universo ficcional.

Nesse sentido, mais do que uma alusão explícita à história da
351 Revolução Federalista ou às categorias artísticas do expressionismo, entre outras
• características, a partir do momento em que é destacada a imagem do subestado,
“do Cati”, a análise de cunho alegórico não permite apenas problematizar a mítica
em torno da dominação e da coerção, propagada pelo Estado Novo (1935-1945);
não contribui, unicamente, para traduzir os questionamentos voltados para o
contexto social, político e cultural da sociedade da época em que o romance em
2 pauta foi publicado. Ou seja, a partir da análise d’O louco do Cati, percebe-se que
alegoria dyoneliana está vinculada à transformação da concepção clássica de arte,

passando a representar a “crise da experiência” e a “pobreza representativa do
0 mundo moderno”. Dessa forma, a arte aponta para si mesma, tornando-se cada
vez mais profunda, porque traduz a própria “decadência esplendorosa da vida e do
1 tempo”.
Literatura e desauratização; arte e desencantamento
8 Na prosa ficcional de Dyonelio Machado, existe um tipo de desencantamento
que perpassa por todo o mundo ficcional. Este não está relacionado apenas com
a representação de paisagens tristes ou pela coerção ou violência, descritas em
suas principais narrativas. Pautando-nos mais uma vez nas acepções teóricas
apresentadas aqui, sobretudo nas de Walter Benjamin, pode-se dizer que a desilusão
é firmada de modo significativo e está relacionada a certa acepção“literatura, perda
da experiência e pobreza”, cujo entendimento é possível encontrar através da
análise dos romances mais expressivos do autor.
Nesse sentido, além do que ocorre em várias passagens d’O louco do
Cati, em um trecho do romance Sol subterrâneo (1981), especificamente em um
importante diálogo entre os personagens Pedânio, Caio, Sílvio e Teófanes, há uma
explicação sui generis que, conquanto ocorra numa narrativa distinta, com efeito,
pode ser redimensionada a muitas outras produções de Dyonelio Machado:
O caso, porém, é que lhe fora cair às mãos uma pequena estátua, em bronze
de Corinto.

– Apesar da minha pouca familiaridade com o gênero, uma coisa, entretan-


J to, eu pude ver: tratava-se dum trabalho antigo. O que, aliás, foi comprova-
do por um perito.

A – E então?

De bom grado, continua ele, entronizaria a estatueta no seu gabinete de es-


tudo, entre duas estantes para livros. Embora guardando, porém, a medida
L duma estatueta, é grande demais para o lugar que ele tinha em vista. Essa
e outras considerações o levaram a ofertá-la à divindade [...]
L Fala-se sobre escultura. Na verdade o que seduziu nessa peça de arte foi a
sua antiguidade.

A – Porque o trabalho não é belo.


– Não é belo?... – estranha Teófanes, o Grego. – Então não é arte.

– Quero dizer que não representa um quadro belo da natureza. É o simu-
lacro dum ancião, demasiado feio na sua decadência. Mas, é certo, está
retratado com extraordinária verdade. Chega a fazer mal tanto realismo. Eu
sei que a arte, principalmente a estatuária, e sobretudo entre nós, tomou
• sempre essa feição. Só isso atesta a importância do meu achado [...]
352 – Se não quisermos ver a fealdade, a velhice e a decadência copiadas pelos
artistas, comecemos por bani-las da vida. Isso não cabe aos escultores ou
• pintores... (MACHADO, 1981, pp. 87- 90)

Interessante como essas constatações das personagens sobre a arte


vinculam-se, de certa forma,aos temas em torno da animalização, da reificação, da
decadência, da prostituição, da loucura, da repressão política, em meio a muitos
2 outros, distanciando-se de uma concepção de “beleza” ou de “esplendor” (concepção
comum da crítica tradicional da época em que o escritor compunha seus textos).
Estes e outros temas tocam com profundidade, porque estão sobrepostos aos
0
malogros da vida. Assim, o maluco, um pobre homem, Naziazeno, Maneco Manivela,
Lúcio Sílvio, Evandro, entre outras personagens da galeria do autor, habitam em
1 um “ambiente sem luz”. Assim, igualmente, temos uma “arte sem esplendor”, a
qual condiz com um mundo desauratizado, animalização, e, por isso, belo e triste.
8 À guisa de conclusão

Tanto n’O louco do Cati, quanto em outras obras de Dyonelio, o estudo das
fontes históricas, políticas, econômicas e sociais (devido, sobretudo, à interpretação
alegórica) permite identificar um diálogo entre textos (ficcionais) e subtextos (não-
ficcionais). Ao passo que tal diálogo intertextual é identificado, é possível ordenar,
do mesmo modo, os projetos estético e ideológico do autor, fundamentados, por
consequência, a partir das categorias que versam sobre história, política e alegoria.
Por assim dizer, para Dyonelio, a concepção de literatura passa por uma redefinição
ampla, a qual obrigatoriamente abrange outros discursos, e não apenas o literário;
a qual faz uma revisão dos termos “experiência” e “pobreza” de forma crítica e
reflexiva. Sem dúvida, isso está vinculado à acepção de literatura não apenas do
século XX, mas, especialmente, do XXI.
Sobretudo depois de sua prisão (1935-1936), Dyonelio Machado
redefine a sua arte, de maneira bem distinta do que a crítica literária de sua época
compreendia como uma “arte autêntica”. Na poética dyoneliana, os projetos estético
e ideológico do autor revelam uma concepção particular da literatura, porque arte
J e ideologia aparecem estritamente vinculadas, isto é, fundidas numa só categoria,
além de metaforizar vestígios dos “signos da vida”. Durante muito tempo, essa
A concepção, que correlaciona à arte literária a outros discursos, justificou com
veemência uma das principais funções da literatura, conforme preveem críticos,
L como, por exemplo, Antoine Compagnon. Assim, não era absurdo afirmar que
as obras-primas problematizavam questões sobre o ser humano tanto quanto as

célebres obras da História, da Filosofia, da Sociologia, por exemplo.
L
Embora tenha sido punida por conta disso, a produção literária dyoneliana
está interligada a um projeto que valoriza a experiência do homem e do mundo,
A a qual considera o discurso literário de uma maneira ampla e expressiva. Trata-
se de uma “arte da decadência”, na qual “o mal” e “o feio” adquirem destaque em
detrimento das clássicas acepções do “belo” ou daquilo que uma parcela da crítica
literária, ainda hoje, considera como traços da tradição.
Referências

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353 CANDIDO, A. A literatura e a formação do homem. Ciência e Cultura. São. Paulo, vol 24,
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L

L

A


354

2

0

1

8

J

A
AS REPRESENTAÇÕES COMO PROCESSO CULTURAL: UM
L
ESTUDO SOBRE A NARRATIVA JORNALÍSTICA DO G1/ACRE

(2013 - 2016)1
L
Francielle Maria Modesto Mendes (UFAC)
A Karolini de Oliveira (UFAC)
RESUMO: Este estudo tem por objetivo analisar as representações criadas pelos
textos jornalísticos do G1/Acre sobre o estado de mesmo nome, localizado na
Amazônia brasileira. O corpus é formado por cinquenta e oito textos, publicado
entre os anos de 2013 e 2016 e coletado em uma pesquisa feita na caixa de busca do
• próprio site. Por questões didático-metodológicas, eles foram organizados em cinco
355 categorias: 1) atividade econômica; 2) relação ser humano/natureza (fauna e flora);
3) mitos, lendas, crenças e encatamentos; 4) povos indígenas; 5) meio ambiente.

Essas categorias foram selecionadas a partir da leitura de todo o material, quando
se percebeu que havia repetição nas temáticas, por isso elas podiam ser organizadas
em pequenos blocos de análise. Assim, foi possível observar quais as representações
mais recorrentes e de que forma o veículo organiza as informações sobre a região
acreana. Do material analisado, percebe-se que o discurso tradicional que afirma
2 ser a Amazônia brasileira/acreana uma região onde impera atraso, degeneração
e passividade se entrecruza com algumas abordagens sobre desenvolvimento
0 cultural e tecnológico, sobretudo, relacionadas aos povos indígenas. Como parte da
fundamentação bibliográfica, foram estudados os seguintes autores: Stuart Hall,
1 Kathryn Woodward, Miquel Alsina, Ana Pizarro, Durval Muniz de Albuquerque
Junior, entre outros.
8 Palavras-chave: Jornalismo. Representações. Amazônia. G1/Acre.

O objetivo deste artigo é estudar as representações a respeito da Amazônia


brasileira/acreana a partir da análise de cinquenta e oito textos coletados no G1/

1  Este artigo contém ideias que já foram discutidas em um artigo intitulado “‘O aroma das ervas
se confunde com a fumaça dos incensos’: representações da Amazônia acreana no jornalismo do
site G1”, apresentado no 40º Congresso Brasileiro de Ciências em Comunicação, em Curitiba,
de 04 a 09 de setembro de 2017; e em um artigo intitulado “Tartarugas exóticas, dinossauros,
jabutis gigantes”: as representações sobre a Amazônia Sul-Ocidental no G1/Acre, apresentado no
IX Colóquio Internacional as Amazônias, as Áfricas e as Áfricas na Pan-Amazônia, de 11 a 13 de
dezembro de 2017.
Acre, entre os anos de 2013 (ano de lançamento do site) e 2016 (ano de início
da pesquisa). Esse material foi estudado no projeto de pesquisa “Imaginário na
Amazônia: um estudo sobre as representações produzidas pelo jornalismo do G1/
Acre”, cadastrado na Fundação de Amparo à Pesquisa do Acre, em 2016/2017.
Os textos foram coletados em um levantamento feito na caixa de busca do
próprio site. Foram digitadas palavras-chave como: Amazônia, Acre, Floresta, Meio
Ambiente, Índios, Animais, Plantas, Mitos, Lendas, Cidade, Cultura, Tecnologia,
J Economia, entre outras. A partir do estudo realizado, percebeu-se que o uso desses
termos permitia o acesso a uma grande quantidade de conteúdo jornalístico na
A página online.
Para o desenvolvimento da pesquisa, as notícias foram divididas em cinco
L categorias: 1) atividade econômica; 2) relação ser humano/natureza (fauna e flora);
3) mitos, lendas, crenças e encatamentos; 4) povos indígenas; 5) meio ambiente.
Essas categorias foram selecionadas a partir da leitura de todos os textos coletados,
L
quando se percebeu que havia repetição de assuntos abordados nas notícias do
site. Assim, foi possível observar quais as representações mais recorrentes e de que
A forma o veículo organiza as informações sobre a região acreana.
Das cinquenta e oito matérias coletadas, oito foram inseridas na categoria
“atividades econômicas”:
TEXTOS DATA
1 - Pepino gigante chama atenção de moradores no interior do Acre 03/02/2013

2 - Produção de abacaxi de até 12 kg é destaque no interior do Acre 14/05/2013
356 3 - Artesão faz submarino de cupuaçu inspirado em música dos Beatles 01/08/2013
• 4- Carne vendida no interior do AC é transportada em carroça 01/03/2014
5 - No interior do Acre, família cultiva laranjas gigantes com mais de 2,5 kg 15/04/2015
6 - IX edição do Rio Branco Fashion Week traz desfile com moda em látex 12/12/2015
7 - Durante mudança, família colhe mandioca gigante no interior do AC 05/01/2016
8 - Vendendo banana frita há mais de 20 anos, homem emprega filhos no AC 01/05/2016
2 Tabela 1 – Matérias da categoria de análise “atividades econômicas”. Elaborada pelas autoras.

Nessa primeira seleção de textos, é possível observar que o site produz
0
conteúdo destacando a agricultura, a borracha e o comércio. Todavia, essas práticas
são em sua maioria desenvolvidas informalmente e em pequenos grupos familiares,
1 segundo o veículo de comunicação estudado. Da forma como as narrativas são
elaboradas, parece que no Acre não há outros tipos de investimentos, além dos
8 tradicionais.
Três textos enfatizam a produção agrícola e fazem uso do adjetivo
“gigante(s)” no título para caracterizar as palavras “pepino”, “laranja” e “mandioca”,
o que dialoga com a ideia de que a região amazônica acreana, além de conservadora
em suas práticas, é hiperbólica e incomum. Esse exagero dialoga com a ideia
de exotismo constantemente atribuída à região desde a chegada dos primeiros
viajantes nos séculos XVI e XVII2. Para Luciana Murari (2009), o exotismo é tão

2  Por meio de suas crônicas, os viajantes da Europa apresentaram um discurso fantasioso e


transpuseram para a região amazônica o imaginário europeu. Além deles, os viajantes cientistas
somente a imaginação do diverso como forma alternativa de percepção do mundo,
ele não produz uma compreensão exata do objeto, e sim imediata.
A região amazônica e seus habitantes são observados a partir de inúmeros
estereótipos imagéticos e discursivos. De acordo com João de Jesus Paes Loureiro
(1995), a Amazônia possui uma cultura dinâmica, original e criativa, que cria sua
própria realidade. A região possui “uma cultura que, através do imaginário, situa o
homem numa grandeza proporcional e ultrapassadora da natureza que o circunda”
J (LOUREIRO, 1995, p.30).
Essa aproximação entre o sujeito da Amazônia brasileira/acreana e a
A natureza é responsável por muitos pré-conceitos. Essa relação é um dos aspectos
influenciadores para que os amazônidas sejam interpretados como sujeitos
L distantes dos processos de civilização, pessoas de comportamento excêntrico e/
ou exagerado. Diante disso, foi organizada a segunda categoria desta pesquisa:
“relação ser humano natureza (fauna e flora)”.
L TEXTOS DATA
1 - Filhote de onça criado como gato por família no AC é resgatado pela polícia 19/02/2016
A 2 - No Acre, população escolhe nomes de filhotes de onça-pintada 15/03/2013
3 - Fotógrafo flagra sucuri gigante em seringal no interior do Acre 30/01/2014
4 - Isolado em reserva no AC diz não trocar paraíso pelo inferno da cidade 14/02/2014
5 - Filhotes de onça são resgatados após perder mãe no AC 22/09/2014
6 - Ossos de preguiça gigante são encontrados por ribeirinhos no AC 19/10/2014
• 7 - Fóssil de jabuti gigante do AC pode ser espécie desconhecida para ciência 12/04/2015
357 8 - ‘Parece um dinossauro’, diz jovem que pescou tartaruga exótica no AC 14/05/2015
9 - No Acre, senador é surpreendido por cobra em esteira de aeroporto 26/06/2015

10 - Bombeiros resgatam cobra escondida em motor de carro; veja vídeo 31/12/2015
11 - No AC, morador teme ser picado por cobra em rua tomada por mato 17/01/2016
12 - Para marcar os 15 anos, jovem faz ensaio fotográfico com cobra no AC 16/03/2016
Tabela 2 – Matérias da categoria de análise “relação ser humano natureza (fauna e flora)”.
Elaborada pelas autoras.

2 Nas doze matérias coletadas, a palavra “onça” aparece três vezes e há cinco
menções a “cobras” nos títulos do G1/Acre. Os animais da região são considerados
“gigantes”, “exóticos” e há destaque também para uma notícia que discorre sobre
0
uma “tartaruga que parece um dinossauro”. Essa leitura feita pelo site permite
que o público interprete que o morador do Acre convive naturalmente com animais
1 selvagens, conservando hábitos rústicos e desconsiderando as particularidades
dos espaços cidade/floresta.
8 Na notícia “Filhote de onça criado como gato por família no AC é resgatado
pela polícia”, de 19 de fevereiro de 2016, percebe-se que o texto veiculado constrói
sua narrativa sob o viés do exótico que ajuda na construção/manutenção de
estereótipo. O episódio acontece no interior do estado e quem diz que o filhote
parece um gato é o policial que resgata o animal e não a família.
Contudo, o título da matéria propõe um pacto de leitura que se arquiteta
sob a premissa de que é comum no estado do Acre que as pessoas não só convivem

também trouxeram o discurso da modernidade e instauraram a dicotomia civilização versus


barbárie.
com os animais, mas criam filhotes de onça como gato de estimação. A forma como
a narrativa sobre a Amazônia Sul-Ocidental se articula no noticiário pressupõe um
imaginário social que engendra os modos de aparecer, de dizer e de conferir sentido
para a região. Segue trecho:
Um filhote de onça pintada foi resgatado, nesta quarta-feira (17) pelo Bata-
lhão Ambiental da Polícia Militar. A onça foi achada há três meses por uma
família de Mâncio Lima, interior do Acre, às margens de uma estrada, e era
J criada como um gatinho, segundo a polícia. O animal se trata de um macho
de onça pintada. (...) O major explica ainda que a mulher é livre de punição
porque entregou o animal de livre e espontânea vontade. “Ela não teve a
A intenção de prendê-lo em cativeiro, realmente era tratada como um gatinho
da família. Segundo a legislação, quando você entrega voluntariamente se
livra de medidas punitivas”, diz. (MUNIZ, 2016, online).
L
Essas narrativas que enfocam a presença de animais e a relação deles
L com os moradores da região são essencializadas, homogeneízam e naturalizam
comportamentos, limitando os parâmetros de interpretação. Como afirma Kathryn
Woodward, “é por meio dos significados produzidos pelas representações que
A damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos” (WOODWARD, 2009, p.
17). Dessa forma, o jornalismo articula representações, constrói, organiza e/ou
mantém valores e sentidos que podem gerar percepções equivocadas a respeito
desses povos que no Acre habitam.
O texto intitulado “Isolado em reserva no AC diz não trocar paraíso pelo

inferno da cidade”, publicado em 14 de fevereiro de 2014, é um exemplo de que ainda
358 se representa a Amazônia brasileira e acreana sob a égide da dicotomia inferno/
• paraíso, além disso não se separam os espaços cidade/floresta nas narrativas sobre
a Amazônia. Nessa matéria especificamente, a cidade é representada sob aspectos
negativos (violência, barulho, medo) e a floresta é o aspecto positivo (paz, calmaria,
sossego). Segue trecho:
‘Deus me defenda! Como é que eu vou trocar o paraíso pelo inferno?’, diz,
2 quase ofendido, o seringueiro Francisco Lima, de 65 anos, ao ser indagado
sobre a possibilidade de viver na ‘cidade grande’. O ‘paraíso’ a que se refe-
re seu Chiquinho Gabarito, como é conhecido na comunidade onde vive,
0 fica no interior do Acre, às margens do igarapé Santo Antônio, afluente do
rio Caeté, na Reserva Extrativista Cazumbá-Iracema, no município de Sena
1 Madureira (AC), distante 136 km de Rio Branco (NATANI, 2014a, online).

Notícias como a citada anteriormente mantêm a região amazônica rodeada


8 pelo encantamento da floresta, uma espécie de magia que sustenta os moradores
das comunidades tradicionais, reservas extrativistas, entre outras, afastados das
cidades. A definição de Pizarro (2012), que diz ser a selva um centro mítico de
construção do imaginário, ajuda-nos a compreender o porquê do jornalista, por
vezes, optar por esse enquadramento da notícia. Ele apenas conserva e destaca
uma ideia que já é pré-estabelecida a respeito da região.
Para Miquel Rodrigo Alsina (2009), a notícia é uma representação social
da realidade cotidiana e que se manifesta na construção de um mundo possível.
Ela gera sentido e noção de organização da realidade. Sob essa perspectiva, Alsina
(2009) dialoga com o pensamento de Stuart Hall (1981), para explicar que a mídia
atende a três funções básicas. Primeiro, ela articula e constrói o conhecimento
social. Em segundo lugar, a mídia busca refletir e se ver refletida. E, por fim, ela
cumpre o papel de organizar e juntar o que tem sido representado e classificado
seletivamente.
Percebe-se, então, que o site G1/AC atua na manutenção do imaginário
social sobre a Amazônia acreana por meio da organização do espaço como totalidade
vivenciada e inteligível. Nesse sentido, a mídia fornece discursos a partir dos quais
J são articulados significados, práticas e valores sobre a região.
Segundo Mendes (2013), a descrição dos animais e das paisagens tornou-
A se central para organizar o discurso a respeito da região. Em outras palavras, tornou-
se um procedimento discursivo de grande importância para uma apropriação do
L território, sua representação e sua própria formação.
Nesse aspecto, as notícias veiculadas localizam, qualificam e classificam
L os fatos de acordo com um mapa da realidade social. Conforme o pensamento
de Alsina (2009), “essas qualificações são avaliativas e normativas. Ou seja, elas
determinam quais as realidades que são aceitáveis e quais não o são” (ALSINA,
A 2009, p. 71). Nos exemplos citados anteriormente, a mídia categoriza o léxico, o
estilo de vida e o discurso sobre a Amazônia Sul-Ocidental, centrando-a sob o viés
do exotismo.
Nesse sentido, o conteúdo da notícia se torna possível porque o episódio
acontece no Acre, que é um estado da Amazônia brasileira, onde supostamente

humanos e animais selvagens convivem em relação de proximidade. Provavelmente,
359 o estranhamento seria se o episódio fosse em outro estado localizado na região sul
• ou sudeste do país, onde supostamente as pessoas são ditas mais “civilizadas” e
distantes das relações com a natureza.
O site em estudo exerce a função de estruturar e agrupar o que tem sido
representado e classificado seletivamente sobre a região, como, por exemplo, os
estereótipos sobre a Amazônia acreana. Em outras palavras, os media estabelecem
2 um consenso e categorizam uma legitimidade representativo-simbólica sobre a
espacialidade, sobre os sujeitos e sobre as realidades dessa localidade.
0 Segundo Homi K. Bhabha, o “estereótipo é ao mesmo tempo um substituto
e uma sombra”. (BHABHA, 2013, p. 140). E Durval Muniz de Albuquerque Junior
1 afirma que o discurso da estereotipia é repetitivo e caricatural: “é uma fala arrogante,
de quem se considera superior ou está em posição de hegemonia, uma voz segura

e autossuficiente que se arroga no direito de dizer o que o outro é em poucas
8 palavras” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2012, p. 13). Dessa forma, anulam-se as
multiplicidades e as diferenças individuais em nome das interpretações uniformes.
O olhar lançado sobre a Amazônia brasileira acreana é o mesmo em
diferentes tempos históricos. E uma das características observadas no estudo é a
relação que se faz entre essa região e os “mitos, lendas, crenças e encantamentos”,
outra categoria que foi estabelecida para melhor compreender as leituras do G1/
Acre. Nessa matriz de análise foram inseridos 9 textos:
TEXTOS DATA
1 - Família atravessa o país para conhecer origem do Daime no Acre 4/02/2013
2 - ‘Monstros’ da Amazônia decoram jardim de casa de artesão no Acre 25/09/2013
3 - No AC, chargista investe em filmes de animação sobre lendas amazônicas 10/11/2013
4 - Homem cura por meio de reza e plantas medicinais em reserva no AC 23/02/2014
5 - No AC, seguidores visitam túmulo de fundador do Santo Daime 02/11/2014

J 6 - Chargista lança segunda animação 2D sobre lendas amazônicas no AC 21/08/2015


7 - No AC, usuários de droga tomam chá de ayahuasca e dizem se livrar do vício 16/09/2015
A 8 - Após mapinguari gigante, artesão faz Iara e Curupira no jardim de casa 05/09/2014
9 - Escritor lança 2ª edição do livro ‘Mapinguari a Lenda’ em Rio Branco 26/02/2016
L Tabela 3 – Matérias da categoria de análise “mitos, lendas, crenças e encantamentos”. Elaborada
pelas autoras.

L Nessa categoria, as narrativas enfatizam aspectos recorrentes quando o


assunto é o Acre: religião Daime3, chá de ayahuasca, mitos e lendas (Iara, Curupira
e Mapinguari). De acordo com a pesquisadora Laélia Silva, “a linguagem denuncia
A que qualquer olhar sobre essa terra está contaminado pelos mitos e lendas que se
incorporam à invenção do paraíso e do inferno verde”. (SILVA, 1998, p. 23).
Na matéria “Família atravessa o país para conhecer origem do Daime
no Acre”, publicada em 04 de fevereiro de 2013, o enfoque do texto é mais no
percurso dos estrangeiros até chegar a Rio Branco, Acre, do que na religião fundada

na Amazônia e em seus conceitos e valores. Mais uma vez, o jornalismo reforça
360 estereótipos e representações sobre aspectos culturais e religiosos dos amazônidas.
• Na notícia “Homem cura por meio de reza e plantas medicinais em reservas
no AC”, publicado em 23 de fevereiro de 2014, é possível perceber ausência de
médicos e postos de saúde funcionando corretamente. Por isso, os moradores da
Reserva Extrativista Cazumbá-Iracema contam com os conhecimentos naturais de
um curandeiro, como se observa na passagem a seguir:
2 E o dom de seu Léo favorece a todos na comunidade, que é isolada. O único
posto de saúde existente no Núcleo do Cazumbá, onde moram 40 famílias,
entre elas a do idoso, não funciona. Para chegar até a área urbana de Sena
0 Madureira em busca de atendimento médico, é preciso enfrentar duas horas
de viagem de voadeira [barco a motor muito veloz] pelo rio Caeté (NATANI,
1 2014b, online).
A jornalista optou por discutir o curandeirismo na reserva extrativista
8 em vez de questionar o porquê da ausência de médicos e remédios no posto de
saúde da localidade, cobrando um posicionamento das autoridades responsáveis.
O enquadramento, provavelmente, deve-se ao fato de que hábitos considerados
rústicos e/ou tradicionais podem atrair mais a atenção do público leitor do que a
denúncia de ausência de saúde pública adequada.
Nesse universo ‘encantado’ de crenças na floresta e em plantas milagrosas,

3  O fundador do Santo Daime, Raimundo Irineu Serra, teve os primeiros contatos com a Ayahuasca
na década de 1910. Mas foi somente na década de 1930 que ele começou a reunir alguns seguidores
em torno dos mesmos princípios religiosos (OLIVEIRA, 2007).
existem ainda figuras ligadas à água ou à selva, que se recriam e se transformam
permanentemente no imaginário popular (Iara, Curupira e Mapinguari), são elas
que explicam e dão sentido a sua relação com a natureza e com os demais seres
humanos. Para exemplificar essa relação, o G1/AC publicou, em 5 de setembro de
2014, a matéria “Após Mapinguari gigante, artesão faz Iara e Curupira no jardim
de casa”:
Eu sempre fui muito ligado à história da Amazônia, principalmente nas
J lendas. Porque eu morei em um local próximo à floresta e alguns moradores
indígenas, pescadores e seringueiros contavam essas histórias para a gente.
E eu, já com 14 anos, rabiscava como eu pensava ser essas criaturas. Eu fui
A crescendo com a vontade de tornar essas imagens em tamanhos reais para
que pudessem servir de lazer e conhecimento também, destaca (MUNIZ,
L 2014, online).

Os mitos e as lendas seguem presentes na narrativa jornalística mesmo


L no século XXI e, junto a eles, o texto menciona outra prática considerada símbolo da
tradição e da preservação do passado, o artesanato. É como se a região amazônica
A brasileira/acreana tivesse constantemente relacionada a práticas não modernas se
contrapondo diretamente aos estados do sul e sudeste do Brasil, que atuam como
signos do progresso e do desenvolvimento.
Nas palavras de Stuart Hall (2003), os mitos moldam os imaginários,
influenciam nossas ações, conferem significados às vidas e dão sentido à história.
• Porém, essas representações permitem a construção de uma uniformidade
de comportamento a respeito da Amazônia brasileira que não corresponde às
361
variedades de condutas vigentes.
• Roger Chartier (1991) afirma que as representações fazem ver as ausências,
o que supõe uma distinção clara entre o que representa e o que é representado. Ela
é perturbada pela fraqueza da imaginação, que considera os signos visíveis como
índices seguros de uma realidade que não o é. Para Woodward:
A representação, compreendida como um processo cultural, estabelece
2 identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela
se baseia fornecem possíveis respostas às questões: quem sou eu? O que eu
0 poderia ser? Quem eu quero ser? (WOODWARD, 2009: p. 17).

Os sujeitos da Amazônia acreana são muito mais complexos do que as


1 imagens e os significados produzidos pelas notícias publicadas no G1/AC. De acordo
com Sandra Pesavento (1995), o imaginário é sistema produtor de ideias e imagens,
8 é sempre um sistema de representações sobre o mundo, que se coloca no lugar da
realidade, sem com ela se confundir, mas tendo nela o seu referente. O imaginário
é, pois, representação, evocação, simulação, sentido e “significado, jogo de espelho
onde o ‘verdadeiro’ e o aparente se mesclam, estranha composição onde a metade
visível evoca qualquer coisa de ausente e difícil de perceber”. (PESAVENTO, 1995,
p. 24).
Além dessas ideias vigentes sobre a Amazônia, foi selecionado o texto
“Chargista lança segunda animação 2D sobre lendas amazônicas no AC”, em 21 de
agosto de 2015, para que se possa analisar de que maneira modernidade e tradição
se relacionam neste veículo. A notícia evidencia o quanto as lendas e os mitos fazem
parte das representações e do imaginário social da região, mas também ressalta
que a tecnologia pode se unir a personagens folclóricos e ressignificar a ideia sobre
o Mapinguari, o Curupira e o Boto: “Além do lançamento da sua segunda animação,
o artista já publicou três livros: “Mapinguari, a Lenda”, “Abelardo e o Curupira” e
“Clarinha e o Boto”, todos com a temática focada nas lendas da Amazônia.” (G1/
AC, 2015, online).
Outro assunto recorrente na Amazônia acreana é o que se refere aos
J povos indígenas. Eles são constantemente citados nos meios de comunicação como
sinônimo de primitivismo, incômodo, atraso e ameaça. No dizer de Márcio Souza
A (2015), essa inquietação causada é fruto da desconstrução, por parte dos indígenas,
do sentido de cultura criado pelos ocidentais:
L Os povos indígenas são ameaçadores, da perspectiva do pensamento et-
nocentrista, não apenas porque estão no caminho do progresso, ocupando
terras ricas em minerais ou por impedirem a expansão da frente econômi-
L ca, mas porque eles desmontaram a velha descrição da cultura como algo
exclusivo ao Ocidente e não inerente à natureza humana, o que obrigou a
entender a variedade de outros num relativismo bastante vasto do ponto de
A vista histórico e antropológico (SOUZA, 2015, p. 18).

Por isso, “povos indígenas” é mais uma das categorias estabelecidas neste
estudo. Foram selecionados, portanto, quatorze textos.
TEXTOS DATA
• 1 - ‘Doutor Raiz’ usa conhecimentos indígenas para cura de doenças 28/04/2013
362 2 - Curta acreano sobre lenda indígena é selecionado em festival internacional 30/07/2013
3 - Funai suspeita que índios isolados buscaram contato após agressão 12/08/2014

4 - ‘Cultura foi bem representada’, diz pajé Yawanawá sobre desfile no SPFW 15/04/2015
5 - Índios feridos durante briga em aldeia no Acre passam por cirurgia 05/06/2015
6 - Índios loiros e de pele clara chamam atenção em aldeia no Acre 24/06/2015
7 - Índios fazem 3 servidores do ICMBio e um da Funai reféns em reserva no AC 16/07/2015
2 8 - Com dança e canto, índios fazem protesto contra PEC 215 no Acre 23/10/2015
9 - Índios fecham rodovia no AC em protesto por abastecimento de água 26/10/2015
0 10 - Índio é preso com 8 kg de droga em carro oficial da Sesai no AC 19/11/2015
11 - Índios ocupam casas condenadas e sobrevivem de bananas no Acre 22/12/2015
12 - Eleito melhor DJ do país cria canção inspirada em rituais indígenas do AC 28/12/2015
1 13 - Mais de 100 indígenas fazem cursos profissionalizantes no interior do AC 24/02/2016
14 - Jogo online sobre povo Huni Kuin do AC é lançado com download gratuito 15/04/2016
8 Tabela 4 – Matérias da categoria de análise “povos indígenas”. Elaborada pelas autoras.
Em alguns momentos, os indígenas são relacionados a aspectos negativos
(fazem pessoas reféns, fecham rodovias e fazem protestos), caso das seguintes
matérias: “Índios fazem 3 servidores do ICMBio e um da Funai reféns em reserva no
AC”, “Com dança e canto, índios fazem protesto contra PEC 215 no Acre”, “Índios
fecham rodovia no AC em protesto por abastecimento de água”.
Apesar desses enfoques e da maneira homogeneizada com a qual as mais
diversas etnias são tratadas, o G1/Acre também ressalta aspectos positivos da
cultura indígena, como no exemplo da matéria “Jogo online sobre povo Huni Kuin
do AC é lançado com download gratuito”, publicada em 15 de abril de 2016. O texto
fala sobre um antropólogo que criou um jogo online inspirado nas lendas de uma
etnia acreana:
Guilherme ressalta que o jogo é dedicado a dar visibilidade para a cultura
indígena, que segundo ele, é desconhecida pela maioria dos brasileiros. Ele
diz ainda que busca mudar a visão desrrespeitosa (sic) e preconceituosa que
ainda existe sobre os povos tradicionais (G1/AC, 2016, online).

Novamente, o jornalismo organiza e junta os temas que têm sido


J representados com mais frequência sobre a Amazônia acreana e classifica de acordo
com seus interesses. Nesse processo de classificação, os indígenas aparecem junto
A com mitos, lendas, fauna e flora, todos interligados como se fossem coisa una
e singular. Todavia, ressalta-se que o último exemplo mencionado neste artigo
L relaciona povos indígenas a tecnologia (jogo online). Nesse aspecto, (re)afirma-se o
pensamento de Hall (1981) quando ele diz que a mídia não só articula informações

já existentes, mas também pode (re)construir outras relações quando conveniente.
L
A quinta categoria identificada foi “meio ambiente”. O G1 publica textos
que enfocam questões ambientais e/ou mencionam personagens com alguma
A ligação a essa causa. É importante salientar que os textos aqui estudados não
refletem todo o universo publicado no site. Foram feitos recortes para atender os
objetivos da pesquisa desenvolvida, portanto os quinze textos apresentados são
apenas parte de uma amostra, assim como acontece nas demais categorias.
TEXTOS DATA

1 - Reserva Cazumbá está entre as 10 no país com alto grau de implementação 15/02/2014
363
2 - Acre tem menor nível de progresso social da Amazônia Legal, diz Imazon 26/08/2014

3 - Irmão de Darly Alves da Silva faz campanha para Marina no Acre 09/09/2014
4 - Secretária de Igualdade Racial diz que Marina fica livre para fazer ‘bainha da
27/10/2014
saia’
5 - Americano quer instalar fábrica de painéis de bambu no Acre 24/01/2015
6 - Garoto ‘brinca’ com a falta de água em SP e vídeo se torna viral na web 10/02/2015
2 7 - Devastadas após enchente, cidades do Acre se preparam para recomeço 28/02/2015
8 - Cheia histórica no Acre inspira memes nas redes sociais 03/03/2015
0 9 - AC tem maior taxa de desmate da Amazônia Legal em 2 anos, diz Sema 19/07/2015
10 - Quase um ano após enchente, pontos turísticos de Xapuri seguem fechados 25/01/2016
11 - Banco alemão deve enviar 25 mi de euros ao AC para proteção ambiental 28/11/2015
1
12 - Acre reduz em 10% a taxa de desmatamento na Amazônia Legal 01/12/2015
13 - Na COP 21, AC se compromete a acabar com desmatamento até 2018 07/12/2015
8 14 - Morte de Chico Mendes completa 27 anos; casa de líder segue fechada 22/12/2015
15 - Anúncio de frente fria no Acre anima internautas e inspira memes na web 26/04/2016
Tabela 5 – Matérias da categoria de análise “meio ambiente”. Elaborada pela autora.
Nesse bloco de textos são citados personagens importantes que ajudam a
manter as representações a respeito dessa localidade: o seringueiro Chico Mendes,
já falecido; a ex-ministra do meio ambiente Marina Silva; e o irmão de Darly Alves,
assassino confesso de Chico Mendes. Além deles, o G1 aborda temas como as
enchentes do rio Acre, a falta de água em São Paulo, desmatamento da floresta,
COP 21 (Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas), entre
outros assuntos.
Algumas leituras se repetem sobre a Amazônia, uma delas é essa suposta
preocupação ecológica do colonizador, do “outro”, pela região, como afirmam Miguel
Nenevé e Sônia Sampaio na passagem a seguir:
(...) às vezes, esse interesse colonialista vem travestido em preocupações
ecológicas, como se fosse o último ‘motif’ para se investigar a Amazônia. Há
uma necessidade de contar ao mundo o que nela acontece, como agem suas
populações e como isso pode ser colonizado (NENEVÉ; SAMPAIO, 2015, p.
25).
J
É possível comprovar o pensamento dos dois autores, observando a
A matéria intitulada “Americano quer instalar fábrica de painéis de bambu no Acre”,
publicada em 24 de janeiro de 2015. O personagem da notícia pretende “ajudar

a preservar a floresta acreana através do manejo florestal de bambus. Esse é o
L
objetivo do empresário americano Mark James Neeleman, de 36 anos” (YURI, 2015,
online). Ele acredita que não só pode preservar a floresta amazônica, mas também
L que pode salvá-la, bem como criar um negócio rentável no Acre: “O empresário diz
acreditar que pode ajudar a salvar as florestas e ao mesmo instalar um negócio
A favorável para os pequenos produtores” (YURI, 2015, online).
Por esse exemplo, se evidencia o quanto a região continua despertando
os interesses dos estrangeiros no século XXI, que seguem querendo ocupá-la para
fins exploratórios, porém, protegidos pela construção de um discurso de proteção
ambiental.

Considerações finais
364 Dos cinquenta e oito textos estudados, a maioria conserva ideias já
• disseminadas sobre a região amazônica brasileira/acreana. Mas, pelo menos,
cinco textos apresentam relações que podem ser consideradas como novas (“No
AC, chargista investe em filmes de animação sobre lendas amazônicas”; “Chargista
lança segunda animação 2D sobre lendas amazônicas no AC”; “Curta acreano sobre
lenda indígena é selecionado em festival internacional”; “Eleito melhor DJ do país
2 cria canção inspirada em rituais indígenas do AC”; “Jogo online sobre povo Huni
Kuin do AC é lançado com download gratuito”). Esses textos relacionam aspectos
0 da cultura acreana com criação de curtas metragens, animações e lançamentos de
CDs, algo inovador na leitura sempre tradicional que se faz sobre o estado.

Diante disso, discute-se que a tarefa do jornalista, bem como dos demais
1
narradores e/ou formadores de opinião, é (re)construir representações a partir
das que já estão dadas. Porém, Alsina (2009) ressalta que elas podem mudar de
8 acordo com as circunstâncias de cada momento e da perspectiva dos observadores.
Dessa forma, as narrativas não têm somente a tarefa de repensar o passado, mas

precisam também oferecer novas leituras e novas perspectivas que evidenciem as
multiplicidades culturais, sociais e históricas de um povo.
O presente artigo discute sobre de que modo o G1/Acre cria representações
sobre a Amazônia acreana. Dessa forma, pensa-se sobre a necessidade do jornalismo
modificar alguns conceitos e inserir novas perspectivas sobre essa localidade.
Ele deve se distanciar dos processos de homogeneização cidade/floresta, dos
estereótipos sobre os povos indígenas, do conceito de exotismo e da dicotomia
limitadora inferno verde/paraíso tropical.
A Amazônia deve ser pensada como espaço onde se produz cultura,
linguagem, pensamento, pois ela não é só “distante”, “desconhecida” e “inspiração”
para criação de lendas, contos e romances. Ela é, sobretudo, espaço de pluralidades
culturais, de formas de resistência e de multiplicidades.
Do corpus analisado, percebe-se que o discurso tradicional que
J afirma ser a Amazônia uma região onde impera atraso, degeneração e passividade
se entrecruza com algumas abordagens sutis sobre desenvolvimento cultural e
A tecnológico, sobretudo, relacionadas aos povos indígenas.
Diante do exposto, espera-se uma mudança contínua no jornalismo na
L forma de narrar a Amazônia, suas culturas e suas gentes. Mas sabe-se que isso
só será possível quando a região for desmistificada não só pelos estrangeiros, mas
L também pelos seus próprios habitantes, observada sem os antolhos da hostilidade
ou o manto de mistério, rompendo com as narrativas já existentes sobre a Amazônia
brasileira acreana.
A
Referências

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1

8

J

A

L O PROCESSO JUDICIAL COMO FONTE E CONSTRUÇÃO DA
NARRATIVA HISTÓRICA
L
Francisco Pereira Costa (UFAC)
A RESUMO: A estrutura jurídico-administrativa instalada no Brasil desde a ocupação
dos portugueses, para implantarem um regime de dominação e exploração do novo
território. Necessário se fez domesticar aqui um sistema de punições, mediado pelo
Direito, cuja forma de fazê-lo funcionar, resultava de muitas práticas judiciárias,
jurídicas. Conquanto, as relações sociais que se desdobravam em conflitos, mesmo,
• as de cunho individual, passavam, pelo filtro do Poder Judiciário, embora precário,
todavia, eficiente na aplicação das penas e castigos impostos pelas leis portuguesas.
367
Exemplo, o caso de Joaquim José da Silva Xavier, conhecido por Tiradentes. A
• investigação do suposto delito cometido por ele e seus aliados foi objeto de um
julgamento, a partir do qual Kenneth Maxwell, escreveu uma narrativa histórica
- A devassa da devassa. Com isso, queremos demonstrar a existência de várias
fontes históricas e as diversas possibilidades de suas narrativas, ao tempo em que,
é possível, a partir destas narrativas promover a crítica ao Direito, considerando
2 que este é portador de um discurso, de uma verdade, pois na fase do inquérito
começa a se deslocar para dentro do processo um discurso saber-poder e verdade
0 Assim, o historiador assume um papel de vanguarda diante da fonte jurídica. Sidney
Chalhoub enfrentou o problema do uso do processo criminal como testemunho
1 histórico mesmo ante o ceticismo dessa fonte, pois, diziam:tais fontes mentem. É
nesse núcleo triangular que o processo judicial se constitui como uma trama, uma
vez que, é resultado de um jogo de interesses, de interesses de classe, de interesses
8 econômicos e políticos, pois, a perspectiva do funcionamento da norma é uma
perspectiva de classe, imbuído de um formalismo jurídico-abstrato, universal para
perpetrar a ideia de isenção.
Palavras-chaves: Processo Judicial. Fonte Histórica. História. Direito. Narrativas.
Introdução
A formação do Brasil enquanto Estado-nação é um desdobramento da
ocupação e exploração econômica pelos portugueses e outros povos, que o manteve
numa posição de subalternidade na divisão internacional do trabalho até os dias
de hoje. A priori destaco esse vínculo de subserviência a outras nações.
Esse lugar no mundo mercantil-capitalista, do ponto de vista
jurídico,impunha a necessidade de criação de uma estrutura cartorária e burocrática
para controle da circulação da mercadoria e do cumprimento dos contratos; das
transações comerciais, vinculado a isso, também, o controle sobre os indivíduos
nas suas relações interpessoais, sociais, políticas, econômicas e do trabalho.Na
burocracia cartorária, é o inquérito, por exemplo, o primeiro instrumento a capturar
as narrativas histórico-jurídicas sob a perspectiva do controle das relações sociais,
J econômicas e políticas, em outras palavras vai instrumentalizar o poder judiciário
e o poder político.
A Assim, na esfera destas duas instituições, há um campo vasto de
procedimentos burocráticos, para ordenar e controlar a circulação dos bens,
L garantido pelos e para os ricos e poderosos. (FOUCAULT, 2003, p. 65)
É essa produção burocrática que nos interessa nesse trabalho, ou seja, o
que foi capturado, mediado pela narrativa histórico-jurídica e fixado nos documentos
L
históricos, nesse caso, nos processos judiciais, como portador de saberes, poder e
verdade.
A Nesse sentido, é pertinente se apropriar desse arcabouço histórico
cartorário, para se deparar com o processo histórico de construção, formação e
consolidação de domínio jurídico e histórico, enquanto saber.
Poderíamos, desde então, pensar na perspectiva de utilizar os processos
judiciais como fonte histórica, portanto, isso é muito vasto, para o historiador do

Direito, pode se debruçar sobre qualquer área, ou se debruçar decididamente num
368 único campo, por exemplo, na histórica do Direito criminal no Brasil, com recortes
• para campos mais específicos e tempos históricos também determinados, dado
vários fatores que implicam na realização da pesquisa, que vai desde a existência
de fontes e da qualidade em termos de preservação e qualidade dos arquivos que
implica no inventário das fontes, seleção, catalogação e higienização, para que
estejam em condições de uso pelos pesquisadores.
2 De qualquer sorte, nesse lugar de pesquisa, isto é, em que a fonte de
pesquisa é o processo judicial, a fonte é uma realidade, ela existe. Dado que, o tempo
0 do direito material implicado numa sucessão histórica desse direito, por exemplo,
uma expropriação de um território, pode, séculos depois, ser questionada pelos

verdadeiros proprietários-herdeiros ou proprietários originários, considerando se o
1 processo de expropriação fora feito com violência ou outras formas de dissimulação.

Outro aspecto, e o que importa dizer, com isso finalizar essa breve
8 introdução é a abordagem do conteúdo do processo, todavia, se ele aparece como
umestudo de caso. Metodologicamente, não se trata de reduzir o caso a uma
micro-história, ao caso em si, ou que as narrativas ali tenham uma circunscrição
delimitada, não é isso, o procedimento de interpretação de um caso concreto é
contextualizá-lo, ampliar ao leque de análise ou a escala de observação.
Esse é um campo muito aberto, haja vista, que parte dos historiadores
ainda resistem e desconsideram o processo judicial com fonte histórica. Ademais,
diante de uma possibilidade concreta da “escrita da história” ou da escrita da
história do direito, pode se enveredar por dois campos: um que é o próprio debate
teórico desse campo – história do direito; o outro, é trazer novas interpretação e
narrativas históricas a partir da investigação dos casos-processos.
Aspectos históricos da formação do establishment brasileiro
Ao longo da história, o Brasil foi se constituindo em um território com
características próprias, dotado de uma estrutura jurídica-política-administrativa
organizada por Portugal desde o início da colonização. Essa estrutura amalgamada
com as alianças políticas e formas de domínio e poder instalados nessas estruturas,
J originou uma organização administrativa patrimonialista1, onde o poder/direito
privado e público não se diferenciavam, dado a política de trocas e favores.
A Vários órgãos foram criados para administrar a Colônia, dentre eles o
Judiciário, através dos Juízes de Paz, Juízes de Tribunais de Relação e Tribunais
L de Apelação, Delegacias de polícia eoutros. Essas instituições existiam e se
consolidaram ao longo da história do Brasil como instrumento de controle social
L da sociedade brasileira, com propósito de resolução dos conflitos sociais.
Em torno desta realidade institucional e estruturalfoi constituído também
A um discurso que culminou numa historiografia para explicar e/ou justificar o modelo
jurídico a partir de uma História do Direito, História das Instituições Jurídicas e

História das Ideias ou do Pensamento Jurídico, porém, segundo Wolkmer:
[...] todas identificadas, ora com um saber formalista, abstrato e erudito,
ora com uma verdade extraída de grandes textos legislativos, interpretações
exegéticas de magistrados, formulações herméticas de jusfilósofos e institu-

tos arcaicos e burocratizados. (WOLKMER, 2007, p. 17)
369
Continua o mesmo autor afirmando que:
• [...]essa longa tradição foi interrompida nas últimas duas décadas por um
renovado interesse de natureza crítico-ideológica por questões metodológi-
cas sobre a História do Direito. Tal approach reflete também o esgotamento
de certo tipo de historiografia embasada em valores liberal-individualistas.
(WOLKMER, 2007, p. 17)

2 Não ouso afirmar que foi interrompida, mas podemos considerar que
há um novo campo teórico que convive com o modelo tradicional, posto que, o
0 positivismo, a dogmática é muito forte e impregnada na formação da cultura
jurídica brasileira.
1 Antonio Manoel Hespanha, jurista português, entende que a historiografia
jurídica da modernidade servia para duas coisas:
8 [...] relativizar e, consequentemente, desvalorizar a ordem social e jurídica
pré-burguesa, apresentando-a como fundada na irracionalidade, no precon-
ceito e na injustiça” e realizar “a apologia da luta da burguesia contra essa
ordem ilegítima (Ancien Régime) e a favor da construção de um Direito e de

1  “A categoria “patrimonialismo” deve ser interpretada sob a ótica do referencial weberiano, ou


seja, como um tipo de dominação tradicional em que não se diferenciam nitidamente as esferas do
publico e do privado. Sua prática, no Brasil, ocorre quando o poder público é utilizado em favor e
como se fosse exclusividade de um estrato social constituído por oligarquias agrárias e por grandes
proprietários de terras [...]”. In: WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. 4.ª ed.,
Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 43, nota de rodapé.
uma sociedade ´naturais` e harmônicos, isto é, libertos da arbitrariedade e
historicidades anteriores. (HESPANHA apud WOLKMER, 2007, p. 18)

Diante disso, há um aporte para novos marcos na historicidade do direito


que se inicia na década de 1960 e 1970, nessa fase há a substituição:
[...] dos modelos teóricos, construídos de forma abstrata e dogmatizada, por
investigações históricas, engendradas na dialética da produção e das rela-
ções sociais concretas. Sendo assim, há de se apontar que tipo de influên-
J cias do pensamento filosófico e da teoria social contribuiu para repensar,
quer a compreensão historicista do universo jurídico, quer o desenvolvimen-
to crítico da historiografia do Direito.(WOLKMER, 2007, p. 21)
A
Aparecem nesse sentido, na análise de Wolkmer“[...] cinco eventos
L espistemológicos que exerceram e ainda exercem significativa influência como marco
de referência aos novos estudos históricos do Direito na América Latina”.(WOLKMER,
2007, p. 21) Vejamos resumidamente: 1) final de 1960, uma corrente neomarxista;
L 2) neomarxista-freudiana (Escola de Frankfurt – “um novo homem”); 3) escola dos
“Annales”; 4) um pensamento libertador latino-americano que se define por uma
A luta teórico-prática contra uma situação sócio-política de dominação, opressão,
exploração e injustiça; 5) a prática e a hermenêutica jurídica alternativa2, a exemplo
de O Direito achado na rua e o Direito Alternativo.
Conclui Wolkmer que esses “eventos epistemológicos” visam:
[...] alcançar nova compreensão historicista que rompa com o culturalismo
• elitista e o dogmatismo positivista, permitindo que as múltiplas e diversas
370 disciplinas históricas do Direito [...] deixem de ter sentido apologético e ilu-
sório da ordem tradicional dominante, adquirindo sentido desmistificador e
• libertário.(WOLKMER, 2007, p. 28)

Nesse sentido podemos construir um conflito entre o discurso histórico


e o discurso jurídico. Esse conflito ao qual me refiro tem caráter epistemológico
(conceitual) e metodológico. O discurso jurídico é um discurso histórico e o fato, o
2 evento que acontece é um discurso histórico, portanto, História e Direito, ambos
são portadores de discursos: saber - verdade – poder (FOUCAULT, 1979) e a História
pode imprimir uma narrativa histórica a partir dos fatos jurídicos, do Direito.
0
Por isso,o historiadorassume um papel de vanguarda diante da fonte
jurídica. Sidney Chalhoub enfrentou o problema do uso do processo criminal como
1 testemunho histórico, mesmo, ante o ceticismo de historiadores sobre essas fontes,
pois, diziam eles: tais fontes mentem.Recorrer a essas fontes, para esse historiador,
8 ocorreu porque:
[...] as fontes para o estudo da experiência dos trabalhadores já não podiam
se reduzir a jornais operários e outras que tais, onde buscar alternativas?
Havia um contingente de pesquisadores céticos quanto à possibilidade de
utilizar processos penais para estudar temas outros que não a própria cri-
minalidade ou as representações jurídicas sobre determinados assuntos.
(CHALHOUB, 2001, p. vii)

Esse posicionamento do historiador Sidney Chalhoub é a síntese da


2  Ver com detalhes estas correntes epistemológicas em WOLKMER,Antonio Carlos. História do
Direito no Brasil, 2007, p. 21-27
descrença do discurso do historiador diante da fonte jurídica e do próprio Direito,
enquanto campo do conhecimento, ainda hoje, um posicionamento cético. Algo
preocupante tendo em vista a riqueza de conteúdo das fontes cartoriais (jurídicas),
tais como:inquérito policial, processo criminal, processo cível, tributário, ações
de justificação, habeas-corpus, mandado de segurança, ação de execução, ação
de guarda de criança, ação de alimentos, separação judicial, divórcio, ação de
indenização, independente de como são produzidas, ante o papel relevante e
J insofismável da crítica histórica, através de suas correntes teóricas e metodológicas.
A expressão independente como são produzidas abre, sobremaneira, o
A leque para o debate teórico sobre a lei. E a proposta deste trabalho aqui não é
discutir a lei em si, as normas, regulamentos, os costumes, como manifestações
L do direito. A proposta é, unicamente, destacar esse locus de pesquisa, o resultado
final da narrativa das práticas judiciárias existentes nos processos judiciais.

Nesse sentido, é importante destacar que as práticas judiciárias
L
movimentam a máquina burocrática através de inquéritos e todos os tipos de
ações judiciais, tais como, processos criminais, inventários, doações, execuções,
A com instrumentos para acesso ao Judiciário para solução das crises, conflitos de
caráter público e privado.
O Poder Judiciário sempre gerou uma quantidade de processos,
documentos que, ao final, ficaram arquivados nos fóruns e tribunais de Portugal e,
em algumas instituições da Colônia, por exemplo, a Igreja, as câmaras legislativas,
• alfândegas . Não era diferente no Império e na República, aliás, a diferença era
371 que todos os casos, até aqueles em grau de recurso não eram mais remetidos aos
• tribunais em Lisboa, todos eram julgados e arquivados no Brasil.
Isso nos traz uma ideia de que, desde então, o volume de processos
arquivados nos órgãos do Poder Judiciário, são significativos e imensuráveis e,
eles, bem ou mal, sempre foram preservados e tem seus lugares de guarda nas
instituições na Amazônia e no Brasil. Assim, há o arquivo do Supremo Tribunal
2 Federal-STF, hoje disponível no Arquivo Nacional; os arquivos dos Tribunais de
Justiça dos Estados; arquivo dos Tribunais de Apelação; do Tribunal de Inquisição;
dos Juízes das Comarcas; da Justiça do Trabalho; das Delegacias do Trabalho;
0
Arquivo Público do Pará; Centro de Memória da Amazônia, também em Belém-PA.
Considerando o caráter de um país colonizado há, também, muitos processos nos
1 tribunais de Portugal.
Isso nos leva, necessariamente, a uma análise teórico-metodológica.
8
Aspectos teóricos e metodológicos no uso das fontes cartorárias
Diante destas fontes, se impõe a necessidade de ter conhecimento técnico
e jurídico sobre o inquérito policial, processo criminal e cível, etc. O que de outro
modo, nos leva a problematizar a seguinte questão: qual a responsabilidade ou
a lealdade teórica do historiador diante do uso de uma fonte da qual não tem
formação, nem conhecimento técnico para se apropriar e manejar os conceitos e
termos jurídicos da lei, da nomenclatura da norma jurídica e, sobretudo, do ritual
em torno da lei, ali existentes, posto que, uma fonte jurídica não se resume na
análise da lei em si.
E. P. Thompson quando apresenta o resultado da sua pesquisa sobre a Lei
Negra no século XVIII na Inglaterra, e constrói um arcabouço teórico, e situa a lei
dentro do campo marxista tradicional, portanto, uma instância da superestrutura,
diz que nessa perspectiva a lei:
Como tal, é nitidamente um instrumento da classe dominante de fato: ela
define e defende as pretensões desses dominantes aos recursos e à força de
trabalho – ela diz o que será propriedade e o que será crime -, e opera como
J mediação das relações de classe com um conjunto de regras e sanções ade-
quadas, as quais, em última instância, confirmam e consolidam o poder de
classe existente. Portanto, o domínio da lei é apenas uma outra máscara do
A domínio de uma classe. (THOMPSON, 1997, p. 349-350)
Contudo, Thompson não se convence e não pactua com essa tradição
L marxista de enquadrar a lei dentro da superestrutura, como decorrência da
infraestrutura, pois, segundo ele:
L A lei também pode ser vista como ideologia ou regras e sanções específi-
cas que mantêm uma relação ativa e definida (muitas vezes um campo de
conflito) com as normas sociais; e, por fim, pode ser vista simplesmente em
A termos de sua lógica, regras e procedimentos próprios – isto é, simplesmente
enquanto lei. E não é possível conceber nenhuma sociedade complexa sem
lei. (THOMPSON, 1997, p. 351)

Evidentemente, que esse é um tema que precisa ser enfrentado, no sentido,


de que, o acesso a umanova fonte de pesquisa é algo extremamente complexo.

Talvez nesse campo, isto é, quando você elege utilizar os processos
372
judiciais, isso nos traz um certo conforto, em tese, pois, de um lado, é quase certo
• a existência das fontes, ou seja, os processos judiciais existem, porque há uma
razão que não é de caráter histórica, mais jurídica, ou seja, o processo precisa ser
arquivado, posto que, ele pode ser utilizado em qualquer outro momento, mesmo
como meio de provas para outro processo ou, simplesmente, porque os direitos
ali disputados, podem ser objetos de novas demandas judiciais. Por exemplo, um
2 processo de inventário que foi concluído sem a participação de todos os herdeiros,
um ou outro ficou de fora, este pode depois, mesmo que vários anos depois do caso
0 “solucionado”, pode pleitear seus direitos.
Esta é uma razão de ordem jurídica e não histórica. A razão de ordem
1 histórica nem sempre é respeitada e considerada no meio dos historiadores. Quando
Sidney Chaloub enfrentou o ceticismo dos historiadores que o viram produzir nova

versão da história dos trabalhadores a partir do processo criminal, foi combatido e
8 duramente acusadode usar “fontes que mentem”, sua defesa foi catedrática:
Este é um problema antigo, e durante algum tempo se pôde até pensar que
Febvre, Bloch e Braudel tivessem espantado definitivamente este fantasma.
No entanto, basta que a historiografia se coloque novos problemas e, prin-
cipalmente, passe a explorar novas fontes, para que o temível fantasma re-
torne. É o que ocorre atualmente no que tange à utilização de processos cri-
minais como fonte para estudo de história social. (CHALHOUB, 2001, p. 39)

A dificuldade dos historiadores, ainda hoje, de lidarem com estas fontes,


reputo deve ser dado de forma cirúrgica, no sentido, de afastarem-se do debate
teórico e técnico dos procedimentos, dos rituais da lei, porque isso, é um terreno
movediço. Nesse sentido, escapa, somente, os fatos narrados no documento jurídico,
para construir a narrativa histórica.
Thompson, talvez, num tom provocativo diz que “O revolucionário não
precisa ter nenhum interesse pela lei, a não ser como um fenômeno do poder e da
hipocrisia da classe dominante; seu objetivo deveria ser o de simplesmente subvertê-
la”. (THOMPSON, 1997, p. 350)
J Parafraseando e, ao mesmo tempo, se contrapondoa Thampson, o
historiador deve ter imensamente interesse pela lei e pelo Direito... e fazer o que ele
A propõe no final desta citação:subvertê-los... subvertê-los com uma nova narrativa
histórica para promoção da crítica ao Direito e, ao mesmo tempo, com resultado da
L pesquisa empírica propor a construção de um novo paradigma jurídico, como faz
Pachukanis (2017), que no processo de transição do capitalismo para o socialismo,
na antiga Rússia, desde 1917, conferiu que é necessário elaborar e implementar
L
novas leis, para viabilizar e consolidar um novo sistema de produção, de relações
sociais e de controle da sociedade.
A O debate e a discussão teórica e metodológica sobre a validade destas
fontes, a verdade destas fontes, a verdade intrínseca destas fontes, como algo
unicamente viável e merecedor da atenção dos pesquisadores é instigante, pois
remete a questões de ordem filosófica, sobre a ideia de verdade. Mas essa discussão
sobre a verdade é importante no campo da História e do Direito, para desmistificar
• alguns conceitos no campo do direito, por exemplo, no Direito Penal, do que os
373 criminalistas chamam como uma das pretensões no deslinde de um caso, a partir
• da busca da verdade real.
Aqui estamostrabalhando com o conceito de processo judicial como fonte
para a história social, nesse sentido, estou utilizando um conceito genérico, mas
este termo comporta recortes, quando, por exemplo, se utiliza e trabalha com o
processo criminal, que é o caso de Sidney Chalhoub. Após elaborar uma narrativa
2 histórica a partir do caso Zé Galego, Paschol e Júlia, enfrenta as críticas por ter
usado esse tipo de fonte. E o arcabouço teórico que Chalhoub elaborou para
defender sua pesquisa e suas fontes continua atual. Os historiadores contestadores
0
queriam uma verdade do processo criminal, e afirmavam que isso era impossível
porque os agentes do Estado, que gerenciavam a lei construíam versões diferentes
1 do que ocorrera, mas Chaloub era categórico:
Todas as versões dos fatos [...], nada justifica a suspeita de que estas se-
8 jam verdades “fabricadas” pelos agentes sociais que produziram estas fon-
tes. [...] As diferentes versões produzidas são vistas neste contexto como
símbolos ou interpretações cujos significados cabe desvendar. Estes signi-
ficados devem ser buscados nas relações que se repetem sistematicamente
entre as várias versões, pois as verdades do historiador são estas relações
sistematicamente repetidas. (CHALOUB, 2001, p. 40)

Conclui Chaloub:
Pretende-se mostrar, portanto, que é possível construir explicações válidas
do social exatamente a partir das versões conflitantes apresentadas por di-
versos agentes sociais, ou talvez, ainda mais enfaticamente, só porque exis-
tem versões ou leituras divergentes sobre as “coisas” ou “fatos” é que se
torna possível ao historiador ter acesso às lutas e contradições inerentes
a qualquer realidade social. E, além disso, é na análise de cada versão no
contexto da cada processo, e na observação da repetição das relações entre
as versões em diversos processos, que podemos desvendar significados e
penetrar nas lutas e contradições sociais que se expressam e, na verdade,
produzem-se nessas versões ou leituras.(CHALOUB, 2001, p. 40)

J O historiador produz uma narrativa histórica, uma narrativa histórica a


partir de um determinado campo do Direito, e o mais importante é utilizar a própria

narrativa jurídica para ressignificá-lo, no sentido da crítica que se pode construir.
A Assim, é necessária uma advertência sobre o deslocamento das decisões
judiciais, ou seja, se um caso idêntico, recebe decisões judiciais diferentes, na
L mesma jurisdição, portanto, por juízes diferentes? Ou seja, para o mesmo caso
um juiz decide favorável e o outro nega aquele direito. Porque para a mesma lei
L e o mesmo direito decide-se de forma diferente.3O que fazer com isso? Ora esse
questionamento é para dizer que a apreciação de um caso jurídico, o estudo de um
A processo judicial, jamais deve se limitar ao seu conteúdo. É necessário estabelecer
todas as conexões possíveis, com todas as fontes possíveis, a partir daí se estabelece
uma narrativa histórica sobre o caso concreto.
O que menos importa é saber se o agente dos órgãos de controle e
repressão mentem, aliás, dentro do próprio processo, estão as versões dos sujeitos
• sociais envolvidos em determinado caso, isto é, ali está o contraditório, sobretudo
nos argumentos dos advogados, a não ser que alguém é condenado sem defesa, o
374
que não é possível no processo criminal.

É importante pelo menos apresentar como uma problematização para os
aspectos teórico e metodológico deste campo de pesquisa, seria fazer um paralelo
com as fontes que THOMSON utilizou para sua pesquisa sobre a Lei Negra na
Inglaterra no século XVIII (1723) e perguntar: Será que ele sofreu a crítica e o
ceticismo que Chalhoub enfrentou. Ou seja, um cetismo que parece mais uma
2 dúvida quanto a lealdade e honestidade do pesquisador.
Relendo a obra de Thompson Senhores e Caçadores, sobretudo, a
0 introdução e o estudo analítico da lei que ele denominou de O domínio da lei, há
dois momentos que ele se reporta as fontes usadas, primeiro quando critica a
1 interpretação de Radzinowicz, que disse tratar-se de uma “medida excepcional”,
“gerada por uma emergência súbita, que deu origem a sentimentos intensos de
8 medo”, critica que nem a data sabia ele, e mesmo a imprensa da época quase
nada publicou. Isso motivou sua pesquisa e que se utilizou muitas vezes de fontes
impróprias para formular suas problematizações. (THOMSON, p. 1997, 24-25)
Uma coisa nos chama a atenção nessa introdução da obra de Thompson,
quando ele diz que a Lei Negra trazia centenas de delitos que levavam à pena de
morte, mas ela “[...] estava esboçada de modo tão vago que se converteu em terreno
prolífico para decisões judiciais cada vez mais abrangentes”. (THOMPSON, 1997, p.
351) Isso seria o que se diz hoje no Direito Penal de leis com cláusulas gerais, dar

3  Ver a obra de ficção jurídica FULLER, Lon L. O caso de exploradores de caverna. Trad. Plauto
Faraco Azevedo. Porto Alegre: Fabris Editor, 1976.
ao Juiz uma margem de interpretação demasiado extensa, no caso inglês,seriam
atos discricionários.
Essa constatação faz sentido quando ele afirma que:
[...] tentei mostrar, na evolução da Lei Negra, uma expressão da ascendên-
cia de uma oligarquia Whig, que criou novas leis distorceu antigas formas
legais, a fim de legitimar sua propriedade e status próprios; essa oligarquia
empregou a lei, tanto instrumental como ideologicamente, muito à manei-
J ra que esperaria um marxista estrutural moderno. Mas isso não significa
dizer que os dominantes tinham necessidade da lei para oprimir os domi-
nados, ao passo que os dominados não tinham necessidade de lei alguma”.
A (THOMPSON, 1997, p. 351)
Dito isto, voltemos ao processo judicial enquanto fonte histórica. Nele está
L tudo isso, quero dizer, ele é resultado de um poder que se estabelece no conflito de
classes, nesse sentido, é certo que o conteúdo de um processo revela ou pode ser
L portador da narrativa da luta de classes, portanto, de uma narrativa ideológica no
sentido de classe.
A A história social do processo trabalhista, civil, criminal revela a história
social dos subalternos, dos trabalhadores, trabalhadoras, pode construir uma
narrativa de uma história vista de baixo (SHARPE, 1992, p. 39ss.), assim, traz a
voz dos debaixo. Essa é uma perspectiva teórica e metodológico, é um lugar da
produção de um discurso, de uma narrativa histórica. Evidentemente, que esta
• narrativa é resultado de uma escolha e do lugar social do profissional da História.
375 As relações intercaladas nos acontecimentos sociais, políticos, econômicos
mediados pelo Judiciário, através de seus instrumentos de enquadramento e

enclausuramento dos sujeitos sociais revela muita da sociedade de uma época. Por
ser, o processo, detentor de uma narrativa histórica é que se exige revisitar esta
narrativa, os códigos, símbolos, discursos, as formas jurídicas, enfim. E esse papel
é do historiador que conhece os métodos e as teorias da História.
Todavia, em se tratando de Direito é extremamente necessário o
2 conhecimento teórico e empírico do Direito, posto tratar-se de um campo prático,
cujas ações, nem sempre estão dentro dos contornos da norma. Isso já é um
0 problema de uma dimensão gigantesca, não obstante, o uso das técnicas, recursos,
teorias e práticas nesse campo, sobretudo, a experiência calcada no ritual para dar
1 vida a lei, a norma, ao regulamento, a resolução, portaria etc. É nesse campo que
reside a dificuldade do uso dessas fontes.
8 Historiografia e o Direito
Ainda, cabe uma breve ponderação acerca das correntes teóricas da
História. Fica evidente neste breve trabalho que o referencial teórico utilizado aqui
tem fundamento no materialismo histórico e dialético, na interface com o Direito
passo a denominar de materialismo histórico-jurídico dialético.
Todavia, a narrativa jurídica a partir dos processos pode ser escrita com
qualquer viés teórico-metodológico, por exemplo, na dimensão do positivismo,
do estruturalismo, a partir das subjetividades, baseada nas manifestações do
inconsciente (Psicanálise). Jusnatuaralismo, pois há quem ache que o direito é um
direito natural, ou pelo menos, alguns das suas manifestações são e devem ser
estudadas como tal. A escola dos Annales que introduz novos objetos de pesquisa
e propõe:
[...] uma análise histórica menos descritiva e mais relacional, mais social,
que encontraria as causas dos acontecimentos nas esferas coletivas e não
individual da sociedade, rompendo com a tradição metódica, e dessa forma
poder-se-ia encontrar uma lógica pertinente à própria História, o que faria
desta uma verdadeira Ciência. (BAGNOLI, Vicente, BARBOSA, Susana Mes-
J quita e OLIVEIRA, 2009, p. 17)

O que pretendemos destacar é que a narrativa histórica ou jurídica
A
produzida a partir desta modalidade de fonte deve está associada às diversas estas
correntes teóricas-metodológicas da História.
L
A produção teórica de Foucault4 que cunhou conceitos como arqueologia
do saber, genealogia do poder e outros, com o qual procura desmistificar a produção
L do saber e, ao mesmo tempo, o uso disso, como manifestação do poder, para o
controle imposto pelas instituições do Estado, como o Judiciário, Polícia, Escola,
A Hospital.
As ferramentas da História devem ser norteadoras da pesquisa sobre
os processos judiciais, que foram criados mediados pelo Direito. De modo que,
qualquer pesquisa realizada com o apoio da História, pode promover, não só a
crítica, como é o pensamento inicial deste trabalho, mas ajustar no contexto de
• nosso tempo, novas perspectivas do Direito, novas aplicações e articulação de novas
376 tramas para a realização de um Direito mais comprometida com novas narrativas,
com a história dos sujeitos sociais vindos de baixo.

Considerando um Direito emancipador, é indispensável instrumentalizá-
lo com outros paradigmas do conhecimento.
Considerações finais
Nós últimos anos, no Brasil, muitas áreas do conhecimento, tem se
2 apropriado dos processos para investigar e construir novas narrativas em diversos
campos do saber, do conhecimento.
0 Isso é muito importante porque se aproxima das propostas dos historiadores
da escola dos Annales, que rompe com a história tradicional e propõe novos objetos
1 de pesquisa. Essa demanda é importante porque realiza a interdisciplinaridade
entre os diversos campos dos saberes, sobretudo com o Direito. É necessário que
escavemos o subsolo do Poder Judiciário para revelar suas tramas, seus jogos de
8
poder e a condição de mediador dos conflitos de uma sociedade dividida em classes.
Em síntese com esta comunicação procuramos delinear aos historiadores
e curiosos a importância do processo judicial e das práticase dos discursos jurídicos
(argumentação jurídica) através dos processos judiciais como fontes históricas.
Fortalecer a ideia da interdisciplinaridade entre Direito e História
mostrando a força da História como campo teórico capaz de promover a crítica e a

4  Ver entre tantas outras obras de FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 14ª ed., Trad. Roberto
Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979; FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de
Janeiro: Nau, 2003.
reconstrução da narrativa jurídica. E destacar a importância das fontes histórico-
jurídicas como instrumento de revisitação e possibilidades de escrita da História.
Enfim, destacar o inquérito e o processo judicial como fonte histórica.
Referências
BAGNOLI, Vicente, BARBOSA, Susana Mesquita e OLIVEIRA, Cristina Godoy. História do
Direito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim – o cotidiano dos trabalhadores no Rio
J de Janeiro da belle époque. 2. ª ed, Campinas: Ed. da UNICAMP, 2001
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 1996.
A FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 14ª ed., Trad. Roberto Machado. Rio de Janei-
ro: Graal, 1979
L GRINBERG, Keila. A história nos porões dos arquivos judiciários. In: PINSKY, Carla Bassa-
nezi e LUCA, Tania Regina de (Orgs.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto,
L 2012.
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. 18.ª ed., Rio de Janeiro: Zahar Edito-
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J

A

L SÍMBOLOS INTERAMAZÔNICOS DO SAGRADONO CORTEJO DA
“VIRGEM DE SANTA ROSA” E NA PROCISSÃO DO “BOM JESUS
L DO ABUNÔ

A Geórgia Pereira Lima (UFAC)
RESUMO: As experiências sociais de homens e mulheres nos entre-lugares
fronteiriços da fronteira Brasil–Bolívia no campo simbólico do sagrado de Plácido
de Castro (Acre/Brasil) e Santa Rosa del Abuná (Pando/Bolívia), esses espaços
fronteiriços interamazônicos produziram elementos complexos da cultura
• (Bhabha, 2007) e de religiosidades.Este estudo analisa, a partirda polifonia do
378 termofronteira,as recriações do universo social, cultural, religioso e plural daquele
espaçobi-nacional (Acre-Pando) entre 2005 a 2016.A ideia em realizar uma análise
• comparativa envolvendo as procissões do “Bom Jesus do Abunã” (Acre) e da “Virgem
de Santa Rosa do Abunã” (Pando) permitiu divisar a fé e a igreja católica como um
dos marcos, sobretudo culturais, extrapolando os limites geopolíticos de países
latino-amazônicos no contexto da primeira década do século XXI. Portanto, (des)
contínuosdas fronteiras e religiosidades expõem um hibridismo sob o signo do
2 sagrado do entre-lugar da religião católica como uma fronteira simbólica (Bauman,
2001).
0 Palavras–chave: Fronteira Simbólica. Sagrado na fronteira do Abunã. Religiosidade.

1 O universo católico ao mesmo tempo permite entrever interações
em hibridações sagradas nas fronteiras interamazônicasentre Brasil-Bolívia,

mas também, a influência da fronteira nacional. Nesse sentido, ao pensar as
8 representações da procissão do “Bom Jesus do Abunã”, do cortejo “Virgem de Santa
Rosa” e da simbologia da romagem do andor dos santos para os devotos além
da manifestação de fé podem ser vistos como elementos de contato linguísticos e
culturais entre povos, mas também, mostra que a travessia do rio Abunã realizadas
por homens e mulheres nos dias de festejos do sagrado está influenciada pela
cultura nacional.
Assim, a categoria polifônica de fronteira como um recorte analítico
para estudar as experiências culturais através da religiosidade da Vigem de Santa
RosaAbuná,também traduzem tensões é, pensá-la como um espaço de resistência
social e de ambiguidades simbólicas das identidades nacionais, e ainda, um
espaço permeável, flexível e poroso onde acontece o encontro e o entrecruzamento
de culturas. Nesse sentido, a fronteira aqui representada sinaliza para uma
encruzilhada perigosa, palco de tensões e lutas pela defesa da identidade nacional
boliviana, porquanto, se torna importante materializar esses espaços amazônicos.
Os territórios fronteiriços de religiosidade católica aqui analisados
Plácido de Castro–Acre/BR e Santa Rosa delAbuná-Pando/BO, são espaços que
J apresentam singularidades históricas de um processo continuo das andanças de
brasileiros além-fronteiras do final do século XIX, mas que precisamente durante o
A século XX apresentam maior mobilidade social.
O município de Plácido de Castro representou no início do século
L XXuma posição comercial estratégica de entreposto, concentrava toda produção
da rica e vasta região boliviana e, servia para o trânsito de pessoas e troca de
mercadorias e produtos do extrativismo. Inicialmente foi colocação, depósito do
L
seringal São Gabriel, em 1922 era denominado Vila Pacatuba e depois Vila Plácido
de Castro. Tendo sido elevada à categoria de município em 10-03-1963 como uma
A área territorial de 1.943,245 km². Censo populacional em 2010 de 17.209 hab.
Densidade demográfica de 8,186 hab/km².
Por outro lado a província boliviana de Santa Rosa delAbunáhistoricamente
habitada por brasileiros o que a tornava altamente internacional. Centenas de
famílias brasileiras que viviam e trabalhavam nessa área há anos, sem nunca
• obter qualquer documentação seja de nacionalidade e residência, cidadãos ou
379 trabalhadores, uma vez que o Estado boliviano historicamente estava ausente
• dessa zona. Contudo, vale ressaltar que sua criação dar-se na década de 1930
quando o governo boliviano como uma forma de resguardar e colonizar a fronteira
amazônica, a partir de 2008 se inicia um processo de expulsão de brasileiros e,
em 2010 o Estado boliviano começou a implantar umnovo plano de colonização
da fronteira amazônica com o Brasil, promovendo a migração de 750 camponeses
2 para os povoados de Santa Rosa delAbuná e Manoa (El Deber, 2010).
Diante da complexidade da palavra fronteira e da amplitude de estudos
existentes sobre o tema, para melhor articular as nossas ideias, vamos contemplar
0
duas concepções do conceito: a fronteira geográfica e a fronteira simbólica, ambas
importantes para compreender o cortejo da Virgem de Santa Rosa do Abuná as
1 silenciosas lutas culturais nesse espaço de fronteira evidenciadas nos cânticos
litúrgicos e as expressões da cultura boliviana para preservar e manter-se a língua
8 pátria e suas simbologias étnicas distintas nesta zona de fronteira.
Importante registrar que a pesquisa de campo (2015/6) revelou o cortejo
da Virgem de Santa Rosa realizado no dia entre os dias 29 e 30 de agosto de 2015,
como parte das comemorações dos 75 anos da fundação da cidade Santa Rosa
delAbuná, capital da Província delAbuná–Pando/BO.Aproximadamente 52Km de
distância da fronteira brasileira do Município de Plácido de Castro–Ac. Sete décadas
e meia sinaliza a presença dos bolivianos na fronteira do Brasil, sendo oportuno
dizer que a imagem da “Virgem de Santa Rosa” foi encontrada por um seringueiro
brasileiro em data imprecisa, segundo alguns moradores a imagem original era
“preta” e, se constituiu no contexto histórico da produção de borracha na região no
início do século XX o processo de devoção a Virgem de Santa Rosa.
Nesse sentido, o lugar do cortejo no contexto da cidade é emblemático
uma vez que é possível identificar os entre sentidos de devoção da celebração
e do velório. Enquanto celebração o cortejo toma o formato de sentido pátrio e
dialoga com os espaços de poder constituído no pequeno vilarejo. Ao ser parte das
comemorações da fundação da cidade reveste os símbolos de celebrar a ordem
J social da nação boliviana e dialoga com os elementos de pertencimento que separa
os de “dentro” e os de “fora” (Bhabha, 2007).
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Figura 1 – romeiros bolivianos no espaço da cidade de Santa Rosa delAbuná (2015)



380 Nesse momento, de celebração a cidade recebe romeiros bolivianos de outros
lugares que trazem consigo produtos para serem vendidos e acampam nos espaços
• centrais do vilarejo. O comércio a “céu aberto” se constitui numa possibilidade de
rendimento para as famílias que durante os dias negociam vestuários, brinquedos
e pequenos jogos de mantimentos, participam das comemorações pátrias que o
governo oferece e, nas duas noites participam da intimidade dos festejos religiosos
da igreja católica local.
2 Festa religiosa a Virgem de Santa Rosa que acontece no dia 29 de agosto
é bem significativo uma vez que expõem a ambiguidade religiosa dos festejos
0 entre o profano e o sagrado e faz cessar o transito entre fieis. O lugarejo é assim
representado, após atravessar uma ponte sobre o rio Abunã e alcançar o posto do
1 agrupamento do exército boliviano se percebe uma cidade de frente para o rio, a
organização espacial fora projetada a partir da praça central pois, em entrono as
8 edificações foram sendo dispostas. Esta mesma praça serve como marco divisor
entre os festejos à Virgem de Santa Rosa.
Os preparos para o velório à virgem inicia-se desde o amanhecer do dia
29 e terminando no dia seguinte e, são distribuídas diferentes tarefas as pessoas
encarregadas de realizar o cortejo, são mulheres que ao nascer do sol se mantem
em prece fervorosa durante a montagem do ritual de organização do espaço para a
celebração da missa e do momento da romagem com o andor da santa pelas ruas
do vilarejo.
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Figura 2 – O espaço do velório à Virgem de Santa Rosa (2015)
L
Organizado o espaço para celebração da fé à Virgem de Santa Rosa, o
L sacerdote, nesse ano veio de Porto Rico para celebrar a missa, inicia o cortejo por
volta das 19h a imagem da “Virgem” é colocado no andor, antes da saída o badalar
do sino da igreja sinaliza a chamada dos romeiros para caminhada. Nesse dia
A o andor fora carregado por quatro mulheres eleitas no ano anterior pelos votos
devocionais e segue pelas ruas do lugarejo formando o quadrilátero do entorno da
praça.
Durante a romaria em que o andor com a Virgem de Santa Rosa é carregado
por mulheres, simbologias do religioso se manifestam e são sentidos no silencio em

todos os ambientes do lugarejo da igreja Assembleia de Deus aos bares-festivos,
381 apenas se ouve os cânticos de júbilos e glorias que são entoados em espanhol; na
• escuridão o perímetro urbano que passa a ser iluminado pelas velas sinalizando
a passagem e bênçãos da “Virgem” aos moradores, bem como, nas rogativas das
graças recebidas, nos pedidos e votos dos devotos.
No caminhar da romagem fora possível entrever os ritos do velório a
“Virgem” marcadamente pelo silencio e as expressões faciais e os olhos voltados
2 a incandescência das velas homens, mulheres, crianças, jovens, adultos, velhos
e velhas choram, agradecem e cantam sinalizando para o sagrado em oração e
0 júbilos.
Ao termino, a “Virgem” reconduzida novamente ao altar e, vestido com a
1 indumentária que o diferencia dos demais sujeitos o sacerdote inicia o ato litúrgico
com cânticos e louvores seguida de uma breve explicação aos presentes acerca da

visãono contexto católico da realização do cortejo a santa, explicando a importância
8 da devoção e dos votos com graças recebidas, esses últimos, são proclamadas pelo
sacerdote chamando o nome das pessoas que receberam a graça da santa. Para
em seguida realizar os sacramentos do batismo e a unção do ser como corpo da fé
católica. Após os atos litúrgicos da missa inicia-se o velório que dura a noite.
Emblemático perceber a transição entre o festa do sagrado e do profano
que dar-se por uma salva de fogos a exatamente meia noite e minutos depois os
bares-festa do lugarejo reacendem suas luzes e cessa assim o trânsito entre fieis.
A praça assume uma divisão simbólicas entre dois cenários de celebração e separa
também aqueles que antes estavam rezando junto aos ritos de religiosidades.
De um lado o sagrado representado pelos devotos da fé que permanecem
em vigília no silencio e orações junto ao velório da imagem da santa envolvidos
pela clarão das velas e de outro lado a festa profana com suas danças e bebidas
que termina no romper da madrugada do dia 30 de agosto dia da celebração da
pátria. Durante a noite não se observou ninguém ousar atravessar de um lugar
para o outro, interrompe-se o circuito dos trânsitos entre o espaço do religiosos e
do profano.
J Porquanto, entre signos religiosos do cortejo a Virgem de Santa Rosa, o
sino, a caminhada pela cidade, a escuridão e luz de vela, a“Virgem” e a mulher,
A alíngua e linguagem nos cânticos e as expressões faciais dos romeiro ao compartilhar
o sagrado da caminhada, o silêncio e contrição de votos no rito do velório e, por
L último, ademarcação cultural do território entre sagrado e profano denotam as
fronteiras simbólicas de religiosidade representada nesse cortejo.

Sob outra ótica, as inter-relações sociais daprocissão do “Bom Jesus do
L
Abunã” realizada no município de Plácido de Castro–Ac, expõem as representações
de alteridades e ambiguidades constituídos nos símbolos religiosos dos santos que
A singularizam a cultura de fronteira nacional.
Neste lugar da adoração, sob outra ordem, a simbologias passam a
recompor o sentido pátrio/nação no aporte da ideia de “soma” apresentado durante a
romaria ao “Bom Jesus do Abunã” quando as imagens dos santos católicos caminhou
lada-a-lado possibilitou perceber a religiosidade de fronteira como protagonista de
• outras histórias dos trabalhadores latino-amazônicos em suas práticas lida nos
382 trânsitos entre territórios e culturas como uma extraterritorialidade amazônica que
• possibilita pensar nas reflexões deZygmuntBauman acerca de uma cultura híbrida
ao afirmar que:
[...] A imagem de uma “cultura híbrida” é um verniz ideológico sobre a ex-
traterritorialidade, atingida ou declarada. Refere-se, essencialmente, a uma
liberdade duramente conquistada, e agora estimulada, de sair livremente
num mundo demarcado por cercas e fatiado em soberanias territorialmente
2 estabelecidas. (Bauman, 2001 p. 42)

Nesse sentido, queremos demonstrar que a ideia de “cultura híbrida”
0 nos permite perceber que a extraterritorialidade nos espaços interamericanos e
amazônicos é passível de ser analisada na dimensão de procissões e adorações.
1 Assim, a participação da entidade católica de Santa Rosa delAbuná na festividade
da Igreja do Bom Jesus do Abunã, se idêntica na formaconduzir o “andor dos
8 santos” sem negar que conserva no cotidiano das relações da fé católica nessa zona
de fronteira umaforma de negociar os elementos culturais, uma conquista sobre
a própria noção de fronteira que contraditoriamente continua a ser elemento de
disputa entre trabalhadores latinos, brasileiros e bolivianos, fortemente enraizada
na ideia de território nacional.
Ao se fazer uso da metáfora “soma” da integração dos cortejo e da
procissãose identifica a posiçãode símbolos do sagradoda fé católica no contexto do
mundo amazônico polarizado e as contradições dosindivíduo que portam o andor
dos santos na caminhada pelas ruas de Plácido de Castro.
A inflexão do sentido “soma” parece querer reivindicar um entre–lugar,
um desejo de extinguir também o transitório da religiosidade naquele espaço. No
espaço da rua que as culturas se encontram nas imagens dos santos provisórios ao
visibilizar a igreja como um lugar de mediação que permite negociar os elementos
culturais nas expressões do sagrado e a rua como um lugar de circulação da cultura
que expressa atender a interação cultural ambígua forjada no espaço do vivido
daquela fronteira liquida e sinaliza uma busca de identidade. Segundo Bauman:
[...] como as extraterritoriais cruzadas e as nowherevile - termo que se refere
J a cidades típicas do mundo globalizado, cidades iguais, sem traços regio-
nais, que poderiam estar localizadas em qualquer parte do mundo -,[...],
a “cultura híbrida” busca sua identidade na não-pertença: na liberdade de
A desafiar e menosprezar as fronteiras que tolhem os movimentos e escolhas
das pessoas menores, inferiores - os “locais”. (Bauman, p. 42/3).
L Assim, o espaço social de interação evidenciado símbolos da fé foi a Igreja
católica de ambas as comunidades, onde a convivência das romariasexpressam
L dos sujeitos nos momentos do caminhar, entre outros de oração, fé e oscânticos de
júbilos, as ruas constituíram efetivamente uma possibilidade de alteridade além-
A igreja. O importante aqui é enfatizar que a religiosidadeentre a igreja e a rua se
reveste em roupagem cultural do lugar de onde se expressa e se torna mediadores

entre culturas nesta área de fronteira.
Desta forma, se de um lado os santos de cada nacionalidade cambiavam
normativas e conduta culturalmente constituída naquele espaço serviu para
• brasileiros e bolivianos interagirem, enquanto de cânticos religiosos entoados no
383 idioma português ou espanhol para além do domínio da palavra escrita constituiu
em elemento da prática da fala daquela linguagem entre aqueles sujeitos.

Neste sentido, os cânticos religiosos representam outro conjunto de
elementos que possibilitam entrever a interação sociocultural neste ambiente
fronteiriço, pois a forma como os sujeitos contritos na fécatólica se relacionam
com as expressões denotam marcar uma cumplicidade explicativa do modo como
o intercâmbio dos cânticos parecem ter solucionado o hiato entre escrita e fala de
2 domínio português ou espanhol.
Vale ressaltar que seja a procissão ao “Bom Jesus do Abunã” ou ao
0 cortejo a “Virgem de Santa Rosa” os testemunhos de religiosidade que os sujeitos
professam, em nosso entendimento nesse dois momentosp sentido de “aceitar”, “a
1 gente” e “presença” expõem uma complexidade do próprio contexto de vida nesta
região fronteiriça.
8 Visto que sob os mais variados sentidos homens e mulheres traduzem
as formas como elaboram e reelaboram os significados da continua presença de
trabalhadores brasileiros em território boliviano. Entretanto os festejos do sagrados
nos dois espaços de fronteiratraduz na interpretação religiosa a possibilita entrever
o sentido do entre–lugar, entre outros, o primeiro que nos chama atenção é a ideia
dos “irmãos bolivianos” de se apresentarem num espaço sociocultural ambíguo
que se expressa diante de uma sociedade constituída de indivíduos caracterizados
pela unidade histórica cultural. Neste sentido, Bauman (2007) afirma que são
semelhantes:
[...] Numa sociedade de indivíduos, cada um deve ser um indivíduo. A esse
respeito, pelo menos, os membros dessa sociedade são tudo menos indiví-
duos diferentes ou únicos. São, pelo contrário, estritamente semelhantes a
todos os outros pelo fato de terem de seguir a mesma estratégia de vida e
usar símbolos comuns – comumente reconhecíveis e legíveis para convence-
rem-se outros de que assim estão fazendo. Na questão da individualidade,
não há escolha individual, nem dilema do tipo “ser ou não ser”. (Bauman,
2007 p. 26)

J Enquanto indivíduo pertencente à comunidade boliviana de Santa Rosa


delAbuná o sentido dado pelo termo “aceitar” de participar da romaria trazendo

consigo a imagem do sagrado pertencente a sua cultura, mesmo carregado de
A padrões ideológicos de religiosidade advindo das interpretações das expressões
faciais dos romeiros em procissão, mas, principalmente através da codificação
L promovida pelo padre brasileiro representante da Igreja Católica do Bom Jesus do
Abunã que convida e aceita o testemunho de fé boliviana implica pensar a ideia de
L pertencimento do sujeito naquela sociedade.
Nesta perspectiva vale refletir a primeira parte da explicação de Bauman
A que o sujeito como membro daquela comunidade não seja “indivíduos diferentes ou
únicos [... mas], semelhante”. Nesta possibilidade a religiosidade se apresenta como
um veículo sob o qual as estratégias de negociações e de pertencimento se afirmam
como uma proposta desafiadora de “aceitar” estar num lugar fixo a partir do qual
sua ação coletiva perante aos demais membros da comunidade seja reconhecida e
• legitimada a presença de nacionais em ambos espaços de fronteira.
Sob outra ótica o termo “a gente” ao ser pronunciadonum campo
384
estritamente religioso “se sentir na presença de Deus”, provoca um hiato entre a fala e
• a condição do sujeito que participa dos ritos sagrados possível de ser compreendido
como um termo ambíguo que traduz também as marcas do entrecruzamento cultural
entre brasileiros e bolivianos moradores das comunidades interamazonicas.
Se há uma possibilidade de fazer inferências entre o sujeito da romaria e
o lugar social de onde ele emite sua posição na contrição da fé podemos refletir sob
2 a perspectiva da segunda parte das afirmações “[... na] questão da individualidade,
não há escolha individual, nem dilema do tipo “ser ou não ser”Bauman (2007:26),
0 isso implica dizer que o sujeito do entrecruzo cultural em destaque ao circunscrever
a partir da projeção do ambiente materializado do lugar ele negocia as trocas de
1 valores culturais preservando uma continuidade de ações sociais religiosas.
O termo “a gente” ainda pode ser entendido como uma forma de manifestar
8 uma pretensa identidade cultural crivada pelo verniz da cultura brasileira como
significado de ser brasileiro, entretanto, no âmbito da visão religiosa, em analise,
este se apresenta destituído de caracteres de valores culturais, mas, se institui
hibrido para fazer uso das palavras de Bauman não-exigente e não–preconceituoso,
pronto para absorver os ensinamentos morais de “Jesus Cristo”, através da igreja.
Assim, ao pensar esse termo “a gente” sob o influxo da religiosidade
demonstroa um construo societal entre brasileiros e bolivianos numa sucessão de
empréstimos culturais onde os aspectos representativos na visão religiosa não se
apresentam divergentes, mas, o conecta sem aflitíssimo enredo de saber se “estar
na presença de Deus” se manifesta sob um substrato cultural ou noutro.
Desta forma, a atividade social da romaria na dimensão da religião em
espaços de fronteira refletem as afirmações de Bauman (2007) ao se referir à cultura
hibrida:
[...] a “cultura híbrida” é uma manifestação onívora – não -comprometida,
não-exigente, não-preconceituosa, pronta e ávida por saborear qualquer
coisa que esteja sendo oferecida e a ingerir e digerir a comida de todas as
cozinhas. (p.46)

J Se estivermos entendendo o protagonismo social da dimensão do vivido


que esses sujeitos nos permitiram explicar sob o universo de fronteiras simbólicas
A do lugar que organizam, negociam e trocam elementos culturais, o terceiro
termo “presença”, permite identificar a fronteira entre o Estado do Acre–Brasil
L e o Departamento de Pando–Bolívia, para além-limites territoriais geopolíticos e
perceber nos interstícios a porosidade e flexibilidade que permitem observar que

esta fronteira também é simbólica e fluida.
L
Analisado sob o uso estritamente religioso marcado pela palavra
“presença” enquanto sentir-se “na presença de Deus” nesta locução sentir tem
A sinônimo de experimentar a presença de algo. Nesse sentido, a experiência social
da religiosidades no âmbito da interamazonia acreana-pandina permite captar na
dimensão religiosa dada ao termo “presença” que este expõe estar presente no
âmbito daquela fronteira é também experimentar uma forma de sentir enquanto
sujeito deslocado, hibridizado, poderíamos pensar a partir dos pressupôs de
• Bauman (2001) que este sujeito estar consciente de sua condição social naquela
385 comunidade. Como afirma o autor acerca dos “hibridizadores”:
[...] É principalmente uma unidade de reprocessamento e reciclagem - vive

de crédito e se alimenta de material emprestado. Só pode construir e susten-
tar sua distinção por meio de um esforço ininterrupto e ininterrompível para
compensar as limitações de um empréstimo por meio de mais empréstimos.
(Bauman, 2001, p.45)

Desta forma, a “presença” no entre–lugar de fronteira toma o primeiro


2
sentido de estar na “presença de Deus” que o torna homem moralmente constituído
pela religião na relação com outros homens. Enquanto, no segundo, estar deslocado
0 e hibridado é parte da sua condição social nas comunidadesfronteiriças, mas, não
tem significado de determinantes limitadores, pois a igreja que o coloca na primeira
1 relação entre sujeitos é a mesma que favorece as trocas e os empréstimos culturais.
A atividade religiosa permite a recolocação continua dos processos
8 descontínuos da fronteira limite. O espaço da igreja se torna o lugar onde o sujeito
socializa os múltiplos percursos e dinâmicas de vidas entrecortadas pela sua
própria história, mas, recompõe a legitimidade da sua presença naquele lugar.
Desta forma, o mundo religioso apresentado pelos brasivianos se compõe
de histórias e linguagens do sujeito da/na romagem, recompondo uma diversidade
dos sentidos de estar presente numa fronteira limite e ao expor o protagonismo
social de vivências e relações demonstra a dimensão simbólica que o espaço-lugar
representa estar entre–fronteiras interamericanas e amazônicas.
Uma vez que a IgrejaCatólica de Santa Rosa delAbuná e do Bom Jesus
do Abunãse constituíramnum dos marcos da experiência da romaria, sobretudo
cultural e religioso, que permite perceber os indícios da condição de vida de
além–fronteiras entre continuidades e descontinuidades geradores de possíveis
identidades.
Esta instituição se apresenta como um dos elementos de analise
sociocultural onde é possível identificar vestígios que extrapolam os limites
geopolíticos entre países latino-amazônicos e se apresentam como espaços híbridos.
J Se ainda, podemos retomar o pensamento de Bauman, o ponto a ser destacado é a
compreensão da hibridização ao afirmar que:
A [...] Numa avaliação final, a “hibridização” significa um movimento em dire-
ção a uma identidade eternamente “indeterminada”, de fato “indeterminá-
vel” [...] A ausência de um alvo pré-selecionado só pode ser compensada por
L um excesso de marcadores culturais e um esforço contínuo de cercar todas
as apostas e manter abertas todas as opções. (Bauman, 2007, p. 45/6).
L Deste modo, pensar as (re)construções de histórias de homens e
mulheres que apresentam um campo de possibilidades nesta região ora fugindo
A e se submetendo ora resistindo e forjando saídas. Refletir o âmbito das fronteiras
simbólicas expor o desafio acadêmico para entender e (re)interpretá-las em
razão das complexidades do vivido e das perspectivas dos sujeitos nos contextos
contemporâneos, pois como afirma Bauman(2007):
[...] Isenta da soberania de unidades políticas territorialmente circunscri-
• tas, tais como as redes extraterritoriais habitadas pela elite global, a “cul-
tura híbrida” busca sua identidade na liberdade em relação a identidades
386
designadas e inertes, na licença para desafiar e menosprezar os tipos de
• marcadores, rótulos ou estigmas culturais que circunscrevem e limitam os
movimentos e as escolhas do resto das pessoas, presas ao lugar: os “locais”.
(Bauman, 2007, p.46)

Nesse sentido os espaços dasigreja e das ruas se apresentam no cotidiano


desses sujeitos como espaços de articulações e renegociações, onde estar presente
2 experiências ambíguas de alteridade que demostra o caráter hibrido desta fronteira
interamericana e amazônica.
0 Portanto, o continuo e descontinuo das fronteiras e religiosidades expõem,
sob o signo do sagrado da manifestação de fé dos devotos, as procissões aos santos
1 daqueles lugares um entre-lugar da religião católica como uma fronteira simbólica.
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J

A

L O ESTEREÓTIPO, A DISCRIMINAÇÃO E O DISCURSO DE EMBATE
PRESENTES EM MEMES REFERENTES À AMAZÔNIA
L
Geovânia de Souza Andrade Maciel (UNIR)
A Lusinilda Carla Pinto Martins Pinto (UNIR)
RESUMO: No intuito de romper as relações de poder existente na produção de
conhecimentos eurocêntricos, pensadores como Said, Spivak, Hall, Fanon e
Bhabha, procuraram desconstruir as ideias produzidas pelos países dominantes
e valorizar sistematicamente as produções marginalizadas. Na América Latina, o
• Pós-colonialismo (ou “pensamento decolonial”) teve importante recepção no final da
década de 1980. Esse trabalho procura mostrar alguns exemplos de estereótipos
388
e discriminação presentes em Memes referentes à Amazônia, e consequentemente
• apresentar as novas ferramentas digitais como espaço “contra” a subalternidade,
visto ser um lugar aberto, nos quais o sujeito pode se articular, se expressar e
ser ouvido; e não mais conviver com a passividade da exclusão social. Sua ênfase
estará noMeme (termo que surgiu com Richard Dawkins em 1976) e apresentará
exemplos práticos de discursos que se propagam na construção e desconstrução
2 da identidade do Outro da Amazônia.
Palavras – chave: Estereótipo. Discriminação. Decolonialidade. Subalternidade.
0 Memes.
Introdução
1 Na América Latina, o pós-colonialismo teve importante recepção no
final da década de 1980, aqui sendo chamada como “pensamento decolonial”.
8 Podemos referenciar a obra O Local da Cultura (1998) de Bhabha que problematiza
a maneira depreciativa como o Outro Colonizado é caracterizado pelo discurso
do colonialismo Europeu. Podemos aludir também GayatriSpivak que em sua
obra “Pode o Subalterno falar?” destaca o implacável descentramento do sujeito
questionando as formas de representação do Outro que por vezes são concebidos
por discursos hegemônicos que quando referenciados num contexto global, negam
a heterogeneidade dos sujeitos, criando imagens estereotipadas e discriminatórias
com relação ao Outro.
Sob a ótica pós-colonial é possível perceber as relações de embates
existentes nos discursos e o quanto as palavras atuam como poderosas forças
de subalternidade. Na atualidade, tais atitudes são práticas constantes por
meio de representações simbólicas ou não, e a cibercultura manifesta-se na vida
contemporânea na dimensão tecnológica, social, cultural e epistemológica. De certo
modo, os autores Champangnatte e Cavalcanti em seus estudos confirmam a ideia
proposta por este artigo ao dizerem que a cibercultura:
“não apenas destrói hierarquias e fronteiras, mas também as institui em
um processo complexo de “des-re-territorializações”, o que possibilita aos
J indivíduos/coletivos estarem imersos em uma maior flexibilidade social, em
uma organização fluida com papéis menos rígidos e lugares sociais inter-
cambiáveis”. (2015, p. 317)
A
Sabe-se que os processos históricos determinaram um olhar colonial

sobre a população da Amazônia. Assim,em tempos atuais muitos ainda visualizam
L
seus habitantes como seres diferentes por fazerem parte de um “ambiente exótico”
representado pelo imaginário do europeu colonizador diante da sua hegemonia
L discursiva abordada em seus primeiros relatos, cartas, e outros textos da época
que transmitem até hoje uma descrição imaginária persistente.
A Igualmente, na busca por uma relação amistosa entre as diferentes
culturas, o desenvolvimento tecnológico e o crescimento da liberdade das produções
literárias se fizeram como meios imperiosos para permitir a expansão de ideias
que demarcam um hibridismocultural1 – este que sempre foi e continua sendo um
pretexto retomado pelo colonizador como estratégia para aprisionar o Outro.
• De tal maneira, este artigo utilizará algumas exemplificações de memes
389 que anunciam um imaginário representativo do/pelo povo da amazônia, ao
consideraras especificidades na liberdade de utilização do ciberespaço2 tendo

os Memes como exemplo prático de discurso que se propagam na construção e
desconstrução das identidades.
Os memes: da origem à atualidade
O conceito meme surgiu em 1976 no livro “O Gene Egoísta” do biólogo
2 evolutivo, etólogo e escritor britânico Richard Dawkins. Mas vale lembrar que o
conceito inicial abordado por Dawkins aproximava meme ao sentido comportamental
0 de gene e dos princípios darwinianos. No último capítulo do livro, intitulado
por“Memes: os novos replicadores”o autor afirmara: “Precisamos de um nome
1
1  Ver “A Identidade Cultural da Pós-Modernidade” do escritor Stuart Hall (1932-2014): um teórico
8 cultural e sociólogo jamaicano que viveu e trabalhou na Inglaterra, transitando constantemente
entre diferentes culturas. No capítulo 6 dessa obra – Fundamentalismo, diáspora e hibridismo – o
autor apresenta dois argumentos contraditórios na qual a globalização é a grande responsável
pelos resultados: ora identidades híbridas, ora identidades homogeneizadas. De tal forma, Hall
amplia a compreensão de hibridismo ao sinalizar que as identidades culturais são híbridas, e
consequentemente, movidas por mudanças, encontros e desencontros. Dessa forma, percebe-se
a impossibilidade de termos uma “identidade”, mas que somos compostos por uma identificação,
passível de mudança e transformação.
2  Conforme Champangnatte e Cavalcanti o “ciberespaço tem sido o lugar de interação e expressão
para variadas atividades que envolvem coletivos de resistência, que têm como finalidade difundir
suas reivindicações na tentativa de perfurar os mecanismos políticos/ideológicos impostos pela
grande mídia hegemônica da indústria cultural.” (2015, p. 314)
para o novo replicador, um substantivo que transmita a ideia de uma unidade de
transmissão cultural, ou uma unidade de imitação.” (DAWKINS, 1976, p. 122)
Sobre essa concepção replicadora, Dawkins prossegue exemplificando
memes daseguinte maneira:
Exemplos de memes são melodias, idéias, «slogans», modas do vestuário,
maneiras de fazer potes ou de construir arcos. Da mesma forma como os
genes se propagam no «fundo» pulando de corpo para corpo através dos
J espermatozóides ou dos óvulos, da mesma maneira os memes propagam-se
no “fundo” de memes pulando de cérebro para cérebro por meio de um pro-
cesso que pode ser chamado, no sentido amplo, de imitação. Se um cientis-
A ta ouve ou lê uma idéia boa ele a transmite a seus colegas e alunos. Ele a
menciona em seus artigos e conferências. Se a idéia pegar, pode-se dizer que
L ela se propaga, si própria, espalhando-se de cérebro a cérebro. (DAWKINS,
1976, p. 122-123)

L Enquanto o gene é uma unidade biológica que procura se propagar por
organismos vivos, o termo meme surge como ideias, discursos e tantas outras
formas de manifestações que se espalham na sociedade de maneira célere. O
A estudo desse conceito é denominado Memética e tem como base o raciocínio de que
da mesma maneira como os genes determinam a transmissão de suas cópias às
gerações futuras, as ideias também vivem em competição entre si para conseguir
dominar o maior número de cérebros. E só são possíveis entre nós seres humanos
porque diferente dos animais possuímos a capacidade de imitar. (TEIXEIRA, 2003)

O sentido de Meme ampliou-se a ponto de significar qualquer
390 representação mental (superstições, crenças, doutrinas, teorias, moda, entre
• outros) e só recentemente os cientistas estão chegando a um consenso sobre a
Memética enquanto ciência. Nas relações públicas e na publicidade os memes da
internet têm sido utilizados como uma forma de marketing viral para seus serviços,
principalmente em razão do seu custo-benefício e de sua modicidade.
No campo da informática, a expressão passou a ser chamada de Memes
2 de Internet, e se referea qualquer ideia ou conceito que se espalha aceleradamente
através da Web por intermédio de sites de notícias, e-mails, blogs, whatsApp, entre
0 outras fontes de informação. Outro aspecto significativo é a sua característica
de anonimato, pois geralmente não traz assinatura o que impossibilita a
responsabilidade jurídica do autor. Assim quando ocorre a divulgação de um
1
meme agressivo, preconceituoso e discriminatório só é possível responsabilizar os
internautas que compartilham.
8 Sabe-se que os memes da internet mobilizam sentidos humorísticos e
pejorativos e grande parte deles propagam relações de desigualdades (superior/
inferior); mas por outro lado, sob uma perspectiva da crítica decolonial,sustentada
por autores como Said, Fanon, Bhabha e tantos outros a respeito do desafio da
descolonização, os Memes podem funcionar como ferramenta de ressignificação de
uma cultura marginalizada quando se coloca como lugar de interação coletiva de
resistência na tentativa de transpor os mecanismos políticos e ideológicos impostos
pela supremacia da indústria cultural.
Olhar do outro: a colonialidade do poder/saber/ser
Os estudos da crítica colonial não quisera (e nem conseguiria) desfazer
todo o processo histórico e cultural produzido pela colonização ocorrida em
nosso país. Isso é certo se levarmos em consideração a influência quantitativa
Europeia na constituição híbrida cultural existente no Brasil. Na verdade, trata-
se de perceber que o conceito de decolonialidade volta-se para buscar modos de
pensar e ser que consigam resistir às feridas marcadas a “ferro e fogo” não apenas
J nos processos de dominação política e econômica, mas, sobretudo, aprofundar
nas problemáticas que interferem na subjetividade das relações interligadas de
A maneira especial aos pressupostos etnocêntricos relativos à classe, raça e gênero
utilizados repetidamente pelo colonizador como meio de subalternizar, estereotipar,
L discriminar e inferiorizar culturas díspares.
Os estudos de Fanon e Bhabha assim reconheciam a fundamental
L importância do reconhecimento e recuperação das tradições culturais e históricas
do povo reprimido e consequente percepção de que seus saberes são tão valiosos

quantos os de origens não colonialistas. Contudo para que isso se efetive, faz-
A se relevante compreender “os perigos da fixidez3 e do fetichismo4 de identidades
no interior da calcificação de culturas coloniais para recomendar que se lancem
“raízes” no romanceiro celebratório do passado ou na homogeneização da história
presente.” (BHABHA, 2013, p. 31). A atividade negadora, portanto, causa estranheza
e deve estar assegurada por um equilíbrio constante para que o decolonialismonão
• reincida em uma nova forma de colonialismo.
391 Sob essa ótica as ideias de decolonialidade são importantes por fazer
• perceber que os conflitos de poder-sabe-ser continuam presentes. Isso traz a tona
pensar que o ser humano tem em sua natureza um espírito dominador, tanto que
muitos dos colonizados na primeira oportunidade que tem de se fazer superior,
não pensam duas vezes em praticar tal ação. Poderia assim afirmar que a crítica
decolonial funciona também como um princípio para expandir a prática da
2 alteridade humana, visto que todos os seres interagem e interdependem do outro a
partir de suas diferenças.

0 Com o advento da internet, os receptores (antes passivos) assumiram
também o papel de agentes emissores, alargando a teia comunicacional
anteriormente restrita apenas aos meios de comunicação de massa que auxiliavam
1 a fixidez do discurso colonial na construção ideológica da alteridade.
Em 1978 quando Edward Said5 publicou sua mais conhecida obra o
8
3 No decorrer de seu livroBhabha (2013) nos apresenta um conjunto de conceitos com o intuito
de analisar a relação entre racismo e cultura, tais como: autoridade colonial, discurso colonial,
ambivalência, fetichismo, fixidez, estereótipo, diferença colonial. O autor reafirmao perigo da
fixidez: “A fixidez, como signo da diferença cultural/histórica/racial no discurso do colonialismo,
é um modo de representação paradoxal: conota rigidez e ordem imutável como também desordem,
degeneração e repetição demoníaca”.(2013, p. 117)
4  Ao falar de fetichismo Bhabha (2013, p. 130) assevera que: “O fetiche ou estereótipo dá acesso a
uma “identidade” baseada tanto na dominação e no prazer quanto na ansiedade e na defesa, pois é
uma forma de crença múltipla e contraditória em seu reconhecimento da diferença e da recusa da
mesma”.
5  A obra Orientalismo é considerada um clássico dos estudos culturais. Traz a análise da
Orientalismo, na construção dos argumentos das análises dos discursos literários,
políticos e culturais, já trazia um alerta sobre a influência dos meios de comunicação
de massa no intento de fazer uma visão distorcida do “Outro” para alcançar os
interesses do Colonialismo:
“Essas atitudes orientalistas contemporâneas povoam a imprensa e a mente
popular. [...] De um certo modo, as limitações do orientalismo são, como dis-
se antes, aquelas decorrentes de se desconsiderar, essencializar e desnudar
J a humanidade de outra cultura, outro povo ou região geográfica.” (1990; p.
117)

A Na tentativa de demonstrar que os efeitos do domínio colonial não foram
estancados quando se concluiu o domínio territorial sob quaisquer colônias,

abaixo serão apresentados alguns Memes que refletem de modo estereotipado e/ou
L
discriminatório os povos da Amazônia sob um olhar colonizador e em contrapartida
outros memes como resposta rápida –proporcionada pela cibercultura – que nos
L faz perceber que na atualidade as ambivalências traumáticas do passado, cedem
lugar para um novo jeito de reinscrever o estranhamento de culturas.
A Os embates - representações das ambivalências presentes nos estereótipos
meméticos

Exemplo I
Em março de 2014 um vídeo destacou-se nos meios midiáticos: devido
• ao péssimo atendimento recebido uma mulher resolveu desabafar sua opinião a
392 respeito dos manauaras – moradores da cidade de Manaus. A visitante em tom
raivoso e pejorativo ao afirmar que o povo de Manaus só sabia comer peixe e

descascar tucumã, despertou o sentimento de revolta em seus interlocutores que
em resposta elaboraram inúmeros memes sobre o assunto. Veja alguns exemplos:

2

0

1

8 Figura 1: Vocês só sabem comer peixe e Figura 2: Vocês só sabem comer peixe e
descascar tucumã
descascar tucumã

representação distorcida criada pelo Ocidente no que diz respeito às características do mundo
“Oriental”, construindo consensos que não só permitiram a inferiorização das civilizações atribuindo-
lhes características exóticas, mitológicas e monstruosas, mas também legitimaram as atrocidades
no Oriente.
J Figura 3: Vocês só sabem comer peixe e des- Figura 4: Vocês só sabem comer peixe e des-
cascar tucumã
cascar tucumã
A Retomemos uma alusão trazida por Bhabhaao falar da força da ambivalência (2013, p. 118):
Isto porque é a força da ambivalência que dá ao estereótipo colonial sua
L validade: ela garante sua repetibilidade em conjunturas históricas e discur-
sivas mutantes; embasa suas estratégias de individuação e marginalização;
L produz aquele efeito de verdade probabilística e predictabilidade que,
para o estereótipo, deve sempre estar em excesso do que pode ser provado
empiricamente ou explicado logicamente.(grifo nosso)
A
Observa-se que ao não ser bem recepcionada em um estabelecimento
de Manaus – capital brasileira com um alto número de habitantes indígenas –
a mulher utiliza a repetição do discurso colonizador que visualiza os indígenas
e seus descendentes como pessoas preguiçosas. Assim através do acontecido,
aproveita uma peculiaridade da cultura dos manauaras e generaliza ao dizer que

a população apenas sabe comer peixe e descascar tucumã. O estereótipo é a
393 estratégia discursiva de ataque e como já afirmara Bhabha (2013, 154-155):
• Essas articulações contraditórias da realidade e do desejo - vistas em este-
reótipos, declarações, piadas e mitos racistas - não estão presas no círculo
duvidoso do retorno do reprimido. Eles são os resultados de uma recusa
que nega as diferenças do outro, mas que produz em seu lugar formas de
autoridade e crenças múltiplasque alienam as pressuposições do discurso
“civil”.(grifo nosso)
2
O ciberespaço na atualidade vem modificar o modo de recebimento dos
discursos, pois “emerge como um território sem fronteiras, aparentemente sem
0
controles e hierarquias” (CHAMPANGNATTE; CAVALCANTI, 2015), e da mesma
maneira em que as ideias são produzidas e distribuídas, são também atravessadas
1 por respostas instantâneas. É o que acontece com os memes apresentados. Se
antes o colonizado e seus “repetidores de discursos” tinham receios em revidar,
8 às vezes reconhecia sua diferença e procurava recusá-la utilizando-se da imitação
do outro (mímica6); agora o ciberespaço colabora para destruir hierarquias e as 4
figuras despertam para o sentimento de inaceitabilidade de um estereótipo que
atravessa o tempo:
Figura 1: A mulher e sua fala revoltada aparecem. Na sequência, a resposta
“Morra, minha filha, morra!”, procura transmitir a indiferença da população em
relação ao descaso que a mesma teve em aceitar a diferença do povo de Manaus.
6  Ver capítulo IV - Da mímica e do homem: a ambivalência do discurso colonial – do livro o Local
da Cultura de HomiBhabha. Nele o autor esclarece a mímica como uma estratégia induzida pelo
colonizador que funciona como um acordo irônico que ocasiona “efeitos-identidade”.
Figura 2: Em rebateao vídeo, o Meme2 utilizou uma figura conhecida:
David Beckham (ex-jogador de futebol inglês que anunciou sua aposentadoria no
final de 2013). Tal estratégia foi para dar maior autoridade à frase que reforça o
Meme de Embate: “Comi bodó no espeto e descasquei pra mais de cem tucumãs,
nunca me senti melhor”. (A sentença valoriza a culinária típica da região que fora
marginalizada no vídeo)
Figura 3 e 4: Os Memes foram produzidos utilizando-se do nome de
J uma rede de restaurantes de comida rápida especializada em culinária árabe
(Habib’s). De forma irônica e metafórica destaca os aspectos de qualidade/agilidade,
A contrapondo-se a ideia apresentada pela mulher no vídeoem questão.
Exemplo II
L
Sabe-se que mesmo na atualidade a Amazônia continua a despertar
questionamentos e inquietações no imaginário de quem a desconhece. Gondim
L em sua obra “A invenção da Amazônia” explicitara que o novo concebe uma
diversidade que causa insegurança, então representá-lo através da monstruosidade
A ou de maneira estigmatizada faz parte de umaatitude colonizadora para assegurar
sua supremacia. (1994, p. 38)
A temática proposta em seu livro confirma que as heranças do histórico de
colonização permanecem e traz a percepção de que inúmeras práticas continuam
a anunciar uma visão estereotipada da região e dos povos amazônicos. Estes são
• demasiadamente representados como personalidades selvagem, rural, rude e o
394 ambiente descrito como precário. É o que podemos perceber nas ilustrações 5e 6
apresentadas a seguir:

2

0
Figura 5: Amiga, estou indo viajar para a
1 região norte. Mas não estou com nenhuma
vontade de ver bicho e mato – Conselhos das Figura 6: Bem vindo ao estado do Acre.
Tias Wilson.
8 Para corroborar na reflexão vale trazer a obra da escritora indiana
GayatriSpivak que apresenta o sujeito subalterno na definição daquele ser
pertencente “às camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos
específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da
possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante”. (2010;
p. 12).
Nos exemplos aqui expostos são subalternizados aqueles que se encontram
no contexto amazônico fruto da miscigenação de etnias e do multiculturalismo. E se
propaga até os dias atuais o olhar externo da invenção a respeito da Amazônia: jaz
a ideia de que os habitantes dessa região mantém um modo de vida completamente
tradicional, primitivo e isolado do seu tempo.
O meme6 exemplifica tal afirmativa ao trazer a representação do estado do
Acre em forma de piada – há diversas cópias que retransmitem a ideia apresentada
por este meme - ao simulá-lo como um lugar totalmente desconhecido, supostamente
sem televisão, carro, internet... Para reforçar a ideia de que os acreanos estão
presos ao passado se utilizam da imagem do dinossauro e de seres extraterrestres
J aludindo que a tecnologia não tivesse alcançado tal estado brasileiro.
Fanon7 (2008; 28) nos alertava em um prognóstico:“a sociedade, ao
A contrário dos processos bioquímicos, não escapa a influência humana. É pelo
Homem que a sociedade chega ao ser. O prognóstico está nas mãos daqueles que
L quiserem as raízes contaminadas do edifício.” De tal modo sabemos que a mídia tem
o poder de formar opiniões e ditar modelos a ser seguidos. Todavia essa revolução
do espaço virtual que disponibiliza um nível acelerado de compartilhamentos e
L
predispõe autonomia aos sujeitos, percebe-se que o memena mesma proporção
quealastra crenças e valores antigos, também sofre alterações e ganha forças para
A se espalhar com um novo significado, é assim se comprovar que o homem modifica
a sociedade.
Diante do fluxo intensivo na disseminação de informação os memes
contribuem para que os grupos promovam intervenções quase imediatas às
subalternidades diversas impostas pelas relações sociais. O que se percebe na
• atualidade é que o discurso anteriormente ditado por pessoas que desconheciam
395 as verdadeiras características da região, agora passa a ser utilizado como um
• discurso de defesa e orgulho de ser diferente; o discurso agora é também produzido
por quem conhece. É o que se observa nos memes 7 e 8:

2

0

1

8
Figura 7: Em Rondônia é assim Figura 8: Em Rondônia é assim

Os memes7 e 8 são produzidos em respostas aos estereótipos que
permeiam pensamentos semelhantes aos das representações dos exemplos5 e 6.
Também utilizam a ironia e o exagero. Há uma facilidade de o subalterno jogar com
as mesmas “cartas” daquele que o inferioriza. A ilustração 5 desvalorizou o ir até a

7  A obra Pele Negra, Máscara Branca (publicada pela primeira vez em 1952) é reconhecida pela
posição assumida por Frantz Fanon ao retratar a negação do racismo contra o negro na França,
bem como pelo seu intuito em aguçar o senso crítico sobre o racismo e refletir sobre seus impactos.
região Norte ao descaso de ver somente bichos e mato. No meme 7 isso é motivo de
orgulho, reconhece queo ambiente é composto por rica fauna e flora e reforça (mesmo
que hiperbolicamente) que o convívio com os animais faz do ser da Amazônia um
Forte. No meme8 também faz uso da hipérbole para de modo metafórico afirmar a
força contida no homem da Amazônia que deixa marcas através de um “simples”
saudação (tapinha nas costas).
Exemplo III
J

A

L

L

A
Figura 10: Então você é contra a invasão de
Propriedades?

Figura 9: Aqui em Rondônia é assim

No penúltimo meme apresentado, percebe-se que coloca uma bela índia



com a finalidade de causar inveja aos que desapreciam seu povo. A pergunta
396 “Algo contra os índios?” é feita ironicamente, pois quando contrapõe a pergunta à
• imagem da índia,prontamente se esperava que isso fosse despertar desejos em seu
interlocutor. Por isso a aposta (“Aposto que tu queria tá aqui agora!”) é lançada a
partir de uma visão em que o povo amazônico reconhece a sua cultura como fonte
de orgulho. E se a pergunta “Algo contra os índios?” induz a existência de uma
oposição a sua cultura, o meme vem prioritariamente mostrar que o menosprezo,
2 a retratação estereotipada transmitida por muitos, na verdade ocultam desejos
intensos por parte do colonizador.
0 O último meme (10) faz sua pergunta inicial (“Então você é contra invasão
de propriedade?”) indiretamente àqueles que dariam uma resposta afirmativa. A

intenção é justamente fazer uma reflexão no intuito de validar a legitimação dos
1 primeiros donos da terra. Conduz então ao texto Constitucional (1988) que aborda
os direitos aos índios em seus artigos 231 e 232 quando determinam:
8 São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, língua, cren-
ças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos
os seus bens. (p. 146)

Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para in-


gressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Minis-
tério Público em todos os atos do processo. (p. 147)

Sabe-se que infelizmente mesmo passados  três décadas ainda não foram
concluídas as demarcações, e os conflitos fundiários entre índios e não índios
permanecem exaltados. Falta comoção nacional frente aos crimes que envolvem
os seus direitos a terra. Permanece a (re)produção de uma visão eurocêntrica da
subalternidade do índio inclusive com relação ao seu espaço territorial.
Desse modo a crítica decolonialse faz relevante porque procura recuperar
a voz subalterna contra as narrativas do eurocentrismo. A pergunta trazida no
livro de Spivak“Pode o subalterno falar?” nos induziu a pensar na ambiguidade dos
sentidos da palavra pode (Sentido 1.: O subalterno tem o poder, a liberdade pra
J falar? / Sentido 2.: O subalterno consegue falar? Tem habilidades pra discorrer
seus pensamentos?) e igualmente nos faz refletir que os memes fortalecem
A ambos os sentidos. Visto sua característica da anonímia (ausência de autoria), o
subalterno pode utilizar o memes que expressam seu grito de liberdade com uma
L maior segurança de não ser reprimido/torturado por proclamar suas angústias e
inquietações. Pode ainda a partir dos memes representar os valores pessoais e/ou

grupais reforçando as relações interpessoais na luta por um ideal comum.
L
A evolução da sociedade está marcada pelas constantes inovações
tecnológicas que exigem mentes flexíveis e dinâmicas no tratamento com o Outro,
A que respeitem as dimensõessócio-históricas e culturais. A partir desta visão este
artigo procurou analisar os memes apresentados e colocá-los no embate cultural
da contemporaneidade, como um instrumento de interação comunicacional capaz
de corroborar na luta em romper as barreiras na desconstrução de estereótipos
ao povo indígena, ribeirinho, seringueiro, quilombola, entre tantos outros que
• compõem o multiculturalismo da Amazônia.
397 Considerações finais
• Considerando as inúmeras leituras e releituras realizadas sobre as
teorizações e desdobramentos do pensamento decolonial, o presente trabalho
pretendeu apresentar a perspectiva de desconstrução de ideias hegemônicas que
inferiorizam os povos amazônicos.
A partir da exemplificação dos memes da internet reafirmou-se que
2 posturas de marginalização à diferença do Outro e a persistência do desrespeito
ao multiculturalismo amazônico são constantes. Mas em contrapartida, os memes
0 ressurgem como ferramenta para vencer a subalternidade, já que o mesmo se
apresenta como uma unidade de transmissão de cultura e informação que diante
1 da instantaneidade proporcionada pela cibercultura, contribui para romper
fronteiras e hierarquias instituindo um processo de “des-re-territorializações”

diante do compartilhamento de valores culturais na luta pela negação da opressão
8 colonizadora.
Referências
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e Gláucia Renate Goncalves. 2ª. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2013.
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DF: Senado Federal: 2008. 464 p.
CHAMPANGNATTE, DostoiewskiMariatt de Oliveira.; CAVALCANTI, Marcus Alexandre de
Pádua. In: Cibercultura – perspectivas conceituais, abordagens alternativas de comu-
nicação e movimentos sociais. Revista de Estudos da Comunicação. Curitiba, v. 16, n.
41, p. 312-326, set. /dez. 2015. ISNN 1518-9775.
DAWKINS, Richard. O Gene Egoísta. Trad. Geraldo Florsheim, Belo Horizonte: Editora
Itatiaia; São Paulo: Universidade da Universidade de São Paulo, 1978.
FANON, Frantz. Pele negra máscaras brancas. Tradução de Renato Silveira. Salvador:
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GONDIM, Neide. A Invenção da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10ª ed. Rio de Janeiro: DP&A.
J SAID, Edward W. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. Tradução Tomás
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A SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart
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L TEIXEIRA, Jerônimo. O DNA das ideias. Publicado em Revista eletrônica Super Inte-
ressante 31/08/2003. Disponível em: https://super.abril.com.br/ciencia/o-dna-das-i-
deias/. Acesso em 28/05/2018.
L
Fonte das Figuras:

Figuras 1, 2, 3 e 4:
A
https://noamazonaseassim.com.br/memes-voces-so-sabem-comer-peixe-e-descascar-tu-
cuma/
Figura 5: http://geradormemes.com/meme/k4uiq2
Figura 6:http://www.naoentreaki.com.br/3667979-bem-vindo.htm
• Figura 7:http://fantbolado.blogspot.com/2012/03/em-rondonia-o-barato-e-loko-porque.
html
398
Figura 8:
• https://www.labeurb.unicamp.br/rua/web/index.php?r=paginasartigo/viewpagina&nu-
meroPagina=1&artigo_id=92
Figura 9:
https://www.labeurb.unicamp.br/rua/web/index.php?r=paginasartigo/viewpagina&nu-
meroPagina=1&artigo_id=92
2 Figura 10:https://blogdaines.files.wordpress.com/2014/10/tainc3a1.jpg

0

1

8

J

A

L NARRATIVAS DEL RETORNO POSGUERRA EN PERÚ Y CONGO:
LOS TEXTOS DE JULIÁN PÉREZ HUARANCA Y DE CHARLES
L DJUNGU-SIMBA

A Gilbert Shang Ndi (UNIVERSIDAD DE LOS ANDES)
RESUMEN: Esta ponencia examina las complejidades de los viajes del retorno alos
espacios trastocados por la violencia en las novelas Criba de JuliánPérezHuarancca
y Las Nubes encima de Bukavau: Cuadernos de un retorno a la tierra natal del
autor congoleño Charles Djungu-Simba. Basados en dos contextos distintos, estos
• textos constituyen entradas múltiples y perspicaces en las memorias de las guerras
399 civiles en Perú(1980-2000) e en Congo (1996-2003) respectivamente y en la relación
problemática e ambigua de los sobrevivientes de guerras civiles con sus espacios
• natales. A partir del concepto de “lieux de mémoire” desarrollado por Pierre Nora, la
ponencia analiza la poética/política del espacio y de memoria al nivel individual y al
nivel colectivo, indagando en las particularidades, las matices y las contradicciones
que se producen en contextos pos-guerra en el Perú andino e en el este de Congo.
Planteamos que las narrativas literarias constituyen intervenciones subversivas en
2 las conmemoracionesoficiales de la historia violenta, obligándoles a incorporar las
experiencias marginales como pre-requisitos claves para la construcción de una
0 sociedad justa en la posguerra. En esta perspectiva, cabe subrayar también en esta
investigación las convergencias y las divergenciasen las experiencias/trayectorias
1 poscoloniales de guerra en diferentes contextos como Perú (América Latina) y Congo
(África).
8 Palabras claves: Memoria. Perú. Congo. espacio. violencia.
Introducción
La memoria es ligada a los sitios, mientras que la historia es ligada a los
acontecimientos.

La violencia pone en cuestión la cohesión nacional, la identidad del


grupo e al sentido existencial del ser colectivo. Para que las naciones tocadas
por las crisis de la violencia salgan adelante, se necesita plantear estrategias
nacionales y locales con respecto a las experiencias pasadas de la violencia. Esta
problemática no es menos fundamental para los individuos quienes, de cualquier
manera, han sido afectados por el azote de la violencia. Sobre el asunto del
entrecruzamiento entre recuerdos individuales y memorias colectivas, el sociólogo
Mauricio Halbwachs plantea lo siguiente en su texto influyente en su texto
Memoria colectiva: “No somos acostumbrados a hablar, aun metafóricamente, de
la ‘memoria del grupo’. Aquella facultad, me parece, no puede existir y sobrevivir
sino en la medida en que está ligada al cuerpo y a la mente del individuo” (1992,
p.50). En este sentido, las narrativas pos-guerras constituyen un sitio privilegiado
J de las relaciones complejas entre experiencias intimas, espacialidades reales o
imaginadas, relaciones interpersonales e historias nacionales/colectivas. El deseo
o, mejor dicho, la necesidad de mirar por atrás, los prismas a través las cuales el
A
pasado esta visionado y los esquemas narrativos según las cuales esta re-inscrito
en la realidad posguerra constituyen dimensiones cruciales de la manera en que
L sobrevivientes individuales y colectividades nacionales abordan el pasado violento
e imaginan el futuro.
L En esta perspectiva, Judith Herman plantea que “la sabiduría popular
es llena de fantasmas que rehúsan de descansarse en sus tumbas hasta que sus
A historias sean contadas... El hecho de recordar y de contar la verdad sobre los
sucesos terribles es uno de los prerrequisitos para la restauración del orden social
y la rehabilitación de los victimas individuales” (2015, p.1). Con respecto a los
espacios del regreso, este artículo se da la tarea de examinar la intersección de
las narrativas individuales y memorias colectivas en el periodo subsiguiente a los
• conflictos violentos más allá de los principios globalizantes de la historia oficial
400 (nacional) que en su mayoría oculta las voces individuales y las particularidades
de las experiencias individuales. Desde esta perspectiva, les recuerdos de los
• sobrevivientes en espacios específicos de la violencia son prerrequisitos cruciales
en la imperativa de la construcción de una nación. En su texto sobre los lieux de
memoire, Pierre Nora sustenta que:
La memoria es ciega frente al grupo que liga…La memoria es por naturaleza
múltiple, pero al mismo tiempo específica, colectiva, plural e individual. La
2 historia, a contrario, pertenece a todos y a nadie, lo que explica su preten-
sión a una autoridad universal. La memoria se ancla en lo concreto, en los
espacios, en los gestos, en las imágenes y los obyectos. La historia se liga
0 estrictamente a las continuidades temporales, a las progresiones y a las
relaciones con las cosas. La memoria es absoluta, mientras que la historia
1 solo puede concebir lo relativo. (1987, p.9)
De esta manera, enfocarse en la memoria y los recuerdos, en lugar de
8 las narrativas históricas, pone el énfasis en la peculiaridad de las experiencias
personales y reconoce el hecho de que la memoria colectiva es anclada antes todo en
las mentes y los cuerpos de los individuos y en lugares específicos. Al respecto, este
articulo busca a responder a una seria de cuestiones: ¿Como relatan los autores el
proceso del regreso en el espacio e en el tiempo a los antiguos lugares de violencia?
¿De qué manera algunos sitios desencadenan recuerdos del dolor y redefinen las
identidades individuales y colectivas? ¿Cuáles son las contradicciones que surgen
en el periodo subsiguiente a la guerra?
Los textos que constituyen la base de nuestro análisis comparativo son
Criba del autor peruano Julián Pérez Huarancca y Nubes sobre Bukavu: Cuadernos
de un retorno a la tierra nativa del congoleño Charles Djungu-Simba.
¿Porque Congo y Perú?

Nos parece importante justificar la escogencia de Congo y Perú para este


trabajo comparativo de las memorias de guerra. Cabe subrayar que de la misma
manera en que Congo se ha vuelto el epicentro de las heridas abiertas del (neo)
colonialismo y sus consecuencias en África, la conquista española y portuguesa
J
de partes de América Latina ha producido espacios parecidos cuyas herencias
coloniales quedan demasiado visibles y memorables y que continúan de constituir
A terrenos fértiles para los conflictos en el periodo poscolonial. En esta perspectiva,
Ricardo D. Salvatore plantea que “los altiplanos de Bolivia, Perú, and Ecuador”
L aun constituyen “recuerdos tristes que han sido los talleres experimentales del
colonialismo español” (2010, p.341).
L Regreso para Ayacucho: entre la nostalgia y la perdida
Ayacucho, “el rincón de la muerte” en quechua, constituye un espacio
A particular en la memoria político-cultural peruana con respecto a la violencia
de los 1980s. Dada su profunda herencia cultural, Ayacucho pertenece al Perú
profundo, parte de los altiplanos andinos que, a pesar de su modernidad, conserva
rasgos de sus tradiciones en diversos ámbitos, en comparación con Lima, sitio de
la oligarquía y cultura criolla. Dada su centralidad en el conflicto que arrasó al país
• de 1980 a 2000, Ayacucho se ha vuelto el espacio recurrente para las narrativas
401
del retorno en la literatura peruana de la posguerra.
Julián Pérez es uno de los autores quienes representan la complejidad y

los desafíos de la identidad en el Ayacucho antes, durante y después de la guerra,
sobre todo entre los jóvenes. Evangelina, el personaje central en uno de los tres
relatos que constituyen la novela pertenecía a estos jóvenes cuyas vidas fueron
trastocadas por la violencia. Su novio, Manuel y su hermano mayor Satuco perdieron
su vida luchando al lado de las fuerzas senderistas en su sublevación contra el
2 gobierno central. Años después, muere su madre, víctima de la desesperanza
causada por la desaparición de su único hijo. El viaje de retorno de Evangelina
0 para Ayacucho después de su exilio a Lima es así cargado de emociones mixtas
y de recuerdos amargos de la ciudad de su nacimiento y de su crecimiento. Al
1 principio, alberga la ilusión que va encontrar una suerte de conforte, pero lo que
le acoge es la soledad y la sofocación emocional: “no pasara sino algunos minutos
8 antes de que se observe a plenitud las luces, sienta los olores, escuche los sonidos
y huela los aromas de Huamanga (Criba, 18). A pesar del hecho de que su llegada
en esta ciudad se presenta en el recuerdo de la protagonista con mucho idealismo,
su relación con esta ciudad se revela ambigua. La casa familiar, un espacio que en
antiguamente representaba la un anclado estable le acoge con imágenes de muerte
que, en el transcurso de tiempo no suelen desaparecer e siguen siendo vivaces en
su recuerdo:
Estoy aquí una vez más, nuevamente en esta vivienda […] donde mi adoles-
cencia y mi primera juventud las pase dichosa, junto a mi madre y mi her-
mano […] Estoy en la tierra de los muertos, […] El pasado pesa y perturba…
(Criba, p. 33-4)
La materialidad de la casa familiar se vuelve una presencia que ronda
por sus múltiples ausencias. A pesar del hecho de que la casa se queda intacta y
le sirve de alojamiento cada vez que regresa para Ayacucho, la presencia humana
que lo habitaba es irrecuperable. La situación de Evangelina es un ejemplo de la
observación de Jonathan Boutler quien asevera que “el desastre produce algunos
cambios psíquicos dentro del yo, en la interioridad del sujeto, hasta el punto donde
el sujeto se da cuenta de que se ha vuelto solo un rastro de lo que era, una carbonilla
J que marca el pasaje de un desastre” (2011, p.9). La dimensión comunitaria del
sentido de perdida en el caso peruano se lee claramente a través del informe de la
comisión de verdad y de reconciliación que plantea que:
A
en las victimas de la violencia hay mucho que se ha roto, no solo en lo ma-
terial, en la destrucción de sus viviendas o en la perdida de los bienes que
L poseían, sino fundamentalmente en la esperanza frente al futuro, en la in-
consolables e irreparable pérdida de alguien cercano y querido, de alguien
L que era compañía y con quien se contaba en el futuro (Informe IX p.103).

El viaje de retorno convierte a la protagonista un sujeto desarticulado en


A su existencia. Un instante importante de su relato es cuando acompaña su madre
aun en vida a la Pampas de Quinua donde se encuentra la estatua de la batalla
de independencia de Perú en busca de su hermano desaparecido. Su madre está
convencida de que su hijo hubiera perdido su vida en aquel lugar, que fue el teatro
de unos de los enfrentamientos más mortíferos entre las fuerzas armadas peruanas
• y los senderistas. La referencia al sitio del monumento no es gratuita. Este símbolo
es inscrito desde luego en el texto de Julián Pérez como un símbolo ambiguo. Según
402
los planteamientos de Pierre Nora, las Pampas de Quinua es un verdadero lieux de
• memoire. Marca el gesto corajoso de los soldados patriotas que fundaron la nación
y así pusieron fin al imperio español no solamente en Perú, pero en toda América
Latina. Esta violencia de estirpe liberatoria dio luz a uno de los lugares de memoria
más importantes en la historia nacional peruana. Al mismo tiempo el nacimiento
de esta nueva nación no constituye un acto salvador para todos peruanos. Como
2 es el caso en muchos espacios postcoloniales, los beneficios de la independencia
fueron confiscados por un pequeño grupo mientras que la mayoría de la población,
0 sobretodo de estirpe indígena y mestiza, quedaba marginalizada. El estallido de la
guerra senderista se explica en parte por esta paradoja. Para la familia Melgar, el
1 sitio deviene un lugar de la perdida, ocultando la historia de la victoria que suele
representar el sitio en el discurso oficial.

La subversión de la política de conmemoración en Perú en la novela de
8
Julián Pérez concuerda con la idea planteada por Nora con respecto a los sitios
de memoria cuando él dice “Si las memorias que estos sitios encubren deberían
ser desencadenadas, estos sitios se volvieron inútiles, si la historia no invadió la
memoria, deformándola y transformándola, penetrándola y petrificándola, no sería
necesarios los lugares de memorias” (1987, p.12). La conmemoración de sitios de
memoria se vuelve un pretexto ideológico para ocultar las injusticias que pueden
producir los momentos supuestamente redentores en la historia. Así entra la
conmemoración en el ámbito de lo ritual, vacío de la voluntad política de construir
una sociedad inclusiva basada en las ideas que inspiraron los soldados patriotas
en Quinua.
La incapacidad de encontrar los cuerpos de los desaparecidos resulta
a muerte de la madre de la protagonista, un aspecto que apareció previamente
en la novela Retablo, del mismo autor. Con respecto a este tema tan recurrente
en las novelas posguerra, Arianna Ceccioni afirma que, durante los años de la
guerra, la crueldad de los asesinatos, la prohibición de las sepulturas, han causado
J tremendas tormentas en la vida cuotidiana de muchos habitantes cuyos muertos
nunca van a encontrar (DEL PINO 2013, 168). En lo siguiente, discuta el recurso al
A terreno onírico por los sobrevivientes para hacer frente a los recuerdos agonizante
de la perdida:
L la falta del entierro es, de acuerdo con las concepciones culturales sobre la
muerte, un gran obstáculo para el alma, porque le impide distanciarse del
mundo de los vivos y le condena a penar eternamente […] Algunas veces es
L a través de los sueños que las almas dan indicaciones sobre el lugar donde
se encuentran… (DEL PINO 2013, p.173)

A El espacio de Ayacucho conlleva recuerdos de amigos desparecidos por


la violencia. Los lugares que visita en Ayacucho le hace recordar los días en que
la vida era llena de esperanza y que todo esto fue anulado por la guerra civil.
Ella re-visualiza la y recuerda escenas de su infancia con imágenes de sus pares,
acordándoles la vida a través de su imaginación:
• Como no acodarme de Obdulia, aquella muchacha de ojos zarcos que desa-
403 pareció; aquella otra: Amalia, la de trenzas tan largas, como la mía enton-
ces, que le llegaba hasta las posaderas, perdida también entre los espuma-
• rajos del gran rio Bermejo que eclosiono en la década del 80. (Criba, p.86)

La harmonía entre el sujeto e el espacio se ve interrumpida por los


recuerdos de perdida y la protagonista solo puede reconstituir las vidas ausentes a
través del ejercicio amargo de la memoria. Así, uno puede decir que la percepción
de Evangelina del espacio de Ayacucho es la de una nostalgia interrumpida, una
2
harmonía perturbada. Sus recuerdos combinan la colisión de las memorias de
infancia y las desapariciones violentas de jóvenes y la cosificación sus vidas como
0 nada más que las cifras en las estadísticas de la prensa. A través de la memoria, trata
de recordarse de las víctimas y de humanizarles, de acordarles la individualidad en
1 un contexto dispuesto a socavar sus memorias a razón de la experiencia política.
La guerra, el exilio y el regreso a Bukavu, Congo
8 El texto de Charles Djungu-Simba nos ofrece un retrato sucinto de las
condiciones del exilio y el eventual regreso para la tierra nativa en una sociedad

diezmada por una sucesión de conflictos civiles letales. El ojo interno del protagonista
durante su viaje de retorno convierte al espacio físico en un palimpsesto memorial,
explorando los recuerdos imbricados de la violencia que perturba la harmonía en
un paisaje representado por lo demás en términos idílicos.
El subtítulo del texto “Nubes encima de Bukavu” hace alusión al famoso
poemario de Aimé Césaire – Cuaderno de un retorno a la tierra nativa. Este texto
fundamental del poeta martiniqués, pionero de la Negritud muestra la complejidad
de la relación entre el sujeto postcolonial y su triera nativa. De la misma manera
que Césaire, el énfasis de este viaje es mucho más en lo imaginario que en lo físico.
De la misma manera que Aimé Césaire queda el “otro” en una Francia sumamente
racista a pesar de las pretensiones de la política colonial de asimilación, la condición
del ser negro no deja a Djungu-Simba la posibilidad de obtener la autorización
necesaria para ensenar el francés en ninguna Universidad belga, aunque tiene
un doctorado en filosofía y letras obtenido en el mismo país. Frente a la negación
J de su humanidad en sus países de acogida, ambos autores resuelvan abrazar su
identidad africana con todos sus atributos, sus fortalezas y sus debilidades, como
su destino inalienable y el lugar de su elocución en el mundo. Para Césaire, África
A
es el centro de su existencia, la base de su autoestima y el punto de partida de
su relación con los demás. Esta dimensión existencialista también es evidente en
L el texto de Charles Djungu-Simba. La dimensión incierta de su viaje de retorno
es encarnada en la metáfora de las nubes que planean encima de Bukavu de la
L posguerra. Djungu-Simba se preocupa el destino colectivo de Congo como país, sus
memorias y su posteridad. Perplejo por la paradoja intrínseca de una nación tan
A rica pero ruinada por la guerra y la avaricia, el protagonista comienza su narrativa
con la expresión de una rabia profunda de la frustración: “Estoy furioso por tener
que sentirme como un extranjero en una ciudad donde pasé la grande parte de mi
vida.”
Una dimensión convergente entre Julián Pérez y Charles Djungu-Simba
• es la inscripción en sus obras de la crítica de lo que caracterizo en mis análisis
404 como la geografía poscolonial de la simpatía. La margen entre la ciudad capital
y el resto del país explica porque, aun durante periodos en que la guerra estaba
• arrasando al país, el gobierno central se quedaba enredado en conflictos y en
actividades corruptas, totalmente indiferente a la situación difícil en que padecían
las poblaciones de la parte este del país. Filip Reyntjens afirma que:
‘el Kivu no era su asunto’ según la clase política de Kinshasa…En esta ciu-
dad la vida seguía su curso normal, aun después del estallido de la guerra
2 en el este del país […] La nave quebrado está hundiendo, pero la orquesta
seguía con su música. (2009, p.131)

0 La discrepancia entre Kinshasa y Bukavu puede ser comparada a aquella


entre Lima e Ayacucho en el contexto peruano. De este modo, las connotaciones
1 de la ciudadanía no son las mismas en las dos esferas: “La falta de confianza entre
Ayacucho y el Perú oficial es mutual y esto muestra el déficit de la credibilidad del
8 estado en esa región” (DEGREGORI 2014, p.71). Lima, el sitio de la supremacía y
la oligarquía criolla, entretiene una influencia colonizadora sobre las otras partes
del país en una relación que se basa en la explotación y la depredación (STERN
et al 2005, p.270). En realidad, la emigración desde el interior andino hacia Lima
constituye una forma del exilio interno para muchos personajes en las obras de
Julián Pérez Huarancca.
El Retorno, la polifonía y espacios de guerra
En su relato Charles Djungu-Simba vacila entre la expresión prosaica
propia al periodismo y la poesía para expresar su sensibilidad afectiva a su ámbito
en su trayectoria de retorno. A través de versos sumamente figurativos, expresa
sus sentimientos, emociones y su estado de ánimo cuando se enfrenta a su ciudad
nativa. Si sus interacciones con sus compatriotas se escriben en una forma más
o menos directa, su percepción afectiva de los rasgos físicos del ámbito natural
se transcribe en a través de una seria de poemas que intervienen en un texto
predominantemente prosaico. La ciudad nativa no es solo la gente, si no que incluye
también los espacios físicos, los ríos, las montañas, los cielos, etc. El paisaje
natural interpela al protagonista en múltiples voces. La naturaleza no es pasiva,
J sino que es una entidad con una forma de agencia, dado que ha sido testigo de la
historia de Congo y así el narrador le carga de algunas cualidades animas. Así, a
través de los poemas, el narrador relata la historia de su comunidad como lo vive
A
en su experiencia subjetiva. Entra en un modo confesional y confidencial con los
elementos de la naturaleza. A su llegada en Bukavu, expresa la ambigüedad de su
L relación con su tierra nativa:
Aquí estoy, abrazando tus lados salaces, Congo!
L Emborrachado por el aroma de sus riquezas…
En este país de los caníbales…
A Congo Congo Congo para dónde vas?
Con mis pasos en los de los aventurados antepasados
Hazme capaz de rastrear su fe persistente
Nzige Sefou Tippo-Tip Roumalize y Gongo Leteta
Y como ellos, enfrentarme al apetito de los ogros y Titanes
• Congo! (Nubes, p.62)
405
El poema representa una topografía que inspira la esperanza pero que ha
• sido sujeto de todos tipos del saqueo y de la violencia. El personaje poético entra en
una suerte de trance, galvanizado por la energía que inspira su tierra nativa. Sin
embargo, el poema no se cansa de evocar imágenes ligadas a la historia trágica de
Congo. El territorio esta personificado e esta ambiguamente comparado a una axila
que produce un olor especifico. Pero este olor no supera la belleza profunda del
2 país que todos deben contribuir a revelar. Este tipo de soliloquio del protagonista
con los elementos de la naturaleza está también presente en Criba (Criba, p.15).
0 Los elementos de la naturaleza son representados de manera ambivalente. De la
misma manera que goza de su belleza, también le hacen recordar su perdida,
exacerbando su actual soledad.
1
Esta ambivalencia de los espacios de retorno es evidente en los textos
de Djungu-Simba. De la misma manera que elogia al espacio congoleño, refiere a
8 esto mismo espacio como la tierra del canibalismo. La referencia a la antropofagia
se inscribe en un sentido ambiguo, tal vez con respecto a las alegaciones de
canibalismo hacia las fuerzas de movimiento guerrillero MLC encabezado por Jean
Pierre Bemba. Sin embargo, esta referencia puede ser dirigida a los discursos
colonialistas que caracterizo Congo como el Corazón de las tinieblas, poblado por
tribus primitivas que necesitaba la misión civilizadora de los europeos. De todas
maneras, el protagonista está determinado a derivar su energía de este espacio para
darle sentido a su existencia. Invoca una seria de figuras legendarias de su país,
pidiéndoles que le acuerdan el sustento mágico para enfrentarse a la conjunción
de fuerzas que siempre están listas para destrozar su tierra nativa. De este modo,
Charles Djungu-Simba espera animar al imaginario de Congo, un territorio que
casi nunca ha atraído representaciones favorables en los medios de información
y en la cultura popular (Dunn 2003, 5). A través de este poema, el autor intenta
forjar el mito regenerador de un Congo capaz de actuar y no solo parecer como
víctima de intereses tan endógenos que foranos. Otros poemas en este texto son aún
más cáusticos en su castigación de la cultura de avaricia en Congo posguerra con
J respecto al tratamiento de los cuerpos de los muertos y los sitios donde murieron:
Me dicen que Maloumba

A La tierra donde están entierrado nuestros muertos


Se ha convertido ahora en una mina al aire libre… (Nuages, p.79)

L En este poema, se entera de que una masacre ha sucedido una localidad
que se llama Maloumba. Sin embargo, este mismo espacio a dado lugar a una
L carrera desenfrenado para el enriquecimiento a través de la minería artesanal de
coltan, uno de los minerales que abundan en Congo. El personaje poético expresa
su rabia y su agonía frente a la falta de un proceso de duelo digno en la memoria
A
de los fallecidos. La guerra y sus consecuencias han llevado a una erosión de los
valores culturales en la sociedad y solo se entiende la lógica del materialismo. Este
poema nos ofrece una suerte de arqueología de memorias, buscando la restitución
de los espacios sagrados donde descansan los cuerpos de los muertos. Este motivo
se deja ver en un otro poema, donde el viaje del retorno del protagonista adquiere

el perfil de una tentativa para honrar a las víctimas de la guerra en la comunidad
406 de Bukavu. El protagonista saluda a la memoria de todas las víctimas inocentes de
• la violencia:
Mire esta larga historia de la bancarrota…
Mire como me inclino para saludar a los desaparecidos
Las faldas perforadas y los sitios corruptos. (Nuages, p.105)

A través de la metonimia de faldas perforadas, esta estrofa muestra que


2 la mayoría de la victimas de Guerra son mujeres. La mayor agonía no se encuentra
en el hecho de la muerte misma sino en la manera en que se muere. Las mujeres
0 no son solo sometidas a diversos tipos de acosos como botines de guerra, pero su
explotación sexual por hombres se considera una forma de punición por procuración
1 de sus maridos o sus padres. Es por causa de esta dimensión sadomasoquista de
la violencia hacia las mujeres que doctores benévolos como el Dr. Mukwege han
8 ganado la reputación como reparadores de mujeres (Nuages, p.29). La violación
física de las mujeres constituye una de las vertientes más inhumanas de la guerra
congoleña y la herencia psicológica que ha dejado atrás a una generación de
victimas femeninas queda aún inmensurable.
Con la tarea de reescribir estos espacios, Djungu-Simba cumple un
archivo narrativo de la espacialidad de trauma. En un contexto donde muchos sitios
de trauma han sido abandonados por las autoridades gobernantes e se han vuelto
minerías, el autor literario se compromete a un proceso altruista de conmemoración
textual, a lo que Walter Benjamín llama el acto de excavar, excavando el pasado
para enriquecer la memoria colectiva y alistar el camino para la curación.
Las catástrofes de Congo se pueden inscribir en una temporalidad
“longue durée”, imaginadas a través de la profunda percepción de espacio que
constituye la ciudad nativa del protagonista. De manera general, se puede
afirmar que mientras que lamenta las atrocidades de la guerra y la destitución del
periodo posguerra, Djungu-Simba trata de restaurar la voz y la subjetividad a los
congoleños, de acordarles la capacidad de actuar en este espacio y de contribuir
así al renacimiento de su país. Esta manera de narrar puede oponerse a los relatos
J de viaje coloniales que consideran territorios coloniales y su gente no más que
materias primeras para el beneficio de Europa. En el texto, Imperial eyes: travel
writings and transculturation, Mary Louise Pratt habla de las practicas visuales de
A
los exploradores europeos en los espacios coloniales: “El ojo europeo que pretende
mejorar produce los hábitats de subsistencia como espacios vacíos que solo tienen
L sentido en términos de un futuro capitalista y de su potencial para producir un
excedente comercializable” (1992, p.61). En el caso congoleño, el epitome de esta
L práctica visual colonial es Henry Morton Stanley quien imagina al interior de
África como un espacio vacío en la espera del hombre blanco para desarrollarlo.
A Dungu-Simba de-construye esta mirada y en su relato de viaje, acuerda al espacio
congoleño y sus súbditos con la capacidad de actuar, de restaurar la dignidad del
espacio con resistencia.
Conclusión
La representación de espacios destrozados por la violencia se ubica entre
• la utopía y la perdida, redefiniendo la relación que entretiene el sujeto con el ámbito
407 social e físico de su tierra nativa. El Ayacucho de Julián Pérez es experimentado
• por sus personajes como un espacio afectivo, pero también un espacio donde la
sangre derramada aun persigue a sus habitantes retornados. Sin embargo, a través
de la narrativa literaria, el autor trata de recordarse de los desaparecidos y de re-
articular sus trayectorias de una manera que contraria a la demonización en los
discursos derechistas de los jóvenes que combatieron al lado de la guerrilla. De otro
2 lado, la voz poética de Djungu-Simba evoca la fertilidad de Congo del este como un
espacio de abundancia en vida humana e en recursos naturales que se encuentra
destruido por causa de la avaricia humana y la guerra. De un lugar antiguamente
0 lleno de vida, Bukavu se ha vuelto “Bu’nkafu”, un lugar “donde vienen a pastar y a
cagar las vacas. Un montón mugriento” (Biko, p.49). Sin embargo, lo que expresa
1 esta metáfora, en un espíritu de la interpretación Bakhtiniana de las metáforas de
excremento y de orina, es la posibilidad de la renovación, de renacimiento: “Las
8 imágenes de caca y de orina son ambivalentes, como son todas las imágenes de
la parte intimas del cuerpo; envilecen, destruyen, regeneran y renuevan al mismo
tiempo. Constituyen una bendición y una humillación al mismo tiempo. (BAKHTIN
1983, p.151). De hecho, es por esta razón, a través del uso de memorias de la
guerra, que las narrativas de retorno constituyen en sí mismas las pre-condiciones
éticas para la regeneración de lugares marcados por la guerra como Bukavu e
Ayacucho, el rincón de la muerte, para que devengan espacios del florecimiento de
comunidades humanas dignas y de una ciudadanía equitativa.
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8

J

A

L CURRÍCULO NA FRONTEIRA: REFLEÇÕES SOBRE O CURRÍCULO
DE MATEMÁTICA NAS CIDADES DE GUAJARÁ-MIRIM
L (RONDÔNIA-BRASIL) E GUAYARAMERÍN (BENI-BOLÍVIA)

A Gislaina Rayana Freitas dos Santos (IFAM)
André Pereira Lopes (IFAM)
RESUMO: Este artigo apresenta os resultados de uma investigação que buscou
compreender a relação do currículo de matemática e as práticas curriculares da
disciplina de matemática e os métodos utilizados pelo professor para a promoção
• do multiculturalismo que incide na prática da educação boliviana e brasileira.
409 Tomando como base os Parâmetros curriculares de matemática 1998; a Lei nº 70
da Bolívia. A pesquisa se caracteriza por ser um estudo descritivo-exploratório,
• desenvolvida com diálogo e debate no Foro Debate Pedagógico Internacional
“Calidad Educativa”, realizado na cidade de Guayaramerín na Bolívia e Guajará-
Mirim no Brasil, bem como das relações pedagógicas dos educadores brasileiros e
bolivianos. Os estudos curriculares contribuíram para a transmissão do conteúdo
da disciplina de Matemática no contexto multicultural na sala de aula, melhorando
2 o aprendizado na vertente qualitativa da educação matemática.
Palavra-chave: Educação Matemática. Fronteira. Currículo. Multiculturalismo.
0
Introdução

Na atualidade o diálogo da estruturação curricular mobiliza as
1 comunidades, no sentido da importância que o movimento curricular representa
sobre a vida acadêmica dos estudantes, falar em currículo é falar também, na
8 vida do aluno e da escola em constante e em dinâmica de ação, nessa perspectiva
educadores, educandos e comunidade escolar no espaço escolar e fora dele,
constroem e formam, por meio da valorização e das ações, o currículos mais
adequado ao desempenho educacional. O currículo é uma construção social,
cultural e escolar, que segundo Canen:
“A questão do múltiplo, do plural, do diverso, bem como das discriminações
a ela associados, passam a exigir respostas, no caso da educação, que pre-
parem futuras gerações para lidar com sociedades cada vez mais plurais e
desiguais. Cobra-se da educação e, mais especificamente do currículo, gran-
de parte daquelas que são percebidas como medidas para a formação de
cidadãos abertos, tolerantes e democráticos” (CANEN, 2002, p.175 e 176).

Discutir a formação do currículo escolar significa refletir sobre a


importância para a formação do sujeito sócio-educacional, e no contexto da
matemática sobre como é organizado o currículo de matemática na educação
básica, vários estudos visam esta e outras reflexões a cerca desta temática como
ocorre com os estudos de “Matemática na estruturação curricular e formação de
J professores”1, com isso, dialogar este tema no contexto atual, buscará tornar o
alunado com um sujeito preparado para lidar com diferentes situações, a fim de
A posteriormente constituir-se como um cidadão pleno nos gozos de uma sociedade.
Como podemos observar a matemática permeia por todas as áreas do
L conhecimento que serão utilizados na vida cotidiana, mas o ensino da matemática
nas escolas não devem ser distanciadas dos seus objetivos principais, um deles
L está a construção da cidadania, o desenvolvimento cognitivo, conforme esclarece
a LDB 9394/96, promover a educação matemática ao ponto de descodificar a

maneira mecânica, no qual condicionar os alunos a receber informações pronta,
A não promove o pleno desenvolvimento de suas habilidade na capacidade de
resolver situações problemas, quando o professor oportuniza busca desenvolver
uma aprendizagem significativa está promovendo no seu alunado uma formação
consistente para a cidadania. Nessa perspectiva o professor é promotor de política
de interação social, para que fortaleçam a diversidade científica, social e cultural
• (Lei 70/Bolívia). A promoção ocorre por meio da prática pedagógica como agente
410 do ente social o que estabelece a relação entre teoria–prática. Moreira (1994) o lado
• teórico é representado por um conjunto de ideias construído e sistematizado como
teorias pedagógicas, que são subsídios para a prática pedagógica. Nesse contexto
que o currículo esbanja seu papel primordial nesta construção pedagógica, por
isso, repensar no currículo como “uma construção e seleção de conhecimentos
e práticas produzidas em contextos concretos e em dinâmica sociais, políticas e
culturais, intelectuais e pedagógicas” Gomes (2007, p. 57). De certo os currículos
2
são orientados pela dinâmica da sociedade que os compõem, como também, das
sociedades que estão ao seu redor, nessa perspectiva o currículo propõe um elo de
0 interação entre as cidades de Guajará-Mirim e Gujayara-Merín.
Com isso, segundo Sacristán (2000) ao definimos o currículo estamos
1 desenvolvendo a concretização da escola e a forma partícula do modo de organizar
as práticas educativas. Como também, de compreender o ensino e a história da
8 cultura escolar, na qual estruturam a atividade educativa no âmbito do fenômeno
sociocultural, sua substancia resulta de uma seleção de conteúdos culturais
considerados propícios a uma difusão institucionalmente organizada. Nesse
contexto analisar os currículos de matemática é constituir e manter um ambiente
de diálogo, debate e comunicação sobre o estado atual e desenvolvimento recente
da investigação na área de Educação Matemática em termos da organização e do
desenvolvimento curricular na comparação entre Brasil e Bolívia.
Dessa forma, a metodologia torna-se uma mola propulsora para que

1  Programa de Estudos Pós-Graduação em Educação Matemática da PUC/SP


haja aprendizagem satisfatória, as aulas precisam “ter sabor”, precisam despertar
a curiosidade e ter significado para o educando, sendo assim, este projeto visa
conhecer as aulas e, como as práticas pedagógicas estão sendo desenvolvidas pelos
educadores. “A coisa mais importante que um professor pode almejar é estimular
os alunos a se aplicarem ao estudo. Alguns profissionais conseguem esse feito por
meio de orientação e encorajamento, ao passo que outros se valem do medo e da
intimidação”. (MALI, 2013, pág.13)
J É essa ótica de mudança de comportamento perceptivo inovador que a
pesquisa buscou desenvolver sua reflexões, a fim de buscar resposta de maneira a
A analisar e diagnosticar esses desafios na premissa da comparação com a diversidade
de oralidade de Brasil e Bolívia.
L Teoria – Método - Resultados
Educação brasileira e boliviana
L A Educação matemática vem tomando espaço no sentido de unir as
fronteiras com a criação da Federação Ibero-americana de Sociedade de Educação
A Matemática (Fisem) que agrega as sociedades brasileira, a Associação Nacional
de professores de Matemática, a Associação Mexicana, Peruana, Uruguai, Bolívia,
Venezuela, Paraguai e Colômbia, que matem uma revista de divulgação cientifica
chamada Unión. Apesar dessa ação as iniciativas ainda são pouco insuficientes, no
sentido de que pouco conhecemos sobre os aspectos socioculturais dessas nações,
• por isso os diálogos entre educadores brasileiros e boliviano, compõe um cenário
perfeito para a disseminação da perspectiva plural de formação educacional, e
411
escola como espaço de formação, seja pra os alunos, seja para a formação de
• educadores constitui um espaço de diálogos, que não se esgotam em seu espaço
físico, pois o processo de aprendizagem e troca de experiência permeia todos os
campos espalhando-se para além do espaço físico.
A escola no contexto atual é vista como “uma instituição de natureza
universalista por excelência” (FORQUIN, 2000, p.52) e esclarece:
2 A cultura escolar é uma cultura geral, não no sentido de que seja uma
amostra ou um amontoado de tudo (não é uma cultura dispersa, eclética),
0 nem no sentido de que pretenda desenvolver “ideias gerais” que não fa-
voreçam conhecimentos precisos ou competências específicas (não é uma
cultura de verbalismo abstrato), mas sim no sentido de ser responsável pelo
1 acesso a conhecimentos e a competências estruturalmente fundamentados,
isto é, capazes de servir de base ou de fundamento, isto é, capazes de servir
8 de base ou de fundamento a todos os tipos de aquisições cognitivas “cumu-
lativas”. [...] Podemos ver, então, na generalidade, o caráter fundamental
da cultura escolar, a razão primeira de seu universalismo. O que a cultura
escolar traz ela traz potencialmente para todos, porque se trata dos funda-
mentos de toda atividade intelectual e de todo desempenho cognitivo possí-
veis (FORQUIN, 2000, p. 58).

Atualmente matemática brasileira apresenta foco de excelência do mais


alto nível internacional e ocupa uma posição de destaque no cenário mundial nas
conquistas nas Olimpíadas Internacionais, como ocorreu entre 2002 a 2004, nas
Olimpíadas de Matemática do Cone Sul2, alcançando o primeiro lugar entres os
países, conforme um estudo do (Instituto do Milênio/INCTMat)3. Nessa perspectiva
a Educação Matemática vem crescendo de forma qualitativa e quantitativamente.
Contudo a formação continuada em matemática, ainda é oferecida de forma tímida,
não supre às demandas de formação dos educadores e pesquisadores nessa área.
Em Guajará-Mirim, município localizado no estado de Rondônia-Brasil, a
situação não é diferente, os professores e alunos enfrentam os problemas gerados
J pelas lacunas de aprendizagens na educação da matemática. Apesar desta situação,
a rede de ensino municipal conseguiu ultrapassar a meta estabelecida pelo IDEB4
A na Prova Brasil, que é uma Avaliação Nacional do Rendimento Escolar criada em
2005 pelo Ministério da Educação, em que alunos da rede pública do quinto e nono
L anos do ensino fundamental aferem seu nível cognitivo em português e matemática,
com isso, estabelecem a nota pela média das duas disciplinas, o município atingiu a

nota de 5,45. Nesse contexto surge a curiosidade do desenvolvimento da educação
L matemática, como ela é desenvolvida e quais os fatores que fizeram com que o
município superasse a meta.
A Na Bolívia a realidade não é tão diferente, no entanto no que tange a
educação o governo erradicou o analfabetismo, o que me chamou atenção nas
pesquisas bibliográficas foi o fato do governo boliviano construiu três universidades
indígenas com a seguinte filosofia, contidas em uma frase “Qhip nayr uñtas
sartaoxañani”. Qhip é o olhar para trás. Nayr é olhar para frente. Uñtar é olhar.
• E sartapxañani é caminhamos. Olhando para trás e para frente, caminhamos
412 juntos. Para resgatar o passado e aplica-lo ao futuro a universidade indígena
emprega professores formados em universidades ocidentais e a Maltas – os sábios

indígenas, nessas universidades os alunos de veterinária aprendem como criar
animais usando genética moderna e sabedoria ancestral que inclui rituais a pacha
mama – a mãe terra, mas nem sendo os remédios convencionais estão ao alcance
do bolso ou das comunidades mais afastadas daí a importância de transmitir as
receitas caseiras.
2
A Bolívia é um dos países que mais investem na educação 8,7% do produto
interno bruto em 2013, com programas de bolsa escola e Alfabetização, em julho
0 de 2014 a UNESCO declarou que a Bolívia estava livre do analfabetismo, isso quer
dizer que 96% dos maiores de 15 anos sabem ler e escrever.
1 Nos últimos dez anos a Bolívia avançou a passos gigantescos, em 2010,
promulgou a nova Lei Educativa “Avelino Siñani – Elizaardo Pérez”, com a seguinte
8 perspectiva na qual compreende por educação básica desde os cursos da formação
inicial, seis curso de educação primária e seis cursos de educação secundária.
Atualmente a educação boliviana tem por um dos objetivos
“Formar o indivíduo numa escola ética-prática que eduque, para conformar
uma cidadania democrática, unida solidariamente pelo ideal do progresso,

2  Relatório 2002/2004 Instituto do Milênio – Avanço Global e Integrado da Matemática Brasileira


e Contribuições à Região. Disponível em: http://milenio.impa.br/. Acesso: 08/08/2017
3  Disponível em: http://milenio.impa.br/ Acesso em: 19/07/17
4  Disponível em: http://www.qedu.org.br/cidade/guajaramirim/ideb?dependence=3&grade=1&e-
dition=2015. Acesso em 19/07/17
pelo trabalho produtivo e pelos benefícios da economia e de cultura, a ser-
viço da justiça social”.

A Lei Educativa “Avelino Sinãni – Elizardo Pérez”, está estruturada compondo


a Educação Primária Comunitária pelo 1º ao 6º ano, os conteúdos curriculares
se originam da experiência da cultura e da ciência, inseridos em dois âmbitos
complementares: os conteúdos próprios (infra) que emergem das nacionalidades
de cada contexto, representada em função de saberes e conhecimentos, práticas,
J valores e produção desenvolvimento de cada contexto cultura de acordo com as
necessidades educativas emergentes da vida. Em outro bloco encontara-se com
A conteúdos da diversidade (inter) são constituídos por atitudes, conhecimentos,
habilidade de relacionamento harmônico, que permite o desenvolvimentos da
L capacidade para o diálogo intercultura, a transição à educação superior.
Como já dialogamos sobre a educação boliviana, a ascensão para o
L desenvolvimento da educação inicia-se com a mudança da Lei Educativa, que está
sendo ampliado de acordo com o Estado Novo, na perspectiva sobre o paradigma

do “viver bem”, um modelo de inclusão que projeta a sociedade para viver em
A harmonia com a natureza. Para a implantação dessa política educacional criou-se
um grupo de formação continuadas Profocom, construído por três grupos, e que
hoje tem mais de 130 mil professores, que no final de sua formação receberão o
diploma de licenciado.
A formação da nova educação boliviana modificou o modelo singular para

o plural. O Estado-Nação passou ao Estado Plurinacional, (CFB Artigo 1: “A Bolívia
413 é fundada na pluralidade, política, econômica, legal, cultural e linguística, dentro
• do processo integrativo do país”.) que deixou de pensar no contexto fechado para
expandir os olhares transformando a Economia para as economias; da Justiça
para a pluralidade jurídica; de uma língua oficial para a pluralidade linguística
do Estado; de uma Educação para as educações, que atendessem a todos e todas.
Passou de um currículo único para os currículos; da qualidade para as diversas
2 formas de qualidade educacional. “É uma construção continua, participativa,
coletiva, democrática, comunitária e social, acumulando resistências sociais e
populares contra a colônia, o império e o neoliberalismo. Com a gratuidade no
0 âmbito fiscal até o nível superior, queremos eliminar a tendência privatizadora da
educação, como tem ocorrido em muitos países do continente”, garantiu Roberto
1 Aguilar5.
Com isso as ampliou as políticas do Estado para o acesso, a permanência
8 e a qualidade do ensino com igualdade de condições e oportunidades. Dessa forma,
a preocupação foi atrair desde a educação infantil às diversas formas educacionais
alternativas para os adultos e a educação popular permanente para os trabalhadores.
Neste modelo educacional, a valorização dos professores e a formação profissional
também receberam prioridades.
Na atualidade a educação boliviana está em ascensão após a promulgação
5  Entrevista realizado no Encontro do Movimento Pedagógico Latino-Americano Paulo Freire,
que acontece em Cuiabá. Com o tema “Educação Pública: Democracia e Resistência e o modelo
Educacional Boliviano” realizado: 26 de Abril de 2017 em Cuiabá. Disponível em: http://www.cnte.
org.br/index.php/comunicacao/.html. Acesso em: 18/10/2017.
da Lei Educativa, em que assegura no onde leva em consideração os conhecimentos,
as culturas e 1º artigo “toda pessoa tem direito à receber educação em todos os níveis
de maneira universal, produtiva, livre, integral e intercultural, sem discriminação”
saberes de todos os povos, desta maneira prover a inter-relação de sua cultura
com outras culturas são aspectos primordiais na construção do saber. Com isso,
cabe ao educador que: “Seja crítico, reflexivo, proativo e inovador pesquisadores
autocrítico, profissionais comprometido com a democracia, transformações sociais”.
J (Lei de Educação (Avelino Siñani – Elizardro Pérez nº 70, página 14).
Reflexões da educação matemática
A Historicamente a matemática, se caracteriza como uma das ciências mais
antigas, contudo o seu processo de construção vincula-se ao fato de ser inventada
L e desenvolvida pelo homem em função da necessidade social, nessa perspectiva
o cunho alvo da matemática foi e é uma estreita relação com o fator social, a
L matemática destaca-se também, como estratégia desenvolvida pelo homem ao
longo de sua histórica para explica, entender, manejar e conviver com a realidade
e com o seu imaginário (D’Ambrosio, 1996).
A
Na história da matemática podemos sublinha o Movimento da Matemática
Moderna, desenvolvido inicialmente no século XVII em que (Roque, 2012),
destaca como “alvorada da matemática moderna”, que foi um divisor de água
no processo de concepção e aplicação da matemática, aproximando os diálogos
entre os pesquisadores com os educadores. No Brasil esse movimento também se

destacou, com as concepções de Boubaki, que provocou profundas alterações nas
414 suas pesquisas da educação matemática, nesse diálogo o Movimento Moderno de
• Matemática:
Teve grande repercussão no Brasil, defendia-se que essa disciplina devia ser
ensinada com os conceitos de base definidos à maneira bourbakista, que
seria adaptada às nossas estruturas cognitivas. Nessa época, muitos mate-
máticos e educadores compartilhavam a crença de que os alunos têm de ser
acostumados a pensar em termos de conjuntos e operações. Piaget chegou a
2 estabelecer uma correspondência entre as estruturas defendidas por Bour-
baki e as primeiras operações por meio das quais as crianças interagem com
0 o mundo (Roque, p. 378)

Nesse contexto as pesquisa de Bourbaki contribuíram para as concepções


1 da matemática de hoje em que os conteúdos são estruturados, ou seja, encontram-se
unificados, é inegável as contribuições desse movimento que modificou a condução
8 das aulas, com maior participação dos alunos, formalizando a importância das
atividades relacionadas pela interação.
Hoje a matemática está interligada com o ambiente moderno, estamos
vivenciando a era teleinformática (combinação de), e o educador nesse contexto,
possui um papel fundamental, em transformar a matemática tradicional em
matemática moderna por meio de suas práticas pedagógicas, com isso, ser
matemática tradicional ou ser matemática moderna está contido no direcionamento
pedagógico das aulas na sala de aula.
Para tanto, o educador necessita compreender a sua função e o seu
material de estudo, no processo de formação e construção da matemática no
contexto do ensino-aprendizagem, nessa perspectiva (D’ Ambrosio, 1996), contribui
na análise ao educador, que tem a matemática como sua arte de competência e seu
instrumento de ação, mas não como um matemático que utiliza a educação para a
divulgação de seu as habilidades e de suas competências, sua missão de educador
constitui como formador de formadores.
Rico (1997) propõe da finalidade da Educação Matemática em quatro
dimensões, (Dimensão cultural, dimensão social, dimensão educativa, dimensão
J política) mas enfocamos a primeira pois se destaca com um aparato tecnológico
construídos no interior da cultura, entendendo no contexto de um patrimônio cultural
A básico de cada comunidade em que a propagação acontece no meio do sistema
educacional. Com isso a finalidade cultural da educação Matemática desempenha
L um papel primordial na organização curricular. PCN 1998, a matemática é um
componente importante na construção da cidadania, na medida em que a sociedade

se utiliza, dos conhecimentos em que o cidadão deve se apropriar, como também
L na inserção das pessoas no âmbito do trabalho, nas relações sociais e nas relações
culturais na esfera da participação na sociedade.
A Matemática e o currículo na fronteira
A escolar representa uma experiência de socialização em que ocorre
interação proporcionando aprendizado dos mais diversos, é o campo físico que
constitui o ambiente de troca de aprendizado, como também, consiste em um
organismo no sistema educacional que proporciona a troca de cultura por meio

a relação de diferente culturas, por isso, Farquin “a escola é o lugar unificador
415 dos conhecimentos, depositária do tesouro dos saberes e guardiã das chaves que
• davam acesso a eles” (FARQUIM, p.22). Dessa maneira a escola de escolher entre os
valores, aqueles que estão associados a formação de modo a planejar suas atividade
a partir de elementos cognitivos que se encontra em seu repertório, para então ir
construindo o novo, nessa proporção, de partir do conhecimento relacionado que o
educando internalizou para aprimoramento e posterior construção de conhecimento
2 novo, o professor é o mediados desse cognitivo ao ponto que conhece seu alunado
para favorecer essa evolução com atividade que oportunizarão esse processo em
um ambiente rico e motivador.
0
Nesse mesmo sentido de construção curricular não podemos deixar de

pincelar que deveram está contidas discussões a cerca do presente e do cotidiano
1 escolar, com as relações sociais, as experiências de vida acumuladas ao longo de
sua experiência o que favorecerá para a sua formação na relação construcionista
8 educacional.

Segundo Luft (1997), o professor necessita de sempre desenvolver


estratégia, no processo de ensino- aprendizagem, visando respeitar a língua
materna de seu aluno. O processo de aprendizagem é atribuído pelo desempenho
do professor que se doa por completo na mediação dos conteúdos abordados,
fica claro quando Freire (1996) nos afirma que “o professor que pensa certo deixa
transparecer aos educandos que uma das bonitezas de nossa memória de estar no
mundo e com o mundo, como seres históricos, é a capacidade de, intervindo no
mundo, conhecer o mundo.”
Com já afirmamos, a matemática é uma das ciências mais antiga, por isso
ela é considerada para muitos como difícil, por se tratar de lógicas que possuem
base no abstrato, contudo o ensino da matemática vem sofrendo influência. Para
Neto (1987) a matemática pode ser e é gostoso e fácil de ensinar ou de aprender,
ligada por elo ela não será algo estranho, sem continuidade, sem significado. É nesta
ótica que o estudo de matemática esta ligado na troca da aprendizagem, PCN 1998,
e a matemática precisa está ao alcance de todos nesse campo a democratização do
J ensino deve ser meta prioritária do trabalho docente.
Nesse sentido o professor possui um papel primordial na desmistificação de
A conceitos pré-existente, de mitos pré-estabelecidos, de democratizar a matemática, o
que tornou a matemática tradicionalmente temida, Pimenta (1999) para estabelecer
L a humanização, com a finalidade explicita de tornar os indivíduos participantes
do processo civilizatório e responsáveis por levá-lo adiante. Nesse contexto, a

atividade profissional do professor pode ser caracterizada por uma atividade de
L mediação não só entre o aluno e a cultura, mas também entre a escola, pais e
alunos, Estado e comunidade etc. Guimarães (2004) Esse caráter de mediação,
A no caso, entre governo e sociedade, inerentes ao trabalho do professor, justifica
os investimentos de organismos diversos na configuração de uma identidade do
professor na sociedade.
O educador e escola constroem o currículo que é uma fonte documental,
um mapa do terreno, um roteiro oficial para estruturação das intenções da ação
• educativa o que leva a facilitar a troca de informações, conhecimentos e habilidades
416 entre alunos e professores por meio de uma socialização de esforços em direção
a uma tarefa comum, ocasionando a concretização os objetivos comuns de

crescimento social, intelectual dos sujeitos envolvidos. Nesse processo de construção
de conhecimento a figura do professor e do pesquisador são indissolúveis, afinal,
o professor está permanente processo de busca de aquisição de conhecimentos e
também de entender e conhecer melhor seu aluno, por este fato a pesquisa está
intrinsecamente ligada à prática
2
O processo de apreensão do conteúdo está intrinsecamente relacionado
ao como esse conteúdo está sendo repassado, por este fato o educador necessita
0 compreender o seu papel de formador. Nesse contexto o currículo possui um
suporte no desenvolvimento de conteúdo em que o educador desenvolve:
1 O currículo segundo Sacristán é:
“O currículo é uma práxis antes que um objeto estático emanado de um
8 modelo coerente de pensar a educação ou as aprendizagens necessárias das
crianças e dos jovens [...] É uma prática, expressão da função socialização
cultural de subsistema ou prática diversa, entre as quais se encontra a
prática pedagógica desenvolvida em instituições escolares que comumente
chamamos de ensino” (SACRISTÁN, 2000 p.15)

O currículo é a forma de ter acesso ao conhecimento, não podendo esgotar


seu significado em algo estático, mas através de condições em que se realiza e se
converte numa forma particular de entrar em contato com a cultura e a escola é
ambiente que proporcionar essa inter-relação cultural.
Ademais o currículo é visto como uma continuidade da sociedade como
um todo, como também, como um processo de reprodução culturas e social, que
segundo Moreira (1994) o currículo é, assim, um terreno de produção e de política
cultural, no qual os materiais existentes funcionam como matérias-primas de
criação, recriação e, sobretudo, de contestação e transgressão. Com isso, a cultura
nessa construção parte da premissa de que “é o terreno em que se enfrentam
diferentes e conflitantes concepções de vida social, é aquilo pelo qual se luta e não
aquilo que recebemos”, os conflitos pré-estabelecidos da diversidade culturais entre
J Brasil e Bolívia. Com isso, “Uma escola sem conteúdos culturais é uma proposta
irreal além de ser descomprometida” Sacritán (2000). O compromisso de educação
escolar inicia com a composição do currículo que atenda toda a realidade social
A
contida na região, que inclui e não que excluía o sujeito, nesse campo a escola
compõe seu papel ‘as avessas’, ‘desformando’ o sujeito, ao invés de formação o
L sujeito pleno.

L Algumas considerações sobre cenário do curriculo de matemática na
fronteira

Como podemos notar o currículo se concretiza como um campo fértil
A para a compreensão da história, do ensino e da cultura escolar, constitui como
uma atividade educativa no âmbito do fenômeno histórico-social-cultural, dessa
maneira analisar diferentes concepções de estruturação do desenvolvimento
curricular o que transpassa pelas implicações, pelas possibilidades e pelos limites
favorece um parâmetro de analise.

O currículo é a forma de ter acesso ao conhecimento, não podendo esgotar
417 seu significado em algo estático, Fazenda (1993), mas através de condições em que
• se realiza e se converte numa forma particular de entrar em contato com a cultura
e a escola é ambiente que proporcionar essa inter-relação cultural. Nesse mesmo
sentido de construção curricular não podemos deixar de pincelar que deveram está
contidas discussões a cerca do presente e do cotidiano escolar, com as relações
sociais.
2 Pode-se mesmo dizer que na era da tecnologia o currículo escolar se
forma a partir das necessidades de cada escola e/ou de cada aluno. Nesse sentido,
0 o currículo escolar para a ser definido como todas as situações vividas pelo aluno
dentro e fora da escola, relações estabelecidas pela interações com culturas

diferentes, relacionados pela estruturação do currículo formado pelo cotidiano e
1 pela relações sociais. Realidades que ocorreram nas ao longo da construção desta
pesquisa,
8 “Desse modo, um currículo de matemática deve procurar contribuir, de um
lado, para a valorização da pluralidade sociocultural, impedindo o processo
de submissão no confronto com outras culturas; de outro, criar condições
para que o aluno transcenda um modo de vida restrito a um determinado
espaço social e se torne ativo na transformação de seu ambiente” (PCN,
1998, p.25)

Nessa perspectiva estamos compondo um ambiente harmônico e


comunicação e troca de experiências que inseri-se na formação plural para os
campos do interculturalismo e multiculturalismo, na educação brasileira e boliviana.
É desafiador para a escola reconhecer a diversidade como parte inseparável
da identidade nacional e da a reconhecer a riqueza dada por essa diversidade
etnocultural na qual compõe o patrimônio sócio cultural brasileiro, investindo na
superação de qualquer tipo de discriminação e valorizando a trajetória dos grupos
que compõem a sociedade, mas é extremamente necessária desenvolver no seio da
escola, na figura do educador desenvolver este romper de barreira imposta por uma
fronteira que está apenas no papel, que não se consolida na interligação cultural
de saberes.
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L

L

A


419

2

0

1

8

J

A

L RE-DESCOBRINDO O ACRE “EXISTIDO”

L Glauco Capper da Rocha (UFAC)
RESUMO: O presente artigo visa comparar narrativas de viajantes/exploradores,
A usando crônicas ou relatos produzidos a partir do contato com a região que viria
a ser o Acre nos dias atuais, desde Seraphim Salgado até a viagem de quatro

amigos que produziram o filme/documentário de título “O Acre existe”. Pretende-se
discorrer, também, sobre o rio e seu papel na tessitura dos relatos de expedições.
Para tal fim, o corpus será construído a partir de consulta bibliográfica, utilizando
• as leituras e literaturas discutidas em sala, durante a ministração da disciplina
“Linguagens, sociedade e diversidade amazônica”, ofertada pelo programa de pós-
420
graduação em Letras: linguagens e identidade. Como aporte teórico para este
• estudo, consultaremos os escritos de Auxiliomar Silva Ugarte, Marcio Souza, Ana
Pizarro, Durval Muniz Albuquerque Júnior, entre outros.
Palavras-chave:“O Acre existe”; crônicas de viagem; imaginário.
Introdução
2 A “Amazônia ” é rota de exploradores e expedicionários desde 1538.
1

Alonso Mercadilho, Diogo Nunes (primeiro a chegar na região2), frei Gaspar de



Carvajal, Francisco de Orelhana, Vincente Pizón entre outros, possuem relatos que
0 põe a “Amazônia” na história. Desde então, centenas de cronistas, aventureiros,
historiadores, perfizeram os caminhos pelos rios do Acre, revelando a existência de
1 um povo, de uma cultura e de uma região. Mesmo há séculos em que narrativas
são tecidas sobre o “cenário amazônico”, o “encanto”, “fantasia” e a “exoticidade”
8 permeiam as literaturas disponibilizadas sobre o lugar, outrossim, o imaginário de
quem tem o contato com esses escritos.
É a partir desta inquietação que o presente estudo tem seu início. Com
o objetivo de estabelecer um paralelo entrenarrativas de cronistas presentes as

1  O emprego do termo Amazônia neste trabalho tem, por significado, exprimir a fauna e flora
da região; a diversidade cultural e social; natureza e seus recursos. Academicamente, usaremos,
dentre tantas outras, a explicação a de Ana Pizarro (2012). Para a autora, o termo Amazônia se
trata de uma convenção de significados, já que, para ela, o cunho Amazônia seria um discurso
constituído por um pensamento externo a ela (PIZARRO, 2012).
2  De acordo com Auxilomar Siva Ugarte, no livro Sertões de Barbáros.
viagens de exploração e colonizaçãoque se deram no Purus, e também ao Juruá.
Expedicionários como Manoel Urbano, Coronel Labre, Euclides da Cunha e, mais
recente a viagem que gerou o filme/documentário “O Acre existe”, que “re-descobriu”o
“existido”, e produziu uma narrativa repleta de imaginários e representações. Como
objeto deste estudo, a última expediçãorealizadade “re-descobrimento” de uma
terra: quatro cineastas paulistanos que produziram o filme e livro “O Acre existe”, a
fim de ‘levar’ e ‘mostrar’ao Brasil a existência do Acre. Daí o cunho “existido” que se
J propõe a ser pejorativo, pois, mesmo constituído como parte do Brasil, o Acre ainda
está sendo inventado, descoberto, redescoberto e colonizado através de narrativas
produzidas a partir das crônicas e relatos dos viajantes.
A
A construção do corpus desta pesquisa bibliográfica se dá a partir das
L discussões iniciadas em classe e com o aprofundamento do material bibliográfico
disponibilizado.Levando, assim, a análise até um‘climax’inevitável: a discussão

sobre o olhar colonizador do estrangeiroque vem e descobre, renomeia, produz
L narrativas, permeia imaginários com seus relatos, tecidos do contato e experiências
com a região. Como está no livro A Escrita da história, organizado por Peter Burker
A (1992), precisamente, onde Jim Shape adverte para o cuidado com o “historiador
moderno”, que frisa sua escrita “a luz de sua própria experiência e de suas próprias
reações a essa experiência” (BURKER, 1992, p.42). É a partirdesse olhar,da
perspectiva de comparação e confronto entre relatos sobre Acre, atrelado ao vínculo
de quem vive; estuda as histórias e a“história oficial”; munido das impressões
• perpassadas pelo filme e livro de mesmo nome “ O Acre existe”, que se desenrola a
421 análise deste estudo, mas iminente, o filme.

• Amazônia: o destino da exploração


Não é obtuso afirmar que todos os viajantes e exploradores que se
submeteram a viagens de descobertaspelas “selvas equatoriais3”, tinham motivações
de obter recompensa material. Ugarte (2011), diz que exploradores visavam
recompensas por um “tão grande esforço”, que iam de especiarias, metais preciosos,
2 reinos fabulosos, conversão de indígenas em vassalos cristãos, a obtenção de
escravos4. O desejo de conhecer novas terras e dela retirar suas riquezas, fez com
que as coroas francesa, espanhola e portuguesa financiassem centenas de viagens
0
pelos rios “amazônicos”.

É necessário deixar explícito que, a maior característica das primeiras
1 viagens “colonizadoras” e “recolonizadoras” entre os séculos XVI e XIX, aconteceram
por meio fluvial.
8 Grandes e médios rios a oriente dos Andes, navegáveis na maior parte de
sua extensão, levaram os adventícios das diferentes expedições descobrido-
ras/conquistadoras às entranhas da verdejante e gigantesca Hileia (UGAR-
TE, 2011, p. 169).

As estradas dos primeiros séculos de exploração eram os rios. Na


“Amazônia”, Ugarte (2011) deixa claro que o rio Amazonas foi o “caminho-
cenário, o fio condutor das tramas e narrativas elaboradas pelos cronistas, tanto

3  UGARTE, 2011, p.40


4  UGARTE, 2011, p.169.
pelo êxito quanto aos insucessos ocorridos aos descobridores”. Narrativas essas
que inspiraram Pizzarro (2012) a usar a expressão “discursos conduzidos pela
navegação”, exatamente, sobre a construção de narrativas e discursos, ou a
descrição de uma “nação de águas”, como sucessão dos relatos dessas viagens.
A ‘fantasiologia’ foi o combustível e a inspiração para expedições
espanholas e lusitanas em meados de 1550. Descrições sobre a “Amazônia”
eram forjadas e moldadas, tecidas a partir de interesses5 – explorador/coroa e
J vice-versa −, a fim de manter o custeamento das expedições e o descobrimento
de novos produtos para comercialização. Como exemplo, Ugarte (2011) descreve
A características presentes no relato de Diogo Nunes ao rei português, D. João III, ao
qual é desenhado positivamente a fim de obter armas e tropas para engendrar a
L conquista da província de Machifaro, no Peru. Vejamos:
Ele [Diogo] não menciona nenhum elemento de perigo ou perturbação como
correntezas, enchentes, queda de barreiras, pragas de insetos, ameaça de
L feras, enfim, o que pudesse contradizer as expectativas tão animadoras que
apresentava ao soberano português. A crônica de Diogo Nunes não nos per-
mite, em nenhuma ocasião, inferir qualquer tipo de perigo ou incômodo que
A tenha sofrido, ocasionalmente, durante sua viagem pelo Amazonas (UGAR-
TE, 2011, p.173).

Percebe-se, através do relato de Diego Nunes, que o ‘real’ é deslocado,


abrindo precedente para imaginários. Narrativas como esta (entre os séculos XVI e
• XIX) foram produzidas e reproduzidas no decorrer de toda a história da colonização
e exploração da “Amazônia”. Através de inúmeros cronistas, viajantes, exploradores,
422
catequizadores, colonizadores, que foram criando, inventando e reproduzindo
• “visões do paraíso”6. O rio pode ser considerado, então, como a via de acesso desses
viajantes a ‘Nova Terra’ e, também, o caminho de imaginários que os cercava.
Mesmo com desconhecimento geográfico sobrea região, um ‘outro’
conhecimento mantinha espanhóis e, porque não, portugueses, nas rotas das
viagens expedicionárias em busca de especiarias ou negócios lucrativos. Esse
2 “outro” conhecimento era o imaginário. Como exemplo, as “histórias maravilhosas,

0 5  Em 1553/1554, ao organizar suas lembranças, na carta que endereçou a D. João III, do que
conseguira captar da província de Machiafaro, quando lá esteve em 1538, Diogo Nunes comentou
sobre o fato daquela terra ser banhada por um gigantesco rio, que comportava muitas ilhas, todas
1 povoadas de gente bem luzida. Em seu comentário, Nunes acrescentou que, naquele imenso rio,
havia muito pecado de toda a sorte como nos rios ibéricos. Todavia, a principal qualidade cilitaria
8 sobremodo a conquista de Machifaro, que constituía o centro das argumentações de Nunes para
que D. João III financiasse a expedição que aquele se dispunha a comandar (UGARTE, 2011, p.
172).
6  Termo emprestado do livro de Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso. Durante as aulas,
um dos professores da disciplina“Linguagens, sociedade e diversidade amazônica”, Francisco Bento,
citou o termo. Ao ler o primeiro a introdução do livro, percebe-se que o autor faz um apontamento
sobre as fantasias criadas para descrever as primeiras histórias sobre o Brasil. Como exemplo,
podemos ler o trecho onde ele afirma que: “Natureza, a contar do século XVI, é indubitável, no
entanto,que nossa noção da realidade só pôde ser obtida em muitoscasos por vias tortuosas, ou
mesmo por escamoteações aindaque transitórias, do real e do concreto”.Holanda, Sérgio Buarque
de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo.
Companhiadas Letras, 2010.
como aquelas sobre o El Dorado e o País da Canela, e também pelo reaparecimento
de outra, qual seja a referente às amazonas” (UGARTE, 2011).Foi por conta dessas
‘histórias’ que Francisco de Orellana foi protagonista da epopeia que durou nove
meses – quando o previsto eram dez dias – percorrendo todo o rio Amazonas até o
atlântico. Para os espanhóis, o objetivo era chegar ao chamado País da Canela.
Para a tristeza dos espanhóis, embora existisse realmente a canela, sua
dispersão na floresta, em grandes extensões, dificultaria a coleta, tornando
J inviável a exploração comercial. Ademais, os transtornos passados na via-
gem, causando baixas humanas(muitos índios pereceram) e grande perda
na alimentação (porcos e outros mantimentos), fizeram pairar o pesadelo da
A fome sobre a hoste conquistadora (UGARTE, 2011, p. 40).
Mas, devido ao contratempo que afligelou a tropa comandada por
L Gonzalo Pizarro, Orellana foi encarregado de apurar a informação repassadas por
índios de que, de onde estavam, bastaria descer por dez dias o Coca que haveria
L mantimentos. Como acordo entre os dois, Orellanajá deixou acertado que, se não
regressasse, Pizarro deveria voltar ao Peru.
A A principal característica do fato supracitado é o contato dos espanhóis com
as sociedades indígenas. Desse contato, pode ser observado como os exploradores
reagem ao desconhecido e como eles o tratam, de modo a referenciar e narrar seus
feitos. Vejamos:
Os conquistadores, para matar a fome, recorriam ao saque das aldeias, nas
• quais encontravam alimentos em abundância. Os índios reagiram a essa
invasão, enfrenado os estranhos homens barbados com seus esquadrões de
423 guerreiros em terra e suas flotilhas de canoas no rio. Foi num dos contatos
• belicosos que os expedicionários tiveram a impressão de lutarem com as
lendárias amazonas. A presença de algumas mulheres na batalha impres-
sionou-os tanto que batizaram, pela segunda vez, o rio Marañon, que já
havia sido nomeado rio de Orellana, mudando seu nome para rio das ama-
zonas (UGARTE, 2011, p. 41-42).

2 “Pela segunda vez...”, o rio, agora das amazonas, é rebatizado. A presença


dos exploradores espanhóis, por sua vez, é revestida de “poder”. O estrangeiro traz
sua percepção europeia da Amazônia. As coisas que já tinham nome e significados
0
para os que ali estavam, mesmo assim, são rebatizadas pelos que vem de fora.
Ugarte (2011), ao apresentar a ação dos espanhóis na “Amazônia”, deixa a se
1 entender que, os colonizadores usaram desse artifício como uma forma de mostrar
seu poder. Ao nomear, eles passariam a ter posse do já “existido” do já conquistado.
8 Sobre o mesmo fato, Albuquerque Júnior (2012) se utiliza das ideias de
Michel de Certeau, quando diz que nomear é uma das primeiras formas que o
homem desenvolveu para demarcar e tomar posse de um território. “Nomear é
dar sentido, é também demarcar diferenças em relação aos territórios vizinhos,
é estabelecer fronteiras7”. Essa característica é peculiar em todas as viagens e
expedições realizadas à Amazônia e ao Acre.
Os interesses econômicos e comerciais que atraíra estrangeiros, deixou
seu rastro de exploração e colonização. Mesmo com o ideário de “servir a Deus

7  (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012, p. 9).


e Sua Majestade8” Diogo Nunes tinha ambições para as conquistas de suas
expedições. Orellana, que só andou desbravou o rio da Amazonas por um infortúnio
do destino9, concretiza a máxima de que, ‘se deslocam mais não mudam seus
pensamentos. Trazem sua religião e seu poder10’.Mataram centenas de indígenas
ao procurar mantimentos para a expedição. Lutaram com as Amazonas, deram
nomes e tomaram para sim as terras avistadas.
A caminho do famoso Juruá11
J Entender e compreender a forma com que se deu o primeiro contato
do explorador com a selva equatorial, rodeado de conflitos que envolviam
A empreendimento militar, interesses pessoais e econômicos, permite-nos − mesmo
através de um sucinto e breve recorte da história da colonização e exploração da
L Amazônia – comparar as primeiras expedições ao Acre, com a dos quatro paulistanos
para confeccionar o documentário “O Acre existe”.
L É preciso, então, olhar ao passado mais uma vez. Ao passado que convidou
ou atiçou o desejo e a cobiça de estrangeiros a região. O passado que deu margem a
possibilidade de, em 2014, quatro aventureiros realizarem a odisseia que, segundo
A
ele, “colocaria o Acre no mapa12”. Mas, até a chega da dos paulistanos para descobrir
Acre “existido”, outros milhares de aventureiros e exploradores visitaram a região.
De acordo com Rocha (2016), a corrida das expedições até o Acre foi
motivada pela “goma elástica”,a borracha. Com seu início datado por volta de 1852,
• e ainda como característica marcante, o tráfego pelos rios, o Purus foi o caminho
dos primeiros desbravadores as terras acreanas.
424
As viagens de exploração a esse rio, como já mostramos anteriormente, co-
• meçaram desde os primeiros tempos da província, tendo como motor dessa
corrida, ao oeste o comércio da goma elástica, a borracha. Ao que se sabe,
essas explorações foram realizadas por Seraphim Salgado, Manoel Urbano,
Silva Coutinho, Willian Chandless, Pereira Labre, Alexandre Haag e Eucli-
des da Cunha. Há também notícias sobre a penetração no rio Purus anterior
realizada por coletores de drogas do sertão, mas não há nada de registro
2 oficial sobre tais façanhas (ROCHA, 2016, p. 66).

Acrescenta-se a lista dos expedicionários com valiosas informações
0 sobre o Juruá, o relato de duas excursões em que estavam a bordo Jean-Baptiste
Parrissier, em 1987, e Constant Tastevin, em 1913.
1 De acordo com Rocha (2016), o primeiro a enveredar as ribanceiras do
Purus a foiSeraphim Salgado. Partindo da cidade da barra em 10 de maio de 1852,
8 navegando até onde o rio impossibilitava a continuação da viagem em 9 de outubro
em busca de uma passagem livre pra os povoados da Bolívia.13 A característica do
‘olhar’ estrangeiro sobre a região pode ser destacada do relato de Seraphim Salgado

8  UGARTE, 2011, p. 38.


9  Pizarro (2012) defende que Pedro Teixeira foi o primeiro a navegar o rio, partindo do Atlântico em
direção aos Andes.
10  Apontamento proferido por Francisco Bento durante discursão em classe.
11  Frase de Parrissier ao deixar o porto de Manaus na embarcação Paraense rumo ao Juruá.
12  Texto do blog.
13  (ROCHA, 2016, p.72).
descrito por Rocha (2016): “Ficaram muito satisfeitos quando viram-nos chegar,
porque nunca tinham visto gente civilizada; apenas davam a notícia de nomes de
pessoas que tinham visto nas cachoeiras do Juruá14”.
Aqui podemos elencar pontos que concatenam este estudo. O aparecimento
de um discurso colonizador, através do preconceito geográfico caracterizado
em Albuquerque Júnior (2012). O “vir” de um outro lugar o torna o estrangeiro
superior. No início do filme “O Acre existe”, a presença do preconceito geográfico é
J muito forte. Abrindo o compêndio cênico, piadas vão surgindo na ideia de “brincar”
com a “não-existência” do Acre. O que, a princípio deixaria os quatro cineastas
A confortáveis para desmistificar a ideia de um Acre que não existe, apenas reforça
esse preconceito geográfico.
L Logo, ao ter apenas o OFF15 sem cobertura de imagens no início do filme,
atenua-se a característica de não existência dessa região. Outorga, então, ao Acre o
status de colônia mais uma vez; de povo desconhecido; e o estrangeiro (paulistano)
L
lhe dará notoriedade através de seu vídeo. Essa forma de externar o preconceito fica
claro com o que sucede após as piadas: imagens da floresta ao redor da estrada,
A constituindo, assim, a saída da metrópole para um vazio demográfico – mata e
isolamento.
Isolamento que em Cunha (1922), é realçada por uma imagem do caos.
Desapontado ao descobrir que a Amazônia por ele imaginada eficcionada com base
em suas referências, como a do naturalista Alemão Alexander Von Humboldt, que
• não continha nada do que lhe era esperado, Euclides diz que a impressão que teve
425 é que “o homem, ali, é ainda um intruso impertinente” (CUNHA, 1922).
• Nas primeiras expedições ao Juruá, o “vazio” é acentuado em algumas
narrativas. Albuquerque Júnior (2012) cita em seu texto, o livro Possessões
maravilhosas16 que ao tomá-lo como exemplo das narrativas que foram produzidas
a partir de viagens dos europeus na chamada era dos descobrimentos, que mostra
como estes não apenas colonizaram terras e povos, mas também colonizaram e
2 talvez colonizem ainda nosso imaginário (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012, p. 25).
A esses “vazios”, centenas de significados podem lhes ser atribuído em
0 meios as crônicas dessas expedições. O contato com a região; com seu povo; com
os indígenas; deu-lhes margem para vigorar os estereótipos trazidos na bagagem

e aumentar a carga fantasiosa dos imaginários. No oficio de João Martins da Silva
1 Coutinho endereçado ao presidente da província do Amazonas, Manoel Clementino
Carneiro da Cunha17, continha informações sobre a viagem de Manoel Urbano que
8 tentou verificar a possibilidade de navegação livre para o Mato Grosso.

Informações que davam conta dos costumes dos índios da região, o que
plantavam e que faziam realizavam para adquirir alimentos. Sobre os Juberys,
alguns apontamentos são curiosos:
Sofrem de empigens e outras moléstias de pelle talvez devido a moradia em

14  (ROCHA, 2016, p. 70).


15  Recurso de áudio utilizado em produções audiovisuais para contar histórias através da figura
de um narrador.
16  Livro do professor norte-americano, Stephen Greenblatt.
17  (ROCHA, 2016, p. 73).
giraós sobre alagadas e encharcadas. Homens e mulheres são feios e asque-
rosos. Fazem pequenas roças e não há que lhes vença na pesca. As tribus
guerreiras não perseguem os Juberys, por causa da humildade natural des-
tes índios e a vocação que têm pela música; sofrendo e cantando abrandam
a ferocidade dos inimigos (ROCHA, 2016, p. 75).

Os imaginários ganham força nas crônicas. Lembrando que, um dos


maiores empecilhos às expedições era a resistência dos índios. A história dos
J indígenas da triboJuberysmostra outra forma de confrontar os “inimigos”.
“Cantando abrandavam a ferocidade dos inimigos”. Ferocidade que sobrava às
amazonas quando Orellana percorreu a extensão do rio. Pizarro (2012) diz que a
A
viagem de Orellana dá início à implantação da mitologia grega na região, o que vai
se constituir num elemento importante da sua cultura (PIZARRO, 2012, p. 40).
L
A leitura desse “Novo Mundo” pelos estrangeiros produz escritos que
aguçam o imaginário do leitor. Euclides da Cunha tinha outra impressão da
L natureza, pois já tinha lido sobre a região e, ao vê-la revelada diante de seus olhos,
causou-lhe espanto ao ponto de ele dizer que a flora daquela era uma “Imperfeita
A Grandeza”. A cada instante em que ele adentrava a selva amazônica, ela tomava a
liberdade de se apresentar, lhe proporcionado sensações como angústia temporal,
o levando a imaginar os tempos mais primórdios.
As primeiras impressões dos viajantes e exploradores, ao chegar na
região, vão dando pistas de como “imaginários” foram tecidos envoltos em fantasias
• e experiências pessoais. Apagamentos de personagens e mitificação de outros
426 permearam as histórias. Como o objetivo desse artigo é encontrar características,
traços, um modus operandis nas expedições que vieram até aqui, com ênfase na

do “O Acre existe”, tomemos por quesito de análise, alguns elementos no filme
documentário.
O Rio
Tudo começa pelo rio. As primeiras navegações até a Amazônia; a visita
2 dos primeiros expedicionários/missionários; o escoamento do “ouro negro18”; a
chegada de outras pessoas do Brasil, em especial, da região que hoje é o Nordeste.
0 No filme documentário “O Acre existe”, após a abertura e a viagem ao
“vazio demográfico”, é no rio Madeiraque se inicia a primeira sequência fílmica em
que aparece o Acre. O rio, por séculos, foi a“estrada”pela qual a modernização e o
1
progresso encontraram o Acre. No filme, o rio produz um novo caminho:o da“re-
descoberta”.
8
A descoberta da Amazônia como potencial econômico − não só da borracha,
mais salsa, copaíba, sova, castanha – começou em meados de 1852. A partir daí,
houve dezenas de expedições de reconhecimento pelo rio Purús, como a de W.
Chandlees que teve como resultado, um trabalho de reconhecimento das bacias
hidrográficas da região que serve de base para pesquisadores e cientistas (ROCHA,
2016).W. Chandlees teve como guia, Manoel Urbano, o primeiro a navegar as águas
do Purus em busca de uma rota comercial para o Mato Grosso.
O “vazio”, com o passar dos anos, vai dando lugar a uma nova estrutura

18  Adjetivo utilizado por Ana Pizzaro (2012) em referência a borracha.


social. As explorações e expedições dão início ao povoamento do Acre, por meio de
“estrangeiros”. A essa constituição de povo ou população, Batista (2006) diz que “a
formação da cultura na Amazônia tem estado intimamente ligada à colonização19”.
Só mesmo o surto da borracha, atraindo massas humanas para o desertão
da Hiléia Brasileira, permitiu, sob bases econômicas favoráveis, a criação
de uma sociedade em que a cultura, na sua extensa gama de valores, pôde
tomar corpo e ser aferida pelos padrões comuns (BATISTA, 2006, p. 69).

J As relações sociais foram se estabelecendo e se consolidado. O “Acre”


não estava mais pagado do cenário nacional. Ele “existia20”, e isso mesmo antes de
A se tornar roteiro de enriquecimento e exploração. A região do Juruá, por meio do
Purus, por volta de 1870, importou ou virou destino de homens de negócios.
L Batista (2006) diz ainda, que, “os esplendores do século passado”, só se
tornou possível com a “importação” de homens de inteligência. Profissionais dos
L melhores gabaritados estiveram na região.
Na fala de seu Francisco, primeiro personagem do filme/documentário
“O Acre existe”, na primeira casa do Acre, remonta os idos de 1870. “Hoje tá bom.
A À vista até... quando eu cheguei aqui em 1995, ninguém conhecia o Acre. Era uma
tristeza. Vocês vão ver quando for chegando lá, que têm um aspecto de cidade(O
ACRE EXISTE, Seu Francisco, 3`56”).
O rio liga duas eras. Uma, antes do Acre ser Acre (1852); outra, o Acre
agora ao “existido” (2013). Veja o que diz Jean-Baptiste Parrissier em 1897:

Ei-nos então a caminho do famoso Juruá – mas íamos para o desconhecido,
427 já que contando estar de volta no fim de janeiro no máximo, já estávamos
• no mês de maio de 1988 quando tivemos o prazer de rever as águas do rio
Negro (CUNHA, 2009, p. 2).

O objetivo deste trabalho não constitui análise do discurso e seu signo nas
narrativas. Antes, consiste apenas na comparação dessas narrativas constituída
a partir do contato com as terras acreanas, durante as viagens de exploração e
2 colonização do Acre, correlacionando com a viagem de dos paulistanos para dar
forma ao documentário. O rio que trouxe o “desenvolvimento” também trouxe
0 esquecimentos. Mitos. Lendas. O rio pelo qual, navegantes empreitaram suas
viagens de colonização, foi o mesmo caminho que europeus/estrangeiros (os de fora)
usaram para produzir uma narrativa de colonização e preconceitos geográficos.
1
A exemplo, o padre Parrissier em sua jornada até o Juruá olha o rio e o

enxerga como “rio”. A magnitude e os desafios impostos no percurso; a estranheza
8 de suas formas e surpresas a eles reservada. Durante a viagem, Parrissier, ao
observar o rio sente saudade dos campos de trigo da França. Ele é envolvido em um
“mudo novo”, um mundo geográfico até então desconhecido.
Encarregado de ir até Cruzeiro do Sul, Constant Tastevin deu início a sua
viagem em fevereiro de 1913. Tastevin também deixa exposta suas impressões sobre
o rio. Expressões como: “interminável”; “enquadrado por intermináveis florestas
virgens” (CUNHA, 2009).

19  (BATISTA, 2016, p. 68).


20  O Acre como o conhecemos, estado brasileiro e de direito, somente a partir de 1904.
Tastevin compara o rio Sena, em Paris, ao rio Juruá. “Duas vezes mais
largo que o Sena21”. A constituição das narrativas em crônicas de viagens se dá a
partir das relações do “mundo” ao qual se está acostumado, com o cenário ao qual
se depara o explorador. Cunha (1929) narra a “Amazônia” através de superlativos
e hipérboles. Hardman (2009) dá conta de que, entre os séculos XIX e XX, surge
muitas narrativas ficcionais relacionadas a Amazônia.
Como negar essa insinuação do mistério exótico, folclorizante e da hiperbru-
J talidade das forças naturais em obras como as de Gastão Cruls, por exem-
plo, nesse must de público que é o romance A Amazônia misteriosa (1925).
Ou a digressão jornalístico-popular em narrativas que entremeiam ficção
A e crônica, como nas obras do belenense radicado em Manaus, Raimundo
Morais (1875-1941), jornalista e comandante de vaticanos e gaiolas (embar-
L cações de transporte fluvial na bacia do Amazonas), desde outro amplo su-
cesso editorial que foi seu Na planície Amazônica (1926) até das pedras ver-
des (1931), Anfiteatro amazônico (1936), Ressuscitados: romance do Purús
L (1939) ou Cosmorama (1940)? E que dizer de Peregrino Júnior (1898-1983),
potiguar que viveu parte da juventude em Belém, jornalista e médico, autor
que reuniu em A mata subversa e outras histórias da Amazônia (1960) con-
A tos e crônicas produzidos desde os anos 1920? (HARDMAN, 2009, p. 29).

O recorte da obra de Hardman (2009) destacado aqui nos sintoniza com
os “imaginários” ou “fábulas” que o contato com a “Amazônia” inspirou aqueles
que aqui vieram ou, apenas leram relatos dos que olharam os horizontes desta
• terra mais de perto. Aos muitos viajantes/exploradores e, não restritos apenas
aos primeiros, que produziram narrativas/crônicas, espalharam ao representativo
428
cultural, além de relatos, experiências.

Aqui retornamos aos “historiadores modernos” (BURKE, 1992) que
relatam, a partir das suas próprias experiências, obtidas em viagens exploratórias/
expedicionárias. Pizzaro (2012) cita Brosse que diz que “ao voltar, o viajante já não
é o mesmo”; “está impregnado do desconhecido e no mito se converteu num herói”
(BROSSE, 1987, Apud, PIZZARO, 2012, p. 66).
2
As narrativas tecidas a partir do rio – de onde tudo começou – abriram
espaços para fantasias, gerando um processo “virtual de transformação22”. Ou seja,
0 houve a transformação no viajante e em quem terá acesso a esses relatos.
O outro – o que lê ou vê
1
Vejamos algumas respostas aos entrevistados exibidas no filme/
documentário.Sobre a Revolução Acreana fala Raimundo Acioly, jornalista
8 Taraucaense.
“O sonho dos acreanos era se tornar brasileiro”.

Sobre seringais fala Altino Machado, jornalista acreano.
“O seringal acabou”.

Quando a película foi exibida no Cine Teatro Recreio pela primeira vez
durante o Festival de Cinema Pachamama em 2013, o público que prestigiou o

21  (CUNHA, 2009, p. 62).


22  (PIZARRO, 2012, p. 66)
evento vibrou, aplaudiu, se emocionou, se encantou. Sem“dados” ou “imagens”
da reação das pessoas para refutar a informação anterior, correríamos o risco de
concretizar o pensamento de Burker (1992).
Para que haja entendimento sobre como a viagem/expedição “O Acre
existe” que aconteceu em 2012, espelhou e se aproximou das narrativas de
expedicionários dos séculos passados. Leiamos a matéria publica dia seguinte a
exibição do documentário:
J Primeira sessão
Certo dia uma mulher me disse que as expectativas comeriam minha alma.
A A frase não é bem essa, mas é assim que consigo traduzi-la para explicar o
sucedido na última sexta-feira, em Rio Branco.

Acordei cedo porque estava ansioso (nada incomum nesta mente inquieta e
L ávida pelo futuro e pela resolução de aguardados acontecimentos). Estava
amargurado com a espera, queria que logo chegasse o horário combinado
L com o sujeito de metro e meio que toma conta do charmoso Cine Recreio.
Bruno Graziano havia preparado um arquivo de 16 minutos com cenas que
foram diversas vezes comentadas por nós durante a viagem. Eram coisas
A que ouvimos e vimos e que nos tiraram do estado de observação e nos enca-
minharam para outra esfera do descobrimento humano. Queríamos muito
assisti-las. Um arquivo bem bruto, sem qualquer correção técnica, colocado
dentro de um minúsculo pen drive que tinha como missão projetar nossas
andanças na sala escura de 145 lugares vazios e 5 ocupados.
• O horário marcado foi desmarcado. Retornamos mais tarde e esperamos
um pouco mais. Na sala de projeção veio a primeira estocada no estômago
429 (que ainda não sofre de gastrite). O mundo digital nos privou de assistirmos
• sem percalços o que havíamos gravado. Deu-se então uma pequena saga
para transformar o arquivo de áudio que não rodava no projetor em algum
formato legível. Horas se passaram, sentei-me em pelo menos 15 diferentes
poltronas do cinema, enquanto a trupe de cineastas tentava entender o pro-
blema. Raoni e eu tivemos que voltar ao nosso hotel duas vezes em busca de
cabos e outros aparelhos.
2 Na raça, rodamos o arquivo de vídeo em um aparelho, sincronizamos o áu-
dio em outro e tivemos a experiência de assistir pela primeira vez o nosso
0 trabalho, a nossa viagem, a nossa descoberta23.

Não há possibilidades, haja visto através dos relatos de cronistas


1 descritos aqui, que as experiências e descrições que fluem do contato com “outras
terras” de não ser marcados pelo fascínio, encanto, abstração, comparações. O
8 “desencanto” de Euclides, indissolúvel de sua narrativa, espelha na escrita de suas
narrativas. Aquilo que as através das leituras, temores, fantasias, informações
fabulosas, e todo o conhecimento a que o cronista foi submetido ao longo de sua
vida, está presente no cérebro, nas teias de informações, e ganhará forma através
de imaginários (PIZARRO, 2012).
No filme documentário, mesmo que os quatro paulistas aleguem não ter

23  O site ao qual a matéria foi publicada não se encontra mais on-line. O texto está na integra
sem interferências oo adequações. <LEAL, Milton, www.oacreexiste.com/notícias/primeirasessão,
acessado em 23 de novembro de 2013>. O filme, apresentando inicialmente como documentário
continha uma hora e 20 minutos. Uma nova versão foi lançada em 2014 com duas horas de duração.
tido informações prévias sobre24 o Acre, a narrativa constituída através do filme,
demonstra que o imaginário foi tecido a partir de narrativas sobre a região. “Daime”,
“Revolução Acreana”, “seringais”, são temas constantemente abordados em
literaturas acrescido de fantasmagorias. Hardman (2009) nos permite compreender
como esses imaginários se refugiam nas literaturas “amazônicas”.
Os imaginários e representações se intercalam, mesmo em períodos
distintos. Conversam em deslumbramentos. “Olhos europeus” tendem a descrever
J suas interpretações a partir de dois focos como diz Pizarro (1990): um na Idade
Média, no obscurantismo; outro, no Renascimento, nos conteúdos místicos que o
A renascimento resgatava das fantasias da antiguidade25.
Assim foram/são tecidas boa parte das narrativas. E referente a terra que
L pertencente a “Amazônia”, que um dia se tornou brasileira e recebeu o nome de
Acre, é percebido que, em se tratando de crônicas e viagens confeccionadas durante
as expedições de colonização e exploração, a “Amazônia” e o Acre não são novidades
L
dentro da historiografia de povos e nações. Tem sua história marginalizados em
livros, conforme Souza (2015), mas não se trata de uma terra sem histórias. Nem
A muito menos teve sua “história” inaugurada pelos europeus (SOUZA, 2015), muito
menos pelo “O Acre existe”.
Considerações finais
Ao escolher como objeto de estudo o documentário26 “O Acre existe”, fui
• de encontro com imaginários que o filme deixa explicito em sua narrativa. Durante
a ministração da disciplina, Linguagem, Sociedade e Diversidade Amazônica, onde
430
foi apresentado e debatido um amplo material bibliográfico referente ao processo
• de colonização e exploração da Amazônia; extrativismo; relações nos seringais;
políticas e discursos de colonização; expedições; imaginários e representações;
entre outros temas; uma correlação entre narrativas despertou-me para abordagem
bibliográfica.
Percebe-se no projeto do “O Acre existe”, inúmeras similaridades com as
2 narrativas que expedicionários dos séculos XVIII e XIX deixaram como legado para a
humanidade e aos “povos da floresta”. Fomos submetidos a essas informações que,
0 como distingue bem no seu texto Ana Pizarro, se aproximam do fantasmagórico, de
24  Durante aquela meia dúzia de garrafas, irrompemos com a ideia de fazer um filme. O diálogo
1 se deu exatamente assim:
- Eu queria muito fazer um documentário. Poderíamos trabalhar juntos. Eu pesquiso, entrevisto e
8 você filma – disse eu.
- Acho que deveríamos fazer algo viajando – replicou Graziano.
- Pois, vamos fazer uma viagem de carona.
- Para aonde?
Houve um silêncio de 10 segundos e, então, eu explodi com a empolgação que me é peculiar.
- Vamos de São Paulo até o Acre. Isso! Um filme chamado “O Acre Existe” − Como surgiu”, matéria
escrita por Milton Leal. São Paulo. Postada em 7 de dezembro de 2011 no site www.oacreexiste.com.
br que foi tirado do ar.
25  (PIZARRO, 1990, p. 68).
26  Ao submeter o projeto de pesquisa para concorrer uma vaga ao programa, tinha como pretensão
usar o livro como objeto de estudo. Após encontro de orientação, foi apresentado as inúmeras
possibilidades que o filme/documentário permite para desenvolver um estudo.
fabulações de situações que apresentaram estranheza ao cotidiano do estrangeiro
viajando pelos rios da região.
Como resistência a essas narrativas fantasiosas, inicia-se um processo
de contra discurso, forjado através da imersão do leitor em “outras histórias”.
Como está em Burke (1992), é preciso compreender o povo no passado, ouvir
outras fontes, outras versões da história. Pois, “se ao mudar a ordem das coisas
é um processo de descolonização” (FANON, 2002) − entendendo que para Frantz
J Fanon a descolonização acontece num contexto colonial e, têm como característica
marcante, a fragmentação e a violência −,podemos aderir a um “tipo” de processo
A de descolonização: o do pensamento. Alterar, portanto, a ordem de “leituras” e
“interpretações” de narrativas e informações que nos chegam, para, assim,
L possamos, então, descolonizar mentes e imaginários.
Referências
L ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Preconceito contra a origem geográfica e
de lugar: as fronteiras da discórdia. São Paulo. Cortez, 2012.
BATISTA, Djalma. Amazônia Cultura e Sociedade. Manaus. Editora Valer, 2006.
A
BURKER, Peter (Org.). A escrita da história. São Paulo. Editora da UNESP, 1992.

CUNHA, Euclides. A margem da História. 3ª Edição, Porto: Livraria Chardron, 1922.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Tastevan, Parrissier: fontes sobre índios e seringueiros do
Alto Juruá. Rio de Janeiro. Museu do Índio, 2009.
• FANON, Frantz. Os condenados da terra. Paris. La Découverte, 2002.

431 HARDMAN, Francisco Foot. A vingança da Hiléia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a lite-
ratura moderna. São Paulo. Editora UNESP, 2009.

PIZZARO, Ana. Amazônia: as vozes do rio – imaginário e modernização. Monte Alto. Edi-
tora UFMG, 2012.
ROCHA, Hélio. Coronel Labre. São Carlos. Editora Scienza, 2016.
SOUZA, Márcio. Amazônia indígena. Rio de Janeiro. Record, 2015.
UGARTE, Auxiliomar Silva. Sertões de bárbaros: o mundo natural e as sociedades indíge-
2
nas da Amazônia na visão dos cronistas ibéricos – séculos XVI-XVII. Manaus. Valer, 2009.

0

1

8

J

A

L TRADUÇÃO E TEATRO: A PERSONAGEM BLANCHE DUBOIS, DE
A STREETCAR NAMED DESIRE, EM TRÊS TRADUÇÕES PARA O
L PORTUGUÊS DO BRASIL1

A Guilherme Pereira Rodrigues Borges (UNB)
RESUMO: Este artigo analisa três traduções brasileiras da peça teatral A streetcar
named Desire/Um bonde chamado Desejo (1947), de Tennessee Williams, para
mostrar como foram traduzidos aspectos dodiscurso da personagem Blanche
Dubois. Os elementos observados nas traduções são pontuação, itálicos, repetições,
• construções frasais e escolhas léxicas para termos específicos. Blanche, na tradução
432 de Brutus Pedreira (1976), é uma personagem resignada a sua posição, monótona
e enfadonha, a julgar especialmente pela falta, na tradução, das inflexões e ênfases
• presentes nos diálogos e da pontuação do texto de partida. A Blanche de Vadim
Nikitin (2004) está mais alinhada ao texto de partida. Muito da caracterização
da personagem está na sutileza de uso de itálicos e de pontuação característica,
recursos que receberam atenção especial do tradutor. Beatriz Viégas-Faria (2008)
também demonstra um grande zelo ao traduzir as falas de Blanche, que, às vezes,
2 ficam até mais dramáticas que as da Blanche de Williams.
Palavras-chave: Tradução Dramática. Múltiplas Traduções. Monólogos. Tennessee
0 Williams. Um bonde chamado Desejo.
Introdução
1 Este trabalho tem como objetivo descrever e analisar três traduções do
inglês para o português do Brasil da peça teatral A streetcar named Desire (1947),
8 do dramaturgo estadunidense Tennessee Williams (1911-1983). Nessa análise,
considera-se como três tradutores traduziram características do discurso da
personagem principal da peça, Blanche Dubois, com base em dois de seus mais
relevantes monólogos.
A primeira tradução brasileira de Streetcar (referida nessa forma abreviada
ao longo deste artigo), de Brutus Pedreira, foi publicada em 1976 pela editora Abril
1  Este artigo se refere à pesquisa desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-graduação em Estudos
da Tradução (POSTRAD), da Universidade de Brasília (UnB) sob orientação da Profa. Dra. Válmi
Hatje-Faggion. Na dissertação (BORGES, 2017), há um panorama mais completo e um estudo mais
aprofundado sobre as traduções da obra em questão.
Cultural, em São Paulo. A segunda, de Vadim Nikitin, foi publicada em 2004 pela
editora Peixoto Neto, em São Paulo. A terceira, de Beatriz Viégas-Faria, foi publicada
em 2008 pela editora L&PM, em Porto Alegre, sendo que a edição analisada neste
trabalho é uma reimpressão de 2011. As três traduções receberam o mesmo título:
Um bonde chamado Desejo. A edição do texto de partida em inglês adotada como
referência de comparação é a versão “definitiva” da peça publicada em 2004 pela
editora New Directions, em Nova York, nos Estados Unidos.
J A peça Streetcaré uma das mais celebradas da tradição teatral norte-
americana e carrega o status de tesouro nacional da cultura estadunidense,
A com a personagem Blanche Dubois tendo se tornado um elemento marcante da
cultura popular norte-americana, perdurando com o passar do tempo e sendo
L recriada pelas diferentes gerações. No Brasil, desde cedo, essa peça teve várias
encenações de grande porte, envolvendo importantes figuras atuantes no meio

cultural brasileiro. Por exemplo, em 23 de junho de 1948, apenas 6 meses e 20
L dias após o lançamentonos Estados Unidos, foi sua estreia nos palcos do país, no
Rio de Janeiro, traduzida por Carlos Lage com o título Uma rua chamada pecado.
A Nessa ocasião, a peça traduzida foi dirigida por Zbigniew Ziembinski e estrelada
pela companhia teatral “Os Artistas Unidos”, da aclamada atriz francesa Henriette
Morineau (1908-1990), que interpretou Blanche na produção.
Para constatar como a personagem em questão tem sido recriada e
apresentada no Brasil, o ponto de partida é o estudo e a comparação das referidas
• três traduções publicadas da peça e do texto de partida em inglês. Contudo, é
433 importanteconsiderar que Streetcar é um trabalho que foi, em princípio, idealizado
e escrito com o objetivo de ser apresentado nos palcos de Nova York, na década de

1940, e que duas das traduções brasileiras em análise foram realizadas para serem
levadas aos palcos no Brasil (a de Pedreira, que estreou em Salvador em 1959, e a
de Nikitin, no Rio de Janeiro, em 2002) e as suas publicações em formato de livro
vieram somente mais tarde.

2 Blanche sempre foi a figura que impulsionou a peça, em torno de qual


toda a obra foi estruturada, desde o seu início. Como Williams relata em suas
memórias (1975, p. 86), Streetcar teve origem em uma cena chamada Blanche’s
0 chair in the moon, escrita no ano de 1944 pelo autor. Nessa cena, sentada sozinha
em uma cadeira ao luar, em uma cidade quente do sul dos Estados Unidos, Blanche
1 espera o namorado que nunca aparece.
No enredo da peça, Blanche é uma Southern Belle, uma bela sulista,
8 que já perdeu o seu primor. Sua família é de origem francesa e, no passado, foi
dona de grande quantidade de terras. Blanche era professora de literatura antes
de ter sido demitida de seu posto de trabalho e se mudado para New Orleans, para
morar na casa da irmã na área menos favorecida da cidade. Esses fatos permitem
a Williams compor essa personagem de um modo extremamente lírico, com o seu
discurso permeado por alusões literárias e rebuscado o bastante para destacá-lo
dos discursos das demais personagens da peça, principalmente do de seu cunhado
e antagonista, Stanley Kowalski, decididamente mais coloquial e direto, condizente
com sua personalidade de colarinho azul, da emergente classe operária americana,
diametralmente oposta à decadente aristocracia sulista a que Blanche se atém com
todas as forças.
A tradução dramática/teatral
Considera-se que o texto dramático é um tipo textual que merece atenção
especial, já que ele faz parte de, no mínimo, dois sistemas culturais: o literário
e o teatral. De acordo com Lefevere (1992, p. 12), o sistema literário consiste de
textos (objetos) e agentes que os escrevem, reescrevem e leem. A literatura não é
J um sistema determinista, ou seja, ela não destrói a liberdade individual de leitores,
escritores e reescritores, contudo, o sistema atua com uma série de “limitações”.
A Já que o sistema literário se configura como uma das engrenagens que movimenta
determinada cultura, há fatores e mecanismos que garantem que ela não se
L desalinhe das demais engrenagens, dos demais sistemas, a fim de manter um ideal
funcionamento de todo o maquinário.
L Sirkku Aaltonen (2000) ressalta que ateorização de Lefevere (1992) sobre
a conjuntura dos sistemas literários também se aplica a dos sistemas teatrais.
Definindo o sistema em questão, Aaltonen (2000, p. 31) enfatiza que “o sistema teatral
A
[…] é, em si, uma complexa rede de subsistemas, teatros principais e marginais,
e vários subsistemas de produtores e consumidores”2,3. Uma das diferenças entre
o sistema literário e o teatral é que no segundo o número de reescritores é maior:
dramaturgos, tradutores, diretores, figurinistas, técnicos de som e luz e atores,
todos contribuem para a criação do texto teatral quando cada um o aborda a partir

de sua função. Portanto,um texto dramático que é traduzido e apresentado em
434 palcos estrangeiros passa por muitas mãos e por um longo processo de preparação
• antes de se tornar uma performance.
Como destacado anteriormente, textos dramáticos podem ser objetos
de, no mínimo, dois sistemas (literário e teatral), sendo, então, governados pelas
convenções e parâmetros de ambos, que regulam a criação, a circulação e a recepção
de obras, cada um a seu modo. Segundo Aaltonen (2000, p. 33), textos dramáticos
2 podem pertencer aos dois ou a apenas um dos sistemas, havendoa possibilidade de
se moverem de um para o outro.
0 Segundo Susan Bassnett (BASSNETT-MCGUIRE, 1978, p. 161), uma
obra teatral é muito mais do que um texto literário: uma peça é a combinação de
1 linguagem e gestos, unidos de uma forma harmônica. De acordo com Bassnett
(2002, p. 124), “um texto teatral é lido de modo diferente. Ele é lido como algo

incompleto, e não como uma unidade plena, já que é apenas na performance que
8 o potencial do texto é atingido”4. Nessa via de argumentação, Mary Snell-Hornby
(1997) propõe entender o texto dramático comparando-o a uma partitura musical
que só atinge o seu potencial na união com instrumentos e músicos.
Bassnett aborda alguns dos problemas específicos da tradução teatral,
2  AALTONEN, 2000, p. 31, “the theatrical system [...] is in itself a complex network of subsystems,
mainstream and fringe theatres, as well as various producer and consumer sub-systems.”
3  Todas as traduções de citações de textos em língua estrangeira são de minha autoria.
4 BASSNETT, 1980/2002, p. 124 “a theatre text is read differently. It is read as something
incomplete, rather than as a fully rounded unit, since it is only in performance that the full potential
of the text is realized.”
já afirmando que um texto dramático não pode ser traduzido do mesmo modo que
um texto em prosa, citando, por exemplo, a complexa relação entre o diálogo e
os demais elementos extralinguísticos da peça. Segundo essa autora (BASSNETT,
2002, p. 125), o diálogo se caracteriza por parâmetros de ritmo, entonação, timbre
e sonoridade, elementos que podem ou não estar aparentes na leitura solitária do
texto.
Segundo Bassnett (HERMANS, 1985, p. 90-91), embora haja grande
J diversidade em estratégias tradutórias de textos dramáticos, pode-se distinguir
algumas categorias e características específicas. Uma primeira estratégia, mais
A adequada ao sistema literário, seria tratar o texto teatral como uma obra literária,
sendo que essa é provavelmente a forma mais comum de tradução. O tradutor
L considera os aspectos linguísticos específicos do texto, mas não contempla questões
de movimento, de luz,de som, entre outros.

Outro tipo de estratégia, mais voltada aos palcos,seria contrária a anterior:
L
se faz uma tradução tendo em vista a dimensão performativa (performability) do
texto. Embora essa dimensão nunca tenha sido muito bem definida, essa estratégia
A parece privilegiar diálogos fluidos que os atores conseguem reproduzir sem muita
dificuldade; pode, também, acarretar na substituição de um sotaque ou dialeto
regional da cultura de partida por outro da de chegada e pode haver omissões
de passagens que são considerados muito específicas dos contextos cultural e
linguístico de partida.

A personagem no teatro
435
Para o autor Tennessee Williams (WILLIAMS, BAK; 2009, p. 77), suas
• personagens eram o centro de suas peças:
sempre começo com elas, que se formam em espírito e em corpo na minha
mente. Nada que dizem ou fazem é arbitrário ou inventado. Elas constroem
a peça ao seu redor como aranhas tecendo suas teias, como animais mari-
nhos criando suas conchas. Vivo com elas por um ano e meio ou dois e as
conheço muito melhor do que me conheço, já que eu as criei e não criei a
2 mim mesmo5.

0 De fato, como destaca Anatol Rosenfeld (CANDIDO et al., 1992, p. 23),
no teatro a personagem não só constitui a ficção, mas “funda” o próprio espetáculo

através do ator: “é que o teatro é integralmente ficção, ao passo que o cinema e a
1 literatura podem servir, através das imagens e palavras, a outros fins (documento,
ciência, jornal)”.
8 Segundo Almeida Prado (CANDIDO et al., 1992, p. 84), enquanto que
em um romance a personagem é um elemento entre vários outros, ainda que seja

o principal, “no teatro, ao contrário, as personagens constituem praticamente a
totalidade da obra: nada existe a não ser através delas”. Ambos esses gêneros,

5  WILLIAMS, BAK, 2009, p. 77, “My characters make my play. I always start with them, they take
spirit and body in my mind. Nothing that they say or do is arbitrary or invented. They build the play
about them like spiders weaving their webs, sea creatures making their shells. I live with them for
a year and a half or two years and I know the far better than I know myself, since I created them
and not myself.”
romance e teatro, “falam do homem – mas o teatro o faz através do próprio homem,
da presença viva e carnal do ator”.
De acordo com Beth Brait (1990, p. 11), já que esses são “seres de papel”,
suas existências são puramente no âmbito linguístico e não existem fora das
palavras. Quando se quer saber qualquer coisa a respeito das personagens, deve-
se “encarar frente a frente a construção do texto, a maneira que o autor encontrou
para dar forma às suas criaturas, e aí pinçar a independência, a autonomia e a
J “vida” desses seres de ficção”. Só então, se for útil e necessário, seria possível
analisar a existência e o espaço da personagem enquanto representações da
A realidade externa ao texto.
Ainda segundo Brait (1990, p. 66),
L quando pensamos nas personagens que povoam a tradição literária e que
nos tocam tão de perto que temos a impressão de terem existido numa di-
mensão que as torna imortais e capazes de falar eternamente das inúmeras
L possibilidades de existência do homem no mundo, tocamos necessariamen-
te no poder de caracterização de seus criadores.
A Através da composição de suas personagens, articula-se verbalmente “a
sensibilidade de um escritor, a sua capacidade de enxergar o mundo e pinçar nos
seus movimentos a complexidade dos seres que o habitam” (BRAIT, 1990, p. 66).
Normalmente, não há narrador no teatro, portanto, a personagem teatral
se dirige ao público de forma direta, sem mediação. De acordo com Almeida Prado

(CANDIDO et al., 1992, p. 86):
436 no teatro […] torna-se necessário, não só traduzir em palavras, tornar cons-
• ciente o que deveria permanecer em semiconsciência, mas ainda comunicá-
-lo de algum modo através do diálogo, já que o espectador, ao contrário do
leitor do romance, não tem acesso direto à consciência moral ou psicológica
da personagem.

Um desses mecanismos de revelação interior é o monólogo, uma longa


2 fala expressa por uma única personagem sem interrupção. Em alguns monólogos,
uma personagem se dirige diretamente ao público, em outros, pode estar sozinha,
falando consigo mesma (um solilóquio). Também podem ocorrer quando uma
0
personagem fala com uma pessoa (ou pessoas) imaginária(s), bem comoquando
está em interlocução com outrapersonagem (ALTERMAN, 2005).
1 Em geral, segundo Glenn Alterman (2005), monólogos bem escritos
narram experiências significativas de um modo altamente condensado, sendo assim,
8 eles podem ser pensados como os equivalentes no teatro de poesia (a forma mais
condensada de expressão literária). Elestambém têm a capacidade de transmitir
uma sensação de isolamento e, até, de indicar insanidade por parte da personagem
(os solilóquios de Hamlet são bons exemplos).
Análise do processo traduório
Tennessee Williams é reverenciado especialmente pela riqueza de suas
personagens femininas:Blanche Dubois, Alma Winemiller, Lady Torrance, Maggie,
Laura e Amanda Wingfield; e as atrizes que têm interpretado esses papéis validam a
habilidade de Williams de compor essas personagens com maestria. Como ressaltou
a atriz Maria Fernanda (Jornal do Brasil, 26 de fevereiro de 1983, caderno B, p. 8),
é muito difícil que outro autor contemporâneo tenha escrito com tanta delicadeza
e compreensão sobre a posição da mulher.
De acordo com Nancy Tischler (1977), apesar de certos personagens
masculinos chegarem perto da complexidade e da força das mulheres de Williams,
por diversos motivos, biográficos e psicológicos, suas personagens mais memoráveis
são as femininas. Blanche Dubois, de A streetcar named Desire, é, sem dúvidas,
J uma das figuras mais extraordinárias do autor.
Como enfatiza Thomas P. Adler (1990, p. 35), apesar da caracterização
A de Stanley no início da peça como um personagem vívido e despojado, que pode
facilmente conquistar as simpatias do público, Streetcar é essencialmente de
L Blanche. Se atesta isso pelo título da cena que deu origem ao drama, Blanche’s
chair in the moon, e, também, pela convicção de Elia Kazan, o primeiro diretor da
peça, de que a obra deveria ser abordada cena por cena como um patamar na
L
progressão de Blanche, de sua chegada a sua expulsão da casa da irmã.

Blanche é viúva de um marido homossexual, professora de literatura de
A língua inglesa desempregada e vítima de seu cunhado Stanley Kowalski (marido
de sua irmã mais nova, Stella). A bela sulista descende de uma família de classe
alta detentora de latifúndios, que, na moderna realidade de meados do século XX,
já não detém nenhum poder ou influência, muito menos terras ou propriedades.
Nas cenas de 1 a 3, à procura de um lugar onde finalmente fosse aceita

e pudesse ter um pouco de bem-estar, Blanche encontra hostilidade vinda de
437 pessoas que, em teoria, deveriam recebê-la de braços abertos. Já nessas cenas,
• seu cunhado a considera uma inimiga. Nas cenas de 4 a 6, Blanche acredita ter
encontrado um pretendente perfeito, Mitch, mas ele também a abandona (cena
7) após a southern belle decidir ser honesta e falar sobre o seu passado. Como a
verdade não a salvou, a personagem, então, se aliena mais ainda e entra em um
mundo de ilusão que vem a ser destruído por Stanley (cenas 8, 9 e 10). Na cena 11,
2 última da peça, Blanche é finalmente expulsa de seu refúgio.
Partindo das premissas de que a personagem é uma habitante da realidade
0 ficcional e de que a sua materialidade “só pode ser atingida através de um jogo
de linguagem” (BRAIT, 1990, p. 52), a seguir, são analisados os dois principais

monólogos de Blanche na peça, a fim de verificar como as escolhas linguísticas dos
1 três tradutores brasileiros influenciam na construção da personagem.

Os exemplos são apresentados recuados e com a referência (autor, ano
8 e página) de cada publicação abaixo do excerto. Os aspectos que são comentados
estão em negrito.
O Exemplo 1, apresentado a seguir, se refere ao primeiro de uma série
de monólogos de Blanche ao longo da peça. Como já destacado, normalmente, não
há narrador no teatro e as personagens precisam se dirigir ao público de forma
direta, sem mediação, já que o espectador e o leitor de teatro não têm acesso direto
à consciência das figuras retratadas (CANDIDO et al., 1992). No trecho,Blanche
conta para Stella as circunstâncias da perda da propriedade da família, Belle Reve,
e, em seu monólogo, fica evidente o seu horror às mortes que ela teve que presenciar
e a sua reprovação ao fato de Stella ter ido embora a deixando sozinha para lidar
com tudo isso, ato que Blanche julga como tendo sido extremamente desleal.
Exemplo 1
BLANCHE:
I, I, I took the blows in my face and my body! All of those deaths! The
long parade to the graveyard! Father, mother! Margaret, that dreadful
way! So big with it, it couldn’t be put in a coffin! But had to be burned like
J rubbish! You just came home in time for the funerals, Stella. And funerals
are pretty compared to deaths. Funerals are quiet, but deaths—not always.
Sometimes their breathing is hoarse, and sometimes it rattles, and some-
A times they even cry out to you, “Don’t let me go!” Even the old, sometimes,
say, “Don’t let me go.” As if you were able to stop them! But funerals are
L quiet, with pretty flowers. And, oh, what gorgeous boxes they pack them
away in! Unless you were there at the bed when they cried out, “Hold me!”
you’d never suspect there was the struggle for breath and bleeding. You
L didn’t dream, but I saw! Saw! Saw! And now you sit there telling me with
your eyes that I let the place go! How in hell do you think all that sickness
and dying was paid for? Death is expensive, Miss Stella! And old Cousin
A Jessie’s right after Margaret’s, hers! Why, the Grim Reaper had put up his
tent on our doorstep! … Stella. Belle Reve was his headquarters! Honey—
that’s how it slipped through my fingers! Which of them left us a fortune?
Which of them left a cent of insurance even? Only poor Jessie—one hundred
to pay for her coffin. That was all, Stella! And I with my pitiful salary at the
school. Yes, accuse me! Sit there and stare at me, thinking I let the place go!

Ilet the place go? Where were you! In bed with your—Polack!
438 (WILLIAMS, 2004, p. 21-22)
• BLANCHE
Eu tive que receber todos os golpes sozinha. Todas aquelas mortes… O
longo desfile para o cemitério. Papai, mamãe, nossa irmã, daquela ma-
neira horrível! Você só vinha para casa à hora dos enterros, Stella. E os
enterros são belos, comparados com a morte… Os enterros são calmos, e
com lindas flores. Mas as mortes nem sempre… Às vezes a sua voz é rouca.
2 Outras vezes parecem mesmo gritar: “Não, não me deixem morrer!” Como
se nós fôssemos capazes de fazê-lo! A menos que se tenha estado lá, ao lado
0 da cama quando eles gritavam, jamais se poderá imaginar que houve luta
por ar e sangue! Mas eu vi, Stella. Eu vi, eu vi. E agora você fica aí sentada
acusando-me por eu ter perdido a propriedade! Mas como é que você pensa
1 que eu paguei por todas aquelas doenças e aquelas mortes? –A morte custa
caro, Stella. E ela já tinha armado a sua tenda defronte a nossa porta.
8 Belle Rêve era o seu quartel-general. E qual deles nos deixou um centavo
que fosse da sua fortuna? E eu com meu ordenado ridículo de professora
de escola! Sim, sente-se aí e acuse-me por ter deixado perder a propriedade.
Eu deixei a propriedade perder-se? Mas onde você estava? Na cama com o
seu “polaco”!
(PEDREIRA, 1976, p. 29-30)
BLANCHE
Eu, eu, fui eu que levei todos os golpes na cara e no corpo! Todas aquelas
mortes! O longo desfile até o cemitério! O pai, a mãe! Margaret, daquela
maneira horrível! Tão cheia daquilo, nem pôde ser colocada no caixão! Teve
que ser queimada feito lixo! Você só aparecia em casa pros funerais, Stella.
E os funerais são bonitos se comparados com as mortes. Os funerais são
silenciosos, mas as mortes – nem sempre. Às vezes respiram roucas, às ve-
zes chacoalham, e às vezes até gritam: “Não me deixe ir embora!”. Mesmo os
velhos às vezes dizem: “Não me deixe ir embora”. Como se a gente pudesse
impedir! Mas os funerais são silenciosos, têm flores bonitas. Ah, e em que
caixas magníficas eles são embalados! Quem não estava lá, à beira da cama,
quando eles gritavam: “Me segura!”, nem imagina que eles lutavam pra res-
pirar e perdiam sangue. Ninguém nem sonha, mas eu vi! Eu vi! Eu vi!E
J agora você fica aí sentada, os seus olhos me dizendo que eu deixei tudo ir
embora! E como é que você acha que a conta de tantas doenças e mortes foi
paga? A morte custa caro, Miss Stella! E a velha tia Jessie logo depois de
A Margaret! Ora, a Grande Ceifeira armou a sua tenda à nossa porta!… Stella.
Belle Reve era o seu quartel-general! Querida – foi assim que tudo escorreu
L pelos meus dedos! Quem é que nos deixou uma herança? Quem é que nos
deixou um centavo de seguro que fosse? Só a tia Jessie, coitada – o bastante
pra pagar o próprio caixão. Foi assim, Stella! E eu com o meu salário mi-
L serável de professora. Pode me acusar! Fique aí sentada olhando pra mim,
achando que eu deixei tudo ir embora! Eu deixei tudo ir embora? E onde é
que estava você? Na cama com o seu – polaco!
A
(NIKITIN, 2004, p. 56-57)
BLANCHE – Eu, eu, eu levei os golpes na minha cara e no meu corpo! To-
das aquelas mortes! O desfile que não tem mais fim até o cemitério! O pai,
a mãe! Margaret daquela maneira horrível! Tão inchada com aquilo que não
cabia no caixão! E teve de ser queimada como lixo! Você só ia para casa a
• tempo de acompanhar os enterros, Stella. E os enterros são bonitos, em
comparação com a morte. Os enterros são silenciosos, mas as mortes… nem
439
sempre. Às vezes a respiração deles é rouca, e às vezes é agitada, estrépita,
• como um chocalho de serpente, e às vezes eles até mesmo pedem para você,
gritando: “Não me deixe morrer!” Até mesmo os velhos, às vezes, dizem:
“Não me deixe morrer”. Como se você fosse capaz de impedir que se fossem!
Mas os enterros são silenciosos, com flores bonitas. E também, ah, os es-
quifes maravilhosos onde eles são acomodados! A menos que você estivesse
ao lado da cama onde eles gritavam: “Me abrace!”, você jamais suspeitaria
2 que houve uma batalha por respirar e que houve sangramento. Você nem
sonhava, mas eu vi! Eu vi!Eu vi!E agora você fica aí sentada me dizendo
0 com esses seus olhos que eu perdi Belle Reve! Que inferno! Como é que você
pensa que se pagou tanta doença e tanta morte? Morrer custa caro, dona
Stella! E o enterro da velha prima Jessie foi logo depois do da Margaret, do
1 enterro dela! Ora, o Esqueleto Sinistro de Foice na Mão tinha acampado
na nossa porta!… Stella. Belle Reve era o quartel-general dele! Querida… foi
assim que ela escapou das minhas mãos! Qual deles nos deixou uma for-
8 tuna? Qual deles nos deixou um centavo que fosse de seguro de vida? Só a
pobre Jessie… cem dólares para cobrir os gastos com o ataúde. Isso foi tudo,
Stella! E eu, com meu salário mirrado de professora. Sim, pode me acusar!
Fique aí sentada e olhe para mim, pensando que eu perdi Belle Reve! Eu
perdi Belle Reve? Onde é que você estava? Na cama, com o seu… polaco!
(VIÉGAS-FARIA, 2008, p. 30-31)

Ao analisar a extensão dos trechos apresentados das três traduções,


percebe-se a falta de partes do texto de partida na tradução de Pedreira. Pedreira
omite a ênfase inicial da personagem que se dá com a repetição do pronome “I, I,
I”, a descrição da terrível morte de Margaret (“burned like rubbish”), a repetição de
“Don’t let me go”, o trecho que diz que funerais são silenciosos e com belas flores,
ao contrário das mortes (“funerals are quiet, with pretty flowers...”), o grito de “Hold
me”, “You didn’t dream”, a menção da “Cousin Jessie” e o trecho “Honey—that’s
how it slipped through my fingers!”. Nikitin e Viégas-Faria traduzem o monólogo por
completo.
Algo a se ressaltar neste trecho é a pontuação usada por Williams de modo
peculiar, sobretudo o emprego de traços e de grifos em itálico. Segundo Vanoye e
J Taylor (1987), autores modernos habilmente fazem uso de sinais de pontuação e
de vários recursos tipográficos tendo fins expressivos. Essas escolhasno texto de
A Williamsevidenciamuma atenção especial do dramaturgoao ritmo e à entonação de
seu texto e uma preocupação de que esses elementos sejam apreensíveis na leitura.
L Segundo Trask (1997), o traço (—) indica uma interrupção forte e abrupta.
Lukeman (2006) afirma que esse sinal sempre coloca seus elementos circundantes
em evidência. No monólogo do Exemplo 1, os traços parecem indicar hesitação
L
da personagem, como se ela estivesse se segurando para não dizer o que vem em
seguida, mas não conseguindo. Se atesta isso sobretudo no último traço do trecho
A que antecede o uso do termo “polack”, pejorativo em inglês para se referir a Stanley.
ParaPeter Douglas (2009), o uso do itálico, especialmente na língua inglesa e em
textos literários, é um recurso tipográfico que representa ênfase através de picos
de entonação. No trecho apresentado, os itálicos marcam palavras especialmente
carregadas da emoção que Blanche quer transmitir à irmã.
• O uso de pontuação no texto de partida não deve ser desmerecido e
440 qualquer tradutor deve estar preparado para analisar a relevância desses recursos
• e, só então, tomar uma decisão de manter, modificar ou omitir os elementos de
pontuação do autor. Pedreira não reproduz nenhum dos itálicos e nem os traços
indicativos de pausa em sua tradução. Nikitin recria esses elementos (e toda a
organização gráfica do texto) com mais consideração. Viégas-Faria mantém os
termos em itálico, mas adapta os traços como reticências, o principal sinal de
2 pontuação em português para se indicar pausas.
Ainda referente ao Exemplo 1, o vocabulário do trecho é extremamente
emotivo e carregado do horror que a personagem teve de vivenciar na ausência da
0
irmã. Os substantivos, adjetivos e verbos que predominam no excerto estão todos
no campo semântico da morte, da dor e do sofrimento que ela acarreta: deaths,
1 graveyard, dreadful, coffin, burned, funerals, breathing, cry out, bleeding, sickness,
dying, Grim Reaper, entre outros.
8 Esse fato é relevante, pois a morte é um assunto que, cada vez mais,
tem sido abordado de forma idealizada, abstrata e distanciada: já não se morre
mais em casa e, certamente, não se enterra os entes falecidos na propriedade em
que se vive. O que Blanche descreve em brutais detalhes (os parentes gritando e
se agarrando à vida com todas as forças) de fato causa um efeito forte na leitura,
ressaltado sobretudo pelos elementos gráficos já abordados.
Dos vocábulos predominantes apresentados, um deles chama atenção
por se constituir como um termoum tanto carregado de significação histórica e
cultural: a personificação da morte na figura do “Grim Reaper”, oriunda da época
em que a peste negra devastava a Europa durante a Idade Média. Geralmente, essa
figura é retratada como um esqueleto coberto com um manto preto carregando
uma enorme foice para colher as almas de suas vítimas. Pedreira omite o termo,
subordinando a frase em que se espera que ele apareceria à frase anterior: “A
morte custa caro, Stella. E ela já tinha armado a sua tenda defronte a nossa porta”.
Nikitin traduz Grim Reaper por “a Grande Ceifeira” e Viégas-Faria, seguindo uma
estratégia de tradução mais explicativa, por “o Esqueleto Sinistro de Foice na Mão”.
J Em relação ao tipo de períodos, os exclamativospredominam no
fragmento do Exemplo 1. Entretanto, aparecem também perguntas retóricas e
A frases declarativas. Em sua tradução, Pedreira omite diversas dessas exclamações,
como, por exemplo, no início do monólogo: “I, I, I took the blows in my face and my
L body! All of those deaths! The long parade to the graveyard!”; “Eu tive que receber
todos os golpes sozinha. Todas aquelas mortes… O longo desfile para o cemitério.”

Para traduzir as três exclamações, Pedreira opta por pontos finais e reticências. Já,
L Nikitin e Viégas-Faria reproduzem as exclamações em suas traduções.
Os períodos, frases e orações no trecho de texto são, predominantemente,
A de tamanho mais reduzido: Blanche tenta expressar diversos pensamentos ao
mesmo tempo. Além desses períodos mais curtosconstituíremmarcas de oralidade
no texto, a incapacidade de Blanche de articular construções mais complexas
e longas e de organizar sua linha de raciocínio é uma das características que
servem para ressaltar o estado psicológico da personagem que não está nada
• bem, considerando a situação em que se encontra na narrativa (desempregada,
441 sem dinheiro e vivendo de favor na casa suburbana da irmã). Como já destacado,
Pedreira omite alguns desses períodos mais curtos e sua tradução perde um pouco

desse caráter apresentado. O mesmo não ocorre nas traduções de Nikitin e Viégas-
Faria que seguem, estruturalmente, de modo mais alinhado o texto de partida com
suas multiplicidade de fatores.
Um último elemento a se destacar do Exemplo 1 é a tradução de “Miss
2 Stella” em “Death is expensive, Miss Stella!”. Esse é um monólogo em que Blanche
está expondo ressentimentos e mágoas por ter sido abandonada pela irmã,
dizendocoisas que provavelmente a personagem queria ter dito há muito tempo.
0 Há passagens em que a personagem usa ironia para se comunicar, deixando clara
a sua reprovação pela atitude da irmã, por exemplo, quando destaca o quanto
1 funerais são bonitos. Outro exemplo é a passagem em questão em que a personagem
se refere a sua irmã com o pronome de tratamento em inglês “Miss”, com uma
8 polidez/simpatia forjada.
Pedreira omite esse elemento, traduzindo a frase como “A morte custa caro,
Stella.” (substituindo também a exclamação por ponto final). Nikitin transcreve o
termo em inglês: “A morte custa caro, Miss Stella!”. Viégas-Faria traduz “Miss” por
“dona”: “Morrer custa caro, dona Stella!”. Há uma nota na tradução de Nikitin (2004,
p. 250) em que o tradutor afirma que optou por empregar “pequenos anglicismos
estilísticos” nas falas de Blanche, considerando que a linguagem da personagem é
única.
O Exemplo 2 apresenta outro importante monólogo de Blanche Dubois,
também direcionado a sua irmã Stella. O trecho de texto se encontra na cena 4
da peça e, nele, a personagem deixa claro o grau de sua aversão a Stanley que,
para ela, não passa de um animal, de uma criatura pré-histórica. Blanche não
entende a intensidade da atração física entre sua irmã e o marido e tenta convencê-
la a abandoná-lo. Stella tenta encerrar a discussão dizendo que ama Stanley e,
Blanche, desesperada para convencer sua irmã, articula a seguinte fala:
Exemplo 2
BLANCHE:
J He acts like an animal, has an animal’s habits! Eats like one, moves like
one, talks like one! There’s even something—sub-human—something
not quite to the stage of humanity yet! Yes, something—ape-like about
A him, like one of those pictures I’ve seen in—anthropological studies!
Thousands and thousands of years have passed him right by, and there he
L is—Stanley Kowalski—survivor of the stone age! Bearing the raw meat home
from the kill in the jungle! And you—you here—waiting for him! Maybe he’ll
strike you or maybe grunt and kiss you! That is, if kisses have been dis-
L covered yet! Night falls and the other apes gather! There in the front of the
cave, all grunting like him, and swilling and gnawing and hulking! His pok-
A er night!—you call it—this party of apes! Somebody growls—some creature
snatches at something—the fight is on! God! Maybe we are a long way from
being made in God’s image, but Stella—my sister—there has been some
progress since then! Such things as art—as poetry and music—such kinds
of new light have come into the world since then! In some kinds of people
some tenderer feelings have had some little beginning! That we have got to
• make grow!And clingto, and hold as our flag! In this dark march toward
whatever it is we’re approaching…Don’t—don’t hang back with the brutes!
442
(WILLIAMS, 2004, p. 83)
• BLANCHE
Ele age como um animal. Tem hábitos de animal. Come, fala, anda como um
animal. Há nele qualquer coisa de sub-humano, qualquer coisa de gorila
como nesses quadros antropológicos que a gente vê por aí. Milhares e
milhares de anos se passaram e aí está ele: Stanley Kowalski, o único sobre-
2 vivente da Idade da Pedra trazendo para casa a carne fresca da matança da
floresta! E você… você aqui… esperando por ele? Talvez ele a ataque ou
talvez grunha e beije você! Isto é, se já tiver descoberto o beijo. A noite cai e
0 os outros gorilas se reúnem lá na cova da frente, todos grunhindo, bebendo;
estraçalhando-se com ele. A sua “noite de prazer” como você chama a sua
1 reunião de gorilas! Alguém rosna… Alguma criatura bota a mão em alguma
coisa… E lá vem a briga! Meu Deus, Stella, talvez nós estejamos muito longe
de sermos feitos à imagem de Deus. Mas, Stella, minha irmã, houve algum
8 progresso no mundo desde então. Coisas como a arte, a poesia, a música,
uma espécie de nova luz apareceu… Em algumas pessoas sentimentos mais
nobres começaram a surgir… E são esses sentimentos que devemos culti-
var. E fazer com que eles cresçam em nós, e agarrarmo-nos a eles, e fazer
deles a nossa bandeira, nossa marcha escura, para onde quer que esteja-
mos indo… Não, Stella. Não fique para trás com os brutos.
(PEDREIRA, 1976, p. 101-102)
BLANCHE
Ele age como um animal, tem hábitos de animal! Come como um animal,
anda como um animal, fala como um animal! Existe até alguma coisa de
– subumano – nele, alguma coisa que ainda não chegou ao nível da huma-
nidade! Sim, alguma coisa de macaco nele, como naqueles quadros que eu
vi uma vez – naqueles estudos antropológicos! Milhares e milhares de anos
passaram direto por ele, e aí está – Stanley Kowalski – um sobrevivente da
Idade da Pedra! Trazendo pra casa a carne crua da matança na selva! E
você – você aqui – esperando por ele! Talvez ele ataque você, ou talvez
beije você entre grunhidos! Isso se o beijo já tiver sido inventado! A noite cai
e os outros macacos se reúnem! Lá, na frente da caverna, todos grunhindo
como ele, se encharcando, se mordendo, se empanturrando! A noite de pô-
J quer dele – como você diz – a festança da macacada! Alguém rosna – uma
criatura bota a mão em alguma coisa – e pronto, começa a guerra! Deus!
Talvez nós ainda estejamos muito longe de ser feitos à imagem de Deus,
A mas, Stella – minha irmã – houve algum progresso desde então! Coisas como
a arte – como a poesia e a música – uma nova espécie de luz veio ao mundo
L desde então! Em alguns tipos de pessoas começaram a surgir sentimentos
mais delicados! Sentimentos que nós temos que fazer crescer! Nos agarrar-
mos a eles, e segurá-los como a nossa bandeira! Nessa estrada escura que
L nos leva sei lá pra onde… Não – não fique pra trás com as bestas!
(NIKITIN, 2004, p. 125)
A Blanche –Ele se comporta como um animal, tem hábitos de animal.
Come, caminha, fala, tudo como um bicho! Tem até mesmo alguma coisa…
subumana… alguma coisa que ainda não atingiu o estágio de humanidade.
Sim, tem algo… simiesco nele, como num daqueles desenhos que eu vi…
nas aulas de antropologia! Milhares e milhares de anos se passaram ao lar-
go para ele, e eis que temos… Stanley Kowalski… sobrevivente da Idade da
• Pedra! Trazendo carne crua para casa quando chega da matança na selva!
E você… você aqui… esperando por ele. Talvez ele bata em você, ou talvez
443
dê uns grunhidos e beije você! Quer dizer, se é que os beijos já foram desco-
• bertos! Cai a noite e os outros símios se reúnem! Ali na frente da caverna,
todos grunhindo que nem ele, todos uns brutamontes, uns beberrões, uns
roedores. A noite do pôquer… é assim que você chama… essa reunião de ma-
cacos! Alguém solta um rosnado… alguma criatura arrebanha uma coisinha
qualquer… e começou a luta! Meu Deus! Talvez nós estejamos todos muito
longe de termos sido feitos à imagem e semelhança de Deus, mas Stella…
2 minha irmã… já houve algum progresso desde o tempo dos macacos! Coisas
como as artes… poesia e música… toda espécie de novos conhecimentos vie-
0 ram a iluminar este mundo desde então! Em alguns tipos de gente já houve
um comecinho de alguns sentimentos de maior ternura. Que nós temos de
fazer crescer!E temos de nos apegar a eles, e cuidar deles como cuidamos
1 da nossa bandeira nacional! Nessa marcha sombria em direção a seja o que
estiver se aproximando… Não… não fique para trás, não fique com os brutos!

8 (VIÉGAS-FARIA, 2008, p. 78-79)

Otexto de partida no Exemplo 2apresenta 21 frases exclamativas.



Para traduzi-las, Pedreira mantém apenas 4 exclamações, Nikitin reproduz as
exclamações em seu texto eViégas-Faria também omite algumas das exclamações,
porém, em menor grau, preservando 15 em sua tradução. Destaca-se o trecho “And
you—you here—waiting for him!”, que é uma acusação bem carregadade Blanche à
irmã, a se atestar pelos itálicos no texto de partida no segundo “you” e em “waiting”,
indicando ênfase no trecho. Pedreira traduziu a passagem como uma pergunta: “E
você… você aqui… esperando por ele?”, ao passo que, Viégas-Faria, como uma
frase declarativa: “E você… você aqui… esperando por ele.”.
Segundo Trask (1997), na língua inglesa, o ponto de exclamação é usado
no final de um período ou frase curta que expressa um sentimento muito forte.
Trask também ressalta que esse tipo de pontuação não deve ser usado a menos
que seja totalmente necessário. Moreno (2010, p. 121) destaca que, na literatura,
onde se admite uma linguagem expressiva, o uso dessa pontuação é consagrado
para assinalar algum tipo de emoção e também chama atenção para o abuso de
exclamações praticado por muitos escritores medíocres, que enchiam seus textos
J desses pontos “para sugerir uma riqueza de conteúdo que suas frases, na verdade,
não tinham”.
A Considerando que esse tipo de pontuação tende a ser usado apenas
quando é absolutamente necessário e que o trecho de texto em questãoé um
L monólogo em que são evidenciados os motivos principais do conflito dramático da
peça, sua manutenção se mostra importante e a tradução de Nikitin se sobressai

nesse aspecto.
L
Ainda em relação ao Exemplo 2, Pedreira tende a juntar e aglutinar
algumas das curtas orações do trecho formando frases maiores em português, por
A exemplo: o trecho “There’s even something—sub-human—something not quite to the
stage of humanity yet! Yes, something—ape-like about him, like one of those pictures
I’ve seen in—anthropological studies!” que é traduzido por “Há nele qualquer coisa
de sub-humano, qualquer coisa de gorila como nesses quadros antropológicos que
a gente vê por aí”. Como destacado anteriormente, as frases curtas e truncadas
• (com muitas pausas) de Blanche são um importante indicador do estado mental da
444 personagem. Nikitin e Viégas-Faria tendem a reproduzir mais essas características.
• Na tradução de Viégas-Faria, há que se ressaltar o uso de determinados
termos e expressões como “simiesco” e “símios” que são de caráter técnico das
áreas de biologia e antropologia para se referir a chipanzés, gorilas, orangotangos,
etc. A sutileza de uso desses termos é um dos fatores que indicam o cuidado da
tradutora em compor um discurso mais fino e rebuscado para Blanche.
2 Considerações finais
Neste artigo, foram analisadas três traduções do inglês para o português
0 do Brasil da peça teatral A streetcar named Desire (1947), do dramaturgo
estadunidense Tennessee Williams (1911-1983). As traduções, de título Um bonde
1 chamado Desejo, são de autoria de Brutus Pedreira (Abril Cultural, 1976), Vadim
Nikitin (Peixoto Neto, 2004) e Beatriz Viégas-Faria (L&PM, 2008).

Foi abordadoprincipalmenteo discurso da personagem Blanche Dubois, e
8
foram analisadas as traduções de dois de seus mais famosos monólogos. A análise
realizadateve o propósito de demonstrar que as escolhas dos tradutores efetivadas
textualmente produzem um efeito e têm implicações na leitura do texto, seja para
o bem, seja para o mal.
Como destacado por Theo Hermans (1985), toda tradução implica em
um grau de manipulação do texto de partida para um determinado fim. É visível
que a manipulação de Pedreira implicou em um empobrecimento considerável do
texto em função das inúmeras omissões de aspectos relevantes que o tradutor fez.
Essa tradução foi realizada para o palco, para ser encenada, em 1959. Pedreira
faleceu em 1964 e, como sua tradução só foi publicada em 1976, o tradutor não
pôde revisá-la ou prepará-la para ser editada em formato de livro como fez Vadim
Nikitin.
Blanche Dubois, na tradução de Pedreira, é uma personagem rasa,
insossa, submissa e resignada à sua posição decadente. Parece que, desde o início
da narrativa, ela já se sente derrotada e, por isso, desistiu de lutar. É uma Blanche
monótona e enfadonha. Tudo isso a julgar especialmente pela falta, na tradução,
J das inflexões e ênfases presentes nos diálogos (marcadas em itálico) e da pontuação
(das exclamações e das pausas) do texto de partida, haja vista a importância desses
A elementos.
A impressão que fica é que o texto passou por pouco ou por nenhum
L trabalho de edição, nem de cotejo com o texto de partida antes de ser publicado.
Parece que a edição é apenas uma reprodução do manuscrito que o tradutor fez
tendo em vista o palco, provavelmente sem imaginar que seu texto seria publicado.
L
Nikitin conseguiu recriar em sua tradução muitos dos elementos que
a tradução de Pedreira omitiu, como é o caso do uso de itálicos e da pontuação,
A recursos que o tradutor reconhece que são de suma importância no texto e na obra
de Williams. Em relação à Blanche de Nikitin, ela é muito diferente da Blanche
de Pedreira. Como demonstrado, muito da caracterização da personagem está na
sutileza de uso de itálicos e de pontuação característica. Como esses recursos
receberam atenção especial do tradutor, Blanche, na tradução, se assemelha à do
• texto de partida. Em relação a seu discurso, Nikitin atesta a sua particularidade e
445 emprega, por exemplo, o uso de anglicismos pontuais como pronomes de tratamento
• (mister e miss) na fala da bela.
A tradução de Nikitin foi primeiramente feita para o palco, para o sistema
teatral, mas que migrou e se adequou muito bem ao sistema literário, algo que não
aconteceu com a tradução de Pedreira. É óbvio que ler o texto traduzido de Nikitin
não é a mesma coisa que assisti-lo apresentado no palco por atores experientes
2 e com bom domínio da obra, mas, através da leitura, é possível captar no texto
elementos que só seriam apreensíveis no teatro.
0 A tradução de Beatriz Viégas-Faria apresenta características opostas à
tradução de Brutus Pedreira. Enquanto Pedreira faz inúmeras omissões em seu

texto, a tradução de Viégas-Faria é aumentada, com acréscimos pontuais de
1 texto pela tradutora que não estão no texto de partida. Sendo assim, seu texto se
apresenta de forma bastante explicativa e didática. Muitas das adições textuais
8 da tradutora não estão marcadas como tal e são apenas inseridas no texto como
se fossem do autor Williams. Assim, apesar de ter escrito o prefácio da edição e
ter adicionado algumas poucas notas, fica invisível a maior parte do trabalho de
mediação entre o inglês e o português que Viégas-Faria realiza.
Quando se considera essa característica expansiva do texto de Viégas-
Faria junto ao seu formato de apresentação, constata-se que o volume é um tanto
acessível e de fácil consumo. A L&PM é uma das editoras no Brasil que já há anos
tem investido no formato de livros de bolso, sendo que essa foi a principal prática
que consolidou a editora gaúcha no mercado. Esse é um formato de livro mais
econômico, prático, portátil e de alta disponibilidade (pode-se encontrá-lo não só em
livrarias mas também em bancas de jornal, supermercados, rodoviárias, cafeterias,
etc.). Através desse tipo de prática editorial, ocorre uma verdadeira democratização
da literatura: a obraStreetcar, de Tennessee Williams, passou a circular no país
em um formato acessível e abordável que é refletido textualmente nas escolhas da
tradutora.
Viégas-Faria tem se dedicado ao estudo da tradução literária e teatral há
J anos. Em sua tradução de Streetcar, esse estudo diligente fica mais aparente no
zelo da tradutora ao traduzir os diálogos do texto, compondo para Blanche Dubois
A (e para os demais personagens) uma voz distinta.
Ao contrário da tradução de Vadim Nikitin, a de Viégas-Faria teve sua
L origem no sistema literário, sendo realizada especialmente para ser publicada no
formato de livro de bolso da L&PM. Acredita-se também que o texto estaria apto ao
sistema teatral, especialmente em função do trabalho da tradutora em compor as
L
personagens com bastante zelo.

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L A REPRESENTAÇÃO VISUAL DA FLORESTA E DO SACI NA LITERATURA
PARA CRIANÇAS: O FANTÁSTICO E A NARRATIVA VISUAL
L Hanna Araujo (UFAC)

RESUMO: Este artigo busca aproximar a literatura fantástica com uma narrativa
A visual criada pela artista Ciça Fittipaldi. Denominado no mercado editorial
como livro-imagem, a narrativa visual tem como característica a narração feita
primordialmente – ou exclusivamente- pela imagem. A narrativa Saci foi produzida
ao longo da pesquisa que buscava compreender os modos de interação/interferência
entre a leitura de imagem feita por crianças e a narrativa visual em processo
• de criação. A relação do ser misterioso Saci e a floresta proposta pela artista se
448 intercala com as opiniões das crianças e seus conhecimentos acerca da floresta
e seus habitantes. Buscamos observar nesta inter-relação (processo e produto)

vestígios da literatura fantástica proposta por Todorov (1992) no livro-imagem
criado por Ciça Fittipaldi. A complexificação da narrativa não prescindiu a palavra
escrita, mas trouxe elementos fantásticos, fazendo com que a leitura se pautasse
na imaginação e não naquilo que era familiar ao leitor e, neste caso específico,
leitores crianças.
2
Palavras-Chave: Processo de criação. Leitura de imagem. Literatura Fantástica.

Ciça Fittipaldi.
0
Introdução
1 Este artigo representa um excerto de nossa pesquisa de doutoramento em
Artes Visuais. Na pesquisa, o trabalho de dois artistas teve papel de destaque:Ciça
Fittipaldi e Laurent Cardon. Ambos aceitaram participar de uma criação emque
8 as opiniões e sugestões de leituras de crianças deveriam ser consultadas para que
prosseguissem o processo de criação.Na construção dos dados que tiveram por foco
a relação entre pessoas e aprática artística acabaram surgindo diversas situações.
Neste artigo optamos pelo recorte da narrativa visual Saci criada por Ciça Fittipaldi
ao longo do processo de interlocução com as crianças.
O trabalho plástico de Ciça Fittipaldi ultrapassa o que podemos chamar
de ilustração de literatura infantil. Conhecedora profunda das culturas presentes
em seu país, Ciça Fittipaldi incorpora em suas obras diferentes elementos desta
pluralidade que se irradiam nas histórias que produz com texto e/ou imagens. É
pesquisadora das visualidades e das narrativas orais indígenase afro-brasileiras.
Viveu com os índios Nhambiquaras, Xavantes e Apinajés.A diversidade cultural é
sua marca de trabalho, e esses temasperpassam toda sua obra, sendo a artista
ilustradora com uma carreira consolidada no mercado editorialbrasileiro. Convidada
para participar da pesquisa, Ciça se mostrou bastante instigada e aceitou o desafio
com muita empolgação. Em quatro meses de trocas com as crianças, mediadas pela
professora/pesquisadora, exercitou-se como artista empenhada em ouvir e perceber
J a leitura que as crianças faziam a cada grupo de imagens que lhes era apresentado.
A construção da narrativa estava atrelada à leitura das crianças, podendo a artista
escolher os elementos a serem usados na história. Em movimentos alternantes de
A
acordo com o desenvolvimento narrativo, acolhia a opinião das crianças e seguia o
caminho por elas proposto ou direcionava a narrativa para o improvável num jogo
L dinâmico com seus leitores.

L A imagem narrativa

Os livros para crianças elaborados por Ciça Fittipaldi vão de encontro


com o que acreditamos que deva ser um produto cultural destinado à infância:
A alargadores da cultura que possibilitam a construção de sentidos entre a criança
e o mundo em que vive. Neste aspecto, a artista expande essas possibilidades na
medida em que busca representar a floresta e seus habitantes de maneira não
estereotipada e simplista. A floresta representada por Ciça tem vigor e profundidade.
Cria a ambiência própria da mata, com seus matizes e texturas. Na imagem abaixo
• (Figura1) temos uma pequena dimensão do trabalho da artista ao representar a
449 Amazônia.

2

0 Figura 1: Ciça Fittipaldi, 2008. Imagem do livro “Quem tem medo do Mapinguary?”, escrito por Vássia Silveira.

1 A relação profunda da artista entre seu trabalho artístico e os sujeitos/
culturas/lugares que serão objetos de seu trabalho faz com que ela deixe o ateliê
8 e busque imersões que embasem seu trabalho e possam dar a dimensão precisa
daquilo que será representado. Nas interações com os indígenas, por exemplo,
o traço do seu desenho foi alterado. Buscar outros modos de representação se
mostraram necessários. Essa pesquisa das culturas perdura em seus mais de
trinta anos de carreira.
Clássico da literatura para crianças é a Série Morená, a partir da qual, na
década de 1980, Ciça apresentou histórias de diferentes povos indígenas. A imagem
a seguir (Figura 2) faz parte do livro Naro, o gambá, mito dos indíosyanomamis. A
partir de um traço simples e expressivo, Ciça traz o universo dos mitos indígenas
a partir do modo de representação gráfica da floresta e seus seres próximos aos
modos característicos de representação dos indígenas.

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• Figura 2: Ciça Fittipaldi, 1986.Imagem do Livro “Naro, o gambá”, texto e ilustrações de Ciça Fittipaldi.

450
A carga narrativa presente na imagem faz com que nosso olhar circule
• buscando sentidos nos diferentes pontos da composição. É possível apreender
significados na narrativa (seja ela em uma imagem ou em sequência) apesar da
ausência da palavra escrita. Os significados são inseridos de modo intencional
pelo autor epossuem coerência em sua composição. As narrativas visuais, deste
modo, nãosão “sem texto” como são diversas vezes descritas. Ainda que o texto
2 escritoesteja ausente, os elementos físicos e visuais são organizados por palavras,
esuscitam palavras no processo de constituição de sentidos.Ciça Fittipaldi tem
0 algumas publicações nas quais reflete sobre aleitura da imagem narrativa e as
relações que estabelecemos neste exercício:

Com um ‘tempo de passeio’ do olhar sobre a imagem, outros seres podem
1 juntar-se ao trânsito esvoaçante daquele mundo, vindos da mente de quem
lá se intromete e reelabora, redesenha,projetando novos espaços, incluindo
8 novas gentes, bichos e objetos, fazendo acontecer a história, viajando sob a
influência discreta e frágil das cores suaves e pálidas [...] nesse processode
leitura visual da narrativa. (VESSANI1, 2008, p.98)

Para Ciça Fittipaldi, o espaço da narrativa visual extrapola a


linearidadecronológica pois“lá, o espaço desconhece a hierarquia formal que
cria a ilusão de realidade; é um espaço lúdico, mas convincentemente habitável,
que propõe uma realidade própria, específica: a alternativa visual engendrando
acontecimentos”. (VESSANI, 2008, p. 97)Nesse vasculhar de sentidos das
1  Ciça Fittipaldi é o nome artístico de Maria Cecília Fittipaldi Vessani. Optamos, no entanto,empregar
seu nome artístico no artigo.
narrativas, construímos significados e encontramos diversas possibilidades de
interação e afeto.Ainda, para a artista, “única em cada ato de leitura, a experiência
narrativa compreende e refaz continuamente nossas visões de mundo, de pessoa e
de realidade” (VESSANI,2008, p.102), modificando-se e modificando-nos, em cada
uma das leituras. Deste modo, o livro-imagem se mostra como um importante
suporte para a narrativa e para a aquisição de leitura.

A concepção contemporânea do livro-imagem, que aos poucos se


J delineia, amplia e valoriza as possibilidades de criação e fruição. Os livros-imagem
demonstram que constituem um gênero particular disponível para diferentes
A olhares. Considerando as crianças leitoras, a predominância da imagem no
desenvolvimento narrativo contribui para a aquisição de habilidades diversas; o
L gênero não se limita à aquisição da oralidade, mas corrobora para a aquisição da
linguagem global, para a fruição estética e para a contemplação da arte.
L A Floresta e o Saci de Ciça Fittipaldi em aproximação com a Literatura
Fantástica
A Utilizada como modo de transmissão de informação aos iletrados,visto sua
acessibilidade e exatidão, a imagem foi historicamente empreendida“para instrução
antes mesmo do desenvolvimento da narrativa sequencial”(GOMBRICH, 2012). O
uso da imagem como mecanismo de transmissão de conhecimento é difundido há
muitosséculos. Michel Melot (1984, p.83), a propósitoda imagem como linguagem,
• diz que
A imagem tem uma vantagem em relação à escrita: ela ignora abarreira das
451
línguas. Mas o que ela tem, sobretudo, é a exatidão.Ela é a verdadeira lin-
• guagem do empirismo e da observaçãodireta, e se aplica também nos trata-
dos de mecânica, de ótica ou astronomia.

Buscamos observar nesta inter-relação (processo e produto) vestígios da


literatura fantástica proposta por Todorov (1992) no livro-imagem criado por Ciça
Fittipaldi. Na medida que a complexificação da narrativa não prescindiu a palavra
2 escrita mas trouxe elementos fantásticos, fez com que a leitura se pautasse na
imaginação e não naquilo que era familiar ao leitor e, neste caso específico, leitores
0 crianças. Na sequência visual nascida da interação crianças-artista as imagens
são autônomas, expressivas e, sobretudo, detentoras de toda a carga narrativa.
1 Como propõe Todorov (1992) na busca de explicitar o fantástico, o assombro, o
deslumbre, a busca de significados permeou esse processo não apenas na presença
de acontecimentos estranhos na obra, mas implicaram profundamente os modos
8
que as crianças realizavam a leitura.
Na interação com as crianças, instigada pela leitura ampla e criativa
expressa na leitura das crianças, Ciça Fittipaldi criou 22 imagens em sequência
narrativa. A história narra as transformações de uma saci azul que sai de uma caixa
e se metamorfoseia no contato com diferentes elementos. O enredo da narrativa foi
se constituindo na medida em que as trocas entre a artista e as crianças iam sendo
feitas. A primeira imagem da narrativa (Figura 3) nos dá indícios de que o leitor tem
de raciocinar para compreender a proposta da artista.
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L Figura 3: Ciça Fittipaldi, 2013. 1ª página dupla de Saci.


L

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452

Figura 4: Ciça Fittipaldi, 2013.2ª página dupla de Saci.

O nascimento da personagem desestabiliza o leitor e demonstra que não


será uma leitura fácil. É preciso refletir sobre o surgimento do (da) Saci a partir
2 da caixa. Na fala das crianças é possível observar a busca de respostas para esse
surgimento: “Nossa, eu estou pensandoque tem monstro que foi na caixa e apareceu
0 um tatu.” TODOROV (1992, p. 15), ao conceituar este gênero, explica que
O fantástico ocupa o tempo desta incerteza. Assim que se escolhe uma das
1 duas respostas, deixa-se o terreno do fantástico para entrar em um gênero
vizinho: o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a vacilação experimen-
tada por um ser que não conhece mais que as leis naturais, frente a um
8 acontecimento aparentemente sobrenatural. O conceito de fantástico se de-
fine pois com relação ao real e imaginário (...).

A primeira impressão das crianças ao visualizarem o surgimento da
personagem foi de um monstro, um tatu e após um Saci, mesmo sendo azul. Pela
carência de espaço, optamos por fazer um recorte da narrativa buscando enfatizar
na representação da floresta e do Saci. Deste modo, faremos um salto na narrativa.
Na imagem a seguir (Figura5), a personagem está em processo de mudança de
cor por haver tocado em um chapéu laranja. A caixa, elemento importante da
narrativa, é tida como mágica pelas crianças.
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L

L

A Figura 5: Ciça Fittipaldi, 2013. 7ª página duplade Saci.

A fumaça venenosa da leitura das crianças se transformou em Floresta


(Figura 6). As leituras das crianças costuram-se umas às outras, de modo de que o
visto por um atiça a leitura de outro, que incrementa, e assim seguem sucessivamente.
Haviam atribuído a explicação de alguns acontecimentos à invisibilidade. A artista

vai fazer uso deste atributo fantástico na continuidade da narrativa.
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0

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Figura 6: Ciça Fittipaldi, 2013. 8ª página dupla de Saci.

A Floresta emergiu da caixa e instigou a própria personagem. Esta, por sua


vez, transformada em amarelo, coloca o leitor em suspensão, buscando respostas. “A
vacilação do leitor é, pois, a primeira condição do fantástico”(TODOROV, 1992,p.19).
A hesitação e a instabilidade são situações permanentes na leitura da narrativaSaci.
Alguns outros aspectos da literatura fantástica podem ser identificados na narrativa
visual, tais como mundos paralelos, o tempo circular e o duplo.   Com a virada
da página ficou evidente que o universo visual que écaracterístico do trabalho de
Ciça se espalhou e se fez presente nessa narrativa,na qual ela já trazia diversos
elementos recorrentes em sua poética.
Na minha opinião sempre tinha que ter uma ligação com a floresta, que a
floresta tinha que surgir. Primeiro porque eu sou uma pessoa habitada por
uma floresta. Acho que eu já fui árvore ou seria, tô me preparando. Pra mim
J não tem coisa mais bonita no universo do que árvore. Então tinha que ter!
E segundo porque o saci é um personagem da floresta. Ele mora na floresta.
Então a floresta já começa a dar sinais de vida logo que o saci sai da caixa.
A Eu já tinha premeditado antes que a floresta ia aparecer, só não sabia onde.
E aí quando a caixa se tornou uma caixa mágica, porque eles disseram pra
mim que a caixa era mágica, então se a caixa é mágica ela é uma cartola que
L posso tirar o que eu quiser, então eu tirei mais um bichinho, pensando já
num embrião de uma floresta. (FITTIPALDI, 2013b)
L
Ao mesmo tempo, a narrativa se complexificou e apresentavamudanças
rápidas, o que requeria do leitor muita atenção. A dominação do visual da floresta
A enriqueceu a experiência das crianças leitoras e também ampliou os elementos a
serem lidos.


454

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0

1
Figura 7: Ciça Fittipaldi, 2013. 8ª página dupla de Saci.

8 A personagem Saci se transformou na própria floresta (Figura 7). Nesse
momento da narrativa ascrianças perceberam realmente que a mudança de cor e
forma da personagemera um jogo que se repetia e previram mais algumas trocas.
Nesse trecho danarrativa, a história tomou outro rumo por conta da influência
das opiniõesdas crianças no enredo da artista, revelado na seguinte passagem:
“Minhahistória mudou completamente, aliás eu nem sabia que ela seria invisível,
eunem sabia que invisibilidade dela seria dentro da floresta, tudo isso veio
dainfluência deles” (FITTIPALDI, 2013b).
A expectativa em relação à virada da páginaé sempre um dos momentos
mais interessantes em nossa relação com ascrianças. Sempre direcionamos o olhar
para elas enquanto trocamos de página, pois é um momento em que a atenção das
crianças, por conta da ansiedadediante do novo, está totalmente direcionada para o
objeto de leitura. Os olhosdas crianças revelam suas impressões iniciais de leitura.
É um momento desuspensão em que as hipóteses estão em jogo e o desconhecido
se revelará. A varredura feita pelos olhos busca significados na imagem objeto de
leitura. Nas imagens a seguir (Figura 8), estão a sequência em que a artista re(a)
presenta um elemento que faz alusão ao ser misterioso Saci ou, como diziam as
J crianças: O Saci. A alternância é marca presente da narrativa. Neste momento se
faz necessário mais um salto as páginas, quando a personagem se depara com um
capuz vermelho e o coloca na cabeça. Ciça disse sobre suas expectativas:
A
E foi quando eu imaginei: se tudo tivesse no escuro e na escuridãoda mata
ela visse um capuz ela ia se intrigar: “Uai, de que éesse capuz?” Ela vestiria
L e ficaria toda vermelha, mas alguém jáestaria vigiando, porque o dono do
capuz tava ali. Então ele tavainvisível mas nem tanto. Porque como ele é
L preto, a noite tinhaencoberto ele. (FITTIPALDI, 2013b)


455

2
Figura 8: Ciça Fittipaldi, 2013. 11ª, 12ª e 13ª páginas duplas de Saci.
0
A relação com a noite, ambiência própria do desconhecido, intensifica a
1 narrativa e dá indícios da aproximação do Saci verdadeiro, que ocorre nas páginas
subsequentes ( Figura 9):

8

J

A

L

L Figura 9: Ciça Fittipaldi, 2013. 14ª e 15ª páginas duplas de Saci.

Ciça descreveusuas intenções sobre o momento de encontro na narrativa,
A
que estava bastanteassociada à leitura das crianças:
A cor da identidade dela é azule quando ela se apresenta dessa cor é quando
eles podem se encontrar, que quando ele pode vê−la e ela pode vê−lo, sóque
ela vê ele com trocentos olhares, que são todos aqueles,e ele é ele, ele é um
personagem, ele é mítico, ele não podesofrer alteração nenhuma, ninguém
• tem permissão de alteraresse saci. Nem o chapéu. Porque seria uma intro-
456 missão numconhecimento secular maravilhoso. (FITTIPALDI, 2013b)

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0

1

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Figura 10: Ciça Fittipaldi, 2013. 18ª página dupla de Saci.

A invisibilidade foi uma proposta que surgiu de uma das crianças e


que foiprontamente incorporada na leitura das outras crianças. Ciça, diante
dessapossibilidade, reconheceu:
Lá pro meio do trabalho eu aproveitei a ideia da invisibilidade.Eu achei mui-
to criativo. Porque a invisibilidade ela é uma portacriativa muito grande.
Sem querer eu já tava mexendo com isso,só que eles deixaram mais claro
pra mim. (FITTIPALDI, 2013b)

A leitura das crianças e os dizeres da artista sobre a interferênciados


leitores evidenciam o intrincado processo entre a expectativa prévia e arealidade,
numa troca mútua.Ciça passou a produzir a composição em formatovertical,
contrapondo o uso horizontal das imagens precedentes. Com isso,a personagem
J Saci cresceu espacialmente. Diante disso, uma criança buscou o embasamento
para sua leitura: “Por isso que ela cresceu. Pareceque todos os sacis entraram nela
A e ela cresceu mais ainda”.Ciça, ainda sobre suas expectativas:
E foi quando eu imaginei se tudo tivesse no escuro e na escuridãoda mata
ela visse um capuz ela ia se intrigar: “Uai, de quem éesse capuz?” Ela ves-
L tiria e ficaria toda vermelha, mas alguém jáestaria vigiando, porque o dono
do capuz tava ali. Então ele tavainvisível mas nem tanto. Porque como ele é
L preto, a noite tinhaencoberto ele. (FITTIPALDI, 2013b)
O Fantástico se produz, principalmente, no olhar do leitor. Ainda com
A TODOROV (1992,p.19), entendemos que “o fantástico implica pois uma integração
do leitor com o mundo dos personagens; define-se pela percepção ambígua que o
próprio leitor tem dos acontecimentos relatados”. A conexão artista/crianças na
criação de significados na narrativa se mostrou em diversos aspectos. A artista
inseriu elementos que foram compreendidos pelas crianças por determinado viés e
• que, por sua vez, se efetivaram na releitura da própria artista. Juntos, criaram um
457 mundo (im) possível.

• Referências
FITTIPALDI, Ciça. Entrevista a Hanna Araújo. São Paulo, 2013a.
_________. Entrevista a Hanna Araújo. São Paulo, 2013b.
GOMBRICH, Ernst Hans. Os usos das imagens. Estudos Sobre a Função Social da Arte
e da Comunicação Visual. Tradução Ana Carolina Freire de Azevedo e Alexandre Salva-
2 terra. Porto Alegre: Bookman, 2012.
MELOT, Michel. L´illustration: histoire d´un art. Genève: ÉditionsSkira, 1984.
0 TODOROV,  Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1992.
VESSANI, Maria Cecília Fittipaldi (Ciça Fittipaldi). O que é imagem narrativa. In: OLIVEI-
1 RA, Ieda. O que é qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil? São Paulo: DCL,
2008.

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L LA CARTADE PERO VAZ DE CAMINHA: UNA APROXIMACIÓN A LA
EXOTIZACIÓN DE LOS NATURALES DE LA TERRA DE VERA CRUZ
L
Haydee Mercedes Salcedo Fonseca (UNMSM)
A RESUMEN: El presente trabajo de investigación aborda el análisis de la Carta
de Pero Vaz de Caminha en relación a la estrategia discursiva que se utiliza,en
base a la lógica del conquistador como parte de nominalizar y describir los usos y
costumbres de los pobladores del Brasil. El texto presenta algunas estrategias por
el cual el autor legitima su discurso con la finalidad de poder recibir–de la corona
• portuguesa– un apoyo; una de las estrategias que se fundamenta es la exotización
de las personas encontradas en el territorio de Vera Cruz. Como parte del análisis
458
se tiene en cuenta el Diario de a bordo de Colon; se realiza, grosso modo, una
• comparación entre similitudes y diferencias en ambos textos para observar la
estrategia de Pero Vaz de Caminha. Así, el texto de Caminha representa los primeros
albores del conocimiento y la importancia que se le otorga a tierras brasileñas.
Palabras claves: Caminha. Nominalización. Lógica del conquistador. Exotización;
Naturales.
2
Introducción

Los estudios coloniales y postcoloniales se encuentran en bogaen el
0
siglo XX, diferentes ejes temáticos circundan en la idea de la representación del
espacio americano desde las perspectivas del poblador europeo, como un espacio
1 mágico, de exaltación, de abundancia. De este modo, el discurso de la alteridad,
los trabajos sobre violencia simbólica o la subalternización confieren a estos tipos
8 de textos coloniales fundacionales la característica de una visión denigrante, en
el sentido de que el europeo se muestra superior a los americanos o amerindios
o indígenas si se prefiere referirse de esta forma.En mi posición prefiero nombrar
pobladores naturales o autóctonos del lugar al cual haremos referencia, en este
caso a Vera Cruz. No obstante, la crítica ha tratado de convertir este discurso en un
contradiscurso como respuesta a ciertas características que han sido otorgadas por
el propio imaginario e interpretación de los “conquistadores” hacia los naturales que
no eran conocidos y que se les presentaban comoexótico, tanto por la fisionomía,
las costumbres, el lenguaje y por su cultura que no eran comprendidas por el
europeo del siglo XV – XVI.
Asípues, se ha tratado de comprender la lógica de los conquistadores
otorgándole ciertas características con respecto a su contexto histórico-cultural.
Principalmente, sobre qué leían los conquistadores, Irving A. Leonard (1953),
presenta que las lecturas –de los conquistadores– eran principalmente los escritos
morales, teológicos y religiosos; también, se encontraban las novelas de caballería
donde la abundancia de la fantasía y la ficción eran las características principales
de la diégesis de este tipo de novelas. Así, se fue formando la mentalidad de los
J pobladores, cabe resaltar que esto se dio en su mayoría al territorio español, no
obstante, se generalizó abarcando otros territorios. De esta forma, la llegada de
los conquistadores a tierras americanas tendrá como lógica: el discurso de la
A
abundancia, la fantasía que mostraban las novelas de caballería. Por otro lado,
presenta el carácter religioso, la gran importancia que se le otorgaba al pensamiento
L de la época; es decir, su cosmovisión. Un claro ejemplo de ello es Cristóbal Colón,
quien en su diario refuerza la idea de conquistar‘nuevas’ tierras con el afán de
L encontrar riquezas, pero también, para poder ‘evangelizar’ a los naturales que
se observan como extraños y exóticos. En el caso de Caminha este discurso de
A la alteridad elaborado por Rolena Adorno y, también, tomado por Todorov, se
presentan de manera sutil, en el sentido de que el receptor del texto no percibe
explícitamente escenas donde se presenten al sujeto colonizador superior al sujeto
colonizado, es decir, que desde el texto de Caminha se presenta, como lo propone
Rodolfo A. Franconi, una mirada oblicua por la cual el emisor del texto no logra
• comprender las cosas que observa, por ello intenta fundamentarse en un discurso
etnográfico del cual logra resaltar este carácter ocultando otros.
459
Ahora bien, luego de lo expuesto cabe presentar que el artículo consta de
• dos apartados. En el primer apartado, abordamos grosso modo lo que trata la Carta
de Pero Vaz de Caminha, luego de ello, presento algunos estudios que se han dado
sobre el texto; por ejemplo, el de Espino Relucé, Sarissa Carneiro, Manuela Carneiro
da Cunha, entre otros. Luego, en el segundo apartado, abordo el análisis del texto
en base a nuestra hipótesis de trabajo acerca de la exotización de las personas
2 naturales como parte de la lógica del conquistador que se presenta como aquel que
puede comprender las costumbres del otro; no obstante, aquello no deja de lado la
0 finalidad del conquistador, sino que aporta otra forma de construir el discurso para
justificar las acciones que realizan. En base a ello,mostraré algunos fragmentos
1 que validen mi hipótesis y, finalmente, abordaré las debidas conclusiones.
Carta a el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil
8 Para abordar este primer apartado, es necesario referirse grosso modo al
contexto histórico. Alberto Sánchez (1985) menciona que, tras la embajada de Colón
por parte de la Corona española, la Corona Portuguesa ya tenía cierta rivalidad
con ella, se sabe que Gaspar Costa Real navegaba por la costa de la Terranova lo
que impulsó a que se realizase otro viaje. Entonces, a partir del segundo viaje de
Colón en 1497, el rey de Portugal, Manuel el Afortunado, ordenó que partiera una
embarcación en busca de las Indias a cargo de Vasco de Gama, lo cual es realizado
regresando a Portugal con nuevas especies y causando gran entusiasmo en aquel
territorio. Aproximadamente en 1500 como data la carta de Vaz de Caminha, ya se
hubo descubierto nuevas tierras, aunque aún no se tenía un conocimiento cabal de
ello hasta después que la embarcación de Pedro Álvarez Cabral llegara de regreso
a Portugal.
Así pues, Sarissa Carneiroexpresa que la carta de Pero Vaz de Caminha
“llegaría no mucho tiempo después a las manos del rey, con la nave de bastimentos
enviada a Portugal para dar la noticia del descubrimiento reciente” (Carneiro, 2003,
p. 107). En ese sentido, el conocimiento del ‘descubrimiento’ lograráentusiasmar
a la corona portuguesa por el afán de dominar aquellas tierras. Cabe resaltar
J que cuando Caminha escribe la carta, él se encontraba en la expedición de Pedro
Álvarez de Cabral, que tenía como objetivo llegar a Calicut (sur de India) para
A establecer el comercio en Oriente y poder obtener el dominio comercial en esa
región. No obstante, estos viajes que se realizaron nunca tuvieron como objetivo
L encontrar América, solo que por el clima y los obstáculos naturales que tuvieron en
la navegación llegaron a toparse con tierras extrañas que no habían conocido; sin

embargo, observaron que podía ser parecidas a las descripciones de las novelas de
L caballería, es por ello, que la mirada del conquistador, del europeo, se encontraba
parcializada.
A Ahora bien, la Carta de Pero Va de Caminha dirigida al rey Don Manuel
trata sobre los diez días que la flota comandada por Álvarez de Cabral desembarcó
en una isla que le pusieron de nombre Terra da Vera Cruz. Los portugueses se
encontraron con esta isla donde lograron visualizar entre siete u ochohombres, a
primera impresión Caminha menciona que se encuentran desnudos sin que nada
• les cubra sus vergüenzas (sus partes sexuales). Desde el veintiuno de abril, a su
460 llegada a la isla, se quedan hasta el primero de mayo que es donde se fecha la
Cartade Caminha porque al día siguiente partirían de dicha isla. En el transcurso

de esos días, Caminha trata de describir cómo lucen los naturales del lugar, los
califica como personas, no obstante, también los llama ‘mansos’, o los comparan
con animales. Los portugueses desean entablar comunicación con los naturales;
sin embargo, no lo logran por el factor lingüístico, así lo menciona Caminha, es
por ello que trataban de entenderse mediante señas y, principalmente mediante el
2 intercambio de objetos.
Los portugueses querían acercarse a los pobladores de la isla pero no
0 logran hacerlo, son varias veces que intentan llevando dos personas para que se
queden con los naturales pero estos eran devueltos hacia la flota de los portugueses.
1 Luego trataron de atraerlos mediante el intercambio de bienes que hacían, pero
no se lograr a cabalidad. Caminha, también describe el cuerpo de los naturales,
8 el agujero que tenían en el labio donde tenían puesto huesos y hasta algún tipo
de piedra. Menciona los arcos y flechas que estos traían y cómo estaban pintados
sus cuerpos; aquello, para el autor se presenta como un asombro y como una
exotización. En el transcurso de los días ya se había decidido no obligar a los
naturales a que se quedasen con ellos sino tener cierta ‘convivencia’ para que los
puedan comprender; no obstante, se envió una flota hacia la corona portuguesa
para dar cuenta de lo que se hubo ‘descubierto’.
Consiguientemente, los portugueses buscan recursos para poder
relacionarse con ellos, empiezan con el intercambio mientras observan el territorio;
aquello se muestra como una estrategia ya que no obligan a los naturales al
intercambio. Asimismo, se muestran conscientes y sorprendidos por la cultura
que encuentran. Ellos, los portugueses, realizarán una misa y harán que las
otras personas repitan lo que ellos hacen. Así, de manera indiscreta elaboraran
una cruz de madera para tenerla como representación de que aquel lugar puede
ser evangelizado porque los naturales no se muestrancontra ellos. También, se
presencia una pequeña procesión para poder poner la cruz en un lugar específico,
lo que significa el acto de evangelizar a los otros que no son iguales a ellos y, por
J tanto, muestran su “superioridad”. Por otro lado, se describe a la mujer de la Terra
de Vera Cruzcomparándola con la mujer europea, se la presenta como aquella que
posee gran belleza y sin alguna vergüenza por andar desnuda.
A
Por último, la carta concluye con la perspectiva de Caminha sobre los
L naturales, en tanto que no tienen ninguna idolatría y que podían ser iguales a ellos;
en ese sentido, hace un pedido a Vuestra Alteza que, en lo más pronto posible,

llegue un clérigo para que los bauticen y así tendrán mas conocimiento de la fe
L que ellos profesan. Dejan a dos personas en la isla para que sigan observando las
costumbres de los naturales y, para que, de cierta manera, ellos introduzcan su
A pensamiento en las personas de la isla. Mediante la descripción cuasi etnográfica
que realiza Caminha, tiene como finalidad principal pedir a Vuestra Alteza que
regrese a su yerno Jorge de Osorio, quien había sido desterrado.
Luego de lo expuesto, cabe resaltar la representación de cuerpo femenino
y masculino. Carneiro da Cunha (1990) menciona que el cuerpo femenino se
• exalta ante la comparación de las mujeres europeas, las describe como bellas y sin
461 vergüenza de estar desnudas; mientras que la descripción del cuerpo masculino
se presenta como ‘precioso’, comparados con bestias salvajes que no son fáciles de

domesticar. Para la autora, esta referencia de Caminha, obstaculiza poder observar
la agricultura de los naturales, no obstante, menciona que para Caminha, las
personas se presentan como una tabula rasa, como un molde que pueden ser
domesticados. Refutable lo que expresa la autora;si bien es cierto que se muestra
al natural, en algunas menciones, comparándolos con los animales, el propio
2 Caminha se retracta de lo dicho porque sigue observando a los naturales como
personas que no son tan ajenas a ellos y que solo les faltaría bautizarlos. Aunque
0 puedo caer en la contradicción de presentar esta exotización de los pobladores de
la isla como algo denigrante o no, considero que Caminha necesita poner ejemplos
1 para que la carta que va dirigida a don Manuel sea comprendida y pueda apreciar
las magnitudes de las cosas.
8 Por otro lado, Sarissa Carneiro (2003),menciona que a diferencia del
diario de Colón donde presenta este afán de glorificar los hechos, en Caminha
hay ausencia de ello porque en la narración no se hace presente alguna forma de
querer presentar la llegada a la isla como una victoria y así glorificarse, a excepción
de solo un pasaje donde se muestra que se encuentra a favor de la evangelización
expresando que “el señor lo quiso así”, como una suerte de providencialismo.
Además, el giro que da la Carta, en el sentido de que no describe como en el diario
de Colón a las personas como salvajes y no ahonda tanto en la naturaleza, no la
hiperboliza, pero sí describe a los hombres, es por ello que se muestra como un
relato de viaje de aspecto etnográfico.
Rodolfo A. Franconi (2004), desde su hipótesis sobre la mirada oblicua
de Caminha menciona que la Carta“se inserta en el esfuerzo conjunto de los
europeos –concentrado en los textos de viaje de la época– de construir alteridades
al mismo tiempo que entraban en contacto con tierras y pueblos, con los cuales
sería necesario convivir de allí en adelante” (Franconi, 2004, p. 28). De esta forma,
se construye otra lectura relacionada desde una perspectiva moderna, sabemos
que el discurso de la alteridad es entendido de cómo el ‘yo’ mira al ‘otro’ destacando
J ciertos rasgos que hacen que el ‘otro’ sea subordinado por este, ya sea por la
condición cultural, raza, religión, entre otros. Franconi, aborda la comparación
entre Colón y Caminha:
A
La transformación del otro en diferente no ocurre, pues, de modo parejo.
Entre la carta de Colón enviada a los Reyes Católicos sobre su llegada a las
L ‘Indias’ y la de Caminha a Don Manuel sobre el hallamiento de una nueva
tierra –a la que nombra ‘Isla de Vera Cruz’– hay diferencias fundamentales,
L que no sólo provienen de los ocho años que las separan, sino de las distin-
tas inserciones de sus autores en la historia, de una visión humanística del
mundo por parte de los portugueses, y de los modos peculiares de relatar
A viajes y contactos allende el mar (‘além-mar’). Colón tiene una responsa-
bilidad grande ante su propio proyecto, ante el financiamiento sustancial
que había conseguido y ante la gente que tiene bajo su mando. (FRANCONI,
2004, p. 29)

De este modo, se observa la diferencia entreel por qué escribe Caminha


• y qué es lo que privilegia frente a la responsabilidad que carga Colón para dar a
462 conocer los territorios que este había encontrado, para ello se tenía que valer de
la sobrecarga de las descripciones, la abundancia de los recursos que existen y la

denigración de los pobladores de cada una de las tierras que encontró.Así pues, con
el humanismo que resalta el autor en el texto de Caminha, se puede precisarque la
carta se escribe sin ninguna presión porque no tiene que dar cuentas a la corona
portuguesa y, aquello se puede apreciar al inicio del texto cuando Caminha expone
que hay otros capitanes que también están escribiendo sobre el viaje, no obstante,
2 menciona que de forma modesta y sin pretender exagerar o mentir, dará cuenta
de los hechos ocurridos que ni su ignorancia hará que él cambie los hechos tales
0 como sucedieron; de este modo se planea plasma cierta verosimilitud.
Keith Louis Walker (2004), analiza a Caminhapartiendo de cómo observa
1 la Terra de Veracruz; donde la ‘mirada’ es utilizada como el uso del discurso que
presenta una formación social y psicológica de la persona. De esta forma, su
8 argumento se basa en el descubrimiento del espacio geográfico, la fundación de la
tierra, la dominación, la conversión al cristianismo. Para el autor aquello funciona
como un proyecto que estaría dejando de lado la tesis de Franconi porque no se
muestra esta mirada oblicua que es suscitada por el humanismo que imparten
los portugueses, sino que se presenta como un discurso psicológico-social para
describir a los naturales de la Terra de Vera Cruz.
A diferencia de ello, Walker opta por una objetividad de la descripción
de los sucesos que en realidad es una subjetividad donde se demuestra cuando se
animaliza a los naturales de la isla, también precisa una mala interpretación de
los hechos por parte de Caminhacomo la idealización de los pueblos amerindios.
Aquello se comprende cuando propongo la exotización de los naturales porque se
muestra esta subjetividad de Caminha al tratar de referirse a ellos objetivamente, es
por ello que Walker fundamenta la subjetividad cubierta por una falsa objetividad
que da la impresión de estar en armonía entre los unos y los otros.
Espino Relucé (2015) hace mención sobre las fisuras ficcionales en el
texto de Caminha, para ello se basa en la conversación que tiene Cabral con los
demás capitanes para saber si se tiene que informar a la Corona portuguesa sobre
J el hallazgo. En ese sentido, se fundamenta que aquello “es una de las razones
por las cuales tenemos los textos de descubrimiento del Brasil, si es una palabra
A autorizada, al mismo tiempo está dentro de la estrategia colonial, en estricta
geopolítica, se trataba de preservar los derechos del reino luso” (ESPINO, 2015, p.
L 73).
Se observa que el texto de Pero Vaz de Caminha es un documento
autorizado, aquello confluye con lo expresado líneas arriba acerca de que Caminha
L
no tenía ningún peso encima en dirigir su carta al rey, como Colón que sí lo tenía
para la Corona española, no obstante se conoce que otros capitanes sí tenían que
A informar sobre el acontecimiento.
La exotización de los naturales de la Terra de Vera Cruz

Ahora bien, en este segundo apartado abordaré el análisis del texto en


cuestión. La exotización de los naturales realizado por Caminha se presenta en
• muchos de los pasajesdel texto. Veamos:
Eram pardos, todos nus, semcoisaalguma que lhescobrissesuasvergonhas.
463
Nasmäostraziam arcos comsuas setas. Vinham todos rijamente sobre o
• batel; e Nicolaou Coelho lhesfezsinal que pousassem os arcos. E eles os
pousaram. Ali näopôde deles haver fala, nementendimento de proveito, por
o mar quebrar na costa. (CAMINHA, 1997, p. 11)1

A feiçāo deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bonsrostos e


bonsnarizes, bemfeitos. Andavamnus, sem cobertura alguma. Nāofazem o
2 menos caso de encobrirou de mostrar suasvergonhas; e nissotêm tanta ino-
cência como em mostrar o rostro.(CAMINHA,1997, p. 14)2

0 De la cita expuesta, se presenta la descripción de los naturales de
la isla a partir de la mirada del cuerpo. Esta primera impresión, causa en los
1 portugueses extrañamiento porque ellos se encuentran con vestimenta, además
que en su lógica el estar desnudos es parte de una jerarquía menor, en ese sentido,
se puede comprender que la exotización de los primeros naturales se da en base a
8
1  Todos lo ejemplos que citaremos de la Cartade Pero Vaz de Caminha, serán transcritos en su
idioma original. No obstante, en cada nota de pie de página el lector podrá encontrar la traducción
en español extraída del siguiente enlace https://es.scribd.com/doc/290753854/Carta-de-Pero-
Vaz-de-Caminha , mencionado en la bibliografía. De este modo, transcribo: Pardos, desnudos sin
nada que les cubriera sus vergüenzas. Tenían arcos en las manos y sus flechas. Venían en dirección
al batel. Nicolau Coelho les hizo una señal para que pusieran los arcos. Y ellos los depusieron. Pero
no pudo con ellos hablar o entenderse, porque el mar quebraba en la costa.
2 La apariencia de ellos es de pardos, un tanto rojizos, de buenos rostros y buenas narices,
bien hechos. Andan desnudos, sin nada que les cubra. No hacen más caso de cubrir o dejar sus
vergüenzas que de mostrar su cara. En esto son de gran inocencia.
la representación de ellos mismos comparándoselos. Es cierto que no se muestra
explícitamente, pero se deduce que, para el portugués, estas personas son ajenas
a una ‘civilización’.
Además, se basa en términos de su propio imaginario para poder describir
con cierta objetividad lo que está observando, como ser un ‘tanto rojizos’ o que
‘no hacen caso de cubrir sus vergüenzas’ (haciendo referencia a los genitales de
los naturales). Se aprecia que esta suerte de otorgarle una característica como el
J tener ‘inocencia’ resulta exotizarlos y subalternizarlos, en tanto que se le confiere
la inocencia como si fueran personas que no tienen capacidad de comprender las
A cosas y que es por ello que no sienten vergüenza de andar desnudos. En una
primera instancia, no se reflexiona sobre si los naturales tienen cultura porque el
L discurso se presenta con cierto tino de subjetividad para poder validarse ya que la
carta va dirigida al don Manuel y tiene que ser ‘realista’.

Por otro lado, esta exotización también se presenta cuando hacen el
L
primer intercambio:
Deu-lhes somente um barrete vermelho e umacarapuça de linho que leca
A nacabeça e umsombreiropreto. Um deles deu-lheumsombreiro de penas de
avercompridas, comumacopazinha pequeña de penas vermelhas e pardas
como de papagaio; e outrodeu.lheum ramal grande de continhas brancas,
miúdas, que querem parecer de aljaveira, as quaispeçascreio que o capitāo
manda a Vossa Alteza, e comisto se volveuàsnaus por ser tarde e nāo poder
haverdelesmais fala, por causa do mar.(CAMINHA, 1997, pp. 11-12)3

464 La cita pertenece cuando la flota de Álvarez Cabral ha encontrado a los
primeros hombres, entonces, este intercambio que se realiza por ambas partes, es
• muestra de una exotización porque cada bando (es decir, portugueses y naturales
de la isla) intercambian cosas que para ellos no son comunes. Por ejemplo, la ropa,
para los naturales es algo extraño porque ellos no usan vestimenta y, para los
portugueses las plumas que están en el sombrero se muestran como algo nuevo y
se vale de la analogía con los papagayos para que pueda representar, mediante la
2 escritura, la imagen de lo que ha visto.
Así, este tipo de intercambios como los siguientes cumplen la estrategia
0 discursiva que utiliza Caminha para presentar en su discurso imágenes sugerentes
que logran la finalidad de representar cabalmente lo que está observando.
1 Os cabelosseussāocorredios. E andavamtosquiados, de tosquia alta, mais
que de sobrepente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E
um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, umaes-
8 pécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de
um coto, mui basta e mui cerrada, que lhecobria o toutiço e as orelhas. E
andava pegada aoscabelos, pena e pena, comumaconfeiçāo branda como
cera (mas nāo o era), de maneira que a cabeleiraficava mui redonda e mui

3  Solamente les lanzó un birrete rojo y una capucha de lino que llevaba en la cabeza, y un sombrero
negro. Y uno de ellos le arrojó un sombrero de plumas de ave, largas, con una copa de plumas rojas
y pardas, como de papagayo. Y otro le dio un ramo grande de cuentitas blancas, menudas que
quieren parecer de aljófar, que creo que el Capitán le manda a Vuestra Alteza. Y así se volvió a las
naves por ser tarde y no poder haber con ellos más conversación, por causa del mar.
basta, e mui igual, e nāofaziamínguamaislavagem para a levantar. (CAMI-
NHA, 1997, p 15)4

Se aprecia, nuevamente, la descripción de los naturales, se muestra esta


exotización al mencionar las plumas y dar la sensación de que está describiendo
como una especie de vestimenta que utilizan para la cabeza, que sería parte de la
cultura de los naturales. En este fragmento, Caminha recurre, nuevamente a la
analogía y a sus códigos referencialespara mostrarnos lo que está observando.
J Luego tenemos que el capitán les da vestimenta a dos de los naturales,
aquello lo apreciamos en
A E daquimandou o capitāo a Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem
em terra e levassemaquelesdoishomens e os deixassem ir comseu arco e
L setas, e istodepois que fez dar a cada umsua camisa nova, suacarapuça-
vermelha e umrosário de contas brancas de osso, que eles levaram nos bra-
ços, seuscascavéis e suascampainhas. E mandou con eles, para láficas, um
L mancebo degredado, criado de D. Joāo Telo, a que chamam Alfonso Ribeiro,
para lá andar com eles e saber de seuviver e maneiras. E a mimmandou que
fossecomNicolao Coelho. (CAMINHA, 1997, pp. 16-17)5
A
Esta es la primera muestra del afán dominador que quiere tener el
capitán Álvarez Cabral, la dominación en el sentido de que se pretende conocer
todas las cosas que realicen los naturales con la finalidad de comprenderlos para
luego poder imponer su pensamiento y su fe y así dominarlos. En tal sentido, la
• presencia de la vestimenta como la camisa, la capucha y, también, el rosario es
465 muestra de querer imponer su voluntad a aquellas personas que son ajenos a ellos,
que no se muestran iguales. El discurso de la alteridad se presenta en esta cita ya
• que el ‘yo’ (el portugués) mira al ‘otro’ (natural de la isla) en base a sus costumbres,
donde la vestimenta lo hace superior al que no la tiene, y por ello, el ‘otro’ es
catalogado como no civilizado, sin cultura. No obstante, todo ello se muestra desde
la mirada del conquistador, desde su lógica que hace privilegiar algunos aspectos
más resaltantes que otros sin llegar a cuestionarse, como se presenta al querer
2 conocer la forma de vida de los naturales.
Resulta ciertamente contradictorio la idea de observar al ‘otro’ como
0 alguien que no tiene cultura y sin embargo, los portugueses trataran de conocer
sus costumbres; ello equivale a conocer una cultura que se les presenta como
1 nueva, exótica y con cierto asombro.

8 4  Los cabellos de ellos son lisos. Y andaban rapados, con un corte alto en el centro de la cabeza,
de buen tamaño, rapados también por encima de las orejas. Y uno de ellos traía por debajo de la
solapa, de lado a lado, en la parte de atrás, una especie de cabellera, de plumas de ave amarilla,
que sería del largo de un coto, muy vasta y muy cerrada, que le cubría la nuca y las orejas. Y estaba
pegada a los cabellos, pluma por pluma, con una confección blanda como, de manera tal que la
cabellera era muy redonda y muy vasta, y muy igual, y no hacía falta más lado para levantarla.
5  Y desde aquí mandó el Capitán que Nicolau Coelho y Bartolomeu Dias fuesen a tierra y llevasen
a aquellos dos hombres, y los dejasen ir con sus arcos y flechas. Ordenó que les fuera dado a cada
uno una camisa nueva y una capucha roja y un rosario de cuentas blancas de hueso, que fueron
llevando en los brazos, y un cascabel y una campanilla. Y mandó con ellos, para que allá se quedara,
a un mancebo exiliado, criado de don Joāo Telo, de nombre Alfonso Ribeiro, para allá andar con
ellos y conocer su manera de vivir y sus maneras. Y a mí me mandó a que fuese con Nicolau Coehlo.
Veamos unos ejemplos más para profundizar la idea central.
Este que assim os andavaafastandotraziaseu arco e setas, e andava tinto de
tintura vermelha pelos peitos, espáduas, quadris, coxas e pernas até baixo,
mas os vazioscom a barriga e estômago eran de suaprópriacor. E a tintura
era assimvermelha que a agua a nāocomianemdesfazia, antes, quandosaía
da agua, parecía maisvermelha. Saiuumhomem do esquife de Bartolomeu
Dias e andava entre eles, semimplicarem nada com ele para fazerlhe mal.
(CAMINHA, 1997, pp. 23-24)6
J
Se pude apreciar, nuevamente, la descripción del cuerpo de los naturales
presentando una pintura roja, como si fuesen a pelear; no obstante, Caminha hace
A esta referencia a raíz de la llegada de Bartolomeu Dias. Resaltando la descripción
del cuerpo, se observa que existe cierto asombro por el color y cómo este solamente
L se encuentra en unas partes del cuerpo del hombre.Bajo esta perspectiva, se inserta
el tema del miedo y respeto que ciertamente no observa Caminha; en ese sentido,
L los naturales no tienen conocimiento de la jerarquía que hay entre ellos y los otros,
se puede decir que se siente asombrado y, hasta cierto punto, intrigado porque no
A hay ‘respeto’ hacia los portugueses; pero aquello se muestra de manera sutil.

En el siguiente fragmento, podemos observar esta carga del humanismo


portugués presentado por Franconi:
E entre muitas falas que no caso se fizeram, foi por todos ou a maior parte
dito que seriamuitobem. E nistoconcluíram. En tanto que a conclusāofoi
tomada, perguntoumais se lhes parecía bem tomar aquí por forçaum par

destehomens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aquí por eles otros
466 destesdegredados. (CAMINHA, 1997, p. 27)7

• En la cita, se pone en duda si se debería tomar por obligado algunos de los


naturales. Se observa que se pone en cuestión debido a que ellos han desembarcado
en la isla no con el afán de invadir sino de conocer la Terra de Vera Cruz, como ellos
lo denominaron. De este modo, se muestra cierto humanismo porque se discute
entre todos, no queda al mandato del capitán y así lo exponen Caminha. Además,
2 luego de esa discusión se muestra que no era necesario capturar a los naturales
puesto que al presentarlos no serían entendidos por los portugueses. De esta forma,
0 se resuelve que ellos dejarían dos exiliados para que sirvan de testigos sobre todo
lo que encuentran en la naturaleza de la Terra de Vera Cruz.
1 Los portugueses consideran que no es necesario tomar por la fuerza a
los naturales porque 1) no les hicieron daño alguno, 2) necesitan mantener una
suerte de armonía para que puedan dominarlos de forma sutil y 3) porque si
8
realizan aquel acto, los naturales se verían afectados y se alejarían más de ellos

6  Estaba teñido de tintura roja en el pecho y espaldas y por las caderas, muslos y piernas hasta
abajo, pero el abdomen con la barriga y estómago eran de su propio color. Y la tintura era tan roja
que el agua no la descoloría ni deshacía. Al contrario, cuando salían del agua, la tintura estaba
más roja. Salió un hombre del esquife de Bartolomeu Dias y andaba en el medio de ellos, sin que
pelearan con él, y mucho menos pensaran hacerle mal.
7  Y entre muchas palabras que sobre este caso se dijeron, por todos o la mayor parte, se concluyó
que sería muy bueno. Y en esto concordaron. Y después que la resolución fue tomada, se preguntó
más, si sería bueno tomar aquí por la fuerza a un par de estos hombres para mandárselos a Vuestra
Alteza, dejando aquí en lugar de ellos a otros dos de estos exiliados
y podría ocasionar un enfrentamiento innecesario. Se observa que, más que una
empatía por el natural, hay cierta estrategia y conveniencia para los portugueses
que buscan por un medio pacifico poder evangelizarlos.Resulta razonable exponer
los tres puntos porque en la lógica de los portugueses, en especial de Caminha,
muestra una estrategia en su discurso que hará que sea validado por la corona, en
ese sentido, juega un papel importante la estrategia para no desobedecer alguna
orden dada del rey. Además, cabe resaltar que la máxima autoridad podía dar el
J permiso de hacer algún acto, por ejemplo, el castigo que recibe el virrey Toledo
por la muerte de Atahualpa cuando este debía cuidarlo debido al rango al que
pertenecía.
A
Este acto no se presenta en Colón, en su diario se muestra la exaltación
L del espacio geográfico aludiendo a la hipérbole y al símil para poder expresar lo
que está observando; sin embargo, en Colón, este recurso se presenta para ocultar

algunas cuestiones de las cuales él no desea que la corona española se entere; por
L ello exotiza y magnífica los alrededores de las tierras por las cuales ha pasado.
Además, posiciona a los naturales como animales que sirven para cumplir órdenes
A o los cataloga como salvajes. La agencia de Colón se muestra muy ambiciosa por el
oro y en segundo plano, según lo considero, se presenta el tema de la evangelización
que supuestamente sería la verdadera finalidad de su empresa.
Entre Colón y Caminha existen algunas semejanzas; por ejemplo, la
nominación. En el diario de Colón, las nominaciones se aprecian en su totalidad, ya
• sea para poder describir algo que desconoce, como al otorgar nombres a los lugares
467 donde llega y a los propios naturales; en cambio, en Caminha esta nominación se
presenta pocas veces; por ejemplo, cuando se le otorga el nombre de Vera Cruz a

la isla donde han llegado sin preocuparse si es que esa isla ya tiene un nombre o
no. No obstante, esta nominación presente en la Carta se encuentra desplazada
por el carácter etnográfico del texto que hace que el lector se concentre más en la
descripción de los naturales y los alrededores que reflexionar en el nombre que se
le dio a la isla.
2
Otro eje importante entre estos dos autores reside en que se diferencia en
cuanto ala perspectiva que tienen, el español con el portugués se muestra distante
0 de una concepción racional, en el sentido de que, para el portugués, los naturales
son considerados como personas y no como animales a pesar que en algunos
1 momentos se les nombrara como ‘mansos’ y que pueden ser evangelizados. No
obstante, en todo caso, Caminha no presenta como Colón esta suerte de ‘denigración’
8 de los naturales donde son animalizados y comparados con la naturaleza dando
a entender que aquella persona es menos que un animal y que puede ser tratado
de cualquier forma porque no es igual al europeo; en este sentido, se introduce el
discurso de la alteridad.
Además, se presenta la violencia simbólica propuesta por Bourdieu
(2000) donde “se presentan categorías construidas desde el punto de vista de los
dominadores, haciéndolos aparecer de ese modo como naturales. Eso pude llevar a
una especie de auto depreciación, o sea de auto denigración sistemáticos” (Bourdieu,
2000, p. 51). De esta forma, tanto en Colón como en Caminha se presenta la
violencia simbólica, si bien es cierto no se muestra una auto denigración por parte
de los naturales, esta construcción de conceptos por parte de los conquistadores
superponen su dominación en el lenguaje, ya que al no entenderse uno trata de
imponer su poder como lo hace Colón; no obstante, en Caminha este tipo de violencia
como las dominaciones y la subalternización se muestra de forma sutil como parte
de una estrategia discursiva que le permita mostrar al natural de manera exótica
pero sin exagerar ni llegar a denigrarlos sino como una suerte de comprensión por
el gran ‘otro’.
J Conclusiones
Los estudios de textos literarios de la conquista de América, el
A descubrimiento, invasión o el encubrimiento como algunos críticos lo han nombrado,
se han centrado con mayor ahínco en estos tipos de textos fundacionales como
L resulta ser la Carta de Pero Vaz de Caminha. Los marcos teóricos recogidos como la
alteridad, la subalternidad o la violencia simbólica, ha servido para comprenderla
L perspectiva del europeo hacia toda una América especialmente a los amerindios o
indígenas como se está acostumbrado a nombrarlos.
La exotización de los naturales de la Terra de Vera Cruz no solo se presenta
A
como una lógica del asombro en la Carta sino que esta sirve como una estrategia
del que se basa el discurso de Caminha para presentar, con cierta objetividad,
lo sucedido. Es cierto,que existe una mirada oblicua; no obstante, esta mirada
oblicua se comprende como una estrategia de Vaz de Caminha para que pueda
mostrar el carácter religioso de la Carta, en el sentido de que no se olvida esta

finalidad de la corona. Aunque se observe que se presenta como un relato de viajes
468 donde se privilegia lo etnográfico y no las riquezas que puedan obtener como se
• puede observar en el diario de Colón.
Las similitudes y diferencias entre el texto de Colón y el de Caminha son,
de cierto modo, complementarias porque se puede apreciar que –desde la lógica
del conquistador y de su imaginario influenciado por las lecturas de las novelas
de caballería–se presenta la subalternización y la violencia simbólica. En Colón
2 de forma más explícita por querer imponer su poder y tratar de impresionar a
la corona española; mientras que en el texto de Caminha, se muestra en menor
0 medida, sutilmente. Así, el análisis de la Carta ha conllevado a presentardos
discursos diferentes que tienen como finalidad dar a conocer la ‘nuevas’ tierras que

se ‘encontraron’ y observar las diferencias entre ellos se debe al tipo de pensamiento
1 y de cultura que tienen los españoles y los portugueses.

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.

2

0

1

8

J

A

L A TRADUÇÃO DE ARTES VERBAIS AMERÍNDIAS:
ESPECIFICIDADES E DESAFIOS
L
Helena Lúcia Silveira Barbosa (USP)
A RESUMO: As artes verbais ameríndias tem se tornado um objeto de estudo
interdisciplinar, com produções acadêmicas não mais apenas na antropologia e
na linguística, áreas de maior disseminação do tema, mas também nos estudos
literários e da tradução. Este ensaio pretende ampliar a discussão no campo
dos Estudos da Tradução, onde o tema é ainda sub-representado. Seu propósito
• central é discutir especificidades das artes verbais ameríndias das terras baixas
sul-americanas e suas consequências para um projeto tradutório estabelecido em
470
diálogo com as formas de pensamento ameríndio. A investigação será desenvolvida
• com base em contribuições da etnologia ameríndia e de experiências de tradução
desenvolvidas em âmbito brasileiro.
Palavras-chave: Artes verbais ameríndias. Tradução. Poética. Indígena.
O tradutor de poesia é um coreógrafo da dança interna das línguas
Antônio Risério (Textos e Tribos)
2
Introdução
0 O presente estudo propõe-se a discutir especificidades das artes verbais
ameríndias das terras baixas sul-americanas e suas consequências para um projeto
1 tradutório estabelecido em diálogo com as formas de pensamento ameríndio.
Neste sentido, como traduzir poéticas ameríndias sem ofuscar ou silenciar suas
8 especificidades por meio de meras equivalências com conceitos oriundos das formas
ocidentais de pensamento? Esta investigação será desenvolvida com base em
contribuições da etnologia ameríndia e de experiências de tradução desenvolvidas
em âmbito brasileiro. Não se busca, nesse momento, realizar um trabalho que
abarque de forma exaustiva tais especificidades, nem mapear as traduções já feitas
no Brasil, mas sim refletir sobre questões problemáticas envolvidas na tradução
para o português deste tipo de poética. Pretendo, assim, produzir inquietações e
incitar o debate no campo dos Estudos da Tradução, ainda incipiente quanto a
pesquisas dessa natureza.
Jamille Pinheiro Dias, em sua tese Peles de papel: caminhos da
tradução poética das artes verbais ameríndias (2017), apresenta um resumo das
características gerais recorrentes no que denominamos “artes verbais ameríndias”,
o qual adoto neste momento com o intuito de oferecer uma apresentação inicial do
tema:
(…) elas consistem em modos e técnicas de ritualização por meio da lin-
guagem; são fundamentais para mediar a comunicação entre humanos e
não humanos, vivos e não vivos; muito frequentemente têm uma dinâmica
J paralelística moldada pela reiteração e pela variação, assim como por
incorporações citacionais de “outros” no discurso; apresentam predomínio
da parataxe, ou seja, uma intensa proliferação e justaposição de imagens;
A de forma decisiva, exibem uma relação inextricável entre o pensamento es-
peculativo e o fazer poético; e têm um papel pragmático na construção do
corpo e da pessoa, apresentando-se como verdadeira “fisiopoiésis” – ou seja,
L cada uma a seu modo, as artes verbais ameríndias convocam operações
tradutórias que vertem a palavra em corpo. (PINHEIRO DIAS, 2017, p. 145).
L
Neste sentido, o processo de tradução não apenas se faz no corpo, mas o
próprio processo de produção criativa das poéticas ameríndias é fisiológico, segundo
A a autora, “passando pelo compartilhamento dos alimentos e fluidos, pela fabricação
da consubstancialidade, pelo resguardo, pelo cuidado mútuo” (PINHEIRO DIAS, p.
145). Traduzir estas poéticas, assim, requer a compreensão dessa poiésis do corpo
e de como construí-la nas traduções.
Há poesia por toda a parte

Quando lemos ou ouvimos pela primeira vez uma narrativa indígena,
471
é provável que um sentimento de estranheza aflore durante o processo. Seja ela
• escrita ou verbalizada e aproxime-se ao máximo das estruturas linguísticas do
vernáculo, a lógica criativa e especulativa indígena produz interrogações que,
por diversas vezes, não encontram tradução no nosso modo de entendimento do
mundo. Pensando em algo mais específico, como um canto xamânico, por exemplo,
essa estranheza é ainda maior. É desestabilizadora. Os problemas impostos pelo
2 extralinguístico se colocam no mesmo patamar do linguístico – ou mesmo além.
A predominância das formas eurocêntricas de conhecimento obscureceram
0 outros modos de significação, que se utilizam de complexos sistemas simbólicos
para a construção do pensamento, do corpo, da socialidade. Entretanto, estes
1 modos existem, apesar do desconhecimento quase absoluto do leitor em geral,
fato que é resultado, principalmente, da educação formal brasileira, de base
euroamericana. As artes verbais dos povos indígenas entram no pacote dos
8 “conteúdos” desconhecidos, ignorados. E hoje, mesmo estudadas por uma série
de pesquisadores mundo afora, estão longe de serem compreendidas em sua

profundidade. O caminho a ser trilhado é longo.
Como afirma Pedro de Niemeyer Cesarino (2018), estudioso brasileiro das
poéticas marubo, deve-se partir do princípio de que há poesia por toda parte. Estas
poesias, por sua vez, implicam formas diversas de experiência, criação, linguagem,
pensamento, estética. Implicam, também, o entrelaçamento de símbolos, de formas
expressivas, do oral e o escrito, da comunicação entre humanos e não-humanos.
Em razão desta complexidade constitutiva e estrutural é que, neste
ensaio, deu-se preferência ao termo “artes verbais” ao invés de “literatura”, como
usualmente costuma-se definir as poéticas indígenas. Como afirma Sérgio Medeiros
(2009), “(…) diante de um poema indígena, seja ele oral ou escrito, certas concepções
tradicionais de literatura e poesia poderão se mostrar tímidas ou limitadas”. É uma
escolha que advém também de uma discussão longa sobre opções terminológicas
feitas por estudiosos que têm se dedicado à tradução de poéticas ameríndias no
Brasil.
J No artigo Concepts and Contests in the Translation of Indigenous Poetics in
Brazil (2015), Pinheiro Dias discorre de forma elucidativa acerca dessa discussão.
A Resumidamente, Cláudia Neiva de Matos, seguindo Paul Zumthor, afirma sua
preferência pelo termo “arte verbal”, visto que admite usos artísticos tanto da
L língua oral quanto da língua escrita, sem favorecer a segunda, bem como pelo
termo “poesia”, por ser uma arte da linguagem humana, fato da ritualização da

linguagem. Lucia Sá, por sua vez, entende que excluir textos nativos da categoria
L “literatura” pode ter efeitos negativos, uma vez que as “literaturas da floresta”
devem ser vistas mais do que apenas material etnográfico, material bruto ou, de
A forma particularmente depreciativa, como mito. Já Marília Librandi-Rocha, em sua
exposição sobre a carta Guarani-Kaiowá, defende a inclusão dos textos indígenas
como parte da essência da literatura escrita no Brasil, considerando o direito à
literatura como território discursivo acolhedor. Em direção oposta à Librandi-Rocha,
Marco Natali defende o direito de não ser literatura ao criticar a “inevitabilidade”
• da aplicação do conceito literatura e a forma que tal conceito incorpora práticas
472 discursivas não européias.
Esses diferentes posicionamentos revelam a complexidade da questão.

Este estudo optou pela adoção do termo “artes verbais”, visto que muito ainda há
que ser discutido para se entender onde as poéticas ameríndias se posicionam
neste espectro, bem como o posicionamento dos próprios povos ameríndios sobre o
assunto. Por ora, sigo em acordo com a observação apresentada por Pinheiro Dias,
em que afirma sua preferência pelo termo “artes verbais”, ainda que nenhuma
2 terminologia seja completamente adequada, “e que sintetizar quais exatamente são
os fatores constitutivos do que chamaríamos de ‘artes verbais ameríndias’ de forma
0 mais abrangente seja arriscado” (DIAS, 2017, p. 144-145).
Breve histórico
1 O universo narrativo ameríndio possui uma produção extensa de poéticas
ainda raramente registradas, traduzidas e publicadas. São mais de 150 línguas e
8 dialetos falados pelos povos indígenas do Brasil (POVOS INDÍGENAS NO BRASIL/
ISA, 2018) e, conforme expõe Pedro Cesarino:
(…) Cada língua possui um mundo, uma construção de pensamento, uma
estética e uma produção ritual. Se somarmos a isso o fato de que esses
mundos são bastante distintos daqueles que deram origem às formas oci-
dentais de pensamento, então perceberemos a distância a ser percorrida
para que haja uma compreensão mais efetiva dos referenciais intelectuais
e criativos indígenas. Daí a necessidade de uma aproximação tradutória,
que busca uma compreensão mais afinada de tais singularidades poéticas
(CESARINO, 2013, p. 7).
O autor fornece um breve histórico a respeito das artes verbais ameríndias
no Brasil na obra Quando a terra deixou de falar – cantos da mitologia marubo
(2013). Em seus aspectos principais, faz referência às primeiras documentações
das tradições orais, que datam do século XVI, e discute como os cronistas da época
distorciam as narrativas dos povos falantes do tupi-guarani pela escrita em prosa
corrida e pelo viés da metafísica cristã (CESARINO, 2013, p. 7), manipulando e
silenciando as particularidades poéticas e metafísicas originais. O padre jesuíta José
J de Anchieta é um representante significativo deste momento histórico. Anchieta, por
meio do que se chama na historiografia da tradução de “tradução-apropriação” (REIS
& MILTON, 2016), realizava verdadeiras “torções ontológicas” do léxico indígena a
A
fim de ressignificá-lo através da teologia e moral cristãs. Cesarino expõe o exemplo
dado por João Adolfo Hansen sobre a tradução do termo Tupã, Tupaná, que em
L tupi era o nome genérico usado para se referir a ruídos da natureza, como trovões,
e é traduzido simplesmente como Deus-Pai. Neste sentido, Anchieta imprimia na
L metafísica indígena a noção de corpo e alma e outras concepções estranhas ao
pensamento ameríndio, de forma a naturalizar gradualmente sua manipulação.
A Como diria Antônio Risério, “aprende-se a língua do gentio para melhor silenciá-lo”
(RISÉRIO, 1993, p. 41).
A partir do século XIX, a documentação das tradições orais começa a
ser feita do modo mais sistemático com o trabalho de cientistas e viajantes e, dois
séculos depois, mais especificamente na década de 1970, os materiais desenvolvidos
• passam a ser analisados com uma compreensão mais sofisticada das línguas e de
473 suas configurações rituais e poéticas, revelando uma série de características das
artes verbais até então incompreensíveis.

(…) A elucidação de aspectos tais como o paralelismo, o uso de metáforas e
léxicos rituais, as enunciações polifônicas e o sistema de evidenciais (ou de
modalidades epistêmicas) seria articulada a uma compreensão mais sofis-
ticada dos gêneros da fala e de canto, de suas formas de aprendizagem, de
suas configurações rituais e musicais (CESARINO, 2013, p. 12).
2 Diversos autores começam, então, a se dedicar com mais afinco ao tema
e produzir coletâneas e antologias de traduções, como Betty Mindlin, Rosângela de
0 Tugny, Bruna Franchetto e o próprio Pedro Cesarino. Vê-se, atualmente, um esforço
também de intelectuais e escritores indígenas em produzir suas próprias narrativas
1 e traduções, como Daniel Munduruku, Eliane Potiguar e Graça Graúna, para citar
alguns, num esforço de ressignificação do pensamento, da escrita, do processo
tradutório e do livro. Neste último caso, é imprescindível mencionar A queda do
8
céu: Palavras de um xamã yanomami (2015), que se constitui com um depoimento
autobiográfico/manifesto político do xamã yanomami Davi Kopenawa, escrito em
parceria com o antropólogo Bruce Albert, uma verdadeira obra de referência para se
refletir sobre o acesso ao imaginário conceitual do nativo. Sérgio Medeiros, Antônio
Risério, Álvaro Faleiros e Cláudia Neiva de Matos são alguns dos nomes que têm
aprofundado a discussão com produções acadêmicas e retraduções.
Tais esforços são ainda pontuais quando se pensa na imensa trajetória
a ser percorrida para a superação do desconhecimento das poéticas ameríndias
pela academia e pelo leitorado de forma geral, mas formam uma base consistente
de pesquisa indicadora dos desafios a serem enfrentados. O mundo das artes
indígenas da palavra é diverso, composto não só por narrativas míticas, gênero mais
conhecido e a que se tem mais acesso, mas por cantos xamanísticos, cantos rituais
e de festa, cantos de cura, falas de chefe, entre outros. E cada vez mais, seu estudo
apresenta-se como uma tarefa multidisciplinar, que demanda a comunicação entre
antropólogos, linguistas, mestres e poetas indígenas, estudiosos da tradução e da
literatura, tradutores e poetas.
J Comunicação de diferenças
Investigar o processo criativo envolvido na tradução de artes verbais
A ameríndias requer, antes de tudo, uma incursão no pensamento ameríndio, tendo
em vista a necessidade de ressignificar nosso repertório conceitual a partir dos
L referenciais intelectuais e criativos indígenas para que seja possível acessar com
êxito suas poéticas.
L Neste momento, desenvolveremos uma reflexão acerca das diferenças
existentes entre ontologias indígenas e não indígenas e sua repercussão no processo
de tradução linguístico-cultural. Qual a tarefa do tradutor quando deparado
A
com distintos regimes ontológicos? Tal discussão será construída com base em
contribuições da etnologia ameríndia em diálogo com teorias tradutológicas.
Em Earth Beings: ecologies of practice across Andean worlds (2015),
Marisol de La Cadena apresenta uma etnografia que discute, por meio da tradução,
• as complexidades entre mundos que compõe a vida de Mariano e Nazario Turpo,
pai e filho de etnia Quechua. Ambos transitam constantemente entre práticas
474
indígenas e não-indígenas que penetram e afloram umas nas outras, revelando
• uma historicidade complexa em meio à região de Cuzco, tornando-a um local em
que a divisão entre moderno e não-moderno é confusa, sendo melhor definida como
“nunca moderna” (LATOUR, 1993 apud LA CADENA, 2015, p. 5).
La Cadena expõe sua confusão em traduzir determinados termos ao longo
das conversas com Mariano e como o problema tradutório emerge não por causa
2 do sentido dos termos, mas principalmente por causa de uma sobreposição de
mundos. Isso fazia com que conversas sobre um mesmo evento produzissem tanto
0 similaridades quanto diferenças. Apresenta-se, assim, uma assimetria, que não é
linguística, mas ontológica.
1 Entretanto, apesar desse ruído de compreensão e da ausência de
isonomia conceitual, é possível se efetivar a comunicação, segundo La Cadena. Ela
entende esses ruídos como lacunas e defende que tais lacunas tornam a tradução
8
um processo cheio de obstáculos, mas que nem por isso a impedem.
A autora concebe a tradução como uma possibilidade de habitar excessos
(o que transborda na tradução), sendo estes excessos aquilo que coloca o desafio do
trabalho etnográfico. É na exploração do processo de tradução que a antropologia
se funda. A intenção é que enunciador e tradutor explorem o excesso juntos, na
tentativa de criar um espaço comum para ambos.
(…) meu mundo era parte do mundo que meus amigos habitavam e vice-
-versa, mas seu mundo não poderia ser reduzido ao meu ou o meu ao deles.
Consciente dessa condição de uma maneira que não necessitava ser expres-
sa em palavras, sabíamos que o fato de estarmos juntos conectava mundos
que eram distintos, mas também o mesmo. E, ao contrário de manter a se-
paração que a diferença produzia, escolhemos explorar as diferenças juntos.
Utilizando as ferramentas existentes nos mundos de cada um, esforçamo-
-nos para compreender o que era possível sobre o mundo do outro e criamos
um espaço compartilhado, também constituído por coisas incomuns para
cada um de nós (LA CADENA, 2015, p. 4, tradução minha).

J Nesta etnografia, é possível verificar como o exercício filosófico de Walter


Benjamin (2011) a respeito da prática tradutória é demonstrado por La Cadena

ao utilizar a tradução para preencher o espaço das diferenças e mal-entendidos,
A numa harmonia que surge do modo de designar e não do designado.
A teoria benjaminiana tem suas raízes na tradição literária e filosófica
L alemã, especialmente em Friedrich Schleiermacher, que entendia a tradução como
uma força criativa que, por meio do uso de estratégias específicas, poderia servir
L a funções sociais e culturais com o propósito de construir línguas, literaturas e
nações.
A Para Benjamin, há uma diferença constitutiva entre as línguas e é a
tradução que permite uma convergência de intenções; ela preenche os espaços das
diferenças e faz a integração das línguas em uma única verdadeira, a língua pura,
um espaço de convergência virtual do sentido em que diferenças mutuamente
exclusivas coexistem com intenções complementares para comunicar e referir. E
• aqui, cabe diferenciar, na intenção, o designado do modo de designar.
Pois nas línguas tomadas isoladamente, incompletas, aquilo que nelas é de-
475
signado nunca se encontra de maneira relativamente autônoma, como nas
• palavras e frases isoladas; encontra-se como constante transformação, até
que da harmonia de todos aqueles modos de designar ele consiga emergir
como pura língua (BENJAMIN, 2011, p. 72).

Tradução em Benjamin, assim, oferece uma visão utópica de harmonia lin-


guística (VENUTI, 2000, p. 11), constituindo-se como um exercício filosófico.
2 Este paralelo com Benjamin também é verificável quando a autora
empresta a noção de “equivocidade controlada” elaborada por Eduardo Viveiros de
0 Castro (2004) para se referir às dissonâncias comunicativas que ocorrem no processo
de tradução, tratando-as não como erros, mas equivocidades – especificamente, à
1 tradução das práticas indígenas runakuna com seres terrestres como “crenças”.
Segundo Viveiros de Castro, equivocidades são disjunções comunicativas em que,
8 apesar de usarem as mesmas palavras, os interlocutores não falam a mesma coisa
e não estão cientes disso (VIVEIROS DE CASTRO, 2004). É por meio da exploração
das diferenças existentes entre conceitos, gramáticas e práticas que compõem a
equivocidade ocupada pelos interlocutores e por meio da qual se comunicam que
a atividade da tradução se aprofunda. No caso específico citado por La Cadena,
a equivocidade ocorre ao se utilizar a mesma palavra (Ausangate) em mundos
diferentes: em um se refere a uma entidade da natureza, enquanto no outro, é um
ser terrestre.
Como explica Viveiros de Castro, as equivocidades não podem ser
canceladas, mas sim controladas, para que se evite transformar o que é
dessemelhante em uma mesma coisa. Em termos de tradução, significa dar voz às
diferenças que emergem das equivocidades para se definir algo. Tradução configura-
se, neste sentido, como uma não identidade entre termos. Ou como definido pelo
próprio autor:
(…) Traduzir é enfatizar ou potencializar a equivocidade, ou seja, é abrir e
expandir o espaço que se imagina não existir entre as linguagens concei-
tuais em contato, um espaço que precisamente a equivocidade ocultava. A
J equivocidade não é o que impede a relação, mas seu fundamento e propul-
são: uma diferença de perspectiva. Traduzir é presumir que a equivocidade
sempre existe; é comunicar diferenças em vez de silenciar o Outro por pre-
A sumir uma interpretação única entre o que o Outro e Nós dizemos (VIVEI-
ROS DE CASTRO, 2004, p. 8).

L Viveiros de Castro faz uma inversão do modelo da indeterminação de


Quine. Proveniente da filosofia da linguagem, Willard V. O. Quine (2004) desenvolveu
L o conceito de “tradução radical”. Ele questiona as bases empíricas do ato de
traduzir ao apontar para uma indeterminação semântica básica que não pode ser
solucionada nem mesmo na presença de estimulações provenientes do contexto da
A
situação comunicativa, existindo, assim, uma inevitável instabilidade do processo
significativo. Seu argumento baseia-se num encontro etnográfico imaginário entre
um linguista ocidental e um nativo não-ocidental e carrega diversas implicações,
tanto antropológicas quanto geopolíticas. Entretanto, tal argumento adere-se à
abstração da filosofia analítica e as implicações mencionadas não são discutidas,

sendo tratadas como competência de outras disciplinas.
476
Segundo o autor, os esquemas conceituais que definem a interpretação
• de informações podem separar o nativo do linguista. E estes esquemas podem
ser não apenas mutuamente ininteligíveis como também incomensuráveis ao se
fazer uso de diferentes paradigmas teóricos para avaliar um mesmo referencial. A
indeterminação da tradução, assim, liga-se à indeterminação da referência. Como
cada língua possui sua própria estrutura de pensamento e, para se traduzir de
2 uma língua para outra, o tradutor adota “hipóteses de análise” e esquemas que
vão necessariamente modificar o original. Nos casos de “tradução radical”, por
0 exemplo, o tradutor, ao lidar com línguas sem parentesco, não encontra indícios
para respaldar sua interpretação na cultura ou ambiente onde se realiza a

comunicação. Isso aconteceria mesmo em casos em que há uma maior afinidade
1 linguística e cultural, permanecendo meramente uma ilusão de frases e termos
intertraduzíveis.
8 Enquanto Quine assume que as incomensurabilidades surgem quando
diferentes referenciais teóricos tratam de um mesmo referencial e não há a
possibilidade de determinar qual deles é falso/verdadeiro, Viveiros de Castro afirma
que há um mesmo referente, porém há uma percepção variada deste referente.
Assim, não há que se falar em erros ou enganos: “um erro ou engano só pode
ser determinado como tal dentro de um mesmo jogo linguístico, enquanto uma
equivocidade é o que se revela no intervalo entre diferentes jogos linguísticos”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 9, tradução minha).
A etnóloga Dominique Gallois (2001), ao falar sobre as experiências
de tradução entre os jovens Waiãpi, afirma que traduções são experimentos,
constantemente reavaliados à luz da melhor compreensão que os Waiãpi adquirem
do “nosso” modo de ser. Para dar conta de conceitos oriundos da forma ocidental
de pensamento, os jovens estão criando neologismos em seu processo de tradução
para o português e narra o seguinte:
Só agora, depois de trinta anos de contato com agentes do Estado, eles po-
dem pensar em traduzir uma categoria “governo”, que os mais velhos conti-
J nuam sem entender. Estes ainda chamam o chefe da Funai ou governador
do Estado com a palavra de “chefe de aldeia”, e os jovens falam que essa
associação não têm a ver e criam uma palavra em Waiãpi para dar conta do
A que é governo, e isso é fascinante (…). Escuto e me delicio com as explica-
ções, alternativas propostas, avaliações. Tento acompanhar a difusão – ou
L a ‘epidemia’, como diz o [Dan] Sperber – da representação assim construída
pelos jovens ou por algum líder mais ativo, escuto quando ela é experimen-
tada nos diálogos entre eles, às vezes dando certo, outras vezes não. (GAL-
L LOIS, 2001, p. 112).
A percepção de que existem diferenças significativas de formas de
A organização social, relações de gênero e de poder não é algo imediato, e isso gera
lacunas, para retomar Maria de La Cadena. Entretanto, assumir uma postura de
constante reavaliação, como propõe Gallois, admitindo perdas mas também ganhos
no processo tradutório que buscar lidar com a variabilidade ontológica, como pelo
uso de neologismos, por exemplo, pode ser extremamente produtivo na construção
• de possíveis modos de tradução.
477 A questão do conflito de ontologias é também discutida por Mauro W.
• Barbosa de Almeida (2014). Segundo o autor, algumas ontologias explicitam
seus pressupostos, outras não – como as mitologias ameríndias, por exemplo. A
afirmação que se segue é central para se entender os limites das ontologias:
(…) ontologias são o acervo de pressupostos sobre o que existe. Encontros
com o que existe pertencem ao âmbito pragmático. Ontologias e encontros
pragmáticos não são, contudo, separáveis. Pode-se ver isso já a partir da
2 seguinte consideração: pressupostos ontológicos dão sentido, ou permitem
interpretar, encontros pragmáticos, mas vão além de qualquer encontro
0 particular, seja qual for seu número. (ALMEIDA, 2014, p. 9)

Os encontros pragmáticos, conexões entre a experiência e o mundo da


1 ontologia, são capazes de evidenciar os pressupostos ontológicos por meio das
equivocidades que se revelam, mas apenas de forma parcial, pois é impossível
8 acessar todos os pressupostos de uma ontologia. Cabe ao etnógrafo/tradutor
compreender quais são esses pressupostos. Neste sentido, as incompatibilidades
existentes entre ontologias científicas e ontologias indígenas podem ser confrontadas
pragmaticamente. O conflito ontológico seria solucionado, então, por meio do
levantamento do campo semântico do Outro.
Refletir sobre a assimetria ontológica é fundamental para que seja possível
repensar nosso repertório conceitual e reelaborá-lo em um diálogo cuidadoso com
as formas ameríndias de pensamento. Talvez seja colocando-nos em situação de
desconforto intelectual que poderemos dar espaço para a ressignificação das nossas
bases conceituais e, de fato, permitir uma comunicação efetiva das diferenças.
Relembrando Antônio Risério ao citar Anton Lukesch, que diz que o narrador
caiapó estrutura seus “contos” de maneira peculiar, “apenas ‘esboçando’ os textos,
emoldurando-os ligeiramente. Risério pondera: “Ora, pra que completar essa
incompletude? O que importa é exatamente essa diferença textual. Já pensaram se
traduzíssemos Gertrude Stein ‘corrigindo’ o seu estilo?” (RISÉRIO, 1993, p. 116).
Tradução de cantos marubo
Considerando que as dissonâncias comunicativas existentes entre o
J pensamento nativo e o ocidental podem produzir rendimentos interessantes do ponto
de vista criativo e estético, passemos agora para a investigação de experiências de
A tradução de poéticas ameríndias. Para este fim, escolheu-se um autor específico: o
antropólogo, tradutor e poeta Pedro de Niemeyer Cesarino, o qual estuda as artes
L verbais marubo e desenvolve pesquisas sobre o tema junto à este povo há mais de
10 anos.
L Quando a terra deixou de falar – cantos da mitologia marubo (2013), de
Pedro Cesarino, é uma antologia de traduções comentadas de narrativas míticas
dos Marubo do Alto Rio Ituí, extremo oeste do Amazonas. Nesta obra, o autor
A
aborda especificamente os saiti (narrativas cantadas), os quais possuem uma
estrutura melódia, rítmica e métrica rigorosa, e constituem um fenômeno singular
nas terras baixas sul-americanas pela inexistência de outras tradições consolidadas
de narrativas míticas cantadas, até onde se sabe – repertório mítico costuma ser
contado ou embutido em cantos de cura (CESARINO, 2013, p. 24).

Os Marubo, povo de tradição oral, não possuem qualquer traço de presença
478
de escrita, a não ser o criado pela obra mencionada, realizada por iniciativa do
• próprio Cesarino e acolhida pelos Marubo (CESARINO, 2013, p. 18). Sendo assim,
os cantos-mito são desenvolvidas em um ambiente totalmente alheio à escrita, fruto
de uma memória extremamente criativa capaz de estabelecer longos encadeamentos
narrativos, que formam um repertório formular de estrutura predeterminada, mas
de grande variabilidade temática (CESARINO, 2013, p. 25-26).
2 Os cantos são acompanhados de reflexões etnográficas-tradutórias
para que se possa compreender como a metafísica marubo se inscreve nos textos
0 (CESARINO, 2013, p. 16). Sobre a estrutura de organização dos textos, são
apresentados em duas colunas (original em marubo à esquerda e tradução em
1 português à direita). Quebras de linhas são realizadas nas duas colunas, baseadas
na métrica do original cantado; em português, porém, os versos tendem a ser livres

e não seguem um padrão métrico fixo.
8
O fluxo das traduções seguem uma maneira específica de ensinamento
dos saiti, em que a sequência de fórmulas é entoada pelo especialista rapidamente
e em voz baixa para o aprendiz, para que este capte a sequência inicial, a partir da
qual poderá completar o canto. Esta forma de execução possui a mesma métrica da
forma cantada, porém é desprovida de vocalises e melodia. Os vocalises possuem
papel central na formação da cadência reiterativa dos cantos, mas Cesarino não
encontrou uma solução satisfatória para reinventar tal função nas traduções para
o português, estabelecendo o padrão rítmico por meio de outros recursos; apesar
de fundamentais para a arquitetura musical dos saiti, não são formados por um
prolongamento do conteúdo gramatical das fórmulas verbais, nem possuem valor
semântico (CESARINO, 2013, p. 35).
Para executar o ritmo reiterativo dos cantos, Cesarino aplicou as quebras
de linhas, buscando capturar a variação paralelística tão essencial a esse tipo
de poética, recurso que foi aplicado na tradução para o português aliado ao uso
de rimas, aliterações e assonâncias. O autor também tentou obedecer à ordem
estrutural linguística marubo (sujeito, objeto, verbo) nas traduções ao colocar os
J verbos no final de cada predicado, o que também favorece a cadência do texto.
Artigos e preposições foram pouco usados e a pontuação foi utilizada apenas na
A medida necessária, obedecendo ao regime paratático do original e com vistas a
potencializar a densidade imagética dos versos. Os equivalentes formulares do
L original foram recriados em português, como “Para assim fazer/Lua aparecer”, de
mesma estrutura que “Para assim deixar/A raia se espalhar”, com o intuito de seguir

seu “próprio jogo de maneira tão rigorosa quanto fazem os cantadores”, obedecendo
L o mesmo fluxo mental desenvolvido durante seu aprendizado e transcrição dos
saiti e outras modalidades verbais (CESARINO, 2013, p. 36).
A Apresento abaixo o trecho inicial de uma das narrativas parte das
histórias de formação do Céu e da Terra. A narrativa chama-se Kõi Mai vaná (A
formação da Terra-Névoa), cantada por Armando Mariano, e trata da cena de
surgimento, do estabelecimento de um lugar firme para os espíritos, que flutuavam
em aberto e a partir de então puderam ficar em pé e começar a montagem do
• mundo. Primeiro, surge Kana Voã, o principal dos espíritos demiurgos da mitologia
479 marubo, no vento produzido por uma flor que se assemelha ao lírio ou trombeta e
pelo rapé de tabaco (substâncias psicoativas xamânicas), os quais funcionam como

operadores cosmológicos, capazes de desencadear processos de transformação
do mundo antigo (CESARINO, 2013, p. 43). Em sequência, outros espíritos,
considerados pares ou irmãos de Kana Voã, começam a surgir a partir de outros
princípios transformacionais, que, segundo Cesarino, não possuem paralelo no
vernáculo. Exemplo disso é o termo nako (presente em diversos trechos), traduzido
2 como “néctar”, que se refere “a uma seiva adocicada de certas árvores valorizada
pelos xamãs, a um hiperalimento dos espíritos (…) e, por fim, a um princípio
0 transformacional difuso e misterioso desde sempre existente” (CESARINO, 2013,
p. 43).
1
1 Koĩ shõpa weki Vento de lírio-névoa
8
We votĩvetãki O vento envolvido
Koĩ rome weki Ao vento de rapé-névoa
Veõini otivo Há tempos flutua
5 Koĩ shõpa weki Vento de lírio-névoa
Chĩkirinatõsho Vai se revolvendo
Koĩ Voã wení E Koĩ Voã surge
Awẽ askámaĩnõ Enquanto isso
Tene tewã nãkoki No néctar-tene
10 Nãko osõatõsho Dentro do néctar
Pikashea wení Pikashea surge
Wenikia aíya O surgimento ocorre
J
Otxoko inĩki Junto a Otxoko
A Pikashea wení Surge Pikashea
15 Weníkia aíya O surgimento ocorre
L
Vari tewã nãko No néctar-sol
L Nãko osõatõsho Dentro do néctar

Vari Tokẽ wení Tokẽ-Sol surge
A
Weníkia aíya O surgimento ocorre

20 Shane tewã nãkoki No néctar-azulão


Nãko osõatõsho Dentro do néctar

Shane Tokẽ weni Tokẽ-Azulão surge
480
Weníkia aíya O surgimento ocorre

Ino tewã nãko No néctar-jaguar


25 Nãko osõatõsho Dentro do néctar
Ino Tokẽ weni Tokẽ-Jaguar surge
2
Weníkia aíya O surgimento ocorre

0 Kana tewã nãkoki No néctar-arara

Nãko osõatõsho Dentro do néctar
1
30 Kana Tokẽ weni Tokẽ-Arara surge
8 Weníkia aíya O surgimento ocorre

Wení mashtesho O surgimento terminado


Koĩ shopã weno Vento de lírio-névoa
Ronokia ashõki No vento planam
35 Chinãkia aíya E planando pensam

“Txipo kaniaivo “Os nascidos depois


Txipo shavá otapa Nas outras épocas
Awekima tsakai Onde será que
A shokomisi?” Poderão viver?”
40 Ikianõ anã Eles assim dizem
Koĩ shopã weno Vento de lírio-névoa
Ronokia ashõki No vento planando
J Outro exemplo de termo sem tradução clara que aparece algumas vezes
é aíya, o qual é um termo da língua especial que não possui convenção ortográfica
A estabelecida, mas que indica o estatuto da verdade do evento narrado pelo cantador.
Cesarino fala ainda de um classificador intraduzível, tene (linha 9), que serve para
L indicar a classe do néctar e dos espíritos que surgem a partir dele.
A respeito da estrutura formulaica do poema, os saiti não possuem uma
L marcação de tempo definida, mas sabe-se que ocorrem no passado remoto (tempo
do surgimento). Isto é normalmente comunicado por meio de fórmulas (exemplo,

linha 4) pelo cantador, que usa um morfema marcador de passado remoto (-ti-, em
A veõini otivo, traduzido como “há tempos flutua”). A narração, assim, é feita de modo
que a cena se dê em um presente suspenso, “em uma espécie de janela aberta para
a audiência através da qual se torna possível visualizar os acontecimentos que se
passam no interior da temporalidade narrativa ou remota” (CESARINO, 2013, p.
47). Por isso, a opção do autor em presentificar as ações: “o surgimento ocorre”.

Ao discutir os desafios da tradução de poéticas ameríndias, o autor
481 declara que adota uma abordagem de tradução que preza por uma literalidade
• própria: “Ora, as artes ameríndias da palavra também formulam para si mesmas
uma certa noção de poética associada às suas formas de expressão. Nada mais
justo, portanto, que as traduções escritas aliem-se a elas” (CESARINO, 2013, p.
14). Encontra em Henri Meschonnic (2010) uma concordância para sua postura
tradutória – com um certo eco também em Derrida –, o qual concebe a tradução
2 como uma transformação do original em outro registro literário possível, que
constrói sua própria experiência. Meschonnic confere fundamental importância à

enunciação oral e redefine a noção de oralidade; para ele, todo discurso tem uma
0 oralidade própria (MESCHONNIC, 2010, p. 44) e o ritmo é o que produz o sentido.

Cesarino denomina sua abordagem como “tradução criativa”:
1 As traduções derivam do encontro entre dois regimes poéticos e intelectu-
ais: o da narração verbal e o da escrita, o das performances rituais e o do
8 livro. Trata-se do cruzamento entre modos de pensar cujo resultado é uma
tradução criativa, que parte de um registro original de significação (o dos
cantadores marubo), e atinge um registro outro, mediado pela escrita e pela
reinvenção poética de cantos no papel. Procurei ir ao encontro da elaboração
da palavra, já que uma certa concepção de poética (…) é algo absolutamente
central para o pensamento marubo e suas artes verbais (CESARINO, 2013,
p. 15).

Na introdução de Oniska: poéticas do xamanismo amazônico (2011), Pedro


Cesarino explicita de forma mais clara a concepção tradutória que adota para a
tradução das artes verbais com que trabalha, definindo a obra como “um primeiro
exercício de transposição criativa da poética marubo”, o que remete, de forma
explícita, à teoria tradutológica desenvolvida no Brasil por Haroldo de Campos.
Cesarino, porém, não adota a transcriação como seu único norte, mas realiza uma
mescla com a pesquisa etnográfica. Álvaro Faleiros (2012) define de forma acertada
do que se trata o fazer tradutório de Cesarino:
A grande distinção, contudo, entre o projeto proposto por Pedro Cesarino
e aquele que se encontra no discurso da transcriação é a explicitação de
J que sua proposta se quer apenas como “um exercício de recriação poéti-
ca acompanhado de investigação etnográfica”. Ora, ao intercruzar, ao lon-
go de seu livro, recriação poética e investigação etnográfica, uma deixa de
A simplesmente acompanhar a outra para produzir outra forma de reescrita.
Não se trata, pois, nem de discurso etnográfico tradicional nem de pura
L transposição criativa (FALEIROS, 2012, p. 314).

Em Oniska, o autor declara se aproveitar de algumas soluções oferecidas


L por Dell Hymes e Dennys Tedlock (referências da etnopoética americana) e aplicá-
las aos depoimentos e narrativas marubo para lidar com a questão do paralelismo,
mas não o faz de forma extensiva, uma vez que as unidades definidas pelos autores
A
(linhas, estrofes, cenas e atos) são fruto de uma aproximação entre performances
ameríndias e a poesia dramática.
Conclusão
Seja de ordem epistemológica, ontológica ou etiológica, ou mesmo em
• razão de formas enunciativas e construções sintáticas desestabilizadoras, os
482 desafios a respeito do que é possível ou não ser traduzido são diversos quando o
assunto é artes verbais ameríndias. Para esta tarefa, é indispensável o concurso

da antropologia. Entretanto, como diz Antônio Risério, se é indispensável, não é
suficiente. Há dificuldades intersemióticas colocadas pela transposição de códigos,
como a passagem do oral ao escrito, por exemplo, ou de sons em palavras, entre
outras.
É um campo sócio-semiótico, em que convivem o contexto sociológico
2 e o contexto estético da palavra (RISÉRIO, 1993, p. 123). Por isso, a necessidade
do diálogo e trabalho conjunto entre todos aqueles dedicados às artes verbais
0 ameríndias. Que, na mesma medida em que haja obstáculos, haja também
motivação para lidar com a complexidade do universo narrativo ameríndio. Fica
1 então o convite.
Obras citadas
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0

1

8

J

A

L SER SOCIAL E CONSCIÊNCIA: UMA ABORDAGEM SOCIOLÓGICA
DA CONSTRUÇÃO HISTÓRICO-SOCIAL DA “CONSCIÊNCIA
L AMBIENTAL” NA AMAZÔNIA-ACREANA

A Israel Pereira Dias de Souza (IFAC)
RESUMO: Durante as décadas 1960-1980, a luta dos seringueiros acreanos
ganhou projeção nacional e internacional. Em razão de seus objetivos e de algumas
características de suas lutas, desde ali, começa-se a formar e se consolidar um
entendimento segundo o qual a luta desses sujeitos seria uma luta ambientalista.
• Foi graças a essa interpretação que sujeitos daquele movimento chegaram a ser
484 considerados os “maiores ambientalistas do mundo”, mesmo que de maneira
inconsciente, espontânea. Trata-se, assim, de uma interpretação de corte
• naturalizante e espontaneísta. O objetivo do presente texto consiste em responder
as seguintes indagações: 1) como se forma essa interpretação?; 2) ela se sustenta
histórica e sociologicamente?; que implicações traz para as populações locais?
PALAVRAS-CHAVE: Território. Amazônia-acreana. Consciência ambiental.

2 Como se forma a “interpretação clorofilada”?

Durante a ditadura militar, os governos colocaram em marcha um


0 conjunto de políticas voltadas para a “integração da Amazônia” ao novo processo
de acumulação capitalista em curso no país. Sob o clima da Guerra Fria e da febre

da “modernização”, três eram os eixos dessas políticas: segurança, desenvolvimento
1 e integração. Três também eram as justificativas em que se assentava o projeto:
1) evitar a inserção do “inimigo externo” (comunismo) em território brasileiro pela
8 selva; 2) promover a valorização deste “mundo perdido”; e 3) “integrar” esta imensa
e rica região ao resto do Brasil.

Juntos, esses eixos formaram uma espécie de tripé em que se alicerçou
ideológica e estrategicamente o projeto dos militares para a Amazônia. A crença
depositada nessa estratégia pode ser verificada no lema adotado pela Escola
Superior de Guerra e na celebridade do trocadilho que virou slogan: Segurança e
Desenvolvimento e Integrar para não entregar, respectivamente.
Em certo sentido, pode-se mesmo dizer que a integração fez as vezes de
ponte entre o desenvolvimento e a segurança (SOUZA, 2007). Baseados na tese do
“vazio demográfico”, segundo o qual a “Amazônia seria uma terra sem homens para
homens sem terra”, os governos militares entendiam que atraindo pessoas para a
região, através da integração e dos financiamentos, resolveriam os problemas do
desenvolvimento e da segurança.
Dessa forma, os militares criaram as condições para a expansão do
grande capital na Amazônia, além de certo alívio para as “tensões sociais internas
decorrentes da expulsão de pequenos produtores do Nordeste e do Sudeste pela
J modernização da agricultura” (BECKER, 2007, p. 26).
Como era de esperar, entretanto, a adoção de tais políticas resultou
A em destruição ambiental, expulsão e/ou extermínio de significativas frações das
populações indígenas e camponesas. Diferentemente do que se supunha a partir
L da tese do “vazio demográfico”, a Amazônia era habitada havia muito tempo.
Neste particular, o Acre, onde a substituição do extrativismo pela pecuária
L extensiva de corte, aliada à grande propriedade fundiária, consistiu no eixo central
da modernização (PAULA, 2006, p. 109), desponta como caso emblemático.
Não por acaso, já em 1978, “cerca de um terço das terras cadastradas no
A
INCRA encontrava-se sob domínio de investidores do Centro-Sul, em sua maioria
oriundos do estado de São Paulo” (PAULA, 2006, p. 108). Não foram poucos os
impactos daí advindos. Isto porque “72% da população do estado vivia no campo” e
“85,3% das famílias ocupadas no setor primário não eram proprietárias das terras
que cultivavam” (PAULA, 2006, p. 110). Num mesmo e único processo, cresceram

pecuária, concentração fundiária, devastação... e conflitos. Isso vai marcar, na
485 forma da violência, a luta pela reconfiguração territorial por que passa o estado
• acreano nessas décadas.
Objetivando lidar com a pecuária ou simplesmente especular no mercado
fundiário, os “novos donos” teriam que “limpar” essas terras. Nesse intuito,
lançavam mão de métodos expulsórios diversos que
Iam desde a compra da posse e benfeitorias por preços irrisórios ou troca
2 por lotes, de área inferior ao módulo oficial, à destruição das plantações, in-
vasão de posses, proibição de desmate para roçado, obstrução de caminhos
e varadouros, inclusive de rios e igarapés. Além do emprego de outras for-
0 mas de violência como espancamento e assassinatos (COSTA SOBRINHO,
2006, p. 16).
1 Nesse cenário,
[...] os moradores da floresta - os seringueiros - veem seus territórios de
8 vivência serem ameaçados e eles prestes a serem “desterritorializados” [...].
Daí, as condições que emergem de acirramento das contradições postas pelo
“chamado processo modernizante” do país, em que a luta de classes estará
no centro de todo o processo de produção deste espaço. Tem-se, então, uma
década (1970) em que ocorre o início da organização da luta, no despertar
para a resistência, perante a violência suscitada (SILVA, 2006, p. 136).

É nesse contexto que surge o Movimento dos Sindicatos dos Trabalhadores


Rurais do Acre (MSTR), colocando-se como o principal protagonista da resistência
ao processo de espoliação capitalista em curso. Suas estratégias de luta eram
variadas. Envolviam
[...] ações organizadas e formas de luta diversificadas como o empate,
acampamentos, comissões a Brasília, pressões sobre os parlamentares,
denúncias aos órgãos públicos, demandas judiciais, e até mutirões com
armas para impedir a violência contra a posse [...] (COSTA SOBRINHO,
2006, p. 20).

Entre esses métodos de resistência, cabe dar destaque a um, por seu
simbolismo: o “empate”. Referindo-se aos empates, Rodrigues faz a seguinte
J descrição:
Normalmente, os seringueiros que seriam atingidos pelo desmatamento co-
municavam ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais, ao mesmo tempo em
A que chamavam seus vizinhos, que não seriam atingidos naquele ano. Jun-
tavam algumas dezenas de trabalhadores que, não raro, levavam suas es-
L posas e filhos, formando um contingente considerável de seringueiros que,
ao chegarem ao local do desmatamento, conversavam com os trabalhadores
que estavam fazendo a broca, convencendo-os a paralisarem os trabalhos.
L A ação era, sempre, pacífica, embora muitas vezes os seringueiros lavassem
consigo suas espingardas, que nunca foram usadas nas ações, conseguin-
A do, geralmente, num primeiro momento, convencer os trabalhadores das
derrubadas em sua maioria ex-seringueiros gerenciados por um “gato” vin-
do de fora (RODRIGUES, 2009, p. 97).

A estratégia dos empates rendeu vitórias ao movimento e explicitou a


dimensão ecológica de suas lutas. Isso foi algo extremamente importante para
• a aproximação entre ambientalistas e seringueiros e para que estes tivessem a
486 atenção, favorável, da opinião pública nacional e internacional. Essa dimensão
faz com que, nos empates, os interesses específicos/parciais dos seringueiros (sua
• sobrevivência) se encontrem e se con-fundam com os interesses universais da vida
humana.
Desse modo, nos empates,
A operação de defesa das condições de vida do seringueiro se entrelaçava
e confundia-se com a preservação da floresta. A questão ambiental estava
2 posta. Manter a floresta era garantir o direito de existência enquanto produ-
tor e extrativista (COSTA SOBRINHO, 2006, p. 22).
0 No ano 1982, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Xapuri,
sob a liderança de Chico Mendes, lança mão de uma proposta original de reforma
1 agrária. “Há uma necessidade grande e urgente”, dizia Chico Mendes em entrevista
dada a Costa Sobrinho,
8 de se evitar o desmatamento da Amazônia [...] Pensamos em criar uma al-
ternativa de preservação sem tornar a Amazônia um santuário intocável,
mas garantindo a sobrevivência com dignidade dos que vivem na floresta
(MENDES, 2006, p. 44).

Nasciam aí as inquietações que levariam, no ano de 1985, à proposta


de criação das Reservas Extrativistas (RESEXs), consideradas a “reforma agrária
do seringueiro”, porque afirmavam a territorialidade própria do seringueiro e do
homem da floresta, o domínio das populações locais sobre seus territórios e bens
naturais, o valor e os saberes do homem da floresta contra o capital.
Como os “empates”, essa proposta revelava o intuito de impor limites
ao capital e de “empatar” (barrar) a “modernização” nestas paragens e também
contribuirá para a aproximação entre ambientalistas e seringueiros. Criadas através
do Decreto-lei Presidencial n° 98.987/90, as RESEXs destacam-se, dentre outras
coisas, pela defesa: 1) de que a terra e a natureza deixassem de estar subordinadas
aos interesses imediatos de capitais privados e passassem a ser bem público; 2)
que sua utilização incorporasse demandas sociais das populações da região cujos
saberes deveriam servir de elemento orientador de políticas públicas destinadas à
J elevação dos níveis sociais de vida e renda de forma compatível com a conservação
da paisagem natural.
A Na formulação inicial das RESEXs, somam-se aos elementos acima
expostos dois outros, também eles dignos de nota: 3) o proeminente papel atribuído
L ao Estado, considerado a “referência central para a reversão do modelo então em
curso” (PAULA, 2006, p. 119); e 4) o descarte da exploração de madeira para fins

de comércio (PAULA, 2005, p. 247-48, nota 221).
L
Há que se dizer que, enquanto ficou circunscrita ao Acre, a luta dos
seringueiros foi difícil. Afinal, era grande a desvantagem que levavam nos conflitos.
A A justiça, o governo, a polícia e a imprensa locais estavam do lado de seus inimigos1.
Ao isolamento, correspondia sua debilidade, desvantagem nos conflitos. Todavia,
com a proposta das Reservas Extrativistas e da criação do Conselho Nacional
do Seringueiro (CNS) em 1985, a luta dos trabalhadores rurais pela proteção da
floresta tomou maior dimensão e atraiu o favor da opinião pública, notadamente do
• movimento ambientalista nacional e internacional.
487 Quanto a isso, Paula ressalta que foi a “face ecológica” das RESEXs,
• “expressa nas preocupações com a preservação das florestas, que abriu as fronteiras
nacionais e internacionais para a divulgação da luta daqueles seringueiros”.
Isso suscitou “simpatias e apoios diversos de outros setores da sociedade civil,
principalmente de ONGs e movimentos ambientalistas, que protestavam contra a
devastação da Amazônia” (PAULA, 2006, p. 118).
2 A interpretação de Costa Sobrinho segue a mesma linha. Sublinhando a
importância desses fatores, afirma que o cerco a Chico Mendes será parcialmente
rompido a partir do I Encontro dos Seringueiros. “Daí por diante, novas alianças
0
vão ser feitas. A luta sindical vai se aliar à questão ecológica. A ideia de reserva
extrativista toma fôlego. Chico passa a ser cidadão do mundo” (COSTA SOBRINHO,
1 2006, p. 23).
Ainda sobre esse assunto,
8 Do ponto de vista da ecologia, a proposta das reservas extrativistas ganhou
o mundo porque era uma proposta de utilização da floresta amazônica, de
desenvolvimento para a região a partir de suas populações tradicionais, ou
seja, agora os ambientalistas brasileiros e estrangeiros tinham uma “pro-
posta” para contrapor ao modelo oficial, altamente predatório, do governo
brasileiro (RODRIGUES, 2009, p. 126).

É nesse cenário que começa a ser forjada a “interpretação clorofilada”


1  Em sua obra, em grande medida autobiográfica, expressando sua vivência com o movimento
dos seringueiros e com Chico Mendes, Rodrigues (2009) (que também é advogado) traz importantes
informações sobre a parcialidade dessas estruturas e instituições.
referente ao movimento dos seringueiros acreanos. Com a expressão “interpretação
clorofilada” designamos a concepção segundo a qual o movimento aqui em tela seria
um movimento eminentemente “ambiental” (SOUZA, 2014, p. 161-165; SOUZA,
2017, p. 159-163). Sintomaticamente, por aqueles anos, passaram a dizer que os
sujeitos daquele movimento de seringueiros eram os “maiores ambientalistas do
mundo”.
Essa visão passou a pesar tão consideravelmente na interpretação desse
J movimento que chegou mesmo a moldar como nacional e internacionalmente
Chico Mendes, sua figura de maior projeção, seria maiormente entendido. E tem
A uma força tal que passou a influir mesmo sobre a perspectiva de estudiosos do
movimento dos seringueiros, como a de Costa Sobrinho (2006) e de ativistas que
L tomaram parte diretamente naquela luta, como Rodrigues.
Em 17/02/17, Gomercindo Rodrigues esteve no IFAC/Campus Cruzeiro
do Sul, ministrando uma palestra e apresentando seu livro Caminhando na floresta.
L
Num dado momento de sua exposição, deu a entender que Chico Mendes e seus
companheiros de luta defendiam o “desenvolvimento sustentável”. Perguntamos a
A ele “se essa era, realmente, uma proposta do movimento ou se tinha vindo depois,
de fora, com os ambientalistas, e que, depois, fora acolhida e difundida pelo governo
local?”2.
Imediatamente e sem resistência, ele reconheceu que a “ideia do
desenvolvimento sustentável” havia surgido depois. Atitudes como estas,
• conscientemente ou inconscientemente, mostram a força dessa “interpretação” e
488 como seus efeitos se fazem sentir, inclusive, em retrospectiva, re-significando o
• passado, fortalecendo alguns de seus traços, debilitando outros; criando traços
novos, apagando outros.
Entre outras coisas, reside aí a razão de hoje quase não se considerar
a luta do líder seringueiro pela reforma agrária, e de se enfocar, no mais das
vezes, apenas sua “luta ambiental”. Daí ele ser considerado, geralmente, como
2 “ambientalista”. E assim, por dada ótica ambientalista, os conflitos agrários são
transformados em conflitos ambientais.
0 Por esta lente naturalizante, a luta em defesa da floresta, território do
seringueiro, é transformada em defesa do “meio ambiente”3. Os conflitos agrários

são apagados do passado e obnubilados no presente, para o pesar das comunidades
1 locais da Amazônia em geral e do Acre em particular.

Interessa sublinhar que há nisso um misto de projeção e distorção.
8
2  Em entrevista concedida a Silva, Raimundo Barros, primo de Chico Mendes disse: “Veja bem.
Eu pelo menos e o próprio Chico (Mendes) não tinha nenhuma ideia de que nós estava numa luta
ecológica. E a verdade era que a gente também tava” (BARROS, 2006, p. 54). Para ele, “O ecológico
foi uma coisa que veio depois. A gente tava fazendo as duas coisas, mas o que a gente entendia era
só uma. Era a luta pela sobrevivência. Defender a sobrevivência para nós era defender a floresta
[...]” (BARROS, 2006, p. 54-55) (grifos nossos).
3  Aprofundaremos esse tema em outra oportunidade. Mas vale deitar aqui algumas palavras sobre
esse que é outro elemento constitutivo do que tratamos como “interpretação clorofilada”. Trata-se
da maneira naturalizada ou naturalizante com que os territórios são compreendidos e tratados
sob certa ótica ambientalista. Algo que vai do “mito da natureza intocada” à perspectiva - como a
No primeiro caso, de projeção, por ignorância e/ou ingenuidade, projeta-se nas
populações locais algo que lhes é estranho, algo próprio de outros lugares e sujeitos.
No caso da distorção, propositalmente, confundem-se as coisas por interesses
outros, escusos.
Em que pesem as diferenças entre uma e outra perspectiva, o caráter
ambientalista, como aqui entendido e da maneira como é atribuído a essas
populações, figura como algo estranho, vindo de fora para dentro e, nalgumas
J situações, de cima para baixo. Na maioria dos casos, com implicações negativas. A
dimensão colonizadora disso é mais que patente.
A Com efeito, uma das grandes preocupações do movimento dos seringueiros
era a construção da BR-364 e tudo o que isso implicava em termos de violência,
L expropriação e devastação. Enquanto os militares viam na integração algo virtuoso,
os seringueiros viam algo nefasto. E isso não era por acaso. Os ambientalistas
foram fundamentais na discussão da referida estrada e na crítica a seus efeitos
L
desastrosos.

De acordo com Costa Sobrinho, “na região dos vales dos rios Acre e Purus,
A quase sempre seguindo os traçados estratégicos das BRs 364 e 317, e também
AC-40, as terras alienadas foram ocupadas pelos novos proprietários” (COSTA
SOBRINHO, 2006, p. 15). Por isso, era constante a preocupação dos seringueiros
com o asfaltamento da BR-364 e todos os impactos que vinham em seu rastro.
Vinte dias antes de seu assassinato, Chico Mendes dizia em entrevista a Costa
• Sobrinho:
489 O asfaltamento da BR-364 também foi discutido por mim na Comissão de
Operação de Verbas do Senado Americano. Denunciamos a destruição da

floresta, os impactos ambientais causados pelo asfaltamento da estrada no
trecho Cuiabá-Porto Velho. Falei que, se a intenção era levar desenvolvi-
mento para os povos daquela região, o que ocorreu foi exatamente o contrá-
rio. A estrada serviu para beneficiar meia dúzia de latifundiários e arruinar
a vida de milhares de trabalhadores (MENDES, 2006, p. 45).
2 Como resposta a essa pressão externa, é criado o Programa de Proteção
ao Meio Ambiente e das Comunidades Indígenas (PMACI). Este não passou de uma
0 forma de o governo brasileiro assegurar o recebimento do empréstimo. De tudo o
que lá se discutia e decidia, estavam excluídos seringueiros, demais trabalhadores
1 que estamos tratando - em que a floresta (meio ambiente) tem proeminência sobre os indivíduos.
Desse modo, alimentando-se reciprocamente, correm em paralelo redefinições simbólicas e efetivas
8 dos territórios, naturalizando-os ou re-naturalizando-os, aparentemente des-umanizando-os e/ou
in-umanizando-os. Dizemos “aparentemente des-umanizando-os e/ou in-umanizando-os” porque
essas re-definições nada mais são que des-apropriações e re-apropriações simbólicas e efetivas que
implicam des-territorialização e re-territorialização, num mesmo processo, re-configurando usos e
sentidos dos territórios. Aqui, entrelaçam-se epistemologia, política e economia. Isto porque a re-
definição do território, tal como assinalada, não está apenas no tratamento político e econômico
recomendado a ele através de estudos técnico-científicos, ao fim, mas já está presente em sua
própria re-definição como “meio ambiente” ou “natureza”, ao cabo. Portanto, de uma ponta a outra,
mesmo as definições que são reputadas como exclusivamente técnicas são eminentemente políticas
e econômicas. Ignorar ou ocultar esta dimensão da re-definição ambiental dos territórios com tudo
o que ela significa equivale a fortalecê-la, fazê-la avançar imperceptível ou laureada sob o manto da
autoridade da causa.
rurais e indígenas. Após várias tentativas de diálogo, o CNS encabeça a crítica ao
programa, lançando uma nota que muito diz a respeito do posicionamento dos
“povos da floresta” em relação à estrada.
Eles, então, reivindicavam que as que as obras da estrada fossem
paralisadas até que fossem tomadas medidas concretas que garantissem aos
seringueiros a segurança das áreas nas quais vivem. Exigiam ainda que fossem
criadas Reservas Extrativistas em toda a área de influência da BR-364 em que
J predominavam atividades extrativistas. Por fim, pediam aos órgãos governamentais
que entendessem que proteção ambiental na Amazônia significa garantia da
A preservação da floresta para aqueles que vivem nela sem destruí-la, ou seja, os
índios e os seringueiros (SOUZA, 2014, p. 163).
L Observamos, pelas reivindicações acima, que as RESEXs são sugeridas
como uma espécie de contraponto à estrada e que a floresta deveria ser protegida
em benefício daqueles que nela vivem e dela cuidam. Não resistindo às pressões, o
L
BID recuou e suspendeu o financiamento da obra.

Pode-se dizer que, naquele momento de intensa preocupação com os
A problemas ambientais nos cenários nacional e internacional, a questão ambiental
foi um obstáculo à “modernização capitalista” na região. Para isso, ao lado das justas
reivindicações e da grande força de mobilização e resistência dos seringueiros,
foi importante a “interpretação clorofilada” que fizeram de sua luta. A questão
ambiental foi, assim, um elemento que, inteligentemente captado, lhes permitiu
• explorar o caráter premente e universal de suas causas, atraindo atenção e apoios.
490 Nessa constelação de fatores, o próprio movimento contribuiu ativamente
• para a interpretação clorofilada que dele fizeram. No dia mundial do meio ambiente,
do ano de 1986, realizou-se em Rio Branco o “primeiro encontro regional de
seringueiros do Vale do Rio Acre” (RODRIGUES, 2009, p. 101), convocado pelo
Conselho Nacional de Seringueiros.
Como se vê, o movimento dos seringueiros acreanos passou a atuar no
2 campo do ambientalismo, visando a colher aí tudo o que pudesse fortalecer sua
luta. Conscientes ou não do que isso poderia significar, acabaram por fortalecer a
0 visão que os ambientalistas e a opinião pública tinham a respeito deles.
Inegavelmente, há práticas e saberes dos seringueiros com inquestionável
1 dimensão ecológica. Isto cria um campo de intersecção entre os interesses
dos seringueiros e os interesses dos ambientalistas. Entretanto, da parte do

ambientalismo aqui em foco, apenas muito raramente a recíproca é verdadeira,
8 como veremos mais à frente.
Antes de explicar as implicações sociais que isso trouxe para o movimento
e para as populações locais, impõe-se perguntar: essa intepretação que atribui, de
modo natural e espontaneísta, consciência ambiental aos seringueiros se sustenta
histórica e sociologicamente?
De homem na floresta à homem da floresta
Em A epopeia do Acre e a manipulação da história, Eduardo de Araújo
Carneiro traz interessantes relatos que muito dizem sobre a imediata relação que os
migrantes, vindos do Nordeste para a Amazônia a fim de cortar seringa, estabelecem
com a floresta. Particularmente sintomático dessa relação é o tratamento que estes
dispensam às seringueiras.
Na busca de, no menor tempo, obter o maior rendimento, os migrantes
nordestinos intensificaram fortemente a exploração das seringueiras. Para tanto,
lançaram mão de uma técnica chamada “arrocho”. Referenciando-se nos estudos
de Reis, o autor supracitado destaca que essa técnica consistia em
apertar com um cipó a árvore [a seringueira], quase ao rés-do-chão, de modo
J que se forme uma orla capaz de dar assento a uma goteira circular de barro,
feita ali mesmo pela mão do seringueiro. Debaixo desta goteira colocaram
uma panela ou qualquer vasilha, que possa receber bastante líquido; feito
A isto golpeiam toda árvore e por todos os lados, de modo que ela se esgote em
um dia (CARNEIRO, 2015, p. 105).
L
Como é de se supor, sob forte pressão estrangeira por grandes volumes
de borracha, os efeitos desse tipo desregrado de exploração não atingiram apenas
L uma ou outra seringueira. Fizeram-se sentir em diversas partes da região. Isto
porque
A A extração era tão predatória que as árvores ficavam inutilizadas após pou-
cas incisões, obrigando o nordestino a abandonar a área em busca de outra
com maior densidade de caucho ou seringueira explorável. Por isso que
Bastos [...] afirma que o Acre era “um acampamento” naquela época (CAR-
NEIRO, 2015, p. 104) (as aspas são do autor).

• Nestas condições, era praticamente impossível estabelecer uma relação


491 diferente com o território, já que ele, na condição de “acampamento”, infixo,
temporário, era basicamente lugar de passagem.

Em estudo sobre o assunto, Rodrigues (apud CARNEIRO, 2015, p.
105) chega a afirmar que “a extração predatória foi a causa do fechamento de
vários seringais na Amazônia”. Com isso, a abertura de novos seringais virou um
problema e o reaproveitamento das seringueiras, uma necessidade. Por fim, a
situação forçou os próprios “seringalistas a facilitarem a normatização do corte de
2 seringueira”. Então disciplinaram o corte, intentando proteger as árvores daqueles
que as cortavam a seu serviço.
0 Oportunamente, Carneiro (2015, p. 105) lembra que o próprio Plácido de
Castro, também ele um seringalista, reclamava da “exploração bárbara e vampira
1 da seringueira”, “exploração revoltante e iníqua que em pouco tempo reduz e
transforma ricos seringais em abandonadas florestas”.
8 Antes de abordar os motivos que levaram os migrantes a tratarem desse
modo a seringueira, importa sublinhar uma curiosidade de grande significado e que
contribui sobremaneira para nosso objetivo. A curiosidade diz respeito ao fato de
que, a partir dos anos de 1980, na luta que então se estabelece entre seringueiros
e fazendeiros, estes últimos é que são tratados como os inimigos/destruidores
da floresta e aqueles, como os amigos/protetores. Porém, entre o crepuscular do
século XIX e o alvorecer do século XX, o quadro é bem outro.
Para ser exato, o quadro é o oposto. A preocupação para com a seringueira
ficava por conta dos patrões seringalistas, e não daqueles que, décadas depois,
seriam considerados “guardiões da floresta”, “os maiores ambientalistas do mundo”.
Já aqui muita coisa depõe contra todo e qualquer entendimento
naturalizante da “consciência ambiental” - um dos fundamentos daquilo que
chamamos “interpretação clorofilada” -, seja do migrante, seja do patrão seringalista.
Sem muita dificuldade, é possível apreender o que fez com que estes
assumissem tal posição. Diferentemente do que possa parecer, eles não estavam
preocupados com as seringueiras ou com a floresta em si. Os patrões seringalistas
pretendiam apenas estender a vida útil das seringueiras para, com ela, estender
J também a exploração e aumentar seus ganhos.
Explicada assim a atitude dos seringalistas, cumpre perguntar ainda:
A como explicar a atitude dos migrantes?
Para Carneiro, além de pela ambição de alguns,
L Isso era motivado ora pela pressão do seringalista, ora pela vontade de sal-
dar a dívida com o “barracão”. Como não possuíam instrumentos de traba-
lho adequados e nem tinham compromisso ou apego àquele território, eles
L feriam a árvore até que ela morresse (CARNEIRO, 2015, p. 104).

E mais. “A maioria não migrou para a região pensando em ficar. Queriam
A
enriquecer e voltar para suas terras natais” (CARNEIRO, 2015, p. 104).

Inegavelmente, o migrante chegava a estas terras refém do patrão. Tinha
que arcar com os gastos da viagem e da alimentação consumida ao longo de todo o
percurso. Vivia endividado no “barracão”, estabelecimento comercial de propriedade
• do patrão, onde, isolado do resto do mundo, era obrigado a fazer suas compras a
preços geralmente exorbitantes. E muitos chegaram aqui trazendo na bagagem o
492
sonho de enriquecimento rápido, para o regresso triunfante e igualmente rápido a
• suas terras natais.
Julgamos, porém, que, embora verdadeiros e consideráveis, esses fatores,
sozinhos, são insuficientes para explicar o tratamento predatório que os migrantes
dispensaram à floresta nos primeiros momentos de sua chegada.
Em primeiro lugar, é mister destacar que a organização dos seringais não
2 favorecia uma exploração muito diferente da então praticada. Tendo sido plantadas
pelas “mãos da natureza”, com tudo o que isso significa em termos de aleatório
0 na disposição das árvores ao longo da estrada de seringa, as seringueiras ficavam
relativamente distantes umas das outras.
1 Perdia-se muito tempo não tanto cortando seringa propriamente, mas
caminhando na estrada. Daí terem que sair ainda de madrugada de casa, para o
8 corte. Isso pesava na atividade do migrante, que, procurando aumentar a produção,
findava por sangrar em demasia as seringueiras4.
Em segundo lugar, cumpre ressaltar como os migrantes chegavam aqui,
com que valores. Parafraseando Sérgio Buarque de Holanda (1995, p. 31), não
seria exagero dizer que, trazendo concepções de mundo e valores de suas regiões
originárias (“outro mundo”), os migrantes chegam como “desterrados” por aqui. Por
largo tempo permanecerão assim, até que se transmutem de homens na floresta em

4  Levada a cabo pelas mãos humanas, a plantação racional-socializada dos seringais da Malásia,
onde as seringueiras, aos milhares, ficavam próximas umas das outras, possibilitava outras
formas de corte. Ali, aproveitavam-se melhor o espaço e, por conseguinte, o tempo. Na Amazônia,
homens da floresta. Isso caberá apenas a gerações posteriores5 e a outras levas de
migrantes.
Desterrados. Estranhos, em terra estranha e hostil. Os migrantes que
por aqui aportavam. A cabeça e o coração em outras regiões, os pés na Amazônia.
O sonho lá, a realidade ou o pesadelo cá. A maioria - talvez, a totalidade - nunca
havia tido contato com a floresta. Isso impunha enormes barreiras a que pudessem
se sentir em casa, a que estabelecessem relações “amigáveis” com ela.
J Neste sentido e dadas as dificuldades que por aqui encontraram, como
animais perigosos e mesmo mortais, isolamento, doenças, privações, saudade etc.,
A uns tantos viam na floresta um misto de inferno e purgatório de que queriam se
ver livres o mais rápido possível. Tudo isso fazia com que, também na cabeça de
L muitos migrantes, o Acre fosse apenas porto provisório, “acampamento”, lugar de
passagem.
L Ora, não foi sem razão que, no que se refere àquele período primeiro,
vimos utilizando o termo migrante, e não seringueiro. Como Paula (2016, p. 23),
entendemos que seringueiro é mais que o cortador de seringa assalariado6. Para
A defini-lo, é preciso recorrer a mais que a “atividade funcional”.
Na definição de seringueiro, além da “atividade funcional”, é preciso
considerar o modo de vida, de homem da floresta. No momento de sua chegada, o
migrante é, quando muito, apenas homem na floresta. Não se sente parte dela nem
a sente parte dele. E de fato, a princípio, nem sequer entende que sua sobrevivência

dependa dela.
493
Longe de uma compreensão equivocada, malsã, isso corresponde
• largamente à “verdade efetiva das coisas” (MAQUIAVEL, 2010) de então. Na base
dessa forma de consciência há relações de produção a condicioná-la. É o “ser social”
condicionando a consciência.
Como destaca Paula, exercendo plenos poderes em suas terras, o que
interessava ao patrão
2 era obter a maior produção possível de borracha; não lhe interessava o dis-
pêndio de tempo e energia do seringueiro em outra atividade que não fosse
0 a extração e defumação do látex. Era proibida a agricultura de subsistência.
Com isso, o patrão assegurava, por um lado, maior volume na produção de
borracha e, por outro lado, garantia a manutenção dos laços de dependên-
1 cia do seringueiro, uma vez que todos os gêneros necessários a sua sobrevi-
vência tinham que ser adquiridos no “barracão”, sempre a preços exorbitan-
tes, o que o mantinha eternamente endividado, sem poder sair do seringal
8 (PAULA, 2016, p. 34).

Chama a atenção o fato de o “seringueiro”7 viver para cortar seringa. Ele

a exploração se conformava aos seringais. Na Malásia, os seringais se conformavam à exploração.


5  A gerações nascidas e criadas na floresta sob outras condições, em tempos em que o sonho da volta rápida e triunfal
a suas terras natais (de seus ascendentes), se não acabou, pelo menos ficou menos provável.
6  Nem sempre recebiam salário. Por vezes, o salário a que tinham direito era todo descontado nas
mercadorias que pegavam ao longo do mês no estabelecimento comercial do patrão seringalista, o
afamado “barracão”.
7  Como explica na introdução de sua obra Seringueiros e sindicatos: um povo de floresta em busca
vai intensificar a exploração da seringueira não só porque é pressionado pelo patrão
e pelas dívidas, mas também porque não pode desenvolver outras atividades. No
geral, era disso que dependia sua sobrevivência. Era o mono-extrativismo servindo-
lhe de viseira e fazendo com que enxergasse da/na floresta apenas a árvore a ser
sangrada.
Impedido de praticar a agricultura de subsistência, ficou impedido
de estabelecer relações múltiplas com a floresta, de perceber e usufruir de sua
J generosidade. Ficou condicionado a ter com ela apenas um relacionamento
utilitário, unilateral, sempre segundo os interesses do patrão, e nunca de acordo
A com suas necessidades. A relação do migrante com a floresta era mediada e
regulada, determinada, pelo capital.
L Naquelas condições, sua sobrevivência era antitética à da floresta. Uma,
a negação da outra. Em sentido mais amplo, embora o seringueiro estivesse no seio
da floresta, esta ainda estava por ser descoberta por ele.
L
Este homem na floresta, seringueiro apenas segundo a “atividade funcional”,
jamais poderia ser considerado um “protetor da floresta”, um “ambientalista”, como
A fora mais tarde. E não por uma deficiência ou maldade pessoal, mas por conta das
específicas relações de produção em que estava enredado e que condicionavam as
relações que mantinha com a natureza e também sua consciência.
Fundamental para que as coisas mudassem foi a crise do mono-
extrativismo, fruto da concorrência da “borracha oriunda dos seringais de cultivo

implantados pelos ingleses na Malásia” (PAULA, 2016, p. 35). Conforme Paula
494 ressalta,
• O impacto dessa crise foi violento, desarticulou de maneira profunda a eco-
nomia amazônica, pautada na exportação dessa matéria prima [a borracha].
O resultado foi certa desarticulação também do sistema de aviamento. As
dificuldades crescentes para o abastecimento dos “barracões” e a constante
queda nos preços da borracha fizeram com que os seringalistas passassem
a permitir, e até incentivar a prática de uma agricultura de subsistência,
2 pois essa era o único meio de manter minimamente e de forma precária
o funcionamento da empresa, evitando que os “fregueses” [“seringueiros”]
abandonassem o seringal (PAULA, 2016, p. 35).
0
Com a crise do mono-extrativismo e com o surgimento da pequena
1 produção, estavam lançadas as condições para a diversificação de atividades
produtivas voltadas para assegurar uma produção destinada ao autoconsumo.
8 Reduzia-se, com isso, a dependência em relação à produção de borracha e a todo
o sistema de controle que daí emanava e se encarnava na empresa extrativista. O
“barracão” deixava de ser o único lugar de organização e comando da produção e
da vida social dos seringueiros (PAULA, 2016, p. 36-37).
Surgia a figura do “posseiro”, sujeito que aproveitaria as brechas e
margens de liberdade assim abertas. Mudavam-se as relações de produção e, com
elas, as relações que o homem mantinha com a floresta e a consciência que tinha

de liberdade, quando, no que toca àquele momento primeiro, Paula (2016, p. 23) define “seringueiro”
tendo como referência apenas “atividade funcional”. Trata-se daquilo que, por um caminho paralelo,
definimos como homem na floresta.
dessas relações. Enfim, a relação com a floresta poderia ser multilateral. O homem
poderia, a partir dali, se sentir parte da floresta e sentir a floresta parte dele. O
homem da floresta estava surgindo.
Não mais espaço voltado exclusivamente para a exploração da seringa.
Não mais simplesmente “acampamento”, lugar de passagem. A partir dali o
território seria remodelado simbólica e materialmente. A vida do homem e da
floresta interpenetram-se, passando a depender uma da outra de maneira mais
J direta, com menos espaços para atravessadores, por assim escrever.
Assim foi porque, como ensina Marx, toda produção é também reprodução,
A conformando um processo que envolve mais que o fabrico de “produtos”8. Trata-
se de um processo abrangente, que envolve ainda a vida, as estruturas e relações
L sociais, os valores e as práticas. Mudando a produção, forçosamente tudo o mais
mudaria.
L A partir daí, por estabelecer relações múltiplas com a floresta e por perceber
muito claramente a dependência que tem dela para sobreviver, o seringueiro
expressa em sua consciência e práticas uma dimensão ecológica. Apenas quando
A se torna seringueiro em amplo sentido, homem da floresta, é que pode ser tomado
por “ambientalista”.
Mas nada há de natural nisso. Como vemos, é tudo fruto de um conturbado
processo histórico-social. Um elemento importante para entendermos a diferença
entre o primeiro momento e o segundo é a forma do trabalho. No primeiro momento

prevalece o trabalho alienado, trabalho assalariado, voltado para a produção do
495 valor de troca. Nessas condições, impõe-se aquilo que Mészáros (2006) trata como
• “mediações de segunda ordem”.
O trabalhador não se pertence. Sua força de trabalho não lhe pertence. A
terra não lhe pertence. Os frutos de seu trabalho não lhe pertencem. Personificado
no patrão seringalista, o capital atravessa e regula, media e determina sua relação
com todos os fatores outros. Considerando que todos esses fatores, num certo
2 sentido, são natureza9, pode-se dizer que o homem está alienado da natureza,
alienado de si mesmo. Entre ele e a natureza, interpõe-se o capital, estranho, hostil,
0 despótico.
No segundo momento as coisas são um tanto diferentes. Como posseiro,
1 o trabalhador goza de certa autonomia. Nalguma medida, a terra lhe pertence. Ele
não tem a propriedade jurídica dela, mas tem a posse sobre ela.

Essa autonomia relativa de que goza se estende também à sua força de
8
trabalho, aos meios e aos frutos de seu trabalho. A produção para a troca passa
a coexistir com a produção para o uso, para a subsistência. O valor de uso ganha
peso na produção e na vida do seringueiro. A produção, que determina o tipo de
ração do homem com a natureza, passa a ser guiada também por outros valores
8  Propositalmente, recorremos à palavra “produto”, e não mercadoria, pois essa assertiva é bastante
ampla, valendo tanto para a produção-reprodução dos valores de troca quanto para a produção-
reprodução dos valores de uso.
9  Marx dizia que mesmo o trabalho - que é, conforme ensinou Lukács em sua monumental
Ontologia, a “proto forma” de todas as outras atividades humanas - “é apenas a exteriorização de
uma força natural, da força de trabalho humana” (MARX, 2013, p. 23).
que não os determinados exclusivamente pela busca da reprodução ampliada do
capital.
Tudo isso incide sobre a relação do seringueiro com a floresta, seu
território. Por conseguinte, tudo isso incide sobre sua identidade, sua maneira de
se entender, sua maneira de relacionar com os outros homens e com a natureza.
Chegados a este ponto, cumpre agora perguntar:
Que implicações sociais essa interpretação traz para as populações locais?
J
Vejamos como os conflitos territoriais são vividos de maneira muito

drástica dentro da Reserva Extrativista que leva o nome de Chico Mendes. Além
A de invisibilizar os conflitos agrários, veremos o tipo de ambientalismo aqui em foco
contribuir para o avanço do capital sobre os territórios.
L Nesta parte, lançamos mão do valioso trabalho de Castelo (2015). Por
amparar-se no relato dos próprios seringueiros, esse trabalho dá uma clara visão
L de como os moradores da referida Reserva entendem e julgam as políticas de corte
ambiental que, em nome do líder seringueiro, ali foram implementadas.
A De modo destacado, os relatos a seguir centram-se no manejo florestal
e em alguns de seus impactos. Impõe-se dizer, desde já, que o manejo florestal
é considerado pelo governo local - que se arroga herdeiro de Chico Mendes e
concretizador de seus sonhos10 - uma forma de “exploração racional da floresta”.
Muitas são as ONGs ambientalistas que comungam dessa visão. Vamos aos relatos,
• seguidos por comentários nossos.
- Já vieram aqui e já conversaram comigo. Mas eu disse que não vou mexer
496
não (com o manejo), pois dá problemas para a seringa, derrubam muitas
• castanheiras. Vira tudo “esperaizal”.
- Vendi madeira de manejo. Mas não quero mais, não. Estraga a mata. Faz
muito “piseiro” na mata.
- Mas isso daí (o manejo) dá um pouquinho. Nessa nossa área aqui tem mui-
ta gente agregado que come com a gente. Daí fica difícil [...].
2 - Aí, quando chegar o inverno, a gente fica com a dificuldade de ramal. Fica
tudo esburacado devido às máquinas que passa (para retirar a madeira).
Não tem condições de arrumar. Aí a gente fica com a dificuldade.
0 - O pessoal daqui também faz manejo. Manejo florestal. Mas, no meu caso, o
manejo não era para existir [...]. E quando for daqui uns tempos... Os filhos
1 dos filhos vão viver de quê? [...]. Vai indo, vai indo e se acaba a floresta.
- Agora é ruim porque tudo que a gente faz tem que ter uma pessoa mais que
a gente. Para a gente se colocar, para a gente arrumar um lugar para fazer
8 qualquer coisa... Tudo é preciso de outra pessoa tá no meio, né?

- Mas aqui quase não tem caça. Só essas caças pequenas, que chamam de
“embiara”. Não tem caça grande.
- Se a pessoa for brocar (limpar o terreno) e colocar fogo, eles vêm e multam
[...]. É uma multa grande. Eu fico pensando como eles proíbem, se é disso

10  No Acre, completamos 20 anos de um governo que, a princípio se denominava da floresta, se


coloca como herdeiro de Chico Mendes e continuador de sua luta em favor da “proteção da floresta”.
Para mais sobre o assunto, ver SOUZA 2014. E para uma análise mais ampla e histórica sobre o
modelo de desenvolvimento implantado no Acre, consultar PAULA 2005.
que o seringueiro vive! Como vamos viver? Porque o feijão hoje tá caro. O
arroz também tá caro, tá tudo caro.
- [...] Eu tenho certeza que Chico Mendes seria contra esse manejo madei-
reiro. Porque ele era uma pessoa que pensava muito pelo lado da gente. E a
gente vê que isso não tem futuro para o seringueiro. Pois a gente vai vender
(a madeira) pelo preço que eles quiserem. Nós, que não entende de madeira,
vamos vender pelo preço que eles quiserem. E eles vão vender lá por um
preço bem maior. E nós vamos ficar sem a madeira e sem a floresta. E sem
J o dinheiro (CASTELO, p. 131-132; 135; 137; 141).
Aqui se mostra, claramente, certo assédio para que o morador adote o
A manejo. Além disso, há reclamações quanto aos impactos de tal atividade sobre
seringueiras e castanheiras, fundamentais para sua sobrevivência, pois é do
L extrativismo destas que ele aufere ganhos. Destacam-se os impactos negativos
(piseiro) na mata/floresta, em razão dos quais o morador mostra arrependimento em
L ter aderido à prática do manejo. A reclamação recai sobre o ganho insuficiente que
o manejo proporciona. Saltam aos olhos, ainda, as dificuldades de trafegabilidade
nos ramais, prejudicados que ficam pelas máquinas que entram e saem da floresta
A para a retirada de madeira.
É claro o medo referente à sobrevivência cultural e física do seringueiro e
seus descendentes, bem como a negação da prática do manejo, resultado da perda
de soberania territorial. A prática do manejo resulta em insegurança alimentar.
Espanta a caça, algo fundamental na dieta das populações locais. Sentindo-se

humilhado e impotente, o morador entende que o manejo não lhe favorece e que
497 ameaça a floresta. E invoca a memória de Chico Mendes11 que, sempre pensando
• do lado do seringueiro, não aceitaria o manejo madeireiro.
Em seu conjunto, esses relatos mostram não apenas que entre
seringueiros e ambientalismo (aqui expresso e encarnado em política governamental)
a convergência é parcial, mas que pode, inclusive, ceder espaço a uma negação
total. A “proteção da floresta” orienta a política do governo local. Mas não como
2 Chico Mendes reivindicava, isto é, garantindo a “sobrevivência com dignidade
dos que vivem na floresta”. Também não se pode dizer, a partir dessa política
0 ambiental, aquilo que o CNS dizia décadas atrás, a saber: “que proteção ambiental
na Amazônia significa garantia da preservação da floresta para aqueles que vivem
nela sem destruí-la, ou seja, os índios e os seringueiros”.
1
Agora, vejamos as coisas por outro ângulo, em mais amplo enfoque.
Vejamos como o ambientalismo trata de conflitos territoriais para além da Amazônia.
8
11  Em razão de sua importância, hoje Chico Mendes é uma figura em disputa. Há quem diga
que ele aceitaria o modelo de “desenvolvimento sustentável” em curso no Acre há quase 20 anos,
justificado em seu nome. E há aqueles que dizem que ele seria contrário. Em razão do 27° ano
de sua morte, dois eventos foram realizados em locais vizinhos, em Xapuri, no ano de 2015. Um
deles, ocorrido na sede do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Xapuri, falava
de um Chico militante da reforma agrária, tratava dos desafios da reforma agrária, da expulsão de
posseiros que vem ocorrendo, dos desmatamentos, da repressão de órgãos como Ibama e ICMbio
sobre os moradores da Reserva Extrativista e etc. O outro, ocorrido no salão da paróquia São
Sebastião, bem ao lado, falava de um Chico ambientalista cujos sonhos haviam se concretizado e
exaltava a política de desenvolvimento do governo local, calcada na exploração madeireira.
Em levantamento referente ao ano de 2015, a ONG ambientalista
Global Witness apontou que 78 “ambientalistas” foram mortos no mundo neste
ano de 2015 (Disponível em <http://brasil.elpais.com/brasil/2015/12/09/
internacional/1449685932_807960.html> Acesso em 12/09/2015). Segundo um
porta-voz da ONG britânica, essas pessoas foram assassinadas por “lutarem por
seu direito a um ambiente saudável”.
Ainda de acordo com o mesmo levantamento, em todo o mundo, entre 2008
J e 2012, período de alta dos preços de commodities, o número de mortes passou de
40 para 147 mortes por ano. Em 2015, portanto, houve uma diminuição no número
A de mortes de “ambientalistas”, segundo a terminologia da ONG ambientalista de
projeção internacional.
L Em 2014, Brasil e Colômbia foram responsáveis por quase 50% desse
total de mortes, sendo, por isso, considerados os
L piores países para a atuação de ambientalistas”. O Brasil ficou no topo da
lista). 40% dos mortos são indígenas, vítimas da exploração madeireira, da
mineração e das hidrelétricas (Disponível em <http://brasil.elpais.com/
A brasil/2015/12/09/internacional/1449685932_807960.html> Acesso em
12/09/2015).

Não entraremos a discutir o mérito dos números. Há muito, porém, o
que refletir sobre a definição dos que foram assassinados e sobre o motivo de suas
mortes. Esse é um claro exemplo em que as palavras não correspondem às coisas
• e do quanto a perspectiva ambiental nega, encobre os conflitos territoriais.
498 Em toda essa maneira de falar e interpretar, há uma espécie de
• invisibilização, de acobertamento da realidade pelas palavras. A nosso ver, esse é
um dos grandes desafios da reforma agrária nos dias que correm e um dos grandes
problemas que o ambientalismo coloca à luta das populações locais da Amazônia.
O levantamento aqui em questão fala de assassinato de “ambientalistas”,
de pessoas que morreram lutando por um “ambiente saudável”. Uma expressão
2 plástica como esta sugere que pessoas foram assassinadas por varrerem suas casas
e lavarem e trocarem seus lençóis. Pois isso também é zelar por um “ambiente
0 saudável”. Talvez seja desinformação, mas não conhecemos nenhum caso de
alguém que tenha sido assassinado por isso.

A verdade é que parte considerável das pessoas referidas naquele
1
levantamento foi assassinada por se colocar contra madeireiros, empreiteiros,
mineradores e latifundiários. Foi assassinada por lutar por suas terras, seus
8 territórios. Numa palavra: estas pessoas foram vítimas de conflitos agrários, tal
como Chico Mendes e outros tantos, antes e depois dele.

Não por acaso, a maioria dos mortos era de indígenas e posseiros, pessoas
que, mesmo quando têm seus direitos territoriais reconhecidos pela lei, não os têm
respeitados na prática.
Tratando tudo isso como “luta ambientalista”, tal como definida no
levantamento daquela ONG, encobre-se a realidade, em vez de desvelá-la. Desse
modo, borram-se importantes diferenças entre práticas e lutas distintas, e finda-se
por romantizar a tragédia.
Olhadas por esse prisma, as populações locais não conseguem verbalizar
e comunicar aos outros suas dores, sonhos e lutas. É como se lutassem no escuro
e em silêncio. Ninguém os vê ou entende. Isso não é coisa de pouca monta.
Por isso é que, através de enfoques ambientalistas como este que aqui
analisamos, se vem sufocando o que realmente está em jogo: a luta por terras e
territórios com todas as riquezas (materiais e imateriais) que eles encerram. Uma
luta demasiado antiga e, não obstante, atualíssima. É o contínuo avanço do capital
J para se interpor entre o homem e a natureza, buscando lucrar sobre as duas fontes
de riqueza: o trabalho e a natureza (MARX, 2013, p. 120-121). De um lado, os que
A precisam do território para sobreviver. De outro, aqueles que querem lançar mão
dele apenas para aumentar suas fortunas.
L Os primeiros não lutam apenas por quererem “um ambiente saudável”. Isso
conta, obviamente. Mas lutam, sobretudo, porque disso depende sua sobrevivência
física e cultural. Os últimos não afrontam os direitos desses a seus territórios por
L
não quererem um ambiente saudável, mas porque querem suas riquezas.

Cumpre ressaltar que esse tipo de interpretação não parou por aí. Ele se
A fez presente também no levantamento da ONG Defensores da terra referente ao ano
de 2016, lançado em julho de 2017.
Segundo este levantamento último, o Brasil continua no topo da lista
dos países onde “ativistas ambientais” (as aspas são nossas) mais foram mortos
em 2016, com 49 casos. Em todo o mundo, foram pelo menos 200 ativistas

assassinados no período, cerca de quatro pessoas por semana. Ainda de acordo
499 com o levantamento, esse é o maior número de mortes de ambientalistas registrado
• em um ano pela organização (<http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-
humanos/noticia/2017-07/brasil-mantem-lideranca-no-ranking-de-mortes-de-
ambientalistas-em> Acesso em 07/2017).
A Global Witness bem sabe que nem todos os mortos são “ambientalistas”.
Divulgando e analisando o referido levantamento da ONG Defensores da terra, ela
2 mesma
lamenta que aqueles que defendem causas fundiárias e ambientais enfren-
0 tam riscos específicos e aumentados porque desafiam interesses comerciais
(<http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2017-07/
brasil-mantem-lideranca-no-ranking-de-mortes-de-ambientalistas-em>
1 Acesso em 07/2017) (grifos nossos).
Além disso sublinha que
8 a principal causa de morte dos ativistas em 2016 foi o envolvimento das
vítimas em conflitos contra a atividade de mineração, agronegócio e explo-
ração madeireira. O setor de mineração permanece o mais perigoso, com 33
ativistas mortos depois de se oporem a projetos de mineração e petroleiros
(<http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2017-07/
brasil-mantem-lideranca-no-ranking-de-mortes-de-ambientalistas-em>
Acesso em 07/2017) (grifos nossos).

Tratar casos tão diversos sob a mesma rubrica é, portanto, uma opção da
ONG supracitada, uma espécie de modus operandi de certo ambientalismo. Uma
opção que, por projeção ou distorção, acaba por apagar ou transfigurar os conflitos
agrários na Amazônia e fora dela, erguendo, assim, enorme obstáculo àqueles que
nessas localidades lutam por seus territórios, por suas vidas.
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J

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501

2

0

1

8

J

A

L O ESCRITOR CANIBAL: DEVORAÇÃO COMO SÍMBOLO DE
RESISTÊNCIA POLÍTICA
L
Ivana Teixeira Figueiredo Gund (UNEB)
A RESUMO:O texto apresenta uma aproximação entre o canibalismo e a atitude
combativa e de resistência política e socialescolhida por alguns escritores em seus
processos de produção literária, pensada por meio da metáfora do escritor canibal.
O canibalismo – a princípio conceituado por um valor pejorativo, ligado à barbárie
ou ao atraso cultural – ressurgiu em diversas faces e motivações para o ato de
• devoração do corpo humano. Tornou-se, ainda, assuntorecorrente de expressões
de arte, entre elas, exposições, filmes, músicas e peças teatrais.Na literatura
502
brasileira, o tema foiabordadopordiferentes escolas e estilos,desde o Barroco até a
• contemporaneidade, entre personagens e abordagens diversas.O escritor canibal
será apresentado nesse texto como mais uma dobra nas muitas camadas de sentido,
amparado, especialmente, pela percepção indígena sobre o tema. Fundamenta-se o
texto nos estudos de Castro (2015), Lévi-Strauss (2006)e Agamben (2015).
Palavras-chave: Literatura. Canibalismo. Escritor canibal.Devoração.
2
O escritor canibal e sua devoração

Quando se pensa emuma analogia entre o escritor e a figuração canibal, a
0
primeira questão que se impõe é: como aproximar o ser que escreve à uma imagem
monstruosa e bárbara que vigorou desde os primeiros textos sobre o Novo Mundo e
1 que se cristalizou na memória coletiva, retornando, em grande parte, pelo signo da
violência e da presença incômoda de um dos principais temas tabus da humanidade
8 que é a devoração do corpo humano por seu semelhante? A resposta para isso
sugere uma mudança de perspectiva para o que se compreende por canibalismo.
Visto por intermédio do olhar estrangeiro e colonizador, o canibalismo
sustentou uma carga pejorativa queestigmatizou os povos e deslocou seus ritos
para o lugar do bárbaro, do monstruoso e do atraso cultural. Por meio desse ponto
de vista alóctone registrado em textos coloniais – como são exemplos os textos de
Jean de Léry, André Thevet, Hans Staden ou as ilustrações de Theodore de Bry–
os rituais canibaispraticados pelos povos desse território foram compreendidos
como práticas de povos isolados ou à margem da civilização, no que diz respeito
ao acesso e à produção de cultura, à religião e à estrutura social amparada por
um sistema político organizado por meio dos modelos ocidentais. Isso fez com que
fossem considerados povos sem lei, sem rei e sem Deus, conforme o entendimento
de Gabriel Soares de Souza (SOUZA, 1879, p. 280-281). Dessa forma, os indígenas,
durante os primeiros contatos, nem mesmo foram categorizados como humanos,
como explica JeffreyJeromeCohen (2000), para quem o canibal ancestral brasileiro,
ao mesmo tempo, familiar e um bárbaro violento, fixou-se como símbolo de horror,
mas também de fascínio, o que possibilitou um acercamento com a concepção de
J monstro: um ser a meio-termo entre um corpo grotesco e uma humanidade traçada
na diferença. Cohen afirma sero monstro um tema recorrente, pois
[...] eles podem ser expulsos para as mais distantes margens da geografia e
A do discurso, escondidos nas margens do mundo e dos proibidos recantos de
nossa mente, mas eles sempre retornam. E quando eles regressam, eles tra-
zem não apenas um conhecimento mais pleno de nosso lugar na história e
L na história do conhecimento de nosso lugar, mas eles carregam um autoco-
nhecimento, um conhecimento humano – e um discurso ainda mais sagrado
na medida em que ele surge de Fora. (COHEN, 2000, p. 55)
L
Por uma vinculação ao conceito de monstro, o canibal é a representação
A da transgressão em dupla via: ele é o que rompe limites e valores – sociais, éticos,
religiosos – porém é aquele que converge forças antagônicas, porque nele convive o

que foi esquecido e o que foi permitido lembrar,além de algo primitivo que retorna
coletivamente, representando um desequilíbrio entre poder e dominação. Porém, há
uma vantagem em pertencer a esse lugar ambíguo, porque é um lugar de contágio,
• um espaço privilegiado de reflexão, no qual se mesclam visões diferentes de cultura,
de interpretações de mundo, de percepção das identidades.
503
A contrapelo da visão estrangeira, o pensamento indígena apresentaoutro
• ponto de observação. Nele, o canibalismo se mostra como um símbolo de resistência
aos povos inimigos e como um instrumento que garante a inconstância do
movimento da vida. Uma forma de interpretar melhor esse outro sentido é por meio
do ritual, por exemplo, dos Tupinambá.1 Esse povo temgarantida, na etimologia de
seu nome, a representatividade desse território porque são “os que estão firmes na
2 terra, os esforçados da terra”, “os valentes da terra”; “gente do chefe dos pais”; “os
descendentes dos primeiros pais” ou “do primeiro pai” (NASCENTES, 1952, p. 305).
0 Sendo assim, historicamente,o sentido produzido para o ritual canibal é anterior à
colonização. Porém, pelos processos de dominação cultural e territorial, a acepção
1 indígena foi silenciada, desconsiderada ou relida por meio de um valor pejorativo
que em registros coloniais – entre relatos de viagem, cartas e documentos oficiais –

vinculou o rosto indígena ao medo personificado na estranha figura canibal.
8
Eduardo Viveiros de Castro descreve o canibalismo dos Tupinambá que,
para ele, pode ser categorizado como bélico-sociológico, pois o ritual se tratava
[...] de um elaborado sistema de captura, execução e devoração cerimonial
de inimigos. Os cativos de guerra, frequentemente tomados de povos de
mesma língua e costumes que a dos captores, podiam viver bastante tempo

1  O nome indígena será registrado com maiúscula e sem flexão de número, amparado na resolução
da I Reunião Brasileira de Antropologia, realizada no Rio de Janeiro, em 1953. Essa forma de
grafar é utilizada por dois dos principais antropólogos, cujos estudos embasam essa tese, a saber:
Eduardo Viveiros de Castro e Claude Lévi-Strauss.
junto a estes, antes da morte na praça central da aldeia. (CASTRO, 2015,
p. 157)

Castro evidencia alguns aspectos que servem para a reflexão de um


sentido mais amplo para a prática da devoração. O primeiro deles é que ela não
acontecia por fome. Ou pelo menos, não por uma fome ligada à urgência de uma
necessidade fisiológica.A noção de fome também se amplia. Devorar é ação que
se articula à uma cerimônia e, como tal, é pensada e construída por meio de um
J determinado ponto de vista, dentro de uma cultura, não por instinto. O corpo
devorado se transforma em símbolo de alteridade e, o que dele se come é mais
A que um corpo ou carne, é “um signo, um valor puramente posicional”, porque o
que se comia nessas ocasiões era “a condição de inimigo”do prisioneiro (CASTRO,
L 2015, p.160). Aqui se apresenta mais uma questão a ser observada no canibal:
a consciência de não considerar qualquer corpo apto à devoração. Ele precisa
significar algo para além da nutrição e sua devoração, por meio da perspectiva
L
tupinambá, estruturava-se sob os pilares da vingança, contudo, não em uma
vingança amparada por valores cristãos, que a julgam repreensível, preterida em
A relação à prática do perdão. Por meio do entendimento indígena, a vingança se
torna um direito. Nela não se apresenta julgamento de valor nem culpa ou qualquer
outro constrangimento. Representa a dinâmica da vida: aquele que comeu servirá
de alimento em outro tempo.
O canibalismo, assim apresentado, vincula com maior propriedade o
• ritual indígena e a reflexão para a atitude de escrita que se deseja enfatizar. O
504 sentido ambíguo do termo e as noções de transgressão, de apropriação, de corpo
• contrário e de vingança, servem como categorias para a construção da metáfora do
escritor canibal e sua devoração.
Ainda sobre esse duplo sentido para o canibal, conforme Frank
Lestringant, desde os primeiros momentos da colonização, os textos ressaltaram a
ambiguidade na conceituação da própria palavra canibal: para eles próprios – povos
2 caribes das Pequenas Antilhas – significava que eram seres ousados, valentes;
para seus inimigos – os Arawak – tratava-se de uma palavra que designava as
principais características dos caribes: “uma ferocidade e uma barbárie extrema”.
0 (LESTRINGANT, 1997, p. 27). Entre a ousadia e a insubordinação, a voracidade
e a violência, ressalta-se o lugar transgressor da devoração. Contudo, há que se
1 pensar a transgressão não somente como uma ação que excede ou ultrapassa
alguma norma moral e socialmente estabelecida, mas, sobretudo, como uma
8 possibilidade de “passar além” (CUNHA, 1986. p. 782.), romper limites, conceber
outra forma de pensamento. O caráter ambíguo do verbo transgredir se expande
porque no substantivo que dele deriva, a transgressão – de ato insubordinado
passível de consequências – transcende à atitude criadora. Para Michel Foucault,
“a transgressão é um gesto relativo ao limite; é aí, na tênue espessura da linha,
que se manifesta o fulgor de sua passagem, mas talvez também sua trajetória na
totalidade, sua própria origem”. (FOUCAULT, 2006, p. 32). Assim, caberá nesse
termo sempre sua característica volátil. Se, por um lado, a transgressão violenta
o anteriormente estabelecido, por outro, dá espaço ao movimento, abrindo outras
sendas pelas quais se pode acrescentar diferentes modos de percepção.
Esse teor transgressivo do texto produzido pelo escritor canibal não
necessariamente precisa corresponder à novidade da forma ou da linguagem.
Porém sempre sustenta uma transgressão, no sentido de criar outra possibilidade
de sentido com o corpus devorado pelo escritor. A prática dessa escrita não é atitude
pacífica. Isso pressupõeprofanação do corpus a ser devorado. Para uma melhor
interpretação, propõe-se pensar a profanação por meio da perspectiva apontada
por Giorgio Agamben, quando a conceitua como uma atitude política de restituir
J “ao livre uso dos humanos” o que o sagrado separou. Amplia-se aqui o conceito de
sagrado, como sinônimo daquilo que se sagrou, que se tornou a representação de
uma voz de autoridade e que se conservou no espaço do superior e do respeitado, ou
A
ainda, que pode ser compreendido por intermédio da lógica do poder, que institui
o que lhe é próprio, como os documentos, as leis, a história, a religião, os valores
L morais, os sistemas de governo, as vozes midiáticas ou o cânone literário. Ou seja,
tudo o que ocupa um lugar aparentemente privilegiado, amparado por conceitos
L de verdade, justiça, ética ou outro valor social maior. Para Agamben, “Profanar
não significa simplesmente abolir e cancelar as separações, mas aprender a fazer
A delas um uso novo” (AGAMBEN, 2007, p.75). O que se espera do escritor canibal é
uma atitude ousada e feroz – como sugere a etimologia da palavra canibal – diante
daquilo que ele se apropria para fazer o novo uso.
Assim, a profanação pode ser entendida como atitude política que
“desarticula os dispositivos do poder e devolve ao uso comum os espaços que ele havia
• confiscado”. Se a linguagem for pensada como um desses espaços a ser profanado,
505 como lugar de resistência e dessacralização, pode-se entender que a ação do escritor
canibal é profanadora por ir além, ao romper com o estabelecido e fomentar uma
• nova perspectiva. Se apenas excluísse as vozes contrárias, somente colocaria seu
texto no lugar ocupado pelo corpus devorado. Isso implicariacontinuação e não
transgressão dos lugares de fala. A devoração canibal marca a presença do outro,
sem omiti-lo. Nesse sentido, o escritor canibal se apropria, com astúcia, do que
lhe chega às mãos, coloca-se como voz paralela, para apresentar sentidos díspares
2 e fazer-se parte da tradição por ele devorada. Em seu texto, ele expõe o corpo – o
corpus – como faziam os povos canibais no Brasil, ao moquearem publicamente o
0 prisioneiro. Por isso, não se trata de assimilar aquilo que devora, mas, especialmente,
de apropriar-se do corpo de um inimigo – o “contrário”, na concepção indígena – e
1 fazer dele uma outra síntese, dando a ele outro sentido, deslocado de contexto,
marcado pela ironia, pela crítica, com vistas à exposição e à dessacralização desse
corpus. Por isso também, o corpo inimigo não pode ser qualquer um.
8
Outra característica do escritor canibal é ser um leitor voraz. Entretanto,
não somente de literatura, uma vez que suas influências não se restringem apenas
a outros textos, mas mantêm uma relação dialógica com outras formas de arte,
como música, fotografia, instalações, artes plásticas, cinemas e diversas mídias.
Esse apetite desmedido provoca uma intensificação da relação com o outro que lhe
serve de alimento.
Cabe pensar sobre a postura canibal como uma ação sustentada pelo
desejo em se nutrir do outro, no entanto, não mais de forma a valorizá-lo como
espelho ou exemplo. Isso porque não é somente porque fala sobre o canibalismo,
que um escritor pode ser pensado como canibal. A devoração desse que é um
escritor canibal passa pela violência de sua palavra e de sua atitude frente ao seu
texto alimento. Há nele o desejo de expor os restos do outro em seu próprio texto, há
a voracidade com que se alimenta e a transgressão ao dessacralizar e destrinchar
o discurso alheio, possibilitando uma analogia entre o ser que escreve e o canibal.
Assim, é justamente por esse segundo ângulo de observação que se
pretende pensar a metáfora para o escritor canibal, em sua atitude de escrita e o teor
J crítico de seu texto frente a discursos historicamente associados à implantação ou
à manutenção de um poder. O escritor, como metáfora para a face canibal, adapta-
A se a um ser que, além de viver em um contexto social urbano, tem a condição de
refletir sobre o passado e as marcas identitárias de sua nação. Por isso revisita sua
L própria tradição literária e faz dela a nutrição de sua produção literária. O escritor
está inscrito na cultura. Lida com a palavra escrita e com o legado da tradição

literária.Se devora, procede por estratégia estética desdobrada em ato crítico, que
L passa a questionar o status quo, os discursos, a história.

A cozinha literária do escritor canibal
A
Assim como seu ancestral indígena, o escritor canibal não utiliza a
devoração omofágica: ambos podem ser classificados como seres que cozinham.
E, por assim procederem, instalam-se no campo da cultura, o que, para Claude
Lévi-Strauss, significa dizer que saem do âmbito da natureza – simbolizado pela
passagem do cru ao podre – e produzem cultura, ao cozinhar (LÉVI-STRAUSS,

2004, p. 172). O ato de cozinhar pressupõe uma relação com o conhecimento, que
506 inclui ingredientes, fórmulas, utilização dos utensílios, sensibilidade no preparo,
• bem como questões que compreendem as relações do cozimento do alimento – e do
ato de comer – e suas implicações sociais, econômicas, históricas e demais âmbitos
da vida humana. Para Michel Serres, o cozimento tem relação com o conhecimento
porque “adensa, concentra, faz convergir o dado [...] Vai da mistura caótica e
difusa à mistura ordenada” (SERRES, 2001, p. 168). Sendo assim, ele “favorece as
2 conivências, estreita as vizinhanças, enriquece as amálgamas, descobre de súbito
novas ligas, aprende, por síntese, a saber” (SERRES, 2001, p. 168). Cozinhar
seria, então, esse processo de construção que adensa e dá forma nova à matéria
0
utilizada para preparar a refeição. Dominando as técnicas de cozimento, chega-se
a um saber. O escritor canibal é possuidor do conhecimento e dos instrumentos
1 necessários ao preparo de seu texto-alimento.
Cozinhar é, portanto, criação. Mesmo que sejam utilizados os temperos e
8 métodos mais conhecidos, haverá sempre o sabor único advindo do caráter particular
que se estabelece na relação com o conhecimento e com os modos de preparo. Nesse
sentido, o escritor canibal se aproxima das funções daquele que cozinha. Ele cria
a partir da tradição herdada e altera os sabores, o preparo, a apresentação. Sua
ação passa por etapas de escolha, planejamento, tempo de marinar e processos de
execução que se sustentam no conhecimento de certas técnicas culturais, além de
memórias trazidas pelo gosto, cheiro e práticas. Ou seja: as tarefas subjacentes ao
trabalho do escritor, que são os processos de leitura, escrita, reescrita, reflexão,
entre outros. São etapas que exigem tempo para a maturação de um pensamento,
para que seu texto se assente em um formato desejado. O trabalho do escritor/
cozinheiro requer dedicação e criatividade, paciência e talento.
Por isso, comer é, em princípio, instintivo. Porém, cozinhar ganha uma
camada de racionalidade e insere-se no campo na cultura, porque, além de significar
a preparação do alimento, também significa arquitetar, tramar, urdir. Para tal
ação é necessário um espaço próprio onde se dá a transformação, a metamorfose
do cru ao cozido. Esse espaço é chamado por Roberto Bolaño de “cozinha literária”
J (BOLAÑO, 2001, s/n), quando se refere ao ambiente bastante pessoal que abriga
a arte de escrever: um lugar semelhante a um morgue, um lugar de morte. A
A imagem do morgue parece se adaptar bem à cozinha literária do escritor canibal:
corpus, textos inteiros ou aos pedaços, expostos sobre a bancada de trabalho,
L prontos para serem cozidos. Essa cozinha literária é marcada pela presença do
fogo, agente transformador e símbolo ambíguo que polariza a presença da vida, do

conhecimento, das paixões humanas, e, ao mesmo tempo, é agente de destruição
L e decomposição. Na cozinha proposta por Bolaño, o fogo se apresenta em cenários
diversos, em castelos medievais, centros urbanos contemporâneos ou em lugares
A longínquos, onde há apenas fogueiras. Ele representa a condição diferenciada do
humano em relação aos outros animais, uma vez que é por intermédio dele que
se pode cozinhar o alimento. Sua simbologia liga-se à aquisição do conhecimento
e é bastante antiga, perpetuando-se no mito grego de Prometeu, o defensor dos
homens, que engana a Zeus e acaba por roubar dele o fogo, conforme se lê nos
• versos da Teogonia, de Hesíodo (1991, v.563-569).
507 A relação entre ler e escrever é apresentada por Bolaño, quando cita
o poeta espanhol Jaime Gil de Biedma, na afirmação de que “ler é mais natural

que escrever” (BOLAÑO, 2001, s/n). Uma assertiva que poderia ser ampliada
pela seguinte proposição: ler está para o cru, assim como o escrever está para o
cozido. Mesmo que essas duas ações estejam imbricadas, o ato de ler poderia ser
tomado como um movimento para dentro, de engolir e nutrir-se. Como o escritor
é antes um leitor, ler garantiria a nutrição do texto a ser produzido. Escrever, no
2 entanto, é movimento para o fora, é preparo, produção cultural que se concretiza
na materialidade da obra. Para isso, exige-se técnica e criatividade. Contudo, o
0 escritor canibal se localiza no duplo lugar: cabe a ele ser o cozinheiro, pois é o
criador, artista da palavra, consciente de seu ofício e conhecedor das técnicas,
1 temperos e utensílios necessários à construção de sua arte, já que é por suas mãos
que ela se materializa; mas ele solicita participar do banquete, pois quer se servir e
8 saborear sua tradição, tomar para si o corpo do contrário e fartar-se.
Para o escritor canibal, cozinhar/escrever pode não ser uma tarefa fácil,
porque o corpo a ser devorado não é um alimento frugal. É, sobretudo, complexo
por ser, a um só tempo, inimigo e alimento. Pelo processo de cozimento, a carne a
pertencer ao corpo devorador. O escritor canibal devora o que o outro representava
como estrangeiro, como ameaça ou opressão, em uma ação combativa.
Em sua produção, os métodos de preparo compreendem etapas de uma
cocção que se inicia pela apropriação de um corpus para cozinhá-lo e, posteriormente,
sentar-se à mesa do banquete. Assim, o escritor canibal é cozinheiro, conviva e
comida: cozinha a partir dos ingredientes encontrados em sua tradição literária;
partilha o alimento com seus pares e também come dele, porque está inserido em sua
tradição; e, a seu tempo, servirá de alimento, estabelecendo, com isso, a concepção
de vingança pelo ponto de vista da cultura indígena, garantindo o movimento
da vida que, por analogia, também é o movimento da literatura, pois o corpo
devorador servirá de alimento para outros que virão. Dessa forma, escrever é, em
medida simbólica, lidar com a morte, na perspectiva afirmada por Mikhail Bakhtin,
para quem, “entre outros sentidos, a palavra ‘morrer’ significava ‘ser devorado’,
J ‘ser comido” (BAKHTIN, 2013, p. 263). Entretanto, é necessário compreender a
morte por meio de uma concepção ameríndia, que a formula em um sentido amplo,
compreendendo que todos – “os deuses, os animais, os mortos, as plantas, os
A
fenômenos meteorológicos, [...] objetos e artefatos” são como um “conjunto básico
de disposições perceptivas, apetitivas e cognitivas ou [...] uma alma semelhante”
L (CASTRO, 2015, p. 43). Assim, matar o inimigo não significa exterminá-lo. Por
intermédio do pensamento ameríndio, ele continuará a fazer parte de sua tradição,
L contudo, em uma outra condição. No caso do corpus devorado pelo escritor, na
condição de relido, criticado, retirado de um lugar privilegiado de discursos.
A Em seu trabalho de cocção, o escritor canibal procede pelas vias da
reescrita, da crítica, da modificação intencional do sentido de um texto, ao deslocá-
lo e realocá-lo em outro contexto, por intermédio de uma escrita irônica ou pela
atrevida apropriação. Sua manducação é de boca aberta: a estratégia estética que
deseja expor. Desta forma, o corpus-alimento se torna aparente, permitindo-se ver
• o que está sendo remastigado ou ruminado, tornando-se objeto de reflexão. Seus
508 grandes dentes – descritos por intermédio dessa adjetivação pela imaginação criativa
pelos autores dos primeiros textos coloniais – são armas de destrinchar as bases
• logo-fono-etnocêntricas impostas a esse território pelo processo de colonização:
é a sua intenção de ferir o corpo do contrário. Localiza-se, nessa boca canibal, a
língua e sua dupla função: é o órgão que saboreia – sente e sabe – e é sua forma
de expressão, sua linguagem, sua principal arma de combate. É com a língua – na
materialidade do texto – que se toma posse do contrário inimigo. Para Michel Serres
2 (2001), antes de ser homem falante, homo sapiens, esse bicho de sabor, significa
aquele que aprecia e procura o sabor das coisas e o sentido para suas impressões.
0 Nessa cozinha literária, que é o fazer do escritor, os corpos são cortados
e transformados por ele em outros pratos a serem servidos a seus comensais, os
1 leitores. Ao apreciá-los, esses comensais verão que a linguagem do outro compõe
parte da materialidade do texto devorador, porque, aos moldes dos canibais que
8 expunham os corpos dos inimigos e banqueteavam-se às claras e coletivamente,
o corpus devorado é exposto, quer seja em partes visíveis – como citações – ou
em presença implícita, no caso de discursos opostos, deslocamento de conceitos,
releitura de fatos históricos, entre outros. Dessa forma, significa dizer que tomar
a voz do outro, no rito canibal, não é silenciá-la, mas com sua presença, fazer
dela um novo uso, transformar o corpus-alimento em outra coisa. Abre-se, pois,
um espaço para outras leituras divergentes e, ao mesmo tempo, proporciona o
questionamento de uma lógica consolidada historicamente em condição singular.
Com essa inversão, o que via passa a ser visto. É característica de um texto canibal
essa ação de romper com o estabelecido e abrir outras maneiras de interpretar e
expandir conceitos e discursos, pois ele é uma outra abordagem temática situada
no espaço do novo, que não necessariamente se classifica como original, mas que
traz marcas da diferença de construção ou percepção. Não um novo que exclui o
que veio antes, mas, sobretudo, do que dele se alimenta – ou pelo menos o mastiga
– fazendo girar o ciclo da vida – e, nesse caso, também o ciclo da literatura. Assim,
depois de se refastelar, o escritor canibal palita os dentes: não esconde a satisfação
em devorar, mesmo que de forma violenta. Seu prazer é pela posse do outro e pela
J certeza de sua inclusão: do mesmo modo como os índios que matavam no ritual
do povo Tupinambá, ele também ganhará um nome entre os seus, pertencerá à
família canibal. Reconhecido por seus pares, o escritor se insere em sua tradição
A
literária. Garante com isso a lógica da vingança: será devorado em um porvir.

L O texto canibal

O texto canibal é marcadopelas partes dos outros textos devorados e


L acintosamente expostas: o corpus apropriado não está escondido, mas evidenciado
em citações e outras formas de intertextos, contudo, deslocadas, criticadas,
ressignificadas. Partes expostas, não apenas como marcas de leitura, mas
A destituídas de sua condição hierárquica – a exemplo, os discursos históricos
que marcam uma visão parcial, de poder e controle social. Essa estratégia
de escrita lembra o modo como os canibais indígenas expunham as cabeças
dos inimigos devorados, conforme afirma Alfred Métraux, quando escreve que
“theheadsofdeadenemieswerepinnedtotheendsofthestockade posts” (MÉTRAUX,
• 1948, p. 126).2A exposição se dá no texto pelas formas que acontecem os diálogos
509 intertextuais, que se apresentam, não como simples nutriente ao corpus devorador,
• mas sob uma condição diferenciada, porque são os “contrários” a serem devorados.
A palavra do outro “[...] não traz nenhum aporte nutritivo, não busca crescimento
de força ou de carne” (LESTRINGANT, 1997, p. 155), porque transcende para o
campo simbólico.
Ela é mostrada no corpo textual em marcas na pele/palavra do corpus
2 devorador como por escarificação: o outro comido/comida se faz sinal, cicatriz,
tatuagem, lembrando as marcas feitas no próprio corpo indígena do matador após
o abate do prisioneiro. As marcas no corpo indígena eram motivo de conquista de
0
prestígio social. Sobreisso, Métrauxafiança que “[…] the more tattooing marks a
man could exhibit the higher was his prestige” (MÉTRAUX, 1948, p. 126).3De igual
1 maneira, as partes do contrário expostas no texto canibal acrescentam camadas de
valor a esse corpus devorador, pois ele é o que se apropriou, o que pode ruminar/
8 refletir, o que tem a palavra até que se complete outro ciclo de devoração.
Em relação à presença da voz alheia no texto canibal, se na prática de
devoração indígena, o inimigo tinha o direito à fala, na devoração do escritor canibal
há, de forma semelhante, a voz do outro. Mas esta não ocupa um lugar único
ou principal. Mesmo que posto em destaque, isso funcionaria para questionar,
conflitar, ridicularizar, como faziam os índios que zombavam das injúrias do
inimigo capturado.
2  “As cabeças dos inimigos mortos eram penduradas em estacas”. (Tradução minha).
3  “[...] quanto mais marcas tatuadas um homem podia exibir, maior era o seu prestígio”. (Tradução
minha).
O texto produzido pelo escritor canibal pode ser interpretado como uma
atitude que se configura como metacrítica literária que se apropria de um corpus
textual, com vistas a problematizá-lo. Antoine Compagnon define metacrítica como
uma “consciência crítica (uma crítica da ideologia literária), uma reflexão literária
(uma dobra crítica, uma self-consciousness, ou uma auto-referencialidade)”
(COMPAGNON, 2003. p. 21). Essas características conceituam a postura canibal
frente à tradição de textos escritos, incluindo a tradição literária, por ser uma
J possibilidade de crítica e reflexão dos textos que compõem a arte literária de um
determinado país, mesmo que o texto escrito não se enquadre no gênero teoria e
sim em ficção. Assim, o texto produzido por uma postura canibal do escritor se
A
torna uma espécie de voz paralela e adquire um valor coletivo, por ser um espaço
de reflexões de questões cristalizadas, como verdade, lei, História.
L
Nessa perspectiva, destaca-se a criticidade que a escrita canibal sustenta.

Ela é revolucionária porque é capaz de retomar a história, modificar sentidos, abrir
L espaço para a multiplicidade dos fatos. Essa espécie de texto partirá sempre de
uma devoração como vingança coletiva, como direito à reparação de danos sociais,
A culturais e históricos. Um olhar sobre a coletividade, um olhar para fora, que
reflete sobre a sociedade em que vive. Dessa forma, não omite o que se apresenta
como uma questão restrita a certas camadas da sociedade – como, no caso das
mazelas sociais e históricas sofridas pelos povos indígenas no Brasil – e, por vezes,
amplia-se e diz respeito à sociedade como um todo, considerando as implicações
• desses fatos em tempos e espaços atuais. Portanto, o escritor canibal – assim como
510 aqueles que matavam nos rituais – é uma representação de uma coletividade.
Por ser composta de silenciamentos ou resíduos de cultura, a escrita

canibal nem sempre é tarefa fácil. Ela contém em si a atividade do caçador: diante
da falta de textos e imposições de vozes sobre outras, seu texto muitas vezes se
constrói com o pouco daquilo que sobreviveu. O escritor canibal produz, então, das
sobras culturais “caçadas”, para tecer considerações e olhares novos. Mas, mesmo
diante da falta de textos ou diante do prestígio de algumas vozes sobre outras,o
2 escritor canibal se nega ao jejum:se o jejuar lhe é imposto pela dificuldade de
encontrar textos que apresentem as memórias intencionalmente ou forçosamente
0 esquecidas, o escritor canibal utiliza o que lhe cai às mãos, faz do corpus alheio o seu
alimento, o consome e amplia seus sentidos com sua arma palavra materializada
1 em seu texto.
Como a característica da escrita canibal é ser composta pela palavra
8 alheia transformada em alimento, ela exibe o domínio do predador sobre sua presa.
O corpus contrário se torna presente, pelos meios intertextuais, corroborando a
assertiva de Valéry, quando define que “une oeuvre est faite par une multitude
d’esprits et d’événements – (ancêtres, états, hasards, écrivainsantérieurs, etc)
- sousladirection de l’auteur” (VALÉRY, 1943, p. 109).4Em seu fazer literário, o
escritor canibal produz seu banquete sagaz e sápido: seu texto nunca é ingênuo.
Para Serres, “Todo banquete deveria ter por título: a sapiência e a sagacidade. À
volta da mesa só imaginamos línguas sábias” (SERRES, 2001, p. 165). A língua,

4  “Uma obra é feita por uma multidão de espíritos e eventos – (antepassados, estados, possibilidade,
escritores anteriores, etc.) – sob a liderança do autor” (Tradução minha).
dotada de sabedoria e astúcia, que concentra as funções de falar e saborear, como
propõe Serres, ao assegurar que “[...] a quem não degustou nem sentiu, o saber
não pode vir” (SERRES, 2001, p. 154-155). Logo, à mesa canibal, serve-se a relação
dialógica entre devorador e devorado: aquele que provou, sabe. Nesse processo,
talvez se possa pensar não apenas em avidez, porque a devoração se amplia para
um nível de degustação. No prazer de degustar estão a experiência do gosto, a
construção de novos sentidos e a certeza do cumprimento da tarefa do escritor,
J sem culpa, sem pecado, apenas a concretização da vingança.
Considerações finais
A A metáfora do escritor canibal evidencia uma atitude política do
escritor frente aos textos por ele devorados, que geralmente amparam discursos
L historicamente cristalizados do poder e de seus interesses. Assim, seu texto abre
espaço para vozes silenciadas, para versões esquecidas da História de seu país ou
L coletividades e culturas menos prestigiadas. Esse escritor será sempre um polemista
(CAMPOS, 1992, p. 235), que profana um corpo, entendendo-se a profanação pelo
que propõe Agamben (2007, p. 75) como ação que restitui algo, antes consagrado
A – destacado, reconhecido, prestigiado – ao uso comum, fazendo dele algo novo. Ao
ocupar espaços de discurso, constitui-se em uma voz de resistência política.
Ele é o intelectual que devora sua tradição, como parte de um movimento
próprio da literatura, que desarticula para depois estabelecer outra perspectiva.
Sua ação é violenta e combativa, porque o corpo devorado será sempre pilhagem de

guerra a ser destroçado e destinado a outros usos. Em suas tarefas de ler/comer e
511 escrever/cozinhar cria sua cozinha literária – que é seu fazer literário – o corpo do
• contrário será exposto, mas não como totem: a exposição é feita pelos restos, pelas
partes apropriadas do outro.
Além disso, entre ser o outro ou ser como o outro, mais profundamente,
a devoração possibilita se ver diferente, refletir sobre a própria construção social,
sobre as imposições e os poderes que ditaram como se definem e estabelecem-se as
2 identidades. E essa última possibilidade garante o caráter crítico e político do texto
canibal, que faz parte de um corpo coletivo, pois a devoração abre espaço para a
0 reflexão do passado, do sagrado, do canônico, entre outros.
Esse escritor canibal – assim como os ancestrais indígenas – não teme
1 a morte porque sabe que, pela compreensão do conceito de vingança, o fluir
constante da vida se encarregará de transformar comedor em comida, imortalizando

seu corpus, por intermédio, primeiro da conquista de um nome e, depois, pela
8 manutenção de sua memória. Servir de alimento é desejo de se inserir na tradição
literária de seu país. Mas em um lugar de voz paralela. Sobretudo, entendendo
que, na dinâmica do movimento de sua tradição literária, fazer-se comida implica
marcar uma presença no banquete literário, sentar-se à mesa e seu corpo/texto
ser retomado como alimento para as futuras devorações. Por essa lógica, pôde-
se pensar em outro sentido para o verbo comer, como proposto por Lestringant,
quando sugere que, por comer, “pode ter sido também, no começo da dolorosa
consciência da morte, proteger seu próximo, o ente querido, contra um destino
pior” (LESTRINGANT, 1997, p. 06),que seria o esquecimento.
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2
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VALÉRY, Paul. TelQuel I. Paris: Gallimard, 1941.

J

A

L LA DISFORME DISTANCIA: INJUSTICIA IMPERIAL E
INDIGENEIDAD EN DOS MANIFIESTOS DE VICENTE MORA
L CHIMO

A Jaime Vargas Luna (CASA DE LA LITERATURA PERUANA)
RESUMEN: Este trabajo examina dos manifiestos “El desamparo total de los
miserables indios” (1722), e “Y si se continúan los agravios” (1724),presentados
por Vicente Mora Chimo, procurador de indios del valle de Chicama, ante las cortes
españolas. A partir de su análisis se propone que Mora Chimo desarrolla un proyecto
• político para articular los intereses indígenas de su región, que va expandiéndose
513 hasta abarcar una nación indígena pan-andina. Así, su obra no solo advierte del
deterioro del pacto colonial, como sostiene el consenso crítico actual, sino que
• denuncia la injusticia imperial en términos radicales y propone una idea de nación
indiana capaz de rebelarse ante esta.
Palabras clave: Indianidad. Nación indiana. Identidad.Colonialidad.

La participación política de los miembros de la ‘nación indiana’ al interior


2 del sistema imperial español inicia con este y recorre toda su historia, abarcando
la totalidad de lo que Carlos García-Bedoya llama producción discursiva andina,
0 y que agrupa crónicas, textos del barroco andino y memoriales del renacimiento
inca (GARCÍA-BEDOYA, 2000, pp.163-230). Aunque habitualmente menos
1 considerados en los estudios literarios, a este corpus pertenecen también los
“pleitos”: una voluminosa producción documental dirigida a defender derechos de

tierras, linajes, y otras causas civiles (POLONI-SIMARD, 2005,pp.177-188). Si bien
8 algunos discursos corresponden a proyectos políticos e intelectuales individuales,
una constante de esta producción es su correspondencia directa con proyectos
políticos colectivos articulados a través de redes de élites indígenas, con frecuencia
en alianza con ciertos sectores de la iglesia1. Franklin Pease, por ejemplo, habla de
un conjunto de “curacas gestores”, quienes dedican años a la gestión de reclamos
en favor de sus cacicazgos produciendo y circulando textos desde sus comunidades

1  Sobre el desarrollo de una intelectualidad indígena en la colonia, véanse, por ejemplo, Rappaport
y Cummins (2012), Yannakakis (2008), y Cortés y Zamora (2016).
o incluso viajando a España (PEASE, 1992,pp.163-166)2. A este grupo corresponde
sin duda Vicente Mora Chimo, quien, como plantea Thierry Saignes para el caso
específico de los caciques, pertenecía al sector de los “mediadores ambivalentes”,
quienes debían a la vez defender los intereses de la corona y los de sus comunidades
de origen (SAIGNES, 1989,pp.75-85).
A la fase de destrucción de las estructuras físicas y simbólicas de las
sociedades andinas prehispánicas, correspondió una agencia política reducida
J y desarticulada para los mediadores indianos. Con la estabilización colonial, sin
embargo, se recuperaron económicamente ciertos sectores de la nación indiana,
A lo que permitió la generación de distintos proyectos de rearticulación simbólica.
A finales del periodo Habsburgo, el poder de control que la corona ejercía sobre el
L virreinato del Perú era relativamente laxo, lo que permitió una relativa autonomía de
poder para las elites criollas, así como la posibilidad de un resurgimiento económico

para las elites nativas. Desde su llegada al poder a inicios del siglo XVIII, los
L borbones incrementaron los mecanismos de control desde la corona, reduciendo la
autonomía de sus súbditos americanos. Así, tanto las elites criollas como las nativas
A intentaron insertarse o incrementar su participación en la administración. Junto a
la ampliación de los niveles de participación política crecieron las expectativas de
algunos sectores de la nación indiana. Como resultado, se desarrolló y consolidó,
por un lado, el proyecto político de lo que llamo la ‘nación indianizada’, y por
otro, se desencadenó el llamado ciclo de rebeliones indígenas que culminó con el
• movimiento de Túpac Amaru II.
514 En el presente artículo exploro el proyecto discursivo de nación indianizada
como reacción a la mala administración imperial desarrollado por Vicente Mora

Chimo a partir del examen de dos manifiestos usualmente ignorados por la crítica,
El desamparo total de los miserables indios (1722), e Y si se continúan los agravios
(1724). Propongo que la obra de Mora Chimo no solo advierte del deterioro del pacto
colonial (como señala habitualmente la crítica), sino que denuncia la injusticia
imperial en términos radicales; y que Mora Chimo propone una nación indianizada.
2
Elaboro mi definición de indianidad a partir de las discusiones
contemporáneas sobre indigeneidad, que enfatizan la identidad indígena como
0 relacional, secundaria y estratégica3. Relacional porque la formulación de un sujeto
como ‘indígena’ implica siempre un colonizador que lo nombra en tanto otro y que se
1 sitúa afuera y encima de dicho nombre. Así, no hay indígenas sin no-indígenas, no

8 2  El más importante de los estudiados por el autor es Jerónimo Lorenzo Limaylla, quien viaja a
España varias veces entre las décadas de 1640 y 1660. Menciona también, para los mismos años,
a don Carlos Chimo y a Antonio Collatopa, además de don Felipe Guacra Páucar, quien viajó a
la península a mediados del siglo anterior. Incluye también en el grupo de los curacas gestores a
Bartolomé Tupa Hallicalla, del mismo periodo (PEASE, 1992,pp.163-166).
3  Frederick Cooper y Rogers Brubaker critican el valor del término ‘identidad’ como categoría de
análisis. Tras examinar cinco usos distintos de la categoría ‘identidad’, plantea que, dado el nivel de
ambigüedad de la categoría (dos de los usos resaltan una mismidad fundamental en tanto otros dos
niegan tal posibilidad), el término debe ser evitado, proponiendo en su reemplazo tres categorías
analíticas mejor definidas: identificación, auto-comprensión, y comunalidad (COOPER, 2005,pp.59-
90). Sin descartar el término ‘identidad’, lo empleo en consecuencia de manera restringida y en
referencia exclusiva las tres categorías propuestas por Cooper en interrelación.
hay indígenas sin situación de colonialidad. Secundaria porque no se es indígena
en la misma medida en que se es aimarao mapuche. El sentido de pertenencia a
una comunidad lingüística y/o de valores y tradiciones culturales comunes escapa
a los contextos políticos de dicha comunidad. Algunas comunidades como la judía
han subsistido a una larga historia de migraciones y permanente adaptación a
distintas sociedades y sistemas políticos. Otras, como los vascos o los mapuches
han experimentado la transformación de los Estados al interior de los cuales
J desarrollan su cultura sin perder su sentido de pertenencia a su comunidad
cultural específica. En este sentido, las identidades aimara, mapuche, judía o
vasca pueden llamarse primarias. En contraposición, la identidad indígena es
A
secundaria, se añade a determinados grupos en condiciones específicas, principal
pero no exclusivamente, a grupos minoritarios que ocupan territorios controlados
L por unEstado que no se identifica con ellos pero que se formó cuando estos grupos
ya estaban allí. Finalmente, la identidad indígena es estratégica en la medida en
L que los grupos así auto-identificados la asumen como herramienta de negociación
política con los grupos dominantes de los Estados en los que están insertos, y en
A alianza con otros grupos dominados igualmente auto-identificados como indígenas.
La indigeneidad no es, sin embargo, sinónimo de identidad indígena, sino un campo
(en el sentido que le da a esta noción Bourdieu) de articulaciones y tensiones
entre discursividades sobre lo indígena y los indígenas en las distintas sociedades,
Estados y formaciones políticas. Así, el marco de la indigeneidad no incorpora
• exclusivamente a los sujetos auto-identificados como indígenas sino también a
aquellos que los nombran desde afuera y —en general—, por encima, y a aquellos
515
que ocupan un lugar híbrido o intermedio en el esquema4.
• Ahora bien, reemplazo en mi trabajo ‘indigeneidad’ por ‘indianidad’
por dos razones: para evitar un uso anacrónico del término, y para explicitar los
que, según argumento, son los tres componentes fundamentales de la indianidad
peruana colonial: la memoria pre-colonial (incluido el proceso de conquista), la idea
de nación indiana, y la situación de la población nativa en el orden administrativo
2 imperial.Si bien el marco de la indianidad así definido puede rastrearse hasta la
llegada misma de los españoles y los primeros discursos elaborados al respecto,
0 uno de los argumentos centrales de mi estudio es que, desde la segunda mitad del
siglo XVII y, principalmente en el siglo XVIII, son los miembros de la nación indiana
1 quienes asumen la identidad indígena, insertándose plenamente en el campo de la
indianidad en tanto colectivo. No es hasta los memoriales de Vicente Mora Chimo
en el siglo XVIII que se articulan propuestas políticas en representación de la nación
8 indiana en su totalidad, buscando consolidarla como colectivo con agencia política
al interior del sistema imperial. Para diferenciar el uso imperial y subalternizante
del término ‘nación indiana’ del uso reivindicativo que hacen de él sus miembros,
llamo al proceso de reformulación discursiva de la nación indiana: ‘indianización’,
y a su proyecto, ‘nación indianizada’.
Vicente Mora Chimo fue un indio principal nacido a fines del siglo XVII en
el valle de Chicama, en la costa norte del virreinato peruano. Por su origen chimú

4  Para un desarrollo más profundo de estos conceptos y su discusión véanse fundamentalmente:


De la Cadena y Starn (2007); Forte (2013); Graham y Penny (2014), y; Teves, Smith, y Rahea (2015).
y su lugar de procedencia (un valle menor de la costa norte), la más alta posición a
la que podía aspirar en la estructura social del virreinato peruano era la de cacique
local. Como nos recuerda Scarlett O’Phelan, al ser declarados ‘indios libres’ los
caciques eran exonerados del tributo, de las mitas y los servicios personales, y,
dada su condición de señores naturales, podían “detentar escudos de armas, andar
a caballo ensillado y enfrenado, vestirse a la usanza española y portar armas”
(O’PHELAN, 1997,pp.17-18). Por otro, como representante de los naturales de su
J señorío, los caciques se encontraban expuestos al escrutinio de sus representados
a la vez que al habitual abuso de corregidores y visitadores, representantes de
la corona en su jurisdicción. Como indio principal o noble tendría la posibilidad
A
de reclamarle directamente al Rey a través de memoriales, aunque estos corrían
el riesgo de no arribar nunca a su destino, incluso si fueran de la extensión y
L profundidad de la famosa carta-memorial de Guaman Poma, redactada alrededor
de cien años antes. Ser señor local de una región chimú en el virreinato construido
L sobre el Imperio Inca, menos de un siglo después de la conquista de la región por los
incas, no ofrecía gran capital simbólico más allá de las fronteras del cacicazgo local.
A Sin embargo, Vicente Mora Chimo consiguió erigirse en actor político principal de la
nación indiana en el imperio español de su época. A partir de una posición menor
en la estructura virreinal: la de alcalde mayor de indios en su valle natal, Mora
Chimo emprendió una carrera política que lo llevó de Chicama a Lima y de allí a las
cortes de Madrid, donde permaneció por casi veinte años como Procurador General
• de Indios. Desde este lugar privilegiado gestionó derechos para su cacicazgo y para
otros, y desarrolló su proyecto de nación indianizada a partir de una estrategia
516
de denuncias generales y demandas específicas. Gracias a su aparente simpleza,
• y a la precisión y “realismo” de sus demandas, estas fueron atendidas (al menos
en una etapa inicial). Esto le dio mayor autoridad al interior de la nación indiana,
a la vez que incrementó las expectativas de esta frente a la corona, y permitió el
desarrollo de un proyecto político particular de nación indianizada. El rey atendió
a Mora Chimo y dictó medidas en respuesta. En este diálogo entre el indiano y
2 el poder imperial que duró alrededor de dos décadas, ocurrieron dos procesos
relevantes (1) La evolución de la figura política de Mora Chimo, que se convertirá
0 posteriormente en modelo a imitar; y (2) El desarrollo de su proyecto intelectual
en dos ejes: la denuncia de una injusticia imperial radical, y la formulación de un
proyecto “nacional” que incluye a indios del común y nobles de distintas regiones
1
y orígenes étnicos del ámbito imperial, es decir, una nación indianizada.En este
trabajo, me ocupo del segundo proceso a través de la revisión de dos manifiestos
8 previamente ignorados por la crítica para proponer una relectura de su proyecto
intelectual centrada en su denuncia de la injusticia imperial como radical y en la

formulación de la nación indiana como ‘indianizada’, en respuesta a esta injusticia
imperial.
El desamparo total de los miserables indios (1722)5
Así se llama el primer memorial que presenta Mora Chimo en España,

5  El documento original impreso se encuentra en el Archivo General de Indias, Lima 437. La


versión que he consultado es el facsímil incluido como apéndice a la tesis doctoral de Mathis
(MATHIS, 2009, pp.383-387).
recibido por el fiscal don Francisco de Arana el 13 de febrero de 1722 (MATHIS,
2009,p.222). Se trata de una petición de cinco folios, aparentemente poco
pretenciosa y bien documentada. A través del documento se denuncia la usurpación
de tierras y títulos de indios en cuatro pueblos del valle de Chicama a manos de
distintos funcionarios españoles; se da cuenta del proceso seguido en Lima por
el propio Mora Chimo y otros indios a lo largo de siete años; de sus sucesivas
victorias legales; y, sin embargo, de la imposibilidad de conseguir que se ejecuten
J las medidas ordenadas a su favor. Así, se solicita al Rey “mande passar estos Autos
al Consejo de Indias, recomendándole la justicia del Suplicante, y de sus Partes;
y que le señale Abogado, y Procurador de pobres, que le dirijan, y defiendan de
A
valde en este negocio” (MORA CHIMO, [1722],p.387). El texto nombra funcionarios
concretos y señala documentos probatorios que, según se dice, obran en poder
L del suplicante. En apariencia, entonces, no se trata de una denuncia contra la
administración virreinal sino de un recurso a la última instancia en un litigio
L específico de propiedad de tierras. Quizá por esta especificidad en el petitorio, este
memorial fue respondido positivamente por el Rey en un despacho del 8 de julio del
A mismo año, titulado Sobre que el Protector de Yndios de el Peru solicite el desagrauio
de los Yndios de quatro Pueblos de la Jurisdiccion de Trujillo. Allí, valorando tanto
los siete años de gestiones infructuosas realizadas en Lima por Mora Chimo como
el que “le auia obligado a caminar 4[mil] leguas para solicitar el aliuio y consuelo
de aquellos miserablos Yndios”, el Rey resuelve,
• “que la Aud[ienci]a.a de la Ciudad de Lima sin la menor dilaccion proceda al
desagrauio de los Yndios q[ue] estuvieren despojados de sus t[ie]rras, pre-
517 viniendola q[ue] la primera diligencia q[ue] haga sea la de q[ue] se restituya
• y ponga en posesion a los Yndios de las t[ie]rras q[ue] posehian, y de que se
les huviesse despojado constandola summariam[en]te de ello sin dar lugar a
queja alguna s[obr]e esta matheria pues de averla se tomará contra d[ic]ha
Audiencia, la mas severa resolucion estando advertida, de q[ue] si alguno,
o algunos de aquellos contra quienes se proceda se sintieren agrauiados
se les admita la apellacion p[ar]a el Conss[ej]o solo en el efecto devolutivo y
2 no en el suspensivo, procurando el mas efectiuo cumplimiento de esta mi
resolucion, prefiriendo este Genero de caussas a otras qualesq[ie]ra como
esta mandado p[o]r R[eal]es Leyes, Y para q[u]e en el cursso de estas de-
0 pend[enci]a no se padezca el menor atrasso, y por todos medios se ocurra
al desagrauio y consuelo de estos Yndios, he resuelto assi mismo preuenir
1 de todo lo referido al Protector de ellos, para que en fuerza de la obligacion
del instituto de su empleo, solicite el breue desp[ach]o de esta depend[encia]
tomandola a su cargo para q[ue] cesse qualq[ie]ra motivo de dilacion” (MA-
8 THIS, 2009,p.388).

El éxito del memorial es rotundo y casi inmediato, y —de tratarse efectiva


y únicamente de un petitorio por la justa repartición de tierras en los cuatro pueblos
referidos del valle de Chicama— debería bastar para que Mora Chimo regrese al
Perú. Sin embargo, este permanece en Madrid preparando nuevos memoriales que
expandirán el espacio de sus denuncias y peticiones. Es posible que la intención
inicial del autor haya sido entregar su petitorio y volver, y que el pronto éxito
conseguido, además de sus años de experiencia tanto litigando como alejado de
su tierra de origen, lo hayan convencido de quedarse y ampliar su agenda política.
Si bien Mora Chimo hace peticiones concretas —y en esa medida más fáciles de
responder y absolver que las de Guaman Poma o Calixto San José de Túpac Inca—,
las enmarca en un contexto de denuncia tan radical como el de otros intelectuales
indianos, aunque con estrategias retóricas distintas, como veremos a continuación.
En este memorial, el dispositivo de indianidad no desafía las percepciones
y proyecciones que sobre los indios existen en el sector dominante de la sociedad
imperial sino que se ajusta a él, modificándolo apenas sin porponer todavía la
J ‘nación indianizada’. En consecuencia, el pedido de justicia realizado se limita al
cumplimiento de la ley. Sin embargo, la denuncia sobre la injusticia existente tiene
A una dimensión mucho mayor que el pedido de justicia que se realiza a partir de
ella.
L Analicemos aquí la representación de la ‘nación indiana’ en el texto.
En varias ocasiones, Mora Chimo se refiere a la población que defiende como
“miserables Indios”, término que enfatiza su desdicha e infelicidad pero que implica
L
también su debilidad, su condición de pusilánimes. Esta es una fórmula tan afín
a las percepciones y proyecciones de la propia corona que el Rey los llama de la
A misma manera en su resolución de julio. El autor se incorpora a sí mismo en esta
definición (“los pobres miserables Indios, como yo”; MORA CHIMO, [1722],p.387).
Es sobre esta debilidad de los indios y, por tanto, su necesidad de amparo, que
sustentará su denuncia. A la vez, le recuerda al Rey la importancia de los indios en
el imperio: “aquellos miserables vassallos de V. Mag. cuyo sudor produce quanta
• riqueza viene de las Indias” (MORA CHIMO, [1722],p.387). Si bien contrasta esta
518 declaración con las condiciones de vida de los indios, no cuestiona que la corona use
su “sudor” para enriquecerse sino que esto ocurra en condiciones de explotación.

Finalmente, deja claro que “todos los Indios [son] tan amantes a su Rey, y Señor
natural, como lo es V. Mag.” (MORA CHIMO, [1722],p.387). En resumen, Mora
Chimo articula su discurso a través de las percepciones dominantes sobre los
indios: miserables y, por tanto, necesitados de amparo, y productores de riqueza
para la corona. Proyectando un elemento nuevo: la total sumisión a la corona,
2 elemento bajo sospecha desde los sectores dominantes y que hace injustificada la
tiranía de los españoles.
0 Ahora bien, lo que el texto denuncia es una injusticia. No se tratade
las constantes violaciones a la ley cometidas por funcionarios específicos contra
1 cuatro pueblos del valle de Chicama. Estas sirven solo como ejemplos concretos.
Lo que Mora Chimo denuncia es una injusticia radical, el “desamparo total” en
8 que se encuentran los indios. En el primer folio de su memorial, el autor describe
las constantesinjusticias cometidas en su valle de origen y elogia el arribo de
Don Joseph Curiel, único visitador “desinteressado, y muy piadoso”, llegado a
la provincia de Trujillo para hacer justicia. Narra inmediatamente la destitución
de Curiel responsabilizando a Dios y al propio Rey. Al primero, en términos
radicales: “pero como era tan bueno [Curiel], y Dios castiga aquella Tierra en la
falta de justicia, duró tan poco tiempo” (MORA CHIMO, [1722],p.383, énfasis mío).
Probablemente, la interpretación más apropiada de este enunciado sea el paralelo
bíblico: tal como ocurrió con varios pueblos de la antigüedad, Dios castiga a la
nación índica su larga herejía. Dos décadas más adelante, Calixto de Túpac Inca
se servirá del desarrollo de este tópico en el Libro de Jeremías para proponer en
su Representación verdadera que el castigo es demasiado largo y la culpa ya está
pagada. Mora Chimo no evalúa las razones de Dios ni lo critica pero señala que
el castigo recibido es la falta de justicia, la injusticia divina. Dada la radicalidad
de esta injusticia, se vuelve hacia el Rey en búsqueda de una forma más limitada
de justicia. Así, cuando responsabiliza al Rey por la destitución de Curiel lo hace
de manera relativa, señalando que le quitó la comisión “con el motivo de aver
J informado el Consejo de Indias, que todos los Visitadores eran unos ladrones, y
que lo era tambien Don Joseph Curiel” (MORA CHIMO, [1722],p.383, énfasis en el
original). La injusticia cometida por el Rey se produce así por desconocimiento y
A
en su intento de castigar una conducta indebida. Si los indios se encuentran en
“desamparo total”, por parte de Dios y del Rey, a lo que aspira el autor es a que
L cambie lo segundo.

El tercer element es el pedido de justicia. La primera acepción de ‘justicia’
L del Diccionario de autoridades que se publicará una década después de la llegada
de Mora Chimo a Madrid la define como “Virtud que consiste en dar a cada uno
A lo que le pertenece” (Diccionario de autoridades, Tomo IV, 1734). Acorde con esta
definición y dada la injusticia radical decretada por Dios, Mora Chimo no busca
una sociedad política o socialmente más bondadosa o virtuosa, sino solo el respeto
a la propiedad indígena. Aunque denuncia el “desamparo total” de los indios no
propone un estado ideal de “amparo” en el sentido de protección o guía, sino un
• amparo legal que permita la distribución justa de la propiedad y de sus habitantes6.
519 En resumen, en El desamparo total de los miserables indios, Mora Chimo denuncia
una injusticia radical de la cual responsabiliza a Dios pero formula a la nación
• Indiana en sintonía con el discurso dominante sobre los indios, incorporando
únicamente el amor al Rey de “todos los Indios”. Gracias a esto puede entablar
un diálogo productivo con la corona, a través del cual concreta que se atienda
un pedido específico concerniente a la región de Trujillo. A la vez que consigue
convertirse en interlocutor válido para futuros diálogos.
2
Y si se continúan los agravios (1724)7

Este segundo memorial, que denomino Y si se continúan los agravios,
0
recibido el 12 de diciembre de 1724 por el fiscal de la corte en Madrid, sería el más
extenso hasta esa fecha (doce folios). Como en El desamparo total, aquí también se
1 trata de una petición concreta, aunque más sofisticada; y también se conseguirá
una respuesta relativamente favorable del Rey (en cédula del 27 de enero de 1725).
8 Comienzan a modificarse, sin embargo, tanto los términos de la nación indiana
como los de la búsqueda de justicia, cobrando mayor relevancia la figura personal
del autor.

6  En este sentido puede comprenderse también la denuncia hecha a los españoles de “tener hazienda
mezclada entre la de los Indios, estando por las leyes prohibido” (MORA CHIMO,[1722],p.385).
Además de confirmar la visión dominante de la necesidad de separación étnica en las Indias, se
trataría de la aspiración mínima al amparo legal ante la “tyranía” de los españoles.
7  El documento original impreso se encuentra en el Archivo General de Indias, Lima 438. La
versión que he consultado es el facsímil incluido como apéndice en la tesis doctoral de Mathis
(MATHIS,2009,pp.390-401).
El memorial se divide en tres partes. En la primera, Mora Chimo se
presenta, remite a su gestión anterior (“logró el Suplicante ser oído en justicia”;
MORA CHIMO, [1724],p.390), justifica su estadía en Madrid (“en el interin que
aguarda tener noticia del efecto que ha obrado dicho Real Despacho”; MORA CHIMO,
[1724],p.390), y en la corte (“y si se continúan los agravios, para hacer a V. Mag.
representacion de ellos, como lo hace el Suplicante aora sobre varios particulares”;
MORA CHIMO, [1724],p.390). Nótese que tanto en el memorial anterior como en
J el despacho dado por el Rey en respuesta, Mora Chimo es indistinguible de su
causa. Se trata de un representante directo de los indios afectados, quien dedica
años y cubre una enorme distancia para conseguir la resolución de un asunto
A
concreto. Aquí, en cambio, el autor ha pasado a ser un mediador dedicado a
“varios particulares”, a partir de correspondencia recibida tanto de caciques de su
L jurisdicción, como de Loja. En la segunda parte retoma la causa de la restitución
de tierras en su provincia formulando, sin embargo, ya no que se cumpla la ley,
L sino que se modifique. Se pide “que no aya en lo venidero mas Jueces de Tierras”
ni, en consecuencia, medidas de tierras, y “que los Indios buelvan a la misma
A possession en que de antes estaban, mediante la que les dio avrá 100 años el
Padre Fray Francisco de la Huerta, y el Padre Fray Domingo de Valderrama” (MORA
CHIMO, [1724],p.398). Finalmente, tras denunciar los abusos cometidos contra
los mitayos, principalmente en la provincia de Quito, pide en la tercera parte
y a nombre de los caciques de Loja que se complete en la dicha provincia una
• visita de numeración y repartición de mitayos, justificando su participación en
este último asunto por habérsele “encargado al Suplicante por carta misiva de los
520
Caciques Governadores de la Provincia de Loxa, que [actúe] como tal Procurador
• de Naturales” (MORA CHIMO, [1724],p.399).Esto es, si bien al inicio del texto Mora
Chimo se presenta como cacique de varios pueblos de la jurisdicción de Trujillo
y “Procurador General de sus Naturales” (el subrayado es mío), restringiendo su
título a un espacio geográfico específico; en la tercera parte su título pierde su
especificidad geográfica y se apropia de la categoría racial impuesta por la corona
2 para resignificarla, pasando de la defensa de los indios de su jurisdicción a la de
su “Nacion”.
0 A diferencia de en El desamparo total, aquí se comienza a desafiar las
percepciones y proyecciones que sobre los indios tiene el sector hegemónico del
1 imperio, proponiendo nuevos significados sobre la nación indiana: indianizándola.
En este sentido, Mora Chimo —cuya voz no ofrecía singularidad en su primer
memorial, era indistinguible del grupo al que representaba—, se posiciona en este
8 memorial en tanto individuo. Se pasa aquí de la denuncia de una injusticia radical
expresada en el memorial anterior a hablar de una “disforme distancia” entre los
indios y su Rey, término que sitúa a la vez que cuestiona el lugar de los indios en la
maquinaria social, haciendo necesaria la transformación de la ley para conseguir
justicia. En este sentido, si bien el petitorio es tan concreto como en el memorial
anterior, es también más exigente, por lo cual la respuesta del Rey será favorable,
pero relativa. Como en el acápite anterior, analizo en este el texto a partir de los
tres componentes mencionados: formulación de la nación indiana, denuncia de
injusticia y petición de justicia.
En El desamparo total Mora Chimo articula su discurso a través de
las percepciones dominantes de la corona sobre los indios como miserables,
necesitados de amparo, y productores de la riqueza imperial; añadiendo como
elemento nuevo su total y amorosa sumisión al Rey. Estos tópicos se mantienen
en Y si se continúan los agravios, aunque reformulados. En los cinco folios de su
primer memorial, Mora Chimo adjetiva a sus defendidos en seis oportunidades
llamándolos tres veces “miserables Indios”, dos veces “aquellos miserables”, y
J otra “pobrecillos”. En estos calificativos destaca tanto el sema ‘miserables’ como
su relación directa con ‘indios’; enfatizando al mismo tiempo, como ya se dijo, la
infelicidad y la debilidad de éstos. En este segundo memorial, el autor adjetiva
A
a sus defendidos diecisiete veces (manteniendo relativamente la proporción del
memorial anterior). Nueve veces los llama ‘pobres indios’ o alguna variante8; seis,
L ‘miserables’, de las cuales solo dos acompaña este sema de ‘Indios’, ambas —
significativamente—, en referencia a la provincia de Quito; en una ocasión se refiere
L a ellos como “atribulados Vasallos” y; finalmente, los llama “menesterosos” en el
inusual sentido de ‘necesarios’. El sema principal es ahora ‘pobres’, moviendo el
A énfasis a la carencia material de sus defendidos, aunque el término connota todavía
su desdicha y su debilidad9; y segundo, que ‘miserables’ se ha desconectado casi
por completo de ‘indios’, con lo cual deja de ser una condición que los determina.
En este segundo memorial los indios, en tanto tales, son pobres, es decir carentes
materialmente y sufrientes. A la vez, se bien habla de vasallos miserables, esto se
• hace resaltando la miseria en que estos viven: su circunstancia, no su naturaleza.
El uso de ‘atribulado’, entendido en la época como afligido y oprimido10, confirma
521
los énfasis mencionados. A diferencia del memorial anterior, en que los adjetivos
• parecían definir una condición intrínseca a los indios, en Y si se continúan los
agravios, describen su situación temporal, permitiendo la posibilidad del cambio.
Es en este sentido de cambio posible y propuesto que cobra importancia el uso de
‘menesterosos’. El autor lo emplea en una frase en la que se refiere a la naturaleza
de la nación indígena y su relevancia económica para la corona:
2 “Siendo muy pocos los Españoles, que los tratan como a Christianos, co-
nociendo quan menesterosos son los indios para todo; porque si no fuera
0 por ellos no huviera labranças en las haciendas de campo, ni los Mine-
rales estuvieran tan corrientes, por no aver otra Nacion mas aproposito para
estos efectos, segun se ha reconocido por su naturaleza” (MORA CHIMO,
1 [1724],p.395).
En principio, la cita confirma la definición de los indios como productores
8 de la riqueza imperial añadiendo dos elementos: que la productividad de los

8  “aquellos pobres Naturales” (391), “esta pobre Nacion” (391, 395), “aquellos pobres desvalidos”
(395), “el pobre Indio” (396), “los pobres Indios” (397), “aquellos pobres Indios” (398), “aquellos
pobres Indios” (400), “aquellos pobres Indios” (401).
9  La edición de 1737 delDiccionario de autoridades define ‘pobre’ en su primera acepción como
“Necessitado, menesteroso y falto de lo necessario para vivir, o que lo tiene con mucha escasez”.
Mientras que los otros dos sentidos mencionados aparecen en la cuarta y quinta acepción (Diccionario
de autoridades, Tomo V 1737).
10  La definición corriente del término era “Afligido y oprimido con turbación, de alguna cosa, ò
trabájo” (Diccionario de autoridades, Tomo I 1726).
indios radica en una capacidad inherente a ellos, no en una circunstancia, y que
estos pertenecen a un colectivo, a una nación. El dispositivo de indianidad sirve,
pues, en este memorial, para transformar la naturaleza miserable del indio en la
circunstancia de su pobreza, invirtiendo su circunstancia de productor de riqueza
en su naturaleza. Se propone, además, la idea de un colectivo nacional indígena.
Es necesario ser cuidadoso sobre esto para no proyectar anacrónicamente un
sentido que el término ‘nación’ todavía no tenía en las primeras décadas del
J siglo XVIII11. Por eso, conviene evaluar cómo se usaba el término entonces para
comprender la propuesta de Mora Chimo. En el Tesoro de la lengua castellana
se definía nación como “Reyno, o Prouincia estendida, como la nacion Española”
A
(COVARRUBIAS, 1611,p.1158). Esta definición no es estrictamente territorial. Al
hablar de ‘naturales’, el mismo diccionario añade un rasgo de vínculo social, de
L pertenencia. Se define, por ejemplo, como natural de Toledo al “que nacio y tiene su
parentela en Toledo” (COVARRUBIAS, 1611,p.561). Es decir, no basta con nacer ni
L vivir en un lugar, es necesario estar enraizado a él. Sobre estos dos componentes de
la nación —pertenencia territorial y vínculo social—, se articulan en gran medida
A los conflictos entre indígenas, mestizos, criollos y peninsulares en el virreinato
peruano. Hasta inicios del siglo XVII, ‘nación’ era un término neutral que nombraba
a un colectivo implicando los dos componentes arriba mencionados. A partir de
entonces, la pertenencia territorial va cediendo terreno paulatinamente ante el
vínculo social, por ejemplo, en referencia a la nación hebrea12. A la vez, aumenta el
• uso metonímico del término, cargándose de las connotaciones proyectadas sobre
el colectivo aludido. Por ejemplo, en su Relación a la República de Venecia de 1605,
522
dice Simon Contareni sobre España que “la envidia ninguna nacion la tiene entre
• sí mayor” (CABRERA, 1857,p.577). Para las décadas finales del siglo, sin embargo,
ya la nación comienza a adquirir el sentido de entidad abstracta que caracterizará
su definición moderna, haciéndose cada vez más común, por ejemplo, la expresión
“honrar la nación”. El uso que Mora Chimo da al término no tiene que ver todavía
con la nación como entidad abstracta, asociada con la idea de patria. Sin embargo,
2 sí emplea el término para referirse a un colectivo con características y valores
comunes. Si bien los indios eran entendidos como nación para la administración
0
11  Hay que distinguir aquí entre naciones-Estado y naciones al interior o más allá del Estado. En
el primer caso, el Estado se construye en función al imaginario nacionaldel sector dominante de
1 una sociedad. Sobre este tipo de formulación de la nación siguen siendo útiles los clásicos Anderson
(1983) y Hobsbawm (1990). En el segundo caso, los imaginarios nacionales se construyen en cambio
8 a espaldas, en pugna o en negociación con los Estados en relación con los que funcionan dichos
colectivos nacionales. Quizás el caso más estudiado a este respecto sea el de la nación judía. Remito
aquí al excelente volumen de Studnicky-Gisbert (2007)sobre el desarrollo temprano de una idea de
nación entre los judíos portugueses del siglo XVII. Para el caso hispanoamericano y, específicamente
andino, existen muchos volúmenes dedicados a los siglos XIX y XX. Podemos destacar Thurner
(1997), Manrique (1981), y Mallon (1994). Más recientemente, Husson ha publicado el sugerente
artículo “Sobre el concepto de nación en Guaman Poma” (2001), en el que construye una definición
de colectivo nacional andino a partir del uso del término ‘estrangero’ en la Nueva Coronica.
12  Cito como ejemplo la referencia más antigua al respecto que he encontrado: “No conocian estos
al verdadero Dios, y si tenian alguna noticia del, no le reuerenciauan como tal [...]. Imitaua esto
facilmente la nacion Hebrea, y era en ellos sin comparacion mayor la culpa, por la euidencia (que
ansi la podemos llamar) que tenian del verdadero Dios” (SIGÜENZA, 1907 [1600],pp.88-89).
hispana, que los agrupaba bajo las “repúblicas de indios”, esta categorización era
permanentemente resistida por parte de los propios indios, quienes enfatizaban
sus regiones de origen o pertenencia como manera de diferenciarse unos de otros.
Esto aparece tanto en el Inca Garcilaso y Guaman Poma, entre otros. Mora Chimo
emplea tres veces el término. La primera, en medio del elogio que hace del amparo
ofrecido por anteriores reyes “a esta pobre Nacion” (MORA CHIMO, [1724],p.391),
subordinando así al colectivo respecto de sus protectores. La segunda, enfrenta a
J los españoles con la nación, respecto de la cual actúan injustificadamente como
enemigos, “como si de proposito tirassen a extinguir esta pobre Nacion” (MORA
CHIMO, [1724],p.395). Si bien se la nombra aquí todavía en una situación pasiva, se
A
establece ya una oposición entre españoles e indios en términos de colectivos13. Por
último, se la plantea en términos positivos, “por no aver otra Nacion mas aproposito
L para estos efectos” [la labranza y la minería] (MORA CHIMO, [1724],p.395). A
diferencia del primer memorial, donde Mora Chimo se refería a los indios de los
L cuatro pueblos de la provincia de Trujillo a quienes representaba, aquí su defensa
se da en términos de un colectivo mayor, a la vez racial, en el sentido en que
A la corona entiende lo indio, y supra-étnico, en el sentido en que los miembros
de distintos colectivos andinos plantean sus alianzas internas en relación con
la administración imperial. En resumen, al reemplazar ‘miserables indios’ por
‘pobres’, ‘menesterosos’ y ‘nación’, se proyectan sentidos distintos para la nación
indiana, definiéndola ahora como colectivo, de grandes capacidades naturales, e
• infeliz por la injusta circunstancia de su opresión y pobreza. Al pasar los indios
a ser un colectivo que trasciende la jurisdicción de su procurador, también debe
523
cambiar el rol de este. En El desamparo total de los miserables indios, Mora Chimo
• se presenta como uno de los indios del valle de Chicama que ha sufrido los mismos
despojos que los demás y habla, por tanto, en representación de sí mismo y de
sus pares. Se presenta en ese texto como “Cazique de los quatro Pueblos de Indios
[...], de que fue nombrado Procurador por el Virrey” (MORA CHIMO, [1722],p.383,
énfasis mío), es decir, su representatividad está claramente delimitada. En Y si se
2 continúan los agravios, en cambio, asume una nueva figura. Inicia presentándose
como “Cacique principal de [...] Pueblos de la Jurisdicion de la Ciudad de Truxillo, y
0 Procurador General de sus Naturales” (MORA CHIMO, [1724], p.390, énfasis mío).
Sin embargo, tras hablar del sufrimiento de “esta pobre Nacion”, lo ejemplifica
primero a través del abuso de la mita en su jurisdicción para enfatizar que este abuso
1
ocurre “especialmente en la Provincia de Quito” (MORA CHIMO, [1724], p.393),
región sobre la cual no tiene ninguna jurisdicción. Más adelante debe justificar
8 su autoridad para hacer la petición de una visita para dicha provincia, y lo hace

13  Jean-Phillipe Husson (2001: 99-134) propone que esta oposición entre una ‘nación’ de
indígenas andinos y otra de españoles ya aparece en Guaman Poma, al referirse a los segundos
como “estrangeros”. Siguiendo el análisis del estudioso, puede verse sin embargo que esta distinción
no es hecha tanto en términos de colectivos sociales como de legitimidad territorial, como se sigue
de estas dos citas “que aues de conzederar que todo el mundo es de dios y anci castilla es de los
espanoles y las yn[di]as es de los yn[di]os- y guenea es de los negros q[ue] cada [uno] destos son
lexitimos propetarios .no tan solamente por la ley” (101); donde se señala la propiedad natural
de cada colectivo, “y ci acaso fuera a espa[ñ]a un yn[di]o fuera estrangero” (106); que establece la
frontera territorial o de pertenencia entre un colectivo legítimamente propietario y los ‘estrangeros’.
diciendo que ha recibido el encargo de los caciques de Loja, “[c]omo tal Procurador
de Naturales” (MORA CHIMO, [1724],p.399). Es decir, borrar la partícula posesiva
con la que se presentaba en el documento anterior y al inicio de este, pasando de
ser procurador de una jurisdicción a serlo de un colectivo, de la nación indiana.
Este giro lo reposiciona en el diálogo con la corona, permitiendo la expansión de
su agenda política. Esta reconfiguración de su propia figura y del colectivo indio
son los componentes esenciales de su nación indianizada. A partir de estos, la
J circunstancia de pobreza y tribulación, y la naturaleza capaz del colectivo indio se
sitúan en la base de la articulación de las denuncias de injusticia y de búsqueda
de justicia.
A
En El desamparo total, Mora Chimo denuncia una injusticia radical: el
L desamparo en que Dios tiene a los indios; diferenciando esta injusticia de otra
relativa, en la cual el Rey intenta ser justo pero sus funcionarios incumplen sus

mandatos. En dicho manifiesto, Dios solo aparece mencionado una vez en referencia
L a dicha injusticia radical, en tanto el Rey aparece, no solo como destinatario del
petitorio, sino como máximo señor de los indios. En Y si se continúan los agravios, en
A cambio, se recuperan de manera positiva la figura de Dios y de la religión cristiana.
A la vez, se plantea la relación entre los vasallos indios y su señor como “una
disforme distancia”, término clave para el desarrollo general del proyecto político
de Mora Chimo.
Al denunciar los abusos de los españoles, quienes —según el autor—,
• parecieran estar buscando a propósito la extinción de los indios, plantea el autor
524 que estos:
“carecen aun de tener á quien bolver los ojos, sino es á V. Mag. como su

Rey, y Señor (despues de Dios) embarazandoles hasta este unico consuelo la
disforme distancia, por lo que al vér tan dificultoso el recurso, confundidos
en su miseria, passan el Purgatorio en vida, deseandose aun la muerte, por
parecerles, que dán con ella el fin á sus trabajos” (MORA CHIMO, [1724],
p.395).
2 En una primera lectura, puede entenderse la “disforme distancia” del
párrafo citado en su sentido literal, geográfico, o como una plana metáfora de
0 lo amplio y sinuoso del camino administrativo. Una lectura más minuciosa, sin
embargo, permite colegir un cuestionamiento más profundo, tanto de la figura del
1 Rey, de la Dios, y del sistema administrativo en su conjunto. En su diccionario,
Covarrubias define disforme como “La cosa que de grande es desproporcionada, y
8 por esto parece mal [...]. Disformidad, desproporción, o fealdad” (COVARRUBIAS,
1611, p.322). En tanto, según el Diccionario de autoridades: “Se dice freqüentemente
de las cosas desmesuradas, y que sobrepujan y exceden en magnitud notablemente
a las otras de su orden, sea en lo physico, o en lo moral” (Diccionario de autoridades,
Tomo III, 1732). La distancia disforme es, por lo tanto, física y moralmente
desproporcionada, desmesurada. Esto justifica en parte la presencia de Mora Chimo
en España. Como veremos, su presencia no solo ayuda a los indios, sino también
a Dios y al Rey. Sin embargo, si Dios y el Rey son los encargados de proteger
a los indios, fundamentalmente en tanto cristianos, y estos pasan el purgatorio
en vida, viendo su propia muerte como liberación, entonces Dios y el Rey han
fallado. Aquí no son los funcionarios los responsables de la injusticia relativa sino
Dios y el Rey. Esta responsabilidad es moral y la distancia solo puede reducirse
a través de intermediarios justos y capaces de transitar entre el mundo indígena
y la administración colonial, como la Compañía de Jesús en el caso que describe
en Chucuito, y como él mismo. Entre las injusticias específicas que denuncia
están, además de la ilegal apropiación de tierras y del derecho de uso del agua,
la destrucción general de la población indígena, que es mencionada varias veces,
J tanto desde su aspecto inmoral como desde su importancia económica para la
corona. Finalmente, se advierte que la población nativa, dados todos los abusos
descritos, ha “cobrado por enemigo al Español avecindado” (396). Ante la enemistad
A
descrita entre españoles e indios, un Rey justo tendría que defender a los indios,
sus vasallos más productivos.
L
Dadas las características de su denuncia, los pedidos de justicia de

este memorial son también más sofisticados que en el anterior. Para el caso de la
L Audiencia de Quito, el autor repite en gran medida el esquema de El desamparo
total: se refiere en dos ocasiones a los indios de esa jurisdicción como ‘miserables
A Indios’, describe el panorama de injusticia generalizada pero refiere el caso de
un funcionario español excepcional, quien al hacer correctamente su trabajo es
removido, y solicita la restitución del funcionario, el visitador Don Juan Navarro de
Leon y Ribera, y la realización de una visita de mitayos, de obrajes, y de trapiches
en cumplimiento de la ley. Para el caso de su región, en cambio, reivindica su
• propio rol como mediador de justicia y su utilidad para la reducción de la “disforme
525 distancia” antes denunciada, a la vez que propone audaces reformas sobre la
administración territorial virreinal.

Mora Chimo elogia la buena administración que los sacerdotes de la
Compañía de Jesús hacen en Juli, provincia de Chucuito, del envío de sus feligreses
al trabajo de mitas en las minas de Potosí, reivindicando la importancia de que
alguien defienda a los indios y posicionándose a sí mismo en ese lugar. Plantea
que con sus denuncias y petitorios “hace el Suplicante un gran servicio á Dios,
2 y á V. Mag.” (MORA CHIMO, [1724], p.394), y que “para [su] consuelo ofrece á V.
Mag. la mas gloriosa ocasion en que su Real piedad, y justicia tienen bien en que
0 ejercitarse, pues [...] las consequencias que resultarán de ella sean muy buenas”
(MORA CHIMO, [1724],p.394). La reivindicación de su propia figura como mediador
1 de justicia no es vanidosa, es un intento de legitimar su frágil situación legal y de
recibir de la corona la legitimación ya obtenida de las autoridades indígenas, de su
8 autoridad moral para insertarse en el diálogo político. Su situación legal era frágil
ya que, habiendo sido autorizado para viajar a España para gestionar justicia para
los indios del valle de Chicama en el tema de la restitución de tierras, cumplida
esta tarea tendría que volver al Perú. Sin embargo, el éxito de su gestión inicial
lo legitima como mediador ante distintas grupos indígenas (además de interceder
por los caciques de Loja, lo hará en el futuro a favor de caciques de Azángaro
y Chucuito en el sur del virreinato). Así, pese a que había recibido el título de
procurador de naturales para una jurisdicción específica (los cuatro pueblos del
valle de Chicama de los que se presentaba como cacique), el éxito de su gestión
lo había legitimado como negociador desde las comunidades indígenas, así, ahora
necesitaba que esa autoridad fuese refrendada por la corona. Esto nunca ocurrirá,
al contrario, su situación será cada vez más precaria, hasta que se le ordene volver
al Perú, mandato que desobedecerá.
Finalmente, Mora Chimo propone reformas concretas y audaces,
consideradas aunque no completamente aceptadas por la corona. Solicita la
eliminación de las medidas de tierras en el futuro, la reposición de las propiedades
a los indios “mediante la que les dió avrá 100 años el Padre Fray Francisco de la
J Huerta, y el Padre Fray Domingo de Valderrama, Jueces de Desagravios de Tierras”
(MORA CHIMO, [1724], p.398), y la restitución de tierras vendidas y empeñadas
A a los españoles. En enero del año siguiente el rey responde ratificando su medida
anterior sobre la restitución de tierras, decretando que no se despachen comisiones
L para visitas y composiciones de tierras “sin justas Causas” (MATHIS, 2009, p.406),
y desestimando la restitución de tierras vendidas y empeñadas en tanto se hayan

hecho legalmente. Sobre “los demas puntos de su Memorial”, esto, es sobre las
L vejaciones y la “disforme distancia” denunciadas, contra las que el Rey dice tener
dadas disposiciones que son “tan vulneradas contra el servicio de Dios y mío”
A (MATHIS, 2009, p.407) resuelve el Rey enviar una copia del memorial de Mora
Chimo al Virrey del Perú. Consigue así una importante aunque relativa victoria.
Si bien no consigue las reformas solicitadas, sí genera medidas concretas de parte
del Rey, tanto en la suspensión de las comisiones para visitas y composiciones de
tierras como —y quizá fundamentalmente—, en el envío desde el despacho del Rey,
• de un memorial indígena, para que el Virrey “llamando al Protector de los Yndios,
526 le haga especial encargo al desagravio de estos pobres” (MATHIS, 2009,p.406). Es
decir, consigue situarse como mediador político, no solo entre los nativos andinos y
• la corona, sino entre esta y el Virrey. En resumen, en Y si se continúan los agravios,
se denuncia una distancia desproporcionada e inmoral entre Dios, el Rey y sus
vasallos indios, y se resignifica la nación indiana en nación indianizada: un colectivo
cristiano y amante del rey pero atribulado; esencial para la producción de riqueza
y, por lo tanto, valioso para la corona, y que cuenta con el propio Mora Chimo como
2 legítimo y eficiente mediador entre distintos sectores (indios y Rey, Rey y virrey,
Dios-Rey y sus vasallos).
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2

0

1

8

J

A

L DIÁRIO DE UMA FAVELADA: O QUE A DESVALORIZAÇÃO DA
OBRA DE CAROLINA MARIA DE JESUS TEM A DIZER?1
L
Jaine Araújo da Silva (UFAC)
A José Tarisson Costa da Silva (UFPE)
RESUMO: Carolina Maria de Jesus traz em seu texto a subjetividade oriunda da
sua condição enquanto sujeito com identidades de gênero e étnica subalternizadas
pelo contexto, lugar socioeconômico e regional do qual fazia parte. Com base
no livro Quarto de Despejo: diário de uma favelada (2013), este artigo busca
• analisar a produção, vida e a obra da escritora, buscando articular os conceitos
de interseccionalidades e lugar de fala, para entender quais fatores fizeram
529
com que a escrita de Carolina fosse invisibilizada, mesmo após um período de
• reconhecimento. Com o trabalho, entende-se que a percepção que o indivíduo tem
de sua condição o torna mais fiel e fidedigno à realidade da qual fala. O contexto
vivido por Carolina permite à sua escrita revelar as mazelas de uma sociedade
extremamente hierarquizada e que mostra pouco ou nenhum sinal de chance de
melhoria para quem ainda vive nos quartos de despejo espalhados pelo Brasil.
2 Palavras-chave: Favela. Interseccionalidade. Literatura. Lugar de fala.

Introdução
0
“A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra.
E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu.
1 A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu
moro”: a fala é de Carolina Maria de Jesus (2013, p.167), mulher que carregou em
8 si a negritude, a pobreza e a falta de estudos ocupando uma das primeiras favelas
de São Paulo: a Favela do Canindé.
No livro Quarto de Despejo (2013), que teve origem a partir de mais de 20
cadernos nos quais Carolina Maria registrava seus dias, a autora discorre sobre
temas tão atuais quanto na década de 50. A fome é uma das personagens principais
dessa história narrada por quem a viveu. Partindo da obra mais conhecida da
autora, o artigo se propõe, inicialmente, a fazer uma apresentação biográfica de

1  Trabalho apresentado durante a 13a Edição das Jornadas Andinas de Literatura Latinoamericana
(JALLA)
Carolina. Em seguida, a proposta é analisar o lugar dela enquanto escritora e
entender como Carolina Maria se incluía em um contexto de produção no qual a
mulher era privada dos espaços – um deles era o reconhecimento em produções
literárias.
É preciso destacar que Carolina, enquanto mulher, negra e pobre, traz
um olhar que é atravessado por condições que a definiam não apta à escrita e à
literatura, de acordo com os padrões de escritores da época. A fim de analisar tal
J situação, será empregado o conceito pós-estruturalista de lugar de fala, destacando
a importância do local de onde Carolina falava para que sua produção transmitisse
A a sensibilidade de quem vivia em situação desfavorável. O conceito também
evidencia que esse lugar do qual ela falava limitou seu acesso ao mainstream das
L obras clássicas literárias.
Por fim, o conceito de interseccionalidade será trabalhado, não só com
o intuito de perceber a dificuldades de uma escritora em contexto de produção
L
que a limitava, mas para evidenciar que outras condições de existência – raça,
na perspectiva sociológica, e situação socioeconômica – se combinam colocando
A Carolina no anonimato, por não se encaixar nos padrões exigidos para o campo de
atuação literária.
Contrariando a norma: negra, favelada, semianalfabeta e... escritora
Carolina Maria de Jesus nasceu em Sacramento, Minas Gerais, em março
• de 1914. De acordo com Oliveira (2015), a descendente de pessoas escravizadas
se mudou para São Paulo em 1937, onde passou a residir em uma das primeiras
530
favelas, a favela do Canindé. Trabalhou como faxineira, cozinheira, passadeira e até
• vendedora de cerveja, além de se apresentar como artista em um circo, porém sua
principal profissão foi empregada doméstica. Quando engravidou, abandonada pelo
pai da criança, Carolina perdeu o emprego. Foi então que começou sua jornada de
idas e vindas do centro à periferia de São Paulo como catadora de papel e de outros
objetos em busca da sobrevivência e da alimentação para seus três filhos: “de pobre,
2 passou a miserável; de emigrante, passou a excluída social” (MAGNABOSCO apud
OLIVEIRA, 2015, p.45).
0 O fato de Carolina ter estudado apenas até a segunda série do ensino
fundamental não a impediu de transportar para seus mais de 20 cadernos a rotina
1 de quem mora na favela. Tampouco o limite no domínio à norma padrão da língua
portuguesa a impossibilitou de usar o código a seu favor na tarefa de ser dura

e ao mesmo tempo poética na descrição da realidade que vivia. Suas limitadas
8 condições socioeconômica e cultural não lhe roubaram a capacidade de ser dona
de um discurso marcante, mesmo que marginal.
Em seu livro de maior sucesso – lançado em 1960, após ser “descoberta”
pelo jornalista Audálio Dantas2 – Carolina traz histórias que mostram a favela do
lado de dentro, experiências vividas por ela. Sua escrita é marcadamente realista.
Ela cria metáforas e não foge de temas relevantes, delicados e atuais – como
política, racismo, violência e, principalmente, a fome – o que possibilita à obra

2  Ele fazia uma reportagem na favela onde ela residia, quando a ouviu falar sobre um diário. Ficou
curioso e quis saber mais detalhes. Então, Carolina lhe mostrou não só o diário, mas vários textos
suscitar debates sobre essas temáticas em diversas áreas do conhecimento. Aqui,
entretanto, se propõe uma análise baseada no que sua autoria enquanto mulher,
negra e favelada representa para a literatura.
O nome do livro já mostra a visão autêntica que Carolina Maria de
Jesus tem da favela. “Quarto de despejo” é como a escritora se refere a esse lugar
desvalorizado onde viveu boa parte da vida. Em diversas passagens ela o nomeia
de diferentes formas: “cortiço”, “úlcera”, “gabinete do diabo”, “sucursal do inferno”
J e “chiqueiro de São Paulo” são algumas. Na primeira edição de Quarto de Despejo:
diário de uma favelada foram vendidos mais de dez mil exemplares e, no primeiro
A ano, mais de cem mil cópias do livro editado em treze idiomas e vendido em mais
de 40 países. À época, a proporção que a a obra de Carolina Maria de Jesus tomou
L foi surpreendente, pois “até então nenhum outro livro no Brasil com testemunhos
de mulheres pobres atingiu níveis próximos ao de Jesus” (OLIVEIRA, 2015, p.46).

De acordo com Oliveira (2015) a vivência da autora nesse espaço periférico
L
lhe permite revelar um olhar interno que vai além dos estereótipos conhecidos –
marginalização, violência, fome –, retratando a luta dos habitantes desse lugar em
A busca de uma vida digna,
[...] são moradores que enfrentam processos de desfavelização, trabalhado-
res que encaram os ônibus lotados, alunos pobres e negros que enfrentam
o preconceito nas escolas e, sobretudo, sujeitos negros dispostos a contar
suas histórias (OLIVEIRA, 2015, p.15)

Segundo a autora, o gênero textual que apresenta narrativas centradas
531 no sujeito se fortaleceu no século XVIII – momento em que a sociedade burguesa
• se consolidou – e teve seu ápice no século XX, quando muitas obras confessionais
foram lançadas. Dentre elas existiu a obra de Carolina Maria de Jesus. As histórias
apresentadas em Quarto de despejo foram vividas e escritas entre 1955 e o primeiro
dia de 1960, com um intervalo de silêncio que durou quase três anos – de julho de
1955 a maio de 1958. O gênero diário permite que haja a noção de autobiografia
2 e faz a marcação do tempo configurando-se em “uma série de vestígios datados”
(LEJEUNE apud OLIVEIRA, 2015, p.33). No caso de Carolina, vestígios da identidade

e do trabalho, já que, conforme o autor, as folhas em que ela escrevia seus relatos
0 haviam sido recolhidas nos lixões.
Para Oliveira (2015), o diário de Carolina leva o gênero a outro patamar,
1 porque expõe as mazelas da vida na pobreza e denuncia essa realidade muitas vezes
ignorada, “revelando um espaço narrativo em que encontramos a crítica social, que
8 é um traço marcante na escrita da autora, considerada também como literatura
de testemunho” (p.34). Esse tipo de literatura surgiu no século XX e se encaixa
no conceito de testimonio, por sua vez, criado na Espanha em 1960, como explica
Oliveira (2015): “Ele nasce da necessidade de expressar a opressão dos grupos
subalternos em um contexto de exploração econômica, experiências históricas da
ditadura, repressão às minorias étnicas, às mulheres e aos homossexuais” (p.35).
Quarto de despejo: diário de uma favelada não foi a única obra escrita

que ela escrevia. O jornalista foi responsável pela publicação do “Quarto de despejo: diário de uma
favelada”.
por Carolina. Segundo Oliveira (2015), Jesus também escreveu romances, contos,
poesias e peças teatrais que, em sua maior parte, continuam inéditas. Sua obra de
maior sucesso continuou a ser vendida fora do Brasil mesmo depois de esquecida
por aqui: “no Brasil, o tema é tido como defasado, um momento passado no tempo,
sem nada de interessante para demonstrar no presente” (MEIHY; LEVINE apud
OLIVEIRA, 2015, p.47).
De certa forma, Carolina não conseguiu se adaptar à rotina de alguém
J popular. Depois do sucesso de Quarto de despejo, ela recebeu muitos convites para
entrevistas em programas na televisão e no rádio, viajou dentro e fora do país,
A participou de debates, eventos e festas, mas não gostava dessa vida, como confirma
no livro Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada: “Eu estava exausta. Já estou
L saturada desses convites faustosos” (JESUS, 1961, p.152 apud OLIVEIRA, 2015,
p.63).

Diante do sucesso deste livro, o jornalista Audálio Dantas a orientou no
L
prefácio da segunda obra publicada (Casa de Alvenaria): “Agora você está na sala
de visitas e continua a contribuir com êste novo livro, com o qual você pode dar por
A encerrada a sua missão [...] Guarde aquelas “poesias”, aquêles “contos” e aquêles
“romances que você escreveu” (JESUS, 1961, p.10 apud OLIVEIRA, 2015, p.66).
Ignorando a orientação, Carolina continuou escrevendo outros textos, mostrando
que foi “uma escritora autêntica, não apenas pelo que produziu, mas da maneira
como traçou os caminhos dessa escrita. Através da sua figura e de suas palavras
• fortes, incomodou tanto leitores quanto a crítica” (OLIVEIRA, 2015, p.66).
532 Carolina morreu em seu sítio, na cidade de Parelheiros, interior de São
• Paulo, em 1977. Pobre e sozinha. De acordo com Oliveira (2015), a maioria dos
noticiários que falaram sobre sua morte a desrespeitaram dizendo que ela teria
gastado todo o dinheiro que ganhara com a venda dos livros e por isso estava
vivendo miseravelmente – o que é rebatido por uma série de entrevistas feitas
por José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert M. Levine3, em que filhos e amigos da
2 escritora mostram que ela sempre foi “uma mulher resistente, mãe, que combateu
a miséria, a desumanidade e a dificuldade de uma vida dura e conquistou com
muito esforço o sonho de ter um teto e melhorar a situação econômica de sua
0 família.” (OLIVEIRA, 2015, p.48).
Por ironia do destino ou não, Quarto de despejo foi lançado na década de
1 1960. Período marcado pela segunda onda do feminismo nos EUA e Europa: fase
do movimento em que, para além da busca por espaço para as mulheres, se fala
8 pela primeira vez em uma mudança nas relações de poder, até então desiguais,
entre homens e mulheres. Ademais, mostra que “uma não pode ser representada
pela outra, já que cada uma tem suas características próprias” (PINTO, 2010, p.16).
Já no Brasil, o clima era contrário. Década do golpe militar, que se
transformaria em ditadura; e de polarizações na política (de um lado estavam a
esquerda partidária, os estudantes e o governo; do outro, os militares e o governo
norte-americano). Diante desse contexto, a realização de manifestações feministas
3  Publicaram juntos o livro Cinderela Negra: a saga de Carolina Maria de Jesus, em 1994. Seus
estudos contribuíram para a compreensão dos problemas de recepção da obra da escritora no
Brasil.
só foi possível a partir da década de 1970. Segundo Pinto (2010) pautas sobre
violência, sexualidade, direito ao trabalho, igualdade no casamento, direito à terra,
à saúde materno-infantil e luta contra o racismo só foram pautas do feminismo
30 anos depois da escrita de Quarto de despejo. O que evidencia que, apesar de
semianalfabeta, Carolina Maria de Jesus era uma mulher à frente de seu tempo,
que tinha na escrita a consciência política para reivindicação de seus direitos
enquanto mulher, negra e pobre.
J As categorias de articulação: gênero, raça e classe na subalternidade do
discurso de Carolina Maria de Jesus
A O lugar de onde Carolina Maria de Jesus escreve mostra uma
interseccionalidade de marcadores que destacam os motivos pelos quais a autora
L ficou desconhecida entre os cânones literários – mesmo depois um período breve
de fama –, vindo a ter maior visibilidade na atualidade, após uma ampla difusão,
L no Brasil, de pensadores e pensadoras, intelectuais negros e com a publicação de
novos escritos da autora, em que o debate em torno da questão da pobreza e da
negritude volta à cena.
A
Aqui, a análise das interseccionalidades será feita para apreender como
as múltiplas diferenças se articulam para afirmar desigualdades no que se refere
ao discurso literário de uma mulher negra e favelada. Não objetiva-se dar ênfase
para uma categoria específica, mas pretende-se entender como essas categorias,
que articulam raça, gênero, classe e região, se relacionam umas com as outras,

gerando possibilidade de várias interpretações dentro das situações que Carolina
533 vivia. Acredita-se que vários fatores operam simultaneamente para que seja efetiva
• a marginalização e invisibilização de Carolina. A abordagem interseccional aqui
utilizada será a sistêmica, voltada ao empoderamento de grupos subordinados.
Piscitellli cita a advogada Kimberlé Crenshaw como defensora dessa vertente da
interseccionalidade.
Segundo Crenshaw, as interseccionalidades são formas de capturar as con-
2 seqüências da interação entre duas ou mais formas de subordinação [...].
A interseccionalidade trataria da forma como ações e políticas específicas
geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, confluindo e, nessas con-
0 fluências constituiriam aspectos ativos do desempoderamento. (PISCITELLI,
2008, p.267)

1 Para exemplificar a operacionalização da opressão, a advogada transporta


seu pensamento para uma encruzilhada, na qual o sujeito está situado. De acordo
8 com ela, cada estrada seria uma categoria (classe, gênero, raça, etc) geradora de
opressão e subordinação do sujeito. Em determinado momento essas estradas se
cruzam e há uma sobreposição de formas de opressão – ser mulher, negra e pobre,
por exemplo.
Vale destacar que quando Carolina escreve, na década de 50, os conceitos
de interseccionalidade ou categorias de articulação ainda não eram discutidos,
vindo a aparecer somente no marco da história do pensamento feminista, ocorrido
na última década do século passado:
No debate internacional, o final da década de 1990 está marcado pela emer-
gência de categorias que aludem à multiplicidade de diferenciações que,
articulando-se gênero, permeiam o social. São as categorias de articulação e
as interseccionalidades (intersectionalities) (PISCITELLI, 2008, p. 263)

Algumas autoras reiteram a necessidade de se fazer uma análise das


relações que o gênero estabelece com outras categorias de articulação, como defende
Butler no livro Problemas de Gênero (2003). Piscitelli (2008) explica o pensamento
de Judith Butler ao dizer que o “gênero estabelece intersecções com modalidades
raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente
J construídas” (p.266).
Em uma perspectiva diferente e buscando denunciar o espaço que o
A feminismo dava ao pensamento da mulher negra, outras autoras, como Haraway
(1991), minam a sexualidade enquanto categoria central para entender as relações
L de poder entre homens e mulheres. Partindo de uma experiência com o racismo,
as autoras negras chegam a colocar a “raça”, sociologicamente falando, como a
L principal categoria na articulação com outras diferenças possíveis.
A interseccionalidade também se amplia para falar da subalternidade
discursiva a partir do lugar geográfico de onde se fala, isto é, o posicionamento
A regional do ator também tem implicações nas relações de poder dentro das
articulações que as diferenças estabelecem. Problemática trazida pelas feministas
de Terceiro Mundo – aquelas que estão fora dos grandes centros produtores de saber
–, destaca-se que essa perspectiva de análise só será contemplada neste trabalho
se referindo às relações dentro do Brasil, e não em comparação com outros países.

Pretende-se utilizar as diferenças que articulam raça, gênero, classe e região como
534 fundamentais para entender a subalternidade do discurso de Carolina Maria de
• Jesus.
O lugar de fala na produção de Carolina Maria de Jesus
Objetivando entender a peculiaridade do discurso de Jesus, o conceito
de lugar de fala elucida a capacidade da autora de trazer sensibilidade e gerar
verossimilhança nos seus leitores – ações possíveis devido aos contextos econômico
2 e regional dos quais Jesus fala. Como confirma Palma:
O discurso enquanto produto concreto é marcado pela subjetividade que o
0 produziu, mas não no sentido romântico e idealista da vontade livre e au-
tônoma, pois aquilo que expressa é resultado do lugar da autoria, portanto
marcado pelas condições do meio de onde procede. (PALMA, 2011, p.73)
1
Lugar de fala é um conceito pós-estruturalista, movimento que recusa a
8 ideia filosófica clássica de verdades únicas e de objetividade. A precisão de data do
termo é incerta, porém sabe-se que ele surge nos debates feministas americanos,
por volta dos anos 1980. Academicamente, o termo aparece pela primeira vez no
artigo “O problema de falar pelos outros” (1991-1992), da filósofa panamenha Linda
Alcoff, e no ensaio “Pode o subalterno falar?” (1942), da professora indiana Gayatri
Spivak. Para Djamila Ribeiro (2017), Spivak é considerada um dos principais nomes
a tratar do conceito, porque traz reflexões sobre como ele se manifesta em sujeitos
marcados pela colonização, como é o caso de Carolina.
Em entrevista ao Jornal Nexo, o filósofo Pablo Ortellado (apud MOREIRA;
DIAS, 2017) afirma que lugar de fala “é a posição de onde olho para o mundo
[...]”. É a partir desse mesmo lugar que é possível identificar as hierarquias, as
desigualdades, a pobreza o racismo e o sexismo, como acrescenta o filósofo. Pensar
a favela, a condição de mulher, a negritude e a pobreza como pertencentes à
condição de escrita de Jesus permite perceber, nesta análise, as hierarquias que
colocaram a autora no anonimato e que fizeram com que seu discurso significasse
um relato da situação vivida pela escritora.
O lugar de fala nos direciona para a Filosofia da Linguagem no trato da
J condição de produção discursiva – isto é, nos leva a tratar de contexto de enunciação
e suas implicações na realidade –, e Michel Foucault é uma das fontes desse estudo.
A O filósofo francês destaca que o discurso não apresenta somente os sistemas de
dominação, mas revela o poder almejado pelos indivíduos (FOUCAULT, 2002 apud
L PALMA, 2011). Neste sentido, entende-se que o lugar discursivo de Carolina indica
sua reivindicação pelo espaço de escritora, ou seja, a busca pela possibilidade de

falar da sua situação desumana dentro do contexto socioeconômico vivido.
L
Mesmo tendo nascido em um contexto brasileiro de modificações sociais
que alteraram as sociabilidades, as relações para negras, pobres e faveladas
A continuavam imóveis, mantendo-os numa condição de subalternidade, como foi
o caso da escritora. Carolina era tudo isso e ainda se somava à situação de mãe
solteira e semianalfabeta. Esses lugares sociais de fala determinam não só o olhar
de mundo do principal ator aqui descrito, mas, sobretudo, sua produção literária.
Além disso, tal lugar de onde a voz ecoa pode afetar a forma como essa produção
• será recebida.
535 A escrita produto do contexto vivido por uma negra - a favela no centro
• da discussão
O lugar discursivo do qual Carolina Maria de Jesus fala possibilita
autenticidade e sensibilidade de escrita. De acordo com Spivak (2010, p.12), o
subalterno pertence “às camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos
modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal,
2 e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante”.
O modo de exclusão vivido por Jesus tornou inacessível sua chegada ao estrato
0 dominante de escritora reconhecida socialmente.
A região onde ficava a favela do Canindé hoje dá espaço à Marginal
1 Tietê. Entretanto, nas páginas do diário de Carolina estão vivas várias de suas
características à época. Conforme Oliveira (2015), Carolina foi a primeira escritora

brasileira cuja escrita tem como base as experiências vividas por si mesma na
8 favela. O que permite a ela conferir aos fatos uma perspectiva até então inédita,
apresentando uma visão de si e da região central da cidade de São Paulo em
comparação com a favela. Incluir-se nesse espaço não era uma tarefa muito feliz
para Carolina, já que ela sempre demonstrava insatisfação por viver em uma área
existente em um terço dos municípios brasileiros, onde milhares de pessoas são
amontoadas e passam a (sobre)viver, não por opção: “Se eu pudesse mudar desta
favela! Tenho a impressão que estou no inferno” (JESUS, 2013, p.26).
Em Quarto de despejo: diário de uma favelada, Carolina expressa sua
indignação com as situações enfrentadas vivendo neste lugar. Trazendo à tona
a voz do sujeito subalternizado, conforme Oliveira (2015), a autora e narradora
personagem confere maior precisão e realismo à descrição desse ambiente
desconhecido por aqueles que só transitam na “sala de visitas”:
[…] Os visinhos da alvenaria olha os favelados com repugnancia. Percebo
seus olhares de ódio por que eles não quer a favela aqui. Que a favela detur-
pou o bairro. Que tem nojo da pobresa. Esquecem eles que na morte todos
ficam pobres (JESUS, 2013, p.55)

J Essa ignorância sobre o quarto de despejo gera um imaginário de medo


das pessoas de fora em relação aos favelados: “Quando alguem nos insulta é só
A falar que é da favela e pronto. Nos deixa em paz. Percebi que nós da favela somos
temido.” (JESUS, 2013, p. 84) Em outros trechos da narrativa, a autora deixa
L evidente que a escrita, além de ser um canal pessoal de denúncia das mazelas
vividas na periferia, é uma fuga desse lugar indesejável:

Vou escrever um livro referente à favela. Hei de citar tudo que aqui se passa.
L E tudo que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas
cenas desagradáveis me fornece os argumentos. [...] Estou residindo na fa-
A vela. Mas se Deus me ajudar, hei de mudar daqui. Espero que os políticos
estingue as favelas. (JESUS, 2013, p.20)

Em sua análise, Oliveira (2015) divide o diário em duas partes: a primeira
vai de 15 a 28 de julho de 1955 e traz relatos voltados a questões do próprio eu
narrado ali, problemas pessoais de Carolina, principalmente a fome e a luta pela
• sobrevivência. A narrativa toma outra perspectiva, depois do encontro de Carolina
536 com o jornalista Audálio Dantas. No período que vai de 2 de maio de 1958 a 1 de
janeiro de 1960, o texto se volta mais para a crítica social da favela e da cidade,

o que o torna um testemunho legítimo de uma miséria que tem várias faces. É
interessante ressaltar que mesmo morando na favela e presenciando diariamente
cenas de violência, principalmente contra a mulher, Carolina não aceita essas
experiências como algo natural, ao contrário, mostra indignação:
A Silvia e o esposo já iniciaram o espetaculo ao ar livre. Ele está lhe espan-
2 cando. E eu revoltada com o que as crianças presenciam. Ouve palavras de
baixo calão. Oh! Se eu pudesse mudar daqui para um núcleo mais decente.
0 (JESUS, 2013, p.14)

No texto também fica evidente a interpretação que Carolina Maria de


1 Jesus faz da constituição das favelas. Ela critica esse modo de “organizar” seres
humanos, acumulando-os em um espaço que carrega em si muitas problemáticas
8 e, principalmente, uma mensagem que estereotipa essas pessoas:
[…] Nós somos pobres, viemos para as margens do rio. As margens do rio
são os lugares do lixo e dos marginais. Gente da favela é considerado margi-
nais. Não mais se vê os côrvos voando as margens do rio, perto dos lixos. Os
homens desempregados substituíram os côrvos. (JESUS, 2013, p.54)

Tal visão evidencia que, apesar do pouco grau de escolaridade, a escritora


tinha um apurado senso crítico ao analisar a situação das favelas. Em outro trecho
da obra, Carolina narra a saga em busca de comida para os filhos em um dia
de chuva forte. Depois de pedir ajuda a algumas vizinhas, ela consegue alcançar
o objetivo às 9 horas da noite: “E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava
contra a escravatura atual – a fome.” (JESUS, 2013, p.31). O que chama atenção é
sua capacidade de perceber as nuances de uma escravidão que não acabou, mas
atualmente se manifesta de outras formas, como reitera Oliveira (2015):
Ao refletir sobre o momento presente, Carolina se volta ao passado histórico
marcado pela escravidão e nos mostra uma nova estrutura de opressão: os
negros que antes viviam em um sistema escravocrata, hoje experimentam a
miséria e a negligência social. (OLIVEIRA, 2015, p.58)

J Mesmo criticando duramente algumas atitudes dos moradores da favela,


Carolina consegue mostrar o quanto essas pessoas foram excluídas e massacradas
A pelo sistema que induz à “modernização” da cidade. Em uma cena em que está
sendo gravado um documentário na favela, as pessoas começam a temer que esse
L espaço seja destruído, ao que Carolina conclui: “o que se nota é que ninguém gosta
da favela, mas precisa dela. Eu olhava o pavor estampado nos rostos dos favelados”

(JESUS, 2013, p.191).
L
Considerações finais
Carolina é um sujeito que carrega em si características que lhe tornam
A
diferente da norma que se espera de um cânone literário – afinal não se espera
que, em plena década de 1950, uma mulher negra, favelada e semianalfabeta
seja, também, escritora. Dentre outras coisas, sua escrita traz à tona reflexões
sobre as consequências da escravização dos negros no Brasil e critica o projeto de
modernização das cidades que massacra a população pobre lançado-a nos quartos

de despejo até os dias de hoje.
537
A escritora sabia do que falava porque vivia tal realidade, isso é perceptível
• em seu texto. A percepção e demonstração por um indivíduo da sua condição de
subalternidade o torna mais fiel e fidedigno da realidade da qual fala. Falar da favela
e da inospitalidade do espaço não é apenas resultado da subjetividade romântica e
autônoma adquirida por Carolina Maria de Jesus e materializada em sua escrita,
mas decorre, principalmente, do contexto no qual estava. Tal contexto permite à
2 escrita da autora revelar as mazelas de uma sociedade extremamente hierarquizada
e que mostra pouco ou nenhum sinal de chance de melhoria para quem ainda
0 vive nos quartos de despejo espalhados pelo Brasil. Tudo isso é possível graças à
ousadia de Carolina, sujeito que carrega em si vivências que ainda são atuais para
muitos brasileiros.
1
Reconhece-se, dessa maneira, que diferentes espaços de vivência também

influenciam na produção daquilo que é narrado, isto é, o fazer literário também
8 é condicionado pela experiência de vida dos indivíduos, e Carolina não foge
dessa realidade. Para se perceber essa situação, é necessário partir das relações
estabelecidas entre marcadores de gênero e étnico-racial, bem como da condição
socioeconômica dentro dos quais os sujeitos se encontram.
Assim, pode-se concluir que Carolina foi uma mulher à frente de sua
época, no que diz respeito à sua visão e posicionamentos diante da realidade vivida
e narrada por ela. O fato de ela ser esse sujeito marcante e pioneiro nesse tipo
de escrita no país não foi o suficiente para que fosse reconhecida como tal. Os
marcadores de desigualdades aos quais ela estava sujeita a impediram de alcançar
o reconhecimento merecido.
Referências
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Abril
Educação, 1ª edição, 2013.
OLIVEIRA, M. A. Narrativas de favela e identidades negras [manuscrito]: Carolina Maria
de Jesus e Conceição Evaristo. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em
J Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, Minas Gerais, 2015.
A PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de mi-
grantes brasileiras. In: Sociedade e Cultura. Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez.
L 2008.
PINTO, C. Feminismo, história e poder. In: Revista de Sociologia e Política. Curi-
tiba, vol. 18, n° 6, p.15-23, 2010. Disponível em: http://revistas.ufpr.br/rsp/article/
L
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MOREIRA, Matheus; DIAS, Tatiane. O que é ‘lugar de fala’ e como ele é aplicado no de-
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tps://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/01/15/O-que-%C3%A9-%E2%80%98lu-
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Acesso em 01 de maio de 2018.
PALMA, Glória Maria. O lugar social e as condições de produção do sujeito autor: Machado
• de Assis e Carolina Maria de Jesus. In: Coleção Mestrado em Linguística. v. 06, p.73-93,
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RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, MG: Editora
UFMG, 2010.

2

0

1

8

J

A

L A CIÊNCIA DOS ENCANTADOS: COSMOLOGIAS AFROINDÍGENAS
NO NORDESTE PARAENSE
L
Jerônimo da Silva e Silva (UNIFESSPA)
A RESUMO: A proposta de comunicação versa sobre aspectos de uma etnografia
realizada no nordeste paraense, comunidade de Japerica. Nesta região, através de
saberes comunicados por Mãe Ana, uma centenária rezadeira iniciada pela Princesa
Oceânica, é possível visibilizar nos dons e nas entidades que se amalgamam no corpo
e nas rezas elementos de matrizes culturais africanas e indígenas. Na etnografia é
• possível perceber como a compreensão da passagem e atualização dos dons e sua
negação constituem o que denomina de “Ciência dos Encantados”. A afirmação e
539
negação da “Ciência dos Encantados” dependia do cenário da pesquisa de campo.
• Os saberes presentes nas práticas de cura de Mãe Ana brotam como resultado de
contatos com “experientes” adquiridos em inúmeros locais por onde percorreu.
Investimos na interpretação de convergências de desdobramentos etnográficos,
quando lidos sem as generalizações que nomeiam as temáticas, possuem mais um
diálogo crítico do que uma oposição terminológica e dogmática.
2 Palavras-chave: Ciência dos Encantados. Etnografia. Amazônia

Introdução
0
Nascida no dia 13 de Agosto de 1913 no Rio Grande do Norte, Mãe
Ana é Filha de Luís, um tocador de Hamônica (sanfona) que também mucrevava
1 (marreteiro) frutas, rapadura, cana-de-açúcar com oito jumentos pelo interior
do Rio Grande do Norte, com Madalena, mãe da narradora, e responsável pela
8 “banca” de venda. A família foi abandonada pelo pai no dia de natal de 1919,
quando tinha 06 anos de idade. Deste período até 1923 a família passou inúmeras
privações econômicas e, não raro, foram os momentos de fome e abandono. Graças
a um padrinho chamado de Raimundo Ferreira, prático de embarcação no Porto
de Belém, e com os benefícios do Major Magalhães Barata, foram viver no Pará.
Alguns anos após a chegada ao Pará, a mãe adoeceu gravemente, tendo falecido em
1929, a partir daí sua vida seria conduzida pelas irmãs mais velhas. Esse período
parece ter sido indicado como de maior sofrimento:
Ora, quando minha mãe morreu faz muito tempo, né? Já faz umas duas
Era, que eu que tô com mais de cem, na época era bem uma criança quase
né? (...) Aí fui sofrer seu menino, apanhar nesse mundo dos outro que nem
cachorro sem dono. É triste coisa meu irmão, é triste coisa um filho no mun-
do sem pai nem mãe, só na garra dos outro – era na base da lei dos escravo
quase – as minhas irmãs eram só por parte de mãe, quando me pegavam pra
bater se não tivesse ninguém pra acudir me deixavam mole mesmo, quase
morta no chão. A minha irmã Salvina era a mais rigorosa, nunca teve filho
(...) nas irmãzinha ela descontava (risos). É uma coisa que até hoje choro de
desgosto. Mãe Ana, 101 anos. Depoimento citado.
J
A intensidade dos castigos físicos é descrita entrelaçado a três aspectos:
consequência da ausência materna; da violência de uma das irmãs e, principalmente,
A das referências à “Eras da escravidão”. Esse período elencado e presente na história
da narradora tinha sido indicado a mim por moradores locais, pois, ao descreverem
L Mãe Ana, associavam-na como alguém “vivido na época dos escravos”; de fato,
memórias desse período vêm à tona ora como experiência passada, ora mediante
L ensinamentos repassados por sua avó materna na infância. Esta, segundo ela,
guardava marcas de ferro nas costas e perna quando trabalhava tirando malva e
no algodoal na época do “Rei D. Pedro”.
A
Enquanto trabalhava e vivia com a irmã tinha sido negado qualquer
possibilidade de entretenimento ou outra atividade qualquer, sob pena de
espancamentos “quase sem fim”, da mesma forma com que sofria ao ouvir as
músicas dos arraiais e festas da localidade enquanto ela precisava “varar noite
costurando roupas para os filhos dos barão”. Se o casamento veio aos 18 anos, e

com ele a esperança de viver e trabalhar para si, distante das pressões de alguns
540 familiares soava como um ideal, na prática, mesmo tendo vivido bem com o marido,
• este a mergulhara em andanças, indo de localidades da região bragantina até
paisagens do nordeste brasileiro.
Eu só me saí dela depois que casei com um cearense do Ceará-Mirim, o
nome dele era por José Rodrigues de Souza, nisso tinha uns 18 anos, nós
tinha nossa casa, nosso cavalo, roçado, criação de pavão, galinha e tudo,
mas de repente endoidou para ir pras Minas de Maracaúna e nós fomo, eu
2 com uma menina de oito meses no braço, nós deixamo tudo pra trás! Foi
oito dia a pé de Carapatinho até Maracaúna. A vida da gente é um romance,
0 né? O que eu conto não cabe nem se pôr num livro, não dá nem metade,
eu já andei muito pelas Mina do Macaco, Mina do Grajaú, pelos Altos da
Mina das Pedra no Cachoeira, se eu lhe contar você não vai acreditar (...)
1 é uma coisa muito interessante, muito interessante mesmo, lá nessa Mina
(Cachoeira) tem umas pedra de mármore que parece uma porta assim bem
8 grande mesmo, sabe? Essa pedra tem época que amanhecia aberta, tempo
que ficava fechada e tempo que ficava pela metade, sabe? Diziam que era a
pedra encantada por onde Jesus passou, só pode ser, né? Lá tinha aqueles
que sabiam que era sinal dos príncipe e princesa, tinha uns que só de olhar
sabiam se ia chover ou fazer verão noutro dia, saber os encante é difícil, isso
é uma ciência muito grande, né? Sabe? Mãe Ana, 101 anos. Depoimento
citado.

Mãe Ana narrava com uma velocidade surpreendente, denunciando


qualquer pretensão descritiva em contrapartida da intensidade da experiência da
narradora, havia na força-fluxo do tear mnemônico a possibilidade de, a partir de
qualquer local ou informação dada, ser desdobrada em outros planos do passado,
qualquer linearidade narrativa preterida por mim, poderia desaguar, por exemplo,
nos tipos de pavão e galinhas que passou a criar na Mina do Macaco, ou ainda
na qualidade dos fumos cortados na Mina do Grajaú, das pedras, pesos, valores e
relações comerciais desse lugar.
Essa memória talhada em minúcias admiráveis era acionada num sistema
bem particular que chamo de “máquina de captura”, pois ao narrar, Mãe Ana dava
J a impressão de estar em frente a um balcão de loja ou prateleira escolhendo o
que e como lembrar... Aliás! Parecia também estar em frente a um computador
A olhando em tela qual arquivo deveria abrir e deslocar diante de si, abrindo janelas
e capturando imagens, formando blocos para montagem de sentidos outros: toda
L cosmologia é uma edição.
Diante dessa potente e veloz memória, e percebendo a fugacidade e
limitação de nossos encontros é justificável a ideia de que a metade de sua vida não
L
caberia num livro, daí a tese de que sua “vida é um romance”. Impressionada ainda
hoje pelas imensas pedras de mármore das Minas de Pedra de Cachoeira, passa a
A descrevê-las como portas que se moviam de acordo com dias e horários específicos,
sendo esses movimentos fundamentais para que os moradores percebessem
mudanças climáticas, cheias de rios ou qualquer mudança significativa. Essas
pedras de mármore são os locais de comunicação estabelecidos por Príncipes
e Princesas da encantaria local, portais de acesso e interação onde encantados
• transmitiam saberes àqueles capazes de ler mudanças “naturais” e “sociais” em
541 marcas, rugosidades, rachaduras e manchas nas pedras.
• A Ciência produzida pelos encantados do fundo – refiro-me à sua
habitação no interior da cachoeira – e decifrada por seus “cavalos” ou portadores
do “dom” é um tema enfatizado pela narradora em tom de admiração algumas
vezes, em outras, sendo algo a ser evitado. A afirmação e negação da “Ciência dos
Encantados” dependia do cenário etnográfico; quando falávamos de cura e proteção
2 as entidades eram apresentadas como “benditas”, quando a conversa enveredava
pelas “salas de pajés” o tom negativo e demonizador emergia.

Os saberes presentes nas práticas de cura de Mãe Ana brotam como re-
0
sultado de experiência com “experientes” adquiridos em inúmeros locais por onde

percorreu, até a morte do marido, quando, mesmo apenas com os filhos, continuou
1
por outras andanças:

8 Passei quatro anos no mundo sem saber o que comer, Bragança, Maranhão,
Taciateua, Tentuga, Cabeça de Porco, Açaiteua, Ticiateua, Quatipuru, Mu-
raí, Turiaçu, Maracaúna, do Rio Grande do Norte ao Pará sei tudo, lá eu
conheço Guica, Lapó, Ponte do Igapó – lá onde passa o trem de ferro e ma-
deira, lá passa um rio sem fim, obra dos flamengos, lá do começo do mundo
– Natal. Afinal o mundo todo. Fui deixada em Maracaúna pra sofrer lá, na
casa de uns conhecidos dele, uns cearenses lá. Por que ele não me trouxe
pra Bragança pelo menos, né? Quando chegou aí ele pegou gripe, era um
tempo de gripe forte no Brasil, mas nesse tempo caiu na besteira da tomar
injeção, você sabe que quem tá com gripe não pode tomar injeção porque se
não cai em desgraça mesmo, esse não levanta mais, dificilmente melhora, é
muito difícil quando tá encatarrado, aí ele piorou e morreu. Mãe Ana, 101
anos. Depoimento citado.

Tempos de epidemias, medos e reações negativas às práticas de cura


da chamada “medicina oficial” são evocados para lembrar as causas da morte do
marido na cidade de Capanema, bem como a situação econômica que flagelava a
população menos favorecida em tempos de epidemia – a narradora constrói o que
chama de “época de epidemia” entre 1932 e 1943 – onde a elevação do preço dos
J alimentos complementava-se com a ausência de “serviço no campo”.
Mãe Ana queixa-se, sobretudo, do fato de seu ex-marido não ter buscado
A ajuda de pessoas “experientes”, pois se refere à cidade de Bragança como um dos
locais onde as “encantidades” seriam mais fortes. Testemunhou nesse lugar feitos
L surpreendentes de cura e providência efetuada pelas entidades; uma delas seria a
existência de uma Cobra Encantada no rio Caeté, dotada de olhos luminosos nos
L chifres capazes de curar todo tipo de malfazejo através da “lágrima dos olhos”.
Cobras encantadas gigantes, com poder de cura, capazes de transportar
pessoas e transitar por outros rios, além de ser resultado dos tempos onde foi
A moradora em Bragança, também guarda, outros sentidos. Atentemos para
narrativas destacadas no fluxo etnográfico:
Lá em Bragança, ainda naquele tempo, tinha uma cobra com chifre naquele
rio de Bragança – Caeté – o povo via o chifre e na ponta do chifre brilha um
olho na ponta, é o olho dela, da Cobra Encantada, também aparecia no rio
• da Sapucaia, às vezes parecia uma balsa. Será que é? Pra onde vai? É feita
542 do que, hein? (...) Dizem que na época dos escravos teve uma revolta deles
muito forte, eles (escravos) se embrenharam na mata. Olhe, os fazendeiros
• reuniram uma ruma de homem que pegaram esses pobre desses escravos e
saíram lapiando com terçado nos braço, costa, perna, cabeça, e eles iam se
arrastando pro mato, e eles (fazendeiros) só pipinando eles (escravos), era
um choro tão medonho que até hoje ainda escutam esses aí na mata de lá.
Mas aqueles que iam escapando com o corpo escalpelado foram se virando
cobra, e daí até hoje essas cobra virada de escravo vivem perto das fazendas
2 e pelo mundo afora. Mãe Ana, 101 anos. Depoimento citado.

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A Fig. 01. “A Vida é um Romance”: Mãe Ana. Foto de Jerônimo Silva

Se tivesse o intento de interpretar memórias de resistências negras em
tempos de escravidão nessa região, salutar seria buscar fontes de jornais, notícias em
chefaturas de polícia ou em documentos escritos diversos com o objetivo de adensar
• compreensões desse contexto histórico específico. Vale lembrar que a maioria dos
543 historiadores que discute escravidão e resistência africana na Amazônia sabe do
incômodo causado pela visão que se construiu na historiografia brasileira acerca
• do lugar inexpressivo do negro na constituição da região (NUNES PEREIRA 1954;
SALLES 2004, 2005; GOMES 2005; BEZERRA NETO 2009; CHAMBOULEYRON
2006).
Apesar da importância da pesquisa documental escrita, como apreender
experiências, semelhantes às citadas acima por Mãe Ana, para além dos rastros
2 documentais do colonizador e mesmo do poder público instituído de tempos
“históricos” ulteriores? Não se trataria de perceber nas memórias e/ou cosmologias
0 de matrizes de origem africana – ou outra qualquer – como tão somente “fonte de
usos” para a ciência histórica (HARTOG 2014), nem de um estudo de “afetos” e
1 “sensibilidade”, tal como se apreende no interessante e criativo esforço de diversos
pesquisadores dos estudos de “História e Sensibilidade” (FLECK 2006; REZENDE
8 2006; ANSART 2004), e sim de fazer – e “fazer” não quer dizer instituir – outras
percepções nascidas a partir da lógica dessas cosmologias?
Ou ainda, não seria enriquecedor compreender como as experiências de
luta e violência sofridas no passado, apesar de serem também formas de “releitura”,
ou, se se queira, “atualização” de memórias, pensar, por exemplo, ao invés de uma
história dos gritos e urros de dor que emanam da floresta, uma história feita, já e
sendo ela própria um grito! – com toda implicação cosmológica que isso apresenta
(TAUSSIG 2003; 2010) – nem tão pouco de uma história das representações da
cobra, e sim de fazer a história produzida na academia viver encantada no corpo
da cobra – “cobra-escravo”, “cobra-caboclo”, “cobra-rei-príncipe-princesa”, “cobra-
deus”, “cobra-cientista” – mesmo que após algum tempo “desencante”, porém, sem
perder o encanto?
Os elementos indicados acima não tratam de um apelo ao saber científico
ou à historiografia qualquer. Não almeja, em hipótese alguma, reformular proposição
ou aproximar intuições de antropólogos, historiadores, geógrafos, literatos e
pesquisadores das ciências humanas em geral. Talvez se trate de como e de quais
premissas partir quando buscamos simetrizar a ciência dos encantados, no caso
J desta escrita, com os marcadores cosmológicos da academia ocidental. Vejamos
melhor.
A A Ciência dos Encantados
Caboclos, exus, príncipes, princesas e encantados diversos continuam
L acumulando experiências no fundo, na mata e no vento, que seja, no mundo. Não se
trata de uma realidade explicada nos quadros do contexto histórico ou social, estão
L nos corpos de cobra, em pedras, nos seus “cavalos”, nas atividades de cura, parto,
rezas, aconselhamentos e ainda resistindo, castigando e vivendo intensamente.
Muitos negros que se esgueiravam, mutilados, banhando de sangue os capins das
A
fazendas de Bragança entre o final do século XIX e início do século XX, viraram ou
se encantaram em cobras, não para fugir ou protegerem-se, mas para continuar...
Continuar em ação: para designar a transformação e permutação entre
humanos, minerais, vegetais, objetos e existentes diversos, pajés e mães de santo
• com que conversei utilizaram o termo “virar” e “desvirar” sempre em movimento e
na infinidade da “viração”; “vir-a-ação”. Dessa forma, não é ser transformado ou
544
atingido por alguma força ou “feitiço”, não denota passividade e sim produção,
• autoprodução de “causa-efeito”, na verdade, “hiato”. Essas experiências não podem
ser colocadas no passado graças ao desejo de “enquadramento” do pesquisador
(CERTEAU 2013), a questão do quando nesse instante é irrelevante, o ponto
nevrálgico é a permanência da intensidade. Na cosmologia descrita pela narradora,
eles, os escravos, mesmo transformando-se, permanecem construindo alteridades
2 e saberes1. Os deslocamentos entre vilas e cidades e formas diversificadas de
aprendizado compõem traços significativos de como se tornou uma “rezadeira
0 protetora”:
E aí? Eu fiquei sem saber de nada sem eira nem beira, que nem bicho bruto
trabalhando, carregando cascalho na parriola, puxando pedra, arrancan-
1 do raiz pra comer um bocado. Fiquei no Piriá, lá arrumei uma família, me
consideraram como uma filha, cuidei da mulher doente, passava remédio e
8
1  A título de exemplificação, vários fazendeiros, trabalhadores rurais e caçadores dessa região
alimentam considerável temor em relação à ação de cobras. Amadurecendo certos aspectos
aventados na Dissertação de Mestrado (SILVA 2011), pude investigar a cosmologia das rezadeiras
da região sobre o dito “Encantado de Cobra”. Nessas andanças, alguns tipos de cobras requeriam
“rezas especiais”, rezadeiras “boas em sugar e cuspir peçonha”, bem como rezas particulares em
áreas de criação bovina. Entretanto, algumas rezadeiras recusavam-se a rezar em propriedades
onde fazendeiros matavam as cobras para retirar o couro. Havia certo divagar, até o momento,
impreciso, sobre a impossibilidade de rezar em entidade que não tinha corpo específico, relacionava-
se com a possibilidade do encantado de cobra assumir sigilosamente corpos de cães, aves, insetos e
morcegos. Os dados da pesquisa pretendem ampliar possibilidades interpretativas, e não articular
essa percepção com as memórias de Mãe Ana.
era tratada como uma irmã, depois fui pra Piciateua e fui morar com uma
dona muito trabalhadeira, ela rezava era muito, era a finada Raimunda Mo-
raes. Ás vezes me dava roupa, chita, saco de sal pra fazer coberta, pano de
vestido, roupa de saco de trigo! Dava de presente manta pras minhas amiga
tudo, sabe? Ás vezes quando vinham eu dava pros outro era muito. Pano e
reza dá até pra proteger, né? Ah meu filho! Eu não conto um quarto da mi-
nha vida! (sobre o dom de rezar) Isso é o sinal da capacidade da nascência,
(pois) vira uma categoria de pessoa de Deus, virando o corpo fechado com
J uma proteção permanenciosa. Porque a gente por dentro é como um pé de
Mandioca, por assim, né? As coisas vão ficando por dentro rodando tudo.
Olhe, eu sou uma velha que vejo tudo (...) Mãe Ana, 101 anos. Depoimento
A citado.

Sempre ao direcionar a narradora para falar sobre o aprendizado de
L
rezas e cura, a memória intensificava a quantidade de informações sobre os tipos
de trabalho realizado no campo e no ambiente doméstico, principalmente aquele
L associado à costura voltada para confecção de roupas e mantas. Ao enveredar
pelas lembranças da iniciação com as “encantidades” fez com que de imediato se
A erguesse da cadeira e encostasse lentamente numa antiga máquina de costura
coberta com lençol branco, imagens de santos e algumas velas para, discretamente,
remover uma cabeça de alho do altar para o bolso. Muitas das percepções descritas
nessa parte são resultados da observação atenta de Deni, minha esposa, talvez isso
tenha possibilitado o estreitamento de uma relação mais próxima com Mãe Ana.
• Suas rezas são consideradas como “dom” que torna a pessoa próxima
545 de Deus, a proteção “permanenciosa” é “especialidade” desse atributo, ainda que
entendida originariamente por serem adquiridas desde o nascimento, muitas rezas

aprendeu observando a atividade da rezadeira Raimunda Moraes. Embora este fato
não possa ser generalizado, percebi que o aprendizado das rezas estava associado à
realização de costuras, a habilidade em manusear agulhas, linhas, “fazer pontos”,
“desfazer nó”, fiar e desfiar tecidos, compor mantas, fraldas, lençóis a partir de
tecidos diversos e retalhos deixados por terceiros, foram adquiridos, e, no caso de
2 Mãe Ana, entremeada na composição das rezas.

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Fig. 02. Devir-cobra em tempos de escravidão. Material de campo.

Diversas expressões e termos tidos como específicos das práticas de


costureiras são transfigurados para designar doenças, problemas, estrutura
e composição do ato de rezar. Muitos requerentes, principalmente crianças e
2 mulheres enfermas recebiam de Mãe Ana, após rezas e tratamentos específicos,
mantas, cobertas e fraldas que tinham a capacidade de proteger, sarar e atender
0 as demandas. Rezar é Costurar. O aperfeiçoamento e intensidade das habilidades
vieram com a aquisição de uma máquina de costura, donde a produção de proteção
1 ou produção de produção de rezas voltava-se, num plano de imanência, para a
capacidade de unir, separar e recompor tecidos esparsos. A aquisição da máquina,
dinamiza coextensivamente a multiplicação das rezas. Máquina de Rezar.
8

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A Fig. 03. Máquina de Rezar – Máquina de Proteção. Material de campo.

A proteção – reza/roupa – permanente é necessária para cobrir o corpo,
este não é dotado de “fechamento natural”, aliás, na compreensão da narradora
todo corpo é aberto “como um pé de Mandioca”, isto é, dotado da capacidade de
• absorção, tendo na sua composição forte sensibilidade aos elementos minerais do
547 local de onde fora cultivado, portanto, sendo visível neste todo o “atravessamento”
do solo como uma abertura no mundo. Aqui não se trata, se minhas leituras das

notas de campo estiverem corretas, de uma oposição entre “interior” e “exterior”,
mas sim de uma composição rizomática, não do “nosso” corpo, mas do mundo.
Passei a interpretar as experiências desse modo ao perceber que animais, roupas e
árvores tinham o mesmo tratamento em algumas rezas.

2 O Mundo é um Pé de Mandioca
Comecei a rezar desde criança, sabe? As primeira oração que fiz foi em ani-
mal de criação, rezei em porco, pavão, vaca. Minha avó dizia pra mim ir nos
0 pé de planta fazer promessa, e eu ia falava as promessa debaixo pros abaca-
teiro, bananeira, goiabeira e dizia assim: “se você botar minha cria boa, dou
1 viva à Nossa Senhora, mando um maço de flor pra você, jogo nos pé (plan-
tas) toucinho abrasado”. E as coisas iam na minha cabeça e eu prometia
pros laranjal, rosal e bloquel de rosa pra deixar também na beira do rio. E
8 num é que as conversa com as planta davam certo?! Daí era quando sumia
ou caia doente algum bicho, essa categoria era comigo. Mas eu agradecia e
deixava manga, caju, farinha num cestão na beira do rio, quando dava fé,
tinha ido se embora, os encante do mar e as curupira levavam (...) mas as
planta e os bicho também são agradecido, né?! Eu já nasci pra rezar e gosto
de conversar, mas digo que a pessoa que reza deve ter “compreensão”, né?
Tem que ter saúde boa pra aguentar o que entra e sai do “quengo”, né? Mãe
Ana, 101 anos. Depoimento citado.

Rezar para recuperação de animais doentes ou perdidos, conversar com


as plantas para que deem frutos, oferecer laranjas para bananeiras, bananas para
roseiras, rosas para os encantes dos rios e matas, fazer promessas a santos através
de árvores e agraciar plantas com pedaços de toucinho assado transparecem como
ensinamentos repassados pela sua avó, uma pessoa que, além de ter convivido entre
1913 e 1918, portanto na tenra infância, era considerada como “uma das primeira
mulher a ter escapado da lei da escravidão”. Para Mãe Ana os ensinamentos de sua
avó foram obtidos diretamente dos encantados da água salgada, “do fundo mesmo”,
assim eram tidos como “fortes”. Dentre exorcistas, pajés, mães de santo, rezadeiras
J ou mestres em geral da encantaria na região, Mãe Ana foi a única pessoa que não
apenas rezava, mas fazia questão de conversar e visibilizar a relação com animais
e plantas, externalizando suas demandas e gratidões.
A
Se, como visto anteriormente, todo corpo é aberto – não digo passível
L de influências – mas notadamente feito mediante o fluxo de afetos e/ou forças,
a proteção ou fechamento do corpo nas rezas significa mais uma cobertura

contra coisas especificamente indesejáveis do que a montagem do corpo como um
L invólucro, propriamente dito. Sinalizo a possibilidade de que, nesse sentido, o corpo
de plantas, árvores e animais também são abertos – sendo passíveis de serem
A fechados. Ao observar a capacidade de goiabeiras, por exemplo, de curar novilhos
e pavões doentes se colocados sob a sua raiz, ou de bananeiras conduzirem porcos
perdidos na mata de volta ao criador, igualmente, o que dizer de cajueiros que se
alimentam de farinha de mandioca, goiabeiras que se deliciam com toucinho de
porco assado ou de roseiras que recebem como agradecimento cesta de bananas?
• Desse modo, a vulnerabilidade de plantas e demais animais ante as
548 vicissitudes do clima, virtuais desorientações, doenças e morte faz com que a proteção
e busca de rezas seja uma demanda extensiva de todos os seres. Há, portanto, nesses

elementos, não apenas relações entre animais não humanos e vegetais com animais
humanos, mas parte conectada de um conjunto de participações articuladas aos
conjuntos afetivos dos existentes em geral, intercambiando interesses, petições,
proteções e conflitos. O Mundo é um Pé de Mandioca! Obviamente isso não
resulta na composição de um “Todo” indiferenciado, e sim na totalidade mediante
2 diferenças. Mãe Ana não deixa de impressionar ao ver uma “cobra oceânica” entrar
na sessão de um pajé e ser chamada de princesa pelos participantes de um ritual
0 testemunhado há alguns anos, assim a corporalidade não deixa de ser um marcador
significativo dos existentes. Sem dúvida, a ideia objetiva e/ou literal de uma árvore
1 se alimentando de fruta, carne ou recebendo rosas é opaca em si, se não se permitir
engendrar, ou engerar outras intencionalidades, parafraseando invejosamente o
8 termo de Wawzyniak (2008). Seria, pois, interessante intuir, se um corpo é dotado
de abertura – entrar/sair –, qual a representatividade e a importância da noção de
“alimento” elaborada na narrativa?
De repente um pajé faz uma sessão e eu não vou não, mas sabe porque eu
não gosto de ir? Porque eu vejo (...) Tinha uns doente, mas meu irmão não
sei não, era muito feio, uns cabeção, uns de só um olho, outros cheio de
bicho, não, eu prefiro não porque esses espírito que baixa nesses pajé não
é forma de cristão não meu filho! Umas cobra de tudo quanto é tamanho
que desce pra terra, foi botou a cabeça na janela, uma cabeça que é uma
monstra, botou a cabeça e começou a cantar (...) era uma Boiúna! Lá do
meio do oceano e atravessou o mar sem canoa, se existe um bicho grande
do oceano era ela, ô monstra de cobra. Umas altura o rabo dela lá pra rua,
e tinha umas escama que batia no chão. Ela tomou a porta todinha. Depois
foram defumando, defumando e ela se foi; olhe, quando ela largou a mulher
que tava de branco essa caiu e parecia morta, foi, foi pegando ar e voltou
pra si. Depois essa perguntou o que a princesa – veja, bem, Princesa!? - ti-
nha ensinado, se era algum remédio. Olhei pra ela, quis dizer, princesa ou
serpente? Meu Filho vou lhe dizer em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo!
Essa é a pior sorte que tem pra uma pessoa, uma pessoa pra receber essa
J encantidade tem de ser forte, ter uma força muito grande, porque alguma
coisa ruim vem no meio, né? Pra matar a pessoa não custa nadinha. Isso
tem um perigo das ruindade dos outros, né? Mãe Ana. Depoimento citado.
A

L

L

A


549

2

0
Fig. 04. “O Mundo é um Pé de Mandioca”. Material de campo

1 Apesar do comentário aparentemente negativo a respeito das entidades


que baixam em pajés e pessoas “abertas”, especialmente quando se refere a “forma”
8 corpórea, entendida com aspecto “pavoroso” e distante das imagens correntes no
interior do cristianismo, expressa aversão a esses locais, a narradora não nega a
capacidade de ver, ouvir e conversar com os encantados, pois reconhece a eficácia
dos “remédios” concebidos nos laboratórios – entenda-se, local de produção de
afetos, associação – do fundo, comunicado diretamente pela realeza marítima do
fundo oceânico. Não se identificar com a prática de pajés, sessões de tambor e a
incorporação dos bichos do fundo e das águas não impediu Mãe Ana de ser iniciada
nas linhas, ou como gostava de dizer, nas “contas” com as entidades. A possibilidade
de ver e ser vista potencializa a influência das entidades, intensificando, às vezes,
incorporações aos sobressaltos.
Rezadores e curadores, em outras ocasiões ou viradas etnográficas, haviam
me aconselhado a ignorar “vultos” e “vozes” da mata, pois caso levasse a sério,
elas “iam se ajuntar para falar comigo”, reconhecer ou levar a sério a alteridade,
muitas vezes mobilizam forças de atração sob os mesmos, assim, a questão não se
trata da existência e eficácia das alteridades do fundo, e sim pelo reconhecimento,
encontro ou conexão de olhar, serem “visto de entrada” de encantados no mundo
das pessoas e vice-versa.
J A bem de uma reflexão que não cabe nesse momento, por seu
aspecto generalista, evangélicos, espíritas e católicos que frequentam – às vezes
A sorrateiramente – esses locais, ou que no passado foram praticantes, sustentam
que uma “pequena brecha” dada aos encantados é o suficiente para que passem
L a acompanhá-los, isto é, passem a “sofrer” suas influências, serem afetados. Em
outro contexto – o das etnografias ameríndias amazônicas envolvendo canibalismo

e predação –, mas sem as mesmas implicações, o medo, com toda carga de sedução,
L é um apelo condicional do Outro, pois “se o humano aceitar o diálogo ou o convite,
se responder à interpelação, estará perdido: será inevitavelmente subjugado pela
A subjetividade não humana e passará para o lado dela, transformando-se num ser
da mesma espécie que o locutor.” (VIVEIROS DE CASTRO 2011).
Assim, a “brecha” mencionada pelos interlocutores não seria justamente a
aceitação deste enquanto alteridade? O que significa ignorar o olhar e o fingir-se de
surdo? Fazer com que eles (encantados) pensem que não são vistos ou ouvidos não
• seria, também, uma forma de, ao evitar ser reconhecido, fugir à captura cósmica?
550 Mãe Ana faz coro com iniciados de outras localidades a respeito das estratégias de
reconhecimento. Digo “estratégia”, pois, na situação em tela, a alteridade negada

é requerida desesperadamente quando se trata de obter benefícios, o eis-me aqui
torna-se uma condição para o sentido daquele que detêm o “dom”. Digo mais! Ás
vezes quem finge não olhar, ouvir e mesmo a abandonar definitivamente – sem
fingimento – são eles, os encantados! Vamos fingir olhar melhor.

2 O grande problema da relação com os encantados para a narradora


seria, de um lado, justamente a incapacidade de controlar e prever a quantidade
e qualidade (bondade/ruindade) das forças que atravessavam e vinham em seu
0 coletivo. De outro, a pessoa seria alvo instantâneo do olhar e interesse de pessoas
interessadas em roubar-lhe as “contas”. Na relação entre humanos e encantados a
1 tensão de forças em busca de apropriações e direcionamentos não sinaliza, apesar
de assim o parecer, uma oposição dicotômica entre bem e mal, e sim indica que
8 (para exemplificar) se a “ruindade” enfraquece e mata alguém, ela se comporta
assim por estar associada a um conjunto de “contas” que não se “encaixam” ou
fazem “pareia” (relação pareada, igualitária) com os arranjos entre os corpos. O
sofrimento físico é o efeito desses arranjos. Curar e proteger também são formas de
suprimir/destituir forças outras que denominamos de “doença”.
Talvez isso explique a noção de “tirar” a doença, deveras presente entre
os narradores, a “cura” não é vista sob o ângulo de adoecimento da doença/morte
da doença. Esta pode ir e voltar. Os mesmos afetos, forças e/ou intencionalidades
responsáveis pela “doença” em um corpo, podem, em outros arranjos, estabelecer
a “saúde” (FÊLIX 2009; MOTA 2007; OLIVEIRA 1983; RABELO, ALVES & SOUZA
1999; DOUGLAS 1976; PEIRANO 1975; WAWZYNIAK 2008). Obviamente a questão
da intencionalidade do encantado ou da pessoa voltada para atingir outrem
“negativamente” não pode ser descartada, mas proponho que vê-las, neste caso, no
pólo “feitiço” e “contrafeitiço” faz perder a valorização da “força” de quem está nessa
relação, como lembra Mãe Ana: “Tem que ter uma força muito grande”.
Assim, a força do “médium” e a capacidade de proteger a si e aos outros
é que vai determinar a presença e durabilidade das “contas” de seus respectivos
J guias. Nesse mundo da indeterminação e imprevisibilidade, o preparo e a atenção
com quem se conversa e se toca, bem como os tipos de alimentos a serem ingeridos
A são porta de entrada e saída de inúmeras entidades. Além das informações dadas
pela rezadeira, outras pessoas mencionavam, grosso modo, a presença de pajés e
L rezadeiras em Bragança, Quatipuru e Primavera detentores de resolver problemas
tidos por mais sérios. A relação sugerida entre “feitiço” e “contrafeitiço” exige o

deslocamento, aconselhamento e ajuda de outros experientes, mas o caso a ser
L descrito a seguir envolve de forma bem exemplar a seriedade da alimentação.
Tinha um cunhado que recebia as encantidade, fazia um passe, recebia,
A cantava uns cântico bonito e ajudava muito os outros, lá um dia fizeram
uma ruindade pra ele, botaram bicho no tacacá e ele quase morre, tiveram
de soprar nos ouvido – era um pajé de Quatipuru –, mas ele ficou assim até
o fim, tossindo sem parar. Disseram que essa “manda” havia vindo de outro
pajé, da casa desse homem. Quando aparece gente aqui atrás de reza o pes-
soal de casa me diz: “Mãe Ana, tome cuidado, porque às vezes a gente não
• sabe, as vezes tem gente que vem e deixa ruindade, manda coisa de volta na
551 encomenda!”. O pessoal me diz que essa dor que sinto nas pernas foi envio
dos outros, tem noite que eu sinto uma coisa que morde, passa e anda pela
• perna toda, parece que tá vivinha, é uma peleja. Eu comparo com um oco de
pau cheio de tapuru, com uns pau com lagartão dentro, uma coisa assim.
Uma mulher me disse que foi uma coisa feita por uma pessoa que comia e
bebia no mesmo prato que eu, ela disse que ela deixou um “beijo” pra mim
quando eu dei de costa na porta. Perguntou: “tu quer ver esse beijo?”. Olhe,
quando me mostrou, era um tapuru branco assim (tamanho do dedo indi-
2 cador). Mãe Ana. Depoimento citado.

O “bicho” colocado no tacacá de seu cunhado, interrompendo as sessões,
0
defumações e cânticos, enfraqueceu-lhe as “contas”, afastou os guias e vulnerabilizou
o corpo. As “contas” são indicadas como minúsculas pedras colocadas pelos
1 encantados no braço, “quase no mesmo lugar de tomar injeção”, nelas estão às
especificidades do “dom” do “experiente”, não obstante serem passíveis de retirada,
8 o espaço outrora ocupado precisa continuar preenchido, sob pena de causar a
morte do portador. Qualquer movimento de passagem de “contas” pressupõe
permutas ou “trocas”, não há espaço para movimentos unilaterais, assim, os casos
observados são caracterizados pela colocação de “bichos”, “feitiços”, “manda”
causando o “embaralhamento” das “contas”.
A “operação” que retirou o “bicho” do ouvido de seu cunhado demorou
meses e foi obra de um pajé centenário conhecidíssimo entre os municípios de
Quatipuru e Primavera, posteriormente a indicação de Mãe Ana levará essa
etnografia do caminho a um encontro com esse pajé. A alimentação esconde em
sua aparência todo tipo de perigo e, por ser ingerida para o interior do organismo,
vem “moendo a pessoa” por dentro. Parece-me que a “manda” ou “feitiço”, apesar
de serem vistos como forças externas, para ter o efeito esperado precisam vir do
“interior” do corpo. Adianto nesse caso a existência de uma cosmologia da Relação,
alheia a qualquer ideia que pressuponha dualidade entre “interior/exterior”. Os
existentes guardam em seus corpos várias formas de alimentação (MOTTA-MAUÉS
1993).
Parte significativa das informações dadas a respeito das formas de
J aprendizado junto às “encantidades” foram comunicadas por Mãe Ana no quintal
de sua residência. Caminhamos num imenso quintal ausente de cerca – o
A “fundo” do quintal praticamente coincide com a margem de um “braço” do oceano
Atlântico que adentra essa vila, esse cenário resultou em área de mangue –, com
L muitas roseiras, flores de todos os tipos, plantas de uso terapêutico e ambiente
inadvertidamente ventilado. Apoiando-se num galho seco, anda lentamente entre

o solo irregular, espanta galinhas, desloca pedras pequenas do lugar, remove
L folhas secas, reclama de galhos quebrados por moleques, frutas colhidas sem
autorização e plantas arrancadas ou “doentes”, enquanto Deni, minha esposa, já
A com intimidade, conversa com Mãe Ana sobre “nomes” e “qualidades” de plantas,
sou momentaneamente ignorado, eclipsado.
Ambas ficam lá, mas há outros seres, igualmente, vozes. Não entendo
de plantas porque não consigo ouvi-las, não obstante elas falarem todo o tempo
com Mãe Ana, que puxa galhos floridos junto ao rosto e cochicha, “como é que tá,
• hein?”, “Ah! Num liga não, esse povo é assim”, a polifonia de terreiro é expansão.
552 Talvez com dó de mim, passados alguns minutos, a narradora me chama, pede
pra cheirar as flores, fala das raízes fracas e fortes, com cordão de nylon ensina a

amarrar os galhos que tocam no chão, de minha parte tento aguçar sensibilidades,
entender – conforme assinalado em páginas anteriores – como se dá o cuidado e a
proteção em um lugar onde galinhas, pedras, árvores e frutas são seres dados na
intencionalidade uns aos outros, estão na iminência, no limite com outro.

2

0

1

8

Fig. 05. A Ciência dos Encantados. Foto de Jerônimo Silva


O quintal não representa coisa alguma, não sustenta simbólica a ser
transposta para a escrita acadêmica. Por assim dizer, trata-se de um plano de
sensibilidades visuais, auditivas, sensitivas, olfativas, enfim dos sentidos que dizem
diretamente sobre quais sensações operar para adquirir aprendizados, conjurar
afetos e intenções. Reconhecer não as vozes de outras ontologias amazônicas, mas
perceber ressonâncias ou afetos, talvez, signifique um passo para que a pesquisa
possa deixar de ser uma etnografia de rezadeiras, pajés e mães de santo, ou ainda,
J etnografia dos encantados, da iniciação e aprendizado, para tornar-se etnografia-
mundo – não do mundo, do todo ou da Interculturalidade –, uma etnografia entre,
entre “pessoas”, entre “animais”, entre “naturezas”, entre “encantados”, não dentro
A
ou fora, longe ou perto, mas, de novo, entre. (INGOLD 2012; LIMA 1996, 2005;
RABINOW 1999; LATOUR 1994).
L
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8

J

A

L LA VIRGEN DE LOS SICARIOS DE FERNANDO VALLEJO Y SU
VISIÓN CRONOTÓPICA DE “MEDALLO” COMO SINÉCDOQUE DEL
L MAL

A Jesús José Diez Canseco Carranza (UNIVERSIDAD CÉSAR VALLEJO)
RESUMEN: La virgen de los sicarios de Fernando Vallejo es una novela cuya
irrupción constituye una continuidad temática con el denominado “ciclo de la
violencia en Colombia”. Dentro de ésta, el Medellín de los años 90 aparece como un
lugar maldito, irredimible y asfixiado por una interminable espiral de violencia. La
• ciudad es construida, así, por el discurso descentrado de Fernando, el narrador-
555 protagonista, quien, junto a sus amantes, la recorre con el fin de restaurar un
ordenamiento casi perdido. Es a través de su deambular antisocial que Fernando
• mapea y liga su espacio-temporalidad y configura un cronotopo mayor: “Medallo”.
Para llevar adelante este análisis, que es nuestro objetivo principal, utilizaremos,
fundamentalmente, la categoría de cronotopo de Mijail Bajtin, De este modo,
delimitaremos los nudos argumentativos donde historicidad y espacialidad se
funden con el fin de dar consistencia estructural y temática al relato.
2 Palabras clave: Medellín. Cronotopo. Ciudad. Violencia.

0 Según Cristian Cisternas Ampuero (2006), la ciudad cobra un rol
fundamental en las narrativas literarias contemporáneas. Sus voces son incorporadas
1 a la enunciación en un juego interdiscursivo y de representaciones que entroniza al
escritor como un individuo ligado a la urbe. Cuando éste escribe sobre determinada

ciudad, obliga a los receptores a rastrear en esa ciudad a otras ciudades (reales
8 o textuales) que la complementan o anteceden. En estos espacios construidos y
asimilados a los textos, son frecuentes tópicos como el viaje de aprendizaje, el
cronotopo de la memoria, el descenso a los infiernos, la ciudad escatológica, etc.
Todo lo cual es tejido en torno a los protagonistas o, mejor dicho, en torno de sus
trayectos fácticos, memoriosos, imaginarios y virtuales. No obstante, tal proceso
suele transformarse en desengaño, iluminación y desafiliación del sujeto, frente al
orden institucionalizado de la ciudad.
Laura Eugenia Tudoras (2004), al analizar la constitución interna de las
ciudades latinoamericanas, manifiesta que resulta de suma importancia hablar del
nivel antropológico. Dentro de ellas, los lugares o fragmentos de lugares no pueden
percibirse como elementos independientes. Son los trayectos antropológicos los
que tornan las formas y materias de lo urbano en significado. De esta manera,
el hombre percibe el espacio urbano, lo interpreta, genera sentido, lo narra y lo
transforma en arte o literatura. Todo esto implica, al mismo tiempo, encrucijadas
de subjetivaciones, percepciones e interpretaciones anteriores. Dicho de otro modo,
el esquema de relaciones entre los seres humanos y el espacio hace que lo urbano
J sea legible y se pueda reconstruir a través de diversas narrativas y ficciones.
Eso remarca que el espacio se tornó subjetivo y exista apenas a través de
A la percepción de los individuos. Fuera del espacio proprio y concreto de la realidad
física, son otros espacios posibles los que se aluden o discursivizan, los personajes,
L muchas veces, deben transitar por diversos escenarios y “saltar” de las cúspides
sociales o simbólicas a los territorios vetados por los discursos oficiales.

Notamos, pues, que la literatura latinoamericana de las últimas décadas
L
centra a la ciudad como el espacio del no-lugar, como un espacio regido por normas
“disonantes”, como las encrucijadas de la desintegración, de la velocidad, de la
A falta de percepción real y donde la gente vive intensamente pero de modo artificial.
Es la percepción de esta materialidad en conflicto, el principal marco de referencia
de estos escritores, sujetos empíricos empujados a vivir en una realidad maniquea
donde las personas están obligadas a convivir con el orden y el desorden, con la
irracionalidad y la fría lógica intelectualista, con los recuerdos de un pasado mejor
• y la creciente inseguridad pública, con los conjuros contra el deterioro material
556 progresivo y el estancamiento económico.
• Una característica común de estas ciudades (correlato, acaso, de las
urbes fácticas situadas en países de economías emergentes) es la ausencia cuasi
generalizada de un espacio urbano planificado. En estos lugares fragmentados,
donde sólo algunos reductos se mantienen fieles a las normativas de una ciudad
(letrada), la institucionalidad reposa en los registros de un ordenamiento de tipo
2 cartesiano. Paradójicamente, todo eso genera urbes inconclusas, sin centros
neurálgicos ni puntos de referencia que propicien entre los seres humanos procesos
de cohesión permanente.
0
A diferencia de las narrativas hegemónicas occidentales, donde la ciudad
se percibe como símbolo y lugar privilegiado del “progreso” y como el escenario más
1 adecuado para la implementación de la democracia, en el contexto latinoamericano,
refiere Giusepe Gatti (2011), la relación que el escritor establece con su espacio
8 urbano niega, generalmente, ese mito civilizador tanto como sus efectos en el nivel
de la integración social y consolidación de – la siempre ajena – noción de progreso.
El escritor, para este crítico, es víctima de un cautiverio existencial. En virtud de
eso, remueve las entrañas del espacio donde vive pues no tiene más opción que
permanecer atrapado en la espiral de la “infamia” de la urbe que lo apresa.
Es en ese espacio, donde los individuos emprenden tareas de adaptación
y de defensa de su interioridad. Frente a esa fragmentación global, la literatura
recrea la susceptibilidad y vulnerabilidad de sujetos enfrentados, de sujetos que
deben asimilar la disolución de los valores impuestos y de los sistemas de cohesión.
Todo esto se observa en el uso de estrategias tales como: descripciones detalladas
de la debilidad del ser, el monólogo interior (a manera de “válvula de escape” de
los egos atormentados), el doble discurso o enmascaramiento del pensamiento
íntimo, etc. En este sentido, los nuevos tópicos literarios diseñan, por lo general,
sujetos frágiles, integrados a espacios urbanos amenazadores y presionados por
tensiones narradas por ellos mismos (como testimonios o confesiones) o por una
voz omnisciente, cómplice de sus angustias.
Pero,¿qué es el cronotopo? ¿En qué consiste esta categoría tomada de la
J teoría de la relatividad de Albert Einstein y llevada al terreno de la literatura? Mijail
Bajtin en su tratado Las formas del tiempo y del cronotopo en el romance. Ensayos
A de poética histórica, dice que:
…la conexión esencial de relaciones temporales y espaciales asimiladas ar-
tísticamente en la literatura... expresa el carácter indisoluble del espacio
L y el tiempo (el tiempo como la cuarta dimensión del espacio). Entendemos
el cronotopo como una categoría de la forma y del contenido en la obra.
L (BAKHTIN, 1989, p. 237).
Con este razonamiento, el lingüista ruso propone la existencia de un
A proceso mediador que transporta el espacio-tiempo social a la obra de arte, aunque
no de forma mecánica. De esto se deduce que la forma del tiempo y del espacio en la
obra tiene un primer anclaje histórico y social. Tal unión de elementos temporales-
espaciales conforma un núcleo inteligible y concreto. Esto nos recuerda que el
espacio y el tiempo no existen aisladamente. No tenemos espacio sin tiempo, ni
• tampoco tiempo sin espacio. Desde un punto de vista artístico-literario el tiempo
557 se condensa, comprime y se torna visible. Igualmente, el espacio se intensifica y
penetra en los movimientos (mediante “saltos” o evoluciones) del tiempo narrado,

de los argumentos y de la propia diégesis.
La importancia semántica y formal del cronotopo es indudable. Este
constituye el centro organizador de los hechos novelescos. En él se ligan y desligan
los nudos argumentales y, aunque sea de difícil percepción, tiene una función
metodológica doble: pone en evidencia el interior y el exterior de los textos y sirve,
2
a la vez, para discutir los alcances de un conocimiento extraliterario o contextual.

Leyendo los distintos capítulos del ensayo de Bajtin, se aprecia que la
0 dinámica de los personajes es lo que organiza el espacio y el tiempo en el discurso
novelesco. Son ellos, como simulacros del hombre, quienes conectan ambas
1 dimensiones. Y, de forma inversa, el cronotopo, como categoría de la forma (espacio)
y del contenido (tiempo), es quien determina la imagen del hombre en la literatura.
8 Ello nos dice que la imagen literaria del hombre es eminentemente cronotópica. En
consecuencia, el tiempo se organiza en fragmentos (episodios, aventuras) ligados a
un determinado espacio. Esto hace que los cronotopos se lean a manera de nudos
a ser desenrollados. Por eso, constituyen el centro organizador de las narrativas
literarias en prosa.
A través de su relato, Fernando, el narrador-protagonista de La virgen
de los sicarios analiza y muestra distintas facetas de la realidad colombiana de
los años 90. Él conoce los espacios donde se desenvuelven las acciones, conoce, a
pesar de su ausencia prolongada, la psicología del pueblo y la del sicario juvenil.
Por eso pronuncia: “Yo sé más de Medellín que Balzac de París, y no lo invento:
me estoy muriendo con él” (VALLEJO, 2006, p.42). Al ser incapaz de asimilar los
desajustes imperantes, Fernando se vuelve parte de ellos. Su testimonio, más que
una ficción, constituye una historia cotidiana; una narrativa desarrollada por la
influencia del registro etnográfico.
En realidad, lo que la voz narradora hace, escrear un mundo apocalíptico
con la intención de mostrar lo que ocurre y puede ocurrir. De este modo, “desvenda”
una Colombia tal como cree que es: un macro-espacio lleno de incompatibilidades
J y de voces que revelan que el país sangra y se consume lentamente. Por momentos,
Fernando se horroriza ante la barbarie desatada, en otros, desea que la gente
A perezca en el seno de ese desbarajuste – “son serpientes venenosas que deben y
merecen morir” (VALLEJO, 2006, p. 88)-. Tal posición es abiertamente discordante.
L Ésta ensaya una solución para el problema de los pobres de Colombia: prohibir
parir a las mujeres de las comunas y, más extremamente,la ejecución en masa de

los pobres. “Los pobres producen más pobres y la miseria más miseria, y mientras
L más miseria más asesinos, y mientras más asesinos más muertos. Ésta es la ley
de Medellín, que regirá en adelante para el planeta tierra. Tomen nota” (VALLEJO,
A 2006, pp. 86-87).
Retomando la propuesta socio-literaria de Mikhail Bakhtin, notamos que
la presencia de elementos históricos es notable. En el texto, además, se habla de
ex-presidentes, políticos, se mencionan a capos de la droga, etc. Todo ello origina
anclajes a través de coordenadas sociopolíticas concretas. En consecuencia, se
• cuestiona la historia oficial a través de la “desmitificación de mitos” y de ciertas
558 figuras históricas que incluso llegan a ridiculizarse. Las instituciones laicas y
religiosas, por otra parte, tampoco se salvan de las ironías y del descrédito, todo lo

cual demuestra un gran escepticismo por parte del narrador.
Fernando se encuentra en una posición intermedia. A veces está dentro de
ese proyecto nacional que fracasó y se debe refundar, a veces está fuera y no augura
ninguna posibilidad de redención. Eso se aprecia cuando, autodenominándose “la
2 memoria de Colombia”, interpela al Procurador de la República: “Señor Procurador:
Yo soy la memoria de Colombia y su conciencia y después de mí no sigue nada.
Cuando me muera aquí sí que va a ser el acabóse, el descontrol” (VALLEJO, 2006,
0 p. 20). Él no confía en la política colombiana. Es un crítico feroz del presidente de
la República a quien ataca y satiriza más de una vez. Eso se aprecia en el siguiente
1 parlamento: “La ley de Colombia es la impunidad y nuestro primer delincuente
impune es el presidente, que a estas horas debe de andar parrandeándose el país y
8 el puesto” (VALLEJO, 2006, p. 18). La virgen de los sicarios, pues, es una propuesta
iconoclasta y destructora de las instituciones, valores y patrones tradicionales de la
Colombia de los años 90. Una nueva forma de incursionar en el panorama literario
latinoamericano dominado aún por las estéticas del boom y de las narrativas
regionalistas.
El narrador crea, de esta forma, un espacio literario mediante dos
acciones discursivas concretas: narrar y traducir. Mediante ellas, refunda
la ciudad dándole una imagen particular de lugar paralelo al infierno. Como a
través de su accionar es incapaz de restituir el antiguo orden, se apropia del lugar
describiéndolo, representándolo, interpretándolo y deconstruyéndolo. En otras
palabras, tornándolo en la ciudad maldita que promueve el exilio dentro de sus
propias fronteras. En un lugar azotado por una modernización irregular y por
una espacialización difusa en sus límites geográficos. Esto último se da por la
proliferación de las comunas. La hegemonía del nuevo Medellín, en ese panorama,
no está más vinculada a los sectores de la aristocracia y de la intelectualidad sino
a los capos del narcotráfico. Ellos presionan por igual (con sus ejércitos de sicarios)
a políticos, funcionarios públicos, militares, policías, periodistas, etc. Pese a todo
J lo mencionado, la ciudad, como espacio,no deja de cumplir un rol fundamental
en la construcción de la nación colombiana. Ella constituye un campo de batalla
cultural y semántica donde el proyecto modernizador-urbano intenta introducir
A
ciertos cánones y formas de ejercer la ciudadanía.

L La ciudad es representada, por consiguiente, como un campo violento,
sin reglas, donde impera la ley del mejor armado. Medellín es el nombre oficial

del lugar que aparenta “norma y civilidad”, pero “Medallo” es el nombre del lugar
L tal cual es: una ciudad corrupta y sangrienta, acorralada siempre por la muerte.
Nos encontramos ante una versión literaria (alternativa) del conflicto interno
A que enfrentó a los colombianos por más de cinco décadas. En ese espacio, los
hechos se desarrollan, casi en su totalidad, dividiéndose entre dos cronotopos
en confrontación: El Medellín de arriba y el Medellín de abajo y es el narrador-
protagonista quien muy renuentemente los aproxima.
Tenemos, en esta dirección, el primer cronotopo, el cronotopo de abajo,
• la ciudad tradicional atravesada, todavía, por temporalidades antagónicas y que
559 guarda algunas joyas de un pasado no tan remoto. Todo eso se ve maculado por
el avance incontrolable de la otredad. Ésta, desestabiliza notablemente la postura

aristocrática de Fernando. En este mismo cronotopo se entrelazan la ciudad antigua
de Medellín (o, mejor dicho, los despojos que catalizan el recuerdo de un pasado
mejor) con unas coordenadas históricas atravesada por la fatalidad, por la violencia
imparable, por la inestabilidad y por la volubilidad de las relaciones humanas.

2 Sobre las laderas de las montañas, por otro lado, aparece el cronotopo
de arriba, “Medallo”, el espacio más temido, donde proliferan las comunas y donde
viven los sicarios; lugar prohibido para los habitantes de abajo, pero desde donde
0 proviene la marea humana que baja y ocupa el Medellín tradicional y que “asfixia”
y remueve a las antiguas castas. Este cronotopo se halla, igualmente, atravesado
1 por una de las peores etapas de la historia colombiana. Sobre eso, el narrador dice:
… ¡Pero miren qué hacinamientos! Millón y medio en las comunas de Me-
8 dellín, encaramados en las laderas de las montañas como las cabras, repro-
duciéndose como las ratas. Después se vuelcan sobre el centro de la ciudad
y Sabaneta y lo que queda de mi niñez, y por donde pasan arrasan. “Acaban
hasta con el nido de la perra” como decía mi abuela,…Mi abuela no conoció
las comunas, se murió sin. En santa paz (VALLEJO, 2006, pp. 52-53).

Casi todo lo que pasa, sin embargo, se da en el cronotopo inferior. En


éste, como en un conjunto mayor, aparecen, también, otros menores entre los que
resaltan: las iglesias, el “cuarto de las mariposas”, el apartamento de Fernando y
la morgue.
Sobre las iglesias, se puede decir que ellas surgen, a veces, como espacios
cerrados en cuyo interior se esconde, aún, la vieja tradición. En otras ocasiones
son desbordadas y perturbadas (según la visión del narrador-protagonista) por
la otredad, generándose, en sus reducidas áreas, una convivencia tensa entre
procedencias y temporalidades. Al respecto el narrador menciona:
Ha de saber Dios que todo lo ve, lo oye y lo entiende, que en su Basílica
Mayor, nuestra Catedral Metropolitana, en las bancas de atrás se venden
los muchachos y los travestis, se comercia en armas y en drogas y se fuma
J marihuana. Por eso, cuando está abierta, suele haber un policía vigilando.
Pregúntenle a ver si invento. ¿Y Cristo dónde está? ¿El puritano rabioso que
sacó a fuete a los mercaderes del templo? ¿Es que la cruz lo curó de rabie-
A tas, y ya no ve ni oye ni huele? Al olor sacrosanto del incienso se mezcla el
de la marihuana, la que sopla desde afuera, desde el atrio, o la que se fuma
adentro. La mezcla te produce cierta religiosa alucinación y ves o no ves a
L Dios, dependiendo de quién seas (VALLEJO, 2006, p.55).

L El cuarto de las mariposas (nominación eufemística de la habitación del
prostíbulo donde ocurre la primera reunión entre Alexis y Fernando) constituye

otro importante punto referencial. En ese sitio, fluctúan rasgos notables de la
A postmodernidad como muestras de la labilidad y precariedad de las relaciones
humanas. Muchos de los menores que allí se prostituyen tienen su “sentencia de
muerte” firmada. De éste se dice lo siguiente:
En ese apartamento nunca se tomaba ni se fumaba: ni marihuana ni ba-
suco ni nada de nada. Era un templo... entre tanto reloj callado tronaba un
• televisor furibundo transmitiendo telenovelas, y entre telenovela y teleno-
vela las alharacosas noticias: que hoy mataron a fulanito de tal y anoche a
560
tantos y a tantos. Que a fulanito lo mataron dos sicarios. Y los sicarios del
• apartamento muy serios. ¡Vaya noticia! ¡Cómo andan de desactualizados los
noticieros! Y es que una ley del mundo seguirá siendo: la muerte viaja siem-
pre más rápido que la información (VALLEJO, 2006, p.10).

El apartamento de Fernando es, también, un lugar caracterizado por su


naturaleza espacio-temporal imbricada. En él, el protagonista convive (aunque
2 brevemente) con sus amantes. Desde su balcón es posible mirar la ciudad en su
plenitud: la nueva y la antigua, la de arriba y la de abajo, y reflexionar sobre los
0 cambios que sufre, por esos días, la sociedad colombiana. El predio se encuentra
en la zona central de Medellín y se ahoga bajo la truculencia omnipresente. En las
1 puertas del edificio, como si hubiera ocurrido una trivialidad, el narrador refiere:
“¡Qué va! Amaneció a la entrada del edificio un mendigo acuchillado: le están
sacando los ojos para una universidad” (VALLEJO, 2006, p. 26).
8
Por último, nos encontramos ante la morgue de la ciudad. Aunque
este espacio aparezca “en su esplendor” sólo en las últimas páginas, constituye
una muestra sensible de lo que ocurre. En esta parte de la historia el narrador-
protagonista se detiene con especial amargura y da cuenta, con un discurso cargado
de pesimismo, de los hechos que definen y caracterizan esa etapa de la historia de
su país. La única salida posible, en esas circunstancias, es dejar para siempre su
ciudad natal: “Algunos tenían a sus pies el acta correspondiente de levantamiento
del cadáver, pero no todos: Colombia nunca ha sido muy regular en sus cosas;
es más bien irregular, imprevisible, impredecible, inconsecuente, desordenada,
antimetódica, alocada, loca...” (VALLEJO, 2006, p. 125).
Podemos decir que el Medellín de arriba y el Medellín de abajo entrelazan
sus bordes y constituyen un cronotopo mayor: el de la muerte. Es esa última
intersección la que rige, con mayor fuerza, la narrativa de Fernando Vallejo. Para él
y para su narrador, la situación de Colombia no prevé salida pacífica ni definitiva:
“¿Sería que hablar en Medellín de asesinados era como decir en época de lluvias:
J ‘¡aguaceros torrenciales!’ o en verano: ‘nos estamos asando del calor’? ¿Dar como
noticia lo obvio?” (VALLEJO, 2006, p. 99). La muerte, como se ve, aparece de
A comienzo a fin e impregna todos los espacios narrados y nudos argumentales de la
historia. El recorrido y los desplazamientos de Fernando y sus amantes son, aquí,
L los de los mensajeros de la muerte.
Medellín es una ciudad maldita y su virulencia atraviesa fronteras. El ansia
de muerte y destrucción tiene un epicentro común y proviene de las comunas. Allí,
L
la maldad ha llegado a límites insospechados. Sobre ellas, el narrador manifiesta:
Las comunas cuando yo nací ni existían. Ni siquiera en mi juventud, cuan-
A do me fui. Las encontré a mi regreso en plena matazón, florecidas, pesando
sobre la ciudad como su desgracia. Barrios y barrios de casuchas amonto-
nadas unas sobre otras en las laderas de las montañas, atronándose con
su música, envenenándose de amor al prójimo, compitiendo las ansias de
matar con la furia reproductora. Ganas con ganas a ver cuál puede más. En
el momento en que escribo el conflicto aún no se resuelve: siguen matando
• y naciendo (VALLEJO, 2006, p. 28).
561
En estas circunstancias, los ojos del narrador procesan lo que ven a
• partir de un posicionamiento particular: la dicotomía civilización-barbarie. La
civilización, según su propio juicio, quedó en el pasado o, simplemente, está fuera
de Colombia. Lo que se tiende delante de él es juzgado desde el posicionamiento de
la barbarie. Como una forma de explicar los orígenes del mal instalado, toma como
principal antecedente las migraciones campesinas. El campesino colombiano es,
2 desde su posición letrada, urbana y tradicional, el principal elemento “perturbador”
del sistema. Según él, ellos suelen resolver sus problemas “a punta de machete”.
0 He allí la razón del desgobierno. Como solución, propone enviar a todo disidente
o revoltoso al paredón, comenzando con los niños díscolos. Estamos, entonces,
1 ante un mundo natural donde el hombre fue reducido a su expresión más salvaje
y básica:

A machete, con los que trajeron del campo cuando llegaron huyendo dizque
8 de “la violencia” y fundaron estas comunas sobre terrenos ajenos, robán-
doselos, como barrios piratas o de invasión. De “la violencia”... ¡Mentira! La
violencia eran ellos. Ellos la trajeron, con los machetes. De lo que venían
huyendo era de sí mismos. Porque a ver, dígame usted que es sabio, ¿para
qué quiere uno un machete en la ciudad si no es para cortar cabezas?... No
hay plaga mayor sobre el planeta que el campesino colombiano, no hay ali-
maña más dañina, más mala. Parir y pedir, matar y morir, tal su miserable
sino…Los hijos de estos hijos de mala madre cambiaron los machetes por
trabucos y changones, armas de fuego hechizas, caseras, que los nietos a
su vez, modernizándose, cambiaron por revólveres que el Ejército y la Poli-
cía les venden para que con el aguardiente que fabrican las Rentas Depar-
tamentales se emborrachen y se les salgan todos los demonios y con esos
mismos revólveres se maten.(VALLEJO, 2006, p. 87).

Como se observa, La virgen de los sicarios constituye una narrativa


condicionada por el espacio urbano. Dentro de sus limbos, el protagonista rechaza
todo contacto físico no amoroso y sabe que, desde una perspectiva simbólica,
los cronotopos entrelazados se repelen de manera irremediable. Asimismo,
lasconfrontaciones existentes lo empujan a buscar refugio y a desnaturalizar
J todautopía. Por otro lado, las ondas de la radio le devuelven las representaciones
amplificadas de una cultura antioqueña signada por el conformismo, la mediocridad
A y la violencia interminable. Esto le insta a sugerir, en más de una ocasión, que
caminar por las calles de Medellín es como andar sobre miles de cadáveres sin
L enterrar. Todo ello se intensifica cuando cuestiona y enfatiza la inversión de
jerarquías y el borramiento de las fronteras existentes entre la cultura de masas y
la de élite, lo cual le lleva a proponer una mímesis realista que aprehende el mundo
L
ya no sólo como un problema epistemológico sino, también, como una cuestión
preponderantemente ontológica.
A Finalmente, podemos complementar nuestra propuesta mencionando
a Edouard Glissant (2013) y decir que, en la novela, las culturas puestas en
contacto mueven sus concepciones del espacio-tiempo en cada cronotopo
propuesto, generando, así, un permanente caos-mundo. Tal situación, demuestra
que el ser humano no es una entidad absoluta. Éste se constituye a través de la
• aproximación de elementos diversos. Infelizmente, la mezcla o imbricación de los
562 distintos elementos del “ser colombiano” es para Fernando algo contraproducente,
• antinatural:
De mala sangre, de mala raza, de mala índole, de mala ley, no hay mezcla
más mala que la del español con el indio y el negro: producen saltapatrases
o sea changos, simios, monos, micos con cola para que con ella se vuelvan a
subir al árbol. Pero no, aquí siguen caminando en sus dos patas por las cal-
les, atestando el centro. Españoles cerriles, indios ladinos, negros agoreros:
2 júntelos en el crisol de la cópula a ver qué explosión no le producen con todo
y la bendición del papa. Sale una gentuza tramposa, ventajosa, perezosa,
envidiosa, mentirosa, asquerosa, traicionera y ladrona, asesina y pirómana.
0 Ésa es la obra de España la promiscua, eso lo que nos dejó cuando se largó
con el oro… (VALLEJO, 2006, p. 94).
1
La presencia del caos-mundo es, en esta narrativa, un claro ejemplo de la
complejidad de la Colombia y de la Latinoamérica actual como mundos productores
8 (por excelencia) de sistemas erráticos de relaciones. En estas coordenadas, la
liberación del dominio de la identidad de raíz única, que impide la fluidez del

rizoma, aún es un proceso no resuelto. Por tal motivo, las distintas piezas de la
nación colombiana, según la mirada del narrador-protagonista, se hallan dispersas
y violentadas.
Referencias
AMPUERO, C. C. Imagen de la ciudad en la literatura hispanoamericana y chilena
contemporánea. Tesis doctoral presentada en la Facultad de Filosofía y Humanidades
de la Universidad de Chile. 2006. Disponible en: <https://goo.gl/e2Ibap> Acceso el 04 de
noviembre de 2016
BAJTIN, M. Las formas del tiempo y del cronotopo en la novela. Ensayos de poética
histórica. Disponible en: <132.248.101.21/filoblog/bubnova/files/2009/11/bajtin-teo-
ria-y-estetica-de-la-novela-2.pdf> Acceso el 6 de mayo de 2016.
GATTI, G. Apropiación subjetiva del espacio urbano. La proyección de Montevideo en
la literatura de Hugo Burel. Tesis doctoral presentada en la Facultad de Filología de la
Universidad de Salamanca. 2011. Disponible en: <https://goo.gl/G8OzYw> Acceso el 2 de
J octubre de 2016.
GLISSANT, É. Introdução a uma poética da diversidade. Traducción al portugués de
Enilce do Carmo Albergaria Rocha. Juiz de Fora: Editora UFJF. 2005.
A
TUDORAS, L. La configuración de la imagen de la gran ciudad en la literatura post-
moderna (ámbito románico). Tesis doctoral presentada en la Facultad de Filología de
L la Universidad Complutense de Madrid. 2004. Disponible en: <https://goo.gl/2Ztu2A>
Acceso en 24 de noviembre de 2016.
L VALLEJO, F. La virgen de los sicarios. Madrid: Ed. Punto de encuentro. 2006.

A


563

2

0

1

8

J

A

L HORTA-OCA: ESPAÇO DE CONVIVÊNCIA, TROCAS,
APRENDIZAGEM E CULTIVO DE IDEIAS
L
Joana da Costa Lyra (INES)
A Maria Lucia Vignoli Rodrigues de Moraes (INES)
RESUMO: O presente texto apresenta um relato de experiência sobre a horta-oca do
Instituto Nacional de Educação de Surdos que vem sendo cultivada por professores
de artes e alunos surdos com idade entre 8 e 21 anos. Iniciada em 2015 junto a uma
turma de 1° ano do ensino fundamental, a horta-oca configura-se como um espaço
• de convivência, trocas, aprendizagens e cultivo de ideias. As práticas pedagógicas
experimentadas e a utilização de ferramentas como a enxada, escavadeira e pá
564
possibilitaram o agenciamento e ampliação das vivências corporais e sensoriais
• das crianças e jovens conforme os princípios da educação pela experiência e pela
prática de Paulo Freire. A horta-oca, conectada à noção da Agroecologia, proporciona
um ambiente favorável à revalorização de tradições e sabedorias populares e
indígenas, ao encontro com a diversidade de saberes e sabores, à conexão com a
terra e os ciclos da natureza e à reflexão sobre a relação entre ciência e arte, com
2 ênfase em ações coletivas que promovam o Bem Viver. Ao relato das experiências
vividas consolidado no formato de um diário das ações, agrega-se uma narrativa
0 visual integrada por fotos e pequenos vídeos produzidos no curso do processo. A
constelação de propostas, conteúdos e práticas instauradas nos encontros na horta
1 se desenvolvem na forma de entrelaçamentos, conforme o conceito do rizoma, de
Deleuze e Guatarri (1992) e confirmam a necessidade da arte contemporânea de
conclamar pelo outro, pelo par, pelo conjunto apontados por Roberto Corrêa dos
8 Santos (2015). Perpassam as práticas a noção de Interculturalidade, descritas por
Vera Candau (2014) e Richter (2008), ressaltando a diversidade étnica brasileira e
seus diálogos com outras culturas, e conhecimentos que emanam das brincadeiras,
experimentações e manifestações populares. A conexão com elementos da natureza
encontrados nas falas e práticas de Fritjof Capra (2006), Celso Sánchez (2011),
Leonardo Boff (2004) e Ghandy Piorski (2016) aportam sentidos e fundamentos
para as ações na horta-oca em consonância com as múltiplas possibilidades
encontradas no campo da arte e da cultura. E Skliar (1999) nos faz compreender
a surdez como experiência visual, ressaltando o aspecto visual da cultura surda
bem como suas produções linguísticas, artísticas, científicas e as relações sociais.
Palavras-chave: Arte. Agreocologia. Cultivo de ideias. Horta. Educação de Surdos.

Todos os membros de uma comunidade ecológica estão interligados numa


vasta e intrincada rede de relações, a teia da vida. Eles derivam suas pro-
priedades essenciais, e, na verdade, sua própria existência, de suas relações
com outras coisas. A interdependência – a dependência mútua de todos os
processos vitais dos organismos – é a natureza de todas as relações ecológi-
J cas. (CAPRA, 2006. p. 231)

O espaço da horta-oca foi criado com o objetivo de reaproximar crianças
A e jovens ao convívio com a natureza, proporcionando a experiência pedagógica
em ambientes que ultrapassem a sala de aula e que favoreçam vivências plurais,
L significativas e enriquecedoras. Nessa direção, apostamos na aquisição de
conhecimentos como trocas contínuas entre docentes e discentes e nos reconhecemos
L experimentadores e pesquisadores atentos ao fluxo dos acontecimentos cotidianos.
O homem constitui um dos agentes, entre os muitos outros agentes – cós-
micos, físicos e biológicos – da transformação do universo. O instrumento
A dessa contínua transformação é a experiência concebida como uma ocor-
rência cósmica. O inorgânico, o orgânico e o humano agem e reagem, pela
experiência, num amplo, múltiplo e indefinido processo de repetições e re-
novações, de ires e vires, de uniformidades e variedades, de fatalidades e
imprevistos, graças a cujo processo se tornam possíveis, de um lado, a pre-
dição e o controle e, de outro, a oportunidade e a aventura (TEIXEIRA, 1955.

p. 3-27).
565
A afirmação de Piorsky, “a natureza tem a força necessária para despertar

um campo simbólico criador na criança”, nos impulsionou a conceber o projeto
horta-oca, levando em conta a valorização de práticas sustentáveis combinadas
à observação da natureza. Partimos do princípio de que a aula de artes é um
espaço de exploração e desenvolvimento dos sentidos, de pesquisa e experiência e
consideramos a natureza um espaço privilegiado para propostas de desenvolvimento
2 sensorial, em sua multiplicidade de formas, cores, odores e sabores.
Ações que possibilitem tornar dinâmica a “aventura” da sala de aula
0 é parte de nossas preocupações e intenções, principalmente no que se refere à
construção e permanente atualização dos conhecimentos acerca de sensações que
1 se plasmam ao calarmos e escutarmos por canais de sutil sensibilidade.
A partir do trabalho pioneiro de Jean Piaget, Maria Montessori e Rudolf
8 Steiner surgiu um amplo consenso entre cientistas e educadores quanto ao
desenvolvimento das funções cognitivas da criança em crescimento. Parte
deste consenso é o reconhecimento de que um ambiente de aprendizagem
rico, multissensorial – envolvendo formas e texturas, as cores, odores e sons
do mundo real - é essencial para o pleno desenvolvimento cognitivo e emo-
cional da criança. Aprender na horta escolar é aprender no mundo real em
sua plenitude. Traz benefícios para cada aluno da comunidade escolar e é
uma das melhores formas de tornar as crianças ecologicamente alfabetiza-
das e, desse modo, contribuir para a construção de um futuro sustentável
(CAPRA, 2003. p.29).

Consideramos a importância primordial do reconhecimento das crianças


e jovens como parte integrante da natureza e percebemos ser transformadora a
vivência do plantio, observação da germinação das sementes, crescimento e colheita.
E ainda, a noção do corpo como a primeira ‘casa’ do ser humano, ou seu primeiro
meio ambiente “cercado do meio externo por uma pele, por uma fisiologia e pela
cultura na qual este corpo está encerrado” (SANCHEZ, 2011) permite-nos pensar
numa experimentação artística plena que privilegia o desenvolvimento sensorial de
amplo espectro.
J Mulheres e homens, somos os únicos seres que, social e historicamente, nos
tornamos capazes de aprender. Por isso, somos os únicos em quem apren-
der é uma aventura criadora, algo, por isso mesmo, muito mais rico do que
A meramente repetir a lição dada. Aprender para nós é construir, reconstruir,
constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura
L do espírito. (FREIRE, 1996. p.77).
Surpreendemo-nos atentas na aventura diária, no enfrentamento da
L dinâmica intensa da sala de aula, para brincar e conhecer o jogo do silêncio.
As crianças, as sementes e a terra
A A horta-oca teve início nas mesas e estantes da sala de aula de artes, em
pequenas sementeiras onde plantamos milho, feijão guandu e tomate. A alegria
despertada nesse primeiro contato com as sementes e com a terra foi um estímulo
para seguir adiante com o projeto. As crianças vibravam quando retornavam à sala
de artes nos dias seguintes ao plantio e observavam a planta recém-despontada,
• verdejando. Alguns chegavam a pegar os recipientes com brotos para beijá-los com
566 afeto. Regávamos e eram lembrados de ter cuidado com as plantas ainda frágeis.
• A partir dessa primeira experiência, a natureza passou a ocupar lugar
central nas aulas de artes. Iniciamos então uma série de propostas/investigações:
trabalhamos os sinais em Libras dos vegetais plantados e de outros, propusemos
realizar desenhos de observação das plantas em desenvolvimento, conhecemos
histórias e contos populares com essa temática, criamos mandalas com colagem
2 de sementes variadas e fizemos passeios pela área externa do Instituto para
observação e escolha de elementos naturais como folhas, galhos e sementes para
realização de composições no chão e colagens sobre papel. Ainda nas vivências na
0 parte externa da escola, foi possível realizar a observação dos efeitos da luz e das
sombras sobre o ambiente, ampliando o repertório dos matizes e cores encontrados
1 na natureza. Foram construídas – inventadas - pequenas casas nos jardins com
galhos, fibras naturais, folhas e barbantes com atenção aos elementos coletados.
8 Todas essas atividades criam um elenco de ações posteriormente trabalhadas e
lembradas dentro de sala de aula em desenhos, anotações e registros. Uma rede
de relações – “rizomática” – estabelece novos percursos e caminhos, portando
potências geradoras de outros projetos e ações, conforme a definição do rizoma
encontrada em Deleuze e Guatarri: “Um rizoma não começa nem conclui, ele se
encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação,
mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o
rizoma tem como tecido a conjunção “e... e... e...” (DELEUZE & GUATARRI, 2004,
p. 37).
No processo, enfatizamos o estudo das expressões artísticas dos povos
indígenas brasileiros, seus grafismos e a utilização de materiais encontrados na
natureza. Através da pesquisa e organização de amplo material em imagens de
fotografias e desenhos dos povos originários, foram observadas as diversidades
étnicas, a riqueza na produção de objetos utilitários, vestimentas para rituais e
festas, bem como as construções e habitações. Em paralelo, foi produzida uma série
de pinturas e desenhos com tintas elaboradas a partir de materiais naturais como
açafrão, urucum, beterraba e carvão. Percebemos que a manufatura dessas tintas
J artesanais trouxe mais uma camada de sentido aos processos vividos pelos alunos,
por seu caráter de experimentação e revelação de “espírito científico” mencionado
durante a ação.
A
Conhecemos a natureza por um olhar científico, mas a ciência não dá todas
as respostas necessárias para o campo da ética, da saúde psíquica ou para o
L campo simbólico. É exatamente este campo simbólico – da imaginação e do
sonho – que faz o vínculo entre a criança e a natureza. Quando a imaginação
L da criança encontra a natureza, ela se potencializa e se torna imaginação
criadora. (PIORSKY, 2016)

A Depois de alguns meses dessa investigação inicial partimos para ocupar
um local onde outrora, conforme relatos, teria se realizado uma horta organizada

por funcionários do Instituto.
O espaço da horta-oca e a agroecologia
Desde nossa primeira visita, o local nos pareceu muito favorável para
• a realização do projeto. Encontramos um espaço de terra, de cerca de 100m²,
567 com árvores nativas tais como embaúba, goiabeira, e mamoeiros além de outras
• frutíferas como limoeiro, atemóia, além de outras espécies de médio e pequeno
porte. O local preservava os canteiros remanescentes da antiga horta, prontos para
a nossa ocupação.
Constatamos que esse cenário já apresentava em si todas as condições
para se pensar no desenvolvimento do projeto considerando a noção de agrofloresta,
2 na qual árvores associadas no espaço e no tempo com espécies agrícolas e/ou
animais combinam-se na mesma área.
0 Iniciamos estudos, pesquisas, consultas com agricultores e profissionais
da área em paralelo à participação em seminários e feiras agroecológicas. Reunimos

novos conhecimentos sobre o manejo, adquirimos sementes, mudas e a partir de
1 dessas trocas nos guarnecemos de muito entusiasmo para realizar o trabalho.
O encontro com os fundamentos da agroecologia se configurou
8 estimulante para o desenvolvimento de relações com as outras disciplinas presentes
no currículo escolar - como ciências, biologia, geografia e história - bem como a

adesão ao reconhecimento dos recursos naturais finitos do planeta. Nesse sentido,
a aplicação de princípios ecológicos nos sistemas agrícolas valorizando os ciclos
naturais em benefício da produção agropecuária, eixo conceitual da agroecologia,
nos abriu a outras leituras de mundo. Leituras nas quais o reconhecimento de que
a autonomia em relação ao uso de insumos industriais possibilita a produção de
alimentos de alta qualidade biológica e nutricional, livres de contaminantes químicos
e transgênicos, ao mesmo tempo em que conserva o solo, os recursos hídricos e a
biodiversidade, promovem a emancipação social e econômica de agricultores. Todas
essas formulações foram pensadas durante a concepção e produção do projeto,
para que pudessem ser abordadas nas aulas. Nesta direção, Leonardo Boff (2004)
ressalta que “para os povos originários a terra não é um simples meio de produção.
É um prolongamento da vida e do corpo. É a Pacha Mama. A Grande Mãe que
tudo gera, alimenta e acolhe.” A dimensão sutil de comunhão com o outro, com o
ambiente e com a Terra foi percebida através da alegria e envolvimento de todos os
J participantes e colaboradores na horta.
Em si a natureza tem a sua potência revelatória..., mas pra que se revele é
preciso que o homem conheça de sua semântica, sua linguagem, sua forma
A de se comunicar e produzir nova vida, se ramificar, se proliferar, de nascer
e morrer. (PIORSKY, 2016)
L
O primeiro plantio se deu em junho de 2015 com uma turma de primeiro

ano do ensino fundamental. Plantamos mandioca, iniciando a horta com um
L cultivo que consideramos muito simbólico pela sua recorrência na agricultura dos
povos indígenas originários – que conhecem mais de cem espécies dessa planta.
A Sabedoria transmitida há gerações, o cultivo da mandioca, assim como a produção
de farinha e muitos outros produtos confeccionados a partir dessa raiz (como
exemplo a tapioca) apresenta substancial importância na alimentação brasileira
das populações tradicionais.
Foram apontadas as festividades relacionadas a plantio e colheita dos
• diversos povos e a relação das estações do ano com essas práticas. Percebemos
568 ser a horta-oca espaço gerador de múltiplos sentidos incluindo a abordagem de
histórias e mitos de povos originários.

A partir de então passamos a utilizar o espaço com frequência nas aulas
de artes e o nomeamos de horta-oca. “Oka”, do tupi guarani: casa. Assim, o nome
traduz o desejo de que as crianças, jovens, professores e outros frequentadores
possam estabelecer com este ambiente uma relação de afeto, intimidade e
2 acolhimento: “habitar” a horta.
Além disso, concebemos a horta como um local de valorização da memória
e de saberes ancestrais que se alinham a práticas e vivências impregnadas de
0
visualidades, modos de estar e nomear.
Da mesma forma que os indivíduos e os povos, a espécie humana tem uma
1 memória, que nesse caso permite revelar as relações que a humanidade tem
estabelecido com a natureza, sua base de sustentação e referencial de sua
8 existência ao longo da história... A busca pela memória de nossa espécie
em todos os cantos do mundo acaba por reconhecer que, hoje, ela pode ser
encontrada em meio às chamadas sociedades tradicionais e, mais especifi-
camente, entre os povos indígenas do mundo (TOLEDO & BARRERA-BAS-
SOLS, 2015. p. 23, 24).

Demos sequência, a partir de então, a uma série de experimentos com


alunos do ensino fundamental e ensino médio (com idade variando de 7 a 20 anos).
As visitas à horta-oca tornaram-se semanais, fazendo parte da rotina escolar dos
alunos. Semeamos, plantamos mudas de ervas variadas, legumes, verduras,
raízes, flores e frutas, buscando privilegiar o repertório de cultivos tradicionais
das roças brasileiras. Por vezes nos reuníamos em grupo para visitar a horta-oca,
regar e observar o desenvolvimento das plantas, realizar desenhos de observação
ou mesmo brincar no espaço.

J

A

L

L
Fig.1 Nomear as mudas e os cuidados na horta-oca

A A pesquisa de material imagético relacionado à natureza, nas diversas


turmas do primeiro e segundo ciclo do ensino fundamental e do ensino médio,
desencadeou atividades de pinturas nas paredes da horta, pinturas das pedras
que delimitam os canteiros, bem como a confecção de placas com os nomes para
identificação dos plantios. Construímos também coletivamente uma estrutura

de bambu para dar esteio às mudas de tomate e maracujá. Na produção do
569 material de sinalização da horta fomos percebendo a necessidade de escolher
• palavras que definissem as ações para afirmação de nossos propósitos. Durante
as experimentações na horta-oca, observando meninos e meninas em momentos
de entusiasmo, curiosidade, descobertas, partilhas e também introspecção,
vivenciamos coletivamente a potência do contato com a terra, seus brotos, formigas,
minhocas. Para além dos conteúdos intrínsecos à proposta da criação de um
2 espaço de cultivo e observação da natureza, firmam-se laços de amizade e trocas
contínuas nos quais a cooperação se mostra um potencial motor para as ações

artísticas na escola. O artista e poeta Roberto Corrêa dos Santos(2015) afirma ter a
0 arte contemporânea a necessidade política de conclamar pelo outro, pelo par, pelo
conjunto. A experiência-ação na horta-oca vale-se da política da reciprocidade e do
1 entendimento de processos colaborativos em arte.
Na amizade há uma conversa feita com palavras e sem palavras: a mani-
8 festação extrema do estar, que não admite cognição nem superposição nem
autoridade. Trata-se de uma existência com a qual se pode contar na pre-
sença e na ausência: a proximidade nunca é suficiente, a distância nunca é
demais. Trata-se de uma relação essencial, em que conhecer não é apenas
uma opção entre várias, mas, a própria vontade de renunciar a conhecer, de
declinar a interpretar, traduzir ou explicar: uma relação, então, na qual a
voz de um e de outro se escutam mutuamente. (SKLIAR, 2014. p. 49)

A teia da vida
As bases iniciais do projeto horta-oca se afirmavam na possibilidade de
contribuir para o desenvolvimento de um currículo integrado, calcado em estratégias
de ensino-aprendizagem diferenciadas para o exercício da interdisciplinaridade a
partir de temas transversais. Ao longo do percurso fomos percebendo a ampliação
de outras proposições tais como a ideia de cuidados - o planeta, o cuidado de si e
do grupo - para a manutenção de uma política da amizade, exercida por todos os
envolvidos.
Através da horta também nos tornamos conscientes de que fazemos parte
da teia da vida; com o tempo, a experiência da ecologia na natureza nos pro-
J porciona um senso de lugar. Nós nos damos conta de que estamos inseridos
em um ecossistema, numa paisagem com flora e fauna peculiares, em um
sistema social e uma cultura próprios. (CAPRA, 2003. p.28).
A
Por uma ética da amizade, da colaboração, da reciprocidade e do amor,

reiteramos o propósito de por em prática a co-criação de mundos possíveis,
L
cultivando relações harmônicas entre todos. A horta-oca possibilita encontro
único, fértil e potente, gerador de expressões manifestas em jogos, brincadeiras e
L ações artísticas para firmar o exercício da escuta ao outro, despertar o interesse e
curiosidade considerando o permanente devir que nos retroalimenta.
A A emoção básica que nos torna seres humanos sociais – por meio da espe-
cificação do espaço operacional de mútua aceitação em que operamos como
seres sociais - é o amor. Ele é a emoção que constitui o domínio da aceitação
do outro em coexistência próxima. Sem um desenvolvimento adequado do
sistema nervoso no amor, tal como vivido no brincar, não é possível apren-
der a amar e não é possível viver no amor (MATURANA & ZÖELER, 2004.
• p.245).
570
Referências

BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da terra grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004.
CAPRA, Fritjof. Alfabetização Ecológica: o desafio para a Educação do Século 21. In.: Meio
Ambiente no Século 21, coordenação de André Trigueiro. Rio de Janeiro: Sextante, 2003.
______________. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos.
Tradução de Newton Roberval Eichenberg. São Paulo: Cultrix, 2006.
2 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? tradução de Bento Prado Jr.e
Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
0 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
1 MATURANA, Humberto R. & Verden-Zöeler, Gerda; tradução de Humberto Mariotti e Lia
Diskin. São Paulo: Palas Athena, 2004.
8 PIORSKY, Gandhy. Videoconferência Criança e Natureza. Disponível em http://territo-
riodobrincar.com.br/biblioteca-cat/dialogos-do-brincar/videoconferencia-2-crianca-e-na-
tureza/. Acesso em 29/06/2018.
SÁNCHEZ, Celso. Ecologia do corpo. Rio de Janeiro: Wak editora, 2011.
SKLIAR, Carlos. Desobedecer a linguagem: educar/ Carlos Skliar; tradução Giane Lessa.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.
TEIXEIRA, Anísio. Bases da teoria lógica de Dewey. Revista Brasileira de Estudos Peda-
gógicos. Rio de Janeiro, v.23, n.57, jan./mar. 1955.
TOLEDO, Victor M; BARRERA-BASSOLS, Narciso. A memória biocultural: a importância
ecológica das sabedorias tradicionais; tradução Rosa L. Peralta – 1ed – São Paulo: Expres-
são popular, 2015.
CORRÊA DOS SANTOS, Roberto. Cérebro Ocidente/Cérebro Brasil: Arte-escrita-vida-
-pensamento-clínica – Tratos contemporâneos - . Rio de Janeiro: Editora Circuito: Faperj.
2015.

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A

L MANAUS E A MODERNIDADE: UMA CIDADE EM CAOS E
UM “HERÓI PROBLEMÁTICO” NA NARRATIVA DE ERASMO
L LINHARES

A Angélio Nunes de Lima (UFAM)
Joanna da Silva (UFAM)
RESUMO: O presente trabalho busca traçar uma discussão em torno dos conflitos
sociais e humanos em meio à crise econômica que perpassa a cidade de Manaus no
momento de transformação frente ao advento da modernidade, no período pós-ciclo
• da borracha na Amazônia, que se faz presente no conto O Tocador de Charamela,
572 de autoria do escritor amazonense Erasmo Linhares. O fator “modernidade” servirá
de elo para fomentar a discussão em torno da falta de estrutura para acolher a
• população pobre que migra do interior da floresta e se aglomera em favelas nos
arredores da cidade em busca de trabalho nas indústrias e montadoras recém-
instaladas na capital. A crítica sociológica será utilizada como subsídio para
diagnosticar o modo como os homens se inserem e se articulam socialmente no
tempo e no espaço em meio a uma cidade em caos. O personagem principal da
2 narrativa em foco será aqui denominado “herói problemático”, fruto do advento da
modernidade e da luta de classes, que leva o ser humano ao descontrole em meio a
0 aspiração pela ascensão social e capitalista, a ponto de fazê-lo degradante em uma
sociedade tomada pela inversão de valores. Para o desenvolvimento desta análise,
1 que se caracteriza de cunho teórico analítico, buscamos embasamento teórico em
autores como Antônio Cândido (1972, 1992, 2006), Flávio Kothe (1987), Georg
Lukács (2000), Lucien Goldmann (1976), Márcio Souza (2009), entre outros.
8
Palavras-chave: Manaus e a Modernidade; Caos; Herói problemático; Erasmo
Linhares.

Introdução
Erasmo do Amaral Linhares nasceu em junho de 1934 no município de
Coari no Amazonas. Morreu na cidade de Manaus, no ano de 1999. Formado em
Comunicação Social pela Universidade do Amazonas, trabalhou durante 40 anos
como diretor artístico da Rádio Rio Mar. Iniciou sua carreira literária escrevendo
crônicas de cunho político e social, que eram recitadas por ele diariamente em seu
programa na rádio. Publicou dois livros de contos, sendo o primeiro “O Tocador de
Charamela”, publicado em 19791, e o segundo “O navio e outras estórias”, publicado
em 1997.
Membro do clube da madrugada, movimento que surgiu na década de
1950 com o objetivo de romper com antigos padrões ainda vigentes na literatura
amazonense, porquanto buscava a liberdade tanto na expressividade quanto na
erradicação da mediocridade estabelecida por padrões opressores que imperavam
J na sociedade manauara. O escritor buscou a renovação da mentalidade social e
cultural por meio de uma literatura que se aproximasse dos dilemas e angústias
A humanas decorrentes do desgaste imposto por uma sociedade capitalista e
opressora.
L Sua obra possui como característica peculiar uma matéria atualizada de
valorização do homem amazônico, inferida no contexto social, cultural e econômico
da época. Como homem de rádio, Erasmo Linhares desafiava as estruturas
L
ideológicas de poder impostas pelo governo, elucidando a comunidade urbana para
fazer cumprir seus direitos, incorporando nesta luta também o povo interiorano e
A ribeirinho, que se situavam tão longe, porém mais longe ainda estavam da dignidade
e do reconhecimento dos poderes públicos.
Embora um dos sentidos da palavra “charamela”, impresso no título de
sua obra, seja o mesmo que “charanga”, que equivale a orquestra mais ou menos
desafinada, segundo Luís Ruas (1995), esse sentido não se aplica ao conteúdo da
• obra “O Tocador de Charamela”, uma vez tratar-se de um livro muito bem “afinado”.
573 Privilegiando a linguagem realista, simples e direta, que oscila entre o tom regional
• e o coloquialismo, Linhares narra aspectos da vida do homem amazônida inserido
em uma realidade socioeconômica limitadora, com situações e personagens
díspares que se cruzam e se harmonizam com suas alegrias e tristezas, comédias
e tragédias. A obra é composta por um total de 15 contos, a maioria narrativas
curtas e com poucos personagens, mas com estrutura temática bem definida.
2 A condição humana miserável é recorrente no conto O Tocador de
Charamela, que dá título à obra, de onde emerge a figura humana em contraposição
a um sistema capitalista prepotente e aniquilador que o faz sucumbir. O espaço
0
da cidade de Manaus é pano de fundo dessa narrativa, com seu crescimento
populacional rápido e desorganizado, e sem infraestrutura adequada, estabelece
1 uma ligação estreita com o personagem principal, tornando-se elemento essencial
para a compreensão e análise do enredo narrativo.
8 Assim, o presente trabalho tem como objetivo discutir a figura do homem
em meio a uma cidade em caos, que se faz representar no conto O Tocador de
Charamela, de autoria do escritor amazonense Erasmo Linhares. A análise
vislumbrará a condição miserável e degradante do personagem principal, Zacarias,
que busca suprir suas necessidades básicas de sobrevivência num contexto social
e urbano da cidade de Manaus, que passa por um momento de crise em meio a
um processo de modernização acelerado e sem planejamento, tornando-se assim
um elemento que influenciará na (des)construção desse personagem, que em
1  Neste trabalho utilizaremos como referência a 2ª edição, publicada em 1995 pela UA (Universidade
do Amazonas).
nossa análise receberá a classificação de “herói problemático”, como nos termos de
Lukács (2000). Nesta óptica a degradação humana, e os dilemas dela decorrentes,
assim como o contexto social a sua volta, serão a temática central deste estudo,
cuja análise terá como base teórica autores como: CANDIDO (1992), GOLDMANN
(1976), KOTHE (1987), LUKÁCS (2000), SOUZA (2009), entre outros.
Literatura, espaço e representação
As narrativas literárias costumam formular diferentes experiências
J humanas resultantes das relações sociais, econômicas, políticas e culturais, que
segundo Robson Santos, articulam-se como um sistema vivo que, “[...] justificam-
A se e se sustentam na medida em que a criação envolve múltiplos elementos sociais,
psicológicos, linguísticos etc., interligados sob as teias do discurso” (SANTOS,
L 2008, p. 9), pois na medida que contempla a literalidade estética e ideológica, lança
também um olhar crítico e reflexivo em torno dos acontecimentos sociais.
L Os dilemas que afligem o ser humano na modernidade, em decorrência das
lutas de classes e do apagamento do indivíduo proletário na sociedade capitalista,
tornaram-se tema recorrente na literatura a partir do século XIX, expondo uma figura
A
tipológica que passou a ser denominada de “herói problemático”. Tal nomenclatura
representa indivíduos que vivem em constante busca para assegurar condições
mínimas que garanta suprir as necessidades mais básicas de sobrevivência.
A figura do herói sempre esteve presente nas fábulas, colocando em
• destaque qualidades nobres, como sabedoria, bravura e coragem, por meio de
atuações estratégicas bem-sucedidas, por isso habitam um nível mais elevado
574
que o indivíduo comum, que luta diariamente por sobrevivência em meio a um
• sistema social hostil e opressor. Segundo Flávio R. Kothe (1987), as narrativas
têm quase sempre por determinante algum tipo de herói que se situa de alguma
maneira em relação ao espaço que o abriga, sendo este responsável não só por sua
caracterização, como também por imprimir um sentido particular a sua existência
e trajetória.
2 Dentre as diversas tipologias de heróis que permeiam o universo literário,
Kothe os classifica em dois grupos assim distribuídos: os baixos e os altos, sendo
0 baixos, àqueles considerados inferiores socialmente, enquanto os altos pertencem
a alta sociedade, e possuem maior prestígio social. A descida do herói divino, vindo
1 da antiguidade, para o herói mais humano e complexo, produto da modernidade,
tem sido representada na literatura numa ordem tipológica assim sequenciada por

Kothe (1987, p.15): “o herói épico é o sonho do homem fazer a sua própria história;
8 o herói trágico é a verdade do destino humano; o herói trivial é a legitimação do
poder vigente; o pícaro é a filosofia da sobrevivência feita gente”.
Enquanto o herói épico é representado por sua baixeza, a decadência
tende a torna-lo maior, pois como afirma Kothe (1987, p. 14), “à medida que o
herói épico decai em sua “epicidade”, ele tende a crescer em sua “humanidade” e
nas simpatias do leitor/expectador”; já o herói trágico, contrariando seu destino,
seu sucesso se dá pela sua desgraça em decorrência da tragédia. Enquanto o herói
pícaro é aquele que procura sempre levar vantagem em tudo, luta em benefício
próprio, e quer sempre ganhar, mas sem muito esforço, sem ocupação social
definível. (Kothe, 1987).
O conceito de herói costuma acompanhar o percurso histórico, estando ele
intimamente ligado à época e à sociedade que o criou, na literatura contemporânea
a imagem do herói idealizado dentro dos padrões românticos cedeu lugar a um tipo
mais realista, que acompanha a angústia humana em meio ao mundo capitalista,
onde o dinheiro impulsiona a busca desenfreada e inescrupulosa por prestígio e
J ascensão social, que muitas vezes resultara no apagamento da autenticidade do
ser humano. É nesse contexto que o processo de degradação humana se instaura,
A e a construção da figura do herói passa a refletir as necessidades do povo oprimido
por um sistema dominante que estabelece divisões sociais e de classe entre os
L indivíduos, uma vez que nem todos conseguem alcançar a posição almejada.
Como o espaço também ocupa lugar de destaque na (des)construção
e representação dos personagens, não só por situar as ações, mas também por
L
contribuir com sua caracterização, uma vez que este, no contexto narrativo,
estabelece uma relação muito estreita e dinâmica com seu entorno, cabe aqui
A também destacar a importância desse elemento dentro do contexto narrativo
criado por Linhares. Assim, será possível compreender a estreita ligação que o
autor estabelece entre o personagem e o espaço, e como este é determinante para
o desenvolvimento do enredo.
O espaço Amazônico tem sido explorado por diversos escritores em
• diferentes momentos históricos, desde os relatos dos primeiros viajantes, passando
575 pelo apogeu e declínio do ciclo da borracha na região. Uma sequência narrativa que
• vai da exploração da matéria-prima à exploração do homem pelo próprio homem,
num ambiente de degradação do ser e das relações humanas, como nos aponta
o escritor e historiador Márcio Souza, na obra “História da Amazônia”, ao fazer
referência ao período do pós-ciclo da borracha:
A Amazônia transitava entre a solidão dos abandonos e as raras manifes-
tações de caridade populacional e o índice de liquidez caiu praticamente a
2 zero. A massa rural regredia para o sistema de trabalho de subsistência e
para o regime de troca. A desolação era completa. Os que permaneceram
0 no vale depois do desastre foram obrigados a resistir com todas as forças.
(SOUZA, 2009, p. 313-314).

1 Com o intuito de assegurar o território e reerguer a economia local, em


1966 “os militares decidiram ocupar e integrar a região amazônica” (SOUZA, 2009,
8 p.328). A política de expansão do capitalismo criada pelo governo militar, por
meio da isenção de taxas alfandegárias na região, deu início a criação do Distrito
Industrial e a implantação da Zona Franca em Manaus no de 1967. A fixação
de empresas montadoras gerou novos empregos na região, que voltou a crescer
desenfreadamente, ocupando um lugar destaque no ranque das cidades industriais
brasileiras. Manaus transformou-se num celeiro de mão de obra, atraindo milhares
de pessoas em busca de emprego, superfaturando seu índice populacional.
Eram indústrias que tudo trouxeram de fora, da tecnologia ao capital majo-
ritário, e que do Amazonas somente aproveitaram a mão de obra barata e os
privilégios institucionais. Com essa estrutura industrial altamente artificial
[...]. A promessa de quarenta mil empregos não se cumpriu mas ajudou a
provocar uma explosão demográfica em Manaus. De aproximadamente cen-
to e cinquenta mil habitantes em 1968, a cidade pulou para seiscentos mil
em 1975. (SOUZA, 2009, p. 337).

O número de mão de obra era maior do que a oferta de serviços, o


que resultou numa completa discrepância na distribuição de renda e emprego,
e fez com que grande parte da população, um aglomerado de pessoas pobres e
J desempregadas, transformasse Manaus num inferno. Especialmente porque tal
demanda chegava num momento muito delicado, em que a estrutura da cidade
A estava decadente (SOUZA, 2009). Os que conseguiram empregos tiveram que se
submeter a um serviço de baixa remuneração.

L O contexto histórico e social apresentado por Souza é o cenário onde se
contextualiza a narrativa do conto O tocador de Charamela, que se apresenta como

uma espécie de crônica social ao problematizar a condição degradante na qual o
L personagem Zacarias encontra-se inserido. A interação entre o homem e o meio
torna-se responsável por desencadear as ações da narrativa onde, por um lado
A vislumbramos uma cidade em caos devido ao crescimento populacional desenfreado,
a falta de empregos e de condições básicas de moradia e sobrevivência, por outro
lado, temos a presença do personagem Zacarias, que perambula por esse cenário
complexo e degradante da cidade grande. O espaço torna-se disfarce e refúgio para
a decadência econômica e moral do personagem que se deixa arrastar pelas forças
• externas que movem suas andanças frustradas, como veremos na análise.
576 Uma cidade em caos e um “herói problemático” na narrativa de Erasmo
• Linhares
Os dilemas sociais e existenciais do ser humano na modernidade, em
decorrência das lutas de classes e do apagamento do indivíduo proletário na
sociedade capitalista, tornaram-se tema recorrente a literatura a partir do século
XIX. Sua representação passou a ser carregada de anomalias em detrimento a
2 solidão e frustrações que cercam sua existência. Vive em constante busca para
assegurar condições mínimas de sobrevivência que possa suprir suas necessidades
0 mais básicas. Durante essas andanças inquietas experimenta diferentes tipos de
frustrações que o coloca em conflito com seu “eu”, fazendo-o sentir-se “deslocado”,
nesse ambiente em constante transformação.
1
É esse sentimento de angústia e deslocamento que perpassa a vida
do personagem protagonista Zacarias, um homem de classe baixa, residente na
8 periferia de Manaus. É casado, tem filhos, um típico funcionário público que
exerce a função de auxiliar de portaria, cargo de baixa remuneração que o coloca

em constante conflito com a realidade capitalista que o cerca, pois o salário que
recebe, mesmo somado ao ganho extra com a função de tocador, não é suficiente
para suprir as necessidades básicas de sua família.
O enredo narrativo se constrói a partir de seu final, quando o protagonista,
Zacarias, encena um diálogo com o dono da taberna:
Tem álcool?
Tem.
Me dá um cruzeiro.
Trouxe o vidro?
Não, me dê num copo.
O copo não pode levar.
Eu não vou levar.
Como assim?
Vou beber aqui.

O estado de desordem na construção do protagonista torna-se perceptivo


J ao leitor a partir da surpresa do comerciante ao reconhecer seu freguês:
Só então o reconheci – Zacarias!
Era, agora, agora sou o Torto.
A
A inversão de papeis anunciada pelo personagem protagonista
L desencadeia a ação narrativa. Além de trabalhar como porteiro, Zacarias também
era conhecido por tocar em uma banda musical nas noites de sábado, aí entra o
L inusitado instrumento de sopro que dá título à narrativa: a Charamela2, que no
texto ultrapassa os limites de um simples instrumento musical passando a adquirir

proporções que influenciam a vida do protagonista. Trata-se de um instrumento
A musical que acompanhou a geração familiar de Zacarias: “Era a única herdade que
recebera do pai, que por sua vez a recebera do avô e este do bisavô e este de toda
uma geração de músicos profissionais, cuja vocação fora declinando através de
muitos anos até Zacarias [...]” (LINHARES, 1995, p.37).
A charamela produzia um som agudo que irritava a vizinhança, a ponto

de causar desentendimentos entre seus vizinhos, fato que por várias ocasiões fez
577 com que dona Joaninha, esposa de Zacarias, saísse frenética, munida de palavrões,
• rebatendo xingamentos de todo tipo em resposta a vizinhança.
Zacarias tocava na noite, o que ganhava tocando mal dava para suprir
o vício da bebida. Passado um certo tempo, a banda em que tocava o dispensou
das apresentações, alegando que o som da charamela não se harmonizava com
as músicas regionais. Isso aumentou ainda mais a frustração do tocador, por não
2 poder contar com aquele rendimento extra, mesmo que irrisório.
A inviabilidade de suprir suas necessidades básicas por não possuir
0 uma remuneração digna, afeta o comportamento do personagem, que mergulha
em seus conflitos pessoais e na bebida, justificando assim sua classificação como
“herói problemático”, onde a degradação do homem situa-se entre a repressão e a
1
imposição do sistema capitalista, que tem como fatores preponderantes a falta de
estabilidade financeira e de oportunidades. A aceitação de sua condição miserável
8 torna sua trajetória degradante progressiva, condicionada ao fracasso. Lucien
Goldmann, na obra Sociologia do romance (1967), afirma que, como os indivíduos

participam diariamente da vida econômica, social, política, seus pensamentos e
ações passam também a ser dominados por esse sistema, pois,
[...] uma que vez são obrigados a procurar toda a qualidade, todo o valor
de uso, de um modo degradado, pela mediação da quantidade, do valor de
troca, e isso numa sociedade onde todo o esforço para se orientar direta-

2  A Charamela é um instrumento musical de sopro originário da eurásia, sua estrutura é de


madeia, possui uma palheta com uma cavidade para entrada de ar (sopros). A charamela produz
um som agudo, que serve de acompanhamento em orquestra.
mente no sentido do valor de uso não teria outro resultado senão engendrar
indivíduos também degradados, mas de um modo diferente – o do indivíduo
problemático. (GOLDMANN, 1967, p.18).

Após ser dispensado da banda, Zacarias começa a tocar sozinho nos


fundos da Matriz. Nos primeiros dias consegue ganhar um valor razoável e apaziguar
a ira da mulher que tanto reclamava do horário em que chegava em casa. Depois
de alguns dias, ao fazer as contas dos ganhos, “concluiu que tocando charamela
J todas as noites no fundo da matriz, ganharia o dobro de seu vencimento de auxiliar
de portaria.” (LINHARES, 1995, p.38).
A As noites mal dormidas e a ressaca do dia seguinte, contribuíram para
Zacarias largar o serviço público, “[...] pois suas faltas constantes já lhe tinham
L produzidos duas repreensões, uma verbal e outra através de portaria fixada na
parede para que todos pudessem ler sua vergonha.” (LINHARES, 1995, p. 38-39).
Observa-se aqui, que quando o protagonista tenta ascender com a nova atuação de
L
tocador, é barrado pelo constrangimento de não conseguir conciliar a dupla jornada.
A partir daí sua vida volta a declinar. Passou a beber de forma descontrolada, de
A segunda a sábado, só não bebia aos domingos porque a esposa lhe impôs severas
condições. Até que o dia em que ela pediu que escolhesse entre ela e a farra, e ele
optou pela segunda, e não voltou para casa, inaugurando assim, uma
[...]nova vida, com o único remorso de abandonar os filhos, mas com o pro-
pósitos de mandar algum dinheiro por semana, alugou um covil no vasto
• cortiço que dominava todo o quarteirão entre a rua de Frei José Inocentinho
e a avenida do Almirante, habitado por prostitutas, gigolôs e cafetinas[...],
578
até o dia em que não mais suportou aquela colmeia fervilhante que não pa-
• rava noite e dia, dia e noite, com seu cheiro de mofo permanente e penetran-
te; movimentada pelas brigas das putas, entre elas mesmas, delas com os
gigolôs, de marinheiros e soldados, de marinheiros e meganhas autoritários,
delas com os bêbados e seixeiros. Aturdida a qualquer hora, fosse sol ou fos-
se lua, pelos bichos de cria, macacos, cachorros, papagaios, gatos, galinhas,
e a jiboia da negra Belmira[...] (LINHARES, 1995, p.39).
2
Como podemos observar, o espaço narrativo é carregado de significados
que influenciam na construção da identidade do nosso herói, que é forjada sob a
0
insigne da miséria e da degradação, um ambiente de pobreza, onde os habitantes
vivem amontoados em pequenas casas, ou habitações coletivas precárias, que
1 abrigam todo tipo de gente, de animais, de miséria, de doenças. A decida decadente
de Zacarias é acompanhada por uma espécie de câmera que registra com precisão
8 o apagamento do indivíduo em meio ao aglomerado contingente de pessoas
vivendo sem nenhuma perspectiva, mesmo assim ele ainda procura resistir. Mas
é um ser fadado a erros, vícios e fracassos, por isso o classificamos como “herói
problemático”, produto extraído de um espaço real, com características também
reais, como exemplifica Antônio Cândido:
Gente acuada, bloqueada, esmagada pela vida, espremida até virar bagaço
[...]. E a dureza, a incrível dureza desse pequeno mundo sem dinheiro nem
horizontes, cuja existência é uma rede simples e bruta de pequenas misé-
rias, golpes miúdos e infinita cavilações (CANDIDO, 1992, p.36).

Os esforços do protagonista para se sustentar e se erguer parecem


uma espécie de força motriz que rege seus atos em direção contrária, capaz de
culminar na sua desgraça. A aparência apagada expressa o grau de afetação que o
personagem chegou: “Os cabelos estavam mais ralos e a barba de muito não fazer
estava esfarinhada e suja e os bigodes de piaçava usada armavam uma cortina de
palco mambembe, dilacerada nas colunas dos caninos amarelados (LINHARES,
1995, p.37).
O homem sentindo-se incompleto em meio ao sistema capitalista
J excludente, onde as coisas simples que traziam plenitude foram arrebatadas de seu
convívio, relegando-o ao abandono e a desilusão, uma sensação que Lukács (2000)
A denomina de “vazio cultural do capitalismo”. O sentimento de perda experimentado
através desse vazio, o transformará, segundo Marisa Silva (2003), em um ser
L isolado,
[...]apartado do resto do mundo. Seu destino individual fruto de acasos,
esforços e erros, é o que importa e comove o leitor. Nesse universo, o todo
L não é visível nem decifrável, e fica difícil de entender se há um papel a ser
cumprido ou se tudo na vida não passa de mero acaso, sem nenhum sentido
ou razão. (SILVA, 2003, p. 125).
A
E assim, restará a ele a insatisfação e a vontade de fuga, fuga de si
mesmo e do espaço que o cerca. E não demorou muito para que esse desejo se
concretizasse, pois com aumento do aluguel Zacarias teve que sair do quarto onde
dormia, e a forma como o fez mostra mais uma faceta da conduta sombria que
• adquirira nos últimos tempos:
579 Fugiu às quatro e quarenta e cinco e a única mágoa era perder o cálido
excitante da menina que todas as manhãs vinha, nua, mijar no minúsculo
• alpendre da casinhola fronteira e exibir, a dois palmos de seu nariz, a tenra
e fresca pérola do tamatiá repousada nos veludos da vitrine de cristais opa-
cos. (LINHARES, 1995, p.39).

Foi morar na rua, e ao envolver-se em uma disputa por uns restos de Cocal,
quebrou a charamela na cabeça do rival. Sem o instrumento que lhe possibilitava
2 ganhar alguns trocados, o protagonista fica sem perspectiva, “[...] dormia noites e
dias nos bancos e sob os bancos da praça, sem ânimo e coragem para voltar ao velho
0 barco abandonado sob a ponte, as pernas e os braços cobertos de escaras que se
abriam em pontos diferentes imitando cores e caprichos de cravina”. (LINHARES,
1 1995, p.39).
Após ter alta na Santa Casa de Misericórdia, concluiu que não havia outra
8 saída senão dar uma “virada” em sua vida, tentar um recomeço, foi aí que decidiu
se reconciliar com a esposa e retomar o antigo emprego, porém, “[...] quando saltou
do ônibus pela porta da frente a viu entrar pela porta de trás, com uma barriga que
calculou ser de oito meses, e compreendeu que o plano falhara[...]. (LINHARES,
1995, p.39).
Uma trajetória que se resume numa soma de fracassos, onde o desejo
de um recomeço também lhe é negado, restando mais uma vez a frustração, “o
indivíduo problemático, inserido no mundo contingente, busca o sentido que lhe
falta, numa tentativa sempre frustrada de superar a má infinitude”. (LUKACS,
2000, p. 104).
Se o termo degradação pode significar descida, apagamento, destruição,
esse processo só poderá ser comprovado num momento posterior ao fato acontecido,
o que permite verificar a diferença progressiva entre o antes e o depois. Sendo
assim, a trajetória do protagonista aqui analisado, não deixa dúvida a respeito do
seu enquadramento dentro da tipologia baseada no conceito de degradação, como
já havíamos anunciado, e como sua visão de mundo projeta-se no espaço que o
cerca, ao mesmo tempo em que este o sucumbe da maneira mais degradante, e em
J todas as instancias possíveis, como demonstrado na análise aqui realizada.
Considerações finais
A É na modernidade, representada por uma cidade em caos, que Manaus
surge entre as páginas narrativas de Linhares, em imagens de degradação que
L beiram um naturalismo. Nesse espaço se instaura conflitos das mais diferentes
ordens, seja econômica, habitacional, familiar ou pessoal, como uma teia que
L envolve o protagonista Zacarias, e este, como que tragado pelas adversidades e
desencontros, não consegue mais se desvencilhar do destino trágico que se torna
inerente ao herói. A história encerra com um final “em aberto”, sugerindo uma
A continuidade nessa trajetória cambaleante:
Bota mais álcool.
Não, toma uma cana decente. É oferta da casa.
(LINHARRES, 1995, p. 41)

• Zacarias representa a classe pobre e trabalhadora da área pública,


580 ocupando um cargo de baixa remuneração. É nessa concepção que se configura a
narrativa, pois o ser humano procura em si a satisfação, o completo, no entanto

essa ausência o leva a buscar outras alternativas de sobrevivência, caminhos
que o levam cada vez mais ao encontro da marginalização, da exclusão e da
decadência social e pessoal. Sua trajetória possibilita constatar a existência de
um condicionamento imposto pelo sistema social vigente, que o leva a incursões
contraditórias, e na maioria das vezes frustradas. A imposição do sistema capitalista
2 opressor e aniquilador, fruto da modernidade e da “globalização”, não permite a
Zacarias concretizar os mais simples desejos.
0 O espaço narrativo também se reveste de significados que complementam
o sentido interpretativo e analítico ao se correlacionar com os conflitos e a falta
1 de perspectiva de seus habitantes em suas andanças inquietas, passando assim
a reger os atos dos personagens. Deste modo, o texto literário de Linhares não
8 cumpre somente uma função estética, mas também se mostra fundamentado e
comprometido com a matéria funcional, social e ideológica, ao apresentar uma
leitura de mundo que nos possibilita um olhar crítico acerca do ambiente físico e
concreto, com seu poder determinante e limitador por onde o indivíduo se move
diariamente, e onde também projeta seus anseios, angústias e frustações.

Referências
CANDIDO, Antônio, Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. São Paulo: Edi-
tora 34, 1992.
GOLDMANN, Lucien. Sociologia do romance: tradução de Álvaro Cabral: Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1976.
KOTHE, Flávio R. O herói. 2 ed. Editora Ática, 1987
LINHARES, Erasmo do Amaral. O tocador de charamela. Manaus: UA, 1995.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.
RUAS, Luis. Prefácio. In: LINHARES, Erasmo do Amaral. O tocador de charamela. Ma-
naus: UA, 1995.
SANTOS, Robson dos. Escrita e Sociedade: estudos de sociologia da literatura. Goiânia:
J Ed. da UCG, 2008.
SILVA, Marisa Corrêa. Crítica sociológica. In: BONICCI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana.
A Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Eduem,
2003.
L SOUZA, Márcio. História da Amazônia. Manaus: Editora Valer, 2009.

L

A


581

2

0

1

8

J

A

L O APLICATIVO DUOLINGO COMO FERRAMENTA DE ENSINO NO
CAP: UMA ANÁLISE SOB O OLHAR DOS ALUNOS
L
João Romário Sinhasique (UFAC)
A Marileize França (UFAC)
RESUMO: O artigo resulta da pesquisa intitulada “A Aprendizagem em Espanhol e
Inglês mediada pelo app Duolingo”, financiada pelo Ministério das Comunicações,
em parceria com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Acre. Embasada em uma
perspectiva sócio-interacionista (VYGOTSKY, [1930], 2007), em que o aprendizado é
• construído em um meio social; interdisciplinar considerando que o sujeito e o outro
estão o tempo todo imersos na linguagem, no diálogo e na interação (BOCHNIAK,
582
1992; SAVIANI, 2003); e em concepções sobre Letramento digital (SOTO et al.,2009;
• PRENSKY, 2001a, 2001b), ofertou-se um curso de inglês e espanhol mediado pelo
Duolingo para alunos do 6º ao 8º ano do Colégio de Aplicação da Universidade
Federal do Acre. Dado o exposto, objetiva-se apresentar a percepção de quarenta
e um (41) participantes, diagnosticada, através de análise da pesquisa quantitativa
e qualitativa (FONSECA, 2002; GERHARDT, 2009), identificando, assim, o bom
2 aproveitamento, os pontos fortes e fracos do curso.
Palavras-chave: Percepção. Ensino de Espanhol e Inglês. Aplicativo Duolingo.
0 Introdução
Posto que este artigo resulta da pesquisa intitulada “A Aprendizagem em
1 Espanhol e Inglês mediada pelo app Duolingo”, considera-se pertinente fornecer
algumas informações a seu respeito. A pesquisa aprovada no âmbito do Edital
8 003/2017 MCTIC/FAPAC, do Programa Redes Digitais da Cidadania, financiada
pelo Ministério das Comunicações, em parceria com a Fundação de Amparo à
Pesquisa do Acre (FAPAC), desenvolveu-se no segundo semestre de 2017 no Colégio
de Aplicação (CAp) da Universidade Federal do Acre.
Cientes das novas possibilidades de ensino utilizando-se das Tecnologias
de Informação e Comunicação (TICs) como ferramentas educacionais e com a
concepção que o professor precisa engajar o aluno em um processo de aprendizagem
mais autônomo, ou seja, orientá-lo a lidar com as TICs em prol do seu processo
de aquisição de conhecimento em espanhol e inglês desde a Educação Básica, as
professores de língua inglesa e espanhola do CAp buscaram recursos tecnológicos
a fim de possibilitar a inclusão da tecnologia como ferramenta educacional de
acesso e construção de conhecimento contribuindo, assim, com o desenvolvimento
da autonomia dos alunos no processo de aprendizagem. Isto porque, ao estimular
a autonomia dos alunos na aprendizagem de línguas, cria-se a possibilidade de
formar pessoas mais empoderadas, tolerantes, empáticas e, portanto mais aptas à
vida em sociedade.
Nessa perspectiva, com vista à formação integral dos estudantes como
J cidadãos críticos que compreendem o papel que o uso consciente da linguagem
exerce nas diferentes situações de ação no mundo social, as professoras delinearam
A um curso para quarenta e um (41) alunos do 6º ao 8º ano que se pautou na
interdisciplinaridade, que pode propiciar ao aluno um olhar mais crítico, além de
L desenvolver a reflexão sobre assuntos que vão desde a ética à pluralidade cultural
(SAVIANI, 2003). Buscou-se, assim, estabelecer uma interface entre o uso da

tecnologia na sala de aula com o currículo da escola e um repensar do processo de
L ensino-aprendizagem de Língua Inglesa e espanhola.
Considerando o exposto, objetiva-se aqui apresentar uma análise
A do curso sob o olhar dos alunos, abordando questões referentes à avaliação
geral, desempenho individual e do aplicativo utilizado, assim como dificuldades
enfrentadas pelos alunos no decorrer do processo de construção de conhecimentos.
Aspectos Teóricos
• Com a concepção que o sujeito é um ser sócio histórico, que se constitui
e se desenvolve na relação com o outro, em uma atividade intermediada pela
583
linguagem, conforme pontua Vygotsky ([1930] / 2007) e Bakhtin ([1953] / 2003), o
• curso com enfoque no ensino da língua inglesa e espanhola mediada pelo aplicativo
Duolingo, delineou-se em uma perspectiva sócio-interacionista (VYGOTSKY, [1930],
2007), em que o aprendizado é construído em um meio social; em um estudo
interdisciplinar (BOCHNIAK, 1992; SAVIANI, 2003) considerando que o sujeito e
o outro estão o tempo todo imersos na linguagem, no diálogo e na interação; e em
2 concepções sobre Letramento digital (SOTO et al., 2009; PRENSKY, 2001a, 2001b).
Entende-se que a inclusão da tecnologia como ferramenta educacional
0 na sala de aula pode promover a construção de novos conhecimentos, a cultura
e a inclusão digital, contextualizadas por temas transversais, bem como o
1 desencadeamento de uma aprendizagem mais autônoma, visto que uma vez
mais autônomos, os alunos se apropriam do seu processo de aprendizagem. Para

isso, tornou-se necessário fomentar debates sobre diversos assuntos dentro da
8 sala de aula utilizando-se da interdisciplinaridade, através de um “processo de
coparticipação, reciprocidade, mutualidade, diálogo que caracterizam não somente
as disciplinas, mas todos os envolvidos no processo educativo”, conforme sugere
Bochniak (1992, p.147).
A Lei de Diretrizes e Base da Educação 9.394/96 e os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) de Língua Estrangeira do 3º e 4º ciclos indicam
também o uso da interdisciplinaridade como forma de desenvolver a integração
dos conteúdos de uma disciplina com outras áreas de conhecimento, o que torna
uma importante ferramenta para o aprendizado do aluno. Saviani (2003) afirma
que a interdisciplinaridade possibilita um passar de conhecimento setorizado para
um conhecimento integrado onde as disciplinas se interagem. Bochniak (1992)
pontua que, através dessa interação, há troca de metodologias, conhecimentos,
ou seja, troca de dados, resultados, informações e métodos. Nessa perspectiva,
a interdisciplinaridade, eixo integrador como um objeto de conhecimento, de
investigação e intervenção (BRASIL, 2002), esteve presente no decorrer do curso,
de maneira contextualizada e permanente.
J Ao considerar a perspectiva sócio-interacionista (VYGOTSKY, [1930],
2007) em que o aprendizado é construído em um meio social, a internet, os
A aplicativos (apps) podem se tornar para o aluno uma ferramenta útil para o
desencadeamento de uma aprendizagem mais autônoma, buscando informação
L no mundo e construindo seu próprio conhecimento através da aprendizagem
colaborativa ao trocar experiências com outros alunos / pessoas em variadas

situações comunicativas.
L
Nesse sentido, faz-se necessário um ensino em que os alunos estejam
capacitados a utilizar recursos digitais que auxiliem sua aprendizagem, a fazer
A buscas mais eficientes na internet, a avaliar os conteúdos encontrados e a interagir
com eles criticamente. No entanto, para que isso seja, de fato, profícuo, é preciso
promover o letramento digital dos alunos, não apenas garantindo seu acesso a
novos equipamentos e programas de aprendizagem, mas ensinando-os a utilizá-los
de forma crítica e inserida em contextos sociais.
• Entende-se que Letramento digital se refere à habilidade de localizar,
584 organizar, entender, avaliar e produzir conhecimento usando tecnologia digital
• (SOTO et al.,2009). O que nos permite explorar os multiletramentos (ROJO;
MOURA, 2012, p. 38) que “levam em conta a multimodalidade e a multiplicidade
de significações e contextos/culturas” mostrando-se assim, uma alternativa viável
para ser utilizada no contexto em que se insere essa pesquisa. O termo faz referência
às novas práticas de letramento as quais envolvem multiplicidade de linguagens e
2 mídias presentes hoje na criação de textos, e sua diversidade cultural referente aos
seus produtores e também leitores. (ROJO; MOURA, 2012, p. 168-169).

Diante de toda esta cultura digital que nos rodeia educar significa
0
possibilitar o acesso às informações e ao conhecimento que as tecnologias
promovem. Embora os alunos estejam supostamente bastante familiarizados com
1 as tecnologias digitais, por serem considerados nativos digitais (PRENSKY, 2001a,
2001b), é muito comum que eles as utilizem de forma limitada, às vezes até mesmo
8 de forma equivocada e/ou para entretenimento e não como uma ferramenta de
auxílio à aprendizagem. Sabe-se que grande parte dos alunos desconhece, por
exemplo, a existência de diversos apps que podem auxiliar no processo ensino-
aprendizagem de uma Língua Estrangeira.
A abreviatura app origina-se do termo Application em inglês, que significa
aplicativo. Por aplicativos, entendem-se os programas que podem ser instalados
no telefone celular ou tablets principalmente por meio de lojas de aplicativos. Há
também aplicativos voltados ao entretenimento que costumam chamar muita
atenção de crianças e jovens por serem jogos virtuais, como Candy Crush Saga,
Crash Royale, Bomber Friends e Pokémon Go. Ao notar esse interesse, educadores
e programadores passaram a construir apps que se propõem a ensinar enquanto
divertem. Em busca de tornar o processo de ensino-aprendizagem mais similar a
um jogo, desenvolveram-se técnicas de gamification, ou gamificação que consiste
em utilizar os recursos/estratégias dos jogos em outros contextos (ERENLI, 2013).
Em maior ou menor grau, as lojas de aplicativos dispõem de opções gamificadas
para a aprendizagem de idiomas tais como Duolingo, Memrize, Busuu, hello-hello,
Learn English e outros.
J Acredita-se que o uso de apps no processo de construção do conhecimento
em espanhol e inglês pode proporcionar aos alunos interação e engajamento
A discursivo nestes idiomas, uma vez que possibilita a abordagem de outros assuntos
relacionados à cultura, oferecendo assim, ao aluno oportunidade de conhecer
L novas culturas e valorizar sua própria. Os apps desenvolvem colaborativamente
a construção de novos conhecimentos sobre os mais diversos assuntos. Além

disso, possibilita explorar ambientes diversificados de aprendizagem combinando
L interesses, necessidades e, principalmente, orientação de como usar a tecnologia
sempre em prol das seguintes perguntas: O que? Por quê? Para que? e Como?.
A Diante desse contexto, o ensino de línguas vem sendo mediado por
diferentes tecnologias que, de diferentes maneiras, subsidiam de melhor forma as
quatro práticas de linguagem: compreensão oral, fala, leitura e escrita. Atualmente,
um número muito maior de alunos possui dispositivos móveis, o que significa
que há maior possibilidade de se envolverem em atividades motivadas por suas
• necessidades pessoais. Sabe-se que um dos procedimentos básicos de qualquer
585 processo de aprendizagem é a relação que o aluno estabelece entre o que faz e o que
quer aprender com aquilo que já sabe (MATTAR, 2010). Os apps estão presentes

em nosso cotidiano, mediando múltiplas práticas sociais, justificando, assim, seu
uso na educação.
No caso específico da pesquisa, o aplicativo Duolingo se justifica por
ser uma ferramenta útil e significativa em termos pedagógicos, que promove a
2 aquisição de duas segundas línguas, inglês e espanhol, assim como a construção
de novos conhecimentos, utilizando-se da interdisciplinaridade.

0 O aplicativo Duolingo como ferramenta de ensino

O Duolingo é um aplicativo gratuito de estudo de idiomas. Do ponto de


1 vista técnico, é dotado de versatilidade, pois se trata de um software multiplataforma,
ou seja, o app está disponível para os principais sistemas operacionais, o que

possibilita maior universalidade no acesso podendo funcionar como uma ferramenta
8 de inclusão digital e social.
Ao contrário de grande parte dos apps disponibilizados gratuitamente, o
Duolingo conta com uma equipe de suporte em espanhol e inglês, uma comunidade
engajada no desenvolvimento de novos cursos e oferece continuamente atualizações
no seu código-fonte que garantem segurança levando a melhorias frequentes. Em
formato de jogo, o aluno vai avançando por níveis, o que torna a aprendizagem mais
estimulante e desafiadora. Todos os idiomas começam com exercícios básicos que
evoluem conforme a quantidade de acertos. Cada lição é uma fase e ao se concluir
uma lição, outra é desbloqueada.
O aplicativo não aborda um ensino de línguas contextualizado, voltado
para o uso situacional da linguagem. O foco centra-se na estrutura da língua, uso
de vocabulário, tradução, compreensão oral e pronúncia. A cada lição há atividades
de áudio que permitem os alunos escutar e repetir as palavras e/ou frases. Caso
não esteja correto, o aplicativo pede para repetir. Entretanto, por meio da repetição
de estruturas e vocabulário, o aplicativo possibilita um avanço na aprendizagem,
o que possibilita a aquisição de autonomia no próprio processo de construção de
J conhecimento.
Recentemente, a equipe do Duolingo, dando continuidade às práticas
A de gamificação e buscando aumentar a concorrência entre os usuários, criou a
possibilidade da comunidade se reunir em grupos que concorrem pelo topo do
L ranking. A estratégia é similar à maioria dos jogos on-line atualmente disponíveis
no mercado. Além disso, encontram-se também estratégias voltadas para a sala de

aulas e uma diversidade de assuntos, que permitem a elaboração de atividades que
L levam a uma reflexão que vão desde a ética à pluralidade cultural, especificamente
no “Duolingo for Schools”, que oportuniza o professor a criar salas de aula on-line
A em conjunto com seus alunos e acompanhar o progresso dos estudantes. O que
permite identificar as possíveis dificuldades dos alunos ao realizarem as tarefas no
decorrer do processo de construção de conhecimento mediado pelo aplicativo.
O aplicativo é composto por unidades que propõem a construção das
quatro práticas de linguagem (escrever, ler, ouvir e falar) que trabalhadas de
• forma sistemática e aprofundadas podem oferecer aos alunos instrumentos para,
586 gradualmente, superarem as dificuldades que provavelmente irão aparecer no
decorrer dos níveis para assim, tornarem autônomos no seu próprio processo de

construção de conhecimento.
O curso utilizando-se do Duolingo como ferramenta de ensino foi ofertado
para quarenta e um (41) alunos do 6º ao 8º ano do Ensino Fundamental, com idades
entre 11 e 13 anos, no decorrer do (06) meses, de julho a dezembro. Os encontros,
2 tanto em Espanhol como em Inglês, foram planejados simultaneamente para que
os alunos pudessem estar preparados cognitivamente para receber o mesmo nível
de conhecimento das duas línguas.
0
Ao estruturar os módulos do curso, além dos momentos destinados
às atividades disponibilizadas no aplicativo, buscou-se, também, promover uma
1 reflexão, partindo das duas línguas, de questões importantes, tais como, os
impactos da tecnologia: no cotidiano, na segurança e na saúde mental dos alunos.
8 Dentre os textos abordados, conceitos como ciberacoso (conhecido no Brasil como
bullying virtual) e delitos de odio y discriminación (delitos de ódio e discriminação
na Internet, como racismo e xenofobia) foram trabalhados para promover um uso
mais seguro da internet.
Discutiu-se também sobre privacidade, um dos aspectos da segurança,
problematizando situações postas que comumente não são analisadas a partir de
reflexões mais aprofundadas. Por meio do texto How to take a good selfie, tendo em
vista a necessidade de uma foto no perfil do Duolingo, houve uma discussão sobre
os motivos que levam as pessoas a tirar fotografias de si mesmas. Dentre outras
temáticas, abordou-se também a diversidade cultural referente às variadas formas
de concepção e percepção do “dia dos mortos”, “día de los finados” ou “halloween”,
que levou os estudantes a ter conhecimento sobre as diversas formas que outros
países comemoram estas datas.
No decorrer do curso, os alunos tiveram a oportunidade de utilizar os
recursos disponibilizados no aplicativo Duolingo, de conhecer uma nova ferramenta
no processo de aprendizagem de língua espanhola e inglesa, e compreender a
importância do uso do telefone celular, assim como de aplicativos, como ferramenta
J educacional na aprendizagem de uma segunda e terceira língua. Pelas discussões
propostas, numa perspectiva de ensino contextualizado, tiveram também a
A oportunidade de perceber a funcionalidade do conhecimento adquirido: que o
conhecimento está muito próximo dele em seu dia a dia.
L Uma análise sob o olhar dos alunos
Em busca de analisar o curso sob o olhar dos alunos, tomou-se como
L referências estudos acerca de dados quantitativos, em que “a análise tem como
objetivo organizar os dados de forma que fique possível o fornecimento de repostas
para o problema proposto”, conforme proposto por Gerhardt (2009, p.81), e
A
qualitativos, que se preocupa com a compreensão de um grupo social, buscando-
se explicar o porquê das coisas (p.32). Aplicou-se, assim, um questionário final,
metodologia científica (FONSECA, 2002, p.11), com seis (6) questões, sendo
quatro (4) objetivas e duas (2) dissertativas, abordando a avaliação geral do curso,
desempenho individual, do aplicativo, e dificuldades enfrentadas pelos alunos

no decorrer do processo. Os resultados obtidos refletem a qualidade do curso, os
587 pontos positivos e negativos.
• Em relação à qualidade do curso, os dados refletem que a aceitação do
curso foi muito boa por parte dos alunos. O que pode ser confirmado pelos 85% dos
alunos, dentre os quarenta e um (41) participantes, que acharam o curso de uma
forma geral ótimo, conforme gráfico a seguir.
GRÁFICO 1- AVALIAÇÃO GERAL DO CURSO DUOLINGO
2

0

1

8

FONTE: Os autores (2018)


Apesar das diferentes percepções que o aprendiz pode ter a respeito de
um curso e de seu processo de aquisição de conhecimento, não se pode afirmar que
o curso teve um impacto positivo na aprendizagem dos mesmos 85% dos alunos
que o acharam “ótimo”. O que pode ser observado no gráfico a seguir.
GRÁFICO 2- DESEMPENHO INDIVIDUAL DOS ALUNOS
Ótimo Péssimo Ruim
10% 0% 2% Regular
17%

J

A

L

L
Bom
71%
A
FONTE: Os autores (2018)

Os dados revelam um conceito “bom” quanto ao desempenho individual de
71% dos alunos participantes. Isto reflete o desempenho do aluno em comparação
com o curso em si. Entende-se que ao fazer uso de um aplicativo de ensino, muito
• se exige dos alunos no que diz respeito a sua autonomia para a realização das
atividades, uma vez que requer do aluno disciplina e esforço individual de cada um.
588
Os dados sugerem que os discentes reconhecem que poderiam ter se empenhado
• mais para alcançar as metas no app e, assim, obter um desempenho melhor, uma
vez que a maioria dos participantes considera o curso “ótimo”. Entretanto, apesar
da ótima avaliação do curso, a chance de ter uma alta indicação a um colega seria
apenas de 61%, conforme gráfico a seguir.
GRÁFICO 3- INDICAÇÃO DO CURSO A UM COLEGA
2 Muito baixa
Não respondeu Baixa Regular
2%
0%
0% 15%
0

1

Boa
8 22%

Alta
61%

FONTE: Os autores (2018)


O quantitativo apresentado possibilita reflexões a respeito do qualitativo
do curso, uma vez que este tipo de pesquisa se preocupa com o aprofundamento da
compreensão de um grupo social. Segundo Gerhard (2009), uma análise que busca
explicar o porquê das coisas e centra-se na compreensão e explicação da dinâmica
das relações sociais.
Para isso, recorreram-se às seguintes indagações: Por que os alunos
não indicariam o curso na mesma proporção que gostaram? O que falta para o
curso receber indicações? Que atividades ou aspectos poderiam ter sido mais
bem trabalhados? Perguntas que podem ser explicadas com os dados expostos no
J gráfico a seguir.
GRÁFICO 4- AVALIAÇÃO DO APP DUOLINGO

A Péssimo Ruim
5% Regular
0%
7%

L
Bom
12%
L

A

Ótimo
76%

589
FONTE: Os autores (2018)

Observa-se que 76% dos alunos avaliaram o app Duolingo como ótimo.
No entanto, o exposto no gráfico acima atrelado a informações de que a potência
do processamento do celular, utilizado para a realização do curso, é baixa, o
que ocasiona travamentos em apps exigindo um pouco mais de processamento,
2 possibilita inferir que os 24% referente à avaliação do app – distribuídos em ruim,
regular e bom, foram resultados obtidos, provavelmente, devido a dois fatores:
limitação sofrida pelo desempenho do aparelho e falta de tempo em alcançar as
0 metas estabelecidas, conforme relatos dos alunos, e não pela falta de ferramentas
de ensino do app.
1 A lentidão do aparelho se justifica devido ao modelo de celular, contudo,
esses travamentos não eram recorrentes ao ponto de impedi-los de utilizarem o
8 aplicativo para a execução das tarefas propostas pela equipe do projeto. O outro
aspecto, “fator tempo”, reflete um processo de não gerenciamento de tempo por
parte do aluno no processo de aprendizagem. O que pode ser explicado pela faixa
etária, alunos com idades entre 11 e 13 anos, que ainda não desenvolveram uma
autonomia e precisam de orientações para gerenciar o tempo de estudos. Esses
fatores agregados a outros geram dificuldades descritas no gráfico a seguir.
GRÁFICO 5. DIFICULDADES ENFRENTADAS PELOS ALUNOS

J

A

L

L

A
FONTE: Os autores (2018)

No decorrer do curso, a maior dificuldade dos alunos se diz respeito à
locomoção. Por se tratar de um curso ofertado no turno vespertino, há alguns
pontos que se fazem necessários ressaltar, tais como: indisponibilidade dos pais
• para deixar os alunos; o preço do passe de ônibus para ir à escola duas vezes ao
590 dia; cansaço de se locomover até a residência para almoçar e retornar para o curso.
• Outra dificuldade enfrentada refere-se às várias atividades realizadas
na escola que coincidiam com o horário do curso. Os alunos relataram que por
muitas vezes tiveram conflitos de horários, ou seja, outras atividades, como provas
e projetos paralelos que os impediam de por vezes ir para o curso do Duolingo.
Um quantitativo reduzido de alunos, dentre os quarenta e um (41) participantes,
2 apontaram a conversa em sala de aula demasiadamente desconfortável para a
compreensão da aula.

0 No que tange a outras dificuldades, três (3) alunos destacaram: timidez,
parente doente e dificuldade com a aprendizagem da língua. Quanto à timidez, os

dois alunos que relataram esse problema disseram ter superado no decorrer do
1 curso. Um aspecto interessante de se observar aqui é que o espaço de aprendizagem
delineado no curso, caracterizado por interações entre os aprendizes e os parceiros
8 mais competentes (VYGOTSKY, [1930] / 2007), contribuiu para a solução de
problemas.

No que se refere aos melhores e piores momentos dos alunos durante o
curso, os dados revelam que houve mais aspectos positivos que negativos. O que
revelou resultados satisfatórios uma vez que esse recorte buscou-se identificar a
percepção dos participantes quanto ao curso, bem como pontos que poderiam ter
sido mais bem trabalhados. Uma conclusão que emerge desse estudo é que os
alunos ainda precisam de orientações quanto ao uso da tecnologia como ferramenta
educacional e de mais atividades e/ou futuros projetos que promovam a aquisição
de autonomia, fortalecendo a construção de novos conhecimentos em língua inglesa
e espanhola mediada por aplicativos.
Conclusão
Esse artigo objetivou-se apresentar a percepção de quarenta e um
(41) alunos do 6º ao 8º ano do Ensino Fundamental do Colégio de Aplicação
da Universidade Federal do Acre, participantes do curso ofertado no decorrer
da pesquisa intitulada “A Aprendizagem em Espanhol e Inglês mediada pelo
J app Duolingo.” Percepção esta diagnosticada, através de dados quantitativos e
qualitativos, identificando, assim, o bom aproveitamento, os pontos fortes e fracos
A do curso.
Os dados analisados evidenciaram um bom aproveitamento do curso por
L parte dos alunos e uma satisfação com as atividades propostas em sala de aula,
tais como: gincanas e atividades diversas desenvolvidas com e sem o app. Além da
L promoção do sentimento de competição e superação, da percepção do progresso
pelo alcance das metas e pelo próprio aprendizado ao longo do curso. O aluno x
ilustra a avaliação feita pelos participantes no final do curso: “Obrigado pelo curso
A
além do aprendizado foi muito bom passa o tempo com todos vocês”.

Como é possível perceber pela avaliação do aluno, o delineamento do
curso em uma perspectiva sócio-interacionista (VYGOTSKY, [1930], 2007), em
que o aprendizado é construído em um meio social, possibilitou um ambiente de
• interação entre os aprendizes e os parceiros mais competentes, de forma que o
nível real em que o aluno estivesse e o seu nível em potencial para aprender sob a
591
orientação de um parceiro mais competente pudesse ser explorado. O que pode ser
• observado no relato do aluno y: “Eu nunca tive pior momento no curso, graças ao
Duolingo fiz novos amigos e me aproximei de pessoas que eu mal conhecia, minha
parte favorita é quando acertamos uma questão que a professora dá e ganhamos
um doce como recompensa.” Atividades que permitiram a troca de experiências,
a construção de novos conhecimentos e, consequentemente, aquisição de novos
2 amigos contribuindo, assim, para a superação do bloqueio presente, em alguns
casos, em aprender uma nova língua.
0 Os aspectos negativos pontuados pelos alunos: utilizar o app, que por vezes
travava devido à baixa potência de processamento do celular; incompatibilidade
1 do horário do curso com as atividades extras classes também ofertadas no turno
vespertino; dificuldades financeiras e também cansaço para se locomover até a

residência e retornar para o curso; em geral, foram os problemas e conflitos mais
8 enfrentados que ocorreram durante o desenvolvimento das atividades. Conflitos
estes que de alguma forma inviabilizaram o desenvolvimento das atividades
conforme planejadas, e que carecem de reflexão no delineamento de futuros estudos
propostos na perspectiva desse aqui apresentado.
Acredita-se que um dos grandes desafios da educação atual é o de
criar condições para a integração dos recursos da tecnologia a um aprender
mais significativo, visando um alinhamento com o letramento digital dos alunos.
Entretanto, a aprendizagem mediada pela tecnologia demanda do aluno uma
autonomia on-line e estratégias para administrar seu tempo de estudo. É razoável
inferir pelo perfil dos aprendizes em questão (alunos com idade entre 11 e 13 anos)
que eles tendem a ser menos autônomos e os dados revelam que eles precisam de
mais orientações para a construção de sua autonomia.
Apesar das limitações desse estudo, seu mérito está em contribuir com a
reflexão uma vez que procurou estar em sintonia com as novas demandas sociais
da atualidade, priorizando uma nova relação com o conhecimento e, desse modo,
promovendo a inclusão digital do ensino de Língua Estrangeira numa perspectiva
J interdisciplinar na escola pública, portanto, com a concepção que outras pesquisas
com foco no desenvolvimento da autonomia no processo de aprendizagem de Língua
Estrangeira mediada por aplicativos, por exemplo, poderão trazer uma significativa
A contribuição para o debate em torno dessa temática.
Referências
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/ 2007).
J

A

L LIMITES E POSSIBILIDADES ENTRE A EDUCAÇÃO BÁSICA
E UNIVERSITÁRIA: CONCEPÇÕES DE ALUNOS(AS) DO
L ENSINO MÉDIO SOBRE A POSSIBILIDADE DE INGRESSO NA
UNIVERSIDADE
A
Jorge Fernandes (UFAC)
Ângela Maria Bastos de Albuquerque (UFAC)
RESUMO: Nesta pesquisa, investigamos 243 alunos(as) nos anos finais do ensino
médio, para analisar o grau de aproximação versus distanciamento entre os
• concludentes da educação básica e a universidade. Pela aplicação de questionários,
593 registramos as concepções sobre a universidade na visão de alunos(as) das escolas
públicas no ensino médio. Utilizamos as bases teóricas de (ARROYO, 2014) e (LAHIRE,

2008) ao tratarem respectivamente das desigualdades de oportunidades entre as
populações subalternizadas e as razões do improvável, quando alunas e alunos
das classes populares alcançam os degraus da escolarização em nível superior.
Os resultados parciais indicam que alunas e alunos de escolas públicas em vias
de concluírem a educação básica, desconhecem seus direitos quanto aos cursos
2 universitários como também desconhecem as bolsas e auxílios que possibilitam a
permanência nos estudos aos alunos(as) em situação de vulnerabilidade econômica.
0 Palavras-chave: Ações afirmativas. Orientações. Universidade. Ensino médio.

Introdução
1
A transição entre a educação básica e a universidade ou faculdade é o
tema central desta pesquisa. O trabalho realizado nas escolas de ensino médio
8 através da disciplina de Investigação e Prática Pedagógica na Universidade Federal
do Acre tem possibilitado reflexões sobre as condições de alunos(as) ao final da

trajetória escolar na educação básica. As limitadas vagas nas universidades federais
e estaduais impõem desafios principalmente aos egressos das escolas públicas.
As condições econômicas desfavoráveis apresentam dilemas pela necessidade de
escolha entre ingressar na universidade e continuar estudando em nível superior
ou entrar no mercado de trabalho.
Os participantes da pesquisa foram 513 alunos(as) do segundo e
terceiro ano do ensino médio, em duas escolas públicas na cidade de Rio Branco,
Acre. As análises foram realizadas pela amostragem de dados referentes a 243
discentes através de um projeto de extensão cuja finalidade tem sido orientar
futuros candidatos ao exame do Enem em relação às expectativas de ingresso na
universidade. O principal objetivo foi investigar o que pensam os alunos(as) na
fase final da educação básica, sobre a possibilidade de estudarem na universidade.
Buscamos compreender que projeções são realizadas pelos discentes em relação
aos cursos, as bolsas de auxílio financeiro e o direito às cotas ou reserva de vagas
J legalmente garantidas a determinados grupos de candidatos do Enem aprovados
na universidade.
A Para obtenção dos dados utilizamos a seguinte metodologia: antes de
realizarmos as orientações previstas no projeto, disponibilizamos para cada aluno(a)
L um questionário na intenção de conhecer o perfil dos discentes e de sua família,
situação sócio econômica, visão sobre a escola e perspectivas sobre o ingresso na

universidade. Entre os principais questionamentos destacamos os seguintes: O
L que pensam sobre a universidade? A quem recorrem em busca de orientação sobre
o futuro após o ensino médio? Quais as expectativas após concluir a educação
A básica: adentrar no mercado de trabalho ou ingressar em um curso universitário?
Em quais cursos constroem expectativas de ingresso caso sejam aprovados(as)
no Enem? Que informações dispõem sobre as cotas ou reservas de vagas nas
universidades públicas? O que sabem sobre as bolsas e auxílios disponibilizados
nas universidades?
• Na intenção de situar a discussão no campo teórico, registramos os
594 conceitos de renomados pesquisadores sobre a temática da educação universitária
nas classes populares e os desafios que enfrentam no percurso da trajetória escolar

desde a educação básica até onde é possível alcançar seus direitos educacionais.
Registramos os dilemas enfrentados ao aproximar a conclusão da educação básica
e o resultado de suas expectativas e as realidades nesse período do percurso
escolar.

2 Alunos(as) das classes populares no centro das pesquisas educacionais

As garantias constitucionais ao acesso à educação desde a Carta


0 Magna de 1988, ampliou os limites de oportunidades entre a classe popular e a
elite brasileira. Políticas de financiamentos educacionais a exemplo do Fundef e

Fundeb expandiram os números de matriculas nas escolas públicas. O acesso e
1 permanência dos(as) alunos(as) nas instituições educacionais foi reafirmado na Lei
nº 12.796 publicada em abril de 2013 alterando a LDB 9394/1996. Doravante, o
8 Estado passou a ofertar obrigatoriamente o ensino público gratuito entre 4 e 17
anos de idade. Essas ações legais ampliaram as expectativas de um número maior
de alunos(as) completarem a trajetória da educação básica.
As condições de acesso, permanência e conclusão do percurso escolar
tem sido objeto de pesquisa de renomados teóricos da educação. Os resultados
dos estudos do francês Bernard Lahire e o do espanhol Miguel González Arroyo,
balizaram as análises do presente artigo. O primeiro se ocupou de investigar entre
outros temas, o sucesso e fracasso escolar nas classes populares. O segundo, nessa
mesma linha epistêmica investigou também o peso da cultura familiar dos alunos e
do ordenamento escolar sobre o sucesso ou fracasso na educação básica.
Ambos os autores trabalham com variantes justificativas sobre o sucesso
ou fracasso nas trajetórias escolares de alunos das classes populares. Não é possível
explicar nem justificar esse problema por uma única via de análise, há que se
considerar desde a micro estrutura familiar, a organização curricular e disciplinar
na escola até o macro sistema educacional no sentido de se evitar equívocos das
J explicações unívocas.
Ao tratar da educação nas classes populares, Lahire, (2008), identificou
A que as situações de “fracassos” escolares nesse grupo, são casos de solidão dos
alunos no universo escolar. Esse isolamento mencionado pelo autor refere-se ao
L distanciamento entre a cultura familiar dos alunos e as práticas estabelecidas pela
escola. Nas estruturas familiares em que os pais ou responsáveis são analfabetos
ou não ultrapassaram as séries iniciais, seus filhos estudantes, encontram-se em
L
uma posição ambígua entre o que aprendem na escola e o que vivenciam em suas
famílias. (LAHIRE, 2008, p. 19).
A Nesse contexto, o referido autor explica que muito pouco “daquilo que
interiorizaram através da estrutura de coexistência familiar lhes possibilita
enfrentar as regras do jogo escolar, (os tipos de orientação cognitiva, os tipos
de práticas de linguagem, os tipos de comportamentos).”(LAHIRE, 2008, p. 19).
A cultura formalizada na escola contrasta com as disposições e procedimentos
• cognitivos da clientela oriunda das classes populares. O comportamento familiar
595 indouto, contíguo a vida familiar dos(as) alunos(as), discorda das aprendizagens
• derivadas da escola.
Hierarquicamente, em comparação com outras instituições, a exemplo
da família e da igreja, a escola ocupa lugar privilegiado por sua ilusória crença
de possibilitar ascensão social, econômica e moral a todos(as) alunos(as) que por
ela passam. Analisando os efeitos da organização escolar sobre os(as) alunos(as),
2 Arroyo (1992), compreende que “essa cultura materializada termina por se impor
à cultura individual, ao menos interage conflitivamente e leva à construção de
significados e crenças sobre o fracasso e sucesso, tanto nos professores quanto
0
nos alunos.” (ARROYO, 1992, p. 48). A responsabilidade do resultado positivo ou
negativo recai sobre os sujeitos e não sobre a instituição.
1 Sem o auxílio cognitivo da família o percurso da trajetória escolar dos
anos iniciais até o ensino médio torna-se exaustivo e cansativo, nesse cenário,
8 a possibilidade de ingressar na universidade, para cursar mais quatro ou cinco
anos de estudos, causa verdadeiro conflito interior e nem todos(as) jovens
sabem exatamente o que fazer ou que decisão tomar. Há ao menos três vias de
possibilidades diante dos concludentes da educação básica: descansar um pouco
para mais tarde tentar um curso técnico ou superior, ingressar no mercado de
trabalho ou enfrentar os desafios do Enem ou vestibular e almejar a realização de
um curso superior na universidade ou faculdade. São essas possibilidades que
o presente trabalho se propõe a investigar nos alunos(as) das escolas públicas.
Dilemas ao se aproximar a conclusão da educação básica
As profundas desigualdades sociais, econômicas e culturais entre
alunos(as) das camadas populares e as classes elitizadas, geram situações desiguais
no percurso da escolarização e principalmente ao se aproximar o fim da trajetória
escolar na educação básica. Conforme registrado por Nogueira (2011), para alunos
de camadas intelectualizadas, “a universidade aparece, nessas trajetórias, com
a força de uma quase “evidência”. (NOGUEIRA 2011, p. 132). Essa constatação
J apresenta algumas exceções, pois a mesma autora admite que nesse grupo há
alguns que mesmo tendo todas as oportunidades não avançam na trajetória escolar
A por diversos motivos que muitas vezes extrapolam à vontade e o desejo dos pais.
Essa afirmação nos permite levantar alguns questionamentos em relação
L a situação de alunos(as) carentes ao final da educação básica: Se mesmo nas
camadas elitizadas há alunos(as) que não conseguem avançar para além do ensino
L médio, como esse processo se dá entre os oriundos das classes populares, que
aparentemente enfrentam maiores desafios? Qual a percepção dos concludentes

das camadas populares, oriundos de escolas púbicas, sobre a universidade? Quais
A dilemas precisam enfrentar sobre as expectativas no futuro?
Para perseguir esses questionamentos, investigamos duas escolas na
periferia da cidade de Rio Branco, no estado do Acre. As atenções foram centradas
nas classes de segundo e terceiro ano do ensino médio. Na primeira fase foram
contatados 513 alunos(as), sendo priorizados uma amostragem de 243 questionários

respondidos. Analisamos um total de 189, do ensino médio regular, 36 do Programa
596 Especial do Ensino Médio – Peem e 18 do Ensino de Jovens e Adultos - Eja (ensino
• médio). Deste total, 149 se autodeclararam de cor parda, 34 preta, 31 branca, 17
amarela e 2 indígenas, os demais, 10 não responderam sobre auto identificação de
cor.
Quanto a disponibilidade de ajuda recebida para se orientarem em relação
ao futuro após o término da educação básica, a maioria, aproximadamente 40%
2 mencionaram a família como fonte de orientação sobre o que fazer após a conclusão
do ensino médio. A escola parece exercer pouca influência sobre essas temáticas, se
0 considerarmos o amplo espaço de tempo que o aluno nela permanece, pois apenas
20% mencionaram terem recebido norteamentos sobre seu futuro na escola. Um
número expressivo e preocupante de quase 40% mencionaram que nunca tiveram
1 nenhuma orientação sobre o que fazer no futuro imediatamente após a trajetória
da educação básica. No quadro 1 registramos os resultados detalhados sobre essa
8 parte do questionário.
Quadro 1
Você já teve alguma orientação ou já buscou alguma ajuda para decidir seu futuro
após o ensino médio?
Foi orientado na família 99
Foi orientado na escola 47
Foi orientado por outras pessoas 27
Foi orientado na escola e na família 14
Foi orientado na escola e por outras pessoas 2
Foi orientado na escola, na família e por outros 3
Foi orientado na família e por outras pessoas 1
Nunca tive orientação 42
Não respondeu 8
Total: 243
Fonte: Produzido pelos autores.
Quadro 1: Possíveis orientações disponibilizadas aos(as) alunos(as) sobre o que fazer após a con-
clusão da educação básica

J A fase de transição entre a adolescência e a idade adulta apresenta


desafios para além do rito de conclusão da fase escolar para outra a ser decidida
pelos jovens. A literatura indica que a maioria dos jovens recorrem à família para
A
serem orientados sobre o futuro após o término da educação básica. A mãe se
apresenta como principal consultora quando se trata de nortear conselhos sobre o
L futuro dos jovens. (SOBROSA, 2015). (TRINDADE; MENAND, 2002). As diferenças
culturais interferem significativamente na direção das orientações disponibilizadas
L aos jovens, a depender do lugar e das relações sociais estabelecidas entre a família
e a sociedade.
A Ser bem sucedido nas avaliações escolares, saber escolher o futuro curso
universitário, desenvolver bom relacionamento social e familiar estão entre as
pressões coercitivas sobre alunos(as) nesse período transitivo. Quando questionados
sobre o que pretendem fazer após completar o ensino médio, aproximadamente
40% mencionaram o trabalho e a continuação dos estudos. Percentual similar
• responderam que pretendem ingressar na universidade e cerca de 10% tencionam
597 fazer curso técnico. Outros 7% responderam que pretendem apenas trabalhar nos
anos seguintes após a trajetória da educação básica. No quadro 2 registramos os
• resultados deste questionamento.
Quadro 2
O que você pretende fazer após concluir o ensino médio?
Trabalhar e estudar 97
Entrar na universidade 82
2 Fazer curso técnico 22

Entrar na universidade, fazer curso técnico, trabalhar e estudar 5


Entrar na universidade e fazer curso técnico 3
0 Entrar na universidade e trabalhar 4
Entrar na universidade, trabalhar e estudar 5
1 Fazer curso técnico, trabalhar e estudar 6
Não respondeu 2
8 Outros 2
Trabalhar 15
Total: 243
Fonte: Produzido pelos autores.
Quadro 2. Expectativas dos jovens após conclusão da educação básica

Dois fatores chamam atenção no quadro 2: a principal preocupação dos


jovens após a conclusão da educação básica, fica por conta da necessidade de
trabalhar, ainda que continuem estudando. Apesar de apenas 10% tencionarem
fazer cursos técnicos, a preocupação em ser inserido no mercado de trabalho
antecede essa necessidade. As constantes crises financeiras e as instabilidades
econômicas e políticas, tornam esses anseios ainda mais difíceis, pois a falta de
qualificação, inerente à condição do jovem recém concluinte da educação básica,
dificulta sua inserção no mercado de trabalho.
Entrar na universidade sem a preocupação de trabalhar ocupa a segunda
posição nas respostas obtidas. A consciência dos jovens das classes populares
quanto a necessidade de formação universitária, gradativamente vai assumindo
relevância quanto aos planos futuros. Novamente, a interferência familiar pode
J figurar como diferencial entre planejar, continuar estudando ou adentrar no
mercado de trabalho. Diante desse resultado, surgem outros questionamentos
A inerentes ao processo de continuidade dos estudos na universidade ou faculdade.
No quadro 3 questionamos sobre o curso pretendido na universidade ou faculdade.
L Quadro 3
Qual curso pretende fazer na universidade ou faculdade?

Administração 4
L Arquitetura e Urbanismo 4
Biologia 9
A Direito 31
Educação Física 26

Enfermagem 19
Engenharias (Civil, agronômica, florestal, etc.) 32
Física 4
História 11

Jornalismo 3
598 Matemática 7
• Med. Veterinária 14
Medicina 24
Não especificou 9
Não respondeu 8
Nunca pensou em estudar na universidade 23
Nutrição 6
2 Sistema de Informação 3
Odontologia 4
0 Pedagogia 5
Psicologia 13

1 Técnico (Informática ou Enfermagem) 3


Libras 2
Total: 243
8 Fonte: Produzido pelos autores
Quadro 3: A expectativa do curso preferido na universidade ou faculdade

As engenharias, o direito, educação física e medicina estão entre
os cursos preferidos nas intenções dos alunos(as). Os curso de bacharelado
aparecem quase como absolutos nas intenções de preferências dos alunos(as) das
escolas públicas. Há verdadeiro contraste entre as pretensões desses cursos e as
intenções de cursarem licenciaturas e adentrarem na profissão docente. De acordo
com Sobrosa, (2015), a escolha da profissão pode ser influenciada por diversos
fatores. Entre os aspectos “pessoais que podem interferir na decisão, destacam-se
características pessoais, interesses e aptidões, a forma de ver o mundo, de ver a
si mesmo, bem como os valores, as crenças e as informações que as pessoas têm
sobre as profissões”.(SOBROSA, 2015, p. 316).
Já consideramos que a família exerce grande influência sobre a escolha
dos filhos em relação ao curso universitário e consequentemente sobre sua
carreira profissional. (SOBROSA, 2015). (TRINDADE; MENAND, 2002). Os tipos de
ocupações exercidas pelos pais de alunos(as) carentes também podem influenciar
J em suas decisões sobre a futura profissão. Nas constatações de Sobrosa, (2015),
“pais provenientes de classes socioeconômicas desfavorecidas tendem a apresentar
A dificuldades em perceber o trabalho como fonte de satisfação, pois, frequentemente,
realizam trabalhos com baixa remuneração e reconhecimento.”(SOBROSA, 2015,
L p. 319). Nesse contexto a ocupação é exercida mais pelas circunstâncias possíveis
do que pela livre escolha direcionada pela formação.

Nas expectativas de futuro, os filhos projetam para si as profissões
L
consideradas de maior status social e que preferencialmente lhes proporcionem
melhores remunerações. Porém, entre as projeções e as concretizações há enormes
A abismos que ainda separam as classes populares das elites intelectualizadas nas
universidades públicas. Nas constatações experienciais no trabalho com turmas
dos primeiro períodos na Universidade Federal do Acre, nota-se que um elevado
número de alunos(as) que não conseguem a média necessária para seus cursos
preferidos terminam por se matricularem nos cursos de licenciaturas, como
• segunda opção nas seleções nacionais.
599 Para ingressar nos cursos mais concorridos é necessário obter nota média
• acima dos padrões regulares da maioria dos candidatos(as). A partir da aprovação
da Lei nº 12.711, sancionada em agosto de 2012, alunos de escolas públicas,
alunos de baixa renda (até 1 ½ Salário mínimo), alunos negros, indígenas e com
deficiência, passaram a ter garantido uma reserva de vagas em todos os cursos
nas universidades públicas brasileiras. Desde que foi aprovada, essa legislação
2 gradativamente permite melhores oportunidades de ingresso nos cursos mais
concorridos pelos grupos de alunos(as) por ela beneficiados.

A questão que está posta como um dos objetivos centrais no presente
0
trabalho é a seguinte: Que conhecimento os grupos de alunos beneficiados por
essa legislação têm sobre esse direito? O quadro 4 levantou esse questionamento e
1 as respostas estão nela registradas.
Quadro 4
8 O que você sabe sobre as cotas na universidade?
Pouca coisa 87
Já ouvi falar sobre 53
Bastante coisa 18
Não sei nada 78
Não respondeu 7
Total: 243
Fonte: Produzido pelos autores
Quadro 4: Conhecimentos prévios em relação à reserva de vagas (cotas) na universidade

O que mais chama atenção nessa constatação é o fato de mais de 30% das
respostas indicarem que não sabem nada sobre a reserva de vagas na universidade.
Se somarmos com os que sabem “pouca coisa” e os que apenas já ouviram falar,
temos mais de 90% de alunos(as) que por serem oriundos de escolas públicas, por
si só, já teriam direito às cotas, mas, não sabem exatamente o que fazer para se
beneficiarem delas. Uma hipótese para esse resultado seriam os posicionamentos
de determinados grupos de pais e professores que se posicionam contrários a essa
política, o que pode justificar a grande falta de conhecimento dos alunos sobre o
J assunto.
Quando perguntados se eram contra ou a favor das cotas nas universidades,
A aproximadamente 60% se posicionaram a favor, apesar de não saberem explicar
exatamente o que elas significavam. Os outros cerca de 40% não responderam
L ou não souberam opinar. Desses cerca de 15% do total de 243, se posicionaram
contrários a política de reserva de vagas. É possível perceber também a influência

midiática que se posiciona contrária às reservas de vagas para alunos das escolas
L públicas, alunos carentes, negros, indígenas e com deficiências. As opiniões de
pais e alunos contrários as cotas, expressam a força das mídias sociais e televisivas
A sobre essa política que tenciona oportunidades mais justas e igualitárias entre
pobres e ricos.
Na mesma direção, Almeida et. al (2016), pesquisou através da aplicação
de questionários aos estudantes de ensino médio de escola pública e privada, no
Maranhão, a seguintes questão: “Você concorda com a Política de Cotas Raciais para
• estudantes negros e índios entrarem na universidade?”. (ALMEIDA et. al, 2016, p.
600 7). Os autores(as) identificaram que na escola pública 42,86% posicionaram-se
contrários à política de cotas. Na escola privada, obteve-se o percentual de 40%

dos estudantes que se posicionaram contrários as cotas. Pesquisas fragmentadas
que isolam as categorias beneficiadas podem demonstrar resultados diferentes se
as mesmas considerassem o conjunto de alunos(as) incluídos na Lei nº 12.711 de
2012.

2 Consoante a Teles (2015), a política de reserva de vagas nas universidades


é necessária para corrigir comportamentos segregacionistas erigidos no passado
pátrio. No campo do direito, o autor entende que as pessoas são sim iguais para
0 a lei, mas, esta igualdade é apenas formal e, materialmente, na vida prática, as
pessoas são diferentes. Nesse contexto, o pesquisador constata que as Cotas do
1 ensino superior são importantes e necessárias, porquanto ajudam a amenizar as
desigualdades sociais do Brasil.
8 Pesquisas similares às de Wainer &Melguizo (2017) evidenciam que embora
a diferença entre as notas de entrada na universidade entre alunos cotistas e não
cotistas sejam altas, ao final do curso, há paridade entre os grupos, e em alguns
casos os cotistas assumem melhor desempenho. Mesmo diante da necessidade de
trabalhar e estudar, alunos(as) que se beneficiam das reservas de vagas defendem
seus cursos com grande afinco, pela necessidade de superar a situação social e
econômica precária.
Considerações finais
Neste trabalho investigamos as possibilidade e os limites entre a
trajetória escolar na educação básica e as perspectivas de ingresso na universidade
pública. As atenções centraram-se nos anos finais do ensino médio pelo caráter
de finalidade dessa etapa. As respostas direcionadas pelos discentes em relação
aos cursos, as bolsas de auxílio financeiro e o direito às cotas ou reserva de vagas
legalmente garantidas a determinados grupos de candidatos do Enem aprovados
na universidade, indicam a necessidade de maior orientação por parte da família
e principalmente da escola no sentido de prestar melhor norteamento em relação
J às suas possibilidades de escolhas sobre os caminhos possíveis a serem trilhados
após a conclusão da educação básica.
A Respostas obtidas a partir de questionários oportunizam margens para
outras técnicas de coletas de informações com abordagens qualitativas que permitam
L aprofundar de forma mais específica algumas das categorias expostas no presente
trabalho. A influência familiar e as intervenções realizadas por alguns professores

na escola podem ser melhor apuradas para compreendermos por exemplo porque
L a grande maioria dos alunos ao final da educação básica desconhecem direitos
educacionais básicos no ensino superior, a exemplo da reserva de vagas para
A alunos oriundos de escolas públicas, alunos de baixa renda, negros, indígenas e
com deficiências. Essas categorias são contempladas na legislação das chamadas
cotas, mas desconhecem as vias de como desfrutarem tais direitos.
Um fator que pode ser elemento de futuras pesquisas é o fato de as cotas
terem como beneficiários primários, alunos de escolas públicas, sendo 50% das
• vagas totais nas universidades, destinadas para essa categoria e subdivididas
601 para esses outros subgrupos. Essas políticas de ações afirmativas recebem
tratamento discriminatório nas grandes redes nacionais de comunicação e por

esses representarem a elite brasileira, se posicionam contrários a esses direitos
legais das classes populares. Por manipularem a opinião pública, conseguem
aderência de pais e professores que se quer orientam seus filhos e alunos sobre
suas expectativas para além da educação básica.

2 Referências
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versidades: mapeamento discursivo de estudantes do ensino médio. Universidade Federal
0
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Ed. Papirus, 2004, 3ª edição, p. 11-26.
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básica. Em Aberto, v.11, n. 53, p. 46-53, 1992.
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formação dos profissionais da educação e dar outras providências.
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feito com estudantes universitários provenientes das camadas médias intelectualizadas.
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602

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1

8

J

A

L CACHUELA ESPERANZA, O IMPÉRIO DA “GOMA”: HISTÓRIA,
CULTURA E IDENTIDADES
L
José de Ribamar Muniz Ribeiro Neto (UNIR)
A Auxiliadora dos Santos Pinto (UNIR)
RESUMO: O presente artigo apresenta resultados de uma investigação sobre o
processo de constituição da História, da Cultura e das Identidades do Distrito
Cachuela Esperanza, na Cidade de Guayaramerín/Beni – Bolívia. O estudo do tema
é relevante porque, no período áureo dos ciclos da borracha, o referido Distrito
• foi considerado o império da goma e teve grande influência no desenvolvimento
histórico, econômico e social do país boliviano e das localidades situadas na
603
fronteira Brasil/Bolívia. A pesquisa bibliográfica e de campo, de natureza
• qualitativa, foi fundamentada pelos pressupostos teórico-metodológicos da História
Oral, destacando-se os estudos de Portelli (2016); Hall (2016); Mendonza (2014);
Halbwachs (1990); e outros. A partir da reconstituição da memória, os resultados
da pesquisa evidenciaram que os moradores do Distrito preservam as histórias, a
cultura, as identidades e o patrimônio histórico material da localidade.
2 Palavras-chave: Cachuela Esperanza. História. Cultura. Identidades.

Introdução
0
Este trabalho discute sobre a importância do distrito Cachuela Esperanza,
para o desenvolvimento das cidades gêmeas Guayaramérin/Beni e Guajará-Mirim/
1 RO, na fronteira Brasil/Bolívia. Também registra alguns elementos do processo de
ocupação do referido distrito, que no 1° e 2ª ciclo da borracha foi a sede de um
8 grandioso seringal e fomentou a economia, a cultura e as inovações tecnológicas
da região. Pretende-se, também, registrar alguns aspectos que contribuíram para
a constituição da cultura e das identidades dos povos que viveram/vivem na
fronteira em epígrafe. A localidadesitua-se nas proximidades dos rios Beni e Iata,
Departamento de Beni, Província Vaca Díez, num percurso de 44 quilômetros, via
terrestre até chegar a Guayaramerín, e era ponto estratégico para o escoamento da
borracha produzida nos seringais bolivianos. Inicialmente, o Distrito foi ocupado
pela população boliviana e por brasileiros que habitavam na fronteira. Com a
expansão da localidade, Nicolás Suárez Callaú, importou mão de obra especializada
de outros países, especialmente, da Europa. No Distrito foi implantada a primeira
escola profissionalizante da região. Embora, a localidade tivesse uma moderna
infraestrutura, as relações de poder instauradas na localidade foram marcadas
pela dominação e autoritarismo. O estudo do tema é relevante porque é necessário
compreender a complexidade do processo de formação, desenvolvimento e declínio
de inúmeraslocalidades que surgiramno período áureoda extração do látex na
Amazônia. O estudo foi norteado pelas seguintes questões: Quais os principais
impactos do processo de formação, desenvolvimento e decadência da localidade
J CachuelaEsperanza paraa formação socioeconômica, cultural e identitária das
cidades gêmeas Guayaramerín/Bolívia e Guajará-Mirim/Brasil? Como era a
organização sociopolítica e econômica do referido Distrito no período em que ele
A
foi criado? Na atualidade, como o Distrito está organizado? Por se tratar de uma
região de múltiplas fronteiras (histórico-geográficas, sociolinguísticas e culturais),
L a coleta e análise dos resultados da pesquisa foram fundamentadas pelos estudos
de: Cavalcanti (s/d), que relata a importância do Distrito para o desenvolvimento
L da fronteira; Portelli (2016), que concebe a História Oral como dialogia, etnografia e
usos da memória; Hall (2016), que discute sobre: representação, cultura, linguagem
A e sentido; Silva (2012), cuja obra defende que a construçãodas identidades faz
parte do processo de hibridização das culturas; Durán (2014), que na obra El Rey
de la Goma apresenta uma coletânea de cartas que relatam fatos familiares e os
conflitos da época.
A pesquisa, bibliográfica e de campo, do tipo qualitativa, foi desenvolvida
• no período de junho de 2017 a junho de 2018, a partir da análise documental,
604 conversas informais, aplicação de entrevistas e registros fotográficos.
Os critérios utilizados para seleção dos sujeitos da pesquisa foram

definidos através da amostragem, observando-se os seguintes requisitos: ter idade
superior a 50 anos, e ter conhecimentos sobre a história da formação do Distrito.
Durante o processo de ocupação do referido Distrito, os habitantes
foram submetidos às normas impostas pelos administradores e proprietários do
2 local. Porém, na medida em que os imigrantes e a população autóctone foram
convivendo na região, as mudanças foram sendo implementadas. Dessa forma, a
realização deste estudo contribuirá para a compreensão do processo de ocupação
0 e desenvolvimento da fronteira Brasil/Bolívia.

Cachela Esperanza: aspectos sócio-históricos do processo de ocupação e
1 formação

Neste tópico, tomando como base a teoria da Semântica do acontecimento,
8 relatamos, de forma breve, o acontecimento que deu origem ao nome do atual
Distrito Cachuela Esperanza. Também apresentamos alguns aspectos do processo
de ocupação e formação do referida localidade, destacando-se, principalmente, a
saga da família Suárez no período áureo da borracha, na fronteira Brasil/Bolívia.
A origem do nome
Segundo José Luiz Duran Mendoza1, historiador e atual responsável do
arquivo histórico de Nicolás Suárez, o nome Cachuela Esperanza2 teve origem a

1  Em conversas informais e entrevista realizada no dia vinte e cinco de agosto de 2017.


2  Localidade que era utilizada para juntar grande parte da produção boliviana de borracha que era
partir de um episódio que aconteceu com um cidadão norte-americano, trabalhador
da Estrada de Ferro Madeira Mamoré3 chamado Edwin Heath. Tendo tomado
conhecimento do grande potencial econômico da região, o referido operário decide
abandonar os trabalhos na ferrovia eseguir os passos do seu irmão já falecido Ivon
Heath, grande explorador americano da época que tinha vindo dos Estados Unidos
explorar rios da região.
José Luiz Duran Mendoza, ao explicar sobre a origem do nome da
J localidade afirma:
“Edwin Heath com ajuda de alguns seringueiros bolivianos de Reys, adqui-
A riu uma canoa e, acompanhado de dois remadores, partiu em viagem. Dessa
maneira em outubro de 1880 encontra a cachoeira que já havia sido avis-
tada em1845 pelo explorador boliviano Agustin Palácius pela parte baixa
L do rio. Naquela ocasião, ao passar pela cachoeira, Edwin Heath e seus re-
madores quase perdem a vida ao tentarem fazer a travessia daquelas águas
L revoltosas. Diante daquela situação difícil, o explorador americano questio-
na aos remadores se conseguirão atravessar a cachoeira e se sairão daquela
difícil situação com vida. A resposta do remador foi consoladora: (Ainda
A temos esperança de atravessar a cachoeira). Então diz o explorador: - Tu
disseste essa palavra “esperança”, portanto, se escarparmos desse episódio
com vida, ela sechamará Esperança. Depois de certo tempo lutando, con-
seguem se salvar, mas só param um momento nas margens sem pisar em
terra firme e seguem direto para Vila Bela, localidade mais próxima.” (entre-
vistado: JLDM- vinte e cinco de agosto de 2017).

Ao discutir sobre a constituição do sentido das palavras, Guimarães
605
afirma que: “[...] o sentido da palavra não é fixo, tampouco se reduz a um conceito
• ou definição; ele se constrói no enunciado, no texto que integra, na relação entre
o acontecimento em que funciona e sua memória de enunciações.” (GUIMARÃES,
2002, p. 7). Sobre este aspecto, o autor também destaca que: “[...] quatro elementos
são decisivos: língua, sujeito, temporalidade e materialidade histórica do real.”
(GUIMARÃES, 2002, p. 7). Assim, o nome Cachuela Esperanza teve origem a partir
2 deste acontecimento vivido pelo explorador norte-americano chamado Edwin Heath
e seus dois remadores no ano de 1880.
0 Elementos do processo de ocupação e formação
Em 1882, Nicolás Suaréz Callaú, filho de uma família de empreendedores
1 bolivianos da época, fundadores da Casa Suárez, com o objetivo de escoar uma
grande quantidade de borracha, decide fazer uma viagem de exploração nos rios
8 da região, escolhendo o mesmo trajeto feito por E. Heath. Por desconhecer os
trajetos encachoeirados e as corredeiras dos rios, quase perde a vida na cachoeira
que já havia sido denominada “Cachoeira Esperanza”. Naquela ocasião, todos os
integrantes da expedição conseguem sobreviver.
Descendo em terra firme e, ao observar o traçado dos rios, enxergou o
grande potencial estratégico geográfico do local, onde decidiu fundar juntamente

exportada para Europa via Brasil.


3  Ferrovia construída com o objetivo de ligar Porto Velho a Guajará-Mirim para escoar a produção
de borracha produzida na região, tendo as suas obras sido executadas entre 1907 e 1912. Estende-
se por 366 quilômetros na Amazônia.
com seus irmãos a sede de um grandioso empreendimento de exploração e transporte
das riquezas minerais e vegetais da região do Beni e de outras localidades na
fronteira Brasil/Bolívia.

J

A

L

L

A
Figura 1: Placa de fundação de Cachuela Esperanza, Fonte: Acervo pessoal.

Começava então o processo de ocupação da localidade que também foi
denominada Cachuela Esperanza.Não demorou muito para o negócio prosperar,
visto que, segundo a história, a região produzia uma borracha de excelente qualidade,

atraindo empresários bolivianos, brasileiros e europeus para fazer negócios muito
606 rentáveis.
• Assim, diante do potencial econômico da localidade e da região
fronteiriça, Nicolás Suárez Callaú decide investir tanto na infraestrutura como na
contratação da mão de obra especializada com o objetivo de ampliar as atividades
do empreendimento familiar.
Segundo Mendoza, um dos fatores que levaram a empresa implantada
2 em Cachuela Esperanza a ter um processo de formação acelerado foi a informação
que naquela região o látex extraído era de altíssima qualidade, o que também
0 acarretou no aumento na demanda e na necessidade de mão de obra especializada
vinda de outros países para a capacitação dos trabalhadores. Com o aumento do
lucro, também foi possível o investimentona infraestrutura construindo casas,
1
alojamentos, teatro, sala de cinema etrazendo também novidades tecnológicas na
área da saúde, construindo um hospital com o primeiro aparelho de raios-X da
8 região.
Cachuela Esperanza se estabeleceu como sede do negócio da família e
chegou a contar com mais de cinco mil trabalhadores que vinham de diversos
países da América do Sul, Europa e Ásia. No povoado, foi implantada a primeira
escola profissionalizante da região: “[...] Na escola de contadores não saiam com
um título acadêmico, saiam com uma carta que valia até na Europa tamanho o
prestígio da casa Suaréz”. (Entrevistado: J. L. D.M).
Breve caracterização do distrito Cachela Esperanza: aspectos históricos,
geográficos, memórias e práticas culturais
Após a decadência dos ciclos da borracha, os empreendimentos da
Casa Suárez foram sendo, gradativamente, desativados. Porém, grande parte
do patrimônio material cultural foi preservada pelos moradores remanescentes
destacando-se: a igreja, que fora construída sobre pedras; o cemitério, onde foram
sepultados Nicolás Suárez Callaú e outros membros da família Suárez; uma
J pequena estação ferroviária com uma locomotiva; as ruínas de um hospital que no
período áureo da localidade era considerado o mais moderno da América Latina,
A possuindo, inclusive, aparelhos de última geração; ruínas de um teatro, onde eram
apresentados grandiosos espetáculos com a participação de artistas de diversas
L nacionalidades; construções residenciais de diferentes padrões onde residiam
operários, administradores e os integrantes da família Suárez, proprietários do
empreendimento.
L
Ressalta-se que Apesar da importância histórico-econômica e social,

o Distrito Cachuela Esperanza que fomentou o desenvolvimento da Bolívia e de
A outras regiões, não recebeu investimentos em sua infraestrutura e, ao longo dos
anos, principalmente, após a enchente ocorrida no ano de 2014, teve parte do seu
patrimônio deteriorado.
Na atualidade, a população remanescente que permanece morando na
localidade, após o declínio, busca sobreviver de modo alternativo, trabalhando na

pesca, na agricultura, na coleta de castanha e/ou em pequenos empreendimentos
607 comerciais, tais como: bares, restaurantes e pequenas mercearias que servem para
• atender a população e aos turistas.
As belezas naturais da localidade se sobressaem no período do verão, época
em que cachoeiras, praias e pedreiras atraem turistas de várias regiões da fronteira
Brasil/Bolívia. Essas paisagens também podem ser vistas a partir de um mirante
localizado na praça da localidade.
2 O aniversário da localidade é comemorado todo ano, com uma grandiosa
festa que reúne a população local, autoridades da região do Beni, e alguns
0 descendentes de pioneiros que se deslocam de outras regiões bolivianas para
participar da festa.
1 Apresentação e análise dos resultados da pesquisa
Neste tópico, apresentamos os procedimentos metodológicos da pesquisa
8 e a análise dos resultados, Para tanto, apresentamos dois subtópicos intitulados:
escolhas metodológicas e resultado da pesquisa de campo.
As escolhas metodológicas
A pesquisa bibliográfica e de campo, do tipo qualitativa, foi desenvolvida
no período de junho de 2017 a junho de 2018, no Distrito Cachuela Esperanza,
Guayaramerín/Beni-Bolívia, tendo como base os pressupostos teóricos e
metodológicos da História Oral, propostos por Portelli (2016):
“A história oral, então, é primordialmente uma arte da escuta. Mesmo quan-
do o diálogo permanece dentro da agenda original, os historiadores nem
sempre estão cientes de que certas perguntas precisam ser feitas. É comum,
aliás, que a informação mais importante se encontre para além daquilo que
tanto o historiador quanto o narrador considerem historicamente relevante”
(PORTELLI, 2016, p. 10).

Os dados da pesquisa foram coletados a partir de conversas informais


e entrevistas com descendentes de moradores do Distrito Cachuela Esperanza.
A partir das concepções de Portelli (2016), procedemos à coleta de dados, que foi
realizada em seis etapas conforme descrição a seguir:
J -1ª Etapa: Consistiu na realização de uma viagem ao Distrito Cachuela
Esperanzapara reconhecimento e observação do locus da pesquisa.
A -2ª Etapa: Nesta etapa, realizamos visita ao Acervo Histórico Nicolás
Suárez, para levantamento de informações e documentos sobre o referido Distrito.
L -3ª Etapa: Nesta etapa realizamos conversas informais e seleção dos
sujeitos da pesquisa.
L -4ª Etapa: consistiu na realização de entrevistas com a utilização de um
questionário. Nesta etapa da pesquisa, utilizamos como referência os estudos
A de Portelli (2016), que apresenta uma metodologia para a pesquisa com História
Oral e discute sobre a importância da memória.

-5ª Etapa: consistiu na transcrição, registro e análise dos resultados das
entrevistas.
-6ª Etapa: consistiu no retorno ao lócus da pesquisa para a realização
• de registros fotográficos dos pontos principais que fazem parte do patrimônio
608 histórico-cultural da referida localidade.

• Caracterização dos entrevistados


A seleção dos sujeitos da pesquisa foi realizada a partir dos seguintes
critérios: ter idade superior a 50 anos, e ter conhecimento sobre a história da
formação do Distrito. Abaixo, apresentamos uma breve caracterização dos/as
participantes da pesquisa:
2 Local de
Tempo de moradia
Entrevistada Sexo Idade no Distrito Cachuela Religião Profissão
nascimento
Esperanza
0 “A” Responsável pelo acervo Comunicador
M Riberalta 58 Católico
histórico Social
1 “B” Cachue- Diretor do Palácio da Comunicador
M 56 Católico
laEsperanza cultura Social
8 Os critérios de seleção para a realização deste trabalho foi favorável para a coleta de dados e para o registro
dos resultados da pesquisa.

Apresentação e análise dos dados das entrevistas
As informações apresentadas neste tópico são resultados das entrevistas
e conversas informais com descendentes de moradores do Distrito Cachuela
Esperanza. A apresentação e análise dos dados coletados foram feitas a partir de
comentários sobre os fragmentos das respostas dos entrevistados, priorizando-se
os seguintes temas: História, Memória, Cultura e Identidades.
Questão 1- Em sua opinião, qual é a importânciado Distrito “Cachuela
Esperanza” para o desenvolvimento das cidades gêmeas Guayaramérin/Beni
e Guajará-Mirim/RO, na fronteira Brasil/Bolívia?
Dentro da possibilidade do turismo histórico, cultural e do turismo
em geral, da semelhança, igualdade, digamos da história em si dessa região
de fronteira, ligada pela borracha, inicialmente para o descobrimento e para a
colonização dos povoados Guayaramerín e Guajará-Mirim nasceram basicamente
J das primeiras viagens dos seringueiros, então Cachuela Esperanza representa um
ponto estratégico turístico de importância cultural histórica, pois, recebia muitos
A empresários de todas as partes de Bolívia e Brasil e também da Europa para
fazer negócios. Em Cachuela Esperanza trabalharam pessoas de diversos países
L como: os japoneses, franceses, italianos, alemães, ingleses, suíços, portugueses,
espanhóis, brasileiros, argentinos, peruanos e até mexicanos. Isto foi devido ao
processo de desenvolvimento econômico provocado pelo pela revolução industrial
L que estava acontecendo na Europa e que precisavam da borracha que existia em
abundância em toda região interiorana de selva da América do sul, que havia com
A mais qualidade por aqui. Ao tratar sobre esse aspecto, Cavalcanti, afirma:
[...] Edwin Heath – Em 1880/1881, percebendo a necessidade como que o
mundo começava a clamar por borracha, e isso estava em descompasso com
a produção boliviana. [...] Então, Heath retorna a San Antonio, onde chega
em 25 de setembro. Antonio Vaca Díez, o hospeda. Sabedor da pretensão
do explorador em mapear do Beni até o Madeira cede-lhe facilidades. Uma

canoa um índio aculturado, Sebastián Melgar, lhe são entregues junto com
609 outro silvícola, Idelfonso Roca, formavam toda a tripulação daquela viagem
(CAVALCANTI, s/d, p. 66).

Nessa perspectiva, segundo o entrevistado, toda a história entre Rondônia,
Beni e Acre é uma só. É considerada, portanto uma história fantástica e seus
pontos convergentes seriam para o turismo histórico, que interesse a Europa e a
países que tiveram protagonismo na época.
2 Questão 2 - Como ocorreu o processo de ocupação do referido Distrito,
que no 1° e 2° ciclos da borracha foi a sede de um grandioso seringal e
0 fomentou a economia, a cultura e as inovações tecnológicas da região?
Cachuela Esperanza na realidade surgiu a partir do primeiro ciclo da borra-
1 cha, quando “estala o boom mundial da borracha”4. Naquela época, a pro-
dução de borracha na Bolívia era menordo que a produção brasileira e pe-
ruana, contudo, a borracha produzida na Bolívia era considerada de melhor
8 qualidade. Isso fez com que muitas empresas bolivianas fossem valorizadas
e obtivessem altíssimos lucros. Este fato contribuiu para que Nicolás Suá-
rez, proprietário da Casa Suárez, investisse na infraestrutura do Distrito.
Nesta região, o lucro se manifestou em menores fortunas comparando-se a
outras regiões localizadas na Amazônia, tais como: Amazonas, Pará e Acre.
Na érea de Cachuela Eperanza, onde chegou a morar cerca de duas mil
pessoas, foi implantado um grandioso empreendimento, a Casa Suárez, de
propriedade de Nicolás Suárez Callaú.

4  6  O ciclo da borracha foi um momento da história econômica e social do Brasil, relacionado com


a extração de látex da seringueira e comercializaçãoda borracha entre os anos 1879 e 1912. 
De acordo com os relatos apresentados a partir da reconstituição da memória
do entrevistado, Nicolás Suárez era um grande empreendedor e percebendo
o potencial econômico da região criou na localidade Cachuela Esperanza
uma infraestrutura moderna, visando à ampliação dos lucros. Sobre este
aspecto, Portelli destaca que: “A história oral, então, é história dos eventos,
história da memória e história da interpretação dos eventos através da me-
mória, a memória na verdade, não é um mero depósito de informações, mas
um processo contínuo de elaboração e reconstrução de significado” (POR-
J TELLI, 2016, p.18).
Questão 3 - Cite alguns aspectos que, em sua opinião, contribuíram para a
A constituição da cultura e das identidades dos povos que viveram/vivem na
fronteira Brasil/Bolívia?
L Cachuela Esperanza, da mesma maneira que Guayaramerín, Guajará-
Mirim, Riberalta, Cobija, Porto Velho, Rio Branco e outras cidades próximas
L desse movimento de exploração da borracha, possuíam algumas características
em comum: a industrialização para a exploração da borracha, a busca navegação
A profissional, abertura de caminhos na selva, a sobrevivência dentro da selva, o
combate à malária e a doenças tropicais, e Suíça o processo de aprendizagem para
combater estas doenças.
Os jovens que vinham de outros países muitas vezes morriam antes
de chegar a Cachuela, devido às doenças enfrentadas na viagem, pois estavam
• entrando em um mundo que não eram deles. Muitas famílias, temendo a morte,
proibiam os filhos de vir trabalhar no empreendimento. A luta pela sobrevivência,
610
e as dificuldades enfrentadas foram umas das contribuições para a constituição da
• cultura e identidades dos povos da região.
Outro fator significativo no processo de constituição das identidades foi o
encontro de diferentes culturas. Com a chegada de trabalhadores de várias regiões
da Bolívia e de outros diversos países, o perfil sociocultural também foi modificado.
Em consonância a isso, Hall afirma: “As culturas nacionais, ao produzir sentidos
2 com os quais podemos nos identificar, constroem identidades e esses sentidos estão
contidos nas histórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam
0 seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas” (HALL, 2016,
p.31).
1 Questão 4 - Alguns registros históricos mencionam que devido à expansão
da localidade “Cachuela Esperanza”, Nicolás Suárez, importou mão de obra
8 especializada de outros países, especialmente, da Europa. Você poderia
descrever de que forma ocorria o processo de imigração e de contratação
desses trabalhadores?
Os seringueiros de toda a região boliviana investiam bastante na qualidade
da administração de seus negócios que era feita basicamente por suíços. A Casa
Braillar (francesa), deu exemplo, a Casa Suárez ao trazer jovens a partir de vinte
ou vinte e dois anos, administradores, contadores e escrivães que eram poliglotas.
Cada um deles falavam no mínimo cinco idiomas, e já vinham contratados da
Europa. Entravam no continente sul-americano via Amazonas até a região do rio
Madeira. Seus conhecimentos eram utilizados não só para a administração dos
negócios, mas também na capacitação de trabalhadores locais.
A demanda de borracha crescia a todo vapor, então todo este movimento
exigia a imediata contratação de mão de obra especializada, e para poder atrair
essa mão de obra vinda de outros países, Nicolás Suárez faz muitos investimentos
visando aumentar a eficiência no trabalho e naqualidade de vida para os que
chegavam. Então, implantou muitas coisas na localidade, tais como: navegação
J profissionalizada, visto que, o percurso que tinham que percorrer entre todas
as cachoeiras era muito extenso, fábricas e pequenas indústrias. Além disso, o
A proprietário do negócio fez investimentos para lazer e para a saúde, construindo
teatros, que na época vinham artistas de todas as partes do mundo para fazer
L espetáculos, salas de cinema mudo e até um hospital com modernos aparelhos.
Sobre isso Hall contribui:

“Em primeiro lugar, há a narrativa da nação, tal como é contada e recontada
L nas histórias e nas literaturas nacionais, na mídia e na cultura popular. Es-
sas fornecem uma série de histórias, imagens, panoramas, cenários, even-
A tos históricos, símbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam
as experiências partilhadas, as perdas, os triunfos, os desastres que dão
sentido a nação,” (HALL, 2016, p. 31).

Questão 5 - Conforme relatos de moradores, na localidade “Cachuela


Esperanza” foi implantada a primeira escola profissionalizante da região
• do Beni. Você tem conhecimento/informações oficiaissobre esse tema?
611 Chamava-se escola de contadores e os que frequentavam não saiam
• com um título acadêmico e sim com uma carta de recomendação que valia até na
Europa, devido ao prestígio e da qualidade do empreendimento. Trabalhadores
da região recebiam uma espécie de capacitação ensinada pelos profissionais
especializados. Isso foi devido a visão empreendedora de Nicolás Suárez Callaú que
aproveitava os conhecimentos trazidos em grande maioria de outros países. Um
dos conhecimentos que foi muito utilizado na época, além da escola de contadores,
2
foi a da fábrica de peças que eram utilizadas nos dos barcos a vapor e outras
maquinas, vindas da Alemanha.
0
Questão 6 - Sabe-se que Nicolas Suarez foi responsável pela construção
de uma moderna infraestrutura na localidade “Cachuela Esperanza” O que
1 havia no Distrito naquela época? Como era a vida social dos moradores?
Quais eram os atrativos artístico-culturais?
8 Nicolás Suárez decidiu criar um estabelecimento industrial particular
que tivesse tudo que fosse preciso para viver bem. Na localidade foi construído um

hotel, moradia para todos os peões, administradores, gerentes. Havia uma igreja
construída em cima de uma pedra, um teatro que trazia espetáculos de diversos
países, sala de cinema, bares, fábrica de gelo. Também existia uma pequena ferrovia
e uma locomotiva para auxiliar no deslocamento da produção até as margens do
rio e como não mencionar o famoso hospital que atendia todos os trabalhadores
do empreendimento. Existia também um clube social e quadras de esporte. Nas
palavras de Halbwachs: “Se nossa impressão pode apoiar-se não somente sobre
nossa lembrança, mas também sobre a de outros, nossa confiança na exatidão de
nossa evocação será maior, como se uma mesma experiência fosse começada, não
somente pela mesma pessoa, mas por várias” (HALBWACHS, 1990, p.25).
Questão 7 - Nicolas Suarez permanece vivo no imaginário da população da
região, Para alguns, era um homem generoso, para outros, as relações
de poder instauradas na localidade foram marcadas pela dominação e
autoritarismo. Qual é a sua opinião sobre esse tema?
J Aos que decidiam morar em Cachuela Esperanza era ensinado que todos
tinham que levantar às 6 da manhã para tomar o café e partir para a jornada de
A trabalho. D. Nicolás Suárez falava que o homem tinha que viver do seu trabalho.
Aos visitantes era permitido ficar somente três dias, após o tempo determinado
L tinha que trabalhar ou deixar a localidade. Existia um presídio local, onde era
preso os infratores do regimento local. Era castigado todo aquele que faltasse com
L respeito ou causasse transtornos por excesso de bebida. Contudo, Portelli afirma:
[...] Interrogar a memória errada, especialmente quando ela é tão amplamen-
te compartilhada, é uma maneira de interrogar o significado de um evento
A lembrado, se queremos fazer esse trabalho interpretativo com narrativas
falsas, precisamos estar aptos a provar que elas são efetivamente falsas.
Portanto, o trabalho do historiador oral inclui uma checagem dos fatos que
seja tão cuidadosa quanto possível, a fim de que possamos distinguir entre
narrativas factualmente confiáveis, que são a maioria, e os casos significati-
vos de mito e erro criativo” (PORTELLI, 2016, p.19).

612 Questão 8 - Descreva, de forma objetiva, como foi o processo de formação,
desenvolvimento e declínio do império da goma comandado por Nicolas

Suarez?
Quando Nicolás Suárez vence a cachoeira e pisa em terra firme, com seu
olhar de grande empreendedor percebe que o local se trata de um magnifico ponto
estratégico geográfico para um negócio prosperar. A partir daí, começa a formação
2 da localidade. Com o aumento da demanda foi preciso cada vez mais contratar
novos trabalhadores, isso fez que a produção chegasse a uma larga escala que

era vendida basicamente para o continente europeu. O declínio se deu devido à
0 desvalorização da borracha.

Considerações finais
1
A partir da investigação, constatamos que o processo de formação e

ocupação do Distrito Cachuela Esperanza foi feito de forma ordenada, visto que, a
8 localidade desde o princípio recebia investimentos de Nicolás Suárez que idealizou
uma infraestrutura para o desenvolvimento do seu empreendimento. Com o
crescimento do negócio e a chegada de mão de obra especializada vinda de outros
países, outras localidades vizinhas, também, se beneficiaram com a oportunidade
de trabalho e do aprendizado de novas tecnologias. Porém, com a desvalorização
da borracha os empreendimentos foram sendo desativados o que abalou de forma
significativa a economia local.
Com base em documentos do acervo histórico Nicolás Suárez e em relatos
dos entrevistados, constatamos que a sociedade local era organizada da seguinte
forma: os salários e as regalias eram de acordo com grau de instrução de cada
trabalhador. Os engenheiros e contadores moravam em casas confortáveis enquanto
os demais trabalhadores moravam em grandes galpões com as famílias. Os estudos
também evidenciaram que durante o processo de ocupação do referido povoado,
os habitantes foram submetidos às normas impostas pelos administradores e
proprietários do local.
As relações de poder instauradas na localidade foram marcadas pela
J dominação e autoritarismo. Porém, Nicolás Suárez permanece vivo no imaginário
da população da região: para alguns, era um homem generoso, para outros, ele era
A um carrasco.
Enfatizamos que a população que ainda reside no Distrito preserva
L algumas práticas tais como: a coleta da castanha e a pesca, porém as evidencias
apontam que não é o suficiente para reativar a economia local. Devido a suas belezas
naturais, uma provável solução seria a implantação de polo de turismo histórico,
L
o que atrairia pessoas interessadas em conhecer as memórias, as histórias e o
patrimônio histórico da localidade.
A
Referências
CAVALCANTI CR. Albuquerque. História do Acre: Uma sucinta introdução. Editora, 2016.
GUIMARÃES, E. Semântica do Acontecimento. Campinas: Pontes Editores, 2002.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003.
• HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Editora PUC-
-Rio. Apicuri, 2016.
613
PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016.

2

0

1

8

J

A

L MEMÓRIA, HISTÓRIA E NARRATIVA

L José Otavio Lobo Name (UFF)
RESUMO: Este trabalho propõe uma revisão descritiva do documentário “O que
A é meu vem a mim”, deste mesmo autor, à luz de uma breve revisão de conceitos
de memória, história, e narrativa. Na leitura proposta aqui, o filme é um registro

coletivo da memória: seu personagem compartilha com o autor suas lembranças, que
retornam ressignificadas pela edição e pelo espectador. Nesta perspectiva, os fatos
ganham sucessivas narrativas, que se complementam: a consciência individual, o
• relato, o vídeo, e a memória coletiva. Parte da premissa que o filme, realizado a partir
de uma entrevista com o Mestre Ricardo Sales, da Banda de Congo Amores da Lua,
614
acumula diversas camadas narrativas que, por sua vez, resultam de processos
• relativos a memória individual e coletiva, e de registro histórico. As linguagens e
as técnicas de produção documental audiovisual apresentam-se também, neste
contexto, como formas diversificadas de narrativa, constituindo, ao mesmo tempo,
tipos de registros históricos e de lugares de memória.
Palavras-chave: narrativa, memória, história, congo, documentário
2
Neste trabalho farei uma revisão descritiva do documentário “O que é
0 meu vem a mim”1 (2016), de minha autoria e, a partir dele, formular questões
sobre memória e história, e narrativa. O filme mescla trechos de uma entrevista

com Ricardo Sales, Mestre da Banda de Congo Amores da Lua, com cenas de rituais
1 e apresentações da banda, e foi produzido no âmbito do projeto de documentação
audiovisual O Congueiro, que registra e difunde a cultura do congo do Espírito
8 Santo2. Na leitura que proponho aqui, o filme é um registro coletivo da memória:
seu personagem compartilha com o autor suas lembranças, que retornam
ressignificadas pela edição e pelo espectador. Nesta perspectiva, os fatos ganham

1  ver “O que é meu vem a mim”, de Jo Name. Documentário em vídeo. 24min, cor, 2016.
Disponível em: https://youtu.be/vmDAXO-Kpa8. Acesso em: 12/01/2018.
2  O Congueiro é resultado do projeto de pesquisa Holoteca Digital do Congo Capixaba, desenvolvido
na Universidade Federal do Espírito Santo e dedica-se, desde 2014, à documentação audiovisual
e de difusão da cultura do congo em sites de compartilhamento como YouTube, Flickr e Facebook.
O documentário foi selecionado para a Mostra Competitiva do 7º Festival Internacional do Filme
Etnográfico do Recife, em 2016.
sucessivas narrativas, que se complementam: a consciência individual, o relato, o
vídeo, e a memória coletiva.
Segundo Halbwachs, “nossas lembranças permanecem coletivas e nos
são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós
estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isto acontece porque jamais
estamos sós” (HALBWACHS, 2006, p. 30). Para ele há uma permanente negociação
entre nossas memórias e as dos outros. O que acarreta duas premissas: a ideia de
J que nossas lembranças são continuamente reconstruídas, estimuladas por nossas
relações pessoais e sociais; e de que as lembranças pessoais se situam em espaços
A coletivos - mesmo o que guardamos em segredo está modulado pelo pensamento
coletivo.
L Ao apresentar o seu objeto de estudo em Social Memory (1992), James
Fentress e Chris Wickham anunciam o objetivo de verificar o uso que historiadores
e cientistas sociais fazem da memória, lamentando que, apesar da suposta
L
inclusão do testemunho pessoal do “homem comum” na narrativa histórica, a
discussão sobre memória parece manter-se “confinada às perspectivas e questões
A historiográficas tradicionais - a relevância da experiência das pessoas comuns
para a história, a significância histórica da visão do subalterno, ou o grau de
influência que a elite cultural pode exercer sobre a cultura popular” (FENTRESS;
WICKHAM, 1992, p. 2, tradução nossa). Ou seja, por não se debruçar sobre os
processos cognitivos e construtivos da identidade característicos da memória,
• cujas narrativas seguem padrões e lógicos diversos da narrativa histórica, será
615 falha qualquer tentativa de equiparar o testemunho de memória oral à prova
documental; e não irá afetar o status de “sujeitos da história” já ocupado pelas

elites. Os autores também classificam a memória em dois grupos: a objetiva, que
tem um teor de “verdade” verificável e referendado socialmente; e a subjetiva que,
embora também influenciada socialmente, é parte intrínseca do eu, partindo das
impressões e sensações pessoais na construção de uma visão de mundo (idem,
p. 5). Essa conceituação reforça a ideia de que a memória individual é fortemente
2 influenciada pela coletiva.
Sobre a relação entre memória e história, Halbwachs, por sua vez, afirma
0 que a história procura pormenorizar os detalhes, mas “não hesita em introduzir
divisões simples na corrente dos fatos” (HALBWACHS, 2006, p. 103). Ou seja, rompe
1 com o contínuo das lembranças individuais e coletivas, apoiadas na proximidade
entre os membros do grupo. Assim, um depoimento, como ponto de vista de uma
8 testemunha menor da história, não é, necessariamente, um documento a reforçar
a narrativa histórica em pauta, mas um novo universo narrativo, com perspectivas
diversas da “verdade social”. Do mesmo modo, apesar da autoridade que a posição
de Mestre lhe confere, Ricardo Sales fala de si, no filme; e é neste contexto que
seu depoimento é assimilado. Outro ponto importante, em Halbwachs, é a
percepção de que o envolvimento do indivíduo no grupo - aderindo às visões de
mundo coletivas, de modo geral - tem também influência no que será lembrado.
Lembranças pessoais ganhariam enquadramentos socialmente compartilhados,
com o grupo social agindo na construção de memórias de fatos que talvez não
tenham ocorrido (HALBWACHS, 2006, p. 36).
O ato de lembrar, ou seja, resgatar uma lembrança da memória, pode
ser descrito, a partir dos autores acima, como a criação de uma narrativa que, a
cada vez, reconta um dado da memória e se atualiza. O relato de testemunho, que
é a principal ferramenta da história oral (e de muitos filmes documentários, aliás),
tem que ser, então, contextualizado, de modo que a narrativa sirva ao propósito
documental que se deseja.
Os 24 minutos de duração do filme estão divididos em cinco sequências,
J nas quais os trechos o depoimento de Mestre Ricardo são apresentados fora da
ordem em que se deram no momento da entrevista. As suas falas são entrecortadas
A por cenas complementares, que mostram rituais e apresentações da banda; mas,
nem sempre há uma correlação direta entre o que é visto e o que é falado.
L As sequências do filme são: 1- um prólogo, que apresenta o “mito fundador”
do congo, narrado por Ricardo Sales, sobre imagens da Fincada do Mastro de Nova
Almeida; 2- após os créditos de abertura, são apresentados os principais rituais
L
da Festa de São Benedito da Banda Amores da Lua, comentados pelo Mestre,
seguidos da história da fundação da Banda pelos bisavós de Ricardo, em 1945, e de
A comentários sobre as graças alcançadas pelos devotos do Santo; 3- vem, então, uma
sequência de flashback, em que o autor do filme narra como conheceu Ricardo, e
como se deu a sucessão do comando da Banda; 4- Ricardo fala sobre sua fé e sobre
os milagres que atribui a São Benedito, e como ele tenta manifestar sua devoção,
nos rituais e apresentações; fala também sobre as dificuldades de se levar a banda,
• sobre sua religião, e as dos membros da banda; 5- por fim, Ricardo comenta sobre
616 si mesmo, o que o motiva, e como cria as roupas e estandartes; como se vê à frente
da banda, e a importância desta em sua vida. Seguem-se os créditos finais.

Hoje, Ricardo Sales tem 32 anos, e é o Mestre da Banda de Congo
Amores da Lua desde 2013, sucedendo, de forma bastante conflituosa, a seu
avô, Reginaldo Sales, co-fundador da banda, falecido em 2015. Antes mesmo de
assumir o comando da banda, Ricardo começou a reformular as vestimentas e
2 adereços, imprimindo um estilo próprio, caracterizado por elaborado requinte. Faz
isso com grande esforço pessoal, e de seus pais, já que não possui outros meios de
subsistência nem conta com apoio institucional para tanto. Ele concluiu apenas o
0 ensino fundamental, e apresenta uma certa dificuldade na leitura e na escrita; e
não teve, também, nenhuma formação em arte ou artesanato, compensando sua
1 inabilidade com uma mente criativa e grande dedicação ao trabalho na banda.
Apesar de viver em Vitória desde o fim de 2005, somente em janeiro de
8 2013 tive, pela primeira vez, contato direto com uma banda de congo. Em junho
daquele ano, conheci a Banda Amores da Lua e, desde então, tenho acompanhado
seus rituais e apresentações, dedicando-me a estudar os vários aspectos desta
cultura tradicional. O audiovisual tem sido minha principal forma de interlocução,
devido à minha formação em cinema e artes, e tem servido tanto de instrumento de
registro e de compreensão dos fenômenos, quanto de “moeda de troca” nos contatos
com as bandas: creio que minha postura de respeito aos conguistas, na captura e
edição do material, aliada à devolução dos registros, na forma de disponibilização
de vídeos e distribuição de cópias fotográficas, criou uma atmosfera de confiança,
por parte das bandas, que tem sido facilitadora das abordagens.
Em março de 2015, ainda muito ignorante de várias questões do congo,
de seus fundamentos e de suas histórias, pedi a Ricardo Sales uma entrevista,
que resultou no documentário “O que é meu vem a mim”, finalizado somente
um ano depois. Além da entrevista, o filme inclui cenas dos rituais de “Cortada
do Mastro”, “Puxada do Barco” e “Fincada do Mastro” de São Benedito, além de
cenas da Festa de Nova Almeida e da Festa do Caboclo Bernardo, um “Encontro
de Grupos Folclóricos” que ocorre anualmente em Regência, distrito de Linhares
J situado na foz do Rio Doce.
Avalio, agora, que todo o processo de produção do vídeo foi realizado
A de forma um tanto subjetiva, tendo a racionalidade estratégica influenciado mais
na solução das questões técnicas de captura e edição. Ou seja: a entrevista não
L seguiu nenhum roteiro pré-definido e, no fundo, tomou a forma de uma conversa
conduzida pela curiosidade (a despeito da estrutura de filmagem); e a edição, um

ano depois, foi uma releitura do depoimento iluminada pelas cenas que presenciei
L nos rituais ao longo do ano. Passados entre dois e três anos de todo o processo, vejo-
me numa posição de distanciamento que permite olhar para o trabalho de forma
A um tanto objetiva. E, apesar de já ter feito reflexões acerca das decisões técnicas e
de linguagem tomadas na produção deste e dos outros vídeos de O Congueiro, irei
concentrar-me, aqui, nos aspectos narrativos que cercam o documentário e minha
relação com o Mestre.
O pesquisador Claude Bailblé, ao comentar sobre os conceitos éticos por
• detrás do trabalho do documentarista, relaciona o que chama de “contratos”, entre
617 o documentarista e as diversas instâncias. O documentarista tem um contrato, em
primeiro lugar, consigo mesmo, com sua consciência. Deve equilibrar a vaidade

do ego, a dúvida metodológica e a noção subjetiva da sua posição no conjunto
de processos criativos. Tem também um contrato com seu objeto, ao construir
uma relação de conhecimento e envolvimento com o tema, questionando-se
continuamente sobre o que sabe e o que deseja saber. Outro contrato é com as
pessoas com quem filma, os sujeitos do filme, que às vezes têm que se submeter
2 às perguntas constrangedoras ou rememorar momentos sofridos. Deve ter empatia
para com os envolvidos, mas com a distância necessária para poder alcançar o
0 depoimento desejado. E, por fim, um contrato com seu espectador, que é, afinal, a
quem se dirige o filme. (BAILBLÉ, 2012, p. 9-17). Com isto quero reforçar a ideia de
1 que um vídeo, inicialmente uma obra tecno-artística, é também uma relação, uma
interlocução de seu autor com as várias instâncias envolvidas; e, como relação
8 social, produz uma narrativa própria, independente da linguagem ou do objeto
da obra. Isto dá uma ideia de como a realização de um filme é uma narrativa
em si, para além das desventuras logísticas da produção. Existem camadas de
relacionamentos envolvidos na criação da história. Quanto mais o documentarista
e o entrevistado convivem, mais criam situações de interação e compartilhamento
de lembranças. Por outro lado, as diferenças realçadas pelo não conhecimento do
outro tornam as descobertas mútuas mais evidentes, dinamizando a relação.
O prólogo do filme traz a narração de Ricardo Sales, contando a lenda
dos escravos que, agarrados ao mastro do navio, teriam sido salvos do naufrágio
de um navio negreiro por um milagre de São Benedito. As imagens mostram cenas
da Fincada dos Mastros de São Benedito e São Sebastião de Nova Almeida (distrito
do município da Serra, em cujo litoral teria acontecido o milagre), e seguindo um
hábito local, há grande disputa entre jovens para se ter a chance de escalar o
mastro e rodar a bandeira do Santo, ação cujo sucesso concederia graças aos
destemidos. Além da relação do local da festa com o mito, a cena ilustra, como
alegoria, a narrativa da lenda: os fogos de artifício da festa seriam os raios e trovões
da tempestade que provocou o naufrágio; na lenda, os escravos naufragados, em
J desespero, tentam agarrar-se ao mastro, que também é disputado por corpos
seminus, na festa; em ambas, há gritaria e confusão.
A Em um trecho da entrevista que ficou fora da edição, Mestre Ricardo
afirma que “isso é uma lenda, uma história, não tem relato nem retrato”, aprendida
L por ele de tanto seu pai e seu avô contarem; e que ele, e outros conguistas, não
seguem, “não querem nem ouvir falar”; cita ainda os Mestres Crispim e Antônio

Rosa, da Serra, como grandes divulgadores do mito - “cada banda tem a sua
L história”3. Fentress e Wickham afirmam que “eventos podem ser mais facilmente
lembrados se encaixam-se em formas narrativas que o grupo social já tem a seu
A dispor” (FENTRESS; WICKHAM, 1992, p. 88, tradução nossa), pela forma que
reforçam qualidades que o grupo valoriza; ou porque legitima ações do presente.
Seguindo esta linha de pensamento, as particularidades que o culto a São Benedito
adquiriu junto a algumas bandas de congo se dariam, talvez, porque a narrativa do
salvamento dos escravos náufragos se adequariam às vontades, ou expectativas,
• das pessoas que a seguem4. Os grupos sociais produzem uma espécia de vocabulário
618 narrativa, que conforma a lembrança dos fatos.
Após os créditos, o depoimento de Mestre Ricardo se divide entre a narrativa

de como se dão os rituais da Festa de São Benedito, com algumas particularidades
e comentários sobre a devoção das pessoas que participam da festa; e a história da
banda, como ela foi fundada por seus bisavós e o que os motivou. Estes últimos
fatos não foram testemunhados pessoalmente por Ricardo, mas contados a ele
pelos familiares, apesar de ele ter convivido, na infância, com alguns de seus
2 personagens. Dada a importância da banda para a coletividade, são memórias
que se dividem entre a crônica familiar e a história da banda, já registrada em
0 algumas publicações, e entendida aqui como uma entidade de importância social.
Para Halbwachs,
1 No primeiro plano da memória de um grupo se destacam as lembranças dos
eventos e das experiências que dizem respeito à maioria de seus membros e

8
3  SALES, Ricardo. Depoimento em vídeo a José Otavio Lobo Name. Em 23/03/2015. Vitória:
arquivo particular, 2015. Todas as falas de Ricardo Sales, exceto quando indicado, são da entrevista
de março de 2015.
4  O espaço não permite alongar-me neste tópico: na Serra, onde este mito é mais cultuado, é
também onde ocorreu a Rebelião do Queimado, em que os escravos, sentindo-se traídos pela Igreja,
que lhes prometera alforria quando terminassem a construção da torre da Matriz, revoltaram-se
quando a promessa foi quebrada. A região de Putiri, praia aonde os náufragos teriam chegado, é
dominada por fazendas, e não tem, atualmente, nenhuma banda de congo. Neste contexto, a ideia
de que escravos (uma vez náufragos, então fugitivos) tivessem a autonomia de fazer uma festa a
São Benedito parece combinar apenas com a crença em uma harmonia mítica entre escravos e
senhores.
que resultam de sua própria vida ou de suas relações com os grupos mais
próximos, os que estiveram mais frequentemente em contato com ele. As
relacionadas a um número muito pequeno e às vezes a um único de seus
membros, embora estejam compreendidas em sua memória (já que, pelo
menos em parte, ocorreram em seus limites), passam para o segundo plano
(HALBWACHS, 2006, p. 51).

No pensamento de Halbwachs, uma lembrança compartilhada com muitos


J membros do grupo é reforçada. A história da banda, para Ricardo, se situa na
divisa entre uma memória de família, de grande significância, e por isso partilhada
por todos, e um fato histórico, já codificado na forma de evento social, publicado
A textualmente. Por isso, talvez, sua fala reflita um tom um tanto monocórdio, como
quem repete uma lição decorada, mesmo quando tenta reforçar que a motivação
L para a fundação da banda foi a fé que sua bisavó tinha em São Benedito, sua
“necessidade de ter uma banda de congo”. O conceito de “enquadramento da
L memória”, de Michael Pollak (que será visto mais adiante), pode ser abordado aqui:
Ricardo aprendeu a história de sua família tanto pelos relatos dos parentes, como
A pelas versões “oficializadas” em livros e matérias de jornal.

A terceira sequência, em flashback, foi elaborada na edição, que ocorreu


um ano após a entrevista, e serviu para contornar a falta de depoimentos de Ricardo
que narrassem como se deu a passagem do comando da banda de seu avô para
ele. Somente tomei conhecimento de detalhes desta história depois da entrevista
• com o Mestre; e, na verdade, até hoje alguns pontos não me foram completamente
elucidados5. De qualquer jeito, eram fatos contemporâneos ao período em que estava
619
tendo os primeiros contatos com Ricardo e a Banda, e foi por isso que, neste trecho,
• o vídeo dá a palavra a seu autor, esclarecendo a relação entre documentarista e
documentado. Essa voz do autor, de fato, aparece na forma de legenda, numa
decisão que visava deixar o som da cena de fundo claramente audível, e como
maneira de não disputar o espaço de fala com o personagem principal. No entanto,
como alguns membros da banda têm dificuldade de leitura, criei uma versão do
2 vídeo em que este trecho é narrado em off.
A sequência em flashback fala da época em que conheci Ricardo e a
0 banda, e mostra o primeiro vídeo que produzi no âmbito do projeto, a Cortada
do Mastro de 2013. Somente na época da edição do filme é que soube que a forte
1 chuva que caiu fora um duplo batismo: meu, no congo; e de Ricardo, como Mestre
da banda. A imagens têm uma beleza própria, mas a qualidade técnica é inferior
do que é produzido atualmente. Por esta razão; e como reforço a uma ideia de
8 reminiscência que esperava imprimir às cenas, elas aparecem em um quadro de
tamanho reduzido, emolduradas pelo fundo negro.
Apesar de as frases anteriores parecerem indicar uma série de decisões
técnicas e linguísticas que visariam provocar um certo efeito no espectador (a mis

5  Antes de o filme ser finalizado (quando nem o título havia sido decidido), Mestre Ricardo foi
convidado para uma exibição privativa. Esta sequência sofreu uma pequena alteração: inicialmente,
apresentava uma versão mais conflituosa da passagem do comando da banda do avô para Ricardo;
e, a pedido deste, o tom foi abrandado. Mas, em mais de uma ocasião posterior, Ricardo mencionou
o enfrentamento com seu avô.
en scène), preferiria reforçar, aqui, a perspectiva de que a cena resulta de uma
sobreposição de narrativas, na qual o clichê da linguagem cinematográfica, a cena
em flashback, atuaria como aquilo que Edgar Morin propôs como a “metamorfose
do cinematógrafo em cinema” (MORIN apud TEIXEIRA, 2012, p. 186), ou seja, a
linguagem não seria um recurso de ilusão do espectador; estaria, sim, a serviço da
realidade que o autor procura. Fazer um filme não é somente captar com a câmera,
mas sim o processo que inclui a captura e a edição.
J Procuro, assim, diferenciar o trabalho de edição daquele presente no
conceito de “memórias enquadradas” que, para Michael Pollak, são as lembranças
A coletivas, trabalhadas por seus “guardiões”, que representam os valores ou
propósitos que um determinado grupo busca perpetuar politicamente (POLLAK,
L 1989, p 10), através do controle da subjetividade do testemunho (aquilo que se
mostra) e da objetividade da imagem que se quer passar (o que se camufla).

Pollak também aponta o filme como um ótimo suporte como objeto da
L
memória (POLLAK, 1989, p. 11). Para ele, as memórias coletivas enquadradas são
importantes “para a perenidade do tecido social e das estruturas institucionais
A de uma sociedade”, intervindo “na definição do consenso social e dos conflitos
em um determinado momento conjuntural” (POLLAK, 1989, p. 11). Esse tom
um tanto positivista, que de certa forma confunde “sociedade” (ou até “nação”)
com “comunidade”, mesmo quando se abre para as tensões entre as memórias
enquadradas, poderia fazer com que o trabalho de edição descrito acima parecesse
• estar a serviço do consenso social, quando o que busca, intencionalmente, é a
620 pluralidade das narrativas.
• A memória enquadrada pelos profissionais da história tem como
antídoto as memórias individuais, que tornam visíveis os limites do trabalho
de enquadramento e permitem ao indivíduo controlar a tensão entre o passado
“oficial” e suas lembranças pessoais (POLLAK, 1989, p. 12). Assim, ao relato de
Ricardo, juntam-se o comentário da edição, e a interlocução com o Mestre. O
2 suposto maneirismo da sequência em flashback remete a “uma forma artesanal
de comunicação. (...) Assim, imprime-se na narrativa a marca do narrador, como a
mão do oleiro na argila do vaso” (BENJAMIN, 2012, p. 221).
0
Na quarta sequência do documentário, em que relata os milagres que o
Santo teria praticado em sua família, o tom do discurso de Ricardo Sales é bastante
1 objetivo, em contraste com o desdém com que trata da “lenda oficial” do Santo.
Ele dá testemunho dos milagres da devoção em sua família: seu pai, desenganado
8 pelos médicos após um evento cardiovascular, recuperou-se; e sua mão, que
estava de muletas, “agora dança o congo, que ninguém diz que aconteceu nada
com ela”. Para ele, esta não é uma “memória subjetiva” (FENTRESS; WICKHAM,
1992, p. 5, tradução nossa), no sentido de referir-se a sentimentos e impressões,
mas realidade concreta. Em A memória coletiva (2006), Maurice Halbwachs
detalha os processos que, a seu ver, constituem a memória. Nossas lembranças
seriam acompanhadas de nossas relações com o grupo; poderiam ser reconstruídas
pela aceitação do testemunho dos outros; nossa posição no grupo reflete-se nas
lembranças compartilhadas em seu âmbito; e a separação do grupo pode acarretar
no esquecimento das lembranças (HALBWACHS, 2006, pp. 30-40). Lendas são
narrativas específicas, que são repetidas de geração em geração, diferindo das
lembranças dos fatos realmente ocorridos. Aqui, os fatos são a saúde restabelecida
dos pais de Ricardo, mas a narrativa é reforçada pela crença comum que une a
família, de que o cumprimento das obrigações para com o Santo lhes concedeu
as graças alcançadas. Recorrendo ainda a Halbwachs, para quem “Toda memória
coletiva tem como suporte um grupo limitado no espaço e no tempo” (HALBWACHS,
2006, p. 106), podemos especular se as lembranças do grupo não seguiriam
J narrativas míticas com relação aos fatos, devido à grande intensidade com que
os ritos do congo são compartilhados por tanta gente. Assim, uma concepção de
história baseada na oralidade acabaria por ter de se referir a um espaço-tempo
A
mítico, onde tudo pode acontecer.

L Da última sequência saiu a frase que dá título ao filme. Ricardo é instigado
a se descrever, a falar de si, e da forma como executa o seu trabalho de criação.

Diz então que, mesmo quando se sente parado, “O Santo busca” e que “não precisa
L andar tão longe (...) porque o que é meu vem até a mim”. É interessante como,
neste trecho, Ricardo adota a terceira pessoa para se referir a si mesmo, e que
A justamente aqueles fatos que foram vividos por ele, e que por isso poderiam formar
sua memória mais objetiva, adquirem em sua fala um aspecto mítico. Perguntado
sobre de onde vêm as vestimentas requintadas que ele criou para a banda (já que
isso não é tradicional do congo), ele diz que vem “do meu imaginário e do meu além”.
Para Pierre Nora, a história é uma reconstrução “problemática e incompleta
• do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no
621 eterno presente” (NORA, 1993, p. 8). Situados no cruzamento entre as lembranças
individuais, a memória coletiva e a história, os lugares da memória apresentam

três aspectos: material, funcional, e simbólico (NORA, 1993, p. 21). Fazem parte de
um jogo entre memória e história, mas aquela é prioritária; sob o risco de se ter,
apenas, uma lembrança. A história é o registro, a informação sem contexto, sem
vida; a memória a põe em movimento, e a transforma.
Diferentemente de todos os objetos de história, os lugares de memória não
2 têm referentes na realidade. Ou melhor, eles são, eles mesmos, seus pró-
prios referentes, sinais que devolvem a si mesmos, sinais em estado puro.
0 Não que não tenham conteúdo, presença física, história; ao contrário. Mas o
que os faz lugares de memória é aquilo pelo que, exatamente, eles escapam
da história (NORA, 1993, p. 27).
1
Em contraponto e igualmente partindo de uma perspectiva do fim do século
8 XX, na pré-história da internet, em que a digitalização da mídia dava os primeiros
passos, Andreas Huyssen percebe uma obsessão com o passado, causada, segundo
ele, pelo fracasso do projeto de futuro da modernidade (HUYSSEN, 2000, p. 18).
Ela enumera CDs, CD-ROMs e páginas de internet voltados a um culto da memória
do passado, muitos destes comercializando “memórias imaginadas” (HUYSSEN,
2000, p. 18). Talvez por falar de um período anterior à atual democratização dos
meios de produção e compartilhamento, e das próprias redes sociais, Huyssen
preocupa-se com uma memória globalmente coletiva, como um consenso; e com
uma noção objetiva do passado a ser protegido de novas configurações de espaço e
de tempo. Apesar de a indústria cultural ser, hoje em dia, mais concentrada do que
nunca, há também a emergência de diversas manifestações locais, que encontram
meios e espaços para se mostrar e se expandir. A proposição de Nora, de que os
lugares de memória são relacionais, na medida em que são atualizados na memória
coletiva, apresenta, de certa forma, pontos em comum com o pensamento de
Huyssen, para quem insistir em uma separação entre memórias “real” e “virtuais”
é um “quixotismo, quando menos porque qualquer coisa recordada - pela memória
vivida ou imaginada - é virtual por sua própria natureza” (HUYSSEN, 2000, p. 37).
J Sendo uma relação social, a memória coletiva não depende de suporte físico.
Filmes são criações coletivas, feitos para serem assistidos em grupo,
A simultaneamente, como uma performance. O público da sala de cinema, agora se
reúne na rede. Para Benjamin, “(...) o quadro não tem condições para ser objeto de
L uma recepção coletiva simultânea, como sempre foi o caso da arquitetura, como
aconteceu antigamente com a epopeia, como acontece hoje em dia com o cinema”

(BENJAMIN, 2017, p.36).
L
Este filme é um arquivo, uma fonte, um conjunto de dados disponível para
consulta. Nesse ponto, é história; mas não foi feito com essa intenção. Ele partiu
A de uma conversa, que se seguiu a um encontro, que se desdobrou em descobertas.
Em dezembro de 2017, o link do filme, no YouTube, foi liberado ao público; até
então, o filme havia sido exibido em um festival, e em algumas exibições para a
banda e na Universidade. Mestre Ricardo compartilhou-o imediatamente em seu
perfil do Facebook, com o seguinte comentário, aqui reproduzido em sua escrita
• idiossincrática:
622 Acho que esse vídeo tem tudo a ver com o que estou passando hoje com as
pessoas me impunha lando por trás de mim falando coisas que não deve in-
• comodada com a casa dos meus pais com as pessoas que estão comigo não
tenho culpa se as pessoas não são amadas mas sou amado por muitos que
gostam de mim por isso que estão comigo não gosto de falsidade sou uma
pessoa amiga e sincera a todas as pessoas que estão comigo não adianta fa-
lar de mim porque descubro tem os meus orixás as minhas energias os meus
exu e as minhas pomba gira e sou filho de Oxalá e Iemanjá nunca nada me
2 engana conheço as pessoas pelo olhar assim que eu sou que vem debaixo a
mim não me atinge confio em Deus primeiramente e nos meus Orixás e São
0 Benedito que essas pessoas vêm fazendo vão ter o que merece eu ei de ver se
você não pode ajudar é melhor você se calar6 (SALES, 2017).

1 Percebo que, para Mestre Ricardo, o filme representa um aliado, de que


há pessoas ao seu lado, que “é amado por muitos”. Em nossa convivência de quase
8 cinco anos, eu ainda não havia recebido nenhuma indicação do que minha presença
e meu trabalho significavam para ele, em um plano mais pessoal - mesmo que o
comentário acima não possa ser considerado diretamente dirigido a mim. E, além
de achar que o filme o “representa”, creio que a sua mensagem denota também
a potência multiplicadora da rede: permitindo que o filme continue a deslanchar
novas narrativas.
Vimos que a memória, em oposição a uma perspectiva positivista da

6  SALES, Ricardo. Postagem no Facebook, em 14 de dezembro de 2017. Disponível em: https://


www.facebook.com/ricardo.sales.77398/posts/932834510204957. Acesso em: 10/01/2018.
Reprodução sem correção.
história, é um processo dinâmico, continuamente atualizado pelas pessoas e pelos
grupos, na forma de narrativas. Uma vez gravadas, tais narrativas têm o destino
dos arquivos, onde podem se tornar mera informação descontextualizada; ou
tornarem-se lugar de memória, como agente disparador de novas subjetividades
coletivas. O indivíduo estabelece uma forma de expressão nova para aquilo que
lembra, constituindo, assim, uma memória nova, ressignificada pela perspectiva
de quem ele é naquele momento. Do mesmo modo, uma obra de expressão, como
J um vídeo, reconfigura os acontecimentos segundo a direção que seu autor lhe dá,
e é entendido pelo espectador em novas formas de atualização.
A Relatos de testemunho são marcados pela memória do individuo que,
por sua vez, está em constante negociação com a memória do grupo, e com as
L forças sociais. E, uma vez gravados e distribuídos, tais relatos se tornam objetos
de memória coletiva, contribuindo à multifacetada narrativa da história social. O

universo do congo do Espírito Santo é campo de diversas disputas narrativas, além
L daquelas de cunho político e econômico. As bandas apresentam grande diversidade
de ritos, fundamentos, e formas de representação; parecendo, por vezes, unidas
A apenas pela autodenominação de “banda de congo”. Os mestres, neste contexto,
têm um papel fundamental de guardiões da memória, ao mesmo tempo que abrem
caminhos para novas configurações da cultura.
Esse trabalho não dá conta, por não ter se proposto a tanto, da ideia
de patrimônio imaterial, contexto no qual as bandas de congo estão inseridas. A
• cultura imaterial está sempre em atualização pela coletividade. Tanto as questões
623 relativas à memória, à história, e ao audiovisual, quanto à memória, são relacionais.
São saberes de tradição oral e performática, transmitido em comunidade, cujo

“registro” torna-se limitado se não der conta dos aspectos de espaço, movimento,
cor, sons e temporalidade.
Referências
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2 M. (orgs.). Documentário: o cinema como testemunha. São Paulo: Intermeios, 2012.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história
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1
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HUYSSEN, Andreas. Passados presentes: mídia, política, amnésia. In: Seduzidos pela me-
8
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NAME, Jo. O que é meu vem a mim. Documentário em vídeo. 24min, cor, 2016. Disponí-
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NORA, Pierre. Entre memória e história: A problemática dos lugares. In: Projeto História,
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TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. Cinemas “não narrativos”: Experimental e documentário
- passagens. São Paulo: Alameda, 2012.

J

A

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L

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624

2

0

1

8

J

A

L DE SCORZA A COLCHADO: POÉTICAS FRENTE AL
ACONTECIMIENTO DE LA COLONIZACIÓN Y EL PASO DE LA
L ÉTICA INDIGENISTA A LA ESTÉTICA ANDINA

A Juan Carlos Almeyda Munayco (UNMSM)
RESUMEN: En esta investigación se analizan comparativamente las obras
de Manuel Scorza y Óscar Colchado, connotados escritores peruanos que se
pronuncian sobre el irresoluto conflicto de la heterogeneidad cultural en los países
andinos. Centrándose en las novelas Garabombo, el Invisible, segunda balada de
• la pentalogía de Scorza, y en Rosa Cuchillo, relato de Colchado enmarcado en el
625 conflicto armado interno surgido en el Perú a fines del siglo XX, se señala que
ambas novelas se ubican frente al acontecimientode la colonización. En el primer
• caso, se idealiza el poder de la literatura con respecto a la realidad histórica. En el
segundo, se evidencia un impasseal aceptarse la imposibilidad de la juntura entre
las culturas andina y occidental, y expresarse a la vezen un tipo discursivo que
manifiesta lo contrario. Estas poéticas muestran el paso desdeuna ética indigenista
hasta una estética andina.
2 Palabras clave: Garabombo, el Invisible. Rosa Cuchillo. Acontecimiento de la
colonización. Ética indigenista. Estética andina.
0
Este artículo debe empezar señalando sus limitaciones y sus aperturas. El
1 caso estudiado es específicamente el de la literatura peruana; pero no por ello podrá
impedirse su vinculación con el desarrollo de las letras en otros países andinos.

Este trabajo, además, está aún en proceso de construcción; pero ello mismo es
8 lo que permite proponer nuevas hipótesis e incrementar las posibilidades en los
estudios literarios. Dicho esto, habría que aclarar que esta es una investigación
que, dentro de sus posibilidades, buscará examinar la literatura peruana como si
esta fuera un proceso histórico. En ese marco, podríamos señalar tres nociones que
tendremos en cuenta: el acontecimiento de la colonización, la ética indigenista y la
estética andina. Ciertamente, ninguno de estos se justificaría si no se evidenciaran
en obras específicas. En ese sentido, las novelas Garabombo, el Invisible y Rosa
Cuchillo, de Manuel Scorza y Óscar Colchado respectivamente, son las que nos
permiten proponer estas nociones. La dinámica de lo que sigue, entonces, irá desde
las nociones a las obras y desde estas a las generalizaciones.
Tanto Garabombo, el Invisible como Rosa Cuchillofueron publicadas en
la segunda mitad del siglo XX. Estas dos forman parte de las obras literarias que
evidencianla contradicción producto de la relación entre las culturas matrices
en los países andinos: la occidental y la indígena. La heterogeneidad patente en
estas narraciones, tal como lo intentaremos ver, tiene sus orígenes en un evento
J inaugural. Antonio Cornejo Polar, el célebre teórico literario peruano, en el primer
capítulo de Escribir en el aire, estudia esta condición fundacional: el encuentro
A de Cajamarca. En la plaza de la región del norte, se hizo evidente, más que la
discusión entre Francisco Pizarro y el inca Atahualpa, la colisión entre dos culturas
L cuyas materialidades lingüísticas eran diferentes. Mientras que los naturales se
comunicaban por medio oral, los españoles utilizaban la tecnología de la escritura.

Esto provocaba una imposibilidad de relación fluida y pacífica. El choque de dos
L modos de entender el mundo, el occidental y el andino, se descubrió además como
un hecho extremadamente violento.
A En ese sentido, la primera relación del sujeto amerindio con la letra
fuetraumática. La letra se impuso en los naturales como instrumento de poder
colonializante. Además, en tanto escritura, la letra ―una “cosa” o “artefacto”
separado del sujeto― era una tecnología ajena a la voz ―siempre vinculante,
continua y propia del sujeto enunciador―. Esta escisión, en contraposición a la
• continuidad previa, es importante en tanto se trataba de una forma de cosmovisión.
626 La independencia de la letra con respecto del sujeto es la misma de la cultura con
respecto de la naturaleza. Se trataría de dos formas divergentes de entender el

mundo que entran en acción: el fracaso de la síntesis flemática era inminente. Así,
la violencia de este evento― no solo por el genocidio de indígenas que significó, sino
también por lo repentino de su llegada― hizo que ni unos ni otros comprendieran,
dentro de sus propias lógicas, lo que estaba sucediendo. Los discursos elaborados
trataban de encontrar en lo fantástico o lo maravilloso (por un lado), y en lo mítico
2 (por el otro) alguna explicación (imaginaria, tal vez) de lo que había sucedido.
El acontecimiento de la colonización puede verse desde este momento.
0 Se aprecia no solo en la llegada violenta e inesperada de los españoles a territorio
americano, sino en la manera como este suceso intentó ser aprehendido en los
1 discursos. De ese modo, el acontecimiento de la colonización se convirtió también en
el acontecimiento de la narrativa andina1. Cuando el evento intenta sublimarse en
8 las reproducciones textuales, cuando se intenta ocultar su real violencia, es posible
entender precisamente su fuerza contenida. El acontecimiento, como sabemos,
es perceptible de manera retrospectiva, en tanto es “el efecto que parece exceder
sus causas” (ZIZEK, 2016, p. 17). Este evento, que desconfigura todo el sistema
precedente y que irrumpe sin aviso previo, es reproducido en los discursos con

1  Es cierto que habría que señalar que el acontecimiento de la narrativa andina difiere del de
la colonización. El primero aparece cuando a pesar de la naturaleza encubridora del discurso, la
novela refleja más de lo que debería ocultar; cuando es consciente del acontecimiento y lo reconoce
en su real dimensión, en su fatal dimensión.
el fin de conocer y tolerar su magnitud. Allí es posible encontrar la relación del
acontecimiento de la colonización con la literatura.
Alain Badiou ―en “La naturaleza: ¿poema o matema?” (2007, pp. 143-
149), capítulo incluido en El ser y el acontecimiento― contrapone el concepto de
“poema” con respecto al de “matema”. El poema sería una rememoración nostálgica
del momento cuando hombre y naturaleza eran uno, cuando el lenguaje no había
barrado al sujeto, cuando la filosofía de los griegos aún no había interrumpido el
J devenir de la poesía con el matema, cuando la estabilidad natural garantizaba la
seguridad: “El poema se confía nostálgicamente a la naturaleza sólo porque fue
A alguna vez interrumpido por el matema” (p. 147). El poema es idealización romántica.
Ciertamente, esto es dicho en el contexto de la cultura occidental europea, pero es
L importante tener en cuenta puesto que implica la intervención de la letra y de lo
que lo poesía y la literatura clásicamente harían: rememorar el tiempo armónico del

pasado.
L
Cabría preguntarse, entonces, qué se nostalgia en la literatura peruana.
Existió una intervención violenta de la letra, que separó radicalmente al sujeto
A amerindio de su decir (materializándolo en un objeto separado de sí, ajeno). Lo que
la poesía idealista clásica querría representar es el momento de armonía con el
cosmos. Sin embargo, al contrario de lo que señala Badiou, son dos imágenes las
que el sujeto indígena idealiza. En primer lugar, rememora un momento previo a
la Conquista. En este, el hombre andino no ha tenido contacto con la semiosfera
• occidental, por lo que existe el continuum entre naturaleza y cultura, entre cosmos
627 y sujeto, que garantiza la armonía2. En segundo lugar, lo que idealiza es la relación
entre andinos y occidentales. Cree en una relación armónica entre unos y otros,

propicia el mestizaje y la mezcla. Por supuesto, ambos escenarios son configuraciones
idealizadas de la realidad. En ese mundo de ensoñación es que la poesía, como
clásicamente se entiende, se instalaría3.
La narrativa andina moderna no es idealista, sino que es consciente
2 del acontecimiento de la colonización. La narrativa indigenista también conoce la
violencia ejercida en el encuentro de andinos y españoles. Ciertamente, inclusive en
el indianismo se conoce el estado de subalternidad que tiene la población indígena
0 (aunque en este caso se privilegie la mirada paternalista que el mismo sujeto
enunciador, de la cultura dominante, tenga de la situación). Sin embargo, en las
1 novelas y cuentos previos suele tenerse una mirada idealista, ligada a la poesía
como la concibe en este momento Badiou. Estas especificidades serán explicadas
8 en la parte final del artículo, a manera de conclusión de los apartados que ahora
continúan. El análisis de Garabombo, el Invisible de Manuel Scorza y Rosa Cuchillo
de Óscar Colchado nos darán pie a una mayor reflexión.

2  Lo repetiremos más adelante, pero es necesario aclarar que estas son idealizaciones. En la
realidad, incluso en el momento previo a la llegada de los españoles, el territorio andino nunca fue
habitado por poblaciones homogéneas. Por el contrario, las disputas políticas fueron claves para
que el proceso histórico se diera como sucedió.
3  Es harto importante ser conscientes de que la “nostalgia” que permite la idealización del
sujeto andino aparece en la literatura peruana “culta” recién en el siglo XX. Antes, la literatura se
relacionaba con un sujeto occidental, cuya armonía era garantizada por la relación colonialista.
Garabombo, el Invisible y la confianza en la ficción
Manuel Scorza fue un poeta y narrador peruano que entre 1970 y 1979
publicó cinco novelas bajo el título general de “La guerra silenciosa”. El segundo
libro de esta pentalogía fue Garabombo, el Invisible. En esta, como en las demás
obras, se relata la historia de un héroe líder de una comunidad, Garabombo, en
medio del conflicto de los indígenas frente la invasión de las mineras en Cerro de
Pasco y la tiranía de las autoridades. Estas novelas gozaron de gran reconocimiento
J en Latinoamérica y Europa durante su publicación y, más bien, no recibieron
comentarios favorables de la crítica literaria peruana sino hasta las pioneras
A apreciaciones de Tomás Escajadillo en 1978 y Antonio Cornejo Polar en 1984. La
más conocida de estas novelas es Redoble por Rancas, primera balada con que se
L inicia esta épica andina, pero aun así fue difícil que esta ingrese rápidamente al
canon de su país.
L Uno de los argumentos que usaban los críticos paravalorar negativamente
la novela de Scorza, era que el humor, la ironía, el “realismo mágico” y el trabajo

estilístico que aparecía alejaba el posicionamiento del autor con respecto del mundo
A andino que representaba. El análisis riguroso nos ha demostrado la falsedad de
esas declaraciones. Lo que nos presentaba Manuel Scorza era una manera distinta
de abordar el acontecimiento de la colonización. El autor es plenamente consciente
de lo problemático del trauma dejado por la irresolución de la heterogeneidad,
pero decide abordar el problema con otras estrategias discursivas. Es parte, en ese
• sentido, como luego se entenderá, de una evolución del indigenismo ortodoxo: el
628 neoindigenismo. En este artículo señalaremos que su texto sigue siendo indigenista,
existe una renovación en la forma como se enfrenta el acontecimiento, pero la

actitud sigue siendo la misma.
Ciertamente, el lector aguzado podrá pedir una razón que justifique que
la novela que analizaremos sea Garabombo, el Invisible y no cualquier otra de la
pentalogía. La causa se encuentra en un personaje particular, que no es ni el héroe
2 protagonista, Garabombo, ni el villano de la historia, el doctor Montenegro; sino
de uno diferente: el Niño Remigio. Este personaje, tal como lo plantearemos, es

quien mejor se puede homologar con la figura del escritor de esta misma novela.
0 Si bien en La tumba del relámpago, el último de los cantares de esta pentalogía,
se nos presenta a un personaje con el nombre“Manuel Scorza”, este es un actor
1 más político que creador o escritor. El Niño Remigio, en ese sentido, nos servirá
para definir la poética que se manifiesta en estas novelas. Jorge Yviricu, en “La
8 metamorfosis en dos personajes de La guerra silenciosa” (1991), señala:
La figura del Niño Remigio es […] interesante porque es el único escritor,
fuera del autor mismo, que aparece como tal en toda la obra. Su produc-
ción literaria se limita a algunas cartas y anónimos, pero deja establecida
su condición importantísima de cronista local, función que comparte con el
mismo Scorza. (p. 250)

El Niño Remigio era un jorobado, cojo, con “noventa centímetros de


desamparo” (SCORZA, 2001, p. 112), que caminaba por Yanahuanca acompañado
por sus amigos Brazo de Santo y el Opa Leandro, haciendo alarde de su supuesta
cercanía con las autoridades y de su ingenio superlativo. Sin embargo, en realidad,
según algunas descripciones, tenía ataques epilépticos repentinos que lo tumbaban
de vez en cuando. Es un personaje marginal en el pueblo que, por lo tanto, muchas
veces causa incomodidades y fastidios. No obstante ello, Remigio es también un
personaje con agencia enunciativa y decisión, con compromiso y conocimiento de
lo que sucede en la sociedad. En la novela, muchas veces se lo representa como el
personaje que dice las verdades que ningún otro se atreve a decir. El Niño, en su
condición de marginal, ponía a prueba al sistema, se configuraba a sí mismo como
J un exceso, como algo que escapaba al orden y la armonía social. Remigio, con todo
ello, es también un productor de discursos complejos y estructurados, los cuales
se valen de la materialidad lingüística oral o escrita.
A
En el capítulo 6 de Garabombo, cuando el Niño conversa con el protagonista,
L se evidencian sus capacidades. No solo sabe de los abusos que se cometen contra
el pueblo (comprensión de la realidad inmediata), sino que se percata de la razón

por que los poderosos de Yanahuanca han obligado a Garabombo a “convertirse
L invisible” (reflexión abstracta). Su tercer saber es el de la escritura y lo que la ciudad
letrada implica: “¡La Ley no autoriza!”. Además, insinúa una cercanía con quienes
A ostentan el poder. Apenas se encuentran en la plaza, el Niño le pide caramelos
a Garabombo y dice que si lo hace él le informará de su caso al Presidente, su
compadre. Insiste en apelar a la figura de la máxima autoridad, puesto que cree
que si se está viviendo un periodo de caos, ha de ser porque el Presidente no sabe,
por lo tanto, es necesario notificarlo: “Punto por punto le contaré a mi compadre
• todos los abusos: las expulsiones, los decomisos, los robos, la manoseadera, los
629 fusilicos. ¡Punto por punto!” (p. 34). Es importante tener en mente esto último
puesto que retornaremos sobre esta idea más adelante.

Como señala Yviricu (1991), Remigio es el único escritor, además de
Scorza, que aparece en la pentalogía. Si bien se podrían analizar sus numerosas
cartas, en este artículo nos enfocaremos en el relato oral que el personaje construye
en el capítulo 12. Está comprobado, por sus postales, que los discursos del Niño
Remigio se caracterizan por su carácter de protesta, aunque siempre instalado
2 en un ambiente humorístico, y por un “exceso de conciencia” con respecto de los
demás personajes de la comunidad, el cual repercute tanto en la política de lo
0 privado como en la de lo público4. Este capítulo, el decimosegundo, está compuesto
por dos narraciones que se intercalan constantemente. Una de ellas, la que trata
1 sobre el viaje de Garabombo y Bustillos a Lima, y su posterior entrega a la “justicia”
para librar a los otros comuneros de la cárcel, se enuncia desde un narrador
8 omnisciente. El otro relato lo conocemos desde la voz de un narrador en primera
persona, el Niño Remigio. Nuestro interés es por el cuento del lisiado, que tiene por
argumento su viaje ficticio, junto a Garabombo y Bustillos, en el que se encuentran
con peces habladores y tigres, sin embargo, no podemos eludir las relaciones que
tiene con la trama paralela. Así lo señala Juan González Soto (2009):
¿Qué es, pues, en esencia, el fulgurante y fantasioso relato del Niño Remigio?

4  El lisiado puede referirse tanto a las ventosidades del sargento (SCORZA, 2001, pp. 39-40) y los
hedores de los pies de Pepita Montenegro (pp. 78-79), como lanzar el grito: “Hay juicios en el Perú
que duran cuatrocientos años. Hay comunidades que reclaman sus tierras hace un siglo. ¿Quién
les hace caso? ¿Por qué no está preso el juez Montenegro?” (p. 47).
¿Qué elementos aporta al avance novelesco? No hay duda que, frente a la
narración objetiva junto a la que discurre paralela, ofrece una inusitada
iluminación. […] La narración del Niño Remigio aporta al episodio del viaje a
Lima una dimensión vivencial insospechada y vívidamente interior.

El crítico literario exhibe las convergencias temáticas entre el cuento


de Remigio y la expedición de Fermín Espinoza y Bustillos en tres específicos
momentos: en la intervención del capillero Espinoza en los preparativos del viaje
J (recolectando dinero, según Remigio; proporcionando la dirección de su sobrino
en Lima, en realidad); en las dificultades de la travesía (en el río y por las bestias,
A según el lisiado; en cuanto las improductivas gestiones legales); y en el miedo de
Bustillos (por la presencia de un tigre, según el Niño; por tener que entregarse para

su encarcelamiento). En el mundo diegético principal de la novela, la realidad, el
L
viaje de Garabombo, tiene una re-presentación en el relato ficcional de Remigio. En
la narración, se parte de un hecho referencial específico, y a través de la fantasía, se
L enuncia, ideológica y complejamente, un discurso artístico. Es en ese sentido como
se corresponden las figuras de Remigio y Manuel Scorza, en su manera de narrar,
A con fantasía, lo que se corresponde en un referente específico. Mabel Moraña, en
su célebre “Función ideológica de la Fantasía en las novelas de Manuel Scorza”
(1983), comenta sobre el escritor de la Pentalogía:
Entre los que podrían señalarse, sin duda el recurso de mayor alcance es la
utilización de la fantasía, que adquiere en la obra de Scorza una dimensión
• mucho mayor que en el resto de la literatura indigenista peruana. A partir
de ella es que se efectúa, fundamentalmente, la interiorización, en el plano
630 ficticio, de los procesos sociales que actúan como referente del relato nove-
lesco. (p. 177)

La reelaboración de lo real en el plano ficticio, a través de su fusión con ele-
mentos imaginarios, fantásticos, oníricos, trasciende los parámetros de la
mera documentación (p. 179)

El Niño Remigio, al igual que Manuel Scorza con “La guerra silenciosa”,
2 utiliza tropos como la hipérbole y la metáfora para re-presentar en su discurso
fantástico una circunstancia de referente concreto. El autor es plenamente consciente
0 ―tal vez más que el hombre común― del acontecimiento de la colonización, de su
violencia implícita y de la imposibilidad de resolución intercultural, y lo demuestra
1 en el posicionamiento ético que demuestra en su obra: hay un sujeto. Sin embargo,
a pesar de su lucidez, de su capacidad de “ver” lo invisible, hasta de la manera
como realiza el proceso de ficcionalización, que lucha contra lo que la colonización
8
significa; aún se puede ver una confianza en la letra. La literatura y la ficción sería
capaz de resolver ―aceptamos que de una manera ya diferente con respecto de
como se hacía en el indigenismo ortodoxo― el conflicto de la realidad. Es por eso
que se sigue partiendo desde un hecho específico y definido, y se reitera la lucha
por la tierra. Es esa confianza que se tiene en la ficción para resolver los problemas
de la realidad lo que hace que estos dos planos se encuentren imbricados. La
creación de la categoría “cronivela”5 con respecto a Scorza obedece a esta lógica:

5  Un desarrollo del concepto “cronivela” puede verse en el trabajo de Espezúa, “¿Qué es la


cronivela?” (2008).
la pentalogía tiene de historia y tiene de ficción. Se sigue confiando en que la
literatura solucione el problema. El riesgo en este punto está en que la literatura es
imaginaria y lo radical de lo real, en lo imaginario, solo tiene resolución a medias.
Rosa Cuchillo y la indecidibilidad como rastro del acontecimiento6
Rosa Cuchillo, célebre novela de Óscar Colchado, ha sido recibida por
la crítica literaria siempre de manera favorable. No obstante, las razones por las
que ha sabido valorar la obra son muy disímiles: así como algunas señalan que
J la lógica implícita es la de la junción utópica y solidaria andina (HUAMÁN,1999,
2006a, 2006b; QUIROZ, 2006), otros encuentran un radical hermetismo cultural
A (SAUCEDO, 2007; TERÁN, 2005). Ciertamente, tampoco se desprecian las posiciones
graduales (PEREZ OROZCO, 2011), que ven encuentros interculturales solo desde
L las periferias de las semiosferas. Consideramos que esta variabilidad que la crítica
ha tenido en sus opiniones se debe a la indecidibilidad del sujeto enunciador en la
L novela.
Rosa Cuchillo es la historia de Rosa y su hijo, Liborio, en el contexto del
conflicto armado interno en Ayacucho a finales del siglo XX. Cinco narradores,
A
como lo detecta Terán (2005), construyen este relato. No obstante, todos ellos
focalizan su atención en los dos personajes descritos; de ese modo, se configura
una dualidad que se replicará de manera constante en los elementos básicos que
componen la narración. La historia de Rosa Cuchillo, donde ella es la protagonista,
es contada por N1, narrador autodiegético, la misma Rosa Wanka, que nos

presenta su travesía en el camino hacia el Janaq Pacha; y por N4, quien “en
631 función de las focalizaciones de Rosa Cuchillo relata la incursión militar en su
• pueblo (Illaurocancha) y la búsqueda final de los restos de su hijo” (p. 121). La
historia de Liborio se relata desde N2, narrador que, utilizando la segunda persona
gramatical, cuenta las vivencias de Liborio junto al grupo de subversivos; desde
N5, un anónimo infante de la marina que cuenta las acciones de las fuerzas del
orden contra los subversivos, compañeros de Liborio; y desde N3 (que en realidad
2 cuenta también la historia de Rosa), que es Mariano Ochante en su agonía, quien
recuerda los hechos sucedidos en la comunidad por la violencia que implicó el
conflicto entre militares y terroristas.
0
Ambos personajes tienen un desarrollo narrativo particular, los cuales

se encuentran conectados por el momento de la muerte. Mientras Rosa Cuchillo
1 transita por el mundo ultraterrenal, Liborio lo hace por el mundo terrenal. Mientras
el camino de la madre se origina tras su muerte, el del hijo culmina con su asesinato.
8 El instante de la muerte o, mejor dicho, el punto medio exacto entre la vida terrenal
y la vida ultraterrenal es fundamental en la novela puesto que señala los “sentidos”
que se propondrán. Ambos personajes son colocados en la novela para “orientarse”
hacia un fin. Así como Liborio se dirige hacia su ineludible muerte, Rosa Cuchillo
hace su recorrido para llegar al Janaq Pacha, al empíreo andino. La muerte, en
esa misma línea interpretativa, es un eje cronológico de la historia. Si la “trama”,
presentada de manera fragmentaria,se ordenara lógica y cronológicamente, nos
6  En un artículo previo, “Rosa Cuchillo frente al acontecimiento de la narrativa andina y la
indecidibilidad como evidencia” (2018), estudiamos específicamente la relación entre la novela de
Colchado Lucio y el acontecimiento.
indicaría que la narración comenzaría con la historia de Liborio (vida)7 y, tras el
fallecimiento de los personajes, culminaría con la travesía de Rosa Cuchillo. Como
se puede notar, acción (el recorrido de la vida y la muerte), personajes (Liborio y
Rosa), espacios (el mundo terrenal y el ultraterrenal) y tiempos (el tiempo de la vida
y el de la muerte) mantienen la dualidad señalada al inicio. Creemos, no obstante,
que esta no es una dualidad llana, sino que cada uno de los miembros tiene una
valoración particular: los personajes se dirigen hacia un lugar mejor.
J Alain Badiou, en “El método de Rimbaud: la interrupción” (2002, pp. 121-
147), afirma: “El poema de Rimbaud oblitera el gozo cuya exposición es. Renuncia a
A la posibilidad que establece. […] El poema es su propia interrupción” (p. 121). Según
el filósofo francés, en la poesía rimbaudiana, al inicio, se propone una idealización
L imaginaria, romántica, poética8, la cual rápidamente es interrumpida y llevada
al extremo opuesto. En estas circunstancias dadas, el sujeto de la enunciación

poética se habría acercado al acontecimiento no por decidirse por una opción, por
L haber contrapuesto a la idealización romántica la barbarie del mundo bajo, de lo
chabacano, de lo escatológico; sino por estar frente a un indecidible9.
A Postulamos, con las particularidades que especificaremos, que el proyecto
manifiesto en Rosa Cuchillo es similar al de Rimbaud. El sujeto enunciador, el autor
implícito de la novela de Colchado, se encontraría frente a la indecidibilidad del
acontecimiento de la colonización. Ello se manifiesta, por medio de la interrupción
rimbaudiana, en un episodio crucial de la trama:
• Antes de alejarme, se me ocurrió preguntarle por el camino de en medio, el
632 que no conducía ni al Ukhu Pacha ni al Janaq Pacha. A dónde iba, Padre
Rumi?

–No lo sé –respondió–. Por ahí se encaminan los que tienen creencias en los
dioses cristianos. (p. 140)

Este fragmento, quizá el más importante de la novela, está situado hacia el


final del camino por el mundo ultraterrenal de Rosa Wanka. La historia que continúa
2 después de este episodio es la de la protagonista en el Janaq Pacha, el paraíso
andino. La paz finalmente se ha alcanzado. Pero ello ha ocurrido por la decisión
0 tomada. El autor implícito ha dispuesto en la historia un cruce de caminos, una
separación. El “cielo” al que ha accedido Rosa es el de los runas, exclusivo para los
indígenas. Los cristianos tienen otro paraíso donde probablemente también vivan
1
en felicidad. Lo que nos propone la novela, entonces, es que la muertese relaciona
con la pacificación en tanto se vincula además con la separación de las culturas.
8 Se contrapone, en ese sentido, a la utopía del mestizaje, el tinkuy y la solidaridad.
Se entiende la imposibilidad del mestizaje armónico. Sin embargo, esta propuesta

surge como interrupción en la novela porque en la historia que la precedía, lo que
se plantea es, más bien, una suerte de posibilidad de síntesis y convivencia.

7  En este momento de la obra, lo que se cuenta de Rosa Cuchillo es en relación con lo que le sucede
a Liborio, lo que sufre por su hijo. Rosa Cuchillo es la madre de Liborio, esa es su función actancial.
8  Nuevamente, entiéndase “poética” como idealista, que nostalgia un mundo imaginario de
continuidad entre naturaleza y cultura.
9  Badiou termina señalando el fracaso del proyecto rimbaudiano, pero no por ello su análisis deja
de ser clarificador.
Es más, podemos decir que hasta antes de este momento, no solo la
mezcla era la regla, sino que la posibilidad de independencia andina, de separación
cultural, era imposible. Ello puede verse claramente en uno de los episodios con más
violencia de la novela. Curiosamente, en este no se narran ni ataques terroristas
ni embestidas militares, sino una conversación al interior del partido donde milita
Liborio. Seleccionamos algunos fragmentos:
–Y al término de la guerra, compañero –dijiste–, ¿seríamos los comuneros
J campesinos, mejor dicho los naturales, los que gobernemos este país? (p.
86)

A Pero es imposible volver a una época tahuantinsuyana, compañero, inter-


vino Santos […]. No es volver al pasado, le replicaste, porque nuestras cos-
tumbres comuneras no la hemos perdido nunca los naturales. Sólo que
L hasta estos días estamos resistiendo las imposiciones de los blancos que
quieren borrar todo lo nuestro… (p. 87)
L …Omar sonrió de buen grado. No estaría mal, compañero, no estaría mal,
te dijo […] Edith, que había quedado callada, despegó por fin los labios. No
A está mal lo que piensas, Túpac, podría ser así, ¿por qué no?... Eso te alentó
más. Una vez los naturales en el gobierno, rescataríamos también nues-
tras costumbres, nuestro idioma, nuestra religión. Volveríamos a adorar,
sin miedo de los cristianos, a la Pachamama, a los jirkas, al dios Rayo y,
quién sabe, si al dios Sol… Habría que reflexionar esa especie de socialismo
mágico que planteas, compañero, intervino de nuevo Omar con una ligera
• sonrisa irónica, pero tenemos que pensar primero en la toma del poder;
pues sin él, muy bien lo sabes, todo es ilusión Y bueno, dirigiéndose a todos,
633
creo que dormimos compañeros, tenemos que madrugar. (p. 88)

Algunos críticos creen ver en esta secuencia cómo Liborio logra un
verdadero desprendimiento de la cultura occidental, que se independiza y se separa.
Desde nuestro punto de vista, no es así. No es Liborio el personaje que le servirá
al autor para evidenciar su propuesta separatista, no es en la vida ni en el mundo
terrenal. Existe, es cierto, un cuestionamiento al proyecto revolucionario occidental.
2 Este se resiste a ser modificado, pero el sujeto, Liborio, también es persistente. No
obstante, en el giro final, encarnado en la voz de autoridad que tiene Edith Lagos,
0 famosa militante senderista, el sistema recupera su orden otorgándole una calma
momentánea al joven hijo de Rosa. Decimos momentánea e irreal porque sabemos
1 cómo termina la historia: en muerte y derrota. En ese sentido, la cultura occidental,
en realidad, no se ha visto afectada ni modificada y la posibilidad de independencia
8 andina ha sido negada.
La posibilidad de un mundo donde andinos y occidentales conviven y
luchan por una causa común es mantenida en muchos aspectos del relato. Esta
idealización, no obstante, es interrumpida con la decisión que el narrador y
personaje homónimo de la novela toma en la entrada al Janaq Pacha. La separación
es la única manera en que se puede alcanzar la paz. Desde este momento también
se entiende, retrospectivamente, que el mundo de los vivos, multicultural, no es
armonioso; sino que la violencia y el dolor dominan el ambiente. Así, el objetivo de
la muerte sería llegar a aquel estado de satisfacción que se logra con la separación.
El objetivo de la vida, camino lleno de disgustos, sería llegar a la muerte. Ese sería
el sentido que propone el relato: la separación final.
Lo narrado en la novela, tal como lo hemos explicado, es un proceso
que podría pensarse desde la idealización del mestizaje hasta la idealización del
aislamiento10: un proyecto cuyo sentido lo orientahacia la disyunción cultural. Sin
embargo, este proyecto se muestra como opuesto al que se demuestra en el plano
de la forma textual, del discurso. Lo que se muestra es una posibilidad de juntura,
J de conjunción, donde las técnicas narrativas modernas son afectadas para emular
modos discursivos andinos. En el nivel de la elocutio, por ejemplo, las repeticiones
A de palabras como aumentativo o intensificador; el uso de onomatopeyas o palabras
derivadas de ellas; y el ordenamiento sintáctico de las oraciones revelan una fuerte
L influencia de la gramática quechua. En el nivel de la dispositio, la ubicación dispersa
de los episodios, en los que varían de narradores, espacios y tiempos, intenta emular

una forma de ordenación y de sentido ajena a la linealidad occidental11. Lo mismo
L sucede con la simultaneidad de espacios y tiempos (los tres pachas andinos), como
lo señala Huamán (2006).
A El proyecto que concluye en disyunción frente al proyecto que pretende
la conjunción revelan la unidad arruinada del sujeto enunciador que ubica
al acontecimiento y vacila en aprehenderlo12. En ese estado, el proyecto que
manifestaríaRosa Cuchillo no sería ninguna de las opciones propuestas, sino el de
la posición previa que tiene el sujeto, el de la indecisión. Podríamos afirmar que
• en la diégesis acepta la imposibilidad de mestizaje armónico y se acerca a lo real,
634 pero que en el proceso mismo de enunciación, renuncia a la verdad que ya conoce
afirmando una posibilidad de síntesis; podríamos decir que no habría fidelidad al

acontecimiento. Pero eso sería ignorar las peculiaridades de esta novela, nacida en
el conflicto intercultural colonial. Lo que la novela quiere hacer no es solo afirmar
la separación, sino expresarse como andino, independiente, aislado de la forma
occidental. ¿Cómo hacerlo desde un modo discursivo, un soporte textual,que
proviene de Occidente?
2
Rosa Cuchillo es producto del posicionamiento del sujeto frente al
acontecimiento de la colonización, de la narrativa andina; es producto de la
0 indecidibilidad. Aún no es sensato aseverar ni la persistencia por la interrupción
(asediar lo real) ni la interrupción de la interrupción (no soportar lo real). Tal como
1 lo vemos desde ahora, el valor de la novela radica en la tensión entre los polos
de la conjunción y la disyunción cultural, la tensión de la indecidibilidad. Esa
8
10  Nótense las dos maneras de idealización “poética” que también originó el acontecimiento de la
colonización.
11  Un presentación de una estética otra, un plan otro de entender el mundo, en Rosa Cuchillo se
encuentra en el punto 3 (pp. 11-17) del artículo de López (2018).
12  Miguel Ángel Huamán (1999, 2006a) ve la utopía andina en la manera como la lógica andina
impacta en la escritura occidental e impone su forma de entender el mundo, de la solidaridad, en
sentido contrario al de la colonización, jerarquización y subordinación de Occidente. Desde nuestro
punto de vista, si bien ello es importante de resaltar, no lo es menos el señalar que lo enunciado en
el relato es una búsqueda de la separación cultural. Consideramos que ello revela la ubicación del
sujeto frente al acontecimiento.
indecidibilidad que provoca tantas interpretaciones, a veces contrarias unas de
otras, pero que enriquecen la tradición literaria peruana.
De la ética indigenista a la estética andina: notas sobre el proceso de la
narrativa andina
La narrativa andina, si es acontecimiental, lo es porque nace de una
caída, de una crisis: la colonización. Slavoj Zizek, en “Felix culpa” (2016, pp. 41-
58), señala que algunos teóricos culturales indios consideraban que la utilización
J del idioma inglés era una forma más de perpetuar su estatuto de colonizados.
No obstante, el filósofo esloveno apunta que, si bien ello era cierto, su condición
A próxima de ser libres solo era posible de entender por aquella primera imposición
lingüística: para liberarse, primero habría que ser encerrado. En el caso de la
L literatura que representa el mundo andino sucede algo parecido. En primer lugar,
es necesario ser conscientes de que la literatura y la escritura son tecnologías
L de Occidenteutilizadas como herramientas de poder que se han impuesto sobre
los naturales desde la Conquista. Pero además es importante saber que las
comunidades andinas, desde tempranos tiempos, han tenido la intención de
A remover los fundamentos de la literatura, de hacerla un artefacto político (HUAMÁN,
2006a). El intento por desacomodar los lineamientos que el soporte textual ofrece
es lo que hace de la narrativa andina un acontecimiento estético. Retomando a
Zizek, solo con la imposición de la escritura y la literatura sobre una civilización
desarrollada en los Andes se han podido formular, en la lucha, proyectos artísticos,
• éticos, políticos que proponen el sueño de una nación igualitaria, libre, solidaria.
635 Las novelas que hemos leído, Garabombo, el Invisible y Rosa Cuchillo, son
• discursos que se han enfrentado al acontecimiento en la literatura. Ambas, escritas
ya en la segunda mitad del siglo XX, no obstante, manifiestan formas distintas de
abordar el hecho de la colonialidad intercultural. Mientras que en Garabombo, el
Invisible el acontecimiento de la colonización es enfrentado desde una perspectiva
ética indigenista; Rosa Cuchillo es consciente del acontecimiento proponiendo
2 una estética andina13. Visto de ese modo, el indigenismo sería definido como un
movimiento literario-cultural que tiene un objetivo ético, con una propuesta política
específica, concreta (la lucha por la tierra suele ser la habitual) y evidente, que
0
busca la voz, el sentir y el pensamiento del subalterno indígena. Por su lado, a lo
que denominaríamos novela andina moderna ya no le interesa buscar la voz del
1 subalterno, pues no le interesa la clasificación colonial, jerarquizante: ya no existe
el subalterno porque ya no existe el hegemónico. Esta novela se considera diferente,
8 de una cultura otra, pero no subyugada a la occidental. En ese sentido, entiende
la imposibilidad que la literatura tiene para “transmitir” proyectos políticos: lo que
el autor pretende decir no es lo que logra plasmar en el texto y lo que dice en el
texto no es lo que cabalmente comprende el lector. Entiende que la comunicación
literaria, al ser un producto artificial, cultural, intervenido por el sujeto y su lengua,
no puede manipular a un lector y forzar a que realice algo en particular.
La novela andina se presenta como un discurso formulado desde un locus
13  Para comprender los términos utilizados, son fundamentales las propuestas de Jacques Ranciere
(2011, 2013). En este artículo, así como empezaremos la clasificación desde las coordenadas que
plantea, también la criticaremos y modularemos cuando sea necesario.
enunciativo otro y, por lo tanto, exhibe una estética otra. A la novela andina no le
interesa ―por lo menos en lo evidente y superficial, en lo enunciado― rescatar una
voz silenciada, el sujeto se expresa sin tapujos, con su modo de entender el mundo
diferente. Por ello, podemos decir, es una pura estética desde la literatura. Pura
estética que desde ese plano puede ejercer una nueva forma de hacer política, una
política de lo sensible. En la narrativa andina, si alguna manifestación política-
cultural hay, esta se encuentra en la enunciación y no en el enunciado. La narrativa
J andina no es más andina porque el indio sea mejor representado, sino porque se
expone descaradamente desde su lengua, desde su modo de estructurar el mundo,
desde su sensibilidad. En un punto extremo, diríamos que a la narrativa andina no
A
le importa ser entendida, solo está ahí, desordenando el sistema de percepciones.
Es, de ese modo, un acontecimiento, puesto que ya no puede ser entendido en la
L ontología, en el orden del ser, como lo diría Badiou (2007)14.

Con esas definiciones apuntadas, suena difícil señalar tanto que
L Garabombo, el Invisible manifiesta claramente la ética indigenista como que Rosa
Cuchilla es una novela andina paradigmática. Esa es la verdadera razón de nuestra
A elección para compararlas. Tal vez, una obra del indigenismo ortodoxo ―pensemos
tal vez en Ciro Alegría o en el primer Arguedas― sería más conveniente. Por otro
lado, tal vez a Rosa Cuchillo le siga faltando algo de “irreverencia” ―recordemos los
glosarios que han aparecido en algunas ediciones―15. Pero son estas faltas, estos
desbordes los que nos permiten ahora dar una visión más diacrónica y de proceso.
• En el proceso de la literatura peruana es absolutamente necesario que
636 el indigenismo, regido por una ética, haya rescatado la voz del runa y lo haya
representado, para entender el posicionamiento del mismo sujeto en la narrativa

andina. Recordemos que nuestra sociedad nace desde la colonización, desde la
imposición de la letra y de Occidente. Al inicio, si es que al indio se lo representaba,
no era más que un adorno exótico en el relato, formaba parte del ambiente,
del escenario. Estamos hablando en este momento de un momento anterior al
indianismo inclusive. Por otro lado, en la etapa del indianismo sí podremos notar
2 la existencia de un interés político. El indio podía ser rescatado, pero esta visión
era paternalista, individualista (y no social), y el objetivo estaba orientado más a
0 representarse a sí mismo como un “ciudadano moderno” que darle voz al indio.
El indigenismo, más adelante, ya se fija en este sujeto y lo conoce, es cercano,
1 encuentra proyectos comunales reivindicatorios. Como vemos, es imposible
entender la narrativa andina sin los momentos previos. Ciertamente, como en toda
8 historia literaria, la existencia de una etapa no implica la cancelación de la previa.


14  “[…] del acontecimiento, la ontología no tiene nada que decir. O, más exactamente, ella
demuestra que el acontecimiento no es, en el sentido en que es un teorema de la ontología que toda
auto-pertenencia contradice una Idea fundamental de lo múltiple, aquella que prescribe la finitud
fundadora del origen de toda presentación” (BADIOU, 2007, p. 214).
15  Para no quedarnos sin ejemplos, una obra andina sería Wiñaypacha (2017), película del
realizador puneño Óscar Catacora, que no solo está filmada completamente en aimara, sino que
es consciente de su condición de ficción y la explota. En esta cinta, la política de la estética la
encontramos en señalarnos que desde una lengua y cultura como la aimara es posible realizar
experimentos artísticos tan complejos como este.
Es decir, en el siglo XXI también es posible ver novelas indianistas, indigenista y
andinas conviviendo.
Así como Garabombo ya se encuentra entre el indigenismo y la novela
andina (el uso del humor es trascendental), Rosa Cuchillo si bien es una de las
novelas más modernas en este sentido, aún no se puede afirmar esa condición con
seguridad. Es importante saber, después de lo que hemos visto, que la literatura
sigue en su proceso y que solo es necesario seguir atentos para notar sus devenires.
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L

A


638

2

0

1

8

J

A

L REPRESENTACIONES PARÓDICAS EN ROSAS MATINALES, DE NELLY
FONSECA
L
Judith Mavila Paredes Morales (UNFV)
A RESUMEN: Las poetas que aparecieron en las primeras décadas del siglo XX
renovaron la percepción que se tenía acerca de la poesía peruana, ellas con
su escritura difieren del canon literario. Dicha imagen no solo cuestiona la
subordinación femenina, sino también crea un espacio de diálogo con el otro
masculino. La presente ponencia se propone abordar el primer poemario de Carlos
• Fonseca, seudónimo utilizado por Nelly Fonseca Recavarren. Me refiero a Rosas
matinales (1934). El objetivo de esta investigación es analizar cómo el travestismo
639
textual de la voz poética funciona como un texto paródico. Entendemos este
• travestismo como la representación de la ambigüedad y la transgresión sexual por
medio de procedimientos poéticos y discursivos que posibilitan una conformación
diferente tanto de la poesía como de las representaciones femeninas y masculinas.
Lo que hace la poeta peruana es recrear una forma tradicional de poesía que
proviene de una voz masculina siendo el resultado una pose de la masculinidad pero
2 también una de las letras hispanoamericanas. Para lograr este análisis asumimos
el lenguaje como un campo figurativo capaz de presentar una realidad nueva y
0 transgresora. El Objetivo principal de este estudio es preguntarnos por qué Nelly
Fonseca trasviste la voz poética en una masculina, cómo ella apela a la poética
1 modernista imitándola pero desde una relación paródica y cómo esa posición nos
permite observar que la poesía tradicional tiene voz masculina. Para acercarnos a
nuestro objetivo, el método de análisis estilístico y retórico es fundamental porque
8 nos permite entender el poemario a nivel lingüístico también nuestro andamiaje
teórico se basa en las propuestas de Judith Butler y Sylvia Molloy.
Palabras-clave: Nelly Fonseca. Poesía peruana. Travestismo textual. Masculinidad.
Parodia.

Nelly Fonseca Recavarren (1922-1963) publica en 1934, a los doce años


su primer poemario denominado Rosas matinales. En este poemario la poeta
construye un autor masculino para que sea su voz y su máscara (o quizá su real
rostro). Este autor construido es Carlos Alberto Fonseca. Este aparece en la portada
del libro como autor de Rosas matinales, pero no es solo el nombre masculino de la
autoría, sino que el locutor de los poemas asume también una voz masculina que
pasa por el amor, el desamor, el dolor y el sufrimiento.
Entonces observamos un travestismo literario. Al respecto Krzysztof
Kulawik nos dice, en su libro Travestismo lingüístico, a partir del análisis de textos
narrativos de Sarduy, Eltit, Lamborghini y Hilst que la transformación de tipo
sexual abre vías críticas dentro del campo literario:
[L]a representación textual exuberante de sujetos sexualmente ambiguos
J y transgresivos – el <<travestismo lingüístico>>- tiene varias implicaciones
estético-filosóficas y políticas […] Significa la apertura de nuevos espacios
conceptuales que le permiten al lector y al crítico formular una nueva idea,
A flexible y móvil, de la sexualidad y, por extensión, de la identidad en diferen-
tes contextos, como el étnico, racial, nacional, social, etc. (KULAWIK, 2009,
L p. 305).
Como vemos el travestismo en la literatura representa un carácter flexible
L de los géneros, en la posibilidad de crear un nuevo espacio que resemantiza los
tradicionales y cambia el modo de entender lo estético.
A En este primer poemario, la autora se trasviste de Carlos Alberto
Fonseca, y su poesía, a su vez, se trasviste con una voz masculina: los poemas
son enunciados por un yo masculino. Esta parodia que desarrolla Nelly Fonseca
Recavarren parece estar llamando la atención sobre la situación de la escritora en
un mundo patriarcal, donde la mujer aún no votaba, un mundo donde el canon se
• construye a partir de la escritura de varones y donde la escritura de mujeres es un
640 anexo o un capítulo “interesante”, o quizá la poesía es un espacio para ficcionalizar
los deseos y crear unos nuevos. Después de todo como afirma Sylvia Molloy en
• Poses de fin de siglo: “exhibir no solo es mostrar, es mostrar de tal manera que
aquello que se muestra se vuelve más visible, se reconozca” (MOLLOY, 2012, p. 44).
Con la máscara de Carlos Alberto Fonseca, Nelly Fonseca parece estar
diciendo que el ejercicio escritural es propio de los varones y al asumir esa voz está
cuestionando no solo al canon literario sino el lugar de la mujer en una sociedad, en
2 una cultura, de ese modo, produce una desestabilización del género y la sexualidad
a través del nombre. En términos de Judith Butler, estamos ante una autora que
0 escenifica la afirmación del reclamo a los derechos de autor transfiriéndolos a
alguien que representa la ley, una transferencia que, en su doblez, es una especie
1 de impostura que facilita la pretensión al texto al que solo renuncia aparentemente1.
Como afirma Butler en Cuerpos que importan, lo significativo de esta
8 dinámica es leer el nombre como una oportunidad de reteorizar el entrecruzamiento
que está presente en toda práctica identificatoria.
En el poemario se construye como habíamos mencionado un locutor que
se asume como un personaje masculino que discurre sobre el dolor, la ruina, la
muerte pero también sobre el amor. Estos temas se constituyen bajo la forma
tradicional aparentemente, prefiriendo el endecasílabo, el alejandrino, el octosílabo
y el soneto. Esto es importante porque estamos ante una poeta que se moviliza

1  En este apartado, la teórica norteamericana se refiere a la escritora Willa Cather. La obra de esta
autora es trabajada en el capítulo ““Cruce peligroso”: los nombre masculinos de Willa Cather” del
libro Cuerpos que importan publicado en el 2002.
con una escritura melancólica2 no solo en su forma sino en el desarrollo de los
contenidos. El objetivo de este artículo es dilucidar por qué estamos ante una
escritura melancólica, cómo el pasado habita la escritura de Fonseca, cómo esa
identificación con el pasado se logra mediante un travestismo de la palabra.
Fonseca se alimenta de la tradición literaria y lo que viene con ella: una
tradición creada desde figuraciones y deseos masculinos donde se canta a una
amada, y esta representación femenina pasa por las imágenes patriarcales del
J ángel y el monstruo3. Ya sea por práctica literaria (recordemos que es su primer
poemario) o por la necesidad de pertenecer a lo que el canon reconoce como poesía
A o literatura, Fonseca nos muestra las ruinas, los vestigios de un pasado que con
su mismo accionar, con su travestismo parece cuestionar bajo un desplazamiento
L habilitante.
Para examinar estas ideas comenzaremos con dos de los primeros poemas
de Rosas matinales: “Ruptura” y “Confidencia”. Observamos en estos poemas el
L
desarrollo de un vínculo edípico entre el locutor personaje y la madre (cuestión
que ya se evidencia en el poema que abre Rosas matinales, “Ofrendas” el cual está
A dirigido a la madre).
Los dos poemas “Ruptura” y “Confidencia” de Rosas matinales están
compuestos por catorce versos endecasílabos distribuidos en cuatro estrofas,
formando un soneto.
En el soneto “Ruptura” la voz masculina se alimenta de la configuración

del varón relacionada al amor, pero uno no correspondido, y debido a eso la amada
641 será representada como la que desprecia el cariño del locutor.
• En la primera estrofa, la amada es figurada a partir de la furia mientras
que la voz masculina es trazada por la pasión. Estados representados por el color
rojo, por un lado el “enojo” y por otro el “amor ardiente”.
En la segunda estrofa él pretende preservar la fortaleza masculina,
disminuyendo la queja femenina a simples “antojos”. En las dos últimas estrofas,
2 después que la amada se ha retirado “serena, altiva…”, el “orgullo del hombre” fue
vencido por el dolor. Esta última estrofa es sintomática porque se muestra el efecto
0 paródico de la representación de la masculinidad, fijado a través de semas como
“orgullo”, “hombre”, “voluntad”, “acero” pero que se quiebra ante la ausencia de la
1 amada.
En el segundo soneto “Confidencia”, la voz masculina desde los primeros
8
2  Avelar en su libro Alegorías de la derrota apunta acerca de la distinción freudiana entre el
duelo y la melancolía que “el duelo designa el proceso de superación de la pérdida en el cual la
separación entre el yo y el objeto perdido aún puede llevarse a cabo, mientras que en la melancolía
la identificación con el objeto perdido llega a un extremo en el cual el mismo yo es envuelto y
convertido en parte de la pérdida” (AVELAR, 2000, p.19).
3  Para Gilbert y Gubar a la mujer se le ha negado la autonomía “que representa la pluma, no
sólo es excluida de la cultura (cuyo emblema muy bien pudiera ser la pluma), sino que también
se convierte en una encarnación de los extremos de la Otredad misteriosa e intransigente que la
cultura enfrenta con adoración o temor, amor o aversión. Como <<fantasma, demonio y ángel,
hada, bruja y espíritu>>, media entre el artista masculino y lo Desconocido, enseñándole pureza e
instruyéndolo en la degradación de forma simultánea” (GILBERT y GUBAR, 1998, pp. 34-35)
versos se muestra sufriente. Las metáforas ontológicas nos revelan un varón
disminuido por el dolor: “la cansada frente”, quitándole el signo de superioridad,
y la amada es trazada con la sinécdoque de “pecho”, lo cual dejar ver una relación
edípica, donde ese fragmento del cuerpo funciona como espacio de protección
otorgado por la amada/madre a su amado/hijo.
La amada al ser representada como un ser protector se le añade semas
que ya provienen de la literatura renacentista, del dolce stil nuovo, ya que es una
J figura angelical, de ahí que ella se encuentre en una posición superior al varón,
ella tiene el “alma diáfana”, mientras que el alma de la voz masculina sufre de una
A terrible angustia.
En la segunda estrofa nuevamente la sinécdoque de protección se nos
L revela con el verso: “oprímeme en tus brazos dulcemente”, y también se repite la
facultad de la donna angelicata de esta amada ya que ella es capaz de proveer “luz”
que “ilumine” su “corazón desfalleciente”. Esta última sinécdoque a diferencia de la
L
que produce la imagen de la amada nos hace prestar más atención a la materialidad
del cuerpo, de cómo el dolor se ubica en este órgano como enfermedad; en cambio
A “pechos” no llega a mostrar la corporalidad de la amada sino más bien su estado
etéreo.
Estamos ante un amor sublime que se torna “fraterno” para devenir en
“materno”, configurado a partir de términos como “pureza”, “suavidad” y “armiño”.
Nuevamente la voz masculina se traza como una figura desvalida y en

carencia: “sediento de cariño” que busca en la amada/madre alivio a su angustia:
642 “Que la caricia de tu acento tierno / olvidaré mi angustia, igual que un niño /
• calma su llanto en el calor materno…” (FONSECA, 1934, p. 13). Vemos como la
retórica masculina se reactiva a partir de la cita de la tradición que proviene de las
primeras configuraciones estético-poéticas.
El locutor de los dos poemas se concibe como un sujeto enamorado,
pero sufriente marcado por la melancolía, como leemos en la segunda estrofa de
2 “Ruptura”:
Todo el dolor de mi pasión latente,
0 trocado en llanto, se agolpó a mis ojos,

pero ceder no quise a tus antojos

1 y sonreí tranquilo, indiferente.. (FONSECA, 1934, p. 11).

De igual modo, se lee en la primera estrofa de “Confidencia”:


8 Harto estoy de sufrir…Deja recline
sobre tu pecho mi cansada frente….
Quiero que tu alma diáfana adivine
la angustiosa opresión que mi alma siente…(FONSECA, 1934, p. 13).

Estos dos poemas tienen como alocutaria a la mujer amada que toma la
forma de la madre, a ellas se dirige esta voz masculina, pero se dirige a ellas por su
ausencia. Roland Barthes nos dice en su Discurso amoroso que cuando el sujeto
que ama dirige el discurso de su ausencia a la persona ausente, esta persona
amada está presente como alocutaria pero ausente como referente, colocando a la
voz masculina en dos tiempos, el de la referencia y el de la alocución, tornando el
presente en un fragmento de angustia:
Al respecto leemos en la cuarta estrofa de “Confidencia”:
Sediento estoy, sediento de cariño…
Quiero un amor, como tu amor, fraterno,
de una pureza y suavidad de armiño…(FONSECA, 1934, p. 13).

J Encontramos la misma ausencia en la tercera y cuarta estrofa del poema


“Ruptura”:
Te alejaste después, serena, altiva…
A
Solo cuando un recodo del sendero
te ocultó a mi mirada inquisitiva
L
dominó la pasión mi orgullo de hombre,
venció el dolor mi voluntad de acero,
L y entre sollozos balbucié tu nombre…(FONSECA, 1934, p. 11).

Barthes nos dice que la ausencia se vuelve en una práctica activa, en el que
A
se crea una ficción de múltiples funciones (dudas, reproches, deseos, melancolías).
Esta escena del lenguaje no acepta la muerte del otro, ya que existe un momento
breve donde hay una separación del tiempo entre la idea de la ausencia de la madre
y la creencia de su muerte.
• Manipular la ausencia es aplazar este momento, retardar tanto tiempo
como sea posible el instante en que el otro podría caer descarnadamente de la
643
ausencia a la muerte, por eso la estrofa final de “Confidencia” dice “Que a la caricia
• de tu acento tierno / olvidaré mi angustia, igual que un niño / calma su llanto en
el calor materno…” (FONSECA, 1934, p. 13).
La transfiguración de la ausencia de la amada (“Ruptura”) en la figura
materna (“Confidencia”) coloca a la voz masculina en la posición del niño que
extiende sus brazos de un modo fálico hacia la amada / madre, de quien espera
2 sostén, calor, cariño y sobre todo un espacio donde la angustia no habite.
Históricamente, nos dice Barthes, el discurso de la ausencia pertenece a
0 las mujeres, ya que estas eran sedentarias, en cambio, el hombre era el cazador; la
mujer es fiel y está en estado de espera, el hombre es rondador y viajero. ¿Pero qué
1 sucede si el que espera no es la mujer sino el hombre? Barthes afirma al respecto
que en el hombre que dice la ausencia del otro está presente lo femenino: “este
hombre que espera y que sufre, está milagrosamente feminizado. Un hombre no
8
está feminizado porque sea invertido, sino por estar enamorado”. (BARTHES, 2011,
p. 46).
Sin embargo, qué implicaría está idea en la propuesta poética de Fonseca,
tenemos una voz masculina enamorada, pero esa voz es la creación de otra ficción
que es Carlos Alberto Fonseca. Estamos ante un cruce de géneros que gracias al
tópico del amor ausente uno deviene en otro, es decir en la ficción una mujer puede
transmitir sus deseos de espera en la imagen del hombre enamorado. Hay un
espacio entre este cuerpo enamorado donde la mujer puede habitar y ficcionalizar.
El amor permite una pose donde se da una disfunción de género.
Volviendo a la transformación de amada/madre, es importante anotar
aquí lo que expresa Julia Kristeva en Historias de amor acerca de la figura materna.
Kristeva expresa que esta figura que da vida, conduce paradójicamente a la muerte
para explicar esta idea cita al personaje Fray Lorenzo de Romeo y Julieta: “La tierra,
madre de la naturaleza, es también su tumba; lo que es en ella tumba y sepultura
es también regazo”. Continúa Kristeva aseverando sobre este punto:
El desvanecimiento jubiloso de la identidad en el seno de un amor nostál-
gico de un abrazo materno es visto, sin embargo, por el adulto como una
J pérdida, incluso como un peligro mortal. Entonces reaccionan los mecanis-
mos de defensa, formados de pulsiones y odio yoico y superyoico, para dar
de nuevos contornos, identidad, existencia al mismo tragado por el otro.
A (KRISTEVA, 2006, p. 200).

L Entonces, si bien la figura materna en los poemas se torna un espacio
de consuelo, no necesariamente es perpetuo, ya que estamos ante una mirada

alegórica y de ahí que los dos poemas terminen (¿en realidad terminan?) en
L puntos suspensivos, dejando en la elipsis quizá el vacío, la ausencia, la muerte, la
melancolía no resuelta.
A Volviendo a la elaboración de una pose de enunciación y, a su vez, pose
marcada por el género masculino vinculada en una relación con lo femenino,
advertimos en el poema de verso alejandrino, “Enigmática”, la concepción de la
mujer como un objeto inasible, oscuro, arcano debido que se moviliza entre lo
inocente y lo prohibido, las dos primeras estrofas revelan esta dicotomía:
• ¿En qué piensas, mi vida, en qué piensas o sueñas,
644 cuando enciendes tu rostro con graciosos sonrojos,
cuando inclinas la frente, cuando bajas los ojos,

bajo el leve abanico de pestañas sedeñas?.... (FONSECA, 1934, p. 62).

En esta primera estrofa vemos como la mirada masculina intenta penetrar


en los pensamientos de su objeto, y este es concebido a partir de la inocencia y
de la vergüenza. El cuerpo de la amada, enfocado en el rostro, se asume por un
2 comportamiento asociado a la vergüenza y que precisamente por eso se oculta. La
metáfora de una posición “baja” parece ser la perspectiva del locutor del poema.
0 En cambio en la segunda estrofa ese objeto se torna peligroso, porque ahora la
metáfora ha variado su posición a la de una superior (“mirar a los cielos”, “con
1 divinos antojos”) de ahí que la denominación “loca” resalte:
¿En qué piensas, querida, cuando, loca, te empeñas

en mirar a los cielos con divinos antojos,
8
cuando muerdes tus labios, que son pétalos rojos,
en qué piensas, mi vida, en qué piensas o sueñas?... (FONSECA, 1934, p.
62).

El sema rojo aquí adquiere otras connotaciones más peligrosas porque


parece estar revelando un acto ilegal, una afrenta de un ser femenino que se atreve
mirar arriba, al cielo, a dios, a la par que se “muerde los labios”. Mientras en la
primera parte lo femenino es asociado a lo inocente y puro, en la segunda parte
esto cambia a una configuración más peligrosa y erótica.
Este poema revela una relación que muchos se niegan a ver y esta es
que el orden patriarcal y el logos mantienen un vínculo tan íntimo que hasta se
podría decir que es obsceno, el sujeto masculino está asociado a la razón ilustrada;
mientras que la mujer, a la irracionalidad y a lo inefable. De esta manera, en
el texto poético, encontramos a un locutor masculino que intenta descubrir por
medio de la lógica de la razón, el pensamiento y el accionar de su objeto amado,
el cual desborda los límites de su entendimiento. A lo largo del poema, el locutor
percibe a la mujer como un ser inasible que lo desarticula como sujeto racional. Al
J sentirse amenazado por su amada, la voz masculina la interna en el espacio de lo
no definido, de la ambigüedad y de la ininteligibilidad. El cuerpo femenino adquiere
características oscuras e inescrutables que consigue arruinar la mirada de la razón
A
que el locutor masculino elabora desde el logos, tal imagen la encontramos en la
última estrofa del poema:
L
No lo sé, pero pienso: si pudiera, alma mía,
asomarme a tus ojos por un rato, sabría
L lo que llena tu pecho tras tu insólita calma…. (FONSECA, 1934, p. 62).

Revela al final la imposibilidad de acercarse a lo que desde la mirada
A
patriarcal es lo femenino. De este poema llama la atención el nivel de mímesis con
el que trabaja la autora, a tal punto de hacer incomprensible su propia imagen
femenina.
En otro poema del mismo poemario, Rosas matinales, se aborda el tema
• de la feminización y la exotización del territorio americano, este es “Flor indiana”.
Como sabemos muy bien, producto de la colonización, los discursos que empiezan
645
con el almirante Cristóbal Colón, Pêro Vaz de Caminha y Amerigo Vespucci
• nombran a América como espacio donde la naturaleza fértil domina y donde la
materia prima existe en abundancia. Reparamos aquí que al momento en que se
trasviste la autora, es decir, toma una pose masculina también toma la voz de la
tradición. En este texto poético, encontramos a un locutor masculino que aclama
las riquezas naturales de la tierra americana y presenta un bosquejo de nación a
2 partir de su propia figura masculina; en cambio la configuración de América pasa
por la del cuerpo de la mujer:
0 Flor de fértil suelo indiano,

¿dónde hay cuerpo como el tuyo?


Piel de mango, talle enano,
1
ojos áureos, de cocuyo. (FONSECA, 1934, p. 62).

8 La mujer dentro del discurso patriarcal y colonial es concebida como
parte de la tierra fértil de América, es una extensión de la naturaleza, de ahí que
sea nombrada a partir del cuerpo y este devenga en elementos naturales. En otras
palabras, en el cuerpo del poema, lo femenino es construido como un espacio
exótico:
Como tú, grácil capullo,
amo el sol que tuesta el llano,
como tú, tengo el orgullo
de sentirme americano!. (FONSECA, 1934, p. 62).
El locutor asocia a América con el símbolo de la flor indiana y a su vez él
también se siente parte de la tierra americana, y esa pertenencia le produce orgullo.
Advertimos en este poema como al momento de darse la operación de travestirse
de Nelly Fonseca en Carlos Fonseca, es decir una mujer vestida de varón, la autora
necesita cubrirse del discurso masculino y con este viene una serie de discursos
que forman parte de la tradición, de ahí que este poema evidencie las relaciones
terribles que existen entre una cultura patriarcal y la colonización, manifestando
J cómo los ejes de deseo y dominación se cruzan, al momento de crear este poema
con una voz masculina, Nelly Fonseca revela una mirada y un deseo masculino que
no puede dejar de lado la mirada patriarcal y colonizadora. De ahí que la escritura
A
de Fonseca se torne melancólica, ya que deja que la tradición literaria y cultural la
habite.
L
Como ya habíamos mencionado Rosas matinales presenta un sujeto

melancólico. Para Julia Kristeva, la melancolía y la depresión funcionan de manera
L similar. Estas son definidas en su libro Sol negro a partir de su paradoja:
[S]i la pérdida, el duelo, la ausencia desencadenan el acto imaginario y lo
A alimentan sin interrupción en la misma medida en que lo amenazan y lo ar-
ruinan, cabe notar también que se trata de negar esa tristeza movilizadora
erigida en fetiche para la obra. El artista que se consume de melancolía es,
a la vez, el más encarnizado guerrero cuando combate la renuncia simbólica
que lo envuelve… Hasta que la muerte lo toca o el suicidio se le impone como
triunfo final sobre el vacío del objeto perdido. (KRISTEVA, 1997, pp. 13 -14).

Como observamos Kristeva propone una melancolía habilitante, mientras
646
se escriba la poeta lucha contra el vacío y la afasia para poder simbolizar su dolor,
• su pérdida.
En el poemario de Fonseca se muestra como decíamos líneas arriba
un sujeto melancólico que contempla la historia como la historia del dolor y de
lo caduco. Y esta caducidad llega hasta sus doce primaveras (recordemos que la
autora tiene doce años cuando publica este texto), como dice en los cuatro primeros
2 versos del soneto “Prematuro”:
Te siento corazón viejo y cansado,
0 y apenas cuentas doce primaveras….
¿Qué serás corazón cuando te mueras
1 por el fiero pesar atormentado? (FONSECA, 1934, p. 11).
Para desarrollar esta idea sobre el sujeto melancólico y la alegoría nos
8 enfocaremos en el ya señalado poema “Prematuro” y también en otro soneto titulado
“Corazón”, del poemario mencionado.

El poema “Prematuro” mediante una metáfora ontológica, el corazón del
locutor se configura como “viejo y cansado”. Este locutor asume desde el inicio una
voz lastimera y afligida ya que se conduele de sí mismo, esto cobra fuerza con una
mirada antitética de la vejez con respecto a sus escasos doce años.
Llama la atención el uso de los cuatro puntos (….), qué puede manifestar
esa elipsis: ¿el silencio ante esta contrariedad? o ¿lo absurdo de esta antítesis?
Estamos ante una mirada alegórica, se observa la caducidad en la
primavera. Para Walter Benjamin en la alegoría el instante, lo fugaz se petrifica,
se expone la fugacidad eterna, presencia viva y significativa de la decadencia de
la historia, de su carácter transitorio. Es la alegoría la muestra petrificada de la
naturaleza mortificada, que muestra como ruina en el presente lo que en un pasado
existió y del que ahora solo vemos sus restos.
Entonces se podría pensar ese intervalo “….” como la muerte, Kristeva
explica al respecto que “[…] el trabajo como tal de la muerte en el grado cero del
J psiquismo se detecta precisamente por la disociación de la forma, cuando la forma
se de-forma, se abstrae, se des-figura, se vacía […]”. (KRISTEVA, 1997, p. 29).
A Cuando el melancólico es su dolor en ese momento ya no produce, solo queda el
silencio, y la asimbolía.
L Como la/el poeta desea luchar contra la nada, luego del silencio aparece
la interrogante de los versos 3 y 4: ¿Qué serás corazón cuando te mueras / por el
fiero pesar atormentado?” (FONSECA, 1934, p. 11).
L
La interrogante reitera el absurdo si ya la caducidad ha hecho su aparición
a sus doce años, imaginemos, parece decir el locutor, cómo esa ruina será en la
A vejez o en la muerte. La alegoría vuelve a aparecer porque lo que está arruinando a
ese corazón es el pesar y la tristeza.
En la segunda estrofa se nos desenmascara un poco más la información
acerca de este pesar, este proviene de la soledad a la que el locutor se ha dirigido
por voluntad propia: “Tu voluntaria soledad te ha dado / madurez prematura, […]”.

(FONSECA, 1934, p. 11).
647
Este aislamiento muestra otra vez la figura melancólica, puesto que no
• se avizora ni un sueño o alegría: “[…], y aunque quieras, / ventura no tendrás, ni
otras quimeras, / pues te has hecho tú mismo desgraciado!” (FONSECA, 1934, p.
11).
El rostro cadavérico de la muerte hace su aparición en la siguiente estrofa
a partir de los términos “helado” y “pesares”, parece ser el soplo del inframundo
2 que extingue cualquier fe o esperanza.
En la última estrofa de “Prematuro” los versos melancólicos anuncian
0 que la ruina continúa y que esta proviene del sufrimiento que producen los
desengaños. El locutor se sigue condoliendo de su situación. Y el poema termina
1 con la interrogante “¿Cuál será la vejez de tus veinte años?....” Pero que solo se
responde con los puntos suspensivos, con un hueco, un vacío que representaría
una grieta en el texto a partir de la cual se asoma la muerte.
8
Los poemas de Fonseca se tiñen del negro luto, tornándolos alegóricos,
ya que se fija y se detiene en lo que de ruinoso y decadente tiene el curso de la
historia transitoria y fugaz como en “Corazón”, que desde el primer cuarteto, la voz
masculina clama:
Te ha lastimado corazón la vida
sumiéndote en terrible desencanto?...
¡Oculta, altivo, la sangrante herida;
ríe, aunque mueras de pesar tanto! (FONSECA, 1934, p. 12).
Continúa con la misma idea en el segundo cuarteto:
Olvida tu dolor, tu pena olvida…
¿No puedes?...¿Te consuela, acaso, el llanto
de la falsa ilusión, pronto pérdida?...
¡Ríe! ¿Qué importa, dí, tanto quebranto? (FONSECA, 1934, p. 12).

Observamos aquí, que como afirma Benjamin en El Origen del Trauerspiel


J alemán, La risa es la cara oculta obligada del luto. Estas son indesligables, una
depende de la otra, como muy bien expone el locutor personaje en el último verso:

“y riéndote, también, corazón muere!” La voz de este poema evidencia su carácter
A melancólico, sabe muy bien que a pesar de la risa redentora, esta es una máscara
de “una constante carcajada/ amarga y dolorosa, pero breve…” (FONSECA, 1934,
L p. 12).
Estamos ante el emblema de la calavera, ya que los poemas nos muestran
L la decadencia de la vida, su transitoriedad y corta duración. La vida decadente que
va hacia la desaparición, que es devorada por la marcha destructiva y devastadora
A de la historia. En otras palabras, la alegoría es la representación de una historia
decadente y perjudicial donde la destrucción impera y cualquier atisbo de redención

es negado.
A modo de conclusión, podríamos afirmar sobre estas ruinas, esta
caducidad, este diálogo de lo fugaz con otra ruina, la del pasado poético, como
• la pose de Fonseca al momento de travestir su voz, al hacerla grave y masculina
alegoriza su discurso. Esa alegoría muestra una naturaleza fosilizada y el rostro
648
cadavérico de la masculinidad. Se puede pensar como ruina este tipo de construcción
• masculina con respecto a la refulgente máscara de otra masculinidad, la de Nelly/
Carlos. La nueva voz generada no se encuentra en la vetusta voz de Carlos Alberto
Fonseca ni en la autora Nelly Fonseca sino en la actualización que hace la poeta
de la decadencia de fin -de- siècle que América latina asumió de Europa, para, de
ese modo, cuestionar el lenguaje modernista bajo el cual se moviliza pero no para
2 presentar el miedo a los cuerpos que no entran en la norma sino para a partir de
ese miedo elucubrar un nuevo cuerpo, ese que quizá habla desde la grieta de una
0 elipsis. Ese nuevo yo no está en los poemas donde la palabra ha sido colonizada
sino en los otros poemas donde se muestra el dolor, la ruina y el espacio vacío de
1 la muerte.
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L A COLÔNIA CINCO MIL, O DAIME E OS “CABELUDOS”:
CARTOGRAFIAS NÃO MAPEADAS
L
Julia Lobato Pinto de Moura (UFAC)
A RESUMO: Este estudo introdutório busca reunir narrativas e interpretar as
literaturas, geografias e histórias produzidas a partir das práticas culturais
vivenciadas na Colônia Cinco Mil, comunidade do Daime localizada na zonal rural
de Rio Branco, Acre. É uma pesquisa no campo da linguagem tendo como principais
referenciais teórico-metodológicos os estudos de Hall (2003), sobre as identidades e
• movimentos diaspóricos, Rolnik (1989), sobre cartografar paisagens psicossociais,
Claval (1999) e Gil Filho (2001) sobre geografias culturais e a espacialidade do
650
sagrado. A relação desta comunidade com o “movimento hippie” é um traço identitário
• desta territorialidade daimista que, além de movimentar turismos e intercâmbios
étnico-religiosos globais, suscita críticas e certo silenciamento resultante de cisões
internas. Buscamos fazer ecoar as literaturas, geografias e histórias deste lugar, os
sentidos que dali brotam sobre as cidades e as florestas, produzidos pelos sujeitos
que de forma individual e coletiva.
2 Palavras-chave: Santo Daime. Cinco Mil. Contra-Cultura.

Introdução
0
O Daime ou Santo Daime atualmente está institucionalizado como uma
das três religiões ayahuasqueiras tradicionais reveladas no Brasil, ao lado da União
1 do Vegetal (UDV) e da Barquinha. É um fenômeno religioso múltiplo, plural, de
onde brotam identidades e sentidos também diversos, resultantes, sobretudo, de
8 seu processo de expansão para além das fronteiras amazônicas, “suas diásporas”
(ASSIS, 2017). A diferenciação das identidades entre os grupos daimistas tomam
formas cada vez mais definidas na medida em que avançam as políticas públicas
relacionadas à regularização do uso religioso da ayahuasca. A busca pela definição
do que são as religiões ayahuasqueira tradicionais, faz surgir “inventários fixos e
modelos hierarquizados de pertencimento que acirram cisões internas e folclorizam
as práticas, silencia as pessoas” (MENDONÇA, 2016).
As narrativas sobre os saberes e fazeres presentes na cultura do Daime
são praticamente invisíveis para a historiografia e geografia acreana oficiais,
seus discursos e currículos escolares. Menor  ainda quando se refere a Cinco
Mil, onde ripes e mochileiros que chegaram ao Acre a partir de 1975 imprimiram
significativas transformações na cultura do Daime. Na comunidade fundada por
Sebastião Mota de Melo localizada na zona rural de Rio Branco, estes visitantes
“cabeludos” foram  acolhidos, e no diálogo com os conhecimentos tradicionais da
comunidade,  trouxeram influências dos chamados “movimentos de contra-cultura”,
como o incentivo ao trabalho em mutirões e a socialização da produção agrícola, a
adoção da propriedade coletiva das terras, abertura para experiências com o uso de
J outras “plantas de poder”, sobretudo entre os anos de 1977 a 1983 (RAMOS, 2002). 
O objetivo deste estudo é ouvir as vozes que ecoam deste lugar, suas
A concepções de mundo, e tentar mapear um pouco o que hora chamamos de
“as literaturas, geografias e histórias da Colônia Cinco Mil”, os sentidos sobre
L as cidades e as florestas que dali brotam.Espera-se que na convivência com os
diferentes indivíduos que lá moram e/ou frequentam, possamos contar, interpretar

e reinterpretar estas histórias, sejam dos antigos moradores, muitos dos quais nem
L participam mais do Daime, dos que administram o Centro e os feitios da Igreja,
mas não necessariamente moram lá, dos visitantes e moradores temporários, e dos
A hippies fardados, em sua maioria estrangeiros.
A Colônia Cinco Mil foi fundada por Sebastião Mota de Melo, que conheceu
o Daime ainda na década de 1960, no Centro de Iluminação Cristã Luz Universal
(CICLU-Alto Santo), o centro daimista fundado por Raimundo Irineu Serra na década
de 1930 e que congregou toda irmandade até o dia de sua passagem em 1971.
• A partir desta data sucederam-se várias dissidências por motivos já abordados
651 em outras pesquisas e citados adiante. A mais numerosa destas saídas foi a do
grupo liderado por Sebastião Mota, que já vivia na Colônia Cinco Mil com familiares

e outros membros da irmandade. Desligaram-se oficialmente do Alto Santo em
1974, fundando o Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra
(CEFLURIS).
Desde então o grupo é envolto de “Novas e velhas acusações: a ‘droga’, a
2 ‘Umbanda’, os ‘de fora’” (GOULARD, 2004) e vive certo “isolamento local” (LABATE,
2010), uma vez que não tem sido convidado a participar das definições de políticas
públicas para as comunidades ayahuasqueiras. É consenso entre os estudiosos do
0 processo de expansão do Daime que o CEFLURIS foi o principal responsável pela
perpetuação dos rituais em outras regiões do país, e posteriormente em outros
1 países. Esta expansão se deu sobretudo a partir da década de 1980, quando
alguns hippies e mochileiros que chegaram na comunidade nos anos anteriores,
8 e conheceram a doutrina pelas mãos do Padrinho Sebastião, passam a retornar
para seus estados de origem levando consigo litros de Daime para iniciarem
seus trabalhos. Este início aconteceu, de forma mais específica, através de Paulo
Roberto, ex-militante da esquerda contra a ditadura e presopolítico recém-liberto
na época, e o paraibano radicado no Rio de Janeiro Alex Polari, que fundaram,
respectivamente, o Céu do Mar e o Céu da Montanha, ambas no Estado no Rio de
Janeiro.
Assim como foi no auge da Colônia Cinco Mil nas décadas de 1970 e
1980, nos dias atuais ainda chegam muitos visitantes de diversas origens, aqueles
que estão de passagem, e aqueles que ficam, aderem ao fardamento no Daime,
casam, constituem famílias. Centenas de estrangeiros  de todos os continentes, e
brasileiros de todas as regiões passam pela comunidade todos os anos, conhecida
como porta de entrada para o Céu do Mapia, a maior comunidade daimista localizada
na floresta amazônica, no município de Pauini, Amazonas.
O Encontro Rainbow Gathering realizado em maio de 2014, na Colônia
Luau, dentro da Comunidade Cinco Mil, reuniu artistas e  artesãos de várias partes
do mundo. O tradicional evento hippie não está diretamente vinculado ao Centro
J do Daime, como noticiado por Ribeiro (2014) e confirmado pelos apoiadores locais.
Porém o uso ritualístico da ayahuasca foi uma das atividades no Encontro, uma
A vez que foi facilitado/organizado por pessoas que também pertencem a doutrina,
e fazem uso da bebida sacramental em um contexto mais “pajelança”, buscando
L uma vivência com o chá mais associada aos conhecimentos dos povos indígenas.
As culturas do Daime vivenciadas na Colônia Cinco Mil são singulares e
esta pesquisa objetiva mapear as literaturas, geografias e histórias que envolvem
L
este lugar, capítulo essencial na história de expansão da doutrina do Daime, e
patrimônio histórico-cultural de Rio Branco, ainda que não oficialmente reconhecido.
A As interpretações e os sentidos sobre as territorialidades que dali emerge são
produzidos pelos sujeitos que fazem a Colônia Cinco Mil existir, e vivenciam as
fronteiras entre as cidades e as florestas, entre os mundos reais, ideais e astrais.
Ferramentas conceituais: história oral e estudos culturais

• A proposta é realizar uma investigação descritiva e reflexiva sobre um lugar


e os sentidos que ecoam deste lugar carregado de simbolismo, a Colônia Cinco Mil,
652
a partir da convivência com os indivíduos, registro e interpretação de seus relatos.
• Trata-se de uma tentativa de interpretar as interpretações (ALBUQUERQUE,
2010) sobre as continuidades e descontinuidades da comunidade Cinco Mil com o
“movimento hippie”. Partimos na trilha teórico-metodológica que nos lembra que
os documentos e os testemunhos sobre a história de um lugar, sejam eles orais ou
escritos, não são portadores da verdade sobre os fatos, mas são leituras possíveis
2 (HALL, 2008). Para Stuart Hall, um dos fundadores do movimento conhecido como
Estudos Culturais, a linguagem tem um papel central na configuração das realidades
0 - dos sentidos produzidos sobre as realidades e experiências de vida, as culturas,
as identidades, valores e campos de lutas. As coisas ou acontecimentos históricos

não devem ser tomados como dados em si, baseado na realidade material dos
1 documentos e nem mesmo nos relatos orais, como formas de descrição objetivas.

Apesar de o Santo Daime ser um fenômeno religioso recente, com
8 menos de um século, trata-se um movimento plural, e já bastante fragmentado.
Diferentes vozes e sentidos, grupos ora mais ora menos dissonantes, constroem
suas identidades. “O movimento expansionista do Daime forma um mosaico social
multicor, onde diversas culturas e interpretações de mundo às vezes divergentes
e paradoxais se tocam e se interpenetram.” (ASSIS, 2017, p.270). Considerando
esta diversidade, é importante situar quais recortes o presente trabalho propõe.
Escolhemos a Colônia Cinco Mil porque existem poucos trabalhos dedicados a
sua história mais recente, sendo que foi a primeira sede daquele que é o mais
conhecido, numeroso e influente segmento, responsável pela expansão mundial do
Daime: a Igreja do Centro Eclético da Fluente Luz Universal – Patrono Sebastião
Mota (ICEFLU), fundado na Colônia Cinco Mil em 1974 como Centro Eclético da
Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra (CEFLURIS).
Contribuir para o registro das literaturas, histórias e geografias deste
lugar, é contribuir para que ecoem vozes silenciadas pela mídia, pela historiografia
e geografias oficiais, e pelos currículos escolares. Localizada na fronteira do rural e
do urbano, o lugar Colônia Cinco Mil é pensado como espaço do vivido, apropriados
J através dos corpos (CARLOS, 2007).
O crescimento do número de artistas de rua verificado nos últimos
A anos na capital riobranquense, por exemplo, em grande parte está relacionado
aos intercâmbios no âmbito da cultura ayahuasqueira. São cartografias sociais e
L territórios ainda pouco mapeados. (ROLNIK, 1989). Cartografia é entendida aqui
não como a arte, técnica e ciência de conceber e confeccionar mapas de localização
e orientação, mas como a possibilidade de cartografar as paisagens psicossociais e
L
suas transformações temporais, motivadas pelos afetos, pelos desejos, propulsores
das formações e organizações socioespaciais. Para o cartografo das paisagens
A psicossociais, a linguagem é vista como aquilo que cria e dá sentido ao mundo,
não apenas um meio pelo qual se expressa mensagens pois ela é, em si mesma,
criadora de mundos. (ROLNIK, 1989) e possibilita permanentemente novas formas
de se narrar as histórias. Seguindo estes passos metodológicos está proposto,
nesta pesquisa, que a prática do cartógrafo integre história e geografia. Mas não
• é possível definir um método rígido (nem no sentido de referência teórica, nem no
653 de procedimento técnico), pois para Rolnik, (1989) o cartografo deve deixar sua
sensibilidade agir, deve participar, se envolver, vivenciar e embarcar nas relações

que constituemos territórios existenciais.
Para desenvolver esta pesquisa pretendemos realizar além de um amplo
levantamento bibliográfico, a observação participante e entrevistas considerando as
metodologias da história oral. Sem qualquer pretensão a “neutralidade axiológica”
2 apresento-me como “pesquisadora-simpatizante” (ASSIS, 2017, p.23), pois não
pretendo deixar velada minha identidade daimista e tampouco exercer o maior
distanciamento possível do objeto em termos analíticos, afinal, a escolha da temática
0 deve-se justamente ao fato de ser relativamente favorecida pelo meu envolvimento
pessoal no âmbito dessa comunidade religiosa.1 Neste sentido, venho somar a
1 um movimento de pesquisadores, onde “A identidade insider, longe de inibir ou
prejudicar as pesquisas sobre o Daime ou a ayahuasca, parece ter estimulado uma
8
1  Desde 2016, quando conclui o Mestrado, vinha desenvolvendo atividades de pesquisa e extensão
sobre o uso de narrativas indígenas e afro-brasileiras como recurso didático no ensino de Geografia e
História, não no intuito de ser porta-voz destas culturas, mas no sentido de sensibilizar os ouvintes,
meus alunos e a sociedade, a ouvi-los. Um vislumbre de um futuro doutorado na área. Porém,
apesar do sucesso com os projetosna temática da interculturalidade e o ensino, que renderam boas
apresentações em escolas da rede básica, e envolveu alunos de diversos cursos (História, Ciências
Sociais e Geografia), em apresentações em eventos e publicações de artigos, uma questão sempre
me incomodava: Como fazer um estudo legítimo falando da cultura do outro? O fato de não ser
indígena e não me identificarnem parda nem preta fez com que eu desistisse de prosseguir com
este projeto para um eventual doutorado, ainda que se mantenha o interesse em promover ações
de pesquisas e extensões com a temática. Foi neste conflito, que envolve um pouco do que chamam
série de estudos e ajudado a construir alguns dos trabalhos de maior envergadura
a esse respeito.” Assis (2017, p.20)
A história oral como metodologia e concepção teórica de pesquisa nos
remete a uma perspectiva de produção da história a partir de arquivos e documentos
não-oficiais. Trata-se de interpretar a memória como ela se revela, de promover a
escuta do outro e contar a história, de um lugar, acontecimento ou pessoas, a
partir de um diálogo com aqueles que vivenciaram direta ou indiretamente. É uma
J busca por fazer pousar a oralidade sobre o papel. Os ensinamentos de Mestre
Irineu, Padrinho Sebastião e seus seguidores, da cultura do daime, compõe esta
A “escola da oralidade”. “Em síntese, seus saberes, natureza-cultura, produziram
mentalidades/espiritualidades transmitidas por palavras, sons, gestos, olhares,
L corpos em movimento.” (ALBUQUERQUE, 2010, p.120)
A entrevista enquanto ferramenta de pesquisa não é privilégio da história
oral, sendo aplicada das mais diversas formas e com os mais diversos objetivos
L
como suporte aos diferentes recortes teóricos e metodológicos. A questão é que a
história oral propõe uma concepção de como se preparar e conduzir uma entrevista.
A Enquanto metodologia e concepção teórica nasceu no Brasil, nos movimentos
sociais, da necessidade de escutar os sujeitos esquecidos pela escola, ouvir suas
histórias e geografias, como narram seu passado e que perspectivas têm do futuro.
Os relatos das entrevistas não narram os fatos em si, a realidade de
como aconteceram, e sim, as interpretações dos acontecimentos, e permite-nos
• perceber como os indivíduos constroem sua realidade. Ao narrar a narrativa de
654 um acontecimento, ou narrar a narrativa de um outro, narramos a nós mesmos
• também, pois narramos a partir do nosso olhar. As memórias individuais e coletivas
são o suporte para a constituição das identidades (processos de identificação). Neste
trabalho pretendemos, no diálogo com os diversos indivíduos que vivem a Colônia
Cinco Mil, buscar entender os sentidos produzidos pelo grupo sobre este lugar,
a fronteira entre a cidade e a floresta, a convivência em irmandade, a identidade
2 daimista e o diálogo com o movimento ripe.
A entrevista é uma técnica e é necessário que se estabeleça uma relação de
confiança entre as partes. É importante fazer contatos prévios, falar dos interesses,
0
pois a entrevista pode ser intimidadora para aqueles que vão revirar os baús de
suas recordações. É importante tentar trazer os entrevistados e suas falas, escrever
1 com eles. Este caminho se difere daquele proposto pela etnografia clássica, onde os
antropólogos, interessados em compreender sistemas culturais, costumes e modos
8 de vida, interpretam tudo isto é, em algumas destas pesquisas você praticamente
não vê o outro e sua fala. Recontar e contar um acontecimento já são um ato de
interpretar. A proposta aqui é captar os sentidos que os indivíduos dão a sua
existência, e no conjunto das narrativas, perceber as dispersões e regularidades,
as diferenças e pontos comuns. Toda narrativa é uma interpretação e interessa-nos
produzir uma cartografia da Colônia Cinco Mil e da presença ripe na comunidade
que revele memórias polifônicas.

“lugar de fala”, que a temática do Daime, e em especial da Colônia Cinco Mil, se revelou, e comecei
a romper minha resistência em pesquisar academicamente a doutrina na qual faço minha pesquisa
de autoconhecimento há 14 anos. O pertencimento foi determinante na escolha do tema.
Para tanto um importante suporte teórico são as perspectivas do
pensamento pós-colonial, que procura produzir conhecimentos sobre as fontes de
conhecimentos silenciadas. Os caminhos para a crítica à hegemonia do pensamento
científico ocidental moderno como única forma validade de leitura e representação
do mundo já estão bem abertos.
Caminhos da investigação: a religião, o sagrado, as redes e arranjos no
território
J O espaço geográfico como “paisagem”, o “mundo real”, é geralmente
descrito como resultado da construção humana, que através do uso de técnicas,
A realiza trabalho e se apropria da natureza, e de outros humanos, como recursos
para sua reprodução e sobrevivência. Os espaços fictícios, a imaginação, as
L subjetividades, simbolismos, percepções cosmológicas e míticas dos espaços não
tem sido, comumente, interesse da Geografia, atenta ao espaço da materialidade
L objetiva, com conotação de realidade, ainda que representação materializada.
Esquecemos muitas vezes, que tudo, não sendo “natureza natural”, é produto da
imaginação humana, desde as técnicas mais avançadas de construção de prédios
A e mobilidade pelos ares, terra e água, até os mais diversos deuses que compõem as
mais diversas teologias e cosmologias.
O reconhecimento dos etnoconhecimentos, do “pensamento selvagem”
(LEVI-STRAUSS, 1976), do perspectivismo ameríndio (CASTRO, 2015) como
conhecimentos, e não apenas como narrativas primitivas, fruto da imaginação

animista e interpretações irracionais de povos “sem-cultura”, permiti-nos em
655 linhas gerais, promover um diálogo entre os saberes (SANTOS, 2007) e combater a
• hegemonia da ciência ocidental moderna. Reconhecer que mitologias e cosmologias
também se desenvolvem a partir de métodos, regras e atitudes sistemáticas de
investigação e reflexão é um caminho para estabelecer pontes entre as diversas
formas de conhecimento, o mundo da oralidade e da escrita, do material e imaterial.
Quando pensamos a questão das religiosidades ou das dimensões do
2 sagrado, este é geralmente um campo de estudo desenvolvido nas ciências humanas
por antropólogos, sociólogos e historiadores. Não é a obra de geógrafos que
0 geralmente se recorre quando queremos estudar temáticas referentes às religiões,
seus simbolismos, teologias e cosmologias. A despeito deste não protagonismo, já há

algum tempo algumas geógrafas e geógrafos, vinculados a diferentes perspectivas
1 epistemológicas, vem tentando dar suas contribuições aos estudos, tendo como
foco a dimensão espacial do fenômeno religioso e a espacialidade do sagrado.
8 Podemos citar de início alguns autores que nos serviram de referência
teórica e metodológica nesta empreitada. Do campo da Geografia Cultural, Paul
Claval (1999, 2006), nos sugere questões metodológicas para investigação das
geografias culturais e Yi-funTuan (1980) fornece importantes conceitos ao estudar
como as experiências, valores e comportamentos das pessoas e grupos sociais
interferem na relação com espaço, nos sentidos que os lugares adquirem. Envoltos
com a construção de uma geografia da religião e do sagrado, destacam-se no Brasil,
a produção de Zeny Rosendahl (2002, 2003), Silvio Fausto Gil Filho (2001), entre
outros.
O mundo que nós estudamos é moldado pela ação humana e se encontra
marcado por seus saberes, desejos e aspirações. O mundo que os homens
e mulheres constroem e organizam depende da imagem que eles têm do meio,
das técnicas desenvolvidas para extrair os elementos necessários para viver em
coletividade, e do domínio que se exerce sobre este meio. Porém entre os geógrafos,
historicamente vigorou uma perspectiva de pensar apenas as técnicas e o meio.
As utopias e cosmologias que guiam as ações dos grupos humanos no espaço,
J os mitos antigos e modernos que embasam suas visões de mundo, são discursos
muitas vezes naturalizados, sob a quais não é dado muito questionamento. Daí
a materialidade, que é produto da imaginação e de representações, ser percebida
A
como a realidade: geografia como localização.

L Pensar outras leituras de mundo, pelo olhar da geografia, é pensar no
papel que as concepções, utopias e cosmologias que guiam as ações e os sentidos

dos grupos humanos no espaço, para além do processo hegemônico de reprodução
L do capitalismo global. Quando penso nos sentidos que os sujeitos produzem sobre
as cidades e as florestas, no âmbito da cultura daimista vivenciada na colônia Cinco
A Mil, falo de pensar as geografias culturais produzidas nesta porção das Amazônias,
onde os sentidos sobre os lugares são tecidos a partir de diferentes formas de
percepção do mundo.
Para Claval (1999), três grandes questões para investigação aparecem
como centrais: como o meio é percebido por aqueles que o habitam? Graças a que
• se tem domínio sobre ele? Como concebem a ordem social, as regras e normas
656 as quais devem se conformar? “O mundo que os homens desenham coloca em
jogo deuses espíritos e forças cósmicas: sua topografia mistura espaços profanos e

espaços sagrados” (CLAVAL, 1999, p.71).
Quando se trata de um campo ainda mais específico no universo da
religiosidade, a pesquisa de campo em religiões enteógenas, isto é, “que utilizam
psicoativos como parte fundamental e constitutiva de sua atividade ritual,” (Assis,
2 2017, p.19), os estudos geralmente não envolvem geógrafos e sim antropólogos,
psicólogos, que enfrentam os dilemas de experimentar ou não as substancias que
são objetos e sujeitos em suas pesquisas2.
0
Zeny Rosendahl (2003) considera que a abordagem geográfica sobre religião
nos últimos dez anos vem enfatizando os dois pontos centrais que são a essência
1 da questão religiosa: o sagrado e o profano, e acrescenta que o sagrado, como
manifestação cultural, afirma-se no lugar, no espaço, no território, na paisagem
8 e na região. Sugere que a partir deste ponto central, a geografia das religiões deve
aprofundar suas perspectivas, analisando-se as dimensões econômica, política e
do lugar, dimensões estas que são regidas por princípios próprios, ao mesmo tempo
que há uma inter-relação entre elas.
Sobre a dimensão econômica do fenômeno religioso considera que a partir
do momento que os objetos e as coisas possuem um simbolismo e um significado
para além de suas aparências mais imediatas, estes se constituem em um bem
simbólico, com valor cultural e mercantil, e inserido em uma rede de distribuição
2  No caso destes estudos, em específico com a ayahuasca, nem podemos trata-la como objeto de
pesquisa, pois se trata de um sujeito: uma “planta professora”.
para atender a demanda dos devotos. Sobre a dimensão política, enfatiza a questão
da relação religião-território-territorialidade, com base na ideia de que o território
religioso é impregnado de significados, símbolos e imagens, via de regra é delimitado,
e nele há apropriação e controle por parte de um determinado grupo humano, no
caso os adeptos da religião, segundo uma dada hierarquia. E sobre a dimensão do
lugar, considera que na medida em que o sagrado irrompe, os lugares de culto se
tornam qualitativamente distintos do espaço comum, pois a experiência religiosa
J lhes atribui formas e funções que os diferem do cotidiano não-sagrado ou profano,
e neste caso, interessaria aos geógrafos entender o papel do sagrado na organização
espacial da paisagem religiosa e como o lugar simbólico é possuído e operado pela
A
comunidade religiosa.

L Sylvio Fausto Gil Filho (2001) discute as limitações da abordagem
geográfica tradicional da religião, que condiciona a análise do fenômeno religioso às

suas implicações espaciais mais imediatas. Propõe um redimensionamento de seu
L objeto de pesquisa, para ir além da análise puramente locacional e espacialmente
geometrizada do fenômeno religioso. Influenciado pelas contribuições de Mircea
A Eliade (1907-1986) sobre os conceitos de sagrado e o profano, Gil Filho propõem
o sagrado enquanto categoria de análise, como cerne da experiência religiosa, e
considera que o sagrado possui aspectos racionais, isto é, passíveis de uma apreensão
conceitual através de seus predicados, e aspectos não racionais, exclusivamente
captados como sentimento religioso.
• (...) se o sagrado é único enquanto categoria, paradoxalmente ele é plural em
sua realidade fenomênica. O sagrado per se é exclusivamente explicado em
657
sua própria escala, ou seja, a escala religiosa. Todavia, no plano fenomênico
• ele se apresenta em uma diversidade de relações que nos possibilita estudá-
lo à escala das ciências humanas (GIL FILHO, 2001, p 70).

O autor propõe que o sagrado deve ser estudado em sua materialidade


fenomênica, apreendida através dos nossos instrumentos perceptivos imediatos,
isto é, sua exterioridade e concretude; também através da apreensão conceitual
2 a fim de concebermos o sagrado pelos seus predicados e reconhecermos sua
lógica simbólica; e ainda a natureza arquetípica do sagrado, reconhecível através
0 das escrituras sagradas, das tradições orais sagradas e dos mitos. Neste sentido
podemos considerar que,
1 A Geografia do Sagrado está muito mais afeta à rede derelações em tornoda
experiência do sagrado do que propriamente às molduras perenes de um
espaço sagrado coisificado. (GIL FILHO, 2001, p 12).
8
O espaço geográfico enquanto espaço de vivência expressa de forma não
dicotomizada a objetividade e a subjetividade. Assim, os sentidos que os lugares
adquirem para um determinado grupo social podem constituir-se problema de
pesquisa sob diversas perspectivas.

Prévias do mapeamentodas paisagensna Colônia Cinco Mil


O Daime possui um simbolismo e um significado para além de sua
aparência líquida e amarronzada.No contexto da doutrina daimista que herdou do
perspectivismo indígena a concepção de que tudo na natureza é um ser, é gente,
tem vida, o Daime é “um Ser Divino transformado em líquido”, “o professor dos
professores” 3. Para os indígenas um é um ser que veio da água, do mundo das
jiboias. (NixiPae, para os hunikuin). Na sociedade capitalista todo bem simbólico
é visto também como uma mercadoria. Para evitar que isso acontecesse com a
ayahuasca, ficou expressamente proibida toda e qualquer forma de comercialização
da bebida conforme as Resoluções do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas
J (Conad) de 2010.
Porém a progressiva expansão para além das fronteiras amazônicas
A exigiu aumento das áreas de acesso e cultivo do cipó e do arbusto que fornece a
folha, o Jagube e a Rainha, que misturados, dão origem ao preparo sacramental.
L Para atender a crescente demanda, o Acre e o Sul do Amazonas tornaram-se áreas
fornecedoras de ayahuasca/daime para centro em outras regiões do país e do

mundo. Esta dinâmica que tem movimentado o turismo étnico-religioso, gerado
L subempregos e trazido a tona a polemica questão sobre a rede de distribuição para
atender a demanda dos devotos e acomercialização da ayahuasca/Daime. Labate
A sugere que
existe uma rede que produz e permite a circulação da ayahuasca dentre os
diversos grupos, paralela à rede oficial das matrizes ayahuasqueiras com
suas extensões e distribuições internas. [...] Há algumas dissidências do
Santo Daime (Alto Santo e CEFLURIS) e da União do Vegetal, ou caboclos
independentes em Rio Branco (Acre), que produzem a ayahuasca evendem

aos interessados. [...] Uma outra opção é comprar a matéria-prima (folha e
658 cipó) e produzir a própria beberagem. (2004, p. 277)

• Como observado por Fernandes (2014) é comum que os dirigentes do


ICEFLU (Padrinho Alfredo e Padrinho Valdete, ambos filhos do Padrinho Sebastião,
falecido em 1990), do Centro Eclético da Flor de Lotus Iluminado (CEFLI), Padrinho
Luís Mendes e seu filho Padrinho Saturnino, entre outros, promovam a ida de
verdadeiras comitivas da floresta, fazendo trabalhos, feitios e eventos por várias
2 cidades pelo Brasil e mundo. Da Colônia Cinco Mil, integram este movimento
principalmente Maurílio Reis, um dos primeiros ripes que chegaram ainda na
0 década de 1970, atual dirigente do Centro localizado na comunidade estudada e
colaborador da expansão do daime no Japão;Feliciano Freitas, menino criado pelo
Padrinho Sebastião e que se tornou um de seus braços direitos no processo de
1
transferência da comunidade para o Céu do Mapia, a pouco mais de 5 anos começou
a realizar trabalhos com o Daime e a viajar para centros em outras partes do Brasil
8 ministrando a bebida com ritos menos ortodoxos, as “pajelanças”. Acrescenta-se
Raimundo Nonato e seus familiares, dirigentes do Centro e Pronto Socorro, vizinho

a 1 km da Cinco Mil, herdado de Wilson Carneiro de Souza, que recebeu das mãos
do Mestre Irineu ainda na década de 1960 a missão de amparar os doentes. Com a
passagem do fundador, Wilson seguiu com Sebastião, estabelecendo moradia nas
terras da Cinco Mil em anos posteriores, onde no final da vida, ergueu a sede para
os trabalhos de cura.
O território religioso é impregnado de significados, símbolos e imagens,

3  A literatura do Daime são os hinos.


sendo a cultura é um elemento de constituição das identidades, dos sentimentos
de pertencimento a determinadas “linhas”. A apropriação e controle por parte de
um determinado grupo dos processos de feitio e guarda do Daime foi o principal
fator que desencadeou os rompimentos e dissidências a partir da passagem de
Irineu Serra. A relação religião-territorialidade delimita espaços de atuação e no
caso os adeptos da religião, institui uma hierarquia, que impõe regras aos sujeitos.
As hierarquias nem sempre estão legitimadas dentro de todo o diverso universo de
J daimistas, feitores de daime e suas redes de distribuição, do que resultam além
das parcerias e intercâmbios citados, também cisões internas, disputas territoriais
e simbólica por filiais. Denúncias de enriquecimento ilícito, exploração da mão-de-
A
obra com baixa remuneração e até trabalho escravo são algumas das denúncias
formais e informais que recaem sobre alguns dos dirigentes e feitores daimistas da
L Colônia Cinco Mil e do CEFLURIS, mas nenhuma ação judicial protocolada até hoje
comprovou as denúncias.
L A experiência religiosa atribui formas e funções aos espaços que
os diferem do cotidiano.O sagrado irrompe e os lugares de culto se tornam
A qualitativamente distintos dos espaços comuns. Interessa-nosentender o papel do
sagrado na organização espacial da paisagem religiosa, as concepções de natureza
e a importância material e imaterial da Floresta nas práticas ritualísticas.
Considerações parciais
Tentaremos construir as bases teóricas e metodológicas deste estudo

tecendo um diálogo entre as ferramentas conceituais disponibilizadas pelo campo
659 da Geografia Cultural e dos Estudos Culturais, e criticamente aplicadas.
• Localizada na fronteira da ordem da doutrina deixada pelo Mestre Irineu e
da relativa subversão permitida pelo Padrinho Sebastião, eles seguem o fardamento,
o rito disciplinado na execução dos hinários, no cumprimento das extensas
horas de bailado, mas compartilham costumes não reconhecidos pelos Centros
daimistas mais tradicionais, como a incorporação de elementos do Espiritismo e da
2 Umbanda, e outras questões, que contribuem para que a comunidade seja envolta
de estereótipos inferiorizantes, processos judiciais e ataques caluniosos.
0 Foi lá que se traçou o caminho pelo qual se deu a expansão do Daime
graças à chegada dos “cabeludos”, narrada geralmente como cumprimento de uma
1 profecia, pois Sebastião dizia que “já esperava” um “novo povo” que o Santo Daime
iria colher. (Assis, 2017). Neste sentido, o universo cultural daimista vivenciado

na Colônia Cinco Mil é muito próprio e complexo, de onde brotam interessantes
8 sentidos sobre as cidades e as florestas.
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J

A

L A COLONIALIDADE DO SABER E SEUS REFLEXOS NO ENSINO DE
LÍNGUA PORTUGUESA EM CONTEXTO LITERÁRIO
L
Julianne Rodrigues Pita (UECE)
A RESUMO: Este trabalho busca discutir como a colonialidade do saber se insere
no contexto do ensino de língua portuguesa, buscando refletir acerca do perfil
eurocêntrico do ensino de língua materna da Educação Básica no Brasil. A pesquisa
tem como referencial teórico autores da área de letras, sociologia e filosofia. Os
principais desses autores são Azibeiro (2016), Bosi (1992, 2006), Candido (2000),
• Castro-Goméz (2013), Cereja (2009), Dussel (2013), Holanda (2013) Lander (2013) e
Quijano (2013). Os eixos de análise são a concepção do conhecimento colonialista e
661
as leis educacionais sobre o que deve ser proposto no ensino de língua portuguesa.
• Trata-se de uma pesquisa bibliográfica que busca confrontar teóricos do ensino
de língua portuguesa e do pensamento descolonial. A partir da análise efetuada,
munidos do conceito de colonialidade do saber, constatamos a existência da
influência europeia em contexto escolar no ensino de língua portuguesa.
Palavras-chave: 1. Colonialidade do saber. 2. Ensino. 3. Língua Portuguesa
2
Introdução

O estudo da literatura, como componente curricular, sempre foi alvo de
0
pesquisas, dentro da esfera acadêmica, com a finalidade de abranger os objetivos
principais e secundários de um dos eixos que compõe e complementa o ensino
1 regular de língua portuguesa.
Como propulsor da construção de leitores dentro da educação básica, a
8 literatura surge como algo necessário para a análise e compreensão de períodos
históricos e sociedades através das suas produções escritas e dos seus contextos
de produção, tornando-se um sistema formado por denominadores comuns,
denominadores esses que
são, além das características internas como (língua, temas e imagens), cer-
tos elementos da natureza social e psíquica, embora literariamente orga-
nizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto
orgânico. Entre eles se distinguem: a existência de um conjunto de produ-
tores literários, mais ou menos conscientes de seu papel; um conjunto de
receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não
vive; um mecanismo transmissor (de modo geral, uma linguagem, traduzida
em estilos), que liga uns a outros. (CANDIDO, 2000, p. 23)

Essa tríade, produtor-receptor-mecanismo transmissor, é a que construirá


a literatura como linguagem fundamentada nas relações humanas e nos contextos
sociais que estas se desenvolvem. Dessa maneira, é através desse sistema que “as
veleidades mais profundas dos indivíduos se transformam em elementos de contato
entre os homens, e de interpretação de diferentes realidades” (CANDIDO, 2000,
J p.23). Por este viés, podemos compreender a literatura de maneira abrangente e
formadora de processos históricos e sociais.
A Porém, nos dias atuais, quando se pensa a literatura – na prática educativa
no ensino básico – como algo determinante no processo de formação da cultura do
L indivíduo, vê-se uma repetição de dogmas que se prendem a estudar e entender as
obras consideradas de prestígio literário por serem estas as de grande valia para a
L construção de um status social de cidadão culto e letrado.
Tudo isto nos leva a pensar sobre em que lugar da escala hierárquica
criada pelo conceito comum de cultura estariam as pessoas que não desenvolveram
A a competência leitora ou não tiveram acesso à literatura denominada clássica, por
motivos diversos, para tomar posse da ascensão cultural proposta socialmente a
este conhecimento.
Os estudos literários em âmbito escolar, por uma via, e o estudo instituído
• da gramática e seus usos, por outra, causaram e, por vezes, ainda causam uma
visão separatista entre o ensino de língua portuguesa e literatura provocando uma
662
dissociação entre ambas. Essa dissociação não deveria acontecer visto que estão
• interligadas diretamente pelo código de comunicação.
Entretanto, essa visão dúbia foi herança da Lei de Diretrizes e Bases de
1971 como bem esclarece Cereja (2009, p. 54) ao elucidar que
“Os Parâmetros Curriculares Nacionais – Ensino Médio (1999:53) – ao dis-
cutirem os problemas do ensino de língua portuguesa, fazem referência à
2 dicotomia em relação à disciplina existente na LDB 5.692/71, que a dividia
em ‘Língua e Literatura (com ênfase na literatura brasileira)”.

0 Prova disso se encontra nos sumários dos livros didáticos de Língua


Portuguesa que, de forma segmentada, apresentam seções destinadas ao estudo
1 dos períodos literários. Na maioria destes livros didáticos brasileiros, não há uma
relação efetiva entre o estudo da língua materna e o estudo de literatura. Os textos
literários são usados ou para análise sintática, morfológica ou, em raríssimas
8
ocasiões, pragmática no que cerne à língua portuguesa, quando muito, também,
são utilizados como molde comprobatório para contextualizar um período literário
e suas características, a título cronológico.
Como se vê, o texto, que deveria ser o centro das atividades de uma aula de
literatura, espaço aberto para a negociação de diferentes leituras e constru-
ções de sentido, geralmente acaba por assumir um papel periférico nessa
sequência. Por extensão, na prática, o ensino de literatura no ensino médio
não tem alcançado os objetivos propostos pelos programas escolares ─ en-
tre outros, o desenvolvimento de habilidades leitoras dos alunos ─ e tem-se
limitado a promover a apropriação de um discurso didático sobre a litera-
tura, produzido e representado, em primeira instância, pelo professor e, em
segunda instância, produzido socialmente por diferentes agentes: pelo livro
didático, pelos programas universitários, pelas referências historiográficas
disponíveis para consulta de professores, pelo programa vestibular de algu-
mas universidades, por alguns sites da Internet, etc. (CEREJA, 2009, p.57)

Entretanto, essa visão dissociada vem sofrendo alterações, principalmente


no que diz respeito aos documentos norteadores do ensino escolar básico. Como
J exemplo, temos a última edição da Base Nacional Comum Curricular, documento
importantíssimo para compreensão do que o aluno de educação básica tem que
aprender e apoderar-se durante os anos de frequência aos bancos escolares. A
A
perspectiva apresentada nesta última BNCC, aponta que
Durante toda a Educação Básica, deve-se favorecer a formação literária, de
L modo a garantir a continuidade do letramento literário, iniciado na Educa-
ção Infantil. Esse tipo de letramento é entendido como o processo de apro-
L priação da literatura como linguagem que oferece uma experiência estética,
bem como a ampliação gradativa das referências culturais compartilhadas
nas comunidades de leitores que se constituem na escola. Pela literatura,
A constituem-se subjetividades, expressam-se sentimentos, desejos, emoções,
de um modo particular, com uso diversificado de recursos expressivos. Nes-
se processo, a formação de leitores literários envolve reflexão sobre a lin-
guagem, o que implica o reconhecimento de procedimentos de elaboração
textual e a consciência das escolhas estéticas envolvidas na construção dos
textos. (BRASIL, 2016, p. 96)

663 Retomando os fatores responsáveis da fomentação do ponto de vista de
que o estudo da literatura forma indivíduos cultos e letrados percebemos a presença
• constante de textos canônicos, muitas vezes de linguagem de difícil compreensão
para alunos do Ensino Médio.
Estes textos e algumas obras, por vezes, se distanciam da realidade e da
linguagem atual, dificultando o interesse pela leitura, que já é cada dia mais escasso
com o desenvolvimento das novas tecnologias e o acesso a uma enorme quantidade
2 de informações de outros tipos, entrando no caminho oposto do que deveria ser
proposto e alimentado durante as aulas de literatura. Contudo, compreender esses
0 textos, por mais que para isso sejam necessárias excessivas e enfadonhas pesquisas
aos dicionários, é sinônimo de subir um patamar na hierarquia cultural.
1 Um terceiro, e último, ponto, propagador da conceituação de que
detentor da cultura é aquele que reverencia a leitura das belas letras, é a devoção
8 às literaturas europeias. Entretanto, temos aqui um fator que vai além do campo
da análise literária, pois neste aspecto não se acarreta apenas a ótica da leitura
canônica, mas, sim, de que ser culto não é apenas ler e compreender textos
canônicos da literatura brasileira, mas, também ler o que vem diretamente do
continente colonizador.
Aqui temos um problema de ordem literária e sociológica, pois esta
obrigatoriedade do ensino das escolas europeias como única literatura à parte
da brasileira e africana1, por vezes afasta o aluno que, por consequência, se
desinteressa cada vez mais da leitura, já que esta não apresenta aspectos palpáveis
1  O ensino de literaturas africanas é pautado na Lei n° 10.639 promulgada no dia 9 de janeiro de
à sua perspectiva, à sua linguagem contemporânea ou a sua realidade e posição
geográfica no mundo.
Todavia, o fator supracitado entra em contradição, mais uma vez, com
o que é apresentado pela BNCC, quando esta propõe o tipo de literatura que deve
ser promovida e estudada em contexto escolar, fator esse que servirá como um dos
norteadores para a composição deste trabalho.
A Base Nacional Comum Curricular, numa visão mais desafiadora,
J estimula que a escolha dos livros indicados para o estudo da literatura privilegie
autores e obras pertencentes ao seu contexto local e regional, complementando que
A É importante também que os/as estudantes sejam apresentados/as a au-
tores das literaturas africanas de língua portuguesa. Seria desejável, ainda,
L que se conseguisse oportunizar o contato com algumas obras literárias de
outros países - por exemplo, de autores latino-americanos, pouco lidos entre
nós, de autores da tradição ou da literatura moderna de outros continentes
L - dentro de projetos de leitura significativos. (BRASIL, 2016. p. 508)
Percebendo a amplitude a qual a literatura se elevou, no decorrer destes
A anos, como componente curricular responsável pelo estímulo à leitura, alguns
questionamentos tornam-se pertinentes nos estudos acadêmicos sobre a literatura
e o seu espaço de atuação.
Será que são seguidos os preceitos regidos em leis, tais como a Lei de
Diretrizes e Bases, os Parâmetros Curriculares Nacionais e a Base Nacional Comum
• Curricular? E, dentro disso, o questionamento principal deste trabalho: o quanto
664 o estudo da literatura nas escolas de ensino básico brasileiras se fundamenta no
• contexto europeu e, assim, distancia ainda mais os estudantes do conhecimento
da cultura latino-americana?
Nosso objetivo é compreender como a literatura latino-americana aparece
ou deixa de aparecer nas construções desses livros didáticos tendo como finalidade
refletir sobre o papel do professor de literatura, dos livros didáticos e o exercício
2 dos documentos reguladores do ensino.
A colonialidade do saber e seus reflexos no Ensino de Literatura
0 Para compreender os limites do ensino de literatura no que diz respeito
ao conhecimento do que foi produzido no contexto brasileiro é importante debater
1 acerca de questões mais gerais relacionadas à forma como o ensino brasileiro lida
com a cultura latino-americana e o eurocentrismo que ainda parece permear nosso
processo educativo e social.
8
Entendemos que as discussões levadas a cabo pelos autores do chamado
“pensamento descolonial” terão importância fundamental na melhor compreensão
do porquê desta construção (e por que não desconstrução?) intercontinental ser
2003 que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei 9.394/96) tornando
obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e africana nos estabelecimentos de Ensino
Fundamental e Médio. Esta lei busca resgatar a contribuição do povo negro e os conteúdos referentes
a ela devem ser ministrados em todo o currículo escolar, em especial, nas áreas de Educação
Artística e de Literatura e Histórias Brasileiras, como se encontra descrito no próprio corpo do texto
da lei. Infelizmente, esta lei ainda encontra limitações e resistência nas práticas escolares do ensino
de literatura. Cf. ROLON, 2011; SILVA, 2012.
considerada como comum e pouco problematizada, a ponto de não ser relevantemente
questionada em âmbito escolar e, especificamente, no desenvolvimento do estudo
das escolas literárias.
Tomando como ponto de partida o processo de colonização da América, o
sociólogo peruano Aníbal Quijano (2013) se propõe a analisar e provocar discussões
acerca da produção do conhecimento na América Latina e de como ela é, ainda,
extremamente permeada por influências europeias. As reflexões de Quijano (2013)
J nos permitem perceber como boa parte dos conceitos reproduzidos em diversas
áreas do conhecimento no continente americano, em específico a América do
A Sul, foram construídos em um contexto de um violento processo de colonização
que ultrapassa a retirada de bens materiais para o nível de imposição cultural e
L negação da identidade, nos fazendo compreender o quanto a nossa sociedade se
deixou levar por dogmas e verdades construídos sobre nós e não por nós.

Em uma boa sistematização feita pelo sociólogo venezuelano Edgardo
L
Lander, podemos introduzir um dos pressupostos importantes dos autores do
pensamento descolonial: “Com o início do colonialismo, na América inicia-se não
A apenas a organização colonial do mundo, mas - simultaneamente - a constituição
colonial dos saberes, das linguagens, da memória (Mignolo, 1995) e do imaginário
(Quijano, 1992).” (LANDER, 2013, p. 10) Essa constituição de saberes aprisionou
o Ocidente em concepções criadas pela cultura europeia, que por muitas vezes se
confunde com a cultura ocidental.
• Dessa forma, causou, principalmente nos territórios conquistados pelas
665 grandes navegações, uma imposição do que deveria ser certo e errado pelo ponto de
• vista europeu, afetando o nosso modo de pensar e agir em sociedade e interferindo,
indiretamente, nos âmbitos de aprendizagem, em específico, a escola.
Quando colocamos a escola como uma das instituições afetadas por essa
doutrinação colonial, temos como preocupação central o ensino de literatura, que
se torna bastante discutível diante de tantas escolas europeias estudadas com
2 afinco e o esquecimento da nossa literatura regional e latino-americana. Por isso
buscamos problematizar essa situação e conhecê-la melhor.
0 Diante disso, nos vemos, desde o início da nossa história, pré-determinados
a seguir os europeus em diversos aspectos, inclusive na constituição do nosso

processo educacional. No ensino de língua materna, o que se vê é a presença
1 constante dos nossos colonizadores e dos seus aspectos culturais herdados, mesmo
que forçosamente, por nós.
8 Esta é uma construção eurocêntrica, que pensa e organiza a totalidade do
tempo e do espaço para toda a humanidade do ponto de vista de sua própria
experiência, colocando sua especificidade histórico-cultural como padrão de
referência superior e universal. (LANDER, 2013. p. 13)

Encontramos nesse pressuposto de Edgardo Lander algumas das falhas


que passam despercebidas no nosso contexto de ensino de língua materna, visto
que, numa visão passiva, muitas vezes nos propomos e/ou somos obrigados a
propagar e transmitir conceitos alheios à nossa realidade e muitas vezes distantes
da nossa compreensão já que sobram textos para explicar tais “verdades” europeias,
mas falta contexto para entendermos estas em sua amplitude.
Questões relacionadas a essa discussão marcaram as reflexões sobre o
Brasil desde pelo menos o início do século XX. Sérgio Buarque de Holanda, um dos
três grandes “intérpretes” do Brasil, que ao lado de Caio Prado Junior e Gilberto
Freyre formou a chamada geração de 30, afirmava que
A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, do-
J tado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas a sua
tradição milenar, é nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e
de mais ricas consequências trazendo de países distantes nossas formas de
A convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo
isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda uns des-
L terrados em nossa terra. (HOLANDA, 2013, p. 31)
De nossa perspectiva, o que compreendemos como tradicionalismo
L no ensino sistemático das escolas literárias é uma das consequências dessa
implantação cultural que prioriza a necessidade de entender o que é a sociedade
A europeia e sua produção escrita, para depois compreendermos o que se fez por
aqui de interessante.
Essa visão eurocêntrica do mundo será basilar para esclarecer alguns
fatores causadores desta imposição cultural, que já nos é tão comum, a ponto de
esquecermos o preço que pagamos pela sua efetividade.
• Ao nos reportamos à configuração do mundo ao final do século XV, início
do século XVI, quando encontramos uma Europa em que se destacam os
666
países ibéricos, por terem retomado suas terras e mostrarem condições e
• ousadia para se aventurar por mares nunca dantes navegados. É verdade
que Portugal e Espanha não estão sozinhos nessa empreitada. A Itália tem
também um destaque, mas seu acesso garantido ao Mediterrâneo tira-a do
centro das disputas pelo Atlântico. O mesmo não acontece a outros povos,
como os holandeses. Assim também, França e Inglaterra, saídas de um sé-
culo de guerras e tensões, compartilham do mesmo imaginário europeu oci-
2 dental, considerando-se o centro do universo, ao redor do qual tudo devia
girar. Como não tinham as bênçãos do Papa, urgia que encontrassem outros
0 meios de tirar proveito dessas descobertas que vinham fazendo os ibéricos.
(AZIBEIRO, 2016, p. 2)

1 Temos aqui o contexto histórico e social dos períodos de exploração de
novas terras, inicialmente realizada por Portugal e Espanha. Com o processo de
colonização nestes recém- “descobertos” territórios, que mais tarde ganhariam o
8
nome de América Latina, novos conceitos sociais surgem e outros ganham maior
notoriedade, dentre eles o de modernidade. A dicotomia entre os países “modernos”
e os “tradicionais” sempre marcou a história das ciências sociais e da cultura
ocidental, e o conceito de modernidade foi durante muito tempo considerado como
algo natural e surgido a partir do desenvolvimento da civilização ocidental, sobretudo
europeia e posteriormente a estadunidense. Uma das grandes contribuições dos
pensadores que aqui utilizamos como referencial teórico foi a de problematizar o
conceito de modernidade e de mostrar que ele, na verdade, surge como um dos frutos
do processo de colonização: para o seu surgimento, era necessário o surgimento de
um “outro”, do seu contrário, do atraso. A América surge então nessa perspectiva,
pois essa a partir do “descobrimento” juntamente com sua história e seus povos,
passava a ser a representação desse outro “atrasado”, a ser modernizado.
Essa visibilidade do “outro” como todos aqueles povos insurgentes do
processo de colonização ou os não-europeus faz surgir a necessidade do estudo
de outro postulado advindo das ciências sociais sobre o conceito de modernidade.
Esse postulado que encontra base na constituição das dicotomias pela cultura
J ocidental, insistente em pretender-se universal, é muito bem explorado pelo filósofo
argentino Enrique Dussel.
A Como bem defende Dussel (2013), a modernidade instituída pelas
concepções eurocêntricas, evidencia como moderno aquilo se prende e tem origem
L no continente europeu. Todo o resto, não pertencente a este contexto bem delineado
geograficamente, é considerado inútil ou retrógrado principalmente no que se
refere ao que era visto e produzido no período de colonização, pois os pobres povos
L
“descobertos” necessitavam, mesmo que de maneira obrigatória e forçosa, ver a luz
da razão europeia, visão fomentada pelos movimentos sociais que circundavam,
A em seguida, a formação de uma Europa Iluminista (que Dussel (2013) conceitua
ser a segunda fase da constituição da modernidade).
Dussel (2013) nos mostra também, de forma mais específica, dois
conceitos do que seja a Modernidade. “O primeiro deles é eurocêntrico, provinciano,
regional. A modernidade é uma emancipação, uma ‘saída’ da imaturidade por um
• esforço da razão como processo crítico, que proporciona à humanidade um novo
667 desenvolvimento do ser humano.” (DUSSEL, 2013, p. 27) Este primeiro conceito,
• engloba muito do que é propagado dentro das primeiras produções literárias
registradas no período de “descoberta” do território brasileiro. O europeu, moderno,
vem para desenvolver o pensamento crítico do índio.
O segundo conceito de modernidade fundamentado por Dussel (2013, p.
29) explicita que
2 ‘Modernidade’, num sentido mundial, e consistiria em definir como deter-
minação fundamental do mundo moderno o fato de ser (seus Estados, exér-
citos, economia, filosofia, etc.) “centro” da História Mundial. Ou seja, empi-
0 ricamente nunca houve História Mundial até 1492 (como data de início da
operação do “Sistema-mundo”). Antes dessa data, os impérios ou sistemas
1 culturais coexistiam entre si. Apenas com a expansão portuguesa desde o
século XV, que atinge o extremo oriente no século XVI, e com o descobri-
mento da América hispânica, todo o planeta se torna o “lugar” de “uma só”
8 História Mundial [...].

Constitui-se então, a partir desses dois conceitos de Modernidade, a


premissa de que o “centro” da História Mundial preconiza todas as outras culturas
como periféricas e hierarquiza a cultura europeia como central. A modernidade
hierarquizada e centralizada em contexto europeu, quando repetida sem filtros de
criticidade, autoafirma a Europa como detentora da civilização e da evolução social
da sociedade, anulando as demais culturas e consequenciando em um processo de
violência epistêmica tão bem questionada e definida por Castro-Goméz (2013, p.
83). Será através do ensino que esta violência se fará de forma materializada e
construirá o perfil idealizado do cidadão latino-americano do século XIX, que deve
seguir os padrões do que a modernidade eurocêntrica considera como necessária
para intitular-se cidadão.
Entretanto, esse processo de chegada dos portugueses poderia ter servido
de grande valia para o enriquecimento da diversidade cultural brasileira, mas o
que ocorreu, em primazia, foi o surgimento da modernidade “como dispositivo
que construía o ‘outro’ mediante uma lógica binária que reprimia as diferenças”
J (CASTRO-GOMÉZ, 2013, p. 80) confirmando as conceituações supracitadas.
Essa repressão às diferenças formulou um grande abismo existente entre
A colonizador e colonizado estabelecendo uma relação de poder abusivo e que figura
a imagem do colonizado como ser submisso às vivências e visões do colonizador.
L O colonizado aparece assim como o ‘outro’ da razão, o que justifica o exercí-
cio de um poder disciplinar por parte do colonizador. A maldade, a barbárie
e a incontinência são marcas ‘identitárias’ do colonizado, enquanto que a
L bondade, a civilização e a racionalidade são próprias do colonizador. (CAS-
TRO-GOMÉZ, 2013, p. 83)
A O colonizado, por este viés, precisa de regras que o coloquem em nível
adequado de convivência, de cultura e de conhecimento, que só será efetivado
através do uso das leis e da disciplina como instrumentos para a sua redenção à
ocidentalização. O progresso surge então como produto da ideologia europeia, nos
fazendo pressupor que “jamais houve modernidade sem colonialidade” (SÍVERES;
• SANTOS, 2013, p. 125).
668 É a partir desse processo de colonização cultural e territorial, norteado
• pelos interesses do mercantilismo (nas origens do capitalismo), também ele colonial,
instituindo um perfil de poder eurocêntrico padronizado e hegemônico, que surge
o que se conceitua como colonialidade do poder, como resultado de todo esse
processo. Atrelada a este conceito surge a ideia de colonialidade do saber como
consequência desse poder colonial.
2 Para salientarmos e fundamentamos este estudo, explicitaremos os
conceitos de colonialidade do poder e colonialidade do saber, desenvolvidos pelo
0 sociólogo peruano, Aníbal Quijano.
A colonialidade do poder, para Quijano (2013), se constitui como “o
outro lado” da modernidade, que se baseia, na forma de entender o mundo e a
1
sua organização, na ideia de raça, que “em seu sentido moderno não tem história
conhecida antes da América” (QUIJANO, 2013, p. 107). Através dessa ideia é que
8 se constituirão as relações de poder e dominação do mundo contemporâneo.
Dessa maneira, entende-se a colonialidade do poder como um conceito
que remete à permanência, nas relações do capitalismo mundial contemporâneo,
das desigualdades reais surgidas à época da colonização. Tal conceito também
permite que compreendamos a natureza da falta de legitimidade política dos países
da América Latina, que em diversas circunstâncias se viram sitiados pelo poderio
europeu e suas imposições.
Surgindo como derivação do conceito de colonialidade do poder, temos
o conceito de colonialidade do saber, que remete à construção do conhecimento
através dessas relações de poder. No processo de construção dos saberes, a escola
surge com um papel fundamental de padronizar e separar a “civilização da barbárie”.
Beatriz Gonzáles Stephan (1996), estudiosa venezuelana dos dispositivos
educacionais de poder implantados na América Latina no século XIX e do reflexo
desses dispositivos na constituição da “invenção do outro”, (apud CASTRO-GOMÉZ,
2013) aponta três métodos disciplinares que auxiliaram na formação do cidadão
latino-americano do século XIX: os manuais de urbanidade, as constituições e as
J gramáticas do idioma. Tomando como ponto o último método citado, da construção
das gramáticas de um idioma, percebemos ao longo da história que essa unificação
A em regras e o estudo de uma língua também servirão para meios comerciais e meios
de imposição cultural, pois através de uma instituição linguística, fomentada em
L seio escolar, poderão se formar cidadãos no perfil de seres colonizados receptores
dos saberes europeus, o que também era objetivo dos colonizadores.

O projeto de construção da nação requeria a estabilização linguística para
L uma adequada implementação das leis e para facilitar, além do mais, as
transações comerciais. (...) Da normatividade da letra, as gramáticas bus-
A cam gerar uma cultura do “bem dizer” com o fim de evitar “as práticas vicio-
sas da fala popular” e os barbarismos grosseiros da plebe (STEPHAN, 1996,
p. 29 apud CASTRO-GOMÉZ, 2013, p. 82)

Assim, ambas – colonialidade do poder e colonialidade do saber – vêm


suscitar a discussão feita sobre o conjunto de conceitos que unificam o que é
• considerado moderno ou não, periférico ou central dentro dos moldes construídos
669 pela visão eurocêntrica que denomina a fonte do poder o capitalismo e a fonte do
saber os postulados constituídos em território europeu.

Para entender a forma como a literatura é vista no Brasil como fator
decorrente da colonialidade do saber, pelos pressupostos eurocêntricos, basta que
façamos um breve apanhado histórico que comprove a necessidade surgida em
alguns grandes escritores brasileiros de retomarem conceitos temáticos advindos
do país colonizador. Esses escritores, a fim de efetivarem sua produção escrita,
2 observavam o que se produzia no país lusitano em busca do que se defendia
ser a “real língua vernácula” e dessa maneira alcançarem certo prestígio social,
0 principalmente nos primeiros anos de colônia, quando a influência portuguesa
ocorria de forma mais efetiva.
1 Desde a escrita primeira, oriunda do Quinhentismo, que na historiografia
literária se constitui como a primeira escola literária brasileira (mesmo que não
8 tenham produções feitas – em registro – por nativos), temos uma visão da literatura
brasileira influenciada pelo olhar estrangeiro e pela sua maneira de escrita, pois as
produções desse período literário objetivavam realizar uma descrição que tematizava
os nativos e a região na qual os encontraram, mas não possuía a visão desses sobre
o processo de colonização. Em suma, temos produções que falam sobre nós, mas
não são feitas por nós.
Por esse motivo, os estudos de literatura, na maioria dos livros didáticos,
se dividem entre era colonial e era brasileira. Mesmo encontrando, a partir do
Barroco, produções escritas por autores brasileiros, a temática gira em torno de
moldes lusitanos ou sobre a relação índio e homem branco por uma ótica europeia.
É a partir do Romantismo, que as obras passam a retratar temas nacionais e,
mesmo que em determinadas produções a relação índio e homem branco ainda se
faça presente, a visão desta se faz de forma mais nativa.
Entretanto, os estudos didáticos voltados à literatura consideram como
“nossa” primeira escola literária, um período em que os textos produzidos não
possuíam cunho propriamente literário pelo caráter informativo como bem esclarece
Bosi (2012, p. 13)
J Enquanto informação, não pertencem à categoria do literário, mas à pura
crônica histórica e, por isso, há quem as omita por escrúpulo estético [...].
No entanto, a préhistória das nossas letras interessa como reflexo da visão
A do mundo e da linguagem que nos legaram os primeiros observadores do
país.
L
Dessa forma, deixa claro que os escritos dessa época colonial nada mais
foram do que registros feitos pelos colonizadores sobre o território brasileiro e suas
L riquezas com o objetivo apenas de transcrição para os reis portugueses no intuito
de informar o que era de posse da Coroa Portuguesa.
A Desde o princípio percebe-se a constante influência da corrente
eurocêntrica nos conceitos fundados e disseminados com o propósito de explicitar
que o território brasileiro e seu patrimônio material e imaterial não seria mais de
posse dos nativos. Estes seriam muito inocentes para poderem cuidar de seu próprio
território, como bem Pero Vaz de Caminha descreve em sua carta informativa,
• considerada como primeiro texto literário do Brasil.
670 Caminha ainda ressalta a importância e a necessidade de que a
• supremacia portuguesa vença quando faz um pedido à coroa portuguesa ao dizer
que, em relação ao novo território conquistado “[...] o melhor fruto que dela se pode
tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que
Vossa Alteza em ela deve lançar.” (CAMINHA, 2015, p. 14)
Neste trecho, que nos é tão conhecido e repetidamente reproduzido
2 nos contextos escolares ao se fazer o estudo do Quinhentismo, vemos incutida a
percepção eurocêntrica de modernidade. “Salvar esta gente” pode ser interpretado
0 como a retirada dos índios do atraso pelo qual os portugueses entendiam que estes
se sujeitavam. Ora, pois “[...] para o moderno, o bárbaro tem uma ‘culpa’ (por opor-
se ao processo civilizador) que permite à ‘Modernidade’ apresentar-se não apenas
1 como inocente, mas como ‘emancipadora’ dessa ‘culpa’ de suas próprias vítimas.”
(DUSSEL, 2013, p. 29)
8 Os portugueses, portanto, oriundos do continente responsável pela
prosperidade e descobridor do novo mundo, detentor de conhecimentos e verdades

consideradas absolutas em esfera global, tinham a missão de tirar os povos nativos
desta “nova” terra do atraso em que se encontravam.
Comprova-se através desta pequena análise do texto de Pero Vaz de
Caminha, a Modernidade instituída pelo conceito europeu de prosperidade e que
todos aqueles que se eximem desse processo de progresso, se tornam seres atrasados
diante da luz do conhecimento proporcionado. Tornam-se os “outros” perante a
majestosa cultura ocidental. E, também, de como as dicotomias colonizador x
colonizado, centro x periferia, dominante x dominado, se fazem presentes nesses
primeiros escritos, nos fazendo perceber a amplitude e a necessidade do surgimento
de estudos críticos para que se construa uma nova forma de obtenção e visão do
conhecimento literário.
Considerações finais
Por fim, se faz necessário perceber o ensino de literatura de forma
crítica e no interior desse contexto de discussão, para que a propagação não
J racionalizada destes conhecimentos não faça professores e pesquisadores desta
disciplina reprodutores de uma lógica e de uma concepção de mundo baseadas
A num senso comum que constrói uma ideia de modernidade eivada, como vimos, de
eurocentrismo e, portanto, de processos de dominação.
L Procuramos buscar referências teóricas para esse estudo encontrando em
outras áreas para além da Letras, sobretudo a sociologia e a filosofia, por entender
L que estas áreas do conhecimento contribuem com uma compreensão das relações
entre o contexto social e a produção do conhecimento, das relações de poder e suas
influências na educação e, além disso, por perceber a importância de conceitos
A
forjados por pensadores dessas áreas para uma compreensão mais abrangente do
nosso objeto de estudo.
Constata-se, através do que foi lido, que a disseminação de saberes
eurocêntricos na educação brasileira se dá como um todo urgindo por investigações
• mais profundas, pois é imprescindível que se faça a construção da compreensão do
que foi/é a literatura latino-americana para além do Brasil.
671
Constatamos também a importância da aliança entre o nosso ensino ao
• que é proposto nos documentos nacionais que regem o Ensino Médio que, durante
este trabalho, percebemos muitas vezes estarem muito distante do desejo de um
ensino mais contextual, empobrecendo um componente curricular de contribuição
histórica, linguística e sociológica, tendendo muitas vezes ao reducionismo de algo
que poderia estar gerando o despertar crítico e a construção de uma identidade
2 global dos alunos.
Essa construção da identidade, enquanto cidadãos pertencentes a
0 um continente que tem voz, se faz necessária na realização do nosso ensino de
literatura. A promoção de discussões sobre o que é a América, o que se produziu
1 e se produz neste continente requerem maior relevância, para a efetivação de um
ensino mais coerente.
8 Assim, pretendemos que se compreenda no geral que o que foi discutido
e proposto não tem o intuito de promover uma mudança completa e radical nas
sequências didáticas adotadas pelos livros didáticos utilizados em contexto escolar
para o estudo literário. Estes questionamentos e as resoluções aqui tratadas tiveram
como finalidade compreender de forma mais ampla o porquê da assiduidade aos
estudos europeus para a formação e constituição do que seja literatura para em
seguida analisar se o que produzimos, está ou estava em consonância com o que
produziam os europeus em seus determinados períodos de produção. E, para, além
disso, questionar a invisibilidade das produções latino-americanas nos materiais
didáticos e assim promover um perfil de ensino mais igualitário e que aproxime
mais as literaturas produzidas em nossos países vizinhos.
As práticas tomadas exigem uma reflexão do que estamos fazendo diante
o nosso ensino e de como estamos conduzindo e contribuindo para uma possível
colonialidade do saber fazendo com que entendamos que a mudança está também
nas nossas visões de ensino e na nossa capacidade de descontruir um ensino
padronizado de literatura e reconstruir um ensino que nos inclua como continente,
J não apenas como um país a parte, fora do cont(exto)inente.
Concluímos este trabalho entendendo que, na verdade, nada se conclui.
A Certificando-se que sede por temáticas como essa possa se tornar comum para que
as mudanças cheguem às salas de aula e à consciência daqueles que servem de
L instrumento para o compartilhamento do conhecimento. Portanto, que possamos
compreender que a sala de aula pode e deve servir como um local de promoção de
conhecimentos universais e não bilaterais, sendo as aulas de literatura um ótimo
L
espaço para o aprofundamento de questões que possam envolver o aluno/leitor
num mundo que vai além do imposto pelos livros didáticos, um mundo que se
A constrói das relações de todos os povos, inclusive os nossos e os de nossos vizinhos.
Desejamos contribuir e ressignificar os estudos das escolas literárias e
a necessidade de fazê-los diversificados e mais próximos aos contextos sociais e
geográficos dos alunos da Educação Básica brasileira.

• Referências
AZIBEIRO, Nadir Esperança. Modernidade, colonialidade ocidental e a produção subalter-
672
na do outro. Pro-Posições, [S.l.], v. 18, n. 2, p. 89-101, fev. 2016. Disponível em: <http://
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cional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 20 dez. 1996.
1
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm>. Acesso em: 05
ago. 2016.
8 ______. Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de
1996. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jan. 2003. Disponível em: http://www.
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673

2

0

1

8

J

A

L VIOLÊNCIA E GÊNERO EM RETÁBULOS DE EDILBERTO
JIMÉNEZ: OLHARES SOBRE A GUERRA NO PERU
L
Karina Lima Sales (UNEB)
A RESUMO: O texto discute violência e gênero em três retábulos produzidos por
Edilberto Jiménez, relativos a acontecimentos violentos ocorridos no Peru entre
1980 e 2000, durante o conflito interno armado de maior duração, intensidade
e com os mais elevados custos humanos e econômicos de toda a história
republicana peruana. Os retábulos foram produzidos a partir da passagem do
• retabulista e antropólogo por Chungui, um dos nove distritos da Província de
La Mar, Departamento de Ayacucho, quando Jiménez recolheu testemunhos de
674
camponeses, que geraram desenhos e, posteriormente, retábulos que retratam
• a violência perpetrada durante o conflito interno armado no Peru. Os retábulos
delimitados são Basta, no a la tortura, Abuso a las mujeres e Asesinato de niños
en Huertahuaycco. Os dois primeiros retábulos foram pautados em desenhos
produzidos a partir do testemunho de Antonia Ramírez Orihuela. Em todos eles, a
violência contra a mulher, direta ou indiretamente perpetrada, é analisada sob a
2 perspectiva da memória como luta política.
Palavras-chave: Violência contra a mulher; Retábulos de Edilberto Jiménez; Conflito
0 interno armado no Peru; Chungui.

O conflito armado interno no Peru, ocorrido no período entre 1980 e 2000,
1
foi o de maior duração, intensidade e com os mais elevados custos humanos e
econômicos de toda a história republicana peruana. Segundo a Comissão da Verdade
8 e Reconciliação (CVR, 2003), criada para examinar as causas e consequências do
conflito armado interno, a região do país que sofreu maior impacto deste conflito foi a
centro-sul, composta pelos departamentos de Ayacucho, Apurímac e Huancavelica,
região em que se iniciou o conflito e na qual houve o maior número de vítimas e
desaparecidos. O Informe Final da CVR, entregue ao país e ao presidente Alejandro
Toledo em 28 de agosto de 2003, trouxe a impactante conclusão de que quase
70.000 pessoas morreram vitimadas pelo conflito. Dessa totalidade, 79% viviam
em zonas rurais e 75% das vítimas fatais eram falantes de quéchua ou de outras
línguas nativas.
Para esse estudo, debruçar-nos-emos sobre aspectos relacionados ao
Departamento de Ayacucho, principalmente ao distrito de Chungui, um dos nove
distritos da Província de La Mar, pertencente ao Departamento. Segundo análises de
Carlos Iván Degregori (2009), calcula-se que, entre 1983 e 1994, foram produzidas
aproximadamente 1.384 vítimas no distrito, entre mortos e desaparecidos. A
escolha por esse distrito deve-se à passagem de Edilberto Jiménez por essa região,
recolhendo testemunhos de camponeses, que geraram desenhos e, posteriormente,
J retábulos que retratam a violência perpetrada durante o conflito armado interno
no Peru.
A Edilberto Jiménez, retabulista e antropólogo ayacuchano, fez uma
viagem a Chungui em 1996, como membro da equipe profissional do Centro de
L Desenvolvimento Agropecuário (CEDAP), com o objetivo de escrever trabalhos
de caráter etnológico sobre os recursos rurais de populações autóctones. Mas

a realidade que ali encontrou e os testemunhos que recolheu romperam esse
L programa e Jiménez tornou-se recompilador da memória oral dos anos da violência
sofrida pela população desse distrito durante o conflito armado interno. Em 2001,
A o antropólogo passa a integrar a Comissão da Verdade e Reconciliação. Segundo
Elisa Cairati,
Chungui logró envolver a Edilberto Jiménez en la tarea de recoger todo eldo-
lor vivido por loscomuneros, com el propósito de encontrar los instrumentos
interpretativos adecuados y plasmar um documento que lograra transmitir
La historia y, a través de ella, construir uma memória compartida de even-

tos ocultados, negados, o, peoraún, ignorados (2013, p. 160).
675
Jiménez, além de sua perspectiva antropológica, lança mão de seu talento

como desenhista para criar uma possibilidade de sintetizar a experiência traumática,
“cuya traducción em palabras se mostraba impracticable: La historia ya no como
documento escrito, sino como ilustracíon colaborativa” (CAIRATI, 2013, p. 160). A
complexa tragédia vivida pelos camponeses dos diferentes povoados do distrito de
Chungui não conseguia ser capturada por palavras, apenas, dado o fato de a maior
2 parte da população ser falante de quéchua, analfabeta, com pouca confiança no
escrito e em estranhos, de modo geral. Assim, a estratégia de Jiménez de desenhar,
0 a partir dos testemunhos ouvidos, mostrou-se o recurso mais adequado:
[…] los testimonios eran insoportables, el dolor lo vivía porque me encontra-
1 ba en sitios donde ocurrieron los hechos, me explicaban como si estuviera
sucediendo y ahí inicié a dibujar y los propios comuneros, a veces entre lá-
grimas, me ayudaban a mejorar lo que iba dibujando. Eso para mí era más
8 interesante que el rollo de película o grabarles, porque el dibujo fotografiaba
el instante que había ocurrido. (JIMÉNEZ QUISPE, 2012, p. 73).

Trinta e dois desses desenhos foram incluídos no Tomo V do Informe Final
da CVR, sob o título de Historias ilustrativas de la violência, “[...] nuevo espacio
de testimonio, configurado como imagen gráfica acompañada por fragmentos de
cuentos y recuerdos de las vítimas, enel que los informantes fueron involucrados
de manera participativa” (CAIRATI, 2013, p. 160), constituindo-se em inestimável
arquivo da história da violência em Chungui.
Para Victor Vich, os retábulos de Edilberto Jiménez funcionam no Peru
de hoje como importantíssimos dispositivos de memória e se “presentan como
un discurso testimonial y entienden su acto artístico comouna enunciación de lo
imposible, vale decir, como algo que no estaba previsto en el guióndel poder”. (2012,
p. 105). Para Vich, estes retábulos devem ser entendidos como umaação política,
“como objetos que visibilizan la ética de la estética y que transforman el dolor en
una demanda dejusticia universal”. (2012, p. 105).
Esses aspectos acima referidos relacionam-se à percepção da memória
J como um espaço de luta política. Em se tratando do conflito interno no Peru,
que dizimou milhares de vítimas e deixou marcas que não se apagam, mesmo
A após alguns anos, retratar os acontecimentos, dar voz às vítimas, é lutar contra o
silenciamento. Elizabete Jelin defende que o espaço da memória
L es entonces un espacio de lucha política, y no pocas veces esta lucha es con-
cebida en términos de la lucha “contra el silencio”: recordar para no repetir.
Las consignas pueden en este punto ser algo tramposas. La“memoria contra
L el olvido” o “contra el silencio” esconde lo que en realidad esuna oposición
entre distintas memorias rivales (cada una de ellas con sus propiosolvidos).
Es, enverdad, “memoria contra memoria”. (JELIN, 2002, p. 06).
A
E é a força da memória, como ferida viva, que pode ser associada à
produção dos retábulos de Jiménez, sobre o abuso e o ultraje sofrido por populações
em Chungui. A partir dos testemunhos coletados, Jiménez cria, a posteriori,
retábulos que retratam as duras realidades partilhadas nos testemunhos, quanto
• aos horrores da guerra: “La intención es que tengan un mensaje y que se conozcan
676 esas realidades. Que los retablos sirvan para sensibilizar y con ello aprender a
valorar la vida humana y encaminarnos hacia el desarrollo”.  Como afirma Ulfe
• (2011), esses retábulos reconstroem e evocam uma consciência histórica: “por
consciencia histórica en los retablos entiendo a la capacidad de estos para ser
archivos de la memoria popular en la que el pasado reciente del Perú fluye y es
construido a través de diversas escenas […]” (2011, p. 183), é uma produção da
história.
2 São sete os retábulos com que Edilberto Jiménez nos aproxima de
Chungui e nos dizem, sem eufemismos, o que foi a guerra. Nestas sete cenas
0 de realismo cruel, Jiménez realoca, por meio do suporte da arte do retábulo, os
testemunhos recolhidos em Chungui. Os sete retábulossão: Cuántas almas habrá
1 en Chuschihuaycco; Lirio qaqa, profundo abismo; Abuso a las mujeres; Muerte en
Yerbabuena; Asesinato de niños en Huertahuaycco; Picaflorcitoe Basta, no a la
8 tortura. Destes, serão tecidas considerações sobre Basta, no a la tortura (2006),
Abuso a las mujeres (2007) e Asesinato de niños en Huertahuaycco (2007).
O primeiro retábulo, Basta, no a la tortura, foi produzido a partir de
desenhos realizados, de modo colaborativo, entre Edilberto Jiménez Quispe e
Antonia Ramírez Orihuela. Antonia testemunhou o cruel e lento assassinato de
seu filho, Emerson Ramírez, pelos militares e rememorou essa dor ao narrar /
desenhar / rever detalhes do acontecimento, junto a Jiménez. Diferentemente de
outros retábulos, esse não tem o exterior decorado, a caixa é sóbria, de madeira
crua, remetendo à ideia de um caixão. No alto da caixa, em letras vermelhas, a
inscrição “Basta, no a la tortura!”, acompanhada de uma mão espalmada, também
vermelha, significando “pare” e remetendo a todo o sangue vertido nas torturas. Ao
se abrirem as portas da caixa, as fortes imagens chocam. Nas portas, registram-se
fragmentos do testemunho de Orihuela, contando como seu filho teve suas partes
do corpo desmembradas, sendo obrigado a comer o próprio pênis. Somente depois
de uma tortura cruel, mataram-no, degolando-o. As cenas, em quadros, retratam
o episódio. No alto, à esquerda, vemos os outros presos, dentre eles, Antônia, que
observam a tudo, sem nada poder fazer. Os outros quadros vão, de certa forma,
J dissecando a tortura a Emerson, até o último quadro, em que o rapaz jaz morto.
O céu, vermelho, parece remeter também a todo o sangue vertido, não só o desse
rapaz, mas o de tantas outras vítimas.
A

L

L

A
Figuras 1 e 2: Basta, no a la tortura

Neste retábulo, a violência não foi perpetrada diretamente ao corpo da


mulher, mas ao de um ser amado, embora a mulher seja vítima, do mesmo modo,
• ao perder um ente querido, carregando em seu corpo, por toda a vida, essa memória
677 traumática, como afirma Theidon:
Hay una especialización de la memoria en estas comunidades y son las

mujeres quienes llevan -quienes incorporan- el dolor y el luto de sus comu-
nidades. En la división del trabajo emocional, son las mujeres quienes se
especializan en el sufrimiento cotidiano de los años difíciles. […] Cuerpos
que queman, nervios que se abren cuando piensan en sus seres queridos
muertos - o la matriz que le duele cuando una recuerda su hijo querido.
2 (THEIDON, 2004, p. 75).

O segundo retábulo escolhido, Abuso a las mujeres, também se baseou


0 no testemunho de Antonia Ramírez Orihuela. A caixa retrata cenas de estupros de
mulheres por militares. Embora o retábulo retrate um acontecimento rememorado
1 por uma testemunha de Chungui, sabe-se que as violações a mulheres eram
práticas constantes, durante o conflito no Peru. Segundo o Informe Final da CVR,
os abusos sexuais durante o período de violência política foram praticados, em
8
83% dos casos, por militares e cerca de 11% pelos grupos subversivos MRTA e
PCP – Sendero Luminoso. Os números não retratam o silenciamento de tantas
mulheres, que sequer partilhavam com a comunidade a violência sofrida, com
medo do estigma.
A cena é apresentada sob um céu também avermelhado, em decorrência
da violência sofrida por tantas mulheres, diretamente em seus corpos. No céu, uma
mulher com uma balança, símbolo da justiça, é alvejada por um militar, interditando
a possibilidade de justiça. Um grupo de mulheres amedrontadas encontra-se no
canto esquerdo, no alto. Ao lado direito delas, uma mulher grávida é escoltada por
um militar, será violada e depois morta. Não há reação de defesa dessas mulheres,
à mercê da força e do poder desses homens. O único outro homem, não militar, jaz
morto, provavelmente, marido ou irmão de alguma das mulheres a serem violadas.

J

A

Figuras 2 e 3: Abuso a las mujeres
L
Embora as cenas estejam retratadas simultaneamente, pois não há divisão
L em quadros, é possível perceber a sequência de temporalidade pela roupa da grávida
(no alto, antes do estupro, abaixo, sendo estuprada e, por fim, morta e jogada em
A um barranco) e há testemunho grafado na parte interna das portas. O exterior,
assim como o do primeiro retábulo, é sem adornos nem cores, a violência não pode
ser “floreada”. O testemunho termina com uma mancha de gotas vermelhas como
sangue e o registro: “Cuando la sangre es de una mujer maltratada y asesinada, la
herida es de todos”.
• Diversas são as formas de violência sofridas pelas mulheres, ainda mais
nesse contexto do conflito peruano, mas a sexual foi das mais graves, por todos os
678
estigmas daí advindos. As mulheres violadas, quando não eram mortas, poderiam
• sair desse ato violento com um filho fruto desse momento. Ou serem rechaçadas
pelos maridos, pela família, comunidade. O corpo era obrigado a carregar essa
memória traumática, muitas vezes não socializada. Associado a essa violência,
junte-se outra, o fato de que a maior parte das mulheres violadas era de comunidades
rurais, falantes de quéchua:
2 Sin embargo, el cuerpo carga estas memorias, lo que hace del mismo tanto
un sitiocomo un proceso histórico. La memoria traumática es una manera
de inscribir la historiaen las narrativas biológicas y biográficas de los indi-
0 viduos y de las comunidades. Yexiste otra violencia que también se inscribe
en las narrativas biológicas y biográficas enel ámbito individual y colectivo:
1 la discriminación étnica.(THEIDON, 2009, p. 76)
No capítulo 8 de seu livro Entre projimos, Theidon tematiza a violência
8 contra as mulheres e ressalta o protagonismo delas frente à violência sexual:
Más bien, nos motiva un deseo de problematizar las historias de guerra que
siguen reproduciendo el heroísmo de los hombres y la “victimización” de las
mujeres. Aun dentro de la CVR resonó este dualismo. Por ejemplo, durante
la audiencia pública con los ronderos -quienes manejan el discurso de ser
héroes de la Patria y actores clave en la “derrota de la subversión”-, no tes-
timonió ninguna mujer a pesar de que hay mujeres que no solamente par-
ticiparon en las rondas campesinas sino que llegaron a ser “comandas”. En
las audiencias públicas donde sí participaron las mujeres, fueron incluidas
como víctimas: las lloronas en contraste con los héroes de la Patria. (THEI-
DON, 2009, p. 111).
Na coleta de testemunhos realizada por Theidon, em diversos povoados,
muitos depoimentos ressaltavam o protagonismo de mulheres que saíram em defesa
de suas comunidades, de suas famílias e delas mesmas. Iam às prisões buscar
maridos, filhos, irmãos, mesmo sabendo que poderiam ser violadas, e o eram, em
troca da liberdade de familiares. Ou precisavam lançar-se à luta, literalmente.
Para Theidon, as histórias da guerra influenciam nas políticas públicas em um
contexto de pós conflito: “las historias son una forma de la acción política. Por
J consiguiente, queremos explorar las múltiples formas delheroísmo, pues no todas
son masculinas”. (2009, p. 111).
A O terceiro retábulo delimitado é Asesinato de niño sen Huerta huaycco. Em
comum com os outros retábulos analisados, novamente temos um céu escurecido,
L embora seja dia e avermelhado, representando o sangue vertido no assassinato das
crianças. Esse retábulo também não apresenta decoração exterior. Sua temática

remete a um dos episódios de violência perpetrada durante o conflito. Durante uma
L fuga para as montanhas, camponeses, acompanhados por membros do Sendero
Luminoso, o choro das crianças era considerado denunciador da posição do grupo,
A o que auxiliaria os militares a encontrá-los. Assim, os senderistas decidem matar
as crianças, obrigando as mães a fazê-lo, ou seriam mortas. Por fim, eles mesmos
assassinam meninos e meninas, sob o olhar aterrorizado e sofrido das mães.


679

2 Figura 4: Desenho de Edilberto Jiménez que deu origem ao retábulo Asesinato de niño sen Huerta
huaycco
0

1

8

Figura 5: Detalhe do retábulo Asesinato de niño sen Huerta huaycco

Na descrição do retábulo, constante no site do Instituto de Estudos


Peruanos, registra-se que não houve reparos em relação à crueldade “y abusos que
hicieron de muchos niños víctimas inocentes. La CVR reportó alrededor de 2952
crímenes y violaciones –por parte del PCP-Sendero Luminoso, agentes del Estado y
el MRTA- que atropellaron con descaro y sangre fría los derechos de niños y niñas”.
(2012, p. 67).
Antes da produção do retábulo, Edilberto Jiménez realizou desenhos,
em Chungui, a partir de testemunhos colhidos, como o de R.R.I., que retrata o
assassinato de crianças em agosto de 1985, na comunidade de Chapi, Chungui:
Todo era como para sentir miedo, sólo de noche se preparaba la comida, no
J probábamos sal, vivíamos como qualquier animalito del monte.
Quando venían los militares, los niños tenían que estar calladitos, sin hacer
A bulla. Pero a veces el hambre, la sed, hacía que los niños lloren. Por eso los
jefes de los senderistas ordenaron matar a todos los niños en Huertahuayc-
co, a las mujeres les ordenaron a matar sus hijos, pero después ellos mis-
L mos los mataron ahorcándolos con soguillas y también con sus manos les
aplastaron sus cuellitos. Las mamás no podían deternelos porque también
L les amenazaban con matarlas. Sólo lloraban de miedo, otras se tapaban los
ojos, mientras a sus bebés los mataban1.

A As imagens retratadas nos retábulos de Edilberto Jiménez chocam porque


pautadas em um realismo cruel, mas principalmente, porque se baseiam em
acontecimentos que assolaram comunidades peruanas durante o conflito interno
armado. Victor Vich, em seu texto “La enunciación de loimposible: losretablos de
Edilberto Jiménez”, questiona se essas imagens são toleráveis e reflete que elas
• desafiam o regime de visibilidade imposto, em diálogo com Jacques Rancière: “A
680 questão do intolerável deve então ser deslocada. O problema não é saber se cabe
ou não mostrar os horrores sofridos pelas vítimas desta ou daquela violência. Está
• na construção da vítima como elemento de certa distribuição do visível” (2012,
p. 98). Uma imagem nunca está sozinha, como afirma Rancière, faz parte de um
dispositivo de visibilidade “que regula o estatuto dos corpos representados e o tipo
de atenção que merecem” (2012, p. 98).
Em relação aos retábulos de Jiménez, as imagens, constituídas a partir
2 de uma conexão entre o verbal e o visual, perturbam o regime que tenta controlar o
que deve ou não ser mostrado na comunidade peruana. Segundo Vich, háuma ética
0 no proceso de produção dos retábulos de Jiménez, porque “quieren testimoniar y
sabemos que ello equivale a no tener miedo de mostrar la verdad de lo sucedido
1 aunque ella siga siendo intolerable para ciertos grupos en el país” (2012, p. 103)
e a política dessesretábulos consiste “en modificar el estatuto de lo visible y en
8 asumir con coraje la responsabilidad que ello implica” (2012, p. 103). Assim, é
preciso considerar, em relação ao enfoque aqui assumido, a importância da arte
retabulista de Jiménez como uma constante reflexão sobre os acontecimentos,
para que não voltem a ocorrer.

Referências
CAIRATI, Elisa. Las “Historias ilustrativas de la violencia” de Edilberto Jiménez: nar-
rativa, testimonio y memoria. CONFLUENZE Vol. 5, No. 1, 2013. Disponível em: http://

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2

0

1

8

J

A

L SOSTENIENDO EL BARCO CONTRA VIENTO Y MAREA – O PAPEL
DE EDITORAS INDEPENDENTES PARA A CIRCULAÇÃO DE
L OBRAS LITERÁRIAS NA AMÉRICA LATINA: O CASO DA EDITORA
ARGENTINA FINAL ABIERTO
A
Karina Lima Sales (UNEB)
RESUMO: O presente texto discute a importância de editoras independentes
para a circulação de obras literárias na América Latina, considerando a categoria
“independente” como polissêmica e enfocando a multiplicação de pequenas
• editoras na Argentina vinculada a um movimento social específico, no qual a
682 crise do mercado editorial somou-se à crise econômica e política desde 2001 e,
nesse contexto, o surgimento de editoras independentes respaldou-se em projetos

culturais de âmbito coletivo, cuja tônica principal foi a busca de saídas para a
crise por meio de estratégias de resistência cultural.Para discutir esses aspectos, o
presente trabalho pretende centrar-se no caso da editora argentina Final Abierto.
Com 10 anos de existência, a Final Abierto coloca a público livros organizados em
três coleções, Inédita, Crítica e Vanguarda. A editora assume como norte a tarefa
2 de superar a fronteira nacional argentina, publicando e fazendo circular produções
ficcionais e não ficcionais de autores de distintos países de América Latina, para
0 que essas produções sejam lidas e discutidas para além dos espaços de origem dos
escritores. Assim, o presente texto pretende refletir sobre esses aspectos, bem como
1 as estratégias utilizadas pela editora independente para a publicação e circulação
das obras literárias que constam de seu catálogo, em sua atuação como força de
8 resistência cultural em um panorama editorial.
Palavras-chave: Editoras independentes argentinas. Final Abierto. Circulação
literária. Resistência cultural.
Quando se analisa o campo editorial da Argentina, na contemporaneidade,
o que se percebe, positivamente, é que o número de editoras independentes tem
crescido cada vez mais. Segundo o último informe (2017)da Câmara Argentina de
Publicações (CAP)1, o “Libro blanco de la industria editorial argentina”, as pequenas

1 Para o informe 2017 da CAP, que considerou as publicações de livros realizadas em 2016, na
Argentina, foram classificadas como grandes as editoras que publicam mais de 100 títulos ao ano;
médias, as que publicam entre 20 e 99 títulos; pequenas, as que publicam menos de 20 títulos
editoras, com publicação de até 20 títulos por ano, representam 51% do conjunto
de editoras do país e foram responsáveis, em 2016, por 11% do total de títulos
publicados. Os números parecem promissores e salientam a necessidade de uma
reflexão sobre o fenômeno da multiplicação de editoras independentes: “Cada día
surgen nuevas editoriales y esto es lo que garantiza, indirectamente, la diversidad
cultural, que de otro modo se vería amenazada. “Las grandes transnacionales
tienden a la uniformidad”, afirma Guido Indij, editor de Interzona e Factotum e
J membro de EDINAR, Aliança de Editores Independentes da Argentina2.
Embora se possa situar o fenômeno cultural da proliferação de editoras
A independentes na Argentina como sintoma de um novo cenário de autogestão a
nível global – e que se pode perceber nos mais variados âmbitos, não somente o
L cultural – há algumas particularidades na cena argentina que merecem destaque
e influenciaram / influenciam o fortalecimento desse tipo de empreendimento

editorial. Para isso, é necessário tecer algumas breves considerações sobre o
L contexto que levou à maciça criação de editoras independentes a partir do final
dos anos 1990, bem como a importância da categoria independente, associada a
A essas editoras, antes de nos determos no caso da editora específica escolhida para
análise, nesse trabalho.
A categoria de edição independente é polissêmica e tem sido estudada sob
diferentes enfoques, no que se refere à realidade de Argentina, desde os anos 1990.
Cada grupo de pesquisadores atribui ao termo heranças, significados e mesmo
• nominações diversas, o que leva Winik e Reck (2012) a perceber uma “plasticidade
683 conceitual” do termo. Esses pesquisadores consideram problemático situar as
editoras independentes como coletivos, mas reconhecem que a denominação

é uma espécie de “guarda-chuva” conceitual sob o qual se aglomeram distintos
projetos. Pochettino (2011) propõe que se use outra terminologia, o conceito de
editoras literárias independentes alternativas e de autogestão. Para Malena Botto
não se pode falar em editoras independentes se as editoras pertencem a grandes
grupos transnacionais, vinculando o conceito de independência à nacionalidade
2 dos projetos editoriais e a sua atuação como atores culturais. Para Marilina Winik,
a partir de sua investigação da FLIA (Feria del Libro Independiente y Alternativa /
0 Autónoma, criada em 2006), os laços afetivos que unem os participantes dessas
editoras e o caráter de acontecimento dessas produções editoriais possibilita
1 conceituá-las como editoras autogestivas, observando nessas editoras formas de
militância cultural e política após a crise dos anos 2000, a partir das quais se
8 desenvolvem “subjetividades no mercantilistas, afectivas y resistentes apoyadas
em redes de trabajo editorial” (WINIK; RECK, 2012, p. 555). Hernán Vanoli propõe
o termo pequenas editoras, relacionando a gênese desses projetos às editoras
surgidas na década de 1970, como La Rosa Blindada e Jorge Alvarez. Toda essa
diversidade leva a constatações como a de Sorá (2013), que vê a categoria editoras
ao ano e foi incluída uma nova categoria, a de editoras emergentes, cujas publicações tenham
somado até 20 títulos em cinco anos. Nessa categorização, a editora argentina Final Abierto seria
considerada como emergente.
2  In: ABDALA, Verónica. Editoriales independientes: la potencia de lo pequeño. Caderno Cultura
do Jornal Clarín, edição de 05 de agosto de 2016. Disponível em: https://www.clarin.com/cultura/
editoriales-independientes-potencia-pequeno_0_S1T4Km-t.html. Acesso em 22 novembro 2017.
independentes como polissêmica e escorregadia, mas afirma que não se pode
desconsiderar a vinculação do surgimento dessas editoras com um momento social
específico e que esses projetos culturais apareceram como uma espécie de “ámbitos
colectivos de salvación através de la cultura” e que analisar a edição independente
supõe “relacionarla a la totalidad de los sistemas de agentes y de prácticas que
caracterizan los distintos mercados nacionales de libros y los espacios editoriales
internacionales que los abarcan” (SORÁ, 2013, p. 102).
J Para a perspectiva aqui abordada, adotamos o uso que Daniela Szpilbarg,
a partir de vasta pesquisa, tem feito do termo editora independente quando este
A determina projetos editoriais argentinos não pertencentes a conglomerados
transnacionais. Além disso,aproximamo-nos da proposição conceitual de Szpilbarg
L de considerar a edição independente como um problema sociológico, dentro da
conjuntura sócio-político-cultural do país no fim dos anos 1990:

Nos parecía interesante pensar esta categoría como un problema sociológico
L porque el campo editorial es un campo de producción de bienes culturales y
permite pensar em problema de las relaciones de dominación em los campos
A nacionales, así como también permite pensar el estatus de la cultura nacio-
nal o literatura nacional en el marco de campos nacionales muy transnacio-
nalizados, a partir de los procesos de fines de los años 80 que suponen un
escenario de progresiva globalización editorial. (2015, p. 8).

Szpilbarg salienta que esse olhar deve contemplar também as condições


• sociais, políticas e econômicas da Argentina nesse período, geradas pela entrada
em um regime neoliberal cada vez mais radical que gerou graves consequências
684
na sociedade civil, bem representada pela crise dos anos 2001. Some-se a isso o
• fato de que o mercado editorial argentino já vinha sofrendo reveses há mais tempo,
acachapado por um nefasto projeto capitalista. Marcela Croce, em seu texto “Boom,
paredón y después”, demarca os anos 1990 como uma era de retrocesso, com uma
sociedade naufragada em uma hiperinflação e que isso se fez sentir sobremaneira
no âmbito editorial:
2 Buenos Aires que en los ’40 era la plaza editorial latinoamericana más fuerte
y que en los ’60 abundaba la producción de volúmenes y creación de públi-
0 cos, em los ’90 será la sede de las multinacionales del libro que comienzan
a engullir a las empresas autóctonas: Sudamericana será adquirida por la
fusión de Randon House-Mondadori y absorbida por la discográfica BMG, El
1 Ateneo integrará la digestión del grupo Yenny, y el Centro Editor desapare-
cerá por completo en 1994 después de sua agonía compuesta de liquidación
de saldos y recorte drástico de novedades. (2007, p. 24).
8
Todo esse panorama levou o campo editorial à concentração de dois
grandes conglomerados da edição, Randon House-Mondadori e Grupo Planeta, que
controlavam, no início dos anos 2000, 75% do mercado de livros, segundo Malena
Botto (2006). Ainda assim, Croce analisa que a década de 1990 não deve ser vista
como a “década de pérdida o de retroceso para los libros en Argentina” (CROCE,
2007, p. 38), e sim como um momento de flexão. É essa a chave que nos interessa,
uma vez que todo esse contexto desenhado vai impactar em um movimento de
resposta à crise, em que a proliferação de editoras independentes a partir do final
dos anos 1990 esteve vinculada a um movimento social específico, no qual a crise do
mercado editorial somou-se à crise econômica e política de 2001 e, nesse contexto,
o surgimento de editoras independentes respaldou-se em projetos culturais de
âmbito coletivo, cuja tônica principal foi a busca de saídas para a crise por meio
de estratégias de resistência cultural. Esse primeiro momento de criação heroica e
pioneira de editoras independentes, associado à situação econômica e política do
país, estava associado a formas de contraculturas que originaram organizações
como a Feria del Libro Independiente y Alternativa / Autónoma (FLIA), criada em
J 2006, de retórica abertamente política e de resistência cultural, ou a Aliança de
Editores Independentes (EDINAR), com uma visão mais empresarial de mercado,
lutando também pela visibilidade das publicações independentes nas vitrines das
A
pequenas e grandes livrarias.

L Atuar como editora independente no mercado editorial argentino é uma
espécie de luta, com desafios os mais variados que se interpõem aos editores-

autores-envolvidos em cada um dos projetos. E as editoras independentes que
L intentam consolidar suas ações vinculando práticas editoriais com conteúdo, para
além da mera ação de publicar e vender livros, podem ser analisadas como focos
A de resistência cultural. Segundo Malena Botto, “las editoriales independientes se
conciben a sí mismas como actores culturales, más que como empresas con fines
de lucro. La editorial es un medio para difundir ideas, arte y/o conocimientos”
(2006, p. 223). E essa atuação das editoras independentes como atores culturais
pode ser exemplificada pelas afirmações de Carlos Santos Sáez, editor del Grupo
• Editorial del Nuevo Extremo,
685 La existencia de nuevas editoriales argentinas representa una feliz posibili-
dad. Y no lo digo por la calidad despareja de sus libros, sino por su espíritu
• cooperativo y sus juntadas convocantes. Sus ferias, y sus librerías, funcio-
nan como un solo cuerpo, donde cada volumen es una célula necesaria,
que se complementa con el todo sin competir. Las mesas con libros invitan
a recorrer páginas, autores, texturas, textos y formas, pero no empresas
editoriales. Ese ánimo cooperativo convierte a sus clientes lectores en socios
militantes. Como los pequeños productores de otras manufacturas lo han
2 hecho ancestralmente, los editores están aprendiendo a unirse para ven-
der sus productos. En espacios físicos propios, ferias o tiendas virtuales,
0 comparten público, gastos e ideas. Han encontrado un modo de vender sus
libros fuera de la lógica comercial de los dos megagrupos multinacionales en
las dos grandes cadenas de librerías.3
1
Hoje, os pequenos e médios empreendimentos editoriais (estimam-
se até 400 editoras argentinas independentes) movimentam-se e são o motor da
8
bibliodiversidade e inserem-se em um dinâmico cenário cultural que conta com o
fortalecimento de eventos como a Feira de Editores (FED), que, em sua sexta edição
realizada em junho de 2017 reuniu mais de 8000 pessoas, que enfrentaram até uma
hora e meia de extensas filas para entrar e visitar as mesas com livros, atendidas
pelos próprios editores e escritores, conversando sobre livros e o processo editorial
de 140 editoras independentes, 25 delas de países como Brasil, Chile, Equador,

3  Depoimento concedido a Natália Paez, para a reportagem “Zona independiente. El otro lado de la
industria editorial”, publicado na edição de 6 de agosto de 2017 do Jornal La Nación. Disponível em:
https://www.lanacion.com.ar/2049748-zona-independiente-el-otro-lado-de-la-industria-editorial.
Uruguai e Venezuela. Segundo dados divulgados pela mídia argentina, foram
vendidos 12.000 livros em 15 horas de feira. Embora os números possam parecer
otimistas, diversos são os desafios enfrentados por uma editora independente no
processo de editar uma obra, imprimi-la, distribui-la e fazê-la circular. Por isso a
importância e a força do movimento de coletivização das editoras independentes
que, ao se associarem, como gestores culturais, fortalecem o “animo cooperativo”
de que fala Sáez e assim “funcionan como un solo cuerpo, donde cada volumen
J es una célula necesaria, que se complementa con el todo sin competir”. Dessa
maneira, o setor faz barulho, demarca sua existência, amplia suas fronteiras ao
multiplicar-se e consolida a luta coletiva por meio de estratégias que ultrapassam a
A
mera edição e o vender livros, alicerçam-se como um meio de difusão de ideias, arte
e conhecimentos, através dos eventos pensados e desenvolvidos e dos catálogos que
L são traços da independência dessas editoras, como afirma Victor Malumián, editor
de Ediciones Godot: “El verdadero rasgo de independencia está en la formación del
L catálogo que no sigue caprichos del mercado. El rasgo diferencial tiene que ver con
una búsqueda específica”.4
A E para adentrar melhor nesses aspectos arrolados até o momento, vamos
nos debruçar sobre uma editora argentina independente específica, a Editora Final
Abierto. O contato com a editora deu-se em uma dessas redes de sociabilidade, em
um evento realizado em setembro de 2017 em um bar de Buenos Aires, uma feira
de editoras independentes. Para além dos grandes eventos como a FED, de edição
• anual, diversas ações são realizadas costumeiramente, permitindo que proliferem
686 redes de contato entre editores, escritores e leitores, principal foco de atenção das
editoras independentes.

Com 10 anos de existência, a Final Abierto publica livros organizados
em três coleções. A primeira coleção, Inédita, possui a proposta de editar textos
de ficção inéditos na Argentina de ontem e de hoje. Já a Colección Crítica traz
discussões de pensadores e intelectuais nacionais e internacionais com temáticas
sociais diversificadas. A Colección Vanguardia possui a proposta de trazer a público a
2 vanguarda literária latino-americana, com textos sempre precedidos de cuidadosos
estudos introdutórios de renomados críticos. No site da editora, a Final Abierto é
0 apresentada como “un proyecto ideológico/cultural amplio, que intenta rescatar el
pasado y dar espacio a las nuevas camadas de escritores, artistas e intelectuales
1 para poner al pensamiento crítico nuevamente en el centro de la escena. Como
parte de esto es que presentamos esta editorial independiente que desde la ficción
8 y la no ficción intenta contribuir al debate político/cultural”. 
Em entrevista concedida à autora desse trabalho, o escritor argentino e
editor de Final Abierto José Henrique delimitou o contexto de surgimento da editora,
pensada desde o início como algo além de uma editora, um projeto ideológico-
cultural mais amplo, denominado Espacio Final Abierto:
¿Cuál es la idea de la editorial? Vamos a pensar que la crisis de los 2001 fue
muy fuerte, hay un quiebre, de alguna manera, ese libro [un de los primeros

4  Depoimento concedido a Natália Paez, para a reportagem “Zona independiente. El otro lado de la
industria editorial”, publicado na edição de 6 de agosto de 2017 do Jornal La Nación. Disponível em:
https://www.lanacion.com.ar/2049748-zona-independiente-el-otro-lado-de-la-industria-editorial.
publicados por la editorial, Los ‘90: fin de ciclo: el retorno a la contradicción],
cuando lees la introducción de ese libro, se da cuenta de que está definido
acá el contenido de la editorial, adónde vamos, ese libro define adónde va la
editorial, de alguna manera. O sea, ese fin de ciclo, ese cambio de situación,
nosotros veníamos el peso de la vanguardia… ahora todo mundo volvió a
la vanguardia, nosotros esto lo vimos… yo lo vi… primero que vi el tema, vi
ese momento, no solo que yo confiaba en la vanguardia, en ese momento,
cuando vuelve la contradicción, cuando hay el ascenso, la vanguardia pasa
J a primero plan, está bien?, son la marca de la contradicción, o sea, busca-
mos un lector que tiene que profundizar más. Apostamos en la vanguardia,
para volver a la vanguardia. Y nosotros armamos ese Espacio Final Abierto
A porque nos proponíamos era tratar a ver si podíamos impactar, enganchar
el fenómeno nuevo que surgiera, de la juventud, aparece al calor de la rup-
L tura de los 2001. De pintores, cineastas y otros. Espacio Final Abierto para
poder armar muestras de pintura, de cine, para armar con eses fenómenos
que surgieron más independientes. […] El espacio de Facebook, de alguna
L manera, está pensado para retomar de alguna manera esa idea de Espacio
Final Abierto. […] Si vos agarráis, la página de Facebook no es solamente la
página de la editorial, o sea…Si intenta volver de vuelta a armar un canal,
A comenzamos a tirar de vuelta, a poner en dimensión de vuelta toda la idea
del Espacio Final Abierto. 5

Em seu depoimento, José Henrique destaca sempre essa amplitude de


ações pretendida pela editora, estabelecendo uma grande rede de ações com outros
• grupos culturais que também se fortalecem pela via das redes independentes, como
a parceria estabelecida com DFW – Productora Visual, que produziu alguns vídeos
687
para Final Abierto, como entrevistas ao escritor Noé Jitrik e material de marketing
• pelos dez anos da editora. A produtora DFW é formada por jovens e é um exemplo de
fenômeno independente nas artes visuais que se organiza de modo muito similar à
das editoras independentes, “o sea, como colectivos, donde hay un sector que tiene
cosas para decir e intenta hacerlo con mucho trabajo, con muchísimo trabajo”.
(José Henrique, 2017). Outras colaborações são estabelecidas com outros grupos,
2 além de cineastas e produtores de vídeo, também intelectuais / artistas das artes
plásticas, músicos, sempre com atividades cuja tônica seja a marca da coletividade,
0 preocupação com questões sociais e uma gestão independente.
A Editora Final Abierto foi criada e é gerida por três amigos, José
1 Henrique, Marcelo Garbarino e Mario Iribarren, desde 2007, quando publicaram
as duas primeiras obras, uma de ficção e outra de não ficção. Em seu depoimento,

Henrique salientou que já tinham claro todo o projeto estético-ideológico-cultural,
8 antes de publicarem livros: “Nosotros pensamos una estructura [...], creamos toda
la parte textual, quien somos, que queremos acá, porque… o sea, antes de sacar los
libros. Fíjate que definimos que las tapas negras se van a definir los de no ficción,
las tapas blancas los de ficción, los colores de cada colección”. Em 2007, em um
ousado movimento, Final Abierto apresenta-se ao público com dois livros, um de
Colección Inédita, La enfermedad, do escritor José Henrique, e outro da Colección
Crítica, Los ’90: fin de ciclo: el retorno a la contradicción, com artigos de intelectuais

5  Depoimento coletado de entrevista concedida pelo editor e escritor José Henrique à autora do
trabalho em 11 de novembro de 2017.
de variadas áreas. A configuração desse primeiro livro de não-ficção demarca um
posicionamento ideológico de que a editora, como nos afirmou José Henrique, “não
publica qualquer coisa”.6 Com uma vertente marcadamente de esquerda, os editores
de Final Abierto deixam entrever isso em muitas das publicações. Esse primeiro livro
da Colección Crítica foi organizado com textos de Vicente Zito Lema, dramaturgo,
periodista e advogado dos direitos humanos, além de professor de Psicologia Social;
Pablo Pozzi, Flabián Nievas, Claudio Katz, Marcela Croce, Christian Castillo, Pablo
J Bonavena, todos professores das Faculdades de Filosofia e Letras e de Ciências
Sociais da Universidade de Buenos Aires, UBA; além de Andrea D’Atri, membro do
Conselho do Instituto do Pensamento Socialista (IPS) Karl Marx.
A
E a partir dessas primeiras publicações, a editora passou a desenvolver
L um acirrado trabalho de divulgação, participando de mesas de discussões em
universidades (em virtude de publicações de não-ficção), de feiras de livros, eventos

de editoras independentes para um colocar-se na cena editorial. Ao longo desses
L dez anos, esse trabalho de editoração se consubstanciou em vinte e um títulos
distribuídos nas três coleções da editora. A Colección Crítica apresenta nove títulos,
A um deles já citado. Os outros transitam por temáticas variadas, mas dentro do escopo
temático adotado pela editora: El gigante fragmentado: sindicatos, trabajadores y
política durante el kirchnerismo; Peronismo y representación: escritura, imágenes
y política del Pueblo; Universidad, política y movimiento estudiantil en Argentina
(entre la “Revolución Libertadora” y la democracia del ’83); Guerra: Modernidad y
• contra modernidad; Apuntes sobre la formación del movimiento estudiantil argentino
688 (1943-1973). Todos esses anteriores foram livros organizados com artigos de
autores diversos. Há ainda os livros Vietnan y las fantasias norte-americanas e
• War Stars: guerra, ciencia ficción y hegemonía imperial, do americano H. Bruce
Franklin, traduzidos pela primeira vez ao espanhol pela editora Final Abierto, o que
garantiu à editora vendas inclusive na Espanha, além dos países latino-americanos
que falam espanhol.7 O último título dessa coleção foi lançado em maio de 2018,
Homosexualidad y revolución, do escritor Dan Healey, publicado originalmente em
2 inglês em 2001 e agora traduzido ao espanhol por Final Abierto.8
A Colección Inédita, com oito títulos, apresenta em seu escopo autores
0
6  A afirmação específica foi “Nosotros no editamos cualquier cosa”.
7  Nesse caso dos livros de Bruce Franklin, inverteu-se a lógica dominante de mercado em que a
1 tradução primeiramente é realizada pela Espanha e que pouco garante uma adequada circulação de
obras traduzidas ao espanhol nos países da América Latina, uma vez que a política de exportação
8 de livros obedece a determinadas diretrizes em que a quantidade não é o foco, apenas há um
cumprimento de cotas. Além disso, a tradução realizada pelo tradutor e editor Mario Iribarrendesses
livrosdo autor norte-americano permite sua inserção em programas acadêmicos de universidades as
mais diversas de América Latina, o que também contribui para a divulgação do excelente trabalho
de editoração de Final Abierto.
8  No texto de apresentação do livro, no site da editora, consta: “Publicado originalmente en inglés
en 2001, este ensayo fascinante indaga en la historia del sexo homoerótico en la Rusia zarista y la
Unión Soviética. Su autor, Dan Healey, nos lleva desde el San Petersburgo decimonónico con sus
casas de baño y sus sitios de ligue, pasando por la despenalización de la homosexualidad durante
la Revolución Rusa, hasta la persecución homofóbica bajo Stalin y en la posguerra. Diarios íntimos,
informes psiquiátricos y forenses, las actas de los tribunales de los años 30, las voces del gulag, se
van entrelazando en este mosaico histórico que, cien años más tarde, aun nos interpela y nos invita
argentinos. Em 2017, a publicação do livro Limbo, do consagrado autor argentino
Noé Jitrik rendeu à editora uma maciça divulgação na mídia, dado que o livro, cuja
primeira publicação fora no México, em 1989, não havia sido publicado ainda na
Argentina até aquele momento. O oitavo livro da coleção foi publicado em maio de
2018, como fruto do Primero Concurso de novelas Final Abierto, iniciado em 2017,
em comemoração aos dez anos da editora. O concurso surpreendeu os editores, que
receberam 290 romances para avaliação, o que demandou um minucioso trabalho
J de análise, para chegar a cinco finalistas para a etapa final de avaliação pelo júri
composto pela escritora cubana Jamile Medina Ríos, a boliviana Giovanna Rivero,
o escritor mexicano Pedro Palau, o equatoriano Raul Serrano Sanchéz e o argentino
A
José Henrique. O concurso deixou a editora com um saldo de romances a serem
publicados nos próximos anos, considerando o grande número de participantes.
L Segundo o editor Henrique, a ideia é publicar ao menos os dez finalistas do concurso:
Es un esfuerzo grande salir a descubrir autores. Tiene que ver con traer a
L conocer, descubrir autores. 290 novelas recibimos. Igual nos superó. Pensa-
mos en recibir 100, 150, lo que pasa es que los escritores jóvenes no tienen
quien los lea. El otro objetivodel concurso era que nos dejara diez, quince
A autores para nos dejar cubierta la Colección Inédita, que no es rentable,
porque no se vende, no tiene prensa.9

A Colección Vanguardia é a que apresenta o menor número de publicações,


quatro, até agora, com dois livros do equatoriano Pablo Palacio, um do norte-
• americano Calvert Casey e outro do chileno Juan Emar, pseudônimo de Alvaro
Yáñez. Segundo o editor José Henrique a maior dificuldade para publicar nessa
689
coleção é a questão dos direitos autorais de autores já falecidos, a dependência da
• liberação dos direitos de publicação por parentes ou espólios familiares. A proposta
da coleção de centrar-se nas vanguardas latino-americanas é impactante:
Las vanguardias latinoamericanas de la primera mitad del siglo XX se expre-
saron con una calidad y un temperamento inusitados, tanto en la literatura,
como en la plástica, la música (tango, son, samba), el teatro y por supuesto
2 estuvieron imbuidas de ese nuevo género de la época, el cine.

La magnitud de estas vanguardias literarias, hace que sea imposible enten-


0 der el conjunto de la literatura latinoamericana y universal sin transitarlas.
Es justo afirmar que éstas, junto con los norteamericanos, probablemente
hayan producido las obras más audaces de ese período mundial signado por
1 una situación de crisis, guerras, revoluciones y por la formación acelerada y

8
a la reflexión”.
9  Depoimento coletado da entrevista concedida pelo editor e escritor José Henrique à autora do
trabalho em 11 de novembro de 2017. Essa questão de dar vez e voz a novos autores também
aparece explicitada na página web da editora, na aba Manifesto, cujo texto registra: “Porque este
espacio apuesta a empalmar con quienes vienen produciendo en distintos lenguajes expresivos.
Porque queremos que se vea, se escuche y se lea lo que muchos intelectuales y artistas tienen para
decir. Porque no rige la ganancia nuestro proyecto sino dar a conocer lo que ésta y su ambición
dejan en la oscuridad. Porque este Espacio sólo se sostiene sumando esfuerzos. Por todo esto es que
nos interesan tus producciones, ya sean obras de ficción, artículos sobre distintas problemáticas,
fotos, cine, pintura, escultura, teatro, etc”. Disponível em http://www.finalabiertoweb.com.ar/
manifiesto.html.
cosmopolita de las grandes metrópolis en América.(HENRIQUE, José. Con-
tracapa do livro Un hombre muerto a puntapiés)

A opção por publicar Palacio deu-se principalmente por um desejo


pessoal do editor Henrique de publicar um autor a quem conhecera durante o curso
superior, lendo fotocópias dos livros do equatoriano. Para Henrique, era necessário
resgatar o legado do escritor, que há décadas quase não era encontrado em livrarias
argentinas. A recepção à publicação foi bastante positiva, o que alavancou as
J vendas. Ao longo de 2009, 2010 e 2012, foram publicadas cerca de oito reportagens
ou notas em jornais de peso, tanto na Argentina quanto em outros países de
A América Latina. Os outros títulos não obtiveram a mesma cobertura de imprensa,
mas também atendem ao desejo de colocar à disposição de um público leitor, em
L variados espaços, livros de autores da vanguarda latino-americana que não haviam
sido publicados na Argentina ou já o foram muitos anos antes. Chama a atenção em
todos os livros dessa coleção o fato de serem acompanhados de cuidadosos estudos
L
críticos introdutórios de pesquisadores renomados, que justificam a importância
da publicação desses livros e autores, e acabam funcionando também como parte
A do processo de divulgação e circulação dessas obras em âmbito acadêmico, dada a
inserção desses pesquisadores principalmente em universidades públicas.
Ao longo dos anos, houve mudanças no desenho gráfico dos livros,
mantendo-se o padrão de cores para cada coleção, mas ampliando-se o tamanho das
imagens das capas, que não recebiam muito destaque. Segundo o editor Henrique,
• essas mudanças também são parte do projeto de fortalecer a identidade visual
690 dos livros da editora: “Que priorizamos: ¿instalar la editorial, que se conozca, que
• lamiren y diganel libro es Final Abierto o el libro ensímismo? Entonces definimos
vamos a hacer conocer la editorial. Definimos libros que vos los miráis […] y se da
cuenta de que son de Final Abierto. Por eso te digo que mucha gente reconoce la
editorial”.
Uma das preocupações da editora (e um dos desafios enfrentados pelas
2 editoras independentes, de modo geral) é a questão da divulgação e circulação
das obras. Com tiragens iniciais de 500 exemplares, os livros publicados pela
editora precisam circular e Final Abierto investe também na presença dos livros em
0 livrarias, além da venda de livros em feiras e eventos:
José Henrique: Mira, entonces, tiramos 500 ejemplares, no tiramos menos
1 que 500 ejemplares. No porque se vendan. Por ejemplo: la ficción no se ven-
de. Más o menos 65 / 35. La no ficción se vende 65 y la ficción 35 [%]. Eso
8 que,si no tiene prensa, no si vende nada. O sea, porque nos hicimos tirar
igual 500: fue una decisión… eh… para poder hacer… nosotros juzgamos
que haya mucha presencia. En eses años, somos una de las editoriales que
tiene más peso en librerías, ¿está bien? No sé si fue una buena idea…
Karina Sales: ¿Por qué?
José Henrique: Porque nos generó mucho costo.
Karina Sales: Porque se imprime 500 y no se vende todo. ¿Y se hay una feria
pensada y se vende más de lo que se esperaba?
José Henrique: Lo que pasa es que tenemos un problema: ese costo de bo-
tella que tenemos. Que hay un pro y un contra. A nosotros nos conviene la
venda en las ferias. Los libros mano a mano, cien por ciento de los precios.
Cuando se vende en la librería, se pierde hasta 60%. La venda en la librería
es casi para que se lea el libro. ¿Qué pasa? Para armar una estrategia de ir
a todas las ferias, teníamos que vivir de eso. Y no vivimos de eso. Para hacer
esa especie de recurrida de feriante, hay un desgaste enorme, y se tengo que
quedarme como feriante, se pierde contenido, porque tengo… [pausa]
Karina Sales: Y tiene que alimentar la página de Facebook, la página web
de la editorial…
José Henrique: Y trabajo, además. Estoy trabajando. Y otra cosa: lo cual
J siempre que se publica, hay un costo de botella. Cuando la editora va bien,
hay un costo de botella de tiempo. Porque crece la editorial y no podemos
agarrar las oportunidades por conta del tiempo. ¿O sea, cómo hacemos?
A ¿Me entendéis? O sea, eh… pero también no vivimos de libros, nosotros no
vamos a fundir nunca, nosotros no vivimos de eso… Sacamos más libros o
L menos libros…

Em Buenos Aires, como parte do processo de distribuição das obras,
L os livros podem ser encontrados nas redes de Librerías Yenny-El Ateneo, Librería
Hernandez e na Waldhuter distribuidora. Sobre a circulação das obras para além da
A Argentina, a Editora Final Abierto possui uma rede de apoio. A cadeia de livrarias Mr.
Books, do Equador, possui todo o catálogo da editora independente argentina em seu
acervo, tanto para vendas nas lojas físicas quanto para comercialização virtual. Os
livros também são enviados para a Espanha, através de uma pequena distribuidora,
a Canoa livros. Já a livraria argentina García Cambeiro10 ajuda a fazer com que
• os livros de Final Abierto cheguem até universidades estrangeiras, principalmente
691 americanas, ampliando a rede de distribuição e facilitando a circulação das
publicações. Claro que há que se considerar aí, também, a importância dos leitores
• para a divulgação da editora. E esses leitores são conquistados nas mais variadas
situações: há aqueles que acompanham as publicações da editora desde o seu
início, há dez anos, e contribuem para a formação de novos leitores Final Abierto;
há os conquistados nas feiras frequentadas pela editora; os que chegam aos livros
através das livrarias que os revendem e a contribuição dada pelos colaboradores de
2 Final Abierto, em vários países, que de alguma maneira também ajudam a difundir
os livros, seja escrevendo os textos introdutórios para livros ou levando-os para
0 espaços acadêmicos, adotando livros em suas práticas pedagógicas ou realizando
investigações sobre a editora, como é o caso desse trabalho. Esse trabalho de
1 divulgação mão a mão, boca a boca, pela constituição de redes de leitura dos livros
publicados por Final Abierto, pode resultar em efeitos bastante significativos no
processo de divulgação da editora, tornando-a mais e mais conhecida, superando
8 a fronteira nacional argentina e contribuindo para fazer circular as obras editadas
inclusive para além dos países de origem dos autores publicados pela editora.
Ainda que existam dificuldades (e sempre existem), o fenômeno das editoras
independentes, que engloba a Final Abierto, tem crescido, enfrentando uma adversa
10  Em sua página virtual, a “Librería García Cambeiro”, argentina, apresenta o lema “Más que
libros, servicios y asistencia para bibliotecas” e registra que se “especializa en la identificación,
selección y suministro de publicaciones de intereses académico y temática Latinoamericana
publicada en Argentina y Brasil, liderando desde hace 50 años la oferta de libros y revistas con
servicios a bibliotecas en más de veinte países”. Disponível em: http://www.latbook.com/SP/home.
aspx. Acesso em 14 dezembro 2017.
conjuntura econômica argentina atual, que impacta na existência / resistência
das editoras, dado o cerceamento do poder de consumo dos prováveis leitores.
Ainda assim, as editoras sobrevivem e se faz premente que essas temáticas sejam
exaustivamente discutidas, em variados segmentos, para continuar garantindo
a viabilidade de todo um sistema de editoras independentes. Para Guido Indij,
editorde Interzona, mesmo em meio a essa conjuntura adversa, é preciso analisar
a efervescência das editoras independentes:
J Si pudiera hacer el ejercicio de abstraerme de la situación económica y so-
cial del país, o del momento del sector libro con librerías ahogadas, importa-
ción indiscriminada, incrementos siderales de logística y servicios públicos,
A cese de adquisiciones institucionales de libros, ausencia de políticas para
el libro y la lectura..., la zona independiente está en efervescencia. En un
L plano general son cientos de editoriales publicando un puñado de títulos
cada una. Y tanto ellas como aquellos que fundamos nuestros proyectos en
la generación de editoriales que surgieron a comienzos de los años 90, tene-
L mos problemas para encontrar nuestra sustentabilidad. Si lo analizáis des-
de el plano personal, o desde el emprendedorismo, es un momento crítico.
A Si lo ves a través del lente de la cultura, es un momento espléndido: miles
de títulos publicados por cientos de voces diferentes es proporcionalmente
más rico y diverso que miles de títulos publicados por dos o tres gerentes
de empresas multinacionales más preocupadas por el rendimiento de sus
inversores y por la continuidad de sus propios beneficios que por aportar a
la cultura de la sociedad en la que están inmersos.11

Apesar de longa, a citação mostra-se necessária por tocar em pontos
692 sensíveis à discussão aqui empreendida. Há contradições, mas ainda assim o
• saldo é mais positivo que negativo, a categoria das editoras independentes está em
transformação constante. Segundo Szpilbarg, “ha sumado progresivamente una
cantidad de espacios de circulación que permiten pensar en una complejización del
campo, pero también en los modos en que las editoriales llamadas independientes
se han ido profesionalizando, generando un circuito propio” (2015, p. 19). Nesse
2 contexto se insere a Editora Final Abierto, cuja trajetória tem se consolidado, através
de ações que fortalecem o projeto ideológico-cultural delimitado desde sua gênese.
E assim Final Abierto segue seu curso, sustentando o barco contra “o vento e a
0
maré” das forças adversas que se apresentem. Firme, apesar das tormentas. Vida
longa a essa navegação!
1
Referências

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8 tura do Jornal Clarín, edição de 05 de agosto de 2016. Disponível em: https://www.clarin.
com/cultura/editoriales-independientes-potencia-pequeno_0_S1T4Km-t.html. Acesso em

22 novembro 2017.
Alianza internacional de Editores independientes (2007). Actas de Congreso de Edición
Independiente. Disponível em: http://www.alliance–editeurs.org. Acesso em 10 dezembro
2017.

11  Depoimento concedido a Natália Paez, para a reportagem “Zona independiente. El otro lado de la
industria editorial”, publicado na edição de 6 de agosto de 2017 do Jornal La Nación. Disponível em:
https://www.lanacion.com.ar/2049748-zona-independiente-el-otro-lado-de-la-industria-editorial.
BOTTO, Malena. 1990-2000. La concentración y la polarización de la industria editorial.
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2000. FCE, Buenos Aires, 2006.
CROCE, Marcela. Boom, paredón y después. In: BONAVENA, Pablo et all í. Los ’90: fin de
ciclo: el retorno a la contradicción. Buenos Aires, Final Abierto, 2007.
LEÓN, Gonzalo. Mucho más que catálogos: las editoriales independientes y su papel en la
industria. Disponível em: https://www.infobae.com/cultura/2017/06/09/mas-que-ca-
J talogos-las-editoriales-independientes-y-su-papel-en-la-industria/ Acesso em 11 janeiro
2018.
PAEZ, Natália. Zona independiente. El otro lado de la industria editorial. Jornal La
A Nación, edição de 6 de agosto de 2017. Disponível em: https://www.lanacion.com.ar/
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L tura argentina. Experimentación, transbiografía, efectos y huellas de la vanguardia.
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Centro de Estudios de Teoría y Crítica Literaria – IdIHCS/CONICET, Universidad Nacional
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SZPILBARG, Daniela. Independencia el en espacio editorial argentino de los 2000:
genealogía de un espejismo conceptual. Estudios de Teoría Literaria Revista digital, Ano 4,

N. 7, Facultad de Humanidades / UNMDP, 2015.
693 ______; SAFERSTEIN, E. La independencia en el espacio editorial porteño. In: WORTMAN,
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un estudio de casos. Anais do Congresso PREALAS, AAS, Resistencia, Argentina, 2014.
VANOLI, Hernan. Sobre editoriales literarias y la reconfiguración de una cultura. Re-
vista NUSO, Buenos Aires, 2011, p. 129-151.
2 WINIK, M.; RECK, M. Un posible final para un certero inicio: acerca de los nuevos de-
safíos de las editoriales independientes. Anais do Primer Coloquio Argentino del Libro y la
Edición, La Plata, Argentina, 2012.
0

1

8

J

A

L MULHERES E REFORMA AGRÁRIA: DO LUTO À LUTA DESENHAM
SUA CORAGEM
L
Laíse Rabêlo Cabral (UNB)
A Tamiris Lima de Sá (UNB)
RESUMO: O texto traz a história de mulheres como Maria Joel da Costa, Elisabeth
Teixeira, Laísa Sampaio, entre outras mulheres que tiveram as vidas marcadas
por assassinatos em virtude da luta pela Reforma Agrária no Brasil mas que não
se conformaram com um desfecho trágico e hoje lutam pelos mesmo ideais que
• vitimaram seus entes queridos. Aquelas que não foram tombadas na luta, seguem
ameaçadas de morte. A principal fonte de coleta dessas informações são reportagens
694
jornalísticas e estudos acadêmicos livros que falam de suas histórias, bem como da
• experiência pessoal das autoras com o tema. O resultado, num viés literário, é antes
de tudo uma homenagem àquelas que por ocasião de tragédias foram derrubadas
mas que se fizeram erguidas pela força da mulher, pela paixão pela terra e pela
força do lutar. Mulheres que do luto à luta desenham sua coragem.
Palavras-chave: Mulheres. Terra. Reforma agrária. Luta pela terra.
2
O trabalho no campo traz para o imaginário citadino a ideia de brutalidade,
0 de força e suor, o que também nesse mesmo citadino imaginário, em nada se
assemelha ao que é definido como mulher. Nessa tola reflexão, a mulher do campo
se dedica apenas à casa e aos filhos ou a trabalhos “menores”, o que a realidade
1
nos mostra é a igualdade, tanto de trabalho, de “pegar no pesado” como a igualdade
àqueles e àquelas que vão além do que lhes é posto, homens e mulheres enfrentam
8 hoje no campo não apenas o trabalho duro da enxada, enfrentam as ameaças
de morte que o combate aos latifundiários traz. Alguns desses assassinatos,
desvelam uma companheira que já militava mas que diante de uma tragédia vê a
necessidade de transformar seu luto em luta, uma busca pela justiça à morte de
seus companheiros e também aos seus ideais.
Muitas são ditas “herdeiras” da luta mas até que medida isso é de todo
verdade? Herdar a luta ou alcançar o reconhecimento? O que difere o olhar? Seria
o gênero um elemento a ser considerado na luta pela reforma agrária? E quem
são essas mulheres? O que é ser mulher nesse contexto? Neste trabalho é trazida
a luta de algumas dessas pessoas, na tentativa de um olhar além da estrita visão
da conquista pela terra ou da proteção do direito à vida, adiantando que este são
elementos centrais para que estas histórias se tornem luz a ser seguida, mas a
intenção é ver desde o “ser mulher na luta”, mais que a “luta para a mulher”. Uma
fraterna homenagem àquelas que deram e dão a vida ao projeto de sociedade que
compartilhamos.
Metodologia
J A pesquisa apresentada é feita a partir de textos jornalísticos e estudos
acadêmicos que retratam da vida de 10 mulheres. A escolha por estas mulheres
A e não outras, se deu com base na repercussão que suas histórias de vida tiveram
em grandes jornais, da mídia tradicional ou não, em que o foco se deu na trajetória
L marcada pela tragédia causada pelo conflito em torno da luta pela Reforma Agrária. As
mulheres aqui destacadas foram “achadas” quando da pesquisa, a partir da história
L de Maria Joel e de Margarida Alves, estas conhecidas e reconhecidas popularmente
e internacionalmente, por mulheres que tivessem trajetória semelhante. A partir
disso, foram envidadas pesquisas na internet e outros meios, como documentários
A e reportagens televisivas, além dos meios escritos já citados e sistematizados nas
referências bibliográficas a fim de sintetizar suas histórias de luto e de luta.
Ainda no que tange à metodologia utilizada, é sabido que seria inglorioso
tentar colocar no papel, no intento de esgotar o tema, todo sofrimento, lutas e a força
destas mulheres, impossível escrever histórias tão profundas, ternas e instigantes.

Ao mesmo tempo seria desonroso para com esta mulheres definir um marco teórico
695 quando elas próprias se falam, dar voz e visibilidade a estas mulheres no campos
• das letras é reconhecê-las como senhoras de si, de suas vidas, é fazer jus ao seu
trabalho e à dedicação empenhada em tal. Por esta razão, este trabalho trata de
expor a história dessas mulheres que, em virtude da luta pela Reforma Agrária,
tiveram suas vidas marcadas por tragédias e ao invés de se recolherem no luto, o
transformaram em luta e com coragem enfrentam os mesmos algozes que ceifaram
2 a vida de seus companheiros ou como Margarida, foram ressignificadas após a
própria morte.
0 Em parceria com o Diário do Pará, o site de reportagem chamado ‘a
Pública’ criou um série de reportagem, contando a história de 10 mulheres que

estão sofrendo ameaças de morte por lutarem por uma vida digna, em defesa de
1 seus direitos e lutas pela preservação das florestas. São elas: Maria Joel, Nicinha,
Laísa, Maria Regina, Maria do Carmo, Cleude, Graciete, Nádia, Késia e Maria
8 Raimunda. A série foi intitulada “Marcadas para morrer” tendo como o repórter
responsável Ismael Machado. Esta série de reportagens é base para as histórias
sem escusas a outras reportagens e textos acadêmicos.
Uma singela homenagem que recolhe histórias destacando o protagonismo
dessas autoras da vida, sem se furtar ao entrelace desse arcabouço fático com a
experiência de autoras e autores acadêmicos.
Joelma – “Diziam para eu sair, ir embora. Eu disse que iria ficar e cobrar
o que aconteceu. Assumi os trabalhos do Dezinho e a luta por justiça”
Em Rondon do Pará, distante 538 quilômetros da capital paraense, vive
Dona Maria Joel, conhecida como Joelma, mulher de uma força incrível, como,
ousa-se dizer, são as mulheres que lutam pela terra. Imbricadas pela força que
rege a História do Brasil, colonial, patriarcal, exploradora, a ligação entre a terra e
mulheres como Joelma, essencial ao sustento e à (re)existência daquelas pessoas,
pode ser analisada pela condição primeira de Joelma, mulher. Joelma preside
o sindicato de trabalhadores rurais do município, “herdou” a função quando o
sindicalista José Dutra da Costa, o “Dezinho”, pai de seus filhos, companheiro de
J amor, de luta e de vida, foi assassinado em Rondon do Pará no dia 21 de novembro
de 2000 por fazendeiros conhecidos, mas até hoje impunes. Joelma herdou não só
o sindicato herdou as ameaças de morte. Hoje vive sob escolta 24h para exercer
A
seu direito primeiro, viver. Mulher, mãe de 4 filhos, evangélica, busca na fé, a
força para suportar a pressão e diante dos algozes, da sociedade, do Estado e da
L Comissão Interamericana de Direitos Humanos, honrar a luta que começou há
algumas décadas.
L Joelma assumiu o sindicato dois anos após a morte de seu marido, devido
a vários pedidos dos sindicalizados e posteriormente a Federação dos Trabalhadores
A e Trabalhadoras na Agricultura do Estado do Pará – FETAGRI/PA.
Em 21 de novembro do ano 2000, José Dutra da Costa, o Désinho, com
quem era casada, foi assassinado por um matador de aluguel com três tiros
no peito, dentro de sua casa. À época, Joelma, como é conhecida, saía ape-
nas para ir à igreja. Quando a dura realidade bateu à sua porta, ela engoliu
a tristeza a seco e comprou a briga: foi presidente do sindicato por dois man-

datos seguidos, depois convidada a fazer parte da diretoria da Fetagri-PA
696 (Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura do Estado do
Pará). (CLARK, 2018)

Os detalhes desse recorte de história, que já dura 18 anos, despertam
horror, não só pelo aspecto macabro que marca esse enredo, em que os mandantes
do assassinato seguem impunes e ainda há conivência do Estado, pois mesmo diante
da denúncia perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH e
2 um acordo de solução amistosa com o Estado em 2011, Décio José Barroso Nunes,
mandante do crime segue sem punição, com diversos júris sem julgamento efetivo.
0 (GARCIA, 2017, p.90). O executor do crime, detido por populares foi preso quando
do assassinato, mas morto quando saiu da prisão em condições não esclarecidas.

1 O que pesa nesta narrativa e aqui é dada a prioridade, é o “não dito” nas
histórias que as retratam, talvez pela insuficiência de léxico, talvez pela incapacidade

humana de transliterar o sentimento. Maria Joel é uma figura doce e forte que vive
8 numa sombra de passado, sequer viver o luto é possível, pois a morte que açoitou
seu companheiro de vida, hoje assombra sua própria existência.
A relação de Joelma com a terra transcende seu protagonismo frente
ao sindicato, se expande para uma dimensão do cuidado, de saber o nome de
todos os assentamentos que compõe os abrangidos pelo sindicato, as datas dos
acontecimentos e numa voz firme porém terna relatar o amor que sente por Dezinho,
figura tão viva na fala que emociona qualquer interlocutor, e a busca por Justiça,
nos tribunais e no Campo, que a levada desse amor carreou.
Num primeiro momento, o apagamento dessas histórias e a perda
dos caminhos da Justiça podem fazer crer que se trata de invisibilidade da luta
feminina na história brasileira, entretanto aqui se partilha de entendimento diverso.
Entende-se como errôneo falar em “invisibilidade” pois se assim fosse elas não
seriam marcadas para morrer, seu nomes não constariam em listas de pessoas a
serem assassinadas por “incomodar”.
Estas mulheres são vistas e lembradas, o que se quer, pelo lado
latifundiário e capitalista, é seu apagamento. Invisíveis elas não são e jamais serão.
J Elisabeth Teixeira – “[...] mataram ele porque ele lutava pela reforma
agrária, mas eu estou aqui até hoje continuando a luta pela terra no
A campo, para que o trabalhador do campo tenha direito a terra.”
Elizabeth Teixeira participou da Primeira Liga de Sapé, na qual o esposo,
L João Pedro Teixeira, era líder. Após a execução de João Pedro, Elizabeth ocupou
seu lugar, na Liga de Sapé e na luta.
L Sua história ficou mais conhecida com o filme “Cabra marcado para
morrer” do cineasta Eduardo Coutinho de 1984, lançado após 17 anos de iniciadas
A as filmagens. As gravações foram interrompidas, por conta da ditadura militar,
mudando o enredo inicial.

Elizabeth teve acesso aos estudos e tinha uma condição financeira e
social boa por conta de seu pai ser um pequeno proprietário de terra e comerciante.
Foi trabalhando numa mercearia de seu pai que Elizabeth conheceu João Pedro.
• Com a aproximação do jovem, o pai de Elizabeth o proibiu de frequentar o local e
não aceitava o namoro dos dois, por atribuir à João Pedro uma característica, de
697
forma pejorativa, por ser preto, pobre e sem estudo. Elizabeth, decidida, fugiu de
• casa, rompendo ligações com a família, para se casar com João Pedro. Essa escolha
lhe custou caro. Pelo fato de passarem por diversos lugares em busca de trabalho,
a família Teixeira teve acesso à diversas organizações sindicais do campo, e como
funcionava as ligas e, quando voltaram à Sapé, para cuidarem de uma terra do pai
de Elizabeth, João resolveu criar a Liga de Sapé, que chegou a se tornar a maior
2 do nordeste, com mais de 7 mil sócios. Recebendo apoio da igreja, de autoridades
partidárias e de juristas, mas aumentando a revolta dos proprietários da região,
0 inclusive de seu sogro, que revoltado, vendeu a terra onde moravam. João se
recusou a sair, entrando na justiça para conseguir os direitos por ter trabalhado na
1 terra. Por essa luta e por tudo que ele representava para os trabalhadores rurais,
direcionando-os à luta e a busca por uma sociedade mais justa, João Pedro foi

morto. Tendo como um dos mandantes, seu sogro. Deixando Elizabeth viúva, com
8 11 filhos e com sede de justiça.
A morte de João Pedro tornou-se um juramento para Elizabeth que junto
ao corpo do marido prometeu continuar sua luta a qualquer custo. Diante
da dor, da revolta e de muita solidariedade em prol das lutas camponesas,
Elizabeth encarou as lutas e alguns desafios, como por exemplo, o aceite ao
convite do Presidente Cubano Fidel Castro para que um de seus filhos fosse
estudar naquele país... Elizabeth enfrentou as lutas do campo à frente da
Liga de Sapé. Em 1962, foi eleita presidenta da Liga, quebrando os padrões
de uma época. (Berenice G. da Silva, p. 68)

Elizabeth herdou a luta, a liderança sindical e as ameaças, assim como


todos os trabalhadores que participavam da Liga. Como tentativa de escapar a essas
coações, Elizabeth foi instruída a se candidatar a deputada estadual em 1962. Na
ocasião do golpe de 1964, Elizabeth estava em um engenho chamado Galiléia,
onde aconteciam as filmagens para o filme, com a ideia inaugural de ser com os
participantes reais da história. Fugiu, com um único filho, Carlos, rejeitado pelo avô
por se parecer com João Pedro, os demais filhos foram divididos entre os parentes
maternos. Elizabeth permaneceu em São Rafael – RN com outra identificação, até
J o retorno das filmagens em 1987. Onde pode reencontrar os filhos.
Como mulher, líder, militante e resistente ao regime, ela recorda que um dos
piores momentos de sua vida foi a separação de seus filhos. Elizabeth sofreu
A as marcas do racismo articulado à rejeição de classe na qual pertencia seu
marido. Carregou muitas culpas. Mas as alegrias foram capazes de ajudá-la
L a superar o sofrimento, expressou-se assim na declaração quando feita ao
receber homenagens e o Diploma Mulher Cidadã Bertha Lutz, em março de
2006 (Berenice G. da Silva, p.69/70)
L
Elisabeth tem hoje 93 anos, recém-completados, no último dia 13 de
A fevereiro. Elisabeth, presente!

Laísa dos Santos Sampaio - “Sei que diante das ameaças e de tudo o mais
tenho que ter fé e coragem”
Em 1997 o projeto extrativista, que utiliza recursos florestais sem desmatar
e agredir a natureza foi implementado e João Cláudio Ribeiro da Silva e Maria
• do Espírito Santo da Silva foram contemplados pelo projeto. Logo João Cláudio
698 tornou-se o presidente da Associação dos Extrativistas e também a frente da luta
contra os fazendeiros que queria os impedir de alguma forma para continuar com a

extração de madeira ilegal. “Foi quando Maria disse que nasceu para o movimento
social”, lembra Laísa. Claramente isso incomodou e as ameaças à João Cláudio e
à Maria, que era a responsável pela organização das mulheres no assentamento,
foram constantes.

2 O casal, extrativistas do Projeto de Assentamento Praia Alta/ Piranheira,


José Cláudio e Maria foram mortos no dia 24 de maio de 2011, onde dez anos de
ameaças contra suas vidas de foram cumpridas, na estrada que liga o assentamento
0 ao Centro de Nova Ipixuna. Dois anos após o assassinato do casal, o crime foi a
julgamento, condenando apenas os autores dos disparos, porém, o mandante do
1 crime, José Rodrigues Moreira, foi absolvido pelo Júri. Laísa dos Santos Sampaio
assumiu de vez a luta pela qual a irmã e o cunhado estiveram a frente, juntamente
8 com o marido, lutando por justiça. A impunidade ao mandante do crime lhe causou
revolta, aumentando uma ferida longe de ser cicatrizada.
Eu defino o final do julgamento como o pior dia da minha vida. O julgamento
foi pior porque, no dia do assassinato ninguém sabia de nada. Só sentimos a
dor. Quando chega a justiça e o resultado é o que se viu, é muito mais forte
que o dia do assassinato. Estão selando três caixões. (Laísa – Marcadas para
morrer, a Pública, Ismael Machado)

Laísa passa seus dias, com seu marido e 12 filhos, sendo 4 biológicos e
8 adotivos, na periferia de Marabá, sudeste do Pará. Ela e o esposo, Zé Rondon,
vêm sendo ameaçados de morte desde o assassinado da irmã e cunhado. Laísa é
professora no assentamento, convidada por Maria em 2001 a lecionar na escola
multidisciplinar, que teve o nome alterado de Costa e Silva para Chico Mendes
por ideia de Maria. Hoje, Laísa assumiu a linha de frente no assentamento, que
pertencera a irmã, organizando as mulheres extrativistas. Segue resistente a luta,
mesmo com as ameaças de morte. Recusou-se a ter proteção policial em casa,
apenas usufrui dessa proteção quando precisa se deslocar a lugares distantes.
A história de Laísa sempre foi de luta e medo. Desde pequena quando seu
J pai migrou do Maranhão em busca de terras prometidas em pelo governo militar.
Eram épocas de guerrilha, confronto militar e as militâncias contra a ditadura,
A toque de recolher, prisões e medo. Passou a infância nesse medo de sair de casa e
dos terroristas que seu pai contava, referindo-se aos guerrilheiros. Com o ganho da
L terra pelo projeto de assentamento extrativista, Laísa viu como a história da irmã
foi desencadeando em seu assassinato. Como se não bastasse a perda da irmã e do

cunhado, a impunidade do mandante do crime, as recorrentes ameaças de morte,
L por continuar a luta, em 2011 recebeu um diagnóstico de um aneurisma no lado
esquerdo do cérebro, havendo tratamento apenas para amenizar as sequelas mas
A sem que chegue a 40% da cura da doença em si. Conta Laísa: “Em 2012, passei o
ano correndo da morte. Em 2013 estou correndo em busca de vida. Sei que diante
das ameaças e tudo mais tenho que ter fé e coragem. Nesse momento só tenho
coragem.” (MACHADO, 2013).
Laísa é uma mulher forte, que pela sua história encadeou numa mulher
• que não demonstra facilmente seus sentimentos, mas que tem um coração enorme.
699 Cuidando dos assentados, crianças, animais, e é claro, a natureza. Lutando e dando
a vida pela causa na qual acredita.

Margarida Alves - “é melhor morrer na luta do que morrer de fome”
Margarida Alves inseriu-se no Sindicato Rural de Alagoa Grande em
1973, onde foi tesoureira, presidente e uma das fundadoras do CENTRU – Centro
de Educação e Cultura do Trabalhador Rural. Sempre muito solícita, se tornou
2 símbolo de resistência no meio rural, se revelando uma defensora dos direitos
humanos dos trabalhadores rurais, lutando pelos direitos negados à eles, como os
0 direitos trabalhistas. Essa luta culminou em mais de 600 ações trabalhistas contra
usineiros e donos de engenhos, na região do Paraíba.

1 Margarida sofreu muitas ameaças, principalmente pelos latifundiários que
perderam para muitos dos processos trabalhistas, orientados por ela. Assassinada

em Agosto de 1983 em frente de sua casa, de seu esposo e de seu filho. Sua história
8 é retradada no livro de Sebastião Barbosa: “A mão armada do latifúndio”.
Sua luta, o modo como morreu e a causa, faz seu nome ser conhecido ainda
hoje, representando a luta dos movimentos sociais do campo e, principalmente,
das mulheres. Desde o ano 2000 se organiza a Marcha das Margaridas, pela luta
de direitos das mulheres do campo, em clara homenagem à Margarida e à luta que
ela desempenhava. A última marcha, em 2015, foi estimada em 70 mil pessoas
ocupando o gramado do Congresso Nacional. (BRASIL, 2015)
Ousando filosofar sobre a vida, as mulheres e (porque não?) a morte.
Heidegger foi um dos filósofos contemporâneos que viu a necessidade de
retomar a temas que tangem a vida humana, mas que foram ignoradas pela filosofia
ocidental após as revoluções técnico-científicas, onde se acredita que só devem ser
objetos de pesquisas temas possíveis de serem provados pela lógica. Heidegger
retoma o estudo do ser e introduz em sua obra ser e tempo o termo Dasein (ser-aí),
ou seja, o ser que entende-se como ser que existe. Para a existência do Dasein é
necessário algumas particularidades, são elas: ser-no-mundo, ser-com-os-outros,
ser-para-a-morte.
J Tais particularidades estão entrelaçadas, pois o ser-no-mundo é onde e
para onde o ser se projeta e faz planos, onde há possibilidade de se determinar e
A de manifestar seu ser, onde ele idealiza, cria, e transforma. O ser-para-os-outros é
quando ele mantêm relação com o outros entes e consigo próprio, mesmo que não
L queira, o fato de ser-no-mundo implica que, mesmo que indiretamente, ele tenha
essa relação com os outros, pois uma atitude individual afeta o coletivo pelo fato de

estarem no mesmo mundo.
L “O Dasein partilha com os outros o espaço que circunda. Em sua ocupação ele
se encontra a si mesmo e aos outros. De fato, nesta possibilidade de ser-com-
A -os-outros, o estar-só do Dasein é ser-com no mundo.”(Ser e Tempo, p. 171)

Ainda na visão heideggeriana da estrutura existencial do Dasein, se


encontra a angustia e o cuidado. Para Heidegger a angustia é o que torna uma
existência autêntica ou não, pois é através dela que o ser se torna livre para ser
ele próprio. Logo, um ser livre e autêntico é um ser angustiado. Já o cuidado
• aparece como unidade do passado, presente e futuro. Passado como algo que já foi,
700 mas que ainda vigora no presente, e nesse presente apresenta-se a versão do ser
• que decidirá um futuro, mas que também a expectativa desse futuro interfere no
presente. Logo, o Dasein engloba os três ao mesmo tempo. Daí aparece o ser-para-
a-morte, o ser que caminha para a morte, como a única certeza da vida e do futuro
e que por isso vive angustiado. Quando assumimos a morte, ou melhor, quando a
encaramos tal como ela é: um fato natural da vida, Paramos de tratá-la como algo
impessoal, mas sem ter medo e sim ter a angústia diante de algo desconhecido, é o
2
que torna os seres autênticos.

Tendo como base essa pequena introdução sobre a ideia do Dasein de
0
Heidegger, fazendo uma relação a essas mulheres protagonistas desse trabalho,
podemos perceber que significam o ser-aí autêntico, totalmente palpável à nossa
1 realidade. Pois tais mulheres, diante da morte cercando suas vidas, de forma a
não fazerem esquecer o caminho pelo qual percorre todos seres, elas lutam pela
8 mundo e pelos outros. Vivem com plenitude, e por isso angustiadas, pois o passado,
presente e futuro não mais são distintos, mas um único movimento. Essas mulheres
descobriram um novo sentido para suas vidas após a morte de seus companheiros.
Vivem com plenitude e oferecem isso às pessoas que as cercam.

Conclusão
Foi trazido partes pequenas das histórias dessas mulheres como uma
tentativa em refletir sobre o que enfrentam, submetidas às mais diversas formas de
sofrimento e humilhações por lutarem por seus direitos e os de sua comunidade e
assentamentos, retirar do apagamento a que somos submetidas.
Da escuta destes testemunhos, percebemos que se antes o imaginário era
permeado pela ideia de que elas eram viúvas de lideranças, hoje elas não apenas
“herdam” a luta, elas protagonizam em si a história de seu povo, carregando a sede
de Justiça pelas agruras do campo e pela passagem dos que se foram. O filósofo
Heidegger prelaciona que a condição decisiva de toda verdadeira liberdade humana
é o “ser para a morte”, de outro modo quer dizer que só se tem liberdade para viver
quando a liberdade também é plena para morrer. E estas mulheres parecem já
J terem aceitado isso, tal qual Margarida disse, que “preferia morrer na luta a morrer
de fome”, a vida sem luta já não faz sentido. Isso é de um força que nem Heidegger,
nem Mbembe poderiam explicar, só quem vive e quem viveu detém esse domínio
A
sobre o luto e sobre o lutar.

L Cada história já é digna do aprendizado de uma vida, isto é, carregam
sentimento e reflexão que movimentam o pensamento sem necessidade de auxílios

que forjem pensamentos.São histórias marcadas pela morte mas a morte, por mais
L difícil que seja aceitar isso em nossa sociedade ocidental e cristã, não é centralidade.
Estas mulheres é que são centrais. Senhoras de sua história e para além delas,
A como Margarida desde 1983 ousa, reunindo milhares em seu nome décadas após
seus algozs acreditarem que a haviam tombado.
Há tantas outras Marias mundo a fora (e Marieles, a quem também
fica nossa homenagem), que não lutam apenas pelo seu, mas que entenderam de
alguma forma, que TODOS e TODAS só poderão viver em comunhão, quando os
• direitos e os deveres forem iguais e cumpridos. Por todas as que estão vivas, mas
701 sofrendo ameaças e as que já foram por lutarem, resistimos!
• Bibliografia
BRASIL. Disponível em http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/08/a-mar-
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Graves Violações de Direitos Humanos. Tese de Doutorado, Programa Pós-Graduação em
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HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 13. ed. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback.
Petrópolis: Vozes, 2005.
J

A

L MÁS ALLÁ DE LA CULPA O LA FORMULACIÓN DE UNA JUSTICIA
ALTERNATIVA EN EL DESIERTO, DE CARLOS FRANZ
L
Lenin Lozano Guzmán (UNIVERSITY OF WISCONSIN MADISON)
A RESUMEN: El desierto problematiza la lectura del pasado en torno a las memorias
de la postdictadura chilena. Buscando ir más allá de una visión maniquea, la doble
instancia discursiva construye perspectivas diversas sobre la época dictatorial: por
un lado, aparece un relato con narrador omnisciente; por el otro, una extensa carta
de carácter testimonial. El pacto ficcional de la novela permite reconocer que detrás
• del narratario de la misiva (Claudia), también estamos presentes los lectores. Por
eso, este trabajo sostiene que a través de una interpelación al lector se hilvanan
702
dos épocas distantes, pero condicionadas una por la otra: la dictadura de Pinochet
• y la “Transición a la democracia”. A su vez, la novela traza una justicia alternativa
(tiempo mesiánico, según Walter Benjamin) que logra romper la lógica dictatorial y
abre paso a un nuevo tipo de justicia, así como al breve e instantáneo triunfo del
discurso de la memoria.
Palabras clave: Postdictadura. Memoria. Traición. Justicia. Tiempo mesiánico.
2
El desierto problematiza la lectura del pasado en torno a las memorias de
0 la postdictadura chilena. Buscando ir más allá de una visión maniquea, la doble
instancia discursiva construye perspectivas diversas sobre la época dictatorial. Por
un lado, aparece un relato con narrador omnisciente que nos cuenta la historia de
1
la jueza Laura al regresar a su país, y a la ciudad donde ocurrieron una serie de
hechos traumáticos hace veinte años (Pampa Hundida). Antes de volver, Laura ha
8 pasado varios años en Alemania estudiando filosofía y escribiendo un libro llamado
Moira, así como una carta para su hija donde le explica las razones por las que
no pudo ejercer el rol de jueza en concordancia con los lineamientos del sistema
judicial durante el periodo dictatorial. Este discurso testimonial aparece de modo
intercalado a lo largo de la narración en tercera persona. Sin embargo, la entrega
de la misiva nunca llega a realizarse, y en su reemplazo, Laura se traslada hasta
el lugar de los crímenes, justo en la época de la gran fiesta religiosa de Pampa
Hundida. Solo hacia el final de la novela, aparece la aclaración metatextual de que
la novela es una obra creada por Mario, quien ha recogido los pedazos de la carta
destruida y a partir de ello ha reconstruido la historia de Laura. Volveremos más
adelante a la relectura que produce la constatación de que la novela es “escrita”
por Mario.
La novela empieza con la referencia al retorno al lugar natal, y de manera
retroactiva, los lectores podremos recuperar la información de una memoria
fragmentada temporal y espacialmente. Se trata del regreso a los orígenes, que
será exacerbado a través del reencuentro con personajes decisivos en la vida de
Laura, por lo que la narración alterna constantemente las referencias temporales
J (uso de analepsis y prolepsis), y del ambiente carnavalesco (liberador) que supone
la fiesta de la Virgen. Sin embargo, lo que resulta obvio a nivel temporal, a partir de
A los rezagos de la memoria y su (im)posibilidad de (re)construcción, se complejiza en
la red espacial que configura el desplazamiento de Laura desde Alemania a Chile,
L y viceversa
No solo venía del cielo septentrional a esteotro, su reverso, donde el cuerno
de la luna creciente, cuando apareciera, se mostraría al revés que allá. Sino
L que había cambiadola aparente armonía de su cátedra de filosofía por el
torbellino polifónico de la fiesta donde había aceptado juzgar lo incompren-
sible.De la filosofía a la fiesta (FRANZ, 2005, p. 15)
A
Esta visión dicotómica en voz del narrador traza una visión jerárquica
entre la zona norte y sur, consecuente con una visión eurocéntrica y colonialista.
No deja de llamar la atención tal asociación, porque si bien Laura vincula al pueblo
de Chile con el trauma en su máxima expresión, ella ha vivido por muchos años
• en Alemania, espacio simbólico de una de las peores masacres de la humanidad
703 (el Holocausto). No obstante, nunca se observa alguna mención sobre la oposición
Chile/Alemania. Por el contrario, se refuerza cierta visión estereotípica de América

Latina, asociada a lo polifónico, la fiesta y lo incomprensible1. Al mismo tiempo, lo
que parece un ambiente festivo en realidad esconde un sentido trágico y de horror.
El carácter omnisciente del narrador y su punto de vista muy cercano o
similar al de Laura parece establecer una idéntica perspectiva en torno a lo que
le sucede a la protagonista. Por ello, el juicio de Laura sobre el pueblo chileno
2
determinado por referencias colonialistas, coincide con el régimen patriarcal que
prima en esta sociedad en sus diferentes niveles. Por ejemplo, pese a que ella
0 alcanza un importante cargo como jueza, esto se lo debe a su antiguo profesor de
universidad, quien intercede por ella. El dominio masculino alcanzará su punto
1 más alto en la interferencia de los militares: los “diez justos” y sobre todo, el
personaje de Cáceres. Lo curioso es que Laura viaja de regreso a Pampa Hundida
8 consciente del dominio masculino, e incluso asumiéndose como parte de él dentro
de una lógica colonialista que afirma las jerarquías territoriales y geográfica. Pero
en realidad, todo ello forma parte de una realidad configurada por el poder del
recuerdo y la memoria como elementos pasivos que paulatinamente tendrán un rol
transformador. La novela, entonces, nos conduce hacia este proceso transgresor
y liberador que tiene como metáfora el desplazamiento a modo de penitencia que
realiza Laura desde el espacio más lejano (Berlín) hasta el doble terreno desértico:

1  Definitivamente, en el ámbito literario esto se traduce en la imagen que propagó el Boom a través
del “realismo mágico”.
Pampa Hundida y su propia memoria. Como veremos luego, ambas instancias se
convertirán en espacios fructíferos.
Es notorio el largo proceso de redescubrimiento que debe emprender
Laura, y aunque solo los lectores podemos percibirlo muchas páginas después,
hay ciertos indicios en los primeros encuentros que tiene la protagonista en Pampa
Hundida. El más claro sucede cuando visita la casa de Cáceres en busca de
respuestas sobre el pasado. Ella tiene la oportunidad para asesinarlo, ya que este
J le entrega su propia pistola, pero ella rechaza tal pedido y se confirma con ello el
poder de Cáceres sobre la jueza, aunque el paso de los años haya convertido esa
A figura imponente de militar en un ser enclenque.
En el caso de la carta escrita por Laura para Claudia, el pacto ficcional
L de la novela permite reconocer que detrás del narratario de la misiva (Claudia),
también estamos presentes los lectores. Ese “tú” interpela al lector para que realice
la necesaria labor de hilvanar dos épocas distantes, pero condicionadas una por
L
la otra: el régimen dictatorial en el que la protagonista sufre torturas y el contexto
de “Transición a la democracia”, en el cual se viven las secuelas sicosociales de
A años anteriores. A su vez, en la voz personal de Laura hay una constante reflexión
e intentos de racionalización ante el trauma vivido, que se configura en un rehacer
constante ante la dificultad de poder transformar esas experiencias en discurso.
De esta forma, el testimonio de Laura construye de por sí una interpretación del
pasado que el lector debe observar con cuidado. Siguiendo a Sarlo, en su crítica al
• estilo testimonial que llegó a saturar el discurso de la memoria:
704 No se trata de discutir los derechos de la expresión de la subjetividad [que
se adjudican los testimonios]. Lo que quiero decir es más sencillo: la subje-
• tividad es histórica y si se cree posible volver a captarla en una narración,
es su diferencialidad la que vale. Una utopía revolucionaria cargada de ideas
recibe un trato injusto si se la presenta solo o fundamentalmente como dra-
ma posmoderno de los afectos (FRANZ, 2005, p. 91)

Si bien la novela no es propiamente un testimonio, sí utiliza este discurso


2 a través de la carta escrita por Laura. Lo interesante de esta estrategia narrativa
es que, en efecto, como señala Sarlo, Laura asume su subjetividad dentro del
0 terreno de la Historia reinterpretando todo lo que le ha ocurrido, estableciendo
ciertas hipótesis que resultan válidas para ciertos hechos y que al mismo tiempo
1 contradicen otros, como es lógico en la construcción de una memoria que está
en constante transformación. Por ejemplo, en su carta Laura menciona un hecho
8 crucial sobre las acciones nefastas del Mayor Cáceres. Alude metafóricamente a
un “silencio” que transmite Cáceres más allá de las referencias a la muerte y la
complicidad del pueblo ante las atrocidades del régimen dictatorial, incluso cuando
hasta hace poco habían apoyado –como sugiere la novela- al régimen de Allende:
Ese silencio de la ciudad santuario ante la muerte no sólo sonaba a aplauso
[…], sino también a algo más que empecé a sospechar, que empecé a intuir
cuando admití mirar por las fisuras de esa noche. Ese silencio también so-
naba al receso de una oración, a la expectativa de un sacrificio, a la muda
señal de respeto ante un ritual antiguo que estuvo en las mismas fundacio-
nes de la ciudad santuario y que jamás se había ido del todo, sino que sólo
se había «retirado»: a las sierras de la cordillera, a las cimas barridas por
el viento helado en las cuales dormían su sueño de siglos otros dioses, los
depárpados momificados bajo los altares abandonados. Los dioses de antes,
devueltos al seno de la diosa originaria (Ishtar, Cibeles, la Pachamama) que
los había engendrado y devorado a todos. En ese silencio de siglos, una
deidad antigua, que se había disfrazado de diablo para adorar a la imagen
de una diosa nueva, bailaba su danza estacionaria, semejando que llegaba
cuando nunca se había ido. La deidad enmascarada tributaba su violencia a
la Patrona; y la Patrona la aceptaba como suya. […]Ese silencio de mi país,
J que sonaba a aplauso, no era la bienvenida a un poder nuevo, sino el saludo
a una vieja deidad que volvía. (FRANZ, 2005, p. 78-79).

A Se trata de una revelación para Laura, de un encuentro con lo real


(Lacan): “mirar por las fisuras de esa noche”, que por ende, escapa a la estructura
L fantasmática que ha instaurado el régimen dictatorial. En breve, Laura percibe que
la violencia es parte de un régimen natural que se remite a los albores de la civilización
o a épocas prehispánicas, en tiempos y mundos remotos, antes de la presencia de
L
los seres humanos. Evidentemente, lo que ella expresa es una interpretación de
“lo real” (el origen de la violencia que resulta inefable) que alude a las divinidades
A antiguas que establecen un orden en el mundo bajo la oposición construcción /
destrucción (sacrificios). Aquí se realiza, además, una lectura transversal que hace
converger referencias culturales diversas (orientales, occidentales y americanas)
para sugerir que la violencia traspasa el régimen moderno o profano y se sitúa
desde los tiempos sagrados. También se incluye la experiencia sincrética (fiesta de
• la Diablada) propiciada en el encuentro entre la cultura prehispánica y la hispánica,
705 que quizá sea el ejemplo más claro de la procreación de la violencia o el colonialismo.
Laura sugiere que todos somos hijos de la violencia, ya que esta es “una vieja deidad

que volvía” y que el régimen dictatorial es solo una variante de una violencia cuya
índole sería transhistórica. Sin duda, esto resulta bastante válido si consideramos
la continuidad de un poder patriarcal simbolizado en personajes bélicos o militares
que parecen una reactualización de los conquistadores o los soldados que llegaron
a tierras americanas sometiendo a los indígenas a través de distintas modalidades
2 de violencia. Pero la riqueza textual de la cita en cuestión también sugiere, en
consonancia con el proyecto que emprende Laura en su libro Moira, la idea de
0 que el destino condena al ser humano a la violencia. De esta manera, se puede
entender el porqué de la seducción que siente Laura ante su torturador, el mayor
1 Cáceres, que en la obra también se explica a través del síndrome de Estocolmo.
A partir de lo anterior, y desde los principios de la concepción griega de
8 la fatalidad del destino, Laura se vuelve un héroe trágico que se convierte en chivo
expiatorio para la salvación de Pampa Hundida. El poder del mito y los rituales
sagrados establecen la guía de análisis que sostiene Pierre Lopez en su importante
estudio sobre esta novela de Franz. Sobre el pasaje citado, el crítico refiere que “el
personaje [Laura] consigue expresar lo inteligible. Describelos juegos perversos de
las torturas que sufrió durante la violación” (2011, p. 284). De forma implícita, en
efecto, Laura alude a estas vejaciones, y busca darle una interpretación, pero a
su vez, esta pretensión inevitablemente no puede volver la experiencia totalmente
inteligible a través del lenguaje. En realidad, el testimonio de Laura no debe
entenderse como la interpretación general que sostiene la novela, porque de lo
contrario, podemos asumir -como Lopez- que
Envuelta en su dimensión sacrificial, ella se “abre” hacia el Cosmos y sus
misterios, lo que la integra en una percepciónprehispana en la relación del
ser y del universo. Es entonces, al experimentar situaciones de sufrimientos
extremos, objeto de la barbarie humana cuando reanudará con una dimen-
sión místico-cósmica (2011, p. 284)

J Según esta lectura, solo reconociéndose como un objeto de sacrificio,


Laura puede reinsertarse en la atmósfera mítica. Tal lectura, basada en el juicio de
A Laura, haría suponer que en efecto, no hay escape a la violencia; lo más peligroso
es que podría equiparar cualquier tipo de violencia. Ante ello, no consideramos

oportuno afirmar que la violencia durante un régimen prehispánico –sobre todo-
L
establece una dinámica que se puede rastrear en los abusos de los militares
durante los setenta. En realidad, nuestra lectura se basa en la idea de que Laura
L es una narradora sospechosa, justamente por el uso de la primera persona. A
esto podríamos añadirle el dato de que no es realmente un testimonio “directo”
A sino parte de una estrategia narrativa hecha por el autor de la obra, Mario. De
uno u otro modo, se generan suspicacias sobre los juicios de Laura, sobre todo en
la interpretación de la naturaleza de la violencia, ya que ella ha sido una víctima
altamente afectada por el trauma.
Cuando el personaje menciona ese silencio y aplauso como clara señal
• de complicidad, en realidad sugiere que la sociedad pretende revestir el presente
706 violento (durante la dictadura, pero también en la Transición, como deja en claro la
novela) con un matiz sagrado, como si la violencia tuviera una raíz sobrehumana.

Definitivamente, de lo que se trata en el fondo es de una máscara, una construcción
simbólica que les permite a las personas ignorar las crueldades que acontecen,
porque creen que su historia está basada desde la creación del pueblo en un
régimen de carácter violento. Anularla o cuestionarla sería rechazarse a sí mismos;
de ahí que opten por el cinismo o la hipocresía. Pero como referimos previamente,
2 detrás de todo orden simbólico, se esconde “lo real”, y solo un acto radical puede
romper la imagen de complicidad instaurada por la población y registrada en la
0 carta de Laura. En este caso, “lo real” supone, no la nulidad de las máscaras2, sino
el uso de las mismas para aprovechar la ambigüedad que ofrecen y hacer emerger
1 en ellas la ruptura con la lógica dictatorial. Con esto se demuestra que la violencia
es una acción ejercida por el ser humano y que solo puede ser asumida o rechaza
por él mismo.
8
La agencia femenina en la figura de la “jueza”
Una perspectiva de género plantea claramente el conjunto de valores
femeninos frente a los masculinos. Aunque en principio, resalta la capacidad
de agencia de Laura y/o Claudia, frente a la pasividad o patetismo de muchos
personajes masculinos, cabe reflexionar sobre el rol del sistema judicial para
empoderar a la mujer, y al mismo tiempo para someterla a un régimen disciplinario
2  Pese a esta ambigüedad, la agencia de Laura también se evidencia en su decisión de no abortar,
como una demostración plena de que luego de todas las vejaciones sufridas, su cuerpo aún le
pertenece.
en pleno contexto dictatorial. La novela de Franz nos sugiere que en un gobierno
violento o con predominio del mal, la justicia solo logra intervenir a través de un
sacrificio (cuerpo femenino), con todo el contenido sagrado que esto implica. En
efecto, esto se remonta a la época prehispánica a través de la figura de la Virgen o
la Patroncita, que pareciera (re)encarnarse en la propia jueza Laura, quien
acudiría a sus llamadas arbitrarias y puntuales [de Cáceres], vendría a hon-
rar el pacto que me proponía. Y si lo hacía bien, a cambio recibiría lo mismo
J que me estaba relegado esa primera noche, la vida del prisionero que yo
había venido a amparar. […] De modo que yo no sólo le debiera mi vida (que
me perdonaba) y el canto del acero suspendido por su magnanimidad, sino
A la ilusión de hacer justicia que me había traído esa primera noche (FRANZ,
2005, p. 291)
L Unas páginas después, la continuación de la carta confirma la analogía
entre la Patrona (la Virgen) y Laura a partir del sacrificio ejecutado por esta para
L salvar la vida de los mortales (los prisioneros). Sin embargo, “la vergüenza y la
culpa […] se manifiestan en una complicidad que resulta de ese ‘orgasmo negro’,
A ‘un orgasmo sin corazón’ […], un pacto sadomasoquista, torturador, flagelador, de
Eros y Tánatos. La carta testimonio es la descripción más brutal […]” (TORO, 2011,
p. 87).
La asociación entre Laura y la Virgen sugiere que los mitos primigenios
encuentran una continuidad en la época moderna a través de relaciones de
• violencia y/o colonialismo. No obstante, como hemos señalado previamente, la
novela desarrolla una visión ética que está por encima de estas correlaciones con
707
ecos posmodernos de conciliación entre lo premoderno y lo moderno. En otras
• palabras, debemos desligar el pasaje en cuestión del sentido religioso que la propia
Laura le otorga, porque el recuerdo del trauma distorsiona la propia visión de la
jueza, al dejarse contaminar por la irrupción textual de las palabras de Cáceres,
como signo de la lógica patriarcal que interviene para subyugar a la protagonista.
Esto se corrobora en el hecho de nombrarla como “patroncita”, pues finalmente el
2 nombrar implica una reformulación de su identidad, que en este caso configura
una red simbólica particular, sustentada por el Otro (el poder falogocéntrico de la
0 dictadura). Por ello, no podemos asumir que los mitos fundacionales de la realidad
prehispánica se equiparen a la realidad que instaura la dictadura a partir de sus
propios mitos, que desde luego astutamente buscan establecer similitudes con
1
contextos distintos.

A su vez, la agencia femenina en Laura resulta bastante ambigua, no
8
solo por lo mencionado anteriormente, sino por el propio rol que asume como
jueza, porque ella es plenamente consciente de que se mantuvo en cierta posición
de poder, al ser la salvadora de muchos prisioneros, pese a que todo fue una farsa
más, producto de los engaños de Cáceres. Por esta razón, cuando se reencuentra
con la prostituta Rosa reconoce contundentemente que incluso una mujer abyecta
como esta puede estar más cerca de lo justo o lo correcto que la propia jueza: “Y
de pronto Laura supo la paradoja que este reencuentro entre la puta y la jueza
actualizaba: de entre ellas dos, aquella en la que se pudo confiar fue la puta; y
en cambio, la jueza había fallado, o lo que era lo mismo, había sido medida, y su
medida había sido la traición” (FRANZ, 2005, p. 301). En otras palabras, Laura
asume la visión que sostiene Agamben sobre el plano judicial:
Como los juristas saben perfectamente, el derecho no tiende en última ins-
tancia al establecimiento de la justicia. Tampoco al de la verdad. Tiende
exclusivamente a la celebración del juicio, con independencia de la verdad
o de la justicia […] Pero si la esencia de la ley -de toda ley- es el proceso, si
todo el derecho (y la moral que queda contaminada por él) es sólo derecho
(y moral) procesal, ejecución y transgresión, inocencia y culpabilidad, obe-
J diencia y desobediencia se confunden y pierden importancia (AGAMBEN,
2000, p. 16-17)
A En efecto, la discusión apunta hacia la ética y la moral, mas no al terreno
de lo jurídico, que como demuestra la novela, puede ser manipulado fácilmente.
L En consecuencia, la jueza puede convertirse en el emblema de la traición, aunque
solamente por medio de esta parece posible la liberación de los prisioneros. Esta es
L otra confirmación de que las nociones judiciales resultan fútiles ante la violencia
imperante; y ante ello, solo puede surgir una acción ética, como la que realiza
Laura, pese a que esto suponga exponer su propio cuerpo y destruir su libertad
A
femenina.

La confirmación de la inutilidad de la ley se corrobora a través de las
reacciones de los demás personajes que son abogados, como el Ministro de Justicia
(antiguo profesor y mentor de Laura) y el joven Tomás Martínez Roth. No deja de
• llamar la atención que Laura se ubique en una posición intermedia frente a quien
representa la Ley en la época postdictatorial y quien representa la demanda de
708
justicia en una nueva generación. Sin embargo, el juego de máscaras es mucho más
• claro en el terreno judicial. El ímpetu del joven Martínez acaba siendo absorbido
por la astucia e inteligencia de la figura de autoridad: el ministro. A nivel simbólico,
la justicia en la Transición genera vínculos con los jóvenes para resituarlos dentro
del terreno de la impunidad. Además, no es un hecho menor que ambos personajes
sean hombres, mientras que Laura desde su rol de víctima femenina es capaz de
2 ver más allá de las estratagemas legales. Esto se traduce de manera formidable en
la discusión sobre si el régimen de Pinochet corresponde a una dictadura totalitaria
0 y si se puede afirmar que hubo culpa colectiva o no. Al respecto, Martínez le cuenta
a Laura sobre su decisiva conversación con el ministro:

un pueblo enfrentado a una fuerza irresistible está eximido, por obra de esa
1 misma fuerza, de resistirla. Y por eso, y aquí el ministro había dado una de
esas volteretas lógicas de malabarista, razonando a contrario sensu, razo-
8 nando por el contrario, pensando por el revés, la culpa total era inaceptable,
porque implicaría decir que no tuvimos una dictadura totalitaria (FRANZ,
2005, p. 307)

El ámbito de la ley y de la escritura (la querella judicial emprendida por


Martínez) establece una serie de normas y juegos retóricos que buscan manipular
la información y las memorias para no dejar aparecer la verdad que subyace en
Pampa Hundida: la culpa colectiva, sea por miedo, silencio, o incluso por una larga
tradición religiosa centrada en la violencia. Lo cierto es que hay una responsabilidad
compartida que al no ser reconocida pone en peligro la búsqueda de justicia (no
legal o judicial) en el contexto postdictatorial.
El rol de la fiesta patronal “Diablada”: “carnavalización” o el disfraz
cómico de la tragedia
La inclusión de una festividad popular cristiana en una zona ciertamente
rural o tradicional posee una imagen ambigua. El rol típicamente liberador de una
fiesta folklórica es puesto en cuestionamiento en un contexto dictatorial, donde
incluso la imagen venerada pasa a ser dominada por el régimen opresor. Además,
los propios personajes reflexionan sobre la capacidad del discurso de la violencia
J para camuflarse en hechos paródicos o risibles. Esto lleva a la ambivalencia del
ambiente festivo: la subversión –efímera- de las figuras de poder (los personajes
A masculinos asociados al legado de la dictadura) o la confirmación de la omnipotencia
de la dictadura, con su trasfondo cínico y obsceno.
L Sobre el factor de la ambigüedad, la novela desarrolla un variado juego
de máscaras que marcan una serie de encubrimientos o disfraz tras disfraz, lo cual
L dificulta la revelación de la verdad, o vuelve borrosa la búsqueda de claridad sobre
ese pasado atormentador, como si la memoria también necesitase de máscaras y

engaños para poder mantener la subsistencia del sujeto que recuerda. Eso es lo
A que ha pasado concretamente con Laura. Por ello, se siente bastante preocupada
por las acciones radicales que pretende llevar a cabo su hija, que representa la
inocencia y la heroicidad correspondientes a un mundo de grandes relatos, pero
que en la realidad de la impunidad del contexto de la Transición no tiene cabida,
como tampoco la tuvo la heroicidad de los militantes veinte años atrás, porque para
• su desgracia la sociedad no los recuerda. Por el contrario, pese a los cambios de
709 gobierno, lo que se mantiene es la festividad de la Diablada, como si el ambiente
carnavalesco (extra-temporal) pudiese no solo liberarse del régimen cotidiano sino

también estar ajeno a las cuestiones políticas, lo que desde luego significa que
se puede manipular a favor de las fuerzas conservadoras a partir de su carácter
aparentemente apolítico. No obstante, “el carnaval es el tiempo sin leyes, mientras
en el régimen totalitario abundan leyes […] Este exceso de las leyes causa su propia
aniquilación, su anulación, lo que convierte este período histórico en un carnaval
2
trágico y doloroso” (MATIĆ, 2012, p. 68). De esta manera, incluso el ambiente
festivo del carnaval puede caer en las redes del poder, pues aquel no resguarda su
0 verdadero poder liberador. Dicha unión entre carnaval, tragedia y dictadura parece
ser una constante en la lógica de la novela, como una señal de que ni siquiera los
1 valores más tradicionales pueden resultar una salida plena ante la vigencia de la
violencia. Pero ante esta crisis, la acción radical que realiza Laura más adelante
8 marcará un quiebre decisivo.
Por otro lado, cuando Claudia protesta ante el juzgado por la desaparición
del abogado Martínez, a su vez Cáceres, en un estado ciertamente senil, demanda
una vez más que sea sometido a un juicio, con lo cual se genera una situación
paradójica en la que dos actores políticos opuestos realizan una demanda ante
el Poder Judicial, lo que una vez más insiste en la crítica que establece la novela
en torno a la capacidad del sistema judicial para realmente quebrar los rezagos
del régimen dictatorial. Con ello, la novela nos presenta un escenario donde no
se pueden realizar acciones heroicas, porque la lógica que prima en la ciudad es
justamente la del juego de máscaras3, típico de las parodias, como si la dictadura
hubiese relativizado los límites entre realidad y ficción –común en los contextos de
crisis, como lo deja en claro la estética barroca.
Por lo anterior, la acción de Claudia se sentencia en la frase del coronel:
“Juicio Final” (FRANZ, 2005, p. 255) Mientras ella y sus pocos compañeros gritan
arengas que se encasillan en el discurso convencional de protesta, sin acción
concreta para los parámetros normativos de esta época, la frase de Cáceres
J interrumpe no solo el discurso de los jóvenes, sino también resulta una metáfora
de los rezagos del poder militar, capaz de interponerse ante cualquier iniciativa
A trasgresora. A su vez, con su acción, Cáceres insiste en el matiz religioso de la
festividad, de la justicia (la referencia cristiana), y por supuesto, de la violencia. El
L coronel pretende, como la mayoría de personajes –incluida la propia Laura en gran
parte de la novela- perpetuar la dinámica del terror a través de su eternización en

la esfera religiosa, pues sugiere que solo es Dios quien será el último juez. Así, sin
L justicia mundana, la impunidad no llegaría a ser perturbada.
Desde luego, la juventud de Claudia busca combatir la impunidad, pero
A no enfrentándola sino realmente ignorándola. Aunque cree enfrentarla, para su
pesar su juventud limita su capacidad de reconocimiento de las máscaras que se
entretejen en la realidad postdictatorial: “Y en cambio les había tocado en suerte
esa edad y esa rabia. Esa edad trivial. Y esa oscura rabia de los herederos, de los
hijos, de los hermanos menores, contra esa época donde todo heroísmo estaba
• condenado al ridículo, donde la devoción era un baile de disfraces, donde toda
710 causa era una parodia, de antemano acallada por la ráfaga de un mundo banal
(FRANZ, 2005, p. 255)

Esta ráfaga puede ser entendida como el progreso que arrasa con todo
rezago o ruinas de un tiempo posible, pero negado por la lógica de la violencia y/o
de la modernidad, y por ende, convierte al presente en una época dominada por
el silencio cómplice, los disfraces perversos y la festividad que encubren el origen
2 del mal en Pampa Hundida. La asociación entre ráfaga y progreso la asumimos a
partir de las reflexiones de Walter Benjamin en sus Tesis sobre la historia, cuando
plantea la emblemática imagen del “ángel de la historia” (tesis IX) y su labor de
0 redención o liberación de los oprimidos:
El ángel quisiera detenerse, despertar a los muertos y recomponer lo des-
1 truido. Pero un huracán sopla desde el paraíso y se arremolina en sus alas,
y es tan fuerte que el ángel ya no puede plegarlas. Este huracán lo arrastra
irremediablemente hacia el futuro, al cual vuelve las espaldas, mientras el
8 cúmulo de ruinas crece ante él hasta el cielo. Este huracán es lo que noso-
tros llamados progreso (2011, p. 81-82)

En este punto de la novela, aún no aparece el elemento que simbolice
la acción del ángel, pero sí es notoria la presencia de esa ráfaga/ huracán que
mueve el tiempo y la realidad hacia un futuro, que en el caso de Pampa Hundida,

3  El significado de las máscaras es bastante complejo. Como vemos, en gran parte de la narración se
le asigna un valor negativo, pero hacia el final, se podrá entender que las máscaras, justamente por
las ambigüedades que genera, también pueden ser reapropiadas para poner de relieve el discurso
de la memoria en contra del presente de silencio y violencia.
claramente ignora las ruinas (las memorias) para poder mantener la continuidad
de la impunidad establecida por la dictadura. Queda claro, además, que la reflexión
de Benjamin está cargada de un fuerte componente religioso: “La tempestad4
[huracán] que sopla desde el Paraíso evoca sin duda la caída y la expulsión del
jardín del Edén. […] ¿Cuál es el equivalente profano de ese Paraíso perdido del que
el progreso nos aleja […]? Varios indicios sugieren que […]se trata de la sociedad
sin clases primitivas” (LOWY, 2012, p. 103).
J En la novela, son los personajes los que han configurado un mundo
marcado por la banalidad, hecho que los imposibilita de volver a ese Paraíso perdido
A (el reconocimiento político y ético de los desaparecidos durante la dictadura a
través de la recuperación de las memorias de esa época), y por el contrario, solo
L los rodean las ráfagas del progreso que pretenden convertir a Pampa Hundida en
un sitio turístico, a costa del pasado silenciado, como lo demuestran el alcalde y

el cura de la ciudad, por ejemplo. Pero la tesis de Benjamin, “Nos está hablando
L desde el principio del progreso y la mirada del ángel nos la ha descubierto como
animado por una lógica catastrófica. La conclusión es que tenemos que considerar
A el progreso como catástrofe si realmente queremos salir de su embrujo” (MATE,
2006, p. 157).
Si bien Claudia reconoce la catástrofe del presente asociado a las máscaras
y el poder omnipresente de los militares como consecuencia de las ruinas del
pasado, ella aún no se deja invadir por la fuerza mesiánica que le haría “detenerse”
• en su experiencia pasada para arreglar o corregir lo que la mantiene atada a la
711 impunidad del pueblo. De hecho, la labor de escritura de la carta y la evocación
de su memoria a través del relato que va construyendo como testimonio es una

primera etapa de su intención de rescatar el pasado personal y social.
A partir de lo anterior, podemos analizar la forma singular que opta Laura
para “hacer justicia”, en vista de que el sistema legal no ofrece –paradójicamente-
ninguna vía realmente justa. Aparentemente, la intención inicial que guía a la jueza
2 es solidarizarse con los condenados, lo cual supone concretamente el sacrificio (y
quizá disolución) de su identidad, o la traición a su propia condición de ser humano
(abandonar su autonomía femenina y dejarse objetivar por Cáceres). Sin embargo,
0 cuando cuenta en la carta dirigida a Claudia su experiencia de retorno a la casa
de Cáceres, luego de veinte años, como si fuera una vez más la repetición del
1 siniestro ritual que realizó sistemáticamente mucho tiempo atrás, ella plantea una
propia lectura del pasado. Es en este punto donde queda muy claro la operación
8 de aplazamiento que realiza la protagonista, a partir del encubrimiento de su
más profundo secreto y el camuflaje o máscara –curiosamente- que emplea para
interpretar cada una de sus acciones. De esta manera, la memoria de Laura usa
diferentes recursos ante la imposibilidad de poder hacer emerger su única verdad.
Es como si el lenguaje se volviera pura deriva significante ante la dificultadde
escapar de la red simbólica que instauró la Dictadura y que se mantiene incólume.

4  En la traducción de Lowy del texto de Benjamin al español, aparece “tempestad” en vez de


“huracán”, a diferencia de la traducción de Bolívar Echevarría, que según el consenso de la crítica,
es la más precisa, razón por la cual nuestras citas a la obra de Benjamin corresponden a dicha
traducción.
Asimismo, en el discurso de confesión de Laura, entre los diversos puntos
que desarrolla, destaca la mención a las divinidades que se esconden detrás de ese
lugar sagrado y siniestro (la casa de Cáceres). Como parte del recurso metonímico
que prima en esa parte de su testimonio, también el personaje establece una
asociación entre diosas femeninas griegas, orientales y andinas, como si todas
fueran fácilmente equiparables a partir del mismo recurso empleado en las diversas
culturas desde el inicio de las civilizaciones: la máscara. Además, esta revelación
J parte de una desarticulación del discurso filosófico del maestro por excelencia:
el Ministro Velasco (mentor de Laura y luego profesor de Claudia): “esa línea
escapó a su exégesis, Claudia ‘Sean como yo, la madre original, quien, creando
A
constantemente, encuentra satisfacción en el turbulento flujo de las apariencias’.
Cómo podría la ley de Velasco haber entendido ese ‘flujo de apariencias’; él que nos
L enseñaba una continuidad” (FRANZ, 2005, p. 373).

Lo que Velasco manipula para pretender demostrar la supremacía de la
L ley como sinónimo de justicia, en la lectura de Laura recae realmente en su revés,
en la manifestación de “lo real”: la ley es también como toda articulación simbólica
A producto del discurso o del lenguaje, y por tanto, un “flujo de apariencias”. Con ello,
también se corrobora que la pretensión de Velasco parte de las ilusiones totalitarias
del discurso falogocéntrico, mientras que Laura es capaz de romper el fantasma
que lo sostiene. Por ello, hay una conexión entre la jueza y las diosas antiguas, que
al parecer sobrepasa el conocimiento racional, y solo es posible gracias a la lectura
• desde el cuerpo, desde el reconocimiento de las manipulaciones masculinas en el
712 plano del saber (y de lo corporal): “pues se trata de resistir a la tiranía del significado
único, al despotismo de Apolo que la querría racionalizar si supiera llamarla de un
• solo modo” (FRANZ, 2005, p. 373). Esto explicaría por qué la escritura de Laura
está marcada por el desplazamiento de una verdad, como si buscara ejecutar en el
propio lenguaje lo que las instancias masculinas son incapaces de hacerlo (como las
frases concluyentes y el saber seguro, autocomplaciente y monológico del Velasco).
Pese a lo anterior, y como prueba de que no se trata de la deriva infinita del
2 significante, consecuente con ciertas premisas posmodernas -y desde luego, con la
posición del multiculturalismo que la novela cuestiona, porque hace converger las
0 posiciones políticas más conservadoras (el fascismo y la dictadura) con la veneración
tradicional prehispánica- Laura revela que detrás de todos los nombres se esconde
1 también una verdad: la Necesidad. Se trata de un amor camuflado en las demandas
humanas, lejos del entorno sagrado, y más bien situado en el plano de lo profano,
8 como también lo está el segundo nombre de Venus que Laura conoce a partir de
las palabras de Cáceres: “el que trae la luz”. Venus tiene esta doble traducción, por
lo que detrásde la atmósfera sagrada –o paralela a ella- existe un sentido profano,
que se puede entender desde la idea de “dialéctica de la Ilustración”. Según Adorno
y Horkheimer:
la Ilustración recae en la mitología, de la que nunca supo escapar. Pues la
mitología había reproducido en sus figuras la esencia de lo existente: ciclo,
destino, dominio del mundo, como la verdad, y con ello había renunciado
a la esperanza. En la pregnancia de la imagen mítica, como en la claridad
de la fórmula científica, se halla confirmada la eternidad de lo existente […]
(1998, p. 80, cursivas nuestras)
Como lo explican los filósofos alemanes, el discurso del progreso encuentra
similitud con la época de los mitos a partir de su carácter cíclico, cuya verdad
científica e instrumental no se somete a ningún cuestionamiento.“El que trae la luz”
(Cáceres) puede leerse como símbolo del ser ilustrado que esparce la luz del saber y
que se manifiesta a través del discurso falogocéntrico que redefine las normas y la
ley, y que pone a su servicio a la propia jueza Laura. Entonces, la asociación entre
la divinidad de Venus y “el que trae la luz”muestra el revés obsceno de lo mítico y
J de lo moderno, como si fueran instancias idénticas marcadas por esa eternidad que
cuestionan Adorno y Horkheimer.
A El segundo nombre de Venus también encubre un amor siniestro: “Yo
había cumplido ese pacto de dolor en nombre del amor insondable, enmascarado,
L que éste engendraba y que venía de la noche de los tiempos, el amor oscuro de la
diosa madre que engendra y mata” (FRANZ, 2005, p. 375). Se trata del deseo o la

ominosa atracción por el dolor:
L Yo había deseado sufrir, había deseado ser víctima, había deseado encarnar
la norma de mi época, me había complacido repetir, ritualmente, la primera
A noche en la que fui medida y mi medida fue la traición. Una traición no solo
al fugitivo al que había intentado amparar, una traición no sólo a mis altísi-
mos principios de joven jueza idiota, sino la traición de mi propio cuerpo a
mí misma, cuando éste me desconoció y me precipitó en ese orgasmo negro
colgada del cuello de mi verdugo […] (FRANZ, 2005, p. 375)

• La mezcla entre verdugo y víctima se diluye, siguiendo las reflexiones de


Agamben:
713
El descubrimiento inaudito que Levi realizó en Auschwitz se refiere a una
• materia que resulta refractaria a cualquier intento de determinar la respon-
sabilidad; ha conseguido aislar algo que es como un nuevo elemento ético.
Levi lo denomina la “zona gris”. En ella se rompe la “larga cadena que une
al verdugo y a la víctima”; donde el oprimido se hace opresor y el verdugo
aparece, a su vez, como víctima (2000, p. 20)

2 Esta condición “gris” de Laura se puede leer desde el deseo, pero este
no solo se basa en el plano psicológico y sexual, sino también en la posibilidad de
0 ubicarse dentro de la esfera del poder y de ejercer la justicia, aunque esto implique
una ambigüedad, porque conlleva obedecer los dictámenes de los militares, pero
también la posibilidad de negociar ante ellos por la vida de los prisioneros, como
1
si aún en el horror solo aquel capaz de cargar en sus hombros (en su cuerpo)
la entidad que representa (la justicia) pudiera interponerse de cierta forma. Esta
8 extraña mezcla de sentimientos, deseos y principios acumulados en su formación
como abogada y como mujer dentro de la sociedad chilena llevan a Claudia a asumir

el ejemplo de la traición por excelencia, ya que como ella lo menciona, traiciona a
los que buscaron oponerse a la dictadura, a su profesión (¿pero no eran absurdos
estos principios legales ante la violencia?), y sobre todo, traiciona su feminidad.
Se convierte en ese sujeto marcado por la “zona gris”, una vez diluidatotalmente la
división entre verdugo y víctima.
El impacto de la dictadura en Pampa Hundida es tan complejo que se
caracteriza por una serie de aristas que muestran los espacios de inserción que
puede ofrecer un contexto aparentemente regido solo por la destrucción. Mamani
es justamente el mejor ejemplo de cómo el contexto dictatorial abre paso a sujetos
“otros”, los ignorados, quienes se dejan atraer por un aparente reconocimiento y
status:
¿No le extrañaba, a la magistrada, no le repugnaba a su sentido innato de la
justicia que él [Mamani] hubiera tenido que esperar, a pesar de sus méritos,
a que viniera una dictadura para que lo designen alcalde, porque los blan-
J quitos de los partidos y el concejo jamás antes consintieron dejarle paso, ni
en izquierdas ni en derechas? (FRANZ, 2005, 333)

A La dictadura deja de ser un tiempo marcado solo por el abuso de la ley
o la instauración de una nueva ley. En realidad, la narración nos revela uno de

los temas recurrentes en los países postcoloniales y neocoloniales: las estrategias
L
de blanqueamiento, alienación, o aculturación que ciertos sectores sociales deben
emprender para poder situarse en los espacios más accesibles de las esferas del
L poder. Esto, junto con la fascinación de miles de peregrinos por la festividad del
pueblo, evidencia cómo los principios culturales tradicionales se readaptan a
A través de lo que podría percibirse como parte de la diversidad cultural que ofrece
el multiculturalismo.
Mamani usa estrategias de alienación y aculturación para poder
ser aceptado por las figuras de poder, pero al mismo tiempo parece asumir su
identidad primigenia: el rol de curaca. Una vez más, esta reflexión nos sugiere
• que los tiempos prehispánicos se conectan con las lógicas totalitarias a partir de
714 la restitución de los símbolos arcaicos (la Patrona o el curaca del pueblo). Esta
interpretación de Mamani demuestra cómo perdura una lógica neoliberal en la

sociedad chilena, la cual fácilmente puede abrir paso a las identidades múltiples
como lo propone el discurso multicultural, ya que esto no cuestiona el modelo
económico capitalista. Además, la experiencia de sincretismo cultural también
forma parte de esto, en vista de que se tratade la producción armónica de un nuevo
objeto que pese a las incorporaciones amerindias, mantiene el reconocimiento
2 del aporte occidental español. Por ello, la novela ejerce una doble crítica ante las
modalidades de integración que no ofrecen realmente el mantenimiento de ciertos
0 principios culturales, sino su acomodamiento y borrosidad.
Cuando Mamani realiza el baile de la Diablada vestido con el traje
1 correspondiente se confirma la apertura de la dimensión carnavalesca, y por ende,
la revelación de lo que se esconde detrás de la máscara. Sin embargo, antes del
8 baile, Mamani realiza la confesión más honesta ante Laura: “- La historia nos hizo
enmascararnos, Laura, y sobrevivimos en la máscara. La máscara nos permitió
expresarnos, hacer nuestra justicia […]. Este soy yo. No el que está bajo todos los
disfraces, sino los disfraces mismos” (FRANZ, 2005, 341). El personaje se reconoce
como un sujeto de resistencia cultural que forma parte de una cultura que ha
debido camuflarse a lo largo de la historia a través de procesos de aculturación, que
en realidad fueron solo un disfraz necesario. Esta condición no resulta novedosa,
teniendo en cuenta la vasta cantidad de personajes históricos que fueron producto
del choque de dos culturas en principio antagónicas. Sin embargo, la particularidad
del discurso de Mamani radica en que lo que realmente define su identidad no es
una verdad ni una postura sólida ante fenómenos como el desarraigo cultural,
sino la propia máscara, que no es más que uno de los tantos rostros engañosos
que encubren la violencia estructural que domina en Pampa Hundida. A la vez, la
máscara es la falsa aceptación de la imposición europea y del sincretismo, como si
fueran estas las primeras versiones de una violencia que se reactualizó durante la
Dictadura y la Transición. Ello se confirma en la idea de “hacer nuestra justicia”,
porque hilvana la demanda de las deidades andinas, de los hombres prehispánicos
J y de los mestizos con la de los militares que impusieron una nueva ley. Al producir
esta revelación, Mamani demuestra que realmente es un ser sin identidad, porque
debajo de los disfraces se encuentra otra máscara más. Esto debe ser entendido
A
como una manipulación del discurso tradicional, mítico o legendario prehispánico,
pues resulta útil para poder formar parte de la lógica de engaños que la Dictadura
L hizo posible.

La preeminencia de la máscara se verifica en el acto posterior de Mamani:
L el pedido de perdón ante Laura. Esta acción la puede ejecutar mediante el uso
del disfraz: “el hombre que había tenido que enmascararse para pedirle ‘perdón’,
A o Mamani, o lo que había dentro del traje, bajo la máscara, vaciló, se dio vuelta
abriendo los brazos que sostenían el cayado y el látigo, como diciéndose que sabía
que su excusa no era suficiente” (FRANZ, 2005, 343). En efecto, el ser “verdadero”
que se esconde detrás de la máscara no es capaz de confrontar “lo real”: su
responsabilidad y complicidad ante los hechos aberrantes propiciados por Cáceres.
• Por lo tanto, la validez de la máscara como objeto de resistencia y de representación
715 de una cultura silenciada o reprimida por la colonización queda absolutamente
negada.

Alegorización del contexto postdictadura y la apertura de otra justicia:
triunfo de la memoria
Si hay una idea que prevalece a lo largo de la novela es que el espacio
desértico no solo es una condición geográfica, sino una condición del pasado. La
2 vida y la memoria son referidas en constante conexión con las características de un
desierto rodeado de muerte, así como de fantasmas (alusiones a los desaparecidos).
Toda la ciudad está marcada por este carácter residual, de pérdida de valores o
0
crisis generalizada (el desierto, el rol de la justicia, la actitud de los habitantes, el
discurso religioso, etc.), lo cual lleva a pensar cuál es la vigencia o efectividad de una
1 memoria construida desde las ruinas. Asimismo, el concepto de alegoría (Benjamin)
describe el contexto residual de la sociedad chilena y de una época aún dominada
8 por el predominio del mal. Esto se corrobora en el fracaso del pequeño “gran relato”
que mueve a Claudia y a sus jóvenes amigos –cual rebeldes que reencarnan a los
militantes jóvenes de los setentas- a establecer la idea de “culpa colectiva” ante los
crímenes de la época dictatorial:
Era ridículo, patético, quedar condenados a buscar sus causas en el pasa-
do de sus mayores, en el armario donde escondían los trajes de disfraces
apolillados, los esqueletos, los ángeles y demonios de otra generación. […]
“Las imágenes que nosotros profanamos”, pensó Laura, “tienen ahora tan
poco valor que ni siquiera alcanzan para comprarles una causa a nuestros
hijos.” Como esas gorras y guerreras, banderas y medallas de la ex Alema-
nia Oriental y de la URSS, que se remataban por puñados en el mercado
dominical de las pulgas en el Tiergarten de Berlín (FRANZ, 2005, 363-364)

El punto de vista del narrador, semejante al de Laura, señala la condición


alegórica del ideal revolucionario, pues todo valor simbólico ha sido anulado ante
la relativización del discurso militante en la época de la Transición. A diferencia del
símbolo, que se asocia con un significado perenne o trascendente (como lo es, pese
al sincretismo y al paso del tiempo, la Patrona de Pampa Hundida), la alegoría,
J siguiendo a Benjamin, alude a un objeto cargado de muerte y ambigüedades (como
los disfraces, esqueletos, ángeles y demonios que menciona Laura), así como al
A paso de un tiempo profano o desacralizado. De hecho, la narración lo ejemplifica
muy bien con la mención a los objetos de la ex Alemania Oriental y de la URSS,
L que se han vuelto souvenir en la actual sociedad de consumo. Pero el fragmento
citado también permite establecer dos modos de vincularse con el pasado a partir
del rol de la memoria, que siguiendo a Benjamin, puede dividirse entre la actitud
L
del coleccionista y del alegórico:
He [the collector] takes up the struggle against dispersion. Right from the
A start, the great collector is struck by the confusion, by the scatter, in which
the things of the world are found. […] The allegorist is, as it were, the polar
opposite of the collector. […] The collector […] brings together what belongs
together; by keeping in mind their affinities and their succession in time.
[…] in every collector hides an allegorist, and in every allegorist a collector.
[…] As far as the collector is concerned, his collection is never complete; for
• let him discover just a single piece missing, and everything he’s collected
716 remains a patchwork, which is what things are for allegory from the begin-
ning. On the other hand, the allegorist […] can never have enough of things.
• With him, one thing is so little capable of taking the place of another that no
possible reflection suffices to foresee what meaning his profundity might lay
claim to for each one of them (1999, p. 211)

Claudia concuerda con la figura del coleccionista. Se opone a la dispersión


del pasado, de la memoria fragmentada, y busca atraparla a través de un sentido
2 definitivo, que ella parece encontrar en el concepto sentencioso de “culpa colectiva”,
desde su conocimiento de las leyes (la investigación). Su visión parte del hecho
0 de no haber vivido la experiencia represiva (su madre la lleva poco después de
nacer a Alemania para evitar que sea devorada por el mal de esos años), como
1 representante de una generación postraumática que justamente se ve limitada en
su aproximación a la naturaleza del trauma. “Solo quería una causa” (FRANZ, 2005,
8 p. 363) le dice Claudia con pesar a su madre. Para la joven, bastaría una causa
para poder articular el pasado, pero ni siquiera eso pudo obtener para rechazar la
condición fragmentaria de su lectura y de sus ideales imposibles. En consecuencia,
ella es en realidad una alegorista.
Por su parte, Laura representa al alegorista por excelencia: ha renunciado
a entender el pasado desde la vía legal, ya que como su propia experiencia lo ha
revelado, este método resulta inservible. Solamente puede rearticular el pasado a
través de una búsqueda de justicia que escapa a la instancia del sistema judicial; es
decir, despoja de su contexto a las experiencias del pasado dictatorial (delimitadas
y justificadas a partir de los “diez justos” y de los abusos legitimados por el
gobierno de la época) y opta por la melancolía5 para resignificar los acontecimientos
en Pampa Hundida. Sin embargo, no se trata de un sentimiento desolador que
sumergiría al personaje en un pasado traumatizante sin ofrecerle una vía de
restitución en el presente postdictatorial. Si bien se podría afirmar que durante
veinte años aquella habría sido la condición de Laura, es gracias a la escritura
de la carta para Claudia y su regreso al pueblo que la melancolía se vuelve un
mecanismo propio del alegorista que menciona Benjamin, porque pese al cúmulo
J de experiencias y conocimiento directo de lo ocurrido en Pampa Hundida, así como
de la contribución /silenciamiento de cada uno de los actores sociales del lugar,
ninguna de estas versiones o testimonios del pasado son capaces de sacudir el
A
presente o quebrar los rezagos de la lógica dictatorial, a diferencia del poder de la
melancolía experimentada por Laura como herramienta de rescate de ese pasado
L fragmentado que busca su reivindicación.

En medio de este escenario que parece absolutamente dominado por el
L mal y la impunidad, el encuentro decisivo entre Laura, Claudia y Cáceres permite
la apertura de una justicia alternativa (tiempo mesiánico, según Walter Benjamin)
A ante los crímenes del gobierno, porque la jueza Laura asume su culpabilidad /
intimidad –como ella misma la llama- por haber traicionado a la justicia que su
oficio debe (pretende) perseguir y que ella en-carna (no solo lo representa, pues
su propio cuerpo ha sido sometido para la instauración de una nueva Justicia,
controlada por los militares). Todo ello sucede frente a su hija, a quien le revela su
• verdad suprema que ya no requiere más su aplazamiento, porque solo existe una
717 salida:
- Vamos a terminar esta historia –le contestó [Laura a Claudia].

Y enarbolando la pistola de Cáceres, apuntándole vagamente a la conjunci-
ón de Venus (lo venéreo) con la luna naciente (la pura violencia naciente en
la guadaña), Laura disparó un tiro al aire.

Por un instante, un silencio perfecto, un silencio de tumba, se hizo sobre el


2 desierto. Los ruegos, los coros, las bandas, y los tambores se suspendieron
como si la costra de sal de la pampa se hubiera rajado y la multitud que ro-
deaba el campamento hubiera caído a un abismo, tragada hasta el fondo del
0 mar ausente. Fue un silencio como un planeta vacío, como una espada rota,
como una balanza en equilibrio […] El pueblo que estaba de rodillas […]
se levantaba al unísono, […] se levantaban las sombras mismas, en ondas
1 de luz embravecida […] Se habría dicho que era un lamento, si las piedras
pudieran lamentarse, o un rugido si la sal del desierto pudiera rugir, o un
8 grito de triunfo si los perdedores ganaran por una vez (FRANZ, 2005, p. 454)

La extensión de la cita se justifica en la riqueza de las imágenes desplegadas.


A través de un acto radical, Laura logra romper la lógica dictatorial (vigente a través
del silencio cómplice durante la época de Transición) y abre paso a un nuevo tipo
de justicia (personal, familiar y social) así como al breve e instantáneo triunfo del
5  Pese a que la traducción inglesa del texto de Benjamin se refiere a “profundity”, que en español
sería literalmente “profundidad”, hemos optado por la palabra “melancolía” en la traducción, a
partir de la revisión de la traducción castellana del Libro de los Pasajes en la prestigiosa editorial
Akal. Además, concordamos con esta palabra por contener la carga del pasado que es tan relevante
en la escritura de Benjamin.
discurso de la memoria, y de su verdad subversiva, en el acto mismo del disparo y
la celebración de la Diablada (“luz embravecida”). Ante este hecho, se confirma que
la carta o cualquier documento en sí (léase incluso el Archivo) se convierte en pura
letra muerta, despojada de cualquier valor en comparación con la propia irrupción
en el tiempo lineal y dictatorial que ha quebrado Laura.
La liberación que realizan las dos mujeres puede ser leída de diversas
maneras. Para Toro, “[ambas] se liberan de él [Cáceres], no por un acto de piedad,
J sino de superación del infierno: así como Laura interrumpe el aborto y tiene a
Claudia, […] de igual forma lo dejan vivo para no seguir con el código del terror”
A (2008, p. 142). Pero también se perciben ecos benjaminianos en este episodio,
sobre todo en relación con las reflexiones sobre el rol del historiador:
L En el fundamento de la historiografía materialista hay […] un principio
constructivo. Propio del pensar no es solo el movimiento de las ideas, sino
igualmente su detención. […] El materialista histórico aborda un objeto his-
L tórico única y solamente allí donde este se le presenta como mónada. En
esta estructura reconoce el signo de una detención mesiánica del acaecer o,
dicho de otra manera, de una oportunidad revolucionaria en la lucha por el
A pasado oprimido (BENJAMIN, 2008, p. 54-55, cursivas nuestras)

Laura busca tanto terminar la historia personal como romper la lógica
histórica que ha instaurado la Dictadura, incluyendo la incorporación de la
festividad tradicional del pueblo, que también debe ser liberada del control represivo.
• Asimismo, el silencio que produce el disparo es “perfecto”, a diferencia del silencio
de impunidad (el olvido y las leyes que impedían denunciar a los militares), y esto
718
solo pudo realizarse en un momento paroxístico, donde incluso el cosmos juega
• un rol importante, porque permite romper la perduración del “orgasmo negro” (la
unión de Venus y la luna, que representa a la guadaña o la muerte) en la memoria
de la jueza y a su vez, desprender la propia lógica mítica de su sentido trágico
asociado al régimen opresor.
El disparo genera la “detención” que reclama Benjamin sobre el presente,
2 por lo cual el sonido festivo se suspende y la multitud metafóricamente queda
atrapada fugazmente en ese abismo temporal. Es claro que esto no sucede
0 realmente, pero el lenguaje literario transmite esa sensación en el lector, sobre todo
a través de la “espada rota” (el poder falogocéntrico quebrado en la irrupción del
1 tiempo mesiánico) y la “balanza en equilibrio” (justicia no legal), como equivalente
de la mónada (sustancia indivisible), pues finalmente la propia Virgen, el pueblo,
la familia de Laura, y ella misma son liberados de la culpa que los ha atormentado
8
durante veinte años. Aparece, entonces, la “luz embravecida”, señal de la imagen
dialéctica que condensa el pasado en la posibilidad de un presente radicalmente
diferente, y que se ve reforzado por el ambiente ritual de la danza. Laura hace
emerger la oportunidad revolucionaria de un presente instantáneo caracterizado
por el “grito de triunfo si los perdedores ganaran por una vez”.
La mónada aparece como objeto que recupera el valor de la memoria en
el presente, porque supone la cristalización de las tensiones que contienen una
totalidad histórica. La acción de Laura logra agrupar distintas épocas, redimir
el tiempo profano y sagrado, ya que como sabemos este último también ha sido
corrompido por la lógica dictatorial. Laura ya no es más la jueza que busca establecer
leyes inservibles ante las influencias de los militares, sino que, de modo similar al
tipo de historiador que reclama Benjamin,
en cuanto fragmento consciente de su destino, sin las tutelas ideológicas de
la lógica general, tiene la clave de una nueva universalidad que consiste en
poder ver el sentido de una vida analizando el sentido de una obra; y el de
una época, analizando el de una vida; y el de la historia, analizando el de
una época (MATE, 2006, p. 263)
J
La protagonista ha logrado despojarse de las “tutelas” que recibió en las
A figuras masculinas (Velasco y Cáceres) y a partir de su accionar puede resignificar
los valores del presente, así como de la propia festividad de la Diablada, lejos de

las manipulaciones del régimen represivo. Su disparo (obra) libera su vida; esta, al
L
presente de la Transición; y finalmente, dicho presente redime a todas las épocas de
la historia chilena que han convergido en el presente. De esta manera, la festividad
L ya no será un medio para poder adecuarse dentro de los lineamientos del poder,
como lo hizo Mamani durante mucho tiempo.
A El epílogo confirmaría la necesidad del discurso ficcional para visibilizar o
escuchar a los olvidados (y sus memorias ignoradas), porque el efecto de “realidad”
presente en las últimas páginas demuestra la presencia de un pueblo y de personas
que solo pueden ser reconocidos en el campo de la invención a través de la verdad
subversiva de la memoria. Además, como confirmación de la supremacía de este
• discurso, el registro de los hechos en manos del escritor Mario no apela a una versión
719 hegemónica de lo acontecidos en Pampa Hundida, sino a la posibilidad de muchas
lecturas, lo que traza un final abierto. Este no requiere de una versión unívoca ya

que lo relevante se presentó durante el disparo y la celebración de los peregrinos
(lo que hemos explicado como la irrupción del tiempo mesiánico). Inevitablemente,
y aquí también se verifica el tono realista predominante en la novela, luego de la
escena en cuestión, el tiempo lineal cronológico vuelve a predominar en la atmósfera
de Pampa Hundida.
2
Al mismo tiempo, el narrador-escritor nos deja abierta la posibilidad
de que lo ocurrido aquella noche haya reorganizado la dinámica social y sus
0 creencias, como si los rezagos de esa irrupción mesiánica se quedara impregnada
en la multitud: “Pudo haber sido que el secreto de lo que habíamos hecho, y no
1 podíamos decir, encarnó […] liberándonos al fin de la ‘fascinación’ oscura que el
poder del coronel todavía ejercía sobre nosotros” (FRANZ, 2005, p. 464).
8 Así como cabe asumir esta interpretación optimista, asimismo, se
superponen a ella muchas otras, como refiere Mario. Aquí se incluye la resignificación
“profana” de la festividad, no porque se pierda realmente el sentido sagrado, sino
porque “la única santidad posible era la de nuestra multitud” (FRANZ, 2005, p.
465). Pero detrás de las diversas lecturas que ofrece la plena fragmentariedad
de la memoria, existe una verdad histórica, siempre bajo el testimonio de Mario:
la paulatina aniquilación de Pampa Hundida, como la confirmación de que la
sociedad sigue avanzando en función del curso histórico lineal, pese al fracaso del
“Complejo de Adoración más grande del Continente”. Se corrobora tanto el vacío de
la iniciativa de insertar un valor cultural en las demandas del mercado neoliberal
y globalizado, como el abandono de las memorias, que junto con Pampa Hundida,
“se precipitaron en ese abismo sin ecos, ni fondos, donde se quiebran sin ruido los
espejismos” (FRANZ, 2005, p. 465). A pesar de lo anterior, son esos espejismos los
que paradójicamente permiten la aparición de las ambivalencias que hacen posible
la subsistencia del discurso de la memoria, puesasí los sujetos se despojan del
orden convencional del mundo y se introducen en una efímera liberación o en la
búsqueda de su verdad, que solo emerge cuando nos ponemos máscaras: nuestros
J rostros auténticos.
Referencias
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1998.
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2 “Sobre el concepto de historia”. Madrid: Trotta, 2006.
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0
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1 2008.
_______________. Memoria performativa y escenificación: ‘Hechor y Víctima’ en El desiertode
8 Carlos Franz. En: Taller de Letras nº. 49, p. 67-95, 2011.


J

A

L ROBERTO ARLT: LITERATURA COMO TRANSGRESSÃO

L Leonardo Lani de Abreu (UFAC)
RESUMO: Roberto Arlt, nascido em Buenos Aires, em 2 de abril de 1900, é tido como
A um dos renovadores da literatura argentina. A presença de laivos autobiográficos
em seus textos colaborou, junto com sua preferência por registrar o cotidiano de

marginais e marginalizados e pelo seu emprego do lunfardo, para que ele recebesse
por parte da crítica a pecha de autor menor. Nessa apreciação, subjazem as acusações
de que o escritor, além de não saber escolher o tema e linguagem apropriados, não
• é dotado de criatividade, já que precisa valer-se das próprias experiências para
produzir seus textos, em vez de extraí-los tão somente da imaginação. Contudo,
721
tal distanciamento do cânone literário, das fórmulas linguísticas estandartizadas,
• que muitos enxergam como falha, talvez seja a maior virtude de Arlt, cuja obra
opera deslocamentos na normatividade vigente, no que se aproxima do conceito
foucaultiano de heterotopia.
Palavras-chave: Marginalidade. Heterotopia. Normatividade.
Introdução
2
A exemplo de outros literatos postumamente célebres, entre os quais

figuram Edgar Allan Poe, Franz Kafka, Lima Barreto e H. P. Lovecraft, Roberto
0 Arlt só teve sua obra aquilatada de forma devida após ser encontrado morto, em
decorrência de uma parada cardíaca, em 26 de julho de 1942, numa obscura pensão
1 do bairro de Belgrano, na capital argentina. O novelista, contista, dramaturgo,
jornalista, enfim, homem de letras argentino enfrentou, na sua exígua e atormentada
8 existência, toda sorte de tribulações, tais como o abandono prematuro da escola,
aos oito anos; a morte da irmã, por tuberculose, e a infância transcorrida em
ambiente doméstico turbado pelas dificuldades econômicas e pelo autoritarismo
do pai, um imigrante prussiano brutal, fonte de inspiração de cáusticos escritos de
Arlt (BORRAZÁS, 2000).
Graças, em grande parte, ao autodidatismo, mediante o qual lançou-
se, consoante Ribeiro (2000, p. 124), à leitura de mestres como Charles Dickens,
Dostoiévski, e Cervantes, Arlt conseguiu driblar as adversidades que condenam
com demasiada frequência outras pessoas de mesma origem social a levar
uma existência desprezada, ignorada e abandonada, cumprindo, ao tornar-se
personagem de si mesmo, o intento nietzschiano de fazer da própria vida um objeto
artístico. A maior realização de Arlt, assim como de outros escritores que se viram
às voltas com situações de extrema privação material – os exemplos mais célebres
são o estadunidense Charles Bukowski e o inglês George Orwell -, é sua própria
vida, símbolo da vitória do espírito humano contra os determinismos que almejam
aniquilá-lo.
Numa insólita afirmação do indivíduo contra as circunstâncias
J desfavoráveis, o autor sobrepôs-se às vicissitudes por ele enfrentadas ao desenvolver
um estilo literário avesso aos cânones tradicionais, o que lhe granjeou a simpatia
A do grande público, iniciada com a publicação no El Mundo da coluna diária
Aguafuertes Porteñas, entre 1928 e 1935 (CARVALHO, 2009, p. 24), conquanto
L tenha despertado a repulsa da crítica especializada da época, que o considerou
“[...] um ‘escritor de péssimo gosto’ pela temática que abordava em seus textos,

‘um escritor que escrevia mal’ pela utilização do lunfardo e ‘um escritor fracassado’
L pela constante alusão à suposta relação entre sua vida e sua obra” (JORGE, 2014,
p. 538).
A Os preconceitos contra Arlt decorrem, principalmente, do fato dele ter
extraído significativa parcela da matéria-prima que compõe seus escritos de sua
história de vida, como ele próprio admite: “Tengo tantas y tantas cosas que escribir
y que contar, a favor y en contra mío que ahora sé que todo lo que se ha escrito y
vale, vale porque ha sido escrito con sangre” (ARLT, 2000, p. 722). Os adversários
• da utilização das memórias individuais na literatura baseiam-se na crença de que
722 autores que usam experiências por eles vivenciadas para comporem suas narrativas
são menos inventivos do que aqueles que recorrem tão somente à imaginação. Estes

últimos são encarados como “puros”, isto é, sacerdotes da “arte pela arte”, ao passo
que os primeiros são tachados de “sujos”, “malditos”, “marginais” – as alcunhas
são múltiplas – por se engajarem, ainda que de forma indireta, na denúncia das
mazelas públicas e privadas.

2 O elitismo desta apreciação é indisfarçável, uma vez que, entre outros


motivos, é impossível dissociar a vida e a obra de um artista literário, cujas vivências
e atos criativos compõem um amálgama no qual não se consegue discernir o que
0 provém da realidade e o que advém da ficção, instâncias, no mais das vezes,
intercambiáveis. É justamente por resistir a empreender uma produção intelectual
1 independente de considerações sociais que Arlt se afigura relevante. Em lugar
de encastelar-se numa torre de marfim, o escritor confrontou o mundo concreto,
8 operando deslocamentos que desafiaram o discurso hegemônico e que fazem dele
um transgressor par excellence.
Literatura à margem do sistema
Vários são os motivos pelos quais Roberto Arlt pode ser considerado um
escritor marginal. O adjetivo marginal é empregado aqui numa acepção positiva, no
sentido daquilo que está à margem, do inassimilável, do que não se deixa capturar
pelas redes oficiais de significação. Arlt foi um pós-estruturalista avant la lettre,
ou seja, antes do surgimento do termo, ao tensionar as regras correntes acerca
daquilo que costumava então ser tomado por boa literatura. Estudos mais ou
menos recentes promoveram uma reapreciação da obra arltiana (GNUTZMANN,
s.d.), pondo em relevo sua importância, porém ainda persistem avaliações negativas
de sua atividade criativa, comprova a seguinte diatribe, em que salta aos olhos o
tom condescendente da enunciação:
A literatura de Arlt, considerada como armário ou como porão, é boa. Con-
siderada como a sala de estar da casa, é uma piada macabra. Considerada
como cozinha, promete o envenenamento. Considerada como lavabo, vai
J acabar nos passando sarna. Considerada como biblioteca, é uma garantia
da destruição da literatura (BOLAÑO, 2012).

A Cabe determinar, antes de mais nada, o que se entende por literatura. O
presente trabalho parte do pressuposto de que a literatura que se deixa circunscrever

por normas, sejam elas quais forem, não merece ser chamada de literatura. No
L
caso brasileiro, Carolina Maria de Jesus e Reginaldo Ferreira da Silva, vulgo Ferréz,
autores, respectivamente, de “Quarto de despejo” (2014) e “Capão pecado” (2000),
L enfrentaram resistências similares. A função precípua dos textos literários é a
de oxigenação da linguagem, tanto no plano da forma como no do conteúdo, a
A fim de atualizar os códigos utilizados pelas pessoas na comunicação cotidiana.
Depreende-se daí que a verdadeira literatura está em lugar nenhum, sendo atópica
per se, demonstra Roland Barthes:
O texto, esse, é atópico, se não no seu consumo, pelo menos em sua pro-
dução. Não é um falar, uma ficção, nele o sistema está desbordado, desfei-
• to (esse desbordamento, essa defecção, é a significância). Desta atopia ele
toma e comunica a seu leitor um estado bizarro: ao mesmo tempo excluído
723 e pacífico (BARTHES, 2015, p. 37-38).
• O fato da formação intelectual de Arlt ter ocorrido de maneira acidentada,
aos tateios, não o coloca aquém de, por exemplo, um Borges, escritor que contou com
todos os recursos disponíveis para a composição de histórias magistrais. Como se
costuma dizer, são talentos diferentes, e é sem perder de vista esta dessemelhança
básica que devem ser valorados. Arlt, a seu modo, chegou à conclusão de que a
2 ordem burguesa não se assenta em princípios inabaláveis, representando antes
um construto social que uma realidade pronta e acabada, tal como propugnaram
0 figuras de proa do pensamento contemporâneo (DERRIDA, 1973; DELEUZE e
GUATTARI, 1995).
1 Ricardo Piglia, para quem Arlt foi o fundador da novela moderna argentina
(ABDALA, s.d.), pronunciou-se nos seguintes termos a respeito do escritor: “Se opone
8 frontalmente a la norma pequeñoburguesa de la hipercorreción que há servido para
definir el estilo medio de nuestra literatura” (PIGLIA, 1986, p. 20). Voluntariamente
ou não, Arlt contribuiu para conscientizar os deserdados da sociedade de que a
situação desfavorável em que estão imersos não é determinada por leis imutáveis e
de que podem agir no intento de superá-la.
A discriminação contra as representações sociais de membros das classes
subalternas não é outra coisa senão ideologia, no pior sentido do termo, dado que
qualquer ser humano, seja qual for a sua origem, tem direito de expressar-se, de
modo que as interdições contra este princípio refletem com clareza meridiana as
lutas pelo poder, como demonstrou à exaustão Foucault (1985), em seus estudos
sobre micropolítica. O herói arltiano é um sujeito irresignado, insatisfeito com a
própria condição, um ser que, impelido pelo desejo, pretende romper as amarras
que lhe cerceiam o pleno exercício do poder. Não por acaso, Nietzsche e Dostoiévski,
autores que colocam o inconformismo no centro de suas reflexões, como fica muito
claro, respectivamente, em “Além do bem e do mal” (2005) e “Notas do subsolo”
(2008), são as referências mais óbvias de Arlt (AVELAR, 1999).
Seja pela vasta galeria de tipos humanos presentes em seus relatos, todos
J eles rejeitados de alguma forma pelo sistema – gângsteres, punguistas, bêbados,
prostitutas, malandros -, seja pela incorporação do falar popular aos seus textos,
A ou ainda, pela ousadia temática, que o levou a tratar de questões incômodas, tais
como os entraves às aspirações dos integrantes das classes sociais desfavorecidas
L (ARLT, 2014), a fantasia como subterfúgio a condições de vida indesejadas (ARLT,
2011) e a criminalidade como válvula de escape para frustrações e ressentimentos

(ARLT, 2000), Arlt rompe claramente com os valores burgueses,o que o inscreve
L de maneira definitiva no rol dos malditos, qualificação dada por Verlaine (1888)
aos poetas com trajetória análoga à sua. Ressalte-se, contudo, que ele prescinde
A de defensores, pois sua obra fala por si só. Escutemos, então, o que ela tem a nos
dizer.
Arlt, o homem que não estava lá (onde se esperava que estivesse)
Os contos reunidos em “Armadilha mortal” (ARLT, 1997) são uma pequena
amostra das inovações promovidas pelo escritor. Em “A pista dos dentes de ouro”,

a dentista Diana Lucerna desiste de informar à polícia uma evidência que poderia
724 conduzir um assassino à prisão porque se identifica tanto com a motivação do
• crime quanto com o autor do mesmo, Lauro Spronzini, um romântico rapaz que
quis reparar o suicídio da irmã, causado pelas promessas incumpridas de um
sedutor. Para justificar seu ato, Lauro declara: “Quis que soubesse que estava
sendo castigado porque a lei não castiga certos crimes” (ARLT, 1997, p. 17). Um
narrador onisciente acrescenta, logo em seguida: “Diana Lucerna pensa que ele
2 tem razão” (ARLT, 1997, p. 17).
A contestação consubstanciada na atitude do protagonista se aproxima
0 da noção foucaultiana de heterotopia, explicada neste trecho de “Ditos e escritos”:
Há, igualmente, e isso provavelmente em qualquer cultura, em qualquer
civilização, lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na
1 própria instituição da sociedade, e que são espécies de contraposicionamen-
tos, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamen-
8 tos reais, todos os outros posicionamentos reais que se podem encontrar
no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e
invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora
eles sejam efetivamente localizáveis (FOUCAULT, 2001, p. 415).

Para usar uma expressão do momento, Arlt faz uso de seu “lugar de fala”
(RIBEIRO, 2017) com o objetivo de subverter a normatividade vigente, no que se
põe fora das malhas do poder oficial. Sua prosa surpreende por configurar um
lócus privilegiado, situado onde não se esperava encontrá-lo.
Em “Um argentino entre gângsteres”, o engenheiro Humberto Lacava é
sequestrado por um grupo de criminosos para construir uma roleta viciada que
pudesse ser manipulada conforme as conveniências da banca. Os meliantes
oferecem duas alternativas ao profissional: ou ele constrói o equipamento e embolsa
vinte mil dólares, ou não o faz e é sumariamente executado. Lacava não alimenta
ilusões a respeito de seus semelhantes, por isto sabe que será assassinado de
qualquer forma, esclarece Arlt:
Com a roleta elétrica o bando daria um golpe em grande escala e somente
um ingênuo podia sonhar com a próxima libertação. Mas Lacava não estava
J acostumado a fazer cálculos sobre boas intenções. Sua infância, transcorri-
da nos arrabaldes portenhos, dotara-o de uma astúcia fria e vigilante (ARLT,
1997, p. 29).
A
Assim, aproveita-se da distração dos três capangas que o vigiavam para

eletrocutá-los na invenção em que trabalhava, empreendendo fuga com os dólares
L
a ele prometidos. Os que, como o engenheiro e Arlt, cresceram em meio à pobreza,
com todas as dificuldades inerentes a essa condição, não se podem dar ao luxo
L da credulidade, ínsita à moralidade burguesa. Para estas pessoas, o bem, em vez
de ser um conceito absoluto, alusivo à eternidade, admite relativizações, por tocar
A num ponto deveras palpável: a sobrevivência.
Conclusão
Ao contrário da maioria das pessoas de extração popular, as quais
conformam-se às regras do jogo social, os personagens de Arlt fazem suas
próprias leis, e não seguem nenhuma norma, a não ser aquelas que eles mesmos

se autoimpuseram, a fim de implementar sua vontade de poder. Sob o signo da
725 revolta, elaboram estratégias para conquistar o que entendem que lhes cabe, indo
• na contramão dos valores convencionais. Ao retratar figuras emblemáticas do
universo social, Arlt faz, mais que literatura, antropologia, tamanho o interesse
humano de que se reveste seus textos, nos quais é possível encontrar o registro de
situações que são, em grande medida, universais.
A dicção arltiana, irregular, em alguns momentos, é um indício da privação
2 material a que o escritor esteve submetido na maior parte da sua curta existência.
Entretanto, nada, senão o preconceito, impede que tais “erros” sejam encarados
0 como virtudes. Os letrados, ao descerem de seus pedestais, podem aprender várias
coisas com os desprivilegiados, e talvez a lição mais importante seja conhecer
o sofrimento provocado pelas injustiças sociais. Desde sempre, tenta-se calar
1 os subalternos, até porque a palavra é a ferramenta-chave para intervenção no
mundo, e os poderosos não possuem nenhum interesse na mudança da correlação
8 das forças sociais. Muitos pobres se resignam ao mutismo que lhes é imposto, o
que não é o caso de Arlt, para sorte de seus leitores.

Não obstante diversos críticos, movidos por uma lógica excludente,
defendam a pureza na literatura, a qual, segundo eles, não deveria contaminar-se
com os aportes de indivíduos das classes baixas, é preciso reconhecer que o mundo
das letras, ao invés de estar apartado do meio social circundante, nutre-se dele,
num autêntico imbricamento. A concepção aristocrática da cultura não tem outra
finalidade que não seja a da manutenção das desigualdades sociais. Arlt parece
intuir que saber e política caminham pari passu. Sua contribuição, portanto, não
se restringe ao campo literário, pois alcança também a dimensão democrática.
Referências
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CARVALHO, Rosemeire Andrade de Oliveira Romão. Roberto Arlt, cronista e viageiro.
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JORGE, J. E. Roberto Arlt, em escritor torturado? Revista Estação Literária. Londrina,
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NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.
8
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RIBEIRO, M. P. G. Entrevista possível com Arlt. REVISTA USP, São Paulo, n.47, p. 105-
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RIBEIRO, D. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Editora Letramento, 2017.
VERLAINE, P. Les poètes maudits. Paris: Léon Vanier Éditeur, 1888.
J

A

L FLAUSINO VALLE: QUESTÕES DA NATUREZA E INFÂNCIA EM
SEUS POEMAS
L
Leonardo Vieira Feichas (UFAC)
A Letícia Porto Ribeiro (UFAC)
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar poemas de Flausino Valle
(1894 - 1954), mostrando como suas temáticas poéticas relativas à natureza, à
infância e à saudade se relacionam com os suas composições musicais. Buscamos,
também, a divulgação da obra poética de Flausino Valle, ainda pouco estudada.
• Valle se tornou conhecido internacionalmente por um de seus Prelúdios para
violino intitulado “Ao pé da fogueira”. No entanto, compôs 26 Prelúdios tendo
727
como inspiração a paisagem sonora do interior mineiro. Valle também atuou como
• estudioso do folclore e escritor, tendo publicado colunas sobre os mais diferentes
assuntos. Dentre suas obras escritas, está “Calidoscópio” (1923), um livro de
poemas sobre o qual nos deteremos neste artigo e contém diversos poemas escritos
desde 1912  até o ano de sua publicação. Analisaremos os poemas sobretudo a
partir de seus conteúdos, tendo como autores de apoio Williams (1979, 2008,
2 2011), Bakhtin (2003) e Bhabha (2005).
Palavras-chave: Flausino Valle. Infância. Natureza. Poesia.
0
O presente artigo tem como objetivo analisar poemas selecionados de
Flausino Valle (1894 - 1954), mostrando como suas temáticas poéticas relativas à
1
natureza, à infância e também à saudade se relacionam com os seus Prelúdios para
violino solo. Valle foi violinista, compositor, advogado e escritor mineiro, natural de
8 Barbacena e radicado em Belo Horizonte. Se tornou conhecido internacionalmente
por um de seus Prelúdios para violino solo intitulado Prelúdio XV - “Ao pé da
fogueira”, que foi gravado por violinistas conhecidos mundialmente. No entanto
compôs ao todo 26 Prelúdios tendo como inspiração a paisagem sonora do interior
mineiro, que hoje se encontram em processo de divulgação graças às pesquisas que
vêm se desenrolando desde o final do século XX (Alvarenga, 1993; Frésca, 2008;
Feichas, 2016). No entanto, Valle também atuou durante sua vida como estudioso
do folclore e escritor, tendo publicado colunas em jornais sobre os mais diferentes
assuntos. Dentre suas obras escritas, estão o “Elementos do Folclore Musical
Brasileiro” e “Calidoscópio”, sendo o último um livro de poemas e sobre o qual nos
deteremos neste artigo. O livro “Calidoscópio” publicado em 1923 pela Typografia
do Diário de Minas, contém diversos poemas escritos por Valle desde 1912 até o
ano de sua publicação, e tratam principalmente de temáticas de amor, natureza,
pátria, infância, saudade, família e relativos à cidade de Barbacena. Analisaremos
os poemas sobretudo a partir de seus conteúdos, tendo como principais autores de
apoio Williams (1979, 2008, 2011), Bakhtin (2003) e Bhabha (2005).
Valle, em suas obras musicais e literárias, expressa sua múltipla
J formação. Nos restringimos aqui, entretanto, às questões relativas à infância e à
natureza em seus poemas e composições, buscando estabelecer as impressões do
A poeta/compositor em relação a essas temáticas, sempre que possível realizando
uma ligação entre a obra poética e musical. Tanto em seus poemas quanto em suas
L composições percebe-se a vida no campo e a natureza como questões recorrentes.
E, intimamente ligada com o campo está a infância, e não somente em relação

à memória: Valle escreveu poemas humorísticos nos quais busca transmitir a
L inocência infantil em relação a temas cotidianos.
Partimos para desenvolvermos nossa reflexão, também, da afirmação de
A Raymond Williams a respeito da representação literária do campo:
Em torno das comunidades existentes, historicamente bastante variadas,
cristalizaram-se e generalizaram-se atitudes emocionais poderosas. O cam-
po passou a ser associado a uma forma natural de vida - de paz, inocência
e virtudes simples. À cidade associou-se a ideia de centro de realizações - de
• saber, comunicações, luz. Também constelaram-se poderosas associações
negativas: a cidade como lugar de barulho, mundanidade e ambição; o cam-
728 po como lugar de atraso, ignorância e limitação (WILLIAMS, 2011, p. 11)
• A ideia de “estrutura de sentimento” trazida por Williams também é útil
para entendermos as formas com as quais o campo e a cidade eram pensados e
sentidos no começo do século XX no Brasil, período ainda inicial da urbanização.
A noção de estrutura de sentimento guarda relação com a experiência vivida e à
consciência prática:
2 A consciência prática é aquilo que está sendo realmente vivido, e não ape-
nas aquilo que acreditamos estar sendo vivido. Não obstante, a alternativa
0 real às formas fixas recebidas e produzidas não é o silêncio: não ausência,
o inconsciente, que a cultura burguesa mitificou. É um tipo de sentimento
e pensamento que é realmente social e material, mas em fases embriônicas,
1 antes de se tornar uma troca plenamente articulada e definida. Suas rela-
ções com o que já está articulado e definido são, então, excepcionalmente
8 complexas. (WILLIAMS, 1979, p.133)

Williams chama, portanto de modificações na estrutura de sentimentos


essas modificações vividas, presentes nas experiências que se encontram ainda
em processo, que ainda são emergentes. O termo sentimento se refere não à
visão de mundo ou ideologia, mas à experiência: “Falamos não de sentimento
em contraposição ao pensamento, mas de pensamento tal como sentido e de
sentimento tal como pensado: a consciência prática de um tipo presente, numa
continuidade viva e inter-relacionada” (WILLIAMS, 1979, p. 134). Williams afirma
ainda que a noção de estrutura de sentimentos é de especial relevância para a arte
e a literatura, estando relacionada, por exemplo, em formas e convenções ligadas a
uma determinada nova estrutura em formação.
Para Bakhtin (2003) todo enunciado responsivo a outros enunciados,
assim como todo discurso suscita uma resposta, sendo direcionado a alguém. Valle
dialoga com outros enunciados relativos ao ambiente rural brasileiro, com suas
relações, que deixou para trás, bem como as narrativas do contexto para qual havia
se mudado (da “modernidade” de Belo Horizonte) e aos convívios do novo ambiente.
J A cidade de Belo Horizonte do começo do século XX estava no período denominado
Belle Époque brasileira, e foi construída com tentativa de passar ares “modernidade”
A e europeização (FEICHAS, 2016). Quando Valle se dirigiu para lá, em 1912, era
uma cidade “jovem”, já que Belo Horizonte foi uma cidade planejada, tendo sido
L inaugurada em 1897. O Brasil era, então, ainda um país predominantemente
agrícola (FAUSTO, 2012).

Dentro desse contexto e na sua profissão Flausino Valle de certa forma
L
representa um entre lugar (BHABHA, 2005), isso porque está sua composição
musical revela uma hibridização das formas tradicionais de uma música “tradicional”
A (“erudita”, ou pelo menos, produzida por um instrumento “erudito”) mas com um
caráter popular, refletindo as vicissitudes do ambiente rural em que cresceu - sua
música aborda os aspectos cotidianos do interior mineiro: as festas de São João, os
cantos dos pássaros, a viola caipira, histórias folclóricas.
Valle, em seus poemas, relaciona a infância com a natureza e o campo.
• Isso se deve ao fato que ele viveu sua infância lá e emigrou no fim da adolescência,
729 aos 18 anos - Williams (2011) afirma que a nostalgia é um sentimento universal.
• Isso se deve ainda ao fato de que a cidade, afirma Williams, acaba por representar
o individualismo - apesar da multidão - e a solidão, em oposição aos laços mais
íntimos (pelo menos aparentemente) que eram proporcionados nas pequenas aldeias
ou nos campos. A solidão, novamente, é uma palavra recorrente nos poemas de
Valle. O isolamento que, afirma Williams, viria no século XX a ser visto como a
2 “realidade de toda existência humana” (WILLIAMS, 2011, p. 385). Em adição a isso,
pode se citar, ainda em Williams, a idealização do sedentarismo que surgiu na
Idade Média e acaba por persistir nos anos posteriores - presente, afirma Williams,
0 inclusive nele próprio:
em torno da ideia de sedentarismo desenvolveu-se toda uma estrutura de
1 valores. Essa estrutura baseia-se em muitos sentimentos profundos e per-
sistentes: uma identificação com as pessoas com quem nos criamos; um
apego ao lugar, à paisagem, onde começamos a vida e aprendemos a ver.
8 (WILLIAMS, 2011, p. 144)

Williams desenvolve esse raciocínio posteriormente, quando trata das


modificações levadas à cabo na paisagem camponesa:
Não se trata apenas da perda do que pode ser chamado - às vezes com razão,
às vezes só por afetação - de “natureza intacta”. Para qualquer homem em
particular há também a perda de uma paisagem especificamente humana e
histórica, que gera sentimentos não por ser “natural” e sim por ser “natal”
[...]. Assim, a perda mais lamentada - a das “coisas mais queridas” - é a per-
da da infância causada pela destruição da paisagem imediata [...]. Uma ma-
neira de ver foi associada a uma fase perdida da vida, e a associação entre
felicidade e infância deu origem a toda uma convenção, na qual não apenas
inocência e segurança, mas também paz e abundância, foram incorpora-
das, de modo indelével, primeiro à paisagem, e depois, numa extrapolação
poderosa, a um período específico do passado do campo, agora ligado a uma
identidade perdida, a relações e certezas perdidas, na lembrança do que
é denominado, em contraposição a uma consciência presente, Natureza.
(WILLIAMS, 2011, pp. 234-235)

J É necessário também analisarmos os estereótipos do homem do campo,


presentes, afirma Williams, em “todos aqueles que herdaram, de fontes muito

diversificadas, um velho desprezo pelo camponês, o matuto, o caipira, e que,
A portanto têm como moeda corrente todo um repertório acumulado de estereótipos
de um meio rural distante [...].” (WILLIAMS, 2011, p. 67)- ao conhecer Valle, não
L há como não pensar de certa forma novamente na solidão que sentia na cidade, e
como suas obras eram ignoradas por alguns de seus pares.
L “Todo aquele que vive no campo vivencia, ou julga vivenciar, de vez
em quando, uma natureza imediata: uma percepção direta e física das árvores,
A pássaros, formas móveis da paisagem” (WILLIAMS, 2008, pp. 198-199). Valle
também traz esse sentimento evocado por Williams em suas poesias: conhece os
pássaros que vivem no campo da sua infância, seus nomes, como cantavam, bem
como as plantas, árvores e histórias populares.
Iniciamos nosso artigo por um dos poemas mais compridos do livro
• “Calidoscópio” e também um dos mais ricos em referências às múltiplas facetas
que constituem a figura Valle. Optamos por reproduzir o poema na íntegra, seguido
730
de sua análise, dado que não é fácil ter acesso ao seu livro ou poemas:
• O Passaro Selvagem1

A Monteiro Lobato

Então, só por os pássaros mais varios;/ Gaturamos, sabiás, curiós, ca-


narios,/Azulões, pintasilgos e fradinhos,/ Serem reis entre nossos pas-
2 sarinhos;/ E só porque são alvos de louvores,/ O rouxinol e seus rivaes
cantores,/ Que habitam plagas para além do Atlantico,/ Temos razão de
desprezar o cantico/ De tantissimos passaros sem nome,/ Mas dignos igual-
0 mente de renome,/ Só porque levam vida mais modesta/ Embrenhados no
seio da floresta?!/ Si uns cantam, em gaiolas as mais finas,/ Nas salas no-
bres, cheias de cortinas,/ Dos palacios sumptuosos das cidades, / Outros
1 dão preferencia ás soledades,/ E só expandem um prazer ou agrura,/ Em
contacto directo co’a Natura// E onde está o edifício, por mais rico,/ Que
8 comparar se possa a um pé de angico,/ A um jatobá frondoso, um pinho,
um cedro,/Torres Eifels e cup’las de S. Pedro,/ Que em profusão se vêm
nas selvas bastas,/ Ou espalhadas nas campinas vastas?/ Qual Vaticano,
Alhambra ou Tulherias,/ A’s matas seculares e sombrias, / Palacios onde
reina a natureza,/ Supere em magestade ou em riqueza?/ Nos bosques ha
vidrilhos evelludo/ em tudo!/ Velludo pelo chão, tapete raro,/ Que excede,
das cidades, o mais caro,/ Formado por um musgo verde e lindo;/ Pelas
pedras e troncos que, subindo,/ Cobrem de todo os lichens multicôres;/
Velludo ainda nas petalas das flores,/ Nas folhas, fructos, de perfumes su-
aves,/ Nas azas dos insectos e das aves!/ Milhares de aranhões fulgindo,

1  Mantivemos a ortografia do autor


e os brilhos,/ Do orvalho appens em gottas, são vidrilhos/ Nem faltam lá
cortinas deslumbrantes/ De oiro em seda bordadas e a diamantes,/ Pela
aranha que as tece, e então se apoia, / Bem no centro, a encantar, qual rica
joia!/ Ao sol o mar de folhas brilha tanto,/ Como si ungidas por um oleo
santo;/ São laminas de bronze, aluminio, aço,/ As quaes, descendo dos
confins do espaço,/ Tange ora calmo, ora revolto, o vento,/ Fazendo dellas
magico instrumento./ Quando sopra ao frescor de mansa aragem,/ Doce
ferindo as teclas da folhagem,/ É tão melliflua a musica e tão calma,/ Que
J só a entedem os ouvidos dalma./ Porém, si vae aos poucos argumentando,/
Em breve a mata immensa baloiçando,/ Transforma-a toda inteira em har-
monias,/ Produzindo sublimes symphonias!/ Si ainda vem distante e longe
A guaia,/ Lembra as ondas do mar beijando a praia./ Chegando, duras folhas
noutras bate:/ Range os taquarussus; e de um combate/ Em que se empe-
nham troncos, folhas, galhas,/ Traduz a ideia de hórridas batalhas,/ Com
L retintins de sabres e de espadas!/ Noutras partes do mato, socegadas,/
Nos gomos dos bambus e das taquaras,/ Já seccos e oucos, em compridas
L varas,/ Elle compõe os mais sentidos hymnos,/ Com graves tons com so-
nos de organs divinos!/ E a terra, commovida até parece/ Atirar para o céo
magistral prece/ Nas myriades de sons que no ar lhe envia,/ Emanações de
A dôr e de alegria./ Pois bem, é neste oceano de bellezas,/ Pelos grotões, re-
chans, invias devezas,/ Que alados menestreis desatam cantos,/ Explosões
de prazer ou tristes prantos./ Quando é placida a selva, em dia pleno,/ Um
trillo aqui se escuta, ali um threno,/ Quaes fossem de Chopin ou de Beetho-
ven!/ Não se descreve a musica selvatica!/ Rindo, um sobe outro desce uma
chromatica!/ Entre os guaches, que são flores de pennas,/ Cheia orchestra
organizam dois apenas!/ O inhambu; de crystal tendo a garganta,/ Pia tão

lendo, que nem pia, canta!/ A pomba jurity, ao som das aguas,/ De um cor-
731 rego queixoso, chora as maguas./ De um arisco macuco se ouve um pio,/
Sentindo-se no corpo um arrepio,/ Tal a emoção que causa a simples nota,/

Que vae repercutindo grota em grota!/ Bem no amago da mata a gente es-
barra/ Com passaros gritando em algazarra;/ Certo é dos tangarás o bando
alacre../ Uns azues, da cabeça côr de lacre;/ São os machos; as femeas,
esverdeadas;/ Ajuntam-se num ponto das ramadas./ E a um silvo, ordem
do chefe, sempre um macho,/ Postado no alto e os outros mais abaixo,/ Co-
2 meçam a dansar uma quadrilha,/ Sem faltar o que mais nos maravilha/ Os
tours, os balancez, chains de dames!/ Faz o bando o zum-zum de um gran-
de enxame,/ Com rufos de tambores. Castanholas,/ Estalam no ar, e ha
0 fremitos de violas!/ Mas eis que, de repente,/ O maestro solta um pio alto,
estridente,/ E param, num só tempo, baile e canto,/ Como que por encan-
to!/ Em torno os outros passaros pousados/ Mudos, contemplam, de extase
1 tomados./ E como os tangarás só fazem festa/ Quando ha calma completa
na floresta,/ Terminadas a dansa e a algaravía,/ O silencio domina a mata-
8 ria/ Não raro um desses passaros selvagens,/ Alça o vôo atravessa ermas
paragens,/ A fim de uma excursão pelas cidades;/ Ahi chegando, já morto
de saudades,/ Desnastra o canto seu desconhecido,/ Mas natural, sincero
e enternecido./ Os meninos, em malta, surgem logo/ E com pedradas mil,
fazem-lhe fogo!/ Em seguida, não tarda, um seu collega,/ Bem-te-vi ou the-
soura, presto chega;/ E ameaçando cobril-o de bicadas,/ Guincha e assobia
em vaias prolongadas./ Mas o extranho cantor tão alto pousa/ Que nenhu-
ma pedrada attingil-o ousa./ Conclue serenamenente o canto, e então…/
Recolhe-se outra vez á Solidão

B.H. 1-7-1920
O poema pode ser dividido em algumas partes: na primeira, apresenta os
pássaros seriam apreciados e conhecidos por seu canto mas, afirma o autor, outros,
por sua vez são mais desconhecidos e por isso desprezados: tanto aqui como na
parte final do poema pode-se inferir que Valle se refere não somente aos pássaros,
como a si mesmo ou ao autor a quem dedica o poema, Monteiro Lobato, ou mesmo
se refere a ambos: ele, como os pássaros anônimos, são ignorados “só porque levam
vida mais modesta,/ embrenhados no seio da floresta”. A essa constatação também
J contribui o fato de que em alguns de seus outros poemas Valle contrapõe o mundo
interior ao mundo exterior: “Si o mundo é grande, bello e multifario/, outro mundo
maior, mais lindo e vario,/ trazemos no imo: o espirito bemdito,/ A alma - infinito
A
dentro do infinito” (VALLE, 1923, p. 93), com paisagens que o autor compara às
do mundo exterior: “No subconsciente, em doces amavios,/ sorriem corregos e
L riem rios,/ e cantam cachoeiras e cascatas;” (VALLE, 1923, p. 94). Se isso não
basta para a constatação de que “Pássaro Selvagem” é um poema biográfico, os
L sentimentos de Valle ao escrever o poema “Lyra Descrente” podem sanar a dúvida:
Valle reclama da hipocrisia, de que “Muitas vezes quando eu penava,/ meu soffrer
A aos amigos contava,/ em versos repassados de tristeza;/ e ao lel-os tenho certeza,/
de mim todos se riam/ e aos meus queixumes não ouviam”.
No entanto, outros aspectos interessantes em “Pássaro Selvagem” estão
na segunda parte na qual dividimos o poema e constituem a descrição detalhada
dos cenários que constituem o ambiente de vivência de Valle, com a comparação
• dos equivalentes “naturais” às construções e atividades humanas:
732 E onde está o edifício, por mais rico,/ Que comparar se possa a um pé de an-
gico,/ A um jatobá frondoso, um pinho, um cedro, / Torres Eifels e cup’las
• de S. Pedro,/ Que em profusão se vêm nas selvas bastas,/ Ou espalhadas
nas campinas vastas?/ Qual Vaticano, Alhambra ou Tulherias,/ A’s matas
seculares e sombrias,/ Palacios onde reina a natureza,/ Supere em mages-
tade ou em riqueza?/ Nos bosques ha vidrilhos evelludo em tudo!

As comparações seguem mostrando que as criações naturais não devem


2 em nada às construções humanas, cada qual das grandes construções que aponta
encontram seu equivalente na mata - isso para chegar por fim à música dos
0 pássaros, que também não é inferior àquelas de compositores famosos - Chopin e
Beethoven. Por outro lado, pode-se supor que elas também evocam um sentimento
1 de inferioridade, caso contrário não haveria necessidade de comparar algo que,
naturalmente seria “belo” ou “engenhoso”, às construções humanas.

8 Também deve-se atentar para a meticulosa descrição da paisagem visual
e sonora desse ambiente: os cantos tristes, a “algazarra”, as cores variadas dos
pássaros que dançam em “quadrilha”, os nomes das espécies e seus costumes, que
Valle conhece e explica para o leitor.
Por fim, a comparação sofre uma mudança e aos pássaros surge um
paralelo com os humanos, mencionada acima, nos versos, e que se repete nessa
terceira parte:
Não raro um desses passaros selvagens,/ Alça o vôo atravessa ermas pa-
ragens,/ A fim de uma excursão pelas cidades;/ Ahi chegando, já morto de
saudades,/ Desnastra o canto seu desconhecido,/ Mas natural, sincero e
enternecido./ Os meninos, em malta, surgem logo/ E com pedradas mil,
fazem-lhe fogo!/ Em seguida, não tarda, um seu collega,/ Bem-te-vi ou the-
soura, presto chega;/ E ameaçando cobril-o de bicadas,/ Guincha e assobia
em vaias prolongadas./ Mas o extranho cantor tão alto pousa/ Que nenhu-
ma pedrada attingil-o ousa./ Conclue serenamenente o canto, e então…/
Recolhe-se outra vez á Solidão

O Pássaro Selvagem (ou Flausino Valle) sai da floresta e vai para a cidade,
J onde é apedrejado. Há uma ambiguidade que pode aqui ser mencionada: o bem-te-
vi cobre de bicadas os meninos ou o Pássaro que veio da mata? Como conjuga no
singular “cobril-o”, o verbo concorda com o Pássaro e não com os meninos. Portanto,
A o pássaro sofre o ataque dos meninos (ou da comunidade) e do seu “collega” pássaro
(outros músicos), já adaptado e pertencente à cidade, que guincha e assovia em
L “vaias prolongadas”, relegando o Pássaro Selvagem à solidão - solidão também que
assombra Valle em diversos outros poemas, e frequentemente associada à noite e
L à escuridão.
Valle retorna, de certa forma, à inocência infantil, em poemas nos quais
A se refere à crianças que ainda não conseguimos descobrir quem são: Lulu e Dedé,
descrevendo acontecimentos e perguntas pitorescas protagonizadas por essas
personagens. Trazemos aqui novamente Williams, que afirma que:
com frequência uma ideia do campo é uma ideia da infância: não apenas de
lembranças localizadas, ou uma lembrança comum idealmente comparti-
lhada, mas também a sensação da infância, de absorção deliciada em nosso

próprio mundo, do qual, no decorrer do processo de amadurecimento, ter-
733 minamos nos distanciando e nos afastando, de modo que essa sensação e o
mundo tornam-se coisas que observamos. (WILLIAMS, 2011, p. 484)

E Valle traz, nos poemas a seguir, essa observação da imagem da infância
e que evoca essa sensação de infância observada que é descrita por Williams -
talvez as personagens sejam lembranças ou crianças ao seu redor, como se pode
perceber em “Uma do Lulu” (1914):
2 Lulu que conta cinco primaveras,/ Ao bravo Pedro Malasartes ganha,/ Em
se tratando de árdega façanha./ Sobe nas arvores, amansa feras,// E os
proprios maribondos das taperas/ Fogem ao verem-no e elle os acompa-
0 nha./ Ao pae fez hoje esta pergunta extranha:/ Deix’eu casá com a vóvó?
Deveras// Gosto della, e é de mim que a vóvó gosta./ Que maluquice, filho! -
1 disse o pae -/ Pois queres te casar com minha mãe?!// E Lulu deu-lhe então
esta resposta,/ Franzindo as sobrancelhas: uei papae!/ Pois ocê não casou
com a mamãe?! (B. H. 10-10-1914)
8
O poema apresenta um tom humorístico que expõe, primeiramente,
a representação do personagem: uma criança de 5 anos, que ganha do “bravo
Pedro Malasartes” nas façanhas, que assusta até os marimbondos. De acordo com
CASCUDO (2012), Malasartes (ou Malas Artes) é um personagem astucioso e sem
escrúpulos, tradicional da Península Ibérica e que chegou até o Brasil e outros
países da América, estando presente na poesia e em contos populares. E, a seguir,
Valle expõe a inocência infantil quando a criança expressa a vontade querer se casar
com sua própria avó. A inocência está ligada, portanto, a um ambiente específico:
a familiaridade com os maribondos, com as árvores e com as “feras” indicam um
ambiente que seria o campo ou uma cidade pequena.
Os mesmos questionamentos e reso luções infantis estão presente em
“Diálogo Íntimo”, de 1915:
Estavam no quintal o bilontrinha Indim,/ Seu carinhoso pae que um livro
lia attento,/ E o africano Julião, já velho, pachorrento,/ Que um tapume
acava. O filho disse assim:// Papae, quem fez tudo isto aqui perto de mim?/
J As arvores, a serra? E o pae num breve acento:/ Foi Deus, meu filho. -O
Indim proseguiu: e o vento,/ A claridade, o sól… e o céo que não tem fim//
O pae tornou: Deus, filho. - Após alguns instantes,/Retorquiu a creança:
A e aquella cerca ali?.../ Fala, papae! - Deus, de certo, o mesmo dantes./ O
Indim pensou, pensou e concluiu: uei, paezinho!/ Siô Julião é que é Deus?
L Fazer a cerca eu vi!?.../ Nisto o pae o abraçou em beijos de carinho./B. H.
6-5-1915.

L Depreende-se portanto, que Valle vê a infância ligada à inocência, ao
raciocínio ingênuo, ao afeto com os entes queridos (a avó e o pai) o que seria perdido
na idade adulta e na cidade, quando, por exemplo, o pássaro Valle, indo para a
A capital, é atacado pelos outros pássaros. É interessante abordar aqui também,
mesmo que superficialmente a questão racial: a criança tem o apelido de “Indim”,
talvez por ter ascendência indígena, ou pelo menos aparência indígena - aqui é
pertinente apontar que Valle deu o nome de seus filhos o de líderes indígenas:
Guatémoc, Huascar (Incas) e Araken (“pássaro que dorme” em Tupi2). O fato

também de a criança não duvidar que o “africano” Julião é Deus - expõe quiçá uma
734 surpresa por “Deus” estar tão perto - também é significativo da posição de Valle
• em relação às questões raciais.
Ainda nos poemas, a separação da cidade de sua origem e de seu passado
é dolorosa para Valle, como escreve em “Monologando” (1912):
Dezoito annos vivi alegremente./ de paes, de irmãos, de avós em compa-
nhia,/ sem nunca ter pensado que em un dia/, Mister era deixal-os, triste-
2 mente.// De amor como o que eu tinha a minha gente,/ E á terra onde nas-
ci, ninguem sabia!/ Pois si grande este amor me parecia,/ distante eleva-se
ao mais alto expoente!// Tudo hoje são lembranças e saudades!/ Recordo-
0 -me de todas as idades,/ Porque passei de creança até menino.// Mas quem
mandou-me vir?/ fui intimado?/ Por que razão, em um momento dado,//
Mudar-me resolvi?... - Foi o Destino. (B. H. 27/12/1912)
1
Os anos felizes, para Valle, são os que ele passou ao lado de sua família,
8 ligada, também à terra onde vivia. A separação aumenta ainda mais esse amor - a
data de sua composição, 27 de Dezembro, também, provavelmente, exerce grande
influência em seu estado de espírito. Em um só poema os motivos da separação
são vários: era mister, ou seja, forçoso, ao mesmo tempo, se culpa, pois afirma que
não foi “intimado”, e que mudar foi uma resolução, imediatamente após isso afirma
que foi o destino. Destino ou opção, o que a pesquisa de Feichas afirma é que
Valle foi para Belo Horizonte para trabalhar e estudar, graduando-se em Direito
(FEICHAS, 2016), e, também essa separação de sua terra natal será o tom de vários

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de seus poemas, como, além dos mencionados acima: “Soffrimento”, “Instantes de
descrença” e “A Sesta”.
Considerações finais
Pode-se perceber que Valle mantinha, pelo menos no campo das
temáticas, semelhanças entre sua obra musical e sua obra poética, e, em ambas,
o aspecto biográfico é particularmente forte. Os ataques narrados em “Pássaro
Selvagem” são condizentes com aspectos da vida de Valle apontados na pesquisa
J de Feichas: Valle preferia tocar para pequenas plateias, não conseguiu ser aceito
em uma orquestra do Rio de Janeiro, e afirmou, para sua família, que “a música
A é a arte de harmonizar os sonos e desarmonizar as pessoas” (FEICHAS, 2016,
p. 26) - Valle tinha uma maneira própria de tocar o violino, e, de acordo com os
L registros que deixou escritos, respeitava muito essa arte. Valle, teria dito ainda
ao seu filho Guatémoc que ele “arrancava o som do chão da terra” - uma forma
L poética de tratar sua própria arte, aberta à múltiplas interpretações - seria uma
forma mais “bruta” de tocar, ou uma forma mais expressiva? De qualquer forma, é
narrado que Valle não se “encaixava” nas orquestras da cidades, fora a orquestra
A do Cine Odeon, na qual tocou durante anos, e o fato de não ter sido sua obra
compreendida no seu tempo era motivo de queixas. Ao mesmo tempo, em suas
composições evoca a natureza (“Tico-Tico”, “A mocinha e o papudo”), festas (“Pai
João”, “Tirana RioGrandense”) e evocações de temas infantis ou músicas escritas e
interpretadas por ele para crianças (“Devaneio”, “Acalanto”e “Rondó Doméstico”).

Em resumo, podemos concluir que, assim como na obra violinística, a
735 obra poética de Flausino Valle revela uma grande importância do ambiente como
• inspiração para o poeta/compositor. Em Valle o campo e a floresta representam a
“beleza natural”, a inocência - particularmente a da infância, e também a nostalgia
e, de forma mais destacada, uma complexidade à qual ele estava bem familiarizado,
como exposta no “Pássaro Selvagem”.
Referências
2 ALVARENGA, Hermes Cuzzuol. Os 26 Prelúdios Característicos e Concertantes para
Violino só. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: UFRS, 1993.
0 BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução: Paulo Bezerra. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 2003.
1 BHABHA, Homi. O local da cultura. Tradução: Myriam Ávila, Eliana Reis e Gláucia Gon-
çalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.

8 CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 12a. Edição conforme


última edição revista pelo autor. São Paulo: Global, 2012.
DICIONÁRIO DE NOMES PRÓPRIOS: Significado dos nomes. Disponível em: <https://
www.dicionariodenomesproprios.com.br/araquem/> Acesso em 31/05/2018
FAUSTO, Boris. História do Brasil. Colaboração de Sérgio Fausto. 14a. ed. atual. e amp.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012.
FEICHAS, Leonardo Vieira. Da Porteira da Fazenda ao Batuque Mineiro: o Violino Bra-
sileiro de Flausino Valle -1.ed.- Curitiba: Editora Prismas, 2016.
FRÉSCA, Camila. Uma extraordinária revelação de arte: Flausino Vale e o violino bra-
sileiro. Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, 2008.
VALLE, Flausino Rodrigues. Elementos de Folclore Musical Brasileiro. 2a. Edição. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978.
VALLE, Flausino. Calidoscópio: versos. Belo Horizonte: Typ. do Diário de Minas, 1923.
VALLE, Flausino Rodrigues. Caderno de Notas Curiosas. Barbacena/ Belo Horizonte:
1894-1954. Diário de notas pessoais.
WILLIAMS, Raymond. Cultura. 3a. Edição. Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira. São Pau-
lo: Editora Paz e Terra, 2008.
J WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: Na história e na literatura. Tradução: Paulo
Henrique Brito. São Paulo: Editora Schwarcz LTDA., 2011.
A ________________. Marxismo e Literatura. Trad. de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1979.
L

L

A


736

2

0

1

8

J

A

L A CANÇÃO DE PROTESTO “LATINO”-AMERICANA DAS DÉCADAS
DE 60 E 70: TRÂNSITOS E DISSOLUÇÕES FRONTEIRIÇAS
L
Letícia Porto Ribeiro (UFAC)
A Marcello Messina (UFAC)
RESUMO: A canção de protesto fez parte do cenário cultural na América “Latina”
durante a década de 60/70 em diferentes países da região. Em muitas dessas
canções havia propostas de união dos povos latino-americanos contra as explorações
de classes, estadunidense ou em prol da construção do socialismo. Este artigo tem
• como objetivo analisar como a ideia dessa união “latino”-americana foi proposta
por músicos de protesto nas décadas de 60 e 70, realizando, simultaneamente,
737
uma abordagem crítica do conceito de América “Latina”. Além de reconhecer o
• potencial de articulação inerente a essas propostas, queremos aqui identificar as
implicações de raça, etnia e classe incorporadas no significante América “Latina”,
discutindo as importantes exclusões que esse termo implica e determina. O apoio
metodológico se dá por meio da teoria decolonial, principalmente em autores como
Mignolo e Dussel, e pelas reflexões conceituais trazidas por Bhabha.
2 Palavras-chave: Música. América Latina. Nova canção. Canção de protesto.
Fronteiras.
0
A canção de protesto fez parte do cenário cultural na América “Latina”
durante a década de 60/70 do século XX em diferentes países. Em muitas dessas
1
canções havia propostas de união dos povos latino-americanos contra a exploração
de classe, contra a exploração estadunidense ou em prol da construção do socialismo.
8 A composição musical se dava, também, buscando transpor fronteiras nacionais -
com uso de instrumentos e ritmos de países vizinhos, ou interpretação de canções
originárias de diferentes países da região. Este artigo tem como objetivo analisar
como a ideia dessa união “latino”-americana foi proposta por músicos de protesto
nas décadas de 60 e 70, realizando, simultaneamente, uma abordagem crítica do
conceito de América “Latina”. Além de reconhecer o potencial de articulação inerente
a essas propostas, queremos aqui identificar as implicações de raça, etnia e classe
incorporadas no significante América “Latina”, discutindo de forma crítica as
importantes exclusões que esse termo implica e determina. O apoio metodológico se
dará por meio da teoria decolonial, principalmente autores como Mignolo e Dussel,
e pelas reflexões acerca do conceito de “povo” e de “nação” trazidas por Bhabha.
Apresentaremos, primeiramente, uma noção geral do movimento da Nova Canção
em alguns dos países nos quais esteve presente, após isso como diferentes noções
da unidade “latino”-americana foram pensadas e como as questões de raça, etnia
e classe foram representadas. A seleção dos compositores e intérpretes abordados
aqui foi feita tendo como base, mas não restrita, aos signatários do I Encuentro de
la Canción Protesta, em Cuba, realizado em 1967.
J Partimos de duas definições que Bhabha apresenta para “povo”, levando
em conta a retórica construída ao redor desse termo - o “povo” como objeto da
A pedagogia nacionalista e o “povo” como sujeito de um processo de significação:
O conceito de povo não se refere simplesmente a eventos históricos ou a
componentes de um corpo político patriótico. Ele é também uma complexa
L estratégia retórica de referência social: sua alegação de ser representativo
provoca uma crise dentro do processo de significação e interpelação discur-
L siva. Temos então um território conceitual disputado, onde o povo tem de
ser pensado num tempo-duplo; o povo consiste em ‘objetos’ históricos de
uma pedagogia nacionalista, que atribui ao discurso uma autoridade que
A se baseia no preestabelecido ou na origem histórica constituída no passado;
o povo consiste também em ‘sujeitos’ de um processo de significação que
deve obliterar qualquer presença anterior ou originária do povo-nação para
demonstrar os princípios prodigiosos, vivos, do povo como contemporanei-
dade, como aquele signo do presente através do qual a vida nacional é redi-
mida e reiterada como um processo reprodutivo. Os fragmentos, retalhos e

restos da vida cotidiana devem ser repetidamente transformados nos signos
738 de uma cultura nacional coerente, enquanto o próprio ato da performance
narrativa interpela um círculo crescente de sujeitos nacionais. Na produção

da nação como narração ocorre uma cisão entre a temporalidade continu-
ísta, cumulativa, do pedagógico e a estratégia repetitiva, recorrente, do per-
formativo. É através desse processo de cisão que a ambivalência conceitual
da sociedade moderna se torna o lugar de escrever a nação. (BHABHA, 2005,
pp. 206-207. Grifos do autor)
2 Bhabha percebe, portanto o campo da definição de povo como um
campo de lutas entre a construção de uma identidade de “povo” condizente com
0 a construção de uma nação, para a qual esse “povo” deve se adequar e, do outro
lado, uma noção de “povo” como sujeito sempre atualizado. Isso ainda se torna
1 mais marcante se pensarmos no conceito de “América” como uma construção - não
dos nativos deste continente, mas de europeus que chegaram a partir de 1492 e
buscaram, desde então, impor seus modos de vida àqueles que aqui estavam -
8
daí a necessidade ainda mais premente do lugar do pedagógico e do performativo
apresentados por Bhabha.
Ainda para Bhabha, para se estudar a diferença cultural é necessária
uma revisão das temporalidades, bem como do signo no qual se inscrevem as
identidades.
reconstituir o discurso da diferença cultural exige não apenas uma mudan-
ça de conteúdos e símbolos culturais; uma substituição dentro da mesma
moldura temporal de apresentação nunca é adequada. Isso demanda uma
revisão radical da temporalidade social na qual histórias emergentes pos-
sam ser escritas; demanda também a rearticulação do ‘signo’ no qual pos-
sam se inscrever identidades culturais. [...] A transmissão de culturas de
sobrevivência não ocorre no organizado musée imaginaire das culturas na-
cionais com seus apelos pela continuidade de um passado ‘autêntico’ e um
‘presente’ vivo - seja essa escala de valor preservada nas tradições ‘nacio-
nais’ organicista do romantismo ou dentro das proporções mais universais
do classicismo. (BHABHA, 2005, pp. 240-241).

Esta cultura é transnacional e tradutória - porque envolve o deslocamento


J cultural e porque suas histórias envolvem a questão do que é cultura - Bhabha
afirma, então, que o discurso naturalizado e unificador de “povos”, de “nação”,
de tradição “popular” autêntica “não podem ter referências imediatas” (BHABHA,
A 2005, p. 241).
Neste trabalho defendemos, entre outras coisas, que a noção de “povo”
L defendida muitas vezes pelo movimento da Nova Canção abarcava não uma nação
(no sentido de um Estado) mas todo o povo da América “Latina” que era explorado
L por elites locais e interesses internacionais. Povo que, no contexto das décadas de
1960 e 1970 deveria se unir, independente de raça ou etnia, como classe, em prol
A de uma revolução e se rebelasse contra a dominação imperialista e das elites. Sob
essa perspectiva, as fronteiras nacionais já eram desde antes questionadas, e o
foram mais durante esse movimento, no qual sujeitos, tradições e temáticas (grosso
modo) indígenas, europeias, africanas, populares, folclóricas e urbanas dialogam.
O termo “canção de protesto” foi problematizado durante o “I Encuentro
• de la Canción Protesta” que aconteceu em 1967 em Cuba. Durante esse evento
739 surgiram diversas sugestões para a nomenclatura desses movimentos musicais
que se já se desenvolviam, então, em diversos países “latino”-americanos, como
• “nova canção” e “canção revolucionária”, “canção testemunho” (OSSORIO, 2014).
Utilizaremos aqui o termo “Nova Canção” para nos referirmos ao movimento nos
diferentes países por ter sido o termo “Nova Canção Latinoamericana” adotada por
diferentes estudiosos1. O termo “Nova Canção” surgiu, provavelmente, a partir do
“Manifiesto del Nuevo Cancionero Argentino”, de 1963, tendo sido apropriado pelo
2 movimento de outros países, como no Chile (quando do I Festival da Nova Canção
Chilena, em 1969).
0 O movimento da Nova Canção pode ser considerado sob uma perspectiva
decolonial - como uma forma de resistência à noção da modernidade veiculada pela
1 Europa e pelos Estados Unidos como visão de mundo superior. Dussel (1992) afirma
que a chamada modernidade é necessariamente ligada à exploração e escravização
8 da América, sendo a noção então construída de racionalidade ligada ao massacre
irracional de milhares de indígenas. Para Mignolo (2005) o colonialismo se perpetua
na colonialidade, ligada também à modernidade - o autor afirma que o racismo é a
forma pela qual, ao desumanizar um povo ou cultura, justifica-se a dominação e a
escravização. A América “Latina”, afirma Mignolo, constitui um conceito inventado
pelas nações europeias, e adotado também pelos Estados Unidos, de forma a
manter sob sua influência os povos americanos, e a diferenciar os americanos “do
norte” e do “sul”:
“Latin” America became darker and darker in relation to the increasing dis-

1  Fabiola Velasco (2007), Caio de Souza Gomes (2015), Luis Vitale (s.d).
course of White supremacy that was implemented during the last decade of
the nineteenth century in the US by the ideologues of the Spanish-American
War. In parallel fashion to the way Spaniards were seen by Northern Euro-
peans (as darker skinned and mixed with Moorish blood), “Latin” America
began to be perceived more and more as “Mestizo/a”; that is, .darker skin-
ned.2 (MIGNOLO, 2005, loc. 1266-1268)

Após a II Guerra Mundial, essa divisão se aprofundou ao ser criada a


J noção da divisão em três “mundos” e a América Latina passa a ser parte do chamado
“Terceiro Mundo” . A sujeição “latino”-americana se intensificou mais ainda após
o início da Guerra Fria, quando as pressões dos Estados Unidos tomam forma no
A combate ao comunismo (BETHELL e ROXBOROUGH, 1996).
O termo “América Latina” deve, portanto, ser problematizado. Mignolo
L (2005), primeiramente, liga a “Americanidade” à colonialidade: a singularidade das
Américas reside, afirma, nos apagamentos e silenciamentos que coexistiram com
L a expansão europeia (dos indígenas, dos africanos, da população de descendência
sul-europeia - essa última iniciada no século XVII), na exploração massiva de
A trabalho e da racialização de determinados povos, na manutenção da lógica da
colonialidade após as independências contra as populações africanas e indígenas.
A questão da “latinidade” foi construída, afirma o mesmo autor, quando o mundo
europeu quis determinar a forma de emancipação nas Américas - no caso, a França
busca influência na região, bem como as elites criollas buscavam um projeto para
• substituir as influências hispânica e portuguesa. Essa ideia já foi desenhada no
século XVII, quando o barroco, nas colônias, se subdivide em “dois barrocos” - o
740
barroco do Estado, espanhol e português, e o barroco “do protesto”, da consciência
• criolla e da ferida colonial, que consiste na consciência de que essa elite criolla
não era o que deveria ser, ou seja, europeia. Após a independência, portanto,
os criollos/mestizos tiveram que reinventar suas identidades, e o fizeram sobre
a civilização europeia, mantendo o silenciamento e apagamento dos indígenas e
africanos. Mignolo explica que a elite buscou na França e no liberalismo uma nova
2 doutrina - sendo que a França e Montesquieu eram mais próximos dos criollos
que a Inglaterra. Em resumo, essa elite buscou, portanto, imitar os intelectuais
0 europeus ao invés de analisarem criticamente o colonialismo.
A ideia de “América Latina”, portanto, possibilitou a separação do passado
1 português e espanhol - já também marginalizados na “modernidade” do século
XIX - e a adoção da ideologia da França. Mignolo afirma que isso não foi feito sem
questionamentos, e cita o exemplo do chileno Francisco Bilbao, que afirmou que
8 os legados coloniais do Novo Mundo deveriam ser analisados, bem como defendia
uma “segunda independência” da “raza latinoamericana”.
A latinidade foi, também, uma busca por um legado, no caso o legado
2  “A América ‘Latina’ se tornou cada vez mais escura em relação ao cada vez maior discurso da
supremacia Branca que foi implementado durante a última década do século dezenove nos EUA
pelos ideólogos da Guerra Hispano-Americana. De forma semelhante à qual os hispânicos eram
vistos pelos europeus do norte (como tendo a pele mais escura e misturados com o sangue mourisco),
a América “Latina” começou a ser vista mais como “Mestizo/a”, ou seja, como de pele mais escura.”
Walter D. Mignolo. The Idea of Latin America (Wiley-Blackwell Manifestos) (Locais do Kindle 1266-
1268). Edição do Kindle. Tradução Nossa.
romano: era uma ilusão de que Roma era um legado para os “latinos” da América.
Mignolo explica que a multiplicidade racial da América do Sul não se encaixava nos
moldes estabelecidos no século XIX, sendo estabelecido para esta, portanto, um
status marginal em relação aos europeus do sul - a divisão entre América do Sul e
América do Norte reproduziu as divisões europeias e as divisões entre os romanos
e os germânicos, na qual também já ocorria uma racialização (MIGNOLO, 2005).
No contexto “latino”-americano, portanto, o colonialismo foi substituído
J pela colonialidade, e as elites se tornaram as novas “colonizadoras”, submetendo
indígenas, africanos e seus descendentes para viver uma nova forma de colonização,
A de forma que “a ‘ideia’ de América Latina é aquela triste das elites celebrando
seus sonhos de se tornarem modernas enquanto afundavam cada vez mais
L profundamente na lógica da colonialidade3” (MIGNOLO, 2005, loc. 859-860)
Percebemos, por conseguinte, a questão central da “branquitude” na
formação das sociedades da América “Latina”, intimamente ligada à questão do
L
silenciamento dos povos indígenas e africanos, mesmo no contexto adotado da
identidade de “latinidade” a partir do século XIX. A racialização de indígenas e
A africanos se constitui, também, em sua estereotipização, na qual serão resumidos
a “índios” e “negros”, como afirma Dussel (1992), tendo suas culturas e saberes
reduzidos, apropriados no que seria útil às elites e apagados naquilo que não
seriam.
A “Canção de Protesto” e as dissoluções fronteiriças

Gomes (2013) identifica três fases no que chama da história de “conexões
741
transnacionais” da canção engajada “latino”-americana: a primeira entre 1963 e
• 1966, quando se formam e consolidam os movimentos da nueva canción no Cone
Sul (região pesquisada pelo historiador) e na qual o engajamento se deu por meio da
crítica social. A segunda, entre 1967 e 1969 na qual as influências do I Encuentro
de la Canción Protesta, realizado em Cuba, se fez sentir, com destaque para a
revolução e o anti-imperialismo. A terceira, a partir da década de 1970, marcada pela
2 radicalização dos discursos políticos, pela intensificação das conexões e também
a inserção dos artistas brasileiros nos circuitos, bem como também pelos golpes
0 no Chile, Uruguai e Argentina, que encerram esse ciclo em 1976. Levamos essa
periodização em consideração, mas não nos agarramos a ela no desenvolvimento

deste artigo. O mesmo autor aponta que durante as décadas de 1960 e 1970 uma
1 série de “conexões transnacionais” foi mais fortemente estabelecida, resultando em
uma rede de intercâmbios e diálogos entre vários países das Américas. A revolução
8 cubana teria sido, no contexto de forja de uma ideia ou identidade latino-americana,
um marco, pois estabeleceu a região como espaço de disputa na Guerra Fria. Dessa
forma, o ambiente na década de 1960 propiciava lutas por mudanças:
Marcos como a Revolução Cubana, a descolonização dos países africanos,
a guerra do Vietnã, os movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos,
faziam crer que o mundo estava inevitavelmente se transformando, que mu-
danças radicais nas estruturas políticas, econômicas, sociais e culturais

3  “The ‘idea’ of Latin America is that sad one of the elites celebrating their dreams of becoming
modern while they slide deeper and deeper into the logic of coloniality”. Tradução nossa.
eram não só possíveis, mas iminentes, e que intelectuais e artistas teriam
um papel fundamental neste processo. (GOMES, 2013, p 22)

Entre as impressões elencadas por Hobsbawm a respeito dessa agitação


política, está de que nesse período no conceito de “nação”, para os intelectuais e
os políticos, passou a elencar as massas de seus habitantes, antes ignorados. “O
que tornou essa extensão mais fácil do que antes, pelo menos para os intelectuais
revolucionários, foi que as massas pareciam agora prontas para a ação revolucionária”
J (HOBSBAWM, 2017, p. 481), bem como esse novo nacionalismo carregava o anti-
imperialismo, principalmente contra a Europa e os Estados Unidos.
A “Canto Geral”, publicado em 1950 por Pablo Neruda, articulou, no campo
literário, o ideal uma união “latino”-americana. Essa união já era pensada, no
L entanto, desde os tempos de Bolívar e das independências dos países da América
Central e do Sul, como aponta Corazza (2010)4. Na obra “Canto Geral”, Neruda
L se refere ao Amazonas, a Machu Picchu, Cuba e outras diversas regiões das
Américas, desde o momento anterior à chegada dos Europeus até o momento após

a independência. O “Canto Geral” influenciou diretamente o cantor Patrício Manns
A e também o grupo Alparcoa, que dedicariam álbuns inteiros baseados no poemário.
Ainda a respeito do contexto do período, Hobsbawm afirma que “na década
de 1950, os rebeldes latino-americanos viam-se inevitavelmente recorrendo não só
à retórica de seus libertadores históricos, de Bolívar ao próprio José Martí de Cuba,
mas à tradição revolucionária social e anti-imperialista da esquerda pós-1917”

(HOBSBAWM, 2017, p. 299). Ou seja, junto às figuras de destaque da história
742 “latino”-americana, que elaboraram e/ou divulgaram pensamentos relativos à
• união desses países, havia, ainda, ideais anti-imperialistas que se inspiravam
na revolução russa como uma alternativa frente à dominação norte-americana e
europeia.
Dentro do campo musical e em diálogo com esses ideias e com seu contexto
, em 1963 é lançado o “Manifiesto del Nuevo Cancionero Argentino” - é igualmente
2 o ano, afirma Gomes, que o cantor uruguaio Daniel Viglietti lança seu primeiro LP.
Tanto o Canto Geral de Neruda quanto o Manifiesto del Nuevo Cancionero Argentino
0 influenciaram os músicos dessa década. A Argentina e o Chile viviam um momento
de renovação folclórica - nesse sentido, a primeira influenciou o segundo, pois,

nas rádios chilenas a música argentina, cuja produção e veiculação havia sido
1 incentivada sob o governo de Perón, era a principal concorrente da música cantada
em inglês (GOMES, 2013; SCHMIEDECKE, 2015). Como afirma Silva, “Para além
8 de Atahualpa Yupanqui, diversos conjuntos argentinos como Los Chalchaleros, Los
Fronterizos, Los Huanca Hua, dentre outros, passaram a ser escutados no Chile e
influenciaram fortemente a produção artística chilena” (SILVA, 2008, p. 83).
O Manifesto do Novo Cancioneiro Argentino foi lançado com um concerto
em 11 de fevereiro de 1963, com músicos que incluíam Mercedes Sosa, Tito Grancia,
Juan Carlos Sedero e Óscar Matus, os poetas Armando Tejada Gómes e Pedro

4  CORAZZA, Gentil. “A Unila e a integração latino-americana” in Boletim de Economia


Internacional. Número 3, Julho de 2010. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/
bitstream/11058/4715/1/BEPI_n3_unila.pdf
Horacio Tusoli e o bailarino Victor Nieto (GOMES 2013). Esse Manifesto estabelece
que:
No nace por o como oposición a ninguna manifestación artística popular,
sin como consecuencia del desarrollo estético y cultural del pueblo y es su
intención defender y profundizar ese desarrollo. Intentará asimilar todas las
formas modernas de expresión que ponderen y amplíen la música popular y
es su propósito defender la plena libertad de expresión y de creación de los
artistas argentinos. Aspira a renovar, en forma y contenido, nuestra músi-
J ca, para adecuarla al ser y el sentir del país de hoy. El Nuevo Cancionero
no desdeña las expresiones tradicionales o de fuente folklórica de la música
A popular nativa, por el contrario, se inspira en ellas y crea a partir de su
contenido, pero no para hurtar del tesoro del pueblo, sino para devolver a
ese patrimonio, el tributo creador de las nuevas generaciones.[...] Recha-
L za a todo regionalismo cerrado y busca expresar al país todo en al amplia
gama de sus formas musicales. Se propone depurar de convencionalismos
L y tabúes tradicionalistas a ultranza, el patrimonio musical tanto de origen
folklórico como típico popular.”. 5

A Atahualpa Yupanqui é tomado como uma das inspirações a serem seguidas.
O Manifesto ainda “acoge en sus principios a todos los artistas identificados con
sus anhelos de valorar, profundizar, crear y desarrollar el arte popular y en ese
sentido buscará la comunicación, el diálogo y el intercambio con todos los artistas
y movimientos similares del resto de América” - ou seja, há o reconhecimento de
• que movimentos semelhantes acontecem em outros países e já se estabelecia a
proposta de trocas e diálogos.
743
Oscar Matus e Armando Tejada Gomes formaram uma parceria de criação
• musical, com canções que eram interpretadas por Mercedes Sosa, figura que se
tornaria a “mais emblemática do movimento” (GOMES, 2013, p. 36). Antes da autoria
do Manifesto, em 1962, Sosa e Matus viajaram para o Uruguai e lá conheceram um
movimento semelhante ao Nuevo Cancionero, foi quando, ao retornar à Argentina,
trabalharam na confecção do documento (GOMES, 2013). Em 1965 Sosa lança o
2 Álbum “Canciones con Fundamento” com canções compostas por Matus, Tejada
Gómes e Ramón Ayala, entre outros. Nesse álbum Gomes destaca a canção “Zamba
0 de los humildes”, que carrega uma idealização do povo que estará presente, em
geral, em todo movimento da música engajada. No mesmo ano, afirma o autor,
Sosa se apresentou no Festival de Cosquí - apesar de ter sido quase barrada pela
1
politização das suas músicas, e recebeu, para poder cantar, o auxílio de Jorge
Cafrune, destaque do festival. Sua performance da canção “El derrumbre índio”
8 causou “uma impressionante reação no público e saiu consagrada.” (GOMES,
2013, p. 54). A partir de seu álbum de 1966, “Yo no canto por cantar”, adota

um discurso americanista, com a “Tonada de Manuel Rodriguez”, poema de Pablo
Neruda musicada pelo maestro Chileno Vicente Bianchi.
Gomes (2013) afirma que o Uruguai, após a II Guerra Mundial, se esforçava
por construir uma imagem de “Suíça da América Latina”, com uma política de bem-
estar social advinda de intervenção estatal na vida cotidiana e do bipartidarismo

5  O Manifiesto está disponível em: <http://www.tejadagomez.com.ar/adhesiones/manifiesto.html> acesso em


06/04/2017
(Partido Nacional, dos Blancos e Partido Colorado). No entanto, não conseguiu
evitar uma crise no final da década de 1950, que, na década de 1960, gerou conflitos
sociais. Nesse contexto, o Partido Nacional ganhou as eleições de 1958 e 1962
após quase um século de hegemonia do Partido Colorado. Nesses anos, também,
surgiram as “tentativas de renovação do cancioneiro tradicional” (GOMES, 2013, p.
40). É pertinente abrir um parêntese para apontar, nesse contexto, a racialização
latente no “apelido” popularizado “Suíça da América Latina” e toda a conotação de
J modernidade e racialização que ele carrega em si: o país seria a “Suíça” pelo seu
suposto “desenvolvimento”, e com uma população “branca”, aliada à imagem de
um clima frio que lembraria o Norte da Europa, estando “fora do lugar” na América
A
Latina (ou talvez fosse a América “Latina” que estaria “fora do lugar”). Estabelece,
portanto, uma racialização em relação aos países que o rodeiam, bem como àquelas
L regiões e populações residentes que não se encaixam no estereótipo “suíço”.

O diálogo uruguaio era estabelecido com a Argentina e com o Chile, e
L estão presentes a abordagem da questão social associada ao folclórico na produção
musical. Três nomes se destacam: Daniel Viglietti, Los Olimareños e Alfredo
A Zitarrosa. Por trás de Los Olimareños estavam, afirma Gomes (2013), Ruben Lena
e Víctor Lima, e suas canções abordam temáticas da vida do trabalhador. Daniel
Viglietti, filho do folclorista César Viglietti, lançou seu primeiro disco em 1963,
chamado “Canciones folklóricas y seis impresiones para canto y guitarra”. O álbum
apresenta trabalho ligado à renovação estética e temática dos gêneros folclóricos
• (como proposto pelo Manifesto do Novo Cancioneiro Argentino, lançado no mesmo
744 ano), com composições de Viglietti mas também de Atahualpa Yupanqui e um poema
do cubano Nicolás Guillén musicado pelo argentino Horacio Guarani intitulado
• “No sé por qué piensas tú” (Guillén também seria musicado por diversos artistas
da Nova Canção). A música que fecha o álbum, “Canción para mi America”, se
tornaria, na voz de diversos artistas, um marco inicial das canções que tematizam
a unidade “latino”-americana (GOMES, 2013). A letra6 coloca em primeiro plano a
figura indígena como a que une os diferentes povos que são explorados:
2 Dale tu mano al indio/ Dale que te hará bien/ Y encontrarás el camino/
Como ayer yo lo encontré// Dale tu mano al indio/ Dale que te hará bien/
0 Te mojara el sudor santo/ De la lucha y el deber// La piel del indio te en-
señará/ Toda las sendas que habrás de andar// Manos de cobre te mos-
trarán/ Toda la sangre que has de dejar// Es el tiempo del cobre/ Mestizo,
1 grito y fusil/ Si no se abren las puertas/ El pueblo las ha de abrir// América
esta esperando/ Y el siglo se vuelve azul/ Pampas, ríos y montañas/ Libe-
8 ran su propia luz// La copla no tiene dueño/ Patrones no más mandar/ La
guitarra americana/ Peleando aprendió a cantar
Na canção é a “América” que “está esperando”, e “la guitarra” é “americana”
- e não uruguaia. A canção apresenta, ainda, como figuras emblemáticas o índio -
ligada ao trabalho, à sabedoria de conhecer os caminhos e ao dever - e o mestiço,
bem como aborda a revolução armada: “Manos de cobre te mostrarán/ toda la
sangre que has de dejar/ es el tiempo del cobre/ Mestizo, grito y fusil/ Si no se
abren las puertas/ El pueblo las has de abrir”, assim como a música já é colocada
como arma dessa revolução.
6  Disponível em: <https://www.musica.com/letras.asp?letra=814689> acesso em 15/05/2018
Nos álbuns seguintes tanto o grupo Los Olimareños quanto Viglietti
se manteriam na mesma senda, com os Los Olimareños utilizando o ritmo afro-
uruguaio “candombe” que “até então era marginalizado, excluído por ser identificado
com as populações negras do país” (GOMES, 2013, p. 49) - e Gomes aproveita
essa temática para abordar que, ao contrário dos indígenas, a população negra
era poucas vezes lembrada - nos referimos a isso mais adiante neste trabalho.
No entanto, percebemos ao longo da pesquisa que a temática indígena quando
J é abordada, o é com certa superficialidade. O que é mais abordado ao longo do
movimento da Nova Canção, como temática, é a exploração do trabalhador e a
promoção da Revolução Socialista.
A
Viglietti participaria, posteriormente, de um espetáculo de 1972 (“Cantando
L a propósito”) que continha uma canção do brasileiro Sérgio Ricardo e a recitação do
poema “Os homens da terra” (pela atriz Dahd Fer) de Vinícius de Moraes, bem como

gravou em 1973 canções de Chico Buarque e Edu Lobo/Gianfrancesco Guarnieri,
L todas traduzidas para o espanhol - estabelecendo, assim, uma ponte também com
o Brasil (GOMES, 2013). Isso é significativo, já que o Brasil seria mencionado em
A algumas canções, mas teve, poucas vezes, seus poemas musicados ou canções
interpretadas por outros músicos da América “Latina” no período, sendo, portanto,
Viglietti uma exceção neste aspecto.
Na mesma época no Chile, o movimento da Nueva Canción Chilena já se
desenrolava, sob influência, principalmente, da folclorista e compositora Violeta
• Parra e do argentino Atahualpa Yupanqui. Em “Los Pueblos Americanos”, Violeta
745 Parra aborda a artificialidade das fronteiras entre os países (SILVA, 2008). A canção,
de 1964-65 traz a letra7:

Mi vida, los pueblos americanos,/ mi vida, se sienten acongojados,/ Mi vida,
porque los gobernadores,/ mi vida, los tienen tan separados.// Cuándo será
ese cuando,/ señor fiscal,/ que la América sea/ sólo un pilar./ Cuándo será
ese cuando,/ señor fiscal.// Sólo un pilar, ay sí,/ y una bandera,/ que ter-
minen los líos/ en las fronteras.//Por un puñao de tierra/ no quiero guerra.
2
Em 1966, Victor Jara escreveu na contracapa do primeiro disco do conjunto
Quilapayún, com o qual trabalhou até 1969, que “Nuestro repertorio va más allá de
0 las fronteras de nuestro país. Las fronteras de la música que consideramos nuestra
son otras.” (JARA, 1966, apud ACEVEDO, et. al. s/d, p. 41). Acevedo ainda indica
1 que Jara, em 1969, adota inspiração de ritmos caribenhos - da cumbia colombiana
em “Móvil oil special” e do son-guaracha em “A cochabamba me voy”. Como afirma
8 Schmiedecke,
Jara gravou gêneros chilenos (tonadas, cuecas, cantos a lo humano e a lo
divino),andinos (kaluyo, cachimbo, huayno, bailecito, yaravi), cubanos (rum-
ba, son, guajira), afro-americanos (Joropo, festejo, panalivio), argentinos (mi-
longa, zamba, vidalita) e mexicanos (corrido) [...] reivindica, assim liberdade
para dialogar com diferentes influências, renovando-se a partir da “tradição”
latino-americana - a qual permanece sendo a referência central e o elemento
de legitimidade buscado em sua criação (SCHMIEDECKE, 2015, p. 127).

7  Disponível em <https://www.vagalume.com.br/violeta-parra/los-pueblos-americanos.html>
acesso em 15/05/2018
Em 1965, sob a influência do Canto Geral de Neruda e da intervenção
norte-americana em Santo Domingo Patrício Manns compôs as canções que
integrariam o álbum “El sueño americano”, que foi gravado somente em 1967,
contando com a participação do grupo “Voces Andinas”. O álbum se divide em
três partes: a primeira com referência no período colonial, a segunda aborda o
imperialismo pós-independência e a última chama os povos à luta contra a
exploração estrangeira (SCHMIEDECKE, 2015). Kósichev afirma que esse disco é
J uma “ardiente exhortación a la solidariedad e réplica indignada a la intervención
de los EE. UU. en la Republica Dominicana, en 1965” (KOSICHEV, 1990, p. 67).
A Outro disco de Manns que versa sobre outros países é “Entre el Mar e la
Cordillera”, de 1966, na qual o “Arriba en la Cordillera”, huapango (ritmo mexicano)
L cuja letra conta a história de um arriero (algo como um carreteiro brasileiro) que
é assassinado. Outra canção sua, “Bandido”, inspirada, afirma o compositor, nos

guerrilheiros cubanos que eram chamados de “bandidos” por Fulgencio Batista.
L Composta em 1957, foi interpretada pelo conjunto argentino Los Andinos no
Festival de Cosquín. (GOMES, 2013).
A Ainda no Chile, a Peña de los Parra, inaugurada em 1965 se tornou também
um ponto propício a intercâmbios entre os países. Isabel e Angel Parra traziam
de suas viagens canções e instrumentos de outros países “latino”-americanos
(JARA, 1998, p. 119) Também de acordo com Joan Jara (1998) artistas vindos de
países vizinhos atingidos pelas ditaduras cantavam nas peñas, como brasileiros,
• uruguaios e argentinos.
746 O disco lançado pela Peña de los Parra em 1965, “La peña de los Parra”,
• também se tornaria um marco para as conexões propostas pela NCCh com outros
países “latino”-americanos e também para denúncias sociais nas canções autorais,
como afirma Gomes (2013): contava com a participação de artistas como Isabel
e Angell Parra, Patrício Manns e Rolando Alarcón, com repertório autoral e não-
autoral. Abre com uma canção tradicional do folclore venezuelano, “Rio Manzanares”
2 e outra, “Décimas del folklore venezolano” que “aponta para o diálogo com o folclore
daquele país que será marcante ao longo de toda a produção da nueva canción
chilena.” (GOMES, 2013, p. 63) O autor aponta também que esse disco aponta
0 para o “discurso latino-americanista, não só pela incorporação de sonoridades de
outros países vizinhos, mas principalmente com a gravação pelos irmãos Parra
1 de ‘Canción para mi América’ de Daniel Viglietti” (GOMES, 2013, p. 64), canção
que também foi gravada em 1966 por Mercedes Sosa, ou seja, em menos de 10
8 anos gravada em 3 países, daí sua importância apontada por Gomes. Em Ángel
Parra vol. II, Angel canta uma canção chamada de “Me matan se no trabajo” -
poema do cubano Nicolás Guillén musicado pelo uruguaio Daniel Viglietti - esse
tipo de intercâmbio, com a musicalização de poemas ignorando as fronteiras entre
os países é bastante comum.
O chileno Rolando Alarcón participou do grupo Cuncumén, assim como
Jara. Quando grava seu primeiro LP solo, em 1965, se afasta do projeto neofolclórico
do Cuncumén, buscando atualizar o folclore, como o entendia, com as questões
sociais. No refrão da canção “Si somos americanos” há elementos de diversas partes
do continente: “a marinera da costa do Peru, a refalosa da zona central chilena,
a zamba argentina, o son cubano, todos dançados pelos ‘americanos’: ‘bailemos
marinera,/ refalosa,/ zamba y son./ Si somos americanos /seremos una canción’
(GOMES, 2013, p. 70). Posteriormente esse discurso se intensificou com a canção
“América guerreira” e “América Nuestra” (GOMES, 2013). “Si somos americanos”
é também o nome do primeiro álbum do grupo chileno Inti-illimani, de 1969. A
canção, como outras com essa temática, aborda a união das raças - o branco, o
mestiço, o índio e o negro - como iguais.
J Si somos americanos/ somos hermanos, señores,/ tenemos las mismas flo-
res,/ tenemos las mismas manos.// Si somos americanos,/ seremos bue-
nos vecinos,/ compartiremos el trigo,// seremos buenos hermanos./ Baila-
A remos marinera,/ refalosa, zamba y son.*/ Si somos americanos,/ seremos
una canción.// Si somos americanos,/ no miraremos fronteras,/ cuidare-
L mos las semillas,/ miraremos las banderas.// Si somos americanos,/ sere-
mos todos iguales,/el blanco, el mestizo, el indio/ y el negro son como tales.8

L Já Patricio Manns, em 1968, em “El folklore no ha muerto, mierda”, volta


ao universo folclórico “puro” - álbum no qual grava, com Silvia Urbina (do grupo
A Cuncumén), canções populares e somente uma de autoria própria (GOMES, 2013).
Víctor Jara faria algo semelhante em seu último álbum, “Canto por Travesura”, de
1973, somente com canções chilenas. Talvez isso revele que, embora buscassem
um discurso de dissolução fronteiriça, essa era deseja de forma mais simbólica e
dentro de uma luta contra a dominação estadunidense, e não uma união de fato
• - valorizava-se, de certa forma ainda, aquilo o que era considerado uma “cultura
local”.
747
O México passava por um governo autoritário - apesar de não ser uma
• ditadura militar - durante o período de maior produção da Nova Canção em
outros países (KARAM, 2014). Karam estabelece entre os representantes da canção
social mexicana da segunda metade do século XX Oscar Chávez, Amparo Ochoa,
Gabino Palomares e Los Fokloristas (1966). O primeiro e a segunda talvez sejam
os mais populares e são caracterizados pelo próprio Karam como os principais
2 representantes de uma Nova Canção no México. Em 1970 é inaugurada a Peña
de Los Folkloristas, que recebe representantes da NCCh como Victor Jara e Silvio
0 Rodrigues. Os Folkloristas tiveram um especial contato com o chileno Víctor Jara:
em “Pongo en tus manos abiertas”, gravado em 1969 Jara incluiu entre referências
de outros países, além “A cochabamba me voy” (de sua autoria, sobre as incursões
1
de Che Guevara na Bolívia); “Zamba del Che”, de Rubén Ortiz e “Juan sin Tierra”,
de Jorge Saldaña, ambos do grupo mexicano Los Folkloristas, cujas gravações
8 foram apresentadas a Jara pela bailarina mexicana Rosa Bracho. Rubens Ortiz
teria enviado uma carta agradecendo Jara e eles então estabeleceram uma amizade

(KOSICHEV, 1990).
Nicomedes Santa-Cruz foi folclorista, poeta e músico do Peru. Formado
em jornalismo, em suas obras reivindicava do legado folclórico de raízes afro-
peruanas. Nicomedes viajou por diversos países da América e também de fora -
indo ao Japão, por exemplo9. Entrevistou Víctor Jara quando este esteve no Peru

8  Letra retirada de: https://www.letras.mus.br/rolando-alarcon/965659/ Acesso em 06/05/2018


9 https://www.poemas-del-alma.com/nicomedes-santa-cruz.htm
pouco antes de ser morto pela ditadura de Pinochet10. É interessante perceber
na obra de Nicomedes que ele gravou não somente suas canções, mas também
eles próprio recitando seus poemas. Em “América Latina” Santa-Cruz afirma que
(no que também pode ser considerada uma crítica o sistema educacional): “Yo no
coloreé mi Continente/ ni pinté verde a Brasil/ amarillo Perú/ roja Bolivia./ Yo no
tracé líneas territoriales/ separando al hermano del hermano11.”
Na entrevista de Nicomedes a Victor Jara, o intercâmbio entre os músicos
J da Nova Canção é abordada, apesar de a questão não ter sido muito aprofundada:
N.S.C: ¿Y los interpretes, como tú Víctor Jara, como los Quilapayún, como
A el grupo Inti-Illimani, como Isabel y Ángel Parra, los hijos de tu “hermana
grande” Violeta Parra, dialogan, tienen contacto con los demás hermanos
de la canción testimonial de América Latina? Digamos con los uruguayos
L Zitarrosa y Viglietti, con los argentinos Guaraní e Isella, con Mercedes Sosa,
con los de Cuba, como Carlos Puebla o Pablito Milanés...
L V.J: Nosotros hemos tenido la suerte en nuestras salidas, así como la de
ahora mismo, de conocer a esta gente, de conversar mucho con ellos y de
intercambiar opiniones y de intercambiar canciones.12
A
O músico argentino Horacio Guarani também foi entrevistado por
Nicomedes, e extraímos, no mesmo site, uma interessante citação a respeito do
movimento da Nova Canção, que ele chama de “Testimonial”:
N. S. C: Hay algunos miles de oyentes que específicamente tendrían interés
• en que vos les dieras un mensaje sobre lo que a tu entender y por tu expe-
riencia es deber de la Canción Testimonial y de qué elementos debe nutrirse
748
esta Canción, para ser una herramienta, un arma.

H. G: Bueno yo entiendo que durante muchos años, en nuestro país, las
canciones que se cantaban, que se componían eran tomando como temática
el paisaje, las cosas felices, el amigo, el amor, el ranchito, la anécdota, pero
a pesar de una gran profundidad de sentimientos y en algunos casos de
poesía, de música, no siempre daban la totalidad de la misión del cantor.
2 Nosotros, los que hablamos siempre de la Nueva Canción, entendemos que
el Canto no puede limitarse solamente a distraer, a entretener a la gente, el
canto debe jugar un papel dentro de la sociedad en la que vive, por algo se
0 nutre de esa sociedad; viene desde abajo el cantor, está nutrido de una serie
de vivencias, de la gente que construye el país, que hace el país a cada rato
1 y no puede negar de ninguna manera toda aquella cosa que esta alrededor
del hombre. Y alrededor del hombre no hay solamente momentos felices,
hay momentos tristes, que duelen, que lastiman, entonces el cantor en los
8 últimos años, el interprete, el poeta, el músico tomó conciencia y empezó
a hacer las cosas enfocando el arte con una manera distinta: sí el paisaje,
sí el amor, sí el momento dulce, pero no esquivar el dolor, el testimonio de
los hechos que nos duelen, no esquivar la protesta como se ha dicho mu-
chas veces, en contra de las cosas que lastiman a su pueblo. Entonces esto

10  Disponível em: ,https://eupassarin.wordpress.com/2010/03/17/nicomedes-santa-cruz-


peru/> Acesso em 01/05/2018
11  Disponível em: <https://www.poemas-del-alma.com/nicomedes-santa-cruz-america-latina.
htm> Acesso em 01/05/2018.
12  Disponível em: <http://www.nicomedessantacruz.com/espanol/entrevistas.htm> Acesso em
01/05/2018
adquirió una gran jerarquía porque el pueblo sí se vio bien representado
cuando vio que el cantor no sólo le distraía, tomaba posición frente a la vida,
opinaba... como decía José Hernández: “ pero yo canto opinando que es mi
forma de cantar”.

Para Horacio, portanto, o artista está inserido na sociedade e vivência


as experiências de cada instante, e, por causa disso, não pode evitar de protestar
contra as coisas que causam dor ao povo. No Chile, assim como na Argentina, o
J movimento que antecedeu e foi concomitante ao da NCCh, chamado de Música
Típica, veiculava essa imagem idealizada do campo (SCHMIEDECKE, 2015),
A romantizando não só as paisagens, como também as relações ali presentes. Ainda
achamos pertinente apontar autor chama o movimento de “Nova Canção”, que

indica que essa nomenclatura já era então comumente utilizada.
L
O Brasil, durante este período, passava pelo período mais radical da

ditadura militar de 1964 e não mandou, portanto, emissários para o Encontro de
L Canción Protesta de Cuba. Apesar disso, o disco “Canto Geral” de Geraldo Vandré já
então se inclinava na direção, de pelo menos, uma música popular revolucionária. O
A título evoca, talvez indiretamente, o Canto Geral de Neruda, e a própria contracapa
do disco já expõe seu conteúdo combativo, apresentando duas citações de Brecht
(sendo uma delas: “Dêsses tempos em que falar das árvores é quase um crime, pois
implica em silenciar sôbre tantos erros - aos que virão depois de mim”) e um longo
parágrafo escrito pelo próprio Vandré que explica o porquê do termo “Geral”: “Neste
• disco, a palavra Geral tem de mim somente uma vontade muito grande de colocar-
749 me sem pudores com o instrumento da comunicação de tudo que aprendi a ver,
ouvir, pensar e sentir a respeito do meu tempo, do meu lugar e da gente que vive

neles[...]” - Vandré escreve em março de 68, pouco antes de o AI 5, que daria início
à Linha Dura, quando o músico seria preso. Em “O plantador” ele diz: “(...) O dono
quer ver/ A terra plantada./ Diz de mim que vou/ Pela grande estrada:/ “Deixem-
no morrer,/ Não lhe dêem água,/ Que ele é preguiçoso/ E não planta nada.”/ Eu
que plantei tudo/ E não tenho nada,/ Ouço tudo e calo,/ Na caminhada.”13. O
2 contexto que Vandré descreve é o da racialização das camadas despossuídas da
sociedade: estereotipadas como preguiçosas, “não lhe dêem água” expõe a clara
0 desvalorização dessas vidas. No entanto, a reação à essa desumanização é exposta
em outra canção do disco, “Aroeira” na qual há uma chamada à luta que estaria
1 por vir: “Vim de longe, vou mais longe/ Quem tem fé vai me esperar/ Escrevendo
numa conta/ Pra junto a gente cobrar/ No dia que já vem vindo/ Que esse mundo
vai virar”14. Mas canção mais combativa do álbum é “Cantiga Brava”: “O terreiro
8
lá de casa/ Não se varre com vassoura,/ Varre com ponta de sabre/ E bala de
metralhadora.”15
Napolitano aponta que Vandré seria o compositor brasileiro que mais

13  <https://www.letras.mus.br/geraldo-vandre/83310/#album:canto-geral-1968> acesso em


03/05/2018
14  <https://www.letras.mus.br/geraldo-vandre/83305/#album:canto-geral-1968> acesso em
03/05/2018
15  <https://www.letras.mus.br/geraldo-vandre/947859/#album:canto-geral-1968> acesso em
03/05/2018
teria se aproximado do que chama de Nueva Canción Latinoamericana, era o mais
atingido pelas radicalização do discurso político do que outros artistas do país, e que,
neste LP, utilizou gêneros normalmente desvalorizados pelo mercado fonográfico
brasileiro de então, de forma que “o repertório do álbum veiculava muitas variações
da “moda-de-viola” (Maria Rita, De Serra, de Terra, de Mar, Ventania, O Plantador)
, guarañas (Companheira), jongo (Cantiga Brava), toada (Aroeira). Os temas rurais
(musicais e poéticos) predominavam sobre os urbanos.” (NAPOLITANO, 2010, p.
J 231).
A partir de 1972, aproximadamente, outros músicos brasileiros se
A aproximaram do movimento da Nova Canção. Houve, por exemplo, interpretações
de Violeta Parra por alguns artistas, como Elis Regina e o Clube de Esquina. Elis
L gravou ainda “Los Hermanos” de Atahualpa Yupanqui e Chico Buarque gravou
“Pequeña serenata diurna” do cubano Silvio Rodrigues. O cantor Sérgio Ricardo

também buscaria fortalecer essa ponte compondo uma canção em espanhol
L intitulada “Canto Americano”.
O venezuelano Ali Primera (Ely Rafael Primera Rossel, 1941-1985) teve
A uma prolífica produção musical e poética, com várias canções com temáticas
sociais e políticas, com sua obra composta em maior parte a partir da década
de 1970. Como Víctor Jara, conheceu a pobreza, principalmente após a morte
de seu pai, que era oficial de polícia, quando, com dois anos de idade, ele e seus
irmãos tiveram que se deslocar sua mãe, e teve que deixar os estudos por um
• período. Trabalhou como engraxate, pescador, boxeador, carregador de malas e,
750 de acordo com Castillo, aos 13 anos já iniciou sua militância política. Em “América
Latina Obrera”, lançada em 1973, a ligação da união “latino”-americana contra

a dominação estadunidense talvez seja a mais explícita e agressiva de todas as
canções do movimento da Nova Canção:
El yankee teme/ que tú te levantes/ América Latina obrera/ no sé ¿por qué
no lo haces?// El yankee teme/ a la revolución / el yankee teme/ al grito
¡yankee go home!/ yankee go home// Y viene remontando el Amazonas/ el
2 grito rebelde del carioca/ y viene a unirse con su hermano/ el obrero vene-
zolano// América Latina obrera/ América Latina obrera/ América Latina/
Levanta en tus manos la bandera/ de la Revolución / América Latina obrera
0 y grita con fuerza/ yankee go home!/ yankee go home!/ yankee go home!/
(recitado) “gringo go home// los obreros de América latina/ te dicen: grin-
1 go go home!/ yankee go home” / Levanta en tus manos la bandera/ de la
Revolución/ América Latina obrera/ y grita con fuerza/ yankee go home!/
yankee go home!/ yankee go home!16
8
Temos aqui desenhada, portanto, a forma como se deram essas relações
entre a música de diferentes países “latino”-americanos: por meio da adoção de
instrumentos e ritmos, por meio de interpretações de diversos artistas (exemplo
artistas chilenos gravando repertórios venezuelanos ou uruguaios), por meio da
musicalização de poemas de países diferentes, de temáticas de outros países
(principalmente a Revolução Cubana) por meio de asilo dados à perseguidos políticos.
Temos, também, em que consiste a essa suposta união “latino”-americana: é,
principalmente, uma união contra a dominação estrangeira e contra as exploração
16  <https://www.musica.com/letras.asp?letra=1092603> Acesso em 05/05/2018
das elites capitalistas. Não fica claro se o que se pretende é uma união de fato em
um só estado (com a dissolução real das fronteiras) ou uma união entre os estados,
sob esse aspecto, uma união na medida de uma luta, quiçá revolucionária, contra
o domínio estadunidense. A nossa pesquisa pende para a segunda ideia, sendo a
primeira evidente em poucas canções como na obra de Nicomedes Santa-Cruz e em
Los Pueblos Americanos, de Violeta Parra.
O Encuentro de la Canción Protesta
J Em 1967 ocorre em Cuba o “Encuentro de la Canción Protesta” (ao
mesmo tempo em que acontecia a Primer Conferencia de Solidaridad de los
A Pueblos de América Latina, também em Havana). O encontro teve a participação
de dezoito países (OSSORIO, 2014) . Contou com a participação de Angel Parra e
L Rolando Alarcón (Chile) e do venezuelano Ali Primera, entre outras figuras então
proeminentes no cenário da “canção de protesto” de diversos países da América e
L também Europa. Isabel Parra, apesar de não constar sua assinatura no documento
final, esteve presente, e lá estabeleceu uma relação com músicos cubanos que se
estendeu durante vários anos, lançando o álbum intitulado “De aquí e de allá”, um
A dos marcos da ponte que se faria entre Chile e Cuba no início da década de 1970
(GOMES, 2013).
O Encontro constituiu-se como um evento no qual aconteceram
apresentações musicais e também debates acerca das produções musicais
“de protesto” entre os delegados dos países participantes e gerou um valioso

intercâmbio entre os artistas. Nos debates foram abordadas a censura, a repressão,
751 a forma como a canção “de protesto” se dava em cada país, bem como a projeção
• que a canção pode ter como forma de luta, e da relação entre forma e conteúdo.
Também foi debatida a questão da nomenclatura - “canção de luta”, “de protesto”,
“revolucionária”, “nova canção” - sem nenhuma conclusão definitiva a esse respeito
(OSSORIO, 2014). A declaração final do encontro que:
donde además de definir la canción protesta como un arma al servicio de los
2 pueblos y de pedir un enriquecimiento del oficio a través de la búsqueda de
la calidad artística, los firmantes se solidarizaban con la lucha del pueblo
vietnamita, apoyaban la Revolución Cubana y a la lucha de los pueblos de
0 Asia, África y América Latina. (OSSORIO, 2014, p. 182)
Foi estabelecida também, conta Ossorio, uma diferenciação entre a
1 “música protesta verdadera” e a “música protesta comercial”. Em sua declaração
final, os artistas declararam seu papel na luta de libertação dos povos contra o
8 imperialismo norte-americano e contra o colonialismo. Foi reconhecida também
que a natureza da canção facilita o diálogo com o povo, devendo, portanto, ser uma
arma a serviço dos povos e não um produto de alienação do capitalismo - o artista
deve ter uma posição definida frente aos problemas da sua sociedade. Declara
ainda o dever dos cantores de protesto de buscar qualidade artística, sendo essa
também uma atitude revolucionária. Denuncia os crimes do imperialismo no
Vietnã, exigindo o cessar dos bombardeios, declaram apoio à luta do movimento
negro nos Estados Unidos, à luta proletária e estudantil nos países capitalistas
contra a exploração patronal, à revolução cubana. Assinam: Ángel Parra e Rolando
Alarcón (Chile); Terry Yarnell, John Faulkner, Sandra Kerr, Ewan Mac Coll e
Peggy Seeger (Grã Bretanha); Parker Bilbao e Jose Luis Guerra (Los Olimareños);
Braulio López, Carlos Molina, Aníbal Sampayo, Alfredo Zitarrosa, Daniel Viglietti,
Marcos Velázquez, Yamandú Palacios y Quintín Cabrera (Uruguay); Manuel Oscar
Matus, Celia Birenbaum, Rodolfo Mederos, Ramón Ayala y Amanda Aida Caballero
(Argentina); Nicomedes Santacruz (Perú); Jean Lewis (Australia); Francisco Marín,
Florence Marín, Virilo Rojas, Luis Casasco y Dionisio Arzamendia (Los Guaranís
- Paraguai); Claude Vinci (França); Luis Cilia (Portugal); Oscar Chávez e José
J Gonzáles (México); Leoncarlo Senttimelli , Elena Morandi, Giovanna Marini, Ivan
della Mea y Mari Franco Lao (Itália); Barbara Dane e Irwin Silber (Estados Unidos);
Raimón (España); Marta Jean Claude (Haiti); Rosendo Ruiz, Alberto Vera e Carlos
A
Puebla (Cuba). (OSSORIO, 2014). Após o encontro foi lançado um álbum com
canções dos participantes, e foi criado, em 1969, o grupo cubano chamado “Grupo
L de Experimentación Sonora” com os músicos Pablo Milanés, Silvio Rodriguez e
Noel Nicola, que desenvolveu atividades de divulgação do trabalho do Centro de
L la Canción Protesta junto a escolas, fábricas, unidades militares e televisão. O
grupo de Experimentación desenvolveria um trabalho posterior com Isabel Parra.
A (GOMES, 2013).
O uruguaio Alfredo Zitarrrosa, sob influência do Encontro, escreveu
músicas sobre Cuba e a revolução, como “Milonga Pájaro”, e “El Retobao”, bem
como o grupo Los Olimareños com “La Segunda Independencia”, escrita por Victor
Lima, que aborda a unidade latino-americana. O mesmo ocorreu com Viglietti,
• com “Canciones para el hombre Nuevo”, no qual o cantor musica poemas de Liber
752 Falco (uruguai), Cesar Vallejo (Peru), Nicolas Guillén (Cuba), Garcia Lorca e Rafael
Alberti (Espanha), além de canções próprias, incluindo “A Desalambrar”, que seria
• interpretada por outros nomes da Nova Canção, como Víctor Jara (GOMES, 2013).
O conjunto Quilapayún lança o álbum “Canciones Folkloricas de
America” no mesmo ano do Encontro, 1967, em parceria com Víctor Jara, que
incluía repertório venezuelano, colombiano, uruguaio, mas também espanhol,
estadunidense e israelense, e em “Basta!”, de 1969, reúnem canções revolucionárias
2 de diversos países - Colômbia, Argentina, México, Chile, Itália e Rússia (GOMES,
2013).
0 O álbum “Basta!” traz também a musicalização do poema “La Muralla”, do
cubano Nicolás Guillén, que aborda a união das raças em defesa contra a exploração
1 e em prol da revolução. Nesse álbum também o grupo interpreta canção “Basta
Ya” do argentino Atahualpa Yupanqui - trazendo uma versão em andamento bem
8 mais agitado que a do compositor e com uma variação de ritmos (um que inclusive
lembra, talvez propositalmente, um ritmo caribenho ou cubano). É interessante
notar que na própria interpretação de Atahualpa Yupanqui, o andamento lento e
o caráter melancólico das estrofes é alterado pelo andamento mais rápido a partir
do refrão. A letra17, claramente, é uma reação ao imperialismo e à exploração do
trabalho do carreteiro, estendo a noção do sofrimento aos irmãos do México e do
Panamá - e a chamada à revolução, que não se faz de forma explícita, é implicada
pelo “Basta ya que el yanqui mande” e quando afirma que “sus padres fueran
esclavos, sus hijos no lo serán”:
17  https://www.youtube.com/watch?v=a-kkhnfw0E8 acesso em 14/05/2018
¡Ay! Ya viene la madrugada,/ Los gallos están cantando./ Compadre, están
anunciando/ que ya empieza la jornada... Ay... Ay...// ¡Ay! Al vaivén de mi
carreta/ nació esta lamentación./ Compadre, ponga atención/ que ya em-
pieza mi cuarteta./ No tenemos protección... Ay... Ay...// Trabajo para el
inglés,/ trabajo de carretero,/ sudando por un dinero,/ que en la mano no
se ve... Ay... Ay... // refrão: ¡Basta ya! ¡Basta Ya!/ ¡Basta ya que el yanqui
mande!// El yanqui vive en palacio/ yo vivo en uno ¡barracón!/ ¿Como es
posible que viva/ el yanqui mejor que yo?// refrão // ¿Qué pasa con mis
J hermanos/ de Méjico Y Panamá?/ Sus padres fueron esclavos,/ ¡sus hijos
no lo serán!// refrão// Yo de pequeño aprendí/ a luchar por esa paz./ De
grande lo repetí/ y a la cárcel fui a parar.//refrão// ¿Quién ha ganado la
A guerra/ en los montes del Viet-Nam?/ El guerrillero en su tierra/ Y el yan-
qui en el cinema.
L Após a eleição de Allende, as relações entre Chile e Cuba se intensificaram,
e quando Fidel Castro visitou o Chile governado por Salvador Allende em 1971,
L trouxe consigo uma delegação de artistas que se dividiram em dois grupos que
viajaram ao sul e ao norte do país, entre eles, Carlos Puebla, que iria novamente
A ao Chile em 1972. Quando, por sua vez, o grupo Quilapayún visitou Cuba em
1971 como embaixadores culturais, inspirou naquele país a criação do grupo

Manguaré, que chegou no Chile em Setembro do mesmo ano, mantendo contato
com o Quilapayún, o Inti-Illimani e Isabel Parra (GOMES, 2013).
Em 1972 aconteceu, novamente em Cuba, o Encuentro de la Música
• Latinoamericana, que
753 buscava, diante das discussões que tomavam as esquerdas e do questiona-
mento dos limites da universalidade do modelo cubano imposto pela novida-
• de trazida pela ‘via chilena’, afirmar o lugar de Cuba como centro irradiador
de uma cultura revolucionária e aglutinador das experiências de canção
engajada no continente. (GOMES, 2013, p 148)

A declaração final é um tanto parecida com a do encontro anterior:


resistência ao imperialismo, denúncia dos pseudo revolucionários, defesa da
2 independência dos povos - concomitantemente houve,também, um aumento de
intolerância à experimentação em prol da causa revolucionária (GOMES, 2013).
0 Schmiedecke (2017) aponta que a partir da década de 1970 a política cultural
de Cuba se torna mais “linha dura”e “Fidel Castro divide a intelectualidade de
1 forma maniqueísta: de um lado os ‘revolucionários’ (apoiadores incondicionais
do regime); de outro, os ‘burgueses’ ou ‘agentes do imperialismo’ (que fizessem
críticas)” (SCHMIEDECKE, 2017, p 121). Ainda de acordo com a autora, Castro
8
estabeleceu diretrizes para as obras de arte, tendo como função primordial ser um
arma da revolução, com o lado estético condicionado ao político.

As questões de raça, classe e etnia


Percebemos, em geral, que os debates relativos à raça são secundarizados
em relação àqueles relativos à classe - dessa forma as questões raciais são
simplificados, em grande parte, em prol de uma união das raças na luta pela
revolução e contra imperialismo. Poucas das canções que pesquisamos abordam o
massacre feito pelos brancos contra os negros ou contra os índios, e menos ainda o
preconceito corrente contra índios e negros. Nesta seção abordaremos algumas da
canções que promoveram a dissolução fronteiriça de nossa temática (seja porque
foram interpretadas por diversas nacionalidades, seja porque falavam sobre a união
regional) e que abordam a questão racial.
Como já mencionamos anteriormente, a figura do índio em canções como
“Canción para mi América” eram idealizadas como aquela da sabedoria, de onde
poderia vir a luta e a revolução. Também a figura do índio é ligada à tristeza devido
à colonização, como na já mencionada “Canción del Derrumbre Indio”, na qual, o
J povo indígena, destituído de seu “Império do Sol”, roubado pelos brancos, só resta
chorar, com seu charango:
A Juntito a mi corazón,/ juntito a mí./Charango, charanguito,/¡Qué dulce
voz!// Ayúdame a llorar/el bien que ya perdí.// Charango, charanguito,/
¡Qué dulce voz!//Tuve un Imperio del Sol,/grande y feliz./El blanco me lo
L quitó,/charanguito.//Llora mi raza vencida/ por otra civilización.

Já “Duerme Negrito” é uma canção que foi interpretada na argentina por
L Atahualpa Yupanqui e Mercedes Sosa, no Chile por Víctor Jara e pelo con-
junto Quilapayún, no Uruguai por Alfredo Zitarrosa e Daniel Viglietti, entre
A outras gravações, mais recentes, que localizamos18. Atahualpa Yupanqui
narrou ter coletado a canção, que classifica como “tradicional”, na região
entre a Colômbia e Venezuela no Caribe, cantada por uma mulher negra.
Essa canção por vezes é atribuída a Bola de Nieve (o cubano Ignacio Jacinto
Villa Fernandez) e ou ao também cubano Eliseo Grenet Sánchez (BOTE-
LHO, 2015). A letra19 da canção aborda a escravidão ou semi-escravidão dos
• descendentes africanos, e é uma canção de ninar que alguém canta para a
criança dormir. No início da canção, o trabalho da mãe, e sua ausência para
754
a criança, são amenizados pelas promessas que o trabalho dela irá trazer:
• frutas, codornas, carne de porco. No entanto, aos poucos a realidade se de-
senha: o “diabo” que ameaça a criança é o homem branco - e aqui a desuma-
nização da criança negra sob a violência da exploração (que corre o risco de
que se “le coman a patita”), que é respondida chamando o branco de “diabo”,
é evidenciada. E, mais ainda, a canção revela o trabalho duro da mulher não
é pago, ela trabalha doente, a repetição e o cansaço do trabalho cotidiano
2 são evidenciados pela repetição constante de “trabajando, trabajando sí”:
Duerme, duerme negrito,/ que tu mama está en el campo, negrito/ Duerme,
0 duerme negrito,/ que tu mama está en el campo, negrito./ Te va a traer co-
dornices para ti,/ te va a traer rica fruta para ti,/ te va a traer carne de cer-
do para ti./ te va a traer muchas cosas para ti./ Y si negro no se duerme,/
1 viene diablo blanco/y ¡zas! le come la patita,/ ¡chacapumba, chacapún...!/
apumba, chacapumba, chacapumba,/ chacapún! [...]Trabajando,/ traba-
8 jando duramente, trabajando sí,/ trabajando y no le pagan, trabajando sí,/
trabajando y va tosiendo, trabajando sí,/ trabajando y va de luto, trabajan-
do sí,/ pa’l negrito chiquitito, trabajando sí,/ pa’l negrito chiquitito, traba-
jando sí,/ va de luto sí, va tosiendo sí, duramente sí.// Duerme, duerme
negrito,/ que tu mama está en el campo

Apesar das boas intenções certos estereótipos se fizeram presentes nas

18  Via resultados de busca: <https://www.youtube.com/results?search_


query=duerme+duerme+negrito> realizada em 06/05/2018
19  <https://jornalggn.com.br/blog/jota-a-botelho/a-historia-da-cancao-duerme-negrito> acesso
em 06/05/2018.
músicas, como em “Candombe para José”, canção de Roberto Ternan em 1973
e gravada pelo grupo chileno Illapu em 1976. Apesar do conteúdo transmitir
esses estereótipos, a canção tem uma história na resistência à ditadura de
Pinochet, quando era cantada nos centros de detenção, de acordo com Fuentes
(2018), por sua “alegria triste”, e foi apropriada e adaptada também pelo grupo
feminista NiUnaMenos20. A letra original, de Ternán,21 apesar de se compadecer
dos sofrimentos do Negro José, o encaixa nos estereótipos de homem feliz apesar
J do sofrimento, que continua o seu “dançar moreno”, e ao final, com promessas de
“tempos melhores”:
A En un pueblo olvidado, no se por que,/ Su danzar un moreno me dejó ver/
en el pueblo lo llamaban Negro José.../ amigo Negro José..!// Con mu-
cho amor candombea el Negro José,/ tiene el color de la noche sobre la
L piel,/ es muy feliz candombeando, dichoso de él,/ amigo Negro José..!//
Llena de amor las miradas cuando al bailar/ el tamboril de sus ojos pare-
L ce hablar/ y su camisa endiablada quiere saltar!/ amigo Negro José..!//
Perdóname si te digo, Negro José,/ que eres diablo pero amigo, Negro
José./ Tu futuro va conmigo, Negro José,/ yo te digo por que sé..!/ No
A tienes ninguna pena , al parecer,/ pero las penas te sobran, Negro José,/
que tú en el baile las dejas, yo se muy bien,/ amigo Negro José..!/ Ya
vendrán tiempos mejores ! Negro José,/ sigue tu danza de fuego sin pe-
recer,/ que el fuego rompa las nubes y haga llover,/ amigo Negro José..!

Já em “Samba Lando”22, gravada pelo grupo Inti Illimani em 1979, o negro


• é o eu-poético, dando um tom diferente à canção, que desenvolve um pouco
755 mais profundamente a temática, ligando a figura do negro à resistência, no
qual a lua brilha para estabelecer uma jurisdição, liberdade para os negros e
• cadeia para os traficantes de escravos. Na canção o pai do eu-poético deixou
uma “rica herança”, que se pode interpretar que é de onde virá a revolução:
dos novos escravos que chegam, com os quais poderá se unir para deixarem
sua condição de “coisas”. Expõe, ainda, a racialização e a desumanização
pelas quais passam o corpo do eu-poético, comparado ao “lixo jogado no
chão”, em muito lembrando as narrativas de Fanon e, mais recentemen-
2 te, de Sara Ahmed, do corpo do negro como fora-de-lugar, como o corpo
que chama atenção por não “pertencer” a determinado ambiente, e que, na
0 canção, mostra o descontentamento de ter toda sua história ignorada pelo
mundo do branco. No entanto, a canção clama pela forma de resistência
que vem pela união intercontinental como forma de “levantar a voz” , advin-
1 da da mesma história de sofrimento:
Sobre el manto de la noche/ esta la luna chispeando./ Así brilla fulguran-
8 do/ para establecer un fuero:/ “Libertad para los negros/ cadenas para el
negrero”// Samba landó, samba landó/ ¿Qué tienes tú que no tenga yo?/

20  <http://latfem.org/el-negro-jose-feminista/> acesso em 06/05/2018
21  <http://robertoternan.com/letra/candombe-para-jose> acesso em 06/05/2018
22 Lando é um ritmo afro-peruano, no Brasil a variante conhecida é o lundu - há uma breve
explicação em: <https://www.youtube.com/watch?time_continue=105&v=ZksHHUZHUpU> e
também, pelo próprio Nicomedes Santa-Cruz, que fala de sua origem angolana em: <https://www.
youtube.com/watch?v=mzMx1Epjad4> acesso em 01/05/2018. Nesse último vídeo Nicomedes
afirma que, no Peru, o lundu angolano virou o samba-lando e a marinera. A enciclopédia latino-
americana da Boitempo afirma que a origem do termo “samba” é controversa, mas o liga também à
origem Angolana em <http://latinoamericana.wiki.br/verbetes/s/samba> acesso em 01/05/2018.
[...] Mi padre siendo tan pobre/ dejo una herencia fastuosa:/”para dejar
de ser cosas/-dijo con ánimo entero-/ ponga atención, mi compadre,/que
vienen nuevos negreros”./ [...] La gente dice qué pena/ que tenga la piel
oscura/ como si fuera basura/ que se arroja al pavimento,/ no saben del
descontento/ entre mi raza madura./ [...] Hoy día alzamos la voz/ como una
sola memoria./Desde Ayacucho hasta Angola,/de Brasil a Mozambique/ ya
no hay nadie que replique,/somos una misma historia.

J A alegria em “Samba-Lando” está presente como em “Candombe para


José” mas é a alegria que virá das revoltas de resistência em uma luta vinda da

união dos negros em diversos países e continentes, nas quais os comerciantes de
A escravos serão os presos ao passo que os escravos vindos da África serão libertados.
Já em “La muralla”, poema do cubano Nicolás Guillén (1902-1989) que
L fala sobre a união das pessoas em prol da revolução, no caso da Revolução Cubana,
mas que, ao interpretada pelo conjunto chileno Quilapayún (álbum “Basta!”, 1969)
L de certa forma passa a se referir para a revolução continental. Nicolás Guillén é
considerado um representante da “poesia de negritude”23 ou do movimento literário
A chamado negrismo (OLIVEIRA, 2012). O poema traz vários simbolismos, como a
pomba (símbolo da paz) e o laurel (símbolo de grandeza)24:

Para hacer esta muralla,/ tráiganme todas las manos/ los negros, sus ma-
nos negras/ los blancos, sus blancas manos.// na muralla que vaya/ des-
de la playa hasta el monte/ desde el monte hasta la playa,/ allá sobre el
horizonte.// -¡Tun, tun!/ -¿Quién es?/ -Una rosa y un clavel.../ -¡Abre la
• muralla!/ -¡Tun, tun!/ -¿Quién es?/ -El sable del coronel.../ -¡Cierra la mu-
756 ralla!/ -¡Tun, tun!/ -¿Quién es?/ -La paloma y el laurel.../ -¡Abre la mu-
ralla!/ -¡Tun, tun!/ -¿Quién es?/ -El gusano25 y el ciempiés.../ -¡Cierra la
• muralla!/ Al corazón del amigo:/ abre la muralla;/ al veneno y al puñal:/
cierra la muralla;/ al mirto y la yerbabuena:/abre la muralla;/ al diente de
la serpiente:/ cierra la muralla;/ al ruiseñor en la flor:/ abre la muralla...//
Alcemos una muralla/ juntando todas las manos;/ los negros, sus manos
negras/ los blancos, sus blancas manos.// Una muralla que vaya/ desde
la playa hasta el monte/ desde el monte hasta la playa,/ allá sobre el hori-
2 zonte.

0 Poema “América Latina”26, de 1963, escrito por Nicomedes Santa-Cruz
também aborda a questão das raças levando sob o aspecto da mestiçagem:

Mi cuate / Mi socio / Mi hermano / Aparcero / Camarado / Compañero / Mi
1 pata / M`hijito / Paisano… / He aquí mis vecinos / He aquí mis hermanos
/ Las mismas caras latinoamericanas / de cualquier punto de América La-
8 tina: /Indoblanquinegros /Blanquinegrindios / Y negrindoblancos / Rubias
bembonas / Indios barbudos / y negros lacios

23 http://lenguavempace.blogspot.com.br/2015/05/la-muralla-un-poema-de-nicolas-guillen.
html
24 http://www.creadess.org/index.php/informate/de-interes/temas-de-interes/12900-simbolo-
de-grandeza
25  Gusano, além de “verme”, é a forma coloquial com que eram chamados a burguesia contrária
ao regime cubano que se refugiou em Miami, ou, em geral, pessoas contrárias o regime de
Castro. <https://www.linguee.com.br/ingles-portugues/traducao/gusano.html>, <http://www.
metaespanol.com/jergas/pais/cuba/gusano> acesso em 06/05/2018 )
26 http://latitudeslatinas.com/poemas-de-nicomedes-santa-cruz/
Em 1972, Félix Luna e Ariel Ramírez compõem “Es Sudamérica mi voz27”,
que seria gravada por Mercedes Sosa. A canção aborda a mestiçagem entre indígenas
e espanhóis, mas, no entanto, não menciona negros, mesmo se referindo à um
América “inteira”. Aborda, também, a necessidade de uma “segunda emancipação”
e de se salvar aos “irmãos”:
Americana soy,/ y en esta tierra yo crecí./ Vibran en mí/ milenios indios/
y centurias de español./ Mestizo corazón/ que late en su extensión,/ ham-
J briento de justicia, paz y libertad./ [...] No canta usted, ni canto yo/ es Su-
damérica mi voz./ Es mi país fundamental/ de norte a sur, de mar a mar./
Es mi nación abierta en cruz,/ doliente América de Sur/ [...] Otra eman-
A cipación,/ le digo yo/ les digo que hay que conquistar/ y entonces sí/ mi
continente acunará/ una felicidad,/ con esa gente chica como usted y yo/
L que al llamar a un hombre hermano/ sabe que es verdad/ y que no es cosa
de salvarse/ cuando hay otros/ que jamás se han de salvar.

L Considerações finais
Neste artigo buscamos mostrar como em diferentes países “latino”-
A americanos se deu em um contexto de agitação política e social que era característico
da década de 1960, sob influência, principalmente, da Revolução Cubana, mas

com uma temática que vinha desde o período das independências dos países
americanos, o qual, de uma união continental. Elencamos que esse diálogo
acontecia, principalmente, por meio de intercâmbios - ou seja, uma canção oriunda
• de determinado país seria interpretada em diversos outros, ou mesmo ritmos e
instrumentos que eram apropriados - mas também por meio de canções que falavam,
757
de fato, de uma união entre os países “explorados” contra aqueles imperialistas.
• Percebemos que o pensamento de uma revolução que perpassou por vários países
da chamada “América Latina” permeou o discurso de diversos músicos daquilo que
chamamos aqui de “Nova Canção”, ou “Canção Comprometida” - uma revolução que
seria, principalmente, contra o imperialismo e contra elites que buscavam lucrar
às custas do trabalhador operário, e, principalmente, do camponês. O conceito de
2 América “Latina”, até onde pudemos perceber, não foi questionado pelos artistas. A
questão racial fica, nesse contexto, intimamente ligada à questão da libertação dos
0 povos em relação a esse imperialismo, sendo pouco mencionado, por exemplo, o
racismo sofrido pelo negro dentro de uma nacionalidade específica - excetuando-se,
talvez, o contexto peruano, no qual o movimento afro-peruano deu uma tonalidade
1
específica ao movimento da canção de protesto, ou da Nova Canção, na região.
Estudos mais profundos em relação a esta temática seriam ainda necessários, bem
8 como referentes a outros países nos quais a canção de protesto se manifestou.
Em resumo, percebe-se, nas décadas de 1960 e 1970 uma grande
quantidade de canções que se referem à revolução contra o imperialismo, contra
o capitalismo, ou pelo menos, promotoras da reforma agrária - muitas vezes
tematizando líderes da revolução mexicana e, principalmente, da revolução cubana
- e que tomaram forma, muitas vezes, da ideia de uma promoção de união “latino”-
americana como forma de alcançar essa libertação almejada.
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DISCOS:
1
VANDRÉ, Geraldo. Canto Geral. MOFB3541, ODEON, 1968.

8

J

A

L TECENDO A TRAMA DAS NARRATIVAS GUAJAJÁRA/
TENETEHÁRA: A ESTRUTURA DE UMA TRADIÇÃO
L
Lilian Castelo Branco de Lima (UEMASUL)
A RESUMO: A presente pesquisa gravita em torno das Narrativas Indígenas
Guajajára, buscando evidenciar suas características literárias e a estrutura destes
textos seguindo os estudos de Vladimir Propp (2003), assim como o trabalho de
Alan Dundes (1996) sobre a morfologia e estrutura dos contos indígenas norte-
americanos. Delimitamos a investigação a uma amostra de narrativas, escolhida
• com base na preferência da comunidade, que apontou as histórias que mais
gostavam de ouvir. Assim, como este estudo determinou como sujeitos os indígenas
760
Guajajára da aldeia Januária, para atender ao critério da viabilidade. Nesse contexto,
• investigar a partir da amostra “como se estruturam as narrativas dos Guajajára
da aldeia Januária” é a questão central que nos movimenta na construção desta
pesquisa, para tal organizamos este trabalho em torno das seguintes aspirações:
Realizar uma abordagem históricoantropológica dos Guajajára da aldeia Januária,
para situarmos os sujeitos e o campo desta pesquisa e nos dar embasamento
2 para refletir sobre como se interrelacionam identidade-cultura-literatura, para
então compreender a estruturação da literatura indígena e sua importância para
0 o reavivamento cultural deste povo, no intuito de nos auxiliar a identificar como
se estruturam as narrativas de conhecimentos tradicionais dos Guajajára e que
1 elementos apresentam-se como variantes e invariantes. Para isso, delineamos
uma pesquisa bibliográfica para dar suporte aos dados que foram apreendidos
através da pesquisa de campo etnográfica, a qual constatou que essas narrativas
8 apresentam a estrutura de contos da literatura popular de outros países, como
também apresentam as funções apontadas por Propp e Dundes, contudo com
marcas da identidade étnica indígena.
Palavras-chave: Narrativas Indígenas. Guajajára. Cultura. Identidade. Estrutura
do conto.
Introdução
Este estudo se estruturou com base no diálogo entre saberes tradicionais
e científicos, na interface entre a Literatura e a Antropologia, no intuito claro de
adensar a discussão sobre o que de fato pode ser considerado literatura, tendo em
vista que no Brasil tudo o que foi produzido por europeus e nos moldes de suas
narrativas, como de fato sejam parte de um acervo literário. Em contrapartida,
aquelas narrativas literárias, produzidas pelos povos nativos de nosso país, foram
consideradas como um amontoado de ideias desconexas e que por isso não poderia
ser classificada como literatura de fato.
Nesse sentido, esse estudo, buscou analisar a estrutura de narrativas dos
Guajajára, grupo étnico que se localiza no estado do Maranhão, com o objetivo de
J identificar nesses textos as características já identificadas em contos já consagrados
como literatura pelo russo Vladimir Propp (2003). Vale dizer que este é um recorte
A de uma pesquisa maior que desenvolvi em minha formação no Mestrado em Letras e
que na ocasião o córpus da análise compreendia cinco narrativas e suas respectivas
L versões encontradas. Contudo, para atender ao número de páginas deste trabalho,
a análise deste artigo delimitou a análise a uma única narrativa: O roubo do fogo,

em duas versões.
L
Como os Guajajára, no seu processo histórico de colonização1, carregam
as marcas de tentativas de genocídios físico e intelectual, urgiu deixar claro que
A se propôs um estudo da literatura do grupo, exatamente para ir de encontro a
esse processo, como uma proposta de registro e estudo da expressividade literária,
no intuito de contribuir para a sua valoração e preservação. Assim, em primeiro
momento não foi possível definir os sujeitos, o que nos foi direcionado e definido em
contato com a aldeia, quando a própria comunidade apontou a senhora Alzenira
• Guajajára Alves como a maior contribuinte para o relato das narrativas, não
761 descartando a possibilidade de que outros que não sejam indicados pudessem
colaborar na pesquisa.

Para alcançar o objetivo aqui proposto, estabelecemos um percurso teórico-
metodológico que contemplasse as relações entre diferentes faces de um mesmo
objeto (a literatura dos Guajajára), sem deixar de lado a análise do contexto sócio-
cultural-econômico em que se insere. Dessa forma, a análise foi feita envolvendo
2 todos os elementos que interferem e compõem a literatura que foi estudada, dada
à natureza dialética desta pesquisa. Para a apreensão de elementos importantes
para a compreensão da literatura do grupo, este estudo adotou uma metodologia
0 de pesquisa de campo, partindo do pressuposto que “a situação de campo é uma
situação de diálogo” (LABURTHE-TOLRA; WAINER, 2008, p. 430), desenvolvendo-
1 se etnograficamente, apoiada e fundamentada na pesquisa bibliográfica.
E para a análise das narrativas este estudo se apoiou, em especial,
8 nos estudos de Dundes (1996) e Propp (2003). Sendo que a análise dos dados foi
feita de acordo com o que propõe Laurence Bardin (1977), assim dividida em três
fases: exploração, tratamento dos resultados e interpretação. Foi desenvolvida em
todo o decorrer do estudo, tendo em vista que o próprio objeto está em constante
transformação. Para que a pesquisa atenda aos objetivos a análise deveria ser
contínua, no sentido de orientar e reelaborar quando preciso as análises feitas
neste estudo.
Assim, o trabalho segue com uma breve apresentação da etnia, para
1  Referimo-nos ao processo de colonização que foram submetidos os indígenas brasileiros,
principalmente no Maranhão, em que a referida etnia sofreu vários massacres físicos e culturais.
situar o leitor sobre questões históricas e antropológicas do povo que produziu a
narrativa estudada e posteriormente se apresenta a análise da narrativa e duas de
suas versões, trazendo uma discussão sobre a estrutura e morfologia dos contos
folclóricos a partir das ideias de Dundes (1996) e Propp (2003), encerrando com as
considerações finais.
Povo Guajajára/Tenetehára: caminhos da história, visões antropológicas
O povo Guajajára/Tenetehára do Maranhão é uma das etnias mais
J numerosas do Brasil, apesar de ainda não haver um número preciso, pois muitas
aldeias não foram contempladas pelo censo por dificuldade de acesso, assim como
A os indígenas que vivem em cidades vizinhas às aldeias não foram considerados.
No entanto, estima-se que sejam cerca de 27.616 de acordo com Siasi/Sesai
L (2014), totalizados em 11 terras indígenas demarcadas e homologadas. Em virtude
do número de seus membros, esse povo representa um exemplo de resistência
L indígena, haja vista, terem resistido ao processo de colonização e catequização, que
por muitas vezes usou de violência, levando em muitos casos a um grande número
de dizimados.
A
Para Gomes (2002), a denominação dessa etnia como Tenetehara está
diretamente ligada aos valores identitários, pois:
A palavra “tenetehara”, usada como autodesignação do povo Tenetehara, é
composta pelo verbo /tem/ (“ser”) mais o qualitativo /ete/ (“intenso”, “ver-
dadeiro”) e o substantivizador /har(a)/ (“aquele, o”). Quer dizer, enfim, “o
• ser íntegro, gente verdadeira”. É um designativo forte que exprime orgulho
762 e uma posição singular: a de ser o verdadeiro povo [...] Vale notar que, se
perguntado, nenhum indivíduo Tenetehara é capaz de destrinchar o signifi-
• cado por esse processo linguístico [...] Para ele, Tenetehara significa simples
e circulamente o indivíduo ou a pessoa que é parte do povo Tenetehara (GO-
MES, 2002, p. 47-48).

Percebe-se, portanto, que a interpretação de sua autodenominação


vem de um processo político-ideológico, influenciado principalmente pela visão
2 dos missionários que trabalhavam com esses indígenas. Portanto, tem-se como
denominação para esse povo: Guajajára/Tenetehára/Tenetehar, contudo nesse
0 trabalho utilizaremos as duas primeiras denominações.
Vale ressaltar que a história de contato dos Guajajára com outros povos
1 não-indígenas é bastante complexa, pois foi marcada tanto por submissões, como
por grandes revoltas. A exemplo dessas revoltas temos a grande tragédia que
8 aconteceu em 1901 – O Massacre de Alto Alegre – contra os capuchinhos, que teve
uma enérgica resposta das autoridades maranhenses, esse combate tem notória
importância para a historiografia brasileira, pois ficou conhecido como a última
“guerra” contra os povos indígenas na história do Brasil.
Sendo que este povo aparece na historiografia já desde o início do século
XVII, quando os franceses os nomearam “les Pinariens” (habitantes do rio Pindaré).
É em 1616, que Bento Maciel Parente, responsável por um dos maiores morticídios
de indígenas do Maranhão e Pará, os denominou Gajaojara, atualmente Guajajara
(portador/dono de cocar), que também se supõe que lhes foi atribuído pelos
Tupinambás da Ilha de São Luis, porém se acredita que isso ocorreu pelo simples
fato desse adereço ser diferenciado do cocar Tupinambá e não por ser uma peça
especial (GOMES, 2002).
Ainda sobre o processo de contato, os registros historiográficos indicam
que o primeiro encontro entre as missões jesuíticas e os Guajajára se deu na
região do rio Pindaré. Com o expansionismo demográfico e os conflitos com os
regionais e missionários jesuítas, os Guajajára foram buscando outras terras. Hoje
suas aldeias localizam-se às margens dos rios Grajaú, Corda, Pindaré, Mearim e
J Zutiwa e se dividem nas seguintes terras indígenas: Araribóia, Bacurizinho, Cana-
Brava, Caru, Geralda/Toco Preto, Governador, Lagoa Comprida, Morro Branco, Rio
A Pindaré, Rodeador e Urucu-Juruá, todas homologadas e registradas.
A investigação sobre a identificação dos elementos estruturais das
L narrativas da literatura do grupo, foi desenvolvida com base nos relatos de
moradores da aldeia Januária, localizada no município de Bom Jardim – MA.
L Narrativas Guajajára/Tenetehára: a estrutura do encontro de uma
tradição com a visão de mundo antropologicamente moldada

A Nesse contexto, a saber que a mola propulsora desta pesquisa é a


problemática: Como se estruturam as narrativas de saberes tradicional dos

Guajajára/Tenetehára? O primeiro passo foi a busca por essas narrativas para
depois definirmos as bases teóricas para a análise, e foram estabelecidas como eixo
teórico para a investigação de tais estruturas as ideias de Propp (2003) e Dundes
• (1996).
Inicialmente, pensamos este estudo com o romantismo que nos foi
763
instituído culturalmente sobre as comunidades indígenas – aquelas que mantêm
• sua cultura intacta – pelo menos os valores culturais ligados diretamente aos saberes
tradicionais do seu povo, como as narrativas que apresentam literariedade. No
entanto, encontramos em campo um cenário bem diferenciado do que conjecturamos
no projeto desta pesquisa e o que se constatou é que eles vivenciam uma cultura
que resiste, mas também uma cultura em transição, não fugindo do que é próprio
2 dos contatos interétnicos.
Como as narrativas que esperávamos que estivessem nas casas, nos
0 terreiros, nas rodas de cantigas e histórias, haviam migrado para a escola nos
dirigimos para lá, quando nos deparamos com outra constatação que foge ao
1 habitual nas comunidades indígenas, suas histórias não estavam na boca dos
velhos2 da aldeia, a guardiã desse saber conforme a comunidade é uma senhora de
42 anos, contrariando o que defendem os estudiosos da memória social, os quais
8
defendem em suas teses a importância da memória dos velhos para comunidades
tradicionais, pois eles seriam “[...] a fonte de onde jorra a essência da cultura,
ponto onde o passado se conserva e o presente se prepara” (BOSI, 1999, p. 18).

2  Diante dessa realidade, buscamos definições para “ancião” que na comunidade preferem chamar
de “velho”, em resposta aos nossos questionamentos não nos definiram uma idade precisa e sim
apontaram que é uma pessoa que já viveu muito e sabe de muita coisa, sabe da língua e das histórias
de seu povo. “D. Alzenira não é velha, mas ela é quem mais sabe, então ela é assim guardadora da
nossa cultura, porque sabe da língua, das histórias da gente, sabe da cultura” (Caderno de Campo,
05/01/2011).
Nessa perspectiva, o ancião desempenha um papel fundamental em
sociedades que se valem da tradição oral, como forma predominante de educação,
por que “[...] um ancião não sonha quando rememora: desempenha uma função
a qual está maduro, a religiosa função de unir o começo ao fim, de tranquilizar as
águas revoltas do presente alargando suas margens” (BOSI, 1999, p. 82), mantendo
a peculiaridade de ser o guardião das “histórias” de seu povo.
Essa guardiã, para os indígenas da aldeia Januária, chama-se Alzenira
J Guajajára Alves, mãe, avó, moradora da aldeia Piçarra Preta, é professora das
disciplinas Língua Indígena e Cultura Indígena na escola da aldeia Januária,
A cursou o magistério e cursa atualmente Pedagogia, seu grande sonho é fazer uma
pós-graduação na área do ensino de Língua Indígena, o que ainda não foi possível,
L primeiro pelo acesso a centros acadêmicos que ofereçam o curso, depois por ter um
filho com síndrome de Down, o qual requer muito de seus cuidados. Atuante na

comunidade, faz um movimento de conscientização do valor da sua cultura étnica
L pela educação, principalmente no que se refere à língua materna.
Pelo que percebemos, ela se posiciona como uma defensora da identidade
A étnica dos Guajajára e se inquieta com a falta de interesse das pessoas da
comunidade pela cultura indígena. Desse modo, quando propomos a pesquisa a
ela, logo houve aceitação e interesse, pois segundo ela: “Olha, nós não precisamos
só dos conhecimentos indígenas não, eles são os mais importantes para nós,
mas como vamos defendê-los se não sabemos outros conhecimentos, como esse
• que você quer fazer sobre as histórias do nosso povo?”. Fato é que ela é uma
764 mulher consciente de seu papel social, o que a faz defender sua cultura, mas
sem maniqueísmo. Também não gosta do título de “guardiã dos conhecimentos

indígenas” e até se mostra contrariada com tal afirmação.
Quando ela questionou quais eram os motivos de ter sido escolhida para
a pesquisa, nós respondemos que por indicação de toda a comunidade, ela então
retrucou: “Não, me entenda eu não gosto disso assim: porque fico pensando meu
2 Deus eu não quero ficar com isso só pra mim, Lilian tá me entendendo, eu quero
que outras pessoas também se coloquem a frente disso; e quando eu faltar como é
que vai ser?”. Constatamos em sua fala uma grande preocupação com a existência
0 de um (a) sucessor (a) para o ensino da cultura Guajajára nas aldeias que convive:
Januária, onde trabalha e Piçarra Preta, onde reside.
1 Assim, apresentada a pesquisa e após conhecermos de forma breve D.
Alzenira, começamos a conversar sobre as histórias e esse foi o ponto nevrálgico do
8 trabalho, porque o que ela nos apresentou foi o seguinte:
Se a gente for pedir para outra pessoa contar, você vai encontrar aquelas
lendas usadas naquele livro. É uma boa referência que nós temos aqui que
é o livro e outras histórias eu não sei. Das que eu já ouvi estão dentro desse
livro aqui. Inclusive essas lendas a gente trabalha em sala de aula você sabe
né, primeiramente nossa educação ela não era assim, por isso que se chama
ainda hoje educação diferenciada. No meu tempo, por exemplo, não havia
esses contos de lendas, e já existia esse material só que a gente nem sabia,
aí depois da nossa formação de magistério, durante o curso nós ficamos
conhecendo esse livro, esse rico material aqui e hoje a gente já trabalha, já
repassa para os alunos, no nosso tempo foi um pouco diferente.
Queremos primeiramente chamar atenção nessa fala para a forma com
que faz alusão às narrativas apresentadas no livro citado, ora ela as denomina como
lenda, ora como conto de lenda, não há entre eles essa diferenciação dos gêneros
textuais, a exemplo do que é marcado na fala da professora, contudo, um dado
importante foi percebido em nossas conversas: “Isso tudo aí é só história, não é
verdade, é como as pessoas pensavam que eram, às vezes contavam só para contar
histórias, para passar o tempo, mas que às vezes traz coisas que são verdade,
J entende?” (Caderno de campo, 06/01/2011). Dessa forma, “[...] a esta altura, não
importa averiguar se há verdade ou falsidade: o que existe é já a ficção, a arte de
inventar um modo de se representar algo” (GOTLIB, 2003, p. 12).
A
Seguindo o entendimento da fala do indígena e concatenando com a da
L autora supra citada, podemos identificar aí uma característica do conto: ser ficção.
Essa mistura do que para eles é maravilhoso com o que é real, na visão de Góes

(1991, p. 118), é o atrativo desse gênero, pois
L A poesia desses contos, nascida dos mais fortes e primários sentimentos
gerais, é o que mais fala e desperta a sensibilidade dos jovens. E nesta po-
A esia de maravilhas e sonho, sob a qual transcorre a ação de personagens
tradicionais da mitologia popular as crianças encontram os seres verdadei-
ros e os fatos reais de seu dia-a-dia. É nessa justaposição do maravilhoso
poético com o realismo doméstico, na mistura do fantástico e da intimidade
familiar, que reside todo encanto e atração dessa literatura (GÓES, 1991,
p. 118).

Vale dizer que não só desperta a sensibilidade dos jovens, como frisa a
765
autora, como também das crianças e dos adultos da aldeia, fato que verificamos
• ao perguntar-lhes sobre interesse por essas histórias, tanto os alunos do Ensino
Fundamental e Ensino Médio, como os da modalidade EJA (Ensino de Jovens e
Adultos) responderam que consideram as histórias “legais” (Fala das crianças,
Diário de Campo, 10/03/2011), “interessantes” (Fala das jovens, Diário de Campo,
10/03/2011), “são muito boas de ouvir” (Fala dos adultos, Diário de Campo,
2 10/03/2011).
O livro a que se refere D. Alzenira na fala anterior é a obra Os índios
0 Tenetehara (uma cultura em transição) dos antropólogos Charles Wagley e
Eduardo Galvão, lançado em 1961 pelo Ministério da Educação e Cultura do Brasil.
1 Notamos que o que ela revela na fala sobre se perguntar para outras pessoas eles
vão direcionar para o livro foi uma constante, a todos que procuramos para a

pesquisa respondiam: “Pra quê a senhora quer que conte se está tudo no livro da
8 professora e ainda melhor, mais completo?” (Caderno de campo, 06/01/2011).
Passamos duas semanas na aldeia, visitando as casas, especialmente à
noite, acompanhando as aulas e constatamos que realmente o que o grupo afirmou
sobre o fato de que as narrativas que nos interessavam estariam na escola, nas aulas
de D. Alzenira. A partir daí inferimos que teríamos que nos valer destas narrativas
transcritas por Wagley e Galvão (1961) que ao apreenderem essas narrativas foram
associando elementos a elas, “colocando detalhes”, lançando mão das palavras de
D. Alzenira. O que se comprova pela seguinte explanação ao ser questionada se há
alguma diferença entre as histórias narradas no livro e as que ela ouvia quando
era criança:
[...] aqui [apontando para o livro] tá muito detalhado né, e das que eu já ouvi
não tinham tanto detalhamento, como está detalhado aqui. Eu ouvi, por
exemplo, a história de Maíra, eu tinha muita curiosidade, mas como é essa
história de Maíra? Só que as pessoas nunca me contaram realmente como
foi a história de Maíra. Por essa questão, entre nós Lilian, há uma questão
assim, que uma determinada pessoa sabe de uma história, eu não sei se é
J vergonha ou é preguiça de contar pra gente, e não conta por mais que você
queira ouvir, ai fica tendo sempre um impacto, eu não entendo porque é né,
A já é diferente hoje, você já me procura se... eu já tô te dando esse material
né, pra...Como resposta, mais se você for procurar alguém pra lhe contar
essa história, eles vão contar essa mesma história, então é assim.
L
O que ela afirma no final de sua fala se confirmou nas outras visitas
à aldeia. Nesse contexto, essa pesquisa careceu de ser redirecionada, porque
L
não obtivemos outras versões se não aquelas constantes no livro, ditas com as
palavras dos indígenas, mas ditas na essência do que aprenderam na escola. Logo,
A estávamos diante do encontro de uma tradição com a visão de mundo moldada
pelos estudos dos antropólogos Wagley e Galvão. Nesse contexto, fizemos a seleção
de cinco textos que foram indicados da seguinte forma pela comunidade:
AVENTURAS DE WIRAI: Os índios crianças, na faixa etária de 7-11
anos. Quanto à justificativa da escolha disseram que é devido ao fato dessa história
• ser parecida com eles; O MARIDO-JACARÉ: Esta foi escolhida entre as índias
766 crianças na faixa etária de 7-11 anos, vale frisar que elas fizeram a alusão de que
• essa é a mesma história da Bela e da Fera, só que dos povos indígenas; O ROUBO
DO FOGO: Os índios adolescentes na faixa etária entre 12-17 anos mostraram
essa narrativa como de sua preferência; A ESTRELA QUE ACOMPANHA A LUA:
Escolhida entre as índias adolescentes na faixa etária entre 12-17 anos; A CABEÇA
ROLADORA: Os adultos que também estudam no EJA apontaram essa como a
mais interessante para eles.
2
Contudo, nesse artigo, pela limitação do número de páginas analisaremos
exclusivamente a narrativa “O Roubo do fogo” nas versões de Wagley e Galvão (1961)
0
e de Zannoni (2002), pela distância temporal em que ambas foram coletadas e por
nos permitir maiores considerações comparativas.
1
O roubo do fogo: a análise dos pontos que o fazem um conto

Com base nas discussões dos teóricos Coelho (1987) e D’Angelis (2008),
8
elaboramos um quadro de análise composto por uma relação de características do
conto que podem ser identificáveis nesse gênero textual.
O conto é sempre ficção, mesmo aqueles que se originaram dos mitos
que são considerados por muito estudiosos como verossímil. Nesse aspecto, temos
no conto fatos que pertencem ao mundo do maravilhoso. Na aldeia Januária,
quando fomos em busca dessas narrativas, perguntamos às pessoas com quem
conversamos: Você considera que essa história é real ou ficção? Todos foram
unânimes na resposta: “Claro que é ficção, já viu urubu ser dono de fogo e falar?
Antes os Guajajára acreditavam que era assim mesmo que as coisas aconteciam,
que se descobria, mas a gente sabe que é só invenção para dizer mais ou menos
como podia ser” (Diário de campo, 24/02/2011);
Para conseguir o que almejam ou necessitam os seres lançam mão
do elemento maravilhoso: feitiços, encantos, instrumentos mágicos, viagens
extraordinárias que fazem com que os seres se transportem para outros mundos.
Na narrativa do conto não há um tempo determinado, sabe-se apenas que a história
se passa no passado, por isso são comuns às expressões: Há um tempo, “Certa
J vez”, entre outras que exprimem essa indefinição.
Não é comum a apresentação de nomes, por isso é característico que se
A nomeie os personagens pelo grau de parentesco: pai, mãe, filho, cunhado. Traz em
sua trama um perigo, que gera uma aventura, nessa aventura os pares se opõem
L em uma luta que para alguns resulta em castigo, para outros em recompensa.
Nessa luta travada há um forte e um fraco, este para vencer a luta carece de
forma astuciosa desenvolver uma solução para vencer o mais forte. Entre os seus
L
personagens que lutam entre si há sempre pares que se opõem, na maioria das
vezes são bichos.
A Vale ressaltar ainda que o conto por sua característica popular e sua
base na oralidade vai sendo passado de geração em geração, contudo em cada povo
o mesmo conto apresenta temas de identificação imediata, ou seja, um elemento
local perceptível entre aqueles de uma mesma sociedade.
Feita a apresentação das características adotadas como norteadores da

análise, passemos aos quadros para a investigação das versões da narrativa O
767 Roubo do Fogo. Nos quadros a seguir identificamos nos trechos das duas versões
• as principais características elencadas nesse estudo.
A primeira versão do conto apresentada é uma narrativa breve com poucos
elementos, mas que contempla a ideia central dessa narrativa que a situação
do roubo do fogo. O texto é narrado no tempo passado, marcado pela expressão
pela expressão “De primeira vez”, que entre os Guajajára é utilizada no início das
2 narrativas para indicar tempo passado não definido. No texto os pares que se
opõem são Maíra e os urubus. Verificamos também que o elemento maravilhoso é
0 notadamente citado na história, na figura de Maíra, que ora se transforma em uma
anta, ora em um veado, ambos mortos, utilizando-se de astúcia cria uma situação

ardilosa para enganar os urubus e roubar-lhes o fogo. E é exatamente no final da
1 narrativa que temos o elemento local evidenciado, quando Maíra esconde a brasa
num pau de urucu, vegetação característica do serrado, da qual se extrai corante
8 natural na cor vermelha para a comida e para as pinturas indígenas.

Entre a versão 1 e a 2 existe um período entre a apreensão dessas


narrativas de três décadas, dessa forma, percebemos que isso intensifica os
elementos que as diferem, entre eles a própria linguagem da narrativa. Visto que
enquanto a primeira utiliza-se de uma linguagem bem próxima da culta, até pela
escolha dos antropólogos em apresentá-la mediante a transcrição livre, o que para
eles facilitaria o entendimento, a segunda é uma transcrição que denota seguir com
mais fidedignidade o que lhe foi contado, prova disso são as marcas da oralidade do
sertanejo maranhense, entre eles os indígenas que vivem no campo como é o caso
de Salomé Maizu, quais sejam: entonse (então), carnice (carne podre), pau pubo (pau
que esteja com o miolo apodrecido) entre outras.
Vale frisar que nessa narrativa já temos os velhos como principais
narradores, sendo que conforme cita Salomé essa é uma história contada sobre
o começo do mundo: “Os velhos contavam que no começo do mundo, que diz que
o índio não tinha fogo nessa época”. Contudo, apesar de ser uma história sobre a
possível criação do fogo, ela se utiliza de elementos que fogem ao verossímil como
J o urubu ser dono do fogo, como um índio se transformar em carniça e depois em
folha seca.
A Observamos também que quando a narradora traz a história para a
realidade dos índios ela cita a figura de Deus, na visão imposta pela cultura cristã,
L e ela atribui a Deus a responsabilidade por os índios viverem na época em que não
havia fogo. Portanto, podemos inferir que para ela, o elemento mágico se relaciona
com o pajé – uma figura, que conforme suas palavras, vai continuar existindo
L
assim como existe a vida. Nesse texto, os pares que se opõem são índio (pajé) e os
urubus.
A Essa versão é rica em elementos locais evidenciados na narrativa, tais
como: moquiço velho (feixe de galhos secos que se juntam nas matas), a refém do
fogo lhe pegar a mó dele pegar também (ficando exposto para que o fogo o queimasse
também), jiboião (cobra jibóia grande, muito comum nas matas maranhenses),
piabinha moquecas (pequenos peixes cozidos, característicos na alimentação dos
• ribeirinhos, como no caso dos índios Tenetehára que se estabelecem em volta dos
768 rios da região). Outro elemento local enfatizado na narrativa é a pedra de fogo:
• “agarrou e ajeitou tudo e botou em cima de umas pedras, que o índio, ele tem um
negócio assim, chama ele é pedra boa de fogo, é boa de fogo, tem um pedaço de ferro,
uma coisa, tem uma pedra bem fina, umas pedras de fogo”, a narradora cita uma
técnica indígena para produzir fogo.
O modelo do estudo: a estrutura e morfologia do conto folclórico sob os
2 olhares de vladimir propp e Alan Dundes
Vladimir Propp, estudioso russo dos contos folclóricos, os quais ele
0 denomina como maravilhosos, foi um dos integrantes do curto movimento formalista
(1915-1930), que apesar de ter sido breve muito influenciou no movimento
1 estruturalista que viria depois.
A sua obra que traz os seguintes títulos3: Morfologia do Conto Maravilhoso,
Morfologia do Conto Folclórico, ou apenas Morfologia do Conto, lançada em 1928,
8
serviu de base para muito estudiosos da temática, a exemplo, Alan Dundes (1996)
no seu trabalho sobre os contos indígenas norte americanos. Como também foi alvo
de muitas críticas, entre elas, as de Lévi-Strauss (1993, p. 123), que ao analisar a
obra em questão, afirma:
[...] Acrescendo que a leitura é penosa em virtude dos erros de impressão e
das obscuridades que talvez existam no próprio original, mas que parecem
antes resultar da dificuldade experimentada pelo tradutor com relação à

3  Essa variação depende da tradução e da edição da obra, no caso da adotada nesse trabalho que
é uma tradução portuguesa de 2003 traz como título Morfologia do Conto.
terminologia do autor. Não é, pois, inútil seguir a obra de perto, tentando
condensar suas teses e conclusões.

Nesse sentido, o antropólogo atribui a dificuldade encontrada pelos


tradutores no entendimento da Morfologia do Conto e no próprio desenvolvimento
da obra de Propp ao fato de que ele na sua análise desprezou informações
imprescindíveis sobre o mito, que interferem diretamente no estudo do conto.
Já Claude Brèmond, que se situa na perspectiva de Propp, citado por Adriano
J Rodrigues no prefácio da edição portuguesa da Morfologia do Conto (2003, p. 13),
vem em defesa do formalista russo e tece o seguinte comentário sobre os estudos
A de Lévi-Strauss:
[...] << a investigação de Cl. Lévi Strauss é orientada para estruturação dos
L temas míticos assumidos pela técnica da narrativa, enquanto que é a estru-
turação desta técnica que nos interessa. Esforçamo-nos por constituir uma
tipologia dos papéis independente dos contextos culturais em que estes pa-
L péis recebem os seus atributos (no sentido de Propp). Para dar um exemplo,
é indiferente, na nossa, perspectiva, que Caim se oponha ao irmão Abel, no
Gênesis, como o agricultor ao Pastor. Qualquer outra espécie de oposição
A (louro/castanho; filho bastardo/ filho legítimo, etc.) serviria. Já pelo con-
trário, nos interessa que os esquemas dos seus papéis os oponha enquanto
Sedutor fracassado que vinga do rival a Sedutor feliz vítima do rival. Surge
aqui um arquético dramático >>(grifo do autor).

Brèmond explica no excerto que o objetivo de Propp não era analisar o



contexto, por isso que seus estudos não se detiveram na abordagem dos mitos,
769 porque em sua perspectiva o interesse era pela estrutura morfológica e os esquemas
• dos papéis dos personagens, o que de certa forma absolve Propp das acusações de
Lévi-Strauss. Fato é que apesar das lacunas perceptíveis deixadas por Propp em
sua Morfologia do Conto, ele apresentou um trabalho inovador para a época e que
serviu de base para muitos trabalhos.
Propp em sua Morfologia do Conto (2003), pesquisou um corpus extenso de
2 contos maravilhosos russos e percebeu as semelhanças entre estes e outros contos
de várias partes do mundo. Frisemos que em seu estudo Propp não se detém a
0 analisar os atributos das personagens e sim as funções que desempenham, porque
a perspectiva dele segue uma ordem sintagmática e não paradigmática.

Assim, o trabalho de Propp se estrutura em torno das seguintes questões:
1
A forma dos contos de magia; As transformações que ocorrem nos contos e que
geram outros contos; A origem destes contos. De acordo com Propp, os contos
8 apresentam uma estrutura fixa: o herói recebe a notícia de um dano/carência; o
herói deixa a casa; o herói é submetido a uma prova; o herói e o meio mágico; o

dano ou carência inicial é reparado, trazendo à narrativa um novo equilíbrio. Nas
palavras do autor,
Do ponto de vista morfológico podemos chamar de conto de magia a todo
desenvolvimento narrativo que, partindo de um dano (A) ou uma carência (a)
e passando por funções intermediárias, termina com o casamento (W0) ou
outras funções utilizadas como desenlace. A função final pode ser a recom-
pensa (F), a obtenção do objeto procurado ou, de modo geral, a reparação do
dano (K), o salvamento da perseguição (Rs), etc (PROPP, 2003, p.144).
É com base nessa determinação de Propp que Alan Dundes desenvolveu
seu modelo analítico para os contos indígenas norte-americanos. Sendo que o
esquema de análise de Propp trabalha com a distinção entre as funções abstratas,
as quais compreendem a forma e as ações que são realizadas, no caso o conteúdo.
Contudo, apesar de considerar o trabalho de Propp relevante, Dundes
(1996) afirma não ser possível aplicar o método proppiano em sua totalidade aos
contos indígenas norte-americanos, principalmente pelo fato de que os contos de
J fadas russos apresentam em sua maioria as mesmas características dos contos
indo-europeus, e uma delas é o dualismo estre o bem e o mal, herói e vilão. E
A isso não aparece nos contos indígenas como regra. Essa constatação de Dundes
também pode ser verificada nos contos Guajajára, em que mesmo os personagens
L que são considerados herói realizam ações que se atribuem ao vilão como no caso
do Roubo do Fogo, Maíra, Nhanderequeí, Baíra enganam e roubam.

Nesse contexto, Dundes (1996) estabelece para a análise dos contos
L
indígenas norte-americanos as seguintes unidades estruturais: 1) Motivema:
unidade mínima (função); 2) Motivo: elementos que preenchem os motivemas;
A 3) Alomotivo: motivo que ocorre em qualquer contexto motivêmico. A partir daí
Dundes (1996) analisa a morfologia do conto através do que ele chama de padrão
motivêmico, que segundo ele pode ser entendido como um “modelo estrutural” que
é testado mediante comparações dos componentes dos contos indígenas com os de
outros contos. Assim, têm-se as sequências chamadas de nuclear bimotivêmica,
• tetramotivêmica e a combinação de seis motivemas. São elas:
770  Sequência nuclear bimotivêmica: Carência/Reparação da Carência
• Dundes (1996, p. 97) constatou que nos contos indígenas assim como
acontece nos contos populares europeus “são constituídos por um movimento que
leva do desequilíbrio ao equilíbrio. O desequilíbrio, uma condição a ser temida ou, se
possível, evitada, pode ser descrito como um estado de abundância ou de carência,
dependendo do ponto de vista”. O autor classifica essa sequência como nuclear,
2 porque esses dois motivemas representam a de um tipo de estrutura textual.
Nesse padrão nuclear bimotivêmico, o motivema carência (C) aparece no
0 início da narrativa e o motivema reparação da carência (RC) normalmente aparece
no final. Esses dois motivemas não perdem seu valor quando são intermediados

por motivemas intermediais, as quais aparecem nas sequências tetramotivêmicas
1 e na combinação de seis motivemas.
 Sequência tetramotivêmica: Interdição/Violação/Consequência/
8 Tentativa de Fuga da Consequência
Na trama do conto que segue essa sequência o núcleo padrão é a
desobediência ao motivema interdição (Int), que pode vir expresso claramente ou
implícito. Nesse aspecto o estudo de Dundes (1996) difere do de Propp (2003),
pois para este a interdição sempre é explicitada. Com a violação da interdição
(Viol) há, portanto, uma consequência (Conseq). Já a tentativa de fuga pode ou
não aparecer, este motivema não é constante nessa sequência. E Dundes chama
atenção ao apresentar esta sequência motivêmica que nem sempre irá existir uma
carência inicial que causa o desequilíbrio.
Então podemos inferir que a violação de uma interdição pode ser
interpretada como uma carência, não deixando de existir, contudo representada
pelo motivema consequência.
 Sequência tetramotivêmica: Carência/Ardil/Engano/Reparação da
Carência
Essa sequência é uma das mais frequentes entre os contos indígenas
Guajajára, o que se entende pelo fato de que “um dos meios mais comuns de
J eliminar uma carência é através do engano” (DUNDES, 1996, p. 113). O engano
(Eng) que corresponde à função 7 de Propp é propiciado pelo motivema Ardil (Ard),
A que corresponde à função 6.
Nos contos indígenas, o ato de enganar quase sempre recorre a disfarces
L e principalmente, por transformações mágicas. É comum vermos homens se
transformando em bicho, assim como o contrário.
L  Sequência tetramotivêmica: Carência/Tarefa/Realização da Tarefa/
Reparação da Carência
A Nessa sequência motivêmica temos uma carência (C) e para a reparação
desta a é dada uma tarefa (T) normalmente ao herói da história. Esse motivema
corresponde à função 25 de Propp. Realizada a tarefa (RT), que corresponde a
função 26, se restaura o equilíbrio e a carência inicial. Nos contos indígenas é
comum o fato de quem realiza as tarefas seja auxiliado, principalmente por bichos.
• Isso foi constatado também em nossa leitura dos contos Guajajára.
771 Combinação de seis motivemas: Dundes (1996) afirma que os textos
podem ser menos e mais complexos dependendo da sequência motivêmica que

apresentem.
[...] os contos simples podem ser constituídos de por apenas um dos padrões
motivêmicos. Em outras palavras, estas sequências motivêmicas são os me-
nores contos tradicionais. Um conto tradicional pode ser definido como uma
ou mais sequências motivêmicas (DUNDES, 1996, p. 119).
2 Assim, um conto tradicional pode ser definido pela seguinte estrutura
motivêmica: sequência bimotivêmica nuclear (C-RC) mais a sequência interdição/
0 violação e a ela se agregar a consequência/tentativa de fuga.
Dundes (1996), ao apresentar essa combinação em seu estudo e ao fazer
1 uma relação de contos indígenas norte-americanos que apresentam estrutura de
combinação de seis sequências motivêmicas, constata que o conteúdo que preenche
8 as estruturas pode ser variável, no entanto o modelo permanece fixo. Esses motivos
segundo o autor muitas vezes podem ser determinado, pela cultura. Dessa forma,
o que se tem é um alomotivo, ou seja, mesmo os motivos não sendo equivalentes
entre si, ocupam o mesmo local na estrutura.
Estrutura de contos mais complexos e mais extensos: Ao analisar
os contos indígenas norte-americanos em comparação com o trabalho de Propp
sobre os contos folclóricos russos, Dundes (1996) verifica que um dos aspectos
que diferencia os contos folclóricos indo-europeus e os contos indígenas norte-
americanos é a extensão. Dundes observa que os primeiros são mais extensos que
os segundos, o que ele atribui ao suporte da linguagem utilizada, enquanto os
indo-europeus são na maioria escritos, os indígenas mantendo-se em uma tradição
de oralidade, tem como suporte a memória. Na concepção de Dundes esse fator
influencia diretamente na complexidade do conto tornando-o mais curto para que
facilitem a narração.
Para discutir a profundida e complexidade do conto, o teórico propõe um
conceito análogo ao da profundidade gramatical na linguística.
Independentemente da validade do conceito de profundidade gramatical em
J lingüística, propomos aqui um conceito análogo para o folclore: o de pro-
fundidade motivêmica. A profundidade motivêmica consiste na quantidade
de motivemas que são interpostos entre os membros de um par motivêmico
A como Interdição/Violação, Ardil/Engano, ou especialmente Carência/Repa-
ração da Carência (DUNDES, 1996, p. 143-144).
L
A interposição que o autor menciona acima é o que dá ao conto a
possibilidade de expansão. Como mostra Dundes, no excerto pode se ter um conto
L que entre a carência indicada no início da narrativa e a reparação no final se
interpolem outras sequências motivêmicas citadas por ele.
A O estudioso ainda chama atenção para o fato de que se houver a
interpolação da sequência Tarefa/Realização da Tarefa pode ser que ocorram
várias tentativas de se realizar uma tarefa específica, nesse caso o número de
tentativas não serve para expandi-lo quanto a complexidade, mas sim para reforçar
a estrutura motivêmica.
• Ao expor as possibilidades de combinação de sequências motivêmicas
772 no sentido de expandir um conto, Dundes (1996) nota que através da análise de
• contos complexos se confirma a análise de contos simples, pois são identificados os
mesmos motivemas nucleares (C-RC) e que estes ao se ligarem a outros motivemas
prolongam a narrativa tornando o texto mais complexo.
Após a análise das sequências motivêmicas e a sua identificação nos
contos apresentado em seu estudo, Dundes (1996) confirma e reforça a sua tese
2 de que os contos indígenas norte-americanos são estruturados e não só histórias
construídas com trechos aleatórios e que não se interligam.
0 Nesse sentido, com base na exposição de Dundes (1996) sobre as
sequências motivêmicas elaboramos um quadro de análise para identificar nas

narrativas indígenas Guajajára elementos que nos possibilitem identificar a
1 estrutura destes contos, no intuito de corroborar com a conclusão do estudioso
americano no que concerne a lógica dos contos indígenas, o que é exposto a seguir
8 na análise de “O roubo do fogo”.


MOTIVEMAS NARRATIVA

CARÊNCIA “De primeira vez os Tenetehara não possuíam o fogo”.


“Maira decidiu roubar-lhes o fogo. Transformando-se num veado morto”.
“Maira transformou-se numa anta morta. Ao avistar a carniça, os urubus
ARDIL
desceram e prepararam o fogo para assar a carne. Maíra deixou-se
pacientemente bicar pelos urubus”.
“deixou que os urubus enganados pelo cheiro de carniça se aproximassem
J trazendo o fogo. Quando estavam muito próximos. Maíra levantou-se
ENGANO
rapidamente e tentou apoderar-se do fogo que traziam. Espantados, os
urubus alcançaram vôo, carregando o fogo”.
A “Maíra deixou-se pacientemente bicar pelos urubus. Quando o fogo
chegou ao alcance do braço. Maíra agarrou uma brasa”.
L “Os urubus levantaram vôo carregando o fogo, Maira, que conservava a
REPARAÇÃO
brasa na mão, tratou de escondê-la num pau de urucu, para quando o
homem precisasse do fogo soubesse onde encontrá-lo Ainda hoje, quando
L DA CARÊNCIA
o Tenetehara quer fazer fogo, vai ao mato para colher varas de urucu (Bixa
Orellana)”.
Quadro 1: Motivemas da narrativa O ROUBO DO FOGO (WAGLEY; GALVÃO, 1961).
A Fonte: Dundes (1996).
Org. : A autora.
Nesse conto a história inicia com uma situação de desequilíbrio
denominada na análise como carência moldura que é a falta de fogo para os
Tenetehára enquanto que os urubus tinham fogo. Maíra precisa pegar o fogo,
• o que caracteriza a carência inicial, tem-se então uma situação ardilosa em que
773 Maíra finge-se de morto e consegue roubar o fogo dos urubus, começa então uma
• disputa entre Maíra e os urubus. Estes são enganados por Maíra que se disfarça
primeiramente em um veado e depois em uma anta.
Há a reparação da carência inicial que é conseguir o fogo, porém logo
surge a outra carência que é conseguir guardar o fogo para que urubus não o
levassem de volta, assim Maíra após se deixar pacientemente bicar pelos urubus
2 até conseguir uma brasa, esconde a brasa de forma ardil em um pau de urucu,
para que sempre que precisasse de fogo soubesse onde recorrer, com isso há a

reparação da carência inicial, ocasionando, portanto, no equilíbrio com a reparação
0 da carência moldura.

Queremos chamar atenção para o fato de que nessa narrativa há
1 marcadamente um elemento local – o urucu – mostrado no final da narrativa, fruto
do urucuzeiro do qual se extrai o corante usado para a pintura corporal entre os
8 indígenas.
Sobre a inserção de um número maior de elementos nas narrativas orais,

fato que pode torná-las mais complexas, Cascudo (1984, p. 35) aponta que:
Tanto mais os temas se distanciarem da simplicidade espiritual primitiva,
da unidade psicológica inicial, maior número de elementos adquirem, de-
senvolvendo-se e possibilitando o entendimento para outros povos [...] Toda
literatura oral se aclimata pela inclusão de elementos locais no enredo cen-
tral do conto, da anedota, da roda infantil, da adivinha.

Segundo o autor esse tipo de literatura ao inserir os elementos locais serve


para doutrinar, ensinar os valores e conhecimentos pertencentes à organização
social do grupo, como é o caso da narrativa em análise.
Vejamos a estrutura dessa narrativa no fluxograma a seguir:

J

A

L
Fluxograma 1: Estrutura da narrativa O roubo do fogo (WAGLEY; GALVÃO, 1961).
L Org. : A autora.
Com base no quadro de análise do quadro 1 e no fluxograma 1, pudemos
A ver que a versão apresentada por Wagley e Galvão (1961) só apresenta uma
sequência motivêmica, a qual nos possibilita dizer que a estrutura dessa narrativa
é a seguinte: C + Ard + Eng + RC, representada na figura anterior. E a seguir
apresentamos a análise da versão 2.

• MOTIVEMAS NARRATIVA

774 CICLO 1
“Os velhos contavam que no começo do mundo, que diz que o índio não tinha
• CARÊNCIA
fogo nessa época. Não tinha fogo”.
“Aí foi um dia, ele foi, virou uma carnice, e jiboião, que trouxe debaixo de um
ARDIL
moquiço velho, onde tinha muito cipó de pau velho pubo”.

“Faz fogo grande, fizeram fogo grande, aí esse pajé que virou uma carniça,
2 ENGANO
quando esses fizeram o fogão, aí esse que virou carnice lá aterrou os pés lá
pra eles lá e espantaram tudo e espalhou fogo pra todo lado, aonde um cipó
velho pubo pegou fogo”.
0
“Lá ele foi ajuntou areia, botou no fogo uns paus também, agarrou e ajeitou
REPARAÇÃO tudo e botou em cima de umas pedras, que o índio, ele tem um negócio
1 D A assim, chama ele é pedra boa de fogo, é boa de fogo, tem um pedaço de ferro,
CARÊNCIA uma coisa, tem uma pedra bem fina, umas pedras de fogo, aí ele risca e cai
8 aquelas faíscas e aí pega fogo. Ele fez desse jeito, aí o índio se armou de fogo”.
Quadro 2: Motivemas da narrativa O roubo do fogo (ZANNONI, 2002).
Fonte: Dundes (1996).
Org. : A autora.
Na versão de Salomé, transcrita por Zannoni (2002), observamos os
mesmos motivemas da apresentada por Wagley e Galvão, sendo que continuamos
com um ciclo. A narrativa inicia com um desequilíbrio que é a falta de fogo para os
Tenetehára, enquanto que os urubus tinham fogo, o que gera a carência moldura.
O índio vai em busca desse fogo, para a tentativa de reparar a carência inicial, para
isso utiliza-se de uma situação ardilosa ao se transformar em uma jiboia morta
para enganar os urubus e então roubar-lhes o fogo.
Dessa forma, há a reparação da carência inicial que é conseguir o fogo, o
que traz um equilíbrio para o desequilíbrio que gerou a carência inicial, no entanto,
note-se que podemos ter outro desequilíbrio, agora por parte dos urubus.
A partir do quadro de análise e da discussão afirmarmos que, nessa
narrativa, a sequência motivêmica parte de um desequilíbrio e finaliza com
J o restabelecimento do equilíbrio para os índios, como pode ser observado no
fluxograma abaixo.
A

L

L

A

Fluxograma 2: Estrutura da narrativa O roubo do fogo (ZANNONI, 2002).
Org. : A autora.

• Com base na figura acima que apresenta a seguinte sequência motivêmica


para a narrativa: C + Ard + Eng + RC, pudemos verificar que temos a mesma
775
estrutura da versão de Wagley e Galvão (1961).

Considerações finais
Assim analisou a estrutura dessas narrativas seguindo o modelo de Propp
(2003) e os estudos de Dundes (1996). Cientes de que os dois teóricos desenvolveram
um estudo amplo e complexo, retiramos de suas pesquisas o que foi mais adequado
2 ao nosso estudo sobre as narrativas Guajajára, recorrendo bem mais a Dundes
(1996) por este apresentar como objeto de estudo contos indígenas, adequando

quando necessário outros elementos para que nossa análise fosse profícua e
0 cumprisse seu objetivo maior que era demonstrar que O roubo do fogo apresenta
elementos do conto, assim como os motivemas apresentados nos trabalhos que
1 fundamentaram este estudo, o que nos possibilita dizer que nessa perspectiva se
pode classificar essa narrativa como conto e com isso também texto literário.
8 Contudo, não uma literatura aos moldes da literatura eurocentrada e sim
de uma literatura indígena, apresentam características étnicas
Diante do exposto, podemos inferir neste trabalho que as narrativas
indígenas Guajajára são um instrumento de educação pelo qual o seu povo
reafirma a cultura e ressignifica sua história. Podendo ser classificadas como conto,
apresentando-se como textos conexos e estruturados de forma lógica e complexa.
Isso nos possibilita dizer que a literatura indígena é além do retrato de
um povo, que não dissocia seus saberes, pois para eles TUDO é TODO, também
é um indicativo que esse povo marginalizado pode e deve ser levado ao centro,
como autores (mesmo no anonimato) de suas próprias histórias. O que já está
acontecendo em nosso país, pois estamos assistindo surgir no Brasil uma nova era
para a história do povo indígena: Os indígenas intelectuais estão retomando sua
“pena” e (re) escrevendo suas histórias.
Referências
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.
BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Cia das Letras,
J
1999.

CASCUDO, L. da C. Literatura Oral no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP,
A 1984.
DUNDES, A. Morfologia e estrutura no conto folclórico. São Paulo: Perspectiva, 1996.
L GÓES, L. P. Introdução à literatura infantil e juvenil. São Paulo: Livraria Pioneira,
1991.
L GOMES, M. P. O índio na história: o povo Tenetehara em busca da liberdade. Petrópolis:
Vozes, 2002.
A GOTLIB, N. B. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 2003.
LABURTHE-TOLRA, P.: WAINER, J-P. A pesquisa. In: Etnologia Antropologia. Petrópolis:
Vozes, 2008, p. 423 - 461.
LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro: Tempo de Brasileiro,
1993.
• PROPP, V. Morfologia do Conto. Lisboa: Vega, 2003.
776 WAGLEY, C.; GALVÃO, E. Os índios Tenetehára: (uma cultura em transição). Editora:
Ministério da Educação e Cultura, RJ, 1961.

ZANNONI, Claudio. Mito e Sociedade Tenetehára. Tese de Doutorado. Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais. Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Es-
tadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, São Paulo, 2002.

2

0

1

8

J

A

L A(S) LEITURA(S) DA MÚSICA “DESPACITO” COMO RECURSO
PARA O ENSINO DE E/LE: A TRANSIÇÃO DE SABERES E
L CULTURAS NA MÚSICA “DESPACITO”

A Luciana Aparecida da Silva (CREJA)
RESUMO: As letras das músicas não aparecem com frequência nos livros didáticos
para os alunos dos ensinos fundamental e médio no Brasil; desta forma, não
se percebe que a música também é um gênero multimodal que contribui para a
pluralidade cultural da língua estrangeira espanhola (LE). É importante o professor
• mediador enfatizar a relação entre as imagens visuais do vídeo “Despacito” e o texto
777 escrito. A metodologia empregada será a pré-leitura, a leitura interativa e a pós-
leitura; também é efetivado, para a construção/conscientização da(s) identidade (s)
• cultural (is) dos envolvidos, o desenvolvimento paralelo da habilidade da expressão
oral no uso da LE, junto à compreensão leitora. Os resultados apontam uma maior
conscientização dos alunos em relação à própria cultura; a construção da identidade
nacional frente à estrangeira, diferenças e semelhanças; o desenvolvimento da
competência por meio da oralidade e da compreensão escrita do texto multimodal.
2 Letramento crítico como prática pedagógica.
Palavras- Chave: Texto de Leitura Multimodal “Despacito”. Leitura Compreensiva.
0 Construção de Sentido (s). Identidades Culturais.
Considerações iniciais
1 Atualmente, as músicas não são utilizadas com frequência em livros
didáticos ou nas aulas para os estudantes, tanto do ensino fundamental quanto
8 médio no Brasil, na aprendizagem da língua estrangeira espanhola (LE) como
língua adicional; com isso, não ocorre nos alunos às percepções de que a música
não está limitada a diferentes sons junto com letras e ritmos diversificados; cabe
ao professor ilustrar aos aprendizes que a música denota, em sentido concreto,
entonações expressivas da língua estrangeira, segundo Baktin.
Desse modo, a entonação expressiva pertence aqui ao enunciado e não à
palavra. E ainda assim é muito difícil abrir mão da convicção de que cada
palavra da língua tem ou pode ter por si mesma “um tom emocional”, “um
colorido emocional”, “Um elemento axiológico”, uma “auréola estilística”,
etc. e, por conseguinte, uma entonação expressiva inerente a ela enquanto
palavra. (BAKTIN, 2003, p.291).

Dito em outros termos, a música apresenta uma linguagem verbal como


meio de comunicação, com enunciados os quais compõem o corpo textual e que,
no processo de interação ativa entre as combinações das entonações emocionais
dos signos de acordo com cada ritmo e estilo musical, elucida as junções dos sons
e das palavras, de acordo com o linguista Beneveniste.
J “A ‘língua’ musical consiste em combinações e sucessões de sons, diversa-
mente articulados; a unidade elementar, o som, não é um signo; cada som é
A identificável na estrutura da escala da qual ele depende, não sendo dotado
de significação. Eis o exemplo típico de unidades que não são signos, que
não designam, sendo somente os graus de uma escala na qual se fixa arbi-
L trariamente a extensão. Temos aqui um princípio discriminador: os siste-
mas fundados sobre unidades dividem-se entre sistemas com unidades sig-
L nificantes e sistemas com unidades não significantes. Na primeira categoria
coloca-se a língua: na segunda, a música”. (BENEVENISTE, 1969, p.58,59).

A De outro modo, o convívio entre letras e sons, entre ritmos musicais e
emoções nas entonações dos signos, se faz compreender o(s) sentido(s) dos elementos

nas elaborações dos contextos de significados das estruturas textuais musicais.
Desta forma, os enunciados estão sempre relacionados uns com os outros, não
em monólogos entre letras e sons, mas entre diálogos, na afirmação do linguista
• Baktin “cada enunciado é um elo na corrente completamente organizada de outros
enunciados” (BAKTIN, 2003, p.272). Dessa forma, os enunciados são as exposições
778
orais das músicas, evidentes tanto nas letras musicais (para os ouvintes e/ou os
• leitores) como nos sentidos denotativos expressados nas culturas de diferentes
povos. Em suma, a música é um gênero multimodal.
A utilização da música no ensino-aprendizagem da LE contribui para
o conhecimento da pluralidade cultural da língua que os alunos aprendem nas
unidades escolares, despercebida por eles. É importante o professor mediador
2 ressaltar a estreita ligação entre as imagens visuais do vídeo da música selecionada
e o texto escrito desta para que a simbiose entre os estudantes e o texto musical
0 elaborado pelo autor aconteça na compreensão do(s) sentido(s). Será apresentada
a música “Despacito” escolhida como o ícone musical em 2017 e as sugestões de
1 interpretações e debates organizados em qualquer escola pública ou particular,
brasileira ou estrangeira.

8 Desenvolvimento
A eficácia no trabalho com o gênero textual discursivo música advém do
professor que, ao notar que a música não é uma harmonia de combinações e de
sons sucessivos com entonações emotivas (de acordo com cada ritmo musical) junto
com as letras (no sentido abstrato), mas sim um conjunto de enunciados verbais
que ilustram as vozes das culturas e as características dos povos. Como proposição
no artigo, concerne ao orientador salientar aos escolares a estreita relação entre as
imagens visuais do vídeo da canção “Despacito” junto com a leitura (texto escrito)
compreensiva desta, na construção do(s) sentido(s) da música. A metodologia
empregada é dividida em três partes: a pré-leitura, a leitura e a pós-leitura, como
confirmam as professoras docentes Vargens e Freitas.
A pré-leitura visa a realizar a primeira aproximação do aluno ao texto. No
mundo social, sempre que vamos ler temos pistas prévias variadas a respei-
to do texto que nos sensibilizam quanto aos possíveis sentidos que podem
ser construídos a partir daquela materialidade linguística: [...] Desta forma,
proporcionar uma aproximação ao texto por meio da pré-leitura é, de algu-
ma forma, tentar reproduzir em sala de aula uma prática dos sujeitos em
J sociedade e que, a nosso ver, é fundamental para a construção de sentidos.
(VARGENS; FREITAS, 2010, p.206).
A A pré-leitura é a premissa dos aprendizes para que, através do docente,
conheçam como vestígios iniciais no vídeo da música “Despacito” em qual cidade e
L em qual país aparecem. Desta forma, os estudantes compreendem que os cenários
do vídeo são de um país localizado dentro do continente americano, posicionado na
L América Central (e não em outro continente europeu, africano, asiático, etc., não
muito distante do Brasil); o orientador pode inclusive utilizar o mapa mundo para
mostrar-lhes onde se encontra o país, segundo a afirmação do professor acadêmico
A
Abio:
Se llama La Perla. Lo interesante es que es un barrio enclavado en la parte
antigua de San Juan, la capital de Puerto Rico, al lado de una de las forta-
lezas coloniales que defendían la ciudad y en el videoclip se puede ver a lo
lejos, la silueta de una de las garitas en el baluarte de la fortaleza de San
• Cristóbal.1 (ABIO, 06/08/2017).
779 Após a apresentação geográfica da cidade, o professor expõe aos aprendizes
• quando foi lançada a música, em 13/01/2017 e o nome do cantor da música,
Luis Fonsi. Convém ao professor informar aos alunos que há a biografia do cantor
Luis Fonsi, disponível no Youtube; e ele, acompanhado com o outro cantor Daddy
Yankee (ambos são porto-riquenhos), envolve o público com a melodia intensa do
estilo musical reggaeton, junto com a letra, como escreve Abio:
2 [...] podemos ver una gran parte de los instrumentos musicales que par-
ticipan, aunque hay vários que no aparecen, como el piano, y también se
emplean otros recursos en el audio completo. En la imagen de ese momento
0 podemos ver, en primer lugar, várias congas o tumbadoras, tambores muy
usados en la música salsa y otros ritmos caribeños, mientras que en el fon-
do observamos un contrabajo, también típico- [...].2 (ABIO, 06/08/2017).
1
Para evitar alguma fissura na compreensão da canção, é importante
8 esclarecer o significado do que é o reggaeton para que os aprendizes entendam
as presenças dos diferentes instrumentos musicais na composição musical e

1  Tradução nossa: Se chama La Perla. O interessante é que é um bairro cravado na parte antiga de
San Juan, a capital de Porto Rico, ao lado de uma das fortalezas coloniais que defendiam a cidade
e no vídeo clip se pode ver ao longe, a forma de uma das torres na fortificação da fortaleza de San
Cristóbal.
2  Tradução nossa: [...] podemos ver uma grande parte dos instrumentos musicais que participam,
embora há vários que não aparecem, como o piano, e também se empregam outros recursos no
áudio completo. Na imagem desse momento podemos ver, em primeiro lugar, várias congas ou
tumbadoras, tambores muito utilizados na música salsa e em outros ritmos caribenhos, enquanto
que no fundo observamos um contrabaixo, também típico- [...].
também da(s) cultura(s) que o estilo musical expõe ao público. De acordo com o
dicionário “Definición.de” (“Definição” em espanhol, citado na bibliografia ao final),
“El reggaetón o reguetón es un género de música que combina el reggae con el rap
y el hip hop. Surgió en América Central a finales de la década de 1980, pero tardó
unos veinte años en popularizarse y llegar a otras regiones del mundo.”3
O viés do estilo musical reggaeton é que as letras das músicas são de
denúncias sociais; de outra maneira, relatam problemas sociais ou comentários
J das dificuldades experimentadas pelos habitantes na América Latina. É necessário
agregar como outra informação aos alunos que Daddy Yankee é um dos cantores
A do reggaeton mais conhecidos a nível mundial. Estas informações na pré-leitura
fomentam as curiosidades nos estudantes para que realizem a segunda parte
L sistematizada, que é a leitura interativa, consoante com Vargens e Freitas.
A segunda fase da atividade é a da leitura. [...]. [...] Em primeiro lugar, a
leitura do texto, salvo circunstâncias específicas, deve ser silenciosa. Ler em
L voz alta dificulta a compreensão, pois é um processo linear, enquanto que
a silenciosa permite idas e vindas que são individuais e necessárias à cons-
trução de sentidos. (VARGENS; FREITAS, 2010, p. 207).
A
Como outra proposta, a leitura da música “Despacito” pode ser feita pelos
escolares com os auxílios dos dicionários espanhóis e/ou com os celulares deles
(que possuem a internet) para as concepções dos léxicos que eles desconheçam
da LE, acompanhados da música tocada de modo concomitante (para que ocorra
• aos alunos, de modo coincidente na aprendizagem, a união dos significantes dos
780 sons com as letras escritas da música). A letra da composição “Despacito” (cuja
tradução em português é devagarzinho ou devagarinho) é a seguinte:

Ay
Fonsi
DY
Oh, oh no, oh no
Oh, yeah
2
Diridiri, dirididi Daddy

Go
0
Sí, sabes que ya llevo un rato mirándote
1 Tengo que bailar contigo hoy (DY)

Vi que tu mirada ya estaba llamándome

8 Muéstrame el camino que yo voy (oh)

Tú, tú eres el imán y yo soy el metal



Me voy acercando y voy armando el plan
Solo con pensarlo se acelera el pulso (oh, yeah)

Ya, ya me está gustando más de lo normal


Todos mis sentidos van pidiendo más

3  Tradução nossa: O reggaeton ou reguetón é um gênero de música que combina o reggae com o
rap e o hip hop. Surgiu na América Central ao final da década de 1980, mas demorou uns vinte
anos para popularizar-se e chegar a outras regiões do mundo.
Esto hay que tomarlo sin ningún apuro

Despacito
Quiero respirar tu cuello despacito
Deja que te diga cosas al oído
Para que te acuerdes si no estás conmigo

Despacito
J Quiero desnudarte a besos despacito
Firmo en las paredes de tu laberinto
A Y hacer de tu cuerpo todo un manuscrito
Sube, sube, sube
L Sube, sube

L Quiero ver bailar tu pelo

Quiero ser tu ritmo


Que le enseñes a mi boca
A
Tus lugares favoritos (favoritos, favoritos, baby)

Déjame sobrepasar tus zonas de peligro
Hasta provocar tus gritos
Y que olvides tu apellido

Si te pido un beso, ven dámelo
781
Yo sé que estás pensándolo
• Llevo tiempo intentándolo
Mami, esto es dando y dándolo
Sabes que tu corazón conmigo te hace bom-bom
Sabes que esa beba está buscando de mi bom-bom
Ven prueba de mi boca para ver como te sabe
2 Quiero, quiero, quiero ver cuanto amor a ti te cabe
Yo no tengo prisa yo me quiero dar el viaje
0 Empecemos lento, después salvaje
Pasito a pasito, suave suavecito
1 Nos vamos pegando, poquito a poquito
Cuando tú me besas con esa destreza
8 Veo que eres malicia con delicadeza

Pasito a pasito, suave suavecito


Nos vamos pegando, poquito a poquito
Y es que esa belleza es un rompecabezas
Pero pa montarlo aquí tengo la pieza

Despacito
Quiero respirar tu cuello despacito
Deja que te diga cosas al oído
Para que te acuerdes si no estás conmigo

Despacito
Quiero desnudarte a besos despacito
Firmo en las paredes de tu laberinto
Y hacer de tu cuerpo todo un manuscrito

Sube, sube, sube


J Sube, sube

Quiero ver bailar tu pelo
A Quiero ser tu ritmo
Que le enseñes a mi boca
L Tus lugares favoritos (favoritos, favoritos, baby)

L Déjame sobrepasar tus zonas de peligro

Hasta provocar tus gritos


Y que olvides tu apellido
A
Despacito
Vamos a hacerlo en una playa en Puerto Rico
Hasta que las olas griten: ¡Ay, bendito!
Para que mi sello se quede contigo

Pasito a pasito, suave suavecito
782
Nos vamos pegando, poquito a poquito
• Que le enseñes a mi boca
Tus lugares favoritos (favorito, favorito, baby)

Pasito a pasito, suave suavecito


Nos vamos pegando, poquito a poquito
2 Hasta provocar tus gritos (Fonsi)
Y que olvides tu apellido (DY)
0 Após os términos das leituras individuais dos alunos e os esclarecimentos
das dúvidas dos léxicos que possuíam na letra da música, se realiza a terceira
1 parte organizada, que é a pós-leitura, segundo Vargens e Freitas.
A terceira fase da atividade de compreensão é a pós-leitura. Trata-se do
8 planejamento de tarefas que visam abordar, de maneira mais explícita, uma
avaliação crítica do texto e do posicionamento nele expresso e também a
promover uma reflexão que extrapole o texto e dialogue com o mundo do
estudante e com a sociedade onde vive. (VARGENS; FREITAS, 2010, p.208).

O docente pode realizar, como desafios aos estudantes, diferentes


atividades com os aprendizes, nas escolas onde lecionam a LE com a música
escolhida para a(s) diferente (s) interpretação (ções) dos alunos pelo professor, em
concordância com as professoras Vargens e Freitas.
[...] Assim sendo, destacamos o relevo de construir práticas didáticas de
leitura que promovam a interação leitor-texto, que impliquem em um enga-
jamento discursivo do estudante com aquela leitura e não apenas em uma
reprodução de fragmentos do texto que não requeiram uma reflexão sobre
seu sentido. (VARGENS; FREITAS, 2010, p.207,208).

Uma das sugestões é dividir a turma em grupos para que os estudantes


assistam ao vídeo e anotem o que observam nos cadernos ou nos fichários as
seguintes informações (após as leituras das perguntas escritas pelo educador no
quadro negro ou branco): 1. ¿ Cuáles son las ropas que los cantantes Luis Fonsi,
J Dandy Yankee, Zuleyka Rivera (una ex señorita Universo, como la mujer amada en
el video), y los habitantes de San Juan usan?, 2. ¿ Cómo son las casas, las calles, la
A playa, los coches, etc., en San Juan?, 3. ¿Cómo las personas bailan el reggaeton?
e 4. ¿ Cuáles son los instrumentos musicales usados en la organización del
L reggaeton?. Depois que os alunos terminarem as suas anotações, o educador lhes
solicita que comparem as anotações redigidas entre os grupos, e depois registrem

se há semelhanças e/ou divergências no que escreveram.
L
Outra proposta é que, o instrutor, após as anotações deles, solicite que
os escolares expressem com os diálogos ativos as ideias e/ou opiniões pessoais
A entre eles para que depois respondam as seguintes perguntas escritas no quadro
branco ou negro: 1. ¿ Las ropas que los habitantes puerto riqueños utilizan son
iguales o diferentes de los brasileños?, 2. ¿ Las habitaciones de la ciudad de San
Juan son semejantes o desiguales de las brasileñas?, 3. ¿Los residentes puerto
riqueños son acogedores como los brasileños?, 4.¿Cuáles son los vocábulos, frases
• o expresiones que han memorizado de modo rápido cuándo han oído la música?, 5.
783 ¿ Cuáles son las diferencias de la cultura puerto riqueña con la brasileña en las
vestimentas, en los escenarios de las calles, en los léxicos, etc.? e 6. Escriban qué

significados la música “Despacito” deja en los cotidianos de sus vidas.
Posterior aos debates entre os estudantes, outra proposta é o docente
lhes solicitar que escrevam os significados que obtiveram da música “Despacito”
em diferentes aspectos; como exemplos, com o trabalho dos alunos de uma turma
2 de oitavo ano do ensino fundamental em uma escola pública no Rio de Janeiro,
na pergunta quatro citada anteriormente, as palavras internalizadas com mais
facilidade, foram: o título da música “Despacito” e as separações silábicas cantada
0 pelos cantores em diferentes vezes na música, como “des- pa- ci- to”, “sua-ve-
cito”, “ pa- si- to”, “po-qui-to”, “bom-bom” e “sube-sube”.
1 O resumo sobre as comparações entre as culturas brasileiras e as porto-
riquenhas observadas pelos aprendizes da mesma turma do oitavo ano foram (com
8 alguns erros de ortografia):
Religião- Católicos, pois aparece mais de uma vez uma santa e há uma pro-
tagonista que usa uma cruz.; Etnías: misturados (mulatos, negros, branco),
há pessoa que usam dreads, Jamaica e Havaí.; Região- A região é cercada
por um oceano e possivelmente parte do vídeo foi gravado na praia.; Árvore:
Possue bastantes coqueiros, por provavelmente estar próximo à praia, tron-
cos, pintados como as ruas.;Paredes: Desenhadas e bem coloridas.; Vestes:
Pelo vídeo parecem usar roupas curtas e apertados, bem coloridos, pare-
cidos com os do Brasil porém não usam muito jeans, não costumam usar
muitos acesórios.; Festas: Como baladas, músicas produzidas ao vivo (no
final); Danças: Costumam mexer bastante a cintura e os glúteos usando as
partes de melhor, fazendo uma dança sensual.; Brincadeiras: idosos jogam
dominó, crianças andam de biscicleta e tem contato com os animais.; Ca-
belos: com os estilos parecidos com os do Brasil, tanto dos homens como os
das mulheres.; Local: humilde (roupas no varal, entulhos pelas ruas, portas
caindo, etc); Cultura:Possuem quadros espalhados por muitos locais.

Corroborando o que foi escrito anteriormente pelos aprendizes, segue


abaixo o resumo original:
J

A

L

L

A


784

2
Considerações finais
0
Cabe adicionar que, durante a(s) leitura(s) e a(s) interpretação (ões) dos
pupilos da canção e do vídeo “Despacito”, foi realizada a competência linguística por
1 meio da prática oral e dos diálogos contínuos entre eles, as exposições das opiniões
pessoais e dos diferentes pontos de vista, etc. e a leitura interativa da música na
8 LE (sem nenhuma tradução literal prévia à língua portuguesa da música elaborada
pelo professor ou pela internet dentro da sala de aula). Condiz ao educador, como
anexo, relatar aos escolares que as palavras usadas com o grau diminutivo como
“despacito”, “pasito”, “suavecito”, “poquito”, denotam palavras semânticas com os
sentidos conotativos de realce de identidade carinhosa, e não em tons depreciativos.
Caso o docente queira explicar, após o término de toda a leitura da
música e os trabalhos elaborados pelos alunos “Despacito” o que é o uso do grau
diminutivo e quais são os sufixos mais utilizados entre as palavras (substantivos
e adjetivos), aos aprendizes, já que lhes ajudará a assimilar com mais facilidade (e
não utilizarão somente os sufixos “cito” e “ito” para o grau diminutivo) e inclusive,
lhes estimulará a conhecer outras palavras e a falá-las usando o grau diminutivo.
Além disso, o reggaeton apresenta os elementos musicais de entonação,
acentuação, tonalidade, ritmo, pausas, etc., que, de acordo com a musicalidade
e as linguagens verbais do corpo textual, transforma a música “Despacito” em
melodiosa e contagiante. Como sugestão de trabalho, o docente pode dividir as
turmas em grupos de pesquisa (para que pesquisem dentro e fora do ambiente
J escolar) com as indagações: 1. ¿ Los reggaetons son producidos para evidenciar
las denuncias sociales en América; cuáles son las quejas que están explícitas?,
A 2.¿El sentimiento amor existe entre los seres humanos en los relacionamientos
socioculturales o entre dos personas?, 3. ¿ Los relacionamientos entre los seres
L humanos, son fáciles o las acciones de aproximación y de diálogo necesitam ocorrer
“despacito”?, 4.¿ Qué harías para expandir el sentimiento amor entre las personas

en el mundo? Cite ejemplos, etc.
L
Após as respostas orais dos estudantes, o docente organiza que sejam
elaborados trabalhos em cartazes com as redações deles, sobre os diferentes temas
A transversais que a música “Despacito” denota, como o amor entre os casais e/ou
entre as pessoas (famílias, amigos, etc.) e os aspectos comparativos de semelhanças
sociais e/ou diferenças entre Brasil e Porto Rico nas roupas, nas danças, nas etnias,
nos locais, etc., para as leituras de todos os demais alunos, direção e funcionários
dos colégios dos trabalhos expostos nos quadros e também nos corredores dos
• colégios,-+ como os resultados das pesquisas estudantis.
785 Os resultados da interpretação da música “Despacito” proporcionam, no
• âmago da aprendizagem da LE, de modo dinâmico e encantador aos aprendizes,
outros temas que se desenvolverão em outros trabalhos dentro e fora do ambiente
escolar. Um deles, depois de todo o trabalho da leitura do gênero multimodal
escrito anteriormente, são a conscientização e a construção da identificação, isto
é, o reconhecimento de cada educando brasileiro na identidade pessoal de existir
2 como um habitante do continente americano, com a cultura própria e com as
semelhanças e/ou as diferenças frente à estrangeira. Ocorreu neste trabalho a
identidade cultural como aprendizagem. O professor pode mostrar-lhes, após os
0 trabalhos realizados pelos alunos, o vídeo no Youtube sobre a música “Despacito”
cantada por vários cantores em outras línguas no mundo, como registro da
1 identidade latino americana.
Além disso, a música escolhida “Despacito” é um exemplo de gênero
8 multimodal que integra a linguagem verbal (a letra do corpo textual) com a semiose
das combinações dos sons do estilo musical típico do reggaeton e o vídeo da música,
evidenciando uma atividade interativa (KOCH, 2002, p. 17).
Adotando-se esta última concepção ­— de língua, de sujeito, de texto — a
compreensão deixa de ser entendida como simples “captação” de uma repre-
sentação mental ou como a decodificação de mensagem resultante de uma
codificação de um emissor. Ela é, sim, uma atividade interativa altamente
complexa de produção de sentidos, que se realiza, evidentemente, com base
nos elementos linguísticos presentes na superfície textual e na sua forma de
organização, mas que requer a mobilização de um vasto conjunto de saberes
(enciclopédia) e sua construção no interior do evento comunicativo.
A atividade interativa entre a música e a (s) linguagem (ns) verbal (is)
do docente com os discentes espelha os princípios básicos de: maiores diálogos
ativos sobre a(s) compreensão (ões) do(s) sentido(s) da música “Despacito” entre
todos (professor e estudantes) localizados no mesmo ambiente social escolar; as
exteriorizações dos diferentes pontos de vista particulares (ou saberes) de cada sujeito
ativo e os compartilhamentos de ideias e/ou intercâmbios dos conhecimentos e as
promoções das reflexões críticas construtivas na (s) múltipla(s) interpretação (ções)
J da música “Despacito”. Aconteceu nestas atividades elucidadas anteriormente
paradigmas do letramento crítico como um exemplo de prática pedagógica.
A Referências
ABIO, Gonzalo. ¿Despacito puedo usarlo en mi clase de ELE?. Disponível em:
L http://gonzaloabio-ele.blogspot.com/2017/08/despacito-puedo-usarla-en-mi-
-clase-de.html . Acesso em: 06/08/2017.
L BAKTIN, M. Estética da Criação Verbal. 4ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BENEVISTE, E. (1969) Semiologia da Língua. Problemas de Lingüística Geral II.
Campinas: Pontes, 1989.
A Despacito. Música. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kJ-
QP7kiw5Fk-
Acesso em: 20/01/2017.
“Despacito” cantado em diversos idiomas do mundo. Disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=I6y9T7Jg8lo- . Acesso em: 10/08/2017.

Dicionário “Definición.de” com o significado do reggaeton. Disponível em: ht-
786 tps://definicion.de/reggaeton/- . Acesso em: 20/05/2018.
• FONSI, LUIS. Biografia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hfJlp-
mOuYrk-.
Acesso em: 19/08/2017.
KOCH, Ingedore. Desvendando os segredos do texto. 2ª edição, São Paulo: Cor-
tez, 2003.
2 VARGENS, Dayala & FREITAS, Luciana. Ler e escrever: muito mais que unir palavras.
Brasília: v.16, 2010, p. 191-213.
0

1

8

J

A

L “O BAILE DO JUDEU”, DE INGLÊS DE SOUSA, OU
APONTAMENTOS SOBRE REALISMO MÁGICO EM UMA
L NARRATIVA BRASILEIRA

A Márcio Antonio de Souza Maciel (UEMS)
RESUMO: Ainda que publicada em 1893, dentro do livro Contos amazônicos, a
narrativa curta “O Baile do Judeu”, do escritor paraense Inglês de Souza (1853-
1918), para além de uma tímida recepção crítica na região norte do país, no restante
do país, não encontra muitos estudos e/ou leituras sobre outras questões que
• ultrapassem o naturalismo brasileiro, pontual no século XIX. Nossos objetivos,
787 neste (e com este) texto, são dois. O primeiro deles, resgatar a figura do escritor
d’O missionário (1899), talvez, sua obra mais conhecida, de dentro dos autores
• brasileiros finesseculares celebrados; o segundo, por fim, utilizando a bibliografia
de que trata o conceito de realismo mágico (concepção teórica da segunda metade do
século XX), fazer uma leitura do conto “O Baile do Judeu”, do escritor em epígrafe.
Palavras-chave: Narrativa curta brasileira. Realismo mágico. Inglês de Souza; “O
Baile do Judeu”.
2
“Se entre monstros marinhos,/Lá no mais fundo dos mares,/
Em cristalinos algares/ Se oculta o retiro seu./
0 Em meu amor confiado/Lá também descerei eu”
(Bernardo Guimarães)

1 Do prólogo
A partir da epígrafe, retirada do poema X intitulado “Pescador”, dentro da
8 Balada Romântica “A Sereia e o pescador”, que consta do volume de poesias Folhas
de Outono, de 1883, do escritor brasileiro Bernardo Guimarães (1825-1884), talvez,
mais conhecido pelo romance A Escrava Isaura (1875), em que recupera a relação
mítico-trágica entre os seres marinhos, no caso a Sereia, e os seres humanos, no
excerto, um pescador e seu infausto desenlace com relação à figura mitológica,
igualmente, nos propomos a ler a narrativa “O Baile do Judeu”, não romântica,
contudo, de fins do século XIX, do autor paraense Marco Herculano Inglês de Sousa
(1853-1919), que consta do volume de narrativas Contos Amazônicos, publicado
em 1893, à luz de alguns conceitos teóricos como realismo maravilhoso.
Como dissemos antes na sinopse sobre o texto, para além da leitura e
emprego de alguns conceitos do “real maravilhoso”, todos, vale lembrar, conceitos
da primeira metade do século XX que nascem e se enrobustecem a contar das
vanguardas do começo daquele século, sem querer entrar nas polêmicas distinções
entre esse conceito e os que a ele se opõem (ou se complementam) como “realismo
mágico” ou “realismo fantástico”, todavia, “a obra inglesiana permanece lida
e estudada principalmente no Norte, havendo ainda bons artigos acadêmicos
J publicados em Minas, e raros em outros estados” (VIANNA, 2017, p.iv). Sobre essas
disposições, portanto, se colocam nossas linhas.
A Da fábula e dos fatos
As relações entre literatura e mito, se pensarmos tão somente nas letras
L ocidentais, datam desde a antiguidade clássica grega com os poemas Ilíada e
Odisséia, atribuídos a Homero. No entanto, da convivência dual, o estudo para
L “a mitologia é um produto tardio”, visto que “o caminho para o politeísmo é um
progresso cultural”, segundo nos esclarece Curtius (1996, p.39). Por outro lado,
ainda segundo o estudioso, sobre o caráter ficcional, por conseguinte, “é a literatura
A que registra e guarda o saber mítico” (CURTIUS, 1996, p.39). Dito de outro modo, é
graças à literatura, depositária e guardiã desde as narrativas orais dos mitos, que,
mais tarde somente, a mitologia, estruturar-se-á enquanto campo do saber.
Enquanto campo do saber acadêmico, o estudo da mitologia comparada
(rubrica dada a uma das várias divisões da mitologia que, como o nome diz, compara

diferentes símbolos e mitos fundadores, em diversas culturas e épocas), indo ao
788 encontro do que nos relatou Curtius (1996), anteriormente, por conta disso, se
• organiza em torno do “Círculo de Eranos”, grupo de estudiosos de várias áreas das
humanidades, que se encontraram em Ticino, na Suíça, entre a década de 30 e 80,
do século passado, e formularam os 57 volumes em que estão balizados os princípios
que norteiam tal parte da mitologia (FERREIRA-SANTOS; ALMEIDA, 2012, p.66).
Se os escritores gregos clássicos como Homero, conforme vimos, de um lado,
2 legaram à mitologia, enquanto lato sensu, os seus símbolos ou mitos fundadores,
por outro lado, tanto os cronistas europeus, nos seus diários da invenção da(s)
América(s), como os povos autóctones americanos, mais tarde, nos escritos como
0
Popol Vuh e outros, por exemplo, deixaram como herança à mitologia comparada,
um outro olhar sobre o Novo Mundo. Tal percurso e recorte histórico nos parecem
1 importantes, uma vez que na narrativa de Inglês de Sousa é a recuperação do mito
amazônico sobre o Boto que fazemos o cotejo com o mito aquático do homem peixe,
8 da mesma forma que os europeus fazem com o mito grego do Tritão.
Sobre a força do símbolo do cetáceo (ou golfinho) amazônico, ainda que
conhecido devido ao trabalho de alguns folcloristas como Câmara Cascudo, assim
como os estudos críticos sobre a literatura do escritor paraense, “é nos rincões
mais remotos da região Norte do país que as histórias de boto se reproduzem com a
força de um mito no qual o real e o maravilhoso ainda hoje se confundem” (BAHIA,
2007, p.58). Neste imbricamento entre relato real e relato maravilhoso, duplamente
possível, majoritariamente, em terras americanas, temos as palavras de Graça
Medeiros, acerca do mito:
Em um universo fantástico e telúrico, onde forças primitivas e inimagináveis
para o vulgo ainda predominam, lendas, crendices, histórias fabulosas de
deuses, homens e animais são tão reais quanto os infindáveis rios e a vida
ensolarada, e habitam a mesma dimensão mágica. No paraíso amazônico
onde tudo é possível, ou quase tudo, o mito do boto, o príncipe encantado
das águas, assume uma feição especial, pois integra, ao mesmo tempo, o
onírico e o concreto. Do imaginário para o real, “os filhos de boto” estão aí,
pelos beiradões, a perpetuar uma raça mística, na qual não há distinção
entre homens e deuses (MEDEIROS, 1997, p.1).
J
Paralelamente, desde o nosso ponto de vista argumentativo, ao mito
amazônico do Boto, encontramos o conceito acerca do “real maravilhoso”, com
A qual, segundo nossa proposição, dialoga. O referido juízo será cunhado pelo
escritor cubano Alejo Carpentier, no final da década de 1940, em um ensaio, que
L depois foi anexado ao seu romance El reino de este mundo, de 1949, cujas ideias
básicas do texto reiteram que o “real maravilhoso” será uma das constituintes do
L espaço americano. Sem entrar nas polêmicas distinções com as concepções de
“realismo mágico” bem como com a de “realismo fantástico”, o escritor venezuelano
Uslar Pietri, ao comentar sobre o conceito de Carpentier, diz que “trata-se de um
A bom nome ainda que a magia nem sempre esteja relacionada com as maravilhas e
que na realidade cotidiana há um elemento mágico que só é captado por alguns”
(USLAR PIETRI, 1990, p.126). No histórico ensaio,
o escritor cubano, que tinha freqüentado os círculos surrealistas de Paris,
juntamente com Uslar Pietri e Asturias, propõe o conceito de real maravi-
• lhoso para explicar sua obra e a própria realidade americana. A base desse
789 raciocínio é a suposta existência de uma realidade maravilhosa na America
Latina, resultado da conjunção de uma natureza exuberante e uma cultura
• mestiça, em cuja história ocorrem fatos que podem parecer insólitos aos
olhos do estrangeiro (ESTEVES, 2010, p.399).

Para além da tese simbiótica de realização perfeita da essência maravilhosa


na América híbrida, consoante o escritor cubano, porque tratamos, no caso em
nota, da narrativa de Inglês de Sousa, lembra-nos o estudioso que “a segunda
2 vantagem do termo maravilhoso seria sua presença na literatura, poética e história
literária, na tradição ocidental, desde os gregos [...]”. Por fim, recuperando o
0 discurso de Cristovão Colombo na primeira das cinco cartas aos reis católicos,
o estudioso assevera que “há a associação da maravilha à própria história da
1 América” (ESTEVES, 2010, p.404). Em outro ponto, como contra-argumentação,
sobre um possível descompasso histórico-local, uma vez que estamos tratando das
8 confluências de uma narrativa de fins de século XIX, de um escritor brasileiro,
nortista, paraense, tido pela historiografia como introdutor do naturalismo em
território nacional, com um conceito teórico/literário, de meados do século XX,
proposto por escritores hispano-americanos, o especialista nos diz, recuperando o
pensamento do crítico literário uruguaio Rodríguez Monegal (1980), que:
Sua visão do realismo maravilhoso, em suma, constitui-se numa ‘tipologia do
discurso narrativo do nosso universo cultural que pode ser aplicado a outros
discursos de outras épocas dentro da nossa história literária’, bem de acordo
com os princípios que Alejo Carpentier defendia em seus escritos (ESTE-
VES, 2010, p.404, grifos nossos).
O conto “O Baile do Judeu”, do escritor paraense em epígrafe, conforme
já apontamos, é a sétima narrativa que consta, por sua vez, de uma seleta de
nove, intitulada Contos amazônicos, publicada pela primeira vez, em 1893. Muitas
dessas recuperam e têm como motivos personagens míticos (“o Boto”) ou indígenas
(“Acauã”) ou até mesmo fantásticos (“a Feiticeira”). De curta extensão, cinco páginas
apenas, a narrativa, seguindo à risca o modelo clássico de estruturação, apresenta
quatro partes, a saber. Na primeira, a introdução, o narrador onisciente de terceira
J pessoa, tanto indiscrimina o tempo como apresenta que são muitos os personagens:
“Ora, um dia, lembrou-se o judeu de dar um baile e atreveu-se a convidar a gente
da terra, a modo de escárnio pela verdadeira religião de Deus crucificado, não
A
esquecendo, no convite, família alguma das mais importantes de toda a redondeza
da vila” (SOUSA, 2017, p.65, grifos nossos). Na segunda parte, o desenvolvimento,
L o condutor do discurso, deixa claro o tempo e o espaço em que ocorrem os fatos:
“Era em junho, num dos anos de maior enchente do Amazonas. As águas do rio,
L tendo crescido muito, haviam engolido a praia e iam pela ribanceira acima [...]”
(SOUSA, 2017, p.66, grifos nossos). No período de cheia do rio, portanto, junho,
A o curso de águas passa por alguma das cidades brasileiras de algum estado da
região norte.
Sobre os personagens, como já anotamos, “o Judeu”, único sem nome,
conhecido somente pela alcunha religiosa, convida os mais ilustres da cidade.
Dentre esses, “o tenente-coronel bento Arruda”, comandante da guarda nacional;
• o capitão Coutinho, comissário de terras; o Dr. Filgueiras; o delegado de polícia; o
790 coletor; o agente da companhia do amazonas; “enfim, toda a gente grada” (SOUSA,
2017, p.65). Além dos convidados ilustres, há os músicos, também, importantes,
• que animarão o baile. Vejamos:
Começou o baile às horas, logo que chegou a orquestra composta do Chico
Carapana, que tocava violão; do Pedro Rabequinha e do Raimundo Pena-
forte, um tocador de flauta de que o Amazonas se orgulha (SOUSA, 2017,
p.66).
2 Para ademais desses convidados mais graduados, citados primeiramente,
seguidos dos músicos que trabalham na festa, surge a personagem catalisadora
0 da mudança e surgimento do protagonista da festa do judeu, isto é, o Boto, Dona
Mariquinhas. Segundo o narrador:
1 A rainha do baile era, incontestavelmente, a D. Mariquinhas, a mulher do
tenente-coronel Bento de Arruda, casadinha de três semanas, alta, gorda,
tão rosada que parecia uma portuguesa. A D. Mariquinhas tinha uns olhos
8 pretos que tinham transtornado a cabeça de muita gente; o que mais en-
cantava nela era a faceirice com que sorria a todos, parecendo não conhecer
maior prazer do que ser agradável a quem lhe falava (SOUSA, 2017, p.66).

Terminada segunda parte da estrutura da narrativa, vem a terceira, ou


seja, o clímax da história. Abrindo essa parte, quase ao final da noite, considerando
que o baile começou às horas da noite, temos a chegada do protagonista, o Boto:
“As onze horas da noite, quando mais animado ia o baile, entrou um sujeito baixo
[...] que não deixava ver o rosto, escondido também pela gola levantada do casaco.
Foi direto a D. Mariquinhas, deu-lhe a mão, tirando-a para uma contradança que ia
começar” (SOUSA, 2017, p.67). Conforme já assinalamos, sobre o mito amazônico,
é coerente, portanto, a descrição do narrador assim como a manutenção, via
literatura, da mitologia.
Em noites de festa, reza a crença que o boto transforma-se em um belo ra-
paz, muito charmoso e galante, que cativa as mulheres e as seduz com sua
voz doce e encantadora. O boto em forma de homem geralmente se veste de
branco, em algumas versões traz uma espada à cintura, e sempre usa cha-
péu para esconder o único traço ainda visível de sua natureza aquática: as
J narinas que se escondem no topo de sua cabeça (BAHIA, 2007, p. 58).

Tal presença real-maravilhosa, haja vista que se trata de um animal
A
aquático comum nas águas dos rios amazônicos, por esse lado real, aliada, por
sua vez, à dimensão maravilhosa, já que esse animal se transmuta em um ser
L humano em determinadas ocasiões, é apontada pelo narrador: “__Já viram que
tipo? Já viram que gaiatice? É mesmo muito engraçado, pois não é? Mas quem
L será o diacho do homem? E essa de não tirar o chapéu? Ele parece ter medo de
mostrar a cara...” (SOUSA, 2017, p.68). Ainda, consoante o mito e com o momento
A de sedução que desperta o Boto sobre quem dele se aproxima, dentro da narrativa,
no caso, a Dona Mariquinhas, ao final da terceira parte do clímax, com um idílio

amoroso sexual entre ambos:
Os grunhidos sinistramente burlescos do sujeito de chapéu desabado, aba-
favam os gemidos surdos da esposa de Bento de Arruda, que começava a
desfalecer de cansaço [...] naquela dança desenfreada. [...] A moça não sen-

tiu mais o soalho sob os pés, milhares de luzes ofuscavam-lhe a vista, tudo
791 rodava em torno dela; o seu rosto exprimia uma angústia suprema, em que
alguns maliciosos sonharam ver um êxtase de amor (SOUSA, 2017, p.69,

grifos nossos).

Na quarta e última parte da narrativa, em um momento subseqüente à


cena voluptuosa do encontro sexual, o narrador traz o desfecho da fábula, qual
seja, o momento em que o narrador desvela a identidade do homem de chapéu,
2 causador de risos ao começo; de admiração por parte das mulheres e inveja por
parte dos homens, no desenrolar da ação; de desconforto, com a dança sensual e
0 sexual, como em uma cópula, com Dona Mariquinhas e, por fim, do assombro e do
medo com a descoberta da criatura mítica. Vejamos:

No meio dessa estupenda valsa, o homem deixa cair o chapéu e o tenente
1 coronel, que o seguiu assustado, para pedir que parassem, viu, com horror,
que o tal sujeito tinha a cabeça furada. Em vez de ser homem, era um boto,
8 sim, um grande boto, ou o demônio por ele, mas um senhor boto que afetava
[...] (SOUSA, 2017, p.69, grifos nossos).
Por um átimo, a mágica se desfez e todos puderam ter a certeza que o
estranho homem era, na verdade, o Boto. Outra característica presente na fábula,
por fim, que merece nota, também, é uma crítica religiosa ao judaísmo, tanto na
figura desse personagem sem nome, como um epítome de toda uma comunidade
judia, como, também, em vários momentos da narrativa, sinais de heresia com
relação aos dogmas cristãos. Como em:
O monstro, arrastando a desgraçada dama pela porta fora, espavorido com o
sinal da cruz feito pelo Bento de Arruda, atravessou a rua, sempre valsando
ao som da Varsoviana e, chegando à ribanceira do rio, atirou-se lá de cima
com a moça imprudente e com ela se atufou nas águas. Desde essa vez,
ninguém quis voltar aos bailes do Judeu (SOUSA, 2017, p.69, grifos nossos).

Do epílogo
Conforme acreditamos ter apontado, as relações entre literatura e mito
são anteriores a qualquer teorização sobre o estatuto da mitologia e, segundo
muitos estudiosos, aquela (a literatura), desde o princípio, mesmo quando ainda
J
oral, foi a responsável por salvaguardar esses (os mitos), para, mais tarde, haver a
separação.
A Igualmente, por fim, pensamos que a atualização do uso do conceito
sobre o “realismo maravilhoso”, para além das narrativas hispano-americanas
L do “Boom”, de modo restrito, ou sobre as narrativas latino-americanas, de modo
amplo, ambas, a partir da segunda metade do século XX, seja importante. Tanto na
L América hispânica quanto no Brasil, ainda que no século XIX, podemos ler outros
textos e, também, doutros escritores e suas relações maravilhosas porque eivadas
de personagens míticos.
A
Referências
BAHIA, Márcio. Boto. In: BERND, Zilá (org.). Dicionário de figuras e mitos literários das
Américas. Porto Alegre: Tomo Editorial/Ed.UFRGS, 2007.
CURTIUS, Ernest Robert. Literatura europeia e Idade Media. Tradução de Paulo Rónai e
• Teodoro Cabral. São Paulo: EdUSP, 1996.
792 ESTEVES, Antonio Roberto; FIGUEIREDO, Eurídice. Realismo mágico e realismo maravi-
lhoso. In: FIGUEIREDO, Eurídice (org.). Conceitos de literatura e cultura. 2. ed. Niterói:
• EdUFF; Juiz de Fora: EdUFJF, 2010.
FERREIRA-SANTOS, Marcos; ALMEIDA, Rogério de. Aproximações ao Imaginário: bús-
sola de investigação poética. São Paulo: Képos, 2012.
GUIMARÃES, Bernardo. Poesias Completas. Rio de Janeiro: INL/MEC, 1959.
MEDEIROS, Graça. O mito do boto. Série Memória. 1997. Disponível em: <http://
2 www.visitamazonas.com.br/serie_memoria_website/ensaios/21_boto.htm>. Acesso em
29/05/2018.
0 SOUSA, Inglês de. O Baile do Judeu. In: ___. Contos Amazônicos. Coleção Acervo Bra-
sileiro. Volume 1. Jundiaí/SP: 2017. p. 65-69.
1 USLAR PIETRI, Arturo. Realismo Mágico. In: ___. Cuarenta ensayos. Caracas: Monte Ávi-
la, 1990.
8 VIANNA, Eduardo Rodrigues. Este livro. In: SOUSA, Inglês de. Contos Amazônicos. Cole-
ção Acervo Brasileiro. Volume 1. Jundiaí/SP: 2017. p. iv-v.

J

A

L ¿CULTURA PORTEÑA DEL PACÍFICO SUR? SÍ. TRES RAZONES Y
UNA MUESTRA
L
Marco Chandía Araya (UFPA)
A RESUMEN: La cultura porteña del Pacífico Sur último refleja un modo de vida
entrañablemente ligado a la mar como agente dador y en cuya relación vital se
produce una identidad porteña, un habitar basado en el vínculo del sujeto con el
espacio natural y una historia del trauma que surge del contacto entre tradición y
modernidad. Estos rasgos definen una sociedad que ante la amenaza de la creciente
• occidentalización que la niega, resistirá con tácticas de sobrevivencia arrancadas de
su memoria histórica y de los modos de ser y de ocupar el espacio. De aquí emana
793
la imagen de un conflicto cuyo resultado es un discurso estético-literario que da
• cuenta de una poética porteña. En Chile, Baldomero Lillo y Alfonso Alcalde han
retratado el Golfo de Arauco, pero lo han hecho de modo tal que su obra refuerza
este imaginario representativo de un corpus que integra escenarios y textos.
Palabras claves: Cultura porteña. Resistencia. Poética de la frontera subpanameña

2 Existe, como existe una cultura amazónica, andina o caribeña, una


cultura porteña del Pacífico Sur. Las razones se sustentan sobre la existencia de
0 un sujeto-identidad que ha desarrollado su configuración histórica en un espacio
cuyo elemento determinante es la presencia inconmensurable del/la mar. Opera
éste/ésta como elemento dador que desde los primeros asentamientos ligados a la
1
pesca de sobrevivencia viene generando un “ser porteño”: poseedor de un carácter
identitario que se ha potenciado en la relación conflictiva entre los remanentes de
8 su pasado histórico y la arremetida de los procesos modernizadores que se inician
sobre todo hacia 1800 en los puertos de la región.Esta es la primera razón.

La presencia de un sujeto-identidad que se ha construido históricamente
inmerso en esta realidad marcada por la tensión entre la tradición y la modernidad,
configuró en el período de estos más de doscientos años un modo de resistir y
de persistir que fue quedando plasmado en la múltiples manifestaciones de esta
cultura. La expresión estética-literaria es sólo una de ellas. Es por medio de la
literatura como esta sociedad se vino dando a conocer; fueron los tempranos
viajeros del diecinueve los que primero dieron cuenta de ella. Cristalizados y llenos
de prejuicios llegaron a nosotros cuadros de imágenes de comunidades asentadas a
orillas de las costas navegadas por viajeros europeos que más o menos cerca fueron
armando una primera versión de este pueblo1. Más próximos después, y con las
herramientas que la modernidad les fue dando a los escritores nacionales, pasó a
conquistar luego un espacio dentro de la estética del naturalismo latinoamericano.
El pescador y su lucha cotidiana con la indómita mar fue motivo recurrente, pero
limitado, de una mirada que vino a expandirse recién hacia 1950. Como afirma
J Antonio Cándido,
desde la década del 30 había habido un cambio de orientación, sobre todo
en la ficción regionalista, que se puede considerar como termómetro dada
A su generalidad y persistencia. Ella abandona entonces su amenidad y curio-
sidad, presintiendo o percibiendo lo que había de enmascaramiento en el
L encanto pintoresco o en la caballerosidad ornamental que antes rodeaba al
hombre rústico (CÁNDIDO, 1991, p. 301) [énfasis suyo]2.

L La ciudad-puerto no-capital arrojada sobre esta lonja subpanameña nace


del encuentro con Occidente; del conflicto en el primer contacto que se dio ahí en
A el muelle. Es en el proceso modernizador donde adquiere su carácter cultural. En
la dialéctica de dos matrices arquetípicas: la hoguera que revive la memoria de la

estirpe extinta3 y la megalópolis que precipitada desarraiga todo vestigio4. Si una
atiende a la naturaleza indisoluble, la otra, en su continua fluidez, opera a la inversa:
saca del medio al hombre poniendo en su lugar el todo vacío. En consecuencia,
• mientras el fogón atiza una re-humanización integral, el híperurbanismo desaloja
toda raigambre. Anula lo que el otro recupera.
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En esta tensión surge un núcleo espacial que permite explicar la segunda
• causa o razónde la existencia de esta cultura. Más acá o más allá del focus determinará
finalmente su habitar, y por tanto de la ciudad-puerto, su trascendentalidad.
Pero junto a este modelo metafísico existe otro de carácter socio-histórico
que acerca aún más la presencia de este fenómeno, y que viene a ser para nosotros
la tercera razón que justifica la presencia de esta cultura del Pacífico Sur. Nos
2
1  Chandía Araya: “Cotidianeidad popular porteña y espionaje imperial decimonónico. Relato de a
0 bordo de un Valparaíso encubierto”. En: Estudios Hemisféricos y Polares. Revista electrónica. Viña
del Mar. Vol. 4, n. 4 (octubre-diciembre), pp. 288-312, 2013.
2  En efecto, aunque El Gaviota (1930) de José Diez-Canseco, y Lanchas en la bahía (1932) de
1 Manuel Rojas, exploran hasta tocar la fibra íntima de este sujeto porteño, no será sino desde las
novelas mayores de los cincuenta cuando definitivamente podemos hablar de un texto literario que
8 terminará por configurar una poética del puerto. Sin duda alguna en los treinta se inaugura un
modo de verlo, pero tendrá que esperar un poco más para que esta mirada se consolide.
3  Elemento simbólico-real que deviene del fuego sagrado que venera al parter familias y de donde
surge el primer sentido re-ligioso ante la experiencia de la muerte. Ocupaba un lugar central y
primordial en el hogar. Un fuego que no se debe extinguir. Hoguera extinguida y familia extinguida
eran sinónimos. Por eso, la familia, el hogar y por extensión la ciudad, no nacen del parentesco
consanguíneo sino por lazos religiosos basados en adorar a los mismos dioses, el recuerdo en
común del mismo pater (COULANGES, 2000, pp. 31-88).
4  Un escenario urbano “generalizado”, recorrido y dominado a merced de los “flujos”, donde se
pierde el apego de todo “límite interior”, de barrio o referencial, aplacando, así, el diálogo con el
focus y donde, en fin, no hay más ese espacio entre-lugar que distingue un “adentro” de un “afuera”
(MONGIN, 2006, pp. 19-20).
referimos a las dicotomías campo/ciudad, público/privado y centro/periferia que
sitúan el hecho urbano dentro de nuestra particular modernización (LARRAÍN,
2005, pp. 33-37).
En él la ciudad-puerto se vio enfrentada tempranamente al embate
civilizador que desde la metrópoli se impuso primero desde Madrid y Lisboa, luego
desde la nación moderna que homogeneizó desde las capitales y ya, en siglo el XX,
desde el eje rioplatense: núcleo que impulsa la apertura del Canal de Panamá (1914).
J Configurándose pues, en esta escalada de occidentalización cultural, el epicentro
de la ciudad-puerto, capital moderna y principal centro urbano del Atlántico Sur.
A Un proyecto geopolítico que desde la triada Río de Janeiro/São Paulo-Montevideo-
Buenos Aires, la elite impone sobre el resto su modelo basado en lo que Rama
L denomina una “tesonera urbanización de la cultura”, que socava y despoja el acervo
de las culturas populares que subsisten fuera de ese radio inexpugnable (RAMA,

1979, s.num.)5.
L
Sus causas pueden rastrearse en las proclamas postindependentistas de
Bello (y que en 1922 Henríquez Ureña se encarga de resituar cuando frente a la
A Academia de la Universidad de la Plata lee La utopía de América, Henríquez Ureña)
(Henríquez Ureña, 1978, pp. 3-8). En su afán de construir antes que la política
la independencia cultural, Bello, en las Silvas americanas, legitima histórica y
culturalmente la hazaña épica colocando el proceso emancipador dentro de la
tradición occidental6. Con la palabra poética universaliza la gesta bélica libertadora,
• pero no como camino sino como estrategia discursiva, como epos de afirmación
795 continental, y cuyo rol recaerá en la literatura, situada dentro del campo ilustrado
de la civilización (ROJO, 2012, pp. 67-68).

Queda así inscrita, en este acto fundacional, una corriente de pensamiento
guiada por una elite intelectual que comienza desde el recién inaugurado oficio
literario, a imaginar una idea de nación moderna latinoamericana. Pero en su
transcurso también queda visto que se trata de un latinoamericanismo libresco7,
2 que excluye la realidad bajo una inclusión simbólica y en el fervor que envuelve
entonces una exclusiva supremacía suratlántica8.

0 5 En otras palabras, la ciudad letrada no es sólo “la ciudad bastión”, “la ciudad pionera de
las fronteras civilizadoras”, “la sede administrativa”, “el cogollo” o “anillo urbano”, “agresivo y
redentorista”, que “rigió y condujo” el destino de un subcontinente (RAMA, 1984, pp. 24-25), sino
1 que, y por lo mismo, es la causa del aniquilamiento económico y cultural del que ha sido víctima la
múltiple y diversa sociedad que no se hallaba dentro de —y por tanto se hallaban contra— ese eje o
8 núcleo hegemónico. Como sucede, entre otras, con la zona que aquí trabajamos.
6  Lo cual confirma que Bello antepone a la política la independencia espiritual. De ahí que exhorte,
en sus Silvas (“Alocución a la poesía”, 1823, y “Silva a la agricultura de la zona tórrida”, 1826), a que
deje “ya la culta Europa” y busque en esta orilla del Atlántico el aire salubre de que gusta su “nativa
rustiquez”. El caraqueño es, así, lumbrera que prenderá en otros próceres: hombres magistrales,
salvadores de pueblos, conductores de espíritu… (HENRÍQUEZ UREÑA, 1978, pp. 33-34; BELLO,
2001, p. 34) [Énfasis nuestros].
7  Y que queda tempranamente denunciado en esa metáfora de Martí cuando distingue a “esos
hombres montados a caballo en libros” que trataban siempre de vencer “a los hombres montados a
caballo en la realidad”. (Citado de B. Subercaseaux, Historia de las ideas y de la cultura en Chile. El
centenario y las vanguardias. Tomo III. Santiago de Chile: Universitaria, 2004, p. 221).
8  Un síntoma que Mariátegui designa como “delirante optimismo”. Con sabia ironía, el amauta
Y entonces la pregunta: ¿Y qué del Pacífico Sur? En los ensayos canónicos
(Romero, 1976; Rama, 1984; y Sarlo, 1988) parece sobrevolar: está pero no está9. Se
trata de algo que fue y que ya no es. Una suerte de puerto fantasma que reclama su
presencia histórica a través de la ausencia. Evocando su pasado desde el naufragio.
Como ruina, para usar un término de Benjamin. Como un universo fragmentado
que encierra una catastrófica y secreta verdad histórica que se precisa desentrañar
porque en él están las claves ocultas y aprisionadas por el tiempo de la cultura
J (BENJAMIN, 1990, p. 214).Y que al liberarse esa “aura” oculta que el tiempo
esconde, el universo porteño que nos preocupaba en este ensayo, recobraría el
potencial histórico-real que le permite resarcir su exclusión y, de paso, volver sobre
A
una nueva y más justa redefinición de América Latina.

L Dicho esto, lo que importa ahora es no dejar el conflicto en la mera
impugnación. El hallazgo tiene sentido si, y sólo si, avanzamos hacia la dimensión

simbólica de toda esta compleja realidad. Una expresión del arte que construya
L con los recursos aquí recogidos, con el conjunto de manifestaciones, saberes y
prácticas que emanan de la cotidianeidad, un discurso estético-literario con el que
A sea posible armar una poética10, una poética de la frontera subpanameña.
Pero para eso las formas escriturales11 aquí recogidas no deben ser
simples relatos que, como un espejo, vengan a ser el reflejo especular de esa realidad
(PIZARRO, 1985, p. 19), sino el ejercicio de escrituras con “méritos” literarios que
conflictúen el referente, que a partir de los recursos estéticos a mano aludan,
• sugieran e iluminen este universo. De haber, como la hay, una literatura de esta
796 zona, debe ser un arte capaz de afectar el valor de la realidad (BACHELARD, 1991,
p. 12); un acto creativo que exalte el mundo referido a una dimensión real-simbólica

querenueve la experiencia: de acto banal la eleve a gesto épico. De este modo sería
posible hablar, pues, de una poética de la épica cotidiana y no de una abstracción
pura, evitando caer en idealizaciones esencializantes, ni menos de una, le llama

hacía ver, en el sexto de sus siete ensayos, cómo la Lima moderna embestida de ese delirio se creía
2 o sentía seguir “a prisa el camino de Buenos Aires o de Río de Janeiro”. (MARIÁTEGUI, 2005, p.
217). [Énfasis mío].
0 9  En efecto, ni Latinoamérica, las ciudades y las ideas, ni La ciudad letrada, ni Una modernidad
periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, que, qué duda cabe, hablan de América Latina, hacen
mención, si es que acaso de pasada, a esta zona. Lo que nos lleva a pensar que así como existe
1 una cultura urbana-porteña del Pacífico Sur, existe del mismo modo pero con características bien
distintas, una cultura suratlántica que, reconoce incluso Rama: “tiene una dominante pampeana,
8 urbanizada, agrícola-ganadera, inmigratoria e industrializada, dentro de cánones modernizadores.
Cultura suratlántica y de ningún modo cultura del cono sur, para deslindar nítidamente los núcleos
cercanos, emparentados pero diferenciables claramente, como son el paraguayo-guaraní y el
chileno-araucano”. (RAMA, 1979: s.num.) [Énfasis nuestro].
10  “Digo poema para toda a literatura, não somente no sentido restrito habitualmente para a
‘poesia’ por oposição ao ‘romance’, abafando-o sem mesmo tomar conhecimento da ausência de
distinção entre a poesia e o verso, com a redução da poesia a um gênero. No que concerne à relação
entre o poema, um pensamento do poema e esta atividade particular da linguagem que consiste em
renovar a experiência”. (MESCHONNIC, 2010, p. XVIII) [Énfasis mío].
11  Escritura, “atendiendo por tal no simplemente un texto o una mera suma de textos, sino un todo
textual, un conjunto de instancias, pliegues o niveles significantes internamente solidarios entre sí,
tributarios de un mismo movimiento de sentido discursivo” (MORALES, 2012, p. 48) [Énfasis mío].
Cornejo Polar: estética de la miseria12, sino, y aquí el mayor de los esfuerzos: de un
“canto a una porteñidad” toda que es prueba concreta de resistencia histórica y
apuesta unívoca hacia una rehumanización del espacio. Este es su origen, razón y
consecuencia.
Por eso si lo que define a esta realidad es la dialéctica irresuelta de
embates y resistencias culturales disímiles, la producción literaria que la plasme
debe necesariamente hacerse desde un ejercicio autodefinitorio igualmente
J marcado por los quiebres e inflexiones que se dan dentro del proceso. Es, pues,
un relato que asume con vigor todo el conflicto; no sin ser, por eso, ajeno, como
A creación del arte, al continuum de la historia de nuestra literatura; ni tampoco, como
manifestación estética, sujeta a factores histórico-culturales, con una autonomía
L que no sea relativa. (BOURDIEU, 2002, p. 9). El recorte literario que aquí se aborda
rinde cuenta, a su modo, del desarrollo de un período de creación estética del

subcontinente pero que bien puede representar el conjunto de modulaciones e
L inflexiones que marcan el intrincado devenir de nuestras letras13.
Producción, la que estudiamos acá, más compleja cuanto más heterogénea
A la realidad que representa. Una multi inter pluri cultura que exige ser reconstruida
bajo las mismas condiciones que definen el referente, tanto en el plano de la
producción misma como al interior de cada una de las instancias involucradas.
(CORNEJO, 1982, pp. 67-74)14. La obra responde al reflejo de una resonancia
recíproca entre ambos universos ya que si el mundo popular se apropia y resiste
• a partir de una postura contrahegemónica, estos modos literarios suyos, que han
797 corrido la misma suerte (el desprecio del canon central, la escasa circulación y, por
tanto, la casi nula presencia en los ámbitos lectores), transitarán el sino único más

factible camino para ellos posible: el de una literatura subversiva que resemantiza
y reconstruye otras versiones más acorde a su propia realidad. Hacen de la
escritura aquello que M. de Certeau llama “el arte del débil”: tácticas, furtivas y

12  Opto “por reconocer que el posestructuralismo nos ha dotado de instrumentos críticos más
2 finos e iluminadores, pero también: […] por enfatizar que nada es tan desdichado como el propósito
de encajar […] en los parámetros post mediante algo así como la estetización de un mundo de
0 injusticias y miserias atroces” (CORNEJO, 2003, p. 9).
13  Historia marcada por sucesivos períodos cuyo punto, para nosotros, ejemplificador, en términos
de discurso y de concepción de la literatura como obra de arte, lo entrega Roberto Bolaño, cuando,
1 en 2666, en “La parte de Archimboldi”, específicamente en la llamada metáfora del bosque, discute
sobre la secreta relación entre las obras mayores y menores (BOLAÑO, 2004, pp. 982-984). O, lo que
8 en un contexto similar, habría sido para Cándido el paso de manifestaciones sociales a un sistema
simbólico complejo capaz de ejercer una función total (CÁNDIDO, 1991, p. 323) [Énfasis míos]. Por
último, Ana Pizarro, en términos del proceso, habla que para organizar la dinámica de nuestra
historia literaria hay que atender a la “gran dialéctica de la ruptura y la continuidad”. (PIZARRO,
1985, pp. 28-29).
14  Dice el peruano, haciendo un balance entre un primer momento en que detecta el fenómeno
dentro de los procesos de producción y un segundo momento en que: “Entendí más tarde que la
heterogeneidad se infiltraba en la configuración interna de cada una de esas instancias, haciéndolas
dispersas, quebradizas, inestables, contradictorias y heteróclitas dentro de sus propios límites”
(CORNEJO, 2003, p. 10). Nada más cercano, cierto, a nuestro corpus, y, por otra parte, nada más
distante y ajeno que el modelo de una literatura homogénea y desconflictuada para el análisis del
mismo, donde estas dos instancias de la heterogeneidad se presentan en forma evidente.
azarosas pero potencialmente sediciosas insertas en una sociedad mecanizada que
vigila y castiga. (DE CERTEAU, 2000, p. 26). Porque una sociedad que privilegia
el aparato productor va a contar siempre —dice él— con elementos que jugarán
en su contra, que no se reducen a ella. Lo cual supone que en esta dinámica la
recepción escritural-lectora no es nunca pasiva: implica un complejo proceso de
reformulación y resignificación, siempre ligado a un previo ejercicio de asimilación
y descarte. (CORNEJO, 1989, pp. 34-36).
J El repaso histórico, la persistencia de la memoria, el reclamo por lo propio,
los usos de las prácticas tradicionales (ligadas al cuerpo, a la oralidad, a la risa)
A de un hombre integrado abiertamente al medio, son representaciones estéticas
de actos subversivos que impugnan esos modos de vida de la ciudad del flujo.
L Alcanzando, de este modo, significados propios que lejos de ser meros variantes
del sistema hegemónico, se convierten en sutiles y contundentes procedimientos

que trastocan el orden de lo recibido. El conjunto total de textos que componen
L la poética de esta cultura porteña es un relato que transgrede pero que también
propone y ensaya desiderativamente una manera distinta de habitar toda ciudad
A latinoamericana. La literatura urbana-porteña, por eso, no es exclusiva en cuanto a
un discurso capaz de transformar, desde la fractura, los modos de vida impuestos.
Los diversos márgenes de las distintas ciudades regionales promueven también la
creación de formas estéticas que superan la mera denuncia. Ofrecen otros espacios
reales-discursivos por donde mirar y comprender Latinoamérica15.
• De ahí que resulte válido el reclamo. Pero no para dejarlo como
798 mera impugnación. El hallazgo tiene sentido si, y sólo si, avanzamos hacia la
configuración de un imaginario con el cual armar una poética, una poética de la

frontera subpanameña16.
El conjunto de estas obras son el canon de un corpus mucho mayor de
textos que recrean todo este espacio litoral en poco más de cien años de producción
(1907-2011) y que incluye todo el ejercicio escritural que viene del realismo más
2 15 Por ejemplo: Pizarro: Amazonía: el río tiene voces. Imaginario y modernización (2009); Lozada:
Cosmovisión, historia y política en los andes (2007); Lawo-Sukam: Hacia una poética afro-colombiana:
0 el caso del Pacífico (2010); Pampín:Para una poética antillana. Representación del Caribe como frontera
de imperios en Nicolás Guillén (2009); Gaggiotti: La pampa rioplatense: un espacio degradado en el
imaginario hispano-criollo(1998); Sabugo: Imaginarios del habitar en las letras del tango rioplatense
1 (2010); Mansilla: Mutaciones culturales de Chiloé: los mitos y las leyendas en la modernidad neoliberal
isleña (2009); Facchinetti: Patagonia: historia, discurso e imaginario social (1997); etc.
8 16  Para tal efecto planteamos la siguiente distribución cartográfica-textual, deespacios y discursos:
COLOMBIA-VALLE DEL CAUCA-BUENAVENTURA: Helcías Martán, Humano litoral (1954); Mary
Grueso Romero, El otro yo que si soy yo (1997) y Óscar Collazos, Primeros cuentos (1964-1968)
(1993); ECUADOR-NORTE AFRODESCENDIENTE-ESMERALDAS: Nelson Estupiñán Bass, Cuando
los guayacanes florecían (1954) y Antonio Preciado, De sol a sol (1992); ECUADOR-URBANO-
PORTEÑO-GUAYAQUIL: Miguel Donoso Pareja, Krelko (1962) y Jorge Velasco Mackenzie, El rincón
de los justos (1983); PERÚ-NORTE-TALARA: Carlos Calderón Fajardo, El huevo de la iguana (2007);
PERÚ-CENTRO-NORTE-CHIMBOTE: José María Arguedas, El zorro de arriba y el zorro de abajo (1971)
y Óscar Colchado Lucio, Hombres de mar (2011); PERÚ/CHILE-CENTRO-URBANO-PORTEÑO-EL
CALLAO Y VALPARAÍSO: José Diez-Canseco, El Gaviota (1930) y Manuel Rojas, Lanchas en la
bahía (1932); Joaquín Edwards Bello, Crónicas reunidas I (1921-1925) (2008) y Álvaro Bisama,
Estrellas muertas (2010); PERÚ-CENTRO-SUR-CHINCHA: Fernando Romero, Mar y playa(1940) y
entrañable —como el de Lillo—o la crónica de Edwards Bello, hasta las estrategias
novelescas últimas, como lo son las obras de Bisama y Colchado, pasando por la
creación más próspera e innovadora del siglo XX: el afrolatinoamericanismo de
Estupiñán y Martínez, o el relato de Rojas y Arguedas17.
Pero en este caso tomaremos sólo una parte del canon para dar cuenta sólo
de unespacio específico donde, creemos, se reproduce, como en todos y cada uno,
esta cultura de corte porteña que acabamos de delinear. Para el caso, escogimos
J los puertos de la zona aledaños a las ciudad de Concepción en Chile, en el llamado
Golfo de Arauco, donde existen caletas y puertos que fueron escenario de un modo
A de vivir porteño y que quedó registrado, específicamente, en la obra de Baldomero
Lillo y de Alfonso Alcalde.
L Bajo el subtítulo que podríamos llamar “La costa penquista: Infierno y
placer. De la mina al burdel”, podríamos señalar que la realidad del Golfo de Arauco
se construye en la relación vida y muerte, o a través de las paridades contrapuestas
L
de, por un lado, infierno, que representa el aciago mundo del carbón, y, por otro,
el placer, simbólicamente manifiesto en la vida desenvuelta en sus caletas y bares.
A Esto queda claramente expuesto en la literatura que ofrece, de un lado, Baldomero
Lillo, y, de otro, Alfonso Alcalde.
“Sobre el abismo” (1907)18 se titula un cuento de Lillo que recrea la
traumática experiencia de un joven aprendiz que sufre un accidente en una de
las jaulas que llevan y traen a los mineros de donde la tierra. Se trata de un
• muchacho que no alcanza a subir junto a los demás al elevador que lo sacará
799 de los trescientos metros bajo tierra y que, con el afán de poder emerger con sus
• compañeros se lanza sobre el elevador y queda colgando, “aparentemente”, sobre
el abismo del hueco que produce la jaula. “Aparentemente” porque, en verdad,
y debido a la oscuridad, siempre estuvo sólo a menos de un metro de una pieza
adicional que habían puesto justo debajo del montacargas, pero como no sabía ni
tampoco veía en esa oscuridad abisal, siempre creyó estar pendiendo de la muerte,
2 de esa infernal penumbra minera.
Como muchos de los cuentos de Lillo, ambientados en las minas del
carbón en Lota, la muerte y el sufrimiento siempre están presentes, debido a las
0
inhumanas condiciones de la explotación minera. El relato al fin aclara la situación,
del todo paradojal o tragicómica, y que revela, por cierto, la capacidad imaginativa
1 del narrador, ya que el joven queda “idiota”, declarado síquicamente incapaz de
razón “[…] el capataz me mostró con un gesto al idiota que, sentado sobre sus
8
Gregorio Martínez, Canto de sirena (1977); CHILE-CENTRO-SUR-GOLFO DE ARAUCO: Baldomero
Lillo, “Sobre el abismo” (1907) y Alfonso Alcalde,El auriga Tristán Cardenilla(1967) y Las Aventuras
del Salustio y el Trúbico (1973) (en ambos selección de cuentos); y CHILE-EXTREMO SUR-TIERRA
DEL FUEGO: Francisco Coloane, Tierra del Fuego (1956) y Juan Pablo Riveros, De la tierra sin
fuegos (1986).
17 En concreto el canon se reduce a cuatro países, nueve núcleos urbano-porteños, dieciocho
autores y una veintena de obras que involucra poesía, cuento, novela y crónica.
18  Lillo publicó dos cuentos con el mismo nombre, éste, el más antiguo, se concentra en el terror
del protagonista al “abordar subrepticiamente la jaula o ascensor de la mina” (LILLO, 2008, p. 399).
[Su énfasis].
talones, en esa actitud peculiar del minero, miraba con atención al parecer profunda
el ascensor inmóvil en ese instante sobre el brocal del pique” (LILLO, 2008, p. 399).
Fuera de esta oscura profundidad de trabajo y sufrimiento, más cerca
de la costa, pero dentro del mismo espacio urbano-porteño, se llevarán a cabo las
historias que nos deja Alfonso Alcalde. Nos interesa recoger acá su cuento “Cuando
son contratados para cambiarles el color a los congrios negros en el galpón de la
Cicatriz Con Eco en el puerto de San Vicente”, relato que aparece originalmente en
J el libro Las Aventuras del Salustio y el Trúbico (1973). Hay también una serie de
cuentos en un libro que apareció originalmente en 1967, El auriga Tristán Cardenilla.
A Aquí, “La mujer de goma”, “El circo, el circo” y “El peregrino del golfo”, centran su
temática en el mundo de los circos pobres chilenos, pero además transcurren en
L puertos como Tomé, Lirquén y otras pequeñas caletas de la región de Arauco19.
Lo que estos relatos representan es el intento de Alcalde de llevar a cabo
una suerte de Canto épico sobre la zona del Bío-Bío y sus puertos y caletas, para
L
la cual recoge del imaginario popular a estos dos amigos que a partir de sus vidas
desenvueltas y libertinas van dando testimonio del cotidiano que caracteriza a este
A puerto sureño. Sus personajes son un cuerpo vivo en el espacio-puerto con el que
se funden. Las aventuras del Trúbico y El Salustio, es la transgresión absoluta a
las lógicas oficiales, en la medida que desacatan con ironía, inventiva y deseos el
orden establecido que vigila y castiga. No trabajan, y si lo hacen son pololitos20,
trabajos esporádicos, de donde siempre sacan algo más que unos pocos pesos;
• tampoco tienen familia, sólo aventuras; no creen en nada más que en ellos mismos
800 y en sus amigos, a los que frecuentan en bares y prostíbulos. Pero Alcalde no cae
acá en banas folclorizaciones que al cabo obliterarían estas prácticas populares

y porteñas. Más bien al revés: escoge a estos dos personajes rabelesianos para
denunciar desde ahí la presencia —y resistencia— de una realidad sociocultural
que responde a un sustrato cosmogónico inserto en las tradiciones elementales de
estos puertos. Y lo hace con destreza, con desenfado cariñoso y con una capacidad
imaginativa poco usual en nuestros narradores.
2
Interesa poder contrastar la imagen que arrojan estos cuentos de la
travesía épica penquista: “Cuando el Salustio llega a un hotel, buscando pieza
0 para acostarse con una perica y entabla amistad con el marinero Subiabre y su
mujer, la Margarita, madre de la guagua, y terminan como padrinos” y “Cuando
1 El Salustio y El Trúbico demuestran sus conocimientos científico-electrónicos
y arreglan una olla a presión, dejando la escoba correspondiente”. Y no sólo la
8 imaginación, evidencia la obra de Alcalde, también y por sobre todo el apego a un
lenguaje oral que desborda la palabra escrita. En fin, estos como otros cuentos
de Alfonso Alcalde, no se repliegan a un universo únicamente penquista; intentan
describir una realidad mucho mayor que representa parte importante de nuestras
tradiciones ancladas a nuestra cultura urbana, porteña y popular. Hacen de esos
espacios recónditos, doble o triplemente marginados, epítomes de un único y

19  En este vuelco hacia Penco vale también recobrar la lectura de José Chesta, Textos y contextos.
Estudio crítico de Marta Contreras, Enrique Luengo y Luz Marina Vergara (Concepción, Universidad
de Concepción, 1994).
20  Se utiliza en Chile de modo coloquial para referirse a un trabajo informal, corto y eventual.
mismo universo: aquel que se construye y reconstruye incesantemente desde el
sur de Panamá hasta la Patagonia misma.
En fin, el propósito de esta última propuesta interpretativa es
complementar, por medio de ambos tipos de relatos, el de Lillo como los de Alcalde,
para conformar una imagen integral del Golfo de Arauco. En el caso de Alcalde, en
su intento de llevar a cabo una suerte de Canto épico del Golfo de Arauco, sus relatos
son transgresores. Recogen este mundo de ocultas caletas para denunciar desde
J ahí la presencia y resistencia de una realidad que se ha quedado en Baldomero
Lillo, pero no para formar un archivo inservible, sino para una relectura que pueda
A nutrir ambos discursos escriturales, y así ayudar a constituir una imagen más
veraz de la realidad a la cual apuntan. Con esto no sólo se rescata la figura de
L ambos escritores que responden, por cierto, a momentos escriturales diferentes,
y que, por tanto, dan cuenta del continuum que afecta a esta tradición literaria

específica; también vitaliza, actualiza y refuerza la presencia incuestionable de la
L cultura porteña que en esta investigación intentamos poner en evidencia.
El Golfo de Arauco simboliza las paridades infierno/paraíso, tragedia/
A placer, presentes en las obras tratadas. El cuento de Lillo es la muerte trágica de
un joven aprendiz dentro de una mina de carbón de Lota. Pero a estas condiciones
infrahumanas de la mina se sobrepone el goce de la vida en el burdel o en el circo
pobre que son los espacios vitales que reconstruye Alcalde en caletas y puertos
penquistas. Conforman las obras de Lillo y Alcalde una imagen integral de la costa.
• El Canto épico del Golfo de Arauco en Alcalde es transgresor en su lenguaje y por
801 las imágenes que recoge de las ocultas caletas, pero lo es también porque dialoga
con el realismo social de Lillo conformando un discurso integral penquista con el

cual restituir una imagen más veraz del universo porteño.
Hasta acá el recorte del corpus y de los escenarios propuestos. Sin duda
alguna son más. Pero nos parece que estos son representativos del conjunto.
Tenemos así una zona sugerida sobre una geopoética aludida en donde el/la mar
2 construye en ese intersticio entre la naturaleza abisal y el cotidiano urbano-porteño
un sujeto-identidad que conforma cultura y que por su conexión profunda con la
materialidad y con el sentido metafísico de su existencia, el acto creativo la exalta
0 en una poética donde adquiere espesor y dinamismo.

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1
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2

0

1

8

J

A

L FANFICS NO ENSINO DE LITERATURA NA ESCOLA BÁSICA

L Margarete Edul Prado de Souza (UFAC)
RESUMO: Nessa comunicação, foi feita uma discussão de como melhorar o ensino
A da literatura no Ensino Fundamental II, utilizando a criação de fanfics, a partir da
leitura de contos ou um romance, para fortalecer a escrita dos alunos, bem como

incentivar o gosto pela leitura literária, adotando como instrumento de discussão
teórica as ideias de Rildo Cosson, Magda Soares, entre outros. A pesquisa foi
feita considerando a literatura como instrumento de formação de leitores críticos
• respeitando a diversidade existente na sociedade. Com a aplicação da experiência
foi possível perceber que não há um ensino de literatura sistematizado para o
804
Ensino Fundamental, quando ocorre, é na forma de pretexto, para ensinar outros
• conhecimentos, por exemplo, a gramática. Sendo assim, como sugestão para
introduzir a leitura literária na sala de aula, realizamos algumas aulas com o conto
citado, em uma turma do 6º ano do Ensino Fundamental. A introdução do uso da
fanfic foi muito bem recebida pela turma, com algumas reclamações, mas todos
gostaram de utilizar a plataforma e escrever suas fanfics, de modos que o passo
2 seguinte dessa pesquisa será aprimorar o uso de fanfics em sala de aula, no intuito
de contribuir com a existência real do ensino da literatura na escola básica.
0 Palavras-chave: Fanfics; Ensino de literatura; Tecnologias digitais.
A importância da literatura
1 Segundo Cosson (2006, p. 119), o primeiro espaço da literatura é na
leitura do texto literário. Tudo se inicia com o imprescindível e do motivado contato
8 com o texto literário. Ler o texto literário em casa, na biblioteca ou em sala de aula,
silenciosamente ou em voz alta, com ou sem a ajuda do professor, permite o primeiro
encontro do leitor com o texto. Um encontro que pode resultar em recusa da obra
lida – que deve ser respeitada – ou em interrogação ou admiração – que devem ser
exploradas. É essa exploração que constitui a atividade da aula de literatura, o
espaço do texto literário em sala de aula (2006, p. 119).
Naturalmente, que há obras escritas especificamente com fins didáticos,
que não ultrapassam o uso escolar. São obras cujo ponto de sustentação não é a
vida de suas personagens, a elaboração da linguagem e o mundo que encena, mas
sim, o saber contextual que ostenta. É essa diferença que podemos estabelecer, por
exemplo, entre as Reinações de Narizinho e Emília no país da gramática. Ambas as
obras foram escritas pelo mesmo autor e trazem as mesmas personagens, porém,
os títulos não deixam dúvidas, a segunda é uma obra didática com roupagem
literária, logo paradidática. Nesse caso, para muito além da óbvia intenção de
Monteiro Lobato em promover o ensino da gramática, estão as longas explicações
sobre a nomenclatura gramatical do português que elevaram o contexto à condição
de texto ou, para dizer de uma maneira mais conhecida, o texto virou pretexto.
J Nesse sentido, o texto literário requer, antes de tudo, um modo diferente
de apreensão e intelecção. Em outros termos, é preciso saber ler o texto literário de
A modo diferenciado, uma vez que ele apresenta tanto fins práticos quanto estéticos.
É por isso que ler o texto literário requer a manipulação não apenas de uma
L perspectiva crítica, mas também interpretativa e analítica. Todos esses saberes
fazem parte de um universo de conhecimento e aprendizagem que se relacionam

diretamente com o ensino da literatura.
L
Manter essa relação mencionada anteriormente não prejudica a leitura
literária, ao contrário, pode ser uma contribuição relevante para firmar ou ampliar
A o entendimento da história que se está lendo. Do mesmo modo, qualquer disciplina
pode aproveitar o contexto da obra literária para destacar elementos importantes
para sua área de conhecimento, não sendo exclusividade do ensino de língua esse
tipo de exploração do contexto literário. É esse compartilhamento que está na base
da longa tradição que relaciona literatura e educação, conforme tratamos acima. O
• uso do saber da obra literária só não pertence ao espaço da literatura em sala de
805 aula quando se ignora o lugar onde está localizado, quando se acredita que a leitura
desse contexto independe do texto, quando esse saber deixa de ser contextual.

No espaço da sala de aula, o ensino de literatura deve compreender a
exploração do contexto, assim como faz da elaboração do texto. Afinal, como adverte
Lajolo (2009) ao revisitar o ensaio antológico, o texto não deve ser pretexto, mas
sua leitura é sempre contextual. O professor deve aprender a explorar o texto e o
2 contexto adequadamente com seus alunos.
A fanfic

0 A Fanfiction ou Fanfic são definidas como produções ficcionais advindas


de fãs de seriados televisivos, de filmes, trilogias em livros, novelas, quadrinhos,
1 mangás, documentários e animações. Para HenrryJenkis,
Fanfction se refere a histórias originais e romances ambientados nos uni-
verses fictícios de séries de TV, filmes, quadrinhos, games e outras proprie-
8 dades midiáticas favoritas. Atualmente, fãs escrevem milhares de histórias
a cada ano dedicadas a centenas de diferentes textos midiáticos. Os es-
critores normalmente são amadores; as historias são trabalhos de amor.
Muitas dessas histórias são distribuídas on-line. Historicamente, mulheres
escrevem a maioria das histórias de fãs, apesar de que homens se tornaram
mais ativamente envolvidos na medida em que a fanfction se mudou para a
web. Algumas histórias são escritas por adolescentes, muitas outras mais
por adultos. Harry Potter e vários fandoms2 de anime/mangá se tornaram
centros de expressão da juventude. (2012, p.13)

Apesar de esse fenômeno estar mais evidente com a ascensão do mundo


virtual, já era uma prática existente, a funcionalidade da web 2.0 só potencializou
a imersão do mesmo em nossa cultura do conhecimento. E possibilitou a troca
de informações rápidas cópias advindas de um texto original, mas que na prática
muitos desses textos discutidos aqui estão longe de serem consideradas simples
cópias, em razão de apresentarem originalidade e acima de tudo somente se
utilizam de livros, filmes como do universo deHerry Potter, já imaginado por outras
histórias que não pertencem apenas ao escritores originais como, J.K Rowling,
J autora de Herry Potter, mas se recriam conforme a criatividade dos criadores da
fanfic, apropriando-se e reinventando as histórias no tempo e espaço.
A Para se afirma ou pensar na questão de autoria sobre esses textos,
há uma necessidade de ler e analisar todas as fanfictions até estão produzidas
L para que assim possamos fazer uma diferenciação entre elas do ponto de vista da
cópia. Desse jeito, temos um universo amplo e trabalhoso de textos para delinear

o ponto de partida de organização e delimitação desse objeto. Além de um espaço
L de produção que hoje mantém os textos e amanhã pode ter sido excluído. Partindo
dessa premissa, podemos concluir que é preciso delinear essa dinâmica do meio
A primeiro.Ilustrando com Jenkins essa discussão, o estudioso aponta,
Histórias de fãs não são simplesmente extensões ou continuações da série
original. Eles estão construindo argumentos por meio de novas histórias
ao invés de ensaios críticos. Apesar de um ensaio literário geralmente res-
ponder ao seu alvo em uma forma não fictícia, fanfiction usa sua ficção
para responder à ficção. Você encontrará todo tipo de argumentação sobre

interpretações no meio da maioria das histórias produzidas por fãs. Uma
806 boa história de fã referencia eventos-chave ou pedaços de diálogo como evi-
dência para suportar sua interpretação particular dos motivos e ações dos

personagens. Detalhes secundários são usados para sugerir que a história
poderia ter ocorrido de forma plausível no mundo fictício mostrado no origi-
nal. É certo que existem histórias ruins que não se aprofundam nos perso-
nagens ou caem em interpretações banais, mas a boa fanfiction mostra um
profundo respeito pelo que gerou a fagulha na imaginação ou curiosidade do
2 escritor-fã. Fanfiction é especulativa, mas também é interpretativa. E mais
que isso, é criativa. O escritor-fã quer criar uma nova história que diverte
por si só a oferece para quem talvez seja a plateia mais exigente que se po-
0 deria imaginar – outros experts extremamente investidos na obra original.
(JEHKINS, 2012, p.20).

1 Desse modo, as produções chamadas fanfictions são definidas


simplesmente como textos ficcionais advindos de fãs, publicados em diversos sites
8 pela internet brasileira e internacional, em todas as línguas. As fanfics precisam
ser vistas com um olho não apenas crítico em relação às obras originais, mas
com uma perspectiva criativa de extensão lógica, advindas de uma interpretação
crítica por parte do próprio leitor (LÉVY, 1999, p. 48). Não é isso que queríamos
observar nos bancos escolares? Esse posicionamento interpretativo e critico não é
tão almejado pelas disciplinas de produções textuais.
Verificamos aqui as possibilidades de aprendizagem da escrita por parte
de crianças, jovens e adolescentes em fase escolar, que produzem textos ficcionais
de duzentas a trezentas páginas e ainda se organizam em grupos para discutirem
os erros e acertos narrativos dos mesmos. Criando, independentemente, várias
possibilidades de aprendizagem coletiva que foge das propiciadas na escola, vemos
nesse caso um fenômeno interessante e construtivo advindo da Cibercultura. Isso
é fanfiction.
O que é preciso ser compreendido, como o próprio Pierre Levy aponta
em sua obra Cibercultura é que “o crescimento do ciberespaço não determina
automaticamente o desenvolvimento da inteligência coletiva, apenas fornece a essa
inteligência um ambiente propício” (1999, p.29). Deste modo, como foi apontado
J anteriormente, as fanfictions não nasceram com a ampliação do ciberespaço, mas
já estavam presentes em nossas produções, de textos por fãs. Logo, esse novo
A espaço de produção apenas possibilitou sua existência de uma maneira rápida
(não necessita ser impressa pra ler), altamente comunicativa (transpõe as barreiras
L do mundo físico, uma vez que só existe no mundo virtual) e própria para reedições
(inteligência coletiva, na confecção colaborativa dos outros fãs).

Desse modo, o crescimento de sites e grupos virtuais destinados ao efeito
L
de fanfctions está intimamente ligado à liberdade e à democratização advinda da
ampliação do ciberespaço, e o desenvolvimento dessa inteligência coletiva move-
A se pela criatividade de transformação de textos ficcionais bebidos em fontes de
obras literárias, filmes, séries, quadrinhos, mangás, especificamente relacionados
às possibilidades oferecidas pelo meio que expande (JEHKINS, 2012, p. 29).
Uma vez que o ciberespaço oferece muitas possibilidades comunicacionais
e informativas, vemos nas comunidades virtuais as grandes empreendedoras
• desse movimento de produções coletivas, que impulsionam o desenvolvimento da
807 inteligência coletiva defendida por Pierry Levy.
• Uma comunidade virtual é construída sobre as afinidades de interesses, de
conhecimentos, sobre projetos mútuos, em um processo de cooperação ou
de troca, tudo isso independentemente das proximidades geográficas e das
filiações institucionais. (LEVY,1999, p.127)

Essa dinâmica das comunidades virtuais foi propícia para o


2 desenvolvimento das fanfictions pelo mundo todo. Aproximados pelos interesses
comuns, fãs se organizaram e no processo de cooperação ou troca de conhecimentos
discutiam sobre as obras literárias, filmes, animes, seriados, mangás e até mesmo
0
quadrinhos que eram apreciados, formando um grupo social com características
e produções interpretativas e críticas próprias, dando origem a textos também
1 ficcionais que respondem a essas apreciações, sejam elas negativas ou positivas.
São exatamente por esses mecanismos das produções de fanfincs que as
8 discussões acerca da posição do autor são evidenciadas através dos comentários
sobre a produção apresentada na plataforma virtual, na criação de um novo capítulo
para a história, de novos cenários, personagens, temas, etc. Assim os participantes
dessas comunidades criativas se sobressaem sobre a posição do autor da história
original. Para Levy,
A figura do autor emerge de uma ecologia das mídias e de uma configuração
econômica, jurídica e social bem particular. Não é, portanto, surpreendente
que possa passar para segundo plano quando o sistema das comunicações
e relações sociais se transformarem, desestabilizando o terreno cultural que
viu crescer sua importância. Mas talvez nada disso seja tão grave, visto que
viu crescer sua importância. Mas talvez nada disso seja tão grave, visto que
a proeminência do autor não condiciona nem o alastramento da cultura
nem a criatividade artística. (LEVY,1999, p.53).

Dessa forma, o que percebemos é a posição de uma coletividade que


em alguma parte do texto ficcional, no caso das fanfictions, deixam suas marcas
de alguma forma, seja no posicionamento crítico em relação à apreciação dos
elementos da narrativa em questão, ou ate mesmo com a figura dos Betas Readers
J que corrigem sentenças frasais, deslocam partes do texto e alguns casos até o tipo
de narrador (onisciente, onipotente, etc.) que melhor se enquadra na diegese, em
A muitas vezes movidos pelo gosto pessoal.
Escrever fanfiction dá margem a uma participação que também coloca o
L leitor ou espectador como autor, o que ultrapassa os limites do leitor interpretativo
crítico, posto que ele age criativamente com aquilo que aprende de sua leitura e
a modifica segundo suas percepções e fruições pessoais.Destaquem-se também
L
os mecanismos de criação textual advindas de ferramentas próprias desse espaço
virtual que são hipertextos eletrônicos. Através delas, segundo Umberto Eco (2003,
A p.18) “(...) nos permite a viajar através de um modelo textual (seja uma enciclopédia
inteira ou a obra completa de Shakespeare), sem necessariamente ‘desfiar’ toda a
informação que contém, penetrando-o como uma agulha de tricô em um novelo de
lã”.
Ainda segundo Eco (2003, p. 20), essa possibilidade de criar textos
• coletivamente, cujo andamento pode ser modificado ao infinito, pode ser feito
808 naturalmente com os textos literários já existentes, assim nos permitindo mudar
• as histórias que há muito tempo nos obcecam com enredos e finais alternativos.
Sendo que isso de maneira alguma vai danificar o texto original, pelo contrário,
estará sempre vivo em meio às múltiplas possibilidades que o mesmo ainda mantém
lentamente por suas lacunas estratégicas esperando para serem preenchidas ou
não. Essa maneira de recriar um texto a partir de um texto lido, na plataforma
2 virtual com participação de grupo de pessoas, que é considerado como algo criativo,
posto que os autores se revezam emitindo opiniões, ideias, fantasias e sonhos.

A criatividade aqui não está limitada apenas ao fato de estamos fazendo
0
ficção, mas nas respostas advindas de fãs com a própria ficção. Visto que é neles
mesmos que eles encontram a ferramentas para manter vivo o universo literário
1 o qual eles apreciam, ou até mesmo como forma de contestar aquilo que não lhe
agradou nesse mesmo espaço democrático e de livre expressão, caracterizando
8 assim as peculiaridades desses grupos pertencentes a essa cibercultura.
Partindo da compreensão da literatura enquanto formas ficcionais
híbridas, já discutidas anteriormente, as fanfictions se enquadram muito bem neste
pressuposto e principalmente no gosto de adolescentes e jovens que desenvolvem
diariamente essas práticas de produções. Nesse momento, dialogando com
os conceitos de letramento definido por Kleimam, em que define letramento da
seguinte forma: “Podemos definir hoje o letramento como um conjunto de práticas
sociais que usa a escrita, enquanto sistema simbólico em enquanto tecnologia, em
contextos específicos, para objetivos específicos.” (KLEIMAN, 2004, p.19). Sendo
assim, o conceito de Kleiman não limita o letramento apenas em âmbito escolar,
mas abrange a efetuação do mesmo em diversos contextos, de diversas maneiras.
No caso de letramento literário, sua premissa maior seria então o conjunto
de práticas sociais que usam a escrita literária, partindo de um traço fundamental
que é o “caráter de ficcionalidade” discutido por Hansen, e não apenas materializada
por meio do impresso, contudo também com uma forma enunciativa, discursiva,
que pode ser compreendida e vinculada não apenas pelo meio impresso, o que dá
J margem para a mobilidade desses mesmos textos por diversos suportes de escrita.
Entretanto, a fanfiction ganha um caráter literário tanto por parte de
A leitura ficcional quanto pela escrita ficcional, de certo modo não inclusa nos padrões
da literatura dita canônica, mas sim na literatura conhecida como de massa e
L produto de mercado editorial. Deste modo, permanece também marginalizada em
detrimento da grande literatura, considerada pelos estudos de crítica literária nas
universidades.
L
Apontar a fanfic como boa literatura ou não seria estar em uma “areia
movediça”, uma vez que, ao nos agarrarmos nas definições e conceitos a respeito
A da literatura em volta, mais esse movimento se aprofunda em decorrência às
possibilidades para se fazer a arte no século XXI (LEVY,1999, p. 68). Temos um
universo além da matéria para produção, um universo virtual o qual organiza suas
próprias regras e dinâmicas a serem seguidas. Logo, o caminho mais seguro para
se analisar e discutir essas produções é antes de tudo parar e observar esses
• fenômenos para compreendê-los e utilizá-los da forma mais coerente.
809 Esse posicionamento criativo dos produtores de fanfiction aponta
• uma direção contraditória. Muitos profissionais da educação desabafam muitas
vezes sobre o desânimo de ver seus alunos lerem e escreverem pouco ou mal.
Esses adolescentes e jovens leem muito e também escrevem muito, mas partem
de produções das quais eles apreciam, que fazem parte de seu mundo e da sua
maneira de gostar da literatura e também e escrevê-la.
2 Escrever é uma tarefa difícil e complexa. Muitas vezes, quando encontramos
obras literárias das quais não gostamos, tendemos a excluí-las. Porém o que vemos
0 nessas produções ficcionais pelos fãs é a possibilidade de mudar criativamente
situações como essas para outro ponto de vista sobre aquilo que eles não aprovam.

Ou a partir de lacunas deixadas pelo texto original, criar uma história em cima
1 desses pequenos detalhes, evidenciando a possibilidade de grandes interpretações
e criações ficcionais.
8 Cabe nesse momento citar Umberto Eco, novamente, com uma posição
crítica exemplar sobre a exposição desse tópico, a qual faz parte do discurso de
abertura da obra sobre a literatura, 2003, intitulado “sobre algumas funções da
literatura”, em que este autor afirma,
Acho que poderia ser interessante, e mesmo educativo, tentar modificar as
historias que já existem, assim como seria interessante transcrever Chopin
para bandolim: serviria para aguçar o engenho musical, e para entender por
que o timbre do piano é tão consubstancial à sonata em si bem menor. Pode
educar o gosto visual e servi à exploração das formas ao tentar colagens
compondo pedaços do Matrimônio da virgem, das Demoiselles d´Avingnon
e da última história de Pokémon. No futuro, muitos grandes artistas o fize-
ram. (ECO, 2003, p.19).

Atentamos ao incentivo dessa prática democrática e criativa de produção


ficcional, visto que, como foi dito, ela aponta um caminho interessante e coerente
para a formação de leitores, partindo dessa posição de letramento a qual se citou
acima podemos ver a liberdade e as múltiplas possibilidades de aprendizagens pela
cultura da convergência, como denominada por Jenkins.
J De certo que apesar de haver um número considerável de pontos positivos
em relação a estas produções, também existem os pontos negativos, o cuidado
A com o crime autoral conhecido como plágio em situações que saem do controle de
referências escolares pensando no trabalho com os textos canônicos, posto que,
L tendo em vista o amplo espaço da qual fazem parte, e a responsabilidade de manter
e organizar estas situações possíveis de aprendizagem fazem parte das instituições
L de ensino e profissional dessa área.
Há uma necessidade de capacitar estes profissionais e inseri-los nessas
práticas, não no sentido superficial (utilizar-se de), mas no de compreender a
A dinâmica deste meio (estar inserida na), para que assim metodologia e educação
realmente estejam interligadas e de fato sejam substancialmente norteadoras
de uma educação coerente em relação a essas práticas literárias presentes no
ciberespaço.

• A ideia da fanfic surgiu especificamente para o estudo do texto literário


em sala de aula de uma turma do 5º ano do Ensino Fundamental, de uma escola
810
pública no estado do Amapá, por ser uma ferramenta que além do conjunto de
• atividades envolvidas no processo do uso da ferramenta como: resumos, discussões,
refrações de textos, socializações de ideias; proporciona motivação entre os alunos,
por ser algo novo, diferente, divertido, alegre e inovador, incluindo uso da internet
e do mundo virtual, sendo uma novidade para a realidade vivida pela maioria
dos alunos da turma em questão, já que apesar de terem contato com o recurso
2 internet, o uso é limitado no que se refere ao ensino aprendizagem da leitura e
principalmente da leitura literária.
0 É um processo que se inicia na sala de aula, com a leitura e discussões
de textos literários, depois se permeia pela aprendizagem de como escrever a fanfic,
1 conhecendo e adotando o modelo para a atividade proposta, isso significa que aula
sai de um modelo e espaço do dia a dia e vai percorrer outros meios, vivenciar
novas experiências, novas descobertas no mundo tecnológico.
8
Para a criação da fanfic, devemos entrar na Plataforma gratuita do Google
e procurar no site de fanfics e escolher a melhor versão a ser adotada para a
produção desejada, posto que existam diversos tipos de fanfics. A opção de site
escolhida para este trabalho foi o site Social Spirit. A partir da escolha do site, é
preciso que cada aluno, com o professor, façam uma conta no site, depois devem
se cadastrar no mesmo site. Em seguida, devem escolher a categoria em que a
história original se enquadre melhor e comecem a escrever. Após o que, a partir
de um pré-planejamento, cada escritor deve fazer as adaptações que se propõe a
realizar no texto original, modificando-o e reescrevendo-o a gosto.
Nesse trabalho, o objetivo é escrever usando uma ferramenta tecnológica
da internet, a partir da leitura do livro em sala de aula, é incentivar o ato de escrever
para si mesmo e para turma, bem como estimular o aluno a participar e manejar os
recursos em prol da sua aprendizagem. A fanfic é uma atividade de despertamento
e de interesse dos alunos que irão se constituindo e se fazendo um sujeito leitor,
escritor, ator, critico e usuário de ferramenta da internet. Sentindo-se importante,
atuante, questionador e encontrando diversas possibilidades dentro de um texto
J literário. A ideiaé aprender ler literatura, discutir sobre a literatura lida, explorando
o máximo da literatura lida, escrever sobre o texto e levar essa literatura, lida e
adaptada, para a socialização com os colegas, iniciando no ambiente da sala de aula,
A
após se expandindo para o meio virtual. Nessa etapa, surgem mais oportunidades
para conhecer outros livros, filmes, seriados, desenhos. Toda plasticidade, tanto
L de ambientes, como o de textos, despertará o interesse do aluno, para conhecer os
novos textos e suas adaptações, entrando no jogo e sendo seduzido por ele.
L
A Fanfic como instrumento do ensino de literatura

Escrever fanfiction dá margem a uma participação que também coloca o
A leitor ou espectador como autor, o que ultrapassa os limites do leitor interpretativo
crítico, posto que ele age criativamente com aquilo que aprende de sua leitura e
a modifica segundo suas percepções e fruições pessoais.Destaquem-se também
os mecanismos de criação textual advindas de ferramentas próprias desse espaço
virtual que são hipertextos eletrônicos. Através delas, segundo Umberto Eco (2003,
• p.18) “(...) nos permite a viajar através de um modelo textual (seja uma enciclopédia
811 inteira ou a obra completa de Shakespeare), sem necessariamente ‘desfiar’ toda a
• informação que contém, penetrando-o como uma agulha de tricô em um novelo de
lã”.
Ainda segundo Eco (2003, p. 20), essa possibilidade de criar textos
coletivamente, cujo andamento pode ser modificado ao infinito, pode ser feito
naturalmente com os textos literários já existentes, assim nos permitindo mudar
2 as histórias que há muito tempo nos obcecam com enredos e finais alternativos.
Sendo que isso de maneira alguma vai danificar o texto original, pelo contrário,
estará sempre vivo em meio às múltiplas possibilidades que o mesmo ainda mantém
0
lentamente por suas lacunas estratégicas esperando para serem preenchidas ou
não. Essa maneira de recriar um texto a partir de um texto lido, na plataforma
1 virtual com participação de grupo de pessoas, que é considerado como algo criativo,
posto que os autores se revezam emitindo opiniões, ideias, fantasias e sonhos.
8 Cabe ao professor mediador aproveitar o momento e planejar suas aulas
de acordo com os objetivos propostos e os recursos disponíveis ao seu dispor.
Podemos iniciar com uma narrativa simples, depois adentrar em livros mais
complexos, de acordo com o nível da turma e materiais acessíveis. O que nos leva
a acreditar que a fanfic seja um recurso que venha a contribuir com a prática da
leitura na escola é o seu aspecto multimodal³, ou seja, ora podemos trabalhar com
o gênero literário conto, ora podemos trabalhar com o gênero romance, em forma
de filmes, ou livros. Sem esquecer que a fanfic nos permite também participar da
construção desses textos na forma de adaptações e nessa viagem de ler, corrigir,
opinar, reconstruir, o aluno vai tornando-se um leitor e escritor independente.
Conclusão
A nossa pretensão foi levar o aluno a refletir sobre aquilo que leu, viu e ouviu,
fazendo associações de forma que identifiquem os comportamentos humanos e haja
comparação ou identificação com o conto. Levá-los a observar a desconstruções da
expectativa de padrão de beleza presente em muitos contos, no qual as princesas
são brancas, então belas, ou nos contos em que as imagens sempre apresentam
somente personagens brancas. Mostrar que tanto as personagens negras, brancas
J ou indígenas têm sua beleza própria e devem ser respeitadas. Debater sobre o valor
da pessoa humana, independente de cor, religião, gênero, classe social, etc.
A Referências
COLOMER, Teresa. A Formação do Leitor Literário. São Paulo: Global, 2003.
L COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. 2ª. ed., São Paulo: Contexto,
2014.
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1986.
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alfabetização na escola. In: KLEYMAN, A. B (org.). Os significados do letramento. São
Paulo: Mercado de Letras, 2004.
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LAJOLO, Marisa. Do mundo da Leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1985.
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la: as alternativas do professor. Porto Alegre. Mercado Aberto, 1981.
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• mática. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro. Editora 34, 1999.
______ . Cibercultura. 2. ed. São Paulo: Ed. 34, 1999.

2

0

1

8

J

A

L HISTÓRIA, NATUREZA E ETNOGRAFIA NOS RELATOS DE
TASTEVIN E PARRISIER
L
Maria Ariádina Cidade Almeida (UFAC)
A Larissa Oliveira dos Santos (UFAC)
RESUMO: Os missionários espiritanos Tastevin e Parrisier que estiveram no Alto
Juruá entre 1897 e as primeiras décadas do século XX deixaram importantes
relatos sobre natureza, cultura e populações humanas. Escrito em forma de diário,
estes textos apresentam o vale do Juruá sob a ótica de dois missionários que
• refletem a visão eurocêntrica da época sobre natureza e cultura, mas também
evidenciam aspectos de um momento de intensa atividade e exploração da goma
813
elástica. A abertura dos seringais, a “pacificação” dos indígenas por meio das
• correrias, e as redes de mandonismo criadas em torno do barracão são assuntos
testemunhados pelos dois missionários. Com base nestes relatos, que se constituem
em ricos registros etnográficos sobre a região, este trabalho de cunho interpretativo
visa apresentar como as concepções de homem, cultura e natureza estão inter-
relacionados, ao mesmo tempo em que busca explorar as informações sobre as
2 populações pano e as conexões existentes entre indígenas e não indígenas.
Palavras chave: História. Etnografia. Alto Juruá
0
A etnografia dos povos indígenas da região do Acre no contexto da abertura
dos seringais ainda é desconhecida pelo público mais amplo, pois, como se não
1
bastasse serem raras e dispersas ainda foram registradas em língua estrangeira.
Tentando corrigir esta realidade o Museu do Índio em parceria com a Funai
8 publicou no ano de 2009 dois volumes em língua portuguesa de alguns textos dos
missionários Tastevin e Parrisier que estiveram no país da borracha entre os anos
de 1898-1928. Estes textos que nos trazem informações sobre índios e seringueiros
da região do Alto Juruá são parte de manuscritos, cartas e artigos publicados em
língua francesa, e até pouco tempo conhecidos apenas por um número reduzido de
pesquisadores.
Os padres missionários Jean Baptiste Parrissier e Constant Tastevin
pertenciam a congregação do Espírito Santo, que se estabeleceu no Brasil em
1885. Os primeiros padres espiritanos foram trabalhar em Belém do Pará a convite
do então bispo dom Antônio Macedo Costa. Em 1892, por ocasião da criação da
diocese de Manaus os espiritanos foram convidados a ajudar na missão daquela
diocese, onde fundaram uma casa em Manaus nos idos de 1897. E logo em seguida
abriram também uma casa na prelazia de Tefé, de onde puderam ampliar sua ação
missionária pelos grandes rios (CUNHA, 2009).
Cunha (2009) destaca que a princípio o Juruá estava fora da jurisdição
religiosa dos padres, pois, somente em 1912 receberam oficialmente os rios
J Tarauacá e Juruá como área de missão, o que, todavia não impediu que Parrissier
estivesse no Alto Juruá em 1898, onde realizou as desobriga no Rio Tejo. Desta
A viagem restou um manuscrito datado de 1898 que destaca aspectos das gentes,
costumes e a dinâmicas sócio-políticas da vida no seringal.
L Estes relatos, que inclusive se alinham com muitos outros textos
conhecidos1, produziram uma série de discursos etnocêntricos sobre a região,
especialmente se pensarmos os elementos homem natureza. Todavia, seu valor
L
histórico enquanto testemunha e representação de uma determinada realidade nos
permite pensar sobre os modos de produção de alteridade presente nestes relatos.
A
Um missionário no Juruá

É bom frisar que Parrissier era um grande observador do cotidiano a
começar pela descrição minuciosa que ele nos deixa deste a saída do porto de Manaus,
como suas conversas com viajantes, os trejeitos dos que considerava interessante,
• e o dia a dia da navegação. O olhar curioso de quem sente que sua missão o
havia colocado diante de uma região distante, da qual era preciso “desbravar”,
814
mistura-se com a atividade contemplativa dos rios, florestas e pássaros. É inegável
• a admiração de Parrissier pela floresta amazônica, ainda que a perceba como um
paraíso intocável, de intensa fartura de peixes e de seres exóticos.
Se o meandros caprichosos do Juruá fazem dele um rio a parte, as suas
margens verdejantes fazem com que seja um dos mais encantadores que é
possível ver. Poderíamos jurar que passeamos num lago sem fim, ladeado
2 de magníficos prados emoldurados pela floresta. É verdade que não é nada
banal ver estas longas ervas, que são chamadas de capim na língua indíge-
na, ondularem com a brisa, como os nossos campos de trigo na França. Este
0 espetáculo sempre me emocionou e tenho certeza que emocionou a muitos.
(PARRISSIER, 1898, p. 09)

1 Parrissier procurou no seu “mundo”, os elementos que o ajudassem a


traduzir a natureza que se apresentava a ele. Este fascínio pela floresta e rios se
8 atenuou com o trabalho de desobriga, quando a natureza deixou de ser apenas
paisagem. Chegou a comparar o vale do Juruá ao Egito dos Faraós, porque segundo
ele: “aqui como lá, a falta de religião, a superstição, produziram quase os mesmos
males” (PARRISSIER, 1898, p.45). Aliás, o choque cultural que o missionário teve
com as populações da Amazônia, talvez tenha sido seu maior desafio.
Para o missionário, os seringueiros ignoravam verdades de fé essenciais
e as confundiam com superstições. Afirmava “que há de espantoso em que eles
acreditem nessas superstições, às vezes mais do que nas verdades que lhes restam”
1  -Referimo-nos aos relatos de William Chandless em fins do século XIX, e Euclydes da Cunha no
século XX, que se constituem em importantes fontes históricas para a região.
(p.43). Esta falta de instrução religiosa se daria em razão de longos intervalos que
o bispo enviava os padres para fazer as desobrigas nos rios. Se alguns costumes
dos seringueiros eram compreendidos pelo padre como mera superstição, outros
elementos que faziam parte da dinâmica dos seringais foram classificados por
Parrissier como as cinco pragas do Juruá.
Dentre as pragas estavam: a bebida a qual se referia como o pão de cada
dia do seringueiro; as rixas que eram provenientes do uso excessivo de álcool; a
J vingança que se fazia soberana numa região que não existia justiça, dando margem
para seringalistas e seringueiros criarem as suas próprias leis. Estas três primeiras
A “pragas” destacadas por Parrisier se referem a violência como fator preponderante
nos seringais. Sobre isso Djalma Batista (2007) menciona que “na Amazônia, com
L a borracha, vigorou mais do que nunca, a lei da selva, como o império da lei do
mais forte” (p.172). A violência como recurso nos seringais evidencia o sistema

autoritário sobre o qual se ergueu esta economia extrativista, onde em muitos
L lugares, “a lei do mais forte” não era exceção.
Nesta configuração espacial de grandes florestas e rios, a fronteira da
A civilização foi demarcada pela barbárie que nela se ocultava. Vale lembrar que
os seringais acreanos foram abertos a partir da limpeza étnica das populações
indígenas, tornando terras ocupadas por diferentes povos, em terra de ninguém.
Nas palavras de Martins (2016), “no âmbito das respectivas concepções de espaço
e do homem, a fronteira é, na verdade, ponto limite de territórios que se redefinem
• continuamente disputados de diferentes modos por diferentes grupos humanos”
815 (p.10).
• Na medida em que subia e descia os afluentes do Juruá, Parrisier (1898)
se deparava com outras “pragas” tais como os piuns e os carapanãs, que considerou
como a quarta praga do Juruá: “este inseto pequenininho, mas o que ele perde em
tamanho, parece que quer recuperar pela maldade” ( p.49). Para infelicidade do
padre espiritano estes insetos possuem incidência maior nas margens dos rios,
2 por onde permaneceu todo o período que esteve no Alto Juruá. Havia também
uma quinta “praga” nomeada que era a dança e a sanfona, onde segundo ele: “o
cearense nasce com um punhal na cintura para se defender e uma sanfona na mão
0 para se divertir” (p.50).
Este mesmo cearense que lhe parecia carente de instrução religiosa se
1 constituía para o missionário na população “civilizada e industrial” do Juruá,
se comparada aos demais habitantes: os índios. Os indígenas foram descritos
8 por Parrissier a partir de uma série de equívocos a começar pelo empréstimo de
elementos da cultura tupi utilizada para descrever/compreender as populações de
língua pano. Estes equívocos são próprios de uma concepção de “índio” genérica,
que não considerava a pluralidade étnica e cultura das populações indígenas.
Parrissier chegou a afirmar que os índios do Juruá admitiam e reconheciam
um único deus, Tupan. Todavia Tupan para os tupis guaranis é um dos mensageiros
de Nhanderú, não sendo, portanto, nem o único nem o principal. Estas crenças
faziam parte do universo cosmológico dos povos de tronco tupi-guarani, não fazendo
qualquer sentido para os povos de língua pano, que eram maioria no Alto Juruá.
Estas comparações equivocadas mostram o esforço do missionário em identificar
traços monoteístas nas crenças indígenas.
Também há um forte apelo pela imagem do “bom selvagem” vítima de toda
sorte de violência e carente de um tutor. Parrissier (2009) destaca que o índio da
Amazônia era “robusto, suportava a fome, a sede, o cansaço de todos os tipos com
uma coragem que honraria os brancos. A sua língua é doce e harmoniosa como
pude apreciar várias vezes, criado, ao modelo de Adão antes do seu pecado” (p.54).
J Estas representações criadas sobre os indígenas remontam o século XVI, inclusive
estava presente no primeiro documento escrito sobre o Brasil, feito por Caminha2.
A A perspectiva que Parrissier tinha sobre os índios passava pela noção
de tutela, sem a qual os índios estariam condenados ao desaparecimento. Mas,
L o que a experiência missionária mostrou em vários lugares de país e a partir de
fartos exemplos, é que a tutela dos missionários sobre os índios também estava
acompanhada de violência, seja nos atos de conversão, nos descimentos, nas
L
guerras justas, nas tropas de resgate e tantos outros artifícios que não podem ser
minimizados.
A
Tastevin e sua etnografia indígena

Constant Tastevin definitivamente não era um “missionário comum”
(CUNHA, 2009, p.13). Além de possuir uma formação filológica, ele se dedicou a
aprender o nheengatu, reunindo textos, vocabulários e gramáticas que o renderam
• publicações em revistas de antropologia, e que o colocaram no circuito da etnografia
americanista. Sua formação e projeção não o livraram, no entanto, de preconceitos
816
e estereótipos do catolicismo da época.
• Sua formação o ajudou a desenvolver uma sensibilidade maior em relação
às etnografias que produziu. Estes detalhes etnográficos sobre índios, seringueiros,
gerentes, seringalistas e comerciantes estiveram entre a pretensão de um linguista
etnólogo com a missão de um jovem missionário.
Sua viagem ao Rio Juruá e ao Rio Tejo data de 1914 quando partiu da
2 missão situada na boca do Rio Tefé, onde os espiritanos tinham uma casa de apoio.
Ao entrar no rio Juruá o missionário realizou algumas paradas nos barracões
0 que se situavam a margem do rio, até chegar ao seu destino Cruzeiro do Sul.
Por se tratar de uma viagem longa e cansativa, Tastevin logo se entediou com a
1 monotonia da floresta, escrevendo “Aqui trabalha-se e vive-se, ou melhor, vegeta-
se; nada mais”. A falta de conforto e as distancias entre barracões e colocações
eram frequentemente destacadas pelo missionário.
8
Dois dias antes de chegar a Cruzeiro do Sul, recebemos como companheiros
de viagem uma dezena de índios, homens, mulheres e crianças, da tribo dos
Ararauas, ostentando como brida, do canto da boca à ponta da orelha, uma
linha de tatuagem azul. Eles haviam acabado de entrar no seio da civiliza-
ção e seu diretor os enviava à procura de uma outra tribo intratável, que
não dava descanso aos trabalhadores da borracha. Ele tinha a esperança
de domesticá-los com suas arengas, como havia domesticado a estes, sem

2  Na carta de Pero Vaz de Caminha a noção de bom selvagem já estava imposta. “Parece-me gente
de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que
não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências” (2002, p.45).
civilizá-los. Uma mulher, ao me ver, teve uma crise de medo; ela me tomava
por um soldado, sobre os quais sem dúvida havia escutado coisas terríveis
(TASTEVIN, 1914, p 62).

Neste relato Tastevin apresenta uma série de questões que identificam o


lugar dos indígenas nos seringais acreanos. Entrar no seio da civilização significava
estar submetido a um regime tutelar de trabalho compulsório, aliás, esta prática
vinha desde o inicio da colonização da Amazônia, quando o indígena era fator de
J povoamento e de mão de obra.
Apesar de todo extermínio trazido pelas correrias que atravessaram as
A terras indígenas com a criação de colocação de seringa, os índios que sobreviveram
continuaram a ser importantes na extração do látex, sobretudos nos lugares
L definidos por Oliveira (2016) como “seringais de caboclo”. A categoria “caboclo”
utilizada para fazer referencia ao mestiço, também era utilizada para identificar os
indígenas que passavam pelo processo de pacificação, criando uma dicotomia entre
L
o caboclo (índio já amansado) e o índio brabo. Paradoxalmente, ao mesmo tempo
em que o termo procurava sufocar por meio de uma categoria genérica inúmeras
A identidades étnicas que passavam pela mestiçagem, ele também apontava de forma
velada o contingente étnico indígena presente naquelas populações.
Outros povos como os Ticunas, os Cachinauás e os Miranhas, foram incor-
porados como trabalhadores pela frente extrativista, funcionando como mão
de obra essencial tanto para a coleta do látex como para as atividades de
• apoio (remeiros, guias, trabalhos agrícolas etc.) no seringal. Se escaparam
de um extermínio imediato, passaram a sofrer uma forma de escravidão
817 ainda mais arbitraria e brutal. (OLIVEIRA, 2016, p.178)

Desde 1904 quando o prefeito Thaumaturgo de Azevedo assumiu o
departamento do Alto Juruá as correrias foram expressamente proibidas, o que
não significou que elas deixaram de acontecer, mas segundo Iglesias (2008),
Azevedo delineava as linhas mestras de um projeto de “catequese” e “civilização”
para os indígenas, parte de políticas mais amplas, que visavam integrar o território
2 e normatizar as relações de trabalho nos seringais. Civilizar para o trabalho e
integrar os indígenas a sociedade nacional era o grande projeto do estado brasileiro
0 que teve no projeto rondoniano3 sua máxima expressão.
Há também de se considerar a importância dos indígenas como agentes
1 estratégicos na pacificação de outros povos, como o relato de Tastevin evidencia:
“seu diretor os enviava à procura de uma outra tribo intratável, que não dava
8 descanso aos trabalhadores da borracha”. Amansar índio brabo não era apenas
tarefa de seringueiros não indígenas, os indígenas que já mantinham relações com
os brancos, participavam ativamente como amansadores de outros índios.

3  - Uma das críticas recorrentes contra o indigenismo rondoniano é sua duplicidade: de um


lado ele buscava proteger, possuindo uma visão humanista das relações entre povos indígenas
e sociedade nacional, por outro lado as ações indigenistas facilitaram o desenvolvimentismo em
áreas antes ocupadas por indígenas, abrindo espaço para a ideologia do progresso passar. Não
sem razão, o nome dos indigenistas encontra-se na memória do projeto nacional brasileiro. Ver:
OLIVEIRA, João Pacheco. Indigenismo e territorialização: poderes, rotinas e saberes coloniais no
Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998.
Proibida as correrias, a pacificação indígena por meio dos amansamentos
tornou-se uma prática cada vez mais utilizada pelos seringalistas. Vale ressaltar
que a visita de Tastevin ao Juruá é de 1914, período de crise do primeiro ciclo da
borracha, e integrar os indígenas no trabalho agrícola, aproveitando a “vocação
natural” de bons agricultores, também se constituía numa forma de dinamizar a
economia local (OLIVEIRA, 2016; IGLESIAS, 2008).
O Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais
J (SPILTN) , realizou sua primeira expedição ao Juruá em 1911, com o objetivo de
4

entrar em contato com os indígenas e acalmar os ânimos. Iglesias (2008) classifica


A a atuação do SPI na região como um indigenismo limitado, uma vez que ele em
nada interferiu nas relações patronais existentes entre seringalistas e seringueiros
L indígenas. A letargia era tanta, que os primeiros agentes do SPI a ser nomeado nesta
primeira expedição foram 04 seringalistas que adquiriram a função de “protetores

de índios”.
L
De acordo com Cunha (2009) Tastevin via no trabalho do SPI uma
catequese positiva e fracassada, tanto que quando encontrou com o diretor de
A índios antes de sua chegada a Cruzeiro, que na realidade era um agentes do SPI,
não poupou de suas críticas: “Ele tinha a esperança de domesticá-los com suas
arengas, como havia domesticado a estes, sem civilizá-los” (p. 62). As expedições
do SPI que ocorriam esporadicamente não dariam conta de imprimir nos índios
valores de um homem civilizado e ainda acrescenta:
• A evangelização positivista, da qual creio, o Brasil tem monopólio, é uma
818 coisa realmente engraçada. Feita a toque de dinheiro, pois que a ela foram
dedicados mais de 80 milhões de francos, ela não consegue sequer que a
• maioria de seus chefes, que ganham de 2 a 5 mil francos por mês, saiam dos
grandes centros, isto é, das capitais dos diferentes estados, para ir passar
ao menos um mês ou uma semana por ano no meio dos índios. (TASTEVIN,
1914, p.62).

A política indigenista brasileira conduzida pelo SPI, por se tratar de uma


2 catequese laica era vista por Tastevin como ineficiente, por isso ele acreditava que
os índios eram domesticados, mas não civilizados. Os missionários teriam muito
0 mais a contribuir com os índios do que os indigenistas que segundo Tastevin eram
“tão bárbaros quanto os índios”, e que ao invés de ensinar valores morais aos
1 índios se deixavam influenciar por ele: “O chefe atual desta região administrativa
tem duas índias como companheiras: uma delas fica em casa e a outra acompanha
nas suas viagens. Foi ele o catequisado pelos índios!” (TASTEVIN, 1914, p.83).
8
Mas Tastevin também reconhecia que não era tarefa fácil ensinar os índios
a doutrina cristã, pois, ao contrário do que acreditava Parrissier, os indígenas não
eram uma “tábua rasa”, onde se podia escrever o que quisesse. As cosmologias
indígenas, por exemplo, atribuíam significados semelhantes a seres animados e
inanimados, além de permitirem que plantas e animais interferissem diretamente
na história. Tastevin observava que “o índios atribui às plantas e aos animais
os mesmos pensamentos que os homens” (p.165). Este pensamento estendia a
humanidade aos seres não humanos.

4  A partir de 1918 passa a ser chamado apenas de Serviço de Proteção aos Índios- SPI
Que ninguém imagine que é mais fácil instruir ignorantes sobre a nossa
santa doutrina do que desenvolvê-la frente a pessoas informadas. Eu nunca
fico tão embaraçado ao explicar os mistérios das nossas origens e dos nos-
sos dogmas como quando tenho índios na minha frente. Ainda mais porque
o espírito deles não é exatamente uma tábula rasa. Eles também têm a sua
teoria, a sua explicação do mundo e quão diferente da nossa ela é: Eles acre-
ditam no poligenismo, no espiritismo, na metempsicose. Para eles não há
nada de comum entre o branco e o índio, pelo menos não mais do que entre
J a anta e o queixada” ( TASTEVIN, 1924, p. 115)
Além de possuírem suas próprias crenças e concepções de mundo, os
A indígenas não se mostravam exatamente abertos a mudar de ideia. E quando
batizados e cristianizados eles tendiam a interpretar a religião a seu modo, que
L significava para Tastevin “cristianizar crenças pagãs” (p. 15). A isto Cunha (2002)
chamaria de pacificar o branco que seria “situá-los, aos brancos e a seus objetos,
L numa visão de mundo, esvaziá-los de sua agressividade, de sua malignidade, de
sua letalidade, domesticá-los em suma” (p.07).

A resistência indígena e a catequização frustrada não ocorreram apenas
A com Tastevin durante o século XX. Em um dos capítulos da história colonial
brasileira Ronaldo Vainfas (1995) destaca a importância da santidade do Jaguaripe
que se difundiu na Bahia durante a década de 1580. Iniciou com a pregação de um
índio Tupinambá que fora evangelizado por um jesuíta, e que passou a peregrinar
pelos engenhos exortando os fiéis a fugir dos brancos e a atacá-los, acenando

que o paraíso tupi estava próximo e com ele viria uma nova era de prosperidade
819 e abundância onde os índios não precisariam mais trabalhar porque as flechas
• caçariam sozinhas no os frutos brotariam da terra sem que ninguém os plantasse.
Os portugueses seriam mortos ou tornar-se-iam escravos dos mesmos índios que
então escravizavam. Os índios fizeram uma reinterpretação do paraíso cristão a
partir da cosmologia tupi da “terra sem males”, estimulando rebeliões, fugas, e
gerando pânico entre os colonos.
2 O mais interessante deste episódio de resistência indígena foi o caso dos
portugueses que aderiram à santidade como o fidalgo Fernão Taíde, que convencera o
0 governador a atrair os índios para o litoral com a promessa de liberdade de culto, para
assim facilitar o desmantelamento da santidade. No entanto surpreendentemente,
Fernão não destruiu a “seita” como prometera ao governador. Ajudou os índios para
1 que erigissem sua igreja em sua propriedade os quais continuaram reverenciando
seu ídolo de pedra, com seus bailes e fumos, continuaram, enfim, a estimular fugas
8 e rebeliões em toda a capitania. As terras de Fernão se transformaram no palco
da grande festa indígena e no principal refúgio de índios cativados ou aldeados na
Bahia (VAINFAS, 1995).
Durante todo o relato de Tastevin os indígenas mostraram a criatividade
de seus mitos e modos de vida. Os registros de suas impressões juntamente com
os acontecimentos cotidianos são o ponto mais importante de sua etnografia, pois,
permitem que percebamos as ações destes sujeitos a partir de uma perspectiva
histórica, rompendo assim os estereótipos de que os índios estiveram passivos
diante do avanço colonizador.
Considerações finais
As imagens e representações que aparecem nas narrativas dos missionários
Parrissier e Tastevin refletem a perspectiva evangelizadora da congregação do
Espirito Santo, e também da igreja católica daquele contexto. O que se pretendia era
uma ação missionária que também fosse uma ação civilizatória. É bom lembrar que
de forma geral, a presença missionária na Amazônia desde o início da colonização
foi muito expressiva para a consolidação de um projeto colonial.
J No entanto, na região do Juruá, o projeto colonial não chegou acompanhado
das missões religiosas, pois, a especulação da economia do látex foi mais longe,
A e penetrou áreas então desconhecidas desde meados do século XIX, por isso a
presença destes missionários através das desobrigas se constituía numa quase
L eventualidade. Além de poucos e raros, estes missionários precisavam se equilibrar
entre os poderes constituídos nos seringais, uma vez que dependiam também da
L receptividade dos patrões para que lograssem êxito em sua missão.
As histórias dos missionários mostram quais as muitas implicações que
os surtos econômicos tiveram sobre as populações indígenas e seringueiras, e como
A estes sujeitos precisaram se adaptar a novas situações. O trabalho espoliativo
que aparece recorrentemente nestas narrativas destaca a geometria de poder dos
seringais, onde índios e seringueiros ocupavam lugar central como mão de obra,
apesar de não serem reconhecidos ou valorizados.

• Esta hierarquização talvez tenha ofuscado a visão que os missionários


tiveram sobre estas populações, vendo-as sempre como carentes de elementos
820 materiais e espirituais. No entanto, as histórias trazidas por eles nos apresentam
• sujeitos criativos que inventavam diversos modos de superar as privações a eles
impostas, e como organizavam a vida cotidiana através destas estruturas, e de
seus modos de vida no seio da floresta.
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e Parrisier: fontes sobre índios e seringueiros do Alto Juruá. Rio de Janeiro: Museu do
Índio, 2009.
TASTEVIN, Constant. O maravilhoso desenvolvimento da agricultura, sempre “pré-colom-
biana” dos índios insubmissos da Amazônia brasileira. Tradução Marília Botelho In: FAU-
LHABER, Priscila; MONSERRAT , Ruth. Tastevin e a Etnografia Indígena: Coletânea de
traduções de textos produzidas em Tefé/AM. Rio de Janeiro: Museu do Índio, 2008. II.
(Série Monografias), p. 101-108.
VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. – São
Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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A

L UM LUGAR PARA MARIA BONITA NA CIDADE
DAS DAMAS, DE CHRISTINE DE PIZAN
L
Maria Carreiro Chaves Pereira (UNB)
A RESUMO: O presente trabalho é, ainda, um esboço preliminar de um projeto
que visa destacar a figura de Maria Bonita, colocando-a no lugar que ela merece
estar: na Cidade das Damas, de Christine de Pizan. Na obra Cidade das Damas
encontramos histórias de mulheres comuns ou famosas, mártires ou heroínas, que
enfrentaram todo tipo de situação, inclusive situações de violência, como narradas
• pela autora. Nosso propósito é defender que uma dama do sertão brasileiro, Maria
Bonita, a famosa companheira de Lampião, merece estar nesta cidade de memória
822
das mulheres. Nossa intenção é elogiar a virtude da figura feminina de Maria
• Bonita, mulher valente, amorosa e leal cuja fama até hoje ainda é cantada em
prosa e verso, principalmente pelos cordelistas, que exprimem a beleza e a coragem
de Maria. Pois a Cidade das Damas reúne mulheres de diferentes virtudes, e de
várias origens, buscando fazer justiça às mulheres do passado, do presente e do
futuro, como pretende a sua autora.
2 Palavras Chave: Maria. Bonita. Pizan.

0 Na obra A Cidade das Damas encontramos histórias de mulheres
comuns ou famosas, mártires ou heroínas, mais conhecidas naquela época e
que enfrentaram todo tipo de situação, inclusive, situações de violência, como as
1
narradas pela autora, especialmente, no Terceiro Livro.

À medida que o enredo vai se desenvolvendo, o leitor percebe que a cidade
8 é uma alegoria. A escrita feita por meio de alegorias era algo bastante comum na
Idade Média.
“Entre as formas de manifestação contra o momento presente, aten-
tamos para a forma utópica como sendo aquela de maior conformida-
de com a obra La cité des Dames de Christine de Pizan. A linguagem
alegórica, que tem um caráter fundamentalmente didático busca, ao
mesmo tempo, dar uma certa ilusão do real, travestindo-o, assim
como pôr à vista do mundo real, através de valorização simbólica dos
elementos alegóricos. (A Cidade das Damas, Apresentação).

A personagem Christine, com o mesmo nome da autora, revela-se uma


mulher profundamente deprimida em sua condição feminina. Porém, sua amargura
tem raízes nas opiniões depreciativas dos homens em relação às mulheres. Esses
julgamentos masculinos estavam presentes nos muitos livros lidos pela autora.
Todos foram escritos por homens e para homens, pois não era comum naquela
época, a mulher receber educação formal. Esse trecho expressa os sentimentos de
Christine, “Abatida por esses pensamentos tristes eu baixava a cabeça de vergonha.
Os olhos repletos de lágrimas, a face na mão, apoiava-me no braço da poltrona...”
J (A Cidade das Damas, Livro Primeiro, capítulo I).
E nesse estado de desolação, eis que de repente aparecem três figuras
A femininas, descritas por Christine como sendo três damas coroadas, de alta
distinção, esplendorosas... Após se apresentarem, as damas passaram a confortá-
L la. Seus nomes eram Razão, Retidão e Justiça. Tinham por missão ajudá-la a
construir uma cidade onde habitariam todas as mulheres virtuosas, das mais

diferentes idades e classes sociais. Tal cidade se chamaria A Cidade das Damas.
L
Christine não deixa muito claro em sua obra, quais, eram, exatamente,
as virtudes para uma mulher ser inserida na cidade a ser construída. Entretanto,
A no perfil das mulheres as quais faz alusão, é possível perceber que possuíam
virtudes, as mais diversas, tais como: morais, intelectuais, políticas, militares,
técnicas, profissionais, afetivas, religiosas e outras peculiares a cada mulher cuja
história é narrada. Não era exigido que fossem perfeitas, pois além de não existir
um ser humano perfeito, o erro não era definidor de caráter. A intenção do livro
• é clara: exaltar e elogiar as mulheres de todas as condições sociais, de todas as
823 épocas e culturas do mundo então conhecido, e não apenas as do mundo cristão,
ressaltando diversas qualidades que superavam eventuais defeitos.

O leitor é levado a pensar que por conta do título da obra, encontrará
somente histórias bonitas de um mundo cor de rosa, com reis, rainhas, princesas e
belos príncipes, enfim, histórias de contos de fadas. Mas se engana, pois à medida
que a leitura avança é possível perceber que a visão da autora é bem realista. O que
2 é retratado é um mundo repleto de injustiças e violências. Na verdade, a realidade
vivida por aquelas mulheres, e que Christine descreve tão bem, não tinha nada de
cor de rosa. Pelo contrário, boa parte delas era submetida a muitas crueldades e
0 injustiças, exatamente como acontece com muitas de nós hoje.
Ainda, assim, a autora criou belas personagens e cenários onde a beleza
1 predominava, mas apenas como pretexto, como pano de fundo, para chamar
nossa atenção para a condição feminina. Ela se fez porta-voz e defensora das
8 mulheres perante a injustiça dos homens, e reivindicou o reconhecimento da
dignidade humana das mulheres. Coisas como o acesso à educação, a participação
na administração econômica dos recursos da família, e a importância de serem
ouvidas, estão entre suas reivindicações.
A partir de agora, pedimos licença à Christine de Pizan e perguntamos,
então, se uma dama do sertão brasileiro, Maria Bonita, a famosa companheira de
Lampião, poderia ser aceita na cidade idealizada por ela, para abrigar mulheres
de todas as condições, e, segundo as suas virtudes? Afinal de contas, A Cidade
das Damas foi idealizada para receber mulheres de todos os tempos e lugares
conhecidos pela autora.
“Nossa cidade está aqui construída e perfeita, na qual, com grande
honra, todas vocês, que amam a glória, a virtude e a notoriedade,
poderão hospedar-se; pois ela foi fundada e construída para todas as
mulheres honradas – as do passado, as do presente e as do futuro.”(A
Cidade das Damas, Livro Terceiro, cap. XIX).

Como se pode observar pelo texto acima, podemos encaixar Maria Bonita
na categoria das mulheres do futuro, às quais Christine se refere. A intenção ao
J fazer isso é dar destaque à figura feminina de Maria Bonita, mulher valente que
até hoje é cantada em prosa e verso, especialmente, pelos escritores de cordel que
exprimem sua coragem e beleza em seus versos, como os que citamos a seguir:
A
Quanto mais ela crescia

Mais ficava diferente:
L
Mais astuta, mais bonita,

Mais corajosa, mais quente,
L Mais atraente, mais viva,
Mais forte, mais positiva,
A Mais sensível, mais valente. (FERREIRA e ARAÚJO, 2011, p.205).
Uma pergunta que podemos fazer é de onde teria vindo o adjetivo Bonita
para compor o nome de nossa personagem?
No sertão, é comum ser mais conhecido pelo apelido. Os homens que en-
travam para o cangaço eram apelidados pelos outros do bando... Virgolino

se tornou Lampião... Já com as mulheres era diferente. Elas não incorpora-
824 vam nomes fantasiosos e, geralmente, usavam seus nomes de batismo ou
apelidos que traziam desde a infância... Dentro do cangaço, Maria de Déa

passa a ser chamada de Dona Maria ou Maria do Capitão. É difícil saber
com precisão quando o apelido Bonita foi conjugado de modo decisivo ao
nome de Maria... O que se sabe é que tal apelido não é fruto de alguém que
conviveu com ela durante o período do cangaço... podem se citar duas das
ideias que são debatidas. A primeira é que o tal apelido foi dado a Maria por
2 um policial volante que a achava bonita. A segunda, desenvolvida pelo pes-
quisador Jeová Franklin... é que a palavra bonita é fruto da tradução da pa-
lavra francesa Joli, que teria sido colocada junto ao nome Maria, em 1962,
0 quando a imagem dela foi xilogravada pela primeira vez, ao lado de Lampião,
para ilustrar um folhetim de cordel sobre a história do casal de cangaceiros.
1 (FERREIRA e ARAÚJO, 2011, 37).
Maria é um nome forte e ao mesmo tempo um nome pesado. Um nome
8 associado à santidade, pois sempre aparece ligado à mãe de Jesus, conforme
a tradição cristã. O cantor e compositor Milton Nascimento, juntamente com o
também compositor Fernando Brant escreveu: “Quem traz no corpo a marca Maria,
Maria, mistura a dor e a alegria.” Ou seja, Maria é uma marca. E Maria Bonita é
um diferencial quando se pensa em tantas Marias que habitaram e ainda habitam
nosso país.
Por outro lado, tão ou mais importante que o codinome Bonita, foi a
coragem que Maria demonstrou ao se unir a Lampião. Não há como duvidar que
era uma vida das mais duras que uma mulher poderia levar. Sobreviver no sertão
nordestino por si, já era algo bastante penoso. Pensemos, então, em uma mulher
vivendo ali naquele meio e sendo a companheira do chefe do bando.
Sempre houve mulheres à frente de seu tempo, que não se conformaram
com o que era esperado delas. Maria Bonita foi uma delas. Não se sujeitou aos
padrões ditados pela sociedade na qual vivia, onde a figura da mulher era a de
alguém inferior. Sempre submissa ao homem. Ao se juntar a Lampião e seu bando
ela passou a mostrar uma outra imagem da mulher sertaneja. De certa forma
J Maria quebrou aquela imagem da nordestina coitadinha, sempre de cabeça baixa e
mostrou uma nova face dessa mulher, uma face valente e ousada.
A Ao deixar a casa de seus pais, decidida a viver ao lado do capitão Lampião,
Maria de Déa faz uma marca na história. Na constante luta de poder, a fi-
gura digna de pena da mulher no sertão do Nordeste declina e abre espaço
L para a construção da imagem da sertaneja valente. Tida como moleca e de
fácil convívio, a valentia de Maria do Cangaço estava na sua capacidade de
L se desgarrar das amarras sociais – como da condição inferiorizada em re-
lação ao homem –, quando, já no final dos anos 1920, inusitadamente, ela
toma a decisão de se separar do marido e retorna à casa dos pais; ou mes-
A mo por novamente compreender que rumo deveria dar a sua vida quando,
por decisão própria, se uniu a Lampião. (FERREIRA e ARAÚJO, 2011,
p.133).

A fim de estabelecer um paralelo com nossa personagem do sertão,


vamos falar um pouco de duas das mulheres citadas por Christine, a primeira é a
• rainha Semíramis, pois encontramos nessa personagem traços que nos reportam à
825 Maria Bonita.
• “Semíramis foi uma dama de muita virtude, força e coragem exemplar no
exercício e prática das armas... Essa dama foi esposa do rei Nino, que deu
o nome à cidade de Nínive1, e tornou-se um grande conquistador, graças à
ajuda de Semíramis que cavalgava ao seu lado, em todos os campos de bata-
lha. Essa dama era ainda jovem, quando Nino foi morto por uma flecha, du-
rante um ataque a uma cidade... Essa dama, de tão grande coragem, nada
2 temia, nem esmorecia diante de qualquer perigo. Ao contrário, expunha-se
a todos... É bem verdade que muitos a criticaram – e com todo direito, se
ela tivesse vivido sob nossas leis – pelo fato dela ter se casado com um filho
0 que tivera com Nino, seu esposo. Mas, os motivos que a levaram a fazer isso
foram dois: o primeiro é que ela não quis que, no seu império, tivesse outra
1 dama coroada além dela, o que seria inevitável se seu filho se casasse com
outra; e o outro motivo é que, para ela, nenhum outro homem era digno de
tê-la, como esposa, a exceção de seu próprio filho. Mas, apesar de ser um
8 pecado muito grande, essa dama não tem que se desculpar, pois ainda não
havia lei naquela época. As pessoas viviam assim, agindo como melhor lhe
parecesse...2 Não há dúvida de que, se ela pensasse que estaria agindo mal

1  Sobre esse texto, é possível que Christine estivesse se referindo ao texto bíblico que se encontra
no livro de Gênesis, capítulo 10, versículos 08 a 11, ao citar o rei Nino: “Cuxe gerou também
Ninrode, o primeiro homem poderoso na terra. Ele foi o mais valente dos caçadores, e por isso se
diz: “Valente como Ninrode”. No inicio o seu reino abrangia Babel, Ereque, Acade e Calné, na terra
de Sinear. Dessa terra ele partiu para a Assíria, onde fundou Nínive, Reobote-Ir, Calá e Resém,
que fica entre Nínive e Calá, a grande cidade”. (https://www.bibliaonline.com.br/nvi/gn/10), site
consultado em 09/06/2017, 16:15h.
2  Aqui remetemos a um trecho da obra Leviatã, escrita pelo filósofo inglês Thomas Hobbes, sobre
ou que poderia ser repreendida por isso, não teria se comportado assim,
pois ela tinha um coração generoso, e prezava muito pela honra.

Está posta, agora, a primeira pedra das fundações de nossa Cidade...” Aspas
do original. (A Cidade das Damas, Livro Primeiro, capítulo XV).

É possível observar pelo fragmento de texto narrado acima, que para


habitar a cidade não era exigido que a mulher jamais tivesse cometido um erro ou um
pecado na vida. São narrados fatos considerados bastante graves, principalmente
J
se forem vistos pelos olhos da lei. Mas pudemos ver também que Christine não se
omite de falar da gravidade dos atos praticados por Semíramis, inclusive, dá razão
A aos que a criticaram, afirmando que foi um pecado muito grande, o fato dela ter
se casado com o próprio filho. Mas Christine, também, tem certeza de que pela
L nobreza de caráter dessa dama, se ela tivesse vivido em outra época, não teria feito
tal coisa. E sendo assim, não só a justifica, como a coloca como a primeira pedra
L da construção da Cidade das Damas.
Como podemos ver Semíramis e Maria Bonita foram mulheres muito
A diferentes entre si, mas com atitudes bastante parecidas, pois tiveram muita ousadia
e coragem para fazer escolhas bem diferentes do que era esperado delas, e, porque
não dizer, tomaram atitudes que demonstram erros considerados muito graves,
como se casar com o próprio filho (Semíramis) e se unir a Lampião, considerado o
bandido mais perigoso daquela região na época (Maria Bonita).
• A segunda mulher citada por Christine, da qual vamos falar é a rainha
Zenóbia.
826
“...A valente Zenóbia, rainha da Palmira, não foi menos digna de fama. Era
• uma dama nobilíssima que descendia dos Ptolomeus, reis do Egito. Sua
coragem e proeza de cavaleira foram manifestadas desde a sua infância.
Quando cresceu, ninguém pôde impedi-la que deixasse as cidades, palá-
cios e quartos reais, para ir morar no coração dos bosques e florestas. Ali,
armada com sua espada e lanças, caçava com fervor animais selvagens,
enfrentando-os sem medo e triunfando com muita facilidade. Não a incomo-
2 dava o fato de dormir no bosque, na terra dura, sob sol e chuva. Sem temor
algum, saía abrindo caminhos nas florestas, atravessando vales, escalando
0 montanhas, para caçar animais... Fortuna lhe sorriu ao dar-lhe um esposo
conforme sua personalidade e a vida que havia escolhido... Esse rei era de
uma bravura excepcional. Ele decidiu conquistar, pelas armas, o Oriente in-
1 teiro e os impérios vizinhos... Então, Zenóbia, que não fazia nenhum esforço
para guardar o frescor de sua tez, entregou-se, com seu marido ao árduo
exercício das armas, vestindo armaduras e participando de todos os esfor-
8 ços no exercício da cavalaria.” (A Cidade das Damas, Livro Primeiro,
capítulo XV).

Assim, podemos perceber também em Zenóbia traços que nos reportam à

como era a Inglaterra nos séculos XVI e XVII, “Desejos e paixões não são intrinsecamente pecados,
como também não o são as ações resultantes dessas paixões, até o momento em que seja editada
uma lei que as proíba; enquanto não existir uma lei, a proibição será inócua. Nenhuma lei poderá ser
editada enquanto os homens não entrarem num acordo e designarem uma pessoa para promulgá-
la.” ( Hobbes, 2014, 109).
Maria Bonita, tais como a coragem, o desapego ao conforto e o gosto por uma vida
de lutas, inclusive com a utilização da força física e das armas.
Porém, nossa atitude aqui, assim, como não foi a de Christine, não é
julgar e/ou condenar essas mulheres. Nossa posição não é a de dizer se está certo
ou errado o que elas fizeram. Isso a sociedade e os chamados homens da lei já
o fizeram no caso de Maria Bonita. No caso de Semíramis, certamente, também
devem ter feito. Nossa atitude aqui é a de louvar a mulher Maria Bonita e levá-la,
J juntamente com as outras mulheres maravilhosas as quais nossa autora alojou na
Cidade das Damas.
A Conforme citamos anteriormente, Maria Bonita, ainda, hoje é uma
inspiração e desperta a veia artística de pessoas das mais variadas áreas, mas
L principalmente, a dos muitos cordelistas que tão bem contam a vida de personagens
que fazem parte da história de nosso país, inclusive, os do nordeste brasileiro. Por
isso mesmo, vamos homenagear Maria narrando, resumidamente, sua história,
L
assim, em cordel:
...
A No ano de 29
Conheceu Maria Bonita
Que usava gigolé
E um vestido de chita.
Lampião ficou gamado

Pela mãe da Expedita.
827
Ela estava separada

De Zé Mané, sapateiro
Há apenas 15 dias
E juntou-se ao cangaceiro
Foi a primeira mulher

2 A seguir o bandoleiro.

Mulher forte e corajosa


0 Aderiu ao cangaço,
Foi viver lá na caatinga
1 Sem reclamar do cansaço
Ao lado de seu herói

8 Sem medo e sem embaraço.

Maria Gomes de Oliveira



Era o seu nome civil
Enfrentou a macambira
E aquele sertão hostil
Com revólver e com punhal,
Veltro, bornal e cantil.

Quando Maria Bonita


Se juntou aos cangaceiros,
Dadá e outras mulheres
Ajudaram seus parceiros
Que eram tão violentos
Serem menos carniceiros.

Em 27 de julho
De 38 se deu

J O cerco à Fazenda Angico

Bezerra surpreendeu
No estado de Sergipe
A Parte do bando morreu

L Maria Bonita se foi,
Lampião também tombou
L O Tenente João Bezerra

Que a volante comandou,


Para o povo do governo
A
Um grande herói se tornou. (MOURÃO, 2016, p.07, p.08).

O contexto histórico no qual Maria viveu era outro. A condição da mulher
era de muita submissão ao homem. Embora em nossos dias a mulher ainda esteja
muito longe de alcançar uma condição igualdade. Por isso mesmo suas atitudes
• falam por ela em termos de coragem de romper com o que era tradicional.
828 Malgrado tudo, não quero despregar Maria do seu tempo e do contexto his-
tórico que lhe concerne. Por trás de sua ação insurrecta ou de simples mu-
• lher, há uma sociedade em crise onde os valores tradicionais não encontram
mais condições de subsistência. São os cangaceiros que impõem, então,
um novo modo de vida, aventureiro e avulso, como nos ensina Graciliano
Ramos. Maria Bonita nasce sob o signo deste momento histórico que tem
por pano de fundo a ditadura de Getulio e as reivindicações femininas na
direção do direito de voto.
2
Num país cuja Constituição é contrária à pena de morte, espanta (e ainda
apavora muito) o destino desta Maria, morta arbitrariamente aos 27 anos de
0 idade, decapitada antes mesmo de agonizar, cabeça desertada sem piedade
do seu corpo, e exibida na vitrine da impunidade legal.
1
Que crime civil teria ela cometido, que código, que legislação teria tão
acerbamente infringido essa mulher – a ponto de ser assim ceifada? (FERREIRA e
8 ARAÚJO, 2011, p. 205).
E assim, como podemos perceber nesse esboço de trabalho, são muitas as
perguntas sobre Maria Bonita. Continuaremos pesquisando. Porém, pela coragem
de ousar viver algo totalmente diverso do que se esperava dela. Pela maneira brutal
com que foi ceifada a vida dessa Maria, quero crer que há sim um lugar para
ela na Cidade das Damas de Christine de Pizan, pois a autora ousou colocar ali
mulheres, as mais diversas, do passado, do presente e do futuro. Por isso mesmo,
é possível vislumbrar Christine dando as boas vindas à Maria Bonita nessa na
cidade alegórica construída por ela.
Bibliografia
FERREIRA, Vera e ARAÚJO de Germana Gonçalves. Bonita Maria do Capitão. EduNEB.
Salvador. 2011.
HOBBES, Thomas. Leviatã. Editora Martins Claret Ltda., 2014.
MOURÃO, José Maria da Silva (Padre Mourão). Lampião e Maria Bonita. Editora de Cor-
del Mourão & Artes. Brasília. 2016.
PIZAN, Christine de. As Cidades das Damas. Tradução e apresentação de Luciana Eleo-
J nora de Freitas Calado Deplagne, SC, Editora Mulheres, 2012.
BÍBLIA ONLINE, Disponível em https://www.bibliaonline.com.br/nvi/gn/10. Acesso em:
A 09/06/2017.

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L ENCUENTROS CON EL OTRO: ELEMENTOS DE RUPTURA Y LA
DESCONFIANZA DE LA PALABRA EN LA VANGUARDIA ANDINA
L PERUANA, EL CASO DE ANDE (1926) DE ALEJANDRO PERALTA

A María de los Angeles Morales Isla (UNMSM)
RESUMEN: El presente trabajo se centrará en el poema “Nocturno del vacío” de Ande
(1926), de Alejandro Peralta. Se buscaráubicar la angustia de la subjetividad del
hablante, en la medida que el poema se construye como un punto de fuga (es decir,
ubica un indecidible). Por tanto, se trata de la sustracción de toda «presentación»
• otorgada por la cultura significaque el hablante opera contra el sentido común;
830 se escenifica una crisis de sentido. En este procedimiento, Peralta indaga sobre la
escritura, señala una experiencia con el Otro, en este caso la situación se torna
• dolorosa, toda vez que este ya no otorga las significaciones y respuestas posibles
al sujeto lírico. Se apela así a la desconfianza de la palabra, se expone al vacío
experimentando una ruptura con el lenguaje. De manera que se entrega (en
términos de fidelidad) al acontecimiento, empleando un lenguaje disonante (en la
búsqueda unificadora de la modernidad y el mundo andino) que plasma un mundo
2 fragmentado y la descomposición del mundo representado.
Palabras claves: Función de ruptura. Errancia del vacío. Indigenismo. Lenguaje.
0 Vanguardia
Introducción
1 La vanguardia se instala en el Perú en los albores del siglo xx. Se trata de una
escritura literaria que tiene como objetivo principal la renovación y modernización
8 de la palabra. Bajo esta premisa, se opone y contradice a toda literatura anterior,
particularmente al modernismo peruano. Así, el escritor vanguardista elabora
procedimientos formales que se distancien de los rasgos estilísticos de la tradición.
Si bien es cierto se visibiliza, todavía, el uso de elementos de modernistas (o de
corrientes literarias anteriores), “estos son radicalizados y exagerados, llevándolos
hacia contextos inesperado, haciendo que sean irreconocibles” (CALINESCU, 2003,
p. 105).
Esta elaboración escritural significó un cambio significativo en las letras
peruanas, pues en su afán renovador se aproximaron a espacios desconocidos, a
fin de explorar dimensiones otras que estimulen la liberación creativa. Ello implicó
la inquietud por nuevos temas literarios, dado que la vanguardia se denominaba
como unos adelantados de su época, cuya mirada radica en el futuro (MONGUIÓ,
1954). Asimismo, problematizaron sobre el contexto de su tiempo, ya que en este
período el espacio peruano sufre determinados cambios (como la inserción de la
modernidad tecnológica, así como también la transformación de la vida política).
De manera que se reflexionó acerca de la práctica escritural y la labor del escritor
J en la sociedad.
Con la aparición de la modernidad tecnológica, la vanguardia peruana
A incluyó en su lenguaje poético estas nuevas apariciones. Esta situación establece,
así, un vínculo con las máquinas. Desde la perspectiva de Mirko Lauer (2003)
L se describen seis elementos de la poesía vanguardista y las máquinas, dirigidos
en tres etapas: la zoomorfización de la máquina; la aceptación del estatuto

diferenciado para los objetos mecánicos (ya sea, extrañamiento o familiaridad); la
L polémica acerca del significado de las máquinas; y tres aspectos: la mención de
las máquinas y artefactos de todo tipo; el interés por los principios técnicos que
A subyacen a la máquina; la incorporación de principios de intención mecánica en el
poema (tipografía visual, entre otros).
Si bien es cierto, la vanguardia peruana se erigió desde los procedimientos
descritos anteriormente, habría que señalar la coexistencia de dos modalidades:
una vanguardia cosmopolita y otra regionalista o indigenista. Sobre la base de
• esta última, la indigenista, López Lenci (2005) afirma lo siguiente: “[Es] el inicio del
831 proceso cultural descentralizador del Perú contemporáneo […] reevalúa el espacio
constitutivo del mismo” (p.143). La búsqueda de una descentralizacióntuvo como

finalidad, para la vanguardia andina, movilizar y desplazar el colonialismo cultural
(limeño y europeo) que habían determinado las instituciones, los lenguajes, etc. A
ello se añade, la asociación de la primera modalidad: el vanguardismo cosmopolita.
Estos es, la incorporación del registro nacional hacia una estética vanguardista
internacional. Se establecen correlaciones de la modernidad tecnológica con el
2 espacio rural a fin de enfatizar la modernidad de un espacio y sujeto emergente:
el mundo andino y el indio. Ello se establece con la necesidad de una apropiación
0 transcultural que asocie nación y modernidad.
En este contexto, se inscribe la poesía de Alejandro Peralta con la
1 publicación de Ande (1926) y el Boletín Titikaka (1926), este último se estableció
como el órgano de difusión de la vanguardia andina, así como también en un ente
8 legitimador. En su poesía se establecedos espacios antagónicos: la modernidad y
el espacio rural o el indio, situación que enfatiza la modernidad de esta última;
además de una constante preocupación por el sujeto emergente: el indio. Así, resulta
pertinente observar esta coalición entre estos dos mundos, sus contingencias y
divergencias. Se presenta en el poemario la zoomorfización de la máquina y la
incorporación de principios de intención mecánica, además de la inserción de un
espacio rural andino.
Pues bien, se intenta, en el presente artículo, visibilizar los mecanismos
que vinculen estos espacios disímiles. Para ello, analizaremos el poema “Nocturno
del vacío”, donde se presenta la angustia de la subjetividad, toda vez que indaga
sobre su radicalidad y su ruptura con el lenguaje. De lo que se trata es, entonces,
de ubicar la angustia de la propia subjetividad, en donde se aloja el indecidible. Se
convoca una exposición hacia el vacío y la desconfianza de la palabra.
La metodología empleada responde a la necesidad de ubicar en la textura
poemática procedimientos del plano del contenido como elementos formales. La
perspectiva analítica parte de la ontológica de Alain Badiou, así como también
algunos procedimientos empleados por Marcos Mondoñedo, desde una perspectiva
J lacaniana. Se ubicará el indecidible, posteriormente se observará la función de la
interrupción, siguiendo el proyecto de Rimbaud propuesto por Badiou, así como
A también la angustia cosmista y el fantasma. Estos procedimientos nos permiten
explicar la singularidad de nuestro poeta, quien postula un proyecto parecido a
L Parménides.
Análisis Ontológico: encuentros con el Otro
L En el texto del “Poema como recurso filosófico” de Condiciones (1992),
Alain Badiou reflexiona acerca de la relación entre la filosofía y el poema. Esta
indagación permite observarde otro modo el poema, y, por consiguiente, postula
A
que la poesía es el pensamiento de la presencia del presente (esto es, la presencia
sensible). Así, el poema presenta los recursos para pensar “fuera-de-lugar” o más
allá de todo lugar, “lo que del presente no se deja reducir a su realidad pero convoca
la eternidad de su presencia” (p. 89). Es decir, el poema “piensa lo impensable” (lo
indecidible, “lo fuera-de-lugar”), pero a través de lo no meramente capturable en

conceptos y, de esta manera, abre espacio para la filosofía, en tanto que indague
832 sobre ese “agujero en el sentido” (p.91). Por tanto, el poema sería la grieta por
• donde se inserta la filosofía para pensar lo indecidible. De manera que el poema
localiza aquello que está fuera de sí y escapa a la representación.
El método de la “interrupción”1 en Peralta: desconfianza de la palabra,
al borde del vacío
Ahora bien, explicada esta premisa base para el análisis, el poema
2 “Nocturno del Vacío” de Alejandro Peralta señala lo indecidible. Situación que
incluye la suspensión de lo sensible, entendido como la posibilidad de cercar el
0 acontecimiento de un modo totalizador o conceptual, asegurado por la presentación
y la representación. Se trata de una sustracción del sentido. El gran Otro2, el saber
1 enciclopédico, se enuncia como una falla; esto es, el impasse, la enciclopedia ya
no puede abastecer, se enuncia, por tanto, “pensar una actividad que se realiza a
expensas del Otro” (MONDOÑEDO, 2009, p.38). Para tal motivo, Peralta recurre a
8
otras metáforas, vinculada los procedimientos de la modernidad andina.
El poema escenifica la experiencia angustiante del hablante lírico por
enunciar, a través de la palabra, aquello que está fuera-de-sí. Así, el poema se
establece como un punto de fuga, pues cuando la referencia se aproxima, esta
renuncia a toda posibilidad, enfatiza aquello que se escabulle. De manera que, la

1  El método de la interrupción es empleado por Rimbaud, Badiou (1992) afirma una separación de
mundos, se elimina la síntesis (situación que será explicada para el caso de Peralta).
2  El Gran otro se presenta como la fuente de sentido, esto es, la enciclopedia. Se trata del bagaje
cultural que permite establecer la comunicación entre los sujetos (MONDOÑEDO, 2009).
palabra se torna muda. Es decir, el poema es la propia interrupción del pensamiento
impensable. Esta situación no solo es tematizada, sino que se presenta también
en el nivel enunciativo, así el significante escapa al significado, es decir aberrante.3
La interrupción en el poema es explícita, las metáforas resaltan la
insuficiencia de la palabra, pues no accede a lo impensable, entonces marca una
ruptura: “nada”, “vacío humo”, “cuencas de la luna”, éter”, entre otras metáforas.
Todas las palabras empleadas destacan por su fugacidad, así como también por
J su invisibilidad. Esta angustia se muestra en términos de un Otro inmanente.4 El
hablante lírico se enfrenta al vacío.
A nocturno del vacío

Solo
L para sentirme de éter

Nada

L sobre la resolana del papel

En el arbolado del cerebro


A las cuencas de la luna

Mi cigarro que no se acaba nunca


de tan vacío de humo
En mi boca alirota
las aceitunas del silencio

833 I la rana del pensamiento
que grita a la última estrella

Este cuarto no es mío
ni esta aldea

SOY UN POMO DE ÉTER DESTAPADO (PERALTA, 2006, p. 61).


2 Este poema fija un lugar de acontecimiento, que conviene interpretar
a partir de sus marcas textuales, ya que el sentido de este poema se establece a
0 partir de lo que declaramos que ha sucedido aquí. En esta medida, Peralta piensa
el acontecimiento en la escena de su aproximación-desaparición, toda vez que
1

8 3  En palabras de Montalbetti (2014): Lo que propongo es que si le conferimos a un texto el
predicado de “poema”, entonces debemos conceder al mismo tiempo que ese texto viene sin barra
de significación, es decir, sin distinción entre significante y significado, y que el predicado “poema”
se hace efectivo cuando nosotros le imponemos una distinción con la que no viene. El poema se
materializa como tal, entonces, no en el significado arbitrario que le demos sino en el que se lo
demos. Eso es posible (y, a mi juicio, también necesario) porque el poema se resiste hacer signo
viene sin significado, no sin sentido (p. 56-57).
4  Siguiendo los postulados de Alain Badiou (2003), el Otro inmanente es la idea de la disyunción
total. Es decir, a través de la imagen del múltiple, un conjunto no vacío está obligado a ser fundado,
por el hecho de que siempre le pertenece un múltiple que es Otro respecto de él. Al ser Otro que
él, garantiza su fundación inmanente, ya que más acá del múltiple fundador no hay nada que
pertenezca al múltiple inicial (p. 210).
apunta hacia la conceptualización, pero al mismo tiempo se irrumpe para destacar
su silencio.
A partir de nuestro análisis daremos cuenta de los procedimientos que
harán desistir al sujeto de la enunciación, pues la enciclopedia no satisface, en la
búsqueda con ese Otro, que angustia a la subjetividad. De manera que, no hay
relación entre uno y otro, es decir no hay analogía entre la totalidad de la palabra y
lo indecidible. Ante esta situación, el hablante lírico toma una postura con respecto
J a ese vacío que se ha abierto entre la palabra y la referencia.
En la primera estrofa tenemos el siguiente verso “Solo/para sentirme de
A éter/ nada sobre la resolana del papel” (PERALTA, 2006, p.61). Se establece una
relación con aquello que se busca referir, pues en los dos primeros versos se enfatiza
L el condicional (“solo para”) y, por consiguiente, la palabra “nada” corta todo el
procedimiento oracional. Asimismo, las imágenes elaboradas también representan
dicha fugacidad, toda vez que el significante escapa al significado. Por ejemplo, se
L
hace uso de la imagen del éter, elemento caracterizado por un líquido inflamable
e invisible, se enfatiza la dilución de la corporalidad. Se actualiza y virtualizan los
A hechos, toda vez que quiere sentir el indecidible, se presenta volátil, impreciso,
pero la nada irrumpe en él.
En la segunda estrofa, en el enunciado “en el arbolado del cerebro” y
“las cuencas de la luna”, se observan dos campos sémicos: el pensamiento y la
naturaleza. Del mismo modo, ambos campos sémicos se confrontan entre sí. En
• el primer verso de esta segunda estrofa, la metáfora del “enarbolado del cerebro”5
834 señala un lugar, en donde, probablemente, describa aquello que observa; sin
• embargo, se muestra agujereado, con cavidad. Así, nuevamente, las metáforas se
confrontan, y domina el último verso. Es decir, las cuencas desplazan la referencia
anterior, de modo que, domina la situación. Ello indica un quiebre entre el hablante
lírico y ese Otro que busca acceder o aproximarse.
Del mismo modo, pero con aspectos disímiles, la tercera estrofa del
2 poema, hace hincapié a esa continuidad incesante de la angustia del hablante lírico,
pues la imagen metafórica del “cigarrillo [que] no se acaba nunca/ de tan vacío
humo” (p.61), apuntala lo inalcanzable del impensable, cercano al vacío mismo,
0
que angustia y muestra una falta en el sujeto lírico. Esta situación se quiebra ante
la imagen del silencio con la metáfora de la “boca alirrota” que sujeta al cigarro, la
1 cual representa la negación de la anterior. Se anula, este procedimiento destaca
una función corte ante la continuidad. En esta medida, hay una ruptura en la
8 búsqueda del indecidible.
El mismo procedimiento se encuentra en “I la rana del pensamiento/ que
grita a la última estrella” y la última estrofa “Este cuarto no es mío/ ni esta aldea/
soy un pomo de éter destapado”. Estos versos marcan una función de corte con las
referencias anteriores, toda vez que se presenta la negación, de manera explícita, en
este poema (“no es mío/ “ni esta aldea”). Se trata entonces de una ruptura, todo el
procedimiento se manifiesta ajeno al sujeto lírico, de manera que nada le pertenece
5  Éstas asociaciones entre la modernidad y el mundo andino serán asociaciones recurrentes en los
poemas de Peralta, para el caso de “Nocturno de los sapos”: “Pentagrama del aire”, “Tengo la cara
de pantalla”, entre otros elementos. Se presenta una zoomorfización (2006, p.59).
al culminar el poema. En esta medida se enuncia con aquello que inició el poema,
pero agrega una asunción sobre sí mismo: Soy un pomo de éter destapado, lo cual
presenta una estrategia de negación. Pues la presencia como sujeto se torna volátil
e invisible, ajeno al espacio que enuncia: la naturaleza. Además, la palabra se
torna fugaz, y el último verso convoca a la ruptura y por ende el silencio ante ese
Otro, pues al final nada es referido salvo él, como sujeto. Por tanto, ante aquello
que cuestiona, no hay respuesta.
J Entonces, se observa que hay algo que aqueja y angustia al hablante lírico,
ante lo cual se busca señalar. No obstante, se enfatiza la ruptura o interrupción,
A toda vez que el verso que continúa presenta la imagen del corte y anula todo
procedimiento. Dado que, cuando se expresa la angustia de la subjetividad, sin
L reservas, la transparencia de su pensamiento, el poema instala una disipación. Su
intención trasunta, entonces, en el claro objetivo de acceder a unas nuevas formas

de pensamientos y su enfrentamiento a la práctica escritural. Ello se expone en
L el sujeto ante la página en blanco, quiere transmitir aquello que se aloja en su
“arbolado cerebro”, pero es imposible. La función de corte muestra una restitución,
A como la búsqueda al sentido, ante la imagen del sujeto que se enuncia, pero que
no refiere nada ante ese Otro, la palabra es muda.
Sin embargo, esta ha sido una interpretación del sentido del poema, es
decir un recorrido por el sentido de las palabras y sus respectivos contenidos,
esto es, el mundo del poema tal como es. Es necesario transcender hacia un nivel
• enunciativo, del tiempo como la historia de la escena de ese mundo, en la cual se
835 podrá observar la subjetividad concernida.
• Alain Badiou (1992) afirma que la suplementación del indecidible debe
ser nombrada en el advenir del ser fiel, y por tanto a una verdad. El poema aloja al
acontecimiento, un azar, un incalculable, cuyo acceso puede caer en el peligro de la
lengua. Es decir, el poema deposita la presencia sensible en los recursos retóricos
del poema, pero sin la captación corporal de él. En ese sentido, de lo que se trata
2 es de dirigir nuestra atención hacia los procedimientos de los significantes y sus
efectos que nos dejará la huella del indecidible, que angustia a la subjetividad, y de
ese modo, comprender el impasse. Así como también la resolución imaginaria ante
0 la desconfianza de la palabra.
Por tanto, lo que se pretende es aproximarnos a la dimensión enunciativa
1 para hallar los significantes que no se visibiliza en la simple descripción del mundo
representado en el poema. Esta lógica nos permitirá saber mediante los movimientos
8 formales, desde el sentido, cómo se presenta el sujeto, ante su subjetivación,
cuando se enfrenta a lo indecidible.

La palabra muda-locuaz: una aproximación al fantasma
En el “Nocturno del vacío” se muestra la enunciación basada en la figura
de la metáfora. Para el caso de este poema, hallamos una serie de metáforas que
se establecen entre la relación sujeto, modernidad, y la naturaleza. Aquello que
llama más la atención es que estas asociaciones no guardan relación de manera
directa. En tal sentido, nos preguntamos ¿qué tienen como denominador común
estas metáforas? ¿Qué expresan cada uno de ellas?
De hecho, la inscripción de metáforas como “solo para sentirme de éter”
o “arbolado del cerebro”, no manifiestan asociaciones directas entre sí. Es decir,
¿qué es aquello que une y vincula a “arbolado del cerebro” o “cuencas de la luna”
o “rana del pensamiento”? Estas metáforas no nos representan más allá de una
su construcción retórica, la palabra deja de ser medio, se presenta como fin.6 Se
observa, entonces, la dilución de los rasgos semánticos y de la línea divisoria que
hace discernir uno de otro elemento: el mundo andino, el cosmos, y el sujeto.
J Por su parte, Cinthya Vich (1998) afirmar que las metáforas de Peralta
“crean una realidad completamente nueva y desligada de la empírica” (p.190).
A A ello añade, que esta metáfora rompe con el necesario principio básico de la
cercanía entre los elementos comparados. Ahora bien, desde nuestra perspectiva,
L esta metáfora de Peralta representa el carácter aberrante del poema. Ello debido
que moviliza al significante primero hacia otro significante. Por tanto, el significado

que quiere referir “en el arbolado del cerebro” o “solo/ para sentirme de éter” toma
L el lugar del significante de los últimos versos (“cuencas de la luna”, “aceitunas del
silencio”). Así, se escapa al sentido de la palabra. Es decir, “apunta al hecho de no
A querer-ser-signo” (MONTALBETTI, 2014, p. 53). De manera que, los elementos
de la esfera de la civilización (la modernidad, el ser humano), caracterizados por
el proceso cognoscitivo que se refiere a lo largo del poema, son superpuestos de
manera que violente el lugar de los elementos de la naturaleza. Por tanto, en el
“arbolado del cerebro” o “rana del pensamiento” obedecen a una escritura arbitraria,
• pues los elementos no tienen ni pertenecen a un mismo campo semántico, pero son
836 empleados como una necesidad de crear sentido.
De hecho, cuando enfatiza “Soy un pomo de éter destapada” o “en mi

boca alirota las aceitunas del silencio” no nos dice más allá del mismo texto. Esto
es, aquello que se escribe no tiene una función representativa. La mimetización
se ha roto, de manera que la palabra no representa. Sino que la palabra no es
el medio de la inventio, sino que se convierte en fin (RANCIERE, 2012). De esta
asociación se puede afirmar que los rasgos semánticos se han diluidos para trazar
2 la reconstrucción de un nuevo mundo, elaborado a partir de la ubicación de la
angustia del sujeto lírico. En ese sentido, las metáforas elaboradas no garantizan el
0 orden armónico, como cree Cinthya Vich, de un poema, sino que este escapa al orden
establecido, conocido como enciclopédico. Dado que, los elementos indistintamente
1 de su clase son intercambiables en el poema, pues como habíamos mencionado se
moviliza de un significante a otro (enfatizando, la aberración).
8 Cinthya Vich observa, también, en estas metáforas “negativas” la
inserción de una característica cosmista, toda vez que observa los elementos como
una totalidad armónica e integrada.7 No obstante, hay una ruptura del lenguaje,
6  Siguiendo los postulados de Ranciere (2009) la palabra carece de representación, ya no se cuenta
una historia o la idea narrada. Se presenta, entonces, de una palabra elocuente y muda de la que
no habla con el lenguaje de las palabras o de lo estas pronuncian como medios de persuasión,
sino como la potencia del verbo que se encarna. Es decir, la palabra no transmite sino que esta se
performativiza y se vuelve fin en el poema.
7  En el poema “Nocturno del vacío”, la práctica de la unión cósmica: naturaleza y modernidad
se presenta disonante, a fin de una asociación arbitraria: “de cara al patio eléctrico de los sapos”
(Peralta, 2006, p.59)
pues no expresa su armonización, sino más bien su debacle. Se observa una
brecha que aleja ese mundo de plenitud y, por oposición, se inserta un mundo
fragmentario, dado que no hay elemento que vinculen a la naturaleza y el hombre
(esto se evidencia en lo últimos versos donde se renuncia a la habitación, a la aldea,
al espacio). Pero, ¿qué es aquello que impide una relación plena? ¿Qué es aquello
que se torna impensable o imposible? El dinamismo que angustia a la subjetividad
es la indagación por la propia actividad radical, es decir por el acto escritural,
J que se manifiesta por de la insatisfacción ante el Gran Otro.8 Incentivado por una
actividad propiamente vanguardista, de lo que se trata es de que “el poeta debe
llegar a lo desconocido e inventar un lenguaje absolutamente nuevo” (CALINESCU,
A
2003, p.120). En tal sentido, la intervención de la búsqueda de un nuevo lenguaje,
y en esta medida un nuevo sentido poético, pone en duda los lazos entre el sujeto
L y la palabra, propone así una desconfianza por esta última. Así mismo, se presenta
un nuevo eje ordenador de sentido ante la falta del Gran Otro. Este tratamiento
L solo es posible a través del fantasma, en este caso se trata de una coalición de
la metáfora de la síntesis de un mundo armónico entre el cosmos andino y la
A modernidad (hombre pensador-máquina). Por tanto, ante la desconfianza del
saber enciclopédico, se proponen unas nuevas metáforas, las cuales dan origen
al fantasma. Se observa la falta.El sujeto instala, entonces, una falta en su fuente
de sentido, ante esto explora en los recovecos del lenguaje nuevas formas que
pretendan llenar este vacío.
• Cada sujeto responde ante la falta del sentido, así se advierte su posición
837 ante lo indecidible, que perturba. El sujeto del “Nocturno del vacío” responde a
la relación de sentidos aislados, contradictorios, distanciados y de negación a fin
• de reconciliar el sentido y su identidad con el espacio. Después, lo que hace es
fidelizarse con el acontecimiento, pues, a pesar de las instancias de ruptura, busca
aproximarse a esa huella. Sin embargo, esta instancia de ruptura marca la escisión
de dos mundos, toda vez que no permite la vinculación entre un elemento y otro, de
manera que no hay idea de síntesis, se renuncia a la conciliación.9
2 Ante el escape de sentido de la aberración del poema, lo que se propone
es una desconfianza de la palabra, toda vez que elimina el afán mimético (no hacer-
0 signo). Las referencias elaboradas por Peralta no logran enunciar el indecidible,
sino que más bien separan ambos mundos metafóricos que pretende aproximar.
1 En relación a esto, la palabra muda-locuaz, que mencionamos, hace referencia,

8 8  Peralta recrea las metáforas ante la insatisfacción del lenguaje enciclopédico, así se aleja de la
palabra mimética para experimental otras manifestaciones escriturales que lo lleven a dimensiones
desconocidas. No obstante, esto no significa una escritura del absurdo o sin sentido, sino que en
la misma negación de ésta encuentra una forma de reestablecer el sentido: “el sujeto y su deseo
de llenar la ausencia de sentido es lo que, paradójicamente, garantiza a aquello que él supone
garantiza todo sentido posible. En pocas palabras: la falta de sujeto es lo que colma la falla del Otro”
(MONDOÑEDO, 2009, p. 31).
9  Burger, P. (1974) afirma que el sujeto vanguardista observa la realidad de manera fragmentaria,
esto a partir de la idea de montaje como parte de la obra de arte. Asimismo, agrega que ya no se
trata solo de la renuncia del artista a la creación de cuadros completos, sino que estos establecen
estatutos distintos, una parte de ellos ya no pertenece ni mantiene relaciones con la realidad, como
las caracterizadas por la obra orgánica.
precisamente, a la parte material del lenguaje como procedimiento intelectual,
está subordina al pensamiento. Esta muestra una desconfianza de la palabra, no
se trata entonces de la exposición de “la voz sobrehumana del poeta en el acto
supremo de la creación, […] que se relaciona con ese mundo creado como creador
de ese mundo en transformación” (MUDARRA, 2000, 116), sino de un sujeto que
muestra sus limitaciones ante ese mundo representado, es decir, trata de expresar
la presencia de un impresentable, la palabra se muestra insuficiente, convoca al
J vacío. Se descompone lo disperso.10Ésta representa el fracaso de la cuenta estatal,
pues ante la presentación (“aceitunas del silencio”, “arboleda del cerebro”, entre
otros) se instaura el vacío, una parte escapa a la primera cuenta. Se trata un
A
teorema del exceso, siguiendo los postulados de Badiou (1992), se describe la
multiplicidad ordinaria a través del nombramiento de las metáforas que pretenden
L explicar lo indecidible. Esto es, la búsqueda de un sentido unitario a través de la
constante conceptualización y referencia; sin embargo, la metáfora escapa: hay
L algo que no se cuenta, no se transmite. Se enfrenta al vacío, pero este se diluye
ante el fantasma que pretende restituir el sentido.
A Señalamos esta idea de lo disperso, puesto que al tratar de ubicar la
angustia de la subjetividad en el poema, la metáfora se enfrenta al vacío: no refiere a
nada. En ese sentido, la cuenta operatoria no cuenta nada. Es decir, en términos de
Badiou (2003): “Si el vacío es tematizado, es necesario que lo sea en la presentación
de su errar y no en su singularidad, necesariamente plena, que lo distingue como
• uno en cuenta diferenciante. […] en una situación el vacío es lo impresentable de
838 la presentación” (p. 72). Para el caso de Peralta, la cuenta que permite acceder,
retroactivamente, al múltiple se imposibilita. En otras palabras: la interrupción
• del poema muestra dos universos, cuya composición se encuentra presa en una
opción fulminante que nada viene a nombrar. Se trata de lo impresentable de la
presentación, al borde del vacío. Los mundos disímiles no significan, las metáforas
mundo andino-sujeto, se muestran como asociaciones arbitrarias que no describen
aquello que se aloja en el poema.
2 Como habíamos mencionado, esta situación nos lleva a explicar algo que
hemos venido mencionado la idea del Otro inmanente. Se trata de la postulación
0 del axiomade fundación, que señala lo siguiente:
El múltiple α presenta β, pero no presenta de manera, ninguno de los múl-
1 tiples presentados por β. Esto significa que α y β no tienen ningún elemento
en común: ningún múltiple presentado por el uno-múltiple β es presentado
por α, aunque el propio β, en tanto que uno, sea presentado por α. […] La
8 intersección de estos conjuntos solo puede ser nombrada por el nombre pro-
pio del vacío. […] La relación de disyunción es más fuerte, puesto que nin-
gún elemento que pertenece a uno pertenece al otro (BADIOU, 2003, p. 209).

En esta medida, la presentación de ese advenir del múltiple se presenta


como el indecidible, o sea, es presentado como un impresentable, en tanto que el
lenguaje irrumpe y no muestra vínculo entre los significantes, como hemos dicho,

10  Entender lo múltiple en términos de Badiou (2003) implica sostener que solo se puede acceder
a él a través de cuenta operatoria de lo uno, es decir la presentación. A partir de ello, se accede
retroactivamente al múltiple.
se niega hacer signo. De manera que, aquello que vincula las metáforas no es más
que el vacío. Por tanto, ese Otro que se trata acceder con las palabras, enfatiza la
disyunción total de uno de otro, así no puede ser presentado en la situación más
que como un impensable.
Se observa, entonces, que la interrupción del poema es la impaciencia
por suspender y diluir lo indecidible. Ante esto, se toma una decisión dado que
es impaciente de sí misma, así niega que nunca fue indecidible: Yo soy pomo de
J éter destapado, el sujeto asume e irrumpe toda marca de indecibilidad. Entonces,
se presenta que si la verdad, agujereada de sentido no es dada, es mejor silenciar
A dicho hecho, cancelarlo, pues nada puede referirlo. Solo se enuncia a partir del
hecho de su negación.
L La angustia: ¿Peralta o la poética de Parménides?
El vacío como hemos observado es tematizado (e insertado en elementos
L formales), pero este elemento solo es especulativo, ya que no es, no tiene
representación. Se señala la ausencia. Esto angustia al hablante lírico. Sobre
este último aspecto, desde los postulados de Lacan, Mondoñedo (2009) afirmatres
A
modalidades sobre la reacción de la angustia.11Esto es, la primera relativa al
conocimiento científico, que lleva a la deriva interpretante; la segunda concerniente
a la magia y al cosmos, que promueve un intento de transcender el conocimiento;
y otra inherente a la destitución del sujeto como lugar de un deseo singular. Estos
tres vinculado al goce, deseo y demanda del gran Otro, y los objetos (del orden

epistemológico, cosmológico y a) del lado del sujeto.
839
Ahora bien, para el caso de Peralta, en la demanda y el gran Otro, el
• enunciatario confronta y evoca su impotencia y nadie viene a su auxilio, es decir,
no hay respuesta. Es una interpelación que exige el sujeto, cuya satisfacción se
presenta ante el objeto cosmológico. Este aspecto es elaborado con maestría por
Peralta, enuncia e interpela aquello que no puede enunciar, finalmente su poema
se silencia, no hay respuesta ni auxilio, solo la enunciación: “SOY UN POMO DE
2 ÉTER DESTAPADO” (2006, p. 61). Ante ésta situación, como habíamos mencionado,
el fantasma se enuncia como elemento que garantiza el sentido. Se trata de la
0 recuperación de “la naturaleza y el hombre, destruyendo, así, el pasaje por la
mediación simbólica”. Así, esta angustia cosmológica atormenta al hablante lírico,

toda vez que elabora metáforas asociadas bajo esta idea; de allí que constantemente
1 trata de hallar asociaciones en elementos disímiles, enuncia una verborrea excesiva
que no significa y se corta. El proyecto fracasa.
8 Expuesto lo anterior, la evaluación del proyecto cosmista se presenta
en Peralta a través del vínculo poético y filosófico de Parménides. Badiou (2012),
en Condiciones, afirma que Parménides es una pre-filosofía, en tanto que se
interrumpe la colusión de verdad que organiza el poema entre la voz poética y
la imagen enunciada. Ésta última, que escapa a la representación, es legitimada
y resguardada por la palabra, cuyo fin se enuncia como verdad: aquello que es.

11  Aquello que no debe tener presencia en el campo imaginario adquiere, sin embargo, presencia
no significativa en el discurso. Si esto es posible, se presenta la angustia. Esto es, el apoyo que
encontramos en la falta se ausenta (MONDOÑEDO, 2009).
Se elimina toda barrera simbólica. Entonces, de lo que se trata es de observar
los hechos deficientes de esta idea, del mismo modo que Parménides, a través
de la interrupción. En el apartado anterior este hecho ha sido analizado, pues se
observó la función de corte e irrupción sobre la continuidad metafórica, donde
los procedimientos elaborados fracasan por su laicidad argumentativa. Esto es, la
desacralización del lenguaje. Así, Peralta retorna a un orden cósmico que pretenda
dar y organizar el sentido ante la falla del gran Otro; además, del mismo modo que
J Parménides, busca otorgarle un estatuto de verdad a la palabra; no obstante, se
desconfía, pues la enciclopedia no basta, entonces se presenta el silencio. Es decir,
ante la falta de verdad es mejor callar. Situación que permite desvelamiento hacia
A
una posibilidad otra del lenguaje y el conocimiento. De allí que Peralta suscite
mucha interpretaciones, pues su proyecto cósmico es disonante, muestra una
L totalidad con resquebrajamiento en la búsqueda de una síntesis entre dos espacios
disímiles. No elige ni uno, ni otro, se silencia.
L
Reflexiones finales

En suma, Alejandro Peralta presenta la restitución de determinado
A orden lógico. Se presenta un texto poético que trata de acceder al indecidible con
la finalidad de confrontar el lenguaje enciclopédico y enfrentarse a una nueva
conceptualización de mundo. La singularidad de nuestro autor radica en la
articulación de dos mundos disímiles: la modernidad y el mundo andino, los cuales
son confrontados y puesto en escena. Así, el yo lírico- intérprete no manifiesta una
• armonización cultural, a pesar de seguir el proyecto de Parménides y la angustia
840 cósmica, pues, precisamente, es este conflicto lo que evita la transcendencia.
• Situación que ejemplifica metáforas disímiles, cuya asociación se torna aberrante,
se deja de lado la significación. El fantasma repliega al lenguaje, este solo muestra
la angustia y la falla del gran Otro. Dicha angustia apuntala a mostrar en el
indecidible los hechos insatisfactorios de la cosmovisión. Además, esta búsqueda
de la totalidad, en realidad, muestra un exceso, lo cual implica una instancia al
2 borde del vacío. Esto es, la construcción de un espacio inestable y fragmentado,
situación que muestra el conflicto de dos mundos contrapuestos. No hay armonía.

0 Bibliografía
PRIMARIA

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SECUNDARIA

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FRIEDRICH, H. Estructura de la lírica moderna. Barcelona: Seix Barral, 1974.
MONDOÑEDO, M.; VARGAS, M. y CALLE, K. Lo que no cesa de no escribirse. La inter-
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L RANCIERE, J. La palabra muda. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2009

A


841

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1

8

J

A

L DO CHÃO DA ÁFRICA PARA O CHÃO DO BRASIL: TEMPO,
MEMÓRIA E TRADIÇÃO NAS OBRAS DE MIA COUTO E RADUAN
L NASSAR

A Maria de Nazaré Barreto Trindade (UFPA)
RESUMO: A proposta deste artigo nasce das indagações acerca de algumas
categorias teóricas que comumente emergem das discussões quando se trata das
relações entre literatura e realidade, ou entre literatura e sociedade. São temas
muito presentes na academia que dão margem às diferentes interpretações sobre a
• escrita literária, ou ainda, sobre os significados que adquire a linguagem em uma
842 obra em prosa ou poesia. Assim, como trabalho humano que é, rarefeito e sujeito
a todas as intempéries próprias dos seres humanos, a produção literária, a meu
• ver, faz um esforço de dar significado à experiência humana em sociedades, em
diferentes lugares, e em tempos diversos. E dar significado a experiência humana é
muito próprio da antropologia. Neste sentido, a partir da leitura de dois romances
escritos em língua portuguesa, um produzido no chão africano, em Moçambique,
e outro no Brasil, pensei em tecer uma malha teórica das relações entre eles. Para
2 tanto, elegi três categorias: tempo, memória e tradição. O primeiro romance é
“Um rio chamado Tempo e uma casa chamada terra”, do escritor moçambicano
0 Mia Couto (MC). O segundo livro é o romance “Lavoura Arcaica”, obra do escritor
brasileiro natural de Pindorama, cidade do interior do estado de São Paulo, Raduan
1 Nassar (RN).
Palavras-chave: Tempo. Memória. Tradição. Literatura. Antropologia
8 Início das histórias contadas...
Este artigo foi construído com base em reflexões acerca de algumas
categorias teóricas que comumente emergem das discussões quando se trata das
relações entre literatura e realidade, ou entre literatura e sociedade. São temas
muito presentes na academia que dão margem às diferentes interpretações sobre
a escrita literária, sobre os significados que adquire a linguagem em uma obra em
prosa ou poesia. Assim, como trabalho humano que é, rarefeito e sujeito a todas
as intempéries próprias dos seres humanos, a produção literária, a meu ver, faz-se
um esforço de dar significado à experiência humana em sociedades, em diferentes
lugares, em tempos diversos. Assim, este artigo faz uma imersão em duas obras
literárias, cada uma com seu tecido humano próprio, com seus dilemas, interditos,
histórias. A partir da leitura de dois romances escritos em língua portuguesa, um
produzido no chão africano e outro no Brasil, pretende-se tecer uma malha teórica
das relações entre eles. Para tanto, foram eleitas três categorias como chaves para
leitura: tempo, memória e tradição.
O primeiro romance é Um rio chamado Tempo, uma casa chamada
terra(2002), do escritor moçambicano Mia Couto. O escritor nasceu na cidade de
J Beira em 1955. Mia Couto traz para sua literatura uma África desconhecida por
nós, suas tradições, seus valores, seus seres mergulhados em rios de cultura e
A tradição. Autor de vários romances, entre eles, O Último vôo do flamingo, Terra
sonâmbula, considerado um dos dez melhores livros africanos do século XX, e
L ainda, Venenos de Deus, remédios do Diabo, entre outros.
Este livro, publicado em 2002, compõe-se de vinte e duas partes. A
metáfora imbricada no título do romance índice da passagem do tempo como um
L
rio, às vezes impetuoso, por vezes tranqüilo, mas em constante e dialética fluidez.
Enquanto a terra guarda o sentido da casa, do pertencimento, do retorno, o que dá
A sentido às palavras tecidas pelo avôde Mariano: “O importante não é a casa onde
moramos. Mas onde, em nós, a casa mora” (epígrafe), portanto, os significados
afetivos, culturais e sociais que carregamos no corpo.
O romance inicia com uma profunda reflexão sobre o tempo intitulado
“Na véspera do tempo’ e conta a viagem de retorno do jovem Mariano, personagem-
• narrador para sua terra, em decorrência do falecimento do seu avô (paterno) Dito
843 Mariano. O romance, recheado de memórias e aconteceres vai encaminhando o
• leitor por enigmas, fatos postos sob segredo de família e que aos poucos vão sendo
revelados na trama. A missão de Marianoé organizar o cerimonial de sepultamento
do avô. Na tessitura da história central – a morte do patriarca- outras histórias vão
compondo o enredo, tempos d’antes, mostrando a cada linha formas próprias de
como se pensa a morte, de enfrentar os rituais em torno dela e também os rituais
2 da vida e das relações amorosas na ilha Luar do chão.
O segundo livro é Lavoura Arcaica, obra do escritor brasileiro natural de
Pindorama, cidade do interior do estado de São Paulo Raduan Nassar. Filho de
0
um casal de imigrantes libaneses, o escritor nasceu em 27 de novembro de 1935.
Em 1949 mudou-se com a família para Catanduva para dar prosseguimento aos
1 estudos primários. Graduou-se em filosofia em 1963. Esse romance foi lançado no
mercado editorial em dezembro de 1975, chamado de “novela trágica” pelo crítico
8 Alceu Amoroso Lima, a obra guarda um estilo literário concebido pela crítica ora
como prosa poética, ora como romance lírico.
São percepções cujo aprofundamento não cabe na tessitura deste artigo,
mas que constituem importantes linhas de análise para entender a forma como cada
autor organiza a sua ficção.Lavoura arcaica é composta em duas partes. A primeira
parte- A Partida tem 21 capítulos, a segunda parte – O Retorno- apresenta oito
capítulos, do 22 ao 30. A forma recitativa é bem comum na primeira parte onde se
encontram capítulos de poucas linhas.
O enredo é construído ao longo dessas trinta partes não nomeadas,
irregulares, algumas que não chegam nem a trinta linhas, o que dá ao romance
um movimento, um dinamismo, como se escrito num grande fôlego, que apresenta
passagens que podem ser, inclusive, recitadas:
Na modorra das tardes vadias na fazenda,
era num sitio lá do bosque
que eu escapava aos olhos apreensivos da família;
amainava a febre dos meus pés na terra úmida,
J cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra,
eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso de
A um botão vermelho ; (...) (NASSAR, 1989, p.11, livre leitura).

Em princípio, penso que Lavoura arcaica, traz todos os elementos de


L um romance, um enredo bem costurado, narrador-personagem e personagens com
muita densidade psicológica e um desfecho, e a linguagem recitativa,carregada de
L poéticas em forma de histórias, parábolas, me leva a chamá-lo de romance lírico.
Lavoura arcaica é uma inquietante viagem (no texto de Mia Couto a viagem é real)
à subjetividade de um jovem, André, adolescente de dezessete anos que na solidão
A
e na lida diária com a terra, na árdua tarefa do trabalho na lavoura, trabalho
este tomado como formador do caráter, como elemento de controle das paixões,
da sexualidade, apaixona-se por sua irmã, Ana. Sua família composta pelo pai
(Iohánna), a mãe (não nomeada), o irmão mais velho (Pedro), Zuleika, Huda e Rosa
(irmãs intermediárias), Ana (irmã mais nova que ele) e Lula (caçula). É uma família

de imigrantes libaneses numa condição de fronteira, adaptando-se às condições
844 religiosas, sociais e culturais do novo país.
• No romance, tempo e memória recortam aspectos importantes da
sociabilidade de um povo vindo para o Brasil do longínquo mediterrâneo. Os
sírio-libaneses assentaram lavoura em terras brasileiras, constituíram família
e tornaram-se pertencentes a uma nova nacionalidade- a brasileira, com todas
as interdições, confrontos e problemas resultantes desse encontro/confronto de
2 identidades e culturas.
Raduan Nassar escreveu ainda Um copo de cólera (1978) e Menina
0 a caminho (1997). Os contos Aí pelas três da tarde (1989), Hoje de madrugada
(1996) e O ventre seco (1989). A crítica literária reconheceu o talento do escritor a
1 partir de Lavoura arcaica, romance inspirador, inclusive, de um filme homônimo,
marcode um cinema maduro, muito fiel à prosa poética presente no romance. O

filme brasileiro consegue nos transportar para o universo de uma família libanesa
8 vivendo em uma comunidade onde valores e sociabilidades são marcadas por este
universo.
Por que esses romances? A escolha das duas obras deve-se primeiro
a uma “paixão à primeira leitura” das duas obras, o que me levou a perceber
ainda de forma intuitiva alguns aspectos comuns a elas. Um deles é a remissão ao
“tempo” enquanto memória, outro aspecto diz respeito à tradição –aspecto cultural
de manutenção de alguns ritos, no romance de Mia Couto, as celebrações em torno
da morte do patriarca da família e em Raduan Nassar as festas, a sociabilidade, a
família, o trabalho como elemento controlador das paixões, enfim um conjunto de
situações de manutenção de uma determinada concepção de mundo.
As duas escritas, guardadas as diferenças criadas pelas referências
culturais, sociais e da tradição, constituem escritas bastante líricas. São duas
obras literárias densas. E não porque de difícil leitura, mas sim porque recheadas
de muitas reflexões e metáforas que nos colocam diante de nossa humanidade e
dos dilemas mais profundo dessas relações e desses encontros. Esse trabalho é no
J final um olhar de fora para duas formas de viver, no dizer do antropólogo Roberto
Cardoso, um espantar-se diante de formas peculiares de enfrentar os dilemas
A postos pela vida, mas que de certo modo guardam alguma identidade com o que se
constituiu enquanto nação brasileira.
L E, ainda, a obra de Mia Couto pela importância que ganha após as
mais recentes discussões no campo da educação acerca de trazer para o espaço
escolar obras que revelem a matriz africana constitutiva de nossa formação.
L
Coma promulgação da Lei 10.639 tornou-se obrigatório o estudo da história e da
literatura africanas nos espaços educacionais. Eu diria que se trata de resolver
A uma “ausência imposta” pelo colonialismo, de um elemento fundamental no tripé
da nossa nacionalidade, o africano.
Sobre o enredo. Para além de análises que atestam a intertextualidade
do livro de Nassar com parábolas e escritos bíblicos, quero concordar com o
sociólogo Octávio Ianni que afirmou que Lavoura arcaica desenvolver reflexões
• sobre a restrição da liberdade e da vontade do indivíduo face ao mundo ordenado
845 da cultura:
• Nassar mostra como o indivíduo, a família e a sociedade encadeiam-se e
subsomem-se reciprocamente (...) É o círculo social ao qual o indivíduo está
preso, “um circuito fechado, que ata e encalacra o indivíduo na família, a
família na sociedade e todos em conjunto (...) A família é a figuração da so-
ciedade (...) O poder do pai é uma figuração da autoridade onisciente,onipre-
sente e todo poderosa, que recobre a sociedade (...) A harmonia, a equani-
2 midade, o equilíbrio são ilusórios. A família e a sociedade, a casa e a cidade,
dependem do controle da força pelo verbo, do evitar que se mudem olugar
das palavras. Tanto a família e a sociedade poderiam romper se asociedade
0 fosse livre (IANNI, 1991, p. 92-93).

Uma forte motivação deste trabalho diz-respeito ao aprofundamento do
1
olhar sobre a África, sobre a necessária imersão na cultura e forma própria de vida
em sociedade desse continente irmão, e nada como a literatura para empreender
8 essa viagem mágica para esse chão desconhecido. A perspectiva é de alargar os
horizontes de análise sobre as histórias dos dois lados do oceano. Entende-se o

papel fundamental das sociedades africanas na conformação das populações do
Atlântico Sul. Portanto pretende-se romper com os vieses eurocêntricos, de fundo
colonialista e racial, e passar a ter uma compreensão da imbricação de povos
africanos e afrodescendentes e que deixaram marcas profundas na constituição da
sociedade brasileira.
A prosa em poesia de Lavoura Arcaica expõe as dificuldades de ajuste de
um jovem aos preceitos da família. Disciplina e trabalho surgem como marcas de
um controle sobre a vontade dos indivíduos. André vive a família em sua plenitude
e seus gestos tentam apreender a afetividade, a liberdade, o desligamento da forma
tradicional e rígida do patriarca. São tensões que o levam a partir, a deixar o lugar
seguro, mas controlador e inibidor da imaginação e do amor, descrita por André:
“O amor, a união e o trabalho de todos nós junto ao pai era uma mensagem de
pureza austera guardada em nossos santuários, comungada solenemente em cada
dia , fazendo o nosso desjejum matinal e o nosso livro crepuscular” (NASSAR,
J 1989, p. 20).
Uma austeridade enquanto construto de uma forma de ser, de tradições
A que permanecem, enfim de formas de controle das paixões. Afinal,
[...] o mundo das paixões é o mundo do desequilíbrio, é contra ele que de-
vemos esticar o arame de nossas cercas, e com as farpas de tantas fiadas
L tecer um crivo estreito, e sobre este crivo emaranhar uma sebe viva, cerrada
e pujante, que divida e proteja a luz calma e clara da nossa casa, que cubra
L e esconda dos nossos olhos as trevas que ardem do outro lado e nenhum
entre nós há de transgredir esta divisa. (NASSAR, 1989, p. 54)

A Frente a uma literatura que faz uma reflexão tão densa, pensa-se ser
de profunda relevância estabelecer um enfoque mais sociológico e antropológico
às questões em torno dos romances. Portanto, essa tessitura terá como questões
reveladoras: como as categorias teóricas do tempo, memória e tradição constituem
chave interpretativa para o enredo das obras de Mia Couto e Raduan Nassar?Neste
• sentido, uma hipótese inicial é a de que essas três concepções se fundem. O tempo,
846 memória e tradição estão imbricadas e constituem a essência de interpretação das
temáticas dos dois romances e com isso um diálogo começa a ser construído.

Com esta perspectiva alguns autores são importantes para entenderos
elementos constitutivos dos romances e explicitar as relações entre os narradores,
personagens, temáticas, enredos, focos narrativos.Assim, para uma crítica,diálogo
e para discutir as categorias teóricas traz-se Walter Benjamin, Paul Ricouer, Ecléa
Bosi, Antonio Candido, Roberto Cardoso, entre outros autores.
2
Na crítica sociológica proposta por Antonio Candido (1918) há duas visões
acerca da relação literatura e sociedade. Uma primeira que privilegia a obra literária
0 em detrimento das condições socioeconômicas e uma segunda que privilegia e
condiciona a obra literária às questões socioeconômicas de uma sociedade, deste
1 modo concordo com Candido quando conclui,
Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma des-
8 sas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e
contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o
velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro,
norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se
combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sa-
bemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa não como causa,
nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel
na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno(CANDIDO, 2010,
p.13-14, grifo meu)

Por este ângulo a análise literária pautada numa “interpretação


dialeticamente íntegra” constitui um olhar mais abrangente e crítico sobre o que
é interno e próprio do objeto literário, sua estética, seus elementos constitutivos,
formas de recepção, estilos, etc. Isso, conjugado com o que lhe é externo e que
constitui a realidade histórico- social, a cultura, a tradição de determinada
sociedade compõem a obra em sua totalidade. Alguns autores privilegiam a análise
estético-literário e outros tendem mais a análise sociológica. Dentre eles estão
George Lukács, Mikhail Bakhtin e Antonio Candido.Assim, com base em uma
leitura crítica da literatura produzida pelos autores propõe-se a imbricação teórica
J da análise estética com a Crítica Sociológica, proposta por Antonio Candido (1918).
A metáfora do encontro é também do confronto. Dois mundos que se
A espraiam. Na obra de Mia Couto a cidade “Luar do Chão” com suas tradições,
rituais, memórias e do outro, a cidade imaginária e não nomeada de Raduan
L Nassar. Uma cidade tem o pé assentado na África tradicional, às margens do rio
Madzimi e a outra no interior do Brasil.

Nestes territórios, personagens se movem, cercados pela tradição, pelos
L
valores estabelecidos pela sociedade e pela sociabilidade tecida em momentos do
cotidiano, Estão cercados de interditos sociais impostos por um código de conduta
A o tempo inteiro questionado no romance de Nassar, por uma forma própria de ver
a vida, de entender os valores, e principalmente de relacionarem-se. São universos
que se encontram em narrativas onde a morte, a vida, a sexualidade estão presentes.
São em última instância tempo e memória de povos que foram preponderantes
na formação de nossa nacionalidade: africanos e sírio-libaneses. São em última
• instância o tempo e a paisagem, a memória e a tradição que circundam a vida e
847 tecem suas agonias e alegrias.
• Mas pelo olhar do jovem Mariano que esteve na cidade para fazer seus
estudos. Na descrição do espaço onde se passa o enredo, Mia Couto desvela também
uma África que traz as marcas de uma colonização que deixou seus rastros de
destruição, assim como a Macondo de Gabriel Garcia Marquez, Luar do Chão,
[...] é uma vila demasiado rural, falta-lhe a geometria dos espaços arruma-
dos. Lá estão os coqueiros, os corvos, as lentas fogueiras que começam a
2 despontar. As casas de cimento estão em ruína, exaustas de tanto aban-
dono. Não são apenas casas destroçadas: é o próprio tempo desmoronado
0 (COUTO, 2003, p.27, grifo meu).
É, portanto, uma ação terminada a destruição deixada pela nação
1 colonizadora e o narrador continua “Ainda vejo numa parede o letreiro já sujo pelo
tempo: “A nossa terra será o túmulo do capitalismo”. E o narrador prossegue: “Dói-
8 me a Ilha como está, a decadência das casas, a miséria derramada pelas ruas.
Mesmo a natureza parece sofrer de mau- olhado. Os capinzais se estendem secos,
parece que empalharam o horizonte” (COUTO, 2003, p. 28). Uma imagem forte de
permanência, mas também de contradição o que nos leva a pensar com Rodrigo
Ferreira Daverni que há na “artesania literária” de Mia Couto uma metaforização
constante e um embate entre tradição e modernidade, o que sintetiza o pensamento
de países arruinados por um colonialismo cruel em todas as suas formas, ou
seja “À contramão das ruínas “construídas” pelo sonho ultramarino português, o
autor procura criar um universo diegético em que seja possível reaver as marcas
identitárias de sua nação”(DAVERNI).
Tempo, memória e tradição
A cozinha me transporta para distantes doçuras. Como se, no embaciado
dos seus vapores, se fabricasse não o alimento, mas o próprio tempo (COU-
TO, 2003, p.145).

[...] o tempo está em tudo; existe tempo, por exemplo, nesta mesa antiga:
existiu primeiro uma terra propícia, existiu depois uma árvore secular feita
de anos sossegados, e existiu finalmente uma prancha nodosa e dura tra-
J balhada pelas mãos de um artesão dia após dia; existe tempo nas cadeiras
onde nos sentamos; (NASSAR, p.52).

A As epígrafes, partes dos dois romances, nos remetem imediatamente para


a percepção do tempo enquanto memória. Cheiros e sabores compõemum lugar,
L uma lembrança, um retorno para um tempo d’antes. São obras de grande beleza
estética, onde o tempo aparece como ator importante na tessitura das histórias
contadas.
L
Local de tradição, de vida e de saberes, aqui algumas anotações sobre
como cada povo trata com as questões de família, de interdito, os saberes da
A ancestralidade expressos em tradição que percorrem o tempo e recheiam a memória.
A sabedoria ancestral da família, da mesma forma que a sabedoria tradicional da
sociedade, recobre tensões insuportáveis.
Por sob a aparência da harmonia, ordem, disciplina e trabalho, escondem-
-se atos contraditórios, gestos obscuros, antagonismos irreconciliáveis. Da
• mesma forma que a família se rompe por dentro, graças à ilusão da harmo-
848 nia construída, a sociedade se reparte em pedaços estranhos. A casa e a ci-
dade estão metidas no mesmo circuito fechado que organiza a existência do
• indivíduo. As suas tensões engendram-se, atam-se e encalacram-se umas
às outras, graças aos desencontros da vontade, às diferenças dos significa-
dos, à dissociação entre atos e falas (IANNI, apud ABATI, H. M, p.23).

Em Mia Couto, o enredo é construído a partir de um lugar, uma ilha


chamada “Luar do chão”. Neste lugar personagens se encontrarão enredados
2 por uma trama em torno da morte ou não do patriarca da família. Afinal marca
também o início do enredo com essa fala do personagem-narrador: “Por motivo de
0 falecimento, abandono a cidade e faço a viagem: vou ao enterro de meu avô Dito
Mariano” (COUTO, 2003,p.15).
1 Enquanto o tempo evapora, extingue-se, histórias são contadas, segredos
são revelados, tornando-se memória. No ambiente da ilha, as personagens
8 encontram-se em meio às recordações, o neto (Marianinho) do patriarca Dito
Mariano diz:“A Avó lembrava o dia de minha partida para a cidade. Recordava
tudo desse adeus: os ares da tarde, as cores do céu, o precoce despertar da lua.
E, sobretudo, o ter surpreendido o velho Mariano a chorar” (COUTO,2003, p.45).
Sobre esse movimento da memória, Paul Ricoeur (2012) diz:
[...] a transição da memória corporal para a memória dos lugares é assegu-
rada por atos tão importantes como orientar-se, deslocar-se, e, acima de
tudo, habitar. É na superfície habitável da terra que nos lembramos de ter
viajado e visitado locais memoráveis. “Assim, as ‘coisas’ lembradas são in-
trinsecamente associadas a lugares” (RICOUER, 2012, p.57).
Esse mesmo sentimento de tempo e memória é despertado quando
Marianinho- narrador-personagem está atravessando o rio em direção à ilha:
Cruzo o rio, é já quase noite. Vejo esse poente como o desbotar do último sol.
A voz antiga do Avô parece dizer-me: depois deste poente não haverá mais
dia. E o gesto gasto de Mariano aponta o horizonte: ali onde se afunda o as-
tro é o mpeladjambo, o umbigo celeste. A cicatriz tão longe de uma ferida tão
dentro: a ausente permanência de quem morreu. No avô Mariano confirmo:
morto amado nunca mais para de morrer(COUTO,2003, p. 15).
J
Essa associação entre memória e lugar constitui um fenômeno ao qual
Ricoeur (2012) denomina de “lugares de memória”. Esses lugares permanecem
A
como apoio à memória que falha, como forma de não esquecer, como inscrição e
até como documento.Ecléa Bosi (1994)com base na teoria de Halbwachs, afirma
L que a memória não é sonho, é trabalho. Para ela, Halbwachs “amarra a memória
da pessoa à memória do grupo; e esta última à esfera maior da tradição, que é a
L memória coletiva de cada sociedade” (BOSI, 2009, p.55).
Neste sentido, nos dois romances pode-se interpretar a memória dos
A personagens a partir desta concepção.Considerando-se, inicialmente, que há uma
imbricação entre tempo, memória e tradição e que nos dois romances a tradição é
uma memória coletiva, as práticas sociais, os rituais, as formas de sociabilidades
dos personagens, as formas de se vestir que remetem a uma memória de um grupo
social específico, no caso de Mia Couto, uma família moçambicana e no caso de
• Raduan Nassar os sírio-libaneses, em situação de fronteira.
849 Assim quando o jovem personagem do romance de Mia Couto está
atravessando para a ilha pensa: “A Ilha era a nossa origem, o lugar primeiro do

nosso clã, os Malilanes. Ou, no aportuguesamento: os Marianos” (COUTO, p.18).
Neste excerto do romance percebe-se não apenas o sentido do pertencimento a um
lugar, a um povo, mas também a remissão a uma memória que não é apenas do
jovem Mariano, mas de todo o clã, uma memória coletiva.
É também essa memória que move o personagem André de Lavoura
2
Arcaica quando pela casa evoca o conhecimento da família:
[...] era preciso conhecer o corpo da família inteira, ter nas mãos as toalhas
0 higiênicas cobertas de um pó vermelho como se fossem as toalhas de um
assassino, conhecer os humores todos da família mofando com cheiro avi-
1 nagrado e podre de varizes nas paredes frias de um cesto de roupa suja; nin-
guém afundou mais as mãos ali, Pedro, ninguém sentiu mais as manchas
de solidão, muitas delas abortadas com a graxa da imaginação,...(NASSAR,
8 1989,p.44-45).

A amplitude da concepção de tempo aparece em Lavoura Arcaica, quando


o narrador-personagem- André menciona o discurso sobre o tempo proferido por
seu pai a mesa:
[...] o tempo está em tudo; existe tempo, por exemplo, nesta mesa antiga:
existiu primeiro uma terra propícia, existiu depois uma árvore secular fei-
ta de anos sossegados, e existiu finalmente uma prancha nodosa e dura
trabalhada pelas mãos de um artesão dia após dia; existe tempo nas ca-
deiras onde nos sentamos; [...] rico só é o homem que aprendeu, piedoso e
humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não
contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não
irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes
com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira; o equilíbrio da
vida depende essencialmente deste bem supremo, [...] a obediência absoluta
à soberania incontestável do tempo (NASSAR, 1989, p.52-53).

O tempo proferido pelo pai de André é o tempo da existência das coisas


e dos seres, feito do exercício da paciência frente as suas flutuações, na metáfora
J de “um rio largo que não cansa de correr, lento e sinuoso” (p.182). É esse tempo
tecido em malhas finas que ao mínimo esforço pode esgarçasse e que permeia os
rituais de vida e trabalho da família libanesa e constitui objeto de controle sobre os
A
quereres, sobre as paixões humanas.

L Tempo e rituais nos romances

A narrativa de Couto é recheada de metáforas que imageticamente recriam


L a tradição de Moçambique. Logo no início nos defrontamos com algumas, entre
elas o ritual de chegada. Após atravessar numa lancha para a ilha onde moram

seus parentes e onde acontecerá os funerais do avô,o jovem Mariano descreve: “Na
A praia esperam-nos. É a família, quase completa. Os homens à frente, pés banhados
pelo rio, acenam-nos. As mulheres atrás, braços de umas cruzando braços de
outras como que segurando um só corpo. Nenhuma delas me olha no rosto”
(COUTO, 2003, p.26).
Quando Marianinho tenta se aproximar, o Tio o puxa para trás e segue-

se o seguinte ritual1:
850 [...] ajoelha-se na areia e, com a mão esquerda desenha um círculo no chão.
• Junto à margem, o rabisco divide os mundos- de um lado, a família; do
outro, nós, os chegados. Ficam todos assim, parados,à espera. Até que
uma onda desfaz o desenho na areia. Olhando a berma do rio, o Tio absti-
nêncio profere: - o Homem trança, o rio destrança( COUTO, 2003, p. 26).

Existe um fio condutor no romance que leva o leitor a percorrer as


2 marcas da tradição desde a chegada na Ilha, na forma como os personagens são
nomeados, nas histórias em torno de personagens como ‘Miserinha’, senhora idosa
e cega, para quem tudo havia “ outonecido, desverdeado”(p.20) e que trava com
0
Mariano um diálogo durante a viagem, um diálogo cheio de enigmas que só ao final
do romance vão sendo desvendados. Ela diz a Marianinho: “Já não vejo brancos,
1 nem pretos, tudo para mim são mulatos”. Há uma tradição em Luar do chão:
tomar conta da viúva do irmão... (p.131) e Miserinha é na realidade a viúva do
8 irmão de Dito Mariano, alguém que foi excluída do clã e que depois de cega vive à
míngua pelo mercado. “Abstinêncio é o mais velho dos tios. Daí a incumbência: ele
é que tem que anunciar a morte de seu pai Dito Mariano” (COUTO, 2003, p.15). As
marcas da sociedade patriarcal são muito fortes nas duas narrativas, seja em Mia
Couto seja em Nassar.
Os avós são os guardiães de uma ancestralidade, de valores e de preceitos
ligados a tradição, por isso para Mariano “A voz antiga do Avô parece dizer-me:
depois deste poente não haverá mais dia” e a certeza de que na figura do avô se

1  Ritual enquanto ação repleta de simbolismos. Uma linguagem da tradição.


confirma o preceito “morto amado nunca mais para de morrer”. Assim como em
Um rio chamado tempo, uma casa chamada Terra, em Lavoura Arcaica esta imagem
dos ancestrais aparece de forma contundente guiando as percepções, controlando
os humores e as paixões, de certo modo a figura do avô guarda a permanência
da tradição africana com a diferença de que há em Lavoura um menor grau de
afetividade, o significado de respeito é conduzido por um maior controle, portanto,
uma imposição maior do poder, nem sempre pelas palavras ditas, mas pelo “silêncio
J imponente”, o silêncio das cristaleiras, o que está bem expresso na imagem “gritada”
por André ao seu irmão mais velho, Pedro, quando este foi buscá-lo na cidade:
Pela figura do nosso avô, esse velho esguio talhado com a madeira dos mó-
A
veis da família; era ele, Pedro, era ele na verdade nosso veio ancestral, ele
naquele seu terno preto de sempre, era esse velho asceta, esse lavrador
L fenado de longa estirpe que na modorra das tardes antigas guardava seu
sono desidratado nas canastras e nas gavetas tão bem forradas das nossas
cômodas [...] era ele a direção dos nossos passos em conjunto, sempre
L
ele naquele silêncio de cristaleiras, naquela perdição de corredores , nos
fazendo esconder os medos de meninos detrás das portas , ele não nos
A permitindo, senão em haustos contidos , sorver o perfume mortuário das
nossas dores que exalava das suas solenes andanças pela casa velha.(NAS-
SAR, 1989, p.44-45, grifos meus)

A casa velha e nyumba-kaya, guardiães de memória e tradição


Como lugares de memória, do acontecer da vida em todas as suas

dimensões, psicológica, sexual, amorosa,afetiva há nos romances remissão
851 constante às casas das famílias –seja a Casa Velha, o tempo todo compondo as
• memórias do jovem André, em Lavoura Arcaica. É na casa velha antes templo, lugar
onde se consume o incesto, o encontro amoroso com Ana. Em Luar do Chão, a
casa africana da família Mariano aparece como metonímia da terra, assim descrita:
Chamamos-lhe Nyumba-Kaya, para satisfazer familiares do Norte e do Sul.
Destelhada, segundo as tradições fúnebres, para que o luto que ordena o
céu se adentre por seus compartimentos, a casa é regada diariamente como
2 uma planta para que as águas não apenas a limpem, mas também a fer-
tilizem e preserve em suas colunas e paredes o saber primordial africano
0 (COUTO, 2003, p. 27 e 28).
Aqui a tradição do destelhamento da casa, criando um único vão de
1 ligação entre a terra e o céu, por onde a alma do falecido vai viajar e, ainda, os
locais – a cozinha onde se “fabrica não só o alimento, mas o próprio tempo”, foi
8 naquele chão que Marianinho inventou e rabiscou seus primeiros desenhos. “Ali
escutei falas e risos, ondulações de vestidos. Naquele lugar recebi os temperos do
meu crescer” (COUTO, 2003, p.145).
É esse espaço de comunhão, de encontro que também aparece em Lavoura
Arcaica, “[...] era a luz doméstica da nossa infância, o pão caseiro sobre a mesa,
o café com leite e a manteigueira, essa claridade luminosa da nossa casa e que
parecia sempre mais clara quando a gente vinha de volta lá da vila” (NASSAR,1989,
p.26).
Outras histórias serão contadas
O passeio por duas obras tão belas e densas de humanidade não se esgota
nesse breve artigo. Há chaves de leitura, de diálogos infinitos com as obras em foco.
Em todas as dimensões possíveis literárias, histórica, antropológica, enfim, tudo
aquilo que diz respeito à humanidade. Assim Francisco Noa observa que na obra,
[...] Mia Couto interpela os valores prevalecentes em toda uma sociedade e
que oscilam dramaticamente entre o apelo da tradição e da modernidade,
J do local e do universal, do passado e do presente. Nesse sentido, através dos
recorrentes diálogos entre as personagens, os espaços (físicos, psicológicos,
individuais e coletivos) e os tempos (subjetivos, privados, históricos e míti-
A cos), um rio chamado tempo, uma casa chamada terra questiona vivên-
cias, fustiga a degradação da vida pública e denuncia a degenerescência
L dos costumes (NOA, 2005, p. 164-165, grifo meu).
Finalmente, as duas obras literárias com as quais se estabeleceu este
L breve diálogo trazem cada uma, marcas literárias que demonstram a diversidade
no tratamento de situações do cotidiano, da vida, da existência por cada povo.
A São a seu modo, representações do modo de viver de duas nacionalidades, uma
que aportou no Brasil, trazida pela promessa de dias melhores, de riqueza- os

libaneses, e uma, que atravessou o oceano sob o regime de escravização- africanos
de diferentes origens, povos que compuseram com as suas religiosidades, cultura,
sociabilidade, história o tecido de nossa própria nacionalidade.
• Referências
852 ABATI,Hugo Marcelo Fuzeti.DA LAVOURA ARCAICA-Fortuna crítica, análise e interpreta-
ção da obra de Raduan Nassar., DIs. Curitiba, 1999. Disponível em: https://acervodigital.

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2
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J

A

L

L

A


853

2

0

1

8

J

A

L DU BLEUE DE LA MER AU BLANC DE LA NIÈGE: VESTÍGIOS DA
ESCRITA DE SI EM PHILOSOPHIE DE LA RELATION (2009), DE
L ÉDOUARD GLISSANT

A Maria Fernanda Isidoro Chaves (UFRJ)
RESUMO: Ao analisarmos a produção do escritor martiniquenho Édouard Glissant,
é evidente a presença do autobiográfico em Philosophie de la Relation (2009), foco
do presente artigo- que se manifesta por meio do uso da primeira pessoa, pela
referência aos lugares onde viveu o autor, pela descrição de fatos ocorridos em
• sua vida, como também pela própria escolha do gênero ensaio, já que esse é uma
854 mescla de poetização e realidade, que traz à tona aos olhos do leitor o processo mais
íntimo da produção escrita. Iremos analisar de que forma as referências à natureza
• apresentam-se como instrumentos que externalizam o eu mais íntimo do ensaísta
e, levando em consideração que Glissant nasceu e viveu parte da vida na ilha da
Martinica, é preciso considerar o quanto os cataclismos naturais presentes nessa
região serão de suma importância na construção de sua biografia. Terremotos,
ciclones e vulcões, causas do caos e da instabilidade, alegorizam, em suas obras, o
2 interior do ser humano conturbado, assim como a natureza caribenha.
Palavras-chave: Natureza. Autobiografia. Ilhas. Cataclismos. Relação.
0
No decorrer dos anos 70, o escritor francês Philippe Lejeune define em
1 sua obra O pacto autobiográfico (2008) – até os dias atuais referência nos estudos
da escrita de si- o termo autobiografia como: “narrativa retrospectiva em prosa

que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história
8 individual, em particular a história da sua personalidade” (LEJEUNE, 2008, p.14).
Ao apresentar tal conceituação, Lejeune associa a presença do autobiográfico
essencialmente ao gênero narrativo e ainda vai além ao acrescentar, na mesma
obra, a ideia de que, mais do que uma perspectiva retrospectiva da narrativa,
autor, narrador e personagem principal devem possuir a mesma identidade
para que um texto apresente, então, um caráter autobiográfico. Levantando e
aprofundando questões acerca da relação entre autor, narrador, uso da primeira
pessoa e construção da identidade, Lejeune conclui que o gênero autobiográfico
é um “gênero contratual” (LEJEUNE, 2008, p.45) por excelência, sendo essencial
a presença do nome próprio do autor na capa do livro a fim de que se construa
para o leitor uma associação explícita entre autor e narrador, configurando, então
o autobiográfico: “A autobiografia (narrativa que conta a vida do autor) pressupõe
que haja identidade de nome entre o autor (cujo nome está estampado na capa), o
narrador e a pessoa de quem se fala” (LEJEUNE, 2008, p.24).
Já iniciados os anos 2000, a argentina Leonor Arfuch, em sua obra
O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea (2010) recorre a
J Bakhtin para assinalar – e assim, rever alguns conceitos de Lejeune- que “não há
coincidência entre autor e personagem, nem sequer na autobiografia” (ARFUCH,
A 2010, p.11). Para a professora e intelectual argentina, o sujeito que se apresenta
a partir do discurso da escrita não é o mesmo que se constitui para o mundo
L através dela. Ao afirmar a impossibilidade da coincidência entre autor e narrador,
Arfuch não nega, entretanto, a possibilidade de uma obra apresentar um caráter

autobiográfico, afirmando, ao contrário, que a manifestação do autobiográfico é um
L campo muito mais extenso, que vai além do narrativo, podendo manifestar-se na
poesia, nas entrevistas, memórias, etc, e recorre a Paul de Man para concluir que:
A “toda escrita é autobiográfica” (ARFUCH, 2010, p.76).
Ao analisarmos algumas produções do escritor martiniquenho Édouard
Glissant (1928-2011), fica evidente o quanto para ele a escrita foi uma forma de
apresentação de sua própria vida. Embora seu primeiro romance, La Lézarde
(1958), não apresente o pacto autobiográfico proposto por Lejeune, não podemos
• deixar passar despercebido o quanto da vivência real do autor está presente não
855 apenas na referida obra, como em diversos de seus textos, como poemas e ensaios.
Seu amigo e biógrafo François Noudelmann inaugura a obra Édouard Glissant:

L’identité généreuse (2018), livro em que relata a biografia do escritor que parte
ainda jovem para Paris para tornar-se um dos intelectuais mais respeitados no
mundo, com o seguinte diálogo que teve com o poeta, ensaísta e romancista:
-Un jour, Édouard, quelqu’un écrira ta vie.
-Je dis tout dans mes romans, alor pas la peine de faire une biographie.
2
-Tu romances, tu triches, tu retranscris le réel une fois que tu l’as digéré
dans ton imagination, mais c’est une existence imaginaire!
0 -Rien est vrai, tout est vivant! Les vies sont toujours rêvées1 (NOUDELMANN,
2018, p.9).
1 La Lézarde é uma narrativa que descreve o desejo de justiça de três jovens
que percorrem a Martinica em busca de liberdade. Um dos protagonistas recebe o
8 nome de batismo de Glissant, Mathieu. Perseguindo seus objetivos, os personagens
atravessam o país - assim como o rio que dá nome ao romance - percurso esse
também concluído por Glissant e sua família quando, ainda criança, parte das
montanhas rumo ao litoral em busca de uma vida melhor:
Le Lamentin les ennuie, as vie trop placide, ses eaux immobiles, as beauté

1  -Um dia, Édouard, alguém escreverá tua vida.


- Eu disse tudo em meus romances, então não vale a pena fazer uma biografia.
- Você ficcionaliza, engana, transcreve o real uma vez que você o incorpora a sua imaginação, mas
é uma existência imaginária!
-Nada é verdadeiro, tudo está vivo! As vidas são sempre sonhadas.
circonscrite ne peuvent plus satisfaire leur goût d’une existence torrentielle.
[...] Tournant le dos à la mer, au delta et à ses vases, ils regardent vers les
montagnes qui leus promettent des aubes nouvelles et des joies inhumai-
nes2 (NOUDELMANN, 2018,p.51).

Além disso, a presença da escrita de si chama-nos a atenção não apenas


nos romances de Glissant, mas sobretudo em sua vasta produção ensaística,
gênero que será o objeto de análise do presente artigo, em especial a publicação:
J Philosophie de la Relation (2009). Ao publicar um de seus primeiros ensaios, Soleil
de la conscience (1956), Glissant afirma ter sido influenciado pelo contato, pela
A primeira vez na vida, com a neve. Nascido na Martinica em 1928, o escritor chega
a Paris logo após a Segunda grande Guerra, no ano de 1946 para iniciar seus

estudos universitários, e submete-se aí ao seu primeiro contato com o blanc de la
L
niège, a solidão e o distanciamento da ensolarada terra natal. Experimenta, então,
a partir de suas vivências pessoais, a escrita:
L Il redoute un nouvel hiver gris et glace que seule la perspective d’écrire
des poèmes pourra conjurer. Sur le pont du bateau de nuit, Il repense à la
A grande traversée qui l’a transborde de Fort-de-France au Havre. Il n’est plus
tout à fait le même et se demande si les climats changent insidieusement le
caractère des hommes3 (NOUDELMANN, 2018, p.98).

Em Philosophie de la Relation, o autobiográfico apresenta-se, muitas


vezes, de forma explícita, por meio do uso da primeira pessoa: “Je réapprends tout
• d’un coup la langue d’en haut, un créole en jets, qui glisse et concasse en même
856 temps”4 (GLISSANT, 2009, p.17), pela descrição de acontecimentos reais da vida
do autor: “À cette fois, tout commence à la City University of New York, où j’avais à
• colliger les éléments de cette réflexion, à l’occasion d’une conférence cérémonielle de
l’Institut Peyre [...]”5, (GLISSANT, 2009, p.90) ou ainda através da referência ao local
do nascimento de Édouard Glissant, o bairro de Bezaudin, ao norte da Martinica:
“Dans le morne de Bezaudin [...]” (GLISSANT, 2009, p.16). Também as referências
às paisagens da ilha, a qual Glissant conheceu como ninguém, presentes ao longo
2 de toda a obra, ratificam o caráter autobiográfico de sua produção. Foi lá que iniciou
a escrita de seus poemas, em folhas de bananeiras, devido à escassez de papel6.
0 A natureza tropical martiniquenha acompanhou, assim, o desenvolvimento do
jovem Glissant, já que conforme ia crescendo e experimentando a vida, ia também
1 2 O Lamentin os aborrece, porque sua vida é muito plácida, suas águas tranquilas e sua beleza
circunscrita não podem mais satisfazer seus gostos por uma existência torrencial. [...] Virando as
8 costas para o mar, para o delta e seus vasos, eles olham para as montanhas que prometem novos
amanheceres e alegrias nã humanas.
3  Ele teme um novo inverno cinzento e gelado que apenas a perspectiva de escrever poemas pode
evocar. No convés do barco noturno, pensa na grande travessia que o conduziu de Fort-de-France
para o Havre. Ele não é mais exatamente o mesmo e se pergunta se os climas mudam insidiosamente
o caráter dos homens
4  Todas as traduções, tanto do original francês como do espanhol, serão nossas: De repente,
aprendi o idioma a partir de cima, o créole em jato, que desliza e esmaga ao mesmo tempo.
5  Desta vez, tudo começa na Universidade da Cidade de Nova York, onde colecionei os elementos
desta reflexão, durante uma conferência cerimonial do Instituto Peyre.
6  Disponível em http://edouardglissant.blogspot.com.br/2013/06/vous-etes-ne-sur-une-ile-la-
martinique.html. Acesso em 08/12/2017.
conhecendo, reconhecendo e aprofundando sua relação com a paisagem local. As
constantes mudanças a que se submeteu dentro do território arquipelar com sua
mãe e seus irmãos, em busca de melhores condições de vida, o fizeram estabelecer
laços com a paisagem sem, entretanto, criar raízes, tema que estará presente de
forma exponencial em sua produção ensaística por meio das metáforas propostas
pelo ensaísta pela dicotomia raiz/rizoma. Segundo Emmanuelle Chérel, professor
da Escola de Belas Artes da Faculdade de Nantes:
J Chez Glissant, le paysage sera donc présent dans la structure, le rythme et
le souffle de l’œuvre comme ce qui relève du cri et non de la parole, de la
violence et non de l’harmonie.Plonger dans la profondeur de la terre est un
A effort selon Glissant vers l’histoire, ce qui permet en même temps de vivre
l’aventure de l’extension rhizomatique7.
L
A natureza assume, assim, em seus ensaios, uma dupla função: a de ter
moldado parte do pensamento do escritor ao longo de sua formação e a de ter se
L tornado cúmplice do autor na expressão do autobiográfico em seus ensaios, já que
em Glissant: “le paysage se présente comme une aire relationnelle entre le subjectif
A et l’objectif : entre le pays et le sujet”8.
Ao discorrer sobre a importância da natureza na formação não apenas do
biográfico, mas na construção do próprio pensamento caribenho, como é o caso da
Martinica, onde nasceu Glissant, é preciso relembrar o quanto a localização geográfica
desses arquipélagos sempre deixou seus povos vulneráveis às grandes catástrofes
• naturais, como terremotos, vulcões e furacões, fato que, indubitavelmente, influencia
857 a forma de compreender e vivenciar a própria existência. Tais catástrofes estarão
presentes na obra glissantiana não apenas como meros assuntos coadjuvantes, mas

como responsáveis por moldar um pensamento baseado no acaso, na inconstância,
na consciência do tamanho da pequenez humana que se vê impossibilitada de
prever, alterar ou impedir a força da natureza. A natureza é tão importante para a
construção do eu na poética glissantiana, que em Philosophie de la Relation o autor
propõe estruturas de pensamento a partir da relação homem-natureza: uma série
2 de pensamentos baseados nas catástrofes naturais que frequentemente assolam
as ilhas caribenhas: la pensée archipélique (GLISSANT, 2009, p.45), la pensée du
0 tremblement (GLISSANT, 2009, p.54), la pensée de l’errance (GLISSANT, 2009,
p.61), la pensée de l’imprévisible (GLISSANT, 2009, p.67), apenas para citar as
1 que fazem referências mais diretas a tais calamidades. Para o autor, a desordem
e o caos gerados por essas catástrofes naturais apresentam-se como uma dádiva,
já que conectam os homens entre si levando-os, por meio do pensamento e da
8

7  Em Glissant, a paisagem estará presente na estrutura, no ritmo e na inspiração da obra como
aquilo que vem do grito e não da palavra, da violência e não da harmonia, mergulhando nas
profundezas da terra. É um esforço segundo Glissant em direção à histoire, que permite ao mesmo
tempo viver a aventura da extensão rizomática
Disponível em: https://pacotilleuses.wordpress.com/le-projet/edouard-glissant/paysage-
glissant/. Acesso em 29/04/2018.
8  A paisagem se apresenta como uma área relacional entre o subjetivo e o objetivo: entre o país e o
sujeito. Disponível em: https://pacotilleuses.wordpress.com/le-projet/edouard-glissant/paysage-
glissant/. Acesso em 29/04/2018.
imaginação, até as entranhas da terra, buscando compreender a realidade de sua
história:
Pour un enfant qui sera poete, c’est une grande vanité que de songer qu’il est
venu au monde dans le bruit d’un volcanique désordre, et peut-être d’une
sacrée eruption, éphémère il est vrai, et qu’il en a hérité des liens profonds
avec des forces qu’il ne peut pas lui-même imaginer. [...] Ces enfouissements
sont des chemins de la Relation9 (GLISSANT, 2009,p.143).

J Glissant apropria-se da referência aos cataclismos para a todo o momento


nos lembrar de que “Il faut quitter les certitudes”10 (GLISSANT, 2009, p.16). Logo
A na segunda parte do livro, dedica um capítulo à descrição da erupção do vulcão
Pelée, que, em 1902 causou uma das maiores tragédias naturais da Martinica

e do mundo, com a morte de aproximadamente 30 mil pessoas: “Dans le morne
L
de Bezaudin, en Martinique (le rapport avec les braises originelles, la Pelée, n’est
pas loin), et cette année 2008: le vert pâle des carrés de jeunes cannes cède à
L l’obscur de la montée”11 (GLISSANT, 2009, p.16). A tranquilidade da vida cotidiana
não apenas do jovem escritor e de sua família, mas de grande parte do território
A martiniquenho é diariamente estremecida pela imponente presença do vulcão que
compõe a paisagem e a todo o momento não nos deixa esquecer de que o caminho
“tourne et vire et hale”12 (GLISSANT, 2009, p.16).
A presença da natureza é tão marcante na construção da biografia do
povo caribenho que outro autor insular, António S. Pedreira, nascido em Porto
• Rico, publica, em 1932, Insularismo - Ensayos de interpretación puertorriqueña:
858 obra na qual irá afirmar que a condição arquipelar a que estão submetidas as
paisagens caribenhas é responsável pela sensação de tristeza e isolamento desses

povos graças ao “cinturón de mar que nos cerca y nos oprime”13 (PEDREIRA,
1968, p.10). Segundo Pedreira, esse isolamento não é apenas geográfico, mas
também econômico e cultural, o que faz com que o porto-riquenho sinta-se ainda
mais enclausurado e excluído do restante do mundo. Para Pedreira, a natureza
inconstante e suscetível a grandes catástrofes traça uma biografia de um povo
2 apático e desesperançoso, pois esse vê, em questão de segundos, projetos de toda
uma vida serem destruídos por ciclones, furacões e terremotos:
0 [...] sino también por nuestra posición geográfica, vivimos en permanente
angustia aguardando en los meses de verano las tormentas destructoras y
1 en cualquier época los indeseables terremotos. Temblores y temporales nos
sorprenden con su desolación y vivimos en perpetuo acecho de cataclismos
geográficos inevitables14 (PEDREIRA, 1968, p.35).
8
9  Para uma criança que será poeta, é uma grande vaidade pensar que ela veio ao mundo com o
barulho de uma desordem vulcânica, e de uma talvez sagrada erupção, efêmera, é verdade, que ela
herdou dos vínculos profundos com forças que não pode imaginar. [...] Estes desmoronamentos são
caminhos da Relação.
10  É preciso abandonar as certezas.
11  No entristecido Bezaudin, na Martinica (a relação com as lavas originais, o Pelée, não está
longe), neste ano de 2008: o verde pálido dos campos de cana dá lugar à escuridão da montanha.
12  Gira e vira e melhora.
13  O cinturão de mar que nos cerca e nos oprime.
14  Tradução livre: [...] também por nossa posição geográfica, vivemos em permanente angústia
aguardando nos meses de verão as tormentas destruidoras e em qualquer época os indesejáveis
Entretanto, se para Pedreira a alteração das paisagens causada pelas
catástrofes naturais é sinônimo de destruição e motivo de desalento e apatia
que marcam a biografia do povo caribenho, para Glissant, essa inconstância é
responsável por uma forma de pensar baseada no chaos monde: “Le désordre
devient leur structure. Le désordre n’est pas le chaos, tant que le désordre est
prévisible et qu’il génère à vue ses propres lois”15 (GLISSANT, 2009, p.107). Para ele,
a força da natureza é responsável não apenas por arruinar casas, prédios públicos
J e toda uma infraestrutura urbana, mas sobretudo, por destruir certezas, valorizar
o acaso, o imprevisto e o imprevisível; a natureza caribenha é uma natureza que
propõe a reconstrução a partir do caos: “La pensée du tremblement nous éloigne
A
des certitudes enracinées”16 (GLISSANT, 2009, p.54).

L Mesmo diante da destruição da paisagem, o caribenho, assim como sua
natureza, não se abala, mas se reinventa virando-se sobre si mesmo. Ao referir-se

ao ciclone Dean, que devastou a Martinica no ano de 2007, Glissant não se prende
L à tragédia, mas à possibilidade de reconstrução que ela pode proporcionar: “Sa
ramure balayée par le cyclone Dean. Je lui parle doucement. Dans l’éclair d’une
A semaine, il a poussé de nouvelles feuilles vert pâle”17 (GLISSANT, 2009, p.71).
Embora tenha partido ainda jovem de seu país natal, Édouard Glissant
sempre manteve uma relação bastante estreita com a realidade caribenha,
valorizando e apresentando sua cultura para o mundo. “Raconte notre histoire!”18
(NOUDELMANN, 2018, p.71) foi o último pedido que sua mãe lhe fez antes de sua
• partida, aos 18 anos, para Paris, sabedora do potencial que tinha seu filho com
859 as palavras. Tornando-se um grande intelectual de reconhecimento internacional,
teve consciência da necessidade de que:

Uma nova inscrição discursiva, e aparentemente superadora, a “pós-mo-
dernidade”, vinha sintetizar o estado de coisas: a crise dos grandes relatos
legitimadores, a perda de certezas e fundamentos (da ciência, da filosofia, da
arte, da política), o decisivo descentramento do sujeito e, coextensivamente,
a valorização dos “microrrelatos”, o deslocamento do ponto de mira onis-
2 ciente e ordenador em benefício da pluralidade de vozes, da hibridização, da
mistura de cânones, retóricas, paradigmas e estilos. (ARFUCH, 2010, p.17)

0 Compreendendo a importância da valorização dos microrrelatos, acredita
que apenas a partir de histórias individuais, o Caribe poderá fazer ecoar sua
1 verdadeira história, que se contrapõe, muitas vezes, ao relato hegemônico europeu:
“Chacun peut repérer ou insérer une biographie personnelle dans une histoire
collective à reconstituer ou à récupérer […]”19 (GLISSANT, 2009, p.75). Ao apresentar
8
terremotos. Tremores e temporais nos surpreendem com sua desolação e vivemos na perpétua
perseguição de cataclismos geográficos inevitáveis.
15  A desordem se torna sua estrutura. A desordem não é o caos, ao passo que a desordem é
previsível e deixa à vista suas próprias leis.
16  O pensamento terremoto nos distancia das certezas enraizadas.
17  Seu ramo varrido pelo ciclone Dean. Eu falo com ele suavemente. No espaço de uma semana,
brotaram novas folhas verdes pálidas.
18  Conte nossa história!
19  Cada um pode recuperar ou inserir uma biografia pessoal em uma história coletiva que se
reconstitui ou se recupera.
a História a partir da pluralidade de vozes, Glissant potencializa a importância das
vivências individuais, das experiências pessoais, da visão subjetiva, da biografia
de cada indivíduo que compõe uma nação, proporcionando uma (re) escrita da
história que parte do micro em relação ao macro, valorizando temas eventualmente
esquecidos e apresentando um ponto de vista, muitas vezes, diferente “do oficial”.
Glissant expressa, assim, por meio de sua voz individual, os anseios não apenas dele
mesmo, mas de toda a Martinica, da reconstrução do discurso histórico, elevando
J a natureza destruidora de seu país a uma espécie de alegoria da necessidade de
destruição da manutenção de alguns fatos passados: destruição da escravidão,
das plantations, e aniquilamento da opressão: “L’imaginaire du monde ira tout
A
autrement. L’imaginaire pressent, devine, trouve, il ne prévoit rien en termes de
rapport, il n’accompagne ni l’avoir ni le savoir. Il ne conclut à rien”20 (GLISSANT,
L 2009, p.109).

Ao longo da obra, Glissant recorre por inúmeras vezes à metáfora de um
L rio para referir-se ao tempo “il ya un fleuve du temps21” (GLISSANT, 2009, p.31).
A imagem do rio torna-se, assim, a concretização de uma linha cronológica que
A sobrepassa barreiras físicas e transcende ao próprio tempo. Tendo, os antilhanos,
sua voz calada pelos discursos hegemonizantes, é preciso saltar de pedra em
pedra ao longo do rio da história para fazer ecoar sua própria versão dos relatos. A
natureza que destrói sonhos, pontes, casas e estradas, destrói também os discursos
hegemônicos, o passado de desigualdades, a visão binária eurocêntrica, os rastros
• da escravidão e propõe uma (re) visão da realidade a partir do caos. Ao contrário
860 do senso comum, em Édouard Glissant, o caos não é sinônimo de desordem ou de
improdutividade, mas de possibilidade de reconstrução: “Le désordre n’est pas le
• chaos, tant que le désordre est prévisible et qu’il génère à vue ses propres lois”22
(GLISSANT, 2009, p.107). Ainda segundo ele, as desigualdades não são fruto do
caos, mas de relações de poder que precisam, por meio do caos, serem revistas:
“Les massacres insensés des peuples ne sont pas non plus l’effet d’un désordre,
mais l’exercice rigoureux d’un sistème”23 (GLISSANT, 2009, p.107).
2 Por viver em meio a uma natureza muitas vezes indócil, e estar sempre à
espera da próxima catástrofe, da próxima destruição, o povo caribenho sabe lidar
0 com a inconstância, com a necessidade de reconstrução; é um povo que teve seu
pensamento moldado por uma estrutura que se adapta bem à mudança, que aceita
1 o novo, que reconstrói a todo o momento as certezas de outrora: “Il n’y a pas que
cinq continents, il y a les archipels, [...]. Pas que quatre races, mais d’étonnantes
8 rencontres, qui ouvraient au grand large”24 (GLISSANT, 2009, p.28).
Em entrevista25 concedida ao seu amigo e conterrâneo Patrick Chamoiseau

20  A imaginação do mundo será diferente. A imaginação pressiona, adivinha, descobre, não prevê
nada em termos de relacionamento, não acompanha nem o ter nem o saber. Ela não conclui nada.
21  Existe um rio do tempo.
22  A desordem não é o caos, desde que a desordem seja previsível e gere à vista suas próprias leis.
23  Os massacres sem sentido dos povos não são o efeito de uma desordem, mas o exercício rigoroso
de um sistema.
24  Não existem apenas cinco continentes, há os arquipélagos, [...]. Não há quatro raças, mas
encontros incríveis que inauguraram o mar aberto.
25  Disponível em: http://www.edouardglissant.fr/enfance.html. Acesso em 08/12/2017.
em 1993, Édouard Glissant confessa sua eterna relação com a paisagem caribenha
e o quanto essa foi responsável pela sua forma de ver a vida e pela formação de seu
pensamento que, posteriormente, ganhou o mundo registrado em seus poemas,
romances e ensaios. Recorrendo uma vez mais à Leonor Arfuch, a entrevista,
“ancorada na palavra dita” (ARFUCH, 2010, p. 151), ainda que distante dos gêneros
canônicos, como o romance, é uma forma legítima da enunciação do eu, uma vez
que:
J sua afirmação como gênero derivou justamente da exposição da proximida-
de, de seu poder de brindar um ‘retrato fiel’, na medida em que é atestada
pela voz, e ao mesmo tempo não concluído, como, de alguma maneira a pin-
A tura ou a descrição literária, mas oferecido à deriva da interação, à intuição,
à astúcia semiótica do olhar,ao sugerido no aspecto, no gesto, na fisiono-
L mia,no âmbito físico, cenográfico, do encontro (ARFUCH, 2010, p.152).
Na referida entrevista, relata a Chamoiseau um suposto naufrágio ao
L qual ele, junto de um tio, sobreviveu no mar da Martinica quando ainda criança.
Mais uma vez, ao contrário do que se possa esperar, as memórias que restaram
A da relação com o mar revolto que causou o naufrágio não foram de traumas nem
da luta incessante pela sobrevivência, mas a cena marcante do quão azul era o

mar Caribenho, “um azul ameaçador, mas esplêndido”, imagem que, segundo ele,
acompanhou-o durante toda a sua vida: “Au lieu de se débattre, il s’abandonne à
la mer, fasciné par le bleu nuit des profondeurs”26 (NOUDELMANN, 2018, p.50) .
• Ainda segundo Glissant, sua mãe nunca confirmou a existência do tal naufrágio,
fato para ele irrelevante, uma vez que ela sempre foi “uma destruidora de mitos”.
861
Para o ensaísta, o mar nunca foi sinônimo de castigo, de punição, nem de retomada
• da lembrança do Apocalipse bíblico. Sem forma definida, o bleu de la mer, sempre
inconstante, parece a todo momento anunciar o novo caos, ou seja, a possibilidade
de escrever a história de uma nova forma: “Si la terre est marquée de repères et de
clôtures qui en circonscrivent l’étendue, en revanche l’eau est animée de flux aux
provenances incertaines”27 (NOUDELMANN, 2018, p.50).
2 Para o escritor, o cinturão de água não os enclausura, ao contrário,
possibilita uma forma única de pensar, já que os arquipélagos, por estarem
0 geograficamente afastados do continente, mas ao mesmo tempo ligados de alguma
forma a eles, apresentam: “le schème de l’appartenance et de la relation, en même
1 temps”28 (GLISSANT, 2009, p.47). Mais uma vez, a natureza é responsável por
criar uma condição geográfica perfeita para a Relação – sugestão de vivência que

“n’a pas de morale, elle crée des poétiques et elle engendre des magnétismes entre
8 les différents”29 (GLISSANT, 2009, p.73), pois as ilhas caribenhas foram locais de
passagem, chegadas e partidas, que proporcionaram o multiculturalismo, condição,
portanto, para conhecer, valorizar e respeitar o diverso. As ilhas tornam-se os
espaços perfeitos para a relação, uma vez que, cercadas pelo mar, são sinônimo

26  Ao invés de se debater, ele se entrega ao mar, fascinado pelo azul de suas profundezas.
27  Se a terra é marcada por rastros e cercas que circunscrevem sua extensão, por outro lado a
água é caracterizada por fluxos de comprovações incertas.
28  o esquema de pertencimento e relação, ao mesmo tempo.
29  Não apresenta moral, cria poética e gera magnetismos entre diferentes.
de incerteza - a base da Relação- que, ao contrário do que se pensa, “ne figure pas
l’échec, il ne limite ni dénature”30 (GLISSANT, 2009, p.97).
A paisagem arquipelar típica do Caribe inspirou a pensée archipélique
proposta por Glissant, que se contrapõe ao pensamento continental. Para o
ensaísta, enquanto o pensamento continental é um pensamento que olha o mundo
como um bloco, uma estrutura fixa, de forma binária e muitas vezes estereotipada,
o pensamento arquipelar volta-se para as particularidades, a essência de cada
J realidade, valorizando-as e reconhecendo o quanto as diferenças são importantes
para a formação do indivíduo. E essa observação de cada realidade se dá, segundo
A ele, a partir de um olhar voltado para a paisagem de cada lugar. A particularidade
das paisagens de um local deve ser entendida como a parte de um todo, ser
L valorizada do micro para atingir o macro: “Quand vous n’entendiez plus ce bruit
(cette différence), vous étiez entre sans relais dans le paysage”31 (GLISSANT, 2009,

p.102). O homem calado, desconectado de suas vivências e da natureza que o
L cerca, nada mais é do que uma simples “estrutura” física e carnal que demarca
uma existência, uma expressão do pensamento continental. É apenas por meio
A das experiências vividas com outros homens e em determinados espaços com a
presença da natureza que ele será capaz de tornar-se, de fato, humano, e são as
paisagens nas quais estão inseridos que irão proporcionar as experiências a um ser
que nunca está totalmente pronto, mas em constante formação.
Para concluir, é preciso ainda salientar que a própria escolha do gênero
• ensaio como forma de escrita é mais um vestígio autobiográfico da produção
862 glissantiana, uma vez que, segundo Gomez-Martinez: “[...] como el ensayista expresa
no solo sus sentimientos, sino también el mismo proceso de adquirirlos, sus escritos

poseen siempre un carácter de íntima autobiografia. El “yo” del autor se destaca en
todas las páginas”32 (GOMEZ-MARTINEZ, 1981, p.48). O ensaísta, ao coletar dados
para sua escrita, situa-se em uma condição de pesquisador e escritor/artista ao
mesmo tempo, trazendo à tona o processo mais íntimo da produção da escrita. Além
disso, a escolha do tema sobre o qual irá fazer o ensaio é extremamente pessoal,
2 e será baseada em sua afinidade com determinados assuntos ou com seu desejo
de proposição de uma reflexão sobre um tema por ele demarcado. Para Glissant,
0 o pensamento arquipelar, por estar em constante formação, é o pensamento do
ensaio: “La pensée archipélique, pensée de l’essai, de la tentation intuitive, qu’on
1 pourrait apposer à des pensées continentales, qui seraient avant tout de système”33
(GLISSANT, 2009, p.45).
8 Ao contrário do que ocorre na construção de uma narrativa, em um
ensaio, o autor não cria uma ficção, mas expressa seu olhar pessoal, baseado em
suas experiências pessoais, subjetiva uma delimitada realidade. Nele, o ensaísta:
30  não representa fracasso, não limita nem desnatura.
31  Quando você já não ouve esse ruído (essa diferença), você não tem nenhuma relação com a
paisagem. v
32  Tradução livre: Como o ensaísta expressa não apenas seus sentimentos, como também o
processo de adquiri-los, seus escritos possuem sempre um caráter de íntima autobiografia. O “eu”
do autor se destaca em todas as páginas.
33  O pensamento arquipelar, pensamento do ensaio, da tentação intuitiva, que poderia ser anexado
a pensamentos continentais, que seria, antes de tudo, sistema.
“Escribe según piensa, y su producción la considera tan unida a su mismo ser,
que no cree necesario, o quizás possible, el volver la vista atrás para modificar,
adaptar o reorganizar lo ya escrito”34 (GOMEZ-MARTINEZ, 1981, p.35). Como o
ensaio não cria um assunto, mas fala sempre sobre algo já existente, a visão sobre
ele deve ser atualizada, por isso, seu processo de escrita reúne passado (assunto),
presente (momento da escrita) e futuro (reflexões e ensinamentos que podem
servir para o devir). Ao escolher o ensaio como materialização de seu pensamento,
J Glissant funde forma e conteúdo, uma vez que, assim como a proposição da
Relação ou da pensée archipélique, o ensaio não apresenta conclusões findadas
nem fechadas, mas relativiza o que afirma, convidando sempre à reflexão. Por meio
A
da perigrafia, oferece ao leitor dados, e não uma conclusão fechada sobre esses
dados, fragmentando a realidade, proporcionando um alargamento da percepção
L individual, tanto do leitor, quanto do próprio ensaísta. O ensaio é, assim, o gênero
da representação do caos pois, assim como o pensamento caribenho, é aberto, não
L tem forma fixa, já que obedece ao fluxo de pensamento, fazendo comungar forma e
conteúdo na produção glissantiana.
A O ensaio é o gênero da análise da realidade, do presente, da não utopia.
Homem à frente do seu tempo, ciente da necessidade de construir e apresentar
meios para a reflexão da situação não apenas de seu país, mas das relações
humanas, Édouard Glissant busca encontrar essa possibilidade analisando, então,
a realidade, sem esquecer-se de poetizá-la, uma vez que o ensaio é a expressão da
• realidade por meio de uma linguagem poética: “[...] le poème est en effet la seule
863 dimension de vérité ou de permanence ou de déviance qui relie les présences du
monde [...]”35 (GLISSANT, 2009, p.19).

O ensaio abre linhas de pensamento para um tema que pode ser inesgotável,
possibilitando variadas visões sobre o mesmo assunto. Para Glissant, é essencial a
diferença entre o “ser” e o “sendo”. Para ele, nenhum homem “é”, mas está “sendo”.
Assim como o pensamento arquipelar, o homem deve estar em constante mutação
e em uma eterna (trans) formação: “[...] non pas de l’Être, mais d’en dehors d’un
2 être-comme-étant [...]”36 (GLISSANT, 2009, p.97). O ensaio - gênero aberto, que
assim como a oralidade, vai e volta, deixa lacunas, se repete, se reinventa, está
0 sempre aberto ao novo - representa, assim, o desejo da construção de um homem
em eterna e infindável formação.
1 Referências
ARFUCH, Leonor. 2010. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea.
8 Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010.
GLISSANT, Édouard. Philosophie de la Relation. Paris: Gallimard, 2009.

GOMEZ-MARTINEZ, José Luiz. Teoria del Ensayo. Salamanca: Ediciones Universidad de
Salamanca, 1981.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte: Edi-

34  Escreve como pensa, e considera sua produção tão próxima do seu ser, que não é necessário,
ou talvez nem possível, olhar para trás para modificar, adaptar ou reorganizar o que já foi escrito.
35  O poema é, de fato, a única dimensão de verdade ou permanência ou desvio que conecta as
presenças do mundo.
36  [...]não do Ser, mas de fora do ser-como-sendo [...].
tora UFMG, 2008.
NOUDELMANN, François. L’identité généreuse. Paris: Flammarion, 2018.
PEDREIRA, Antonio. Insularismo - Ensayos de interpretación puertorriqueña. San
Juan: Puerto Rico Edil, 1968.
https://pacotilleuses.wordpress.com/le-projet/edouard-glissant/paysage-glissant/.
Acesso em 29/ 04/2018.
http://www.edouardglissant.fr/enfance.html. Acesso em 08/12/2017.
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L IMÁGENES DE LA AMAZONÍA: BRASIL, 1950-1960

L María Florencia Donadi (UNC)
RESUMEN: Este trabajo analiza la centralidad de la Amazonía (especialmente de
A la floresta amazónica) para la elaboración de un concepto de Estado-nación en las
décadas ‘50-‘60 en Brasil. Se analizarán, especialmente, dos operaciones puestas

en acción: por un lado, la incorporación de una amenaza “fantasma”, que consiste
en aprehender ese espacio y convertirlo en parte del “cuerpo nacional”; y por otro,
la espectralización de esa materialidad real, que se efectúa por una doble vía, como
• proceso de conversión en imágenes que idealizan ese espacio, se distancian, niegan
o desconocen lo real y como exterminio efectivo de poblaciones locales –muchas de
865
ellas indígenas- y sus modos de comunidad así como de modos de territorialidad
• tradicional que las convierte en “pasado” –inexistentes- o en meros fantasmas.
Palavras-clave: Amazonía. Brasília. Imágenes territoriales.

En 1958 Flávio de Carvalho se une a una expedición del Servicio de


Protección a los Indios (SPI) que recorrería los afluentes del alto Rio Negro. Su
2 objetivo era, en sus propias palabras, filmar un documental (en realidad, una
mezcla de ficción y registro) durante el recorrido.1 La expedición finalmente no
0 se plasmó en la deseada producción cinematográfica, pero produjo un material
escrito por el artista, una serie de textos –inéditos- en portugués y en inglés, que

tituló En las fronteras del peligro/On the frontiers of danger. Esos dos términos
1 empleados por el autor, fronteras y peligro, rápidamente nos conducen a un campo
semántico con el que se ha descrito al espacio amazónico: “salvaje” y “desconocido”
8

1  Cabe recordar que Flávio de Carvalho ya había participado de otros viajes “de reconocimiento
etnográfico y experimentación estética” (DA MATA, 2013, p.18) que motivaron la escritura de series
de textos: su viaje a Perú para participar del VI Congreso Panamericano de Arquitectos; a Praga
para el Congreso de Psicotécnica, a partir del cual escribirá Os ossos do mundo; a Paraguay en
misión geopolítica junto a Assis Chateaubriand, origen de la serie “Rumo ao Paraguai”. Una con
características semejantes a la que nos ocupa aquí y que quizás influyó sobre sus expectativas,
había transcurrido junto al cineasta italiano Mario Civelli, director de dos filmes realizados en
regiones “desconocidas” del centro, oeste y algo del nordeste brasileño: O grande desconhecido
(1955) y Rastros na selva (1958).
y, además, exponen algunas preocupaciones en torno al dispositivo nación hacia
mediados del siglo XX.
En 1958, lejos y cerca al mismo tiempo, se encontraba en construcción la
nueva capital del país: Brasilia, la “síntesis de las artes” según Mario Pedrosa –su
principal defensor- quien la elogió y encomió, aun a sabiendas de las contradicciones
y tensiones de la ciudad “oasis” (PEDROSA, 1981).
En tránsito entre esos dos “puntos extremos” (FOOT HARDMAN, 2009)
J respecto del litoral y especialmente de la metrópolis paulista, Marcel Gautherot,
fotógrafo de origen francés, registró tanto Brasilia en su proceso de construcción
A como el “norte”, la Amazonía brasileña, producciones éstas que interesan discutirse
aquí.2
L A través del recurso a esta diversidad discursiva e imagética intento mostrar
no sólo las disputas en torno a la concepción y visualización de la territorialidad
L amazónica, sino probar que conviven en esas décadas temporalidades diferentes
y conceptualizaciones disímiles en torno a lo que sería la definición de la nación
“moderna” brasileña, disimilitud que se vincula a las discusiones en torno a los
A proyectos utópicos latinoamericanos y que conlleva, por un lado, procesos de
impugnación de las matrices fundacionales de la nación, revelando su estatuto
como un centro vacío y una ficción discursiva que es preciso revisar. La Amazonía
se presenta como último confín al que “progreso” y “ley” desean, convirtiéndola
en metáfora y en imagen de conceptualizaciones, acciones y fuerzas en conflicto.
• La Amazonía adquiere entonces un papel central en las disputas, que se dan a
866 ver en regímenes escópicos diversos y en discursos que hacen oír respecto de ese
• espacio. Lo que quiero destacar es la centralidad de la floresta amazónica para
la elaboración de un concepto de Estado-nación en las décadas 50-60 y que se
explicitan en un oxímoron: la incorporación de una amenaza fantasma (volverlo
cuerpo de la civilización) o la espectralización de esa materialidad real (es decir,
por un lado, el proceso de conversión en imágenes que idealizan ese espacio, se
2 distancian, niegan o desconocen lo real y, por otro, el proceso de exterminio real
de poblaciones locales –muchas de ellas indígenas- y sus modos de comunidad
así como de modos de territorialidad tradicional que las convierte en “pasado” –
0 inexistentes- o en meros fantasmas.

La construcción del orden (visible) y la incorporación de la amenaza
1
1958 parece ser un año clave en varios sentidos. Si bien las obras de

Brasilia habían comenzado dos años antes,3 es en ese entonces que se da apertura
8
2  No desconozco la amplia producción fotográfica de Marcel Gautherot quien en sus cerca de 25.000
fotografías documentó fiestas populares en Maranhão, Bahía, Alagoas, Minas Gerais, entre muchos
otros espacios recorridos, especialmente como miembro del SPHAN y de la Comissão Nacional do
Folclore, sino que me referiré a las series fotográficas sobre las que focaliza mi propuesta y que han
sido reunidas en publicaciones específicas: Brasília, organizado por Sergio Burgi y Samuel Titan Jr.
(2010), y Norte, por Milton Hatoum y Samuel Titan Jr. (2009).
3  Según cuenta el propio Juscelino Kubitschek el traslado y construcción de una nueva capital
habían sido ideados ya en 1955. Kubitschek relata en Por que contrui Brasília (2000) que la idea le
fue recordada por la voz de un oyente dentro del auditorio al que dirigía su discurso como candidato,
“uma voz forte se impôs, para me interpelar” (2000, p.6). Es justamente esa pregunta-desafío la que
a la estrada Belém-Brasilia que atravesaría la gran floresta amazónica; en 1958
comienza la fase intensiva de la construcción que le demandó al arquitecto Oscar
Niemeyer su traslado e instalación allí4; es también el momento en que, erigidos y
culminados algunos de los núcleos arquitectónicos, comienzan las inauguraciones;
se publica en 1958 un libro sintomático de las preocupaciones por la Amazonia,
O conceito da Amazonia de Eidorfe Moreira5; es el año del ya mencionado viaje de
Flávio de Carvalho y, también, de muchas de las fotografías de Gautherot en el
J “norte”.
El próprio Kubitschek, presidente, “fundador” y “cronista” (2000, p. 1) de
A Brasilia también subraya el año de 1958 como una “nueva etapa de gobierno” que
realizaría una tarea “desbravadora” para crear progreso de la “nada”; se realizaba
L una obra de “redescubrimiento de Brasil” (KUBITSCHEK, 2000, p.128).
Ese enorme esfuerzo civilizatorio no podía perderse o volverse inútil. Para
ello, era necesario crear núcleos poblacionales, atraer colonizadores para la región.
L
El objetivo no era sólo abrir caminos, sino poblar, “civilizar”. Y la barrera a ese
progreso era la naturaleza, “quase indomável, cuja hegemonia se fazia presente em
A dois terços do território nacional” (KUBITSCHEK, 2000, p. 129). Esa naturaleza,
en esas fronteras, era la floresta amazónica, que se convertía en enemiga, a través
de un movimiento retórico sostenido por la prosa de Kubitschek. La Amazonía se
volvía prosopopeya: peligrosa, resiste, no se deja doblegar, aísla las poblaciones
y, fundamentalmente, se venga de esos hombres que intentan domarla. La Hylé
• no era sólo materia informe, infinito “desierto verde”, que se debía formar –ése
867 es, a todas luces, el resultado de la carretera Belém-Brasilia– para incorporarla
como un miembro a la nación concebida como cuerpo, sino también un monstruo

devorador.6
La floresta, cuya silueta monstruosa se dilató durante décadas de
elaboración visual y discursiva (Alberto Rangel, Euclides da Cunha, Eustasio Rivera),
se asociaba ahora, también, al caos. Para contenerlo, la forma arquitectónica,
2 asociada a una función específica, visible y concreta, operaría sobre aquél un recorte
y lo convertiría en orden. Mario Pedrosa intentó conciliar ese orden, forma formante,
con las expectativas utópicas que encarnarían en la Ciudad Nueva, conciliación
0 que se expresa en el concepto de Brasilia como “síntesis de las artes” (coincidente

1 “entusiasma” al candidato por esa idea.
4  “No início de 1958, o Planalto era, na realidade, a mais movimentada frente de trabalho do Brasil”
8 (KUBITSCHEK, 2000, p. 106). Oscar Niemeyer, en “Mi experiencia de Brasilia”, recuerda: “En junio
de 1958 pensamos que sería conveniente mudarnos a Brasilia para poder hacer un seguimiento
directo de las construcciones en curso y dar al trabajo, inclusive a los nuevos proyectos, el ritmo
continuo y acelerado que solamente un régimen de tiempo completo podía garantizar.” (NIEMEYER,
2014, p. 150).
5  Esta publicación formó parte de la colección “Araújo Lima”. Algunos de los títulos nos dan el
tenor de las preocupaciones y las líneas conceptuales sobre este territorio: As metas do governo
e a Valorização da Amazônia, Características agrarias da Amazônia, Os problemas da colonização
da Amazônia, Valorização da Amazônia e sua Comissão de Planejamento de Sócrates Bonfim, son
documentos clave del período.
6  Para Kubitschek “dois terços do nosso território” “eram ‘espaços vazios’. La floresta amazónica es
descrita por él como “tenebrosa, indevassável e misteriosa” (KUBITSCHEK, 2000, p. 11).
sintomáticamente con la “Brasilia meta-síntese” de Kubitschek). La síntesis era la
resultante dialéctica para un marxista como Pedrosa, que reuniría tradición (una
en particular, la europea-occidental) y novedad (modernidad). La construcción de
la nueva capital ofrecía una relectura del pasado colonial y se transformaba en hito
colonizador en el presente e instituía un tiempo futuro –mesiánico en la prosa del
presidente y utópico revolucionario, no exento de mesianismo, en el crítico- hacia
el que el inexorable desarrollo (palabra clave de esos años) conducía.
J La idea de una ciudad-oasis artificial venía a organizar el caos, pero, sobre
todo, negaba sin rodeos la preexistencia de historias y de comunidades en esos
A espacios: la ciudad-oasis se instauraría en la ausencia, convirtiéndola en sentido,
escribiendo una narrativa nacional. Esa ciudad oasis, Brasilia, se construiría sobre
L la nada, el desierto y, por ende, implicaba “fertilizar” los alrededores. Brasilia se
levantaría desde cero, en una región virgen, deshabitada y salvaje, situación que

el autor evaluaba, en cierta medida, común a todo el territorio nacional puesto
L que “Entre nós, nada de velhas culturas, mas uma população dispersa de índios
nómades” (PEDROSA, 1981, p.258). “O território sobre que se ergueu o nosso
A País era virgem, praticamente despovoado” (p.318). Para el crítico, el suelo vacío y
solitario, la ausencia de pasado o de sus huellas en América, la convertía en “lugar
onde todo podia começar do começo” (p.304) si se enfrentaban esos “desiertos
técnicos” de las distancias y florestas.
En los artículos de Mario Pedrosa respecto de la ciudad nueva y en muchos
• de los dedicados a la arquitectura se dejan oír dos tipos de imágenes-metáforas
868 para referirse a los procesos de urbanización y de organización poblacional: por
un lado, las metáforas orgánicas y naturales; por otro lado, metáforas médicas o

inmunitarias. Las primeras, para Otília Fiori Arantes no deben engañarnos puesto
que sólo son una inflexión de las ideas de Bruno Zevi respecto de las dinámicas
entre espacios internos y externos (ARANTES, 2012, p. 336). Me permito discordar
en este punto, ya que, si consideramos la repetición y alusión en diferentes textos de
la época y relativos al asunto Brasilia se comprende que esa referencia a imágenes-
2 metáforas de la naturaleza no es sino el modo de exponer el conflicto con ella. Para
la autora esas metáforas y referencias a la arquitectura como “organismo vivo” se
0 mantienen dentro del racionalismo moderno. Esto es así, pero no dejan de revelar
un lugar incómodo dentro de ese racionalismo a través de un uso paradójico:
1 inscriben la civitas (y no sólo la urbs) remitiendo lingüística y retóricamente a una
naturaleza que, al mismo tiempo, se rechaza o se debe controlar.7 Para Pedrosa esa
8 naturaleza es invasora y enemiga del hombre “porque se deixarmos em liberdade
essa natureza tropical nos sufocará” (PEDROSA, 1981, p. 332). Allí las metáforas
naturales se ligan a las segundas, las médicas, puesto que, así como la naturaleza
tropical y salvaje del “mato bruto” es insistente y avanza cuando no se la contiene,

7  En “Reflexões em torno da nova capital”, Pedrosa sitúa el processo de Brasilia como una utopía
hacia la que se camina y para ello es necesario “estarmos a catar, dentro do seu programa, ou no
plano piloto adotado, as ervas de anacronismo que ali se aninham, com insuspeitada tenacidade”
(PEDROSA, 1981, p. 311). Páginas más adelante dirá que el plan de Lúcio Costa da a la metrópolis
“a progressão orgânica de uma arvore que se esgalha ou de um rio que se demora pelo caminho, em
remansos frondosos” (PEDROSA, 1981, p. 315).
el crecimiento de las ciudades puede funcionar como una “célula cancerosa” que
infecciona todo el cuerpo. Brasilia debe ser “sana” (PEDROSA, 1981, p.369).
La naturaleza que se quiere es el revés de la anterior: un elemento
plástico, integrada a la arquitectura moderna (tarea cumplida, como Pedrosa lo
menciona, por el paisajista Burle Marx).8 Se trata de una naturaleza domada, casi
artificial –como el oasis-Brasilia– puesto que la “naturaleza natural, isto é, tropical
e exuberante, nao era bem vista pelos nossos ancestrais lusos” ni por los indios
J que la quemaban, “Dela se tinha medo” (PEDROSA, 1981, p. 282). La pregunta es
si se tenía miedo o debía extenderse esa afirmación, más bien, hasta ese presente.
A En “Crecimento da cidade”, el crítico aproxima justamente ambas
metáforas (naturales e inmunitarias) luego de hacer un breve racconto sobre la
L evolución de la ciudad para llegar a la ciudad del capitalismo y del liberalismo,
del laissez-faire que funciona como “uma cêlula cancerosa que devora todo o
organismo”, “Esse desenvolvimento desordenado e chamado de espontâneo é como
L
um pedaço da natureza selvagem dos trópicos deixada a si mesma. Em pouco
tempo, o mato tudo invade” (PEDROSA, 1981, p.298), ese dejar-hacer es enemigo
A del espíritu comunitario. El liberalismo es el destructor de la communitas. Ante
esa situación es necesario reaccionar inmunitariamente –como un organismo vivo-
, identificar el factor infeccioso, productor del desorden y combatirlo. La reacción
inmunológica parece ser Brasilia, ciudad moderna, nueva, que podría devolverle a
la ciudad su sentido comunitario: ése es el ideal utópico sobre el que se yergue la
• pregunta: “Conseguirá?” (PEDROSA, 1981, p.299). Es casi obvia hoy la respuesta.
869 Sin embargo, el mismo Pedrosa ya visualizaba las contradicciones de su propio
argumento cuando al postular los peligros y amenazas del capitalismo, aliado directo

del liberalismo, elemento disgregador anti-comunitario, ponía sus expectativas en
un proyecto del poder centralizado cuya mano derecha era la apertura al capital
y su incentivo, aunque “controlado” por el estado, “atenuado” y ordenado, del
desarrollismo. Y digo que esas contradicciones se evidenciaban entonces puesto
que, como Segre asienta, las divisiones sociales de clases de la sociedad capitalista
2 estaban presentes de manera evidente en esas décadas, pero se las pasó por alto,
se las descuidó y, así, a la segregación funcional se le superpuso la segregación
0 social, no explicitada en los mapas de la ciudad (SEGRE, 2012, p.239).
Aplicando una conceptualización inmunitaria, ese peligro anticomunitario
1 no sólo no es eliminado, puesto que ya está dentro del cuerpo –la nación- sino
que se lo enfrenta sin alejarlo de los propios confines, es decir, crea una aporía:
8 la peligrosidad estaba desde el comienzo de la construcción de la ciudad –la
posible disgregación del sentido comunitario- pero se lo negó como realidad, la
cual persistió y para evitar el colapso “canceroso” fue resuelta con la expulsión

8  Pedrosa comenta las obras de Burle Marx, el paisaje natural ordenado e integrado a la arquitectura,
y para ello se describe los elementos pictóricos y plásticos como los colores y sus tonalidades; pone
especial atención en la forma (agrupamientos, masas, intervalos) que orquestan una composición
para ser, en una palabra, contemplada, destinada a la visión, fundamentalmente. Aspira a una
percepción estética o plástica nueva. El paisajista se valió de los recursos de la vegetación brasileña,
empleó las especies salvajes de la floresta amazónica, pero para conferirles un orden. Esto es lo que
Pedrosa valora. Ver PEDROSA, 1981, pp. 278, 283, 286, 333.
hacia las ciudades satélites y la preservación intocada de un plan piloto “exclusivo”
para algunos. Por lo tanto, el sentido amenazante persiste, pero sin transformar
el organismo, dosificado, sin infectar el cuerpo total, en remisión. La figura que
de este modo se bosqueja es la de una inclusión excluyente o de una exclusión
mediante inclusión (ESPOSITO, 2009, p. 17-18) que propicia la lógica inmunitaria
en la que “Lo negativo no sólo sobrevive a su cura, sino que constituye la condición
de eficacia de esta” (ESPOSITO, 2009, p.18).
J Algo semejante sucede con la amenaza de la naturaleza: se la incorpora,
pero para ello se habrá de reducir su magnitud al mínimo indispensable del jardín,
A la naturaleza domada, su aspecto plástico-artístico-operático-utilitario. Ambas
lógicas se interpenetran y son interdependientes. Si el capitalismo y el liberalismo
L son la célula cancerosa, se lo combate acogiéndolo en su seno para, inversamente,
proponer una utopía que lo limitaría, una utopía comunitaria que, asimismo, se

basa en despejar el elemento peligroso, monstruoso y amenazador de la naturaleza
L para tomarla, poseerla, apropiársela en su aspecto más productivo, como recurso
–natural- que nos dará el extractivismo intensivo de entonces y hasta el presente,
A alimento esencial del capitalismo, que no hace sino cortar toda posibilidad de
munus.9
La ligazón entre la construcción de Brasilia y la posición de dominio de las
fronteras territoriales (especialmente el norte) se expresan en el texto de Kubitschek
a través de la referencia a sus reiterados vuelos por una zona desierta. La visión
• aérea le permite dimensionar, planificar, apercibirse de la importancia geopolítica
870 del país, conquistar una tierra distante para industrializarla y, para ello, una tarea
–además del núcleo de poblamiento que sería Brasilia- es la de “rasgar um cruzeiro

de estradas” en cuyo centro estaría Brasilia (KUBITSCHEK, 2000, p.84). Esas rutas
debían llegar a recursos interesantes y no a una mera “taba de índios”: aquí se oye
el peso de los objetivos económicos. No es necesario insistir demasiado en que ese
objetivo se puede leer en el Plan de Valorización de la Amazonía y permea muchas
de las producciones “oficiales” de la década. Algunas de ellas, sintomáticas de ese
2 dominio de la selva que se encaraba son “Primeira viagem na Belém-Brasília” de
Pierre Arnaud (1960) o “Dez dias na Belém-Brasília” de Afranio Melo (1960), que
0 describe la caravana “de integración nacional” realizada entonces con motivo del
cuarto año de gobierno de Kubitschek y aclamada tanto en su partida como a su
1 llegada y que contrasta con la “monotonía” y “tristeza” de la selva.
En los textos y autores que aquí abordamos (Pedrosa, Kubitschek) la idea
8 venció al monstruo, el orden se impuso al caos, la imagen se imprimió en forma,

9  En estas décadas comienzan a gestarse una serie de conceptos cuya emergencia sintomática
debería analizarse con más detenimiento y que se ligan a este enmarañado de dependencias
económico-políticas que se diseñaban (interna y externamente): la literatura como conciencia
del subdesarrollo (CANDIDO, 1969), o la dialéctica en el campo artístico entre dos polos, el de la
vanguardia y el de un arte deliberadamente regional, idiosincrático y universal (PEDROSA, 1981,
p.245-247), la idea de una literatura “a pesar de dependiente universal” (SANTIAGO, 1980). Otros
términos empleados por Pedrosa (1981) remiten a esta dialéctica: desfasaje (p.259), la idea de
sumisión a los “precios internacionales” (p.351), la importancia de la “industrialización intensiva”,
“la creación de verdaderas y nuevas regiones” (p.351), “la necesidad de una reforma agraria”, éste
sí punto fundamental que no se consolidó y habría trazado otros itinerarios.
palabra clave del período. La comunidad se entendió entonces, en esos términos,
como un todo, como cuerpo-unidad, la nación misma como forma10, en la dialéctica
de los aportes de las diferentes regiones (anexos, partes) a un cuerpo, la nación
como ecúmene, tierra habitada, a su vez casa (oikos) administrada productivamente
(oikonomia) y conectada, a la que se refieren tantas metáforas como el sistema
circulatorio (las rutas) o la espina dorsal y las costillas (empleada por Sayão, según
KUBITSCHEK, 2000, p. 126). Para que la nación adquiriera forma, contornos,
J límites, fronteras, como comunidad, fue necesario –siguiendo los argumentos
expresados por Pedrosa y el mismo presidente- la incorporación de su mal, la
frontera natural –reduciéndola a su faceta menos ofensiva- y la inscripción en el
A
orden del capital, a través de un munus –un deber, una deuda- que se instauró
como trabajo y utilidad común.11 Al fin y al cabo “Brasília era um marco”, la obra
L era el Brasil mismo: la nación como unidad –de cuerpo y espíritu (KUBITSCHEK,
2000, p. 129).
L Brasilia se instituyó en la ciudad del orden, un orden que articulaba
“sentido histórico y valencias mitológicas” hacia la potencial “integración
A colectiva” y “desarrollo nacional” cuyo símbolo quedaba entonces esculpido en su
monumentalidad (GORELIK, 2012, p. 418).
Para ejemplificar ese orden, deseado para todo el Brasil, la conformación
de una imagen-símbolo (unívoco), en la que se instituyó Brasilia gracias a la
fotografía y a la propaganda, fue fundamental.

Entre imágenes
871
Marcel Gautherot fotografió diversos puntos del Brasil, entre ellos
• Brasilia. Sus fotografías documentan la construcción y a la vez se han convertido
en imágenes-íconos de la nueva capital. Asimismo, por disposición metonímica,
algunos elementos de la ciudad, como las columnas del Palacio da Alvorada o
el Plano Piloto en sí, se han instituido en elementos figurativos autónomos para
significar ‘Brasil’.
2 De hecho, si Brasilia, como sostiene Gorelik (2012) es un museo de
la modernidad y una fábrica de imágenes, no por la “colección” de obras, sino
0 por la autoconsciencia de su propio significado, se comprende naturalmente
que cada etapa de ese proceso haya sido inmortalizado en diversas instantáneas
1 10  Ver por ejemplo “Perspectiva de Brasília” (1981, p. 244). Una metáfora evoca la asociación entre
Brasilia, forma y racionalidad: la de la capital nueva como “cerebro” de la nación (PEDROSA, 1981,
8 p. 398).
11  En la designación de la nación como ecúmene, Pedrosa está trayendo a colación otro término
fundamental que es el de nomos, como norma, ley, y su encarnación en el Estado, y se contrapone
al caos o su fuerza ánomos, desorden, rebelión. Esa nueva “toma de posesión” del Planalto central
del Brasil –continuación del proyecto de Marcha hacia el Oeste y primer paso hacia la acción de
explorar la selva, el Norte- se vincula con las diversas rebeliones separatistas sistemáticamente
contenidas por el orden central. Llevar el nomos a los puntos extremos del territorio nacional era
una misión fundamental, para asegurar su supervivencia, y su soberanía, colocando como centro
“sagrado” una ley (la Constitución) e instaurando un tiempo trascendente situado en el futuro
(utópico-mesiánico). Brasilia es “um oásis, com seu clima e atmosfera inevitáveis de exceção”
(PERDROSA, 1981, p. 316), el centro vacío en que se crea la ley, en su origen no legal, de la
soberanía. Tal vez por eso mismo se recurra al imaginario colonial por excelencia: la primera misa.
y que quien lo haya hecho contara, por un lado, con una amplia experiencia
museística (recordemos los vínculos de Gautherot con el Musée de l’Homme, su
contribución en la organización y catalogación del Museu das Missões) y, por otro
lado, contara con la confianza de Oscar Niemeyer, el arquitecto de la ciudad, y que
las fotografías de Brasilia aparecieran en la revista por él dirigida, Módulo.12 La
proyección internacional de las fotografías de Gautherot se evidenció, asimismo,
cuando en 1962 integró la exposición itinerante, por diversas ciudades europeas,
J de arquitectura brasileña organizada por el Ministerio de Relaciones Exteriores
(BURGI, 2017).
A Keneth Frampton, afirma:
As suas imagens da capital em construção no hinterland, em meio a um
planalto parcamente povoado, ressurgem hoje como os stills esquecidos de
L um filme do realismo socialista, com a estrutura de aço e os 28 andares
da torre dupla do Congresso elevando-se como uma miragem por entre os
L redemoinhos de poeira do cerrado aplainado (FRAMPTON, 2012, p. 435. La
cursiva es mía).

A Marcel Gautherot capturó Brasilia en el vacío/desierto, insistentemente


mencionado por Mario Pedrosa, sobre el que se yergue la ciudad, pero sobre
todo capturó la fantasmagórica realidad de esas construcciones que muestran la
monumentalidad de la idea al plasmar una ciudad cuasi flotante, aprovechando no
sólo horarios del día sugerentes por la niebla y la humedad en el aire, sino el polvo
• del Planalto (sobre el que Kubitschek también se detiene y observa en algunos
872 párrafos de lo más poéticos, 2000, p. 111).
Frampton destaca, en sintonía con la descripción anterior, la imagen del

Palacio Itamaraty, cuya arquitectura es favorecida por cierto aire de levedad gracias
a la disposición y uso de las columnas dispuestas por Niemeyer, fotografiado por
Gautherot como “um palazzo não tectônico levitando acima do solo” (FRAMPTON,
2012, p. 440), que se repite en el Palacio da Alvorada, gracias al juego con el espejo
de agua.
2
Gautherot parece haber retenido aún en las fotografías de las
construcciones terminadas algo de su inconclusión, aquella que la ciudad revestía
0 para el mismo Kubitschek durante el proceso de conceptualización del proyecto de
esa nueva capital: un cierto “inegavél acento fantasmagórico” se cargaba y adensaba
1 sobre la idea mientras se figuraba en su mente. Al contemplar el Plan Piloto de
Costa, Kubitschek reconoce haber encontrado la forma, la impresión de lo que “não
8 conseguia traducir em palavras” (KUBITSCHEK, 2000, p. 69). Se entrevé aquí que
las ideas y conceptualizaciones se conciben como fantasmagorías, de algún modo
como una sobrevivencia aún en pleno siglo XX de la teoría del fantasma (del siglo
anterior, al menos) que luego se transformaría en una teoría del conocimiento y la
representación.
Esas imágenes hoy emblemáticas de la construcción en que la ciudad
parece brotar sin dejar de situarse en un entre cielo y tierra, inscriben una imagen
onírica, una ciudad-sueño, aunque ya no del sueño como proyección imaginaria
12  Sobre las contribuciones de Gautherot en la revista consultar el artículo de Heliana Angotti-
Salgueiro (2014).
de una idea (tal como Kubitschek la figura en su texto) sino como un devaneo, una
alucinación, cercana a una experiencia surreal que la propia ciudad producía en
sus visitantes13 y que Gautherot trabaja sobre la película sensible.
La monumentalidad de Brasilia se encuentra en las fotos de Gautherot
como una materialidad fantasmagórica flotante, a la vez peso y levedad, inhabitable,
mágica, pero también aplastadora. Tal vez, como mencionan Hatoum y Titán Jr., la
mirada de Gautherot se haya dejado contaminar por la indistinción y la inestabilidad
J tropical, “Em vez de tomar ou simular distancia, Gautherot foi no sentido contrario
e flertou, a sua maneira discreta, com o caos” (HATOUM Y TITÁN JR., 2009, p.18).
A También es posible inferir que la naturaleza anfibia y ambigua de la naturaleza
amazónica, que visitó y fotografió desde su llegada al país en 1940 y a la que volvió
L en varias ocasiones, y especialmente en aquella serie “Igarapés” (1955), un poco
anteriores y casi contemporánea a las fotografías de Brasilia, haya determinado

una mirada fluctuante, oblicua, una sinuosidad y un movimiento como el de las
L aguas que allí todo lo atraviesan, se le adhirió y contaminó, en cierta medida, las
de la capital.14 Como si la “Ciudad flutuante” que captara en Manaos en 1944
A contagiara de movimiento, levedad, dándole un aire de lo efímero, lo mutante y
metamórfico a la fijeza y monumentalidad de la Ciudad Nueva.
De esta manera, en el imperio de la forma-función, síntesis de las artes,
Gautherot logró darle algo de evanescencia que liberase esa arquitectura de un
peso material absoluto (tanto en aquellas en que los monumentos están como entre
• nubes como en las que los volúmenes se aplanan como figuras geométricas). Por
873 otro lado, en la selva amazónica, en ese espacio de las aguas, de la inestabilidad y
los ritmos de creciente y bajante, Gautherot desarrolló series –probablemente en

simultáneo, como sugerí- en que consigue darle forma, cierta fijeza y plasticidad
a ese territorio de la exuberancia, plasticidad que se acerca a los postulados de
Pedrosa, pues intenta controlar el caos, la proliferación, la metamorfosis constante
e inasible; es decir, dosificar su peligrosidad y su amenaza, pero también reservó
un resquicio para los espejismos (miragens, en portugués, palabra con que tantas
2 veces fue referido el “progreso” del Brasil, como un engaño o una aporía, y también
a la misma Brasilia en sus juegos espejeantes de aguas y lagos artificiales: un
0 oasis, el espejismo en el desierto por excelencia).
La floresta amazónica se resistía a la mirada y a la fotografía panorámica,
1 como afirman Titán Jr. y Milton Hatoum. La falta de puntos de observación y
distancia junto a lo embreñado y denso de la vegetación la volvía casi imposible. Ante
8 ella había dos caminos: o la visión/fotografía aérea (a la que alude Kubitschek) o la
visión/fotografía del detalle, desde dentro, a riesgo de la imposibilidad de captar su
totalidad. Mientras la primera sólo se centra en la masa (informe) y sus contornos

13  Uno de los ejemplos más expresivos al respecto son las crónicas de Clarice Lispector en que
anota sus apreciaciones sobre Brasilia y afirma: “Brasilia sufre de levitación” (LISPECTOR, 2011,
p. 47). Estas crónicas también operan una deconstrucción de la imagen-símbolo de Brasilia como
metonimia del Brasil.
14  Hatoum y Titán Jr. sugieren esta idea en Norte cuando describen la fotografía del Teatro
Amazonas en Manaos. Es factible extrapolar y extender esas ideas a las fotografías, posteriores, de
Brasilia, como si haya hubiese desarrollado un “ojo” especialmente sensible al devenir, a lo flotante.
fronterizos para subrayar la necesidad de su intervención/rasgadura, la segunda
se acerca a su interior para descubrir su composición inherente. Gautherot
(…) mergulha com a câmara no emaranhado e se deixa envolver por ga-
lhos, cipós, ondulações e reflexos. Um tronco escuro, de ramos poderosos
se prolonga em sua sombra na água, tão imóvel e negra que por muito pouco
não anula a distinção entre a coisa e seu reflexo. Algumas das imagens são
perfeitamente reversíveis, e então o inventário documental cede lugar ao
grafismo, ao jogo quase abstrato de luz e sombra. Como também acontece
J nos crepúsculos e horizontes fluviais, que mais parecem uma tela não figu-
rativa, dedicada a explorar texturas (...) (TITÁN JR. y HATOUM, 2009, p. 20.
A Las cursivas son mías).

Esos efectos entre reflejos, espectros fantasmagóricos –tanto de las ideas


L y conceptos de la imaginación como de las imágenes en su propio estatuto entre
apariencia y materia- conectan ambas series (Brasilia, Igarapés) de Gautherot
L entre sí y con impresiones que les son contemporáneas. Es M.F.J Kiesler durante
el Congreso Internacional de Críticos de Arte (Brasilia, São Paulo, Rio de Janeiro,
1959) quien, según cita Pedrosa, se refiere “ao ver e passear pela vossa nova cidade,
A é ‘a nova perspectiva que se criou e que chamarei perspectiva de Fata Morgana.
É uma perspectiva que, creio, é única no mundo, porque é ao mesmo tempo tão
longe e tão perto” (PEDROSA, 1981, p.375). Recordemos que la Fata Morgana es
esa ilusión óptica que se genera en la atmósfera a partir de una diferencia de
temperatura entre aire caliente y frío, entre la tierra, el agua y el cielo. Basta una

fotografía “panorámica” de Gautherot en el río Amazonas, que también compondrían
874 una serie, para observar la semejanza: la fluidez, la generación de volúmenes que
• flotan.15
La circulación de Gautherot entre esos dos espacios parece armonizar una
mirada que encontró arte tanto en Brasilia como en la Amazonía. Creó imágenes
que se volvieron emblemáticas, en fotografías que condensan una emoción pre-
lingüística o que enmudece por su grado de sublimidad. La plasticidad de las
2 fotografías de Gautherot funciona, en una inflexión, según el ideario de Pedrosa:
controlan la imaginación, disciplinan la fantasía, se prestan al arte como dominio
(dando forma a lo tal vez y en gran medida informe).16 Ya en un texto de 1951 Pedrosa
0
mencionaba la importancia de la óptica moderna para los artistas pues les permitía
ampliar la visión, producir nuevos efectos de espacio y tiempo en la sensibilidad y
1 crear visiones y estructuras fantásticas. Sin embargo, es necesario “controlar esas
estructuras fantásticas” (PEDROSA, 1981, p.37) gracias a la forma y al artificio.
8 Esa misma concepción se mantendrá en el tiempo y será la perspectiva desde la
cual juzgará a una artista como Djanira, cuyo arte surgido de la enfermedad y de

15  Me refiero aquí a la serie de fotografías que en el libro Norte aparecen en la tira final y se titulan:
“Vista do rio Amazonas – AM, c. 1956”, “Crepúsculo no rio Amazonas – AM, c. 1956”.
16  Me refiero a las fotografías más conocidas de Gautherot, especialmente a las reunidas en
catálogos, probablemente más influenciadas por la Nueva Objetividad (en línea con Moholy-Nagi).
La consideración de sus fotografías en series, tal como Gautherot las organizó y dispuso durante
los últimos años de su vida, aportaría otra complejidad a la temática aquí abordada (Segala, 2005),
complejidad que vendrá de la mano de comprender el aspecto etnográfico de la fotografía del artista.
Aun así, la mayoría de los fotógrafos explora generalmente líneas y aproximaciones diversas a las
realidades de su interés, lo cual habilita la selección practicada aquí.
cierta inocencia –que produce un trazo naïve- alcanza su mejor expresión cuando
“disciplina la fantasía, lo pintoresco, los imprevistos de aquella aglomeración
agitada de niños y bichos” (PEDROSA, 1981, p.160). El artista, al fin y al cabo, ha
de dominarse a sí mismo (PEDROSA, 1981, p.179), dominar la técnica, el color, la
composición. Incluso, dice Pedrosa, es preciso que el arte discipline a la ciencia:
se trata de la hora plástica, en la que el arte reconstruirá el mundo, la comunidad
(PEDROSA, 1981, p.363).
J El aspecto sublime de las fotografías de Gautherot que deja sin palabras,
expresa un vacío, ausencia lingüística –que es profusión en Pedrosa y Kubitschek,
A preocupados por llenar ese vacío, representarlo, transformarlo en una ficción
creadora para un repertorio común, la nación. Ese vacío recibe, también en esa
L década, una figuración en Quarup (1967) de Antonio Callado: el centro de Brasil
–según sus coordenadas geodésicas- es un profundo agujero, un gran hormiguero

hirviente de saúvas, uno de los insectos más perjudiciales para los cultivos en el
L territorio brasileño.17 Ese vacío es también el mundo perdido, dejado atrás de Pedrosa
y Kubitschek: una representación del pasado18 y también de una comunidad perdida
A que Brasilia vendría a reconstruir gracias a la síntesis.19 Ese mundo perdido, pero
comprendido en su pervivencia, como acontecimiento, es el que Flávio de Carvalho
propone en sus manuscritos amazónicos, al que intenta aproximarse durante su
expedición. Ésta implica, para el artista, un riesgo fundamental, un peligro de
vida o de muerte, cercanía a lo primitivo como elaboración de una comunidad in-
• operante, y como una aventura (AGAMBEN, 2016)20.
875 La aventura es para Agamben un acontecimiento interno y externo.
Despejándola de las connotaciones modernas del término, su núcleo elemental une

encuentro con el mundo, compromiso del sujeto consigo mismo y relato: el evento
[Ereignis] que adviene y su narración signada por el fundamento de la Tyché (azar
o destino, el “rumo” carvalheano). La instancia de lenguaje es inseparable de la
aventura y tal vez sea precisamente la aventura del devenir humano: la coincidencia

2 17  Llama la atención que Kubitschek se refiere a la época de ebullición de las obras de Brasilia
como un “formigueiro humano” de candangos anónimos –los constructores de Brasilia (2000, p.
0 95). Convendría, tal vez, analizar esa coincidencia metafórica.
18  En “O cabeção na praça dos Tres Poderes” Pedrosa afirma que el arte debe tener una misión,
ésta es ser la creación de comunidad a partir de un significado común y es, por lo tanto, un legado
1 del presente al futuro y del pasado hasta nosotros. El caso de Calado implica una torsión casi de
cambio de época puesto que también puede leerse en clave de distanciamiento y corte respecto de
8 las propuestas emancipatorias (racionalistas y utópicas de izquierda) como analiza, en otro corpus,
Mario Cámara en Restos épicos (2017).
19  Así lo refiere Perdosa: “(…) uma aspiração geral a síntese, as afinidades perdidas. E nesta
aspiração à síntese encontra-se um alto valor ético: o homem desnorteado e nevrosado de hoje aspira
à unidade dos contrários, a experiências delimitadas de possíveis associações comunitárias (...) uma
nova reconstrução do mundo é reclamada por todos” (PEDROSA, 1981, p.361). Para Kubitschek
toda esa gran región amazónica es una “región perdida”, “em cuja orla alguns aventureiros haviam
armados suas choupanas pioneiras” (KUBITSCHEK, 2000, p.101).
20  En diferentes textos respecto de la construcción de Brasilia, Pedrosa hace referencia a la
“Aventura-Brasilia” y también a la “Experiencia-Brasilia”. Kubitschek, en su libro, explicita en
qué término entiende la construcción de la ciudad como aventura y Niemeyer escribe sobre “Mi
experiencia de Brasilia”.
entre encontrar la aventura y el trovar poético, ‘encontrar’ y ‘componer poesía’ –en
sentido amplio, como poiesis- se dan la mano.
En las fronteras del peligro
En el catálogo de la reciente exposición, “Flávio de Carvalho, expedicionário”
(São Paulo, enero-marzo 2018), Renato Rezende sostiene acerca del artista y sus
producciones:
Subvertendo a ordem das clássicas expedições europeias ao Novo Mundo, e
J mesmo das expedições modernistas ao interior do país, Flávio de Carvalho
confunde as relações sujeito/objeto que tipificavam essas incursões, mis-
A tura arte e ciência, e antecipa e até mesmo supera discussões em torno do
artista como etnógrafo (REZENDE, 2018, p. 91).

L Mucho más cercano a la experiencia de artistas y etnógrafos como
Leiris, Bataille, Caillois y de los intelectuales nucleados en la revista Documents y
L Minotaure, Carvalho conducirá una serie de reflexiones cuyo derrotero se bifurca
drásticamente de los que claramente se evidenciaban en estas décadas.

A En un período en que se consolidaban los valores de un nacionalismo


unitario cuyas bases se cimentaban en el desarrollismo y la industrialización, en
el mismo año de 1958 en que se inauguraban los primeros edificios de la racional
y artísticamente planificada Brasilia, ciudad emblema de la nacionalidad, cuyo
“cuadro” –palabra empleada por Kubitscheck y Pedrosa- daría forma a la gran obra,
es decir, a Brasil, el artista de São Paulo encaraba una expedición junto al SPI que

se convertiría en una experiencia artística más, sin una “obra” como resultado,
876 aunque se rastree la experiencia en la dispersión de algunos manuscritos, fotografías
• y grabaciones. Aquí me centraré en los manuscritos “amazónicos”, que incluye
escritos mecanográficos resguardados en el CEDAE-UNICAMP,21 en dos series: una
de ellas en portugués, sin título general que se compone de seis artículos y otra,
escrita en inglés, titulada de manera global, On the frontiers of danger, y que se
compone de siete artículos breves.
2 Son varios los periódicos de la época que registraron la planificación y
ejecución de la expedición de Flávio de Carvalho –quien poco tiempo antes había
0 conmocionado el ambiente paulista y de la capital por la presentación de su New
look, el traje para el hombre de los trópicos, en 1956.22 Además, participó de la
expedición un periodista de Última hora, Norberto Esteves, quien también escribió
1
algunas crónicas al respecto.23

8
21  Agradezco a Larissa Costa da Mata haber compartido conmigo los documentos correspondientes
a estas dos series de manuscritos, depositados en el CEDAE.
22  En Última hora del 28 de agosto de 1958 se registra la partida de Flávio de Carvalho hacia la
Amazonia, en el artículo titulado: “Flavio de Carvalho devassará misterios da selva amazônica”.
23  Hasta el momento he rastreado las siguientes crónicas de Norberto Esteves: “Flávio de Carvalho
mergulha no ‘Inferno verde’ na mais louca aventura de sua vida agitada” (11-09-1958); “Em busca
da ‘Deusa branca’” (11-9-1958); “No mundo perdido dos índios louros” (10-10-1958); “Em busca
da ‘Deusa branca’: expedição ousada da qual ninguém sabe se volta” (8-10-1958); “No caminho da
‘Deusa branca’: morrer se é preciso, matar, não” (13-10-1958); “Ao encontro da morte na terra dos
Uaimiris” (13-10-1958); “Escândalo e farsa na Busca Frustrada da ‘Deusa Branca’: Setenta Dias
Entre o Terror e a Morte na Selva Amazônica” (28-11-1958).
Si bien estas series de textos deben ser analizadas en consonancia con otras
del autor, especialmente con Os gatos de Roma/Notas para a reconstrução de um
mundo perdido (1957-58),24 a las que el artista hace referencia en dos oportunidades,
y también con otras como Rumo ao Paraguai (1943-44) o Casa, homem, paisagem
(1956), me concentraré en los manuscritos amazónicos específicamente.
Kubitschek y Pedrosa configuraron la imagen de una floresta como
materia informe, monstruo que debe ser controlado, tierra que ha de ser “rasgada”
J por caminos y rutas, horizontalidad espacial que se cuadricula y distribuye en
consonancia con un tiempo homogéneo, sostenido sobre una concepción lineal
A –mesiánica o revolucionaria- de la historia, que se dirige ineluctablemente hacia
el futuro de la unidad nacional, cuerpo cuyo centro estaría en la ciudad nueva.
L Por el contrario, tal como afirma Rezende, Carvalho propone su psicoetnografía
a partir de “(...) termos com fortes ressonâncias benjaminianas, como “resíduo” e

“sugestibilidade”, se alinha com o elemento transgressor defendido pelo surrealismo
L etnográfico” (REZENDE, 2018, p. 79). Lector de Nietzsche, Freud y Taylor, formado
en una tradición más inglesa que la típicamente francesa de los intelectuales
A brasileños, Carvalho pone su atención en las impurezas del tiempo, es decir,
que observará la aparición de elementos reprimidos, los retornos y pervivencias
(survival) de temporalidades “primitivas” o “arcaicas” en el hombre contemporáneo
(las simultaneidades); su procedimiento se acercará mucho más a una genealogía
foucaultiana que se sitúa entre la Herkunft y la Entstehung nietzscheanas, entre
• procedencia y emergencia, la entrada en escena de fuerzas. De hecho, a diferencia
877 de los autores anteriores, Carvalho se preocupa por las fuerzas en acción que se
ligan a un pathos animal-humano y no por las formas (ni por formar).

Articulando un concepto disonante de primitivismo respecto de aquel
elaborado por el modernismo brasileño, especialmente con el de Mario de Andrade,
Carvalho traza un camino disidente en cuanto a las relaciones entre intelectual y
Estado-nación, no sólo en sus distanciamientos sino apuntalado en una empatía,
sugerida o explicitada, con formaciones y expresiones anarquistas. Profundamente
2 crítico de regímenes y manifestaciones autoritarias y fascistas del Estado, cimentados
sobre procesos unificadores y domesticadores de la comunidad nacional, cuestionó
0 también en su método y en sus ficciones-teóricas los límites entre campos del
saber, el régimen autonómico del arte/la literatura y comprendió al “objeto de arte
1 como um objeto fetiche, ou, no limite, dejeto (ou ruína, ou apenas mero vestígio) de
uma experiência mais ou menos perdida, que quando acionado pela sensibilidade
8 ou pelo acaso, gera uma “atmosfera”” (REZENDE, 2018, p. 82), una experiencia
radical que anula en cierto grado las distinciones y distancias entre sujeto y objeto
para situarla como una sismografía de las emociones o de la estética –concebida
como aisthesis, es decir no como forma sino como fuerzas que se movilizan contra
la anestesia de la vida del hombre.
Ahora bien, ¿Cuál es la imagen de la Amazonia –especialmente en
su implicación entre selva-flujos fluviales-comunidades (indígenas) que estos
manuscritos dejan entrever? Para Carvalho la Amazonía es también una frontera.

24  Sobre esta serie sugiero consultar la excelente y minuciosa tesis de doctorado de Larissa Costa
da Mata (2013).
Al igual que para Kubitschek y Pedrosa, la selva posee un significado de separación
que, además de territorial, es cultural (el hombre civilizado, vestido, “comedor de
platos delicados” versus el hombre sonriente, desnudo, “comedor de animales y
carne humana”), pero esa línea de frontera que separa también es la de relación.25
Esa frontera es peligrosa y misteriosa, igual que para los otros autores. Sin
embargo, ese peligro es relativizado (pues en algún punto es comprendido a partir
de una intrusión) y junto al misterio, no pretenden ser eliminados, desterrados ni
J controlados para ofrecer una seguridad irrevocable, sino que seducen, se eligen
para redescubrir una emoción fundamental como es el miedo.
A En la caracterización de esa frontera hay, asimismo, gradaciones: desde
una inicial descripción con tintes paradisíacos: en el valle amazónico no existe
L el hambre, pues hay profusión de comida; existe una comunión entre hombre
y naturaleza que es casi un contacto “sexual”. Luego se atravesarán espacios
monótonos hasta el momento de máxima expectación en que se produce un cambio
L
de paisaje y de sensaciones: éstas ya no son las amenas, de ofrenda y de refugio,
sino de agresividad. El sol excesivo, la soledad, el calor, la repetición de lo mismo,
A y la aparición de los “piums” se convierten en “el verdadero infierno verde” (V. The
forbidden bath). Es allí, justamente, donde lo “desconocido” se vuelve frontera,
puesto que se siente un “invisible but known danger”.
Pueden inferirse en este punto dos cosas: por un lado, en oposición a lo
que sucede en Pedrosa y Kubitschek, para quienes lo invisible implica lo inexistente
• –casi una estrategia de defensa-, en Carvalho la peligrosidad surge de lo invisible,
878 como un sentimiento profundamente humano que no depende completamente del
• espacio que se recorre, sino de una carencia que pondría en acción mecanismos
arcaicos (que el hombre “civilizado” se ha esforzado en ocultar) compartidos hasta
por la vegetación, que adquiere entonces connotaciones metafóricas: se comienzan
a observar plantas parásitas que revelan la competencia por la supervivencia,26
actitud que inmediatamente después Carvalho descubre entre los miembros de la
2 expedición.
La invisibilidad no es inexistencia sino presencia fantasmal, presentida
–quizás irracional-, psíquica, que luego aparece y muestra su real. Mencionaré
0
algunos casos de esa presencia que, además, configuran una modalidad háptica
de los existentes, según adquiere relevancia el tacto para el autor. 1. Los “seres
1 telúricos” de la floresta son comparados con “fantasmas ecuménicos”, “monstruos”
que miran al hombre, gruñen y vuelan constituyendo su entorno: presencias que
8 ora aparecen ora se esconden del hombre de las selvas en una voluptuosidad pre-
lingüística, pero sonora. 2. Según la “psico-etnografía” que Carvalho elabora en
estas páginas, para las comunidades indígenas los animales y los ancestros son

25  La frontera, en los textos de Carvalho, se define más como confín que como separación. Como
tal, es una figura ambivalente pues el cum-finis es la línea a lo largo de la cual dos dominios se
tocan. Respecto de esta noción ver CACCIARI (2000) en que confín es el lugar del entre, limen
(umbral) y limes (límite). El confín es contacto, lo cual lo vuelve profundamente comunitario, y huye
de una determinación unívoca.
26  No se incluyen citas extensas en este trabajo para resguardo de los derechos de autor de los
“manuscritos amazónicos”, material inédito, depositados en el CEDAE-UNICAMP.
“spirits and gods”, revisten un carácter espectral, que se liga a la antropofagia:
cuando se come al animal, al enemigo y al ancestro (en sus cenizas) se elabora
simbólicamente la relación con cada uno de ellos que se convierte en dioses que
los controlan. Un último caso de estas presencias fantasmales se figura con los
“centinelas” xirianá: Carvalho adivina sus presencias, pero no son vistos hasta que
aquellos hayan medido y sopesado a los blancos intrusos: “In the silent wilderness
of the forest shadows, one has the constant feeling of being followed, yet one sees
J nothing and hear [sic] nothing.”
Por otro lado, la vista, en consecuencia, o bien recibe una conceptualización
A más amplia que no la cartesiana probatoria, racional, o bien pierde su carácter
dominante como sentido en torno al cual se establece la jerarquía. La vista aérea
L o del hombre en vuelo, tal como Carvalho desarrolla en otros textos,27 adquiere
una dimensión vertical que permite calibrar la dimensión profunda de los tiempos

actuantes –distinta de la visión panorámica-panóptica presentada por Kubitschek-
L o bien es una visión del detalle propia de un “arqueólogo malcomportado” sensible
a las capas superpuestas que habrá de desenterrar. La visión, según se infiere de
A esta serie de textos, puede dejarse seducir por las fantasías y los “miragens”, tanto
de las aguas (“the shiny dark geen of the waters”) como de los caminos que engañan
(“mislead”) al hombre, pues la soledad, la inmensidad, los olores y silencios de la
floresta en su voluptuosidad excitan la imaginación y ésta parece ser la capacidad
más verdadera de creación.
• En estos textos carvalheanos es el tacto el que se vuelve más relevante.
879 Éste se convierte en el sentido por excelencia dado que la selva parece “envolver”
al hombre, es su abrigo y refugio. La floresta vuelve táctil al hombre mismo y

es ese toque el que acaricia y enardece la imaginación. Esa tactilidad acaricia
voluptuosamente, como si les cepillara el cabello a los propios miembros de la
expedición.
En el último texto de la serie, la fiesta ritual, que viene a articular la mirada
2 (externa) a los elementos anteriores (el tacto y la imaginación), expresa la preocupación
y la conceptualización carvalheana respecto de los motivos comunitarios. Carvalho
relata la participación y también su rol de espectador en una festividad relativa a
0 las cosechas entre los xirianá, en la que el uso del “polvo de la verdad” extasía a
los hombres de la “maloca-city” quienes, después de luchar simbólicamente, se
1 confiesan mutuamente sus crímenes, sus “pecados” y sólo lo hacen en la medida
en que haya espectadores. En la gestualidad desmedida de los performers y en la
8 exigencia de ser observados por otros (espectadores u observadores participantes),
Carvalho lee los orígenes de la teatralidad y la representación simbólica. Esa
fiesta expresa, para el etnógrafo paulista, la instauración de la comunidad (“this
confession brings stronger ties between former enemies”) a partir del crimen/delito/
pecado.28 Es decir, en el centro vacío de la comunidad (nacional) está el crimen y la
muerte. Esta última, según el autor, es una de las preocupaciones más insistentes
de los xirianá. En la nación y el Estado modernos, como es el caso del Brasil, ese
centro vacío –que también figura Callado- es el crimen, el aniquilamiento, extinción

27  Especialmente en Os ossos do mundo (1936) y Rumo ao Paraguai (inédito, 1943-44).


28  En el original en inglés, Carvalho emplea la palabra “sin”.
e invisibilización de las comunidades otras, tanto por la vía del asesinato como por
la vía de su transformación, es decir, mediante la destrucción del vínculo de las
comunidades con la naturaleza –que importa una sabiduría profunda-, la acción
de vestir a los sujetos indígenas y “conquistarlos para la sociedad brasileña”, como
menciona en III. No paíz dos Uaimirís, una aculturación violenta y forzosa.
Algunas (in)conclusiones
Dentro de lo invisible o no visto se encontraría justamente aquello que ni
J Mario Pedrosa ni Niemeyer, ni Kubitschek podrían ver: si ven un desierto, lo no visto
es proliferación viviente; si ven aislamiento, invisibilizan un sistema de relaciones
A diferentes (por ejemplo, las fluviales). Hasta allí habría dos polos: una implicancia
según la cual lo no visto no existe. Esto nos permite situar a estos intelectuales
L dentro de un régimen escópico ocularcéntrico, racionalista, que da primacía al
sentido de la vista por sobre cualquier otro (JAY, 2017). Ese ocularcentrismo, en
L cuya configuración Descartes fue fundamental, es el mismo que dará primacía al
punto de vista, al punto de fuga y demás dispositivos de representación imagético-
visual del mundo. Sin embargo, se da inmediatamente una paradoja puesto que,
A aunque confiados en la visión y en la operación perceptiva29 que conduce la razón,
las relaciones causa-efecto, forma-función, inducción, el establecimiento de reglas,
es decir en el nomos moderno, a partir del cual se organiza el orden de Brasilia y
la configuración político-civil del Estado y de la comunidad, estos autores elogian
la imaginación y el sueño, que como tales tampoco son visibles ni materializables.
• De hecho, sus producciones (imágenes, sensaciones, sentimientos) difícilmente
880 puedan ser vistos por otros, compartidos, sino cuando se convierten en materia, en
• otra cosa, es decir, cuando pierden su estatuto incorpóreo y su especificidad (una
imagen mental, por ejemplo, que se vuelve descripción lingüística).
Pueden señalarse dos casos paradigmáticos: 1. Mario Pedrosa se refiere,
en varias ocasiones, a la importancia de la “imaginación creadora” que propone una
“utopia, isto é, uma ideia clara, perfeita” (PEDROSA, 1981, p.310) que transformará
2 todo y ante la cual todos debemos rendirnos (como ante un dios), pues configura
el acontecimiento más trascendente de la historia de una comunidad. 2. Juscelino
Kubitschek no sólo sueña Brasilia con los ojos abiertos, sino que recibe el sueño
0
premonitorio de don Bosco como una visión de futuro y un buen augurio que lo
impulsan a fantasear con la nueva capital, que desde entonces se vuelve su idea
1 fija. Es la esfera de lo ideal que parece permearlo todo, absorberlo todo como la
tinta con que se mancha un papel en blanco30.
8 En ambos casos, sin embargo, imaginación, idea y sueño se subordinan

29  Ver el artículo de Pedrosa “Arquitetura e crítica de arte II” en que se centra en la importancia
de la percepción (“Olhamos e vemos”) y la fascinación que el espacio produce, sobre todo, a partir
de la noción de movimiento (1981, pp. 277-279).
30  En las primeras páginas de su libro, Kubitschek no sólo menciona un sueño “premonitorio” de
don Bosco respecto de su construcción, sino que afirma “Meditei sobre a Grande Civilização que
iria surgir entre os paralelos 15° e 20° -justamente a área em que estaba construindo, naquele
momento, Brasilia. O lago, da visão do santo, já figurava no Plano Piloto do urbanista Lúcio Costa.
E a Terra Prometida, anunciada repetidamente, pela misteriosa voz, ainda não existia de fato, mas
já se configurava através de um anseio coletivo, que passara a constituir uma aspiração nacional”
(KUBITSCHEK, 2000, p.18).
a un control del imaginario, lo que Ludueña (2017) llama “una política de los
sueños” y una “conquista estatal de la imaginación” que erradica los espectros de
la imaginación o de las ideas al sujetar esas imágenes creadas, ideas proyectadas
y sueños internamente entrevistos a una concreción: poner en acto la ciudad,
plasmar en un plan piloto las ideas, hacer emerger de la “nada” una civitas y,
a través de ese mecanismo, reducir lo imponderable, lo peligroso, el miedo de lo
invisible, de lo arcaico que pervive, de las fronteras. En cambio, es en la inmersión
J en ese miedo, en lo invisible/invisibilizado para tocarlo y dejarse acariciar, en ese
espacio del confín, en lo que se centra Flávio de Carvalho.
A Como sostiene Foot Hardman (2009), la configuración de la ilusión-Brasil
está marcada por la violencia instituyente (el centro vacío del crimen) en diferentes
L modos de operación: deleble, monumental, ruiniforme y espectral, agregaríamos
aquí.

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2

0

1

8

J

A

L EL ARTE DE LOS CONFINES DE GONZALO KENNY: ¿TRADUCCIÓN
HIPERMEDIA O “POSTRADUCCIÓN”?
L
María Inés Arrizabalaga (UNC)
A RESUMEN: Stefano Arduini y Siri Nergaard propusieron el concepto “Post Estudios
de Traducción” para señalar los objetos integrados al “diseño tradicional” de los
Estudios de Traducción, y perspectivas de abordaje y marcos teóricos convergentes
e hibridados. Por su parte, Núria Vouillamoz sostiene que el impacto de los entornos
virtuales como canales de circulación de obras literarias proporciona un efecto
• de “reproducción” que, añadida la morfología retórica hipermedia, permite hablar
de “traducción hipermedia”. Parece, entonces, procedente considerar la categoría
883
de “postraducción” en casos que, desde los Estudios de Traducción, desafían los
• bordes disciplinares y aventuran la renovación de escenarios críticos. En esta
comunicación, se presentan la obra de Liliana Bodoc, La saga de Los Confines,
y el blog El arte de Los Confines de Gonzalo Kenny. Los objetivos del trabajo son:
i) sistematizar procedimientos de “parcelación” y “ensamble” que operan sobre
las novelas y resultan en “síntesis visuales” de personajes, tópicos y desarrollos
2 argumentales; ii) listar recursos a los que se apela en el blog para prolongar y
diversificar desarrollos argumentales, originales de Bodoc; iii) describir efectos de
0 credibilidad, continuidad y disrupción del “universo ficcional” de Los Confines,
logrados en un sitio en red a través de diversos lenguajes, técnicas y estéticas,
1 principalmente plásticas. El blog de Kenny sobre La saga... de Bodoc parcela
significados y los ensambla en una combinatoria que atiende a la tensionada lógica
dialéctica de “la confianza” y “la sospecha” en la labor traductora, y ejecuta la retórica
8 del sistema de representación de la traducción hipermedia. En la programación
artística de Kenny sobre la poética de Bodoc, el ejercicio de reproducción de la
obra autoral acorde a pautas morfológicas de la traducción hipermedia sustancia
la ocurrencia de la postraducción en el doble sentido de fusión transdisciplinaria y
hecho de “posproducción” artística, siguiendo a NicolasBourriaud.
Palabras clave: Traducción; hipermedia; postraducción; posproducción;
transdisciplinariedad

La aclamada y premiadísima saga de Los Confines de Liliana Bodoc invita


a preguntarse qué modelización de fantasy épico se resuelve en un programa de
escritura que, reproduciendo formantes típicos del género, remite a imaginarios
con referenciación en los archivos que han hecho la historia precolombina de las
Américas. Inserta en circuitos de comercialización, la tetralogía de Bodoc recibe
el impacto de diversas vías de divulgación que amplifican las escenas críticas,
y las posibilidades de significación de cara a distintos productos de la cultura
que operan como “adicionales” del género y contactan el sistema literario – y el
texto tradicionalmente concebido – con los sistemas plástico, audiovisual y del
J merchandising, y con objetos que prolongan Los Confines y se exponen por los
canales de la red. El blog del artista plástico Gonzalo Kenny, “El arte de Los
Confines”, constituye un espacio de exhibición de una selección de tópicos y de
A
personajes de la obra de Bodoc, y ofrece condiciones de intercambio y colaboración
que diversifican su espectro de lectores.
L
De modo que siguen otras incógnitas sobre los efectos de nuevos medios

que prolongan la ocurrencia de la representación de universos literarios y mundos
L posibles, como las Tierras Fértiles, en otros textos de cultura, y asimismo acerca
de la construcción de ensambles, es decir: conjunciones sin fisuras aparentes, que
A aparecen de manera coherente y compacta. Cabe cuestionarse qué configuraciones
de memoria propician una dialéctica entre la tetralogía y el blog, y qué dispersiones
pluridireccionales enriquecen el espacio ficcional auto-contenido de Los Confines.
Por último, la no menos acuciante pregunta en torno al lugar que ocupa
este caso en los Estudios de Traducción, a la que se encadenan observaciones
• sobre la productividad de implementar la categoría de “traducción total” para
884 describir construcciones de sentido, órdenes y lecturas plausibles y cooperativos
con el sistema de consumo, que auspician un balance de auto-regulación para el

caso de Bodoc en particular, y en general, para el sistema literario en diálogo con
el plástico.
La saga de Los Confines
La saga... de Bodoc fue inicialmente una trilogía, con los volúmenes
2 Los días del Venado, Los días de la Sombra y Los días del fuego publicados con
diferencia de dos años entre el 2000 y el 2004; se sumó en el 2012 Oficio de
0 Búhos, que constituye una colección de relatos cortos sobre episodios previos y
posteriores a la Guerra por las Tierras Fértiles durante sucesivos desembarcos

desde las Tierras Antiguas. La tetralogía, como proyecto que remeda el formato
1 épico fundacional, posee todos los formantes genéricos propios de un cantar de
gesta americana e incorpora los rasgos del fantasy cuyo exponente contemporáneo
8 más renombrado en el escenario mundial es el escritor inglés John Ronald Reuel
Tolkien, con su trilogía El Señor de los Anillos, y el cuarto volumen póstumo Los
cuentos perdidos(Carter, 2002 [1969]; Shippey, 1999 [1982]).
Por tratarse de una obra de ribetes épicos, La saga... adscribe a una
memoria de imaginarios del norte de Europa y, a la vez, subvierte esos formantes.
Contiene la situación bélica en mundos ficcionales abiertamente polarizados por
esquemas axiológicos en pugna, aunque no escasean las tensiones en las Tierras
Fértiles como en las Antiguas de corrosión interna por suspicacias acomodaticias a
un régimen que se apura a suplantar al local; a esta ponderación maniquea se añade
una coherente distribución de roles de héroes, villanos, antihéroes y pseudohéroes.
Los motivos del viaje, las persecuciones, la superación de obstáculos que antepone
tanto el mundo natural como la experiencia mágica que conduce el mundo, el
desvelamiento de misterios, la comprensión oracular del entorno y el desenlace
secuencial de una serie de embates que ocasionan finales gloriosos a varios
héroes, la convivencia de diversas progenies y distintas edades de una memoria
cuya preservación se materializa en mecanismos de escritura que se vuelven
J procedimentales y remedan las formulaciones que mimetizan la psicodinámica de
la oralidad (Ong, 2006 [1982]), todo ello enmarcado por relatos mayores que obran
al modo de pórticos en que se prepara la escucha y la emisión por parte de un
A
relator y traductor a lenguas humanas, son guiños celebratorios de una tradición
ya milenaria de cuño nórdico europeo en que se forjaron las primeras literaturas
L de los pueblos que hicieron la vieja Europa y el resto del mundo.

El fantasy épico, género muy visitado en el siglo XX, con escritores que
L como Tolkien se formaron en diversas literaturas antiguas y abrevaron de las
textualidades que las apropiaron y resignificaron en la articulación entre los siglos
A XIX y XX – Lord Dunsany y William Morris son claros exponentes de ello –, incluye
los formantes de la épica y recrea universos literarios (que Tolkien denomina
“mundos secundarios” sobre el sustrato de “mundos primarios”) con sus geografías
y poblaciones, con genealogías y archivos que determinan el curso de los hechos
desde la cosmogonía, con deidades propias, con un folclore en respuesta a las
• condiciones situacionales, y con lógicas de producción y consumo precapitalistas
885 y premodernas.
Este reconocimiento permite etiquetar la tetralogía como una obra de

fantasy épico, pero que la construcción de identidades y espacios ficcionales se
asiente en los archivos precolombinos proporciona un giro singular a La saga...,
ya que la liga a acontecimientos históricos que tienen, en la Literatura, un efecto
de reversión de las expectativas del género para preservar la alusión a la Historia.
Así, durante el primer desembarco, el encuentro de las armas de pólvora y las
2 flechas ocasiona la muerte de Dulkancellin, héroe de los inicios de la obra; hacia
el tercer desembarco, debido al esparcimiento de enfermedades llegadas con la
0 tripulación, no hay conjuros ni intentos medicinales que compensen los desajustes
inmunológicos; de hecho, la Guerra no termina, sino que el relato se cierne alrededor
1 de los múltiples desplazamientos de los grupos locales y las relocalizaciones de
comunidades diezmadas. En cuanto al recurso a un panteón de dioses autóctonos
8 y a creencias que mimetizan el folclore del mundo primario de las Américas en
que se basa el mundo secundario de las Tierras Fértiles, se trata de un artefacto
cuyo rigor de veridicción sostenido en los registros locales valora positivamente los
esquemas de trabajo, de uso de los bienes naturales y de fabricación manual, de
distribución de las riquezas, lo que no sólo contraviene las lógicas de las Tierras
Antiguas, sino que subvierte varios tipos de soluciones defendidas por los conjuntos
de comunidades regidos por órdenes precapitalistas, como es posible advertir en el
sistema de producción y consumo de la Tierra Media de Tolkien.
“El arte de Los Confines”
En su blog “El arte de Los Confines”, Kenny socializa sus ilustraciones de
tópicos y personajes contenidos en la tetralogía de Bodoc, recoge intervenciones en
los medios realizadas por él mismo o por Bodoc en relación con esta obra, divulga
las actividades relativas a la proliferación del conocimiento de Los Confines en
ámbitos de acceso público, como ferias, exposiciones, conferencias y talleres, invita
a la comunicación de inquietudes, pareceres y valoraciones mediante el uso de
cajas de diálogo y etiquetas, y genera efectos de identificación en las poblaciones
de usuarios que participan en carácter de “miembros” del sitio.
J Es notable que sus trabajos con distintas técnicas “reorientan” la
tetralogía en dirección a la tradición del Occidente europeo. Se tomará un grupo
A de ilustraciones de Kenny en las que se activa una memoria alimentada por
dispositivos visuales contemporáneos y las estéticas moderna y premoderna.
L En primer lugar, la creación gráfica del guerrero husihuilke, que se muestra
en la jungla, emplumado y con la cara pintada, responde más a una imagen de

mohicano que el cine hollywoodense ha conseguido divulgar – por ejemplo con la
L película “El último de los mohicanos”, con Daniel Day Lewis y Madeleine Stowe
– que a un poblador de las naciones originarias del Cono Sur (01. Husihuilke).
A Entre los husihuilkes, un nombre obligado es el de Dulkancellin, primer héroe
en dejar Los Confines, atravesar el desierto y la selva, y participar del Concilio
del Sol; en la imagen aparece un guerrero con trazos y rasgos estéticos propios
del arte oriental (02.Dulkancellin). Tras su muerte, quien asume la conducción es
el hijo mayor, Thüngur, cuya ilustración remite al imaginario del “buen salvaje”,
• divulgado durante el período romántico; de hecho, el emplazamiento de la figura
886 humana en lo elevado de un risco, contra la profundidad del paisaje de aguafuertes
conecta con la pintura del primer romanticismo (03. Thüngur). La reflexión
• sobre la representación de las mujeres incluye el dibujo a lápiz de Wilkilén, que
remite asimismo a la imagen del “buen salvaje”; la muchacha bórea sea quizás
la configuración más acertada ya que los bóreos se referencian en los primeros
vikingos que desembarcaron en las Américas; Acila, la mujer tartamuda que liga
su estirpe a la de Molitzmós y engendra el futuro de ambos pueblos en Yocoya-
2 Tzin, tiene las vestimentas de un centurión romano y la estética elegida recuerda el
manejo estratégico del claroscuro de la pintura barroca; la representación de Nakín
0 de los Búhos tiene las características del anime japonés, a juzgar por la figura
estilizada casi humana, en abierta transición de metamorfosis con lo animal. En
1 tercer lugar, la representación del Brujo de la Tierra Kupuka, que oscila entre el
claroscuro barroco y la anamorfosis a través de la ilusión óptica apelando a frutas
y verduras, propia de la pintura italiana del siglo XVI; sin vencer la geometría
8 euclideana, la acuarela de Kupuka en el bosque une el efecto de metamorfosis con
la línea plana de las aguafuertes orientales. Por fin, la representación del llamello,
sobre un fondo difuso y abismal de un campo de batalla remite a la pintura del
primer romanticismo1.
Este breve muestreo permite advertir rasgos en la producción artística de
Kenny que emplazan la poética de Bodoc en una escena eurocéntrica, lo que dota

1  Las ilustraciones correspondientes pueden consultarse picando en http://elartedelosconfines.


blogspot.com.ar, hacia el lado derecho de la pantalla, en la serie “Etiquetas por Tema”, especialmente
en “Husihuilkes”, “Señores del Sol”, “Tiempo Mágico” y “Venado”.
a la traducción plástica de un efecto aporético, es decir: avanza y, a la vez, paraliza
el “viaje” hacia las Américas. Sin embargo, atento a la “ley de deslocalización” sobre
la que Nicolas Bourriaud (2013 [2006]) propone su conceptualización de “estética
relacional” y en convergencia con las apropiaciones y ocurrencias audiovisuales en
múltiples soportes de manera instantánea, es seductor pensar a la obra literaria en
términos de “obra de arte como objeto parcial”. Sostiene Bourriaud:
El objeto estético toma [...] el estatuto de un “enunciador parcial” cuya cap-
J tura de autonomía permite “secretar nuevos campos de referencia”. Esta
definición se adapta a la evolución de las formas artísticas de manera fe-
cunda: la teoría del objeto parcial estético como “segmento semiótico” des-
A prendido de la producción subjetiva colectiva para ponerse a “trabajar por
cuenta propia” describe perfectamente los métodos de producción artística
L más corrientes de nuestros días: samplingde imágenes y de informaciones,
reconversión de formas ya socializadas o historiadas, invención de iden-
tidades colectivas. Estos son los procesos del arte actual, surgidos de un
L régimen de imágenes hiper-inflacionadas. Las estrategias relacionadas con
los objetos parciales introducen la obra en el continuum de un dispositivo de
existencia en lugar de otorgarle la autonomía tradicional de la obra maestra
A en el registro del dominio conceptual (Bourriaud, 2013 [2006]: 126).

Bourriaud afirma, además, que el uso de las formas en la estética relacional
ha implicado una reprogramación de las formas sociales de habitar una cultura
globalizada en que la apreciación del objeto de arte se ha parcelado junto con la
• diversificación de los medios y los soportes reconocidos para la ocurrencia artística.
En efecto, la obra de arte se ha convertido en una superficie de almacenamiento
887
de información, que ampara el eclecticismo y la posproducción. Acerca de las
• bifurcaciones de sentido que operan sobre la obra de arte como disparador de
nuevas obras de arte, y del efecto “de retorno” que pueda gravitar alrededor de
la obra “inicial”, Bourriad se pronuncia: “Hoy la cultura global es una gigantesca
anamnesis, una inmensa mixtura cuyos principios de selección son muy difíciles de
identificar” (Bourriad, 2014 [2009]: 116), y agrega: “Según esa visión de la cultura,
2 no importa en absoluto lo que cada uno pueda hacer con lo que consume” (117).
Bodoc ha dicho para el blog de Kenny:
0 Cuando conocí personalmente a Gonzalo, esquina Homero Manzi, le dije algo
que me gustaría repetir aquí, porque es aconsejable agradecer en voz alta.
Entonces afirmé: “Son ellos”. Y repetí: “Muchas gracias, son ellos”. Compartí
1 con Kupuka horas y años. Discutí con Dulkancellin, defendí a Kume y asesi-
né a Wilkilén. Por eso, el trabajo de Gonzalo me hizo pensar que había sido
8 capaz de abrirse paso, cabeza adentro, hasta el sitio donde se conjugan los
conceptos y las imágenes. Para ser coherente, digo que no creo que hablan-
do de mundos ficcionales pueda alguien poner el sello de “legitimidad”. Ni
siquiera su autor, claro. 
Kupuka no es un logotipo. Prefiero creer que es un anciano poderoso, luná-
tico y honrado; capaz de amar sin ningún límite y ninguna conveniencia. Si
eso creo, estoy obligada a aceptar que otros me desmientan. 
- Yo también lo conozco, y no es así. 
- No es exactamente así 
- No es así en absoluto. 
¿Cómo ponerlo en duda? Kupuka es un Brujo de la Tierra y como tal, podría
mutar su apariencia. Al fin, yo solamente puedo asegurar que con ese rostro
y esa mirada lo conocí un día. Igual a Vieja Kush, igual a Dulkancellin… Esto
que comienza a tomar aliento y color quiere ser el sitio donde Los Confines se
transformen en un territorio presente. El arte es capaz de esas maravillas. Por
mi parte, estaré aquí, junto a Gonzalo, procurando describirle imágenes
vislumbradas, percepciones y sospechas. Arrimando los datos que poseo
sobre esos territorios y esos personajes.  Los poetas aztecas de la flor y el
J canto aseguraban que para el artista era indispensable “mentir para decir la
verdad”. Lo decían así: “El artista, el alfarero / muestra el verdadero rostro
de la tierra / porque le enseña a mentir al barro…”. Eso es, creo yo, el Arte
A de Los Confines. 

Asimismo, la concepción de “forma”, por parte de Bourriaud, remite a
L
dispositivos “abiertos”, es decir: la forma no aplica a una estrategia de cerramiento o
clausura de los significados, tampoco alos artefactos o al episodio de extrañamiento
L o ensimismamiento artísticos en sí. De allí que el atributo “relacional” remita a una
valoración del arte por su efecto aporético, su estado continuamente activo en
A relación con un punto de partida y la potencialidad de la ocurrencia artística. El
teórico cuestiona: “¿A qué llamamos forma? A una unidad coherente, una estructura
(entidad autónoma de dependencias internas) que presenta las características de
un mundo: la obra de arte no es la única; es sólo un subgrupo de la totalidad de
las formas existentes” (Bourriaud, 2013 [2006]: 19).
• Parcelación y ensamble
888 Si bien la noción de forma es relacional, se trata de un concepto
• oposicional, de confrontación con el entorno de la ocurrencia artística. El “golpe
aditivo” de la forma, debidoa las relaciones que establece con su entorno, no puede
despojarse de un término de comparación o medición que “recorte” la forma y la
“despegue” de una totalidad inclusiva. Resulta llamativamente compatible ligar el
concepto de forma relacional a la conceptualización de “sistemismo” que nutre,
2 entre otras, la propuesta semiótica de IuriLotman (2000), en que la efectuación del
hecho semiótico – igual que el artístico – se vincula con el medio, no es inherente

a un recorte, y se actualiza en la posibilidad de que cobre “forma” (Esteves de
0 Vasconcellos, 2014 [2013]; Von Bertalanffy, 2006 [1968]). A propósito de ello, todo
entorno teórico sistémico se “piensa” apelando a representaciones geométricas,
1 generalmente esféricas. El inquisitivo planteo de Bourriaud habilita la posibilidad
de apertura de la forma, lo cual, frente a un entorno de orden geométrico, introduce
8 la tensión del “desarme”. Cualquier razonamiento formalmente radicado precisa
contornos tangibles y discretos, mientras que la forma relacional que disputa
Bourriaud se tensiona en la alternancia entre “inaugurar” y “obturar” posibilidades
de significado:
Así nacen las formas, a partir del “desvío” y del encuentro aleatorio entre dos
elementos hasta entonces paralelos. Para crear un mundo, este encuentro
debe ser duradero: los elementos que lo constituyen deben unirse en una
forma, es decir que debe haber posesión de un elemento por otro [...] La for-
ma puede definirse como un encuentro duradero (2013 [2006]: 19).

Esa tensión puede plantearse también en la complicidad entre el efecto


de “desarme” de la forma en Bourriaud y la noción lotmaniana de “ensamble”, que
se asienta sobre la clausura de la esfericidad del constructo de “semiosfera”.
Siguiendo a Lotman, el espacio semiótico se distingue como tal ante lo
alosemiótico, “lo otro” semiótico que confirma el grado de cerramiento que reviste
un entorno para poder significar. Las oposiciones binarias “afuera y adentro”,
“exterior e interior” refuerzan la condición sistémica de la oferta teórica lotmaniana,
y permiten entender un paralelo entre la Semiótica de la Cultura y una “teoría
J del continuo” y, además, una “teoría del interior”. Con la diagramática de las
semiosferas, el propio Lotman instala una interpretación del espacio semiótico
A que requiere la activación de premisas de movimiento y espacio para una “razón
geométrica” que deje comprender que el significado es tal en su posibilidad de
L trasladarse, de trasponer las fronteras entre semiosferas, de traducirse, y también
de resolverse “dentro de la memoria” de su particular semiosfera: “[...] en el contexto

de su ensemblenatural la obra de arte está en la vecindad no sólo de obras de otros
L géneros, sino también de obras de otras épocas” (Lotman, 2000:115).
No sólo la tetralogía de Bodoc y el blog de Kenny se ensamblan en una
A “conjunción sin fisuras”; específicamente en el blog, hay un ensamblaje estético
en la variación que impacta sobre la descentralización de una memoria de género
gobernada por imaginarios europeos, para relocalizar en un “golpe aditivo” – que
es, en definitiva, un “golpe aporético” –representaciones visuales de tópicos y
personajes de Los Confines en la escena eurocéntrica. Lotman se pregunta:
• La cuestión, por lo tanto, podría ser planteada así: ¿por qué ninguna colec-
889 tividad puede satisfacerse con un solo arte, sino que construye invariable-
mente “series” típicas inherentes a ella?; ¿por qué un hombre casi nunca
• [...] “emplea” textos artísticos aislados, sino que tiende a los ensembles que
dan combinaciones de impresiones artísticas esencialmente heterogéneas?
Y mientras que en la descripción del investigador-culturólogo en los dife-
rentes textos del ensemble resalta lo que tienen en común, en el consumo
directo, por lo visto, se activa la diferencia: en otras palabras, ¿por qué no
es posible limitarse a un solo texto? (Lotman, 2000: 115)
2
La trayectoria de Wendell Kisner (2011) hacia una interdisciplinariedad
0 integrada bien podría resultar en un modelo para el cruce entre “formatos” o
soportes de producción de significado; se trata, en cualquier caso, de un traslado
de información hacia un “tercer espacio”, que no es el “original” – por ejemplo,
1
la Literatura – ni el “destino” – como la representación plástica en el entorno
multimedial – sino el “espacio de la traducción”. Lotman postula la intersección
8 entre semiosferas como el espacio de una memoria “intermedia” en que la traducción
constituye la posibilidad única de comunicación. Kisner se refiere, asimismo, a la
modelización de un ensamble integracionista, en que la segregación de la diferencia
se diluya en la tensión – es decir, un esencial “polemos” –de neutralidad de diversos
elementos emergentes:
The model is that of an ensemble in which the tension between the various
elements within it, in their interplay, bring about unity that is nothing other
than the differences that make it up […] that is, each element becomes what
it is through its differential tension with respect to the others, and hence
the identity of each emerges or is produced through that tension. Relation
is not something produced between objects already constituted; rather the
relation is primary, and the elements come into their own, as it were, in
and though that relation. Conversely, the relation is nothing without the
elements that mutually engage in bringing it about.

The key here is that the elements making up the unity are held together in
being held apart – they don’t lose their mutual differences but rather those
differences are precisely the unity – hence the necessity of struggle (polemos).
This polemos […] emphasizes the fact that the difference between elements
J is essential. It is not a neutral melting pot that collapses the differences be-
tween the elements, but rather a dynamic unity of polemos that is unified in
A and through the tension across differences. The elements don’t precede the
unity as self-subsistent atoms that then, subsequently, come into relation.
Rather, they first emerge as what they are in and through the dynamic uni-
L ty of struggle. At the same time, the “unity” here is nothing other than the
interplay among the elements that make it up (Kisner, enFoshay, 2011: 74).
L Cabe preguntarse si este modelo de ensamble no dialéctico2, que expone
las diferencias y, a la vez, desactiva los elementos de disonancia soldándolos en
A una “auto-subsistencia” que no precede a la unidad dinámica del modelo, sino
que radica en ella, neutralizando así la tensión, no favorece acaso los términos y
condiciones de relacionamiento de las dos partes que traban vínculo en el encuentro
de soportes de producción de significado, la Literatura y las Artes Visuales.
Pensar la traducción en el pasaje de una obra literaria al formato
• visual no solamente focaliza en los problemas de parcelar significados para luego
890 ensamblarlos, aun preservando la percepción de una tensión en la individualidad
de los elementos; también señala una dialéctica de “la confianza” y “la sospecha”

en el conspicuo relieve que adquieren la especificidad material de los medios de
representación, las técnicas, los programas de escritura y de creación plástica. Si
bien la premisa ética implícita en la tensión fedataria no radica en los procesos de
construcción de significado, sino en el producto que arroja la traducción, dicha
vinculación dialéctica procede de la trayectoria de elucidación de significado que
2 es propia de un proceso hermenéutico. Especialmente en la propuesta de Paul
Ricoeur (2005 [2004]), y siguiendo a Jean Grondin (2012 [2006]), se plantea que
0 en la experiencia de la interpretación del modo en que se objetiva el sentido se
debaten dos percepciones: una de la confianza y otra de la sospecha3. El efecto de
1 la conciencia sobre la arqueología del sentido podría naturalizar lo que se llama
“sentido”, o sea: automatizar el proceso de efectuación de “aquello que significa”.
8 Por eso es crucial detener el análisis en la aleatoriedad como factor de-
terminante de la condición relacional en la morfología retórica hipermedia

2  El de WendellKisner es un modelo de tipo emergentista para explicar la tensión diferencial entre
distintos enfoques disciplinares (2011: 76 y ss.); se trata de un modelo que procura superar la
comprensión de crisoles de identidad en que la diferencia colapsa en una igualdad indiferente (2011:
80 y ss.), como ocurre en casos en que se trabaja con las nociones de “identidad abstracta”, “identidad
negativa” o “identidad mecanicista”. El concepto de “ensamble no dialéctico” implicacómodamente la
noción de “identidadintegrada” (o “positiva”): “rather than being maintained through an indifference
to others, it is an identity that is produced in and through its relations to others” (2011: 84 y ss.).
3  En torno al conflicto entre la Hermenéutica y la crítica de las ideologías, se ha forjado en esa área
del saber una tendencia que secciona las aportaciones en orientaciones hacia la confianza, o bien
del blog de Kenny. El entorno mediático sobre el que este artista plástico
“traduce”la obra de Bodoc posee una composición formal que depende par-
cialmente del tipo de plataforma de alojamiento de información que es un
blog, y por otra parte, de una selección del mismo Kenny, quien “cuenta” a
partir del diseño. Tal como ocurre en las versiones fílmicas de obras litera-
rias, la pregunta que cabe hacerse es ¿Qué Guerra de Los Confines conoce
aquél que conoce la tetralogía de Liliana Bodoc a través de “El arte de Los
Confines” de Gonzalo Kenny?
J
El relato sobre Los Confines que brinda Kenny selecciona y compartimenta
tópicos y personajes, y los reúne en una convivencia de estéticas que no vulnera
A la aceptabilidad del resultado plástico, ni la lógica de referenciación fuertemente
subvertida – sobre todo, volviendo a la mentada “ley de deslocalización”, en la que
L asienta sus bases la noción relacional de Bourriaud. Según este teórico: “Cada obra
es [...] el modelo de un mundo viable. Cada obra [...] pasa por ese estado de mundo
L viable, porque hace que se encuentren elementos hasta entonces separados” (2013
[2006]: 19-20). Si la viabilidad se cierne ante el “mundo posible” – o “Los Confines
posibles” – en el blog de Kenny, es sólo por la esperable disposición parcelada de
A una sumatoria de fragmentos (04. Calendario 2012). Con todo, inquieta la idea de
subestimar el impacto que, con los cambios ocurridos al modificarse el soporte de
producción de significado, se operan sobre la reprogramación poética de Bodoc
tras la programación artística de Kenny. Vale decir que es preciso balancear la
confianza dispensando una cuota de sospecha acerca de la distinción entre los

proyectos creativos de la escritora y el dibujante. El tipo de “escritura hipertextual”
891 (Vandendorpe, 2003 [1999]) contenida en el blog de Kenny, considerando su obra
• al modo de un “texto de cultura” (según Lotman), funciona de marcador ostensible
de una necesidad de traducción que conlleva apropiaciones y reversiones con el
sello de “nuevo autor” y, fundamentalmente, del cambio en soportes, formatos y
fuentes. Sostiene Lotman que el “poliglotismo” artístico asiste en la aceptación del
“efecto traductor” en el curso de “una misma obra” por distintas artes:
2 Precisamente la diferencia en los principios de apropiación del mundo hace
que las diferentes ramas del arte se necesiten mutuamente. Se deben distin-
guir dos diferentes costados de este problema. Por una parte, diversas artes,
0
en dirección de la sospecha. Grondinsostiene que hay
[...] duasformas distintas de interpretação aparentemente incompatíveis:
1 a. A primeira provém de uma hermenêutica da confiança ou da “recolecção de sentido”:
ela assume o sentido tal como se propõe ao entendimento e tal como ele orienta a
8 consciência, sentido no qual se revela uma verdade mais profunda e que pertence a
uma hermenéutica amplificadora a explorar [...]
b. A ela vem, contudo, se opor uma hermenêutica da suspeita, que desconfia do sentido
tal como ele se ofrece, porque ele pode abusar da consciencia. O que aparece como
verdade pode não pasar de um erro útil, de uma mentira ou de uma deformação,
cuja arqueologia subterrânea hermenéutica da suspeita se propõe reconstruir.
Essaarqueologia pode ser ideológica, social, pulsional e estrutural (2012 [2006]:
100-101).
Puede reconocerse una mirada hermenéutica optimista y otra escéptica acerca de la posibilidad de
aproximarse a la construcción de sentido con una conciencia alerta de que el producto no reviste
un valor intrínseco, sino que resulta de lógicas pasibles de ser desnaturalizadas por su carácter de
herramientas heurísticas, e inherentes a los procesos interpretativos.
modelizando de manera diversa los mismos objetos, le dan al pensamiento
artístico humano la multidimensionalidad que éste necesita, el poliglotismo
artístico. Por otra parte, cada rama del arte, para la plena toma de concien-
cia de su conjunto de rasgos específicos, necesita de la presencia de otras
artes y lenguajes artísticos paralelos (2000: 121).

Esta aproximación congenial al problema de lo que tradicionalmente


se ha denominado “traducción intersemiótica”, de acuerdo con la ya clásica
J tríada conceptual de Roman Jakobson (Hurtado Albir, 2004 [2001]), conduce a
un distanciamiento de las particularidades del caso Bodoc-Kenny para ubicarse
en el más amplio espectro en que el caso encuentra acogida en un área del
A
conocimiento específica. Dentro de ese esquema, interesa observar las licencias que
fortalecen la tarea hipermedia del artista plástico “traductor” de una obra literaria,
L particularmente en un trabajo semejante a la llamada “open-sourcetranslation”
(traducción de fuente abierta) no sólo en referencia a la labor audiovisual de Kenny
L en el blog, sino también a las redes dialécticas de los usuarios que se registran en
el entorno y se hipervinculan a él.
A Este caso y los Estudios de Traducción
Bourriad afirma: “La forma de la obra contemporánea se extiende más allá
de su forma material: es una amalgama, un principio aglutinante dinámico. Una
obra de arte es un punto sobre una línea” (2013 [2006]: 21). La índole flexible de la
tetralogía de Bodoc, que en el programa de Kenny es segmentada, seleccionada y
• trasladada de la representación literaria a la representación plástica, ejemplifica la
892 “teoría del continuo” como sistema nocional reparado en la imaginación geométrica
• aplicada a plasmar el comportamiento de cualquier “texto de cultura”. La capacidad
de la obra de arte para continuarse elásticamente en otros soportes, como el blog,
abona la perspectiva “del movimiento” en relación con la crítica artística. En “El
arte de Los Confines” la continuidad de la obra de Bodoc se ve asegurada a través
de la interacción entre transcripciones de fragmentos de las novelas, ilustraciones,
comentarios de Bodoc y Kenny, videos de intervenciones mediáticas, incrustaciones
2
de publicidades de apariciones públicas de los artistas o de sus productos, o bien
de eventos relacionados con la representación del fantasy en sus variadas facetas.
0 En su repaso de las mutaciones en las tecnologías de la escritura y los soportes
textuales, Christian Vandendorpe (2003 [1999])juzga detonante la aparición de
1 los multimedios y su deglución de la obra literaria, la conmoción del canon y los
cambios en las modalidades y las conductas del consumo, incluido el impacto de
8 precuela que ejerce la cohabitación con objetos que prolongan el “mundo posible”
del arte en el “mundo real” (05. Calendario 2013):
En la nueva cultura del hipermedio, los juegos de encadenamiento entre
texto e imagen se multiplican todavía por la consideración de las connota-
ciones aportadas por el entorno visual y la caja. La facilidad con que hoy
es posible manipular imágenes, combinarlas con texto y reproducirlas ins-
tantáneamente está modificando el viejo orden de la legibilidad y obliga a
replantearse la noción de textualidad (2003 [1999]: 125-126).

Los cambios en la legibilidad resultan de una afianzada comprensión del


texto y la textualidad de manera más amplia. Si los soportes del texto son móviles
y se admite su naturaleza cambiante, entonces la resiliencia se instala no sólo en
la obra de arte como continuo, sino en la captación y el juicio crítico confiados en
la resistencia de una poética en diferentes formatos.
El concepto de “traducción total” es acuñado por PeeterTorop(Hurtado
Albir, 2004 [2001]) para señalar la totalidad de procedimientos que, en el marco de
una cultura, reiteran o trasladan información. Esta noción remite a la Semiótica
de la Cultura, que afirma que cualquier hecho de cultura es un “texto” inscripto en
J una semiosfera y pasible de vincularse con los contenidos de otra semiosfera. En el
espacio de intersección de dos semiosferas se activa un filtro traductor que habilita
A la circulación y el intercambio de cierta información. La naturaleza “totalizante” del
procedimiento traductor abarca y signa la versión hipermedia de la obra de Bodoc
L en el blog de Kenny. Pero esta área del conocimiento no resulta el único espacio de
identificación teórica en que el caso de Los Confines puede insertarse con soltura

y adecuación. Anteriormente, se ha mencionado la traducción intersemiótica como
L categoría que etiqueta el traslado de información de un soporte de producción de
significado a otro. Con la reinstalación de la tríada de Jakobson a cargo de George
A Steiner en Después de Babel (1995 [1975]), colección de ensayos que reabre “una
hermenéutica de la traducción”, acaso continuadora de la Hermenéutica reclinada
sobre el lenguaje, de pensadores en la línea de Hans-Georg Gadamer (Gadamer,
1998 [1993]; Gómez Ramos, 2000) y Ricoeur (Corona, 2005; Ricoeur, 2005 [2004])
(ver Grondin, 2012 [2006]), en la década de 1970 queda inaugurado el acceso de
• “nuevos objetos”, “nuevos soportes”, con su diversidad de técnicas y metodologías,
893 al ámbito de los Estudios de Traducción. El pasaje entre semiosis nominado
mediante un sistema clasificatorio pertinente a esta disciplina deja pensar el caso
• Bodoc-Kenny dentro de un marco epistémico de múltiples convergencias, pero sobre
todo a la luz de una concepción ampliatoria de los lenguajes, en que las “lenguas
humanas” y los códigos artísticos se piensan en una solución de continuidad y con
independencia de la especificidad material.
En 2012 y con motivo del lanzamiento del número inaugural de la revista
2 translation, Stefano Arduini y Siri Nergaard, sus directores y editores en jefe,
presentan el concepto de Post Estudios de Traducción:
0 We imagine a sort of new era that could be termed post-translation stu-
dies, where translation is viewed as fundamentally transdisciplinary, mobi-
1 le, and open ended. The “post” here recognizes a fact and a conviction: new
and enriching thinking on translation must take place outside the traditio-
nal discipline of translation studies (2012: 8-9).
8
Vale notar que la traducción ocupa un lugar de relevancia en la poética
de la tetralogía de Bodoc, tanto en el contacto entre las tribus cohabitantes de las
Tierras Fértiles y las Tierras Antiguas, en la composición mnemotécnica de los
archivos, en la preservación y el develamiento del contenido encriptado de códices,
como en la metarreflexión ostensiva de esos tópicos. Es en el umbral abierto por
los Post-Estudios de Traducción que puede emplazarse este encuentro entre el
clásico abordaje de la traducción intralingüística e interlingüística, así como la
representación de la traducción en la ficción, y los Estudios de Multimedios o
las Nuevas Tecnologías aplicadas al orden literario, que en escaso tiempo han
conseguido desestabilizar la rigidez de la crítica. De hecho, ya sea que la obra
plástica de Kenny se considere parte integrante de la tetralogía, o bien una “versión
plástica y multimedio” del “original literario”, el funcionamiento del espacio en
red seguirá siendo cambiante, acumulativo e inestable, lo cual dota a la obra de
Bodoc, o a parte de ella, de un tinte efímero que confronta el tradicional, enhiesto
estandarte canónico.
Indudablemente, los Post-Estudios de Traducción han abierto las puertas
J a nuevas textualidades ydiversos soportes de producción de significado. En el entorno
de ese incipiente “paradigma blando”, resulta factible ubicar este caso de estudio,
A que interpela modelizaciones en la especificidad plástica de lo que “inicialmente” es
ya una “traducción de modelos”4, al decir de Itamar Even-Zohar(1997) y sopesando
L la expropiación del género que ha obrado Bodoc. Esta aproximación al dispositivo
que Kenny diseña con su colección de imágenes deja concluir que se trata de

un tipo de“traducción por replicación” (antes que “reproducción” o “recreación”)
L puesto que cada ilustración ofrece una réplica (plástica) de una obra previa.
Debe contemplarse, no obstante, que este caso de “traducción por
A replicación” se halla contenido en un entorno virtual, lo que asegura a la tetralogía
de Bodoc un canal de circulación que, por un lado, economiza las condiciones
de comunicabilidad dado el (apretado) carácter icónico de las exhibiciones, y por
otro, la diversifica, insuflándole una vitalidad que completa la obra mediante la
representación plástica, y también la exhibe desde múltiples vías, y por otras
• múltiples vías la dispersa. Así, puede hablarse de “reproducción” como consecuencia
894 de la “traducción hipermedia”, siguiendo a Núria Vouillamoz (2000).Inicialmente
señalada para explicar el comportamiento de la literatura que surge en el medio

4  La noción de “modelos” se expone en el artículo “Factors and Dependencies in Culture” al enlistar
los constructos que intervienen en el diseño de repertorios culturales.De acuerdo con Even-Zohar,
la estructura de un repertorio se ve constituida por elementos individuales y por modelos. En un
medio en que se abordan casos de traducción, los primeros corresponden a obras particulares,
mientras que los segundos remiten a conglomerados de normas cuyo funcionamiento es replicable
2 en los términos de aceptabilidad del polisistema receptor:
[…] models are the combination of elements + rules + the syntagmatic (“tem-
0 poral”) relations imposable on the product. If the case in question is an
“event,” then the “model” means “the elements + rules applicable to the giv-
1 en type of event + the potential relations which may be implemented during
actual performance” […] if one possible type of relations is the network of po-
sitions into which the various elements are inserted, then the “model,” from
8 the point of view of its potential producer, includes some sort of pre-knowl-
edge pertaining to these positions. A knowledge of order (sequence, or suc-
cession) is therefore an integral part of a model. Ittellstheproducerwhatto do
when (1999: 18).

Esta noción de “modelo” es altamente productiva para operar tanto en el caso de


traducción del formato novelado a las distintas representaciones exhibidas en “El arte de Los
Confines”, como para explicar “técnicamente” los programas de elaboración de un producto del
fantasyépico “localizado”, en el caso de la tetralogía por una parte, y de las “galerías” de ilustraciones
de tópicos y personajes, por otra, es decir: en la tarea compositiva de Kenny, quien secuencia
de manera ensamblada y, al parecer, azarosa, elementos de estéticas que, entre sí, no se traban
dialécticamente.
digital, y se desarrolla y complejiza en el “sistema literario electrónico”, tal categoría
designa el desplazamiento del discurso literario hacia formatos y segmentos de
consumo alojados en la red, es decir que no denomina el traslado de una obra en
el cambio de soporte:
Hablar de literatura electrónica significa hablar de la traducción del discur-
so literario a un formato digital, de manera que desaparece el contexto im-
preso y la comunicación con la obra se realiza a través de un ordenador. La
J traslación de un entorno impreso a otro electrónico implica una reconfigu-
ración no sólo del texto, sino del producto literario entendido como conjunto
significativo: además de la transformación inmediata de códigos – el libro se
A sustituye por un soporte digital –, se produce una adaptación del discurso a
una plataforma hipertextual – sustitución de la lectura lineal por múltiples
vías de acceso –, multimediática – incorporación de sonido y / o de imagen
L junto al texto – e interactiva – necesidad de la intervención del usuario en el
proceso de la lectura – (Vouillamoz, 2000: 103-104).
L
No obstante, se propone aquí emplear la noción de “traducción hipermedia”
como modalidad específica de la traducción intersemiótica – y asimismo, de la
A traducción plástica – a fin de nombrar el procedimiento por el que se ha vertido en
términos visuales el “mundo posible” de Los Confines, y algunos de sus tópicos y
líneas argumentales en el blog de Kenny.
Este “paradigma alternativo de conocimiento”(Vouillamoz, 2000: 103) que
aporta la “ficción hipermedia” se muestra superador de la “ficción lineal” – aquélla
• que circula en el tradicional soporte de papel – y constituye una modalidad aledaña
895 a la “ficción interactiva” (117 y ss.).
• La relación entre literatura y artes audiovisuales adquiere ahora otra dimen-
sión, porque el espacio digital abre renovadas posibilidades de interrelación
artística gracias a las cuales la retórica no sólo se apoya en las virtudes tex-
tuales de la obra sino también en elementos sensoriales, gráficos o auditivos
de extraordinaria elaboración tecnológica (132).

2 Como partes integrantes de una obra colectora artística, las galerías de


imágenes alojadas en el blog de Kennyproveen una efectuación de la ficción de

Bodoc bajo los códigos de la visualidad, y avivan un “proceso de aprehensión”
0 (103) impregnado por las lógicas de la retórica hipermedia. Conforme se afirmara,
esa retórica combinauna condensación altamente efectista del significado, con una
1 segmentación que parcela de manera tan ponderativa que el producto se torna
homogéneo, puntual y autónomo.
8 Ahora bien, el cruzamiento de las dos áreas del conocimiento, que se
propone enmarcado en los Estudios de Traducción y, específicamente, en los
Post-Estudios de Traducción, amerita un doble sondeo: primeramente, de la
conceptualización de “transdisciplinariedad” que nutre este reciente paradigma
traductológico, y luego, del encuadre del caso Bodoc-Kenny en la postraducción.
Arduini&Nergaard (2012) explican:
To speak of transdisciplinarity is not to propose that we create new rela-
tionships between closed disciplines; rather, transdisciplinarityopensup
closed disciplines and enquires into translational features that they have
in common or toward translational moments that transcend them. Such a
perspective implies that no single logic, no single tool, no single perspective
by itself is sufficient to explain the world’s complexity, and that research
cannot be inscribed in one discipline, with one defined object and method
[…]

Epistemologically this transdisciplinarity signals a change: it is not the dis-


ciplines that decide how to analyse their objects of research, but the objects
themselves that ask for certain instruments, neither inside nor outside the
academic boundaries of the disciplines, but “above” them (9).
J
Si, por definición, los Post-Estudios de Traducción se caracterizan por la
A detección de algún tipo de procedimiento traductor en áreas del conocimiento “en
contacto” con el recorte que James Holmes emitiera para la disciplina (Hurtado

Albir, 2004 [2001]), entonces el caso definitivamente se inscribe en este paradigma.
L
El problema que arquea ambas áreas del saber hasta reunirlas en un interés común
puede resumirse en el traslado de información y el cambio de soporte; mientras que
L la inclinación resulta en un producto final abierto, en un objeto relacional y también
tensionado por la misma solución “de continuidad” del “significado hipermedia”.
A Sostener que en el caso Bodoc-Kenny opera la postraducción no solamente
es posible debido a la relación transdisciplinaria que une el abordaje traductológico
y la perspectiva audiovisual, lo que remite a la precariedad de la categorización así
como a una funcionalidad del todo instrumental a las aproximaciones técnicas a
los objetos de estudio; puede hablarse, asimismo, de postraducción más allá del
• empleo que Arduini&Nergaard(2012) proponen para la partícula “post”, en señal
896 de superación de eventuales perímetros disciplinares. En vínculo con este caso,
reviste sentido elaborar la siguiente premisa: el reconocimiento de la ocurrencia

hipermedia de la traducción deja hablar de procesos de traducción inacabados,
abiertos, de hechos traductores que continúan liberando significado sin que haya
un producto “final”, o un blanco determinable en el extremo opuesto del canal
de comunicación. Queda claro que esto conduce a aplicar el mismo concepto a
cualquier evento de traducción intersemiótica que se produzca sobre soportes
2 abiertos en la proliferación de significados, en las secuelas que constituyen hechos
que pueden “prolongar” los significados de una obra, como cuando los Estudios
0 de Traducción convergen en los Fílmicos para enmarcar un caso de pasaje de una
obra literaria a otra fílmica.
1 Esto acerca la categoría de postraducción a la de “postproducción”5
según Bourriaud (2014 [2009]), noción que “recoge las formas de saber generadas
8 por la aparición de la red, en una palabra, cómo orientarse en el caos cultural y
cómo deducir de ellos nuevos modos de producción” (8), lo que incluye la “ficción

5  De acuerdo con Bourriaud:
El prefijo “post” no indica en este caso ninguna negación ni superación, sino que
designa una zona de actividades, una actitud. Las operaciones de las que se trata no
consisten en producir imágenes de imágenes, lo cual sería una postura manierista, ni
en lamentarse por el hecho de que todo “ya se habría hecho”, sino en inventar protocolos
de uso para los modos de representación y las estructuras formales existentes. Se trata
de apoderarse de todos los códigos de la cultura, de todas las formalizaciones de la
vida cotidiana, de todas las obras del patrimonio mundial, y hacerlos funcionar (2014
[2009]: 14).
hipermedia” como “paradigma alternativo de conocimiento” (Vouillamoz, 2000:
103). Siguiendo a Bourriaud, se acepta que el concepto ha viajado desde un sector
cultural “más mercantilista” en que se aplicara de manera prácticamente literal
sobre “material grabado”, hacia una apertura de la obra de arte para la proliferación
de los modos de producir significado:
Desde comienzos de los años noventa, un número cada vez mayor de
artistas interpretan, reproducen, reexponen o utilizan obras realizadas por otros
J o productos culturales disponibles. Ese arte de la postproducción responde a la
multiplicación de la oferta cultural, aunque también más indirectamente respondería
A a la inclusión dentro del mundo del arte de formas hasta entonces ignoradas o
despreciadas. Podríamos decir que tales artistas que insertan su propio trabajo
L en el de otros contribuyen a abolir la distinción tradicional entre producción y
consumo, creación y copia, ready-made y obra original. La materia que manipulan

ya no es materia prima. Para ellos no se trata ya de elaborar una forma a partir de
L un material en bruto, sino de trabajar con objetos que ya están circulando en el
mercado cultural, es decir, ya informados por otros. Las nociones de originalidad
A [...] e incluso de creación (hacer a partir de la nada) se difuminan así lentamente
en este nuevo paisaje cultural [...] (2014 [2009]: 7-8).
La labor de Kenny sobre el artesonado lingüístico de la tetralogía de
Bodoc puede comprenderse como un trabajo de posproducción debido a que las
creaciones plásticas han tenido como disparadores los tópicos, los personajes y
• hasta las líneas argumentales de la Guerra de Los Confines. De hecho, la obra
897 literaria eyecta y fundamenta un “modelo relacional” (Bourriaud, 2014 [2009]: 8) de
“mundo posible”, que hace las veces de “estrato autónomo” (8) para la prolongación

del “contenido” de una poética de autor literario. Kenny, entonces, reprograma una
poética visual propia, de manufactura estilizada por un repertorio de múltiples
formas recargadas de la historia estética “relatada” por el Viejo Mundo; puede
hablarse, por eso, de una corrida aporética que, con el estigma del movimiento
abierto hacia la “memoria de la cultura”, se vuelve cada vez más receptiva de un
2 efecto de “deslocalización”.Bourriad apunta:
En esta nueva forma de cultura que podríamos calificar de cultura del uso
0 o cultura de la actividad, la obra de arte funciona pues como la terminación
temporaria de una red de elementos interconectados, como un relato que
continuaría y reinterpretaría los relatos anteriores(2014 [2009]: 16-17).
1
La “deslocalización” ejerce un efecto “normalizador” sobre la potencialidad
8 de significar, las especificidades materiales, los registros estéticos y los cambios
que han tenido lugar con el desplazamiento de información. La posibilidad de
que las versiones se renueven deslocalizadas, sin un anclaje “local” que pueda
comprenderse bajo la especie de referencias “externas” a la obra o soportes
“internos” a ella, desvela “zonas omnilógicas” de la cultura (Arrizabalaga, 2015) en
que el procedimiento traductor estandariza toda forma de acceso al conocimiento.
Tal vez el próximo destino de la postraducción, en alianza con la posproducción,
radique en instaurar un núcleo de debate alrededor de una posthermenéutica de
la traducción, o bien una hermenéutica de la traducción de espectros continuos
y rangos distribucionales abarcadores. Sólo así podría administrarse una mirada
concluyente desde la tríada de la complejidad “auto-organización, recursividad,
hologramía” (Bak, 1997; Morin, 2007 [1990]) que socialice “el mundo de los
productos culturales y de las obras de arte” (Bourriaud, 2014 [2009]: 8) sin el
estigma de parcialidades técnicas, de cismas metodológicos, que sortee el quiasmo
entre empirismo y especulación rumbo a la justificación de una “performática de
la traducción”.
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L

A


899

2

0

1

8

J

A

L AS CONSEQUÊNCIAS PERNICIOSAS DO BULLYING NO CONTO
RAQUINHO, DE JOHN BARROSO
L
Maria Ivonete Santos Silva (UFU)
A RESUMO: A veemência e a intensidade da produção contística de John Barroso
revelam um olhar crítico e profundamente comprometido com as transformações
da intimidade e da subjetividade humana. No seu livro Contos Psicológicos (2011)
e, sobretudo no conto Raquinho, sua preocupação com os problemas que afligem
a integridade física e psicológica do personagem protagonista provoca no leitor
• uma atitude reflexiva, na qual ele próprio questiona seus conceitos, seus valores
e suas ações no mundo. Ao abordar o problema da violência sexual cometida
900
contra Raquinho e, concomitantemente o bullying -problema ético/moral e social
• de extrema gravidade -, John Barroso deixa em aberto, para uma reflexão mais
profunda, a conduta daqueles que optam pela conivência de ações intoleráveis,
além de suscitar outros questionamentos: as desigualdades sociais decorrentes
de injustiças históricas, os preconceitos contra os mais fracos e mais humildes, o
assentimento às malfeitorias daqueles que se sentem imunes às regras e punições,
2 o egoísmo, o desrespeito em face das diferenças, a violência doméstica, entre
outros. Nesta comunicação, além de refletir sobre as questões estéticas presentes
0 na narrativa do conto Raquinho, a proposta é investigar as inúmeras possibilidades
que a narrativa oferece para uma leitura crítica substancial da sociedade e dos
1 indivíduos, haja vista a urgência de se pensar o papel do homem no mundo
contemporâneo, esvaziado de sentido devido a perda da sua humanidade.

Palavras-chave: Bullying. Violência. Conivência. Desumanidade.
8
A produção contística de John Barroso, brasileiro naturalizado americano
e professor da Universidade de Pittsburg (EUA),se insere na ordem das chamadas
narrativas contemporâneas devido, não somente à atualidade dos temas por
ele abordados, mas, e principalmente, aos recursos expressivos utilizados na
articulação de tramas reveladoras de um profundo mal-estar social causado pelo
estado de alienação dos indivíduos em face de atitudes de violência, de conivência
e de desumanidade.
As possibilidades de análises de seus contos apontam na direção de
algumas vertentes literárias atualmente reconhecidas pela crítica especializada,
entre as quais se destaca o “Novo Realismo1” - movimento estético, artístico/cultural
e filosófico que surgiu na França por volta dos anos 60 do século XX, inicialmente
vinculado às Artes Plásticas, mas que nos anos subsequentes além de se expandir
por toda Europa e Estados Unidos incorporou procedimentos narrativos específicos
e muito peculiares à produção literária contemporânea.Por esta razão, ao definirem
conceitos e metodologias, alguns estudiososidentificam,como estratégia ou modo
J de articulação entre as distintas realidades e sua consequente formas de expressão,
a recorrência arecursos expressivosque asseguram uma maior aproximação do
leitor com as questões suscitadas nos textos literários que levam a marca do “Novo
A
Realismo”.

L Em seu livro Ficção brasileira contemporânea (2009), o professor-
pesquisador e crítico literárioKarl Erik Schøllhammer, ao analisar a produção

narrativa das últimas décadas, destaca a heterogeneidade ou a confluência de
L recursos expressivosutilizados na elaboração de textos literários que tentam
abarcar a realidade.Em suas argumentações, e em defesa do “Novo Realismo”,
A ele problematiza o conceito de contemporâneoretomando o posicionamento de
pensadores como Giorgio Agamben e Nietzsche. A ideia é demonstrar como no Brasil
a crítica literária “ressalta insistentemente o traço da presentificação[…] visível no
imediatismo de seu processo criativo e na ansiedade de articular e de intervir sobre
uma realidade presenteconturbada”. (SCHØLLHAMMER, 2009, p.11-12).
• A partir de tal problematização, Schøllhammerressalta diferenças
901 fundamentais entre o realismo histórico do século XIX e o realismo atual ou “Novo
Realismo”. E, ainda, sobre o “Novo Realismo” e sua problemática conceituação

devido ao entrecruzamento de formas híbridas, em outro ensaio denominado Além
ou aquém do realismo de choque?Schøllhammer, fazendo referência às ideias de
Alain Badiou, presentes no livro O século (2007), afirma:
Alain Badiou não se interessa pelo realismo num sentido tradicional e que
o real, objeto da paixão do século, não deve ser confundido nem com a rea-
2 lidade da experiência comum nem com o realismo comprometido com uma
tradição mimética. Pelo contrário, o real parece ser perceptível apenas como
0 resultado de uma relação contrafactual entre realidade e representação que
torce ou rompe com os laços de semelhança e apenas pode ser reconhecido
indiretamente num ato de paixão reflexiva. (SCHØLLHAMMER, 2011, p. 80).
1
O “Novo Realismo”, portanto, se apresenta como uma forma de narrar
que se responsabiliza pela incorporação de uma visão circunstancial da vida e,
8
nesse sentido, não tem como objetivo buscar em estilos literários do passado
referências e métodos narrativos. O próprio Schøllhammer2 afirma que não está
comparando estilisticamente os escritores de hoje (sobretudo os que publicaram

1  Novo Realismo ou Nouveau Réalisme foi um movimento artístico e cultural fundado por Yves Klein
e pelo crítico de arte Pierre Restany, em 1960, por ocasião da primeira exposição coletiva de um
grupo de artistas franceses e suíços na galeria Apollinaire de Milão. O movimento foi considerado
uma das formações mais importantes da neo-vanguarda europeia do pós-guerra e mais tarde suas
principais características foram assimiladas pelas produções literárias.
2  A afirmação de Schøllhammer, encontra-se registrada em Ficção brasileira contemporânea (2009),
obra anteriormente citada
depois de 2000, corpus central de sua pesquisa), com os escritores realistas do
passado, pois está ciente de que não há um retorno às técnicas de verossimilhança
descritiva e de objetividade narrativa como ocorria no passado. Para o crítico, na
prosa contemporânea, é possível encontrar
(...) a vontade ou o projeto explícito de retratar a realidade atual da socieda-
de brasileira, frequentemente pelos pontos de vistas marginais ou periféri-
cos. Não se trata, portanto, de um realismo tradicional e ingênuo em busca
J da ilusão de realidade. Nem se trata tampouco, de um realismo propria-
mente representativo; a diferença que mais salta aos olhos é que os “novos
realistas” querem provocar efeitos de realidade por outros meios. (SCHØL-
A LHAMMER, 2009, p. 53-54).
De acordo com as proposições de Schøllhammer,o “Novo Realismo”tem
L uma vontade de ser referencial, mas não necessariamente de ser representativo ou
de estar engajado a nenhuma corrente político-ideológica específica. Considerando
L o grande interesse da mídia pelas várias formas de dar ênfase à realidade, o que no
dizer de Schøllhammer se chama “demanda pelo real”, os escritores conscientes da
A função transformadora da literatura se deparam
(...) com o problema de como falar sobre a realidade brasileira quando todos
os fazem e, principalmente, como fazê-lo de modo diferente, de modo que
a linguagem literária faça uma diferença. É possível mostrar que a busca
por um efeito literário ou estético, com força ética de transformação, de fato
existe e se apresenta claramente na preocupação em colocar a realidade na
• ordem do dia. Essa procura por um novo tipo de realismo na literatura é
movida hoje, pelo desejo de realizar o aspecto performático e transformador
902
da linguagem e da expressão artística, privilegiando o efeito afetivo e sensí-
• vel em detrimento da questão representativa. (SCHØLLHAMMER, 2009, p.
56-57).

Sobre a questão do “efeito estético da leitura”, e analisando a diversidade


da produção literária brasileira contemporânea, Schøllhammerainda chama
atenção para as especificidades da “cultura traumática” em oposição à cultura
2 moderna “do choque”, evidenciando que tanto uma quanto a outra, produzem no
leitor uma reação de desconforto ou de mal-estar diante da crueza e da violência dos
0 fatos narrados. Sobre a “cultura traumática3”, diz ele, ao retomar um importante
estudioso do assunto:
1 Segundo Mark Selzer (1998), vivemos sob o impacto de uma “cultura da fe-
rida” que se evidencia numa espécie de inversão da esfera pública, em que
a intimidade privada é exposta como o interior de um casaco virado, exibida
8 em público num constante curto circuito entre o individual e a multidão.
(SCHØLLHAMMER, 2009. p. 114).

Essa exposição da intimidade, incorporada à produção literária
contemporânea é também inserida na estética do “Novo Realismo”, impondo
uma reelaboração dos procedimentos narrativos, sobretudo no tocante às novas
linguagens que são colocadas em evidência. Tais procedimentos visam o total

3  A cultura traumática é uma cultura de interiorização do impacto, em que fica difícil discernir o
exterior e o interior, a percepção e a fantasia, o físico e o psíquico e até mesmo a causa e o efeito
(SCHØLLHAMMER, 2009. p. 115).
arrebatamento do leitor diante de “cenas” de grandes impactos ou de grandes
constrangimentos.
Em quase todos os contos de “Contos Psicológicos”, o narrador
comprometido com uma realidade de violência, uma vez que faz parte dela,expõe as
intimidades da personagem protagonista, fazendo com que o leitor também assuma
a condição partícipe ou de testemunha de situações constrangedoras, vexatórias
e, em alguns casos, de extrema crueldade, como se pode observar na análise do
J conto a seguir.
O conto “Raquinho”
A O desejo de realizar o aspecto performático e transformador da linguagem
e da expressão artística, do qual reiteradamente se refere Schøllhammer, se
L apresenta nos contos de Barroso como um dos elementos composicionais de
extrema relevância, na medida em que ele trata de dar, como resposta aos desafios
L enfrentados pela produção literária contemporânea outra dimensão de uma
realidade marcada pela violência, pela conivência e pela desumanidade.
A Em Raquinho, conto que faz parte da coletânea do seu livro “Contos
Psicológicos”,é visível a construção de uma consciência crítica que subjaz à história

narrada e que tem por objetivo mostrar o lado perverso e desumano das personagens
envolvidas na trama. Cumpre-se a partir de procedimentos narrativos voltados
para a reflexão de temas aparentemente desimportantes - e o conto Raquinhoé um
• bom exemplo disso -, a função que se impõe ao “Novo Realismo”e cujo movimento
que “se expressa pela vontade de relacionar a literatura e a arte com a realidade
903
social e cultural da qual emerge, incorporando essa realidade esteticamente dentro
• da obra e situando a própria produção artística como ‘força transformadora’”
(SCHØLLHAMMER, 2011, p. 54).
Em seus contos, Barroso traz à tona personagens que experimentam
sentimentos e situações distintas: algumas extremamente sensíveis, carregadas de
um lirismo patético principalmente no plano psicológico e emocional, expressam
2 dramas existenciais que denotam certa complexidade; outras trazem as marcas da
violência de forma explícita - as marcas das desigualdades sociais, das injustiças e
0 da falta de reconhecimento para com a humanidade do outro. No conto selecionado
para análise, a personagem-protagonista, Raquinho, incorpora esses dois modelos
1 de composição.
A narrativa, que envolve adolescentes de um mesmo ambiente escolar é
feita por meio de alguém que, em princípio, compactua com as atitudes de extrema
8
violência promovidas pelo pior agressor: o estuprador de Raquinho. Logo no início,
o narrador diz: “Naquela semana, diversão era aterrorizar Raquinho” (BARROSO,
2011, p. 27). Em seguida, em uma atitude de quem tenta dissimular sua culpa
pelos atos praticados ele acrescenta: “A ideia era do meu melhor amigo, que sempre
tinha ideias e eu, não sei porque, sempre o ajudando a concretizá-las” (BARROSO,
p. 27).
Uma descrição minuciosa das caraterísticas físicas de Raquinho
colaboram para que o leitor imediatamente tome ciência das condições degradantes
do personagem:
O Raquinho era um moleque também de treze anos, mas com aparência de
dez, devido à fome. Também devido à fome tinha barriga gigante onde se
hospedavam lombrigas. Sua cabeça parecia enorme devido o corpo magri-
nho (BARROSO, 2011, p. 27).

No desenvolvimento da trama, a violência física e psicológica cometida


contra a “vítima”, como o próprio narrador a ela se refere, é descrita pelo narrador
com certo desdém:
J Aterrorizado, seus olhos se esbugalhavam, seus pensamentos estavam a
imaginar a dor, revelava sua face faminta. O meu melhor amigo descrevia o
momento do desfecho com precisão gráfica para em seguida se deleitar no
A rosto petrificado de Raquinho (BARROSO, 2011, p. 27).

L A frequência com que o narrador e seu melhor amigo abusavam de
Raquinho é descrita como uma prática quase normal, incorporada, portanto, às
atividades da escola: “A sexta-feira chegou e nós resolvemos brincar com a vítima
L mais uma semana para aumentar o sofrimento” (BARROSO, 2011, p. 28).

Em determinado momento, o narrador muda seu comportamento em
A relação a Raquinho e ao seu melhor amigo. Um acontecimento pode ter sido a
causa dessa mudança: fora do ambiente escolar ele sai para dar uma volta na sua
bicicleta Caloi e presencia a mãe de Raquinho espancando-o com ferocidade e sem
aparente motivo.
A mãe batia com o pau na boca, na orelha. Cada pancada fazia um som
• surdo, acompanhado de um gemido engolido. Nem Raquinho nem sua mãe
904 falavam nada. Era como se fosse um teatro de mudos, cada um fazendo seu
papel. Era sangue pra todo lado. Ao meu ver a mãe não se importou muito
• e ainda bateu por mais um minuto ou dois. O Raquinho se movia lentamen-
te, gemia doído, e a mãe batia forte como se tivesse matando um inseto no
chão. (BARROSO, 2011, p. 29).

Em continuação, silenciosamente ele demostra a sua reprovação aos atos


de violência cometidos pela mãe de Raquinho quando diz:
2 Em pé, com o pé direito no pedal, fiquei ali, paralisado, assistindo. Lá estava
Raquinho, sangrando e todo arrebentado, mas sem um choro sequer. Sem
0 uma palavra, sem um grito. Tremulo, virei rápido a bicicleta e saí às pres-
sas, quase fugindo. (BARROSO, 2011, p. 29-30).

1 Aos poucos o próprio narrador deixa entrever suas suspeitas: seu melhor
amigo, na verdade não era de fato seu amigo. Vários são os indícios que, ao longo
8 da narrativa, revelam a personalidade deformada do amigo estuprador, dele próprio
e até mesmo da professora que, mesmo percebendo a situação de anormalidade
entre os alunos, não intervia para solucionar os problemas: “Na segunda-feira, na
sala de aula, lá estava Raquinho. A Professora o olhou sem piscar e prosseguiu
na aula de verbos intransitivos”. (BARROSO, 2011, p. 30). Em seguida, em uma
demonstração de repúdio às atitudes de seu melhor amigo ele se nega a participar
de mais um estupro conta Raquinho. Ele descobre que, sem sua participação,seu
melhor amigo perdia força, se sentia desmotivado a cometer aqueles atos de extrema
violência:
Naquele intervalo o meu melhor amigo havia me batido nas costas, já prepa-
rado para correr atrás de Raquinho. Eu vacilei e ele disse: “vamos lá”! Mas
eu não fui, fingi querer ir ao banheiro, comecei a andar para o outro lado.
Pós insistir um pouco, o meu melhor amigo riu largamente, agora rindo de
mim e preguntando se eu estava afrouxando. “Estou cansado”. Sozinho, ele
desistiu de se divertir com Raquinho, elo menos por um dia. Enfraquecido e
marcado, foi dia de folga: o Raquinho não precisou correr naquela segunda-
-feira (BARROSO, 2011, p. 30).

J O narrador passa, então, a identificar atitudes de conivência desencadeadas


por parte daqueles que, em tese, têm o dever de intervir e proteger os mais fracos,

no caso, a professora, o inspetor de alunos, que tinham uma convivência diária
A com Raquinho, além da sua própria mãe.
Na cena final, outro acontecimento chama atenção pela mudança de
L rumo da narrativa e de seus personagens. É o próprio narrador quem comenta:
Um dia a Professora pediu para eu sentar com o Raquinho e lhe ensinar
L umas regras de gramática. O meu melhor amigo olhou para mim e riu sua
risada de sarro. “Verbo Intransitivo, Raquinho, não precisa de complemento
para formar o predicado”, e o Raquinho olhou para mim, assustado, seja
A pela presença, seja pelas palavras complicadas. Alí estavam de novo seus
olhos de terror, mas ele não falou nada, olhou fixo e morto para o caderno.
(BARROSO, 2011, p. 31).

Os olhares entre a professora, o “estuprador” e o narrador sugerem a


confirmação da seguinte suspeita: a partir daquele momento ele também será

vítima daquele que, um dia, ele acreditou ser seu melhor amigo. Ele olha para o
905 fundo da sala e ao ver seu agora ex-melhor amigo, comenta: “De longe, na outra
• ponta da sala, o meu melhor amigo olhava e ria, ria largamente e com descaso,
apontando para mim como se eu fosse uma marica”. (BARROSO, 2011, p. 31).
Considerações finais
A linguagem simples, direta e sem artifícios retóricos não amenizam a
complexidade e a gravidade dos problemas apontados no conto, o que torna a
2 narrativa de Raquinho impactante, na medida em que envolve o leitor sensível
e afetivamente nas inúmeras situações desencadeadas e, ao final, proporcionam
0 uma atitude crítico-reflexiva de suma importância para que se possa pensar o
papel dos indivíduos na sociedade.
1 Identifica-se, sobretudo na produção de Barroso, o compromisso com
os acontecimentos de um mundo real, palpável e absurdamente desumano, haja
8 vista que suas personagens participam de tramas nas quais são rebaixadas e
completamente desqualificadas diante de situações em que os atos de violência
praticados são vistos ou assimilados como “normais”. Portanto, é possível afirmar
que seu realismo decorre de um trabalho de inovação das formas de expressão
e das técnicas de escrita pautadas na incorporação das “cenas” de um cotidiano
aparentemente desprovido de sentidos reveladores de uma ética e de uma moral
social comprometida com a integridade e com o bem-estar do outro. Por esta
razão, sua produção narrativa “não se apoia na verossimilhança da descrição
representativa, mas no efeito estético da leitura, que visa a envolver o leitor
afetivamente na realidade narrativa”(SCHØLLHAMMER, 2009. p. 59).
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__________. Violência. São Paulo: Boitempo, 2014.
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L CAIS NÃO DORME: O PORTO NO CONTO-REPORTAGEM: “UM DIA
NO CAIS”, DE JOÃO ANTÔNIO
L
Mariana Filgueiras de Souza (UFF)
A RESUMO: Este trabalho analisa o simbolismo do espaço do cais em diferentes
excertos literários brasileiros. País com sua história colonial marcada pela chegada
de naus portuguesas a Porto Seguro em 1500, e com 37 portos em sua orla, o
Brasil tem no cais importante elemento representativo na sua literatura. Ora como
referência de origem, ora como ante-sala idílica pararecepcionar imigrantes, ora
• como espaço de socialização e de formação de uma classe trabalhadora, o cais
absorve a mudança do olhar de escritores em relação ao espaço periférico das
908
cidades. Em João Antônio, o cais aparece pela primeira vez como personificação
• da sociedade, com subjetividade construída nas relações sociais, comerciais e de
trabalho. A partir da reflexão do lugar do escritor de Jonathan Crarye do conceito
de não-lugar de Marc Augé, verifica-se como o ambiente híbrido, unindo mar e a
terra, é contado por um gênero híbrido, unindo conto e reportagem.
Palavras-chave: Cais. Periferia. Hibridismo
2
Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
Álvaro de Campos, 1915
0 A cidade, os prédios e os morros dormem de todo. Cais não dorme. Não se apaga. Lá pelos
cantões, um que outro olho aceso fica no rabo da manhã. E fica.
João Antonio, “Um dia no cais”, 1968
1
Em O pensamento do coração e a alma do mundo, o psicólogo James
Hillman lembra que cada elemento da vida urbana tem importância psicológica.
8 Mas também observa, com consternação,que “o mundo das coisas públicas,
objetivas e físicas – prédios, formulários, colchões, placas de trânsito, embalagens
de leite, ônibus – é excluído da etiologia e da terapia psicológicas” (HILLMAN, 2010,
p. 85). Apesar de terem importância, as coisas públicas permanecem fora da alma,
argumenta, e deixam de ser incorporadas aos tratamentos psicológicos:
(...) as queixas dos pacientes evidenciam problemas que não são mais me-
ramente subjetivos, no sentido antigo. Pois, durante o tempo em que a psi-
coterapia teve êxito em aumentar a consciência da subjetividade humana, o
mundo no qual todas as subjetividades são estabelecidas se desintegrou. A
crise está num lugar diferente (...) A doença está agora “lá fora” (HILLMAN,
2010, p. 85).

Se a doença agora está localizada nos espaços de fora, no mundo, como


formulou Hillman, em A poética do espaço, o filósofo francês GastonBachelardjá
indicava a necessidade de a psicanálise dar atenção aos espaços internos de
localização das lembranças, como a casa, com seus quartos, cantos,sótãos e
porões. Na obra, ele propõe a criação de uma topoanálise: “A topoanálise seria
J então o estudo psicológico sistemático dos lugares físicos da nossa vida íntima. No
teatro do passado que é a nossa memória, o cenário mantém os personagens em
A seu papel dominante” (BACHELARD, 1984, p.202).
Se tanto os elementos públicos da vida urbana, como pontuou Hillman,
L como os espaços físicos da nossa intimidade, como acusou Bachelard, carregam
em si tamanha carga simbólica, é enriquecedor analisar a maneira pela qual
L os ambientes, as locações, os cenários exploram tal potência na literatura. Se
a doença pode se esconder no mundo porta afora ou no mundo porta adentro,

evocando o mundo almado do platonismo, a anima mundi1 – a maneira pela qual
A a alma dos espaços pode ser refletida nas obras literárias, a forma pela qual os
ambientes estão diretamente conectados à subjetividade dos personagens é o que
me interessa analisar nesse trabalho. Fazer uma espécie de topoanálise literária,
para tomar o exemplo do conceito de Bachelard. Neste sentido, pretendo observar
a simbologia do cais no conto-reportagem Um dia no cais, publicado pelo jornalista
• e escritor João Antônio na revista Realidade de agosto de 1968 e no livro de contos
909 Malhação do Judas Carioca, de 1975, autor cuja obra é objeto de estudo da minha
• dissertação.
O cais no imaginário literário brasileiro
País com sua história colonial marcada pela chegada das naus portuguesas
na localidade que ficaria conhecida como Porto Seguro, na Bahia, em 1500; onde
desde então 372portos públicos operam recebendo e enviando embarcações e
2 mercadorias; e tendo parte significante da sua extensão na orla, o Brasil tem farto
imaginário literário relacionado ao espaço do porto, das ribeiras, dos atracadouros,
0 da estiva, da docas, do cais.
Assim, num breve apanhado,o cais de Salvador aparece já na poesia de
1 Gregório de Matos, no século XVII, como espaçoreferencial de origem de imigrantes
no Brasil, o marco zero de quem chega ao país para viver, como ele – que nasceu
no Brasil, imigrou para Portugal e voltou a viver na Bahia. No poema “Preceito”,
8
por exemplo, o narrador satiriza a própria pobreza ante o enriquecimento de
comerciantes portugueses, assim como ele, também recém-estabelecidos na Bahia:
“E saltando no meu cais/ descalço, roto e despido/ sem trazer mais cabedal/ que

1  Expressão em latim que significa “a alma do mundo”, foi um conceito adotado por Platão em A
república, Timeu e Leis que se consiste em uma alma compartilhada pelo mundo, inseparável da
matéria.
2  De acordo com os dados oficiais da Secretaria Nacional de Portos, visualizados em 28 de janeiro
de 2018, em http://www.portosdobrasil.gov.br/assuntos-1/sistema-portuario-nacional, existem
37 portos públicos organizados no país, entre os quais portos com administração exercida pela
União ou delegada a municípios, estados ou consórcios públicos.
piolho e assobios” (MATOS, 1994, p.166). É o “meu cais”, o espaço de pertença na
terra onde resolveu viver, o pouco que tem além dos piolhos e assobios.
Outro exemplo marcante remonta ao século XIX: o Cais Pharoux, no Rio
de Janeiro, que também era conhecido como Cais dos Franceses (hoje, Praça XV),
e que emerge na literatura de Machado de Assisde maneira recorrente em crônicas,
contos e romances. Numa época em que os estrangeiros só poderiam chegar ao país
de navio, bem como todas as mercadorias e novidades, o Cais Pharoux é o primeiro
J oásis tropical para os desembarcados. O cais não é mais apenas a referência de
origem, como em Gregório de Matos, mas passa a ser também um personagem:
A o cais é belo, atraente, receptivo, um lugar onde as esperanças tomam fôlego.
No romanceEsaú e Jacó, de 1904, o cais era o início de um espetáculo: “No cais
L Pharoux esperavam por ele três carruagens, dois coupés e um Landau, com três
belas parelhas de cavalos. (...) A capital ofereciaainda aos recém-chegados um

espetáculo magnífico” (ASSIS, 2005, p. 79).
L
No romance Quincas Borba, de 1891, o mesmo cais aparecia como o
espaço das novidades, da modernidade, um microcosmo do mundo inteiro, com seus
A múltiplos sotaques e atividades simultâneas, provocando confusão ao personagem
que tomava contato com o lugar pela primeira vez. Numa das cenas do romance, o
personagem Rubião sofre um apagão ante todos aqueles estímulos:
Rubião acordou. Era a primeira vez que ia a um paquete. Voltava com a
alma cheia dos rumores de bordo, a lufa-lufa das gentes que entravam e
• saíam, nacionais, estrangeiros, estes de vária castas, franceses, ingleses,
alemães, argentinos, italianos, uma confusão de línguas, um cafarnaum
910
de chapéus, de malas, cordoalha, sofás, binóculos a tiracolo, homens que
• desciam ou subiam por escadas para dentro do navio, mulheres chorosas,
outras curiosas, outras cheias de riso, e muitas que traziam de terra flores
ou frutas, — tudo aspectos novos. Ao longe, a barra por onde tinha de ir o
paquete. Para lá da barra, o mar imenso, o céu fechado e a solidão. Rubião
renovou os sonhos do mundo antigo, criou uma Atlântida, sem nada saber
da tradição. Não tendo noções de geografia, formava uma idéia confusa dos
2 outros países, e a imaginação rodeava-os de um nimbo misterioso. (ASSIS,
1997, p.94)
0 Na crônica publicada em 20 de outubro de 1895, no jornal A semana, ao
imaginar a chegada da famosa anarquista francesa Louise Michel (1830-1905) ao
1 Rio, evento improvável e relatado com sátira, Machado também reforça o cais como
espaço onde se fundava a primeira impressão do Brasil:
8 Desde que li a notícia da vinda de Luísa Michel ao Rio de Janeiro tenho esta-
do a pensar no efeito do acontecimento. A primeira cousa que Luísa Michel
verá, depois da nossa bela baía, é o cais Pharoux atulhado de gente curiosa,
muda, espantada. A multidão far-lhe-á alas, com dificuldade, porque todos
quererão vê-la de perto, a cor dos olhos, o modo de andar, a mala. (ASSIS,
1995, p.293).

Na crônica de Olavo Bilac, escrita em 23/11/1902, o mesmo cais é “uma


entrada”, “ante-sala”, mas “imunda”, “nossa maior vergonha”. Um espaço que
deveria estar arrumado para a chegada das visitas, reforçando o caráter de ambiente
onde é formada a concepção primeira da nação, e cuja “reforma inteligente” deveria
ser digna de nota.
O vestíbulo da cidade é o Cais Pharoux. Há poucos meses, aquilo era uma
entrada de estalagem imunda. Hoje, se ainda não é uma ante-sala deluxo, já
não tem felizmente o aspecto nauseabundo, que era nossa maior vergonha.
Uma reforma inteligente limpou aquela grande nodoa. (BILAC, 1902, p. 2)

De ante-sala do país a espaço de trabalho e socialização


J
Ainda no início do século XX, as crônicas de João do Rio já migram de
uma percepção do cais como a “ante-sala” do país paraum espaço de socialização
A e de trabalho. Um “viscoso de imundície e vícios”, mas quetambém erareduto do
“exército de infelizes” que nele esmolava, fazia bicos, tinha pequenas profissões,
L como descrito pelo jornalistano texto “Profissões exóticas”, publicada na Gazeta
de Notícias do Rio de Janeiro em 6/08/1904.Vale ressaltar que João do Rio é
L considerado o precursor da grande reportagem no Brasil, o que indica seu interesse
em descrever os aspectos mais realistas dos espaços urbanos, e que ele mesmo
é um representante brasileiro da figura do flâneur de Baudelaire, ou seja, um
A “homem do mundo”, muito mais atento à realidade que o cerca nas ruas do que ao
claustro dos ambientes de gabinete:
Descrever a vida de fumadores de ópio e prostitutas, de presidiários e men-
digos, de muambeiros e camelôs do Rio de Janeiro – a pauta era ousadís-
simaparaaqueleinício de século XX no Brasil. E nãosópelotipo de person-
• agemqueela se dispunha a catarnasarjeta: haviatambém um fatoque um
jornalista, nestaépoca, nãocostumavadescer à ruaembusca de inspiração,
911
muitomenos de informação, aocontrário do quejáfaziamseuscolegasamer-
• icanos. Tudo no Brasil se resolviapelaonisciência das redações, ondeim-
peravamoscomentaristas e osarticulistas –atéque um deles, João do Rio,
pseudônimo do jornalista e escritor carioca Paulo Barreto, aparecesse com
suaspautasousadas e seuímpeto de repórter.Foiele um dos primeirosjorna-
listasbrasileiros a sair do gabinete e dos salõesgrã-finosparabuscar a notí-
ciaembecos e avenidas. (A REVISTA NO BRASIL,2000, p. 41)
2
A crônica “Profissões exóticas” começa com a descrição da vista idílica do
cais para o mar: “Do cais via-se para os lados do mar, cortado de lanchas, de velas
0
brancas, o desenho multiforme das ilhas verdejantes, dos navios, das fortalezas”
(RIO, 1997, p. 54). Em seguida, o contraste da descriçãorealista da vista do mar em
1 direção ao cais: “Pelos bulevares sucessivos que vão dar ao cais, a vida tumultuária
da cidade vibrava num rumor de apoteose, e era ainda mais intensa, mais brutal,
8 mais gritada, naquele trecho do Mercado, naquele pedaço da rampa, viscoso de
imundície e de vícios” (RIO, 1997, p. 54). O narrador então apresenta um dos tipos
presentes, desses que convencem os passantes a comprar qualquer coisa, à guisa
de lábia e vigarice, o “cigano”.
O catraieiro sorria, o cigano era presa de uma agitação estranha, agarrando
a vitima pelo braço, pela camisa, dando pulos, para lhe cochichar ao ouvido-
palavras de maior tentação (...). Eduardo, que nessa tarde passeava comigo,
arrastou-me pelo ex-largo do Paço, costeando o cais até a velha estação das
barcas.
– Admiraste aquele negociante ambulante?
– Admirei um refinado vigarista...
– Oh! Meu amigo, a moral é uma questão de ponto devista. Aquele cigano faz
parte de um exército de infelizes, a que as condições da vida ou do próprio
temperamento, a fatalidade, enfim, arrasta muita gente. (RIO, 1997, p.55)

Ao apresentar o cais como um ambiente de simbologia dúbia no início


da crônica, de onde se tem tanto o ponto de vista da terra (o idílico, o aventuresco,
as imagens de quem se lança ao mar rumo ao desconhecido) quanto o do mar (de
J quem aporta na atropelada realidade das cidades e sua gentemiserável), dando ao
leitor uma nova perspectiva acerca do mesmo espaço, João do Rio antecipa o que
A vai fazer em seguida, quando amplia também as possibilidades de percepção em
relação às pessoas que vivem no cais – e não só o das pessoas que desembarcam
L no cais. No caso, o “cigano”, apresentado como malandro, vigarista, aproveitador,
mas que também faz parte de um “exército de infelizes” que exerce sua “profissão

exótica” à sua maneira.Em outro exemplo: “Muito pobre diabo por aí parece
L sem ofício, sem ocupação. Entretanto, coitados! O ofício, as ocupações, não lhes
faltam, e honestos, trabalhosos, inglórios, exigindo o faro dos cães e a argúcia dos
A repórteres” (RIO, 1997, p.56).
Essa ampliação da percepção das características do espaço no texto
revelaa própria ampliação da percepção do repórter, que direciona um olhar mais
subjetivo ao mundo ao seu redor, que estende mais o tempo no cais paracapturar
as nuances de tipos, seus modos de fala, seus hábitos e práticas. O olhar de João
• do Rio era um exemplo das mudanças que a figura do observador engendraria ao
912 longo do século XIX, na Modernidade, ao adotar uma visão cada vez mais subjetiva
– e que impregnaria o campo da história, soociologia, da arte e da literatura,

culminando na fotografia e no cinema –como analisa o sociólogo Jonathan Crary
em Técnicas do observador:
O observador sofre um processo de modernização no século XIX, ajustando-
-se a uma constelação de novos acontecimentos, forças e instituições que,
juntos, podem ser definidos, de modo vago e talvez tautológico, como ‘mo-
2 dernidade’ (...). Ao longo do século XIX, ocorre uma nova valoração da expe-
riência visual: ela adquire mobilidade e intercambialidade sem precedentes,
0 abstraídas de qualquer lugar ou referencial fundante” (CRARY, 2012, p. 22).

Assim, na sua maneira de reportar, dando mais tempo ao tema, o flâneur


1 e carioca João do Rio exercitava a empatia e provocava a alteridade. Outro exemplo
é a reportagem “Os trabalhadores da estiva”, publicada na Gazeta de Notícias em
8 19/06/1904. No texto, o entendimento do cais como um espaço de trabalho, e
mais ainda,como espaço de formação de uma classe, a classe dos estivadores, fica
ainda mais claro:
Eu resolvera passar o dia com os trabalhadores da estiva e, naquela confu-
são, via-os vir chegando a balançar o corpo, com a comida debaixo do braço,
muito modestos. Em pouco, a beira do cais ficou coalhada. Durante a últi-
ma greve, o delegado de polícia dissera-me:
– São criaturas ferozes! Nem a tiro...
Eu via, porém, essas fisionomias resignadas à luz do sol e elas me impres-
sionavam de maneira bem diversa. (...) Que querem eles? Apenas ser con-
siderados homens dignificados pelo esforço e a diminuição das horas de
trabalho, para descansar e para viver. (RIO, 1997, p. 161)

Na década de 30, na literatura regionalista de Jorge Amado, o caisjá


aparece no seu primeiro romance, Jubiabá, de 1933, e torna-se ambiente recorrente
no seu imaginário praieiro, que é, por si só, um fundamento da sua narrativa.
Em Jubiabá, é o espaço idealizado, zona de refúgio para Antônio Balduíno, o
protagonista. O lugar onde o jovem busca proteção das intempéries das ruas, onde
J vive de pequenos bicos, furtos e amores.
Antônio Balduíno sabe a história de todos estes saveiros e de todas estas
A canoas. Desde menino gosta de vir deitar aqui no areal do cais, a carapinha
no travesseiro da areia, os pés metidos dentro d’água. A água é morna e
gostosa a estas horas da noite. Balduíno, às vezes, fica pescando, silencioso,
L o rosto se abrindo em sorrisos quando fisga um peixe. Porém em geral olha
somente o mar, os navios, a cidade morta lá atrás. (AMADO, 1997, p. 119)
L Paralelamente aos romances de Jorge Amado, as canções de Dorival
Caymmi , seu parceiro e amigo, também tinham o cais no mesmo referencial
A simbólico: o habitat dos pescadores, lugar de tirar o sustento da vida e de morrer,
como no verso-título da canção “É doce morrer no mar”, composta por ambos, letra
de Jorge Amado e melodia de Caymmi. O cais recobrando a sua perspectiva idílica,
romântica, de sonho, acolhimento e aventura. No prefácio de Mar Morto, obra que
inspirou a música, Jorge Amado escreve: “Eu [a] ouvi nas noites de lua do cais
• do mercado, nas feiras, nos pequenos portos do Recôncavo.” (AMADO, 1996, p.7)
913 Em Cancioneiro da Bahia, Caymmi diz: “Nada mais sou do que um homem do cais
da Bahia. Grande parte da minha obra musical reflete esse ambiente, essas vidas,

esses dramas” (CAYMMI, 1978, p. 18).
Um dia no cais, o primeiro conto-reportagem
Em 1968, o jornalista e escritor João Antônio repetiria o feito de João do
Rio, ao mirar na rotina do cais como assunto de reportagem. Se João do Rio foi
2 para o Porto do Rio, no entanto, João Antônio foi parar no maior porto do Brasil, o
Porto de Santos, em São Paulo. Freqüentaria o local por um mês acompanhado do
0 fotógrafo Jorge Butsuem, e publicaria o texto Um dia no caisna revista Realidade.
A própria revistaRealidade já era um marco editorial no Brasil:

“Criada em 1966 pelo então jovem editor Roberto Civita, a publicação reuniu
1 uma ótima equipe de jornalistas e fotógrafos que levaram meses apurando
cada reportagem, com autonomia e independência, num momento em que o
8 país acanhava-se diante da ditadura militar. Era um tempo emque o Brasil-
precisava se conhecermelhor e Realidadeajudou o país a descobrir-se. Além
disso, paraosjornalistas, elarepresentou um degrauacimanavalorizaçãoda-
profissão e no estabelecimento de parâmetros de qualidadenareportagem-
dalipordiante. Emdezanos, a revistaganhousetePrêmiosEsso de Jornalismo,
teveumaediçãointeiraapreendidapelacensura e chegou a vender 446 mil ex-
emplares num únicomês. Fechouem 1976, com umatiragem de 120 mil ex-
emplares. (SCALZO,2003 p.17)

Um dia no cais, portanto, foi o primeiro conto-reportagem publicado


no Brasil, marcando o início da prática do New Journalism no país, o chamado
jornalismo literário, vertente surgida no fim dos anos 60 nos Estados Unidos e
que se caracterizava por usar métodos pouco tradicionais na reportagem – como
a imersão do jornalista no ambiente do assunto tratado, a narração de cenas e
diálogos de maneira realista, e um outro uso do tempo na feitura do texto, que
agora teria uma aproximação estética mais burilada. Gênero híbrido a priori, o
conto-reportagem pairava num espaço intermediário entre a ficção e a realidade,
um entrelugar, “bastardo tanto na literatura quanto no jornalismo” (FILHO, 2008,
J p. 29).
Sobre as cenas e personagens reais que viu no mês em que frequentou
A o Porto de Santos –e sintonizado ao que praticavam os americanos Norman
Mailer, Truman Capote e Tom Wolfe, expoentes do New Journalism – João Antônio
L entalhou uma história com a carpintaria do conto. Eledescreve um dia inteiro no
cais, do amanhecer ao anoitecer, unindo personagens e suas circunstâncias num

só propósito: personificar o cais, dando-lhe caráter e vida própria.
L
A personificação é construída pelo narrador, ao atribuir ao ambiente o
ponto de vista subjetivo: “As cidades, os prédios e os morros dormem de todo. Cais
A não dorme. Não se apaga. Lá pelos cantões, um que olho aceso fica no rabo da manhã”
(ANTÔNIO, 1975, p.41).Ou no trecho em que o cais vai se revelando um espaço de
reflexo da profunda desigualdade social do país: “O cais dá carros importados para
alguns e sapeca calombo e canseira no lombo da maioria” (ANTÔNIO, 1975, p.48).
Ainda que sujeito, o cais escapa à qualquer caracterização resolutiva. É
• um espaço peculiar, que abriga as embarcações que chegam, suas mercadorias,
914 suas gentes e suas demandas de acordo com a flutuação das ordens do dia. E
• que não é marcado por uma identidade previamente determinada, como seriam os
próprios espaços que o antecedem e o sucedem, como o interior de um navio ou as
ruas da cidade. Um “não-lugar”, na definição de Marc Augé: “Se um lugar pode se
definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir
nem como identitário, nem como relacional nem como histórico definirá um não-
2 lugar” (AUGÉ, 1994, p. 73).
Principal porto do país, o porto de Santos de 1968 abarca bares,
restaurante, um diversificado pequeno comércio, para as atividades do dia,
0
que também eram vertidos em espaços de lazer durante a noite, onde a eles se
acrescentavam os bordeis e casas de show. As tentativas de compará-lo a algum
1 outro espaço parecem inócuas ao autor: “Homens da estiva chegam de bicicleta,
uma e outra motoneta. Caminhões carregados de gente descarregam. O cais parece
8 uma fábrica”(ANTÔNIO, 1975, p.43).
O cais contado por João Antônio é um espaço com suas próprias leis, o
que reforça seu caráter subjetivo. Diante de uma briga de prostitutas, o narrador
estabelece: “É lei – malandra que é malandra, no cais, não deve ir com trouxa.
Toma-lhe o milho no jeito, debaixo de picardia e manha (...) Briga de mulher pode
ir quente, gente do cais não faz fé” (ANTÔNIO, 1975, p.42).
E no entanto, apesar de fugir à domesticação de uma definição certeira,
e de manter suas leis próprias, o narrador indica que todos os personagens se
sentem em casa no cais.
Molecada miúda se escarrapacha jogando bola. Gente magra, muita, suja,
escurecida, andrajosa, mora apertada com crianças, cães, velhos velhos,
gatos quizilentos (...) Gente sentada, quentando sol nas soleiras urinadas.
Esmoleiros. (ANTÔNIO, 1975, p. 45)

O cais de João Antônio é um saloon de personagens urbanos: circulam


por ele o marinheiro estrangeiro, o estivador brasileiro, a prostituta adolescente, o
dono do botequim, o garçom, a velha pedinte, os meninos de rua, os velhos bêbados,
J policiais à paisana, vendedores, ladrões, motoristas de guindastes, portuários,
mendigos, passageiros, cafetões, feirantes, pescadores, engraxates, cozinheiras,
A tatuadores. Todos cruzam a trama com algum trejeito impregnado de caráter, como
se a soma de todos eles compusesse a grande personalidade do cais. Como nos dois

trechos a seguir:
L
Lá com os trabalhadores das docas começa a muita gíria de gestos. A mí-
mica é o jeito inventado dos homens de estiva nos porões dos navios. Assim
L falam aos portuários e aos homens do guindaste, plantados lá em cima, nas
cabinas. Os da estiva lá dobrados, patoludos, trabalhando. Sacos amarra-
dos à cabeça, bermudas esburacadas, sapatos com meias e pernas peladas.
A Mãos enluvadas para o batente. Gramam. (ANTONIO, 1975, p. 43)
Os meninos engraxates e os meninos vendedores de amendoim, ativos. Cha-
mam o gringo, engrolam a língua estrangeira, fazem micagens para apa-
nhar um. As perninhas se mexem nas calças rampeiras, curtas: “Amigo,
myfriend, come back!” (ANTONIO, 1975, p. 49)

O caisde João Antônio é o pastiche do mundo. Nele estão espelhadas
915 relações comerciais e relações de trabalho; a rotina de prostituição e a da
• mendicância; os exemplos de miséria e violência; o flagrante da ausência do Estado
num espaço em tese gerido pelo Estado. Relações, rotinas e flagrantes que só se
dão da forma que se dão porque ocorrem no cais, um espaço de trânsito e de
contato efêmero entre seus freqüentadores, um terreno híbrido entre o mar e a
terra, o único ponto comum entre as chegadas e as partidas. Um cais que resiste,
2 na leitura, à interpretação restrita de ambiência ou cenário da trama, mas que
se mostra sujeito ativo da ação poética, e que oferta sua “disponibilidade para
a imaginação, sua presença como realidade psíquica”3. Afinal, “Cais não dorme”
0
(ANTÔNIO, 1975, p.41). O cais surge como um espaço híbrido contado por um
gênero híbrido, eis o exercício do autor.Se o espaço é um fundamento da narrativa
1

8 3  Retomando a obra de James Hillman, O pensamento do coração e a alma do mundo, quando
ele propõe que a doença do mundo – ou seja, as questões externas, influencias sociais, condições
ambientais, etc – sejam levadas para dentro do consultório como parte indissociável do tratamento
analítico, ele fala em recuperar a “anima mundi”, a alma do mundo: “Não imaginemos a anima
mundi nem acima do mundo que a circunda, como emanação divina ou remota do espírito, um
mundo de poderes, arquétipos e princípios transcendentes às coisas, tampouco dentro do mundo
material como seu princípio de vida unificador pampsíquico. Em vez disso, imaginemos a anima
mundi como aquele lampejo de alma especial, aquela imagem seminal que se apresenta, em sua
forma visível, por meio de cada coisa. Então, a anima mundi aponta as possibilidades animadas
oferecidas em cada evento como ele é, sua apresentação sensorial como um rosto revelando sua
imagem interior – em resumo, sua disponibilidade para a imaginação, sua presença como uma
realidade psíquica” (HILLMAN, 2010, p.89).
moderna, o cais, neste exemplo, torna-se um fundamento da reportagem de João
Antônio.
Vale ressaltar que, se João Antônio repete em Um dia no caiso exercício
de empatia e alteridade que João do Rio provoca em “Profissões exóticas” e “Os
trabalhadores da estiva”, ao apresentar as nuances dos seus personagens e
imantar de alma o protagonista, o cais, é porque também repete a prática de uma
observação mais demorada no espaço que reporta – se não afetado pelas mudanças
J de percepção do sujeito na modernidade, certamente embebido pela ruptura de
paradigma que o jornalismo ganharia com as práticas do NewJournalism.
A Certa vez, em carta escrita ao amigo Sergio Caldieri, em 1987, enviada
de Cuba, onde participava como jurado do Premio Casa de Las Américas, João
L Antonio contou quehavia sido internado em Havana por complicações de saúde.
Admirado com o tratamento exímio do serviço público cubano, relatou ao amigo:
“Também aprendo e reaprendo que é mais fácil conhecer um povo nos hospitais,
L
nas cadeias, nas casernas”. Talvez João Antônio tenha se esquecido de acrescentar
que, por sua experiência pessoal, conhecer um povo também se faz visitando
A também alguns de seus cais.
Referências
A REVISTA NO BRASIL. São Paulo: Editora Abril, 2000.
AMADO, Jorge. Jubiabá. Rio de Janeiro: Record, 1997.
• AMADO, Jorge. Mar morto. Rio de Janeiro: Record, 1996.

916 ANTÔNIO, João. Malhação do Judas Carioca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. 3v.

AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. 6a. edi-
ção. Trad. Maria Lúcia Pereira. Campinas, São Paulo: Papirus, 1994.
AZEVEDO FILHO, Carlos Alberto Farias de. Hibridismo e ruptura de generos em João
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BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 2a. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
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BILAC, Olavo. Crônica publicada da Gazeta de Notícias em 23/11/1902

CAYMMI, Dorival. Cancioneiro da Bahia. Rio de Janeiro: Record, 1978.
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CRARY, Jonathan. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2012.
1 HILLMAN. O pensamento do coração e a alma do mundo. Rio de Janeiro: Verus Editora,
2010.
8 LONGO, Mirella Márcia. Memórias do cais: Caymmi, canções e fontes. In: Literatura e
sociedade. No. 4. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999.

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SCALZO, Marília. Jornalismo de Revista. São Paulo: Contexto, 2003
SEVERIANO, Mylton. Paixão de João Antonio. São Paulo: Casa Amarela, 2005.
J

A

L HINO DO SERINGUEIRO: MÚSICA CANTADA PELOS
SERINGUEIROS DE XAPURI NOS EMPATES COMO
L ENFRENTAMENTO AO PODER

A Marilene Nascimento da Silva (UFF)
RESUMO: Este texto o qual apresenta informações de uma dissertação de Mestrado
em andamento, pretende reconhecer a música, de autoria de Toinho do Jutai,
denominada Hino do Seringueiro, cantada originalmente pelo movimento de
seringueiros do município de Jutaí - Am, motivado pelas Comunidades Eclesiais
• de Base – CEBs e pelo Movimento de Educação de Base – MEB, ambos ligados
917 à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, que tornou-se, para os
seringueiros de todos os Estados da Amazônia presentes no I Encontro Nacional
• de Seringueiros (1985), como símbolo de enfrentamento ao poder cantado nos
Empates pelos seringueiros de Xapuri – Ac. Este texto está vinculado ao programa
de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade da Universidade Federal do
Acre – UFAC e tem como objeto de estudo a Memória das Práticas Educativas do
Projeto Seringueiro. E o seu objetivo é Analisar as práticas educativas do Projeto
2 Seringueiro na formação dos alfabetizandos adultos acerca das questões cotidianas
e insere-se na metodologia dos estudos qualitativos e documental.
0 Palavras-chave: Música, empates, seringueiros.

1 A música, enquanto disciplina histórica insere-se na história da arte e no
estudo da evolução cultural dos povos. A teoria da área cultural analisa a música

de acordo com as regiões nas quais as pessoas compartilham a mesma cultura,
8 sem atribuir a essas áreas um significado ou valor histórico. A essas práticas,
Napolitano (2002) chama de música popular ou canção. Para este autor, a música
popular é um produto do século XX “adaptada a um mercado urbano e intimamente
ligada à busca de excitação corporal (música para dançar) e emocional (música
para chorar, de dor ou alegria...)” (p. 8).
Em sua gênese, a música popular, segundo Napolitano (2002),está
associada à urbanização e ao surgimento das classes populares e médias urbanas.
Esta nova estrutura socioeconômica, conforme o autor, é produto do capitalismo
monopolista, o qual fez com que o interesse por um tipo de música intimamente
ligada à vida cultural e ao lazer urbano, aumentasse. Daí as relações entre música
popular e história, assim como a “história da música popular no Ocidente, passou
a ser pensada dentro da esfera musical como um todo, sem as velhas dicotomias:
erudito versus popular” (p. 9).
Napolitano (2002) assegura, ainda, que aos meados de 1890, inaugura-
se o surgimento da cultura de massa e as novas estruturas monopolísticas, a qual,
segundo ele, passa a tomar conta do mercado.Com isso, surgem novas formas de
J dança e espetáculos. Outro momento significativo apontado por Napolitano é o que
marca a mudança na música popular, cujo acorrido se deu depois da II Guerra
A Mundial. De acordo com o autor
Nesse contexto, a experiência musical é o espaço de um exercício de “li-
berdade” criativa e de comportamento, ao mesmo tempo em que se busca
L a “autenticidade” das formas culturais e musicais, categorias importantes
para entender a rebelião de setores jovens, sobretudo oriundos das classes
L trabalhadoras inglesas ou da baixa classe média americana. (p. 9)
Nesse sentido, ele assegura que a música popular emergiu do sistema
A musical ocidental, tal como foi consagrado pela burguesia no início do século
XIX. Já a dicotomia popular/erudito nasceu mais em função das próprias tensões
sociais e lutas culturais da sociedade burguesa, do que por um desenvolvimento
natural do gosto coletivo, em torno de formas musicais fixas. Para ele, a questão
da música popular deve ser entendida e analisada dentro do campo musical como
• um todo e que deve nortear os trabalhos sobre música popular, principalmente na
918 área de história e sociologia.

• Música X poder: construção de uma identidade


No que concerne às definições sociológicas, a música popular segundo
Napolitano (2002, p. 10), “estaria associada a (ou produzida) por grupos sociais
específicos”. Nessa perspectiva, um grupo social residente numa realidade
amazônica, composta por diferenças culturais, e com muitas possibilidades de
2 vivências coletivas e experiências de vida, os denominados seringueiros de Xapuri,
assumem em seu cotidiano de lutas e labutas a música “Vamos dar valor ao
0 Seringueiro”, de autoria de Toinho do Jutai1, que eles ouviram e cantaram no I
Encontro Nacional dos Seringueiros2. Eis abaixo a letra da música:

1 Hino do Seringueiro
Toinho do Jutaí – Am.
8 REFRÃO: Vamos dar valor ao seringueiro
Vamos dar valor a essa nação

1  Jutaí é um município amazônico situado no Estado do Amazonas, grande produtor de látex, por
meio da exploração da força de trabalho de indígenas convertidos compulsoriamente em seringueiros
e de nordestinos e seus descendentes transladados à força de uma propaganda enganosa que lhes
prometia o paraíso na Amazônia.
2  Evento promovido em 1985, a partir de mobilizações iniciadas em Xapuri, sob iniciativa do
Sindicato dos Trabalhares Rurais – STR, e assessoria do Centro dos Trabalhadores da Amazônia –
CTA. O encontro teve a participação de seringueiros representantes de todos os Estados da Região
Amazônica.
Pois é com o trabalho desse povo
Que se faz pneu de carro e pneu de avião(bis)!
Fizeram o chinelinho, fizeram o chinelão
Inventaram uma botina que a cobra não morde não
Tanta coisa da borracha que eu não sei explicar não
Encontrei pedaços dela em panela de pressão(bis)!

J Esta música, denominada Hino do Seringueiro, era cantada originalmente


pelo movimento de seringueiros do município de Jutaí. O movimento era organizado

e motivado pelas Comunidades Eclesiais de Base – CEBs e pelo tornou-se, para
A todos os seringueiros de todos os Estados da Amazônia presentes no I Encontro
Nacional de Seringueiros, um motivador no enfrentamento ao latifúndio e ao poder
L estatal que dava cobertura oficial aos desmandos dos latifundiários, num momento
em que estes avançavam com as fazendas de gado destruindo milhares e milhares
L de seringais, convertendo-os em pastagem e jogando grandes exércitos de homens
e mulheres na marginalidade nas periferias das cidades amazônicas, notadamente
em suas capitais, onde cotidianamente explodiam conflitos urbanos, gerados pela
A
incapacidade de receberem esses contingentes de marginalizados do campo. Para
Souza (2016)
a partir de categorias originais com vistas a dar conta de que a América Lati-
na, desde a origem, é envolvida/dominada por um padrão de poder colonial
de âmbito mundial que subsistiu – sendo seu produto– ao período histórico
• do colonialismo e que se mantém sob a capa de modernidade.(p. 15).
919
Os seringueiros de Xapuri cantavam o “Hino do Seringueiro” nos
• momentos mais diversos de suas lutas e até mesmo em momentos de lazer, nos
forrós e nas rodas de lazer musicais, muito comuns entre os anos de 1970 e 1990,
mas o entoavam, sobretudo nos empates. Empates é como ficou conhecida uma
estratégia dos seringueiros para impedir a derrubada da floresta e a sua conversão
em pastos para alimentar gado de corte exportação. O primeiro Empate ocorrido no
2 Acre aconteceu no seringal Carmem no município de Brasileia, no dia 10 de março
do ano de 1976. Nesse episódio, os seringueiros se organizaram para impedir que
0 uns 100 (cem) peões contratados por um fazendeiro chamado Francisco de Souza
Medeiros, o Coronel Chicão, desmatassem uma grande área daquele seringal. A
mobilização iniciou sob a iniciativa de três seringueiros que seriam prejudicados
1 diretamente com aquela ação do fazendeiro. Eles passaram a reunir outros
companheiros, convencendo-os de que a luta direta era a única forma de impedir
8 que a devastação chegasse a todas as colocações dos demais seringueiros, até que
o fazendeiro expulsasse todos do local, uma vez que eles não podiam contar com
ações nas vias judiciais. Neste trabalho de convencimento, os três companheiros
conseguiram mobilizar 60 (sessenta) seringueiros, homens e mulheres, para a ação
e lograra mérito, fazendo parar a derrubada: Conseguiram EMPATAR a devasta cão
da floresta.
Do ponto de vista operacional, o empate consiste nos seringueiros se
colocarem entre a floresta e os peões, dialogando com eles para desmobilizarem seus
acampamentos e forçá-los à retirada, no intuito de evitar os desmatamentos, mesmo
havendo recorrências judiciais por parte dos fazendeiros, os quais conseguiam
o apoio da justiça para garantir a derrubada da mata. Os empates ficaram
conhecidos como um movimento pacifista, por contar com a presença de mulheres
e crianças que se deslocavam para a área, juntamente com os homens, assim que
a polícia aparecia com seu pesado armamento, constituído por metralhadoras e
fuzis, para garantir que o fazendeiro consumasse seu intento de destruir a floresta,
que sustentava com dignidade a vida de centenas de seringueiros. Os homens
J seringueiros participavam desses atos totalmente desarmados, já as mulheres,
usavam como armas as suas vozes, entoando cânticos das CEBs e após o I Encontro
Nacional de Seringueiros, o hino dos seringueiros.
A
Segundo relatos de Chico Mendes, a presença das mulheres e das crianças
L fazia com que a polícia refletisse, e, em muitos momentos, recuava, porque pensava
duas vezes em atirar numa mulher ou numa criança. Em alguns casos, quando a

área era muito distante da sede municipal, se levavam muitos dias para se ter uma
L solução, mas quando se tratava de uma área próxima à sede municipal ou à uma
rodovia, a polícia solicitava um caminhão do próprio fazendeiro e levava presos
A para a cidade os seringueiros que eles consideravam líderes do ato, e os torturava
dando coronhadas com o coice do fuzil, chegando em alguns casos a quebrar-lhes
os dentes. Mesmo com toda essa violência os seringueiros não desistiam da luta.
E era, sobretudo nesses momentos que se cantava o Hino do Seringueiro, como
estímulo e símbolo de resistência no enfrentamento ao poder dos fazendeiros e do
• Estado apoiador dos latifundiários.
920 Porque “Hino do Seringueiro”?
• O estudo da música Hino do Seringueiro consiste em analisar como o
compositor expressa sua afetividade em um construto indenitário, tomando como
referencial o seringueiro, cujo objeto aponta para um elemento de presença marcante
na realidade geofísica e sociocultural da região amazônica, lugar de vivência e
experiências do seringueiro. Contraria-se aqui, para a evidência da valorização
2 do seringueiro e da borracha, o que Souza (2016) aponta como o fenômeno da
colonização em que o “ser amazônico no caso os indígenas e os seringueiros, é
tratado enquanto não-ser, através da sua invisibilidade, enquanto humanidade,
0
e instrumentalidade, enquanto mão-de-obra”. (p.74). Ao produzir a borracha,
capacidade que somente o seringueiro tem, faz dele um ser privilegiado e imbuído
1 de sentimento indenitário. É por isso que ele canta e aposta no movimento, haja
vista que “apesar de toda a sua destruição a borracha [...] em 1986, no Estado do
8 Acre [...] foi responsável por 45% da arrecadação do Imposto Sobre Circulação de
Mercadorias – ICM, enquanto a pecuária [...] 5% do ICM”.

No curso da identidade
Na expressão: “Vamos dar valor ao seringueiro. Vamos dar valor a essa
nação. Pois é com o trabalho desse povo que se faz pneu de carro e pneu de avião!”
Ao mesmo tempo em que o seringueiro reivindica o reconhecimento da sua categoria
e do seu espaço/nação, está reconhecendo a sua produtividade, apropriada e
beneficiada por outros (empresas multinacionais) cujo empreendimento se expressa
em desenvolvimento e progresso.
Vemos isso nas expressões: chinelinho, chinelão, botina e pedaços em
panela de pressão, os quais são produtos construídos a partir da borracha, mas que
não são usados pelos seringueiros. Evidencia-se o uso da força de trabalho a qual
favorece a economia gutífera, que por sua vez fortalece a política de concentração
de lucro. Esses atributos encontram respaldo no que Bourdieur (2011), vai chamar
de poder simbólico,
O poder está por toda a parte e em todas as situações, mesmo que não quei-
J ra reconhecê-lo. Um poder invisível o qual só pode ser exercido com a cum-
plicidade daqueles que não querem saber que lhes estão sujeitos ao mesmo
tempo em que o exercem. A isso, dá-se o nome de poder simbólico. (p. 9-10)
A
É importante, todavia, apontar, aqui, uma situação interessante ocorrida
L no I Encontro Nacional de Seringueiros, trata-se da criação de uma entidade
constituída pelos verdadeiros produtores de borracha da Amazônia, o Conselho

Nacional de Seringueiros - CNS, diferente do já existente Conselho Nacional da
L Borracha – CNB, criado no auge da ditadura civil militar pela Lei nº 5.227, de 18
de janeiro de 1967, e que dispunha acerca da política econômica da borracha. Este
A Conselho, altamente elitista, era organizado de cima para baixo e sem a mínima
representação da categoria dos seringueiros. Eis como ele era constituído:
a) Pelo Ministro da Indústria e do Comércio, que o presidirá;
b) um representante do Ministro do Planejamento e Coordenação Geral;
• c) um representante do Banco Central do Brasil;
d) um representante do Banco da Amazônia S.A.;
921
e) um representante do Ministério do Interior;

f) um representante do Ministério da Agricultura e
g) um representante do Estado-Maior das Forças Armadas.

Daí, dentre outras, a diferença entre CNS e CNB. O primeiro foi criado
pelos seringueiros, em 1985 no I Encontro Nacional dos Seringueiros. Já o segundo,
2 existia desde a época do mandonismo militar, aparecendo como representante e
defensor dos seringalistas, os patrões, que eram considerados como produtores
0 de borracha. Se os patrões e os seringalistas não produzem borracha, não havia
motivos para eles terem um conselho para beneficiá-los!
1 O senhor Jaime da Silva Araújo, que foi eleito o primeiro presidente do
CNS, compôs, com base na música do hino, uma segunda estrofe que foi a ele
8 anexada. Ei-lo abaixo.
“Pneu de bicicleta não é de requeijão!
Não é couro de gado o pneu do avião!
Não é com chifre de vaca que se apaga letra, não!
São produtos de borracha feitos pelas nossas mãos!”
Lendo os versos compostos pelo senhor Jaime, o leitor poderá identificar
algumas afirmações referentes aos produtos derivados da borracha que são positivos
para a sociedade e que contrastam com a produção agropecuária, mostrando que
estes não substituem aqueles.
Essa contradição de imagens torna-se relevantes para a compreensão da
indignação do seringueiro no que diz respeito à outra forma de exploração humana e
da natureza até então desconhecida por ele. No dizer de Souza (2016) “no serialismo
se instala a divisão instaurada pelo regime moderno-colonial entre seres humanos
(os patrões), seres sub-humanos (os seringueiros) e seres não humanos (animais,
plantas e indígenas)” (p.67).
No entanto, aqui se tem uma relação conflituosa. Ao produzir borracha
J o seringueiro não desmata a floresta, pois ele sabe cultivar a terra com equilíbrio,
fruto de sua observação da natureza e do aprendizado com os indígenas, primeiros
A donos da terra americana. Por outro lado, pensando nos produtos advindos
da criação bovina, tem-se primeiramente a floresta derrubada, a presença de
L queimadas, o assoreamento dos rios e a secagem de igarapés que os enchem e
drenam, entre outros prejuízos para a vida humana, animal e vegetal. Ainda na

fala de Chico Mendes, constata-se que a quantidade de terras que os fazendeiros
L desmataram entre as décadas de 1970 e 1980, foi superior a totalidade da que
todos os seringueiros da Amazônia desmataram em cem anos.
A Outra questão que a estrofe composta pelo senhor Jaime problematiza de
forma implícita, e que está expressa no verso “não é com chifre de vaca que se apaga
letra não [...]” diz respeito ao analfabetismo. Os seringueiros eram analfabetos,
portanto havia um maior grau de dificuldade em se organizarem sendo que a
sociedade em que eles estavam inseridos era grafocêntrica, o que agravava para
• essas pessoas que não sabiam ler e nem escrever ter acesso a formas escritas que
922 lhes propiciasse uma ampliação da consciência crítica a curto prazo, sobretudo no
que diz respeito aos conhecimentos que os usurpadores de seus territórios diziam

estar grafados em documentos validados pela escrita das autoridades, como o juiz
e o delegado. Para esses homens e mulheres o escrito tem um poder muito forte
e eles achavam que do alto de seus analfabetismos, não estavam à altura para
empreender a luta em defesa dos seus interesses e direitos que já vinham decretados
pela escrita apresentada pelos patrões seringalista e os fazendeiros como não
2 existentes. Para Chico Mendes, “foi exatamente isso o que o patrão fez para que
o seringueiro não se organizasse”. Mas, segundo Chico Mendes, os seringueiros
0 foram aos poucos superando essa inercia da falta de escolarização e começaram a
articular uma forma de criar um método de educação popular, a ponto que:
1 No início do ano de1981 nós construímos uma escola no meio da mata e com
o apoio de algumas entidades e de pessoas daqui e de São Paulo, ligadas ao
Paulo Freire, essas pessoas fizeram uma equipe, elaboramos uma cartilha
8 denominada PORONGA3 [...]. A cartilha, PORONGA, seria mais uma luz que
iria indicar os rumos da caminhada do seringueiro a partir daquele momen-
to. [...] A cartilha ensinava não só a ler e escrever, [...] Ela ensina como se dá
o ligamento do homem com a natureza, do amor que ele deve ter com a flo-
resta, pela sua sobrevivência, a forma como ele deve descobrir alternativas

3  PORONGA é uma lamparina feita com folha de flandres e alimentada com querosene, semelhante
a que os mineiros utilizam no interior escuro das minas. Como as dos mineiros, a poronga dos
seringueiros também é adaptada à cabeça e os seringueiros a usavam para caminhar na selva à
noite, com as mãos livres para realizar as atividades de extração do látex.
para sua sobrevivência na selva e ensina ao mesmo tempo alutar em defesa
daquela floresta. (Doc. A Luta dos Povos da Floresta: Chico Mendes). (p. 11)

Quanto aos professores destas escolas, eles foram inicialmente, na


montagem da proposta, pessoas de fora do seringal, mas que tinham um compromisso
com as lutas dos seringueiros, mas depois de dois anos os professores passaram a
ser escolhidos por suas comunidades, pois segundo relatos, as pessoas da cidade
não se adaptariam nunca à realidade do seringal, e mesmo que estas pessoas se
J adaptassem, iriam colocar na cabeça dos alfabetizandos, seringueiros/alunos, os
mesmos conteúdos do ensino oficial e ainda pior, utilizando os mesmos métodos
A criticados por Paulo Freire como sendo semelhante ao sistema bancário, em que se
depositam informações numa mente que é tida como uma tábula rasa. Segundo os
L dos extrativistas.
Práticas educativas do Projeto Seringueiro: contribuição de Paulo Freire
L As práticas educativas do Projeto Seringueiro foram baseadas na
experiência freiriana de alfabetização de adultos, cujas palavras geradoras foram
A pesquisadas no universo vocabular dos seringueiros que seriam alfabetizados,
com a utilização da Cartilha Poronga, produzidas a partir das palavras geradoras
pesquisadas. O nome foi dado ao material de alfabetização primeiras contas, a
Cartilha produzida pelo Centro Ecumênico de Documentação e Informação – CEDI,
por solicitação do Centro de Educação Popular – CEDOP, para ser trabalhado pelo
• Projeto Seringueiro. Era um caderno de Português, um de Matemática e um de
orientação ao uso do método, o Caderno do Monitor. O nome fazia uma analogia ao
923
fato de que em se alfabetizando o seringueiro iria iluminar sua consciência e sair do
• escuro propiciado pelo analfabetismo a que os patrões seringalistas os havia legado
há mais de um século e que os fazendeiros estavam mantendo e prolongando.
Considerações
Este texto, pretendeu reconhecer a música, de autoria de Toinho do Jutai,
denominada Hino do Seringueiro, como símbolo de enfrentamento ao poder cantado
2 nos Empates pelos seringueiros de Xapuri, no estado do Acre. Os seringueiros de
Xapuri cantavam o “Hino do Seringueiro” nos momentos mais diversos de suas
0 lutas e até mesmo em momentos de lazer, nos forrós e nas rodas de lazer musicais,
muito comuns entre os anos de 1970 e 1990, mas o entoavam, sobretudo nos
1 empates. Empates é como ficou conhecida uma estratégia dos seringueiros para
impedir a derrubada da floresta e a sua conversão em pastos para alimentar gado
8 de corte exportação.
Referências
BOURDIEUR, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Memória e socie-
dade. 2011.
CEDI – caderno 13 - Educação Popular do CEDI. Educação popular: alfabetização e
primeiras contas -Experiências na elaboração de material didático para adultos -
Centro Ecumênico de Documentação e Informação São Paulo Junho de 1984
DOCUMENTO. A Luta dos Povos da Floresta: Chico Mendes (Palestra realizada em de
junho de 1988, promovida pelo Departamento de Geografia da USP e AGB-SP).
Maria Simone Utidados Santos Amadeu... [et. al.] –Manual de normalização de documen-
tos científicos de acordo com as normas da ABNT / Curitiba: Ed. UFPR, 2015. 327 p.: il.;
22 cm.
NAPOLITANO, Marcos. História & música – história cultural da música popular. – Belo
Horizonte: Autêntica, 2002.120p.

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A

L DEUS NO ROMANCE EL HABLADOR DE MÁRIO VARGAS LLOSA

L Marinete Luzia Francisca de Souza (UFMT)
RESUMO: O premiado autor peruano Mario Vargas Llosa tem se dedicado a diversas
A temáticas ao longo de sua carreira, uma delas é a cultura amazônica ensaiada em A
Casa Verde (1966) e ampliada no pouco conhecido romance El Hablador (1987), no

qual ele cria um narrador indígena e um crioulo.Romance narrado a duas vozes, é
motivo para apresentação do onipresente do deus machinguenga, Tasurisnhi. Essa
condição não é questionada pelo narrador crioulo, nem pelo autor empírico, pois
• ele é sempre tido como uma criação do coletivo indígena, um deus algo imaginário.
Deus e o sagrado estão relacionados, no texto de Vargas Llosa, às ações, ou melhor,
925
a prática religiosa e ao modo como essa prática se vai modificando em função dos
• sucessivos encontros que se processam no interior da floresta, com os Incas, com
os espanhóis e, por fim, com os exploradores da borracha.
Palavras-chave: Literatura; Mário Vargas Llosa; El Hablador; Amazônia.
Mário Vargas Llosa e o deus machinguenga

2 O Falador (El hablador, 1987), de Mário Vargas Llosa é um romance de


viagem, por assim dizer, que se baseia tanto nos dados recolhidos por missionários

espanhóis no período colonial, como na própria viagem do escritor à floresta
0 amazônica no início da década de oitenta. Nesse contexto, questões identitárias,
míticas e a presença de deuses indígenas no confronto com o Deus cristão-ocidental
1 será um dos temas que compõem a arquitetura do romance de Llosa.
A experiência de Deus ou do sagrado se dá por meio de experiências
8 de vida que se prolongam na relação com o ambiente e/ou com a natureza e são
postas em diálogo com outras formas de estruturação da religião, como a judaico-
cristã. A sedimentação dessas formas de pensar o mundo se dá não apenas pela
organização do mundo dos Machinguegas, mas também podem ser considerada
como marcas de alteridade e identidade. E, nesse sentido, pensamento moderno
e pensamento primitivo são dois campos que estão em jogo pela voz dos dois
narradores, articulando um lugar “entre” e não uma forma de situar-se em um
deles.
Vargas Llosa não somente encena uma cultura fictícia, mas também um
modo de pensar o seu próprio país, o que se dá sobretudo a partir de um diálogo
contínuo dado por trocas ocorridas em diferentes momentos históricos.
Esse Deus estará presente através da figura do Tasurinshi, que nomeia
a todas as criaturas masculinas como também é quem, através da palavra, cria
o mundo. Registrado por viajantes e romantizados por Llosa em 1988, esse deus
indígena, humano e surreal, passará a compor o núcleo textual de Llosa. Assim,
pode-se dizer que Tasurinshi ocupa um lugar central no mundo indígena, segundo a
J ficção de Llosa. O autor, entretanto, não sendo um indigenista e tendo manifestado
opinião contrária aos indigenistas ou mesmo aos escritores que querem escrever
A literatura indígena, mas apresentam pouca aproximação do universo nativo, resolve
a questão criando um narrador e um mundo indígena ficcional.
L Além dessa marca fictícia, essas formas de representação também são
identificadas nas narrativas dos Machinguengas ─ povo que faz parte da família
Arawak, grupo caribe ─, recolhidas por Joaquín Barriales e Vicente de Cenitagoya.
L
Esses escritos apresentam o criador do povo Machinguenga, Tasurinchi, que, como
outros deuses das culturas tupi-caribe do universo pan-amazônico, é um sopro de
A vida personificado, cuja função é criar outros seres.
Tasurinchi é perseguido por Kientibakori, que pretendia escravizar
todas as criaturas. Tal como na literatura dos desana (dois cataclismos) e na dos
macuxis/tuilipang (um grande dilúvio), para os machinguengas, a criação de seu
universo começa a se materializar antes das grandes catástrofes, representadas
• por enchentes e eclipses, quando a terra ainda era ligada ao céu por um cordão
926 umbilical (omo’guto in’kite) (BAER, 1994, p. 163). Todavia, nesse caso, a narrativa
• privilegia os acontecimentos históricos.
A partir dessas catástrofes e das coordenadas celestes, organizou-
se o mundo: as constelações e estrelas, sendo o par principal o sol (Poreatsiri)
e a lua (Kashiri). Há ainda, os planetas, cometas que vêm e vão e meteoros que
mergulham na terra. Por fim, incluem-se nas narrativas machinguengas diversos
2 sóis que iluminam diferentes níveis do cosmos, cuja trajetória foi determinada por
Tasurinchi no momento da sua criação.
0 Kashiri é, ao mesmo tempo, um duro legislador e um benevolente,
facultando, por exemplo, o conhecimento agrícola aos machinguengas, mas também

é canibal e devora os seus mortos.
1
Apresentando similitudes com o modelo desana, de Antes o Mundo não

Existia (1980), de Umúsin Panlõn Kumu, Tolamãn Kenhírie e com o Popol Vuh dos
8 Maias, a cosmogonia dos Machinguengas remete também à história e à geografia, tal
como são entendidas pelos não-índios:os povos são estabelecidos num território a
partir de marcos específicos, como o Pongo de Mainique, onde os seus antepassados
teriam nascido; o Cerro de Sal, que resultaria das transformações de Pareni – esposa
de Yagontoro e irmã do Pachakama – sal é também o local onde há correntezas
que permitem terapias de recuperação das energias; Urubamba, onde as rochas
apresentam inscrições e são consideradas o umbigo do povo machinguenga (SÁ,
2004, p. 89).
As campanhas incas são lembradas pelo uso do vocábulo quíchua
“Viracocha” (para além de ser uma divindade Inca, no romance é a designação
para os espanhóis e seus descendentes) para referir-se aos espanhóis. Barriales
(1977, p. 8) considera que houve relações amistosas entre os machinguengas e os
senhores de Cuzco e estas relações estariam presentes na cultura por meio de ritos
ligados à ideia da Pachamama e do comércio do milho doce (trocado pela batata,
coca, por peles de jaguar e objetos para ornamento, como penas e sementes).
De forma semelhante, de 1742 a 1752, houve uma batalha contra os
J espanhóis liderada pelo machinguenga Juan Santos Atahualpa, que adotou o nome
do rei inca. O objetivo da luta era fazer com que a fronteira do território do seu povo
A retrocedesse ao seu antigo local, mais próximo dos llanos.
Com a chegada de Pizarro, impõem-se as relações com os europeus e
L depois com o Peru independente, e os machinguengas tendem a repetir o padrão de
conexão com os “viracochas” – estrangeiros –, embora com algumas diferenças, já
que estes, diferente dos incas, estavam ansiosos por impor a sua ideologia através
L
da cristianização, intromissão econômica e tomada de territórios.

Após a independência, houve relativa paz, mas a neocolonização trouxe a
A “febre da borracha”, provocando “ondas de violência”, “abusos”, “venda de pessoas”
e genocídio (BARRIALES, 1977, p. 8). Não obstante a redução do seu próprio
povo, os machinguengas mantêm o território fronteiriço vivo em sua cosmogonia
(BARRIALES, 1977, p. 11).
Assim, a sua literatura apresenta um vigor imaginativo que Sá (2004, p.

249) considerou como exemplo da “sofisticação filosófica da Amazônia” e serve como
927 um “mapa” em que se inscreve uma região no limite da floresta com a Cordilheira.
• Essa literatura apresenta, ainda, dados sobre a relação entre gerações e gêneros,
ancorada em tempos de crises políticas, sendo a exploração da borracha o evento
mais vivo na memória do coletivo Machinguenga.
Os textos recolhidos por missionários ou por etnógrafos que, ao
funcionarem como tradutores da realidade americana durante o século XVIII e
2 início do século XIX, eram, no período colonial, considerados intérpretes de uma
realidade tida como inferior em relação ao modelo cultural que representam, o
0 ocidental
Tais discursos falam pelos subalternos, cuja voz é recuperada pelos
1 Subaltern Studies, perspectiva sociológica que tenta dar visibilidade a questões como
classe, casta, sexo, cor e ofício etc. Procurando compreender o “limite absoluto” do

discurso narrativo histórico (VEGA, 2004, p. 287). Ou seja,
8 «… la verdad es, ea ipsa, una representación; que la «autenticidad», la «ex-
periencia», la «presencia» o la «realidad» son constructos textuales, y que, por
ello, no importa tanto indagar la supuesta adecuación de los textos a la reali-
dad, cuanto la estrategia y consistencia de las representaciones y los proce-
dimientos por los que cobran autoridad.» (VEGA, 2004, p. 287)

Pode-se, dessa forma, antever, nas vozes dos informantes nativos,misturas


que remetem para encontros coloniais, logo uma “imaginación dialógica” (VEGA,
2004, p. 288), que pode ser comparada à literatura testemunhal ou pós-moderna
latino-americana.
Considera-se, assim, que os cientistas funcionam como “sujeito da
enunciação” e os nativos como “sujeito da interpolação” (BHABHA, 2007: 67),
aquele de onde o discurso provém, mas cuja narrativa, ao transpor o crivo da
cultura Ocidental, passa por seleção e reordenação.
No contexto romanesco de El Hablador, os dois personagens-narradores
funcionam como espelho um do outro, pois se um é crioulo ocidentalizado, o outro
aduz a sua voz elementos culturais não-nativos.
J Llosa parodia os mitos e crenças machinguenga com base nos relatos
de Barriales e de Ferrero. Apropriando-se desses discursos e os manipulando,
A estabelece ligações entre esse povo e o judaico, povos não apenas escolhidos, mas
destinados à diáspora. Nesse ponto é que encontramos dissonância entre o exigente
L deus dos machinguengas e o de Mascarita.
O aprisionamento (trabalho forçado, torturas e execuções) dos nativos para
L o extrativismo da borracha é comparado, por Mascarita, as diversas perseguição
sofridas pelo judeus ao longo da história ocidental. Se tal procedimento pode ser
considerado como apropriação da história de um povo no interior da história de
A outro, a partir de um corte religioso, um povo escolhido por Deus; por outro prisma,
vislumbra-se a rasura das fronteiras culturais e históricas, parecendo que Vargas
Llosa deseja alinhar religiões tão distintas como são as duas ali ficcionalizadas
e, ao mesmo tempo, destacar o que as separa, que é, propriamente, a diferença
cultural entre os dois povos postos em contato pelas vozes dos narradores.

Criatura em processo e sua relação com o deus Tasurinshi
928
Os Machinguengas fictícios de Mario Vargas Llosa definem-se como os
• “homens que andam” e essa caminhada é realizada por determinação do seu deus,
sendo essa a razão de tal estilo de vida e o que evita a destruição do povo. No
caso do romance El Hablador, o primeiro falador foi também o primeiro homem,
Pachukamue, criado após a segunda mulher, Pareni, por Tasurinchi. O primeiro
falador deveria, com sua palavra, concluir a criação: “Ésta es la historia Pachakamue,
2 cuyas palabras nacían animales, árboles y rocas” (VARGAS LLOSA, 1987, p.128).
Mas, em lugar de levar a cabo a sua tarefa, Pachukamue desarranjava
0 o mundo com as suas palavras. Assim, transformou Pareni e sua filha em duas
pedras que estariam perto do Cerro de Sal, e seu marido no inseto voador que
1 recebeu o nome da personagem, “yagantoro”. Pareni e seu marido, Yagontoro,
decidiram, então, eliminar Pachukamue. Depois de persegui- lo por algum tempo,
Yagontoro conseguiu matá-lo, o que provocou “[…]una tormenta que enfureció los
8
ríos y arrancó de cuajo muchos árboles. Llovió cántaros, com truenos.” (VARGAS
LLOSA, 1987, p. 130).Mas a personagem permaneceu impassível e cortou-lhe a
cabeça, esquecendo-se, entretanto, de cortar-lhe a língua, que, de vez em quando,
falaria, provocando tormentas. Assim, o “falador” afirma que os machinguengas
precisavam saber onde estaria a cabeça de Pachukamue para cortar-lhe a língua.
Uma das funções do “falador” é, portanto, criar o universo. Em relação
a isso, o surgimento dos frutos e mesmo dos homens ocorre das mais diversas
formas, inclusive com a mediação de animais, árvores ou pedras. Mas há seres que
descendem de homens e animais, e cuja função é o exercício da diplomacia entre a
natureza e a cultura, “um ser de fronteira” (BARROS e ZANONI, 2008, p. 176), uma
saída muito eficaz para discutir a dependência humana da natureza.
Na relação com esse “deus”, ao mesmo tempo, as duas principais
dimensões rituais que surgem são a errância e a proibição de comer carne de veado,
por serem eles a reencarnação dos antepassados dos machinguengas. Conforme
referido anteriormente, os machinguengas acreditavam que, se deixassem de andar,
o sol cairia ou ocorreria alguma catástrofe, justificando, assim, a sua errância.
J Para o caso da proibição de comer carne de veado, Vargas Llosa cria tanto imagens
calcadas nos preceitos culturais dos próprios machinguengas como critica os
A preconceitos dos não-índios em relação aos povos autóctones, direcionando a
discussão para a ideia do encontro e da hibridização entre a cultura indígena e
L a cultura judaica de Mascarita.
As andanças dos machinguengas têm um significado que, para além de
mítico, apresenta também fundo histórico. O Hablador pergunta-se “¡Que seria
L
de nosotros si fuerámos de esos que no se mueven”, sustentando que teriam
desaparecido “durante la sangria de árboles” (VARGAS LLOSA (1987:54), isto é, no
A tempo da coleta da resina da seringueira.
Em conversa com o narrador ocidental, Mascarita afirma que o nomadismo
dos Machinguengas funcionou como uma forma de defesa das sucessivas invasões
que sofreram ao longo da história.
Apropriando-se da função de falador, Mascarita foca os aspectos comuns

entre as duas culturas, comentando que aprendeu muito com “Tasurinchi, el del
929 Kompiroshito”, que lhe teria dado um conselho para que as coisas não saíssem de
• sua ordem natural: “Comer lo debido y respectar las proibiciones […].” (VARGAS
LLOSA,1987, p. 185).
Um episódio exemplar do que aqui se vem referindo é o vivido por
“Tasurichi, el del Kompiroshito”, em que, por engano, a personagem caça um veado e
nada lhe ocorre. Tal fato incita-a à caça dessa espécie de animal, até que os veados
2 tornam-se tantos que já não os consegue caçar. Observando, então, vê que está no
“Inkite”, o céu de cima, transformado em animal e perseguido por caçadores.
0 Por outro lado, a relação com o divino é mediada pela forma como o espaço,
criado por Tasurinchi, está organizado. Este deus teria descido do Inkite pelo Rio
1 Meshireni com uma ideia fixa na cabeça: criar o mundo e a humanidade – neste
caso, os Machinguengas. Do seu sopro surgiram também os alimentos, “animais

para comer” (VARGAS LLOSA 1987, p. 205), mas o seu rival, kentibori, também quis
8 criar alguns seres e, do seu sopro, surgiram apenas terras improdutivas, cobras
venenosas, animais peçonhentos e também os Kamagarinis, diabinhos da floresta.
Dessa forma, o narrador comenta: “Cuando terminaron de soplar y se
volvieron, Tasurinchi al Inkite y Kienibakori al Gamaironi, este mundo era lo que
es ahora.”(VARGAS LLOSA 1987: 206). O Grande Pongo, mencionado no romance
de Llosa, era um local onde se podia transitar do mundo dos mortos para o dos
vivos, um lugar sagrado que não podia ser visitado pelos “homens que andam”,
que os exploradores da borracha percorrem, o que acaba por determinar que os
machinguengas também o façam.
Embora não haja muitas referências a um ritual de passagem coletivo,
o Hablador se refere a uma menina que, “quando comenzó a sangrar” (VARGAS
LLOSA, 1987, p. 111), permaneceu encarcerada, sem comunicar-se com os seus
parentes e tecendo fibras de algodão. Essa moça casou-se com Kashiri, o Lua,
mas, como este foi manchado por outra jovem, ficou entristecido e voltou
para “el cielo de más arriba”, o Inkite. Contudo, segundo o Hablador, “el seripigari
de Segakiato” conta a história de outra maneira: o Lua se teria apaixonado por
J uma rapariga que ficou grávida e faleceu no parto. Enfurecidos, os seus parentes
fizeram-no comer o cadáver, o que ele fez, levando uma parte consigo, aquela que
é hoje a sua mácula, passando o Lua a exercer a função ritual de recolha dos
A
cadáveres Machinguengas. Neste ponto, Vargas Llosa apresenta duas versões, a de
Andrés Ferrero e a de Joaquín Barraiales, optando por manter as diferenças entre
L elas e apresentá-las separadamente.

As cerimônias de contar histórias parecem ser mais um traço cultural
L machinguenga, sendo realizadas à noite, com a participação de todos os membros
do grupo. O narrador ocidentalizado refere-se a essa entidade pela primeira vez
A quando a viu numa fotografia expost aquele em Florença (IT), momento no qual,
de imediato, reconheceu a figura do “falador” que lhe havia sido mencionada por
dois missionários do Instituto Linguístico. Estes
[…] habían hecho conjeturas, barajado hipótesis. El hablador, o los habla-
dores, debían de ser algo así como los correos de la comunidad. Personajes
• que se desplazan de uno a otro caserío, por el amplio territorio en el que
estaban aventados los machinguengas, refiriendo a unos lo que hacían
930 los otros, informándoles recíprocamente sobre las ocurrencias, las aventuras
• e desventuras de esos hermanos a los que veían muy rara vez o nunca.
El nombre los definía. Hablaban. Sus bocas eran los vínculos aglutinantes
de esa sociedad a que la lucha por la supervivencia había obligado a
resquebrajarse, a los cuatro vientos.” (VARGAS LLOSA, 1987p. 91)

Na visão do narrador, graças a essas células comunicativas humanas,


2 as famílias ficavam sabendo da história do povo e, durante o ciclo econômico da
borracha, tinham notícias dos próprios membros das famílias. Mas o narrador
crioulo afirma que na segunda vez que voltou ao território machinguenga, quando
0
este povo já estava aldeado, os líderes evitavam falar sobre o “falador”.Conclui,
então, através das características do Hablador fornecidas pelo missionário do
1 Instituto Linguístico de Verano e pela ausência dessa figura nos estudos sobre
aquele povo, que Mascarita havia assumido esse papel. Em relação ao tempo do
8 narrado, o Hablador não era mencionado nos estudos dos últimos vinte anos.
Esse tempo correspondia ao período que separava as duas visitas que o narrador
ocidentalizado (e também Mário Vargas Llosa) fez ao local.
Além disso, Mascarita tinha saído de Lima logo após a sua primeira visita
ao território machinguenga. Considerando que ele havia assumido a identidade
de “falador”, o narrador comenta que, ao não falarem do contador de histórias, os
machinguengas “no protegían la instituición, al hablador en abstracto. Lo protegían
a él. A pedido de él mismo, sin duda. No despertar la curiosidad del viracocha sobre
ese extraordinario injerto en la tribu.” (VARGAS LLOSA (1987: 179).
O falador Mascarita, não sendo um machinguenga, é um enxerto, na visão
do narrador ocidentalizado. Para o próprio Hablador, tratava-se de um encontro
com ele mesmo e de um compromisso com a manutenção da identidade coletiva
dos machinguengas. Para Emil Volek (1994, p. 263), porém, trata-se de um falso
falador, e a prova disso seria o fato de a personagem conversar com macacos e
papagaios, já que os papagaios são tidos como faladores.
Comparado com outro romance de inspiração amazônica, em Macunaíma,
J de Mário de Andrade, no desfecho da história, fica-se a saber que foi um papagaio
(arauí) do séquito do Imperador do Mato Virgem que contara ao narrador “as falas
A e os feitos do herói” (ANDRADE, 1978, p. 129).
Mas não é apenas na forma escolhida para contar suas histórias que
L Andrade e Llosa se encontram: também se percebe, em ambos, um acurado trabalho
com a linguagem. Se Macunaíma, enquanto Venceslau Pietro Pietra convalescia
da surra que levara por meio da macumba, aperfeiçoava-se “nas duas línguas
L
da terra, o brasileiro falado e o português escrito” (ANDRADE, 1978, p. 65), na
carta que escreve às Icamiabas, mostra as discrepâncias entre os usos linguísticos
A populares e cultos.
Vargas Llosa adota, nas partes narradas pelo “falador”, uma
linguagem, possivelmente, próxima ao modo como os indígenas, provavelmente
os machinguengas com quem contatou, se expressam em Espanhol, utilizando
frases curtas.

Além disso, o Hablador, que, aliás, é um não índio (Mascarita), conclui
931 as suas histórias sempre com expressões como “eso es, al menos, lo que yo sabido”
• (VARGAS LLOSA, 1987, p. 131) e “eso era antes” (VARGAS LLOSA, 1987 p. 128), o
que indicia alguma dúvida e relativiza a verdade, mas também não deixa de servir
como marcador textual. Nota-se, assim, que Llosa faz um diálogo constante e aberto
a diversas vozes, não deixando de modalizá-las de acordo com os seus interesses
narrativos. Mas, a voz do “falador” é, acima de tudo, a daquele ser responsável
2 pela manutenção do status e por recordar os preceitos religiosos ou identitários
daquele povo. Esses costumes prolongam-se a todos os aspectos da vida, havendo
cruzamentos entre estes e tradição judaica. Ou melhor, Mascarita faz exercícios de
0
tradução cultural.

1 A errância espacial na relação com Tasurinshi
Em El Hablador, a errância no espaço é condição para a existência
machinguenga, de modo que estes se definem como os “homens que andam”, o
8
que está de acordo com o mito desse povo criado por Tasurinchi, deus cujo nome é
utilizado para se referir a todos os homens pertencentes ao povo Machinguengas,
já que o nome próprio não é usual. Como condição de sobrevivência do povo, o
deus recomendou o nomadismo. Assim, o sol não se punha e isso lhes garantia
abundância, o que aparece em: “Si Tasurinshi quería comer, hundía la mano en el
río y sacaba, coleteando um sábalo; o, disparnado la flecha si apuntar, dada unos
pasos por el monte y pronto se tropezaba com una pavita, uma perdiz o un trompetero
...” (VARGAS LLOSA, 1987p. 38).
Os machinguengas tentaram estabelecer-se por três vezes, o que provocou
catástrofes, levando-os a retomar, nos três casos, “el movimento”, “la marcha”,
avançando “con o sin lluvia” (VARGAS LLOSA (1987:40). A primeira tentativa de
parar provocou escuridão, que fez com que houvesse mortes, rios mudassem de
curso e os mortos ficassem perdidos “entre el mundo de las nubes y el nuestro”
(VARGAS LLOSA, 1987, p. 39). Na segunda, houve uma grande inundação, o que
os levou a retomar a marcha. Na terceira, os Machinguengas descobriram um
cerro de sal, mas, desta vez, foram atacados, primeiro por inimigos, depois pelos
J “viracochas”, que os capturavam, o que foi, segundo o falador, a pior catástrofe,
pois os prisioneiros deixavam de pertencer à sua cultura de origem, já que ficavam
sedentários.
A
A paródia do mito machinguenga é feita por Vargas Llosa com base
L nos relatos de Barriales e de Ferrero, dos quais Llosa se apropria, manipulando-
os, por vezes, para estabelecer ligação entre este povo e o judaico (do qual

procede Mascarita). Em diversos pontos da narrativa, o escritor compara os
L aprisionamentos dos nativos (trabalho forçado, torturas e execuções) ao genocídio
dos judeus na Europa. No entanto, ao mesmo tempo em que manipula as narrativas
A machinguengas, Vargas Llosa refere-se diretamente aos cronistas supracitados,
rasurando as fronteiras entre história, mitos, linguagem e realidade e demonstra
que a história machinguenga está disponível em sua textualidade/oralidade. Tal
procedimento distancia-se, porém, do purismo cultural, uma vez que apresenta a
cultura machinguenga na sua relação com outras culturas.
• Como um escritor pós-moderno, Llosa não busca situar-se entre teoria
932 e prática, mas procura uma posição dentro de ambas, adaptando-se ao que já foi
produzido sobre o tema, posicionando entre “[…] os paradoxos da representação

fictício-histórica, do particular/geral, e do presente/passado” (Hutcheon, 1991, p.
142). Ao mesmo tempo Llosa, discute o próprio ato de narrar, pois não é o povo
machinguenga que lhe chama a atenção, mas a figura do falador e sua função
literária. Essa permeabilidade entre a linguagem escrita, buscada nos relatos de
viagem, e linguagem oral, buscada na cultura machinguenga, afeta a estrutura do
2 romance, uma vez que há dois narradores e duas formas de registro, iluminando,
assim, as contradições entre presente e passado, moderno e pós-moderno,
0 instalando a ideia de diversidade e pondo as divindades machinguenga e judaicas
em diálogo.
1 Referências
ANDRADE, Mário. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter (Edição crítica de Telê Porto
8 Ancona Lopez), Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1978.
BHABHA, Homi. O local da cultura (Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Pires e
Gláucia Renata Gonçalves), Belo Horizonte: Editora da UFMG: 2007.
BAER, Gerhard. Cosmología y shamanismo de los matsiguenga (Peru oriental) Qui-
to:Abya-Yala,1994.
BARROS, Maria Mirtes dos Santos & ZANNONI, Cláudio. O natural e o sobrenatural: as-
pectos da religião de dois povos indígenas, in: Outros Tempos. v. 5, nº 6, dezembro de
2008 (Dossiê Religião e Religiosidade).
BARRIALES, Joaquín. Matsigenka, Lima: Misiones Dominicanas, 1977.
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-modernismo, Rio de Janeiro: Imago, 1998.
SÁ, Lúcia. Rain Forest Literatures: Amazonian Texts and Latin American Culture, Min-
neapolis: University of Minnesota Press, 2004.
VARGAS LLOSA, Mario (1987) El Hablador, Barcelona:Seix Barral, 1987.
VEGA, María José. Imperios de Papel. Introducción a la crítica colonial, Barcelona,E-
ditorial Crítica:2003.
KUMU, Umusín Palõn & KENHÍRI, Tolamãn (1980) Antes o Mundo não Existia, São Pau-
J lo, Cultura.

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933

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L DECONSTRUCCIÓN DE LA IMAGEN POÉTICA EN JAIME SAENZ:
EL CONCEPTO DE ‘FRAGMENTACIÓN DEL SER’ DE BACHELARD
L A PARTIR DEL ESPACIO COTIDIANO DE LA CASA EN LA NOVELA
LOS CUARTOS DE JAIME SAENZ
A
Melisa Balderrama Siles (UMSA)
RESUMEN: La imagen poética central en Bachelard es la casa. La casa como un
espacio de origen, refugio y despliegue del Ser. En Los cuartos de Jaime Saenz,
este espacio constituye un lugar fragmentario, donde es imposible que el Ser
• pueda ocupar su lugar pleno; no sólo debido a que no existe una casa como tal
934 (los cuartos son espacios deconstruidos e independientes), sino también porque
se producen rupturas en el Ser de la Tía, personaje principal de la novela, que

la llevan a declarar que su alma ha ingresado en la oscuridad. El espacio de la
casa, cuya integración conforma la imagen poética para Bachelard, es morada
del Ser, pero siendo esta casa fragmentaria para Saenz. ¿Cómo puede entonces
habitar el Ser? Los cuartos propone, desde este punto, otra forma de habitar el Ser
que deconstruye, no solamente la temporalidad ya planteada por Heidegger sino
2 también, la espacialidad de Bachelard.
Palabras clave: Poética. Espacio. Habitar. Ser. Imagen.
0
Bachelard y Saenz: dos cercanos (des)conocidos

Veintiocho años separan la obra de Gastón Bachelard (1957) y la novela
1
de Saenz (1985), pero no es imposible pensar que aquel autor boliviano de expresión
seria y ceño fruncido haya resultado lector del gran autor francés. Al menos así se
8 imaginará (utilizando el término en los amplios conceptos de ambos autores) en
estas páginas.

Si no se quiere elucubrar sobre la relación textual que hubiese podido
tener Jaime Saenz con Bachelard, no es necesario hacerlo; sin embargo, y esto es
una cosa cierta, no se puede negar que la pregunta por el Ser y el estar, en relación
al habitar el espacio, han sido (pre)ocupaciones constantes del escritor paceño.
Para Saenz, en el Ser y estar existe una construcción de identidad en la que reside
su obra poética y novelesca.
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Fig. 1: Jaime Saenz en los años 70 fotografiado por Alfonso Gumucio Dagrón
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Una visión: la ciudad de La Paz
Es necesario ahora, hacer un paréntesis y conocer al escritor paceño que
inspira estas páginas.
Jaime Saenz Guzmán (1921 - 1986) nacido en La Paz y anclado a ella en
• alma y obra hasta su muerte, es uno de los escritores bolivianos más importantes
935 del siglo XX cuya obra abarca la poesía, novela, drama, ensayo y crítica, áreas en
• donde destaca sin lugar a duda; quizás la poesía sea su mayor virtud, aunque sus
novelas no quedan atrás, considerando que Felipe Delgado su novela más extensa,
es parte de las 10 obras fundamentales de la narrativa boliviana. El centro de su
obra siempre ha sido la ciudad de La Paz y sus vericuetos. Probablemente no sea
difícil entender el porqué de esta inquietud y fascinación por la ciudad, pero su
2 particular manera de retratarla deja interpretaciones sueltas y constante diálogo
hasta el día de hoy.

Quizás una de las cosas que haya provocado el encanto por la ciudad
0
de La Paz sea su cartografía: una hoyada a 3600 msnm cuyas calles, ríos, casas y
habitantes se confunden en laberintos intrincados de subidas y bajadas. Quizás
1 haya sido la transculturización de la cultura aymara que (con)vive con la ciudad
constantemente. Quizás los personajes que tipifican los misterios de la ciudad
8 perfectamente ocultos en los rincones variopintos. Quizás el paso de las cuatro
estaciones en un solo día. Quizás la asfixia de sus calles y el ruido de su constante
prontitud. Quizás todo, quizás nada. Probablemente sea, sobre todas las cosas,
lo que refiere su sobrina Gisela Morales, respecto a la relación de su tío con la
ciudad: “Tal vez no es que la ciudad tiene algo por sí misma, sino cómo uno la mira
y vive, dentro de una dinámica socio cultural que la construye y de-construye,
recreándola permanentemente.” (VASQUEZ, 2014) Y sí, lo cierto es que la visión de
Jaime Saenz es la que convierte a La Paz en la ciudad de su obra.
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Fig. 2: Ciudad de La Paz. Fotografía de Miguel Burgoa Valdivia (2018)
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Bachelard y la imagen poética
Gastón Bachelard, autor inclasificable que le dedicó gran parte de su vida
al estudio de la imaginación en la literatura, trabaja su obra La poética del espacio
desde la perspectiva de la imagen, desarrollando una fenomenología en torno a
• ésta. El principal elemento de esta fenomenología de Bachelard es, en efecto, la
936 imagen poética que opera en el ser en tanto sublimación de sí misma.
• La imagen poética de Bachelard funciona como signo o símbolo de una
realidad latente fuera de nosotros, aunque siempre sea autorreferencial; al mismo
tiempo, esta imagen parte de lo más interno de nosotros, parte desde el propio Ser.
¿Cómo está esta imagen presente en el texto? Para Bachelard existen
dos niveles de existencia de la imagen poética, el primer nivel es la resonancia
2 y seguidamente se encuentra la repercusión. La resonancia es una especie de
percepción de la imagen literaria, mientras que la repercusión es la capacidad de
apropiación y contestación de la misma imagen; en palabras del propio Bachelard:
0
“En la resonancia oímos el poema, en la repercusión lo hablamos, es nuestro. La
repercusión opera un cambio del ser.” (BACHELARD, 1957, p. 14).
1 Esta imagen es siempre novedosa, pertenece al presente pues está en un
constante devenir.
8 El autor califica a la creatividad como origen de la imagen poética, “…al
desprender de este valor de origen de diversas imágenes poéticas debe abordarse,
en un estudio de la imaginación, la fenomenología de la imaginación poética.”
(BACHELARD, 1957, p. 16). La casa entonces no es sólo una imagen, sino también
el espacio donde habita el Ser que es, a su vez, el productor de la imagen poética.
La casa, Los cuartos
Bachelard plantea la idea de que el Ser habita un espacio y a partir de
esa toma física de un lugar es cuando se genera la imagen poética. Una imagen
común, por tanto, es la casa o refugio con todos sus elementos internos (miniaturas,
rincones, etc.)
A partir de esta premisa, el habitar un espacio se convierte entonces
en un requisito para la plenitud del Ser y un requisito, además, para la creación
poética de cualquier autor. Habitar un lugar se convierte también en una necesidad
de pertenencia de dicho espacio físico donde se pueda realizar el acto mismo de
crear y desplegar el Ser.
J Los cuartos de Jaime Saenz es una historia precisamente sobre la
pertenencia del espacio físico y cómo a partir de éste se pueden generar reflexiones
A sobre la vida misma. En la novela, el habitar se convierte en una necesidad imperiosa
para los personajes; necesidad que determina su vida no solo a niveles externos,
L sino también internos: se deambula por el espacio físico en búsqueda de la quietud
del Ser. Para Leonardo Pabón, quien prologa la primera edición de Los cuartos:
L Los cuartos relata lo sucesos -apariciones y desapariciones- de infinidad de
seres que, en torno a un personaje femenino (la tía), van tejiendo una exis-
tencia asociada a la búsqueda de un espacio habitable: una morada, una
A vida, un calor, un cuarto donde estarse. Y como si cada vez que se encontra-
se, se tuviese que pagar por ello, la muerte, la desgracia, la soledad, obligan
a la tía a seguir inexorable su búsqueda de espacio humano. Su hermana,
el Ismael, Soledad Vaca, el Paucara, cada uno a su turno, se le acercan
para quererla, ayudarla o solicitar su protección; y forman espacios donde,
breve pero intensamente, se vive en armonía. En cada espacio así formado,
• a fuerza de estoicismo, brillará la profunda alegría (unida al humor de la
narración) de estar en el mundo. (SAENZ, 1985, contratapa)
937
• El habitar un espacio físico también está relacionado con habitar un
tiempo, que es el tiempo de la Tía en la novela. La idea de habitar pasa al plano
temporal producto de la imaginación que retiene la memoria y actualiza los
recuerdos en el tiempo.
Los cuartos en los que habitan la Tía y el resto de los personajes, son
2 al mismo tiempo espacios físicos habitables y una metáfora que demuestra el
ejercicio de la imaginación Bachelardiana en Saenz. Son metáfora del propio Ser
0 (interno) así como del Universo (externo) y develan una profunda reflexión sobre
nuestra relación con los espacios que ocupamos a lo largo de nuestra vida y cómo

estos terminan definiendo nuestra condición humana y de existencia temporal en
1 el mundo.

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938

FIG. 1 Portada de la primera edición de Los Cuartos, 1985

En los rincones
2 Tal como hace énfasis Bachelard para hablar se piensa, pero para
escribir se reflexiona. La relación del habitar tanto en Saenz como en Bachelard
0 está conectada también al agazaparse, actitud propia de los rincones: “sólo habita
con intensidad quien ha sabido agazaparse” (BACHELARD, 1957, p. 30)
1 Aunque la casa no sea completa en la novela, cada cuarto que ocupan
la Tía y el resto de los personajes tiene aquellos rincones donde se esconden
pedazos y composiciones del Ser; pero no es casual que la casa esté fragmentada
8
en cuartos. La casa que se constituye en Bachelard como un elemento de totalidad
y redondez, es en Saenz más bien fragmentaria. No se hable de una casa íntegra y
cerrada por cuatro paredes, sino más bien de habitaciones pequeñas, recónditas e
independientes, caracterizadas desde el principio por su plano más físico y visual:
“Los cuartos sumidos en la penumbra son grandes, fríos y desolados, y tienen olor
a cotense, a huacataya, a chalona, y a guardado.” (SAENZ, 1985, p.7)
El cuarto de la Tía es el principal abarrotado de presencias físicas, objetos
y paso de personajes que dejan su impresión “Hay bañadores aplastados, baldes
abollados, botellas pulverizadas y cotenses petrificados, y quién sabe qué mundo de
cosas, en este pasadizo.” (SAENZ, 1985, p.8) Aunque los espacios físicos empiezan
siendo una ‘casa’, la fragmentación se da casi de manera inmediata: producto de
la humedad, los ahorros de la Tía y su hermana se pierden por completo y ellas
deben mudarse a un galpón donde jamás logran alcanzar la sensación de habitar;
a pesar de que al poco tiempo regresan a los cuartos, la muerte de la hermana
produce que no se vuelva a tener la sensación de ‘casa’ nunca más y es allí donde
empieza la deconstrucción de la imagen, seguido por el nuevo traslado de la Tía a
J otras habitaciones aún más fragmentadas.
Sin embargo, no perdió la lucidez, y con admirable entereza decidió entregar
las antiguas habitaciones, que precisamente se las pedía el dueño de casa y
A las que habían vivido años y años. Y como contaba con los fondos anticre-
sis, que aquel le había devuelto oportunamente, muy pronto consiguió unos
L cuartos, amplios e independientes aunque ófricos y con paredes ennegreci-
das… (SAENZ, 1985, p. 32)

L En los primeros cuartos, aquellos a los que la Tía denomina ‘casa’ ella y
su hermana viven ahorrando su dinero, tranquilas como mujeres mayores y solas,
A pero que se tienen la una a la otra. A partir del problema con el dinero y el posterior
traslado al galpón, esta aparente paz, se rompe. Más aún cuando la Tía pasa a

habitar los otros cuartos, ya luego de la muerte de su hermana. Estos últimos
cuartos ya no son una casa, sino simples habitaciones. La fragmentación de la Tía
por el duelo y, a su vez, de la imagen poética de la casa, empieza a suceder con los
• infortunios y las varias muertes que tiene que llorar la Tía (puesto que así lo marca
su destino).
939
En Bachelard, la casa es un espacio de integración psicológica, morada
• de olvidos y recuerdos. En la novela, la casa se fragmenta a la vez que las memorias
y olvidos lo hacen, este paso es también acompañado por el tiempo.
El destino de la Tía, acarreando las incesantes muertes que debe ver,
así como los que se acumulan en ella pasan en la novela del mismo modo que
suceden en la memoria: unas líneas se está con la Tía en sus 70 años y sólo dos
2 páginas más allá la Tía tiene más de 80. El tiempo de la novela es el tiempo de la
memoria, ese tiempo al que Heidegger también asociaba con la existencia del Ser.
0 Este tiempo no respeta cronologías específicas, sino que acude a los rincones de la
memoria desde donde se forma la imagen.
1 La memoria habita en la Tía así como ella habita el espacio de los cuartos
y es precisamente por esto que al morir su hermana, siente la necesidad de salir
8 de aquel lugar. Si bien la necesidad de salir de las habitaciones está mediada por
el pedido del dueño de casa, sobre todo existe un deseo de encontrar otro espacio
donde pueda pertenecer en el que no exista la presencia no-física de la hermana.
Pero el habitar no sólo se resume al espacio como casa en general, en su
amplitud, sino también se habitan espacios internos de las habitaciones, tales como
los rincones. Precisamente en la novela, el autor dedica una considerable extensión
a los rincones. Específicamente a un rincón donde se encuentra un helecho, luego
de que en él se asentaran alimañas y varios otros sinsabores, la Tía y su hermana
deciden que el helecho en cuestión estaba maldito y se deshacen de él, pero al
poco tiempo notan que nada puede llenar ese rincón, cuando finalmente cierran
el espacio (renovando la circularidad del inicio) este rincón se constituye como un
espacio de no-apropiación o, un espacio que no permite la tranquilidad del Ser,
tanto como externa como internamente. “Sólo que, a los pocos días, la señora y la
tía empezaron a echar de menos al famoso helecho –en la ventana, se notaba un
vacío. Y con la intención de llenar este vacío, la señora colocó un candelero, y la
tía una taza; aquella una muñeca y ésta un almanaque.” (SAENZ, 1985, p.24) Este
rincón, pequeño y aparentemente insignificante, produce un hueco evidente en las
J mujeres cuando se ven obligadas a deshacerse del helecho por la infestación de los
gusanos. Es entonces cuando empiezan a rellenarlo de varias cosas, pero ninguna
logra llenar el vacío o, como dice el narrador “pero ninguna cumplía la función
A
requerida –resultaba imposible llenar el endiablado vacío.” (SAENZ, 1985, p.24)

L Para Bachelard, los rincones son espacios que se habitan como reflexión
de nuestro propio Ser, al mismo tiempo funcionan como lugares donde podemos

darnos cuenta de nuestra propia existencia. En este sentido los rincones funcionan
L también como un lugar de introversión y extroversión constante: en el lugar donde
nos encerramos a nosotros mismos, descubrimos todo lo que somos. Aquí radica
A la importancia de encontrar un elemento que llene el espacio y cumpla lo que en
la novela se denomina la ‘función’. Quizás la función sea entonces, ‘parchar’ el
Ser de las mujeres que ha sido carcomido por gusanos y alimañas, al igual que el
helecho. Finalmente, y por suerte para ellas, el objeto perfecto no tarda en llegar. El
advenimiento de este objeto en las circunstancias en las que lo hace, eleva al jarrón
• de lata que soluciona los problemas, a un estado casi religioso:
940 Sin embargo, un día de esos, advino la solución y ella ocurrió en circunstan-
cias poco peregrinas.

El hecho es que en consonancia con las campañas de Zapoteca – Pon y
Zapoteca – Saca, organizadas por la junta vecinal con motivo de la ascen-
sión al Huayna Potosí, apareció un señor llamado Eguino, o Merino o no sé
qué tantos, con el encargo de recolectar fondos; y casualmente, dejó olvida-
do un jarro de lata, justo en la ventana; y ni qué decir tiene que este jarrón
2 de lata, precisamente, para asombro y alegría de la señora y la tía, vino a
llenar a la maravilla el tan mentado vacío. (SAENZ, 1985, p.24 - 25)

0 Este advenimiento finaliza en la novela con la recuperación de la


pertenencia y la integridad del rincón vacío; pero precisamente, y continuando con
1 los símbolos religiosos, da pie a un nuevo inicio donde aparecen signos extraños en
el cielo que Sócrates Mazuelos asocia con la llegada del fin del mundo.
8 Estos pequeños relatos que se van produciendo dentro de la novela, son
a la vez metáfora externa de los cuartos: nunca logran cerrarse (es así que no
sabemos qué ocurre con el personaje de Sócrates, no sabemos cómo o bajo qué
circunstancias muere el Paucarpitas, etc.) a la vez que mantienen la fragmentación
de la Tía y en su espacio físico y muy posiblemente en su Ser.
El espacio de los cuartos es también un espacio violento y hostil. En
una primera instancia cuando la casa de la Tía y la señora sufre el problema de la
humedad y son obligadas a abandonar ese primer espacio, la violencia y hostilidad
del segundo espacio (el galpón) inicia el proceso de pérdida del Ser que se identifica
por medio de la imposibilidad de sentirse pertenecientes a un lugar. Las mujeres
son obligadas a habitar este nuevo lugar que es absolutamente hostil y adverso
para sus necesidades, y al mismo tiempo, se constituye en un espacio donde es
imposible ser feliz, así el Ser no puede alcanzar su máxima plenitud.
El galpón no sólo es violento con las mujeres, sino que es al mismo tiempo
un espacio de muerte:
…y ahora no me hables del galpón. Ya sabemos que nos hemos librado de
un infierno.
J ¿Qué pasó con el pobre Ismael? El pobre Ismael durmió unas cuantas
veces en ese maldito galpón; y cayó con pulmonía y murió. Y nosotros ya
A parecíamos unas rabonas o unas conchabadas, metidas en ese galpón.
(SAENZ, 1985, p.18)

L Es a aquel galpón donde se produce el primer traslado que empieza por
matar a alguien, el Ismael.
L Posteriormente y cuando las mujeres regresan a los cuartos, es la señora
quien muere dejando a la Tía y obligándola a un nuevo traslado.
A En los espacios usualmente geometrizados, Bachelard propone el
encuentro con el Ser que para la Tía nunca llega a concretarse por la imposibilidad
de habitar un lugar. Cuando finalmente se instala en los nuevos cuartos y alquila
una de ellas a los hermanos Chumacero, parece que el habitar para la Tía se
empieza a materializar, más aún cuando llega el trabajo de recepcionista del
• adivinador Paucarpitas; sin embargo, es ahora la muerte de la ayudante de los
hermanos Chumacero, la joven Soledad Vaca, con quien la Tía había establecido
941
un vínculo emocional, la que provoca una nueva fragmentación. Aquella joven que
• debía establecer morada junto a la Tía es atropellada el día de su traslado y muere;
no solo dejando a la Tía nuevamente sola, sino también provocando que uno de
los cuartos, el perteneciente a los hermanos Chumacero, quede completamente
clausurado. Esta clausura se comporta, quizás, como la ruptura más grande dentro
de la novela: el espacio está completamente inhabitable.
2 La tía con grandeza y altura, se hizo cargo de los gastos; y esto aparte, adop-
tó una medida drástica, que sentó precedentes de originalidad y energía. El
0 caso es que la tía, no bien terminaron las exequias, contrató los servicios del
albañil que acababa de tapiar el nicho de la chica Soledad Vaca; y luego de
llevarlo a la casa, hizo botar a la calle los bártulos y folletos de los hermanos
1 Chumacero; y acto seguido, mandó cerrar a piedra y lodo el inmenso cuarto
que les había alquilado… (SAENZ, 1985, p.39)

8 La muerte de Soledad como momento de ruptura en el Ser de la Tía,


marca un camino de no retorno: esta muerte jamás puede ser superada y es lo que
ella llama la internación de su alma en regiones oscuras. Es así que, con la muerte
física y la clausura del espacio, el Ser no puede estar íntegro nunca más.
El habitar de la Tía también presencia consonancia con el tiempo, el
tiempo de la novela es el pasado, todo está en la memoria y todo ya ha sucedido,
todas las muertes que marcan a la Tía están atrás en el momento de la enunciación
de la novela, pero a la vez son recuerdos latentes que van saliendo del narrador a
medida que transcurren las páginas.
Así transcurre la novela, entre fragmentaciones del Ser y muertes que
evitan que la Tía pueda estar en paz. El espacio de creación de la imagen poética
de Bachelard es entonces fracturado por completo en Saenz en un punto donde
ambos coincidirían que la consecuencia más grande es que nunca pueda existir un
Ser. Sin embargo, lo que para uno debería ser espacio calmo desde donde se genera
la travesía de los escritores, para el otro, como espacio deconstruido, es aliento
para presentar una de las novelas cortas más prolijas y existenciales del siglo XX
J en Bolivia.
Quizás, si Saenz se sentara a conversar con Bachelard, ambos podrían
A pasar horas discutiendo acerca de la pertenencia física de los espacios para darse
cuenta que cada uno ha construido su Ser desde la misma deconstrucción de su
L imaginario poético utilizando rincones, cuartos y casas como morada del alma y, ya
sean completos o fragmentados, estos espacios nos han podido ofrecer a nosotros

dos grandes obras, una teórica y la otra narrativa que nos hacen reflexionar sobre
L nuestro propio lugar de pertenencia en esta temporalidad fugaz que es la vida.

Bibliografía
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wordpress.com/2011/04/28/gaston-bachelard-poetica-del-espacio-fenomenologia-de-la-
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BACHELARD, G. La poética del espacio. México: Fondo de Cultura Económica, 1957
LÓPEZ, J.: Una lectura arquitectónica y urbana de Los cuartos de Jaime Saenz. Dis-

ponible en: http://www.scielo.org.bo/pdf/rcc/n7/a04.pdf Acceso al 15/05/2018.
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SAENZ, J. Los cuartos. La Paz (BO): Ediciones Altiplano, 1985
VASQUEZ, J. Inéditos entornos de Jaime Saenz reportaje a Gisela Morales. Disponible
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2 html?view=magazine Acceso al 25/05/2018.

0

1

8

J

A

L O PAPAGAIO SUL-AMERICANO E O RACIONAL EUROPEU: UMA
LEITURA DE “THE PARROT AND DESCARTES” DE PAULINE
L MELVILLE

A Miguel Nenevé (UNIR)
RESUMO: Pauline Melville é uma escritora de Londres, mas nascida na República
da Guyana, tendo origem britânica e ameríndia. Escreveu dois romances, duas
coleções de contos e tem poemas publicados em antologias de poetas do Caribe.
Neste trabalho, pretendo explorar o conto “ O papagaio e Descartes” da coleção
• Migration of Ghosts. Meu argumento é que este texto fictício pode ser lido como um
943 contra-discurso ao discurso europeu, científico, de conhecimento cartesiano. Para
meu argumento, eu usarei o conceito de colonização epistêmica e geopolítica do
• conhecimento como proposto por Bill Ashcroft e pensadores latino-americanos que
discutem a colonização da episteme, tais como Walter Mignolo e Anibal Quijano,
entre outros.
Palavras-chave: Papagaio – Descartes – Pauline Melville – Racionalidade –
Subjetividade
2
Introdução
0 “The Parrot and Descartes” como muitas das histórias nesta coleção
explora as memórias culturais, o mito e as tradições sul-americanas. Na coleção

encontramos histórias de imigrantes guianenses morando na Inglaterra que
1 parecem levar seus espíritos da América do Sul a fim de poderem sobreviver em
outro ambiente. Em “The Parrot and Descartes”, o narrador conta-nos a história de
8 um papagaio que migra da América do Sul para a Europa, vê a encenação da peça
A Tempestade de Shakespeare, tem contato com o cristianismo e o racionalismo de
Descartes. O papagaio representa o povo sul-americano, por exemplo o ameríndios
que recebiam um tratamento dos colonizadores não diferente do tratamento dado
aos animais. É um texto que nos inspira a pensar sobre educação, sobre conceitos
de objetividade e de subjetividade no ensino, sobre a valorização do local de onde
se fala, de onde se percebe o mundo. Além disso, eu quero argumentar que a
história contada pelo narrador de Pauline Melville também sugere alusões a outras
histórias de papagaios levados da America do Sul ou do Orinoco – Venezuela – para
a Inglaterra e Europa de um modo geral. Talvez para o contexto de nossa discussão
seja interessante iniciar explorando a relação do papagaio com os seres humanos
e com o mundo ocidental.
O papagaio e a voz do colonizado
Aprendemos, por exemplo, nos livros de História Ocidental que depois
de acabar de conquistar o império persa, Alexandre, o Grande, conduziu seu
exército para a India. Durante dois anos lá, ele viajou de regiões de montanhas
frias para terras tropicais úmidas. Quando voltou para casa, levou consigo uma
J espécie de pássaro que falava com uma voz parecida com a de um ser humano:
era exatamente um papagaio. Apresentado à Europa por Alexandre, os papagaios
A foram rapidamente abraçados pela cultura ocidental como exóticos, esquisitos,
cheios de forças maravilhosas e às vezes próximos de Deus.
L Ao longo dos séculos, os papagaios se tornariam uma figura engraçada
ou de veneração, ora premiadas por sua sagacidade – ou seu lugar na mesa do
L jantar. Ultimamente eles se tornariam emblemáticos da interação entre o mundo
ocidental e não ocidental, especialmente a América do Sul. Em sua obra Ansichten
der Natur, Humbold relata a história de um papagaio em Orinocco que falava uma
A
língua perdida que ninguém podia entender. O papagaio pertencia aos indígenas
Aturian que não puderem sobreviver ao ataque da tribo inimiga (Maypure). Portanto,
a última pessoa da tribo tinha morrido em desolação total vários anos antes
morrendo com eles a sua cultura. Este papagaio falante era, consequentemente, a
última critaura viva que falava a língua.

É Importante mencionar também que David Crystal em sua obra
944
Language death (p. 100) também relata a história do papagaio de Alexander von
• Humboldt e argumenta que esta é uma imagem eloquente da morte de uma língua.1
O que é importante para notarmos aqui é que o papagaio, o pássaro mais falante
da terra, se torna de alguma forma o símbolo da tradição oral e da magia. Na obra
Macunaima de Mário de Andrade aprendemos sobre o herói sem nenhum carátater
porque o papagaio conta a história para o narrador. No final de Macunaima, o
2 narrador nos conta que o papagaio no silêncio de Uraricoera preservou as histórias
para evitar o esquecimento da cultura e o desaparecimento da língua.
0 Roberto Pompeu de Toledo em um artigo escrito para a Revista Piaui
em Outubro de 2006 confirma esta percepção do papagaio como meio trickster,
1 um folgazão: “O papel que o papagaio desempenha nas anedotas é esse mesmo
do folgazão/ malandro/obsceno. O papagaio das anedotas é um estereótipo do

brasileiro, numa de suas vertentes mais difundidas. O papagaio é Macunaíma, o
8 herói sem nenhum caráter.” (Piaui, outubro 2006).
Como na história de Melville, sabemos que muitos papagaios foram levados
da America do Sul para a Europa. Então as referências ao Brasil e à America do
Sul tem muita relação com o papagaio. Como afirma Roberto Pompeu ”. No famoso
mapa-múndi de Alberto Cantino, de 1502, o primeiro em que aparece o Brasil,
1  “There is a report probably apocryphal of an event which took place when Alexander Von Humbold
was searching the source of Orinoco in South America in 1801. He met some Carib Indians who had
recently exterminated a neighboring tribe (possibly a Maypuré group) and captured some of their
domesticated parrots. The parrots still spoke of the now extinct language, and von Humboldt – so
the story goes – was able to transcribe some of them” (Cristal, Language Death, 100)
um trio de coloridos psitacídeos decora nosso território. Em mapas imediatamente
posteriores, a nova descoberta portuguesa será identificada como “Terra Papagalli”.
Há também a história de um navio francês , La Pélérine, preso pelos portugueses
em 1538 transportando para a Europa, além do pau-brasil, 600 papagaios e cada
um valia 600 ducados. Então a conexão Brasil, Sul-America com a Europa por
meio do papagaio realmente foi intensa.
Se por um lado os papagaios sabem repetir e representam a magia,
J por outro lado, pode-se se argumentar que papagaios são de fatos inteligentes .
O problema é como se vê o papagaio: Se ensinarmos um papagaio simplesmente
A a repetir palavras ou frases usando apenas sua memória ele não desenvolverá a
inteligência. Talvez pudesse se dizer que em alguns aspectos representa o sistema
L educacional /colonial e a cultura do negócio que se interessa pelo que não interroga,
não investiga, mas faz o que é dito pelo “centro”. Repetindo o que lhe é falado,

pode também ser um símbolo de indiscriçao e de fofoca. Seria este o papagaio
L engaiolado, sem outras perspectivas.
O Dicionário de Símbolos nos informa ainda que
A [o papagaio simboliza] a petrificação em função do caráter repetitivo de sua
fala desvinculado de qualquer raciocínio. É , portanto, uma personificação
específica de conteúdos que são repetidos sem questionamento e sem que
se pare para fazer avaliação. Costuma levar ainda a projeção de ser um
símbolo do inconsciente. Em algumas histórias árabes, ele simboliza o psi-
copompo, uma espécie de Hermes, que fala sempre a verdade, embora de

forma um tanto dúbio.
945
“O Papagaio e Descartes” de Pauline Melville : Racionalismo eurocêntrico

Na História de Pauline Melville, “The Parrot and Descartes” o narrador
também nos leva para a Amazonia e sugere uma reflexão sobre a magia em face
ao mundo moderno e científico. Melville satiriza a percepção do mundo cartesiana,
europeia que separa o conhecimento científico do mágico, contrariando a visão de
2 um papagaio da América do Sul com a de um pensador europeu, René Descartes.
Eu argumento que o texto pode ser um alerta para o leitor sobre o perigo de querer
fazer a realidade científica e racional e esquecer a subjetividade em um ambiente
0 que não conhecemos. Esta historia sugere um debate sobre o cartesianismo e
a objetividade e a magia e subjetividade. Ao combinar mito e e história o texto
1 começa com um primeiro narrador que reconta o mito da tradição oral na Amazônia
caribenha:
8 Na região de Orinoco, dizem, tudo começou com um desejo e um odor. Uma
mão que se desprendeu da terra. Um braço. A terra se abriu. Uma mulher
que estava observando virou papagaio macho e começou a gritar alardean-
do. Em seguida todo o tipo de coisas aconteceram. Um homem derrubou
uma cuia de urina escaldando sua esposa. A pele dela ficou tostada. Os
seus ossos se despedaçaram. A noite explodiu sobre o mundo e algo branco
como um macaco prego saiu correndo pela floresta. É isso que dizem . Eu
mesmo não estava lá.(MELVILLE, TVT, 101)

Ao afirmar que Ele não estava lá, mas apenas repete o que os outros lhe
disseram, o narrador revela a importância da literatura oral. Além disso, é muito
importante notar que tudo começou com os sentidos (desejo e aroma) não com um
motivo racional. A racionalidade é então, menos importante do que os sentidos.
O leitor então aprende com história que, séculos mais tarde, o “mesmo
papagaio foi descoberto em uma goiabeira por Sir Thomas Roe”. (101) Sir Thomas
Roe, foi realmente uma figura histórica que viajou para o Orinoco em 1611. De
acordo com Melville Narrador, Sir Thomas era um cortesão inglês conhecido como
Fat Thom (101). Mais adiante, nos dizem que “Fat Thom despachou o papagaio
J imediatamente para a Inglaterra como um presente de casamento para a princesa
Elizabeth, filha de James I” e “Este foi o casamento cuja celebração a Tempestade
A de Shakespeare foi realizada pela primeira vez” (102)
O texto de Melville sugere que o papagaio sul-americano simboliza a
L tradição oral (p. 112.) e na Europa também representará, coisas terrenas e não
sofisticadas. No começo, ele parece desfrutar de lugares como Heidelberg, onde ele
conheceu o cristianismo e Praga, onde, entre as novidades, ele vê uma versão ruim
L
de The Tempest: “ [...] a maravilhosa cidade de Praga era anfitrião de todo tipo de
cabalistas , alquimistas e astrônomos e abrigou as coleções artísticas e científicas
A mais atualizadas “(105). Curioso, o pássaro sul-americano queria saber mais sobre
a Europa e sua cultura:
O papagaio inspecionou as pinturas de Arcimboldo, o Maravilhoso (que ti-
nha também sido o Mestre dos Mascarados) que mostravam homens feitos
de vegetais, panelas e livros. Tycho Brahe tinha descoberto a posição fixa
• de setecentas estrelas e John Kepler correu para descobrir as leis periódicas
dos planetas. O Castelo de Praga continha a Sala das Maravilhas de Rudolfo
946 e o piso de madeira da Grande Hall. Ali o papagaio voava despreocupada-
• mente, acostumando-se a seu novo habitat o qual tamborilava com homens
caminhando para cima e para baixo enquanto discutiam e debatiam. A sala
estava alinhada com livros, mapas, globos e gráficos. Homens discutiam as
rotas do mar, passagens navegáveis e astronomia. As ideias eram propostas
o que deixava a boca dos homens seca de entusiasmo e medo, causando
palpitações e ereções, muitas vezes ao mesmo tempo.(MELVILLE, TVT, 105)
2
As alusões a fatos históricos como a chegada de René Descartes como

soldado no exército dos Habsburgos e aos viajantes que se aventuraram na América
0 do Sul tornaram a história mais convincente. Além disso, a história de Melville revela
uma espécie de carnavalização da História Oficial, já que Descartes é apresentado
1 como alguém que não é mais importante que o papagaio. Assim, pode-se perceber
um diálogo entre a América do Sul e o Iluminismo Europeu moderno, pois o texto
8 sugere que esses centros de aprendizagem científica não eram separados da Magia,
das coisas inexplicáveis ​​que a ciência não observou. No entanto, a batalha das
Montanhas Brancas pôs fim ao espírito da Boêmia e destruiu a unidade da ciência
com a magia. E “a magia e a tecnologia, então, seguem seus caminhos separados”
(109).
O papagaio de Melville reconhece intuitivamente o perigo de um homem
que acredita que “esses animais eram autômatos e papagaios deixavam de existir
quando estavam dormindo” (110). O sul-americano percebe que, por causa da
influência de Descartes, a “mente e a matéria começaram a dividir, corpo e alma
para separar ciência e magia para marchar em direções opostas” (111). Pode-
se perceber uma alusão à visão puritana, dicotômica, maniqueísta, separando
o racional do irracional, a alma do corpo, o “correto” do “incorreto” e assim por
diante. Ademais percebe-se claramente uma crítica à posição privilegiada dada
ao método científico e à palavra escrita em relação à magia, às experiências e
à tradição oral que pertencem ao papagaio. Como o narrador diz: “Os livros se
tornaram a verdade. A palavra escrita se tornou a prova. As leis foram baseadas em
livros que continham precedentes. As pessoas foram mortas em seu nome” (111).
J Argumento que esta peça literária de escritor guianense-britânico sugere
uma crítica ao eurocentrismo e uma visão dicotômica que separa a subjetividade
A racional da mágica, a cartesiana. Ou mais do que isso, uma visão do mundo
que tenta se concentrar no objetivismo racional e despreza a subjetividade
L e espiritualidade.. Uma visão colonizadora do mundo geralmente ignora as
experiências, as subjetividades e particularidades locais para privilegiar o que é

“universal”, “objetivo” e “correto”.
L
O crítico póscolonial australiano, Bill Ashcroft, explica, por exemplo,
que a “separação cartesiana do sujeito e do objeto, a separação da consciência
A do mundo que é consciente, é o esquema que ainda está subjacente à episteme
ocidental moderna com sua paixão pela” objetividade científica ‘E sua tendência
para ver o mundo como um contínuo de dados tecnológicos (Ashcroft, 2001:
67). Segundo Ashcroft, essa visão ajuda a separar as sociedades ocidentais das
não-ocidentais. A razão e a verdade estão no Ocidente, na Europa, da qual se
• pode olhar e medir os outros. Além disso, Ashcroft argumenta que o Discurso do
947 método de Descartes foi uma mudança crucial e enorme na “percepção especial
europeia”. (134) Para Descartes, o método científico possibilita e “também garante

as percepções universais do verdadeiro, regulando-o” (Ashcroft 135). Na visão de
Descartes, embora possa haver muitas percepções do mundo, “apenas uma pode
ser correta”. Essa visão, claro, ajudou a construir uma fronteira entre o civilizado e
o selvagem, o europeu e o “outro”. “O método cartesiano, portanto, era importante
para a Europa para a construção do outro e, consequentemente, para o projeto
2 do desenvolvimento do capitalismo. O Discurso do Método era necessário para a
representação dos colonizados, daqueles que não pertenciam ao mundo racional. No
0 final, espacial, como argumenta Ashcroft, “continua a operar como uma metonímia
do poder racial, político e cultural dentro do colonialismo”. (165)
1 O pensador pós-colonialista sul-americano (ou Decolonial) Walter Mignolo
também discute a conceptualização do conhecimento e produção da “verdade” do
8 ponto de vista ocidental como meio de colonização. Em seu texto “Desobediência
Epistêmica, Pensamento Independente e Liberdade Descolonial”, Mignolo critica o
sujeito conhecido, o europeu cartesiano, que “mapeia o mundo e seus problemas,
classifica pessoas e projetos no que é bom para eles”. Ele afirma que, durante o
tempo de Descartes, não houve atenção à geopolítica do conhecimento, nenhuma
questão sobre o local e o espaço onde o conhecimento foi gerado. Ele sugere
que precisamos transformar a enunciação de Descartes por dentro “, em vez de
assumir que o pensamento vem antes de ser, deve-se assumir que é um corpo
racialmente marcado em um espaço marcado geo-histórico que sente o impulso ou
o chamado para falar, Articular, em qualquer sistema semiótico, o impulso que faz
dos organismos vivos, seres humanos (2). Todo o conhecimento está situado e é
preciso perguntar de onde o conhecimento vem, quem é o enunciador e por que o
conhecimento produzido.
Além disso, Mignolo afirma que “segundo Bacon”, a melhor divisão da
aprendizagem humana é a derivada das três faculdades da alma racional, que
é a necessidade de aprender. A História, a Poesia e a Filosofia :a Historia tem
referência à Memória, Poesia à Imaginação e Filosofia à Razão ... Portanto, dessas
J três fontes, Memória, Imaginação e Razão, fluem essas três emanações, História,
Poesia e Filosofia, e não podem haver outras. “
A De acordo com Mignolo, a afirmação de que “não pode haver outros” foi
mantida mesmo depois de algumas revisões. E no momento em que o capitalismo
L começou a ser deslocado do Mediterrâneo para o Atlântico Norte (Holanda,
Grã-Bretanha), a organização do conhecimento foi estabelecida em seu alcance
universal. “Não pode haver outros” inscreveu uma conceituação de conhecimento
L
em um espaço geopolítico (Europa Ocidental) e apagou a possibilidade de produzir
conhecimento fora do espaço europeu. (MIGNOLO - Walter D. Mignolo - “A
A Geopolítica do Conhecimento”)
Portanto, a totalidade deve ser interrogada. Mignolo argumenta que a
totalidade nega, exclue, obstrui a diferença e as possibilidades de outras totalidades.
A racionalidade moderna é um engolfamento e, ao mesmo tempo, defensiva e
excludente. Mignolo menciona o pensador peruano Aníbal Quijano, que reconhece
• a necessidade de criticar a totalidade da perspectiva da colonialidade e não apenas
948 da perspectiva pós-moderna.
• Em seu texto “Coloniality of Power”, Aníbal Quijano afirma que, com
Descartes, houve uma separação radical entre razão / sujeito e corpo. A razão
não era apenas uma secularização da idéia da alma no sentido teológico, mas
uma mutação em uma nova entidade, a razão / sujeito, a única entidade capaz
de conhecimento racional. O corpo era e não podia ser mais que um objeto de
2 conhecimento “(23).
Além disso, Anibal Quijano acrescenta que, da perspectiva eurocêntrica,
0 certas raças são condenadas por serem consideradas inferiores por “não serem
racionais”. Eles só podem ser objetos de estudo “, conseqüentemente corpos

mais próximos da natureza” (24). É por isso que algumas raças de negros, índios
1 americanos ou amarelos - estão mais próximas da natureza do que brancas e,
portanto, podem ser consideradas como objeto de conhecimento e dominação /
8 exploração por pessoas racionais.

Esses estudiosos decoloniais afirmam que a conceitualização do


conhecimento do ponto de vista ocidental deve ser questionada. A expansão do
capitalismo ocidental implicou a expansão da epistemologia ocidental em todas
as suas ramificações, da razão instrumental que acompanhou o capitalismo e a
revolução industrial, às teorias do estado, à crítica do capitalismo e do estado. Não
é uma sugestão negar todo o conhecimento europeu, mas sim promover um diálogo
entre o conhecimento europeu e outros e a sabedoria produzidos em todo o mundo.
Refletindo a idéia proposta por Mignolo, Quijano e outros, o narrador do
relato do Ventriloquista, “Makonaima ou Macunaima” revela que os ameríndios não
gostam de ser medidos de acordo com as perspectivas européias: “Onde eu estava?
Ah, sim, minha avó. Ela ainda se refere com raiva a um homem chamado Charles
Darwin que vagou pela região com o frenesi lento de uma preguiça, medindo e
coletando. “(The Ventriloquist’s Tale, 3)
Portanto, quero propor que é possível identificar no texto de Melville um
contra-discurso para uma visão eurocêntrica e homogeneizadora dos ameríndios
J na América do Sul. Pode-se detectar uma sátira sobre os estudos sobre pessoas
ameríndias que as olhem de fora e tentam publicar “a verdade” sobre elas baseadas
A somente em dados. O trabalho de Melville pode implicar uma crítica daqueles que
acreditam apenas na linguagem escrita e na representação “cartesiana” do mundo
L ameríndio. O leitor pode perceber o desafio de uma fácil classificação e categorização
das pessoas que vivem na periferia ou nas fronteiras. O idioma “científico”, usado

para descrever os nativos da Guiana ou da América do Sul, deve ser interrogado,
L porque “toda escrita é ficção, até mesmo escrever que pretende ser factual, que
aponta a data do nascimento do homem e a data de sua morte”
A Além disso, pode-se dizer que a oralidade em Melville é uma maneira de
se divertir e zombar da linguagem e da lógica das pessoas que vêm de fora e querem
impor uma “verdade” aos ameríndios sul-americanos. Também há descolonização
pelo fato de que podemos ouvir essas vozes muitas vezes negligenciadas pela história
oficial. Mentiras, disfarces e literatura oral podem desestabilizar as verdades,
• certezas e identidades imutáveis.
949 Considerações finais
• Podemos considerar que este conto de Melville nos inspira muito a refletir
sobre a educação e conceitos quando pensamos, por exemplo em objetividade e
subjetividade. Recentemente um aluno de Letras Inglês afirmou em sala de aula
que gostaria de aprender o idioma inglês, que a literatura não lhe interessava.
Acrescentou que ele queria o que era objetivo, palpável, decartiano. Tristemente
2 observamos isso não somente entre alunos, mas educadores de em diversas áreas,
até na Humanas. Por isso, isso me leva a acreditar na necessidade de reforçar
0 a atenção à subjetividade, à imaginação, à liberdade de pensar e criar dentro
de um contexto particular. Nem tudo pode ser verdade para todos em todos os

tempos e lugares. Creio que mais do que nunca precisamos evitar os conceitos do
1 Senhor Gradgrind , personagem de Hard Times de Charles Dickens (1980), que
queria “somente fatos.” É necessário enfatizar os conceitos de subjetividade como
8 processo identitário, marcado pela singularidade e pela temporalidade biográfica
do sujeito, isto é, enquanto uma produção sócio-histórica , e de linguagem como
uma dimensão discursiva. Não se pode medir tudo nem por fatos, como queria o
personagem de Dickens, nem por dados, por medidas mecânicas, em número. Há
muito mais dados que devem ser considerados e que não são mensuráveis. Como
diria o personagem narrador de Pauline Melville em The Ventriloquist´s Tale, “a
vida de uma pessoa não está pendurada entre duas datas como uma rede que fica
pendurada entre duas árvores .” Há muito mais na vida de um humano
Minha observação final é que o texto de Pauline Melville sugere que é
muito relevante interrogar a matemática do conhecimento ou a institucionalização
das verdades cartesianas inquestionáveis. Quando se relaciona com os ameríndios,
é importante pensar sobre a “Geopolítica do Conhecimento”, de onde vem o
conhecimento e para quais fins.
Referências
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CRISTAL, David. Language Death. Available at: https://issuu.com/ukmats/docs/_da-
J vid_crystal__language_death
DICKENS, Charles. Hard Times. London: Penguin, 1980
A HUMBOLD, Alexander von. Ansichten der Natur: mit wissenschaftlichen Erläuterungen
Duke University. Library. Jantz Collection. German Americana. Published in 1849 inTopi-
L cs Natural history -- South America, Physical geography -- South America, South Ameri-
ca -- Description and travel. Accessible at: https://archive.org/details/ansichtenderna-
L tu00humb

MELVILLE, Pauline. The Ventriloquist´s Tale. London: Bloomsbury, 1997


___”The Parrot and Descartes” em The Migrations of Ghosts. London: Bloomsbury, 2000
A
MIGNOLLO, Walter. Epistemic Disobedience, Independent Thought and De-Colonial
Freedom. Theory, Culture & Society 2009 (SAGE, Los Angeles, London, New Delhi, and
Singapore),
Vol. 26(7–8): 1–23
• ___ The Geopolitics of Knowledge and the Colonial Difference. The South Atlantic
Quarterly 101: 1. Winter 2002. Duke University Press.
950
___ and Escobar, Arturo, eds. Globalization and the Colonial Option.London: Routled-
• ge, 2013.
QUIJANO, Anibal. Coloniality of Power, Eurocentrism and Latin America. In Nepantla:
Views from South 1.3. Copyright 2000 by Duke University Press. Available at https://
www.unc.edu/~aescobar/wan/wanquijano.pdf,-- available On http://www.unice.fr/
crookall-cours/iup_geopoli/docs/Geopolitics.pdf)
2

0

1

8

J

A

L LITERATURA E ECOCRÍTICA: RIO VERMELHO: A
LITERATURA DE CORA CORALINA COMO INSTRUMENTO DE
L CONSCIENTIZAÇÃO HUMANA EM RELAÇÃO AO SEU ESPAÇO
NATURAL – NÃO HUMANO1
A
Mislainy Patrícia de Andrade (UEG)
RESUMO: Atendendo a demanda do simpósio “Ecocrítica e Literatura na América
Latina”, este estudo tem como proposta apresentar uma leitura ecocrítica de um
contoe dois poemas da escritora goiana Cora Coralina, intitulados“Rio Vermelho”,
• rio que corta a cidade de Goiás, onde nasceu e viveu a poetisa. Numa perspectiva
951 interdisciplinarbuscaremos contribuir para uma nova proposta de educação
ambiental. O “Rio Vermelho”, poeticamente relatado por Cora Coralina, dentre outros

contos e poesias da autora, podem ser instrumentos de grande valia no processo
de conscientização e preservação ambiental para a nossa sociedade. Desse modo,
a compreensão desta importância somada ao conhecimento de que a literatura e a
natureza caminham juntas, farão com que o ser humano se torne mais consciente,
e passe a refletir mais profundamente sobre a sua própria condição humana.
2
Palavras-chave:Literatura. Ecocrítica. Cora Coralina. Meio Ambiente.

0 O termo ecocrítica,em síntese, é o emprego da ecologia e de seus conceitos
ecológicos ao estudo da literatura (RUECKERT,1996). É um estudo literário crítico
1 de base ecológica, embora alicerçado nas Ciências Humanas. A literatura é relevante
para a sociedade por ser uma fonte de energia inesgotável - um caminho de interação
e diálogo com a ecologia, unindo, assim, as questões literárias às ecológicas.
8
Considerada um dos campos interdisciplinares mais recentes dos estudos literários
e culturais, a ecocrítica analisa o papel que a natureza desempenha na formação de
uma determinada comunidade, de acordo com suas características culturais e seu
momento histórico. Esta área procura traduzir, portanto, a importância do lugar e
do contexto de produção e recepção da literatura. Neste viés, a leitura e interpretação
de textos literários não se reduz apenas a condicionamentos linguísticos e históricos,
nem tampouco a padrões metodológicos textuais específicos, o que a metodologia

1  Este artigo é um viés da minha tese de doutorado sobre Literatura, Ecocrítica e Tradução (Inglês),
que se encontra em fase de desenvolvimento.
ecocrítica faz é condensar as metodologias de diferentes domínios das ciências
humanas e naturais. A proposta de análise ecocrítica do espaço natural, pode ser
compreendida como uma intervenção direta na sociedade, na política, na cultura e
nas artes, bem como em debates políticos e econômicos que envolvem discussões
sobre a conscientização e a preservação ambiental.
No Brasil, tem surgido uma preocupação ambiental, porém, ainda pouco
desenvolvida. É de suma importância que se trabalhe a consciência ambiental, pois
J a natureza antes rica, hoje, tem sido massacrada pelo domínio capitalista. Tem-
se presenciado a destruição da fauna e da flora, bem como a invasão do homem
A urbano e da tecnologia em áreas e contextos culturais indígenas e ágrafos. Como
um viés da crítica literária, a ecocrítica na sua proposta cultural e interdisciplinar,
L pode ser um elo entre os estudos científicos, culturais e literários, e o trabalho de
conscientização e preservação do nosso cenário ecológico.

Uma nova proposta de educação ambiental unindo a literatura e as
L
ciências ambientais poderá nos direcionar a uma forma mais consciente de ver e
tratar o nosso espaço natural. É necessário enfatizar a importância de uma relação
A saudável e consciente entre o ser humano e o não humano, e o seu próprio ambiente
de convívio. A capacidade de nos vermos em cada pequeno elemento da natureza,
pode nos proporcionar uma reflexão sobre a nossa própria condição humana, um
comportamento mais humanizado e uma nova visão de mundo.
O Rio Vermelho, rio que corta a cidade histórica de Goiás2, onde nasceu a
• poetisa Cora Coralina, vem sofrendoao longo dos anos com a degradação ambientalem
952 torno de sua nascente e encostas.Cora já relatava em seus textos as enchentes
• bravias do rioque, atualmente, vêm acontecendo com maior abrangência devido o
processo continuo de devastação da natureza. Desde o Brasil colônia, quando os
Portugueses começaram a garimpar o ouro do Rio Vermelho, ele começou a sofrer
com degradações e assoreamentos à tua volta.
Fragmentos do conto “Rio Vermelho”, de Cora Coralina, do livro Villa Boa
2 de Goyaz (2001):
Goiás tem um rio que a recorta, dividindo a cidade em duas partes iguais.
É um antigo e lendário rio de ouro e minerações passadas em cujas ribas
0 agrestes o bandeirante plantou o marco da primeira descoberta.
[...] Pelas cheias, quando as chuvas lentas e monótonas fazem os dias goia-
1 nos úmidos e tristonhos, a água do rio toma cor de sangue do seu nome e
num coro de vozes formidandas entoa um cantochão funéreo e grave.

8 Troncos arrancados, galharadas verdes onde fremiram asas e balouçaram


ninhos, detritos, resíduos, escórias e sedimentos, as águas encachoeiradas
lavam e arrastam com violenta fúria... (p.101-102).

A cidade de Goiás surgiu no período da mineração, e com a chegada dos


bandeirantes, tornou-se comum a procura das margens do RioVermelho para se
instalarem, devido ao acesso fácil às águas e aos minerais, em especial, o ouro.
Desse modo, surgiu o Arraial de Vila Boa, atual cidade de Goiás,porém, nesta época

2  Goiás é a antiga capital do Estado de Goiás, onde nasceu, viveu e morreu a escritora Cora
Coralina. Hoje a cidade se tornou Patrimônio Histórico da Humanidade.
os bandeirantes não se preocuparam com os impactos ambientais que começariam
a surgir posteriormente.
Podemos observar a devoção de Cora Coralina ao rio, no fragmento do
poema “Rio Vermelho”, de Cora Coralina, do livro Poemas dos Becos de Goiás e
Estórias Mais(1996):
Rio, santo milagroso.
Padroeiro que guarda e zela
J a saúde de minha gente,
da minha antiga cidade largada.
A Rio das lavadeiras lavando roupa.
De meninos lavando o corpo.
L De potes se enchendo d’água.
E quem já ficou doente da água do rio¿
L Quem já teve ferida braba, febre malina,
pereba, sarna ou coceira¿

A [...] Rio Vermelho – meu rio.


Rio que atravessei um dia
(Altas horas, Mortas horas.)
há cem anos...
Em busca do meu destino.

Da janela da casa velha
953
todo dia, de manhã,
• tomo a benção do rio:
- “Rio Vermelho, meu avozinho,
dá sua benção pra mim...” (p. 80-81).

A princípio,as águas do Rio Vermelho eram puras e cristalinas, e era


2 considerado um rio sagrado pelos moradores da cidade, que usufruíam de suas
águas para realizarem suas tarefas domésticas diárias. Mas, no final do século
0 XX, os problemas ambientais se agravaram, e os impactos ambientais ocasionados
pela ocupação humana e o crescimentos das atividades comerciaisàs margens do

Rio Vermelho, trouxeram poluição, a perda da sua vegetação ciliar,ocasionando a
1 ausência da biodiversidade e o seu assoreamento. Suas nascentes que ficam na
Serra Dourada, a 17 quilômetros de Goiás, também estão prejudicadas, antes pela
8 mineração e, atualmente, pelo desmatamento e a agropecuária. Este desequilíbrio
causa erosões e assoreamentos, que diminuem o volume de água na seca e causa
enchentes no período das chuvas.
Fragmento do poema “Rio Vermelho”, de Cora Coralina, do livro Poemas
dos Becos de Goiás e Estórias Mais (1996):
Rio de águas velhas.
Roladas de enxurradas.
Crescidas das grandes chuvas.
Chovendo nas cabeceiras.
Rio do princípio do mundo.
Rio da contagem das eras.

Rio – mestre de Química.


Na retorta das corredeiras,
corrige canos, esgotos, bueiros,
das casas, das ruas, dos becos

J da minha terra. (p. 80)

Cora Coralinasempre demonstrou um grande amor pela natureza, e


A trabalhar a natureza em Cora, é fazer uma viagem no tempo e na história, bem como
contextualizar através de seus textos, a relação da literatura e do meio ambiente
L de forma prazerosa e conscientizadora. Cora expressa sua ligação com a natureza
através da sua obra em diferentes períodos de sua vida, seja na infância e juventude,
ou na idade adulta e na velhice.A poetisa“santifica”e valoriza cada detalhe dos
L lugares onde viveu, bem como cada fase vivida. A autoraenfatiza em suas obras,
os elementos naturais que a cercava, comoo Rio Vermelho, sua biquinha d’água,
A a fazenda, a terra, as pedras, os animais, os vegetais e as plantas em geral.Desse
modo, as preocupações de Cora vêm ao encontro das preocupações ecológicas
da sociedade atual, que luta pelo respeito à natureza, proteção ao ambiente e a
preservação dos recursos naturais para garantir os elementos vitais do Planeta
Terra para as gerações futuras.
• O “Mãe Terra”é para Cora símbolo da maternidade universal, aquela que
954 é responsável pela origem de tudo o que existe nela e sobre ela, tanto que considera
• a terra como sendo nutridora, dadivosa, receptiva e berço último das criaturas pela
lei do ciclo natural da vida.
As águas na literatura de Cora Coralina constituem símbolos solidários
como regeneração, purificação, renascimento e santificação. Porém, a sacralidade se
destaca quase sempre no campo provedor da vida em vários poemas, enriquecidos
2 por metáforas significativas, como podemos observar no fragmento do conto “Rio
Vermelho”, do livro Villa Boa de Goyaz (2001):

Oh! Águas antigas e tranquilas! Corríeis, corríeis e eu vendo-vos correr, ou-
0 vindo-vos cantar, fiava e desfiava sempre a teia luminosa dos meus sonhos.
Oh! Águas feiticeiras, cúmplices do meu grande infortúnio lavai uma vez, na
1 tua piedosa cheia, os sedimentos e resíduos da minha dorida amargura...
Longe, longe, junto à casa onde nasci, passais aligeiradas, correndo e can-
8 tando, falando e cantando sempre as lendas de Anhanguera e as lendas de
Goiá.
Rio abaixo, ao abandono, boiou e rodou, perdendo-se para sempre, a teia
emaranhada de meus sonhos mortos...
Na minha alma, hoje, também corre um rio, um longo e silencioso rio de lá-
grimas que meus olhos fiaram uma a uma e que há de ir subindo, subindo
sempre, até afogar e submergir na tua profundez sombria a intensidade da
minha dor! (p. 102 -103)

Cora Coralina engrandece em tua obra os vegetais, o plantio e a colheita,


o cultivo de flores e das árvores frutíferas. Com a morte precoce de seu pai, o
quintal de sua casa tornou-se o celeiro para garantir a sobrevivência da mãe, dela e
das irmãs. Cora e as irmãs vendiam frutas e verdurase, talvez, tenha nascido nesta
mesma época, a doceira que Cora seria até o fim de seus dias.
O amor incondicional pela natureza e suas belezas deu a Cora o título de
“poetisa do cerrado”, poetisa que nasceu e viveu em ambientes de vastas riquezas
naturais, com espécies nobres e raras.Vale destacar ainda, oelemento “pedra”, que
sendo de existência duradoura, é reconhecida como símbolo do poder divino, da
J firmeza,resistência, indestrutibilidade, permanência e imutabilidade.
Fragmento do poema “Rio Vermelho”, de Cora Coralina, do livro Poemas
A dos Becos de Goiás e Estórias Mais (1996):
Água – pedra.
L Eternidades irmanadas.
Tumulto – torrente.
L Estática – silenciosa.

O paciente deslizar,
O chorinho a lacrimejar
A
sútil, dúctil
na pedra, na terra.
Duas perenidades –
sobreviventes

• no tempo.
Lado a lado – conviventes,
955
diferentes, juntas, separadas.
• Coniventes.

Rio Vermelho, líquido amniótico


onde cresceu da minha poesia, o feto,
feita de pedras e cascalhos.
2 Água lustral que batizou de novo meus cabelos brancos. (p. 49)
Cora Coralina foi uma mulher que viveu à frente do seu tempo. Como
0 ela mesma afirma no poema: “Nasci antes do tempo”: [...] Tudo que criei, imaginei
e defendi nunca foi feito. E eu dizia como ouvia a moda de consolo: Nasci antes
1 do tempo. Alguém me retrucou. Você nasceria sempre antes do seu tempo. Não
entendi e disse Amém (CORALINA, 2013, p. 38). Pode-se dizer que esta afirmação
8 justifica o comportamento de Cora Coralina frente à natureza e os seus elementos
naturais. A sua literatura nos prova que a poetisa, desde seus primeiros escritos,
já demonstrava maturidade, respeito e preocupação com o espaço natural, e que
nesta época já lutava pela conscientização e preservação deste espaço, não apenas
escrevendo, mas se comportando como parte integrante dele. Em relação ao seu
amor e reconhecimento para com o Rio Vermelho, Cora escreve no poema “Todas
as Vidas”, do livro Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais: “Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho. Seu cheiro gostoso d´água e sabão. Rodilha de pano.
Trouxa de roupa. Pedra de anil”. (CORALINA, 1996, p.31), demostrando, assim, um
gesto de humildade, reconhecimento e igualdade.
Em 1922, quando morava em Jaboticabal, no Estado de São Paulo, Cora
Coralina cultivava e vendia mudas de árvores para serem plantadas na cidade e,
também, publicou o artigo “Árvores”, demonstrando mais uma vez a sua visão,
digamos, “além do seu tempo”, sobre a importância da manutenção e preservação
ambiental.
Podiam realizar nesse dia uma linda e nobre festa de propaganda prática e
fecunda se, em vez de, versos inócuos cada professor levasse sua classe a
J plantar de fato árvores pelos arrabaldes, pela orla dos caminhos, pelas pra-
ças que nas cidades do interior são tão tristemente amplas, nuas e desertas
e que seriam assim pela infância anualmente arborizadas! E elas aprende-
A riam assim melhor a amar e defender essas plantas, que cresceriam com
elas e em que mais tarde se reveriam enquanto homens mulheres feitos a
L lembrar-lhes sempre os mais belos dias de vida. Nem é isto fantasia irreali-
zável de escritora, senão objetivo de fácil alcance. As municipalidades hoje,
todas elas mais ou menos interessadas na equação desse problema, se in-
L cumbiriam facilmente de designar e preparar os pontos a serem arborizados
e as plantas para esse fim. E que linda festa não seria essa a que o povo se
juntaria, festa religiosa em que a crença na primavera da vida, plantando
A árvores na primavera do ano, com suas mãos pequeninas e débeis, sentir-
-se-ia dignificada e feliz por uma ação nobre e boa, concorrendo assim, para
beleza, progresso e fecundidade da terra que lhe é berço! (BRITTO; SEDA,
2009, p. 121)

A Terra, em toda trajetória de vida de Cora Coralina, significou à ela,



fonte de vida e subsistência, e desde os primeiros escritos, a poetisa assumiu um
956 papel central na valorização da natureza.
• Fragmento do poema “Cântico da Terra, de Cora coralina, do livro Poemas
dos Becos de Goiás e Estórias Mais (1996):
Eu sou a fonte original de toda vida.
Sou o chão que se prende à tua casa.
Sou a telha da coberta de teu lar.
2 A mina constante de teu poço.
Sou a espiga generosa de seu gado
0 e certeza tranquila ao teu esforço.
Sou a razão de tua vida.

1 De mim vieste pela mão do Criador,

e a mim tu voltarás no fim da lida.


Só em mim acharás descanso e Paz (p. 210)
8
Sua infância e adolescência na cidade de Goiás e na Fazenda Paraíso,
suas terras no interior paulista, sua “casa velha da ponte”, com seu vasto quintal
regado pelas águas do “Rio Vermelho”, entre outros espaços de riquezas naturais
que viveu, despertou em Cora uma relação de afeto, devoção e respeito para com a
natureza e seus elementos. A propósito, em 1984, um ano antes da sua morte, Cora
foi eleita pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação
(FAO/ONU), Símbolo de Mulher Trabalhadora Rural.
Portanto, com o propósito de perpetuar o seu gesto de amor e devoção
pela natureza, Cora Coralina registra em seu poema “Eu Voltarei”, do livro Meu
livro de Cordel (2013), que o nascimento de seus futuros filhos, seria registrado
pelo plantio de uma árvore simbólica:
[...] Cada nascer de um filho
será marcado com o plantio de uma árvore simbólica.
A árvore de Paulo, a árvore de Manoel,
a árvore de Ruth, a árvore de Roseta.
Seremos alegres e estaremos sempre a cantar.
J [...] Plantaremos o mogno, o jacarandá, O pau-ferro, o pau-brasil, a aroeira,
o cedro. Plantarei árvores para as gerações futuras(p. 71).
A É fato que Cora se mantém viva na natureza, e em todo ser humano que
planta a semente, abençoa sua germinação e festeja sua colheita. E este ciclo da
L vida irá se perpetuar, porque para Cora, “Em qualquer parte da Terra um homem
estará sempre plantando, recriando a vida. Recomeçando o mundo”. (CORALINA,
L 1996, p. 161). Nunca é tarde para recomeçarmos a caminhada e plantarmos uma
boa semente. Assim canta o poema “Rio Vermelho”, de Cora Coralina, do livro Villa
Boa de Goyaz (2001):
A
Depois, oh!, rio, de espelhares as pontes, refletirem os cais que te marginam
e estreitam e as casas que te comprimem e apertam, além, já longe, amplias
e cresces, bebendo sôfrego os regatos e córregos humildes que encontras no
teu curso, até que, afinal, tu mesmo, grande, enorme, volumoso, entras, te
ajustas, confundindo-te para sempre nas águas vastas, ermas e azuis do
• mais belo dos rios, do desconhecido e maravilhoso Araguaia. (p. 102-103)

957 Cora Coralina amava a natureza, não como uma ambientalista que,
• simplesmente a preserva, mas sim, como parte integrante dela, amando-a e
dedicando seus cuidados à ela. E, neste ínterim, concluo a proposta deste estudo,
que é de despertar em nós seres humanos, o valor da literatura de Cora Coralina,
como instrumento de grande eficácia para o processo de educação, conscientização
e preservação ambiental.
2 De certa forma, este estudo se mostraum pouco aleatório aqui, porém,
vale ressaltar que o mesmo vem sendo desenvolvido em pesquisas para a produção
0 da minha tese de doutorado, que trabalha na perspectiva ecocrítica, a natureza na
literatura de Cora Coralina. E como docente do Curso de Letras, da Universidade

Estadual de Goiás, Campus de Goiás - cidade da poetisa, firmei o propósito de
1 levar ao conhecimento dos meus alunos, os registros das riquezas naturais e as
contribuições que Cora deixou em sualiteratura - que muito irão somar à luta
8 pela preservação do nosso meio ambiente. perpetuando o legado interdisciplinar
deixado por Cora Coralina.

Referências
BRITO, Clóvis Carvalho; SEDA Rita Elisa. Cora Coralina: raízes de Aninha. Aparecida, SP:
Ideias & Letras, 2009.
CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. 1ª Edição. São Paulo:
Global, 1996.
_______________. Meu livro de Cordel.18ª Edição. São Paulo: Global, 2013.
_______________. Estórias da casa velha da ponte. 7ª. Edição. São Paulo: Global, 1994.
______________ . Villa Boa de Goyaz. 1ª Edição. São Paulo: Global, 2001.
GAARD, Greta. ESTOK, Simon, C. OPPERMANN, Serpil. International Perspectives in
Feminist Ecocriticism. Routledge, NYC, 2013.
GAARD, G. & MURPHY, P. Ecofeminist literary criticism – Theory, interpretation, pe-
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J GLOTFELTY, Cheryll. FROMM, Harold. The ecocriticism reader: landmarks in literary
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ecology. Georgia, EUA. British Library, 1996, p. 105-123.
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L NATUREZA VIVA E O DESENHO DISPARADOR DE CONVERSAS

L Nena Balthar (UFRJ)
Lucia Vignoli (INES)
A RESUMO: Natureza Viva: uma ação-banquete-performance-coletiva é uma obra de
performance na qual o público é convidado a fazer desenhos de observação de frutas

e também a degustá-las. As frutas são ofertadas sobre um grande rolo de papel
branco, com medida aproximada de 5m x 1m formando uma extensa superfície na
qual estão dispostos lápis grafite, lápis de cor e giz de cera. A atmosfera de diálogo
• permite revelar modos de pertencimento e de estar no mundo e durante a ação são
feitas leituras de textos e poemas. A proposta instaura um campo para além do
959
artístico, sua contaminação com outros ramos de conhecimento permite questionar:
• como pensar esses territórios? Como ocupar e gerir em benefício da comunidade? A
ação proporciona uma experiência de compor uma narrativa coletiva em que todos
são sujeitos do discurso: ao desenhar, provar os alimentos, conversar, conviver e
acionar memórias.
Palavras-chave: Desenho. Poesia. Literatura. Partilha.
2
Todo homem tem o direito de participar livremente da vida cultural da co-
munidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de seus
0 benefícios.

Declaração dos Direitos Humanos, Artigo XXVII
1
A ação artística Natureza Viva: uma ação-banquete-performance-coletiva
8 é dispositivo “disparador de conversas” (KUSCHNIR, 2014, p.3), ou seja, a ação
proporciona cruzamentos e sobreposições dos vários campos do saber ao convidar o
público a desenhar, a degustar os alimentos, a ler poesia, a compartilhar memórias
e saberes, a habitar o território construído juntos, ampliando a reflexão sobre a
força de uma ação coletiva, permitindo o pensamento sobre questões de arte, do
espaço público e privado. O desenho como deflagrador da ação estabelece o sentido
de ideia como sistema de pensamento. Ao aderir o convite de desenhar frutas e
degusta-las o participante da proposta artística experimenta o gesto de desenhar.
As camadas de linhas e cores surgem nesses gestos, camadas da feitura do desenho
que desvelam a narrativa do fazer e atribui outros significados à essa ação quando
compartilhada e associada a provar alimentos e a ouvir e a ler poesias. O desenho
é pensamento, aquele que contribui para a produção de conhecimento.
Isso posto, consideramos o projeto plástico de caráter transdisciplinar,
instaurando uma atmosfera para além do campo artístico. Sua contaminação com
outras áreas do conhecimento permite questionamentos sobre nossos territórios,
em como habitá-los e geri-los em benefício da comunidade e de seus frequentadores.
O trânsito entre instituições, cidades, estados e países reforça o caráter
J plural da ação, revela o desenvolvimento de uma sensibilidade das artistas para
absorver e processar novos sentidos presentes nas diferentes experiências e
lugares onde a performance ocorre. As diversas sensibilidades experimentadas nas
A ações realizadas no Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), na Baixada
Fluminense na UFRRJ de Nova Iguaçu e na cidade do Porto – Portugal, entre
L outros, confere a ação o caráter de invocação-convite, a toda e qualquer pessoa que
deseje participar, ampliando o campo de possíveis surpresas e encontros. Assim
L o projeto artístico incentiva a manifestação criativa inerente a todos e contribui
para se pensar diversos tipos de ações coletivas no âmbito de transformações das
realidades dos participantes.
A A performance tomou força durante as Ocupações realizadas no Rio de
Janeiro, a partir de 2016, como modo de resistência política ao governo que se
instalou, intervindo no espaço no qual é proposta.
A ação artística se alinha ao que diz Jacques Rancière; “A partilha do
sensível faz ver quem pode tomar parte do comum em função daquilo que faz,
• dos tempos e espaços em que essa atividade se exerce”. (RANCIÈRE, 2005, p.16)
960 Portanto a dimensão política da Arte se dá na medida em que a Arte provoca um
deslocamento e/ou uma reestruturação em uma determinada forma de “partilha

do sensível”. Nesse contexto, participar da Natureza Viva: uma ação-banquete-
performance-coletiva proporciona uma experiência de construção de narrativa
coletiva em que todos são sujeitos do discurso, na medida em que, ao desenhar,
ao provar os alimentos, o convívio aciona memórias e seu partilhar transforma o
território em um lugar de representação coletiva. A experiência artística proposta
2 nessa ação nos torna a todos, naquele momento, etnógrafos.
As imagens a seguir, dispostas como uma narrativa visual, pretendem
0 compor um itinerário etnográfico e afirmar a condição processual da performance.

1

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Fotos 1 e 2 . V Jornada Etnográfica – Literatura e Antropologia: cartografias e outras formas nar-


rativas. UFRRJ. Nova Iguaçu – 2017.

A professora e poeta Camilla do Valle organizou, na Faculdade de Letras


da UFRRJ campus Nova Iguaçu, a V Jornada Etnográfica, onde se discutiu a fala
de musas para os poetas através de leituras de poemas de Ana Luísa Amaral do
livro Génese do Amor.

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A Foto 3. 1ª Semana da Alimentação Saudável. Instituto Nacional de Educação de Surdos/INES; Rio

de Janeiro – 2017

Ativada a performance Natureza Viva, nos jardins do Instituto,


acontecimento para alunos, familiares, professores e funcionários. O evento
compreendeu uma Oficina de Agroecologia, plantio na horta do Instituto, aula

sobre PANCS (plantas alimentícias não convencionais) e intervenção poética.
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1 Fotos 4, 5 e 6. II Encontro Internacional de Reflexão em Práticas Artísticas Comunitárias – EIR-
PAC – Porto, Portugal - 2017
8
A performance cruza o Atlântico e traz novas reflexões para realçar a
potência de uma ação coletiva e comunitária. Como aponta Roberto Corrêa dos
Santos:
Lanço-lhes o corpo aqui: pondo-o na tela da escrita, e digo que, do termo
contemporâneo, menos vale a “raiz” (temporâneo) do vocábulo e mais o pre-
fixo : co-, a dar em: cooperativar, colaborar, compartir, coletivar: ser das
coisas: o copeiro. Não mais o prefixo contra-: e sim a conjunção e: eeee.
(SANTOS, 2015, p.18)
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A Fotos 7 e 8. 9º Troca de Saberes, Universidade Federal de Viçosa/UFV. MG - 2017

L No encontro do curso de Agronomia da UFV convergiram-se saberes e
questões sobre o bem viver. A mesa de trocas de produtores e agricultores agregou
L a proposição Natureza Viva: uma ação-banquete-performance-coletiva ampliando
esse lugar de fala e escuta sobre a sustentabilidade e alimentação consciente.

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Fotos 9 e 10. Instituto de Educação Clélia Nanci, São Gonçalo. Rio de Janeiro – 2016.

1 Em 2016 estudantes secundaristas ocuparam várias escolas públicas no


Brasil reivindicando direitos e fala na construção do ensino no pais. A convite dos
8 estudantes houve várias aulas, de diferentes assuntos, nesses estabelecimentos.
Nossa contribuição para essa demanda foi a realização da performance Natureza
Viva: uma ação-banquete-performance-coletiva. Na ocasião escolhemos alguns
trechos da obra de Mario de Andrade – O Banquete – para ser lido. Entre eles:
“Toda a arte é social porque toda a obra de arte é um fenômeno de relação entre
seres humanos.” (ANDRADE, 1989, p.61)
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L Fotos 11 e 12. Espaço Capacete. Rio de Janeiro – 2016.

L Capacete é um espaço alternativo que promove uma abordagem
desafiadora ao estado globalizado de manifestações culturais de massa no formato

de grandes eventos cada vez mais genéricos ou restritos a elite. Nesse espaço se
A desenvolvem estratégias que pretendem fornecer uma alternativa concreta e real
para o que está estabelecido. Na ocasião fomos convidadas a participar em um
evento junto a outros artistas e performers.


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2
Fotos 13 e 14. Escola Estadual de Teatro Martins Pena, Rio de Janeiro – 2016.
0
No espaço de formação de atores a performance se deu com a fala e

leituras do artista, poeta e filósofo Roberto Corrêa dos Santos. Durante o processo
1 foram lidos trechos do livro O horror econômico de Viviane Forrester sobre a crise
global do trabalho.
8

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Foto 15 e 16. Ministério da Cultura, Palácio Gustavo Capanema. Rio de Janeiro 2016.
A
Em um movimento de resistência ao governo que se instaurou e extinguiu
o Ministério da Cultura, muitos artistas ocuparam o MinC por longo período.
Durante a ocupação foram promovidas ações culturais: shows, debates, peças
teatrais, domingos de arte. Nesse contexto a performance Natureza Viva participou
• de um Domingo para Crianças com várias atividades visando esse público.
964

2

0 Foto 17 e 18. Seminário InDisciplinas: arte frente ao urgente - 4o Encontro de Pesquisadores dos
Programas de Pós-Graduação em Artes Visuais do Estado do Rio de Janeiro - Casa França-Brasil.
1 Rio de Janeiro – 2016.

Os estudantes de Pós-Graduação da Escola de Belas Artes da Universidade


8 Federal do Rio de Janeiro promoveram um espaço de discussão e circulação de
trabalhos e pesquisa nessa área. Participar do seminário desse porte nos fez
perceber a importância de itinerários em instâncias diferenciadas, de troca de
saberes, agregando a performance seu viés transdisciplinar.
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Foto 19. Escritório de Imaginação e Emergência, UERJ –- 2016
L
Com o total desmonte da 5a melhor Universidade pública do Brasil,
A a performance se deu na entrada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), durante a programação de ações para se pensar a emergência de políticas

que mantenham a integridade e qualidade do ensino público. Entre os participantes
da ação-banquete-performance-coletiva haviam estudantes e funcionários da UERJ,
que fizeram leituras de poemas tanto sugeridos por nós quanto escritos pelos
• participantes.

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8 Foto 20 e 21. Galeria KM7, Nova Friburgo. RJ – 2016.

No âmbito de uma ação artística que promove a interlocução com o


entorno onde o acontecimento é instaurado a performance Natureza Viva: uma
ação-banquete-performance-coletiva foi realizada na galeria de arte KM7. A mesa
para o banquete coletivo foi instalada na calçada em frente a galeria que se localiza
na estrada fluminense de Teresópolis-Nova Friburgo, e contou com a adesão
maioritária de crianças. Um senhor, que chegava do trabalho, ao ver a mesa posta
e com materiais de desenhar além das frutas para degustar, rememorou seu curto
tempo de estudante e desenhou letras e frases.
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Foto 22, 23 e 24. QUE LEGADO! Castelinho do Flamengo, Rio de Janeiro – 2017

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966 Foto 25 e 26. QUE LEGADO! Espaço Cultural Sérgio Porto, Rio de Janeiro – 2017

A iniciativa multidisciplinar e manifesto artístico QUE LEGADO, foi uma
ocupação realizada por vários artistas no Centro Cultural Municipal Oduvaldo
Vianna Filho – Castelinho do Flamengo - importante equipamento cultural da
cidade do Rio de Janeiro. QUE LEGADO resultou em um evento de 16 dias com
atrações gratuitas e de variados campos de atuação artística: exposição, cinema,
2 artes visuais, dança, teatro, performances, literatura, sarau, música, psicanálise,
cortejo musical, cursos, debates e também festa com DJ e bar. QUE LEGADO foi
0 realizado em outras edições e espaços de arte como Espaço Cultural Sérgio Porto.

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Foto 27 e 28. Nuit Blanche – Museu de Arte Contemporânea (MAC), Niterói – 2017
Em consonância com o evento francês, Nuit Blanche, que movimenta
toda a cidade de Paris, a versão brasileira convidou artistas para caminharem pela
cidade de Niterói cujo final do percurso foi o Museu de Arte Contemporânea de
Niterói. No seu pátio foi instalada a proposta artística e colaborativa Natureza Viva.
Uma maneira de contribuir e fomentar a reflexão sobre como habitamos nossos
territórios: como geri-los em benefício de quem os habita, assim como em benefícios
de seus frequentadores.
J Referencias
ANDRADE, Mario de. O Banquete. Livraria Duas Cidades – 2º edição 1989.
A KUSCHNIR, Karina. GAMA, Ferraz Pedro. Contribuições do desenho para a pesquisa
antropológica. REVISTA DO CFCH • Universidade Federal do Rio de Janeiro ISSN 2177-
L 9325 • www.cfch.ufrj.br
Edição Especial JICTAC • agosto/2014
RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível. Ed 34. 2005.
L SANTOS, Roberto Correa dos. Cérebro-Ocidente / Cérebro-Brasil. Arte/escrita/vida/
pensamento/clínica Tratos Contemporâneos. Editora Circuito. FAPERJ. 2015.


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L OS SABERES DOS TERREIROS DE CANDOMBLÉ: O LUGAR DA
ORALIDADE E DA ESCRITA
L
Océlio Lima de Oliveira (UNESP)
A RESUMO: O candomblé é uma religião hierárquica e ritualística, baseada em
cargos sacerdotais e senioridade, portanto, o conflito e o poder estão presentes
entre os participantes do culto. Segundo Castillo (2010), o discurso religioso
do candomblé torna-se parte fundamental no processo de iniciação, já que os
conhecimentos serão repassados “oralmente” de acordo com uma escala iniciática.
• Nesse interstício, o iaô ( o recém-iniciado na religião) será observado enquanto sua
capacidade de guardar o segredo, haja vista que nem todos os filhos-de-santo serão
968
alvo de confiança por parte do pai ou mãe-de-santo. Além disso, a oralidade torna-
• se uma forma de conexão entre os integrantes da comunidade. A palavra proferida
pela mãe ou pai-de-santo é considerada portadora de axé – força vital responsável
pelo equilíbrio espiritual do terreiro. Através da palavra, o sacerdote ou sacerdotisa
torna-se mediador ou mediadora entre os homens e o divino e logo no início da
convivência com os adeptos, o abiã, que ainda não passou pelo processo iniciático,
2 percebe o poder da palavra. Pode-se afirmar que foi na religião onde os africanos e os
seus descendentes construíram novos laços de solidariedade, novas identidades e
0 novas comunidades. O que se convencionou chamar de práticas mágico-religiosas,
por meio das quais os homens entram em contato com entidades sobrenaturais,
1 espíritos, deuses e ancestrais, foi um aspecto central da vida de todos os africanos
trazidos ao Brasil, assim como viria a ser na de seus descendentes brasileiros.

Palavras-chave: Oralidade; escrita; candomblé
8
Introdução
É no convívio dentro da comunidade, no caso desse estudo, da comunidade
de terreiro, que se desenvolvem os conflitos, a busca pelo poder dentro das casas
de candomblé faz parte do cotidiano desse povo que durante tanto tempo lutou
e ainda luta por igualdade e respeito dentro da sociedade mais ampla em que
está inserido a duras penas. Essa luta é quase sempre algo inevitável, talvez pela
necessidade de autoafirmação dentro do grupo, já que nem sempre os membros
dessa religião tinham lugar de destaque na sociedade civil ou mesmo uma busca
desse lugar de prestígio diante de outros grupos semelhantes, ou até mesmo com
o intuito de uma maior visibilidade com vistas a uma carreira religiosa, o fato é
que o conflito e a busca pelo poder existem e vai depender muito do sacerdote
ou sacerdotisa de cada casa a resolução deles, a maneira que esses problemas
serão administrados poderá ser fundamental para a existência da hierarquia, tanto
defendida dentro do candomblé, principalmente pelos adeptos mais antigos que
buscam perpetuar a tradição.
Observamos que no candomblé tudo tem um significado, uma simbologia
J e é através da experiência que cada um vai tomando seu entrelugar no grupo
religioso. Nesse sentido, pensando numa historiografia do candomblé, podemos
A mencionar que para os descendentes de africanos pudessem conservar na memória
coletiva seus ritos e para que esses elementos fossem ressignificados no contexto
L da diáspora, a transmissão cultural tornou-se, fundamentalmente, necessária:
“Esse movimento de volta à África, desde sempre presente no candomblé, é
uma reativação, mais simbólica que real, de uma tradição “pura” que deve
L ser reconstruída em solo brasileiro. A necessidade se faz sentir de modo
mais urgente, à medida que os efeitos nefastos do turismo e da participação
de brancos e mulatos no candomblé cavam um fosso cada vez mais níti-
A do entre os terreiros “tradicionais” e aqueles que “buscam tanto a estética
quanto à religião” (CAPONE, 2009).

Segundo algumas etnografias de terreiros tradicionais da Bahia (VERGER,


1981; SANTOS, 1976), esse retorno à África é feito via oralidade. Castillo (op. cit.)
• problematiza essa total adesão dos terreiros de candomblé à oralidade, mostrando-
nos que, em muitos terreiros, a escrita é usada como um recurso para perpetuar
969
tradições, consideradas até então pelos adeptos como oriundas da África. A escrita,
• principalmente na contemporaneidade – onde terreiros de candomblé assimilam,
como qualquer outro ambiente cultural, características da modernidade – anda
lado a lado com a oralidade, promovendo o resguardo dos fundamentos de uma
comunidade de terreiro. Assim, a escrita participa das relações de poder que se
constroem em torno do terreiro, sobretudo na promoção, em torno de um pequeno
2 grupo, do que se deve ou não saber sobre os “fundamentos” do candomblé.
Desenvolvimento
0 Os fundamentos são segredos que, na formação dos primeiros terreiros de
candomblé, eram guardados “a sete chaves” pela complexa hierarquia da religião.
1 Por esses primeiros terreiros terem se constituído em torno da oralidade – haja vista
que o número de analfabetos era alto – muitos pais ou mães-de-santo morriam com
8 os fundamentos, sendo necessário que, para a não derrocada da religião, os segredos
fossem passados àquele “digno” de confiança do chefe religioso. Com o advento
do candomblé e pela própria mudança do público que frequenta os terreiros –
observa-se a grande quantidade de professores, antropólogos, advogados, médicos,
sociólogos etc. que são adeptos ou simpatizantes da religião – muitos fundamentos
foram transcritos em livros. No entanto, o saber oriundo dos livros, embora seja
usado, não é tão valorizado quanto o conhecimento adquirido pelo contato. Nessa
perspectiva, Castillo descreve a fala do Ogã Thiago que se mostra contrário à total
adesão da escrita nos rituais:
“Você pode descrever como é a feitura da iaô, mas só uma pessoa vendo
como é que faz, que vai saber como é que realmente faz. Não ouvindo falar,
e não lendo no livro. O segredo é isso. O que você lê, você não está tendo a
visão do que realmente acontece. A pessoa não vai saber como abrir uma
casa de candomblé com um livro. Só uma pessoa experiente, que pratica,
que vai saber conduzir aquilo” (CASTILLO, 2010, p. 29).

A autora considera que o mais interessante no depoimento acima é a não


aderência de uma aprendizagem a partir de um texto falado ou escrito, por serem
J desvinculados, na essência, da prática. É na prática que sensações como aromas,
paladares, melodias, ritmos, movimentos e sensações físicas são percebidos e que,
indubitavelmente, para uma religião marcada pela constante realização de rituais
A
– permeados por cantigas, rezas, evocações e sacrifícios de animais – as sensações
trazidas pelo contato direto é fundamental. Quanto a isso, mãe Laura de Oxalá,
L uma antiga mãe de santo de grande prestígio no Estado do Acre, doravante MLO,
auxiliar dessa pesquisa, em vários momentos que presenciamos as suas práticas,
L disse:
“Se vou arriar uma comida para Xangô, o interessado por esse agrado ao
A orixá tem de estar presente para ir pegando o axé da comida. No caso do fi-
lho-de-santo, para ele aprender a fazer todas as comidas-de-santo, tem que
ficar do meu lado, me ouvindo e vendo o que estou fazendo. Filho-de-santo,
para receber meus fundamentos, tem que estar do meu lado.” ( entrevista
no dia 29/01/2013)

• Vemos que, como o ogã Thiago, MLO frisou a necessidade de se ouvir e


praticar ao mesmo tempo, porque a própria religião exige essa total adesão entre
970
fala/escrita e prática. Em outro momento, MLO se referiu aos textos escritos:
• “Filho-de-santo não pode ser cosi. Para saber das coisas tem que estudar.
Todos têm os seus cadernos, se não sabem, é porque não querem aprender.
Mas, mesmo lendo nos cadernos, tem que ver eu fazendo. Não adianta só
ler, tem que estar no barracão vendo a mãe-de-santo fazendo as coisas, para
eu passar fundamento.” (entrevista dia 29/01/2013)

2 Os iniciados começam a produzir o “caderno de fundamento” logo nos


primeiros dias que entram para a comunidade. Ali, eles escrevem as regras a serem
0 obedecidas, cânticos, rezas da nação, mitos dos orixás “voduns” e tudo o que vão
observando através da oralidade no dia a dia, na convivência com os mais velhos.
Assim, tudo se constitui em “fundamento”, que um dia precisará ser usado. Durante
1
a pesquisa, nos deparamos, algumas vezes, com a ialorixá recomendando a um
futuro iaô que comprasse seu caderno. Indagada sobre o que o iaô poderia copiar
8 ou não no caderno de fundamento, a ialorixá explicou: “ele pode copiar alguns
fundamentos da casa, mas somente aqueles que um iaô deve saber, a outra parte

do caderno só pode ser copiada depois que completar sete anos de santo feito”. Os
pais e mães-de-santo dos terreiros de candomblé são considerados e reconhecidos
como detentores exclusivos de um monopólio na gestão dos segredos, os chamdos
“fundamentos” e de quem para quem esses segredos devam ser transmitidos. Em
relação a isso, MLO afirma:
“Não se passa fundamentos do candomblé para qualquer um. Tem filhos-de-
-santo que podem ser tornar ebomi e pais-de-santo, mas mesmo assim não
confio em passar fundamentos para eles. Eu observo e vejo qual é aquele
que deve conhecer um fundamento. O iaô que está sempre do meu lado,
vendo o que estou fazendo e escutando o que estou falando, não será um iaô
descompreendido. Aquele que não acompanha a mãe-de-santo não aprende
nada.” (entrevista dia 29/01/2013)

MLO nos mostra a importância que dá para a transmissão dos fundamentos


por meio da oralidade, sendo que, para que haja transmissão do que sabe, faz-se
necessário o constante contato com ela.
J Assim, percebemos tão qual é importante as situações de fala dos terreiros,
pois é a fala que dá desenvolvimento aos rituais. No entanto, Castillo aponta um
A estudo do antropólogo Júlio Braga que contesta essa total adesão da oralidade no
candomblé:
L “Júlio Braga (2007) é um dos poucos autores a reivindicar a necessidade de
considerar as maneiras pelas quais a tradição oral coexiste com o uso da
escrita nos terreiros. Braga sustenta que a lacuna em relação aos pequenos,
L mas reais usos da escrita, acaba promovendo uma visão exagerada da orali-
dade como o único meio para a transmissão do saber religioso... Nesse sen-
tido, é importante distinguir entre os usos da escrita considerados públicos,
A por não transgredirem os limites do segredo, e seus outros usos, guardados
em silêncio” (CASTILLO, 2010, p. 59).

O autor citado por Castillo afirma a necessidade de se rever essa total


adesão do candomblé à oralidade. A própria Castillo, ao estudar a oralidade em
• terreiros tradicionais de candomblé da Bahia, verificou que, juntamente à tradição
oral, alguns cadernos – cadernos de fundamento – são usados como instrumentos
971
para perpetuar o conhecimento nesses terreiros. Mesmo assim, esses cadernos não
• substituem o que chama-se de a “força da palavra pronunciada” .
Em muitas situações até mesmo desejo de posse desses cadernos onde
estão escritos segredos da religião podem causar conflito dentro da comunidade,
principalmente no caso de falecimento do líder espiritual. Ora, o candomblé é uma
religião que privilegia o segredo, logo quem sabe mais é detentor de maior poder,
2 portanto, é necessário um longo período de aprendizado e todas as formas de se
obter ensinamentos é válida, desde que respeite-se a hierarquia da religião e a
0 tentativa de burlar tal hierarquia também é causadora de intrigas no meio dos
adeptos.
1 A linguagem verbal e não-verbal no candomblé
A escrita é vista de forma diferente pelo candomblé e pelas religiões
8 judaico-cristãs. Na primeira religião, a transmissão de saberes é analisada por
muitos etnógrafos como Verger e Santos como sendo feita pela oralidade, criando-
se uma lógica de não compartilhamento de conhecimento tradicional afro-religioso
via texto escrito. Autores mais recentes, e já citados nessa pesquisa, como Castillo
(op. cit.) questionam essa primazia. Segundo ela, o corpo simbólico do candomblé,
concretizado em danças, cantigas, rezas, oferendas etc, não se baseia em textos
escritos sagrados (como a bíblia para os cristãos), promovendo-se a ideia – até certo
ponto não verdadeira – de que o candomblé é uma religião fundamentalmente oral
e pode “ser descrita como tendo uma tradição oral, embora se insira em e interaja
com a sociedade brasileira, a qual é profundamente marcada pela influência da
tradição escrita”. Para Santos (1976), “... a linguagem oral está indissoluvelmente
ligada à dos gestos, expressões e distância corporal. Proferir uma palavra, uma
fórmula é acompanhá-la de gestos simbólicos apropriados ou pronunciá-la no
decorrer de uma atividade ritual dada”.
Oliveira e Souza (2012), ao analisar a relação entre o som oriundo dos
atabaques e o ritual de candomblé, mostram a relação existente entre oralidade e
o não-verbal na representação dos mitos dos orixás. Assim, os autores afirmam
J que “a sonoridade de um instrumento ou objeto é um elemento constituinte do
candomblé. Não se faz nada em um ritual de candomblé sem ter um batuque ou
A um som oriundo dos diversos instrumentos presentes em um terreiro”.
É interessante pensar que a maioria dos terreiros de candomblé dão uma
L importância à pureza de sua tradição africana, e isso é demonstrado constantemente
através do discurso do líder e também através dos rituais e situações cotidianas,
todas as formas de linguagem são utilizadas para esse fim.
L
Como vimos, a produção verbal nos terreiros é intensa. Vimos também
que não se pode afirmar que línguas africanas sejam faladas nos terreiros e nem
A que o português é a língua predominante nas relações sócio-religiosas do terreiro,
pois “línguas especiais” são usadas com propósitos específicos. Pode-se afirmar que
a língua-de-santo e a língua-do-povo-de-santo foram desenvolvidas naturalmente
via relação de contato entre línguas e para atender a uma necessidade identitária.
Dessa forma, percebe-se que os adeptos do candomblé, em rituais

específicos e contato diverso no terreiro, usam de um aparato verbal para o
972 desenvolvimento das suas práticas e de uma linguagem não-verbal (dança, jogos
• corporais, encenações, etc) para compor o(s) processo(s) ritualístico(s) no terreiro.
Portanto, o terreiro de candomblé é um ambiente que aciona várias linguagens,
apresentando uma manifestação linguística sincrética. Pietroforte afirma que:
os sistemas verbais são as línguas naturais e os não-verbais, os demais
sistemas, como a música e as artes plásticas. Os sistemas sincréticos, por
sua vez, são aqueles que acionam várias linguagens de manifestação, como
2 ocorre entre um sistema verbal e um não-verbal nas canções e histórias em
quadrinhos (2007, p. 11).
0
Complementar à citação de Pietroforte, Vogel, Mello & Barros (2001)
ressaltam que a dança, diversos elementos coreográficos e sincronizados a partir
1 de um som qualquer, além de diversos jogos corporais, funcionam como uma
linguagem não-verbal que está em constante “diálogo” com as entidades invocadas
8 no candomblé. Pode-se afirmar que esses “jogos” corporais desenvolvidos no
período das senzalas são ressignificados nos terreiros. Dessa forma, entende-
se como linguagem não-verbal os elementos do candomblé que não têm relação
direta com uma língua, mas sim com imagens, danças, representações, relações
simbólicas etc. Os autores intensificam, ainda, que a linguagem não-verbal era
constantemente usada pelos negros escravizados para manter comunicação entre
si, haja vista que era uma política dos escravocratas colocar em um mesmo ambiente
africanos de etnias e, consequentemente, de regiões diferentes da África – que
por extensão falavam línguas diferentes entre si – para não ter contato, evitando
motins. Portanto, eram os “jogos” corporais que substituíam a palavra, tornando-
se um dos únicos meios que os negros tinham para se fazer compreender. A festa,
o transe, a dança começam a fazer parte da identidade cultural afro-brasileira e
os terreiros seriam uma das concretizações dessa necessidade de demonstrar uma
identidade negra, especificamente afro-brasileira.
O povo-de-santo possui uma maneira peculiar de conviver em sociedade,
tanto na sociedade mais ampla como na comunidade religiosa em que está inserido.
Muitas regras de convivência são estabelecidas pelo que Vallado (2010) chama de
J Lei do santo:
No candomblé e em outras religiões afro-brasileiras, tudo que se faz se jus-
A tifica pela chamada lei do santo. Essa lei não está escrita em nenhum livro,
pois o candomblé não conta com escrituras sagradas, nem faz parte de ne-
nhum corpo normativo sistematizado e único, podendo variar nas distintas
L nações de candomblé, de terreiro para terreiro, de situação para situação.
(VALLADO, 2010, p.17)
L No candomblé, ter conhecimento é sinônimo de poder, de axé, de força. A
oralidade e a escrita ( na modernidade) são fundamentais para a transmissão desse
A saber religioso que é repassado de acordo com a escala iniciática e a hierarquia de
cada casa de santo. O autor acima citado, faz um estudo minucioso sobre o conflito
no candomblé, mostrando como se dão essas relações nos candomblés de São Paulo
e pode-se perceber, tanto através de um olhar de pesquisador e de participante
ativo no grupo que as relações de poder e conflito relatadas na pesquisa de Vallado
• não diferem das relações no Estado do Acre e talvez em todas as regiões do país,
973 claro que cada uma com suas peculiaridades. A ordem hierárquica também é
basicamente a mesma: abiã ( aquele que ainda irá nascer, que será iniciado nos
• rituais da religião e a partir daí, fazer parte de fato e de direito do grupo), o iaô (
que já foi iniciado e agora irá passar pelo processo de aprendizagem até tornar-se
ebômi, cumprindo suas “obrigações” com seu orixá, sua mãe ou seu pai de santo e
seu axé), o ebômi ( que já cumpriu até a obrigação de sete anos de iniciação e que
poderá tornar-se um babalorixá ou ialorixá), além dos cargos daqueles que não
2 entram em transe e que são, portanto, autoridades dentro do culto, os ogãs e as
equedes. Além disso, há outros cargos que serão dados através da escolha do orixá
0 patrono de cada terreiro.
Considerações finais
1 A preservação da hierarquia e a distribuição de poder dada pelo pai ou
mãe de santo de cada terreiro tem relação com a manutenção da tradição. É o
8 pai ou a mãe a autoridade máxima e não cabe a ninguém julgar seus atos, no
entanto, somente o orixá regente da casa é quem poderá ter uma voz mais altiva
que o sacerdote ou sacerdotisa. Talvez nesse lugar de obediência a vontade do
orixá supremo do axé, esteja a força do candomblé. A religião dos deuses africanos
tem se mantido como uma religião misteriosa e de segredos, a manutenção desse
segredo está intimamente ligada com a ideia de poder, quem sabe mais tem mais
prestígio, aquele que domina a língua ritual dos cânticos, das rezas, aquele que
conhece as plantas de cada orixá etc, e é justamente em busca da aquisição desses
conhecimentos que se travam muitas relações conflituosas, o ciúme entre os irmãos
de santo, aqueles que são mais ligados ao pai ou a mãe quase sempre despertam
esse ciúme. A sucessão da casa por motivo de falecimento do chefe religioso também
costuma ser um dos principais motivos de conflitos no candomblé, é uma época
muito conturbada e muitas vezes depois da escolha do sucessor, os descontentes
com tal escolha podem até sair e abrir outra casa.
Além das relações humanas, o modo de transmissão dos saberes da
religião são extremamente importantes, e isso gera muito conflito, pois muitos dos
idosos do candomblé falecidos levaram consigo muitos segredos, é o que dizem
J alguns adeptos, portanto, muito já se perdeu. Podemos inferir que as relações
no candomblé são demasiadamente delicadas, e conforme o terreiro aumenta o
A número de participantes ativos, os conflitos vão ganhando lugar.
Referências
L BRAGA, J. O tempo sagrado no candomblé. In. BACELAR, J. & PEREIRA, C. (Orgs) Vi-
valdo da Costa Lima: Intérprete do afro-Brasil. Salvador: Edufba/CEAO, 2007.
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2

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A

L CULTURA, DEMOCRACIA E DIREITOS HUMANOS NA OBRA A
NOITE DA ESPERA, DE MILTON HATOUM: REVISITANDO O
L APRENDIZADO DA DEMOCRACIA BRASILEIRA

A Patrícia Helena dos Santos Carneiro (UNIR)
Júlio César Barreto Rocha (UNIR)
RESUMO: Este estudo aborda a obra A noite da Espera, de Milton Hatoum, sob
uma perspectiva político-cultural, considerando os elementos democracia e direitos
humanos, situada a sua trama na cidade de Brasília, em 1968. Os personagens
• Nortista, Martin e os candangos são diferenciais na narrativa, mas similares aos
975 paradigmas da contemporaneidade. Repetem-se na época dos fatos e na data
presente da publicação a proximidade da destituição presidencial e o subsequente
• recorte de direitos. Há algum engajamento, debate sobre valores democráticos
e defesa da liberdade e dos direitos humanos, embora prevaleça a quebra da
democracia. A solução pessoal da época dos fatos narrados era o exílio na França:
medo e desesperança se instalariam por mais outros vinte anos no Brasil. E hoje?
Para traçar o paralelo destes 50 anos, fundamentando-se na Filologia Política, toma-
2 se a perspectiva de Terry Eagleton e de George Lukács, sobretudo, acompanhando
a História por matizações ideológicas de José Afonso da Silva e de Fábio Konder
0 Comparato. Aquela cultura da violência e do ódio levou décadas prevalecendo antes
de retornar o país ao período de defesa da paz e do respeito a direitos humanos.
1 Os processos políticos, fundamentados em normas jurídicas estatais que admitam
descompasso democrático conduzem à perda dos direitos fundamentais. Antes
(1968), como depois (2018).
8
PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Cultura. Democracia. Direitos Humanos. Filologia
Política.
Introdução
Este estudo aborda a obra A Noite da Espera, de Milton Hatoum, sob
uma perspectiva político-cultural, considerando os elementos da democracia e dos
direitos humanos, em uma Brasília de 1968, como espaço de encontro de vários
Brasis, representados por personagens como o Nortista, o paulista Martin, ou pelos
candangos. Surge com força realista o contraste entre o microuniverso de cada
personagem.
Cultura e Literatura em Defesa da Democracia e dos Direitos Humanos­
A Literatura tem-nos brindado reflexões necessárias sobre os flagelos e
misérias humanas em cada momento da História. Desde a Antiguidade Clássica,
os formatos populares alcançaram um status de representatividade da sociedade à
qual foram dirigidos. Uma das primeiras expressivas obras literárias em defesa dos
Direitos Humanos é Antígona (442 a. C.), de Sófocles. A protagonista desafia um
Édito de Creonte, que não permitia a realização de ritos funerários no sepultamento
J de Polinices, irmão de Antígona, morto pelas mãos de Etéocles, igualmente irmão
da personagem principal. O exercício do poder e o abuso do direito são discutidos e
A a realidade de que o Direito pode servir aos interesses de uma pessoa ou de grupos
de interesses fica exposta, a fragilizar o equilíbrio social e desconsiderar valores da
L Justiça. Diz assim um nosso teórico:
Os problemas da Literatura, hoje discutidos por todos, possuem uma rela-
ção de continuidade objetiva com as questões estéticas colocadas na sua
L época pelos gregos e pelos renascentistas, e até por autores do século XIX.
(LUKÁCS, 2010, p. 14-15.)
A Atravessando a História, centenas de obras fazem referência a injustiças
e à quebra de valores sociais pelo Estado ou por algum símile, encontrando-se, no
século XIX, uma outra obra de permanente referencialidade, como são Os Miseráveis
(1862), de Victor Hugo, a revelar, por meio da condição de Jean Valjean, como o
aparelho ideológico do Estado (ALTHUSSER, 1970) continuava a ser empregado
• para perseguir os mais fracos em um contexto de completo desequilíbrio de forças
976 em favor do estado persecucionista. E assim centenas de outros autores e obras,
• pela História, sempre insistindo nessa dicotomia perniciosa para a Cidadania.
No Brasil do período recordado por Milton Hatoum, obras como 1968: O
ano que não terminou, de Zuenir Ventura, Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva,
dentre outros textos realistas, cumprem o papel de construir um registro histórico
da violência institucionalizada que se instaurava com o golpe militar em 31 de
2 março de 1964. Os Estatutos do Homem, de Thiago de Melo, poema-libelo escrito
no calor dos fatos, é também exemplo de Literatura de Resistência a descrever os
tempos sombrios da violação de direitos humanos e da oferta de “outros tempos
0 que virão”. Tornou-se, sobretudo, um grito (dentre outros menos sonoros) em favor
da liberdade de expressão e contra o exercício da força do poder estatal contra
1 pessoas de bem, opondo-as entre si, destruindo a pele da democracia.
A Literatura pode ser tomada, nestes exemplos, na percepção de Terry
8 Eagleton (2006), que diz:
Se é certo que muitas obras estudadas como literatura, nas instituições
acadêmicas, foram ‘construídas’ para serem lidas como literatura, também
é certo que muitas não o foram. Um segmento de texto pode começar sua
existência como história ou filosofia, e depois passar a ser classificado como
literatura; ou pode começar como literatura e passar a ser valorizado por
seu significado arqueológico. Alguns textos nascem literários, e a outros tal
condição é imposta. Sob esse aspecto, a produção do texto é muito mais im-
portante do que o seu nascimento. O que importa pode não ser a origem do
texto, mas o modo pelo qual as pessoas o consideram. Se elas decidirem que
se trata de literatura, então, ao que parece, o texto será literatura, a despeito
do que o seu autor tenha pensado (EAGLETON, 2006, p. 13).

Encontrar o caminho da originalidade ou repetir-se e refazer continuamente


o próprio caminho malfadado tem sido o grande desafio do Brasil e da América
Latina. Há tempos de construção, com possibilidades de um futuro diferente, e
tempos de desconstrução, com repetição dos mesmos tropeços nas mesmas pedras,
com perdas reiteradas de tudo aquilo que foi feito. Assim, os processos políticos
J latino-americanos experimentam algum amadurecimento quando as elites (do
capital financeiro) nacionais e internacionais permitem a implementação de regimes
A democráticos seguros –mas volta e meia retorna-se ao servilismo, desvinculando-
se o ideal democrático da busca de igualdade dos próprios cidadãos, submetendo-
L se aos grandes centros de poder econômico.
A submissão obedece a uma ordem advinda do Norte, provavelmente
L derivada daquilo que John O’Sullivan chamou de obediência ao “destino manifesto”
(em 7 de fevereiro de 1845, no Democratic News). A ideia fixou-se quando os Estados

Unidos se iam defrontar ao México, propiciando a “realização do nosso destino
A manifesto, de nos espalharmos pelo Continente”… e depois com dominação sobre
o mundo inteiro (DORNELLES, 2012, p. 20). Com outros termos, sobre o uso da
Literatura para rememorar, mas denunciando, diz Lukács que “a revalorização
do passado foi sempre um veículo ideal da continuidade histórica”, cada povo
empregando aquilo que melhor poderá realizar os próprios valores da sua História.

É o que empreende Milton Hatoum, o que, no caso da América Latina,
977 pode-se encontrar uma explicação da perda e da repetição, que cabe como luva na
• análise e interpretação do nosso autor. Quijano (2005) explica:
Na realidade, cada categoria usada para caracterizar o processo político la-
tino-americano tem sido sempre um modo parcial e distorcido de olhar esta
realidade. Essa é uma consequência inevitável da perspectiva eurocêntrica,
na qual um evolucionismo unilinear e unidirecional se amalgama contradi-
toriamente com a visão dualista da História; um dualismo novo e radical que
2 separa a natureza da sociedade, o corpo da razão; que não sabe o que fazer
com a questão da totalidade, negando-a simplesmente, como o velho empi-
0 rismo ou o novo pós-modernismo, ou entendendo-a só de modo organicista
ou sistêmico, convertendo-a assim numa perspectiva distorcedora, impossí-
vel de ser usada salvo para o erro. […] Não é, pois, um acidente que tenha-
1 mos sido, por enquanto, derrotados em ambos os projetos revolucionários,
na América e em todo o mundo. O que pudemos avançar e conquistar em
termos de direitos políticos e civis, numa necessária redistribuição do poder,
8 da qual a descolonização da sociedade é a pressuposição e ponto de parti-
da, está agora sendo arrasado no processo de reconcentração do controle
do poder no capitalismo mundial e com a gestão dos mesmos responsáveis
pela colonialidade do poder. Conseqüentemente, é tempo de aprendermos a
nos libertar do espelho eurocêntrico onde nossa imagem é sempre, neces-
sariamente, distorcida. É tempo, enfim, de deixar de ser o que não somos
(QUIJANO, 2005, p. 138-139).

Dadas as circunstâncias contemporâneas do Brasil, parece urgente acertar


o passo da História em consonância com o seu (re)conhecimento, preservando
os valores democráticos e o respeito aos direitos humanos no contexto de cada
singularidade, que não isenta o povo de seguir os princípios fundamentais de
proteção à pessoa, porque normativo. A Cultura, em geral (com exceção da mídia
de cariz odiento), e a Literatura, em particular, devem empregar os seus artefatos
em defesa da Democracia e dos Direitos Humanos, para não assistirmos à História
se repetir naquilo que ela tem de desgastado e de corrosivo.
O Estado contra a Cidadania ou o “O lugar mais sombrio”: a violação dos
direitos da pessoa humana
J A obra A Noite da Espera, de Hatoum, possui narrativa ficcional situada
entre os anos 1967 e 1978, tendo como personagem principal Martim, o narrador
A da trama, filho de Rodolfo, o engenheiro civil, e de Lina, a mãe que dava aulas de
francês em bairros de São Paulo, no Paraíso, na Bela Vista, nos Jardins e em Vila
L Mariana (HATOUM, 2017, p. 19-20). A mãe de Martim afinal abandona a família
para morar com um artista, deixando o núcleo familiar, configurado também pelos
L avós, pelo tio Dácio e ainda com a empregada Delinha.
A trama transcorre com a separação dos pais. Martim, aos dezesseis anos,
fica com o pai e ambos se deslocam para Brasília em 1968. É ali que o protagonista
A
conhece Jairo, gerente da Livraria “Encontro”, Celeste, a livreira, e Jorge Alegre, o
proprietário da livraria. Na escola, começa a se relacionar com Damiano Acante,
professor de Artes Cênicas; com o Nortista, um comediante da Amazônia; com Vana,
atriz em formação (torna-se a paixão do Nortista); com Ângela, filha de senador;
com Fabius, filho do embaixador Faisão; com Dinah, atriz (paixão de Martim); com

Lázaro, ator e estudante de Literatura na UnB; com Mariela, namorada do Nortista;
978 com o embaixador Faisão; com a mulher do embaixador; com dona Vidinha,
• empregada e mãe de Lázaro; e com a Baronesa.
É possível alguém viver em tempos de repressão e não se dar conta de
que se está em uma ditadura? Parece ser esta a pergunta que ronda o personagem
Martim, a sobreviver ao choque de realidade da ditadura em Brasília. Ao se exilar
na França, passa a sobreviver de tarefas de tradução.
2 A concepção historicista, abraçada por Milton Hatoum de modo consciente,
bem como esposada pelos seus melhores leitores críticos de modo necessário,
0 porque funda-lhes a leitura mais plena, pode fazer derivar uma abertura para o
futuro: tanto autor como estes leitores têm a certeza de que as coisas estão aí para
1 criar o novo, antever a mudança da situação social de uma Sociedade retratada na
sua vivência acrítica e desengajada.

A substituição do tempo histórico pelo tempo psicológico da narração nos
8
remete à insistente angústia de sentir-se só, num segundo momento, distante do
seu País, um migrante, sabedor de que não poderá voltar tão cedo. Ademais disto,
a trajetória interrompida das vidas das pessoas que conheceu e da sua própria
vida, enlaçada aos tormentos da distância da família, provocam sentimento de
desesperança, de tristeza e de incertezas quanto ao futuro. O paralelo temporal
quase evidente prega o imperativo de superar-se aquele momento; prevenir-se.
O adolescente Martim passa a ser alguém perdido no drama da separação
dos pais, na saudade de São Paulo, dos avós e do tio Dácio. Aos poucos, o jovem
começa a perceber o contexto político, primeiramente em Brasília, para, muito
mais tarde, compreender o contexto político brasileiro como um todo.
Em toda a obra, verifica-se a presença intermitente de atos praticados
por agentes do Estado que, atuando em nome da força estatal, violam aquilo que
se entende hoje em todo o Mundo, e naquele tempo com perspectiva internacional,
como violação de direitos humanos.
A alienação de Martim quanto à caracterização negativa dos fatos políticos
J vivenciados no Brasil fica evidenciada quando fala à Dinah que deseja ir ao cinema
–no mesmo momento em que se organiza uma passeata por estudantes, colegas
A seus:
Sexta: as aulas da tarde foram canceladas, a maioria dos alunos do Cen-
L tro de Ensino Médio tinha ido à assembleia no campus. Durante o almoço
no bandejão, os universitários falavam de comícios-relâmpago e protestos
em vários lugares: rua da Igrejinha, praça Vinte e Um de Abril, calçada da
L Casa Thomas Jefferson… Um alto-falante no barracão da Federação de Es-
tudantes transmitia uma música estranha, parecia marcha militar. Dinah
distribuía panfletos e me chamou. Ombros nus, lábios vermelhos, o olhar
A inteligente no meu rosto. Quando ela me deu um panfleto, consegui dizer
que ia ver um filme no Cultura.

Filme? Ontem a polícia matou um estudante no Rio. Não é hora de ir pro


cinema. Mais tarde o Geólogo via fazer um comício perto da Escola Parque.
O Nortista e o Fabius vão para lá. (HATOUM, 2017, p. 39-40.)

A referência deste trecho parece ser um passo da ficção em favor da
979
realidade: Sabe-se que, em 28 de março de 1968, o estudante secundarista
• Edson Luis de Lima Souto, aos 18 de anos, foi assassinado pela polícia no Rio de
Janeiro1, o que ocasionou grande revolta no meio estudantil e indicaria um maior
recrudescimento do regime militar.
Martim parece se dar conta do estado de anormalidade quando percebe
que estar-se escondendo de alguma coisa que não sabe exatamente o que seja:
2 …me afastei deste barulho decidido, decidido a ir ao cinema, depois me
encontraria com Dinah na Igrejinha. O ônibus para a Asa Sul parou no co-
0 meço da W3, bloqueada. Desci por uma rua paralela, a W2, e, quando me
aproximava do Cine Cultura, vi a Escola Parque e a praça Vinte e Um de
Abril cercadas por viaturas policiais; a sirene de uma radiopatrulha me as-
1 sustou, corri na direção da W1 e me encostei numa coluna de um bloco da
308, perto da Igrejinha. Por que estava fugindo? O zelador do bloco saiu de
8 uma guarita azul e perguntou o que eu fazia ali. ‘Nada’, respondi. ‘Só queria
ir ao cinema’. Ele indicou a direção do Cine Brasília, como se me mandasse
embora. ‘O cinema tá fechado’, disse, ‘os estudantes vão fazer passeatas e
comícios, o pau vai comer nessa bagunça’ (HATOUM, 2017, p. 40-41).

Em uma só noite, em 31 de março de 1968, o jovem Martim descobre a

1  Neste ano de 2018, o assassinato de Edson Luis Lima Souto completou cinquenta anos.
SANTOS, Taylan Santana: Edson Luís: 50 anos do tiro da impunidade. In: Revista Fórum, 29 de
março de 2018. Disponível em https://www.revistaforum.com.br/edson-luis-50-anos-do-tiro-da-
impunidade/ Acesso em 30/05/2018.
vigilância e o peso da polícia: é preso após adormecer em bote que navegava no
Paranoá. É colocado na mesma cela que os manifestantes dos comícios e é fichado.
O ponto de inflexão na vida de Martim foi justamente esta prisão, mesmo
que fruto desavisado da sua tentativa de fugir da realidade, que o irá marcar no
desdobramento da sua vida em direção ao exílio: “Um estudante pode ser preso por
engano, mas, depois de fichado pela polícia, a vida muda” (HATOUM, 2017, p. 46).
O posicionamento do pai de Martim ilustra bem o pensamento do
J brasileiro médio, com postura à direita, supondo-se acima dos demais por possuir
um diploma superior, a apoiar a ditadura militar:
A Ontem mais de mil estudantes foram à assembleia do Parlamento Latino-a-
mericano. Ele e os políticos da oposição dormiram no Congresso Nacional.
L Querem desmoralizar nosso governo patriótico. (HATOUM, 2017, p. 48.)

O engrossamento da repressão no Brasil vem pela voz do personagem


L Lázaro: “Lázaro acrescentou que no dia 21 a polícia matou três estudantes durante
uma manifestação no Rio. ‘Anteontem, teve uma passeata de cem mil pessoas’.”
(HATOUM, 2017, p. 48.)
A
É com voz dessa prevalecência política da direita, frase que volta a se
repetir na atualidade, esquecida, lá e agora, da grande diferença entre violência
estatal e insurgência reativa popular. Mas fica manifesta a “odiotia” na obra: “‘E
o policial assassinado no Rio? Por que vocês não falam da morte dos militares?’”
• (HATOUM, 2017, p. 48.)
Houve recidiva amnésica no debate sobre a ação do Estado que se volta
980
contra a Cidadania que deveria proteger, porque remunerada por ela: permanece
• a pedra de Sísifo rolando morro abaixo, debate aceso e muito vivo ainda hoje,
no Brasil, com necessidade de reativar a lembrança, morro acima, de conceitos
jurídicos básicos. Existe mesmo quem justifique que o Estado possa ir além no
emprego da força policial e de repressão contra manifestantes civis, sem qualquer
lembrança do prejuízo social e da agressão ao próprio interesse das pessoas, dos
2 indivíduos, cada um desrespeitado e atingido de alguma forma pelas atitudes
antinormativas propinadas pelo Estado. O elemento ideológico de cumprimento
0 das leis parece não inexistir para os que defendem a cultura da violência. Cultua-se
uma crítica desarrazoada e irrealista, ahistórica e acrítica, dos Direitos Humanos,
1 que no entanto suportam a todos.
O patrulhamento ideológico genérico e generalizador, satanizando tudo e
todos, também é retratado na obra de Hatoum:
8
O subversivo da Juventude Estudantil Católica conversou com você? Tinha
algum trotskista na sala? Alguém falou de bombas incendiárias? Coquetel
molotov? Vocês têm sorte, são menores de idade… (HATOUM, 2017, p. 49).

A tomada de consciência é dolorosa para Martim e isto se percebe no


seguinte trecho: “Só então li o panfleto. Falava do assassinato do estudante no
Rio, e a palavra ´liberdade’ apareceu seis vezes” (HATOUM, 2017, p. 41). Enquanto
tenta compreende o que está acontecendo, presencia a ação de violência contra
duas pessoas:
Um Dauphine branco passava devagar pela W1 e brecou perto de uma Vera-
neio na contramão. O motorista da Veraneio acendeu o farol alto, mas ainda
não estava escuro. Dois homens à paisana saíram da Veraneio e agarraram
o motorista da Dauphine; outro homem, mais forte, fisgou do banco trasei-
ro uma moça baixinha e magra. Algemou-a e enganchou no pescoço dela
o polegar e o indicador, feito uma forquilha. O motorista do Dauphine foi
arrastado até a frente da Veraneio, o clarão dos faróis o cegava enquanto ele
se defendia dos socos e pontapés; a moça magra foi arrastada até o clarão,
depois o corpo amolecido e ensanguentado do motorista da Dauphine foi
J jogado no porta-malas da caminhonete, a moça e os policiais sentaram no
banco traseiro e a Veraneio tomou o rumo do Eixo Rodoviário. Tudo ficou
silencioso, o carro branco no mesmo lugar, portas abertas (HATOUM, 2017,
A p. 41).

O choque de realidade para Martim é traumático e só mais tarde ele nos
L
revela sobre este evento da Dauphine: “O motorista da Veraneio gritou: ‘Vamos
para a base’”.
L O Ato Institucional n.º 5, de 13 de dezembro de 1968, aparece na obra
em trecho representativo de recorte de direitos, com regozijo dos apoiadores da
A ditadura:
Noite do dia 13: notei no rosto de meu pai um regozijo mudo, só para ele.
Não conversamos desde a tarde em que me agrediu; ele deixa bilhetes com
uma lista de alimentos e, ao lado do papel dobrado, o dinheiro para as com-
pras (HATOUM, 2017, p. 54).

• A cultura do ódio ou a construção do ódio contra grupos aparece na


981 atuação de Rodolfo, pai de Martim:
Só no dia 14 entendi o motivo do júbilo paterno: o Ato Institucional número

5. Nesta última semana de dezembro, Rodolfo empilhou revistas e jornais
na mesa da sala e recortou fotografias do rosto de buldogue pelancudo do
marechal Costa e Silva; coleciona rostos militares e civis (o ministro da Jus-
tiça redigiu o AI-5, magistrados e políticos bajuladores) e rasga com raiva
as fotos dos políticos cassados. A mesa da sala ficou coberta de imagens de
2 heróis do meu pai, e o chão repleto de rostos de papel, cortados em tiras
finas, como serpentinas de festa macabra. Tive uma vaga consciência de que
Rodolfo estava enlouquecendo, percebia sintomas de loucura nos gestos e
0 atitudes dele, e me perguntava quem, ou quê, ele odiava (HATOUM, 2017,
p. 55).
1 Em outra passagem, a intolerância ou o controle ideológico exercido por
grupo também se faz presente:
8 Ele se irritou com a resposta do Nortista e se dirigiu a mim: ‘E você?’.

‘Poesia e peças de teatro’, respondi. ‘Lírica, tragédia e comédia’.

[…]

‘A gente não lê livros alienados nem peças pequeno-burguesas. Nossa leitu-


ra é outra.

Quando ele nos mostrou um livrinho de capa vermelha, o Nortista soltou


uma risada. Todos ficaram sérios (HATOUM, 2017, p. 63).

A vigilância típica, e permanente, se registra em outro momento:


Você ainda trabalha na Encontro? Não sabe que esse livreiro vermelho é
perigoso?

Livreiro vermelho! O que Rodolfo sabia de Jorge Alegre? Meu pai não anda
tão alheio à minha vida. Sem discriminação (ou com discrição detetivesca)
todos estão atentos à vida de todos. No silêncio da capital, rostos invisíveis
vigiam e depois caluniam, acusam, delatam… (HATOUM, 2017, p. 99).

A História tem registrado que a liberdade de expressão é um problema


J repetido nos regimes de exceção. Na obra em análise, também se verifica, tal como
aconteceu na realidade daquele Brasil de 1972, o avanço da opressão sobre a
A liberdade física e sobre a liberdade de expressão:
Na calçada do Cine Cultura vi a placa luminosa da Super Comfort, senti um
L arrepio mórbido e me refugiei sob a marquise do cinema. Meus amigos e ou-
tros participantes da Tribo, enfileirados, de braços erguidos ou com as mãos
na nuca, entravam devagar no camburão. Contei oito ou nove pessoas, re-
L conheço apenas Fabius e Vana. Um policial à paisana, baixo e atarracado,
segurava o braço de uma moça que tentava se afastar da fila.

A ‘Por que foram presos?’, ela perguntou. ‘Lázaro é o único líder estudantil da
nossa turma, e ele não estava lá’.

Maquinamos os motivos da prisão: os textos da Tribo criticado por Lina em


sua carta? Um artigo sobre o Cinema Novo, as entrevistas com Lúcio Costa
e um diretor de teatro? A foto do Boal, no exílio? (HATOUM, 2017, p. 219).

As perguntas, em tempos de exceção, são as mais absurdas que poderiam
982 haver, mas entram na construção da lógica do medo, derivado da repressão das
• forças do Estado. Pensar que um artigo ou uma foto sejam motivos para a restrição
de liberdade e até mesmo a eliminação de uma pessoa é um dos maiores absurdos
que um Estado pode realizar contra o seu próprio cidadão. No caso dos jovens de
Hatoum, neste romance, a informação do jornal estudantil Tribo não era controlada
pelo Estado. Isto fazia com quem tais jovens fossem alvo preferencial da ação policial
2 estatal. Nos dias de hoje, a auto-repressão, nas redes sociais, é uma verdade cada
vez menos presente, porém traz a sensação de impunidade ao agressor que por um
período de alguns anos pôde expressar a sua “odiopatia” sem rebuços.
0
A impotência do cidadão Martim e dos seus amigos é sentida de modo mais
pesado pelo leitor, quando relembra que o sistema de liberdades e garantias era
1 inexistente no Brasil da ditadura. Hoje, há maior trânsito de ideias e possibilidades
tecnológicas infinitamente mais avançadas. Por isso um regime parafascista,
8 dominado pelos grandes canais de comunicação, se torna mais pernicioso que
então.

Revisitando a democracia atual brasileira ou a Longa Noite da Espera
A publicação da narrativa de Hatoum/Martim nestes tempos atuais de
fragilização democrática e de recortes de direitos converte-se em um convite à
reflexão sobre a repetição da História e dos tropeços mesmos e iguais da Democracia
Brasileira.
A destituição da Presidenta Dilma Roussef, em 31 de agosto de 2016,
acusada de “pedaladas” (inocentada, mas retirada do poder devido à ausência de
pagamento de “mesada”, portanto, sem condição de governabilidade) estabeleceu
um sério impasse democrático na política brasileira. A revelação de um Congresso
Nacional domado por possíveis conchavos, revelados com a posse do vice-
presidente, que inclusive ao STF concedeu aumento no dia seguinte, seguia vozes
de representação “das ruas”, demonstrando a baixa qualidade da reflexão e da
análise do conjunto dos políticos brasileiros.
A Teoria do Romance de Lukács é prévia à Revolução Russa de 1917,
J momento em que ele abraça o Hegel revolucionário, desvestindo-se dos trajes
teóricos de Kant, cujo idealismo pautou os seus primeiros escritos. Filiado este
A presente estudo a uma proposta de tonalidade lukacsiana de abordagem da
literatura, indicam-se pressupostos político-culturais numa singularidade textual
L em que a consciência de momentos históricos sobrepassa o simples descritivismo.
Aqui sobe à luz a comparação com o momento atual. A ruptura da
normalidade democrática e a concessão popular aos discursos fáceis de não querer
L
“pagar o pato”, organizadas mobilizações parafascistas por parcelas sociais de alto
coturno econômico da sociedade (muitos identificados somente meses depois),
A permitiram a emergência agigantada de discursos afrontosos aos direitos humanos
e à ordem democrática.
Os pedidos de retorno à ditadura por grupos pseudo-saudosistas e jovens
sem leitura relevante sobre o comprometimento real envolvido soam como um
insulto primeiro à própria Constituição Federal de 1988, como também torna-se
• um desrespeito à memória daquelas pessoas que pereceram na luta pelos direitos
983 humanos de todos e pela reconquista das liberdades, ou seja, por uma normalidade
• democrática que se violava com a quebra do mandato da Presidenta, tornando
todas as coisas passíveis de certa insustentabilidade.
Neste processo de ideologização voltada para um ódio sem espeque
certo, percebe-se o estabelecimento da cultura da violência abusiva como mote
definitório do discurso. O trabalho de lavagem cerebral empregado pelos meios de
2 comunicações ganharam um canal propício para a transformação da cidadania em
zumbis de filmes Z: despolitizados, sem memória, agressivos e mesmo sanguinários.
0 O resgaste do sentido dos valores da democracia deve ser um objetivo dos
intelectuais humanistas no sentido de substituir a cultura do ódio pela cultura da

paz e do respeito aos direitos humanos mais básicos. Assim há que se relembrar da
1 necessidade de cultivar o respeito às pessoas, aos direitos sociais e o quanto custou
alcançar as conquistas trabalhistas e o papel legal de exatificar a limitação do
8 próprio poder do Estado em relação à proteção dos direitos do cidadão. Comparato
(2013) expõe, com o dedo na ferida:
A eclosão da consciência história dos direitos humanos só se deu após um
longo trabalho preparatório, centrado em torno da limitação do poder políti-
co. O reconhecimento de que as instituições de governo devem ser utilizadas
para o serviço dos governados e não para o benefício pessoal dos governan-
tes foi um primeiro passo decisivo na admissão da existência de direitos
que, inerentes à própria condição humana, devem ser reconhecidos a todos
e não podem ser havidos com mera concessão dos que exercem o poder
(COMPARATO, 2013, p. 53).
Destituída a realidade da Guerra Fria e da Oposição Leste-Oeste, o fim
do embate Capitalismo versus Comunismo, distante ainda o sonho de construção
de uma América Latina livre, com países soberanos e democráticos, o Brasil parece
hoje mais uma sombra daquilo que foi e do que poderia desejar ser no futuro. A
persistência dos ventos do retrocesso e da ausência de memória política do País
parece dar o tom para a desconstrução da Cidadania.
A reflexão talvez possível nestes tempos sombrios é mais uma indagação
J do como fomos, enquanto País, capazes de em tão pouco tempo reduzir a pobreza,
mas levando todos à perda dos referenciais da democracia, entregues os políticos a
A contentar interesses de grupos econômicos e/ou estrangeiros.
O avanço da desconstrução, por exemplo, de uma Educação para o livre
L pensar e o agir informado com base sociológica, seja na História ou na Filosofia,
parece ser o começo do fim para uma sociedade, ainda de mentalidade escravagista,
na qual o assalariado pensa ser patrão, quando sonha alto ou apenas ganha
L
percentagens produtos, de bens de capital, e finda defendendo a opressão que se
dirigirá, ao final, contra si mesmo.
A Os papéis desempenhados pelo Estado e pelos meios de comunicações
têm sido estratégicos para mobilizar os grupos sociais a favor ou contra uma ideia,
pessoa, grupos ou minorias. Os direitos trabalhistas, os quais não se puderam
retocar em 1968, foram rapidamente desconstruídos com a Reforma Trabalhista,
ocorrida em 2017, que representou um profundo retrocesso para os trabalhadores,
• que passam a ficar, como em um ringue, “nas cordas”, e aceitar o “acordado sobre
984 o legislado”.
• A desconstrução da Paz, acentuando-se a guerra ou o ódio aos diferentes,
minorizados socialmente (mulheres, negros, indígenas, LGBT, pobres), assume
tonalidade de ação institucionalizada vinculada ao governo ou aos grupos de
interesses do Capital, que seria o primeiro responsável por defender a Paz Social,
ainda que fosse para a preservação dos seus próprios interesses.
2 Terry Eagleton trabalha o assunto em termos de Cultura:
A cultura não é unicamente aquilo que vivemos. Ela também é, em gran-
0 de medida, aquilo para o que vivemos. Afeto, relacionamento memória, pa-
rentesco, lugar, comunidade, satisfação emocional, prazer intelectual, um
sentido de significado último: tudo isso será mais próximo, para a maioria
1 de nós, do que cartas de direitos humanos ou tratados de comércio. No en-
tanto, a cultura pode ficar também desconfortavelmente próxima demais.
Essa própria intimidade pode tornar-se mórbida e obsessiva a menos que
8 seja colocada em um contexto político esclarecido, um contexto que pos-
sa temperar essas imediações com afiliações mais abstratas, mas também
de certa forma mais generosas. Vimos como a cultura assumiu uma nova
importância política. Mas ela se tornou ao mesmo imodesta e arrogante. É
hora de, embora reconhecendo seu significado, colocá-la de volta no seu
lugar (EAGLETON, 2006, p. 184).

A Cultura da Democracia no Brasil tem curta tradição, da mesma forma


como se dá em muitas países latino-americanos. Como ensina José Afonso da
Silva,
A luta pela normalização democrática e pela conquista do Estado Demo-
crático de Direito começara assim que se instalou o golpe de 1964 e espe-
cialmente após o AI-5, que foi o instrumento mais autoritário da história
política do Brasil. Tomara, porém, as ruas, a partir da eleição dos Governa-
dores em 1982. Intensificaram-se, quando, no início de 1984, as multidões
acorreram entusiásticas e ordeiras aos comícios em prol da eleição direta do
Presidente da República, interpretando o sentimento da Nação, em busca do
reequilíbrio da vida nacional, que só poderia consubstanciar-se numa nova
J ordem constitucional que se refizesse o pacto político-social. Frustrou-se,
contudo, essa grande esperança. (SILVA, 2013, p. 90.)

A A História tem demonstrado que, quando as forças econômicas unem


os braços sem atentar para as minorias, podem controlar povos, nações e impor o
L medo e a recolonização de corpos e de mentes.
Neste sentido, o Brasil retrocedeu algumas décadas desde a queda em
L 2016 do Governo Dilma, eleito democraticamente com um determinado Programa
voltado à Igualdade. A entrada na titularidade do poder do seu Vice-presidente,

figura coligada apenas pela função eleitoral, subverteu toda a ordem programática
A vitoriosa na eleição que levou ambos aos seus cargos, tornando nefasto o
sistema como um todo, dada a traição aos princípios vitoriosos eleitoralmente,
comprometendo de morte a Democracia instalada constitucionalmente há pouco
mais de vinte anos.
Essa fragilização dessa experiência da democracia brasileira, fundada

que foi em 1988 pela Constituição Federal, demonstra ser urgente a retomada
985 da consciência de ser importante e válido o voto popular, com a participação
• ativa da população, e dos seus intelectuais, para um enfrentamento ideológico de
desconstrução das notícias e das fake news, das verdades relativas televisivas e
jornalísticas que açodam e açulam a população brasileira, atingindo com o seu
ódio desbordado a todos, como um vírus da desinteligência que ressuscita velhos
cadáveres ideológicos, esquecidos na vala dos indignos recantos da História, que se
2 supunha estarem descartados pelas novas experiências da Democracia, validada
pela defesa incontinenti dos Direitos Humanos.
0 Conclusão
Nem arte dirigida (porque Hatoum não esboça aquilo que ele poderia
1 divisar na crítica social que externaliza com a sua obra) nem arte pela arte (porque
o autor não descreve acontecimentos mundanos nem privilegia o beletrismo, que
conhece, na sua leitura social), mas sim valorizando o contundentemente contumaz,
8
o amazônida Milton Hatoum nos faz ver como há momentos de “odiotia” (no caso de
1968 ou do seu paralelo ficto de 2018), prevalecentes na Sociedade brasílica.
Os processos políticos, muitas vezes fundamentados em normas jurídicas
estatais, em ambiente de descompasso democrático, quase nunca respeitam os
Direitos da Cidadania. Isto é bem retratado em A Noite da Espera, de Milton Hatoum.
Neste sentido, as manifestações da alta Cultura, como é a expressão literária do
amazonense, funciona trazendo um meio de recordação memorialística que vem
em boa hora em defesa da Democracia e dos Direitos Humanos. Assim, o Estado
que se voltou contra a Cidadania, num “lugar mais sombrio”, causando perdas
democráticas pela violação dos direitos da pessoa humana, volta para expor às
suas contradições internas e repetições históricas o tempo da contemporaneidade.
Com uma narrativa fluída e moderna, filiando-se a uma longa e nobre
casta de autores relevantes que defendem valores consagrados pela Civilização
mais avançada, Hatoum revisita a democracia atual brasileira, numa descrição de
um tempo similar, no qual a “Longa Noite da Espera” pode-se repetir uma e outra
vez, necessitando cada ocasião de uma reiterada atitude de Sísifo, fazendo rolar
J a pedra encosta acima, para reconstruir os Direitos da Cidadania e a Democracia
derruída.
A Fosse o pai de Martim ou os patos dançantes, “coxinhas” que o atualizam
no seu fascismo antidemocrático, o fato é que a Literatura com maiúsculas permite
L a leitura da História de modo datado, reiterado e engajado: Parteira do futuro,
sem o prever concretamente, postula o novo, que virá-que-eu-vi, porque a leitura
da Literatura precisa do filológico e do político para que possa ser, nesta métrica,
L
leitura plena.

Livre de qualquer dirigismo político, o autor precisa apenas sugerir
A essa leitura, que é escandida por outras leituras paralelas que depreendam as
consequências não literais da sua interpretação historicista –mas presentes por
força da grande qualidade daquilo que o autor logra realizar, no cruzamento dessas
idades sociais, cinquenta anos de Brasil explicitado e repetido.
De 1968 a 2018, fica patenteado o retorno uma e outra vez (porque já

ocorrera antes), uma inconsciência política do momento, na descrição dos cinco
986 anos que o protagonista passa em Brasília, que lhe trouxe a opressão, num lado,
• o golpe social contra a eternizada busca de um igualitarismo inalcançável, um
impossível, cujo realismo de um Hatoum pessimista descarta, em última instância.
Afinal, precisaremos de quantas voltas ao passado?, quantos 1968 no
presente século? Pedra de Sísifo para a brasilidade cidadã empurrar morro acima,
a democracia a reconstruir, sem a consciência histórica, que o literato quer fixar,
2 brevemente despencará, para nova empreitada de leitura de mundo, de reescritura,
de análise, de marchas e contramarchas, a revogar o ideal de que o ser humano
0 não deve tropeçar na mesma pedra uma e outra vez.
Referências
1 ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Presença / Mar-
tins Fontes, 1970.
8 CÂNDIDO, A. Direitos Humanos e Literatura. Disponível em: <https://bibliaspa.org/
wp-content/uploads/2014/09/direitos-humanos-e-literatura-por-antonio-candido.pdf>
Acesso em 29/05/2018.
COMPARATO, F. K. A Afirmação histórica dos Direitos Humanos. 8.ª ed., São Paulo:
Editora Saraiva, 2013.
DORNELLES, V. O Último Império. Tatuí: Casa Publicação Brasileira, 2012.
EAGLETON, T. Teoria da Literatura: Uma introdução. Tradução de Waltersir Dutra, 6.ª
edição, São Paulo: Martins Fontes, 2006.
EAGLETON, T. A Ideia de Cultura. São Paulo: Editora Unesp, 2005.
HATOUM, Milton. A noite da espera. Companhia das Letras: São Paulo, 2017.
LUKÁCS, G. Marxismo e Teoria da Literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
QUIJANO, A. A Colonialidade do Saber: Eurocentrismo e Ciências Sociais. Perspectivas
Latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO (Consejo Latinoamericano de Ciencias Socia-
les), 2005.
ROCHA, J. Pressupostos de Filologia Política. Porto Velho: EdUFRO, 2013.
SILVA, J. A. Curso de Direito Constitucional. 36.ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 2013.

J

A

L

L

A


987

2

0

1

8

J

A

L ¿CÉSAR VALLEJO, POR BULERÍAS?

L Pedro Granados (VASINFIN)
RESUMEN: El intérprete y compositor peruano, Micky González, lanzó el 2009 un
A disco titulado “Landó por bulerías”, donde fusiona de modo maravilloso música
afro-peruana (marinera limeña incluida) con palos flamencos. Por nuestra parte,

hemos publicado ya “Trilce: muletilla del canto y adorno del baile de jarana” (2007)
donde demostramos la pertinencia de relacionar la palabra Trilce con “!Trila!”,
término de resbalosa de la marinera limeña y, a su vez, glosolalia de “La Tirana”
• (la Madre Patria, España, para los soldados españoles de servicio en las Indias y,
en concreto, en el Perú). Por lo tanto, y lo intentaremos demostrar en el presente
988
ensayo, creemos que es tan pertinente y lograda la propuesta de Miky González
• --de fundir el landó a la bulería-- como puede ser observar ya no sólo qué tanto de
ritmo afroperuano existe en Trilce; sino también el grado de fusión de éste con los
palos flamencos –en voz y versos– y, obvio, asimismo con los tópicos medievales
que de manera directa --vía Jorge Manrique-- o a través de sus lecturas de los
autores del Siglo de Oro (Góngora o Quevedo, por ejemplo) pasaron a la poesía del
2 peruano. No olvidemos que, étnicamente, César Vallejo es un peruano de segunda
generación (abuelos, materno y paterno, españoles). Y curiosa o paradójicamente, un
0 mestizo que con su arte ha gravitado en los movimientos nativos más “beligerantes
y descolonizadores” del Perú y Bolivia (Elizabeth Monasterios Pérez); el Grupo
Orkopata, a manera de ejemplo.
1
Palabras clave: Poesía de César Vallejo,

8 Apostillas a “Trilce: muletilla del canto y adorno del baile de jarana”
En el contexto del dossier: “César Vallejo: ¿un hombre o una vanguardia?”
(Revista Casa Silva, No 22, 2008, 96-194)1, a raíz de la conmemoración de los 75

1  César Vallejo: ¿un hombre o una vanguardia?


“Piedra negra sobre piedra blanca”/ César Vallejo
“César Vallejo y las miserias vanguardistas”/ Juan Manuel Roca
“César Vallejo, acerca a nos vuestro cáliz”/ Julio César Rodríguezbustos
“112 días sólo un hombre: Vallejo tras las rejas”/ Celedonio Orjuela
“César Vallejo y la música popular peruana”/ Juan Carlos Garay
“César Vallejo y su creación poética”/ Ricardo Silva-Santisteban
años del fallecimiento del poeta, destaca nítidamente –por su novedad e interés– el
artículo del joven musicólogo y narrador peruano Juan Carlos Garay (1964) que,
enseguida, pasamos brevemente a reseñar.
“César Vallejo y la música popular peruana” (144-50), publicado un año
después de nuestro ensayo “Trilce: muletilla del canto y adorno del baile de jarana”
(2007), ventila –intuitiva y de modo muy sugestivo– la posible relación de Los
heraldos negros (1918) con un género musical típico de la región de Trujillo en la
J costa norte del Perú: el “triste”. Primeros ejemplos de esta melodía que, nos ilustra
Garay, sobrevivieron registradas en el Códice de Trujillo gracias a la fervorosa labor
A del sacerdote español Don Baltazar Martínez y Compañón (s. XVIII); y que anima
a decir al mismo Garay, en concreto en cuanto a la canción “Infelices ojos míos”
L (“dejad ya de atormentarme con el/ llanto”), lo siguiente: “ese sentimiento [triste]
parece estar ligado a la geografía, al paisaje […] los mismos que, un siglo y medio

después, alimentarían la creación poética de César Vallejo” (145). En particular,
L como ya anotábamos, en el libro de 1918, cuyos poemas, además, son los que entre
la producción lírica de César Vallejo han sido musicalizados: “Tal vez esto se deba
A a que es una primera obra, donde todavía imperan ciertas estructuras clásicas,
cierto ritmo de las palabras al que resulta más fácil adaptarle melodía. Sin duda
sería más complicado musicalizar los poemas de Trilce (1922), su siguiente libro,
que era mucho más experimental” (Garay 146-7). Complicado para musicalizar
este último, agregamos nosotros, pero no menos radicalmente musical, popular
• y peruano -es preciso y oportuno no demorar más el paralelo- tal como quedó
989 demostrado en nuestro artículo sobre Trilce y la marinera limeña. Y por lo tanto
vinculado, desde ya, con los ritmos afro-peruanos; a decir, de Garay: “ese tercer
• elemento que completa nuestra identidad [nacional]” (150).
Filiación esta última -la de la poesía de César Vallejo con los “elementos
negros” (sic, página 150)- que Garay aquí sólo proyecta o vaticina como un posible
y subsecuente desarrollo -no cristalizado- de la lírica del autor de Trilce: “Sería falso
decir que estos elementos negros lograron aparecer en la poesía de César Vallejo
2 […] Tal vez después de su paso por un modernismo indigenista, un surrealismo
americano y un socialismo europeo, hubiera seguido un interés [semejante al
0 proceso creativo de la gran compositora Chabuca Granda] por los elementos negros
[…] se quedó esperándolo el landó para que se lo apropiara y escribiera con
1 su sonido muchos nuevos versos” (150)
Obvio, opinión la cual no compartimos, ya que creemos que todo Trilce,
8 y no sólo el poema XXXVII, puede leerse con provecho en clave de zamacueca. Y
afirmación de Garay que no deja de sorprendernos ya que en la misma página de
su artículo menciona algo más relevante y, pareciera, incluso en contradicción con
la cita inmediatamente anterior: “Chabuca [Granda] es una de las artistas a las
cuales le debemos el redescubrimiento de un género denominado landó […] una
música donde se funden extrañamente África y la Cordillera de los Andes” (150). Es
lícito pensar, entonces, que César Vallejo también pudo llegar al landó, en Trilce,
siguiendo una vía en apariencia castizamente andina. Si no supiéramos que en
el poemario de 1922 eclosiona, junto con la modernización de la capital del Perú,
asimismo la jarana limeña.
Por lo tanto, si acaso hubiera sido tentador elaborar desde el artículo de
Garay las siguientes analogías o correspondencias:

“Triste” = Los heraldos negros

J “Landó” = Trilce

A Muy por el contrario, y no sólo por simplificadoras, consideramos que
aquellas atractivas equivalencias no resultan viables. Faltó a Garay superar
algunos prejuicios críticos o, es lo mismo, matizar ciertos tópicos o lastres en la
L
lectura de la poesía de César Vallejo (sobre todo el de la ubicuidad y preeminencia
del dolor). Junto con el ceñirse al enfoque referencial o temático y no animarse a
L analizar los poemas en su performatividad. Es decir, estos jamás son un tema,
sí, un evento; mucho más tratándose de una poesía como la de nuestro peruano
A universal. Evento –prosódico, sintáctico, emotivo… con todos sus elementos en
constante paralelismo– donde se ponen en movimiento los temas y, no es extraño
tampoco, giran e invierten estos incluso su inicial valor semántico.
Con todo, “César Vallejo y la música popular peruana” es un trabajo
inicial, sugestivo e interesante, que puede --una vez actualizadas o ecualizadas
• ciertas nociones generales de teoría y metodología literarias; y específicas, en lo que
990 atañe a la historia de la recepción de la poesía del autor de Trilce-- dar para un muy
productivo ulterior desarrollo.

“Landó por bulerías”
1.Micky González ha lanzado un disco, titulado “Landó por bulerías”, donde fusiona
de modo maravilloso música afro-peruana (marinera limeña incluida) con palos
flamencos.
2 2.Hemos ya publicado, de modo electrónico y en papel, “Trilce: muletilla del canto
y adorno del baile de jarana” donde demostramos la pertinencia de relacionar la
0 palabra Trilce con “!Trila!”, término de resbalosa de la marinera limeña y, a su vez,
glosolalia de “La Tirana” (la Madre Patria, España, para los soldados españoles de
1 servicio en las Indias y, en concreto, en el Perú).

8 3.Al presentar nuestro libro, Vallejo sin fronteras, en el contexto del II Encuentro
Universitario e Internacional de poesía en Bogotá (agosto 2010); en específico,
aquella relación de Trilce con la marinera limeña, uno de los asistentes al acto (el
poeta y actor español, Antonio Castaño) reparó en la pertinencia de mi trabajo y, a
su vez, en otras posibles glosolalias análogas; por ejemplo, aquellas de “Tus ojillos
negros”:

tiriti tran tran trao 


tiriti tran tran tran tran 
tiriti tran tran tran trero 
ay tiriti tran tran trao

mis relucidos luceros ay en la bahía de Cádi  1era


mis relucidos luceros y eran tus ojillos negros 
que me decía te quiero 
J ay eran tus ojillos negros que me decía te quiero
que con la luz del cigarro yo vi el molino  2da
A se me apagó el cigarro perdí el camino 
perdí el camino, mare, perdí el camino 
L ay que con la luz del cigarro yo vi el molino
que le llaman la atención,  3era
L ay dos cositas tiene mi Cádi 
ay que le llaman la atención 
A ay las mocitas de mi barrio y 
la plaza de San Juan de Dios 
ay las mocitas de mi barrio y 
la plaza San Juan de Dios
yo pego un tiro al aire cayó en la arena  4ta

confianza en el hombre nunca la tengao 
991 nunca la tenga prima nunca la tenga 
• yo pego un tiro al aire cayó en la arena
te han puesto en envalanza  5ta
ay dos corazones a un tiempo 
ay está puesto en envalanza 
ay uno pidiendo justicia 
2
ay el otro pide venganza

ke ya los titirimundi  6ta
0
que yo te pago la entrá 

que si tu madre no quiere ay que dirao ay que dirao 
1
ay qué dirao ay qué dirao ay que tendrá que decir 

que yo te quiero y te adoro que yo…
8
Camarón (con Tomatito), París 1987
4.Glosolalias, en este caso, también en general de lamento o denuncia; pero que
no aluden precisamente a “La Tirana” (en femenino), sino, pensamos más bien, al
“Mundo” (en masculino):
tiriti tran tran trao 
tiriti tran tran tran tran 
tiriti tran tran tran trero 
ay tiriti tran tran trao 
Ya que, y ahora tomando el contexto y temas de las coplas en relación con su
interpretación, también aquí se comprueba que: “La voz, durante el desarrollo
de la copla, adiciona elementos vocales, no literarios, que matizan y dan carácter
[a la copla] “ [Molina, Ricardo / Mairena, Antonio: Mundo y formas del cante
flamenco. Sevilla: Librería Al-Andalus, 1971 (82-88) 82.]

5.Temas de las coplas.


J 1era: Los ojillos negros y relucientes, de la amada, en la bahía de Cádiz.
2da: Análogo a los ojos relucientes de la amada, la luz del cigarro que por un
A momento alumbró al poeta en medio del –por contraste– obscuro mundo
3era: “Que le llaman la atención” o codicia (el poeta o el mundo) las cosas amables
L que tiene Cádiz.
4ta: Quizá la más enigmática de estas coplas. Es probable anticipe el tema de la
L venganza, en este caso frustrada (tiro que cayó en la arena), de la copla siguiente.
5ta: Fuero interior del yo poético; se debate éste, irresueltamente, entre el anhelo
A de justicia y el deseo de venganza.
6ta: El tema pareciera resumirse en el amor o deseo de parte del cantor, hacia
la amada, frente a la no aceptación, oposición o mala opinión del “titirimundi”:
mundo, comunidad.
6.Lo que se adiciona o matiza en la voz, más bien sutilmente se enfatiza, es la

gravitación de sonido vocálico /o/. Tanto, claro, de modo evidente al final de los
992
versos de las glosolalias (vv. 1-4); pero también, de modo más o menos generalizado,
• al final de los versos de las coplas propiamente dichas. Esto quiere decir que,
efectivamente, existe un rechazo, una frustración, una pugna o un lamento, pero
no dirigido a “La tirana” (en femenino), sino al Mundo (en masculino). Esto, aunque
puede ser motivo de un trabajo posterior, puede hallarse vinculado al tópico
2 medieval del mundo cruel; tal como lo ilustra la siguiente y famosa copla de Jorge
Manrique.
0 ¡OH, MUNDO!, 
PUES QUE NOS MATAS…
1 ¡Oh, mundo!, pues que nos matas,
fuera la vida que diste
8 toda vida;
mas según acá nos tratas,
lo mejor y menos triste
es la partida
de tu vida, tan cubierta
de tristezas y dolores,
despoblada;
de los bienes tan desierta,
de plazeres y dulzores
despojada.
Jorge Manrique, Coplas por la muerte de su padre
7.Por lo tanto, y retomando el principio de este breve ensayo. Creemos que es tan
pertinente y lograda la propuesta de Miky González, de fundir el landó a la bulería,
como puede ser observar ya no sólo qué tanto de ritmo afroperuano existe en Trilce,
sino también de fusión con los palos flamencos –en voz y versos– y, obvio, con los
J tópicos medievales que directa o a través de sus lecturas de los autores del Siglo
de Oro (Góngora o Quevedo, fundamentalmente) pasaron a la poesía del peruano.

A ¿El Grupo Orkopata, por bulerías?

No olvidemos que César Vallejo es un peruano de segunda generación


L (abuelos, materno y paterno, españoles). Y curiosa o paradójicamente, un mestizo
que con su arte ha gravitado en los movimientos más aborígenes o nativos del
L Perú; el Grupo Orkopata, a manera de ejemplo. Enfatizamos este aspecto étnico,
más que el cultural, para ponernos a tono y debatir con un texto que se mueve
en esta misma lógica bio-epistémica, en concreto un libro reciente de Elizabeth
A Monasterios Pérez, La vanguardia plebeya del Titikaka. Gamaliel Churata y otras
beligerancias estéticas en los Andes (La Paz, Bolivia: IFEA/ Plural, 2015). Ponernos
a tono, obviamente, para rebatirla. Ya que, en general, aquella autora se aplica en
llevar de modo apresurado argumentos para su molino; los cuales se resumen en
exponer las bondades --o, más bien, “beligerancias” descolonizadoras-- e incluso
• preeminencia --a nivel regional-- de la “poética” de Gamaliel Churata sobre la de
993 César Vallejo o, de lo que hemos denominando en otro lado, “Ayllu Orkopata vs.
Ayllu Trilce”.

El año 2013, en dos sendas entregas en nuestro blog, y en ocasión
de saludar, una, la edición crítica de El pez de oro por Elena Usandizaga (17 de
marzo); y, la otra, a modo de reseñar brevemente --AHAYU-WATAN. Suma poética
de Gamaliel Churata/ Mauro Mamani (compilación y estudio) (20 de octubre)-- ya
2 calábamos, aunque no en detalle, en el punto que hoy nos convoca. Decíamos allí:
El poeta, entre los Churata, es el autor de Ande (Alejandro), no Gamaliel
(Arturo); es decir, el poeta en estricto, el versificador.  Alejandro Peralta2,
0 a su vez, influido directamente por Trilce3; el franco vanguardista.  Muy al
contrario de su hermano (Gamaliel), hechizado por Eguren y, otro tanto, por
1 Apollinaire (el de “Zona”: “sol/ cuello cortado”); sin desprenderse del todo
del  modernismo y cierto simbolismo.  Es como si el “Interludio Bruníldico”,
del autor de El pez de oro (Arturo), se continuara en la poesía de su herma-
8
2  O “Antero Obrian”, en 1924, cuando publicó sus primeros versos (Monasterios 142).
3  “En 1919, en su primer viaje [de Alejandro Peralta] a Lima conoce a César Vallejo, con quien
empieza a intercambiar correspondencia y de quien recibe unos años más tarde Trilce (1922)
y  Escalas Melografiadas (1923) […] Luego [de Ande, 1926, y Kollao, 1934],  por más de 30 años,
Peralta no publica otro libro hasta Poesía de entretiempo (1968), con un texto más intimista, pero
no menos comprometido. Con este libro gana el Premio Nacional de Fomento a la Cultura de 1970.
En el homenaje que le brindaron en esa ocasión el Instituto Puneño de Cultura, el Instituto José
Antonio Encinas, el Departamental de Puno  y Brisas del Titikaka, Peralta dijo en su discurso de
agradecimiento: Cabe decir que yo no he arado en el mar. Que hoy que ha resucitado Tupac Amaru,
mi poesía en la que  esta  de cuerpo entero el hermano indio, va a echarse a andar como quiere el
inmortal poeta de Santiago de Chuco” (Portugal Catacora 2013).
no.  Virtual tema de estudio este diálogo y complicidad literaria entre ambos
hermanos4. Acaso Gamaliel discutiera con César Vallejo; pero no Alejandro5
[…] Muy probablemente (otro subtema a cotejar) Arturo Peralta en su poesía
jamás dejó de ser [aunque con mucha “voluntad de aura”6] Juan Cajal: seu-
dónimo hispánico que aquél usara para acompañar sus poemas de influen-
cia modernista (Granados 2013). Y, asimismo, apuntábamos lo siguiente:

Una paradoja, que está por desarrollarse y acaso  pasar a enriquecer


J y problematizar la literatura peruana [muy en particular, si nos sujetamos al
criterio que maneja en esta obra Elizabeth Monasterios: cultura = etnia], es cómo
un peruano de segunda generación --que por sus abuelos españoles  es Vallejo--
A influencia de modo directo (particularmente con  Trilce, de 1922) la poesía de
Alejandro Peralta (Ande, 1926)7 y --a pesar de no gustar de Vallejo o no saber
L
4  “Alejandro y Arturo emprenderían juntos sucesivas aventuras literarias, compartiendo el mismo
L ideario. En 1915 fundan el grupo “Bohemia Andina” y Alejandro publica sus primeros versos en
“La Voz del Obrero”; en 1917 ambos participan en la revista “La Tea” dirigida por Arturo” (Portugal
Catacora 2013).  
A 5  César Vallejo
En plena matanza de hombres
caíste herido por la espalda
hambre y sed de los hombres
fueron nudo de muerte en tu garganta

994 Hombre de voz crecida entre roquedos
sangre en raíz y fruto derramada
• para darle eternidad de tierra
dijiste tu palabra

Voz de millones de hombres levantaste


en el fragor del exterminio
Desde entonces tu voz se renueva en el aire
2
Eres la voz de la montaña
0 eres la soledad y los caminos
eres los pobres en marcha.
En Poesía de Entretiempo (Portugal Catacora 2015)
1 6  Silvia Molloy, refiriéndose a la obra de Jorge Luis Borges (21).
7  Poemario que incluso, tal como lo hiciera casi todo el mainstream de la época (Chocano, L. A.
8 Sánchez, Mariátegui, Eguren, Magda Portal, etc., entre los nacionales), también saludó el propio
César Vallejo: “Querido y gran poeta: Le envío un entrañable abrazo por su magnífico libro “ANDE”.
Me doy cuenta de que se trata de un artista mayor, de vasta envergadura creadora. Su libro me ha
emocionado de la emoción de mi tierra. Mil gracias por este presente inapreciable. Siga Ud. por su
vía. Puede estar seguro de que sus poemas quedarán. Son ellos de los versos que andan y viven.
Lo demás está en los estantes y eso nos tiene sin cuidado. Suyo con toda admiración” (Monasterios
140). Ahora, texto que amerita un ciudadoso análisis, y aunque este no sea el mejor lugar para
explayarse sobre ello --y, por ejemplo, deconstruir ideológica y contextualmente cada uno de aquellos
reconocimientos al libro de Alejandro Peralta--, sólo llamamos la atención del fino o sutil humor del
autor de Trilce. No es que Vallejo sea un hipócrita ante Ande --y no, “ANDE”, que acaso nos pasa
al imperativo de este verbo--; sino que es absolutamente consciente del, ante su poemario de 1922,
carácter epigonal del de Peralta. De modo que aquel: “Siga Ud. por su vía” --ya que aquí existe
aquilatarlo8-- también la compleja obra dramático-retablista de su hermano Arturo
o “Gamaliel Churata” presente en El pez de oro [1927] (1957) 9. Y, en consecuencia,
movimientos autoctonistas como el que representó y animó el Grupo Orkopata en
Puno (1926-1930) y que lideraron ambos hermanos10.

una preestablecida, anfibológicamente, la de Ande o la de Vallejo-- debemos tomarlo con cuidado.


Aunque, esto último, de modo no menos significativo; tal como, asimismo, aquella falta de reacción
de parte de Vallejo ante la publicación --en el Boletín Titikaka (número de octubre de 1926)-- del
J poema LXV de Trilce (“Madre me voy mañana para Santiago”) intervenido o modificado: exacerbado
allí en su “vanguardismo”. En general, es como si Vallejo no se hubiera tomado en serio la poesía
A de los Peralta ni, tampoco, al Grupo Orkopata. Esto último, podemos especular, acaso porque el
discurso de Churata cae en esencialismos o exclusivismos étnicos, aunque Monasterios se encargue
enfáticamente de negarlo (171); o, a nivel político, porque Vallejo leía allí --hacia 1927, viviendo
L desde 1923 en la cosmopolita París y en pleno momento de su ascesis comunista: multiétnica e
internacional-- no Orkopata, sino Orkoapra: “Lo que sí llama la atención es que a partir de este
L artículo [“Indoamericanismo estético” por Antero Peralta] la trinidad indoamericanismo/mestizaje/
nuevo indígena, quedó plenamente instalada en las páginas del Boletín Titikaka y vinculada al
proyecto de una nueva estética, que en la lógica de Antero Peralta estaba llamada a ser vanguardista,
A mestiza y aprista” (Monasterios 2015: 156). Aunque, hacia 1932, Gamaliel Churata en persona
se declara ya “enemigo del APRA”: “Sabemos que ideológicamente siempre estuvo más cerca de
Mariátegui que de Haya, pero también que en el momento del golpe de estado de Sánchez Cerro
[1930] vislumbró la posibilidad de un ‘gobierno del pueblo’ con participación aprista” (Monasterios
228).
8  En su “Homilía del Khori – Challwa” (“rocas”), Vallejo no figura ni “entre nuestro grandes
• poetas: “Darío, Chocano, Herrera Reissig, Jaimes Freyre, Reynols, Lugones, Eguren, Valencia…”
995 (Monasterios 247); “La crítica que Churata le hace a los artistas y escritores de su época es que con
contadas excepciones (Guamán en el siglo XVI, Jorge Icaza, José María Arguedas, Cardoza Aragón
• en el siglo XX), buscan producir belleza, arte, y literatura, aferrados a nuños extranjeros […] Contra
esos ‘histéricos fuera de sí’ [ismos] se articuló esa contra-marcha cultural que fue el vanguardismo
del Titikaka, cuya obra cumbre es el Pez de oro, tardíamente publicado [aunque empezado treinta
años antes] en 1957” (Monasterios 264).
9  La presencia de Vallejo, y en particular la gravitación de Trilce en Ande, complicaría hasta negar
o incluso invertir lo que al respecto sostiene esta autora: “[La proximidad de Churata con Bolivia]
2 problematizará el privilegio peruano sobre la ‘vanguardia andina’ con la propuesta inter-regional de
un ‘vanguardismo del Titikaka’” (Monasterios 43). Es decir, si se trata de poner de relieve una labor
0 de mediación cultural o “propuesta inter-regional” la obra de Vallejo se adelanta a la de Churata
e, incluso, hasta el día de hoy se confirma su capacidad y potencia mediadora: “César  Vallejo
en español selvagem y portunhol trasatlántico” (Granados 2017), para el caso del Cono Sur. Y,
1 asimismo, incluso para el propio altiplano: “Jaime Sáenz en el teleférico paceño: algunos cables de
su poesía”; ensayo que presentamos y defendimos en el JALLA de 2016 en La Paz: “Acicateados por
8 la observación de la estudiosa Mónica Velásquez Guzmán: ‘Nada hay bien dicho sobre la relación
de la obra saenzeana con autores bolivianos, latinoamericanos o universales (a excepción del texto
de Wiethüchter sobre rasgos románticos en Sáenz y Pizarnik) carencia de nuestra crítica [¿sólo de
Bolivia?] frecuentemente ocupada en los textos sin relacionar éstos con sus fuentes y sus pares’ […]
Por lo tanto, y a modo de recoger el guante, iluminamos algunas zonas del cableado de su poesía
-- fuentes, coincidencias, anticipaciones-- en relación con otras de la región; muy en particular, con
la de César Vallejo. Relaciones hace tiempo consolidadas; pero que pueden resultarnos novedosas
e incluso insólitas tanto como las nuevas imágenes paceñas a las que nos da acceso el flamante
teleférico de la capital boliviana” (Granados 2016).
10  En el sentido tan elocuente y significativo según el cual: “Cuando más creativa y desafiante fue
la idea de una estética andina fue cuando la comunidad orkopata la promovió desde la diferencia
vanguardista que irradiaba la poesía de [Alejandro] Peralta” (Monasterios 145). Para, a partir de
Por lo tanto, aquello de que: “Vallejo no busca ‘reivindicar’ saberes andinos
porque los considera derrotados por el avance de la tragedia del progreso […] En
su poesía la ancestralidad andina constituye un campo cultural debilitado […]”, de
Elizabeth Monasterios (27), nos parece o un exabrupto o algo tirado de los pelos.
Es decir, si por un lado esta poética “no cabe realmente dentro del paradigma
indigenista”11. Y, acaso étnicamente Vallejo no es un indio --o, por lo menos, no
un aymara--; consideramos resulta innegable que Trilce se adelantó en treinta
J años --los primeros testimonios se recogieron a mediados de los 50’, entre otros,
por José María Arguedas-- en tanto “relato” del mito de Inkarrí (Granados 2014:
“Introducción”). Éste último, nada menos que el meollo cultural pan-andino de lo
A
que Monasterios va denominando aquí ancestralidad y reivindicación.

L Obras citadas

Camarón de la Isla. Camarón con Tomatito. París 1987. “Tus ojillos negros” (Video).
[http://www.youtube.com/watch?v=p6kd5B6Gh0w]
L
CASTAÑO, Antonio. [Comunicación personal].
GARAY, Juan Carlos. César Vallejo y la música popular peruana. Revista Casa Silva,
A No 22, 2008. 144-150.
GONZÁLEZ, Micky. Landó por bulerías (Video). [https://www.youtube.com/wat-
ch?v=W32YYTuHA_A]
GRANADOS, Pedro. César Vallejo en español selvagem y portunhol trasatlántico. Si-
bila, Año 17, 2017. Web.
• _______. Jaime Sáenz en el teleférico paceño: algunos cables de su poesía. Blog de Pe-
dro Granados, 4 de junio, 2016.
996
_______Trilce: Húmeros para bailar. Lima: VASINFIN, 2014.
• _______; AHAYU-WATAN. Suma poética de Gamaliel Churata/ Mauro Mamani
(compilación y estudio)”. Blog de Pedro Granados, 13 de octubre, 2013.
______ Vallejo sin fronteras. Lima: Arcadia/Cultura, 2010.
______ Trilce: muletilla del canto y adorno del baile de jarana. Lexis, Vol. 31,
Núm. 1-2, 2007. 151-164.
2 MANRIQUE, Jorge. Coplas por la muerte de su padre. Madrid: Editorial Casariego, 2011.
MOLINA, Ricardo y Mairena, Antonio. Mundo y formas del cante flamenco. Sevilla:
0 Librería Al-Andalus, 1971 (82-88) 82.
MOLLOY, Sylvia. Flâneries textuales: Borges, Benjamin y Baudelaire. Variaciones
1 Borges, No 8 (1999): 16-29.
MONASTERIOS PÉREZ, Elizabeth. La vanguardia plebeya del Titikaka. Gamaliel Chu-
rata y otras beligerancias estéticas en los Andes. La Paz, Bolivia: IFEA/ Plural,
8 2015.
PORTUGAL CATACORA, José. Alejandro Peralta Miranda. José Portugal Catacora, 15
septiembre de 2013. [http://joseportugalcatacora.blogspot.pe/ ] 

aquí, abrirse a la posibilidad: “de una estética simultáneamente nueva, andina y comprometida con
reivindicaciones plebeyo-socialistas” (Monasterios 153).
11  Idea, por otro lado, y aunque con otros presupuestos, plenamente coincidimos: “César Vallejo
sepultó con su obra poética --aunque valiéndose también de sus persuasivas crónicas y ensayos--
todos los indigenismos; y sacó adelante un concepto y una práctica que podríamos motejar como
Indigenismo-3, pero que preferimos --junto con Édouard Glissant-- denominar ‘opacidad’” (Granados
2017)
J

A

L ALGUNOS APUNTES SOBRE LAS ESTRUCTURAS EMOCIONALES
TRANSMITIDAS POR LAS FIGURAS MATERNAS EN BALÚN CANÁN
L DE ROSARIO CASTELLANOS

A Pilar Osorio Lora (UNIVERSITY OF MASSACHUSETTS)
RESUMEN: Este artículo explora cómo las estructuras emocionales transmitidas
por la figura de la nana y de la madre en Balún Canán (1957) de Rosario Castellanos
(1925-1974), a laformación emocional de la niña-narradora. Cada una de estas
mujeres y su forma de estar en el mundo proveen herramientas para que la niña
• construya una estructura emocional propia. Así, veremos cómo la condición de
997 niña que implica una marginalidad socioeconómica se convierte en un privilegio
epistémico, ya que tiene acceso a todos los saberes en la dinámica de poder. En
• este proceso de autolegitimación, la niña toma la herencia emocional de ambas
mujeres para empoderarse desde su lugar de enunciación híbrido.
Palabras Chave: Balún Canán. Emociones. Conciencia

En 1957 Rosario Castellanos (México 1925- Israel 1974) publica Balún


2 Canán (1957). Esta obra, mezcla de autobiografía y ficción, cuenta la historia de
la familia Argüello en el momento en que su poderío se ve amenazado por las
0 reformas agrícolas y educativas del gobierno de Lázaro Cárdenas (México, 1934-
1940). La novela presenta las tensiones y conflictos que causaron estas reformas
1 entre los patrones (ladinos) y los indígenas. La primera y tercera parte de la novela
son presentadas desde la perspectiva de una niña de siete años, cuyo nombre no

conocemos. Esta protagonista-narradora nos cuenta cómo va comprendiendo una
8 serie de dinámicas sociales propias, no sólo de la Revolución Mexicana sino, en
cierta medida, de toda la América Latina. Es así como descubre la carga cultural
del lenguaje como marca socioracial; el restringido acceso al saber de las mujeres;
la expectativa de que las mujeres ocupen papeles pasivos y silenciosos en su
comunidad; y el desprecio al conocimiento indígena, entre otros. El descubrimiento
de esta serie de tensiones está lejos de ser pasivo, por el contrario, está lleno de
tensiones y reacciones emocionales. La forma en que la niña lidia con estas emociones
y sentimientos está, en buena parte, mediada por los modelos emocionales que ve
en los adultos que la rodean. En esta ocasión nos concentraremos en las figuras
femeninas más influyentes.
Antes de estudiar los dos modelos emocionales más significativos para la
niña, es importante mencionar que, en Balún Canán, la familia se configura como
un grupo social cuyas relaciones están determinadas por la lógica de las alianzas
de unos contra otros. Tal como veremos, estos bandos se configuran en relación
a intereses socioeconómicos. La familia ideal y unida, viene a ser reemplazada
J por una familia escindida por cuestiones relacionadas con el poder. Si seguimos
la premisa de que la familia es la base de la sociedad, Balún Canán apuesta por
A que esto es cierto en tanto que la familia es la primera unidad social donde se
perpetúan las lógicas del poder, en específico las racistas y sexistas.
L Asumiendo que la familia es una función social más que biológica,
podemos afirmar que tanto la madre como la nana son figuras maternas en el
mundo de la niña. Cada una de estas figuras femeninas determinaun bando. Por
L
una parte nos encontramos con la nana indígena, quien es una suerte de madre
simbólica que la ha nutrido con su leche y con la palabra; y, por otra, tenemos a
A la madre biológica, Zoraida, mestizaque no alimenta a su hija de ninguna forma
y quien establece una relación distante y fría con ella. En tanto que estas dos
mujeres establecen una suerte de relación dialógica resulta imposible hablar de la
forma en que una es modelo para la niña, sin hablar de la otra.
Lo primero que nos encontramos al leer Balún Canán es la intimidad de
• la relación de la niña y la nana. En las primeras páginas del libro descubrimos que
998 esta relación está construida a partir de las historias/explicaciones del mundo que
• la nana indígena cuenta a la niña, sabemos que esta es una relación determinada
porque la nana cuida de la niña. Ahora, este cuidado va más allá de las funciones
prácticas que se le han encomendado -como prepararla para ir a la escuela o
peinarla-, y provee un cuidado que suple la necesidad simbólica y de introducción
al mundo cultural. Es evidente, en los primeros apartados de la obra, cómo esta
2 consciencia de la niña como sujeto que es consumidora cultural, hace que la niña
no sólo se sienta empoderada con el conocimiento sino que tenga un permanente
deseo de saber.
0
Echando mano de la ya usada metáfora de la casa, podríamos decir que
la nana está en el espacio invisible de la cocina hablando y contándole historias
1 a la niña, mientras la madre está en el espacio público de la sala, ignorándola, en
silencio y lidiando con el constante sentimiento de ser invalidada por su marido,
8 César Argüello. La niña tiene acceso a estos dos mundos por su lugar de enunciación:
como hija de la clase privilegiada tiene acceso a la sala, como mujer tiene acceso a
la cocina, y como niña puede cruzar la puerta cuantas veces quiera y sin problema.
Aunque la condición de infante implica una posición marginal, es claro que esta
no es compartida con su hermano Mario. Este no tiene tanto acceso al mundo
indígena porque su madre le presta más atención por ser hombre, lo cual lo obliga,
de cierta forma, a estar más tiempo en la sala que en la cocina. Quizá la mayor
paradoja de la obra es que la posición políticamente marginal de la niña (mujer e
infante) es la que le permite tener el privilegio epistémico de cruzar la puerta de la
sala y la cocina a su antojo y así tener acceso al conocimiento de ambos mundos.
La paradoja se recrudece si pensamos que la misma condición de mujer que le
provee este privilegio epistémico, es la que silencia su voz y así su poder, que es su
conocimiento. Es ahí donde descansa, en mi opinión, el valor cultural de esta obra:
en la legitimación de un lugar de enunciación marginalizado por los discursos del
privilegio y de la marginalidad. Es decir, en tanto mujer es marginal dentro de
la clase alta, pero en tanto mestiza es mirada con recelo desde lo que podríamos
llamar el centro de la marginalidad, en este caso, la comunidad indígena.
J Si en la primera parte somos testigos de la relación de la niña con la
nana, en la tercera la vemos cerca de la madre. Sin embargo, la relación entre
A madre e hija es opuesta a la relación niña-nana. Mientras la nana le habla en la
cotidianidad, le cuenta historias y le explica cómo funciona el mundo-estableciendo
L una lógica de reconocimiento mutuo-, la madre,
“Sé que no habla conmigo; que si yo le respondiera se disgustaría, porque al-
guien ha entendido sus palabras. A sí misma, al viento a los de su alrededor
L entrega las confidencias. Por eso yo apenas me muevo para que no advierta
que estoy aquí y me destierre” (CASTELLANOS, 2004, p.218).

A Lejos de haber una interacción y una intimidad, como la que hemos visto
entre la nana y la niña, la relación de la niña con su madre se construye desde la
distancia. La niña observa y escucha a una madre que no le habla directamente, su
falta de comunicación recíproca se convierte en un gesto desprecio. Este sentimiento
se refuerza cuando la madre afirma preferir la muerte de la niña (quiencarece de
• nombre) a la de Mario. La niña no tiene ningún tipo de valor a ojos de su madre
999 porque como mujer carece de valor social. Claro, esta idea de que Mario es amado
en tanto que es hombre y, por lo tanto, asegura un valor social, no deja de ser cruel

con el niño, pero esta no es una reflexión pertinente para el presente artículo. Ya
en otra ocasión tendremos que ocuparnos de ello.
La preferencia de la madre por Mario se configura como elemento
fundamental para que la niña sepa que el sexismo existe y sea testigo de sus
2 formas de operar. Mario tiene una posición claramente privilegiada desde la que
consigue lo que quiere con una facilidad a la que la niña ni siquiera aspira. Por

ejemplo, cuando la niña pide a su madre que la lleve al circo,Zoraida le dice: “Para
0 qué. Para ver a unas criaturas, que seguramente tienen lombrices, perdiéndoles
el respeto a sus padres porque los ven salir pintarrejeados, a ponerse en ridículo.
1 Mario también tiene ganas de ir. Él no discute. Únicamente chilla hasta que le dan
lo que pide” (CASTELLANOS, 2004 p.19)
8 Por si fuera poco, hay una expectativa social de que la niña observe
pasivamente esa diferencia de derechos entre ellos, tal como lo vemos en la escena
de las cometas:
“Mario tropieza y cae, sangran sus rodillas ásperas. Pero no suelta el cordel
y se levanta sin fijarse en lo que le ha sucedido y sigue corriendo. Nosotras
miramos, apartadas de los varones, desde nuestro lugar (…) -Pero qué tonta
eres. Te distraes en el momento en que gana el papelote de tu hermano.”
(CASTELLANOS, 2004, p. 24).

Este mismo lugar será el que la niña ocupe cuando la madre, en la tercera
parte, dé una golpiza a la nana, y será el mismo lugar que -intelectualmente- le
será designado cuando se le prohíba leer el cuaderno que pertenece a Mario.
En tanto que Mario es sinónimo de seguridad, Zoraida se obsesiona por
cuidarlo cuando, en la tercera parte de la novela, la nana prediga la muerte del
niño.En esta obsesión por salvarlo, Zoraida entra en diálogo con la tragedia griega,
ya que son sus propias acciones por prevenir la maldición sobre la muerte de su
hijo, las que suscitan la muerte de Mario. En este afán desmesurado de salvarlo,
J Zoraida busca ayuda en la religión. La contradicción es que la presenta a sus hijos
como un sistema dominado por la idea del castigo y del miedo.Es tal el miedo
A que Mario entra en una crisis de pánico que lo lleva a la muerte.La madre logra
exactamente lo contrario de lo que pretende. Los sentimientos promulgados por
L la religión en la novela son la enfermedad no sólo de Mario, sino los causantes de
la falta de compasión de la niña. Sabemos que el delirio de Mario es por la idea

del pecado, sabemos que en medio del delirio él habla de la llave del sagrario y la
L pide para salvarse, pero sabemos también que la niña esconde la llave del sagrario
porque está convencida de que Dios va a llevarse a uno de los dos y se escoge a sí
A misma por encima de su hermano. En buena parte, esta decisión es tomada porque
la figura materna lejos de proveer una sensación de seguridad y de compasión,
es una figura amenazante e inquisidora. La niña sabe que no la va a defender:
“¿Quién iba a defenderme? Mi madre no. Ella sólo defiende a Mario porque es el
hijo varón” (CASTELLANOS, 2004, p.278). Esta decisión nos da cuenta de que la
• protagonista comprende las dinámicas de una sociedad sexista en la que ella no
1000 tiene valor social y se posiciona frente a ello.
Aunque la rebelión de la niña contra un sistema patriarcal se manifiesta

en varias ocasiones a lo largo de la obra (cuando le habla de Colón o cuando lo
ignora en la competencia de cometas), la cúspide de la rebelión contra los privilegios
de género está hacia el final de la novela cuando la niña nos diga: “Pero Mario no
puede correr; está enfermo. Y yo no puedo esperar. No, me marcharé yo sola,
me salvaré yo sola” (CASTELLANOS, 2004, p.265) Así, con soberana libertada,
2 la niña no sólo expresa cómo ha entendido las dinámicas del sexismo sino que
se posiciona frente a él escogiendo su vida por encima de la de su hermano. Tal
0 como lo expresaRigoberta Menchú (1959- ) en su autobiografía Me llamo Rigoberta
Menchú y así me nació la conciencia (1983), el nacimiento de la conciencia está en
1 relación a la justificación de la violencia, en tanto que esta se ejerce de diferentes
formas. Es decir, la niña responde al acto violento de la madre de despreciarla por
8 medio de la violencia de callar la información que puede calmar el delirio de su
hermano. Escogerse a sí misma por encima de un hombre es rebelarse ante un
sistema patriarcal que la reifica (la vuelve objeto)quitándole su valor social.
Contrario a las estructuras emocionales relacionadas con el desprecio y
la reificación que su madre le inculca, la nana le presentaestructuras emocionales
que, de una u otra forma, promueven la formación de comunidades solidarias
regidas por el reconocimiento mutuo. Un ejemplo claro de ello es cuando están en
la feria y uno de los indios usa el “tú” con un ladino, con tal de defender su derecho
a usar el “tú” y a la autodeterminación, el indio pone en riesgo su vida. Lejos de
sentir algún tipo de empatía, los asistentes a la feria se burlan de él. La nana y la
niña son testigos de ello, y aunque la niña quiere subir a la rueda de Chicago, la
nana se la lleva. “Protesto. Ella sigue adelante sin hacerme caso. De prisa, como
si la persiguiera una jauría. Quiero preguntarle por qué. Pero la interrogación se
me quiebra cuando miro sus ojos arrasados en lágrimas” (CASTELLANOS, 2004 p.
41). La niña calla y siente pena por su nana. Así, vemos la capacidad de la nana
de sentir empatía con un desconocido, lo cual nos da un indicio de su conciencia
moral, ya que sabemos que una de las condiciones de la madurez emocional es
J la capacidad para empatizar con aquellos que no conocemos. Ahora, en este caso
la nana cuenta con lo que podríamos llamar una suerte de “ventaja emocional”
porque puede empatizar con el indio por la experiencia racial compartida. Sobre la
A
empatía nos dice Marta Nussbaum:

“Ahora bien, el pensamiento empático no es necesario para la comprensión,
L y sin duda tampoco es suficiente: una persona sádica podría emplearlo para
torturar a su víctima. Sin embargo, resulta de gran utilidad para la forma-
L ción de sentimientos comprensivos que, a su vez, se correlacionan con las
conductas de ayuda y colaboración.” (NUSSBAUM, 2010 p. 63)

A De una u otra forma, la nana comparte con la niña la posibilidad de


relacionarse con el otro desde la condición marginal, lo cual se convierte en su
privilegio epistémico. En la escena de la rueda de Chicago, que acabamos de
mencionar, nos encontramos también con el silencio de la niña. Ya la hemos visto,
en varias ocasiones, pelear obstinadamente por lo que quiere, pero en esta ocasión
• es capaz de callarse. Podríamos decir que ahí, hay una suerte de empatía, o de
respeto por el sentimiento del otro. El gesto de callar y dejar que la nana digiera
1001
sus emociones nos habla de una suerte de inicio de madurez emocional de la niña.

Ahora, lejos de ser simplista o maniquea en la configuración de sus
personajes, Castellanos nos presenta personajes llenos de complejidad, en buena
parte porque es consciente de la condición interseccional de cada uno de ellos.
Aunque en las narraciones e historias de la nana podemos rastrear un montón
de señales que apuntan a la construcción de valores solidarios, la nana también
2 configura grupos/bandos y genealogías entre víctimas y victimarios, aún cuando
la niña, a quien evidentemente adora, pertenezca al grupo de los victimarios.
0 Por ejemplo, la obra abre con la siguiente oración: “Y entonces, coléricos, nos
desposeyeron, nos arrebataron lo que habíamos atesorado: la palabra que es el
1 arca de la memoria (…) Para que puedas venir tú y el que es menor que tú y les
baste un soplo, solamente un soplo” (CASTELLANOS, 2004, p.7), así la nana le
señala a la niña cómo la condición de posibilidad de su privilegio descansa en la
8
violencia que sus ancestros ejercieron sobre un nosotros indígena al que ella, la
niña, no pertenece.
El sistema moral de la nana se construye como complejo en tanto que es
capaz tanto de transmitir sentimientos solidarios e igualmente excluir a la niña
por cuenta del privilegio del que goza. Esta postura moral firme y amorosa, se
distancia radicalmente de la estructura emocional que la niña recibe de Zoraida.
La estructura emocional de la madre esta configurada por el desprecio y el miedo,
asociados, ambos, al afán de adquisición de valor social. Veamos.
Aunque desde su posición social Zoraida se siente legitimada para ejercer
la reificación y el desprecio, tanto hacia los indios como hacia su propia hija, en su
relación con César éste la está reificando e invalidando sistemáticamente por ser
mujer. La denuncia de la deslegitimación de la voz femenina y la idea de que hay
un lugar que le corresponde a las mujeres, un lugar donde reina el silencio y desde
el cual se les infantiliza, es una constante de la obra. Por ejemplo, cuando están
discutiendo sobre la reforma educativa, y Zoraida está diciendo que los indios se
sienten empoderados porque Felipe los está animando,
J “César suspiró como quien se resigna y dobló el periódico. El tono de Zorai-
da exigía más atención que la vaga y marginal que estaba concendiéndole.
Como para explicarle a un niño, y a un niño tonto, César contestó:
A
-No podemos hacer nada. Estas cosas son ¿cómo diré?, detalles. Te moles-
tan. Pero si los acusas ante la autoridad no encontrarán delito” (CASTELLA-
L NOS, 2004, p. 124-125)

L César asume que todas las ideas de Zoraida vienen de la irracionalidad
y la desinformación. De esta formael conocimiento de la mujer, su episteme, es

ignorada. Zoraida ejerce el poder que le otorga la raza (o clase social) legitimando la
A violencia en la escala socio racial, pero al mismo tiempo padece la violencia ejercida
por César en su condición de hombre blanco.
Al principio de la obra, la relación de la niña con la madre podría asociarse
a una suerte de matrofobia, en tanto que la niña parece no tener ningún interés
por su madre y la forma en que la narradora nos presenta esa figura es desde las

escenas en que la madre es violenta y ejerce el desprecio. Como reacción a esta
1002 actitud materna, la niña busca refugio en la nana, fortaleciendo la comunidad
• solidaria que estas dos han establecido. De alguna forma, el rechazo a la violencia
ejercida por su madre se vuelve trampolín para confirmar el valor de la constelación
emocional ofrecida por la nana.
Quizá la escena en que es más claro cómo la niña ha integrado y adoptado
la estructura emocional transmitida por la nana es cuando la madre le da una
2 golpiza a la nana.
Mi madre no obtuvo respuesta y el silencio la enardeció aún más. Furiosa,
empezó a descargar con el filo del peine, un golpe y otro y otro sobre la ca-
0 beza de la nana. Ella no se defendía, no se quejaba. Yo las miré, temblando
de miedo, desde mi lugar.
1 - ¡India revestida, quítate de aquí! ¡Que no te vuelva a ver yo en mi casa!

8 (…)

Silenciosamente me aproximé a la nana que continuaba en el suelo, deshe-


cha, abandonada como cosa sin valor. (CASTELLANOS, 2004 p.221-222)

Durante la golpiza la niña observa desde la distancia y una vez esta


termina, se acerca para cuidar a la nana. Las acciones de la niña materializan las
enseñanzas de cuidado y solidaridad de la nana, aunque lo hace después de acatar
la idea “de ocupar el lugar que le corresponde en el mundo” que le ha inculcado
su madre. En este momento la niña quiere restablecer la dignidad de la nana, y
tiene un gesto de restauración y reconocimiento para con ella, gesto propio de la
educación emocional que ha recibido de ella. Este gesto compasivo implica también
una conciencia de la gratitud hacia la nana y de reconocimiento de ella en tanto
sujeto.
A medida que se desarrolla la obra, vemos no sólo cómo la nana va
desapareciendo de la narración, sino cómo esto promueve un interésde la niña hacia
su madre. Ahora, a medida que la nana desaparezca de la narración y de la vida de
la niña y ésta vaya entrando al mundo social de la madre, esta fobia por Zoraida
J no sólo irá desapareciendo, sino que la lógica del desprecio y la reificación que la
madre promueve irá integrándose a la constelación emocional de la niña. Hacia
A el final de la novela la niña nos dice: “No, a mi madre no le simpatiza esta mujer,
basta con que sea india” (CASTELLANOS, 2004, p. 219). La niña ha comprendido
L qué es la racialización, y cómo opera. Será al final de la obra, cuando no vaya con
Amalia por la calle principal y nos cuente que

En la acera opuesta camina una india. Cuando la veo me desprendo de la
L mano de Amalia y corro hacia ella, con los brazos abiertos. ¡Es mi nana!
¡Es mi nana! Pero la india me mira correr, impasible, y no hace un ademán
A de bienvenida. Camino lentamente, más lentamente hasta detenerme. Dejo
caer los brazos, desalentada. Nunca, aunque yo la encuentre, podré reco-
nocer a mi nana. Hace tanto tiempo que nos separaron. Además, todos los
indios tienen la misma cara (CASTELLANOS, 2004, p. 277)

Este gesto final de la niña puede ser interpretado como un triunfo del
• racismo, sin embargo, la niña quiere ver a su nana, la busca, pero es consciente
de la imposibilidad de reconocerla, en parte porque es consciente de que ella ha
1003
integrado las lógicas de la racialización, herencia de su madre. Hacia el final de la
• novela, cuando Mario ha muerto, la niña calla en la vida cotidiana acoplándose a las
expectativas de comportamiento social que hay sobre ella, pero escribe y ahí rompe
el silencio del lugar que le ha sido asignado. Nos encontramos entonces frente a una
suerte de rebeldía epistémica: apropiarse de la palabra para contar las historias
de ambos bandos de la dinámica social/ familiar. De esta forma la niña-narradora
2 autolegitima el privilegio epistémico que le había sido socialmente otorgado pero
no reconocido.Desde él hace uso de su libertad para exaltar la herencia emocional
0 de su nana sin negar la imposibilidad de escapar de la herencia emocional de su
madre: la reificación y el racismo. Así, esta autolegitmiación de su privilegio se
vuelve una suerte de traición a su propia clase social y un gesto de restauración a
1
una comunidad históricamente despreciada.

8 Bibliografía
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L OCO DO MUNDO: O DESMORONAR DA FANTASIA EM UM CONTO
AMAZÔNICO
L
Raelisson do Nascimento Walter (IFAC)
A Maria José da Silva Morais Costa (UFAC)
RESUMO: Este artigo se propõe uma aproximação da mulher presente na narrativa
“Espelho meu” de Florentina Esteves, que compõe a coletânea de contos Direito e
avesso. Para a leitura desse texto, alguns pontos de discussão são fundamentais,
como, a reflexão elaborada por Pizarro e Wolff, o conceito de esquizofrenia como
• epíteto do tempo caracterizado no âmbito da colocação/seringal, a poética da
imaginação de Bachelard, o jogo de relações que se estabelece nos espaços dentro/
1005
fora ou interior/exterior.Pizarro critica o fato de a Amazônia ter sido construída pela
• voz do estrangeiro e quase nunca por uma voz local. Wolff teve posicionamento na
escrita de seu texto como o “outro”, para distanciar-se dos locais em razão de sua
postura de pesquisadora. A reflexão feita aqui se estrutura a partir da análise do
conto “Espelho meu” em consonância às ideias das pesquisadoras Pizarro e Wolff,
direcionando ao leitor pensar o próprio processo de extração da borracha sendo
2 representado ficcionalmente pelo estupro da personagem principal, fazendo uma
analogia a seringueira através de cortes que se fazem no caule da árvoregomífera.
0 Florentina Esteves direciona a construção discursiva de uma realidade ficcional
que convida a problematizar um drama específico de um espaço tipicamente
1 amazônico. É o drama de uma mulher que, a partir de um ato de violência, precisou
criar alternativas para continuar a existir. Esse foi o drama do Acre, da Amazônia,
do Brasil, da América Latina, territórios que tiveram que se recriar a partir de atos
8 de violência jamais vistos.
Palavras-chave: Amazônia. Borracha. Florentina Esteves. Mulher.

Logo que chegava a uma casa, acompanhada de homens, esses eram con-
vidados a permanecer na sala, em conversa com o dono da casa. A mim era
dada a opção de ficar aí ou de participar da conversa e das atividades das
mulheres, na cozinha. Em uma ocasião, chegando à noite em uma casa
onde não esperavam que houvesse uma mulher entre os hóspedes, o dono
da casa gritou, logo que me viu, em direção aos fundos onde sempre fica a
cozinha: - Venha aqui, mulher, tem uma mulher aqui! Era necessário ter
uma mulher para me receber condignamente. (WOLFF, 1999, p.57)
A narrativa da pesquisadoraCristina Scheibe Wolff mimetiza um espaço/
tempo muito familiar nos seringais e cidades ribeirinhas da Amazônia. A chegada
dela em uma casa da região dá o tom da hierarquia social e do lugar que os gêneros
ocupam em algumas das diversas amazônias que se desenham por aqui. Os homens
permanecem na sala a conversar com o dono da casa, a mulher participa das
atividades das mulheres na cozinha. Espaços bem delimitados que levam à reflexão
a respeito do lugar de tantas mulheres que povoaram e povoam a região.
J Essa reflexão não é nova na academia. Alguns bons textos vêm sendo
produzidos e esse processo de ruminação pela escrita tem cumprido um papel
A importante na revisão de estereótipos nesse campo. Dois exemplos desse exercício
reflexivo são expostos a seguir. É o caso de Ana Pizarro no texto “Vozes do seringal:
L discursos, lógicas, desvios amazônicos” situado no livro Amazônia: as vozes do rio
em que são apresentados os principais personagens que compunham o seringal no

final do século XIX. Personagens esses que eram masculinos na sua maioria, como:
L os caucheiros, seringueiros, regatões. Pizarro passa então a apresentar quem são
esses personagens, suas funções, angústias, sofrimentos em um contexto histórico.
A Uma das várias críticas abordadas por Pizarro no texto é a respeito da
Amazônia ter sido construída pela voz do estrangeiro e quase nunca por uma
voz local. Isso gerou apagamento e silenciamento de várias outras personagens
presentes no seringal. Esse é o caso das mulheres, embora em pouca quantidade.
Eram apresentadas apenas as mulheres das famílias poderosas e em determinados
• momentos chamadas de heroínas românticas. A respeito dessas figuras femininas
1006 geralmente eram tecidas suas rotinas diárias, suas vestimentas, suas virtudes.
Enquanto as demais que não pertenciam às famílias com poder econômico, eram

somente “mulheres de serviços” (PIZARRO, 2012, p. 124).
A Belle Époque é a representação dessa marginalidade da diferença e
preconceito das mulheres ricas para com as de origem popular:
Eram as mães de família virtuosas, ocupadas dos cuidados dos filhos e no
governo da casa, que rodeadas de suas mulheres de serviço, de claros tra-
2 ços indígenas e escravas recém-libertadas do tráfico que havia chegado às
fazendas amazônicas, se vangloriavam de sua vocação cristã que, mais que
0 diferenciá-las das mulheres de origem popular, tinha a virtude de deixa-las
à margem das críticas e boatos alheios.” (PIZARRO, 2012. p 124)

1 Assim, as mulheres pobres eram identificadas apenas como mulheres


servis: “As damas, quando passavam em frente ao teatro acompanhadas de suas
8 serventes, não estranhavam a representação ostentada na fachada central, onde se
via homens e mulheres com túnicas neoclássicas e claros traços europeus, levando
uma pena presa na cabeça,” (PIZARRO, 2012, p. 126).
Pizarro usa de sua escrita para denunciar a construção discursiva dos
escritores anteriores a ela. Esse é o caso da violência contra as mulheres indígenas
nos relatos que compõem sua obra. Ela ajuda a compreender que o discurso
construído sobre a Amazônia não mostra os fatos como de certo ocorreram, ficando
uma voz ou outra inaudível nos textos oficiais.
Também Cristina Wolff no livro Mulheres da floresta – uma história do
Alto Juruá Acre, em tom de denúncia, mostra a realidade da vida das mulheres na
floresta, dando-lhe visibilidade em um espaço discursivo em que quase sempre a
mulher é invisível, não possui voz.
O texto de Wolff tem como objeto de análise as mulheres da floresta do
Alto Juruá do período de 1890 a 1945. Ela usa como fonte de pesquisa documentos
oficiais para identificar a quantidade de mulheres presentes na região naquele
período, além dos escritos de Euclides da Cunha, Mauro Almeida, Leandro
Tocantins, dentre outros escritores presentes na escrita da Amazônia em especial
J da região do Juruá. Assim, a partir da pesquisa nos processos criminais do fórum
de Cruzeiro do Sul, ela apresenta a desproporcionalidade quantitativa entre homens
A e mulheres na região.
O uso desse material de pesquisa, que inclui entrevista feitas com
L moradores da região, chama atenção pela originalidade das informações sobre as
vidas das mulheres dos seringais. Ela cita vários trechos dos problemas enfrentados
por elas, principalmente por conta de maridos. Eles vão de uma simples separação
L
ou até mesmo a morte deste.

Wolff posiciona-se neste texto como o “outro”, para distanciar-se dos
A locais em razão de sua postura de pesquisadora. Assim, ela também torna-se uma
diferente das demais mulheres e pessoas da região: “E se lermos os trabalhos e relatos
escritos, se ouvimos as histórias contadas pela população que hoje vive na região
do Alto Juruá, parece mesmo que elas não participavam desse empreendimento,
coisas só de “cabra macho”, que se internavam sozinhos nas matas, sofrendo além
• da fome, do medo, do impaludismo, a solidão e a saudade”. (WOLFF, 1999, p.90). O
1007 empreendimento de que fala a autora é o trabalho com a seringa, onde as mulheres
• não participavam ou, se faziam isso, é uma atividade que está silenciada até os dias
atuais. As mulheres cortadoras de seringa ainda são um baú fechado de histórias
a serem desveladas pelo olhar pesquisador.
Ana Pizarro e Cristina Wolff facilitam umaobservação mais atenta do
surgimento de escritoras que, ainda nos dias atuais, estão na periferia discursiva
2 e, mesmo assim, insistem em continuar escrevendo. Florentina Esteves é uma
dessas escritoras. Com três livros publicados: Enredos da memória, texto que faz o
resgate da infância da autora passada no centro comercial e cultural da cidade de
0
Rio Branco, capital do Acre; O empate, novela ambientada em um seringal acreano
e que recria em imagens e palavras a vida típica desse local; Direito e avesso,
1 coletânea de contos que expõe o amadurecimento de sua escrita; e O Acre de ontem
e de hoje, livro em que agrupa as crônicas publicadas diariamente nos jornais de
8 Rio Branco.
Este artigo se propõe uma aproximação da mulher e de seu entorno
presente na narrativa “Espelho meu” que compõe a coletânea de contos Direito e
avesso. Para a leitura desse texto, alguns pontos de discussão são fundamentais,
tais como, a reflexão elaborada por Pizarro e Wolff, o conceito de esquizofrenia
como epíteto do tempo caracterizado no âmbito da colocação/seringal, a poética da
imaginação de Bachelard, o jogo de relações que se estabelece nos espaços dentro/
fora ou interior/exterior.
A começar pelo título, o leitor é pego de surpresa porque “Espelho meu”
retoma o conto de fadas da Branca de Neve compilado pelos irmãos Grimm.
“Espelho, espelho meu há nesse mundo alguém mais bela do que eu?”. No entanto,
a narrativa se reporta a uma senhora de sessenta e cinco anos que se posta ante
alguns espelhos. Florentina Esteves propõe, portanto, uma interessante releitura
de um conto clássico originário da tradição oral alemã e perenizado nos diversos
momentos de contação de histórias que se repetiram a partir de então.
A expressão literária que se fez na região acreana, inclusive, tem forte
J influência dos causos, narrativas orais que resgatam os fatos ocorridos nas diversas
colocações e seringais. Essas marcas da oralidade têm cunho ancestral porque
A sua raízes remontam à tradição oralizante que serve de base a toda a composição
literária elaborada até aqui pela humanidade.
L Na narrativa “Espelho meu” o narrador conta a história de uma mulher
de sessenta e cinco anos que mora em um seringal dentro da floresta amazônica
na companhia do marido (Leocádio, que vem a falecer em pouco tempo), do genro
L
(Demerval) e da filha (mulher muito doente que também vem a falecer em pouco
tempo).
A Após as mortes de Leocádio e da filha do casal, a protagonista passa a
viver sozinha com o genro Demerval que, a partir de então, passa a usá-la com o
fim de satisfazer todas as suas necessidades, inclusive sexuais (Demerval pega a
sogra à força e a obriga ao sexo). A protagonista do conto, que não é identificada
com um nome, sofre, portanto, aos sessenta e cinco anos de idade, um estupro
• inusitado. Esse ato brutal de teor negativo, contudo, é interpretado pela personagem
1008 como uma forma de sobrevivência, um modo de aceitação e de conformação com a
• realidade que a cerca.
Depois do estupro realizado pelo genro, a personagem vítima cria uma
ilusão para si e passa a alimentá-la dia-a-dia: ela é uma mulher desejável. A situação
continua dessa maneira até a ocasião em que é substituída por Damiana (filha do
dono do barracão com quinze anos de idade), “mulher feita” (ESTEVES, 1998, p.
2 2). Nesse instante, a mulher põe-se diante do espelho e tem sua ilusão dissolvida
na imagem do corpo encurvado de velha.
0 A narrativa é ambientada na época da Segunda Guerra Mundial em que
o Acre se envolveu por inteiro, assim como toda a região amazônica, na Batalha

da Borracha: “Porque o presidente convocara todos para a Batalha da Borracha –
1 borracha para ajudar o Brasil a ganhar a guerra. Seringueiro, então, virou ‘Soldado
da borracha’ (ESTEVES, 1998, p. 1).
8 Antonio Cândido(1981) diz que a literatura desperta inevitavelmente
interesse pelos elementos contextuais. No Acre, essa é uma realidade bem
patente sobretudo pela forte vocação documental de sua literatura. Para além
disso, de alguma maneira todas as gerações a partir da Segunda Guerra Mundial
participaram e participam ainda hoje das heranças deixadas pela luta da borracha,
sejam elas positivas ou negativas. O leitor da região tem na recepção do conto
forte identificação por ter visto muitas vezes famílias chegando dos seringais onde
haviam passado anos e anos de suas vidas sem muitas expectativas. Essas vidas,
na maioria das vezes, resumidas a poucos fatos e farrapos que fugiam ao silêncio
barulhento da mata.
Outro fato que perenizou esse contexto em nossa memória coletiva foi a
aposentadoria dos soldados da borracha. Um grande número de famílias tem ainda
hoje pessoas aposentadas por terem trabalhado na empresa seringueira durante o
período da Grande Guerra Mundial.
O tempo discursivo da narrativa “Espelho meu” difere dessa datação
J histórica porque se dá de modo, pode-se dizer, esquizofrênico.O que motivou a
reflexão a partir da noção de esquizofrenia foi a disciplina Teoria da Literatura
A cursada na graduação. Durante ela pudemos estudar as tendências da análise e
da crítica literária e a perspectiva psicanalista me pareceu bastante interessante
L desde então. A leitura do conto “Espelho meu” resgatou a discussão realizada
em sala, segundo a qual, aesquizofrenia caracteriza-se essencialmente por uma
estilhaçamento da estrutura elementar dos processos de pensamento, acompanhada
L
pela dificuldade em estabelecer a diferença entre experiências internas e externas.
Caracteriza-se também pela perda do contato com a realidade. Pela dificuldade em
A operacionalizar a percepção de passado, presente e futuro.
No texto de Florentina Esteves, as personagens desenvolvem ações num
tempo incerto. Eles sabem que estão na época da guerra, mas a percepção de tempo
transcorrido é nebulosa, efeito criado pelo constante uso de verbos no pretérito
imperfeito e no mais-que-perfeito. O pretérito imperfeito é o tempo verbal do
• passado não concluído. O mais-que-perfeito é utilizado para falar de ação pretérita
1009 concluída antes de outra ação do passado ter se iniciado.
• A combinação desses recursos cria uma atmosfera atemporal, no sentido
de que as personagens, em especial a protagonista, vivem num mundo perdido
e em um tempo perdido onde não importa o que vai acontecer, mas o que está
acontecendo. Nessa conjuntura, o futuro é incerto, assim como o passado o foi
também. É a essa percepção do tempo que se define aqui como tempo esquizofrênico.
2 A própria situação da mulher nessas circunstâncias ignorava qualquer consciência
de percepção temporal ou espacial, uma vez que não havia espaço para elas na
estrutura social. De acordo com Cristina Wolff, “as relações de gênero tinham de ser
0
improvisadas levando em conta seu menor número e, ainda, a falta de espaço para
elas no esquema produtivo dos seringais que se formavam” (WOLFF, 1999, p. 43).
1 E ainda, “nos seringais, as mulheres, como não eram consideradas capazes para o
serviço, embora muitas o tenham feito na prática, não tinham lugar reconhecido,
8 pelo menos a princípio” (WOLFF, 1999, p. 46).
A forma como a protagonista encara um fato histórico como a guerra,
aprofunda a ideia de tempo esquizofrênico, tempo louco, sem consciência de
passado e nem de futuro. O entendimento que ela tem da guerra é completamente
esquizofrênico. Não há consciência de seus horrores, de suas consequências. O
que há é o pensamento de que o neto deseja ir para a guerra para “conhecer outros
países, outros povos, viajar, lutar, virar herói” (ESTEVES, 1998, p. 1).
A conformação com a morte também reforça a esquizofrenia. No conto
“Espelho meu”, à medida que as personagens morrem, elas vão sendo substituídas
espontaneamente. As pessoas são substituídas como coisas. Após a morte do
marido Leocádio e da filha da personagem principal o que há é a conformação
total. O que acontece é uma substituição de funções: Demerval assume o lugar ou
a função de Leocádio e a protagonista assume a função da filha. A morte, portanto,
é apenas um dos tantos percalços da mata que se deve vencer, não tempo a ser
gasto com o seu ritual.
Na trama, o tempo é medido pelas visitas dos netos e pelas idas ao
J barracão. Com o andamento da narração, essas visitas começam a rarear e a
impressão de tempo transcorrido fica ainda mais nebulosa: “Quanto tempo durou
A essa situação? Ela nem sabia...” (ESTEVES, 1998, p. 2) “Voltou nessa e noutras
vezes. Passava a semana inquieto, fazendo tudo às pressas, como se assim o tempo
L encurtasse” (ESTEVES, 1998, p. 4).
O espaço em que se desenvolve a história é um seringal dentre os muitos
que foram criados nas matas acreanas. A autora não especifica o lugar com um
L
nome próprio o que dá a ideia de um sítio perdido na floresta. A protagonista mora
em uma das colocações desse seringal e o único contato dos moradores dessa
A colocação com o resto do mundo se faz através do barracão, lugar onde mora o
patrão e de onde o seringueiro compra todos os suprimentos necessários para a
sobrevivência da família.
Há uma preferência da protagonista em permanecer no espaço da
colocação. Ali é o espaço onde ela se sente segura – “oco do mundo”. Foi ali que
• ela viveu com Leocádio, criou os filhos e agora deve cuidar do genro. Tudo que
1010 venha de fora ameaça esse mundo ilusório que ela criou. A expressão “oco do
• mundo” é composta da junção de dois vocábulos. O termo ‘oco’ é delimitado pela
expressão ‘do mundo’. A significação da palavra ‘oco’ aponta para pelo menos três
semantismos: vazio, sem importância e distante, afastado.
Quando o narrador emprega a expressão, dá a entender que a
caracterização dada à colocação pela personagem engloba todos esses sentidos: a
2 colocação seria, por conseguinte, esse lugar vazio distante do resto do mundo e,
consequentemente, sem importância. Um mundo perdido na acepção de Conan
Doyle.No dizer da música de Gilberto Gil, “o oco do mundo além, além do mal e do
0
bem, da verdade nua e crua” (GIL, 2008).

“Nem ligava mais se os netos não os procurassem. A bem da verdade,
1 preferia até que nem aparecessem. É que ela ficava com a impressão de que eles
estavam desconfiando da verdade (ESTEVES, 1998, p. 3). Ela inventa desculpas o
8 tempo todo para não sai e se expor ao que está fora. Assim, enfurna-se ali no seu
canto do mundo. Bachelard (2008), em sua obra A poética do espaço, discorre a
respeito dos cantos. Ele diz que o canto é o mais sórdido dos lugares porque ele nos
faz voltar para dentro de nós mesmos. É onde nos deparamos conosco num embate
onde só nos resta o confronto com nossa identidade.
A protagonista do conto “Espelho meu” vive num canto do mundo e a partir
dali ela se vê. No entanto, esse ver-se não se constitui como confronto porque não
há consciência do outro. Todas as vezes que a mulher de sessenta e cinco anos tem
a possibilidade de estar frente a frente com outras pessoas que não seja Demerval,
ela foge. Quando os netos chegavam ela descia para cuidar das plantas; quando a
convidavam para sair de casa, ela se recusava por algum motivo insustentável. Os
outros (netos, pessoas do barracão) são seus espelho. Ao ficar diante deles a ilusão
acaba e ela volta a ser uma velha “encurvada, curvada”(ESTEVES, 1998, P. 4).
O isolamento do verbo “Ficou” em um parágrafo, sozinho, transpõe para o
nível do discurso o isolamento da mulher que nega o mundo. Todavia, essa negação
não é absoluta e nem definitiva pois é no barracão que ela busca os instrumentos
J para construir seu mundo a dois (corte de fazenda alegre, sabonete Dorly, vidro de
perfume Royal Briard) e é também do barracão que virá a outra mulher que porá
A fim a sua aventura, impondo-lhe seu real valor de troca.
A mulher é entendida desse modo, como mercadoria e, sendo assim,
L conforma-se à situação tantas vezes flagrada nas relações mantidas no interior dos
seringais. De acordo com a pesquisa feita por Wolff (1999):
L “‘Ter’ uma mulher em um seringal daquele tempo era como ter objeto de
luxo, que se podia comprar por quinhentos quilos de borracha,[...] e que era
necessário manter com trabalho redobrado, pois senão, como conta o Sr.
A Pedro Ribeiro, o patrão tirava e dava para outro:

Mulher era pouca, não era assim não. Quando um cara casava com uma mu-
lher e não dava conta, o patrão tomava e dava pra um que trabalhava.”(WOL-
FF, 1999, p. 71)

O espaço de fora da colocação aparece, então, como aquele que é



ameaçador da integridade da relação da protagonista com Demerval.
1011
Apesar de parecer, pois a narrativa conta uma mulher de sessenta e
• cinco anos estuprada violentamente pelo genro, na trama de Florentina Esteves
nenhum dos personagens é puramente ingênuo. Todos são culpados e vítimas
das condições impostas pelo rigor da luta pela sobrevivência em meio à mata. Na
verdade, o grande inimigo a ser vencido é a solidão da selva que pesa sobre eles.
É o constante processo de troca que possibilitará a continuidade da existências de
2 todos, tanto da protagonista quanto de Demerval. Ambos são ativos nesse processo.
Demerval a usa para satisfazer seus impulsos físicos (comer, dormir,
0 vestir-se, fazer sexo) e ela, por sua vez, o usa para preencher sua existência
(ocupar o tempo e sentir-se desejada). Nesse jogo de subsistência as vidas vão se
1 entrelaçando enquanto o tempo passa lentamente ao sabor dos acontecimentos.
A partir do momento em que há o diálogo entre o dentro (Demerval) e o
fora da colocação (netos), as fronteiras são transpostas e a fantasia da personagem
8
principal começa a se desfazer, processo que se acelera à medida que os contatos
entre a colocação e o barracão se intensificam. Aí o narrador cede a voz a Demerval:
“– Milha velha, o forró de sábado estava muito bom. Malhamos judas, muita comida,
muita bebida, e mulher! As filhas do compadre Damião tão crescidas que mal
reconheci a Damiana. Diz – que está com quatorze anos, mas parece mais. Mulher
feita! Semana que vem faz quinze anos. Vai ter forró. Volto lá.” (ESTEVES, 1998,
p. 4).
O narrador é onisciente e dá a impressão que caminha pela consciência
da personagem. Na verdade, ele narra em terceira pessoa, mas é como se a mulher
narrasse a própria vida em terceira pessoa. Isso porque o narrador ou a narradora
conhece os pensamentos dela, seus devaneios entre as vozes que aparecem. A
linguagem usada pela autora aproxima muito narrador e protagonista. Em uma
entrevista dada à revista Outras palavras, Florentina Esteves comenta a respeito
do fato de conseguir transpor para sua literatura o ritmo e a maneira de falar
do seringueiro: “De ouvir e conversar com as pessoas que tiveram essa vivência.
Nós tivemos por exemplo, uma empregada no hotel, chamada Jovita, que veio do
J seringal direto pra cá. E eu sempre fui muito fantasiosa” (SILVEIRA & NEVES,
2000, p. 22).
A No décimo parágrafo, esse entrelaçamento entre narrador e personagem
sobe ao nível do discurso – “Porcaria!” (ESTEVES, 1998, p. 4). Quem é que diz
L porcaria? É o narrador ou a personagem? Percebe-se assim, que narrador e
protagonista estão envolvidos de tal forma que chegam a se confundir devido ao

uso que a autora faz do indireto livre.
L
O discurso indireto livre é aquele que permite que os acontecimentos sejam
narrados em simultâneo, estando as falas das personagens direta e integralmente
A inseridas dentro do discurso do narrador. É uma técnica narrativa de grande efeito
estilístico. Por meio desse tipo de discurso o narrador pode reproduzir não apenas
as falas, mas os pensamentos das personagens. É isso que ocorre no fragmento
citado acima.
A relação entre narrador e protagonista também parece meio esquizofrênica,
• tal como a percepção do tempo pelas pessoas que vivem na colocação. Os limites
1012 entre narrador e personagem não são nítidos. Voltando ao contexto acreano, pode-
• se lembrar que a situação social a envolver o Acre da época em que se passa o
conto era de confusão causada por um ato de violência. Os seringueiros eram
arrebanhados no sertão brasileiro e trazidos para cá iludidos pela promessa de
enriquecimento rápido que seria produzido pela extração da borracha. Arrancados
de suas terras e ávidos por enriquecimento rápido os peões chegavam aos seringais
2 e eram submetidos às mais terríveis privações para a partir daí construírem uma
vida de sonhos que jamais se realizaria e, na maioria das vezes, culminava com a
morte ou a escravidão.
0
O próprio processo de extração da borracha é representado ficcionalmente
pelo estupro da personagem principal. Caso se faça uma analogia, observa-se que a
1 seringa é extraída da seringueira através de cortes que se fazem no caule da árvore
gomífera. Desses corte escorre o leite da seringa que será transformado em látex e
8 por fim dará origem a tantos produtos consumidos no mundo inteiro por pessoas
que não imaginam nem de longe a origem dos mesmos. Dessa maneira, o ato de
violência sofrido pela mulher de sessenta e cinco anos reproduz simbolicamente a
violência da extração da borracha e a violência da extração das vidas na atividade
extrativa.
É com esse material humano que Florentina Esteves constrói seu elenco.
Suas personagens são silenciosas, marcadas pela ação e pelo olhar. Ela – “lavava”,
“cozinhava”, “cuidava da horta e das criações”, “continuava”, “parecia um relógio”,
“sentia falta do marido”, “gostava dos netos”, “sabia ler”, “não podia deixar a filha
sozinha”, “cuidava do genro”, “permanente ocupação”, “esmerava-se”. Demerval –
“exigia tanta atenção”, “deu de beber”, “dormia”. “A vida deles passara a resumir-
se, então, à rotina do trabalho e do sexo” (ESTEVES, 1998, p. 3).
As ações que caracterizam a mulher e o homem são típicas de narrativas
clássicas que contribuíram para a construção discursiva da Amazônia tal como a
de Leandro Tocantins em O rio comanda a vida: “Manhã, bem cedo, o operário da
selva, num intervalo do conte diário da seringa, a mulher, os filhos, vão semear
o feijão, o jerimum, a melancia, o milho, o melão, o gergelim, a couve, o cuentro,
J a cebolinha, a batata-doce, os quais dentro de poucos dias, surgem em vivazes
pontos, colorindo o claro arenoso das praias.” (TOCANTINS, 2014, p. 111).
A Ou ainda Wolff:
“... em um forno especial para a queima de lenha ou de cocos (cocão) para
L produzir fumaça e calor, o seringueiro ia a um só tempo girando um pau
e derramando sobre ele o leite, que ao contato com a fumaça e o calor se
L solidificava, formando uma “bola”, ou “péla” de borracha escura. Se o serin-
gueiro tivesse mulher e/ ou filhos(as), uma parte desse trabalho poderia ser
realizado por eles, sobretudo a coleta de cocos ou de corte de cavacos para
A produzir a fumaça, a colheita do leite e a defumação, ficando o trabalho do
corte preferencialmente para o homem ou algum filho já crescido” (WOLFF,
1999, p.65).

No interior da colocação as ações são intensas afinal, a produção da


borracha exige ação constante. Não há tempo pra muita conversa. A linguagem que
• substitui as palavras é a do olhar. No texto encontram-se expressões como: “olhar
1013 crítico”, “olhou-se”, “olhar de animal”, “olhos vivos”, “olhar de espreitar caça”,
“olha para ela fixamente”, “olhar bovino”. Essas expressões deixam uma ideia de

animalização dos personagens, principalmente porque quem mais é citado pelo
olhar é Demerval, homem que age por instinto.
Não há o que conversar naquele “oco de mundo”. As relações das
personagens que habitam o seringal são definidas pelo trabalho e pela quantidade
2 e intensidade das relações sexuais. No mundo da colocação a palavra é substituída
pela “permanente ocupação”: “A filha sempre doente, não era de muita conversa.

Também, conversar o quê, naquele oco de mundo onde nada acontecia e as únicas
0 novidades que sabiam eram contadas pelos netos ou pelos raros vizinhos? ... Ela, a
filha e o genro já não tinham muito o que se dizer” (ESTEVES, 1998, p. 1).
1 O silêncio de palavras que caracteriza as personagens se estende ao
pensamento. Na narrativa “Espelho meu” há também um silêncio de pensamentos.
8 Demerval não pensa. Toda possibilidade de que isso venha a acontecer é inibida
pela cachaça. A cada vez que lhe sobra tempo para pensar ele embebeda-se e
muda, inclusive a fisionomia: “Quando bebia, um olhar de animal se estampava em
sua fisionomia... Mas por último era aquela expressão de animal. Animal no cio...
Olhar de espreitar caça” (ESTEVES, 1998, p. 3).
Por uma vez na narrativa a protagonista é flagrada pensando: “Depois ele
dormiu, saciado, ela ficou pensando, pensando, sem conseguir dormir... Ela, nem
queria pensar, nem saber o dia de amanha” (ESTEVES, 1998, p. 3).
Novamente a questão do tempo é retomada. A linearidade de passado,
presente e futuro é racional, precisa de pensamento para se construir. Quando os
personagens se recusam a pensar eles abrem mão da vida como um fato temporal.
O ato de pensar prescinde de memória e projeção. Como as personagens se negam
a resgatar o passado, isso, isso lhes impossibilita de projetar o futuro.
O resultado desse processo é o sentimento de cópia e inadequação – o
mal-estar, o caráter postiço, a aparência postiça de que fala Roberto Schwartz,
professor e crítico literário com importante produção no panorama brasileiro. Esse
J caráter pode ser observado no conto de Florentina Esteves. Nele, a protagonista se
emboneca para poder se reconhecer como sujeito. Depois do estupro ela traça uma
A nova linha de vida apagando o passado. Isso acontece até o ponto de esquecer que
já é uma mulher de sessenta e cinco anos.
L A partir do momento em que a protagonista se coloca diante do espelho,
dá-se o mal-estar. É interessante que o signo do espelho aparece por quatro vezes
na narrativa e de forma estratégica. O título do conto é “Espelho meu”, expressão
L
que remete à história de Branca de Neve com sua típica pergunta: “Espelho,
espelho meu, há neste mundo mulher mais bela do que eu?” A partir do estupro é
A exatamente assim que a personagem se define, afinal de contas, na colocação não
existe outra mulher, imagine-se “mais bonita”.
Depois, a protagonista volta ao espelho para se embonecar e, portanto,
sustentar sua fantasia. Por fim, volta a ele para confirmar o desabar de seu mundo
e perceber-se uma velha “encurvada, curvada”. Desse modo, o espelho funciona
• como um ponto de referência para a protagonista. É como um ponto de aferição da
1014 temperatura de seu mundo ilusório.
• Chevalier e Gheerbrant dizem ser o espelho, enquanto superfície que
reflete, o suporte de um simbolismo extremamente rico dentro da ordem do
conhecimento (2000, p.393). Assim, ele reflete a verdade, o conteúdo do coração,
da consciência, da inteligência e da palavra celeste. Também é utilizado para a
adivinhação e para interrogar os espíritos. Outra acepção do espelho, de acordo
2 com esses autores, é a utilização taoista do espelho octogonal que remete a outras
possibilidades de reflexo: “O homem se utiliza do bronze como espelho. O homem se
utiliza da antiguidade como espelho. O homem se utiliza do homem como espelho”
0
(2000, p. 395).

No final da história de Florentina aparece outro tipo de espelho que
1 coloca com maior precisão o estado real da personagem centro do conto: Damiana,
a moça nova com apenas quinze anos de idade. Aqui se confirma o que disseram
8 Chevalier e Gheerbrant. A mulher se utiliza de outra mulher como espelho. No
instante em que se posta diante da jovem, a impressão de velhice é imediata, ela
se sente boiando, pesada. Este espelho é assustador porque afere valor de troca.
Enquanto a mulher se protegia em seu espaço da colocação, seu valor de uso foi
preservado, mas, quando este espaço foi invadido pelos de fora, pelos netos, pelos
do barracão, aconteceu o indesejável. Seu valor de uso, até então aceitável, se
submeteu à comparação e ao consequente aparecimento das diferenças.
Sentimento análogo deve ter tomado a Amazônia quando ela foi posta
frente ao espelho asiático. Os jovens seringais planejados da Ásia com produção
garantida pela facilidade da colheita encantaram os olhos do mundo e fizeram
com que a região se contemplasse como velha e improdutiva. Um olhar puramente
econômico que ignorou todo um complexo de vida e cultura aqui gestado em prol
de um interesse que não considera o humano e suas idiossincrasias.
A inocência da protagonista (sou desejada) somada aos instrumentos
buscados no barracão resultam numa fantasia insustentável. O espelho é o signo
usado textualmente e simbolicamente para demonstrar esta insustentabilidade. A
J partir daí a protagonista não deve seguir ao quarto e sim à cozinha, o lugar que lhe
cabe dali para frente.
A A substituição dos espaços retoma a distribuição de funções observadas
por Wolff e Pizarro nos seringais da Amazônia. A mulher tem seu espaço delimitado
L pela cozinha, delimitado ao trabalho de cuidar da casa e do “marido?”. A sala e
o quarto são dados à outra, numa relação cruel onde o seringueiro é vítima do
sistema extrativo e a mulher é vítima do sistema extrativo e do seringueiro.
L
Demerval é homem que age por instinto. Sua preocupação é satisfazer
os ímpetos da sobrevivência. Essa é uma visão bem estereotipada do trabalhador
A da seringa. Uma análise do contexto em que viviam esses homens poderia nos
ajudar a perceber que o ponto de vista da autora Florentina Esteves é de quem se
situa de fora do seringal e constrói um seringueiro com a pena. No entanto, em
outros contos da coletânea Direito e avesso, a autora traz traços do seringueiro que
desfariam a ideia passada na caracterização desse personagem.

Florentina Esteves direciona seu horizonte para quem mora dentro dos
1015 seringais e das cidades ribeirinhas da Amazônia. Ela faz a construção discursiva de
• uma realidade ficcional que convida não só a vivenciar, mas também a problematizar
um drama específico de um espaço tipicamente amazônico. É o drama de uma
mulher que, a partir de um ato de violência, precisou criar alternativas para
continuar a existir. Esse foi o drama do Acre, da Amazônia, do Brasil, da América
Latina, territórios que tiveram que se recriar a partir de atos de violência jamais
2 vistos.
Talvez esse seja o drama da autora que também saiu de sua terra para
0 estudar fora e, de fora, construir uma escritura que, de alguma maneira, criasse
expectativas de continuidade na compreensão dessas vivências. A proposta da

escritora se faz no sentido de uma escritura que, de alguma maneira, reviva a
1 história das gentes acreanas por meio do auto-questionamento de seu próprio fazer
literário.
8 As narrativas do chamado ciclo da borracha, na maioria da vezes, traz
a temática dicotômica entre explorador/explorado, seringalista/seringueiro ou
seringueiro/selva. Florentina prefere desviar-se dessa vereda e problematizar um
dos muitos outros dramas que se passaram e passam no interior dos seringais da
Amazônia. Fazendo assim, sua escrita assume uma postura distinta no cenário
acreano tanto por meio do viés estilístico na utilização de uma técnica discursiva
mais elaborada com o uso do indireto livre, dentre outros recursos, quanto com
o desvio do olhar panorâmico para um olhar mais problematizador das diferentes
vivências que habitam a Amazônia acreana.
Isso pode ser percebido, por exemplo, na escolha da protagonista do
conto: uma mulher de sessenta e cinco anos. O leitor não conhece sua origem,
não sabe se ela era indígena, negra, branca, cearense, estrangeira. O conto não dá
essas pistas. São questões silenciadas no decorrer da narrativa. Talvez pelo caráter
simbólico que ela assume, por retratar todas as mulheres amazônicas que, de um
modo ou de outro, tem a urgência de recriar seus mundos a partir de situações
nem sempre esperadas ou planejadas.
Tanto o fato de termos uma protagonista mulher chama a atenção quanto
J o fato de termos uma mulher de terceira idade. Mas, para além disso, o fato de
termos uma senhora com essa caracterização vivendo e reagindo a um estupro,
criando alternativas de sobrevivência. Isso surge interessante na obra da autora.
A Ainda que, essa personagem, como muitas outras de Florentina Esteves, não
consiga transpor suas limitações e acabe desencantada dentro de sua luta para
L sobreviver. “Espelho meu” é, portanto, construção discursiva de uma realidade
ficcional que nos convida a vivenciar um drama específico e geral ao mesmo tempo.
L Específico porque restrito a um espaço tipicamente amazônico e geral porque fala a
respeito de algo que é próprio de toda a humanidade – o desejo de continuar a ser.

A Referências
BACHELARD, G. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Danesi.2 ed. São Paulo:

Martins Fontes, 2008. 243 p.
CÂNDIDO, A. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 6 ed. Belo Hori-
zonte: Itatiaia, 1981.
• CHEVALIER, J., GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos costumes,
gestos, formas, figuras, cores, números. Trad. Vera da Costa e Silva. 15.ed. Rio de Janeiro:
1016
José Olympio, 2000. 998 p.
• ESTEVES, F. Direito e avesso. Rio de Janeiro: Oficina do Livro, 1998. 93 p.
GIL, Gilberto. Oco do mundo. Sampa. Disponível em: htps://www.youtube.com/watch
?v=Z3RNv71MhBk. Acesso em: 09 de setembro de 2016.
PIZARRO, Ana. Amazônia: as vozes do rio. Tradução Rômulo Monte Alto. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2012.
2 SILVEIRA, V. V. & NEVES, M. V. Flor das letras. Revista Outras palavras. Rio Branco, Ano
I, Número 6. Pag. 22 – 24. Julho/2000.
0 TOCANTINS, Leandro. O rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia. Rio de
Janeiro: Editora- Biblioteca do Exército, 1973.
1 WOLFF, Cristina Scheibe. Mulheres da Floresta: uma história, Alto Juruá, Acre (1890-
1945). São Paulo: Hucitec, 1999.
8

J

A

L A RECEPÇÃO DE QUARTO DE DESPEJO NA ALEMANHA,
ASPECTOS DE UM DESLOCAMENTO DE INTERESSE A PARTIR DA
L ANÁLISE DE PARATEXTOS

A Raquel Alves dos Santos Nascimento (USP)
RESUMO: Esse trabalho visa a examinar o potencial da recepção, na Alemanha,
do livro Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, país que segundo
(PERPÉTUA, 2014) foi o que mais reeditou a tradução do livro, alcançando
7 edições entre os anos de 1962 e 1993. No Brasil ele foi lançado em 1960 e
• alcançou a marca de 10 mil exemplares na primeira edição. Carolina Maria de
1017 Jesus, foi considerada um fenômeno literário da época. Buscando saber o que
interessou os leitores alemães na obra e na autora, a pesquisa utilizou como
• corpus resenhas dejornais alemães publicadas sobre a obra e a autora. A moldura
teórica para a presente pesquisafundamenta-se nos Estudos Descritivos da
Tradução e no trabalho com o corpus que tem por base a Linguística de Corpus.
Esta última viabilizou a identificação de palavras- chave nos textos estudados, que
permitiram o mapeamento de possíveis eixos temáticos, a partir dos quais aponta-
2 se aqui algumas condicionantes da recepção da obra, tanto em uma perspectiva
sincrônica ao examinar cada texto em particular, quanto diacrônica ao estudar a
0 evolução de conceitos no tempo.
Palavras-chave: Quarto de Despejo, Carolina Maria de Jesus, Estudos Descritivos da
1 Tradução, Linguística de Corpus.
Introdução
8 Traduzido para o alemão por Johannes Gerold, o livro teve sete edições
no período de 1962 a 1993. Como entender o sucesso do primeiro livro publicado
de Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo, na Alemanha, um país tão distante
culturalmente e geograficamente do Brasil?A primeira tradução foi realizada em um
momento em que outros diários de cunho político-social estavam sendo traduzidos,
como os diários de Erwin Behrens (Diário de Moscou), de Thilo Koch (Diário de
Washington) e de Josef Müller-Marein (Diário do Oeste), revelando certa tendência
da época por literaturas voltadas para esse viés.  
O momento histórico e editorial da Alemanha também foram fatores
relevantes para o entendimento da recepção da obra. Em 1960 a Alemanha ainda
estava sob a ressonância dos efeitos do pós-guerra. Após perder a guerra em
1945, o país passava por um momento de profunda depressão, sob os domínios do
nacional socialismo e estava dividida em Alemanha oriental e ocidental. Isso,fez com
que na literatura, se pudesseperceber uma politização: uma geração de escritores
politizados que produziam uma obra compromissada com a política. Houve um
crescimento do interesse por uma literatura mais documental, de transcrição de
J relatos de vítimas dos campos de concentração. A luta de classes, a guerra no
Vietnã, os protestos estudantis são tematizados. Há uma busca por uma nova
identidade e a necessidade de tratar problemas sociais de forma literária. 1
A
É nesse contexto que a tradução Quarto de Despejo de Carolina Maria de
L Jesus surge na Alemanha atendendo à demanda do polissistema literário alemão
por mais literaturas de relato e desta vez escrita em primeira pessoa.

Além do momento histórico, há outras condicionantes que envolvem a
L
publicação da obra no país que o recebe, tais como cultura, textos sobre o livro
e no livro – os quais o teórico Genette (1987) chama de epitextos e peritextos
A respectivamente e ambos de paratextos -, agentes literários e público-alvo,por
exemplo.
O objetivo deste trabalho é apresentar alguns traços da recepção de
Carolina Maria de Jesus e sua obra na Alemanha a partir de resenhas de jornais
da época, escritas depois da publicação da tradução do livro.

Para tanto, foi preciso antes olhar para a recepção dela no país de origem, o
1018 Brasil:como ela foi apresentada e representada naquele país e que direcionamentos
• de leituras foram exercidos sobre ela. Desse modo não há como não citar Audálio
Dantas, jornalista que publica e escreve o prefácio da obra. Se pensarmos nos
processos de reescritura e manipulação propostos por Lefevere. Leia-se:
(re)escrita é manipulação, realizada a serviço do poder, e em seu aspecto
positivo pode ajudar no desenvolvimento de uma literatura e de uma socie-
dade. As reescritas podem introduzir novos conceitos, novos gêneros, novos
2 recursos, e a história da tradução é também a história da inovação literária,
do poder formador de uma cultura sobre outra. Mas a reescrita também
0 pode reprimir a inovação, distorcer e controlar, e em uma época de crescen-
te manipulação de todos os tipos, o estudo dos processos de manipulação
da literatura, exemplificado pela tradução, pode nos ajudar a adquirir maior
1 consciência a respeito do mundo em que vivemos. (Léfevère 1992: vii)

8 Podemos dizer que o prefácio da obra feito por Audálio Dantas teve a
função de direcionar os leitores da obra para o viés mas mais sociológica e, talvez,
menos literário. Para Perpétua (2014):
Os textos introdutórios – o da orelha, assinado por Paulo Dantas, e o da
apresentação, por Audálio Dantas – ampliam a antevisão dada na intitu-
lação ao conceder, por meio de um discurso persuasivo, uma direção de
apreensão do sentido do diário para a área sociológica.

E ainda,

1  https://www.was-war-wann.de/1900/1960/literatur-der-60er.html
O objetivo de Audálio Dantas, ao pretender (em seu prefácio)2 a presentifi-
cação de Carolina, é o de enfatizar o valor sociológico do texto para que seja
lido como testemunho real da miséria, escrito por quem a viveu, pessoa da
classe mais desprotegida da sociedade.

Nuances desse direcionamento são percebidas também na Alemanha


onde, além de sofrer adequações para o público alemão, constatamos a exaltação
à leitura sociológica da obra. O pósfácio do tradutor é um exemplo claro disso
J quando diz: “As anotações de Carolina Maria de Jesus devem ser lidas menos como
uma obra literária, mas contar muito mais como um documento humano único e
A autêntico...”
Assim como o prefácio, reescrituras como os paratextos – textos que
L conforme Genette (1987) falam sobre o livro - também podem servir para direcionar
a recepção de determinada obra e formar/manipular opiniões sobre ela. Também a

tradução da obra já pode imprimir traços de manipulação no sentido de adequar o
L produto, o livro traduzido, à sua cultura-alvo e às intenções do meio que a publica,
suas tendências e crenças.
A Ao pensar em adequações, pensamos também em um conjunto de regras
de um polissistema literário que segundo Even-Zohar é específico em cada país
ou cultura. Para o teórico o sistema literário é ligado a uma rede de sistemas que
regem uma sociedade como culturais, econômicos entre outros, prefere chamar de
polissistema
• [...] um sistema múltiplo, um sistema de vários sistemas com intersecções
1019 e superposições mútuas, que usa diferentes opções simultâneas, mas que
funciona como um todo estruturado, cujos membros são interdependentes
• (EVEN-ZOHAR 1999 a: 6)

Dentro deste sistema heterogêneo, há espaço para as literaturas canônicas


localizadas ao centro do sistema e para as não canônicas, situadas na periferia.
Sobre elas, Even-Zohar faz o seguinte esclarecimento e distinção:
2 por ‘canonizadas’ entendemos aquelas normas e obras literárias (isto é, tan-
to modelos como textos) que nos círculos dominantes de uma cultura se
aceitam como legítimas e cujos produtos mais sobressalentes são preser-
0 vados pela comunidade para que formem parte da herança histórica desta.
‘Não canonizadas’ quer dizer, pelo contrário, aquelas normas e textos que
1 estes círculos recusam como ilegítimas e cujos produtos, em larga escala a
sociedade esquece com frequência, (a não ser que seu status mude)(EVEN-
-ZOHAR, 1999a: 10)
8
Ao contrário das obras canonizadas, que estão no centro do sistema,
podemos entender como não canonizadas a literatura regionalista, panfletária,
infantil e traduzida, as quais se localizam, via de regra, na periferia do polissistema.
As tensões entre periferia e centro é que permitem que obras canonizadas saiam
do centro e por vezes, também, que obras da periferia se desloquem para lá. Isso
explicaria o fato de a literatura traduzida vir a fazer parte, de modo representativo,
no polissistema literário de outra cultura, quando existem lacunas para que isso
aconteça. Nas palavras de Even-Zohar:

2  Acréscimo nosso
(...) quando um polissistema ainda não está cristalizado, a saber, quando
uma literatura é ‘jovem’ este processo de construção; quando uma literatura
é ‘periférica’ (dentro de um amplo grupo de literaturas inter-relacionadas),
ou ‘fraca’, ou ambas as coisas; e quando existem pontos de inflexão, crises
ou vazios literários em uma literatura (EVEN-ZOHAR 1999b:84).

A partir disso, Quarto de Despejo teria se localizado, então, na periferia


do polissistema literário alemão. No entanto, voltamos aqui ao cerne da pergunta
J do início: o que poderia ter interessado tanto aos alemães que os fizessem ter
necessidade de inserir essa obra em seu sistema literário?
A Podemos dizer, em primeira análise, que o sucesso nacional e internacional
da obra somado ao interesse da já extinta editora Christian Wegner, detentora

dos direitos de tradução de Quarto de Despejo, na tradução de diários de cunho
L
político-social, contribuiu bastante para a inserção de Carolina no sistema literário
alemão. No entanto, não seriam talvez fatores suficientes para ocasionar as outras
L sete publicações existentes.
É nesse contexto de insuficiência de informações que buscamos o aporte
A teórico dos Estudos Descritivos da Tradução (EDTs), na tentativa deresponder essa
pergunta e compreender melhor o processo tradutório no contexto da recepção,
uma vez que os EDTs colocam o foco, até então depositado no processo tradutório e
no texto original, no texto traduzido, em seu público alvo e na recepção, marcando,
assim,uma mudança na maneira de estudar e compreender a tradução de literatura
• na década de 1970.
1020 Somado a isso buscamos também na teoria dos paratextos de Gerard
• Genette (1982) uma forma de analisar essa recepção a partir de textos, mais
precisamente, de resenhas de jornal escritas sobre a obra na época. Genette define
o lugar do paratexto como sendo “o lugar privilegiado de uma pragmática e de uma
estratégia, de uma ação sobre o público” (p.8) e, ainda, “aquilo que por meio de um
texto se torna livro e se propõe como tal a seus leitores, e de maneira mais geral
ao público” (p. 9-10). Em sua teoria classifica as resenhas como epitextos, um dos
2
desdobramento dos paratextos, caracterizado como o discurso do mundo sobre o
livro e também:
0 Todas as mensagens que se situam, pelo menos na origem, na parte externa
do livro: em geral num suporte midiático (conversas, entrevistas) ou sob a
1 forma de uma comunicação privada (correspondências, diários íntimos e
outros) (GENETTE 2009:12).

8 As resenhas as de jornal sobre Quarto de Despejo e sua autora Carolina
Maria de Jesus foram escritas entre 1962 e 1996. Oito desses artigos foram
conseguidos no Instituto para Pesquisa Jornalística de Dortmund (Institut für
Zeitungsforschung - IZF) e os demais foram fornecidos pelo professor Klaus Küpper,
autor da Bibliographie der brasilianischen Literatur. Prosa, Lyrik, Essay und Drama
in deutscher Übersetzung (Bibliografia da literatura brasileira. Prosa, Lírica, Ensaios
e Drama em tradução alemã. Eles foram publicados em jornais de média e grande
veiculação na Alemanha. Os exemplos apresentados a seguir são de resenhas
publicadas em 1962. A saber: “Poetisa do lixo – diário de um bairro de miséria
brasileiro”, “A cinderela negra – sobre o livro de cabeceira de uma negra brasileira”.
As resenhas
Iniciando a observação pelos títulos de cada uma das resenhas já
podemos obter as primeiras informações sobre o conteúdo do texto, já que como
vimos anteriormente, um título entre outras funções serviria para “identificar o
conteúdo e valorizá-lo” (GENETTE, 2009:73). São eles:
• Poetisa do lixo – diário de um bairro de miséria brasileiro

J • Augias em São Paulo – Diário de uma negra da favela torna-se bests-


teller

A • A mãe coragem preta do Canindé – sobre os diários de Maria Carolina


de Jesus
L • A cinderela negra – sobre o livro de cabeceira de uma negra brasi-
leira
L • Crônicas de uma negra brasileira
• Poetisa da Pobreza – As anotações de uma negra brasileira
A • Nas Favelas
• Favelas, Sambas, Candomblé – dois diários do Brasil
• Carolina Maria de Jesus
• 50 000 embarracos

• Relato da miséria
1021
• Passando rapidamente os olhos por todos os títulos podemos perceber a
referência à mitologia grega em “Augias”, a identificação de Carolina como poetisa,
a associação de Carolina a personagens importantes da literatura alemã e, por
fim, o direcionamento para as questões sociais brasileiras apresentadas ou não na
obra. O próximo passo será observarmos mais demoradamente trechos de duas das
resenhas citadas.
2
Resenha 1
0 Os primeiros trechos foram retirados da primeira resenha publicada
depois do lançamento da obra em 1962 em um jornal conservador alemão
RheinischerMerkur:
1
Bonn, 20.04.1962 - Die “DichterindesKehrichts” – Tagebuchblätteraus
den brasilianischen Elendsvierteln (Poetisa do lixo – diário de um bairro de miséria
8 brasileiro), Guillermo Baumfeld;
Há 46 anos nasceu Carolina em Sacramento, frequentou a escola por dois
anos e aos nove começou a trabalhar como empregada doméstica. Quando
tinha dezoito anos, casou-se e com vinte já era moradora da favela do Ca-
nindé em São Paulo. Sua existência resumiu-se em manter a vida de seu
marido doente e de seus três filhos e, durante vinte e seis anos, levantar ao
alvorecer.
...

Mas o livro não é somente um documento, também se destacam nele, em


meio a toda realidade cruel, passagens de lírica suave e intensidade dos
sentimentos humanos universais. Ela mesma, que se denomina poetisa do
lixo diz: “A voz dos pobres não têm poesia”.

...

Seria Carolina de Jesus uma poetisa ou faria ela parte das descobertas
que, como cometa, aparecem, escrevem um livro impressionante e depois
desaparecem na escuridão? Há cem anos Harriet Beecher Stowe incitou à
J libertação dos escravos com ”A cabana do pai Tomás“ e „acordou“ o mundo
para refletir. Hoje, seus outros livros são esquecidos mas essa obra a tornou
imortal.
A
...

L Carolina é uma poetisa, além de ser também alguém que denuncia.
Utilizando sempre o título como ponto de partida, em – “Poetisa do lixo–
L diário de um bairro de miséria brasileiro” –, já podemos tecer algumas considerações.
Se levarmos em conta as palavras “poetisa” e “lixo”, podemos inferir a mescla de
A noções vindas dos eixos temáticos que definimos inicialmente para esta pesquisa:
poetisa (eixo literário) e lixo (eixo político-social). O subtítulo define, então, o tipo
de texto e sua origem.
No primeiro trecho destacado, podemos perceber que o autor se ocupa
em caracterizar Carolina primeiramente como alguém que “deu voz aos pobres, até
• então mudos”, para, em seguida, caracterizar a autora como uma mulher sofrida e
1022 de muita força, que luta para dar a seu “marido doente e a seus três filhos” o parco
sustento.

Intrigante nessa afirmação, contudo, é o fato de ela estar equivocada.
Não é possível reconstruir, na fortuna crítica sobre Carolina, esse mesmo perfil
de mulher: a autora nunca foi casada e muito menos teve um marido doente.
Por ser a primeira resenha escrita sobre a autora, não é possível saber de onde
essa informação foi tirada. No entanto, as conjecturas nos levam a pensar que se
2 trata aqui de uma tentativa, embora baseada em dados equivocados, de moldar e
caracterizar uma Carolina que os alemães se interessariam em ler.
0 Outro ponto interessante é que o jornal em que foi publicada a resenha
é de vertente conservadora da época e hoje é um suplemento extra do Die Zeit,
1 jornal de grande circulação na Alemanha. Nesse caso, parece ser importante que
Carolina, tendo filhos, tenha também um marido. E como esse marido não aparece
8 na narrativa, é possível que o articulista tenha inferido o fato de ele ser doente.
Analisando a partir da perspectiva alemã, o caráter exótico da vida de
Carolina, bem como o fato de o livro ser um diário (um registro autobiográfico,
portanto), do qual ela é a autora, e se considerarmos, ainda o fato de que ela
mesma pode ser também vista como um personagem do livro, é possível que o
resenhista tenha se sentido autorizado a recriar sobre os fatos da vida da autora.
O segundo trecho faz referência ao caráter mais literário da obra: “Mas
o livro não é somente um documento, ao contrário, em meio a toda a realidade
cruel, destacam-se passagens de lírica suave e da força de sentimentos humanos
universais”. A afirmação leva Carolina de um extremo a outro: do relato documental
e jornalístico da autora-personagem à dimensão da lírica, da prosa poética e da
literatura. Nesse sentido, o trecho em questão confirma os dois eixos em torno dos
quais gira o potencial de recepção do livro e busca compensar o caráter documental
da obra com a alusão à sua manifesta literariedade.
Resenha 2
Publicada apenas oito meses após à primeira num jornal de maior
circulação Frankfurter Allgemeiner Zeitung (FAZ), esta resenha já demonstra um
J pouco mais de aprofundamento no estudo dos dados sobre o livro e a autora. Os
trechos selecionados mesclam as dimensões pessoais, literárias, políticas e sociais
A de ambos.
04.08.1962,Frankfurter Allgemeiner Zeitung - FAZ, Das Schwarze
L Aschenputtel – Zudem Kopfkissenbucheiner brasilianischen Negerin (A cinderela
negra – sobre o livro de cabeceira deuma negra brasileira), HeleneHenze
L (...) as decepções, quando ela encontra seu campo já ceifado, quando o „Rea-
der´sDigest“ devolve seus manuscritos; sua oração sob o céu da manhã; seu
amor pelas flores e estrelas; suas alterações de humor; seus sonhos – esses
A cadernos são um verdadeiro diário, seu consolo, seu confidente, que a aju-
dam a se salvar como pessoa em um meio dominado pelo instinto.

....

Ela é uma leitora receptora, que emociona pelo anseio ingênuo por ”educa-
• ção formal“. Confiante, ela enfeita sua linguagem popular sóbria, direta, às
vezes maravilhosamente figurativa com palavras que leu em algum lugar,
1023 as quais ela utiliza com uma casualidade curiosa. Quando ela quer se ex-
• pressar de forma bela e poética, torna-se levemente rebuscada e os jargões
de jornal e do rádio a afetaram em cheio. Mesmo assim, também pelos tons
que não lhe são próprios, é possível perceber o sentimento sincero, a pessoa
genuína.

.....

2 Às vezes, Carolina espera à noite ”um certo alguém“ – ela tem um coração
quente e não faz disso um segredo. Ela acha muito feio, quando mulheres
casadas se preocupam com outros homens, elas deveriam se colocar no lugar
0 delas... “mas uma mulher livre, que não tem qualquer tipo de compromissos,
pode fazer como num jogo de cartas e passar de mão em mão“. Mas ela não
1 quer saber do pedido de casamento dele assim como não quer saber do dos
outros... ”pois sou uma mulher madura. E nenhum homem vai querer uma
mulher que não pode viver sem ler. E que se levanta para escrever. E que vai
8 para cama com lápis e papel debaixo do travesseiro”.

.....

Seus registros não se esgotam na pintura inconsolável do meio em que vive.


Essas cadernetas de rascunho usadas no comércio, em parte vazias e en-
contradas no lixo, nas quais ela escreve sem rasuras e nem sempre orto-
graficamente correto tudo o que faz diferença em sua existência, a repetição
monótona e, não obstante, tão comovente da labuta, da fome, dos cálculos;
repetição que nunca cessa; (...).

......
Mas quando a sensação em torno dela se dissipar, fracassarão as reformas
pelas quais ela deu o impulso inicial, como acontece sempre com a política
inconstante dos países sul-americanos? Com uma casa de alvenaria e co-
mida suficiente não se resolve nada para o povo da favela; se a própria Ca-
rolina se tornar deputada, ela conheceria a natureza cancerígena do proble-
ma, que ela, em sua ingenuidade, não consegue vislumbrar. Em resposta a
pergunta de um incompetente se ela teria escrito um livro para as socialites
comunistas, ela replicou: Não – realista. Mas, caso a militância comunista
J se apropriasse do material explosivo contido ali, poderia Carolina evitar que
essa militância incitasse as favelas à barricada, como já fizera em outros
países? O conto de fadas da Cinderela negra ainda não chegou ao final, onde
A todos vivem felizes para sempre.

Mais uma vez, lançando o olhar primeiramente para o título, já podemos
L
identificar as referências utilizadas para definir Carolina. Também de 1962, esta
resenha foi publicada em um jornal conservador-liberal3 de circulação nacional
L alemã e evoca, de início, o contexto dos contos de fadas e uma de suas personagens
mais conhecidas: a cinderela. A personagem é, no conto de fadas, filha de um homem
A rico que morre e a deixa com a madrasta e suas filhas. A jovem vira empregada
delas, anda sempre maltrapilha e seus amigos são os bichos e os elementos da
natureza. Também Carolina, sai maltrapilha a limpar as ruas da cidade e possui
como alegria a contemplação da natureza. Então, de uma hora para outra, como na
magia do conto dos irmãos Grimm, ela começa a frequentar os melhores lugares da
• cidade a convite de pessoas influentes da alta sociedade. Seu sapatinho? O diário
Quarto de Despejo. No entanto, para a Cinderela negra do Canindé não houve um
1024
final feliz. Os trechos selecionados abaixo demonstram, em cada subárea temática,
• um pouco das expectativas e do viés da articulista sobre o texto.
Ao falar sobre Carolina, a autora da resenha ressalta a crença da escritora
na força do poeta e de sua escrita. É como se ele, transcendendo a missão de escrever
o belo que suscita emoções humanas, tivesse também um forte compromisso social
para com o outro: “Os políticos sabem que eu sou uma poetisa. E que um poeta
2 enfrenta a morte, quando ele vê que seu povo é oprimido”. Para Carolina, portanto,
a escrita é dotada de uma força capaz de alterar o rumo das coisas e, desse modo,
0 deveria ser temida pelos políticos.
Outro fator explorado pela resenhista é o fato de a escrita de Carolina
1 servir como uma espécie de salvação. Um lugar onde ela desabafava suas decepções
e alegrias: “esses cadernos são um verdadeiro diário, seu consolo, seu confidente,
8 que a ajudam a se salvar como pessoa num meio dominado pelo instinto”. Mais
uma vez temos a menção ao entorno como um lugar dominado pelo instinto, pelo
primitivo.
Sobre a escrita de Carolina, a resenhista não faz aqui qualquer referência
a outros autores, embora tente identificar as influências de escolha das palavras e
estilos dessa escrita. Ela apresenta a autora como uma grande leitora com vontade
de aprender e também como alguém que ouvia rádio e dele tirava a motivação de

3  “AlterWein in neuenSchläuchern” [Vinho velho em garrafas novas] é assim que o FAZ explica
sua orientação política. http://www.deutschlandfunk.de/alter-wein-in-neuen-schlaeuchen.761.
de.html?dram:article_id=113978 (Último acesso: 18/11/2015)
sua escrita: “Confiante, ela enfeita sua linguagem popular sóbria, direta, às vezes
maravilhosamente figurativa com palavras que leu em algum lugar, as quais ela
utiliza com uma casualidade curiosa”. A citação deixa entrever um estranhamento,
por parte da resenhista, na forma de escrever de Carolina; quer dizer, usos que
fogem ao que seria de se esperar como padrão para uma pessoa como ela. Do trecho
“também pelos tons que não lhe são próprios, é possível perceber o sentimento
sincero, a pessoa genuína” podemos inferir que a resenhista, embora reconheça a
J singularidade da escrita de Carolina, resiste a lhe conceder o status de autora, de
escritora, limitando-se a considerá-la uma pessoa que escreve.
A Por fim, a resenhista não deixa de mencionar passagens nas quais
Carolina recebe um “certo alguém” e escreve: “ela tem um coração quente e não
L faz disso um segredo”. A escritora tem uma atitude independente, se permite o
prazer, não aceita casamento nem ajuda para criar os filhos. Ao mencionar essa

faceta da vida da autora, a articulista apresenta uma Carolina que, além de ter um
L profundo anseio por conhecimento e reconhecer a responsabilidade social de sua
escrita, também pode fazer jus aos padrões feministas. Ainda que isso não seja dito
A de forma expressa, Carolina é apresentada ao público como uma mulher firme,
que não confunde os papeis de esposa e escritora, nem está disposta a sacrificar o
segundo pelo primeiro. É bem possível que este seja um ponto de empatia entre ela
e uma faixa do público feminino, não somente alemão.
Ao falar sobre a obra, a resenhista assume que as condições humanas
• descritas no diário não são novidade, mas ressalta a diferença de intensidade de
1025 um relato em primeira pessoa; o relato de alguém que realmente vivenciou de
dentro tais condições: “quando a miséria grita com sua própria voz e a imagem

interior fica visível”. De conteúdo “comovente”, os registros são descritos de acordo
com a forma – “sem rasuras e nem sempre ortograficamente corretos” – e conteúdo:
“tudo o que faz diferença em sua existência, a repetição monótona (...) da labuta,
da fome, dos cálculos; repetição que nunca cessa”.

2 Essa descrição da forma de escrever e também do suporte para a escrita –


“cadernetas de rascunho usadas no comércio” – é um diferencial desta resenha que,
no mais, discorre sobre a obra a partir de sua importância política. Por um lado,
0 há um questionamento sobre o quanto ou por quanto tempo o conteúdo explosivo
da obra poderia movimentar e incitar reformas políticas; por outro, a propósito
1 da consciência de Carolina sobre a dimensão política de sua obra, menciona-se
a possibilidade de a obra ser facilmente utilizada pela campanha comunista para
8 “incitar as favelas à barricada”. Estes dois questionamentos nos levam a pensar
que um fio condutor que permeia também as demais resenhas analisadas neste
trabalho possa ser a questão de saber se a literatura teria mesmo o poder de alterar
um estado de coisas por si só. Carolina Maria de Jesus acredita que sim; acredita
que a palavra tem força, transcende. Ao que parece, sua escrita conseguiu pelo
menos incitar os resenhistas alemães a pensarem sobre o assunto.
Ao final, a articulista retoma a comparação feita no início entre Carolina
e Cinderela e afirma que a saga desta Cinderela (negra), àquela altura, ainda não
tinha chegado ao fim. Se a resenha tivesse uma continuação vinte anos depois,
a resenhista saberia que não houve um final feliz sob nenhum aspecto: as
circunstâncias reais da vida de Carolina reverteram o final do conto maravilhoso e
tampouco se alteraram as condições de (in)justiça social no Brasil.
Últimas Considerações
A breve observação dos títulos e a análise um pouco mais aprofundada
de alguns trechos de resenhas sobre Quarto de Despejo e sua autora Carolina
Maria de Jesus, pode nos forneceralguns primeiros indícios de recepção da obra na
Alemanha. Podemos dizerque a recepção de Quarto de despejo pode estar inserida
J prioritariamente no viés político-social da obra, atrelado ao caráter “exótico” de um
contexto político-social diferente contado em primeira pessoa.
A Os trechos selecionadosmostraram que, cada articulista dá a seu artigo
uma ênfase peculiar motivada tanto por suas próprias convicções, e sua leitura
L singular da obra, quanto pelo jornal para o qual escreve. Evidencia-se, nos poucos
casos analisados, a tentativa de atrair para a obra a atenção do leitor alemão, o que
L ganha corpo na caracterização da autora, de forma até mesmo arbitrária, e também
na caracterização da forma de escrita e aproximação de Carolina a personagens e
autores consagrados da literatura alemã, além de fazer jus ao momento histórico
A
da literatura dos anos 60 na Alemanha, que como vimos estava marcado por uma
politização. No entanto, em alguns trechos há a presença também de adjetivações e
caracterizações desnecessárias o que pode caracterizar a perplexidade de constatar
como uma negra favelada consegue sucesso no mundo da literatura.
• Sendo este artigo parte de uma pesquisa de mestrado que se encerra
deixando abertas portas para o surgimento de novas pesquisas, podemos dizer,
1026
em suma, que além de contribuir para a divulgação da literatura brasileira na
• Alemanha a tradução da obra teve também a função de desviar o interesse alemão
pelo Brasil do plano da exuberância da natureza para relatos relacionados a
condições de injustiça social.
Referências
EVEN-ZOHAR, Itamar (1979) – Polysistem Theory. In: Poetics Today, vol. 1: 1-2. 
2 __________Teoria de lospolissistemas”, disponível em: http://www.tau.ac.il/~itamarez/
works/papers/trabajos/EZ-teoria-polisistemas.pdf. Acesso: 01/07/2014
0 GENETTE, Gérard. Paratextos Editoriais. Tradução de Álvaro Faleiros. São Paulo. Edi-
tora Atelie. 2009.
1 KAFKA, F. Nachgelassene Schriften und Fragmente II. Kritische Ausgabe. Frankfurt
a. M.: Fischer Verlag. 1992.
8 LEFEVERE, Andre. Translating literature: the German tradition from Luther to
Rosenzweig. Amsterdam: Assen. 1977.
LEFEVERE, Andre. Translation, History and Culture. London, New York: Pinter Publ. 
1990.
MUNDAY, Jeremy. Introducing Translation Studies. Theories and Applications. Lon-
don: Routledge. 2001.
PEIXOTO, F. Brecht, vida e obra. São Paulo: Paz e Terra. 1991.
PERPÉTUA, Elzira. A Vida Escrita de Carolina Maria de Jesus. Belo Horizonte: Ed. Nan-
dyala. 2014.
SINCLAIR, John. Trust the Text – language, corpus and discourse. London & New York:
Routledge. 2004.
Literatur in den 60er Jahren (Literatura dos anos 60). Disponível em https://www.wa-
s-war-wann.de/1900/1960/literatur-der-60er.html. Acesso em 30/05/2018

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L MEUS DOCUMENTOS E FORMAS DE VOLTAR PARA CASA: O ATO
CONFESSIONAL E O TRAÇO AUTOBIOGRÁFICO EM ALEJANDRO
L ZAMBRA

A Raianny de Andrade Amaral (UFRJ)
RESUMO: O objetivo desse trabalho é discutir como o escritor chileno Alejandro
Zambra utiliza-se das formas da confissão e do traço autobiográfico, no conto
Meus Documentos (2015) e no romance As formas de voltar para casa (2014), para
construir a sua escrita autobiográfica. Diferenciaremos a confissão, intrínseca em
• Meus Documentos, em duas formas distintas: o ato religioso (FOUCAULT, 2006;
1028 2009; AGOSTINHO, 1980) e o ato confessional da escrita (DERRIDA, 1992; 1996),
com o intuito de analisar a passagem do narrador de cristão para não-crente. Em
• relação à noção de traço autobiográfico (DERRIDA, 1996;1992), no romance As
formas de voltar para casa, perceberemos a sua rasura na narrativa a partir do
narrador. No conto, o narrador só encontra a possibilidade de confissão a partir da
escrita, no romance a escrita também confessa uma parte de sua infância, agora
mais marcada pela ditadura e a impossibilidade de ação daqueles que a sofreram
2 como crianças.
Palavras-chave: Confissão. Traço autobiográfico. Alejandro Zambra.
0
Quando crescesse eu ia ser uma lembrança.
Alejandro Zambra.
1
Introdução
8 O escritor chileno Alejandro Zambra é conhecido por suas narrativas que
não limitam e nem excluem os gêneros literários, mas que caminham entre todos,

criando textos e formas distintas. Em uma entrevista a Folha de São Paulo, Zambra
foi indagado se teria um modo específico de escrita ou um plano de redação, e sua
resposta foi: “Fazer um plano para escrever uma redação é a própria negação da
literatura. Para mim, a literatura sempre esteve ligada a desordem. Começar pelo
final, reabilitar as digressões, enfrentar o desejo da simultaneidade e multiplicidade”
(ZAMBRA, 2017). Falar da narrativa de Zambra, portanto, é falar de simultaneidade,
multiplicidade e de desordem. Pensemos, agora, mais especificamente, em duas
narrativas de Zambra em que vamos nos concentrar nesse artigo: o conto Meus
documentos (2015) e o romance As formas de voltar para casa (2014). Vejamos a
última frase do conto: “Meu pai era um computador, minha mãe, uma máquina de
escrever. Eu era um caderno vazio e agora sou um livro” (ZAMBRA, 2015, p.14).
Essa frase já é um indício daquilo que queremos analisar na narrativa de Alejandro
Zambra: o teor autobiográfico. Mas como faremos isso? Para responder essa
pergunta, primeiramente, precisamos mergulhar nas duas narrativas e perceber o
que há de comum entre elas.
J Comecemos por Meus documentos (2015): O conto é dividido em quatorze
tópicos, não nomeados. No primeiro parágrafo nos é apresentado pelo narrador, que
A também não se nomeia, todo o plano de fundo que seguirá até o penúltimo tópico
da narrativa: Santiago, Chile, em plena ditadura de Pinochet, na década de 1980.
L No último tópico temos um pulo temporal: o narrador deixa de confessar o passado
para confessar o presente, o ano de 2013. A primeira etapa da narrativa, na década

de 1980, o narrador está matriculado em uma escola militar e cristã comandada
L por um Padre, chamado Limonta. Seu grande sonho é participar da banda militar
dos estudantes, um dos lugares mas disputados pelos alunos. Não sendo aceito
A por sua pouca idade, e se sentindo frustrado pela tentativa fracassada, o narrador
aceita o convite de seu amigo para ser coroinha de uma igreja da cidade, mesmo
sabendo não podia pois não tinha feito a Primeira Comunhão. Logo após esse
acontecimento, o mesmo amigo o chama para ir a sua casa, onde só estavam ele e
o irmão. Após o jantar, ao assistirem televisão no quarto os dois começaram a se
• “tatear, a (se) tocar inteiros, sem beijos”. (ZAMBRA, 2015, p.8).
1029 Esses dois acontecimentos são os que levam o narrador a procurar o
Padre Limonta, mas ao encontrá-lo não é capaz de confessar e volta aliviado as

aulas. A partir desse momento, o narrador convive com essa impossibilidade de
confissão, ao mesmo tempo que ainda participa ativamente das atividades da Igreja.
Contudo, depois de uma missa cansativa, o narrador diz: “resolvi renunciar ao
cargo e naquele mesmo instante deixei de ser católico. Suponho que então também
o sentimento religioso começou a se extinguir de todo.” (ZAMBRA, 2015) A partir
2 do momento que o narrador já não acredita no ato religioso da confissão, ele passa
a crer no ato confessional da escrita: “Nunca tive, em todo caso, esses devaneios
0 racionais sobre a existência de Deus, talvez por depois ter começado a crer, de
maneira ingênua, intensa e absoluta, na literatura.” (ZAMBRA, 2015, p.11).
1 Nas conversas de família, principalmente entre o narrador e sua avó, o
tema mais recorrente era o terremoto em Santiago no ano de 1985. Nesses diálogos,
8 a avó comentava como foi impactante para a vida dos chilenos aquela tragédia
e quantas pessoas tinham sido perdidas. E esse é o momento em que Zambra
retorna no início de seu romance As formas de voltar para casa (2014): Santiago
em meio a um terremoto em 1985. Ao voltar as suas memórias da infância, o seu
cotidiano como criança, o narrador mostra ao leitor a sua crítica ao momento
político que vivia o Chile: “Se havia algo a aprender, não aprendemos. Agora penso
que é bom perder a confiança no solo, que é necessário saber que de um momento
para outro tudo pode vir abaixo. Mas na época voltamos, sem mais, à vida de
sempre” (ZAMBRA, 2014, p.17).
O narrador do romance se apresenta de duas formas: aquele que está
relembrando a sua infância, os acontecimentos marcantes do passado e seus
relacionamentos e aquele que está relatando o presente, a consequência desses
relacionamentos e a escrita do próprio livro. Dentro de um mesmo capítulo o
narrador intercala passado e presente e a narrativa vai se construindo nas dobras
desses tempos. Na sua infância era uma criança em uma família de classe média,
que vivia em uma cidade relativamente pacata de Santiago. Mesmo estando na
ditadura, seus os pais não estavam envolvidos ativamente em questões políticas,
J seus professores também não explicavam e nem mencionavam a questão político-
social em que seu país se encontrava. A ditadura, então, se tornava uma influência
quase silenciosa, até a chegada de uma família a seu bairro. Uma amiga uns anos
A
mais velha, Cláudia, o pediu que vigiasse seu tio Raúl, um homem que vivia sozinho,
afastado da família e que recebia visitas de estranhos em sua casa. A partir desse
L acontecimento, perguntas e dúvidas sobre a situação em que estavam vivendo
foram surgindo, mas sempre sendo censuradas. Uma vez ao perguntar ao seu
L professor se era muito grave ser comunista, ele responde: “Por que você está me
perguntando isso, disse ele. Acha que sou comunista?” (ZAMBRA, 2014, p.35) E
A logo depois comenta: “Não é bom que você fique falado sobre essas coisas (...) Só o
que posso te dizer é que vivemos num momento em que não é bom falar sobre essas
coisas. Mas algum dia poderemos falar disso e de tudo” (ZAMBRA, 2014, p.35).
O narrador no tempo presente está escrevendo um livro sobre a sua
infância, mas principalmente, sobre a impressão que a mesma deixou nele
• como adulto. Como era ser uma criança, como era vivenciar a ditadura sem
1030 ter a possibilidade de entender a situação e muito menos agir sobre ela. Dessa
forma, o romance, que o narrador está escrevendo, e aquele que estamos lendo,
• se torna o romance sobre os pais, sobre os tios, homens e mulheres que agiam,
pois: “enquanto os adultos matavam ou eram mortos, nós fazíamos desenhos num
canto. Enquanto o país se fazia em pedaços, nós aprendíamos a falar, a andar (...)
Enquanto o romance acontecia, nós brincávamos de esconder, de desaparecer.”
(ZAMBRA, 2014, p.54).
2 Percebemos, assim, que nessas duas narrativas alguns acontecimentos e
algumas datas se repetem: poderiam esses ser indícios de uma escrita autobiográfica?
0 Eneida Maria de Souza (2011) discerne sobre essa questão refletindo que o destino
literário é marcado por injunções biográficas. Contudo, para a teórica não se
1 pode inferir que a vida esteja refletida na obra de uma maneira direta e imediata,
ou seja, não se pode sugerir que a arte seria o espelho da vida. Ao começar seu
8 texto especificando os escritos de perfis biográficos, Souza (2011) explica que a
preservação da liberdade poética na construção desses perfis está precisamente
nesse procedimento de mão dupla: juntar ao material biográfico o poético,
transformando, então, a linguagem cotidiana em literária. Souza (2011) esclarece
que na crítica biográfica recente há a possibilidade de reunir teoria e ficção ao se
considerar que os laços biográficos são feitos a partir da relação metafórica entre
obra e vida. Com o conceito de autoficção cunhado por Serge Doubrovsky Souza
(2011) apresenta uma forma de narrativa no qual a estetização da memória já não
a deixa subjugada ao teor da veracidade.
Trata-se da ação deliberadamente ficcional por parte do sujeito, do gesto
de dessubjetivação que o insere no jogo de fabular da narrativa. Estar ao
mesmo tempo no interior da linguagem e fora dela consiste na operação
paradoxal da presença/ausência do sujeito na complexa cena enunciativa.
(SOUZA, 2011, p. 23)

O narrador de Formas de voltar para casa (2014), que também está


escrevendo um livro sobre sua infância, discorre sobre essa presença do eu na
escrita: “(…) o livro é meu. Não poderia deixar de aparecer. Ainda que me atribuísse
J outros traços e uma vida muito distinta da minha, do mesmo jeito eu estaria no
livro” (ZAMBRA, 2014, p. 78). Nossa pergunta principal nesse trabalho é: como
A Zambra aparece em sua escrita? Para pensarmos sobre essa questão, discutiremos
como Zambra utiliza-se das formas da confissão e do traço autobiográfico, no conto

Meus Documentos (2015) e no romance As formas de voltar para casa (2014), para
L
constituir a sua escrita autobiográfica. Diferenciaremos a confissão, intrínseca em
Meus Documentos (2015), em duas formas distintas: o ato religioso (FOUCAULT,
L 2006; 2009; AGOSTINHO, 1980) e o ato confessional da escrita (DERRIDA, 1992;
1996), com o intuito de analisar a passagem do narrador de cristão para não-
A crente. Nesse processo, o narrador percebe a confissão não mais como ato religioso
mas como ato de escrita. Em relação à noção de traço autobiográfico (DERRIDA,
1996;1992), no romance As formas de voltar para casa (2014), perceberemos a sua
rasura na narrativa a partir tanto do narrador quanto da forma que os capítulos
são escritos. No conto, o narrador só encontra a possibilidade de confissão a
• partir da escrita, assim como Zambra, que ao escrever, confessa uma parte de sua
infância. A mesma infância que reaparece em seu romance, agora mais marcada
1031
pela ditadura e a impossibilidade de ação daqueles que a sofreram como crianças.

“Releio, mudo frases, especifico nomes. Tento lembrar melhor: mais e
melhor.”: o ato confessional da escrita em Meus Documentos
Para pensarmos o ato religioso da confissão e as implicações que o mesmo
exerceu sobre o narrador de Meus Documentos (2015), primeiramente, entenderemos
2 com Foucault (2006; 2009) a confissão cristã.. Há para Foucault (2006; 2009) uma
diferenciação no cuidado de si dos sujeitos das sociedades da antiguidade greco-

romana para aquelas feitas pelos sujeitos cristãos. Para a primeira o sujeito guiado
0 pelo mestre, ou seja, aqueles que buscavam o conhecimento de si a partir das
orientações de seu mestre, eram impelidos ao silêncio como uma forma de caminho
1 ao conhecimento e ao cuidado de si. Assim, diferentemente do sujeito cristão, o
não-dizer é a parte crucial para a aprendizagem do aluno quanto aos ensinamentos
8 do mestre. Foucault (2006) nos dá o exemplo das comunidades pitagóricas onde
eram impostos cinco anos de silêncio aos alunos que ingressavam aos ensinos.
Esse silêncio não significava uma mudez absoluta, mas um não-direito a opinião
no que concerne aos exercícios, discussões e práticas relacionados ao ensino.
O noviço “devia escutar, escutar somente, nada mais fazer senão escutar
sem intervir, sem objetar, sem dar sua opinião e, bem entendido, sem ensinar”.
(FOUCAULT, 2006, p. 410). Portanto, quem deveria dizer a verdade era o mestre
e não o aluno. Assim como o aluno deve calar-se aos ensinamentos do mestre, o
mesmo, de acordo com o filósofo, deveria obedecer ao princípio daquilo que chamou
de parrhésia, que seria
o fato de tudo dizer (franqueza, abertura de coração, abertura de palavra,
abertura de linguagem, liberdade de palavra). Os latinos traduzem geral-
mente parrhesía por libertas. E a abertura que faz com que se diga, com que
se diga o que se tem a dizer, com que se diga o que se tem vontade de dizer,
com que se diga o que se pensa dever dizer porque é necessário, porque é
útil, porque é verdadeiro. (FOUCAULT, 2006, p. 440)

A combinação da prática do aluno e do mestre, ou seja, a junção do


J silêncio e da parrhésia é, para o filósofo, uma característica importante na filosofia
antiga que gera a não diferenciação entre o dizer e o agir, entre dizer a verdade e
praticá-la, entre o cuidado e o conhecer a si mesmo.
A
Contudo, ao teorizar sobre a filosofia cristã, Foucault (2006; 2009) nos
demostra que relação muda de aluno e mestre para aquele que confessa e o superior.
L Não mais o silêncio leva ao cuidado e conhecimento de si, mas sim a confissão.
Para Foucault, (2006; 2009) a confissão induz a obrigação de dizer a verdade sobre
L si mesmo, obrigação esta que está estruturada por um superior a quem tudo se
confessa. Ou seja, para o filósofo a confissão cristã é “uma maneira de submeter o
A individuo, requerendo-se dele uma introspecção indefinida e o enunciado exaustivo
de uma verdade sobre ele mesmo”. (GROS, 2006, p. 617).
Dessa forma, o ato confessional cristão se dá a partir do reconhecimento
verbal do sujeito de suas faltas a partir de uma mediação institucional, ou seja,
da Igreja Católica, para um superior que seria aquele que recebe a confissão. Após
• o ato confessional, é necessário a remissão dessas faltas a partir de uma pena
1032 imposta pelo mesmo superior. Assim, para Foucault (2006; 2009), a confissão é
a forma do cristianismo interligar o conhecimento de si com a obediência a partir
• de um conjunto de ações: “a obediência incondicional, o exame ininterrupto e a
confissão exaustiva”. (GROS, 2006, p.617)
A partir do momento que a confissão cristã, para Foucault (2006;
2009), é uma forma de subjetivação do discurso de verdade, ao mesmo tempo,
que é a expressão da obediência, o que podemos analisar dessa impossibilidade
2 de confissão do narrador do conto Meus Documentos (2015)? Primeiramente, é
interessante ressaltar que o cristianismo, as suas doutrinas e sua linguagem, é
0 exposto no conto de uma maneira não-sacra, descaracterizando seu teor religioso
e vinculando um ar jocoso:
1 Eu gostava da linguagem da missa, mas não a entendia muito bem. Quan-
do o padre dizia “eu vos deixo a minha paz, eu vos dou a minha paz”, eu
escutava “eu não deixo a minha praça, eu não vou à minha praça” e ficava
8 pensando nessa misteriosa imobilidade. E uma vez eu disse a frase “não sou
digno de que entres em minha casa” para minha avó, ao abrir a porta para
ela, e depois para meu pai, que logo me respondeu, com um sorriso doce e
severo: “Obrigado, mas esta casa é minha”.(ZAMBRA, 2015, p.10)

Mesmo introduzindo a religião e sua linguagem, a confissão só vai ver


colocada em questão com a chegada de Maurício, seu amigo que o chama para
ser coroinha da igreja. A relação entre falta e confissão é então exposta a partir de
dois acontecimentos: quando o narrador aceita comungar mesmo sem ter feito a
primeira comunhão e em um momento de intimidade entre os dois amigos no qual
eles tem a curiosidade de se tocarem. Ao chegar em casa após esses acontecimentos,
a primeira reação dele foi se confessar. Contudo, não foi a um Padre mas sim a
Deus. “Cheguei em casa logo que começou a escurecer. Não costumava rezar, mas
naquela noite rezei por muito tempo, precisava da ajuda de Deus.” (ZAMBRA, 2015,
p.9). Ao pensarmos na confissão como um ato direto a Deus, sem o vínculo de uma
terceira pessoa, logo nos remetemos as confissões de Santo Agostinho (1980).
Santo Agostinho (1980) em suas confissões nos transmite o processo
J de sua mudança de não crente a aquele que crê, passando por sua conversão do
maniqueísmo ao cristianismo católico. O tema principal é a conversão a partir da
A confissão direta a Deus. Contudo, no décimo livro, o filósofo se indaga da necessidade
escrever essas confissões para os homens como um exemplo que ajudaria na
L conversão dos outros cristãos. “Por isso também eu, Senhor, me confesso a Vós,
para que os homens, a quem não posso provar que falo a verdade, me ouçam.”

(AGOSTINHO, 1980, p. 210)
L
Entretanto, antes de nos adentarmos nas questões sobre a necessidade
da escritura da confissão, que faremos mais adiante, nos aprofundaremos um pouco
A mais sobre a problemática da confissão direta a Deus. A confissão agostiniana
não se resume somente a afirmação da superioridade de Deus, mas também na
aceitação da inferioridade e da passividade daquele que a proclama, culminando
em sua transformação rumo a humildade. Em outras palavras,
Agostinho entrelaça, nas Confissões, a pujança de um extenso discurso lau-
• datório direcionado à magnitude divina com a agudeza de uma profunda
análise auto-referencial, na qual o reconhecimento da inferioridade exis-
1033
tencial humana culmina numa exortação irrestrita à humildade. (DALPRA,
• 2011, p. 65-66)

A confissão é, portanto, o exercício dessa humildade, na qual o ser


humano pode se desvincilhar de sentimentos e atitudes presunçosos. Ao voltarmos
ao narrador de Meus Documentos (2015), percebemos que a confissão direta, como
também a confissão ao padre, são ações inacabadas. Ao chegar em casa depois dos
2
acontecimentos na casa de Maurício, o narrador sente a necessidade de confissão,
mas ao se ajoelhar aos pés da imagem de Cristo ele somente repete rezas e não
0 enuncia suas faltas. Ao ser aconselhado por sua vó a não somente rezar, mas
também conversar livremente com Jesus, ele responde que achou “aquilo estranho
1 e intimidador”. (ZAMBRA, 2015, p.17)
Ao longo de todo conto o narrador se sente intimidado pela confissão,
8 pelo ato de expor suas faltas diretamente a Deus ou a um padre. Mesmo sendo
instigado por sua criação cristã e por sua consciência pesada não é capaz de
expor oralmente suas faltas a outro. Encontrando sempre um obstáculo, seja a
impaciência e a indisponibilidade do Padre Limonta seja a sua infamiliaridade com
Deus, ele se mantêm nesse impasse. Até que, por fim, se confessa ao padre Limonta
e, contrariamente aos ensinamentos católicos, esse é o primeiro passo para a sua
descrença na fé cristã. Após expor suas faltas o narrador explica: “não pensei em
mencionar que já havia comungado, nem sobre minha experiência erótica com
Mauricio.” (ZAMBRA, 2015, p. 20). Comungou normalmente até uma certa missa
onde decide não mais participar das atividades da igreja. “Resolvi renunciar ao
cargo e naquele mesmo instante deixei de ser católico.” (ZAMBRA, 2015, p.20), se
desfazendo de todo sentimento religioso.
É importante voltarmos a pergunta que fizemos no início desse tópico: o
que podemos analisar da impossibilidade de confissão do narrador? Ao lembrarmos
de Foucault (2006; 2009) percebemos que o narrador quebra com a ideia de que
a confissão levaria ao conhecimento de si através do cristianismo, desconstruindo
assim, as três vertentes apresentadas pelo filósofo: a obediência incondicional, o
J exame ininterrupto e a confissão exaustiva. O narrador não é capaz de cumprir
nenhuma dessas ações e no final do conto já não se sentia culpado por não cumpri-
A las. Não mas acreditava na revelação da confissão cristã, por já ter “começado a
crer, de maneira ingênua, intensa e absoluta, na literatura”. (ZAMBRA, 2015, p.
L 20).
Voltemos a Santo Agostinho, mais especificamente, na cena de sua
conversão no livro VII. Ao estar em lágrimas, sentado no Jardim de Milão, ele escuta
L
uma voz que cantava e repetia muitas vezes: “Toma e lê; toma e lê” (AGOSTINHO,
1980, p. 182). Ele assim, abre a bíblia e ao lê-la expõe: “Apenas acabei de ler estas
A frases, penetrou-me no coração uma espécie de luz serena, e todas as trevas da
dúvida fugiram.(AGOSTINHO, 1980, p.183). A partir desse momento, ele reconhece
a superioridade de Deus ante aos homens, e a sua inferioridade em relação a Ele.
A sua conversão é, pois, também através da leitura e será através da escrita que
mostrará essa conversão aos homens.
• Na segunda parte de seu livro, Santo Agostinho (1980) já convertido, e
1034 não mais confessando seu passado mas seu presente, se indaga da necessidade de
• escrever, e não somente falar a Deus, a sua confissão, perguntando: “que proveito,
sim, que proveito haverá em confessar, neste livro, também aos homens, diante de
Vós (…)” (AGOSTINHO, 1980, p. 210). Assim, é apresentado nos escritos do filósofo
não somente a questão da confissão direta a Deus mas também a necessidade da
escrita dessa confissão, pois “há muitos (…) que desejam saber quem eu sou no
2 momento atual em que escrevo as Confissões.” (AGOSTINHO, 1980, p. 210). E é
com fatos e com palavras que isso se cumpre para Santo Agostinho.

O narrador de Zambra (2015) passa, ao decorrer da narrativa, a não mais
0
acreditar na confissão cristã se distanciando de qualquer pensamento religioso.
Entretanto, assim como Santo Agostinho, ele crê no ato confessional da escrita e se
1 indaga da possibilidade de exposição de seus textos: “Penso em fechar este arquivo
e deixá-lo para sempre na pasta Meus documentos. Mas vou publicá-lo, quero fazer
8 isso, embora não esteja terminado, embora seja impossível terminá-lo” (ZAMBRA,
2015, p. 24).
Assim como mostra a última frase, já mencionada, do conto, a escrita
percorre a narrativa e a vida do narrador de maneiras diferentes. Ainda pequeno, na
década de 80, quando convivia com a sua família, a mãe e a vó foram as primeiras
a introduzi-lo a escrita. A relação familiar com a escrita chega a se traduzir para o
corpo, na forma que a mãe, ao transcrever os escritos de sua avó, deixou cravado
no narrador a imagem da máquina de escrever. Por isso, ao lembrar-se da mãe,
em vez de características físicas, o narrador descrevia sua ação ao escrever na
máquina:
Lembro de minha mãe trabalhando na mesa de jantar, inserindo cuidado-
samente o papel-carbono, aplicando com esmero o corretor quando errava.
Teclava sempre muito rápido, usando todos os dedos, sem olhar para o te-
clado. (ZAMBRA, 2015, p. 7)

As lembranças dos familiares estão envolvidas com a forma com que eles
estavam interligados ou não com a escrita. É interessante perceber que a mãe, que
era uma escritora assídua, é descrita por ele como uma máquina de escrever. Já
J a relação com o pai, não havia esse fascínio pelas letras, mas sim pela tecnologia,
pelo computador. Toda vez que ia ao seu trabalho, seu pai tentava alimentar um
A interesse por essa novidade mas sem conquista. Assim que o pai se distraia, o
narrador ia brincar na mesa da secretária, com a “máquina de escrever elétrica da

Loreto (que) me parecia prodigiosa, com sua pequena tela onde as palavras iam se
L
acumulando até que uma poderosa rajada as cravava no papel.” (ZAMBRA, 2015,
p. 7)
L No começo do conto a escrita é apresentada pela perspectiva do outro, da
mãe, da avó, da secretária. Mas ao fim do conto, o narrador se descreve, primeiro,
A como um caderno vazio, e depois como um livro. Enquanto o narrador estava
participando ativamente nas atividades cristãs, a sua escrita não foi desenvolvida,
se vendo como um caderno vazio, sem palavras. No momento em que a fé cristã
se extingue, a escrita é introduzida, para no final o narrador se tornar um livro, se
tornar a escrita.
• “Agora sou um livro” (ZAMBRA, 2015, p.24), essas últimas palavras do
1035 narrador nos remete também a Derrida (1996) e a sua Circonfissão. Não podemos
falar escrita confessional e autobiográfica e não mencionarmos a Derrida. Mais

como o filósofo percebe essa forma de escrita? Comecemos com uma explicação do
professor e teórico Panesi (1996):
La historia ha sido convocada a la cita: la literatura es un invento moderno,
como aclara Derrida en una entrevista con Derek Attridge (...), un fruto de
la Ilustración habría que agregar, y que se caracteriza históricamente por la
2 posibilidad de decirlo todo. De decirlo todo pagando un precio, el precio de
que se la escuche como ficción, e inclusive como la ficción de decirlo todo.
0 ¿Qué otros géneros, entonces, podrían cumplir mejor con este mandato de-
mocrático moderno ligado tanto a la verdad como a la subjetividad, sino la
biografía, la confesión y el diario íntimo? (PANESI, 1996, p. 3)
1
Como evidencia Panesi (1996), para Derrida não há uma linguagem privada,

sublinhando assim, o caráter democrático da literatura em sua possibilidade de ser,
8 ao mesmo tempo, um discurso ligado tanto a verdade quanto a subjetividade. Ou
seja, o espaço da literatura não é somente aquele de uma ficção institucionalizada
mas também o de uma instituição fictícia, o que para Derrida (1992) possibilitaria,
teoricamente, se dizer tudo. Como ele mesmo exemplifica “the writer can just as
well be held as irresponsible. (…) This duty of irresponsibility, of refusing to reply
to one’s thought or writing to constituted powers, is perhaps the highest form of
responsibility. (DERRIDA, 1992, p. 38)
Panesi (1996) nos relata que o que Derrida concebe é como um ato
autobiográfico que permeia tanto a literatura, como a escrita e o texto em geral.
E o que podemos também chamar de traço autobiográfico nos escritos de Derrida
(1996) está bem sublinhado nos fragmentos de Circonfissão que vão se situar
como acontecimentos entre verdade e ficção, ou como explica Trocoli (2017) “nem
autobiografia, nem ficção, mas uma prática da escrita que produz uma terceira
forma e um novo modo de enunciar” (TROCOLI, 2017, p. 6). Essa escritura significa
“repetição, ausência, risco de perda e morte” (BENNINGTON, 1996, p.43) que está
misturada ao sangue derramado, a crueldade, a confissão e, todas encarnadas em
J sua primeira palavra: cru.
Essas características encontramos na nona perífrase de Circonfissão.
A Nesse fragmento, Derrida (1996) indaga sobre a questão da verdade na escrita
confessional, mencionando os escritos de Santo Agostinho. Contudo, para Santo
L Agostinho os seus escritos confessionais estavam carregados de verdade, “diz-
lhes que eu, ao confessar-me, não minto.” Para Derrida a verdade não propicia a

confidência, aquilo que chamou de confidência verdadeira, mas sim um perdão
L demandado, “ou melhor dizendo como demanda, à religião demandada como à
literatura, antes de uma e de outra, as quais não tem direito senão a esse tempo,
A de perdoar, perdão, por nada.” (DERRIDA,1996, p.43)
A literatura está nesse lugar de confissão, assim como a religião, onde é
necessário um perdão, mas um perdão por se escrever. Ela perde perdão e desvia-
se de Deus por meio do escrito, mais essa escritura “só interessa na proporção e na
experiência do mal mesmo que se trate de fazer a verdade em um estilo, um livro
• e perante testemunhas”. (DERRIDA, 1996, p. 42) O narrador de Zambra está na
1036 busca dessa verdadeira confidência, nessa escritura digna de ser chamada assim
por pedir perdão por se escrever. O silêncio de sua confissão é transformado nessa

escrita confessional onde é pedido esse perdão. A literatura se torna sacra em sua
ambiguidade, onde não confessa a Deus e nem se fala a Deus, mas se confessa a
própria literatura, como uma entidade. O livro se torna confidência, e o narrador
conclui seu caminho para se tornar o livro.

2 “Não quero falar nem de inocência nem de culpa, não quero mais do
que iluminar alguns recantos, os recantos onde estávamos”: o traço

autobiográfico em As formas de voltar para casa
0
Continuemos com Derrida (1992) mas agora em seu texto Acts of

literature. Em um dos tópicos o filósofo discerne sobre literatura e filosofia e a
1 decisão de escolher uma delas para concentrar seus estudos. Ao hesitar, ele acabou
não desistindo de nenhuma pois achava possível encontrar uma fronteira entre
8 literatura e filosofia que poderia ser pensada ou demonstrada a partir da escrita,
e não somente pela reflexão teórica e histórica. No entanto, se Derrida (1992) não
considerava sua escrita nem literária nem filosófica, o que seria? Eis sua resposta:
‘Autobiography’ is perhaps the least inadequate name, because it remains
for me the most enigmatic, the most open, even today. (…) The idea of an
internal polylogue, everything that later, in what I hope was a slightly more
refined way, was able to lead to Rosseau or to Joyce. (…) The unique event
whose trace one would like to keep alive – is also the very desire that what
does not happen should happen, and is thus a “story” in which the event
already crosses within itself the archive of the ‘real’ and the archive of the
‘fiction’. Already we’d have trouble not spotting but separating out historical
narrative, literary fiction and philosophical reflection. (DERRIDA, 1992, p.
35)

O que Derrida (1992) almejava era alcançar aquilo que estava acessível e
inacessível, aquilo que estava selado. Ou seja, ele queria uma escrita que levasse
em consideração tudo o que ocorresse ou falhasse em ocorrer com ele, e que fosse
selado e transformado naquilo que chamou de assinatura. A leitura de textos que
J continham o teor autobiográfico que tanto o interessava em sua juventude como
Rousseau, Gide, Nietzsche, textos esses que não eram simplesmente literários ou
A filosóficos mas confissões, o fizeram pensar que a literatura era uma instituição em
que se permitia dizer tudo, de todas as formas. Para ele o espaço da literatura não
L é somente da ficção institucionalizada mas também de uma instituição fictícia que,
em princípio, permite-se dizer tudo. Mas o que é “dizer tudo” para Derrida (1992)?

Seria juntar todas as formas e traduzi-las, torná-las outra, como em suas palavras,
L é totalizar a partir da formalização. Mas, além disso, “dizer tudo” é também se
liberar das proibições. Para o filósofo a literatura é “an institution which tends to
A overflow the institution” (DERRIDA, 1992, p.36). Seria possível uma escrita na qual
essa barreira fosse quebrada? O próprio Derrida em seu texto com co-autoria de
Geoffrey Bennington, nos exemplifica. Sua cinconfissão é essa escrita mergulhada
na autobiografia, na ficção e na reflexão filosófica. Ou então como Panesi (1996)
argumenta uma confissão ironicamente autobiográfica. A Circonfissão, esses textos
• escritos no fim de página do texto de Bennington, podem ser considerados uma
1037 ilustração prática da teoria que Derrida menciona em Acts of Literature.
Mas voltemos ao romance As formas de voltar para casa (2014) e queremos

aqui, com Derrida (1992) pensar nessa escrita onde se é permitido dizer tudo. Há
na escrita de Zambra essa “tradução” e liberação das formas tão bem explicada
e exemplificada por Derrida (1992)? Se há, como ocorre? Vamos, primeiramente,
entender como acontece o romance. A narrativa é dividida em quatro capítulos:
Personagens secundários, A literatura dos pais, A literatura dos filhos e por último,
2 Estamos bem. No primeiro capítulo, o narrador relembra sua infância em Santiago,
e sua mudança de percepção sobre os acontecimentos ao seu redor. Se concentra
0 no narrador criança, seus amigos, sua escola e sua visão dos adultos. Ao fazer
amizade com uma menina recém-chegada ao bairro, ele vai descobrindo novas
1 facetas de sua cidade e sua própria história que antes não conhecia ou não tinha
percebido. Ele, então, entende o que significava estar em uma ditadura e o que
8 isso representava para os chilenos. No segundo capítulo, com um tom mais
metalinguístico, o narrador fala sobre a escrita do livro sobre a sua infância. É um
capítulo em que a discussão sobre a escrita é pautada pela percepção do narrador
de que aqueles que viveram a ditadura como crianças só podem escrever sobre a
mesma se esse livro for de seus pais, ou seja, um romance sobre aqueles que, para
ele, realmente agiram. O terceiro já é um capítulo sobre sua juventude, na qual já
podia tomar decisões e agir. Aqui, o narrador volta a contar a sua história a partir
de seus vinte anos quando, depois de terminar a faculdade, volta ao seu bairro
para visitar a família. As memórias de Claúdia, e do Tio Raúl voltam a assombrá-
lo e a verdade é revelada.. Raúl era o pai de Claúdia, que viva escondido fugindo
dos militares e ajudando a esconder outros fugitivos que lutavam contra o regime.
No último capítulo, o narrador volta a escrita do romance e as observações sobre a
influências dessas memórias em sua vida adulta e seus relacionamentos.
Ao pensarmos com Derrida (1992), onde é cruzado as fronteiras do real e
da ficção, percebemos que é nessa escrita que se exprime a “passagem do singular à
cena de enunciação: do ‘isso era’ para o ‘é meu dever escrever isso que se inscreveu
em mim’” (TROCOLI, 2017). O que se inscreveu no escritor chileno? Zambra (2014)
J discute sobre isso em uma entrevista a Revista Clarín:
Me parece que esse es un texto que quiere narrar un despertar o más bien
A una historia personal que suena a prehistoria, por la capacidad de olvido
tan grande que tenemos, y por lo ajenos que suenan, al menos ahora, para
mi, algunos espacios y situaciones que sin embargo, gracias a la escritura,
L pude habitar nuevamente (ZAMBRA, 2014)

Queremos aqui nos embasar em Derrida (1992) para demonstrar a escrita
L de Zambra (2014) que convive com a dualidade de ser ficção, mas também, conter
traços autobiográficos que selam e rasuram a sua narrativa. O romance está, de
A uma certa forma, pensado e formado a partir desses traços autobiográficos desde a
nomeação dos capítulos, a divisão, o tema e a forma de escrita. Para percebermos
isso voltemos um pouco ao romance: dois capítulos, o segundo e o quarto, são
escritos em forma anotação, sendo cada fragmento separado por reticências e no
final do romance temos uma data “Santiago, fevereiro de 2010” (ZAMBRA, 2014,
• p.157). Esses fragmentos são como lembretes de acontecimentos, de encontros,
1038 anotações para a escrita, como por exemplo: “Eme veio, por fim. Como presente
de Natal, me deu um pote de ímãs com centenas de palavras em inglês. Armamos

juntos a primeira frase, que foi, de alguma forma oportuna: only love and noise.”
(ZAMBRA, 2014, p.58) ou “Muito resfriado, na cama há dias. Matizo a enfermidade
com altas doses de televisão. As visitas de Eme me parecem sempre breves demais.”
(ZAMBRA, 2014, p. 65-66). É interessante perceber que nesses capítulos em que
a escrita é o tema principal, a forma é a de um diário, onde os fragmentos do
2 cotidiano do narrador se mesclam com anotações sobre suas leituras e sobre a
escrita do romance, como: “(...) é que eu gosto de estar no livro. É que eu prefiro
0 escrever a já ter escrito. Prefiro permanecer, habitar esse tempo, conviver com
esses anos, perseguir longamente imagens esquivas e examiná-las com cuidado”
1 (ZAMBRA, 2014, p. 53).
Arfuch (2010) em seu livro O espaço biográfico faz um estudo do percurso
8 do biográfico e sua aparição na ficção. Como a teórica comenta a parição de um
“eu” como uma afirmação do teor biográfico pode ser visto a partir do século XVIII
com a consolidação do capitalismo e do mundo burguês. É consensual de que
a publicação de Confissões de Rosseau é começo de uma delineação de gêneros
literários autobiográficos. Dessa forma, confissões, autobiografias, memórias,
diários íntimos, correspondências formariam, para lá de seu teor literário, “um
espaço de autorreflexão decisivo para a consolidação do individualismo com um
dos traços típicos do Ocidente.” (ARFUCH, 2010, p.36). Arfuch explica que esses
gêneros literários, já instituídos como formas de prática de autocriação, e como
testemunhos de épocas, se expandiram e transladaram para outras formas literárias
e midiáticas. Ao nos aprofundarmos mais sobre a questão do diário, Arfuch (2010)
nos dá o exemplo de Samuel Pepys (1660-1690) que em seus escritos pessoais
expressava tudo: seu cotidiano, seus romances, desavenças e ciúmes. Dessa forma:
os rastros que emergem aqui e ali permitem reconstruir uma trama de in-
telecção pra a análise da produção literária do século XVIII, que iria conso-
lidando sei “efeito de verdade” tanto quanto a aparição de um sujeito “real”
como garantia do “eu” que se anuncia quanto com a apropriação da primei-
ra pessoa naquelas formas identificadas como fiction, que daria origem ao
J romance moderno. (ARFUCH, 2010, p. 44)

O que queremos com esse pequeno panorama da escrita biográfica?
A
Zambra (2014), ao escrever dois capítulos como um diário, não somente continua
a sua característica de não se fincar em somente um gênero literário, mas também
L alude na forma de sua narrativa a escrita autobiográfica. No romance os traços
autobiográficos, as memórias rasuradas, se mesclam a forma da sua narrativa,
L tão intrínsecos que o narrador afirma que já sabia que “quando crescesse eu ia
ser uma lembrança” (ZAMBRA, 2014, p.80) Mas como essas rasuras aparecem?
A Vejamos um exemplo do segundo capítulo, no qual o narrador, na casa de seus
pais, relata a lembrança de uma viagem e como ela serviu de inspiração para uma

parte de seu romance:
Escrevo na casa de meus pais. Fazia tempo que eu não vinha. Prefiro vê-los
no centro, na hora do almoço. Mas desta vez quis assistir com meu pai à
partida entre Chile e Paraguai, pensando também em refrescar alguns deta-

lhes do relato. É a viagem do romance, a viagem de volta que o protagonista
1039 faz, assustado, ao fim daquela longa tarde em que segue a suposta namo-
rada de Raúl. Escrevi essa passagem pensando numa viagem real, mais ou

menos naquela idade. (ZAMBRA, 2014, p.70-71)

Essa viagem que o narrador cita acontece no romance no primeiro capítulo,


quando o narrador criança sai em busca da suposta namora do tio de Claúdia, o
Raúl: “O micro-ônibus parou e tive que decidir, em questão de segundos, se eu
2 também subiria. (…) Subi e viajei durante um tempo longuíssimo (…)” (ZAMBRA,
2014, p. 41). “Voltei para casa e o medo nem sequer me permitiu esboçar uma
0 explicação convincente (ZAMBRA, 2014, p.43).
Voltando ao segundo capítulo, no mesmo relato da viagem, o narrador
descreve uma conversa que teve com sua mãe em um cômodo da casa de sua
1
infância. Ele encontra a mãe tomando mate na sala, e concordam em sair para
fumar. A conversa dos dois mescla entre lembranças da infância, características do
8 filho, sobre a possibilidade de ele ter ido embora de casa mais tarde, e até mesmo
sobre literatura. O fragmento acaba com a frase “Fui dormir com a voz de minha

mãe na cabeça, me dizendo: você deveria ser mais tolerante” (ZAMBRA, 2014,
p.77). Já no terceiro capítulo, o narrador adulto faz uma viagem junto a Claúdia
a casa de seus pais, no qual o passado sobre a ditadura, o terremoto, quando se
encontraram pela primeira vez, e o tio Raúl voltam a tona. Depois de um jantar
entre o narrador, Claúdia e seus pais, eles decidem dormir na casa e ir embora no
dia seguinte. Na madruga, o narrador encontra a mãe bebendo mate na sala e os
dois acabam conversando. Essa conversa é bastante parecida com a do segundo
capítulo, eles falam sobre os mesmos assuntos, mas também são introduzidos
personagens do romance, como Claúdia e Raúl. E a conversa termina não como
uma crítica mas com um elogio: “Gosto de você como é. Gosto que defenda suas
ideias” (ZAMBRA, 2014, p. 130).
Considerações finais
Percebemos na escrita de Zambra a presença de traços autobiográficos,
tanto em seu romance quanto em seu conto. Decidimos ler em Meus Documentos
(2015) esses traços a partir da ideia de confissão pois é um tema importante para
J a narrativa. Toda a história se desenlaça na impossibilidade da confissão cristã
do narrador, juntando nesse contexto uma crítica de Zambra tanto a religião
A quanto a ditadura, pela presença forte na narrativa de uma instituição militar e
católica. O narrador só encontra possibilidade de confissão a partir da escrita e da
L literatura. O narrador em sua vida adulta, depois de cursar a faculdade de Letras,
se torna um escritor que decide contar a sua infância e a influência que a família,
L os amigos, a religião e a ditadura exerceram em sua vida. As formas de voltar para
casa (2014) tem uma premissa muito parecida com a do conto, um escritor, que ao
relembrar a sua infância, decide escrever um romance sobre a influência desses
A acontecimentos. No entanto, não se concentra na questão da confissão, mas sim no
sentimento daqueles que passaram pela ditadura como crianças, por se sentirem
incapazes de contar uma história na qual foram personagens secundários. Assim,
o traço autobiográfico na narrativa de Zambra é o grito e o eco desses personagens
secundários que passaram pela história brincando de desaparecer.

Referências
1040
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J ZAMBRA, Alejandro. As formas de voltar para casa. Rio de Janeiro: Cosacnaify, 2014.
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L CONTRA LA REDUCCIÓN NOMINAL: TENSIONES DE LA MEMORIA
Y RECONFIGURACIÓN DE LAS IDENTIDADES EN FORMAS DE
L VOLVER A CASA DE ALEJANDRO ZAMBRA

A Raúl Estrada (UNMSM)
RESUMEN: La intervención crítica del pasado que trabaja Alejandro Zambra en
Formas de volver a casa piensa la memoria sobre la dictadura chilena como una
experiencia removible. El relato propone conservar la adjetivación del presente
como posdictatorial y protegerlo de una posible reducción nominal. Este estudio
• ubica la novela dentro de lo que Ludmer entiende como literaturas postautónomas,
1042 considerando la marcada oscilación entre realidad y ficción en el relato, y a través
del cual se inaugura un procedimiento progresivo de interpelación a lo que persiste
• del pasado en el presente. A continuación, se examinan, siguiendo las ideas
propuestas por Benjamin y Bloch, las operaciones de reactivación, reconfiguración
y nominalización que articula Zambra tomando como punto de partida la infancia
como experiencia liberadora, desde la que se puede trazar puntos de convergencia
con otras experiencias, con las cuales se podría impedir la desaparición de las
2 huellas del pasado dictatorial en el presente.
Palabras clave: Posdictadura. Literaturas postautónomas. Memoria. Nominalización.
0
La condición irresoluta de la tensión que produce el pensar el recuerdo
1 emerge en la literatura latinoamericana contemporánea como una suerte de
recomposición compulsiva de la memoria mutilada por el aparato estatal para

recobrar los vínculos que la conectan al pasado y, con ello, fracturar su condición
8 estática dentro del escenario posdictatorial. La intervención de la memoria como
procedimiento progresivo y no inmediato en el discurso novelístico del chileno
Alejandro Zambra articula la aparición de una posible experiencia liberadora,
mediante el enjuiciamiento de la pérdida y la instrumentalización de su principal
efecto: el olvido. El desmembramiento de la memoria oficial en la conciencia
ficcionalizada de los niños de la dictadura revela la necesidad de auscultar el
silencio que recorre un pasado impreciso y difuso, más bien heredado, y al cual
se le ha sustraído la experiencia secundaria o, mal entendida, como experiencia
menor, para mantenerla soterrada a la homogeneidad del relato sobre el trauma
dictatorial y, a su vez, desconectándolo del mismo.
En Formas de volver a casa, novela publicada en 2011, se reconoce no
solo la necesidad manifiesta de la literatura latinoamericana actual de interpelar
las ruinas del pasado que aún persisten en las memorias colectivas, sino que su
lectura introduce una problemáticaclave para entender cómo operan aquí el duelo
por los ausentes y los escenarios de infancia como dispositivos de resistencia
J al olvido:la autorreferencialidad. Es, a través de ella, que la novela se disloca y
supone inadmisible cualquier interpretación unilateral, pues en su construcción
A se configura un contrapunteo experiencial entre la ficción y el espacio biográfico.
¿Cómo entender entonces esa experiencia binaria que no logra decantarse
L totalmente en el texto de Zambra? La aproximación que nos ocupa conduce a
alejar al texto de una ortodoxa categorización y permite leerlo acaso como una

escritura diaspórica, entenderlo más bien como literatura posautónoma, es decir,
L como parte de escrituras que
(…) no solo atraviesan la frontera de la ‘literatura’ sino también la de la ‘fic-
A ción’ [y quedan afuera-adentro en las dos fronteras]. Y esto ocurre porque
reformulan la categoría de realidad: no se las puede leer como mero ‘realis-
mo’, en relaciones referenciales o verosimilizantes. (LUDMER, 2006)

Se advierte también que las voces que emergen en Formas de volver


a casa se sitúan en esos espacios deliberadamente para recuperar su sitio en la
• historia y, en ese sentido, el texto que se presenta como una escritura en tránsito
1043 está construyendo presente a través de esa desdiferenciación que lo caracteriza,
esa realidadficción “que no es una materia hecha de los dos, no es una mezcla, un

mestizaje, un híbrido o una combinación, sino una fusión donde cada término es,
de un modo inmediato, el otro: la realidad ficción y la ficción realidad”(LUDMER,
2010). Esa desdiferenciación amplía el espectro de reformulación de la memoria
desplazando la reflexión desde los espacios de infancia hacia esos otros territorios
fantasmáticos que el discurso oficial oblitera.
2
A partir de este marco, resulta necesario proponer una interrogante que

no solo cuestione la visibilidad benjaminiana del pasado en el presente, sino que
0 se ocupe también de la necesidad de detener la amenaza de desaparecer el pasado
del presente. La naturaleza de un presente adjetivado como posdictatorial obliga
1 a quien se proponga la tarea de intervenir críticamente al pasado a conservar esta
adjetivación y protegerla de una posible reducción nominal. El entramado que
8 sostiene esta realidadficción remite a la experiencia dictatorial como una memoria
no detenida, como un conglomerado de recuerdos que exigen su reactivación en el
andamiaje de la memoria oficial, vista desde un tiempo no inmediatamente posterior
a la dictadura sino, más bien, relativamente lejano, desde donde se establecen y
analizan las discontinuidades que se prolongan hasta la contemporaneidad como
problemática de una generación que ha crecido en medio de la barbarie.
De esta manera, la novela de Zambra despliega en el presente una
operación de desconexión para enfrentar ese trauma por el vacío vigente, producto
de la conciencia de que la des-institucionalidad dictatorial supervive en la
contemporaneidad y que opera sobre esa red de poder democrático, así el tiempo
actual se revela urdido por la dictadura desde un tiempo anterior a su caída con
el fin de conservar su condición hegemónica, lo que lo nominaliza como un tiempo
posdictatorial, un espacio en el que la ausencia se evidencia para fundamentar el
ejercicio del duelo. La resignificación del recuerdo constituye la base del trabajo
sobre la memoria oficial, así como su quiebre o ruptura representados en el acto de
escarbar sobre el discurso hegemónico y reconstruirlo a las luces de los fragmentos
que se pretenden inconexos. Son estos fragmentos desconectados deliberadamente
J de la memoria oficial por los productores del discurso hegemónico los que agudizan
la dialéctica entre recuerdo y olvido, entre ausencia y presencia, entre retazo y
totalidad, que con peculiar magnitud operan la dínamo de la novela, más como
A
convergencia de las contradicciones que como una problemática maniquea.

L Transitar hacia el afuera

Formas de volver a casa es una novela que parte del desprendimiento,


L desde este se impulsala dinámica de emergencia de la memoria oculta. No solo
obra en ella una migración de la experiencia paternal a una generacional, más
bien desplaza su propósito a la reconstrucción de una versión que operará sobre la
A memoria oficial como contrapunto, porque el relato no se auto somete a su (solo)
ejercicio de memoria, sino que invoca y traza otros relatos vinculantes: un relato
político, por un lado, y un relato cartográfico, por el otro, que pretenden proyectar
un mapa de las memorias operantes, desde una toma de posición manifiesta por
lo vencido. Estos son los elementos que van a tramar una victoria otra para esas
• memorias vencidas, una victoria no convencional, y solo posible en el presente
1044 posdictatorial. Esta reversión de la derrota en el relato reinscribe a la infancia como
• experiencia restituida, aunque inicialmente la memoria oficial soslaye su inclusión
en la memoria colectiva, lo que traduce la aparición del relato como develación
de la victoria del vencido: la infancia como discurso contrahegemónico eficaz. La
novela proyecta, a través de una lógica benjaminiana, que la historia de la infancia
durante la dictadura y su reformulación responden a una necesidad de revitalizar
2 el residuo memorial que persiste marginalizado en la historia.
La transitabilidad temporal que exhibe el narrador en la novela se sostiene
en esta desdiferenciación que, a su vez, determina la construcción del tiempo en
0
el relato y lo nominaliza como posdictatorial por los vínculos referenciales que
traza entre el primer y último capítulo, a propósito del terremoto. Recordemos que
1 la novela cierra con el terremoto del 27 de febrero de 2010 en Chile, a vísperas
del gobierno de derecha de Sebastián Piñera, y el primer encuentro, aunque no
8 significativo, entre el narrador niño y Claudia sucede en el terremoto del 3 de marzo
de 1985, cuando la dictadura de Pinochet llevaba instalada ya 12 años en el poder.
Este tiempo, que sabemos posdictatorial, es“no tanto la época posterior a la derrota
(la derrota todavía circunscribe nuestro horizonte, no hay posterioridad respecto a
ella), sino más bien el momento en que la derrota se acepta como la determinación
irreductible de la escritura literaria” (AVELAR, 2011, p.27). No se trataría pues
solo de una derrota política, también de una derrota literaria. La sombra de la
dictadura se refleja en la construcción del texto como un mecanismo espectral que
opera sobre la dinámica socio política del presente como ruina, como vestigio de
la catástrofe reclamando ser reexaminado. La mirada retrospectiva del discurso
novelesco va a lograr, de esta manera, posar la atención sobre el espacio destruido
y sobre las voces incorpóreas que, productos descompuestos y violentados de ese
espacio, empiezan a hacer oír la brutalidad del trauma.
Pero si el fantasma dictatorial persiste en el presente y se desnominaliza
para encubrir sus ruinas ¿Cómo detener aquello que amenaza con desaparecer
el pasado del presente? ¿Cómo develar ese otro relato oculto en el interior de
la memoria? Tentar una respuesta exige enunciar desde el afuera del relato
J hegemónico. Desde esta zona exterior se inicia Formas de volver a casa, donde la
experiencia de los padres es asumida como objeto no transmisible, dando lugar
A así a la pérdida experiencial en favor de una transformación del relato hegemónico
sobre el trauma dictatorial. Este abandono del espacio experiencial ajeno que
L opera al sentar como punto de partida la infancia podría entendersecomo pérdida,
como deseo de escapar del que brota el deseo. Esta pérdida pulsante en la tensión

que emerge en el relato en la dialéctica entre la casa y el mundo exterior que
L sirven de escenarios inauguradores de la reactivación del recuerdo no supone el
alejamiento como instancia final del deseo, sino la clave de su origen mismo en el
A entrelazamiento del espacio angosto (la casa) y la bella lejanía (el mundo exterior)
(BLOCH, 2007).Es con la vuelta a casa que se propone justamente la emergencia
de esta relación ya realizada:
Una vez me perdí. A los seis o siete años. Venía distraído y de repente ya no
vi a mis padres. Me asusté, pero enseguida retomé el camino y llegué a casa
• antes que ellos –seguían buscándome, desesperados, pero esa tarde pensé
que se habían perdido. Que yo sabía regresar a casa y ellos no.
1045
Tomaste otro camino, decía mi madre, después, con los ojos todavía lloro-
• sos.

Son ustedes los que tomaron otro camino, pensaba yo, pero no lo decía.

Mi papá miraba tranquilamente desde el sillón. A veces creo que siempre


estuvo echado ahí, pensando. Pero tal vez no pensaba en nada. Tal vez sólo
2 cerraba los ojos y recibía el presente con calma y resignación. Esa noche ha-
bló, sin embargo –esto es bueno, me dijo, superaste la adversidad. Mi madre
lo miraba con recelo, pero él seguía hilvanando un confuso discurso sobre
0 la adversidad. (ZAMBRA, 2011, p.13)

Desde este punto, la afirmación de que el exterior al ser indistinto se
1 vuelve maravilloso cobra legitimidad en el transcurso de la novela. La escritura se
configura como travesura infantil, como juego, pero también como anunciación del
8 trabajo posterior, el sujeto que aparece citado como niño primero, adulto después,
ha adquirido la capacidad de moverse, de alejarse, pero también de regresar. La
escritura se configura como espejo del establecimiento de los nexos entre el espacio
angosto y la bella lejanía, transmutados en términos de dictadura y posdictadura.
Remecer el pasado, encender el tiempo
En Formas de volver a casa lo que acciona la operación de develamiento
de la memoria advierte claramente el decantamiento iniciático que configura la
tensión entre la memoria de los padres y de los hijos. No basta, sin embargo,
descubrir la memoria heredada como otro camino, como otra forma de transitar
por la historia que ha pasado, pero que permanece allí, es necesario desconectarla
del relato memorial generacional para interpelar su legitimidad. La novela reclama
que la historia que se nos ha contado es la historia de los padres, la historia que,
como los padres de la novela de Zambra, neutraliza cualquier toma de posición
con respecto a lo que realmente sucedió y que se sucede aun subrepticiamente
en el presente. En ese sentido, el tiempo pasado en la novela no deja de ser, no se
extingue, sino que permanece.
J Si “la historia es objeto de una construcción cuyo lugar no lo configura
el tiempo homogéneo y vacío, sino el cargado por el tiempo-ahora” (BENJAMIN,
A 2008, p. 315), el texto temporaliza el recuerdo, actualiza su condición, revela lo
que oculta su calidad de herencia, pero también halla el nexo vinculante entre
L ambos escenarios, cumpliendo la máxima benjaminiana de que “el pasado solo
cabe retenerlo como imagen que relampaguea de una vez para siempre en el

instante de su cognoscibilidad” (BENJAMIN, 2008, p. 307). Ese instante en el que
L el pasado resuena en el presente es introducido en el texto a través de la referencia
al terremoto de 1985, fenómeno pasado que estrecha sus vínculos con el presente,
A a través del terremoto del 2010:
De hecho, un par de años más tarde, la primera vez que hablé con Claudia,
ella me preguntó por qué caminaba tan rápido. Llevaba días siguiéndome,
espiándome. Nos habíamos conocido hacía poco, la noche del terremoto, el
3 de marzo de 1985, pero entonces no habíamos hablado. (ZAMBRA, 2011,
p. 14)

1046 Es esta fuerza sísmica del pasado la que remite al presente que antecede al
gobierno de derecha de Sebastián Piñera. La tempestad queimpele hacia las alturas

al ángel de la historia benjaminiano es aquí entendida como fuerza catastrófica,
como fenómeno cuya resonancia no solo se reduce a su accionar natural, sino que
representa cabalmente el escenario político de Chile hacia el 2011:
Voto con un sentimiento de pesadumbre, con muy poca fe. Sé que Sebas-
tián Piñera ganará la primera vuelta y seguro que también la segunda. Me
2 parece horrible. Ya se ve que perdimos la memoria. Entregaremos plácida,
cándidamente el país a Piñera y al Opus Dei y a los Legionarios de Cristo.
0 (ZAMBRA, 2011, pp. 155-156)

Esta relación des-cubierta en la escritura de Zambra, encriptada por


1 medio del símbolo telúrico sirve como parte de la estrategia de desbaratamiento de la
unidimensionalidad con que se pretende asumir el relato histórico para desdoblarlo
8 hasta re-insertar su multidimensionalidad en el dispositivo del recuerdo.
Es tarde. Escribo. La ciudad convalece, pero retoma de a poco el movimiento
de una noche cualquiera al final del verano. Pienso ingenuamente, inten-
samente en el dolor. En la gente que murió hoy, en el sur. En los muertos
de ayer, de mañana. Y en este oficio extraño, humilde y altivo, necesario e
insuficiente: pasarse la vida mirando, escribiendo. (ZAMBRA, 2011, p. 164)

Se sucede, de este modo, la posibilidad de intervenir el pasado, allí donde


las memorias se encuentran y conflictúan, donde pulsa con mayor intensidad la
tensión entre lo íntimo y lo público, entre lo propio y lo que nos es ajeno, heredado
en su totalidad y asumido solo parcialmente. La novela parte, por ello, de ese
pasado tan manifiesto en el presente, de esa huida y retorno a casa que significa la
vuelta hacia el recuerdo, un punto de partida hacia el presente construido por la
apropiación que los padres hicieron de la historia y, además, parte del terremoto,
lo que advierte que aquellos hilos que conectan a nuestro tiempo serán remecidos,
reconectados de otra manera, removiendo los escombros de lo que queda hoy del
ayer.
A través de la alternancia de experiencias que simula la distribución
J de las historias en la novela, la tensión que remece la configuración del espacio-
tiempo disloca el posicionamiento del narrador/autor admitiendo la posibilidad del
A traslado dentro de una novela que se encuentra en permanente movimiento, donde
asistimos a un cambio entre pasado y presente. Entre lo que sucede y lo que no está
L sucediendo, pero sucederá o está por suceder, agotando esa suerte de posibilidad
constructora del presente. ¿Cómo se entiende entonces esta intervención crítica

sobre el recuerdo? La capacidad de volver la mirada y resignificar la experiencia
L apunta hacia una característica inmanente al concepto de lo contemporáneo. El
contemporáneo es aquel que traza una relación entre su tiempo -como individuo- y
A el tiempo colectivo o el tiempo de la Historia, es el contemporáneo el que percibe
las luces de la Historia y devela la oscuridad de su tiempo, esta oscuridad traduce
el pasado (AGAMBEN, 2011). De modo que al contemporáneo se le atribuye el don
benjaminiano de encender la sombra del tiempo-ruina. Para el narrador/autor de
Formas de volver a casa el pasado ha intervenido en él, en su propia construcción, y
• es, además, una consecuencia de este, por lo que le resulta necesario transformarlo.
1047 La condición móvil de este narrador/autor contemporáneo que, por cierto, piensa en
sincro, en tanto “cada idea, cada imagen, cada momento, cada territorio, contiene
• su historia y su pasado” (LUDMER, 2010), no solo admite el tránsito hacia la ruina
sino también un retorno efectivo, donde el pasado es develado y activado en tanto
se descubren sus huellas y su operante naturaleza que se prolonga al presente,
pero reconstruida como recuerdo activo, como episodio transformado, como se
advierte en el fragmento siguiente.
2 Entonces yo estaba y siempre he estado y siempre estaré a favor de Colo-
-Colo. En cuanto a Pinochet, para mí era un personaje de la televisión que
0 conducía un programa sin horario fijo, y lo odiaba por eso, por las aburri-
das cadenas nacionales que interrumpían la programación en las mejores
partes. Tiempo después lo odié por hijo de puta, por asesino, pero entonces
1 lo odiaba solamente por esos intempestivos shows que mi papá miraba sin
decir palabra, sin regalar más gestos que una piteada más intensa al cigarro
8 que llevaba siempre cosido a la boca. (ZAMBRA, 2011, pp. 20-21)

En el relato, además, se muestra que el cuestionamiento y comprensión


de que lo que se narra no se reduce a la forma que adopta el relato, ya que podría
entendérselo solo como autoficción sin más, sino que hay un relato fuera del yo por
el que se apuesta dentro de la novela. Formas de volver a casa configura su trabajo
sobre la memoria partiendo también de la conciencia de que no será posible concretar
su propósito con apenas sumergirse en la interioridad del sujeto, sino que solo es
posible ampliar su espectro de posibilidadfuncional desempolvando el archivo y,
a partir de ese punto, pensar en otra posibilidad, la de la transmisibilidad de una
otra-experiencia de la dictadura, y aun algo más complejo que su sola enunciación,
su conexión a la historia de los que no eran conscientes de la dictadura: los hijos
de la dictadura. Para esos efectos, la novela quiebra con la objetivación simbólico-
totalizante de la memoria que el mercado reproduce, con la cual se “pretende pensar
el pasado en una operación sustitutiva sin restos. Es decir, concibe el tiempo como
tiempo vacío y homogéneo, y el presente como mera transición” (AVELAR, 2011, p.
13).
Desarmar la arquitectura posdictatorial
J En contraste a la literatura inmediatamente posdictatorial las operaciones
que se llevan a cabo en Formas de volver a casa someten a los personajes a una
A operación de desprendimiento del anonimato o de la inautenticidad. Si, por un lado,
las novelas de Piglia, Eltit o Noll mostraban personajes que “están perenemente
L luchando por desprenderse de sus nombres y conquistar el anonimato” (AVELAR,
2011, p. 29), cuya función era la de hallar una resolución potencialmente liberadora
L a la censura dictatorial, el texto que Zambra nos presenta plantea, por otro lado,
que dicha operación ya no es posible. Es ahora necesario invertir el procedimiento,
es urgente nominalizar.
A
La búsqueda por resolver la interrogante que nos ocupa: ¿cómo detener lo
que amenaza con desaparecer el pasado del presente?, debería considerar entonces
lo que la novela declara como imposibilidad: contar la historia de los otros. En
Formas de volver a casa existe una confrontación a la imposibilidad de restitución
memorial, en tanto esa otra memoria no puede ser incluida stricto sensu, puesto

que no nos pertenece como memoria experiencial:
1048 Soy el hijo de una familia sin muertos, pensé mientras mis compañeros
• contaban sus historias de infancia. Entonces recordé intensamente a Clau-
dia, pero no quería o no me atrevía a contar su historia. No era mía. Sabía
poco, pero al menos sabía eso: que nadie habla por los demás. Que aunque
queramos contar historias ajenas terminamos siempre contando la historia
propia. (ZAMBRA, 2011, p. 105)

2 Si no podemos contar la historia de los muertos, enfrentemos entonces el


peligro de no perderlos totalmente, de no perderlos en el anonimato memorial, es
decir, no de sus nombres solamente, sino de los lugares por donde transitan todavía.
0 La novela nos revela aquí una clave de su propia construcción, el conflicto de “contar
una historia cuando no tienes nada que decir” (WILLEM, 2014, p. 67). Zambra
1 articula cruces con esas otras experiencias ajenas que no se pueden narrar, puesto
que no son parte de una experiencia individual. En vez de narrarlas, reservándoles
8 un lugar protagónico en el texto, actualiza su experiencia generacional en función
a las otras, a través de mecanismos de conexión dialéctica con lo público, como
es el caso del uso de la primera persona del singular (DE LOS RÍOS, 2014). Se
despliega, entonces, una operación inversa a la que se llevaba a cabo por las redes
que operaban contra la dictadura: si el anonimato o la inautenticidad era una
forma de no ser aniquilado y desaparecido en el período dictatorial, la restitución
del nombre se configura aquí como una suerte de estrategia que salvaguarda la
desaparición del pasado en el presente. Nominalizar al otro es develar el presente.
Dado que “ni los muertos estarán seguros ante el enemigo si es que
éste vence” (BENJAMIN, 2008, p. 308), el relato reclama vigilar del olvido la
permanencia de las ausencias de los muertos vencidos. En Formas de volver a casa
estas ausencias aparecen develadas como fantasmas que habitan todavía ciertos
espacios de la ciudad, espacios en ruinas sobre los que la dictadura ha obrado
para ocultar su condición de residuo de barbarie. El mapa memorial que se traza
en la novela, en el sentido geográfico y experiencial, resulta imprescindible para
la nominalización de los vencidos, puesto que de él depende la restitución de la
identidad que permanece en anonimato. De ahí que se denuncie que, incluso, los
J nombres de las calles actúan como recurso de olvido de la memoria nacional y de
sus personajes, pero también como un accionar operado desde la dictadura para el
presente: para desvanecer sus propias huellas de violencia y así encubrir las ruinas,
A
no bajo una nueva arquitectura material y visible sino con una arquitectura de la
identidad espacial desconectada del trauma que la ha originado, como lo muestra
L el siguiente fragmento:
Llegamos, finalmente a una villa de sólo dos calles, el pasaje Neftalí Reyes
L Basoalto y el pasaje Lucila Godoy Alcayaga. Suena a broma, pero es verdad.
Buena parte de las calles de Maipú tenían, tienen esos nombres absurdos:
mis primos, por ejemplo, vivían en el pasaje Primera Sinfonía, contiguo al
A Segunda y Tercera Sinfonía, perpendiculares a la calle El Concierto, y cer-
canos a los pasajes Opus Uno, Opus Dos, Opus Tres, etcétera. O el mismo
pasaje donde yo vivía, Aladino, que daba a Odín y Ramayana y era paralelo
a Lemuria – se ve que a fines de los setenta había gente que se divertía mu-
cho eligiendo los nombres de los pasajes donde luego viviríamos las nuevas
• familias, las familias sin historia, dispuestas o tal vez resignadas a habitar
ese mundo de fantasía. (ZAMBRA, 2011, pp. 28-29)
1049
De este modo, la ubicuidad de los personajes dentro de la novela

comprende un enjuiciamiento a la manipulación nominal de los escenarios en
tiempos de la dictadura. En el fragmento citado se advierte la forma en la que
cohabitan dos realidades complemente desemejantes. La primera está cargada
de realidad e historia, mientras que la segunda remitiría, más bien, a un vacío
identitario, cuyo proceso de nominalización no sugiere alguna carga simbólica. De
2 esta manera, Zambra contrapone las experiencias de sus personajes para interpelar
los escenarios que la dictadura heredó a su generación con el fin de suprimir toda
0 huella de reconocimiento del trauma:
Vivo en la villa de los nombres reales, dijo Claudia esa tarde del reencuentro,
1 mirándome a los ojos seriamente. Vivo en la villa de los nombres reales, dijo
de nuevo, como si necesitara recomenzar la frase para continuarla: Lucila
Godoy Alcayaga es el verdadero nombre de Gabriela Mistral, explicó, y Nef-
8 talí Reyes Basoalto el nombre real de Pablo Neruda. Sobrevino un silencio
largo que rompí diciéndole lo primero que se me ocurrió: vivir aquí debe ser
mucho mejor que vivir en el pasaje Aladino. (ZAMBRA, 2011, p. 29)

Sin embargo, la novela apuesta también por desenredar otros aspectos


que habrían quedado irresolutos debido al proceso de apropiación con que la
dictadura habría obrado sobre los escenarios-ruina desde el tiempo mismo de
su instalación. Estos escenarios en los que emerge un potencial vestigio de la
barbarie ha sido violentado doblemente porque no solo ha sido utilizado para fines
represivos, sino que sabiéndoselo recipiente absoluto de esa experiencia dictatorial
ha sido sometido a una operación de ocultamiento y vaciamiento para silenciar
su posible y futura función testimonial. En el relato de los hijos esos escenarios
experienciales aparecen años después restituidos, a través del entrecruzamiento
con la experiencia de las otras víctimas de la dictadura:
En 1977 se anunció que Chespirito, el comediante mexicano, vendría con
todo el elenco de su programa para dar un espectáculo en el Estadio Na-
cional. Claudia tenía entonces cuatro años, veía el programa y le gustaba
J mucho.

Sus padres se negaron, en principio, a llevarla, pero al final cedieron. Fue-


ron los cuatro y Claudia y Ximena lo pasaron muy bien. Muchos años más
A tarde Claudia supo que ese día había sido, para sus padres, un suplicio.
Que cada minuto habían pensado en lo absurdo que era ver el estadio lle-
L no de gente riendo. Que durante todo el espectáculo ellos habían pensado
solamente, obsesivamente, en los muertos. (ZAMBRA, 2011, pp. 119-120)

L Zambra amplia la experiencia de infancia de los niños de la dictadura y le


adhiere la experiencia de la instalación forzosa que supuso el inicio de la dictadura
A pinochetista. Lo que para su generación significó un escenario de humor para otra
lo fue de tortura, masacre y asesinato. En ese sentido, si la novela no puede contar
la experiencia ajena puede, eso sí, develar lo que oculta la propia experiencia en
sus puntos de convergencia.
Reconfiguración de la identidad y nominalización
• El desocultamiento de los escenarios por donde transitan los fantasmas
1050 de la dictadura sería parte del proceso a través del cual se restituye la identidad
• a la experiencia ajena, pero también lo que preludia a la nominalización de aquel
que ha sido constituido por esa experiencia. La historia de Raúl es progresivamente
desocultada hasta convertirse en la historia de Roberto.Formas de volver a casa
narra esa inversión del inautenticidad, salvaguarda el nombre de alguien que ha
muerto en la novela, porque solo así rescata del olvido en que se ha mantenido esa
experiencia.
2
La historia del padre de Claudia es contada en los capítulos impares
de la novela a través de la mirada del narrador que asocia su experiencia a la
0
del hombre al que debía vigilar cuando era niño y por el que asume cierta
responsabilidad ante Claudia. El relato introduce a la experiencia del narrador la
1 historia del anonimato de Roberto, la historia de otro nombre, de otra identidad
que solo puede ser recuperada en tanto se reconstruya a la luz de la experiencia
8 propia, es decir, a partir de esos puntos de convergencia experienciales que hemos
anotado. La operación de nominalización empieza en Formas de volver a casa como
una forma de resquebrajamiento de la armadura que supone el anonimato, ese
resquebrajamiento está signado no solo con la irrupción de la presencia de Roberto
en la novela, sino también con el abrupto movimiento sísmico que se produce en
Chile en 1985 y que establece un vínculo entre el niño narrador y Raúl.
La noche del terremoto tenía miedo pero también me gustaba, de alguna
forma, lo que estaba sucediendo.

En el antejardín de una de las casas los adultos montaron dos carpas para
que durmiéramos los niños.Al comienzo fue un lío, porque todos queríamos
dormir en la del estilo iglú, que entonces era una novedad, pero se la dieron
a las niñas.
(…) En eso volvió Raúl, el vecino, con Magali y Claudia. Ellas son mi herma-
na y mi sobrina, dijo. Después del terremoto había ido a buscarlas y regre-
saba ahora, visiblemente aliviado. (ZAMBRA, 2011, pp. 15-16)

Sin embargo, esta condición de inautenticidad en Raúl parece pesar en


el recuerdo que se cuenta. No solo porque aísla o marginaliza al personaje, porque
J de alguna manera lo obliga a estar solo para proteger a sus familiares, sino porque
lo fuerza a ser otro y desanudar los nexos legítimos con los demás en la sociedad.
A Y, sobre todo, porque de una u otra manera los adultos de la novela perciben esa
inautenticidad indirectamente, lo que los hace desconfiar de él y cercenarlo de esa

experiencia paternal que es también la experiencia oficial. En la novela, Raúl es
L
visto como:
(…) el único en la villa que vivía solo. A mí me costaba entender que alguien
L viviera solo. Pensaba que estar solo era una especie de castigo o de enfer-
medad.

A La mañana que llegó con un colchón amarrado al techo de su Fiat 500, le


pregunté a mi mamá cuándo vendría el resto de la familia y ella me respon-
dió, dulcemente, que no todo el mundo tenía familia. Entonces pensé que
debíamos ayudarlo, pero al tiempo entendí, con sorpresa, que a mis padres
no les interesaba ayudar a Raúl, que no creían que fuera necesario, que
incluso sentían una cierta reticencia por ese hombre delgado y silencioso.
• Éramos vecinos, compartíamos un muro y una hilera de ligustrinas, pero
1051 nos separaba una distancia enorme. (ZAMBRA, 2011, p. 17)

• La intervención crítica que se trabaja sobre el recuerdo de infancia en


Formas de volver a casa como parte del proceso de nominalización comprende,
además, disolver esas características inmanentes a la identidad inauténtica con
que se reconocen en el personaje de Raúl. De esta manera, lo que se lleva a cabo
es un desbaratamiento de todo el andamiaje que hizo posible ese anonimato,
2 entendido como inautenticidad, en el transcurso de la historia. La historia de
Raúl es la historia de su filiación política, la historia de su forzada soledad, y
0 también la historia de su silencio. En la novela, ese silencio es interpelado hacia
una aproximación de la identidad del personaje.
En la villa se decía que Raúl era democratacristiano y eso me parecía inte-
1 resante. Es difícil explicar ahora por qué a un niño de nueve años podía en-
tonces parecerle interesante que alguien fuera democratacristiano. Tal vez
8 creía que había alguna conexión entre el hecho de ser democratacristiano y
la situación triste de vivir solo. (ZAMBRA, 2011, pp. 17-18)

Esa definición que en la villa se tiene de Raúl no es satisfactoria para el
niño narrador de la novela, lo que hace en cambio es asociar esa particular soledad
a su posible filiación política en una suerte de ejercicio causal, lo que conduce
a la profundización de esa condición. Si ser democratacristiano no se relaciona
necesariamente con ese aislamiento e indiferencia de la gente de la villa, ¿qué es
aquello que la experiencia del niño asocia a esta condición? Ser comunista. En
la alusión al abuelo del niño en la novela este es tratado con burla por su hijo,
solo porque que es comunista. De ahí que la inautenticidad se revele en esa no
posible asociación de lo que somete a Raúl a la indiferencia con el hecho de ser
democratacristiano. Zambra configura la confrontación de su narrador niño a esa
inautenticidad en dos instancias. La primera, ante Claudia, introduce ese silencio
necesario como punto de partida hacia la reconfiguración de la identidad de su
supuesto tío y, la segunda, ante Raúl que, si no revela la identidad política del
personaje, alude a la condición apolítica de los padres, con lo que reclama así la
J responsabilidad de ser cómplices de la dictadura al no ser “nada”. Para el niño que
interroga en Formas de volver a casa parece ser necesario significar la experiencia
con los otros y, en ese sentido, opone constantemente la mirada de los padres a la
A
mirada de los hijos por medio de una mirada dialéctica:

Una tarde, sin embargo, llevado por un impulso, le dije que sabía la verdad:
L que sabía que los problemas de Raúl estaban relacionados con el hecho de
que era democratacristiano, y a ella le salió una carcajada larguísima, exce-
L siva. Se arrepintió enseguida. Se acercó, puso sus manos ceremoniosamen-
te sobre mis hombros e incluso pensé que iba a besarme, pero no era eso,
por supuesto –mi tío no es democratacristiano, me dijo, con voz tranquila y
A lenta.
Entonces le pregunté si era comunista [a Claudia] y ella guardó un silencio
pesado. No puedo decirte más, respondió al fin. No tiene importancia. (ZAM-
BRA, 2011, p. 36)

• Y estrecha el vínculo con la experiencia de los otros, que no son quizá


esos padres e hijos del relato oficial, a través también de esa mirada dialéctica, la
1052
misma que procura la emergencia de esas identidades diaspóricas que el régimen
• mantuvo invisibles. Por ello, ese niño narrador no espera que las respuestas a sus
interrogantes conduzcan a una certeza, sino que intervienen ese recuerdo que se
pretende vacío y homogéneo y que desencriptan la causalidad de la permanencia de
los otros en el relato. Se plantea entonces que quizá quien es parte de la memoria
oficial es cómplice de lo sucedido, como el padre del niño narrador de la novela:
2 Por qué me preguntas eso, me dijo. ¿Crees que soy comunista?
No, le dije. Estoy seguro de que usted no es comunista.
0 ¿Y tú eres comunista?
Yo soy un niño, le dije.
1 Pero, si tu papá fuera comunista tal vez tú también lo serías.

No lo creo, porque mi abuelo es comunista y mi papá no.

8 ¿Y qué es tu papá?
Mi papá no es nada, respondí, con seguridad. (ZAMBRA, 2011, pp. 39-40)
Hacia el final del primer capítulo, Personajes secundarios, Raúl se muda
nuevamente, pero ante la pregunta del narrador niño que evidencia la necesidad de
saber hacia dónde es que va, Raúl se resiste a responder y evade con gesto neutro la
interrogante. También se muda Claudia, pero es algo que el narrador solo advierte
cuando va hasta la villa donde está su casa y los vecinos le notifican que se mudó,
que nadie sabe a dónde fueron, quizá a otra villa. Es con la interrupción de la
historia que solo será retomada muchos años después con un narrador adulto en el
tercer capítulo, La literatura de los hijos, que se inicia el proceso de desmontaje de
la inautenticidad que hasta entonces había definido la vida de algunos personajes.
El narrador pasará casualmente por la misma calle donde vivía Claudia y creerá
poder encontrarla allí. Sin embargo, Ximena, la que de niño creía que era la novia
de Raúl, le abre la puerta y va desenmarañando esa artificialidad que su recuerdo
había conservado incólume hasta entonces. Ximena es la hermana de Claudia, y
Claudia vive ahora en los Estados Unidos. Cuando el narrador adulto pregunta por
Raúl se inaugura la nominalización, ya que se pone en entredicho totalmente la
J identidad de quién se creía era Raúl y, además, se activa el dínamo de significación
al cuestionar incluso la condición del que pregunta, se le descubre, de este modo,
su falta de entendimiento, pero se le atribuye, por otro lado, la tarea de entender,
A
de saber, de conocer, de develar la identidad de quién dejó de ser Raúl. Es ese
instante en el que el pasado empieza a emerger en el presente y a ser removido:
L
Finalmente su destino estaba en ese país que cuando niña despreciaba,
pensé, y pensé también que debía irme, pero no pude evitar una última
L pregunta de cortesía:
¿Cómo está don Raúl?, le pregunté.

A No sé cómo está don Raúl. Debe estar bien. Pero mi padre está muriendo.
Chao, Aladino, dijo ella. No entiendes, nunca vas a entender nada, huevón.
(ZAMBRA, 2011, p. 92)

El padre de Claudia muere tres semanas antes del reencuentro de Claudia


con el narrador adulto, ella le explica que el hombre que él había conocido como
• Raúl era su padre, y que no se llamaba Raúl sino Roberto. Los personajes de
Zambra comprenden que incluso dentro sus propias experiencias los muertos como
1053
Roberto no pueden ser redimidos si se los reduce a una representación pasiva, de
• modo que se produce una intervención experiencial sobre el recuerdo. Solo a través
de esa intervención se concreta la nominalización, esta no es más que el término
del proceso que espera vincular todas aquellas características identitarias que han
quedado sugeridas a lo largo de la novela, por medio del desmantelamiento de la
experiencia paternal. De modo que el relato sobre la historia de Roberto, en tanto
su tránsito como identidad inauténtica converge con la experiencia infantil del
2
narrador, actúa como una operación de restitución experiencial hacia la memoria.
Solo de esta manera los muertos en el anonimato estarán seguros en la historia,
0 emergerán en el presente, porque han sido nominalizados como agentes activos
en tiempos de la dictadura. De este modo, aunque no se trate de una experiencia
1 propia, el narrador adulto de este capítulo da cuenta del proceso que sumió en la
inautenticidad a Roberto, transformándolo en Raúl:

(…) Roberto, en tanto, corría riesgos, pero cambiaba de apariencia constan-
8 temente. A comienzos de 1984 convenció a su cuñado Raúl para que se fue-
ra y le dejara su identidad. Raúl salió de Chile por la cordillera, a Mendoza,
sin un plan definido, pero con algo de dinero para comenzar una vida nueva.
(ZAMBRA, 2011, p. 98)

La nominalización vincula y restituye esos nexos con los otros que la


inautenticidad había borrado. La convergencia entre la historia de Roberto y la
experiencia infantil hacen posible contar, aunque indirectamente, la historia de la
pérdida, de la inautenticidad, del anonimato, pero solo admite esa posibilidad en
tanto una sea develada en función de la otra, en un procedimiento que no admite
apropiaciones. Lo que cuenta la novela aquí no es solo la recuperación del nombre
y la identidad de Roberto, no es esa recuperación un hecho aislado y único, se
da cuenta de la urgencia de contar la nominalización, ese momento en el que se
produce ese desborramiento progresivo del anonimato:
A comienzos de 1988 el padre de Claudia recuperó su identidad. Fue una
decisión del partido. Con el plebiscito en la retina, necesitaban militantes
comprometidos públicamente en tareas prácticas. Magali fue con sus hijas
J al aeropuerto. La situación era absurda. Hace una semana Roberto había
salido a Buenos Aires con la identidad de Raúl y regresaba ahora convertido
en Roberto. Se había recortado un poco el pelo y las patillas y vestía sobria-
A mente, con blue jeans y una camisa blanca. (ZAMBRA, 2011, p. 118)
En ese sentido, Formas de volver a casa admite la posibilidad de detener
L aquello que amenaza con desaparecer el pasado del presente a través de la (re)
creación de la infancia como escenario desacralizado y en ruinas. La intervención
L de la experiencia en la novela busca encender lo vestigios del trauma dictatorial
y operar procedimientos de inversión a fin de restituir identidades y nominalizar
a los vencidos. Formas de volver a casa nombra a los ausentes, pero reconoce la
A imposibilidad de contar su historia, en tanto se traten de experiencias ajenas, se
opta más bien por hallar esos puntos de convergencia que reconstruyan la memoria
experiencial y que se configuren como leitmotiv en la reubicación de la infancia
como experiencia liberadora. La novela declara acaso subrepticiamente que no será
posible pensar el futuro en tanto el pasado permanezca oscuro e indecible en el
• presente, porque le cuesta imaginar lo que viene después, porque este después es el
reflejo del pasado con alguna variante y, en ese sentido, el relato se niega a imaginar
1054
el después como un pasado apenas alterado (LUDMER, 2012). Podemos decir quizá
• que eso explicala urgencia de intervenir el pasado para hacerlo. Intervenirlo para
hacerlo irrepetible en el futuro.
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ZAMBRA, A. Formas de volver a casa. Barcelona: Editorial Anagrama, 2011.
J

A

L ASPECTOS DA FORMAÇÃO INTELECTUAL DO CIMARRÓN DO
SÉCULO XXI
L
Rogerio Mendes (UFRN)
A RESUMO: a palavra cimarrón foi utilizada em toda a América Colonial para referir-
se aos escravos, índios ou negros que, individual ou coletivamente, rebelaram-se
contra a servidão dos seus “senhores”. A “rebeldia” foi um recurso no qual o escravo
expressou rechaço à ordem social estabelecida utilizando-se da fuga para garantir
liberdade. Com o passar do tempo o africano deixa de ser estrangeiro e integra
• uma nova realidade e, com ela, o sentido de resistência assume outras nuances ao
reivindicar legitimidades distantes da resistência e fuga e integrada ao processo de
1055
participação e reconhecimento social. Para o desenvolvimento do presente estudo o
• conceito de cimarronaje deixa de estar relacionado aos negros que resistem e fogem
para referir-se aos negros que resistem porque pensam.
Palavras-chave: Literatura Hispano-Americana; cimarronaje; formação intelectual.

A palavra cimarrón foi utilizada em parte da América Colonial Espanhola


2 para referir-se, como recorda Denise de Almeida Silva (2016), não somente aos
animais que, ao fugirem das fazendas, retornavam ao seu estado selvagem mas,
0 também, aos índios e negros que, individual ou coletivamente, rebelaram-se contra
os senhores proprietários de leis, terras e gentes quando escravizadas. A rebeldia
foi um recurso, tão dramático quanto legítimo, no qual o escravizado expressou
1
rechaço à ordem social estabelecida utilizando-se da fuga para garantir a liberdade
e expressão. O status de “propriedade foragida” situou-os como cimarrones
8 obrigando-os a viver desde então em áreas recônditas e distantes.
A designação para os negros fugitivos não se limitavam a expressão
cimarrones e variavam a partir dos locus de enunciação. Na Venezuela, por exemplo,
eram chamados de cumbes; no Peru e Colômbia, palenques; no atual Suriname,
antiga Guiana Holandesa, bush negroes; na Jamaica, Caribe Inglês e Sul dos
Estados Unidos, maroons enquanto que no Caribe espanhol, principalmente, Cuba
e Porto Rico, cimarrones, em acordo com Flávio dos Santos (2015). Pela palavra
cimarrón ter maior recorrência no contexto de língua castelhana na América, e por
este idioma e lugar situar-se nas pretensões do escopo do presente estudo, a opção
será manter como o conceito Cimarrón como referência central no estudo.
No Brasil, os agrupamentos dos cimarrones ficaram conhecidos como
mocambos e, posteriormente, Quilombos. Segundo Abdias do Nascimento (2006),
a palavra Mocambo, que provém do kimbundu e kicongo, línguas da África Central,
originalmente chamava-se mukambu, e significava pau de fieira. Pau de fieira
era um tipo de suporte com forquilhas utilizadas para erguer choupanas nos
J acampamentos nômades para alguns povos daquele continente além de referir-se
também à armações improvisadas e utilizados em tempos de guerra. No século XVII,
A a palavra associou-se aos guerreiros imbangala ou bangala1. Dito isso, kilombo ou
cimarronaje relacionavam-se a uma instituição dissidente que se formava tanto
L para os indivíduos quanto aos que a ela incorporavam-se.
No artigo “Quilombolismo/Maroonage: revisões da Escravidão e o Ideal
Libertário na Literatura Negra Contemporânea das Américas”, apresentado pela
L
pesquisadora Silva (2016), na 16o edição do Congresso da Abralic, recorda que
no Brasil do século XVIII, documentos usam o termo com referência a qualquer
A agrupamento de cinco ou mais negros fugidos; no Código Processo Penal de
1835 é empregado no sentido de velhacouto. Contrasta com esses conceitos o
significado do termo para os negros “aquilombados”, para os quais representa
reunião fraterna, livre, caracterizada por princípios de solidariedade e cooperação
mútua. No final do Século XIX quilombo recebe a compreensão, de acordo com
• Beatriz Nascimento (2006, p. 122), “o significado de instrumento ideológico contra
1056 as formas de opressão. Sua mística vai alimentar o sonho de liberdade de milhares
de escravizados” para, depois, a partir da década de 70 significar a reorganização

e revitalização do negro, no caso brasileiro, modelo quilombolista, apresentado
como “ideia-força”, “energia”, em acordo com Abdias do Nascimento (2002, p. 204),
a qual instiga projetos que visam promover justiça social e igualdade do negro,
em sua integridade e expressão. Dessa forma, independente das denominações e
idiomas, o agrupamento desses indivíduos, seja ele denominado quilombolismo
2 ou cimarronaje, institucionaliza-se como movimento de resistência independente
e legítimo dos africanos escravizados. Nesta tese, a priori, como menção ao que se
0 refere à perspectiva histórica que se subverte a lugar transgressivo de manutenção
e difusão da memória e identidade afrodescendente a partir do olhar do negro
1 sobre a escravidão. Mais: pretende-se apresentá-lo como transmutação, espaço de
recriação e resistência intelectual no intuito de dar continuidade a uma história
8 independente, autônoma e diacrônica sobre o período adverso de sua escravização
à redenção de sua expressividade letrada.
A ideia de resistência diante da supressão de reconhecimentos e
direitos afrodescendentes nas Américas perpassa por séculos coloniais de
exploração e escravização de um povo alegando-se critérios de reconhecimento
e distinção inumana. O colonialismo afetou todas as Américas. Negros de várias
partes do continente africano aportaram nas sociedades coloniais americanas,

1  Povos que habitaram o Congo e Angola. Constituíram, provavelmente, uma das nações jagas,


invasores da região de Kassanje, também conhecido como Reino de Jaga (1620-1910), estado pré-
colonial localizado no Alto Rio Cuango, no norte da atual Angola, nos séculos XVI e XVII.
em engenhos e fazendas, para trabalharem no cultivo de cana-de-açúcar, café,
mandioca, mineração e agências pastoris. Mulheres e homens foram violentados
e humilhados, e também negados a liberdade; e com chicotadas e prisões foram
punidos por contestarem um sistema mercantil de exploração humana à revelia de
suas dignidades. A fuga e a construção de abrigos, que na verdade foram espaços
de resistência que propiciaram espaço de vida digna e livre apresentaram-se como
forma decisiva de alcançarem a liberdade e direito à dignidade de um (re)começo.
J Ao longo do processo de formação das sociedades da América Latina a
cimarronaje fez com que o negro permanecesse, junto com suas história e tradições,
A isolado em espaços periféricos. Com o passar do tempo o africano deixa de ser
estrangeiro e integra uma nova realidade e, com ela, o sentido de resistência
L assume outras nuances ao reivindicar legitimidades distantes da resistência e
fuga e mais integrada ao processo de participação e reconhecimento social. Para

o desenvolvimento do presente estudo o conceito de cimarronaje deixa de estar
L relacionado aos negros que resistem fogem para referir-se aos negros que resitem
porque pensam; aos intelectuais, inclusive, afro-hispano-americanos que investiram
A análise e prospecção em estudos voltados para o desenvolvimento das contribuições
africanas e outras versões dos fatos contadas pela América Espanhola.
O escritor afro-colombiano, Manuel Zapata de Olivella, no livro Rebelión
de los Genes (1997), chama a atenção sobre a importância dos negros ocuparem
espaços e reagirem aos abusos e domínios a que foram confinados desde da diáspora
• africana na América. Instiga os negros a assumirem posicionamentos libertários
1057 com a finalidade de ocupar os espaços sob pena de continuarem imobilizados pelo
imaginário de um contexto colonial ainda recente. Pois, a condição marginal atribuída

pela cultura metropolitana aos negros desconhece o tratamento da subalternidade
investidos por outras culturas. Daí a relevância do trabalho intelectual dos negros:
a reflexões sobre os negros vindas dos próprios negros dispensaria mediação que
desconhece a experiência arbitrária e desumana que ainda nos dias hoje existe mas
não se visibiliza. A perspectiva de promover vozes e outras versões que a História
2 oficial desconhece dobres os africanos é a proposta do letramento cimarrón ao que
Olivella sugere que seja feita pelos negros
0 “Mientras no nos pensemos a nosostros mismos como conciencias lúcidas
independientes y opuestas al colonizador, el color de nuestra piel, el sentido
1 de nuestras acciones y la filosofia de nuestras luchas girarán y girarán en el
sempiterno retorno de la esclavitud” (p.351-352).

8 A preocupação de Olivella relaciona-se ao fato de desequilibrio no que diz
respeito a pouca participação e reconhecimento dos descendentes africanos no plano
das ideias desenvolvidas na América Latina. É possível observar, inclusive, que nos
manuais de crítica e historiografia literária latino-americana, por exemplo, não há
registros ou menções relevantes que reconheçam as contribuições afrodescendentes
no processo de formação social e literária americana. Uma produção que se mostrou
oportuna e propositiva a partir do século XIX ao reivindicarem o direito de opor-se e
participar, ativamente, do debate sobre emancipação política e cultural na América
Latina. O que resulta estranho a não participação haja vista a afrodescêndencia na
América Latina compor o aspecto heterogêneo das teorias e perspectivas que foram
debatidas na época sobre projeto civilizatório e democracia. Um debate que quase
sempre esteve relacionado à igualdade de condições e liberdade sociais.
A etnóloga mexicana Luz María Martínez Montiel, autora do livro Culturas
Afrohispanas. Antecedentes y Desarrollo (1999), que também coordenou importante
projeto intitulado Presencia Africana en America (2010), uma coleção de livros
publicada em 4 volumes, entre 1993 e 1995, divididos por zonas geográficas –
América Central, México, Caribe e América do Sul – e cada edição com capítulos
J dividos por países e suas especificidades foi uma das contribuições decisivas para
dar consistência a reivindicação e pauta para o reconhecimento das contribuições
A dos africanos nas Américas. No texto de introdução, Elisabeth Cunin, com quem
dividiu com Montiel a organização da coleção, em tópico intitulado “Mestizaje,
L Diferencia Y Nación: Lo “Negro” en America Central y el Caribe” escreveu:
“Nos interessa ir más allá y reflexionar sobre la contribución de los africa-
nos y sus descendientes en las sociedades americanas desde el trabaljo, la
L política o la cultura de la vida cotidiana, es decir, sus aportaciones a la con-
trucción de las naciones, sin considerarlas como primera, segunda o tercera
raiz, sino como nuevas formas de concebir la diversidade cultural colectiva”
A (2010, p.10-11).

A pesquisadora chilena Elena Oliva, no artigo “Intelectuales
Afrodescendientes: apuntes para una Genealogía em América Latina” (2017) lembra
que no início dos anos 90, nos marcos das repercussões do V Centenário surgiu,
• com força, a necessidade de inclusão do que chamou tercera raíz; alusão à presença
1058 e contribuição dos descendentes africanos na América. A preocupação estaria
disposta a analisar as populações afrodescendentes além da perspectiva econômica
• que resultou na escravização e considerar contribuições subjetivas, materiais e,
até, genéticas e apresentá-las ao lado da presença parcialmente consolidada dos
indígenas e as já consolidadas contribuições européias que, juntas, constituiriam
a base das raízes culturais da América Latina. Estávamos próximos dos europeus
mas ainda não de nós, os indígenas, nem dos africanos, a quem nós, mestiços,
2 muitas vezes deslegitimamos.
Nota-se que o projeto fundamenta-se a partir da emergência de uma
0 produção acadêmica interessada no fortalecimento de um diálogo Sul-Sul, entre
América e África, mediado por uma Literatura de Língua Espanhola. A ideia
1 consistiria em investir na visibilidade de projetos críticos e criativos afro-hispano-
americanos formulados a partir de seus próprios anseios e sujeitos. Vislumbrar-
8 se-ia, como objetivo, reconhecer nas aproximações políticas, estéticas e culturais
entre os dois espaços, hispano-americano e africano, a oportunidade de (re) pensar
epistemologias a partir de suas próprias experiências históricas. De acordo com a
professora Adélia Miglievich-Ribeiro há uma
“(...) urgência do diálogo a partir do Sul entre as distintas esferas culturais
envolvendo a ação descolonizadora das subalternidades mediante a ênfase
nas experiências singulares, na tradução e na articulação das diferenças em
torno de projetos plurais de reconhecimento de sujeitos e suas vozes para a
ampliação do universal como diversalidade” (2014, p.66).

De acordo com Boaventura de Sousa Santos (2014) a revisão de


epistemologias modernas apresenta-se como desafio teórico para dar inteligibilidade
a um mundo que, apesar de diverso, ainda possui dificuldades em articular-se como
tal. A intenção do projeto afirma-se na busca pelo reconhecimento de contribuições
culturais africanas com vistas a dar uma maior visibilidade ao negro e a negritude
no processo de formação social e literária das sociedades. Trata-se de um desafio
ético na medida em que se observa o silenciamento de ancestralidades por condutas
politicamente questionáveis que até os dias de hoje esvaziam, gradativamente, a
J noção do particular em detrimento de vias que uniformizam o entendimento do
diverso.
A Uma perspectiva que não se apresenta como novidade mas (re)atualiza-se
na medida em que persiste o desequílibrio e as desigualdades humanas que afetam
L a atuação e legado do pensamento crítico latino-americano. Um desses exemplos é
a obra que se apresenta com o sugestivo título “Qué significa Pensar desde América

Latina?” (2014), do filósofo e sociólogo indo-boliviano Juan José Bautista. Bautista
L propõe a retomada da perspectiva transmoderna (DUSSEL, 1992) centrada no
processo de construção de um pensamento crítico e original latino-americano que,
A por essa razão, aproxima-se do que também motiva a busca dos intelectuais afro-
hispano-americanos: uma “Ética da Libertação” ou autonomia.
Assim como as premissas de Walter Mignolo (2010) e Nelson Maldonado-
Torres (2008) Bautista compreende que tanto a criação quanto a admissão na
América Latina de uma Filosofia Moderna e essencialmente ocidental contribuiu para
• a desvalorização das origens e estruturas formais do pensamento que conformam
1059 as particularidades do povo latino-americano. A pretensa ideia de universalidade
somada a uma ideia (parcial) de racionalidade podem ser compreendidos como

a consolidação do sistema e cultura capitalista que aperfeiçoa mecanismos de
dominação subjetiva dos povos, instaura ideias hierarquizadoras e, com isso,
contribui para o aumento da desigualdade, pobreza, exclusão e racismo dentro
de um sistema-mundo distante e que com base na subserviência das periferias
permite-nos observar que “(...) não existe modernidade sem colonialidade, já
2 que esta é parte indispensável da modernidade” (QUIJANO, 2000, p. 343) e, por
conseguinte, não houve colonização sem a escravidão do africano.
0 A legitimidade da posição dos intelectuais negros situa-se na condição
de problematizarem-se como categoria de análise específica. Apresentar-se-
1 iam como sujeitos cientes de suas descendências e desse lugar enunciativo, ao
elaborarem discursos e epistemologias ambivalentes sobre a África e América
8 Latina cumpririam a função de integrar novos dispositivos de reflexão individual
e coletiva. Historicamente excluídos dos espaços de livre enunciação na América
ao autodescreverem-se assumiriam, deste modo, uma posição crítica e política no
espaço público ainda que ocupando espaços e posições periféricos mas de todo
modo reflexivos e atentos a respeito da responsabilidade de autodescreverem-
se. Uma perspectiva que está diretamente relacionada ao projeto intelectual de
cada um. Assim como a América Latina e África não poderiam apresentar-se como
unidade homogênea em razão da sua diversidade e relações internas a maneira
de entender e situar-se em cada um desses espaços não poderia apresentar-se de
maneira diferente. Há os que se consideram negros; outros, afrodescendentes e
ainda os mulatos.
Nesse sentido, Oliva (2017) adverte que a partir do século XX muitos
assumiram diversas posições sobre suas naturezas étnicas. Na América Espanhola
Nicolás Guillén (Cuba) e Adalberto Ortíz (Equador) identificavam-se como mulatos
por resultarem da mescla entre negros e brancos; Manuel Zapata de Olivella
(Colômbia) e Nicomedes Santa Cruz (Peru) reconheciam-se como negros assim
J como Isabelo Zenón (Porto Rico) e Nancy Morejón (Cuba). Para tornar ainda mais
dinâmica a questão Fernando Ortíz (1966) introduziu o termo “afrocubano” e
A especificou perspectiva para regionalizar a condição de seus estudos e projetos
enquanto Sidney Mintz (1977) apresentou o termo “afrolatinoamericano”, uma
L acepção mais genérica. A categoria de afrodescendente é mais recente e surge
como força no final do século XX. No entanto, o que precisa ficar evidente é a

maneira como cada um desenvolveu seus projetos críticos a partir de sua reflexão e
L história sobre si: de maneira individual e coletiva; sincrônica e diacrônica. Isso, em
outras palavras, revela uma consciência identitária que revela um posicionamento
A que não deixa de reconhecer um passado diaspórico comum mas, ao mesmo
tempo, aponta para trajetórias específicas e possíveis formas que se multiplicam
e complexificam-se a partir da África para a América Latina. Isto posto reafirmam
processos multiconstitutivos que a cada dia desdobram-se do ponto de vista
genético, acadêmico e religioso confirmando a natural vocação de um mundo que
• não pode admitir entendimento ou exigências homogêneas sobre as trajetórias e
1060 dimensões humanas. Por essa razão não podem apresentar-se sinônimos porque
mobilizam discursos e sentidos diferentes nem apresentados como identidades
• isoladas porque são conceitos subordinados a processos específicos de elucidação
– aspectos históricos, literários, religiosos etc – mas que, em todo caso, aludem ou
representam, de toda maneira, um sujeito subalternizado (BERVERLY, 2000). Em
todo caso a consciência sobre a discussão torna-se importante para compreender e
valora a categoria e alcance dos projetos intelectuais de cada um. Entre os projetos
2 que se destacam, sem dúvida, são os literários pela alcance e transcendência úteis
para a compreensão. Entre eles pode-se destacar a obra do afrocolombiano Changó,
0 el Gran Putas (1983) do colombiano Manuel Zapata de Olivella. Para muitos uma
narrativa inapreensível, indefinível por mesclar versos e narrativas; convergem
1 diacronias e sincronias – ao textualizar encontros entre vivos e mortos – das
trajetórias dos africanos e africanas e seus descendentes na América. Toma como
centro narrativo o percurso da diáspora e a luta de todos os sujeitos envolvidos
8 pela liberdade descrevendo as marcas da violência escravocrata que resvala na
rebeldia. Talvez, o grande representante da cimarronaje intelectual nas Américas
cujo compromisso apresenta-se tão-somente como estratégia de sobrevivência de
uma condição adversa que ainda transita como conflito irresoluto metaforizado
A cimarronaje, com o passar do tempo ganha outros contornos e encontra
como antagonismo uma estrutura social, incluindo o prisma politico e artistico, a
resist6encia em admitir outros protagonismos ou outra maneiras de ver, vivenciar
outras possibilidades sobre como foi-nos contada a História. Daí a discriminação
ou negação do politicamente correto. O que seria o politicamente correto? Afrontar
à ordem estabelecida e firmada como base única e inexpugnável. A liberdade é
uma concessão que se relaciona à modelo preestabelecido. A participação ou
integração à essa ordem dependeria de acordos do senso comum e alinhado à
ordem publica legitimadora de valores e filosofias. No entanto, o que é dito sobre os
que descordam, destoam da perspectiva cêntrica? Pode-se dizer que a cimarronaje
é uma discordância que não pode ser considerada aleatória. Por vários motivos:
alinhados à apresentação de contestações e provas históricas que, naturalmente,
J em qualquer outro contexto seria de probabilidade reconhecida por dispor de
consistência técnica, histórica e científica. Quem são essas vozes? Por que não
são ouvidas e consideradas dentro dos parâmetros. A verdade é que as alocações
A
sociais não apresentaram diversas e democráticas. Pensadas para o entendimento
de reafirmação e manutenção de um modelo reiterativo de realidade conformada
L desde o projeto de civilização estabelecida desde o iluminismo. Isso implicaria na
reafirmação de uma cosmogonia unívoca e intransigente alheia e reativa a revisões.
L A cimarronaje apresenta-se como uma alternativa autônoma dos
afro-maericanos que permite reafirmar suas raízes e fundamentos históricos
A e desenvolver com segurança a consci6encia sobre a importância do papel dos
africanos na construção das sociedades nacionais. A cimarronaje apresenta-se como
“(...) alternativa autônoma que permite reafirmar nuestras raíces y fundamentos
historicos y desarrollar, con gran seguridad, nuestra autoconciencia sobre el enorme
papel de los africanos en la construcción de las sociedades nacionales” (MOSQUERA,
• 2018, p. 1). Trata-se de uma resposta baerta dos africanos escravizados contra
1061 o sistema escravista e sua ideologia racista e discriminatória. As cimarronajes
aparecem como os primeiros territórios livres do colonialismo na America constra
• as unidades de produção e estabilidade do sistema politico colonial europeu.
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1062

2

0

1

8

J

A

L NATUREZA E SOBRENATUREZA: A SERPENTE NO IMAGINÁRIO
POPULAR NO QUILOMBO DE MATA CAVALO, Nª Sª DO
L LIVRAMENTO – MT

A Ronaldo Henrique Santana (UFPA)
Mario Cezar Silva Leite (UFMT)
RESUMO: A imagem da serpente constitui um dos mais importantes arquétipos da
história humana, presente em diferentes mitos cosmogônicos e estruturas simbólicas.
Considerando as complexas e multifacetadas conformações da imagem-serpente,
• buscamos investigar numa comunidade negra rural, que agrega aproximadamente
1063 420 famílias, denominada Quilombo de Mata Cavalo, as representações/
aproximações simbólicas sobre as cobras a partir de narrativas orais dos
• moradores. Partimos do pressuposto que a imagem da serpente nesta comunidade
se apresenta em universos que se entrecruzam, entre natureza e sobrenatureza,
com assentamentos religiosos. Segundo os relatos registrados, a serpente em Mata
Cavalo é apresentada com características humanas, antropomorfizada a partir
de elementos como vingança, rancor, astúcia e perspicácia contra aqueles que as
2 atinge, além de outras associações simbólicas.
Palavras-chave: Quilombo de Mata Cavalo. Serpentes. Narrativas Orais.
0
Introdução

Este texto é parte preliminar dos resultados da Tese intitulada Serpentes
1 e Poéticas do Imaginário Popular no Quilombo de Mata Cavalo - Nossa Senhora do
Livramento/MT, vinculada ao Programa de Pós Graduação em Estudos de Cultura
8 Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso, na qual discute parte
das aproximações simbólicas sobre as serpentes, verificadas nas narrativas
orais dos moradores da Comunidade rural Boa Vida de Mata Cavalo, que agrega
aproximadamente 450 famílias, distribuídas em seis comunidades menores: Mata
Cavalo de Cima, Mata Cavalo de Baixo, Mutuca, Estiva, Capim Verde e Aguassú.
Para realização desta pesquisa, buscamos conversar com os moradores
que residem em Mata Cavalo por muitos anos e possuem vasta experiência no trato
com o ambiente e seus animais. Dentre estes moradores, encontramos aqueles
mais conhecidos por realizarem rezas (em festividades católicas) e “benzedeiros (as)”
(que fazem remédios naturais e orações em pessoas e/ou animais), dentre outros,
para conversar sobre suas experiências com as serpentes, que esporadicamente
aparecem em suas residências ou próximos à elas, pelo fato da comunidade de Mata
Cavalo possuir aproximadamente 15 Mil hectares de terra segundo a Associação de
Moradores de Mata Cavalo, em um ambiente rico na diversidade de fauna e flora,
com os três biomas mato-grossenses: Floresta Amazônica, Cerrado e Pantanal.
O fazer da pesquisa se pauta no reconhecimento das experiências dos
J narradores com as serpentes existentes no ambiente local, das relações cotidianas
que constituem sentidos próprios aos moradores da comunidade de Mata Cavalo e
A no entendimento que o conhecimento por eles adquiridos em sua historicidade se
produz num palco de implicações cruzadas entre o ambiente, história pessoal, de
L sua família e da comunidade.
Em outras palavras, este trabalhoparte das percepções dos sujeitos
a partir de suas narrativas, que ilustram paisagens e histórias a partir de um
L
universo simbólico adquiridos no cotidiano, aproximando-nos assim de uma
Cartografia do imaginário. Para Sato (2011), a cartografia do Imaginário proporciona
A inúmeros caminhos que o pesquisador deve escolher ao longo da realização do
estudo. Segundo a autora, esta metodologia – cartografia do imaginário -não está
ligada a um único “itinerário”, na rigidez de uma única rota a ser seguida, mas
na perspectiva metafórica que o caminho se faz ao caminhar e assim, no “faro”
ou “tato” do(a) pesquisador(a)1 em percorrer em direção a seu objeto de pesquisa,
• deixa-o livre para tomar os caminhos que julgar necessário para alcançar os
1064 resultados desejados, por isso optamos por realizar visitas em locais diferentes
do complexo quilombola, alternando nas comunidades e contactando aqueles que

eram indicados pelos entrevistados anteriores.
Assim, a base de construção do conhecimento na perspectiva cartográfica
decorre, dentre outros fatores, do debruçar do pesquisador sobre seu campo de
estudos, a partir de categorias de atenção dispendidas neste processo. A s s i m ,
2 trazemos algumas aproximações simbólicas e análises a partir das narrativas dos
sujeitos que tivemos acesso.

0 Serpente ctônica, simbolismo vegetal e processos de cura em mata cavalo

Como expressa Durand (2002), a serpente é um animal ímpar que


1 possui a capacidade de transitar entre diferentes mundos pelas fendas temporais e
regenerar a si mesma pela muda de pele. Esta característica, somado ao rastejo e

a capacidade de adentrar as fendas do solo, contribui para que ela seja um animal
8 ímpar, aproximando-a do simbolismo da terra, que é em si mesma, outra provedora
dos processos de cura, vida e renovação.
A serpente é um animal ctônico por essência, que como diz Chevalier e
Gheerbrant, “é uma hierofania do sagrado natural, não espiritual, mas material”
(2015, p.519)passageira de planos divinos e infernais, como sustentáculo e criadora
de vida, “sendo a representação de poder da divindade ctônia nas antigas culturas e
tradições” (BONETTI, 2013, p.29) onde se apresenta também os símbolos vegetais,
telúricos e suas latências sagradas.

1  A autora faz separação de gênero para evitar o uso de linguagem sexista.


Enquanto símbolo, a terra pode ser considerada mãe do próprio homem,
aquela que provê a unidade da vida e a sustenta permanentemente. Eliade (2008, p.
117) afirma que “a crença de que os homens foram paridos pela Terra espalhou-se
universalmente. Em várias línguas a etimologia da palavra “homem”, inclusive, se
aproxima da palavra “Terra”, na perspectiva de que de que ele ‘nasceu da Terra2’”.
Em seu livro Tratado de história das Religiões, Eliade (2008) menciona rituais
que seguem as Leis de Manu3, em que as crianças mortas de até dois anos são
J proibidas de serem incineradas e devem ser enterradas, na crença de que “voltem
ao seio da mãe telúrica e possam renascer mais tarde.” (p.202). Outros indivíduos
são enterrados sob a forma de embrião, como se a morte representasse um novo
A
ciclo de nascimento, além da crença de que se deve pôr “a criança no chão logo
que nasça, para que a sua verdadeira mãe a legitime e lhe assegure uma proteção
L divina” (ELIADE, 2008, p. 203), ou quando estão doentes, para que as curem.
Estes gestos equivalem, segundo o autor, a um nascimento simbólico pela mãe
L terra, fundamento primeiro da criação e fonte de cura e/ou renovação.4.
Além da gestação simbólica do homem e das múltiplas formas de vida, a
A terra também provê todo substrato vegetal que existe no mundo. Não são poucos os
símbolos associados aos elementos vegetais, árvores sagradas, arbustos e plantas
de poder, seiva, galhos, raízes, sementes e frutos sagrados (ou consagrados na
cultura popular). Eliade (2008) diz que em algumas culturas o cosmos é visto sob
a forma de uma árvore gigante e que há um conjunto variado de árvores sagradas,
• símbolos, mitos e ritos vegetais, cuja quantidade de documentação é tamanha, que
1065 “seria impossível qualquer tentativa de classificação sistemática de tais relatos.”
(p.213)

Por ligação simbólica, temos a serpente que se aprofunda no seio da
terra e adentra as superfícies do mundo; terra fertilizadora, base da vegetação e
simbolismos vegetais e, novamente, a serpente que se sobe em galhos, se aninha
em árvores e associa-se a enredos míticos que entrelaçam a imagem do animal e
vegetal. Em Mata Cavalo, esta aproximação simbólica da serpente com os elementos
2 telúricos e vegetais surgem nas narrativas sob a forma dos rituais de cura. Nestas
narrativas, estas aproximações remetem aos processos de “benzeção” contra picadas
0 de cobra, das quais aparecem sempre plantas de poder, que funcionam como parte
central da ritualística do sagrado na cultura popular, que envolve fé, religiosidade
1 e conhecimento de palavras ocultas e específicas que evocam a manifestação do
numinoso e a sobreposição do bem contra o mal.
8 Eliade conta que “é em virtude do seu poder, em virtude do que ela
manifesta (e que a supera) que a árvore se torna um objeto religioso. Mas esse

2  A palavra whenna, por exemplo, significa entre os Maori , “terra” e “placenta” (ELIADE, 2008, p.
204)
3  O Código de Manué parte de uma coleção de livros Bramânicos dos quais possuem quatro
compêndios: o Mahabharata, o Ramayana, os Puranasas Leis Escritas de Manu.
4  Eliade menciona outro rito que consiste em fazer passar a criança doente através de uma fenda
da terra, ou através de um rochedo furado, ou através do buraco de uma árvore. Segundo o autor,
há um simbolismo um pouco mais complexo, pois tem-se a finalidade de transferir a doença da
criança para um objeto qualquer (árvore, rochedo, terra); por outro lado, imita-se o próprio ato do
parto pela terra (a passagem através do orifício.) (ELIADE, 2008, p. 204.)
poder é, por sua vez, validado por uma ontologia.5” (2008, p. 216-217). João de
Jesus Paes Loureiro, ao pensar sobre a simbologia da árvore, diz que “revelam
uma simbologia teocêntrica, crescem para o auto, configuram nuvens verdes com
suas folhagens, apontam para o infinito onde algumas crenças instalam o reino de
Deus.” (LOUREIRO, 1995 p.130). Ainda complementa que,
Elas enterram suas raízes no solo de onde retiram água para a circulação
vital da seiva; O tronco realiza a libertação da terra e uma invação no ar
J com seus galhos e centenas de folhas; as raízes convivem com a escuridão,
o silêncio e os répteis, enquanto que as folhagens com os pássaros. A árvore
articula todas as diversidades que compõem a unidade da vida. (LOUREIRO,
A 1995 p.130)
Não só a árvore, mas também as plantas estão relacionadas às simbologias
L de vida, cura e renovação. É sabido que no Brasil algumas delas estão impregnadas
de sacralidade, manuseadas por pessoas que se constituem autoridades da cultura
L popular6 (GRANDO, 2007), como importantes referências para a comunidade, na
qual fazem remédios específicos com plantas cultivadas em seus quintais e/ou
A retiradas da vegetação circundante, como as garrafas7, além de outras ações que
envolvem fé, rezas, manipulação de plantas medicinais no alivio e/ou cura de

doenças.
É comum que estes benzedores ou curandeiros, como são chamados,
busquem na natureza os ingredientes que precisam, certas plantas/ervas especiais
• para fazerem chá, passar em locais feridos ou servirem de amuleto e ou ingrediente
1066 em certos rituais de cura, inclusive em ocasiões de picada de animais peçonhentos,
como as cobras. Os vegetais “sacralizados” ou “místicos” são imprescindíveis para
• realização destes feitos que envolvem certa ritualística (como a próprio conhecimento
da oração específica para o fenômeno/enfermidade tratada) e que, na falta delas,
são difíceis de serem substituídas. Camargo (2014), ao se basear nas ideias de
Durkheim (1989), menciona que “as plantas tornam-se sagradas quando de seu
deslocamento para outro sistema, diferente daquele de sua origem – o do contexto
2 vegetal propriamente dito – e, quando da imputação a elas de um valor sacral” (p.
9) e que ainda, “nas religiões de origem e influência africana a sacralização das
0
5  O autor diz que se a árvore está carregada de forças sagradas, é porque é vertical, é porque
cresce, é porque perde as filhas e as recupera (“morre” e “ressuscita”), porque, por conseguinte,
1 se regenera inúmeras vezes, porque tem seiva, etc. Todas estas validações têm a sua origem na
simples contemplação mística da árvore, como “forma” e modalidades biológicas. (ELIADE, 2008, P.
8 217) (sic.) A árvore possui ainda correção arquetípica com a figura da mãe, protetora e sagrada, que
cuida e protege aqueles que dela se aproximam. Para Neumann “como árvore da vida que dá frutos,
ela é feminina: gera, transforma e nutre; as folhas, os ramos e os galhos estão “contidos” nela e lhe
são dependentes. O aspecto protetor torna-se claro na copa, que abriga os ninhos e as aves. Além
disso, a árvore desempenha a função de conter, porquanto é o tronco “dentro” do qual vive o seu
espírito, assim como a alma habita no corpo.”
(NEUMANN, 1999, p.53)
6  Para a autora, estas pessoas são reconhecidamente lideranças na manutenção da cultura
popular, bastante participativos nas manifestações populares e que, esporadicamente também são
detentores de conhecimentos sobre processos de cura e “benzeção”.
7  Garrafada , designativo de formulas medicinais de uso entre brasileiros que recorrem à medicina
popular, cuja origem remonta a séculos atrás (CAMARGO, 2011, p. 41)
plantas ganham dimensões extraordinárias, visto estarem presentes em todos os
momentos da vida religiosa.” (CAMARGO, 2014, p.9).
Em Mata Cavalo, seguindo o exemplo de diferentes regiões do país, têm-se
a figura dos curandeiros, famosos na região e responsáveis por gerir os processos
de cura, além de outros afazeres.
Com base no conhecimento empírico acumulado, desenvolvido através de
uma dinâmica própria, as práticas médicas populares8 vão se adequando
J às realidades que o tempo histórico vai delineando; segundo, os diferentes
contextos socioculturais, nos quais se inserem. Seu vínculo com elementos
doutrinários de cunho religioso, de diversas origens, nos faz entende-
A la como uma medicina sacralizada, de contorno nitidamente mágico-
religioso. Decorrente da diversidade dos sistemas de crença envolvidos no
L processo histórico das práticas médicas populares, diferentes categoriais
de profissionais, com suas designações próprias, vão firmando-se nos
diferentes contextos socioculturais, como seus protagonistas, tais como:
L curandeiros, benzedeiras, rezadores, raizeiros, pais e mães-de-santo,
mestres catimbozeiros, juremeiros, pajés urbanos e pajoas, entre outros.
(CAMARGO, 2011, p. 42)
A
Desta imensa variedade, alguns benzedeiros são especializados no trato
com animais, como salienta Vizotto, ao dizer que,
No Brasil é comum, principalmente na zona rural, a existência de uma gama
de pessoas consideradas privilegiadas por terem “o corpo fechado” contra
• ataque de animais peçonhentos. São consideradas por “curadores”, “ben-
zedores”, “caboclo velho”, “encantadores”, “encantados” e outros tipos de
1067 “curandeiros”. Gozam de excelente prestígio junto à população mais crédu-
• la, apregoando suas virtudes de “fascinadores” ou “chamadores” de serpen-
tes sendo capazes de levar à cura os acidentados por tais animais. Os meio
empregados, em tais casos, vão desde “benzeduras” e “simpatias”, acompa-
nhadas de rezas e gesticulações. Pode ser, ainda, ministrada a fitoterapia,
que compreende: Chás, meisinhas, garrafadas, purgativos, suadoros, de-
fumação, banhos de unguentos, seguidos de recomendações, para que as
2 atitudes e rituais não redundem em insucesso. (VIZOTTO, 2003, p.128)
Na comunidade de Aguassú, uma senhora, dona Berenice diz que dentre
0 suas habilidades de “benzeção”, tem aquela de “segurar” serpentes ao dar um nó
na blusa ao entoar uma oração a Deus e a São Bento, de modo que a serpente
1 fica paralisada, independentemente de seu tamanho ou espécie. Vizotto diz que
este perfil de benzedeiros são conhecidos como “amarradores de cobras”, dos
8 quais “afirmam ser capazes de paralisá-las e fazer com que elas permaneçam no
local pelo tempo que estipularem, quando encontram durante o dia, as serpentes
peçonhentas, até poder coloca-las dentro de uma caixa.” (2003, p. 129). Neste caso,
a moradora não busca manusear o animal, mas proteger as pessoas do possível
perigo. Segundo ela,

8  A autora toma como medicina popular “uma medicina sacralizada, devido ao seu envolvimento
com diferentes sistemas de crença, as plantas, tornam-se, por sua vez seres sagrados. Considerando-
se, ainda, que, em rituais de caráter mágico-religioso que envolvem curas, tornam-se também
sagrados, ao serem investidos de poder, todos os elementos que compõem o conjunto ritualístico
adotado.” (CAMARGO, 2014, p.09)
E se eu vejo a cobra assim, eu vejo que ela é bem brava a gente tem que
matar ela né, porque senão ela vai pegar a gente. Eu pego e amarro na
blusa, faço com ela assim, pego e dou um nó na blusa e olho assim! Ela fica
segura assim até a gente matar ela, Ela não sai! Uma vez nós fomos lá na
minha irmã e uma cobra, eu não sei se era Jaracuçu ou canta galo, tinha uns
5 metros para mais, ela estava bem enrolada assim, bem na porteira da
minha irmã. Eu falei, porque que essa cobra esta enrolada ai? Quando ela
viu nós ela quis sair. Eu dei um nó assim na blusa e segurei ela. Fiquei
J mais de uma hora ali vigiando ela até o pessoal chegar. Quando o pes-
soal chegou ela quis sair assim, eu segurei de novo e ela parou onde estava,
brava! (Dona Berenice)
A
Sobre as outras ações de benzedores, Dona Ana exemplifica o benefício
L que o curandeiro trouxe a um rapaz, seu conhecido: “O irmão do Conrado, que ele
morava aqui, vivia doente, doente, com o pé inchado. bateu o derrame nele, o pé dele

vivia até redondo, inchado, até brilhava, ai ele foi lá na casa dele [do curandeiro]
L fazer garrafada. Aí ele sarou, acabou o inchaço. Registra-se em diversas etnias
e grupos humanos (ELIADE, 2008), homens que faziam papeis similares aos dos
A curandeiros (xamãs, pajés, feiticeiros, etc.), e ao fazê-lo, se tornam reconhecidos e
fundamentais nos cuidados com a saúde da população local, tribo ou comunidade.
Gomes et.al. menciona que “aqueles que praticavam as curas, que possuíam
conhecimento empírico sobre a fragilidade do ser humano, as virtudes das plantas
e dos venenos dos animais eram considerados detentores de poderes, de faculdades
• fantásticas, sendo diferenciados dos demais homens.” (2017, p.33),
1068 Estes indivíduos são detentores de “habilidades”, “conhecimentos” e/ou
“poderes” sagrados que os conferem grau diferenciado dos demais, de modo que

tais “dons” são legitimados pela fé e evocados no ato da reza ou “benzeção”, a partir
do chamamento do divino e na súplica pela cura do enfermo. Como diz Sousa, “o
agente da medicina popular é a mãe de família, o homem do povo, a avó e a parteira
[...] quem socorre a criança, o adulto enfermo, o velho. Os procedimentos adotados
são sempre inspirados nessas pessoas [...]”. (2014, p.02). Não encontramos em Mata
2 Cavalo pessoas que atualmente produzam a garrafada, com exceção de seu João
Leite (in memorian), que outrora fora indicado como um dos principais curandeiros
0 da comunidade. Dona Celina nos diz que,
Ninguém mais faz isso aqui, garrafada, essas coisas não. Porque gar-
1 rafada, tem que fazer para alguma coisa, diabetes, pressão, agora você vai
mexer com o que não conhece, daqui a pouco vai matar os outrosai. [...] tem
que ver o que você conhece, o que tem, o que a pessoa está tendo. Aí tomar
8 não é o problema, problema é vir a causa depois.(Dona Celina)

Outra moradora, dona Estevina, diz que não existem sequer benzedores
em Mata Cavalo atualmente9 e diz que seu pai e tio que realizavam procedimentos
de cura contra picada de cobra.
[...] Quem benzia aqui de cobra era meu pai e meu tio, que era o pessoal mais
velho aqui dos escravos, agora com nós aqui não tem mais, acabou, foi o tem-
po que existia, agora o pessoal aqui ninguém aprendeu oração de ben-
zer cobra, é muito difícil, aqui quando o povo fala que fulano foi ofendido

9  Apesar de conhecermos dona Berenice, líder da comunidade de Aguassú, relativamente distante


de cobra o povo vai direto para o hospital. É perto, porque aqui no livramento
tem gente com carro, dai já vai, já interna e fica la tomando soro, o soro da
cobra é feito próprio com o veneno da cobra.(Dona Estevina)

Em Mata Cavalo, há quem diga ser fundamental saber as “palavras


sagradas” da oração e que as mesmas não podem – ou devem – ser passadas de
qualquer forma e nem para qualquer pessoa. Como sinaliza Nery “algumas orações
não podem ser reveladas, como aquelas rezadas contra os inimigos ou para fechar
J o corpo, pois os benzedores10 temem que, revelando o segredo, elas ‘possam perder
o encanto’” (2014, p.03). Dona Berenice, além de líder, também é rezadeira da
A comunidade do Aguassú do Complexo de Mata Cavalo e diz que a oração deve ser
guardada em segredo, pois caso conte para terceiros, “enfraquecerá” o “poder” da
L oração. Como diz Vansina, “quase em toda parte, a palavra tem um poder misterioso,
pois palavras criam coisas.” (2010, p. 140). Quando Dona Berenice foi solicitada a

expor apenas um trecho da oração para picada de cobras, num primeiro momento
L relutante, diz não poder ensinar e que o próprio pai também não a ensinou, e que
prendeu pela observação, acompanhando o mesmo quando realizava tratamentos.
A Essa [oração] eu não posso ensinar. Senão enfraquece a gente, né. Se
ensinar a oração enfraquece. Essas orações assim eu aprendi com meu
pai. Meu pai não me ensinava. Se chegava uma pessoa aqui na casa dele
e dizia: “seu Manoel, tem uma pessoa lá em Cuiabá, assim, assim... quase
à morte!” ele perguntava “Qual é o nome dele?” e falava certinho, mostra-
va certinho, quando saia daqui e chega lá ele estava bonzinho. E nessa daí
• eu ficava perto do meu pai para aprender, e aprendia muita coisa com ele!
1069 Quando chegava gente assim lá em casa para benzer, eu que queria segurar
a criança, para aprender, só para mim escutar o que ele falava. Eu ficava
• olhando para ele assim e gravava tudinho o que ele falava, só porque
eu escutava, daí eu aprendi a oração contra ofendura de cobra, arca caí-
da, quebrante, dor de barriga, dor de cabeça, dor de dente, dor no pé.

Em entrevista realizada por Santana (2011), é relatado por um curandeiro


de Mata Cavalo que a pessoa, ao procurá-lo quando estiver “ofendido de cobra”,
2 “precisa ter fé”, pois só assim a oração funcionará sobre aquele que o procura.
Seu João Leite (in memoriam), famoso curandeiro11, dizia que estas orações ele
0 aprendeu com o bisavô, que transmitiu os dons e que por isso não teme de maneira
nenhuma qualquer tipo de cobra. Ao ser questionado sobre o perigo que as cobras
1 oferecem, diz não temer nenhuma delas:
Sabe por quê? Meu bisavô era curador de cobra, chamava a cobra que você
quiser. [...]Eu herdei este poder dele. De onde veio este poder dele, lá do
8
alto.. [...] podia esta onde for o cara, “aonde que esta mordido”, bem aqui, ah,
então espera lá, vou fazer uma oração para ele. Ele fazia a oração e falava,

da comunidade de Mutuca onde reside Dona Estevina.


10  Em Mata Cavalo, o termo popular mais utilizado é curandeiro ou benzedeiro.
11  Neste caso, talvez por ser evangélico, o termo “curandeiro” não é uma autodenominação, o
narrador se intitulava alguém de fé que ajuda as pessoas através da oração, sem atribuir ou se
intitular por nome específico. Uma moradora, em 2011, ao ser questionada se havia curandeiros em
Mata Cavalo, indicou seu João Leite, apesar de nunca tê-lo procurado pessoalmente.
“não tem mais jeito, tá morto” ele falava desse jeito.[...] nesse [Município de
N.S. do] Livramento, não tinha um que não curava ele de cobra12. (João Leite)

As pessoas que buscam a intervenção de curandeiros normalmente não


procuram conhecer o fundamento da ritualística dos processos de cura, pois tem
neles a convicção de serem pessoas de fé e sabedoras das rezas que resolverão
os males. Seu João Leite exemplifica que toda oração depende da fé daquele que
procura o benzedeiro e que o teor de sua súplica é um pedido a Deus pela intercessão
J ao enfermo. No caso das serpentes, diz não haver qualquer segredo nas palavras
utilizadas, pois é uma oração simples, mais ou menos assim: “Senhor Jesus, este
A individuo, esta ofendido desta mardita serpente, o que o senhor pode fazer por ele,
tem piedade dele, se ele tiver fé cura ele” é claro, depende da fé dele, dele e da
L minha. É oração simples. (Dona Estevina)
Uma moradora de Mata Cavalo, narra que procurou o curandeiro para
L tratá-la da picada de cobra e que as palavras eram difíceis, pois não entendeu,
somente o curandeiro sabia: Olha, ele [o benzedor] só mandou eu colocar o pé

assim, em cima de uma cadeira, eu não sei as palavras que ele falava... só ele
A entendeu, aí ele colocou as mãos dele, mas eu não sei as palavras. Só que ele falou
para mim: “só vou curar você contra o veneno.” Aí ele me curou contra o veneno
do bichinho. (Dona Guilhermina)
João Leite disse o mesmo, caso o enfermo procure hospitais ou local de
pronto atendimento médico, nem deverá chamá-lo, pois com isso demonstrará que

não tem fé e que “sempre haverá algum resquício do veneno”, pois “médico não
1070 cura nada, o que cura é Deus e a natureza que ele nos dá” (p.67). João Leite se
• dizia imune à picada de cobras, por sua fé inabalável na proteção de Deus. Quando
questionado se evitava certos caminhos, inclusive em horários mais propícios ao
aparecimento de cobras, respondeu:
Eu não, evitar por quê? Eu já sou curador de cobra. Você não sabia? a cobra
corre de mim, de medo. Eu curo de cobra, só se tiver morrendo. Eu faço uma
oração pesada, como também eu conheço todos os remédios que cura
2 de cobra. Faço uma garrafa, remédio temperado para o camarada beber, ai
pronto.(João Leite)
0
João Leite conta que somente pelo poder da fé em Deus e naquele que
realiza a oração é que se pode obter a graça de ser curado.
1 Ai em Livramento [Município de Nossa Senhora de Livramento] teve um que
era engenheiro, tem engenheiro formado, e tem o engenheiro de moer cana,
8 esse era engenheiro de moer cana, esse ai boipevãopegou ele, mordeu ele no
dedo. Bateu no dedo dele, ele ficou aleijado. Ai ele mandou me chamar, até
Rosa que chama a mulher dele, Dona Rosa mandou me chamar, meu marido
esta gemendo. Eu falei, é o seguinte: “eu vou curar seu marido” ele estava
com um vergão, passava aqui no dedo, passava nessa veia, ia certinho no
coração. Mas a pessoa que vai meter a mão nele, é só João Leite. Agora,
se outra pessoa meter, eu lavo minhas mãos. Agora, confia em Deus.
Se vir gente aqui, não deixa entrar. Não deixa entrar, porque a mordedura
da cobra é o seguinte, tem muita gente de olho ruim,isso faz mal para

12 João Leite Barbosa, 66 anos – in memoriam. Entrevista realizada em 2011. Fonte: Banco de
dados do pesquisador.
quem está mordido de cobra. Geralmente, quase que os evangelistas não
acreditam nisso, mas eu acredito [...].(João Leite)

Tem-se a narrativa, ou popularmente, certos “dizeres” em Mata Cavalo


que, quando se está de “resguardo” por causa do tratamento de picada de cobra,
pessoa nenhuma pode olhar o enfermo, necessitando ficar isolado de terceiros para
não receber as más energias, devido ao “Sangue. Sangue forte. Olha, às vezes
nego não tem sangue bom, às vezes entra lá e dá aquele choque. O tal da cobra
J é triste” ou “gente de olho ruim é triste”(João Leite), como salientou João Leite. Ao
continuar sua narrativa sobre o engenheiro (de moer cana), ele finaliza,
A Bom, ai eu fiz a oração para descer. Pedi ao Papai do céu para descer o ve-
neno do coração dele, daí depois de uns 2 minutos, acabou o vergão, ai eu
falei, para ai, vou pegar o remédio ai para você. Banhou o dedo dele com a
L mistura dos noves remédio, remédio do mato. Ele até deu um suspiro, “ufa,
não morro mais.” Eu disse, agora é o seguinte, ninguém pode te visitar,
L uma mulher muito sem beira, nome dona Ana Luiza, foi lá para aplicar injeção
nele, na costela dele. Ai ele falou “ow, Dona Ana, o seu João falou para
não dar injeção, não dar nada” “O João Gonçalo que falou...” gente
A incrédula é duro. Eu disse, se a senhora deixar entrar, vai catingar
defunto, certeza absoluta, tô te falando.(João Leite)

Outra moradora, dona Guilhermina, reafirma a crença na qual o enfermo


deve ficar isolado das demais pessoas, podendo visitá-lo somente se portar junto
de si um componente vegetal, para evitar o “quebrante” ou “quebranto”, causando

a morte da pessoa.
1071
Se nem Deus é de deixar, se uma cascavel, uma boipeva chegar aqui e picar
• você, pelo amor de Deus, você não fala que é cobra, pelo nome dela, e nem
deixar os outros veem você. Você tem que entrar... pelo menos sete dias
você tem que ficar no fechado. Quem for ver você tem que entrar com três
ramos verde para poder ver. Para não ter o quebrante. Se vê a pessoa
vem o quebrante do mal olhado aí mata a pessoa, muitos que nem sabem
nada disso. Minha mãe que sabe disso. Ela benze de “izipele”, agora é por-
2 que ela não está vindo, porque ela vai contar para você. [...] minha mãe conta
coisa hein... Tem uns mistérios, cobra é complicado. (Dona Guilhermina)

0 A insistência do tratamento através da fé e de remédios fitoterápicos


(plantados nos quintais ou retirados na mata – “remédio do mato”, como
1 popularmente alguns moradores dizem), bastante difundido em Mata Cavalo,
representam uma prática ou tendência de negação do conhecimento da medicina
8 contemporânea, que se fortalece com o avanço tecnológico, mas que, todavia, ainda
é distante das práticas tradicionais de muitas comunidades rurais, inclusive de
alguns moradores mais antigos da comunidade de Mata Cavalo. Em alguns casos,
a procura do hospital só acontece somente na ausência do curandeiro, que como
afirma Dona Estevina, “mas tem lugar que não tem benzedor e tem que ir para o
médico.”. Até mesmo quando procuram o médico, reforçam com a ida ao benzedor
para efetivamente se livrarem de sua enfermidade, como conta a moradora ao ser
picada por um escorpião:
Esses dias um escorpião me picou, [...] quando calcei o chinelo, [...] Eu disse,
corre tem que achar ele, eu gritava, oh trem que dói, dói... daí eu panhei ele,
coloquei dentro do vidro, [...]. Aí quando eu cheguei em Livramento já estava
formigando meu pé todinho. [...] o doutor aplicou umas quatro, cinco inje-
ções. Aí ele disse: A senhora vai ficar de repouso agora, eu não vou internar,
a senhora vai para casa, mas a senhora vai sentir dor, na hora que passar o
efeito do medicamento, a senhora vai gritar. Quando a senhora vem amanha
cedo e ele aplicou outra injeção. Daí o que aconteceu comigo: [...] eu fui no
benzedor e ele falou: Espera aí minha filha, eu vou curar você! Aí pegou e
benzeu contra o veneno dela, Nunca mais! Até hoje!(Dona Guilhermina)
J
Historicamente, esta figura do curandeiro/benzedeiro foi fundamental
para o acesso a tratamentos de certas enfermidades e/ou doenças. Sousa (2014),
A ao comentar sobre eles, diz que são fundamentais, pois “assumem uma finalidade
social, que é trazer a cena esses indivíduos que impulsionaram a formação daquilo
L que chamamos medicina popular, por despertar na população o censo de crer em
algo que transcendem sua vida e que pode resolver os seus problemas.” (p. 04).
L Segundo Lima et. al.
O ritual de benzer como recurso terapêutico reporta a cultura europeia, mas
especificamente a açoriana. Os açorianos trouxeram uma bagagem cultural
A repleta de crenças e religiosidades, que eram aplicados em todos os aspectos
do cotidiano, destaca-se o ritual de benzer como forma de esconjurar o mal,
se apegando na crença, do poder de Deus. As benzedeiras tinham o poder e
o conhecimento de curar e afastar os males físicos e espirituais de adultos
e crianças, enquanto que o homem era procurado em especial em casos de
picada de cobra, hemorragia ou para curar animais. (2016, p.7)

1072 Temos desde o período de Brasil Colônia, com a influência do cristianismo
no chamado “catolicismo popular”, o crescimento de modelos religiosos, que com

o isolamento da população no interior e com o distanciamento das instituições
(sobretudo de colégios católicos fundados em toda Costa brasileira) alimentou-se
“a ideia da prevalência da vontade divina quanto às doenças e curas” (SEABRA,
2003 apud. CAMARGO, 2014, p.44) e “remédios milagrosos de fórmulas secretas,
práticas piedosas, orações, promessas a santos protetores, penitências, procissões,
2 peregrinações a santuários [...].” (op.cit.).
Temos numa outra história de Mata Cavalo, a narrativa de um acidente
0 ofídico contado por dona Guilhermina, que com entusiasmo fala sobre a rezadeira
que utilizou uma vela e três ramos de guiné (Petiveaalliacea) não só para curar seu
1 filho, mas complementarmente, matar a cobra que o feriu.
Então, meu guri foi picado lá para banda da ponte de ferro, e foi aquela ja-
8 raraca que picou. Ele falou: mamãe, ela picou e ficou lá esperando! A gente
chegou a levar ele no pronto socorro, ficou, ficou lá no pronto socorro, mas aí
ele saiu de lá, ficou ainda minando aquelas águas de lá onde estava mordido,
aí chegou uma senhora lá do Jauru, que gostava muito dele, aí eu fui visitar
ela que tinha chegado, era vizinha nossa, a filha dela. Daí eu cheguei para
ela e falei assim: Ela perguntou: Como vai meu filho, eu respondi: Filho da
senhora não tá muito bem, bicho de chão... não pode falar que é cobra, tem
que falar “bicho do chão”. Então, “bicho do chão” pegou ele.. está passando
assim, assim... Ela falou: “ah, peraí minha filha, você vai ali e você trás...
pega uma vela para mim e trás trêsramosdeguiné para mim e trás ele aqui
para mim, vou curar meu filho.” ( Eu fiquei boba de ver) Aí eu peguei, vamos
Vagner, elavai benzer você e vai curar você. Daí eu levei para ela. Ela foi
lá na porta, acendeu uma vela, pegou os três broto de guiné, os ramos de
guiné e falou “meu filho, pisa nesse que tá aqui.” Aí ele pisou. Menino, eu
nunca vi uma coisa assim: Ela benzendo aquele guri e saindo aquela espuma.
(Dona Guilhermina)

Observamos nesta narrativa, dois poderosos elementos “mágico-


religiosos” usados para resolução do problema: A vela como sustentáculo do fogo
J e os três ramos de guiné. Para Chevalier e Gheerbrant (2015), simbolicamente,
o fogo13 representa a prolongação ígnea da luz, a purificação, elevação ao etéreo,
sabedoria humana, sobreposição do sagrado sobre o profano e iluminação (solar e
A
divina). Complementarmente no catolicismo cristão, o simbolismo do fogo é tomado
como inspiração e iluminação. Com esta aproximação, temos na referência da Luz
L a própria equivalência de Jesus Cristo, evidenciado em passagens bíblicas como
“Eu sou a luz do mundo; quem me segue não andará nas trevas; pelo contrário,
L terá a luz da vida. (João 8:12)”, “Deus é luz; nele não existe a mínima sombra de
treva (João 1: 5-7)“ “O povo que jazia nas trevas viu uma grande luz (Isaías 9:2)”,
A etc. (BIBLIA, 2002). Ao considerar o contexto eminentemente cristão das rezas
realizadas na comunidade de Mata Cavalo, o fogo exerce sua importância como

equivalente da Luz divina nos rituais de purificação e sobretudo, na cura contra
malefícios de animais, dentre elas a de outros animais peçonhentos como as cobras
que, por si só, já se vinculam ao mal numa perspectiva judaico-cristã.
• Seguindo a narrativa de Dona Guilhermina, mesmo após a visita ao
1073
médico, diz que foi a benzedeira, que questiona a eficácia dos remédios do hospital
(soro antiofídico), cura a criança e faz com que a serpente morra no processo,
• somente com o poder da oração.
Depois que [o filho] passou pelo pronto socorro, estava saindo aquela espuma
de onde ela [a cobra] tinha mordido. Ela [a benzedeira] falou assim: “você
está vendo minha filha, o tanto de veneno que ainda estava nele? Isso aí ia
apodrecer tudo a carne do pé dele. Assim, essas espumas, sangue pisado.
2 Tudo isso aí é veneno minha filha, nem o que ele tomou no pronto socorro
não ia dar conta, ia apodrecer essa roda do pé dele!”aí ela falou: “você
tem carro, minha filha?” Eu falei, não senhora. “Caça uma pessoa que tem
0 carro, vai lá na ponte de ferro e vai lá vê ele, está lá virado de bruços, a
cobra. Morrendo de barriga pro alto. Você não acredita minha filha, vai lá
ver? Está lá acabando de morrer. A benção que eu fiz nele aqui, vai lá nele,
1 está lá morrendo lá dentro da água, está lá virando lá morrendo.” Incrível
né! [...]Eu vi com meus olhos, não foi mentira, eu vi, eu que peguei a vela e
8 peguei os três raminhos de guiné e falei: Vamos lá, ela fez isso três vezes
já. O guri meu está aí, pai de família.14(Dona Guilhermina)

Os ramos de guiné15, juntamente com outras plantas medicinais, a exemplo
dos ramos de arruda (Rutagraveolens), espada de são Jorge (Sansevieriatrifasciata),
alecrim, (Rosmarinusofficinalis), camomila (Matricariachamomilla), dentre outras
13  Refere-se aqui ao “fogo espiritual” que irradia e evoca a simbólica solar, diferentemente do
“fogo sexual”, que se distingue nas constelações psíquicas entre sociedades agrárias e caçadoras.
(CHEVALIER, 2015, p. 514).
14  Dona Guilhermina, Moradora de 59 anos – Entrevista realizada em14 de Novembro de 2015.
15  Para a etnofarmacologia – termo científico surgido em 1967 em um Simpósio Internacional em
espécies, que compõe uma numerosa lista de vegetais (ou plantas medicinais)
associados a tratamentos fitoterápicos da medicina popular tradicional, cujo
conhecimento é repassado por gerações. Almeida (2011) acredita que “a origem
do conhecimento do homem sobre as virtudes das plantas confunde-se com sua
própria história. Certamente surgiu, à medida que tentava suprir suas necessidades
básicas, através das casualidades, tentativas e observações [...].” (p. 35). Com o
avanço das pesquisas na medicina contemporânea na área da fitoterapia, tem-
J se observado correlações das substâncias químicas encontradas em plantas
medicinais e seus efeitos com as recomendações/utilizações tradicionais.
A Além das manipulações de chás para prevenir ou curar certas
enfermidades, as plantas com propriedades espirituais também são constantes
L no conhecimento tradicional. Em estudo realizado na área de etnobotânica numa
comunidade próxima a região de N.S. de Livramento, Mamede (2015) menciona

que a Guiné é uma planta de “proteção”, “fundamentado no uso em crenças e ritos
L espirituais.” (p.89). Para o autor,
Algumas espécies, como a guiné, são utilizadas para proteção (“mau-olha-
A do”), localizada bem na entrada da casa, pois acreditam que a planta é um
ser tão sensível que absorve a influência negativa antes da pessoa entrar
em sua casa. A guiné também é utilizada em banhos protetores, que podem
estar relacionados apenas a uma parte do corpo ou no corpo inteiro, depen-
dendo da parte do corpo que o mal acomete. (MAMEDE, 2015, p.89)

• Ao ser inserido na sessão ritualística juntamente com a presença do


1074 fogo, o Guiné exerce forte condutor para a oração de purificação contra o malefício
da cobra. Mamede, ao comentar sobre Pasa (2007), ainda diz que “à guiné se refere
• como uma planta indicada para espantar maus espíritos, inveja e mau-olhado.
Igualmente a espada-de-são-jorge, arruda, alho, café, para fazer banho do “corpo
todo” e defumação da casa.”. (MAMEDE, 2015, p.89). Sousa diz que esta aproximação
com os vegetais sempre esteve presente, desde o período colonial, em que se utilizava
estes vegetais também para o combate ao mau-olhado, independentemente da fonte
2 da má energia.
O homem da colônia tinha a percepção de que todo mal que lhe advinha
0 era em decorrência de demônios e influências malignas, sobretudo as doen-
ças, pensava-se que um simples olhar poderia reproduzis danos às pessoas,
principalmente em crianças e animais domésticos, o método que se encon-
1 trou para fugir disso foi o uso novamente de plantas como a arruda, que se
pensava poder ela remediar os males e afastar o “mal olhado” [...] (SOUSA,
8 2014, p. 03)

Nestes aspectos, assim como Sousa exemplifica no uso da arruda, o guiné



representa o valor simbólico do vegetal nas rezas de Mata Cavalo, espantando as
más energias e toda negatividade do ambiente, inclusive de cunho espiritual. Estas

São Francisco nos Estados Unidos – O guiné (Petiveriaalliaceae, L.) da família Phytolacacceae, tinha
como sinonímia popular o nome Amansa-senhor. Este nome, deve-se ao fato de ser preparada por
escravos domésticos sob a forma de chá e misturada às refeições dos senhores e feitores, causando
sonolência e, portanto, tornando-os mais brandos na convivência diária. Estudos farmacológicos
pré-clínicos mais recentes, confirmam a ação da Petiveriaalliaceae L. sobre o sistema nervoso
central. (ALMEIDA, 2011, p.46)
plantas de “poder” são comuns enquanto conhecimento popular, como demonstra
Leite (2003): “À guisa de breves exemplos, no Brasil observa-se que alguns vegetais
possuem poderes para além dos terapêuticos-naturais. O famoso ‘banho de cheiro’,
para a boa sorte, atrair, marido/esposa, dinheiro é muito comum” (p.127) e ao
prosseguir, evoca Thomas Keith que acrescenta “certas árvores e arbustos – a
sorveira-brava, a verbena, o visco, a angélica – tinham seus ramos cortados para
se pendurar no corpo ou na casa, como amuletos contra feitiços. O louro, a faia e
J o alo porró eram plantados próximos as casas para protegê-las de raios.” (1988,
p.89)” Portanto, não é por acaso que estes elementos se incluem nas rezas contra
as serpentes, dada sua importância, poder e aplicação no uso popular em todo
A
Brasil, e agora, como registrado, também em Mata Cavalo.

L Outra crença na comunidade, dita por Dona Berenice, dá conta que
se vermos de alguma maneira os “braços” (ou pernas) da serpente (que estão

escondidas), nós instantemente morreremos, pois eles foram escondidos e
L agredirmos o animal com certos vegetais, eles aparecerão.
Cada um tem um jeito, cada um tem um estilo de benção, de praga. A cobra
A tem braço mas a gente não vê. Por isso que a gente não pode bater na co-
bra com pau de quiabo e nem com taquara, porque ela aparece as pernas
e se aparecer a gente morre! Não pode aparecer! Nem!(Dona Berenice)

Vizotto diz que o relato de pessoas que afirmam terem visto “braços” ou
“pés” em espécimes de serpentes é bastante comum no Brasil, fato que podem ser
• explicados por alguns fatores que se diversificam:
1075 Existem espécies de serpentes que se assemelham a certos lagartos (lacer-
tílios), da família Anguídeos (Ophiodesstriatus, Ophiodesvertebralis e Ophio-
• desyacupio), popularmente conhecidos como cobra-se-vidro, quebra-quebra
ou licranço que apesar do nome e aspectos serpentiformes, não são serpen-
tes; Algumas espécies de serpentes tem como item da alimentação certas
espécies de anuros (rãs, sapos e pererecas)16 dos quais são engolidos intei-
ros, iniciando o processo de deglutição da cabeça, de modo que no momento
2 do engolimento, os pés destes animais ficam expostos pela boca e passam a
impressão, para olhares desatentos, de que a cobra possui pés; Os machos
das serpentes possuem órgãos copuladores em uma bolsa na base da cau-
0 da, subdividida em duas partes que dão origem aos dois hemipênis17, que
durante a cópula ficam expostos, fato que podem levar observadores a acre-
ditar que são falsos “pés”; Uma última possibilidade, embora da confusão
1 de serpentes com pés é a de que um pequeno lagarto (embora não existente
no Brasil) que possui o corpo serpentiforme com a adição de uma cintura
8 escapular, o que dá a aparência de uma serpente com pés. (VIZOTTO, 2003,
p. 156-157)

Nenhuma destas situações está associada a perigos de morte para o ser

16  Destaca-se a boipeva (Xenodonspp, Waglerophismerremii), boipevaçu (Hydrodynastes gigas),


azulão-bóia (Leptophisahaetulla), cobra-d’agua (Helicopscarinicauda), papa-pinto (Drymarchon
corais), etc.
17  O Hemipênis é uma estrutura presente nos machos, sustentado por uma musculatura especial
que tem como função o tornar erétil o órgão sexual. “O hemipênis é exteriorizado em contato com a
cloaca da fêmea e introduzido até o oviduto com o fim de processar a fecundação.” (VIZOTTO, 2003,
P. 158).
humano, todavia, o imaginário de Mata Cavalo a concebe negativamente e teme
que elas – as serpentes – façam mal de alguma forma, talvez pelas recorrentes
histórias de picadas e sequelas de suas vítimas.
Ao ser questionada sobre o porquê destes elementos especificamente,
o“pau de quiabo” ou “taquara”, a moradora não soube responder e completa que
é o “segredo das coisas”, o que nos faz pensar sobre a associação e a aproximação
simbólica entre a serpente e o vegetal, como é o caso da ritualística durante a
J “benzeção” do enfermo picado por cobra, que mais uma vez se manifestam nas
narrativas e, no presente caso, correlacionado ao aparecimento dos braços da
A serpente que podem ocasionar, dentre tantas outras formas que a serpente oferece,
a morte do ser humano.
L Nestas e em outras aproximações simbólicas ensejadas em diferentes
narrativas populares é que as serpentes se presentificam em nosso imaginário.
Independente da multivariada conformação mítica, a serpente irá nos surpreender
L
pela força que trás, inspirada no animal que possui características ímpares na
natureza: Escorrega, sobe em árvores, entra nas fendas e desaparece no solo,
A além de seu olhar de fascínio, sua boca e veneno que oferecem perigo aqueles que
enfrentam. Desta forma, seja o animal ou as histórias que surgem a partir dele,
nosso imaginário está imerso em suas peculiaridades, possibilidades e potências
simbólicas.
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1077

2

0

1

8

J

A

L A LITERATURA MARGINAL-PERIFÉRICA NOS ANOS INICIAIS DO
ENSINO FUNDAMENTAL: UM ESTUDO DE CASO
L
Sandra Cristina da Silva Rebelo (USCS)
A Ana Silvia Moço Aparício (USCS)
RESUMO: Neste trabalho, apresentamos resultados de uma pesquisa que investigou
o processo de inserção da literatura marginal-periférica nos anos iniciais do ensino
fundamental da rede municipal de São Paulo, por meio do projeto da Sala de Leitura.
Seguindo a metodologia do estudo de caso, realizamos análise de documentos oficiais
• e entrevistas semiestruturadas com os envolvidos no processo. Tomamos como
aporte teórico do trabalho autores como Canclini (2015), Freire (2001) Dalcastagné
1078
(2012), entre outros. O estudo buscou apontar aspectos sobre como a literatura
• marginal-periférica, tem sido inserido em ambientes educacionais formais e quais
valores representa, do ponto de vista social, cultural e estético. Os resultados
revelam interesse e preocupação de algumas políticas públicas educacionais com
a concretização de ações de inclusão social, cultural, de identidade e igualdade.
Concluímos que na contemporaneidade as necessidades sociais de práticas de
2 leitura no contexto escolar tornaram-se outras e têm sido usadas como ferramenta
de inclusão social.
0 Palavras chave: Literatura marginal-periférica. Salas de leitura. Formação de
professores dos anos iniciais. Leitura literária na escola.
1 Introdução
Jogando contra a massificação que domina e aliena cada vez mais os assim
8 chamados por eles de “excluídos sociais” e para nos certificar de que o povo
da periferia/favela/gueto tenha sua colocação na história, e que não fique
mais quinhentos anos jogado no limbo cultural de um país que tem nojo de
sua própria cultura, a literatura marginal se faz presente para representar a
cultura de um povo, composto de minorias, mas em seu todo uma maioria.
(FERRÉZ, 2005, p.11)

Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa de mestrado


profissional que teve como objetivo principal investigar o processo de inserção da
literatura marginal-periférica nas Salas de Leitura (daqui em diante SL) da Rede
Municipal de São Paulo, com foco nos anos iniciais. O propósito da investigação
foi o de contribuir para a compreensão da integração dessa literatura nas escolas,
considerando suas vias e instâncias de inserção.
Partindo de uma problemática relacionada a nossa prática docente, como
Professora Orientadora de Sala de Leitura (daqui para frente POSL), a pesquisa foi
realizada por meio da metodologia do estudo de caso, com contribuição e inspiração
da metodologia de pesquisa narrativa, para o exame dos relatos dos entrevistados.
Os dados da pesquisa foram produzidos com base em análise documental e
J entrevistas semiestruturadas realizadas com envolvidos no processo dessa inserção,
o que contribuiu para acontextualização histórica do projeto das SL, como também
A para a explicitação de ações epropostas de políticaspúblicas que garantiram,
nacontemporaneidade, espaços para a entrada das produções periféricas na escola.
L O estudo buscou apontar aspectos sobre como a literatura marginal-
periférica, esse “produto cultural” produzido pelas/nas periferias, tem sido inserido
L em ambientes educacionais formais e quais valores representa, do ponto de vista
social, cultural e estético. Os resultados revelam interesse e preocupação de algumas
políticas públicas educacionais com a concretização de ações de inclusão social,
A cultural, de identidade e igualdade, por meio do currículo escolar e da inserção da
literatura marginal-periférica na escola. Essas intenções puderam ser observadas
tanto na escolha do acervo disponibilizado aos professores e alunos, quanto nas
ações e projetos paralelos desenvolvidos junto às SL da rede municipal. Concluímos
que as necessidades sociais de práticas de leitura no contexto escolar tornaram-
• se outras, pois o grande papel que se deve atribuir à literatura, na escola, não
1079 está relacionado à formação social dos sujeitos somente por meio dos clássicos,
• mas também como ferramenta de inclusão social, por meio de diversos gêneros
literários, como a literatura marginal-periférica, que nos convidem a reflexões
que estabeleçam relações com diferentes contextos sociais. Nesse sentido, a SL
configurou-se, no período de 2013-2016, como um dispositivo de ação social,
cultural e pedagógico, valorizando as literaturas não hegemônicas e garantindo o
2 direito à literatura.
A literatura literária na escola

0 Em tempos de globalização, temos acompanhado as diversas mudanças


culturais decorridas na sociedade contemporânea, atingindo diversas instâncias,
1 inclusive a literária.Segundo Canclini (2015), o processo de “hibridação cultural”,
resultante desse sistema de integração, promoveu a desterritorialização e o

rompimento de barreiras culturais, proporcionando uma “mistura” entre as
8 diversas culturas, abrindo novos espaços e fronteiras, favorecendo a convivência
com a diversidade e a pluralidade cultural.
Assim, nesse contexto,o campo literário também passou por um
redimensionamento, desembocando em novos conceitos e fazendo com que a noção
de literatura abrangesse novas possibilidades e manifestações, garantindo um
espaço mais plural, com abertura a novas vozes sociais.
Segundo Candido(2011) a literatura é configurada como uma importante
ferramenta de comunicação, instrução, poder e educação. Assim, podemos
pensar que a literatura pode muito bem servir como instrumento de exclusão, de
manutenção de status, de reafirmação de hierarquia social, da cultura dominante,
mas que também pode estar a serviço de uma nova territorialidade, que liberte,
que reconheça a diversidade, que aceite as diferenças e que inclua, abrindo novos
espaços nesse terreno de lutas.
Sendo reconhecida como uma prática essencial, a literatura tornou-
se mais do que o simples ato de ler, mas algo necessário do qual devemos fazer
uso para agirmos como agentes transformadores da sociedade em que vivemos.
J (SOARES, 2011).
Para Freire (1989), a leitura é extremamente relevante em nossas
A vidas e envolve mais do que uma aprendizagem, mas constitui-se em um ato de
libertação:depoder ler com criticidade, com autonomia, podendo opinar e interagir
L sobrequalquer texto que se lê e sobre a realidade.
Dada a relevância atribuída a leitura na existência e na constituição do
L homem como ser social, educação e literatura tornaram-se grandes aliadas. Isso
porque, a leitura considerada como uma prática essencial na formação crítica dos
cidadãos e, como prática cultural, não é inerente ao homem e precisa ser aprendida.
A Nesse sentido, a escola configurou-se como um lugar de destaque e consolidação
desse papel.
Assim tornou-se indiscutível a necessidade de reflexões sobre as formas
de escolarização da literatura e suas perspectivas de trabalho no âmbito escolar.
As possibilidades de trabalho com a literatura são amplas, capazes de conceber

diálogos com diversas instâncias do conhecimento e ultrapassar fronteiras.
1080 Contudo, o que determina isso é o tipo de ensino que se atribui a ela, voltado para
• o desenvolvimento do letramento literário, para as práticas sociais, associando-se
conhecimento, prazer e fruição, ou não.
Para que a literatura seja considerada adequada e faça sentido para o
aluno, sabemos que é preciso considerar práticas, métodos e escolhas desenvolvidas
pelo professor, além de considerá-la em uma perspectiva ampla e plural. Caso
2 contrário, é como afirma Lajolo (1982, p.15): “Ou o texto dá sentido ao mundo, ou
ele não tem sentido nenhum.”
0 A escola, enquanto instituição social, tem um caráter fundamental na
constituição do sujeito e, influenciada pelas transformações da contemporaneidade,
1 parece acompanhar avanços e necessidades sociais. Contudo, esses avanços não
podem se configurar apenas nos discursos, mas é essencial transformar-se em

práticas. Apesar de ainda reproduzir mecanismos de dominação da classe dominante,
8 a escola dos últimos anos aparenta buscar caminhos para ações transformadoras
e libertadoras, capazes de favorecer a consciência crítica dos sujeitos, a reflexão, a
humanização, entre outros.
Para que isso aconteça é preciso mudar concepções, ideologias e
paradigmas entranhados na nossa sociedade e, consequentemente, nas nossas
escolas. A modernidade exige uma escola democrática e acessível, que valorize
diferenças e acolha os sujeitos, suas necessidades e seu contexto. Ao adotar tais
procedimentos, objetivará a formação plena dos sujeitos. Com essa finalidade, não
cabem visões conservadoras, estanques, uniformizadoras e excludentes na escola
de hoje. Portanto, ao desejar-se que os alunos tornem-se leitores literários, que
desfrutem da fruição, do prazer e do entendimento da leitura, não basta oferecer
ou validar apenas um tipo de literatura, como se aquela fosse a mais importante
ou de maior valor, como no caso da literatura clássica, canônica.
Foi nessa direção que a Prefeitura Municipal de São Paulo, na gestão
2013-2016, implantou e executou uma política de leitura na Rede, na perspectiva
da descolonização curricular, da bibliodiversidade e da promoção das literaturas
J não hegemônicas. O objetivo dessa política de leitura foi favorecer a aproximação
dos alunos às diversas narrativas, culturas e autores que os representassem,
A decorrendo daí a inserção da literatura marginal-periférica nas SL.
Os procedimentos metodológicos e os dados da pesquisa
L A pesquisa foi desenvolvida com base na metodologia do estudo de caso,
considerando análises documentais e entrevistas semiestruturadas. Para o exame
L dos relatos, obtidos por meio das entrevistas, nos inspiramos na metodologia da
pesquisa narrativa. O levantamento e análise documental foram realizados no
âmbito municipal, referente a projetos e programas envolvidos com as SL da Rede
A
Municipal de São Paulo, tentando entender seu funcionamento, organização e
contextualização, do ponto de vista pedagógico, político e histórico.
As entrevistas envolveram pessoas responsáveis e envolvidas com o
projeto das SL , que pudessem oferecer elucidações acerca da pergunta que
• permeou a pesquisa. Iniciamos pelo Núcleo Técnico de Currículo – Sala e Espaço
de Leitura (daqui em diante NTC-SAEL), no qual entrevistamos a coordenadora e
1081
um membro da equipe técnica pedagógica. Posteriormente, as entrevistas foram
• direcionadas ao Núcleo Técnico de Currículo – Núcleo de Educação Étnico Racial
(daqui em diante NTC-NEER), onde as interlocuções foram estabelecidas também
com o coordenador. Na sequência, entrevistamos dois POSLs, a quem chamarei
de “Professor da Escola A” e “Professor da Escola B” e, onze alunos, sendo 3 da
“Escola A” e 8 da “Escola B”.
2 A Literatura Marginal-Periférica e sua inserção nas Salas de Leitura da
Rede Municipal de São Paulo
0 O conceito de literatura marginal-periférica está relacionado a textos
e obras produzidos por autores periféricos, que retratam vivências, cenários e
1 linguagens que representam e caracterizam o contextoem que vivem, ao mesmo
tempo em que tais autores encontram-se às margens: social, editorial e outros.
8 Os textos marginais-periféricos apresentam narrativas queversam sobre
circunstâncias reais daperiferia edos mecanismos excludentes e discriminatórios da
sociedade. São obras queexpõem questões relacionadas à representação identitária
e cultural, em que personagens são capazes de remodelar pensamentos e maneiras
de ver e viver a vida, alicerçados em vivências. A cada situação descrita nas obras,
os leitores são convidados ao diálogo ea reflexão, tornando-se mais do queleitores,
mas observadores e perscrutadores atentos do seu território, dasuacondição social
e das alternativas viáveis.
Segundo Oliveira (2011), os termos: marginal e periférico, apresentam
conceitos intimamente ligados a representações, não apenas de mundo como
de identidades, sendo uma consideração importante para se pensar sobre “[...]
a produção literária contemporânea originada nos morros e favelas das grandes
cidades brasileiras, o modo como ela se inscreve no contexto sociocultural em que
se situa, as experiências que ela traduz e as identidades que engendra.” (OLIVEIRA,
2011, p. 33).
Sobre isso, Nascimento, em entrevista concedida à Ingrid Hapke,
da Universidade de Hamburgo, Alemanha, ao Fórum de Literatura Brasileira
J Contemporânea, esclarece:
[...] a expressão literatura marginal serve para classificar as obras literárias
A produzidas e veiculadas à margem do corredor editorial; que não pertencem
ou que se opõem aos cânones estabelecidos: que são de autoria de escritores
originários de grupos sociais marginalizados; ou ainda que tematizam o que
L é peculiar aos sujeitos e espaços tidos como marginais. Desde o final dos
anos noventa, alguns escritores brasileiros passaram a atribuir a si e aos
L seus produtos literários o adjetivo “marginal”, tanto por conta do contexto
social a que estão ligados – favelas, periferias e presídios – quanto pelo tipo
de literatura que estão produzindo, que busca expressar o que é peculiar
A aos sujeitos marginalizados, como negros, pobres, presidiários etc. Mais re-
centemente, alguns escritores oriundos das periferias começaram a utilizar
a designação “literatura periférica” para classificar sua produção e a de ou-
tros escritores com semelhante perfil sociológico, a fim de evitar o sentido
do termo “marginal” que reporta aos indivíduos em condição de marginali-
dade em relação à lei. Entretanto, para diversos escritores e estudiosos, as
• expressões “literatura marginal” e “literatura periférica” podem ser vistas
1082 como sinônimos no cenário contemporâneo (HAPKE, 2010, p. 219).

• Dessa maneira, observa-se que na contemporaneidade, a cultura


periférica ganhou visibilidade, rompeu fronteiras com o centro, tornando-se uma
importante ferramenta social, de denúncia, de contestação, de testemunho, de
empoderamento e reconhecimento, sendo capaz de mostrar o seu valor e ganhar
legitimidade.
2 Contudo, ainda é um cenário caracterizado por muitas tensões. Isso
porque, a cultura é um campo de forças, de disputas e de lutas, criando conflitos
0 permanentes.
No campo literário, as produções marginais-periféricas, muitas vezes
1 desclassificadas e desvalorizadas pela crítica, ganharam grande visibilidade.
Uma coisa é certa, queimaram nossos documentos, mentiram sobre nossa
história, mataram nos antepassados. Outra coisa também é certa, menti-
8 rão no futuro, esconderão e queimarão tudo que prove que um dia a classe
menos beneficiada com o dinheiro fez arte. Jogando contra a massificação
que domina e aliena cada vez mais os assim chamados por eles de ‘excluídos
sociais’ e para nos certificar que o povo da periferia/favela/gueto tenha sua
colocação na história, e que não fique mais 500 anos jogado no limbo cultu-
ral de um país que tem nojo de sua própria cultura, a literatura marginal se
faz presente para representar a cultura de um povo, composto de minorias,
mas em seu todo uma maioria (FERRÉZ, 2005a, p. 1).

Entretanto, na literatura marginal-periférica contemporânea, não é mais


só a voz do autor que aparece nas obras, mas a voz de um grupo. São vozes que
posicionam-se contra o status quo, contra a hierarquização, a segregação e todas
as adversidades enfrentadas no contexto periférico. Passou a ser considerada como
uma escrita legítima, engajada, que tem muito a dizer. Isso posto, podemos dizer que
a literatura marginal-periférica apresenta peculiaridades marcantes concernentes
aos temas abordados em seus textos.
Diante dessas novas necessidades do mundo pós-moderno, a gestão
município 2013-2016, que teve a sua frente o ex-prefeito Fernando Haddad,
J com um plano de governo que tinha como metaa democracia, a diminuição das
desigualdades, o reordenamento do território, demonstrouavanços significativos
A na área da educação, criando espaços nas escolas municipais, para a entrada
desses novos discursos e novas práticas de leitura.
L À vista disso,pensou oprojeto “Sala de Leitura”, existente há 45 anos
e instituído como um componente curricular, foi pensada pela gestão municipal
2013-2016, como um espaço de construção pedagógica e sociocultural.
L
Preocupada em promover mudanças relevantes em todas as modalidades
de ensino, principalmente no que refere-se às práticas pedagógicas naturalizadas,
A abriu olhares e caminhos em busca da qualidade social da educação, decorrendo
em expressivosresultados na política de leitura do município, inclinada na
descolonização curricular, assegurando visibilidade para as literaturas não
hegemônicas e sendo capazes de trazer para o centro do debate as temáticas
relacionadas aos direitos humanos, gênero e relações étnico-racial, revelando uma
• política de leitura de fomento à diversidade.
1083 Promoveu ações articuladas pela Diretoria de Orientações Técnico
• Pedagógico (daqui em diante DOTP)da Secretaria Municipal de Educação (daqui
em diante SME), que viabilizaram a inserção da literatura marginal-periférica nas
SL, a partir de um projeto instaurado desde 2014, que surgiu da parceria entre o
Núcleo Técnico de Currículo (NTC) e o Núcleo de Educação Étnico Racial (NEER),
intitulado: Leituraço.
2 Desenvolvido por todas as escolas da Rede Municipal, o
Leituraçoinstitucionalizou políticas de ações afirmativas, com o propósito
0 da propagação, do incentivo e da promoção da literatura em amplo aspecto,
promovendo espaços de interlocução sobre produções literárias que corroboravam

para a representação e reconhecimento dos grupos sociais e das identidades que
1 historicamente foram ausentadas e mal representadas no cânone literário.

A proposta do projeto envolvia alunos, professores e demais profissionais
8 da escola, que deveriam mobilizar-se em sessões de leitura simultânea, por meio de
acervo relacionadoà temática étnico-racial, latino-americana, migrante, imigrante
e marginal-periférica, abrangendo a concepção da bibliodiversidade, no contexto
escolar.
O Leituraço configurou-se como um importante dispositivo para inserção
das literaturas não hegemônicas nas práticas educativas, sendo capaz de ampliaro
acesso à literatura e dar valor, significaras diversas identidades, servindo como
difusor das culturas, histórias, etnias e que compõem a nossa história. Ademais,
promoveu ações de leitura que permitiram reflexões sobre aspectos relevantes como:
igualdade, preconceito, discriminação, gênero, raça egrupos sociais, apontando
aspectos do hibridismo cultural e da interculturalidade da nossa sociedade.
No desenvolvimento do projeto, a compra do acervo foi considerada como
um componente fundamental.Efetuada de maneira representativa, a compra do
acervo buscou corresponder aos fundamentos do Plano Municipal do Livro, Leitura,
Literatura e Biblioteca (PMLLLB) da cidade.
Pautada inicialmente pelas leis: 10.639/2003 e 11.645/2008, a
J aquisiçãoenglobou temáticas, como:gênero, diversidade, literatura indígena,
africana, afro-brasileira, imigrante, migrante, latino-americana e marginal-
A periférica.
Em 2016, configurado como o auge do projeto, a SME empenhou-se
L em assegurar as mais variadas narrativas e personagens na compra do acervo,
contemplando, mais uma vez, o conceito da bibliodiversidade.
L Segundo a Coordenadora do Núcleo Sala e Espaço de Leitura, o projeto –
Leituraço – que teve início em 2014, conseguiu manter continuidade e ampliação ao
longo dos dois anos seguintes. Atrelado a uma compreensão críticas das relações:
A
sociais, de poder, de cultura, de raça, no país, o projeto foi avaliado pela gestão
Haddad como uma experiência exitosa.
A inserção da Literatura Marginal-Periférica nas Salas de Leitura da
Rede Municipal de São Paulo: o que dizem professores e alunos
• Pautado por uma concepção política e ideológica de emancipação
1084 e de direitos, o projeto da SL, no período de 2013-2016, direcionou-se por dois
grandes eixos norteadores: pensar a literatura como direito e valorizar a literatura

não hegemônica. Tal direcionamento trouxe a literatura marginal-periférica das
margens para o centro, demonstrando que a periferia é sim lugar de produção de
arte e cultura e promovendo a inserção dessa literatura para o contexto escolar.
Contudo, as ações empreendidas pela SME para inserção dessa literatura
nas SL da Rede Municipal, fizeram parte de uma das vias desse processo, pois
2 sabemos que tal ação, de inserção efetiva, não depende apenas de boa vontade,
políticas públicas ou projetos, visto que envolve também recepção e execução.
0 Nesse sentido, a escola é o lugar onde isso efetivamente se concretiza. Esse espaço,
é preciso lembrar, não é neutro, é lugar de muitas disputas, enfrentamentos e
1 embates.
No cenário da ressignificação das práticas educativas dos POSLs,as
8 formações foram usadas como estratégia fundamental,mas não serviram como
sinônimo de aceitação, compreensão e sensibilização de todos, demonstrando que
as práticas docentes são envoltas por crenças pessoais, histórias, convicções, gostos
e ideologias e,estabelecem-se dentro de um espaço circunscrito, a escola. E, assim
como qualquer outro espaço, a SL é um território, demarcado pela subjetividade
do sujeito que nele atua.
Assim, comprovou-se quemuitos POSL “aceitaram” a entrada das
literaturas não hegemônicas, no caso a literatura marginal-periférica, no contexto
das SL, mas não as inseriram de fato nesse ambiente. O quer nos fez considerar que
muitos professores balizaram suas práticas pedagógicas por crenças e preconceitos
individuais.
Pensando sobre a influência na escolha e mediação de textos literários
oferecidos aos alunos pelos POSL, durante a entrevista realizada com as alunas do
Contexto A, aqui denominadas de CA1, CA2 e CA3, isso ficou evidente, conforme .
Segue um trecho dos relatos:
Pesquisadora: Eu faço uma pesquisa sobre uma literatura específica, chama-
J da de literatura marginal-periférica...
CA1: O que é isso?
A Pesquisadora: Pois, é! Sou eu que pergunto... vocês já ouviram falar dessa
literatura?

Em coro: Nãaoo!
L
Pesquisadora: A professora de vocês nunca trouxe essa literatura para vocês?

Em coro: Nãaoo!
L
Pesquisadora: Aqui, na sala de leitura de vocês, tem essa literatura?
CA1: Não!
A Pesquisadora: E se eu disser que tá bem aqui, ó.... bem atrás da gente. Olha
o que está escrito aqui!
Em coro: Literatura de Periferia.
(Relato 1 – CA1, CA2, CA3 - Alunos do Contexto A).

• Contudo, foi possívelidentificar POSLs que sentiram-se pessoalmente


envolvidos com a política de leitura da cidade, redirecionando suas práticas e
1085
apresentando propostas concretas de inserção da literatura marginal-periféricanas
• SL, com os anos iniciais do ensino fundamental, oportunizando a construção de
identidades culturais e estimulando a autoestima.
Das obras que eu trabalhei com os alunos doquarto ano, eu gosto de desta-
car o Quarto de Despejo, da Carolina Maria de Jesus. Confesso que no início
achei que não dava pra trabalhar, não. Quando eu assumi como POSL eu
2 nem conhecia a literatura marginal. Fiquei conhecendo a partir das formações
que eu tive que fazer, lá na Secretaria de Educação. Mas também, quando
conheci...nossa, eu que me identifiquei! E aí eu ficava pensando... como tra-
0 balhar, na prática, com as crianças?[...]E eu tinha certeza de que as crianças
precisavam conhecer, precisavam ter acesso a essa literatura. Tinha tudo a
ver com eles (Relato 2 –Professor do Contexto B).
1
A seguir, apresentamos o texto extraído do livro: Quarto de Despejo: diário
8 de uma favelada (JESUS, 2013, p. 41-42), que é o texto com o qual o professor
trabalhou com os alunos do quarto ano do ensino fundamental e ao qual refere-se
nos relatos:
22 de maio. Eu hoje estou triste. Estou nervosa. Não sei se choro ou saio
correndo sem parar até cair inconsciente. É que hoje amanheceu chovendo.
E eu não saí para arranjar dinheiro. Passei o dia escrevendo. Sobrou macar-
rão, eu vou esquentar para os meninos. Cosinhei as batatas, eles comeram.
Tem uns metais e um pouco de ferro que eu vou vender no Seu Manuel.
Quando o João chegou da escola eu mandei ele vender os ferros. Recebeu 13
cruzeiros. Comprou um copo de augua mineral, 2 cruzeiros. Zanguei com
ele. Onde já se viu favelado com estas finezas?
... Os meninos come muito pão. Eles gostam de pão mole. Mas quando não
tem eles comem pão duro.
Duro é o pão que nós comemos. Dura é a cama que dormimos. Dura é a vida
do favelado.
Oh! São Paulo rainha que ostenta vaidosa a tua coroa de ouro que são os
arranha-céus. Que veste viludo e seda e calça meias de algodão que á favela.
... O dinheiro não deu para comprar carne, eu fiz macarrão com cenoura.
Não tinha gordura, ficou horrível. A Vera é a única que reclama e pede mais.
J E pede:
- Mamãe, vende eu para a Dona Julita, porque lá tem comida gostosa.
A Eu sei que existe brasileiros aqui dentro de São Paulo que sofre mais do
que eu. Em junho de 1957 eu fiquei doente e percorri as sedes do Serviço
L Social. Devido eu carregar muito ferro fiquei com dor nos rins. Para não ver
os meus filhos passar fome fui pedir auxílio ao propalado Serviço Social. Foi
lá que eu vi as lagrimas deslisar dos olhos dos pobres. Como é pungente ver
L os dramas que ali se desenrola. A ironia com que são tratados os pobres. A
unica coisa que eles querem saber são os nomes e os endereços dos pobres.

A Fui no Palacio, o Palacio mandou-me para a sede na Av. Brigadeiro Luís


Antonio. Avenida Brigadeiro me enviou para o Serviço Social da Santa Casa.
Falei com a Dona Maria Aparecida que ouviu-me e respondeu-me tantas
coisas e não disse nada. Resolvi ir no Palacio e entrei na fila. Falei com o se-
nhor Alcides. Um homem que não é nipônico, mas é amarelo como manteiga
deteriorada. Falei com o senhor Alcides:
• - Eu vim aqui pedir um auxilio porque estou doente. O senhor mandou eu ir
na Avenida Brigadeiro Luis Antonio, eu fui. Avenida Brigadeiro mandou-me
1086
ir na Santa Casa. E eu gastei o único dinheiro que eu tinha com as condu-
• ções.
- Prende ela!
Não me deixaram sair. E um soldado pois a baioneta no meu peito. Olhei o
soldado nos olhos e percebi que ele estava com dó de mim. Disse-lhe:
- Eu sou pobre, por isso é que vim aqui.
2 Surgiu o Dr. Osvaldo de Barros, o falso filantrópico de São Paulo que está
fantasiado de São Vicente de Paula. E disse:

0 - Chama um carro de preso!

Na sequência, apresentamos alguns desenhos realizados pelos alunos,


1 e que se referem à atividade descrita no relato 2, do POSL do contexto B. Os
desenhos são resultados de uma atividade dirigida, após a leitura do texto, acima
8 apresentado.
Figura 1 - Desenho da aluna Mônica. A aluna registrou as agruras sofridas pela autora, descritas
no texto, como; a fome, a preocupação com os filhos e a busca de sustento por meio do árduo tra-
balho de “catar” materiais recicláveis.
J

A

L

L
Fonte: Professor do Contexto B
A Figura 2 - Desenho da aluna Juliana. Registro da impressão que a aluna teve sobre o texto.


1087

2
Fonte: Professor do Contexto B
0
Nesse caso, os desenhos indicam que a atividade de leitura colaborou
com o processo de construção de conhecimento dos alunos, partindo da leitura
1
de mundo de cada um deles, pois considero possibilidades de reflexão sobre os
elementos expressivos apresentados em cada desenho. Os desenhos serviram e
8 servem como formas possíveis de interlocução entre: professores-alunos, situações
vividas-situações pensadas etc. Afinal, esses desenhos carregam as subjetividades

dos sujeitos producentes, permitindo leituras e interpretações. Ademais, em linhas
gerais, penso que a importância dessas representações resida no fato de servirem
como ferramenta de investigação de conhecimentos e valores.
Ainda sobre as possibilidades de trabalho com a literatura marginal-
periférica nos anos iniciais do ensino fundamental e, para concluir, seguem alguns
trechos de duas entrevistas realizadas com alunos do Contexto B, aqui denominados
de CB1, CB2, CB3, CB4, CB5, CB6, CB7 e CB8, que evidenciam e reforçam a fala
do professor, sobre os resultados do trabalho com a literatura marginal-periférica:
Pesquisadora: Eu queria saber um pouco sobre uma literatura chamada de
marginal-periférica. Vocês conhecem?
CB7: sim
Pesquisadora: O que vocês conhecem ou o que vocês ouviram falar da litera-
tura marginal-periférica?
J CB6: São as pessoas que moram na favela e escrevem livros, sobre a vida
delas.
Pesquisadora: E o que vocês acham disso?
A
CB7:Eu acho legal.
CB6:Porque elas falam nos livros o que acontece com elas, falam sobre a vida
L delas, aonde elas moram, o que elas sofrem.
Pesquisadora: E vocês gostam dessa literatura?
L CB5 /CB6 /CB7: Sim.
Pesquisadora: E o que faz vocês gostarem dessa literatura?
A CB2: Um exemplo... que nem, a minha vizinha, que mora na minha frente,
ela passa por necessidades. Ela, de vez em quando, tem que pedir dinheiro
emprestado porque não tem nada pra comer!
CB3: A maioria das pessoas que vivem na favela vivem catando latinha, tudo
pra reciclar, pra conseguir dinheiro porque não tem o que comer, não tem
casa, não tem essas coisas.

(Relato 3 – CB1, CB2, CB3, CB4, CB5, CB6, CB7 e CB8 - Alunos do Con-
1088 texto B).

• Considerando as entrevistas realizadas com as POSL e alunos das SL, foi


possível identificar, a partir dos trabalhos apresentados, que a literatura marginal-
periférica pode atuar de forma positiva, trazendo novas experiências literárias.
Essas narrativas só reforçam que esse foi o início de uma transformação na forma
de se olhar, pensar e trabalhar com a literatura no campo educacional, inserindo
2 outras expressões a esse espaço, ampliando o acesso a bens e produtos culturais
e valorizando uma cultura, há muito tempo negada
0 Observou-se até aqui, a complexa inserção do discurso marginal periférico
nas SL da Rede Municipal de São Paulo, demonstrando possibilidades, e caminhos
1 possíveis, mas que existem diversas instâncias de inserção e não apenas uma. E
que, de fato, a instância de maior determinação está relacionada ao território, nesse
caso a escola, e à figura do POSL, carregada de crenças e valores, que permitem ou
8
não tal inserção.
Considerações finais
Os resultados obtidos com o estudo demonstraram a importância da
legitimação e da inclusão da cultura periférica no contexto escolar e os caminhos
existentes para a inserção da literatura marginal-periférica nessa conjuntura.
Contudo, as conclusões indicam que não existe apenas uma via efetiva
dessa inserção. Mas, aponta que a via primordial de inserção é a que ocorre no
âmbito do território, ou seja, a que se contextualiza na escola, onde o professor é o
parceiro incondicional desta ação de efetivação.
As análises indicam que os professores podem sim, ser influenciados por
formações, projetos, ações de políticas públicas, como ponto de partida para novas
ações. Entretanto, isso não basta para romper com práticas docentes cristalizadas
e a incorporação do compromisso com novas práticas.
A pesquisa evidenciou que ainserção efetiva da literatura marginal-
periférica está relacionada diretamente às práticas desenvolvidas pelos professores
de SL, evidenciando que é preciso considerar os aspectos envoltos em sua atuação
J e demonstrando que nenhuma prática pedagógica é neutra.
Dessa forma, o trabalho culminou com a conclusão de que mudanças
A educativas, relativas a práticas de inserção literária na escola, terãomaiores
possibilidades de sucesso com o apoio de professores e de ações formativas amplas
L e permanentes.
Em virtude desses aspectos, consideramos que encontrar o caminho
L dessa via efetiva de inserção, que tange o professor, mostra-se um desafio.Isto
posto, defendemos condutas de formação, sensibilização, conscientização do papel
que desempenha, procurando estar atento aos pressupostos de sua ação docente,
A revendo e reconstruindo as bases de sua atuação, tornando-se mais flexível para
admissão de novas práticas.
Assim, advogamos a favor de uma formação, como propõe Nóvoa (1992),
sobretudodirecionada ao campo profissional, organizacional e pessoal do professor,
considerando ações de formação que visem ao seu desenvolvimento profissional, por

meio de trabalhos colaborativos, rede coletiva de trabalho, troca de experiências,
1089 compartilhamento de saberes, criação de comunidades investigativas.
• Por fim, esperamos que as considerações e os resultados, aqui,
apresentados possam contribuir com outros pesquisadores que queiram somar
e incorporar novas vozes e informações à reflexão sobre a inserção da literatura
marginal-periférica no contexto escolar.
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2015b. Dispõe sobre a organização dos Laboratórios de Informática Educativa nas Unida-
des Educacionais da Rede Municipal de São Paulo, e dá outras providências. Disponível
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J Fundamental e Médio. Diálogos interdisciplinares a caminho da autoria: elementos
conceituais para a construção dos direitos de aprendizagem do Ciclo Interdisciplinar. São
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2016d: Dispõe sobre a organização, as atribuições e o funcionamento da Secretaria Mu-
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• ______. Secretaria Municipal de Educação. São Paulo – SME/SP. Sala e Espaço de Lei-
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SOARES, Mei Hua. A literatura marginal-periférica na escola. Dissertação (Mestrado em
Educação), Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, 2008.

2

0

1

8

J

A

L O PAPEL DA TRADUÇÃO NA DIFUSÃO DA LITERATURA NAHUATL

L Sara Lelis de Oliveira (UNB)
RESUMO: Pretende-se evidenciar o papel da tradução na difusão da literatura
A nahuatl pelo historiador mexicano Miguel León-Portilla em sua obra El destino de
lapalabra(2013). A tradução atua como instrumento fundamental para divulgar

os manuscritos em língua nahuatlque foram transcritos da oralidade e da
interpretação oral dos livros pictoglíficos indígenas para o alfabeto latino durante
o século XVI.Esse material foi estudadopor León-Portilla no intuito de considerar
• as possibilidades de conservar, malgrado a transcrição do oral para o escrito, o
pensamento indígena. Constatou-se, no entanto,que sua hipótese é discutida
1093
mediante exemplosdos manuscritos apresentados em tradução para o espanhol
• mexicano, questão central que problematiza o estudo do historiador.
Palavras-chave: Miguel León-Portilla. Literatura nahuatl. Tradução.
Introdução
Narra o cronista espanhol Bernal Díaz del Castillo(1492 –1584) em sua
2 Historiaverdadera de la Conquista de la Nueva España(1632) que, ao chegarem os
primeiros castelhanos àpenínsula deYucatán – sul do território mesoamericano

conhecido atualmente como México1, eles se depararam com “muitos livros de
0 papel” (tradução nossa):
Y hallamos las casas de los ídolos y sacrificaderos, y sangre derramada e
1 inciensos con que sahumaban, y otras cosas de ídolos y de piedras con que
sacrificaban, y plumas de papagayos, y muchos libros de papel, cogidos a
8 dobleces, como a manera de paños de Castilla…(DÍAZ del CASTILLO, 1939,
p. 169, grifos nossos).
Os “livros” aos quais se refere Díaz del Castillo eram, em realidade,
osmanuscritos pictoglíficos pré-hispânicos ou os chamados códices2. Não se
pareciam de todo com os livros europeus: como observou Castilla, eles eram

1  Não totalmente, mas as questões territoriais mexicanas são históricas e merecem outro artigo.
2  O vocábulo “códice” provém de codex, termo utilizado na Antiguidade Clássica para designar
“as tábuas onde se escreve”. O termo foi apropriado para intitular os amoxtli(do nahuatl, “conjunto
de papéis de amate– os manuscritos) elaborados pelos povos indígenas pré-hispânicos (LEÓN-
PORTILLA, 2012, p.7).
elaborados “em dobras,como os panos de Castilla”. E ao passo quenos livros
europeus predominavam os caracteres, nos livros pré-hispânicos predominavam as
pinturas, seu elemento mais característico3. Em nahuatl, o vocábulo que designa
“livro” é amoxtli4 e este não é feito de papel, mas de fibra de maguey (um tipo de
agave).
A realidade da existência dos amoxtli no período pré-hispânico pode
despertar a curiosidade de muitos assim comochamou a atenção dos primeiros
J castelhanos que invadiram o território mesoamericano. Com a consumação da
Conquista do México (1519 – 1521) pelo exército do espanhol Hernán Cortés e
A pelospovos indígenas contrários ao Império Mexica, os livros pictoglíficos indígenas
foram também objeto de interesse dos missionários católicos que arribaram no
L território no propósito de evangelização durante o período colonial do século XVI.
Alguns com o objetivo de destrui-los e outros com o objetivo de preservá-los. Graças

a estes últimos, com a cooperação de indígenas descendentes, sobreviveram alguns
L desses manuscritos que servem de rastro para se acessar a cultura do antigo
México, sendo elesobjeto de pesquisa até os dias atuais.
A Os manuscritos pictoglíficos indígenas foram salvaguardados tanto
pelos indígenas quanto pelos frades católicos. Ambos trabalharam em prol de
transladar as tradições extraídas oralmente dos livros para serem ensinadas
nas calmecac(vocábulo em nahuatl para designar o lugar onde se transmitia
conhecimento), bem como das tradições orais memorizadas e transmitidas entre
• os povos, para a escritura alfabética (LEÓN-PORTILLA, 2013, p. 15).Paraos
1094 indígenas, o importante era não permitir o desaparecimento das tradições de seus
antepassados, de sua identidade, enquanto que para os frades os manuscritos

consistiam um meio de conhecer a cultura indígena no intuito de erradicar o que
era impróprio no Catolicismo Romano e, posteriormente, implantá-lo. “Também
houve o caso de alguns frades humanistas que chegaram a se interessar pelas
culturas indígenas e por suas criações literárias” (LEÓN-PORTILLA, 2012, p. 66),
como é o caso do missionário Bernardino de Sahagún (1500 – 1590).
2
Sahagún compilou, segundo o padre e filólogo mexicano Ángel María
Garibay Kintana (1892 – 1967), a grande obra Cantares Mexicanos5, um manuscrito
0
3  Leia-se “mais característico”, pois os povos nahuas utilizaram-se de glifos silábicos. Só não
de maneira tão desenvolvida quanto os povos maias (NATALINO dos SANTOS, 2002, p. 88).O
1 historiador mexicano Miguel León-Portilla também sustenta a mesma constatação: “Mucho menos
completa fuela escritura, también logo-silábica, de otros mesoamericanos como losmixtecas y nahuas.
8 No obstante, su sistema glífico les permitía consignar fechas, nombres de personas y lugares, así
como numerosas ideas incluso abstractas o referentes a determinados géneros de aconteceres(LEÓN-
PORTILLA, 2013, p. 12).
4  “O termo amoxtliestá composto de amatl, papel (feito de cutícula fibrosa que subjaz à casca
da árvore amate, do gênero dos fícus), e de ox-tli, o que está reunido ou emplastrado. O vocábulo
resultante, amoxtli, significa composição ou conjunto de papeis de amate”(LEÓN-PORTILLA, 2012,
p. 15, tradução de Carla Carbone). Todas as citações em língua portuguesa à obra de 2012 de
Miguel León-Portilla são traduções de Carla Carbone. No âmbito deste trabalho não discutiremos
as traduções do nahuatl para o espanhol aqui apresentadas, muito menos do espanhol para o
português, pois elas envolvem uma reflexão que transcende a proposta aqui apresentada.
5  A grande obra Cantares Mexicanos é formada por nove partes: 1. Cantares Mexicanos, 2.
KalendarioMexicano (en castellano), 3. Arte divinatorio de los Mexicanos (en castellano), 4. Ejemplos
que esteve perdido durante aproximadamente trezentos e trinta anos. Foi encontrado
na Biblioteca Nacional do México no final do século XIX e publicado no mesmo século
em edições fac-símiles e paleografias. Sua divulgação em tradução para o espanhol
mexicano aconteceu em parte em 1953, com Historia de la Literatura Nahuatl6, e
sua primeira parte na íntegra em 1965 com Poesia Nahuatl7, ambasobras do padre
Garibay. Com essas obras, Garibay foio responsável por, no século XX, resgatar e
difundir os Cantares e outros manuscritos indígenas pré-hispânicos em tradução.
J Não somente, constituiu a chamada Literatura Nahuatl defendendo o mesmo
ponto de vista que os missionários-cronistas deixaram como testemunho: os povos
indígenas pré-hispânicos foram produtores de poesia, no sentido etimológico grego
A
de criação literária (poietiké)8 que envolve o que conhecemos atualmente sob o
título poesia, mas também prosa:
L
Podría ya conjeturarse que los pueblos de esta lengua tuvieran su modo de
expresión poética. Todos los pueblos lo tienen. Pero aquí nos abundan los
L testimonios de los investigadores primitivos que fueron los misioneros
cristianos (GARIBAY, 1965, p. v, grifos nossos).

A Garibay intitulou ambos os gêneros literários de cuicatl, termo em nahuatl


para designar a poesia, e tlahtolli, termo em nahuatl para designar a prosa (LEÓN-
PORTILLA, 2013, p. 238).
Todo esse brevíssimo percurso introdutório sobre os manuscritos
indígenas pré-hispânicos para chegarmos ao ponto central de nosso trabalho: a
• continuação da difusão da literatura nahuatl via tradução da língua nahuatl para o
1095 espanhol mexicano, após a morte de Garibay, por seu aluno, discípulo e historiador
mexicano Miguel León-Portilla9. Os estudos de León-Portilla sobre os cuicatle os

tlahtollisão uma parte de sua pesquisa apresentada na obra El destino de la
palabra: De laoralidad y los glifos mesoamericanos a la escritura alfabética
(2013 ). Neste estudo, “Cuicatl y Tlahtolli: las formas de expresiónen nahuatl” (2013,
10

p. 237-355), León-Portillapretende descrever a natureza, os gêneros e os principais


2 atributos dos manuscritos indígenas que foram transcritos da oralidade e da
interpretação oral dos livros pictoglíficos para o alfabeto latino a fim de contribuir

com a questão central de sua obra: a possibilidade de conservar no texto escrito
0 em nahuatl a linguagemcom a qual os “textos” eram produzidos no período pré-

1 de las Sagradas Escrituras en Mexicano, 5. Un sermón sobre aquello de Estole Sancti (Sed santos…,
también en Mexicano), 6. Memoria de la muerte (en Mexicano), 7. Vida de San Bartolomé (en Mexicano),
8 8. Fábulas de Esopo (puestas en Mexicano), 9. Historia de la Pasión (en Mexicano) (CURIEL DEFOSSÉ,
1995, p. 71).
6  GARIBAY KINTANA, Ángel María. Historia de la Literatura Náhuatl. México: Editora Porrúa, 2
tomos, 1953-54.
7  GARIBAY KINTANA, Ángel María. Poesía Nahuatl. Universidad Nacional Autónoma de México.
México, 1965.
8  “Rostagni aduz que “poética”, em Aristóteles, é sempre um abstracto (arte da poesia) e “poesia”
sempre um concreto (criação poética)” (SOUSA, 2003, p. 149)
9  Miguel León-Portilla (1926 - ) é considerado um dos maiores historiadores do século XX,
especialmente por sua ampla produção bibliográfica centralizada no período indígena do México.
10  A primeira edição data de 1996. Temos em mãos sua quinta reimpressão, do ano 2013. No
restante deste trabalho nos referiremos à obra somente por seu título, El destino de la palabra.
hispânico. O historiador mexicano inspira-se no trabalho de Garibay,realizado na
obra Historia de la Literatura Nahuatl, em que o padre descreve as características
gerais da referida literatura, para analisar outros manuscritos pré-hispânicos em
língua nahuatl.“El propósito es poner de relieve sus peculiaridades, aquello que
como ya Sahagún lo dejó dicho, ‘todos los indios entendidos, si fueren preguntados,
afirmarán que este lenguaje es propio de sus antepasados y obras que ellos
hacían”(LEÓN-PORTILLA, 2013, p. 17).
J Nesse propósito, a tradução assume papel central uma vez que é por
intermédio do texto traduzido que León-Portilla analisa os manuscritos em nahuatl,
A isto é, através do texto em língua espanhola mexicana. O historiador, no entanto,
e assim como Garibay, não destaca a tradução como prática crucial sobretudo
L em razão de seu propósito de retomar a linguagem indígena pré-hispânica em seu
caráter oral. O problema reside em não problematizar o processo tradutório do

nahuatl para o espanhol mexicano, o que abre caminho para traçar uma série
L de características não da língua nahuatl, mas da tradução dos manuscritos
para o espanhol. Essa constatação ocorre mediante nossa análise de exemplos
A apresentados no referido estudo “Cuicatl y Tlahtolli...”, no qual observamos que a
enumeração parte de características provenientes da literatura ocidental tais como
paralelismo, a métrica, a estilística, entre outros, todos esses atributos provenientes
da literatura ocidental. Analisar-se-ão, neste trabalho, dois de seus exemplos
discutidos por León-Portillaem tradução no intuito de pontuar a importância que a
• tradução exerce nesse estudo do historiador.
1096 El destino de la palabra

• El destino de la palabra, obra do historiador, pesquisador e professor


mexicano Miguel León-Portilla,consiste em uma compilação de quatroestudos
realizados em diferentes momentos de sua trajetória de investigação no campo
da historiografia (LEÓN-PORTILLA, 2013, p. 15)11. De maneira geral, o propósito
da obra está expresso no título: diz respeito ao destino da palavra dos povos
2 mesoamericanos, especialmente aos povos de língua nahuatl, após o massacre e
transformação da cultura indígena em razão da invasão castelhana (1519) e seus
fins de dominação política e doutrinação católica a partir de 1521. Que destino
0
tomaram as tradições de um sistema de raízes milenares como foi o dos povos
habitantes da Mesoamérica?
1 A ruptura da cultura dominante no período pré-hispânico preocupou
os entoadores de cânticos, sábios, escrivães, pintores de códices e até mesmo
8 sacerdotes e frades castelhanos ao se darem conta da exterminação e modificação
progressivas de suas tradições proferidas oralmente (LEÓN-PORTILLA, 2013, p. 1),
levando-os, durante o período colonial mexicano do século XVI, a registrarem-nas
no alfabeto latino com fins de preservá-las. No entanto, no trabalho de transcrição
da oralidade e da interpretação oral dos glifospara o alfabeto latino deve-se
reconocer que este proceso afectó hondamente al que hemos calificado de

11  São eles: Primera parte: ¿Hemos traducido la antigua palabra?(p. 19-71), Segunda parte: Del
códice pictoglífico a la luminosa prisión del alfabeto (p. 73-115), Tercera parte: La religión de los
nicaraos. Análisis y comparación de tradiciones nahuas (p. 117-235), Cuarta parte: Cuicatl y Tlahtolli:
las formas de expresión en nahuatl (p. 237-255).
sistema indígena de preservación de conocimiento con raíces milenarias. En
realidad se produjo una sustitución. En los “textos indígenas que se pusieron
por escrito con el alfabeto quedó silenciada la oralidad y desaparecieron los
signos glíficos y, casi siempre, también o la mayor parte de las imágenes pin-
tadas con vivos colores (LEÓN-PORTILLA, 2013, p. 14).

Além disso, assinala León-Portilla, não se deve desconsiderar as diversas


formas de manipulação dos textos nesse processo. Por essa razão, é fundamental
J contrastar os manuscritos em língua nahuatl com os poucos glifos que sobreviveram
às queimas por missionários que consideravam a cultura indígena como idolatria
(LEÓN-PORTILLA, 2013, p. 2). Somente assim há a possibilidade de legitimar o
A
conteúdo dos manuscritos sem qualquer interferência castelhana.

O estudo dos cuicatle dos tlahtolli,denominados por Garibay como
L
“literatura nahuatl” (LEÓN-PORTILLA, 2013, p. 238), depende fundamentalmente
da distinção documental referente à conversão para a escritura do que pertenceu
L realmente ao período pré-hispânico e não fora afetado pela influência estrangeira.
Isso porque o objetivo de León-Portillaé traçar uma série de características
A da linguagem – dos cuicatle dos tlahtolli– com a qual se transmitia as tradições
indígenas. Sua indagação parte de questionamentos anteriores por parte de outros
pesquisadores, os quais apontam inúmeras condições que não tornam o processo
de conversão fidedigno, como por exemplo o constrangimento e a coerção dos
informantes na interação do interrogatório e a distorção do conhecimento por parte
• do ouvinte e escritor castelhano, quem poderia não transmitir o que era sagrado
1097
na outra cultura intencionalmente ou não. Nem mesmo se pode considerar fiel o
transvase elaborado pelos próprios indígenas devido à contaminação castelhana
• no pensamento indígena após a introdução dos valores estrangeiros. Os únicos
registros absolutamente inquestionáveis seriam, segundo León-Portilla,os vestígios
arqueológicos, pinturas e códices realizados antes do confronto entre culturas
(LEÓN-PORTILLA, 2013, p. 15).
Neste sentido, que valor se poderia atribuir como testemunho indígena
2 aos “textos” (denominados cuicatle tlahtolli) transcritos em nahuatlpara o alfabeto
latino ao estar desconsiderada a autenticidade do material compilado? A conclusão
0 é, no mínimo, dramática para os investigadores na área. Ao mesmo tempo, León-
Portilla afirma ser ingênuo considerar tanto que as transcrições em nahuatl são
1 em efeito as tradições orais enunciadas quanto considerá-las meras produções do
período colonial.
8 O historiador aborda o conjunto de questões de diferentes maneiras. Sua
porta de entrada é, nessas condições, os livros utilizados nas calmecac buscando
a relação dos códices com a “antiga palavra” pronunciada, ou seja, a relação entre
a oralidade e o que estava escrito nos livros pictoglíficos. Os sábios, responsáveis
pela transmissão, baseavam seus discursos no que estava escrito nos códices
elaborados antes da invasão estrangeira. Já os estudantes memorizavam o conteúdo
apreendido. Todo esse conhecimento era transmitido oralmente e transmitido de
geração em geração. A conclusão, aqui, é menos dramática. León-Portilla constata
que, apesar da incerteza do processo de transvase da oralidade para a escrita, é
possível afirmar uma íntima conexão entre o discurso oral e o livro. Ele apresenta
exemplos de vários textos que, por evidências internas (indicações da oralidade no
texto) e externas (vestígios arqueológicos) o conhecimento transmitido oralmente era
uma leitura dos códices. Além disso, alega que os escritos dos sacerdotes e frades
católicos, entre eles Andrés de Olmos (1485 – 1571) e Sahagún coincidem com o
conteúdo dos códices. O que aponta como ressalva, a qual é de uma abordagem
em uma área de estudo aparentemente a ele alheia, é se a aproximação à “antiga
palavra” foi realizada de maneira adequada quanto à bagagem linguística, filológica
J e histórica (LEÓN-PORTILLA, 2013, p. 70). Desde o ponto de vista dos Estudos da
Tradução, acrescenta-se nas ressalvas do historiador, a problemática da tradução.
A A questão que se coloca e problematiza o trabalho do historiador é
relativa ao que ele não pontua de maneira relevante em sua pesquisa tal como
L fez ao ponderar as questões linguísticas envolvidas no aprendizado do nahuatl
clássico e na interpretação dos textos na língua indígena. Salienta-se, como

elemento crucial de seu trabalho, a arte de traduzir. Em toda a obra El destino
L de lapalabra, o historiador discute o conhecimento milenar indígena em língua
espanhola mexicana, pois o nahuatl constitui atualmente uma língua de minorias
A e os estudiosos interessados na área encontrariam esse obstáculo em seu percurso
ao pretenderem se aproximar da cultura expressa no idioma. Ora, a intenção de
León-Portilla em recuperar a linguagem que configurava as tradições indígenas
estende-se, neste sentido, para um conjunto de questões ainda maior: pode, a
tradução do nahuatl para a língua espanhola mexicana, albergar a linguagem
• expressa nos textos escritos que, por sua vez, remetem à oralidade da antiga
1098 palavra? A “antiga palavra” pode perdurar no alfabeto latino, mas ela perdura na
tradução? Ou quando traça as características linguísticas via traduções de outrem,
• o historiador avaliou as traduções dos textos feitos por outros tradutores a fim de
traçar as características linguístico-literárias dos cuicatle dos tlahtolli? A questão é
o papel da tradução no conhecimento da literatura nahuatl e como ela é discutida
e dada a conhecer por intermédio da tradução.

2 Observações sobre a análise doscuicatle dos tlahtolliem tradução

O estudo “Cuicatl y Tlahtolli: las formas de expresiónennahuatl”está


dividido em quatro partes, a saber: (i) “Los cuicatl: estructura y rasgos propios”, (ii)
0
“Los tlahtolli: estructura y atributos propios”, (iii) “Diferentes géneros de cuicatl”, e
(iv) Diferentes géneros de tlahtolli. Analisar-se-ão aqui as duas primeiras partes, a
1 partir de dois exemplos, sobre as estruturas e atributos próprios dos cuicatle dos
tlahtolli.
8 Em (i), León-Portilla enumera uma série de atributos linguístico-literários
dos cuicatlcom base nos trabalhos de Garibay em Historia de laLiteratura Náhuatl
(1953-54), da linguista norte-americana e do historiador norte-americano James
Lockhartem La estructura de la poesia nahuatl vista por sus variantes (198012):
Aquí tomaré en cuenta sobre todo lo expresado por Garibay (1953, I, 59-106) y
por Frances Karttunen y James Lockhart (1980, 11-64). Son rasgos sobresa-
lientes en el género de los cuicatl los que a continuación se enumeran: a) Dis-

12  No corpo do texto, León-Portilla afirma que a referência é de 1980 e de páginas 11-64, mas
nas Referências Bibliográficas consta que a edição é de 1983 e de páginas 15-64. Confirmo que é
de 1980. Trata-se de um artigo publicado na revista Estudios de Cultura Náhuatl, coordenada por
tribución de su texto en varios determinados conjuntos de palabras, a veces
verdaderos párrafos. […] Existencia de varias formas de ritmo y metro. […]
Estilística de los cuicatl. Abarca ésta las formas de estructuración interna,
[…] igualmente lo que se refiere a procedimientos característicos de este géne-
ro de composiciones nahuas, como los paralelismos, difrasismos, correlacio-
nes de frases, etcétera (LEÓN-PORTILLA, 2013, p. 265)

O que o historiador mexicano apresenta é um estudo do que já foi feito,


J pontuando o que lhe parece mais importante e apresentando as características
acompanhadas de exemplos em nahuatl e suas traduções feitas não por ele, mas
de outrem. Analisa, por exemplo, as unidades de expressão dos cuicatl através de
A uma tradução de Garibay:

L Quadro 1: Trecho em língua nahuatl e tradução de Garibay
Trecho em nahuatl Tradução de Garibay

Tlaoctoncuicacan Cantemos ahora,
L
tlaoctoncuicatoacan ahora digamos cantos,

in xochitonalocalite, aya en medio de la florida luz del sol,
A
antocnihuan oh amigos.

¿Catlique? ¿Quiénes son?
in niquicnamique Yo los encuentro
caninquintemohua en dónde busco:
• quenonhuehuetitlan allá tal cual
1099 YenicanahOhuayaahuaya. junto a los tambores.
• (LEÓN-PORTILLA, 2013, p. 269)
Fonte: Quadro elaborado por Sara Lelis de Oliveira no âmbito deste trabalho, 2018.

León-Portilla afirma que a distribuição de versos na tradução do nahuatl


é facilmente perceptível. Segundo ele, Garibay utilizou-se do paralelismo que existe
em várias de suas frases, um recurso que “consiste en armonizar la expresión de un
2
mismo pensamiento en dos frases que, o repiten con diversas palabras la misma idea
(sinonímico), o contraponen dos pensamientos (antitético), o completan el pensamiento,
0 agregando una expresión variante, que no es pura repetición (sintético)”(GARIBAY,
1953-54, p. 65).Em primeiro lugar, observamos que León-Portillasustenta um
1 recurso que não é próprio da língua nahuatl, mas de literaturas ocidentais. Isso
explica que sua análise se trata especificamentedo texto traduzido ao explicar que
8 as linhas (1-2, 4-5, 6-7, 8-9) “expresanideas paralelas o de complementación”.
Em efeito, as linhas 1-2 complementam-se em relação ao “canto”proferido pelo
indivíduo, a linha 5 responde à linha 4, e as linhas 6-7 e 8-9 inscrevem-se em
um mesmo contexto. Essas são afirmações que podem ser percebidas no texto
em espanhol mexicano, mas que não são constatadas no texto em nahuatl. Não
há, por exemplo, qualquer referência à oralidade presente nos terceiro e último
versos em nahuatl [“aya”, “ohuayaahuaya”], “interjeições” frequentemente usada
nos cuicatl e que não foram traduzidas e tampouco consideradas ou relacionadas
como ideias complementares.

León-Portilla.
Na apresentação dos linguísticos dos tlahtolli os atributos linguísticos
identificados tampouco referem-se ao texto em língua nahuatl. No caso que se
apresentará, León-Portilla analisa a estilística de um huehuehtlahtolli¸ subgênero
dos tlahtolli que se refere aos discursos proferidos pelos anciãos ou sábios no intuito
de educar crianças e jovens ou em casa ou nas calmecac (LEÓN-PORTILLA, 2013,
p. 344).
Quadro 2: Trecho em língua nahuatl e tradução sem autoria declarada
J Trecho em nahuatl Tradução sem autoria declarada
Ca yztonoc in tiquauhtli, in tocelotl tú que estás aquí, águila, tú, ocelote

A (LEÓN-PORTILLA, 2013, p. 297)


Fonte: Quadro elaborado por Sara Lelis de Oliveira no âmbito deste trabalho, 2018.
L
No trecho em questão, León-Portilla discute uma característica particular
dos manuscritos em nahuatl: o difrasismo. Segundo ele, um difrasismo consiste na
L justaposição de dois vocábulos de conteúdo metafórico que, por sua vez, evocam
um único pensamento que se deseja destacar
A (LEÓN-PORTILLA, 2013, p. 297). A discussão do trecho, no entanto, é
vaga em relação ao atributo estilístico: “ese difrasismo expresa la idea del hombre
como guerrero”.Não há referência alguma ao que vem a ser o difrasismo em questão
e a ausência de explanação sobre o recurso em língua nahuatl se repete ao longo de
toda a análise do trecho, a partir dos quais ele expõe apenas ao único pensamento
• que é evocado. A própria definição do conceito é problemática tendo em vista que
1100 ela se pauta em um recurso – a metáfora – também utilizado na literatura ocidental
e que surgiu no contexto da antiga Grécia: do grego μεταφορά metaphorá13.

Estas breves considerações da análise de León-Portilla não pretendem,
de forma alguma, invalidar o trabalho desse grande historiador mexicano. No
entanto, desde o ponto de vista da tradução, nota-se a importância de levá-la em
consideração nos estudos historiográficos de documentos que só são passíveis
de serem acessados por intermédio da tradução uma vez que o nahuatl não é a
2
primeira língua do historiador. Neste sentido, o intuito é aprofundar o papel central
que a tradução exerce nesse contexto de recuperação dos manuscritos em língua
0 nahuatl, atitude de extrema importância nacional no México.

Considerações finais
1
Neste trabalho, pretendeu-se pontuar o papel crucial que exerce a
tradução no estudo de um dos historiadores mais renomados do México, a saber
8 Miguel León-Portilla, em sua obra El destino de la palabra(2013). O historiador,
ao abordar as inúmeras problemáticas envolvidas no processo de transcrição das

tradições indígenas pré-hispânicas do nahuatl oral para o nahuatl escrito durante
o período colonial mexicano do século XVI, questiona a possibilidade de conservar
a linguagem oral indígena no texto escrito. A discussão, no entanto, ocorre a partir
de exemplos dos manuscritos em língua nahuatl traduzidos para o espanhol
mexicano, aspecto que o historiador não considera em sua exposição ao traçar uma
série de características linguísticas dos manuscritos. A relação inscreve-se nas

13  Diccionario Real de la Academia Española.


características da literatura ocidental, o que nos aponta para a hipótese de que não
houve um aprofundamento no contexto linguístico-cultural dos mesoamericanos.
A tradução, apesar de ser uma prática milenar, ainda é pouco considerada
por diversas áreas do conhecimento. Não discutiremos, aqui, as razões de sua
negligência, mas enfatizaremos suaextrema importância nas palavras do filósofo
francês Antoine Berman:
...la importancia de la traducción reside […] en que los diferentes saberes
J o actividades tomados en consideración todo se enfrentan a la traducción
como problema. Tomemos los casos, más fáciles de abordar, de los saberes
y actividades que ya tienen un nombre y un estatuto en nuestra sociedad14
A (BERMAN, 2016, p. 6-7, tradução de Eugenio López Arriazu).

L A constatação de Bermanmostra-se patente no estudo de León-Portilla,
localizado no âmbito dos estudos historiográficos, uma área já consolidada, uma
vez que a análise dos cuicatle dos tlahtolli esbarra no problema da tradução. O
L acesso aos manuscritos em língua nahuatl deve ser considerado não só a partir
da problemática que envolve sua compilação e transcrição do nahuatl oral para o
A nahuatl escrito, mas também da problemática da tradução.
Referências
ARISTÓTELES. Poética. Tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndices de Eudo-
ro de Sousa. 7ª. ed. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2003.
BERMAN, Antoine. La era de traducción. Tradução de Eugenio López Arriazu. Buenos

Aires: Dedalus Editores, 2016.
1101
CURIEL DEFOSSÉ, Guadalupe. El manuscrito “Cantares Mexicanos y otros opúscu-
• los” de la Biblioteca Nacional de México: una tarea pendiente. Boletín del Instituto de
Investigaciones Bibliográficas, Universidad Nacional Autónoma de México, v. 7, p. 71-82,
1995.
DÍAZ del CASTILLO, Bernal. Historia verdadera de la Conquista de la Nueva España.
Editorial Pedro Robredo. México: D.F, 1939.
2 GARIBAY KINTANA, Ángel María. Historia de la Literatura Náhuatl. México: Editora Por-
rúa, 2 tomos, 1953-54.

0 LEÓN-PORTILLA, Miguel. Códices. Os antigos livros do Novo Mundo. Tradução de Carla


Carbone. Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2012.

______________________. El destino de la palabra. De la oralidad y los glifos mesoameri-
1 canos a la escritura alfabética. 5ª reimpressão.México: FCE, 2013.
NATALINO dos SANTOS, Eduardo. Deuses do México Indígena: Estudo comparativo en-
8 tre narrativas espanholas e nativas. São Paulo: Palas Athena, 2002.

14  Do original : ...l’importance de la traduction pour le Collège réside [...] en ceci, que les différents
savoirs ou activités pris en vue [...] rencontrent tous la traduction comme question. Prenons les cas,
plus aisés à aborder, des savoirs et activités ayant déjà un nom et un statut dans notre société.
J

A

L OUTRAS ARTES DE CURAR NO ACRE TERRITORIAL: DIÁLOGOS
COM LEGISLAÇÕES E MATÉRIAS DE JORNAIS
L
Sérgio Roberto Gomes de Souza (UFAC)
A RESUMO: A perspectiva do texto é analisar a maneira frequente com que parcela
dos habitantes do então Território Federal do Acre recorria a outras artes de curar,
enfatizando a maneira como essas práticas e seus praticantes eram caracterizados
em jornais e documentos oficiais. As fontes históricas analisadas foram relatórios
oficiais de prefeitos e governadores, jornais, legislações que tratam sobre o tema e
• processos judiciais. As fontes trazem importantes evidências de que, entre os anos
de 1904 e 1930, foi significativo entre os habitantes do Acre o uso de saberes e
1102
fazeres relacionados a práticas de cura, constituídos a partir de relações empíricas
• com o espaço da floresta. A busca por outras artes de curar, nessa perspectiva, pode
ser compreendida como uma importante estratégia de sobrevivência, considerando
que, para muitos, passaram a representar a única alternativa para fazer frente às
moléstias que se manifestavam de forma endêmica e epidêmica na região.
Palavras-chave: Medicina popular. Médicos. Feiticeiros. Curandeiros
2
Práticas de cura fundadas em saberes tradicionais foram objetos de
0 debates no Brasil, desde o início da colonização. A partir do momento em que
os portugueses iniciaram o processo de ocupação e exploração de sua possessão
na América, viram-se às voltas com a necessidade de enfrentar as doenças que
1
acometiam os patrícios que migravam para o Novo Mundo. Segundo Luiz Otávio
Ferreira, as práticas de medicina que passaram a ser desenvolvidas foram forjadas a
8 partir da “convivência e combinação de três tradições culturais distintas: indígena,
africana e europeia, com inexpressiva participação dos profissionais de formação
acadêmica” (FERREIRA, 2003, p. 101).
Nos primórdios da colonização do Brasil, não foram os profissionais
médicos que estiveram à frente das artes de curar. Esse ofício, predominantemente,
ficou a cargo de “[...] curandeiros, feiticeiros, raizeiros, benzedores, padres,
barbeiros, parteiras, sangradores, boticários e cirurgiões” (FERREIRA, 2003, p.
101). O número insuficiente de médicos para atender às demandas da população
constituiu-se em importante fator a propiciara atuação de outros personagens,
que passaram a assumir um papel antes reservado exclusivamente aos doutores
em medicina (FERREIRA, 2003, p. 102). Ressalte-se que, à época, era difícil
estabelecer rígidas fronteiras entre a medicina acadêmica e a medicina popular,
considerando-se que a primeira “expunha uma concepção da doença e apregoava
um arsenal terapêutico fundado numa visão de mundo em que coexistiam o natural
e o sobrenatural, a experiência e a crença” (FERREIRA, 2003, p. 102).
A tradição da medicina popular não se esgotou com o fim do período
J colonial. Manteve-se durante o Império expressando-se, por exemplo, nas diversas
formas de resistência desenvolvidas por parte da população às campanhas vacínicas.
A Sidney Chalhoub destacou que “a inoculação de pus variólico realizada por curiosos
– talvez não só por eles – era prática comum tanto na Corte quanto no interior do
L país ao longo do século XIX” (CHALHOUB, 1996, p. 128). Nomes como José Pereira
do Rego, o Barão do Lavradio, responsabilizaram a variolização por difundir o

terror entre a população, que não conseguia distingui-la com clareza da vacinação,
L e temia pela disseminação da doença. O Barão do Lavradio não externou nenhuma
dúvida quando afirmou que esse era o principal fator que levava à recusa ao método
A profilático da vacina, contribuído para o agravamento de uma epidemia de bexigas
ocorrida em Pernambuco, no ano de 1873. (CHALHOUB, 1996, p. 127). Opinião
contrária, no entanto, foi expressa por um vacinador designado para atender um
povoado denominado de Inhaúma. Segundo disse, um dos principais motivos para
as negativas devia-se ao fato de que “muitos já se achavam vacinados e por isso não
• recorriam à vacina” (CHALHOUB, 1996, p. 127). A afirmação reforça a concepção
1103 de que não formados tinham participação efetiva em ações de imunização, e que
os métodos que desenvolviam eram recebidos com credulidade por considerável
• parcela dos habitantes do Brasil imperial.
Nos registros feitos por médicos do Instituto Oswaldo Cruz, nas duas
primeiras décadas do século XX, encontram-se importantes informações sobre
a prática de medicina popular no Brasil republicano. Fonte histórica de grande
relevância para pesquisadores que se interessam pela temática é o relatório
2 denominado “Viagem Científica pelo norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul
do Piauí e de norte a sul de Goiás”, de autoria de Belisário Penna e Arthur Neiva. O
0 documento foi publicado no ano de 1912, após expedição realizada por requisição
da Inspetoria de Obras Contra a Seca, dirigida no período por Arrojado Lisboa.
1 Em um tópico intitulado “Terapêutica Popular”, os pesquisadores descreveram
práticas de cura que faziam parte do cotidiano de moradores de algumas das
8 localidades visitadas que, em decorrência da impossibilidade de acesso a médicos
e medicamentos convencionais, “procuravam auxílio da flora e fauna locais a fim
de se tratarem” (PENNA; NEIVA, 1912, p. 161).
As relações que as instituições públicas e setores letrados da sociedade
brasileira mantiveram com a medicina popular foram caracterizadas por paradoxos.
Os médicos, por exemplo, perceberam que não era possível simplesmente negá-
la ou ignorá-la, devido à inserção e legitimidade destas práticas junto à grande
parcela da população. Dessa forma, não podendo simplesmente denunciar o
“charlatanismo” ou a “ignorância popular”, viam-se obrigados a dialogar com essa
tradição, “disputando em condições desfavoráveis a autoridade cultural no campo
da arte de curar” (FERREIRA, 2003, p. 119). Assim, a legitimidade do médico e
da medicina como conhecemos nos dias de hoje, foi constituída em meio a um
processo de intensa disputa, caracterizado por “dissensos, consensos e ampla
negociação política entre médicos e outras categorias de curadores” (FERREIRA, et
al, 2001, p. 61).
A legislação que regulamentava as profissões nas áreas de saúde não era
clara, de modo que gerava diversas interpretações. No dia 1º de fevereiro de 1900,
J o jornal paraense O Comercial publicou decisão judicial referente à ação proposta
pelo representante da justiça pública, contra um curandeiro que exercia o ofício
A na cidade de Belém. De acordo com o periódico, o promotor Sampaio Viana havia
denunciado o curandeiro Alexandre da Cunha por exercer ilegalmente a medicina.
L A denúncia não foi acatada pelo Juiz Viveiro de Castro. Como Sampaio Viana
recorreu da decisão junto ao Conselho do Tribunal Civil e Criminal, o magistrado

arguiu em seu despacho que se recusara a dar continuidade ao que fora proposto,
L por compreender que contrariava o que estava preconizado pela Constituição da
República que “garantia o livre exercício de todas as profissões, independente da
A prévia prova de capacidade e da exibição do diploma científico”.1
Faltava na peça jurídica, na compreensão de Viveiro de Castro, evidências
de que Alexandre da Cunha havia cometido estelionato, ou algum erro grave no
exercício da profissão, únicos fatores que poderiam incriminá-lo. Como lhe fora
imputado somente o crime de ser curandeiro, e praticar medicina sem ter um diploma
• científico, estes fatores não foram concebidos como delito, mas como garantia
1104 constitucional.2 No final do despacho, o magistrado ressaltou a importância dos
curandeiros na descoberta de plantas medicinais e assinalou como representavam

a única alternativa para quem procurava por auxílio em comunidades distantes
dos grandes centros, onde o atendimento médico era escasso:
É inútil todo e qualquer procedimento judiciário contra os curandeiros. Eles
existirão apesar de toda violência e arbitrariedade que terão como única
finalidade aumentar-lhes o prestígio. Há advogados que mediante pagamento
2 assinam todos os agravos e recursos e razões que os solicitadores escrevem.
Há também médicos que alugam seu nome aos consultórios dos curandeiros
e subscrevem-lhes receitas.
0
A perseguição aos curandeiros repousa sobre um duplo conceito: serem eles
1 sempre ignorantes e serem os médicos diplomados sempre homens de mui-
to saber. Ambos os conceitos são apenas presunções. É certo que há muito
curandeiro ignorante, mas também é certo que tem havido grande número
8 deles práticos, experientes, admiravelmente dotados de poder observador
a quem se tem descoberto na nossa flora preciosas plantas medicinais. O
Brasil não se limita a capital Federal e as cidades populosas dos estados. No
interior, onde é geral a falta de médicos diplomados, os curandeiros são os
recursos da população, para eles vão às esperanças dos aflitos.3

O livre exercício das profissões constituía-se em objeto de questionamento,


desde o período do Império. Matéria publicada no dia 27 de março de 1881, no jornal

1  O Comercial, 01 de fevereiro de 1900, ano XIX, nº 04, p. 02.


2  O Comercial, 01 de fevereiro de 1900, ano XIX, nº 04, p. 02.
3  O Comercial, 01 de fevereiro de 1900, ano XIX, nº 04, p. 02.
A Gazeta do Comércio, editado no Rio de Janeiro, criticou duramente a concorrência
que os curandeiros impunham aos médicos, prejudicando principalmente os
recém-formados. Inicialmente, o responsável pelo texto disse ter lido o último
regulamento das Faculdades de Medicina, com base no qual percebeu que haviam
sido ampliados os estudos práticos e criadas novas cadeiras de ensino. Em sua
opinião, as mudanças representavam eminente sinal “de um futuro mais científico
para o império”.4
J Mas existia um problema. Conforme a referida matéria, todos esses
rigores só eram empregados enquanto o brasileiro estudava. Depois de obtido
A o grau de doutor, o médico era lançado em uma sociedade “das mais vezes
ignorante”, na qual não encontrava apoio algum das autoridades para exercer
L a profissão. O que acontecia era o inverso, já que daí por diante estabelecia-se
“entre o médico que estudava e que sacrificava capitais uma porta para o convívio

com homens sem consciência que, na maioria das vezes, não sabiam sequer ler
L e escrever, os curandeiros”.5 Estes leigos, praticantes da arte de curar, foram
denominados “víboras” que manchavam a reputação dos médicos, sendo também
A responsabilizados por “verdadeiros assassinatos que levavam ao túmulo pais de
família. Tudo isso sob as vistas das autoridades do Rio de Janeiro”.6
As diferentes interpretações resultavam da diversidade de legislações
construídas e implementadas no Brasil, com o intuito de regulamentar o exercício
da medicina, farmácia, artes dentárias e realização de partos. Observe-se o Decreto
• nº 847, de 11 de outubro de 1890, que reformou o Código Penal brasileiro, através
1105 do qual ficou definido o que caracterizava-se como crime contra a saúde pública:
Art.156. Exercer a medicina em qualquer dos seus ramos, a arte dentaria ou

a farmácia; praticar a homeopatia, a dosimetria, o hipnotismo ou magnetis-
mo animal, sem estar habilitado segundo as leis e regulamentos:

Penas de prisão celular por um a seis meses e multa de 100$ a 500$000.

Parágrafo único. Pelos abusos cometidos no exercício ilegal da medicina em


2 geral, os seus autores sofrerão, além das penas estabelecidas, as que forem
impostas aos crimes a que derem causa (BRASIL, 1890).

0 O supracitado código criminalizou o recurso ao espiritismo, a magia e


seus sortilégios, quando utilizados para despertar sentimentos de ódio ou amor,
1 curar moléstias, fascinar e subjugar a credulidade publica (BRASIL, 1890). Neste
caso, as penas previstas eram de um a seis meses de reclusão, mais multa de 100$
a 500$000. As punições seriam agravadas se as citadas práticas provocassem
8
privação ou alteração, temporária ou permanente, das faculdades psíquicas dos
que a elas fossem submetidos. Caso isso ocorresse, o período de reclusão passaria
a ser de um a seis anos, e as multas fixadas entre 200$ a 500$000, conforme
consta no artigo nº 157 (BRASIL, 1890).
Da mesma maneira, os curandeiros, definição que abrangia os que
prescreviam substâncias de qualquer natureza ou de qualquer forma preparadas,

4  Gazeta de Notícias, 27 de março de 1881, ano VII, nº 84, p. 03.


5  Gazeta de Notícias, 27 de março de 1881, ano VII, nº 84, p. 03.
6  Gazeta de Notícias, 27 de março de 1881, ano VII, nº 84, p. 03.
também foram impedidos de realizar seus ofícios. As penas, para os que insistissem
com esta arte de curar, era reclusão de um a seis meses, e multa de 100$ a 500$000
(BRASIL, 1890). A regulamentação consta no artigo nº 158 do referido Decreto, que
ainda previa em seu parágrafo único:
Se o emprego de qualquer substancia resultar à pessoa privação, ou alte-
ração temporária ou permanente de suas faculdades psíquicas ou funções
fisiológicas, deformidade, ou inabilitação do exercicio de órgão ou aparelho
J orgânico, ou, em suma, alguma enfermidade:

Penas: de prisão celular por um a seis anos e multa de 200$ a 500$000.

A Se resultar a morte:
Pena: de prisão celular por seis a vinte e quatro anos (BRASIL, 1890).
L
No ano de 1891ficou definido, através do parágrafo nº 24, do artigo nº
L 72 da Constituição Federal, que todos os nacionais e estrangeiros residentes no
país tinham direito ao livre exercício de qualquer profissão moral, intelectual e

industrial (BRASIL, 1891). O texto da Lei, que para alguns confrontava as proibições
A estabelecidas pelo Código Penal de 1890, contribuiu para múltiplas interpretações
jurídicas. Questionou-se, a partir de então, a necessidade de praticantes das
artes de curar serem portadores de diploma superior, ou apenas detentores de
experiência comprovada.
O Decreto nº 1.151, de 05 de janeiro de 1904, que reorganizou os

serviços de higiene administrativa da União, reafirmou a necessidade de formação
1106 específica para profissões nas áreas de saúde. Consta em seu parágrafo terceiro, a
• autorização para o governo federal promulgar o Código Sanitário regulamentando,
entre outras coisas, o exercício da medicina e farmácia (BRASIL, 1904). O Código
Sanitário teria validade em todo o território da República, ressalvando-se que,
nos estados, as infrações seriam julgadas pelas justiças locais, resguardadas, no
entanto, as competências privativas da justiça federal (BRASIL, 1904). O Acre, por
2 não se constituir no período em um estado autônomo, teria as infrações julgadas
pela justiça federal.

0 Novo regulamento para os serviços sanitários a cargo da União foi
implementado através do Decreto nº 5.156, de 08 de março de 1904. A referida
legislação tratou sobre a fiscalização de ofícios nas áreas de medicina e farmácia
1 definindo, em seu artigo nº 250, os que estavam aptos a desempenharem tais
profissões, tornando obrigatório o cumprimento das seguintes exigências:
8 I. Às pessoas que se mostrarem habilitadas por titulo conferido pelas Facul-
dades de Medicina da Republica dos Estados Unidos do Brasil;

II. Às que, sendo graduadas por Escolas ou Universidades estrangeiras
oficialmente reconhecidas, se habilitarem perante as ditas Faculdades, na
forma dos respectivos estatutos;

III. Às que, tendo sido ou sendo professores de Universidade ou Escola es-


trangeira oficialmente reconhecida, requererem licença à Diretoria Geral de
Saúde Publica para o exercicio da profissão, a qual lhes poderá ser con-
cedida si apresentarem documentos comprobatórios da qualidade aludida,
devidamente certificados pelo agente diplomático da Republica, ou, na falta
deste, pelo cônsul brasileiro;

IV. Às que, sendo graduadas por Escola ou Universidade estrangeira ofi-


cialmente reconhecida, provarem que são autores de obras importantes de
medicina, cirurgia ou farmacologia e requererem a necessária licença á Di-
retoria Geral de Saúde Publica, que a poderá conceder, ouvida a Faculdade
de Medicina e de Farmácia do Rio de Janeiro (BRASIL, 1904).

J As disposições descritas anteriormente não eram aplicadas somente à


médicos, constituindo-se em norma, de acordo com seu parágrafo primeiro, “[...]
A às pessoas que se propusessem a exercer as profissões de farmacêutico, dentista e
parteira” (BRASIL, 1904). Os que não cumprissem com o que estava regulamentado
L incorreriam, segundo consta no parágrafo 2º, em penas cominadas no artigo nº
156 do Código Penal brasileiro (BRASIL, 1904).

L Os médicos, farmacêuticos, dentistas e parteiras, com atuação na capital
federal, conforme o artigo 251 do mencionado Decreto,deveriam matricular-se na
Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP), apresentando os respectivos títulos ou
A licenças, a fim de serem registrados(Ibidem). O registro consistia na transcrição em
um livro, do título ou licença apresentada, função que ficaria sob a incumbência do
secretário da DGSP, encarregado de lançar no verso do titulo ou licença a indicação
da folha em que fora efetuada a transcrição, assinando na sequência o documento
e, por fim, submetendo-o ao visto do diretor. A relação com o nome dos profissionais
• matriculados deveria ser analisada e publicada anualmente.
1107 A Lei n° 8.659, de 05 de abril de 1911, estabeleceu a lei Orgânica do Ensino
• Superior e do Ensino Fundamental na República. Assinada pelo então ministro
da Justiça e Negócios Interiores, Rivadávia da Cunha Correa, tinha uma caráter
liberal, abrindo espaços para a instalação de escolas privadas, e a regularização de
práticos não formados. A perspectiva era tornar os institutos criados pela União
em instituições autônomas, tanto do ponto de vista didático como administrativo,
2 sem usufruírem, conforme o artigo 1º, “[...] privilegio de qualquer espécie” (BRASIL,
1911).

Às referidas instituições seriam atribuídas personalidade jurídica, para
0
receberem doações, legados, ou outros bens, e administrarem seus patrimônios,
não sendo possível aliená-los sem autorização do governo federal. Para substituir
1 a função fiscalizadora, até então sob a responsabilidade do Estado, foi criado,
segundo consta no artigo 5º da supracitada Lei, um Conselho Superior, formado por
8 diretores das faculdades de medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, das faculdades
de direito de São Paulo e Pernambuco, da Escola Politécnica do Rio de Janeiro,
do diretor do Colégio Pedro II e por um docente de cada um dos estabelecimentos
mencionados, conforme seu artigo 12º (BRASIL, 1911). Uma das principais
atribuições do Conselho Superior era estabelecer as “[...] ligações necessárias e
imprescindíveis no regime de transição que vai da oficialização completa do ensino,
ora vigente, á sua total independência futura, entre a União e os estabelecimentos
de ensino” (BRASIL, 1911).
Quanto à possibilidade de regularização profissional de práticos não
formados, um exemplo encontra-se no artigo nº 34 da citada Lei, que previa a
concessão do título de professor extraordinário honorário a homens de notório
saber e amor ao magistério que, de modo indireto, pudessem contribuir para o
desenvolvimento do ensino; os honorários poderiam professar na faculdade, em
cursos livres, independente de qualquer prova (BRASIL, 1911).
Jornais produziram textos com o intuito de expor filigranas existentes nas
legislações anteriormente mencionadas. No caso da matéria publicada no dia 11 de
julho de 1915, pelo jornal O Cruzeiro do Sul, editado na cidade acreana de mesmo
J nome, a perspectiva foi demonstrar que o livre exercício de qualquer profissão, seja
moral, intelectual e industrial, previsto no artigo nº 72 da Constituição brasileira de
A 1891, estava vinculado ao cumprimento de algumas regras, principalmente quando
se tratava de ofícios nas áreas da saúde.7 Como referência para suas observações, o
L periódico utilizou o já mencionado Decreto n° 5.156, de 08 de março de 1905, que
normatizou o exercício das profissões de médico, dentistas e parteiras, exigindo a

apresentação de títulos e diplomas legais.8
L
Segundo O Cruzeiro do Sul, a mencionada legislação traduzia fielmente
o espírito da Constituição de 1891, considerando que a mesma, ao instituir o livre
A exercício da profissão, “não podia querer uma garantia que, pela sua desproporção,
se transformasse em anarquia vindo, consequentemente, em prejuízo ao público”.9
A compreensão era que viver em uma democracia não implicava desordem, o que,
na opinião do jornal, caracterizaria a não exigência de título hábil que provasse
a capacidade dos que se propunham a atuar em determinadas profissões. Tal
• fato, de acordo com a linha editorial do periódico, representaria “a anarquia e o
1108 desenfreamento do charlatanismo, com consequente perigo a que ficam expostas a
sociedade civil e a saúde pública”.10

Havia leis no começo da República que tornavam obrigatório o diploma
ou o reconhecimento das autoridades, para o exercício de práticas de cura,
mas não foi isso que ocorreu no dia a dia. No Território do Acre, por exemplo,
algumas referências à medicina popular podem ser encontradas nos relatórios das
2 Prefeituras Departamentais. O prefeito do Alto Acre, José Plácido de Castro, por
exemplo, fez constar em seu relatório de 1906 que a população do Departamento
que administrava era constituída, em sua maioria, por ignorantes e supersticiosos,
0 que tinham por hábito recorrer a métodos de cura não racionais, substituindo
os médicos e os medicamentos recomendados pela ciência por práticas baseadas
1 em preceitos religiosos e saberes empíricos, valendo-se de “promessas aos santos,
rezas diversas e uma multidão de outros recursos ineficazes às prescrições dos
8 profissionais” (CASTRO, 1906, p. 235). Disse também que prevalecia uma verdadeira
aversão às “regras elementares de profilaxia”, único meio seguro, em sua opinião,
de se premunir contra os rigores do clima (CASTRO, 1906, p. 235).
No Alto Purus, o prefeito Candido Mariano afirmou que a má fama
atribuída ao clima da região devia-se, entre outras coisas, ao fato de que a medicina
e o tratamento das moléstias ainda se encontravam em estado empírico, o que

7  O Cruzeiro do Sul, 11 de julho de 1915, ano V, nº 434, p. 02.


8  O Cruzeiro do Sul, 11 de julho de 1915, ano V, nº 434, p. 02.
9  O Cruzeiro do Sul, 11 de julho de 1915, ano V, nº 434, p. 02.
10  O Cruzeiro do Sul, 11 de julho de 1915, ano V, nº 434, p. 02.
explicaria o fato de perecer, em maior número, “os que lançavam mão de todas
as espécies de remédios para debelar o mal de que sofriam, que os tratados pelos
processos racionais empregados pela medicina” (MARIANO, 1905, p. 11). Três anos
após, em seu relatório de 1908, Candido Mariano voltou a tratar do assunto, dessa
vez, afirmando que os habitantes do Departamento que administrava aproximavam-
se de práticas e praticantes da medicina popular, porque eram ludibriados em sua
boa fé (MARIANO, 1908, p. 47).
J Com a unificação dos departamentos e a centralização administrativa
ocorridos no Território do Acre, no início da década de 1920, referências à medicina
A popular passaram a constar nos relatórios dos governadores. A maneira como o
assunto foi abordado, diferenciava-se da forma como faziam os prefeitos. Nesse
L “novo” momento, além de posicionar-se de forma contrária a essas práticas, o poder
público procurava demonstrar sua intenção de reprimi-las, mesmo que, na maioria

das vezes, ficasse restrito ao campo formal das legislações que regulamentavam o
L exercício das profissões na área de saúde.
No relatório do governador Hugo Ribeiro Carneiro, publicado no ano
A de 1930, encontra-se cópia do comunicado nº 295, de 19 de agosto de 1927, no
qual o chefe de polícia do Território, José Francisco de Mello, expressando-se em
nome do governador, determinou ao delegado auxiliar de polícia da cidade de Rio
Branco, Sansão Ferreira Valle, que fossem tomadas medidas enérgicas contra os
que insistissem em fazer trabalhos de cura sem que fossem portadores do diploma
• de médico, recomendando especial atenção aos curandeiros:
1109 De ordem do Sr. Governador do Território, a quem foi levada a denúncia de
que pessoas inabilitadas para o exercício da medicina estão, abusivamente,
• exercendo essas profissões, chamo vossa atenção sobre os falsos profissio-
nais e, sobretudo, contra os curandeiros, recomendando as mais severas
medidas policiais, afim de prestigiar a ação dos funcionários da saúde pú-
blica do território (CARNEIRO, 1930, p. 164).

Mesmo não sendo de maneira frequente, setores da imprensa também


2 cobravam posicionamento das autoridades. Em sua edição nº 606, de 31 de
dezembro de 1927, a Folha do Acre publicou nota, na qual denunciava que pessoas
0 inabilitadas estavam exercendo os ofícios de médico e farmacêutico em Rio Branco.
O jornal caracterizou o fato como uma “medida de polícia”, e sugeriu ao governador
1 que “oficiasse” aos delegados auxiliares, chamando-lhes atenção contra os falsos
profissionais e, sobretudo, contra os curandeiros.11
8 Curandeiros e feiticeiros no Acre territorial
No Território Federal do Acre, essas outras artes de curar já faziam
parte do cotidiano de seus habitantes antes da chegada da empresa gumífera,
na segunda metade do século XIX, bem como da institucionalização do espaço
enquanto território brasileiro, a partir de 17 de novembro de 1903. Em um primeiro
momento constituíam-se em práticas desenvolvidas por populações indígenas, a
partir de uma intensa relação com a fauna e flora existente nos territórios que
ocupavam. O padre francês Constant Tastevin tratou sobre esses saberes e fazeres

11  Folha do Acre, 31 de dezembro de 1927, ano XVI, nº 606, p. 02.


em relatório produzido durante viagem ao rio Tarauacá, no ano de 1926. Conforme
o religioso, o uso de plantas e ervas fazia parte do cotidiano das populações locais,
que as utilizavam para o tratamento de uma diversidade de moléstias:
Os índios conhecem um monte de remédios, todos eles extraídos de vegetais
da floresta. Na travessia que fiz em suas companhias, de Transvaal à Revi-
são, não pude encontrar um só arbusto, uma só folha, um único cipó de que
eles não conhecessem o nome e quase sempre as propriedades (TASTEVIN,
1926, p. 193).
J
Notícias sobre o cultivo e utilização de plantas com fins medicinais, por
A indígenas que habitavam no Acre, também foram publicadas em jornais editados
no Território. Em sua edição de nº 296, de 17 de janeiro de 1920, o jornal Folha

do Acre produziu matéria intitulada “Nauiki”, relatando que era comum encontrar
L
nos roçados das tribos, cuidadosamente cultivado, um arbusto de cerca de metro
e meio de altura, salpicado por vistosas flores grandes e brancas, comumente
L chamado de Nauiki. De acordo com o periódico, o “civilizado” que observasse
descuidadamente, geralmente pouco a par dos segredos da floresta, jamais
A suspeitaria das extraordinárias e surpreendentes propriedades da misteriosa
planta. O uso de suas folhas, no entanto, depois de convenientemente preparadas,
produziam inomináveis fantasias, sendo também dotadas de diversas propriedades
terapêuticas.12
O Nauiki, segundo o jornal, fazia engordar os aborígenes. Para reforçar
• esta propriedade, preparavam um chá com a casca de certa árvore da floresta
1110 conhecida entre os Catuquinas por Matchavi, e sem nome entre os “civilizados”, do
qual bebiam grandes quantidades.13 A matéria foi concluída com uma indagação:

“que surpreendentes resultados se poderia obter de tão extraordinária folha, depois
de convenientemente usadas pela moderna terapêutica?”.14
Em se tratando da fauna, matéria publicada pelo jornal O Município, no
dia 24 de agosto de 1932, trouxe informações sobre uma substância tóxica extraída
de um sapo denominado como “campú”. De acordo com o texto, os Cachinauás a
2
utilizavam, tanto para potencializar o efeito de suas flechas, “com que fulminavam
quase instantaneamente os animais que desejavam abater” 15, como para fazer
0 inoculações em um processo onde o veneno era aplicado sobre escoriações na pele,
com o objetivo de tirar panema16 e dar felicidade.17
1 Ainda de acordo com O Município, com este veneno, causador de alegrias
e dissabores, “os aborígenes faziam seus curativos, tiravam urucubacas e curavam
8 moléstias, sem precisar dos cuidados excelentes de um médico”.18
A essas práticas de medicina popular somaram-se outras, principalmente

12  Folha do Acre, 17 de janeiro de 1920, ano X, nº 296, p. 01.
13  Folha do Acre, 17 de janeiro de 1920, ano X, nº 296, p. 01.
14  Folha do Acre, 17 de janeiro de 1920, ano X, nº 296, p. 01..
15  O Município, 25 de agosto de 1932, ano XXIII, nº 882, p. 03.
16  Termo utilizado na Amazônia para designar azar na caça ou na pesca (ALMEIDA et al, 2002,
p. 679).
17  O Município, 25 de agosto de 1932, ano XXIII, nº 882, p. 03.
18  O Município, 25 de agosto de 1932, ano XXIII, nº 882, p. 03.
as que faziam parte do cotidiano de populações que habitavam no semiárido
brasileiro, protagonistas, a partir da segunda metade do século XIX, de intenso
movimento populacional em direção à Amazônia, para atuar como mão de obra na
exploração do látex e produção da borracha. De acordo com Samuel Benchimol,
esses processos imigratórios começaram a se intensificar a partir do ano de 1877,
quando chegaram aos seringais amazônicos cerca de 4.610 imigrantes oriundos
daquela região (BENCHIMOL, 1977, p. 181). Algumas das artes de curar utilizadas
J por essas populações podem ser encontradas no já citado relatório produzido
por Belisário Penna e Arthur Neiva, a exemplo dos registros feitos durante suas
passagens no interior do Piauí:
A
Em certos lugares do Piauí as mulheres do povo, quando dão a luz, costu-
mam a ingerir uma beberagem onde entra a pimenta. A tesoura que serviu
L para cortar o cordão umbilical é colocada sob a cabeça da criança a fim de
evitar o mal de sete dias (...). A capeba (Heckeria Petalta L.) assim como a
L Solanun Paniculatun L. (jurubeba), são utilizadas de vários modos para com-
bater as moléstias de fígado, febres diversas e até a sífilis (PENNA & NEIVA,
1912, p. 163 a164).
A
Observe-se, no entanto, que a relação entre os imigrantes que ocuparam
o Território do Acre, a partir do final do século XIX, e as populações já estabelecidos
na região, não se deu de maneira harmoniosa. O padre francês Jean-Baptiste
Parrissier, durante “excursão apostólica” ao rio Juruá, no ano de 1898, descreveu
• como ocorriam às correrias, ação de extermínio de populações indígenas, praticada
por grupos de brancos, que intencionavam ocupar determinada área de terra, com
1111
intuito de abrir um seringal:
• Quando um branco quer se estabelecer num terreno ocupado por uma tribo
de índios, eis como procede. Ele arma cinco ou seis homens com bons fuzis,
pega um para si também e parte em busca da maloca. Quando a acha, ele
e seus homens a cercam e massacram todos aqueles que tentam fugir e as
mulheres e crianças são levadas ao Juruá e vendidas como animais (PAR-
RISSIER, 1898, p. 55).
2
Cerca de dezesseis anos depois, quando também peregrinava pela região
0 do Juruá, o padre Tastevin relatou que os seringueiros haviam definitivamente
se estabelecido, transformando a “floresta virgem, que para os índios não era
mais do que um vasto terreno de caça, numa verdadeira fábrica de produção de
1 borracha” (TASTEVIN, 1914, p. 149). Quanto ao uso das armas contra os indígenas,
argumentou que os brancos foram “forçados a utilizá-las por causa de seus roubos
8 repetidos e pelos seus assassinatos, cometidos, em geral, em circunstância de
covardia, de ferocidade, de traição e de abuso de confiança revoltantes” (TASTEVIN,
1914, p. 149). De acordo com a perspectiva presente nas análises desenvolvidas
pelo religioso, a empresa gumífera propiciou a ocupação produtiva das terras do
Acre, em detrimento de seus antigos habitantes e dos processos de genocídio que
ocorreram na região.
Tastevin afirmou, no entanto, que o cenário anteriormente descrito não
era o mesmo no ano de 1914. É possível que tenha ocorrido uma redução das
correrias, a partir da segunda década do século XX, mas isso não significou o fim
dos extermínios e das expropriações de territórios indígenas. A crise econômica
que se abateu sobre as regiões produtoras de borracha, gerando sérios problemas
de escassez de mão de obra, pode ser apontada como causa da diminuição da
matança. Uma das soluções encontradas pelos proprietários de seringais foi
a gradual incorporação dos indígenas à vida econômica e social das unidades
produtoras de borracha, o que terminou por intensificar as relações de troca de
informações entre essas populações e os seringueiros. Em decorrência da crise de
alimentos, os seringueiros começaram a cultivar roçados de subsistência, a criar
J animais e plantar árvores frutíferas em suas colocações, práticas terminantemente
proibidas pelos patrões, até o início da crise da borracha. Nesse contexto, segundo
o antropólogo Mauro Almeida:
A
[...] o conhecimento da floresta passou a ser vital para as tarefas mais pro-
saicas e cotidianas, pois a escassez de mercadorias tornava úteis as frutas,
L enviras (fibras de árvore), as diversas espécies de cipó, pigmentos e óleos ob-
tidos na mata e coco das diversas palmeiras” (ALMEIDA et al, 2002, p. 120).
L O contato com populações que já habitavam a Amazônia foi fundamental
para a construção desse conhecimento. Alguns nordestinos, que não tiveram
A como regressar a seus estados de origem, tampouco fixar residência nas cidades
e vilarejos existentes, intensificaram essa relação, juntando-se com mulheres
indígenas e constituindo famílias:
A constituição de famílias, a prática da agricultura e o fabrico da farinha;
a caça e a pesca como verdadeiras instituições cotidianas; a criação de pe-
• quenos animais; a construção de técnicas adaptadas à floresta; o artesanato
com cipós, palhas e outros materiais da mata; o conhecimento das ervas da
1112 região para curar doenças; as visitas e as festas; tudo isso fez parte, junto
• com o trabalho de extração do látex, desse modo de vida novo, que deu a
essas pessoas a possibilidade de continuar na região sem a “assistência”
anteriormente dada pelo patrão (ALMEIDA et al, 2002, p. 120).

Esse processo de aproximação, entre modos de vida heterogêneos,


constituiu-se em importante fator para a expansão de outras artes de curar.
2 Observando a bibliografia que trata sobre o tema, percebe-se que entre o final
do século XIX e início do século XX, período que corresponde a instalação e
0 desenvolvimento da empresa gumífera, o recurso à medicina popular fazia parte da
rotina de considerável parcela dos habitantes da Amazônia, desfrutando de grande
prestígio. Segundo Ferreira Reis, índios, seringueiros e caboclos possuíam usos
1 e costumes para o tratamento de seus males, valendo-se do curandeirismo a que
se haviam habituado, assente basicamente nas tradições dos pajés e no que as
8 experiências lhes haviam ensinado:
[...] em todos os seringais, quando não providenciavam à luz do que sa-
biam no uso de suas drogas e beberagens drásticas, entravam em função
os curandeiros que desfrutavam, assim, de um prestígio particular e muito
natural (REIS, 1953, p. 134).

Em um momento ou outro, ocorria dessas práticas serem contestadas,


a exemplo de uma nota denominada “Conselhos”, publicada no jornal A Reforma,
editado na cidade de Tarauacá, em sua edição nº 272:
O que diz o atual diretor do Instituto Butantã19, Dr. Rudolf Kraus 20
:

O tratamento de envenenamento ofídico, realmente eficaz e que pode salvar


a vida é somente o soro antipeçonhento. Todos os outros remédios usados
pelo povo, como álcool, plantas e remédios de curandeiros, são de pouca ou
nenhuma eficácia.21

Existe, no entanto, um aspecto a ser notado. Nos jornais editados no


Território do Acre, nas três primeiras décadas do século XX22, observa-se uma
J clara distinção de uso entre os que prescreviam remédios caseiros, homeopáticos
ou alopáticos, e os que recorriam ao espiritismo e a magia, com intuito de realizar
A curas, e praticar adivinhações e ritos que despertassem ódio ou amor. Os primeiros,
geralmente, recebiam a denominação de curandeiros, enquanto os segundos, em
L algumas ocasiões, eram caracterizados como feiticeiros, não havendo, no entanto,
um padrão para a utilização do termo.
L Sobre os curandeiros as abordagens eram dúbias, ora expressando o
“eminente perigo” que representavam para os que procuravam esses serviços, ora
enfatizando suas qualidades relatando, inclusive, casos de cura de enfermidades
A que não haviam sido resolvidas com terapêuticas indicadas por médicos. No
segundo caso, buscava-se ressaltar a capacidade dos curandeiros de descobrir

19  “Um surto de peste bubônica que se propagava no porto de Santos em 1899, levou o governo a
adquirir a Fazenda Butantã para instalar um laboratório de produção de soro antipestoso, vinculado
• ao Instituto Bacteriológico (atual Adolpho Lutz). Esse laboratório foi reconhecido como instituição
1113 autônoma em fevereiro de 1901, sob a denominação de Instituto Serumtherápico, sendo designado para
primeiro diretor, Vital Brazil Mineiro da Campanha, médico voltado para problemas de saúde pública.
• Em 1914 foi inaugurado o prédio principal, com as condições necessárias para abrigar os laboratórios,
em torno dos quais cresceu uma instituição que combina pesquisa e produção”. Informações
retiradas do endereço eletrônico http://www.butantan.gov.br/home/quem_somos.php, acessado
no dia 02 de julho de 2014, às 10horas.
20  Rudolf Kraus nasceu em 30 de outubro de 1868, em Mladá Boleslav, na Boêmia, atual República
Tcheca. Formou-se em medicina pela Universidade Alemã de Praga, em 1893. No ano seguinte, foi
2 para Viena, e depois seguiu para o Instituto Pasteur de Paris, onde permaneceu durante alguns
meses de 1895. Foi convidado então para trabalhar no recém-fundado Instituto Soroterápico
0 Federal de Viena. Nesse instituto, em que ingressou em 1896, logo se destacaria nos estudos sobre
as reações sorológicas e imunizações. Em 1903, Kraus trabalhou na estação zoológica de Rovigno,
com Fritz Schaudinn, e com Constantini Levaditi no Instituto Pasteur de Paris; dois anos depois fez
1 o curso de protozoologia no Instituto de Doenças Marítimas e Tropicais de Hamburgo. Tornou-se
Privatdozent, em 1906, da cátedra de patologia geral e experimental na Universidade de Viena, na
8 qual ministrava aulas de imunologia, soroterapia, doenças infecciosas, e malária desde 1901. Os
caminhos que levaram Kraus à América do Sul foram traçados também em função de sua situação
profissional em Viena. Entre o ingresso no instituto vienense e a partida para a Argentina, onde
assumiu a direção do Instituto Bacteriológico de Buenos Aires, Kraus acumulou cursos e períodos
de trabalho em importantes instituições.Sua posse na direção do Instituto Butantã, no Brasil,
deu-se no ano de 1921. In: CAVALCANTE, Juliana Manzoni. Rudolf Kraus em busca do “ouro
da ciência”: a diversidade tropical e a elaboração de novas terapêuticas, 1913 – 1923. História,
ciência,saúde- Manguinhos vol.20 n°. 01: Rio de Janeiro Jan./Mar. 2013.
21  A Reforma, 07 de outubro de 1923, ano VI, nº 272, p. 02.
22  No decorrer das pesquisas, a edição mais antiga de um jornal produzido no Território do Acre,
que foi encontrada, corresponde a nº 01, de 03 de maio de 1906, de um periódico denominado O
Cruzeiro do Sul, editado na cidade acreana de mesmo nome.
novos produtos medicinais, em meio a plantas e ervas que, após terem suas eficácias
comprovadas, passavam também a ser utilizadas pelos médicos. Percebe-se, nesse
caso, não uma relação de confronto, mas um processo de complementação de
saberes.
A dubiedade com que o tema era tratado pelos jornais, expressava-se em
matérias e artigos, bem como em anúncios de medicamentos e uma variedade de
outros produtos. Observe-se um anúncio intitulado “Aos Curandeiros”, publicado
J no jornal Folha do Acre em sua edição nº 515, de 07 de fevereiro de 1926. Tratava-
se da oferta de um guia prático de medicina, escrito pelo professor Tavares da
A Silveira Filho, da Escola de Farmácia de Ouro Preto (MG). A obra é indicada para
farmacêuticos, médicos recém-formados e leigos, que desejassem, por diferentes
L motivos, conhecer e tratar diversas moléstias. Observe-se que a terminologia
curandeiros, utilizada no título do anúncio, não referia-se somente a pessoas sem

formação acadêmica, abrangendo farmacêuticos e médicos habilitados, mas que
L ainda não haviam adquirido a experiência necessária para exercer o ofício com
segurança:
A Aos curandeiros:
Apareceu o livro Guia Prático de Medicina Doméstica do professor Tavares
da Silveira, da Escola de Farmácia de Ouro Preto. Obra interessantíssima,
como ninguém jamais fez outra igual, escrita em linguagem simples, ao al-
cance dos leigos. Com seu auxílio, pode-se tratar de todas as moléstias vul-
• gares com reduzido arsenal terapêutico de sessenta e poucos medicamentos
alopáticos e caseiros, com cerca de 250 fórmulas científicas. Descreve os
1114
remédios e as doenças, ensina a formular e aviar as receitas em casa, tão
• bem como na farmácia, dar inúmeros conselhos úteis sobre higiene, profi-
laxia, pediatria, enfermagem etc. De interesse dos farmacêuticos obrigados
a clinicar onde não há médicos e aos profissionais formados recentemente
e ainda sem a prática. Útil e indispensável nas fazendas, casas de família,
colégios seminários, onde quer que possa aparecer uma doença longe de
pronto recurso e que precisar ser atendido por leigos, para não deixar o do-
2 ente perecer a míngua.23
O anúncio publicado no ano de 1926, período bem posterior às legislações,
0 que estabeleciam a obrigatoriedade de diplomas e títulos para o exercício de ofícios
nas áreas de saúde, tornava explícito que, principalmente em localidades onde
1 existiam poucos profissionais habilitados, especificamente médicos, as artes de
curar ainda eram realizadas por leigos. O jornal e o anunciante ofereciam um
8 instrumento capaz de facilitar um serviço que, segundo eles, muitas vezes evitava
que pessoas morressem sem ter recebido qualquer tipo de assistência.
Também foram encontradas situações nas quais os curandeiros são
exaltados, sendo atribuída a eles a cura definitiva de doenças, para as quais
nenhuma terapêutica indicada pelos médicos fora eficaz. Assim, não era incomum
que os jornais publicassem sobre a descoberta de cura definitiva para a lepra,
câncer, tuberculose e outras doenças, por um curandeiro. Um desses casos,
publicado no dia 07 de fevereiro de 1926 pelo jornal O Rebate, de Cruzeiro do
Sul, em sua edição nº 165, diz respeito às atividades desenvolvidas pelo boliviano
23  Folha do Acre, 07 de fevereiro de 1926, ano XV, nº 515, p. 02.
Pedro Molina. Segundo o periódico, Pedro Molina era um curandeiro que havia
se estabelecido próximo ao rio Juruá, onde passou a realizar admiráveis curas
no tratamento da lepra. Para tanto, utilizava de diversas beberagens e unguentos
extraídos de vegetais, utilizando-se de um processo do qual era o único conhecedor,
de modo que guardava seu segredo a sete chaves.24
A partir do momento em que estas informações circularam, Pedro
Molina passou a ser muito procurado pelos portadores da enfermidade, “que
J se transportavam de longínquos pontos, atrás do benfazejo curandeiro”.25 Para
atender à clientela, que aumentava na mesma proporção que se espalhava sua
A fama, Molina construiu, ao lado de sua barraca, uma enorme casa de palha, que
passou a funcionar como abrigo para os enfermos que para lá se dirigiam em busca
L de auxílio.26O jornal não explica se o curandeiro cobrava pelos atendimentos que
realizava ou se os serviços eram gratuitos.

O prestígio do boliviano cresceu ainda mais, a partir do momento em que
L
começaram a ser disseminadas notícias sobre a constatação feita por médicos que
atuavam na cidade de Manaus, da cura definitiva de leprosos que receberam seus
A remédios e cuidados. Segundo o jornal O Rebate, os exames realizados nos enfermos
detectaram que o bacilo havia sido completamente expurgado, fato caracterizado
como “uma sensacional descoberta que estava impressionando extraordinariamente
o corpo médico”.27 Neste caso, chama atenção o título da publicação: “A lepra
é curável: fato indiscutível”, pelo fato do jornal creditar a suposta proeza, a um
• praticante de medicina popular.
1115 Antes, em 1910, outra publicação, dessa vez no jornal Folha do Acre,
• em sua edição nº 17, de 25 de novembro, registra que um homem de 54 anos de
idade, com um câncer na garganta, havia sido examinado por uma junta composta
por três médicos, que lhe recomendaram submeter-se a uma cirurgia. O enfermo
teria se oposto, passando a buscar por alternativas. De modo que uma curandeira
foi chamada, ato que, conforme o periódico seria explicado “pelo que a tradição
2 levou aos ouvidos do doente, fazendo-o crer que essa mulher tivesse gravado na
consciência uma série de observações preciosas”.28

De tal forma que o enfermo achou melhor não obedecer as indicações
0
médicas e passou a confiar seu tratamento às terapêuticas propostas pela dita
curandeira que, como primeira providência, passou a produzir o medicamento a
1 ser utilizado. Para isso, fez macerar em água durante 24 horas folhas de violeta,
depois ferveu o líquido e dividiu em duas partes. Uma foi reservada para uso
8 interno e outra na forma de compressas que eram colocadas sobre a garganta.29
Este procedimento foi repetido durante dois meses, de acordo com o relatado. Findo
este prazo, os médicos observaram que o doente estava completamente curado, de
forma que passaram a adotar o mesmo tratamento indicado pela curandeira, para

24  O Rebate, 12 de dezembro de 1927, ano VII, nº 165, p. 01.


25  O Rebate, 12 de dezembro de 1927, ano VII, nº 165, p. 01.
26  O Rebate, 12 de dezembro de 1927, ano VII, nº 165, p. 01.
27  O Rebate, 12 de dezembro de 1927, ano VII, nº 165, p. 01.
28  Folha do Acre, 25 de novembro de 1910, ano I, nº 17, p. 02.
29  Folha do Acre, 25 de novembro de 1910, ano I, nº 17, p. 02.
pacientes cancerosos sob suas responsabilidades, dando conta de que “tiveram
melhoras consideráveis”.30
Nos jornais acreanos pesquisados, as contestações ao ofício dos
curandeiros podem ser encontradas, principalmente, em anúncios de farmácias,
medicamentos ou consultórios médicos. Nesses casos, depreende-se que a
perspectiva era estabelecer limites rígidos entre dois tipos de saberes. O primeiro,
apresentado como saber técnico, confiável e eficaz, portanto, com legitimidade para
J intervir em situações de enfermidade e promover a cura, ou ainda recomendar
medidas profiláticas capazes de evitar as doenças. O outro, geralmente apresentado
A como saber empírico, caracterizado como ameaça e representado pelas terapêuticas
prescritas por curandeiros, que não dispunham de títulos e diplomas legais, e
L tinham por objetivo principal obter vultosos resultados monetários, através da
comercialização de substâncias cuja eficácia não fora comprovada, ludibriando,

com isso, a boa-fé de quem procurasse por esses serviços.
L
Ressalte-se que entre os leigos que prescreviam medicamentos,
estavam os regatões, comerciantes que cortavam os rios acreanos em pequenas
A embarcações, negociando diretamente com os seringueiros uma diversidade de
produtos, inclusive medicamentos, devidamente acompanhados da posologia.
Esse costume foi registrado no relatório elaborado pelos médicos da comissão
do Instituto Oswaldo Cruz, sobre as condições médico-sanitárias do Vale do
Amazonas, publicado no ano de 1913. Consta no documento que esse tipo de
• comércio, caracterizado pela existência de produtos de má qualidade e prescrições
1116 inadequadas, teria se constituído em um dos principais motivos para a descrença
dos seringueiros nos saberes médicos-acadêmicos e suas terapêuticas, o que

prejudicava, principalmente, o tratamento dos que contraiam o impaludismo, já
que a eficácia do uso da quinina era vista com desconfiança. Por essa perspectiva,
os sanitaristas definiram os regatões como “verdadeiros aniquiladores do prestígio
profissional, que vendiam para curar impaludismo pílulas de Reuter, grãos de
saúde, pomada santa, etc., sacrificando deste modo a vida humana e implantando
2 o descrédito da terapêutica”. (IOC, 1913, p. 22).
Os jornais editados no Território do Acre tinham uma abordagem
0 diferenciada quando dizia respeito a pessoas que se propunham a resolver
problemas dos mais diversos através da magia, do espiritismo e de outros sortilégios.
1 Nesse caso, prevaleciam abordagens que, ora referiam-se a esses praticantes com
ironia ou deboche, ora enfatizavam os aspectos negativos dos ritos sobrenaturais
8 supostamente realizados.
O primeiro caso pode ser observado no anúncio do medicamento
Cafiaspirina, publicado na edição nº 690 do jornal A Reforma, de 21 de agosto de
1932. Nele, o periódico enfatiza a suposta ineficácia do uso de rezas e benzeduras31

30  Folha do Acre, 25 de novembro de 1910, ano I, nº 17, p. 02.


31  As rezadeiras ou benzedeiras são mulheres que realizam as benzeduras, termo que abrange
um repertório material e simbólico que pode ser bastante abrangente. Para executar esta prática,
elas acionam conhecimentos do catolicismo popular, como “súplicas” e “rezas”, com o objetivo de
restabelecer o equilíbrio material ou físico e espiritual das pessoas que buscam a sua ajuda. Para
compor este ritual de cura, as rezadeiras podem utilizar vários elementos acessórios, dentre eles:
para curar doenças e mal-estar. Essas práticas são caracterizadas como crendices
que, se não faziam mal, também não resolviam os problemas dos enfermos. 32
Outra forma dos jornais abordarem a referida temática dava-se através
de matérias e artigos que tratavam de maneira pejorativa esses fazeres, em geral,
caracterizando-os como decorrentes da ignorância e superstição de parcela
considerável da população. Foi assim na edição nº 98, do jornal O Alto Purus, de 26
de março de 1909. De início, o texto em questão refere-se a supostas lutas travadas
J através dos tempos, mais especificamente “desde a infância solitária do primeiro
homem das cavernas à maturidade progressiva dos atuais agrupamentos humanos”
A 33
,envolvendo o espírito contra a matéria e o bem contra o mal. Tais confrontos,
conforme a referida matéria, “se prolongariam através das idades futuras, em uma
L crescente de investigações dolorosas”.34
A belicosa relação, sobre a qual trata o jornal, não significava que
determinados fenômenos fossem desconsiderados, principalmente aqueles, “cujas
L
leis desconhecidas levavam o povo a fantasiar milagres, dando crédito a uma força
sobrenatural que se modificaria com a simples invocação feiticeira de uma prece”.35
A Era necessário entendê-los, para então combatê-los. Ler-se no referido texto que
eram tantos os crentes nessas forças, e de tão variadas matizes, que o próprio autor
manifestou, com ironia, que ele mesmo, pelo menos em certos momentos, gostaria
de crer em “alma de outro mundo, benzeduras e quebranto” 36, desejo originado a
partir das constantes observações, que fazia dos frequentadores da casa de Chica
• Veneranda, definida como uma mulher entendida nessas coisas, cujas práticas
1117 prometiam cura e soluções para diversas enfermidades e problemas, estando entre
elas, por exemplo, a “espinhela caída”.37.

Em outros casos, adeptos de práticas e ritos sobrenaturais foram acusados
de realizarem ou incitarem atos violentos. Assim foi no assassinato do coronel José
Ferreira, pelo caboclo38 João Antônio, ocorrido no município de Sena Madureira.

ramos verdes, gestos em cruz feitos com a mão direita, agulha, linha e pano, além do conjunto
2 de rezas. Estas podem ser executadas na presença do cliente, ou à distância. Em seu ofício, de
amplo reconhecimento, essas mulheres “rezam” os males de pessoas, animais ou objetos, bastando
0 apenas que alguém diga os seus nomes e onde moram. In: SANTOS, Francimário Vito dos. O ofício
das rezadeiras como patrimônio cultural: religiosidade e saberes de cura em Cruzeta na região do
Seridó Potiguar. Acessado através do site: http://www.usp.br/cpc/v1/php/wf07_revista_interna.
1 php?id_revista=12&tipo=5, em 09 de julho de 2014, às 11 horas e 56 minutos.
32  A Reforma, 21 de agosto de 1932, ano XV, nº 690, p. 02
8 33  O Alto Purus, 26 de março de 1909, ano II, nº 98, p. 02
34  O Alto Purus, 26 de março de 1909, ano II, nº 98, p. 02
35  O Alto Purus, 26 de março de 1909, ano II, nº 98, p. 02.
36  O Alto Purus, 26 de março de 1909, ano II, nº 98, p. 02.
37  O Alto Purus, 26 de março de 1909, ano II, nº 98, p. 02.
38  Em artigo denominado: “Caboclos na Amazônia: a identidade na diferença”, a antropóloga
Izabel Rodrigues disse que, ora o termo aparece como uma representação, uma categoria atribuída
pelos outros (brancos, não-caboclos), ora o termo torna-se mais “empírico” e “fixo”, referindo-
se a pequenos produtores familiares da Amazônia. Entre os diversos significados atribuídos ao
termo, predomina um sentido pejorativo, negativo, que define caboclo como indivíduo ou grupo que
ocupa uma posição social inferior. In: RODRIGUES, Izabel. Caboclos na Amazônia: a identidade na
diferença. Novos Cadernos – NAEA, v. 09, n° 01, junho de 2006, p. 122.
Segundo a edição nº 48, do jornal O Alto Purus, do dia 17 de outubro de 1917,
João Antônio cometeu o homicídio a mando da mãe, tratada como feiticeira por
fazer uso do livro de São Cipriano, ao qual eram atribuídos poderes mágicos. A dita
mulher tinha desavenças com o coronel José Ferreira, por este tê-la ameaçado de
expulsão, caso continuasse a praticar certos “abusos nocivos” à vida do seringal. O
citado jornal não especifica quais seriam os abusos nocivos cometidos, mas deixa
subentendido que guardavam relações com práticas de magia.
J João Antônio era um rapaz de aproximadamente 28 anos, criado pelo
próprio coronel José Ferreira. A mãe, como depois confessou, o havia induzido ao
A crime, “sequiosa de vingar-se do proprietário do seringal Liberdade e finda (sic) nas
regras de seu livro de São Cipriano, que ensinava a maneira de assassinar no dia
L 1º de outubro sem que o assassino viesse a ser descoberto”.39
A morte do Coronel José Ferreira repercutiu muito mal em Liberdade.
Alguns aviados40 do seringal quiseram logo tirar a revanche e vieram para a margem
L
(barracão) com homens armados. Uma vez reunidos no barracão do seringal,
souberam que o dito caboclo e sua mãe estavam no seringal Concórdia, local
A onde foram presos pouco antes da meia noite. Fortemente surrados, mãe e filho
terminaram por confessar o crime. Após João Antônio dar detalhes sobre o que
ocorrera, coube à “velha” confirmar as declarações do filho, indicando o livro de
São Cipriano, no qual encontrara tais regras. Acrescentou que as sublinhara com
tinta preta, e marcara o 1º de outubro com uma cruz. Ao lado do livro, encontrava-
• se uma ponta de cigarro do coronel José Ferreira, embrulhado em uma madeixa
1118 de cabelos, tudo conforme as orientações contidas no citado livro. A mala que
continha os objetos utilizados na prática de “magia” foi queimada, seguindo-se

um tiroteio contra os acusados. “Caboclo João tombou primeiro com cinco balas,
sendo posteriormente assassinada sua mãe”.41
Referências
Jornais
2 A Reforma, 07 de outubro de 1923, ano VI, nº 272.
A Reforma, 21 de agosto de 1932, ano XV, nº 690.
0 A Reforma, 21 de Agosto de 1932, ano XV, nº 690.
Folha do Acre, 31 de dezembro de 1927, ano XVI, nº 606.
1 Folha do Acre, 17 de janeiro de 1920, ano X, nº 296.
Folha do Acre, 07 de fevereiro de 1926, ano XV, nº 515.
8 Folha do Acre, 25 de novembro de 1910, ano I, nº 17.
Gazeta de Notícias, 27 de março de 1881, ano VII, nº 84.
O Alto Purus, 26 de março de 1909, ano II, nº 98.
O Alto Purus, 14 de outubro de 1917, ano X, n. 48.
O Comercial, 01 de fevereiro de 1900, ano XIX, nº 04.

39  O Alto Purus, 14 de outubro de 1917, ano X, n. 48, p. 02.


40  O termo refere-se a seringueiros que residiam e trabalhavam em colocações, entregando a
borracha para o barracão e recebendo, em contrapartida, variados tipos de mercadorias.
41  A Reforma, 21 de Agosto de 1932, ano XV, nº 690, p. 02.
O Comercial, 01 de fevereiro de 1900, ano XIX, nº 04.
O Cruzeiro do Sul, 11 de julho de 1915, ano V, nº 434.
O Município, 25 de agosto de 1932, ano XXIII, nº 882.
O Rebate, 12 de dezembro de 1927, ano VII, nº 165.
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A CRUZ, O. G. Relatório sobre as Condições Médico-Sanitárias do Valle do Amazonas,
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L Comércio, pelo Dr. Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro: Typ. do Jornal do Commercio, de Ro-
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MARIANO, C. J. Relatório do Prefeito do Alto Purus apresentado ao Ministro da Justiça
e Negócios Interiores, Augusto Tavares de Lyra, em 30 de janeiro de 1908, pelo prefeito
• Cândido José Mariano. Anexo H. In: BRAZIL. Ministério da Justiça e Negócios Interiores.
Relatório apresentado ao presidente dos Estados Unidos do Brasil pelo ministro Dr.
1119
J. J. Seabra. Volume II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1908. Disponível em <http.
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cacaooriginal-106278-pl.html.
8
BRASIL. Decreto nº 5.156, de 08 de março de 1904. Disponível no site: http://www2.
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índios e seringueiros do Alto Juruá. Rio de Janeiro: Museu do índio, 2009.
1120

2

0

1

8

J

A

L RUEDAS DE CONVERSASIONES: UM ESPAÇO DE INTERAÇÃO
BILÍNGUE E PEDAGÓGICA COM PROFESSORES BOLIVIANOS NA
L FRONTEIRA DO BRASIL COM A BOLÍVIA

A Silene Espinosa Quintão Alencar (UNIJIPA)
Zuila Guimarães Cova dos Santos (UNIR)
RESUMO:Esse artigo trata de uma experiência bilíngue realizada através de
práticas orais e pedagógicas utilizando o método das Rodas de Conversas com os
professores bolivianos da Rede Fé e Alegria em Guayaramerim, fronteira do Brasil
• com a Bolívia. As Rodas foram espaços de encontro e troca de experiências entre
1121 professores da educação infantil brasileiros e bolivianos para o aprendizado do
espanhol e o português respectivamente. Os encontros foram apresentados através
• de músicas, textos literários,históriasinfantis e jogos, estimulando a oralidade e
a ludicidade. Tornaram-se espaço para reflexões e registros do mundo vivido da
escola da fronteira. O Projeto nasceu para atender as necessidades dos professores
para atender alunos bolivianos. As oficinas de Línguas aconteceram tanto na
escola brasileira quanto na escola boliviana. Uma rica experiência intercultural,
2 que contribuiu para enriquecer as práticas pedagógicas, o processo bilíngue em
sala de aula e a formação cultural dos docentes participantes.
0 Palavras-chave: Fronteira. Língua. Educação.
Introdução
1 O artigo descreve uma experiência pedagógica bilíngue realizada através
do projeto de extensão Ruedas de Conversaciones, institucionalizado pelo Campus
8 de Guajará-Mirim da Universidade federal de Rondônia – UNIR e coordenado pela
profª Dra. Zuíla G. C. dos Santos. O Campus universitário está situado na fronteira
do Brasil com a Bolívia, especificamente na fronteira das cidades-gêmeas de Guajará-
Mirim (RO/BR) e Guayaramerín(BENI/BOL). No referido projeto, exercemos a
função de mediadora das Ruedas as quais passamos a nomear como Rodas a partir
deste momento. Os encontros aconteceram tanto em território brasileiro quanto
boliviano. Mas, para este artigo, descreveremos as nossas experiências realizadas
em território boliviano.
Nossos encontros de estudo eram realizados na unidade de ensino Fé Y
Alegria na cidade de Guayaramerín (Beni/Bol), eles ocorreram uma vez por semana,
num período de doismeses. Participavam destes encontros professores e gestores
das escolas bolivianas e o nosso objetivo foi o de desenvolver momentos de estudo
e práticas orais e escritas para aquisição da Língua Portuguesa na escola boliviana.
Destacamos que os encontros aconteciam tanto na escola boliviana para
o ensino do português com uma mediadora brasileira, quanto, na escola brasileira
para o ensino do espanhol com uma mediadora boliviana.
J Foi uma rica experiência de formação, que envolveu muito mais do que a
escrita e a leitura na língua portuguesa. Possibilitou que conhecêssemos histórias
A de vida, vidas regadas por frustrações e sonhos. Conhecemos um pouco da história
e da cultura boliviana, falamos das nossas histórias e, assim, construímos redes
L que se firmaram e hoje ultrapassam a fronteira das cidades-gêmeas.
Assim sendo, descreveremos a seguir as nossas reflexões sobre esse
L momento ímpar que experenciamos. Inicialmente destacamos o conceito sobre
a fronteira e trazemos um breve histórico das cidades-gêmeas; posteriormente
falamos das relações e interações construídas pelos sujeitos fronteiriços priorizando
A a dimensão educacional e linguística; em seguida apresentamos o projeto e para
finalizar apontamos como resultados os relatos dos professores que participaram
dessa ação de extensão.
Um olhar sobre a fronteira das cidades-gêmeas de Guajará-Mirim (RO/Br)
• e Guayramerín (Beni/Bol)
De acordo com Costa (2009) a fronteira éconstituída a partir de áreas
1122
contíguas de dois territórios nacionais, compõe o que se vem denominando zona
• de fronteira, área de fronteira, franja fronteiriça, dentre outras designações que
remetem a um espaço repleto de relações sociais de convivência e de produção.
Por isso, se diferencia do conceito de limite que é pontual – uma linha traçada nos
mapas que se materializa nas aduanas, postos de fiscalização e nos marcos. Nas
palavras de Piccolo (1998, p.218), “[...] a fronteira não é uma linha, mas um espaço
2 que define mais por seus atributos socioeconômicos e o limite, como conceito, é
essencialmente político”.
0 As fronteiras brasileiras são áreas povoadas, constituindo se um fator “de
integração, na medida que, for uma zona de interpenetração mútua e de constante
1 manipulação de estruturas sociais, políticas e culturais distintas”. Machado,
(1998, 42). Nesse sentido, entendemos que as pessoas que vivem na fronteira estão
interligadas, pois, ela não é o limite que encerra mais a ponte que liga os países
8
envolvidos. As pessoas estão constantemente indo e vindo de um lado para o outro
da fronteira, consomem produtos produzidos em ambos os lados e buscam a melhor
maneira de se comunicar.
A fronteira das cidades-gêmeas aqui destacadas é um espaço bilíngue
marcada pelo uso do português e do espanhol. No entanto, os sujeitos fronteiriços
em sua maioria, não dominam as duas línguas. Segundo o Ministério da Integração
Nacional, são consideradas cidades-gêmeas os municípios com mais de dois mil
habitantes, cortados pela linha de fronteira, seja essa seca ou fluvial, integrada
ou não por obra de infraestrutura, que apresentem grande potencial de integração
econômica e cultural, podendo ou não apresentar a unificação da malha urbana
com cidade do país vizinho. As cidades gêmeas ficam uma ao lado da outra em
países diferentes,e a linha divisória pode ser um rio como em Guajará-Mirim (RO/
BR) e Guayaramerín (BENI/BOL) ou separados por uma rua como em Santana do
Livramento (Rio Grande do Sul/BR) e Rivera (URUGUAI/BOL), o Brasil possui hoje,
29 cidades-gêmeas.

J

A

L

L

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1123

Imagem1: Imagem de satélite das cidades-gêmeas, na parte superior lado direito desta-
ca-se a cidade de Guajará-Mirim no Brasil e na parte inferior lado esquerdo a cidade de
Guayaramerín na Bolívia ao centro , o rio Mamoré, marco divisor.
Fonte: https://www.google.com/maps/search/guajara-mirim+fronteira+bolivia/@-
2 -10.8164553,-65.4799886,34498m/data26/05/18.

0 As cidades-gêmeas, conforme fotos acima surgiram a partir de processos
históricos parecidos. Guajará-Mirimantes conhecido como Vila de Esperidião
Marques, tem sua origem relacionada a construção da Estrada de Ferro Madeira
1 Mamoré uma estrada que ligava Guajará-Mirim a Porto Velho e que foi construída
através de um tratado com a Bolívia denominado Tratado de Petrópolis para facilitar
8 o escoamento de produtos bolivianos. Imigrantes nordestinos vieram para essa
região para extração do látex no Ciclo da Borracha o que acelerou o povoamento
local e foram seguidos de imigrantes de diversas partes do mundo. O nome da
Cidade de Guajará-Mirim segundo Aleks Palitot em dialeto indígena local significa
“Cachoeira Pequena”e é o maior município do estado em extensão territorial.
A igreja católica teve presença marcante no processo de colonização da
cidade de Guajará-Mirim e nas interações com a cidade vizinha Guayaramerin.
A cidade irá surgir com a criação do Território Federal de Rondônia em 1943,
graças ao desmembramento de terras do Estado do Mato Grosso e do Estado do
Amazônia. O território fronteiriço onde a cidade surgiu, apresenta um montante de
36 etnias, povos nativos amazônicos originados da miscigenação e descendentes de
quilombos.  Segundo Lima e Vitor Angenot:
Guajará-Mirim é a cidade que apresenta o maior número de atrativos tu-
rísticos do Estado de Rondônia que vão desde os encantos naturais – rios,
matas preservadas, parques, grutas, chapadas dos Pacaás Novos, Parque
Municipal Natural Serra dos Parecis - aos eventos culturais – festivais de
praias, festa da castanha, Boi Bumbá, festejos religiosos, etc, o que atrai
J alguns turistas aquela localidade. O principal meio de subsistência é o ex-
trativismo, agricultura e pecuária e o comercio. Sua população apresenta
A características de uma mistura de várias raças, como migrantes de diversas
origens em diferentes períodos históricos, descendentes de quilombos e os
nativos (indígenas aculturados) e conta também com moradores imigrantes
L bolivianos, podendo-se dizer que é uma população tipicamente amazônica.
(LIMA e VITOR ANGENOT, 2013, p. 2).
L A cidade boliviana de Guayaramerín fundada em 1892 fica a cerca de
93Km da capital boliviana Riberalta e se destaca por sua natureza exuberante,
A reserva indígena e pela intensa atividade econômica na agricultura, pecuária e o
comércio.  A população fronteiriças das duas cidades pertencem a uma Área de
Livre Comercio e recebem muitos turistas, em comitivas e de todos cantos do estado
e do Brasil, que vem atraído pelos baixos preços dos produtos ali comercializados.
Outro atrativo da região são os festejos religiosos que acontecem na fronteira,
• atraindo turistas de diversas regiões brasileiras, bolivianas.
1124 As festividades do Divino Espírito Santo, que acontece nos dois lados
da fronteira, o festival Folclórico de Guajará-Mirim com as festa dos Bois Bumbás

Malhadinho e Flor do Campo que traz também apresentações culturais da Bolívia, A
festa em comemoração à Proclamação a Independência, com desfile cívico realizado
no Dia 7 de Setembro que tradicionalmente tem a participação de entidades civis
e Grupos organizados que vem da Bolívia, diversas festividades locais ganham
destaque na região fronteiriça, atraindo um grande número de devotos de todos os
2 lugares.

Segundo Juan Carlos Crespo Avaroma em sua obra: “Decálogo de la
0 geohistoria guayaramirense” registra que: “durante o processo colonizador da
região, padres se instalaram na região e fundam a missão católica franciscana,
1 disseminando tanto a fé como seus rituais, com ampla participação dos povos
região fronteiriça”. (JUAN, 2006, p. 117).
8 A igreja Católica do Brasil através da Diocese de Guajará-Mirim muito
contribuiu para as interações fronteiriças através da Pastoral do Imigrante com
a promoção social, da compra de terrenos para os imigrantes que residiam
ilegalmente em Guajará- Mirim, com um hospital social que atendia gratuitamente
aqueles que precisavam de auxilio médico, as festividades religiosas locais como
Festejo do Divino Espírito Santo que é realizado tradicionalmente dos dois lados
da fronteira e diversas outra obras como escolas,seminários, Rádio Educadora e
Centro Despertar para capacitação e formação.
Os moradores da fronteira buscam a melhor maneira de se comunicar,
facilitando assim o contato linguístico entreportuguêse o espanhol, nesse contato
é comum o portunhol que é uma mistura de português com espanhol como
popularmente é falado por pessoas que compreendem e falam fazendo uma mistura
das duas línguas. As relações educacionais ainda são tímidas, há um campo enorme
de saberes que podem ser explorados, pesquisados e aproveitados nos currículos
das escolas dos dois países. Saberes estes que fazem parte do universo fronteiriço
e, que envolvem também, comunidades ribeirinhas, indígenas e quilombolas dos
dois países. Nesse sentido, as Rodas foram espaços que propiciaram o contato
J com a língua portuguesa, mas também, instigou o olhar seus participantes para o
universo cultural brasileiro. Um universo que merece ser conhecido, compreendido
à partir das histórias do lugar e de seus habitantes. Compreendemos que esta é
A
uma forma de promovermos uma verdadeira integração educacional, ampliando
o conhecimento dos alunos e estimulando práticas interculturais e bilíngues nas
L instituições de ensino da fronteira. Contribuindo para que sejam minimizados os
preconceitos Lingüísticos dentro das escolas.
L
Da construção do projeto às vivências das ruedas de conversaciones

As Rodas foram espaços de encontro e trocas entre bolivianos, onde a
A língua portuguesa foiapresentada através de músicas,textosliterários,histórias e
jogos estimulando principalmente os aspectos da oralidade, tornando-se assim
espaço para reflexões e registro do mundo vivido na escola da fronteira.
O projeto

• O projeto Ruedas de Conversaciones justificou-se por responder


à necessidade de uma das escolas do município de Guajará-Mirim, na questão
1125
da apropriação da língua espanhola pelos docentes. Promoveu a condição da
• participação de acadêmicos de pedagogia em uma experiência extraclasse de grande
importância, pois as oficinas de línguas aconteceram tanto na escola brasileira
quanto na escola boliviana e os participantes vivenciaram os intercâmbios, as
discussões, os relatos das práticas pedagógicas e se apropriaram de conhecimentos
específicos dos dois sistemas de ensino brasileiro e boliviano.
2 O objetivo do projeto, como já apontado, foi o de desenvolver práticas
orais e escritas, para aquisição da Língua Espanhola na escola brasileira e da
0 Língua Portuguesa na escola boliviana como também de promover a interação entre
professores brasileiros, bolivianos, acadêmicos e pesquisadores. Nesse processo de
1 interação foi possível conhecermosas práticas pedagógicas brasileiras e bolivianas
que estimulam o processo intercultural na Fronteira, bem como, o conhecer das
histórias infantis, músicas, jogos, textos literários na Língua Portuguesa e na
8
Língua
O projeto foi desenvolvido ao longo de dois meses, novembro e dezembro
do ano de dois mil e dezessete, através de encontros semanais, de duas horas e
meia, com a presença dos professores das escolas envolvidas e os seus respectivos
mediadores pedagógicos.Os mediadores pedagógicos tinham a responsabilidade
dê: organizar os encontros e selecionar as temáticas(conteúdo que será trabalhado
em sala) e o material de apoio didático. As escolas sedes, que realizam as Ruedas
de Conversaciones, foram responsáveis por disponibilizarem uma sala de aula, os
equipamentos midiáticos, repassar avisos e informações, e reproduzir o material de
apoio.A coordenadora do projeto foi responsável pelo contato com as instituições
pelas reuniões de abertura, de encerramento, e pela orientação pedagógica ao longo
de todo processo.
À prática das rodas
Uma vez por semana atravessávamos a fronteira para realizar nosso
encontro na escola San José da Rede Fé e Alegria em Guayaramerín(Beni/Bolívia).
Sobre esse aspecto Warshauer (2001), afirma:
J
Quando falo em Rodas, entretanto, não me refiro à estrutura apenas, mas
à qualidade da interação, às partilhas que elas facilitam. Haver espaços e
A tempos definidos para o encontro das pessoas em círculo não é suficiente
(talvez nem estritamente necessário, apesar dessa forma ser facilitadora,
mas é a qualidade das trocas estabelecidas no processo partilhado que pro-
L picia o desenvolvimento criativo individual e grupal: o cuidado mútuo, a
escuta sensível, o acolher e ser acolhido, a paixão de aprender e ensinar, de
L ensinar e aprender, a paciência no falar e ouvir, a amorosidade na convi-
vência, a tolerância nas diferenças, o prazer estético partilhado, o respeito
durante os conflitos, a coragem de ver-se no outro, de olhar para ele e para
A si, o formar-se formando[...] (WARSHAUER, 2001, p.300).
A roda deu-se em três momentos,os quais aconteciam naturalmente:
a acolhida, pois os irmãos da fronteira são muito receptivos,respeitosos e
acolhedores. Nesse momento aconteciam as conversas informais, oportunidade onde
• identificávamos se eles estavam fazendo uso do português nas salas de aula, em
casa e nas visitas ao Brasil. O estudo onde mediávamos às discussões e temas que
1126
no final de cada encontro eles solicitavam,relatavam seus anseios,dúvidas,pedidos
• para o próximo encontro e o encerramento onde geralmente fazíamos uma avaliação
do encontro, dos relatos de experiências e práticas pedagógicas e os resultados que
rapidamente estavam surgindo e um delicioso “refrigério”1 para fechar a rueda.
A cada novo encontro a Roda cresciae os professores estavam encantados com o
novo jeito de aprender a língua portuguesa, a metodologia e as práticas utilizadas
2 pelos professores da educação infantil no Brasil era para eles um momento rico
e que eles não queriam perder. E ainda, pediam que outros projetos como este
0 acontecessem, pois o que era vivido ali precisava ser multiplicado.

1

8

1  3Refrigério é como os bolivianos denominam um breve momento para uma pausa, um lanche um
pequeno descanso.
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Imagem 2: Rodas de conversas entre os professores envolvidos no projeto.
Fonte: Acervo pessoal do pesquisador.

• Pensar e organizar a roda com professores de outra língua, do outro lado


1127 da fronteira deu um pouco de medo e foi um grande desafio. No segundo encontro,
observamos que a roda estava sendo mediada com práticas do ensino tradicional,

ou seja, uma relação entre professor e aluno mediada pela exposição do professor e
pouca participação do aluno. No início existia timidez entre os participantes, e aos
poucos eles foram ganhando confiança.
Assim, eles começaram a compartilharas aprendizagens construídas,
refletiam sobre o desenvolvimento das atividades na sala de aula, explicavam os
2 registros escritos e vídeos de aplicação do uso da língua portuguesa com seus
alunos. Interpretavam às leituras propostas, às músicas e os contos.Traziam para
0 a reflexão, narrativas que elucidavam experiências de sucesso vivenciadas nas
atividades propostas, motivando dessa forma todo o grupo de trabalho.
1 No início do projeto, eram apenas professores da escola San José da Rede
Fé e Alegria, maslogo professores de outras escolas pediram para participar e a
8 Roda foi aberta para professores de escolas públicas e particulares da Educação
Infantil de Guayaramerim.
A Roda promoveu a construção de um novo jeito de aprender ensinar
através do diálogo e da reflexão da prática de cada docente. Os encontros semanais
tiveram grande importância para os mediadores, pois possibilitou a partilha de
experiências significativas.Warschauer (2001), ao abordar sobre a escrita narrativa
na formação de professores afirma:
[...] desenvolver a escrita narrativa na formação permanente de professores
possibilita o pensar, (re)pensar e refletir a respeito da sala de aula, das prá-
ticas pedagógicas e da sua vida profissional. Nesse sentido, o processo for-
mativo em Rodas possibilita que os professores, ao narrarem suas histórias
de sala de aula, encontrem espaço para dialogar e refletir a respeito de suas
práticas pedagógicas (WARSCHAUER, 2001, p.42).

Portanto, foi evidenciada a mudança de postura dos participantes do


projeto, de maneira direta e indireta cada profissional relatava a alegria de “aprender”
e “reaprender”. O prazer em compartilhar suas experiências e a oportunidade
de interagir tanto com os profissionais da rede de ensino da Bolívia e do Brasil
J despertou nos participantes a confiança para narrar suas práticas pedagógicas
refletindo individualmente e em grupo sobre elas.
A Resultados
Percebemos que os professores estão buscando uma melhor maneira
L para realizar interações na fronteira a partir do domínio da língua portuguesa e,
consequentemente, melhorar a qualidade das relações educacionais com o Brasil. Se
L preocupam também, em passar esse conhecimento aos seus alunos, oportunizando
à construção de um novo comportamento em relação aos que moram do lado de lá.
Um comportamento mais humano, que respeite a história e a diversidade de cada
A
país, contribua para fomentar práticas compartilhadas, que gerem o bem comum
dos habitantes da fronteira.
Percebemos a partir das narrativas que a metodologia utilizada para
desenvolver os encontros promoveu o envolvimento do grupo de professores no
• processo de compreensão do novo idioma. Vale ressaltar, que os textos, as músicas
e histórias aprendidas em português rapidamente eram inseridas nos momentos
1128
de aula. Os professores registravam os momentos a partir de fotos e vídeos, o
• material produzido pelos professores nas salas de aula ao longo da semana eram
compartilhados nos encontros da Rodas. Portanto, ficou claro que a nossa proposta
de trabalho estava promovendo o resultado que esperávamos.
Os momentos de interação nas rodas foram recheados de técnicas,ideias,
motivações e superações pois a cada novo encontro os professores tinham algo
2 novo para partilhar e tudo que era apresentado era rapidamente registrado e
retornava em benefícios para a sala de aula. A apresentação dos contos infantis em
0 português estimularam o processo comparativo com os contos em espanhol. Fato
que nos levou a perceber que temos contos em comum, nos dois lados da fronteira,
1 como por exemplo a lenda do “Boto”, conhecida na Bolívia como el Bufon,que é um
personagem que tem sua origem na região amazônica e surge das profundezas do

rio para seduzir as caboclas. As experiências de cada professor com seus alunos
8 apresentadas em vídeos, relatos e fotos motivava os demais e era surpreendente a
facilidade com que as crianças se apropriavam da língua portuguesa. As palavras
iam ganhando significado ao tempo em que elesalegres cantavam as cantigas de
roda.
Intercâmbio entre ruedas
Ocorreu um momento muito importante no decorrer do projeto, foi a
participação dos professores brasileiros e bolivianos e, seus respectivos alunos,
naIIISemana Binacional de Leitura e Arte da Rede Municipal em Guajará Mirim,
que ocorreu em outubro de 2017.
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Imagem 3: Apresentação de professores e alunos na IIISemana Binacional de Leitura e Arte
Fonte: Acervo pessoal do pesquisador

Os professores bolivianos atravessaram a fronteira com seus alunos para
1129
fazer uma belíssima apresentação; cantaram músicas infantis em português e
• espanhol num processo de empoderamento do bilinguismo na fronteira. Foi um
momento de muitas interações e trocas de experiências tanto para os professores
quanto para os alunos que puderam vivenciar o uso das duas línguas em um
mesmo espaço.
As experiências da roda de conversas: narrativa dos professores
2 Ao final de cada roda eram realizadas as avaliações e o planejamentos
para o próximo encontro, tivemos sete encontros20 horas de trabalho em grupo.Os
0 registros que vamos apresentar fazem parte da coleta feita através da Metodologia
do Grupo Focal2. Foram coletados em dois momentos: no segundo, e sexto encontro.
1 O grupo era composto por vinte e seis participantes bolivianos, sendo quatro
homens e vinte e duas mulheres. As questões discutidas foram apresentadas pelas
8 professoras.
A seguir apresentamos os recortes das narrativas que consideramos
mais importante para o nosso processo de análise. Para apresentar as narrativas
optamos por organizar categorias, as quais serão apresentados a seguir:

2  SegundoFern (2001), grupos focais vivenciais são o alvo da análise e estão subordinados a dois
propósitos: na vertente teórica o de permitir a comparação de seus achados com os resultados
de entrevistas por telefone e face a face. Neste caso, o nível de análise é intergrupal. O segundo
propósito é o da orientação prática centrada no entendimento específico da linguagem do grupo, nas
suas formas de comunicação, preferências compartilhadas e no impacto de estratégias, programas,
propagandas e produtos nas pessoas. A ênfase aqui recai na análise intragrupal.
Quanto ao Método de Ensino
Foram registrados 38 relatos, em dois momentos, apontando que a
metodologia aplicadafavoreceu a compreensão, interação e tradução das atividades
propostas. Já no primeiro encontro foram registradas 18 narrativas a respeito da
facilidade do método, tanto para a compreensão dos professores, quanto para
adaptação e aplicação aos alunos. No penúltimo encontro coletamos 20 narrativas
favoráveisà metodologia.Destacamos a seguir duas dessas narrativas:
J La classe de hoy dia me há parecido muy bonita, Su método de enseñanza
es muybuena y me há gustado que cada classe es my diferente pero lohace
A mas fácil suaprendisaje para nosotros.(ProfªZuleide Salazar).

No relato da Professora Zuleide Salazar o método das Rodas de conversas


L foi diferente,não seguiu o tradicional, onde o professor repassa o conteúdo e o
aluno recebe. Mas, estimulou a troca de experiência entre todos os participantes
L da roda, promovendo uma aprendizagem colaborativa.
Es bien didática y prática porque el material es fácil de aprender ademas
com La historiaconocida podemos darnos cuentalo que estamos hablando.
A Muy bonito! (Prof.RichardDemetrio)

No registro do professor Richard Demetrio ele fala tanto da didática, do
material elaborado, dos contos em comum nos dois lados da fronteira, quanto da
interação que as rodas de conversas promoveram.
• Quanto às práticas literárias
1130 Em relação às práticas literárias a professoraLorena Guaduay Limpias
• umas das participantes declara:
La historia de chapeuzinho y da vovosinha es uma forma diferente de en-
señança, que permitió La asimilacion del contenido de uma forma especial,-
donde se pudo através de lá dinâmica pronunciar el lenguaje a cabalidad.
La técnica muy acertada y muybuena,aprendimosdivirtiendonos em el varal
de historias.MuchasGracias!
2
Segundo Vygotsky (1984),o ser humano passa por dois estágios de
desenvolvimento: o pensamento e a linguagem. Inicialmente ela se apropria da
0 linguagem externa que compõe o ambiente em que ela vive e depois da linguagem
interna onde ela começa a expor a linguagem do pensamento através da fala. Neste
1 projeto, a metodologia que apresentamos implicou em novas práticas pedagógicas
que priorizaram e favoreceram o desenvolvimento da linguagem e organização do
8 pensamento através de atividades lúdicas.
Vygotsky (1984), atribui relevante papel ao ato de brincar na constituição
do pensamento infantil. De acordo com o autor “é brincando, jogando, que a criança
revela seu estado cognitivo, visual, auditivo, tátil, motor, seu modo de aprender
e entrar em uma relação cognitiva com o mundo de eventos, pessoas, coisas e
símbolos”. (VYGOTSKY (1984, p. 97): 
A professora Lorena Guaduay Limpias, destacou a prática com o “Varal
de Histórias” por ser uma nova maneira de trabalhar os contos na sala de aula,
para ela além de ser um recurso de fácil aplicação é uma maneira nova e divertida
de contar historias. No varal, a história é contada por partes e pendurada num
barbante de varal até que toda a história seja contada e pendurada, formando um
grande varal ilustrativo que facilita a exploração do conteúdo e de seus personagens.
Proporciona ainda, que a história possa ser recontada pelo aluno. Os professores
da Educação Infantil boliviana relataram não conhecer esse recurso, que gostaram
e incluiriam o mesmo em suas práticas pedagógicas.
De acordo com Libaneo (2002):
A Experiência sociocultural concreta dos alunos são o ponto de partida para
J a orientação daaprendizagem. Professor que aspira ter uma boa didática
necessita aprender a cadadia como lidar com a subjetividade dos alunos,
sua linguagem, suas percepções, suaprática de vida. Sem essa postura, será
A incapaz de colocar problemas, desafios,perguntas elacionados com os con-
teúdos, condição para se conseguir umaaprendizagem significativa. (LIBA-
L NEO, 2002 p.7).
As músicas,contos, histórias Infantis em comum, entre os dois países,
L facilitou a compreensão da língua portuguesa por parte dos bolivianos, por ser algo
que já faz parte da realidade e da vida escolar dos professorese gestores envolvidos
A no projeto.As narrativas permeiam diferentes momentos da roda: a sala de aula, as
conversas dos professores as práticas educativas e suas experiências com a língua
portuguesa.
Quanto Língua Portuguesa
No relato da Professora Brenda Honor o Método das Rodas de conversas
• aproximou os falantes das línguas portuguesa e espanhola e promoveu de maneira
1131 simples e objetiva a interação e troca de experiência entre os professores dos dois
• países, eladescreve o encantamento ao aprender o português:
La classes de português me a encantado porque podemos aprender outro
idioma um idioma que és de outro pais y por ser uma ciudad fronteriza
tenemos La oportunidad de conocelo y hablalo,como tambienconocer a lãs
pesonas que son muy agradables. La classe de hoy estubo muy linda, La
lectura Del cuento de La historia de La soga muy divetida y participativa
2 para todos. Um cuento muy bonito que podemos contar a losniños y niñas
no solo em castellano si no tambien em português[...] (profªBrenda Honor.)

0 Para professora Cinhia Vargas os encontros possibilitaram um bom


desenvolvimento em sala de aula, uma vez que o conhecimento sobre a língua
1 portuguesa ampliou seu repertório linguístico e sua interação dentro de sala de
aula com alunos falantes do português.
8 Bueno, primeiramente agradecerles y decirles que esta experiência
deaprendizaje de idioma portugue es muy buena nos esta ayudando bastante
para el desarroleo de nuestro trabajo es muy buena La experiência. (ProfªCinhia
Vargas).

Considerações finais
É fato que as interações culturais, sociais, educacionais,religiosas e política
fazem parte da história desta fronteira. Mesmo que de forma tímida o bilinguismo
aparece como um facilitador dessas interações. Apesar das dificuldades que o
sistema político internacional impõe é possível perceber que as cidades gêmeas têm
buscado promover ações de integração em vários setores e, apesar dos esforços de
alguns órgãos e instituições, ainda há muito a ser feito. Este projeto contribuiu não
somente para as interações linguísticas mais também para trocas de experiências
de práticas pedagógicas inovadoras e estreitar os laços entre educadores dos dois
países.
As narrativas, as dinâmicas eas apresentações dos professores e gestores
envolvidos no projeto,apontam uma consciência para o respeito a diversidade
J linguística presentes na fronteira. Promove o processo de reconhecimento das
diferentes identidades, grupo sociais e grupos culturais que circulam entre as
A cidades-gêmeas.
Destacamos que o projeto gerou um impacto positivo entre as escolas
L bolivianas, as quais já solicitaram a coordenadora do projeto novas versões das
Ruedas de Conversaciones. Portanto, o projeto ultrapassou o limite da fronteira
abrindo possibilidades para que outras escolas do Beni possam participar de
L
experiências bilíngues, na busca de promover novos espaços de interação e inclusão
da Língua Portuguesa e espanhola.
A
Referências
COSTA, E. A. ;Oliveira,M.A.M. Seminário de Estudos Fronteiriços. Campo Grande: Edi-
tora UFMS,2009.p.61-78.
LIBANEO,J.C. Didática. Velhos e Novos temas. Goiânia: Edição do Autor,2002.
• LIMA, V. A. Nome do artigo. Local. 2013.
PICCOLO, H. Nós e os Outros: Conflitos e interesses num espaço Fronteiriço (1828-1852).
1132
Anais...XVII Reunião da Sociedade Brasileira de Pesquisa e Historica (SBPH).Curitiba:
• SBPH,1998.P.217-222.
WARSCHAUER,C. Entre na Roda: A Formação Humana nas Escolas e nas Organizações.
Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra,2017.
WARSCHAUER, C. Rodas em rede: Oportunidades formativas na escola e fora dela. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2001.
2 Fonte: https://www.google.com/maps/search/guajara-mirim+fronteira+bolivia/@-
-10.8164553,-65.4799886,34498m/data26/05/18.
0 https://www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/educacao/concepcao-do-brincar-
-e-aprender-na-visao-de-piaget-e-vygotsky/32223. Acessado em: 06/06/2018.
1 https://www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/educacao/concepcao-do-brincar-
-e-aprender-na-visao-de-piaget-e-vygotsky/32223. Acessado em: 06/06/2018

8

J

A

L LITERATURA E ECOCRÍTICA NO PANTANAL DE MATO GROSSO
DO SUL
L
Susylene Dias de Araujo (UEMS)
A RESUMO: Em atendimento à chamada do ST 14, apresentado no XIII JALLA, nosso
trabalho tem intenção de apresentar uma leitura de Areôtorare (1935) e Poemas
Concebidos Sem Pecado (1937), obras poéticas de Lobivar Matos e Manoel de
Barros respectivamente, tendo a ecocrítica como parâmetro de análise. De acordo
com a origem do termo ecocrítica, (William Rueckert,1978), desenvolvido como
• aproximação entre ecologia e expressão literária, a palavra remete a um dos mais
recentes campos de comparação e interpretação da poesia. Quando observarmos
1133
a escolha temática de Matos e Barros em seus livros de estreia, fica evidente que
• os referidos poetas lançaram-se em busca de compreender a estética modernista
a partir de suas diferentes temáticas, incluindo algumas nuances da natureza,
sintonizadas pela atitude humana, conforme demonstraremos.
Palavras-chave: Ecocrítica. Lobivar Matos e Manoel de Barros. Literatura em Mato
Grosso do Sul.
2
Ecocrítica é palavra com aspecto de novidade. Formada pela junção
0 do prefixo eco, relativo ao termo ecologia ou ecossistema, quando associado ao
termo crítica, a palavra ecocrítica aparece pela primeira vez nos idos de 1978,
empregada por William Rueckert, alinhando o fenômeno natural da ecologia à
1
produção literária. Em 1996, registra-se a primeira inclusão do termo em textos
acadêmicos. Na esteira dos estudos culturais, lato sensu, os estudos da ecocrítica
8 são impulsionados pelos estudos de gênero e de temáticas afins, como aquelas
relativas aos estudos pós-coloniais. Em recente pesquisa sobre o assunto, o artigo
“Contribuição da Ecocrítica ao ensino de Literatura” de Francisco Neto Pereira
Pinto e Hilda Gomes Dutra Magalhães, publicado pela Litterata, Revista do Centro
de Estudos Portugueses Hélio Simões, em 2013, fornece alguns dados importantes
sobre o surgimento da ecocrítica como corrente interpretativa da literatura. A
despeito das limitações sobre o assunto, os autores enfatizam que:
Contudo, o momento crucial à Ecocrítica é o ano de 1992, quando é funda-
da, nos Estados Unidos, a Association for the Study of Literature and En-
vironment – ASLE – Entidade profissional que tem hoje importantes filiais
no Reino Unido e Japão. É a ASLE quem domina, do ponto de vista acadê-
mico, a Ecocrítica (GARRARD, 2006) e, inclusive, publica o periódico ISLE:
Interdisciplinary Studies in Literature and Environment, criado em 1993 por
Patrick Murphy. Grande fôlego ganha a Ecocrítica na década de 1990 e, em
1999, Cherill Glotfelty comentou que só nos dois últimos números da ISLE,
“foram resenhados 67 novos livros e outros 177 foram brevemente comenta-
dos. Mais de 200 livros neste campo nos últimos cinco anos!” (GLOTFELTY,
1999, p. 6, tradução nossa). Se, no âmbito internacional, grande é a pro-
J dução no campo ecocrítico, não se pode dizer o mesmo do Brasil. De fato,
como comenta Maria do Socorro Socorro Pereira Almeida (2008, p. 127),
“a ecocrítica ainda não é conhecida nacionalmente” e, ao que parece, dis-
A pomos apenas de um livro em língua portuguesa dedicado inteiramente ao
assunto, este intitulado Ecocrítica, de Greg Garrard (2006), traduzido para o
L português por Vera Ribeiro. (PINTO & MAGALHÃES, 2013, p. 39-40)

Assim, partindo dessa linha de raciocínio e vencendo barreiras, a ecocrítica


L se enuncia como a vez do exterior e como possibilidade de trazer à tona aquilo que
está além do texto, subsídio capaz de fornecer evidências de que há um lugar de
A onde determinado autor fala e então apresentar a forma como este mesmo autor
informa, deixando transparecer no discurso suas relações com a ambientação no
qual está inserido. O campo de estudos da ecocrítica podem ser concebidos dentro
do campo das reflexões ambientalistas e uma das abordagens dessa possibilidade
critica está diretamente associada à natureza; nessas paragens, seus adeptos
• tentam não cair nas armadilhas da supervalorização do mundo selvagem, exaltando
as forças devastadoras de alguns fenômenos em nome de uma simpatia ecológica.
1134 Se há um fator de risco para tal abordagem, este consiste na ideia de se dispensar
• uma leitura “ecologicamente correta” para obras do passado, como por exemplo,
condenando as “Caçadas de Pedrinho” imortalizadas nas páginas de Monteiro
Lobato. Como fonte segura, a corrente em discussão, quando bem avaliada, coloca-
se como chave de leitura para que as relações do escritor, poeta ou prosador,
sejam compreendidas quando associadas aos elementos constituinte do espaço,
2 revelando então, como se constrói esse encontro entre o artista e a sua inserção no
meio natural, experiência que lhe impulsiona a experiência da atividade criativa.
0 Lobivar Matos de Barros é o nome do autor de Areôtorare e Sarobá, obras
publicadas em 1935 e 1936. A respeito de Lobivar Matos, assinatura artística do
autor, podemos afirmar que sua poética foi escrita por um autêntico modernista,
1
pertencente ao grupo dos poetas que, além da perspectiva experimental com a
linguagem, filiaram-se à verve ideológica do movimento, já alastrada para outros
8 espaços além da Paulicéia Desvairada de Mário de Andrade nos anos de 1920.
Os livros de Lobivar Matos foram publicados no Rio de Janeiro, pelas editoras

Irmãos Pongetti e Minha Livraria Editora em meados dos anos de 1930 e ambos
foram marcados por irreverência. Podemos dizer então, que as obras lobivarianas
sintetizam o espírito humano e inquieto de um artista na vanguarda de seu tempo.
Para esse estudo, conforme nos propusemos, vamos no ater ao primeiro dos livros
assinados por esse poeta, obra apresentada por termo sonoro e peculiar, retirado
da tradição indígena dos boróros: Areôtorare. Nascido em |Corumbá, cidade
pantaneira do atual estado de Mato Grosso do Sul e educado no Rio de Janeiro,
Lobivar optou por ilustrar a capa de seu primeiro livro em homenagem a um índio
guerreiro, escolha justificada com detalhes no prefácio da obra, evitando qualquer
possibilidade de falta de entendimento de um leitor menos avisado. Para tal feito,
o próprio autor esclarece:
AREÔTORARE é palavra de origem indígena. Entre os boróros, era todo ín-
dio privilegiado na aldeia onde vivia, como profeta, orador, historiador,
contador de lendas, etc. À noite, em volta de fogueira assanhada ou à luz do
luar, os boróros se reuniam para ouvi-lo. Espichados na areia, uns; outros,
acocorados, mas todos atentos, escutavam o verbo do irmão privilegiado, o
J verbo profético que lhes repetia histórias, que lhes transmitia tradições e
que lhes explicava os fatos de maior relevo. (MATOS, 1935, p.08)
A Logo depois das páginas prefaciais, 29 poemas compõem a obra, que se
apresenta encadeada por momentos de pura subjetividade e lirismo, alternados
L por poemas narrativos dedicados à descrições de espaços que que retomam
imagens das origens do poeta, erradicado na capital nacional a suspirar por seu
L locus pantaneiro. Desses momentos da poética lobivariana destacamos os poemas
“Queimada” e “Enchente”. No primeiro deles, os olhos do enunciador e apreciador
A da situação narrada se perdem pelos campos pantaneiros:
Queimada

Na campina amarela do sol
O fogo do fazendeiro
Passou uma pincelada
• Forte
1135 De tinta

• Preta.

E a campina queimada
Ficou retinta como uma negra africana.

E como uma negra africana,


Nua, de pé, entre línguas vermelhas de fogo,
2
levanta as mãos para os céus

soltando gritos de fumaça
0 e implorando misericórdia divina.

Os céus comovidos
1
Derramam as lágrimas das nuvens, a chuva,

Sobre aquele quadro medonho.
8
A terra sedenta sorveu a chuva
E criou força...criou vida!
Agora longe da fogueira,
De alegria,
De contentamento,
Anda soltando
Gargalhadas fortes de brotos e raízes.
(MATOS, 1935, p.59 e 60)
Enchente,

O rio Paraguai cresce aos poucos, devagar...

Os barrancos de braços erguidos


Pedem socorro
Gritando uns gritos verdes de capim...

E o rio Paraguai – o monstro horrível –


J Cresce e se avoluma.
Abre, agora os braços de água
A E, numa volúpia de amante,
Abraça a terra e a esmaga
L Ao contato do seu corpo de monstro.
As árvores ficam pálidas de susto.
L São negras acorrentadas
Marchando de cabeça baixa
A Para a morte.

Galhadas, camalotes,
Passam rolando levados pela correnteza
Os habitantes dali, gente simples e amarela,
Espavoridos,

Deixam seus ranchos como ilhas flutuantes
1136 E, em canoas e batelões,
• Num esforço desumano,
Descem o rio a procura de um lugar bem alto
Onde não chegue o novo diluvio.

Jacarés enormes e carrancudos


Põem a cabeça de fora
2 E ficam, horas inteiras,
Maravilhados,
0 Olhando aquele cenário torvo
Que a natureza pintou com o pincel das chuvas.
1 (MATOS, 1935, p.33-35)

Como podemos perceber a partir da leitura dos poemas, os resultados
8 dos acontecimentos naturais da “queimada” e da “enchente”, quando expostos
pela poética lobivariana, são traduzidos como fenômenos ativados a partir das
intervenções do homem. Porém, o poder natural é mais forte que a ação humana,
conforme demonstraremos. No primeiro poema, “Queimada”, os versos iniciais
denunciam como as queimadas provocadas por uma possível estratégia de
plantio comercial transformam as paisagens naturais. E ali, diante dos olhos
da imaginação do poeta, a fumaça de um fogo cadente vai sendo moldada como
imagens antropomórficas de mulheres africanas que dançam e se lançam ao céu,
para que, nos últimos versos, o ciclo se encerre dando lugar ao solo fértil, metáfora
da vida que se renova. Em “Enchente”, a poesia moderna se rende à natureza e o
poeta caracteriza as águas do Rio Paraguai como um monstro predador que age na
composição do ambiente das cheias do pantanal. Como no poema anterior, o eu
poético instaura o clima de tensão nos primeiros versos para amenizar a esfera ao fim
do poema. Nesse caso, a terra, as árvores, a vegetação e até mesmo os homens são
aterrorizados pelo monstro das águas que só se acalmam quando o poeta conclama
os jacarés medonhos do ecossistema pantaneiro para que venham reestabelecer a
J ordem do “cenário torvo” que vai desaparecendo. Quando falamos em Manoel de
Barros, o desconhecimento que deixa Lobivar Matos à sombra, desaparece. Ao falar
de si, Manoel de Barros se apresenta como um homem comum, nascido em 1916,
A
m Cuiabá, criado até os oito anos no Pantanal da Nhecolândia e educado anos mais
tarde em bons colégios do Rio de Janeiro. De sua experiência formativa, Manoel
L de Barros foi influenciado pelo Barroco quinhentista, pelos clássicos franceses que
se juntaram à leitura de Machado de assis, Euclides da Cunha e Guimarães Rosa,
L seus mestres. Já na idade adulta, em 1947, foi para Nova Iorque, onde apurou
seu olhar sobre as coisas, coisas estas que lhe foram muito caras ao longo de sua
A produção poética.
Uma das faces da poética de Manoel de Barros que mais tem atraído a
atenção de seus leitores e receptores críticos está na sua capacidade de “transver”
(termo da própria poética maonoelina) o universo a partir das coisas aparentemente
insignificantes, fazendo com que os limites entre a essência do humano e as
• coisas sejam superados. Por essa perspectiva, vamos encontrar no conjunto de
1137 sua obra títulos como O livro das ignorãças (1993) e Livro sobre nada (1996). A
escolha de vocábulos oriundos da oralidade é também um diferencial; porém, essa
• característica não para por aí, pois a fala de seus personagens poéticos é única e
passível de ser transformada tornando-se contemporânea em sua pena de eterno
poeta menino.
O livro de estreia sai em 1937 e recebe o título de Poemas concebidos sem
pecado e desde então, contando um breve hiato entre as décadas de 1940 e 1960,
2 Manoel de Barros teve diversos títulos publicados e foi reconhecido.
Em Poemas concebidos sem pecado, de Manoel de Barros, temos uma traje-
0 tória que constrói uma descoberta, uma revelação, uma espécie de “alum-
bramento”. Trata-se do surgimento, em uma forma discursiva, da essência,
da descoberta e da revelação das coisas ou objeto. Trata-se de uma palavra,
1 e em última instância, da visualização, pelo “narrador imenso”, do funciona-
mento da “mundo”. (GRÁCIA-RODRIGUES, 2009, p. 87)
8
De 1937 a 2014, ano da morte do poeta, vieram mais de 30 títulos marcando
um ritmo de produção intensa, finalizada em 2013 com a publicação de Portas de
Pedro Viana, seu último livro. A edição de Poemas concebidos sem pecado, recorrência
de nossa interpretação, é datada de 1999 e foi lançada pela Editora Record, com
capa ilustrada por Pedro Lobo em diálogo com o projeto gráfico de Regina Ferraz,
e ilustrações internas do artista plástico corumbaense Jorapimo. Dividido em 04
partes distintas, intituladas de “Cabeludinho”, (composta por 11 poemas), “Postais
da cidade” (composta por 6 poemas), “Retratos à carvão”, (composta por 5 poemas)
e Informações sobre a musa, parte lírica independente. Para compreendermos a
poesia manoelina como perspectiva da ecocrítica, tomaremos o recorte dos poemas
que compõem a primeira parte da obra, os poemas de “Cabeludinho”, apresentados
sem títulos específicos e separados por números. Nossa concentração será fixada
no terceiro e no quarto poema:
3
Viva o Porto de Dona Emília Futebol Clube!!!
- Vivooo, vivaaa, urra!
J - Correu de campo dez a zero e num vale de botina!
Plong plong, bexiga boa
A - Só jogo se o Bolivianinho ficar no quíper
- Tá bem, meu gol é daqui naquela pedra
L Plong plong, bexiga boa
- Eu só sei que meu pai é chalaneiro

L Mea mãe é lavadeira

e eu sou beque de avanço do Porto de D. Emília


o resto não tô somando com qual é que foi o índio
A
que frechou São Sebastião...
- Ai ai, nem eu
Uma negra chamou o filho e mandou comprar duzentos de anil
- Vou ali e já volto já

• Mário-Maria do lado de fora fica dando pontapés


no vento
1138
- Disilimina esse, Cabeludinho!
• Plong, plong, bexiga boa
- Vou no mato passa um taligrama....
(BARROS, 1999, p.15, 16)

4
2 Nisso chega um vaqueiro e diz:
- Já se vai-se, Quério? Bueno, entonces seja felizardo

0 Lá pelos rios de janeiros...

- Agradece seu Marcão, meu filho


- Que mané agradecer, quero é minha funda
1
Vou matando passarinhos pela janela do trem

De preferência amassa barro
8 Ver se Deus me castiga mesmo

Havia no casarão umas velhas consolando Nhanhá


Que chorava feito uma desmanchada
- Ele há de voltar ajuizado
- Home-de-bem, se Deus quiser

Às quatro o auto baldeou o menino pro cais


Moleques do barranco assobiavam com todas as
Cordas da lira
Té a volta, pessoal, vou pra macumba.
(BARROS, 1999, p.17)

Nos poemas apresentados, fica evidente a opção do poeta em privilegiar os


espaços provincianos da cidade por onde havia passado seu tempo de menino, bem
como sua intenção em apresentar personagens que remetem a pessoas simples
que por ali viviam e que o acompanharam até depois de sua partida para o Rio de
Janeiro, onde publicou o primeiro livro, aos 20 anos de idade. No poema de número
J 3, no qual prevalece a técnica da narrativa poética, é nítida a referência a um
ponto de específico da cidade de Corumbá. Para melhor caracterizar a descrição
A do local, o poeta que se faz menino, alude aos diferentes tipos sociais, parte da
composição diversa do lugar. E assim, pelos versos manoelinos apresentam-se o
L pequeno boliviano, o filho da lavadeira e do chalaneiro e ainda um menino negro,
recebendo ordens da mãe, crianças integradas com o espaço, unidas sem distinção
L de classe, afinal, como se trata de um poema composto por traços biográficos, não
podemos nos esquecer que Manoel de Barros era filho de fazendeiros. No poema de

número 4, a experiência com a linguagem, típica do modernismo, toma conta do
A poema e então, surgem recuperações diretas da oralidade para ilustrar a despedida
do menino cujos pais “mandam estudar lá pelos rios de janeiro”. (BARROS, 1997,
p. 17)
Uma vez apresentados, os poetas que fornecem matéria para nossa
comunicação nesse evento, alinham-se diante da temática da ecocrítica, pois

antecipando o século XXI, foram além e longe de comportarem como simples
1139 observadores do cotidiano, encontraram na linguagem uma forma de observar seu
• próprio observar, transformando-o em poesia. De acordo com Humberto Maturana,
Observar é o que nós, observadores, fazemos ao distinguir na linguagem os
diferentes tipos de entidades que trazemos à mão como objetos de nossas
descrições, explicações e reflexões no curso de nossa participação nas di-
ferentes conversações que estamos envolvidos no decorrer de nossas vidas
cotidianas, independentemente do domínio operacional em que acontecem.
2 (MATURANA, p. 126)

O que podemos concluir de nossas interpretações nos diz que a poesia
0 pode ser um tipo de mediação que conecta o homem e seu ambiente natural, e assim,
essa conexão pode ser positiva ou não, pois a maioria dos fenômenos naturais que
1 devastam a vida humana na terra já não são tão naturais assim, se considerarmos
as influências das atitudes do homem como movimentações que podem ser voltar
8 contra o próprio homem e assim ameaçar sua existência harmônica no planeta.
Lobivar Matos e Manoel de Barros de Manos, observadores e artistas da linguagem,
ainda que não intencionalmente, partem da própria vivência por terras pantaneiras
na construção do alicerce de sua poesia e como seres reflexivos, em seus livros de
estreia, estabelecem ligações artísticas entre o meio ambiente e a poesia.
Referências
BARROS, Manoel de. Poemas concebidos sem pecado. Rio de Janeiro: Record, 1999.
GRÁCIA-RODRIGUES, K. Uma leitura dos Poemas concebidos sem pecado: o retrato do
Artista quando “Cabeludinho”. Organização de Rosana Cristina Zanelatto Santos. In SAN-
TOS, R.C. Campo Grande: Editora UFMS, 2009, p. 87-115.
MATOS, Lobivar. Areôtorare: poemas boróros. Rio de Janeiro: Irmãos Ponguetti, 1935.
PINTO, Francisco Neto Pereira; MAGALHÃES, Hilda Gomes Dutra. Contribuição da eco-
crítica ao ensino de literatura. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/arti-
culo?codigo=6132683 Acesso em 31 de maio de 2018.
MATURANA, H. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: Editora da UFMG,
2001. 200 p.
J RICARDO MARQUES: s.v. Ecocrítica, E-Dicionário de Termos Literários (EDTL), coord. de
Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, , consultado em 25-05-2018.
A

L

L

A


1140

2

0

1

8

J

A

L A (IN)VISIBILIDADE DO TRADUTOR NA OBRA THE EMPEROR OF
THE AMAZON
L
Tamara Afonso dos Santos (UFAC)
A RESUMO: Este trabalho tem por objetivo apresentar resultados de uma pesquisa
intitulada “Narrativas, Pós-colonialismo e Tradução: vozes e olhares em Galvez
Imperador do Acre e sua versão para a língua inglesa”, especificamente no que
concerne a análise da obra Galvez, Imperador do Acre (1976), de Márcio Souza, e
sua tradução para o inglês, feita por Thomas Colchie observando as estratégias de
• tradução utilizadas e a postura assumida pelo tradutor ao traduzir uma narrativa
sobre as Amazônias. Para essa pesquisa utilizou-se como orientação metodológica
1141
a pesquisa bibliográfica em relação às obras objeto de análise e na seleção do
• referencial teórico, estudos de tradução com enfoque na tradução pós-colonial
e questões relacionadas ao papel do tradutor a partir de autores como Basnett
(2003), Munday (2001) e Venutti (1995). A partir dessa análise verificou-se que
a tradução toma caminhos que não têm por intenção de fato de levar o autor e a
narrativa juntamente com suas particularidades até o leitor.
2 Palavras-chave:Tradução. Tradução Pós-colonial. Invisibilidade do Tradutor. The
Emperorof The Amazon.
0 Considerações iniciais
Até o século XI se chamava de intérprete aquele que fazia traduções
1 tanto de textos orais quanto escritos. Fora somente no século XII que surgiu a
diferenciação entre o tradutor que seria aquele que faz traduções de texto escrito
8 e intérprete aquele que faz traduções orais. Shleiermacher (apud MUNDAY, 2001)
destaca a posição do tradutor em relação ao intérprete, pois o primeiro por ter o poder
por meio da tradução escrita de textos clássicos, seja eles oriundos da literatura,
filosofia ou religiosos, tem o poder de fortalecer a língua e cultura nacional. O
autor entende que o tradutor também desempenha papel importante na divulgação
de obras de autores em diversos outros lugares, espalhando o alcance de tais obras.
Em diversas situações somos muito rápidos em julgar o trabalho do
tradutor sem nem nos darmos conta da gama de escolhas e decisões que este
sujeito enfrenta durante todo o seu processo de tradução. Traduzir um texto, um
livro, um romance seja qual for o texto é uma grande responsabilidade, muitos
são os aspectos que devem ser levados em consideração de acordo com o texto
objeto da tradução tendo sempre como fator definidor a decisão do tradutor em
consonância com o seu objetivo ao traduzir o texto.
Venutti (1995) discorre a respeito da invisibilidade do tradutor,
principalmente no que se refere a cultura anglo-americana, segundo o autor, a
invisibilidade do tradutor se produz por meio de uma tradução que torna o texto
fluente, de fácil leitura. Essa fluência do texto traduzido produz a ilusão de
J transparência, no sentido de ser isento de marcas linguísticas e estilísticas que são
requisitos precípuos para que as traduções sejam aceitas pelos editores, revisores
A e leitores, pois o atendimento a tais critérios reflete a personalidade e intenção
do texto estrangeiro, de forma a ter a impressão de que o que se lê não é uma
L tradução, mas o “original”.
Além disso, ao falar sobre o papel do tradutor, Venutti (1995) nos apresenta
dois conceitos domesticação e estrangeirização que considero fundamentais para
L
se discutir tradução, principalmente a tradução do texto objeto desta análise, uma
vez que opto por uma análise pautada na teoria da tradução pós-colonial, e um
A desses conceitos, apontados por Venutti (1995), está em sincronia com a proposta
da tradução pós-colonial.
O conceito de domesticação, segundo Venutti (1995), diz respeito a um
método de tradução no qual o tradutor escolhe transportar o texto objeto de tradução
e o autor para mais perto do leitor, tal escolha envolve “uma redução etnocêntrica
• do texto estrangeiro para os valores culturais da língua alvo” (MUNDAY, 2001, p.
1142 143). Essa redução resultaria numa tradução, transparente, “invisível” e fluente
• para o leitor diminuindo elementos estrangeiros do texto.
Por sua vez, o conceito de estrangeirização, segundo Venutti (1995), se
refere ao transporte do leitor até o autor, mantendo todos os elementos estrangeiros
do texto a ser traduzido. Tal estratégia de tradução torna o texto fonte diferente
não apenas linguisticamente, mas culturalmente, fazendo com que o leitor do texto
2 traduzido se transporte até o outro, até o desconhecido. Este transporte do leitor
até o desconhecido possibilita que o leitor se torne consciente de elementos que
não lhes são naturais, mas que são aspectos integrantes e fundamentais do texto
0
fonte, do seu autor e do seu lugar. Essa estratégia também chamada por Venutti
(1995) de resistência consiste em um estilo de tradução que deixe claro a existência
1 do tradutor ao destacar a identidade estrangeira do texto-fonte, protegendo-a da
dominância ideológica do texto-fonte.
8 Munday (2001) ainda alerta para o papel que a indústria editorial exerce
nessa questão. Na grande maioria das vezes os editores finais das obras não são
tradutores e sequer são fluentes na língua da qual fora traduzida o texto. De modo
que a única preocupação pauta-se na fluência do texto traduzido, o que no final das
contas acaba influenciando na sua versão final. Além disso, os agentes literários
dos autores também exercem certa influência sobre esses aspectos, visto que eles
recebem uma porcentagem dos lucros dos escritores que representam.
The Emperor of the Amazon
O livro The Emperor of the Amazon é uma tradução do livro Galvez
Imperador do Acre para a língua inglesa. A tradução foi feita pelo tradutor, autor e
editor norte americano Thomas Colchie, e fora publicado pela editora Avon/Bards,
uma marca registrada da The Hearst Corporation, sendo essa a primeira tradução
do livro para língua inglesa feita por meio de acordo com o autor Márcio Souza.
Essa obra teve sua primeira impressão em setembro de 1980 na cidade de Nova
York. A tradução de Colchie também ganhou uma edição publicada pela editora
Abacus em 1980 e outra publicada pela editora Sphere Books em 1982, ambas em
J Londres (SOUZA, 1980, p. 04).
Em publicação do The New York Times do dia 23 de setembro de 1980,
A John Leonard escreve de maneira entusiasmada sobre o livro que acabara de
ser lançado. Para ele, o livro é mais uma das surpresas que escritores latinos
L americanos insistem em fazer, e já se mostra ansioso pelo próximo livro de Souza
em língua inglesa, que seria Mad Maria. (THE NEW YORK TIMES, 1980)

The Emperor of the Amazon faz parte de um projeto promovido pela Avon
L
Bards chamado The Avon Bard series of Latin American Literature cujo propósito era
de publicar livros de autores latinos americanos para audiência norte americana.
A Tal projeto teve seu início com a publicação em capa dura do romance de One
Hundred Years Of Solitude (100 anos de solidão) de Garcia Marques traduzido por
Gregory Rabassa em 1970. No entanto, a maioria das publicações era feita em
brochuras, livros com capa mole e papel de menor qualidade.
Normalmente, esse formato de livros é destinado a reimpressões de
• títulos já antigos sem altos custos, porém no caso desse projeto há duas hipóteses
1143 para a escolha de publicação desses títulos em brochura. A primeira é não querer
• investir muito dinheiro e a segunda é já de antemão, não esperar que essas obras
se tornem best-sellers.
The Emperor of the Amazon foi o primeiro título original a ser publicado
em brochura pela Avon/Bard setembro de 1980, fora traduzido do português para
o inglês por Colchie que era o agente literário de Souza e de vários outros autores
2 brasileiros (THE AVON, 2016). O livro tinha como público alvo, leitores norte-
americanos e quanto a sua recepção pela audiência americana, percebe-se nas
notas dos jornais locais que aparecem na segunda impressão do livro que a obra
0
teve uma aceitação muito boa, como verificamos nas citações a seguir.
O IMPERADOR DA AMAZÔNIA1, que o The New Yorker chama de “um pra-
1 zer cômico”, marca a estréia norte-americana de um dos jovens escritores
mais brilhantemente divertidos da América Latina. “Para além das delícias
8 da narração”, diz The Washington Post, “o leitor é tratado com intermináveis​​
cenas de folia e arrogância, bem como reflexões bem-humoradas” (SOUZA,
1980)2.

‘É uma alegria ver o intrigante romance de Marcio Souza publicado em uma

1  Tradução literal que não condiz com o título original da obra em português.
2  THE EMPEROR OF THE AMAZON, which The New Yorker calls “a comic delight”, marks the
American debut of one of the most brilliantly entertaining Young writers in Latin America. “Aside
from the delights of the narration”, says The Washington Post, “the reader is treated to endless
scenes of revelry and ribaldry, as well as good-humored reflections” (SOUZA, 1980).
tradução acessível’, observa The New York Times Book Review. ‘Marcio Sou-
za merece nosso aplauso.’ (SOUZA, 1980)3

As críticas dos jornais americanos são tão animadoras que até mesmo
edições brasileiras posteriores à publicação da tradução nos Estados Unidos,
trazem na orelha do livro críticas de jornais tais como o The New York Times que
diz que o romance de Souza é “uma delícia” (SOUZA, 2011), e o New Yorker, como
verificamos no trecho transcrito a seguir.
J Ninguém deve temer a possibilidade de que o fluxo de admiráveis romances
latino-americanos esteja secando. Este romance do brasileiro Marcio Sou-
A za traz a garantia de sua aparente inesgotável vitalidade, pois o livro é ao
mesmo tempo uma delícia de comicidade e um conjunto de poucos prová-
veis, meio verdadeiras aventuras, recontadas com perícia e economia. New
L Yorker (SOUZA, 2011).

Vejamos, a seguir, uma análise comparativa entre a obra em português e
L sua versão para inglês, apontando suas diferenças e as escolhas feitas pelo tradutor
Colchie. Para esta análise, procuramos fazer uma leitura a partir da perspectiva da
A tradução pós-colonial.
Tradução Pós-Colonial na obra The Emperorof the Amazon
Para esta análisecomparativa entre a obra de Márcio Souza em português
Galvez Imperador do Acre (1976) e a tradução da mesma para a língua inglesa The
• Emperor of the Amazon (1980), utilizamos a segunda impressão de The Emperor of
the Amazon de 1980, e sabendo que para a tradução, publicada pela primeira vez
1144 em setembro de 1980, fora utilizada uma edição de 1977 da obra em português,
• tentamos encontrar um exemplar de Galvez Imperador do Acre da mesma edição
utilizada na tradução. No entanto, na impossibilidade de encontrar tal cópia, optamos
por procurar uma edição mais próxima a utilizada pelo tradutor e de preferência,
anterior à tradução, portanto, o exemplar mais próximo que encontramos foi a
sétima edição de 1978. Assim sendo, esta foi a edição utilizada nesta análise.
2 Durante esse estudo, encontramos na tradução para o inglês, elementos
que sob a perspectiva da tradução pós-colonial despertaram a nossa atenção para
0 certas escolhas do tradutor que podem transformar as imagens representadas no
livro sobre as Amazônias e sobre as pessoas, o que justifica e reforça a importância
deste trabalho. Elementos como, por exemplo, a descaracterização dos termos que
1
se referem às “Amazônias” e a mutilação de termos e palavras do “original” que
são essenciais para descrição e contextualização, dentro do romance, de pessoas,
8 lugares, etc.
O acréscimo ou omissão de informações pelo tradutor é uma estratégia
que pode ser utilizada com diversos propósitos, seja com o intuito de contextualizar
o texto à sua audiência tornando a sua leitura mais fluída e natural e o texto
estrangeiro mais doméstico ao leitor; seja com o intuito de deixar o texto mais
comercial, mais lucrativo às editoras. Esse exercício de domesticação, porém, se
por um lado pode ser, de certa forma, benéfico ao seu leitor e mais rentável para as

3  “It is a joy to see Marcio Souza’s intriguing novel published in an accessible translation”, notes
The New York Times Book Review. “Marcio Souza deserve our applause” (SOUZA, 1980).
editoras, por outro se torna extremamente infiel ao autor e ao texto traduzido. Tal
estratégia acaba provocando uma quebra na “identidade” e peculiaridade do texto,
um apagamento de suas particularidades que o tornam diferente. Um exemplo
disso ocorre no próprio título da obra. Na versão traduzida de Colchie, a obra
recebe o título de The Emperor of the Amazon (O Imperador da Amazônia). Porém,
em sua versão em português o título é Galvez Imperador do Acre.
De início temos a omissão do termo “Galvez”,que além de ser o nome
J da personagem principal da obra, é de fato um ícone marcante da história do
“Acre” representado na obra. Em seguida, a substituição do termo “Acre” por
A “Amazon”, que acaba dando ao título uma conotação diferente do “original”. No
título em português fica claro que o local em que a trama acontece é o “Acre”, o
L que já não acontece na tradução, pois, embora o “Acre” faça parte da “Amazônia”, a
região “amazônica” é muito abrangente. Além de estados brasileiros, a “Amazônia”

também se estende por outros oito países da América do Sul. Ou seja, outras
L nações, outros povos, outras culturas, costumes, todas elas muito peculiares e
diferentes umas das outras.
A Portanto, não se pode generalizar a história de um lugar específico à
região a qual ele pertence, pois, o “Acre” é apenas uma parcela dos territórios que
compõem a “Amazônia”, o “Acre” tem as suas particularidades e a sua própria
história, e vários outros espaços que compõem a região “Amazônica”, também têm
características próprias que não tem necessariamente uma relação direta com o
• “Acre”. Assim sendo, usar o termo “Amazon”, que é mais conhecido e estereotipado
1145 e tão abrangente, no título de uma história que se refere a um lugar específico,
torna-se questionável.

Dentre as razões que podem ter levado o tradutor a fazer essa escolha
e tamanha mudança no título do romance, está a questão comercial. Levando em
consideração o público alvo, o nome “Galvez” e o nome “Acre” não despertaria
interesse em um possível leitor, o termo “Amazônia” (Amazon) por outro lado, é um
2 termo muito mais conhecido e que instiga o interesse de muitas pessoas tornando
assim muito maior as chances de os leitores comprarem o livro, gerando mais
lucros para a editora. Além disso, essa troca permite a continuação da propagação
0 do mito da “Amazônia” homogênea.
Essa generalização e uso da palavra “Amazônia” tão estereotipada no
1 título não é exclusividade da tradução para língua inglesa, podemos encontrar essa
configuração do título em traduções do romance de Souza para outras línguas como
8 é o caso do alemão Galvez, Kaiser Von Amazonien (1983) (Galvez, imperador da
Amazônia); do espanhol Gálvez, Emperador del Amazonas (1981) (Galvez, imperador
da Amazônia); do francês L’Empereur d’Amazonie (1983) (O imperador da Amazônia);
do holandês De Keizer van de Amazone (1982) (O imperador da Amazônia) e do
italiano L’Imperatore d’Amazzonia (1984) (O imperador da Amazônia). Apesar de
que nas traduções do alemão e espanhol o nome de Galvez é preservado, nenhuma
foge da omissão do nome do “Acre”, todas apresentam o fator comum da figura do
“imperador da Amazônia”.
Assim como é discutível a omissão do nome “Galvez” do título da obra
traduzida para o inglês, essa mutilação bem como a substituição do termo “Acre”
por “Amazon”, constituem atitudes que nos dão sinais de uma visão colonizadora
por parte do tradutor desde o título da obra. Incapaz de enxergar as diferentes
culturas e costumes dentro de uma mesma região, o tradutor acaba reduzindo
todos os povos a um só, difundindo a imagem de que na região “Amazônica” todos
são iguais, inferiores e incapazes de sobressair por sua própria identidade.
Outro exemplo no qual isso fica bem evidente é o acréscimo do termo
“Primeval”, que no inglês significa “primitivo” ao título do primeiro capítulo “Floresta
J Latifoliada”, ficando o título da seguinte forma “Latifoliate Forest Primeval” Floresta
Latifoliada Primitiva”. O acréscimo de tal termo é totalmente desnecessário. Isso
A pode ser interpretado como um acréscimo de termos ao texto que visam “melhorar a
obra” ou “dar um toque pessoal” do tradutor à obra, conceito defendido por alguns
L tradutores e estudiosos da tradução como, por exemplo, Abraham Cowley (1618-
67) que afirma no seu prefácio às Odes Pendáricas (1656) que “tirou, deixou de fora

e acrescentou o que quis” nas suas traduções, com o intuito de dar a conhecer ao
L leitor não tanto o que o autor original disse precisamente, mas antes “o seu modo
e forma de dizer” (COWLEY, 1656, apud BASSNETT, p.105).
A No entanto, esse acréscimo nos diz muito sobre o modo de dizer, o olhar
e o imaginário do tradutor que imprime à obra muito mais que o seu toque pessoal,
mas seu discurso e visão colonialista. Outrossim, encontramos ainda no primeiro
capítulo do romance adições ao texto traduzido que não são necessárias para o
entendimento daobra, mas que demonstram de maneira clara o imaginário do
• tradutor em relação a “região amazônica”, como podemos ver nos trechos a seguir.
1146 Agora estamos fartos de aventuras exóticas e mesmo de adjetivos clássicos
e é possível dizer que este foi o último aventureiro da planície (SOUZA,
• 1978, p. 15)

And it is perhaps even possible to claim that this was the last exotic ad-
venturer of them all, in the vast, dark Amazonian basin; (SOUZA, 1980,
p. 11)

2 Como podemos ver nos excertos acima, Colchie ao fazer a tradução


da sentença “o último aventureiro da planície” (SOUZA, 1978, p. 15) faz alguns
0 acréscimos, na sua versão a sentença é traduzida para “the last exotic adventurer
of the mall, in the vast, dark Amazonian basin; que pode ser traduzido como “o

último aventureiro exótico de todos na vasta e escura bacia amazônica”. Tal menção
1 a uma “Amazônia” vasta e escura é de inteira responsabilidade do tradutor, que
decide ser importante dizer que esta é uma narrativa sobre o último aventureiro
8 “exótico” numa “Amazônia” escura e vasta, um território primitivo como sugere a
sua modificação no título do capítulo. Dessa maneira, o tradutor fez com que seus
leitores, desde o início,tivessem a certeza de que leriam uma história sobre essa
“Amazônia” fantástica, cheia de mistérios escondidos na sua grandeza e escuridão.
Essa ideia é mais uma vez reforçada na abertura da segunda parte do
romance no qual em português a descrição aparece como “em pleno rio amazonas”
(SOUZA, 1978, p. 61), e na tradução de Colchie seus leitores são recebidos com
a seguinte descrição “upthevast, dark, Rio Amazonas” (SOUZA, 1980, p. 67), que
traduzindo literalmente significa “o vasto, escuro, Rio Amazonas”, transmitindo aos
leitores a ideia de que a leitura é relativa a uma aventura exótica em que em meio
ao rio Amazonas, vasto e escuro, porque toda a “Amazônia” é igual, imensamente
grande e sombria.
Para Guedes (2010), só pode ser traduzido o que é um lugar comum, uma
trivialidade. Se o exemplo original não for de alguma forma um lugar comum, a
solução é a intraduzibilidade. Pode-se argumentar, no entanto, que essa decisão
é também uma decisão política: a não tradução do termo é também uma forma de
J não integrar a obra traduzida ao grupo da língua alvo.
Diante do exposto, entendemos que a não tradução de termos sem a
A utilização de ferramentas que permitam que o público alvo compreenda a que se
referem tais termos, de fato se torna uma forma de não integrar a obra traduzida
L ao público alvo, já que do ponto de vista do colonizador, a cultura dos povos
colonizados é classificada como inferior, sendo considerado de extremo mau gosto
e até mesmo, sem valor.
L
Outro exemplo no qual a escolha de tradução não consegue transpor a
ideia real do termo é a tradução do termo “barracão central”, que aparece destacada
A entre aspas: “big house” (SOUZA, 1980, p. 38), no trecho seguinte:
Os seringueiros fariam a festa no terreiro do barracão central e estavam
capinando a área desde a madrugada. (SOUZA, 1978, p. 37, grifo meu).

The colonel’s seringueiros would hold their festivity in the backyard of the
“big house,” and had been busily clearing the area of weeds since early

morning. (SOUZA, 1980, p. 38, grifo meu).
1147
O tradutor, ao utilizar o termo “big house” para traduzir “barracão”,
• deixa-o entre aspas. O uso de aspas deixa clara a incerteza do tradutor quanto
à equivalência de sua tradução. É perceptível que “big house” não contempla o
significado real de “barracão”, mas fora essa expressão mais próxima do significado
real que o tradutor encontrou e, portanto, traduziu-a de tal forma.
Diferente da conotação de um casarão onde a família se reúne, no contexto
2 amazônico, o barracão é caracterizado por ser o local onde se depositava as bolas
ou pranchas de borracha defumadas. Era também o local onde os seringueiros
0 compravam os produtos indispensáveis para o dia a dia, dentre elas: carne-seca,
farinha, querosene, sabão, bolachas, facão, lamparinas, e redes para dormir e
1 pescar. Talvez por sua experiência traduzindo outros autores brasileiros, Colchie
tenha ficado preso à ideia da “casa grande” e por isso sua tradução equivocada em
8 “big house”.
Segundo Bassnett (2003), o tradutor não deve apenas escolher na língua
de chegada uma expressão com o significado parecido com o original, é preciso
manter em mente a questão da interpretação e para enfim decidir que expressão
utilizar, é preciso levar em consideração alguns aspectos. É preciso aceitar a
intraduzibilidade de determinadas expressões e a falta de uma convenção social
parecida na língua de chegada. Para Bassnett (2003), “O tradutor tem de ter em
conta a questão da interpretação para além do problema de selecionar, na língua
de chegada, uma frase de sentido minimamente parecido” (BASSNET, 2003, p.48).
Para Paulo Rónai (1987, p. 13) “todo texto literário é fundamentalmente
intraduzível por causa da própria natureza da linguagem. (...) [A]s palavras isoladas
não têm sentido em si mesmas: a sua significação é determinada pelo respectivo
contexto”. Isso fica evidente no capítulo “Eros e Látex” (SOUZA, 2011, p. 50),
que na tradução recebe o título “Of Love and Latex” (SOUZA,1980, p. 45). Nesse
capítulo, a palavra “açaizeiros” é traduzida como “cabbage palm”, como se lê no
trecho destacado:
A lua começava a chegar na linha do horizonte entre silhuetas de esguios
J açaizeiros e estávamos deitados na grama. No quintal da casa de Cira.
(SOUZA, 1978, p. 43. Grifo meu)

A The moon began to nudge the horizon between slender silhouettes of cabag-
ge palm. The two of us were stretched out on the grass, in back of Cira’s
house. (SOUZA, 1980, p.45. Grifo meu).
L
O açaizeiro pertence à família das palmeiras, no entanto, é uma planta
L nativa da região “amazônica”. No inglês, “cabbagepalm” é utilizado para designar
qualquer espécie de palmeira. Assim, ao usar tal termo, o tradutor, elimina toda a

singularidade do açaizeiro enquanto planta nativa da região “amazônica”, igualando-o
A a outras espécies de palmeiras que não pertencem ao cenário “amazônico”.
Como Sapir (apud BASSNETT, 2003) afirma, a língua é a expressão de
sua realidade e cada estrutura linguística reflete características de sua própria
realidade que difere da realidade de todas as outras:
Nenhum par de línguas é suficientemente similar para que se possa consi-

derar que representam a mesma realidade social. Os mundos em que vivem
1148 diferentes sociedades são mundos distintos, não apenas o mesmo mundo
com rótulos diferentes! (SAPIR, 1956 apud BASSNETT, 2003, P. 36).

Partindo desse conceito, percebemos que é impossível que duas línguas
representem a mesma realidade, o que implica dizer que não há como encontrar na
língua de chegada termos e expressões capazes de mostrar fielmente a realidade
da sociedade ali traduzida.
2 Mais um exemplo disso é o que acontece no capítulo “Postcard”, no
“original” “Postal”. Aqui, o mercado popular intitulado “Ver-o-Peso”, recebe, na
0 tradução, o nome de “Get-the-Best”.
O Ver-o-Peso é uma silhueta, o mercado popular sempre movimentado, e
naquela madrugada as ruas estão mornas”. (SOUZA, 1978, p. 17, grifo meu)
1
The normally crowded popular Market, Get-the-Best, is an empty silhou-
ette, and at that late hour of the night the streets have finally become a little
8 cooler. (1980, p. 13, grifo meu)

A tradução “Get-the Best” (literalmente, ter o melhor) não possui


nenhuma relação de significado com o original. Na verdade, a tradução feita
acaba descaracterizando o termo traduzido “Ver-o-Peso”, que assim como na obra
de Souza (2011), é de fato um imenso mercado a céu aberto, e que atualmente
também carrega o status de ponto turístico na cidade de Belém, no estado do Pará.
O mercado Ver-o-Peso é um porto, situado às margens do igarapé Piri, fundado em
1688 com objetivos fiscais, era o local onde se verificava o peso de mercadorias
extraídas da “selva”. Dessa forma, ficou conhecido como o “lugar de ver o peso”.
Hoje 328 anos depois, o nome permanece e o “Ver o Peso” é a “maior feira livre de
produtos amazônicos na América do Sul” (ROCHA, 2016, p. 54).
É em exemplos como esses que se vê a necessidade de o tradutor levar
em consideração a intraduzibilidade de certos termos, pois palavras como essas
carregam consigo elementos que as tornam únicas e diferentes de outras, apagar
esses elementos é apagar a singularidade deste lugar.
Além disso, a tradução de tal termo revela o desconhecimento do próprio
J tradutor em relação ao contexto de produção do romance que se propõe traduzir,
principalmente no que se refere à localização, aos espaços. Fica evidente, por
A exemplo, que antes de fazer a tradução, Colchie nunca visitou a cidade de Belém
do Pará, local onde fica situado o mercado Ver-o-Peso, se o tivesse feito, certamente
L não teria traduzido o nome do mercado como “Get-the-Best”.
Sendo assim, seria mais adequado que o tradutor optasse por manter o
L nome original e utilizasse o recurso de notas de rodapé para explicar ao leitor o
que lhe é desconhecido. Neste exemplo, em particular, seria suficiente uma breve
introdução da história do mercado Ver-o-Peso para que o leitor passe a conhecer
A um pouco da história e cultura local (NENEVÉ, 2009).
Muitas vezes, por falta de conhecimento da língua e do espaço e costumes
das “Amazônias” representadas no romance, o escritor reduz e limita o local,não
valorizando suas nuances e seus detalhes que estão atrelados à cultura. Segundo
Bassnett (2003), a responsabilidade do autor do texto traduzido, que nem sempre

é o autor do texto original, é muito grande, principalmente para com o público
1149 da língua de chegada, pois está em suas mãos interpretar e repassar para sua
• audiência o conteúdo do texto a ser traduzido.
Said considerado o fundador da teoria Pós-Colonial mostra em sua obra
Orientalismo (2015) como se pode “criar” discursivamente “o outro”, “o excêntrico”,
“o exótico” e disseminar tal imagem para o resto do mundo, ou para o outro lado do
mundo, como na relação Oriente-Ocidente que Said tão profundamente abordou
2 em sua obra.
Mais uma vez, no capítulo “Voyage” (1980) o tradutor omite o nome do
0 Rio Amazonas que é claramente citado no capítulo “Viagem” (1978),na versão em
português.
1 Calmaria de madrugada portuária. Havia um vapor deixando o cais. Subi
para bordo e procurei me esconder. Depois resolveria o meu destino. Ferra-
gens, apitos e marulhos. Cira sumiu na escuridão e o vapor desatracou em
8 meia velocidade. Pelo menos seguiu rio Amazonas acima. (SOUZA, 1978, p.
59, grifo meu)

The dockside lull of earlly-morning hours. A steamer about to cast off from
the quay. I sprang aboard and hid myself. Afterward, I would plan my future
destiny. Crankings, whistles, rocking and clanging. Cira vanished into dark-
ness and the steamer put off at half speed. At least it was heading upriver.
(SOUZA, 1980, p. 65, grifo meu)

Omitir o nome do rio Amazonas, tal como não realçar a singularidade


do açaizeiro, é apagar aos poucos as características tão peculiares da “Amazônia
brasileira”. Características que a torna diferente de qualquer outro lugar do planeta.
São essas características que montam pouco a pouco a “identidade” da região
e do texto em questão. São apagamentos que vistos isoladamente não parecem
representar um problema, mas que ao analisar todas as alterações, acréscimos e
omissões, percebemos que, juntas, todas as escolhas feitas pelo tradutor revelam o
olhar de quem traduz com o intuito de se beneficiar e lucrar à custa dos estereótipos
imperialistas.
J Relembrando os conceitos de Venutti (1995) sobre domesticação e
estrangeirização, percebemos no romance, atitudes muito claras do tradutor no
A sentido de domesticar o seu texto ao seu público alvo sem se importar como as
mudanças que faz afetam o texto “original”. Para isso o autor continua a fazer uso
L de omissões e adaptações ao texto. É o que verificamos no seguinte trecho.
E quanto ao estilo o leitor há de dizer que finalmente o Amazonas che-
gou em 1922. Não importa, não se faz mais histórias de aventuras como
L antigamente. (SOUZA, 1978, p. 15) (grifonosso)
As for the style, the reader will undoubtedly complain that it smacks
A too much of the art nouveau of the 90’s. But no matter, they just don’t
make adventure stories like they used to. (SOUZA, 1980, p. 11)(grifo nosso)

Como constatamos nos trechos em destaque, o tradutor substitui a


sentença “E quanto ao estilo o leitor há de dizer que finalmente o Amazonas chegou
em 1922” (SOUZA, 1978, p. 15) por “As for thestyle, the reader will undoubtedly

complain that it smacks too much of the art nouveau of the 90’s” (SOUZA, 1978,
1150 p. 11) que poderíamos traduzir como (quanto ao estilo, o leitor irá, sem dúvida,
• reclamar que cheira muito ao art nouveau dos anos 90), uma adaptação que permite
que as referências ao estilo sejam mais fáceis de serem compreendidas por seus
leitores, levando em conta que para o público alvo seria mais fácil compreender
essa referência estilística ao art nouveau, movimento artístico muito apreciado
entre os anos de 1890 a 1920, muito popular na Europa, mas que teve influências
2 globais, período também conhecido como Belle Epoque.
Ainda no mesmo capítulo conseguimos identificar outras alterações
0 no texto traduzido, dessa vez, além da reorganização da perspectiva de fala,
encontramos também a omissão de uma referência a autor brasileiro Euclides da

Cunha, como observamos nos trechos seguintes.
1 Em 1922 do gregoriano calendário do Amazonas ainda sublinhava o la-
tifoliado parnasianismo que deu dores de cabeça a uma palmeira de Eu-
8 clides da Cunha. Agora estamos fartos de aventuras exóticas e mesmo
de adjetivos clássicos e é possível dizer que este foi o útlimo aventureiro da
planície (SOUZA, 1978, p. 15)

Nowadays, exotic adventures and classical adjectives are completely


out of fashion, not to mention the broad-leafed school of Parnasianism
still extolled in the Amazonas of the early 1920s. And it is perhaps even
possible to claim that this was the last exotic adventurer of them all, in the
vast, dark Amazonian basin; (SOUZA, 1980, p. 11)

Nos exemplos acima, observamos como o tradutor faz uma reorganização


dos elementos do texto, além do fato de excluir referências cômicas que Souza
(2011) faz a Euclides da cunha. No trecho “Em 1922 do gregoriano calendário do
Amazonas ainda sublinhava o latifoliado parnasianismo que deu dores de cabeça a
uma palmeira de Euclides da Cunha. Agora estamosfartos de aventuras exóticas e
mesmo de adjetivos clássicos” (SOUZA, 1978, p. 15) o autor traduz para “Nowadays,
exotic adventures and classical adjectives are completely out of fashion, not to
mention the broad-leafed school of Parnasianism still extolled in the Amazonas
of the early 1920s.” (SOUZA, 1978, p. 11), o que traduziríamos como “hoje em
J dia, aventuras exóticas e adjetivos clássicos estão fora de moda, sem mencionar a
escola frondosa do Parnasianismo ainda exaltado no Amazonas do início dos anos
1920”.
A
Dessa forma, concluímos que essa fora mais uma escolha feita no
L sentido de tornar o texto menos estrangeiro ao seu leitor retirando referências que
provavelmente seus leitores não conhecem e, portanto, também não conseguiriam

entender o humor inserido por Souza (2011) no trecho excluído da tradução.
L
O romance traduzido por Colchie está recheado dessas adaptações
domesticadoras que tornam o texto mais próximo de seu leitor, citamos mais
A exemplos como o que acontece com o título do segundo capítulo em português
“José de Alencar” traduzido para o inglês como “Equatorial Fenimore Cooper”. O
tradutor faz isso ao tentar comparar o escritor brasileiro ao romancista americano
James Fenimore Cooper, famoso no século XIX por escrever vários romances e
entre eles o romance O Último dos Moicanos considerado sua obra prima. Nesse
• sentido, José de Alencar é, para Colchie, James Fenimore Cooper equatorial.
1151 Após essa análise, concluímos que a obra em língua inglesa apresenta
• elementos que por intermédio da tradução, produzem e reproduzem uma reafirmação
da relação de colonizado e colonizador. Na tradução, a obra “original” tem sua
terra e seus costumes diminuídos e/ou apagados, já que a tradução impõe as
peculiaridades culturais do tradutor, seus hábitos e costumes e, principalmente seu
discurso. Fica evidente que Colchie utiliza-se de sua autonomia enquanto tradutor
2 para incutir à obra a sua visão colonizadora e estereotipada, desvalorizando a
cultura do colonizado e criando uma imagem de inferioridade dos povos amazônicos
perante seu público alvo. Fazendo valer ainda mais as palavras de Bassnette Trivedi
0 (1999) ao dizer que a,
tradução é uma atividade altamente manipulatória que envolve todos os ti-
1 pos de fases neste processo de transferência através de limites linguísticos e
culturais. A tradução não é uma atividade inocente, transparente, mas está
altamente carregada de significados em todos os seus estágios; é raro, se
8 alguma vez, envolve relação de igualdade entre textos, autores ou sistemas.
(BASSNETT, TRIVEDI, 1999, p. 02)4.

Com base na afirmação de Bassnett e Trivedi (1999), podemos mais uma
vez confirmar como o tradutor da obra objeto desse estudo, utiliza-se do poder de
manipulação da tradução para difundir o seu ponto de vista colonizador, fazendo

4  translation is a highly manipulative activity that involves all kinds of stages in that process of
transfer across linguistic and cultural boundaries. Translation is not an innocent, transparent
activity but is highly charged with significance at every stage; it rarely, if ever, involves a relationship
of equality between texts, authors or systems (BASSNETT, TRIVEDI, 1999, p. 02).
omissões de elementos e termos essenciais da obra original. A tradução deveria
se manter mais fiel à obra, que por si só apresenta suas próprias dificuldades
em representar os habitantes da “Amazônia acreana”, quando o tradutor poderia
fazer uso da estratégia de estrangeirização e levar os seus leitores a conhecerem
um pouco mais o autor brasileiro e o que este diz, da forma como diz. Tal postura
permitiria que seus leitores fossem transportados para o texto estrangeiro e que a
partir do contato com a representação da cultura do “outro” construíssem novos
J conhecimentos a respeito dos elementos e expressões que lhes são culturalmente
desconhecidos.
A Ao relembrar as contribuições de Venutti (1995) e Munday (2001) na
seção sobre o papel do tradutor, o que percebemos é que o tradutor, Colchie, optou
L por uma domesticação do romance à língua alvo. O tradutor se fez invisível para
os leitores, tornando o texto de leitura fluente e podemos afirmar com convicção

que razões econômicas exerceram grande influência sobre o tradutor, visto que
L o próprio Colchie era o agente literário de Souza (2011) e, portanto, ele também
receberia uma porcentagem dos lucros sobre a venda do romance, e por isso, era
A lhe muito mais rentável vender uma “Amazônia” estereotipada, “O Imperador da
Amazônia” do que “Galvez Imperador do Acre”.
O romance traduzido apresenta-se recheado de apagamentos, omissões
e acréscimos que criam e recriam a “Amazônia” ali representada como menos
brasileira e mais como uma “terra à parte do mundo”, isolada, sem lei, primitiva.

Considerações finais
1152
Buscamos através deste texto analisar comparativamente a obra Galvez
• Imperador do Acre, sua versão em português e a sua tradução para o inglês.
Começamos por revisitar alguns conceitos da teoria da tradução pós-colonial
através de teóricos como Basnett (2003), Munday (2001) e Zahkir (2009), e as
considerações de Venutti (1995) sobre o papel do tradutor.
Nossa pesquisa, também envolveu um breve resumodo contexto de
2 publicação da tradução do romance assim como sua recepção pela audiência norte
americana por intermédio de jornais locais da época. Tal investigação nos levou a
0 conhecer que a iniciativa por meio da qual o romance de Márcio Souza (2001) foi
traduzido também possibilitou a tradução de diversos autores brasileiros e suas
1 obras.
Além disso, o que mais nos chama a atenção ao analisar as duas versões
do romance, foi perceber que o tradutor Thomas Colchie faz uso de estratégias de
8
tradução tais como a omissão de elementos e a substituição por termos genéricos
que vão, a cada palavra equivocadamente traduzida, construindo outra ficção verbal.
Os cortes e a generalização de termos como a que acontece no título traduzido da
obra condiz com uma visão colonizadora sobre a região perpetuando o imaginário
de uma “Amazônia” única e homogênea. Substituir a palavra “Acre” por “Amazon”
permite despertar mais uma vez os olhos curiosos dos estrangeiros sobre a “exótica
região amazônica”, olhares curiosos que certamente nunca visitaram a região e
que leem um texto traduzido pelo olhar de quem também claramente não conhece
o que explica a sua tradução do nome do mercado Ver-o-Peso pela expressão Get-
the-Best.
Nesse sentido, acreditamos que a tradução toma caminhos que não
têm por intenção de fato de levar o autor e a narrativa juntamente com suas
particularidades até o leitor. A intenção que se fez dominante foi a de fazer um
texto mais domesticado ao leitor norte americano e mais comercial às editoras.
Tendo em vista que a tradução pós-colonial preza pela estrangeirização
J do texto, tomando de empréstimo palavras e expressões que somente fazem sentido
dentro de seu local de origem, gostaríamos de ver uma tradução na qual o tradutor
A se faz mais visível e possibilite ao seu leitor se transportar e conhecer de maneira
mais verdadeira o que se diz e como se diz. Entendemos que o tradutor deve se
L esquivar de traduções genéricas que não se relacionam com os valores socio-
culturais inerentes à obra “original”, mas ao invés, manter as expressões tais como
aparecem em seu contexto de origem que, por não terem tradução, se faz necessário
L
o uso de notas de rodapé que possam explicar a que essas expressões se referem,
permitindo ao leitor mergulhar na cultura do “outro”.
A
Referências
BASSNETT, Susan. Estudos de Tradução. Trad. Vivina de Campos Figueiredo. Lisboa:
FundaçãoCalousteGulbenkian, 2003.
BASSNETT, Susan and TRIVEDI, Harish. Post Colonial Translation: Theory and Practice.
London and New York: Routledge, 1999.

GUEDES, Rosane Mavignier. A difícil decisão do tradutor: traduzir ou não traduzir. Ca-
1153
derno de letras UFRJ nº26, 2010.
• LIMA, Andréia Mendonça dos Santos. Tradução e Pós-Colonialismo: Uma análise de Mad
Maria de Marcio Souza e sua tradução para o inglês. Porto Velho, 2013.
MUNDAY, Jeremy. IntroducingTranslationStudies. Routledge: New York, 2001.
NENEVÉ, Miguel. Os Diários de P. K. Page Sobre o Brasil: A sua tradução para o português
como uma re-tradução. EmMARTINS. Graça, NENEVÉ, Miguel.Fonteiras da Tradução:
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NENEVÉ, Miguel. SAMPAIO, Sônia Maria Gomes. Re-imaginar a Amazônia, descolonizar a
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PAIO, Sônia Maria Gomes. Literaturas e Amazônias: colonização e descolonização. Rio
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1
ROCHA, Hélio Rodrigues da. Coronel Labre. São Carlos: Scienza, 2016.

ROCHA, Hélio Rodrigues da. Microfísicas do imperialismo: A Amazônia rondoniense e
8 acreana em quatro relatos de viagem. Curitiba: CRV, 2012.
ROCHA, Hélio Rodrigues da. Imperial Soldiers. Revista Igarapé nº 02 setembro de
2013 disponível em< http://www.periodicos.unir.br/index.php/igarape/article/
viewFile/743/794. Acesso em: 06 de fev. 2016.
RONÁI, Paulo. A tradução vivida. Rio de Janeiro: EDUCOM, 1976.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Tomás Rosa
Bueno. 1ª reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
SOUZA, Márcio, Galvez Imperador do Acre. 7ª ed.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1978.
SOUZA, Márcio, Galvez Imperador do Acre. 20ª ed.Rio de Janeiro e São Paulo: Record,
2011.
SOUZA, Márcio, The EmperoroftheAmazon. Trad. Thomas Colchie. New York: Avon
Books. 1980.
VENUTTI, Lawrence. The Translator invisibility: a history of translation. London e New
York: Routledge, 1995.

J

A

L

L

A


1154

2

0

1

8

J

A

L ANÁLISE DE CAPITAL SOCIAL NUMA PERSPECTIVA
SOCIOAMBIENTAL: UMA PROPOSTA DE ESTUDO COM
L MULHERES NA RESEX CHICO MENDES – ACRE - BRASIL

A Tânia Gomes Façanha (UFSC)
Marcos Fábio Freire Montysuma (UFSC)
RESUMO: Esta pesquisa tem por escopo analisar a organização comunitária e
formação do capital social na Resex – Chico Mendes com enfoque na participação
das mulheres no processo histórico, em suas lutas e nas conquistas do movimento
• seringueiro no Acre. Para tal fimutilizamos a metodologia da História Oral.
1155 Pretendemos registrar o protagonismo histórico dessas mulheres que aturaram
e atuam ativamente na dinâmica das relações materiais, simbólicas, culturais e
• subjetivas. Partindo da premissa de que a avaliação dos aspectos que promovem o
crescimento econômico e desenvolvimento social de uma comunidade, geralmente
está relacionada aos aspectos históricos ou a dotação de diferentes estoques de
capital, como capital natural, físico, financeiro, humano e social.
Palavras-chave: Capital social. Mulheres seringueiras. Acre.
2
Introdução
0 A promoção do desenvolvimento comunitário também está relacionada à
formação e utilização de Capital Social, aqui entendido como redes de relacionamento

baseadas na confiança, cooperação e solidariedade, desenvolvidas pelas pessoas,
1 dentro e fora das organizações sociais. Entendendo que as pessoas não agem de
forma independente, isoladas e egoístas, o Capital Social serve como recurso para
8 o alcance de objetivos em comum, sendo um instrumento de ação coletiva e a
participação mais efetiva nos processos de desenvolvimento.

O aumento da exclusão, desigualdades sociais, insuficientes políticas de
governo ou estado, degradação ambiental, frágil governabilidade e descaracterização
cultural são aspectos que desafiam as propostas e projetos para o desenvolvimento
local, configurando necessidades de fortalecimento do Capital Social como
coparticipante no exercício de gestão das políticas voltadas para as comunidades
locais, como aquelas mulheres situadas nas florestas do Acre, atuantes na RESEX
Chico Mendes.
Esta pesquisa tem por escopo analisar a organização comunitária e
formação do capital social na Resex – Chico Mendes com enfoque na participação
das mulheres no processo histórico, em suas lutas e nas conquistas do movimento
seringueiro no Acre. Para tal fim utilizamos a metodologia da História Oral.
Historicamente, os movimentos de ocupação da Amazônia, em especial o extrativismo
da borracha, foram baseados na subordinação da força de trabalho de homens e
mulheres oriundos do Nordeste brasileiro. Os seringueiros e seringueiras eram de
J todo modo coagidos por este sistema, que se mantinha através da exploração de
seu trabalho.
A Pode-se destacar o amadurecimento do Capital Social, no Acre, a partir de
1970, por meio das organizações sociais que nascem da necessidade e do impulso
L dos trabalhadores e trabalhadoras diante da ameaça de perderem seu modo de
vida, cultura e condições de acesso a terra, ou meios de acesso à extração da

borracha e castanha. Eles e elas vencem as dificuldades de articulação política e se
L organizam em prol desse objetivo comum, assegurados nas relações de confiança
e solidariedade articulados pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri,
A dentre outros sob a liderança de Chico Mendes.
Neste contexto, os trabalhadores ditos rurais, mas da floresta, da categoria
de seringueiros criaram duas formas de cooperação, conceitos elaborados por eles
próprios, que foram importantes para o debate da formação do capital social e
que impulsionaram a criação das Reservas Extrativistas no Acre: os Adjuntos e
• os Empates. Salvo rara literatura, os registros e reconhecimento da mulher como
1156 trabalhadora nos seringais ainda é insipiente.
• Nas pesquisas e registros pouco se faz menção desse universo feminino
nos seringais acreanos, destacam mais a projeção masculina, principalmente por
conta de uma tradição cultural endrocentrica resultante de uma racionalidade
hegemônica colonizadora, um pensamento único, de um consenso fabricado sobre
os campos de significados produzidos acerca da sociedade que relegam a mulher
2 a personagem secundária. Assim, pretendemos registrar o protagonismo histórico
dessas mulheres que aturaram e atuam ativamente na dinâmica das relações
materiais, simbólicas, culturais e subjetivas. Bem como, analisar a contribuição
0 delas para o surgimento e fortalecimento do capital social da localidade.

Capital social: um instrumento da/para ação coletiva
1
O conceito de capital social vem conquistando espaço no glossário

das Ciências Sociais. Apesar de possuir diversas definições, tem sido usado,
8 principalmente para contrapor a visão economicista de desenvolvimento, uma vez
que, o conceito de capital social considera que os indivíduos estão imersos em
uma rede de relacionamentos na qual age não apenas em benefício próprio, mas
também em prol de interesses em comum.
Ao se pesquisar sobre a origem deste conceito tem-se que sua primeira
utilização conhecida do conceito foi feita por Luda Júdson Hanifan, que atuava
como supervisor estadual de escolas rurais no Estado de West Virginia, nos Estados
Unidos, no ano de 1916 com o intuito de enfatizar a importância do envolvimento
da comunidade para o sucesso escolar. Para Hanifan, capital social refere-se:
...às coisas intangíveis [que] são importantes para o cotidiano das pessoas:
boa vontade, amizade, solidariedade, interação social entre os indivíduos e
as famílias que compõem uma unidade social ... Uma pessoa apenas existe
socialmente, se deixada a si próprio... Mas se ela entrar em contato com o
seu vizinho, e estes com outros vizinhos, haverá uma acumulação de capital
social, que pode imediatamente satisfazer suas necessidades sociais e que
pode ostentar uma potencialidade social suficiente para a melhoria subs-
tancial da comunidade, para as condições de vida de toda a comunidade.
J A comunidade como um todo se beneficiará pela cooperação de todas as
suas partes, enquanto que o indivíduo vai encontrar nas suas associações
as vantagens da ajuda, da solidariedade... bem como seu vizinho no clube.
A (HANIFAN, 1916)1.

Desde então o conceito vem ganhando espaço, popularidade e avançando
L
como tema de pesquisas, bem como, sendo reconhecido, tanto no espaço acadêmico
como em empresas e organizações, quanto sua relevância em diversos aspectos do
L desenvolvimento social.
Bourdieu (1998) considera que é a partir da noção de que os indivíduos
A não agem de forma independente, isoladas e egoista, que existem as estruturas
sociais e que o capital social serve como recurso, um ativo de capital do qual
os indivíduos podem dispor, para alcançar objetivos em comum, que não seriam
possiveis sem o uso deste com instrumento para a ação coletiva.
Ainda segundo Bourdieu (1998), o campo social deve integrar não só a
• representação que os agentes têm do mundo social, mas também, a contribuição
1157 que eles dão para a construção da visão desse mundo e, assim, para sua própria
construção, na contraposição de interesses gerada pela prática e na luta, por meio

do trabalho, para tornarem sua concepção como a dominante.
A partir de tal perspectiva, pode-se conceber o espaço social como um
campo de forças cujo conjunto de relações de poder se impõe a todos que nele
entram. A posição de um indivíduo neste espaço é determinada pela quantidade
2 de volume de capital (econômico, cultural, social e simbólico) e de acordo com a
composição de seu capital, isto é, de acordo com o peso relativo desses diferentes

bens sociais dentro da totalidade social.
0 O conjunto dos recursos reais ou potenciais que estão ligados à posse de
uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de inter
1 conhecimento e de Inter reconhecimento mútuos, ou, em outros termos, à
vinculação a um grupo, como o conjunto de agentes que não somente são
dotados de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas pelo ob-
8 servador, pelos outros e por eles mesmos), mas também que são unidos por
ligações permanentes e úteis (BOURDIEU, 1998, p. 67).

Para Coleman (1990), assim como outras formas de capital, o capital
social é produtivo, e possibilita a realização de determinados objetivos que
seriam inalcançáveis se ele não existisse. Por isso, tanto a ideia de capital social,
quanto à de cooperação, nos últimos anos, têm sido destacadas por organismos
internacionais devido ao seu papel na implementação e fortalecimento de políticas
de desenvolvimento.

1  Mais detalhes podem ser encontrados no seguinte endereço: https://pt.wikipedia.org/wiki/Capital_social


Capital Social refere-se às redes de relacionamento baseadas na
confiança, cooperação e inovação que são desenvolvidas pelos indivíduos dentro e
fora da organização, facilitando o acesso à informação e ao conhecimento. Assim o
capital social reune caracteristicas comuns de entidades que formam a estrutura
social promovendo e sendo promovido por uma ação coletiva, podendo ser “uma
variedade de diferentes entidades que possuem duas características em comum:
consistem em algum aspecto de uma estrutura social e facilitam algumas ações
J dos indivíduos que estão no interior desta estrutura” (COLEMAN, 1990, p.302).
Robert Putnam (1996) que, a partir de pesquisas e estudos realizados
A na Itália, identificou que os vários aspectos que marcaram as diferenças sociais
encontradas entre o norte e o sul daquele país que levam a acreditar que o
L desenvolvimento de uma região está diretamente ligado às características da
organização social e das relações cívicas encontradas.

Putnam (1996) enfatiza que na Itália contemporânea, a comunidade
L
cívica está estritamente ligada aos níveis de desenvolvimento social e econômico.
Visto isso, capital social é, em sua concepção, o conjunto das características da
A organização social, que englobam as redes de relações, normas de comportamento,
valores, confiança, obrigações e canais de informação e, quando existente em uma
região, torna possível a realização de ações integradas que resultam no benefício
de toda comunidade.
Portanto, a ação coletiva possibilita acessar benefícios que o capital
• social pode gerar, através da cooperação e relações de confiança. Afinal, a noção de
1158 capital envolve, em tese, apropriação privada e, conforme salienta Putnam (1996),
• a característica central do capital social é que se trata de um bem público.
Assim como o capital convencional no caso dos mutuários convencionais
[do crédito bancário], o capital social serve como uma espécie de garantia,
estando, porém disponível para os que não têm acesso aos mercados de
crédito regulares. Não dispondo de bens físicos para dar em garantia, os
participantes, na verdade empenham suas relações sociais. Assim o capital
2 social é usado para ampliar os seviços de crédito disponíveis nessas comu-
nidades e para aumentar a eficiência com que aí operam os mercados (PUT-
NAM,1996, p. 177).
0
Abramovay (2003), afirma que quanto maior a participação dos indivíduos
1 na formação do capital social, maior será a chance de êxito, as relações entre
indivíduos e grupos sociais diferentes sem interesses comuns imediatos, ampliarão
as oportunidades de escolha e, portanto aumentaram as possibilidades de geração
8
de renda.
A noção de capital social permite ver que os indivíduos não agem indepen-
dentemente, que seus objetivos não são estabelecidos de maneira isolada e
seu comportamento nem sempre é estritamente egoísta. Neste sentido, as
estruturas sociais devem ser vistas como recursos, como um ativo de capital
de que os indivíduos podem dispor (ABRAMOVAY, 2003, p. 87).

Abramovay (2003, p. 86) diz que “O desenvolvimento territorial apoia-se,


antes de tudo, na formação de uma rede de atores trabalhando para a valorização
dos atributos de certa região”. Assim sendo, as estruturas sociais devem ser vistas
como recursos, como um ativo de capital de que os indivíduos podem dispor como
explica:
O capital social, neste sentido, é produtivo, já que ele torna possível que se
alcancem objetivos que não seriam atingidos na sua ausência. Quando, por
exemplo, agricultores formam um fundo de aval que lhes permite acesso a
recursos bancários que, individualmente lhes seriam negados, as relações
de confiança entre eles e com os próprios bancos podem ser consideradas
como um ativo social capaz de propiciar geração de renda (ABRAMOVAY,
J 2003, p. 87).

Assim, paraque seja possível usufruir dos benefícios que podem ser
A gerados a partir do capital social, os grupos sociais precisam estar empoderados e
contando com ativos que possam se transformar em capital social.
L
Formação e amadurecimento do capital social no acre

Relembrando um pouco a história, é importante ressaltar que é em Marx
L
(1849), que se inicia a temática, diretamente relacionada à organização da classe
trabalhadora enquanto classe social. Percebe-se que a relação de conflito no
A âmbito das lutas de classes, em que a classe trabalhadora unida, é a força para se
contrapor ao processo de exploração, imposta pelo sistema capitalista.
Marx (1849) explica que o capital é poder social concentrado, enquanto
do outro lado, o proletariado dispõe unicamente de sua força de trabalho. O ajuste
entre o capital e o trabalho não pode, pois apoiar-se em condições legítimas. Sofre
• da mesma desproporção o próprio sentido de justiça de uma sociedade que coloca
1159 a posse dos meios materiais de vida e de produção de lado, e a força produtiva
• vivente de outro. A única força social do lado do proletário é a sua massa. Mas a
força da massa dissolve-se quando há desunião. A separação entre os proletários
é o produto e o resultado da inevitável concorrência entre eles próprios.
Na concepção marxista pode se entender a sociedade civil como um
conjunto das relações materiais no âmbito das forças de produção e está relacionada
2 com um determinado período histórico. Já na contemporaneidade, sociedade civil
corresponde a um conjunto de organismos chamados “privados” que corresponde
à função de hegemonia que o grupo dominante exerce sobre toda a sociedade.
0
Para Lima (2010), as organizações sociais nascem precisamente da

necessidade e do impulso dos trabalhadores e trabalhadoras, na tentativa de
1 acabar ou reduzir a exploração. Isto numa lógica de superar a concorrência entre
eles próprios é criar as condições que os coloquem acima, numa situação onde
8 possam ser sujeito de sua própria história, isto é com plena consciência de sua
condição de classe.
De acordo com os relatórios encontrados nos arquivos da Rede Acreana de
Mulheres e Homens, a história das mulheres trabalhadoras rurais do Alto
Acre, tem inicio na década de 80 com o Movimento das Mulheres do Acre
– MMA, com a participação organizada e decisiva das seringueiras através
dos movimentos de resistência como os empates; das trabalhadoras rurais
sindicalistas, durante os acampamentos do “Gritos da Terra”, lutando pela
defesa das florestas, pelo direito a terra, pelo acesso a linhas de crédito,
por estradas, saúde, educação e em especial nos embates ambientalistas.
(LIMA, 2010. p. 108).
Segundo Lima (2010), os inúmeros “empates” realizados na década de
1980em Xapuri, produziram como um de seus resultados a formação de uma
identidade política dos seringueiros e seringueiras. Em síntese, ela expressa
a oposição aos fazendeiros e afirmação de direitos e valoração do seringueiro e
seringueiras como “protetores” da floresta.
O Conselho Nacional dos Seringueiros – CNS -, estabelecido em 1985, tinha
como estratégia a criação de “reservas extrativistas”. Partindo de um movi-
J mento pela posse efetiva da terra e do modo de vida tradicional, passou a
contar com o apoio de grupos ambientalistas e organizações não governa-
mentais nacionais e internacionais. Em 1986 foi criada a Aliança dos Povos
A da Floresta que englobava também as populações indígenas. O Movimento
dos Seringueiros, apesar da reação organizada dos latifundiários da UDR
L (União Democrática Rural), se expandiu não só no Acre, onde já em 1980,
cerca de 60% dos municípios tinham organizações de seringueiros, mas
para outros estados, como Amapá, Rondônia, Amazonas abrangendo 10 as-
L sentamentos extrativistas, 4 reservas extrativistas, cobrindo 3.052.527 ha e
beneficiando cerca de 9.000 famílias. (LIMA, 2010, p. 37)

A Oliveira (2003) analisa a formação dos Movimentos pelo Desenvolvimento


Sustentável no Acre - MDSA, fazendo uma explanação sobre os ciclos de protestos
e a evolução do capital social entre a classe seringueira, segundo ele:
[...] o MDSA se aproveitou de uma estrutura de capital social/cultural exis-
tente no entorno de seus membros, para colocar na agenda do sistema pú-
• blico suas demandas e receber um tratamento em termos de políticas públi-
cas que obedece ao duplo objetivo do movimento: a preservação de um modo
1160 de vida das populações extrativistas e a preservação da natureza como con-
• dição do desenvolvimento do Estado do Acre. (OLIVEIRA, 2003, p. 93)

Em sua pesquisa, Oliveira, utiliza três dimensões do conceito de capital


social, para elucidar a tomada de consciência dos seringueiros e seringueiras no
Acre.
Trata-se de dimensionar as várias formas em que se apresenta o capital
2 social, já que esse conceito é multifacetado e aparece nas relações sociais
entre indivíduos com uma mesma posição social (bonding social capital ou
0 laços fortes); nas relações entre grupos sociais distintos (bridging social ca-
pitaloulaços fracos). [...] A outra forma seria o capital social institucional.
(OLIVEIRA, 2003, p. 103).
1
Diante da ameaça de perderem seu modo de vida e sustento os seringueiros

e seringueiras vencem as dificuldades de articulação entre a classe e se organizam
8 em prol desse objetivo comum por meio das relações de confiança e solidariedade.
Esta tomada de consciência de empatar do seringueiro-posseiro foi algo pe-
culiar na trajetória do MDSA, foi um mix e confiança e solidariedade, como
o único recurso que se possuía, ou melhor, seu capital social. (OLIVEIRA,
2003, p. 114).

Neste contexto, Oliveira (2003) apresenta duas formas de cooperação


desenvolvidas pela classe seringueira, que foram importantes para o debate das
Reservas Extrativistas, conceitos elaborados pelos próprios trabalhadores: os
Adjuntos2 e os Empates3.
Com efeito, essas duas formas de solidariedade, o adjunto e os empates,
são dois conceitos elaborados pelos próprios trabalhadores extrativistas do
Acre. Ambos possuem a qualidade de serem resultados de um processo de
exclusão, e ao mesmo tempo de autonomia destes trabalhadores historica-
mente excluídos dos benefícios gerados na economia regional pelo extrati-
vismo. (OLIVEIRA, 2003, p. 135)
J
Oliveira (2008), diz que essa tomada de consciência social e ambiental
tem sua origem com a organização dos seringueiros e seringueiras de Xapuri-Ac.
A
Essa resistência à hegemonia que tentava a todo custo persuadir os extrativistas a
desistirem de seu modo de vida para possibilitar a expansão agropecuária, trouxe
L um novo olhar sobre o desenvolvimento rural. Todo esse processo culmina com a
implantação das Reservas Extrativistas, composta por Unidade familiar Extrativista.
L A resistência social e ambiental formada em Xapuri, em torno da luta sin-
dical, vai se contrapor ao discurso hegemônico de introdução da produção
agropecuária, trazendo como alternativa um desenvolvimento rural que for-
A talece os elementos de resistência local, conserva a natureza, sem transfor-
mar as unidades de produção familiar em unidades especializadas e assala-
riadas. (OLIVEIRA, 2003, p. 201)

Este mesmo autor discorre sobre os usos múltiplos da floresta, segundo


• qual, com sua experiência acumulada a partir do modo de vida, os e as extrativistas,
possuem uma interação com o meio ambiente, o que possibilita gerir os recursos
1161
disponíveis de forma integrada com a natureza.
• [...] na solidão de cada “colocação”, o seringueiro foi acumulando conheci-
mento sobre o ecossistema que deve ser considerado, nessa nova fase de
incorporação globalizada da floresta tropical Amazônica, não somente como
produtores de bens e serviços ambientais, mas como ator social e econômico
fundamental na promoção do desenvolvimento local. (OLIVEIRA, 2003, p.
201)
2
A proposta de criação de reservas extrativistas – desenvolvida pelo
0 movimento social dos seringueiros e seringueiras visando promover a união entre
conservação ambiental e reforma agrária – passou a ser considerada por cientistas e

formuladores de políticas públicas como uma via de desenvolvimento sustentável e
1 socialmente equitativo para a Amazônia. [...] As reservas extrativistas se baseavam,
essencialmente, na idéia de que a reforma agrária na Amazônia deveria seguir um
8 modelo que levasse em consideração a enorme diversidade cultural e biológica da
região, já que o modelo tradicional de assentamento do INCRA era inadequado
(SANTILLI, 2005, p. 101).

2  Adjuntos: forma tradicional do seringal de juntar pessoas, em comum acordo, para trabalharem
em benefício de um individuo da comunidade, o que se repetia até que todos os membros fossem
igualmente beneficiados.
3  Empates: os seringueiros e juntavam com o objetivo de impedir o desmate floresta, porém, os
seringueiros sempre faziam os empates de forma pacífica, sem o uso da violência.
Capital social e hitória oral: registrando singularidades
A história oral é uma metodologia de pesquisa que teve início nos anos
1950, após a invenção do gravador, sendo incialmente praticada nos Estados Unidos,
na Europa e no México. Atualmente esse método difundiu-se bastante e, cada vez
mais, pesquisadores aderem a essa forma de coleta de informações para analise em
suas pesquisas, dentre os quais destacam se historiadores, antropólogos, cientistas
políticos, sociólogos, pedagogos, teóricos da literatura, psicólogos e outros. Para
J Alberti (2004), a história oral consiste em realizar entrevistas gravadas com pessoas
que podem testemunhar sobre acontecimentos, conjunturas, instituições, modos
A de vida ou outros aspectos da história contemporânea.
A história oral tem sua relevância reconhecida atualmente na academia,
L pois além de fornecer dados que nos ajudam não só na construção como também
na compreensão da história ou memória coletiva, é também, um resgate de
L experiências de vidas singulares, pois cada experiência relatada são vivências ricas
e concretas de significância social, cultural e histórica.

A utilização da história oral ou história de vida permite captar informações
A importantes que definem hábitos, costumes e pensamentos referentes à cultura
local, ou seja, possibilita uma alternativa a documentos oficiais, que na maioria das
vezes não contempla o ponto de vista dos que constroem a história nos bastidores.
Assim, essa metodologia enriquece as pesquisas de diferentes áreas dis-
ciplinares ao apresentar novas perspectivas de abordagem das questões,
• projetando memórias locais sob diferentes óticas, além de trazer conteúdos
1162 relativos a acontecimentos e processos que não se encontram registrados
em outros tipos de documentos e, ainda, apresentando-se como outra pos-
• sibilidade de escrita da história, que confronta o caráter estático do docu-
mento escrito. A História Oral permite entrar em contato com experiências e
processos específicos vividos ou testemunhados pelos sujeitos. (MONTYSU-
MA e MOSER, 2015, p.03)

Considerando ainda, que o objeto que se pretende investigar, trata-se de


2 pessoas que, em grande maioria, vivenciaram as transformações sociais e ideológicas,
bem como, presenciaram ciclos completos de relações familiares, produção, sociais
0 e culturais formando com isso referências e concepções da realidade construída no
decorrer de sua vivência prática, que permitirá uma reconstituição, longe de ser
1 absoluta, porém, próxima de como se desenvolveram as relações sociocultural na
formação das comunidades, pertencentes à RESEX- Chico Mendes, e seus modos
de vida.
8
A utilização da historia oral, além de fornecer dados importantes que
definem certos hábitos, costumes e pensamentos inerentes à cultura popular, este
método resgata toda uma história. Nossa proposta metodológica consiste em utilizar
histórias de vida de mulheres, buscando registrar não apenas historicamente os
fatos que antecederam o presente, mas, principalmente procurando compreender
como se moldou a sociedade atual, com seus costumes, hábitos, moral, enfim sua
cultura.
O desenvolvimento da história oralcomo parte de um método de investiga-
ção participativa abriu-se como um campo promissor em relação à tarefa de
descobrir “novos” sujeitos, sua ação e interpretação do presente, apoiada na
sua consciência do passado. Busca pontos de encontro entre a disciplina
histórica, a antropologia e as ciências sociais, como parte de um processo de
construção da memória individual e coletiva, fruto de um trabalho compar-
tilhado e participativo dos sujeitos – protagonistas de uma dada realidade.
(TEDESCHI, 2014, p. 09)

Ainda na visão de Tedeschi (2014), a discussões sobre memórias femininas


J e o uso de fontes orais para resgatar a história das mulheres, a história oral,
enquanto método proporciona uma nova valorização das experiências femininas
mediante uma nova forma de abordar a história, revisando modelos de significação
A que estavam impregnados em todos os grupos sociais, visibilizando os fatores
distintos que afetam as mulheres.
L Por tal motivo a recuperação da memória coletiva e individual das mulheres
cumpre um fim bem específico – tornar possível a reconstrução e apropria-
L ção coletiva do passado, o que nos ajuda a compreender o presente his-
tórico, favorecendo a formulação e reformulação dos projetos e realidades
atuais. (TEDESCHI, 2014, p. 31)
A
Tedeschi (2014) explica que a reconstrução do passado, na perspectiva

feminina, promove uma mudança radical no paradigma histórico, e leva a uma
reformulação nas categorias de analise histórica, uma vez que, reescreve a história
dentro de outros modelos interpretativos.
• Ao privilegiarmos a categoria gêneronos estudos históricos e na perspectiva
de memória, estamos construindo uma síntese, num tempo em que o pas-
1163 sado se constitui como ponto de referência, uma fonte da qual se podem ex-
• trair as relações de gênero, econômicas, culturais, sociais presentes, dando
a possibilidade de criticar radicalmente os discursos que construíram essa
invisibilidade das mulheres. (TEDESCHI, 2014, p. 18)

A pesquisadora Silvia Salvatici diz que a história oral de mulheres “traz


questões á superfície que contribuem para enfocar os mecanismos de inclusão e
2 exclusão que regem a memória pública” (SALVATICI, 2005, p. 37). Como exemplo
apresenta a pesquisa realizada sobre memórias femininas da guerra por Alessandro
0 Portelli, na Itália, com mulheres deportadas durante o período nazista devido as
suas orientações políticas. Os relatos publicados, no início da década de 1980,

quebraram quase quarenta anos de silêncio imposto a essas mulheres.
1
Além disso, entendemos que a história oral é a história do tempo presente,
percebemos a história como o processo inacabado, tendo por essência o sentido do
8 passado no tempo presente das pessoas. Portanto, a História Oral é uma forma de
analisar as experiências das pessoas, os acontecimentos vivenciados e o seu modo

de vida, com foco no contexto social. Nesse contexto destacamos outra passagem
do texto de Montysuma (2012), onde enfatiza que, em sua atuação no campo, é
importante a buscar estabelecer uma relação clara com seu entrevistado, expondo
de maneira transparente suas intenções com a pesquisa, seus objetivos e motivos
que levaram a estar realizando o trabalho;
A partir dessa perspectiva anunciada acredito haver uma responsabilidade
política de nossa atividade para com a sociedade de nosso tempo. Por esse
motivo me envolvo na discussão histórica situada da História do tempo pre-
sente (...). É por meio dos olhares questionadores lançados pela janela da
história que buscamos alcançar respostas que nos satisfaçam, dividindo a
construção da dignidade com as pessoas. E de muitos modos, procurando
tornar seus dias confortáveis com versões do (seu) passado que lhes satis-
façam e com as quais consigam conviver em paz. E, dando visibilidade as
pesquisas que vimos realizando, ao abordarmos o cotidiano das pessoas,
consideramos discutir uma historicidade das ações dos sujeitos, através das
tramas nas quais se envolvem. É isso vislumbro através do trabalho que re-
J alizo. Logo, o que faço na pesquisa me situa numa dimensão política do meu
tempo, em comprometimento com os meus pares, com a sociedade, com os
povos com quem trabalho (MONTYSUMA, 2012, p. 55).
A
A passagem citada acima demonstra que a História Oral não se configura
L apenas em uma mera ferramenta de coletas de dados para pesquisas, seu caráter
subjetivo pressupõe um compromisso para com a sociedade. Não se trata de um

método imparcial, assim como, o pesquisador que dele utiliza, o faz justamente
L por defender uma ideologia, no querer contemplar uma dimensão politica, social,
histórica não explorada. Bem como, não está em busca de uma verdade única,
A universal e positiva, e sim, parafraseando novamente, “é por meio dos olhares
questionadores lançados pela janela da história que buscamos alcançar respostas
que nos satisfaçam, dividindo a construção da dignidade com as pessoas”
(MONTYSUMA, 2012, p. 58), portanto, no concernente ao pesquisador, trata-
se de assumir um compromisso pessoal e social evocando intrinsecamente sua
• subjetividade.
1164 Assim, pela oralidade pode-se decifrar o processo interno que viveu
cadaindividuo ou grupo social, servindo como fundamento para reescrever a

própria história, bem como, para expor e até mesmo combater as injustiças do
passado. Como o Estado do Acre possui uma história recente, mais recente ainda
é a história das lutas e conquistas do movimento seringueiro até a criação da
RESEX – Chico Mendes, o que permite uma reconstituição a partir da memória de
quem a viveu, neste caso, das mulheres que viveram, vivem, resistiram e resistem
2 em seus vários espaços de atuação social gerando e fortalecendo o capital social
das suas comunidades.
0
Considerações finais

A Reserva Extrativista Chico Mendes vem sendo objeto de pesquisa em
1 diversas áreas do conhecimento, contudo, poucos são os estudos que destacam
a importância da participação da mulher na construção do modo de vida, lutas e
8 conquistas de uma cultura política democrática para o desenvolvimento sustentável.

Considerando as lacunas existentes acerca do assunto, mostra-se


pertinente à realização desta pesquisa, buscando, a partir da história e protagonismo
das mulheres, bem como, da articulação e organização comunitária, dimensionar
os níveis de capital social e destacar a sua importância para a o desenvolvimento
sustentável da localidade.
A pesquisa, além do reconhecimento da participação e registro do
protagonismo histórico social, pode contribuir na promoção do empoderamento e
maior abertura para participação das mulheres nas instancias de decisão.
A história oral como método fornece indicadores que possibilitam
compreender as praticas e as representações das pessoas com a sociedade e o meio
ambiente. Com a história oral é possível verificar, a partir da percepção de quem
fala, questões relativas ao uso dos recursos naturais, organização comunitária,
interferências externas, alternativas para problemas sociais, econômicos e
ambientais que foram construídas a partir de vivências concretas.
Nos relatos existe a possibilidade de perceber como a paisagem e
J os ambientes foram se modificando e transformando com o tempo. Provendo,
assim, as informações necessárias para analise do capital social, sua construção,
A fortalecimento, bem como, as possibilidades de apropriação e utilização em prol
do bem comum, no sentido de contribuir com comunidade estudada e subsidiar a
L ação coletiva visando o desenvolvimento sustentável.
Partindo da premissa de que a avaliação dos aspectos que promovem o
crescimento econômico e desenvolvimento social de uma comunidade, geralmente
L
está relacionada aos aspectos históricos ou a dotação de diferentes estoques de
capital, como capital natural, físico, financeiro, humano e social. O desenvolvimento
A do capital social, seu acúmulo e a maneira como as comunidades se apropriam dele
e o utilizam para fins de agência são questões que demandam melhor compreensão.
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1

8

J

A

L O NOVO REALISMO E SEUS EFEITOS NA OBRA “LUGARES
QUE NÃO CONHEÇO, PESSOAS QUE NUNCA VI”, DE CECÍLIA
L GIANETTI1

A Tatiele Freitas (UFU)
RESUMO: Nas suas reflexões sobra a literatura brasileira produzida na
contemporaneidade, o pesquisador Karl Erik Schollhammer (2007) demonstra que
existe uma tendência - que ele denomina Novo Realismo - marcada, sobretudo, por
uma estreita relação com o real e com a violência dos grandes centros urbanos. No
• entanto, essa relação é distinta daquela que se dava no Realismo representativo
1167 do século XIX, pois a ideia central do Novo Realismo não é fazer um retrato social,
mas enfrentar a realidade por meio da escritura artística. Desse modo, ls autores
• brasileiros contemporâneos buscam causar no leitor “efeitos” de realidade por uma
via não hermenêutica ou afetiva, de modo que a linguagem, antes descritiva, tornar-
se-ia performática, envolvendo o leitor na história narrada. Em outras palavras, a
compreensão da obra não aconteceria por meio do distanciamento, porém, melhor
dizendo, pela identificação “catártica” e que levaria esse leitor não somente a
2 purificar-se, mas o levaria à ação. Sob essas considerações, este trabalho pretende
refletir sobre o Novo Realismo e seus efeitos na obra “Lugares que não conheço,
0 pessoas que nunca vi” (2007) – que trata de uma experiencia de horror vivenciada
por uma jornalista em uma favela do Rio de Janeiro, sendo que depois disso o
1 mundo perde suas definições – de maneira a analisar como se articula os efeitos
produzidos por essa estética “novo realista”.
8 Palavras-chave: Contemporaneidade; Novo Realismo; Literatura Brasileira; Cecília
Giannetti; Violência.

No Novo Realismo, sabemos que o desafio para os escritores, na tentativa
de mostrar “a vida como ela é” – de um modo diferente do que é feito pelos meios de
comunicação que têm devolvido clichês – é encontrar outras formas de expressar
essa realidade.
Nesse aspecto, pensadores como Hans Robert Jauss (1921–1997) e

1  Este trabalho se realiza com o respaldo financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa da Minas
Gerais (FAPEMIG)
Wolfgang Iser (1926–2007) e seus estudos sobre estética da recepção podem aportar
ao estudo do Novo Realismo. Esses autores pressupõem o texto literário por meio
de um sistema definido pela sua produção, recepção e comunicação, interligando,
dessa maneira, autor, obra e leitor. Opondo-se às vertentes teóricas da época se
seu surgimento, como o formalismo, marxismo, ao new criticism etc., a estética da
recepção coloca a figura do leitor em destaque, conferindo-lhe o papel de produtor
de sentidos, como construtor de significados em seu contato com a obra de arte.
J Assim sendo, o universo existente em um texto dialoga com o conjunto
de conhecimentos prévios do leitor, o que vai criar, de acordo com a terminologia
A empregada por Jauss (1994), um horizonte de expectativas, que pode ser satisfeito
ou rompido durante o ato da leitura. E, para o teórico, é justamente a ruptura, a
L não correspondência com esse horizonte de expectativas, que vai indicar o carácter
artístico de uma obra, rompimento a que ele chama de “distância estética”. Se

esta não acontece no ato da leitura, a obra pode ser considerada como sendo “arte
L culinária” ou destinada à mera diversão.
Dessa forma, podemos pensar que “a partir deste pressuposto pode-
A se construir a análise de impacto, sendo que este ocorre quando há quebra de
expectativas — o que ainda promove o rompimento de barreiras e o cruzamento de
fronteiras” (ROSSETO,2010, p.1).
Iser (1996), por sua vez, considera a literatura como “estrutura
comunicativa”, uma vez que permite ao leitor vivenciar uma experiência estética,
• a partir da qual estabelece conexões que o fazem pensar sobre seu lugar na
1168 sociedade. Concorda com Jauss (1994) quando este afirma que para que isso
• ocorra, a literatura não pode se carregar de aspectos didáticos, nem oferecer um
caminho fechado que oriente o leitor. Muito pelo contrário, é pelos vazios deixados
na obra, ou pelas indeterminações, ainda que fazendo alusões a referências, que
o indivíduo se sente impulsionado a perceber durante a leitura certos aspectos do
mundo que antes estavam adormecidos pelo hábito e pelo cotidiano.
2 Para o pensador, literatura e realidade pragmática possuem uma relação
imbricada, no sentido de que a realidade da literatura desestabiliza a estrutura
dessa realidade, pois, mesmo que o universo da ficção faça menções às regras dos
0
sistemas sociais, não mantem o mesmo sistema vertical equilibrador das normas,
e essa desestabilização ocorre quando a literatura é construída em repertorio e
1 estratégias. O repertorio se relaciona com as referências da estrutura verbal que
são apresentadas de formas distintas, como alusões literárias, convenções sociais
8 e histórias, dados do contexto cultural, enfim, qualquer indicador da realidade
extratextual, mas sem referenciá-lo diretamente tampouco rejeitá-lo. Desse modo,
enquanto as regras do mundo estão, para Iser (1996), dispostas verticalmente,
a estrutura ficcional do repertorio literário é colocada por meio de estranhas
combinações, através do que pode ser chamado de “reagenciamento horizontal”,
fazendo com que na literatura elas estejam desprovidas da validade que possuem no
contexto referencial. Isso quer dizer que na literatura o que é oferecido é uma visão
aberta dos fatos sem que haja uma resposta ou opção para a verdade confrontada
pelas personagens em uma determinada trama. Ao apresentar os conflitos por
meio de indeterminações ou vazios, o que é se promove é uma desfamiliarização do
que a realidade havia posto como automático para o indivíduo na sociedade.
No entanto, para que essa desfamiliarização aconteça, é necessário que
seja acrescentado ao repertório o papel desempenhado pelas estratégias que são
constituídas pelas perspectivas textuais do narrador, enredo e personagens, haja
vista que são estas perspectivas as bases para que o leitor passe pelo efeito estético,
que está no nível do significado, e consiga elaborar uma resposta a esse efeito,
J chegando, por conseguinte, ao nível da significação. A partir daí o leitor é capaz de
escolher um caminho entre os muitos oferecidos pela obra.
A Jauss (1996) questiona a noção de experiência estética e suas
manifestações na história, além de sua importância. Para o pensador, essa noção,
L de grande importância para a teoria da arte contemporânea, possui grandes
indeterminações, de modo que precisa ser repensada. E, ao repensá-la, a partir
não somente de Aristóteles, mas também de Kant, Jauss (1996) coloca que o prazer
L
estético ocorreria por meio da criação artística, da recepção e do efeito catártico.
Desse modo, a poiesis – criação artistica – se refere à consciência produtora do
A autor; a aiesthesis – recepção – se refere à consciência do leitor que recebe essa
obra e confirma ou renova sua percepção da realidade tanto interna quanto externa
ao texto e a ele próprio; e a katharsis – efeito provocado no leitor – que se refere à
experiência subjetiva transformada em experiência intersubjetiva.
Tudo o que foi mencionado anteriormente, observamos na prosa de Cecília
• Giannetti, em seu livro de estreia, lançado em 2007, Lugares que não conheço,
1169 pessoas que nunca vi. Trata-se de uma obra que tenta narrar o trauma depois
• de uma experiência de violência extrema, testemunhada por uma jovem repórter
(obcecada pela aparência e casada com um poeta esquálido) em uma zona periférica
do Rio de Janeiro. Em uma manhã normal, ela sai para fazer uma entrevista com
uma senhora mãe de família em uma favela carioca e, no meio da reportagem, um
dos filhos da entrevistada aparece gritando com o irmão nos braços, sangrando
2 por haver sido baleado, e acaba morrendo ali, como é possível observar no seguinte
trecho:

A mulher [mãe dos meninos] farejava sangue nos gritos e já gritava também
0 quando os dois se tornaram o foco principal da matéria. O menorzinho per-
dia sangue pelo chão, tinha um buraco de bala em cada uma das mãos e
1 outro na cabeça, e antes de uma ambulância ser chamada já estava descor-
dado ou morto. O garoto maior gritava engasgado nas lágrimas, abraçado
pela mulher, que também se agarrava ao corpo do outro filho. Num canto
8 do quadro a repórter tossiu, o rosto amarfanhado, murcho, e então ela se
curvou para a frente. Queijo, pão, pasta, café e o golinho de nada de suco, a
devolução no segundo plano, por cima da blusa verde e da empatia do mi-
crofone com o logotipo da emissora, golfou cercada pelo garoto em choque,
pelo morto esburacado, pela entrevistada. (GIANETTI, 2007, p. 23).

Como está na citação, a jornalista vomita diante da cena, a reportagem


é editada e, a partir daí o fantasma do menino baleado começa a persegui-la em
alucinações. Ela abandona o poeta, abandona toda sua vida anterior e inicia
um romance super erotizado com o motorista do veículo que a levava para as
reportagens. Além disso, passa a frequentar com ele a Central do Tédio, um clube
montado aleatoriamente, em que os indivíduos se encontram para não fazer nada.
O livro, que começa com a frase “um dia as coisas pararam de acontecer”
(sob o capítulo de título “Registro”) mostra como o mundo, depois da experiência
traumática com a realidade, vai perdendo sua definição, sendo que isso é marcado
pela própria linguagem que vai se tornando cada vez mais complexa e chega à beira
do ilegível:
J
O céu de fogo do fim da tarde é sugado pela pretidão de Doca e ele torna a
A evocar seu funkinho de lei, seu ponto de macumba sem terreiro. Cantarola
sugando todo o vermelho do sol, que queima as últimas pontas atrás de
mais um edíficio podre, puxa o refrão com a boca carnuda e enquadra a bola
L de fogo no vão da palma da mão esquerda, levantada para o alto. Roubou
uns goles de cerveja, está alto, fala em virar Erê. Para Baiano, o menino é
L uma sombra de amendoeira à beira da calçada. Prometo ao moleque, Baiano
tem contatos, mas ele tem que ter fé. (GIANNETTI, 2007, p.118).

A Por mais que protagonista tivesse consciência dos altos índices de
violência no Rio de Janeiro, o que é sempre noticiado seja pelo “rádio na cozinha”
ou “pela TV na sala”, é no instante em que está gravando uma reportagem sobre os
problemas de uma favela na Ilha do Governador, bairro carioca, ela é interrompida
pelo acontecimento absurdo, impossível de interpretá-lo, da chegada de um menino
• baleado carregado pelo irmão e depositado no chão da sala.
Como já mencionamos, a estética do Novo Realismo se evidencia pela
1170
busca em impactar o leitor no que diz respeito à sua própria realidade, além da
• preocupação pela própria forma em que o texto foi escrito. Com isso, traça um
retrato oblíquo da cidade: por meio de imagens alusivas, retrata momentos e vidas
que acontecem concomitantemente, mas descontinuadamente, e são intermediadas
por vazios que se preenchem com paranoia e medo, porque a violência passa a não
depender de uma situação concreta; a ameaça tem vida própria. A história pode
2 passar no Rio de Janeiro, mas as imagens opacas a respeito dos lugares fazem
com que essa cidade possa se transformar em qualquer outra e atinja contornos
0 universais.
No romance de Giannetti (2007), o método de impacto do leitor se evidencia
1 na denúncia de uma realidade cruel, desequilibrada, por meio de uma apresentação
das ruínas de um quadro subjetivo, em reflexões e sentimentos da protagonista
que permanece sem nome até os três últimos capítulos. Ao estabelecer esse diálogo
8
tenso entre o interior e o exterior, a escritora consegue imprimir em seus leitores
uma das facetas da realidade urbana de nossa época.
A partir daí, como afirma Schøllhammer em uma breve consideração
acerca do romance, “o que era registro de uma curiosidade jornalística, mesclando
cenas de observação com representações midiáticas, entra numa rota de alucinação
e desequilíbrio” (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 159). A protagonista tem seu mundo
destruído pelo choque com a experiência e, com o desenrolar da narrativa, o leitor
passa a acompanhar o mundo que surge a partir das ruínas daquele anterior à
experiência vivida: o mundo pós-experiência traumática.
Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi (2007) não trata de
uma exposição direta da violência, mas das suas consequências na percepção
da protagonista. Assim, a autora, em seu romance, estabelece uma relação entre
literatura e realidade quando cria relações e ações no tempo e no espaço em imagens
sugestivas que, sem serem visualmente descritivas, imprimem-se e nos fazem
pensar. Nesse ponto está a experiência catártica mencionada por Jauss (1996) e
a experiência estética de Iser (1994): as indeterminações do texto podem apontar
J para o caminho de que o romance narra a necessidade de esquecer e viver nesse
mundo violento. O encontro com o presente é insuportável e a memória não oferece
redenção. Para superá-lo, a protagonista entende que necessita abandoná-lo ou
A
sucumbirá sob seu peso. Ao constatar isso, não se refaz, mas se constitui como um
indivíduo com um nome (Cristina) e que segue, pois continua pelos três últimos
L capítulos. Assim, podemos pensar que o romance também narra sobre a vida que
continu inexoravelmente mesmo nesse mundo em que tudo cada vez parece cada
L vez mais incompreensível.
Referencias
A FOSTER, Hal. O retorno do real. Trad. Célia Euvaldo. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2014.
GIANNETTI, Cecília. Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi. Rio de Janeiro:
Agir, 2007.
INGARDEN, Roman. A obra de arte literária. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian,1965.
ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Editora 34,

1996, 2 v.
1171 JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad.
• de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.
_____. O Prazer Estético e as Experiências Fundamentais da Poiesis, Aisthesis e Katharsis.
In: LIMA, Luiz Costa (Coord. e Trad.). A literatura e o leitor: Textos de estética da recep-
ção. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002b, p. 85-103.
ROSSETO, Robson. A estética da recepção: o horizonte de expectativas para a forma-
2 ção do aluno espectador. Disponível em:http://www.fap.pr.gov.br/arquivos/File/exten-
sao/1-EncontroGrupoPesquisaArteEducacaoFormacaoContinuada/10RobsonRosseto.
pdf. Acesso em: 02 jan. 2018.
0
VASCONCELOS JÚNIOR, G. A. Lugares que só eu conheço e vi: ecos expressionistas em
Cecília Giannetti. Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea, v. II, p. 1-8, 2009.
1

8

J

A

L POVOS INDÍGENAS, CIVILIZAÇÃO E TRABALHO NO ALTO JURUÁ

L Teresa Almeida Cruz (UFAC)
Gaby Gama da Mota Lima (UFAC)
A RESUMO: Este trabalho está relacionado ao Programa Institucional de Bolsas
de Iniciação Científica (PIBIC), em andamento, do projeto de pesquisa intitulado

“Releituras da história: Povos indígenas nos arquivos de Rio Branco” e visa discutir
o contexto de abertura dos seringais acreanos que sangraram os territórios
indígenas e suas populações do Alto Juruá, no final do século XIX e início do século
• XX, incorporando os sobreviventes no sistema de exploração gumífera através da
“civilização” e trabalho, também conhecido como “amansamento”. Neste sentido,
1172
analisa a relação entre os povos indígenas e os não indígenas que pelas relações
• de poder desenvolveram diferentes formas de controle do trabalho, do corpo e
do território indígena, especialmente pelo método das correrias ao longo do Alto
Juruá. Para o aprofundamento desta temática baseia-se nos escritos etnográficos
de Parrisser e ConstantTastevin, missionáriosEspiritanos que estiveram no Juruá
no período citado acima.Inspira-se em trabalhos na perspectiva da Antropologia
2 Histórica como os de João Pacheco de Oliveira (2016) e Marcelo ManuelPiedrafita
Iglesias (2012), dentre outros autores.Também se fará uso da tradição oral, por
0 meio denarrativas indígenas presentes em diferentes veículos de divulgação, como
cadernos de educação indígena, e outras mídias, relacionado a temática com as
lutas que foram travadas pelos povos indígenas a partir da década de 1970 pelos
1 seus territórios.

Palavras-chave: Povos indígenas; Alto Juruá; Trabalho; Civilização.
8
Este texto visa debater o processo de expansão da fronteira extrativista do
caucho e da borracha, a partir do final do século XIX, que sangraram os territórios
indígenas, dizimando a maior parte dos povos indígenas do vale do Juruá; bem como
analisar as formas de “catequese” e “civilização” dos sobreviventes deste genocídio
que foram incorporados ao sistema seringalista como mão de obra escravizada e/
ou explorada.
Os aspectos inerentes à colonização do Brasil estão muito presentes
no processo de ocupação da região citada acima. A escolha de proporcionar
comparativos ao período colonial à temática aqui abordada advém da perspectiva
de estabelecer um novo viés ao marco historiográfico do ciclo da borracha na região
que corresponde hoje ao território do Estado do Acre, onde para as populações
locais que tiveram seus territórios invadidos de nada difere da relação entre os
europeus e povos originários nos primeiros anos de invasão do Brasil. As formas de
apropriação territorial e incorporação da dicotomia do índio manso versus o bravo
associada às práticas de “descimentos” e às“correrias” formam os mecanismos de
geração de riquezas aplicados no desenvolvimento da nação brasileira.
J Ao refletir a disseminação das marcas de exclusão, opressão e genocídios
dos povos indígenas nos diversos períodos da história do Brasil,apresenta-se as
A estratégias postas e repostas de controle sobre estes ao bel prazer dos interesses
da parcela dominante trazendo ao centro as ideologias que remontam um ideário
L de nação ideologicamente determinado. Os períodos históricos cristalizados,
consagrados com autorrepresentações de uma civilização portuguesa que ao

chegarao Brasil guiados pelos princípios de dever moral, ético e religioso que
L afirmam e justificam suas ações ao outro considerado selvagem, primitivo, um
fóssil vivo das civilizações ainda em desenvolvimento, revelando assim a construção
A de uma nação construída propositalmente pela exclusão de agentes sociais, uma
pátria desagregadora que privilegiou e beneficiou os sujeitos vindos da pátria-mãe
(Portugal) que controlava a colônia.
No prefácio do livro “O nascimento do Brasil e outros ensaios: ‘pacificação’,
regime tutelar e formação de alteridades” de João Pacheco de Oliveira(2016), ele faz
• uma reflexão fundamental em torno das ideologias que permeiam um ideário de
1173 nação numa análise antropológica-histórica e iconográficaque traz uma inovadora
maneira de pensar os grandes marcos históricos por uma ótica diferenciada e refletir

em como se consolidou uma história e uma antropologia que desconsiderava a
agência indígena frente aos desafios enfrentados pelo contato com o homem branco
que ao desvalorizar as diversas formas de resistências adaptadas por diferentes povos
para conseguir sobreviver (já que nem todos usaram da guerra como ferramenta
para reagir), associou uma característica aos que se “deixaram colonizar” bastante
2 pertinente, em vias de acontecer, uma espécie de predestinação sem freios: Logo,
deixariam de ser “índios” para se tornarem homens “civilizados” nos moldes de um
0 “civilização” ideal estabelecido para a nova nação em construção.
A figura dos continentes europeu e americano nos séculos XVI ao XVIII
1 segundo Pacheco de Oliveira (2016) eram representadas por imagens femininas. A
Europa representada por uma mulher bem vestida com requintes de delicadeza,
8 recatos, mulher que émãe e dona do lar. Por outro lado, a Américaé retratada em uma
imagem oposta, expressa em uma mulher nua, carregando consigo uma cabeça nas
mãos que lhe condiciona um caráter bárbaro, selvagem. Tais autorrepresentações
consolidadas pela história oficial reafirmam a formação de alteridades.
A colonização é pensada como uma obra estritamente masculina, enquanto
a América é apresentada como um continente a ser explorado e desbravado.
Exuberante e rico, precisa ser também conquistado, convertido e domestica-
do. É isso que mostra ao visitante a imagem da chegada de Américo Vespú-
cio ao continente ao qual veio a dar o seu nome, representação iconográfica
bastante popularizada do Descobrimento (IMAGEM 6). A América é uma
jovem, desnuda, autóctone, pagã e canibal, que em sua rede é surpreendida
pela chegada de um homem, europeu, maduro, civilizado e cristão, cuida-
dosamente vestido e que de pé carrega um estandarte da Espanha Católica.
Assim, os colonizadores pretendem justificar a conquista não como um ex-
clusivo ato de força ou rapina, mas como dever, ético e político, o anuncio
de uma boa nova, que deveria ser docilmente acolhida e valorizada pelos
nativos (OLIVEIRA, 2016, p. 20-21).

Estas autorrepresentações enraizadas e a história oficial ajudaram a


J estabelecer parâmetros de silenciamento e descredenciamento dos povos indígenas
ao apresentá-los de forma pejorativa dando a concepção de serem primitivos que
necessitavam serem guiados, tutelados e protegidos de si mesmos para que, enfim,
A pudessem chegar ao patamar orientador de civilização ideal: O “único” que se
afirma sobressaindo enquanto tal no contato com o outro.
L Os estudos reservados para os povos indígenas na nação brasileira
nos séculos XVI chegando ao XX se enquadravam em uma alternativade escrita
L historiográfica que refletia a realidade das políticas empregadas pelo Estado ainda
colonial e pós-independência que, segundo Almeida:
A Desde a história do Brasil de Francisco Adolfo Varnhagem (1854) até um
momento bastante avançado do século XX, os índios, grosso modo, vinham
desempenhando papéis muito secundários, agindo sempre em função dos
interesses alheios. Teriam sido úteis para determinadas atividades e inúteis
objetivos dos colonizadores(ALMEIDA, 2010, p.13).

• As ciências antropológicas e historiográficas acreditavam na existência


de índios puros e os aculturados. Estes que haviam passado por um processo
1174
de assimilação se fundiam com os europeus chegando ao estágio “superior da
• civilização”, deixando de serem índios e passando a serem cidadãos da colônia
e/ou nação em processo de construção. Nesta perspectiva, em breve os índios
desapareceriam da realidade brasileira. No entanto, Almeida analisa que
desapareceram apenas da história escrita, mas continuaram presentes e atuantes
em todas as regiões do Brasil. O fato de terem sido “dominados” pela força das
2 armas e/ou se “incorporados” à economia local como forma de sobrevivência não
significa que perderam suas identidades étnicas.
0 Processo semelhante aconteceu com os diversos povos indígenasdo Alto
Juruá que, ao terem seus territórios usurpados com o desenvolvimento da extração
1 da borracha, onde a primeira estratégia usada por seringalistas e seringueiros
constituía no uso das “correrias”, que, ao roubar seus territórios instalava-se no
seu lugar os barracões e colocações de produção de seringa. Os que sobreviveram
8
se “integraram” ao sistema seringalista, mas não deixaram de ser indígenas.
As novas concepções em estudar a temática indígena considerando a
relevância da historicidade para os estudos culturais, influenciados pelo historiador
E. P. Thompson, que considerava que a cultura precisava ser entendida como
variável e dinâmica em que homens e mulheres vivenciam as suas experiências.
Portanto, as culturas são dinâmicas, contribuindo para aprimorar estudos que
colocam os povos indígenas como agentes recriadores de cultura e que realizam
trocas de experiências, podendo desenvolver novas formas de encarar e enxergar
a vida sem que deixem de ser o que são. Trata-se da ruptura de uma cultura
estruturalista para uma cultura histórica que pode mudar conforme as relações
sociais.
Almeida (2010), continua analisando que alguns outros conceitos
elementares para a antropologia foram também reformulados como a de identidade
étnica e tradição também encarados como possíveis de variações,possibilitando
aos anos de 1980 acompanhar as lutas dos movimentos indígenas que contrariando
as visões pessimistas tratadas pelas duas ciências anunciava ao público a sua
J existência na sociedade e reivindicavamos direitos territoriais usurpados no
passado bem como o direito de viverem conforme os seus costumes e tradições.
A Desta forma, os povos indígenas saíram dos bastidores para o palco da história,
revelando a sua capacidade de agência indígena, lutando pelos seus direitos que
L foram consolidados na Constituição de 1988.
Processos de ocupação dos vales do Juruá e Purus
L Os povos indígenas do Acre até o final do século XIX, viviam tranquilos,
caçando, pescando, extraindo da natureza os produtos para construção de suas
moradias e canoas; desenvolvendo a agricultura, mesmo com machado de pedra,
A
produzindo tudo o que precisavam para o seu sustento, de acordo com os seus
modos de vida ancestrais. Esta relativa tranquilidade foi quebrada com a expansão
da fronteira econômica da produção gumífera, impulsionada pelo desenvolvimento
da indústria pneumática na Europa e nos Estados Unidos que gerou uma grande
demanda pela borracha nativa da Amazônia.

Neste contexto, sobretudo, a partir de 1877 começam a chegar na
1175
região que hoje se constitui o Estado do Acre, levas de nordestinos para abrir os
• seringais nos vales do Juruá e do Purus. Todavia, este território não era um espaço
demográfico vazio. Há milhares de anos já era ocupado pelos povos indígenas dos
troncos linguísticos Pano, Aruaque e Arawá que viviam explorando os recursos
naturais abundantes na região e desenvolvendo a agricultura de subsistência bem
diversificada.
2 Então, vamos ter confrontos de interesses. Os povos originários passam
a ser um obstáculo à abertura dos seringais e desenvolvimento da extração da
0 borracha. Neste sentido, Castelo Branco destaca que:
Tinha-se o índio como um animal prejudicial e maléfico, incapaz de ser
civilizado, pensamento, aliás, de pessoas influentes que dirigiram a coloni-
1 zação, porém, ignorantes, incapazes de tomar no momento outra direção,
principalmente por encontrarem alguma resistência na ocupação da terra,
8 o qual só poderia dar o resultado verificado, a quase exterminação dessa
gente (CASTELO BRANCO, 1950, p. 13).

Desta forma, os indígenas nem sequer eram considerados como seres
humanos, como nos primeiros tempos coloniais. Assim, para esses colonizadores
justifica-se o extermínio desses povos indígenas, pois era necessário desenvolver a
extração do látex para atender as demandas do mercado internacional e a ambição
dos seringalistas associado ao desejo dos seringueiros de ficarem ricos e voltarem
para o Nordeste.
Para “limpar” o território a fim de abrir os seringais, as colocações de
seringas, os seringalistas começaram a organização de expedições denominadas
de correrias, ocasião em que, um grupo de seringueiros armados de espingarda
Winchester 44 atacavam pela madrugada as malocas indígenas, matando os homens
e capturando mulheres e crianças. As mulheres eram ofertadas como “troféus”
aos seringueiros que participavam destas expedições genocidas, escravizadas e/
ou comercializadas assim como as crianças. É importante lembrar que, durante
o primeiro ciclo da borracha, não vieram mulheres para os seringais. Então, as
J indígenas passaram a ser objeto de cobiça e de todas as formas de violências.
Em 1898, o missionário espiritano Jean-Bapiste Parrissier, que esteve na
A região do Alto Juruá, fazendo “desobrigas”, já denunciava essas correrias:
Notem que essas correrias são praticadas ainda hoje. Quando um branco
quer se estabelecer em um terreno ocupado por uma tribo de índio, eis como
L procede. Ele arma cinco ou seis homens com bons fuzis, pega um para si
também, e parte em busca da maloca. Quando a acham, ele e seus homens
L a cercam e massacram todos aqueles que tentam fugir e as mulheres e
crianças são levadas ao Juruá e vendidas como animais. Eu vi assim ven-
derem na minha frente oito indiozinhos de quatro a cinco anos. As lágrimas
A me vinham aos olhos vendo estas pobres pequenas criaturas tratadas como
animaizinhos (PARRISSIER, 2009, p. 55)

Esta narrativa de Parrissier corrobora como os povos indígenas foram


tratados como animais num total desrespeito aos direitos humanos e territoriais
destes primeiros habitantes do Brasil e do Acre. Por isso que o próprio Parrissier

inverte a análise colonialista afirmando que os indígenas não são selvagens, mas
1176 sim os seus colonizadores:
• Os índios, cujo número seria bem difícil precisar, são, no entanto, muito
interessantes e merecem ao menos um pouco mais de justiça e de simpatia
do que lhes foi concedida até o momento. Esses filhos da floresta, os verda-
deiros autóctones do Brasil, estão de fato, bem longe de ser, o que se diz: ter-
ríveis selvagens, inimigos de toda civilização e sempre prontos a massacrar
os brancos. Esta é uma calúnia atroz que os brancos, europeus, civilizados,
2 que prefiro chamar de aventureiros, inventaram e propagaram, sem ter ver-
gonha, para legitimar, ou pelo menos para desculpar, os seus roubos e atro-
0 cidades. Muitos acreditaram em sua palavra, e, assim enganados, só viram
no índio, permitam-me a expressão, uma fera de que se deveriam livrar o
mais rápido possível, e contra a qual podiam usar de qualquer meio. É o que
1 prova a História do Brasil, em cada página, se voltamos nela alguns séculos.
Fica-se estupefato e tomado de horror vendo com que barbárie estes pobres
índios foram tratados (PARRISSIER, 2009, p. 52)
8
De fato, o processo de ocupação dos vales do Acre e Purus se deu de
forma bárbara, dizimando mais da metade da população autóctone, os “filhos da
floresta” e donos deste território, como já analisava Castelo Branco citado acima.
Neste sentido, também Pacheco de Oliveira, denuncia que “a expansão do sistema
econômico e político e a formação da nação não prescindiram jamais de um discurso
civilizatório e de criminalização do outro, inclusive com a inculcação de narrativas
e imagens que permitiram justificar ações repressivas e, no limite, genocidas”
(OLIVIERA, 2016, p. 19).
É interessante lembrar que a exploração da borracha no antigo Reino do
Colgo dominado pelo rei Leopoldo II, no final do século XIX até 1910, segundo Adam
Hochschild (1999), significou o extermínio da metade da população deste reino, ou
seja, cerca de dez milhões de congoleses, seja pelo fuzilamento, pela decepação
de mãos, pelos deslocamentos e trabalhos forçados e pelas doenças. Então, nos
dois lados do Atlântico a extração da borracha significou um processo genocida,
matando milhões de africanos no Congo e milhares de indígenas na Amazônia.
Esta postura de extermínio dos povos indígenas nos vales do Juruá e
J Purus para usurpação de seus territórios e desenvolvimento da empresa seringalista
começa a mudar no início do século XX com a anexação do Acre ao território
A brasileiro através da assinatura do Tratado de Petrópolis em 1903 e posterior
criação dos Departamos do Juruá, Purus e Acre.
L Neste sentido, o prefeito do Departamento do Alto Juruá, Marechal Gregório
Thaumaturgo de Azevedo e o Coronel de Engenheiros Belarmino Mendonça, chefe
brasileiro da Comissão Mista Brasil-Peru de Reconhecimento do Rio Juruá vão
L
fazer propostas de “civilização” dos índios e “pacificação” da região como formas de
“proteção” dos povos indígenas. Segundo Iglesias,
A Azevedo delinearia as linhas mestras de um projetode “catequese” e “civiliza-
ção” para os indígenas, parte de políticas mais amplas, quevisavam integrar
o território, normatizar as relações de trabalho nos seringais, fixar ohomem
à terra, fomentar as práticas agrícolas, diversificar as atividades produtivas
e legalizaras atividades comerciais feitas nos rios pelos regatões (IGLESIAS,
2008, p. 111).

1177 Estas propostas de políticas de “catequese” e “civilização” dos indígenas
tinham como pano de fundo a pacificação da região para garantir a produção

de borracha e, ao mesmo tempo, civilizar e catequizar significava disciplinar os
indígenas para o trabalho, alterando os seus modos de vidas tradicionais.
Por outro lado, Thaumaturgo de Azevedo, o delegado Luiz Sombra e
Máximo de Linhares, ajudante do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de
Trabalhadores Nacionais (SPILTN) no Juruá, defendiam a ideia de que era necessário
2
batizar os indígenas como forma de humaniza-los a fim de que não fossem mais
alvo das correrias, pois não seriam mais tratados como animais e sim como seres
0 humanos. As primeiras desobrigas foram realizadas pelos missionários espiritanos
Parrissier e Cabrolié (em 1898) e Constant Tastevin (em 1905 e 1924) que também
1 acreditavam que o batismo seria o caminho para humanização dos indígenas.
No fundo, todas essas medidas de catequização, batismo e civilização
8 visavam a integração dos indígenas como força de trabalho ao sistema seringalista,
ou seja, além dos seringueiros nordestinos, mais braços para atuarem em todas as
formas de serviço nos seringais: caça, pesca, agricultura, derrubada de madeira,
transporte, corte de seringa, serviços domésticos, entre outras.
Incorporação dos povos indígenas ao sistema seringalista
Os primeiros discursos que culminaram em ações de pacificação e tutela
indígena na região do Alto Juruá no limiar do século XX constituiram parte de projetos
de diferentes órgãos governamentais. A integração do território acreano à nação
brasileira dividiu o Acre em regiões administrativas operadas por departamentos.
O recém-criado departamento do Alto Juruá liderada pelo, então, primeiro prefeito
Thaumaturgo de Azevedo (1904-1906) buscava por planos de atuação do poder
público ao departamento, a ações centralizadas para “catequização” e “civilização”
dos povos indígenas visando o combate a prática de correrias, estimulando o uso da
mão de obra indígena para o trabalho, articulando estratégias para a delimitação da
fronteira com o Peru, medidas estas todas direcionadas sobretudo à “pacificação”
da região e à soberania brasileira ao território acreano com a possibilidade da
J unificação territorial, construindo, pois, varadouro/estrada de rodagem na tentativa
de integrar os departamentos (Alto Purus, Alto Acre e Alto Juruá), trabalho realizado
pela Comissão de Obras Federais chefiada pelo engenheiro civil, Antônio Manuel
A
Bueno de Andrada (IGLESIAS, 2008).

L Alguns personagens do contexto histórico entre 1904 a 1909 foram
fundamentais para o estabelecimento de ideias que foram de lados opostos às

práticas de tratamento aplicadas por seringalistas e seringueiros aos povos
L indígenas: Thaumaturgo de Azevedo, Belarmino Mendonça (ambos engenheiros
militares), Luiz Sombra e Antônio Manuel de Andrada. Mendonça no cargo de chefe
A da Comissão Mista Brasil-Peru, Sombra tenente Coronel que esteve responsável
em policiar o vale do rio Tarauacá, tendo plenos poderes para repreender correrias,
auxiliando as metas de “catequização” pretendidas por Azevedo e Andrada,
ocupando o cargo de prefeito após Thaumaturgo entre os anos 1907 a 1909, época
em que também chefiava a Comissão de Obras Federais, como dito anteriormente.
• Suas participações foram pioneiras na elaboração de iniciativas que estabeleceriam
1178 limites/fim às correrias praticadas por seringalistas e seringueiros.
Tanto Thaumaturgo quanto Mendonça estavam preocupados em assegurar

políticas públicas que desnaturalizassem a barbárie transvertida de caráter de
justa ação, ações que justificadas e empreendidas configuravam em genocídios aos
povos indígenas baseado na categoria do estado “primitivo”, da “selvageria” e da
incapacidade de serem “civilizados”. As semelhanças das ideias de Thaumaturgo e
Mendonça consistiam na tentativa da incorporação de trabalhadores à nação com o
2 cessar das correrias e a criação de um povoado indígena autossuficiente com o uso
do trabalho agrícola (neste projeto Thaumaturgo enfrentaria verdadeiras barreiras
0 já que não possuía na região terras devolutas) onde lhes pudessem ensinar o
suficiente para a inclusão a nação. Matava-se/praticava-se correrias anteriormente
1 para a geração de riquezas em um território acreano ocupado majoritariamente por
seringalistas a nível fundiário que economicamente estava voltado à produção da
8 borracha. Resolveu-se, entretanto, reverter as mortes pelo entendimento a uma
nova alternativa (IGLESIAS, 2008).
As iniciativas realizadas por Thaumaturgo de Azevedo para a proteção
dos povos indígenas submergiam à promoção da estabilidade do território,
marcado pelo o poder autônomo exercido por cada seringalista em sua área de
domínio. Suas diretrizes estiveram na elaboração de atividades que inauguravam
os poderes públicos: judiciário, policial e fiscal, poderes que limitavam a atuação
dos seringalistas. Embora fizesse parte de suas convicções estabelecer a “paz”
entre seringalistas e indígenas para a devida integração do departamento, tentando
cessar também com as guerras “tribais” e lançando ideologias humanitárias para
o convívio com o diferente suas ideias em certas ocasiões acabavam por legitimar
mais poder aos opressores dos povos indígenas. Alertava-se no seu governo os
benefícios que consistia a integração da força de trabalho dessas populações
na agricultura ou dentre outras atividades que trariam benefícios à economia e
consequentemente ao departamento, estabelecendo incentivos a mudança de rota
aos atos que terminariam em correrias para o uso inteligente da potencialidade dos
recursos existentes da região que incluía os povos autóctones.
J Os modelos propostos para “apaziguar” os ânimos entre seringalistas e
as diversas etnias indígenas encontrava-se em ideias positivistas que pregava a
A saída do “primitivo” do estado “pré-humano” para chegar ao estágio da “civilização”
mediante as políticas de “catequese” e “tutela”. Iniciativa que retira os povos
L indígenas de estarem sujeitos a prática das “correrias” e os colocam em uma nova
condição: O cativeiro, nomeado curiosamente de “tutela”, categoria que privilegiaria

novamente a classe dirigente da época. O índio sozinho no seu território, nas suas
L malocas, com suas famílias e com sua dinâmica de cultura, crença e tradição não
poderia ser aceito pela sociedade que forja um ideal de sociabilidade baseado no
A trabalho.
É o que nos diz José Bonifácio de Andrade e Silva [1823], o chamado
patrono da Independência, para quem os índios seriam “em tudo capazes
de civilização”. E ele exemplifica de modo contundente: “Newton, se nascera
entre os Guaranis, não seria mais que um bípede implume; mas um Guarani
criado por Newton talvez ocupasse o seu lugar [...] Não falta aos índios bravos

o lume natural da Razão”. Ou seja, pensado não como coletivo mas como
1179 individualidade, o índio, desde que afastado de sua comunidade de origem e
adequadamente socializado, é tido como inteiramente solúvel a colonização

(OLIVEIRA, 2016, p. 22).

O pioneirismo de Azevedo em relação à criação da lei do trabalho, medida


regularizadora do trabalho indígena e que estabelecia a tutela de índios menores de
18 anos delegado surpreendentemente a donos de seringais, outorgando, o direito
2 pleno registrado na legislação da posse legal de menores trazidos para as suas
propriedades na prática de correria para a devida usurpação de terras interessadas
à dinâmica capitalista/dos próprios centralizado na retirada da hevea brasiliensis,
0
revela-se, prever de antemão o tipo de “pacificação” e “tutela” pretendida aos povos
indígenas pelo departamento na figura do 1° prefeito. A lei culminaria a fundação
1 da “Caixa dos Índios”:
[...] Pelo decreto 36, de 16 de junho de 1906, que instituiu e regulamentou
8 a Caixa Econômica Juruaense, o prefeito, com essas contribuições dos pa-
trões, criou a “Caixa dos Índios”, constituindo um fundo que esperava rever-
ter em ações destinadas “ao auxílioda catequese e ao custeio de um instituto
oficinal dos indígenas” (ibid.: 68-69). O regulamento da Caixa dos Índios
previa ainda que parte dos recursos para a fundação e custeio do instituto
adviria dos depósitos efetuados em nome dos índios que falecessem antes de
atingir a maioridade e, portanto, de sua emancipação (ibid: 156) (IGLESIAS,
2008, p.113).

A tutela estabelecia a saída de crianças da condição de escravizados para


o de “tutelados” que previa também o depósito de uma quantia pelos seringalistas
a cada índio menor de idade sobre sua proteção que seriam, posteriormente,
repassados ao atingir a maior idade. Tal poder, dado a pessoas de “confiança”
ressaltava Thaumaturgo. Em caso de mortes antes de chegar a maior idade o
dinheiro seria utilizado para custear os “povoamentos” destinados a “educação”
para o “trabalho” e “catequização” indígena.
Esta iniciativa que, no primeiro momento, parece interessante, por outro
lado, também, faz levantar alguns questionamentos: Qual a porcentagem de índios
J que atingiram a maioridade e que receberam o dinheiro? E os que não chegaram,
quais as causas e motivos? A prefeitura realizou investigações para apurar? Ou
A apenas valeu como um ganho para a implementação de núcleos para “catequização”
indígena? O “azar” de terem sido pegos pelos brancos não parecia ter diminuído
L pela criação do projeto que regularizava o trabalho indígena no Departamento do
Alto Juruá.

Novas iniciativas são tomadas pelo prefeito para controlar as rixas entre
L
seringueiros e indígenas no departamento, com a contratação dos serviços do
Tenente Coronel Luiz Sombra enviado em 1905 ao Vale do rio Tarauacá, região
A afastada do poder público pela distância territorial1, ao cargo de delegado auxiliar,
tendo como responsabilidade averiguar e proibir as correrias praticadas nesse rio.
Ao visitar algumas malocas descreve a dos Kachinawá como a mais numerosa do
Alto Juruá. Algumas considerações são escritas por Sombra das observações feitas
de suas viagens e de relatos que lhes foram contados em torno da relação que se
• mantinha os Kachinawá com os seringueiros no rio Iboiacú:
1180 Das cerca de 20 “tribos” que pessoalmente diz ter conhecido, ou sobre as
quais obteve informações, durante sua permanência no Vale do Tarauacá,
• Sombra (1913) destaca que a Kaxinawá era a mais “notável”, “por sua índole
laboriosa e pacífica”, e por ser a mais numerosa em todo o Alto Juruá. Após
sofrerem correrias freqüentes nos anos anteriores, e se refugiarem nas “ter-
ras firmes aos fundos dos seringais”, as principais malocas Kaxinawá esta-
vam então concentradas no Riozinho da Liberdade (“onde sofreram grandes
correrias até 1906”), no alto rio Gregório, bem como nos afluentes do alto rio
2 Tarauacá, entre os altos rios Envira e Murú, especialmente no rio Iboiaçú
(IGLESIAS, 2008, p.117).
0
Sombra destaca também que alguns indígenas ao manterem certa

aproximação “amigável” com os seringueiros usufruíam de bens materiais
1 diferentes dos isolados, por exemplo: miçangas, novos materiais para o trabalho
com a agricultura (estes que são apontados como ótimos agricultores, suas malocas
8 inclusive eram feitas no centro de um roçado com característica abundante até a
chegada dos brancos) e armas. A incorporação trazia certas vantagens na luta
contra outros povos indígenas (nas guerras “tribais”), fortemente proibida pelo
Coronel para a “pacificação” do território. Os Kachinawa viam em Luiz Sombra
uma figura heroica e o chamavam de o “Tuchaua dos rios” / “Tenente dos rios”,
o chefe dos civilizados que poderia ajudá-los contra os perigos do contato com
seringueiros e caucheiros. Aqueles que tinham maior contato com os seringueiros,
uma das primeiras coisas que gostariam de receber como mecanismo que pudessem
1  Tarauacá esteve sobre a regência do departamento do Alto Juruá até próximo do ano de 1912,
ano em que se cria o departamento do Alto Tarauacá.
guarda-los das correrias seria um nome típico de brancos que marcasse autoridade
e respeito.
[...] Em sua estadia numa maloca, Sombra atenderia pedidos idênticos, no-
meando várias crianças. Alguns solicitaram que desse a seus filhos o nome
Tenente, posto que o visitante ocupava, um “tuxaua” demandou para si “o
appelido de Thaumaturgo, nome do Prefeito, por ter sabido que era esse o
tucháua catayana [principal] de todos os rios e carinas [“cariu”, “civilizados”
- MPI]”, e um outro reivindicaria a confirmação do “apellido de Doutor, com
J que se arrogara, por ter notado a consideração e o respeito com que os se-
ringueiros assim tratavam um agrimensor que por lá andara demarcando
A terras (IGLESIAS, 2008, p.122).

O batismo em larga escala seria uma das suas propostas para o fim das
L correrias, metodologia que Thaumaturgo também consistia em ser adepto. A ação
missionária para ajudar a pôr fim às mortes centralizada no batismo marcava a
L passagem do paganismo à transformação de mais uma ovelha ao rebanho, “um
filho de Deus” que por esse viés precisaria de muita audácia/coragem para matar
ao passo que na fé tornavam-se irmãos perante a Deus.
A
Diferentemente de Thaumaturgo, Sombra não parecia concordar com a
tutela dado aos seringalistas, acreditava, porém, na implementação de povoados,
um lugar que pudessem viver separadamente dos civilizados. Um lugar reservado
dos vastos que já lhes foram tirados para que significativas mudanças ocorressem
ao quadro de extermínio indígena. Outras figuras além de Sombra serão lembradas

pelos Kachinawá como agentes protetores, o cearense Ângelo Ferreira e seu
1181 funcionário Felizardo Avelino de Cerqueira que estiverem no Iboiaçú no mesmo
• ano que Sombra visitando as malocas indígenas e em outros rios: no médio rio
Tarauacá, Liberdade e Gregório (IGLESIAS, 2008).
Partes das ações desenvolvidas ainda por Thaumaturgo e, em seguida por
Antônio Manuel Bueno de Andrada que ocuparia o cargo de prefeito do departamento
do Alto Juruá entre os anos de 1907 e 1909, estando igualmente no posto de
2 chefe da Comissão de Obras Federais, constituiu na construção de uma estrada
de rodagem para ligar Cruzeiro do Sul ao rio Tarauacá. Empreendimento realizado
0 por Ângelo Ferreira e Felizardo Cerqueira que tinham sobre sua proteção cerca de
150 índios catequizados. A estrada saiu de Cocamêra, residência de Ângelo, no
Tarauacá, e chegou até Cruzeiro do Sul em 1906.
1
Outro empreendimento desenvolvido pela Comissão de Obras Federais

no Território do Acre, no período de 1907-1908, foi a construção da estrada “Leste-
8 Oeste-Brazileira”, que ligava Cruzeiro do Sul a Sena Madureira, contratando para
os serviços de Ângelo Ferreira e Felizardo Cerqueira para “pacificação” dos índios
que estavam ao longo do trecho que cortaria a estrada.
Os projetos e ações para “pacificação” e “civilização” indígena que
permeavam os discursos para ações de políticas públicas no Alto Juruá constituiria,
pois, parte das ações destinados aos benefícios de seringalistas, para a própria
fortificação do Estado brasileiro nestas regiões de fronteira e da prefeitura na
figura do primeiro prefeito que articulou da melhor maneira possível a supremacia
de seu poder a regiões anteriormente de poder descentralizado, fazendo uso de
contratação dos “amansadores de índios” para a construção da estrada de rodagem
que possibilitou ao prefeito centralizar e ampliar a sua atuação departamental aos
rios do Tarauacá chegando a integrar até o departamento do Purus ao Juruá.
A estrada aberta por Ângelo Ferreira com a ajuda de 150 indígenas para o
a prefeitura municipal aproveitaria a abertura de uma estrada já aberta por Ângelo
ao rio Gregório, o novo varadouro sairia de sua propriedade no seringal Cocameira e
ligaria Cruzeiro do Sul ao rio Tarauacá, e posteriormente uma nova abertura ligaria
J o departamento do Juruá ao do Alto Purus já dito anteriormente. A importância
dessa estrada para a os agentes governamentais, incluindo, pois, as atividades
A da Comissão de Obras Federais que só poderiam executar o seu trabalho com o
auxílio de “catequistas” de índios que “pacificando” as áreas do traçado da estrada
L faziam possível a abertura do varadouro conquistada por prefeitos no Juruá.
Felizardo Cerqueira ficou responsável por policiar as áreas da estrada
de rodagem e “catequizar” os povos nativos contrato pela Comissão de Obras
L
Federais trabalho que, segundo ele mesmo, aceitou por compaixão e para ajudar os
seringueiros, seringalistas e a prefeitura na região, no trabalho de “policiamento”
A nos empreendimentos estruturais organizados pelo o órgão. Trabalho que marcou
sua profissão particular como catequista de índios, uma figura marcante para
os Kachinawa que consideravam Felizardo um “pai” que os defendiam contra
as correrias realizadas por seringalistas de diversos rios ao passo que Felizardo
combateria junto com as políticas do departamento a valorização da mão de obra
• indígena para o trabalho tanto do seringal quanto para a abertura de estrada e
1182 policiamento de áreas já abertas. Os indígenas já “amansados” por Felizardo foram
também usados como intérpretes para que pudessem abrir acordos com outros

povos trazendo-os para a “luz” da nação.
Entre os anos 1911 a 1920 na região do Alto Juruá, houve também a
breve atuação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores
Nacionais (SPILTN), por meio de inspetorias, um órgão federal responsável aos
2 cuidados legais dos povos indígenas, ligado ao Ministério da Agricultura, Industria
e Comércio (MAIC). As ações dirigidas pelo órgão indigenista a nível nacional
buscavamcolocar limites ao extermínio a que estavam submetidos, estabelecendo
0 estratégias para “pacificação” nas diversas regiões do território. Os discursos
assemelhavam-se bastante com as propostas da Prefeitura do Alto Juruá com
1 medidas que propunham a criação de povoados mediante a mão de obra indígena,
contribuindo, assim, para o seu processo de “civilização” e humanização, utilizando
8 a sua mão de obra para o benefício do desenvolvimento econômico do país.
Segundo Marcelo Iglesias (2008), especificamente, a nível do território
acreano a atuação do SPILTN é iniciada com a fundação de uma inspetoria com
sede em Sena Madureira, departamento do Alto Purus, gerenciada pelo inspetor
Francisco Escobar de Araújo que realizou expedições ao Acre, juntamente com
dois auxiliares (Máximo Linhares e Dagoberto de Castro e Silva) responsáveis por
irem ao encontro dos locais dos acontecimentos de confrontos entre seringueiros
e indígenas com o dever de reprimir práticas de correrias corriqueiras nas regiões
acreanas. Inspetoria esta que teve início em fevereiro de 1911 e término em
dezembro de 1912, provocada pela diminuição orçamentaria que juntaria os serviços
de proteção aos povos indígenas do território federal do Acre com a inspetoria de
Manaus constituindo uma direção única.
A expedição do SPILTN ao Alto Juruá esteve sobre o comando do próprio
inspetor Francisco Escobar de Araújo, acompanhado de Máximo Linhares,
“ajudante” da Inspetoria do Território do Acre. Araújo ao chegar na sede do
departamento de Cruzeiro do Sul, inicia os primeiros contatos com o prefeito e
com alguns seringalistas, dentre os quais, Carvalho Francisco Freire, proprietário
J de terras no Riozinho da Liberdade dentre outros do Rio Môa, alertando para a
institucionalização da proteção indígena que dali por diante estaria a cargo de sua
A responsabilidade. A ida até a região é ocasionada pela notícia de um atentado a um
funcionário da prefeitura:
L [...] Segundo Araújo, a expedição tornara-se necessária devido a informa-
ções, de que “correrias” estavam na eminência de acontecer no Riozinho da
Liberdade, como desdobramento do ferimento, a golpe de machado, de Gui-
L lherme Duque Estrada, “empregado no serviço de catequese, então mantido
pela Prefeitura”, durante a visita a uma maloca Jaminawa (IGLESIAS, 2008,
p.140).
A
Francisco Araújo sai da região otimista acreditando em uma possível
ajuda da prefeitura e dos seringalistas para a devida articulação do órgão para o
departamento, comprometendo-se estes últimos a não praticar correrias. A missão
de ir até as aldeias, oferecer presentes, conhecer as relações entre os índios e os
• seringueiros, garantir proteção aos povos encontrados e fazer conhecer aos demais
1183 seringalistas a existência do órgão indigenista ficaria a cargo das expedições de
Máximo Linhares ajudante da inspetoria com sede no Alto Purus, este, iria de
• encontro ao Riozinho da Liberdade “local dos conflitos” que trouxera o inspetor ao
departamento do Alto Juruá (IGLESIAS, 2008).
Ao chegar hospeda-se na sede do seringal Liberdade, propriedade do
Coronel Carvalho Francisco, que lhe dando toda a assistência e patrocínio no
deslocamento para chegada à sede do seringal Ceará, que inclusive disponibilizaria
2 Manoel Rodrigues da Cunha (gerente do Ceará) para levá-lo até as malocas habitadas
pelos Kachinawa e Arara, chefiados pelo “Tuxaua” Tescon. Este fato, pode dar
0 indícios de outras situações que aconteceram conforme a ida em diferentes partes
do território acreano da dependência que o órgão fora submetido por falta de verbas
1 que acabaria finalizando os serviços da própria inspetoria, para poder fazer frente
a uma certa regularização dos trabalhos que precisavam ser realizados para a
8 preservação das populações indígenas.
De acordo com Iglesias (2008), ao chegar, são recebidos muito bem.
Cunha, o gerente, é chamado pelos índios da comunidade como “papai Cunha”
à semelhança de outros personagens e novos que serão tratados. Linhares toma
conhecimento que os índios Jaminauas haviam sido aprisionados por Tescon, e
que preparativos para uma nova expedição para vingar a tentativa de morte do
funcionário da prefeitura ao serviço da catequização indígena seriam articuladas,
que, felizmente, é cancelado por Tescon por iniciativa do gerente do seringal Ceará.
Linhares por sua vez, volta a receber promessas de Carvalho de que ninguém faria
correrias contra os indígenas nas áreas daquele rio.
Outras visitas serão feitas por Linhares dessa vez ao rio Môa em que
contaria com a ajuda do seringalista Agostinho Rodrigues de Lima, proprietário
das fazendas Barão do Rio Branco e Canudos na tentativa de solucionar as
problemáticas que há anos sofria com ataques de cerca de 200 índios Poyanawa
em seu seringal. Ambos os seringalistas ofereceriam uma parte do seu terreno para
a fundação de um posto para pacificação dos “índios bravos”. Quais poderiam ser
os interesses por trás destas ajudas? Sobre a conquista dos Poyanawa por Mâncio
J Lima, Mário Cordeiro de Lima, conhecido como Mario Puyanawa traz uma visão
diferente da que possa parecer “bondade”:
A Outra coisa que eu alcancei que o meu pai falava também. Eu me lembro
muito também, por exemplo, um dia de trabalho que eles estavam traba-
lhando que na hora do almoço que caia uma chuva, não tinha esses negócio
L de ir pra debaixo de casa ou tapiri não; eles se alimentavam debaixo de chu-
va mesmo. Muitas vezes precisa derrubar a água da chuva pra poder... Mis-
L turava aquela comida com a água da chuva. Isso aí aconteceu não foi nem
uma vez, nem duas, muitas vezes.[...] Então, tudo isso é coisas que a gente
alcançou que era no tempo dos patrão que eles faziam isso. Então, quando
A era tempo de seringa eles cortavam seringa também. Os mais velhos era na
agricultura e os mais novo na seringa. Cortada no inverno no centro - cha-
mava o centro - e no verão na margem, era assim. Os índios eles passaram
uma vida muito difícil nos tempo dos patrão, porque eles só faziam o que
os patrão mandavam. [...]Ou com chuva ou sem chuva, carregavam muita
produção nas costa, no tempo de borracha, por exemplo, eram homens e
• mulher que iam carregar a borracha do centro pra cá, pra desembarcar na
1184 beira aqui do rio, pra pegar as embarcação, não é? Eram homens e mulher
que carregava a borracha, carregava coco, farinha, tudo levava [...]. Pois é,
• então era uma vida muito dura pra eles e ninguém podia trabalhar pra si
próprio, ninguém. E isso durou até a morte do Coronel Mâncio, morreu em
1950 (LIMA, 2010. Entrevista).

As iniciativas de Linhares ao órgão, ficaria a cargo de nomeações de


seringalistas importantes a nível de poder em suas regiões de atuação ao cargo
2 de delegados honorários responsáveis por vigiar e proteger cada povo indígena
localizado em suas terras. Homens estes considerados honrosos para tal função
0 dentre os quais o próprio Mâncio Lima no Môa e o seringalista Carvalho do Riozinho
da Liberdade.
1 Por fim, a inspetoria de Francisco é substituída pela a junção com a do
Território do Amazonas em que Bento de Lemos é enviado para o Alto Tarauacá
8 em 1916 pelo inspetor Amora para conter os ânimos entre os povos indígenas,
seringueiros e seringalistas, especificamente, resolver os problemas ocasionados
pelos os roubos e mortes ocorridos nesse rio pelos indígenas Papavôs que na
configuração de uma crise da borracha mais a recusa dos seringueiros de continuar
trabalhando transformava-se a situação em uma grande tragédia econômica.
Bento de Lemos diferentemente de Francisco Araújo não sairia nomeando os
seringalistas como “delegados” de índios pela a percepção do poder que já exercia
cada seringalista em sua região e pela percepção das mortes ocorridas de índios em
favor de seus interesses e muito menos daria a tutela indígena a menores para os
seringalistas (IGLESIAS, 2008).
No entanto, pela falta de apoio financeiro do órgão indigenista e da
prefeitura para solucionar os atritos entre os Papavôs e os seringalistas acabaria
por nomear dois ajudantes de Vila Seabra para auxiliar as tarefas um deles o
Chefe da Companhia Regional de Segurança, o Tenente Eugênio Augusto Terral,
que pela sua concepção seria menos pretencioso e como seu cargo estaria em
assegurar a segurança na região poderia ajudá-lo nas tarefas com os povos
indígenas. Entretanto, este também nomearia funcionários que pudessem auxiliá-
J lo com o título de delegado, missão deixada a sua responsabilidade, não estando
entre os mais poderosos seringalistas da região. No entanto, de certa forma marca
a difícil organização buscada pelo SPI ao território tanto nas primeiras expedições
A
por Francisco Araújo quanto depois por Bento Lemos com a inspetoria sediada em
Manaus.
L
Considerações finais

L O processo de ocupação do que hoje se constitui o Estado do Acre,


principalmente na região do vale do Juruá, a partir do final do século XIX, para
a extração de borracha significou a sangria dos territórios indígenas e de sua
A diversidade cultural, dizimando mais da metade da população indígena, marcado
pela prática das correrias.
Este avanço da fronteira econômica extrativista desconsiderou totalmente
os povos originários da região que foram considerados como selvagens e empecilhos
ao desenvolvimento, valorizando os novos ocupantes que chegaram na ganância de

ficarem ricos, atendendo à grande demanda da indústria automobilística.
1185
No início do século XX com a anexação do Acre ao território brasileiro e
• consequente criação dos departamentos do Alto Juruá, Purus e Acre, esta política
de extermínio dos povos indígenas pelas correrias passa a se modificar através
de políticas públicas de catequese e civilização dos indígenas como formas de
pacificação da região e integração deles ao sistema seringalista.
Entretanto, como procuramos analisar neste trabalho, as políticas de
2 “catequese” e “civilização” dos povos indígenas significou o “amansamento” deles
para incorporá-los em todas as formas de trabalho nos seringais, sendo escravizados
0 ou explorados mais ainda que os seringueiros.
Inclusive, o SPI que foi criado para “proteger” os índios desde o início
1 não tinha recursos financeiros e humanos para desenvolver suas ações, acabando
por escolher como delegados dos índios os principais seringalistas do Alto Juruá,
reforçando ainda mais o poder destes “coronéis de barranco” que se tornaram os
8
principais exploradores dos indígenas, a começar pela usurpação de seus territórios,
tratando-os como animais.
Enfim, a incorporação dos povos indígenas ao sistema seringalista
marcou o início do “tempo do cativeiro”, tirando a dignidade humana deles e
descaracterizando os seus modos de vida ancestrais. Esta situação começou a se
modificar a partir da década de 1970, ocasião em que estes povos começaram a se
organizar na luta pela retomada de seus territórios, tornando-se agentes históricos
nas lutas pelos seus direitos que culminaram na Constituição de 1988.
Referências
ALMEIDA, Maria Celestino. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010.
BRANCO, J. M. B. C. O gentil acreano. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, vol. 207, abril-junho, 1950.
CUNHA, M. C. da. Tastevin Parrissier: Fontes sobre índios e seringueiros do Alto Juruá.
Rio de Janeiro: Museu do Índio/Funai, 2009. (Série Monografias). 247p.
IGLESIAS, M. M. P. Os Kaxinawá de Felizardo: correrias, trabalho e civilização no Alto
J Juruá. Rio de Janeiro: UFRJ/MN/PPGAS, 2008. 415 pg.
HOCHSCHILD, A. O fantasma do rei Leopoldo: Uma história de cobiça, terror e heroísmo
A na África Colonial. Tradução: Beth Vieira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
LIMA, M. C. de. Entrevista concedida a Marcos Montysuma e Teresa Almeida Cruz
L como parte do projeto Memórias do movimento socioambiental do Acre. Aldeia Barão,
Mâncio Lima, 2010.
L OLIVEIRA, J. P.O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e
formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/ LACED, 2016.

PARRISSIER, JB. Seis meses no país da borracha, ou excursão apostólica no rio Juruá,
A 1898. In: CUNHA, M. C. da. Tastevin, Parrissier: Fontes sobre índios e seringueiros do
Alto Juruá. Rio de Janeiro: Museu do Índio/Funai, 2009. (Série Monografias), p. 1-60.


1186

2

0

1

8

J

A

L REPRESENTAÇÕES DOS POVOS INDÍGENAS EM ARQUIVOS DE
RIO BRANCO
L
Teresa Almeida Cruz (UFAC)
A Danilo Rodrigues do Nascimento (UFAC)
RESUMO:O presente trabalho vincula-se ao Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação Científica (PIBIC), em andamento, intitulado “Releituras da história: Povos
indígenas nos arquivos de Rio Branco”. Os objetivos deste texto são: descrever os
arquivos do Museu Universitário e do Museu da Borracha, em Rio Branco, Acre,
• mostrando as situações estruturais destes arquivos; analisar as representações dos
indígenas nos jornais, sobretudo, O Rio Branco e A Gazeta, analisando as temáticas
1187
de assuntos que englobam esses povos e compreendendo os discursos criados sobre
• esses grupos étnicos das Amazônias. A metodologia utilizada foi, a princípio, um
levantamento nesses arquivos dos Jornais, pesquisando e analisando as matérias
em que aparecem os povos indígenas. Além disso, o levantamento bibliográfico de
textos de embasamento teórico ao tema, sobretudo, ligados à História e à Antropologia
Histórica, bem como as discussões dos textos e a escrita dessa temática deste
2 assunto, a fim de divulgar novos conhecimentos e romper com o saber tradicional
imposto. Tivemos como resultado deste trabalho uma nova mentalidade acerca das
0 representações dos indígenas dentro dos jornais da cidade de Rio Branco – Acre,
sabendo que foi estabelecida a partir de uma interferência colonialista. Por fim,
1 se compreendeu a importância de ressignificar os discursos impostos a partir de
abordagens e compreensão de autores como a historiadora Maria Regina Celestino
de Almeida e o antropólogo João Pacheco de Oliveira. Sendo assim, é importante
8 perceber que o estudo das representações indígenas é bem mais amplo e diverso
do que se supõe e o mesmo pode se dizer das culturas indígenas que, embora
silenciadas, influenciaram profundamente nossa mentalidade contemporânea.
Palavras-chave: Povos Indígenas. Rio Branco. Representações de indígenas.

Este trabalho visa discutir a situação dos museus em Rio Branco,


destacando a partir de uma pesquisa desenvolvida em um projeto de iniciação
científica intitulado “Releituras da história: Povos indígenas nos arquivos de Rio
Branco”, as representações dos indígenas em dois importantes jornais de circulação
diária na cidade de Rio Branco: O Rio Branco e Gazeta do Acre. Este recorte da
pesquisa no âmbito do PIBIC foi realizado no Museu da Borracha e no Museu
Universitário da Universidade Federal do Acre (Ufac).
A História do Acre foi construída sobre o alicerce da extinção e exclusão
dos povos indígenas na consolidação do território do Acre, que sangrou os territórios
deles. Nesta perspectiva, o historiador, político e jornalista Craveiro Costa escreveu
o livro “A Conquista do Deserto Ocidental”, cujo título já deixa explícito qual é a
perspectiva desse autor em relação aos grupos indígenas, compreendendo que essa
J região precisava de novos habitantes “civilizados” para desbravá-la, desconsiderando
os povos originários que habitavam a região da Amazônia ocidental. Entretanto, os
A discursos construídos perpassam as gerações ganhando novas ressignificações.
O antropólogo João Pacheco de Oliveira analisa as narrativas e construção
L dos discursos sobre os indígenas no prefácio do seu livro “O nascimento do Brasil
e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridade”, afirmando
que:
L
Em geral, as ações indígenas no passado – e também no presente são expli-
cados a partir de representações distorcidas e estigmatizantes, que possibi-
A litam a compreensão dos objetivos e significados que tiveram para os seus
contemporâneos, levando os leitores (atuais e do passado) a minimizar a
importância dessas iniciativas (OLIVEIRA,2016, p.7-8)

Neste sentido, também nos jornais as construções das narrativas em


relação aos indígenas são permeadas por tons pejorativos, preconceituosos e de
• silenciamento de sua importância na História do Acre, como será analisado neste
1188 texto, nos principais jornais diários que circulam na cidade de Rio Branco: O Rio
Branco e Gazeta do Acre, nas décadas de 1970 e 1980.

A pesquisa nestes jornais foi realizada nas hemerotecas do Museu da
Borracha e do Museu Universitário com muitas dificuldades, pois no Museu da
Borracha a iluminação estava péssima e o Museu Universitário estava aberto
apenas no expediente matutino.
2 O Museu da Borracha foi criado em 03 de abril de 1978, pelo então
governador Geraldo Mesquita, mas foi inaugurado em 05 de novembro de 1978. No
0 livro intitulado “Notícias de Jornais” do historiador, jornalista, escritor, teatrólogo e
poeta Naylor Gerorge, ele traz notícias do período histórico das décadas de 1970 a
1980 condensado em várias temáticas, por exemplo, indígenas, personalidades da
1 história acreana, história de bairro e espaço sociais dos anos de 1970 e 1980. Porém,
uma notícia que é pertinente para este trabalho e está presente no livro é cunhada
8 como “Museu da Borracha completa 13 anos”. Essa informação é importante para
o trabalho, porque a notícia traz desde os aspectos da criação à consolidação do
museu como um espaço de memória da população acreana.
Nos nove meses que separam a data de criação da data de inauguração, a
equipe que iniciou os trabalhos do Museu da Borracha realizou uma com-
panha com o objetivo de arrecadar material e peças importantes para o en-
riquecimento daquele espaço cultural. O museu da Borracha foi inaugurado
justamente na data em que se comemorava o centenário de colonização do
Estado do Acre (PIRES, 1996, p. 73).

O Museu da Borracha localiza-se no endereço Avenida Ceará, 1.441,


Rio Branco, Acre 69905-163, Brasil. Durante muito tempo constituiu-se em uma
referência como espaço de memória da história do Acre, voltado principalmente
para os modos de vida nos seringais, bem como lugar de pesquisa hemerográfica,
tendo em seu acervo os jornais mais antigos do Acre, além de coleções diárias
dos principais jornais de circulação mais recentes como O Rio Branco e A Gazeta
do Acre. Hoje, o Museu da Borracha, lamentavelmente, encontra-se em péssimas
condições, pois o espaço não tem uma logística estruturada para o armazenamento
J dos documentos, não existe um espaço de pesquisa adequado, não tem uma ficha
catalográfica dos documentos e esse espaço está aberto apenas para pesquisa. Desse
modo, esse lugar de memória que foi estabelecido para guardar as informações da
A
história e da cultura material do Acre, encontra-se entregue aos cupins, chuvas e
desaparecimento de fontes históricas importantes para a sociedade e pesquisadores
L acreanos.

Esta situação dos museus da cidade de Rio Branco reflete um dos
L problemas da Amazônia relativos à sua memória histórica no que diz respeito à
questão dos acessos às informações do passado, porque boa parte dos arquivos
A referentes à Amazônia estão em situações precárias ou estão espalhados pelo
mundo. Em consequência, não temos a oportunidade de dialogar com as outras
Amazônias. O historiador Márcio Souza traz a perspectiva de reestruturação dos
arquivos públicos:
Mas nem sempre foi possível o acesso a planície. Por isso, chamo a atenção
• para o trabalho de reestruturação dos arquivos públicos brasileiros. Como o
que foi feito em Belém, permitindo que os pesquisadores tivessem acesso a
1189
informações até então inéditas, o que foi muito importante para o estudo da
• formação do Brasil e da integração da Amazônia Brasileira (SOUZA, 2014,
p. 30).

O historiador precisa dos documentos para colher informações sobre


determinados assuntos. Assim, um local com arquivos organizados, limpos e de boa
qualidade são essenciais para o desenvolvimento do seu projeto de pesquisa a fim
2 de alcançar os objetivos traçados e possíveis repostas para as suas problemáticas.
As fontes históricas são fundamentais para o historiador nos tratos com as
0 informações do passado, sua relação com o tempo e o espaço.
No caso do Acre, a situação se torna mais complicada ainda, pois grande
1 parte da documentação histórica mais antiga relacionada ao período que o Acre era
um território federal encontra-se no Arquivo Nacional, na Biblioteca Nacional e no
8 Arquivo Histórico do Itamaraty na cidade do Rio de Janeiro, dificultando o acesso
para os pesquisadores locais. E, o que é mais preocupante ainda é que grande parte
desta documentação ainda não está digitalizada e, como se trata de documentos
com mais de um século já estão sendo destruídos pelo tempo.
Os documentos desde o século XIX tiveram papel fundamental na
construção e consolidação da História, mas essa historiografia era essencialmente
positiva, isto é, ela contava a história política e as ações de figuras heroicas
das elites dominantes. A Escola do Annales no século XX mudou o paradigma
historiográfico, pois trouxe uma ampliação das fontes, interdisciplinaridade,
mudanças na temáticas e uma história problema. Nesse aspecto, a história não é
construída sem fontes. O historiador munido de suas inquietações iniciais volta-se
para a suas fontes (documentos, fotos, relatos orais, relatório de governo...) para
questioná-los, pois é compreendido que, os documentos são constituídos dentro de
uma conjuntura política, econômica e social de uma determinada sociedade.
Os museus, as bibliotecas, os arquivos centrais são espaços de memórias
fundamentais para trazer à tona informações do passado e propõem a articulação
de imagens a lugares e espaços, para assegurar a rememoração. Nesse aspecto,
J o Museu da Borracha traz essa perspectiva de conservar os documentos da
História do Acre. Esse espaço de memória encontra-se em péssimas condições
A para a preservação dos documentos, pois não existe uma ação do governo ou
população para reformular o ambiente para deixá-lo em condições favoráveis para
L o recebimento de pessoas, pesquisas em documentos e a própria preservação dos
documentos. O espaço é um emaranhado de lonas, estantes de madeiras e de ferro,

não é climatizado, não existe os materiais para a conservação dos documentos, ou
L seja, luvas, máscaras, nem iluminação adequada para a pesquisa.
O Museu da Borracha, mantido pelo Governo Estadual, e com sede no
A centro da cidade Rio Branco, está fechado para visitação pública desde 2013.
O motivo foi um curto-circuito1, falta de verba para a manutenção do espaço. A
direção do Departamento do Patrimônio Histórico e Cultural alega que o processo
de licitação é demorado e depende de outros setores do governo estadual. O museu
está fechado para visitações do público, mas em casos especiais é aberto ao público2.
• Um outro espaço de memória consultado foi o Museu Universitário, criado
1190 pela Resolução n° 26, do Conselho Universitário, em 30 de outubro de 2008. O
• Museu Universitário é composto de Acervos Históricos, Artes (Pinacoteca) e História
Natural. É um dos Órgãos Integradores da Universidade Federal do Acre (UFAC),
caracterizado pelo Estatuto desta Instituição Federal de Ensino (IFE) como unidades
articuladas com os Centros e de apoio às ações de ensino, pesquisa e extensão,
decorrentes de projetos voltados para os estudos de interesses intersetoriais.
2 Também de acordo com o Regimento Geral desta IFE, o Museu Universitário é um
Órgão Integrador aberto ao público, a serviço da sociedade, de seu desenvolvimento
e para o desenvolvimento e fortalecimento das ações de pesquisa, extensão e
0 ensino. O acervo do Museu Universitário está estimado em torno de 400 mil peças,

1 1  O processo licitatório para as obras do Museu da Borracha, localizado no centro de Rio Branco,
devem finalizar nesta semana, após o prédio ficar com portas fechadas para o público por cinco
8 meses, devido o perigo de um incêndio. A expectativa dos gestores do Departamento de Patrimônio
Histórico e Cultural do Acre (DPHC) é que o contrato seja assinado até sexta-feira (23) e as obras
sejam finalizadas no próximo mês. “Teve um curto circuito na parte externa do prédio e após análise
constatamos que havia a possibilidade de um incêndio se o prédio não fosse interditado. Nós ficamos
com medo e fechamos, porque uma vez perdido aquele acervo nunca mais nós conseguiríamos
reavê-lo”, comenta Libério de Souza, diretor do DPHC (VERIDIANO, 2013).
2  O diretor comentou ainda que o prédio está fechado para o público, mas que o setor administrativo
continuou trabalhando normalmente e que as pesquisas ao acervo eram feitas, sempre que possível,
em outro espaço. “Quando é uma pesquisa muito urgente a gente abre uma exceção, explicávamos a
situação e o pesquisador fazia o estudo sem utilizar energia na sacada da parte de fora. Os guias de
visitação nós distribuímos para outros espaços do estado, como todos estão com equipes pequenas,
aproveitamos para tirar as férias pendentes dos funcionários” (VERIDIANO, 2013).
um considerável patrimônio que contempla acervos históricos, artes e ciências
naturais, organizados em diferentes coleções que resultam de mais de 40 anos de
trabalho e ações de pesquisa desenvolvidos por inúmeros profissionais, a exemplo
de professores, técnico-administrativos e estudantes.
No momento, os acervos estão em processo de organização, pois esse
ambiente passou anos e anos fechado. Ele dispõe de bolsistas e funcionários que
estão fazendo o processo de higienização, catalogação e restauração dos acervos.
J Porém, a falta de materiais, de pessoas qualificadas para o processo de catalogação,
atendimento ao público e ambiente estruturado é uma realidade.
A A criação e manutenção de museus e outros espaços de memórias e
pesquisas estão relacionados aos interesses dos grupos dominantes que, na maioria
L das vezes não disponibilizam os devidos recursos materiais e humanos para o seu
funcionamento adequando.
L O surgimento de museus históricos, atrelados às conveniências políticas,
foi uma constante na formação cultural do Brasil. Sabemos que a relação
entre o estado e os museus nacionais, ao longo dos anos, suscita uma série
A de indagações que perpassa desde o inicial de se criar uma identidade para
a nação brasileira, até a visão pessoal de cada colaborador de governo para
a criação de museus que buscam celebrar a nação (GONÇALVES; VIDAL,
2013, p.145).

Os museus brasileiros entre os séculos XIX e XX estão atrelados à


• conjuntura política. Desse modo, a criação dos museus busca celebrar a nação;
1191 eles querem consolidar um lugar de identidade nacional e heróis. Assim, a história
dos museus no Brasil tem seu marco inicial com a instalação do Museu Real,
• em 1818. O Museu da Borracha, criado em 1978, é considerado o museu mais
antigo de Rio Branco, de acordo com o diretor do Departamento de Patrimônio
Histórico e Cultural do Acre. Ele foi criado para guardar a memória dos seringueiros
importantes na consolidação da economia da borracha no final do século XIX e
início do XX.
2 O Museu da Borracha foi arquitetado para narrar a história áurea dos
seringueiros dentro da conjuntura do extrativismo da borracha, que culminou com
0 o crescimento econômico social de uma parte da sociedade acreana. O ciclo da
borracha remete o período de (1879 – 1912), tendo posteriormente, na segunda
1 guerra mundial (1939 – 1945) experimentado um boom novamente no período
denominado por Pedro Martinello de “Batalha da Borracha”.
8 A organização museológica está precária, porque não têm pessoas
qualificadas dentro do quadro administrativo para sanar a falta de catalogação,
armazenamento e conservação dos documentos. Eles são armazenados de formas
errônea, pois estão jogados ao acaso do tempo. Desse modo, não existem medidas
cabíveis para reformar o museu ou deslocar esses documentos para uma área mais
propícia de conservação destes acervos importantes para a construção de uma
outras Histórias da região.
A história acontece ao longo do tempo e espaço. Desde modo, ela modifica-
se dentro das sociedades nos aspectos social, cultural e econômico. Não há tanto
tempo que a História passou a ser ensinada. Desde do século XIX, notou-se uma
história voltada para os aspectos político e a consolidação de figuras de heróis ou para
a consolidação de uma identidade nacional, isto é, trazer para o cenário conjuntural
de determinada sociedade laços comuns ou fusão de discursos homogêneos de
traços. Nesta perspectiva, índios e negros foram excluídos da história, destacando-
se o modelo hegemônico: branco, heterossexual, cristão, ocidental.
Neste trabalho, buscamos evidenciar povos indígenas nos dois principais
jornais que circulam na cidade de Rio Branco. Os documentos consultados nos
J acervos do Museu da Borracha e do Museu Universitário, especificamente, foram
jornais no período de 1970 – 1980, analisando a temática indígena, discutindo
A como esses grupos étnicos aparecem nas matérias, nas colunas jornalísticas que
esses sujeitos históricos participavam e as questões estereotipadas apresentadas
L pelos autores das matérias.
O jornal A Gazeta do Acre, teve sua primeira edição em 1985, tendo
como expoentes os jornalistas Sílvio Martinello e Elson Martins, que tiveram muita
L
importância na consolidação deste jornal, por terem sido os criadores do jornal O
Varadouro: a resistência das selvas que circulou no interstício de 1977 a 1981, como
A um espaço de denúncias dos conflitos entre grandes latifundiários, fazendeiros,
seringueiros e índios no Acre.
A primeira edição do jornal A GAZETA do Acre foi em 15 de outubro de 1985.
A número ‘zero’. Mostrava bem a proposta do jornal. “O segredo do sucesso
do Varadouro, e que levamos para A GAZETA do Acre, foi investir na grande
• reportagem. Apostar no jornalismo investigativo, que até então não existia
no Estado. As pessoas aqui não sabiam o que era seringueiro, o que era
1192 índio direito. Não sabiam o drama que eles viviam. E nós é que começamos
• a levantar para toda a sociedade estes problemas sociais (MARTINELLO,
Tiago, 2015).

Mesmo com esta proposta, uma reportagem do Jornal Gazeta do Acre de


Rio Branco – Acre, Terça-feira, 14 de julho de 1987, na página 6, traz a seguinte
matéria intitulada “índios matam um em briga dentro da zona em Feijó”, destacando
2 a questão da violência provocada pelos índios Katukina, sem investigar as causas:
Em Feijó índios Katuquinas provocaram um verdadeiro massacre no mere-
0 trício do bairro do Aristides. Domingo de madrugada, um grupo de índios
espancou até grávidas. O saldo da farra foi um morto e um ferido que se
encontra em estado gravíssimo em Rio Branco. As causas ainda são desco-
1 nhecidas.

A recorrência de matérias sobre os índios nos jornais de 1987 da cidade
8 de Rio Branco apresenta os índios como selvagens, violentos e outros adjetivos
descaracterizando os grupos étnicos. Na presente matéria do jornal, notamos uma
representação que tem o tom de consolidar uma imagem negativa dos índios.
J

A

L

L

A Figura 1 - Fonte: Jornal Gazeta do Acre, terça-feira, 14 de julho de 1987, p. 6.

A imagem traz o sentido da construção da imagem dos indígenas como
sendo violentos. Antes de mais nada torna-se necessário questionar essas imagens,
pois esses registros são realizados dentro de uma determinada conjuntura social,
• a linguagem tem o poder de internalizar em nós preceitos sobre determinada
1193 temática. Segundo a pesquisadora da Diretoria de Pesquisas Sociais da Fundação
Joaquim Nabuco, Patrícia Bandeira de Melo, no artigo “O índio na mídia: discurso

e representação social”, “a imprensa ocupa um espaço de destaque na formação da
esfera pública” (MELO, p.2).
Os meios midiáticos tornam-se elementos articuladores na formação e
consolidação das imagens, linguagens e dos conceitos. Nesse sentido, notamos
nessa matéria que consolida uma imagem do indígena não muito diferenciado
2
dos períodos anteriores, como no “Brasil” colonial, imperial e republicano; onde
os povos indígenas eram efetivamente vistos como selvagens, violentos, exóticos.
0 Nesse sentido, o historiador e filósofo José Carlos Reis no livro “As Identidades do
Brasil” (Volume I), traz uma radiografia da historiografia brasileira desde Varnhagen
1 a Fernando Henrique Cardoso, trazendo os aspectos da escrita da História. É assim
que a historiografia do positivista Varnhagen descreveu os índios:
8 Aqueles homens exóticos, habitantes daquela natureza exuberante e sem
riqueza fáceis, Varnhagen os descreverá com interesse, mas sem afeição.
Eram, segundo ele, uma gente nômade, que vivia em cabildas, morava em
aldeias transitórias, pouco numerosas em relação à extensão do território.
Violentos, mantinham guerras de extermínio entre sí; bárbaros, não nu-
triam os altos sentimentos de patriotismo. Sem amor à pátria, essas gentes
vagabundas, em guerra constante, constituíam, no entanto, uma só raça,
falavam dialetos de uma só língua – a geral ou tupi. Eram uma unidade de
raça e língua que poderia tê-los levado à constituição de uma única nação.
Mas mantiveram-se fragmentadas entre si. (REIS,2000, p.35)

Desse modo, a citação de José Carlos Reis é pertinente, porque mostra


como ao longo da historiografia brasileira os indígenas foram sendo excluídos da
cena e interpretados de formas equivocadas. Nesse aspecto, a historiadora Maria
Regina Celestino de Almeida no livro “Os índios na História do Brasil” apresenta os
vários grupos étnicos do Brasil que tiveram participação essencial nos processos
de construção e desenvolvimento das sociedades coloniais e pós-coloniais aqui
estabelecidos, mas que ao longo dos processos históricos foram sendo vistos de
formas estereotipadas:
J As interpretações sobre as relações de contato eram pensadas com base
em dualismos simplistas que estabeleciam rígidas oposições entre índio
aculturado e índio puro; aculturação e resistência cultural, (entendida esta
A última como negação dos novos valores culturais impostos); estrutura cul-
tural (fixa, imutável e orientadora do comportamento dos povos primitivos)
L e processos históricos (responsáveis por introduzir mudanças e conduzir à
extinção desses mesmos povos). Esses dualismos foram, em grande parte,
responsáveis por abordagens redutivas que conduziram a visões equivoca-
L das sobre a atuação dos índios nos processos históricos (ALMEIDA, 2010,
p. 16).
A Os jornais trazem essa perspectiva, pois as páginas ocupadas colocam a
atuação dos indígenas dentro de uma perspectiva historiográfica reducionista, isto
é, esses sujeitos históricos são elevados ao patamar da violência sem problematizar
as razões que os levaram a tais atos. Cabe lembrar que pesquisas históricas,
sociológicas, antropológicas em diferentes tempos e espaços revelam a gigantesca
• capacidade dos indígenas de agirem motivados por interesses próprios diante das
1194 mais violentas situações. Entretanto, as formas de olhar para o passado indígena
• durante muitos anos remetiam a uma historiografia consolidada nos modelos de
interpretações eurocêntrico e colonialista, encobrindo a agência indígena e sua
diversidade cultural.
Por outro lado, o próprio jornal Gazeta do Acre, se aproximando mais
de sua proposta de discutir as questões sociais, no mesmo ano de 1987, além de
2 ter algumas matérias que abordam a violência cometida pelos indígenas, também
irá tratar de outros assuntos que destacam a agência indígena com os seguintes

títulos: “Funai demarcou 50 áreas em 86”, “A cultura da floresta”, “Ministro recebe
0 seringueiro e índios do Acre”, “Ministro atende exigências dos seringueiros e índios”,
“Índios aprendem coisas de brancos para defender suas terras e cultura”.
1 Outro jornal onde realizamos a pesquisa foi O Rio Branco que se desenvolve
a partir dos anos de 1970 e ainda hoje circula na cidade de Rio Branco – Acre.
8 O Rio Branco – o referido diário chegou à capital acreana no período do sur-
gimento de uma sociedade mundial pós-moderna, na qual introduz profun-
das transformações de ordem política, econômica e social. O processo ace-
lerado de progresso tecnológico trabalha a favor dessa nova ordem mundial:
a globalização das economias, que seria mais efetiva nos primeiros anos da
década de 1990. A partir desse fato, as mudanças têm sido radicais, em
diversas áreas, como Medicina, Engenharia, Editoração e Publicidade, Edu-
cação, Comunicação, Conhecimento e Entretenimento, refletindo também
mudanças de ordem sociocultural. Os principais fatores dessas mudanças,
notadamente, são: a rapidez de pesquisa e o volume crescente de dados,
onde a internet tornou uma ferramenta importantíssima para a democrati-
zação da informação (NETO, 2012, p.10).

Este jornal, durante a década de 1970 retrata poucas páginas relacionadas


à temática indígena, mas quando aparecem notícias, elas são efetivamente
estereotipadas ou exotizadas, como a matéria de quarta-feira, 12 de março de 1972:

J

A

L

L

A


1195

2

0

1
Figura 2 - Fonte: O Rio Branco - quarta-feira, 12 de março de 1972, p. 8.

8 Esta matéria sobre a proibição de voos na taba dos “índios gigantes”
nas margens do rio Peixoto no norte do Mato Grosso, revela outra representação
ainda recorrente sobre os indígenas que está ligada ao exótico, ao inusitado. Por
outro lado, se dá em um contexto de “pacificação” dos indígenas para “limpar”
o território para o desenvolvimento das políticas desenvolvimentistas do governo
militar. Portanto, ainda são considerados como arredios, selvagens, como um perigo
à sociedade envolvente e empecilho para o progresso. Então, o governo tem o papel
oficial para tutelar esses indígenas. As notícias veiculadas nos meios midiáticos
trazem esse grupo sempre na perspectiva da marginalidade, isto é, reforçando que
os indígenas não têm o sentido de organização, resistência e cultura.
O senso comum que prevalece é ainda de que os índios precisam da tutela
do Governo, que surge no papel oficial do poder constituído, no papel da
Igreja, representando o discurso do poder. Há notícias veiculadas sobre o
índio onde não há sequer espaço para a verbalização do discurso indígena.
O índio não é sujeito de seu discurso e nem tem poder para construir sua
própria história. Quem tem poder para fazer declarações e anúncios é a
Funai, o Governo e a Igreja, reforçando o discurso oficial e retirando dos
índios o direito de se agrupar e reagrupar, enfim, de organizar seu discurso
J e ocupar espaço na imprensa de modo a ser sujeito ativo e verbalizar seu
discurso (MELO, s/d).

A Nos anos de 1980, os indígenas ganharam as páginas dos jornais com mais
frequência. No jornal O Rio Branco as temáticas sofrem mudanças significativas,
L porque os assuntos são diversos: demarcações de terras, assuntos relacionados
a Funai, às questões culturais dos indígenas. Neste sentido, no ano de 1987 são
destacadas as seguintes matérias: “Comunidade Indígena vai ter um programa
L
de rádio”, “A arte indígena assume seu dinamismo e antropofagia recusando a
estagnação”, “Acre reivindica demarcação de áreas indígenas”, “Índios seringueiros
A recebem financiamento”, “Funai inicia contenção para proteger índios autônomos”.
Os títulos destas matérias revelam o dinamismo das lutas dos povos indígenas que
exigem a demarcação de seus territórios, fortalecem suas culturas e se articulam
com os seringueiros no fortalecimento da aliança dos povos da floresta para que
seus direitos sejam respeitados.
• Os textos jornalísticos analisados nos permitem apreender que a
1196 representação social da mídia em Rio Branco – Acre, Brasil, se dá através de um
• discurso no primeiro momento excludente e que ressalta a violência dos indígenas,
mas depois, na década de 1980, sobretudo, a partir das lutas dos povos indígenas
pela retomada dos seus territórios como garantia de sua sobrevivência física
e cultural, há uma mudança em relação à produção das matérias dos jornais,
destacando as lutas indígenas, as culturas, as demarcações de terras e a educação
indígena, ou seja, os povos indígenas passam a fazer parte da cena histórica acreana
2
como importantes personagens na luta pelos seus direitos ancestrais. Desta forma,
como aborda Maria Celestino de Almeida (2010) saíram dos bastidores e passaram
0 para o palco da história, contrariando todas as estimativas de que desapareceriam
da história.
1 Referências
ALMEIDA, M. R. C. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010.
8 FIGUEIREDO, B. G.; VIDAL, D. V. (Orgs.). Museus: dos gabinetes de curiosidades à mu-
seologia moderna. 2ª.ed. Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2013.

GRUPIONÍ, L. D. B. (Org.). Índios no Brasil. 4ª. ed. São Paulo: Global; Brasília: MEC, 2000.
MARTINELLO, Tiago. Trinta anos contando a história do Acre. A Gazeta. Rio Branco,
2015. Disponível em: https://agazetadoacre.com/trinta-anos-contando-a-historia-do-a-
cre/ Acessado em 31/05/2018.
MELO, P. B (s/d). O índio na mídia: discurso e representação social. Disponível em:
http://www.fundaj.gov.br/geral/observanordeste/indio.pdf Acessado em: 31/05/2018.
NETO, Manoel Façanha Tavares. Jornalismo Esportivo no Acre na era do futebol Pro-
fissional. 2012.
NÓBREGA, Sheva Maia. O que é representação social. Recife: UFPE, 1990. Mimeo.
OLIVEIRA, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”,
regime tutelar e formação de alteridade. Rio de Janeiro: Contra capa, 2016. 384p.
PIRES, Naylor George. Notícias de Jornais/ Naylor George Pires; ilustração de Dalmir
Ferreira e Jorge Rivasplata. Rio Branco: Editora Preview, 1996.
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 9. Ed. Ampl. Rio de
J Janeiro: FGV, 2007.
RIBEIRO, Veriano. Museu da Borracha passará por reforma. Disponível em: http://
A g1.globo.com/ac/acre/noticia/2013/08/museu-da-borracha-passara-por-reforma-apos-
-5-meses-fechado.html Acessado em: 23/05/2018.
L SOUZA, Márcio. História da Amazônia. Manaus: Valer, 2009.

L

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1197

2

0

1

8

J

A

L EL ESTEREOTIPO DEL MATRIARCADO EN LAS OBRAS
LITERARIAS RIACHO DOCE, DE JOSÉ LINS DO REGO Y LOS
L FUNERALES DE LA MAMÁ GRANDE, DE GABRIEL GARCÍA
MÁRQUEZ
A
Terezinha de Jesus Rodrigues Barbagelata (UNAMA)
Alba Lúcia da Costa de López (SEDUC)
RESUMO: Para iniciar este estudio en torno a las principales ideologías culturales
de género matriarcal abordaremos las obras literarias de José Lins do Rego: Riacho
• Doce; y de Gabriel García Márquez: Los Funerales de la Mamá Grande. Los análisis
1198 literarios basados en ideas de Saussure, nos dice que todos los elementos que
compone una obra literaria son entendidos por la literalidad, es decir todos los

elementos son importantes. Un texto de los años 1962 como Los funerales de
la Mamá Grande y Riacho Doce de 1939, no se entiende igual que otro actual.
Otros aspectos importantes son las manifestaciones sociales y culturales de un
tiempo, son aspectos que ayudan a entender los textos literarios. Nos preocupa el
tratamiento del matriarcado presente en el discurso literario. Dada la amplitud de
2 la temática, centralizamos nuestro estudio al plantear cuáles son los estereotipos
que aparecen con la figura del matriarcado en las obras literarias analizadas.
0 Palabras Clave: Matriarcado. Estereotipos. Ideología Cultural.
El tema del matriarcado ha despertado la investigación entre varios
1 autores, de los principales autores está Juan Sebastián Bachofen, según él: el
matriarcado, es un forma de organización como un estadio importante dentro de
8 la historia de la vida en comunidades, que es capaz de desarrollar una cultura
centrada en la veneración de lo femenino, entendiendo «lo Femenino» como
una cosmovisión en donde la capacidad de fecundación y crianza de los seres
humanos en su larga infancia, configuran una manera de ver y organizar a las
personas en torno a la necesidad esencial de los seres vivos: la perpetuación. La
palabra matriarcado según la Real Academia Española, es: Organización social,
tradicionalmente atribuida a algunos pueblos primitivos, en que el mando residía
en las mujeres. Predominio o fuerte ascendiente femenino en una sociedad o grupo.
Etimológicamente, matriarcado deriva de la palabra latina mater (madre) y de la
terminología griega archein (gobernar). A partir de estos principios trataremos de
investigar por medio de análisis del discurso las distintas maneras en que cada
autor aborda el tema del matriarcado. Es importante comprender la relación de
poder (autoridad de la mujer en un grupo social) que se establecen entre el lenguaje
femenino, en el discurso del matriarcado por medio de las obras literarias Riacho
Doce de José Lins do Rego y los Funerales de la Mamá Grande de Gabriel García
Márquez.
En cuanto al estudio de la representación de las mujeres a través de
J la literatura, se puede ir a través de los muchos caminos que conducen a la
caracterización y la comprensión de cómo se ven las mujeres en la historia de la
A humanidad, que tiene como foco las creaciones artísticas de diferentes autores en
diferentes momentos. Cada época, cada pueblo y cada movimiento de la historia
L escrita se percibe como esta figura fue creada y (re) configurar en las páginas de
la literatura. Teniendo en cuenta la relación entre la literatura y el contexto de la

producción artística, la representación de las mujeres en la ficción nace de la unión
L entre estas dos esferas. Es por eso que creemos que el término representación
dentro de la literatura requiere un enfoque para investigar las relaciones de poder.
A Los escritores Gabriel García Márquez y José Lins do Rego desarrollan
un estudio que se centra en las implicaciones para hacer frente a la representación
de las mujeres. Aunque los escritores proceden de contextos históricos, culturales
y literarios distintos, y han escrito en diferentes idiomas, Gabriel García Márquez
y José Lins do Rego pueden tener sus obras aproximadas. El momento podemos
• destacar cómo los dos escritores representan a las mujeres y la necesidad que
1199 tuvieron que llamar la atención sobre una región particular de sus naciones. Estas
dos características de ellos, la caracterización de América del Sur y el Nordeste

brasileño y la representación del femenino, son, por sí mismos, un motivo suficiente
para crear un diálogo entre los dos escritores.
Así, si puede ver la historia presentarse como un corte ilustrativo de la
literatura Hispanoamericana contemporánea, que trata de construir una nueva
2 identidad cultural, teniendo como parámetro la destrucción de los modelos
preconcebidos, mostrando la tradición en un ángulo antagónico al diseño establecido.
Obviamente, la construcción de esta identidad macondiana no consolidado sin la
0 noción de alteridad. Mamá Grande existe solo en contacto con el mundo que nos
rodea, y con la relación con el otro. Impregna en el texto la concepción mitológica
1 de la protagonista que, por encima de los pobres mortales, que maneja todo y a
todos, sin esfuerzo. En el proceso de reafirmación de su perfil, a través del lenguaje
8 y la comprensión de los demás, legitimado cada vez más la identidad de la Mamá
Grande, que es lo que es, precisamente, porque, en sus relaciones sociales, se basa
este punto de vista de la grandeza absoluta.
Así, como en la obra Riacho Doce, el enfoque es un sistema patriarcal, y
que conduce los personajes femeninos un lugar de inferioridad, que es legítimo y
perpetúa el poder y la agresión masculina. La mujer gana espacio y poder cuando
el hombre sale de escena, como es el caso de Elba, la abuela de Edna. Por lo
tanto la mujer es siempre subyugada al hombre y para tal desprovista de acciones,
pensamientos y voluntad propia.
Hicimos una comparación de la figura del matriarcado, como un recurso
de análisis, se logró acercar a las matriarcas, en un intento de entender la
representación de la matriarca y su influencia en la sociedad en que vive, o sea,
lo que se ha verificado en relación al lenguaje femenino en una perspectiva del
análisis del discurso en las dos obras.
En la lectura de la historia de los funerales Mamá Grande, con Riacho
Doce, encontramos interesantes puntos de convergencia, junto con las diferencias
naturales - por el estilo de los autores y de las técnicas narrativas adoptados -
J aunque no es un espejo de una narración sobre otra. Teniendo en cuenta las
aproximaciones posibles se realizó una lectura, desde el ángulo de las marcas de
A identidad y de género que recorre las narrativas de ambos universos.
El funeral de Mamá Grande es un cuento que cumple una función
L desacralizadora, desmitificación de los engranajes de una sociedad y de un poder
institucional. La subversión de la realidad se apoya en la figura caricaturizada del
personaje central, una mujer que reina sobre todo y todos llegando al borde de lo
L
inimaginable, del absurdo y del divertido, rompiendo con toda norma o limitación.

Es una estrategia de García Márquez burlarse de las convenciones
A sociales, con su propio status quo, que muestran que, en el fantástico mundo de
Macondo, nada es imposible, ni siquiera la existencia de una Mamá Grande, como
legítima representante del género femenino de poder y dominación.
Se puede decir que es una ilusión creer que existe una identidad
unificada, completa y consistente, porque nos enfrentamos a un contexto social

en constante transformaciones en el que nos enfrentamos constantemente por
1200 una multiplicidad de identidades posibles, con el que nos pudimos identificar en
• diferentes momentos. Estos conceptos guiarán nuestro análisis sobre la identidad
de las figuras matriarcales en las obras de José Lins do Rego y Gabriel García
Márquez.
Dadas las funciones impuestas a las mujeres en la ficción, se observa que
ellas se encuentran, o sea, en una posición inferior a la ocupada por el hombre.
2 Esto refuerza la afirmación de que las construcciones literarias reflejan el sistema
cultural del patriarcado. Para enfocar mejor la incorporación de la mujer en la
0 literatura, los estudios de inclinación feministas deben por lo tanto centrarse,
entre otras cosas, “el carácter construido de las relaciones de género, y muestran

también que las referencias sexuales muy a menudo son aparentemente neutrales,
1 realidad engendrada en línea con la ideología dominante “(ZOLIN, 2009, p. 227).

Gabriel García Márquez y José Lins do Rego desarrollan implicaciones y
8 crean representación de las mujeres. Aunque ellos proceden de contextos históricos,
culturales y literarios distintos, y escriben en diferentes idiomas, pueden tener sus
obras aproximadas. El momento podemos destacar cómo los dos representan a las
mujeres y la necesidad que tuvieron de llamar la atención sobre una región particular
de sus naciones. Estas dos características de los escritores, la caracterización de
América del Sur y el Nordeste brasileño y la representación del femenino son, por
sí mismos, un motivo suficiente para crear un diálogo entre los dos escritores.
En el estudio de García Márquez, podemos identificar una concepción
de la feminidad que se origina en las raíces culturales de Occidente y reitera la
tradición, sea en las memorias, para restaurar las figuras femeninas de su vida,
a la que acredita la esencia de su ser y de su forma de pensar, ya sea en obras
de ficción, mediante el establecimiento de sus personajes. La concepción de lo
femenino que surge es reveladora, y nos permite dar a conocer el género como un
producto de ficción engendrada por el lenguaje.
Al analizar los subjetivemas de las obras relacionadas, se encuentra
varias expresiones que remite la presencia del matriarcado. Ésta es, incrédulos
J del mundo entero, la verídica historia de la Mamá Grande, soberana absoluta
del reino de Macondo, que vivió en función de dominio durante 92 años y murió
A en olor de santidad un martes del setiembre pasado, y a cuyos funerales vino el
Sumo Pontífice...(GARCÍA MÁRQUEZ, 1978, p. 193). El superlativo sirve aquí para
L parodiar el lenguaje religioso y arcaico, produciendo otro lenguaje que evoca el
grito del animador de feria y está asociado directamente con los pregones de la

plaza pública. Porque en la cultura colombiana numerosas formas de pregones,
L entre los cuales se destacan los gritos del presentador de circo, del artista callejero,
del predicador de plaza.
A Nadie conocía el origen, ni los límites, ni el valor real del patrimonio, pero
todo el mundo se había acostumbrado a creer que la Mamá Grande era dueña de
las aguas corrientes y estancadas, llovidas y por llover, y de los caminos vecinales,
los postes del telégrafo, los años bisiestos y el calor... (GARCÍA MÁRQUEZ, 1978,
p. 195). El verbo Pretérito imperfecto que está en negrita y manifiesta la valoración
• que hace el enunciador a la figura del matriarcado.
1201 […] La rigidez matriarcal de la Mamá Grande había cercado su fortuna y su
apellido con una alambrada sacramental, dentro de la cual los tíos se casa-
• ban con las hijas de las sobrinas, y los primos con las tías, y los hermanos
con las cuñadas, hasta formar una intrincada maraña de consanguinidad
que convirtió la procreación en un círculo vicioso [...] El sustantivo en ne-
grito refuerza la carga valorativa del enunciado. (GARCÍA MÁRQUEZ, 1978,
p. 195).
2 […] Los ancianos recordaban como una alucinación de la juventud los dos-
cientos metros de esteras que se tendieron desde la casa solariega hasta el
0 altar mayor, la tarde en que María del Rosario Castañeda y Montero asistió
a los funerales de su padre, y regresó por la calle esterada investida de su
nueva e irradiante dignidad, a los 22 años, convertida en la Mamá Gran-
1 de […] (GARCÍA MÁRQUEZ, 1978, p. 197).
La representación del femenino en la obra de José Lins do Rego es el
8 resultado de un contexto literario conocido como Romance de los 30, el trabajo
de él (1901-1957) fue ampliamente aceptado en su tiempo y, con los años, sigue

ganando más protagonismo. El escritor nació en el Engeño Corredor, ubicado en la
región geográfica del noreste que inmortalizó en sus escritos.
Centrándose principalmente en una región específica de Brasil, el
Noreste, con sus problemas, los tipos humanos, dialectos y costumbres, José
Lins funcionalizó el entorno regional noreste a la valoración de sus características
únicas. Algunas de sus novelas, injerida en el ciclo de la caña de azúcar – Menino
de Engenho (1932), Doidinho (1933), Banguê (1934), Usina (1936) y Fogo Morto
(1943) (véase Azevedo, 1991. p 221), llama a la llanura de inundación de Paraíba,
con sus ingenios de azúcar. En esta misma zona, pero distanciándose un poco, de
los ingenios surge, la novela Pureza (1937). Otras, novelas Pedra Bonita (1938) y
Cangaceiros, (1953) dan destaque a la región noreste conocida como el “sertão”.
También están aquellos que se centran en la costa noreste del país, como es el caso
de Moleque Ricardo (1935) y Riacho Doce (1939). Esta última novela, la diferencia
de todas las demás, porque tiene el escenario en una parte de su narrativa en otro
J país, Suecia.
En cuanto a la agregación de la obra del escritor y sin descalificar esta
A o aquella novela o grupo de ellas en los ciclos, se puede afirmar que José Lins se
centró en personajes que se encuentran en un proceso de decadencia. A menudo,
L este deterioro se extiende al entorno en el que el personaje va el relato, pero, y este es
el aspecto principal de sus obras, la mayor disminución se relaciona directamente

con los propios personajes y de sus expectativas existencial es, cuando se centra en
L la obra del escritor, se ha escrito mucho sobre el proceso de representar un mundo
que se deshace, donde antiguos ingenios son sustituidos por usinas, pero, como ya
A habíamos dicho, el objetivo principal no está aquí, sino en las relaciones entre los
personajes y sus aspiraciones. Independientemente de las novelas han pasado en la
llanura de inundación de Paraíba, en Recife, en Suecia, en Río de Janeiro, en Cabo
Frio, en una ciudad perdida en medio de Paraíba, o en las “caatingas” del noreste,
todos los protagonistas de José Lins do Rego enfrentan a sus tragedias humanas.
• Los enredos se encuentran cerca de estos personajes hacia un fin incierto o infeliz.
1202 Esta característica de la obra del escritor tiene un papel importante en Riacho
Doce, como se explica en el análisis de esta novela.

Otro hecho que marca la obra del escritor José Lins do Rego es la
explotación de un sistema social movido por el poder del patriarcado. Sus novelas
se centran en una sociedad cuyo mandato es el hombre, y sobre todo del señor de
ingenio con poderes dentro y fuera del hogar. Sus novelas más conocidas trazan
el retrato de una familia que destaca el panorama de los ingenios de la llanura de
2 Paraíba. Lo que vemos en estas novelas es el centro de un grupo de personajes
masculinos de diferentes edades, pero siempre del mismo grupo sanguíneo. El
0 Menino do Engenho hasta Fogo Morto, vemos el carácter familiar de Carlinhos del
primer libro materializado en diferentes hombres - Carlos de Melo, José Paulino,
1 Capitán Vieira, capitán Joca do Matravalha, Juca (Dr. José de Melo), entre otros
- que constituye el centro de todo lo que se relaciona con las narrativas de estas
8 novelas.
El enfoque en el sistema patriarcal hace que la obra del escritor conceda
a los personajes femeninos un lugar de inferioridad social que legitima y perpetúa
el poder masculino y la agresión. En las novelas, del escritor, vemos que la mujer,
en una sociedad donde prevalecen los valores masculinos, sea económica, social y
moralmente es sometida al poder del patriarcado.
La configuración de lo femenino, con mujeres capaces de ver y evaluar
las acciones de los hombres, no constituye la norma en la obra del escritor. Una
mujer con discernimiento es constante sólo en novelas cuyo narrador utiliza la
tercera persona. Cuando el narrador es un personaje masculino, la mujer es
completamente silenciada. En las novelas en primera persona, José Lins do Rego
lleva en la ardedura de la narrativa todo un sistema de valores patriarcales que
refuerzan la supremacía del hombre, mostrando mujeres como subyugadas,
carentes de acciones, pensamientos y deseos. No son más que proyecciones del
narrador masculino que “idealiza a la mujer dentro de un determinado modelo de
feminidad, se petrifica, como un objeto de deseo del narrador” (BRANDÃO, 2006,
p. 31).
J El papel que correspondía a estas mujeres era de procrear, responsables
de asegurar la descendencia del señor de ingenio. Pero no eran los responsables
A de dar a sus maridos el placer del sexo. Los hombres buscan fuera de la casa el
placer que el sexo les podía ofrecer. Era entre las mujeres de color, que vivían en los
L ingenios, o de prostitutas del pueblos o ciudades, que el señor de ingenio buscaba
el placer sexual.

Pero el relato de José Lins do Rego tiene, de hecho, realmente, como
L
la protagonista a una mujer es Riacho Doce. La novela de 1939, al igual que con
otras obras del escritor, se divide en partes: “Esther”, “Riacho Doce” y “No”. Este
A trabajo se centra en el personaje principal Edna o Eduarda, una mujer sueca que
viene con su marido para intentar una nueva vida en Brasil. La primera parte del
libro, considerada por la crítica como la menos desarrollada de todo el romance (cf.
LOUSADA, 1991), se centra en la infancia, la adolescencia y el inicio del matrimonio
de Edna / Eduarda en Suecia. Aquí es explotada principalmente para transferir
• relación que el protagonista sufre por su maestra Esther. Esta parte del libro es
1203 “establecer su heroína en el centro que era costumbre, los conflictos del alma y del
cuerpo, sus deseos reprimidos por medio hostil” (LOUSADA, 1991, p. 362).

La lectura que se pretende hacer entre las dos narrativas, el objetivo es
crear una posibilidad interpretativa para explorar no sólo lo que las dos historias
tienen en común, sino también las diferencias entre ellas, lo que permite identificar
cómo los Funerales Mama Grande y el Riacho Doce se aproximan y se alejan, en el
2 tratamiento dado a un tema común.
En esta propuesta de análisis, se pretende identificar los recursos
literarios utilizados por los dos escritores en la composición de sus narrativas, para
0
que se exploten las peculiaridades de cada obra.

Elba, Dueña absoluta de todo, inspirando miedo en los nietos y nuera,
1 además de intimidar a su hijo: “[a] la vieja abuela, era la que mandaba en toda la
familia. Era ella la que hacía que su padre sea tímido como un niño y su madre
8 inspiraba miedo [...] maniobró su tribu como la dueña de todo, como dueña
absoluta” (REGUERA e BUSATO, 2003, p. 38). La expresión que está en negrito es
una carga valorativa por tratarse de adjetivo que hace referencia al matriarcado,
así como, el verbo en pretérito imperfecto en negrito.
En el núcleo familiar de Nó, la vieja Aninha era quien gobernaba. De
edad, delgada y debilitado físicamente, Aninha tiene el poder de controlar no sólo a
los miembros de su familia, sino a toda una comunidad: “[la vieja Aninha] siempre
fuera de la fuerza, la parte superior, para las maniobras con los otros [….] vieja
sabia, de poderes extraños, dura de corazón. Era fuerte en el dolor, en la miseria,
en la alegría “(REGO, 2003, p. 137). […] La vieja Elba gritaba sus órdenes, y hacía
que la gente se curvara delante su vozarrón […] el verbo en negrita hace mención a
la carga valorativa de poder que ejerce la matriarca.
La novela Riacho Doce fue escrita por el Paraibano José Lins do Rego y
publicada en 1939. Se trata de un enfoque regional de la ficción literaria modernista,
cuya trama tiene como ejes principales el pueblo llamado Riacho Doce. La “escena”
es un pueblo de pescadores en la zona costera del estado de Alagoas (noreste de
J Brasil), donde la vida cotidiana de las familias de pescadores que viven allí va a
sufrir diversos “trastornos”, de orden ecológico y moral, como resultado de los
A intentos de explotar petróleo en el local, llevado a cabo por extranjeros.
Nó es el hijo de un pescador y nieto de Anita, la antigua guardiana de la
L moral del lugar, aquella que tiene las llaves de la iglesia, que tiene poderes curativos
y de maldición, su principal fuente de “poder simbólico” (BOURDIEU, 1989, p. 7).
Edna es una sueca, casada con un ingeniero que se mudó de Estocolmo (Suecia)
L
a Brasil, con el propósito de llegar a ser rico, aprovechando la situación para
proporcionar nuevos aires a su esposa, que vivía desalentada y desmotivada en
A su tierra natal, y en el campo. Edna y Nó vivían una relación amorosa que tendrá
consecuencias para el día a día de Riacho Doce y de los extranjeros ubicados allí.
El día a día “imaginado” de José Lins do Rego en Riacho Doce es el
escenario de un interesante fenómeno: cuando los residentes del pequeño pueblo
de pescadores se ponen de frente con la alteridad de los extranjeros “insertados” en
• su rutina, las sospechas sobre el peligro representado por la presencia de actitudes
1204 extrañas desencadena una actitud al orden interno de protección a través de la
• vigilancia que no lo hace, en principio, directamente sobre el otro, sino entre los
que están “adentro”, debido a la aparición de actitudes no sólo de alejamiento
sino también de asombro, admiración y, en cierta medida, de simpatía del mundo
“exterior”.
Así, establecida la hipótesis de que la singularidad de una cultura no
2 anula las tensiones de la diferencia, que se manifiesta, aunque tácita, también
internamente. De lo contrario, no habría ningún papel para sanciones sociales que
están presentes incluso en ambientes relativamente homogéneos, tales como las
0
llamadas sociedades de pequeña escala.

Otro hecho singular el trabajo del escritor José Lins do Rego es la
1 explotación de un sistema social movido por el poder del patriarcado. Sus novelas
se centran en una sociedad cuyo mandato es el hombre, y en especial la sembradora
8 con poderes dentro y fuera del hogar.

El enfoque en el sistema patriarcal hace que en el trabajo del escritor


se da a los personajes femeninos un lugar de inferioridad social que legitima y
perpetúa el poder masculino y la agresión. En las novelas del escritor, ver a una
mujer en una sociedad donde prevalecen los valores masculinos, sea económica,
social y moralmente sometida al poder del patriarcado.
La novela de 1939, al igual que otras obras del escritor, se divide en
partes: “Esther”, “Riacho Doce” y “No”. Este trabajo se centra en el personaje
principal Edna, o Eduarda, una mujer sueca que viene con su marido para intentar
una nueva vida en Brasil. La primera parte del libro, considerada por la crítica
como la menos desarrollada de todo el romance (cf. LOUSADA, 1991), se centra en
la infancia, la adolescencia y el inicio del matrimonio de Edna/Eduarda en Suecia.
Aquí se explota principalmente la transferencia de relación que la protagonista
sufre por su profesora Esther. Esta parte del libro sirve para “establecer su heroína
en el medio que era costumbre, sus conflictos del alma y del cuerpo, sus deseos
comprimidos para ambiente hostil” (LOUSADA, 1991, p.362). En las dos partes
J de la novela, se encuentra la “gallega” - como la llamaban los pescadores-envuelta
en el paisaje del noreste, disfrutando del sol y el mar bañando al pequeño pueblo
de pescadores de Riacho Doce, ubicada en el estado de Alagoas. En este pequeño
A
lugar, el personaje se descubre como mujer y se entrega a una pasión por un
mestizo local.
L
Para estar con su amor y seguir sintiendo lo que nunca antes había

experimentado - “La vida de Edna comenzó a ser otra. Sin saber explicar bien,
L había algo en su interior, una especie de preocupación constante, un deseo oculto
que la dominó “ (REGUERA e BUSATO, 2003, p 218) - Edna / Eduarda se olvida
A de su situación de mujer casada, de raza, clase social y se entrega a los brazos de
Nó. En esa entrega, percibe que fue rechazada por el mestizo y se da cuenta de que
arruinó la vida de su marido, delante del mar que tantas veces sirvió de refugio
para el amor de los dos.
Dado el breve esbozo que tomamos sobre la representación de las mujeres
• en el trabajo del escritor paraibano, nos dimos cuenta de que los personajes
1205 femeninos no son, a excepción de Riacho Doce, protagonistas exclusivos de las
narraciones. En la novela aparece también como una representación la figura

femenina de la mujer que se acerca al estereotipo masculino, asumiendo, en la
familia, el papel de líder. Están representados por dos núcleos familiares de los
principales espacios novelescos. Hay una repetición de la estructura de la casa
de Edna / Eduarda, en Suecia, y en el hogar de Nó en Brasil. Tanto el núcleo y el
otro tiene la representación de los clanes familiares como la figura de una mujer
2 anciana y viuda, Aninha y Elba. Esta es la mujer que ejerce el poder sobre toda la
casa: en el hijo, en la nuera, en los nietos.
0 En la familia de Edna, mandaba la abuela Elba. Dueña absoluta de todo,
inspirando miedo en los nietos y nuera, además de intimidar a su hijo: “[a] la vieja
1 abuela, era la que mandaba en toda la familia. Era ella hacía que su padre sea
tímido como un niño y su madre inspiraba miedo [...] maniobró su tribu como la
8 dueña de todo, como dueña absoluta” (REGUERA e BUSATO, 2003, p. 38). Delante
de su figura gorda y alta, todos disminuían el timbre de voz y no la contrariaban.
Con el miedo que imponía a todos los protagonistas se asociaba su imagen con los
dragones de las historias infantiles.
En el núcleo familiar de Nó, la vieja Aninha es quien gobierna. De edad,
delgada y debilitado físicamente, Aninha tiene el poder de controlar no sólo a los
miembros de su familia, sino a toda una comunidad: “[la vieja Aninha] siempre
fuera de la fuerza, la parte superior, para las maniobras con los otros [….] vieja
sabia, de poderes extraños, dura de corazón. Era fuerte en el dolor, en la miseria,
en la alegría “(REGO, 2003, p. 137).
Estas dos matriarcas son aproximadas aquí para mostrar cómo funciona
el sistema patriarcal y faculta poderes al femenino. La propia protagonista en dos
períodos distintos se acerca a las dos matriarcas. En una carta a su hermana,
Edna dice que “[hay por acá una mujer mayor que es como nuestra abuela Elba]”
(REGO, 2003, p. 175). En otro momento, cuando Edna / Eduarda está a solas
con Aninha, el narrador muestra cómo el protagonista ve a anciana: “Edna miró a
la anciana [Aninha] y vio la abuela Elba la mujer oscura y delgada. La vieja Elba
J debería ser la misma para los demás y hablar de Dios con la misma voz seca”
(REGO, 2003, p. 233).
A ¿Cómo aceptar dentro de un sistema patriarcal, una mujer al mando
directamente de la familia? En ambos casos, la viudez es el factor más
importante en el empoderamiento de Elba y Aninha, aunque otros también
L se pueden enumerar. Dentro del primer núcleo familiar es la experiencia,
junto con años de vida, la que hace a Elba elevar su nivel de superioridad
L ante toda su casa: “Todo el mundo sabía que la vieja Elba sabía de las cosas,
más que ningún otro” (REGO, 2003, p. 38). Al enfocar al hermano robusto
Edna / Eduarda, Guillerme, en contraste con la frágil Sigrid, el narrador
A busca exaltar el lado físico del joven, atrevido, equiparándolo con su padre
y su abuela Elba en que los distingue: “Guilherme, sin embargo, era todo lo
contrario de su hermana menor. Fuerte, sano, tenía la fuerza de su padre y
algo del espíritu de la vieja Elba.

La abuela de edad era ella que mandaba en toda la familia. Era ella que
• hizo a su padre tímido como un niño e inspiraba temor a su madre. Todo el
mundo sabía que la vieja Elba sabía de las cosas, casi todo el mundo: ma-
1206 niobraba su tribu como la dueña de todo, dueña absoluta. Alta, gorda, se
• hablaba en voz baja cerca de ella. Chicos y grandes no hacía diferencia. Allí
estaba ejerciendo su poder despótico, sin ternura, sin un tratamiento. Ojos
que nunca se humedecieron con alegría, manos que nadie ha visto nunca
acariciar (REGO, 2003, p. 6).

Autoritario, su voluntad debe prevalecer siempre para los amigos, para


2 las hermanas Rego, 2003, p. 46. Al igualarse al padre y a la abuela en el forjamiento
del joven Guíllerme, aquí está exaltado el carácter de superioridad de la figura de
la matriarca de la familia de Edna / Eduarda, ya que la calidad indefinida de la
0
abuela - “algo de espirituoso de la vieja Elba “ - da un toque positivo, así como la
fuerza del padre, a Guilherme.
1 La fuerza de la matriarca Elba aún se refuerza cuando el narrador,
con los pensamientos de Edna / Eduarda, identifica la voz de la abuela con un
8 canto similar al de los hombres, en contraste con la dulce voz de la madre de la
protagonista: “El canto de su madre era tierno, suave, una alabanza, como una flor
[...] La vieja Elba cantaba grueso como un hombre [...] “ (REGO, 2003, p. 54).
En este caso en particular, mediante el contraste de la voz de Matilde
y Elba, la protagonista destaca el carácter masculino e impetuoso que la abuela
poseía y la pasividad la debilidad de la madre. Aun enfocando la postura de Elba en
la iglesia, Edna / Eduarda destaca el hecho que la oración de la abuela, durante el
culto, tienen la fuerza de una advertencia a Dios en lugar de una plegaria o pedido,
en o otro juego de contraste con la oración se su madre, que es “casi un gemido”
(REGO, 2003, p. 54).
En la visión de la nieta, la abuela trata de igualarse a Dios: “[...] era como
[Elba] dijese: ‘Mira, Dios del cielo, tú demandas en el mundo, mueve los astros,
mueves la luna y las estrellas, pero yo mando en los míos, mi hijo, mi nuera, mis
nietos. Yo también soy una reina, una soberana” (REGO, 2003, p. 54). Ni siquiera
la voz de su padre, quien también cantó grueso, se asemeja a la arrogancia de la
J vieja Elba.
Enfocando al poder de Aninha, se puede decir que es su conexión con lo
A sagrado, con el mundo de los dioses, que la coloca en una posición de prominencia
ante la familia y la comunidad donde vive. La conexión con lo divino y de sus más
L de ochenta años da a la matriarca un lugar diferente en el sistema social en el que
vive, por lo que todos, incluyendo a los que están fuera del núcleo familiar, tienen
respeto, admiración y temor a la señora.
L
La forma en que el narrador pone de manifiesto la fuerza de la vieja
Aninha en el interior del espacio que vive, ya sea en su casa o en una colonia de
A pescadores, se asemeja a la forma en que el escritor José Lins do Rego caracteriza
la figura del Señor de ingenio en las novelas el “ciclo de la caña de azúcar.” Ella
tiene una postura rígida, trata de mantener un orden instituido, no deja que los que
la rodean tomen decisiones que difieran de los suyos, y también asume el derecho
de manejar el destino de los demás. Es a través de Aninha que el orden establecido
• por el patriarcado se materializa en la novela cuando el narrador muestra lo que
1207 podría ser considerado el pensamiento de la vieja en cuanto al lugar reservado a la
• mujer dentro de ese sistema social:
Para la vieja, Edna era un peligro. A veces, cuando la veía hacia el camino
de la playa, y parecía casi desnuda, cuando la veía esparcida en la arena
como un pez fuera del agua, en el fondo, ella debería que censurar aquella
libertad: la mujer no debería bañarse en el mar. La mujer era para dar a luz,
trabajar, criar a los hijos, die (REGO, 2003, p. 172).
2
En la caracterización del poder y la importancia que se da a estos dos personajes viudas,

el modo cómo son nombradas tiene funcionalidad interpretativa. Por ejemplo,
0 la elección del nombre de la abuela Edna/Eduarda, Elba, refuerza aún más la
superioridad de su carácter. De acuerdo con Milton Márquez y Elizabeth Marinheiro
1 dos posibilidades para explicar el nombre de Elba: “ambos pueden provenir del
idioma alemán significado Halbes como que significa la mitad, como del Céltico
8 elfo, es decir, alta y montañosa” (MÁRQUEZ JR, Y MARINHEIRO, 1990, p 141.).
(Subrayo los autores). En ambos casos, el nombre del personaje es consistente con
su papel en la narrativa “, en vista de suposición por encima de toda la familia,
inaccesible e inalcanzable” (MARQUEZ JR., y MARINHEIRO, 1990, p. 141), como
señala el origen celta. En cuanto al segundo origen, la alemana, Elba constituye la
primera mitad” de la opresión que Edna era víctima. La otra mitad la vieja Aninha.
(MARQUEZ JR. y MARINHEIRO, 1990, p. 141).
En cuanto al nombre de Aninha, uno se da cuenta de que es una ironía
de la construcción. Diminutivo de Ana (Por primera vez en su vida no confiar en
sí misma, no se sentía la misma Ana, que confió a Dios y los santos sus secretos
(REGO, 2003, p. 244), el sentido de cariño que la raíz presta al nombre y el
significado del nombre sólo confirman el carácter de la ironía verbal en el mismo.
También según Milton Márquez y Elizabeth Marinheiro, el nombre Ana significa
Gracia y Ovejas, lo que traería una connotación de pasividad y de benéfico. Pero,
teniendo en cuenta las acciones del personaje para alejar Edna/Eduarda de Nó,
se entendió que Aninha no es ni mujer pasiva ni expresa deseo de ser utilizada
en la inmolación. Ella es una fuerza que se opuso oponente Edna/Eduarda que
J simboliza a esa sociedad.
Riacho Doce demuestra que la mujer viuda en una sociedad patriarcal
A toma el lugar del hombre en la familia y por lo tanto asume el espacio público, la
realización de las funciones asignadas a los varones, sin obstáculos por el sistema
L sociocultural. La mujer toma la posición dejada vacante por el hombre, es decir,
para administrar el hogar y la familia, y así perpetúa el sistema de dominación

social, económica y cultural del patriarcado, borrando así cualquier posibilidad de
L que otras mujeres ganen la posición para ganar autonomía. El papel desempeñado
por los personajes de Elba y Aninha en Riacho Doce, ejemplifica el comportamiento
A de la mujer viuda en una posición de autoridad que incorpora el comportamiento
masculino como los valores del patriarcado. Elba y Aninha tiranizan a sus nueras
y ejercen sobre los que las rodean un poder despótico.
En Los funerales narrativas de la Mamá Grande integra la obra del mismo
nombre, que consta de siete historias cortas, una de las primeras obras de Gabriel
• García Márquez, publicada en 1962, retrata de forma hilarante y extraña la muerte
1208 y entierro de una matrona, como una forma de dimensionar el poder de su nombre
en la tierra imaginaria de Macondo, el pueblo ficticio recurrente en gran parte de la

obra del escritor, especialmente en Cien años de soledad (1967).
La novela es un texto paródico, representativo de la literatura latino
americana contemporánea, en la que la exageración es el mecanismo de la
subversión de la realidad. Con la Mamá Grande, se verifica la identidad mitológica
2 de una mujer que va más allá de los límites de la razón.
El nombre de Mamá Grande atesta la magnitud de la fuerza del carácter
del personaje de los funerales de la Mamá Grande, una mujer que posee al mundo
0
que la rodea, con influencias alcanzando rayos de Estado de la Santa Sede y el
papado. Fallece a los 92 años, y su muerte, por lo tanto, llega a todos los que viven
1 no sólo en la ciudad sino de la nación y el mundo, convirtiéndose en un espectáculo
que moviliza a personas de diferentes clases sociales. Maria del Rosario Castañeda
8 y Montero, dueña y soberana absoluta de todo lo habido en el pueblo de Macondo-
Protagonista principal de esta historia. (MÁRQUEZ, 1974 p.151).
Este es un texto paródico representativo de la literatura latino americana
contemporánea, en la que la exageración es el mecanismo de la subversión de la
realidad. Se debe recordar que “[...] la parodia es una de las formas más importante
de la moderna auto-reflexividad [sic], es una forma de discurso intiartístico”
(HUTCHEON, 1985, p. 13).
Y la ironía es una de sus características, es decir, la ironía es un
componente fundamental en la estructura de este tipo de texto. Por otro lado,
su “[...] el estado ideológico [...] es sutil: las naturalezas textual y pragmática de
la parodia, implica, al mismo tiempo, la autoridad, y rebelión y ambas deben ser
tenidas en cuenta” (HUTCHEON, 1985, p.13).
Con respecto a la exageración, que se menciona más arriba, en la voz de
un narrador en tercera persona calificada, que surge dentro y fuera de los eventos,
con absoluta omnisciencia, aparece el perfil de identidad mitológica de una mujer
que supera los límites de lo plausible y de la razón, por lo tanto, de convertirse en el
J epicentro de un universo moldeado por el poder económico y político. En un mundo
poblado por hombres, es interesante observar el desarrollo físico, social y transreal
A que el protagonista ocupa, provocando la risa del lector, pero sin perder el encanto
y la magia de la simplicidad, cuenta con la técnica narrativa de García Márquez, el
L escritor de renombre Premio Nobel en 1982, que le fue otorgado dado el éxito de la
novela Cien años de soledad, publicada en 1967.

En el funeral de la Mamá Grande prácticamente no hay diálogo, sí un
L
monólogo interior, y el narrador va presentando la figura caricatural de la Mamá
Grande, a través de lo que representa para la comunidad, la familia y el lugar, y
A el por qué, no decirlo, en todo el mundo. Y así se construye en la imaginación del
lector, la identidad de una persona que representa la tradición, la fuerza y ​​el poder
de un reino real, erigida durante siglos por sus antepasados y ​​ su legado. A esta
soberana se curvan miembros de los diversos segmentos de la sociedad, la élite y
de los poderes, formados por el orden social, que, absurdamente, de ella siempre
• tuvieron injerencia.
1209 En la construcción de este perfil de poder le son atribuidas cualidades
• paradojas al prototipo transmitido por el mundo masculino: es una mujer, es soltera,
vieja y de gran porte, sin embargo, su “trono” centrada en las tierras macondianas
ficticias, pudo ejercer influencia inimaginable sobre todo y todos, incluyendo a los
hombres líderes de la nación, dado el tamaño de su patrimonio continental, una
manifestación explícita de la ironía. Este hecho le permitió, en el curso de su larga
2 vida, ofrecer “favores” poco ortodoxos y, obviamente, fueron de vueltos en forma de
reverencia absoluta como una diosa sagrada.

Todas estas tonterías ya están atestiguadas por la conciencia o
0
inconsciencia que “[...] se le habría ocurrido a nadie pensar que la Mamá Grande fuera
mortal, excepto a los miembros de su tribu, y a ella misma, por las premoniciones
1 seniles del padre Antonio Isabel” (MÁRQUEZ, 1998, p. 151), como si no estuviera
dotada de vida y de la muerte, el ejemplo de los demás. Un punto ilustrativo de que
8 la maestría se centra en la clasificación real y la magia de su patrimonio, que reúne
patrimonio desde el mundo físico y el mundo invisible. Una lista de sus bienes tomó
tres horas para estar asentadas en veinticuatro hojas “[...] con letra clara, como la
fuente suprema y la única de su grandeza y autoridad” (MÁRQUEZ, 1998, p. 158).
En tal supuesto de posesiones, el ascenso de la Mamá Grande en la
dirección de las cosas terrenales se justifica por sí mismo, dando al relato un
tono de humor e ironía constante, ya que la mayor de las posiciones debe a ella
reverencia y hasta la más absoluta abstracción o la remota probabilidad de eventos
están bajo su control. Dada esta concentración monumental del poder, su muerte
abre una crisis en Macondo. Qué es esta mujer capaz de detener el ejecutivo, y
promover un cambio en el legislativo - es necesario crear nuevas leyes que permiten
al presidente a asistir a los funerales - ¿la cual se dobla el poder judicial? Sólo una
matriarca procedente de una potencia de dos siglos es capaz, con su muerte, lo que
provocó un alboroto tan grande en el orden social.
Por lo tanto, es evidente la superioridad de la Mamá Grande, no sólo
sobre los hombres, sino con todas las personas, independientemente de su sexo o
clase, y el componente de esta distinción, es porque tiene en sus manos el poder
J económico y político. Parece que todo depende de ella o todo está conectado a ella,
no habiendo espacios que no esté ocupados por ella, y por su red de relaciones con
A el mundo. Esta es la imagen de la elevación suprema de la idolatría que se le ha
dado, pero en ningún momento se habla en afecto a ella dedicado. Uno ve en ella
L el producto de la centralización del poder. Es la mujer que detiene todo el poder,
descrito y detallado, por el narrador, sin embargo, sin someter al hombre, sino para

superarlo y al género humano en su conjunto.
L
Por el contrario, el narrador, al exagerar el dominio de la Mamá Grande
sobre todas las cosas y todas las personas, con el tiempo termina desmitificado,
A rompiendo con tal poder y demostrando que ella no eran tan poderos precisamente
porque la gente la veía de esa forma, es decir, si la gente reconoce tal poder, entonces
el narrador asegura la verdad de lo absurdo que dice, en el campo de la realidad,
pero totalmente posible en ese contexto paródico de humor e hilaridad.
La identidad de la Mamá Grande se establece en relación con el “otro” o
• mejor, con muchos “otros” que podría apoyar la opinión de que está consagrada.
1210 Es en la relación entre el “yo” y el “otro” que va emergiendo la identidad, teniendo
• en cuenta la noción de alteridad, como se muestra a continuación:
Como se muestra en la percepción de Telles (1992), el ejercicio de la
acción de la resistencia a la manipulación ideológica es una luc8ha contra un tipo
conocimiento institucionalizado. Este conocimiento se basa en la idea de que el
papel femenino es, además de importancia reducida, de significación disminuida
2 en el proceso de desarrollo y la cultura. A pesar de este punto de vista, el espacio
ocupado por las mujeres ha avanzado en varias áreas y parte de su identidad
está en varios frentes, entre las cuales el campo literario, entrecruzándose con
0
otros ejes, como el crítico y el político, porque no hay una práctica apolítica, sino
una asunción de posiciones que, concreta o teóricamente, van sufriendo ajustes
1 (TAVARES, 2007).
Así, en la historia del funeral de la Mamá Grande, la matrona de la identidad
8 femenina está garantizada por la ratificación del otro, que está representado por
varios inquilinos de sus tierras por parte de los habitantes de las aldeas de Macondo,
los gobiernos e incluso por el Sumo Pontífice, en alusión al absurdo. En efecto, el
narrador reconoce, de inicio la hipérbole que puebla la historia de esta mujer,
según consta: “Esto es, los no creyentes en todo el mundo, la verdadera la historia
de la Mamá Grande, soberana absoluta del reino de Macondo, que vivió en función
de dominio durante 92 años y murió con olor de santidad el martes de septiembre
pasado y a cuyos funerales vino el Sumo Pontífice” (MÁRQUEZ, 1998, p.147).
Al parodiar los poderes de la protagonista, el narrador ya los reduce, una
vez que sólo lo impensable podría admitir como patrimonio invisible, y la inclusión
del invisible al patrimonio de una dinastía familiar que representa una subversión
del orden natural de las cosas y la tradición perpetuada por el personaje.
Describimos la figura del matriarcado en las obras literarias Gabriel
García Márquez que construye un prototipo de mujer poderosa e imponente, las
fuerzas de la centralización de todo tipo, en contraste con el perfil físico, denotando
visible inmovilidad. En la composición de la identidad de esta mujer, el autor reúne
J los ingredientes de los mundos materiales e inmateriales, traducidos por dominio
absurdo sobre las ideas de diseño y las cosas. Es un juego de estrategia con corriente
A propia y una visión del mundo, en un tono divertido y burlón, y muestra el perfil de
una mujer en medio de un contexto en el que aparece, ya que se trata de un texto
L paródico, en el que la ironía y la hilaridad se explotan con maestría.
Así, la historia se presenta como un corte ilustrativo de la literatura
Hispanoamericana contemporánea, que trata de construir una nueva identidad
L
cultural, teniendo como parámetro la destrucción de los modelos preconcebidos,
mostrando la tradición en un ángulo antagónico al diseño establecido. Obviamente,
A la construcción de esta identidad macondiana no consolidado sin la noción de
alteridad. Mamá Grande existe solo en contacto con el mundo que nos rodea, y
con la relación con el otro. Impregna en el texto la concepción mitológica de la
protagonista que, por encima de los pobres mortales, que maneja todo y a todos,
sin esfuerzo. En el proceso de reafirmación de su perfil, a través del lenguaje y
• la comprensión de los demás, legitimado cada vez más la identidad de la Mamá
1211 Grande, que es lo que es, precisamente, porque, en sus relaciones sociales, se basa
este punto de vista de la grandeza absoluta. Así, como en la obra Riacho Doce, el

enfoque es un sistema patriarcal, y que conduce los personajes femeninos un lugar
de inferioridad, que es legítimo y perpetúa el poder y la agresión masculina. La
mujer gana espacio y poder cuando el hombre sale de escena, como es el caso de
Elba, la abuela de Edna. Por lo tanto, la mujer es siempre subyugada al hombre y
para tal desprovista de acciones, pensamientos y voluntad propia.
2
En la lectura de la historia de los funerales Mamá Grande, con Riacho
Doce, encontramos interesantes puntos de convergencia, junto con las diferencias
0 naturales - por el estilo de los autores y de las técnicas narrativas adoptados -
aunque no es un espejo de una narración sobre otra. Teniendo en cuenta las
1 aproximaciones posibles se realizó una lectura, desde el ángulo de las marcas de
identidad y de género que recorre las narrativas de ambos universos.
8 El funeral de Mamá Grande es un cuento que cumple una función
desacralizadora, desmitificación de los engranajes de una sociedad y de un poder
institucional. La subversión de la realidad se apoya en la figura caricaturizada del
personaje central, una mujer que reina sobre todo y todos llegando al borde de lo
inimaginable, del absurdo y del divertido, rompiendo con toda norma o limitación.
Es una estrategia de García Márquez burlarse de las convenciones
sociales, con su propio status quo, que muestran que, en el fantástico mundo de
Macondo, nada es imposible, ni siquiera la existencia de una Mamá Grande, como
legítima representante del género femenino de poder y dominación.
En Riacho Doce, la trama muestra el pensamiento acerca de la tensión
dialéctica que es una característica de la cultura, característica que parece ser
universal. Aunque se trata de una obra de ficción, en la lectura Riacho Doce se
observa que, incluso en una sociedad de pequeña escala, la cultura local cuenta con
una relativa estabilidad. Los personajes Esther, Edna, abuela Elba, Sinhá Aninha,
Carlos y No, ilustran esta tensión que “advierte” los mecanismos de aplicación de
la cultura. La coacción no es sólo sobre el “otro”, el “distante”, sino también, sobre
J todo del “próximo”, el “de adentro”, esto significa que los procesos de la subjetividad
de los valores morales no están limitados, restringidos a una identificación con lo
que está “cerca” de lo que está “protegido” por “fronteras”. Y por eso el “lejano” en
A
muchas situaciones reales, es tan deseado por unos y rechazado por otros.

L Conclusión
El ACD está comprometido con los objetivos sociales, el cambio cultural y
L político destinado a prácticas sociales y las relaciones sociales. Se trata de un análisis
discursivo, teórico metodológico, que investiga las relaciones entre el discurso, la
sociedad y la cultura. Hemos adoptado esta perspectiva teórica para comprender
A el discurso como una práctica social, así como Fairclough (2001), para quien, el
discurso no es sólo el mundo, sino que lo constituye y que lo representa. Por lo
tanto, es esencial tomar a los informantes como sujetos constituidos culturales,
social e históricamente evidenciados en las obras de los diferentes contextos
culturales.

Verificamos los subjetivemas verbales relacionados con la presencia del
1212 matriarcado según las obras, Riacho Doce de José Lins do rego y Los funerales de
• Mamá Grande de Gabriel García Márquez. Hemos destacados algunos de estos
subjetivemas por medio de expresiones de la obra de cada autor.
Identificamos las funciones lingüísticas de estos subjetivemas, a
ejemplos en la obra de Los Funerales de Mamá grande: Ésta es, incrédulos del
mundo entero, la verídica historia de la Mamá Grande […].Más que una mujer
2 es la Mamá Grande “dueña” de todo lo que descansa sobre y bajo la tierra […].
Nadie conocía el origen, ni los límites, ni el valor real del patrimonio, pero todo
0 el mundo se había acostumbrado a creer que la Mamá Grande era dueña de las
aguas corrientes y estancadas, llovidas y por llover, y de los caminos vecinales, los

postes del telégrafo, los años bisiestos y el calor. María del Rosario Castañeda y
1 Montero, dueña y soberana Absoluta de todo lo habido en el pueblo de Macondo-
Protagonista Principal de esta historia.
8 Así también, en la obra Riacho Doce encontramos términos lingüísticos
que en general, manifiestan una valoración por parte del hablante.  En cuanto
al poder ejercido por el personaje de Aninha, de José Lins do Rego se observó
que, en muchos casos, la creencia religiosa - una piedra angular de la memoria
popular del lugar - fue evocada en un intento de purgar los males de los intereses
economistas, como lo hizo en su espontaneidad y la dureza, el carácter al personaje
de Sinhá Aninha, en Riacho Doce. […] La vieja Elba gritaba sus órdenes, y hacía
que la gente se curvaren delante su vozarrón […] el verbo en negrita hace mención
a la carga valorativa de poder que ejerce la matriarca.
Explicamos las relaciones entre el lenguaje e ideología en el discurso
femenino de las obras referidas, entendemos que es a través del lenguaje que
los conocimientos (los significados y las interpretaciones de la vida cotidiana) se
vuelven visibles, manipulables y, en consecuencia, comunicables. La realidad de la
vida cotidiana es aprehendida porque somos capaces de generar signos concretos
(verbales, gestuales, icónicos), que organizados de una manera específica la
representan, la dibujan, la nombran y le dan una forma con sentido. Los dos textos
J escritos por autores escritores contemporáneos, un colombiano y un brasileño,
como también las narrativas permiten la reflexión sobre las cuestiones de género
e identidad cultural y política. Estas observaciones se hacen en el contexto de
A
los personajes femeninos, es decir, hasta qué punto es concedida la búsqueda de
la libertad de pensamiento y de acción. Obviamente también considerando como
L referencia el hecho de que ambos textos literarios fueron producidos por hombres,
insertados en diferentes realidades sociohistóricas, pero en la misma época, pero
L con semejantes situaciones políticas.
Describimos la figura del matriarcado en las obras literarias Gabriel
A García Márquez que construye un prototipo de mujer poderosa e imponente, las
fuerzas de la centralización de todo tipo, en contraste con el perfil físico, denotando
visible inmovilidad. En la composición de la identidad de esta mujer, el autor reúne
los ingredientes de los mundos materiales e inmateriales, traducidos por dominio
absurdo sobre las ideas de diseño y las cosas. Es un juego de estrategia con corriente
• propia y una visión del mundo, en un tono divertido y burlón, y muestra el perfil de
1213 una mujer en medio de un contexto en el que aparece, ya que se trata de un texto
paródico, en el que la ironía y la hilaridad se explotan con maestría.

Así, la historia se presenta como un corte ilustrativo de la literatura
Hispanoamericana contemporánea, que trata de construir una nueva identidad
cultural, teniendo como parámetro la destrucción de los modelos preconcebidos,
mostrando la tradición en un ángulo antagónico al diseño establecido. Obviamente,
la construcción de esta identidad macondiana no consolidado sin la noción de
2 alteridad. Mamá Grande existe solo en contacto con el mundo que nos rodea, y
con la relación con el otro. Impregna en el texto la concepción mitológica de la
0 protagonista que, por encima de los pobres mortales, que maneja todo y a todos,
sin esfuerzo. En el proceso de reafirmación de su perfil, a través del lenguaje y
1 la comprensión de los demás, legitimado cada vez más la identidad de la Mamá
Grande, que es lo que es, precisamente, porque, en sus relaciones sociales, se basa
8 este punto de vista de la grandeza absoluta. Así, como en la obra Riacho Doce, el
enfoque es un sistema patriarcal, y que conduce los personajes femeninos un lugar
de inferioridad, que es legítimo y perpetúa el poder y la agresión masculina. La
mujer gana espacio y poder cuando el hombre sale de escena, como es el caso de
Elba, la abuela de Edna. Por lo tanto, la mujer es siempre subyugada al hombre y
para tal desprovista de acciones, pensamientos y voluntad propia.
En la lectura de la historia de Los Funerales Mamá Grande, con Riacho
Doce, encontramos interesantes puntos de convergencia, junto con las diferencias
naturales - por el estilo de los autores y de las técnicas narrativas adoptados -
aunque no es un espejo de una narración sobre otra. Teniendo en cuenta las
aproximaciones posibles se realizó una lectura, desde el ángulo de las marcas de
identidad y de género que recorre las narrativas de ambos universos.
Respetadas las diferentes identidades en diferentes contextos, se puede
decir que hay dos ejemplares de narrativas paródicas y encantadoras, que llevan
al lector a nuevas reescrituras de la realidad y la identidad latinoamericana
enseñando la importancia de la figura matriarcal de la sociedad, evidenciada a
través del análisis del discurso, en especial de los subjetivemas en cada contexto
J cultural de cada obra.
Referencias
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TRO, A. B. José Lins do Rego. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; João Pessoa: FU-
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BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro (RJ): Bertrand Brasil, 1989.

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zonte (MG): Editora UFMG, 2006.
FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Traducción de I. Magalhães. Brasília (DF):
Editora Universidade de Brasília, 2001.
HUTCHEON, L. Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas de arte do século XX.
• Rio de Janeiro (RJ): Edições 70, 1985.
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1214
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; João Pessoa (PB): FUNESC, 1991, p. 56-60
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dicionário dos personagens. João Pessoa: Edições Funesc, 1990.
MÁRQUEZ, G. G. Os funerais da Mamãe Grande. Traducción de Édson Braga. 12ª ed.,
Rio de Janeiro (RJ): Record, 1998.
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TAVARES, C. R. S. As perspectivas da mulher frente às configurações ideológicas pre-
0 sentes no discurso do ditador latino-americano. Porto Alegre: UFRGS, 2007.
TELLES, N. Ficções do sujeito feminino. Florianópolis: UFSC, 1992, p. 10-20.
1 ZOLIN, L. O. Crítica feminista. In: BONNICI, T. e ZOLIN, L.O. (Org.). Teoria literária:
abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3ª ed. Maringá: Eduem, 2009, p.
8 217-242.


J

A

L ENTRE SABERES, MARACÁS E DECOLONIALIDADE: PRÁTICAS
EDUCATIVAS DA PAJELANÇA
L
Thaís Tavares Nogueira (UEPA)
A RESUMO: Este estudo aponta as práticas educativas em um terreiro de pajelança
na ilha de Colares/ PA e toma como base as narrativas do sujeito mediador dessas
práticas: o pajé. Percorre as trilhas etnográficas em uma pesquisa de campo,
buscando um diálogo com a história oral. Com base em pressupostos da história
cultural, considera sujeitos e seus saberes até então subalternizados pela ciência
• moderna e lógica colonial. Ressalta a existência de uma prática educativa no
terreiro, a exemplo do rito de iniciação, ao observar o pajé como um educador que
1215
media toda a ritualística. Todos os participantes dos trabalhos experimentam algum
• tipo de aprendizagem: sobre a cultura das entidades nas suas falas e doutrinas,
onde sentar, no que tocar ou não, o que cantar para acompanhar o trânsito das
entidades no terreiro, receitas de banhos ou chás nos tratamentos de cura, bem
como a moral repassada nos aconselhamentos.
Palavras-chave: Pajelança. Resistência. Saberes. Práticas Educativas.
2
Introdução

Este texto resulta de uma pesquisa, em andamento, acerca dos processos
0
educativos que perpassam as práticas de pajelança na ilha de Colares-PA. Visto
que na ilha se observa a presença de vários terreiros, objetivamos traçar um perfil
1 pedagógico a partir de um lócus específico, o terreiro de São Jorge que tem como
pajé o senhor Robson.
8 Ancorado na perspectiva histórico-cultural, o estudo volta-se para uma
história do presente sem descurar dos processos políticos e sociais mais amplos.
Em sintonia com a “história vista de baixo” (SHARPE, 1992), volta-se para a história
de sujeitos e seus saberes até então subalternizados pela ciência moderna e lógica
colonial, como é o caso do pajé e suas práticas no terreiro, sujeito este que media
saberes, que os faz circular com significados diversos.
O diálogo com a história cultural possibilitou ampliar fontes e os sujeitos
da história de modo que é possível tomar como objeto de estudo a cultura popular,
as pessoas simples que carregam em seu dia-a-dia um conjunto de saberes e
tradições repassadas em suas comunidades, formas de trabalho e relações sociais,
na religiosidade, configurando o que Burke (2008) chama de “a descoberta do
povo”. Deriva disso a possibilidade de pesquisas em espaços e com sujeitos outros
para além daqueles circunscritos pela ciência moderna e hegemônica, a exemplo
dos terreiros e seus agentes: os pajés.
A linha de pesquisa “Saberes Culturais e Educação na Amazônia”, da
Universidade do Estado do Pará, na qual desenvolvo meu estudo de mestrado,
J tem possibilitado a construção teórica acerca de saberes e práticas educativas
diversas na região amazônica, apontando para a necessidade de se pensar a lógica
A do conhecimento de forma outra que não apenas àquela vinculada ao pensamento
eurocêntrico, mas principalmente a partir de experiências do cotidiano dos povos
L da Amazônia, ao reconhecer sua riqueza cultural.
E como cultura religiosa, trago, neste artigo, o tema da pajelança para
o campo da educação. A fim de levantar pontos de sua história de resistência em
L
nossa região e relacioná-los com os pensamentos acerca do desafio de rompimento
com o paradigma moderno da ciência. Assim, meu interesse está em refletir sobre
A as práticas da pajelança enquanto um saber tradicional, popular e de resistência à
luz do pensamento decolonial.
Entendo a decolonialidade como uma corrente de pensamento e ações
pautada no sentimento de liberdade, respeito e alteridade ao ser humano,
independentemente de sua raça, credo, lugar etc. E está voltada para aqueles
• que enfrentam ou necessitam enfrentar a exclusão, o preconceito, o racismo e
1216 impulsiona a superar toda e qualquer forma de opressão advinda do processo
• colonizador europeu.
Mota Neto (2016), obra na qual propõe uma pedagogia decolonial, traz à
reflexão a concepção de decolonialidade como:
um questionamento radical e uma busca de superação das mais distintas
formas de opressão perpetradas pela modernidade/ colonialidade contra as
classes e os grupos sociais subalternos, sobretudo das regiões colonizadas e
2 neocolonizadas pelas metrópoles euro-norte-americanas, nos planos de exis-
tir humano, das relações sociais e econômicas, do pensamento e da educa-
0 ção. (MOTA NETO, 2016, p. 44, grifo do autor).
Não pretendo aqui me aprofundar em conceitos, e sim dialogar com
1 pensamentos que se aproximem e possibilitem o debate epistemológico, no sentido
de sobrepor o embate político e de poder que perpassa o campo científico.
8 Nesse intuito, fico muito inclinada a fazer referência ao que Mota Neto
(2016) destaca sobre o conceito já apresentado:
Cabe, no entanto, ressaltar, mais uma vez, que não se deve utilizar o concei-
to de decolonialidade para se referir apenas às ideias daqueles que desen-
volveram o termo. Mais importante que o nome é a concepção política, ética
e epistemológica que lhe é subjacente, concepção, aliás, que tem sido teci-
da desde a origem do processo colonizador na América Latina, por muitas
mãos, no interior de uma plêiade de movimentos de resistência [...]. (p. 43).

Assim também, busco salientar a ideia dos sujeitos envolvidos nas práticas
de pajelança como sujeitos Outros de produção de conhecimento, dialogando aqui
com Dussel, quando conceitua este Outro a partir de sua análise sobre o início
da modernidade (ego moderno), onde a Europa do período dos “descobrimentos”
trata as outras culturas e povos como objetos que necessitam de um processo de
civilização, mesmo que violento e negador de que este objeto é o Outro com sua
história, seus saberes, sua diferença negados na colonização:
O Outro é a “besta” de Oviedo, o “futuro” de Hegel, a “possibilidade” de
O’Gorman, a “matéria bruta” para Alberto Caturelli: massa rústica desco-
J berta para ser civilizada pelo “ser” europeu da “Cultura Ocidental”, mas
“en-coberta” em sua alteridade. (DUSSEL, 1993, p.36).

A Nessa perspectiva, abordo a temática da pajelança, seu processo histórico
de resistência e sua concepção acerca de uma prática em que ocorre circulação
L de saberes e relaciono com teorias que possibilitam pensar uma proposta contra
hegemônica de construção do conhecimento, a partir de um conceito mais amplo

de educação e de respeito aos povos até então invisibilizados ou à margem desse
L processo.
Para tanto, aponto, neste primeiro momento – a introdução, os
A caminhos que me permitem refletir acerca desta proposta de estudo; no segundo
ponto, abordarei o tema da pajelança, relacionando-o à educação e práticas de
resistência; a seguir, apresento a metodologia e lócus deste estudo; logo após,
falarei das práticas educativas da pajelança a partir da trajetória de vida do sujeito
pajé e destacarei algumas questões e apontamentos para que se reflita acerca das
• práticas epistêmicas na ciência moderna e de como, à luz da decolonialidade, se
1217 pode pensar sua superação; por fim, concluo destacando a possibilidade de se
caminhar na direção de práticas de pesquisa e epistemologias contra hegemônicas.

Pajelança, educação e resistência
O termo pajelança, segundo os antropólogos Maués e Villacorta (2011, p.
11), refere-se a “uma forma de xamanismo em que se dá a ocorrência do fenômeno
de incorporação pelo pajé, sendo seu corpo tomado, no transe ritual, por entidades
2 conhecidas como encantados ou caruanas”. Durante esse ritual, a principal
ocupação do pajé é a cura de doenças.
0 A pajelança se caracteriza como uma prática religiosa com rituais
xamânicos1 de cura que teve sua origem com os povos indígenas, sofrendo
1 influências, no decorrer do processo colonizador, de outras culturas como a africana
e a europeia, por exemplo (MAUÉS, 2008).

Desde os primeiros registros dos colonizadores, nos relatos de viagem,
8
já se observa a existência da prática religiosa da pajelança, como se constata nas
cartas que descreviam o Brasil, durante a colonização. Assim, observa-se que
sempre existiu na história do Brasil, mais especificamente na história da Amazônia,
a presença desse sujeito chamado pajé.
Os pajés, citados como muito “prestigiados” nas aldeias por onde
andavam, desempenharam importante papel nas práticas de cura não só em suas
aldeias, mas estendendo esse saber ancestral aos colonos e colonizadores de nossa

1  Relativo ao xamanismo: conjunto de práticas e crenças mágicas do xamã, sacerdote tribal que
utiliza meio mágicos para curar males e doenças etc.
região. Eram, contudo, vistos como os “maiores inimigos” da igreja, que buscava
catequizar a todos eles, porém os pajés usavam “muitos enganos e feitiçarias”,
segundo os relatos do padre Manoel da Nóbrega, no século XVI (ALBUQUERQUE,
2012, p. 111). Ou seja, suas práticas religiosas e relação com a natureza, com o
sobrenatural, eram vistas como subversivas à ordem que a igreja católica tentava
impor.
Figueiredo (2008), destaca a persistência dos grupos praticantes da
J pajelança, fortemente marcada pela repressão religiosa e militar em nossa região
nos tempos da belle-époque2, bem como em todo o processo de ocupação de seus
A territórios no período da colonização. A religiosidade popular não era percebida
como merecedora de respeito ou reconhecimento em tempos de “modernização” de
L nossa região. Esta cultura popular era vista como “crendice” que destoava com a
ordem estabelecida e impulsionada pela modernidade que se chegava aqui:

Dentro desse quadro, as práticas da religiosidade popular foram pensadas
L como algo arcaico, obscuro e selvagem, que, portanto, deveriam ser extin-
tas para o bem do catolicismo. Dom Macedo Costa, bispo do Pará de 1861
A a 1891 e líder do clero brasileiro nos tempos da Romanização, colocou-se
ativamente contra todos os tipos de manifestações, rituais e formas popu-
lares de devoção que fugissem às regras impostas pelas cartas pastorais,
catecismos e missais, segundo Dom Antônio de Almeida Lustosa, seu maior
biógrafo, Dom Macedo Costa, numa de suas visitas pastorais à ilha do Ma-
rajó, mais precisamente ao município de Soure, esteve em entrevista com
• um célebre pajé, condenando em público suas imposturas. (FIGUEIREDO,
2008, p. 21).
1218
• Os praticantes da pajelança, aqueles que participavam de seus cultos ou
simplesmente recorriam aos seus rituais de cura, eram veementemente perseguidos,
presos, punidos, silenciados. Logo, pode-se encarar esses grupos como uma massa
de resistência a todas as formas de opressão e silenciamento pelas quais passaram.
Intendentes, bispo, delegado, propagadores de ideologias diversas – da “ci-
ência positiva” ao “discurso moralizador e romanizado” – todos como que
2 deixavam suas divergências de lado, para que, quando no trato com as tra-
dições religiosas populares, estivessem unidos bradando em favor da civili-
0 zação nos trópicos, da racionalização dos hábitos do povo, vistos como im-
pregnados de superstições, crenças arcaicas e práticas sociais que beiravam
à selvageria. Por outro lado, eu tinha consciência que esse grande número
1 de fontes documentais mostrava a persistência de tradições religiosas popu-
lares como um lócus dinâmico de conflitos [...]. (FIGUEIREDO, 2008, p. 21e
8 22, grifos do autor).

Nesse sentido, não se pode pensar em todo esse processo de resistência



pelo qual passou a pajelança sem atentar aos saberes que circulam em suas
práticas. Sendo eles saberes tradicionais, que remontam desde a formação dentro
dos terreiros aos rituais de cura, passando por uma infinidade de símbolos e, com
eles, aprendizados que são repassados de geração a geração.
[...] uma diversidade de saberes, práticas e rituais de cura que configuram

2  A Belle-époque, de expressão francesa, ocorreu no período de 1850 a 1920, quando a Amazônia


era a maior produtora de borracha do mundo, e se buscava a modernização europeia para a região.
uma sabedoria popular que possibilita aos sujeitos ordenarem a vida coti-
diana e darem sentido às suas experiências. Tais saberes incluem o conhe-
cimento dos mitos, da fauna e da flora, dos remédios da mata, a preparação
de chás e banhos, o domínio de orações, das técnicas do transe, dentre
outros. (ALBUQUERQUE; FARO, 2012, p. 70)

Ao abordar este tema no campo da educação, é preciso ampliar o conceito


que se tem para práticas educativas, entendendo-as como trocas de saberes que
J não estão apenas no âmbito da educação escolar. Para tanto, considero aqui a
conceituação dada pela historiadora Thaís Fonseca, a qual afirma que prática
educativa é “toda relação em que há transmissão de conhecimento de qualquer
A
espécie, seja de caráter moral, religioso, técnico ou até mesmo escolar”. (CUNHA;
FONSECA, 2007, p. 2).
L
Sobre isso ainda, apreendo um olhar alargado acerca da educação
numa perspectiva cultural, que a compreende como práticas que estão para além
L da educação formal, muito antes dos espaços escolares e sem necessariamente
precisar deles, ao ancorar-me em Brandão (1999; 2002) que entende a educação
A como cultura, e que, neste sentido, ocorre em diversos contextos, em práticas de
construção do social e representação deste, não havendo uma forma única de
educar.
Assim, ao apontar o terreiro de pajelança como um espaço de circulação de
saberes, remeto-me à Albuquerque e Barbosa (2016) que trazem a pauta da religião
• como educação, onde ressaltam essa relação numa perspectiva epistemológica.
1219 Nesse sentido, afirmam que:
templos, terreiros e igrejas caracterizam-se pela troca e transmissão de um

conjunto de saberes que possibilitam a circulação de sentidos e de signifi-
cados de teor pedagógico. [...] A educação vivenciada em espaços religiosos
configura-se como uma prática ligada à produção da vida e reprodução so-
cial, na qual indivíduos constroem sua subjetividade e dão continuidade a
sua existência. (ALBUQUERQUE; BARBOSA, p. 129 e 131).
2 Logo, a prática de pajelança a partir da trajetória de vida de um pajé
da Amazônia revela modos outros de produção de conhecimento e sociabilidades
0 que permitem contrapor a lógica eurocêntrica da ciência moderna. Conhecer as
práticas educativas no terreiro de pajelança na ilha de Colares viabiliza que as
1 vozes outrora silenciadas desses sujeitos emerjam nas narrativas desta pesquisa,
nas práticas e ritos do terreiro de São Jorge.
8 As trilhas da pesquisa na ilha de Colares e o terreiro de São Jorge
Os estudos de Maués (2008) falam da pajelança como um culto indígena,
praticado em comunidades rurais da Amazônia, atualmente, por populações não
indígenas, mestiças. Assim, busco evidenciar o lugar de onde fala a pesquisa,
uma ilha amazônica chamada Colares, que, de sua história, sabe-se por meio dos
escritos de padres jesuítas durante os séculos XVII e XVIII, que o território foi
povoado por indígenas Tupinambás, tendo recebido inclusive o nome de “Aldeia
dos tupinambás” (ALBUQUERQUE, 2016, p. 65).
Colares é uma ilha que se localiza na região do Salgado, no Estado do
Pará, às margens da Baía do Guajará, com cerca de 11 mil habitantes. Com uma
extensão territorial de aproximadamente 610 KM², possui 28 comunidades rurais.
Teve sua emancipação como município em 29 de dezembro de 1961, quando foi
desmembrado do município de Vigia.3
A ilha apresenta, ainda hoje, traços do povoamento indígena em sua
cultura e base econômica, tendo na pesca artesanal e na agricultura os principais
meios de subsistência, principalmente dos moradores da zona rural do município,
percebido no modo de produção local, como o fazer farinha que está presente na
J maioria das suas localidades.
Metodologicamente, percorre-se as trilhas etnográficas em uma pesquisa
A de campo, buscando um diálogo possível com a história oral, visto que o olhar
dado se direciona a um sujeito, o pajé, suas práticas religiosas e trajetória de vida
L e ninguém melhor do que o próprio para narrar essa história.
Busca-se compreender as práticas que ocorrem no terreiro, tanto por meio
L da observação, quanto das entrevistas semiestruturadas. Nesse sentido, Cardoso
de Oliveira (2000) aponta como sendo fundamental na produção da pesquisa nas
ciências sociais, em particular, no campo da educação, entre outros aspectos, a
A importância do olhar, ouvir e escrever a partir da pesquisa etnográfica.
Ao considerar o pajé Robson como principal interlocutor nesta pesquisa,
busca-se auxílio na história oral, tendo em vista que os saberes ancestrais presentes
no terreiro de pajelança não estão descritos em algum registro escrito. Em sua
grande maioria, esses saberes se expressam e são repassados por meio da tradição

oral ou através de uma fonte oral.
1220
Portanto, as teias tecidas no fazer etnográfico tornam-se mais resistentes
• quando me proponho a percorrer pela história oral, visto que esta possibilita, por
meio do diálogo e confiança, um espaço mais flexível e aberto para realizar as
observações das atuações do pajé e das entidades, quando incorporado. É uma
teia de significados, mas uma teia feita por várias mãos, tanto de quem pesquisa,
quanto de quem conta e mostra essa história. Esta relação dialógica é o ponto
2 primordial para que as narrativas do pajé Robson possam emergir no momento da
entrevista, conforme destaca Portelli (2016, p. 10):
0 Ao contrário da maioria dos documentos históricos, as fontes orais não são
encontradas, mas cocriadas pelo historiador. Elas não existiriam sob a for-
ma em que existem sem a presença, o estímulo e o papel ativo do historiador
1 na entrevista feita em campo. Fontes orais são geradas em uma troca dialó-
gica, a entrevista: literalmente, uma troca de olhares. Nessa troca, pergun-
8 tas e respostas não vão necessariamente em uma única direção.

Dessa forma, pajé Robson nos narra sua trajetória na pajelança, desde
as primeiras manifestações das entidades, o sofrimento para se aceitar na missão
de pajé, a “perseguição” que enfrentou na vizinhança do bairro quando decidiu
“firmar” o terreiro no quintal de sua casa. Ele conta que os vizinhos chegaram a
protestar e fazer um “abaixo-assinado” para que ele saísse de lá e mudasse para
outro local, porém, resistiu e lutou por respeito durante anos, e que hoje muitos
desses vizinhos o procuram em busca de curas e ajudas diversas. Entretanto,
3  Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pa/colares/panorama. Acesso em: 22 jan.
2018.
relata que ainda enfrenta o preconceito com relação às suas práticas religiosas,
mas não desiste por se considerar “escolhido para atuar numa missão tão bonita
como a pajelança”.
Assim, o terreiro de São Jorge foi fundado no ano de 2000, quando o pajé
Robson tinha apenas 17 anos. Seus primeiros trabalhos eram realizados dentro
de sua casa, localizada no bairro de São Francisco, zona urbana de Colares. Em
seguida, passou a atender no quintal de sua residência, em meio a uma área verde.
J Segundo seu Robson, no início era apenas “uma armação de madeira e caibros,
cercado de lona e plástico e coberta de palha”. Hoje, o espaço do terreiro, construído
A em alvenaria, é disposto em dois ambientes de acordo com os trabalhos a realizar.
Um ponto que chama atenção desse terreiro é o fato de encontrar-se
L localizado na zona urbana, no centro da cidade, diferente da maioria localizada
na zona rural e contar com uma procura muito grande de pessoas que vem de
localidades distantes para terem atendimentos com o pajé Robson, em particular
L
em busca de cura.

No terreiro de São Jorge, logo que se chega para participar de um
A “trabalho”,4 deve-se escolher onde sentar. Os bancos e cadeiras estão dispostos
nas laterais do terreiro, próximo às paredes e janelas. São bancos compridos de
madeira e há algumas cadeiras de plástico. Existe um altar nesse terreiro, que o
pajé chama de gongá: uma mesa de madeira com muitos santos da igreja católica,
além de uma mesa com imagens dos “povos da mata” como índios guerreiros,
• que contam suas histórias através das letras das doutrinas entoadas a cada
1221 incorporação. Há também quadros e esculturas talhadas em madeira dispostos
• em uma parede lateral, representando os caboclos de origem africana como o Preto
Velho, por exemplo.
Ao adentrar no terreiro, o pajé ainda não está incorporado. Antes, ele
procura sempre pelo banco à frente do altar e senta-se sem falar com as pessoas
presentes, baixa a cabeça, faz uma reza em voz muito baixa, fica concentrado por
2 alguns instantes e, após isso, passa a entoar o chocalho, dando batidas sobre seus
ombros, pés e cabeça, próximo aos ouvidos.
0 Quando inicia o processo de incorporação, é perceptível a tentativa de
se manter em equilíbrio e com a coluna ereta, o que nem sempre é possível, pois

depende da entidade e da forma como a mesma chega em seu corpo. O pajé, então,
1 levanta e passa a caminhar lentamente pelo ambiente, com o corpo levemente
curvado. Em seguida, uma a uma, as entidades chegam ao terreiro incorporadas
8 no pajé, entoam suas doutrinas como forma de apresentar-se aos que ali estão,
cumprimentam, algumas vezes, as pessoas presente e seguem dando passagem às
demais entidades.
Há algo que chamou atenção desde o início das observações em campo, é
o conteúdo das mensagens que as entidades trazem a cada incorporação, sempre
falando de caridade e cura, o que remete aos preceitos da religião kardecista e
que conformam parte da educação ensinada no terreiro. Falam de amor e respeito
para com um ser maior que eles chamam Deus. Afirmam que vêm ao terreiro

4  Nome que se dá aos rituais que ocorrem no terreiro de pajelança.


numa missão dada por Ele. Que todos ali presentes devem estar atentos ao que
Deus orienta, pois eles (as entidades) apenas recebem os conhecimentos sobre os
chás, banhos, receitas diversas para os tratamentos de doenças. Mas, segundo
suas falas, tais conhecimentos vêm principalmente da missão dada por Deus. Suas
doutrinas também falam dessa missão e revelam muitos saberes.
As doutrinas entoadas são cantos muito importantes no decorrer do
trabalho e incorporações, pois apresentam as entidades, contam sua história
J nesse mundo, de onde vem, sua missão e força. Também os utensílios utilizados
pelo pajé têm muita importância em cada incorporação e ritual de cura, como os
A fumos, bebidas, guias e espadas, que vão se adequando de acordo com a entidade
presente, visto que umas bebem vinho, enquanto outras preferem cachaça. Umas
L fumam cigarro comum, enquanto outras preferem o tauari5 ou o cachimbo.
Práticas educativas da pajelança: uma epistemologia a partir do Outro
L Ao pensar sobre essa organização do terreiro de São Jorge, pode-se inferir
que todos que participam dos rituais experimentam algum tipo de aprendizagem,
pois esta se mostra em vários momentos e detalhes. Quando se aprende sobre a
A
cultura das entidades nas suas falas e contações durante a passagem no terreiro
(quem são, de onde vem, sua missão); quando se observa onde sentar-se, onde
não entrar, no que tocar e o que cantar para acompanhar os trabalhos; quando se
escuta as orientações acerca de quais ingredientes da natureza usar para tomar
os banhos ou os chás recomendados pelo pajé, durante a incorporação; quando se

aprende a moral repassada por eles (as entidades) sobre caridade, suas missões
1222 nesta terra e cuidado com o divino. Tudo isso compõe o processo educativo.
• Essas são, contudo, formas sutis de percepção de uma aprendizagem
ocorrida no espaço do terreiro, onde estão em questão atitudes como observar,
escutar, comportar-se, entre outras. Mas é no rito de iniciação que o sujeito pajé
assumidamente revela a postura de um educador ao conduzir aqueles que irão
“desenvolver sua mediunidade”. Nas suas palavras:
2 Me considero um educador porquê de acordo com o que a gente vai trabalhan-
do, porque já é dezoito anos que eu trabalho, a gente vai adquirindo experi-
ência, e aquilo ali, um pouco, a gente já vai tentando repassar (Pajé Robson,
0 entrevista, nov. 2017).

1 Para entender como ocorre o rito de iniciação no terreiro de pajelança,
busquei conhecer um pouco da trajetória de vida do pajé Robson. Em um de nossos

diálogos, pude registrar sua narrativa sobre como se descobriu na pajelança, o
8 que vivenciou, o sofrimento do início por não conseguir compreender sobre o que
chama hoje de “dom divino”.
Seu Robson teve o primeiro contato com a pajelança ainda na adolescência,
aos 14 anos, quando se mudou para Colares. Nasceu na cidade de Belém, mas a
família de sua mãe residia na ilha. Destaca que a pajelança faz parte da história
da família, com tios e avós que também atuavam em trabalhos de cura. Mas foi ao
chegar à ilha, num trabalho conduzido por seu tio Luiz Pantoja, que ele conheceu o

5  Cigarro feito da casca da própria árvore.


ritual pela primeira vez, endereçado a uma tia que, estando muito doente, buscou
a ajuda nas entidades.
Porém, foi apenas aos 16 anos de idade que Robson começou a passar mal
com visões, desmaios, os quais tendiam a aumentar se estivesse nas proximidades
das praias, igarapés e matas da ilha. Mesmo assim, seus familiares não cogitaram,
inicialmente, a possibilidade de estar desenvolvendo um dom espiritual.
Em uma das vezes que sentiu a presença das entidades que queriam
J “buscá-lo”, segundo sua narrativa, o pajé Robson conta que desapareceu por dias
e foi encontrado dentro da mata com as roupas rasgadas e alguns machucados
A pelo corpo.
A primeira conclusão da família foi que Robson sofria com problemas
L psiquiátricos, motivo pelo qual procurou por ajuda médica em Belém. Segundo
ele, foi um período muito difícil em que chegaram a cogitar sua internação por
L acreditarem ser um quadro de loucura. Nesse mesmo período, já por volta de
seus 17 anos, abandonou os estudos na escola local Norma Guilhon, em Colares,
quando cursava o primeiro ano do ensino médio, pois não conseguiu mais suportar
A as fortes dores na cabeça, insônias, visões e desmaios.
Segundo seus relatos, todas as manifestações que ele sentia àquela
época, nervosismo intenso, dores de cabeça e problemas de memória, já eram as
entidades que queriam iniciar as incorporações, porém ele não sabia. Mas em um
certo dia, dentro de sua casa, na presença de sua mãe, sem nenhum preparo inicial

para isso, Robson incorporou o caboclo Manezinho que orientou sua mãe a buscar
1223 ajuda de alguém que pudesse realmente desenvolver seus dons espirituais ao invés
• de procurar pelos “homens de casaco branco” (os médicos). Caso contrário, ele
ficaria em estado de “loucura”.
Depois desse ocorrido, a família decidiu levá-lo a um pajé conhecido na
região como Dudu, que residia no município vizinho de Santo Antônio do Tauá,
distante aproximadamente 23 Km de Colares, para que o mesmo pudesse orientar
2 em seu tratamento, já que se passou a considerar que os problemas de Robson
poderiam ser tratados pelo viés espiritual.
0 Imediatamente, o pajé Dudu, ainda atuante na região, observou que
Robson tinha o dom da pajelança e um dom de nascença. Segundo os antropólogos
1 Maués e Villacorta (2011), existem dois tipos de pajés: os de nascença, que é quando
a criança “chora no ventre da mãe”, o que ocorreu no caso de Robson, segundo

seus relatos; e os de agrado, ou seja, aqueles escolhidos pelos caruanas, os quais
8 desenvolvem seu dom por meio de simpatia. Ambos os casos enfrentam crises em
suas vidas no início das incorporações, necessitando, portanto, de um mestre, um
pajé experiente, alguém capaz de orientá-los.
Na fala do pajé Robson, destaca-se a necessidade de se ter um guia
espiritual que conduza o processo de amadurecimento do dom descoberto. Embora
afirme que, após a aceitação de sua missão na pajelança, tenha muitas vezes
seguido apenas as orientações das entidades sozinho em sua casa, também aponta
a importância de aprender com alguém já experiente como o pajé Dudu a quem a
família foi buscar ajuda.
Ao considerar a trajetória de vida do pajé Robson, é possível afirmar que
toda a relação travada consigo mesmo, com seus familiares, com as entidades e,
posteriormente, com o pajé que o iniciou, é permeada por processos educativos. Um
caminho que, segundo ele mesmo, exigiu um esforço pessoal, empenho, dedicação,
como qualquer outra aprendizagem. A pajelança se mostra, assim, como uma
atividade que, para se praticar, também se precisa aprender.
Dessa forma, as práticas da pajelança se revelam como fonte de educação,
J que está para além dos seus ritos no terreiro, posto que pressupõe uma rede de
sociabilidade entre os sujeitos envolvidos, sejam eles humanos ou entidades. Uma
A educação que surge a partir da aceitação de um dom como missão, como a própria
vida ressignificada a partir disso.
L Não obstante, destaca-se então que a lógica dessa educação não pode ser
pensada por um viés hegemônico tradicional da forma que se pensa a aprendizagem
escolar, por exemplo. O que se busca destacar neste trabalho é uma educação
L
pautada na lógica do cotidiano, do aprender consigo, com o outro e com a magia
dos seres encantados. É preciso pensá-la a partir de uma lógica própria, envolta
A nos modos e olhares próprios dos sujeitos que a vivenciam.
Diferentemente, ao discutir a lógica da ciência moderna sob uma
perspectiva abissal, Santos (2010) aponta para um “sistema de distinções”, ou
seja, um sistema em que a divisão entre o que é legitimado enquanto conhecimento
válido e o que não é torna-se o ponto fundamental para embasar a crítica a esta
• forma de equacionar os conhecimentos no mundo.
1224 Afinal, a partir de qual paradigma se constitui este pensamento abissal,
• no qual apenas uma parcela, que se julga erudita, detém os espaços e a produção
do conhecimento? E mais: apenas esta parcela é capaz de dizer, sob a ótica da
tal ciência moderna, que este ou aquele conhecimento é válido em detrimento de
tantas outras formas de saber e conhecer a vida e o mundo.
As intervenções no mundo real que favorece tendem a ser as que servem
2 os grupos sociais que tem maior acesso a este conhecimento. Enquanto as
linhas abissais continuarem a desenhar-se, a luta por uma justiça cognitiva
não terá sucesso se se basear apenas na ideia de uma distribuição mais
0 equitativa do conhecimento científico. (SANTOS, 2010, p. 48).
Assim, quando me proponho a levantar questões no campo da educação
1 em que se discutam práticas outras de resistência como de uma cultura que por
muito tempo se tentou invisibilizar, no caso da pajelança, não posso deixar de
8 questionar em que linha se costura essa produção de conhecimento: permanece
a exclusão de uma linha abissal ou se desafia a ir adiante, na busca por uma
copresença nessa produção de conhecimento, onde sujeitos ditos subalternos sejam
ouvidos e reconhecidos como fundamentais para a construção desse pensamento
pós-abissal?
O pensamento pós-abissal pode ser sumariado como um aprender com o
Sul usando uma epistemologia do Sul. Confronta a monocultura da ciência
moderna com uma ecologia de saberes. É uma ecologia, porque se baseia no
reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos (sendo um
deles a ciência moderna) e em interacções sustentáveis e dinâmicas entre
eles sem comprometer a sua autonomia. A ecologia de saberes baseia-se na
ideia de que o conhecimento é interconhecimento. (SANTOS, 2010, p. 44 e
45)

Arroyo (2014) quando escreve sobre Outros Sujeitos, Outras Pedagogias,


discute sobre uma pedagogia moderna que também se configurou a partir de um
pensamento colonizador. E que em toda a sua trajetória, mesmo atravessando
diversas correntes de pensamentos, incluindo as correntes mais críticas, ainda
J sim se pensou a pedagogia como um processo pronto, num espaço definido (o
escolar), no qual os “sujeitos aprendizes” chegam “vazios” e saem “melhores”, se ali
A se dedicarem.
Numa perspectiva decolonial, Arroyo provoca reflexões sobre essa lógica
L de produção do conhecimento. De onde parte e para onde vai. Ao falar dos coletivos
sociais que se mostram formados como Outros Sujeitos, revelando outra história
da educação. Uma história contada a partir deles.
L
Logo, questiona-se a pedagogia que está posta a atender tanta diversidade
sem partir desses Outros sujeitos heterogêneos e que já trazem consigo uma
A pedagogia da resistência. Resistem à exclusão, à desigualdade, à dominação
pretendida por uma elite circunscrita nos moldes eurocêntricos de poder.
As teorias pedagógicas não põem em prática concepções, epistemologias de
educação trazidas de fora, do centro civilizado e civilizador, mas foram ges-
tadas na concretude do padrão de poder/ saber colonizador, nos processos
• concretos de dominar, submeter os povos originários, indígenas, negros,
mestiços, trabalhadores livres na ordem colonial escravocrata. (ARROYO,
1225
2014, p.11).

E o que proponho a discutir neste artigo parte exatamente deste engodo
ou da tentativa de tentar suprimi-lo. Uma perspectiva de produção e organização
de conhecimento pensada a partir do Outro, na qual a episteme parta do seu lugar
e a partir dele. Que este Outro não seja apenas ouvido numa lógica de reprodução
ocidental da ciência, mas que tenha espaço para voz e que seus saberes ganhem
2
a dimensão de legitimidade do que é dito conhecimento para o mundo ocidental.
É o que Grosfoguel (2010) diz quando aponta para uma epistemologia descolonial:
0 Salvo raras excepções, os estudos dedicados à globalização, os paradigmas
da economia política e a análise do sistema-mundo não tiraram as ilações
1 epistemológicas e teórica da crítica epistémica proveniente dos lugares su-
balternos cavados pelo fosso colonial, que encontraram expressão no meio
académico através dos estudos étnicos e dos estudos feministas. Com efeito,
8 essas abordagens continuam a produzir conhecimento através dos olhos de
deus, a partir do ‘ponto zero’ do homem ocidental. Isto gerou importantes
problemas no que respeita a forma como conceptualizamos o capitalismo
global e o ‘sistema-mundo’. Estes conceitos precisam ser descolonizados e
tal só pode ser conseguido por meio de uma epistemologia descolonial que
assuma abertamente uma geopolítica e uma corpo-política do conhecimen-
to descoloniais como ponto de partida para uma crítica radical. (GROSFO-
GUEL, 2010, p. 411, grifo do autor).

Para Grosfoguel (2010), é preciso que a fala desse sujeito Outro e o lugar
de onde ele fala estejam enunciados, postos, sem intérpretes de fora. É o que se
chama de geopolítica e corpo-político. Logo, deve haver relação entre o sujeito da
enunciação e o lugar epistêmico. Ou seja, é preciso pensar epistemologicamente
como aqueles situados no lado oprimido da diferença colonial e não como aqueles
que se encontram em posição dominante.
Nesse sentido, uma reflexão sobre os saberes da pajelança, e esta como
uma cultura que se mantem e resiste à opressão desde o processo colonizador,
remete este estudo a pensá-la como uma episteme outra que possa ser construída
J a partir desse Outro, o sujeito pajé, numa interlocução possível na proposta de um
paradigma científico contra hegemônico.
A Contudo, entendo o sujeito Outro de meu estudo, o pajé Robson, como
um sujeito de conhecimento, que traz sua lógica de organização e de troca desse
L conhecimento, por meio dos saberes que circulam em suas práticas.
Logo, não posso me desprender da ideia de se pensar com urgência uma
L epistemologia a partir do Outro, na qual o olhar do pesquisador não o nega, não
o classifica, não o representa. O pesquisador apresenta. Torna visível por meio
de uma ciência que esteja para além da linha abissal. Reconhece esses saberes
A outros desses Outros sujeitos, que sempre estiveram aqui e que resistiram ao longo
do processo colonizador. Assim, “repensar o mundo colonial/ moderno a partir
da diferença colonial altera importantes pressupostos dos nossos paradigmas.”
(GROSFOGUEL, 2010, p. 418).
Pajé Robson assume em suas narrativas a postura de educador, quando

possibilita que se possa conhecer os rituais de cura e as entidades, a partir de
1226 seu olhar e de suas práticas. Sua narrativa assume, nesta pesquisa, a função
• de revelar e fazer pensar sobre a existência de um modo outro de perceber os
processos educativos para além do território da escola.
Arroyo discorre sobre as literaturas que partem de uma educação
popular, a qual vê a educação como um processo de humanização, uma pedagogia
em movimento. Assim, ao citar as reflexões e práticas educativas de Paulo Freire na
2 pedagogia da prática da liberdade e do oprimido, afirma que sua importância está
em passar a atenção dos objetos e métodos, dos conteúdos e das instituições para
0 os sujeitos, “sujeitos de sua educação, de construção de saberes, conhecimentos,
valores e cultura. Outros sujeitos sociais, culturais, pedagógicos em aprendizados,

em formação” (ARROYO, 2014, p. 27).
1
Logo, ao se revelar a prática educativa na pajelança, emerge a discussão

acerca desse sujeito educador representado aqui pelo pajé Robson, a educação
8 que permeia o terreiro, sua lógica, sua cultura, suas relações. Na tentativa de
compreender essa dinâmica, é preciso que se pense a partir de uma outra ideia
de pedagogia que não aquela circunscrita pela modernidade eurocêntrica, mas a
partir de sujeitos que resistiram a isso e que mantém vivas tradições milenares em
sua forma de educar, de se reinventar numa educação em que o humano é apenas
uma das formas de se conhecer, que a espiritualidade envolta das práticas de
pajelança passe a ser considerada na construção dessa outra pedagogia: dialógica
e cultural.
Considerações finais
Ao refletir sobre o estudo deste artigo, reporto-me à linha Pesquisa
“Saberes Culturais e Educação na Amazônia” do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade do Estado do Pará, a qual tenho minha pesquisa de
mestrado vinculada, e que traz como grande desafio a possibilidade de traçarmos
caminhos de pesquisa por campos epistemológicos que nos possibilitem avançar
no sentido de transpor a linha abissal imposta pelo paradigma da ciência moderna.
J As pesquisas desenvolvidas nesta linha seguem uma lógica contra
hegemônica quando passam a olhar e dialogar com práticas educativas de grupos
A até então subalternizados, avançando no sentido de conhecer o Outro e suas
diferenças; as experiências desse Outro, suas práticas cotidianas, como o estudo
L das práticas educativas na pajelança aqui tratado.
Em meio a tantas transformações num espaço globalizante atual é
L possível negarmos outras formas de ser e saber no mundo? De que maneira o
pesquisador se apresenta na atualidade, quando urge a necessidade de se pensar
a partir de grupos que resistem a este epistemicídio proporcionado por uma
A ciência excludente, e resistem por meio de sua cultura, suas tradições, suas lutas
e espaços? Urge sim, pois num mundo onde a desigualdade social e todo tipo de
preconceito estão postos a serem enfrentados, não se pode pensar em qualquer
campo de conhecimento em que não pese o olhar a estes sujeitos, como sujeitos
que constroem seu conhecimento, validam suas práticas de resistência e gritam no

invisível, no inaudível.
1227 Pesquisar sobre saberes e práticas educativas da pajelança me coloca
• o desafio de colaborar com as pesquisas no campo das religiões que compõem o
universo da encantaria no Brasil, em particular na Amazônia, na tentativa de dar
visibilidade ao processo educativo que favorece suas resistências e o enfrentamento
à intolerância, ao preconceito e toda forma de opressão que essas religiões têm
enfrentado.
2 Portanto, trazer as experiências educativas de grupos subalternizados
para a academia pode colaborar na construção de um novo olhar, uma epistemologia
0 a partir do Outro, pensada a partir de um projeto intercultural e descolonizado.
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J

A

L ENTRE DISCURSOS E IDENTIDADES: A INFLUÊNCIA
DO MOVIMENTO AUTONOMISTA NA FORMAÇÃO DA
L JURUAENSIDADE

A Thiago Muniz da Silva (UFAC)
RESUMO: Cruzeiro do Sul, cidade localizada no extremo oeste do país e que
apresenta na construção da identidade dos que nasceram no Vale do Juruá, os
discursos de autonomia e independência. Esses que foram construídos desde a
fundação da cidade e que se perdura até a contemporaneidade. Pode-se dizer que
• o marco inicial desse processo ocorreu com o Movimento Autonomista de 1910
1229 no município de Cruzeiro do Sul, então cidade-sede do Departamento do Juruá.
O objetivo deste artigo é o de analisar a influência do movimento autonomista de
• 1910 para a construção do discurso e da identidade para quem mora na região
do Juruá. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica em que se terá como referencial
teórico Hall (2005) e Foucault (1998). Num primeiro momento será realizada uma
reflexão teórica, depois será dado um aparte histórico do movimento autonomista,
para, em seguida, analisar a influência deste na literatura, na música e nas artes,
2 no município de Cruzeiro do Sul.
Palavras – chave: Juaruaensidade. Discursos. Autonomia. Independência.
0 Identidade.
Introdução
1 Habitar na Amazônia não é algo fácil, ainda mais para quem mora no
extremo oeste do país em que para muitos é a representação do isolamento e da
8 falta de civilidade. Cruzeiro do Sul é uma cidade ambígua por excelência, pois ao
mesmo tempo em que as belezas naturais trazem o encanto e o deslumbre para
quem a vê pela primeira vez, os problemas sociais aos quais está submetida se
configura uma anomalia a ser vencida.
Os rios e os igarapés que cortam a cidade, são as veias de penetração
dos primeiros aventureiros que aqui chegaram. Assim como são os caminhos pelos
quais os ribeirinhos possam se deslocar de um lugar para outro a fim de manter
sua subsistência.
Cruzeiro do Sul está situada às margens do Rio Juruá. É conhecida por
seus moradores como a “Princesinha do Juruá” ou também como a “Terra dos
Náuas”. Suas belezas naturais traduzem ao visitante o desejo de querer voltar para
desfrutar do ambiente e do povo acolhedor. Quando se bebe das águas do Juruá,
surge a compreensão de pertencimentodo estrangeiro quanto autóctone da região.
Ao passo que o juruaense é conhecido como um sujeito batalhador, é visto
também como alguém aguerrido que consegue vencer as agruras do isolamentoe
da distância geográfica das grandes metrópoles do país. Um exemplo deste fato, foi
J o movimento autonomista que se instaurou em 1910.
O objetivo deste artigo é o de analisar a influência do movimento
A autonomista de 1910 para a construção do discurso e da identidade para que mora
na região do Vale do Juruá. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, pois se terá
L como referencial teórico Hall (2005) e Foucault (1997). Esse estudo é significativo
visto que trará uma discussão acerca da juruaensidade, dificilmente debatida em
textos.
L
Num primeiro momento serão mostrados os conceitos de discurso e
identidade defendidos por Foucault (1997) e Hall (2005). Em seguida, descrito
A como se deu a eclosão do Movimento Autonomista em Cruzeiro do Sul para depois
se compreender a influência desse na formação discursiva do Vale do Juruá. Para
tanto, serão analisados poemas e canções de cor local para se tentar compreender
esse processo.

• Entre discursos e identidades


A sociedade é inserida numa gama de discursos proferidos por pessoas
1230
e sujeitos sociais. Alguns discursos são falaciosos, mas que apresenta um elevado
• número de adeptos como no caso da política. Outros ideológicos que concentram
pensamentos e ideias em torno de uma determinada visão de mundo, e há, ainda,
aqueles que influencia o meio social no decorrer da História.
No caso do Vale do Juruá, o discurso de autonomia e independência
surge desde a fundação da cidade de Cruzeiro do Sul. Para Foucault o discurso é
2 especificado como:
Um conjunto de regras anônimas, históricas sempre determinadas no tem-
0 po espaço, que definiram em uma dada época, e para uma área social, eco-
nômica, geográfica, ou linguística dada, as condições de exercício da função
enunciativa. (FOUCAULT, 19997, p. 43).
1
Em outras palavras, o discurso influencia pessoas, impondo a essas
8 um limite de acordo com a situação discursiva do contexto em que ela se insere.
Conforme Souza (2006), “para Foucault, todo conhecimento é determinado por uma
combinação de pressões discursivas, institucionais e sociais” (SOUZA, 2006, p.61),
ou seja, o discurso faz com que o poder seja imposto através dos “graus envolvidos
nas relações” (SOUZA, 2006, p.63). Infere-se neste sentido de “que sempre há um
alguém dominante, com poder, e um alguém dominado, sem poder” (SOUZA, 2006,
p.63).
Diante disso, nota-se que se há poder num determinado lugar,
consequentemente haverá resistência. Segundo Said (1993) há dois tipos de
resistência, a primária que é quando “literalmente lutando contra a intromissão
externa” (SAID, 1993, p. 325), e se tem a ideológica,“quando se tenta reconstituir
uma “comunidade estilhaçada, salvar ou restaurar o sentido e a concretude da
comunidade contra todas as pressões do sistema colonial” (Said, 1993, p.325). É
neste segundo caso em que se percebea presença dos discursos, pois “na teoria de
Foucault, a linguagem é o lugar onde as lutas acontecem” (SOUZA, 2006, p.64).
O modelo de relação de poder defendida por Foucault é visto, também, no
Vale do Juruá. O Gregório Thaumartugo de Azevedo em 1904 ao fazer seu relatório
J à União sobre os informes acerca da recém fundada, Cruzeiro do Sul, deixa claro
essa relação. Para o fundador, o decreto de nº 15 que institucionaliza a “Lei do
A Trabalho” corresponde uma das maiores necessidades na região. Para ele:
Este decreto corresponde a uma das maiores necessidades da região. A es-
cala de trabalho allipóde classificar-se: o trabalhador explora a seringa, o
L patrão explora o trabalhador, e os commerciantes do Pará e Manáos explo-
ram os patrões. (AZEVEDO, 1904, p.6)1
L
Vê-se que a relação de poder era bastante nítida na época da fundação
da cidade. A dependência de Manaus por muitos anos foi bem marcante, a maioria
A das mercadorias era transportada por balsas por meio dos rios. Por outro lado, no
que tange ao Vale do Acre, o discurso internalizado é de independência, justificada
pela falta de integração entre os Vales do Acre e Juruá.
Portanto, o acesso por rodovias, em toda a mesorregião do Alto Juruá sem-
pre se limitou, até os anos 80, às estradas intermunicipais e vicinais; duas
• ligando Cruzeiro do Sul aos municípios vizinhos de Mâncio Lima e Rodri-
gues Alves (no Acre), com cerca de 43 km e 40 Km, respectivamente; outra
1231
ligando Cruzeiro do Sul ao município de Guajará (no Amazonas), com cerca
• de 21 Km. (LIMA, 2015, p. 180)

Diante disso, verifica-se que os discursos construídos no vale do Juruá


no decorrer do tempo, gerou uma identidade caracterizada pela autonomia de uma
região isolada histórica e geograficamente. Trata-se, portanto, de um processo em
construção. Segundo Hall (2005):
2 Assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de
processos inconscientes, e não algo inato, existe na consciência no momen-
0 to do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua
unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”,
sempre “sendo formada”. (HALL, 2005, p.38)
1
Logo, um sujeito, ao nascer, não tem sua identidade formada, pois
8 essa vai sendo construída por intermédio do contato em que aquele vai ter com
outros sujeitos, circunstâncias e valores enraizadas no seu inconsciente. Na
contemporaneidade, com o advento da era da informática e com a globalização, o
mundo rompe suas fronteiras físicas com o uso da internet e “essas transformações

1  Fragmento retirado do relatório de viagem escrito por Gregório Thaumartugo de Azevedo


datado no dia 30 de maio de 1905. Trata-se de um documento xerocopiado e repassado ao autor
do artigo pela professora Engrácia Cameli Messias Cadaxo. Ela teve acesso ao documento quando,
ainda, era Secretaria Municipal de Educação no período de 2001 a 2004, na cidade de Cruzeiro
do Sul, durante a gestão do Deputado Federal César Messias. Contudo, tal documento possui sua
autenticidade e valor histórico.
estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos
de nós próprios como sujeitos integrados” (HALL, 2005, p.9).
É o que Hall (2005) chama de crise de identidade, pois “as velhas
identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio,
fazendo surgir novas identidades fragmentando o indivíduo moderno” (HALL,
2005, p.7). Para quem nasce em Cruzeiro do Sul não é diferente. Em relação ao
Acre, o discurso verificado é o de autonomia e independência. No que se refere a
J região Norte, fala-se, não da região do Juruá em específico, todavia o cruzeirense
cita o Acre como o melhor lugar para se viver. No que tange ao Brasil, o discurso
A é modificado para a história de lutas e conquistas, ou seja, “dentro de nós há
identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que
L nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas” (HALL, 2005, p.13).
O movimento autonomista no Juruá
L A Amazônia é uma construção discursiva inventada e reinventada ao longo
dos anos. Trata-se, portanto, de uma invenção. O Acre está situado neste contexto,
pois o próprio nome surgiu através de um erro. O seu nome emerge no cenário
A
histórico do país a partir de 1850, quando surgiram as tropas expedicionárias na
região comandadas por William Chandles.
Ao Acre acorreram levas de nordestinos, retirantes das periódicas secas.
Tudo por iniciativa particular. Nada, absolutamente nada, de planejamento,
disciplina ou ordem social. Cada um por si. Era terra-de-ninguém, embora
• oficialmente boliviana. Foi uma “colonização à gandaia”, no dizer do autor
1232 de Os Sertões. (BARROS, 1993, p. 30)

• No excerto, está claro a falta de organização e o caos que havia se instaurado


no Acre. Com o tratado de Ayacucho que delimitou os limites territoriais entre
Brasil e Bolívia, as terras do Acre estavam situadas em solo boliviano. Entretanto,
a maioria dos sujeitos que residiam na região eram brasileiros, além, é claro, de
estrangeiros de várias nacionalidades. Era, portanto, uma quase Babel, uma terra
2 de ninguém. Um Acre estrangeiro.
A importância da região se dava por conta da borracha. Segundo Barros
0 (1993), a Bolívia assume a terra, mas não tinha a soberania, para isto busca apoio
internacional. Os brasileiros que residiam não concordaram com os impostos
cobrados e neste emaranhadopolítico e social ocorre a Revolução Acreana, que é a
1
representação da luta de um povo para se tornar brasileiro.

Em 1903 é assinado o Tratado de Petrópolis e finalmente em 1904 o Acre
8 é incorporado ao Brasil. O território, então, é dividido em três departamentos: Alto
Acre, Purus e Juruá. O Departamento do Juruá tem como cidade sede o município
de Cruzeiro do Sul. Fundado por Gregório Thaumartugo de Azevedo, em 28 de
setembro de 1904, às margens do Rio Juruá.
O próprio Hino de Cruzeiro do Sul traduz a imensidão da terra, de onde uma
bela cidade ruidosa emerge no meio da mata orvalhada. Terra habitada pelo índio
bravio, mas que com a exploração da borracha o lampejo do sol do progressosurge e
douraufano este belo alcantil. Cruzeiro do Sul é uma cidade, que assim como Acre,
o povo lutou e até hoje luta pelo reconhecimento.
De seringal à capital do Departamento do Juruá desponta no cetim da
esfera dourada, a chamada Princesinha do Juruá. A luta pela sua independência
proclamada pelos filhos que o Norte criou é alvorecida pela implantação do Partido
Autonomista em 1910.
Sob o ponto de vista político-administrativo, pesavam os decorrentes das
alternâncias do poder exercido pelas oligarquias predominantemente me-
ridionais e litorâneas, que levavam ao descaso as mais extensas regiões do
J País: a Centro Oeste e a do Norte, em particular a exuberante Amazônia.
(BARROS, 1993, p.68)

A A cidade é representada por um lugar distante, vazio e de difícil acesso,
fazendo com que a União não se preocupasse com as regiões mais inóspitas do

país.
L
Isto levou, alguns idealistas daquelas placas, a se unirem em torno do veio
a ser o Partido Autonomista. Aspiravam ingenuamente que com a transfor-
L mação do Território em um Estado, uno e indiviso, apesar das tão frisadas
peculiaridades, na época, impossibilitando as comunicações, estas não afe-
tassem a unidade governamental. (BARROS, 1993, p.68)
A
Dessa forma, o surgir do Partido traz à tona o querer de autonomia e
independência pelo qual o povo do Juruá almejava. Criado em 1º de junho de 1910,
foi composta por Mâncio Rodrigues de Lima, João Bussons e Francisco Freire de
Carvalho. Entre as várias propostas, a inicial era a transformação do Território
• em Estado da Federação. Segundo Barros (1993), além disso queriam a divisão do
1233 Acre em dois Departamentos, sendo que “após dois anos, os dois Departamentos
se transformariam em dois Estados com a realização prévia de eleições gerais para
• o preenchimento de todos os cargos” (BARROS, 1993, p. 66).
O clima de descontentamento era grande, fazendo com que surgisse “a
revolta que ficou conhecida por sua duração” (BARROS, 1993, P. 68), Cem Dias,
fora assim que ficara conhecida. João Cordeiro era o que governava o Alto Juruá,
e este foi deposto da cidade.
2 Sem reação, no Moa, embarcou, no dia seguinte, o Prefeito deposto.

0 Foram-lhe prestadas homenagens com discursos e agradecimentos pela sua
compreensão, evitando reações com possibilidade de derramamento de san-
gue.
1
Descendo o Juruá, rumou para Manaus. (BARROS, 1993, p.69)

8 No trecho, constata-seque a revolução ocorreu por meio do discurso e das
ideologias. Uma forma de resistência instaurada na capital do Juruá e quesuscitou
a expulsão do prefeito escolhido pelo governo federal. Após idas e vindas como o
próprio Barros descreve “melancolicamente findou-se a “Revolta dos Cem Dias””
(BARROS, 1993, p.71)
Contra os envolvidos nada ocorreu. Sem ressentimentos, retornaram às
suas atividades, projetando-se, a maioria, na vida pública e na sociedade lo-
cal. Não poderia ser de outra forma. Eram idealistas que tão-somente aspi-
ravam dias melhores para o tão desprezado Acre, reconhecimento entregue
ao deus-dará, pela União. (BARROS, 1993, p.71)
A luta por dias melhores é nítida no excerto. Os autonomistas eram
idealistas que desejavam um Acre mais sólido e reconhecido, não apenas como um
local distante, habitado por nativos e sujeitos à mercê da sorte, todavia como um
ambiente em que pudesse trazer benefícios ao país.
A obra Amazônia Ocidental: a cidade-sede do Alto Juruá revelada de
Raimundo Carlos de Lima traz o conteúdo escrito do Manifesto Autonomista do
Juruá. No excerto, os autonomistas reivindicam um maior repasse financeiro
J do governo federal para o território do Acre, além disso cita a falta de estradas,
indústrias e comércios e da taxa de analfabetismo que é bastante elevada.
A Somos brasileiros mas dentro do País é como se estrangeiros fossemos; so-
mos republicanos, muito de nós tem história política no seus Estados, a Re-
pública não nos deve negar os benefícios da democracia; somos civilizados,
L nossos irmãos não nos devem olhar como selvagens indignos de intervir na
direção de nossa pátria. (LIMA, 2015, p.91)
L Ser estrangeiro dentro do país é a representação do sentimento de rejeição
que eles tinham diante da república brasileira. Há a ênfase da história política que
A cada pessoa possuía dentro dos seus estados de origem, além de deixar claro que
não são selvagens, ao contrário, são sujeitos civilizados e que podem contribuir para
o crescimento do país. E finaliza “o Território do Acre, pois, precisa urgentemente
de sua autonomia para poder progredir” (LIMA, 2015, p. 92).
A influência do movimento e a construção da juruaensidade

O Movimento Autonomista trouxe influência que até hoje se configura na
1234 identidade para quem habita no Vale do Juruá. Se qualquer sujeito de Cruzeiro do
• Sul sai da terra rumo a capital e se questionado sobre sua origem, responde sou
do Juruá. O rio representa neste caso não apenas as vias de acesso, mas a própria
identidade de um povo.
Frases do tipo: aqui tem a melhor farinha, tem-se os melhores mandins,
os melhores igarapés de águas correntes são recorrentes para quem mora e é “cria”
2 de Cruzeiro do Sul. Essa identidade de supremacia, autonomia e independência é
vista desde a fundação ideológica, representada pela Revolução do Cem Dias.
0 Essas características estão presentes nos discursos políticos e
principalmente em letras de canções e na literatura local. Na obra Acre: prosa e
1 poesia, a autora Laélia Maria Rodrigues da Silva afirma que os poemas escritos no
Acre e publicados nos jornais de circulação, da década de 10 e 20, do século XX,

tinham como temática a celebração da terra e sugeriam “os nexos estabelecidos
8 entre a concepção de unidade nacional e conquista desse Território” (SILVA, 1998,
p.89).
Minha terra cá do norte
Rica herança Deus me deu
Terra virgem, bela e forte
O futuro é todo teu
Exulta ó minha Amazônia
Eu creio no teu porvir2

2  O Rebate, Cruzeiro do Sul, 31 out. 1927.


Nos versos, é perceptível a valorização da terra e a esperança de que dias
melhores virão. Os adjetivos de virgem, bela e forte dados a terra, é a compreensão
da magnitude e imponência que ela possui tanto para o autóctone quanto para
estrangeiro.
Cruzeiro do Sul
Minha terra querida
Nunca és esquecida
J Tens o céu sempre azul
Tuas linda morenas
A Teu Rio Juruá
Tuas matas serenas
L Onde canta o sabiá 3


L Assim como Gonçalves Dias descreveu na Canção do Exílio um Brasil
com a valorização da terra, Silvio Carvão descreveu Cruzeiro do Sul, mostrando

o que há de mais relevância nela: as lindas morenas, o rio, as matas e o canto do
A sabiá. Malgrado, ter o ufanismo como característica, o autor revela o deslumbre
que sente pela cidade, além da saudade.
Já nos dias atuais, o discurso de autonomia e visão de que Cruzeiro do
Sul é a melhor cidade do Acre ainda é visível. Em 2013, ocorreu na cidade o evento
Dança da Galera promovido pela Rede Globo de Televisão. Cruzeiro do Sul concorria

com a cidade de Guararipi, no Espírito Santo e vence o concurso televisivo.
1235 (...) a participação desta cidade, importante, porém longínqua em relação
• aos grandes centros, foi motivo de orgulho para os cruzeirenses e também
para os acrianos. O desempenho foi espetacular e emocionante. (LIMA,
2015, p.402)

Observa-se que o autor demonstra o orgulho pela vitória da cidade, mas


faz uma distinção entre cruzeirenses e acreanos. Embora, não tendo esta finalidade,
2 o fato é que o discurso de independência se faz presente no inconsciente de quem
mora no Vale do Juruá.
0 Como é bom sonhar, poder recordar

Vendo cinco estrelas num céu todo azul


Eu quero é cantar pra um dia brilhar
1
Tua história é meu canto

Cruzeiro do Sul...
8
Vocês lembram do cais,
Encontro das águas
Que vem e que vão
Formando remanso com campos
De sonhos viagens demais
(...)
Da ponta do alto

3  Música escrita e composta por Silvo Carvão. Publicada no livro Na Amazônia Ocidental: a
cidade-sede do Alto Juruá revelada de Raimundo Carlos de Lima, p. 394, 2015.
Eu vi os caboclos passar
Na praça de cima
Eu vi os marujos dançar. (...)4

O fragmento acima apresenta um tom saudosista em relação ao temada


canção, que é contar a História da cidade. Nos primeiros versos, o autor deixa
claro o prazer sentido ao relembrar da cidade, o desejo telúrico de que o Brasil a
veja como uma cidade importante. Assim como no Hino da cidade, fala-se sobre
J
o dourar ufano, o brilhar, nesse sentido, ganha o significado de realce no que se
refere ao país.
A A citação dos pontos turísticos e históricos como o cais, a ponta do alto e
as festividadesfolclóricas como os caboclos e os marujos, é a tentativa de consolidar
L a identidade do juruaense. O cais, por exemplo, representa o ponto de partida
da cidade, é a imagem de um local por onde muitos sujeitos chegaram e outros
L partiram.
Logo, percebe-se que a juruaensidade é marcada por prerrogativas
A discursivas que tende a autonomia, independência e amor pela terra. A terra aqui
não é no sentido de solo, mas de pertencimento a um lugar que pode traduzir

os vários sentimentos que se configuraram durante o processo de formação da
identidade do indivíduo.
Considerações finais
• Selva, cidade, índio, progresso, luta, esplendor. Todas essas palavras,
1236 retiradas do Hino de Cruzeiro do Sul são antagônicas entre si, todavia, mesmo
opostas, podem se aglutinar. Nordestinos, imigrantes, aventureiros são outros

vocábulos que se pode acrescentar. Autonomia, independência, valorização da
terra são adicionados, ainda, e é o amálgama de sentidos que todas estas palavras
proporcionam, que torna possível a formação da juruaensidade.
A cidade é fundada, o Movimento Autonomista eclode e o Vale do Juruá
2 ganha novos ares. Mesmo distante geograficamente dos grandes centros, Cruzeiro
do Sul será no universo contemplado por ser um novo estado no chão do Brasil. Na

realidade, o Movimento Autonomista de 1910 é um divisor de águas fazendo com
0 que todos esses discursos se façam presentes no imaginário cruzeirense.

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4  Música Retórica Sentimental composta por Alberan Moraes, gravado em 2002. Publicada no
livro Na Amazônia Ocidental: a cidade-sede do Alto Juruá revelada de Raimundo Carlos de Lima,
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L O DIREITO AO CORPO E À CURA: ESCRAVIDÃO DOENÇA E
MORTE NO VALE DO GUAPORÉ - SÉCULOS XVIII - XX
L
Uílian Nogueira Lima (IFRO)
A Tatilene Silva Oliveira (UNIR)
RESUMO: O objetivo deste trabalho é analisar o quadro das doenças e formas de
tratamento empregadas pelas/às populações escravizadas do Vale do Guaporé e
seus descendentes entre os séculos XVIII e XX. Durante quase 150 anos, os conceitos
da medicina evolutiva e higienista impuseram aos negros a responsabilidade sobre
• os males tropicais que afetavam o Brasil. Tal posição tem sofrido duros reveses.
As formas de entendimento da doença, bem como dos elementos de sua cura
1238
sofreram consideráveis mutações ao longo desse período. A pesquisa é revisão
• da biblio-historiográfica, ligada à questão das doenças envolvendo as populações
que habitavam na região. Os resultados são apresentados na forma da descrição
das doenças e do tratamento, sofridas e praticadas pelas populações locais,
respectivamente. Durante o período colonial e o imperial brasileiro (séculos XVI/
XIX), as práticas medicinais eram exercidas por diversos agentes sociais, tais
2 como rezadeiras, curandeiros e benzedores. A presença de médicos com formação
acadêmica era rara e, quando existente, seus custos eram inviáveis à maioria
0 das populações. Os sertões brasileiros eram territórios de doenças e de morte.
No Vale do Guaporé, as doenças eram consideradas empecilho a toda empreitada
1 colonizadora. A região ficou conhecida como “o Inferno da América”. As expectativas
de vida eram baixas e. as possibilidades de contrair doenças contagiosas muito
elevadas. No conjunto das doenças, pairavam as febres sazonais, encabeçadas pela
8 malária (sezão), mas também outras tantas doenças, tidas como doenças de negros,
essas afetavam as pessoas mais vulneráveis, principalmente os escravizados,
libertos pobres, indígenas aculturados e outros. Os tratamentos eram incertos
e, marcados por práticas híbridas de herbalismo, rezas e devoções religiosas e,
quando possível, integrados a algum elemento medicinal europeu. Só tardiamente,
a medicina científica chegou à região. Doenças e curas ainda portam, em algumas
comunidades, um evidente componente sobrenatural e religioso.
Palavras-chave: Escravidão, doença, morte, cura, populações do Vale do Guaporé.
Introdução
O Vale do Guaporé desde o século XVIII, quando da primeira ocupação
humana mais intensa, que se deu com a chegada das frentes exploradoras de
caráter extrativista, mineradora, militar, catequética e escravista, tem sido palco
de doenças, conhecidas na região como doenças tropicais.
Tão logo a região começou seu processo de povoação, depois de 1799, as
doenças já aparecem como fatores preocupantes, dentre eles o clima, a péssima
J qualidade da água e a quantidade de insetos. Esses fatores de propagação das
doenças, principalmente a malária e a mortalidade da população somavam-se à
A baixa fecundidade das mulheres.
O povoamento está associado fortemente à militarização do distrito do
L Mato Grosso (vale do Guaporé), porque, à época, Portugal precisava integrar os
Estados do Brasil e do Grão-Pará e Maranhão, alargar o comércio entre essas
L distantes espacializações, além de ampliar sua política imperial para deter fronteiras
(CHAVES, 2008).

A Por essa razão a coroa portuguesa intensificou ações para consolidar


domínio direto do Mato Grosso, inclusive em 1741 o Conselho Ultramarino
recomendou povoamento induzido no Mato Grosso, com privilégios e isenções,
enviando Juízes Ordinários, criando fórum, fundando, por fim, a vila de Mato
Grosso em 1746 (ROSA, 2007).
• É, nesse contexto, que as doenças surgem e se proliferam. Nesse sentido,
o artigo objetiva registrar o quadro de doenças que acometiam os moradores do Vale
1239
do Guaporé, considerando o tempo compreendido entre os séculos XVIII e XX, as
• mutações ao longo desse período, a possível presença de médicos e de tratamentos
e as consequências desses males para o processo colonizador da região.
Registramos, inicialmente, aspectos da colonização do Vale do Guaporé,
com eventos que compreendiam o período para, posteriormente, efetivarmos a
descrição das doenças sofridas pela população desse Vale.
2
O Vale do Guaporé dos séculos XVIII a XX

De meados do século XVIII em diante, os interesses coloniais pela região
0
do Vale do Guaporé residiam na exploração de mineração, nas grandes lavouras
tropicais e no comércio monopolista. A necessidade de mão de obra logo se mostrou
1 fator de impedimento a ser resolvido. A escravização dos povos nativos, tanto
na África quanto na América foi a solução encontrada para o desenvolvimento
8 de trabalho pesados, somadas às dificuldades naturais que representaram altos
preços à vida dos que ali estavam e representavam uma maioria dependente do
sistema econômico que ali se instalava.
Como ressalta Nabuco (2000), a constância e a reposição da mão de obra
eram realizadas pelo tráfico atlântico, que mercadejava seres humanos a preços
baratos e, dessa forma, mantinham-se em funcionamento todas as engrenagens do
sistema produtivo. A não-efetividade de mão de obra ocorria pelas vidas que eram
perdidas, precocemente, nas colônias.
A ligação da militarização do distrito do Mato Grosso com o processo
colonizatório se explica na necessidade que Portugal tinha de estabelecer integrações
territoriais e manutenção das fronteiras. As políticas praticadas pela administração
portuguesa alcançavam a capitania de Mato Grosso, mas se constituíam, também,
numa ampla política imperial voltada às regiões que detinham fronteiras com os
domínios espanhóis, após o Tratado de Madri, assinado em 1750.
Se Portugal assim não agisse, isto é, não se preocupasse com o controle
desse trecho da fronteira, haveria, certamente, a continuidade da expansão
J espanhola no Vale do Guaporé, o que colocaria em risco as pretensões geopolíticas
da Coroa portuguesa para essa parte do continente sul-americano. Pretensões
A essas de promoção da integração político-territorial dessa região a Portugal. O que
aconteceu na forma de práticas de missões e de ocupação militar (CHAVES, 2008).
L Desde a sua criação, a capitania de Mato Grosso foi considerada pela
Coroa portuguesa como o “antemural”. Esse adjetivo se justifica no fato de a região
brasileira fazer limite com o Vice-Reinado do Peru. Situação essa que fazia com
L
que o relacionamento de Portugal com os governantes da época, Gomes Freire de
Andrade, Antonio Rolim de Moura Tavares e Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
A entre 1749 e 1753, ocorresse por meio de instruções, para que fosse dada especial
atenção às capitanias fronteiriças com os domínios espanhóis, oportunidade em
que foram elaboradas as diretrizes político-administrativas voltadas para essas
regiões.
Houve assim, após a assinatura do Tratado de Madri ações de cunho geo-
• político direcionadas para as capitanias de Mato Grosso, Rio Grande de São
Pedro e do Pará, onde ficou acordada a fixação dos limites entre as posses-
1240
sões portuguesa e espanhola (CHAVES, 2008, p. 19).

Registra-se, ainda, que as distâncias que separavam a capitania de Mato
Grosso da região sul da América portuguesa e do Estado do Grão-Pará e Maranhão,
no século XVIII, não reduziram os acontecimentos de disputa entre colonos luso-
espanhóis pela posse da Colônia do Sacramento e a eclosão da Guerra Guaranítica,
2 além das disputas entre padres jesuítas, colonos luso-brasileiros e as autoridades
portuguesas na Amazônia portuguesa. Os acontecimentos daqui tencionavam os

conflitos entre Portugal e Espanha, no continente europeu.
0
Índios e negros eram os principais ocupantes da região do Vale, sendo
esses últimos, a maioria, tanto que, segundo dados demográficos do censo de 1872,
1 Cuiabá/MT foi considerada uma Cidade Negra. Cidade que guardava semelhanças
com outros centros urbanos, onde as ruas eram dominadas pelos negros (escravos
8 e livres). Para Reis e Silva (1989), na mais distante Cidade de Cuiabá, na província
de Mato Grosso, havia apenas 1.394 escravos, porém 5.585 de pardos e pretos
livres. Todos representavam 63% de toda a população.
O sustentáculo da empreitada da colonização era o trabalho escravo,
realizado por indígenas locais capturados das mais diversas formas por
bandeirantes e entradistas e, também, pela crescente utilização da mão de obra
negra de origem africana, que serviu como elemento definitivo do projeto colonial
regional. As adversidades ambientais eram graves, limitando o alcance dos esforços
colonizadores e impondo pesadas baixas, principalmente, como já mencionamos,
por conta de doenças tropicais, ao sistema como um todo.
Para estimular a entrada de brancos e outros grupos não escravos de
diversos matizes, mesmo colonos de outras paragens, o governo colonial, recém-
instalado, através do Capitão General Dom Antônio Rolim de Moura Tavares,
futuro Conde Azambuja e Vice-Rei do Brasil expediu “Bandos”1 em diversas partes
da colônia. O terror provocado pela insalubridade local constituiu-se em um fator
desestimulante para migrações expressivas, parte significativa de réus condenados
preferia não comutar suas penas por tempos de residência em regiões como Vila
J Bela, nos arraiais do Guaporé, inviabilizando o projeto colonizador, em uma área
considerada vital para o Estado Português.
A A colonização e as doenças regionais
O Vale do Guaporé foi considerado uma região altamente insalubre, desde
L o período colonial até a primeira metade do século XX. As doenças eram consideradas
o maior empecilho a toda empreitada colonizadora. O primeiro governador colônia,
L Dom Antônio Rolim de Moura Tavares, chamou a região de “o inferno da América”.
Os negros escravizados e seus descendentes estavam entre as maiores vítimas
das doenças regionais e os registros históricos são ricos em detalhes acerca da
A morbidade local e de como as populações escravizadas padeceram sob as duras
condições ambientais da região.
Durante muito tempo teve-se uma visão eurocentrista dos padrões
das moléstias e das formas possíveis de sua cura na região guaporeana. Mas, já
no século XVII, discutia-se a questão das doenças, tendo o navio negreiro como

dispersor dos males atribuídos a escravos em toda a colônia.
1241
As formas de entendimento da doença e dos elementos de sua cura
• sofreram consideráveis mutações ao longo dos anos. No conjunto das doenças
pairavam as febres sazonais, encabeçadas pela malária, também conhecida como
sezão, também outras doenças, tidas como inerentes a negros e que afetavam
as pessoas mais vulneráveis como os escravizados, libertos pobres e indígenas
aculturados. Os tratamentos eram incertos e marcados por práticas híbridas de
2 herbalismos, rezas e devoções religiosas e, quando possível, integrados a algum
elemento medicinal europeu. Só, tardiamente, a medicina científica chegou à
0 região. Doenças e curas ainda portam, em algumas comunidades de quilombolas,
um evidente componente sobrenatural e religioso.

1 Durante quase 150 anos, os conceitos da medicina evolutiva e higienista
impuseram aos negros a responsabilidade sobre os males tropicais que afetavam o

Brasil. Tal posição sofreu e ainda sofre duros reveses.
8
Essa visão de responsabilidade representava uma desculpa que ainda
subsiste culturalmente. Mas é preciso rever essa atribuição, porque populações
inteiras, que haviam sido conduzidas ao cenário colonial adoeceram e morreram
em nome desse projeto colonialista. Ao longo de mais de três séculos as doenças
infectocontagiosas se mostraram como um fator determinante aos limites das
empreitadas colonialistas. Somente em fins do século XIX e, nas primeiras décadas
do século XX, com as conquistas da Revolução Médica e Reforma Sanitária é que
se obtiveram vitórias expressivas nas frentes de colonização.

1  O sentido desse termo está associado ao sentido da lei colonial.


Há um episódio curioso sobre a saúde na época, envolvendo uma atitude
do então presidente da Província do Mato Grosso, conta-se que para assegurar a
saúde pública e evitar contatos e possíveis conflitos,
... em 1877 o Presidente da Província de Mato Grosso, Hermes da Fonseca,
baseando-se nas Posturas Municipais de 1866, proibiu a lavagem de roupas
do Hospital da Santa Casa de Misericórdia e da Enfermaria Militar no Tan-
que do Baú. Ordenou que as roupas destes hospitais fossem lavadas, provi-
soriamente, no Rio Cuiabá/MT, defronte o Acampamento Couto Magalhães.
J A proibição de lavagem de roupa de espaços de cura não se deve apenas ao
impedimento de pessoas, mas à noção de higiene já em pauta nesse perío-
A do, afinal, a varíola já havia se manifestado de forma violenta, assim como a
cólera (PEREIRA, 2016, p. 60).

L Essa atitude ultrapassa a preocupação de cura de uma doença, mas
alcançava a noção de higiene, noção em falta na comunidade negra. Isso,
L consequentemente, prejudicava àqueles com quem os escravos conviviam
seja prestando algum tipo de serviço, seja em outras relações sociais. Alguns
escravos eram incumbidos da tarefa de levar os dejetos humanos para o riacho
A mais próximo, no caso de Cuiabá/MT, no córrego da Prainha, e isso os colocava em
situação anti-higiênica, além de, socialmente, entre os próprios escravos, serem
considerados desclassificados. A tarefa também podia ser encarada como uma
punição que o Senhor aplicava ao escravo por alguma transgressão (PEREIRA,
2016).

Estudos sobre doenças da região do Guaporé, conforme Pôrto (2006),
1242 permitiram e permitem revelações de que populações escravas e outros grupos
• próximos, notadamente os menos protegidos pelo sistema, aqueles que estavam
na linhas de vulnerabilidade social e econômica, no Brasil, foram e continuam
sendo vítimas em potencial de males que ceifaram e ainda ceifam muitas vidas,
seja pelo real descaso por parte da medicina colonial e imperial da época, seja
pela falta de práticas higiênicas A grande preocupação residia nas formas
2 como tais doenças poderiam afetar populações não escravizadas, chegando
aos núcleos do poder senhorial.
0 Dado o conjunto de doenças que afetaram as populações escravizadas
do Vale do Guaporé e seus descendentes, muitas práticas de tratamento foram
desenvolvidas por essas populações para promover a cura dos males que as
1
afligiam, visto que viviam num contexto de ausência total de políticas públicas do
Estado e não contavam com instituições dedicadas ao tratamento das doenças. É,
8 nesse contexto, que o conhecimento popular acerca das propriedades curativas
de determinadas substâncias naturais, como folhas, raízes, frutos e substâncias
animais mesclava-se a uma clara visão sobrenatural dos males naturais que lhes
afetavam a vida.
As primeiras construções sobre as causas das doenças recaíam nas ima-
gens de demônios, que passaram a ser vistos como as principais causas dos
sofrimentos humanos 47, fossem os males físicos das chagas, ferimentos
e moléstias, como também as tristezas, desgraças e privações (BOTERRO,
1997, p. 16-17).
Ainda que seja atribuída ao negro a responsabilidade de proliferação de
doenças e de ausência de hábitos de higiene, reafirma-se que há indícios, de acordo
com Nabuco (2000), que muitas doenças foram importadas, o que talvez possa ser
dito é que os negros podem ter sido os transportadores de algumas delas. Todavia,
somente a eles foi atribuída a responsabilidade, principalmente pelos proprietários
de escravos, viajantes, religiosos e cientistas, além das autoridades que, em geral,
foram ágeis em atribuir aos negros e, também, aos índios as mazelas de uma
J colonização doentia.
No centro da América do Sul os primeiros povoadores tiveram que enfren-
tar terríveis males, entre eles doenças desconhecidas. Anos de misérias e
A pragas ceifavam muitas vidas. Aqueles que sobreviviam ficavam opilados,
pernas e barrigas inchadas, cores de defunto. Verdadeiros moribundos am-
L bulantes, se debatendo com a terrível foice da morte, apoiados em qualquer
arrimo. Tanto os brancos como os negros pareciam ter sua sina marcada:
chegar e morrer na “terra da conquista” (NAUK, 2001, p. 23).
L
Em meio a várias doenças, tidas como naturais e inevitáveis, associada a
A uma visão distorcida de endemias e epidemias, pairava um arcabouço de crenças
mágico-religiosas que atribuía aos males a manifestação física dos humores de
entidades sobrenaturais relativamente aos humanos. Santos, crenças em simpatias
misturavam às crenças em Deus, ao Diabo e a seus exércitos que, na concepção
do doente, puniam ou atormentavam as pessoas, fustigando-as por suas culpas ou
• testando-os em sua fé.
Em áreas remotas, como o vale do Guaporé, o acesso à medicina foi
1243
tardiamente obtido. Até os anos 1980, as formas de tratamento de doenças infecto-
• contagiosas eram precárias e incertas. Razão pela qual a comunidade recorria a
outras formas de tratamento. Com o avanço de uma nova frente de colonização, a
denominada agropastoril, que abriu nova via de acesso, a rodovia BR 429, é que se
pôde pensar em acesso mais regular e popular aos recursos da moderna medicina.
Mesmo assim, doença e crença, cura e morte ainda se encontram amplamente
2 entrelaçados no imaginário das populações locais.
Enquanto a medicina moderna não chegava à região, a cura de doenças
0 contava com a força das crenças, de remédios com plantas naturais, de benzeduras
e rezas.
1 Crenças similares existiam entre ameríndios e africanos. De modo geral, en-
tre eles as causas das doenças graves eram atribuídas às feitiçarias, trans-
gressão de tabus alimentares, regras ecológicas, resguardo pós-parto e des-
8 cumprimento de deveres para com os deuses. O corpo era um sistema em
perfeito equilíbrio, sujeito às intervenções externas (intempéries naturais
como ventos, chuvas, secas e inundações) ou a feitiços. Qualquer distúrbio
significava falta de harmonia das partes com o todo, que procuraram neu-
tralizar por meio de remédios preparados com ervas, raízes e ritos (NAUK,
2001, p. 26).

Com a chegada da medicina à Vila Bela e à Vila do Cuiabá, expressou-


se a tentativa das autoridades locais em promover o progresso na colônia. Além
disso, tratava-se de instruir rapidamente cirurgiões que pudessem deslocar-
se para povoados e arraiais distantes dos principais núcleos urbanos a fim de
atender aos colonos peças fundamentais como garantia física da colônia e como
força de trabalho. A partir daí, a medicina natural passou a conviver a medicina
metropolitana.
... o florescimento das demais artes de cura esteve intrinsecamente ligado
às diferentes raízes culturais das populações aqui residentes. Não foi o re-
duzido número de médicos metropolitanos que estimulou ou proporcionou
o desenvolvimento dessas práticas. Não era a falta de médicos formados que
possibilitava a atuação de curadores considerados ilegítimos. As tradições
J culturais refletidas na arte de curar dos negros e indígenas abriam espaço
para que se disseminassem seus próprios curadores e suas terapêuticas.
A Considerar a medicina lusitana oficial como saber legítimo e todo-poderoso
seria desautorizar outros conhecimentos, à revelia da legitimidade popular
que os assinalava, caindo nas malhas da medicina erudita como a única
L capaz de curar as doenças, vulgarizando as demais práticas (MARQUES,
1999, p. 28).
L Nesse sentido, a doença e a cura entre os povos da colonização vinham de
ambas as formas medicinais – a natural e a moderna, passando a funcionar como
A determinismo geográfico em relação às doenças e aos povos.
Os males tropicais como a malária e as febres sazonais foram os maiores
inimigos enfrentados pelos colonizadores. Entretanto, nem todas as doenças locais
tiveram procedência externa à região, foram trazidas pelos os negros, muitas já
preexistiam, desde antes de escravos, antes da chegada dos colonizadores ibéricos
• e outras tantas sendo foram trazidas pelos migrantes, de forma involuntária,
1244 na maioria dos casos. No primeiro caso, podemos encontrar as malárias e a
leishmaniose, a cegueira dos rios e a febre maculosa. No segundo caso, estavam

as doenças mais conhecidas como exteriores à América Portuguesa, dentre elas o
maculo, a varíola, a febre amarela, a bouba e as febres catarrais.
Os males dessa presença podem ter aspectos tanto físicos, doenças
específicas das “raças” africanas, mas capazes de contagiar os senhores brancos,
2 como também males de caráter é má formação da personalidade, como a frouxidão
de costumes, a lascívia e a propensão aos vícios de todas as formas.

O projeto colonial mercantilista pôs em circulação espécimes vegetais,
0
animais e seres humanos de diversas procedências, como nunca havia sido
visto até então. Para além das cargas óbvias das caravelas, viajavam também
1 microrganismos, bactérias e vírus ainda desconhecidos em grande parte do mundo.
Então, na atribuição a uma única parcela de moradores do Vale a culpa
8 de males e doenças há certo exagero, certo desvencilhamento do branco dessa
responsabilidade, o que se confirma na fala de Pôrto (2006), “O discurso médico do
século XIX vê no negro escravo a causa de muitos males, sua presença no seio da
família é corruptora, representando perigo físico e moral” (p. 1020).
As contraversões não cessam aí,
A própria concepção da doença foi marcada por uma visão sobrenatural do
mundo e interpretada como sinal de castigo divino, daí a importância das
devoções em torno dos santos e do bom cumprimento das obrigações cristãs
para preservar a saúde, como indicam diversas práticas a exemplo dos ex-
-votos (CRESPO, 1990, p. 17-19).
O inverso parece não ter sido causa de preocupações, tanto que
doenças adquiridas pelos negros dos brancos, sobretudo os escravos domésticos,
não preocupavam tanto os médicos, que consideravam serem causadas por
determinismo biológico. Essa visão, mais uma vez, refletia a concepção da
influência racial das doenças e contribuíram para reforçar estereótipos sobre a
população negra, na medida em que não retomam à luz de novos conhecimentos
essa questão e reafirmam a existência de doenças de origem africana, sem ressalvas,
J associando, inclusive à noção de pecado, isto é, aos males da carne (PÔRTO, 2006).
Nesse sentido, os males do corpo estavam associados aos males da alma.
A Isso, de alguma maneira, abalava a supremacia teológica, a questão do
corpo passava, assim, gradativamente para a esfera da ciência, abrindo caminho
L para fu educadores do corpo: as autoridades policiais, os higienistas e os médicos
que propunham normatizar e racionalizar as atitudes corporais (ABREU, 2006).

A relação entre determinadas moléstias e a existência de feitiços é
L
invitável. Nas palavras de Nogueira (2006), vários sintomas sofridos pelas pessoas,
inchaços, tonturas, impossibilidade da realização do ato sexual, explicavam-se em
A função de estarem enfeitiçadas ou endemoninhadas.
Considerações finais
As doenças e as formas de tratamento empregadas pelas populações
escravizadas do Vale do Guaporé estavam associadas à natureza e às crenças em
• benzedores, rezas, seres divinos e mesmo em seres sobrenaturais. As possibilidades
de cura não eram, então, de médicos, profissionais ausentes na região do Vale do
1245
Guaporé.
• Não se pode negar que a medicina acadêmica tenha chegado ao local
e que tenha contribuído com novos conhecimentos, mas houve o predomínio da
busca pela cura na medicina natural.
Sobre a responsabilidade dos negros pelos males tropicais que afetavam o
Brasil, especialmente a região do Guaporé, não se confirma, uma vez que o branco
2 também pode ser considerado vetor de doenças, pois várias delas têm origem na
Europa e não nos trópicos brasileiros, o que exige que seja repensado o adjetivo
0 “Inferno da América”.
No conjunto das doenças e formas de tratamento, registra-se que as
1 primeiras acometiam mais a população negra e as segundas se davam por práticas
híbridas de herbalismo, rezas e devoções religiosas, quando possível, associadas a
8 algum elemento medicinal europeu. Portanto, doenças e curas ainda portavam e,
ainda portam, em algumas comunidades, um evidente componente sobrenatural e
religioso.
Referências
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symbolica, ethica e política. Coimbra: Officina de Joam Antunes, 1726.
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2

0

1

8

J

A

L DEZOITO DE ESCORPIÃO: FICÇÃO CIENTÍFICA, INDÍGENAS E
BIOPOLÍTICA
L
Vítor Castelões Gama (UNB)
A RESUMO: “Dezoito de Escorpião” obra de Alexey Dodsworth (2016), insere-se em
um espectro biopolítico ao apresentar como foco narrativo a “preservação” de tribos
indígenas. Estas tribos são levadas para outro planeta com a intenção de criar
um “novo mundo”. Perante a esta premissa, questionamos como se operacionaliza
a representação indígena no romance. Apoiamo-nos em Fredric Jameson para
• pensar os conceitos de “Identidade” e “Diferença” no campo específico da ficção
científica e procedemos também à análise do aparelho da biopolítica foucaultiana e
1247
os desdobramentos do biopoder estudados por Alfredo Veiga-Neto e Maura Corcini.
• Desse modo, é possível como a performance de contraconduta atua na criação da
identidade étnica.
Palavras-chave: Ficção científica brasileira. Dezoito de escorpião. Biopolítica.
Identidade étnica.

2 Dezoito de Escorpião (2016), obra de Alexey Dodsworth, é um romance


de ficção científica1 que pertence ao subgênero Hard ao compor uma trama que se
0 apropria de fatos científicos. De acordo com James Gunn (2005, p. 85, tradução
nossa) este tipo de FC é aquele cuja história “gira em torno de uma mudança
no ambiente que pode ser entendida apenas cientificamente”.2 Claramente, não é
1
necessário que todos os elementos da obra estejam cientificamente corretos, uma
vez que as necessidades da literatura são diferentes. Porém, ambas as formas de
8 pensamento trabalham com o mesmo instrumento: a imaginação.
O que desejo? A partir do romance ficcional, a partir deste outro mundo,
desejo instigar a curiosidade do leitor para maravilhas fascinantes do nosso
próprio mundo, fazê-lo se apaixonar pela ciência e, sobretudo, pela Astrono-
mia (DODSWORTH, 2016, p. 323).

A experiência do autor em uma expedição na Amazônia foi essencial para


o processo criativo da obra. “Foi num desses trinta dias, enquanto olhava o pôr do

1  Doravante: FC
2  No original: turns around a change in the environment that can be understood only scientifically
sol no silêncio da floresta, que nasceu a ideia de Dezoito de Escorpião com a floresta
como palco” (DODSWORTH, 2016, p. 6). E a curiosidade sentida por ele acabou
transposta para o personagem principal, quando este estava impressionado pelo
encontro dos rios.
-Estes peixes parecem iguais e têm o mesmo nome: cascudo. Os índios da
tribo tukano o chamam ‘yaka’. Entretanto, pertencem a espécies distintas,
e cada um vive em águas diferentes. Há o cascudo do rio negro e o cascudo
J do Rio Amazonas. Eles não são o mesmo tipo de peixe, apenas parecem ser
(DODSWORTH, 2016, p. 80)

A Este parágrafo é uma prefiguração que permeará toda a narrativa. A
trama começa no final do século 20 quando um astrofísico brasileiro descobre uma

estrela igual ao Sol. Anos depois, os personagens são levados para uma comunidade
L
utópica em um planeta parecido com a Terra, Neokosmos, onde vivem várias
etnias indígenas, a maior parte Tukano. Afinal, chega-se ao cerne da questão: as
L comunidades que foram para outro planeta, são as mesmas da Terra, a vivência se
modifica? Os peixes aparentam ser diferentes por causa das densidades e o mesmo
A ocorre com os seres humanos em relação à gravidade?
Frente a este contexto, como ocorre a criação da identidade? Cabe
ressaltar que este é um conceito amplo, por exemplo, pode ser visto como um
símbolo de alteridade ou, ao contrário, como pertencimento a um grupo. Neste caso,
trabalharemos a questão da identidade étnica, mais especificamente a identidade
• indígena na obra. Portanto, a primeira questão é: o que define uma etnia indígena
1248 como tal?
Durante muito tempo, pensou-se que a definição de um grupo étnico per-
• tencesse à biologia. Um grupo étnico seria um grupo racial, identificável
somática ou biologicamente. Grupo indígena seria, nessa visão, uma comu-
nidade de descendentes “puros” de uma população pré-colombiana. Esse
critério ainda é vigente no senso comum popular. Ora, é evidente, que a
não ser em casos de completo isolamento geográfico, não existe população
2 alguma que se reproduza biologicamente sem miscigenação com os grupos
com os quais está em contato. Segundo esse critério, raríssimos e apenas
transitórios seriam quaisquer grupos étnicos (CUNHA, 2012, p. 104).
0
A perspectiva biológica aparenta ser a premissa da obra. Mas, assim como

na vida real, em Neokosmos vivem várias etnias juntas, a miscigenação é esperada.
1 Além disso, a composição corporal é mudada para fazer face à gravidade diferente,
como atestam os personagens no início da narrativa. Então, como o corpo genético
8 e a raça não são elementos seguros para a identificação étnica, outras formas
foram teorizadas:
A noção de cultura veio substituir-se à de raça, dentro de um movimento
que se quis generoso — e certamente o foi — mas que acabou transferindo
à noção de cultura reificação semelhante à noção de raça. Mas essa não é
agora a questão: como cultura era adquirida, inculcada e não biologicamen-
te dada, também podia ser perdida. Inventou-se o conceito de aculturação e
com ele foi possível pensar — para gáudio de alguns, como os engenheiros
sociais, e para pesar de outros, entre eles vários antropólogos — na perda
da diversidade cultural e em cadinhos de raças e culturas (CUNHA, 2017,
p. 240)
A cultura é outro critério problemático, que é também utilizado na
narrativa. Isto é, ao mesmo tempo em que as tradições indígenas são colocadas
em um pedestal, também são representados como seres anacrônicos, uma cultura
parada no tempo. Não há posse emocional e intelectual dos instrumentos que são
usados na sobrevivência diária. Se aborrecer com a tecnologia, seria análogo a
renunciar o status de “indianidade”.
Muhipu era um supremo exemplo de comunidade ecossustentável. Um so-
J fisticado sistema de captação solar, construído em exóticos padrões que
faziam lembrar galhos de árvore, garantia energia para o sistema de bombe-
amento da água do rio para a vila (DODSWORTH, 2016, p. 134)
A
A falta de acesso a tecnologias essenciais ou a possibilidade de criação
L demonstra o status ambíguo dos indígenas na narrativa. De fato, acabam por
inserir-se diretamente em uma questão biopolítica. Michel Foucault comenta que

o biopoder é a capacidade de gerenciar a vida, e este é centrado em duas formas:
L Um dos polos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo
como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na ex-
A torsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade,
na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos – tudo isso
assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas:
anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco
mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espé-
cie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos
• processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível
de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que
1249
podem fazê-los varias; tais processos são assumidos mediante toda uma sé-
• rie de intervenções e controles reguladores: uma bio-política da população
(FOUCAULT, 1998, p. 151-152).

Dessa forma, os índios são utilizados como força de trabalho para guarda,
enquanto a cultura é despojada. Os personagens principais vivenciam as tradições,
mas, não possuem as mesmas responsabilidades. Podendo, caso escolham, manter-
2 se no trabalho intelectual. Porém, toda a vida é gerida para que possa servir melhor
ao trabalho. “O que fizemos foi criar microambientes controlados que copiam numa
0 versão melhorada, alguns lugares especiais do nosso planeta original. E quando falo
em ‘versão melhorada’ quero dizer sem muitos dos vírus, bactérias e protozoários
1 que nos seriam nocivos” (DODSWORTH, 2016, p. 241).
Ademais, pelo argumento da “conservação”, as etnias indígenas são
8 tuteladas, sem garantir voz ativa. Um planeta com a “tecnologia ecologicamente
correta. Animais que corriam risco de extinção, além de tribos indígenas
exterminadas, encontraram um paraíso em Neokosmos” (DODSWORTH, 2016, p.
263).
A dominação por tutela não reconhece desejo e, tampouco, capacidade de
autonomia moral do outro [...] enquanto o poder é uma ação sobre ações
(e não sobre coisas), a violência é uma sobre um corpo, sobre as coisas e
a tutela é uma forma de proteção de uns sobre outros, considerados mais
frágeis e ainda incapazes de decidirem sobre suas próprias vidas. A domina-
ção por violência e por tutela não reconhecem o desejo nem a racionalidade
naqueles que toma como objeto: respectivamente, o violentado e o tutelado
(VEIGA-NETO; LOPES, 2013, p. 110-111).

Não há satisfação com esse lugar perfeito, há desejos não saciados. A


falta de conhecimento é patente, apesar da narrativa demostrar que os indígenas
não sabem que estão em outro planeta, de não saberem que são tutelados.
-Os índios sabem que não estão na Terra? — perguntou Laura, olhos fixos
no planeta que se afastava. -Eles nasceram aqui, querida. Não existe outro
J mundo que não seja ‘a selva’ para eles. Apenas os primeiros sabiam, quan-
do salvamos várias tribos da extinção ao longo dos séculos (DODSWORTH,
2016, p. 242)
A
Contrariamente, os indígenas ainda se comunicam com a terra natal por
L meio de uma técnica que na narrativa é chamada de “encantamento da união”.
Este encantamento é ensinando para o personagem principal Arthur com a ajuda
L de um pajé sábio: “Chega de ilusão de separação. Amanhã menino vem aprender a
olhar através de todos os olhos do mundo. Amanhã menino vai aprender a controlar
encantamento da união” (DODSWORTH, 2016, p. 204).
A O que Acauã chamava de “encantamento da união” era ao mesmo tempo a
coisa mais bizarra e simples que Arthur vira em toda sua existência: um pro-
cesso psíquico capaz de permitir o acesso ao mundo através do olhar alheio.
Por um momento, ainda que breve, Arthur podia ser outros (DODSWORTH,
2016, p. 205).
• Simultaneamente é um movimento de empatia, mas, também uma
1250 contraconduta na definição foucaultina, uma vez que os indígenas sabem que são
• vigiados e tutelados. “-Não grite. Casa ter olhos. Mas nós ter mais, muito mais.
Acauã mostra. Vê?” (DODSWORTH, 2016, p. 204).
contraconduta como a forma de uma população se conduzir sem obedecer
ao condutor mas também sem romper com ele; não se trata de ser contra
uma conduta, mas sim de lutar para ser conduzido de outras formas. Tam-
bém não trata de uma dissidência, isso é, não se trata do desdobramento
2 de algum movimento ou tendência contra a dominação. A contraconduta
é inventiva e ativa; funciona como uma alternativa que também não é da
ordem da resistência, se essa for entendida como um contrapoder e que,
0 por ser um contrapoder, inscreve-se nos mesmos vasos capilares do poder
(VEIGA-NETO; LOPES, 2013, p.112).
1
Os Tukano sem tomar o controle de um planeta instável e que é gerido por

recursos que não dominam, encontram resposta na contraconduta. Dessa forma,
8 o “encantamento da união” não é simplesmente a comunhão dos povos, mas, uma
maneira de marcar a própria identidade. Foi por meio desta técnica que Arthur
descobriu ao mesmo tempo o que possuía em comum com todos os humanos e que
não estava mais na Terra, ou seja, sua diferença.
Diana Taylor comenta que historicamente este tipo de contraconduta tem
sido utilizado como forma de afirmação de uma identidade étnica, “as performances
indígenas, paradoxalmente, parecem ser transferidas e reproduzidas no interior
do próprio sistema simbólico concebido para eliminá-las: o catolicismo romano”
(TAYLOR, 2013, p. 81). Como aconteceu com o deslocamento de Tonantzin para
a Virgem de Guadalupe. Enfim, por meio de todos esses corpos, e das danças e
rituais, os Tukano da obra retêm seu contato com os antepassados, e na verdade,
consigo mesmos.
O corpo, na memória cultural incorporada, é específico, fundamental e su-
jeito a mudanças. Por que essa insistência no corpo? Porque é impossível
pensar sobre a memória cultural e a identidade como desincorporadas. Os
corpos que participam da transmissão de conhecimento e memória são, eles
mesmos, o produto de determinados sistemas taxonômicos, disciplinares e
J mnemônicos (TAYLOR, 2013, p. 134).

A questão da contraconduta realizada é também uma subversão ao
A
próprio conceito da utopia. Para Fredric Jameson (2005), a dinâmica fundamental
no gênero utópico recai na dialética identidade e diferença. Em uma sociedade
L “perfeita” é necessário a homologia, o “outro” instabiliza todos os preceitos que
fundamentam esta mesma sociedade. O problema não era o corpo em si, como
L corpo sexual.
A temática utópica do corpo, de fato, provou ser particularmente auspiciosa
A para as novas questões da contracultura dos anos 60, quando de fato a uto-
pia voltou a florescer, até ser interrompida prematuramente pelo surgimen-
to da nova categoria política das minorias (étnicas ou orientada pela identi-
dade), que, como sugerido acima, parece não ter se acomodado ao aparato
narrativo da utopia clássica (JAMESON, 2005, p. 209, tradução nossa).3

• O problema era o corpo do “outro”, carregado da “memória cultural


incorporada”. Como é possível então pensar uma utopia que permita livre fluxo a
1251
todas as identidades? Esta é uma contradição inerente ao pensamento utópico, dar
• espaços para todos, desde que todos sejam o mesmo.
Infelizmente, aquele intelectual que o utopista também deve ser — eterna-
mente algemado pelos determinantes da raça e da classe, da linguagem e da
infância, do gênero e do conhecimento situacional — também é sobrecarrega-
do pelo compromisso constituinte com o abstrato e o universal, isto é, o apa-
gamento profissional inveterado, antecipadamente e por definição, de todos
2 esses determinantes concretos em uma ideologia propriamente utópica: mas
é um apagamento que é mais uma repressão do que uma elaboração. Como
0 poderia então ser diferente com a Utopia em geral, e a tentativa de imaginar a
diferença mais fundamental de todas e nos projetarmos no Novum de um novo
modo de produção? (JAMESON, 2005, p. 171, tradução nossa)4
1
Nesta utopia o que ocorre é o apagamento indígena, uma vez que não é
8
3  No original: The Utopian thematics of the body, indeed, proved particularly auspicious for the new
issues of the countercultural 1960s, when indeed Utopias began to flourish again, until brought
prematurely to a halt by the emergence of the new political category of the small group (ethnic or
identity-oriented), which, as was suggested above, does not seem to have accommodated itself to
the narrative apparatus of the classical Utopia.
4  No original: Alas, that intellectual whom the Utopian must also be – forever shackled by the
determinants of race and class, of language and childhood, of gender and situation-specific
knowledge - is also burdened by the constitutional commitment to the abstract and to the universal,
which is to say to the inveterate professional effacement, in advance and by definition, of all these
concrete determinants of a properly Utopian ideology: but it is an effacement which is a repression
rather than a working through. How could it then be otherwise with Utopia in general, and the
apresentada uma alternativa que lhes permita escolher suas formas de vivência.
Todos só podem agir da maneira que é esperada em Neokosmos. Eventualmente,
haverá apenas uma ocupação partilhada por todos, dessa forma é estimulado o
livre contato sexual para criar a Raça Cósmica de José Vasconcelos.
O famoso tratado de José Vasconcelos, La raza cósmica (1925), buscou
compensar o programa de eugenia para “branquear” as Américas, no final
do século XIX e início do século XX, ao afirmar que, longe de ser desprezí-
J vel, o mestiço era o modelo da “raça cósmica”, “final” e “universal”. Porque
o mestiço fundia as raças indígena, negra e asiática e branca, ele/ela abria
caminho para a próxima fusão, que combinaria e ultrapassaria todas as
A outras raças preexistentes (TAYLOR, 2013, p. 149).
Dezoito de Escorpião mantém em diálogo todas estas contradições. Traz a
L ideia de união corporal e espiritual e, ao mesmo tempo, identidade corporal e ritual.
Identidade, esta, que não se conforma com a narrativa vigente e operacionalizada
L pela memória coletiva da performance.
Se a memória coletiva se apoia em estruturas sociais para possibilitar a
transmissão, as práticas comportamentais que definem a etnicidade par-
A ticipam dessa transmissão. Isto é, ao invés de voltarmos para a linguagem
do “sangue” e da hereditariedade que teóricos como Vasconcelos usaram
na década de 1920, precisaríamos pensar sobre a memória, a etnicidade e
o gênero levando em consideração a duplicidade dos códigos envolvidos nas
práticas linguísticas, epistêmicas e incorporadas associadas à mestiçagem
• (TAYLOR, 2013, p. 136-137)

1252 Defender o valor da performance não significa ressaltar a cultura como


• o critério definidor da etnicidade. Uma vez que “a construção da identidade étnica
extrai assim, da chamada tradição, elementos culturais que, sob a aparência de
serem idênticos a si mesmos, ocultam o fato essencial de que, fora do todo em que
foram criados, seu sentido se alterou” (CUNHA, 2017, p. 243). Isto é, os Tukano
de Neokosmos possuem outra cultura, mesmo estando em contato com a Terra.
2 Seguindo a metáfora da obra, pode até parecer igual, mas é outro peixe.
Tudo isso leva à conclusão óbvia de que não se pode definir grupos étnicos
a partir de sua cultura, embora, como veremos, a cultura entra de modo
0 essencial na etnicidade. Foram essas considerações que levaram antropólo-
gos interacionistas, como Moerman e Barth, a definirem adequadamente a
1 identidade étnica em termos de adscrição: assim, é índio quem se considera
e é considerado índio (CUNHA, 2017, p. 243).

8 Ironicamente esta cultura é apresentada como o mais importante na
identidade indígena, como se houvesse apenas uma. “Arthur se lembrava do
tal idioma tukano. Poucos sabiam, mas era uma das línguas oficiais do Brasil,
falada por quase todas as etnias indígenas. Cada tribo tinha sua identidade
cultural e linguística, mas tinham também o tukano como ponte de comunicação”
(DODSWORTH, 2016, p.120). O que é um erro, pois, apesar do idioma tukano ter
se tornando uma língua franca no Alto do Rio Negro no século 20, nunca se tornou

attempt to imagine the most fundamental difference of all and to project ourselves into the Novum
of a new mode of production?
uma linguagem oficial. Ademais, a maior parte das palavras utilizadas é derivada
do tronco Tupi.
Em conclusão, “Dezoito de Escorpião” parte de preceitos científicos para
abordar a questão da transferência compulsória e da identidade étnica, demonstrando
os limites do pensamento utópico e apontando a necessidade de novas maneiras
de pensar a questão indígena. Dodsworth, ao indagar a relação indígena com a
tecnologia, demonstrou como o desejo de conservação de uma cultura pode ser
J uma forma perversa de apagamento. E ao final da narrativa, encontra um desfecho
irônico, no qual Neokosmos (Novo mundo) é devolvido para os povos originários:
A “Ficou então acordado que as tribos indígenas permaneceriam no Novo Mundo.
Se a Areté realizara um grande feito, era este: as tribos supostamente extintas no
L planeta Terra estavam todas lá, em Neokosmos, herdeiras legítimas de florestas que
jamais lhes seriam roubadas” (DODSWORTH, 2016, p. 307). Terminando então,

como uma forma simbólica de reconhecer os erros dos portugueses e espanhóis.
L
Referências
CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo:
A Claro Enigma, 2012.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Ubu
Editora, 2017.
DODSWORTH, Alexey. Dezoito de Escorpião. São Paulo: Draco, 2016.

• GUNN, James. The readers of Hard Science Fiction. In: GUNN, James; CANDELARIA, Mat-
thew. Speculations on speculation: theories of science fiction. Oxford: Scarecrow Press,
1253 2005.
• JAMESON, Fredric. Archeologies of the future. New York: Verso, 2005
TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas.
Tradução de Eliana Lourenço de Lima Reis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
VEIGA-NETO, Alfredo; LOPES, Maura Corcini. Rebatimentos: a inclusão como dominação
do outro pelo mesmo. In: VEIGA-NETO; Alfredo; MUCHAIL; Salma Tannus; Fonseca; Már-
2 cio Alves da Fonseca (orgs.) O mesmo e o outro: 50 anos de História da Loucura. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
0

1

8

J

A

L NATALIE BOOKCHIN E JORGE LUÍS BORGES: A LITERATURA
ELETRÔNICA E O SENTIDO DE AGÊNCIA
L
Vítor Castelões Gama (UNB)
A Verônica Maria Biano Barbosa (UNB)
RESUMO: Buscamos entender o lugar do jogo eletrônico de Natalie Bookchin,
“The Intruder”, no panorama cultural da contemporaneidade. Este jogo é uma
transcriação, nos termos de Haroldo de Campos, do conto de Jorge Luis Borges,
“La intrusa”, que ao deixar de lado a fidelidade textual em prol de uma adaptação
• criativa, modifica e transpõe o sentido original para outro contexto geopolítico.
Apoiando-nos em teóricos da literatura eletrônica como N. Katherine Hayles, Lucia
1254
Leão e Janet H. Murray é possível perceber a literatura eletrônica como difusora de
• conhecimentos e como um procedimento artístico-literário singular. Murray propõe
que Imersão, Agência e Transformação compõem uma tríade de elementos específicos
da poética eletrônica. “The Intruder” trabalha a “agência” em uma perspectiva do
contato literário eivada pelo afeto, que induz a uma “tomada” de posição do leitor/
jogador. A virada afetiva do jogo traz ao leitor um corpo marginalizado que atua
2 como uma crítica ao espaço biopolítico.
Palavras-chave: Literatura eletrônica. Biopolítica. Transcriação. Borges. Bookchin.
0
“Angustiado estou por ti, meu irmão Jônatas; quão amabilíssimo
me eras! Mais maravilhoso me era o teu amor do que o amor das
1 mulheres.”
2 Samuel, 1: 26
8
Natalie Bookchin baseou-se num conto de Jorge Luís Borges, chamado
La intrusa (1970) para criar um jogo eletrônico, nomeado The Intruder (1999). La
Intrusa é a história contada de dois irmãos, Cristián e Eduardo Nilsen que começam
a ter problemas quando o primeiro leva para casa uma prostituta chamada Juliana
Burgos. Eduardo, o segundo irmão, também se apaixona por ela, mas, em lugar
de disputarem-na, os dois resolvem partilhar Juliana. Porém, esse acordo não
cessará as tensões e, a fim de resolver o conflito, Cristián decide vender Juliana
a um bordel e dividir o dinheiro com o irmão. Todavia, a necessidade de possuí-la
permanece, de modo que cada um dos Nilson faz viagens às escondidas para vê-la.
Os irmãos acabam, então, por trazê-la de volta à casa, suscitando cada vez mais
o ciúme entre si. Finalmente, no ápice do conto, Cristián confessa ter posto fim à
Juliana e, assim, coloca fim à desavença.
Cabe ressaltar, que The Intruder não é uma adaptação completamente
fiel ao original. Isto porque a segunda obra utiliza-se da primeira para fazer uma
adaptação criativa. Nas palavras de Haroldo de Campos, a
tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação paralela, au-
J tônoma, porém recíproca. [...] Numa tradução dessa natureza, não se traduz
apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade,
sua materialidade mesma (CAMPOS, 2015, p. 5).
A
Esse tipo de tradução foi definido pelo autor como “transcriação”, pois ao
L mesmo tempo em que descontrói a história, também a reconstrói, ou seja, “traduz
a tradição, reinventando-a” (CAMPOS, 2015, p. 39).
L Traduzir é recriar, é transcrever transformando. E essa pode ser também
uma tradução cultural, especialmente a da poesia digital que circula na in-
ternet e necessita de traduções de linguagens (português, inglês, espanhol,
A francês, etc.), de criações, de adaptações, de entrecruzamentos de códigos,
de interpretações e de releituras, de conversores de softwares, de filtros de
equivalências para linguagens computacionais diferentes (ANTONIO, 2005,
p. 322).

Afinal, traduzir não significa apenas passar uma informação de uma


• linguagem a outra, ou de um código semiótico para outro. Não é um ato mudo
1255 politicamente. A escolha do que é traduzido é tão importante quanto a maneira como
que é traduzido. Então, por que a autora escolheu transcriar esta obra específica

de Borges? Se o motivo fosse apenas para divulgar o texto do autor argentino, isto
não seria necessário, uma vez que já existem diversas traduções para o inglês deste
mesmo conto.
A transcriação, neste caso, teve outro objetivo. A resposta pode estar
nas especificidades da poética eletrônica, definidos por Janet Murray (2003) como
2 “imersão, agência e transformação”. Mais especificamente a agência, vista aqui
como a capacidade de agir e modificar os resultados de um processo.
0 Quanto mais bem resolvido o ambiente de imersão, mais ativos desejamos
ser dentro dele. Quando as coisas trazem resultados tangíveis, experimenta-
1 mos o segundo prazer característico dos ambientes eletrônicos — o sentido
de agência. Agência é a capacidade gratificante de realizar ações significa-
tivas e ver os resultados de nossas decisões e escolhas (MURRAY, 2003, p.
8 127).

The Intruder é dividido em 10 mini-jogos, cada um deles comportando uma


parte do texto original de Borges. Na dinâmica do jogo, ora o texto relativo ao conto
é dado em conjunto, no decorrer das “fases”, ora é “destravado” como recompensa
ao final do trecho. A cada etapa o leitor sente compor a narrativa em conjunto com
o autor, de modo que a apreensão de sua experiência não se resume a apertar
mecanicamente botões do mouse. E mais, os resultados são construídos fase por
fase, de modo que o leitor/jogador percebe de modo instantâneo os resultados de
suas ações. “A agência, então, vai além da participação e da atividade. [Ela se dá
também] como prazer estético, uma experiência a ser saboreada por si mesma”
(MURRAY, 2003, p. 129).
As etapas não trazem inovações quanto às mecânicas de jogo, são todas já
há muito corriqueiras. Isto serve para que o jogador não tenha que aprender como
jogar, mas já possa focar de imediato na mensagem passada por The Intruder. Ou
seja, o foco não está no suporte, nem em uma distração mecânica de repetição e
recompensa, mas no processo e, sobretudo, na narrativa que se constrói. O primeiro
J jogo tem início semelhante ao Pong, o mais lucrativo jogo da Atari. Entretanto, em
vez de uma bola de pingue-pongue são rebatidas a parte final da epígrafe usada
A no conto original, “passing the love of women”. Isto cria um contexto que modifica
um pouco as intenções originais de jogos em formato semelhante à Pong, pois
L adiciona uma camada de significação ao que está sendo rebatido. Em The Intruder,
é o amor das mulheres o objeto que faz as vezes da bola que é jogada de um lado

para o outro. Para um jogador que desconheça o conto de Borges, o primeiro jogo
L da composição funciona como uma prefiguração ao restante da narrativa.
Em seguida, o texto é narrado em roll over, enquanto algumas das frases
A caem para serem pegas em uma cumbuca. É uma maneira análoga ao processo de
compreender a narrativa do jogo. A próxima fase remete ao jogo Space Invaders,
e serve para mostrar os trejeitos dos irmãos com a violência e o distanciamento
que impõem às outras pessoas. Também para demonstrar a violência dos irmãos,
o jogo GunFight, com duelos ao estilo faroeste, traz uma mulher ao fundo, inerte.
• Neste momento conta-se sobre as primeiras relações dos irmãos, que eram mais
1256 focadas na violência contra outros homens do que efetivamente no relacionamento
com as mulheres e, posteriormente, a chegada de Juliana Burgos.

“If you want her, you use her”. É com essa frase que promove a transição
para outro jogo, novamente o Pong. Desta vez, é a figura de uma mulher que é jogada
de um lado para o outro da tela. E ao fundo, entre cada rebatida, uma imagem do
corpo feminino em detalhe aparece. O próximo mini-jogo é composto por objetos
2 que caem de uma figura que remete diretamente às partes íntimas femininas. O
jogador deve pegar os objetos em um balde. Além disso, parte da narração também
escorre pela tela, saída do mesmo lugar. A narrativa sonora se dá continuamente
0 e as palavras que surgem na imagem, escritas na cor vermelha, figurativizam um
sangramento feminino. Os objetos são relacionados aos pertences de Juliana, é
1 nesta parte do jogo que ela deve pegar suas coisas e seguir rumo ao Bordel.
Não é o fim da disputa entre dois, como percebível pelo próximo jogo,
8 de futebol americano, em que os dois homens se enfrentam. O penúltimo mini-
jogo realiza um salto, pois é a única vez que o jogador toma o controle de Juliana.
Nele, a figura feminina cujo corpo apresenta-se todo em vermelho deve correr pela
rua, fugindo, saltando, tentando não cair em buracos que se abrem no chão. Em
retrospectiva, o leitor-jogador percebe que é uma metáfora para a cova, inescapável,
uma vez que o jogo só prossegue quando Juliana cai.
O último mini-jogo é de guerra. Nele, o leitor/jogador está em um
helicóptero e deve “caçar” Juliana em fuga. Para ganhá-lo, ele deve alinhar a mira
das armas e acertar a fugitiva. Para concluir o jogo é necessário que a “intrusa”
morra. E então, chega-se ao fim da narrativa, o game over, um pouco inesperado.
Afinal, qual o sentido de transformar a narrativa em jogo? Nossa resposta
é que há algo a mais entre essa adaptação e o original. Para Janet Murray, “todo o
jogo, eletrônico ou não, pode ser vivenciado como um drama simbólico. Qualquer
que seja o conteúdo do jogo, qualquer que seja o nosso papel dentro dele, somos
sempre os protagonistas da ação simbólica” (MURRAY, 2003, p. 140). O ato de
jogar neste sentido traz imediatamente uma posição preponderante para o jogador,
ele não pode se manter como um simples espectador, mas deve ser parte ativa na
J mecânica da narrativa e sua participação é fundamental para que a história se
desenvolva.
A Entretanto, algumas ressalvas precisam ser feitas sobre este papel do
leitor e a agência no meio eletrônico. Haveria, nestes casos, efetivamente essa
L capacidade de modificar os resultados finais? A agência não é simples interatividade.
Não é apenas mexer um mouse. Há situações em que o leitor pode influenciar

e suas ações têm consequências. Entretanto, aqui, cada ação é feita de acordo
L com o preconizado pela autora, não há efetivamente agência real. Mesmo assim,
Katherine Hayles comenta que “em razão da agência real do computador bem como
A a ilusão dessa agência ser muito mais fortes do que com o livro, o computador pode
funcionar como um parceiro na criação de dinâmicas de intermediação das formas
que um livro não pode” (HAYLES, 2003, p. 74).
O contrário, ou seja, a escolha pela não agência, é também um opção
estética carregada. Há a ilusão para o jogador/leitor de contribuir para a configuração
• do texto que lê, o prêmio que recebe após cada fase. Essa impressão de agência é
1257 usada por Bookchin como protesto social.
Uma vez que os jogos compelem o jogador a entrar dinamicamente na pro-

dução do texto, eles servem para conectá-lo à narrativa, de maneiras sur-
preendentemente poderosas; Eu me percebi mais engajada com os jogos
deliberadamente kitsch de Bookchin do que com o conto satírico de Borges,
que é pesado o suficiente para fazer a maioria dos leitores se sentirem emo-
cionalmente distanciados do enredo brutal (HAYLES, 1999 apud BOOK-
2 CHIN, 1999).1

A falta de agência leva o leitor/jogador a ser cúmplice do assassinato


0 da mulher. E esta situação, quando o jogador percebe em retrospecto, mexe com
afetos profundos. O fato é que o ato de jogar é um tipo de performance, e de
1 acordo com Diana Taylor, “as performances funcionam como atos de transferência
vitais, transmitindo o conhecimento, a memória e um sentido de identidade social”
(TAYLOR, 2013, p. 27).
8
A transmissão da experiência traumática se parece mais com o “contágio”
– uma pessoa “pega” e incorpora o peso, a dor e a responsabilidade de com-
portamentos/acontecimentos passados. A experiência traumática pode ser

1  Tradução nossa. No original: Because the games compel the user to enter dynamically into the
production of text, they serve to connect the user in surprisingly powerful ways to the narrative; I
found myself more engaged with Bookchin’s deliberately kitschy games than with Borges’s satirical
tale, which is dark enough to make most readers feel emotionally distanced from its brutal plot
(BOOKCHIN, 1999) Disponívelem: https://bookchin.net/projects/the-intruder/. Último Acesso em
19/01/2018
transmissível, mas é inseparável do sujeito que a sofre (TAYLOR, 2013, p.
236).

A transposição do título da obra para o inglês já acarreta uma mudança


de percepção importante. No espanhol, La Intrusa, as marcas de um sujeito
feminino são evidenciadas tanto no artigo quanto no substantivo. Já pelo título, o
leitor recebe a informação de que é uma mulher que invade o espaço social como
uma intrusa, alguém que não pertence a um lugar e, por tê-lo invadido, logo é
J parcialmente culpabilizada pela própria morte. No inglês, por outro lado, a marca
do feminino no título não é realizada. Aqui a percepção do leitor/jogador não é
A direcionada, ele não é avisado que se trata de uma intrusa. Haveria então em The
Intruder uma suposta neutralização da narrativa pelo título, deixando o jogador
L desavisado sobre quem seria essa figura estrangeira.
Por estar nesse caminho, entre a definição de gênero e a indefinição, o
L analógico e o digital, a obra de Bookchin configura-se como um território híbrido. “O
discurso híbrido inaugura um espaço de negociação, onde o poder é desigual, mas

a sua articulação pode ser questionável” (BHABHA, 2011, p. 91). Isto é, articula-
A se uma mudança do discurso vigente. Afinal, não há como negar que a balança
do poder na sociedade desfavorece as mulheres. Bookchin parte de um discurso
aceito, o qual acaba por culpabilizar as vítimas, para questionar toda esta dinâmica
relacional. Em outras palavras, apoia-se no choque que o conto de Borges causa e
o transforma em uma crítica.
• A importância de tal retroação está na sua habilidade de reinscrever o pas-
1258 sado, de reativá-lo, de realocá-lo, de ressignificá-lo. E, o que é ainda mais
significativo, ela submete o nosso entendimento do passado, a nossa rein-
• terpretação do futuro, a uma ética da “sobrevivência”, que nos permite tra-
balhar através do presente (BAHBA, 2011, p. 94).

O corpo feminino, matéria trabalhada tanto no conto quanto no jogo, é


extremamente controlado. Michael Hardt e Antonio Negri, baseados na acepção de
2 Foucault, comentam que
as formas de produção contemporânea, que chamaremos de produção bio-
política, não estão limitados aos fenômenos econômicos, mas, tendem a en-
0 volver todos os aspectos da vida social, incluído a comunicação, o conheci-
mento, e os afetos (HARDT; NEGRI, 2005, p. 101)2.
1 Neste sentido, o corpo feminino é ao mesmo tempo produto e produtor,
uma vez que é controlado e também deve manter uma balança de produção social.
8 Deve produzir os afetos e, no caso de Juliana, o amor.
Ao contrário de emoções, que são fenômenos mentais, afetos referem-se
igualmente ao corpo e a mente. De fato, afetos como alegria e tristeza, re-
velam o estado presente da vida de um organismo inteiro, exprimindo certo

2  Tradução nossa. No original:As we will see the contemporary forms of production, which we will
call biopolitical production, are not limited to economic phenomena but rather tend to involve all
aspects of social life, including communication, knowledge, and affects. (HARDT; NEGRI, 2005, p.
101)
estado corporal e um determinado modo de pensar (HARDT; NEGRI, 2005,
p. 108).3

O afeto sentido no corpo, os traumas e as marcas são partilhados. Mas,


não podem ser obrigados a se apresentar. Frente a este panorama biopolítico, a
arte pode servir de contraconduta:
O que está em questão é a ativação das incoerências, das forças constran-
gedoras, dos limites impostos a cada ser, dos jogos de qualificação e des-
J qualificação administradas, da vida gerida e regulada, da verdade aceita de
modo natural, como verdade orgânica, enfim, ativação que não pretende
mais aceitar como verdadeiro o que uma autoridade diz a alguém ser verda-
A deiro (CARVALHO, 2008, p. 44).

L The Intruder questiona e ressignifica para sobreviver. Faz o leitor de
cúmplice e leva-o a compreender pelo afeto (negativo) e pela surpresa terrível, a
crítica política da autora e a situação tênue impingida às mulheres. Ele propõe-se
L a fazer sentir, ao nível corporal, essa força esmagadora que obriga as mulheres a
sofrerem como Juliana, e ao mesmo tempo serem culpabilizadas.
A Os afetos surgem nas relações, na capacidade de agir e ser atingido entre
corpos. Corpos não possuem afetos, mas potencialidades de afetar, pois os
afetos acontecem na relação, em função da relação. Não são propriedades de
um corpo, mas eventos, marcas e vestígios de um encontro, de uma dinâmi-
ca relacional (KLINGER, 2014, p.81).

• Sendo assim, Bookchin, em sua obra, parte do sentido de agência, como


1259 a capacidade de modificar a história, para “Agência”, vista como uma afirmação
da identidade, posição e transformação social, a possibilidade de realmente agir

para mudar a situação das mulheres. Agir, para chamar atenção ao feminícidio, e
entender o próprio mundo.
Uma tecnologia é interativa na medida em que reflete as consequências de
nossas ações ou decisões, devolvendo-as para nós. Desta forma, uma tecno-
logia interativa é um meio através do qual nós nos comunicamos com nós
2 mesmos, isto é, como um espelho. O meio não apenas reflete, mas também
refrata aquilo que lhe é dado; o que retorna somos nós mesmos, transfor-
mados e processados. Na medida em que a tecnologia nos reflete de forma
0 reconhecível, nos proporciona uma autoimagem, um sentido do eu. Na me-
dida em que a tecnologia transforma nossa imagem, no ato da reflexão, nos
1 proporciona um sentido da relação entre esse eu e o mundo vivenciado.
(ROKEBY, 1997, p. 67)

8 Portanto, pelo espelho deformante de The Intruder podemos ver, e


realmente sentir, o mundo de outra maneira. A jogabilidade não é o mais importante,
e sim o processo, a construção da narrativa e a imersão do leitor no ambiente
da obra, a construção do afeto. Por conseguinte, o resultado final não é só uma
tradução ou uma transcriação, é algo a mais: uma crítica social sobre a situação
feminina. Mais além, um relato potente de como novas tecnologias podem dar vozes

3  Tradução nossa. No original:Unlike emotions, which are mental phenomena, affects refer equally
to body and mind. In fact, affect such as joy and sadness, reveal the present state of life in the entire
organism, expressing a certain state of the body along with a certain mode of thinking.(HARDT;
NEGRI, 2005, p.108).
para os oprimidos ou como podem estabelecer um âmbito de resistência no qual os
discursos silenciados são ouvidos.
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1 Tradução Eliana Lourenço de Lima Reis. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2013.

8

J

A

L A UTILIZAÇÃO DAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E
COMUNICAÇÃO NO ENSINO DE HISTÓRIA EM EXPERIÊNCIAS DO
L PIBID HISTÓRIA UFAC/2017

A Wálisson Clister Lima Martins (UFAC)
Maria Rosana Lopes do Nascimento (UFAC)
RESUMO: Busca-se explorar as associações entre as tecnologias da informação
e comunicação e ensino de História, estabelecidas em experiências do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid) de História da Universidade
• Federal do Acre (Ufac) no ano de 2017. Como objetivo, é pretendido compreender de
1261 que forma essas tecnologias foram utilizadas no Ensino de História pelos Bolsistas de
Iniciação à Docência (ID) do programa, valendo-se das experiências compartilhadas
• durante o recorte temporal. A metodologia utilizada será qualitativa, fazendo uso
de análise de materiais bibliográficos, artigos produzidos pelos bolsistas IDs e
entrevistas com os mesmos. Quanto à base teórica, são utilizados os textos de
BITTENCOURT (2011), PERRENOUD (2000) e artigos científicos que discorrem
sobre a temática. Defende-se a utilização das tecnologias no ensino de História em
2 auxílio no processo de ensino-aprendizagem, que, aplicadas ao Pibid, contribuem
de maneira bilateral na formação dos discentes de História e dos alunos.
0 Palavras-chave: Tecnologias da informação e comunicação. Ensino de história.
Pibid. Experiências.
1
Este trabalho decorre de um projeto em andamento, pensado nas

disciplinas de Pesquisa Histórica I e II e Trabalho de Conclusão de Curso do Curso de
8 Licenciatura em História da Universidade Federal do Acre (Ufac), sendo constituído
como uma análise da utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação na
prática do Ensino de História desenvolvido por bolsistas do Programa de Bolsas de
Iniciação à Docência (Pibid) de História da Ufac durante o ano de 2017.
De início, é importante afirmar que a construção deste trabalho não tem
a pretensão de corrigir os problemas que se percebem no Ensino de História; em
contrapartida, constitui-se como uma avaliação que procura analisar o período
de produções científicas, desenvolvidas pelos bolsistas do Pibid-História-Ufac
em 2017, no momento de formação inicial dos futuros professores de História. A
proposta aqui é pesquisar se houve a utilização das Tics no ensino de História,
nas chamadas “Aulas Inovadoras”, o termo se refere às culminâncias dos projetos
nas escolas, realizadas de acordo com o planejamento de cada bolsista, sendo,
geralmente, criadas exposições do tipo: feira, visando mostrar de forma dinâmica
aos outros alunos o conhecimento produzido durante as experiências. Entretanto,
a Aula Inovadora não consiste, per si, em uma única aula, se constituindo em um
ponto a ser levado em conta a cada planejamento e encontro com os alunos, buscando
J modos diferentes de abordagem do conhecimento histórico. Nesta, nasciam novas
ideias e metodologias diferenciadas, com o uso ou não das tecnologias. A partir dos
artigos analisados sobre as Aulas Inovadoras, objetiva-se perceber se o uso das
A
Tics favoreceu ou não a aprendizagem de ambos os alunos.

L Procura-se entenderde que forma os futuros docentes de História pensam
as novas tecnologias, e em que perspectivas as atividades propostas e desenvolvidas

nas escolas encaram/fazem uso das tecnologias informacionais, de modo a refletir
L como se encontra o processo de construção de uma educação mais dinâmica,
acessível e democrática.
A Segundo a pesquisa a cerca do acesso a internet “Acesso a internet e posse
de telefone móvel celular para uso pessoal” (IBGE, 2018) divulgada recentemente
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 116,073 milhões de pessoas
(cerca de 64,7% da população brasileira acima de 10 anos) fizeram acesso à rede
mundial de computadores no Brasil no ano de 2016, número que demonstra um
• aumento de 320% em relação à pesquisa anterior (ano de 2005, em que apenas
1262 20, 9% da população havia acessado a internet). A partir desses dados, pode-se
perceber o crescimento exponencial da utilização das TICs pelos brasileiros; os

estudantes não se encontram fora desses dados: em 2016, cerca de 25,78% dos
que acessam à rede são estudantes da educação básica pública e privada (IBGE,
2018).
Faria e Silva (SILVA, T., 2013) afirma a necessidade de a escola pensar
2 modelos de inserção de ferramentas comuns do cotidiano do alunado nas práticas
educacionais, dessa forma, constata-se que esse universo on-line, como exemplo
as redes sociais e aplicativos para reprodução de mídia, que permeia a vida desses
0 discentes, são ferramentas eficientes para a sala de aula, no processo de aprender.
Destarte, como objetivo geral do trabalho busca-se compreender de
1 que forma as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) foram utilizadas
no Ensino de História pelos Bolsistas de Iniciação à Docência (ID) do programa,
8 valendo-se das experiências compartilhadas durante o último ano (2017) através
dos trabalhos apresentados no V Seminário Pibid História Ufac 2017: Direitos
Humanos e Cidadania. Fazer isso impele em identificar as Tics nos projetos
elaborados pelos bolsistas, para, em seguida, analisar as formas como estas foram
desenvolvidas e, logo após, refletir sobre as implicações da inserção das tecnologias
na vida acadêmica e profissional dos bolsistas.
A metodologia utilizada no desenvolvimento do projeto será qualitativa,
constituindo-se por leitura de bibliografias que discorrem sobre as possibilidades e
reflexões acerca das relações estabelecidas entre Ensino de História e as Tecnologias
da Informação e Comunicação; seguindo para a análise de artigos no prelo (em
processo de publicação), que relatam as experiências dos bolsistas em escolas da
educação básica de Rio Branco no ano de 2017, produzidos a partir do V Seminário
Pibid História Ufac. Posteriormente, em um estudo mais aprofundado, far-se-a
entrevistas para coleta de informações, buscando explorar as práticas vivenciadas
por estes de forma mais completa.
Como bases teóricas para o desenvolvimento do projeto foram utilizados
textos de Bittencourt (2011), Perrenoud (2000), Pavanati, Pereira e Sousa (2011),
J Ferreira (1999) e vários outros artigos que procuram compreender as formas de
inter-relação entre as TICs e o Ensino de História.
A Para fins de apoio e manutenção ao desenvolvimento da carreira docente,
foram criados, desde a década de 1980 no contexto internacional, mecanismos
L de indução profissional que atuam de diversas formas, sendo, geralmente,
desenvolvidos por instituições universitárias – públicas ou não – com o apoio do
Estado. Esses programas e projetos visam sempre a resolução dos problemas que
L
têm sido encontrados em investigações acerca da profissão; sendo o exemplo mais
característico dessa situação o abandono da docência motivado pelo despreparo ou
A pela idealização construída antes da atuação do professor na escola.
Nesse sentido, foi instituído no Brasil, por meio do Decreto nº 7.219, no
ano de 2010, o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid), que
tem por finalidade o “aperfeiçoamento da formação de docentes em nível superior” e
“a melhoria de qualidade da educação básica pública brasileira” (BRASIL, 2010). O
• programa nasce em um contexto em que o Governo Federal outorga à Coordenação
1263 de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), a competência de atuar
• na formação de professores da educação básica.
A organização do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação a Docência
– Pibid, da Ufac, conta com os bolsistas de iniciação à docência, que são discentes
de cursos de licenciatura, atuam em escolas da educação básica – 5º ao 9º ano
do Ensino Fundamental e todo o Ensino Médio – sob a supervisão de professores
2 dessas escolas e de coordenadores da Universidade, que organizam o programa
e orientam os bolsistas; todos esses sujeitos recebem bolsas que variam de R$
400,00 até R$ 1.300,00, de acordo com a atribuição.
0
A intenção, no caso, é aproximar os estudantes do cotidiano docente, a fim

de fornecer uma prática docente mais completa na formação inicial, funcionando
1 o programa, então, como uma experiência complementar, que, por mais que não
corresponda ao labor professoral, coloca o licenciando em contato com os alunos
8 da educação básica. Ademais, o programa objetiva, ainda, uma articulação – e
consequente aproximação – entre asescolas, secretarias de educação estaduais e
as universidades.
Inicialmente, o programa era desenvolvido apenas nos cursos em
que tinham maior carência de professores da educação básica, como ciências,
matemática, física, química e biologia. Entretanto, quando se começou a perceber
o sucesso dessas iniciativas, as áreas de aplicação do programa foram expandidas
também para as linguagens e ciências humanas, colaborando assim para a
experiência dos discentes de outras áreas.
O Pibid no recorte de História da Ufacsurge em2012, e érenovado em
2014, a partir do edital Pibid nº 61/2013 da Capes. Nesse segundo período, a
proposta do programa renasce com enfoque na inovação metodológica e tecnológica
das práticas docentes, visando ressignificar a forma como o conhecimento
histórico é apresentado e discutido nas escolas. A alternativa encontrada para o
desenvolvimento de uma proposta que coubesse a esse objetivo gira em torno da
pesquisa como elemento presente nas ações dos bolsistas IDs e dos discentes da
J educação básica.
Desde o ano de 2016, a estrutura de organização do Pibid História Ufac
A nas escolas segue um modelo de funcionamento em que cada escola abriga um
grupo de cinco bolsistas IDs e um supervisor, que selecionam alunos da própria
L escola para participar das atividades no período do contra turno em que estudam.
Cada grupo se enquadra em uma ou duas das quatro linhas de pesquisa do

programa1, desenvolvendo uma problemática – abordada por todos que escolherem
L determinada linha de pesquisa – e uma questão de estudo decorrente desta, que é
específica a cada subprojeto.
A Ao voltar o olhar para as bases teóricas que discorrem sobre o
desenvolvimento de uma atividade docente mais dinâmica, é possível notar a
quantidade de produções acadêmicas que apontam as Tecnologias da Informação
e Comunicação (Tics) como elementos essenciais para o desenvolvimento desse
processo. O principal argumento para essa ideia é o de que o aluno deve encontrar na
• escola uma aproximação com o próprio cotidiano, e, estando este imbuído de redes
1264 sociais, produções midiáticas e conexões que se baseiam em códigos e tecnologias
informacionais, se observa a necessidade dessa interação entre o Ensino e as TIC.

(SILVA, T., 2013).
Conforme explicitado anteriormente em breve análise à pesquisa do IBGE
acerca do “Acesso à internet e posse de telefone móvel celular para uso pessoal”
(IBGE, 2018), percebe-se o crescimento exponencial do uso das Tics no cotidiano
2 da população brasileira, em especial dos alunos da educação básica.
Pavanati, Pereira e Sousa (2011) afirmam a divisão teórica dos que
estudam a associação entre ensino e tecnologia em três grandes grupos: o primeiro
0
é composto pelos profissionais da educação que são entusiastas às possibilidades
de interação entre o ensino e as tecnologias da informação e comunicação digital;
1 o segundo é aquele em que os profissionais evitam o uso dessas tecnologias no
ensino, dando ênfase nos riscos e problemas trazidos por essa utilização; sendo
8 o último integrado por aqueles que defendem “uma apropriação crítica dessas
tecnologias” (PAVANATI et al., 2011). Nesse sentido, entende-se ser necessário
discutir a utilização dessas tecnologias de forma crítica, tomando cuidado para
não cair em discursos criados e encorpados por empresas que se beneficiariam ao
vender equipamentos a estados nacionais, ou que indiquem um grande gasto que
não seria, por fim, recompensado, conforme afirmado por Perrenoud (2010).

1  Sendo estas: 1 – História da África e cultura afro-brasileira/acreana; 2 – Culturas/identidades


na fronteira trinacional (Amazônia Sul-Ocidental): Acre/Brasil, Pando/Bolívia e Madre de Dios/
Peru; 3 – Populações amazônicas/acreanas “tradicionais”; 4 – Geopolítica e ocupação do espaço
acreano: poder, representações, lutas sociais e meio ambiente.
Com a renovação do Pibid pelo edital 61/2013 (que se torna vigente no
ano de 2014), a proposta do programa passa a ser caracterizada pela associação
do ensino com a Pesquisa e pela busca de práticas docentes inovadoras, a fim de
contribuir com uma ressignificação das formas como a disciplina de história é
abordadana escola de Ensino Fundamental II e Ensino Médio.
Nesse sentindo, faz-se uso do livro ‘Ensino de História: fundamentos e
métodos’, de Circe Bittencourt, para explicitar e refletir sobre alguns aspectos e
J necessidades de inovação metodológica no ensino. Esse texto foi utilizado muitas
vezes no programa – o seminário de 2015 contou, inclusive, com a presença da
A autora –, em forma de oficinas, debates, aulas expositivas, etc., em processos de
formação dos bolsistas e na própria ida às escolas. A obra, além de expor aspectos
L e práticas de ensino-aprendizagem, apresenta reflexões sobre assuntos peculiares
a essa temática, tais como o currículo escolar, o livro didático e as linguagens

aplicadas à didática. Faz-se necessário, então, explicitar alguns pontos relativos
L à dicotomia historicamente construída entre os métodos de ensino tradicionais e
inovadores.
A O método de ensino, conhecido por muitos como “método tradicional” é
muito criticado devido o professor ser o centro do “poder e conhecimento”, diante
dessa constância de ensinarmos ainda nos métodos tradicionais, o Pibid de História
da Ufac, propõe a “Aula Inovadora” que inicia-se em meados de 2014-2017, com o
objetivo de ter no centro de qualquer proposta conteúdista o “discente” da escola. Ele
• é o alicerce do ensino, aquele que buscará as informações, pesquisará veracidades
1265 e novidades sobre o conteúdo sugerido pelo discente da Universidade Federal do
Acre, que na maioria das vezes já sugeriam um conteúdo de forma não usual nos

livros e currículos, como exemplos de conteúdos didáticos sendo utilizados nas
aulas inovadoras, temos:
- Wálisson Clister Lima Martins, com o tema “Os Geoglifos e a (antiga)
Amazônia acreana”;
2 - Fábio de Farias Soares, com o tema “Amazônia do século XVI:
desencontros culturais e as representações da ocupação europeia”;
0 - Jardel Silva França, com o tema “Literatura como forma de libertação
no período escravagista”;

1 - Sandy Maria Gomes de Andrade, com o tema “Arte(s), vida(s) e diversidade
dos “povos indígenas” do Acre”.

Em muitas renovações metodológicas no ato do ensino do século XIX
8
para o XX, o que continuava a prevalecer era o conteúdo como meio de atingir
o aprendizado. O aluno continuava não fazendo parte do processo do conhecer.
Dos anos 1970 em diante, podemos verificar o grande surgimento de inovações
tecnológicas que passam a serem utilizadas na sala de aula, segundo a autora
“assistiu-se ao crescimento do uso de audiovisuais para as áreas de ciências
humanas e de kits de laboratórios para as áreas de matemática e de ciências,
particularmente” (BITTENCOURT, 2011, p. 226).
Para Perrenoud (2000) é importante ter cuidado para não estarmos
fazendo dessa defesa do uso tecnológico no ensino, um pensamento fanático; diz
ele “Toda palavra missionária irrita, sobretudo quando emana daqueles que têm
todo interesse em fazer adeptos” (PERRENOUD, 2000, p.125).
O autor citado destaca a dificuldade de refletir sobre a possibilidade da
utilização dessas tecnologias, pois várias são as propostas que veem acompanhadas
“dos modismos e das estratégias mercantis” (PERRENOUD, 2000, p.125).
Perrenoud (2000) considera importante o uso das tecnologias, mas não
como algo sacralizada que sozinha pode transformar conhecimento ou substituir
J o professor. É fundamental que o professor saiba trabalhar com informática, de
modo que passe aos alunos, segurança e competência, no que diz respeito a esse
A ensino com o uso de tecnologias:
Nada a dizer das novas tecnologias em um referencial de formação contínua
L ou inicial, seria indefensável. Colocá-las no centro da evolução do ofício de
professor, particularmente na escola de ensino fundamental, seria despro-
porcional (PERRENOUD, 2000, p. 126)
L
Para Circe Bittencourt (2011), é preciso perceber que a permanência
desse chamado “Ensino Tradicional” não precisa desaparecer, para que surjam
A outros métodos, um pode agregar-se no outro e acrescenta:
A outra questão é investigar o significado da renovação metodológica, uma
vez que, muitas vezes, método de ensino pode ser facilmente confundido
com técnicas de ensino ou com a adoção de novos recursos tecnológicos no
ensino (BITTENCOURT, 2011, p. 226).

Para Bittencourt (2011), as técnicas de ensino ou os recursos tecnológicos
1266 devem ser utilizados em sala de aula, mas é preciso ter cuidado se todos esses
• materiais tecnológicos não reproduzem o método tradicional criticado por muitos
estudiosos.
Das experiências pessoais
Como exemplários da utilização das Tics no Ensino do Pibid História Ufac
2017, serão elencados alguns trabalhos que se destacam ao incorporar ferramentas
2 tecnológicas em metodologias e técnicas didáticas.
O primeiro é intitulado “Os Geoglifos e a (antiga) Amazônia acreana”,
0 do bolsista Wálisson Clister Lima Martins. O bolsista construiu uma abordagem
dinâmica entre Arqueologia e História, buscando construir conhecimentos sobre
1 os chamados Geoglifos do Acre2. Segundo o artigo (no prelo) do projeto, as práticas
inovadoras se relacionaram com as tecnologias da informação através da ida com os
8 alunos a sítios arqueológicos, utilizando de ferramentas de geolocalização (Google
Maps) nos smartphones do bolsista e dos próprios alunos para ver de cima as
figuras formadas pelos Geoglifos, empregando, ainda, o aplicativo “Google Street
View” para construir fotos em 360º, que foram expostas posteriormente – com
o uso de óculos de Realidade Virtual de baixo custo, junto do aplicativo “Google

2  Estruturas de terras formadas por valetas que, quando vistas de cima, formam grandes desenhos
geométricos ou mais complexos. Encontram-se em grande parte na Amazônia Sul Ocidental,
principalmente no Estado do Acre, e são entendidas como reminiscências da vivência de populações
indígenas anteriores ao século XVI.
Cardboard” – aos outros alunos na “Feira do Pibid de História” da escola anfitriã do
grupo. (MARTINS, 2017, no prelo).
O segundo exemplo vem do projeto do bolsista Fábio de Farias Soares,
que trabalha a Amazônia a partir da visão dos cronistas do século XVI. Aqui a
dinâmica do projeto consistiu no dialogo mais aprofundado com os discentes:
foram construídos mapas e jogos através de ferramentas on-line, em que os alunos
construíram um jogo com regras, cartas e um mapa da Amazônia – As regras foram
J digitalizadas, as cartas escritas a partir do editor de textos (Office Word) e o mapa
desenhado no papel e posteriormente transformado em digital através do editor
A de imagens online Canva. Como parte planejada – mas não efetivada –, tem-se a
produção de um filme de curtíssima metragem por parte dos alunos a partir do
L aplicativo Quick. (SOARES, 2017, no prelo).
Os bolsistas Jardel Silva França e Sandy Maria Gomes de Andrade entram
nesse rol para exemplificar o uso dinâmico das tecnologias não de uma forma
L
metodológica e sim técnica. Nos dois trabalhos percebe-se a criação de grupos de
interação com os alunos no aplicativo Whatsapp como ferramenta de comunicação
A com os discentes, além da utilização de mídias como filmes e músicas propostos
para a análise em aulas dialogadas.(FRANÇA, 2017, no prelo; ANDRADE, 2017, no
prelo).
São nestes trabalhos, chamados de “Aulas Inovadoras”, que percebemos
a utilização das tecnologias, não só para as pesquisas, mas para trocar ideias
• e dúvidas pelo whatsapp, produzir vídeos de finalização da pesquisa, enfim um
1267 meio de comunicação facilitador das linguagens próprias da escola e do cotidiano
• discente. Dessa forma, o aluno realizando sua própria pesquisa, sente-se parte
do processo de ensinar e de aprender; está no topo e percebe que tem as “armas”
ideais para conhecer e construir sobre o que quiser. O discente da Universidade
estará lhe dando direções que o ajudarão a entender a pesquisa e o fará perceber o
quão próximo está, este conteúdo das vivências.
2 Considerações finais
O que é a escola senão um lugar aberto a novas adaptações tecnológicas?
0 Deve-se olhar para a escola como um lugar de aprender, mas sabemos que o
aprendizado é/ou pode ser construído em qualquer lugar. A tecnologia, se utilizada
1 adequadamente, favorecerá a aprendizagem, levando a lugares qualquer, a saberes
desconhecidos.

Na primeira metade do século XXI, as crianças já nascem em meio a uma
8
cultura tecnológica, desse modo não há como professores fugirem desse universo. A
escola do século XXI, em que o conhecimento é concentrado na figura do professor,
já não traz mais segurança de saberes para os jovens; aparentemente, esse tipo
de ensinar já é considerado ultrapassado para os próprios jovens que veem na
tecnologia novas formas de conhecer, de aprender e de ser.
Espera-se que, no recorte do ano de 2017, o Pibid História Ufac, como
elemento complementar à formação de futuros docentes de História, tenha atuado
de forma a contribuir com o desenvolvimento do saber tecnológico no pensar
dos professores e alunos a partir do uso de ferramentas já conhecidas ou do
conhecimento de novas.
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SOARES, F. F. Amazônia do século XVI: desencontros culturais e as representações da ocupação
1 europeia. In: Anais do V Seminário Pibid História Ufac: Direitos, humanidades e História. (no
prelo). 2017.
8 SOSA, D., TAVARES, L. C. Ensino de história e novas tecnologias. In: Revista Latino-Americana
de História. São Leopoldo: UNISINOS, Vol. 2, N. 6, 2013.

J

A

L LUNA CALIENTE: DESEJO E VIOLÊNCIA NA ENCRUZILHADA
INTERARTES DE GIARDINELLI E ARANDA
L
Wellington R. Fioruci (UTFPR)
A RESUMO:O trabalho explora a relação intersemiótica constituída pelo diálogo
resultante da adaptação do romance Luna Caliente (1983), de Mempo Giardinelli,
pelas mãos do diretor Vicente Aranda, em versão homônima (2009). Tanto o romance
como o filme se apropriam do gênero policial para construir suas narrativas.
Interessa nesta análise compreender como ocorre, do ponto de vista das relações
• interartes, o processo de transposição semiótica do romance para o cinema, no qual
se destaca a distância temporal, a diferença de códigos e as estratégias poéticas e
1269
narrativas. Para tal, lançar-se-á mão de alguns conceitos teóricos relevantes para
• o campo de estudos em questão, a saber, a teoria da adaptação. Assim, espera-se
com a análise proposta contribuir para a compreensão dos processos interartes,
mais especificamente no que tange aos estudos da adaptação, assim como se busca
explorar a atualização do gênero policial na contemporaneidade a partir de uma
perspectiva crítica e histórica.
2 Palavras-chave: Luna caliente. Mempo Giardinelli. Vicente Aranda. Gênero policial.
Adaptação.
0
O enredo do breve romance Luna Caliente é, para dizer o mínimo, ousado,
envolvendo uma estranha relação erótica, um assassinato e uma investigação
1
carregada de tons políticos. Portanto, tem-se sexo, crime e elementos históricos
condensados em uma linguagem bastante cortante, diante da qual o leitor mal
8 consegue encontrar fôlego para respirar. Com a palavra, o escritor: “Parida por la
violencia de la dictadura, escrita desde el dolor del exilio, supongo que por eso son
negros su tono, su tensión dramática y su vertiginoso desarrollo” (GIARDINELLI,
2012, p.27). Por tais motivos, o thriller levou o Prêmio INBA-México de melhor
romance, em 1983, e foi adaptado para uma série televisiva no Brasil (1999), dirigida
por Jorge Furtado, um longa-metragem na Argentina (1985), também exibido na
televisão e a cargo de Roberto Denis, e outro na Espanha (2009), sendo este último
foco desta análise. Contudo, caberia entender antes o argumento da obra literária
para melhor se desenvolver depois o estudo da adaptação cinematográfica.
Ramiro é um profissional promissor aos seus 32 anos e, quando inicia o
romance, recém havia retornado ao Chaco, sua região Natal na Argentina, vindo da
França, onde concluíra sua formação com doutorado em Direito. Convidado à casa
de um amigo de seu falecido pai, o Dr. Tennembaun, conhece durante o jantar a
filha deste, Araceli, jovem e insinuante adolescente de 13 anos. Ramiro Bernárdez,
então, durante a noite, de forma inescrupulosa, entra no quarto da garota e força
uma relação sexual com esta. Araceli reage e, ao tentar desvencilhar-se, é sufocada
J por Ramiro, num acesso de violência extremada. Este crê que a matou e, assim,
prepara-se para fugir durante a madrugada, mas quando está de partida em seu
carro recebe a visita inesperada do pai de Araceli, já bastante alcoolizado, que
A
convence Ramiro, a contragosto, a levá-lo consigo para terminarem a noite bebendo
na cidade. No entanto, durante o trajeto, a atitude ambígua do anfitrião provoca
L dúvidas em Ramiro quanto ao fato de que este poderia saber do que acontecera na
sua casa. Tomado de paranoia, Ramiro resolve matar o pai de Araceli e joga seu
L carro num despenhadeiro, saltando antes para uma fuga alucinada.
Após empreender com sucesso sua fuga e chegar em casa, Ramiro
A recebe, no dia seguinte, com perplexidade, a visita de Araceli, que passa a assediá-
lo insistentemente. Não bastasse isso, vê-se às voltas com a investigação da morte
do pai da garota, e pouco a pouco converte-se no principal suspeito do que passara
de um possível acidente a um provável caso de assassinato. A investigação fica a
cargo da polícia argentina, tomada naquele contexto pelos militares da ditadura,
• pano de fundo histórico fundamental na construção do enredo.
1270 Luna Caliente, como se pode depreender a partir deste resumo, não foca na
investigação do assassinato, o whodunit que foi a base do gênero policial clássico e

mesmo do noir, afinal, o leitor já sabe quem é o criminoso e todas as circunstâncias
do ocorrido. No entanto, é justamente este um dos pontos centrais do romance
policial contemporâneo, a saber, o desvio deste estratagema da investigação para
questões outras como, por exemplo, entender mais a fundo a personalidade e as
motivações do assassino e o contexto histórico que permeia a ação. No caso deste
2 romance, ainda podemos acrescentar o interessa da narrativa pela personagem, e
uma das vítimas, Araceli, que pouco a pouco vai se transformando em cúmplice
0 passiva do assassinato do próprio pai.
Com efeito, pode-se perceber na arquitetura desta narrativa de Mempo
1 Giardinelli a conexão indireta com outras duas obras fundamentais da literatura
ocidental, Crime e castigo (1866), de Dostoievski, e Lolita (1955), de Nabokov. Com
8 relação à primeira, Luna Caliente dialoga a partir do tema da crise de consciência
do assassino. Como se sabe, no romance russo o protagonista, Raskolnikov, após
assassinar uma velha agiota, mergulha vertiginosamente no âmago de sua existência
para enfrentar sua própria decisão, processo pelo qual Ramiro também passará no
breve relato de Giardinelli. Outra conexão intertextual no relato argentino se dá a
partir da personagem de Araceli, uma adolescente insinuante que após a agressão
de Ramiro a si mesmadesenvolve pelo sujeito uma estranha obsessão. Sua postura
ambígua e erotizadaem relação a este homem mais maduro traz à superfície da
leitura inevitavelmente a imagem de Lolita, embora em contexto bastante diverso.
Nesse sentido, isto é, no que tange à questão erótica na obra literária,
há que se destacar a presença constante do signo relativo ao calor, cuja reiteração
reforça a já aludida imagem sensual representada pela personagem de Araceli.
Logo na abertura do romance, como é comum durante a obra, apresenta-se ao
leitor, de forma abrupta e direta, a seguinte cena:
Sabía que iba a pasar; lo supo en cuanto la vio. Hacía muchos años que no
volvía al Chaco y en medio de tantas emociones por los reencuentros, Araceli
fue un deslumbramiento. Tenía el pelo negro, largo, grueso, y un flequillo alti-
J vo que enmarcaba perfectamente su cara delgada, modiglianesca, en la que
resaltaban sus ojos oscurísimos, brillantes, de mirada lánguida pero astuta.
Flaca y de piernas muy largas, parecía a la vez orgullosa y azorada por esos
A pechitos que empezaban a explotarle bajo la blusa blanca. Ramiro la miró y
supo que habría problemas: Araceli no podía tener más de trece años.(GIAR-

DINELLI, 2014, p.13)
L
Assim, o leitor é apresentado à visão de Araceli segundo o ponto de vista
L de Ramiro, haja vista que durante o texto a focalização do narrador heterodiegético
dá-se a partir da perspectiva deste personagem. Imediatamente na cena seguinte,
uma página depois, o narrador apresenta o cenário dos eventos, El Chaco: “La
A noche cayó con grillos tras los últimos cantos de las cigarras, y el calor se hizo
húmedo y pesado y se prolongó después de la cena […]”(2014, p.14, grifo meu).
E logo mais no parágrafo seguinte: “Cuando se pusieron de pie para ir al jardín,
porque el calor era sofocante, Ramiro la miró.” (2014, p.14, grifo meu). Os atributos
“úmido” e “pesado”, potencializados pelo valor adverbial representado pelo verbo

“prolongar” na primeira citação, e ainda outro qualificativo na citação seguinte,
1271 “sufocante”, ambientam o leitor num cenário que mimetiza o sentimento deste
• Ramiro deslocado, recém retornado da Europa.
Ainda neste mesmo capítulo inicial, em que os personagens dos pais
de Araceli, além desta e Ramiro, estão reunidos durante o jantar, este elemento
retornará, primeiramente de forma indireta “[...] a Ramiro leresultó inquietante
porque no podíadejar de mirar a Araceli, ni a su falda corta que parecíaremontarse
2 sobre laspiernas morenas, suavemente velludas, impregnadas de sol [...]”(2014,
p.15, grifo meu), como se pode observar na relação metonímica do sol com a pele,
ou seja, o corpo de Araceli, objeto do desejo de Ramiro. Na página seguinte, mais
0
uma vez retorna o signo “Ramiro se diocuenta de que teníalas manos transpiradas,
y que no era por elagobiante calor de lanoche.” (2014, p.16, grifo meu), desta vez
1 carregado da força do qualificativo “agonizante”, relacionado à ideia de sofrimento
e, no extremo, de rendição. Tratava-se, como o capítulo em modo proléptico indicia
8 em seu primeiro parágrafo, já supracitado, da rendição moral, da corrupção ética
de Ramiro “Sabía que iba a pasar [...]”, “[...] supo que habría problemas [...]”.
No entanto, MempoGiardinelli, por meio da voz narrativa, acrescenta um
elemento bastante interessante à percepção de Ramiro, e assim à do leitor, pois
afirma que o personagem se deu conta de que suas mãos transpiravam, mas não
pelo calor, sendo assim, qual seria o motivo? Ao longo do romance, ficará claro
que o personagem entrará em conflito com suas ações, enfrentando uma crise de
consciência ao tempo em que, de alguma maneira, tenta justificar-se, seja pra si
mesmo, seja aos olhos de seus algozes intérpretes. Contudo, tal observação do
narrador, fruto da própria percepção de Ramiro, indica que sua consciência está
em colapso, afinal, ele entende que o suor, a transpiração, denominador subreptício
e simbólico, é muito mais fruto do desejo que alimenta e começa a extravasar, do
que consequência do clima tropical.
Poder-se-ia também interpretar essa estranha relação entre Araceli e
Ramiro pela ótica freudiana da chamada mitologia das pulsões. A conhecida leitura
de Freud sobre a pulsão de morte (Tânatos), espécie de reflexo destrutivo de sua
outra face, a pulsão de vida (Eros), fornece uma chave possível para compreender
J um pouco mais do comportamento ambíguo de Araceli em relação a Ramiro e a
sujeição deste ao desejo destrutivo que os conecta. Para restringir a discussão,
A note-se em seu texto “Além do princípio de prazer” (1920) o questionamento do
autor a respeito desse complexo dualismo:
L Mas, como pode o instinto sádico, cujo intuito é prejudicar o objeto, derivar
de Eros, o conservador da vida? Não é plausível imaginar que esse sadismo
seja realmente um instinto de morte que, sob a influência da libido narcisis-
L ta, foi expulso do ego e, conseqüentemente, só surgiu em relação ao objeto?
Ele entra em ação a serviço da função sexual. [...] Poder-se-ia verdadeira-
mente dizer que o sadismo que for expulso do ego apontou o caminho para
A os componentes libidinais do instinto sexual e que estes o seguiram para
o objeto. Onde quer que o sadismo original não tenha sofrido mitigação ou
mistura, encontramos a ambivalência familiar de amor e ódio na vida eróti-
ca. (FREUD, s/d, p.26)

O sadismo seria neste caso, portanto, a tradução do amálgama entre



prazer ou necessidade (Ananke) e morte (Todestrieb) que alimenta a conexão dos
1272 dois personagens. Para entender um pouco mais essa dual relação, cabe ainda o
• desdobramento dessa reflexão no aspecto masoquista de tal instinto destrutivo:
[...] em princípio, não existe diferença entre um instinto voltar-se do objeto
para o ego ou do ego para um objeto, que é o novo ponto que se acha em dis-
cussão atualmente. O masoquismo, a volta do instinto para o próprio ego do
sujeito, constituiria, nesse caso, um retorno a uma fase anterior da história
do instinto, uma regressão.(FREUD, s/d, p.26)
2
Não é objetivo desta análise aprofundar a discussão sobre o conceito
freudiano, mas apropriar-se da reflexão em seu estado latente para lançar luz sobre
0
a construção do enredo e das personagens de Giardinelli, assim como a relação
dessas mesmas personagens em sua versão cinematográfica, como veremos a
1 seguir.
No filme de Aranda a dimensão erótica é explorada tanto quanto no
8 romance. As personagens de Juan (Eduard Fernández) e Ramona (Thais Blume),
versões fílmicas de Ramiro e Araceli, desde o momento que cruzam o primeiro
olhar estabelecem um jogo de mútuo interesse. Num primeiro momento, o olhar
insinuante da garota (que no filme tem 18 anos) é reforçado pela sua postura
corpórea, cujo ápice ocorre ainda quando jantam, na cena em que Juan se abaixa
pra pegar um talher e esta faz questão de mostrar-lhe, por baixo da mesa,seu
corpo. Durante toda a sequência do jantar nota-se que seus mamilos destacam-se
por trás da blusa e, mais tarde, já dentro do carro, Juan a vê na janela do quarto
dizendo-lhe algo em tom intimista e cúmplice, denotando também por gestos que
este não vá embora. O sujeito, de 49 anos, desde o começo mostra-se provocado
pela presença da jovem e bela garota. O olhar de Juan, inicialmente, é um misto
de desconforto e curiosidade, mas logo se torna conspícuo e sua atitude ao fim do
jantar é afogar o carro pisando insistentemente no acelerador pra que este não dê
partida.

J

A
Imagem 1 (00:11:48) Imagem 2 (00:12:45)
L Após esta introdução, dá-se sequência à cena homóloga ao do romance:
Juan penetra no quarto de Ramona sorrateiramente e a toca aos poucos. Esta, num
L primeiro momento, permite o contato, mas quando vê que o hóspede tira as calças
e prepara-se para uma investida sexual, tenta gritar e escapar, mas é vencida pelo
homem que a toma à força. A violência sexual é seguida do sufocamento com o
A travesseiro, a exemplo do romance, e a aparente morte da garota. Esta sequência
na casa dos anfitriões de Juan, o doutor Muniente e sua esposa, que inclui o jantar
e o acontecimento narrado, é introduzida pelo foco numa lua muito cheia, com tons
quentes, entre o amarelo, o laranja e o vermelho.

• Tal escolha imagética do diretor talvez seja uma saída para a falta do
elemento relativo ao calor, haja vista que faz frio, contrastando com o cenário
1273 argentino do Chaco presente na obra de partida. Além disso, é inevitável que
• associemos a lua a certa condição de transformação do personagem, muito ligada
ao mito licantrópico do lobisomem, isto é, a uma natureza animalesca e monstruosa
do sujeito.

2

0

1
Imagem 3 (00:03:50)

8 Um aspecto que salta aos olhos é a estratégia discursiva empregada


por Aranda queconsiste em pontuar o relato com várias frases ou pensamentos
que aparecem na tela a modo de diálogo verbal com os eventos narrados
cinematograficamente. É possível questionar essa estratégia, já que se poderia
argumentar que a linguagem audiovisual, própria do cinema, tem condições de dar
pistas ao espectador sem que seja necessário esse recurso. No entanto, tal emprego
oferece uma camada de análise pertinente, como é o caso do texto atribuído a
Dante “A una pequeña chispa sigue una gran llama”. De fato, trata-se de uma
passagem da obra máxima do italiano A divina comédia, pertencente ao “Canto
I”. Tal aforismo tanto alude ao desejo quanto à condição narrativa de Juan, cujas
decisões levam a consequências inescapáveis em um crescendo trágico.
Um diálogo instigante entre livro e filme, mais especificamente quanto à
relação entre sexo e morte, aspecto já comentado anteriormente no enredo literário,
pode ser analisado com pertinência em duas cenas da obra fílmica. A primeira se
dá durante o velório do médico Dr. Muniente. Ramona, que diante dos presentes
demonstra encontrar-se em estado de luto pelo pai, ao ver chegar Juan ao velório
J imediatamente o conduz para fora do ambiente e faz sexo com ele ao ar livre, mal
ocultados por uma árvore. Tal atitude permite que o delegado responsável pelo
A caso os pegue em flagrante e conclua o que já imaginava: que há uma relação entre
ambos e que Juan é o assassino do médico, ao passo que sua filha é conivente ou
L cúmplice passiva quanto ao crime.
Outra passagem traduz-se numa metáfora visual, mais ao final da
película, na cena em que o imprevisível casal para o carro em que se encontram
L
para fazer sexo na rodovia. Juan, aflito pelos desdobramentos do caso, tenta
evitar, em princípio, as investidas libidinosas de Ramona, mas logo cede ao seu
A desejo compulsivo. Nesta cena impactante, Ramona morde o lábio de seu amante
e em seguida o mamilo deste. A cena, misto de erotismo e sadismo, termina com
Juan sangrando, porém dominando pela força Ramona e novamente a sufocando
enquanto termina o ato sexual. A metáfora visual reside no fato de que este, ao
levantar o vestido da parceira, cobre seu rosto como uma mortalha. A sugestão
• imagética se reforça com a suposição de que a personagem está morta, novo engano
1274 que será desfeito mais tarde.

2 Imagem 4 (00:53:36) Imagem 5 (01:15:03)



0 Outro aspecto já comentado que merece análise mais profunda na obra
diz respeito ao elemento histórico-político, fundamental na construção do romance,
assim comoda trama policial fílmica. Ramiro retorna à Argentina sob o governo de
1
mão de ferro dos militares, chefiado pelo general Jorge Rafael Videla. “La pantera
rosa”, como era conhecido por sua aparência física, deveria parecer mais a um
8 chacal faminto aos seus opositores. A constatação de tal período ditatorial e seu
representante localiza-se no capítulo 18 do romance, quando Ramiro está sendo

acusado da morte do médico Don Braulio Tennembaume se vê diante de seus
verdugos, entre eles o tenente coronel Alcides Carlos Gamboa Boschetti, chefe de
polícia da província:
Pero lo que sí lo preocupaba era la amenaza velada de Gamboa. No creía, no
quería creer, que fueran a torturarlo, pero a cada momento se decía que esta-
ba en el Chaco, en la Argentina de 1977, y que si algo faltaba en ese contexto
eran garantías. “No vaya a pensar que estamos en Francia, doctor”, le había
dicho Gamboa.(1985, p.118)
Com efeito, neste momento o país vivia sob a ditadura de um estado
terrorista, o qual se autointitulava “Proceso de Reorganización Nacional”.Um
documento elaborado ao final deste período por uma comissão denominada
Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas (Conadep) chega à seguinte
conclusão no que tange à violação dos direitos humanos do regime:
De la enorme documentación recogida por nosotros se infiere que los derechos
humanos fueron violados en forma orgánica y estatal por la represión de las
J Fuerzas Armadas. Y no violados de manera esporádica sino sistemática, de
manera siempre la misma, con similares secuestros e idénticos tormentos en
toda la extensión del territorio (1985, p. 8).
A
Ainda sobre a questão do tratamento dado aos inimigos do regime, o

documento afirma rotundamente:
L
En nombre de la seguridad nacional, miles y miles de seres humanos, ge-
neralmente jóvenes y hasta adolescentes, pasaron a integrar una categoría
L tétrica y fantasmal: la de los Desaparecidos. Palabra – ¡triste privilegio argen-
tino! – que hoy se escribe en castellano en toda la prensa del mundo (1985,
p. 9).
A
A ditadura na Argentina produziu, a exemplo de seus vizinhos
latinos, um banho de sangue, deixando um saldo assustador de cerca de 30 mil
“desaparecidos”, uma desastrosa dívida externa seis vezes maior em comparação ao
período anterior e um alto nível de desemprego (GALASSO, 2012). É neste cenário
• que acompanharemos, de forma bastante simbólica, a decadência de Ramiro,
corroborando a tese de Giardinelli segundo a qual:“La novela negra latinoamericana
1275
se relaciona con todo lo que hemos perdido.[…] El género negro siempre está
• cuestionando la pérdida de valores, porque es un género profundamente moral.”
(GIARDINELLI, 2012, p.37)
Na adaptação de Aranda desloca-se a discussão histórica para outro
território, posto que o filme se passa na Espanha franquista. Sabemos disso por
várias referências ao período militar, a começar pela crítica do Dr. Muniente ao
2 regime do general Franco e por uma notícia de rádio de que o Chefe de Estado
estaria cumprindo 78 anos de idade naquele ano em que se desenvolvem os fatos
0 da narrativa, portanto, é possível precisar que o roteiro localiza suas ações no ano
de 1970. Além disso, um dos elementos centrais da narrativa e pano de fundo
1 histórico das ações dos personagens, sobretudo no que se refere à irmã de Juan,
integrante do Partido Comunista Espanhol (PCE), é o “Proceso de Burgos”, episódio
histórico ocorrido em 03 de dezembro de 1970 nesta mesma cidade em que dezesseis
8 (16) membros do ETA, organização armada a favor da independência do país basco,
foram a julgamento por acusações de crimes de homicídio.

Imagem 6 (00:01:50)
Tendo em vista tais marcos históricos, fica patente que a transposição
fílmica busca ressignificar o contexto histórico do romance de Giardinelli a partir
do mesmo discurso crítico contra um regime militar e opressor. No roteiro escrito
pelo próprio diretor, Vicente Aranda, ele mesmo uma vítima do regime franquista
como outros tantos artistas e intelectuais, Juan é um poeta premiado e vive na
França, onde atua como integrante de uma Comissão de Direitos Humanos da
UNESCO. Esse elemento da caracterização do personagem será fundamental no
J roteiro quando Juan estiver diante dos policiais a serviço do regime franquista.
Interessa ao regime de Franco, acusado de constantes violações aos
A direitos humanos pela barbárie lançada contra seus opositores, ter a seu favor
um escritor de prestígio como Juan, ainda mais pela posição internacional que
L este ocupa. Assim, tanto o inspetor de polícia quando o Coronel, representantes
do regime ditatorial, chantageiam Juan e o pressionam para que confesse o crime

e peça abrigo ao governo, inclusive afirmando que “Nosotros podemos probarlo
L que queremos” e ainda “No estamos en Ginebra”. A simbologia não poderia ser
mais nevrálgica: nada mais coerente que um estado psicopata tentar cooptar um
A assassino. Entretanto, tão labiríntico quando a natureza humana parece ser o
devir histórico. Apesar de o protagonista ser um criminoso, nega-se a confessar e
servir o Estado.
De alguma maneira, parece despertar em Juan, assim como em Ramiro,
uma loucura e um mal adormecidos. Tanto um quanto o outro já não conseguem
• entender para onde se movem, mas têm consciência de que não é para um lugar
1276 melhor. Na última página do romance Ramiro pensa consigo mesmo que sua maior
condenação é “[...] ser joven y estar vivo, y no poder morirni amar, enesastierras

de nadie.” (2014, p.158). Juan e Ramiro agem tanto como agente quanto reféns do
terror nestes espaços que se tornaram um limbo, “terra de ninguém”, cujo reflexo
é a ausência de valores humanísticos, de altruísmo. No entanto, um e outro vêm
de outro espaço, de outro tempo, e daí advém sua crise de consciência, pois há
algo dentro de si e para além de si que se nega a aceitar o regime de terror. O
2 ambiente claustrofóbico e patológico em que esta sociedade está mergulhada deixa
vir à tona o Mr. Hyde dentro daqueles que flertam com as sombras. Num dado
0 momento do filme, o espectador tem acesso ao seguinte poema de Juan “Manos
enegrecidasarañan mi alma, las sombras tienendientes y muerden.”
1 Aranda e sua equipe realizam um trabalho bastante significativo e não
menos provocador nesta adaptação do premiado romance de Giardinelli. Dada a
8 pouca atenção dada pela crítica a esta obra fílmica, bem como a rarefeita fortuna
acadêmica a respeito, em oposição à obra fonte, esta breve análise entende que
pode trazer ao campo de estudos alguma contribuição, sobretudo no sentido de
valorizar a adaptação como processo dialógico e produção autônoma. Também
entende que o romance e o filme formam um território de potencial reflexão histórica,
ambos concretizam-se em leituras inquietantes de um passado nunca totalmente
compreendido e ainda menos resolvido.
Referências
ALIGHIERI, D. A divina comédia. São Paulo: Editora 34, 1998.
FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. Disponível em lacan.orgfree.com/freud/
textosf/alemdoprincipiodeprazer.pdf. Acesso em 12/05/2018.
GALASSO, Norberto. Historia de la Argentina. Desde los pueblos originarios hasta el
tiempo de los Kirchner. Buenos Aires: Editorial Colihue, 2012.
GIARDINELLI, Mempo. Luna Caliente. 2ª edição. Madrid: Alianza editorial, 2014.
GIARDINELLI, Mempo. Novela policial y cine negro. Vasos comunicantes de la narrativa
del crimen. In: Narrativas del crimen en América Latina. Transformaciones y transcul-
J turaciones del policial. Berlim: LitVerlag, 2012, p.27-38.
LUNA Caliente. Direção de Vicente Aranda. RTVE producciones. Espanha, 2009. 90 min.
A Color. [DVD]


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L DSOPPINEJE: SISTEMA DE SAÚDE MADIJA (KULINA) E O USO DE
SUBSTÂNCIAS SAGRADAS
L
Wladimyr Sena Araújo (PMRB)
A RESUMO: Os Madija, povo indígena da família Arauá, vivem no sul do Amazonas,
região central do Acre e no Peru (fronteira com o Acre/Brasil). Madija significa gente
e desta forma os mesmos afirmam que se reconhecem pelos clãs ou gentes que
habitam estes territórios. É um povo indígena extremamente voltado ao xamanismo
que, por sua vez, é designado por eles de dsoppineje. O dsoppineje é o sistema
• de saúde e a relação central de existência destes índios, visto que é ele quem
possibilita a conexão direta do plano ordinário para outras realidades sagradas. Os
1278
Madija vivem em constante conflito entre a doença e a cura. Esta relação é mítica
• e se materializa no cotidiano das aldeias por meio de enfermidades, geralmente
causada por espíritos a mando de terceiros. Neste contexto, o xamã (também
chamado de dsoppineje) tem o papel de buscar o reestabelecimento daqueles que
estão em desequilíbrio físico e espiritual. Neste contexto, duas plantas sagradas
são fundamentais no processo doença/cura: o tabaco (sina) e a ayahuasca (rami).
2 As duas tem significados simbólicos importantes que aproxima a “história antiga”
(mito) ao mundo humano através de rituais e celebrações do sistema dsoppineje.
0 Palavras chave: Saúde – Xamanismo - Madija
Introdução
1 Os Madija, pertencentes ao tronco Aruaque, sub – grupo Arawa, habitam
o Acre, Sul do Amazonas e Peru. No Estado do Acre vivem no Alto Rio Purus e Alto Rio
8 Envira, sendo os habitantes deste segundo rio nossos principais os interlocutores
desta pesquisa situados na Terra Indígena Alto Rio Envira.
Esta investigação foi feita durante várias fases: i) ainda quando pertencia
ao Adsaba1 Núcleo de Pesquisa Teatral na década de 90 e quando ainda era estudante
do curso de História pela Universidade Federal do Acre (onde obtivemos também o
precioso apoio de Abel Kanaú – na ocasião também estudante de História, técnico
do CIMI e residente na aldeia Igarapé do Anjo)2; ii) como estudante do Mestrado
1  Palavra que significa espírito auxiliar da pajelança (ikorime dsoppineje)
2  Na minha opinião Kanaú foi um dos precursores de estudos sobre populações indígenas no
curso de História da UFAC. Seu trabalho abordando a história, o mito e os aspectos lúdicos do
em Antropologia Social da Unicamp, ao elaborar texto para disciplina intitulada
Organização Social II, ministrado pelo professor Carlos Rodrigues Brandão, que
fez a avaliação de Huaji (caminhos) que abordava a organização social da Terra
Indígena Cacau do Tarauacá, Sul do Amazonas; iii) enquanto antropólogo de
consultorias voltadas para a revisão do Estudo de Impacto Ambiental/ Relatório de
Impacto ao Meio Ambiente da pavimentação da rodovia BR 364 sub - trecho Manoel
Urbano – Feijó; iv) como antropólogo responsável pela coordenação e elaboração do
J Etnozoneamento da Terra Indígena supracitada.
Os Kulina se autodenominam Madija, que significa “gente”, sendo que
A predominam onze tipos de “gente” no rio Envira. São elas: dsomahi madija (gente
da onça), pissi madija (gente do macaco de cheiro), acomi madija (gente da piranha),
L aboro madija (gente do papagaio), ccorobo madija (gente do peixe jeiju), dsohuiji
madija (gente do macaco prego), nara madija (gente do jaci), tocodso madija (gente

do jacaré preto), aba madija (gente do peixe), jomo madija (gente do macaco preto)
L e qquere madija.
Este texto pretende apresentar aspectos da principal atividade deste Povo:
A o sistema intitulado de dsoppineje que vincula-se diretamente à saúde, mas que
é também transversal a outras áreas de conhecimento. Desta forma, o texto está
dividido em seções que tratam de suas histórias antigas e recentes, cosmologia e
dimensões xamânicas, além da ênfase destinada à relação saúde/ doença.
A noção de sistema cosmológico Xamânico

Para a literatura antropológica e de história das religiões, Xamanismo
1279
é o mais antigo sistema de tratamento da mente e do corpo da humanidade. O
• termo xamanismo tornou-se corriqueiro para antropólogos, historiadores e demais
especialistas que lidam com religião. O termo é oriundo dos Tungue da Sibéria.
Quem utilizou principalmente este termo foi o historiador ligado à corrente cultural
Mircea Eliade.
O xamã (saman para os Tungue), principal ator do xamanismo, é o
2 especialista do êxtase. Ele é aquele que faz a mediação do mundo ordinário com
o mundo sobrenatural, penetra no mundo dos espíritos e negocia com seres
0 sagrados em função dos humanos. Pode “viajar” para outras dimensões cósmicas
para aprender também com esses seres. O equilíbrio é uma de suas principais
1 características.
Para Mircea Eliade, xamanismo não tem como foco central o encantamento,
mas o êxtase, a forma do indivíduo se afastar do “próprio ser ou estado normal”.
8
Ele passa, portanto, a intensificar as suas sensações.
Atualmente existem duas grandes correntes para lidar com xamanismo.
A primeira está baseada na figura do xamã que pode ser reconhecido como chefe
cerimonial, profeta, sacerdote, líder espiritual, adivinho, curador, dentre outras
designações. Neste caso, o peso conceitual recai na figura do especialista do êxtase
e no papel que ele representa para o grupo.

povo Madija causaram estranheza aos acadêmicos e também a diversos professores que na época
incentivavam pesquisas embasadas em teorias marxistas e estruturalistas. A pesquisa por ele
desenvolvida consistia em uma etnografia, muito próxima a uma etnohistória.
Alguns estudiosos do início do século passado associavam o xamã a uma
figura excêntrica e mística, que faziam viagens mágicas e obtinham poderes por
meio de espíritos (LANGDON, 1992).
O poder desta figura xamânica pode ser adquirido de várias formas,
das quais os contatos com os espíritos correspondem apenas a um viés para a
construção de poder. Destacamos o uso de elementos como o tabaco e também o
uso de enteógenos3.
J Entretanto, este conceito torna-se limitado visto que alguns grupos não
detém xamã em todas as suas comunidades, mas há características simbólicas que
A são revividas cotidianamente pela prática cultural. Mencionamos como exemplo, a
feitura dos Kene pelos Huni kui (Kaxinawá).
L A segunda corrente aponta o xamanismo como um sistema coletivo na
qual o xamã é apenas um dos elementos, mas não o único. Desta maneira, a sua
L existência implica em relacionar os elementos simbólicos a momentos cotidianos e
especiais de um grupo. Ainda assim, o fenômeno está associado a várias áreas do
conhecimento humano que, por sua, vez estão inter-relacionadas e seus elementos
A podem ser visíveis ou invisíveis.
Teoricamente, podemos considerar que o xamanismo deve ser entendido
como um sistema cultural e social. Segundo a antropóloga Esther Jean Landon,
o xamanismo tem vínculos diretos com a saúde, educação, arte, política, religião,
produção e outras características de um Povo indígena. A visão, portanto, deve ser

mais holística e não fragmentada, ou seja, o assunto não deve ser tratado apenas
1280 no âmbito da religião.
• Langdon sustenta a sua concepção a partir da visão de cultura elaborada
pelo antropólogo norte americano e interpretativista Clifford Geertz (1979), pela
qual a mesma nada mais é do que uma “teia de significados” e o homem está
envolto à esta teia.
Desta maneira, além de ser um sistema simbólico coletivo, ele é público e
2 expressivo. O fenômeno torna-se, portanto, de extrema importância para organizar
a visão de universo e definir o lugar dos grupos frente ao mundo.
0 O xamanismo existe em todos os continentes do mundo e ocorre com
grande freqüência no continente americano. A região amazônica é fértil nesta área
1 na qual povos indígenas são praticantes da pajelança e de seus sistemas holísticos
de conjugação da realidade ordinária a extraordinária.
8 É diante deste argumento conceitual de Xamanismo que desenvolvemos
a idéia de dsoppineje como um sistema que está presente nas diversas áreas de
conhecimento dos Madija e em suas práticas cotidianas e ritualísticas.
Os Madija da terra indígena Kulina do rio Envira diante da história
Este povo está localizado na Amazônia Ocidental, mais precisamente
entre os estados do Acre e Amazonas no Brasil e parte da zona peruana. Estes são

3  Enteógeno: do grego significando “Deus dentro”. Corresponde a substâncias psicoativas ou não


que tem caráter sagrado quando ingeridas.
chamados também de Kulina, mas a sua autodenominação é Madija que significa
gente.
Por muito tempo estes índios receberam denominações como Curina,
Corina, Kulina e Tucurina. Esta designação está relacionada à relação com o
xamanismo.
Sendo assim a maior parte dos Madija se nominam com nomes de
animais, caracterizando-os muito mais como caçadores. Há também designações
J que estabelecem um pouco da ligação como coletores. Portanto, as relações com o
mito, a atividade xamânica e as relações de parentesco os identificam muito mais
A como Povo caçador e coletor do que como extrativistas e agricultores.
Toda esta relação com os bichos da mata está relacionada ao mito de
L criação na qual Quirá e Tamaco, os protagonistas do processo de criação, começaram
a transformar casais Madija em animais. Desta maneira:
L Quirá, o mais sábio dos dois, depois de ter criado os Madija, de várias espé-
cies de marimbondo que jogava em diversos caminhos dentro da mata, toma
um casal de Madija e transforma-o em urubu, dando origem aos Onohuana
A Madija, gente do urubu. Repete a façanha com outro casal, transformando-
-os no Bado Madija (gente do veado), um outro nos Dsumahe Madija (gente
da onça), e assim, origina-se uma sequência de gentes classificadas com
nomes de animais, peixes e frutas (SILVA, 1985: 06 – 07).

Todos aqueles que são Madijadeni (aqueles que são gente), tem uma
• característica comportamental bastante particular. Desta forma, aqueles que são
1281 gente da onça são ferozes, agressivos e guerreiros, uma oposição, por exemplo, a
gente do peixe Jeju, com características silenciosas e quietas.

Os Madija pertencem à família lingüística Arauan, que inclui as línguas
Arauá, Paumari e Yamamadi, do tronco lingüístico Aruaque (RIVET, 1924;
TASTEVIN, 1938; MELATTI, 1938; NOBLE, 1965).
Durante o período de procura pelas “drogas do sertão”, eles já eram
2 mencionados e no ano de 1709, foram citados entre um dos 49 Povos indígenas
catalogados.
0 Segundo relatos, foram localizados na região do Juruá, descendo para o rio
Tarauacá, rumo aos rios Gregório e Acuraua. Esta afirmativa pode ser confirmada

nos relatórios de Francis de Castenau (1850 – 1851).
1
Nas imediações do rio Tarauacá foram identificadas outras sociedades

indígenas, dentre os quais os Huni Kuin (Kaxinawá). Eram considerados
8 extremamente hostis a aproximação dos não – índios, como registrou Tastevin
em seu relato manuscrito de 1908 e 1914 na qual estes índios haviam expulsado
brancos do rio Gregório em 1885 (SILVA, 1985:08).
Os Madija, assim como outros Povos Indígenas da Amazônia, passaram
a conviver, na virada do século XIX para o XX, com uma história de contato
extremamente violenta, brutal e impiedosa, quando os não – índios passaram a
ocupar esta região em função da atividade extrativista.
Portanto, as frentes extrativistas, tanto brasileiras como peruanas,
tinham como finalidade a extração do látex, para atender o mercado externo. O
contato destas frentes com os indígenas provocou um dos maiores massacres aos
Povos tradicionais já conhecidos na história.
Desta forma, quando os nordestinos vieram para a Amazônia, o trânsito
de pessoas nesta região foi grande. Estima-se que em 1913 cerca de 40.000 pessoas
se instalaram na bacia do Juruá e 60.000 na bacia do Purus.
Á princípio tentou-se a utilização dos índios como mão – de – obra
para a extração do látex. Entretanto, com o fracasso inicial desta experiência, os
J seringalistas começaram a observá-los como “barreiras” para a instalação dos
seringais na região.
A Logo, os patrões seringalistas influenciaram os seringueiros para
participar de expedições com a finalidade de “limpar as áreas”. Os seringalistas,
L portanto, promoveram “correrias” que eram espécies de expedições punitivas que
tinham como objetivo o extermínio dos índios.
L Á partir de 1913, os seringalistas juntamente com as Prefeituras que foram
criadas por oportunidade do Território Federal do Acre, centraram esforços para
transformar os indígenas em mão – de – obra destinada à prática do extrativismo,
A
visto o declínio da atividade gumífera.

As correrias neste momento passaram a ser praticadas não mais com o
objetivo de exterminar índios, mas de escravizá-los e revertê-los ao “mercado de
trabalho” e os índios passaram a ser “amansados”. Este segundo tipo de “correrias”
• não foi efetuado apenas do lado brasileiro, mas também no Peru.
Para Michael Taussig, as “correrias” eram formas mascaradas de prender
1282
o índio a um trabalho imposto, que “não podia” ser caracterizado como escravidão.

Com o “amansamento”, os índios, que antes habitavam o centro da mata,
passaram a morar nas margens dos rios. A passagem do centro à margem é marcada
pelo deslocamento e fragmentação espacial. Neste sentido, os Madija tiveram que
se adaptar a uma nova forma de vida (ALTMANN, 1994),
Á princípio, como os Madija conheciam a mata, foram usados como
2 mateiros para localizar áreas, fornecer produtos da mata como caça, pesca, frutos
e, por fim, acabaram virando seringueiros.
0 Com a crise da produção extrativista, muitos seringais foram
desestruturados. É diante deste contexto que foi intensificada a mão – de – obra
1 indígena.
A partir de 1950 em diante o látex sofre declínio fazendo surgir o “pequeno
8 camponês seringueiro”, que vendia a borracha e a produção agrícola ao regatão4.
O regatão também passa a entrar na economia destes índios quando estabeleceu
troca de produtos naturais por industrializados como sal, querosene, tecidos,
munição, dentre outros (ALTMANN, 1994).
O avanço da frente extrativista foi apenas um dos motivos que auxiliou
o processo de dizimação indígena. Com a entrada, surgiram outros problemas que

4  Regatão ou marreteiro é um tipo de comerciante que com um pequeno barco subia e descia os
rios vendendo mercadorias e comprando borracha, galinha, porcos e outros produtos.
afetaram os Madija, dentre eles as doenças externas, a dependência de mercadorias
e mudanças na organização social interna.
Destacamos que a entrada dos primeiros grupos no rio Envira se deu
pelo igarapé Cumaru, um dos afluentes do Jaminawá (tributário do rio Envira).
Aparecem também os locais de morte dos principais representantes e também
períodos de delimitação das Terras Indígenas Jaminawá e Kulina do Envira. Este
igarapé é importante do ponto de vista histórico porque foi local de moradia das
J primeiras lideranças deste povo na região e onde muitas delas faleceram.
Antes de se fixar em atuais aldeias às margens do rio Envira, foram atraídos
A para trabalhar no seringal Califórnia Os Madija construíram malocas em aldeias
nas imediações deste seringal e lá instalaram os seus roçados. Porém, começaram
L a adquirir hábitos dos cariú5 que incluíram alimentação industrializada, uso de
vestimentas e utilização de ferramentas que não faziam parte de sua cultura.
L Durante a década de 70, grandes fazendas foram criadas na Amazônia
com o propósito de desenvolver as atividades econômicas agrícolas e da pecuária.
Os Madija foram afetados, uma vez que os mais velhos chegaram a trabalhar
A na Fazenda Califórnia (instalada na década de 70 no alto rio Envira) limpando
áreas, abrindo picadas e realizando caçadas e pescarias para suprir os peões e
administradores com proteína animal.
As histórias antigas e o começo de tudo

• Na visão dos Madija, o mundo foi criado por dois heróis mitológicos:
Quirá e Tamaco. O primeiro, mais velho, passava o tempo todo ensinando o mais
1283
novo a como usar os seus poderes. Esta relação de transmissão de conhecimentos
• é observada também na atividade de pajelança.
Os heróis mitológicos foram os responsáveis pela criação de plantas,
espécies de animais e outras raças de gente indígenas e não – indígenas. Os
elementos que compõem este plano foram resultado da construção primordial.
Os Madija dividem o tempo em histórias antigas e histórias recentes. As
2 primeiras dizem respeito ao tempo dos avós e são as histórias de criação dos heróis
mitológicos, dos seres míticos, lugares e elementos sagrados. No que diz respeito à
0 história dos tempos primordiais, existe uma confluência do tempo e espaço.
É comum se referirem ao mito como a “história antiga” ou “história de
1 nossa gente”. Na verdade, além das narrativas dos tempos primordiais, existem
outras mais atuais onde está incluído o contato e outros eventos mais recentes.
8 O ato de narrar ou contar, é uma forma de atualizarem o mito, os eventos
históricos e de se afirmarem no mundo. As histórias são tão importantes, assim
como a terra e as atividades de pajelança que também são vitais para esta sociedade.
Na narrativa mítica de criação do mundo Madija não há uma ordem
cronológica linear. Esta é uma das características de algumas sociedades indígenas.
O mito da criação (história antiga) deve ser visto como um enorme
processo de mutação, com novos elementos que passam a ser incorporados. Há
várias fases do tempo mítico manifestadas na narrativa de criação. Neste sentido,

5  Cariús: brancos/aqueles que não são índios.


as rupturas destas fases, são marcadas por catástrofes e destruição. É isto que
produz a mudança entre os conjuntos de histórias do “tempo dos avós”.
As destruições podem ocorrer através do fogo, da água e de outros
elementos da natureza. Á partir disso é possível pensar em vários momentos do
tempo antigo para compreendê-lo como história também.
Entre os Madija isso ficou claro no mito da criação através da destruição
da aldeia por Massosso6; foi então necessário que Quirá e Tamaco reconstruíssem
J novamente a sociedade Madija.
Esses atos de destruições contidos nas narrativas míticas são considerados
A como sacrifícios. O sacrifício já mencionado em trechos da história antiga e seus
reflexos podem ser observados até os dias atuais. Ele é, portanto, uma forma de
L pontuar transformações
Acreditam que há um sacrifício ainda mais amplo e que não ocorreu:
L a destruição total da terra através de uma inundação caso a principal atividade
deste povo seja interrompida: o sistema dsoppineje (incluindo a pajelança). Desta
maneira, se um dia não houver mais o agente religioso (também chamado de
A
dsoppineje), o planeta será destruído por um grande dilúvio.

Cada uma dessas destruições representa um rompimento com um tempo,
provocando uma nova idade. Quando Quirá e Tamaco exterminaram os seus avós
onça, há um significado de renovação, revitalização.
• Mudança de tempo implica também em mudanças de elementos. Estas
mudanças que ocorrem sucessivamente remetem a velhas formas, passando a criar
1284
novas aparências.

É importante ressaltar que um mito engloba em si uma espécie de geografia
mítica. Esses esquemas, contidos na história antiga, tem um reflexo profundo na
vida dos Madija e, consequentemente nos lugares do espaço em que eles vivem.
Em outras palavras, para compreender o mundo em que habitam, é necessário
perceber a existência dos outros mundos, uma vez que há relação direta dos outros
2 sobre este.
Por isso, é preciso compreender esta sociedade não somente de um ponto
0 de vista horizontal deste plano no qual estão inseridos a aldeia, a floresta, os rios, e
outros elementos tangíveis. Deve ser levado em consideração também elementos de
1 outros planos míticos que são verticais a este como por exemplo o nami budi, memé
tsueni, memé etseni, patsô dsamarini, nami budi inamini-ka e o hua hohopadé –
8 dsa. Estes estão descritos abaixo.

Os planos cosmológicos Madija


Para os Madija, o mundo e tudo aquilo que nele existe é regido por forças
sobrenaturais, através de espíritos e entidades que interferem constantemente no
dia – a – dia. Atrás da realidade ordinária que acreditam há outra que se distribui
em mundos míticos.

6  Entidade mítica dotada de poder que destruiu a aldeia mítica do povo após a morte de seu filho
por estes.
Aqui onde vivemos é chamado de nami. É onde nascemos, crescemos,
morremos e mantemos uma relação com aquilo que nos cerca como plantas,
animais e até mesmo pedras. Existem vários lugares que são ocupados, para o uso
da terra, para os animais, para os peixes, e assim por diante.
O que está acima do nami ou mundo posterior às nuvens é chamado de
patsô dsamarini. Ele é um lugar formado, em sua maior parte, por água. É dali que
se origina a chuva.
J Em seguida encontra-se o memé tsuení ou céu azul escuro e, mais abaixo
o memé etsení, que em oposição ao memé tsuení , é bastante claro e com ventos
A fortes. É o memé tsuení que moram os mesué codé, ou aqueles que vivem no céu
como o urubu, o jaburu e outros pássaros que tem a carne ruim.
L Lá em cima está o patsô dsamariní ou memé huaji, onde moram os heróis
mitológicos da criação. Residem lá também Maji que para os moradores do Igarapé
L do Anjo está relacionado ao sol. É um ser que tem as cores do arco – íris. Há
também o Ttottorodé, espécie de anta mítica que produz o relâmpago pingando
gordura sobre a fogueira.
A
Na parte de baixo do nami encontra-se o namibudi ou interior do chão. O
que se passa no nami ocorre também no namibudi. Portanto, se há roçado no nami,
há também no namibudi e assim por diante. Mas há uma diferença fundamental: é
no namibudi que vivem as almas, os espíritos.
• É neste mundo que se encontram as almas de animais como o tatu, o
javali e outros que fazem parte do cotidiano. Moram também as almas das pessoas.
1285
Estas levam vida idêntica à deste plano.
• Mais abaixo está o namibudi inami-ká, que é escuro e desabitado e,
finalmente, o hua – hohopadé dsa, uma região seca e deserta onde nunca há noite
e onde moram os espíritos ruins.
Os mundos apresentam posições e discursos diferentes. Se no memé
huaji vivem Quirá e Tamaco, aqueles que criaram o mundo e outras entidades
2 consideradas como boas, no último mundo abaixo do nami localizam-se os espíritos
ruins ligados à destruição.
0 A água do plano acima das nuvens é sinônimo de fertilidade, contrário
ao hua – hohopadé dsa onde a seca indica infertilidade. Tanto a fertilidade quanto
1 a infertilidade interferem diretamente no nami, o plano onde vivemos e estão
diretamente relacionados a estes dois espaços.
8 Há também uma oposição entre o memé tsuení e o namibudi. No primeiro,
a carne é ruim de caça. O segundo indica a carne boa para a caça e reflete a
relação mais íntima dos Madija que vivem no nami com o seu duplo: o namibudi.
A carne boa, portanto, está relacionada à saúde enquanto a carne ruim refere-se à
impureza. A carne boa é comida enquanto a carne ruim não é.
A ligação entre esses dois mundos marca a relação de sobrevivência
dos Madija pois é para o namibudi que vão as almas dos animais. Estas voltam
materializadas, através do pedido do dsoppineje, quando a aldeia precisa de
alimento.
Conforme será visto adiante, a carne boa relaciona-se à cura, pois o
dsoppineje não vai buscar a cura em algum espírito de animal que pertence ao
memé tsuení pois sujeira não limpa sujeira. Portanto, os espíritos de animais vindos
do namibudi são considerados limpos e são chamados para extrair impureza. É a
carne desses animais que alimenta e mantém com saúde os Madija.
Daí a importância do dsoppineje em estabelecer uma relação mais íntima
com o namibudi pois é nele que vai haver alianças com os espíritos para proveito de
alimentação e saúde. Desta forma, como as almas ou espíritos sobem para darem-
J se limpos e serem comidos, também tiram a sujeira e realizam a cura. Por isso, a
relação entre nami e namibudi.
A Sistema cosmológico Dsoppineje
O dsoppineje deve ser observado como um sistema que está relacionado
L ao contexto coletivo das aldeias indígenas no Alto Rio Envira. Desta maneira, ele
manifesta a visão de mundo do mito de origem tão peculiar deste povo indígena por
L meio de suas manifestações simbólicas e sócio – culturais as quais incluem rituais,
festas lúdicas, política, saúde, educação, arte, uso dos recursos naturais, dentre
outras. Logo abaixo, vamos mencionar alguns exemplos desta afirmativa ao tratar
A
da saúde, educação e uma cerimônias expressiva desta cultura: o tokorime.

Na medicina dsoppineje não há fronteira entre homem e natureza, mas
uma integração entre todos os seus aspectos. Neste mundo, o nami, os Madija
vivem da relação doença/saúde e desequilíbrio/equilíbrio. A saúde é chamada de
• dsoppineje, assim como esta palavra serve também para designar os especialistas
tradicionais de saúde.
1286
A saúde ou dsoppineje permeia toda a vida deste Povo. Ela pode ser
• encontrada nas boas caças (que servem para suprir a aldeia comproteínas), estão
nas águas (rio Envira, igarapés, lagos, poços e cacimbas), nos peixes que servem
para a dieta, nas plantas comestíveis, nos ikorimes (almas) e em outros aspectos da
vida cotidiana e extra – cotidiana.
Os moradores do Igarapé do Anjo comentaram que antigamente todo
2 homem era dsoppineje (pajé). Hoje, os homens que não são iniciados para assumir
este papel são considerados “domados”, foram “domesticados” e não adquiriram
0 as características dos seres míticos (heróis mitológicos, avós onça, massosso e
ikorimes).
1 O dsoppineje, em sua atividade, “busca a mata” porque ele “voa para
longe” para negociar com as almas. Negocia, principalmente, a cura, a saúde
8 daqueles que estão doentes. A cura estabelece uma performance ritual (ARAÚJO,
1993, 1997), na qual especialista do êxtase se torna um dos atores cruciais no
processo de mediação dos mundos e na reativação dos símbolos primordiais.
O “buscar a mata” fica bastante manifestado em um ritual de cura
quando o dsoppineje transforma-se na alma ou espírito e através da dança e gestos
a manifesta.
Geralmente voltam com formas de animais e em raros casos como ikorime
que são provenientes do mundo subterrâneo. É lá que o dsoppineje vai negociar
com o espírito para a cura.
É dito que há uma permuta de ikorime (alma) que passam por um buraco
próximo dos roçados para alimentar os Madija ou para curá-los através de alianças
estabelecidas entre o dsoppineje e as almas. Esses buracos por onde ocorre esta
troca entre o ikorime de animais ou pajés antigos com a do dsoppineje para o
mundo subterrâneo são chamados de dsacatana.
Se as almas vem através destes caminhos. É para lá que vão os dsoppineje
por meio do tabaco. O tabaco é importante para este Povo e pode ser inalado,
fumado ou mascado.
J O tabaco é um produto de uso diário e, constantemente, dsoppinejes
ou outros homens da aldeia fixam-no no lábio inferior. Porém, existe uma grande
A diferença entre cheirar o tabaco cotidianamente para fazê-lo extraordinariamente,
pois, é através dele que entidades e ikorimes podem ser chamadas para curar
L porque ele propicia uma via de comunicação entre este mundo que habitamos e o
mundo em que moram os espíritos.
L Ao mesmo tempo em que o dsoppineje está buscando o espírito através
do tabaco, o seu corpo vai tomando a forma da entidade chamada. O seu corpo
passa a se relacionar com o movimento dos animais para a extração do dori.
A
O dori contém diversos significados, dentre os quais o feitiço. Ele está
ligado à parte da narrativa da história antiga na qual os dois heróis mitológicos
mataram o filho de massosso. É daí que tem início o surgimento da tragédia deste
povo pelo fato do assassinato do filho desta entidade da mata e pela destruição da
aldeia mítica. Outras tragédias humanas vieram na sequência e são vistas até os

dias atuais.
1287
O dori é uma substância que permeia todo o corpo do dsoppineje. Tê-lo é
• forma de garantir poder pois introjetar dori no corpo equivale a garantia de viagem
a outros mundos correspondentes ao plano mítico acima ou abaixo do nami.
Quando é materializado, ele pode ser uma pedra, um pequenino pedaço
de pau, uma unha de tatu ou de outro animal, que pode ser colocado no abdômen.
O dori pode tirar a vida de uma pessoa rapidamente.
2 Em resumo, ele é uma substância ambígua que se concretiza e cresce
no corpo do dsoppineje, pois, quando massosso foi transformada no dori, a sua
0 cólera antes de sua transformação no dori está associada a morte de seu filho pelos
criadores. Portanto, tendo a substância no corpo o dsoppineje pode curar, mas por
1 um ato de traição (como manifestado na história antiga) pode matar.
Na verdade, Tamaco e Quirá domesticaram o dori. Seguindo os passos
8 dos criadores, os dsoppineje necessitam domá-lo para voar para longe. No processo
de iniciação xamânica é necessária uma preparação que envolve um processo de
treinamento no qual os homens jovens são iniciados por um homem mais velho. É
nesta transmissão de poder que o iniciando aprende a dominar a substância, como
nos tempos primordiais.
A iniciação está ligada ao tabaco e ao dori. O primeiro é introjetado
através de sopros no nariz do cahuahiji (iniciando na arte da pajelança). Além
disso, constantemente o cahuaniji passará a utilizá-lo no dia – a – dia e em contexto
“extraordinário”.
O uso do tabaco relaciona-se ao fragmento da história antiga relacionada
à onça. Sendo assim, a canela – de – velho7 mencionada na narrativa, é bastante
usada no rito de iniciação. A árvore está ligada a mistura que o dsoppineje faz do
tabaco e das raízes desta árvore para alçar vôo e, associado à onça que representa
um símbolo de poder. Resta lembrar que as onças eram avós de Tamaco e Quirá,
na história antiga.
Como já foi dito, o dori está ligado ao ato de Quira o introduzir no corpo,
absorvendo os poderes de massosso. No caso dos iniciandos, a adolescência
J constitui o período ideal para realizar a transmissão de poder onde são repassados
aos cahuaniji dois tipos de dori: o noma e o Koronaua.
A O noma ajuda o jovem durante o processo da aprendizagem xamânica.
O koronaua o ensina o caminho do bom canto. O canto, bem como a dança são as
L formas mais poderosas de manifestação dos dsoppineje madija diante dos humanos
e dos ikorimes.
L O processo que leva um madija da fase de cahuaniji a dsoppineje pode
ser iniciado também durante a vida adulta. Este aprendizado entre adolescentes e
adultos pode demorar aproximadamente um ano.
A
Para chegar a ser um dsoppineje o cahuaniji obedece as seguintes
restrições: a) dieta alimentar – com proibição para alguns alimentos que podem
quebrar a iniciação e a consolidação de dori em seu corpo; b) abstinência sexual
– para eles a perca de sêmen implica na diminuição de poder. Por isso, os Madija
acham a adolescência a fase ideal para o treinamento, pelo motivo dos rapazes serem

solteiros e poderem ser controlados por normas que proíbem a relação sexual; c)
1288 proibição à jogos, festas e brincadeiras – visa buscar o lado mais selvagem e menos
• sociável da aldeia. Por isso, são isolados em lugares distantes da aldeia e roçados
(espaços de sociabilidade), para o interior da floresta.
Estes jovens aprenderão com os mais velhos as formas e os caminhos
que podem levar a outros mundos (mais precisamente ao namibudi) e a fazer o uso
do dori adequadamente, pois o emprego inadequado da substância pode colocar
2 em perigo indivíduos e toda a comunidade.
Aprendem ainda a utilizar o: a) rami (ayahuasca). Ela serve como
0 ferramenta para que os iniciandos e os pajés entrem em contato com o mundo dos
espíritos; b) sina (tabaco torrado junto à outra substância). O sina é introjetado no
1 nariz do cahuaniji através de um longo canudo feito de taboquinha pelo dsoppineje.
Esta ação possibilita que ele se aproxime do mundo dos espíritos.

Destacamos que os conhecimentos são transmitidos através da oralidade.
8
Neste sentido, os mais velhos são responsáveis pelos ensinamentos aos mais
novos e isto acontece desde os tempos das odsa beje (malocas antigas). Logo,
contar história antiga é uma forma de repassar o conhecimento dos avós, daqueles
que viveram nos tempos antigos, no começo do mundo. Ouvir a história antiga é
aprender e narrar é uma forma de manter viva a memória deste povo.
Os Madija têm um grande respeito pelas histórias antigas. Ela é
fundamental para continuar ligando este Povo com os seus ancestrais e seres que

7  Canela de velho recebe o nome científico de Miconia albicans e é uma planta que pertence à
família das Melastomataceae.
estão em outros mundos. Ensinar aos mais novos é uma arte que já aparece no
mito de criação, quando Quira ensina e transmite para Tamaco os seus poderes
mágicos.
Existem outras formas de passar conhecimento. Ele está presente nos
afazeres da aldeia como cozinhar, caçar, pescar, preparar e tirar o roçado, andar
na mata, fazer medicina ou ainda aprender a tirar o dori. Este tipo de educação
encontra-se fora do domínio da escola e está inserida no dia a dia dos Madija.
J Portanto, toda lógica que envolve o repasse de conhecimentos é chamado de
papehuahua.
A Logo, O processo de iniciação de um cahuaniji para se tornar dsoppineje
também é papehuahua porque ocorre a transmissão de conhecimento ancestral
L na qual o primeiro vai ser treinado para lidar com as doenças que pertencem ao
quadro simbólico e cultural deste povo.
L Destacamos que há dois tipos de doenças: as exógenas e aquelas que
fazem parte da cultura. Logo, são várias as doenças trazidas pelos “de fora” e a
lista inclui gripe, sarampo, catapora, tuberculose, coqueluxe, gonorréia, hepatite,
A pneumonia, vaginite, catapora, malária e crista de galo. Há também sintomas para
uma série de doenças detectadas que envolvem a febre, o vômito e a diarréia. Por
isso que ao serem consultados podem indicar os sintomas como doenças porque
não tem o conhecimento sobre as doenças de cariú.
O contato com os cariú fez com que Madija morressem devido o contágio de

doenças até então desconhecidas por eles. Muitos daqueles que foram amansados
1289 para trabalhar no seringal Califórnia e na fazenda Califórnia padeceram.
• Existem vários tipos de doenças. Sendo assim, a febre, as doenças de
pele ou infecções intestinais são considerados “sintomas normais”, havendo um
reconhecimento público de que o enfermo não foi vítima de raiva, inveja, motivos
ruins e espíritos malignos, mas que naturalmente adoeceu.
A gripe, o sarampo, a catapora, as doenças dentárias e venéreas são
2 designadas como doenças de cariú. Estas podem ser tratadas com ervas através de
chás, banhos e massagens. Fora essas técnicas tradicionais, os Madija aprenderam
0 a conviver com os remédios alopáticos no tratamento de enfermidades. Atualmente
algumas dessas doenças são contraídas na sede dos municípios com destaque
1 para as doenças venéreas que constituem forte ameaça para a integridade física
dos moradores das aldeias.

Na categoria êmica há duas doenças que são legitimadas por eles:
8
o epetuka´i e o dori. Logo, há intervenção direta do conjunto de dsoppineje das
comunidades sobre estas duas enfermidades.
O epetuka´i é uma doença exclusiva de bebês. Ela é decorrente da quebra
de tabus alimentares, problemas familiares como discussão entre homem e mulher,
relacionamentos extra – conjugais e fracasso de um genro na obtenção de alimentos
para o pai da esposa.
Esta doença é caracterizada por uma enfermidade no sistema digestivo
da criança, marcada também por dores intestinais e diarréia. Existem casos de
ocorrência de vômito no pequenino bebê.
O dori, por sua vez, é também considerado como uma doença. Ele afeta
adultos e nunca a crianças pequenas e bebês. Os adultos contraem o dori por
hostilidade de um dsoppineje. No caso de crianças ficarem doentes, é dito que
foram alvo de dori por inveja, raiva e outros fatores que recaem sobre seus pais.
Esta doença pode estar concentrada em qualquer parte do corpo, pois,
qualquer enfermidade dentro deste contexto de retaliação é considerado dori e, toda
a comunidade é consciente disso, porque este é um tipo de doença completamente
J diferente das demais.
No ritual de cura, seja ele do epetuka´i como no dori, o dsoppineje vai
A buscar as almas com poder para curar. Ele vai ao namibudi negociar com os
espíritos a sua vinda.
L Desta maneira, ele pode voltar transformado no jidsama tokorime, isto é,
um queixada, que para os membros do grupo é o reflexo de sua vida em sociedade.
L O queixada anda em bando e é para o seu corpo que vai a carne dos Madija
quando eles morrem. Estes tokorimes representam o lado feminino e delicado deste
povo.
A
Ao contrário do jidsama tokorime, o dsumahe tokorime ou espírito da onça,

manifesta justamente o oposto, ou seja, o lado agressivo, solitário e masculino,
referindo-se ao caçador predador e indomável.
A cura é geralmente executada durante o período noturno, para o espírito
• obter uma visão melhor do objeto introduzido no corpo do enfermo, pois a luz do
dia pode atrapalhar a visão do feitiço. Ao passo que a alma não consegue extrair
1290
o feitiço, há retorno para a mata para a vinda de outra e assim sucessivamente,
• marcando uma sequência de buscas e tentativas que pode chegar a durar de horas
a dias, onde estas tentam, através da sucção, extrair o dori. De acordo com a cor
do feitiço, o dsoppineje poderá dizer o grau da doença e se o paciente viverá ou
morrerá.
Quando o dori é extraído, o espírito ou alma salta e dança aceleradamente,
2 mostrando-o aos demais integrantes da aldeia. Festejam e são legitimados pelos
que assistem à cura.
0 Após a extração do dori, o paciente deve tomar automaticamente
banho com água fria, para desprender-se das marcas dos resíduos impuros que
1 podem estar contidos sobre o seu corpo. Enquanto isso é servido coidsa (bebida
fermentada de mandioca) para o ikorime que se encontra no corpo do dsoppineje.
8 Esta bebida pode ser apresentada simbolicamente para ela também através de
canções entoadas, principalmente, pelas mulheres.
O tratamento aplicado para a cura pode ser contínuo ou não. Se contínuo,
o dsoppineje ou conjunto deles permanece até o momento em que o dori é extraído,
não importando o tempo de duração. Isto é mais freqüente nos casos mais graves.
Se não é contínuo, o paciente poderá ser consultado de forma alternada,
ou seja, não terá o atendimento do dsoppineje todos os dias. São os casos menos
graves que podem ser executados desta forma.
Os Madija acreditam que o poder é construído culturalmente visto que
nenhuma pessoa nasce dsoppineje, mas se torna através da iniciação, onde a
substância de poder dori é colocada no corpo dos cahuaniji. Aos poucos, os mais
experientes passam o seu poder para aqueles que estão aprendendo.
Esta passagem se dá apenas entre homens, embora haja fraca incidência
de mulheres a se tornarem dsoppineje após a menopausa, mas é uma possibilidade
remota. Não ouvi nenhum relato a respeito da existência de mulheres exercendo
este tipo de atividade em aldeias da Terra Indígena Kulina do Alto Rio Envira.
Há uma importância na continuidade desta atividade para a sobrevivência
J deste povo e de sua cultura, por isso a iniciação é extremamente respeitada entre
eles. Neste contexto, qualquer homem adulto pode ter esta habilidade podendo
A gerar desconfiança para com aqueles que são mais afastados da comunidade.
Quando o dsoppineje causa algum mal, jogando o dori, logo é acusado
L por outro especialista. Portanto, cura e acusação caminham juntas, pois ao passo
que ocorre a recuperação física e espiritual torna-se sua a responsabilidade de
L indicar a origem do feitiço e quem cometeu o ato8. Portanto, a acusação fornece a
este ator grande prestígio diante da comunidade ao passo que a informação pública
pode provocar cisões no âmbito das comunidades.
A
A confirmação da desconfiança deste agente como causador de infortúnios
produz rupturas, ocasionando o afastamento de famílias e a construção de colocações
ou mesmo aldeias distantes de onde houve a delação pública. É claro que a acusação
sobre uso do dori não é o único fator para as cisões comunitárias. As relações extra
– conjugais e mortes a parentes constituem duas outras características.

Existe também outro motivo de mobilidade que diz respeito ao tabu
1291
referente ao enterro de um parente nas imediações de uma aldeia. Para eles há
• uma crença sobre a improdutividade do solo. Na concepção local, a terra torna-
se impura, manchada e suja de sangue. Ainda assim, enterrar um corpo próximo
da área onde moram os coloca em uma situação complexa de medo do ikorime do
morto que passará a rondar as imediações de onde vivem.
Existe dsoppineje em todas as aldeias. Entretanto, não houve clareza
2 de quantos e quem são, visto que este é um assunto reservado. É um segredo
guardado e respeitado, embora a grande maioria tenha passado por ritos de
0 iniciação, especialmente os mais velhos.
Para celebrar a cura é realizado um tokorime (festa das almas). É neste
1 contexto que os Madija chamam os ikorime (almas) para dançar. São festas onde
é possível encontrar de maneira mais clara o manaco. Ele é uma espécie de troca
e reciprocidade que é encontrado em qualquer atividade da sociedade. Além das
8
celebrações relacionadas à cura pode ser visto em festas, jogos, relações familiares
e atividades cotidianas. Mas extrapola tudo isso porque até mesmo pequenos gestos
como o sorriso ou aperto de mão podem ser considerados manaco. Ainda assim, a
dança, a pintura, a música são trocas entre os homens, mas podem ser também
troca das pessoas da aldeia com as almas.
O tokorime é efetuado em momentos especiais, principalmente após a
cura de algum enfermo. Parte da estrutura desta festa é parecida com o ritual de

8  É digno de nota que o dsoppineje pode jogar o feitiço, embora possam ocorrer casos de solicitação
destes aos ikorimes (almas) para que lancem o dori a terceiros.
cura, quando as almas são chamadas para curar. A diferença é que no tokorime os
ikorime são convocados para celebrar a vitória da saúde sobre a doença e do bem
contra o mal.
Todavia, para a sua celebração, ocorre uma detalhada preparação. Em
primeiro lugar, é necessário que os homens se desloquem durante o dia para coletar
palhas da palmeira jarina. Essas palhas são desfiadas durante o crepúsculo,
momento ideal para a confecção do jajacca, roupa dos ikorime, que consistem na
J parte inferior, feito de um saiote e o superior, cobrindo da cabeça à cintura, o corpo
do dsoppineje.
A Após a confecção das roupas, é feita a sua distribuição nos caminhos dos
roçados. Há a crença de que são os buracos sagrados, localizados entre os roçados
L e o pátio da aldeia, que ligam este mundo (nami) ao mundo subterrâneo (namibudi).
É para estes buracos que os dsoppineje vão se encontrar com as outras almas
debaixo da terra e é de lá que vem os ikorime para “brincar” com os Madija.
L
Do roçado é extraída a mandioca ou poho para ser feita bebida para ser
consumida durante a festa. A mandioca é retirada pelas mulheres e levada em
A cestos chamados de qquiqui. Os qquiqui são confeccionados com a palha da jarina
ou da palmeira ouricuri.
A bebida é feita em panelas de barro e o fogo abanado com caccade
(abanador), feito de palhas de murmuru ou jarina. Ela é servida em cabaças (pajo)
de jamaru. Nela é servida também paso (água). São confeccionadas também a

tinta de dsipa (jenipapo) e do urucum para a pintura dos participantes durante a
1292 cerimônia.
• A festa tem início quando um grupo reduzido de mulheres entoa cantos
chamando as almas para “brincar”. Aos poucos, a cerimônia vai sendo ampliada
com a incorporação de outras mulheres e, finalmente, homens. Estes cantam e
dançam em semi círculo ou aliadas a uma fileira, olhando para a mata à espera
das entidades.
2 No ritual de cura, as mulheres cantam evocando os espíritos e entidades
a virem pelos caminhos sagrados para efetuar uma boa cura. No caso do tokorime,
0 serve como um incentivo para que estes venham para o pátio da aldeia se divertir
com a comunidade. Há várias canções pela qual as mulheres chamam as almas
1 para ficarem diante delas e para mostrarem-se aos demais componentes da
comunidade, como um ato de estabelecer alianças com o grupo.

Na mata, os dsoppineje vestidos com o ssajará feito de jarina, chamam
8
as almas pacientemente através de assobios, com as mãos em forma de concha.
Ele negocia a vinda das almas para o pátio da aldeia, mas para que este ato seja
completado, é necessário que o dsoppineje tome o seu lugar, até que a mesma
retorne para o namibudi.
Entidades que vivem no memé ou mundo do alto, dificilmente participam
deste tipo de cerimônia ou mesmo da cura. Desta forma, a onça com características
solitárias, selvagens e fonte de inspiração para os dsoppineje e cahuaniji não vem
para “brincar”. Na cura, por ser mais poderosa, a onça só pode curar dsoppineje.
Seu poder curador pode matar pessoas comuns e que não estão preparadas para
o seu contato.
Vem para “brincar” o jidsama ikorime (alma do queixada), ikorime madija
(alma de Madija que já morreu). Ambos aparecem em grupo. O primeiro, por andar
em bando e representar o espírito da coletividade. Os segundos pertencem ao grupo
daqueles que foram iniciados e, apesar de terem características individuais devido à
construção de poder, passaram a maior parte da vida convivendo em comunidade,
J especialmente após o casamento, quando foram “domados” pelas mulheres.
Chegam também outras almas de animais como a cutia, a paca e também
A vários tipos de macacos (jomo), especialmente o jomo pissi (macaco de cheiro) que
provoca risos e correrias entre os presentes. Este é um dos grandes momentos de
L descontração da festa onde é desfeito o círculo da dança, a canção é interrompida,
há grande algazarra de mulheres e crianças, os velhos contam piadas e os homens
fazem provocações.
L
Os espíritos que compartilham a festa trazem o seu próprio alimento. Na
verdade, são folhas da mata que são trazidas na mão ou amarradas na cintura dos
A ikorime.
A festa geralmente é retomada com mais intensidade e com canções cada
vez mais surpreendentes. Para auxiliar o belíssimo canto, são usados totore (espécie
de flauta doce) feita de taboquinha. O totore é usado também em várias festas e na
vida cotidiana da aldeia. Quando um homem madija sente falta de alguém, toca

totore para lembrar a pessoa e dos bons momentos que conviveram. Assim um
1293 marido toca a flauta para a ausência da esposa, um amigo para outro ou mesmo
• para aqueles que já se foram. O totore é, portanto, um instrumento de comunhão
nas festas, mas é também aquele que representa as lembranças mais íntimas.
Nesta festa, o casco do dsanecoá (jabuti) tem um papel fundamental. Ele
é uma espécie de banco que os ikorime identificam para várias funções. É nele, por
exemplo, que um madija pode ser identificado como portador de dori. Sobre o casco
2 o bebê é curado de epetuka´i. Do casco do dsanecoá pequeno é confeccionado o
tottoke, um instrumento musical importante nesta festa e outras celebrações.
0 É nele que um jovem pode aderir a se tornar um cahuaniji. Em 2011,
notamos a aceitação de Aniba, jovem da aldeia Igarapé do Anjo para se tornar um
1 iniciando quando os ikorime que foram participar da festa introduziram dori em
seu corpo. Este foi o primeiro passo para a reclusão dele na mata onde teve que

passar por dieta alimentar e abstinência sexual e social.
8
Ainda na festa, os ikorime são chamados para identificar enfermidades.
Desta forma, eles acusam a doença de dori nos adultos, indicando a estes a
necessidade de tratamento através de um dsoppineje.
Da taboquinha é feita também o canudo para a inserção de sina. O sina,
usado também na cura e no dia – a – dia é feito com as cinzas do toniro (canela de
velho) e tabaco. Este é soprado, causando forte torpor àquele que o recebe. Este
instrumento é chamado de jajappo.
O sina pode ser inalado individualmente através do uso do osso do
mutum. Este é soprado, alcançando as vias nasais. Ambas as cinzas misturadas
(canela de velho e tabaco) servem para que o dsoppineje entre em contato com o
mundo dos espíritos.
A celebração do tokorime atravessa a noite. Ao mesmo tempo em que as
“brincadeiras” celebram a vitória da saúde sobre a doença, ela tem um aspecto
de continuidade do próprio sistema por meio de cura de bebês, detecção de
enfermidades e localização de potenciais cahuaniji.
Considerações finais
J
Os Madija associam o mundo em que vivem e as histórias recentes

com tempo histórico (datadas e permeadas de contato com nosso mundo) com as
A histórias antigas ou dos avós (tempos imemoriais).
Revivem o mito pela expressão dos símbolos que permeiam seu cotidiano
L e seus rituais e cerimônias sagradas e reafirmam as histórias antigas nas suas
mais diversas instituições sociais e nas áreas de conhecimento daquele povo.
L O sistema dsoppineje é a expressão máxima desta cultura. Nesta sociedade
tudo gira em torno das relações assimétricas deste mundo com os ikorime (espíritos)
A e com os seres sagrados que fazem parte de seus planos míticos e simétricas das
relações entre os homens e de suas ações que remetem ao sagrado, especialmente
o lançamento de dori pelos dsoppineje.
Ao mesmo tempo em que admitem a coletividade deste fenômeno,
reconhecem a importância da figura do dsoppineje, que cura, acusa e pode jogar
• dori (feitiço). Se o dsoppineje enquanto sistema existe é porque consideram o xamã
1294 (dsoppineje) como seu principal ator.
O dsoppineje enquanto sistema é encontrado na saúde. Porém, não é

restrito a ela. Ele atravessa todas as áreas de conhecimento deste povo e para
compreendê-lo é preciso aceitar a idéia de que ele está presente na educação,
política, arte, histórias antigas (de onde foi criado), festas lúdicas, religião e na
organização social (incluindo as relações de parentesco).
2 É sobre este sistema que se encontra, de fato, a essência de vida dos
Madija, pois demonstra a importância de continuidade de formação de seus agentes

curadores locais que permite o equilíbrio nas aldeias e também a mediação com o
0 mundo dos espíritos.
Apesar de todos os problemas ocorridos com este povo que incluem o
1 contato com os cariú que quase os dizimou por meio de doenças trazidas pelos
cariús e pela ressignificação nos hábitos e organização social devido o contato,
8 ocorreu tentativas recentes de evangelização por missionários. O contato com os
seringais, Fazenda Califórnia e centros urbanos trouxe a dependência com álcool.
Mesmo diante do quadro desgraça com a sua integração à sociedade
nacional eles ainda mal falam o português e insistem em manter a sua vida em
consonância constante com os seres sagrados das histórias antigas.
Finalmente, há uma insistência para a iniciação de dsoppineje pois há
uma crença escatotógica pelo qual afirmam que no momento em que nenhum povo
tiver dsoppineje, a terra acabará em um dilúvio. Este sistema, que envolve também
a saúde é o mediador para evitar a destruição do mundo. O fim escatológico e
milenarista constitui o último ato de ruptura já previsto na história antiga.
Bibliografia
ALTMANN, Lori. Madija: um povo entre a floresta e o rio. Trilhas da produção simbó-
lica Kulina. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 1994 (disser-
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L
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Área Indígena Cacau do Tarauacá. Rio Branco: FUNAI, 1985.
A


1295

2

0

1

8

J

A

L CARTOGRAFIAS DE UMA ESCOLA NA FRONTEIRA DO
BRASIL COM A BOLÍVIA: CURRÍCULO, PRÁTICA DOCENTE,
L INTERCÂMBIO E RESISTÊNCIA

A Zuíla Guimarães Cova dos Santos (UNIR)
RESUMO: O presente tem como objetivo cartografar as dinâmicas construídas
por uma escola brasileira situada na fronteira de Guajará-Mirim (RO/BR) e
Guayaramerin (BENI/BOL). A escola situada em fronteira internacional parece
uma situação comum. Mas, cada fronteira tem suas peculiaridades, as quais as
• condições geográficas da região onde se localizam e as relações dos sujeitos que aí
1296 habitam. O movimento que a escola realizou na fronteira envolveu a comunidade
escolar, instigou o olhar crítico ao currículo, garantiu a inclusão e o acolhimento
• de alunos oriundos do país vizinho (Bolívia). Optamos pela pesquisa participante
por nos possibilitar ir além da observação e da descrição. A escola é um espaço
com territorialidades diversas, presentes: no currículo, na prática docente, na
hierarquia administrativa, nas relações subjetivas da sala de aula entre outros
espaços. Territorialidades que podem contribuir para a manutenção da ordem ou
2 promover resistências e transformações.
Palavras-chave: Currículo. Fronteira. Território. Prática Docente.
0
Introdução

O estudo, ora apresentado, coloca em destaque uma situação comum e
1 presente nas cidades brasileiras localizadas em uma área de fronteira internacional:
a presença de alunos imigrantes, no espaço escolar. Esta presença pode parecer
8 comum a um primeiro olhar; no entanto, cada fronteira tem suas peculiaridades
espaciais, as quais envolvem não apenas as condições geográficas da região onde se
localizam, mas também, as relações dos sujeitos que aí habitam, vivem e circulam.
Relações envolvidas pela política, economia, cultura e história do espaço fronteiriço.
Assim, pensar a fronteira internacional é abrir infinitas possibilidades de estudos
em diferentes áreas do conhecimento. Neste sentido priorizamos, em nosso estudo,
as relações educacionais desenvolvidas por uma escola brasileira na fronteira e
damos uma atenção especial para a situação do aluno imigrante boliviano. A escola
analisada localiza-se na cidade de Guajará-Mirim, estado de Rondônia, no limite
internacional entre o Brasil e a Bolívia É importante já informar que Guajará-Mirim
(Brasil) conjuntamente com Guayaramerin (Bolívia) são consideradas cidades-
gêmeas, devido ao fluxo de interações existentes entre estas duas cidades.
Analisar a presença do aluno imigrante no espaço escolar em área de
fronteira internacional é ir além das discussões linguísticas sobre o bilinguismo,
ir além das discussões pedagógicas sobre o processo de ensino e aprendizagem e
ir além das políticas públicas de acesso e inclusão. É, principalmente, procurar
entender as dinâmicas construídas por estes alunos e seus familiares com a escola
J brasileira na zona de fronteira. No desenvolvimento da pesquisa constatamos uma
lacuna nas discussões e produções acadêmicas sobre o processo de interação
A e práticas transfronteiriças de escolas na fronteira internacional. Os estudos
relacionados à temática da educação na fronteira, em sua maioria, analisam o
L processo de implantação de políticas do Governo Federal, como por exemplo: o
Programa Escolas Interculturais Bilíngues de Fronteiras – PEIBF e, estudos que

analisam as interações bilíngues na escola de fronteira e práticas docentes, alguns
L destes trabalhos serão apresentados para exemplificar a situação aqui destacada.
Ao longo de nossa experiência como educadora e habitante de uma zona
A fronteiriça, passamos a entender que a escola é uma instituição importante na
dinâmica fronteiriça por ter a condição de colocar, em seu currículo, os saberes
locais que envolvem o mundo vivido pelos habitantes desta região. A realidade
vivida na fronteira passa a ter acesso aos diálogos construídos dentro da escola
e, assim gradativamente, professores e alunos, em um processo dialético, passam
• a ressignificar o espaço fronteiriço, entendendo melhor o mundo em que vivem,
1297 pois a partir da realidade objetiva passam a construir o mundo subjetivo, o
mundo das significações, o que os leva à condição de compreender o outro.

Nesta perspectiva, buscamos, neste estudo, identificar e compreender o lugar
da escola em uma fronteira internacional. Qual é o papel que a escola assume
neste espaço geográfico? Para isso foi necessário conhecermos os sujeitos que
circulam no espaço escolar brasileiro, que têm influência nos espaços de decisões
e promovem ações para o fortalecimento das interações fronteiriças. Os resultados
2 deste estudo serão descritos a seguir: em um primeiro momento apresentamos
alguns elementos que consideramos formadores e constitutivos da paisagem da
0 fronteira Internacional entre as cidades gêmeas de Guajará-Mirim (Rondônia/
Brasil) e Guayaramerin (Beni/Bolívia),posteriormente apresamos nosso caminho
1 investigativo e as principais diretrizes sobre a escola na fronteira e, para finalizar
destacamos o mundo vivido da Escola Durvalina Estilbem de Oliveira –D.E.O na
8 fronteira. Movimentos para além da fronteira sem a certeza de onde pode chegar.
Mas que ganha força, forma redes, promove fluxos, interações, lutas e resistência,
em processo de devir.
A fronteira da cidades gêmeas de Guajará-Mirim (RO/Br) e Guayaramerím
(Beni/Bol)
Esta apresentação se faz necessária para entendermos a dinâmica
atual da fronteira que trazemos para o nosso estudo, em especial, às interações
construídas pela escola neste espaço geográfico. Interações estas, que não merecem
ser compreendidas como atributos de um espaço vazio, sem história. Ao contrário,
para serem entendidas foi necessário voltarmos ao passado e conhecermos a área
de fronteira no período da sua demarcação.
No início do século XIX, as ex-colônias portuguesas e espanholas
tornaram-se países independentes e as questões dos limites fronteiriços ganharam
novas conotações. Naquele período, as margens dos rios Madeira, Purus e Juruá já
estavam povoadas e os diplomatas brasileiros tentavam estabelecer um novo ponto
inicial da fronteira entre o Brasil e a Bolívia, na confluência entre os rios Mamoré
J e Beni. Iniciou-se então um novo momento de negociações sobre a fronteira, dessa
vez entre o Brasil e a Bolívia. O Brasil consegue, habilidosamente, demarcar um
A novo limite fronteiriço, uma linha imaginária que deveria ir da confluência entre
os rios Mamoré e Beni até a nascente do rio Javari. Assim, foi firmado o Tratado
L de Ayacucho em 1867. Porém, a partir das expedições de demarcação da fronteira
descobriu-se que a nascente do rio Javari não estava situada no marco determinado

pelo Tratado. De acordo com os estudos de Machado (2008), ela só foi localizada em
L 1991, o rio nasce na Serra da Contamana – Peru. O longo período de indefinição da
fronteira permitiu às frentes exploradoras e de produção da borracha avançarem
A para as áreas fronteiriças e estimulou o interesse do Brasil na disputa do território
que atualmente pertence ao Acre.
A extensão de terra que hoje pertence ao estado do Acre, no ano de
1750, era propriedade da Bolívia. Naquele período, o látex produzido na região
despertou o interesse de brasileiros que ali viviam. Como era uma região de difícil
• acesso, a Bolívia não promoveu sua ocupação imediata, porém, ao perceber que a
1298 região estava sendo ocupada por brasileiros, organizou tropas militares bolivianas
para expulsá-los à força. Foram organizados vários movimentos militares de

ocupação, mas todos encontraram a resistência local de brasileiros estabelecidos
na região, que tinham o apoio do governo do Amazonas. Apenas em 1902, após a
3ª Revolução Acreana, coordenada por Plácido de Castro, o governo brasileiro agiu
diplomaticamente propondo um novo acordo, o Tratado de Petrópolis (1903).

2 O Tratado de Petrópolis estabeleceu a incorporação do Acre ao território


brasileiro. Em contrapartida, o Brasil precisou recompensar o governo boliviano
com o pagamento de dois milhões de libras esterlinas e ceder algumas terras do
0 Mato Grosso. Além disso, o acordo previa que o governo brasileiro construísse
a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, com a extensão de 400km, que deveria se
1 estender para além do limite fronteiriço e adentrar até o território boliviano, com a
abertura do escoamento da produção da borracha boliviana pelo oceano Atlântico.
8 O tratado também garantiu que sessenta mil famílias que viviam ali, sobrevivendo
da extração da borracha, recebessem 200 mil km² para trabalhar e o Acre tornou-
se um estado com governo próprio em 1957.
É nesse contexto histórico que o Território de Rondônia surge impulsionado
por interesses políticos e econômicos, após setenta e oito anos do acordo diplomático
que culminou no Tratado de Petrópolis, o estado de Rondônia foi criado. O Tratado
de Petrópolis não se limitou a construção da estrada de Ferro Madeira Mamoré,
como muitas vezes é ensinado. Há desdobramentos geopolíticos e geoeconômicos
que envolveram os municípios mais antigos do estado: Porto Velho e Guajará-
Mirim. Estes dois municípios concentraram, por um longo período, praticamente
toda a população do estado.
Atualmente, o Brasil possui uma extensa área de fronteira com dez países
da América do Sul, com exceção do Chile e Equador. A Bolívia se destaca por
possuir a maior extensão de fronteira com o Brasil, no total são 3.423,2 km, dos
quais 2.609,3 km são limitados por rios e canais; 63,0 km por lagoas e 750,9 km
por linhas convencionais. Esta fronteira se estende pelo estado do Acre, Rondônia,
J Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.

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Mapa 1: Fronteira das cidades-gêmeas Guajará-Mirim (RO/BR) e Guayaramerín (BENI/BOL).
Fonte: Adaptado do gupo RETIS, disponível em http:// www.ig.e.o.ufrj.br/fronteiras/mapas/
zfoidgemr.jpg
Nota: Projeto cartográfico: Iranilda Moraes; Execução: Patricia Oliveira, 01/04/2008

2 Ao longo desta faixa fronteiriça, se localizam as cidades de Guajará-Mirim


(Brasil) e Guayaramerin (Bolívia), consideradas cidades gêmeas1; Um importante
0 indicador das redes de relações presentes na fronteira, elas são pontos estratégicos
da soberania nacional, mas essas cidades dificilmente podem ser vistas dentro

de uma perspectiva apenas nacional ou internacional, pois se configuram como
1 ponto de encontro de construções histórico-sociais que não se limitam às fronteiras
oficiais fundadas pela soberania nacional de cada país. Como esclarece Machado
8 (2000) à fronteira é lugar de comunicação e de trocas, pois as relações vividas nem
sempre ficam submetidas aos acordos legais.

As condições naturais dos rios Guaporé e Mamoré servem como divisa
entre a Bolívia e o Brasil. O transporte de produtos e pessoas ao longo dos dois

1  Machado (2000), define cidades-gêmeas como núcleos urbanos localizados de um lado e de outro
do limite internacional cuja interdependência é, muitas vezes, maior do que de cada cidade com
sua região ou com o próprio território nacional, sem que estejam necessariamente em condição de
fronteira seca, formando uma conurbação ou ocupando posições simétricas à linha divisória. Elas
têm forte potencial de atuar como nódulos articuladores de redes locais, regionais, nacionais e
transnacionais.
rios é intensa, juntos, os dois rios fazem aproximadamente 1.400 quilômetros de
extensão com linhas regulares de navegação dos dois lados da fronteira. Atualmente,
tal qual como foi no passado, o rio é o elemento integrador das pessoas que vivem
em suas margens: índios, ribeirinhos, caboclos, entre outros. O rio é o coração da
fronteira, é através dele que as interações acontecem independentes da vontade
política do Estado.
O surgimento das duas cidades está relacionado ao ciclo da exploração da
J castanha e extração do látex do início do século XIX, e ao processo de implantação
da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, no início do século XX. Ao longo da história
A da fronteira, as relações políticas, econômicas, culturais e educacionais sempre
estiveram presentes no modo de vida desses povos fronteiriços.
L O devir fronteiriço
Atualmente, no mundo globalizado, as fronteiras estão cada vez mais
L porosas e atravessáveis, House (1980) destaca que a atual tendência de blocos
econômicos regionais e as diásporas de povos com nacionalidades compósita numa
escala sem precedente no passado, provocaram uma mudança fundamental na
A
abordagem de fronteiras e limites internacionais.

Para o cotidiano do habitante fronteiriço, ou seja, que habita uma zona
geográfica entre dois ou mais países as relações são estabelecidas a partir de
dinâmicas pessoais ou coletivas que procuram ultrapassar não apenas a fronteira
• geográfica, mas também as fronteiras culturais e as fronteiras políticas que podem
interferir nas interações das pessoas que vivem na região de fronteira.
1300
O devir-fronteiriço é aqui caracterizado como relações de movimento,
• repouso, velocidade e lentidão. Relações incertas em uma zona de fronteira, capaz
de desterritorializar “extrai partículas entre as quais instauramos relações (...) as
mais próximas daquilo que estamos em vias de devir, e através das quais devimos”.
(DELLEUZE; GATTARI, 2012,p.34)
As fronteiras culturais se estabelecem a partir da língua, das crenças,
2 dos valores e as fronteiras políticas são estabelecidas a partir das leis, dos códigos
de conduta, dos acordos. São formas simbólicas e complexas que permeiam as
0 interações humanas, promovendo uma maior ou menor aproximação dos diferentes.
Para existir a diferença é necessário que existam margens, os limites que
1 separam o eu do outro possibilitando a proximidade e a distância ao mesmo tempo,
possibilitando novos conhecimentos e a abertura de um diálogo. Mas, nem sempre
8 isso é possível, pois depende de como cada um vê o outro e, se a diversidade torna-
se barreira, surge o sentimento de medo, de insegurança e distanciamento.
Na fronteira, o encontro dos diferentes está envolvido por relações que
se constroem ou são desconstruídas através de uma multiplicidade de práticas
complementares ou confrontantes, tendo em vista a diversidade cultural presente
em cada lado da fronteira e as experiências que cada sujeito traz. Tudo é incerto,
um devir constante,que não se sabe necessariamente onde vai chegar.
Viver no espaço de fronteira internacional tem possibilitado percebermos
e vivenciarmos processos de trocas e intercâmbios que se firmam em negociações
linguísticas, culturais e identitárias. São processos onde a identidade cultural não
se perde, conserva-se assim a tensão e o equilíbrio entre a diversidade e a unidade
cultural, em um constante movimento interativo de se conhecer e conhecer o outro
em sua própria história.
[...] a fronteira não é linha, fronteira é um dos elementos da comunicação
biossocial que assume uma função reguladora. Ela é a expressão de um
equilíbrio dinâmico que não se encontra somente no sistema territorial mas
em todos os sistemas biossociais. (RAFFESTIN, 1993, p.13).

J Então, estudar a Fronteira é ir além dos elementos físico-naturais que


demarcam um território e o limite. É ampliar o olhar para os elementos humano-
A sociais de um espaço de trocas, de negociações e convivências muitas vezes
conflituosas e subversivas. As fronteiras geopolíticas e culturais precisam ser
L examinadas a luz do processo histórico que a constituiu, a luz da existência dos
sujeitos fronteiriços e de suas reais necessidades. Necessidades estas, que não

estão postas de forma clara, muitas vezes estão invisíveis aos olhos dos próprios
L sujeitos fronteiriços.
Mais do que símbolos do impossível e do proibido, fronteiras são lugares de
A passagem para o outro, lugar sempre móvel e fluido do acontecimento e do encontro,
um espaço entre dois, que permite a qualquer pessoa mudar se transformando
com o outro, sem se perder sem se desnaturalizar.Como já apresentado, as
cidades-gêmeas de Guajarará-Mirim e Guayaramerin, localizadas entre o Brasil e
a Bolívia são os referenciais da nossa área de estudo, onde buscamos entender, no
• quadro escolar de Guajará-Mirim (Brasil), como tem se construído uma educação
1301 fronteiriça. Como tem se lançado ao desafio de conhecer e entender o outro lado da
fronteira, e àqueles que chegam para fazer parte da sua comunidade.

Compreendemos que a escola pode superar o conservadorismo do
currículo, conforme Arroyo (2013), o currículo é o núcleo, o espaço central mais
estruturante da função da escola. É o território mais cercado, mais normatizado,
com diretrizes, grades, estruturas, carga horária que precisam ser seguidas; uma
2 configuração política do poder. Mas, pode passar a ser questionado, politizado,
inovado e resignificadoabrindo espaço para as vozes silenciadas, que trazem

vivências de outros lugares e passam a ganhar importância no processo de formação.
0
A escola brasileira na fronteira internacional

1 Na perspectiva de entender como a escola recebe o aluno imigrante


bolivianoe como faz a acolhida desses alunos, passamos a pensar a realidade das

escolas públicas urbanas de Guajará-Mirim no que tange às relações construídas
8 por estas instituições na Fronteira Internacional. Nossa investigação seguiu os
fundamentos da pesquisa participante, que implica na necessidade de participação
do pesquisador tanto no contexto, grupo ou cultura pesquisada e também a
participação daquelesque estão a ser pesquisados durante o processo de pesquisa.
a) ela responde de maneira direta a finalidade prática a que se destina, como
meio de conhecimento de questões a serem coletivamente trabalhadas;

b) ela é instrumento dialógico de aprendizado partilhado e, portanto, [...]


possui organicamente uma vocação educativa e, como tal, politicamente for-
madora;
c) ela participa de processos mais amplos e contínuos de construção pro-
gressiva de um saber popular e, no limite, poderia ser um meio a mais na
criação de uma ciência popular;

d) ela partilha, com a educação popular, de toda uma ampla e complexa


trajetória de empoderamento dos movimentos populares e seus integrantes.
(BRANDÂO, 2006, p.46).

Portanto, através da pesquisa participante tivemos condição de


J compartilhar conhecimentos e informações, participar de processos mais amplos
que não ficaram limitados à escola, ganharam novos espaços, tanto do lado
A brasileiro quanto do lado boliviano.
Iniciamos com o processo de identificação das instituições de ensino
L presentes no território brasileiro fronteiriço. Conforme o Censo de 2010 do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estadista – IBGE2, o município possui, somando
L as instituições em área urbana e rural, um total de 55 (cinquenta e cinco) escolas
públicas. Destas, 16 (dezesseis) escolas estão localizadas na zona urbana de
Guajará-Mirim. Temos 08 (oito) escolas gerenciadas pelo sistema municipal de
A educação e 09 (nove) escolas gerenciadas pelo sistema estadual de educação.
Nosso interesse foi o de identificar dentre as escolas urbanas, aquelas
que tivessem o maior número de alunos bolivianos no ensino fundamental – 1ª
e 2ª etapa, ou seja, matriculados entre o 1º e o 9º ano do ensino fundamental.
Optamos por este nível de ensino por reconhecermos que nele encontram-se os

alunos bolivianos com menor idade, criança e adolescentes que precisam ter o
1302 direito de frequentar a escola e participar de um ambiente de ensino acolhedor e
• comprometido com as necessidades de seus alunos.
Após o levantamento das informações, passamos para a identificação do
número de alunos bolivianos que estão matriculados na rede pública do município
de Guajará-Mirim. Através de uma pesquisa, realizada no final do segundo semestre
de 2012 nas escolas municipais e estaduais localizadas na zona urbana, obtivemos
2 o seguinte resultado
Escolas municipais que possuíam alu- Total
nos bolivianos e alunas bolivianas no
0 ensino Fundamental- ano letivo 2012
01 EMEIF Irmã Hilda 01

1 02 EMEIF Saul Bennesby 01


03 EMEIF Jesus Peres 01

04 EMEIF Cânida Maria 02
8 05 EMEIF José Carlos Neri 09
Escolas Estaduais que possuíam
alunos bolivianos e alunas bolivia-
nas no ensino Fundamental ano -
letivo 2012.
01 IEEF Paulo Saldanha 02
02 EEEFM Alkindar Brasil de Arouca 03
03 EEEF Almirante Tamandaré 03

2  http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=110010&search=rondonia|guaja
ra-mirim Consultado em 04/05/2015.
04 EEEFM Simon Bolívar 04
05 EEEF DurvalinaEsthilbem de Oliveira 12
Total: 38
Tabela 1: Número de alunos e alunas bolivianas matriculados no ensino fundamental das escolas
públicas, urbanas, do município de Guajará-Mirim.
Fonte: : Pastas individuais dos alunos disponibilizadas para consulta pelas secretarias das esco-
las. Consulta feita pela a autora em 2012

J É importante destacarmos que quando o aluno boliviano não consegue


matricula na escola brasileira, tem que dar continuidade dos estudos no outro
lado da fronteira. Porém, esta situação geralmente envolve crianças e adolescentes
A que estão entre as idades de 6 a 14 anos, que legalmente, para cruzar a fronteira
internacional devem estar acompanhados dos seus responsáveis. - Mas, como
L fazer isto diariamente? Tendo em vista que pais, mães, avós, imigrantes que
tentam se estabelecer no novo território, estão envolvidos nos trabalhos diários
L gerando condição de renda para o sustento de todos.
Pra algumas famílias bolivianas garantir a condição do estudo é
A fundamental, mesmo em condições desfavoráveis e perigosas. O que observamos
durante alguns dias ao longo desta área fronteiriça foi um processo de deslocamento
diário para estudo que envolve, em sua maioria, bolivianos adolescentes (entre 10
a 17 anos) que acabam cruzando para o lado boliviano (Guayaramerin) sozinhos.
De segunda a sábado é possível acompanharmos o movimento de
• crianças e adolescentes no porto oficial das duas cidades; não é uma quantidade
1303 expressiva, são entre 40 a 50 alunos que se deslocam no turno da manhã e tarde.
Ficam expostos às situações de todas as ordens, as quais envolvem o contexto
• político, econômico e social de uma área de fronteira internacional: violência,
tráficos de produtos ilegais, prostituição, tráfico de pessoas, assédio, atos públicos
dos movimentos sociais a exemplo dos paros bolivianos que fecham estradas e o
porto oficial, até que as reivindicações da população sejam atendidas, entre outras
situações vivenciadas na fronteira. Portanto, o caminho da escola pode se tornar
2 um caminho muito perigoso para estes alunos e o caminho da angústia para papas,
mamas e abuelos que não têm como acompanhar o trajeto dos filhos à escola.
0 Assim, surgem novas inquietações: Por que estes alunos não estão inseridos
na escola brasileira? Identificamos em nossa pesquisa que o principal motivo
1 é a tradução dos documentos em espanhol dos alunos e responsáveis, ou seja,
as escolas vinculam a matrícula a este documento. Mas, ao longo da pesquisa
não encontramos nenhuma orientação legal que indique esta obrigatoriedade. Ao
8 contrário, temos diretrizes internacionais, nacionais e estaduais que estimulam e
orientam a integração educacional fronteiriça, como exemplo podemos citar:
• Declaração Universal sobre Diversidade Cultural (2001), proclamada pela
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura –
UNESCO.
• O Plano de Ação do Setor Educacional do MERCOSUL – SEM /2011-
2015, visando o aprofundamento das políticas educacionais, no caso espe-
cífico das Escolas Bilíngues de Fronteira
• O Programa Escolas Interculturais de Fronteira – PEIF através da porta-
ria ministerial nº 798, que passou a ter uma a nova sigla em 2012, Progra-
ma Escolas Interculturais de Fronteira (PEIF), com o objetivo de contribuir
para a formação integral de crianças, adolescentes e jovens, por meio da
articulação de ações que visem à integração regional por meio da educação
intercultural das escolas públicas de fronteira.
J • Acordo Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fron-
teiriços Brasileiros e Bolivianos (2009)
A • Acordo sobre Dispensa de Tradução de Documentos Administrativos
para Efeitos de Imigração entre os Estados Partes do Mercosul, a Re-
L pública da Bolívia e a República do Chile, de 15 de dezembro de 2000,
recepcionado pelo Direito Brasileiro na forma do Decreto n.º 5.852, de
L 18 de julho de 2006.

E ainda, temos a Resolução nº 150 de 2000, do Conselho Estadual
A de Educação de Rondônia. Que fixa normas para matrícula, equivalência e
validação de estudos, revalidação de certificados e diplomas de alunos oriundos
de estabelecimentos escolares estrangeiros. Neste documento fica claro que a
tradução poderá ser solicitada quando o conselho escolar considerar necessário,
porém não é uma obrigatoriedade.

Apesar das várias diretrizes que orientam o ensino intercultural nas
1304 fronteiras, apenas uma escola de Guajará-Mirimo usou trilhar este caminho. Um
• caminho próprio, procurando responder às demandas do aluno imigrante. Esta
escola foi a Escola Durvalina Estilbem de Oliveira –E.D.E.O. , ela possuía o maior
número de alunos bolivianos no ano letivo de 2012, período que iniciamos este
estudo.
A cartografia da escola: entender a história para mapear o caminho
2 A E.D.E.O sempre funcionou no prédio de um antigo hotel, o primeiro
hotel de Guajará-Mirim construído em 1940. Este hotel, hospedou autoridades
0 brasileiras e pessoas ilustres ligadas a Estrada de Ferro Madeira Mamoré e a
extração da borracha e da castanha.
1 Sua estrutura foi adequada para o funcionamento escolar, salas foram
ampliadas, mas sua estrutura não se compara às escolas projetadas atualmente.
8 Nesse sentido, ela sempre recebeu um número menor de alunos e foi adequando os
espaços de atendimento.
A média de atendimento da escola é, no máximo, 400 alunos entre o turno
da manhã e o da tarde. Por ser uma escola pequena, não tem muitos atrativos para
os jovens, como por exemplo: quadra coberta, refeitório, auditório, laboratórios
entre outros espaços que as escolas do município possuem. Devido a esta reduzida
área, a escola procura fazer adaptações em seu espaço para desenvolver alguns
práticas importantes ao processo de formação de seus alunos: adaptou algumas
salas para o funcionamento da biblioteca, o laboratório de informática e/ou sala
de vídeo.
A condição física da escola, por muito tempo, influenciou os alunos e seus
responsáveis a optarem por outras escolas, ou seja, escolas maiores com fachadas
mais modernas que possuíssem além do ensino fundamental, também o ensino
médio. Assim, a oferta de vaga pela E.D.E.O. sempre foi maior que a procura.
Como na escola sempre havia vaga, ao longo dos anos ela passou a
receber alunos que as outras escolas públicas não gostavam de receber: alunos
indisciplinados, alunos reprovados por mais de uma vez na série que cursavam ou
J expulsos de alguma escola por cometerem alguma ação considerada grave. Esta
situação acabou gerando na comunidade local, o estigma da “escola reformatório”.
A Posteriormente, entre os anos de 2004 a 2005, surgiu um movimento que
tinha como objetivo o fechamento da escola. Foi um movimento local, defendido
L por profissionais que trabalhavam na Representação de Ensino da Secretaria
do Estado da Educação de Rondônia – REN, em Guajará-Mirim. A REN, era a
instituição responsável em administrar às escolas públicas estaduais na época.
L
O comunicado sobre o possível fechamento da escola aconteceu apenas de forma
verbal, em conversa dos técnicos da REN com a diretora da escola, profªAurelúcia
A e com a professora Cecília, que na época era vice-diretora da escola. Na conversa,
foram apontados alguns motivos que, segundo a REN, embasavam o objetivo
do fechamento da escola. Dentre os motivos apontados destacam-se: o número
reduzido de alunos atendidos pela escola; desinteresse do governo em investir na
escola por não poder alterar em sua estrutura física; à necessidade da construção
• de um Centro de Recuperação para Crianças e Adolescentes, entre outras propostas
1305 que afrontavam os trabalhos desenvolvidos pela escola. No entanto, a comunidade
escolar não aceitou a situação e iniciou um movimento contrário ao processo de
• fechamento.
Este movimento envolveu, além da comunidade escolar (alunos,
professores, gestoras, funcionários, pais, mães e outros familiares dos alunos),
outros parceiros da escola (representantes políticos e gestores de outras escolas).
O movimento de resistência contra o fechamento da instituição cresceu e ganhou
2 força. Promoveu a desarticulação da proposta do fechamento, garantindo a
continuidade do trabalho prestado pela escola junto à comunidade de Guajará-
0 Mirim. E, ainda, a diretora Aurelúcia, juntamente com sua vice –diretora Cecília,
foram homenageadas pela Câmara Municipal de Vereadores de Guajará-Mirim,

com uma Moção de Aplausos pelo reconhecimento da dedicação profissional em
1 prol da Educação do Município.
Em 2005, a escola ganhou o Prêmio Nacional Referência em Gestão
8 Escolar , sendo a única escola inscrita (por iniciativa própria) no município de
3

Guajará-Mirim. Classificou-se em primeiro lugar a nível estadual e, a nível



nacional, ficou entre as dez colocadas. A escola concorreu ao prêmio expondo a sua
própria história, ou seja, como os alunos chegavam a escola, o estigma local que
rotulou a escola de reformatório, as práticas de inclusão que a escola desenvolvia,
3  O prêmio foi uma iniciativa conjunta do Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED),
da União nacional dos Dirigentes Municipais de educação Undime, da Unesco, da Fundação Roberto
Marinho com o apoio do Ministério da Educação e Secretarias Estaduais de Educação. Os projetos
selecionados foram aqueles voltados à melhoria da qualidade de ensino, eliminando os índices de
reprovação e evasão, promovendo a valorização dos jovens e capacitando-os ao convívio social.
os intercâmbios com as escolas bolivianas e o movimento de defesa que a escola
organizou na comunidade para resistir à tentativa de fechamento.
As práticas transfronteiriças da Escola Durvalina Estilbem de Oliveira
Desde 2004, a escola promove intercâmbios com escolas da cidade
vizinha Guayaramerín (Beni/Bol). Todos os anos coloca-se em prática o “Projeto
de Intercâmbio Cultural entre o Brasil x Bolívia”. Este projeto tem como uma
de suas ações, levar anualmente um grupo de alunos da E.D.E.O, geralmente os
J alunos mais velhos e os professores, para visitar uma escola boliviana. Na visita.
acontecem palestras, apresentações culturais e jogos. Posteriormente um grupo
A de alunos da escola boliviana visitada, cruza a fronteira para visitar a E.D.E.O, a
qual realiza diferentes atividades pedagógicas e culturais para receber o grupo de
L visitantes.
Uma outra prática de interação fronteiriça que ocorre anualmente
L é a participação da escola E.D.E.O no desfile cívico da Unidade Educativa San
Jose Fé y Alegria (localizada em Guayaramerín). Este desfile acontece no dia da
Independência da Bolívia, comemorado no dia 6 (seis) de agosto. Na Independência
A
do Brasil 7 (sete) de setembro, a escola boliviana também leva os alunos e professores
para participarem do desfile cívico brasileiro. Esta é uma prática que nasceu da
relação entre os gestores, professores e alunos destas duas escolas. Percebe-se que
os educadores utilizam os eventos oficiais presentes no calendário escolar para
realizarem intercâmbios. Práticas, que além de aproximar os alunos e professores,

também têm como objetivo a troca de conhecimento sobre os dois países (Bolívia
1306 e Brasil). Neste sentido, os eventos cívicos servem como um marco no processo de
• interação entre as escolas.
Em 2015, por exemplo, a E.D.E.O. prestou uma homenagem à comunidade
boliviana da fronteira, apresentando como tema os aspectos da geografia, da histó-
ria e da cultura da Bolívia, no desfile cívico de 7 de setembro.

2

0

1

8

Imagem 1: Alunos da escola Durvalina Estilbem de Oliveira, apresentando a história da Bolívia no


desfile cívico de 7 de setembro de 2015.
Fonte: Arquivo da escola Durvalina Estilbem de Oliveira
Como podemos verificar, muito antes da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional – lei 9494/96, que orientou a construção de uma gestão escolar
compartilhada e mais autônoma para as instituições de ensino brasileira, a E.D.E.O
de forma particular, iniciava um trabalho diferente valorizando a prática de seus
professores. Dentre estes professores, destacamos a professora Guilhermina, que
buscava resgatar a cultura, aqui entendida como a cultura boliviana, para mostrar
a importância deles, dos alunos bolivianos, no ambiente escolar. Ela, naquela
J época, já projetava seu olhar para as demandas da escola, mas também para fora
da escola, para além da fronteira. A escola então, a partir do trabalho da professora
Guilhermina, inicia suas práticas transfronteiriças, elege naquele momento o que
A
era relevante para a comunidade escolar, levando professores e parte de seus
alunos para as primeiras experiências do outro lado da fronteira, na Bolívia.
L
Reconhecemos então, que este foi primeiro momento de interação

entre alunos brasileiros e bolivianos em um espaço escolar na Bolívia e o primeiro
L intercâmbio realizado pela escola. Assim, entendemos conforme Schutz (2012), que
a professora Guilhermina a partir de uma situação de pertencimento ao grupo escola,
A assume uma atitude em relação a escolha do seu papel social como professora na
instituição, de como ela deveria desempenhar este papel. Posteriormente, a gestão
reconhecendo a importância do trabalho da professora, assume como relevante
conhecer a diversidade cultural presente em seu espaço e, prioriza a partir do seu
Projeto Pedagógico à condição da escola situada na fronteira que recebe alunos
• bolivianos residentes tanto no território brasileiro quanto no território boliviano,
1307 promovendo uma verdadeira inclusão social.
Para contribuir com o nosso estudo fizemos uso dos Mapas Mentais, são

enunciados que apresentam uma interação verbal intensa, são representações que
tem como base a inter-relação do indivíduo com o outro. Conforme Kozel e Galvão
(2008), os mapas mentais são de fundamental importância como ferramenta na
construção de diagnóstico relacionado a situações que envolve a educação, são
instrumentos catalizadores da manifestação do desenvolvimento cognitivo, social e
2 cultural dos alunos. O objetivo da aplicação dos mapas mentais, a alunos brasileiros
e a alunos bolivianos que estudam na escola Durvalina, foi o de identificar a
0 percepção destes alunos quanto ao espaço escolar e as interações construídas nele.
A seguir destacamos um dos 10 (dez) mapas produzidos por alunos: 5
1 (cinco) brasileiros e 5 (cinco) bolivianos, entre eles tínhamos bolivianos residentes
no município de Guajará-Mirim e bolivianos residentes na cidade de Guayaramerin.
8

J

A

L

L

A
Mapa 1: Mapa mental de um aluno de 12 anos, brasileiro.
Fonte: Arquivo autora (2016).

Para a análise dos mapas seguimos a metodologia de Kozel. No mapa 1,


o aluno fez uma representação com ícones dispersos, há elementos da paisagem
• natural: o rio e a árvore, elementos construídos pelo homem, elementos móveis e
1308 um elemento humano, no caso ele, representado sentado na carteira. Começamos a
• nossa análise a partir da representação que o aluno fez de si, percebemos que ele se
representa isolado dentro do próprio coletivo da sala de aula, não há a presença de
colegas ou professores. No momento da apresentação dos desenhos perguntamos
ao aluno se ele tinha amigos na escola, ele respondeu que sim. Então, pedimos que
citasse alguns nomes, ele citou apenas um e se justificou que não lembrava dos
outros. Verificamos que, o aluno, se comparado aos outros alunos que participaram
2
da elaboração dos mapas, é um aluno novato e provavelmente ainda não conseguiu
ampliar seu grupo de amigos dentro da escola.
0
O desenho do barco no rio revela a percepção da fronteira, do deslocamento,
do ir e vir daqueles que precisam cruzar o rio por algum motivo. Dentre estas
1 pessoas que se deslocam, seus próprios colegas, que assim como ele optaram
em estudar na escola. A delimitação da fronteira nacional está presente, através
8 das bandeiras nacionais (Bolívia e Brasil), hasteadas no barco que transporta
as pessoas pelo rio Mamoré. Vale já ressaltar, que entre os desenhos, somente
neste, se encontram estes elementos que reportam a escola localizada neste espaço
demarcado pelas simbologias nacionais (as bandeiras hasteadas) e, ao mesmo
tempo, pelas interações (o barco, no fluxo e transporte de passageiros), entre os
dois países. Neste desenho, há uma forte representação dos elementos fronteiriços
onde a escola se localiza. Por sua vez, a porta aberta da escola, confirma a história
recente da escola, com o seu projeto de acolhida aos alunos que até então tinham
suas matriculas negadas em outras escolas, entre eles os bolivianos.
A árvore e a quadra representam os lugares por onde os alunos circulam,
brincam, jogam e conversam. Como a escola é pequena, não possui área coberta, os
alunos buscam as árvores do pátio para ficar nas sombras. No canto superior direito
podemos ver uma quadra (conforme afirmou o autor do desenho) e a quadra de
cimento localizada na praça que fica em frente da escola, local que a comunidade do
entorno utiliza para jogar futebol. Nesta quadra, também são realizadas atividades
da escola. O autor do desenho representa a quadra comunitária como sendo a
própria extensão do espaço escolar.
J Quando optamos em trazer para a nossa pesquisa os mapas mentais
nos propomos ir além das entrevistas e das observações, do próprio olhar sobre a
A paisagem, “ir além do conceito de paisagem que relaciona natureza e sociedade, e
pensar como tomada de consciência da natureza que o envolve e da qual também
L é integrante”. (KOZEL, 2009, p.66). Neste sentido, a paisagem não é um retrato
ou uma tela pintada de um espaço geográfico, mas torna-se essência de um lugar

e existem inúmeras maneiras de representá-la, porque também são inúmeras as
L percepções, valores e as significações de quem capta essa paisagem.
Pensar a paisagem dessa maneira é um grande desafio, como explica
A Kozel (2009), a paisagem observada pela janela é algo que se pode ver apenas por
partes e nunca de forma completa. Assim, cada paisagem é produto e produtora de
cultura, possuidora de formas e cores, odores, sons movimentos, que podem ser
experenciados por cada pessoa que nela se insira, ou abstraídos por aquele que lê,
pelos relatos e imagens. Abrem-se portanto, outros elementos de interpretações, que
• somados as observações, entrevistas, intervenções contribuem significativamente
1309 nos resultados da pesquisa empírica.
• Assim, a partir dos mapas mentais que representam o olhar de alunos
brasileiros e alunos bolivianos sobre a escola, alunos de uma região de fronteira que
compartilham um mesmo espaço de formação, foi possível identificar quê: os alunos
reconhecem a diversidade cultural presente na comunidade escolar; que o estudo
sobre a comunidade tem lugar no currículo; que a escola tem práticas tradicionais:
2 como o momento cívico e a forma como organização da sala de aula; que inclui
em seu currículo atividades de campo estimulando a exploração do ambiente e
a relação: professor-aluno, aluno-aluno e alunos – comunidade visitada; que a
0 fronteira é percebida a partir da necessidade do deslocamento; que as interações
bilíngues são mais intensas nos momentos lúdicos; que a escola é reconhecida pela
1 prática de acolhimento aos alunos que tem a matricula negada em outras escolas (
principalmente os casos de bolivianos) e que o Projeto Pedagógico da escola ganha
8 evidência também do outro lado da fronteira. Um projeto que estimula: o currículo
intercultural, a prática bilíngue (português e espanhol),os intercâmbios entre
alunos e professores de nacionalidades diferentes (Brasil e Bolívia).
Considerações finais
Os mapas mentais da E. D.E.O. trazem representações específicas, que
detalham algumas das práticas que a escola desenvolve para estimular a interação
educacional na fronteira, partindo da interação dos seus próprios alunos. Apesar de
os mapas não revelarem todas as ações, reconhecemos a partir deste trabalho, que
a equipe gestora da escola procura estimular uma convivência baseada no respeito
e estimula esta convivência por meio de atividades compartilhadas que priorizam
também as ações fora da escola: campos, intercâmbios e passeios. E, a fronteira,
mesmo não sendo representada diretamente em todos os mapas mentais é vista
como uma paisagem a ser investigada e explorada por professores e alunos. Por
isso, surgem as práticas transfronteiriças, professores brasileiros e bolivianos que
procuram dialogar para se conhecerem, estudarem e procurar mudar a “história
única”, que muitas vezes de forma inconsciente, reproduzimos em nossos discursos
J sobre aqueles que moram do outro lado da fronteira, brasileiros e bolivianos.
Portanto, a E. D.E.O instituiu dentre as suas demandas, aquela de maior
A relevância, a partir daí tornou-se um ator que desenvolve um papel significativo na
educação da fronteira e, que, a cada dia vem ganhando maior visibilidade. Não foi
L um caminho tranquilo, na verdade durante os 4 (quatro) anos que acompanhamos
a escola, aconteceram muitos conflitos e problemas, mas a identidade que a escola

construiu continua sendo projetada na fronteira. Uma realidade que foi confirmada,
L a partir da matriculas de novos alunos bolivianos ocorrida desde que iniciamos
a nossa pesquisa: de um quantitativo de 12 alunos bolivianos que registramos
A no início do ano letivo de 2013, a escola passou para um total de 89 alunos
bolivianos confirmados através da matrícula inicial de 2016. A escola ousou fazer a
travessia, sem ter a certeza de onde iria chegar, mas seu trabalho ficou conhecido
e tornou-se referência na fronteira das cidades gêmeas de Guajará-Mirim (RO/BR)
e GuayaramerinBENI/BOL).(
• Referências
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