Latinoamericana
Organização
Gerson Rodrigues Albuquerque
Raquel Alves Ishii
Marcello Messina
Nepan Editora
Rio Branco - Acre
2018
Núcleo de Estudos das Culturas Amazônicas e Pan-Amazônicas - Nepan
APRESENTAÇÃO
Gerson Rodrigues de Albuquerque (ufac) - Secretário-Brasil...................................................... 17
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L RELIGIÃO E LITERATURA NA AMAZÔNIA: PRÁTICAS
AFROINDÍGENAS EM DALCÍDIO JURANDIR
L
Agenor Sarraf Pacheco (UFPA)
A RESUMO:O trabalho analisa narrativas de experiências religiosas interculturais
comungadas por indígenas e africanos em zonas de contato na Amazônia
Marajoara sob o olhar da produção literária do romancista paraense, Dalcídio
Jurandir(1909-1979). Nesses mundos cruzados da literatura com a religião e
das cosmologias indígenas com as cosmologias africanas em cenário amazônico,
• procuracartografa narrativas, práticas e saberes de religiosidades afroindígenas no
romance “Três Casas e Um Rio” (1958) do literato em tela. Focalizando atenção às
18
tramas do fenômeno religioso de matriz afroindígena em território estratégico da
• Amazônia Oriental, o arquipélago de Marajó, o diálogo empreendido articula Estudos
Culturais, Pós-Coloniais e Decoloniais com o campo da Teopoética. Inspirado em
Serry (2004, p. 129), é possível assinar que a pesquisa “tenta compreender as
relações da religião e da literatura, trazendo à luz a sociogênese de dois sistemas de
crenças, cujas lógicas próprias partilham um poder similar de ordenar o mundo” e
2 com isso permitem leituras de vivências em zonas de contato na região.
Palavras-chave: Práticas Afroindígenas. Dalcídio Jurandir. Teopoética. Amazônia
0 Marajoara.
Apresentação
1 O complexo sistema religioso que constitui e orienta vivências,
sensibilidades de mundo (MIGNOLO, 2017) e posicionamentos sociopolíticos de
8 instituições, grupos e pessoas em territórios amazônicos revela fenômenos de
crenças desafiadores para análises monolíticas e monoculturais. Desde o período
colonial, os primeiros padres que se estabeleceram na região sentiram embaraços
para enquadrar indígenas e depois africanos na ritualística do catolicismo português.
Regidos pela incorporação seletiva (WILLIAMS, 1976; CERTEAU, 1998;
MARTÍN-BARBERO, 2001; HALL, 2003), indígenas e africanos misturaram com
maestria elementos de suas religiões com elementos da religião colonizadora.
Nessas zonas de contato (PRATT, 2009), para além das formas de estranhamento,
dominação, violência, hierarquia, emergiram traduções culturais em práticas de
afetamento de lá e de cá, sociabilidades e complementaridades, gestando religiões
de matriz afroindígena em territórios da diferença colonial (MIGNOLO, 2013) que
desestabilizaram padrões e normas da teologia cristã ocidental. Não por acaso, a
forte perseguição e o preconceito contra pajés, pais de santo, adivinhos, exorcistas,
entre outros, no período colonial ainda hoje compõem o imaginário das religiões
hegemônicas em renitentes práticas de intolerância de norte a sul no Brasil (SILVA,
2014).
Marcio Goldman (2015, p. 645) em diálogo com Roger Bastide (1976
J [1973], p. 32) observou que a literatura especializada sobre religiões no Brasil
pouco enfrentou o “encontro e casamento dos deuses africanos com os espíritos
A indígenas”. Quando isso ocorreu, o ponto de vista dominante foi o do “branco
europeu”, deixando nas sombras a capacidade de afros e indígenas agenciarem
L e recriarem, em imprevisíveis criatividades, seu complexo sistema de crenças,
costumes e tradições (DELEUZE e GUATTARI, 1995; GLISSANT, 2005; WAGNER,
2012).
L
Intelectuais de ponta e de peso como Manuel Nunes Pereira, Arthur Cezar
Ferreira Reis, Vicente Salles, Marcos Carneiro de Mendonça, Antonio Carreira,
A Anaíza Vergolino-Henry e Arthur Napoleão Figueiredo, Rosa Elizabeth Acevedo
Marin, primeiros estudiosos da presença negra naAmazônia, e depois Flávio
dos Santos Gomes, José Maria Bezerra Neto, Rafael Chambouleyron, Patrícia
Sampaio, Agenor Sarraf Pacheco, entre outros, centraram suas preocupações
em visibilizar o“enegrecimento das paisagens humanas” nesta parte norte do
• Brasil. Essesintelectuais, duvidando do “vazio humano africano”, enfrentaram
19 percepçõesapressadas e restritas de estudiosos nacionais e internacionais que
procuraramreforçar o mito da “Amazônia: Terra de Índio”, “paraíso isolado e parado
•
no tempo”, por não se enquadrar no modelo da plantation verificada no centro-sul
do país.
Assim, a constituição das religiões de matriz afroindígena em circuito
marajoara, por exemplo, fez-se em práticas e saberes de tradições orais (HAMPATÉ
2 BÂ, 2011) com nações indígenas e a presença negra (PEREIRA, 1952; SALLES,
2005 [1971]; SARRAF-PACHECO, 2009).Neste contexto, interessado em mergulhar
nas experiências religiosas interculturais comungadas por indígenas e africanos
0 em zonas de contato na Amazônia sob o olhar da produção literária do romancista
paraense e marajoara, Dalcídio Jurandir1,este trabalho procura cartografar
1 narrativas, práticas e saberes em territórios de religiões afroindígenas na Amazônia
Marajoara no romance “Três Casas e Um Rio”, do literato em tela.
8 Centrando na área de Dinâmicas Territoriais e Sociedade na
AmazôniaEstudos e vinculando à linha de pesquisa Produção Discursiva e
Dinâmicas Socioterritoriais na Amazônia, a escolha por trabalhar um dos romances
que compõem o chamado Ciclo do Extremo-Norte de Jurandir justifica-se por sua
2 “No es difícil entender por qué es Prat el primero que Manuela escoge para este juego, a nadie
hay que contarle quién fue Prat ni qué pasó el 21 de mayo de 1879. Lo conocemos bien, como país
Infante desconstrói a visão desse herói a partir de sua proposta
contemporânea para esse personagem, apresentado por Infante por um adolescente
de 16 anos. A dramaturga começa a sua obra traçando um paralelo com a realidade
do personagem histórico, no prólogo de Prat a primeira frase é “Houve uma época
em que sentíamos medo dos peruanos” (p.15) e o cenário da obra todo se baseia
em um universonaval, em um navio de guerra. O Arturo Prat histórico também
comandou uma batalha contra o Peru,precisamente onde morre. Prat, além de
J visto como um adolescente medroso, traz algumas atitudes que questionam a sua
sexualidade, elemento de ruptura da imagem do herói, já que nesse universo de
Arturo Prat a homossexualidade não se encaixava aos padrões.
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O cenário da obra é marcado por ambientes externos do navio, os diálogos
L mais intensos e mais frequentesque as rubricas –que obviamente também são
essenciais para toda a construção da obra-, a subjetividade então é estabelecida
através deles. O tempo, através da descrição do cenário, é irregular, marcando
L a fragmentação dos espaços temporais, logo a interrupção das ações. Às vezes o
tempo é determinado pela presença da hora exata, outras não, talvez Infante jogue
A mesmo com um elemento crucial para os navegantes: a precisão da hora, mas
que também, para o caso da dramaturgia contemporânea, não seja tão necessária
para seguir linearmente, já os saltos temporais são frequentes e procura-se
quebrar justamente com essa linearidade.Prat é de fato uma obra intensa, onde a
subjetividade e as várias questões presentes a englobam e a fazem de uma riqueza
• enorme de imagens, e apesar de ser uma obra de total e absoluta presença do
38 universo masculino, questiona o próprio espaço da mulher e o final da peça, onde
a mãe “invisível” de Prat comanda o navio é o ponto crucial para essa crítica.
•
Juana
Juana é a segunda obra de Manuela Infante, publicada no livro Prat
seguida de Juana em 2004, e também é o segundo trabalho da Compañía de Teatro
de Chile. Nessa obra a dramaturga não abre mão da fábula de Joana d’Arce a conta
através da presença de elementos contemporâneos. Considerando a personagem
2 histórica para trazer ao contexto de Infante, sabemos que Joana d’Arc era
camponesa, analfabeta, que chegou a ser chefe militar durante a Guerra dos Cem
0 Anos, e foi executada na fogueira, como punição religiosa. Hoje é considerada uma
figura mítica por sua trajetória e dados importantes em sua biografia. A imagem
1 de Joana d’Arc foi reconhecida obviamente após sua morte, -após aqueles tempos
onde a Igreja matava deliberadamente àqueles, que como ela, não respondiam aos
conceitos e normas estabelecidas-, e então foi considerada heroína da França, e
8 santa da Igreja Católica, ironicamente. Alguns escritores utilizaram de sua figura,
entre eles Shakespeare,que a representou como feiticeira em sua obra Henrique VI.
Em Juana a figura de Joana d’Arc é construída através dos contextos que
a rodeavam, primeiro sua família e logo os homens mais poderosos do poder na
França, e como foi desenvolvendo suas “habilidades”, como foram aparecendo as
“vozes” em sua cabeça, construindo a partir de marcos históricos (como o espirito
nacionalista que rodeava os franceses pós Primeira Guerra Mundial e as batalhas
3 Tabaco líquido que todavía se usa a diario en las comunidades Uitoto de hoy, “es fundamental en
las prácticas rituales y de brujería de los uitotos. Por su intermedio se establece comunicación con
vaticinar el futuro y así evitar más desgracias, también les admite llegar al origen
de la palabra, gracias a ella se puede resguardar la vida ante el peligro.
En la novela de Quiñones se puede ver a través de este primer paraje
narrativo, que la yera permite a los nativos uitotos liberarse de manera ritualística
de aquella opresión que los aflige, pues Oyma, uno de los sabedores dice después
de probar el brebaje negro: “en mi triste visión aparecen todavía muchas víctimas,
pero antes de la próxima luna el tigre será derribado” (QUIÑONES, 1948, p.21).
J Asimismo, Gitomanqueño, el mayor intelectual y sabio de la selva, pregunta a Oyma
sobre el destino de los nonuyas, quien presagia que luego de la muerte del jaguar
A vendrán más tragedias: “una violenta epidemia que el tigre al morir engendrará con
su aliento pestilente, propagándola en todas las tribus de nuestra raza. Ese sería
L el último esfuerzo de su odio y de su mortal venganza” (QUIÑONES, 1948, p.22).
Con esto se puede destacar otro elemento relevante en la novela en mención, pues
aquella epidemia se trata de las enfermedades que trajeron los colonos caucheros
L a la selva, viruelas que también ocasionaron innumerables muertes.
Para predecir si el jaguar causaría alguna otra desgracia entre la
A tribu, es relevante resaltar que la yera brindó la posibilidad de establecer una
intercomunicación metafísica entre los nativos, de tal manera que Oyma (de la tribu
Jeduas), al beber esta planta sagrada, realizó un vuelo chamánico y afirmó que el
tigre sería derrotado por un joven guerrero, pero que el felino dejaría una terrible
desgracia: la epidemia que exterminaría la floreciente comunidad de los nonuya,
• esto es el etnocidio cauchero. Asimismo, la esperanza de un mejor mañana entre
49 los nativos se prolongó cuando Fusicayna invitó a su tribu a dialogar, y dicho acto
se fortaleció con el yera, sobre todo cuando el anciano Gitomanqueño compartió
•
su sabiduría a los más jóvenes de la tribu. En su virtud de gran sabedor, expresó:
“¡amo las supersticiones tan queridas a las almas delicadas; respeto mis tradiciones,
porque no reniego de mis antepasados; amo siempre la luz nueva del sol siempre
viejo! El sol, ese eterno amor, cuyo calor es la vida de los seres” (QUIÑONES, 1948,
p.37).
2
Se puede decir que las anteriores palabras dejan ver una nueva aurora,
la luz de un mundo resguardado por la naturaleza, un espacio que sabe cuidar
0 del bienestar colectivo y de los seres que lo habitan. En su propia construcción
de nación, los nonuya no necesitan gobernantes, porque su mandato es respetar
1 las tradiciones de sus antepasados; los ritos y plantas sagradas les ofrecen paz
interior y armonía selvática, porque es la madre natura quien les da el jágɨyɨ4, un
8 soplo ancestral que ayuda a conservar el verdadero origen de la vida y a renovar la
sapiencia que les permite cohabitar con destreza en la infinita floresta; además, la
5 Como se puede observar, Gáimoi representa un devenir animal de jaguar, aquel que impedirá que
la comunidad Uitoto sea libre, desde allí se puede comprender cómo surge parte de la jaguarización,
pues se trata en un primer momento del castigo que impone Juttíñamuy a la desobediencia. De
alguna manera, este referente valida la idea en la novela de Quiñones, de que el jaguar simbolizaba
adversarios que quebrarían también la homogeneidad de la vida comunitaria, para
producir un nuevo equilibrio basado en contraindicaciones que antes no existían”
(NIÑO, 2008, p.254).
La anterior referencia que comparte Niño (2008), es un punto fundamental
para comprender el etnocidio ocasionado en la Amazonía colombiana con los
indígenas Uitoto. Primero, el mandato de Juttíñamui se entiende como una ley para
garantizar el equilibrio en el mundo selvático, como se mencionó más arriba, el
J incesto político ocasionó la primera profanación de aquel mandato sagrado, lo que
generó la expulsión de Nokaido hacia el espacio terrenal de los hombres blancos,
A que posteriormente tomará venganza contra los uitotos en forma de jaguar. Así,
todo lo que parecía ser un génesis de cultura aborigen pasó a ser un apocalipsis de
L sangre y devastación:
Por un lado se encontraban Gitoma y sus hermanos Muruima y Muinaima,
que serían las cabezas de los troncos clánicos de los Murui y los Muina-
L ne. Por otro lado estaban sus restantes hermanos: Nokaido, con quien se
inició la ruptura desde el seno de Tierra, y Guéquetirai, segundo en poder
entre los uitotos y quien también se apartaría de ellos por celos de poder
A hacia Gitoma y se convertiría en Yarókagiroi Gusano Gigante, que sería el
azote de sus hermanos de creación y aliado de la Casa Arana muchos años
después. De esta manera quedó armada una nueva estructura de poder a
causa de aquellas rencillas de autoridad y amor, personificada en este grupo
de agonistas que, desde entonces, están en lucha permanente. (NIÑO, 2008,
• p.254)
6 Este es otro de los factores que logra recuperar Quiñones con su novela, una tradición que casi
se pierde con la conquista del caucho en la Amazonía. Según se puede leer en Preuss (1994), este
tipo de juego-ritual tiene como objeto para los uitotos recordar las enseñanzas de los ancestros,
recuperar el lugar de origen (komuiyano) compartiendo en armonía con los canes aledaños, sin esta
fiesta sagrada la gente de la selva sería triste, pues en ella también se baila y se agradece por la
esperaban ansiosos que Moneycueño otorgara después de un largo año de espera
la felicidad entre su raza, porque “ese día tomará un esposo para hacer revivir en
su próxima generación a su padre difunto” (QUIÑONES, 1948, p.198). Pero, Willy
que no estaba enterado de este acontecimiento, y luego de que Moneycueño le
contara toda la historia sobre su compromiso con Quega, él comprendió que pronto
perdería a su amada nativa y aunque planearon fugarse ella debía cumplir con
lealtad ante las tradiciones de su tribu: “¡Huir!, ¡huir!, dijo ella al fin. ¡No! ¡yo no
J puedo huir, yo soy la hija de Fusicayna!” (QUIÑONES, 1948, p.209). En suma, En
el corazón de la América virgen posee un carácter mítico (GONZÁLEZ, 2011, p.52),
en el sentido en que su voz de origen funciona como un suceso singular dentro la
A
novelística colombiana y latinoamericana y porque además, en su trasfondo está
latente el proyecto cultural de la historia de la Amazonía.
L
Referencias
L bAJTÍN, M. Teoría y estética de la novela. Madrid: Taurus, 1989.
ECHEVERRI, J y LANDABURU, J. Los nonuya del Putumayo y su lengua: Huellas
de su historia y circunstancias de un resurgir. In: PABÓN, M. La recuperación de
A lenguas nativas como búsqueda de identidad étnica. Bogotá: CCELA- Uniandes,
1995, p. 39–60.
ELIADE, M. El chamanismo y las técnicas arcaicas del éxtasis. México: Fondo
de Cultura Económica, 2016.
GONZÁLEZ, R. Mito y archivo: una teoría de la narrativa latinoamericana. Méxi-
• co: Fondo de Cultura Económica, 2011.
54 LANDABURU, J e PINEDA, R. Tradiciones de la gente del hacha. Bogotá: Insti-
• tuto Caro y Cuervo, 1984.
NIÑO, H. El etnotexto: las voces del asombro. La Habana: Casa de las Américas,
2008.
OCHANDO, C. La memoria en el espejo. Barcelona: Anthropos, 1998.
PINEDA, R. Holocausto en el Amazonas. Bogotá: Planeta, 2000.
2 PREUSS, K. Religión y mitología de los uitotos. Bogotá: Universidad Nacional,
1994.
0 QUIÑONES, J. Au Coeur de I’ Amerique vierge. Paris: Peyronnet, 1924.
QUIÑONES, J. En el corazón de la América virgen. Bogotá: ABC, 1948.
1 RODRÍGUEZ, M. Muestra de literatura oral en Leticia, Amazonas. Bogotá: Ins-
tituto Caro y Cuervo, 1981.
8 REICHEL-DOLMATOFF, G. El chamán y el jaguar. México: Siglo XXI Editores,
1978.
VIVAS, S. Komuya uai. Medellín: Sílaba, 2015.
VIVEIROS DE CASTRO, E. La mirada del jaguar: introducción al perspectivismo
amerindio. Buenos Aires: Tinta de Limón, 2013.
Ainda é possível perceber que o viajante busca ver coisas diferentes, mas
sempre tendo como parâmetro um espectro pré-definido, que o permite observar,
analisar e avaliar a nova paisagem. Na passagem acima, tem-se, ainda, a impressão
2 que o autor se sente abduzido em solo amazônico, que o lugar não faz parte do
nosso planeta, que o colorido virou cinza.
0 Alfred Russel Wallace (1979), assim como Euclides, em viagem pelos rios
amazônicos, também busca o diferente, sem abrir mão da visão eurocêntrico. Em
1 seu discurso, acaba deixando transparecer isso claramente:
Quando fico pensando no quanto é fácil transformar esta floresta virgem em
verdejantes campinas e produtivas plantações, exigindo-se para tanto uma
8 concentração mínima de trabalhos e esforços, dá até vontade de reunir meia
dúzia de amigos entusiasmados e diligentes e vir para cá tirar desta terra
tudo aquilo que ela nos pode propiciar com fartura. Juntos, mostraríamos à
gente do país como seria possível criar aqui um verdadeiro paraíso terrestre
a curto prazo, abrindo-lhes os olhos para uma realidade que eles até então
jamais conceberam que fosse capaz de existir. (WALLACE, 1979, p. 208)
Leandro Tocantins aborda vários temas nesse livro, mas cada relato, cada
descrição particulariza o modo amazônico de se viver. O folclore, as brincadeiras,
J a culinária, a religiosidade são espectros de um mundo bastante singular,
desconhecido, inexplorado. Assim, seja qual for o foco em uma narrativa sobre a
Amazônia, o que vem sempre à tona é o diferente, o que ainda não se viu, o que
A
está fora do mundo civilizado e urbanizado, acentuando que a descaracterização
dessa região é o que, de fato, a caracteriza. As adjetivações recorrentes, portanto,
L produziram/produzem uma imagem protegida pelos vidros blindados do simbólico
narrativo.
L O rio, obviamente, também é destacado na narrativa de Tocantins, que vai
descrevendo as singularidades dos cursos d’água que predominam na Amazônia.
A Os rios amazônicos são como fios condutores. Condutores de vida, de sonhos, de
morte, de renascimentos. O autor atribui ao curso de água um poder ímpar sobre
a dinâmica da vida na região. Poeticamente, Tocantins descreve o leito caudaloso,
como:
Veias do sangue da planície, caminho natural dos descobridores, farnel do
• pobre e do rico, determinante das temperaturas e dos fenômenos atmosféri-
cos, amados, odiados, louvados, amaldiçoados, os rios são a fonte perene do
60 progresso, pois sem eles o vale se estiolaria no vazio inexpressivo dos deser-
• tos. Esses oásis fabulosos tornaram possível a conquista da terra e assegu-
ram a presença humana, embelezam a paisagem, fazem girar a civilização
– comandam a vida no anfiteatro amazônico (TOCANTINS, 1973, p. 281).
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L MARCADOS PARA VIVER: INDÍGENAS CONTEMPORÂNEOS NA
CENA NACIONAL
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Ana Lígia Leite e Aguiar (UFBA)
A RESUMO:Propõe-se, neste artigo, um deslizamento por algumas cenas que nos
provocam a rever os termos das genealogias do Outro. Achugar mostra as diversas
possibilidades de começo, mapeando: Colombo, Cabral, Shakespeare, Montaigne,
Renan. Ou: Las Casas, José Martí, Che Guevara, Frantz Fanon, Guamán Poma
de Ayala. Ou Rodó e Fernández Retamar. (Cf. Planetas sem boca, p. 31). Neste
• caso específico, o Outro é o outro índio. O primeiro disparador é a publicação das
palavras de Davi Kopenawa Yanomami na obra A queda do céu. Junto a outros
62
escritores, como Daniel Munduruku, Marcelino Freire, Verônica Sigger, que
• exercem uma escrita literária crítica sobre o presente, aliando-os ao pensamento
crítico-teórico de Ailton Krenak, Patricio Guzmán, Claudia Andujar, Cildo Meireles,
Vincent Carelli, apresenta-se como diferentes campos da cultura utilizam suas
vozes para fabricar desobediências epistêmicas no que concerne às identidades dos
povos originários do Brasil.
2 Palavras-chave: Crítica cultural. Indígenas. Desobediência epistêmica. Brasil.
Afinal, sou um letrado branco, classe média,
0 marginalmente ocidental, - mas, que, no entanto,
compartilha a experiência da ferida ou da humilhação ou do desprezo.
1 Hugo Achugar. Planetas sem boca, p .14.
7 Devo e agradeço muito a Bernard Belisário, que foi quem me apresentou essa imagem.
8 Inacreditável é a sistematização desses dados na entrevista dada por Eduardo Viveiros de Castro,
quando dos conflitos na reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, em 2008. Disponível em: http://
Em agosto de 1987 e outubro do mesmo ano, o presidente da Funai,
Jucá, autorizou desmatamento em território Yanomami.
As palavras de Kopenawa, feito esse rápido contexto, operam entre a
elegância altiva do conhecimento que ele tem de sua/nossa história e a denúncia.
A queda do céu, que tenta dizer o que alguns povos têm feito para sustentar o
céu antes que ele desabe sobre nossas cabeças,pretende cooptar a comunidade
de leitores de “peles de papel” para rever o destino comum.9 O livro de Kopenawa,
J o gravadordo índio e deputado Juruna na mesa de Romero Jucá,10 a imagem que
captura esse interregno: todos são marcados como sobrevivências. Como também
A na série Marcados, as fotografias que Claudia Andujar fez dos Yanomamisentre
1981 e 1983.
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Figura 2 - Yanomamis fotografados por Claudia Andujar
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2
0
1 Figura 3 - Yanomamis fotografados por Claudia Andujar
Com um grupo de salvação composto por uma fotógrafa e dois médicos, Claudia
8 procurou dar atendimento aos indígenas vítimas das “consequências desastrosas do con-
tato” com o branco (SENRA apud ANDUJAR, 2009, p. 127)durante a criação da Perimetral
Norte, uma estrada que faria parte do plano de integração nacional elaborado pela dita-
alias.estadao.com.br/noticias/geral,nao-podemos-infligir-uma-segunda-derrota-a-eles,159735
9 O espetáculo memorável da Companhia de Dança Lia Rodrigues fez a tentativa de operar nesse
limiar em Para que o céu não caia (2017).
10 “Sempre munido de um gravador, que se tornou sua marca, registrava suas conversas com
políticos e funcionários do alto escalão do governo.” Saiba mais sobre a trajetória do deputado
Juruna aqui: http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/juruna-unico-indio-eleito-no-
congresso-nacional-gravava-promessas-de-politicos-21564758#ixzz4zUvdldol
dura, ligando o Amapá à Colômbia, e onde jazidas minerais foram detectadas na região.11
Rotineiramente, o término da rodovia é reivindicado nas mídias nacionais por jornalistas
e autoridades com alto grau de desinformação. Viveiros de Castro sinaliza para a ideia do
bem comum, espaço comum que está em questão nesse jogo de colonizações remixadas.
As seis famílias que invadem o território indígena no norte do país, o fazem na condição
de grileiros, de futuros latifundiários. Mas quando se demarcam terras para os povos
indígenas, estas continuam sendo da União, os índios fazem usufruto, mas ela está lá,
J como uma flutuação de um bem comum, um espaço suspenso para uma outra lógica da
utilidade.
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• Figura 4 - Foto de Bruce Albert dos Yanomami na Perimetral Norte
E corpos.
[...] Virei amante de Yamami, ao ar livre. Dei dinheiro para Yamami, joias,
espelhos, colares. Fiz Yamami vestir calcinhas coloridas. Minha menina.[...]
Yamami não tem nada a ver com o Brasil. O Brasil é São Paulo, uma cidade
longe, parecida com esse continente de gelo. (FREIRE, 2005, p. 106-109)
2
As abordagens ácidas e verossímeis feitas ao Brasil são cenas que convivem
0 com o imaginário sobre a nação (não somente com a nossa, mas, especificamente
com a nossa neste caso): a prostituição infantil, comer a carne de uma espécie em
1 extinção,a venda de um tucano. Sobre o mundo das possibilidades infinitas que
recaem sobre os nativos no pós-contato, uma nota no artigo de Stella Senra sobre
as fotos de Andujar chama a atenção pela semelhança narrada pelo estrangeiro no
8 conto de Marcelino Freire:
Um anúncio publicado na seção de animais dos classificados da Folha de
Boa Vista diz respeito ao destino cruel que o mundo branco pode dar a es-
sas crianças. “Vendem-se filhotes de Yanomami com um ano e seis meses.
R$1.000,00” [...], está no jornal. O responsável pelo anúncio, Paulo César
[Cavalcanti Lima], acusado de ato discriminatório contra a população indí-
gena e de incitação à segregação racial, foi condenado a dois anos de prisão,
substituídos por sanções restritivas de direito.Folha de Boa Vista: Venda de
Relatada pelo réu como uma “mera brincadeira, algo que está arraigado
na cultura brasileira”,13 (palavras dele e de onde se entende que nenhum Yanomami
estaria à venda, de fato. Será?) visualizamos como esse tipo de imaginário nacional
predomina. Estaríamos impregnados daquilo que Benjamin Moser chamou de
autoimperialismo, em seu livro homônimo? O Brasil não se cansa de se autocolonizar
J e, portanto, a subtração do índio persiste como efeito de dominação? Em Meu avô
Apolinário, o escritor Daniel Munduruku sintomatiza os efeitos dessa diminuição,
A em formato memorialístico, fabricando uma espécie de romance de formação: como
me tornei índio em um país que não se cansa de odiá-los?
L Nós sempre moramos na periferia de Belém. Nossa maloca não era nossa e
muitas vezes tivemos que mudar de lugar, de casa e de bairro.[...] Fui ven-
dedor de doces, paçocas, sacos de feira, amendoim [...]. Fazia tudo isso com
L alegria. [...] Só não gostava de uma coisa: que me chamassem de índio. Não.
Tudo, menos isso! Para meu desespero, nasci com cara de índio, cabelo de
índio [...], tamanho de índio. [...] E por que eu não gostava que me chamas-
A sem de índio? Por causa das ideias e imagens que essa palavra trazia. Cha-
mar alguém de índio era classificá-lo como atrasado, selvagem, preguiçoso.
(MUNDURUKU, 2001, p. 10)
No norte do Japão tem uma lha que se chama Hokaido, lá vive o povo Ainu,
tem um porto nessa ilha que se chama Nibutani, é uma palavra ainda que
dá nome para esse lugar, assim como aquela montanha bonita lá em Tó-
quio, no Japão, o monte Fuji, também reporta a uma história muito antiga
1 “[El indio] como personaje y problema, es una “constante”. Solo que, agotado el molde viejo, esa
constante ha necesitado otro odre [...]” (LOVELUCK, 1963, p. 156).
en el discretamente célebre2 ciclo novelístico La guerra silenciosa, haría de él una
suerte de heresiarca problemático con respecto a los límites entre lo indigenista y lo
neoindigenista, lo testimonial y lo pragmático, y –claro está– lo mítico y lo histórico.
Entre las cuatro características del neoindigenismo señaladas por
Escajadillo en su tesis (ESCAJADILLO, 1971, p. 19), dos resultaban especialmente
problemáticas para la crítica hasta el punto de concentrar en ellas la posible
transformación o cancelación del indigenismo: la ampliación del espacio de la
J representación3 y la complejización del arsenal técnico narrativo. De ambas podemos
extraer respectivamente dos elementos reconocidos y estudiados en la pentalogía
A de Scorza: la progresiva inscripción en la Historia y el empleo de la ironía y la
parodia. Nuestra propuesta consiste en trabajar conjuntamente ambos elementos
L pero a un nivel más intertextual, a nivel de género literario. Consideramos que
gran parte del carácter heterogéneo del ciclo La guerra silenciosa puede explicarse
mediante la existencia de un acercamiento paródico al género épico, género del
L que Scorza toma prestadas modalidades de tiempo, espacio y personajes que
posteriormente pasará a invertir con propósitos pragmáticos. Cabe resaltar que si
A bien ya ha habido un número considerable de asedios a la ironía y la parodia en la
narrativa scorziana casi todos están restringidos a Redoble por Rancas, además de
orientar la aproximación paródica a su vinculación con el indigenismo –resultando
en su filiación genética con el neoindigenismo– y no con el género épico. En forma
paralela, también se ha estudiado la progresiva historización de la pentalogía, mas
• no como manifestación paródica.
73 Parodia e ironía: una aproximación teórica
10 Si bien el párrafo completo está orientado a la gestación histórica de la novela, consideramos
pertinente la afirmación de Bajtín para nuestros propósitos.
Tiempo
Se podría decir que el tiempo de la narrativa de Scorza es completamente
ajeno al de la historia. A primera vista resulta así. Anteriormente hicimos mención
de la tendencia a asociar el pasado mítico con un estado de armonía primigenia y
lo “esencialmente bueno”; es decir, en una relación de necesidad y correspondencia
con sus protagonistas. Cabe preguntarnos entonces: ¿presenta un cariz uniforme
este supuesto tiemposubordinador? ¿Quiénes son los verdaderos agentes y
J beneficiarios de tal “subordinación”: los comuneros o las autoridades?
El ejercicio paródico identificado en primer lugar en este tropo tiene como
A objeto la finalidad pragmática tratada anteriormente: la inscripción en la Historia
de la lucha de los pobladores de Yanacocha y el resto de comunidades campesinas,
L superando y problematizando los límites de la memoria colectiva. Esto mediante la
pretensión de atemporalidad –que remite claramente al género épico– que alcanza
L su clímax simbólico en El jinete insomne; y su posterior desestabilización en La
tumba del relámpago11.
Respecto a la primera alusión intertextual al género épico o repetición,
A esta la encontramos en la pretensión de atemporalidad mítica mencionada antes.
No obstante, cabe especificar a qué nos referimos exactamente por atemporalidad.
Integrada dentro de la noción de lo mítico como lo esencialmente bueno en su
estado primigenio, la atemporalidad a la que se alude –por el momento– es aquella
sistematización cíclica atesorada en la memoria colectiva de comunidades como
•
las de Pasco, antes de los acontecimientos de Redoble por Rancas. Es parte del
77 patrimonio colectivo de Yanahuanca y Yanacocha como lo fue de las antiguas
• sociedades inmortalizadas en los cantares de gesta; es el tiempo característico de
las “civilizaciones integradas” en términos de Lukács. Tiempo metahistórico, pero
aun así tiempo (BARABAS, 2002, p. 68):
La temporalidad del mito, como Lévi-Strauss ha destacado, resulta de la
conjugación del pasado, el presente y el futuro dentro de una totalidad sim-
bólica que unifica la diacronía y la sincronía. [...] Aunque cíclico, el tiempo
2 mítico no supone una repetición mecánica y conservadora de lo dado por el
mito, sino una vivencia de lo sagrado en tiempo presente, que constituye la
0 fuerza del hombre para renovarse y conectarse otra vez con la gesta inicial.
(BARABAS, 2002, p. 68, énfasis míos)
12 En el caso de La tumba del relámpago la investidura sobrenatural recaería sobre doña Añada
(profecía), y por extensión sobre sus ponchos tejidos.
sobrenatural en forma de poderes contienen un valor axiológico altamente
idealizado. El personaje épico no solo muestra un carácter ejemplar demostrado
en actos heroicos, sino que cumplen una función metafórica y metonímica (en su
identificación con los intereses de la comunidad más allá del plano político, en el
caso scorziano). Scorza hace explícita tal intención y lo problemático de adaptarla
a individuos reales en la entrevista con Escajadillo:
Yo quería presentar caracteres ejemplares. A mí me parece muy importante
J que un pueblo combata. Y de manera deliberada escogí algunos hombres
que estaban vivos y a otros que estaban muertos. Y corrí un riesgo cuando
tomé a Héctor Chacón como personaje, o a Genaro Ledesma, que está vivo.
A Para equilibrar o perfeccionar esta imagen escogí también a hombres muer-
tos, cuya imagen era inmutable. Garabombo, Raymundo Herrera y Agapito
L Robles, que es un hombre tan ejemplar. Yo he revisado el Libro de Actas
de la Comunidad de Yanacocha, y en diez años de pedidos Agapito Robles
jamás ha hecho un pedido personal. Es una cosa impresionante [...] Todo es
L real, simplemente que Raymundo Herrera realiza en la realidad un viaje de
veintiocho días. Sale tosiendo de Yanacocha, llega y muere” (ESCAJADILLO,
1991, p. 105)
A
Obedeciendo a esa finalidad metafórica, los personajes de Scorza están
configurados en función de su oposición al gamonalismo representado en el doctor
Montenegro; al ser sus conflictos los de la comunidad, su vida privada se torna casi
imperceptible (OSORIO, 2016).
• Pasando al énfasis en la diferencia, nos damos cuenta de un fracaso
79 perpetuo de los personajes que genera su inscripción ya no solo en el plano de la
idealización, sino también como parte de una problemática que supera los confines
•
del uniforme conflicto comunitario para adentrarse a un espacio de mayores
contradicciones13, donde las condiciones objetivas no cuadran con las subjetivas
(en palabras de Ledesma). La función metafórica inicial del personaje pasa a ser
inscrita dentro de una gran “metáfora de la impotencia” (MORAÑA, 1983, p. 182).
• SCORZA, M. La tumba del relámpago. España: Plaza & Janés Editores, 1988.
SCORZA, M. Redoble por Rancas. Perú: Ediciones PEISA, 2002.
83
•
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0
1
8
J
A
L NATUREZA E ESPAÇO HISTÓRICO NA TRILOGIA INDIANISTA DE
JOSÉ DE ALENCAR
L
Ana Maria Amorim Correia (UFF)
A RESUMO: Dentre as obras destacadas do escritor José de Alencar, estão aquelas que
compõem a chamada trilogia indianista: O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara
(1874). A ideia de contar as histórias e lendas fundacionais do povo brasileiro, filho
do solo americano, traz aspectos de nacionalidade e, em consequência, de afirmação
de independência a Portugal, que aparecem no tema e na forma. Neste artigo,
• pretende-se mostrar esta trilogia como um processo de “caminhos e fronteiras”
(HOLANDA, 2017), resultando em um movimento. A natureza, assim, é formada
84
em uma ideia de spatialhistory (CARTER apud BEWELL, 2017), com os espaços
• físicos compreendidos não como preexistentes, mas trazidos, através do ato da
escrita, a uma declaração cultural presentificada. As paisagens se modificam na
forma apresentada em cada obra, mas trazem elementos uníssonos do projeto do
escritor, que não coloca em ambivalência este pendor romântico com uma ideia de
modernização.
2 Palavras-chave: José de Alencar. Natureza. Paisagem. Patrimônio. Romantismo.
0 Falar que a escrita de José de Alencar - e aqui de forma ampla, sem
restringir às suas obras chamadas de indianistas - possui um descritivismo da
natureza, com afinco pelo detalhe da paisagem natural em suas narrativas, é
1
possivelmente a mais decorada premissa literária do nosso aprendizado escolar.
Pensadas dentro da estética do Romantismo, sendo José de Alencar o mais notável
8 nome da produção assim catalogada no Brasil, as obras indianistas, que mais
possuem tal pendor, têm esta característica pinçada para demonstração de uma
leitura de tais obras através de lentes de fontes e influências, nas perspectivas dos
estudos das literaturas nacionais. Assim, não raro é pensar os textos de O Guarani
(1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1974) pelo viés da imitação. Isto não é um dado
posterior à obra. O próprio autor, ciente, escreve sobre as chamadas referências.
Disse alguém, e repete-se por aí de outiva, que O Guarani é um romance
ao gosto de Cooper. Se assim fosse, haveria coincidência, e nunca imitação;
mas não é. Meus escritos se parecem tanto com os do ilustre romancista
americano, como as várzeas do Ceará com as margens do Delaware.
A impressão profunda que em mim deixou Cooper foi, já lhe disse, como
poeta do mar.
[...]
O modelo para mim ainda hoje é Chateaubriand; mas o mestre que eu tive,
foi esta esplêndida natureza que me envolve, e particularmente a magnifi-
cência dos desertos que eu perlustrei ao entrar na adolescência, e foram o
pórtico majestoso pôr onde minha alma penetrou no passado de sua pá-
J tria. (ALENCAR, 1998, p.45-6, negrito nosso)
Neste jogo deimitação, para usar o termo do autor nesta mesma obra,
A podemos lançar mão de um entendimento do Romantismo brasileiro para além
do comparativismo que condena a literatura das antigas colônias a uma relação
L deficitária com as metrópoles. Aqui, nos interessa mais o espírito flexível das obras
indianistas - por assim dizer, a emulação, a criação que o gesto de imitação carrega
L e que, não ironicamente, os próprios europeus usufruíam. Na ideia aqui proposta,
não nos cabe pensar o que tais elementos da escrita indianista invocam de outros
escritores, o que o Romantismo brasileiro ramificado Romantismo francês, alemão,
A inglês ou norte-americano, troncos tratados como sólidos e originais (especificamente
os três primeiros). Em outras palavras: nos interessa ler a natureza das obras
indianistas de José de Alencar pelas lentes nacionais - já que a própria ideia de
nação estava em voga e embandeirada na proposta do autor, percebendo aqui que,
sem negar as semelhanças entre os movimentos, nos interessa as características
•
próprias que esta natureza pode ter ou pode ser performada. Assim, vamos perceber
85 a natureza das obras indianistas através de uma abordagem de espacialização
• do país, adentrando pelos “sertões” e usando da projeção de uma passado para
imprimir história a estes espaços agora explorados na ficção de tons fundacionais.
Por fim, diferentemente de um ideia de reclusão do homem no espaço bucólico,
perceber como este movimento reflete uma veia modernizante.
Tempo e espaço: movimento e fronteira
2 O aspecto do tempo é claro: O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara
(1874) avançam cronologicamente no tempo de escrita, recuam no tempo da
0 narrativa. Alencar volta, cada vez mais, para o passado. Em paralelo, o aspecto do
espaço também se desloca: do entorno do Rio de Janeiro, passando pelo Ceará e ao
1 interior das matas brasileiras. O movimento resultante é este: para antes, para o
interior. Assim, a escrita mapeia espaços do território, o veste de nação e imprime
ideia de história aos relatos.
8
Quando José de Alencar tece críticas à Confederação dos Tamoios,
de Gonçalves de Magalhães, podemos pinçar em seus argumentos tanto o
adentramento espacial da paisagem brasileira como o contundente tom de defesa
de uma descrição da natureza brasileira de forma mais condizente com a sua
magnificência. O poema é criticado por Alencar em oito cartas publicadas no Diário
do Rio de Janeiro, assinadas sob o pseudônimo de Ig, e dentre as críticas está o fato
do poema, em sua opinião, não lograr com o seu objetivo épico, não servindo assim
ao seu ideal fim de consagrar a nação através de uma epopeia brasileira, liberta
das marcas de dependência a Portugal. Entre as críticas, Alencar pondera que a
forma de apresentar o país não condiz com a exuberância esperada. Na primeira
carta, por exemplo, assim demarca Alencar a sua crítica:
Um poema épico, como eu o compreendo, e como tenho visto realizado, deve
abrir-se por um quadro majestoso, por uma cena digna do elevado assunto
que se vai tratar.
Não se entra em um palácio real por uma portinha travessa, mas por um
pórtico grandioso, por um peristilo magnífico, onde a arte delineou algumas
J dessas belas imagens que infundem admiração. [...]
Devemos confessar que a causa do poema, o princípio da ação não está de
A modo algum nas regras da epopéia. Derivar de um fato acidental e sem im-
portância a luta de duas raças, a extinção de um povo e a conquista de um
país, é impróprio da grandeza do assunto. (ALENCAR in BUENO; ERMAKO-
L FF, 2005, p. 23, itálicos do autor, negrito nosso)
L É interessante observar o movimento de entrada para a cena - além do
espelhamento da natureza com a arquitetura já esboçada nas críticas anteriores
às obras indianistas. Este apontamento crítico de Alencar será incorporado em O
A Guarani, que começa com o capítulo intitulado “Cenário” em que percebemos o
esforço de Alencar em pintar o tal quadro de natureza:
De um dos cabeços da Serra dos Órgãos desliza um fio de água que se dirige
para o norte, e engrossado com os mananciais que recebe no seu curso de
dez léguas, torna-se rio caudal.
•
É o Paquequer: saltando de cascata em cascata, enroscando-se como uma
86 serpente, vai depois se espreguiçar na várzea e embeber no Paraíba, que rola
majestosamente em seu vasto leito. (ALENCAR, 2014, p.51)
•
Como continua o autor, “tudo era grande e pomposo no cenário que a
natureza, sublime artista, tinha decorado para os dramas majestosos dos elementos,
em que o homem é apenas um simples comparsa” (ALENCAR, 2014, p.52). O rio
Paquequer carrega o ambiente de interior como selvagem e recluso, de “beleza
2 selvática”, entrando em descrições de calma e serenidade ao encontro da costa.
Nada de especial, ao se considerar o curso de um rio; mas em termos de narrativa,
0 uma demarcação espacial da altivez do interior, ainda “filho indômito desta pátria
da liberdade”. Distinção mar e terra que continua em Iracema, em contraponto dos
“verdes mares bravios” com o “além, muito além daquela serra”.
1
Em Ubirajara, o retorno a um tempo pré-Cabral torna-se ainda mais
interessante ao nos atentarmos para a forma do romance-lenda. Como apontado
8 por João Cezar de Castro Rocha, estamos diante de uma narrativa que já se
diferencia das demais, inclusive se distancia do que o próprio José de Alencar
criticara na Confederação dos Tamoios. Em Ubirajara, o corte é dado e a ação inicia
a obra. Mas não é somente este o aspecto de diferença: nesta obra, como dito, o
tempo é marcado por ser anterior ao dos portugueses chegarem ao país e, assim,
a estrutura da narrativa, apoiada na descrição da natureza aqui usada, vai usar
de aspectos cíclicos, como um mito campbeliano (CASTRO ROCHA, 2015, p.164).
Na tentativa de organizar a base estruturante das narrativas de mitos, Campbell
percebe assim o aspecto cíclico que seria o pilar comum de todas:
Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios
sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva;
o herói retorna de sua misteriosa aventura com o poder se trazer benefícios
aos seus semelhantes (CAMPBELL, 2007, p.36).
A sua frase corre como o regato que serpeja, ou salta como o rio que se des-
penha da cascata; às vezes se eleva ao cimo da montanha, outras desce e
2 rasteja como o inseto, sutil, delicada e mimosa (ALENCAR, 2014, p.220-1,
negrito nosso)
Estes fatos, porém, servem de despertar ainda mais a nossa atenção para
a colonização, para a navegação de grandes rios, principalmente do Ama-
zonas, cujas várzeas imensas estão aí incultas, e encerram nas suas matas
virgens um manancial de riqueza, que convém quanto antes ser explorado.
(ALENCAR, 2003, p. 74-5)
Por trás do uso dos penteados afros como já falamos anteriormente existe
elementos simbólicos de um povo, é necessário lembrar do passado histórico e as
ações do grupo branco sob os negros. Temos que lembrar ao falar de apropriação
sobre o imperialismo, colonialismos e genocídio, o povo negro desde sempre teve
sua cultura reprimida.
J Nos últimos anos os penteados afros vem ganhando visibilidade, mas
isso não significa que traz visibilidade para o negro, pelo contrário dá uma falsa
A ideia de aceitação e quando um negro usa esses penteados não recebem a mesma
apreciação que uma pessoa branca usa.
L Logo, não é bem visto em suas mãos tanto quanto é bem visto em outras
quando essas são brancas. Sendo assim, uma forma de manter negros em
seu lugar lhes dizendo quando eles podem ou não podem ser vistos, ao redu-
L zir os elementos culturais e as culturas não hegemônicas a uma visão dis-
torcida, vista de fora para dentro. Ao falar de apropriação cultural, estamos
A questionando um ramo dessa «árvore do racismo estrutural», que atinge
diversos povos não brancos, criticados, perseguidos e massacrados por sua
identidade não branca. (RIBEIRO, 2017).
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A
L O TEATRO COMO MEDIAÇÃO PEDAGÓGICA PARA O ENSINO DA
LÍNGUA PORTUGUESA: ESTIMULO A LEITURA, INTERPRETAÇÃO
L E PRODUÇÃO DE TEXTO
A Ane Caroline R. dos Santos Fonseca (UNIR)
RESUMO:O presente artigo visa compreender como o teatro pode influenciar
na aprendizagem e compreensão da língua portuguesa (leitura, interpretação e
produção de texto) de alunos do 6º ano do ensino fundamental, da Escola Durvalina
Estilbem de Oliveira, como parte do Subprojeto/PIBID “Alfabetização Científica
• Interdisciplinar de Leitura”. Para isso, elencamos como objetivo: Utilizar o teatro
106 visando contribuir de forma prática e efetiva no aprendizado da língua portuguesa.
Como base metodológica, utilizamos a pesquisa bibliográfica e a pesquisa-ação.
• Utilizamos como base teórica, Silva (2011), Cunha (2005) e Silva e Leão (2015). As
atividades realizadas ampliaram as relações sociais além de proporcionar aos alunos:
a) Aprendizado de forma dinâmica e prática sobre as normas da língua portuguesa
e b) Melhora na produção e interpretação textual. Utilizando o teatro como processo
metodológico a sala de aula se torna um espaço de interação comunicativa e troca
2 de experiências entre os envolvidos no processo ensino-aprendizagem.
Palavras-chave: Língua Portuguesa. Teatro. Leitura. Produção Textual. Ensino.
0
Introdução
1 Este artigo apresenta os resultados obtidos na implementação da
produção didático-pedagógica, com esse intuito, desenvolveu-se um projeto que
8 buscou influenciar alunos a verem a língua portuguesa como uma disciplina
necessária e importante. Para que isso ocorresse, buscou-se desenvolver um teatro
instigante, lançando-se mão de recursos musicais entre outros meios pedagógicos,
para estimular os alunos a participarem da peça teatral, buscando ensiná-los sobre
a importância da língua portuguesa da forma mais intrigante possível.
A meta principal do projeto foi levar o aluno a adquirir uma experiência
mais interativa possível com a língua portuguesa e, com isso, ampliar suas
percepções sobre quais são as regras e normas de sua língua.
O projeto desenvolvido foi direcionado aos alunos do 6º ano do ensino
fundamental da Escola EstadualDurvalina Estilbem de Oliveira, da cidade de
Guajará-Mirim(RO), como parte integrante das atividades do Subprojeto/PIBID
“Alfabetização Científica Interdisciplinar de Leitura”, atividade essa idealizada pelos
bolsistas do projeto, pertencentes ao curso de letras da Fundação Universidade
Federal de Rondônia UNIR, e coordenado pelos professores supervisores Janine
Felix da Silva e Jacinto Pinto Leão.
Para a realização da atividade relatada neste artigo tivemos como objetivo
geral: Utilizar o teatro visando contribuir de forma prática e efetiva no aprendizado
J da língua portuguesa (leitura, interpretação e produção de texto) e como objetivos
específicos: II) elaborar e executar um teatro motivacional, relacionado ao cotidiano
A das crianças com a prática de leitura e escrita; III) promover a interação dos alunos
com a língua portuguesa através de atividades lúdicas; IV) ler textos de diferentes
L tipologias, para a elaboração de diversos resumos, sínteses e textos dissertativos;
v) desenvolver habilidades indispensáveis de leitura, interpretação e oralidade; VI)
elaborar peças que facilitem a aprendizagem das normas da língua materna.
L
Para o desenvolvimento da proposta utilizamos como metodologia a
pesquisa bibliográfica e pesquisa-ação. Para a elaboração dessa pesquisa fizemos
A uso do recurso lúdico teatro como mediação pedagógica e foram desenvolvidas em
três etapas: a) na primeira etapa foram realizadas leituras de teóricos que refletem
sobre o tema da pesquisa, a concepção de ensino de língua, leitura e produção
textual, bem como a utilização do teatro como mediação pedagógica; b) na segunda
etapa, foram realizados encontros para organização e criação da estrutura do
• teatro, o qual foi elaborado baseado no conto intitulado “A branca de fome e os
107 sete anões”, de Mauricio de Souza, o qual traz uma linguagem bastante moderna,
entretanto estruturada dentro das normas da língua portuguesa padrão, estando
•
presentes contextos gramaticais e semânticos. Portanto, a temática central se deu
ao em torno da necessidade da utilização da língua padrão.
Durante os ensaios trabalhava-se a leitura e interpretação do conto,
assim como a escrita de resumos dos acontecimentos da história; c) na terceira
2 etapa desenvolvemos o teatro como parte do projeto escolar “Todo dia e dia de ler”.
O presente trabalho se fundamentou nas observações efetuadas e nos resultados
obtidos com o projeto realizado, assim como na fundamentação teórica que serviu
0 de apoio para a realização da atividade.
Ensino de Língua Portuguesa e o teatro
1
Desde 1980 discute-se uma “reformulação” no ensino de língua
portuguesa, mas, apesar dessa discussão, observa-se uma grande dificuldade dos
8 alunos que estão no ensino fundamental e médio em produzir e interpretar textos.
Muita escola tem ensinado aos seus alunos a utilizarem a leitura e a escrita de
forma mecânica e sistemática, e estes apresentam apenas resultados superficiais e
insuficientes para sua efetiva aprendizagem.
Sendo de suma importância que o professor em sala de aula mostre aos
alunos que para elaborar um texto não é preciso apenas colocar palavras no papel,
mas, sim, organizá-las de uma maneira que o seu interlocutor possa compreendê-
lo. (PARANÁ, 2008, p. 68). Segundo Pécora (1983, p.68, citado por PARANÁ, 2008,
p.69), o aluno, muitas vezes, por não saber para que ou para quem escrever, acaba
utilizando a chamada “estratégia de preenchimento”, preenche as linhas, mas não
produz um texto. (PARANÁ, 2008, p. 68).
A língua portuguesa é a nossa ferramenta de comunicação e por meio
dela podemos expressar nossas emoções, pensamentos, certezas e incertezas,
frustrações e vitórias. É através da língua falada ou escrita que podemos nos
comunicar com pessoas de diferentes lugares do mundo, conhecer e valorizar
culturas.
J Para isso, é mister que o ensino de língua materna se desvincule de
práticas antiquadas de mera classificação gramatical, transformando-se em algo
A realmente útil para a vida do aluno, conforme preconizam os PCN:
Língua é um sistema de signos específico, histórico e social, que possibilita
L a homens e mulheres significar o mundo e a sociedade.
É importante deixar bem claro que não está sendo proposto um vale-tudo
para o ensino da língua, mas uma nova perspectiva de análise da organização,
sistematização e funcionamento da mesma, a fim de possibilitar que o aluno adquira
2 conhecimento dos elementos gramaticais, lexicais, semânticos e morfossintáticos
da língua, de uma forma diferenciada.
0 Entendemos que o teatro é uma forma lúdica em dar um recado educativo,
sério e socializador, sendo um recurso fundamental no incentivo ao estudo da
1 língua. Como o projeto desenvolvido faz parte do subprojeto PIBID/UNIR/GM, não
poderíamos concluir esse artigo sem agradecer a CAPES pelo financiamento do
subprojeto em questão, sem o qual não teríamos a possibilidade de testar as teorias
8 aprendidas no âmbito universitário.
Referências
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114
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2
0
1
8
J
A
L EL BRAMIDO ANIMAL DE LA POESÍA TESTIMONIAL EN
COLOMBIA, UNA TRADICIÓN AL MARGEN
L
Angélica Patricia Hoyos Guzmán (UNIVERSIDAD DEL MAGDALENA)
A RESUMEN: Esta propuesta pone en discusión la ubicación dentro del campo
literario de una tradición al margen la de la poesía testimonial. Interpreto un
corpus de poesía contemporánea escrita en Colombia que durante finales del siglo
XX y lo que va del XXI manifiestan una estética de la sobrevivencia, desde la cual
se piensan las huellas de las violencias vividas en el país. La poesía testimonial
• moviliza políticas afectivas que interpelan a los lectores desde la ontología de la
lengua resto o lengua del testimonio. Esta tradición es híbrida, entre la lírica y la
115
crónica y se ubica dentro de las escrituras posautónomas, respondiendo también
• a la sensibilidad que amplía la imaginación pública sobre los sujetos marcados por
el trauma de la guerra. Con todo esto la poesía testimonial transgrede no solo lo
canónico literario sino los discursos hegemónicos de la memoria de la violencia en
Colombia.
Palabras clave: Poesía testimonial. Poesía colombiana. Sobrevivencia
2 La poesía testimonial propone abiertamente una manera de escribir el
país desde lo político, ético y estético respondiendo a los temas del desplazamiento y
0 la migración interna a causa de la violencia, la desaparición forzada, la marginación
de los otros y una escritura colindante en la subjetividad de quienes sobreviven a
1 esta realidad y del poeta testigo como sujetos enunciadores de discurso afectivo
frente a la violencia.
8 En el análisis propuesto desde la crítica de la memoria y el giro afectivo,
encuentro que las comunalidades trazadas por la poesía testimonial dibujan en
el país un mapa de intensidades, donde la animalidad es la salida militante que
propone la poesía ante lo que resta de la guerra, la única forma de restituir lo
perdido por la violencia, tanto las vidas, como los derechos, es el ruido como
agente del resto, como configuración de los cuerpos ausentes, como lenguaje del
testimonio, la única posibilidad de dignificar y sobrevivir afectivamente al trauma.
Esta propuesta literaria altera la sensibilidad oficial de la poesía y altera también las
posibilidades de representación del dolor, al mismo tiempo que crea lazos comunes
frente a la falta, aliados a través del amor, la amistad, la esperanza, el miedo, la
vergüenza y la culpa.
El animal poético emerge en los textos testimoniales para sobrevivir ante
la destrucción, el poeta testigo se vale del lenguaje fallido, del bramido, para crear
y a partir de allí decir y poner a decir a las víctimas que no son más objeto de
memoria, sino ya sujetos de discurso. Las fronteras entre lo narrativo y lo lírico
también recrean este devenir sobreviviente en la escritura, son coherentes con la
J misma articulación de lo ruidoso posible únicamente a través del recuerdo que
la poesía recrea hacia el presente, como fuerza vital y movediza ante el olvido por
A acumulación.
Poesía testimonial una tradición al margen: tres momentos de la poesía
L Con la poesía testimonial como forma estética, cuyo brote tiene asideros
en los periodos seculares de la violencia, se abre el camino para lo que actualmente
L puede considerarse como un poeta al margen tanto de la institución literaria como
de la militancia partidista. La poesía es militante de lo popular que se desdibuja
desde el resto religioso, político, histórico, colectivo e individual de la experiencia
A
del recuerdo. En vez de desdeñar estas formas, es necesario nombrarlas para
reconocer lo que en ellas ha sido la intención de afectar al lector para intervenir de
alguna manera en la realidad social, para hacer justicia desde la poesía y a través
de la imaginación pública.
• Bien entrado el siglo XX, en las dos últimas décadas se vive también el
clímax de lo que lo que Daniel Pécaut (2001) llama la violencia generalizada, allí
116
también aparecen los poetas para pensar la realidad social, la seguidilla de autores
• que militan con la palabra con influencias de la poesía comprometida de Mario
Rivero, de Gaitán Durán y de otros siempre al margen de la poesía oficial. Estos
poetas surcan nuevas influencias líricas y a través de festivales poéticos, derivan
en la proliferación no deliberada, de constelaciones de poetas que indistintamente
de su proceso creativo individual están unidos por el lazo de lo común de la vivencia
2 de la guerra, de una lengua de la sobrevivencia.
No hizo falta en Colombia el expresionismo como emergente desde el
0 romanticismo, como en Europa porque ya la poesía había dado el testimonio, ya se
había hablado de los primeros poetas testimoniales, ya las violencias hacían urgente
1 el vehículo afectivo de la poesía para expresar sus políticas afectivas. Esto es lo que
identifico como una estética de la sobrevivencia, cuyas formas se dan desde el resto
y lo común de la herida, desde la presencia de guerra en las poblaciones rurales,
8 desde la presencia del estado a través del miedo instaurado en ellas, como entiende
la marginación la antropóloga Margarita Serje (2012).
Agrupo entonces, a través de la estructura sentimental de la época
(Williams, 1980), la sensibilidad que proponen los poetas testigos, durante el
llamado período más fuerte de la violencia en Colombia,1 no quiere decir que aquí
estén todos, ni que sean los únicos, sino que son los que he encontrado y que
1 Según el Informe Basta Ya, del Centro Nacional de Memoria Histórica, se entiende que esta época
inicialmente va desde 1982-1996, se distingue por la proyección política, expansión territorial y
crecimiento militar de las guerrillas, el surgimiento de los grupos paramilitares, la crisis y el colapso
conforman este corpus (cuerpo-palabra herida), el cual he estado investigando en
los últimos años y en donde he identificado una estética a partir de la manifestación
poética alrededor de la violencia como forma de vida y de sobrevida, como formas
de dignidad y de justicia frente al trauma vivido por las poblaciones al margen en
el país.
Me dedico al corpus de los poetas testigo, entendiendo que no están
distantes en sus intencionalidadades poéticas y políticas, entendiendo política desde
J Ranciére (2005) como todo aquello que desordena, es decir como esa colindancia
entre la lírica y la crónica, en la lengua del resto que es también una lengua literaria
A y que implica un creador al margen. Por ello, los primeros poetas testigo los agrupo
a finales del siglo XX, durante la época de la guerra contra el narcotráfico, las
L masacres paramilitares y los enfrentamientos entre estos y las guerrillas, entre los
ejércitos. Los llamo también poetas asesinados, o suicidas porque se atrevieron
a ejercer el derecho a decir a pesar de la amenaza que asumieron por su virtual
L peligrosidad. Es el caso de Julio Daniel Chaparro, Tirso Vélez, Edwin López, Gersón
Gallardo.
A Otras formas de sobrevivencia las exponen familiares y amigos de las
víctimas de asesinatos, desapariciones forzadas y desplazamiento. Poetas dolientes
que hacen de la poesía un vehículo para el duelo colectivo, a partir del afecto
íntimo de la pérdida registran la intensidad de la violencia en el colectivo de la
nación colombiana, nombran otras voces, las incorporan y desapropian (Rivera
• Garza, 2015) su dolor para entregarlo a un registro común. En este segundo grupo
117 podemos ubicar el trabajo de: “Conversación a Oscuras” (Benavides, 2014); Rostro
que no se encuentra (Gómez Mantilla, 2009); “Lección de Olvido” (Gómez Mantilla,
•
2007); “Palabras como cuerpos. Antología de poemas en memoria de Edwin López,
Gerson Gallardo y Tirso Vélez” (Gómez Mantilla, 2013); Regresemos a que nos
maten amor (Ariza Navarro, 2008); “Amazonía y otros poemas” (Galeano, 2011).
También existe una política de sobrevivencia en aquellos poetas testigo
2 que se conduelen, asumen el dolor de los otros y con ello crean un registro poético
testimonial desde su propia voz que es otros en nosotros, desde la empatía como
política y creación verbal (Bajtín, 2000). Incorporan sus afecciones, las sienten y
0 buscan hacer sentir a los lectores con ellas. En el tercer grupo entonces puedo
ubicar a los siguientes trabajos: El sol y la carne (Charry Noriega, 2015); Asma
1 (Delgado Fabio, 2015)(2015); Seré tu voz (Romero, 2015); Al otro lado de la guerra
(Acosta, 2010),Tempus (Vargas Carreño, 2014); Soportar la joroba (Valcke, 2011)
8 Péndulos (Valbuena, 2010); Memorial del árbol (Gómez, 2013);El falso llanto del
granizo (Pardo, 2014); Poemas de la guerra (Torres, 2000); Música lenta (Romero
Guzmán, 2015); Puerto calcinado (Cote, 2003), Circulando (Andrade, 2009).
La edad de los poetas se presenta como una sensibilidad que posibilita
parcial del Estado, la irrupción y propagación del narcotráfico, el auge y declive de la Guerra Fría
junto con el posicionamiento del narcotráfico en la agenda global, la nueva Constitución Política de
1991, y los procesos de paz y las reformas democráticas con resultados parciales y ambiguos. El
tercer periodo (1996-2005) marca el umbral de recrudecimiento del conflicto armado. Por esto se
toman para el estudio poemas y poemarios publicados entre 1980 y 2015, atendiendo además al
período de postconflicto.
los afectos poetizados con el testimonio, distinta a la llamada institucionalmente
como memoria histórica2 del conflicto. A contrapelo del discurso banal del archivo
acumulativo, la poesía se obstina en destacar las épicas de la sobrevivencia. Crea
un imaginario de lo irrepresentable del dolor, con la lengua resto, la lengua del
testimonio (Agamben 2000). Además, hay un cuestionamiento con la palabra en la
primera forma de sobrevivir en y con la poesía, una resistencia a pesar de la muerte,
una intermitencia, tal como define la sobrevivencia (Didi-Huberman, 2012).
J La mirada del poeta testigo y la imaginación pública
Lo que resuelve la poesía testimonial no es solo la evidencia del resto como
A militancia posible, sino también el duelo colectivo, el pueblo que falta (Deleuze
& Guattari, 1996), con ello una reterritorialidad de las víctimas, de los despojos
L de la guerra a la población. Se entiende pueblo desde la noción de “sujetos de
proceso político” que enmarca Alain Badiou (2014) en el sentido de los pueblos de
L excepción. El pueblo existe como sujeto de justicia, indistintamente del despojo
de los derechos que denuncia la poesía, de la animalidad y la condición de resto
que restituye y vindica este despojo, porque a través de la imaginación se ejercen
A políticas de justicia. Por ello la sobrevivencia es militancia desde la poesía, en este
caso. La mirada del poeta testigo, la exhibición de las imágenes que se conduelen
crean un imaginario público que se enfrenta a las cifras, resiste al archivo pues no
busca acumular sino traer siempre al presente el dolor de los otros.
Interpretar el país desde esta imaginación creada, siempre en presente,
•
permite ejercer la política de la empatía con el dolor y tal vez alguna posibilidad de no
118 repetición y restitución simbólica de lo acontecido, tal vez no sólo acostumbrarnos
• a la guerra, sino que con este lenguaje, hay una decisión política, un gesto que
es ejercido por los poetas testigos, que es el de volverse a mirar los restos de la
violencia, hablar de ello, atenderlo, escucharlo y reconocer los afectos y sus políticas
como alianza para superar las violencias.
En este momento, esta escucha activa, la ejerce la poesía desde una política
2 del amor que hace posible la escritura para la justicia, la creación desapropiada
como ideal de lo real, como deseo de intervención y transformación posible de
0 la realidad. Las relaciones entre justicia y literatura se dan como respuesta a la
pregunta por la sensibilidad que emerge como sobrevivencia, como resistencia
frente a la destrucción. La edad de los poetas entrega una noción de sobreviencia-
1 en-común que parte de esa creación conjunta, del documento del que hacemos
parte como país, de la contraimaginación que hacemos ante el archivo y el lenguaje
8 banal de la violencia.
3 Bordelois Ivonne (Bordelois, 2006, pág. 32), define lengua en el sentido del mandala primordial,
mente colectiva, proceso social inconsciente.
Desde lo anterior, el lenguaje testimonial que se utiliza para hacer la poesía de la
memoria constituye una catarsis en la medida en que es un registro contemporáneo
de lo abyecto que se purifica con la exposición de estas imágenes de muerte
violenta (Kristeva, 1997), oscuras, dolosas y le restituyen la función a la poesía
como purificadora del dolor colectivo.
El sonido del animal, la manada que se territorializa en el poemario, crea
una resonancia donde se escucha:
J el grito de algún torturado
y el chapoteo de los caimanes en el pozo
A disputándose los muertos (Benavides, 2014)
Se dicen las voces y los llantos que el dolor expresa desde una singularidad
L pero que se colectivizan en lo múltiple del devenir:
Lloró y se quejó mientras la sangre se le iba
L y nadie pudo auxiliarla. (Benavides, 2014)
El lenguaje poético testimonial es cercano aquí al lenguaje suicida, del
A discurso periodístico, del que habla Paz (1956), y que trae consigo la modernidad.
Pero no en el sentido en que destruye la poesía, aunque podría hablarse de terror
divino como síntoma de época también, desde Agamen (2012), cuando el arte retoma
formas de la destrucción para hacerse, sino en el sentido en que se entiende que:
“Lo poético es poesía en estado amorfo; el poema es creación, poesía erguida” (Paz,
• 1956). A lo mejor la valoración tradicional, del siglo XX, esencialista y conservadora
120 sobre lo literario, de lo que es lo poético y el poema, es lo que genera que el aparato
• crítico tradicional valore con tenor de lo que debe ser o no un buen poema y la falta
de calidad literaria a la poesía política colombiana, pues se atiende a la forma, la
representación, antes que lo amorfo de las emociones que cristaliza la palabra,
antes que a los silencios, que siguiendo la metáfora sería lo poético relacionado
con las multiplicidades femeninas, de origen, receptoras.
2 Lo que logro identificar en este corpus es que lo “no erguido” o lo no
representativo es también poema y poesía. La lengua se sale de la estructura
simbólica patriarcal representativa, ni siquiera se alcanza a representar la memoria
0 porque en principio hacer memoria implica hacer olvido, no todo se recuerda tal y
como sucede, la mímesis es fallida. Lo que quiero aquí estudiar como poesía, como
1 esa fuerza desterritorializada que busca cuerpo en las palabras, es precisamente
la multiplicidad de fracciones que se dan para crear un lenguaje y afectar con él,
8 después de todo como dice Jelin (2002), se testimonia para alguien. Como lo he
señalado, eso analizo en esta sensibilidad diferente, que se conforma de varios
elementos que no son necesariamente la representación: los afectos, la animalidad,
el resto, lo común, la sobrevivencia.
Dice Derrida (2003) que la escritura como muerte también es sobrevivencia,
pues desborda más allá de la vida del autor y de la misma escritura. En este sentido,
la propuesta de sobrevida que define la poesía puede relacionarse con esta función,
en relación con los afectos íntimos que se colectivizan a partir de los hechos y
testimonios de la violencia. El lenguaje de la poesía testimonial colombiana crea
una salida política, que pretende intervenir la realidad con el duelo; que afecta al
lector y habla del afecto más que de la cifra, o que el lenguaje banal de los medios.
Es político también, valerse de la estética de la sobrevivencia para decir. Para hacer
resonar, con los poemas, este bramido monstruoso en la medida en que muchos
poetas también fueron asesinados por poetizar sobre la violencia. Se escribe la
poesía testimonial para hacer justicia desde lo originario de la herida, lo comunal
y fragmentario del silencio, desde la acumulación de la memoria como capital de
la destrucción.
J Esta oscuridad de lo contemporáneo se vuelve tangible con sus luces, con
su resistencia. La estética de la sobrevivencia se instala en el lugar poético para
A emitir los bramidos monstruosos. Así la poesía se posesiona en lo contemporáneo
con la palabra herida y fragmentada entre el testimonio político y lo común del dolor
L que favorece el decir. Es poesía política en el sentido en que funciona desde lo que
el yo testimonia sobre los otros y lo que afecta a los otros, tal como lo comprende
Kamentzain (2007) sobre la poesía del testimonio.
L
Es un lenguaje anómalo hasta para la misma tradición poética, que
se recrea desde el dolor, del grito que perturba la normalidad, que incomoda a
A las regulaciones estatales y los olvidos sistemáticos de la impunidad. Desde la
narrativa del siglo XX, Gabriel Giorgi (2014) ha conceptualizado esta animalidad
como resonancia de las operaciones del biopoder en relación con la tanatológica de
la muerte en contextos de violencia en Latinoamérica. La poesía, en mi investigación,
tiene una intención política desde el horror como elemento de contagio del dolor,
• de los duelos, y de la sobrevivencia y sus afectos. En este sentido considero el
121 análisis de las imágenes desde el resto como potencia política, desde el umbral
de la muerte y la memoria como agente afectivo. Este universo de intensidades
•
reales, o cercanas a realidades vividas por los enunciadores son memoralizadas
por quienes sobreviven, hacen sobrevivir a otros, crean la conexión de lo común.
Entonces puedo decir que la expresión del dolor, de la culpa, del miedo,
del amor y la esperanza como afectos de esta estética de la sobrevivencia tienen
2 un lenguaje animal, incómodo, monstruoso, que registra las intensidades de todos
aquellos marcados por distintas guerras, bien sea por que ya están ausentes de
la vida, o porque el trauma de la pérdida, del horror colectivo, hace posible la
0 escritura para sobrevivir.
Según lo anteriormente expuesto, la sobrevivencia se presenta como una
1 condición política perdurable a través de la palabra, a través de la energía afectiva.
Las múltiples relaciones que se conectan a partir de estas formas poéticas dejan
8 claro, que en lo contemporáneo sobrevivir es atestiguar la violencia, posesionarse
políticamente para hacer memoria apropiando la voz a la comunidad que habla en
la lengua del resto.
Estos sobrevivientes viven y atraviesan el umbral de la muerte (Derrida,
2003) devienen lo no-humano, y su tránsito hacia lo humano lo articula el cuerpo,
la palabra, el ruido y el bramido monstruoso, animal, de lo indecible. Pero también
existe otra manada de poetas que sobreviven, utilizan la escritura no con el préstamo
de la voz lírica del testigo absoluto, del sobreviviente que puede decir, sino desde
su propia voz que se actualiza y crea el poema la memoria en el presente, reutiliza
los restos, lo fragmentado para conformar el mensaje y el animal para agenciarlo.
Algo sobre lo que debe indagarse es esa característica del testimonio
desde el sobreviviente, el que supera la condición de la nuda vida, y es el hecho
de que esta se apropia de la voz para que el que sobrevive, o sea, el que vive el
horror, pueda decirlo. En este sentido, se necesita indagar por el lenguaje inscrito
en este cuerpo de poemas. La estética del sobrevivir-en-común se da en el conjunto
de percepciones e imágenes sobre el dolor que militan políticamente en la poesía
contemporánea y la ética del testimonio, la memoria afectiva que allí se hace cuerpo-
J texto con la imagen, como régimen sensible.
En el devenir sobreviviente en la escritura, interviene una forma de
A escribir y un escritor político acompañado de la voces diferentes, y con ello el
lugar del testimonio se enuncia con sus propias particularidades, lo que reúne los
L testimonios es la condición de lo común, la intensidad del dolor y la ontología de la
herida fundamental que hace de esta estética una manifestación de la comunidad
(2007) como un fenómeno de la herencia y de la huella de la guerra, de la memoria
L individual que se hace en duelo colectivo, desde la común condición de existir en y
después del trauma.
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DIDI-HUBERMAN, G. La supervivencia de las luciérnagas. Madrid: Adaba Editores,
1 2012.
•
123
•
2
0
1
8
J
A
L AFIRMAÇÃO DE VIDA EM “DOS TRAPOS CORAÇÃO (I)” DE
SALGADO MARANHÃO
L
Anny Beatriz Machado Lopes (UNEB)
A RESUMO: O prazer, por vezes indissociável da experiência poética propiciada pela
arte, aparece como um carro-chefe em muitos dos escritos de Salgado Maranhão.
Este poeta negro e maranhense traz no jogo poético que constrói uma experiência
de afirmação de vida e resistência, seja por meio de um forte traço erótico-amoroso,
seja no ato estético-politico que encontra, na poesia, um lugar de potência para os
• sujeitos marcados pela dor e pelo cansaço de viver.Um de seus poemas, “Dos trapos
coração”,escrito em 1989 e publicado em Punhos da Serpente (MARANHÃO, 1989),
124
permite uma análise de como as palavras, aqui postas pelo poeta, distribuem a
• partir de si o prazer e jorram uma vontade de vida. Fez-se então um estudo sobre
as possibilidades percorridas por este poema e seus possíveis significados, levando
em conta sua produção de saúde (DELEUZE, 2011), e sua potência para afirmar a
Vida.
Palavras-chave: Poesia lírica. Salgado Maranhão. Produção de saúde. Afirmação de
2 Vida.
Introdução
0
O artigo presente faz parte de uma pesquisa mais ampla e recentemente
iniciada, que busca dentro do texto poético, do escritor Salgado Maranhão, traços
1 de uma potência denominada afirmação de vida. Este artigo, em especifico, se
propõe a pensar como ocorre tal potência pela via da poesia e do prazer. Vida e
8 poesia se encontram em muitos pontos afins. E como é potente este encontro. Ele
acontece e impacta diretamente nos corpos como força motriz, para produzir mais
vida e mais poesia. Salgado Maranhão, homem negro advindo do Nordeste, traz,
em sua poesia, marcas destas aberturas e a possibilidade de outras fissuras, que
podem ser percorridas por aqueles a quem a vida relega apenas dor e miséria, sem
mostrar nenhuma alternativa.
De fato, as aberturas teóricas e artísticas propostas pelo nosso tempo
encontram cada vez mais espaços de emergência para o surgimento de uma potência
estético-política, que funciona enquanto arma de resistência, de produção de vida
e liberdade, mesmo que sejaem espaços de tamanho irrisório em contrapartida aos
sistemas de opressão e cerceamento com os quais somos forçados a conviver. É
justamente neste espaço ínfimo que precisamos investir, pois, “As MinimaLumina,
de que os pirilampos são a imagem exemplar, ensinam-nos que é útil ser pequeno
para escapar aos poderes.” (DIDI-HUBERMAN, 2015, s.p.).
A análise proposta neste breve artigo, da poesia “Dos trapos coração
(I)”, disposta no livro Punhos da serpente (MARANHÃO, 1989), pensa em como
se instaura o movimento que promove a transformação “dos trapos ao coração”.
J Percebendo desde as mazelas que afligem e submetem os corpos a dores afins, até
como a poesia e os outros usos do corpo podem ser chaves de contestação, poder
A de resistência e sobrevivência perante a vida, funcionando como escapes, linhas
de fuga que promovem o Viver. Este não é apenas um simples exercício de leitura
L poética, em vez disso, pensa muito mais na relevância política, de potência e de
força que o espaço da poesia pode nos fornecer. Encontrando neste momento, o
movimento que transforma os mais singelos trapos em um símbolo máximo de
L vida: o coração.
De como se esfarrapam corações:um viver que nos transforma em trapos
A
O nosso tempo, chamado contemporâneo, impõe, aos artistas
principalmente, que se enxergue a escuridão, “o facho de trevas”, para usar a
metáfora do Agamben (2013). Para o teórico italiano, ser contemporâneo envolve
não só enxergar a escuridão, como também agir contra ela, debater-se na escuridão
para encontrar uma luz que é inalcançável. Ser contemporâneo, portanto, é existir
•
na ferida da sociedade. Aos poetas contemporâneos, então, o tempo surge como
125 uma necessidade de uma narrativa de si, na qual, ao olhar para ele, o tempo, se
• percebam as dores que esta vivência coloca para nós. A poesia percebe a escuridão
enquanto a imensa maioria vive cega pelas grandes luzes dos holofotes.
Sabendo disso, podemos pensar em como o texto poético “Dos trapos
coração (I)” exemplifica este olhar para a escuridão, e as tentativas de debater-se
nela. Os primeiros versos apresentam:
2 custa muito caro
pra um poeta do meu tempo
ter que vassourar o lixo
0 dessa história toda
de ossos podres no esgoto. (MARANHÃO, 19899, p. 14)
1 O uso da palavra custa no primeiro verso do poema, indica a ideia de
dívida, depagamento: um sacrifício que o poeta inserido neste tempo precisa estar
8 disposto a pagar, para, como continua o poeta, “vassourar o lixo”. A palavra aqui
posta pode ser entendida como vasculhar, buscar o que está escondido, como
também se atém à noção de limpeza. Os dois significados possíveis correspondem
ao papel designado ao poeta nestes versos, que revela o “lixo da história” e, ao
mesmo tempo, postula caminhos outros, mais limpos, à revelia das sujeiras que
somos forçados a engolir.
muito caro mesmo
pra um poeta como a gente
com esta cara larga e triste
de paraíba de obras
com a cabeça chata e tudo
do peso do concreto
destas construções intermináveis. (MARANHÃO, 1989, p. 14)
J
A
L
L
A
•
131
•
2
0
1
8
J
A
L O ESPAÇO DA POBREZA E DA RESISTÊNCIA NAS OBRAS
DE CAROLINA MARIA DE JESUS, ELZA SOARES E MARIA
L AUXILIADORA DA SILVA1
A Beatriz Schmidt Campos (UNB)
Sidney Barbosa (UNB)
RESUMO: Este trabalho apresenta a análise de parte do diário Quarto de despejo
(1960) de Carolina Maria de Jesus, da canção Meu guri (1997) interpretada por Elza
Soares, e do quadro Natividade (1971) de Maria Auxiliadora da Silva, por meio do
• estudo da espacialidade na literatura e outras artes. As artistas expressam-se via
132 suas experiências de vida e apresentam uma visão de mundo e uma crítica social
que se relacionam diretamente com suas biografias. Por intermédio do estudo da
• espacialidade em suas obras, e de alguns cruzamentos intermidiáticos, intenciona-
se compreender a temática política e de protesto na representação artística das
três modalidades, Literatura, Música e Pintura, bem como nas práticas sociais
no contexto de um Brasilsegregador e de altos índices de diferença social. Para
tanto, busca-se apoiarem vertentes teóricas que levem em conta a espacialidade
2 na literatura e nas duas artes citadas e nas visões críticas que relacionem a
espacialidade às questões sociais.
0 Palavras-chave: Espaço da pobreza e da resistência. Cruzamentos intermidiáticos.
Vivências pessoais. Crítica social. Autora literária, pintora e cantora.
1
Introdução
8 As relações entre a literatura e outras artes têm abrangido variados
estudos que caracterizam uma ampliação aos estudos comparativistas literários.
Segundo Tania Franco Carvalhal(2017), os estudos comparatistas que ocorriam e
ocorrem entre literaturas diferentes, ou campos literários diversos, atravessando as
fronteiras nacionais, passaram a integrar os estudos entre outras artes e campos
das ciências humanas nas últimas décadas. A autora reflete que as discussões
interartísticas iniciaram pela necessidade de se compreender os fenômenos
artísticos. Nessa via, a autora ressalta que:
Vista a questão de outro ângulo, o de sua definição, é ainda numa pers-
No caso de uma artista como Elza, seja por sua especificidade como
intérprete, seja por sua permanência e longevidade nos palcos, e finalmente por
2 sua grandeza artística, como integrante do cenário musical brasileiro,permite-se
colocá-la também como sendo parte constituinte de uma arte que se produz para
trazer à tona uma crítica social relevante, tal como ocorre com as artistas Carolina
0
Maria de Jesus e Maria Auxiliadora da Silva em suas obras, a literária e a pictórica.
Seguindo essa perspectiva, Borges Filho afirma: “Apesar de os espaços a
1 que estamos expostos durante nossa existência serem variados, ainda mais variada
que eles é a percepção que cada um tem do espaço em que se localiza” (BORGES
8 FILHO, 2007, p. 71). Portanto, no presente trabalho há uma observação centrada
no espaço das obras das três artistas. Esse trabalho de percepção dos referidos
espaços visa colaborar com o enriquecimento dos estudos interartísticos e com a
função crítica dessas três obras para a sociedade.
Por fim, a escrita de Carolina é poética, a realidade cantada por Elza
torna-se poética por sua letra, melodia e voz e também nas cores de Auxiliadora
podemos perceber poesia. E é por meio dessa poética que o leitor/ouvinte/
espectador reconhece a obra como sendo arte, além de identificar-se com ela e
endossá-la como denúncia e protesto. Segundo Bachelard:
[...] a imagem chegou às profundidades antes de movimentar a superfície.
Isso é verdade, mesmo na simples experiência de leitor. Assim a imagem que
a leitura do poema nos oferece faz-se verdadeiramente nossa. Enraíza-se em
nós mesmos. Recebemo-la, mas nascemos para a impressão de que poderí-
amos cria-la, que deveríamos cria-la. A imagem se transforma num ser novo
de nossa linguagem, exprime-nos fazendo-nos o que ela exprime, ou seja, é
ao mesmo tempo um devir de expressão e um devir de nosso ser. No caso,
ela é a expressão criada do ser (BACHELARD, 1978, p. 188).
J
No item abaixo será apresentada uma análise textual que busca refletir
sobre as três obras mencionadas acima,com a finalidade de ampliar o entendimento
A do diálogo entre artes que possuem uma temática semelhante por meio do estudo
de elementos da espacialidade presente em seus “textos”.
L A análise
Nos termos da perspectiva abordada acima, podemos observar a presença
L de personagens crianças nas obras das três artistas, e também seus olhares
dirigidos para a pobreza por meio do sofrimento dos filhos de Carolina Maria de
A Jesus, relatado por ela inúmeras vezes em Quarto de despejo (1960), na letra e na
voz de Elza Soares na canção “Meu guri” de Chico Buarque, gravada em 1997, e no
quadro “Natividade” (1971) de Maria Auxiliadora da Silva.Nesses três discursos, o
literário, o musical e o pictórico, as artistas apresentam reflexões sobre a pobreza
advindas de descrições da fome, da falta do nome do pai e da falta de sapatos, como
• será analisado abaixo.
138 Em Quarto de despejo(1960), Carolina Maria de Jesus ressalta inúmeras
vezes o desespero de passar fome e de não poder alimentar suas crianças. São
•
momentos de tensão que vão se agravando na medida que a narrativa avança. A
autora desabafa: “Estou tão indisposta que se eu pudesse deitar um pouco! Mas
eu não tenho nada para os meninos comer” (De JESUS, 1960, p. 80).Na página
seguinte ela relata: “Fui no frigorífico, ganhei uns ossos. Estou indisposta” (DE
JESUS, 1960, p. 81), e seguindo a leitura, Carolina reflete: “Como é horrível levantar
2 de manhã e não ter nada para comer. Pensei até em suicidar. Eu suicidando-me
é por deficiencia de alimentação no estomago. E por infelicidade eu amanheci de
0 fome (De JESUS, 1960, p. 89). E ainda: “Deixei o João e levei só a Vera e o José
Carlos. Eu estava tão triste! Com vontade de suicidar” (DE JESUS, 1960, p. 92).
1 Nesse sentido, à medida que a escritora segue seus breves relatos diários, percebe-
se que o tema vai se tornando crescente e recorrente no livro, como um acorde
8 musical suspenso que não soluciona.
Na canção “O meu guri”,de Chico Buarque, interpretada por Elza Soares
no disco Trajetória(1997) pela gravadora Universal Music, representada na partitura
abaixo2a personagem anuncia a pobreza do filho já na hora de seu nascimento “Já
foi nascendo com cara de fome/ E eu nem tinha nome pra lhe dar”. Na versão do
disco, a cantora é acompanhada por um piano, e a melodia torna-se ainda mais
intimista do que em outras versões realizadas pelo compositor. Na voz “chorosa”
e cheia de dor da cantora percebe-se a imagem de uma mãe que sofre por não
poder dar comida a seu filho, assim como no texto de Quarto de despejo.O “nome”
2
0
1
8
3 “Quando, seu moço, nasceu meu rebento/ Não era o momento dele rebentar / Já foi nascendo
com cara de fome/ E eu não tinha nem nome pra lhe dar”(Chico Buarque, 1997).
J
A
L
L
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L ENTRE BECOS E TERRAS: MOVIMENTOS E ESCREVIVÊNCIAS NA
OBRA DE CONCEIÇÃO EVARISTO
L
Calila das Mercês (UNB)
A RESUMO: Por meio de escrevivências, conceito alcunhado pela escritora e
pesquisadora negro-brasileira, Conceição Evaristo, o artigo apresenta diálogos sobre
trânsitos, movimentos e as ficções da memória produzidas pelo imaginário e pela
vivência de uma mulher negra e de outros corpos negros, frente a miséria, a fome,
a pobreza e as complicações da sociedade desigual e preconceituosa, mas também
• frente a solidariedade, a histórias, a quilombos e a ternura em Becos da memória
(2006). Evaristo traça pluralidade de personagens e de visões sobre estar e ser de um
144
lugar afastado do considerado centro, e discorre sobre afetos e vivências ancestrais,
• e o mover-se contemporâneo. O artigo tem como proposta discutir as relações,
presentes na narrativa, de corpos negros com a terra, compreendendo esta como
negação, movimento e também como lugar-geográfico, lugar-pertencimento e lugar-
afeto, experenciadas ou coletadas por meio da escuta da narradora-personagem,
Maria-Nova. Romance publicado após vinte anos de escrito, por falta de atenção do
2 mercado editorial, traz aspectos intertextuais que também são diálogos possíveis
sobre ser mulher negra e escritora em terras brasileiras marcadas por problemas
0 sistêmicos e de estrutura como o racismo e o machismo.
Palavras-chave: Autoria negra. Conceição Evaristo. Escrevivência. Movimentos.
1 Resistência.
Chão de verdade
“A natureza reclamou,
Vento que venta não ventou,
8 O sol que brilha não brilhou,
hoje trovejou.
Eu me recolhi ao chão do senhor (...)”
Os Tincoãs
1 A autora tem poemas e contos publicados em Cadernos negros e em antologias literárias brasileiras
e no exterior. Os livros já publicados após Ponciá Vivêncio e Becos da memória:Insubmissas lágrimas
de mulheres (2011), Poemas das recordações e outros movimentos (2008), Olhos d’água (2017).
2 Publicado no Diário Católico de Belo Horizonte e em uma revista católica do Rio Grande do Sul.
Nem mentira, nem verdade: ficções da memória
A base do que está narrado em Becos da memória foi vivenciada pela
autora e pelos seus parentes, como ela afirma “escrever Becos foi perseguir uma
escrevivência. Por isso também, busco a primeira narração que veio antes da escrita.
Busco a voz, a fala de quem conta, para se misturar à minha. Assim nasceu a
narrativa Becos da memória.” (EVARISTO, 2017)
Ver, viver e se ver pode simplificar a ideia de escrevivência que tanto tem
J sido referenciada em estudos que relacionam arte com o corpo de mulher negra
e da comunidade negra de forma abrangente. Escrevivência, conceito criado por
A Conceição Evaristo, reforça em literatura a ideia da marcação de um corpo negro
de mulher negra que é autor e escreve suas experiências e a dos seus ancestrais
L unindo isso às suas subjetividades e criações. Perspectivas de criação artística e
resistência de uma mulher negra, o olhar de quem se desloca social e espacialmente.
L Uma ficção que traz a escrevivência e os movimentos de corpos negros
sobre a terra como mote, apresenta consigo intersecções da vida da autora, da
personagem que narra a história, bem como da história de negras e negros que
A viram, viveram e podem se ver em histórias inventadas e/ou reais. “A literatura
marcada por uma escrevivência pode con(fundir) a identidade da personagem
narradora com a identidade da autora. Esta con(fusão) não me constrange.”
(EVARISTO, 2017)
• A escritora afirma que a mãe dela, D. Joana, que deu a ela a frase que
ela começa a narrativa: “Vó Rita dormia embolada com ela” e a coloca em contato
147 com o eu-menina que lembra vivências pessoais da favela que já não existe como
• descrita em Becos da memória, com memórias de um passado vivido. “E como lidar
com uma memória ora viva, ora esfacelada? Surgiu então o invento para cobrir
os vazios de lembranças transfiguradas. Invento que atendia ao meu desejo de
que as memórias aparecessem e parecessem inteiras. E quem me ajudou nesse
engenho? Maria-Nova.”Evaristo ainda enfatiza que a favela da narrativa “acabou e
2 acabou. Hoje as favelas produzem outras narrativas, provocam outros testemunhos
e inspiram outras ficções.” (EVARISTO, 2017)
0 O conceito de escrevivência juntamente com as obras de Conceição
Evaristo rememoram a ideia ancestral de coletividade, de trabalhos que embora,
possam até ser apresentados por um único indivíduo, nunca são e nunca serão
1
pautados no individualismo, compactuando com a filosofia ubuntu. Outros vieram
antes, outros virão, sempre coletivamente.
8
Becos, vozes-mulheres e a terra
Relações de corpos negros com a terra. Terra como negação, movimento
e também como lugar-geográfico, lugar-pertencimento e lugar-afeto. Ser de um
lugar considerado ruim e não querer sair dele. O corpo pedir a terra. Não ser de
lugar nenhum, mas ser dali. Querer ir embora, mas não conseguir. Ser obrigado a
ir embora e ponto.
São movimentos as próprias ficções da memória produzidas pelo imaginário
e pela vivência de uma mulher negra e dos seus, outros corpos negros, frente a miséria,
a fome, a pobreza e as complicações da sociedade desigual e preconceituosa, mas
também frente a solidariedade, a histórias, a quilombos e a ternura em Becos da
memória. E existe também muitos trânsitos e deslocamentos descritos na história
que mescla vários personagens negros, que surgem intercalando-se aparentemente
sem uma ordem consciente, e sendo descritos pela voz da narradora-personagem,
a jovem Maria-Nova, e de outra narradora, que conta a história do lado de fora, mas
que conhece os fatos e todos que fazem parte o que complementa as observações.
Evaristo traça pluralidade de personagens e de visões sobre estar e ser
J de um lugar afastado do considerado centro, e discorre sobre afetos e vivências
ancestrais, e o mover-se contemporâneo. A narrativa começa com o contar de Maria-
A Nova já numa perspectiva adulta sobre como era a vida na favela e a discorrer
sobre a outra, a que dormia embolada com a sua avó Rita e a relação delas com a
L terra, com o ver mundo à sua volta, com a falta de graça daquele lugar.
Tudo era tão sem graça. Grandes mundos!... Uma bitaquinha que vendia
pão, cigarro, cachaça e pedaço de rapadura. (...) A torneira, a água, as la-
L vadeiras, os barracões de zinco, papelões, madeiras e lixo. Roupas das pa-
troas que quaravam ao sol. Eu tinha nojo de lavar o sangue alheio. E nem
entendia nem sabia que sangue era aquele. Pensei, por longo tempo, que as
A patroas, as mulheres ricas, mijassem sangue de vez em quando. (...). Hoje
a recordação daquele mundo me traz lágrimas aos olhos. Como éramos po-
bres! Miseráveis talvez! Como a vida acontecia simples e como tudo era e é
complicado! (EVARISTO, 2017, p. 17)
Nesse trecho a visão de mundo era resumida àquela favela, àquela morada,
•
àquela bitaquinha, àquela gente, a torneira, a água, as lavadeiras, as roupas das
148 patroas quarando no sol, os barracões de zinco, papelões, madeiras e lixo. Logo no
• começo ela descreve a sua marcação social. Pobre, favelada, limitada. Existe no
pensamento de Maria-Nova uma ideia de que aquele mundo era sem graça, mas
que “havia as doces figuras tenebrosas”, que deram a ela algumas memórias para
seu “desejoso dolorido de escrever”.
Becos da memória descreve seus personagens individualmente e suas
2 perspectivas de como chegara àquele lugar e suas relações com o desfavelamento
que estava por vir. Uma das pessoas que Maria-Nova mais gostava de ouvir, além
0 da vó Rita, era o Tio Totó, que não sabia de onde era, nem de onde seus pais eram,
mas que eram escravos e que ele já nascera na “lei do ventre livre”3. Ele já tinha
transitado bastante, casado três vezes, perdido suas companheiras e uma filha,
1
era inconformado com estes acontecimentos trágicos que obrigaram ele a mudar
de terra, a mudar a vida.E mais uma vez, já idoso, estava sendo confrontado com o
8 que mais o deixava triste, a ideia de trocar de morada, sair da favela:
Por que a gente não podia nascer, crescer, multiplicar-se e morrer numa
mesma terra, num mesmo lugar? Se a gente sai por aí, por este mundo de
déu em déu e não volta, o que vale é o respeito, a fé toda quando se está
distante, no que para trás ficou? Para que a crença na volta ao lugar onde
se enterra o umbigo? Verdade fosse! Tio Totó estava inconsolável: já velho,
Davis afirma numa perspectiva dos Estados Unidos, que sim, vivenciaram
8 e vivenciam aspectos peculiares no sistema escravocrata e também na compreensão
da afirmação de negritude, mas que neste quesito, relacionado ao genocídio cultural,
se aproxima historicamente do que ocorreu e ocorre no Brasil. Ela ratifica que a
arte progressista é capaz de mudar a chave, dando às comunidades negras um
sentido de emancipação social.
Embora nem toda arte progressista tenha de lidar com problemas explici-
tamente políticos – na verdade, uma canção de amor pode ser progressista
se incorporar certa sensibilidade em relação à vida de mulheres e homens
da classe trabalhadora –, quero explorar especificamente os significados so-
ciopolíticos evidentes da arte com o objetivo de definir o papel que ela pode
representar na aceleração do progresso social. (DAVIS, 2017, p. 166-167)
Uma obra de arte que fala de uma terra de difícil morada e que não
existe mais geograficamente, mas na memória dos que a conheceram. O que quer
a escritora Conceição Evaristo elucidando e ilustrando este lugar, estas pessoas
negras e diferentes uma das outras?
A narradora, Maria-Nova, desde o início, antes de começar a jornada que
J escava passados, rememora notícias, histórias, casos, cores, cheiros, sabores, ela
como um gesto ancestral mostra uma sensibilidade e ao mesmo tempo honestidade
A no que diz respeito a história que será contada, homenageia a todos que “se
amontoaram” dentro dela, como eram os barracos do seu chão, da sua terra.
L Escrevo como uma homenagem póstuma à vó Rita, que dormia embolada
com ela, a ela que nunca consegui ver plenamente, aos bêbados, às putas,
aos malandros, às crianças vadias que habitam os becos de minha memó-
L ria. Homenagem póstuma às lavadeiras que madrugavam os varais com
roupas ao sol. Às pernas cansadas, suadas, negras, aloiradas de poeira do
A campo aberto onde aconteciam os festivais de bola da favela. Homenagem
póstuma ao Bondade, ao Tião Puxa-Faca, à velha Isolina, à D. Anália, ao Tio
Totó, ao Pedro Cândido, ao Sô Noronha, à D. Maria, mãe do Aníbal, ao Ca-
tarino, à Velha Lia, à Terezinha da Oscarlinda, à Mariinha, à Donana do Pa-
din. Homens, mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim, como
amontoados eram os barracos da minha favela. (EVARISTO, 2017, p. 17)
•
O meu corpo é a minha terra e/ou a minha terra é o meu corpo?Becos da
151
memória faz lembrar um adinkra antigo,sankofa, que é olhar para atrás e perceber
• nas vivências anteriores aspectos que podem agregar as vivências do presente.
Isto lembra tantas outras narrativas reais de artistas negros como a do cantor e
compositor baiano Mateus Aleluia que fala sobre o grupo musical negro-baiano que
surgiu na década de 1960, do qual fez parte,Os Tincoãs, e sua viagem do Recôncavo
da Bahia para Luanda em 1983 com os parceiros Dadinho e Badu, e o retorno
2 novamente nos anos 2000 para o Recôncavo.Ele fala que a música feita por eles,
os Tincoãs, se encontra no plano do sensível, da delicadeza e que a grande arma é
0 a gentileza e a arte. No trecho deChão de verdade dos Tincoãs,apresenta uma ideia
de como o mundo pode estar configurado para alguns. Nem tudo está apresentado
de forma sistemática e racionalizada, como fomos treinados a acreditar e a pensar.
1 Aleluia fala que “me recolhi ao chão” remete a ideia de voltar para unidade, para
liberdade plena, “pois é no chão que está na minha entidade. Eu não falo que a
8 entidade está no altar. O altar é chão. O rei está no chão. O discurso daquele rei é
o grito daquele plebeu.” (ALELUIA, 2017, p. 132)
Conceição Evaristo nos ensina em Becos da memória, com a arma da
escrita e a curadoria de fotografias pessoais, uma estratégia de guardar e ensinar
conhecimentos ancestrais com ternura mesmo diante da dor das marcas e das
surras reais e simbólicas, e dos constantes assaltos aos nossos direitos. Mesmo com
a mudança, e com muitos cadernos e anotações que se perderam com a destruição
da favela que nasceu e morou, como está explícito no documentário Ocupação,
Evaristo não deixa de fortalecer com sua narrativa os mais novos e aqueles que
antes mesmo de Maria-Velha fez valer àquele chão, àquela favela que já nem existe
de fato. E este chão de verdade éterra, Terra e resistência. E assim, neste chão,
planto sementes-questões para continuar.
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2009.
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L LLAMADO A ALGUNOS DOCTORES DE JOSÉ MARIA ARGUEDAS:
UM CONVITE À ANTROPOFAGIA
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Carlos David Larraondo Chauca (UFAC)
A Suerda Mara Monteiro Vital Lima (UFAC)
RESUMO:Propomos uma leitura do poema “Llamado a algunos doctores” (1966) do
intelectual, escritor, indígena e peruano José Maria Arguedas, analisado a partir do
conceito de antropofagia, o devorar o outro, que segundo a lógica indígena significa
reconhecê-lo como igual, como aquilo que me falta, que dá continuidade à vida
• desafiando o espaço/tempo. No poema Arguedas, ergue sua voz de amauta para
argumentar com o próprio corpo multiplicado, com a natureza, desenhando uma
153
cartografia andina permeada pelo íntimo relato dos seres vivos que aí coexistem.
• Sem dúvidas um campo discursivo que nos permite problematizar os efeitos da
colonização que se perpetuam nos contextos nacionais “latino-americanos”,
sistematizando a destruição dos valores culturais de povos que não se encaixam
nos projetos da modernidade.
Palavras-chave: José Maria Arguedas. Antropofagia. Literatura hispano-americana
2
A intenção do presente escrito confabula, mesmo que indiretamente,
0 com as transgressões pioneiras de pensadoras e pensadores que munidos pela
necessidade de tecer outras narrativas que relativizem as grandes narrativas
históricas nos abrem as portas para um outro entendimento, não contrário, nem
1
paralelo às lógicas cientificas e modernas que filtram e constroem nosso olhar e
entendimento ocidentalizado, mas confluente, indissociável, adotando uma lógica
8 de paridade ou yanantin1,por usar uma alegoria andina (da qual trataremos mais à
frente), onde o visível está permeado pelo invisível, o consciente pelo inconsciente, o
material pelo espiritual, o racional pelo afetivo (etc.). Estes pensamentos configuram
uma narrativa da outridade, que foge à linearidade naturalizada do espaço-tempo
da história, uma vez que tal superficialidade não poderia conter as curvas, espirais,
circunferências e as profundidades da multiprodução cultural líquida e gaseiforme
que os corpos-discursos manifestam na sua oralidade, na escrita, nos silêncios,
1 Para Ninanturmanya (2013 apud. FEHLAUER 2016, p.58) Yanantinsugere um sentido de
atração entre pares complementários que engendram sabedorias do invisível, do indeterminado.
Uma dualidade complementária inerente ao mundo.
na inercia e em seus movimentos dentro dos marcos geopolíticos, especificamente,
daquilo que é denominado Latino-América.
Doravante, estimulados pela intenção explicitada, propomos a leitura do
texto “Llamado a algunos doctores” de José Maria Arguedasque, nestas páginas,
se limita apenas a destacar algumas possíveis arestas da escrita poligonal do
antropólogo peruano e sua densidade poética resultante dos seus trânsitos, suas
negociações identitárias maceradas a seu trabalho linguístico, filosófico, histórico
J e social. O intuito não é centralizar nossa interpretação a determinado aspecto
dedutivo do texto de Arguedas sob uma ótica hermética dos estudos literários,
A mas, articulando-nos ao pensamento rizomático2de Gilles Deleuze e Félix Guattari
(1995), procurar as polifonias e a multiplicidade, o devir da sua escrita e as
L conexões que nos permitam, pelas suas ramificações e prolongações, associá-la à
categoria de análise proposta: a antropofagia, uma metáfora teórica que parte de
um contra-discurso eurocentrado eque, em seus desdobramentos, nos possibilita
L problematizar nosso olhar ante a modernidade3 e ler o texto como um intersubjetivo
e afetuoso convite a novas compreensões ontológicas e epistêmicas,intrínsecas à
A alteridade do corpus arguediano reconhecido dentro do campo intelectual e crítico
da literatura peruana e latino-americanacomo discurso da outridade, tendo em
vista os compromissos éticos e políticos que o escritor assumiu em vida e na sua
condição de “blanco aculturado por losindios” (RAMA, 1985, p.209).
José María Arguedas nasceu no Peru em 1911 na cidade de Andahuaylas,
• departamento de Apurimac.Sua infância é marcada pelo sentimento de orfandade
154 causado tanto pela morte de sua mãe, quanto pela constante ausência paterna
(ULFE, 2011, p.55), encontrando conforto na servidão indígena que o acolheu
•
nos espaços marginais da casa que sua madrasta regia e onde ele era confinado.
Para Garcia Morales (2011), os estudos da obra do escritor apontam que muitos
dos seus romances surgem das suas vivências pessoais, nutridas principalmente
na infância, que o próprio Arguedas fez questão de explicitar em algumas das
entrevistas que concedeu:
2 Voy a hacerles una confesión un poco curiosa: yo soy hechura de mi ma-
drastra. Mi madre murió cuando yo tenía dos años y medio. Mi padre se
0 casó en segundas nupcias com una mujer que tenía tres hijos; yo era el
menor y como era muy pequeño me dejó en la casa de mi madrastra, que
era dueña de la mitad del pueblo; tenía mucha servidumbre indígena y el
1 tradicional menosprecio e ignorancia de lo que era un indio, y como a mí me
tenía tanto desprecio y tanto rencor como a los indios, decidió que yo había
8 de vivir con ellos en la cocina, comer y dormir allí. (ARGUEDAS, 1992, p.09)
apud. MORALES 2011, p.52)
2 DELUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Introdução: rizoma, In: _____. Mil Plâtos: capitalismo e
esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 3, 1995. p.11-37.
3 Para Walter Mignolo “A configuração da modernidade na Europa e da colonialidade no resto do
mundo (com exceções, por certo, como é o caso da Irlanda), foi a imagem hegemônica sustentada na
colonialidade do poder que torna difícil pensar que não pode haver modernidade sem colonialidade;
que a colonialidade é constitutiva da modernidade, e não derivativa.” (MIGNOLO, 2005, p. 38).
Dessa forma o discurso da modernidade se estabelece como uma hegemonia de pensamento que
domina e submete corpos e discursos que não se adaptam às logicas eurocêntricas.
Essas experiências com a comunidade indígena dos Andes peruanos,
nos espaços relegados do ambiente familiar, nos permitem ter uma noção da sua
identificação com os corpos abjetos, coisificados, silenciados e invisibilizados nas
grandes narrativase entender a voz que projeta destes entre-lugares de branco e
de índio, uma voz que nasce marginalizada e carregará este estigma no decorrer
dos seus (des)caminhos. Essa situação, de entre-lugar, permite entender como o
escritor, desde a infância,cria profundos laços afetivos com as vivências indígenas e
J como elas se estabelecem como o fundamento importante da sua formação humana
e profissional.
A A criação com os indígenas possibilitará que Arguedas aprenda a língua e
assimile o pensamento quéchua, nutrindo-se de um entendimentomágico-religioso
L da natureza e da realidade presentes na cosmovisão andina que no transcurso da
sua vida se impregnará no seu processo formativo e intelectual.Para Morales:
Este recorrido capacita a Arguedas para emprender una tarea hasta enton-
L ces inédita: rescatar para la lengua y la mirada occidental los elementos de
la cultura quechua, que él siente como propios. Tenemos que comprender,
A primeramente, que Arguedas, frente a otros autores de la tradición indige-
nista, no parte de la realidad blanca para después realizar un acercamiento
más o menos profundo al ámbito indígena. Su camino, y esto es lo que le
hace a nuestros ojos un autor tan especial e inimitable, es el contrario: él
parte desde la cultura quechua para ir hacia el ámbito occidental. La difi-
cultad que encuentra no es entonces cómo llegar a comprender lo indígena,
• sino cómo abrir el marco de ese mundo para hacerlo accesible al lector en
español.(MORALES, 2011, p.53).
155
• Arguedas sente como índio, assim é narrado e assim se narra a si
próprio, em seus posicionamentos políticos como escritor e antropólogo, nas
suas declarações abertas nas entrevistas que concedia e nas cartas que, desde
a intimidade, escreve para seus entes mais próximos, nas quais se destacam a
convivência com os indígenas e sua partilha dos profundos laços afetivos advindos
do sentimento de abandono e negligência que ele sentia em relação à sua família e
2
estes em relação à sua condição de marginalizados.Assim observamos na carta que
escreve para seu irmão Arístides Arguedas em 1969:
0 Tú sabes cómo ha sido nuestra vida, cómo por causas, algunas claras, mi
permanencia en San Juan cuando era muy niño mientras tú estabas en
1 Puquio con papá, por mi infantilismo y sentimiento de gran orfandad, tú
eras fuerte de carácter, yo me arrimé a los indios e indias y aprendí de ellos
todo o casi todo su maravilloso y casi indescriptible mundo. Yo canto como
8 ellos, como ellos hablo, pero al mismo tiempo también sentí, desde Puquio
hasta en todos los pueblos en que estuve con el viejo y en Lima, a la otra
gente. Mis trabajos son la flor de esa vida, y de la de Viseca, donde aunque
descalzos nunca fuimos infelices sino todo lo contrario. (PINILLA 1999, p.
285 apud NÚÑEZ 2016, p.66)
5 Segundo Mario Meza Bazán (2003) as carreteiras criadas por essa legislação serviriam para abrir
os caminhos da modernidade e conectar diferentes regiões peruanas desde as localidades mais
carentes aos grandes centros urbanos. No entanto as negociações obtusas do governo ditatorial de
Legía, privilegiaram as elites, condicionando as comunidades indígenas ao trabalho gratuito semi-
escravista de construção de carreteiras.
no campo enunciativo que se bem injeta a vida e o frescor de um novo entendimento,
também,implica colocar seu corpo ao risco eminente, à morte em potência que a
força da correnteza sugere. Um embate constante daquele que sempre se soube
dividido entre dois mundos e cuja tentativa de “alcanzarun diálogo entre esas
dos realidades, físicamentecercanas, pero social e ideológicamente enfrentadas,
le acarreará consecuencias trágicas.Después de varios intentos fracasados, José
María Arguedas acaba com su vida em 1969” (MORALES, 2011, p.53).
J Três anos antes de decidir suicidar-se, Arguedas escreve, em língua
quéchua, o poema “Huk Doctorkunaman Qayay” (1966), que em espanhol traduziu
A para “Llamado a algunos doctores”publicado,em língua espanhola, no jornal “El
comercio” em julho de 1966. O surgimento deste poema e de outros, que mais
L tardefariam partedo copilado intitulado Katatay y otros poemas (1972), se justificam,
segundo a pesquisa de Tara Daly (2012), por dois motivos: o primeiro seria uma
“reacción a la antropología desarrollista, un movimiento que por sucreencia en la
L modernización occidental impactó directamente las culturas indígenas del Perú”
(DALY, 2012, p.64); e o segundo, seria uma resposta pessoal à Mesa Redonda
A referente a seu último livro Todas las sangresem Lima no dia 23 de junho de 1965,
o qual foi duramente criticado.Deixandoo escritor profundamente fendido: “casi
demostrado por dos sabios sociólogos y un economista, también hoy, de que mi
libro Todas las sangres es negativo para el país, no tengo nada que hacer ya en este
mundo. Mis fuerzas han declinado creo que irremediablemente” (ESCOBAR, 1965,
• p.67).
158 Para Daly (2012), no momento da publicação do poema “Llamado a
algunos doctores”, Arguedas experimentavauma crisepessoaladvinda darejeição do
•
seuúltimoromance,Todas las sangres,pelos doutores, sociólogose críticos literários
que questionaramo “tipo de novela que escribió en vez de criticar o problematizar
la realidad que representó. La implicación parece haber sido que el arte debe
representar el mundo de un modo particular.” (DALY 2012, p. 65)Em outras
palavras, a crítica ao romance de Arguedas era maispolítica que literária, uma
2 vez que sua obra era contraria à agenda progressista do paradigma desarrollista
peruano da década de 1950.
0 O posicionamento político de Arguedas e as situações que o estimularam
a escrever “Llamado a algunos doctores” explicitam o lugar do qual o eu lírico
1 enuncia: o âmbito andino; a alteridade da sua escrita, sua oposição à modernidade
ocidentalizada, nos permitem realizar uma leitura a partir da perspectiva de uma
8 lógica indígena: a antropofagia, pois consideramos que o chamado de Arguedas é
um convite para que o homem moderno olhe o outro,para que (re)conheça o indígena
e sua cosmovisão.
Ao mesmo tempo, usar da antropofagia como um pensamento que
governe uma análise e postura acadêmica, nos permite, acreditamos, ser partícipes
do posicionamento de Arguedas, pois usar dessa categoria como perspectiva
epistemológica e hermenêutica intenciona dessacralizar a lógica ocidental, uma
vez que remete a recorrer ao “selvagem”, àquilo que no/pelo discurso hegemônico é
entendido como não civilizado, não cientifico, inculto, inumano, inválido.
Tais adjetivações associadas ao indígena e aos âmbitos de produção de
sentido que o circundam e que o homem ocidental, moderno, usa para construir-
se na antítese desta categorização, vale ressaltar, inventada por ele mesmo, se
percebem nas primeiras estrofes do poema. Aquia lógica etnocêntrica é questionada
pelo eu lírico e nos introduz ao confronto ideológico que se fará presente no decorrer
da narração.
Dicen que no sabemos nada, que somos el atraso, que nos han de cambiar
la cabeza por otra mejor. /Dicen que nuestro corazón tampoco conviene a
J los tiempos, que está lleno de temores, de lágrimas, como el de la calandria,
como el de un toro grande al que se degüella, que por eso es impertinen-
te./Dicen que algunos doctores afirman eso de nosotros, doctores que se
A reproducen en nuestra misma tierra, que aquí engordan o que se vuelven
amarillos.(ARGUEDAS, 1966).
L É interessante observar as significações que o efeito anafórico do verbo
“dicen” nos permite tecer, sua repetição pode ser entendida como o reclamo de
L uma voz individual/coletiva, que questiona a constante produção de sentidos e
sua repercussão histórica e social que afincam no imaginário popular a associação
A dos indígenas com o atraso do moderno. O verbo conjugado em terceira pessoa do
plural, desenha uma fronteira discursiva entre um nós (indígenas) e um eles (o
homem branco, o homem moderno) que indica “as posições de sujeito fortemente
marcadas por relações de poder6” (tadeu da silva). O embate que o eu poético propõe
é relativizar a capacidade e desnaturalizar as verdades que o discurso dos doutores
• ou homens da ciência produzem.
Sua crítica não tange apenas aos doutores do norte do globo, cuja
159
natureza “hierárquica das relações Norte-Sul permanecem cativas das relações
• capitalistas e imperiais” (MENESES, 2008, p. 5) e no qual “os ‘outros’ saberes,
para além da ciência e da técnica, têm sido produzidos como não existentes e,
por isso, radicalmente excluídos da racionalidade moderna” (MENESES, 2008,
p. 05), mas também aos “doctores que se reproducen en nuestra misma tierra”,
acadêmicos, urbanos, que compartilham dessa mesma lógica, como aqueles que
2 criticaram seu romance Todas las sangres: “doctores educados en centros urbanos
y desconectados de losotros sectores rurales de Perú llegan a estas mismas regiones
0 con la intención de practicarmetodologías e imponer soluciones occidentales a
problemas que requieren intervenciones alternativas” (DALY 2012, p. 65). E nessa
lógica violenta, a catequização da ciência ocidental que se estabelece por dicotomias
1
(razão e emoção, mente e corpo, divino e secular), sugere trocar as cabeças e
inutilizar o impertinente coraçãodo indígena,se desfazer dos seus conhecimentos
8 sempre atrelados a sua vivência e afetuosidade com a natureza.
Nos próximos versos, a resposta ante as afirmações dos doutores da
ciência vem carregada de ironia “Que esténhablando, pues: que esténcotorreando,
si esolesgusta” (ARGUEDAS, 1966), o coloquialismo cotorreando significa falar
excessivamente, sem filtro, sem reflexão, entendemos a escolha desse vocábulo
6 Tadeu da Silva (2000) indica que dividir o mundo social entre “nós” e “eles” significa classificar e
tal processo, central para a vida social, é um ato de significação pelo qual dividimos e ordenamos
o mundo social em grupos, em classes. E tais classificações obedecem a uma lógica de poder, pois
são feitas a partir do ponto de vista da identidade hegemônica.
como uma subversão, onde o discurso hegemônico é ridicularizado, uma burla
que fabrica o riso e que relativiza o poder, uma vez que “É preciso rir do inimigo
e do que dele ficou dentro de nós [...] É preciso rir o riso crítico que denuncia a
comicidade dos protagonistas, conquistadores e conquistados, na vã tentativa de
vestir, e de impor, a apertada roupa cultural de quem manda ou pensa mandar.”
(MARTINS, 1993, p.16).
Assim sendo, o verso anterior que no riso fissura o discurso hegemônico,
J dá abertura para que o eu lírico questione tal lógica com perguntas cuja
materialidade orgânica coloca em evidência que as categorizações feitas por atos
A de criação linguística, aquelas que coisificam e encaixotam os corpos-discursos
indígenas no conceito de subumano da modernidade, desmoronam ante a evidência
L material de um corpo “¿De quéestánhechos mis sesos? ¿De qué está hecha la carne
de mi corazón?” (ARGUEDAS, 1966). Essas indagações também as entendemos
como uma tentativa de aproximação, um vínculo biótico, um comum denominador
L capaz de aproximar os seres, mesmo em um mundo fragmentado.É possível tal
aproximação? Nos próximos versos Arguedas propõe que sim: “Saca tu larga vista,
A tusmejoresanteojos. Mira, si puedes.” (ARGUEDAS, 1966).
A condição necessária, proposta pelo autor, para tal aproximação, é que
o homem ocidental e/ou ocidentalizado precisa problematizar sua subjetividade,
sua faculdade evidente da história, incomodar seu olhar governado pelos filtros da
cultura ocidental, “sacar su larga vista”, seus “mejoresanteojos”, espreitar além
• da superfície visível e mergulhar em outras experiências sensitivas: uma relação
160 concreta com a existência conforme indicado no fragmento a seguir
Quinientas flores de papas distintas crecen en los balcones de los abismos
•
que tus ojos no alcanzan/ sobre la tierra en que la noche y el oro, la plata y
el día se mezclan. / Esas quinientas flores, son mis sesos, mi carne./¿Por
qué se ha detenido un instante el sol, por qué ha desaparecido la
sombra en todas partes, doctor?/ Pon en marcha tu helicóptero y sube aquí,
si puedes. Las plumas de los cóndores, de los pequeños pájaros se han con-
2 vertido en arco iris y alumbran./ Las cien flores de la quinua que sembré
en las cumbres hierven al sol en colores, en flor se ha convertido la negra
ala del cóndor uy de las aves pequeñas./ Es el mediodía; estoy junto a las
0 montañas sagradas: la gran nieve con lampos amarillos, con manchas roji-
zas, lanzan su luz a los cielos./ En esta fría tierra, siembro quinua de cien
colores, de cien clases, de semilla poderosa. Los cien colores son también mi
1 alma, mis infaltables ojos.(ARGUEDAS, 1966)
8 Nos versos supracitados identificamos o que Estermann (2008) denomina
como filosofia andina, cujo estatuto filosófico de pensamento contrário à filosofia
ocidental não se estabelece mediante um entendimento dual da realidade e não
tende a ser uma representação conceitual, mas simbólica. As basesdesta filosofia
se encontram nos princípios da relacionalidade, da complementaridade, da
correspondência e da reciprocidade. Tal simbolismo relacional, nessa cosmovisão,
recebe o nome de Yanantin, uma cosmogonia ou pensamento paritário andino.
Tércio Felahuer (2016), citando a Lajo (2006), explica que na etimologiaquéchua
o vocábuloYanan’significa “‘enamorado’, ‘cautivo del amor’ (sea hombre o mujer),
una esclavitud ‘voluntaria’, forzosa e irrenunciable. [...] Con la unión del sufijo ‘tin’
se refuerza el sentido aglutinante, proyectando Yanantin como la idea de ambos
amantes juntos” (LAJO, 2006, p.88 apud. FELAHUER, 2016, p.58). Ainda, as
possibilidades etimológicas dessaterminologia, segundo Ninanturmanya (2013),
podequalificar a atração “enamorada Yanan como determinada por lo invisible,
donde yananes el complemento de lo invisible, especie de mundo no tangible
de los afectos [...] ‘complemento-sabiduria’ de si, o también, como su ‘fuente de
transformación” (NINANTURMAYA, 2013 apud FELAHUER, 2016, p.58).
J A lógica de atração dos pares complementários que “engendran sabidurías
de lo invisible, de lo indeterminado”(NINANTURMANYA, 2013 apud FELAHUER,
A 2016, p.58), reflete-se nos simbolismos que Arguedas usa para confeccionar os
versos, ondeelenca elementos da naturezaa seu proprio corpo, por exemplo em
L “Esas quinientas flores, son mis sesos, mi carne”. No poema existe uma inserção
mítica e a “(re) presentación cúltica y ceremonial simbólica de la misma. La realidad
se ‘revela’ en la celebración de la misma, lo que es más que una representación,
L puesto que es más un ‘recrear’ que un ‘repensar’”. (ESTERMANN, 1998, p.92).
Diferente da lógica ocidental, na lógica andina não existe uma partição entre o vivo e
A o inerte, entre o céu e a terra, entre o religioso e o profano.Percebemosa proximidade
entre o divino e o humano no verso “estoy junto a lasmontañas sagradas”. Dessa
forma, como enuncia Estermann, na cosmogonia andina “não há vida de uma
forma isolada, mas apenas por meio de uma rede de relações complementares”
(ESTERMANN, 2008, p. 32).
• Assim, o Yanantin como categoria de entendimento mais amplo, evoca
161 o pensamento paritário andino perpassado pela natureza espiritual e material
do mundo. O que significa que nesse paradigma de pensamento o mundo se
•
estabelece em um cosmos par, além da noção de universo da cultura ocidental,
mas como um duo-verso (LAJO, 2006, p.79 apud. FELAHUER, 2016, p. 61), cujas
relações complementaresnão são estáticas, pois obedecem a um movimento que no
estudo de Felahuer (2016), se identifica com a terminologia quéchua Yanantinkuy,
na qual à raiz Yanan(paridade cósmica) se lhe agrega o sufixo tinkuy(encontrar,
2 alcançar), que traduz a potência e a complexidade da cosmologia andina e seu
sentido dinâmico no encontro dos pares em movimento, no aqui e agora.
0 Essaideia está impregnadano poema de Arguedas e pode ser identificada
nasimagens poéticas: “sobre la tierra en que la noche y el oro, la plata y el día se
1 mezclan”, “Por qué se ha detenido un instante el sol”, “Pon en marcha tu helicóptero
y sube aquí, si puedes.” E também se encontram nos versos subsequentes:
8 Yo, aleteando amor, sacaré de tus sesos las piedras idiotas que te han hun-
dido. /El sonido de los precipicios que nadie alcanza, la luz de la nieve ro-
jiza, de espantado, brilla en las cumbres. / El jugo feliz de los millares de
yerba, de millares de raíces que piensan y saben, derramaré tu sangre, en
la niña de tus ojos. / El latido de miradas de gusanos que guardan tierra y
luz; el vocerío de los insectos voladores, te los enseñaré hermano, haré que
los entiendas. /
Las lágrimas de las aves que cantan, su pecho que acaricia igual que la au-
rora, haré que las sientas y las oigas (ARGUEDAS, 1966).
2
0
1
8
J
A
L TUÍRA – POLÍTICA E SONORIDADE DA LÍNGUA CAIAPÓ PARA O
TEATRO EM MINIATURA
L
Cássia Macieira (UEMG)
A RESUMO:Tuíra:Índia Kaiapó– espetáculo em caixa miniatura ou teatro lambe
lambe1, institui-se como tradução intersemiótica pela transcriação da fotografia
em dramaturgia. Espectadores, hoje,relembram a resistência à construção de
hidrelétricapela recuperação fotojornalística da época, acrescida da sonoridade da
língua caiapó. Na cena, repete-se o gesto político de Tuíra,com terçadono rosto do
• Diretor de Planejamento e Engenharia da Eletronorte. Reapresentar esta imagem
advém da perplexidade dianteda usina erguida, além da repúdia pela violação dos
175
direitos indígenas.
•
Palavras-chave: Adaptação. Transcriação. Tuíra-Kaiapó. Bonecos. Caixa Miniatura.
p. 237).
7 ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 3ª edição. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária, 1987, p. 62-67.
A atividade política é configurada pela constante tensão entre o dissenso
(resistência permanente) e o consenso (ordem estabelecida), na medida em que
a pretensa igualdade que deveria existir entre os sujeitos não é conferida. É na
percepção sensível que se instaura odissenso e se percebemos desacordos acerca
da situação; o sujeito incluído na comunidade– sujeito político – é o interlocutor em
uma cena polêmica8 de dissenso.
É desse lugar que se torna visível a criação do espetáculo Tuíra: do
J fotojornalismo à ficção pulsionada pela fotografia (signo não-verbal).Tal transposição
foi definida por Roman Jakobson como sendo aquele tipo de tradução que “consiste
A na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não verbais”
(PLAZA, 2001, introdução), ou de um sistema de signos para outro; por exemplo,
L da arte verbal para a música, a dança, o cinema, a pintura, ou vice-versa.
A fotografia midiatizada tornou-se citação sob a perspectiva de não
determinar um lugar para a Índia Tuíra como mártir, porém é notório que
L
qualquer “imagem como choque e imagem como clichê são dois aspectos da
mesma presença” (SONTAG, 2003, p.24), e que todas elas “esperam sua vez de
A serem explicadas ou deturpadas por suas legendas (SONTAG, 2003, p. 14)”.Ao
reivindicar a fotografia à tradução intersemiótica, têm-se a ideologia (ethos) e o
afeto (pathos): no aprisionamento e captura da imagem como história, provocando
o desencadeamento do processo criativo, e na premissa de arrancar o ‘percepto’ da
fotografia, o ‘afecto’, das afeições, como transição de um estado a outro.
• O afecto não é a passagem de um estado vivido a um outro, mas um devir
178 não humano do homem. [...] não é uma imitação, uma simpatia vivida, nem
mesmo uma identificação imaginária. Não é a semelhança, embora haja
• semelhança. É antes uma extrema contiguidade, num enlaçamento entre
duas sensações sem semelhança [...] (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 224-
25).
II
ACALANTO DO SERINGUEIRO
Seringueiro brasileiro,
Na escureza da floresta
Seringueiro, dorme
Ponteando o amor eu forcejo
Pra cantar uma cantiga
Que faça você dormir.
Que dificuldade enorme!
J Quero cantar e não posso,
Quero sentir e não sinto
A A palavra brasileira
Que faça você dormir...
L Seringueiro, dorme...
Como será a escureza
L Desse mato-virgem do Acre?
Como serão os aromas
A A macieza ou a aspereza
Desse chão que é também meu?
Que miséria! Eu não escuto
A nota do uirapuru!...
Tenho de ver por tabela,
• Sentir pelo que me contam,
188 Você, seringueiro do Acre,
189 A partir do final dos anos 1970, o trabalho do artista plástico Hélio Melo
ganhou destaque em Rio Branco, Acre, depois que o ex-seringueiro amazonense
•
passou a expor suas réplicas de barcos e pinturas sobre o cotidiano do seringueiro.
Depois de fazer contato formal com a pintura em curso com o pintor Genésio
Fernandes, mineiro à época radicado no Acre, Melo expandiu sua produção artística,
experimentando tintas elaboradas por ele a partir da própria floresta, retratando,
entre muitos outros, temas surrealistas em que fauna e flora aparecem misturados
2 em formas híbridas.
Melo também era músico e publicara os livretos O caucho e a seringueira,
0 Histórias da Amazônia,Osmistérios da mata, Os mistérios dos répteis e dos peixes,
A experiência do caçador, Os mistérios dos pássaros e Via Sacra da Amazônia,
1 reunidos em volume único em 2000, com apoio da Fundação Elias Mansur,
mantida pelo governo do Estado do Acre. Os livretos reuniam pequenos verbetes
8 sobre a floresta e chamavam atenção pelas ilustrações do próprio autor, tornando-
se uma história peculiar entre os muitos seringueiros que trocaram a floresta
pela capital do Acre, escreveram suas histórias em cordel e foram vendê-las pelas
ruas do centro de Rio Branco. Ao analisar esses livretos, chama atenção como
Melo, à maneira dos naturalistas que percorreram a Amazônia, procura mapear
fauna, flora, discorrendo também sobre a população local e as mudanças ocorridas
durante a Segunda Guerra Mundial, como no texto “Praia dos Paus”:
Importante é que a guerra lá fora continuava rolando e os americanos nem
se preocupavam, passeando o tempo de barco e avião.
Dizem que eles se engraçaram de um lugar a Praia dos Paus e, de tempos
em tempos, iam lá, fazendo pouso na água. Não se sabe até hoje o porquê.
Também, quando chegou a notícia do término da guerra, eles logo venderam
as embarcações e os aviões foram vendidos para a FAB.
Dos nordestinos que vieram trabalhar em benefício da nação, ainda alguns
ainda continuam batalhando. São eles os chamados “Soldados da Borra-
cha”, sem patente e nem divulgação. (MELO, 2000, p. 56).
A CUNHA, Euclides da. Judas-Asvero. In:___ .Um paraíso perdido: Ensaios, estudos e pro-
nunciamentos sobre a Amazônia. Rio Branco:Fundação Cultural do Estado do Acre, 1998.
HATOUM, Milton. Expatriados em sua própria pátria. In: Cadernos de Literatura Brasi-
L
leira nº 13 – 14. Instituto Moreira Salles, 2002.
MELO, Hélio. O Caucho e a Seringueira. Rio Branco:Fundação Elias Mansour, 2000.
L
RAWET, Samuel. Contos e novelas reunidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
SECRETO, Marìa Verónica. Soldados da Borracha: Trabalhadores entre o sertão e a Ama-
A zônia no governo Vargas. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Pri-
meira República. São Paulo: Brasiliense, 1999.
SILVA, Francisco Bento da. Acre, a Sibéria Tropical: Desterros para as regiões do Acre em
1904 e 1910. Manaus: UEA Edições, 2013.
•
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte:Editora UFMG,
192 2012.
• Cinematográficas
Soldados da Borracha. Direção e roteiro: Cesar Garcia Lima. Brasil, 2010. 27 minutos.
2
0
1
8
J
A
L CARTOGRAFIA DA MELANCOLIA NA (DES) CONSTRUÇÃO DE
MANAUS NA OBRA DE MILTON HATOUM
L
Cristiane de Mesquita Alves (UNAMA)
A RESUMO: O objetivo deste artigo é apresentar a cartografia da melancolia de
Manaus no processo de transformação comercial e (des) formação identitária da
cidade a partir do olhar melancólico de Nael, narrador e personagem do romance
Dois Irmãos (2000) de Milton Hatoum, com base no método cartográfico social
(DELEUZE & GUATTARI, 1995) que desenha o mapeamento das relações humanas,
• como uma estratégia de análise crítica diante da (des) construção da cidade no
processo de desenvolvimento urbano-industrial dos espaços flutuantes, que são
193
apresentados de formas despedaçadas (BAUMAN, 2005), tanto quanto as vidas das
• personagens que convivem neste espaço. Desse modo, a cidade acaba refletindo
o processo melancólico vivenciado pela personagem principal que narra (ALVES,
2017) o romance; assim a melancolia resulta como um espelho mútuo que reflete
as formas e as criaturas que se postam a sua frente (STAROBINSKI, 2014), no caso
desta investigação, de Nael frente a Manaus e vice-versa.
2 Palavras-chave: Cartografia. Melancolia. Manaus. Espelho.
0 Introdução
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
1 Há tal soturnidade, há tal melancolia,
-sí…
O autor diz ainda que o projeto de nação que emerge a partir de 1930 se
contrapõe a antiga lógica da republica dos governadores, passando a evidenciar
um tratamento diferenciado de favorecimento para com os grandes investidores
industriais (REIS, 2007, p. 94).
Como o Acre era ligado administrativamente à presidência da república
desde sua incorporação ao Brasil, essa elite política regional sempre teve que
lidar com as negociações junto a um poder central. Mesmo com as modificações
verificadas ao longo de 1930, essa elite não viu surgir nem no âmbito do território
nem no da região Amazônica a presença dos industriais.
J O vale do Acre permaneceu, portanto, uma região marginal, precária e
dependente do governo federal e seus projetos nacionais. A centralização operada
A pelo governo Vargas significou para as outras elites do país certa interdição junto
ao governo federal. Como o Acre era um Território Federal, ou seja, a rigor uma
L zona de ocupação militar, as elites já tinham manejo calejado com o centralismo
desde 1903.
L O grande diferencial foi que a partir de Getúlio Vargas o governo central
passou a vigiar mais de perto seus administradores no longínquo Território do
Acre, elegendo como seu mediador na região a Legião Autonomista, que é investida
A de poderes especiais, maiores até do que os governadores nomeados pelo Palácio
do Catete. A questão era tentar controlar a independência dessa elite e dos
governadores/interventores nomeados pelo gabinete da presidência.
Nesse caso é exemplar quando o gabinete do Palácio do Catete envia a
Legião um pedido de informações a respeito do juiz federal José Moreira Brandão
•
Castelo Branco Sobrinho em agosto de 1934. Ao receber a comunicação Guilhermino
215 Bastos e outros dez comerciantes respondem imediatamente dizendo que Castelo
• Branco goza de apoio irrestrito de todas as classes sociais, sendo ele um homem
justiceiro, integro e honrado (Telegrama ao gabinete da presidência. Guilhermino
Bastos et all. Agosto de 1934. Arquivo Nacional).
A força da Legião é tão considerável que em março de 1935 eles constituem
uma malta de opositores ao interventor João Felipe Sabóia Ribeiro e atacam sua
2 residência, exigindo que fosse embora do Acre. Através de um depoimento da
esposa do então interventor, dona Ana Damasceno, fica-se sabendo como foi a
0 cena e qual a extensão do poder da Legião (Telegrama ao gabinete da presidência.
Ana Damasceno. 16 de março de 1935. Arquivo Nacional ).
1 Damasceno diz que no dia quinze o Procurador da República, Mario
de Oliveira, o comerciante Guilhermino Bastos, o juiz federal Severino Souza
procuraram ainda de madrugada a delegacia de polícia, saindo de lá com uma
8 malta de capangas com mais de quinze homens. Segundo o relato bradavam em
urros que o interventor era um traidor e deveria deixar o Acre. Saindo da delegacia,
a malta rumou para a casa do desembargador Jayme Mendonça, que foi espancado
até quase a morte.
De lá o grupo trouxe o desembargador desacordado, arrastando-o pelas
ruas até chegarem à frente da casa de Sabóia Ribeiro. Nesse momento o senhor
Flaviano Flávio Batista começou a incitar os presentes a invadir a residência, mas
dona Ana Damasceno e outras mulheres conseguiram impedir a invasão. O grupo
se dispersou e somente aí se conseguiu ajudar no socorro do desembargador, que
foi deixado no chão.
Na manhã seguinte Ana Damasceno descreveu a cena em um telegrama e
o enviou ao gabinete da presidência. Após a descrição ela solicitou, “por obsequio”,
providências e segurança aos lares acreanos, denunciando os atos da Legião
Autonomista e a malta de capangas por eles liderados (Telegrama ao gabinete da
presidência. Ana Damasceno. 16 de março de 1935. Arquivo Nacional).
J Pouco tempo depois os diretores da Legião, Guilhermino Bastos e o
ex-governador do território, Cunha Vasconcelos, enviaram uma comunicação
A ao presidente prestando esclarecimento sobre o ocorrido. Dizem que a esposa
do interventor inventou notícias sem fundamento a respeito da Legião, porque
L tanto ela quanto seu esposo estavam se filiando a pessoas contrarias ao regime
revolucionário. A seguir assumem que atacaram o interventor, mas minimizam as
violências informando que a dona Ana Damasceno procurou jogar com as palavras
L
para aumentar o teor do ataque. Concluem dizendo que a Legião procurou somente
advertir o interventor sobre suas alianças (Telegrama ao gabinete da presidência.
A Guilhermino Bastos e Cunha Vasconcellos. 19 de março de 1935. Arquivo Nacional).
De todo modo Saboia Ribeiro foi deposto do cargo um mês depois,
sendo convocado a prestar esclarecimentos sobre o ocorrido no Palácio do Catete.
Interinamente foi substituído por Manoel Martiniano Prado (Telegrama ao gabinete
da presidência. Guilhermino Bastos e Flávio Batista. 21 de fevereiro de 1937.
• Arquivo Nacional ).
216 Todo esse processo de ataque ao interventor em 1935 é uma evidência
• de que a Legião se portava no Acre como o braço de vigilância de Getúlio Vargas.
Alguns integrantes da agremiação ocupavam cargos de destaque no governo federal,
como Mario de Oliveira que era Procurador da República. Investidos desses direitos
especiais, Guilhermino Bastos e seus aliados atingiam o ápice de seus poderes
locais, conseguindo impor inclusive suas vontades aos políticos nomeados pelo
2 próprio presidente Getúlio Vargas.
Esse papel conferia aos membros da Legião certa independência perante
0 o governo central, porque poderiam agir como vigilantes dos governadores/
interventores do território. Essa independência relativa pode ser demonstrada
quando o gabinete da presidência procura a Legião, logo após a retirada de
1 Martiniano Prado do cargo, para que indique um nome para administrar o Acre.
A resposta da Legião diz que naquele momento seus sócios não indicariam
8 nenhum nome ao presidente, porque procuravam se manter neutros e defensores dos
ideais revolucionários em vigor no Brasil. O documento assinado por Guilhermino
Bastos e Flávio Batista encerra dizendo que
Diante do pedido de demissão do interventor Martiniano Prado, os abaixo
assinados, interpretes das famílias acreanas, classes liberais, conservado-
res, comparecem diante do presidente para indicar a nomeação para o cargo
alguém alheio a competição eleitoral do território, senão serão reproduzidos
os tristes acontecimentos desenrolados no governo interino de João Felipe
Saboia Ribeiro (Telegrama ao gabinete da presidência. Guilhermino Bastos
e Flávio Batista. 21 de fevereiro de 1937. Arquivo Nacional).
Procurando não indicar nomes, mas apenas uma diretriz de que o novo
interventor fosse alguém alheio aos interesses das elites locais, os interlocutores da
Legião davam a entender ao governo central que gostariam de continuar no papel
de vigilantes autorizados da administração territorial. Exigindo que o interventor
fosse um personagem neutro, a Legião mandava um recado de que gostaria que o
governo ficasse de fora dos seus assuntos.
A tarefa de vigilância pode ser verificada em mais um caso, envolvendo o
J substituto de Martiniano Prado, Epaminondas Martins. A Legião em um primeiro
momento apoia o novo interventor, mas logo que esse começa a administrar o Acre
A sem negociar a nomeação de cargos junto com a agremiação, a oposição começa a
aflorar.
L Após alguns meses de iniciado o governo, a Legião Autonomista faz uma
reunião e envia uma carta conjunta, em que informa ao gabinete da presidência
as ações do interventor, que apesar dos bons trabalhos têm persistido para com a
L
prática de afastar o apoio popular ao governo. Na carta a agremiação afirma que o
governador agiu indevidamente ao nomear um analfabeto como juiz municipal, o
A senhor Zacarias Abreu.
Abreu foi nomeado para juiz da vila de Mâncio Lima, mas segundo a direção
da Legião o mesmo não sabe ler nem escrever. No vale do Juruá Abreu é conhecido
por sua falta de compostura e tem o apelido de Mucuim, por andar sempre sujo
e mal vestido. A Legião informava que agindo dessa forma, o interventor colocaria
• em risco a legitimidade do governo revolucionário em todo o Acre (Telegrama ao
217 gabinete da presidência. Legião Autonomista Acreana. 8 de setembro de 1937.
• Arquivo Nacional ).
No início de outubro o interventor é chamado às pressas ao Rio de
Janeiro para responder um inquérito sobre suas atividades no Acre. A Legião
congratula o presidente pala ação em reprimir os excessos de Martins, informando
que os acreanos esperam confiantes que o presidente restituirá a tranquilidade e
2 segurança da região (Telegrama ao gabinete da presidência. Diretório Central da
Legião Autonomista. 4 de outubro de 1937).
0 Especificamente no Acre a ditadura de Getúlio Vargas tinha que manter
uma interlocução com uma determinada parcela da elite regional. Nesse cenário
onde o poder central negociava com seus aliados na região, Guilhermino Bastos
1 aparece como um dos protagonistas, exercendo cargos na direção da Legião
Autonomista. Pode-se concluir daí que a empresa onde era um dos associados
8 possuía uma posição política privilegiada ao longo da década de 1930, atingindo,
junto com seus aliados, o ápice do exercício de seu poder político.
A articulação que propomos ao longo dessa breve exposição é como a
lógica paternalista foi executada por membros de uma determinada elite local.
Os contextos gerais, determinantes, são eles próprios determinados por filtros
conscientemente colocados por indivíduos em suas relações sociais. Nos casos aqui
demonstrados as práticas sociais de coerção e submissão são mediadas sempre
por problemas cotidianos onde as pessoas se defrontam com outras em diversos
níveis, onde umas têm mais poderes que outras, alguns se equivalem e certas forças
externas devem passar pelo crivo local. Esse movimento inspira-se teoricamente
nas proposições expostas em O queijo e os vermes, sobretudo no rastreio que há
entre uma cultura de um tempo e as interações que a produz (GINZBURG, 1987,
p. 12).
Considerações finais
Retomando alguns pontos, fica claro que o exercício de poder dos
seringalistas na cidade de Rio Branco era pautado pelo uso da violência seja
J ela direta, como nos casos envolvendo o espancamento de Neutel Maia e Jayme
Mendonça, ou subliminar. O confronto entre o próprio Neutel Maia e o então
A governador Epaminondas Jácome trata dos conflitos que ficavam nas entrelinhas,
expondo inclusive desvios de verba pública e tráficos de influência. Os casos da Era
L Vargas lançam uma luz no que diz respeito ao alcance que o poder dos seringalistas
atingiu naqueles anos, fazendo com que o regime negociasse nas terras acreanas
L com esse grupo.
Como observado brevemente, tais atividades são parte essencial de um
processo histórico de constituição de uma rede hegemônica das elites regionais
A
dessa parte do Brasil, que se conectavam a outras e lançaram bases para que seus
herdeiros pudessem atuar até a contemporaneidade. Longe de verificarmos o fim
dos coronéis, o desenrolar do período republicano brasileiro viu fortalecer os laços
entre aqueles que ocupam o poder central com os que estão nas várias regiões do
país.
•
218
Referências
CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão con-
• ceitual. In: Revista Dados, Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 40, n. 2,
1997, pp, 229-250.
________________________. As metamorfoses do coronel. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro.
06 maio 2001, p. A-9
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis historiador. São Paulo: Companhia das Letras,
2 2003.
COSTA, Craveiro. A conquista do deserto ocidental. Rio Branco: Fundação Cultural/
0 Ministério da Cultura, 1998.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido
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Fora, vol. 13, n 2, p 87-108, 2007.
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1910. Petição inicial.
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1921. Petição Inicial.
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de janeiro de 1933. Arquivo Nacional.
Telegrama ao gabinete da presidência. Flávio Batista et all. 25 de maio de 1934. Arquivo
Nacional.
Telegrama ao gabinete da presidência. Guilhermino Bastos et all. Agosto de 1934. Arquivo
Nacional.
Telegrama ao gabinete da presidência. Ana Damasceno. 16 de março de 1935. Arquivo
Nacional.
J Telegrama ao gabinete da presidência. Guilhermino Bastos e Cunha Vasconcellos. 19 de
março de 1935. Arquivo Nacional.
A Telegrama ao gabinete da presidência. Guilhermino Bastos e Flávio Batista. 21 de fevereiro
de 1937. Arquivo Nacional.
L Telegrama ao gabinete da presidência. Legião Autonomista Acreana. 8 de setembro de
1937. Arquivo Nacional.
Telegrama ao gabinete da presidência. Diretório Central da Legião Autonomista. 4 de ou-
L
tubro de 1937. Arquivo Nacional.
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A
L ÁFRICA E DIÁSPORA: LEITOR, LEITURA, FORMAÇÃO DO LEITOR
E INTELECTUALIDADE FEMININA NA LITERATURA
L
Denilson Lima Santos (UNILAB)
A RESUMO:A literatura permite estabelecer diálogos múltiplos. Nesse contexto,
apresenta-se as autoras Isabel Ferreira (Angola), Conceição Evaristo (Brasil),
Amalia Lú Posso Figueroa (Colômbia) e MaríaNsuéAngüe (Guiné Equatorial) como
exemplos de mulheres escritoras que elaboram narrativas em que se pode observar
e refletir sobre três categorias, a saber, o leitor, a leitura e a formação do leitor, no
• processo criativo textual e no espaço da intelectualidade feminina africana e afro-
latino-americana. Para isso, lança-se mão da literatura comparada como método
220
de investigação com o objetivo de compreender o texto em uma perspectiva ampla
• e capaz de formar outras epistemologias e estéticas. Faz-se necessário entender
e visibilizar outras vozes e letras no cenário da arte escrita. Por esta razão, as
narrativas destas autoras podem ser consideradas como mote para perceber e
dialogar sobre o papel da mulher no processo de criação das estruturas e formas
literárias na contemporaneidade. Assim, podemos dizer que as escritoras se inserem
2 na discussão da tradição da palavra prenhe de saberes africanos e diaspóricos
presentes nos contos e romances.
0 Palavras-chave: Leitor. Leitura. Formação do leitor. Intelectualidade feminina.
Narrativa
1 Introdução
Narrar é viver, talvez é possível entender a sobrevivência e a permanência
8 de Sherazade em “Mil e uma noites”. A mulher que narra, conta eressignifica as
tramas da vida. É sob a perspectiva de uma prosa elaborada por mulheres que
nessas linhas se refletirá sobre a leitura, o leitor e sua formação, bem como o
processo de construção da intelectualidade feminina afrodiaspórica – tal expressão
será utilizada para delimitar o continente africano e o outros países, sobretudo,
os da América Latina onde estão presentes os descendentes dos africanos, que
sequestrados em seus territórios, foram trazidos na condição de escravo para essas
terras.
Para entender as tramas do processo entre narrar e as estratégias
de leituras, abarcando a formação e o papel do leitor, pretende-se fazer uma
aproximaçãode África e da Diáspora. Do outro lado do Atlântico dialoga-se nesse
ensaio comMaríaNsuéAngüe, da Guiné Equatorial e com Isabel Ferreira, de Angola.
Desse lado das Américas, a conversa se dá com Conceição Evaristo,do Brasil e com
Amalia Lú Posso Figueroa, da Colômbia. Essas quatros mulheres e em especial
suas obras, na respectiva ordem,Ekomo (1995 [2007]), O Guardador de Memórias
(2007), Becos da Memória (2006) e Veave mis nanas negras (2001[2011]) serão
analisadas a partir da perspectiva da construção do narrador e das personagens.
J Para traçar um percurso comparativo, lançamos mão do conceito de narrador
exposto por Walter Benjamim (1993) e Silviano Santiago (2002).Além de refletir
sobre a tríade autor-texto-leitor de Cândido (2006).
A
Pensar a narrativa afro-diaspórica é pensar na tradição literária a partir
L da tríade autor-texto-leitor mais além das raias da escrita. Muito além da letra,
resguarda um repositório de memórias e saberes. Especificamos esses saberes
aqui como corpus, isto é, “a complexidade [da] textualidade oral e oralitura da
L memória, os rizomas ágrafos africanos inseminaram o corpus simbólico europeu
e engravidaram as terras das Américas” (Martins, 1997, p.25). Não tratamos de
A oralidade impressa no papel, mas na oralitura que transcende o texto africano e
afro-latino-americano.
Outro ponto importante é o narrador e aqui será pensado a partir das
indagações sugeridas por Santiago (2002): “Quem narra uma história é quem a
experimenta, ou quem a vê? Ou seja: é aquele que narra ações a partir da experiência
• que tem delas, ou é aquele que narra ações a partir de um conhecimento que
221 passou a ter delas por tê-las observado em outro?” (p. 44). Nesse percurso, pensa-
sena narração como relatar uma experiência ou como a observação configurada
•
na transcendência da palavra. É estar no papel de autor e leitor e estabelecer um
vínculo de cumplicidade com quem ouve.Pode-se pensar aqui o narrador como
mediador.
O ato de narrar, ou melhor, a figura do narrador se dilata em dois grupos:
2 o que viaja e tem o que contar e aquele que conhece suas tradições. Como assevera
Benjamin (1994), “quem viaja tem muito que contar’, diz o povo, e com isso imagina
o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o
0 homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas
histórias e tradições” (p.198). É nesse segundo grupo de narrador que dialogaremos
1 com as categorias de leitor e sua formação por meio das histórias e tradições afro-
diaspóricas. Para isso pensa-se o narrador como formador de leitor. Como aquele
8 que fará a leitura da tradição e ao mesmo tempo promove a formação crítica de
quem ouve as histórias. Nesse contexto, reflete-se também sobre o processo de
formação intelectual das personagens no aspecto da narração e da leitura das
tradições.
Narrar tradições e formar leitores
Na perspectiva de narrar e ao mesmo tempo formar leitores, isto é,
dialogar com as tradições, observa-se na obra de Isabel Ferreira, O guardador de
memórias, as figurações de mulheres que questionam a cultura e tradição de uma
Luanda moderna, porém calcada no patriarcalismo. Talvez seja por essa trama que
a narradora, no início do livro, se apresenta a partir de uma roupagem dramática
e crítica.
Estendida na cama à espera que chegue o meu hoje!
Bem no escuro da noite me ponho a pensar. Me ponho a rogar e praguejar.
A falar sozinha. A sussurrar. A reclamar com todo mundo. Sinto um quê de
revolta interior...
Nesta hora... Hum!
J Amaldiçoo tudo. Tudo me incomoda. Abro os olho e tu não está.
Estou presa ao amor de verdade. Todos os dias acordo e tu não estás.
A Sinto o meu corpo morno, e o meu desejo a esquentar nas veias. Passo a
mão no teu lado... não estás!
L A música toca
Um assobio meu é para esquecer o que não posso falar!
O coro musical me faz despertar a memória dos afectos que ainda vive em
L mim.
Estou cidrada a ouvir! Mas ... De repente...
A — Para! Não quero ouvir não quero ouvir ! Nunca dantes tinha sentido tre-
mendo pesar musical. Suspenso a ira. Balbucio uma asneira. Finjo um riso
como nos teatros. Sinto dentro de mim um certo incômodo.
Amo! Amo! Amo muito. Um amor que me consome as vísceras...Incomoda
mesmo é amar tanto! Amar... Amar... Amar...
• Amar é amar... amar a pessoa. Amar a cidade! Amo a minha cidade. Passo
todo ano na minha cidade. Não troco por nenhuma do mundo.
222
Ela tem ... Tem tudo! Tem tudo para alguns e nada para os zés-ninguéns.
• Por vezes é uma cidade vivendo do imaginário, do faz de conta que é, e não é
(FERREIRA, 2008, p.50).
• O ritmo de semear era nato a Caldondina e por isso tinha ante a comunidade
o prestígio de boa mão para plantar. A sabedoria de plantar e manejar a terra é
ancestral e o conhecimento de Secundina Caldón se misturou com o conhecimento
científico quando ela aprendeu aler com o botânico FloremiroAgualimpiaCañadas.
Ele descobriu que Secundina não sabia ler e passou a lhe ensinar as letras e a
2 decifrar o conhecimento livresco da obraCiencias de laTierra. O ato de ler para
a personagem se tonou complexo, pois nana “Caldondinapensaba que eso de
0 aprender a leer era complicadísimo y para qué se aprende si lo que una lee es una
arrecheradurísima que naidesentende” (FIGUEROA, 2011, p. 25). É possível que a
relação da personagem com a leitura é a de produção de sentidos. Assim
1 [n]essa perspectiva, o sentido de um texto é construído na interação texto-
-sujeitos e não algo que preexista a essa interação. A leitura é, pois, uma
8 atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, que se
realiza evidentemente com base nos elementos linguísticos presentes na su-
perfície textual e na sua forma de organização, mas requer a mobilização de
um vasto conjunto de saberes no interior do evento comunicativo (KOCH,
2006, p.11).
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J
A
L LA TIRANA: TEATRALIDADE ANDINA
L Douglas Henrique de Oliveira (UFMG)
RESUMO: A festa de La Tirana, celebração andina que acontece no meio do Deserto
A do Atacama, no Chile, é composta por coloridas manifestações de fé principalmente
de danças religiosas. São por volta de duzentos grupos que cada ano se dedicam
a reverenciar a imagem de Nuestra Señora del Carmen. As coreografias são uma
fusão entre antigas cerimônias incas e danças típicas em honra a Virgen del
Socavón, padroeira dos mineiros bolivianos. Com o passar do tempo, os grupos
• foram transformando em associações de fiéis, também chamadas de “irmandades”.
Este trabalho relaciona as manifestações das irmandades com os conceitos de
230
teatralidade. Teatralidade não é, em nenhum caso, um sinônimo de Teatro e sim
• um conceito que busca chamar a atenção sobre a encenação de imaginários sociais.
Entre suas características destaca-se a performatividade e sua potência política.
Ou seja, seu caráter construtor de repercussão na realidade.
Palavra-chave: La Tirana. Teatralidade. Festa.
2 ¡El Diablo!, dijo y la botó al fondo de la quebrada, convencido de que era el mismo demônio, mien-
tras sujetaba la cabalgadura, presa por espanto en un sendero tan estrecho como peligroso que
pudo acarrear una caída mortal.
(El diablo disfrazado de guagua, lenda de Tarapacá)
0
As imagens difundidas sobre a festa da Virgen del Carmen de La Tirana
1 ilustram os coloridos trajes usados por bailarinos e suas coreografias, instrumentos
musicais e expressões de um sacrifício devoto ao se pagar alguma promessa. Ainda
8 assim, a mídia se concentra nas representações das “diabladas”, que lançam mão
de enormes máscaras, roupas coloridas e bordadas. É essa expressão que chama a
atenção de devotos, viajantes e comerciantes durante os dias da festa. Com o passar
dos anos, as “diabladas” se tornaram o maior símbolo para recordar, descrever e
imaginas a festa popular.
La Tirana é um povoado, com aproximadamente 800 habitantes, que
fica no norte do Chile, mais precisamente a região denominada Norte Grande, é
onde o deserto do Atacama é escaldante pelo dia e gelado durante a noite. Região
de Tarapacá, marcada pela extração mineral e pela presença resistente de povos
autóctones, onde os povoados são oásis entre a Cordilheira Domeyko e o Oceano
Pacífico. É nesse pequeno oásis que existe uma das maiores expressões culturais
chilenas, a Fiesta de La Tirana.
As origens de La Tirana partem de lendas e histórias orais coletadas
e registradas pelo historiados peruano Rómulo Cúneo Vidal, estão datadas
aproximadamente pelo ano 1535, no meio da efervescência da conquista do Chile,
quando o capitão Don Diego de Almargo, vindo de Cuzco, entrou no norte do
país com 550 espanhóis e por volta de 10 mil índios. Entre eles dois de grande
J relevância: Paulino Tupac, príncipe da família imperial dos Incas e Huillac Huma,
último sacerdote do “culto ao Sol”, junto com a sua filha, a princesa Ñusta Huillac.
A Na tropa haviam também, sigilosamente infiltrados, vários “wilcas” – capitães dos
antigos exércitos imperiais incas – que planejavam seus planos de vingança contra
L os conquistadores.
Com emboscadas formadas pelos “wilcas”, o príncipe Inca foi morto. O
sacerdote Huillac Huma fugiu e sua filha também conseguiu escapar do desmonte
L
da tropa de Almargo, refugiando-se com um grupo de guerreiros em um bosque
de tamarugos, árvores típicas do deserto. Ñusta, nesse contexto, se converteu em
A capitã de um grupo cada vez mais numerosos de indígenas. O refúgio negava toda
a influência de colonização religiosa pelos espanhóis, inclusive Ñusta se tornou
sacerdotisa dos cultos Incas no tamarugal.
Tudo seguia em harmonia no refúgio até que apareceu pela região um
mineiro português chamado Vasco de Almeyda, que buscava a lendária “Mina
• del Sol”. A princesa se deixou levar por sentimentos amorosos que sentia com
231 o português a ponto de que se convertesse ao cristianismo. Seus guerreiros
• desconfiados, ao ver que a capitã renegava a religião inca, os mataram a flechadas.
Ainda assim, respeitaram a última vontade da princesa, colocando uma cruz em
sua sepultura.
Anos mais tarde, o missionário Frei Antônio de Rondón encontrou a cruz
e levantou no mesmo lugar uma ermida à Virgem do Carmem. A etapa de conversão
2 dos povos originários e sua evangelização foram, como sabemos, especialmente
complexos.
Si bien las formas del culto católico y su canto provocaron fascinación entre
0 los indígenas, tal como narran los primeros cronistas, no resultó fácil pues
no era solo el cambiar el nombre de um dios, sino que implico el cambio de
1 una cosmovisión ancestral a la que el nativo de continente no renuncio y no
ha renunciado nunca em su totalidad. Esto gênero la consolodación hacia el
siglo XVII de lo que conocemos como catolicismo popular, tan arraigado en
8 el alma latinoamericana. La Ñusta es expresión de ese proceso. (Museu de
la Vivencia Religiosa del Norte Grande)
Durante alguns séculos essa pequena ermida se manteve apenas como
centro de peregrinação familiar para os moradores da região que manifestavam sua
veneração pela imagem seus ritos, cantos e danças.
Em 1830 a região começou a viver uma grande transformação pelo
auge da exploração de salitre, gerando a fundação de vários centros de “oficinas
salitreras” que contratavam abundante mão de obra de todo o país, assim, esses
trabalhadores se habituaram a visitar a ermida de Nuestra Señora del Carmen.
Com o tempo, resolveram iniciar uma campanha de angariação de materiais para a
construção de uma igreja, a qual foi inaugurada no dia 16 de julho de 1886. Porém,
em 1930, o ocaso da exploração salitreiras chegou e as empresas foram fechadas.
Mesmo depois disso, os trabalhadores mantiveram a tradição de visitar a igreja
ao menos uma vez ao ano, no aniversário de sua inauguração. Hoje, essa visita
tradicional ganhou forma e é o que conhecemos como “La fiesta de La Tirana”.
As “diabladas” são as principais formas de expressão da festa. É evidente
J certa presença colonial ressignificada pelos povos autóctones na figura do diabo.
Na Europa se havia propagado a imagem do diabo com duas fortes variáveis: o
A maligno, que causava os pecados e a morte da alma, e a sátira como forma de
julgamento das diferenças sociais. Desse mesmo modo, a América colonizada,
L difundiu essa imagem do diabo europeu, levando em conta a representação da
figura no teatro religioso, a fim de catequizar as populações nativas. Os europeus
também trouxeram consigo o culto aos santos, a devoção à Virgem, o carnaval e o
L medo ao diabo. Essa configuração do diabo colonial seguia as formas e atributos do
mundo europeu, sendo representado por chifres, rosto de homem com elementos
A de bode, um rabo e uma malícia em seu modo de agir. Na região andina da colônia,
os indígenas perceberam no diabo uma figura ambivalente quanto ao seu poder.
Para eles, o diabo poderia gerar maldade ou fazer o bem, o que distanciou a ideia de
medo como acontecia na Europa e permitiu um diálogo com o demônio, assim como
faziam com seus ídolos e antepassados. Os ídolos escondidos entre os altares cristãos
• simbolizavam a hibridez de um pensamento religioso em constante transformação.
232 Para os teólogos coloniais, o anjo caído encontrou refúgio na América, lugar onde
era adorado por infiéis nativos. (ARAYA, 2011, p. 72)
•
2
0
1
Figura 1. “Los indios conversan con el demonio”. A figura mostra um diálogo entre os nativos e o demônio,
que possui características humanas e animais. (Cieza de León, 1553)
8
Os diabos da festa da Tirana têm uma configuração de grupos organizados.
São por volta de duzentos grupos que cada ano se dedicam a reverenciar a
imagem de Nossa Senhora do Carmo. As coreografias são uma fusão entre antigas
cerimônias incas e danças típicas em honra a Virgem del Socavón, padroeira dos
mineiro bolivianos. A “Fiesta Grande” acontece no dia de Nossa Senhora do Carmo,
feriado nacional no Chile, mas as danças e os preparativos começam em março,
com a confecção dos vistosos figurinos e os ensaios da coreografia. Com o passar do
tempo, os grupos foram transformando em associações de fiéis, também chamadas
de “irmandades”.
Podemos relacionar as manifestações das irmandades com os conceitos
de teatralidade. Teatralidade não é, em nenhum caso, um sinônimo de teatro e
sim um conceito que busca chamar a atenção sobre a encenação de imaginários
sociais. Entre suas características destaca-se a performatividade e sua potência
política. Ou seja, seu caráter construtor de repercussão na realidade. Por isso,
a teatralidade tem tanto a ver com os elementos artísticos e estéticos afetados
pela realidade. Assim podemos relacionar o conceito de teatralidade com rituais,
J cerimônias, festas, outras expressões culturais de um povo, além das artes, como
a dança, o cinema, litearatura e, até mesmo, o próprio teatro. A teatralidade é
definida pela estudiosa canadense Josette Féral como “um ato de transformação
A
do real, do sujeito, do corpo, do espaço, do tempo, portanto um trabalho a nível de
representação; um ato de transgressão do cotidiano pelo ato da criação”. (FÉRAL,
L 2004)
A teórica brasileira Sílvia Fernandes retoma Pavis para fazer a sua
L construção da teatralidade para o teatro:
Para o espectador aberto às experiências da cena, a teatralidade por ser, por
A exemplo, uma maneira de atenuar o real para torná-lo estético, ou erótico,
ou uma terapia de choque destinada a conhecer esse real, e a compreender
o político, ou ainda um embate potente de regimes ficcionais que parecem
disputar a primazia de constituição do teatro, ou simplesmente, e por que
não, o discurso linear de um narrador tencionado para o final do mito, mas
que volta sempre ao princípio. (FERNANDES, 2010, p. 102)
•
Aproximando o pensamento para as manifestações artísticas e populares,
233
como a festa, temos um espectador, aquele ser que assiste ao espetáculo e uma
• cena, a festa em si, profundamente ligadas às raízes do povo. Mais que uma
maneira de atenuar o real para torná-lo estético, é uma forma de reafirmar que
o estético faz parte do real. O espectador não é só aquele que vê, porém é aquele
que fomenta com sua experiência os significados daquilo que vê, já que a festa
também é aqueles indivíduos, o que é facilitado pela disposição do acontecimento:
2 a rua. A visão horizontal, a possibilidade de interação direta e os acontecimentos
próprios da rua marcam a participação ativa desse espectador. A cena, que na
0 festa seria as coreografias e outras manifestações, por mais ensaiada que seja,
é passível de mudanças, intervenções e de uma construção de mão-dupla junto
com o espectador. A teatralidade aplicada precisamente à Fiesta de La Tirana,
1
ganha sentidos artaudianos quanto à participação de um público do ritual cênico,
ritual, esse, com profundas bases religiosas. O público, formado por devotos em
8 sua maioria, compreende através dessa manifestação, a potência política do lugar
onde vive, já que se vê em comunhão de um mesmo acontecimento que o fortalece
como grupo e lhe dá uma identidade. O mito e a fábula da festa é comum a todos.
Fernandes também retoma a Roland Barthes ao dizer que o teórico vê
na “teatralidade o teatro menos o texto, essa ‘espessura de signos e sensações’
que liga a uma espécie de ‘perecepção ecumênica de artifícios sensuais, gestos,
tons, distâncias, susbstâncias, luzes, que submerge o texto sob a plenitude de
uma linguagem exterior” (FERNANDES, 2010, p. 102). Na festa não existe uma
dramaturgia específica que a configura teatro, mas existe um imaginário comum
que já espera – e vê – a luta entre o bem e o mal, no caso das “diabladas”, e outros
conceitos fundamentais para as outras danças. Cada coreografia ou manifestação
dançada dos grupos trazem já seus conceitos definidos a pesar de variar os figurinos
e os passos.
A festa de “La Tirana” traz muitos elementos do carnaval andino.
Martin Lienhard nos ajuda a entender um pouco as práticas carnavalescas nas
manifestações culturais andinas e como essas práticas se aplicam à festa devota à
J Nossa Senhora do Carmo.
No existe ningún abismo entre actores y espectadores de la fiesta (estas
A funciones son intercambiables), y la igualdad y reciprocidad domina las re-
laciones sociales en los momentos específicos de la celebración. En los car-
navales propiamente dichos – situados entre el fin del invierno y el comienzo
L de la primavera, se festeja la muerte de lo antiguo (el invierno, el pasado, la
injusticia, los sufrimientos) y se propicia la llegada de lo nuevo (la primave-
L ra, el porvenir, la justicia, la abundancia). La celebración de la ambivalencia
de la vida y de la muerte deja transparentar un optimismo colectivo invenci-
ble: los recién nacidos substituirán a los muertos, la abundancia seguirá a
A la escasez, etc. (LIENHARD, 1990, p. 130)
A
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L HISTÓRIAS EM LÍNGUA GERAL DO AMAZONAS: EXEMPLO DE
TRADUÇÃO LITERÁRIA EM LÍNGUA INDÍGENA SUPRAÉTNICA
L
Eduardo de Almeida Navarro (USP)
A RESUMO: O nheengatu é falado ainda no Amazonas, no Vale do Rio Negro, por cerca
de 6000 pessoas. É a língua minoritária de maior importância histórica no Brasil.
Desde o século dezenove têm sido feitas tentativas de sua revitalização por meio
de publicação de gramáticas (como a de Simpson, de 1876), de dicionários (como
o de Stradelli, de 1929), de literatura oral (como a obra “O Selvagem”, de Couto de
• Magalhães, de 1876). Recentemente, por iniciativa da Área de Línguas Indígenas
do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo,
244
têm sido elaboradas traduções para o nheengatu de obras literárias. Em 2017 foi
• publicada a obra “Histórias em Língua Geral do Amazonas”, que enfeixa traduções,
feitas por alunos, de contos, lendas, mitos de diferentes partes do mundo. Busca-
se, assim, revitalizar o nheengatu e incentivar seu emprego como língua literária.
Palavras-chave: Nheengatu. Literatura. Tradução. Amazônia
2 Introdução
O nheengatu é a terceira fase de desenvolvimento histórico do tupi antigo
que foi falado na costa do Brasil no século XVI por diferentes grupos indígenas.
0
Este foi o idioma usado em algumas das primeiras povoações e aldeamentos
coloniais em solo brasileiro e que deu origem a, pelo menos, duas línguas gerais
1 que se expandiram por vastos territórios: a língua geral paulista e a língua geral
amazônica.
8 O processo de formação da língua geral amazônica ou nheengatu, como
a língua ficou conhecida a partir de meados do século XIX, remonta ao início da
colonização nas terras do Grão-Pará, em 1616, ano em que as primeiras tropas
portuguesas se estabeleceram na região da Costa do Salgado, fundando o Forte
do Presépio, núcleo original de Belém. Ao chegarem à região litorânea dos atuais
estados do Maranhão e Pará, os colonizadores se depararam com tupinambás,
falantes de variante dialetal da mesma língua tupi com a qual já haviam entrado
em contato na costa atlântica de Pernambuco. Esta se tornou a principal língua
a ser falada nos aldeamentos missionários que se formaram, então, na região,
para a catequização dos indígenas. Conforme tais aldeamentos passaram a subir
os rios amazônicos e reduzir indígenas das mais variadas proveniências étnicas
e linguísticas, a língua foi perdendo o caráter de idioma étnico dos tupinambás
e transformando-se num vernáculo supraétnico, servindo à comunicação entre
europeus e autóctones de variadas etnias. Ao longo desse processo, o idioma teve
sua tipologia gradativamente afastada daquela do idioma dos tupinambás, devido,
justamente, às influências resultantes de constantes contatos com outros sistemas
linguísticos.
J A propagação da Língua Geral Amazônica foi inicialmente fomentada pela
Coroa portuguesa, pelo benefício que uma unidade linguística em região tão vasta
A e diversa poderia proporcionar para as pretensões coloniais. Esse quadro começa a
se alterar na década de vinte do século XVIII, quando principiam as tentativas de se
L introduzir o português na região. Uma carta régia de 1727, por exemplo, proíbe o uso
da Língua Geral Amazônica nas povoações e aldeias de repartição, determinando
que, tanto os moradores quanto os missionários, deveriam organizar o ensino
L do português aos índios (FREIRE, 2011, p. 122). As políticas de lusitanização da
Amazônia acentuaram-se no período pombalino, culminando com a proibição do
A idioma em 1757, medida que, entretanto, não surtiu o efeito pretendido no Grão-
Pará, onde a língua continuou pujante e seu uso se expandiu, ainda, por novos
territórios.
Em 1823, o Grão-Pará aderiu à independência do Brasil, tendo passado
por todo o período colonial sem que o uso da língua portuguesa se difundisse
• por seu território. O idioma da antiga metrópole só iria sobrepujar o nheengatu
245 como língua veicular da Amazônia a partir de meados do século XIX, devido a
uma conjunção de diversos fatores. Entre as causas dessa importante alteração
•
sociocultural podemos citar os conflitos durante a Cabanagem, ocorridos entre
1835 e 1840, onde foram mortos quarenta mil habitantes do Grão-Pará, número
que representava um quarto da população recenseada da província, a maioria,
provavelmente, falante da Língua Geral Amazônica (FREIRE, 2011, p. 244). Outro
importante fato ocorreu em 1853, com o estabelecimento da primeira linha de
2 vapores no rio Amazonas, que reduziu o tempo da viagem entre Belém e Manaus, até
então com duração estimada entre um mínimo de quarenta dias e um máximo de
0 até três meses, dependendo da época do ano, para apenas oito dias (BATES, 1979,
pp. 91-2). Com a facilitação do transporte pela região, coincidindo com uma época
1 em que tem início o ciclo da borracha, com secas a assolar o sertão nordestino,
numerosa população monolíngue em português desloca-se de outras partes do
8 Brasil para a região amazônica, com o que a língua herdada dos portugueses,
enfim, se impôs como o principal idioma falado nessas terras. Os vapores levaram
para a região amazônica cerca de 500 mil nordestinos, no período entre 1872 e
1910 (FURTADO, 1961, pp. 152-53), todos eles falantes da língua portuguesa.
Apesar da forte diminuição do número de seus falantes, o nheengatu
continua sendo usado, sobretudo na bacia do Rio Negro, em territórios do Brasil,
da Venezuela e da Colômbia.Houve, até mesmo, a promulgação de uma lei, a de
número 145/2002, aprovada no dia 22/11/2002, que concedeu a esse idioma,
junto com o tukano e o baniwa, a condição de língua co-oficial do município de São
Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas. Há ainda, também, alguns poucos
falantes em outras regiões da Amazônia, como no Baixo Rio Madeira e nos rios
Andirá e Maraú, na região do Médio Amazonas. Na região do Baixo Rio Tapajós,
onde a língua deixou de ser falada no século XX, há projetos em andamento para
que o idioma seja reaprendido por populações locais.
O nheengatu é, quase exclusivamente, uma língua de utilização oral.
O aumento do intercâmbio da população falante do nheengatu com a maioria
nacional, falante exclusivamente do português, continua provocando o retrocesso
J do número de falantes da língua geral. A chegada dos meios de comunicação de
massa e das instituições burocráticas brasileiras ao alto Rio Negro é inevitável e
A já vem acontecendo em grande escala. Se as informações e os documentos que
atingem esses meios utilizarem apenas o português e se as escolas não estiverem
L capacitadas para ensinar o nheengatu, a língua corre o risco de enfraquecer-se e,
eventualmente, desaparecer.
L A tradução como meio de revitalização linguística: alguns exemplos
DOOLEY, B. Tradução Bíblica numa Sociedade Minoritária. In: Revista Antropos, vol. 3,
n° 2, pp. 49-61,2009.
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A
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L O EMPODERAMENTO DA REDE DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
EM SANTA CATARINA – REFLEXÕES SOBRE A INCUBADORA
L TECNOLÓGICA DE COOPERATIVAS POPULARES (ITCP-UNISUL)
DA UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA
A
Elisete Gesser Della Giustina Da Correggio (UNISUL)
João Antolino Monteiro (UNISUL)
RESUMO: O artigo tem como principal objetivo apresentar algumas considerações
sobre a trajetória, os atores e a relevância da Incubadora Tecnológica de Cooperativas
• Populares da Unisul (ITCP-Unisul) no processo de construção e de empoderamento
257 da rede de economia solidária no Sul de SC. A metodologia utilizada foi pesquisa
documental, realizada nos relatórios de atividades da ITCP-Unisul. O período para o
•
estudo foi de março de 2014 a setembro de 2017. A preocupação central é conhecer o
que mantém a ITCP-Unisul, buscando compreender as forças sociais que mobilizam
ou enfraquecem e que produzem também outras articulações. Através da análise é
possível identificar as mudanças que ocorreram com a implantação da incubadora
bem como perceber que é um espaço de participação e qualificação da vida dos/as
2 envolvidos/as e manifestam-se como caminhos possíveis para a construção de uma
sociedade socialmente justa, economicamente viável e ecologicamente sustentável,
0 na certeza de que “uma outra economia acontece”.
Palavras-chave: Economia Solidária. Fórum. Movimentos Sociais. Redes.
1
O ponto de partida
Se debe tener claro que esa era (y es todavía) una de las tácticas que
2 los enemigos de la cristiandad tenían, es decir, desmoralizar, desvalorizar, crear
chismes y hacer pasar por ridículo a los sacerdotes, católicos o protestantes. No se
0 puede negar que a lo largo de la historia clérigos católicos, y ahora desgraciadamente
también los protestantes, no participaron de cosas escalofriantes, pero lo que se
1 nota es que hay un ataque sistemático con el intento de decir que sirve más ser
ateo que un cristiano, pues los más depravados serían los propios sacerdotes. Así
un caso de escándalo vivido por un sacerdote sirve de prueba para decir que toda
8
la cristiandad es mala. Sin embargo, la forma como los noticieros reproducen las
noticias no dejan márgenes para que tales sacerdotes hagan sus alegatos. Es decir,
antes de ser juzgados por el Judiciario ya lo han hecho los reporteros.
La Iglesia contra el nuevo orden mundial
Las Cruzadas fueron el motor de dos fenómenos importantes: una
mentalidad crítica y el remamiento comercial. Ellas les permitieron a los
europeos el contacto con culturas más prominentes, por lo que algunos de los
que volvieron empezaron a cuestionarse sobre el papel de la Iglesia en su vida.
Otros se aprovecharon del conflicto para hacer negocios, ya que los ejércitos y los
peregrinos europeos necesitaban provisiones, cosa que las grandes ciudades del
medio oriente no podían ofrecerles, sea por hallarse desgastadas por los conflictos,
sea por hostilidad. Eso fue la cuna de una clase de mercaderes privados, aptos a
comerciar no solo con los cristianos, sino también con los demás pueblos, así la
burguesía renacía.
En pocos siglos, el renacimiento comercial proporcionó la aparición
de las primas bancas. Mercaderes y banqueros pronto se atesorarían grandes
J fortunas, lo que hizo surgir una clase poderosa, la burguesía. Entre los burgueses
más destacados estaban los judíos, quienes a lo largo de la Edad Media sufrieron
A prejuicios, pues, por lo general, se les perseguían por usureros, avaros y culpables
de la muerte de Jesús. Así que Iglesia se les constituía en doble estorbo: uno
L religioso y otro económico. En este último caso, los judíos la criticaban por permitir
extensos latifundios en las manos de unos cuantos nobles, por lo que los mercaderes
para poder ganarse la vida comerciando tenían que pagar altos peajes cada vez que
L ingresaban en un feudo. En contrapunto, sus enemigos le decían hipócrita, puesto
que en cuanto ella era donataria de tierras y recibía tributos por eso, pregonaba la
A pobreza material. Sin embargo, se les olvidaban que siempre hubo a lo largo y ancho
de Europa instituciones católicas que ayudaban directamente a los pobladores,
ofreciéndoles bienestar social, de lo que se infiere que no fue la Iglesia un antro de
corrupción a fines de la Edad Media, sino que su cúpula estaba corrompida.
Mientras la Iglesia quería mantener el régimen feudal, los burgueses
• deseaban exterminarlo. En un primer momento, la burguesía pregonaba solamente
291 el liberalismo comercial, en tanto la Iglesia decía que la población debería la
producción rural, y, por tanto, alejada de la codicia capitalista. Había una batalla
•
entre dos formas distintas de comprender la vida: la una, cristiana, teocéntrica,
acostumbrada a la obediencia, basada en la producción rural de cuño campesina;
la otra, comercial, antropocéntrica, deseosa de los goces materiales y tolerante a la
libertad promovida por el paganismo greco-romano y germánico. Por consiguiente,
muchas manifestaciones dispares se unieron en oposición al régimen feudal y la
2 Iglesia: los defensores del paganismo greco-romano, los mercaderes, los banqueros
judíos descontentos con el cristianismo y las constantes persecuciones a su fe, los
0 herejes, los musulmanes deseosos de la caída de los reinos cristianos, los filósofos
y literatos ansiosos de libertad de expresión, los herejes etc.; todos buscaban una
1 grieta que fuera en los actos de la iglesia para crear una escaramuza. No obstante,
aunque juntos, no les tocó enfrentarse a la Iglesia abiertamente, y prefirieron actuar
8 a través de instituciones secretas, las cuales, con el tiempo, ayudaron a consolidar
el pacto entre la Burguesía y los reyes europeos. Tal alianza marcó el surgimiento
del absolutismo político moderno y de la caída del sistema feudal, pues, desde
que el rey no se indispusiera contra los intereses del comercio, era una entidad
bienvenida entre los círculos burgueses.
Desde un punto de vista político-económico dicha alianza garantizó
ascenso del capitalismo e intensificó los cambios que venían ocurriendo desde el
siglo XIII, los cuales favorecían un arte seglar, que se plasmó en el movimiento
conocido como Renacimiento. Este fue un retorno gradual a las costumbres
y filosofías griegas y romanas. No por casualidad se dio el advenimiento de un
pensamiento liberal, que preconizaba el hombre como el ser más importante del
universo y cuyo destino era el de dominar las fuerzas de la naturaleza para de ella
dispusiera de la manera que le complaciera.
Todos estos hechos iban a crear el contexto para el gran cisma de la Iglesia
occidental, encabezado por Lutero en 1517, es decir, la Reforma. Sin embargo,
esta no fue solamente religiosa, sino también política. Y hay una explicación para
ello. Ella se dio en la Germania, región donde hoy se ubica Alemania. Esa región
J fue tradicionalmente guerrera y no se dejó doblegar ante Roma y su heredera, la
Iglesia. De ahí que en el siglo VIII, Carlo Magno, en represalia y anhelando expandir
A su impero más al norte, conquistó la Germania y masacró a los que persistían en
sus rituales paganos. Pero estos jamás fueron extintos de todo, se quedaron en la
L clandestinidad. Así que siete siglos después, al renegar de las ordenanzas católicas,
Martín Lutero sin darse cuenta ayudará al paganismo ascender. Lutero le exigió al
Papa que cambiara la iglesia haciéndola volver al cristianismo primitivo, y muchos
L aristócratas, disgustados con el emperador Carlos V, se aprovecharon de las
protestas religiosas para añadir las suyas de cuño político. Además, había interés
A en el confisco de las tierras de la Iglesia. Por consiguiente, la Reforma representaba
una reacción a los resquicios de Roma que todavía existían en la figura del Papa,
de forma que, en el mundo germánico, vino para romper en definitiva los lazos con
el feudalismo y el poder católico. La reforma se esparció por el mundo germánico y
anglosajón como un rayo. Eso ha permitido que muchas ideas religiosas que antes
• eran vistas como herejías viniesen a luz de nuevo.
292 Si Lutero fue un golpe duro para la Iglesia, peor sería uno de sus
continuadores, Calvino. Habiendo hecho germinar el movimiento más pernicioso
•
al catolicismo, el capitalismo moderno, quizá Calvino sin advertirse de ello ha sido
el teórico de una clase social que tuvo por marca el haberse olvidado del bien
común en cambio del progreso individual. Calvino, según Weber (1984), basaba
su teología en algunos temas centrales y no siempre comunes al cristianismo: la
noción de predestinación. Desde entonces, la salvación no vendría por los hechos
2 o la fe, sino por la capacidad de uno en dar lo mejor de sí para que su empresa
obtuviera suceso. Ser rico era la señal que Dios había elegido a uno. Así que
0 ahorrar, aprender a invertir y a lucrar debería ser el blanco del cristiano. Eso parece
ser bueno, sin embargo, fue lo que propició la aparición de fortunas colosales
1 en manos de algunas pocas familias, las cuales iban a intervenir en las políticas
públicas siempre en forma arbitraria. Ese afán por riqueza va a ser el motor de
8 inconmensurables conflictos hasta desembocar en la agonía provocada por las dos
grandes guerras mundiales. Sin embargo, la Iglesia no quedó inerte y luego empezó
la Contrarreforma, cuyo centro irradiador fue la Península Ibérica. Y no podía ser
distinto, en vista de que la Iglesia Católica fue la gran institución unificadora de
los varios reinos visigodos que lucharon en contra de los musulmanes.
Conclusión
De todo lo dicho arriba, se infiere que Sarmiento era el típico masón
ilustrado del siglo XIX, combatiente de la Iglesia Católica, favorable al progreso
material positivista y racionalista. Su odio hacia Córdoba, España, los indígenas,
los gauchos y los mestizos está en el hecho de que estos eran considerados la causa
del retraso argentino de entonces. Hay cierta verdad en ello, no se debe negarlo,
pues las naciones estaban bajo la disputa capitalista y era necesario adecuarse
al nuevo mundo si se desease tornarse competitivo. Argentina era rural, vivía a
lo mejor alejada de la ciencia moderna y poseía un sistema educativo pésimo.
Sarmiento ayudó a cambiar esta realidad, puesto que sus reformas educativas, aun
hoy, sirven al desarrollo argentino. También es verdad que la barbarie provocada
por los gauchos e indígenas era perjudicial al erario público, pues ambos grupos
J robaban ganado, asesinaba inocentes y destruían cosechas.
Sin embargo, no eran todos los gauchos e indios que aprontaban de las
A suyas. Es eso que José Hernández (1930) en su Martín Fierro parece apuntar a
Sarmiento, es decir, la causa de la torpeza estaría radicada en la manera como el
L Estado argentino trataba a los más pobres. Hernández (1930) describe a un gaucho
sencillo, bondadoso, respetuoso, amante de su familia y trabajador. Pero se le vino
encima la obligación de servir al ejército en las distantes fronteras de la nación,
L en vista de que los indígenas la amenazaban. Él fue arrestado para ello, pero le
juraron que su familia estaría protegida mientras peleaba. Gracias a los maltratos,
A tuvo que huir del cuartel. Al volver, supo que su mujer tuvo que dejar los hijos con
alguien para que no murieran de hambre, siendo que ella misma se había ido con
otro hombre. La tapera estaba destruida. En tanto, las patrullas lo perseguían por
desertor. Así, tuvo que huir otra vez más. Como en su propio país no era bienvenido,
fue a vivir a las tierras de los indígenas, donde tuvo acogida. Los indígenas, por
• su turno, estaban bajo presión, pues los argentinos día tras día se les tomaban
293 las tierras, obligándolos a desplazarse a menudo. Es decir, el deseo capitalista de
los herederos europeos se mantenía recio con relación a posesión de tierras y oro.
• Para la mayoría de los gauchos, indígenas y mestizos la independencia no había
cambiado en nada las cosas.
¿Entre Sarmiento y Hernández quién estaba con la razón? Ambos. Así
como Sarmiento generaliza, lo mismo hace Hernández, puesto que no eran todos
los gauchos e indios buenos y pacientes. En definitiva, había bandoleros que
2 extorsionaban a los hacendados. Muchas mujeres eran secuestradas por los indios
a trabajar en la labranza; muchos gauchos asesinaban por vanidades, robaban y
0 eran peligrosos. Pero no todos. El error de Sarmiento era usar de la fuerza para
agredir a todos, derramándoles la sangre. El error de Hernández (1930) era creer
1 que todas las actitudes malas de gauchos e indios eran provocadas por el Estado
y la sociedad burguesa.
8 En esta pelea intelectual hay un dilema más profundo, pues hay
pensadores que pregonan que se debe preservar a toda costa la cultura de los otros
pueblos. Entonces, luchan por mantener a los indígenas, por ejemplo, alejados
de la sociedad blanca a vivir en comunión con la naturaleza. Los indígenas, para
estos pensadores, sirven como objeto de estudio. Los antropólogos desean estudiar
sus costumbres; los lingüistas ven en sus lenguas una fuente de riqueza inmensa.
Y algunos de ellos van a vivir en las tribus, pasan décadas viviendo, apuntando,
aprendiendo con los indígenas, hasta que un día los dejan y vuelven a sus ciudades
a publicar sus descubrimientos geniales. Mientras tanto, los indígenas ven a los
blancos poseer carros, aviones, medicinas, herramientas etc.; y se preguntan por
qué no pueden obtener lo mismo, es decir, por qué no pueden participar de la
sociedad capitalista blanca. La respuesta les es dada por los mismos pensadores,
que sonaría algo así: Porque su modo de vivir es puro, cerca de la naturaleza
y no deben mezclarse con nuestra sociedad depravada y llena de vicios. En el
fondo, quienes piensan así no respetan de verdad a los indios, pues estos no son
animales de zoo, son humanos y deben elegir si quieren vivir como sus antepasados
o integrarse a la sociedad contemporánea. No hay marcha atrás para el proceso
J de domino realizado por los españoles. Muchos de los que están para defender
la cultura indígena son herederos de la tradición europea, que viven de lo que
sus antepasados dejaron, es decir, ciudades, predios, la nación; y, en un falso
A
remordimiento, les acusan a los españoles de ser los culpables de las desgracias
indígenas. Sin embargo, ¿ellos también no lo son? ¿Algún blanco habla de destruir
L sus ciudades y devolvérselas a los indios? Son muy pocos los que lo hacen. Las
ciudades están ahí, son un hecho, y pueden ser invadidas por otros pueblos, es
L verdad, pero estos tendrán que haber logrado un grado bélico igual o superior al
de los actuales pobladores.
A Es por ello que el mestizaje es lo mejor para América. Si hubiera una
inmigración masiva para Japón, por ejemplo, en un siglo habría problemas entre los
herederos de los inmigrantes y los japoneses. Sin embargo, estos tendrían algunas
soluciones: o expulsarlos, o eliminarlos o mezclarse con la intención de formar un
pueblo homogéneo. Esta es la única salida para América Latina. Hoy se habla mucho
• de multiculturalismo, con todo, cada vez más se ven grupos raciales pregonando
294 el honor a su raza o color: los neonazis dicen que no van a mixturarse; grupos
negros dicen que mezclarse es sinónimo de pérdida de identidad; norteamericanos
• impiden a inmigrantes latinos ingresar a USA; indígenas quieren aislarse y formar
nuevos países. Es decir, cada vez más recrudece el odio hacia el diferente, aunque
el discurso en contra sea masivo.
Todo eso existe a causa de la sociedad materialista y egocéntrica deseada
por Sarmiento. Fue el capitalismo que esclavizó a la gente, que quitó las tierras
2 indígenas, que provocó miles de guerras en la actualidad. Sin embargo, fue el
capitalismo que trajo medicinas, posibilidades de viajar en avión, grande cantidad
0 de producción agropecuaria, escuelas, universidades, etc. El comunismo, por su
turno, pregona que traería la verdadera igualdad, sin embargo no hubo muchas
1 diferencias con respecto al capitalismo. La URSS de Lenin y Stalin fue responsable
mor miles de muertos que no aceptaban el régimen; los mismo con la China de
8 Mao. Quizá el mejor sistema fuese uno que conciliase los dos, intentando quitar
los errores. Sin embargo, este sistema maravilloso seria comandado por hombres
y mujeres, blancos o no, gauchos o no, indios o no, negros o no y, debido a eso,
siempre habría una forma de división por grupos, familias o costumbre. Eso es de
la naturaleza misma del humano.
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J
A
L LOS SABERES MILENARIOS ANDINOS VS EL CONOCIMIENTO
CIENTÍFICO-ACADÉMICO: CHOZA COMO DISCURSO
L INTERCULTURAL, LA APROPIACIÓN DE LOS MECANISMOS
DEL OTRO CULTURAL Y LA REIVINDICACIÓN DE LA CULTURA
A ANDINA
Evelyn Huarcaya Gutierrez (UNMSM)
RESUMEN: En el presente trabajo, se analiza la figura del hablante lírico en Choza,
poemario del escritor puneño Efraín Miranda. Para este cometido se observa los
• mecanismos discursivos que utiliza el hablante lírico para expresarse. Se busca así
296 examinar de qué forma el autor, Efraín Miranda, articula un discurso de procedencia
indígena y occidental. Se tiene cómo hipótesis que el hablante lírico en Choza se
•
apropia de los mecanismos discursivos del Otro como la escritura y el español para
entablar un proceso comunicativo que le permita dirigirse al Otro (detentador de
poder), y formular su proyecto de reivindicación de los saberes y aportes de la cultura
milenaria andina. Desmitifica así signos como la Escuela, critica la naturalización
de la supuesta “superioridad occidental”, desarticula imágenes preconcebidas del
2 indígena, la postura aculturadora de la Escuela y la negación del valor de lo andino
en el engranaje del “progreso” o la “modernidad”. Para este propósito, utiliza la
0 lengua del conquistador, pero a nivel de la estructura profunda del pensamiento
podemos observar la presencia de los principios de la lógica andina que le confieren
1 mayor riqueza a sus poemas. Para este estudio contamos con la edición de Choza
(1978) publicada en los talleres gráficos de Empresa Editora Humboldt.
8 Palabras claves: Mecanismos discursivos. Hablante lírico. Interculturalidad.
Cultura andina. Principios andinos.
El presente artículo, se divide en dos apartados: el primero dedicado a
delimitar la categoría de “generación del 50” en la que se inscribe críticamente
a Efraín Miranda y el segundo centrado en describir algunos de los poemas de
Choza en función a analizar los mecanismos que utiliza el escritor para establecer
su propuesta: reivindicar la cultura andina y su aporte milenario a la humanidad
frente a una mirada que identifica a la cultura andina y su estilo de vida, como
símbolo del pasado y el fracaso.
Delimitaciones teóricas: Efraín Miranda y los escritores de la generación
del 50
Resulta pertinente rotular que partimos de la concepción de que toda
obra literaria responde a su tiempo, y por ende, entra en constante diálogo con
él, sea de forma directa o indirecta. Antonio Cornejo Polar en su artículo titulado
“Testimonio” (1989), realiza un análisis de la pertinencia del uso de la categoría
“generación” para aludir a toda la producción cultural de una época que se articula
J o responde en función a una coyuntura histórica social específica.
El autor de Escribir en el aire, realiza algunas reflexiones que resultan
A pertinentes tomar a consideración. A saber, el hecho de que se agrupe a un
conjunto de individuos y su producción artística bajo una categoría, no niega la
L particularidad de cada uno de los integrantes, ya que de lo contrario, se caería en
una simplificación y homogeneización de los mismos.
L ¿Entonces, qué entendemos por “generación del 50”? Una agrupación
de estudiosos y artistas de distintas ramas del conocimiento que se enfrentan a
la desestructuración de un orden social (el “Perú Oligárquico”) y la construcción
A de un orden social distinto (la “Burguesía”). Ahora bien, como ya lo señalamos,
Cornejo afirma que el término “generación” es muy amplio, pues en dicha noción
se incluirían también filósofos, artistas plásticos, historiadores, poetas, etc. Por
lo tanto, este no es un proceso unilateral. Asimismo, dentro del propio grupo de
los “escritores de la generación del 50”, tenemos narradores, poetas, dramaturgos
•
y ensayistas. Miguel Gutierrez (2008), identifica tres promociones dentro de esta
297 generación de escritores: Jorge Eduardo Eielson, Javier Sologuren, Sebastián
• Salazar Bondy, Efraín Miranda y Eleodoro Vargas Vicuña conforman la primera
promoción; Blanca Varela, Washington Delgado, Francisco Bendezú, Manuel
Scorza, Julio Ramón Ribeyro, la segunda promoción; y Oswaldo Reynoso, Enrique
Congrains, Cecilia Bustamante, Arturo Corcuera y Mario Vargas Llosa, la tercer
promoción. En nuestro caso, nos centraremos en los “poetas” del primer grupo,
2 específicamente, Efraín Miranda. Cabe aclararse que el hecho de que se agrupe a
un conjunto de escritores dentro de la categoría de “generación”, no quiere decir
que todos se inscriban en un proceso desestratificado y homogéneo; ya que en un
0 mismo grupo existen diversos grupos sociales y perspectivas. Ya lo dijo Miguel
Gutierrez (2008): «…Existen rasgos comunes y una común tradición literaria que
1 da precisamente el tono generacional a toda la poesía del 50, por lo demás tan
heterogéneo y rica en cuanto a temperamentos y personalidades» (GUTIERREZ,
8 2008, p. 62). En este trabajo, se hace mención a la categoría de “generación”
para evidenciar la relación entre los escritores, la obra literaria y su impacto en la
sociedad frente a una problemática en común que los engloba en esta década: El
paso de la vieja Oligarquía a la gran burguesía, y las nuevas concepciones que se
derivan en torno a la migración y la idea de nación.
¿Qué sucedía en el Perú en la década del 50? ¿Y qué implicancias tuvo en
la literatura? Desde los años cuarenta, comenzó el movimiento migratorio masivo
del campo a la ciudad, especialmente hacia la capital. Es decir; se llevó a cabo
la movilización de los sectores populares andinos, principalmente, a Lima. Esto
produjo un desequilibrio de la estructura social, política y cultural del Perú. A
nivel de la literatura se produce la modernización de la narrativa urbana. Además,
surgieron interrogantes y sentires al respecto de la nueva situación del país y la
necesidad de articular de mejor manera la idea de nación. Ideas que incluyen a estos
escritores. El pequeño mundo “blanco” de la capital estaba siendo “invadido” por
diferentes grupos sociales específicamente provenientes de la Sierra peruana. Esto
produjo más cuestionamientos sobre las grandes narrativas de nación. Aquellas
posturas que afirmaban que una nación estaba regida por una sola comunidad que
J hablaba una sola lengua y profesaba una sola religión (“nación criolla”). Es decir,
una república criolla donde se niega la universalización de los derechos ciudadanos
a las poblaciones originarias, los indígenas y las tribales. El investigador José Matos
A
(1990), describe el proceso de migración como «consecuencia del incremento de la
población y de la expansión del latifundio o gran propiedad de la tierra. La creciente
L población campesina expulsada de sus comunidades de origen, pasó en los últimos
cincuenta años a formar parte del conglomerado urbano» (MATOS, 1990, p. 3).
L Esto dio como resultado la aparición de la figura del “sujeto migrante”, no solo en
la realidad peruana, sino también en la literatura: «La ciudad da brazos al pueblo
A joven/ que deriva en barriada de tugurios» (MATOS, 1990, p. 55). En los poemas
de Choza de Efraín Miranda, vamos a encontrar un hablante lírico que se dirige a
la ciudad («¡Alpaquerito!. Me gritan y señalan/ los pasajeros […] Tengo diez años al
pie de las nieves/ y 120 meses lejos de donde crecen/ la papa, el haba y la quinua»,
MIRANDA, 1978, p. 37) y luego regresa al campo, al espacio de la Choza («Cuando
• regreso:/ mi choza es prolongación del suelo,/ mis enseres son residuos,/ mis
animales, mi tierrita/ yo,/ la miseria», MIRANDA, 1978, p. 171). Esa figura que
298
había sido silenciada o negada, se desplaza a la capital buscando reconocimiento
• por parte del gran Otro (la clase limeña).
Todo discurso trata de colmar un deseo a través de la escritura. Por ello,
se tiene como hipótesis que el sujeto que se construye en la enunciación, se bate
o divide entre la solidaridad y la aversión ante la figura que representa el poder (la
cultura occidental, el sujeto blanco y limeño de la capital). El autor no está en contra
2 de la cultura occidental, pero sí de la naturalización de su supuesta “superioridad”,
de la postura aculturadora de la Escuela y la negación del valor de lo andino en
0 el engranaje del “progreso” o la “modernidad”. Recordemos que para textos como
los de Efraín Miranda, los límites entre el autor y el sujeto de la enunciación son
1 borrosos o difuminados debido a la concepción andina del principio de continuidad
del ser con la naturaleza y lo que se produce en ella.
8 Esta instancia discursiva trata de conciliar dos entes irreconciliables como
la oficialidad y todo lo aceptado (nación criolla o mestiza) versus la marginalidad
(nación que considere otras culturas además de la occidental como la indígena, como
valiosas por sí mismas), siendo más precisos aquel a través de su discurso trata
de concertar colectividades distintas e —incluso— contrarias para poder concebir
—de esta manera— un proceso comunicativo que concluya con la aceptación de
una unidad o una totalidad heterogénea conflictiva (CORNEJO, 1983, p.37-50 ),
pero con la necesidad de una proclamación de la igualdad de los derechos y los
valores de todas las culturas, especialmente, la andina. Cuestión que se busca
llegue a la práctica y no se quede solo en la escritura (la teoría). No obstante, este
proceso comunicativo y proyecto queda trunco: «Perdón, perdón, perdón, Intitata-
Pachamama/Préstenme este préstamo, / me falta para pagarles,/ incompletos
están ruta, fatigas, intentos…» (MIRANDA, 1978, p. 207, «L R»).
Veamos a continuación, más detenidamente, cómo se lleva a cabo el
proyecto de Efraín Miranda y los recursos o mecanismos de los que se vale para
construir un discurso alternativo que considere lo subalterno y lo marginado como
parte de la nación.
J Efraín Miranda y su proyecto de nación en contra las grandes narrativas
excluyentes
A Primero, grafiquemos el esquema de la teoría de la comunicación:
L
L
A
El autor del poemario Choza es el literato puneño, Efraín Miranda.
Escritor que vivió en la provincia de Chucuito y trabajó en la comunidad de
Jacha-Huinchoca. El poeta de Muerte cercana fue profesor de primaria y escritor
comprometido. Según los estudios del investigador Gonzalo Espino (2008), la vida
de Miranda se desarrolló en Collao por el lago Titicaca. Desde temprana edad,
•
Miranda crece en el entorno quechua. Viaja al poblado de Jacha Huinchoja, se
299 convierte en comunero y comparte su vida en esta comunidad aymara.
• Dentro de los poemas de Choza, identificamos a un hablante que está
en constante desplazamiento, por ello la categoría de sujeto migrante. Sobre este
asunto, nos dice Cornejo que «el discurso migrante es radicalmente descentrado,
en cuanto se construye alrededor de ejes varios y asimétricos, de alguna manera
incompatibles y contradictorios de un modo no dialéctico. Acoge no menos de dos
2 experiencias de vida que la migración, contra lo que se supone en el uso de la
categoría de mestizaje, y en cierto sentido en el del concepto de transculturación,
0 no intenta sintetizar en un espacio de resolución armónica» (3). Este discurso
migrante, le ofrece al hablante lírico la oportunidad de expresarse desde más de
un lugar de enunciación, sin manifestar ninguna pretensión armónica (lo que sí
1 proponen el mestizaje o la transculturación). El hablante lírico de Choza, reconoce
las tiesuras que existen. Por eso, el hablante enuncia desde la choza y la ciudad.
8 Este hablante lírico mantiene la tensión entre ambas culturas al
apropiarse del español y de la escritura para deslegitimar la visión prejuiciosa y
estereotipada del indio y su cultura. En otras palabras utiliza los mecanismos
del otro como la “escritura” y el “español” para hacer escuchar su voz, pues su
intención es comunicativa. Este hablante es consciente de que si quiere entablar
lazos de comunicación entre él y el otro, ambos deben compartir un mismo código.
Por ello, se debe utilizar la lengua del detentador del poder. Asimismo, a pesar
de que el código establecido por el hablante es el español, esto no restringe al
hablante lírico para mantener algunos términos en su lengua, especialmente para
la enunciación de los nombres de sus divinidades como “Pachamama” o “Inti”.
El siguiente paso, es establecer el canal. La oralidad es canal que funciona solo
cuando ambos interlocutores se encuentran en un mismo espacio, uno al frente de
otro. Por ende el medio más práctico y estratégico que se elige es la escritura. La
escritura es símbolo de poder en la cultura occidental (LIENHARD, 1992, p.11-12).
Sin embargo, esto no quiere decir que no se encuentren marcas de la oralidad en
Choza.
J Tenemos así un hablante lírico que toma la pluma, escribe en español y
desafía la visión tradicional, prejuiciosa o estereotipada del indio.
A El hablante lírico es consciente de ello, y afirma:
Aprovecho modelos extranjeros
L Adaptándolos a mis patrones terrígenos
Encerrándolos en la choza de mis sentimientos,
L Examinándolos a la luz de mis estrellas internas,
Comienza a separarse;
Se despiden, de la ropa nuestra, con el uniforme,
Retiran sus facciones de mi somática,
Adquieren movimientos para sus poses 12
J De la gente dominante;
Hablan de lo que no sé si existe,
Tocan otro mundo
A
En el que me dicen que soi una momia. 16
L Cuando leyeron sus libros, mis hijos,
Se les desprendieron las bayetas del cuerpo.
L El que lee y escribe está en la corriente del progreso.
2 Llegaron doce que pelean como capitanas de los indios contra los
españoles, y hacen tanta guerra como diez indios. Estas mujeres son altas, andan
0 desnudas y tapan sus vergüenzas con arcos y flechas en las manos. Cuando el
capitán español, Francisco de Orellana toma preso a un indio, éste le informa que
estas indias viven en setenta pueblos; que cuando les vienen ganas de procrear,
1
hacen guerra, capturan a los hombres, los llevan a sus tierras y, una vez preñadas
por ellos, los regresan a sus tierras; que si paren hijo, lo matan, pero si paren hija,
8 se quedan con sus madres y le enseñan las cosas de la guerra; y que son mujeres
muy altas que no tienen más de un pecho. A estas indias las llaman las Amazonas,
confiesa el dominico Fray Gaspar de CARBAJAL, (2002, p. 72, 76-78) en su relación
del primer viaje de navegación por este río. De allí que el capitán español, Francisco
de Orellana, llamara a este río, el Amazonas, descubierto el 12 de febrero de 1542.
Acerca del Amazonas, unos autores afirman que la selva es una prisión
o cárcel verde que ahoga, pero no una morada para el hombre, ni para obtener
aprendizajes ni valores ancestrales, tema que abordaré en este texto titulado:
Sangama: la sabiduría ancestral y selvática, en la novela de Arturo Hernández,
Sangama.
¿Por qué razón elegí este tema? Porque Sangama, personaje de la novela,
los manifiesta al declarar: “Yo vine muy joven a las márgenes del Ucayali y aprendí,
además de los amplios conocimientos que se esmeraron en proporcionarme
[sabiduría ancestral y occidental], los secretos que encierra la selva [sabiduría
selvática] (HERNÁNDEZ, p. 196)”. Por esta razón me centraré en ambos tipos
J de sabiduría que propone Sangama: la ancestral de los incas y la selvática de
la amazonia peruana. Para ello, primero abordaré la zona geográfica, el contexto
A histórico y los datos biográficos del autor, relacionados con su obra, con la finalidad
de ubicar al lector. Segundo, la sinopsis y los estratos sociales de la novela. Y
L tercero, la sabiduría ancestral y selvática, representada por Sangama.
Primero: la zona geográfica, el contexto histórico y datos biográficos del
L autor, relacionados con su obra
¿Por qué resalta el autor estos dos elementos? Uno, porque considera
que el mundo civilizado se ha vuelto ambicioso y está dominado por el oro: “ese
metal que enciende el alma de codicia y conduce al crimen. Por eso no lo busques:
es la muerte. […]Ten presente, señor, que el oro en las arcas de los países es
ambición, guerra, exterminio, y en las de los hombres, vicio, degeneración, locura
(HERNÁNDEZ, pp. 253- 254)”.
Dos, ante el mundo civilizado, denigrante, codicioso y criminal de las
autoridades y de los caucheros ambiciosos, que no respetan y vejan a toda persona,
J que violan a las mujeres como aChuya o que las inducen al camino del mal como
a la joven Tula, que trafican y matan de hambre o enfermedad a los niños, que son
A más salvajes que los animales, que no respetan nada y que carecen de moral y
religión, como nos muestran las conductas de sus personajes, piensa que la única
L solución es rescatar los antiguos valores incas heredados, para convertirse en una
sociedad sana y menos dañina.
Tres, considera que el mundo civilizado ha invertido los valores morales
L
de su antigua raza: la moral y religión por lo inmoral y la costumbre, el amor al
trabajo y la verdad por el ocio y la mentira. Se ha olvidado del antiguo imperio que
A fue y de su antigua raza, heredera de poder y sabiduría, por eso quiere restaurar el
imperio inca en la selva. Pues reconoce que se ha extinguido “ese florecimiento de
guerreros incanos. Sus descendientes viven escépticos, solitarios y silenciosos entre
los picachos nevados […] son los hijos soberbios de los indomables de antaño, y su
aislamiento constituye la manifestación de la heredada indocilidad (HERNÁNDEZ,
• p. 281)”.
312 Por último, reconoce que Sangama, heredero de la antigua estirpe, fue
• vencido por la cruel realidad, y que, al no poder restaurar el antiguo imperio,
decide suicidarse. Con ello nos manifiesta que el mundo civilizado ya no puede
retornar a su pasado glorioso, que debe adaptarse al mundo actual, inmoral, y
carente de escrúpulos. Manifiesta que sólo la religión inculca valores espirituales,
mediatiza las barbaridades y convierte a los inmorales en humanos, como sucede
2 en el pueblo inmoral de Santa Inés cuando llega el sacerdote.
Si de sus ancestros incas sólo rescata los elementos anteriores, en
cambio dela selva nos muestra más elementos de sabiduría, necesarios para la
0
sobrevivencia, porque es la que más conoce. En primer lugar, incluye, comoun
elemento de sabiduría popular o sentido común, su experiencia de vida acerca de
1 la mujer bella y recatada, que cuenta su desdicha y su visión del hombre dañino
con ellas. La confesión de Tula es una reflexión acerca de la vida del ser humano:
8 ¿Quién no tiene su historia? Nuestra historia va tejiéndose sin darnos cuen-
ta. Los caminos tienen idas y regresos. Pero la vida no es camino, ya que
vamos sin saber si avanzamos o retrocedemos. Y, en el momento menos
pensado, nos encontramos muy abajo con abrumadora carga de miseria a
cuestas. Esto me ha pasado. Lo primero que ocurre a una mujer es tropezar
con el hombre. Después sigue el hombre. […] hay dos clases: el que hunde
y el que redime […]. La peor maldición que pesa sobre una mujer es nacer
bella (HERNÁNDEZ, pp. 57-58).
En segundo lugar, si, por un lado, manifiesta los efectos negativos que
produce la selva en la mujer bella, por el otro, el civilizado se despoja de su máscara
social, saca sus instintos reprimidos, se convierte en un ser salvaje que da rienda a
sus deseos: “Aquí el civilizado se despoja de la máscara con que engaña al mundo,
no teme la represión ni la censura social (HERNÁNDEZ, p. 59). “Nada hay que
se oponga al hombre libre de la selva, quien toma de ella lo que desee, lo que
instintivamente necesita (HERNÁNDEZ, p. 106)”.
Pero también considera que el amor es simple, porque carece de las
convenciones sociales:“En la selva el amor es simple como el de los pájaros que
J se encuentran un día en una rama y desde entonces vuelan juntos. Dos seres se
conocen sin previo propósito. Ese mismo día se comprenden y al siguiente amanecer
A despiertan juntos, para vivir inseparables (HERNÁNDEZ, p. 294)”.
En tercer lugar, el autor incluye otros elementos de sabiduría cotidiana
L que le ayudan a sobrevivir en la selva, pues sin ese conocimiento del medio perecería
una persona citadina. Como la sabia naturaleza ha puesto junto a la enfermedad
el remedio, integra, como parte de su conocimiento, algunas hierbas selváticas
L
curativas, necesarias para la subsistencia en ese medio tan salvaje y mortal:
Por eso se entrega tranquilo al examen de la extraña enredadera que purifica
A la sangre, de la planta acuática que prolonga la vida, de la que da la muerte
instantánea, de la seta que cura el mal de ojo, del tubérculo que cicatriza las
heridas y de las hojas que predisponen al amor. […] Escogió entre la maleza
unas hojas puntiagudas, cuyo jugo hacía desprenderse inmediatamente a
los anélidos o sanguijuelas(HERNÁNDEZ, pp. 115 y 148).
J pp. 7-22.
Fernanda: Sempre que o senhor recebe um hino, o senhor escuta ele? Como é?2
Luiz: É, é. Tem, tem diversas formas... De, de se receber, né. Eu já recebi hino
1 O presente conto, bem como os cantos inseridos no artigo foram retirados da dissertação tecida
durante a pesquisa de mestrado no PPGLI-UFAC. Optamos por manter o texto tal como ali transcrito,
sem recuo e com o mesmo tamanho de fonte (MENDONÇA, 2016a).
2 Estávamos, eu, Carlos Pila, seu Luiz, Dona Rizelda, seu filho Luiz Brito, uma visitante de São
Paulo, na varanda de seu Luiz, aguardando a chegada de mais pessoas para fazermos uma oração.
mirando, né. Mirando quer dizer, vendo! Já recebi hino sonhando, né. Aí, também,
intuindo, né. Intuindo.
Dona Rizelda: [bem baixinho] “intuindo e clareando”.3
[Canto - Eu Andava Viajando
Eu andava viajando
Parei num santo salão
Concentrei-me no meu mestre
J Passou-me uma lição
Só Deus sabe nós sentimos
A A força da intuição
Intuindo e clareando
L No alcance da visão
Que para estar junto ao poder
L É preciso confiar
Ser solidário com os outros
Seu Luiz estava contando sobre quando ele recebeu o primeiro hino do “Novo horizonte”. Um das
poucas oportunidades em que Dona Rizelda permaneceu por um bom tempo em uma roda de
conversa.
3 Dona Rizelda é esposa de Luiz Mendes e faz referência ao hino nº16, “Novo Horizonte”, Luiz
Mendes.
musiquinha... eu acho que... é isso aí. Isso era o que eu imaginava que fosse. Aí
rolou aí uns dias, uns anos. Demorei um pouco a receber hinos. Eu acho que sim.
Dona Rizelda: Demorou nada, menino!
***
Canto 39 - É Deus!
Luiz Mendes: É Deus
J Todos Cantando:
É Deus em tudo
É Deus em todos
A
É Deus no céu
É Deus de ouro
L
No estábulo das palavras
Eu só tenho que firmar
L Junto ao mestre ensinador
A ele eu quero escutar
A Luiz Mendes: É Deus
Todos Cantando:
É Deus em tudo
É Deus em todos
É Deus no céu
•
É Deus de ouro
319 Eu escutando o Mestre disse
• A simplicidade entra em todo canto
Amiga da verdade Naná Nonô
Naná Nonô é a flor do encanto
Luiz Mendes: É Deus
Todos Cantando:
2 É Deus em tudo
É Deus em todos
0 É Deus no céu
É Deus de ouro
1 (Hino nº28, “Novo Horizonte”, Luiz Mendes)
4 Os conceitos de holístico e ecológico são empregados por Capra para destacar formas de ser/
estar, ou uma visão de mundo que vai além do paradigma estabelecido pela modernidade ocidental,
para além das dicotomias e reducionismos cartesianos. Uma visão de mundo que pode ser embasada
pela física quântica: “teoria que considera o mundo em função da inter-relação e interdependência
de todos os fenômenos” que nos aproxima da “Ecologia de saberes” proclamada por Boaventura
Santos, da “Poética da Diversidade” proposta por Glissant, e das culturas diaspóricas afirmadas por
Hall. Cf. CAPRA, 2012, p.41; SANTOS, 2009; GLISSANT, 2005; HALL, 2003.
profundos que vão em seguida, em todas as suas atividades, dar cor àquilo que por
seu intermédio, é dito ou cantado.”
Buscando nos arquivos de sua memória (ou em suas memórias sem
arquivo) experiências vividas em tempos remotos, sua narrativa começa com
uma afirmação positiva acerca da escola em que está “matriculado”, a saber, a
doutrina do Daime: “Tudo, de início, eu aceitei e acreditei, porque num tinha como
num acreditar!” Logo em seguida ele coloca um contraponto ao ponderar que seu
J aprendizado acerca de receber hinos começa com uma dúvida: “Era a coisa de
receber hino. Hé, hé, hé, hé... Eu achava assim que, a pessoa adquiria por aí umas
A palavras... montava... tal, depois aí, uma musiquinha... eu acho que... é isso aí.
Isso era o que eu imaginava que fosse”. Até que certo dia, mediado pelo Daime, seu
L professor vegetal/espiritual, Luiz Mendes sai em uma viagem extática e vive uma
experiência sensória em que caminha, vê, se abisma, ouve, lê, entende e canta. Em
suas palavras “ô coisa fantástica!”
L
Nos deparamos com uma situação de inter-relação entre o som e a
grafia; entre a oralidade e a escritura. No ápice da experiência, tal como a recorda
A e transmite o narrador, o neófito vê o que entendo ser a linha melódica, o fio que
sai do trono irradiante e vem em sua direção. Aos poucos vai entendendo que
aquele fio é a música, que ele pode escutar. Ao mesmo tempo, acompanhando a
linha melódica ele vê algumas palavras escritas, que ele lê bem. E quando melodia
e texto se ligam em seu peito ele já abre o “bocão” cantando. Destaco, por ora,
• que embora se trate de uma experiência do êxtase ela não se restringe à esfera do
323 mental; antes é percebida/vivida a partir dos/nos sentidos do corpo. Experiência
viva profundamente gravada em sua memória e que será repassada ao Mestre e,
•
posteriormente aos demais sendo continuamente reatualizada por meio de sua
presença/voz: do canto ritual e do conto cotidiano. Experiência que não pode ser
apreendida por uma lógica fundamentada em bases epistemológicas do pensamento
moderno ocidental.
6 A expressão “intervenção pedagógica” (apesar de ser nos termos “científicos”, talvez, a terminologia
mais indicada para nomear o método ou tipo de pesquisa) não soa bem nossos sentidos. Talvez a
pesquisa possa ser considerada uma “pesquisa com-partilha-ação”. É no contato, no diálogo com
as crianças que a pesquisa se fará.
Explicitamos a seguir algumas considerações acerca da proposta de
pesquisa:
Educação do ser poético é uma proposição de Carlos Drummond de
Andrade que chega aos nossos ouvidos em tom de alerta e também de esperança.
“Por que motivo as crianças, de modo geral, são poetas e, com o tempo, deixam de
sê-lo?”. Com essa questão Drummond inicia um pequeno texto que, devido à sua
profundidade, se desdobra em múltiplas possibilidades! (ANDRADE, 1974). As
J palavras do poeta vêm ao encontro de nossos anseios de uma “educação pela arte”.
Nesse sentido, intentamos que as ações a serem realizadas com as crianças ao longo
A da pesquisa, sejam perpassadas pelas artes, em especial aqui as artes verbais. A
partir das conjecturas de Zumthor (2014) no que se refere à performance, recepção
L e leitura, proponho uma aproximação das crianças com poesias/literaturas afro-
brasileiras e indígenas, a partir do corpo e da voz; da leitura/percepção/expressão
sensorial. Considerando a centralidade e o protagonismo das crianças nos processos
L de ensino-aprendizagem e o papel de mediador exercido pelo professor, pretendo
percorrer/compartilhar com as crianças possíveis caminhos performáticos do texto
A poético/literário, como estratégia para mediar a leitura e formar crianças leitoras;
amantes e praticantes da leitura.
Trata-se de “introduzir nos estudos literários a consideração das percepções
sensoriais, portanto, de um corpo vivo [...]” (ZUMTHOR, 2014, p.31);de proporcionar
às crianças atividades lúdicas e interativas com a palavra escrita/lida/contada,
• falada/escutada, gesticulada, cantada, dançada, dramatizada. Brincadeiras com o
327 corpo, a voz, o texto.7 Propomos, pois, a imersão em situações poéticas que trazem à
tona o jogo simbólico, o imaginário, a brincadeira, a expressividade, a curiosidade,
•
o espanto, o questionamento, a inventividade, o encantamento... Que compõem a
forma peculiar das crianças apreenderem o mundo e com ele dialogar constituindo
suas identidades, criando e recriando seus saberes, produzindo cultura (BRASIL,
2013. SARMENTO, 2003).
8 ZUMTHOR, 2014,
aprender as regras desse jogo da letra e da voz.9 E a partir dessa leitura ativa e
crítica de textos e contextos possam dizer a sua palavra, recriando a si mesmas e
a esse mundo; produzindo novas culturas.
Notas finais
É como arte do cotidiano que percebemos as literaturas/poesias orais
vivas, centradas na pessoa de Luiz Mendes. E ao penetrarmos nessa cultura
amazônica/daimista viva, nos deparamos com saberes/práticas que, embora
J sutilmente e dentro do processo de conformismo e resistência, subvertem padrões
hegemônicos e podem contribuir para descolonizar o imaginário. Saberes onde foi
A possível perceber traços de culturas da letra e da voz, de florestas e cidades; de
Amazônias e Nordestes; de Brasis, Europas e Áfricas... Saberes constituídos no
L interior e a partir da epistemologia da Ayahuasca (ALBUQUERQUE, 2011) donde
floresce a poética daimista de Luiz Mendes do Nascimento, o orador do Mestre
L Irineu.
Suspeitamos que o diálogo com tais repertórios(no interior e a partir
de uma abordagem teórico-metodológica voltada para a educação do ser poético
A
(ANDRADE, 1974); fazendo soar o tom de poéticas da diversidade(GLISSANT,
2005), estéticas diaspóricas(HALL, 2003), ecologias de saberes(SANTOS, 2009)e
considerando a parceria entre “Educação, Linguagem e Conscientização”) pode
contribuir para despertar sensibilidades poéticas e libertar os sentidos, os modos
de ver, ler e de viver; libertá-los do opressor internalizado (FREIRE, 2014) para
•
que, uma vez libertos, possam, verdadeiramente, entrar em contato com o “outro” e
329 encantar-se com a diversidade da vida; diversidade de vozes, culturas, literaturas;
• de paisagens poéticas. Nesse sentido, apresentamos algumas conjecturas; algumas
questões e proposições de pesquisas, de diálogos, de traduções de poéticas orais
amazônicas para o contexto da educação de crianças. Nosso objetivo consiste em
contribuir para a descolonização de currículos e imaginários (MIGNOLO, 2008;
QUIJANO, 2005).
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ENTREVISTAS
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Fernanda Cougo Mendonça, gravada na Comunidade Fortaleza, Capixaba, Acre, em
02/06/2015. IN:MENDONÇA, F. C.Memórias e artes verbais de Luiz Mendes do Nasci-
0 mento, o orador do Mestre Irineu. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade, da Universidade Federal do Acre. Rio
1 Branco, 2016.
HINOS
8 Luiz Mendes, Novo Horizonte, Hinos nº 06, 16, 28.
Luiz Mendes, O Centenário, Hino nº 01.
J
A
L CASMERIM: UM ENCANTO DA FLORESTA
L Fernanda Cougo Mendonça (UFAC)
Evânia Maria Ferraz Araujo (UFAC)
A RESUMO: A performance/história/dramatização/presença de Casmerim, ser
encantado da floresta, nos chega por meio das memórias ancoradas no corpo de Luiz
Mendes e da voz poética que desse corpo emana. Uma voz que ressoa no interior e a
partir da doutrina do Daime, de êxtases místicos, de contextos amazônicos. Nosso
objetivo, no presente trabalho é trazer à tona um pequeno recorte da literatura/
• poesia oral viva; da poética daimista/ayahuasqueira/amazônica de Luiz Mendes.
E sob a inspiração do encanto de Casmerim, aliada a nosso encantamento em
332
relação às poéticas, às culturas da infância, e ao desejo de subverter modelos
• educacionais de opressão, modelos do colonizador,apontamos possibilidades de
tradução dessa poética amazônica para poéticas educacionaisdirecionadas para a
formação cultural ampla das crianças.
Palavras-chave: Casmerim. Poesia/literatura oral. Poéticas daimistas/amazônicas.
Poéticas educacionais. Formação cultural de crianças.
2
Casmerim
Em algumas cerimônias com o Daime o senhor Luiz Mendes nos presenteia
0 com a presença, a performance de Casmerim. Iniciada sempre por um belo canto
coral do hino “Casmerim”, acompanhado de violões e maracás. Algumas vezes
1 conta com uma breve explicação a respeito de quem é Casmerim esclarecendo
que, em certas ocasiões, ela se aproxima e irradia Luiz Mendes para que ele possa,
8 então, executar sua “Dramatização”.Nesse pequeno texto temos a honra de lhes
apresentar, ainda que introdutoriamente, Casmerim.
Canto– Casmerim
Contemplando a natureza
E vendo toda a sua forma
Natureza ela é viva
Se agredida ela chora
A natureza é o conjunto
Na formação de uma só
Todas são obras de Deus
O dono da força maior
No revoo da natureza
Casmerim foi quem partiu
Ostentando a beleza
Sorriu, sorriu, sorriu
No adeus da despedida
J Saudade fica, saudade vai
Casmerim se despediu
A Foi pra casa de papai
Vá pra casa de papai
L Que lá tem muitas moradas
Casmerim estou contigo
L Sempre, sempre será lembrada
A Casmerim, assim como nós que aqui nos encontramos, também já esteve
encarnada neste mundo chão; já vestiu essa mesma veste tão generosamen-
te emprestada pela mãe Terra. Aqui neste plano chamava-se Maria, filha da
madrinha Rizelda, fruto de um relacionamento anterior ao casamento com
padrinho Luiz. Foi uma pessoa muito batalhadora: cedo casou e constituiu
uma numerosa família. Sempre muito estimada por todos, pois era uma
• pessoa muito alegre e positiva! Apesar de todas as adversidades que teve
333 que enfrentar na vida, como a luta pela subsistência de sua família e uma
doença com a qual teve que conviver por um tempo considerável... Mesmo
• assim, não era pessoa de reclamar e tinha como cartão de visitas sempre um
franco e iluminado sorriso no rosto. Apesar de não ser filha consanguínea
do padrinho Luiz, desde muito pequena alimentava por ele um sincero cari-
nho paternal. Sentimento esse que sempre foi recíproco.
E assim o tempo passou até que Maria desencarnou, ainda jovem... Após
2 lutar meses a fio em um leito de hospital. Até hoje ainda é bem vivo na me-
mória do padrinho Luiz o significante olhar de despedida que Maria lhe lan-
çou ao dar o último aperto de mão em meio à agonia do desenlace próximo.
0
Mas, como a vida é uma continuação, meses depois de sua passagem, o
padrinho Luiz, em uma bela miração, de repente sentiu tudo a sua volta
1 balançar! Os elementos naturais ao seu redor ficaram mais radiantes... As
árvores ganharam movimentos! Folhas e flores tinham uma coloração mais
8 intensa. E que sensação agradável provocada pelo frescor da brisa perfuma-
da da floresta.... Assim, contemplando a natureza e vendo toda a sua forma,
sentia tudo vibrar em um poderoso revoo da natureza.
1 A história, no formato aqui transcrito, constitui uma releitura poética de Suzirene Nascimento, neta
de Luiz Mendes, acerca das memórias narradas de/por seu avô, e me foi contadadurante pesquisa
de campo. O próprio Luiz Mendes compartilhou a história conosco, conforme transcrevemos mais
adiante.
Até quando Deus quiser! ...
Tchau, tchau! Meus queridos irmãos.
(Luiz Mendes/Casmerim, 2015)
2 O presente conto (bem como o cantoe a dramatização) inserido no artigo foi retirado da dissertação
tecida durante a pesquisa de mestrado no PPGLI-UFAC. Optamos por manter o texto tal como ali
transcrito, sem recuo e com o mesmo tamanho de fonte (MENDONÇA, 2016a).
porção. Mas ela sempre doentinha... Daime, o velho nunca quis saber, elas
tomaram quando eram ainda menininha e tal. E aí era difícil. Adoeceu com um
problema e terminou numa cirrose. Não sei o que era uma coisa aí. Parece que teve
hospitalizada algumas vezes, num sei, eu sei que numa vez que ela hospitalizou-
se aí daí já saiu levada, eu fiz uma visita pra ela. Foi a derradeira vez que eu vi ela
com vida. Mas aí quando eu cheguei lá ela me reconheceu, conversou um tantinho
comigo tal né. Aí na despedida eu dei a mão pra ela, ela quase não solta a minha
J mão... Me olhando, pegada na minha mão. Aquilo chega eu sai, rolando. Mas eu
sabendo que aquela é, mesmo, tava mesmo pra se desencarnar, como aconteceu.
Aí a gente já veio embora sempre naquele cuidado tendo uma noticiazinha, aí
A
poucos dias ela faleceu...
L E aí passou um tempo, não tanto tempo, aí eu tive uma visão com ela.
Eu tive uma visão com ela. Mirando, encontrei aquele ser, se identificando, se
identificando como Casmerim, que veio na carne com a Maria. Então identificou-
L se como a Casmerim. Aí, entre outras, me repassou alguns conhecimentos que
representa... o que que ela representava e tal, enfim, aí foi assim uma conferência
A muito bonita que eu tive com esse ser. Aí quando eu bem num pensei, eu já tava
é cantando esse hino. E aí isso com certeza gratifica a gente né. Devemos ter, ter
influído alguma coisa dentro dessa história pra que ela ficasse até mais comprida
ainda. He, he, he, he. Então a Casmerim é um ser encantado, como tantos outros,
defensora da floresta. Num ofenda não porque eu não sei o que vai ser, que ela é
• braba! É rispi! Aí quando ela declama aquela poesia, a gente nota que ela num tem
336 pena do couro de ninguém. He, he, he, he, he.
Fernanda: E aí, toda vez que o senhor declama a poesia, né, ela se faz presente?
•
Luiz Mendes: Ah, se faz presente, sim. É, a gente classifica isso, como é que eu
quero dizer... intui! Né. Intui, mas tem outra palavra que ainda encaixa melhor, é...
ah, não vou lembrar.
Fernanda: Irradiação?
2 Luiz Mendes: Isso! Irradia! Irradia. Mas a gente consciente, na certeza que ela tá,
tá presente. Aí foi ela que me deu esse hino, agora dentro disso aí teve toda uma
0 história. Lá quando iniciou. Aí é que eu digo, que nossa amizade, o querer bem,
é, se imortaliza. É desde daqui à eternidade. Se você é meu amigo, nessa vida
materializada, se houver um desencarnamento, é natural acontecer, lá a gente é
1 mais amigo ainda. Lá a gente ainda é mais amigo. O querer bem.
(Comunidade Fortaleza, 29 de, Capixaba, Acre. 29/07/2015.)
8
Diálogos e representações
A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um
sabiá
mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força
Existem
Nos encantos de um sabiá.
Quem acumula muita informação perde o condão de
Adivinhar: divinare.
Os sabiás divinam. (BARROS, 1996)
Além disso, é preciso destacar que sua voz ressoa no interior e a partir
da doutrina do Daime. A organização da vida de Luiz Mendes e comunidade se dá
a partir do uso do referido chá no contexto ritual implantado por Raimundo Irineu
2 Serra. Seus cantos e narrativas sobre mirações e outras vivências versam sobre
experiências cujo eixo central é o Daime, um professor vegetal, e os estados de
0 consciência por ele proporcionados. Tais estados permitem tanto ao orador como
aos seus ouvintes percepções mais profundas ou mais ampliadas da experiência
vivida e/ou narrada-cantada.
1
Temos, pois, que a obra viva, a performance, aberta às refuncionalizações
de acordo com os ouvintes e as circunstâncias em que é simultaneamente
8 pronunciada e percebida exige uma interpretação nômade (ZUMTHOR, 2010).
Quanto mais a poesia oral musical/ritual e/ou narrativa/cotidiana da Ayahuasca
ou, especificamente aqui, daimista.
Cabe ressaltar que percebemos as memórias narradas de Luiz Mendes
como artes verbais; como literatura oral daimista e amazônica; como “performances
e literaturas insurgentes” que subvertem “sistemas de avaliações e classificações”
da modernidade norte ocidental. Suas narrativas não se enquadram em gêneros
literários canônicos euro e etnocêntricos, excludentes e exclusivistas. Embora
gravadas em entrevistas e conversas cotidianas não as escutamos/lemos como
simples relatos, porque são providas de arte, de poesia e por isso decidimos chamá-
las de contos. Mesmo que versem sobre suas experiências de vida, experiências
cotidianas e extáticas e, portanto, não possam ser tomadas como ficção, elas
também não trazem o real vivido porque estão inseridas na linguagem. E dentro
dos referenciais adotados, a linguagem é, em si mesma, ficcional e subjetiva.
(ANTONACCI, 2014, p.333; HALL, 2003; WILLIAMS, 1979; ZUMTHOR, 1993; 2005;
2010).
J Durante a pesquisa já referida notamos que ao procurar realizar
uma apreciação cultural da literatura oral de Luiz Mendes, que é ela mesma
A representação, em uma linguagem humana, de vivências profundamente interiores
com o sagrado, de suas mirações, muito se esvai. E aí o desafio de lidar com a
L experiência proporcionada pela poética de Luiz Mendes; de verdejar, pois, como
lembra o poeta, “poesia não é para compreender, mas para incorporar. Entender
é parede: procure ser árvore” (BARROS, 1990). Importa ressaltar que enfrentamos
L ainda o desafio de escapar à “miopia intelectual” (ZUMTHOR, 2010), escapar ao
pensamento abissal (SANTOS, 2009) fundamentado na ilusão do cientificismo, do
A exclusivismo da ciência moderna ocidental, inclusive com seus cânones literários
(ANTONACCI, 2014;CAPRA, 2012).
Nos encontramos, pois, no entrecruzar de múltiplas traduções
(BENJAMIM, 2008; LARROSA, 2004; ZUMTHOR, 1993; PORTELLI, 2010): A
tradução realizada pelo próprio Luiz Mendes, das experiências vividas/lembradas
• (experiências cotidianas e extáticas) para a linguagem humana; para a voz viva, a
338 voz poética. A tradução (que realizamos/sofremos enquanto pesquisadoras) dessa
voz viva, dinâmica, nômade, para a escritura com seus traços gráficos, fixos. E
•
novamente, na comunicação oral que tecemos, a tradução da escritura para a voz
encarnada. Sofremos ainda os processos de tradução de contextos: do sagrado ao
cotidiano; da comunidade estabelecida ao redor de Luiz Mendes para a academia;
da cultura viva daquela comunidade, para a interpretação cultural em outros
espaços e tempos....
2
A riqueza e diversidade do material colhido em campo permite múltiplas
leituras.Lidamos com múltiplas subjetividades e, nesse sentido, não houve a
0 possibilidade (e nem a intenção) de oferecer uma descrição ou uma análise objetiva
acerca dos textos e contextos de Luiz Mendes, mas sim nossas representações.
1 Na pesquisa privilegiamos a linguagem entendendo-a como campo de lutas;
de contínua constituição de sentidos, identidades e culturas. Como ocorreu de
8 a cultura nos “arrebatar a alma” nos movemos na tensão dessa contínua “área
de deslocamento”(HALL, 2003; WILIAMS, 1979). Dentro dela as artes da voz
(ZUMTHOR, 1993; 2005; 2010), os saberes da Ayahuasca/Daime (ALBUQUERQUE,
2001), as estéticas diaspóricas (HAAL, 2003), poéticas da Diversidade (GLISSANT,
2005), ecologia de saberes (SANTOS, 2009) ao nos cativarem, balizaram nossa
percepção e direcionaram nosso olhar e, consequentemente, nossa escrita.Todavia,
parafraseando Hall (2003), ao procurarmos, durante a pesquisa/dissertação, realizar
essa análise cultural sentimos na pele a transitoriedade, insubstancialidade, o
pouco que conseguimos registrar, e tivemos que nos conformar com a incompletude
de nossa escritura.
Casmerim verde-escola
Sob a inspiração do encanto de “Casmerim”, aliada a nosso encantamento
em relação às poéticas, às culturas da infância (SARMENTO, 2003) e no desejo
de subverter modelos educacionais de opressão, modelos do colonizador (FREIRE,
2014; MIGNOLO, 2008; QUIJANO, 2005) vislumbramos a possibilidade mais uma
tradução: dessa poética amazônica, dessa obra viva, para poéticas educacionais
com o intuito de contribuir para a amplitude da formação cultural de crianças.
J Consideramos que a história/dramatização/presença de Casmerim encerra em si
uma expressão viva do ser poético (ANDRADE, 1974)de uma poética da diversidade
A (GLISSANT, 2005), uma alfabetização ecológica (CAPRA, 2006; 2012). Da palavra
em suas dimensões de ação e reflexão; de conscientização (HALL, 2003; WILLIAMS,
L 1979; FREIRE, 2014).
E foi nesse sentido que “Casmerim Verde-Escola” começou a desabrochar.
L Olhando pelas lentes de estéticas surgidas a partir das diásporas,de poéticas da
diversidade, ecologia de saberese colocando em cena o corpo, com suas memórias,
poética, gestos e vozestamos continuamente à procura de formas para, junto com
A as crianças, desconstruir e romper a lógica que naturaliza narrativas hegemônicas
e fazer soar vozes e gestos silenciados. Na perspectiva das artes na educação, da
educação do ser poético; dentro de uma abordagem própria do Estudos Culturaise
trabalhando de forma transversal a educação ambiental, a alfabetização ecológica,
na Casmerim Verde-Escola tecemos atividades inseridas na pluralidade de saberes,
• fazeres e seres presentes em Brasis, Américas, Áfricas, Europas, Orientes...
339 A criança é aqui percebida como ser histórico-social que, imaginando,
• brincando e interagindo com o ambiente e com as pessoas, constitui suas poéticas
produzindo cultura. Atenta para a centralidade da criança nos processos de ensino/
aprendizagem buscamos, pois, estratégias para favorecer sua formação integral
como pessoa humana; como cidadã planetária, articulando o local ao global.
Estratégias que favoreçam a consolidação de princípio éticos, políticos e estéticos
2 (BRASIL, 2003).
Inspiradas pelas palavras, presença, performance, história de “Casmerim”
0 a intenção é conduzir as atividades de modo poético e lúdico, a fim de tocar os
sentidos dos participantes; surpreendê-los; fazê-los transbordar. Libertar os
sentidos de cada um, e do grupo como um todo, da colonização interior para que,
1 uma vez libertos, possam maravilhar-se e encantar-se com a diversidade da vida;
com culturas vividas e poetizadas por diferentes pessoas em diversos “cantos”
8 de Amazônias, Brasis, Américas, Mundos...(FREIRE, 2014; MENDONÇA, 2016b;
MIGNOLO,2008; QUIJANO, 2005)
Referências
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BARROS, Manuel. Livro sobre nada. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 1996.
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FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 57ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.
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L HALL, S. Dá diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução de Adelaine La Guar-
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L
LARROSA, J. Linguagem e educação depois de Babel. Tradução de Cynthia Farina. Belo
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MENDONÇA, F.C. Descolonização de currículos, percepções e comportamentos na escola
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PORTELLI, Alessandro. Ensaios de história oral. Tradução de Fernando Luiz Cássio e
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ZUMTHOR, P. Introdução à poesia oral. Tradução Jerusa Pires Ferreira e Maria Lúcia
Pochat, Maria Inês de Almeida. Belo Horizonte: UFMG, 2010
ENTREVISTAS
MENDES, Luiz. Conto e Dramatização “Casmerim”. Entrevistae performance em con-
texto ritual concedidas a Fernanda Cougo Mendonça, gravadas na Comunidade Fortaleza,
Capixaba, Acre, em 29/07/2015e 02/01/2015, respectivamente. IN:MENDONÇA, F. C.
Memórias e artes verbais de Luiz Mendes do Nascimento, o orador do Mestre Irineu. Dis-
sertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem
e Identidade, da Universidade Federal do Acre. Rio Branco, 2016.
NASCIMENTO, Suzirene. Comunicação oral. Registrada na Comunidade Fortaleza, Capi-
xaba, Acreem dezembro de 2015.
Hino nº 30, Novo Horizonte, Luiz Mendes.
J
A
L
L
A
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2
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1
8
J
A
L SOBRE A RECONFIGURAÇÃO DO CONCEITO DE LITERATURA NA
POÉTICA DE DYONÉLIO MACHADO
L
Fernando Simplício dos Santos (UNIR)
A RESUMO: O objetivo deste trabalho é verificar a maneira pela qual as concepções
de história e política; tradição e modernidade firmam uma acepção de arte literária
sui generis, fornecendo um tom particular à poética do escritor Dyonelio Machado
(1895-1985). Especificamente, o intuito é analisar como os conceitos de aura e
desauratização; crítica e alegoria estão estabelecidos nos romances “O louco do
• Cati” (1942) e “Sol subterrâneo” (1981), contribuindo para compreender melhor
os projetos estético e ideológico do autor.Por meio das teorias destacadas neste
342
texto, percebe-se que, nas narrativas em pauta, o estudo das fontes históricas,
• econômicas e políticas permite identificar um rico diálogo entre textos (ficcionais)
e subtextos (não-ficcionais). Nesse sentido,constata-se que, na poética dyoneliana,
a concepção de literatura passa por uma redefinição ampla, a qual, a fim de se
constituir, configura-se a partir de outros discursos, reafirmando, sobretudo, a
necessidade de reconhecer aarte como expressão crítica.
2 Palavras-chave: Dyonélio Machado. Crítica e alegoria. Literatura e autoritarismo.
Introdução
0
A tese intitulada “História, política e alegoria na prosa ficcional de Dyonelio
Machado” (2013), entre outros aspectos, teve o mérito de resgatar a esquecida
1 produção literária do romancista, médico e político gaúcho, considerado por
muitos estudiosos como um “escritor maldito”, em especial, devido à perseguição
8 político-ditatorial (com a consequente recusa editorial) por ele sofrida durante a sua
trajetória. De modo geral,o objetivo do trabalho foi analisar a tetralogia romanesca,
composta por O louco do Cati (1942), Desolação (1944), Passos perdidos (1946) e
Nuanças (1981), comparando-os com a trilogia constituída por Deuses econômicos
(1966), Sol subterrâneo (1981) e Prodígios(1980). No trabalho de pesquisa, verificou-
se como é possível esquematizar as fases da produção literária do autor, sugerindo
que, na poética dyoneliana, é possível identificar uma acepção de arte peculiar,
estritamente vinculada ao seu projeto ideológico.
De qualquer forma, com o presente artigo,a ideia é mapear esta acepção
de literatura na produção de Dyonelio Machado, só quea partir da apreciação do
romance O louco do Cati, publicado em 1942, e de certo trecho do livro Sol subterrâneo,
de 1981.Para a consecução de nossos objetivos, valemo-nos das teorias a respeito:
1) da definição de literatura e de sua reconfiguração nos séculos XX e XXI, como,
por exemplo, as destacadas por Antonio Candido (1995), Umberto Eco (2003),
Antoine Compagnon (2007), Tzvetan Todorov (2009), Walter Benjamin (1985); 2) da
fortuna crítica de Dyonelio Machado, fizemos uma pesquisa de textos de Antonio
Hohlfeldt (1987), Moisés Velhinho (2001), Maria Zenilda Grawunder (1997), Regina
J Zilberman (1992), entre outros;3) escritos elaborados acerca do contexto histórico
no qual a produção literária do autor de Passos perdidos foi composta, tais como:
livros de Carlos Cortés (2007), Antônio Ferreira Prestes Guimarães (1987), Diorge
A
Alceno Konrad (1989), Sandra Jatahy Pesavento (1990).
L Dyonelio Machado
Dyonelio Machado nasceu em Quaraí (1895) e faleceu em Porto Alegre
L (1985). Como homem público, foi escritor, médico, militante e críticodo Estado
Novo (1937-1945), da Ditadura Militar (1964-1985) e da política do Rio Grande do
Sul. Entre 1935 e 36, foi preso e torturado no Rio de Janeiro, ao lado de outros
A companheiros, como, por exemplo, Graciliano Ramos – com quem conviveu na
cadeia.Em seus livros O cheiro de coisa viva (1995) e Memórias de um pobre homem
(1990), Dyonelio Machado conta certos detalhes de sua prisão:
Muita gente me pergunta o que foi pior nesses anos de cadeia. Fui levado
para o Rio, no porão de um grande navio, em pleno inverno, numa travessia
• que durou dez dias. Perdi doze quilos, todos os dentes e algumas unhas.
343 Nada disso, porém, me modificou. Na prisão, eu revelava um humor tão
elevado, que parecia estar enamorado da cadeia. Não me abati, nem com a
• manchete do Correio do povo: ‘Pena de morte para os subversivos’. O pior
foi algo que nem é muito dramático: o primeiro passo de um habeas cor-
pus, para mim, em plena vigência do Estado de Guerra. Este pedido para
o Governo do Estado, que respondeu concisamente que não conhecia meu
paradeiro. Isto me aterrorizou, porque era a preparação do terreno para o
meu assassinato [...]
2
Minha prisão? Para reação, foi boa. Colocaram-me num quarto escuro du-
rante o dia, em que havia luz durante a noite. Esperei horas na antessala do
0 gabinete de tortura, onde a única medida de defesa, a meu alcance, era tirar
os óculos e esconder na minha roupa, para que as pauladas na cara não
1 quebrassem os vidros, me furando os olhos. (MACHADO, 1995, pp. 17-18)
1 Todas as informações sublinhadas acima foram verificadas a partir da pesquisa que fizemos
no Departamento Federal de Segurança Pública – Divisão de Polícia Política e Social, do Arquivo
Estadual do Rio de Janeiro.
afirmando que um dos equívocos de tal corrente teórica foi tolher a relação entre
arte, vida e interpretação.
Por sua vez, no texto “Sobre algumas funções da literatura” (2003, pp.
9-23), Umberto Eco sublinha que uma das características do trabalho literário é
que ele ainda representa um bem imaterial, pois traduz um aparato de textos que
são produzidos pelos homens, porém sem fins “práticos” ou “lucrativos”. Para Eco,
a literatura difere de registros gerais (voltados para causas específicas, tais como:
J fórmulas científicas, atas de reuniões, jornais de cunho técnicos, etc.), porque
ela, a arte do texto literário, expressa em si um tipo de “amor gratuito”, que visa
A transcender o palpável, o tangível. Isso ocorre em virtude do poder que a arte
literária tem de “elevação espiritual”, sendo capaz suprir certas necessidades dos
L homens, por exemplo.
Não obstante, Umberto Eco não deixa de frisar a importância social
da literatura, ao afirmar que, “de certa maneira, alguns personagens tornaram-
L
se coletivamente verdadeiros, porque a comunidade neles depôs, no correr dos
séculosou dos anos, investimentos passionais”. (ECO, 1994, p. 20), ou seja, o mundo
A literário, embora ficcional, atinge com contundência o ambientesocial, econômico e
cultural, no qual os leitores estão inseridos. Não sem motivo, personagens, como,
por exemplo, Naziazeno, o louco do Cati, um pobre homem, Maneco Manivela, entre
outros que fazem parte da galeria da produção artística dyoneliana, questionam
com contundência as discrepâncias da alienação, do autoritarismo, do capitalismo
• e da desumanização.
345 Por seu turno, nos textos “A literatura e a formação do homem” (1972)
• e “O direito à literatura” (1995), Antonio Candido ressalta certas funções da arte
da escrita, como, por exemplo, grifando o seu papel humanista, ao afirmar que,
na medida em que ela instrui, a um só tempo deleita e humaniza. Nesse sentido,
Candido nota que a literatura pode ser vista como uma categoria que, atuando na
formação do homem, está pautada em certo projeto de “experiência”, estritamente
2 vinculando à arte e sua função social. De qualquer modo, o aspecto a grifar é que
Candido acredita que a literatura seja capaz de problematizar duas categorias-
chave: a primeira é aquela que edifica o leitor; e a segunda é aquela que lhe
0 representa as vicissitudes da vida. Sob tal enfoque, “a literatura humaniza e faz
viver”, porque apresenta, sem véus ou disfarces, um profundo embate entre o bem
1 e o mal; o real e o fictício.
De seu lado, no livroPara quê literatura? (2009), Antoine Compagnon
8 faz, entre outras, as seguintes indagações: a) quais valores a literatura é capaz
de transmitir para sociedade atual? b) a literatura ainda é significativa para a
vida? c) hoje, a literatura é indispensável ou ela pode ser facilmente substituída?
Sob essa perspectiva, em vez de se perguntar: “o que é literatura? ”, Compagnon
muda a célebre questão, passando a questionar: “literatura para quê?”, buscando
saber o que ela pode fazer por nossa sociedade contemporânea. Em um mundo
devastado por uma crise geral, a proposta de Compagnon é defender o conhecimento
literário, visando identificar se ainda há necessidade da literatura para a vida, para
o conhecimento, para a autotransformação. Neste ponto, poder-se-ia dizer que,
apesar de historicamente muito distantes, as observações de Compagnon sobre
as funções da literatura aproximam significativamente de uma das propostas
abstraídas da análise do trabalho literário dyoneliano.
Para Antoine Compagnon, atualmente, a literatura está em crise não
apenas por causa de certa desvalorização de seu métier, mas por falta de uma
sistematização eficaz dos estudos literários. Ao contrário do que geralmente se
pensa, segundo o crítico francês, a arte da escrita é uma forma peculiar de se
adquirir conhecimento, porque emancipa o homem, esclarecendo-o sobre as
J contradições da história e, sobretudo, de seu tempo:
A literatura, exprimindo a exceção, oferece um conhecimento diferente do
A conhecimento erudito, porém mais capaz de esclarecer os comportamentos
e as motivações humanas. Ela pensa, mas não como a ciência ou a filosofia.
Seu pensamento é heurístico (ela jamais cessa de procurar), não algorítmi-
L co: ela procede tateando, sem cálculo, pela intuição, com faro... A literatura
nos ensina a melhor sentir, e como nossos sentidos não têm limites, ela
L jamais conclui, mas fica aberta... (COMPAGNON, 2009, p. 51)
2 Aqui, tal como em algumas edições do romance, o nome do louco está escrito com letra minúscula,
sobretudo, para acentuar o aspecto que demarca a sua desumanização.
p. 102) afirma que “o autor... não cede de sua importuna solicitude, inexorável na
perseguição do alvo que se propôs. Nenhuma diversão lateral, nenhuma frincha
para uma tomada de alento. A mesma tonalidade seca, sempre igual, cinza sobre
cinza”. Sob tal ponto de vista, nota-se que queVellinho sonda, mas sem penetrá-lo
com profundidade, um dos temas principais da poética de Dyonelio Machado; aquele
que representa o tom melancólico, obscuro, sem luz, sobretudo de suas obras que
abrangem sua primeira fase literária. Se, segundoVellinho, esse traço primordial
J não permite a existência de “brechas de libertação”, acreditamos, no entanto, que
este ambiente lúgubre e sem esplendor nos autoriza a identificar“alguns raios de
claridade” em meio à desilusão, à dor, e à desesperança – aspectos fundamentais
A
para a compreensão da poética dyoneliana.
L Neste artigo, uma das ideias sustentadas é que Dyonelio Machado
conhecia muito bem o deslocamento do conceito clássico de arte, de literatura, o
qual, por exemplo, foi analisado com propriedade por Walter Benjamin, ao definir
L a crise da experiência representada entre a relaçãoda transmissão clássica da
narração e a composição de objetos artísticos na modernidade:
A Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não
mais o vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e concepções do mundo
do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores cul-
turais podem nos conduzir, quando a experiência nos é subtraída, hipócrita
ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar
nossa pobreza. Sim: é preferível confessar que essa pobreza de experiência
• não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova bar-
347 bárie. (BENJAMIN, 1994, p. 115)
• Segundo Benjamin, a arte de narrar passa por uma crise, porque, para o
filósofo alemão, o conteúdo épico – o qual fornecia magia às narrativas antigas, ao
mundo mítico –, desde o século XX, está cada vez mais se definhando, identificando,
assim, sintomas de uma “nova barbárie”. Para Benjamin, o conceito de aura pode
ser sistematizado como “a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que
2 ela esteja” (1994, p. 169). Com isso, Benjamin pretende observar que outrora a “arte
autêntica” estava protegida, por exemplo, por uma instância mítica (a aura) que a
0 protegia de certa banalização de seu valor de culto, de seu poder transformador,
de sua essência vital. No mundo moderno, ao contrário disso, a desauratização
equivale não apenas à destituição do valor do culto, mas, também, é capaz de (re)
1 sistematizar, com contundência, toda a tradição.
Todavia, essacaracterística não é apenas uma constatação que revela certo
8 tipo de decadência, mas fornece um tom de “beleza”, ainda que paradoxal, à arte
do século XX e muito provavelmente à do século XXI. Nesse sentido, sustentamos
que alguns romances de Dyonelio Machado, bem como a história do louco do Cari,
estão vinculados a tal transformação ocorrida, de maneira geral, no âmbito artístico
e cultural, ou seja, a desauratização do universo artístico equivale à pobreza que
fornece um tom paradoxal de “beleza triste” a uma nova era, contraditoriamente,
explicada a partir de um processo de desestruturação do que se compreendia por
histórico, canônico, explicitando um impasse entre tradição e modernidade.
No romance, o louco é apresentado no contexto em que a coerção política
se faz presente. O protagonista é um homem sem identidade e sem um lugar de
moradia fixa; não tem nome, não é capaz de se expressar, não tem vontade própria.
Desse modo, ele é arrastado por outras personagens em meio a um ambiente em
que a figura de Deus está ausente – assim como é possível depreender do poema
publicado no romance em pauta:
“Almas Penadas”
(Sugestões do Cárcere)
J Não se sabe quem foi. Nem sequer se foi Deus.
Ou se foi o Demônio Engenhoso e Magano.
Ou mesmo um Poeta triste e por isso com seus
A Sorrisos de Comédia, entre divino e humano.
Não se sabe quem foi. Só se sabe que os Céus
L Um dia se fecharam: que um profundo oceano
De fogo e de sofrer se abriu para esses réus.
L – O Inferno, assim criado, entronizava o Insano.
3 Segundo Fletcher Angus (2002, p. 11), uma vez que a alegoria “diz uma coisa para significar outra”,
a sua praxe interpretativa nos auxilia a ir além da “expectativa normal que temos da linguagem”,
questionando a concepção de que “as palavras ‘significam somente o que dizem’”. Por outro lado,
como salienta Jeanne Marie Gagnebin (2009, p. 40), “num contexto determinado, a alegoria pode,
sim, remeter a uma significação precisa entre outras”.
A cartografia da coerção sob a luz da alegoria e sob a misteriosa função
do “fim”
No derradeiro capítulo d’O louco do Cati, cujo título é “Já não chovia”,
existe uma impactante cena que faz com que o maluco se veja diante dos escombros
do antigo castelo. Antes do fim de seu percurso, o louco perpassa pelas cidades
do Rio de Janeiro, São Paulo, Florianópolis, Caxias do Sul, Livramento. Por assim
dizer, o trajeto do louco e de seus amigos representa, alegoricamente, os caminhos
J a partir dos quais é possível delinear o mapa ficcional e não ficcional da coerção
política, difundida por Vargas. Neste ponto, literatura e vida se sobrepõem, porque,
A além de Dyonelio Machado, muitos intelectuais passaram por este mesmo caminho
do sofrimento, da desumanização: que vai do Rio Grande do Sul ao Rio de Janeiro
L – cidade do cárcere para o qual os presos políticos do país eram levados durante o
Estado Novo (1937-1945).
L Por um lado, somente no “fim”, o animalizado homem-cão tornar-se-á um
ser humano; apenas no fim, o homem decaído e humilhado poderá reconhecer a
libertação; só nas últimas descrições do romance, descobre-se que o maluco “vazio
A de experiências” é um singelo jovem, ou seja, um homem como “todos nós”. Por
outro lado, ele não aparecerá mais nas narrativas seguintes, as quais completam a
tetralogia romanesca que são compostas por Desolação, Passos perdidos e Nuanças.
Assim, ao passo que o louco se liberta, ele tem que apagar-se para todo o sempre
do universo ficcional.
•
Nesse sentido, mais do que uma alusão explícita à história da
351 Revolução Federalista ou às categorias artísticas do expressionismo, entre outras
• características, a partir do momento em que é destacada a imagem do subestado,
“do Cati”, a análise de cunho alegórico não permite apenas problematizar a mítica
em torno da dominação e da coerção, propagada pelo Estado Novo (1935-1945);
não contribui, unicamente, para traduzir os questionamentos voltados para o
contexto social, político e cultural da sociedade da época em que o romance em
2 pauta foi publicado. Ou seja, a partir da análise d’O louco do Cati, percebe-se que
alegoria dyoneliana está vinculada à transformação da concepção clássica de arte,
passando a representar a “crise da experiência” e a “pobreza representativa do
0 mundo moderno”. Dessa forma, a arte aponta para si mesma, tornando-se cada
vez mais profunda, porque traduz a própria “decadência esplendorosa da vida e do
1 tempo”.
Literatura e desauratização; arte e desencantamento
8 Na prosa ficcional de Dyonelio Machado, existe um tipo de desencantamento
que perpassa por todo o mundo ficcional. Este não está relacionado apenas com
a representação de paisagens tristes ou pela coerção ou violência, descritas em
suas principais narrativas. Pautando-nos mais uma vez nas acepções teóricas
apresentadas aqui, sobretudo nas de Walter Benjamin, pode-se dizer que a desilusão
é firmada de modo significativo e está relacionada a certa acepção“literatura, perda
da experiência e pobreza”, cujo entendimento é possível encontrar através da
análise dos romances mais expressivos do autor.
Nesse sentido, além do que ocorre em várias passagens d’O louco do
Cati, em um trecho do romance Sol subterrâneo (1981), especificamente em um
importante diálogo entre os personagens Pedânio, Caio, Sílvio e Teófanes, há uma
explicação sui generis que, conquanto ocorra numa narrativa distinta, com efeito,
pode ser redimensionada a muitas outras produções de Dyonelio Machado:
O caso, porém, é que lhe fora cair às mãos uma pequena estátua, em bronze
de Corinto.
A – E então?
Tanto n’O louco do Cati, quanto em outras obras de Dyonelio, o estudo das
fontes históricas, políticas, econômicas e sociais (devido, sobretudo, à interpretação
alegórica) permite identificar um diálogo entre textos (ficcionais) e subtextos (não-
ficcionais). Ao passo que tal diálogo intertextual é identificado, é possível ordenar,
do mesmo modo, os projetos estético e ideológico do autor, fundamentados, por
consequência, a partir das categorias que versam sobre história, política e alegoria.
Por assim dizer, para Dyonelio, a concepção de literatura passa por uma redefinição
ampla, a qual obrigatoriamente abrange outros discursos, e não apenas o literário;
a qual faz uma revisão dos termos “experiência” e “pobreza” de forma crítica e
reflexiva. Sem dúvida, isso está vinculado à acepção de literatura não apenas do
século XX, mas, especialmente, do XXI.
Sobretudo depois de sua prisão (1935-1936), Dyonelio Machado
redefine a sua arte, de maneira bem distinta do que a crítica literária de sua época
compreendia como uma “arte autêntica”. Na poética dyoneliana, os projetos estético
e ideológico do autor revelam uma concepção particular da literatura, porque arte
J e ideologia aparecem estritamente vinculadas, isto é, fundidas numa só categoria,
além de metaforizar vestígios dos “signos da vida”. Durante muito tempo, essa
A concepção, que correlaciona à arte literária a outros discursos, justificou com
veemência uma das principais funções da literatura, conforme preveem críticos,
L como, por exemplo, Antoine Compagnon. Assim, não era absurdo afirmar que
as obras-primas problematizavam questões sobre o ser humano tanto quanto as
célebres obras da História, da Filosofia, da Sociologia, por exemplo.
L
Embora tenha sido punida por conta disso, a produção literária dyoneliana
está interligada a um projeto que valoriza a experiência do homem e do mundo,
A a qual considera o discurso literário de uma maneira ampla e expressiva. Trata-
se de uma “arte da decadência”, na qual “o mal” e “o feio” adquirem destaque em
detrimento das clássicas acepções do “belo” ou daquilo que uma parcela da crítica
literária, ainda hoje, considera como traços da tradição.
Referências
•
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353 CANDIDO, A. A literatura e a formação do homem. Ciência e Cultura. São. Paulo, vol 24,
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L
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A
•
354
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2
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1
8
J
A
AS REPRESENTAÇÕES COMO PROCESSO CULTURAL: UM
L
ESTUDO SOBRE A NARRATIVA JORNALÍSTICA DO G1/ACRE
(2013 - 2016)1
L
Francielle Maria Modesto Mendes (UFAC)
A Karolini de Oliveira (UFAC)
RESUMO: Este estudo tem por objetivo analisar as representações criadas pelos
textos jornalísticos do G1/Acre sobre o estado de mesmo nome, localizado na
Amazônia brasileira. O corpus é formado por cinquenta e oito textos, publicado
entre os anos de 2013 e 2016 e coletado em uma pesquisa feita na caixa de busca do
• próprio site. Por questões didático-metodológicas, eles foram organizados em cinco
355 categorias: 1) atividade econômica; 2) relação ser humano/natureza (fauna e flora);
3) mitos, lendas, crenças e encatamentos; 4) povos indígenas; 5) meio ambiente.
•
Essas categorias foram selecionadas a partir da leitura de todo o material, quando
se percebeu que havia repetição nas temáticas, por isso elas podiam ser organizadas
em pequenos blocos de análise. Assim, foi possível observar quais as representações
mais recorrentes e de que forma o veículo organiza as informações sobre a região
acreana. Do material analisado, percebe-se que o discurso tradicional que afirma
2 ser a Amazônia brasileira/acreana uma região onde impera atraso, degeneração
e passividade se entrecruza com algumas abordagens sobre desenvolvimento
0 cultural e tecnológico, sobretudo, relacionadas aos povos indígenas. Como parte da
fundamentação bibliográfica, foram estudados os seguintes autores: Stuart Hall,
1 Kathryn Woodward, Miquel Alsina, Ana Pizarro, Durval Muniz de Albuquerque
Junior, entre outros.
8 Palavras-chave: Jornalismo. Representações. Amazônia. G1/Acre.
1 Este artigo contém ideias que já foram discutidas em um artigo intitulado “‘O aroma das ervas
se confunde com a fumaça dos incensos’: representações da Amazônia acreana no jornalismo do
site G1”, apresentado no 40º Congresso Brasileiro de Ciências em Comunicação, em Curitiba,
de 04 a 09 de setembro de 2017; e em um artigo intitulado “Tartarugas exóticas, dinossauros,
jabutis gigantes”: as representações sobre a Amazônia Sul-Ocidental no G1/Acre, apresentado no
IX Colóquio Internacional as Amazônias, as Áfricas e as Áfricas na Pan-Amazônia, de 11 a 13 de
dezembro de 2017.
Acre, entre os anos de 2013 (ano de lançamento do site) e 2016 (ano de início
da pesquisa). Esse material foi estudado no projeto de pesquisa “Imaginário na
Amazônia: um estudo sobre as representações produzidas pelo jornalismo do G1/
Acre”, cadastrado na Fundação de Amparo à Pesquisa do Acre, em 2016/2017.
Os textos foram coletados em um levantamento feito na caixa de busca do
próprio site. Foram digitadas palavras-chave como: Amazônia, Acre, Floresta, Meio
Ambiente, Índios, Animais, Plantas, Mitos, Lendas, Cidade, Cultura, Tecnologia,
J Economia, entre outras. A partir do estudo realizado, percebeu-se que o uso desses
termos permitia o acesso a uma grande quantidade de conteúdo jornalístico na
A página online.
Para o desenvolvimento da pesquisa, as notícias foram divididas em cinco
L categorias: 1) atividade econômica; 2) relação ser humano/natureza (fauna e flora);
3) mitos, lendas, crenças e encatamentos; 4) povos indígenas; 5) meio ambiente.
Essas categorias foram selecionadas a partir da leitura de todos os textos coletados,
L
quando se percebeu que havia repetição de assuntos abordados nas notícias do
site. Assim, foi possível observar quais as representações mais recorrentes e de que
A forma o veículo organiza as informações sobre a região acreana.
Das cinquenta e oito matérias coletadas, oito foram inseridas na categoria
“atividades econômicas”:
TEXTOS DATA
1 - Pepino gigante chama atenção de moradores no interior do Acre 03/02/2013
•
2 - Produção de abacaxi de até 12 kg é destaque no interior do Acre 14/05/2013
356 3 - Artesão faz submarino de cupuaçu inspirado em música dos Beatles 01/08/2013
• 4- Carne vendida no interior do AC é transportada em carroça 01/03/2014
5 - No interior do Acre, família cultiva laranjas gigantes com mais de 2,5 kg 15/04/2015
6 - IX edição do Rio Branco Fashion Week traz desfile com moda em látex 12/12/2015
7 - Durante mudança, família colhe mandioca gigante no interior do AC 05/01/2016
8 - Vendendo banana frita há mais de 20 anos, homem emprega filhos no AC 01/05/2016
2 Tabela 1 – Matérias da categoria de análise “atividades econômicas”. Elaborada pelas autoras.
Nessa primeira seleção de textos, é possível observar que o site produz
0
conteúdo destacando a agricultura, a borracha e o comércio. Todavia, essas práticas
são em sua maioria desenvolvidas informalmente e em pequenos grupos familiares,
1 segundo o veículo de comunicação estudado. Da forma como as narrativas são
elaboradas, parece que no Acre não há outros tipos de investimentos, além dos
8 tradicionais.
Três textos enfatizam a produção agrícola e fazem uso do adjetivo
“gigante(s)” no título para caracterizar as palavras “pepino”, “laranja” e “mandioca”,
o que dialoga com a ideia de que a região amazônica acreana, além de conservadora
em suas práticas, é hiperbólica e incomum. Esse exagero dialoga com a ideia
de exotismo constantemente atribuída à região desde a chegada dos primeiros
viajantes nos séculos XVI e XVII2. Para Luciana Murari (2009), o exotismo é tão
2 Nas doze matérias coletadas, a palavra “onça” aparece três vezes e há cinco
menções a “cobras” nos títulos do G1/Acre. Os animais da região são considerados
“gigantes”, “exóticos” e há destaque também para uma notícia que discorre sobre
0
uma “tartaruga que parece um dinossauro”. Essa leitura feita pelo site permite
que o público interprete que o morador do Acre convive naturalmente com animais
1 selvagens, conservando hábitos rústicos e desconsiderando as particularidades
dos espaços cidade/floresta.
8 Na notícia “Filhote de onça criado como gato por família no AC é resgatado
pela polícia”, de 19 de fevereiro de 2016, percebe-se que o texto veiculado constrói
sua narrativa sob o viés do exótico que ajuda na construção/manutenção de
estereótipo. O episódio acontece no interior do estado e quem diz que o filhote
parece um gato é o policial que resgata o animal e não a família.
Contudo, o título da matéria propõe um pacto de leitura que se arquiteta
sob a premissa de que é comum no estado do Acre que as pessoas não só convivem
3 O fundador do Santo Daime, Raimundo Irineu Serra, teve os primeiros contatos com a Ayahuasca
na década de 1910. Mas foi somente na década de 1930 que ele começou a reunir alguns seguidores
em torno dos mesmos princípios religiosos (OLIVEIRA, 2007).
existem ainda figuras ligadas à água ou à selva, que se recriam e se transformam
permanentemente no imaginário popular (Iara, Curupira e Mapinguari), são elas
que explicam e dão sentido a sua relação com a natureza e com os demais seres
humanos. Para exemplificar essa relação, o G1/AC publicou, em 5 de setembro de
2014, a matéria “Após Mapinguari gigante, artesão faz Iara e Curupira no jardim
de casa”:
Eu sempre fui muito ligado à história da Amazônia, principalmente nas
J lendas. Porque eu morei em um local próximo à floresta e alguns moradores
indígenas, pescadores e seringueiros contavam essas histórias para a gente.
E eu, já com 14 anos, rabiscava como eu pensava ser essas criaturas. Eu fui
A crescendo com a vontade de tornar essas imagens em tamanhos reais para
que pudessem servir de lazer e conhecimento também, destaca (MUNIZ,
L 2014, online).
MUNIZ, Tácita. Após Mapinguari gigante, artesão faz Iara e Curupira no jardim de
casa. 2014. Disponível em: http://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2014/09/apos-mapin-
A guari-gigante-artesao-faz-iara-e-curupira-no-jardim-de-casa.html. Acesso em: 28 de feve-
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A
NATANI, Rayssa. Homem cura por meio de reza e plantas medicinais em reserva no
AC. 2014b. Disponível em: http://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2014/02/homem-cura-
-por-meio-de-reza-e-plantas-medicinais-em-reserva-no-ac.html. Acesso em: 28 de feverei-
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NENEVÉ, Miguel; SAMPAIO, Sônia. Re-imaginar a Amazônia, descolonizar a escrita sobre
•
a reigão. In: ALBUQUERQUE, Gerson; NENEVÉ, Miguel; SAMPAIO, Sônia. Literaturas e
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SILVA, Tomaz Tadeu. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petró-
polis: Vozes, 2009.
1
8
J
A
L O PROCESSO JUDICIAL COMO FONTE E CONSTRUÇÃO DA
NARRATIVA HISTÓRICA
L
Francisco Pereira Costa (UFAC)
A RESUMO: A estrutura jurídico-administrativa instalada no Brasil desde a ocupação
dos portugueses, para implantarem um regime de dominação e exploração do novo
território. Necessário se fez domesticar aqui um sistema de punições, mediado pelo
Direito, cuja forma de fazê-lo funcionar, resultava de muitas práticas judiciárias,
jurídicas. Conquanto, as relações sociais que se desdobravam em conflitos, mesmo,
• as de cunho individual, passavam, pelo filtro do Poder Judiciário, embora precário,
todavia, eficiente na aplicação das penas e castigos impostos pelas leis portuguesas.
367
Exemplo, o caso de Joaquim José da Silva Xavier, conhecido por Tiradentes. A
• investigação do suposto delito cometido por ele e seus aliados foi objeto de um
julgamento, a partir do qual Kenneth Maxwell, escreveu uma narrativa histórica
- A devassa da devassa. Com isso, queremos demonstrar a existência de várias
fontes históricas e as diversas possibilidades de suas narrativas, ao tempo em que,
é possível, a partir destas narrativas promover a crítica ao Direito, considerando
2 que este é portador de um discurso, de uma verdade, pois na fase do inquérito
começa a se deslocar para dentro do processo um discurso saber-poder e verdade
0 Assim, o historiador assume um papel de vanguarda diante da fonte jurídica. Sidney
Chalhoub enfrentou o problema do uso do processo criminal como testemunho
1 histórico mesmo ante o ceticismo dessa fonte, pois, diziam:tais fontes mentem. É
nesse núcleo triangular que o processo judicial se constitui como uma trama, uma
vez que, é resultado de um jogo de interesses, de interesses de classe, de interesses
8 econômicos e políticos, pois, a perspectiva do funcionamento da norma é uma
perspectiva de classe, imbuído de um formalismo jurídico-abstrato, universal para
perpetrar a ideia de isenção.
Palavras-chaves: Processo Judicial. Fonte Histórica. História. Direito. Narrativas.
Introdução
A formação do Brasil enquanto Estado-nação é um desdobramento da
ocupação e exploração econômica pelos portugueses e outros povos, que o manteve
numa posição de subalternidade na divisão internacional do trabalho até os dias
de hoje. A priori destaco esse vínculo de subserviência a outras nações.
Esse lugar no mundo mercantil-capitalista, do ponto de vista
jurídico,impunha a necessidade de criação de uma estrutura cartorária e burocrática
para controle da circulação da mercadoria e do cumprimento dos contratos; das
transações comerciais, vinculado a isso, também, o controle sobre os indivíduos
nas suas relações interpessoais, sociais, políticas, econômicas e do trabalho.Na
burocracia cartorária, é o inquérito, por exemplo, o primeiro instrumento a capturar
as narrativas histórico-jurídicas sob a perspectiva do controle das relações sociais,
J econômicas e políticas, em outras palavras vai instrumentalizar o poder judiciário
e o poder político.
A Assim, na esfera destas duas instituições, há um campo vasto de
procedimentos burocráticos, para ordenar e controlar a circulação dos bens,
L garantido pelos e para os ricos e poderosos. (FOUCAULT, 2003, p. 65)
É essa produção burocrática que nos interessa nesse trabalho, ou seja, o
que foi capturado, mediado pela narrativa histórico-jurídica e fixado nos documentos
L
históricos, nesse caso, nos processos judiciais, como portador de saberes, poder e
verdade.
A Nesse sentido, é pertinente se apropriar desse arcabouço histórico
cartorário, para se deparar com o processo histórico de construção, formação e
consolidação de domínio jurídico e histórico, enquanto saber.
Poderíamos, desde então, pensar na perspectiva de utilizar os processos
judiciais como fonte histórica, portanto, isso é muito vasto, para o historiador do
•
Direito, pode se debruçar sobre qualquer área, ou se debruçar decididamente num
368 único campo, por exemplo, na histórica do Direito criminal no Brasil, com recortes
• para campos mais específicos e tempos históricos também determinados, dado
vários fatores que implicam na realização da pesquisa, que vai desde a existência
de fontes e da qualidade em termos de preservação e qualidade dos arquivos que
implica no inventário das fontes, seleção, catalogação e higienização, para que
estejam em condições de uso pelos pesquisadores.
2 De qualquer sorte, nesse lugar de pesquisa, isto é, em que a fonte de
pesquisa é o processo judicial, a fonte é uma realidade, ela existe. Dado que, o tempo
0 do direito material implicado numa sucessão histórica desse direito, por exemplo,
uma expropriação de um território, pode, séculos depois, ser questionada pelos
verdadeiros proprietários-herdeiros ou proprietários originários, considerando se o
1 processo de expropriação fora feito com violência ou outras formas de dissimulação.
Outro aspecto, e o que importa dizer, com isso finalizar essa breve
8 introdução é a abordagem do conteúdo do processo, todavia, se ele aparece como
umestudo de caso. Metodologicamente, não se trata de reduzir o caso a uma
micro-história, ao caso em si, ou que as narrativas ali tenham uma circunscrição
delimitada, não é isso, o procedimento de interpretação de um caso concreto é
contextualizá-lo, ampliar ao leque de análise ou a escala de observação.
Esse é um campo muito aberto, haja vista, que parte dos historiadores
ainda resistem e desconsideram o processo judicial com fonte histórica. Ademais,
diante de uma possibilidade concreta da “escrita da história” ou da escrita da
história do direito, pode se enveredar por dois campos: um que é o próprio debate
teórico desse campo – história do direito; o outro, é trazer novas interpretação e
narrativas históricas a partir da investigação dos casos-processos.
Aspectos históricos da formação do establishment brasileiro
Ao longo da história, o Brasil foi se constituindo em um território com
características próprias, dotado de uma estrutura jurídica-política-administrativa
organizada por Portugal desde o início da colonização. Essa estrutura amalgamada
com as alianças políticas e formas de domínio e poder instalados nessas estruturas,
J originou uma organização administrativa patrimonialista1, onde o poder/direito
privado e público não se diferenciavam, dado a política de trocas e favores.
A Vários órgãos foram criados para administrar a Colônia, dentre eles o
Judiciário, através dos Juízes de Paz, Juízes de Tribunais de Relação e Tribunais
L de Apelação, Delegacias de polícia eoutros. Essas instituições existiam e se
consolidaram ao longo da história do Brasil como instrumento de controle social
L da sociedade brasileira, com propósito de resolução dos conflitos sociais.
Em torno desta realidade institucional e estruturalfoi constituído também
A um discurso que culminou numa historiografia para explicar e/ou justificar o modelo
jurídico a partir de uma História do Direito, História das Instituições Jurídicas e
História das Ideias ou do Pensamento Jurídico, porém, segundo Wolkmer:
[...] todas identificadas, ora com um saber formalista, abstrato e erudito,
ora com uma verdade extraída de grandes textos legislativos, interpretações
exegéticas de magistrados, formulações herméticas de jusfilósofos e institu-
•
tos arcaicos e burocratizados. (WOLKMER, 2007, p. 17)
369
Continua o mesmo autor afirmando que:
• [...]essa longa tradição foi interrompida nas últimas duas décadas por um
renovado interesse de natureza crítico-ideológica por questões metodológi-
cas sobre a História do Direito. Tal approach reflete também o esgotamento
de certo tipo de historiografia embasada em valores liberal-individualistas.
(WOLKMER, 2007, p. 17)
2 Não ouso afirmar que foi interrompida, mas podemos considerar que
há um novo campo teórico que convive com o modelo tradicional, posto que, o
0 positivismo, a dogmática é muito forte e impregnada na formação da cultura
jurídica brasileira.
1 Antonio Manoel Hespanha, jurista português, entende que a historiografia
jurídica da modernidade servia para duas coisas:
8 [...] relativizar e, consequentemente, desvalorizar a ordem social e jurídica
pré-burguesa, apresentando-a como fundada na irracionalidade, no precon-
ceito e na injustiça” e realizar “a apologia da luta da burguesia contra essa
ordem ilegítima (Ancien Régime) e a favor da construção de um Direito e de
Conclui Chaloub:
Pretende-se mostrar, portanto, que é possível construir explicações válidas
do social exatamente a partir das versões conflitantes apresentadas por di-
versos agentes sociais, ou talvez, ainda mais enfaticamente, só porque exis-
tem versões ou leituras divergentes sobre as “coisas” ou “fatos” é que se
torna possível ao historiador ter acesso às lutas e contradições inerentes
a qualquer realidade social. E, além disso, é na análise de cada versão no
contexto da cada processo, e na observação da repetição das relações entre
as versões em diversos processos, que podemos desvendar significados e
penetrar nas lutas e contradições sociais que se expressam e, na verdade,
produzem-se nessas versões ou leituras.(CHALOUB, 2001, p. 40)
3 Ver a obra de ficção jurídica FULLER, Lon L. O caso de exploradores de caverna. Trad. Plauto
Faraco Azevedo. Porto Alegre: Fabris Editor, 1976.
ao Juiz uma margem de interpretação demasiado extensa, no caso inglês,seriam
atos discricionários.
Essa constatação faz sentido quando ele afirma que:
[...] tentei mostrar, na evolução da Lei Negra, uma expressão da ascendên-
cia de uma oligarquia Whig, que criou novas leis distorceu antigas formas
legais, a fim de legitimar sua propriedade e status próprios; essa oligarquia
empregou a lei, tanto instrumental como ideologicamente, muito à manei-
J ra que esperaria um marxista estrutural moderno. Mas isso não significa
dizer que os dominantes tinham necessidade da lei para oprimir os domi-
nados, ao passo que os dominados não tinham necessidade de lei alguma”.
A (THOMPSON, 1997, p. 351)
Dito isto, voltemos ao processo judicial enquanto fonte histórica. Nele está
L tudo isso, quero dizer, ele é resultado de um poder que se estabelece no conflito de
classes, nesse sentido, é certo que o conteúdo de um processo revela ou pode ser
L portador da narrativa da luta de classes, portanto, de uma narrativa ideológica no
sentido de classe.
A A história social do processo trabalhista, civil, criminal revela a história
social dos subalternos, dos trabalhadores, trabalhadoras, pode construir uma
narrativa de uma história vista de baixo (SHARPE, 1992, p. 39ss.), assim, traz a
voz dos debaixo. Essa é uma perspectiva teórica e metodológico, é um lugar da
produção de um discurso, de uma narrativa histórica. Evidentemente, que esta
• narrativa é resultado de uma escolha e do lugar social do profissional da História.
375 As relações intercaladas nos acontecimentos sociais, políticos, econômicos
mediados pelo Judiciário, através de seus instrumentos de enquadramento e
•
enclausuramento dos sujeitos sociais revela muita da sociedade de uma época. Por
ser, o processo, detentor de uma narrativa histórica é que se exige revisitar esta
narrativa, os códigos, símbolos, discursos, as formas jurídicas, enfim. E esse papel
é do historiador que conhece os métodos e as teorias da História.
Todavia, em se tratando de Direito é extremamente necessário o
2 conhecimento teórico e empírico do Direito, posto tratar-se de um campo prático,
cujas ações, nem sempre estão dentro dos contornos da norma. Isso já é um
0 problema de uma dimensão gigantesca, não obstante, o uso das técnicas, recursos,
teorias e práticas nesse campo, sobretudo, a experiência calcada no ritual para dar
1 vida a lei, a norma, ao regulamento, a resolução, portaria etc. É nesse campo que
reside a dificuldade do uso dessas fontes.
8 Historiografia e o Direito
Ainda, cabe uma breve ponderação acerca das correntes teóricas da
História. Fica evidente neste breve trabalho que o referencial teórico utilizado aqui
tem fundamento no materialismo histórico e dialético, na interface com o Direito
passo a denominar de materialismo histórico-jurídico dialético.
Todavia, a narrativa jurídica a partir dos processos pode ser escrita com
qualquer viés teórico-metodológico, por exemplo, na dimensão do positivismo,
do estruturalismo, a partir das subjetividades, baseada nas manifestações do
inconsciente (Psicanálise). Jusnatuaralismo, pois há quem ache que o direito é um
direito natural, ou pelo menos, alguns das suas manifestações são e devem ser
estudadas como tal. A escola dos Annales que introduz novos objetos de pesquisa
e propõe:
[...] uma análise histórica menos descritiva e mais relacional, mais social,
que encontraria as causas dos acontecimentos nas esferas coletivas e não
individual da sociedade, rompendo com a tradição metódica, e dessa forma
poder-se-ia encontrar uma lógica pertinente à própria História, o que faria
desta uma verdadeira Ciência. (BAGNOLI, Vicente, BARBOSA, Susana Mes-
J quita e OLIVEIRA, 2009, p. 17)
O que pretendemos destacar é que a narrativa histórica ou jurídica
A
produzida a partir desta modalidade de fonte deve está associada às diversas estas
correntes teóricas-metodológicas da História.
L
A produção teórica de Foucault4 que cunhou conceitos como arqueologia
do saber, genealogia do poder e outros, com o qual procura desmistificar a produção
L do saber e, ao mesmo tempo, o uso disso, como manifestação do poder, para o
controle imposto pelas instituições do Estado, como o Judiciário, Polícia, Escola,
A Hospital.
As ferramentas da História devem ser norteadoras da pesquisa sobre
os processos judiciais, que foram criados mediados pelo Direito. De modo que,
qualquer pesquisa realizada com o apoio da História, pode promover, não só a
crítica, como é o pensamento inicial deste trabalho, mas ajustar no contexto de
• nosso tempo, novas perspectivas do Direito, novas aplicações e articulação de novas
376 tramas para a realização de um Direito mais comprometida com novas narrativas,
com a história dos sujeitos sociais vindos de baixo.
•
Considerando um Direito emancipador, é indispensável instrumentalizá-
lo com outros paradigmas do conhecimento.
Considerações finais
Nós últimos anos, no Brasil, muitas áreas do conhecimento, tem se
2 apropriado dos processos para investigar e construir novas narrativas em diversos
campos do saber, do conhecimento.
0 Isso é muito importante porque se aproxima das propostas dos historiadores
da escola dos Annales, que rompe com a história tradicional e propõe novos objetos
1 de pesquisa. Essa demanda é importante porque realiza a interdisciplinaridade
entre os diversos campos dos saberes, sobretudo com o Direito. É necessário que
escavemos o subsolo do Poder Judiciário para revelar suas tramas, seus jogos de
8
poder e a condição de mediador dos conflitos de uma sociedade dividida em classes.
Em síntese com esta comunicação procuramos delinear aos historiadores
e curiosos a importância do processo judicial e das práticase dos discursos jurídicos
(argumentação jurídica) através dos processos judiciais como fontes históricas.
Fortalecer a ideia da interdisciplinaridade entre Direito e História
mostrando a força da História como campo teórico capaz de promover a crítica e a
4 Ver entre tantas outras obras de FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 14ª ed., Trad. Roberto
Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979; FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de
Janeiro: Nau, 2003.
reconstrução da narrativa jurídica. E destacar a importância das fontes histórico-
jurídicas como instrumento de revisitação e possibilidades de escrita da História.
Enfim, destacar o inquérito e o processo judicial como fonte histórica.
Referências
BAGNOLI, Vicente, BARBOSA, Susana Mesquita e OLIVEIRA, Cristina Godoy. História do
Direito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim – o cotidiano dos trabalhadores no Rio
J de Janeiro da belle époque. 2. ª ed, Campinas: Ed. da UNICAMP, 2001
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 1996.
A FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 14ª ed., Trad. Roberto Machado. Rio de Janei-
ro: Graal, 1979
L GRINBERG, Keila. A história nos porões dos arquivos judiciários. In: PINSKY, Carla Bassa-
nezi e LUCA, Tania Regina de (Orgs.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto,
L 2012.
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. 18.ª ed., Rio de Janeiro: Zahar Edito-
res, 1982.
A
SHARP, Jim. A história vista de baixo. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da história – no-
vas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992.
THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. 4.ª ed., Rio de Janeiro: Foren-
• se, 2007
Outras referências consultadas:
377
ARÚJO, Fernando. Aspectos da história do direito no Brasil. Recife: Nossa Livraria,
• 2003.
BARRAL, Welber. Metodologia da pesquisa jurídica. 2ª ed., Florianopólis: Fundação Boi-
teux, 2001.
COSTA, Francisco Pereira. Seringueiros, patrões e a justiça no Acre Federal (1904-
1918). Rio Branco: Edufac, 2005.
2 FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu
irmão. 5.ª ed., Rio de Janeiro: Graal, 1991.
0 GINSBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
WOLKMER, Antonio Carlos. Humanismo e cultura jurídica latino-americana. In: WOLK-
1 MER, Antonio Carlos. (Org.). Humanismo e cultura jurídica no Brasil. Florianópolis:
Fundação Boiteux, 2003
8 WOLKMER, Antonio Carlos. Síntese de uma História das idéias jurídicas: da antiguida-
de clássica à modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006.
J
A
L SÍMBOLOS INTERAMAZÔNICOS DO SAGRADONO CORTEJO DA
“VIRGEM DE SANTA ROSA” E NA PROCISSÃO DO “BOM JESUS
L DO ABUNÔ
A Geórgia Pereira Lima (UFAC)
RESUMO: As experiências sociais de homens e mulheres nos entre-lugares
fronteiriços da fronteira Brasil–Bolívia no campo simbólico do sagrado de Plácido
de Castro (Acre/Brasil) e Santa Rosa del Abuná (Pando/Bolívia), esses espaços
fronteiriços interamazônicos produziram elementos complexos da cultura
• (Bhabha, 2007) e de religiosidades.Este estudo analisa, a partirda polifonia do
378 termofronteira,as recriações do universo social, cultural, religioso e plural daquele
espaçobi-nacional (Acre-Pando) entre 2005 a 2016.A ideia em realizar uma análise
• comparativa envolvendo as procissões do “Bom Jesus do Abunã” (Acre) e da “Virgem
de Santa Rosa do Abunã” (Pando) permitiu divisar a fé e a igreja católica como um
dos marcos, sobretudo culturais, extrapolando os limites geopolíticos de países
latino-amazônicos no contexto da primeira década do século XXI. Portanto, (des)
contínuosdas fronteiras e religiosidades expõem um hibridismo sob o signo do
2 sagrado do entre-lugar da religião católica como uma fronteira simbólica (Bauman,
2001).
0 Palavras–chave: Fronteira Simbólica. Sagrado na fronteira do Abunã. Religiosidade.
1 O universo católico ao mesmo tempo permite entrever interações
em hibridações sagradas nas fronteiras interamazônicasentre Brasil-Bolívia,
mas também, a influência da fronteira nacional. Nesse sentido, ao pensar as
8 representações da procissão do “Bom Jesus do Abunã”, do cortejo “Virgem de Santa
Rosa” e da simbologia da romagem do andor dos santos para os devotos além
da manifestação de fé podem ser vistos como elementos de contato linguísticos e
culturais entre povos, mas também, mostra que a travessia do rio Abunã realizadas
por homens e mulheres nos dias de festejos do sagrado está influenciada pela
cultura nacional.
Assim, a categoria polifônica de fronteira como um recorte analítico
para estudar as experiências culturais através da religiosidade da Vigem de Santa
RosaAbuná,também traduzem tensões é, pensá-la como um espaço de resistência
social e de ambiguidades simbólicas das identidades nacionais, e ainda, um
espaço permeável, flexível e poroso onde acontece o encontro e o entrecruzamento
de culturas. Nesse sentido, a fronteira aqui representada sinaliza para uma
encruzilhada perigosa, palco de tensões e lutas pela defesa da identidade nacional
boliviana, porquanto, se torna importante materializar esses espaços amazônicos.
Os territórios fronteiriços de religiosidade católica aqui analisados
Plácido de Castro–Acre/BR e Santa Rosa delAbuná-Pando/BO, são espaços que
J apresentam singularidades históricas de um processo continuo das andanças de
brasileiros além-fronteiras do final do século XIX, mas que precisamente durante o
A século XX apresentam maior mobilidade social.
O município de Plácido de Castro representou no início do século
L XXuma posição comercial estratégica de entreposto, concentrava toda produção
da rica e vasta região boliviana e, servia para o trânsito de pessoas e troca de
mercadorias e produtos do extrativismo. Inicialmente foi colocação, depósito do
L
seringal São Gabriel, em 1922 era denominado Vila Pacatuba e depois Vila Plácido
de Castro. Tendo sido elevada à categoria de município em 10-03-1963 como uma
A área territorial de 1.943,245 km². Censo populacional em 2010 de 17.209 hab.
Densidade demográfica de 8,186 hab/km².
Por outro lado a província boliviana de Santa Rosa delAbunáhistoricamente
habitada por brasileiros o que a tornava altamente internacional. Centenas de
famílias brasileiras que viviam e trabalhavam nessa área há anos, sem nunca
• obter qualquer documentação seja de nacionalidade e residência, cidadãos ou
379 trabalhadores, uma vez que o Estado boliviano historicamente estava ausente
• dessa zona. Contudo, vale ressaltar que sua criação dar-se na década de 1930
quando o governo boliviano como uma forma de resguardar e colonizar a fronteira
amazônica, a partir de 2008 se inicia um processo de expulsão de brasileiros e,
em 2010 o Estado boliviano começou a implantar umnovo plano de colonização
da fronteira amazônica com o Brasil, promovendo a migração de 750 camponeses
2 para os povoados de Santa Rosa delAbuná e Manoa (El Deber, 2010).
Diante da complexidade da palavra fronteira e da amplitude de estudos
existentes sobre o tema, para melhor articular as nossas ideias, vamos contemplar
0
duas concepções do conceito: a fronteira geográfica e a fronteira simbólica, ambas
importantes para compreender o cortejo da Virgem de Santa Rosa do Abuná as
1 silenciosas lutas culturais nesse espaço de fronteira evidenciadas nos cânticos
litúrgicos e as expressões da cultura boliviana para preservar e manter-se a língua
8 pátria e suas simbologias étnicas distintas nesta zona de fronteira.
Importante registrar que a pesquisa de campo (2015/6) revelou o cortejo
da Virgem de Santa Rosa realizado no dia entre os dias 29 e 30 de agosto de 2015,
como parte das comemorações dos 75 anos da fundação da cidade Santa Rosa
delAbuná, capital da Província delAbuná–Pando/BO.Aproximadamente 52Km de
distância da fronteira brasileira do Município de Plácido de Castro–Ac. Sete décadas
e meia sinaliza a presença dos bolivianos na fronteira do Brasil, sendo oportuno
dizer que a imagem da “Virgem de Santa Rosa” foi encontrada por um seringueiro
brasileiro em data imprecisa, segundo alguns moradores a imagem original era
“preta” e, se constituiu no contexto histórico da produção de borracha na região no
início do século XX o processo de devoção a Virgem de Santa Rosa.
Nesse sentido, o lugar do cortejo no contexto da cidade é emblemático
uma vez que é possível identificar os entre sentidos de devoção da celebração
e do velório. Enquanto celebração o cortejo toma o formato de sentido pátrio e
dialoga com os espaços de poder constituído no pequeno vilarejo. Ao ser parte das
comemorações da fundação da cidade reveste os símbolos de celebrar a ordem
J social da nação boliviana e dialoga com os elementos de pertencimento que separa
os de “dentro” e os de “fora” (Bhabha, 2007).
A
L
L
A
2
0
1
8
J
A
L O ESTEREÓTIPO, A DISCRIMINAÇÃO E O DISCURSO DE EMBATE
PRESENTES EM MEMES REFERENTES À AMAZÔNIA
L
Geovânia de Souza Andrade Maciel (UNIR)
A Lusinilda Carla Pinto Martins Pinto (UNIR)
RESUMO: No intuito de romper as relações de poder existente na produção de
conhecimentos eurocêntricos, pensadores como Said, Spivak, Hall, Fanon e
Bhabha, procuraram desconstruir as ideias produzidas pelos países dominantes
e valorizar sistematicamente as produções marginalizadas. Na América Latina, o
• Pós-colonialismo (ou “pensamento decolonial”) teve importante recepção no final da
década de 1980. Esse trabalho procura mostrar alguns exemplos de estereótipos
388
e discriminação presentes em Memes referentes à Amazônia, e consequentemente
• apresentar as novas ferramentas digitais como espaço “contra” a subalternidade,
visto ser um lugar aberto, nos quais o sujeito pode se articular, se expressar e
ser ouvido; e não mais conviver com a passividade da exclusão social. Sua ênfase
estará noMeme (termo que surgiu com Richard Dawkins em 1976) e apresentará
exemplos práticos de discursos que se propagam na construção e desconstrução
2 da identidade do Outro da Amazônia.
Palavras – chave: Estereótipo. Discriminação. Decolonialidade. Subalternidade.
0 Memes.
Introdução
1 Na América Latina, o pós-colonialismo teve importante recepção no
final da década de 1980, aqui sendo chamada como “pensamento decolonial”.
8 Podemos referenciar a obra O Local da Cultura (1998) de Bhabha que problematiza
a maneira depreciativa como o Outro Colonizado é caracterizado pelo discurso
do colonialismo Europeu. Podemos aludir também GayatriSpivak que em sua
obra “Pode o Subalterno falar?” destaca o implacável descentramento do sujeito
questionando as formas de representação do Outro que por vezes são concebidos
por discursos hegemônicos que quando referenciados num contexto global, negam
a heterogeneidade dos sujeitos, criando imagens estereotipadas e discriminatórias
com relação ao Outro.
Sob a ótica pós-colonial é possível perceber as relações de embates
existentes nos discursos e o quanto as palavras atuam como poderosas forças
de subalternidade. Na atualidade, tais atitudes são práticas constantes por
meio de representações simbólicas ou não, e a cibercultura manifesta-se na vida
contemporânea na dimensão tecnológica, social, cultural e epistemológica. De certo
modo, os autores Champangnatte e Cavalcanti em seus estudos confirmam a ideia
proposta por este artigo ao dizerem que a cibercultura:
“não apenas destrói hierarquias e fronteiras, mas também as institui em
um processo complexo de “des-re-territorializações”, o que possibilita aos
J indivíduos/coletivos estarem imersos em uma maior flexibilidade social, em
uma organização fluida com papéis menos rígidos e lugares sociais inter-
cambiáveis”. (2015, p. 317)
A
Sabe-se que os processos históricos determinaram um olhar colonial
sobre a população da Amazônia. Assim,em tempos atuais muitos ainda visualizam
L
seus habitantes como seres diferentes por fazerem parte de um “ambiente exótico”
representado pelo imaginário do europeu colonizador diante da sua hegemonia
L discursiva abordada em seus primeiros relatos, cartas, e outros textos da época
que transmitem até hoje uma descrição imaginária persistente.
A Igualmente, na busca por uma relação amistosa entre as diferentes
culturas, o desenvolvimento tecnológico e o crescimento da liberdade das produções
literárias se fizeram como meios imperiosos para permitir a expansão de ideias
que demarcam um hibridismocultural1 – este que sempre foi e continua sendo um
pretexto retomado pelo colonizador como estratégia para aprisionar o Outro.
• De tal maneira, este artigo utilizará algumas exemplificações de memes
389 que anunciam um imaginário representativo do/pelo povo da amazônia, ao
consideraras especificidades na liberdade de utilização do ciberespaço2 tendo
•
os Memes como exemplo prático de discurso que se propagam na construção e
desconstrução das identidades.
Os memes: da origem à atualidade
O conceito meme surgiu em 1976 no livro “O Gene Egoísta” do biólogo
2 evolutivo, etólogo e escritor britânico Richard Dawkins. Mas vale lembrar que o
conceito inicial abordado por Dawkins aproximava meme ao sentido comportamental
0 de gene e dos princípios darwinianos. No último capítulo do livro, intitulado
por“Memes: os novos replicadores”o autor afirmara: “Precisamos de um nome
1
1 Ver “A Identidade Cultural da Pós-Modernidade” do escritor Stuart Hall (1932-2014): um teórico
8 cultural e sociólogo jamaicano que viveu e trabalhou na Inglaterra, transitando constantemente
entre diferentes culturas. No capítulo 6 dessa obra – Fundamentalismo, diáspora e hibridismo – o
autor apresenta dois argumentos contraditórios na qual a globalização é a grande responsável
pelos resultados: ora identidades híbridas, ora identidades homogeneizadas. De tal forma, Hall
amplia a compreensão de hibridismo ao sinalizar que as identidades culturais são híbridas, e
consequentemente, movidas por mudanças, encontros e desencontros. Dessa forma, percebe-se
a impossibilidade de termos uma “identidade”, mas que somos compostos por uma identificação,
passível de mudança e transformação.
2 Conforme Champangnatte e Cavalcanti o “ciberespaço tem sido o lugar de interação e expressão
para variadas atividades que envolvem coletivos de resistência, que têm como finalidade difundir
suas reivindicações na tentativa de perfurar os mecanismos políticos/ideológicos impostos pela
grande mídia hegemônica da indústria cultural.” (2015, p. 314)
para o novo replicador, um substantivo que transmita a ideia de uma unidade de
transmissão cultural, ou uma unidade de imitação.” (DAWKINS, 1976, p. 122)
Sobre essa concepção replicadora, Dawkins prossegue exemplificando
memes daseguinte maneira:
Exemplos de memes são melodias, idéias, «slogans», modas do vestuário,
maneiras de fazer potes ou de construir arcos. Da mesma forma como os
genes se propagam no «fundo» pulando de corpo para corpo através dos
J espermatozóides ou dos óvulos, da mesma maneira os memes propagam-se
no “fundo” de memes pulando de cérebro para cérebro por meio de um pro-
cesso que pode ser chamado, no sentido amplo, de imitação. Se um cientis-
A ta ouve ou lê uma idéia boa ele a transmite a seus colegas e alunos. Ele a
menciona em seus artigos e conferências. Se a idéia pegar, pode-se dizer que
L ela se propaga, si própria, espalhando-se de cérebro a cérebro. (DAWKINS,
1976, p. 122-123)
L Enquanto o gene é uma unidade biológica que procura se propagar por
organismos vivos, o termo meme surge como ideias, discursos e tantas outras
formas de manifestações que se espalham na sociedade de maneira célere. O
A estudo desse conceito é denominado Memética e tem como base o raciocínio de que
da mesma maneira como os genes determinam a transmissão de suas cópias às
gerações futuras, as ideias também vivem em competição entre si para conseguir
dominar o maior número de cérebros. E só são possíveis entre nós seres humanos
porque diferente dos animais possuímos a capacidade de imitar. (TEIXEIRA, 2003)
•
O sentido de Meme ampliou-se a ponto de significar qualquer
390 representação mental (superstições, crenças, doutrinas, teorias, moda, entre
• outros) e só recentemente os cientistas estão chegando a um consenso sobre a
Memética enquanto ciência. Nas relações públicas e na publicidade os memes da
internet têm sido utilizados como uma forma de marketing viral para seus serviços,
principalmente em razão do seu custo-benefício e de sua modicidade.
No campo da informática, a expressão passou a ser chamada de Memes
2 de Internet, e se referea qualquer ideia ou conceito que se espalha aceleradamente
através da Web por intermédio de sites de notícias, e-mails, blogs, whatsApp, entre
0 outras fontes de informação. Outro aspecto significativo é a sua característica
de anonimato, pois geralmente não traz assinatura o que impossibilita a
responsabilidade jurídica do autor. Assim quando ocorre a divulgação de um
1
meme agressivo, preconceituoso e discriminatório só é possível responsabilizar os
internautas que compartilham.
8 Sabe-se que os memes da internet mobilizam sentidos humorísticos e
pejorativos e grande parte deles propagam relações de desigualdades (superior/
inferior); mas por outro lado, sob uma perspectiva da crítica decolonial,sustentada
por autores como Said, Fanon, Bhabha e tantos outros a respeito do desafio da
descolonização, os Memes podem funcionar como ferramenta de ressignificação de
uma cultura marginalizada quando se coloca como lugar de interação coletiva de
resistência na tentativa de transpor os mecanismos políticos e ideológicos impostos
pela supremacia da indústria cultural.
Olhar do outro: a colonialidade do poder/saber/ser
Os estudos da crítica colonial não quisera (e nem conseguiria) desfazer
todo o processo histórico e cultural produzido pela colonização ocorrida em
nosso país. Isso é certo se levarmos em consideração a influência quantitativa
Europeia na constituição híbrida cultural existente no Brasil. Na verdade, trata-
se de perceber que o conceito de decolonialidade volta-se para buscar modos de
pensar e ser que consigam resistir às feridas marcadas a “ferro e fogo” não apenas
J nos processos de dominação política e econômica, mas, sobretudo, aprofundar
nas problemáticas que interferem na subjetividade das relações interligadas de
A maneira especial aos pressupostos etnocêntricos relativos à classe, raça e gênero
utilizados repetidamente pelo colonizador como meio de subalternizar, estereotipar,
L discriminar e inferiorizar culturas díspares.
Os estudos de Fanon e Bhabha assim reconheciam a fundamental
L importância do reconhecimento e recuperação das tradições culturais e históricas
do povo reprimido e consequente percepção de que seus saberes são tão valiosos
quantos os de origens não colonialistas. Contudo para que isso se efetive, faz-
A se relevante compreender “os perigos da fixidez3 e do fetichismo4 de identidades
no interior da calcificação de culturas coloniais para recomendar que se lancem
“raízes” no romanceiro celebratório do passado ou na homogeneização da história
presente.” (BHABHA, 2013, p. 31). A atividade negadora, portanto, causa estranheza
e deve estar assegurada por um equilíbrio constante para que o decolonialismonão
• reincida em uma nova forma de colonialismo.
391 Sob essa ótica as ideias de decolonialidade são importantes por fazer
• perceber que os conflitos de poder-sabe-ser continuam presentes. Isso traz a tona
pensar que o ser humano tem em sua natureza um espírito dominador, tanto que
muitos dos colonizados na primeira oportunidade que tem de se fazer superior,
não pensam duas vezes em praticar tal ação. Poderia assim afirmar que a crítica
decolonial funciona também como um princípio para expandir a prática da
2 alteridade humana, visto que todos os seres interagem e interdependem do outro a
partir de suas diferenças.
0 Com o advento da internet, os receptores (antes passivos) assumiram
também o papel de agentes emissores, alargando a teia comunicacional
anteriormente restrita apenas aos meios de comunicação de massa que auxiliavam
1 a fixidez do discurso colonial na construção ideológica da alteridade.
Em 1978 quando Edward Said5 publicou sua mais conhecida obra o
8
3 No decorrer de seu livroBhabha (2013) nos apresenta um conjunto de conceitos com o intuito
de analisar a relação entre racismo e cultura, tais como: autoridade colonial, discurso colonial,
ambivalência, fetichismo, fixidez, estereótipo, diferença colonial. O autor reafirmao perigo da
fixidez: “A fixidez, como signo da diferença cultural/histórica/racial no discurso do colonialismo,
é um modo de representação paradoxal: conota rigidez e ordem imutável como também desordem,
degeneração e repetição demoníaca”.(2013, p. 117)
4 Ao falar de fetichismo Bhabha (2013, p. 130) assevera que: “O fetiche ou estereótipo dá acesso a
uma “identidade” baseada tanto na dominação e no prazer quanto na ansiedade e na defesa, pois é
uma forma de crença múltipla e contraditória em seu reconhecimento da diferença e da recusa da
mesma”.
5 A obra Orientalismo é considerada um clássico dos estudos culturais. Traz a análise da
Orientalismo, na construção dos argumentos das análises dos discursos literários,
políticos e culturais, já trazia um alerta sobre a influência dos meios de comunicação
de massa no intento de fazer uma visão distorcida do “Outro” para alcançar os
interesses do Colonialismo:
“Essas atitudes orientalistas contemporâneas povoam a imprensa e a mente
popular. [...] De um certo modo, as limitações do orientalismo são, como dis-
se antes, aquelas decorrentes de se desconsiderar, essencializar e desnudar
J a humanidade de outra cultura, outro povo ou região geográfica.” (1990; p.
117)
A Na tentativa de demonstrar que os efeitos do domínio colonial não foram
estancados quando se concluiu o domínio territorial sob quaisquer colônias,
abaixo serão apresentados alguns Memes que refletem de modo estereotipado e/ou
L
discriminatório os povos da Amazônia sob um olhar colonizador e em contrapartida
outros memes como resposta rápida –proporcionada pela cibercultura – que nos
L faz perceber que na atualidade as ambivalências traumáticas do passado, cedem
lugar para um novo jeito de reinscrever o estranhamento de culturas.
A Os embates - representações das ambivalências presentes nos estereótipos
meméticos
Exemplo I
Em março de 2014 um vídeo destacou-se nos meios midiáticos: devido
• ao péssimo atendimento recebido uma mulher resolveu desabafar sua opinião a
392 respeito dos manauaras – moradores da cidade de Manaus. A visitante em tom
raivoso e pejorativo ao afirmar que o povo de Manaus só sabia comer peixe e
•
descascar tucumã, despertou o sentimento de revolta em seus interlocutores que
em resposta elaboraram inúmeros memes sobre o assunto. Veja alguns exemplos:
2
0
1
8 Figura 1: Vocês só sabem comer peixe e Figura 2: Vocês só sabem comer peixe e
descascar tucumã
descascar tucumã
representação distorcida criada pelo Ocidente no que diz respeito às características do mundo
“Oriental”, construindo consensos que não só permitiram a inferiorização das civilizações atribuindo-
lhes características exóticas, mitológicas e monstruosas, mas também legitimaram as atrocidades
no Oriente.
J Figura 3: Vocês só sabem comer peixe e des- Figura 4: Vocês só sabem comer peixe e des-
cascar tucumã
cascar tucumã
A Retomemos uma alusão trazida por Bhabhaao falar da força da ambivalência (2013, p. 118):
Isto porque é a força da ambivalência que dá ao estereótipo colonial sua
L validade: ela garante sua repetibilidade em conjunturas históricas e discur-
sivas mutantes; embasa suas estratégias de individuação e marginalização;
L produz aquele efeito de verdade probabilística e predictabilidade que,
para o estereótipo, deve sempre estar em excesso do que pode ser provado
empiricamente ou explicado logicamente.(grifo nosso)
A
Observa-se que ao não ser bem recepcionada em um estabelecimento
de Manaus – capital brasileira com um alto número de habitantes indígenas –
a mulher utiliza a repetição do discurso colonizador que visualiza os indígenas
e seus descendentes como pessoas preguiçosas. Assim através do acontecido,
aproveita uma peculiaridade da cultura dos manauaras e generaliza ao dizer que
•
a população apenas sabe comer peixe e descascar tucumã. O estereótipo é a
393 estratégia discursiva de ataque e como já afirmara Bhabha (2013, 154-155):
• Essas articulações contraditórias da realidade e do desejo - vistas em este-
reótipos, declarações, piadas e mitos racistas - não estão presas no círculo
duvidoso do retorno do reprimido. Eles são os resultados de uma recusa
que nega as diferenças do outro, mas que produz em seu lugar formas de
autoridade e crenças múltiplasque alienam as pressuposições do discurso
“civil”.(grifo nosso)
2
O ciberespaço na atualidade vem modificar o modo de recebimento dos
discursos, pois “emerge como um território sem fronteiras, aparentemente sem
0
controles e hierarquias” (CHAMPANGNATTE; CAVALCANTI, 2015), e da mesma
maneira em que as ideias são produzidas e distribuídas, são também atravessadas
1 por respostas instantâneas. É o que acontece com os memes apresentados. Se
antes o colonizado e seus “repetidores de discursos” tinham receios em revidar,
8 às vezes reconhecia sua diferença e procurava recusá-la utilizando-se da imitação
do outro (mímica6); agora o ciberespaço colabora para destruir hierarquias e as 4
figuras despertam para o sentimento de inaceitabilidade de um estereótipo que
atravessa o tempo:
Figura 1: A mulher e sua fala revoltada aparecem. Na sequência, a resposta
“Morra, minha filha, morra!”, procura transmitir a indiferença da população em
relação ao descaso que a mesma teve em aceitar a diferença do povo de Manaus.
6 Ver capítulo IV - Da mímica e do homem: a ambivalência do discurso colonial – do livro o Local
da Cultura de HomiBhabha. Nele o autor esclarece a mímica como uma estratégia induzida pelo
colonizador que funciona como um acordo irônico que ocasiona “efeitos-identidade”.
Figura 2: Em rebateao vídeo, o Meme2 utilizou uma figura conhecida:
David Beckham (ex-jogador de futebol inglês que anunciou sua aposentadoria no
final de 2013). Tal estratégia foi para dar maior autoridade à frase que reforça o
Meme de Embate: “Comi bodó no espeto e descasquei pra mais de cem tucumãs,
nunca me senti melhor”. (A sentença valoriza a culinária típica da região que fora
marginalizada no vídeo)
Figura 3 e 4: Os Memes foram produzidos utilizando-se do nome de
J uma rede de restaurantes de comida rápida especializada em culinária árabe
(Habib’s). De forma irônica e metafórica destaca os aspectos de qualidade/agilidade,
A contrapondo-se a ideia apresentada pela mulher no vídeoem questão.
Exemplo II
L
Sabe-se que mesmo na atualidade a Amazônia continua a despertar
questionamentos e inquietações no imaginário de quem a desconhece. Gondim
L em sua obra “A invenção da Amazônia” explicitara que o novo concebe uma
diversidade que causa insegurança, então representá-lo através da monstruosidade
A ou de maneira estigmatizada faz parte de umaatitude colonizadora para assegurar
sua supremacia. (1994, p. 38)
A temática proposta em seu livro confirma que as heranças do histórico de
colonização permanecem e traz a percepção de que inúmeras práticas continuam
a anunciar uma visão estereotipada da região e dos povos amazônicos. Estes são
• demasiadamente representados como personalidades selvagem, rural, rude e o
394 ambiente descrito como precário. É o que podemos perceber nas ilustrações 5e 6
apresentadas a seguir:
•
2
0
Figura 5: Amiga, estou indo viajar para a
1 região norte. Mas não estou com nenhuma
vontade de ver bicho e mato – Conselhos das Figura 6: Bem vindo ao estado do Acre.
Tias Wilson.
8 Para corroborar na reflexão vale trazer a obra da escritora indiana
GayatriSpivak que apresenta o sujeito subalterno na definição daquele ser
pertencente “às camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos
específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da
possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante”. (2010;
p. 12).
Nos exemplos aqui expostos são subalternizados aqueles que se encontram
no contexto amazônico fruto da miscigenação de etnias e do multiculturalismo. E se
propaga até os dias atuais o olhar externo da invenção a respeito da Amazônia: jaz
a ideia de que os habitantes dessa região mantém um modo de vida completamente
tradicional, primitivo e isolado do seu tempo.
O meme6 exemplifica tal afirmativa ao trazer a representação do estado do
Acre em forma de piada – há diversas cópias que retransmitem a ideia apresentada
por este meme - ao simulá-lo como um lugar totalmente desconhecido, supostamente
sem televisão, carro, internet... Para reforçar a ideia de que os acreanos estão
presos ao passado se utilizam da imagem do dinossauro e de seres extraterrestres
J aludindo que a tecnologia não tivesse alcançado tal estado brasileiro.
Fanon7 (2008; 28) nos alertava em um prognóstico:“a sociedade, ao
A contrário dos processos bioquímicos, não escapa a influência humana. É pelo
Homem que a sociedade chega ao ser. O prognóstico está nas mãos daqueles que
L quiserem as raízes contaminadas do edifício.” De tal modo sabemos que a mídia tem
o poder de formar opiniões e ditar modelos a ser seguidos. Todavia essa revolução
do espaço virtual que disponibiliza um nível acelerado de compartilhamentos e
L
predispõe autonomia aos sujeitos, percebe-se que o memena mesma proporção
quealastra crenças e valores antigos, também sofre alterações e ganha forças para
A se espalhar com um novo significado, é assim se comprovar que o homem modifica
a sociedade.
Diante do fluxo intensivo na disseminação de informação os memes
contribuem para que os grupos promovam intervenções quase imediatas às
subalternidades diversas impostas pelas relações sociais. O que se percebe na
• atualidade é que o discurso anteriormente ditado por pessoas que desconheciam
395 as verdadeiras características da região, agora passa a ser utilizado como um
• discurso de defesa e orgulho de ser diferente; o discurso agora é também produzido
por quem conhece. É o que se observa nos memes 7 e 8:
2
0
1
8
Figura 7: Em Rondônia é assim Figura 8: Em Rondônia é assim
Os memes7 e 8 são produzidos em respostas aos estereótipos que
permeiam pensamentos semelhantes aos das representações dos exemplos5 e 6.
Também utilizam a ironia e o exagero. Há uma facilidade de o subalterno jogar com
as mesmas “cartas” daquele que o inferioriza. A ilustração 5 desvalorizou o ir até a
7 A obra Pele Negra, Máscara Branca (publicada pela primeira vez em 1952) é reconhecida pela
posição assumida por Frantz Fanon ao retratar a negação do racismo contra o negro na França,
bem como pelo seu intuito em aguçar o senso crítico sobre o racismo e refletir sobre seus impactos.
região Norte ao descaso de ver somente bichos e mato. No meme 7 isso é motivo de
orgulho, reconhece queo ambiente é composto por rica fauna e flora e reforça (mesmo
que hiperbolicamente) que o convívio com os animais faz do ser da Amazônia um
Forte. No meme8 também faz uso da hipérbole para de modo metafórico afirmar a
força contida no homem da Amazônia que deixa marcas através de um “simples”
saudação (tapinha nas costas).
Exemplo III
J
A
L
L
A
Figura 10: Então você é contra a invasão de
Propriedades?
Sabe-se que infelizmente mesmo passados três décadas ainda não foram
concluídas as demarcações, e os conflitos fundiários entre índios e não índios
permanecem exaltados. Falta comoção nacional frente aos crimes que envolvem
os seus direitos a terra. Permanece a (re)produção de uma visão eurocêntrica da
subalternidade do índio inclusive com relação ao seu espaço territorial.
Desse modo a crítica decolonialse faz relevante porque procura recuperar
a voz subalterna contra as narrativas do eurocentrismo. A pergunta trazida no
livro de Spivak“Pode o subalterno falar?” nos induziu a pensar na ambiguidade dos
sentidos da palavra pode (Sentido 1.: O subalterno tem o poder, a liberdade pra
J falar? / Sentido 2.: O subalterno consegue falar? Tem habilidades pra discorrer
seus pensamentos?) e igualmente nos faz refletir que os memes fortalecem
A ambos os sentidos. Visto sua característica da anonímia (ausência de autoria), o
subalterno pode utilizar o memes que expressam seu grito de liberdade com uma
L maior segurança de não ser reprimido/torturado por proclamar suas angústias e
inquietações. Pode ainda a partir dos memes representar os valores pessoais e/ou
grupais reforçando as relações interpessoais na luta por um ideal comum.
L
A evolução da sociedade está marcada pelas constantes inovações
tecnológicas que exigem mentes flexíveis e dinâmicas no tratamento com o Outro,
A que respeitem as dimensõessócio-históricas e culturais. A partir desta visão este
artigo procurou analisar os memes apresentados e colocá-los no embate cultural
da contemporaneidade, como um instrumento de interação comunicacional capaz
de corroborar na luta em romper as barreiras na desconstrução de estereótipos
ao povo indígena, ribeirinho, seringueiro, quilombola, entre tantos outros que
• compõem o multiculturalismo da Amazônia.
397 Considerações finais
• Considerando as inúmeras leituras e releituras realizadas sobre as
teorizações e desdobramentos do pensamento decolonial, o presente trabalho
pretendeu apresentar a perspectiva de desconstrução de ideias hegemônicas que
inferiorizam os povos amazônicos.
A partir da exemplificação dos memes da internet reafirmou-se que
2 posturas de marginalização à diferença do Outro e a persistência do desrespeito
ao multiculturalismo amazônico são constantes. Mas em contrapartida, os memes
0 ressurgem como ferramenta para vencer a subalternidade, já que o mesmo se
apresenta como uma unidade de transmissão de cultura e informação que diante
1 da instantaneidade proporcionada pela cibercultura, contribui para romper
fronteiras e hierarquias instituindo um processo de “des-re-territorializações”
diante do compartilhamento de valores culturais na luta pela negação da opressão
8 colonizadora.
Referências
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e Gláucia Renate Goncalves. 2ª. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2013.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,
DF: Senado Federal: 2008. 464 p.
CHAMPANGNATTE, DostoiewskiMariatt de Oliveira.; CAVALCANTI, Marcus Alexandre de
Pádua. In: Cibercultura – perspectivas conceituais, abordagens alternativas de comu-
nicação e movimentos sociais. Revista de Estudos da Comunicação. Curitiba, v. 16, n.
41, p. 312-326, set. /dez. 2015. ISNN 1518-9775.
DAWKINS, Richard. O Gene Egoísta. Trad. Geraldo Florsheim, Belo Horizonte: Editora
Itatiaia; São Paulo: Universidade da Universidade de São Paulo, 1978.
FANON, Frantz. Pele negra máscaras brancas. Tradução de Renato Silveira. Salvador:
EDUFBA, 2008.
GONDIM, Neide. A Invenção da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10ª ed. Rio de Janeiro: DP&A.
J SAID, Edward W. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. Tradução Tomás
Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
A SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart
Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.
L TEIXEIRA, Jerônimo. O DNA das ideias. Publicado em Revista eletrônica Super Inte-
ressante 31/08/2003. Disponível em: https://super.abril.com.br/ciencia/o-dna-das-i-
deias/. Acesso em 28/05/2018.
L
Fonte das Figuras:
Figuras 1, 2, 3 e 4:
A
https://noamazonaseassim.com.br/memes-voces-so-sabem-comer-peixe-e-descascar-tu-
cuma/
Figura 5: http://geradormemes.com/meme/k4uiq2
Figura 6:http://www.naoentreaki.com.br/3667979-bem-vindo.htm
• Figura 7:http://fantbolado.blogspot.com/2012/03/em-rondonia-o-barato-e-loko-porque.
html
398
Figura 8:
• https://www.labeurb.unicamp.br/rua/web/index.php?r=paginasartigo/viewpagina&nu-
meroPagina=1&artigo_id=92
Figura 9:
https://www.labeurb.unicamp.br/rua/web/index.php?r=paginasartigo/viewpagina&nu-
meroPagina=1&artigo_id=92
2 Figura 10:https://blogdaines.files.wordpress.com/2014/10/tainc3a1.jpg
0
1
8
J
A
L NARRATIVAS DEL RETORNO POSGUERRA EN PERÚ Y CONGO:
LOS TEXTOS DE JULIÁN PÉREZ HUARANCA Y DE CHARLES
L DJUNGU-SIMBA
A Gilbert Shang Ndi (UNIVERSIDAD DE LOS ANDES)
RESUMEN: Esta ponencia examina las complejidades de los viajes del retorno alos
espacios trastocados por la violencia en las novelas Criba de JuliánPérezHuarancca
y Las Nubes encima de Bukavau: Cuadernos de un retorno a la tierra natal del
autor congoleño Charles Djungu-Simba. Basados en dos contextos distintos, estos
• textos constituyen entradas múltiples y perspicaces en las memorias de las guerras
399 civiles en Perú(1980-2000) e en Congo (1996-2003) respectivamente y en la relación
problemática e ambigua de los sobrevivientes de guerras civiles con sus espacios
• natales. A partir del concepto de “lieux de mémoire” desarrollado por Pierre Nora, la
ponencia analiza la poética/política del espacio y de memoria al nivel individual y al
nivel colectivo, indagando en las particularidades, las matices y las contradicciones
que se producen en contextos pos-guerra en el Perú andino e en el este de Congo.
Planteamos que las narrativas literarias constituyen intervenciones subversivas en
2 las conmemoracionesoficiales de la historia violenta, obligándoles a incorporar las
experiencias marginales como pre-requisitos claves para la construcción de una
0 sociedad justa en la posguerra. En esta perspectiva, cabe subrayar también en esta
investigación las convergencias y las divergenciasen las experiencias/trayectorias
1 poscoloniales de guerra en diferentes contextos como Perú (América Latina) y Congo
(África).
8 Palabras claves: Memoria. Perú. Congo. espacio. violencia.
Introducción
La memoria es ligada a los sitios, mientras que la historia es ligada a los
acontecimientos.
8
J
A
L CURRÍCULO NA FRONTEIRA: REFLEÇÕES SOBRE O CURRÍCULO
DE MATEMÁTICA NAS CIDADES DE GUAJARÁ-MIRIM
L (RONDÔNIA-BRASIL) E GUAYARAMERÍN (BENI-BOLÍVIA)
A Gislaina Rayana Freitas dos Santos (IFAM)
André Pereira Lopes (IFAM)
RESUMO: Este artigo apresenta os resultados de uma investigação que buscou
compreender a relação do currículo de matemática e as práticas curriculares da
disciplina de matemática e os métodos utilizados pelo professor para a promoção
• do multiculturalismo que incide na prática da educação boliviana e brasileira.
409 Tomando como base os Parâmetros curriculares de matemática 1998; a Lei nº 70
da Bolívia. A pesquisa se caracteriza por ser um estudo descritivo-exploratório,
• desenvolvida com diálogo e debate no Foro Debate Pedagógico Internacional
“Calidad Educativa”, realizado na cidade de Guayaramerín na Bolívia e Guajará-
Mirim no Brasil, bem como das relações pedagógicas dos educadores brasileiros e
bolivianos. Os estudos curriculares contribuíram para a transmissão do conteúdo
da disciplina de Matemática no contexto multicultural na sala de aula, melhorando
2 o aprendizado na vertente qualitativa da educação matemática.
Palavra-chave: Educação Matemática. Fronteira. Currículo. Multiculturalismo.
0
Introdução
Na atualidade o diálogo da estruturação curricular mobiliza as
1 comunidades, no sentido da importância que o movimento curricular representa
sobre a vida acadêmica dos estudantes, falar em currículo é falar também, na
8 vida do aluno e da escola em constante e em dinâmica de ação, nessa perspectiva
educadores, educandos e comunidade escolar no espaço escolar e fora dele,
constroem e formam, por meio da valorização e das ações, o currículos mais
adequado ao desempenho educacional. O currículo é uma construção social,
cultural e escolar, que segundo Canen:
“A questão do múltiplo, do plural, do diverso, bem como das discriminações
a ela associados, passam a exigir respostas, no caso da educação, que pre-
parem futuras gerações para lidar com sociedades cada vez mais plurais e
desiguais. Cobra-se da educação e, mais especificamente do currículo, gran-
de parte daquelas que são percebidas como medidas para a formação de
cidadãos abertos, tolerantes e democráticos” (CANEN, 2002, p.175 e 176).
ROQUE, Tatiana. História da matemática: uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.
RICO
SACRISTÁN, J. G. O currículo: uma reflexão sobre a prática. 3. ed. Tradução: Ernani F.
da Fonseca Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2000.
SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currícu-
lo. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
____ (Org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva
J dos estudos culturais. 9 ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2009.
TOLEDO, Marília; TOLEDO, Mauro. Didática da matemática – como dois e dois: cons-
A trução da matemática. São Paulo: FTD, 1997.
L
L
A
•
419
•
2
0
1
8
J
A
L RE-DESCOBRINDO O ACRE “EXISTIDO”
L Glauco Capper da Rocha (UFAC)
RESUMO: O presente artigo visa comparar narrativas de viajantes/exploradores,
A usando crônicas ou relatos produzidos a partir do contato com a região que viria
a ser o Acre nos dias atuais, desde Seraphim Salgado até a viagem de quatro
amigos que produziram o filme/documentário de título “O Acre existe”. Pretende-se
discorrer, também, sobre o rio e seu papel na tessitura dos relatos de expedições.
Para tal fim, o corpus será construído a partir de consulta bibliográfica, utilizando
• as leituras e literaturas discutidas em sala, durante a ministração da disciplina
“Linguagens, sociedade e diversidade amazônica”, ofertada pelo programa de pós-
420
graduação em Letras: linguagens e identidade. Como aporte teórico para este
• estudo, consultaremos os escritos de Auxiliomar Silva Ugarte, Marcio Souza, Ana
Pizarro, Durval Muniz Albuquerque Júnior, entre outros.
Palavras-chave:“O Acre existe”; crônicas de viagem; imaginário.
Introdução
2 A “Amazônia ” é rota de exploradores e expedicionários desde 1538.
1
1 O emprego do termo Amazônia neste trabalho tem, por significado, exprimir a fauna e flora
da região; a diversidade cultural e social; natureza e seus recursos. Academicamente, usaremos,
dentre tantas outras, a explicação a de Ana Pizarro (2012). Para a autora, o termo Amazônia se
trata de uma convenção de significados, já que, para ela, o cunho Amazônia seria um discurso
constituído por um pensamento externo a ela (PIZARRO, 2012).
2 De acordo com Auxilomar Siva Ugarte, no livro Sertões de Barbáros.
viagens de exploração e colonizaçãoque se deram no Purus, e também ao Juruá.
Expedicionários como Manoel Urbano, Coronel Labre, Euclides da Cunha e, mais
recente a viagem que gerou o filme/documentário “O Acre existe”, que “re-descobriu”o
“existido”, e produziu uma narrativa repleta de imaginários e representações. Como
objeto deste estudo, a última expediçãorealizadade “re-descobrimento” de uma
terra: quatro cineastas paulistanos que produziram o filme e livro “O Acre existe”, a
fim de ‘levar’ e ‘mostrar’ao Brasil a existência do Acre. Daí o cunho “existido” que se
J propõe a ser pejorativo, pois, mesmo constituído como parte do Brasil, o Acre ainda
está sendo inventado, descoberto, redescoberto e colonizado através de narrativas
produzidas a partir das crônicas e relatos dos viajantes.
A
A construção do corpus desta pesquisa bibliográfica se dá a partir das
L discussões iniciadas em classe e com o aprofundamento do material bibliográfico
disponibilizado.Levando, assim, a análise até um‘climax’inevitável: a discussão
sobre o olhar colonizador do estrangeiroque vem e descobre, renomeia, produz
L narrativas, permeia imaginários com seus relatos, tecidos do contato e experiências
com a região. Como está no livro A Escrita da história, organizado por Peter Burker
A (1992), precisamente, onde Jim Shape adverte para o cuidado com o “historiador
moderno”, que frisa sua escrita “a luz de sua própria experiência e de suas próprias
reações a essa experiência” (BURKER, 1992, p.42). É a partirdesse olhar,da
perspectiva de comparação e confronto entre relatos sobre Acre, atrelado ao vínculo
de quem vive; estuda as histórias e a“história oficial”; munido das impressões
• perpassadas pelo filme e livro de mesmo nome “ O Acre existe”, que se desenrola a
421 análise deste estudo, mas iminente, o filme.
Informações que davam conta dos costumes dos índios da região, o que
plantavam e que faziam realizavam para adquirir alimentos. Sobre os Juberys,
alguns apontamentos são curiosos:
Sofrem de empigens e outras moléstias de pelle talvez devido a moradia em
O objetivo deste trabalho não constitui análise do discurso e seu signo nas
narrativas. Antes, consiste apenas na comparação dessas narrativas constituída
a partir do contato com as terras acreanas, durante as viagens de exploração e
2 colonização do Acre, correlacionando com a viagem de dos paulistanos para dar
forma ao documentário. O rio que trouxe o “desenvolvimento” também trouxe
0 esquecimentos. Mitos. Lendas. O rio pelo qual, navegantes empreitaram suas
viagens de colonização, foi o mesmo caminho que europeus/estrangeiros (os de fora)
usaram para produzir uma narrativa de colonização e preconceitos geográficos.
1
A exemplo, o padre Parrissier em sua jornada até o Juruá olha o rio e o
enxerga como “rio”. A magnitude e os desafios impostos no percurso; a estranheza
8 de suas formas e surpresas a eles reservada. Durante a viagem, Parrissier, ao
observar o rio sente saudade dos campos de trigo da França. Ele é envolvido em um
“mudo novo”, um mundo geográfico até então desconhecido.
Encarregado de ir até Cruzeiro do Sul, Constant Tastevin deu início a sua
viagem em fevereiro de 1913. Tastevin também deixa exposta suas impressões sobre
o rio. Expressões como: “interminável”; “enquadrado por intermináveis florestas
virgens” (CUNHA, 2009).
Quando a película foi exibida no Cine Teatro Recreio pela primeira vez
durante o Festival de Cinema Pachamama em 2013, o público que prestigiou o
23 O site ao qual a matéria foi publicada não se encontra mais on-line. O texto está na integra
sem interferências oo adequações. <LEAL, Milton, www.oacreexiste.com/notícias/primeirasessão,
acessado em 23 de novembro de 2013>. O filme, apresentando inicialmente como documentário
continha uma hora e 20 minutos. Uma nova versão foi lançada em 2014 com duas horas de duração.
tido informações prévias sobre24 o Acre, a narrativa constituída através do filme,
demonstra que o imaginário foi tecido a partir de narrativas sobre a região. “Daime”,
“Revolução Acreana”, “seringais”, são temas constantemente abordados em
literaturas acrescido de fantasmagorias. Hardman (2009) nos permite compreender
como esses imaginários se refugiam nas literaturas “amazônicas”.
Os imaginários e representações se intercalam, mesmo em períodos
distintos. Conversam em deslumbramentos. “Olhos europeus” tendem a descrever
J suas interpretações a partir de dois focos como diz Pizarro (1990): um na Idade
Média, no obscurantismo; outro, no Renascimento, nos conteúdos místicos que o
A renascimento resgatava das fantasias da antiguidade25.
Assim foram/são tecidas boa parte das narrativas. E referente a terra que
L pertencente a “Amazônia”, que um dia se tornou brasileira e recebeu o nome de
Acre, é percebido que, em se tratando de crônicas e viagens confeccionadas durante
as expedições de colonização e exploração, a “Amazônia” e o Acre não são novidades
L
dentro da historiografia de povos e nações. Tem sua história marginalizados em
livros, conforme Souza (2015), mas não se trata de uma terra sem histórias. Nem
A muito menos teve sua “história” inaugurada pelos europeus (SOUZA, 2015), muito
menos pelo “O Acre existe”.
Considerações finais
Ao escolher como objeto de estudo o documentário26 “O Acre existe”, fui
• de encontro com imaginários que o filme deixa explicito em sua narrativa. Durante
a ministração da disciplina, Linguagem, Sociedade e Diversidade Amazônica, onde
430
foi apresentado e debatido um amplo material bibliográfico referente ao processo
• de colonização e exploração da Amazônia; extrativismo; relações nos seringais;
políticas e discursos de colonização; expedições; imaginários e representações;
entre outros temas; uma correlação entre narrativas despertou-me para abordagem
bibliográfica.
Percebe-se no projeto do “O Acre existe”, inúmeras similaridades com as
2 narrativas que expedicionários dos séculos XVIII e XIX deixaram como legado para a
humanidade e aos “povos da floresta”. Fomos submetidos a essas informações que,
0 como distingue bem no seu texto Ana Pizarro, se aproximam do fantasmagórico, de
24 Durante aquela meia dúzia de garrafas, irrompemos com a ideia de fazer um filme. O diálogo
1 se deu exatamente assim:
- Eu queria muito fazer um documentário. Poderíamos trabalhar juntos. Eu pesquiso, entrevisto e
8 você filma – disse eu.
- Acho que deveríamos fazer algo viajando – replicou Graziano.
- Pois, vamos fazer uma viagem de carona.
- Para aonde?
Houve um silêncio de 10 segundos e, então, eu explodi com a empolgação que me é peculiar.
- Vamos de São Paulo até o Acre. Isso! Um filme chamado “O Acre Existe” − Como surgiu”, matéria
escrita por Milton Leal. São Paulo. Postada em 7 de dezembro de 2011 no site www.oacreexiste.com.
br que foi tirado do ar.
25 (PIZARRO, 1990, p. 68).
26 Ao submeter o projeto de pesquisa para concorrer uma vaga ao programa, tinha como pretensão
usar o livro como objeto de estudo. Após encontro de orientação, foi apresentado as inúmeras
possibilidades que o filme/documentário permite para desenvolver um estudo.
fabulações de situações que apresentaram estranheza ao cotidiano do estrangeiro
viajando pelos rios da região.
Como resistência a essas narrativas fantasiosas, inicia-se um processo
de contra discurso, forjado através da imersão do leitor em “outras histórias”.
Como está em Burke (1992), é preciso compreender o povo no passado, ouvir
outras fontes, outras versões da história. Pois, “se ao mudar a ordem das coisas
é um processo de descolonização” (FANON, 2002) − entendendo que para Frantz
J Fanon a descolonização acontece num contexto colonial e, têm como característica
marcante, a fragmentação e a violência −,podemos aderir a um “tipo” de processo
A de descolonização: o do pensamento. Alterar, portanto, a ordem de “leituras” e
“interpretações” de narrativas e informações que nos chegam, para, assim,
L possamos, então, descolonizar mentes e imaginários.
Referências
L ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Preconceito contra a origem geográfica e
de lugar: as fronteiras da discórdia. São Paulo. Cortez, 2012.
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A
BURKER, Peter (Org.). A escrita da história. São Paulo. Editora da UNESP, 1992.
CUNHA, Euclides. A margem da História. 3ª Edição, Porto: Livraria Chardron, 1922.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Tastevan, Parrissier: fontes sobre índios e seringueiros do
Alto Juruá. Rio de Janeiro. Museu do Índio, 2009.
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431 HARDMAN, Francisco Foot. A vingança da Hiléia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a lite-
ratura moderna. São Paulo. Editora UNESP, 2009.
•
PIZZARO, Ana. Amazônia: as vozes do rio – imaginário e modernização. Monte Alto. Edi-
tora UFMG, 2012.
ROCHA, Hélio. Coronel Labre. São Carlos. Editora Scienza, 2016.
SOUZA, Márcio. Amazônia indígena. Rio de Janeiro. Record, 2015.
UGARTE, Auxiliomar Silva. Sertões de bárbaros: o mundo natural e as sociedades indíge-
2
nas da Amazônia na visão dos cronistas ibéricos – séculos XVI-XVII. Manaus. Valer, 2009.
0
1
8
J
A
L TRADUÇÃO E TEATRO: A PERSONAGEM BLANCHE DUBOIS, DE
A STREETCAR NAMED DESIRE, EM TRÊS TRADUÇÕES PARA O
L PORTUGUÊS DO BRASIL1
A Guilherme Pereira Rodrigues Borges (UNB)
RESUMO: Este artigo analisa três traduções brasileiras da peça teatral A streetcar
named Desire/Um bonde chamado Desejo (1947), de Tennessee Williams, para
mostrar como foram traduzidos aspectos dodiscurso da personagem Blanche
Dubois. Os elementos observados nas traduções são pontuação, itálicos, repetições,
• construções frasais e escolhas léxicas para termos específicos. Blanche, na tradução
432 de Brutus Pedreira (1976), é uma personagem resignada a sua posição, monótona
e enfadonha, a julgar especialmente pela falta, na tradução, das inflexões e ênfases
• presentes nos diálogos e da pontuação do texto de partida. A Blanche de Vadim
Nikitin (2004) está mais alinhada ao texto de partida. Muito da caracterização
da personagem está na sutileza de uso de itálicos e de pontuação característica,
recursos que receberam atenção especial do tradutor. Beatriz Viégas-Faria (2008)
também demonstra um grande zelo ao traduzir as falas de Blanche, que, às vezes,
2 ficam até mais dramáticas que as da Blanche de Williams.
Palavras-chave: Tradução Dramática. Múltiplas Traduções. Monólogos. Tennessee
0 Williams. Um bonde chamado Desejo.
Introdução
1 Este trabalho tem como objetivo descrever e analisar três traduções do
inglês para o português do Brasil da peça teatral A streetcar named Desire (1947),
8 do dramaturgo estadunidense Tennessee Williams (1911-1983). Nessa análise,
considera-se como três tradutores traduziram características do discurso da
personagem principal da peça, Blanche Dubois, com base em dois de seus mais
relevantes monólogos.
A primeira tradução brasileira de Streetcar (referida nessa forma abreviada
ao longo deste artigo), de Brutus Pedreira, foi publicada em 1976 pela editora Abril
1 Este artigo se refere à pesquisa desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-graduação em Estudos
da Tradução (POSTRAD), da Universidade de Brasília (UnB) sob orientação da Profa. Dra. Válmi
Hatje-Faggion. Na dissertação (BORGES, 2017), há um panorama mais completo e um estudo mais
aprofundado sobre as traduções da obra em questão.
Cultural, em São Paulo. A segunda, de Vadim Nikitin, foi publicada em 2004 pela
editora Peixoto Neto, em São Paulo. A terceira, de Beatriz Viégas-Faria, foi publicada
em 2008 pela editora L&PM, em Porto Alegre, sendo que a edição analisada neste
trabalho é uma reimpressão de 2011. As três traduções receberam o mesmo título:
Um bonde chamado Desejo. A edição do texto de partida em inglês adotada como
referência de comparação é a versão “definitiva” da peça publicada em 2004 pela
editora New Directions, em Nova York, nos Estados Unidos.
J A peça Streetcaré uma das mais celebradas da tradição teatral norte-
americana e carrega o status de tesouro nacional da cultura estadunidense,
A com a personagem Blanche Dubois tendo se tornado um elemento marcante da
cultura popular norte-americana, perdurando com o passar do tempo e sendo
L recriada pelas diferentes gerações. No Brasil, desde cedo, essa peça teve várias
encenações de grande porte, envolvendo importantes figuras atuantes no meio
cultural brasileiro. Por exemplo, em 23 de junho de 1948, apenas 6 meses e 20
L dias após o lançamentonos Estados Unidos, foi sua estreia nos palcos do país, no
Rio de Janeiro, traduzida por Carlos Lage com o título Uma rua chamada pecado.
A Nessa ocasião, a peça traduzida foi dirigida por Zbigniew Ziembinski e estrelada
pela companhia teatral “Os Artistas Unidos”, da aclamada atriz francesa Henriette
Morineau (1908-1990), que interpretou Blanche na produção.
Para constatar como a personagem em questão tem sido recriada e
apresentada no Brasil, o ponto de partida é o estudo e a comparação das referidas
• três traduções publicadas da peça e do texto de partida em inglês. Contudo, é
433 importanteconsiderar que Streetcar é um trabalho que foi, em princípio, idealizado
e escrito com o objetivo de ser apresentado nos palcos de Nova York, na década de
•
1940, e que duas das traduções brasileiras em análise foram realizadas para serem
levadas aos palcos no Brasil (a de Pedreira, que estreou em Salvador em 1959, e a
de Nikitin, no Rio de Janeiro, em 2002) e as suas publicações em formato de livro
vieram somente mais tarde.
5 WILLIAMS, BAK, 2009, p. 77, “My characters make my play. I always start with them, they take
spirit and body in my mind. Nothing that they say or do is arbitrary or invented. They build the play
about them like spiders weaving their webs, sea creatures making their shells. I live with them for
a year and a half or two years and I know the far better than I know myself, since I created them
and not myself.”
romance e teatro, “falam do homem – mas o teatro o faz através do próprio homem,
da presença viva e carnal do ator”.
De acordo com Beth Brait (1990, p. 11), já que esses são “seres de papel”,
suas existências são puramente no âmbito linguístico e não existem fora das
palavras. Quando se quer saber qualquer coisa a respeito das personagens, deve-
se “encarar frente a frente a construção do texto, a maneira que o autor encontrou
para dar forma às suas criaturas, e aí pinçar a independência, a autonomia e a
J “vida” desses seres de ficção”. Só então, se for útil e necessário, seria possível
analisar a existência e o espaço da personagem enquanto representações da
A realidade externa ao texto.
Ainda segundo Brait (1990, p. 66),
L quando pensamos nas personagens que povoam a tradição literária e que
nos tocam tão de perto que temos a impressão de terem existido numa di-
mensão que as torna imortais e capazes de falar eternamente das inúmeras
L possibilidades de existência do homem no mundo, tocamos necessariamen-
te no poder de caracterização de seus criadores.
A Através da composição de suas personagens, articula-se verbalmente “a
sensibilidade de um escritor, a sua capacidade de enxergar o mundo e pinçar nos
seus movimentos a complexidade dos seres que o habitam” (BRAIT, 1990, p. 66).
Normalmente, não há narrador no teatro, portanto, a personagem teatral
se dirige ao público de forma direta, sem mediação. De acordo com Almeida Prado
•
(CANDIDO et al., 1992, p. 86):
436 no teatro […] torna-se necessário, não só traduzir em palavras, tornar cons-
• ciente o que deveria permanecer em semiconsciência, mas ainda comunicá-
-lo de algum modo através do diálogo, já que o espectador, ao contrário do
leitor do romance, não tem acesso direto à consciência moral ou psicológica
da personagem.
______. Um bonde chamado Desejo. Tradução de Brutus Pedreira. São Paulo: Abril Cul-
tural, 1976.
L
______. Um bonde chamado Desejo. Tradução de Vadim Nikitin. São Paulo: Peixoto Neto,
2004.
L
______. Um bonde chamado Desejo. Tradução de Beatriz Viégas-Faria. Porto Alegre: L&PM
Pocket, 2008.
A ______. Memoirs. Garden City: Doubleday, 1975.
WILLIAMS, T; BAK, J. S. New selected essays: where I live. Nova York: New directions
Publishing, 2009.
•
447
•
2
0
1
8
J
A
L A REPRESENTAÇÃO VISUAL DA FLORESTA E DO SACI NA LITERATURA
PARA CRIANÇAS: O FANTÁSTICO E A NARRATIVA VISUAL
L Hanna Araujo (UFAC)
RESUMO: Este artigo busca aproximar a literatura fantástica com uma narrativa
A visual criada pela artista Ciça Fittipaldi. Denominado no mercado editorial
como livro-imagem, a narrativa visual tem como característica a narração feita
primordialmente – ou exclusivamente- pela imagem. A narrativa Saci foi produzida
ao longo da pesquisa que buscava compreender os modos de interação/interferência
entre a leitura de imagem feita por crianças e a narrativa visual em processo
• de criação. A relação do ser misterioso Saci e a floresta proposta pela artista se
448 intercala com as opiniões das crianças e seus conhecimentos acerca da floresta
e seus habitantes. Buscamos observar nesta inter-relação (processo e produto)
•
vestígios da literatura fantástica proposta por Todorov (1992) no livro-imagem
criado por Ciça Fittipaldi. A complexificação da narrativa não prescindiu a palavra
escrita, mas trouxe elementos fantásticos, fazendo com que a leitura se pautasse
na imaginação e não naquilo que era familiar ao leitor e, neste caso específico,
leitores crianças.
2
Palavras-Chave: Processo de criação. Leitura de imagem. Literatura Fantástica.
Ciça Fittipaldi.
0
Introdução
1 Este artigo representa um excerto de nossa pesquisa de doutoramento em
Artes Visuais. Na pesquisa, o trabalho de dois artistas teve papel de destaque:Ciça
Fittipaldi e Laurent Cardon. Ambos aceitaram participar de uma criação emque
8 as opiniões e sugestões de leituras de crianças deveriam ser consultadas para que
prosseguissem o processo de criação.Na construção dos dados que tiveram por foco
a relação entre pessoas e aprática artística acabaram surgindo diversas situações.
Neste artigo optamos pelo recorte da narrativa visual Saci criada por Ciça Fittipaldi
ao longo do processo de interlocução com as crianças.
O trabalho plástico de Ciça Fittipaldi ultrapassa o que podemos chamar
de ilustração de literatura infantil. Conhecedora profunda das culturas presentes
em seu país, Ciça Fittipaldi incorpora em suas obras diferentes elementos desta
pluralidade que se irradiam nas histórias que produz com texto e/ou imagens. É
pesquisadora das visualidades e das narrativas orais indígenase afro-brasileiras.
Viveu com os índios Nhambiquaras, Xavantes e Apinajés.A diversidade cultural é
sua marca de trabalho, e esses temasperpassam toda sua obra, sendo a artista
ilustradora com uma carreira consolidada no mercado editorialbrasileiro. Convidada
para participar da pesquisa, Ciça se mostrou bastante instigada e aceitou o desafio
com muita empolgação. Em quatro meses de trocas com as crianças, mediadas pela
professora/pesquisadora, exercitou-se como artista empenhada em ouvir e perceber
J a leitura que as crianças faziam a cada grupo de imagens que lhes era apresentado.
A construção da narrativa estava atrelada à leitura das crianças, podendo a artista
escolher os elementos a serem usados na história. Em movimentos alternantes de
A
acordo com o desenvolvimento narrativo, acolhia a opinião das crianças e seguia o
caminho por elas proposto ou direcionava a narrativa para o improvável num jogo
L dinâmico com seus leitores.
L A imagem narrativa
2
0 Figura 1: Ciça Fittipaldi, 2008. Imagem do livro “Quem tem medo do Mapinguary?”, escrito por Vássia Silveira.
1 A relação profunda da artista entre seu trabalho artístico e os sujeitos/
culturas/lugares que serão objetos de seu trabalho faz com que ela deixe o ateliê
8 e busque imersões que embasem seu trabalho e possam dar a dimensão precisa
daquilo que será representado. Nas interações com os indígenas, por exemplo,
o traço do seu desenho foi alterado. Buscar outros modos de representação se
mostraram necessários. Essa pesquisa das culturas perdura em seus mais de
trinta anos de carreira.
Clássico da literatura para crianças é a Série Morená, a partir da qual, na
década de 1980, Ciça apresentou histórias de diferentes povos indígenas. A imagem
a seguir (Figura 2) faz parte do livro Naro, o gambá, mito dos indíosyanomamis. A
partir de um traço simples e expressivo, Ciça traz o universo dos mitos indígenas
a partir do modo de representação gráfica da floresta e seus seres próximos aos
modos característicos de representação dos indígenas.
J
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L
L
A
• Figura 2: Ciça Fittipaldi, 1986.Imagem do Livro “Naro, o gambá”, texto e ilustrações de Ciça Fittipaldi.
450
A carga narrativa presente na imagem faz com que nosso olhar circule
• buscando sentidos nos diferentes pontos da composição. É possível apreender
significados na narrativa (seja ela em uma imagem ou em sequência) apesar da
ausência da palavra escrita. Os significados são inseridos de modo intencional
pelo autor epossuem coerência em sua composição. As narrativas visuais, deste
modo, nãosão “sem texto” como são diversas vezes descritas. Ainda que o texto
2 escritoesteja ausente, os elementos físicos e visuais são organizados por palavras,
esuscitam palavras no processo de constituição de sentidos.Ciça Fittipaldi tem
0 algumas publicações nas quais reflete sobre aleitura da imagem narrativa e as
relações que estabelecemos neste exercício:
Com um ‘tempo de passeio’ do olhar sobre a imagem, outros seres podem
1 juntar-se ao trânsito esvoaçante daquele mundo, vindos da mente de quem
lá se intromete e reelabora, redesenha,projetando novos espaços, incluindo
8 novas gentes, bichos e objetos, fazendo acontecer a história, viajando sob a
influência discreta e frágil das cores suaves e pálidas [...] nesse processode
leitura visual da narrativa. (VESSANI1, 2008, p.98)
L
A
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•
2
0
1
8
Figura 6: Ciça Fittipaldi, 2013. 8ª página dupla de Saci.
•
454
•
2
0
1
Figura 7: Ciça Fittipaldi, 2013. 8ª página dupla de Saci.
8 A personagem Saci se transformou na própria floresta (Figura 7). Nesse
momento da narrativa ascrianças perceberam realmente que a mudança de cor e
forma da personagemera um jogo que se repetia e previram mais algumas trocas.
Nesse trecho danarrativa, a história tomou outro rumo por conta da influência
das opiniõesdas crianças no enredo da artista, revelado na seguinte passagem:
“Minhahistória mudou completamente, aliás eu nem sabia que ela seria invisível,
eunem sabia que invisibilidade dela seria dentro da floresta, tudo isso veio
dainfluência deles” (FITTIPALDI, 2013b).
A expectativa em relação à virada da páginaé sempre um dos momentos
mais interessantes em nossa relação com ascrianças. Sempre direcionamos o olhar
para elas enquanto trocamos de página, pois é um momento em que a atenção das
crianças, por conta da ansiedadediante do novo, está totalmente direcionada para o
objeto de leitura. Os olhosdas crianças revelam suas impressões iniciais de leitura.
É um momento desuspensão em que as hipóteses estão em jogo e o desconhecido
se revelará. A varredura feita pelos olhos busca significados na imagem objeto de
leitura. Nas imagens a seguir (Figura 8), estão a sequência em que a artista re(a)
presenta um elemento que faz alusão ao ser misterioso Saci ou, como diziam as
J crianças: O Saci. A alternância é marca presente da narrativa. Neste momento se
faz necessário mais um salto as páginas, quando a personagem se depara com um
capuz vermelho e o coloca na cabeça. Ciça disse sobre suas expectativas:
A
E foi quando eu imaginei: se tudo tivesse no escuro e na escuridãoda mata
ela visse um capuz ela ia se intrigar: “Uai, de que éesse capuz?” Ela vestiria
L e ficaria toda vermelha, mas alguém jáestaria vigiando, porque o dono do
capuz tava ali. Então ele tavainvisível mas nem tanto. Porque como ele é
L preto, a noite tinhaencoberto ele. (FITTIPALDI, 2013b)
•
455
•
2
Figura 8: Ciça Fittipaldi, 2013. 11ª, 12ª e 13ª páginas duplas de Saci.
0
A relação com a noite, ambiência própria do desconhecido, intensifica a
1 narrativa e dá indícios da aproximação do Saci verdadeiro, que ocorre nas páginas
subsequentes ( Figura 9):
8
J
A
L
L Figura 9: Ciça Fittipaldi, 2013. 14ª e 15ª páginas duplas de Saci.
Ciça descreveusuas intenções sobre o momento de encontro na narrativa,
A
que estava bastanteassociada à leitura das crianças:
A cor da identidade dela é azule quando ela se apresenta dessa cor é quando
eles podem se encontrar, que quando ele pode vê−la e ela pode vê−lo, sóque
ela vê ele com trocentos olhares, que são todos aqueles,e ele é ele, ele é um
personagem, ele é mítico, ele não podesofrer alteração nenhuma, ninguém
• tem permissão de alteraresse saci. Nem o chapéu. Porque seria uma intro-
456 missão numconhecimento secular maravilhoso. (FITTIPALDI, 2013b)
2
0
1
8
• Referências
FITTIPALDI, Ciça. Entrevista a Hanna Araújo. São Paulo, 2013a.
_________. Entrevista a Hanna Araújo. São Paulo, 2013b.
GOMBRICH, Ernst Hans. Os usos das imagens. Estudos Sobre a Função Social da Arte
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2 terra. Porto Alegre: Bookman, 2012.
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VESSANI, Maria Cecília Fittipaldi (Ciça Fittipaldi). O que é imagem narrativa. In: OLIVEI-
1 RA, Ieda. O que é qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil? São Paulo: DCL,
2008.
8
J
A
L LA CARTADE PERO VAZ DE CAMINHA: UNA APROXIMACIÓN A LA
EXOTIZACIÓN DE LOS NATURALES DE LA TERRA DE VERA CRUZ
L
Haydee Mercedes Salcedo Fonseca (UNMSM)
A RESUMEN: El presente trabajo de investigación aborda el análisis de la Carta
de Pero Vaz de Caminha en relación a la estrategia discursiva que se utiliza,en
base a la lógica del conquistador como parte de nominalizar y describir los usos y
costumbres de los pobladores del Brasil. El texto presenta algunas estrategias por
el cual el autor legitima su discurso con la finalidad de poder recibir–de la corona
• portuguesa– un apoyo; una de las estrategias que se fundamenta es la exotización
de las personas encontradas en el territorio de Vera Cruz. Como parte del análisis
458
se tiene en cuenta el Diario de a bordo de Colon; se realiza, grosso modo, una
• comparación entre similitudes y diferencias en ambos textos para observar la
estrategia de Pero Vaz de Caminha. Así, el texto de Caminha representa los primeros
albores del conocimiento y la importancia que se le otorga a tierras brasileñas.
Palabras claves: Caminha. Nominalización. Lógica del conquistador. Exotización;
Naturales.
2
Introducción
Los estudios coloniales y postcoloniales se encuentran en bogaen el
0
siglo XX, diferentes ejes temáticos circundan en la idea de la representación del
espacio americano desde las perspectivas del poblador europeo, como un espacio
1 mágico, de exaltación, de abundancia. De este modo, el discurso de la alteridad,
los trabajos sobre violencia simbólica o la subalternización confieren a estos tipos
8 de textos coloniales fundacionales la característica de una visión denigrante, en
el sentido de que el europeo se muestra superior a los americanos o amerindios
o indígenas si se prefiere referirse de esta forma.En mi posición prefiero nombrar
pobladores naturales o autóctonos del lugar al cual haremos referencia, en este
caso a Vera Cruz. No obstante, la crítica ha tratado de convertir este discurso en un
contradiscurso como respuesta a ciertas características que han sido otorgadas por
el propio imaginario e interpretación de los “conquistadores” hacia los naturales que
no eran conocidos y que se les presentaban comoexótico, tanto por la fisionomía,
las costumbres, el lenguaje y por su cultura que no eran comprendidas por el
europeo del siglo XV – XVI.
Asípues, se ha tratado de comprender la lógica de los conquistadores
otorgándole ciertas características con respecto a su contexto histórico-cultural.
Principalmente, sobre qué leían los conquistadores, Irving A. Leonard (1953),
presenta que las lecturas –de los conquistadores– eran principalmente los escritos
morales, teológicos y religiosos; también, se encontraban las novelas de caballería
donde la abundancia de la fantasía y la ficción eran las características principales
de la diégesis de este tipo de novelas. Así, se fue formando la mentalidad de los
J pobladores, cabe resaltar que esto se dio en su mayoría al territorio español, no
obstante, se generalizó abarcando otros territorios. De esta forma, la llegada de
los conquistadores a tierras americanas tendrá como lógica: el discurso de la
A
abundancia, la fantasía que mostraban las novelas de caballería. Por otro lado,
presenta el carácter religioso, la gran importancia que se le otorgaba al pensamiento
L de la época; es decir, su cosmovisión. Un claro ejemplo de ello es Cristóbal Colón,
quien en su diario refuerza la idea de conquistar‘nuevas’ tierras con el afán de
L encontrar riquezas, pero también, para poder ‘evangelizar’ a los naturales que
se observan como extraños y exóticos. En el caso de Caminha este discurso de
A la alteridad elaborado por Rolena Adorno y, también, tomado por Todorov, se
presentan de manera sutil, en el sentido de que el receptor del texto no percibe
explícitamente escenas donde se presenten al sujeto colonizador superior al sujeto
colonizado, es decir, que desde el texto de Caminha se presenta, como lo propone
Rodolfo A. Franconi, una mirada oblicua por la cual el emisor del texto no logra
• comprender las cosas que observa, por ello intenta fundamentarse en un discurso
etnográfico del cual logra resaltar este carácter ocultando otros.
459
Ahora bien, luego de lo expuesto cabe presentar que el artículo consta de
• dos apartados. En el primer apartado, abordamos grosso modo lo que trata la Carta
de Pero Vaz de Caminha, luego de ello, presento algunos estudios que se han dado
sobre el texto; por ejemplo, el de Espino Relucé, Sarissa Carneiro, Manuela Carneiro
da Cunha, entre otros. Luego, en el segundo apartado, abordo el análisis del texto
en base a nuestra hipótesis de trabajo acerca de la exotización de las personas
2 naturales como parte de la lógica del conquistador que se presenta como aquel que
puede comprender las costumbres del otro; no obstante, aquello no deja de lado la
0 finalidad del conquistador, sino que aporta otra forma de construir el discurso para
justificar las acciones que realizan. En base a ello,mostraré algunos fragmentos
1 que validen mi hipótesis y, finalmente, abordaré las debidas conclusiones.
Carta a el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil
8 Para abordar este primer apartado, es necesario referirse grosso modo al
contexto histórico. Alberto Sánchez (1985) menciona que, tras la embajada de Colón
por parte de la Corona española, la Corona Portuguesa ya tenía cierta rivalidad
con ella, se sabe que Gaspar Costa Real navegaba por la costa de la Terranova lo
que impulsó a que se realizase otro viaje. Entonces, a partir del segundo viaje de
Colón en 1497, el rey de Portugal, Manuel el Afortunado, ordenó que partiera una
embarcación en busca de las Indias a cargo de Vasco de Gama, lo cual es realizado
regresando a Portugal con nuevas especies y causando gran entusiasmo en aquel
territorio. Aproximadamente en 1500 como data la carta de Vaz de Caminha, ya se
hubo descubierto nuevas tierras, aunque aún no se tenía un conocimiento cabal de
ello hasta después que la embarcación de Pedro Álvarez Cabral llegara de regreso
a Portugal.
Así pues, Sarissa Carneiroexpresa que la carta de Pero Vaz de Caminha
“llegaría no mucho tiempo después a las manos del rey, con la nave de bastimentos
enviada a Portugal para dar la noticia del descubrimiento reciente” (Carneiro, 2003,
p. 107). En ese sentido, el conocimiento del ‘descubrimiento’ lograráentusiasmar
a la corona portuguesa por el afán de dominar aquellas tierras. Cabe resaltar
J que cuando Caminha escribe la carta, él se encontraba en la expedición de Pedro
Álvarez de Cabral, que tenía como objetivo llegar a Calicut (sur de India) para
A establecer el comercio en Oriente y poder obtener el dominio comercial en esa
región. No obstante, estos viajes que se realizaron nunca tuvieron como objetivo
L encontrar América, solo que por el clima y los obstáculos naturales que tuvieron en
la navegación llegaron a toparse con tierras extrañas que no habían conocido; sin
embargo, observaron que podía ser parecidas a las descripciones de las novelas de
L caballería, es por ello, que la mirada del conquistador, del europeo, se encontraba
parcializada.
A Ahora bien, la Carta de Pero Va de Caminha dirigida al rey Don Manuel
trata sobre los diez días que la flota comandada por Álvarez de Cabral desembarcó
en una isla que le pusieron de nombre Terra da Vera Cruz. Los portugueses se
encontraron con esta isla donde lograron visualizar entre siete u ochohombres, a
primera impresión Caminha menciona que se encuentran desnudos sin que nada
• les cubra sus vergüenzas (sus partes sexuales). Desde el veintiuno de abril, a su
460 llegada a la isla, se quedan hasta el primero de mayo que es donde se fecha la
Cartade Caminha porque al día siguiente partirían de dicha isla. En el transcurso
•
de esos días, Caminha trata de describir cómo lucen los naturales del lugar, los
califica como personas, no obstante, también los llama ‘mansos’, o los comparan
con animales. Los portugueses desean entablar comunicación con los naturales;
sin embargo, no lo logran por el factor lingüístico, así lo menciona Caminha, es
por ello que trataban de entenderse mediante señas y, principalmente mediante el
2 intercambio de objetos.
Los portugueses querían acercarse a los pobladores de la isla pero no
0 logran hacerlo, son varias veces que intentan llevando dos personas para que se
queden con los naturales pero estos eran devueltos hacia la flota de los portugueses.
1 Luego trataron de atraerlos mediante el intercambio de bienes que hacían, pero
no se lograr a cabalidad. Caminha, también describe el cuerpo de los naturales,
8 el agujero que tenían en el labio donde tenían puesto huesos y hasta algún tipo
de piedra. Menciona los arcos y flechas que estos traían y cómo estaban pintados
sus cuerpos; aquello, para el autor se presenta como un asombro y como una
exotización. En el transcurso de los días ya se había decidido no obligar a los
naturales a que se quedasen con ellos sino tener cierta ‘convivencia’ para que los
puedan comprender; no obstante, se envió una flota hacia la corona portuguesa
para dar cuenta de lo que se hubo ‘descubierto’.
Consiguientemente, los portugueses buscan recursos para poder
relacionarse con ellos, empiezan con el intercambio mientras observan el territorio;
aquello se muestra como una estrategia ya que no obligan a los naturales al
intercambio. Asimismo, se muestran conscientes y sorprendidos por la cultura
que encuentran. Ellos, los portugueses, realizarán una misa y harán que las
otras personas repitan lo que ellos hacen. Así, de manera indiscreta elaboraran
una cruz de madera para tenerla como representación de que aquel lugar puede
ser evangelizado porque los naturales no se muestrancontra ellos. También, se
presencia una pequeña procesión para poder poner la cruz en un lugar específico,
lo que significa el acto de evangelizar a los otros que no son iguales a ellos y, por
J tanto, muestran su “superioridad”. Por otro lado, se describe a la mujer de la Terra
de Vera Cruzcomparándola con la mujer europea, se la presenta como aquella que
posee gran belleza y sin alguna vergüenza por andar desnuda.
A
Por último, la carta concluye con la perspectiva de Caminha sobre los
L naturales, en tanto que no tienen ninguna idolatría y que podían ser iguales a ellos;
en ese sentido, hace un pedido a Vuestra Alteza que, en lo más pronto posible,
llegue un clérigo para que los bauticen y así tendrán mas conocimiento de la fe
L que ellos profesan. Dejan a dos personas en la isla para que sigan observando las
costumbres de los naturales y, para que, de cierta manera, ellos introduzcan su
A pensamiento en las personas de la isla. Mediante la descripción cuasi etnográfica
que realiza Caminha, tiene como finalidad principal pedir a Vuestra Alteza que
regrese a su yerno Jorge de Osorio, quien había sido desterrado.
Luego de lo expuesto, cabe resaltar la representación de cuerpo femenino
y masculino. Carneiro da Cunha (1990) menciona que el cuerpo femenino se
• exalta ante la comparación de las mujeres europeas, las describe como bellas y sin
461 vergüenza de estar desnudas; mientras que la descripción del cuerpo masculino
se presenta como ‘precioso’, comparados con bestias salvajes que no son fáciles de
•
domesticar. Para la autora, esta referencia de Caminha, obstaculiza poder observar
la agricultura de los naturales, no obstante, menciona que para Caminha, las
personas se presentan como una tabula rasa, como un molde que pueden ser
domesticados. Refutable lo que expresa la autora;si bien es cierto que se muestra
al natural, en algunas menciones, comparándolos con los animales, el propio
2 Caminha se retracta de lo dicho porque sigue observando a los naturales como
personas que no son tan ajenas a ellos y que solo les faltaría bautizarlos. Aunque
0 puedo caer en la contradicción de presentar esta exotización de los pobladores de
la isla como algo denigrante o no, considero que Caminha necesita poner ejemplos
1 para que la carta que va dirigida a don Manuel sea comprendida y pueda apreciar
las magnitudes de las cosas.
8 Por otro lado, Sarissa Carneiro (2003),menciona que a diferencia del
diario de Colón donde presenta este afán de glorificar los hechos, en Caminha
hay ausencia de ello porque en la narración no se hace presente alguna forma de
querer presentar la llegada a la isla como una victoria y así glorificarse, a excepción
de solo un pasaje donde se muestra que se encuentra a favor de la evangelización
expresando que “el señor lo quiso así”, como una suerte de providencialismo.
Además, el giro que da la Carta, en el sentido de que no describe como en el diario
de Colón a las personas como salvajes y no ahonda tanto en la naturaleza, no la
hiperboliza, pero sí describe a los hombres, es por ello que se muestra como un
relato de viaje de aspecto etnográfico.
Rodolfo A. Franconi (2004), desde su hipótesis sobre la mirada oblicua
de Caminha menciona que la Carta“se inserta en el esfuerzo conjunto de los
europeos –concentrado en los textos de viaje de la época– de construir alteridades
al mismo tiempo que entraban en contacto con tierras y pueblos, con los cuales
sería necesario convivir de allí en adelante” (Franconi, 2004, p. 28). De esta forma,
se construye otra lectura relacionada desde una perspectiva moderna, sabemos
que el discurso de la alteridad es entendido de cómo el ‘yo’ mira al ‘otro’ destacando
J ciertos rasgos que hacen que el ‘otro’ sea subordinado por este, ya sea por la
condición cultural, raza, religión, entre otros. Franconi, aborda la comparación
entre Colón y Caminha:
A
La transformación del otro en diferente no ocurre, pues, de modo parejo.
Entre la carta de Colón enviada a los Reyes Católicos sobre su llegada a las
L ‘Indias’ y la de Caminha a Don Manuel sobre el hallamiento de una nueva
tierra –a la que nombra ‘Isla de Vera Cruz’– hay diferencias fundamentales,
L que no sólo provienen de los ocho años que las separan, sino de las distin-
tas inserciones de sus autores en la historia, de una visión humanística del
mundo por parte de los portugueses, y de los modos peculiares de relatar
A viajes y contactos allende el mar (‘além-mar’). Colón tiene una responsa-
bilidad grande ante su propio proyecto, ante el financiamiento sustancial
que había conseguido y ante la gente que tiene bajo su mando. (FRANCONI,
2004, p. 29)
3 Solamente les lanzó un birrete rojo y una capucha de lino que llevaba en la cabeza, y un sombrero
negro. Y uno de ellos le arrojó un sombrero de plumas de ave, largas, con una copa de plumas rojas
y pardas, como de papagayo. Y otro le dio un ramo grande de cuentitas blancas, menudas que
quieren parecer de aljófar, que creo que el Capitán le manda a Vuestra Alteza. Y así se volvió a las
naves por ser tarde y no poder haber con ellos más conversación, por causa del mar.
basta, e mui igual, e nāofaziamínguamaislavagem para a levantar. (CAMI-
NHA, 1997, p 15)4
2
0
1
8
J
A
L A TRADUÇÃO DE ARTES VERBAIS AMERÍNDIAS:
ESPECIFICIDADES E DESAFIOS
L
Helena Lúcia Silveira Barbosa (USP)
A RESUMO: As artes verbais ameríndias tem se tornado um objeto de estudo
interdisciplinar, com produções acadêmicas não mais apenas na antropologia e
na linguística, áreas de maior disseminação do tema, mas também nos estudos
literários e da tradução. Este ensaio pretende ampliar a discussão no campo
dos Estudos da Tradução, onde o tema é ainda sub-representado. Seu propósito
• central é discutir especificidades das artes verbais ameríndias das terras baixas
sul-americanas e suas consequências para um projeto tradutório estabelecido em
470
diálogo com as formas de pensamento ameríndio. A investigação será desenvolvida
• com base em contribuições da etnologia ameríndia e de experiências de tradução
desenvolvidas em âmbito brasileiro.
Palavras-chave: Artes verbais ameríndias. Tradução. Poética. Indígena.
O tradutor de poesia é um coreógrafo da dança interna das línguas
Antônio Risério (Textos e Tribos)
2
Introdução
0 O presente estudo propõe-se a discutir especificidades das artes verbais
ameríndias das terras baixas sul-americanas e suas consequências para um projeto
1 tradutório estabelecido em diálogo com as formas de pensamento ameríndio.
Neste sentido, como traduzir poéticas ameríndias sem ofuscar ou silenciar suas
8 especificidades por meio de meras equivalências com conceitos oriundos das formas
ocidentais de pensamento? Esta investigação será desenvolvida com base em
contribuições da etnologia ameríndia e de experiências de tradução desenvolvidas
em âmbito brasileiro. Não se busca, nesse momento, realizar um trabalho que
abarque de forma exaustiva tais especificidades, nem mapear as traduções já feitas
no Brasil, mas sim refletir sobre questões problemáticas envolvidas na tradução
para o português deste tipo de poética. Pretendo, assim, produzir inquietações e
incitar o debate no campo dos Estudos da Tradução, ainda incipiente quanto a
pesquisas dessa natureza.
Jamille Pinheiro Dias, em sua tese Peles de papel: caminhos da
tradução poética das artes verbais ameríndias (2017), apresenta um resumo das
características gerais recorrentes no que denominamos “artes verbais ameríndias”,
o qual adoto neste momento com o intuito de oferecer uma apresentação inicial do
tema:
(…) elas consistem em modos e técnicas de ritualização por meio da lin-
guagem; são fundamentais para mediar a comunicação entre humanos e
não humanos, vivos e não vivos; muito frequentemente têm uma dinâmica
J paralelística moldada pela reiteração e pela variação, assim como por
incorporações citacionais de “outros” no discurso; apresentam predomínio
da parataxe, ou seja, uma intensa proliferação e justaposição de imagens;
A de forma decisiva, exibem uma relação inextricável entre o pensamento es-
peculativo e o fazer poético; e têm um papel pragmático na construção do
corpo e da pessoa, apresentando-se como verdadeira “fisiopoiésis” – ou seja,
L cada uma a seu modo, as artes verbais ameríndias convocam operações
tradutórias que vertem a palavra em corpo. (PINHEIRO DIAS, 2017, p. 145).
L
Neste sentido, o processo de tradução não apenas se faz no corpo, mas o
próprio processo de produção criativa das poéticas ameríndias é fisiológico, segundo
A a autora, “passando pelo compartilhamento dos alimentos e fluidos, pela fabricação
da consubstancialidade, pelo resguardo, pelo cuidado mútuo” (PINHEIRO DIAS, p.
145). Traduzir estas poéticas, assim, requer a compreensão dessa poiésis do corpo
e de como construí-la nas traduções.
Há poesia por toda a parte
•
Quando lemos ou ouvimos pela primeira vez uma narrativa indígena,
471
é provável que um sentimento de estranheza aflore durante o processo. Seja ela
• escrita ou verbalizada e aproxime-se ao máximo das estruturas linguísticas do
vernáculo, a lógica criativa e especulativa indígena produz interrogações que,
por diversas vezes, não encontram tradução no nosso modo de entendimento do
mundo. Pensando em algo mais específico, como um canto xamânico, por exemplo,
essa estranheza é ainda maior. É desestabilizadora. Os problemas impostos pelo
2 extralinguístico se colocam no mesmo patamar do linguístico – ou mesmo além.
A predominância das formas eurocêntricas de conhecimento obscureceram
0 outros modos de significação, que se utilizam de complexos sistemas simbólicos
para a construção do pensamento, do corpo, da socialidade. Entretanto, estes
1 modos existem, apesar do desconhecimento quase absoluto do leitor em geral,
fato que é resultado, principalmente, da educação formal brasileira, de base
euroamericana. As artes verbais dos povos indígenas entram no pacote dos
8 “conteúdos” desconhecidos, ignorados. E hoje, mesmo estudadas por uma série
de pesquisadores mundo afora, estão longe de serem compreendidas em sua
profundidade. O caminho a ser trilhado é longo.
Como afirma Pedro de Niemeyer Cesarino (2018), estudioso brasileiro das
poéticas marubo, deve-se partir do princípio de que há poesia por toda parte. Estas
poesias, por sua vez, implicam formas diversas de experiência, criação, linguagem,
pensamento, estética. Implicam, também, o entrelaçamento de símbolos, de formas
expressivas, do oral e o escrito, da comunicação entre humanos e não-humanos.
Em razão desta complexidade constitutiva e estrutural é que, neste
ensaio, deu-se preferência ao termo “artes verbais” ao invés de “literatura”, como
usualmente costuma-se definir as poéticas indígenas. Como afirma Sérgio Medeiros
(2009), “(…) diante de um poema indígena, seja ele oral ou escrito, certas concepções
tradicionais de literatura e poesia poderão se mostrar tímidas ou limitadas”. É uma
escolha que advém também de uma discussão longa sobre opções terminológicas
feitas por estudiosos que têm se dedicado à tradução de poéticas ameríndias no
Brasil.
J No artigo Concepts and Contests in the Translation of Indigenous Poetics in
Brazil (2015), Pinheiro Dias discorre de forma elucidativa acerca dessa discussão.
A Resumidamente, Cláudia Neiva de Matos, seguindo Paul Zumthor, afirma sua
preferência pelo termo “arte verbal”, visto que admite usos artísticos tanto da
L língua oral quanto da língua escrita, sem favorecer a segunda, bem como pelo
termo “poesia”, por ser uma arte da linguagem humana, fato da ritualização da
linguagem. Lucia Sá, por sua vez, entende que excluir textos nativos da categoria
L “literatura” pode ter efeitos negativos, uma vez que as “literaturas da floresta”
devem ser vistas mais do que apenas material etnográfico, material bruto ou, de
A forma particularmente depreciativa, como mito. Já Marília Librandi-Rocha, em sua
exposição sobre a carta Guarani-Kaiowá, defende a inclusão dos textos indígenas
como parte da essência da literatura escrita no Brasil, considerando o direito à
literatura como território discursivo acolhedor. Em direção oposta à Librandi-Rocha,
Marco Natali defende o direito de não ser literatura ao criticar a “inevitabilidade”
• da aplicação do conceito literatura e a forma que tal conceito incorpora práticas
472 discursivas não européias.
Esses diferentes posicionamentos revelam a complexidade da questão.
•
Este estudo optou pela adoção do termo “artes verbais”, visto que muito ainda há
que ser discutido para se entender onde as poéticas ameríndias se posicionam
neste espectro, bem como o posicionamento dos próprios povos ameríndios sobre o
assunto. Por ora, sigo em acordo com a observação apresentada por Pinheiro Dias,
em que afirma sua preferência pelo termo “artes verbais”, ainda que nenhuma
2 terminologia seja completamente adequada, “e que sintetizar quais exatamente são
os fatores constitutivos do que chamaríamos de ‘artes verbais ameríndias’ de forma
0 mais abrangente seja arriscado” (DIAS, 2017, p. 144-145).
Breve histórico
1 O universo narrativo ameríndio possui uma produção extensa de poéticas
ainda raramente registradas, traduzidas e publicadas. São mais de 150 línguas e
8 dialetos falados pelos povos indígenas do Brasil (POVOS INDÍGENAS NO BRASIL/
ISA, 2018) e, conforme expõe Pedro Cesarino:
(…) Cada língua possui um mundo, uma construção de pensamento, uma
estética e uma produção ritual. Se somarmos a isso o fato de que esses
mundos são bastante distintos daqueles que deram origem às formas oci-
dentais de pensamento, então perceberemos a distância a ser percorrida
para que haja uma compreensão mais efetiva dos referenciais intelectuais
e criativos indígenas. Daí a necessidade de uma aproximação tradutória,
que busca uma compreensão mais afinada de tais singularidades poéticas
(CESARINO, 2013, p. 7).
O autor fornece um breve histórico a respeito das artes verbais ameríndias
no Brasil na obra Quando a terra deixou de falar – cantos da mitologia marubo
(2013). Em seus aspectos principais, faz referência às primeiras documentações
das tradições orais, que datam do século XVI, e discute como os cronistas da época
distorciam as narrativas dos povos falantes do tupi-guarani pela escrita em prosa
corrida e pelo viés da metafísica cristã (CESARINO, 2013, p. 7), manipulando e
silenciando as particularidades poéticas e metafísicas originais. O padre jesuíta José
J de Anchieta é um representante significativo deste momento histórico. Anchieta, por
meio do que se chama na historiografia da tradução de “tradução-apropriação” (REIS
& MILTON, 2016), realizava verdadeiras “torções ontológicas” do léxico indígena a
A
fim de ressignificá-lo através da teologia e moral cristãs. Cesarino expõe o exemplo
dado por João Adolfo Hansen sobre a tradução do termo Tupã, Tupaná, que em
L tupi era o nome genérico usado para se referir a ruídos da natureza, como trovões,
e é traduzido simplesmente como Deus-Pai. Neste sentido, Anchieta imprimia na
L metafísica indígena a noção de corpo e alma e outras concepções estranhas ao
pensamento ameríndio, de forma a naturalizar gradualmente sua manipulação.
A Como diria Antônio Risério, “aprende-se a língua do gentio para melhor silenciá-lo”
(RISÉRIO, 1993, p. 41).
A partir do século XIX, a documentação das tradições orais começa a
ser feita do modo mais sistemático com o trabalho de cientistas e viajantes e, dois
séculos depois, mais especificamente na década de 1970, os materiais desenvolvidos
• passam a ser analisados com uma compreensão mais sofisticada das línguas e de
473 suas configurações rituais e poéticas, revelando uma série de características das
artes verbais até então incompreensíveis.
•
(…) A elucidação de aspectos tais como o paralelismo, o uso de metáforas e
léxicos rituais, as enunciações polifônicas e o sistema de evidenciais (ou de
modalidades epistêmicas) seria articulada a uma compreensão mais sofis-
ticada dos gêneros da fala e de canto, de suas formas de aprendizagem, de
suas configurações rituais e musicais (CESARINO, 2013, p. 12).
2 Diversos autores começam, então, a se dedicar com mais afinco ao tema
e produzir coletâneas e antologias de traduções, como Betty Mindlin, Rosângela de
0 Tugny, Bruna Franchetto e o próprio Pedro Cesarino. Vê-se, atualmente, um esforço
também de intelectuais e escritores indígenas em produzir suas próprias narrativas
1 e traduções, como Daniel Munduruku, Eliane Potiguar e Graça Graúna, para citar
alguns, num esforço de ressignificação do pensamento, da escrita, do processo
tradutório e do livro. Neste último caso, é imprescindível mencionar A queda do
8
céu: Palavras de um xamã yanomami (2015), que se constitui com um depoimento
autobiográfico/manifesto político do xamã yanomami Davi Kopenawa, escrito em
parceria com o antropólogo Bruce Albert, uma verdadeira obra de referência para se
refletir sobre o acesso ao imaginário conceitual do nativo. Sérgio Medeiros, Antônio
Risério, Álvaro Faleiros e Cláudia Neiva de Matos são alguns dos nomes que têm
aprofundado a discussão com produções acadêmicas e retraduções.
Tais esforços são ainda pontuais quando se pensa na imensa trajetória
a ser percorrida para a superação do desconhecimento das poéticas ameríndias
pela academia e pelo leitorado de forma geral, mas formam uma base consistente
de pesquisa indicadora dos desafios a serem enfrentados. O mundo das artes
indígenas da palavra é diverso, composto não só por narrativas míticas, gênero mais
conhecido e a que se tem mais acesso, mas por cantos xamanísticos, cantos rituais
e de festa, cantos de cura, falas de chefe, entre outros. E cada vez mais, seu estudo
apresenta-se como uma tarefa multidisciplinar, que demanda a comunicação entre
antropólogos, linguistas, mestres e poetas indígenas, estudiosos da tradução e da
literatura, tradutores e poetas.
J Comunicação de diferenças
Investigar o processo criativo envolvido na tradução de artes verbais
A ameríndias requer, antes de tudo, uma incursão no pensamento ameríndio, tendo
em vista a necessidade de ressignificar nosso repertório conceitual a partir dos
L referenciais intelectuais e criativos indígenas para que seja possível acessar com
êxito suas poéticas.
L Neste momento, desenvolveremos uma reflexão acerca das diferenças
existentes entre ontologias indígenas e não indígenas e sua repercussão no processo
de tradução linguístico-cultural. Qual a tarefa do tradutor quando deparado
A
com distintos regimes ontológicos? Tal discussão será construída com base em
contribuições da etnologia ameríndia em diálogo com teorias tradutológicas.
Em Earth Beings: ecologies of practice across Andean worlds (2015),
Marisol de La Cadena apresenta uma etnografia que discute, por meio da tradução,
• as complexidades entre mundos que compõe a vida de Mariano e Nazario Turpo,
pai e filho de etnia Quechua. Ambos transitam constantemente entre práticas
474
indígenas e não-indígenas que penetram e afloram umas nas outras, revelando
• uma historicidade complexa em meio à região de Cuzco, tornando-a um local em
que a divisão entre moderno e não-moderno é confusa, sendo melhor definida como
“nunca moderna” (LATOUR, 1993 apud LA CADENA, 2015, p. 5).
La Cadena expõe sua confusão em traduzir determinados termos ao longo
das conversas com Mariano e como o problema tradutório emerge não por causa
2 do sentido dos termos, mas principalmente por causa de uma sobreposição de
mundos. Isso fazia com que conversas sobre um mesmo evento produzissem tanto
0 similaridades quanto diferenças. Apresenta-se, assim, uma assimetria, que não é
linguística, mas ontológica.
1 Entretanto, apesar desse ruído de compreensão e da ausência de
isonomia conceitual, é possível se efetivar a comunicação, segundo La Cadena. Ela
entende esses ruídos como lacunas e defende que tais lacunas tornam a tradução
8
um processo cheio de obstáculos, mas que nem por isso a impedem.
A autora concebe a tradução como uma possibilidade de habitar excessos
(o que transborda na tradução), sendo estes excessos aquilo que coloca o desafio do
trabalho etnográfico. É na exploração do processo de tradução que a antropologia
se funda. A intenção é que enunciador e tradutor explorem o excesso juntos, na
tentativa de criar um espaço comum para ambos.
(…) meu mundo era parte do mundo que meus amigos habitavam e vice-
-versa, mas seu mundo não poderia ser reduzido ao meu ou o meu ao deles.
Consciente dessa condição de uma maneira que não necessitava ser expres-
sa em palavras, sabíamos que o fato de estarmos juntos conectava mundos
que eram distintos, mas também o mesmo. E, ao contrário de manter a se-
paração que a diferença produzia, escolhemos explorar as diferenças juntos.
Utilizando as ferramentas existentes nos mundos de cada um, esforçamo-
-nos para compreender o que era possível sobre o mundo do outro e criamos
um espaço compartilhado, também constituído por coisas incomuns para
cada um de nós (LA CADENA, 2015, p. 4, tradução minha).
Entre esses métodos de resistência, cabe dar destaque a um, por seu
simbolismo: o “empate”. Referindo-se aos empates, Rodrigues faz a seguinte
J descrição:
Normalmente, os seringueiros que seriam atingidos pelo desmatamento co-
municavam ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais, ao mesmo tempo em
A que chamavam seus vizinhos, que não seriam atingidos naquele ano. Jun-
tavam algumas dezenas de trabalhadores que, não raro, levavam suas es-
L posas e filhos, formando um contingente considerável de seringueiros que,
ao chegarem ao local do desmatamento, conversavam com os trabalhadores
que estavam fazendo a broca, convencendo-os a paralisarem os trabalhos.
L A ação era, sempre, pacífica, embora muitas vezes os seringueiros lavassem
consigo suas espingardas, que nunca foram usadas nas ações, conseguin-
A do, geralmente, num primeiro momento, convencer os trabalhadores das
derrubadas em sua maioria ex-seringueiros gerenciados por um “gato” vin-
do de fora (RODRIGUES, 2009, p. 97).
4 Levada a cabo pelas mãos humanas, a plantação racional-socializada dos seringais da Malásia,
onde as seringueiras, aos milhares, ficavam próximas umas das outras, possibilitava outras
formas de corte. Ali, aproveitavam-se melhor o espaço e, por conseguinte, o tempo. Na Amazônia,
homens da floresta. Isso caberá apenas a gerações posteriores5 e a outras levas de
migrantes.
Desterrados. Estranhos, em terra estranha e hostil. Os migrantes que
por aqui aportavam. A cabeça e o coração em outras regiões, os pés na Amazônia.
O sonho lá, a realidade ou o pesadelo cá. A maioria - talvez, a totalidade - nunca
havia tido contato com a floresta. Isso impunha enormes barreiras a que pudessem
se sentir em casa, a que estabelecessem relações “amigáveis” com ela.
J Neste sentido e dadas as dificuldades que por aqui encontraram, como
animais perigosos e mesmo mortais, isolamento, doenças, privações, saudade etc.,
A uns tantos viam na floresta um misto de inferno e purgatório de que queriam se
ver livres o mais rápido possível. Tudo isso fazia com que, também na cabeça de
L muitos migrantes, o Acre fosse apenas porto provisório, “acampamento”, lugar de
passagem.
L Ora, não foi sem razão que, no que se refere àquele período primeiro,
vimos utilizando o termo migrante, e não seringueiro. Como Paula (2016, p. 23),
entendemos que seringueiro é mais que o cortador de seringa assalariado6. Para
A defini-lo, é preciso recorrer a mais que a “atividade funcional”.
Na definição de seringueiro, além da “atividade funcional”, é preciso
considerar o modo de vida, de homem da floresta. No momento de sua chegada, o
migrante é, quando muito, apenas homem na floresta. Não se sente parte dela nem
a sente parte dele. E de fato, a princípio, nem sequer entende que sua sobrevivência
•
dependa dela.
493
Longe de uma compreensão equivocada, malsã, isso corresponde
• largamente à “verdade efetiva das coisas” (MAQUIAVEL, 2010) de então. Na base
dessa forma de consciência há relações de produção a condicioná-la. É o “ser social”
condicionando a consciência.
Como destaca Paula, exercendo plenos poderes em suas terras, o que
interessava ao patrão
2 era obter a maior produção possível de borracha; não lhe interessava o dis-
pêndio de tempo e energia do seringueiro em outra atividade que não fosse
0 a extração e defumação do látex. Era proibida a agricultura de subsistência.
Com isso, o patrão assegurava, por um lado, maior volume na produção de
borracha e, por outro lado, garantia a manutenção dos laços de dependên-
1 cia do seringueiro, uma vez que todos os gêneros necessários a sua sobrevi-
vência tinham que ser adquiridos no “barracão”, sempre a preços exorbitan-
tes, o que o mantinha eternamente endividado, sem poder sair do seringal
8 (PAULA, 2016, p. 34).
de liberdade, quando, no que toca àquele momento primeiro, Paula (2016, p. 23) define “seringueiro”
tendo como referência apenas “atividade funcional”. Trata-se daquilo que, por um caminho paralelo,
definimos como homem na floresta.
dessas relações. Enfim, a relação com a floresta poderia ser multilateral. O homem
poderia, a partir dali, se sentir parte da floresta e sentir a floresta parte dele. O
homem da floresta estava surgindo.
Não mais espaço voltado exclusivamente para a exploração da seringa.
Não mais simplesmente “acampamento”, lugar de passagem. A partir dali o
território seria remodelado simbólica e materialmente. A vida do homem e da
floresta interpenetram-se, passando a depender uma da outra de maneira mais
J direta, com menos espaços para atravessadores, por assim escrever.
Assim foi porque, como ensina Marx, toda produção é também reprodução,
A conformando um processo que envolve mais que o fabrico de “produtos”8. Trata-
se de um processo abrangente, que envolve ainda a vida, as estruturas e relações
L sociais, os valores e as práticas. Mudando a produção, forçosamente tudo o mais
mudaria.
L A partir daí, por estabelecer relações múltiplas com a floresta e por perceber
muito claramente a dependência que tem dela para sobreviver, o seringueiro
expressa em sua consciência e práticas uma dimensão ecológica. Apenas quando
A se torna seringueiro em amplo sentido, homem da floresta, é que pode ser tomado
por “ambientalista”.
Mas nada há de natural nisso. Como vemos, é tudo fruto de um conturbado
processo histórico-social. Um elemento importante para entendermos a diferença
entre o primeiro momento e o segundo é a forma do trabalho. No primeiro momento
•
prevalece o trabalho alienado, trabalho assalariado, voltado para a produção do
495 valor de troca. Nessas condições, impõe-se aquilo que Mészáros (2006) trata como
• “mediações de segunda ordem”.
O trabalhador não se pertence. Sua força de trabalho não lhe pertence. A
terra não lhe pertence. Os frutos de seu trabalho não lhe pertencem. Personificado
no patrão seringalista, o capital atravessa e regula, media e determina sua relação
com todos os fatores outros. Considerando que todos esses fatores, num certo
2 sentido, são natureza9, pode-se dizer que o homem está alienado da natureza,
alienado de si mesmo. Entre ele e a natureza, interpõe-se o capital, estranho, hostil,
0 despótico.
No segundo momento as coisas são um tanto diferentes. Como posseiro,
1 o trabalhador goza de certa autonomia. Nalguma medida, a terra lhe pertence. Ele
não tem a propriedade jurídica dela, mas tem a posse sobre ela.
Essa autonomia relativa de que goza se estende também à sua força de
8
trabalho, aos meios e aos frutos de seu trabalho. A produção para a troca passa
a coexistir com a produção para o uso, para a subsistência. O valor de uso ganha
peso na produção e na vida do seringueiro. A produção, que determina o tipo de
ração do homem com a natureza, passa a ser guiada também por outros valores
8 Propositalmente, recorremos à palavra “produto”, e não mercadoria, pois essa assertiva é bastante
ampla, valendo tanto para a produção-reprodução dos valores de troca quanto para a produção-
reprodução dos valores de uso.
9 Marx dizia que mesmo o trabalho - que é, conforme ensinou Lukács em sua monumental
Ontologia, a “proto forma” de todas as outras atividades humanas - “é apenas a exteriorização de
uma força natural, da força de trabalho humana” (MARX, 2013, p. 23).
que não os determinados exclusivamente pela busca da reprodução ampliada do
capital.
Tudo isso incide sobre a relação do seringueiro com a floresta, seu
território. Por conseguinte, tudo isso incide sobre sua identidade, sua maneira de
se entender, sua maneira de relacionar com os outros homens e com a natureza.
Chegados a este ponto, cumpre agora perguntar:
Que implicações sociais essa interpretação traz para as populações locais?
J
Vejamos como os conflitos territoriais são vividos de maneira muito
drástica dentro da Reserva Extrativista que leva o nome de Chico Mendes. Além
A de invisibilizar os conflitos agrários, veremos o tipo de ambientalismo aqui em foco
contribuir para o avanço do capital sobre os territórios.
L Nesta parte, lançamos mão do valioso trabalho de Castelo (2015). Por
amparar-se no relato dos próprios seringueiros, esse trabalho dá uma clara visão
L de como os moradores da referida Reserva entendem e julgam as políticas de corte
ambiental que, em nome do líder seringueiro, ali foram implementadas.
A De modo destacado, os relatos a seguir centram-se no manejo florestal
e em alguns de seus impactos. Impõe-se dizer, desde já, que o manejo florestal
é considerado pelo governo local - que se arroga herdeiro de Chico Mendes e
concretizador de seus sonhos10 - uma forma de “exploração racional da floresta”.
Muitas são as ONGs ambientalistas que comungam dessa visão. Vamos aos relatos,
• seguidos por comentários nossos.
- Já vieram aqui e já conversaram comigo. Mas eu disse que não vou mexer
496
não (com o manejo), pois dá problemas para a seringa, derrubam muitas
• castanheiras. Vira tudo “esperaizal”.
- Vendi madeira de manejo. Mas não quero mais, não. Estraga a mata. Faz
muito “piseiro” na mata.
- Mas isso daí (o manejo) dá um pouquinho. Nessa nossa área aqui tem mui-
ta gente agregado que come com a gente. Daí fica difícil [...].
2 - Aí, quando chegar o inverno, a gente fica com a dificuldade de ramal. Fica
tudo esburacado devido às máquinas que passa (para retirar a madeira).
Não tem condições de arrumar. Aí a gente fica com a dificuldade.
0 - O pessoal daqui também faz manejo. Manejo florestal. Mas, no meu caso, o
manejo não era para existir [...]. E quando for daqui uns tempos... Os filhos
1 dos filhos vão viver de quê? [...]. Vai indo, vai indo e se acaba a floresta.
- Agora é ruim porque tudo que a gente faz tem que ter uma pessoa mais que
a gente. Para a gente se colocar, para a gente arrumar um lugar para fazer
8 qualquer coisa... Tudo é preciso de outra pessoa tá no meio, né?
- Mas aqui quase não tem caça. Só essas caças pequenas, que chamam de
“embiara”. Não tem caça grande.
- Se a pessoa for brocar (limpar o terreno) e colocar fogo, eles vêm e multam
[...]. É uma multa grande. Eu fico pensando como eles proíbem, se é disso
Tratar casos tão diversos sob a mesma rubrica é, portanto, uma opção da
ONG supracitada, uma espécie de modus operandi de certo ambientalismo. Uma
opção que, por projeção ou distorção, acaba por apagar ou transfigurar os conflitos
agrários na Amazônia e fora dela, erguendo, assim, enorme obstáculo àqueles que
nessas localidades lutam por seus territórios, por suas vidas.
Referências
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2007.
CARNEIRO, E. de A. A epopeia acreana e a manipulação da história: no movimento au-
tonomista & no governo da Frente Popular. Rio Branco: EAC Editor, 2015.
J
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L O ESCRITOR CANIBAL: DEVORAÇÃO COMO SÍMBOLO DE
RESISTÊNCIA POLÍTICA
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Ivana Teixeira Figueiredo Gund (UNEB)
A RESUMO:O texto apresenta uma aproximação entre o canibalismo e a atitude
combativa e de resistência política e socialescolhida por alguns escritores em seus
processos de produção literária, pensada por meio da metáfora do escritor canibal.
O canibalismo – a princípio conceituado por um valor pejorativo, ligado à barbárie
ou ao atraso cultural – ressurgiu em diversas faces e motivações para o ato de
• devoração do corpo humano. Tornou-se, ainda, assuntorecorrente de expressões
de arte, entre elas, exposições, filmes, músicas e peças teatrais.Na literatura
502
brasileira, o tema foiabordadopordiferentes escolas e estilos,desde o Barroco até a
• contemporaneidade, entre personagens e abordagens diversas.O escritor canibal
será apresentado nesse texto como mais uma dobra nas muitas camadas de sentido,
amparado, especialmente, pela percepção indígena sobre o tema. Fundamenta-se o
texto nos estudos de Castro (2015), Lévi-Strauss (2006)e Agamben (2015).
Palavras-chave: Literatura. Canibalismo. Escritor canibal.Devoração.
2
O escritor canibal e sua devoração
Quando se pensa emuma analogia entre o escritor e a figuração canibal, a
0
primeira questão que se impõe é: como aproximar o ser que escreve à uma imagem
monstruosa e bárbara que vigorou desde os primeiros textos sobre o Novo Mundo e
1 que se cristalizou na memória coletiva, retornando, em grande parte, pelo signo da
violência e da presença incômoda de um dos principais temas tabus da humanidade
8 que é a devoração do corpo humano por seu semelhante? A resposta para isso
sugere uma mudança de perspectiva para o que se compreende por canibalismo.
Visto por intermédio do olhar estrangeiro e colonizador, o canibalismo
sustentou uma carga pejorativa queestigmatizou os povos e deslocou seus ritos
para o lugar do bárbaro, do monstruoso e do atraso cultural. Por meio desse ponto
de vista alóctone registrado em textos coloniais – como são exemplos os textos de
Jean de Léry, André Thevet, Hans Staden ou as ilustrações de Theodore de Bry–
os rituais canibaispraticados pelos povos desse território foram compreendidos
como práticas de povos isolados ou à margem da civilização, no que diz respeito
ao acesso e à produção de cultura, à religião e à estrutura social amparada por
um sistema político organizado por meio dos modelos ocidentais. Isso fez com que
fossem considerados povos sem lei, sem rei e sem Deus, conforme o entendimento
de Gabriel Soares de Souza (SOUZA, 1879, p. 280-281). Dessa forma, os indígenas,
durante os primeiros contatos, nem mesmo foram categorizados como humanos,
como explica JeffreyJeromeCohen (2000), para quem o canibal ancestral brasileiro,
ao mesmo tempo, familiar e um bárbaro violento, fixou-se como símbolo de horror,
mas também de fascínio, o que possibilitou um acercamento com a concepção de
J monstro: um ser a meio-termo entre um corpo grotesco e uma humanidade traçada
na diferença. Cohen afirma sero monstro um tema recorrente, pois
[...] eles podem ser expulsos para as mais distantes margens da geografia e
A do discurso, escondidos nas margens do mundo e dos proibidos recantos de
nossa mente, mas eles sempre retornam. E quando eles regressam, eles tra-
zem não apenas um conhecimento mais pleno de nosso lugar na história e
L na história do conhecimento de nosso lugar, mas eles carregam um autoco-
nhecimento, um conhecimento humano – e um discurso ainda mais sagrado
na medida em que ele surge de Fora. (COHEN, 2000, p. 55)
L
Por uma vinculação ao conceito de monstro, o canibal é a representação
A da transgressão em dupla via: ele é o que rompe limites e valores – sociais, éticos,
religiosos – porém é aquele que converge forças antagônicas, porque nele convive o
que foi esquecido e o que foi permitido lembrar,além de algo primitivo que retorna
coletivamente, representando um desequilíbrio entre poder e dominação. Porém, há
uma vantagem em pertencer a esse lugar ambíguo, porque é um lugar de contágio,
• um espaço privilegiado de reflexão, no qual se mesclam visões diferentes de cultura,
de interpretações de mundo, de percepção das identidades.
503
A contrapelo da visão estrangeira, o pensamento indígena apresentaoutro
• ponto de observação. Nele, o canibalismo se mostra como um símbolo de resistência
aos povos inimigos e como um instrumento que garante a inconstância do
movimento da vida. Uma forma de interpretar melhor esse outro sentido é por meio
do ritual, por exemplo, dos Tupinambá.1 Esse povo temgarantida, na etimologia de
seu nome, a representatividade desse território porque são “os que estão firmes na
2 terra, os esforçados da terra”, “os valentes da terra”; “gente do chefe dos pais”; “os
descendentes dos primeiros pais” ou “do primeiro pai” (NASCENTES, 1952, p. 305).
0 Sendo assim, historicamente,o sentido produzido para o ritual canibal é anterior à
colonização. Porém, pelos processos de dominação cultural e territorial, a acepção
1 indígena foi silenciada, desconsiderada ou relida por meio de um valor pejorativo
que em registros coloniais – entre relatos de viagem, cartas e documentos oficiais –
vinculou o rosto indígena ao medo personificado na estranha figura canibal.
8
Eduardo Viveiros de Castro descreve o canibalismo dos Tupinambá que,
para ele, pode ser categorizado como bélico-sociológico, pois o ritual se tratava
[...] de um elaborado sistema de captura, execução e devoração cerimonial
de inimigos. Os cativos de guerra, frequentemente tomados de povos de
mesma língua e costumes que a dos captores, podiam viver bastante tempo
1 O nome indígena será registrado com maiúscula e sem flexão de número, amparado na resolução
da I Reunião Brasileira de Antropologia, realizada no Rio de Janeiro, em 1953. Essa forma de
grafar é utilizada por dois dos principais antropólogos, cujos estudos embasam essa tese, a saber:
Eduardo Viveiros de Castro e Claude Lévi-Strauss.
junto a estes, antes da morte na praça central da aldeia. (CASTRO, 2015,
p. 157)
4 “Uma obra é feita por uma multidão de espíritos e eventos – (antepassados, estados, possibilidade,
escritores anteriores, etc.) – sob a liderança do autor” (Tradução minha).
dotada de sabedoria e astúcia, que concentra as funções de falar e saborear, como
propõe Serres, ao assegurar que “[...] a quem não degustou nem sentiu, o saber
não pode vir” (SERRES, 2001, p. 154-155). Logo, à mesa canibal, serve-se a relação
dialógica entre devorador e devorado: aquele que provou, sabe. Nesse processo,
talvez se possa pensar não apenas em avidez, porque a devoração se amplia para
um nível de degustação. No prazer de degustar estão a experiência do gosto, a
construção de novos sentidos e a certeza do cumprimento da tarefa do escritor,
J sem culpa, sem pecado, apenas a concretização da vingança.
Considerações finais
A A metáfora do escritor canibal evidencia uma atitude política do
escritor frente aos textos por ele devorados, que geralmente amparam discursos
L historicamente cristalizados do poder e de seus interesses. Assim, seu texto abre
espaço para vozes silenciadas, para versões esquecidas da História de seu país ou
L coletividades e culturas menos prestigiadas. Esse escritor será sempre um polemista
(CAMPOS, 1992, p. 235), que profana um corpo, entendendo-se a profanação pelo
que propõe Agamben (2007, p. 75) como ação que restitui algo, antes consagrado
A – destacado, reconhecido, prestigiado – ao uso comum, fazendo dele algo novo. Ao
ocupar espaços de discurso, constitui-se em uma voz de resistência política.
Ele é o intelectual que devora sua tradição, como parte de um movimento
próprio da literatura, que desarticula para depois estabelecer outra perspectiva.
Sua ação é violenta e combativa, porque o corpo devorado será sempre pilhagem de
•
guerra a ser destroçado e destinado a outros usos. Em suas tarefas de ler/comer e
511 escrever/cozinhar cria sua cozinha literária – que é seu fazer literário – o corpo do
• contrário será exposto, mas não como totem: a exposição é feita pelos restos, pelas
partes apropriadas do outro.
Além disso, entre ser o outro ou ser como o outro, mais profundamente,
a devoração possibilita se ver diferente, refletir sobre a própria construção social,
sobre as imposições e os poderes que ditaram como se definem e estabelecem-se as
2 identidades. E essa última possibilidade garante o caráter crítico e político do texto
canibal, que faz parte de um corpo coletivo, pois a devoração abre espaço para a
0 reflexão do passado, do sagrado, do canônico, entre outros.
Esse escritor canibal – assim como os ancestrais indígenas – não teme
1 a morte porque sabe que, pela compreensão do conceito de vingança, o fluir
constante da vida se encarregará de transformar comedor em comida, imortalizando
seu corpus, por intermédio, primeiro da conquista de um nome e, depois, pela
8 manutenção de sua memória. Servir de alimento é desejo de se inserir na tradição
literária de seu país. Mas em um lugar de voz paralela. Sobretudo, entendendo
que, na dinâmica do movimento de sua tradição literária, fazer-se comida implica
marcar uma presença no banquete literário, sentar-se à mesa e seu corpo/texto
ser retomado como alimento para as futuras devorações. Por essa lógica, pôde-
se pensar em outro sentido para o verbo comer, como proposto por Lestringant,
quando sugere que, por comer, “pode ter sido também, no começo da dolorosa
consciência da morte, proteger seu próximo, o ente querido, contra um destino
pior” (LESTRINGANT, 1997, p. 06),que seria o esquecimento.
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J
A
L LA DISFORME DISTANCIA: INJUSTICIA IMPERIAL E
INDIGENEIDAD EN DOS MANIFIESTOS DE VICENTE MORA
L CHIMO
A Jaime Vargas Luna (CASA DE LA LITERATURA PERUANA)
RESUMEN: Este trabajo examina dos manifiestos “El desamparo total de los
miserables indios” (1722), e “Y si se continúan los agravios” (1724),presentados
por Vicente Mora Chimo, procurador de indios del valle de Chicama, ante las cortes
españolas. A partir de su análisis se propone que Mora Chimo desarrolla un proyecto
• político para articular los intereses indígenas de su región, que va expandiéndose
513 hasta abarcar una nación indígena pan-andina. Así, su obra no solo advierte del
deterioro del pacto colonial, como sostiene el consenso crítico actual, sino que
• denuncia la injusticia imperial en términos radicales y propone una idea de nación
indiana capaz de rebelarse ante esta.
Palabras clave: Indianidad. Nación indiana. Identidad.Colonialidad.
1 Sobre el desarrollo de una intelectualidad indígena en la colonia, véanse, por ejemplo, Rappaport
y Cummins (2012), Yannakakis (2008), y Cortés y Zamora (2016).
o incluso viajando a España (PEASE, 1992,pp.163-166)2. A este grupo corresponde
sin duda Vicente Mora Chimo, quien, como plantea Thierry Saignes para el caso
específico de los caciques, pertenecía al sector de los “mediadores ambivalentes”,
quienes debían a la vez defender los intereses de la corona y los de sus comunidades
de origen (SAIGNES, 1989,pp.75-85).
A la fase de destrucción de las estructuras físicas y simbólicas de las
sociedades andinas prehispánicas, correspondió una agencia política reducida
J y desarticulada para los mediadores indianos. Con la estabilización colonial, sin
embargo, se recuperaron económicamente ciertos sectores de la nación indiana,
A lo que permitió la generación de distintos proyectos de rearticulación simbólica.
A finales del periodo Habsburgo, el poder de control que la corona ejercía sobre el
L virreinato del Perú era relativamente laxo, lo que permitió una relativa autonomía de
poder para las elites criollas, así como la posibilidad de un resurgimiento económico
para las elites nativas. Desde su llegada al poder a inicios del siglo XVIII, los
L borbones incrementaron los mecanismos de control desde la corona, reduciendo la
autonomía de sus súbditos americanos. Así, tanto las elites criollas como las nativas
A intentaron insertarse o incrementar su participación en la administración. Junto a
la ampliación de los niveles de participación política crecieron las expectativas de
algunos sectores de la nación indiana. Como resultado, se desarrolló y consolidó,
por un lado, el proyecto político de lo que llamo la ‘nación indianizada’, y por
otro, se desencadenó el llamado ciclo de rebeliones indígenas que culminó con el
• movimiento de Túpac Amaru II.
514 En el presente artículo exploro el proyecto discursivo de nación indianizada
como reacción a la mala administración imperial desarrollado por Vicente Mora
•
Chimo a partir del examen de dos manifiestos usualmente ignorados por la crítica,
El desamparo total de los miserables indios (1722), e Y si se continúan los agravios
(1724). Propongo que la obra de Mora Chimo no solo advierte del deterioro del pacto
colonial (como señala habitualmente la crítica), sino que denuncia la injusticia
imperial en términos radicales; y que Mora Chimo propone una nación indianizada.
2
Elaboro mi definición de indianidad a partir de las discusiones
contemporáneas sobre indigeneidad, que enfatizan la identidad indígena como
0 relacional, secundaria y estratégica3. Relacional porque la formulación de un sujeto
como ‘indígena’ implica siempre un colonizador que lo nombra en tanto otro y que se
1 sitúa afuera y encima de dicho nombre. Así, no hay indígenas sin no-indígenas, no
8 2 El más importante de los estudiados por el autor es Jerónimo Lorenzo Limaylla, quien viaja a
España varias veces entre las décadas de 1640 y 1660. Menciona también, para los mismos años,
a don Carlos Chimo y a Antonio Collatopa, además de don Felipe Guacra Páucar, quien viajó a
la península a mediados del siglo anterior. Incluye también en el grupo de los curacas gestores a
Bartolomé Tupa Hallicalla, del mismo periodo (PEASE, 1992,pp.163-166).
3 Frederick Cooper y Rogers Brubaker critican el valor del término ‘identidad’ como categoría de
análisis. Tras examinar cinco usos distintos de la categoría ‘identidad’, plantea que, dado el nivel de
ambigüedad de la categoría (dos de los usos resaltan una mismidad fundamental en tanto otros dos
niegan tal posibilidad), el término debe ser evitado, proponiendo en su reemplazo tres categorías
analíticas mejor definidas: identificación, auto-comprensión, y comunalidad (COOPER, 2005,pp.59-
90). Sin descartar el término ‘identidad’, lo empleo en consecuencia de manera restringida y en
referencia exclusiva las tres categorías propuestas por Cooper en interrelación.
hay indígenas sin situación de colonialidad. Secundaria porque no se es indígena
en la misma medida en que se es aimarao mapuche. El sentido de pertenencia a
una comunidad lingüística y/o de valores y tradiciones culturales comunes escapa
a los contextos políticos de dicha comunidad. Algunas comunidades como la judía
han subsistido a una larga historia de migraciones y permanente adaptación a
distintas sociedades y sistemas políticos. Otras, como los vascos o los mapuches
han experimentado la transformación de los Estados al interior de los cuales
J desarrollan su cultura sin perder su sentido de pertenencia a su comunidad
cultural específica. En este sentido, las identidades aimara, mapuche, judía o
vasca pueden llamarse primarias. En contraposición, la identidad indígena es
A
secundaria, se añade a determinados grupos en condiciones específicas, principal
pero no exclusivamente, a grupos minoritarios que ocupan territorios controlados
L por unEstado que no se identifica con ellos pero que se formó cuando estos grupos
ya estaban allí. Finalmente, la identidad indígena es estratégica en la medida en
L que los grupos así auto-identificados la asumen como herramienta de negociación
política con los grupos dominantes de los Estados en los que están insertos, y en
A alianza con otros grupos dominados igualmente auto-identificados como indígenas.
La indigeneidad no es, sin embargo, sinónimo de identidad indígena, sino un campo
(en el sentido que le da a esta noción Bourdieu) de articulaciones y tensiones
entre discursividades sobre lo indígena y los indígenas en las distintas sociedades,
Estados y formaciones políticas. Así, el marco de la indigeneidad no incorpora
• exclusivamente a los sujetos auto-identificados como indígenas sino también a
aquellos que los nombran desde afuera y —en general—, por encima, y a aquellos
515
que ocupan un lugar híbrido o intermedio en el esquema4.
• Ahora bien, reemplazo en mi trabajo ‘indigeneidad’ por ‘indianidad’
por dos razones: para evitar un uso anacrónico del término, y para explicitar los
que, según argumento, son los tres componentes fundamentales de la indianidad
peruana colonial: la memoria pre-colonial (incluido el proceso de conquista), la idea
de nación indiana, y la situación de la población nativa en el orden administrativo
2 imperial.Si bien el marco de la indianidad así definido puede rastrearse hasta la
llegada misma de los españoles y los primeros discursos elaborados al respecto,
0 uno de los argumentos centrales de mi estudio es que, desde la segunda mitad del
siglo XVII y, principalmente en el siglo XVIII, son los miembros de la nación indiana
1 quienes asumen la identidad indígena, insertándose plenamente en el campo de la
indianidad en tanto colectivo. No es hasta los memoriales de Vicente Mora Chimo
en el siglo XVIII que se articulan propuestas políticas en representación de la nación
8 indiana en su totalidad, buscando consolidarla como colectivo con agencia política
al interior del sistema imperial. Para diferenciar el uso imperial y subalternizante
del término ‘nación indiana’ del uso reivindicativo que hacen de él sus miembros,
llamo al proceso de reformulación discursiva de la nación indiana: ‘indianización’,
y a su proyecto, ‘nación indianizada’.
Vicente Mora Chimo fue un indio principal nacido a fines del siglo XVII en
el valle de Chicama, en la costa norte del virreinato peruano. Por su origen chimú
6 En este sentido puede comprenderse también la denuncia hecha a los españoles de “tener hazienda
mezclada entre la de los Indios, estando por las leyes prohibido” (MORA CHIMO,[1722],p.385).
Además de confirmar la visión dominante de la necesidad de separación étnica en las Indias, se
trataría de la aspiración mínima al amparo legal ante la “tyranía” de los españoles.
7 El documento original impreso se encuentra en el Archivo General de Indias, Lima 438. La
versión que he consultado es el facsímil incluido como apéndice en la tesis doctoral de Mathis
(MATHIS,2009,pp.390-401).
El memorial se divide en tres partes. En la primera, Mora Chimo se
presenta, remite a su gestión anterior (“logró el Suplicante ser oído en justicia”;
MORA CHIMO, [1724],p.390), justifica su estadía en Madrid (“en el interin que
aguarda tener noticia del efecto que ha obrado dicho Real Despacho”; MORA CHIMO,
[1724],p.390), y en la corte (“y si se continúan los agravios, para hacer a V. Mag.
representacion de ellos, como lo hace el Suplicante aora sobre varios particulares”;
MORA CHIMO, [1724],p.390). Nótese que tanto en el memorial anterior como en
J el despacho dado por el Rey en respuesta, Mora Chimo es indistinguible de su
causa. Se trata de un representante directo de los indios afectados, quien dedica
años y cubre una enorme distancia para conseguir la resolución de un asunto
A
concreto. Aquí, en cambio, el autor ha pasado a ser un mediador dedicado a
“varios particulares”, a partir de correspondencia recibida tanto de caciques de su
L jurisdicción, como de Loja. En la segunda parte retoma la causa de la restitución
de tierras en su provincia formulando, sin embargo, ya no que se cumpla la ley,
L sino que se modifique. Se pide “que no aya en lo venidero mas Jueces de Tierras”
ni, en consecuencia, medidas de tierras, y “que los Indios buelvan a la misma
A possession en que de antes estaban, mediante la que les dio avrá 100 años el
Padre Fray Francisco de la Huerta, y el Padre Fray Domingo de Valderrama” (MORA
CHIMO, [1724],p.398). Finalmente, tras denunciar los abusos cometidos contra
los mitayos, principalmente en la provincia de Quito, pide en la tercera parte
y a nombre de los caciques de Loja que se complete en la dicha provincia una
• visita de numeración y repartición de mitayos, justificando su participación en
este último asunto por habérsele “encargado al Suplicante por carta misiva de los
520
Caciques Governadores de la Provincia de Loxa, que [actúe] como tal Procurador
• de Naturales” (MORA CHIMO, [1724],p.399).Esto es, si bien al inicio del texto Mora
Chimo se presenta como cacique de varios pueblos de la jurisdicción de Trujillo
y “Procurador General de sus Naturales” (el subrayado es mío), restringiendo su
título a un espacio geográfico específico; en la tercera parte su título pierde su
especificidad geográfica y se apropia de la categoría racial impuesta por la corona
2 para resignificarla, pasando de la defensa de los indios de su jurisdicción a la de
su “Nacion”.
0 A diferencia de en El desamparo total, aquí se comienza a desafiar las
percepciones y proyecciones que sobre los indios tiene el sector hegemónico del
1 imperio, proponiendo nuevos significados sobre la nación indiana: indianizándola.
En este sentido, Mora Chimo —cuya voz no ofrecía singularidad en su primer
memorial, era indistinguible del grupo al que representaba—, se posiciona en este
8 memorial en tanto individuo. Se pasa aquí de la denuncia de una injusticia radical
expresada en el memorial anterior a hablar de una “disforme distancia” entre los
indios y su Rey, término que sitúa a la vez que cuestiona el lugar de los indios en la
maquinaria social, haciendo necesaria la transformación de la ley para conseguir
justicia. En este sentido, si bien el petitorio es tan concreto como en el memorial
anterior, es también más exigente, por lo cual la respuesta del Rey será favorable,
pero relativa. Como en el acápite anterior, analizo en este el texto a partir de los
tres componentes mencionados: formulación de la nación indiana, denuncia de
injusticia y petición de justicia.
En El desamparo total Mora Chimo articula su discurso a través de
las percepciones dominantes de la corona sobre los indios como miserables,
necesitados de amparo, y productores de la riqueza imperial; añadiendo como
elemento nuevo su total y amorosa sumisión al Rey. Estos tópicos se mantienen
en Y si se continúan los agravios, aunque reformulados. En los cinco folios de su
primer memorial, Mora Chimo adjetiva a sus defendidos en seis oportunidades
llamándolos tres veces “miserables Indios”, dos veces “aquellos miserables”, y
J otra “pobrecillos”. En estos calificativos destaca tanto el sema ‘miserables’ como
su relación directa con ‘indios’; enfatizando al mismo tiempo, como ya se dijo, la
infelicidad y la debilidad de éstos. En este segundo memorial, el autor adjetiva
A
a sus defendidos diecisiete veces (manteniendo relativamente la proporción del
memorial anterior). Nueve veces los llama ‘pobres indios’ o alguna variante8; seis,
L ‘miserables’, de las cuales solo dos acompaña este sema de ‘Indios’, ambas —
significativamente—, en referencia a la provincia de Quito; en una ocasión se refiere
L a ellos como “atribulados Vasallos” y; finalmente, los llama “menesterosos” en el
inusual sentido de ‘necesarios’. El sema principal es ahora ‘pobres’, moviendo el
A énfasis a la carencia material de sus defendidos, aunque el término connota todavía
su desdicha y su debilidad9; y segundo, que ‘miserables’ se ha desconectado casi
por completo de ‘indios’, con lo cual deja de ser una condición que los determina.
En este segundo memorial los indios, en tanto tales, son pobres, es decir carentes
materialmente y sufrientes. A la vez, se bien habla de vasallos miserables, esto se
• hace resaltando la miseria en que estos viven: su circunstancia, no su naturaleza.
El uso de ‘atribulado’, entendido en la época como afligido y oprimido10, confirma
521
los énfasis mencionados. A diferencia del memorial anterior, en que los adjetivos
• parecían definir una condición intrínseca a los indios, en Y si se continúan los
agravios, describen su situación temporal, permitiendo la posibilidad del cambio.
Es en este sentido de cambio posible y propuesto que cobra importancia el uso de
‘menesterosos’. El autor lo emplea en una frase en la que se refiere a la naturaleza
de la nación indígena y su relevancia económica para la corona:
2 “Siendo muy pocos los Españoles, que los tratan como a Christianos, co-
nociendo quan menesterosos son los indios para todo; porque si no fuera
0 por ellos no huviera labranças en las haciendas de campo, ni los Mine-
rales estuvieran tan corrientes, por no aver otra Nacion mas aproposito para
estos efectos, segun se ha reconocido por su naturaleza” (MORA CHIMO,
1 [1724],p.395).
En principio, la cita confirma la definición de los indios como productores
8 de la riqueza imperial añadiendo dos elementos: que la productividad de los
8 “aquellos pobres Naturales” (391), “esta pobre Nacion” (391, 395), “aquellos pobres desvalidos”
(395), “el pobre Indio” (396), “los pobres Indios” (397), “aquellos pobres Indios” (398), “aquellos
pobres Indios” (400), “aquellos pobres Indios” (401).
9 La edición de 1737 delDiccionario de autoridades define ‘pobre’ en su primera acepción como
“Necessitado, menesteroso y falto de lo necessario para vivir, o que lo tiene con mucha escasez”.
Mientras que los otros dos sentidos mencionados aparecen en la cuarta y quinta acepción (Diccionario
de autoridades, Tomo V 1737).
10 La definición corriente del término era “Afligido y oprimido con turbación, de alguna cosa, ò
trabájo” (Diccionario de autoridades, Tomo I 1726).
indios radica en una capacidad inherente a ellos, no en una circunstancia, y que
estos pertenecen a un colectivo, a una nación. El dispositivo de indianidad sirve,
pues, en este memorial, para transformar la naturaleza miserable del indio en la
circunstancia de su pobreza, invirtiendo su circunstancia de productor de riqueza
en su naturaleza. Se propone, además, la idea de un colectivo nacional indígena.
Es necesario ser cuidadoso sobre esto para no proyectar anacrónicamente un
sentido que el término ‘nación’ todavía no tenía en las primeras décadas del
J siglo XVIII11. Por eso, conviene evaluar cómo se usaba el término entonces para
comprender la propuesta de Mora Chimo. En el Tesoro de la lengua castellana
se definía nación como “Reyno, o Prouincia estendida, como la nacion Española”
A
(COVARRUBIAS, 1611,p.1158). Esta definición no es estrictamente territorial. Al
hablar de ‘naturales’, el mismo diccionario añade un rasgo de vínculo social, de
L pertenencia. Se define, por ejemplo, como natural de Toledo al “que nacio y tiene su
parentela en Toledo” (COVARRUBIAS, 1611,p.561). Es decir, no basta con nacer ni
L vivir en un lugar, es necesario estar enraizado a él. Sobre estos dos componentes de
la nación —pertenencia territorial y vínculo social—, se articulan en gran medida
A los conflictos entre indígenas, mestizos, criollos y peninsulares en el virreinato
peruano. Hasta inicios del siglo XVII, ‘nación’ era un término neutral que nombraba
a un colectivo implicando los dos componentes arriba mencionados. A partir de
entonces, la pertenencia territorial va cediendo terreno paulatinamente ante el
vínculo social, por ejemplo, en referencia a la nación hebrea12. A la vez, aumenta el
• uso metonímico del término, cargándose de las connotaciones proyectadas sobre
el colectivo aludido. Por ejemplo, en su Relación a la República de Venecia de 1605,
522
dice Simon Contareni sobre España que “la envidia ninguna nacion la tiene entre
• sí mayor” (CABRERA, 1857,p.577). Para las décadas finales del siglo, sin embargo,
ya la nación comienza a adquirir el sentido de entidad abstracta que caracterizará
su definición moderna, haciéndose cada vez más común, por ejemplo, la expresión
“honrar la nación”. El uso que Mora Chimo da al término no tiene que ver todavía
con la nación como entidad abstracta, asociada con la idea de patria. Sin embargo,
2 sí emplea el término para referirse a un colectivo con características y valores
comunes. Si bien los indios eran entendidos como nación para la administración
0
11 Hay que distinguir aquí entre naciones-Estado y naciones al interior o más allá del Estado. En
el primer caso, el Estado se construye en función al imaginario nacionaldel sector dominante de
1 una sociedad. Sobre este tipo de formulación de la nación siguen siendo útiles los clásicos Anderson
(1983) y Hobsbawm (1990). En el segundo caso, los imaginarios nacionales se construyen en cambio
8 a espaldas, en pugna o en negociación con los Estados en relación con los que funcionan dichos
colectivos nacionales. Quizás el caso más estudiado a este respecto sea el de la nación judía. Remito
aquí al excelente volumen de Studnicky-Gisbert (2007)sobre el desarrollo temprano de una idea de
nación entre los judíos portugueses del siglo XVII. Para el caso hispanoamericano y, específicamente
andino, existen muchos volúmenes dedicados a los siglos XIX y XX. Podemos destacar Thurner
(1997), Manrique (1981), y Mallon (1994). Más recientemente, Husson ha publicado el sugerente
artículo “Sobre el concepto de nación en Guaman Poma” (2001), en el que construye una definición
de colectivo nacional andino a partir del uso del término ‘estrangero’ en la Nueva Coronica.
12 Cito como ejemplo la referencia más antigua al respecto que he encontrado: “No conocian estos
al verdadero Dios, y si tenian alguna noticia del, no le reuerenciauan como tal [...]. Imitaua esto
facilmente la nacion Hebrea, y era en ellos sin comparacion mayor la culpa, por la euidencia (que
ansi la podemos llamar) que tenian del verdadero Dios” (SIGÜENZA, 1907 [1600],pp.88-89).
hispana, que los agrupaba bajo las “repúblicas de indios”, esta categorización era
permanentemente resistida por parte de los propios indios, quienes enfatizaban
sus regiones de origen o pertenencia como manera de diferenciarse unos de otros.
Esto aparece tanto en el Inca Garcilaso y Guaman Poma, entre otros. Mora Chimo
emplea tres veces el término. La primera, en medio del elogio que hace del amparo
ofrecido por anteriores reyes “a esta pobre Nacion” (MORA CHIMO, [1724],p.391),
subordinando así al colectivo respecto de sus protectores. La segunda, enfrenta a
J los españoles con la nación, respecto de la cual actúan injustificadamente como
enemigos, “como si de proposito tirassen a extinguir esta pobre Nacion” (MORA
CHIMO, [1724],p.395). Si bien se la nombra aquí todavía en una situación pasiva, se
A
establece ya una oposición entre españoles e indios en términos de colectivos13. Por
último, se la plantea en términos positivos, “por no aver otra Nacion mas aproposito
L para estos efectos” [la labranza y la minería] (MORA CHIMO, [1724],p.395). A
diferencia del primer memorial, donde Mora Chimo se refería a los indios de los
L cuatro pueblos de la provincia de Trujillo a quienes representaba, aquí su defensa
se da en términos de un colectivo mayor, a la vez racial, en el sentido en que
A la corona entiende lo indio, y supra-étnico, en el sentido en que los miembros
de distintos colectivos andinos plantean sus alianzas internas en relación con
la administración imperial. En resumen, al reemplazar ‘miserables indios’ por
‘pobres’, ‘menesterosos’ y ‘nación’, se proyectan sentidos distintos para la nación
indiana, definiéndola ahora como colectivo, de grandes capacidades naturales, e
• infeliz por la injusta circunstancia de su opresión y pobreza. Al pasar los indios
a ser un colectivo que trasciende la jurisdicción de su procurador, también debe
523
cambiar el rol de este. En El desamparo total de los miserables indios, Mora Chimo
• se presenta como uno de los indios del valle de Chicama que ha sufrido los mismos
despojos que los demás y habla, por tanto, en representación de sí mismo y de
sus pares. Se presenta en ese texto como “Cazique de los quatro Pueblos de Indios
[...], de que fue nombrado Procurador por el Virrey” (MORA CHIMO, [1722],p.383,
énfasis mío), es decir, su representatividad está claramente delimitada. En Y si se
2 continúan los agravios, en cambio, asume una nueva figura. Inicia presentándose
como “Cacique principal de [...] Pueblos de la Jurisdicion de la Ciudad de Truxillo, y
0 Procurador General de sus Naturales” (MORA CHIMO, [1724], p.390, énfasis mío).
Sin embargo, tras hablar del sufrimiento de “esta pobre Nacion”, lo ejemplifica
primero a través del abuso de la mita en su jurisdicción para enfatizar que este abuso
1
ocurre “especialmente en la Provincia de Quito” (MORA CHIMO, [1724], p.393),
región sobre la cual no tiene ninguna jurisdicción. Más adelante debe justificar
8 su autoridad para hacer la petición de una visita para dicha provincia, y lo hace
13 Jean-Phillipe Husson (2001: 99-134) propone que esta oposición entre una ‘nación’ de
indígenas andinos y otra de españoles ya aparece en Guaman Poma, al referirse a los segundos
como “estrangeros”. Siguiendo el análisis del estudioso, puede verse sin embargo que esta distinción
no es hecha tanto en términos de colectivos sociales como de legitimidad territorial, como se sigue
de estas dos citas “que aues de conzederar que todo el mundo es de dios y anci castilla es de los
espanoles y las yn[di]as es de los yn[di]os- y guenea es de los negros q[ue] cada [uno] destos son
lexitimos propetarios .no tan solamente por la ley” (101); donde se señala la propiedad natural
de cada colectivo, “y ci acaso fuera a espa[ñ]a un yn[di]o fuera estrangero” (106); que establece la
frontera territorial o de pertenencia entre un colectivo legítimamente propietario y los ‘estrangeros’.
diciendo que ha recibido el encargo de los caciques de Loja, “[c]omo tal Procurador
de Naturales” (MORA CHIMO, [1724],p.399). Es decir, borrar la partícula posesiva
con la que se presentaba en el documento anterior y al inicio de este, pasando de
ser procurador de una jurisdicción a serlo de un colectivo, de la nación indiana.
Este giro lo reposiciona en el diálogo con la corona, permitiendo la expansión de
su agenda política. Esta reconfiguración de su propia figura y del colectivo indio
son los componentes esenciales de su nación indianizada. A partir de estos, la
J circunstancia de pobreza y tribulación, y la naturaleza capaz del colectivo indio se
sitúan en la base de la articulación de las denuncias de injusticia y de búsqueda
de justicia.
A
En El desamparo total, Mora Chimo denuncia una injusticia radical: el
L desamparo en que Dios tiene a los indios; diferenciando esta injusticia de otra
relativa, en la cual el Rey intenta ser justo pero sus funcionarios incumplen sus
mandatos. En dicho manifiesto, Dios solo aparece mencionado una vez en referencia
L a dicha injusticia radical, en tanto el Rey aparece, no solo como destinatario del
petitorio, sino como máximo señor de los indios. En Y si se continúan los agravios, en
A cambio, se recuperan de manera positiva la figura de Dios y de la religión cristiana.
A la vez, se plantea la relación entre los vasallos indios y su señor como “una
disforme distancia”, término clave para el desarrollo general del proyecto político
de Mora Chimo.
Al denunciar los abusos de los españoles, quienes —según el autor—,
• parecieran estar buscando a propósito la extinción de los indios, plantea el autor
524 que estos:
“carecen aun de tener á quien bolver los ojos, sino es á V. Mag. como su
•
Rey, y Señor (despues de Dios) embarazandoles hasta este unico consuelo la
disforme distancia, por lo que al vér tan dificultoso el recurso, confundidos
en su miseria, passan el Purgatorio en vida, deseandose aun la muerte, por
parecerles, que dán con ella el fin á sus trabajos” (MORA CHIMO, [1724],
p.395).
2 En una primera lectura, puede entenderse la “disforme distancia” del
párrafo citado en su sentido literal, geográfico, o como una plana metáfora de
0 lo amplio y sinuoso del camino administrativo. Una lectura más minuciosa, sin
embargo, permite colegir un cuestionamiento más profundo, tanto de la figura del
1 Rey, de la Dios, y del sistema administrativo en su conjunto. En su diccionario,
Covarrubias define disforme como “La cosa que de grande es desproporcionada, y
8 por esto parece mal [...]. Disformidad, desproporción, o fealdad” (COVARRUBIAS,
1611, p.322). En tanto, según el Diccionario de autoridades: “Se dice freqüentemente
de las cosas desmesuradas, y que sobrepujan y exceden en magnitud notablemente
a las otras de su orden, sea en lo physico, o en lo moral” (Diccionario de autoridades,
Tomo III, 1732). La distancia disforme es, por lo tanto, física y moralmente
desproporcionada, desmesurada. Esto justifica en parte la presencia de Mora Chimo
en España. Como veremos, su presencia no solo ayuda a los indios, sino también
a Dios y al Rey. Sin embargo, si Dios y el Rey son los encargados de proteger
a los indios, fundamentalmente en tanto cristianos, y estos pasan el purgatorio
en vida, viendo su propia muerte como liberación, entonces Dios y el Rey han
fallado. Aquí no son los funcionarios los responsables de la injusticia relativa sino
Dios y el Rey. Esta responsabilidad es moral y la distancia solo puede reducirse
a través de intermediarios justos y capaces de transitar entre el mundo indígena
y la administración colonial, como la Compañía de Jesús en el caso que describe
en Chucuito, y como él mismo. Entre las injusticias específicas que denuncia
están, además de la ilegal apropiación de tierras y del derecho de uso del agua,
la destrucción general de la población indígena, que es mencionada varias veces,
J tanto desde su aspecto inmoral como desde su importancia económica para la
corona. Finalmente, se advierte que la población nativa, dados todos los abusos
descritos, ha “cobrado por enemigo al Español avecindado” (396). Ante la enemistad
A
descrita entre españoles e indios, un Rey justo tendría que defender a los indios,
sus vasallos más productivos.
L
Dadas las características de su denuncia, los pedidos de justicia de
este memorial son también más sofisticados que en el anterior. Para el caso de la
L Audiencia de Quito, el autor repite en gran medida el esquema de El desamparo
total: se refiere en dos ocasiones a los indios de esa jurisdicción como ‘miserables
A Indios’, describe el panorama de injusticia generalizada pero refiere el caso de
un funcionario español excepcional, quien al hacer correctamente su trabajo es
removido, y solicita la restitución del funcionario, el visitador Don Juan Navarro de
Leon y Ribera, y la realización de una visita de mitayos, de obrajes, y de trapiches
en cumplimiento de la ley. Para el caso de su región, en cambio, reivindica su
• propio rol como mediador de justicia y su utilidad para la reducción de la “disforme
525 distancia” antes denunciada, a la vez que propone audaces reformas sobre la
administración territorial virreinal.
•
Mora Chimo elogia la buena administración que los sacerdotes de la
Compañía de Jesús hacen en Juli, provincia de Chucuito, del envío de sus feligreses
al trabajo de mitas en las minas de Potosí, reivindicando la importancia de que
alguien defienda a los indios y posicionándose a sí mismo en ese lugar. Plantea
que con sus denuncias y petitorios “hace el Suplicante un gran servicio á Dios,
2 y á V. Mag.” (MORA CHIMO, [1724], p.394), y que “para [su] consuelo ofrece á V.
Mag. la mas gloriosa ocasion en que su Real piedad, y justicia tienen bien en que
0 ejercitarse, pues [...] las consequencias que resultarán de ella sean muy buenas”
(MORA CHIMO, [1724],p.394). La reivindicación de su propia figura como mediador
1 de justicia no es vanidosa, es un intento de legitimar su frágil situación legal y de
recibir de la corona la legitimación ya obtenida de las autoridades indígenas, de su
8 autoridad moral para insertarse en el diálogo político. Su situación legal era frágil
ya que, habiendo sido autorizado para viajar a España para gestionar justicia para
los indios del valle de Chicama en el tema de la restitución de tierras, cumplida
esta tarea tendría que volver al Perú. Sin embargo, el éxito de su gestión inicial
lo legitima como mediador ante distintas grupos indígenas (además de interceder
por los caciques de Loja, lo hará en el futuro a favor de caciques de Azángaro
y Chucuito en el sur del virreinato). Así, pese a que había recibido el título de
procurador de naturales para una jurisdicción específica (los cuatro pueblos del
valle de Chicama de los que se presentaba como cacique), el éxito de su gestión
lo había legitimado como negociador desde las comunidades indígenas, así, ahora
necesitaba que esa autoridad fuese refrendada por la corona. Esto nunca ocurrirá,
al contrario, su situación será cada vez más precaria, hasta que se le ordene volver
al Perú, mandato que desobedecerá.
Finalmente, Mora Chimo propone reformas concretas y audaces,
consideradas aunque no completamente aceptadas por la corona. Solicita la
eliminación de las medidas de tierras en el futuro, la reposición de las propiedades
a los indios “mediante la que les dió avrá 100 años el Padre Fray Francisco de la
J Huerta, y el Padre Fray Domingo de Valderrama, Jueces de Desagravios de Tierras”
(MORA CHIMO, [1724], p.398), y la restitución de tierras vendidas y empeñadas
A a los españoles. En enero del año siguiente el rey responde ratificando su medida
anterior sobre la restitución de tierras, decretando que no se despachen comisiones
L para visitas y composiciones de tierras “sin justas Causas” (MATHIS, 2009, p.406),
y desestimando la restitución de tierras vendidas y empeñadas en tanto se hayan
hecho legalmente. Sobre “los demas puntos de su Memorial”, esto, es sobre las
L vejaciones y la “disforme distancia” denunciadas, contra las que el Rey dice tener
dadas disposiciones que son “tan vulneradas contra el servicio de Dios y mío”
A (MATHIS, 2009, p.407) resuelve el Rey enviar una copia del memorial de Mora
Chimo al Virrey del Perú. Consigue así una importante aunque relativa victoria.
Si bien no consigue las reformas solicitadas, sí genera medidas concretas de parte
del Rey, tanto en la suspensión de las comisiones para visitas y composiciones de
tierras como —y quizá fundamentalmente—, en el envío desde el despacho del Rey,
• de un memorial indígena, para que el Virrey “llamando al Protector de los Yndios,
526 le haga especial encargo al desagravio de estos pobres” (MATHIS, 2009,p.406). Es
decir, consigue situarse como mediador político, no solo entre los nativos andinos y
• la corona, sino entre esta y el Virrey. En resumen, en Y si se continúan los agravios,
se denuncia una distancia desproporcionada e inmoral entre Dios, el Rey y sus
vasallos indios, y se resignifica la nación indiana en nación indianizada: un colectivo
cristiano y amante del rey pero atribulado; esencial para la producción de riqueza
y, por lo tanto, valioso para la corona, y que cuenta con el propio Mora Chimo como
2 legítimo y eficiente mediador entre distintos sectores (indios y Rey, Rey y virrey,
Dios-Rey y sus vasallos).
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2
0
1
8
J
A
L DIÁRIO DE UMA FAVELADA: O QUE A DESVALORIZAÇÃO DA
OBRA DE CAROLINA MARIA DE JESUS TEM A DIZER?1
L
Jaine Araújo da Silva (UFAC)
A José Tarisson Costa da Silva (UFPE)
RESUMO: Carolina Maria de Jesus traz em seu texto a subjetividade oriunda da
sua condição enquanto sujeito com identidades de gênero e étnica subalternizadas
pelo contexto, lugar socioeconômico e regional do qual fazia parte. Com base
no livro Quarto de Despejo: diário de uma favelada (2013), este artigo busca
• analisar a produção, vida e a obra da escritora, buscando articular os conceitos
de interseccionalidades e lugar de fala, para entender quais fatores fizeram
529
com que a escrita de Carolina fosse invisibilizada, mesmo após um período de
• reconhecimento. Com o trabalho, entende-se que a percepção que o indivíduo tem
de sua condição o torna mais fiel e fidedigno à realidade da qual fala. O contexto
vivido por Carolina permite à sua escrita revelar as mazelas de uma sociedade
extremamente hierarquizada e que mostra pouco ou nenhum sinal de chance de
melhoria para quem ainda vive nos quartos de despejo espalhados pelo Brasil.
2 Palavras-chave: Favela. Interseccionalidade. Literatura. Lugar de fala.
Introdução
0
“A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra.
E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu.
1 A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu
moro”: a fala é de Carolina Maria de Jesus (2013, p.167), mulher que carregou em
8 si a negritude, a pobreza e a falta de estudos ocupando uma das primeiras favelas
de São Paulo: a Favela do Canindé.
No livro Quarto de Despejo (2013), que teve origem a partir de mais de 20
cadernos nos quais Carolina Maria registrava seus dias, a autora discorre sobre
temas tão atuais quanto na década de 50. A fome é uma das personagens principais
dessa história narrada por quem a viveu. Partindo da obra mais conhecida da
autora, o artigo se propõe, inicialmente, a fazer uma apresentação biográfica de
1 Trabalho apresentado durante a 13a Edição das Jornadas Andinas de Literatura Latinoamericana
(JALLA)
Carolina. Em seguida, a proposta é analisar o lugar dela enquanto escritora e
entender como Carolina Maria se incluía em um contexto de produção no qual a
mulher era privada dos espaços – um deles era o reconhecimento em produções
literárias.
É preciso destacar que Carolina, enquanto mulher, negra e pobre, traz
um olhar que é atravessado por condições que a definiam não apta à escrita e à
literatura, de acordo com os padrões de escritores da época. A fim de analisar tal
J situação, será empregado o conceito pós-estruturalista de lugar de fala, destacando
a importância do local de onde Carolina falava para que sua produção transmitisse
A a sensibilidade de quem vivia em situação desfavorável. O conceito também
evidencia que esse lugar do qual ela falava limitou seu acesso ao mainstream das
L obras clássicas literárias.
Por fim, o conceito de interseccionalidade será trabalhado, não só com
o intuito de perceber a dificuldades de uma escritora em contexto de produção
L
que a limitava, mas para evidenciar que outras condições de existência – raça,
na perspectiva sociológica, e situação socioeconômica – se combinam colocando
A Carolina no anonimato, por não se encaixar nos padrões exigidos para o campo de
atuação literária.
Contrariando a norma: negra, favelada, semianalfabeta e... escritora
Carolina Maria de Jesus nasceu em Sacramento, Minas Gerais, em março
• de 1914. De acordo com Oliveira (2015), a descendente de pessoas escravizadas
se mudou para São Paulo em 1937, onde passou a residir em uma das primeiras
530
favelas, a favela do Canindé. Trabalhou como faxineira, cozinheira, passadeira e até
• vendedora de cerveja, além de se apresentar como artista em um circo, porém sua
principal profissão foi empregada doméstica. Quando engravidou, abandonada pelo
pai da criança, Carolina perdeu o emprego. Foi então que começou sua jornada de
idas e vindas do centro à periferia de São Paulo como catadora de papel e de outros
objetos em busca da sobrevivência e da alimentação para seus três filhos: “de pobre,
2 passou a miserável; de emigrante, passou a excluída social” (MAGNABOSCO apud
OLIVEIRA, 2015, p.45).
0 O fato de Carolina ter estudado apenas até a segunda série do ensino
fundamental não a impediu de transportar para seus mais de 20 cadernos a rotina
1 de quem mora na favela. Tampouco o limite no domínio à norma padrão da língua
portuguesa a impossibilitou de usar o código a seu favor na tarefa de ser dura
e ao mesmo tempo poética na descrição da realidade que vivia. Suas limitadas
8 condições socioeconômica e cultural não lhe roubaram a capacidade de ser dona
de um discurso marcante, mesmo que marginal.
Em seu livro de maior sucesso – lançado em 1960, após ser “descoberta”
pelo jornalista Audálio Dantas2 – Carolina traz histórias que mostram a favela do
lado de dentro, experiências vividas por ela. Sua escrita é marcadamente realista.
Ela cria metáforas e não foge de temas relevantes, delicados e atuais – como
política, racismo, violência e, principalmente, a fome – o que possibilita à obra
2 Ele fazia uma reportagem na favela onde ela residia, quando a ouviu falar sobre um diário. Ficou
curioso e quis saber mais detalhes. Então, Carolina lhe mostrou não só o diário, mas vários textos
suscitar debates sobre essas temáticas em diversas áreas do conhecimento. Aqui,
entretanto, se propõe uma análise baseada no que sua autoria enquanto mulher,
negra e favelada representa para a literatura.
O nome do livro já mostra a visão autêntica que Carolina Maria de
Jesus tem da favela. “Quarto de despejo” é como a escritora se refere a esse lugar
desvalorizado onde viveu boa parte da vida. Em diversas passagens ela o nomeia
de diferentes formas: “cortiço”, “úlcera”, “gabinete do diabo”, “sucursal do inferno”
J e “chiqueiro de São Paulo” são algumas. Na primeira edição de Quarto de Despejo:
diário de uma favelada foram vendidos mais de dez mil exemplares e, no primeiro
A ano, mais de cem mil cópias do livro editado em treze idiomas e vendido em mais
de 40 países. À época, a proporção que a a obra de Carolina Maria de Jesus tomou
L foi surpreendente, pois “até então nenhum outro livro no Brasil com testemunhos
de mulheres pobres atingiu níveis próximos ao de Jesus” (OLIVEIRA, 2015, p.46).
De acordo com Oliveira (2015) a vivência da autora nesse espaço periférico
L
lhe permite revelar um olhar interno que vai além dos estereótipos conhecidos –
marginalização, violência, fome –, retratando a luta dos habitantes desse lugar em
A busca de uma vida digna,
[...] são moradores que enfrentam processos de desfavelização, trabalhado-
res que encaram os ônibus lotados, alunos pobres e negros que enfrentam
o preconceito nas escolas e, sobretudo, sujeitos negros dispostos a contar
suas histórias (OLIVEIRA, 2015, p.15)
•
Segundo a autora, o gênero textual que apresenta narrativas centradas
531 no sujeito se fortaleceu no século XVIII – momento em que a sociedade burguesa
• se consolidou – e teve seu ápice no século XX, quando muitas obras confessionais
foram lançadas. Dentre elas existiu a obra de Carolina Maria de Jesus. As histórias
apresentadas em Quarto de despejo foram vividas e escritas entre 1955 e o primeiro
dia de 1960, com um intervalo de silêncio que durou quase três anos – de julho de
1955 a maio de 1958. O gênero diário permite que haja a noção de autobiografia
2 e faz a marcação do tempo configurando-se em “uma série de vestígios datados”
(LEJEUNE apud OLIVEIRA, 2015, p.33). No caso de Carolina, vestígios da identidade
e do trabalho, já que, conforme o autor, as folhas em que ela escrevia seus relatos
0 haviam sido recolhidas nos lixões.
Para Oliveira (2015), o diário de Carolina leva o gênero a outro patamar,
1 porque expõe as mazelas da vida na pobreza e denuncia essa realidade muitas vezes
ignorada, “revelando um espaço narrativo em que encontramos a crítica social, que
8 é um traço marcante na escrita da autora, considerada também como literatura
de testemunho” (p.34). Esse tipo de literatura surgiu no século XX e se encaixa
no conceito de testimonio, por sua vez, criado na Espanha em 1960, como explica
Oliveira (2015): “Ele nasce da necessidade de expressar a opressão dos grupos
subalternos em um contexto de exploração econômica, experiências históricas da
ditadura, repressão às minorias étnicas, às mulheres e aos homossexuais” (p.35).
Quarto de despejo: diário de uma favelada não foi a única obra escrita
que ela escrevia. O jornalista foi responsável pela publicação do “Quarto de despejo: diário de uma
favelada”.
por Carolina. Segundo Oliveira (2015), Jesus também escreveu romances, contos,
poesias e peças teatrais que, em sua maior parte, continuam inéditas. Sua obra de
maior sucesso continuou a ser vendida fora do Brasil mesmo depois de esquecida
por aqui: “no Brasil, o tema é tido como defasado, um momento passado no tempo,
sem nada de interessante para demonstrar no presente” (MEIHY; LEVINE apud
OLIVEIRA, 2015, p.47).
De certa forma, Carolina não conseguiu se adaptar à rotina de alguém
J popular. Depois do sucesso de Quarto de despejo, ela recebeu muitos convites para
entrevistas em programas na televisão e no rádio, viajou dentro e fora do país,
A participou de debates, eventos e festas, mas não gostava dessa vida, como confirma
no livro Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada: “Eu estava exausta. Já estou
L saturada desses convites faustosos” (JESUS, 1961, p.152 apud OLIVEIRA, 2015,
p.63).
Diante do sucesso deste livro, o jornalista Audálio Dantas a orientou no
L
prefácio da segunda obra publicada (Casa de Alvenaria): “Agora você está na sala
de visitas e continua a contribuir com êste novo livro, com o qual você pode dar por
A encerrada a sua missão [...] Guarde aquelas “poesias”, aquêles “contos” e aquêles
“romances que você escreveu” (JESUS, 1961, p.10 apud OLIVEIRA, 2015, p.66).
Ignorando a orientação, Carolina continuou escrevendo outros textos, mostrando
que foi “uma escritora autêntica, não apenas pelo que produziu, mas da maneira
como traçou os caminhos dessa escrita. Através da sua figura e de suas palavras
• fortes, incomodou tanto leitores quanto a crítica” (OLIVEIRA, 2015, p.66).
532 Carolina morreu em seu sítio, na cidade de Parelheiros, interior de São
• Paulo, em 1977. Pobre e sozinha. De acordo com Oliveira (2015), a maioria dos
noticiários que falaram sobre sua morte a desrespeitaram dizendo que ela teria
gastado todo o dinheiro que ganhara com a venda dos livros e por isso estava
vivendo miseravelmente – o que é rebatido por uma série de entrevistas feitas
por José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert M. Levine3, em que filhos e amigos da
2 escritora mostram que ela sempre foi “uma mulher resistente, mãe, que combateu
a miséria, a desumanidade e a dificuldade de uma vida dura e conquistou com
muito esforço o sonho de ter um teto e melhorar a situação econômica de sua
0 família.” (OLIVEIRA, 2015, p.48).
Por ironia do destino ou não, Quarto de despejo foi lançado na década de
1 1960. Período marcado pela segunda onda do feminismo nos EUA e Europa: fase
do movimento em que, para além da busca por espaço para as mulheres, se fala
8 pela primeira vez em uma mudança nas relações de poder, até então desiguais,
entre homens e mulheres. Ademais, mostra que “uma não pode ser representada
pela outra, já que cada uma tem suas características próprias” (PINTO, 2010, p.16).
Já no Brasil, o clima era contrário. Década do golpe militar, que se
transformaria em ditadura; e de polarizações na política (de um lado estavam a
esquerda partidária, os estudantes e o governo; do outro, os militares e o governo
norte-americano). Diante desse contexto, a realização de manifestações feministas
3 Publicaram juntos o livro Cinderela Negra: a saga de Carolina Maria de Jesus, em 1994. Seus
estudos contribuíram para a compreensão dos problemas de recepção da obra da escritora no
Brasil.
só foi possível a partir da década de 1970. Segundo Pinto (2010) pautas sobre
violência, sexualidade, direito ao trabalho, igualdade no casamento, direito à terra,
à saúde materno-infantil e luta contra o racismo só foram pautas do feminismo
30 anos depois da escrita de Quarto de despejo. O que evidencia que, apesar de
semianalfabeta, Carolina Maria de Jesus era uma mulher à frente de seu tempo,
que tinha na escrita a consciência política para reivindicação de seus direitos
enquanto mulher, negra e pobre.
J As categorias de articulação: gênero, raça e classe na subalternidade do
discurso de Carolina Maria de Jesus
A O lugar de onde Carolina Maria de Jesus escreve mostra uma
interseccionalidade de marcadores que destacam os motivos pelos quais a autora
L ficou desconhecida entre os cânones literários – mesmo depois um período breve
de fama –, vindo a ter maior visibilidade na atualidade, após uma ampla difusão,
L no Brasil, de pensadores e pensadoras, intelectuais negros e com a publicação de
novos escritos da autora, em que o debate em torno da questão da pobreza e da
negritude volta à cena.
A
Aqui, a análise das interseccionalidades será feita para apreender como
as múltiplas diferenças se articulam para afirmar desigualdades no que se refere
ao discurso literário de uma mulher negra e favelada. Não objetiva-se dar ênfase
para uma categoria específica, mas pretende-se entender como essas categorias,
que articulam raça, gênero, classe e região, se relacionam umas com as outras,
•
gerando possibilidade de várias interpretações dentro das situações que Carolina
533 vivia. Acredita-se que vários fatores operam simultaneamente para que seja efetiva
• a marginalização e invisibilização de Carolina. A abordagem interseccional aqui
utilizada será a sistêmica, voltada ao empoderamento de grupos subordinados.
Piscitellli cita a advogada Kimberlé Crenshaw como defensora dessa vertente da
interseccionalidade.
Segundo Crenshaw, as interseccionalidades são formas de capturar as con-
2 seqüências da interação entre duas ou mais formas de subordinação [...].
A interseccionalidade trataria da forma como ações e políticas específicas
geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, confluindo e, nessas con-
0 fluências constituiriam aspectos ativos do desempoderamento. (PISCITELLI,
2008, p.267)
2
0
1
8
J
A
L A CIÊNCIA DOS ENCANTADOS: COSMOLOGIAS AFROINDÍGENAS
NO NORDESTE PARAENSE
L
Jerônimo da Silva e Silva (UNIFESSPA)
A RESUMO: A proposta de comunicação versa sobre aspectos de uma etnografia
realizada no nordeste paraense, comunidade de Japerica. Nesta região, através de
saberes comunicados por Mãe Ana, uma centenária rezadeira iniciada pela Princesa
Oceânica, é possível visibilizar nos dons e nas entidades que se amalgamam no corpo
e nas rezas elementos de matrizes culturais africanas e indígenas. Na etnografia é
• possível perceber como a compreensão da passagem e atualização dos dons e sua
negação constituem o que denomina de “Ciência dos Encantados”. A afirmação e
539
negação da “Ciência dos Encantados” dependia do cenário da pesquisa de campo.
• Os saberes presentes nas práticas de cura de Mãe Ana brotam como resultado de
contatos com “experientes” adquiridos em inúmeros locais por onde percorreu.
Investimos na interpretação de convergências de desdobramentos etnográficos,
quando lidos sem as generalizações que nomeiam as temáticas, possuem mais um
diálogo crítico do que uma oposição terminológica e dogmática.
2 Palavras-chave: Ciência dos Encantados. Etnografia. Amazônia
Introdução
0
Nascida no dia 13 de Agosto de 1913 no Rio Grande do Norte, Mãe
Ana é Filha de Luís, um tocador de Hamônica (sanfona) que também mucrevava
1 (marreteiro) frutas, rapadura, cana-de-açúcar com oito jumentos pelo interior
do Rio Grande do Norte, com Madalena, mãe da narradora, e responsável pela
8 “banca” de venda. A família foi abandonada pelo pai no dia de natal de 1919,
quando tinha 06 anos de idade. Deste período até 1923 a família passou inúmeras
privações econômicas e, não raro, foram os momentos de fome e abandono. Graças
a um padrinho chamado de Raimundo Ferreira, prático de embarcação no Porto
de Belém, e com os benefícios do Major Magalhães Barata, foram viver no Pará.
Alguns anos após a chegada ao Pará, a mãe adoeceu gravemente, tendo falecido em
1929, a partir daí sua vida seria conduzida pelas irmãs mais velhas. Esse período
parece ter sido indicado como de maior sofrimento:
Ora, quando minha mãe morreu faz muito tempo, né? Já faz umas duas
Era, que eu que tô com mais de cem, na época era bem uma criança quase
né? (...) Aí fui sofrer seu menino, apanhar nesse mundo dos outro que nem
cachorro sem dono. É triste coisa meu irmão, é triste coisa um filho no mun-
do sem pai nem mãe, só na garra dos outro – era na base da lei dos escravo
quase – as minhas irmãs eram só por parte de mãe, quando me pegavam pra
bater se não tivesse ninguém pra acudir me deixavam mole mesmo, quase
morta no chão. A minha irmã Salvina era a mais rigorosa, nunca teve filho
(...) nas irmãzinha ela descontava (risos). É uma coisa que até hoje choro de
desgosto. Mãe Ana, 101 anos. Depoimento citado.
J
A intensidade dos castigos físicos é descrita entrelaçado a três aspectos:
consequência da ausência materna; da violência de uma das irmãs e, principalmente,
A das referências à “Eras da escravidão”. Esse período elencado e presente na história
da narradora tinha sido indicado a mim por moradores locais, pois, ao descreverem
L Mãe Ana, associavam-na como alguém “vivido na época dos escravos”; de fato,
memórias desse período vêm à tona ora como experiência passada, ora mediante
L ensinamentos repassados por sua avó materna na infância. Esta, segundo ela,
guardava marcas de ferro nas costas e perna quando trabalhava tirando malva e
no algodoal na época do “Rei D. Pedro”.
A
Enquanto trabalhava e vivia com a irmã tinha sido negado qualquer
possibilidade de entretenimento ou outra atividade qualquer, sob pena de
espancamentos “quase sem fim”, da mesma forma com que sofria ao ouvir as
músicas dos arraiais e festas da localidade enquanto ela precisava “varar noite
costurando roupas para os filhos dos barão”. Se o casamento veio aos 18 anos, e
•
com ele a esperança de viver e trabalhar para si, distante das pressões de alguns
540 familiares soava como um ideal, na prática, mesmo tendo vivido bem com o marido,
• este a mergulhara em andanças, indo de localidades da região bragantina até
paisagens do nordeste brasileiro.
Eu só me saí dela depois que casei com um cearense do Ceará-Mirim, o
nome dele era por José Rodrigues de Souza, nisso tinha uns 18 anos, nós
tinha nossa casa, nosso cavalo, roçado, criação de pavão, galinha e tudo,
mas de repente endoidou para ir pras Minas de Maracaúna e nós fomo, eu
2 com uma menina de oito meses no braço, nós deixamo tudo pra trás! Foi
oito dia a pé de Carapatinho até Maracaúna. A vida da gente é um romance,
0 né? O que eu conto não cabe nem se pôr num livro, não dá nem metade,
eu já andei muito pelas Mina do Macaco, Mina do Grajaú, pelos Altos da
Mina das Pedra no Cachoeira, se eu lhe contar você não vai acreditar (...)
1 é uma coisa muito interessante, muito interessante mesmo, lá nessa Mina
(Cachoeira) tem umas pedra de mármore que parece uma porta assim bem
8 grande mesmo, sabe? Essa pedra tem época que amanhecia aberta, tempo
que ficava fechada e tempo que ficava pela metade, sabe? Diziam que era a
pedra encantada por onde Jesus passou, só pode ser, né? Lá tinha aqueles
que sabiam que era sinal dos príncipe e princesa, tinha uns que só de olhar
sabiam se ia chover ou fazer verão noutro dia, saber os encante é difícil, isso
é uma ciência muito grande, né? Sabe? Mãe Ana, 101 anos. Depoimento
citado.
•
546
•
Fig. 02. Devir-cobra em tempos de escravidão. Material de campo.
2 O Mundo é um Pé de Mandioca
Comecei a rezar desde criança, sabe? As primeira oração que fiz foi em ani-
mal de criação, rezei em porco, pavão, vaca. Minha avó dizia pra mim ir nos
0 pé de planta fazer promessa, e eu ia falava as promessa debaixo pros abaca-
teiro, bananeira, goiabeira e dizia assim: “se você botar minha cria boa, dou
1 viva à Nossa Senhora, mando um maço de flor pra você, jogo nos pé (plan-
tas) toucinho abrasado”. E as coisas iam na minha cabeça e eu prometia
pros laranjal, rosal e bloquel de rosa pra deixar também na beira do rio. E
8 num é que as conversa com as planta davam certo?! Daí era quando sumia
ou caia doente algum bicho, essa categoria era comigo. Mas eu agradecia e
deixava manga, caju, farinha num cestão na beira do rio, quando dava fé,
tinha ido se embora, os encante do mar e as curupira levavam (...) mas as
planta e os bicho também são agradecido, né?! Eu já nasci pra rezar e gosto
de conversar, mas digo que a pessoa que reza deve ter “compreensão”, né?
Tem que ter saúde boa pra aguentar o que entra e sai do “quengo”, né? Mãe
Ana, 101 anos. Depoimento citado.
•
549
•
2
0
Fig. 04. “O Mundo é um Pé de Mandioca”. Material de campo
2
0
1
8
554 SILVA, Jerônimo da Silva. No Ar, na Água e na Terra: Uma Cartografia das Identidades
nas Encantarias da “Amazônia Bragantina”. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-
• -Graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura, Universidade da Amazônia, Belém,
2011.
TAUSSIG, Michael. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem: um estudo sobre o
terror e a cura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
____. O diabo e o fetichismo da mercadoria na América do Sul. São Paulo: UNESP,
2 2010.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O medo dos outros. Revista de Antropologia, São Pau-
0 lo, USP, V. 54 (2), 2011.
WAWZYNIAK, João Valentim. Assombro de olhado de bicho: uma etnografia das concep-
1 ções e ações em saúde entre os ribeirinhos do baixo Tapajós, Pará. Tese de Doutorado.
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal de São Carlos. São
Carlos, 2008.
8
J
A
L LA VIRGEN DE LOS SICARIOS DE FERNANDO VALLEJO Y SU
VISIÓN CRONOTÓPICA DE “MEDALLO” COMO SINÉCDOQUE DEL
L MAL
A Jesús José Diez Canseco Carranza (UNIVERSIDAD CÉSAR VALLEJO)
RESUMEN: La virgen de los sicarios de Fernando Vallejo es una novela cuya
irrupción constituye una continuidad temática con el denominado “ciclo de la
violencia en Colombia”. Dentro de ésta, el Medellín de los años 90 aparece como un
lugar maldito, irredimible y asfixiado por una interminable espiral de violencia. La
• ciudad es construida, así, por el discurso descentrado de Fernando, el narrador-
555 protagonista, quien, junto a sus amantes, la recorre con el fin de restaurar un
ordenamiento casi perdido. Es a través de su deambular antisocial que Fernando
• mapea y liga su espacio-temporalidad y configura un cronotopo mayor: “Medallo”.
Para llevar adelante este análisis, que es nuestro objetivo principal, utilizaremos,
fundamentalmente, la categoría de cronotopo de Mijail Bajtin, De este modo,
delimitaremos los nudos argumentativos donde historicidad y espacialidad se
funden con el fin de dar consistencia estructural y temática al relato.
2 Palabras clave: Medellín. Cronotopo. Ciudad. Violencia.
0 Según Cristian Cisternas Ampuero (2006), la ciudad cobra un rol
fundamental en las narrativas literarias contemporáneas. Sus voces son incorporadas
1 a la enunciación en un juego interdiscursivo y de representaciones que entroniza al
escritor como un individuo ligado a la urbe. Cuando éste escribe sobre determinada
ciudad, obliga a los receptores a rastrear en esa ciudad a otras ciudades (reales
8 o textuales) que la complementan o anteceden. En estos espacios construidos y
asimilados a los textos, son frecuentes tópicos como el viaje de aprendizaje, el
cronotopo de la memoria, el descenso a los infiernos, la ciudad escatológica, etc.
Todo lo cual es tejido en torno a los protagonistas o, mejor dicho, en torno de sus
trayectos fácticos, memoriosos, imaginarios y virtuales. No obstante, tal proceso
suele transformarse en desengaño, iluminación y desafiliación del sujeto, frente al
orden institucionalizado de la ciudad.
Laura Eugenia Tudoras (2004), al analizar la constitución interna de las
ciudades latinoamericanas, manifiesta que resulta de suma importancia hablar del
nivel antropológico. Dentro de ellas, los lugares o fragmentos de lugares no pueden
percibirse como elementos independientes. Son los trayectos antropológicos los
que tornan las formas y materias de lo urbano en significado. De esta manera,
el hombre percibe el espacio urbano, lo interpreta, genera sentido, lo narra y lo
transforma en arte o literatura. Todo esto implica, al mismo tiempo, encrucijadas
de subjetivaciones, percepciones e interpretaciones anteriores. Dicho de otro modo,
el esquema de relaciones entre los seres humanos y el espacio hace que lo urbano
J sea legible y se pueda reconstruir a través de diversas narrativas y ficciones.
Eso remarca que el espacio se tornó subjetivo y exista apenas a través de
A la percepción de los individuos. Fuera del espacio proprio y concreto de la realidad
física, son otros espacios posibles los que se aluden o discursivizan, los personajes,
L muchas veces, deben transitar por diversos escenarios y “saltar” de las cúspides
sociales o simbólicas a los territorios vetados por los discursos oficiales.
Notamos, pues, que la literatura latinoamericana de las últimas décadas
L
centra a la ciudad como el espacio del no-lugar, como un espacio regido por normas
“disonantes”, como las encrucijadas de la desintegración, de la velocidad, de la
A falta de percepción real y donde la gente vive intensamente pero de modo artificial.
Es la percepción de esta materialidad en conflicto, el principal marco de referencia
de estos escritores, sujetos empíricos empujados a vivir en una realidad maniquea
donde las personas están obligadas a convivir con el orden y el desorden, con la
irracionalidad y la fría lógica intelectualista, con los recuerdos de un pasado mejor
• y la creciente inseguridad pública, con los conjuros contra el deterioro material
556 progresivo y el estancamiento económico.
• Una característica común de estas ciudades (correlato, acaso, de las
urbes fácticas situadas en países de economías emergentes) es la ausencia cuasi
generalizada de un espacio urbano planificado. En estos lugares fragmentados,
donde sólo algunos reductos se mantienen fieles a las normativas de una ciudad
(letrada), la institucionalidad reposa en los registros de un ordenamiento de tipo
2 cartesiano. Paradójicamente, todo eso genera urbes inconclusas, sin centros
neurálgicos ni puntos de referencia que propicien entre los seres humanos procesos
de cohesión permanente.
0
A diferencia de las narrativas hegemónicas occidentales, donde la ciudad
se percibe como símbolo y lugar privilegiado del “progreso” y como el escenario más
1 adecuado para la implementación de la democracia, en el contexto latinoamericano,
refiere Giusepe Gatti (2011), la relación que el escritor establece con su espacio
8 urbano niega, generalmente, ese mito civilizador tanto como sus efectos en el nivel
de la integración social y consolidación de – la siempre ajena – noción de progreso.
El escritor, para este crítico, es víctima de un cautiverio existencial. En virtud de
eso, remueve las entrañas del espacio donde vive pues no tiene más opción que
permanecer atrapado en la espiral de la “infamia” de la urbe que lo apresa.
Es en ese espacio, donde los individuos emprenden tareas de adaptación
y de defensa de su interioridad. Frente a esa fragmentación global, la literatura
recrea la susceptibilidad y vulnerabilidad de sujetos enfrentados, de sujetos que
deben asimilar la disolución de los valores impuestos y de los sistemas de cohesión.
Todo esto se observa en el uso de estrategias tales como: descripciones detalladas
de la debilidad del ser, el monólogo interior (a manera de “válvula de escape” de
los egos atormentados), el doble discurso o enmascaramiento del pensamiento
íntimo, etc. En este sentido, los nuevos tópicos literarios diseñan, por lo general,
sujetos frágiles, integrados a espacios urbanos amenazadores y presionados por
tensiones narradas por ellos mismos (como testimonios o confesiones) o por una
voz omnisciente, cómplice de sus angustias.
Pero,¿qué es el cronotopo? ¿En qué consiste esta categoría tomada de la
J teoría de la relatividad de Albert Einstein y llevada al terreno de la literatura? Mijail
Bajtin en su tratado Las formas del tiempo y del cronotopo en el romance. Ensayos
A de poética histórica, dice que:
…la conexión esencial de relaciones temporales y espaciales asimiladas ar-
tísticamente en la literatura... expresa el carácter indisoluble del espacio
L y el tiempo (el tiempo como la cuarta dimensión del espacio). Entendemos
el cronotopo como una categoría de la forma y del contenido en la obra.
L (BAKHTIN, 1989, p. 237).
Con este razonamiento, el lingüista ruso propone la existencia de un
A proceso mediador que transporta el espacio-tiempo social a la obra de arte, aunque
no de forma mecánica. De esto se deduce que la forma del tiempo y del espacio en la
obra tiene un primer anclaje histórico y social. Tal unión de elementos temporales-
espaciales conforma un núcleo inteligible y concreto. Esto nos recuerda que el
espacio y el tiempo no existen aisladamente. No tenemos espacio sin tiempo, ni
• tampoco tiempo sin espacio. Desde un punto de vista artístico-literario el tiempo
557 se condensa, comprime y se torna visible. Igualmente, el espacio se intensifica y
penetra en los movimientos (mediante “saltos” o evoluciones) del tiempo narrado,
•
de los argumentos y de la propia diégesis.
La importancia semántica y formal del cronotopo es indudable. Este
constituye el centro organizador de los hechos novelescos. En él se ligan y desligan
los nudos argumentales y, aunque sea de difícil percepción, tiene una función
metodológica doble: pone en evidencia el interior y el exterior de los textos y sirve,
2
a la vez, para discutir los alcances de un conocimiento extraliterario o contextual.
Leyendo los distintos capítulos del ensayo de Bajtin, se aprecia que la
0 dinámica de los personajes es lo que organiza el espacio y el tiempo en el discurso
novelesco. Son ellos, como simulacros del hombre, quienes conectan ambas
1 dimensiones. Y, de forma inversa, el cronotopo, como categoría de la forma (espacio)
y del contenido (tiempo), es quien determina la imagen del hombre en la literatura.
8 Ello nos dice que la imagen literaria del hombre es eminentemente cronotópica. En
consecuencia, el tiempo se organiza en fragmentos (episodios, aventuras) ligados a
un determinado espacio. Esto hace que los cronotopos se lean a manera de nudos
a ser desenrollados. Por eso, constituyen el centro organizador de las narrativas
literarias en prosa.
A través de su relato, Fernando, el narrador-protagonista de La virgen
de los sicarios analiza y muestra distintas facetas de la realidad colombiana de
los años 90. Él conoce los espacios donde se desenvuelven las acciones, conoce, a
pesar de su ausencia prolongada, la psicología del pueblo y la del sicario juvenil.
Por eso pronuncia: “Yo sé más de Medellín que Balzac de París, y no lo invento:
me estoy muriendo con él” (VALLEJO, 2006, p.42). Al ser incapaz de asimilar los
desajustes imperantes, Fernando se vuelve parte de ellos. Su testimonio, más que
una ficción, constituye una historia cotidiana; una narrativa desarrollada por la
influencia del registro etnográfico.
En realidad, lo que la voz narradora hace, escrear un mundo apocalíptico
con la intención de mostrar lo que ocurre y puede ocurrir. De este modo, “desvenda”
una Colombia tal como cree que es: un macro-espacio lleno de incompatibilidades
J y de voces que revelan que el país sangra y se consume lentamente. Por momentos,
Fernando se horroriza ante la barbarie desatada, en otros, desea que la gente
A perezca en el seno de ese desbarajuste – “son serpientes venenosas que deben y
merecen morir” (VALLEJO, 2006, p. 88)-. Tal posición es abiertamente discordante.
L Ésta ensaya una solución para el problema de los pobres de Colombia: prohibir
parir a las mujeres de las comunas y, más extremamente,la ejecución en masa de
los pobres. “Los pobres producen más pobres y la miseria más miseria, y mientras
L más miseria más asesinos, y mientras más asesinos más muertos. Ésta es la ley
de Medellín, que regirá en adelante para el planeta tierra. Tomen nota” (VALLEJO,
A 2006, pp. 86-87).
Retomando la propuesta socio-literaria de Mikhail Bakhtin, notamos que
la presencia de elementos históricos es notable. En el texto, además, se habla de
ex-presidentes, políticos, se mencionan a capos de la droga, etc. Todo ello origina
anclajes a través de coordenadas sociopolíticas concretas. En consecuencia, se
• cuestiona la historia oficial a través de la “desmitificación de mitos” y de ciertas
558 figuras históricas que incluso llegan a ridiculizarse. Las instituciones laicas y
religiosas, por otra parte, tampoco se salvan de las ironías y del descrédito, todo lo
•
cual demuestra un gran escepticismo por parte del narrador.
Fernando se encuentra en una posición intermedia. A veces está dentro de
ese proyecto nacional que fracasó y se debe refundar, a veces está fuera y no augura
ninguna posibilidad de redención. Eso se aprecia cuando, autodenominándose “la
2 memoria de Colombia”, interpela al Procurador de la República: “Señor Procurador:
Yo soy la memoria de Colombia y su conciencia y después de mí no sigue nada.
Cuando me muera aquí sí que va a ser el acabóse, el descontrol” (VALLEJO, 2006,
0 p. 20). Él no confía en la política colombiana. Es un crítico feroz del presidente de
la República a quien ataca y satiriza más de una vez. Eso se aprecia en el siguiente
1 parlamento: “La ley de Colombia es la impunidad y nuestro primer delincuente
impune es el presidente, que a estas horas debe de andar parrandeándose el país y
8 el puesto” (VALLEJO, 2006, p. 18). La virgen de los sicarios, pues, es una propuesta
iconoclasta y destructora de las instituciones, valores y patrones tradicionales de la
Colombia de los años 90. Una nueva forma de incursionar en el panorama literario
latinoamericano dominado aún por las estéticas del boom y de las narrativas
regionalistas.
El narrador crea, de esta forma, un espacio literario mediante dos
acciones discursivas concretas: narrar y traducir. Mediante ellas, refunda
la ciudad dándole una imagen particular de lugar paralelo al infierno. Como a
través de su accionar es incapaz de restituir el antiguo orden, se apropia del lugar
describiéndolo, representándolo, interpretándolo y deconstruyéndolo. En otras
palabras, tornándolo en la ciudad maldita que promueve el exilio dentro de sus
propias fronteras. En un lugar azotado por una modernización irregular y por
una espacialización difusa en sus límites geográficos. Esto último se da por la
proliferación de las comunas. La hegemonía del nuevo Medellín, en ese panorama,
no está más vinculada a los sectores de la aristocracia y de la intelectualidad sino
a los capos del narcotráfico. Ellos presionan por igual (con sus ejércitos de sicarios)
a políticos, funcionarios públicos, militares, policías, periodistas, etc. Pese a todo
J lo mencionado, la ciudad, como espacio,no deja de cumplir un rol fundamental
en la construcción de la nación colombiana. Ella constituye un campo de batalla
cultural y semántica donde el proyecto modernizador-urbano intenta introducir
A
ciertos cánones y formas de ejercer la ciudadanía.
L La ciudad es representada, por consiguiente, como un campo violento,
sin reglas, donde impera la ley del mejor armado. Medellín es el nombre oficial
del lugar que aparenta “norma y civilidad”, pero “Medallo” es el nombre del lugar
L tal cual es: una ciudad corrupta y sangrienta, acorralada siempre por la muerte.
Nos encontramos ante una versión literaria (alternativa) del conflicto interno
A que enfrentó a los colombianos por más de cinco décadas. En ese espacio, los
hechos se desarrollan, casi en su totalidad, dividiéndose entre dos cronotopos
en confrontación: El Medellín de arriba y el Medellín de abajo y es el narrador-
protagonista quien muy renuentemente los aproxima.
Tenemos, en esta dirección, el primer cronotopo, el cronotopo de abajo,
• la ciudad tradicional atravesada, todavía, por temporalidades antagónicas y que
559 guarda algunas joyas de un pasado no tan remoto. Todo eso se ve maculado por
el avance incontrolable de la otredad. Ésta, desestabiliza notablemente la postura
•
aristocrática de Fernando. En este mismo cronotopo se entrelazan la ciudad antigua
de Medellín (o, mejor dicho, los despojos que catalizan el recuerdo de un pasado
mejor) con unas coordenadas históricas atravesada por la fatalidad, por la violencia
imparable, por la inestabilidad y por la volubilidad de las relaciones humanas.
2 Sobre las laderas de las montañas, por otro lado, aparece el cronotopo
de arriba, “Medallo”, el espacio más temido, donde proliferan las comunas y donde
viven los sicarios; lugar prohibido para los habitantes de abajo, pero desde donde
0 proviene la marea humana que baja y ocupa el Medellín tradicional y que “asfixia”
y remueve a las antiguas castas. Este cronotopo se halla, igualmente, atravesado
1 por una de las peores etapas de la historia colombiana. Sobre eso, el narrador dice:
… ¡Pero miren qué hacinamientos! Millón y medio en las comunas de Me-
8 dellín, encaramados en las laderas de las montañas como las cabras, repro-
duciéndose como las ratas. Después se vuelcan sobre el centro de la ciudad
y Sabaneta y lo que queda de mi niñez, y por donde pasan arrasan. “Acaban
hasta con el nido de la perra” como decía mi abuela,…Mi abuela no conoció
las comunas, se murió sin. En santa paz (VALLEJO, 2006, pp. 52-53).
•
563
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1
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L HORTA-OCA: ESPAÇO DE CONVIVÊNCIA, TROCAS,
APRENDIZAGEM E CULTIVO DE IDEIAS
L
Joana da Costa Lyra (INES)
A Maria Lucia Vignoli Rodrigues de Moraes (INES)
RESUMO: O presente texto apresenta um relato de experiência sobre a horta-oca do
Instituto Nacional de Educação de Surdos que vem sendo cultivada por professores
de artes e alunos surdos com idade entre 8 e 21 anos. Iniciada em 2015 junto a uma
turma de 1° ano do ensino fundamental, a horta-oca configura-se como um espaço
• de convivência, trocas, aprendizagens e cultivo de ideias. As práticas pedagógicas
experimentadas e a utilização de ferramentas como a enxada, escavadeira e pá
564
possibilitaram o agenciamento e ampliação das vivências corporais e sensoriais
• das crianças e jovens conforme os princípios da educação pela experiência e pela
prática de Paulo Freire. A horta-oca, conectada à noção da Agroecologia, proporciona
um ambiente favorável à revalorização de tradições e sabedorias populares e
indígenas, ao encontro com a diversidade de saberes e sabores, à conexão com a
terra e os ciclos da natureza e à reflexão sobre a relação entre ciência e arte, com
2 ênfase em ações coletivas que promovam o Bem Viver. Ao relato das experiências
vividas consolidado no formato de um diário das ações, agrega-se uma narrativa
0 visual integrada por fotos e pequenos vídeos produzidos no curso do processo. A
constelação de propostas, conteúdos e práticas instauradas nos encontros na horta
1 se desenvolvem na forma de entrelaçamentos, conforme o conceito do rizoma, de
Deleuze e Guatarri (1992) e confirmam a necessidade da arte contemporânea de
conclamar pelo outro, pelo par, pelo conjunto apontados por Roberto Corrêa dos
8 Santos (2015). Perpassam as práticas a noção de Interculturalidade, descritas por
Vera Candau (2014) e Richter (2008), ressaltando a diversidade étnica brasileira e
seus diálogos com outras culturas, e conhecimentos que emanam das brincadeiras,
experimentações e manifestações populares. A conexão com elementos da natureza
encontrados nas falas e práticas de Fritjof Capra (2006), Celso Sánchez (2011),
Leonardo Boff (2004) e Ghandy Piorski (2016) aportam sentidos e fundamentos
para as ações na horta-oca em consonância com as múltiplas possibilidades
encontradas no campo da arte e da cultura. E Skliar (1999) nos faz compreender
a surdez como experiência visual, ressaltando o aspecto visual da cultura surda
bem como suas produções linguísticas, artísticas, científicas e as relações sociais.
Palavras-chave: Arte. Agreocologia. Cultivo de ideias. Horta. Educação de Surdos.
J
A
L
L
Fig.1 Nomear as mudas e os cuidados na horta-oca
A teia da vida
As bases iniciais do projeto horta-oca se afirmavam na possibilidade de
contribuir para o desenvolvimento de um currículo integrado, calcado em estratégias
de ensino-aprendizagem diferenciadas para o exercício da interdisciplinaridade a
partir de temas transversais. Ao longo do percurso fomos percebendo a ampliação
de outras proposições tais como a ideia de cuidados - o planeta, o cuidado de si e
do grupo - para a manutenção de uma política da amizade, exercida por todos os
envolvidos.
Através da horta também nos tornamos conscientes de que fazemos parte
da teia da vida; com o tempo, a experiência da ecologia na natureza nos pro-
J porciona um senso de lugar. Nós nos damos conta de que estamos inseridos
em um ecossistema, numa paisagem com flora e fauna peculiares, em um
sistema social e uma cultura próprios. (CAPRA, 2003. p.28).
A
Por uma ética da amizade, da colaboração, da reciprocidade e do amor,
reiteramos o propósito de por em prática a co-criação de mundos possíveis,
L
cultivando relações harmônicas entre todos. A horta-oca possibilita encontro
único, fértil e potente, gerador de expressões manifestas em jogos, brincadeiras e
L ações artísticas para firmar o exercício da escuta ao outro, despertar o interesse e
curiosidade considerando o permanente devir que nos retroalimenta.
A A emoção básica que nos torna seres humanos sociais – por meio da espe-
cificação do espaço operacional de mútua aceitação em que operamos como
seres sociais - é o amor. Ele é a emoção que constitui o domínio da aceitação
do outro em coexistência próxima. Sem um desenvolvimento adequado do
sistema nervoso no amor, tal como vivido no brincar, não é possível apren-
der a amar e não é possível viver no amor (MATURANA & ZÖELER, 2004.
• p.245).
570
Referências
•
BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da terra grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004.
CAPRA, Fritjof. Alfabetização Ecológica: o desafio para a Educação do Século 21. In.: Meio
Ambiente no Século 21, coordenação de André Trigueiro. Rio de Janeiro: Sextante, 2003.
______________. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos.
Tradução de Newton Roberval Eichenberg. São Paulo: Cultrix, 2006.
2 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? tradução de Bento Prado Jr.e
Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
0 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
1 MATURANA, Humberto R. & Verden-Zöeler, Gerda; tradução de Humberto Mariotti e Lia
Diskin. São Paulo: Palas Athena, 2004.
8 PIORSKY, Gandhy. Videoconferência Criança e Natureza. Disponível em http://territo-
riodobrincar.com.br/biblioteca-cat/dialogos-do-brincar/videoconferencia-2-crianca-e-na-
tureza/. Acesso em 29/06/2018.
SÁNCHEZ, Celso. Ecologia do corpo. Rio de Janeiro: Wak editora, 2011.
SKLIAR, Carlos. Desobedecer a linguagem: educar/ Carlos Skliar; tradução Giane Lessa.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.
TEIXEIRA, Anísio. Bases da teoria lógica de Dewey. Revista Brasileira de Estudos Peda-
gógicos. Rio de Janeiro, v.23, n.57, jan./mar. 1955.
TOLEDO, Victor M; BARRERA-BASSOLS, Narciso. A memória biocultural: a importância
ecológica das sabedorias tradicionais; tradução Rosa L. Peralta – 1ed – São Paulo: Expres-
são popular, 2015.
CORRÊA DOS SANTOS, Roberto. Cérebro Ocidente/Cérebro Brasil: Arte-escrita-vida-
-pensamento-clínica – Tratos contemporâneos - . Rio de Janeiro: Editora Circuito: Faperj.
2015.
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L MANAUS E A MODERNIDADE: UMA CIDADE EM CAOS E
UM “HERÓI PROBLEMÁTICO” NA NARRATIVA DE ERASMO
L LINHARES
A Angélio Nunes de Lima (UFAM)
Joanna da Silva (UFAM)
RESUMO: O presente trabalho busca traçar uma discussão em torno dos conflitos
sociais e humanos em meio à crise econômica que perpassa a cidade de Manaus no
momento de transformação frente ao advento da modernidade, no período pós-ciclo
• da borracha na Amazônia, que se faz presente no conto O Tocador de Charamela,
572 de autoria do escritor amazonense Erasmo Linhares. O fator “modernidade” servirá
de elo para fomentar a discussão em torno da falta de estrutura para acolher a
• população pobre que migra do interior da floresta e se aglomera em favelas nos
arredores da cidade em busca de trabalho nas indústrias e montadoras recém-
instaladas na capital. A crítica sociológica será utilizada como subsídio para
diagnosticar o modo como os homens se inserem e se articulam socialmente no
tempo e no espaço em meio a uma cidade em caos. O personagem principal da
2 narrativa em foco será aqui denominado “herói problemático”, fruto do advento da
modernidade e da luta de classes, que leva o ser humano ao descontrole em meio a
0 aspiração pela ascensão social e capitalista, a ponto de fazê-lo degradante em uma
sociedade tomada pela inversão de valores. Para o desenvolvimento desta análise,
1 que se caracteriza de cunho teórico analítico, buscamos embasamento teórico em
autores como Antônio Cândido (1972, 1992, 2006), Flávio Kothe (1987), Georg
Lukács (2000), Lucien Goldmann (1976), Márcio Souza (2009), entre outros.
8
Palavras-chave: Manaus e a Modernidade; Caos; Herói problemático; Erasmo
Linhares.
Introdução
Erasmo do Amaral Linhares nasceu em junho de 1934 no município de
Coari no Amazonas. Morreu na cidade de Manaus, no ano de 1999. Formado em
Comunicação Social pela Universidade do Amazonas, trabalhou durante 40 anos
como diretor artístico da Rádio Rio Mar. Iniciou sua carreira literária escrevendo
crônicas de cunho político e social, que eram recitadas por ele diariamente em seu
programa na rádio. Publicou dois livros de contos, sendo o primeiro “O Tocador de
Charamela”, publicado em 19791, e o segundo “O navio e outras estórias”, publicado
em 1997.
Membro do clube da madrugada, movimento que surgiu na década de
1950 com o objetivo de romper com antigos padrões ainda vigentes na literatura
amazonense, porquanto buscava a liberdade tanto na expressividade quanto na
erradicação da mediocridade estabelecida por padrões opressores que imperavam
J na sociedade manauara. O escritor buscou a renovação da mentalidade social e
cultural por meio de uma literatura que se aproximasse dos dilemas e angústias
A humanas decorrentes do desgaste imposto por uma sociedade capitalista e
opressora.
L Sua obra possui como característica peculiar uma matéria atualizada de
valorização do homem amazônico, inferida no contexto social, cultural e econômico
da época. Como homem de rádio, Erasmo Linhares desafiava as estruturas
L
ideológicas de poder impostas pelo governo, elucidando a comunidade urbana para
fazer cumprir seus direitos, incorporando nesta luta também o povo interiorano e
A ribeirinho, que se situavam tão longe, porém mais longe ainda estavam da dignidade
e do reconhecimento dos poderes públicos.
Embora um dos sentidos da palavra “charamela”, impresso no título de
sua obra, seja o mesmo que “charanga”, que equivale a orquestra mais ou menos
desafinada, segundo Luís Ruas (1995), esse sentido não se aplica ao conteúdo da
• obra “O Tocador de Charamela”, uma vez tratar-se de um livro muito bem “afinado”.
573 Privilegiando a linguagem realista, simples e direta, que oscila entre o tom regional
• e o coloquialismo, Linhares narra aspectos da vida do homem amazônida inserido
em uma realidade socioeconômica limitadora, com situações e personagens
díspares que se cruzam e se harmonizam com suas alegrias e tristezas, comédias
e tragédias. A obra é composta por um total de 15 contos, a maioria narrativas
curtas e com poucos personagens, mas com estrutura temática bem definida.
2 A condição humana miserável é recorrente no conto O Tocador de
Charamela, que dá título à obra, de onde emerge a figura humana em contraposição
a um sistema capitalista prepotente e aniquilador que o faz sucumbir. O espaço
0
da cidade de Manaus é pano de fundo dessa narrativa, com seu crescimento
populacional rápido e desorganizado, e sem infraestrutura adequada, estabelece
1 uma ligação estreita com o personagem principal, tornando-se elemento essencial
para a compreensão e análise do enredo narrativo.
8 Assim, o presente trabalho tem como objetivo discutir a figura do homem
em meio a uma cidade em caos, que se faz representar no conto O Tocador de
Charamela, de autoria do escritor amazonense Erasmo Linhares. A análise
vislumbrará a condição miserável e degradante do personagem principal, Zacarias,
que busca suprir suas necessidades básicas de sobrevivência num contexto social
e urbano da cidade de Manaus, que passa por um momento de crise em meio a
um processo de modernização acelerado e sem planejamento, tornando-se assim
um elemento que influenciará na (des)construção desse personagem, que em
1 Neste trabalho utilizaremos como referência a 2ª edição, publicada em 1995 pela UA (Universidade
do Amazonas).
nossa análise receberá a classificação de “herói problemático”, como nos termos de
Lukács (2000). Nesta óptica a degradação humana, e os dilemas dela decorrentes,
assim como o contexto social a sua volta, serão a temática central deste estudo,
cuja análise terá como base teórica autores como: CANDIDO (1992), GOLDMANN
(1976), KOTHE (1987), LUKÁCS (2000), SOUZA (2009), entre outros.
Literatura, espaço e representação
As narrativas literárias costumam formular diferentes experiências
J humanas resultantes das relações sociais, econômicas, políticas e culturais, que
segundo Robson Santos, articulam-se como um sistema vivo que, “[...] justificam-
A se e se sustentam na medida em que a criação envolve múltiplos elementos sociais,
psicológicos, linguísticos etc., interligados sob as teias do discurso” (SANTOS,
L 2008, p. 9), pois na medida que contempla a literalidade estética e ideológica, lança
também um olhar crítico e reflexivo em torno dos acontecimentos sociais.
L Os dilemas que afligem o ser humano na modernidade, em decorrência das
lutas de classes e do apagamento do indivíduo proletário na sociedade capitalista,
tornaram-se tema recorrente na literatura a partir do século XIX, expondo uma figura
A
tipológica que passou a ser denominada de “herói problemático”. Tal nomenclatura
representa indivíduos que vivem em constante busca para assegurar condições
mínimas que garanta suprir as necessidades mais básicas de sobrevivência.
A figura do herói sempre esteve presente nas fábulas, colocando em
• destaque qualidades nobres, como sabedoria, bravura e coragem, por meio de
atuações estratégicas bem-sucedidas, por isso habitam um nível mais elevado
574
que o indivíduo comum, que luta diariamente por sobrevivência em meio a um
• sistema social hostil e opressor. Segundo Flávio R. Kothe (1987), as narrativas
têm quase sempre por determinante algum tipo de herói que se situa de alguma
maneira em relação ao espaço que o abriga, sendo este responsável não só por sua
caracterização, como também por imprimir um sentido particular a sua existência
e trajetória.
2 Dentre as diversas tipologias de heróis que permeiam o universo literário,
Kothe os classifica em dois grupos assim distribuídos: os baixos e os altos, sendo
0 baixos, àqueles considerados inferiores socialmente, enquanto os altos pertencem
a alta sociedade, e possuem maior prestígio social. A descida do herói divino, vindo
1 da antiguidade, para o herói mais humano e complexo, produto da modernidade,
tem sido representada na literatura numa ordem tipológica assim sequenciada por
Kothe (1987, p.15): “o herói épico é o sonho do homem fazer a sua própria história;
8 o herói trágico é a verdade do destino humano; o herói trivial é a legitimação do
poder vigente; o pícaro é a filosofia da sobrevivência feita gente”.
Enquanto o herói épico é representado por sua baixeza, a decadência
tende a torna-lo maior, pois como afirma Kothe (1987, p. 14), “à medida que o
herói épico decai em sua “epicidade”, ele tende a crescer em sua “humanidade” e
nas simpatias do leitor/expectador”; já o herói trágico, contrariando seu destino,
seu sucesso se dá pela sua desgraça em decorrência da tragédia. Enquanto o herói
pícaro é aquele que procura sempre levar vantagem em tudo, luta em benefício
próprio, e quer sempre ganhar, mas sem muito esforço, sem ocupação social
definível. (Kothe, 1987).
O conceito de herói costuma acompanhar o percurso histórico, estando ele
intimamente ligado à época e à sociedade que o criou, na literatura contemporânea
a imagem do herói idealizado dentro dos padrões românticos cedeu lugar a um tipo
mais realista, que acompanha a angústia humana em meio ao mundo capitalista,
onde o dinheiro impulsiona a busca desenfreada e inescrupulosa por prestígio e
J ascensão social, que muitas vezes resultara no apagamento da autenticidade do
ser humano. É nesse contexto que o processo de degradação humana se instaura,
A e a construção da figura do herói passa a refletir as necessidades do povo oprimido
por um sistema dominante que estabelece divisões sociais e de classe entre os
L indivíduos, uma vez que nem todos conseguem alcançar a posição almejada.
Como o espaço também ocupa lugar de destaque na (des)construção
e representação dos personagens, não só por situar as ações, mas também por
L
contribuir com sua caracterização, uma vez que este, no contexto narrativo,
estabelece uma relação muito estreita e dinâmica com seu entorno, cabe aqui
A também destacar a importância desse elemento dentro do contexto narrativo
criado por Linhares. Assim, será possível compreender a estreita ligação que o
autor estabelece entre o personagem e o espaço, e como este é determinante para
o desenvolvimento do enredo.
O espaço Amazônico tem sido explorado por diversos escritores em
• diferentes momentos históricos, desde os relatos dos primeiros viajantes, passando
575 pelo apogeu e declínio do ciclo da borracha na região. Uma sequência narrativa que
• vai da exploração da matéria-prima à exploração do homem pelo próprio homem,
num ambiente de degradação do ser e das relações humanas, como nos aponta
o escritor e historiador Márcio Souza, na obra “História da Amazônia”, ao fazer
referência ao período do pós-ciclo da borracha:
A Amazônia transitava entre a solidão dos abandonos e as raras manifes-
tações de caridade populacional e o índice de liquidez caiu praticamente a
2 zero. A massa rural regredia para o sistema de trabalho de subsistência e
para o regime de troca. A desolação era completa. Os que permaneceram
0 no vale depois do desastre foram obrigados a resistir com todas as forças.
(SOUZA, 2009, p. 313-314).
Foi morar na rua, e ao envolver-se em uma disputa por uns restos de Cocal,
quebrou a charamela na cabeça do rival. Sem o instrumento que lhe possibilitava
2 ganhar alguns trocados, o protagonista fica sem perspectiva, “[...] dormia noites e
dias nos bancos e sob os bancos da praça, sem ânimo e coragem para voltar ao velho
0 barco abandonado sob a ponte, as pernas e os braços cobertos de escaras que se
abriam em pontos diferentes imitando cores e caprichos de cravina”. (LINHARES,
1 1995, p.39).
Após ter alta na Santa Casa de Misericórdia, concluiu que não havia outra
8 saída senão dar uma “virada” em sua vida, tentar um recomeço, foi aí que decidiu
se reconciliar com a esposa e retomar o antigo emprego, porém, “[...] quando saltou
do ônibus pela porta da frente a viu entrar pela porta de trás, com uma barriga que
calculou ser de oito meses, e compreendeu que o plano falhara[...]. (LINHARES,
1995, p.39).
Uma trajetória que se resume numa soma de fracassos, onde o desejo
de um recomeço também lhe é negado, restando mais uma vez a frustração, “o
indivíduo problemático, inserido no mundo contingente, busca o sentido que lhe
falta, numa tentativa sempre frustrada de superar a má infinitude”. (LUKACS,
2000, p. 104).
Se o termo degradação pode significar descida, apagamento, destruição,
esse processo só poderá ser comprovado num momento posterior ao fato acontecido,
o que permite verificar a diferença progressiva entre o antes e o depois. Sendo
assim, a trajetória do protagonista aqui analisado, não deixa dúvida a respeito do
seu enquadramento dentro da tipologia baseada no conceito de degradação, como
já havíamos anunciado, e como sua visão de mundo projeta-se no espaço que o
cerca, ao mesmo tempo em que este o sucumbe da maneira mais degradante, e em
J todas as instancias possíveis, como demonstrado na análise aqui realizada.
Considerações finais
A É na modernidade, representada por uma cidade em caos, que Manaus
surge entre as páginas narrativas de Linhares, em imagens de degradação que
L beiram um naturalismo. Nesse espaço se instaura conflitos das mais diferentes
ordens, seja econômica, habitacional, familiar ou pessoal, como uma teia que
L envolve o protagonista Zacarias, e este, como que tragado pelas adversidades e
desencontros, não consegue mais se desvencilhar do destino trágico que se torna
inerente ao herói. A história encerra com um final “em aberto”, sugerindo uma
A continuidade nessa trajetória cambaleante:
Bota mais álcool.
Não, toma uma cana decente. É oferta da casa.
(LINHARRES, 1995, p. 41)
Referências
CANDIDO, Antônio, Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. São Paulo: Edi-
tora 34, 1992.
GOLDMANN, Lucien. Sociologia do romance: tradução de Álvaro Cabral: Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1976.
KOTHE, Flávio R. O herói. 2 ed. Editora Ática, 1987
LINHARES, Erasmo do Amaral. O tocador de charamela. Manaus: UA, 1995.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.
RUAS, Luis. Prefácio. In: LINHARES, Erasmo do Amaral. O tocador de charamela. Ma-
naus: UA, 1995.
SANTOS, Robson dos. Escrita e Sociedade: estudos de sociologia da literatura. Goiânia:
J Ed. da UCG, 2008.
SILVA, Marisa Corrêa. Crítica sociológica. In: BONICCI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana.
A Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Eduem,
2003.
L SOUZA, Márcio. História da Amazônia. Manaus: Editora Valer, 2009.
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L O APLICATIVO DUOLINGO COMO FERRAMENTA DE ENSINO NO
CAP: UMA ANÁLISE SOB O OLHAR DOS ALUNOS
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João Romário Sinhasique (UFAC)
A Marileize França (UFAC)
RESUMO: O artigo resulta da pesquisa intitulada “A Aprendizagem em Espanhol e
Inglês mediada pelo app Duolingo”, financiada pelo Ministério das Comunicações,
em parceria com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Acre. Embasada em uma
perspectiva sócio-interacionista (VYGOTSKY, [1930], 2007), em que o aprendizado é
• construído em um meio social; interdisciplinar considerando que o sujeito e o outro
estão o tempo todo imersos na linguagem, no diálogo e na interação (BOCHNIAK,
582
1992; SAVIANI, 2003); e em concepções sobre Letramento digital (SOTO et al.,2009;
• PRENSKY, 2001a, 2001b), ofertou-se um curso de inglês e espanhol mediado pelo
Duolingo para alunos do 6º ao 8º ano do Colégio de Aplicação da Universidade
Federal do Acre. Dado o exposto, objetiva-se apresentar a percepção de quarenta
e um (41) participantes, diagnosticada, através de análise da pesquisa quantitativa
e qualitativa (FONSECA, 2002; GERHARDT, 2009), identificando, assim, o bom
2 aproveitamento, os pontos fortes e fracos do curso.
Palavras-chave: Percepção. Ensino de Espanhol e Inglês. Aplicativo Duolingo.
0 Introdução
Posto que este artigo resulta da pesquisa intitulada “A Aprendizagem em
1 Espanhol e Inglês mediada pelo app Duolingo”, considera-se pertinente fornecer
algumas informações a seu respeito. A pesquisa aprovada no âmbito do Edital
8 003/2017 MCTIC/FAPAC, do Programa Redes Digitais da Cidadania, financiada
pelo Ministério das Comunicações, em parceria com a Fundação de Amparo à
Pesquisa do Acre (FAPAC), desenvolveu-se no segundo semestre de 2017 no Colégio
de Aplicação (CAp) da Universidade Federal do Acre.
Cientes das novas possibilidades de ensino utilizando-se das Tecnologias
de Informação e Comunicação (TICs) como ferramentas educacionais e com a
concepção que o professor precisa engajar o aluno em um processo de aprendizagem
mais autônomo, ou seja, orientá-lo a lidar com as TICs em prol do seu processo
de aquisição de conhecimento em espanhol e inglês desde a Educação Básica, as
professores de língua inglesa e espanhola do CAp buscaram recursos tecnológicos
a fim de possibilitar a inclusão da tecnologia como ferramenta educacional de
acesso e construção de conhecimento contribuindo, assim, com o desenvolvimento
da autonomia dos alunos no processo de aprendizagem. Isto porque, ao estimular
a autonomia dos alunos na aprendizagem de línguas, cria-se a possibilidade de
formar pessoas mais empoderadas, tolerantes, empáticas e, portanto mais aptas à
vida em sociedade.
Nessa perspectiva, com vista à formação integral dos estudantes como
J cidadãos críticos que compreendem o papel que o uso consciente da linguagem
exerce nas diferentes situações de ação no mundo social, as professoras delinearam
A um curso para quarenta e um (41) alunos do 6º ao 8º ano que se pautou na
interdisciplinaridade, que pode propiciar ao aluno um olhar mais crítico, além de
L desenvolver a reflexão sobre assuntos que vão desde a ética à pluralidade cultural
(SAVIANI, 2003). Buscou-se, assim, estabelecer uma interface entre o uso da
tecnologia na sala de aula com o currículo da escola e um repensar do processo de
L ensino-aprendizagem de Língua Inglesa e espanhola.
Considerando o exposto, objetiva-se aqui apresentar uma análise
A do curso sob o olhar dos alunos, abordando questões referentes à avaliação
geral, desempenho individual e do aplicativo utilizado, assim como dificuldades
enfrentadas pelos alunos no decorrer do processo de construção de conhecimentos.
Aspectos Teóricos
• Com a concepção que o sujeito é um ser sócio histórico, que se constitui
e se desenvolve na relação com o outro, em uma atividade intermediada pela
583
linguagem, conforme pontua Vygotsky ([1930] / 2007) e Bakhtin ([1953] / 2003), o
• curso com enfoque no ensino da língua inglesa e espanhola mediada pelo aplicativo
Duolingo, delineou-se em uma perspectiva sócio-interacionista (VYGOTSKY, [1930],
2007), em que o aprendizado é construído em um meio social; em um estudo
interdisciplinar (BOCHNIAK, 1992; SAVIANI, 2003) considerando que o sujeito e
o outro estão o tempo todo imersos na linguagem, no diálogo e na interação; e em
2 concepções sobre Letramento digital (SOTO et al., 2009; PRENSKY, 2001a, 2001b).
Entende-se que a inclusão da tecnologia como ferramenta educacional
0 na sala de aula pode promover a construção de novos conhecimentos, a cultura
e a inclusão digital, contextualizadas por temas transversais, bem como o
1 desencadeamento de uma aprendizagem mais autônoma, visto que uma vez
mais autônomos, os alunos se apropriam do seu processo de aprendizagem. Para
isso, tornou-se necessário fomentar debates sobre diversos assuntos dentro da
8 sala de aula utilizando-se da interdisciplinaridade, através de um “processo de
coparticipação, reciprocidade, mutualidade, diálogo que caracterizam não somente
as disciplinas, mas todos os envolvidos no processo educativo”, conforme sugere
Bochniak (1992, p.147).
A Lei de Diretrizes e Base da Educação 9.394/96 e os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) de Língua Estrangeira do 3º e 4º ciclos indicam
também o uso da interdisciplinaridade como forma de desenvolver a integração
dos conteúdos de uma disciplina com outras áreas de conhecimento, o que torna
uma importante ferramenta para o aprendizado do aluno. Saviani (2003) afirma
que a interdisciplinaridade possibilita um passar de conhecimento setorizado para
um conhecimento integrado onde as disciplinas se interagem. Bochniak (1992)
pontua que, através dessa interação, há troca de metodologias, conhecimentos,
ou seja, troca de dados, resultados, informações e métodos. Nessa perspectiva,
a interdisciplinaridade, eixo integrador como um objeto de conhecimento, de
investigação e intervenção (BRASIL, 2002), esteve presente no decorrer do curso,
de maneira contextualizada e permanente.
J Ao considerar a perspectiva sócio-interacionista (VYGOTSKY, [1930],
2007) em que o aprendizado é construído em um meio social, a internet, os
A aplicativos (apps) podem se tornar para o aluno uma ferramenta útil para o
desencadeamento de uma aprendizagem mais autônoma, buscando informação
L no mundo e construindo seu próprio conhecimento através da aprendizagem
colaborativa ao trocar experiências com outros alunos / pessoas em variadas
situações comunicativas.
L
Nesse sentido, faz-se necessário um ensino em que os alunos estejam
capacitados a utilizar recursos digitais que auxiliem sua aprendizagem, a fazer
A buscas mais eficientes na internet, a avaliar os conteúdos encontrados e a interagir
com eles criticamente. No entanto, para que isso seja, de fato, profícuo, é preciso
promover o letramento digital dos alunos, não apenas garantindo seu acesso a
novos equipamentos e programas de aprendizagem, mas ensinando-os a utilizá-los
de forma crítica e inserida em contextos sociais.
• Entende-se que Letramento digital se refere à habilidade de localizar,
584 organizar, entender, avaliar e produzir conhecimento usando tecnologia digital
• (SOTO et al.,2009). O que nos permite explorar os multiletramentos (ROJO;
MOURA, 2012, p. 38) que “levam em conta a multimodalidade e a multiplicidade
de significações e contextos/culturas” mostrando-se assim, uma alternativa viável
para ser utilizada no contexto em que se insere essa pesquisa. O termo faz referência
às novas práticas de letramento as quais envolvem multiplicidade de linguagens e
2 mídias presentes hoje na criação de textos, e sua diversidade cultural referente aos
seus produtores e também leitores. (ROJO; MOURA, 2012, p. 168-169).
Diante de toda esta cultura digital que nos rodeia educar significa
0
possibilitar o acesso às informações e ao conhecimento que as tecnologias
promovem. Embora os alunos estejam supostamente bastante familiarizados com
1 as tecnologias digitais, por serem considerados nativos digitais (PRENSKY, 2001a,
2001b), é muito comum que eles as utilizem de forma limitada, às vezes até mesmo
8 de forma equivocada e/ou para entretenimento e não como uma ferramenta de
auxílio à aprendizagem. Sabe-se que grande parte dos alunos desconhece, por
exemplo, a existência de diversos apps que podem auxiliar no processo ensino-
aprendizagem de uma Língua Estrangeira.
A abreviatura app origina-se do termo Application em inglês, que significa
aplicativo. Por aplicativos, entendem-se os programas que podem ser instalados
no telefone celular ou tablets principalmente por meio de lojas de aplicativos. Há
também aplicativos voltados ao entretenimento que costumam chamar muita
atenção de crianças e jovens por serem jogos virtuais, como Candy Crush Saga,
Crash Royale, Bomber Friends e Pokémon Go. Ao notar esse interesse, educadores
e programadores passaram a construir apps que se propõem a ensinar enquanto
divertem. Em busca de tornar o processo de ensino-aprendizagem mais similar a
um jogo, desenvolveram-se técnicas de gamification, ou gamificação que consiste
em utilizar os recursos/estratégias dos jogos em outros contextos (ERENLI, 2013).
Em maior ou menor grau, as lojas de aplicativos dispõem de opções gamificadas
para a aprendizagem de idiomas tais como Duolingo, Memrize, Busuu, hello-hello,
Learn English e outros.
J Acredita-se que o uso de apps no processo de construção do conhecimento
em espanhol e inglês pode proporcionar aos alunos interação e engajamento
A discursivo nestes idiomas, uma vez que possibilita a abordagem de outros assuntos
relacionados à cultura, oferecendo assim, ao aluno oportunidade de conhecer
L novas culturas e valorizar sua própria. Os apps desenvolvem colaborativamente
a construção de novos conhecimentos sobre os mais diversos assuntos. Além
disso, possibilita explorar ambientes diversificados de aprendizagem combinando
L interesses, necessidades e, principalmente, orientação de como usar a tecnologia
sempre em prol das seguintes perguntas: O que? Por quê? Para que? e Como?.
A Diante desse contexto, o ensino de línguas vem sendo mediado por
diferentes tecnologias que, de diferentes maneiras, subsidiam de melhor forma as
quatro práticas de linguagem: compreensão oral, fala, leitura e escrita. Atualmente,
um número muito maior de alunos possui dispositivos móveis, o que significa
que há maior possibilidade de se envolverem em atividades motivadas por suas
• necessidades pessoais. Sabe-se que um dos procedimentos básicos de qualquer
585 processo de aprendizagem é a relação que o aluno estabelece entre o que faz e o que
quer aprender com aquilo que já sabe (MATTAR, 2010). Os apps estão presentes
•
em nosso cotidiano, mediando múltiplas práticas sociais, justificando, assim, seu
uso na educação.
No caso específico da pesquisa, o aplicativo Duolingo se justifica por
ser uma ferramenta útil e significativa em termos pedagógicos, que promove a
2 aquisição de duas segundas línguas, inglês e espanhol, assim como a construção
de novos conhecimentos, utilizando-se da interdisciplinaridade.
0 O aplicativo Duolingo como ferramenta de ensino
J
A
L
L
Bom
71%
A
FONTE: Os autores (2018)
Os dados revelam um conceito “bom” quanto ao desempenho individual de
71% dos alunos participantes. Isto reflete o desempenho do aluno em comparação
com o curso em si. Entende-se que ao fazer uso de um aplicativo de ensino, muito
• se exige dos alunos no que diz respeito a sua autonomia para a realização das
atividades, uma vez que requer do aluno disciplina e esforço individual de cada um.
588
Os dados sugerem que os discentes reconhecem que poderiam ter se empenhado
• mais para alcançar as metas no app e, assim, obter um desempenho melhor, uma
vez que a maioria dos participantes considera o curso “ótimo”. Entretanto, apesar
da ótima avaliação do curso, a chance de ter uma alta indicação a um colega seria
apenas de 61%, conforme gráfico a seguir.
GRÁFICO 3- INDICAÇÃO DO CURSO A UM COLEGA
2 Muito baixa
Não respondeu Baixa Regular
2%
0%
0% 15%
0
1
Boa
8 22%
Alta
61%
A Péssimo Ruim
5% Regular
0%
7%
L
Bom
12%
L
A
Ótimo
76%
•
589
FONTE: Os autores (2018)
•
Observa-se que 76% dos alunos avaliaram o app Duolingo como ótimo.
No entanto, o exposto no gráfico acima atrelado a informações de que a potência
do processamento do celular, utilizado para a realização do curso, é baixa, o
que ocasiona travamentos em apps exigindo um pouco mais de processamento,
2 possibilita inferir que os 24% referente à avaliação do app – distribuídos em ruim,
regular e bom, foram resultados obtidos, provavelmente, devido a dois fatores:
limitação sofrida pelo desempenho do aparelho e falta de tempo em alcançar as
0 metas estabelecidas, conforme relatos dos alunos, e não pela falta de ferramentas
de ensino do app.
1 A lentidão do aparelho se justifica devido ao modelo de celular, contudo,
esses travamentos não eram recorrentes ao ponto de impedi-los de utilizarem o
8 aplicativo para a execução das tarefas propostas pela equipe do projeto. O outro
aspecto, “fator tempo”, reflete um processo de não gerenciamento de tempo por
parte do aluno no processo de aprendizagem. O que pode ser explicado pela faixa
etária, alunos com idades entre 11 e 13 anos, que ainda não desenvolveram uma
autonomia e precisam de orientações para gerenciar o tempo de estudos. Esses
fatores agregados a outros geram dificuldades descritas no gráfico a seguir.
GRÁFICO 5. DIFICULDADES ENFRENTADAS PELOS ALUNOS
J
A
L
L
A
FONTE: Os autores (2018)
No decorrer do curso, a maior dificuldade dos alunos se diz respeito à
locomoção. Por se tratar de um curso ofertado no turno vespertino, há alguns
pontos que se fazem necessários ressaltar, tais como: indisponibilidade dos pais
• para deixar os alunos; o preço do passe de ônibus para ir à escola duas vezes ao
590 dia; cansaço de se locomover até a residência para almoçar e retornar para o curso.
• Outra dificuldade enfrentada refere-se às várias atividades realizadas
na escola que coincidiam com o horário do curso. Os alunos relataram que por
muitas vezes tiveram conflitos de horários, ou seja, outras atividades, como provas
e projetos paralelos que os impediam de por vezes ir para o curso do Duolingo.
Um quantitativo reduzido de alunos, dentre os quarenta e um (41) participantes,
2 apontaram a conversa em sala de aula demasiadamente desconfortável para a
compreensão da aula.
0 No que tange a outras dificuldades, três (3) alunos destacaram: timidez,
parente doente e dificuldade com a aprendizagem da língua. Quanto à timidez, os
dois alunos que relataram esse problema disseram ter superado no decorrer do
1 curso. Um aspecto interessante de se observar aqui é que o espaço de aprendizagem
delineado no curso, caracterizado por interações entre os aprendizes e os parceiros
8 mais competentes (VYGOTSKY, [1930] / 2007), contribuiu para a solução de
problemas.
No que se refere aos melhores e piores momentos dos alunos durante o
curso, os dados revelam que houve mais aspectos positivos que negativos. O que
revelou resultados satisfatórios uma vez que esse recorte buscou-se identificar a
percepção dos participantes quanto ao curso, bem como pontos que poderiam ter
sido mais bem trabalhados. Uma conclusão que emerge desse estudo é que os
alunos ainda precisam de orientações quanto ao uso da tecnologia como ferramenta
educacional e de mais atividades e/ou futuros projetos que promovam a aquisição
de autonomia, fortalecendo a construção de novos conhecimentos em língua inglesa
e espanhola mediada por aplicativos.
Conclusão
Esse artigo objetivou-se apresentar a percepção de quarenta e um
(41) alunos do 6º ao 8º ano do Ensino Fundamental do Colégio de Aplicação
da Universidade Federal do Acre, participantes do curso ofertado no decorrer
da pesquisa intitulada “A Aprendizagem em Espanhol e Inglês mediada pelo
J app Duolingo.” Percepção esta diagnosticada, através de dados quantitativos e
qualitativos, identificando, assim, o bom aproveitamento, os pontos fortes e fracos
A do curso.
Os dados analisados evidenciaram um bom aproveitamento do curso por
L parte dos alunos e uma satisfação com as atividades propostas em sala de aula,
tais como: gincanas e atividades diversas desenvolvidas com e sem o app. Além da
L promoção do sentimento de competição e superação, da percepção do progresso
pelo alcance das metas e pelo próprio aprendizado ao longo do curso. O aluno x
ilustra a avaliação feita pelos participantes no final do curso: “Obrigado pelo curso
A
além do aprendizado foi muito bom passa o tempo com todos vocês”.
Como é possível perceber pela avaliação do aluno, o delineamento do
curso em uma perspectiva sócio-interacionista (VYGOTSKY, [1930], 2007), em
que o aprendizado é construído em um meio social, possibilitou um ambiente de
• interação entre os aprendizes e os parceiros mais competentes, de forma que o
nível real em que o aluno estivesse e o seu nível em potencial para aprender sob a
591
orientação de um parceiro mais competente pudesse ser explorado. O que pode ser
• observado no relato do aluno y: “Eu nunca tive pior momento no curso, graças ao
Duolingo fiz novos amigos e me aproximei de pessoas que eu mal conhecia, minha
parte favorita é quando acertamos uma questão que a professora dá e ganhamos
um doce como recompensa.” Atividades que permitiram a troca de experiências,
a construção de novos conhecimentos e, consequentemente, aquisição de novos
2 amigos contribuindo, assim, para a superação do bloqueio presente, em alguns
casos, em aprender uma nova língua.
0 Os aspectos negativos pontuados pelos alunos: utilizar o app, que por vezes
travava devido à baixa potência de processamento do celular; incompatibilidade
1 do horário do curso com as atividades extras classes também ofertadas no turno
vespertino; dificuldades financeiras e também cansaço para se locomover até a
residência e retornar para o curso; em geral, foram os problemas e conflitos mais
8 enfrentados que ocorreram durante o desenvolvimento das atividades. Conflitos
estes que de alguma forma inviabilizaram o desenvolvimento das atividades
conforme planejadas, e que carecem de reflexão no delineamento de futuros estudos
propostos na perspectiva desse aqui apresentado.
Acredita-se que um dos grandes desafios da educação atual é o de
criar condições para a integração dos recursos da tecnologia a um aprender
mais significativo, visando um alinhamento com o letramento digital dos alunos.
Entretanto, a aprendizagem mediada pela tecnologia demanda do aluno uma
autonomia on-line e estratégias para administrar seu tempo de estudo. É razoável
inferir pelo perfil dos aprendizes em questão (alunos com idade entre 11 e 13 anos)
que eles tendem a ser menos autônomos e os dados revelam que eles precisam de
mais orientações para a construção de sua autonomia.
Apesar das limitações desse estudo, seu mérito está em contribuir com a
reflexão uma vez que procurou estar em sintonia com as novas demandas sociais
da atualidade, priorizando uma nova relação com o conhecimento e, desse modo,
promovendo a inclusão digital do ensino de Língua Estrangeira numa perspectiva
J interdisciplinar na escola pública, portanto, com a concepção que outras pesquisas
com foco no desenvolvimento da autonomia no processo de aprendizagem de Língua
Estrangeira mediada por aplicativos, por exemplo, poderão trazer uma significativa
A contribuição para o debate em torno dessa temática.
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/ 2007).
J
A
L LIMITES E POSSIBILIDADES ENTRE A EDUCAÇÃO BÁSICA
E UNIVERSITÁRIA: CONCEPÇÕES DE ALUNOS(AS) DO
L ENSINO MÉDIO SOBRE A POSSIBILIDADE DE INGRESSO NA
UNIVERSIDADE
A
Jorge Fernandes (UFAC)
Ângela Maria Bastos de Albuquerque (UFAC)
RESUMO: Nesta pesquisa, investigamos 243 alunos(as) nos anos finais do ensino
médio, para analisar o grau de aproximação versus distanciamento entre os
• concludentes da educação básica e a universidade. Pela aplicação de questionários,
593 registramos as concepções sobre a universidade na visão de alunos(as) das escolas
públicas no ensino médio. Utilizamos as bases teóricas de (ARROYO, 2014) e (LAHIRE,
•
2008) ao tratarem respectivamente das desigualdades de oportunidades entre as
populações subalternizadas e as razões do improvável, quando alunas e alunos
das classes populares alcançam os degraus da escolarização em nível superior.
Os resultados parciais indicam que alunas e alunos de escolas públicas em vias
de concluírem a educação básica, desconhecem seus direitos quanto aos cursos
2 universitários como também desconhecem as bolsas e auxílios que possibilitam a
permanência nos estudos aos alunos(as) em situação de vulnerabilidade econômica.
0 Palavras-chave: Ações afirmativas. Orientações. Universidade. Ensino médio.
Introdução
1
A transição entre a educação básica e a universidade ou faculdade é o
tema central desta pesquisa. O trabalho realizado nas escolas de ensino médio
8 através da disciplina de Investigação e Prática Pedagógica na Universidade Federal
do Acre tem possibilitado reflexões sobre as condições de alunos(as) ao final da
trajetória escolar na educação básica. As limitadas vagas nas universidades federais
e estaduais impõem desafios principalmente aos egressos das escolas públicas.
As condições econômicas desfavoráveis apresentam dilemas pela necessidade de
escolha entre ingressar na universidade e continuar estudando em nível superior
ou entrar no mercado de trabalho.
Os participantes da pesquisa foram 513 alunos(as) do segundo e
terceiro ano do ensino médio, em duas escolas públicas na cidade de Rio Branco,
Acre. As análises foram realizadas pela amostragem de dados referentes a 243
discentes através de um projeto de extensão cuja finalidade tem sido orientar
futuros candidatos ao exame do Enem em relação às expectativas de ingresso na
universidade. O principal objetivo foi investigar o que pensam os alunos(as) na
fase final da educação básica, sobre a possibilidade de estudarem na universidade.
Buscamos compreender que projeções são realizadas pelos discentes em relação
aos cursos, as bolsas de auxílio financeiro e o direito às cotas ou reserva de vagas
J legalmente garantidas a determinados grupos de candidatos do Enem aprovados
na universidade.
A Para obtenção dos dados utilizamos a seguinte metodologia: antes de
realizarmos as orientações previstas no projeto, disponibilizamos para cada aluno(a)
L um questionário na intenção de conhecer o perfil dos discentes e de sua família,
situação sócio econômica, visão sobre a escola e perspectivas sobre o ingresso na
universidade. Entre os principais questionamentos destacamos os seguintes: O
L que pensam sobre a universidade? A quem recorrem em busca de orientação sobre
o futuro após o ensino médio? Quais as expectativas após concluir a educação
A básica: adentrar no mercado de trabalho ou ingressar em um curso universitário?
Em quais cursos constroem expectativas de ingresso caso sejam aprovados(as)
no Enem? Que informações dispõem sobre as cotas ou reservas de vagas nas
universidades públicas? O que sabem sobre as bolsas e auxílios disponibilizados
nas universidades?
• Na intenção de situar a discussão no campo teórico, registramos os
594 conceitos de renomados pesquisadores sobre a temática da educação universitária
nas classes populares e os desafios que enfrentam no percurso da trajetória escolar
•
desde a educação básica até onde é possível alcançar seus direitos educacionais.
Registramos os dilemas enfrentados ao aproximar a conclusão da educação básica
e o resultado de suas expectativas e as realidades nesse período do percurso
escolar.
O que mais chama atenção nessa constatação é o fato de mais de 30% das
respostas indicarem que não sabem nada sobre a reserva de vagas na universidade.
Se somarmos com os que sabem “pouca coisa” e os que apenas já ouviram falar,
temos mais de 90% de alunos(as) que por serem oriundos de escolas públicas, por
si só, já teriam direito às cotas, mas, não sabem exatamente o que fazer para se
beneficiarem delas. Uma hipótese para esse resultado seriam os posicionamentos
de determinados grupos de pais e professores que se posicionam contrários a essa
política, o que pode justificar a grande falta de conhecimento dos alunos sobre o
J assunto.
Quando perguntados se eram contra ou a favor das cotas nas universidades,
A aproximadamente 60% se posicionaram a favor, apesar de não saberem explicar
exatamente o que elas significavam. Os outros cerca de 40% não responderam
L ou não souberam opinar. Desses cerca de 15% do total de 243, se posicionaram
contrários a política de reserva de vagas. É possível perceber também a influência
midiática que se posiciona contrária às reservas de vagas para alunos das escolas
L públicas, alunos carentes, negros, indígenas e com deficiências. As opiniões de
pais e alunos contrários as cotas, expressam a força das mídias sociais e televisivas
A sobre essa política que tenciona oportunidades mais justas e igualitárias entre
pobres e ricos.
Na mesma direção, Almeida et. al (2016), pesquisou através da aplicação
de questionários aos estudantes de ensino médio de escola pública e privada, no
Maranhão, a seguintes questão: “Você concorda com a Política de Cotas Raciais para
• estudantes negros e índios entrarem na universidade?”. (ALMEIDA et. al, 2016, p.
600 7). Os autores(as) identificaram que na escola pública 42,86% posicionaram-se
contrários à política de cotas. Na escola privada, obteve-se o percentual de 40%
•
dos estudantes que se posicionaram contrários as cotas. Pesquisas fragmentadas
que isolam as categorias beneficiadas podem demonstrar resultados diferentes se
as mesmas considerassem o conjunto de alunos(as) incluídos na Lei nº 12.711 de
2012.
2 Referências
ALMEIDA, Aline de Sousa Santos. (et. al). Política de cotas raciais para o ingresso em uni-
versidades: mapeamento discursivo de estudantes do ensino médio. Universidade Federal
0
do Maranhão – UFMA. VIII Fórum Internacional de Pedagogia. Grajaú, MA: 2016.
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de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para dispor sobre a
formação dos profissionais da educação e dar outras providências.
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•
602
•
2
0
1
8
J
A
L CACHUELA ESPERANZA, O IMPÉRIO DA “GOMA”: HISTÓRIA,
CULTURA E IDENTIDADES
L
José de Ribamar Muniz Ribeiro Neto (UNIR)
A Auxiliadora dos Santos Pinto (UNIR)
RESUMO: O presente artigo apresenta resultados de uma investigação sobre o
processo de constituição da História, da Cultura e das Identidades do Distrito
Cachuela Esperanza, na Cidade de Guayaramerín/Beni – Bolívia. O estudo do tema
é relevante porque, no período áureo dos ciclos da borracha, o referido Distrito
• foi considerado o império da goma e teve grande influência no desenvolvimento
histórico, econômico e social do país boliviano e das localidades situadas na
603
fronteira Brasil/Bolívia. A pesquisa bibliográfica e de campo, de natureza
• qualitativa, foi fundamentada pelos pressupostos teórico-metodológicos da História
Oral, destacando-se os estudos de Portelli (2016); Hall (2016); Mendonza (2014);
Halbwachs (1990); e outros. A partir da reconstituição da memória, os resultados
da pesquisa evidenciaram que os moradores do Distrito preservam as histórias, a
cultura, as identidades e o patrimônio histórico material da localidade.
2 Palavras-chave: Cachuela Esperanza. História. Cultura. Identidades.
Introdução
0
Este trabalho discute sobre a importância do distrito Cachuela Esperanza,
para o desenvolvimento das cidades gêmeas Guayaramérin/Beni e Guajará-Mirim/
1 RO, na fronteira Brasil/Bolívia. Também registra alguns elementos do processo de
ocupação do referido distrito, que no 1° e 2ª ciclo da borracha foi a sede de um
8 grandioso seringal e fomentou a economia, a cultura e as inovações tecnológicas
da região. Pretende-se, também, registrar alguns aspectos que contribuíram para
a constituição da cultura e das identidades dos povos que viveram/vivem na
fronteira em epígrafe. A localidadesitua-se nas proximidades dos rios Beni e Iata,
Departamento de Beni, Província Vaca Díez, num percurso de 44 quilômetros, via
terrestre até chegar a Guayaramerín, e era ponto estratégico para o escoamento da
borracha produzida nos seringais bolivianos. Inicialmente, o Distrito foi ocupado
pela população boliviana e por brasileiros que habitavam na fronteira. Com a
expansão da localidade, Nicolás Suárez Callaú, importou mão de obra especializada
de outros países, especialmente, da Europa. No Distrito foi implantada a primeira
escola profissionalizante da região. Embora, a localidade tivesse uma moderna
infraestrutura, as relações de poder instauradas na localidade foram marcadas
pela dominação e autoritarismo. O estudo do tema é relevante porque é necessário
compreender a complexidade do processo de formação, desenvolvimento e declínio
de inúmeraslocalidades que surgiramno período áureoda extração do látex na
Amazônia. O estudo foi norteado pelas seguintes questões: Quais os principais
impactos do processo de formação, desenvolvimento e decadência da localidade
J CachuelaEsperanza paraa formação socioeconômica, cultural e identitária das
cidades gêmeas Guayaramerín/Bolívia e Guajará-Mirim/Brasil? Como era a
organização sociopolítica e econômica do referido Distrito no período em que ele
A
foi criado? Na atualidade, como o Distrito está organizado? Por se tratar de uma
região de múltiplas fronteiras (histórico-geográficas, sociolinguísticas e culturais),
L a coleta e análise dos resultados da pesquisa foram fundamentadas pelos estudos
de: Cavalcanti (s/d), que relata a importância do Distrito para o desenvolvimento
L da fronteira; Portelli (2016), que concebe a História Oral como dialogia, etnografia e
usos da memória; Hall (2016), que discute sobre: representação, cultura, linguagem
A e sentido; Silva (2012), cuja obra defende que a construçãodas identidades faz
parte do processo de hibridização das culturas; Durán (2014), que na obra El Rey
de la Goma apresenta uma coletânea de cartas que relatam fatos familiares e os
conflitos da época.
A pesquisa, bibliográfica e de campo, do tipo qualitativa, foi desenvolvida
• no período de junho de 2017 a junho de 2018, a partir da análise documental,
604 conversas informais, aplicação de entrevistas e registros fotográficos.
Os critérios utilizados para seleção dos sujeitos da pesquisa foram
•
definidos através da amostragem, observando-se os seguintes requisitos: ter idade
superior a 50 anos, e ter conhecimentos sobre a história da formação do Distrito.
Durante o processo de ocupação do referido Distrito, os habitantes
foram submetidos às normas impostas pelos administradores e proprietários do
2 local. Porém, na medida em que os imigrantes e a população autóctone foram
convivendo na região, as mudanças foram sendo implementadas. Dessa forma, a
realização deste estudo contribuirá para a compreensão do processo de ocupação
0 e desenvolvimento da fronteira Brasil/Bolívia.
Cachela Esperanza: aspectos sócio-históricos do processo de ocupação e
1 formação
Neste tópico, tomando como base a teoria da Semântica do acontecimento,
8 relatamos, de forma breve, o acontecimento que deu origem ao nome do atual
Distrito Cachuela Esperanza. Também apresentamos alguns aspectos do processo
de ocupação e formação do referida localidade, destacando-se, principalmente, a
saga da família Suárez no período áureo da borracha, na fronteira Brasil/Bolívia.
A origem do nome
Segundo José Luiz Duran Mendoza1, historiador e atual responsável do
arquivo histórico de Nicolás Suárez, o nome Cachuela Esperanza2 teve origem a
J
A
L
L
A
Figura 1: Placa de fundação de Cachuela Esperanza, Fonte: Acervo pessoal.
Começava então o processo de ocupação da localidade que também foi
denominada Cachuela Esperanza.Não demorou muito para o negócio prosperar,
visto que, segundo a história, a região produzia uma borracha de excelente qualidade,
•
atraindo empresários bolivianos, brasileiros e europeus para fazer negócios muito
606 rentáveis.
• Assim, diante do potencial econômico da localidade e da região
fronteiriça, Nicolás Suárez Callaú decide investir tanto na infraestrutura como na
contratação da mão de obra especializada com o objetivo de ampliar as atividades
do empreendimento familiar.
Segundo Mendoza, um dos fatores que levaram a empresa implantada
2 em Cachuela Esperanza a ter um processo de formação acelerado foi a informação
que naquela região o látex extraído era de altíssima qualidade, o que também
0 acarretou no aumento na demanda e na necessidade de mão de obra especializada
vinda de outros países para a capacitação dos trabalhadores. Com o aumento do
lucro, também foi possível o investimentona infraestrutura construindo casas,
1
alojamentos, teatro, sala de cinema etrazendo também novidades tecnológicas na
área da saúde, construindo um hospital com o primeiro aparelho de raios-X da
8 região.
Cachuela Esperanza se estabeleceu como sede do negócio da família e
chegou a contar com mais de cinco mil trabalhadores que vinham de diversos
países da América do Sul, Europa e Ásia. No povoado, foi implantada a primeira
escola profissionalizante da região: “[...] Na escola de contadores não saiam com
um título acadêmico, saiam com uma carta que valia até na Europa tamanho o
prestígio da casa Suaréz”. (Entrevistado: J. L. D.M).
Breve caracterização do distrito Cachela Esperanza: aspectos históricos,
geográficos, memórias e práticas culturais
Após a decadência dos ciclos da borracha, os empreendimentos da
Casa Suárez foram sendo, gradativamente, desativados. Porém, grande parte
do patrimônio material cultural foi preservada pelos moradores remanescentes
destacando-se: a igreja, que fora construída sobre pedras; o cemitério, onde foram
sepultados Nicolás Suárez Callaú e outros membros da família Suárez; uma
J pequena estação ferroviária com uma locomotiva; as ruínas de um hospital que no
período áureo da localidade era considerado o mais moderno da América Latina,
A possuindo, inclusive, aparelhos de última geração; ruínas de um teatro, onde eram
apresentados grandiosos espetáculos com a participação de artistas de diversas
L nacionalidades; construções residenciais de diferentes padrões onde residiam
operários, administradores e os integrantes da família Suárez, proprietários do
empreendimento.
L
Ressalta-se que Apesar da importância histórico-econômica e social,
o Distrito Cachuela Esperanza que fomentou o desenvolvimento da Bolívia e de
A outras regiões, não recebeu investimentos em sua infraestrutura e, ao longo dos
anos, principalmente, após a enchente ocorrida no ano de 2014, teve parte do seu
patrimônio deteriorado.
Na atualidade, a população remanescente que permanece morando na
localidade, após o declínio, busca sobreviver de modo alternativo, trabalhando na
•
pesca, na agricultura, na coleta de castanha e/ou em pequenos empreendimentos
607 comerciais, tais como: bares, restaurantes e pequenas mercearias que servem para
• atender a população e aos turistas.
As belezas naturais da localidade se sobressaem no período do verão, época
em que cachoeiras, praias e pedreiras atraem turistas de várias regiões da fronteira
Brasil/Bolívia. Essas paisagens também podem ser vistas a partir de um mirante
localizado na praça da localidade.
2 O aniversário da localidade é comemorado todo ano, com uma grandiosa
festa que reúne a população local, autoridades da região do Beni, e alguns
0 descendentes de pioneiros que se deslocam de outras regiões bolivianas para
participar da festa.
1 Apresentação e análise dos resultados da pesquisa
Neste tópico, apresentamos os procedimentos metodológicos da pesquisa
8 e a análise dos resultados, Para tanto, apresentamos dois subtópicos intitulados:
escolhas metodológicas e resultado da pesquisa de campo.
As escolhas metodológicas
A pesquisa bibliográfica e de campo, do tipo qualitativa, foi desenvolvida
no período de junho de 2017 a junho de 2018, no Distrito Cachuela Esperanza,
Guayaramerín/Beni-Bolívia, tendo como base os pressupostos teóricos e
metodológicos da História Oral, propostos por Portelli (2016):
“A história oral, então, é primordialmente uma arte da escuta. Mesmo quan-
do o diálogo permanece dentro da agenda original, os historiadores nem
sempre estão cientes de que certas perguntas precisam ser feitas. É comum,
aliás, que a informação mais importante se encontre para além daquilo que
tanto o historiador quanto o narrador considerem historicamente relevante”
(PORTELLI, 2016, p. 10).
2
0
1
8
J
A
L MEMÓRIA, HISTÓRIA E NARRATIVA
L José Otavio Lobo Name (UFF)
RESUMO: Este trabalho propõe uma revisão descritiva do documentário “O que
A é meu vem a mim”, deste mesmo autor, à luz de uma breve revisão de conceitos
de memória, história, e narrativa. Na leitura proposta aqui, o filme é um registro
coletivo da memória: seu personagem compartilha com o autor suas lembranças, que
retornam ressignificadas pela edição e pelo espectador. Nesta perspectiva, os fatos
ganham sucessivas narrativas, que se complementam: a consciência individual, o
• relato, o vídeo, e a memória coletiva. Parte da premissa que o filme, realizado a partir
de uma entrevista com o Mestre Ricardo Sales, da Banda de Congo Amores da Lua,
614
acumula diversas camadas narrativas que, por sua vez, resultam de processos
• relativos a memória individual e coletiva, e de registro histórico. As linguagens e
as técnicas de produção documental audiovisual apresentam-se também, neste
contexto, como formas diversificadas de narrativa, constituindo, ao mesmo tempo,
tipos de registros históricos e de lugares de memória.
Palavras-chave: narrativa, memória, história, congo, documentário
2
Neste trabalho farei uma revisão descritiva do documentário “O que é
0 meu vem a mim”1 (2016), de minha autoria e, a partir dele, formular questões
sobre memória e história, e narrativa. O filme mescla trechos de uma entrevista
com Ricardo Sales, Mestre da Banda de Congo Amores da Lua, com cenas de rituais
1 e apresentações da banda, e foi produzido no âmbito do projeto de documentação
audiovisual O Congueiro, que registra e difunde a cultura do congo do Espírito
8 Santo2. Na leitura que proponho aqui, o filme é um registro coletivo da memória:
seu personagem compartilha com o autor suas lembranças, que retornam
ressignificadas pela edição e pelo espectador. Nesta perspectiva, os fatos ganham
1 ver “O que é meu vem a mim”, de Jo Name. Documentário em vídeo. 24min, cor, 2016.
Disponível em: https://youtu.be/vmDAXO-Kpa8. Acesso em: 12/01/2018.
2 O Congueiro é resultado do projeto de pesquisa Holoteca Digital do Congo Capixaba, desenvolvido
na Universidade Federal do Espírito Santo e dedica-se, desde 2014, à documentação audiovisual
e de difusão da cultura do congo em sites de compartilhamento como YouTube, Flickr e Facebook.
O documentário foi selecionado para a Mostra Competitiva do 7º Festival Internacional do Filme
Etnográfico do Recife, em 2016.
sucessivas narrativas, que se complementam: a consciência individual, o relato, o
vídeo, e a memória coletiva.
Segundo Halbwachs, “nossas lembranças permanecem coletivas e nos
são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós
estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isto acontece porque jamais
estamos sós” (HALBWACHS, 2006, p. 30). Para ele há uma permanente negociação
entre nossas memórias e as dos outros. O que acarreta duas premissas: a ideia de
J que nossas lembranças são continuamente reconstruídas, estimuladas por nossas
relações pessoais e sociais; e de que as lembranças pessoais se situam em espaços
A coletivos - mesmo o que guardamos em segredo está modulado pelo pensamento
coletivo.
L Ao apresentar o seu objeto de estudo em Social Memory (1992), James
Fentress e Chris Wickham anunciam o objetivo de verificar o uso que historiadores
e cientistas sociais fazem da memória, lamentando que, apesar da suposta
L
inclusão do testemunho pessoal do “homem comum” na narrativa histórica, a
discussão sobre memória parece manter-se “confinada às perspectivas e questões
A historiográficas tradicionais - a relevância da experiência das pessoas comuns
para a história, a significância histórica da visão do subalterno, ou o grau de
influência que a elite cultural pode exercer sobre a cultura popular” (FENTRESS;
WICKHAM, 1992, p. 2, tradução nossa). Ou seja, por não se debruçar sobre os
processos cognitivos e construtivos da identidade característicos da memória,
• cujas narrativas seguem padrões e lógicos diversos da narrativa histórica, será
615 falha qualquer tentativa de equiparar o testemunho de memória oral à prova
documental; e não irá afetar o status de “sujeitos da história” já ocupado pelas
•
elites. Os autores também classificam a memória em dois grupos: a objetiva, que
tem um teor de “verdade” verificável e referendado socialmente; e a subjetiva que,
embora também influenciada socialmente, é parte intrínseca do eu, partindo das
impressões e sensações pessoais na construção de uma visão de mundo (idem,
p. 5). Essa conceituação reforça a ideia de que a memória individual é fortemente
2 influenciada pela coletiva.
Sobre a relação entre memória e história, Halbwachs, por sua vez, afirma
0 que a história procura pormenorizar os detalhes, mas “não hesita em introduzir
divisões simples na corrente dos fatos” (HALBWACHS, 2006, p. 103). Ou seja, rompe
1 com o contínuo das lembranças individuais e coletivas, apoiadas na proximidade
entre os membros do grupo. Assim, um depoimento, como ponto de vista de uma
8 testemunha menor da história, não é, necessariamente, um documento a reforçar
a narrativa histórica em pauta, mas um novo universo narrativo, com perspectivas
diversas da “verdade social”. Do mesmo modo, apesar da autoridade que a posição
de Mestre lhe confere, Ricardo Sales fala de si, no filme; e é neste contexto que
seu depoimento é assimilado. Outro ponto importante, em Halbwachs, é a
percepção de que o envolvimento do indivíduo no grupo - aderindo às visões de
mundo coletivas, de modo geral - tem também influência no que será lembrado.
Lembranças pessoais ganhariam enquadramentos socialmente compartilhados,
com o grupo social agindo na construção de memórias de fatos que talvez não
tenham ocorrido (HALBWACHS, 2006, p. 36).
O ato de lembrar, ou seja, resgatar uma lembrança da memória, pode
ser descrito, a partir dos autores acima, como a criação de uma narrativa que, a
cada vez, reconta um dado da memória e se atualiza. O relato de testemunho, que
é a principal ferramenta da história oral (e de muitos filmes documentários, aliás),
tem que ser, então, contextualizado, de modo que a narrativa sirva ao propósito
documental que se deseja.
Os 24 minutos de duração do filme estão divididos em cinco sequências,
J nas quais os trechos o depoimento de Mestre Ricardo são apresentados fora da
ordem em que se deram no momento da entrevista. As suas falas são entrecortadas
A por cenas complementares, que mostram rituais e apresentações da banda; mas,
nem sempre há uma correlação direta entre o que é visto e o que é falado.
L As sequências do filme são: 1- um prólogo, que apresenta o “mito fundador”
do congo, narrado por Ricardo Sales, sobre imagens da Fincada do Mastro de Nova
Almeida; 2- após os créditos de abertura, são apresentados os principais rituais
L
da Festa de São Benedito da Banda Amores da Lua, comentados pelo Mestre,
seguidos da história da fundação da Banda pelos bisavós de Ricardo, em 1945, e de
A comentários sobre as graças alcançadas pelos devotos do Santo; 3- vem, então, uma
sequência de flashback, em que o autor do filme narra como conheceu Ricardo, e
como se deu a sucessão do comando da Banda; 4- Ricardo fala sobre sua fé e sobre
os milagres que atribui a São Benedito, e como ele tenta manifestar sua devoção,
nos rituais e apresentações; fala também sobre as dificuldades de se levar a banda,
• sobre sua religião, e as dos membros da banda; 5- por fim, Ricardo comenta sobre
616 si mesmo, o que o motiva, e como cria as roupas e estandartes; como se vê à frente
da banda, e a importância desta em sua vida. Seguem-se os créditos finais.
•
Hoje, Ricardo Sales tem 32 anos, e é o Mestre da Banda de Congo
Amores da Lua desde 2013, sucedendo, de forma bastante conflituosa, a seu
avô, Reginaldo Sales, co-fundador da banda, falecido em 2015. Antes mesmo de
assumir o comando da banda, Ricardo começou a reformular as vestimentas e
2 adereços, imprimindo um estilo próprio, caracterizado por elaborado requinte. Faz
isso com grande esforço pessoal, e de seus pais, já que não possui outros meios de
subsistência nem conta com apoio institucional para tanto. Ele concluiu apenas o
0 ensino fundamental, e apresenta uma certa dificuldade na leitura e na escrita; e
não teve, também, nenhuma formação em arte ou artesanato, compensando sua
1 inabilidade com uma mente criativa e grande dedicação ao trabalho na banda.
Apesar de viver em Vitória desde o fim de 2005, somente em janeiro de
8 2013 tive, pela primeira vez, contato direto com uma banda de congo. Em junho
daquele ano, conheci a Banda Amores da Lua e, desde então, tenho acompanhado
seus rituais e apresentações, dedicando-me a estudar os vários aspectos desta
cultura tradicional. O audiovisual tem sido minha principal forma de interlocução,
devido à minha formação em cinema e artes, e tem servido tanto de instrumento de
registro e de compreensão dos fenômenos, quanto de “moeda de troca” nos contatos
com as bandas: creio que minha postura de respeito aos conguistas, na captura e
edição do material, aliada à devolução dos registros, na forma de disponibilização
de vídeos e distribuição de cópias fotográficas, criou uma atmosfera de confiança,
por parte das bandas, que tem sido facilitadora das abordagens.
Em março de 2015, ainda muito ignorante de várias questões do congo,
de seus fundamentos e de suas histórias, pedi a Ricardo Sales uma entrevista,
que resultou no documentário “O que é meu vem a mim”, finalizado somente
um ano depois. Além da entrevista, o filme inclui cenas dos rituais de “Cortada
do Mastro”, “Puxada do Barco” e “Fincada do Mastro” de São Benedito, além de
cenas da Festa de Nova Almeida e da Festa do Caboclo Bernardo, um “Encontro
de Grupos Folclóricos” que ocorre anualmente em Regência, distrito de Linhares
J situado na foz do Rio Doce.
Avalio, agora, que todo o processo de produção do vídeo foi realizado
A de forma um tanto subjetiva, tendo a racionalidade estratégica influenciado mais
na solução das questões técnicas de captura e edição. Ou seja: a entrevista não
L seguiu nenhum roteiro pré-definido e, no fundo, tomou a forma de uma conversa
conduzida pela curiosidade (a despeito da estrutura de filmagem); e a edição, um
ano depois, foi uma releitura do depoimento iluminada pelas cenas que presenciei
L nos rituais ao longo do ano. Passados entre dois e três anos de todo o processo, vejo-
me numa posição de distanciamento que permite olhar para o trabalho de forma
A um tanto objetiva. E, apesar de já ter feito reflexões acerca das decisões técnicas e
de linguagem tomadas na produção deste e dos outros vídeos de O Congueiro, irei
concentrar-me, aqui, nos aspectos narrativos que cercam o documentário e minha
relação com o Mestre.
O pesquisador Claude Bailblé, ao comentar sobre os conceitos éticos por
• detrás do trabalho do documentarista, relaciona o que chama de “contratos”, entre
617 o documentarista e as diversas instâncias. O documentarista tem um contrato, em
primeiro lugar, consigo mesmo, com sua consciência. Deve equilibrar a vaidade
•
do ego, a dúvida metodológica e a noção subjetiva da sua posição no conjunto
de processos criativos. Tem também um contrato com seu objeto, ao construir
uma relação de conhecimento e envolvimento com o tema, questionando-se
continuamente sobre o que sabe e o que deseja saber. Outro contrato é com as
pessoas com quem filma, os sujeitos do filme, que às vezes têm que se submeter
2 às perguntas constrangedoras ou rememorar momentos sofridos. Deve ter empatia
para com os envolvidos, mas com a distância necessária para poder alcançar o
0 depoimento desejado. E, por fim, um contrato com seu espectador, que é, afinal, a
quem se dirige o filme. (BAILBLÉ, 2012, p. 9-17). Com isto quero reforçar a ideia de
1 que um vídeo, inicialmente uma obra tecno-artística, é também uma relação, uma
interlocução de seu autor com as várias instâncias envolvidas; e, como relação
8 social, produz uma narrativa própria, independente da linguagem ou do objeto
da obra. Isto dá uma ideia de como a realização de um filme é uma narrativa
em si, para além das desventuras logísticas da produção. Existem camadas de
relacionamentos envolvidos na criação da história. Quanto mais o documentarista
e o entrevistado convivem, mais criam situações de interação e compartilhamento
de lembranças. Por outro lado, as diferenças realçadas pelo não conhecimento do
outro tornam as descobertas mútuas mais evidentes, dinamizando a relação.
O prólogo do filme traz a narração de Ricardo Sales, contando a lenda
dos escravos que, agarrados ao mastro do navio, teriam sido salvos do naufrágio
de um navio negreiro por um milagre de São Benedito. As imagens mostram cenas
da Fincada dos Mastros de São Benedito e São Sebastião de Nova Almeida (distrito
do município da Serra, em cujo litoral teria acontecido o milagre), e seguindo um
hábito local, há grande disputa entre jovens para se ter a chance de escalar o
mastro e rodar a bandeira do Santo, ação cujo sucesso concederia graças aos
destemidos. Além da relação do local da festa com o mito, a cena ilustra, como
alegoria, a narrativa da lenda: os fogos de artifício da festa seriam os raios e trovões
da tempestade que provocou o naufrágio; na lenda, os escravos naufragados, em
J desespero, tentam agarrar-se ao mastro, que também é disputado por corpos
seminus, na festa; em ambas, há gritaria e confusão.
A Em um trecho da entrevista que ficou fora da edição, Mestre Ricardo
afirma que “isso é uma lenda, uma história, não tem relato nem retrato”, aprendida
L por ele de tanto seu pai e seu avô contarem; e que ele, e outros conguistas, não
seguem, “não querem nem ouvir falar”; cita ainda os Mestres Crispim e Antônio
Rosa, da Serra, como grandes divulgadores do mito - “cada banda tem a sua
L história”3. Fentress e Wickham afirmam que “eventos podem ser mais facilmente
lembrados se encaixam-se em formas narrativas que o grupo social já tem a seu
A dispor” (FENTRESS; WICKHAM, 1992, p. 88, tradução nossa), pela forma que
reforçam qualidades que o grupo valoriza; ou porque legitima ações do presente.
Seguindo esta linha de pensamento, as particularidades que o culto a São Benedito
adquiriu junto a algumas bandas de congo se dariam, talvez, porque a narrativa do
salvamento dos escravos náufragos se adequariam às vontades, ou expectativas,
• das pessoas que a seguem4. Os grupos sociais produzem uma espécia de vocabulário
618 narrativa, que conforma a lembrança dos fatos.
Após os créditos, o depoimento de Mestre Ricardo se divide entre a narrativa
•
de como se dão os rituais da Festa de São Benedito, com algumas particularidades
e comentários sobre a devoção das pessoas que participam da festa; e a história da
banda, como ela foi fundada por seus bisavós e o que os motivou. Estes últimos
fatos não foram testemunhados pessoalmente por Ricardo, mas contados a ele
pelos familiares, apesar de ele ter convivido, na infância, com alguns de seus
2 personagens. Dada a importância da banda para a coletividade, são memórias
que se dividem entre a crônica familiar e a história da banda, já registrada em
0 algumas publicações, e entendida aqui como uma entidade de importância social.
Para Halbwachs,
1 No primeiro plano da memória de um grupo se destacam as lembranças dos
eventos e das experiências que dizem respeito à maioria de seus membros e
8
3 SALES, Ricardo. Depoimento em vídeo a José Otavio Lobo Name. Em 23/03/2015. Vitória:
arquivo particular, 2015. Todas as falas de Ricardo Sales, exceto quando indicado, são da entrevista
de março de 2015.
4 O espaço não permite alongar-me neste tópico: na Serra, onde este mito é mais cultuado, é
também onde ocorreu a Rebelião do Queimado, em que os escravos, sentindo-se traídos pela Igreja,
que lhes prometera alforria quando terminassem a construção da torre da Matriz, revoltaram-se
quando a promessa foi quebrada. A região de Putiri, praia aonde os náufragos teriam chegado, é
dominada por fazendas, e não tem, atualmente, nenhuma banda de congo. Neste contexto, a ideia
de que escravos (uma vez náufragos, então fugitivos) tivessem a autonomia de fazer uma festa a
São Benedito parece combinar apenas com a crença em uma harmonia mítica entre escravos e
senhores.
que resultam de sua própria vida ou de suas relações com os grupos mais
próximos, os que estiveram mais frequentemente em contato com ele. As
relacionadas a um número muito pequeno e às vezes a um único de seus
membros, embora estejam compreendidas em sua memória (já que, pelo
menos em parte, ocorreram em seus limites), passam para o segundo plano
(HALBWACHS, 2006, p. 51).
5 Antes de o filme ser finalizado (quando nem o título havia sido decidido), Mestre Ricardo foi
convidado para uma exibição privativa. Esta sequência sofreu uma pequena alteração: inicialmente,
apresentava uma versão mais conflituosa da passagem do comando da banda do avô para Ricardo;
e, a pedido deste, o tom foi abrandado. Mas, em mais de uma ocasião posterior, Ricardo mencionou
o enfrentamento com seu avô.
en scène), preferiria reforçar, aqui, a perspectiva de que a cena resulta de uma
sobreposição de narrativas, na qual o clichê da linguagem cinematográfica, a cena
em flashback, atuaria como aquilo que Edgar Morin propôs como a “metamorfose
do cinematógrafo em cinema” (MORIN apud TEIXEIRA, 2012, p. 186), ou seja, a
linguagem não seria um recurso de ilusão do espectador; estaria, sim, a serviço da
realidade que o autor procura. Fazer um filme não é somente captar com a câmera,
mas sim o processo que inclui a captura e a edição.
J Procuro, assim, diferenciar o trabalho de edição daquele presente no
conceito de “memórias enquadradas” que, para Michael Pollak, são as lembranças
A coletivas, trabalhadas por seus “guardiões”, que representam os valores ou
propósitos que um determinado grupo busca perpetuar politicamente (POLLAK,
L 1989, p 10), através do controle da subjetividade do testemunho (aquilo que se
mostra) e da objetividade da imagem que se quer passar (o que se camufla).
Pollak também aponta o filme como um ótimo suporte como objeto da
L
memória (POLLAK, 1989, p. 11). Para ele, as memórias coletivas enquadradas são
importantes “para a perenidade do tecido social e das estruturas institucionais
A de uma sociedade”, intervindo “na definição do consenso social e dos conflitos
em um determinado momento conjuntural” (POLLAK, 1989, p. 11). Esse tom
um tanto positivista, que de certa forma confunde “sociedade” (ou até “nação”)
com “comunidade”, mesmo quando se abre para as tensões entre as memórias
enquadradas, poderia fazer com que o trabalho de edição descrito acima parecesse
• estar a serviço do consenso social, quando o que busca, intencionalmente, é a
620 pluralidade das narrativas.
• A memória enquadrada pelos profissionais da história tem como
antídoto as memórias individuais, que tornam visíveis os limites do trabalho
de enquadramento e permitem ao indivíduo controlar a tensão entre o passado
“oficial” e suas lembranças pessoais (POLLAK, 1989, p. 12). Assim, ao relato de
Ricardo, juntam-se o comentário da edição, e a interlocução com o Mestre. O
2 suposto maneirismo da sequência em flashback remete a “uma forma artesanal
de comunicação. (...) Assim, imprime-se na narrativa a marca do narrador, como a
mão do oleiro na argila do vaso” (BENJAMIN, 2012, p. 221).
0
Na quarta sequência do documentário, em que relata os milagres que o
Santo teria praticado em sua família, o tom do discurso de Ricardo Sales é bastante
1 objetivo, em contraste com o desdém com que trata da “lenda oficial” do Santo.
Ele dá testemunho dos milagres da devoção em sua família: seu pai, desenganado
8 pelos médicos após um evento cardiovascular, recuperou-se; e sua mão, que
estava de muletas, “agora dança o congo, que ninguém diz que aconteceu nada
com ela”. Para ele, esta não é uma “memória subjetiva” (FENTRESS; WICKHAM,
1992, p. 5, tradução nossa), no sentido de referir-se a sentimentos e impressões,
mas realidade concreta. Em A memória coletiva (2006), Maurice Halbwachs
detalha os processos que, a seu ver, constituem a memória. Nossas lembranças
seriam acompanhadas de nossas relações com o grupo; poderiam ser reconstruídas
pela aceitação do testemunho dos outros; nossa posição no grupo reflete-se nas
lembranças compartilhadas em seu âmbito; e a separação do grupo pode acarretar
no esquecimento das lembranças (HALBWACHS, 2006, pp. 30-40). Lendas são
narrativas específicas, que são repetidas de geração em geração, diferindo das
lembranças dos fatos realmente ocorridos. Aqui, os fatos são a saúde restabelecida
dos pais de Ricardo, mas a narrativa é reforçada pela crença comum que une a
família, de que o cumprimento das obrigações para com o Santo lhes concedeu
as graças alcançadas. Recorrendo ainda a Halbwachs, para quem “Toda memória
coletiva tem como suporte um grupo limitado no espaço e no tempo” (HALBWACHS,
2006, p. 106), podemos especular se as lembranças do grupo não seguiriam
J narrativas míticas com relação aos fatos, devido à grande intensidade com que
os ritos do congo são compartilhados por tanta gente. Assim, uma concepção de
história baseada na oralidade acabaria por ter de se referir a um espaço-tempo
A
mítico, onde tudo pode acontecer.
L Da última sequência saiu a frase que dá título ao filme. Ricardo é instigado
a se descrever, a falar de si, e da forma como executa o seu trabalho de criação.
Diz então que, mesmo quando se sente parado, “O Santo busca” e que “não precisa
L andar tão longe (...) porque o que é meu vem até a mim”. É interessante como,
neste trecho, Ricardo adota a terceira pessoa para se referir a si mesmo, e que
A justamente aqueles fatos que foram vividos por ele, e que por isso poderiam formar
sua memória mais objetiva, adquirem em sua fala um aspecto mítico. Perguntado
sobre de onde vêm as vestimentas requintadas que ele criou para a banda (já que
isso não é tradicional do congo), ele diz que vem “do meu imaginário e do meu além”.
Para Pierre Nora, a história é uma reconstrução “problemática e incompleta
• do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no
621 eterno presente” (NORA, 1993, p. 8). Situados no cruzamento entre as lembranças
individuais, a memória coletiva e a história, os lugares da memória apresentam
•
três aspectos: material, funcional, e simbólico (NORA, 1993, p. 21). Fazem parte de
um jogo entre memória e história, mas aquela é prioritária; sob o risco de se ter,
apenas, uma lembrança. A história é o registro, a informação sem contexto, sem
vida; a memória a põe em movimento, e a transforma.
Diferentemente de todos os objetos de história, os lugares de memória não
2 têm referentes na realidade. Ou melhor, eles são, eles mesmos, seus pró-
prios referentes, sinais que devolvem a si mesmos, sinais em estado puro.
0 Não que não tenham conteúdo, presença física, história; ao contrário. Mas o
que os faz lugares de memória é aquilo pelo que, exatamente, eles escapam
da história (NORA, 1993, p. 27).
1
Em contraponto e igualmente partindo de uma perspectiva do fim do século
8 XX, na pré-história da internet, em que a digitalização da mídia dava os primeiros
passos, Andreas Huyssen percebe uma obsessão com o passado, causada, segundo
ele, pelo fracasso do projeto de futuro da modernidade (HUYSSEN, 2000, p. 18).
Ela enumera CDs, CD-ROMs e páginas de internet voltados a um culto da memória
do passado, muitos destes comercializando “memórias imaginadas” (HUYSSEN,
2000, p. 18). Talvez por falar de um período anterior à atual democratização dos
meios de produção e compartilhamento, e das próprias redes sociais, Huyssen
preocupa-se com uma memória globalmente coletiva, como um consenso; e com
uma noção objetiva do passado a ser protegido de novas configurações de espaço e
de tempo. Apesar de a indústria cultural ser, hoje em dia, mais concentrada do que
nunca, há também a emergência de diversas manifestações locais, que encontram
meios e espaços para se mostrar e se expandir. A proposição de Nora, de que os
lugares de memória são relacionais, na medida em que são atualizados na memória
coletiva, apresenta, de certa forma, pontos em comum com o pensamento de
Huyssen, para quem insistir em uma separação entre memórias “real” e “virtuais”
é um “quixotismo, quando menos porque qualquer coisa recordada - pela memória
vivida ou imaginada - é virtual por sua própria natureza” (HUYSSEN, 2000, p. 37).
J Sendo uma relação social, a memória coletiva não depende de suporte físico.
Filmes são criações coletivas, feitos para serem assistidos em grupo,
A simultaneamente, como uma performance. O público da sala de cinema, agora se
reúne na rede. Para Benjamin, “(...) o quadro não tem condições para ser objeto de
L uma recepção coletiva simultânea, como sempre foi o caso da arquitetura, como
aconteceu antigamente com a epopeia, como acontece hoje em dia com o cinema”
(BENJAMIN, 2017, p.36).
L
Este filme é um arquivo, uma fonte, um conjunto de dados disponível para
consulta. Nesse ponto, é história; mas não foi feito com essa intenção. Ele partiu
A de uma conversa, que se seguiu a um encontro, que se desdobrou em descobertas.
Em dezembro de 2017, o link do filme, no YouTube, foi liberado ao público; até
então, o filme havia sido exibido em um festival, e em algumas exibições para a
banda e na Universidade. Mestre Ricardo compartilhou-o imediatamente em seu
perfil do Facebook, com o seguinte comentário, aqui reproduzido em sua escrita
• idiossincrática:
622 Acho que esse vídeo tem tudo a ver com o que estou passando hoje com as
pessoas me impunha lando por trás de mim falando coisas que não deve in-
• comodada com a casa dos meus pais com as pessoas que estão comigo não
tenho culpa se as pessoas não são amadas mas sou amado por muitos que
gostam de mim por isso que estão comigo não gosto de falsidade sou uma
pessoa amiga e sincera a todas as pessoas que estão comigo não adianta fa-
lar de mim porque descubro tem os meus orixás as minhas energias os meus
exu e as minhas pomba gira e sou filho de Oxalá e Iemanjá nunca nada me
2 engana conheço as pessoas pelo olhar assim que eu sou que vem debaixo a
mim não me atinge confio em Deus primeiramente e nos meus Orixás e São
0 Benedito que essas pessoas vêm fazendo vão ter o que merece eu ei de ver se
você não pode ajudar é melhor você se calar6 (SALES, 2017).
J
A
L
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A
•
624
•
2
0
1
8
J
A
L DE SCORZA A COLCHADO: POÉTICAS FRENTE AL
ACONTECIMIENTO DE LA COLONIZACIÓN Y EL PASO DE LA
L ÉTICA INDIGENISTA A LA ESTÉTICA ANDINA
A Juan Carlos Almeyda Munayco (UNMSM)
RESUMEN: En esta investigación se analizan comparativamente las obras
de Manuel Scorza y Óscar Colchado, connotados escritores peruanos que se
pronuncian sobre el irresoluto conflicto de la heterogeneidad cultural en los países
andinos. Centrándose en las novelas Garabombo, el Invisible, segunda balada de
• la pentalogía de Scorza, y en Rosa Cuchillo, relato de Colchado enmarcado en el
625 conflicto armado interno surgido en el Perú a fines del siglo XX, se señala que
ambas novelas se ubican frente al acontecimientode la colonización. En el primer
• caso, se idealiza el poder de la literatura con respecto a la realidad histórica. En el
segundo, se evidencia un impasseal aceptarse la imposibilidad de la juntura entre
las culturas andina y occidental, y expresarse a la vezen un tipo discursivo que
manifiesta lo contrario. Estas poéticas muestran el paso desdeuna ética indigenista
hasta una estética andina.
2 Palabras clave: Garabombo, el Invisible. Rosa Cuchillo. Acontecimiento de la
colonización. Ética indigenista. Estética andina.
0
Este artículo debe empezar señalando sus limitaciones y sus aperturas. El
1 caso estudiado es específicamente el de la literatura peruana; pero no por ello podrá
impedirse su vinculación con el desarrollo de las letras en otros países andinos.
Este trabajo, además, está aún en proceso de construcción; pero ello mismo es
8 lo que permite proponer nuevas hipótesis e incrementar las posibilidades en los
estudios literarios. Dicho esto, habría que aclarar que esta es una investigación
que, dentro de sus posibilidades, buscará examinar la literatura peruana como si
esta fuera un proceso histórico. En ese marco, podríamos señalar tres nociones que
tendremos en cuenta: el acontecimiento de la colonización, la ética indigenista y la
estética andina. Ciertamente, ninguno de estos se justificaría si no se evidenciaran
en obras específicas. En ese sentido, las novelas Garabombo, el Invisible y Rosa
Cuchillo, de Manuel Scorza y Óscar Colchado respectivamente, son las que nos
permiten proponer estas nociones. La dinámica de lo que sigue, entonces, irá desde
las nociones a las obras y desde estas a las generalizaciones.
Tanto Garabombo, el Invisible como Rosa Cuchillofueron publicadas en
la segunda mitad del siglo XX. Estas dos forman parte de las obras literarias que
evidencianla contradicción producto de la relación entre las culturas matrices
en los países andinos: la occidental y la indígena. La heterogeneidad patente en
estas narraciones, tal como lo intentaremos ver, tiene sus orígenes en un evento
J inaugural. Antonio Cornejo Polar, el célebre teórico literario peruano, en el primer
capítulo de Escribir en el aire, estudia esta condición fundacional: el encuentro
A de Cajamarca. En la plaza de la región del norte, se hizo evidente, más que la
discusión entre Francisco Pizarro y el inca Atahualpa, la colisión entre dos culturas
L cuyas materialidades lingüísticas eran diferentes. Mientras que los naturales se
comunicaban por medio oral, los españoles utilizaban la tecnología de la escritura.
Esto provocaba una imposibilidad de relación fluida y pacífica. El choque de dos
L modos de entender el mundo, el occidental y el andino, se descubrió además como
un hecho extremadamente violento.
A En ese sentido, la primera relación del sujeto amerindio con la letra
fuetraumática. La letra se impuso en los naturales como instrumento de poder
colonializante. Además, en tanto escritura, la letra ―una “cosa” o “artefacto”
separado del sujeto― era una tecnología ajena a la voz ―siempre vinculante,
continua y propia del sujeto enunciador―. Esta escisión, en contraposición a la
• continuidad previa, es importante en tanto se trataba de una forma de cosmovisión.
626 La independencia de la letra con respecto del sujeto es la misma de la cultura con
respecto de la naturaleza. Se trataría de dos formas divergentes de entender el
•
mundo que entran en acción: el fracaso de la síntesis flemática era inminente. Así,
la violencia de este evento― no solo por el genocidio de indígenas que significó, sino
también por lo repentino de su llegada― hizo que ni unos ni otros comprendieran,
dentro de sus propias lógicas, lo que estaba sucediendo. Los discursos elaborados
trataban de encontrar en lo fantástico o lo maravilloso (por un lado), y en lo mítico
2 (por el otro) alguna explicación (imaginaria, tal vez) de lo que había sucedido.
El acontecimiento de la colonización puede verse desde este momento.
0 Se aprecia no solo en la llegada violenta e inesperada de los españoles a territorio
americano, sino en la manera como este suceso intentó ser aprehendido en los
1 discursos. De ese modo, el acontecimiento de la colonización se convirtió también en
el acontecimiento de la narrativa andina1. Cuando el evento intenta sublimarse en
8 las reproducciones textuales, cuando se intenta ocultar su real violencia, es posible
entender precisamente su fuerza contenida. El acontecimiento, como sabemos,
es perceptible de manera retrospectiva, en tanto es “el efecto que parece exceder
sus causas” (ZIZEK, 2016, p. 17). Este evento, que desconfigura todo el sistema
precedente y que irrumpe sin aviso previo, es reproducido en los discursos con
1 Es cierto que habría que señalar que el acontecimiento de la narrativa andina difiere del de
la colonización. El primero aparece cuando a pesar de la naturaleza encubridora del discurso, la
novela refleja más de lo que debería ocultar; cuando es consciente del acontecimiento y lo reconoce
en su real dimensión, en su fatal dimensión.
el fin de conocer y tolerar su magnitud. Allí es posible encontrar la relación del
acontecimiento de la colonización con la literatura.
Alain Badiou ―en “La naturaleza: ¿poema o matema?” (2007, pp. 143-
149), capítulo incluido en El ser y el acontecimiento― contrapone el concepto de
“poema” con respecto al de “matema”. El poema sería una rememoración nostálgica
del momento cuando hombre y naturaleza eran uno, cuando el lenguaje no había
barrado al sujeto, cuando la filosofía de los griegos aún no había interrumpido el
J devenir de la poesía con el matema, cuando la estabilidad natural garantizaba la
seguridad: “El poema se confía nostálgicamente a la naturaleza sólo porque fue
A alguna vez interrumpido por el matema” (p. 147). El poema es idealización romántica.
Ciertamente, esto es dicho en el contexto de la cultura occidental europea, pero es
L importante tener en cuenta puesto que implica la intervención de la letra y de lo
que lo poesía y la literatura clásicamente harían: rememorar el tiempo armónico del
pasado.
L
Cabría preguntarse, entonces, qué se nostalgia en la literatura peruana.
Existió una intervención violenta de la letra, que separó radicalmente al sujeto
A amerindio de su decir (materializándolo en un objeto separado de sí, ajeno). Lo que
la poesía idealista clásica querría representar es el momento de armonía con el
cosmos. Sin embargo, al contrario de lo que señala Badiou, son dos imágenes las
que el sujeto indígena idealiza. En primer lugar, rememora un momento previo a
la Conquista. En este, el hombre andino no ha tenido contacto con la semiosfera
• occidental, por lo que existe el continuum entre naturaleza y cultura, entre cosmos
627 y sujeto, que garantiza la armonía2. En segundo lugar, lo que idealiza es la relación
entre andinos y occidentales. Cree en una relación armónica entre unos y otros,
•
propicia el mestizaje y la mezcla. Por supuesto, ambos escenarios son configuraciones
idealizadas de la realidad. En ese mundo de ensoñación es que la poesía, como
clásicamente se entiende, se instalaría3.
La narrativa andina moderna no es idealista, sino que es consciente
2 del acontecimiento de la colonización. La narrativa indigenista también conoce la
violencia ejercida en el encuentro de andinos y españoles. Ciertamente, inclusive en
el indianismo se conoce el estado de subalternidad que tiene la población indígena
0 (aunque en este caso se privilegie la mirada paternalista que el mismo sujeto
enunciador, de la cultura dominante, tenga de la situación). Sin embargo, en las
1 novelas y cuentos previos suele tenerse una mirada idealista, ligada a la poesía
como la concibe en este momento Badiou. Estas especificidades serán explicadas
8 en la parte final del artículo, a manera de conclusión de los apartados que ahora
continúan. El análisis de Garabombo, el Invisible de Manuel Scorza y Rosa Cuchillo
de Óscar Colchado nos darán pie a una mayor reflexión.
2 Lo repetiremos más adelante, pero es necesario aclarar que estas son idealizaciones. En la
realidad, incluso en el momento previo a la llegada de los españoles, el territorio andino nunca fue
habitado por poblaciones homogéneas. Por el contrario, las disputas políticas fueron claves para
que el proceso histórico se diera como sucedió.
3 Es harto importante ser conscientes de que la “nostalgia” que permite la idealización del
sujeto andino aparece en la literatura peruana “culta” recién en el siglo XX. Antes, la literatura se
relacionaba con un sujeto occidental, cuya armonía era garantizada por la relación colonialista.
Garabombo, el Invisible y la confianza en la ficción
Manuel Scorza fue un poeta y narrador peruano que entre 1970 y 1979
publicó cinco novelas bajo el título general de “La guerra silenciosa”. El segundo
libro de esta pentalogía fue Garabombo, el Invisible. En esta, como en las demás
obras, se relata la historia de un héroe líder de una comunidad, Garabombo, en
medio del conflicto de los indígenas frente la invasión de las mineras en Cerro de
Pasco y la tiranía de las autoridades. Estas novelas gozaron de gran reconocimiento
J en Latinoamérica y Europa durante su publicación y, más bien, no recibieron
comentarios favorables de la crítica literaria peruana sino hasta las pioneras
A apreciaciones de Tomás Escajadillo en 1978 y Antonio Cornejo Polar en 1984. La
más conocida de estas novelas es Redoble por Rancas, primera balada con que se
L inicia esta épica andina, pero aun así fue difícil que esta ingrese rápidamente al
canon de su país.
L Uno de los argumentos que usaban los críticos paravalorar negativamente
la novela de Scorza, era que el humor, la ironía, el “realismo mágico” y el trabajo
estilístico que aparecía alejaba el posicionamiento del autor con respecto del mundo
A andino que representaba. El análisis riguroso nos ha demostrado la falsedad de
esas declaraciones. Lo que nos presentaba Manuel Scorza era una manera distinta
de abordar el acontecimiento de la colonización. El autor es plenamente consciente
de lo problemático del trauma dejado por la irresolución de la heterogeneidad,
pero decide abordar el problema con otras estrategias discursivas. Es parte, en ese
• sentido, como luego se entenderá, de una evolución del indigenismo ortodoxo: el
628 neoindigenismo. En este artículo señalaremos que su texto sigue siendo indigenista,
existe una renovación en la forma como se enfrenta el acontecimiento, pero la
•
actitud sigue siendo la misma.
Ciertamente, el lector aguzado podrá pedir una razón que justifique que
la novela que analizaremos sea Garabombo, el Invisible y no cualquier otra de la
pentalogía. La causa se encuentra en un personaje particular, que no es ni el héroe
2 protagonista, Garabombo, ni el villano de la historia, el doctor Montenegro; sino
de uno diferente: el Niño Remigio. Este personaje, tal como lo plantearemos, es
quien mejor se puede homologar con la figura del escritor de esta misma novela.
0 Si bien en La tumba del relámpago, el último de los cantares de esta pentalogía,
se nos presenta a un personaje con el nombre“Manuel Scorza”, este es un actor
1 más político que creador o escritor. El Niño Remigio, en ese sentido, nos servirá
para definir la poética que se manifiesta en estas novelas. Jorge Yviricu, en “La
8 metamorfosis en dos personajes de La guerra silenciosa” (1991), señala:
La figura del Niño Remigio es […] interesante porque es el único escritor,
fuera del autor mismo, que aparece como tal en toda la obra. Su produc-
ción literaria se limita a algunas cartas y anónimos, pero deja establecida
su condición importantísima de cronista local, función que comparte con el
mismo Scorza. (p. 250)
4 El lisiado puede referirse tanto a las ventosidades del sargento (SCORZA, 2001, pp. 39-40) y los
hedores de los pies de Pepita Montenegro (pp. 78-79), como lanzar el grito: “Hay juicios en el Perú
que duran cuatrocientos años. Hay comunidades que reclaman sus tierras hace un siglo. ¿Quién
les hace caso? ¿Por qué no está preso el juez Montenegro?” (p. 47).
¿Qué elementos aporta al avance novelesco? No hay duda que, frente a la
narración objetiva junto a la que discurre paralela, ofrece una inusitada
iluminación. […] La narración del Niño Remigio aporta al episodio del viaje a
Lima una dimensión vivencial insospechada y vívidamente interior.
El Niño Remigio, al igual que Manuel Scorza con “La guerra silenciosa”,
2 utiliza tropos como la hipérbole y la metáfora para re-presentar en su discurso
fantástico una circunstancia de referente concreto. El autor es plenamente consciente
0 ―tal vez más que el hombre común― del acontecimiento de la colonización, de su
violencia implícita y de la imposibilidad de resolución intercultural, y lo demuestra
1 en el posicionamiento ético que demuestra en su obra: hay un sujeto. Sin embargo,
a pesar de su lucidez, de su capacidad de “ver” lo invisible, hasta de la manera
como realiza el proceso de ficcionalización, que lucha contra lo que la colonización
8
significa; aún se puede ver una confianza en la letra. La literatura y la ficción sería
capaz de resolver ―aceptamos que de una manera ya diferente con respecto de
como se hacía en el indigenismo ortodoxo― el conflicto de la realidad. Es por eso
que se sigue partiendo desde un hecho específico y definido, y se reitera la lucha
por la tierra. Es esa confianza que se tiene en la ficción para resolver los problemas
de la realidad lo que hace que estos dos planos se encuentren imbricados. La
creación de la categoría “cronivela”5 con respecto a Scorza obedece a esta lógica:
7 En este momento de la obra, lo que se cuenta de Rosa Cuchillo es en relación con lo que le sucede
a Liborio, lo que sufre por su hijo. Rosa Cuchillo es la madre de Liborio, esa es su función actancial.
8 Nuevamente, entiéndase “poética” como idealista, que nostalgia un mundo imaginario de
continuidad entre naturaleza y cultura.
9 Badiou termina señalando el fracaso del proyecto rimbaudiano, pero no por ello su análisis deja
de ser clarificador.
Es más, podemos decir que hasta antes de este momento, no solo la
mezcla era la regla, sino que la posibilidad de independencia andina, de separación
cultural, era imposible. Ello puede verse claramente en uno de los episodios con más
violencia de la novela. Curiosamente, en este no se narran ni ataques terroristas
ni embestidas militares, sino una conversación al interior del partido donde milita
Liborio. Seleccionamos algunos fragmentos:
–Y al término de la guerra, compañero –dijiste–, ¿seríamos los comuneros
J campesinos, mejor dicho los naturales, los que gobernemos este país? (p.
86)
14 “[…] del acontecimiento, la ontología no tiene nada que decir. O, más exactamente, ella
demuestra que el acontecimiento no es, en el sentido en que es un teorema de la ontología que toda
auto-pertenencia contradice una Idea fundamental de lo múltiple, aquella que prescribe la finitud
fundadora del origen de toda presentación” (BADIOU, 2007, p. 214).
15 Para no quedarnos sin ejemplos, una obra andina sería Wiñaypacha (2017), película del
realizador puneño Óscar Catacora, que no solo está filmada completamente en aimara, sino que
es consciente de su condición de ficción y la explota. En esta cinta, la política de la estética la
encontramos en señalarnos que desde una lengua y cultura como la aimara es posible realizar
experimentos artísticos tan complejos como este.
Es decir, en el siglo XXI también es posible ver novelas indianistas, indigenista y
andinas conviviendo.
Así como Garabombo ya se encuentra entre el indigenismo y la novela
andina (el uso del humor es trascendental), Rosa Cuchillo si bien es una de las
novelas más modernas en este sentido, aún no se puede afirmar esa condición con
seguridad. Es importante saber, después de lo que hemos visto, que la literatura
sigue en su proceso y que solo es necesario seguir atentos para notar sus devenires.
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L
A
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638
•
2
0
1
8
J
A
L REPRESENTACIONES PARÓDICAS EN ROSAS MATINALES, DE NELLY
FONSECA
L
Judith Mavila Paredes Morales (UNFV)
A RESUMEN: Las poetas que aparecieron en las primeras décadas del siglo XX
renovaron la percepción que se tenía acerca de la poesía peruana, ellas con
su escritura difieren del canon literario. Dicha imagen no solo cuestiona la
subordinación femenina, sino también crea un espacio de diálogo con el otro
masculino. La presente ponencia se propone abordar el primer poemario de Carlos
• Fonseca, seudónimo utilizado por Nelly Fonseca Recavarren. Me refiero a Rosas
matinales (1934). El objetivo de esta investigación es analizar cómo el travestismo
639
textual de la voz poética funciona como un texto paródico. Entendemos este
• travestismo como la representación de la ambigüedad y la transgresión sexual por
medio de procedimientos poéticos y discursivos que posibilitan una conformación
diferente tanto de la poesía como de las representaciones femeninas y masculinas.
Lo que hace la poeta peruana es recrear una forma tradicional de poesía que
proviene de una voz masculina siendo el resultado una pose de la masculinidad pero
2 también una de las letras hispanoamericanas. Para lograr este análisis asumimos
el lenguaje como un campo figurativo capaz de presentar una realidad nueva y
0 transgresora. El Objetivo principal de este estudio es preguntarnos por qué Nelly
Fonseca trasviste la voz poética en una masculina, cómo ella apela a la poética
1 modernista imitándola pero desde una relación paródica y cómo esa posición nos
permite observar que la poesía tradicional tiene voz masculina. Para acercarnos a
nuestro objetivo, el método de análisis estilístico y retórico es fundamental porque
8 nos permite entender el poemario a nivel lingüístico también nuestro andamiaje
teórico se basa en las propuestas de Judith Butler y Sylvia Molloy.
Palabras-clave: Nelly Fonseca. Poesía peruana. Travestismo textual. Masculinidad.
Parodia.
1 En este apartado, la teórica norteamericana se refiere a la escritora Willa Cather. La obra de esta
autora es trabajada en el capítulo ““Cruce peligroso”: los nombre masculinos de Willa Cather” del
libro Cuerpos que importan publicado en el 2002.
con una escritura melancólica2 no solo en su forma sino en el desarrollo de los
contenidos. El objetivo de este artículo es dilucidar por qué estamos ante una
escritura melancólica, cómo el pasado habita la escritura de Fonseca, cómo esa
identificación con el pasado se logra mediante un travestismo de la palabra.
Fonseca se alimenta de la tradición literaria y lo que viene con ella: una
tradición creada desde figuraciones y deseos masculinos donde se canta a una
amada, y esta representación femenina pasa por las imágenes patriarcales del
J ángel y el monstruo3. Ya sea por práctica literaria (recordemos que es su primer
poemario) o por la necesidad de pertenecer a lo que el canon reconoce como poesía
A o literatura, Fonseca nos muestra las ruinas, los vestigios de un pasado que con
su mismo accionar, con su travestismo parece cuestionar bajo un desplazamiento
L habilitante.
Para examinar estas ideas comenzaremos con dos de los primeros poemas
de Rosas matinales: “Ruptura” y “Confidencia”. Observamos en estos poemas el
L
desarrollo de un vínculo edípico entre el locutor personaje y la madre (cuestión
que ya se evidencia en el poema que abre Rosas matinales, “Ofrendas” el cual está
A dirigido a la madre).
Los dos poemas “Ruptura” y “Confidencia” de Rosas matinales están
compuestos por catorce versos endecasílabos distribuidos en cuatro estrofas,
formando un soneto.
En el soneto “Ruptura” la voz masculina se alimenta de la configuración
•
del varón relacionada al amor, pero uno no correspondido, y debido a eso la amada
641 será representada como la que desprecia el cariño del locutor.
• En la primera estrofa, la amada es figurada a partir de la furia mientras
que la voz masculina es trazada por la pasión. Estados representados por el color
rojo, por un lado el “enojo” y por otro el “amor ardiente”.
En la segunda estrofa él pretende preservar la fortaleza masculina,
disminuyendo la queja femenina a simples “antojos”. En las dos últimas estrofas,
2 después que la amada se ha retirado “serena, altiva…”, el “orgullo del hombre” fue
vencido por el dolor. Esta última estrofa es sintomática porque se muestra el efecto
0 paródico de la representación de la masculinidad, fijado a través de semas como
“orgullo”, “hombre”, “voluntad”, “acero” pero que se quiebra ante la ausencia de la
1 amada.
En el segundo soneto “Confidencia”, la voz masculina desde los primeros
8
2 Avelar en su libro Alegorías de la derrota apunta acerca de la distinción freudiana entre el
duelo y la melancolía que “el duelo designa el proceso de superación de la pérdida en el cual la
separación entre el yo y el objeto perdido aún puede llevarse a cabo, mientras que en la melancolía
la identificación con el objeto perdido llega a un extremo en el cual el mismo yo es envuelto y
convertido en parte de la pérdida” (AVELAR, 2000, p.19).
3 Para Gilbert y Gubar a la mujer se le ha negado la autonomía “que representa la pluma, no
sólo es excluida de la cultura (cuyo emblema muy bien pudiera ser la pluma), sino que también
se convierte en una encarnación de los extremos de la Otredad misteriosa e intransigente que la
cultura enfrenta con adoración o temor, amor o aversión. Como <<fantasma, demonio y ángel,
hada, bruja y espíritu>>, media entre el artista masculino y lo Desconocido, enseñándole pureza e
instruyéndolo en la degradación de forma simultánea” (GILBERT y GUBAR, 1998, pp. 34-35)
versos se muestra sufriente. Las metáforas ontológicas nos revelan un varón
disminuido por el dolor: “la cansada frente”, quitándole el signo de superioridad,
y la amada es trazada con la sinécdoque de “pecho”, lo cual dejar ver una relación
edípica, donde ese fragmento del cuerpo funciona como espacio de protección
otorgado por la amada/madre a su amado/hijo.
La amada al ser representada como un ser protector se le añade semas
que ya provienen de la literatura renacentista, del dolce stil nuovo, ya que es una
J figura angelical, de ahí que ella se encuentre en una posición superior al varón,
ella tiene el “alma diáfana”, mientras que el alma de la voz masculina sufre de una
A terrible angustia.
En la segunda estrofa nuevamente la sinécdoque de protección se nos
L revela con el verso: “oprímeme en tus brazos dulcemente”, y también se repite la
facultad de la donna angelicata de esta amada ya que ella es capaz de proveer “luz”
que “ilumine” su “corazón desfalleciente”. Esta última sinécdoque a diferencia de la
L
que produce la imagen de la amada nos hace prestar más atención a la materialidad
del cuerpo, de cómo el dolor se ubica en este órgano como enfermedad; en cambio
A “pechos” no llega a mostrar la corporalidad de la amada sino más bien su estado
etéreo.
Estamos ante un amor sublime que se torna “fraterno” para devenir en
“materno”, configurado a partir de términos como “pureza”, “suavidad” y “armiño”.
Nuevamente la voz masculina se traza como una figura desvalida y en
•
carencia: “sediento de cariño” que busca en la amada/madre alivio a su angustia:
642 “Que la caricia de tu acento tierno / olvidaré mi angustia, igual que un niño /
• calma su llanto en el calor materno…” (FONSECA, 1934, p. 13). Vemos como la
retórica masculina se reactiva a partir de la cita de la tradición que proviene de las
primeras configuraciones estético-poéticas.
El locutor de los dos poemas se concibe como un sujeto enamorado,
pero sufriente marcado por la melancolía, como leemos en la segunda estrofa de
2 “Ruptura”:
Todo el dolor de mi pasión latente,
0 trocado en llanto, se agolpó a mis ojos,
Estos dos poemas tienen como alocutaria a la mujer amada que toma la
forma de la madre, a ellas se dirige esta voz masculina, pero se dirige a ellas por su
ausencia. Roland Barthes nos dice en su Discurso amoroso que cuando el sujeto
que ama dirige el discurso de su ausencia a la persona ausente, esta persona
amada está presente como alocutaria pero ausente como referente, colocando a la
voz masculina en dos tiempos, el de la referencia y el de la alocución, tornando el
presente en un fragmento de angustia:
Al respecto leemos en la cuarta estrofa de “Confidencia”:
Sediento estoy, sediento de cariño…
Quiero un amor, como tu amor, fraterno,
de una pureza y suavidad de armiño…(FONSECA, 1934, p. 13).
•
649
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1
8
J
A
L A COLÔNIA CINCO MIL, O DAIME E OS “CABELUDOS”:
CARTOGRAFIAS NÃO MAPEADAS
L
Julia Lobato Pinto de Moura (UFAC)
A RESUMO: Este estudo introdutório busca reunir narrativas e interpretar as
literaturas, geografias e histórias produzidas a partir das práticas culturais
vivenciadas na Colônia Cinco Mil, comunidade do Daime localizada na zonal rural
de Rio Branco, Acre. É uma pesquisa no campo da linguagem tendo como principais
referenciais teórico-metodológicos os estudos de Hall (2003), sobre as identidades e
• movimentos diaspóricos, Rolnik (1989), sobre cartografar paisagens psicossociais,
Claval (1999) e Gil Filho (2001) sobre geografias culturais e a espacialidade do
650
sagrado. A relação desta comunidade com o “movimento hippie” é um traço identitário
• desta territorialidade daimista que, além de movimentar turismos e intercâmbios
étnico-religiosos globais, suscita críticas e certo silenciamento resultante de cisões
internas. Buscamos fazer ecoar as literaturas, geografias e histórias deste lugar, os
sentidos que dali brotam sobre as cidades e as florestas, produzidos pelos sujeitos
que de forma individual e coletiva.
2 Palavras-chave: Santo Daime. Cinco Mil. Contra-Cultura.
Introdução
0
O Daime ou Santo Daime atualmente está institucionalizado como uma
das três religiões ayahuasqueiras tradicionais reveladas no Brasil, ao lado da União
1 do Vegetal (UDV) e da Barquinha. É um fenômeno religioso múltiplo, plural, de
onde brotam identidades e sentidos também diversos, resultantes, sobretudo, de
8 seu processo de expansão para além das fronteiras amazônicas, “suas diásporas”
(ASSIS, 2017). A diferenciação das identidades entre os grupos daimistas tomam
formas cada vez mais definidas na medida em que avançam as políticas públicas
relacionadas à regularização do uso religioso da ayahuasca. A busca pela definição
do que são as religiões ayahuasqueira tradicionais, faz surgir “inventários fixos e
modelos hierarquizados de pertencimento que acirram cisões internas e folclorizam
as práticas, silencia as pessoas” (MENDONÇA, 2016).
As narrativas sobre os saberes e fazeres presentes na cultura do Daime
são praticamente invisíveis para a historiografia e geografia acreana oficiais,
seus discursos e currículos escolares. Menor ainda quando se refere a Cinco
Mil, onde ripes e mochileiros que chegaram ao Acre a partir de 1975 imprimiram
significativas transformações na cultura do Daime. Na comunidade fundada por
Sebastião Mota de Melo localizada na zona rural de Rio Branco, estes visitantes
“cabeludos” foram acolhidos, e no diálogo com os conhecimentos tradicionais da
comunidade, trouxeram influências dos chamados “movimentos de contra-cultura”,
como o incentivo ao trabalho em mutirões e a socialização da produção agrícola, a
adoção da propriedade coletiva das terras, abertura para experiências com o uso de
J outras “plantas de poder”, sobretudo entre os anos de 1977 a 1983 (RAMOS, 2002).
O objetivo deste estudo é ouvir as vozes que ecoam deste lugar, suas
A concepções de mundo, e tentar mapear um pouco o que hora chamamos de
“as literaturas, geografias e histórias da Colônia Cinco Mil”, os sentidos sobre
L as cidades e as florestas que dali brotam.Espera-se que na convivência com os
diferentes indivíduos que lá moram e/ou frequentam, possamos contar, interpretar
e reinterpretar estas histórias, sejam dos antigos moradores, muitos dos quais nem
L participam mais do Daime, dos que administram o Centro e os feitios da Igreja,
mas não necessariamente moram lá, dos visitantes e moradores temporários, e dos
A hippies fardados, em sua maioria estrangeiros.
A Colônia Cinco Mil foi fundada por Sebastião Mota de Melo, que conheceu
o Daime ainda na década de 1960, no Centro de Iluminação Cristã Luz Universal
(CICLU-Alto Santo), o centro daimista fundado por Raimundo Irineu Serra na década
de 1930 e que congregou toda irmandade até o dia de sua passagem em 1971.
• A partir desta data sucederam-se várias dissidências por motivos já abordados
651 em outras pesquisas e citados adiante. A mais numerosa destas saídas foi a do
grupo liderado por Sebastião Mota, que já vivia na Colônia Cinco Mil com familiares
•
e outros membros da irmandade. Desligaram-se oficialmente do Alto Santo em
1974, fundando o Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra
(CEFLURIS).
Desde então o grupo é envolto de “Novas e velhas acusações: a ‘droga’, a
2 ‘Umbanda’, os ‘de fora’” (GOULARD, 2004) e vive certo “isolamento local” (LABATE,
2010), uma vez que não tem sido convidado a participar das definições de políticas
públicas para as comunidades ayahuasqueiras. É consenso entre os estudiosos do
0 processo de expansão do Daime que o CEFLURIS foi o principal responsável pela
perpetuação dos rituais em outras regiões do país, e posteriormente em outros
1 países. Esta expansão se deu sobretudo a partir da década de 1980, quando
alguns hippies e mochileiros que chegaram na comunidade nos anos anteriores,
8 e conheceram a doutrina pelas mãos do Padrinho Sebastião, passam a retornar
para seus estados de origem levando consigo litros de Daime para iniciarem
seus trabalhos. Este início aconteceu, de forma mais específica, através de Paulo
Roberto, ex-militante da esquerda contra a ditadura e presopolítico recém-liberto
na época, e o paraibano radicado no Rio de Janeiro Alex Polari, que fundaram,
respectivamente, o Céu do Mar e o Céu da Montanha, ambas no Estado no Rio de
Janeiro.
Assim como foi no auge da Colônia Cinco Mil nas décadas de 1970 e
1980, nos dias atuais ainda chegam muitos visitantes de diversas origens, aqueles
que estão de passagem, e aqueles que ficam, aderem ao fardamento no Daime,
casam, constituem famílias. Centenas de estrangeiros de todos os continentes, e
brasileiros de todas as regiões passam pela comunidade todos os anos, conhecida
como porta de entrada para o Céu do Mapia, a maior comunidade daimista localizada
na floresta amazônica, no município de Pauini, Amazonas.
O Encontro Rainbow Gathering realizado em maio de 2014, na Colônia
Luau, dentro da Comunidade Cinco Mil, reuniu artistas e artesãos de várias partes
do mundo. O tradicional evento hippie não está diretamente vinculado ao Centro
J do Daime, como noticiado por Ribeiro (2014) e confirmado pelos apoiadores locais.
Porém o uso ritualístico da ayahuasca foi uma das atividades no Encontro, uma
A vez que foi facilitado/organizado por pessoas que também pertencem a doutrina,
e fazem uso da bebida sacramental em um contexto mais “pajelança”, buscando
L uma vivência com o chá mais associada aos conhecimentos dos povos indígenas.
As culturas do Daime vivenciadas na Colônia Cinco Mil são singulares e
esta pesquisa objetiva mapear as literaturas, geografias e histórias que envolvem
L
este lugar, capítulo essencial na história de expansão da doutrina do Daime, e
patrimônio histórico-cultural de Rio Branco, ainda que não oficialmente reconhecido.
A As interpretações e os sentidos sobre as territorialidades que dali emerge são
produzidos pelos sujeitos que fazem a Colônia Cinco Mil existir, e vivenciam as
fronteiras entre as cidades e as florestas, entre os mundos reais, ideais e astrais.
Ferramentas conceituais: história oral e estudos culturais
“lugar de fala”, que a temática do Daime, e em especial da Colônia Cinco Mil, se revelou, e comecei
a romper minha resistência em pesquisar academicamente a doutrina na qual faço minha pesquisa
de autoconhecimento há 14 anos. O pertencimento foi determinante na escolha do tema.
Para tanto um importante suporte teórico são as perspectivas do
pensamento pós-colonial, que procura produzir conhecimentos sobre as fontes de
conhecimentos silenciadas. Os caminhos para a crítica à hegemonia do pensamento
científico ocidental moderno como única forma validade de leitura e representação
do mundo já estão bem abertos.
Caminhos da investigação: a religião, o sagrado, as redes e arranjos no
território
J O espaço geográfico como “paisagem”, o “mundo real”, é geralmente
descrito como resultado da construção humana, que através do uso de técnicas,
A realiza trabalho e se apropria da natureza, e de outros humanos, como recursos
para sua reprodução e sobrevivência. Os espaços fictícios, a imaginação, as
L subjetividades, simbolismos, percepções cosmológicas e míticas dos espaços não
tem sido, comumente, interesse da Geografia, atenta ao espaço da materialidade
L objetiva, com conotação de realidade, ainda que representação materializada.
Esquecemos muitas vezes, que tudo, não sendo “natureza natural”, é produto da
imaginação humana, desde as técnicas mais avançadas de construção de prédios
A e mobilidade pelos ares, terra e água, até os mais diversos deuses que compõem as
mais diversas teologias e cosmologias.
O reconhecimento dos etnoconhecimentos, do “pensamento selvagem”
(LEVI-STRAUSS, 1976), do perspectivismo ameríndio (CASTRO, 2015) como
conhecimentos, e não apenas como narrativas primitivas, fruto da imaginação
•
animista e interpretações irracionais de povos “sem-cultura”, permiti-nos em
655 linhas gerais, promover um diálogo entre os saberes (SANTOS, 2007) e combater a
• hegemonia da ciência ocidental moderna. Reconhecer que mitologias e cosmologias
também se desenvolvem a partir de métodos, regras e atitudes sistemáticas de
investigação e reflexão é um caminho para estabelecer pontes entre as diversas
formas de conhecimento, o mundo da oralidade e da escrita, do material e imaterial.
Quando pensamos a questão das religiosidades ou das dimensões do
2 sagrado, este é geralmente um campo de estudo desenvolvido nas ciências humanas
por antropólogos, sociólogos e historiadores. Não é a obra de geógrafos que
0 geralmente se recorre quando queremos estudar temáticas referentes às religiões,
seus simbolismos, teologias e cosmologias. A despeito deste não protagonismo, já há
algum tempo algumas geógrafas e geógrafos, vinculados a diferentes perspectivas
1 epistemológicas, vem tentando dar suas contribuições aos estudos, tendo como
foco a dimensão espacial do fenômeno religioso e a espacialidade do sagrado.
8 Podemos citar de início alguns autores que nos serviram de referência
teórica e metodológica nesta empreitada. Do campo da Geografia Cultural, Paul
Claval (1999, 2006), nos sugere questões metodológicas para investigação das
geografias culturais e Yi-funTuan (1980) fornece importantes conceitos ao estudar
como as experiências, valores e comportamentos das pessoas e grupos sociais
interferem na relação com espaço, nos sentidos que os lugares adquirem. Envoltos
com a construção de uma geografia da religião e do sagrado, destacam-se no Brasil,
a produção de Zeny Rosendahl (2002, 2003), Silvio Fausto Gil Filho (2001), entre
outros.
O mundo que nós estudamos é moldado pela ação humana e se encontra
marcado por seus saberes, desejos e aspirações. O mundo que os homens
e mulheres constroem e organizam depende da imagem que eles têm do meio,
das técnicas desenvolvidas para extrair os elementos necessários para viver em
coletividade, e do domínio que se exerce sobre este meio. Porém entre os geógrafos,
historicamente vigorou uma perspectiva de pensar apenas as técnicas e o meio.
As utopias e cosmologias que guiam as ações dos grupos humanos no espaço,
J os mitos antigos e modernos que embasam suas visões de mundo, são discursos
muitas vezes naturalizados, sob a quais não é dado muito questionamento. Daí
a materialidade, que é produto da imaginação e de representações, ser percebida
A
como a realidade: geografia como localização.
L Pensar outras leituras de mundo, pelo olhar da geografia, é pensar no
papel que as concepções, utopias e cosmologias que guiam as ações e os sentidos
dos grupos humanos no espaço, para além do processo hegemônico de reprodução
L do capitalismo global. Quando penso nos sentidos que os sujeitos produzem sobre
as cidades e as florestas, no âmbito da cultura daimista vivenciada na colônia Cinco
A Mil, falo de pensar as geografias culturais produzidas nesta porção das Amazônias,
onde os sentidos sobre os lugares são tecidos a partir de diferentes formas de
percepção do mundo.
Para Claval (1999), três grandes questões para investigação aparecem
como centrais: como o meio é percebido por aqueles que o habitam? Graças a que
• se tem domínio sobre ele? Como concebem a ordem social, as regras e normas
656 as quais devem se conformar? “O mundo que os homens desenham coloca em
jogo deuses espíritos e forças cósmicas: sua topografia mistura espaços profanos e
•
espaços sagrados” (CLAVAL, 1999, p.71).
Quando se trata de um campo ainda mais específico no universo da
religiosidade, a pesquisa de campo em religiões enteógenas, isto é, “que utilizam
psicoativos como parte fundamental e constitutiva de sua atividade ritual,” (Assis,
2 2017, p.19), os estudos geralmente não envolvem geógrafos e sim antropólogos,
psicólogos, que enfrentam os dilemas de experimentar ou não as substancias que
são objetos e sujeitos em suas pesquisas2.
0
Zeny Rosendahl (2003) considera que a abordagem geográfica sobre religião
nos últimos dez anos vem enfatizando os dois pontos centrais que são a essência
1 da questão religiosa: o sagrado e o profano, e acrescenta que o sagrado, como
manifestação cultural, afirma-se no lugar, no espaço, no território, na paisagem
8 e na região. Sugere que a partir deste ponto central, a geografia das religiões deve
aprofundar suas perspectivas, analisando-se as dimensões econômica, política e
do lugar, dimensões estas que são regidas por princípios próprios, ao mesmo tempo
que há uma inter-relação entre elas.
Sobre a dimensão econômica do fenômeno religioso considera que a partir
do momento que os objetos e as coisas possuem um simbolismo e um significado
para além de suas aparências mais imediatas, estes se constituem em um bem
simbólico, com valor cultural e mercantil, e inserido em uma rede de distribuição
2 No caso destes estudos, em específico com a ayahuasca, nem podemos trata-la como objeto de
pesquisa, pois se trata de um sujeito: uma “planta professora”.
para atender a demanda dos devotos. Sobre a dimensão política, enfatiza a questão
da relação religião-território-territorialidade, com base na ideia de que o território
religioso é impregnado de significados, símbolos e imagens, via de regra é delimitado,
e nele há apropriação e controle por parte de um determinado grupo humano, no
caso os adeptos da religião, segundo uma dada hierarquia. E sobre a dimensão do
lugar, considera que na medida em que o sagrado irrompe, os lugares de culto se
tornam qualitativamente distintos do espaço comum, pois a experiência religiosa
J lhes atribui formas e funções que os diferem do cotidiano não-sagrado ou profano,
e neste caso, interessaria aos geógrafos entender o papel do sagrado na organização
espacial da paisagem religiosa e como o lugar simbólico é possuído e operado pela
A
comunidade religiosa.
L Sylvio Fausto Gil Filho (2001) discute as limitações da abordagem
geográfica tradicional da religião, que condiciona a análise do fenômeno religioso às
suas implicações espaciais mais imediatas. Propõe um redimensionamento de seu
L objeto de pesquisa, para ir além da análise puramente locacional e espacialmente
geometrizada do fenômeno religioso. Influenciado pelas contribuições de Mircea
A Eliade (1907-1986) sobre os conceitos de sagrado e o profano, Gil Filho propõem
o sagrado enquanto categoria de análise, como cerne da experiência religiosa, e
considera que o sagrado possui aspectos racionais, isto é, passíveis de uma apreensão
conceitual através de seus predicados, e aspectos não racionais, exclusivamente
captados como sentimento religioso.
• (...) se o sagrado é único enquanto categoria, paradoxalmente ele é plural em
sua realidade fenomênica. O sagrado per se é exclusivamente explicado em
657
sua própria escala, ou seja, a escala religiosa. Todavia, no plano fenomênico
• ele se apresenta em uma diversidade de relações que nos possibilita estudá-
lo à escala das ciências humanas (GIL FILHO, 2001, p 70).
• Referências
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672
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•
673
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0
1
8
J
A
L VIOLÊNCIA E GÊNERO EM RETÁBULOS DE EDILBERTO
JIMÉNEZ: OLHARES SOBRE A GUERRA NO PERU
L
Karina Lima Sales (UNEB)
A RESUMO: O texto discute violência e gênero em três retábulos produzidos por
Edilberto Jiménez, relativos a acontecimentos violentos ocorridos no Peru entre
1980 e 2000, durante o conflito interno armado de maior duração, intensidade
e com os mais elevados custos humanos e econômicos de toda a história
republicana peruana. Os retábulos foram produzidos a partir da passagem do
• retabulista e antropólogo por Chungui, um dos nove distritos da Província de
La Mar, Departamento de Ayacucho, quando Jiménez recolheu testemunhos de
674
camponeses, que geraram desenhos e, posteriormente, retábulos que retratam
• a violência perpetrada durante o conflito interno armado no Peru. Os retábulos
delimitados são Basta, no a la tortura, Abuso a las mujeres e Asesinato de niños
en Huertahuaycco. Os dois primeiros retábulos foram pautados em desenhos
produzidos a partir do testemunho de Antonia Ramírez Orihuela. Em todos eles, a
violência contra a mulher, direta ou indiretamente perpetrada, é analisada sob a
2 perspectiva da memória como luta política.
Palavras-chave: Violência contra a mulher; Retábulos de Edilberto Jiménez; Conflito
0 interno armado no Peru; Chungui.
O conflito armado interno no Peru, ocorrido no período entre 1980 e 2000,
1
foi o de maior duração, intensidade e com os mais elevados custos humanos e
econômicos de toda a história republicana peruana. Segundo a Comissão da Verdade
8 e Reconciliação (CVR, 2003), criada para examinar as causas e consequências do
conflito armado interno, a região do país que sofreu maior impacto deste conflito foi a
centro-sul, composta pelos departamentos de Ayacucho, Apurímac e Huancavelica,
região em que se iniciou o conflito e na qual houve o maior número de vítimas e
desaparecidos. O Informe Final da CVR, entregue ao país e ao presidente Alejandro
Toledo em 28 de agosto de 2003, trouxe a impactante conclusão de que quase
70.000 pessoas morreram vitimadas pelo conflito. Dessa totalidade, 79% viviam
em zonas rurais e 75% das vítimas fatais eram falantes de quéchua ou de outras
línguas nativas.
Para esse estudo, debruçar-nos-emos sobre aspectos relacionados ao
Departamento de Ayacucho, principalmente ao distrito de Chungui, um dos nove
distritos da Província de La Mar, pertencente ao Departamento. Segundo análises de
Carlos Iván Degregori (2009), calcula-se que, entre 1983 e 1994, foram produzidas
aproximadamente 1.384 vítimas no distrito, entre mortos e desaparecidos. A
escolha por esse distrito deve-se à passagem de Edilberto Jiménez por essa região,
recolhendo testemunhos de camponeses, que geraram desenhos e, posteriormente,
J retábulos que retratam a violência perpetrada durante o conflito armado interno
no Peru.
A Edilberto Jiménez, retabulista e antropólogo ayacuchano, fez uma
viagem a Chungui em 1996, como membro da equipe profissional do Centro de
L Desenvolvimento Agropecuário (CEDAP), com o objetivo de escrever trabalhos
de caráter etnológico sobre os recursos rurais de populações autóctones. Mas
a realidade que ali encontrou e os testemunhos que recolheu romperam esse
L programa e Jiménez tornou-se recompilador da memória oral dos anos da violência
sofrida pela população desse distrito durante o conflito armado interno. Em 2001,
A o antropólogo passa a integrar a Comissão da Verdade e Reconciliação. Segundo
Elisa Cairati,
Chungui logró envolver a Edilberto Jiménez en la tarea de recoger todo eldo-
lor vivido por loscomuneros, com el propósito de encontrar los instrumentos
interpretativos adecuados y plasmar um documento que lograra transmitir
La historia y, a través de ella, construir uma memória compartida de even-
•
tos ocultados, negados, o, peoraún, ignorados (2013, p. 160).
675
Jiménez, além de sua perspectiva antropológica, lança mão de seu talento
•
como desenhista para criar uma possibilidade de sintetizar a experiência traumática,
“cuya traducción em palabras se mostraba impracticable: La historia ya no como
documento escrito, sino como ilustracíon colaborativa” (CAIRATI, 2013, p. 160). A
complexa tragédia vivida pelos camponeses dos diferentes povoados do distrito de
Chungui não conseguia ser capturada por palavras, apenas, dado o fato de a maior
2 parte da população ser falante de quéchua, analfabeta, com pouca confiança no
escrito e em estranhos, de modo geral. Assim, a estratégia de Jiménez de desenhar,
0 a partir dos testemunhos ouvidos, mostrou-se o recurso mais adequado:
[…] los testimonios eran insoportables, el dolor lo vivía porque me encontra-
1 ba en sitios donde ocurrieron los hechos, me explicaban como si estuviera
sucediendo y ahí inicié a dibujar y los propios comuneros, a veces entre lá-
grimas, me ayudaban a mejorar lo que iba dibujando. Eso para mí era más
8 interesante que el rollo de película o grabarles, porque el dibujo fotografiaba
el instante que había ocurrido. (JIMÉNEZ QUISPE, 2012, p. 73).
Trinta e dois desses desenhos foram incluídos no Tomo V do Informe Final
da CVR, sob o título de Historias ilustrativas de la violência, “[...] nuevo espacio
de testimonio, configurado como imagen gráfica acompañada por fragmentos de
cuentos y recuerdos de las vítimas, enel que los informantes fueron involucrados
de manera participativa” (CAIRATI, 2013, p. 160), constituindo-se em inestimável
arquivo da história da violência em Chungui.
Para Victor Vich, os retábulos de Edilberto Jiménez funcionam no Peru
de hoje como importantíssimos dispositivos de memória e se “presentan como
un discurso testimonial y entienden su acto artístico comouna enunciación de lo
imposible, vale decir, como algo que no estaba previsto en el guióndel poder”. (2012,
p. 105). Para Vich, estes retábulos devem ser entendidos como umaação política,
“como objetos que visibilizan la ética de la estética y que transforman el dolor en
una demanda dejusticia universal”. (2012, p. 105).
Esses aspectos acima referidos relacionam-se à percepção da memória
J como um espaço de luta política. Em se tratando do conflito interno no Peru,
que dizimou milhares de vítimas e deixou marcas que não se apagam, mesmo
A após alguns anos, retratar os acontecimentos, dar voz às vítimas, é lutar contra o
silenciamento. Elizabete Jelin defende que o espaço da memória
L es entonces un espacio de lucha política, y no pocas veces esta lucha es con-
cebida en términos de la lucha “contra el silencio”: recordar para no repetir.
Las consignas pueden en este punto ser algo tramposas. La“memoria contra
L el olvido” o “contra el silencio” esconde lo que en realidad esuna oposición
entre distintas memorias rivales (cada una de ellas con sus propiosolvidos).
Es, enverdad, “memoria contra memoria”. (JELIN, 2002, p. 06).
A
E é a força da memória, como ferida viva, que pode ser associada à
produção dos retábulos de Jiménez, sobre o abuso e o ultraje sofrido por populações
em Chungui. A partir dos testemunhos coletados, Jiménez cria, a posteriori,
retábulos que retratam as duras realidades partilhadas nos testemunhos, quanto
• aos horrores da guerra: “La intención es que tengan un mensaje y que se conozcan
676 esas realidades. Que los retablos sirvan para sensibilizar y con ello aprender a
valorar la vida humana y encaminarnos hacia el desarrollo”. Como afirma Ulfe
• (2011), esses retábulos reconstroem e evocam uma consciência histórica: “por
consciencia histórica en los retablos entiendo a la capacidad de estos para ser
archivos de la memoria popular en la que el pasado reciente del Perú fluye y es
construido a través de diversas escenas […]” (2011, p. 183), é uma produção da
história.
2 São sete os retábulos com que Edilberto Jiménez nos aproxima de
Chungui e nos dizem, sem eufemismos, o que foi a guerra. Nestas sete cenas
0 de realismo cruel, Jiménez realoca, por meio do suporte da arte do retábulo, os
testemunhos recolhidos em Chungui. Os sete retábulossão: Cuántas almas habrá
1 en Chuschihuaycco; Lirio qaqa, profundo abismo; Abuso a las mujeres; Muerte en
Yerbabuena; Asesinato de niños en Huertahuaycco; Picaflorcitoe Basta, no a la
8 tortura. Destes, serão tecidas considerações sobre Basta, no a la tortura (2006),
Abuso a las mujeres (2007) e Asesinato de niños en Huertahuaycco (2007).
O primeiro retábulo, Basta, no a la tortura, foi produzido a partir de
desenhos realizados, de modo colaborativo, entre Edilberto Jiménez Quispe e
Antonia Ramírez Orihuela. Antonia testemunhou o cruel e lento assassinato de
seu filho, Emerson Ramírez, pelos militares e rememorou essa dor ao narrar /
desenhar / rever detalhes do acontecimento, junto a Jiménez. Diferentemente de
outros retábulos, esse não tem o exterior decorado, a caixa é sóbria, de madeira
crua, remetendo à ideia de um caixão. No alto da caixa, em letras vermelhas, a
inscrição “Basta, no a la tortura!”, acompanhada de uma mão espalmada, também
vermelha, significando “pare” e remetendo a todo o sangue vertido nas torturas. Ao
se abrirem as portas da caixa, as fortes imagens chocam. Nas portas, registram-se
fragmentos do testemunho de Orihuela, contando como seu filho teve suas partes
do corpo desmembradas, sendo obrigado a comer o próprio pênis. Somente depois
de uma tortura cruel, mataram-no, degolando-o. As cenas, em quadros, retratam
o episódio. No alto, à esquerda, vemos os outros presos, dentre eles, Antônia, que
observam a tudo, sem nada poder fazer. Os outros quadros vão, de certa forma,
J dissecando a tortura a Emerson, até o último quadro, em que o rapaz jaz morto.
O céu, vermelho, parece remeter também a todo o sangue vertido, não só o desse
rapaz, mas o de tantas outras vítimas.
A
L
L
A
Figuras 1 e 2: Basta, no a la tortura
J
A
Figuras 2 e 3: Abuso a las mujeres
L
Embora as cenas estejam retratadas simultaneamente, pois não há divisão
L em quadros, é possível perceber a sequência de temporalidade pela roupa da grávida
(no alto, antes do estupro, abaixo, sendo estuprada e, por fim, morta e jogada em
A um barranco) e há testemunho grafado na parte interna das portas. O exterior,
assim como o do primeiro retábulo, é sem adornos nem cores, a violência não pode
ser “floreada”. O testemunho termina com uma mancha de gotas vermelhas como
sangue e o registro: “Cuando la sangre es de una mujer maltratada y asesinada, la
herida es de todos”.
• Diversas são as formas de violência sofridas pelas mulheres, ainda mais
nesse contexto do conflito peruano, mas a sexual foi das mais graves, por todos os
678
estigmas daí advindos. As mulheres violadas, quando não eram mortas, poderiam
• sair desse ato violento com um filho fruto desse momento. Ou serem rechaçadas
pelos maridos, pela família, comunidade. O corpo era obrigado a carregar essa
memória traumática, muitas vezes não socializada. Associado a essa violência,
junte-se outra, o fato de que a maior parte das mulheres violadas era de comunidades
rurais, falantes de quéchua:
2 Sin embargo, el cuerpo carga estas memorias, lo que hace del mismo tanto
un sitiocomo un proceso histórico. La memoria traumática es una manera
de inscribir la historiaen las narrativas biológicas y biográficas de los indi-
0 viduos y de las comunidades. Yexiste otra violencia que también se inscribe
en las narrativas biológicas y biográficas enel ámbito individual y colectivo:
1 la discriminación étnica.(THEIDON, 2009, p. 76)
No capítulo 8 de seu livro Entre projimos, Theidon tematiza a violência
8 contra as mulheres e ressalta o protagonismo delas frente à violência sexual:
Más bien, nos motiva un deseo de problematizar las historias de guerra que
siguen reproduciendo el heroísmo de los hombres y la “victimización” de las
mujeres. Aun dentro de la CVR resonó este dualismo. Por ejemplo, durante
la audiencia pública con los ronderos -quienes manejan el discurso de ser
héroes de la Patria y actores clave en la “derrota de la subversión”-, no tes-
timonió ninguna mujer a pesar de que hay mujeres que no solamente par-
ticiparon en las rondas campesinas sino que llegaron a ser “comandas”. En
las audiencias públicas donde sí participaron las mujeres, fueron incluidas
como víctimas: las lloronas en contraste con los héroes de la Patria. (THEI-
DON, 2009, p. 111).
Na coleta de testemunhos realizada por Theidon, em diversos povoados,
muitos depoimentos ressaltavam o protagonismo de mulheres que saíram em defesa
de suas comunidades, de suas famílias e delas mesmas. Iam às prisões buscar
maridos, filhos, irmãos, mesmo sabendo que poderiam ser violadas, e o eram, em
troca da liberdade de familiares. Ou precisavam lançar-se à luta, literalmente.
Para Theidon, as histórias da guerra influenciam nas políticas públicas em um
contexto de pós conflito: “las historias son una forma de la acción política. Por
J consiguiente, queremos explorar las múltiples formas delheroísmo, pues no todas
son masculinas”. (2009, p. 111).
A O terceiro retábulo delimitado é Asesinato de niño sen Huerta huaycco. Em
comum com os outros retábulos analisados, novamente temos um céu escurecido,
L embora seja dia e avermelhado, representando o sangue vertido no assassinato das
crianças. Esse retábulo também não apresenta decoração exterior. Sua temática
remete a um dos episódios de violência perpetrada durante o conflito. Durante uma
L fuga para as montanhas, camponeses, acompanhados por membros do Sendero
Luminoso, o choro das crianças era considerado denunciador da posição do grupo,
A o que auxiliaria os militares a encontrá-los. Assim, os senderistas decidem matar
as crianças, obrigando as mães a fazê-lo, ou seriam mortas. Por fim, eles mesmos
assassinam meninos e meninas, sob o olhar aterrorizado e sofrido das mães.
•
679
•
2 Figura 4: Desenho de Edilberto Jiménez que deu origem ao retábulo Asesinato de niño sen Huerta
huaycco
0
1
8
Referências
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•
2
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1
8
J
A
L SOSTENIENDO EL BARCO CONTRA VIENTO Y MAREA – O PAPEL
DE EDITORAS INDEPENDENTES PARA A CIRCULAÇÃO DE
L OBRAS LITERÁRIAS NA AMÉRICA LATINA: O CASO DA EDITORA
ARGENTINA FINAL ABIERTO
A
Karina Lima Sales (UNEB)
RESUMO: O presente texto discute a importância de editoras independentes
para a circulação de obras literárias na América Latina, considerando a categoria
“independente” como polissêmica e enfocando a multiplicação de pequenas
• editoras na Argentina vinculada a um movimento social específico, no qual a
682 crise do mercado editorial somou-se à crise econômica e política desde 2001 e,
nesse contexto, o surgimento de editoras independentes respaldou-se em projetos
•
culturais de âmbito coletivo, cuja tônica principal foi a busca de saídas para a
crise por meio de estratégias de resistência cultural.Para discutir esses aspectos, o
presente trabalho pretende centrar-se no caso da editora argentina Final Abierto.
Com 10 anos de existência, a Final Abierto coloca a público livros organizados em
três coleções, Inédita, Crítica e Vanguarda. A editora assume como norte a tarefa
2 de superar a fronteira nacional argentina, publicando e fazendo circular produções
ficcionais e não ficcionais de autores de distintos países de América Latina, para
0 que essas produções sejam lidas e discutidas para além dos espaços de origem dos
escritores. Assim, o presente texto pretende refletir sobre esses aspectos, bem como
1 as estratégias utilizadas pela editora independente para a publicação e circulação
das obras literárias que constam de seu catálogo, em sua atuação como força de
8 resistência cultural em um panorama editorial.
Palavras-chave: Editoras independentes argentinas. Final Abierto. Circulação
literária. Resistência cultural.
Quando se analisa o campo editorial da Argentina, na contemporaneidade,
o que se percebe, positivamente, é que o número de editoras independentes tem
crescido cada vez mais. Segundo o último informe (2017)da Câmara Argentina de
Publicações (CAP)1, o “Libro blanco de la industria editorial argentina”, as pequenas
1 Para o informe 2017 da CAP, que considerou as publicações de livros realizadas em 2016, na
Argentina, foram classificadas como grandes as editoras que publicam mais de 100 títulos ao ano;
médias, as que publicam entre 20 e 99 títulos; pequenas, as que publicam menos de 20 títulos
editoras, com publicação de até 20 títulos por ano, representam 51% do conjunto
de editoras do país e foram responsáveis, em 2016, por 11% do total de títulos
publicados. Os números parecem promissores e salientam a necessidade de uma
reflexão sobre o fenômeno da multiplicação de editoras independentes: “Cada día
surgen nuevas editoriales y esto es lo que garantiza, indirectamente, la diversidad
cultural, que de otro modo se vería amenazada. “Las grandes transnacionales
tienden a la uniformidad”, afirma Guido Indij, editor de Interzona e Factotum e
J membro de EDINAR, Aliança de Editores Independentes da Argentina2.
Embora se possa situar o fenômeno cultural da proliferação de editoras
A independentes na Argentina como sintoma de um novo cenário de autogestão a
nível global – e que se pode perceber nos mais variados âmbitos, não somente o
L cultural – há algumas particularidades na cena argentina que merecem destaque
e influenciaram / influenciam o fortalecimento desse tipo de empreendimento
editorial. Para isso, é necessário tecer algumas breves considerações sobre o
L contexto que levou à maciça criação de editoras independentes a partir do final
dos anos 1990, bem como a importância da categoria independente, associada a
A essas editoras, antes de nos determos no caso da editora específica escolhida para
análise, nesse trabalho.
A categoria de edição independente é polissêmica e tem sido estudada sob
diferentes enfoques, no que se refere à realidade de Argentina, desde os anos 1990.
Cada grupo de pesquisadores atribui ao termo heranças, significados e mesmo
• nominações diversas, o que leva Winik e Reck (2012) a perceber uma “plasticidade
683 conceitual” do termo. Esses pesquisadores consideram problemático situar as
editoras independentes como coletivos, mas reconhecem que a denominação
•
é uma espécie de “guarda-chuva” conceitual sob o qual se aglomeram distintos
projetos. Pochettino (2011) propõe que se use outra terminologia, o conceito de
editoras literárias independentes alternativas e de autogestão. Para Malena Botto
não se pode falar em editoras independentes se as editoras pertencem a grandes
grupos transnacionais, vinculando o conceito de independência à nacionalidade
2 dos projetos editoriais e a sua atuação como atores culturais. Para Marilina Winik,
a partir de sua investigação da FLIA (Feria del Libro Independiente y Alternativa /
0 Autónoma, criada em 2006), os laços afetivos que unem os participantes dessas
editoras e o caráter de acontecimento dessas produções editoriais possibilita
1 conceituá-las como editoras autogestivas, observando nessas editoras formas de
militância cultural e política após a crise dos anos 2000, a partir das quais se
8 desenvolvem “subjetividades no mercantilistas, afectivas y resistentes apoyadas
em redes de trabajo editorial” (WINIK; RECK, 2012, p. 555). Hernán Vanoli propõe
o termo pequenas editoras, relacionando a gênese desses projetos às editoras
surgidas na década de 1970, como La Rosa Blindada e Jorge Alvarez. Toda essa
diversidade leva a constatações como a de Sorá (2013), que vê a categoria editoras
ao ano e foi incluída uma nova categoria, a de editoras emergentes, cujas publicações tenham
somado até 20 títulos em cinco anos. Nessa categorização, a editora argentina Final Abierto seria
considerada como emergente.
2 In: ABDALA, Verónica. Editoriales independientes: la potencia de lo pequeño. Caderno Cultura
do Jornal Clarín, edição de 05 de agosto de 2016. Disponível em: https://www.clarin.com/cultura/
editoriales-independientes-potencia-pequeno_0_S1T4Km-t.html. Acesso em 22 novembro 2017.
independentes como polissêmica e escorregadia, mas afirma que não se pode
desconsiderar a vinculação do surgimento dessas editoras com um momento social
específico e que esses projetos culturais apareceram como uma espécie de “ámbitos
colectivos de salvación através de la cultura” e que analisar a edição independente
supõe “relacionarla a la totalidad de los sistemas de agentes y de prácticas que
caracterizan los distintos mercados nacionales de libros y los espacios editoriales
internacionales que los abarcan” (SORÁ, 2013, p. 102).
J Para a perspectiva aqui abordada, adotamos o uso que Daniela Szpilbarg,
a partir de vasta pesquisa, tem feito do termo editora independente quando este
A determina projetos editoriais argentinos não pertencentes a conglomerados
transnacionais. Além disso,aproximamo-nos da proposição conceitual de Szpilbarg
L de considerar a edição independente como um problema sociológico, dentro da
conjuntura sócio-político-cultural do país no fim dos anos 1990:
Nos parecía interesante pensar esta categoría como un problema sociológico
L porque el campo editorial es un campo de producción de bienes culturales y
permite pensar em problema de las relaciones de dominación em los campos
A nacionales, así como también permite pensar el estatus de la cultura nacio-
nal o literatura nacional en el marco de campos nacionales muy transnacio-
nalizados, a partir de los procesos de fines de los años 80 que suponen un
escenario de progresiva globalización editorial. (2015, p. 8).
3 Depoimento concedido a Natália Paez, para a reportagem “Zona independiente. El otro lado de la
industria editorial”, publicado na edição de 6 de agosto de 2017 do Jornal La Nación. Disponível em:
https://www.lanacion.com.ar/2049748-zona-independiente-el-otro-lado-de-la-industria-editorial.
Uruguai e Venezuela. Segundo dados divulgados pela mídia argentina, foram
vendidos 12.000 livros em 15 horas de feira. Embora os números possam parecer
otimistas, diversos são os desafios enfrentados por uma editora independente no
processo de editar uma obra, imprimi-la, distribui-la e fazê-la circular. Por isso a
importância e a força do movimento de coletivização das editoras independentes
que, ao se associarem, como gestores culturais, fortalecem o “animo cooperativo”
de que fala Sáez e assim “funcionan como un solo cuerpo, donde cada volumen
J es una célula necesaria, que se complementa con el todo sin competir”. Dessa
maneira, o setor faz barulho, demarca sua existência, amplia suas fronteiras ao
multiplicar-se e consolida a luta coletiva por meio de estratégias que ultrapassam a
A
mera edição e o vender livros, alicerçam-se como um meio de difusão de ideias, arte
e conhecimentos, através dos eventos pensados e desenvolvidos e dos catálogos que
L são traços da independência dessas editoras, como afirma Victor Malumián, editor
de Ediciones Godot: “El verdadero rasgo de independencia está en la formación del
L catálogo que no sigue caprichos del mercado. El rasgo diferencial tiene que ver con
una búsqueda específica”.4
A E para adentrar melhor nesses aspectos arrolados até o momento, vamos
nos debruçar sobre uma editora argentina independente específica, a Editora Final
Abierto. O contato com a editora deu-se em uma dessas redes de sociabilidade, em
um evento realizado em setembro de 2017 em um bar de Buenos Aires, uma feira
de editoras independentes. Para além dos grandes eventos como a FED, de edição
• anual, diversas ações são realizadas costumeiramente, permitindo que proliferem
686 redes de contato entre editores, escritores e leitores, principal foco de atenção das
editoras independentes.
•
Com 10 anos de existência, a Final Abierto publica livros organizados
em três coleções. A primeira coleção, Inédita, possui a proposta de editar textos
de ficção inéditos na Argentina de ontem e de hoje. Já a Colección Crítica traz
discussões de pensadores e intelectuais nacionais e internacionais com temáticas
sociais diversificadas. A Colección Vanguardia possui a proposta de trazer a público a
2 vanguarda literária latino-americana, com textos sempre precedidos de cuidadosos
estudos introdutórios de renomados críticos. No site da editora, a Final Abierto é
0 apresentada como “un proyecto ideológico/cultural amplio, que intenta rescatar el
pasado y dar espacio a las nuevas camadas de escritores, artistas e intelectuales
1 para poner al pensamiento crítico nuevamente en el centro de la escena. Como
parte de esto es que presentamos esta editorial independiente que desde la ficción
8 y la no ficción intenta contribuir al debate político/cultural”.
Em entrevista concedida à autora desse trabalho, o escritor argentino e
editor de Final Abierto José Henrique delimitou o contexto de surgimento da editora,
pensada desde o início como algo além de uma editora, um projeto ideológico-
cultural mais amplo, denominado Espacio Final Abierto:
¿Cuál es la idea de la editorial? Vamos a pensar que la crisis de los 2001 fue
muy fuerte, hay un quiebre, de alguna manera, ese libro [un de los primeros
4 Depoimento concedido a Natália Paez, para a reportagem “Zona independiente. El otro lado de la
industria editorial”, publicado na edição de 6 de agosto de 2017 do Jornal La Nación. Disponível em:
https://www.lanacion.com.ar/2049748-zona-independiente-el-otro-lado-de-la-industria-editorial.
publicados por la editorial, Los ‘90: fin de ciclo: el retorno a la contradicción],
cuando lees la introducción de ese libro, se da cuenta de que está definido
acá el contenido de la editorial, adónde vamos, ese libro define adónde va la
editorial, de alguna manera. O sea, ese fin de ciclo, ese cambio de situación,
nosotros veníamos el peso de la vanguardia… ahora todo mundo volvió a
la vanguardia, nosotros esto lo vimos… yo lo vi… primero que vi el tema, vi
ese momento, no solo que yo confiaba en la vanguardia, en ese momento,
cuando vuelve la contradicción, cuando hay el ascenso, la vanguardia pasa
J a primero plan, está bien?, son la marca de la contradicción, o sea, busca-
mos un lector que tiene que profundizar más. Apostamos en la vanguardia,
para volver a la vanguardia. Y nosotros armamos ese Espacio Final Abierto
A porque nos proponíamos era tratar a ver si podíamos impactar, enganchar
el fenómeno nuevo que surgiera, de la juventud, aparece al calor de la rup-
L tura de los 2001. De pintores, cineastas y otros. Espacio Final Abierto para
poder armar muestras de pintura, de cine, para armar con eses fenómenos
que surgieron más independientes. […] El espacio de Facebook, de alguna
L manera, está pensado para retomar de alguna manera esa idea de Espacio
Final Abierto. […] Si vos agarráis, la página de Facebook no es solamente la
página de la editorial, o sea…Si intenta volver de vuelta a armar un canal,
A comenzamos a tirar de vuelta, a poner en dimensión de vuelta toda la idea
del Espacio Final Abierto. 5
5 Depoimento coletado de entrevista concedida pelo editor e escritor José Henrique à autora do
trabalho em 11 de novembro de 2017.
de variadas áreas. A configuração desse primeiro livro de não-ficção demarca um
posicionamento ideológico de que a editora, como nos afirmou José Henrique, “não
publica qualquer coisa”.6 Com uma vertente marcadamente de esquerda, os editores
de Final Abierto deixam entrever isso em muitas das publicações. Esse primeiro livro
da Colección Crítica foi organizado com textos de Vicente Zito Lema, dramaturgo,
periodista e advogado dos direitos humanos, além de professor de Psicologia Social;
Pablo Pozzi, Flabián Nievas, Claudio Katz, Marcela Croce, Christian Castillo, Pablo
J Bonavena, todos professores das Faculdades de Filosofia e Letras e de Ciências
Sociais da Universidade de Buenos Aires, UBA; além de Andrea D’Atri, membro do
Conselho do Instituto do Pensamento Socialista (IPS) Karl Marx.
A
E a partir dessas primeiras publicações, a editora passou a desenvolver
L um acirrado trabalho de divulgação, participando de mesas de discussões em
universidades (em virtude de publicações de não-ficção), de feiras de livros, eventos
de editoras independentes para um colocar-se na cena editorial. Ao longo desses
L dez anos, esse trabalho de editoração se consubstanciou em vinte e um títulos
distribuídos nas três coleções da editora. A Colección Crítica apresenta nove títulos,
A um deles já citado. Os outros transitam por temáticas variadas, mas dentro do escopo
temático adotado pela editora: El gigante fragmentado: sindicatos, trabajadores y
política durante el kirchnerismo; Peronismo y representación: escritura, imágenes
y política del Pueblo; Universidad, política y movimiento estudiantil en Argentina
(entre la “Revolución Libertadora” y la democracia del ’83); Guerra: Modernidad y
• contra modernidad; Apuntes sobre la formación del movimiento estudiantil argentino
688 (1943-1973). Todos esses anteriores foram livros organizados com artigos de
autores diversos. Há ainda os livros Vietnan y las fantasias norte-americanas e
• War Stars: guerra, ciencia ficción y hegemonía imperial, do americano H. Bruce
Franklin, traduzidos pela primeira vez ao espanhol pela editora Final Abierto, o que
garantiu à editora vendas inclusive na Espanha, além dos países latino-americanos
que falam espanhol.7 O último título dessa coleção foi lançado em maio de 2018,
Homosexualidad y revolución, do escritor Dan Healey, publicado originalmente em
2 inglês em 2001 e agora traduzido ao espanhol por Final Abierto.8
A Colección Inédita, com oito títulos, apresenta em seu escopo autores
0
6 A afirmação específica foi “Nosotros no editamos cualquier cosa”.
7 Nesse caso dos livros de Bruce Franklin, inverteu-se a lógica dominante de mercado em que a
1 tradução primeiramente é realizada pela Espanha e que pouco garante uma adequada circulação de
obras traduzidas ao espanhol nos países da América Latina, uma vez que a política de exportação
8 de livros obedece a determinadas diretrizes em que a quantidade não é o foco, apenas há um
cumprimento de cotas. Além disso, a tradução realizada pelo tradutor e editor Mario Iribarrendesses
livrosdo autor norte-americano permite sua inserção em programas acadêmicos de universidades as
mais diversas de América Latina, o que também contribui para a divulgação do excelente trabalho
de editoração de Final Abierto.
8 No texto de apresentação do livro, no site da editora, consta: “Publicado originalmente en inglés
en 2001, este ensayo fascinante indaga en la historia del sexo homoerótico en la Rusia zarista y la
Unión Soviética. Su autor, Dan Healey, nos lleva desde el San Petersburgo decimonónico con sus
casas de baño y sus sitios de ligue, pasando por la despenalización de la homosexualidad durante
la Revolución Rusa, hasta la persecución homofóbica bajo Stalin y en la posguerra. Diarios íntimos,
informes psiquiátricos y forenses, las actas de los tribunales de los años 30, las voces del gulag, se
van entrelazando en este mosaico histórico que, cien años más tarde, aun nos interpela y nos invita
argentinos. Em 2017, a publicação do livro Limbo, do consagrado autor argentino
Noé Jitrik rendeu à editora uma maciça divulgação na mídia, dado que o livro, cuja
primeira publicação fora no México, em 1989, não havia sido publicado ainda na
Argentina até aquele momento. O oitavo livro da coleção foi publicado em maio de
2018, como fruto do Primero Concurso de novelas Final Abierto, iniciado em 2017,
em comemoração aos dez anos da editora. O concurso surpreendeu os editores, que
receberam 290 romances para avaliação, o que demandou um minucioso trabalho
J de análise, para chegar a cinco finalistas para a etapa final de avaliação pelo júri
composto pela escritora cubana Jamile Medina Ríos, a boliviana Giovanna Rivero,
o escritor mexicano Pedro Palau, o equatoriano Raul Serrano Sanchéz e o argentino
A
José Henrique. O concurso deixou a editora com um saldo de romances a serem
publicados nos próximos anos, considerando o grande número de participantes.
L Segundo o editor Henrique, a ideia é publicar ao menos os dez finalistas do concurso:
Es un esfuerzo grande salir a descubrir autores. Tiene que ver con traer a
L conocer, descubrir autores. 290 novelas recibimos. Igual nos superó. Pensa-
mos en recibir 100, 150, lo que pasa es que los escritores jóvenes no tienen
quien los lea. El otro objetivodel concurso era que nos dejara diez, quince
A autores para nos dejar cubierta la Colección Inédita, que no es rentable,
porque no se vende, no tiene prensa.9
11 Depoimento concedido a Natália Paez, para a reportagem “Zona independiente. El otro lado de la
industria editorial”, publicado na edição de 6 de agosto de 2017 do Jornal La Nación. Disponível em:
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2 WINIK, M.; RECK, M. Un posible final para un certero inicio: acerca de los nuevos de-
safíos de las editoriales independientes. Anais do Primer Coloquio Argentino del Libro y la
Edición, La Plata, Argentina, 2012.
0
1
8
J
A
L MULHERES E REFORMA AGRÁRIA: DO LUTO À LUTA DESENHAM
SUA CORAGEM
L
Laíse Rabêlo Cabral (UNB)
A Tamiris Lima de Sá (UNB)
RESUMO: O texto traz a história de mulheres como Maria Joel da Costa, Elisabeth
Teixeira, Laísa Sampaio, entre outras mulheres que tiveram as vidas marcadas
por assassinatos em virtude da luta pela Reforma Agrária no Brasil mas que não
se conformaram com um desfecho trágico e hoje lutam pelos mesmo ideais que
• vitimaram seus entes queridos. Aquelas que não foram tombadas na luta, seguem
ameaçadas de morte. A principal fonte de coleta dessas informações são reportagens
694
jornalísticas e estudos acadêmicos livros que falam de suas histórias, bem como da
• experiência pessoal das autoras com o tema. O resultado, num viés literário, é antes
de tudo uma homenagem àquelas que por ocasião de tragédias foram derrubadas
mas que se fizeram erguidas pela força da mulher, pela paixão pela terra e pela
força do lutar. Mulheres que do luto à luta desenham sua coragem.
Palavras-chave: Mulheres. Terra. Reforma agrária. Luta pela terra.
2
O trabalho no campo traz para o imaginário citadino a ideia de brutalidade,
0 de força e suor, o que também nesse mesmo citadino imaginário, em nada se
assemelha ao que é definido como mulher. Nessa tola reflexão, a mulher do campo
se dedica apenas à casa e aos filhos ou a trabalhos “menores”, o que a realidade
1
nos mostra é a igualdade, tanto de trabalho, de “pegar no pesado” como a igualdade
àqueles e àquelas que vão além do que lhes é posto, homens e mulheres enfrentam
8 hoje no campo não apenas o trabalho duro da enxada, enfrentam as ameaças
de morte que o combate aos latifundiários traz. Alguns desses assassinatos,
desvelam uma companheira que já militava mas que diante de uma tragédia vê a
necessidade de transformar seu luto em luta, uma busca pela justiça à morte de
seus companheiros e também aos seus ideais.
Muitas são ditas “herdeiras” da luta mas até que medida isso é de todo
verdade? Herdar a luta ou alcançar o reconhecimento? O que difere o olhar? Seria
o gênero um elemento a ser considerado na luta pela reforma agrária? E quem
são essas mulheres? O que é ser mulher nesse contexto? Neste trabalho é trazida
a luta de algumas dessas pessoas, na tentativa de um olhar além da estrita visão
da conquista pela terra ou da proteção do direito à vida, adiantando que este são
elementos centrais para que estas histórias se tornem luz a ser seguida, mas a
intenção é ver desde o “ser mulher na luta”, mais que a “luta para a mulher”. Uma
fraterna homenagem àquelas que deram e dão a vida ao projeto de sociedade que
compartilhamos.
Metodologia
J A pesquisa apresentada é feita a partir de textos jornalísticos e estudos
acadêmicos que retratam da vida de 10 mulheres. A escolha por estas mulheres
A e não outras, se deu com base na repercussão que suas histórias de vida tiveram
em grandes jornais, da mídia tradicional ou não, em que o foco se deu na trajetória
L marcada pela tragédia causada pelo conflito em torno da luta pela Reforma Agrária. As
mulheres aqui destacadas foram “achadas” quando da pesquisa, a partir da história
L de Maria Joel e de Margarida Alves, estas conhecidas e reconhecidas popularmente
e internacionalmente, por mulheres que tivessem trajetória semelhante. A partir
disso, foram envidadas pesquisas na internet e outros meios, como documentários
A e reportagens televisivas, além dos meios escritos já citados e sistematizados nas
referências bibliográficas a fim de sintetizar suas histórias de luto e de luta.
Ainda no que tange à metodologia utilizada, é sabido que seria inglorioso
tentar colocar no papel, no intento de esgotar o tema, todo sofrimento, lutas e a força
destas mulheres, impossível escrever histórias tão profundas, ternas e instigantes.
•
Ao mesmo tempo seria desonroso para com esta mulheres definir um marco teórico
695 quando elas próprias se falam, dar voz e visibilidade a estas mulheres no campos
• das letras é reconhecê-las como senhoras de si, de suas vidas, é fazer jus ao seu
trabalho e à dedicação empenhada em tal. Por esta razão, este trabalho trata de
expor a história dessas mulheres que, em virtude da luta pela Reforma Agrária,
tiveram suas vidas marcadas por tragédias e ao invés de se recolherem no luto, o
transformaram em luta e com coragem enfrentam os mesmos algozes que ceifaram
2 a vida de seus companheiros ou como Margarida, foram ressignificadas após a
própria morte.
0 Em parceria com o Diário do Pará, o site de reportagem chamado ‘a
Pública’ criou um série de reportagem, contando a história de 10 mulheres que
estão sofrendo ameaças de morte por lutarem por uma vida digna, em defesa de
1 seus direitos e lutas pela preservação das florestas. São elas: Maria Joel, Nicinha,
Laísa, Maria Regina, Maria do Carmo, Cleude, Graciete, Nádia, Késia e Maria
8 Raimunda. A série foi intitulada “Marcadas para morrer” tendo como o repórter
responsável Ismael Machado. Esta série de reportagens é base para as histórias
sem escusas a outras reportagens e textos acadêmicos.
Uma singela homenagem que recolhe histórias destacando o protagonismo
dessas autoras da vida, sem se furtar ao entrelace desse arcabouço fático com a
experiência de autoras e autores acadêmicos.
Joelma – “Diziam para eu sair, ir embora. Eu disse que iria ficar e cobrar
o que aconteceu. Assumi os trabalhos do Dezinho e a luta por justiça”
Em Rondon do Pará, distante 538 quilômetros da capital paraense, vive
Dona Maria Joel, conhecida como Joelma, mulher de uma força incrível, como,
ousa-se dizer, são as mulheres que lutam pela terra. Imbricadas pela força que
rege a História do Brasil, colonial, patriarcal, exploradora, a ligação entre a terra e
mulheres como Joelma, essencial ao sustento e à (re)existência daquelas pessoas,
pode ser analisada pela condição primeira de Joelma, mulher. Joelma preside
o sindicato de trabalhadores rurais do município, “herdou” a função quando o
sindicalista José Dutra da Costa, o “Dezinho”, pai de seus filhos, companheiro de
J amor, de luta e de vida, foi assassinado em Rondon do Pará no dia 21 de novembro
de 2000 por fazendeiros conhecidos, mas até hoje impunes. Joelma herdou não só
o sindicato herdou as ameaças de morte. Hoje vive sob escolta 24h para exercer
A
seu direito primeiro, viver. Mulher, mãe de 4 filhos, evangélica, busca na fé, a
força para suportar a pressão e diante dos algozes, da sociedade, do Estado e da
L Comissão Interamericana de Direitos Humanos, honrar a luta que começou há
algumas décadas.
L Joelma assumiu o sindicato dois anos após a morte de seu marido, devido
a vários pedidos dos sindicalizados e posteriormente a Federação dos Trabalhadores
A e Trabalhadoras na Agricultura do Estado do Pará – FETAGRI/PA.
Em 21 de novembro do ano 2000, José Dutra da Costa, o Désinho, com
quem era casada, foi assassinado por um matador de aluguel com três tiros
no peito, dentro de sua casa. À época, Joelma, como é conhecida, saía ape-
nas para ir à igreja. Quando a dura realidade bateu à sua porta, ela engoliu
a tristeza a seco e comprou a briga: foi presidente do sindicato por dois man-
•
datos seguidos, depois convidada a fazer parte da diretoria da Fetagri-PA
696 (Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura do Estado do
Pará). (CLARK, 2018)
•
Os detalhes desse recorte de história, que já dura 18 anos, despertam
horror, não só pelo aspecto macabro que marca esse enredo, em que os mandantes
do assassinato seguem impunes e ainda há conivência do Estado, pois mesmo diante
da denúncia perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH e
2 um acordo de solução amistosa com o Estado em 2011, Décio José Barroso Nunes,
mandante do crime segue sem punição, com diversos júris sem julgamento efetivo.
0 (GARCIA, 2017, p.90). O executor do crime, detido por populares foi preso quando
do assassinato, mas morto quando saiu da prisão em condições não esclarecidas.
1 O que pesa nesta narrativa e aqui é dada a prioridade, é o “não dito” nas
histórias que as retratam, talvez pela insuficiência de léxico, talvez pela incapacidade
humana de transliterar o sentimento. Maria Joel é uma figura doce e forte que vive
8 numa sombra de passado, sequer viver o luto é possível, pois a morte que açoitou
seu companheiro de vida, hoje assombra sua própria existência.
A relação de Joelma com a terra transcende seu protagonismo frente
ao sindicato, se expande para uma dimensão do cuidado, de saber o nome de
todos os assentamentos que compõe os abrangidos pelo sindicato, as datas dos
acontecimentos e numa voz firme porém terna relatar o amor que sente por Dezinho,
figura tão viva na fala que emociona qualquer interlocutor, e a busca por Justiça,
nos tribunais e no Campo, que a levada desse amor carreou.
Num primeiro momento, o apagamento dessas histórias e a perda
dos caminhos da Justiça podem fazer crer que se trata de invisibilidade da luta
feminina na história brasileira, entretanto aqui se partilha de entendimento diverso.
Entende-se como errôneo falar em “invisibilidade” pois se assim fosse elas não
seriam marcadas para morrer, seu nomes não constariam em listas de pessoas a
serem assassinadas por “incomodar”.
Estas mulheres são vistas e lembradas, o que se quer, pelo lado
latifundiário e capitalista, é seu apagamento. Invisíveis elas não são e jamais serão.
J Elisabeth Teixeira – “[...] mataram ele porque ele lutava pela reforma
agrária, mas eu estou aqui até hoje continuando a luta pela terra no
A campo, para que o trabalhador do campo tenha direito a terra.”
Elizabeth Teixeira participou da Primeira Liga de Sapé, na qual o esposo,
L João Pedro Teixeira, era líder. Após a execução de João Pedro, Elizabeth ocupou
seu lugar, na Liga de Sapé e na luta.
L Sua história ficou mais conhecida com o filme “Cabra marcado para
morrer” do cineasta Eduardo Coutinho de 1984, lançado após 17 anos de iniciadas
A as filmagens. As gravações foram interrompidas, por conta da ditadura militar,
mudando o enredo inicial.
Elizabeth teve acesso aos estudos e tinha uma condição financeira e
social boa por conta de seu pai ser um pequeno proprietário de terra e comerciante.
Foi trabalhando numa mercearia de seu pai que Elizabeth conheceu João Pedro.
• Com a aproximação do jovem, o pai de Elizabeth o proibiu de frequentar o local e
não aceitava o namoro dos dois, por atribuir à João Pedro uma característica, de
697
forma pejorativa, por ser preto, pobre e sem estudo. Elizabeth, decidida, fugiu de
• casa, rompendo ligações com a família, para se casar com João Pedro. Essa escolha
lhe custou caro. Pelo fato de passarem por diversos lugares em busca de trabalho,
a família Teixeira teve acesso à diversas organizações sindicais do campo, e como
funcionava as ligas e, quando voltaram à Sapé, para cuidarem de uma terra do pai
de Elizabeth, João resolveu criar a Liga de Sapé, que chegou a se tornar a maior
2 do nordeste, com mais de 7 mil sócios. Recebendo apoio da igreja, de autoridades
partidárias e de juristas, mas aumentando a revolta dos proprietários da região,
0 inclusive de seu sogro, que revoltado, vendeu a terra onde moravam. João se
recusou a sair, entrando na justiça para conseguir os direitos por ter trabalhado na
1 terra. Por essa luta e por tudo que ele representava para os trabalhadores rurais,
direcionando-os à luta e a busca por uma sociedade mais justa, João Pedro foi
morto. Tendo como um dos mandantes, seu sogro. Deixando Elizabeth viúva, com
8 11 filhos e com sede de justiça.
A morte de João Pedro tornou-se um juramento para Elizabeth que junto
ao corpo do marido prometeu continuar sua luta a qualquer custo. Diante
da dor, da revolta e de muita solidariedade em prol das lutas camponesas,
Elizabeth encarou as lutas e alguns desafios, como por exemplo, o aceite ao
convite do Presidente Cubano Fidel Castro para que um de seus filhos fosse
estudar naquele país... Elizabeth enfrentou as lutas do campo à frente da
Liga de Sapé. Em 1962, foi eleita presidenta da Liga, quebrando os padrões
de uma época. (Berenice G. da Silva, p. 68)
Laísa dos Santos Sampaio - “Sei que diante das ameaças e de tudo o mais
tenho que ter fé e coragem”
Em 1997 o projeto extrativista, que utiliza recursos florestais sem desmatar
e agredir a natureza foi implementado e João Cláudio Ribeiro da Silva e Maria
• do Espírito Santo da Silva foram contemplados pelo projeto. Logo João Cláudio
698 tornou-se o presidente da Associação dos Extrativistas e também a frente da luta
contra os fazendeiros que queria os impedir de alguma forma para continuar com a
•
extração de madeira ilegal. “Foi quando Maria disse que nasceu para o movimento
social”, lembra Laísa. Claramente isso incomodou e as ameaças à João Cláudio e
à Maria, que era a responsável pela organização das mulheres no assentamento,
foram constantes.
Laísa passa seus dias, com seu marido e 12 filhos, sendo 4 biológicos e
8 adotivos, na periferia de Marabá, sudeste do Pará. Ela e o esposo, Zé Rondon,
vêm sendo ameaçados de morte desde o assassinado da irmã e cunhado. Laísa é
professora no assentamento, convidada por Maria em 2001 a lecionar na escola
multidisciplinar, que teve o nome alterado de Costa e Silva para Chico Mendes
por ideia de Maria. Hoje, Laísa assumiu a linha de frente no assentamento, que
pertencera a irmã, organizando as mulheres extrativistas. Segue resistente a luta,
mesmo com as ameaças de morte. Recusou-se a ter proteção policial em casa,
apenas usufrui dessa proteção quando precisa se deslocar a lugares distantes.
A história de Laísa sempre foi de luta e medo. Desde pequena quando seu
J pai migrou do Maranhão em busca de terras prometidas em pelo governo militar.
Eram épocas de guerrilha, confronto militar e as militâncias contra a ditadura,
A toque de recolher, prisões e medo. Passou a infância nesse medo de sair de casa e
dos terroristas que seu pai contava, referindo-se aos guerrilheiros. Com o ganho da
L terra pelo projeto de assentamento extrativista, Laísa viu como a história da irmã
foi desencadeando em seu assassinato. Como se não bastasse a perda da irmã e do
cunhado, a impunidade do mandante do crime, as recorrentes ameaças de morte,
L por continuar a luta, em 2011 recebeu um diagnóstico de um aneurisma no lado
esquerdo do cérebro, havendo tratamento apenas para amenizar as sequelas mas
A sem que chegue a 40% da cura da doença em si. Conta Laísa: “Em 2012, passei o
ano correndo da morte. Em 2013 estou correndo em busca de vida. Sei que diante
das ameaças e tudo mais tenho que ter fé e coragem. Nesse momento só tenho
coragem.” (MACHADO, 2013).
Laísa é uma mulher forte, que pela sua história encadeou numa mulher
• que não demonstra facilmente seus sentimentos, mas que tem um coração enorme.
699 Cuidando dos assentados, crianças, animais, e é claro, a natureza. Lutando e dando
a vida pela causa na qual acredita.
•
Margarida Alves - “é melhor morrer na luta do que morrer de fome”
Margarida Alves inseriu-se no Sindicato Rural de Alagoa Grande em
1973, onde foi tesoureira, presidente e uma das fundadoras do CENTRU – Centro
de Educação e Cultura do Trabalhador Rural. Sempre muito solícita, se tornou
2 símbolo de resistência no meio rural, se revelando uma defensora dos direitos
humanos dos trabalhadores rurais, lutando pelos direitos negados à eles, como os
0 direitos trabalhistas. Essa luta culminou em mais de 600 ações trabalhistas contra
usineiros e donos de engenhos, na região do Paraíba.
1 Margarida sofreu muitas ameaças, principalmente pelos latifundiários que
perderam para muitos dos processos trabalhistas, orientados por ela. Assassinada
em Agosto de 1983 em frente de sua casa, de seu esposo e de seu filho. Sua história
8 é retradada no livro de Sebastião Barbosa: “A mão armada do latifúndio”.
Sua luta, o modo como morreu e a causa, faz seu nome ser conhecido ainda
hoje, representando a luta dos movimentos sociais do campo e, principalmente,
das mulheres. Desde o ano 2000 se organiza a Marcha das Margaridas, pela luta
de direitos das mulheres do campo, em clara homenagem à Margarida e à luta que
ela desempenhava. A última marcha, em 2015, foi estimada em 70 mil pessoas
ocupando o gramado do Congresso Nacional. (BRASIL, 2015)
Ousando filosofar sobre a vida, as mulheres e (porque não?) a morte.
Heidegger foi um dos filósofos contemporâneos que viu a necessidade de
retomar a temas que tangem a vida humana, mas que foram ignoradas pela filosofia
ocidental após as revoluções técnico-científicas, onde se acredita que só devem ser
objetos de pesquisas temas possíveis de serem provados pela lógica. Heidegger
retoma o estudo do ser e introduz em sua obra ser e tempo o termo Dasein (ser-aí),
ou seja, o ser que entende-se como ser que existe. Para a existência do Dasein é
necessário algumas particularidades, são elas: ser-no-mundo, ser-com-os-outros,
ser-para-a-morte.
J Tais particularidades estão entrelaçadas, pois o ser-no-mundo é onde e
para onde o ser se projeta e faz planos, onde há possibilidade de se determinar e
A de manifestar seu ser, onde ele idealiza, cria, e transforma. O ser-para-os-outros é
quando ele mantêm relação com o outros entes e consigo próprio, mesmo que não
L queira, o fato de ser-no-mundo implica que, mesmo que indiretamente, ele tenha
essa relação com os outros, pois uma atitude individual afeta o coletivo pelo fato de
estarem no mesmo mundo.
L “O Dasein partilha com os outros o espaço que circunda. Em sua ocupação ele
se encontra a si mesmo e aos outros. De fato, nesta possibilidade de ser-com-
A -os-outros, o estar-só do Dasein é ser-com no mundo.”(Ser e Tempo, p. 171)
Conclusão
Foi trazido partes pequenas das histórias dessas mulheres como uma
tentativa em refletir sobre o que enfrentam, submetidas às mais diversas formas de
sofrimento e humilhações por lutarem por seus direitos e os de sua comunidade e
assentamentos, retirar do apagamento a que somos submetidas.
Da escuta destes testemunhos, percebemos que se antes o imaginário era
permeado pela ideia de que elas eram viúvas de lideranças, hoje elas não apenas
“herdam” a luta, elas protagonizam em si a história de seu povo, carregando a sede
de Justiça pelas agruras do campo e pela passagem dos que se foram. O filósofo
Heidegger prelaciona que a condição decisiva de toda verdadeira liberdade humana
é o “ser para a morte”, de outro modo quer dizer que só se tem liberdade para viver
quando a liberdade também é plena para morrer. E estas mulheres parecem já
J terem aceitado isso, tal qual Margarida disse, que “preferia morrer na luta a morrer
de fome”, a vida sem luta já não faz sentido. Isso é de um força que nem Heidegger,
nem Mbembe poderiam explicar, só quem vive e quem viveu detém esse domínio
A
sobre o luto e sobre o lutar.
L Cada história já é digna do aprendizado de uma vida, isto é, carregam
sentimento e reflexão que movimentam o pensamento sem necessidade de auxílios
que forjem pensamentos.São histórias marcadas pela morte mas a morte, por mais
L difícil que seja aceitar isso em nossa sociedade ocidental e cristã, não é centralidade.
Estas mulheres é que são centrais. Senhoras de sua história e para além delas,
A como Margarida desde 1983 ousa, reunindo milhares em seu nome décadas após
seus algozs acreditarem que a haviam tombado.
Há tantas outras Marias mundo a fora (e Marieles, a quem também
fica nossa homenagem), que não lutam apenas pelo seu, mas que entenderam de
alguma forma, que TODOS e TODAS só poderão viver em comunhão, quando os
• direitos e os deveres forem iguais e cumpridos. Por todas as que estão vivas, mas
701 sofrendo ameaças e as que já foram por lutarem, resistimos!
• Bibliografia
BRASIL. Disponível em http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/08/a-mar-
cha-das-margaridas-2015. Acesso em 10/05/2018.
CLARK, Natália. Vítimas do desmatamento e do descaso. Disponível em http://www.
greenpeace.org/brasil/pt/Blog/vtimas-do-desmatamento-e-do- descaso/blog/44240/.
2 Acesso em 09/01/2018.
GARCIA, L. S. Eles Estão Surdos: Relações Entre o Poder e o Sistema de Justiça sobre
Graves Violações de Direitos Humanos. Tese de Doutorado, Programa Pós-Graduação em
0
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MACHADO, Ismael. Série Marcadas para morrer, a Pública, 2013. Disponível em ht-
1 tps://apublica.org/especial/especial-marcadas-para-morrer/. Acesso em 10/01/2018
SILVA, Berenice Gomes da. A marcha das margaridas: resistências e permanências. 2008.
8 172 p. Dissertação (Mestrado em Sociologia)-Universidade de Brasília, Brasília, 2008.
Filme: Cabra marcado para morrer, Coutinho, Eduardo, 1984.
Lopes, Douglas Amaral. A morte em Heidegger: horizontes de possibilidades para uma
vida autêntica, Pensamento Extemporâneo, Filosofia a qualquer tempo, 2011. Disponível
em http://pensamentoextemporaneo.com.br/?p=1994.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 13. ed. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback.
Petrópolis: Vozes, 2005.
J
A
L MÁS ALLÁ DE LA CULPA O LA FORMULACIÓN DE UNA JUSTICIA
ALTERNATIVA EN EL DESIERTO, DE CARLOS FRANZ
L
Lenin Lozano Guzmán (UNIVERSITY OF WISCONSIN MADISON)
A RESUMEN: El desierto problematiza la lectura del pasado en torno a las memorias
de la postdictadura chilena. Buscando ir más allá de una visión maniquea, la doble
instancia discursiva construye perspectivas diversas sobre la época dictatorial: por
un lado, aparece un relato con narrador omnisciente; por el otro, una extensa carta
de carácter testimonial. El pacto ficcional de la novela permite reconocer que detrás
• del narratario de la misiva (Claudia), también estamos presentes los lectores. Por
eso, este trabajo sostiene que a través de una interpelación al lector se hilvanan
702
dos épocas distantes, pero condicionadas una por la otra: la dictadura de Pinochet
• y la “Transición a la democracia”. A su vez, la novela traza una justicia alternativa
(tiempo mesiánico, según Walter Benjamin) que logra romper la lógica dictatorial y
abre paso a un nuevo tipo de justicia, así como al breve e instantáneo triunfo del
discurso de la memoria.
Palabras clave: Postdictadura. Memoria. Traición. Justicia. Tiempo mesiánico.
2
El desierto problematiza la lectura del pasado en torno a las memorias de
0 la postdictadura chilena. Buscando ir más allá de una visión maniquea, la doble
instancia discursiva construye perspectivas diversas sobre la época dictatorial. Por
un lado, aparece un relato con narrador omnisciente que nos cuenta la historia de
1
la jueza Laura al regresar a su país, y a la ciudad donde ocurrieron una serie de
hechos traumáticos hace veinte años (Pampa Hundida). Antes de volver, Laura ha
8 pasado varios años en Alemania estudiando filosofía y escribiendo un libro llamado
Moira, así como una carta para su hija donde le explica las razones por las que
no pudo ejercer el rol de jueza en concordancia con los lineamientos del sistema
judicial durante el periodo dictatorial. Este discurso testimonial aparece de modo
intercalado a lo largo de la narración en tercera persona. Sin embargo, la entrega
de la misiva nunca llega a realizarse, y en su reemplazo, Laura se traslada hasta
el lugar de los crímenes, justo en la época de la gran fiesta religiosa de Pampa
Hundida. Solo hacia el final de la novela, aparece la aclaración metatextual de que
la novela es una obra creada por Mario, quien ha recogido los pedazos de la carta
destruida y a partir de ello ha reconstruido la historia de Laura. Volveremos más
adelante a la relectura que produce la constatación de que la novela es “escrita”
por Mario.
La novela empieza con la referencia al retorno al lugar natal, y de manera
retroactiva, los lectores podremos recuperar la información de una memoria
fragmentada temporal y espacialmente. Se trata del regreso a los orígenes, que
será exacerbado a través del reencuentro con personajes decisivos en la vida de
Laura, por lo que la narración alterna constantemente las referencias temporales
J (uso de analepsis y prolepsis), y del ambiente carnavalesco (liberador) que supone
la fiesta de la Virgen. Sin embargo, lo que resulta obvio a nivel temporal, a partir de
A los rezagos de la memoria y su (im)posibilidad de (re)construcción, se complejiza en
la red espacial que configura el desplazamiento de Laura desde Alemania a Chile,
L y viceversa
No solo venía del cielo septentrional a esteotro, su reverso, donde el cuerno
de la luna creciente, cuando apareciera, se mostraría al revés que allá. Sino
L que había cambiadola aparente armonía de su cátedra de filosofía por el
torbellino polifónico de la fiesta donde había aceptado juzgar lo incompren-
sible.De la filosofía a la fiesta (FRANZ, 2005, p. 15)
A
Esta visión dicotómica en voz del narrador traza una visión jerárquica
entre la zona norte y sur, consecuente con una visión eurocéntrica y colonialista.
No deja de llamar la atención tal asociación, porque si bien Laura vincula al pueblo
de Chile con el trauma en su máxima expresión, ella ha vivido por muchos años
• en Alemania, espacio simbólico de una de las peores masacres de la humanidad
703 (el Holocausto). No obstante, nunca se observa alguna mención sobre la oposición
Chile/Alemania. Por el contrario, se refuerza cierta visión estereotípica de América
•
Latina, asociada a lo polifónico, la fiesta y lo incomprensible1. Al mismo tiempo, lo
que parece un ambiente festivo en realidad esconde un sentido trágico y de horror.
El carácter omnisciente del narrador y su punto de vista muy cercano o
similar al de Laura parece establecer una idéntica perspectiva en torno a lo que
le sucede a la protagonista. Por ello, el juicio de Laura sobre el pueblo chileno
2
determinado por referencias colonialistas, coincide con el régimen patriarcal que
prima en esta sociedad en sus diferentes niveles. Por ejemplo, pese a que ella
0 alcanza un importante cargo como jueza, esto se lo debe a su antiguo profesor de
universidad, quien intercede por ella. El dominio masculino alcanzará su punto
1 más alto en la interferencia de los militares: los “diez justos” y sobre todo, el
personaje de Cáceres. Lo curioso es que Laura viaja de regreso a Pampa Hundida
8 consciente del dominio masculino, e incluso asumiéndose como parte de él dentro
de una lógica colonialista que afirma las jerarquías territoriales y geográfica. Pero
en realidad, todo ello forma parte de una realidad configurada por el poder del
recuerdo y la memoria como elementos pasivos que paulatinamente tendrán un rol
transformador. La novela, entonces, nos conduce hacia este proceso transgresor
y liberador que tiene como metáfora el desplazamiento a modo de penitencia que
realiza Laura desde el espacio más lejano (Berlín) hasta el doble terreno desértico:
1 Definitivamente, en el ámbito literario esto se traduce en la imagen que propagó el Boom a través
del “realismo mágico”.
Pampa Hundida y su propia memoria. Como veremos luego, ambas instancias se
convertirán en espacios fructíferos.
Es notorio el largo proceso de redescubrimiento que debe emprender
Laura, y aunque solo los lectores podemos percibirlo muchas páginas después,
hay ciertos indicios en los primeros encuentros que tiene la protagonista en Pampa
Hundida. El más claro sucede cuando visita la casa de Cáceres en busca de
respuestas sobre el pasado. Ella tiene la oportunidad para asesinarlo, ya que este
J le entrega su propia pistola, pero ella rechaza tal pedido y se confirma con ello el
poder de Cáceres sobre la jueza, aunque el paso de los años haya convertido esa
A figura imponente de militar en un ser enclenque.
En el caso de la carta escrita por Laura para Claudia, el pacto ficcional
L de la novela permite reconocer que detrás del narratario de la misiva (Claudia),
también estamos presentes los lectores. Ese “tú” interpela al lector para que realice
la necesaria labor de hilvanar dos épocas distantes, pero condicionadas una por
L
la otra: el régimen dictatorial en el que la protagonista sufre torturas y el contexto
de “Transición a la democracia”, en el cual se viven las secuelas sicosociales de
A años anteriores. A su vez, en la voz personal de Laura hay una constante reflexión
e intentos de racionalización ante el trauma vivido, que se configura en un rehacer
constante ante la dificultad de poder transformar esas experiencias en discurso.
De esta forma, el testimonio de Laura construye de por sí una interpretación del
pasado que el lector debe observar con cuidado. Siguiendo a Sarlo, en su crítica al
• estilo testimonial que llegó a saturar el discurso de la memoria:
704 No se trata de discutir los derechos de la expresión de la subjetividad [que
se adjudican los testimonios]. Lo que quiero decir es más sencillo: la subje-
• tividad es histórica y si se cree posible volver a captarla en una narración,
es su diferencialidad la que vale. Una utopía revolucionaria cargada de ideas
recibe un trato injusto si se la presenta solo o fundamentalmente como dra-
ma posmoderno de los afectos (FRANZ, 2005, p. 91)
3 El significado de las máscaras es bastante complejo. Como vemos, en gran parte de la narración se
le asigna un valor negativo, pero hacia el final, se podrá entender que las máscaras, justamente por
las ambigüedades que genera, también pueden ser reapropiadas para poner de relieve el discurso
de la memoria en contra del presente de silencio y violencia.
claramente ignora las ruinas (las memorias) para poder mantener la continuidad
de la impunidad establecida por la dictadura. Queda claro, además, que la reflexión
de Benjamin está cargada de un fuerte componente religioso: “La tempestad4
[huracán] que sopla desde el Paraíso evoca sin duda la caída y la expulsión del
jardín del Edén. […] ¿Cuál es el equivalente profano de ese Paraíso perdido del que
el progreso nos aleja […]? Varios indicios sugieren que […]se trata de la sociedad
sin clases primitivas” (LOWY, 2012, p. 103).
J En la novela, son los personajes los que han configurado un mundo
marcado por la banalidad, hecho que los imposibilita de volver a ese Paraíso perdido
A (el reconocimiento político y ético de los desaparecidos durante la dictadura a
través de la recuperación de las memorias de esa época), y por el contrario, solo
L los rodean las ráfagas del progreso que pretenden convertir a Pampa Hundida en
un sitio turístico, a costa del pasado silenciado, como lo demuestran el alcalde y
el cura de la ciudad, por ejemplo. Pero la tesis de Benjamin, “Nos está hablando
L desde el principio del progreso y la mirada del ángel nos la ha descubierto como
animado por una lógica catastrófica. La conclusión es que tenemos que considerar
A el progreso como catástrofe si realmente queremos salir de su embrujo” (MATE,
2006, p. 157).
Si bien Claudia reconoce la catástrofe del presente asociado a las máscaras
y el poder omnipresente de los militares como consecuencia de las ruinas del
pasado, ella aún no se deja invadir por la fuerza mesiánica que le haría “detenerse”
• en su experiencia pasada para arreglar o corregir lo que la mantiene atada a la
711 impunidad del pueblo. De hecho, la labor de escritura de la carta y la evocación
de su memoria a través del relato que va construyendo como testimonio es una
•
primera etapa de su intención de rescatar el pasado personal y social.
A partir de lo anterior, podemos analizar la forma singular que opta Laura
para “hacer justicia”, en vista de que el sistema legal no ofrece –paradójicamente-
ninguna vía realmente justa. Aparentemente, la intención inicial que guía a la jueza
2 es solidarizarse con los condenados, lo cual supone concretamente el sacrificio (y
quizá disolución) de su identidad, o la traición a su propia condición de ser humano
(abandonar su autonomía femenina y dejarse objetivar por Cáceres). Sin embargo,
0 cuando cuenta en la carta dirigida a Claudia su experiencia de retorno a la casa
de Cáceres, luego de veinte años, como si fuera una vez más la repetición del
1 siniestro ritual que realizó sistemáticamente mucho tiempo atrás, ella plantea una
propia lectura del pasado. Es en este punto donde queda muy claro la operación
8 de aplazamiento que realiza la protagonista, a partir del encubrimiento de su
más profundo secreto y el camuflaje o máscara –curiosamente- que emplea para
interpretar cada una de sus acciones. De esta manera, la memoria de Laura usa
diferentes recursos ante la imposibilidad de poder hacer emerger su única verdad.
Es como si el lenguaje se volviera pura deriva significante ante la dificultadde
escapar de la red simbólica que instauró la Dictadura y que se mantiene incólume.
2 Esta condición “gris” de Laura se puede leer desde el deseo, pero este
no solo se basa en el plano psicológico y sexual, sino también en la posibilidad de
0 ubicarse dentro de la esfera del poder y de ejercer la justicia, aunque esto implique
una ambigüedad, porque conlleva obedecer los dictámenes de los militares, pero
también la posibilidad de negociar ante ellos por la vida de los prisioneros, como
1
si aún en el horror solo aquel capaz de cargar en sus hombros (en su cuerpo)
la entidad que representa (la justicia) pudiera interponerse de cierta forma. Esta
8 extraña mezcla de sentimientos, deseos y principios acumulados en su formación
como abogada y como mujer dentro de la sociedad chilena llevan a Claudia a asumir
el ejemplo de la traición por excelencia, ya que como ella lo menciona, traiciona a
los que buscaron oponerse a la dictadura, a su profesión (¿pero no eran absurdos
estos principios legales ante la violencia?), y sobre todo, traiciona su feminidad.
Se convierte en ese sujeto marcado por la “zona gris”, una vez diluidatotalmente la
división entre verdugo y víctima.
El impacto de la dictadura en Pampa Hundida es tan complejo que se
caracteriza por una serie de aristas que muestran los espacios de inserción que
puede ofrecer un contexto aparentemente regido solo por la destrucción. Mamani
es justamente el mejor ejemplo de cómo el contexto dictatorial abre paso a sujetos
“otros”, los ignorados, quienes se dejan atraer por un aparente reconocimiento y
status:
¿No le extrañaba, a la magistrada, no le repugnaba a su sentido innato de la
justicia que él [Mamani] hubiera tenido que esperar, a pesar de sus méritos,
a que viniera una dictadura para que lo designen alcalde, porque los blan-
J quitos de los partidos y el concejo jamás antes consintieron dejarle paso, ni
en izquierdas ni en derechas? (FRANZ, 2005, 333)
A La dictadura deja de ser un tiempo marcado solo por el abuso de la ley
o la instauración de una nueva ley. En realidad, la narración nos revela uno de
los temas recurrentes en los países postcoloniales y neocoloniales: las estrategias
L
de blanqueamiento, alienación, o aculturación que ciertos sectores sociales deben
emprender para poder situarse en los espacios más accesibles de las esferas del
L poder. Esto, junto con la fascinación de miles de peregrinos por la festividad del
pueblo, evidencia cómo los principios culturales tradicionales se readaptan a
A través de lo que podría percibirse como parte de la diversidad cultural que ofrece
el multiculturalismo.
Mamani usa estrategias de alienación y aculturación para poder
ser aceptado por las figuras de poder, pero al mismo tiempo parece asumir su
identidad primigenia: el rol de curaca. Una vez más, esta reflexión nos sugiere
• que los tiempos prehispánicos se conectan con las lógicas totalitarias a partir de
714 la restitución de los símbolos arcaicos (la Patrona o el curaca del pueblo). Esta
interpretación de Mamani demuestra cómo perdura una lógica neoliberal en la
•
sociedad chilena, la cual fácilmente puede abrir paso a las identidades múltiples
como lo propone el discurso multicultural, ya que esto no cuestiona el modelo
económico capitalista. Además, la experiencia de sincretismo cultural también
forma parte de esto, en vista de que se tratade la producción armónica de un nuevo
objeto que pese a las incorporaciones amerindias, mantiene el reconocimiento
2 del aporte occidental español. Por ello, la novela ejerce una doble crítica ante las
modalidades de integración que no ofrecen realmente el mantenimiento de ciertos
0 principios culturales, sino su acomodamiento y borrosidad.
Cuando Mamani realiza el baile de la Diablada vestido con el traje
1 correspondiente se confirma la apertura de la dimensión carnavalesca, y por ende,
la revelación de lo que se esconde detrás de la máscara. Sin embargo, antes del
8 baile, Mamani realiza la confesión más honesta ante Laura: “- La historia nos hizo
enmascararnos, Laura, y sobrevivimos en la máscara. La máscara nos permitió
expresarnos, hacer nuestra justicia […]. Este soy yo. No el que está bajo todos los
disfraces, sino los disfraces mismos” (FRANZ, 2005, 341). El personaje se reconoce
como un sujeto de resistencia cultural que forma parte de una cultura que ha
debido camuflarse a lo largo de la historia a través de procesos de aculturación, que
en realidad fueron solo un disfraz necesario. Esta condición no resulta novedosa,
teniendo en cuenta la vasta cantidad de personajes históricos que fueron producto
del choque de dos culturas en principio antagónicas. Sin embargo, la particularidad
del discurso de Mamani radica en que lo que realmente define su identidad no es
una verdad ni una postura sólida ante fenómenos como el desarraigo cultural,
sino la propia máscara, que no es más que uno de los tantos rostros engañosos
que encubren la violencia estructural que domina en Pampa Hundida. A la vez, la
máscara es la falsa aceptación de la imposición europea y del sincretismo, como si
fueran estas las primeras versiones de una violencia que se reactualizó durante la
Dictadura y la Transición. Ello se confirma en la idea de “hacer nuestra justicia”,
porque hilvana la demanda de las deidades andinas, de los hombres prehispánicos
J y de los mestizos con la de los militares que impusieron una nueva ley. Al producir
esta revelación, Mamani demuestra que realmente es un ser sin identidad, porque
debajo de los disfraces se encuentra otra máscara más. Esto debe ser entendido
A
como una manipulación del discurso tradicional, mítico o legendario prehispánico,
pues resulta útil para poder formar parte de la lógica de engaños que la Dictadura
L hizo posible.
La preeminencia de la máscara se verifica en el acto posterior de Mamani:
L el pedido de perdón ante Laura. Esta acción la puede ejecutar mediante el uso
del disfraz: “el hombre que había tenido que enmascararse para pedirle ‘perdón’,
A o Mamani, o lo que había dentro del traje, bajo la máscara, vaciló, se dio vuelta
abriendo los brazos que sostenían el cayado y el látigo, como diciéndose que sabía
que su excusa no era suficiente” (FRANZ, 2005, 343). En efecto, el ser “verdadero”
que se esconde detrás de la máscara no es capaz de confrontar “lo real”: su
responsabilidad y complicidad ante los hechos aberrantes propiciados por Cáceres.
• Por lo tanto, la validez de la máscara como objeto de resistencia y de representación
715 de una cultura silenciada o reprimida por la colonización queda absolutamente
negada.
•
Alegorización del contexto postdictadura y la apertura de otra justicia:
triunfo de la memoria
Si hay una idea que prevalece a lo largo de la novela es que el espacio
desértico no solo es una condición geográfica, sino una condición del pasado. La
2 vida y la memoria son referidas en constante conexión con las características de un
desierto rodeado de muerte, así como de fantasmas (alusiones a los desaparecidos).
Toda la ciudad está marcada por este carácter residual, de pérdida de valores o
0
crisis generalizada (el desierto, el rol de la justicia, la actitud de los habitantes, el
discurso religioso, etc.), lo cual lleva a pensar cuál es la vigencia o efectividad de una
1 memoria construida desde las ruinas. Asimismo, el concepto de alegoría (Benjamin)
describe el contexto residual de la sociedad chilena y de una época aún dominada
8 por el predominio del mal. Esto se corrobora en el fracaso del pequeño “gran relato”
que mueve a Claudia y a sus jóvenes amigos –cual rebeldes que reencarnan a los
militantes jóvenes de los setentas- a establecer la idea de “culpa colectiva” ante los
crímenes de la época dictatorial:
Era ridículo, patético, quedar condenados a buscar sus causas en el pasa-
do de sus mayores, en el armario donde escondían los trajes de disfraces
apolillados, los esqueletos, los ángeles y demonios de otra generación. […]
“Las imágenes que nosotros profanamos”, pensó Laura, “tienen ahora tan
poco valor que ni siquiera alcanzan para comprarles una causa a nuestros
hijos.” Como esas gorras y guerreras, banderas y medallas de la ex Alema-
nia Oriental y de la URSS, que se remataban por puñados en el mercado
dominical de las pulgas en el Tiergarten de Berlín (FRANZ, 2005, 363-364)
J
A
L ROBERTO ARLT: LITERATURA COMO TRANSGRESSÃO
L Leonardo Lani de Abreu (UFAC)
RESUMO: Roberto Arlt, nascido em Buenos Aires, em 2 de abril de 1900, é tido como
A um dos renovadores da literatura argentina. A presença de laivos autobiográficos
em seus textos colaborou, junto com sua preferência por registrar o cotidiano de
marginais e marginalizados e pelo seu emprego do lunfardo, para que ele recebesse
por parte da crítica a pecha de autor menor. Nessa apreciação, subjazem as acusações
de que o escritor, além de não saber escolher o tema e linguagem apropriados, não
• é dotado de criatividade, já que precisa valer-se das próprias experiências para
produzir seus textos, em vez de extraí-los tão somente da imaginação. Contudo,
721
tal distanciamento do cânone literário, das fórmulas linguísticas estandartizadas,
• que muitos enxergam como falha, talvez seja a maior virtude de Arlt, cuja obra
opera deslocamentos na normatividade vigente, no que se aproxima do conceito
foucaultiano de heterotopia.
Palavras-chave: Marginalidade. Heterotopia. Normatividade.
Introdução
2
A exemplo de outros literatos postumamente célebres, entre os quais
figuram Edgar Allan Poe, Franz Kafka, Lima Barreto e H. P. Lovecraft, Roberto
0 Arlt só teve sua obra aquilatada de forma devida após ser encontrado morto, em
decorrência de uma parada cardíaca, em 26 de julho de 1942, numa obscura pensão
1 do bairro de Belgrano, na capital argentina. O novelista, contista, dramaturgo,
jornalista, enfim, homem de letras argentino enfrentou, na sua exígua e atormentada
8 existência, toda sorte de tribulações, tais como o abandono prematuro da escola,
aos oito anos; a morte da irmã, por tuberculose, e a infância transcorrida em
ambiente doméstico turbado pelas dificuldades econômicas e pelo autoritarismo
do pai, um imigrante prussiano brutal, fonte de inspiração de cáusticos escritos de
Arlt (BORRAZÁS, 2000).
Graças, em grande parte, ao autodidatismo, mediante o qual lançou-
se, consoante Ribeiro (2000, p. 124), à leitura de mestres como Charles Dickens,
Dostoiévski, e Cervantes, Arlt conseguiu driblar as adversidades que condenam
com demasiada frequência outras pessoas de mesma origem social a levar
uma existência desprezada, ignorada e abandonada, cumprindo, ao tornar-se
personagem de si mesmo, o intento nietzschiano de fazer da própria vida um objeto
artístico. A maior realização de Arlt, assim como de outros escritores que se viram
às voltas com situações de extrema privação material – os exemplos mais célebres
são o estadunidense Charles Bukowski e o inglês George Orwell -, é sua própria
vida, símbolo da vitória do espírito humano contra os determinismos que almejam
aniquilá-lo.
Numa insólita afirmação do indivíduo contra as circunstâncias
J desfavoráveis, o autor sobrepôs-se às vicissitudes por ele enfrentadas ao desenvolver
um estilo literário avesso aos cânones tradicionais, o que lhe granjeou a simpatia
A do grande público, iniciada com a publicação no El Mundo da coluna diária
Aguafuertes Porteñas, entre 1928 e 1935 (CARVALHO, 2009, p. 24), conquanto
L tenha despertado a repulsa da crítica especializada da época, que o considerou
“[...] um ‘escritor de péssimo gosto’ pela temática que abordava em seus textos,
‘um escritor que escrevia mal’ pela utilização do lunfardo e ‘um escritor fracassado’
L pela constante alusão à suposta relação entre sua vida e sua obra” (JORGE, 2014,
p. 538).
A Os preconceitos contra Arlt decorrem, principalmente, do fato dele ter
extraído significativa parcela da matéria-prima que compõe seus escritos de sua
história de vida, como ele próprio admite: “Tengo tantas y tantas cosas que escribir
y que contar, a favor y en contra mío que ahora sé que todo lo que se ha escrito y
vale, vale porque ha sido escrito con sangre” (ARLT, 2000, p. 722). Os adversários
• da utilização das memórias individuais na literatura baseiam-se na crença de que
722 autores que usam experiências por eles vivenciadas para comporem suas narrativas
são menos inventivos do que aqueles que recorrem tão somente à imaginação. Estes
•
últimos são encarados como “puros”, isto é, sacerdotes da “arte pela arte”, ao passo
que os primeiros são tachados de “sujos”, “malditos”, “marginais” – as alcunhas
são múltiplas – por se engajarem, ainda que de forma indireta, na denúncia das
mazelas públicas e privadas.
Para usar uma expressão do momento, Arlt faz uso de seu “lugar de fala”
(RIBEIRO, 2017) com o objetivo de subverter a normatividade vigente, no que se
põe fora das malhas do poder oficial. Sua prosa surpreende por configurar um
lócus privilegiado, situado onde não se esperava encontrá-lo.
Em “Um argentino entre gângsteres”, o engenheiro Humberto Lacava é
sequestrado por um grupo de criminosos para construir uma roleta viciada que
pudesse ser manipulada conforme as conveniências da banca. Os meliantes
oferecem duas alternativas ao profissional: ou ele constrói o equipamento e embolsa
vinte mil dólares, ou não o faz e é sumariamente executado. Lacava não alimenta
ilusões a respeito de seus semelhantes, por isto sabe que será assassinado de
qualquer forma, esclarece Arlt:
Com a roleta elétrica o bando daria um golpe em grande escala e somente
um ingênuo podia sonhar com a próxima libertação. Mas Lacava não estava
J acostumado a fazer cálculos sobre boas intenções. Sua infância, transcorri-
da nos arrabaldes portenhos, dotara-o de uma astúcia fria e vigilante (ARLT,
1997, p. 29).
A
Assim, aproveita-se da distração dos três capangas que o vigiavam para
eletrocutá-los na invenção em que trabalhava, empreendendo fuga com os dólares
L
a ele prometidos. Os que, como o engenheiro e Arlt, cresceram em meio à pobreza,
com todas as dificuldades inerentes a essa condição, não se podem dar ao luxo
L da credulidade, ínsita à moralidade burguesa. Para estas pessoas, o bem, em vez
de ser um conceito absoluto, alusivo à eternidade, admite relativizações, por tocar
A num ponto deveras palpável: a sobrevivência.
Conclusão
Ao contrário da maioria das pessoas de extração popular, as quais
conformam-se às regras do jogo social, os personagens de Arlt fazem suas
próprias leis, e não seguem nenhuma norma, a não ser aquelas que eles mesmos
•
se autoimpuseram, a fim de implementar sua vontade de poder. Sob o signo da
725 revolta, elaboram estratégias para conquistar o que entendem que lhes cabe, indo
• na contramão dos valores convencionais. Ao retratar figuras emblemáticas do
universo social, Arlt faz, mais que literatura, antropologia, tamanho o interesse
humano de que se reveste seus textos, nos quais é possível encontrar o registro de
situações que são, em grande medida, universais.
A dicção arltiana, irregular, em alguns momentos, é um indício da privação
2 material a que o escritor esteve submetido na maior parte da sua curta existência.
Entretanto, nada, senão o preconceito, impede que tais “erros” sejam encarados
0 como virtudes. Os letrados, ao descerem de seus pedestais, podem aprender várias
coisas com os desprivilegiados, e talvez a lição mais importante seja conhecer
o sofrimento provocado pelas injustiças sociais. Desde sempre, tenta-se calar
1 os subalternos, até porque a palavra é a ferramenta-chave para intervenção no
mundo, e os poderosos não possuem nenhum interesse na mudança da correlação
8 das forças sociais. Muitos pobres se resignam ao mutismo que lhes é imposto, o
que não é o caso de Arlt, para sorte de seus leitores.
Não obstante diversos críticos, movidos por uma lógica excludente,
defendam a pureza na literatura, a qual, segundo eles, não deveria contaminar-se
com os aportes de indivíduos das classes baixas, é preciso reconhecer que o mundo
das letras, ao invés de estar apartado do meio social circundante, nutre-se dele,
num autêntico imbricamento. A concepção aristocrática da cultura não tem outra
finalidade que não seja a da manutenção das desigualdades sociais. Arlt parece
intuir que saber e política caminham pari passu. Sua contribuição, portanto, não
se restringe ao campo literário, pois alcança também a dimensão democrática.
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VERLAINE, P. Les poètes maudits. Paris: Léon Vanier Éditeur, 1888.
J
A
L FLAUSINO VALLE: QUESTÕES DA NATUREZA E INFÂNCIA EM
SEUS POEMAS
L
Leonardo Vieira Feichas (UFAC)
A Letícia Porto Ribeiro (UFAC)
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar poemas de Flausino Valle
(1894 - 1954), mostrando como suas temáticas poéticas relativas à natureza, à
infância e à saudade se relacionam com os suas composições musicais. Buscamos,
também, a divulgação da obra poética de Flausino Valle, ainda pouco estudada.
• Valle se tornou conhecido internacionalmente por um de seus Prelúdios para
violino intitulado “Ao pé da fogueira”. No entanto, compôs 26 Prelúdios tendo
727
como inspiração a paisagem sonora do interior mineiro. Valle também atuou como
• estudioso do folclore e escritor, tendo publicado colunas sobre os mais diferentes
assuntos. Dentre suas obras escritas, está “Calidoscópio” (1923), um livro de
poemas sobre o qual nos deteremos neste artigo e contém diversos poemas escritos
desde 1912 até o ano de sua publicação. Analisaremos os poemas sobretudo a
partir de seus conteúdos, tendo como autores de apoio Williams (1979, 2008,
2 2011), Bakhtin (2003) e Bhabha (2005).
Palavras-chave: Flausino Valle. Infância. Natureza. Poesia.
0
O presente artigo tem como objetivo analisar poemas selecionados de
Flausino Valle (1894 - 1954), mostrando como suas temáticas poéticas relativas à
1
natureza, à infância e também à saudade se relacionam com os seus Prelúdios para
violino solo. Valle foi violinista, compositor, advogado e escritor mineiro, natural de
8 Barbacena e radicado em Belo Horizonte. Se tornou conhecido internacionalmente
por um de seus Prelúdios para violino solo intitulado Prelúdio XV - “Ao pé da
fogueira”, que foi gravado por violinistas conhecidos mundialmente. No entanto
compôs ao todo 26 Prelúdios tendo como inspiração a paisagem sonora do interior
mineiro, que hoje se encontram em processo de divulgação graças às pesquisas que
vêm se desenrolando desde o final do século XX (Alvarenga, 1993; Frésca, 2008;
Feichas, 2016). No entanto, Valle também atuou durante sua vida como estudioso
do folclore e escritor, tendo publicado colunas em jornais sobre os mais diferentes
assuntos. Dentre suas obras escritas, estão o “Elementos do Folclore Musical
Brasileiro” e “Calidoscópio”, sendo o último um livro de poemas e sobre o qual nos
deteremos neste artigo. O livro “Calidoscópio” publicado em 1923 pela Typografia
do Diário de Minas, contém diversos poemas escritos por Valle desde 1912 até o
ano de sua publicação, e tratam principalmente de temáticas de amor, natureza,
pátria, infância, saudade, família e relativos à cidade de Barbacena. Analisaremos
os poemas sobretudo a partir de seus conteúdos, tendo como principais autores de
apoio Williams (1979, 2008, 2011), Bakhtin (2003) e Bhabha (2005).
Valle, em suas obras musicais e literárias, expressa sua múltipla
J formação. Nos restringimos aqui, entretanto, às questões relativas à infância e à
natureza em seus poemas e composições, buscando estabelecer as impressões do
A poeta/compositor em relação a essas temáticas, sempre que possível realizando
uma ligação entre a obra poética e musical. Tanto em seus poemas quanto em suas
L composições percebe-se a vida no campo e a natureza como questões recorrentes.
E, intimamente ligada com o campo está a infância, e não somente em relação
à memória: Valle escreveu poemas humorísticos nos quais busca transmitir a
L inocência infantil em relação a temas cotidianos.
Partimos para desenvolvermos nossa reflexão, também, da afirmação de
A Raymond Williams a respeito da representação literária do campo:
Em torno das comunidades existentes, historicamente bastante variadas,
cristalizaram-se e generalizaram-se atitudes emocionais poderosas. O cam-
po passou a ser associado a uma forma natural de vida - de paz, inocência
e virtudes simples. À cidade associou-se a ideia de centro de realizações - de
• saber, comunicações, luz. Também constelaram-se poderosas associações
negativas: a cidade como lugar de barulho, mundanidade e ambição; o cam-
728 po como lugar de atraso, ignorância e limitação (WILLIAMS, 2011, p. 11)
• A ideia de “estrutura de sentimento” trazida por Williams também é útil
para entendermos as formas com as quais o campo e a cidade eram pensados e
sentidos no começo do século XX no Brasil, período ainda inicial da urbanização.
A noção de estrutura de sentimento guarda relação com a experiência vivida e à
consciência prática:
2 A consciência prática é aquilo que está sendo realmente vivido, e não ape-
nas aquilo que acreditamos estar sendo vivido. Não obstante, a alternativa
0 real às formas fixas recebidas e produzidas não é o silêncio: não ausência,
o inconsciente, que a cultura burguesa mitificou. É um tipo de sentimento
e pensamento que é realmente social e material, mas em fases embriônicas,
1 antes de se tornar uma troca plenamente articulada e definida. Suas rela-
ções com o que já está articulado e definido são, então, excepcionalmente
8 complexas. (WILLIAMS, 1979, p.133)
A Monteiro Lobato
B.H. 1-7-1920
O poema pode ser dividido em algumas partes: na primeira, apresenta os
pássaros seriam apreciados e conhecidos por seu canto mas, afirma o autor, outros,
por sua vez são mais desconhecidos e por isso desprezados: tanto aqui como na
parte final do poema pode-se inferir que Valle se refere não somente aos pássaros,
como a si mesmo ou ao autor a quem dedica o poema, Monteiro Lobato, ou mesmo
se refere a ambos: ele, como os pássaros anônimos, são ignorados “só porque levam
vida mais modesta,/ embrenhados no seio da floresta”. A essa constatação também
J contribui o fato de que em alguns de seus outros poemas Valle contrapõe o mundo
interior ao mundo exterior: “Si o mundo é grande, bello e multifario/, outro mundo
maior, mais lindo e vario,/ trazemos no imo: o espirito bemdito,/ A alma - infinito
A
dentro do infinito” (VALLE, 1923, p. 93), com paisagens que o autor compara às
do mundo exterior: “No subconsciente, em doces amavios,/ sorriem corregos e
L riem rios,/ e cantam cachoeiras e cascatas;” (VALLE, 1923, p. 94). Se isso não
basta para a constatação de que “Pássaro Selvagem” é um poema biográfico, os
L sentimentos de Valle ao escrever o poema “Lyra Descrente” podem sanar a dúvida:
Valle reclama da hipocrisia, de que “Muitas vezes quando eu penava,/ meu soffrer
A aos amigos contava,/ em versos repassados de tristeza;/ e ao lel-os tenho certeza,/
de mim todos se riam/ e aos meus queixumes não ouviam”.
No entanto, outros aspectos interessantes em “Pássaro Selvagem” estão
na segunda parte na qual dividimos o poema e constituem a descrição detalhada
dos cenários que constituem o ambiente de vivência de Valle, com a comparação
• dos equivalentes “naturais” às construções e atividades humanas:
732 E onde está o edifício, por mais rico,/ Que comparar se possa a um pé de an-
gico,/ A um jatobá frondoso, um pinho, um cedro, / Torres Eifels e cup’las
• de S. Pedro,/ Que em profusão se vêm nas selvas bastas,/ Ou espalhadas
nas campinas vastas?/ Qual Vaticano, Alhambra ou Tulherias,/ A’s matas
seculares e sombrias,/ Palacios onde reina a natureza,/ Supere em mages-
tade ou em riqueza?/ Nos bosques ha vidrilhos evelludo em tudo!
O Pássaro Selvagem (ou Flausino Valle) sai da floresta e vai para a cidade,
J onde é apedrejado. Há uma ambiguidade que pode aqui ser mencionada: o bem-te-
vi cobre de bicadas os meninos ou o Pássaro que veio da mata? Como conjuga no
singular “cobril-o”, o verbo concorda com o Pássaro e não com os meninos. Portanto,
A o pássaro sofre o ataque dos meninos (ou da comunidade) e do seu “collega” pássaro
(outros músicos), já adaptado e pertencente à cidade, que guincha e assovia em
L “vaias prolongadas”, relegando o Pássaro Selvagem à solidão - solidão também que
assombra Valle em diversos outros poemas, e frequentemente associada à noite e
L à escuridão.
Valle retorna, de certa forma, à inocência infantil, em poemas nos quais
A se refere à crianças que ainda não conseguimos descobrir quem são: Lulu e Dedé,
descrevendo acontecimentos e perguntas pitorescas protagonizadas por essas
personagens. Trazemos aqui novamente Williams, que afirma que:
com frequência uma ideia do campo é uma ideia da infância: não apenas de
lembranças localizadas, ou uma lembrança comum idealmente comparti-
lhada, mas também a sensação da infância, de absorção deliciada em nosso
•
próprio mundo, do qual, no decorrer do processo de amadurecimento, ter-
733 minamos nos distanciando e nos afastando, de modo que essa sensação e o
mundo tornam-se coisas que observamos. (WILLIAMS, 2011, p. 484)
•
E Valle traz, nos poemas a seguir, essa observação da imagem da infância
e que evoca essa sensação de infância observada que é descrita por Williams -
talvez as personagens sejam lembranças ou crianças ao seu redor, como se pode
perceber em “Uma do Lulu” (1914):
2 Lulu que conta cinco primaveras,/ Ao bravo Pedro Malasartes ganha,/ Em
se tratando de árdega façanha./ Sobe nas arvores, amansa feras,// E os
proprios maribondos das taperas/ Fogem ao verem-no e elle os acompa-
0 nha./ Ao pae fez hoje esta pergunta extranha:/ Deix’eu casá com a vóvó?
Deveras// Gosto della, e é de mim que a vóvó gosta./ Que maluquice, filho! -
1 disse o pae -/ Pois queres te casar com minha mãe?!// E Lulu deu-lhe então
esta resposta,/ Franzindo as sobrancelhas: uei papae!/ Pois ocê não casou
com a mamãe?! (B. H. 10-10-1914)
8
O poema apresenta um tom humorístico que expõe, primeiramente,
a representação do personagem: uma criança de 5 anos, que ganha do “bravo
Pedro Malasartes” nas façanhas, que assusta até os marimbondos. De acordo com
CASCUDO (2012), Malasartes (ou Malas Artes) é um personagem astucioso e sem
escrúpulos, tradicional da Península Ibérica e que chegou até o Brasil e outros
países da América, estando presente na poesia e em contos populares. E, a seguir,
Valle expõe a inocência infantil quando a criança expressa a vontade querer se casar
com sua própria avó. A inocência está ligada, portanto, a um ambiente específico:
a familiaridade com os maribondos, com as árvores e com as “feras” indicam um
ambiente que seria o campo ou uma cidade pequena.
Os mesmos questionamentos e reso luções infantis estão presente em
“Diálogo Íntimo”, de 1915:
Estavam no quintal o bilontrinha Indim,/ Seu carinhoso pae que um livro
lia attento,/ E o africano Julião, já velho, pachorrento,/ Que um tapume
acava. O filho disse assim:// Papae, quem fez tudo isto aqui perto de mim?/
J As arvores, a serra? E o pae num breve acento:/ Foi Deus, meu filho. -O
Indim proseguiu: e o vento,/ A claridade, o sól… e o céo que não tem fim//
O pae tornou: Deus, filho. - Após alguns instantes,/Retorquiu a creança:
A e aquella cerca ali?.../ Fala, papae! - Deus, de certo, o mesmo dantes./ O
Indim pensou, pensou e concluiu: uei, paezinho!/ Siô Julião é que é Deus?
L Fazer a cerca eu vi!?.../ Nisto o pae o abraçou em beijos de carinho./B. H.
6-5-1915.
L Depreende-se portanto, que Valle vê a infância ligada à inocência, ao
raciocínio ingênuo, ao afeto com os entes queridos (a avó e o pai) o que seria perdido
na idade adulta e na cidade, quando, por exemplo, o pássaro Valle, indo para a
A capital, é atacado pelos outros pássaros. É interessante abordar aqui também,
mesmo que superficialmente a questão racial: a criança tem o apelido de “Indim”,
talvez por ter ascendência indígena, ou pelo menos aparência indígena - aqui é
pertinente apontar que Valle deu o nome de seus filhos o de líderes indígenas:
Guatémoc, Huascar (Incas) e Araken (“pássaro que dorme” em Tupi2). O fato
•
também de a criança não duvidar que o “africano” Julião é Deus - expõe quiçá uma
734 surpresa por “Deus” estar tão perto - também é significativo da posição de Valle
• em relação às questões raciais.
Ainda nos poemas, a separação da cidade de sua origem e de seu passado
é dolorosa para Valle, como escreve em “Monologando” (1912):
Dezoito annos vivi alegremente./ de paes, de irmãos, de avós em compa-
nhia,/ sem nunca ter pensado que em un dia/, Mister era deixal-os, triste-
2 mente.// De amor como o que eu tinha a minha gente,/ E á terra onde nas-
ci, ninguem sabia!/ Pois si grande este amor me parecia,/ distante eleva-se
ao mais alto expoente!// Tudo hoje são lembranças e saudades!/ Recordo-
0 -me de todas as idades,/ Porque passei de creança até menino.// Mas quem
mandou-me vir?/ fui intimado?/ Por que razão, em um momento dado,//
Mudar-me resolvi?... - Foi o Destino. (B. H. 27/12/1912)
1
Os anos felizes, para Valle, são os que ele passou ao lado de sua família,
8 ligada, também à terra onde vivia. A separação aumenta ainda mais esse amor - a
data de sua composição, 27 de Dezembro, também, provavelmente, exerce grande
influência em seu estado de espírito. Em um só poema os motivos da separação
são vários: era mister, ou seja, forçoso, ao mesmo tempo, se culpa, pois afirma que
não foi “intimado”, e que mudar foi uma resolução, imediatamente após isso afirma
que foi o destino. Destino ou opção, o que a pesquisa de Feichas afirma é que
Valle foi para Belo Horizonte para trabalhar e estudar, graduando-se em Direito
(FEICHAS, 2016), e, também essa separação de sua terra natal será o tom de vários
2 https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/araquem/
de seus poemas, como, além dos mencionados acima: “Soffrimento”, “Instantes de
descrença” e “A Sesta”.
Considerações finais
Pode-se perceber que Valle mantinha, pelo menos no campo das
temáticas, semelhanças entre sua obra musical e sua obra poética, e, em ambas,
o aspecto biográfico é particularmente forte. Os ataques narrados em “Pássaro
Selvagem” são condizentes com aspectos da vida de Valle apontados na pesquisa
J de Feichas: Valle preferia tocar para pequenas plateias, não conseguiu ser aceito
em uma orquestra do Rio de Janeiro, e afirmou, para sua família, que “a música
A é a arte de harmonizar os sonos e desarmonizar as pessoas” (FEICHAS, 2016,
p. 26) - Valle tinha uma maneira própria de tocar o violino, e, de acordo com os
L registros que deixou escritos, respeitava muito essa arte. Valle, teria dito ainda
ao seu filho Guatémoc que ele “arrancava o som do chão da terra” - uma forma
L poética de tratar sua própria arte, aberta à múltiplas interpretações - seria uma
forma mais “bruta” de tocar, ou uma forma mais expressiva? De qualquer forma, é
narrado que Valle não se “encaixava” nas orquestras da cidades, fora a orquestra
A do Cine Odeon, na qual tocou durante anos, e o fato de não ter sido sua obra
compreendida no seu tempo era motivo de queixas. Ao mesmo tempo, em suas
composições evoca a natureza (“Tico-Tico”, “A mocinha e o papudo”), festas (“Pai
João”, “Tirana RioGrandense”) e evocações de temas infantis ou músicas escritas e
interpretadas por ele para crianças (“Devaneio”, “Acalanto”e “Rondó Doméstico”).
•
Em resumo, podemos concluir que, assim como na obra violinística, a
735 obra poética de Flausino Valle revela uma grande importância do ambiente como
• inspiração para o poeta/compositor. Em Valle o campo e a floresta representam a
“beleza natural”, a inocência - particularmente a da infância, e também a nostalgia
e, de forma mais destacada, uma complexidade à qual ele estava bem familiarizado,
como exposta no “Pássaro Selvagem”.
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çalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
•
736
•
2
0
1
8
J
A
L A CANÇÃO DE PROTESTO “LATINO”-AMERICANA DAS DÉCADAS
DE 60 E 70: TRÂNSITOS E DISSOLUÇÕES FRONTEIRIÇAS
L
Letícia Porto Ribeiro (UFAC)
A Marcello Messina (UFAC)
RESUMO: A canção de protesto fez parte do cenário cultural na América “Latina”
durante a década de 60/70 em diferentes países da região. Em muitas dessas
canções havia propostas de união dos povos latino-americanos contra as explorações
de classes, estadunidense ou em prol da construção do socialismo. Este artigo tem
• como objetivo analisar como a ideia dessa união “latino”-americana foi proposta
por músicos de protesto nas décadas de 60 e 70, realizando, simultaneamente,
737
uma abordagem crítica do conceito de América “Latina”. Além de reconhecer o
• potencial de articulação inerente a essas propostas, queremos aqui identificar as
implicações de raça, etnia e classe incorporadas no significante América “Latina”,
discutindo as importantes exclusões que esse termo implica e determina. O apoio
metodológico se dá por meio da teoria decolonial, principalmente em autores como
Mignolo e Dussel, e pelas reflexões conceituais trazidas por Bhabha.
2 Palavras-chave: Música. América Latina. Nova canção. Canção de protesto.
Fronteiras.
0
A canção de protesto fez parte do cenário cultural na América “Latina”
durante a década de 60/70 do século XX em diferentes países. Em muitas dessas
1
canções havia propostas de união dos povos latino-americanos contra a exploração
de classe, contra a exploração estadunidense ou em prol da construção do socialismo.
8 A composição musical se dava, também, buscando transpor fronteiras nacionais -
com uso de instrumentos e ritmos de países vizinhos, ou interpretação de canções
originárias de diferentes países da região. Este artigo tem como objetivo analisar
como a ideia dessa união “latino”-americana foi proposta por músicos de protesto
nas décadas de 60 e 70, realizando, simultaneamente, uma abordagem crítica do
conceito de América “Latina”. Além de reconhecer o potencial de articulação inerente
a essas propostas, queremos aqui identificar as implicações de raça, etnia e classe
incorporadas no significante América “Latina”, discutindo de forma crítica as
importantes exclusões que esse termo implica e determina. O apoio metodológico se
dará por meio da teoria decolonial, principalmente autores como Mignolo e Dussel,
e pelas reflexões acerca do conceito de “povo” e de “nação” trazidas por Bhabha.
Apresentaremos, primeiramente, uma noção geral do movimento da Nova Canção
em alguns dos países nos quais esteve presente, após isso como diferentes noções
da unidade “latino”-americana foram pensadas e como as questões de raça, etnia
e classe foram representadas. A seleção dos compositores e intérpretes abordados
aqui foi feita tendo como base, mas não restrita, aos signatários do I Encuentro de
la Canción Protesta, em Cuba, realizado em 1967.
J Partimos de duas definições que Bhabha apresenta para “povo”, levando
em conta a retórica construída ao redor desse termo - o “povo” como objeto da
A pedagogia nacionalista e o “povo” como sujeito de um processo de significação:
O conceito de povo não se refere simplesmente a eventos históricos ou a
componentes de um corpo político patriótico. Ele é também uma complexa
L estratégia retórica de referência social: sua alegação de ser representativo
provoca uma crise dentro do processo de significação e interpelação discur-
L siva. Temos então um território conceitual disputado, onde o povo tem de
ser pensado num tempo-duplo; o povo consiste em ‘objetos’ históricos de
uma pedagogia nacionalista, que atribui ao discurso uma autoridade que
A se baseia no preestabelecido ou na origem histórica constituída no passado;
o povo consiste também em ‘sujeitos’ de um processo de significação que
deve obliterar qualquer presença anterior ou originária do povo-nação para
demonstrar os princípios prodigiosos, vivos, do povo como contemporanei-
dade, como aquele signo do presente através do qual a vida nacional é redi-
mida e reiterada como um processo reprodutivo. Os fragmentos, retalhos e
•
restos da vida cotidiana devem ser repetidamente transformados nos signos
738 de uma cultura nacional coerente, enquanto o próprio ato da performance
narrativa interpela um círculo crescente de sujeitos nacionais. Na produção
•
da nação como narração ocorre uma cisão entre a temporalidade continu-
ísta, cumulativa, do pedagógico e a estratégia repetitiva, recorrente, do per-
formativo. É através desse processo de cisão que a ambivalência conceitual
da sociedade moderna se torna o lugar de escrever a nação. (BHABHA, 2005,
pp. 206-207. Grifos do autor)
2 Bhabha percebe, portanto o campo da definição de povo como um
campo de lutas entre a construção de uma identidade de “povo” condizente com
0 a construção de uma nação, para a qual esse “povo” deve se adequar e, do outro
lado, uma noção de “povo” como sujeito sempre atualizado. Isso ainda se torna
1 mais marcante se pensarmos no conceito de “América” como uma construção - não
dos nativos deste continente, mas de europeus que chegaram a partir de 1492 e
buscaram, desde então, impor seus modos de vida àqueles que aqui estavam -
8
daí a necessidade ainda mais premente do lugar do pedagógico e do performativo
apresentados por Bhabha.
Ainda para Bhabha, para se estudar a diferença cultural é necessária
uma revisão das temporalidades, bem como do signo no qual se inscrevem as
identidades.
reconstituir o discurso da diferença cultural exige não apenas uma mudan-
ça de conteúdos e símbolos culturais; uma substituição dentro da mesma
moldura temporal de apresentação nunca é adequada. Isso demanda uma
revisão radical da temporalidade social na qual histórias emergentes pos-
sam ser escritas; demanda também a rearticulação do ‘signo’ no qual pos-
sam se inscrever identidades culturais. [...] A transmissão de culturas de
sobrevivência não ocorre no organizado musée imaginaire das culturas na-
cionais com seus apelos pela continuidade de um passado ‘autêntico’ e um
‘presente’ vivo - seja essa escala de valor preservada nas tradições ‘nacio-
nais’ organicista do romantismo ou dentro das proporções mais universais
do classicismo. (BHABHA, 2005, pp. 240-241).
1 Fabiola Velasco (2007), Caio de Souza Gomes (2015), Luis Vitale (s.d).
course of White supremacy that was implemented during the last decade of
the nineteenth century in the US by the ideologues of the Spanish-American
War. In parallel fashion to the way Spaniards were seen by Northern Euro-
peans (as darker skinned and mixed with Moorish blood), “Latin” America
began to be perceived more and more as “Mestizo/a”; that is, .darker skin-
ned.2 (MIGNOLO, 2005, loc. 1266-1268)
3 “The ‘idea’ of Latin America is that sad one of the elites celebrating their dreams of becoming
modern while they slide deeper and deeper into the logic of coloniality”. Tradução nossa.
eram não só possíveis, mas iminentes, e que intelectuais e artistas teriam
um papel fundamental neste processo. (GOMES, 2013, p 22)
7 Disponível em <https://www.vagalume.com.br/violeta-parra/los-pueblos-americanos.html>
acesso em 15/05/2018
Em 1965, sob a influência do Canto Geral de Neruda e da intervenção
norte-americana em Santo Domingo Patrício Manns compôs as canções que
integrariam o álbum “El sueño americano”, que foi gravado somente em 1967,
contando com a participação do grupo “Voces Andinas”. O álbum se divide em
três partes: a primeira com referência no período colonial, a segunda aborda o
imperialismo pós-independência e a última chama os povos à luta contra a
exploração estrangeira (SCHMIEDECKE, 2015). Kósichev afirma que esse disco é
J uma “ardiente exhortación a la solidariedad e réplica indignada a la intervención
de los EE. UU. en la Republica Dominicana, en 1965” (KOSICHEV, 1990, p. 67).
A Outro disco de Manns que versa sobre outros países é “Entre el Mar e la
Cordillera”, de 1966, na qual o “Arriba en la Cordillera”, huapango (ritmo mexicano)
L cuja letra conta a história de um arriero (algo como um carreteiro brasileiro) que
é assassinado. Outra canção sua, “Bandido”, inspirada, afirma o compositor, nos
guerrilheiros cubanos que eram chamados de “bandidos” por Fulgencio Batista.
L Composta em 1957, foi interpretada pelo conjunto argentino Los Andinos no
Festival de Cosquín. (GOMES, 2013).
A Ainda no Chile, a Peña de los Parra, inaugurada em 1965 se tornou também
um ponto propício a intercâmbios entre os países. Isabel e Angel Parra traziam
de suas viagens canções e instrumentos de outros países “latino”-americanos
(JARA, 1998, p. 119) Também de acordo com Joan Jara (1998) artistas vindos de
países vizinhos atingidos pelas ditaduras cantavam nas peñas, como brasileiros,
• uruguaios e argentinos.
746 O disco lançado pela Peña de los Parra em 1965, “La peña de los Parra”,
• também se tornaria um marco para as conexões propostas pela NCCh com outros
países “latino”-americanos e também para denúncias sociais nas canções autorais,
como afirma Gomes (2013): contava com a participação de artistas como Isabel
e Angell Parra, Patrício Manns e Rolando Alarcón, com repertório autoral e não-
autoral. Abre com uma canção tradicional do folclore venezuelano, “Rio Manzanares”
2 e outra, “Décimas del folklore venezolano” que “aponta para o diálogo com o folclore
daquele país que será marcante ao longo de toda a produção da nueva canción
chilena.” (GOMES, 2013, p. 63) O autor aponta também que esse disco aponta
0 para o “discurso latino-americanista, não só pela incorporação de sonoridades de
outros países vizinhos, mas principalmente com a gravação pelos irmãos Parra
1 de ‘Canción para mi América’ de Daniel Viglietti” (GOMES, 2013, p. 64), canção
que também foi gravada em 1966 por Mercedes Sosa, ou seja, em menos de 10
8 anos gravada em 3 países, daí sua importância apontada por Gomes. Em Ángel
Parra vol. II, Angel canta uma canção chamada de “Me matan se no trabajo” -
poema do cubano Nicolás Guillén musicado pelo uruguaio Daniel Viglietti - esse
tipo de intercâmbio, com a musicalização de poemas ignorando as fronteiras entre
os países é bastante comum.
O chileno Rolando Alarcón participou do grupo Cuncumén, assim como
Jara. Quando grava seu primeiro LP solo, em 1965, se afasta do projeto neofolclórico
do Cuncumén, buscando atualizar o folclore, como o entendia, com as questões
sociais. No refrão da canção “Si somos americanos” há elementos de diversas partes
do continente: “a marinera da costa do Peru, a refalosa da zona central chilena,
a zamba argentina, o son cubano, todos dançados pelos ‘americanos’: ‘bailemos
marinera,/ refalosa,/ zamba y son./ Si somos americanos /seremos una canción’
(GOMES, 2013, p. 70). Posteriormente esse discurso se intensificou com a canção
“América guerreira” e “América Nuestra” (GOMES, 2013). “Si somos americanos”
é também o nome do primeiro álbum do grupo chileno Inti-illimani, de 1969. A
canção, como outras com essa temática, aborda a união das raças - o branco, o
mestiço, o índio e o negro - como iguais.
J Si somos americanos/ somos hermanos, señores,/ tenemos las mismas flo-
res,/ tenemos las mismas manos.// Si somos americanos,/ seremos bue-
nos vecinos,/ compartiremos el trigo,// seremos buenos hermanos./ Baila-
A remos marinera,/ refalosa, zamba y son.*/ Si somos americanos,/ seremos
una canción.// Si somos americanos,/ no miraremos fronteras,/ cuidare-
L mos las semillas,/ miraremos las banderas.// Si somos americanos,/ sere-
mos todos iguales,/el blanco, el mestizo, el indio/ y el negro son como tales.8
• HOBSBAWM, Eric. Viva la revolución: a era das utopias na América Latina. Tradução:
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DISCOS:
1
VANDRÉ, Geraldo. Canto Geral. MOFB3541, ODEON, 1968.
8
J
A
L TECENDO A TRAMA DAS NARRATIVAS GUAJAJÁRA/
TENETEHÁRA: A ESTRUTURA DE UMA TRADIÇÃO
L
Lilian Castelo Branco de Lima (UEMASUL)
A RESUMO: A presente pesquisa gravita em torno das Narrativas Indígenas
Guajajára, buscando evidenciar suas características literárias e a estrutura destes
textos seguindo os estudos de Vladimir Propp (2003), assim como o trabalho de
Alan Dundes (1996) sobre a morfologia e estrutura dos contos indígenas norte-
americanos. Delimitamos a investigação a uma amostra de narrativas, escolhida
• com base na preferência da comunidade, que apontou as histórias que mais
gostavam de ouvir. Assim, como este estudo determinou como sujeitos os indígenas
760
Guajajára da aldeia Januária, para atender ao critério da viabilidade. Nesse contexto,
• investigar a partir da amostra “como se estruturam as narrativas dos Guajajára
da aldeia Januária” é a questão central que nos movimenta na construção desta
pesquisa, para tal organizamos este trabalho em torno das seguintes aspirações:
Realizar uma abordagem históricoantropológica dos Guajajára da aldeia Januária,
para situarmos os sujeitos e o campo desta pesquisa e nos dar embasamento
2 para refletir sobre como se interrelacionam identidade-cultura-literatura, para
então compreender a estruturação da literatura indígena e sua importância para
0 o reavivamento cultural deste povo, no intuito de nos auxiliar a identificar como
se estruturam as narrativas de conhecimentos tradicionais dos Guajajára e que
1 elementos apresentam-se como variantes e invariantes. Para isso, delineamos
uma pesquisa bibliográfica para dar suporte aos dados que foram apreendidos
através da pesquisa de campo etnográfica, a qual constatou que essas narrativas
8 apresentam a estrutura de contos da literatura popular de outros países, como
também apresentam as funções apontadas por Propp e Dundes, contudo com
marcas da identidade étnica indígena.
Palavras-chave: Narrativas Indígenas. Guajajára. Cultura. Identidade. Estrutura
do conto.
Introdução
Este estudo se estruturou com base no diálogo entre saberes tradicionais
e científicos, na interface entre a Literatura e a Antropologia, no intuito claro de
adensar a discussão sobre o que de fato pode ser considerado literatura, tendo em
vista que no Brasil tudo o que foi produzido por europeus e nos moldes de suas
narrativas, como de fato sejam parte de um acervo literário. Em contrapartida,
aquelas narrativas literárias, produzidas pelos povos nativos de nosso país, foram
consideradas como um amontoado de ideias desconexas e que por isso não poderia
ser classificada como literatura de fato.
Nesse sentido, esse estudo, buscou analisar a estrutura de narrativas dos
Guajajára, grupo étnico que se localiza no estado do Maranhão, com o objetivo de
J identificar nesses textos as características já identificadas em contos já consagrados
como literatura pelo russo Vladimir Propp (2003). Vale dizer que este é um recorte
A de uma pesquisa maior que desenvolvi em minha formação no Mestrado em Letras e
que na ocasião o córpus da análise compreendia cinco narrativas e suas respectivas
L versões encontradas. Contudo, para atender ao número de páginas deste trabalho,
a análise deste artigo delimitou a análise a uma única narrativa: O roubo do fogo,
em duas versões.
L
Como os Guajajára, no seu processo histórico de colonização1, carregam
as marcas de tentativas de genocídios físico e intelectual, urgiu deixar claro que
A se propôs um estudo da literatura do grupo, exatamente para ir de encontro a
esse processo, como uma proposta de registro e estudo da expressividade literária,
no intuito de contribuir para a sua valoração e preservação. Assim, em primeiro
momento não foi possível definir os sujeitos, o que nos foi direcionado e definido em
contato com a aldeia, quando a própria comunidade apontou a senhora Alzenira
• Guajajára Alves como a maior contribuinte para o relato das narrativas, não
761 descartando a possibilidade de que outros que não sejam indicados pudessem
colaborar na pesquisa.
•
Para alcançar o objetivo aqui proposto, estabelecemos um percurso teórico-
metodológico que contemplasse as relações entre diferentes faces de um mesmo
objeto (a literatura dos Guajajára), sem deixar de lado a análise do contexto sócio-
cultural-econômico em que se insere. Dessa forma, a análise foi feita envolvendo
2 todos os elementos que interferem e compõem a literatura que foi estudada, dada
à natureza dialética desta pesquisa. Para a apreensão de elementos importantes
para a compreensão da literatura do grupo, este estudo adotou uma metodologia
0 de pesquisa de campo, partindo do pressuposto que “a situação de campo é uma
situação de diálogo” (LABURTHE-TOLRA; WAINER, 2008, p. 430), desenvolvendo-
1 se etnograficamente, apoiada e fundamentada na pesquisa bibliográfica.
E para a análise das narrativas este estudo se apoiou, em especial,
8 nos estudos de Dundes (1996) e Propp (2003). Sendo que a análise dos dados foi
feita de acordo com o que propõe Laurence Bardin (1977), assim dividida em três
fases: exploração, tratamento dos resultados e interpretação. Foi desenvolvida em
todo o decorrer do estudo, tendo em vista que o próprio objeto está em constante
transformação. Para que a pesquisa atenda aos objetivos a análise deveria ser
contínua, no sentido de orientar e reelaborar quando preciso as análises feitas
neste estudo.
Assim, o trabalho segue com uma breve apresentação da etnia, para
1 Referimo-nos ao processo de colonização que foram submetidos os indígenas brasileiros,
principalmente no Maranhão, em que a referida etnia sofreu vários massacres físicos e culturais.
situar o leitor sobre questões históricas e antropológicas do povo que produziu a
narrativa estudada e posteriormente se apresenta a análise da narrativa e duas de
suas versões, trazendo uma discussão sobre a estrutura e morfologia dos contos
folclóricos a partir das ideias de Dundes (1996) e Propp (2003), encerrando com as
considerações finais.
Povo Guajajára/Tenetehára: caminhos da história, visões antropológicas
O povo Guajajára/Tenetehára do Maranhão é uma das etnias mais
J numerosas do Brasil, apesar de ainda não haver um número preciso, pois muitas
aldeias não foram contempladas pelo censo por dificuldade de acesso, assim como
A os indígenas que vivem em cidades vizinhas às aldeias não foram considerados.
No entanto, estima-se que sejam cerca de 27.616 de acordo com Siasi/Sesai
L (2014), totalizados em 11 terras indígenas demarcadas e homologadas. Em virtude
do número de seus membros, esse povo representa um exemplo de resistência
L indígena, haja vista, terem resistido ao processo de colonização e catequização, que
por muitas vezes usou de violência, levando em muitos casos a um grande número
de dizimados.
A
Para Gomes (2002), a denominação dessa etnia como Tenetehara está
diretamente ligada aos valores identitários, pois:
A palavra “tenetehara”, usada como autodesignação do povo Tenetehara, é
composta pelo verbo /tem/ (“ser”) mais o qualitativo /ete/ (“intenso”, “ver-
dadeiro”) e o substantivizador /har(a)/ (“aquele, o”). Quer dizer, enfim, “o
• ser íntegro, gente verdadeira”. É um designativo forte que exprime orgulho
762 e uma posição singular: a de ser o verdadeiro povo [...] Vale notar que, se
perguntado, nenhum indivíduo Tenetehara é capaz de destrinchar o signifi-
• cado por esse processo linguístico [...] Para ele, Tenetehara significa simples
e circulamente o indivíduo ou a pessoa que é parte do povo Tenetehara (GO-
MES, 2002, p. 47-48).
2 Diante dessa realidade, buscamos definições para “ancião” que na comunidade preferem chamar
de “velho”, em resposta aos nossos questionamentos não nos definiram uma idade precisa e sim
apontaram que é uma pessoa que já viveu muito e sabe de muita coisa, sabe da língua e das histórias
de seu povo. “D. Alzenira não é velha, mas ela é quem mais sabe, então ela é assim guardadora da
nossa cultura, porque sabe da língua, das histórias da gente, sabe da cultura” (Caderno de Campo,
05/01/2011).
Nessa perspectiva, o ancião desempenha um papel fundamental em
sociedades que se valem da tradição oral, como forma predominante de educação,
por que “[...] um ancião não sonha quando rememora: desempenha uma função
a qual está maduro, a religiosa função de unir o começo ao fim, de tranquilizar as
águas revoltas do presente alargando suas margens” (BOSI, 1999, p. 82), mantendo
a peculiaridade de ser o guardião das “histórias” de seu povo.
Essa guardiã, para os indígenas da aldeia Januária, chama-se Alzenira
J Guajajára Alves, mãe, avó, moradora da aldeia Piçarra Preta, é professora das
disciplinas Língua Indígena e Cultura Indígena na escola da aldeia Januária,
A cursou o magistério e cursa atualmente Pedagogia, seu grande sonho é fazer uma
pós-graduação na área do ensino de Língua Indígena, o que ainda não foi possível,
L primeiro pelo acesso a centros acadêmicos que ofereçam o curso, depois por ter um
filho com síndrome de Down, o qual requer muito de seus cuidados. Atuante na
comunidade, faz um movimento de conscientização do valor da sua cultura étnica
L pela educação, principalmente no que se refere à língua materna.
Pelo que percebemos, ela se posiciona como uma defensora da identidade
A étnica dos Guajajára e se inquieta com a falta de interesse das pessoas da
comunidade pela cultura indígena. Desse modo, quando propomos a pesquisa a
ela, logo houve aceitação e interesse, pois segundo ela: “Olha, nós não precisamos
só dos conhecimentos indígenas não, eles são os mais importantes para nós,
mas como vamos defendê-los se não sabemos outros conhecimentos, como esse
• que você quer fazer sobre as histórias do nosso povo?”. Fato é que ela é uma
764 mulher consciente de seu papel social, o que a faz defender sua cultura, mas
sem maniqueísmo. Também não gosta do título de “guardiã dos conhecimentos
•
indígenas” e até se mostra contrariada com tal afirmação.
Quando ela questionou quais eram os motivos de ter sido escolhida para
a pesquisa, nós respondemos que por indicação de toda a comunidade, ela então
retrucou: “Não, me entenda eu não gosto disso assim: porque fico pensando meu
2 Deus eu não quero ficar com isso só pra mim, Lilian tá me entendendo, eu quero
que outras pessoas também se coloquem a frente disso; e quando eu faltar como é
que vai ser?”. Constatamos em sua fala uma grande preocupação com a existência
0 de um (a) sucessor (a) para o ensino da cultura Guajajára nas aldeias que convive:
Januária, onde trabalha e Piçarra Preta, onde reside.
1 Assim, apresentada a pesquisa e após conhecermos de forma breve D.
Alzenira, começamos a conversar sobre as histórias e esse foi o ponto nevrálgico do
8 trabalho, porque o que ela nos apresentou foi o seguinte:
Se a gente for pedir para outra pessoa contar, você vai encontrar aquelas
lendas usadas naquele livro. É uma boa referência que nós temos aqui que
é o livro e outras histórias eu não sei. Das que eu já ouvi estão dentro desse
livro aqui. Inclusive essas lendas a gente trabalha em sala de aula você sabe
né, primeiramente nossa educação ela não era assim, por isso que se chama
ainda hoje educação diferenciada. No meu tempo, por exemplo, não havia
esses contos de lendas, e já existia esse material só que a gente nem sabia,
aí depois da nossa formação de magistério, durante o curso nós ficamos
conhecendo esse livro, esse rico material aqui e hoje a gente já trabalha, já
repassa para os alunos, no nosso tempo foi um pouco diferente.
Queremos primeiramente chamar atenção nessa fala para a forma com
que faz alusão às narrativas apresentadas no livro citado, ora ela as denomina como
lenda, ora como conto de lenda, não há entre eles essa diferenciação dos gêneros
textuais, a exemplo do que é marcado na fala da professora, contudo, um dado
importante foi percebido em nossas conversas: “Isso tudo aí é só história, não é
verdade, é como as pessoas pensavam que eram, às vezes contavam só para contar
histórias, para passar o tempo, mas que às vezes traz coisas que são verdade,
J entende?” (Caderno de campo, 06/01/2011). Dessa forma, “[...] a esta altura, não
importa averiguar se há verdade ou falsidade: o que existe é já a ficção, a arte de
inventar um modo de se representar algo” (GOTLIB, 2003, p. 12).
A
Seguindo o entendimento da fala do indígena e concatenando com a da
L autora supra citada, podemos identificar aí uma característica do conto: ser ficção.
Essa mistura do que para eles é maravilhoso com o que é real, na visão de Góes
(1991, p. 118), é o atrativo desse gênero, pois
L A poesia desses contos, nascida dos mais fortes e primários sentimentos
gerais, é o que mais fala e desperta a sensibilidade dos jovens. E nesta po-
A esia de maravilhas e sonho, sob a qual transcorre a ação de personagens
tradicionais da mitologia popular as crianças encontram os seres verdadei-
ros e os fatos reais de seu dia-a-dia. É nessa justaposição do maravilhoso
poético com o realismo doméstico, na mistura do fantástico e da intimidade
familiar, que reside todo encanto e atração dessa literatura (GÓES, 1991,
p. 118).
•
Vale dizer que não só desperta a sensibilidade dos jovens, como frisa a
765
autora, como também das crianças e dos adultos da aldeia, fato que verificamos
• ao perguntar-lhes sobre interesse por essas histórias, tanto os alunos do Ensino
Fundamental e Ensino Médio, como os da modalidade EJA (Ensino de Jovens e
Adultos) responderam que consideram as histórias “legais” (Fala das crianças,
Diário de Campo, 10/03/2011), “interessantes” (Fala das jovens, Diário de Campo,
10/03/2011), “são muito boas de ouvir” (Fala dos adultos, Diário de Campo,
2 10/03/2011).
O livro a que se refere D. Alzenira na fala anterior é a obra Os índios
0 Tenetehara (uma cultura em transição) dos antropólogos Charles Wagley e
Eduardo Galvão, lançado em 1961 pelo Ministério da Educação e Cultura do Brasil.
1 Notamos que o que ela revela na fala sobre se perguntar para outras pessoas eles
vão direcionar para o livro foi uma constante, a todos que procuramos para a
pesquisa respondiam: “Pra quê a senhora quer que conte se está tudo no livro da
8 professora e ainda melhor, mais completo?” (Caderno de campo, 06/01/2011).
Passamos duas semanas na aldeia, visitando as casas, especialmente à
noite, acompanhando as aulas e constatamos que realmente o que o grupo afirmou
sobre o fato de que as narrativas que nos interessavam estariam na escola, nas aulas
de D. Alzenira. A partir daí inferimos que teríamos que nos valer destas narrativas
transcritas por Wagley e Galvão (1961) que ao apreenderem essas narrativas foram
associando elementos a elas, “colocando detalhes”, lançando mão das palavras de
D. Alzenira. O que se comprova pela seguinte explanação ao ser questionada se há
alguma diferença entre as histórias narradas no livro e as que ela ouvia quando
era criança:
[...] aqui [apontando para o livro] tá muito detalhado né, e das que eu já ouvi
não tinham tanto detalhamento, como está detalhado aqui. Eu ouvi, por
exemplo, a história de Maíra, eu tinha muita curiosidade, mas como é essa
história de Maíra? Só que as pessoas nunca me contaram realmente como
foi a história de Maíra. Por essa questão, entre nós Lilian, há uma questão
assim, que uma determinada pessoa sabe de uma história, eu não sei se é
J vergonha ou é preguiça de contar pra gente, e não conta por mais que você
queira ouvir, ai fica tendo sempre um impacto, eu não entendo porque é né,
A já é diferente hoje, você já me procura se... eu já tô te dando esse material
né, pra...Como resposta, mais se você for procurar alguém pra lhe contar
essa história, eles vão contar essa mesma história, então é assim.
L
O que ela afirma no final de sua fala se confirmou nas outras visitas
à aldeia. Nesse contexto, essa pesquisa careceu de ser redirecionada, porque
L
não obtivemos outras versões se não aquelas constantes no livro, ditas com as
palavras dos indígenas, mas ditas na essência do que aprenderam na escola. Logo,
A estávamos diante do encontro de uma tradição com a visão de mundo moldada
pelos estudos dos antropólogos Wagley e Galvão. Nesse contexto, fizemos a seleção
de cinco textos que foram indicados da seguinte forma pela comunidade:
AVENTURAS DE WIRAI: Os índios crianças, na faixa etária de 7-11
anos. Quanto à justificativa da escolha disseram que é devido ao fato dessa história
• ser parecida com eles; O MARIDO-JACARÉ: Esta foi escolhida entre as índias
766 crianças na faixa etária de 7-11 anos, vale frisar que elas fizeram a alusão de que
• essa é a mesma história da Bela e da Fera, só que dos povos indígenas; O ROUBO
DO FOGO: Os índios adolescentes na faixa etária entre 12-17 anos mostraram
essa narrativa como de sua preferência; A ESTRELA QUE ACOMPANHA A LUA:
Escolhida entre as índias adolescentes na faixa etária entre 12-17 anos; A CABEÇA
ROLADORA: Os adultos que também estudam no EJA apontaram essa como a
mais interessante para eles.
2
Contudo, nesse artigo, pela limitação do número de páginas analisaremos
exclusivamente a narrativa “O Roubo do fogo” nas versões de Wagley e Galvão (1961)
0
e de Zannoni (2002), pela distância temporal em que ambas foram coletadas e por
nos permitir maiores considerações comparativas.
1
O roubo do fogo: a análise dos pontos que o fazem um conto
Com base nas discussões dos teóricos Coelho (1987) e D’Angelis (2008),
8
elaboramos um quadro de análise composto por uma relação de características do
conto que podem ser identificáveis nesse gênero textual.
O conto é sempre ficção, mesmo aqueles que se originaram dos mitos
que são considerados por muito estudiosos como verossímil. Nesse aspecto, temos
no conto fatos que pertencem ao mundo do maravilhoso. Na aldeia Januária,
quando fomos em busca dessas narrativas, perguntamos às pessoas com quem
conversamos: Você considera que essa história é real ou ficção? Todos foram
unânimes na resposta: “Claro que é ficção, já viu urubu ser dono de fogo e falar?
Antes os Guajajára acreditavam que era assim mesmo que as coisas aconteciam,
que se descobria, mas a gente sabe que é só invenção para dizer mais ou menos
como podia ser” (Diário de campo, 24/02/2011);
Para conseguir o que almejam ou necessitam os seres lançam mão
do elemento maravilhoso: feitiços, encantos, instrumentos mágicos, viagens
extraordinárias que fazem com que os seres se transportem para outros mundos.
Na narrativa do conto não há um tempo determinado, sabe-se apenas que a história
se passa no passado, por isso são comuns às expressões: Há um tempo, “Certa
J vez”, entre outras que exprimem essa indefinição.
Não é comum a apresentação de nomes, por isso é característico que se
A nomeie os personagens pelo grau de parentesco: pai, mãe, filho, cunhado. Traz em
sua trama um perigo, que gera uma aventura, nessa aventura os pares se opõem
L em uma luta que para alguns resulta em castigo, para outros em recompensa.
Nessa luta travada há um forte e um fraco, este para vencer a luta carece de
forma astuciosa desenvolver uma solução para vencer o mais forte. Entre os seus
L
personagens que lutam entre si há sempre pares que se opõem, na maioria das
vezes são bichos.
A Vale ressaltar ainda que o conto por sua característica popular e sua
base na oralidade vai sendo passado de geração em geração, contudo em cada povo
o mesmo conto apresenta temas de identificação imediata, ou seja, um elemento
local perceptível entre aqueles de uma mesma sociedade.
Feita a apresentação das características adotadas como norteadores da
•
análise, passemos aos quadros para a investigação das versões da narrativa O
767 Roubo do Fogo. Nos quadros a seguir identificamos nos trechos das duas versões
• as principais características elencadas nesse estudo.
A primeira versão do conto apresentada é uma narrativa breve com poucos
elementos, mas que contempla a ideia central dessa narrativa que a situação
do roubo do fogo. O texto é narrado no tempo passado, marcado pela expressão
pela expressão “De primeira vez”, que entre os Guajajára é utilizada no início das
2 narrativas para indicar tempo passado não definido. No texto os pares que se
opõem são Maíra e os urubus. Verificamos também que o elemento maravilhoso é
0 notadamente citado na história, na figura de Maíra, que ora se transforma em uma
anta, ora em um veado, ambos mortos, utilizando-se de astúcia cria uma situação
ardilosa para enganar os urubus e roubar-lhes o fogo. E é exatamente no final da
1 narrativa que temos o elemento local evidenciado, quando Maíra esconde a brasa
num pau de urucu, vegetação característica do serrado, da qual se extrai corante
8 natural na cor vermelha para a comida e para as pinturas indígenas.
3 Essa variação depende da tradução e da edição da obra, no caso da adotada nesse trabalho que
é uma tradução portuguesa de 2003 traz como título Morfologia do Conto.
terminologia do autor. Não é, pois, inútil seguir a obra de perto, tentando
condensar suas teses e conclusões.
MOTIVEMAS NARRATIVA
J
A
L
Fluxograma 1: Estrutura da narrativa O roubo do fogo (WAGLEY; GALVÃO, 1961).
L Org. : A autora.
Com base no quadro de análise do quadro 1 e no fluxograma 1, pudemos
A ver que a versão apresentada por Wagley e Galvão (1961) só apresenta uma
sequência motivêmica, a qual nos possibilita dizer que a estrutura dessa narrativa
é a seguinte: C + Ard + Eng + RC, representada na figura anterior. E a seguir
apresentamos a análise da versão 2.
• MOTIVEMAS NARRATIVA
774 CICLO 1
“Os velhos contavam que no começo do mundo, que diz que o índio não tinha
• CARÊNCIA
fogo nessa época. Não tinha fogo”.
“Aí foi um dia, ele foi, virou uma carnice, e jiboião, que trouxe debaixo de um
ARDIL
moquiço velho, onde tinha muito cipó de pau velho pubo”.
“Faz fogo grande, fizeram fogo grande, aí esse pajé que virou uma carniça,
2 ENGANO
quando esses fizeram o fogão, aí esse que virou carnice lá aterrou os pés lá
pra eles lá e espantaram tudo e espalhou fogo pra todo lado, aonde um cipó
velho pubo pegou fogo”.
0
“Lá ele foi ajuntou areia, botou no fogo uns paus também, agarrou e ajeitou
REPARAÇÃO tudo e botou em cima de umas pedras, que o índio, ele tem um negócio
1 D A assim, chama ele é pedra boa de fogo, é boa de fogo, tem um pedaço de ferro,
CARÊNCIA uma coisa, tem uma pedra bem fina, umas pedras de fogo, aí ele risca e cai
8 aquelas faíscas e aí pega fogo. Ele fez desse jeito, aí o índio se armou de fogo”.
Quadro 2: Motivemas da narrativa O roubo do fogo (ZANNONI, 2002).
Fonte: Dundes (1996).
Org. : A autora.
Na versão de Salomé, transcrita por Zannoni (2002), observamos os
mesmos motivemas da apresentada por Wagley e Galvão, sendo que continuamos
com um ciclo. A narrativa inicia com um desequilíbrio que é a falta de fogo para os
Tenetehára, enquanto que os urubus tinham fogo, o que gera a carência moldura.
O índio vai em busca desse fogo, para a tentativa de reparar a carência inicial, para
isso utiliza-se de uma situação ardilosa ao se transformar em uma jiboia morta
para enganar os urubus e então roubar-lhes o fogo.
Dessa forma, há a reparação da carência inicial que é conseguir o fogo, o
que traz um equilíbrio para o desequilíbrio que gerou a carência inicial, no entanto,
note-se que podemos ter outro desequilíbrio, agora por parte dos urubus.
A partir do quadro de análise e da discussão afirmarmos que, nessa
narrativa, a sequência motivêmica parte de um desequilíbrio e finaliza com
J o restabelecimento do equilíbrio para os índios, como pode ser observado no
fluxograma abaixo.
A
L
L
A
Fluxograma 2: Estrutura da narrativa O roubo do fogo (ZANNONI, 2002).
Org. : A autora.
2
0
1
8
J
A
L A(S) LEITURA(S) DA MÚSICA “DESPACITO” COMO RECURSO
PARA O ENSINO DE E/LE: A TRANSIÇÃO DE SABERES E
L CULTURAS NA MÚSICA “DESPACITO”
A Luciana Aparecida da Silva (CREJA)
RESUMO: As letras das músicas não aparecem com frequência nos livros didáticos
para os alunos dos ensinos fundamental e médio no Brasil; desta forma, não
se percebe que a música também é um gênero multimodal que contribui para a
pluralidade cultural da língua estrangeira espanhola (LE). É importante o professor
• mediador enfatizar a relação entre as imagens visuais do vídeo “Despacito” e o texto
777 escrito. A metodologia empregada será a pré-leitura, a leitura interativa e a pós-
leitura; também é efetivado, para a construção/conscientização da(s) identidade (s)
• cultural (is) dos envolvidos, o desenvolvimento paralelo da habilidade da expressão
oral no uso da LE, junto à compreensão leitora. Os resultados apontam uma maior
conscientização dos alunos em relação à própria cultura; a construção da identidade
nacional frente à estrangeira, diferenças e semelhanças; o desenvolvimento da
competência por meio da oralidade e da compreensão escrita do texto multimodal.
2 Letramento crítico como prática pedagógica.
Palavras- Chave: Texto de Leitura Multimodal “Despacito”. Leitura Compreensiva.
0 Construção de Sentido (s). Identidades Culturais.
Considerações iniciais
1 Atualmente, as músicas não são utilizadas com frequência em livros
didáticos ou nas aulas para os estudantes, tanto do ensino fundamental quanto
8 médio no Brasil, na aprendizagem da língua estrangeira espanhola (LE) como
língua adicional; com isso, não ocorre nos alunos às percepções de que a música
não está limitada a diferentes sons junto com letras e ritmos diversificados; cabe
ao professor ilustrar aos aprendizes que a música denota, em sentido concreto,
entonações expressivas da língua estrangeira, segundo Baktin.
Desse modo, a entonação expressiva pertence aqui ao enunciado e não à
palavra. E ainda assim é muito difícil abrir mão da convicção de que cada
palavra da língua tem ou pode ter por si mesma “um tom emocional”, “um
colorido emocional”, “Um elemento axiológico”, uma “auréola estilística”,
etc. e, por conseguinte, uma entonação expressiva inerente a ela enquanto
palavra. (BAKTIN, 2003, p.291).
3 Tradução nossa: O reggaeton ou reguetón é um gênero de música que combina o reggae com o
rap e o hip hop. Surgiu na América Central ao final da década de 1980, mas demorou uns vinte
anos para popularizar-se e chegar a outras regiões do mundo.
Esto hay que tomarlo sin ningún apuro
Despacito
Quiero respirar tu cuello despacito
Deja que te diga cosas al oído
Para que te acuerdes si no estás conmigo
Despacito
J Quiero desnudarte a besos despacito
Firmo en las paredes de tu laberinto
A Y hacer de tu cuerpo todo un manuscrito
Sube, sube, sube
L Sube, sube
L Quiero ver bailar tu pelo
Despacito
Quiero respirar tu cuello despacito
Deja que te diga cosas al oído
Para que te acuerdes si no estás conmigo
Despacito
Quiero desnudarte a besos despacito
Firmo en las paredes de tu laberinto
Y hacer de tu cuerpo todo un manuscrito
•
784
•
2
Considerações finais
0
Cabe adicionar que, durante a(s) leitura(s) e a(s) interpretação (ões) dos
pupilos da canção e do vídeo “Despacito”, foi realizada a competência linguística por
1 meio da prática oral e dos diálogos contínuos entre eles, as exposições das opiniões
pessoais e dos diferentes pontos de vista, etc. e a leitura interativa da música na
8 LE (sem nenhuma tradução literal prévia à língua portuguesa da música elaborada
pelo professor ou pela internet dentro da sala de aula). Condiz ao educador, como
anexo, relatar aos escolares que as palavras usadas com o grau diminutivo como
“despacito”, “pasito”, “suavecito”, “poquito”, denotam palavras semânticas com os
sentidos conotativos de realce de identidade carinhosa, e não em tons depreciativos.
Caso o docente queira explicar, após o término de toda a leitura da
música e os trabalhos elaborados pelos alunos “Despacito” o que é o uso do grau
diminutivo e quais são os sufixos mais utilizados entre as palavras (substantivos
e adjetivos), aos aprendizes, já que lhes ajudará a assimilar com mais facilidade (e
não utilizarão somente os sufixos “cito” e “ito” para o grau diminutivo) e inclusive,
lhes estimulará a conhecer outras palavras e a falá-las usando o grau diminutivo.
Além disso, o reggaeton apresenta os elementos musicais de entonação,
acentuação, tonalidade, ritmo, pausas, etc., que, de acordo com a musicalidade
e as linguagens verbais do corpo textual, transforma a música “Despacito” em
melodiosa e contagiante. Como sugestão de trabalho, o docente pode dividir as
turmas em grupos de pesquisa (para que pesquisem dentro e fora do ambiente
J escolar) com as indagações: 1. ¿ Los reggaetons son producidos para evidenciar
las denuncias sociales en América; cuáles son las quejas que están explícitas?,
A 2.¿El sentimiento amor existe entre los seres humanos en los relacionamientos
socioculturales o entre dos personas?, 3. ¿ Los relacionamientos entre los seres
L humanos, son fáciles o las acciones de aproximación y de diálogo necesitam ocorrer
“despacito”?, 4.¿ Qué harías para expandir el sentimiento amor entre las personas
en el mundo? Cite ejemplos, etc.
L
Após as respostas orais dos estudantes, o docente organiza que sejam
elaborados trabalhos em cartazes com as redações deles, sobre os diferentes temas
A transversais que a música “Despacito” denota, como o amor entre os casais e/ou
entre as pessoas (famílias, amigos, etc.) e os aspectos comparativos de semelhanças
sociais e/ou diferenças entre Brasil e Porto Rico nas roupas, nas danças, nas etnias,
nos locais, etc., para as leituras de todos os demais alunos, direção e funcionários
dos colégios dos trabalhos expostos nos quadros e também nos corredores dos
• colégios,-+ como os resultados das pesquisas estudantis.
785 Os resultados da interpretação da música “Despacito” proporcionam, no
• âmago da aprendizagem da LE, de modo dinâmico e encantador aos aprendizes,
outros temas que se desenvolverão em outros trabalhos dentro e fora do ambiente
escolar. Um deles, depois de todo o trabalho da leitura do gênero multimodal
escrito anteriormente, são a conscientização e a construção da identificação, isto
é, o reconhecimento de cada educando brasileiro na identidade pessoal de existir
2 como um habitante do continente americano, com a cultura própria e com as
semelhanças e/ou as diferenças frente à estrangeira. Ocorreu neste trabalho a
identidade cultural como aprendizagem. O professor pode mostrar-lhes, após os
0 trabalhos realizados pelos alunos, o vídeo no Youtube sobre a música “Despacito”
cantada por vários cantores em outras línguas no mundo, como registro da
1 identidade latino americana.
Além disso, a música escolhida “Despacito” é um exemplo de gênero
8 multimodal que integra a linguagem verbal (a letra do corpo textual) com a semiose
das combinações dos sons do estilo musical típico do reggaeton e o vídeo da música,
evidenciando uma atividade interativa (KOCH, 2002, p. 17).
Adotando-se esta última concepção — de língua, de sujeito, de texto — a
compreensão deixa de ser entendida como simples “captação” de uma repre-
sentação mental ou como a decodificação de mensagem resultante de uma
codificação de um emissor. Ela é, sim, uma atividade interativa altamente
complexa de produção de sentidos, que se realiza, evidentemente, com base
nos elementos linguísticos presentes na superfície textual e na sua forma de
organização, mas que requer a mobilização de um vasto conjunto de saberes
(enciclopédia) e sua construção no interior do evento comunicativo.
A atividade interativa entre a música e a (s) linguagem (ns) verbal (is)
do docente com os discentes espelha os princípios básicos de: maiores diálogos
ativos sobre a(s) compreensão (ões) do(s) sentido(s) da música “Despacito” entre
todos (professor e estudantes) localizados no mesmo ambiente social escolar; as
exteriorizações dos diferentes pontos de vista particulares (ou saberes) de cada sujeito
ativo e os compartilhamentos de ideias e/ou intercâmbios dos conhecimentos e as
promoções das reflexões críticas construtivas na (s) múltipla(s) interpretação (ções)
J da música “Despacito”. Aconteceu nestas atividades elucidadas anteriormente
paradigmas do letramento crítico como um exemplo de prática pedagógica.
A Referências
ABIO, Gonzalo. ¿Despacito puedo usarlo en mi clase de ELE?. Disponível em:
L http://gonzaloabio-ele.blogspot.com/2017/08/despacito-puedo-usarla-en-mi-
-clase-de.html . Acesso em: 06/08/2017.
L BAKTIN, M. Estética da Criação Verbal. 4ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BENEVISTE, E. (1969) Semiologia da Língua. Problemas de Lingüística Geral II.
Campinas: Pontes, 1989.
A Despacito. Música. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kJ-
QP7kiw5Fk-
Acesso em: 20/01/2017.
“Despacito” cantado em diversos idiomas do mundo. Disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=I6y9T7Jg8lo- . Acesso em: 10/08/2017.
•
Dicionário “Definición.de” com o significado do reggaeton. Disponível em: ht-
786 tps://definicion.de/reggaeton/- . Acesso em: 20/05/2018.
• FONSI, LUIS. Biografia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hfJlp-
mOuYrk-.
Acesso em: 19/08/2017.
KOCH, Ingedore. Desvendando os segredos do texto. 2ª edição, São Paulo: Cor-
tez, 2003.
2 VARGENS, Dayala & FREITAS, Luciana. Ler e escrever: muito mais que unir palavras.
Brasília: v.16, 2010, p. 191-213.
0
1
8
J
A
L “O BAILE DO JUDEU”, DE INGLÊS DE SOUSA, OU
APONTAMENTOS SOBRE REALISMO MÁGICO EM UMA
L NARRATIVA BRASILEIRA
A Márcio Antonio de Souza Maciel (UEMS)
RESUMO: Ainda que publicada em 1893, dentro do livro Contos amazônicos, a
narrativa curta “O Baile do Judeu”, do escritor paraense Inglês de Souza (1853-
1918), para além de uma tímida recepção crítica na região norte do país, no restante
do país, não encontra muitos estudos e/ou leituras sobre outras questões que
• ultrapassem o naturalismo brasileiro, pontual no século XIX. Nossos objetivos,
787 neste (e com este) texto, são dois. O primeiro deles, resgatar a figura do escritor
d’O missionário (1899), talvez, sua obra mais conhecida, de dentro dos autores
• brasileiros finesseculares celebrados; o segundo, por fim, utilizando a bibliografia
de que trata o conceito de realismo mágico (concepção teórica da segunda metade do
século XX), fazer uma leitura do conto “O Baile do Judeu”, do escritor em epígrafe.
Palavras-chave: Narrativa curta brasileira. Realismo mágico. Inglês de Souza; “O
Baile do Judeu”.
2
“Se entre monstros marinhos,/Lá no mais fundo dos mares,/
Em cristalinos algares/ Se oculta o retiro seu./
0 Em meu amor confiado/Lá também descerei eu”
(Bernardo Guimarães)
1 Do prólogo
A partir da epígrafe, retirada do poema X intitulado “Pescador”, dentro da
8 Balada Romântica “A Sereia e o pescador”, que consta do volume de poesias Folhas
de Outono, de 1883, do escritor brasileiro Bernardo Guimarães (1825-1884), talvez,
mais conhecido pelo romance A Escrava Isaura (1875), em que recupera a relação
mítico-trágica entre os seres marinhos, no caso a Sereia, e os seres humanos, no
excerto, um pescador e seu infausto desenlace com relação à figura mitológica,
igualmente, nos propomos a ler a narrativa “O Baile do Judeu”, não romântica,
contudo, de fins do século XIX, do autor paraense Marco Herculano Inglês de Sousa
(1853-1919), que consta do volume de narrativas Contos Amazônicos, publicado
em 1893, à luz de alguns conceitos teóricos como realismo maravilhoso.
Como dissemos antes na sinopse sobre o texto, para além da leitura e
emprego de alguns conceitos do “real maravilhoso”, todos, vale lembrar, conceitos
da primeira metade do século XX que nascem e se enrobustecem a contar das
vanguardas do começo daquele século, sem querer entrar nas polêmicas distinções
entre esse conceito e os que a ele se opõem (ou se complementam) como “realismo
mágico” ou “realismo fantástico”, todavia, “a obra inglesiana permanece lida
e estudada principalmente no Norte, havendo ainda bons artigos acadêmicos
J publicados em Minas, e raros em outros estados” (VIANNA, 2017, p.iv). Sobre essas
disposições, portanto, se colocam nossas linhas.
A Da fábula e dos fatos
As relações entre literatura e mito, se pensarmos tão somente nas letras
L ocidentais, datam desde a antiguidade clássica grega com os poemas Ilíada e
Odisséia, atribuídos a Homero. No entanto, da convivência dual, o estudo para
L “a mitologia é um produto tardio”, visto que “o caminho para o politeísmo é um
progresso cultural”, segundo nos esclarece Curtius (1996, p.39). Por outro lado,
ainda segundo o estudioso, sobre o caráter ficcional, por conseguinte, “é a literatura
A que registra e guarda o saber mítico” (CURTIUS, 1996, p.39). Dito de outro modo, é
graças à literatura, depositária e guardiã desde as narrativas orais dos mitos, que,
mais tarde somente, a mitologia, estruturar-se-á enquanto campo do saber.
Enquanto campo do saber acadêmico, o estudo da mitologia comparada
(rubrica dada a uma das várias divisões da mitologia que, como o nome diz, compara
•
diferentes símbolos e mitos fundadores, em diversas culturas e épocas), indo ao
788 encontro do que nos relatou Curtius (1996), anteriormente, por conta disso, se
• organiza em torno do “Círculo de Eranos”, grupo de estudiosos de várias áreas das
humanidades, que se encontraram em Ticino, na Suíça, entre a década de 30 e 80,
do século passado, e formularam os 57 volumes em que estão balizados os princípios
que norteiam tal parte da mitologia (FERREIRA-SANTOS; ALMEIDA, 2012, p.66).
Se os escritores gregos clássicos como Homero, conforme vimos, de um lado,
2 legaram à mitologia, enquanto lato sensu, os seus símbolos ou mitos fundadores,
por outro lado, tanto os cronistas europeus, nos seus diários da invenção da(s)
América(s), como os povos autóctones americanos, mais tarde, nos escritos como
0
Popol Vuh e outros, por exemplo, deixaram como herança à mitologia comparada,
um outro olhar sobre o Novo Mundo. Tal percurso e recorte histórico nos parecem
1 importantes, uma vez que na narrativa de Inglês de Sousa é a recuperação do mito
amazônico sobre o Boto que fazemos o cotejo com o mito aquático do homem peixe,
8 da mesma forma que os europeus fazem com o mito grego do Tritão.
Sobre a força do símbolo do cetáceo (ou golfinho) amazônico, ainda que
conhecido devido ao trabalho de alguns folcloristas como Câmara Cascudo, assim
como os estudos críticos sobre a literatura do escritor paraense, “é nos rincões
mais remotos da região Norte do país que as histórias de boto se reproduzem com a
força de um mito no qual o real e o maravilhoso ainda hoje se confundem” (BAHIA,
2007, p.58). Neste imbricamento entre relato real e relato maravilhoso, duplamente
possível, majoritariamente, em terras americanas, temos as palavras de Graça
Medeiros, acerca do mito:
Em um universo fantástico e telúrico, onde forças primitivas e inimagináveis
para o vulgo ainda predominam, lendas, crendices, histórias fabulosas de
deuses, homens e animais são tão reais quanto os infindáveis rios e a vida
ensolarada, e habitam a mesma dimensão mágica. No paraíso amazônico
onde tudo é possível, ou quase tudo, o mito do boto, o príncipe encantado
das águas, assume uma feição especial, pois integra, ao mesmo tempo, o
onírico e o concreto. Do imaginário para o real, “os filhos de boto” estão aí,
pelos beiradões, a perpetuar uma raça mística, na qual não há distinção
entre homens e deuses (MEDEIROS, 1997, p.1).
J
Paralelamente, desde o nosso ponto de vista argumentativo, ao mito
amazônico do Boto, encontramos o conceito acerca do “real maravilhoso”, com
A qual, segundo nossa proposição, dialoga. O referido juízo será cunhado pelo
escritor cubano Alejo Carpentier, no final da década de 1940, em um ensaio, que
L depois foi anexado ao seu romance El reino de este mundo, de 1949, cujas ideias
básicas do texto reiteram que o “real maravilhoso” será uma das constituintes do
L espaço americano. Sem entrar nas polêmicas distinções com as concepções de
“realismo mágico” bem como com a de “realismo fantástico”, o escritor venezuelano
Uslar Pietri, ao comentar sobre o conceito de Carpentier, diz que “trata-se de um
A bom nome ainda que a magia nem sempre esteja relacionada com as maravilhas e
que na realidade cotidiana há um elemento mágico que só é captado por alguns”
(USLAR PIETRI, 1990, p.126). No histórico ensaio,
o escritor cubano, que tinha freqüentado os círculos surrealistas de Paris,
juntamente com Uslar Pietri e Asturias, propõe o conceito de real maravi-
• lhoso para explicar sua obra e a própria realidade americana. A base desse
789 raciocínio é a suposta existência de uma realidade maravilhosa na America
Latina, resultado da conjunção de uma natureza exuberante e uma cultura
• mestiça, em cuja história ocorrem fatos que podem parecer insólitos aos
olhos do estrangeiro (ESTEVES, 2010, p.399).
Do epílogo
Conforme acreditamos ter apontado, as relações entre literatura e mito
são anteriores a qualquer teorização sobre o estatuto da mitologia e, segundo
muitos estudiosos, aquela (a literatura), desde o princípio, mesmo quando ainda
J
oral, foi a responsável por salvaguardar esses (os mitos), para, mais tarde, haver a
separação.
A Igualmente, por fim, pensamos que a atualização do uso do conceito
sobre o “realismo maravilhoso”, para além das narrativas hispano-americanas
L do “Boom”, de modo restrito, ou sobre as narrativas latino-americanas, de modo
amplo, ambas, a partir da segunda metade do século XX, seja importante. Tanto na
L América hispânica quanto no Brasil, ainda que no século XIX, podemos ler outros
textos e, também, doutros escritores e suas relações maravilhosas porque eivadas
de personagens míticos.
A
Referências
BAHIA, Márcio. Boto. In: BERND, Zilá (org.). Dicionário de figuras e mitos literários das
Américas. Porto Alegre: Tomo Editorial/Ed.UFRGS, 2007.
CURTIUS, Ernest Robert. Literatura europeia e Idade Media. Tradução de Paulo Rónai e
• Teodoro Cabral. São Paulo: EdUSP, 1996.
792 ESTEVES, Antonio Roberto; FIGUEIREDO, Eurídice. Realismo mágico e realismo maravi-
lhoso. In: FIGUEIREDO, Eurídice (org.). Conceitos de literatura e cultura. 2. ed. Niterói:
• EdUFF; Juiz de Fora: EdUFJF, 2010.
FERREIRA-SANTOS, Marcos; ALMEIDA, Rogério de. Aproximações ao Imaginário: bús-
sola de investigação poética. São Paulo: Képos, 2012.
GUIMARÃES, Bernardo. Poesias Completas. Rio de Janeiro: INL/MEC, 1959.
MEDEIROS, Graça. O mito do boto. Série Memória. 1997. Disponível em: <http://
2 www.visitamazonas.com.br/serie_memoria_website/ensaios/21_boto.htm>. Acesso em
29/05/2018.
0 SOUSA, Inglês de. O Baile do Judeu. In: ___. Contos Amazônicos. Coleção Acervo Bra-
sileiro. Volume 1. Jundiaí/SP: 2017. p. 65-69.
1 USLAR PIETRI, Arturo. Realismo Mágico. In: ___. Cuarenta ensayos. Caracas: Monte Ávi-
la, 1990.
8 VIANNA, Eduardo Rodrigues. Este livro. In: SOUSA, Inglês de. Contos Amazônicos. Cole-
ção Acervo Brasileiro. Volume 1. Jundiaí/SP: 2017. p. iv-v.
J
A
L ¿CULTURA PORTEÑA DEL PACÍFICO SUR? SÍ. TRES RAZONES Y
UNA MUESTRA
L
Marco Chandía Araya (UFPA)
A RESUMEN: La cultura porteña del Pacífico Sur último refleja un modo de vida
entrañablemente ligado a la mar como agente dador y en cuya relación vital se
produce una identidad porteña, un habitar basado en el vínculo del sujeto con el
espacio natural y una historia del trauma que surge del contacto entre tradición y
modernidad. Estos rasgos definen una sociedad que ante la amenaza de la creciente
• occidentalización que la niega, resistirá con tácticas de sobrevivencia arrancadas de
su memoria histórica y de los modos de ser y de ocupar el espacio. De aquí emana
793
la imagen de un conflicto cuyo resultado es un discurso estético-literario que da
• cuenta de una poética porteña. En Chile, Baldomero Lillo y Alfonso Alcalde han
retratado el Golfo de Arauco, pero lo han hecho de modo tal que su obra refuerza
este imaginario representativo de un corpus que integra escenarios y textos.
Palabras claves: Cultura porteña. Resistencia. Poética de la frontera subpanameña
hacía ver, en el sexto de sus siete ensayos, cómo la Lima moderna embestida de ese delirio se creía
2 o sentía seguir “a prisa el camino de Buenos Aires o de Río de Janeiro”. (MARIÁTEGUI, 2005, p.
217). [Énfasis mío].
0 9 En efecto, ni Latinoamérica, las ciudades y las ideas, ni La ciudad letrada, ni Una modernidad
periférica: Buenos Aires 1920 y 1930, que, qué duda cabe, hablan de América Latina, hacen
mención, si es que acaso de pasada, a esta zona. Lo que nos lleva a pensar que así como existe
1 una cultura urbana-porteña del Pacífico Sur, existe del mismo modo pero con características bien
distintas, una cultura suratlántica que, reconoce incluso Rama: “tiene una dominante pampeana,
8 urbanizada, agrícola-ganadera, inmigratoria e industrializada, dentro de cánones modernizadores.
Cultura suratlántica y de ningún modo cultura del cono sur, para deslindar nítidamente los núcleos
cercanos, emparentados pero diferenciables claramente, como son el paraguayo-guaraní y el
chileno-araucano”. (RAMA, 1979: s.num.) [Énfasis nuestro].
10 “Digo poema para toda a literatura, não somente no sentido restrito habitualmente para a
‘poesia’ por oposição ao ‘romance’, abafando-o sem mesmo tomar conhecimento da ausência de
distinção entre a poesia e o verso, com a redução da poesia a um gênero. No que concerne à relação
entre o poema, um pensamento do poema e esta atividade particular da linguagem que consiste em
renovar a experiência”. (MESCHONNIC, 2010, p. XVIII) [Énfasis mío].
11 Escritura, “atendiendo por tal no simplemente un texto o una mera suma de textos, sino un todo
textual, un conjunto de instancias, pliegues o niveles significantes internamente solidarios entre sí,
tributarios de un mismo movimiento de sentido discursivo” (MORALES, 2012, p. 48) [Énfasis mío].
Cornejo Polar: estética de la miseria12, sino, y aquí el mayor de los esfuerzos: de un
“canto a una porteñidad” toda que es prueba concreta de resistencia histórica y
apuesta unívoca hacia una rehumanización del espacio. Este es su origen, razón y
consecuencia.
Por eso si lo que define a esta realidad es la dialéctica irresuelta de
embates y resistencias culturales disímiles, la producción literaria que la plasme
debe necesariamente hacerse desde un ejercicio autodefinitorio igualmente
J marcado por los quiebres e inflexiones que se dan dentro del proceso. Es, pues,
un relato que asume con vigor todo el conflicto; no sin ser, por eso, ajeno, como
A creación del arte, al continuum de la historia de nuestra literatura; ni tampoco, como
manifestación estética, sujeta a factores histórico-culturales, con una autonomía
L que no sea relativa. (BOURDIEU, 2002, p. 9). El recorte literario que aquí se aborda
rinde cuenta, a su modo, del desarrollo de un período de creación estética del
subcontinente pero que bien puede representar el conjunto de modulaciones e
L inflexiones que marcan el intrincado devenir de nuestras letras13.
Producción, la que estudiamos acá, más compleja cuanto más heterogénea
A la realidad que representa. Una multi inter pluri cultura que exige ser reconstruida
bajo las mismas condiciones que definen el referente, tanto en el plano de la
producción misma como al interior de cada una de las instancias involucradas.
(CORNEJO, 1982, pp. 67-74)14. La obra responde al reflejo de una resonancia
recíproca entre ambos universos ya que si el mundo popular se apropia y resiste
• a partir de una postura contrahegemónica, estos modos literarios suyos, que han
797 corrido la misma suerte (el desprecio del canon central, la escasa circulación y, por
tanto, la casi nula presencia en los ámbitos lectores), transitarán el sino único más
•
factible camino para ellos posible: el de una literatura subversiva que resemantiza
y reconstruye otras versiones más acorde a su propia realidad. Hacen de la
escritura aquello que M. de Certeau llama “el arte del débil”: tácticas, furtivas y
12 Opto “por reconocer que el posestructuralismo nos ha dotado de instrumentos críticos más
2 finos e iluminadores, pero también: […] por enfatizar que nada es tan desdichado como el propósito
de encajar […] en los parámetros post mediante algo así como la estetización de un mundo de
0 injusticias y miserias atroces” (CORNEJO, 2003, p. 9).
13 Historia marcada por sucesivos períodos cuyo punto, para nosotros, ejemplificador, en términos
de discurso y de concepción de la literatura como obra de arte, lo entrega Roberto Bolaño, cuando,
1 en 2666, en “La parte de Archimboldi”, específicamente en la llamada metáfora del bosque, discute
sobre la secreta relación entre las obras mayores y menores (BOLAÑO, 2004, pp. 982-984). O, lo que
8 en un contexto similar, habría sido para Cándido el paso de manifestaciones sociales a un sistema
simbólico complejo capaz de ejercer una función total (CÁNDIDO, 1991, p. 323) [Énfasis míos]. Por
último, Ana Pizarro, en términos del proceso, habla que para organizar la dinámica de nuestra
historia literaria hay que atender a la “gran dialéctica de la ruptura y la continuidad”. (PIZARRO,
1985, pp. 28-29).
14 Dice el peruano, haciendo un balance entre un primer momento en que detecta el fenómeno
dentro de los procesos de producción y un segundo momento en que: “Entendí más tarde que la
heterogeneidad se infiltraba en la configuración interna de cada una de esas instancias, haciéndolas
dispersas, quebradizas, inestables, contradictorias y heteróclitas dentro de sus propios límites”
(CORNEJO, 2003, p. 10). Nada más cercano, cierto, a nuestro corpus, y, por otra parte, nada más
distante y ajeno que el modelo de una literatura homogénea y desconflictuada para el análisis del
mismo, donde estas dos instancias de la heterogeneidad se presentan en forma evidente.
azarosas pero potencialmente sediciosas insertas en una sociedad mecanizada que
vigila y castiga. (DE CERTEAU, 2000, p. 26). Porque una sociedad que privilegia
el aparato productor va a contar siempre —dice él— con elementos que jugarán
en su contra, que no se reducen a ella. Lo cual supone que en esta dinámica la
recepción escritural-lectora no es nunca pasiva: implica un complejo proceso de
reformulación y resignificación, siempre ligado a un previo ejercicio de asimilación
y descarte. (CORNEJO, 1989, pp. 34-36).
J El repaso histórico, la persistencia de la memoria, el reclamo por lo propio,
los usos de las prácticas tradicionales (ligadas al cuerpo, a la oralidad, a la risa)
A de un hombre integrado abiertamente al medio, son representaciones estéticas
de actos subversivos que impugnan esos modos de vida de la ciudad del flujo.
L Alcanzando, de este modo, significados propios que lejos de ser meros variantes
del sistema hegemónico, se convierten en sutiles y contundentes procedimientos
que trastocan el orden de lo recibido. El conjunto total de textos que componen
L la poética de esta cultura porteña es un relato que transgrede pero que también
propone y ensaya desiderativamente una manera distinta de habitar toda ciudad
A latinoamericana. La literatura urbana-porteña, por eso, no es exclusiva en cuanto a
un discurso capaz de transformar, desde la fractura, los modos de vida impuestos.
Los diversos márgenes de las distintas ciudades regionales promueven también la
creación de formas estéticas que superan la mera denuncia. Ofrecen otros espacios
reales-discursivos por donde mirar y comprender Latinoamérica15.
• De ahí que resulte válido el reclamo. Pero no para dejarlo como
798 mera impugnación. El hallazgo tiene sentido si, y sólo si, avanzamos hacia la
configuración de un imaginario con el cual armar una poética, una poética de la
•
frontera subpanameña16.
El conjunto de estas obras son el canon de un corpus mucho mayor de
textos que recrean todo este espacio litoral en poco más de cien años de producción
(1907-2011) y que incluye todo el ejercicio escritural que viene del realismo más
2 15 Por ejemplo: Pizarro: Amazonía: el río tiene voces. Imaginario y modernización (2009); Lozada:
Cosmovisión, historia y política en los andes (2007); Lawo-Sukam: Hacia una poética afro-colombiana:
0 el caso del Pacífico (2010); Pampín:Para una poética antillana. Representación del Caribe como frontera
de imperios en Nicolás Guillén (2009); Gaggiotti: La pampa rioplatense: un espacio degradado en el
imaginario hispano-criollo(1998); Sabugo: Imaginarios del habitar en las letras del tango rioplatense
1 (2010); Mansilla: Mutaciones culturales de Chiloé: los mitos y las leyendas en la modernidad neoliberal
isleña (2009); Facchinetti: Patagonia: historia, discurso e imaginario social (1997); etc.
8 16 Para tal efecto planteamos la siguiente distribución cartográfica-textual, deespacios y discursos:
COLOMBIA-VALLE DEL CAUCA-BUENAVENTURA: Helcías Martán, Humano litoral (1954); Mary
Grueso Romero, El otro yo que si soy yo (1997) y Óscar Collazos, Primeros cuentos (1964-1968)
(1993); ECUADOR-NORTE AFRODESCENDIENTE-ESMERALDAS: Nelson Estupiñán Bass, Cuando
los guayacanes florecían (1954) y Antonio Preciado, De sol a sol (1992); ECUADOR-URBANO-
PORTEÑO-GUAYAQUIL: Miguel Donoso Pareja, Krelko (1962) y Jorge Velasco Mackenzie, El rincón
de los justos (1983); PERÚ-NORTE-TALARA: Carlos Calderón Fajardo, El huevo de la iguana (2007);
PERÚ-CENTRO-NORTE-CHIMBOTE: José María Arguedas, El zorro de arriba y el zorro de abajo (1971)
y Óscar Colchado Lucio, Hombres de mar (2011); PERÚ/CHILE-CENTRO-URBANO-PORTEÑO-EL
CALLAO Y VALPARAÍSO: José Diez-Canseco, El Gaviota (1930) y Manuel Rojas, Lanchas en la
bahía (1932); Joaquín Edwards Bello, Crónicas reunidas I (1921-1925) (2008) y Álvaro Bisama,
Estrellas muertas (2010); PERÚ-CENTRO-SUR-CHINCHA: Fernando Romero, Mar y playa(1940) y
entrañable —como el de Lillo—o la crónica de Edwards Bello, hasta las estrategias
novelescas últimas, como lo son las obras de Bisama y Colchado, pasando por la
creación más próspera e innovadora del siglo XX: el afrolatinoamericanismo de
Estupiñán y Martínez, o el relato de Rojas y Arguedas17.
Pero en este caso tomaremos sólo una parte del canon para dar cuenta sólo
de unespacio específico donde, creemos, se reproduce, como en todos y cada uno,
esta cultura de corte porteña que acabamos de delinear. Para el caso, escogimos
J los puertos de la zona aledaños a las ciudad de Concepción en Chile, en el llamado
Golfo de Arauco, donde existen caletas y puertos que fueron escenario de un modo
A de vivir porteño y que quedó registrado, específicamente, en la obra de Baldomero
Lillo y de Alfonso Alcalde.
L Bajo el subtítulo que podríamos llamar “La costa penquista: Infierno y
placer. De la mina al burdel”, podríamos señalar que la realidad del Golfo de Arauco
se construye en la relación vida y muerte, o a través de las paridades contrapuestas
L
de, por un lado, infierno, que representa el aciago mundo del carbón, y, por otro,
el placer, simbólicamente manifiesto en la vida desenvuelta en sus caletas y bares.
A Esto queda claramente expuesto en la literatura que ofrece, de un lado, Baldomero
Lillo, y, de otro, Alfonso Alcalde.
“Sobre el abismo” (1907)18 se titula un cuento de Lillo que recrea la
traumática experiencia de un joven aprendiz que sufre un accidente en una de
las jaulas que llevan y traen a los mineros de donde la tierra. Se trata de un
• muchacho que no alcanza a subir junto a los demás al elevador que lo sacará
799 de los trescientos metros bajo tierra y que, con el afán de poder emerger con sus
• compañeros se lanza sobre el elevador y queda colgando, “aparentemente”, sobre
el abismo del hueco que produce la jaula. “Aparentemente” porque, en verdad,
y debido a la oscuridad, siempre estuvo sólo a menos de un metro de una pieza
adicional que habían puesto justo debajo del montacargas, pero como no sabía ni
tampoco veía en esa oscuridad abisal, siempre creyó estar pendiendo de la muerte,
2 de esa infernal penumbra minera.
Como muchos de los cuentos de Lillo, ambientados en las minas del
carbón en Lota, la muerte y el sufrimiento siempre están presentes, debido a las
0
inhumanas condiciones de la explotación minera. El relato al fin aclara la situación,
del todo paradojal o tragicómica, y que revela, por cierto, la capacidad imaginativa
1 del narrador, ya que el joven queda “idiota”, declarado síquicamente incapaz de
razón “[…] el capataz me mostró con un gesto al idiota que, sentado sobre sus
8
Gregorio Martínez, Canto de sirena (1977); CHILE-CENTRO-SUR-GOLFO DE ARAUCO: Baldomero
Lillo, “Sobre el abismo” (1907) y Alfonso Alcalde,El auriga Tristán Cardenilla(1967) y Las Aventuras
del Salustio y el Trúbico (1973) (en ambos selección de cuentos); y CHILE-EXTREMO SUR-TIERRA
DEL FUEGO: Francisco Coloane, Tierra del Fuego (1956) y Juan Pablo Riveros, De la tierra sin
fuegos (1986).
17 En concreto el canon se reduce a cuatro países, nueve núcleos urbano-porteños, dieciocho
autores y una veintena de obras que involucra poesía, cuento, novela y crónica.
18 Lillo publicó dos cuentos con el mismo nombre, éste, el más antiguo, se concentra en el terror
del protagonista al “abordar subrepticiamente la jaula o ascensor de la mina” (LILLO, 2008, p. 399).
[Su énfasis].
talones, en esa actitud peculiar del minero, miraba con atención al parecer profunda
el ascensor inmóvil en ese instante sobre el brocal del pique” (LILLO, 2008, p. 399).
Fuera de esta oscura profundidad de trabajo y sufrimiento, más cerca
de la costa, pero dentro del mismo espacio urbano-porteño, se llevarán a cabo las
historias que nos deja Alfonso Alcalde. Nos interesa recoger acá su cuento “Cuando
son contratados para cambiarles el color a los congrios negros en el galpón de la
Cicatriz Con Eco en el puerto de San Vicente”, relato que aparece originalmente en
J el libro Las Aventuras del Salustio y el Trúbico (1973). Hay también una serie de
cuentos en un libro que apareció originalmente en 1967, El auriga Tristán Cardenilla.
A Aquí, “La mujer de goma”, “El circo, el circo” y “El peregrino del golfo”, centran su
temática en el mundo de los circos pobres chilenos, pero además transcurren en
L puertos como Tomé, Lirquén y otras pequeñas caletas de la región de Arauco19.
Lo que estos relatos representan es el intento de Alcalde de llevar a cabo
una suerte de Canto épico sobre la zona del Bío-Bío y sus puertos y caletas, para
L
la cual recoge del imaginario popular a estos dos amigos que a partir de sus vidas
desenvueltas y libertinas van dando testimonio del cotidiano que caracteriza a este
A puerto sureño. Sus personajes son un cuerpo vivo en el espacio-puerto con el que
se funden. Las aventuras del Trúbico y El Salustio, es la transgresión absoluta a
las lógicas oficiales, en la medida que desacatan con ironía, inventiva y deseos el
orden establecido que vigila y castiga. No trabajan, y si lo hacen son pololitos20,
trabajos esporádicos, de donde siempre sacan algo más que unos pocos pesos;
• tampoco tienen familia, sólo aventuras; no creen en nada más que en ellos mismos
800 y en sus amigos, a los que frecuentan en bares y prostíbulos. Pero Alcalde no cae
acá en banas folclorizaciones que al cabo obliterarían estas prácticas populares
•
y porteñas. Más bien al revés: escoge a estos dos personajes rabelesianos para
denunciar desde ahí la presencia —y resistencia— de una realidad sociocultural
que responde a un sustrato cosmogónico inserto en las tradiciones elementales de
estos puertos. Y lo hace con destreza, con desenfado cariñoso y con una capacidad
imaginativa poco usual en nuestros narradores.
2
Interesa poder contrastar la imagen que arrojan estos cuentos de la
travesía épica penquista: “Cuando el Salustio llega a un hotel, buscando pieza
0 para acostarse con una perica y entabla amistad con el marinero Subiabre y su
mujer, la Margarita, madre de la guagua, y terminan como padrinos” y “Cuando
1 El Salustio y El Trúbico demuestran sus conocimientos científico-electrónicos
y arreglan una olla a presión, dejando la escoba correspondiente”. Y no sólo la
8 imaginación, evidencia la obra de Alcalde, también y por sobre todo el apego a un
lenguaje oral que desborda la palabra escrita. En fin, estos como otros cuentos
de Alfonso Alcalde, no se repliegan a un universo únicamente penquista; intentan
describir una realidad mucho mayor que representa parte importante de nuestras
tradiciones ancladas a nuestra cultura urbana, porteña y popular. Hacen de esos
espacios recónditos, doble o triplemente marginados, epítomes de un único y
19 En este vuelco hacia Penco vale también recobrar la lectura de José Chesta, Textos y contextos.
Estudio crítico de Marta Contreras, Enrique Luengo y Luz Marina Vergara (Concepción, Universidad
de Concepción, 1994).
20 Se utiliza en Chile de modo coloquial para referirse a un trabajo informal, corto y eventual.
mismo universo: aquel que se construye y reconstruye incesantemente desde el
sur de Panamá hasta la Patagonia misma.
En fin, el propósito de esta última propuesta interpretativa es
complementar, por medio de ambos tipos de relatos, el de Lillo como los de Alcalde,
para conformar una imagen integral del Golfo de Arauco. En el caso de Alcalde, en
su intento de llevar a cabo una suerte de Canto épico del Golfo de Arauco, sus relatos
son transgresores. Recogen este mundo de ocultas caletas para denunciar desde
J ahí la presencia y resistencia de una realidad que se ha quedado en Baldomero
Lillo, pero no para formar un archivo inservible, sino para una relectura que pueda
A nutrir ambos discursos escriturales, y así ayudar a constituir una imagen más
veraz de la realidad a la cual apuntan. Con esto no sólo se rescata la figura de
L ambos escritores que responden, por cierto, a momentos escriturales diferentes,
y que, por tanto, dan cuenta del continuum que afecta a esta tradición literaria
específica; también vitaliza, actualiza y refuerza la presencia incuestionable de la
L cultura porteña que en esta investigación intentamos poner en evidencia.
El Golfo de Arauco simboliza las paridades infierno/paraíso, tragedia/
A placer, presentes en las obras tratadas. El cuento de Lillo es la muerte trágica de
un joven aprendiz dentro de una mina de carbón de Lota. Pero a estas condiciones
infrahumanas de la mina se sobrepone el goce de la vida en el burdel o en el circo
pobre que son los espacios vitales que reconstruye Alcalde en caletas y puertos
penquistas. Conforman las obras de Lillo y Alcalde una imagen integral de la costa.
• El Canto épico del Golfo de Arauco en Alcalde es transgresor en su lenguaje y por
801 las imágenes que recoge de las ocultas caletas, pero lo es también porque dialoga
con el realismo social de Lillo conformando un discurso integral penquista con el
•
cual restituir una imagen más veraz del universo porteño.
Hasta acá el recorte del corpus y de los escenarios propuestos. Sin duda
alguna son más. Pero nos parece que estos son representativos del conjunto.
Tenemos así una zona sugerida sobre una geopoética aludida en donde el/la mar
2 construye en ese intersticio entre la naturaleza abisal y el cotidiano urbano-porteño
un sujeto-identidad que conforma cultura y que por su conexión profunda con la
materialidad y con el sentido metafísico de su existencia, el acto creativo la exalta
0 en una poética donde adquiere espesor y dinamismo.
Referencias
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2
0
1
8
J
A
L FANFICS NO ENSINO DE LITERATURA NA ESCOLA BÁSICA
L Margarete Edul Prado de Souza (UFAC)
RESUMO: Nessa comunicação, foi feita uma discussão de como melhorar o ensino
A da literatura no Ensino Fundamental II, utilizando a criação de fanfics, a partir da
leitura de contos ou um romance, para fortalecer a escrita dos alunos, bem como
incentivar o gosto pela leitura literária, adotando como instrumento de discussão
teórica as ideias de Rildo Cosson, Magda Soares, entre outros. A pesquisa foi
feita considerando a literatura como instrumento de formação de leitores críticos
• respeitando a diversidade existente na sociedade. Com a aplicação da experiência
foi possível perceber que não há um ensino de literatura sistematizado para o
804
Ensino Fundamental, quando ocorre, é na forma de pretexto, para ensinar outros
• conhecimentos, por exemplo, a gramática. Sendo assim, como sugestão para
introduzir a leitura literária na sala de aula, realizamos algumas aulas com o conto
citado, em uma turma do 6º ano do Ensino Fundamental. A introdução do uso da
fanfic foi muito bem recebida pela turma, com algumas reclamações, mas todos
gostaram de utilizar a plataforma e escrever suas fanfics, de modos que o passo
2 seguinte dessa pesquisa será aprimorar o uso de fanfics em sala de aula, no intuito
de contribuir com a existência real do ensino da literatura na escola básica.
0 Palavras-chave: Fanfics; Ensino de literatura; Tecnologias digitais.
A importância da literatura
1 Segundo Cosson (2006, p. 119), o primeiro espaço da literatura é na
leitura do texto literário. Tudo se inicia com o imprescindível e do motivado contato
8 com o texto literário. Ler o texto literário em casa, na biblioteca ou em sala de aula,
silenciosamente ou em voz alta, com ou sem a ajuda do professor, permite o primeiro
encontro do leitor com o texto. Um encontro que pode resultar em recusa da obra
lida – que deve ser respeitada – ou em interrogação ou admiração – que devem ser
exploradas. É essa exploração que constitui a atividade da aula de literatura, o
espaço do texto literário em sala de aula (2006, p. 119).
Naturalmente, que há obras escritas especificamente com fins didáticos,
que não ultrapassam o uso escolar. São obras cujo ponto de sustentação não é a
vida de suas personagens, a elaboração da linguagem e o mundo que encena, mas
sim, o saber contextual que ostenta. É essa diferença que podemos estabelecer, por
exemplo, entre as Reinações de Narizinho e Emília no país da gramática. Ambas as
obras foram escritas pelo mesmo autor e trazem as mesmas personagens, porém,
os títulos não deixam dúvidas, a segunda é uma obra didática com roupagem
literária, logo paradidática. Nesse caso, para muito além da óbvia intenção de
Monteiro Lobato em promover o ensino da gramática, estão as longas explicações
sobre a nomenclatura gramatical do português que elevaram o contexto à condição
de texto ou, para dizer de uma maneira mais conhecida, o texto virou pretexto.
J Nesse sentido, o texto literário requer, antes de tudo, um modo diferente
de apreensão e intelecção. Em outros termos, é preciso saber ler o texto literário de
A modo diferenciado, uma vez que ele apresenta tanto fins práticos quanto estéticos.
É por isso que ler o texto literário requer a manipulação não apenas de uma
L perspectiva crítica, mas também interpretativa e analítica. Todos esses saberes
fazem parte de um universo de conhecimento e aprendizagem que se relacionam
diretamente com o ensino da literatura.
L
Manter essa relação mencionada anteriormente não prejudica a leitura
literária, ao contrário, pode ser uma contribuição relevante para firmar ou ampliar
A o entendimento da história que se está lendo. Do mesmo modo, qualquer disciplina
pode aproveitar o contexto da obra literária para destacar elementos importantes
para sua área de conhecimento, não sendo exclusividade do ensino de língua esse
tipo de exploração do contexto literário. É esse compartilhamento que está na base
da longa tradição que relaciona literatura e educação, conforme tratamos acima. O
• uso do saber da obra literária só não pertence ao espaço da literatura em sala de
805 aula quando se ignora o lugar onde está localizado, quando se acredita que a leitura
desse contexto independe do texto, quando esse saber deixa de ser contextual.
•
No espaço da sala de aula, o ensino de literatura deve compreender a
exploração do contexto, assim como faz da elaboração do texto. Afinal, como adverte
Lajolo (2009) ao revisitar o ensaio antológico, o texto não deve ser pretexto, mas
sua leitura é sempre contextual. O professor deve aprender a explorar o texto e o
2 contexto adequadamente com seus alunos.
A fanfic
2
0
1
8
J
A
L HISTÓRIA, NATUREZA E ETNOGRAFIA NOS RELATOS DE
TASTEVIN E PARRISIER
L
Maria Ariádina Cidade Almeida (UFAC)
A Larissa Oliveira dos Santos (UFAC)
RESUMO: Os missionários espiritanos Tastevin e Parrisier que estiveram no Alto
Juruá entre 1897 e as primeiras décadas do século XX deixaram importantes
relatos sobre natureza, cultura e populações humanas. Escrito em forma de diário,
estes textos apresentam o vale do Juruá sob a ótica de dois missionários que
• refletem a visão eurocêntrica da época sobre natureza e cultura, mas também
evidenciam aspectos de um momento de intensa atividade e exploração da goma
813
elástica. A abertura dos seringais, a “pacificação” dos indígenas por meio das
• correrias, e as redes de mandonismo criadas em torno do barracão são assuntos
testemunhados pelos dois missionários. Com base nestes relatos, que se constituem
em ricos registros etnográficos sobre a região, este trabalho de cunho interpretativo
visa apresentar como as concepções de homem, cultura e natureza estão inter-
relacionados, ao mesmo tempo em que busca explorar as informações sobre as
2 populações pano e as conexões existentes entre indígenas e não indígenas.
Palavras chave: História. Etnografia. Alto Juruá
0
A etnografia dos povos indígenas da região do Acre no contexto da abertura
dos seringais ainda é desconhecida pelo público mais amplo, pois, como se não
1
bastasse serem raras e dispersas ainda foram registradas em língua estrangeira.
Tentando corrigir esta realidade o Museu do Índio em parceria com a Funai
8 publicou no ano de 2009 dois volumes em língua portuguesa de alguns textos dos
missionários Tastevin e Parrisier que estiveram no país da borracha entre os anos
de 1898-1928. Estes textos que nos trazem informações sobre índios e seringueiros
da região do Alto Juruá são parte de manuscritos, cartas e artigos publicados em
língua francesa, e até pouco tempo conhecidos apenas por um número reduzido de
pesquisadores.
Os padres missionários Jean Baptiste Parrissier e Constant Tastevin
pertenciam a congregação do Espírito Santo, que se estabeleceu no Brasil em
1885. Os primeiros padres espiritanos foram trabalhar em Belém do Pará a convite
do então bispo dom Antônio Macedo Costa. Em 1892, por ocasião da criação da
diocese de Manaus os espiritanos foram convidados a ajudar na missão daquela
diocese, onde fundaram uma casa em Manaus nos idos de 1897. E logo em seguida
abriram também uma casa na prelazia de Tefé, de onde puderam ampliar sua ação
missionária pelos grandes rios (CUNHA, 2009).
Cunha (2009) destaca que a princípio o Juruá estava fora da jurisdição
religiosa dos padres, pois, somente em 1912 receberam oficialmente os rios
J Tarauacá e Juruá como área de missão, o que, todavia não impediu que Parrissier
estivesse no Alto Juruá em 1898, onde realizou as desobriga no Rio Tejo. Desta
A viagem restou um manuscrito datado de 1898 que destaca aspectos das gentes,
costumes e a dinâmicas sócio-políticas da vida no seringal.
L Estes relatos, que inclusive se alinham com muitos outros textos
conhecidos1, produziram uma série de discursos etnocêntricos sobre a região,
especialmente se pensarmos os elementos homem natureza. Todavia, seu valor
L
histórico enquanto testemunha e representação de uma determinada realidade nos
permite pensar sobre os modos de produção de alteridade presente nestes relatos.
A
Um missionário no Juruá
É bom frisar que Parrissier era um grande observador do cotidiano a
começar pela descrição minuciosa que ele nos deixa deste a saída do porto de Manaus,
como suas conversas com viajantes, os trejeitos dos que considerava interessante,
• e o dia a dia da navegação. O olhar curioso de quem sente que sua missão o
havia colocado diante de uma região distante, da qual era preciso “desbravar”,
814
mistura-se com a atividade contemplativa dos rios, florestas e pássaros. É inegável
• a admiração de Parrissier pela floresta amazônica, ainda que a perceba como um
paraíso intocável, de intensa fartura de peixes e de seres exóticos.
Se o meandros caprichosos do Juruá fazem dele um rio a parte, as suas
margens verdejantes fazem com que seja um dos mais encantadores que é
possível ver. Poderíamos jurar que passeamos num lago sem fim, ladeado
2 de magníficos prados emoldurados pela floresta. É verdade que não é nada
banal ver estas longas ervas, que são chamadas de capim na língua indíge-
na, ondularem com a brisa, como os nossos campos de trigo na França. Este
0 espetáculo sempre me emocionou e tenho certeza que emocionou a muitos.
(PARRISSIER, 1898, p. 09)
2 Na carta de Pero Vaz de Caminha a noção de bom selvagem já estava imposta. “Parece-me gente
de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que
não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências” (2002, p.45).
civilizá-los. Uma mulher, ao me ver, teve uma crise de medo; ela me tomava
por um soldado, sobre os quais sem dúvida havia escutado coisas terríveis
(TASTEVIN, 1914, p 62).
4 A partir de 1918 passa a ser chamado apenas de Serviço de Proteção aos Índios- SPI
Que ninguém imagine que é mais fácil instruir ignorantes sobre a nossa
santa doutrina do que desenvolvê-la frente a pessoas informadas. Eu nunca
fico tão embaraçado ao explicar os mistérios das nossas origens e dos nos-
sos dogmas como quando tenho índios na minha frente. Ainda mais porque
o espírito deles não é exatamente uma tábula rasa. Eles também têm a sua
teoria, a sua explicação do mundo e quão diferente da nossa ela é: Eles acre-
ditam no poligenismo, no espiritismo, na metempsicose. Para eles não há
nada de comum entre o branco e o índio, pelo menos não mais do que entre
J a anta e o queixada” ( TASTEVIN, 1924, p. 115)
Além de possuírem suas próprias crenças e concepções de mundo, os
A indígenas não se mostravam exatamente abertos a mudar de ideia. E quando
batizados e cristianizados eles tendiam a interpretar a religião a seu modo, que
L significava para Tastevin “cristianizar crenças pagãs” (p. 15). A isto Cunha (2002)
chamaria de pacificar o branco que seria “situá-los, aos brancos e a seus objetos,
L numa visão de mundo, esvaziá-los de sua agressividade, de sua malignidade, de
sua letalidade, domesticá-los em suma” (p.07).
A resistência indígena e a catequização frustrada não ocorreram apenas
A com Tastevin durante o século XX. Em um dos capítulos da história colonial
brasileira Ronaldo Vainfas (1995) destaca a importância da santidade do Jaguaripe
que se difundiu na Bahia durante a década de 1580. Iniciou com a pregação de um
índio Tupinambá que fora evangelizado por um jesuíta, e que passou a peregrinar
pelos engenhos exortando os fiéis a fugir dos brancos e a atacá-los, acenando
•
que o paraíso tupi estava próximo e com ele viria uma nova era de prosperidade
819 e abundância onde os índios não precisariam mais trabalhar porque as flechas
• caçariam sozinhas no os frutos brotariam da terra sem que ninguém os plantasse.
Os portugueses seriam mortos ou tornar-se-iam escravos dos mesmos índios que
então escravizavam. Os índios fizeram uma reinterpretação do paraíso cristão a
partir da cosmologia tupi da “terra sem males”, estimulando rebeliões, fugas, e
gerando pânico entre os colonos.
2 O mais interessante deste episódio de resistência indígena foi o caso dos
portugueses que aderiram à santidade como o fidalgo Fernão Taíde, que convencera o
0 governador a atrair os índios para o litoral com a promessa de liberdade de culto, para
assim facilitar o desmantelamento da santidade. No entanto surpreendentemente,
Fernão não destruiu a “seita” como prometera ao governador. Ajudou os índios para
1 que erigissem sua igreja em sua propriedade os quais continuaram reverenciando
seu ídolo de pedra, com seus bailes e fumos, continuaram, enfim, a estimular fugas
8 e rebeliões em toda a capitania. As terras de Fernão se transformaram no palco
da grande festa indígena e no principal refúgio de índios cativados ou aldeados na
Bahia (VAINFAS, 1995).
Durante todo o relato de Tastevin os indígenas mostraram a criatividade
de seus mitos e modos de vida. Os registros de suas impressões juntamente com
os acontecimentos cotidianos são o ponto mais importante de sua etnografia, pois,
permitem que percebamos as ações destes sujeitos a partir de uma perspectiva
histórica, rompendo assim os estereótipos de que os índios estiveram passivos
diante do avanço colonizador.
Considerações finais
As imagens e representações que aparecem nas narrativas dos missionários
Parrissier e Tastevin refletem a perspectiva evangelizadora da congregação do
Espirito Santo, e também da igreja católica daquele contexto. O que se pretendia era
uma ação missionária que também fosse uma ação civilizatória. É bom lembrar que
de forma geral, a presença missionária na Amazônia desde o início da colonização
foi muito expressiva para a consolidação de um projeto colonial.
J No entanto, na região do Juruá, o projeto colonial não chegou acompanhado
das missões religiosas, pois, a especulação da economia do látex foi mais longe,
A e penetrou áreas então desconhecidas desde meados do século XIX, por isso a
presença destes missionários através das desobrigas se constituía numa quase
L eventualidade. Além de poucos e raros, estes missionários precisavam se equilibrar
entre os poderes constituídos nos seringais, uma vez que dependiam também da
L receptividade dos patrões para que lograssem êxito em sua missão.
As histórias dos missionários mostram quais as muitas implicações que
os surtos econômicos tiveram sobre as populações indígenas e seringueiras, e como
A estes sujeitos precisaram se adaptar a novas situações. O trabalho espoliativo
que aparece recorrentemente nestas narrativas destaca a geometria de poder dos
seringais, onde índios e seringueiros ocupavam lugar central como mão de obra,
apesar de não serem reconhecidos ou valorizados.
J
A
L
L
A
•
821
•
2
0
1
8
J
A
L UM LUGAR PARA MARIA BONITA NA CIDADE
DAS DAMAS, DE CHRISTINE DE PIZAN
L
Maria Carreiro Chaves Pereira (UNB)
A RESUMO: O presente trabalho é, ainda, um esboço preliminar de um projeto
que visa destacar a figura de Maria Bonita, colocando-a no lugar que ela merece
estar: na Cidade das Damas, de Christine de Pizan. Na obra Cidade das Damas
encontramos histórias de mulheres comuns ou famosas, mártires ou heroínas, que
enfrentaram todo tipo de situação, inclusive situações de violência, como narradas
• pela autora. Nosso propósito é defender que uma dama do sertão brasileiro, Maria
Bonita, a famosa companheira de Lampião, merece estar nesta cidade de memória
822
das mulheres. Nossa intenção é elogiar a virtude da figura feminina de Maria
• Bonita, mulher valente, amorosa e leal cuja fama até hoje ainda é cantada em
prosa e verso, principalmente pelos cordelistas, que exprimem a beleza e a coragem
de Maria. Pois a Cidade das Damas reúne mulheres de diferentes virtudes, e de
várias origens, buscando fazer justiça às mulheres do passado, do presente e do
futuro, como pretende a sua autora.
2 Palavras Chave: Maria. Bonita. Pizan.
0 Na obra A Cidade das Damas encontramos histórias de mulheres
comuns ou famosas, mártires ou heroínas, mais conhecidas naquela época e
que enfrentaram todo tipo de situação, inclusive, situações de violência, como as
1
narradas pela autora, especialmente, no Terceiro Livro.
À medida que o enredo vai se desenvolvendo, o leitor percebe que a cidade
8 é uma alegoria. A escrita feita por meio de alegorias era algo bastante comum na
Idade Média.
“Entre as formas de manifestação contra o momento presente, aten-
tamos para a forma utópica como sendo aquela de maior conformida-
de com a obra La cité des Dames de Christine de Pizan. A linguagem
alegórica, que tem um caráter fundamentalmente didático busca, ao
mesmo tempo, dar uma certa ilusão do real, travestindo-o, assim
como pôr à vista do mundo real, através de valorização simbólica dos
elementos alegóricos. (A Cidade das Damas, Apresentação).
Como se pode observar pelo texto acima, podemos encaixar Maria Bonita
na categoria das mulheres do futuro, às quais Christine se refere. A intenção ao
J fazer isso é dar destaque à figura feminina de Maria Bonita, mulher valente que
até hoje é cantada em prosa e verso, especialmente, pelos escritores de cordel que
exprimem sua coragem e beleza em seus versos, como os que citamos a seguir:
A
Quanto mais ela crescia
Mais ficava diferente:
L
Mais astuta, mais bonita,
Mais corajosa, mais quente,
L Mais atraente, mais viva,
Mais forte, mais positiva,
A Mais sensível, mais valente. (FERREIRA e ARAÚJO, 2011, p.205).
Uma pergunta que podemos fazer é de onde teria vindo o adjetivo Bonita
para compor o nome de nossa personagem?
No sertão, é comum ser mais conhecido pelo apelido. Os homens que en-
travam para o cangaço eram apelidados pelos outros do bando... Virgolino
•
se tornou Lampião... Já com as mulheres era diferente. Elas não incorpora-
824 vam nomes fantasiosos e, geralmente, usavam seus nomes de batismo ou
apelidos que traziam desde a infância... Dentro do cangaço, Maria de Déa
•
passa a ser chamada de Dona Maria ou Maria do Capitão. É difícil saber
com precisão quando o apelido Bonita foi conjugado de modo decisivo ao
nome de Maria... O que se sabe é que tal apelido não é fruto de alguém que
conviveu com ela durante o período do cangaço... podem se citar duas das
ideias que são debatidas. A primeira é que o tal apelido foi dado a Maria por
2 um policial volante que a achava bonita. A segunda, desenvolvida pelo pes-
quisador Jeová Franklin... é que a palavra bonita é fruto da tradução da pa-
lavra francesa Joli, que teria sido colocada junto ao nome Maria, em 1962,
0 quando a imagem dela foi xilogravada pela primeira vez, ao lado de Lampião,
para ilustrar um folhetim de cordel sobre a história do casal de cangaceiros.
1 (FERREIRA e ARAÚJO, 2011, 37).
Maria é um nome forte e ao mesmo tempo um nome pesado. Um nome
8 associado à santidade, pois sempre aparece ligado à mãe de Jesus, conforme
a tradição cristã. O cantor e compositor Milton Nascimento, juntamente com o
também compositor Fernando Brant escreveu: “Quem traz no corpo a marca Maria,
Maria, mistura a dor e a alegria.” Ou seja, Maria é uma marca. E Maria Bonita é
um diferencial quando se pensa em tantas Marias que habitaram e ainda habitam
nosso país.
Por outro lado, tão ou mais importante que o codinome Bonita, foi a
coragem que Maria demonstrou ao se unir a Lampião. Não há como duvidar que
era uma vida das mais duras que uma mulher poderia levar. Sobreviver no sertão
nordestino por si, já era algo bastante penoso. Pensemos, então, em uma mulher
vivendo ali naquele meio e sendo a companheira do chefe do bando.
Sempre houve mulheres à frente de seu tempo, que não se conformaram
com o que era esperado delas. Maria Bonita foi uma delas. Não se sujeitou aos
padrões ditados pela sociedade na qual vivia, onde a figura da mulher era a de
alguém inferior. Sempre submissa ao homem. Ao se juntar a Lampião e seu bando
ela passou a mostrar uma outra imagem da mulher sertaneja. De certa forma
J Maria quebrou aquela imagem da nordestina coitadinha, sempre de cabeça baixa e
mostrou uma nova face dessa mulher, uma face valente e ousada.
A Ao deixar a casa de seus pais, decidida a viver ao lado do capitão Lampião,
Maria de Déa faz uma marca na história. Na constante luta de poder, a fi-
gura digna de pena da mulher no sertão do Nordeste declina e abre espaço
L para a construção da imagem da sertaneja valente. Tida como moleca e de
fácil convívio, a valentia de Maria do Cangaço estava na sua capacidade de
L se desgarrar das amarras sociais – como da condição inferiorizada em re-
lação ao homem –, quando, já no final dos anos 1920, inusitadamente, ela
toma a decisão de se separar do marido e retorna à casa dos pais; ou mes-
A mo por novamente compreender que rumo deveria dar a sua vida quando,
por decisão própria, se uniu a Lampião. (FERREIRA e ARAÚJO, 2011,
p.133).
1 Sobre esse texto, é possível que Christine estivesse se referindo ao texto bíblico que se encontra
no livro de Gênesis, capítulo 10, versículos 08 a 11, ao citar o rei Nino: “Cuxe gerou também
Ninrode, o primeiro homem poderoso na terra. Ele foi o mais valente dos caçadores, e por isso se
diz: “Valente como Ninrode”. No inicio o seu reino abrangia Babel, Ereque, Acade e Calné, na terra
de Sinear. Dessa terra ele partiu para a Assíria, onde fundou Nínive, Reobote-Ir, Calá e Resém,
que fica entre Nínive e Calá, a grande cidade”. (https://www.bibliaonline.com.br/nvi/gn/10), site
consultado em 09/06/2017, 16:15h.
2 Aqui remetemos a um trecho da obra Leviatã, escrita pelo filósofo inglês Thomas Hobbes, sobre
ou que poderia ser repreendida por isso, não teria se comportado assim,
pois ela tinha um coração generoso, e prezava muito pela honra.
Está posta, agora, a primeira pedra das fundações de nossa Cidade...” Aspas
do original. (A Cidade das Damas, Livro Primeiro, capítulo XV).
como era a Inglaterra nos séculos XVI e XVII, “Desejos e paixões não são intrinsecamente pecados,
como também não o são as ações resultantes dessas paixões, até o momento em que seja editada
uma lei que as proíba; enquanto não existir uma lei, a proibição será inócua. Nenhuma lei poderá ser
editada enquanto os homens não entrarem num acordo e designarem uma pessoa para promulgá-
la.” ( Hobbes, 2014, 109).
Maria Bonita, tais como a coragem, o desapego ao conforto e o gosto por uma vida
de lutas, inclusive com a utilização da força física e das armas.
Porém, nossa atitude aqui, assim, como não foi a de Christine, não é
julgar e/ou condenar essas mulheres. Nossa posição não é a de dizer se está certo
ou errado o que elas fizeram. Isso a sociedade e os chamados homens da lei já
o fizeram no caso de Maria Bonita. No caso de Semíramis, certamente, também
devem ter feito. Nossa atitude aqui é a de louvar a mulher Maria Bonita e levá-la,
J juntamente com as outras mulheres maravilhosas as quais nossa autora alojou na
Cidade das Damas.
A Conforme citamos anteriormente, Maria Bonita, ainda, hoje é uma
inspiração e desperta a veia artística de pessoas das mais variadas áreas, mas
L principalmente, a dos muitos cordelistas que tão bem contam a vida de personagens
que fazem parte da história de nosso país, inclusive, os do nordeste brasileiro. Por
isso mesmo, vamos homenagear Maria narrando, resumidamente, sua história,
L
assim, em cordel:
...
A No ano de 29
Conheceu Maria Bonita
Que usava gigolé
E um vestido de chita.
Lampião ficou gamado
•
Pela mãe da Expedita.
827
Ela estava separada
•
De Zé Mané, sapateiro
Há apenas 15 dias
E juntou-se ao cangaceiro
Foi a primeira mulher
2 A seguir o bandoleiro.
Em 27 de julho
De 38 se deu
Bezerra surpreendeu
No estado de Sergipe
A Parte do bando morreu
L Maria Bonita se foi,
Lampião também tombou
L O Tenente João Bezerra
•
829
•
2
0
1
8
J
A
L ENCUENTROS CON EL OTRO: ELEMENTOS DE RUPTURA Y LA
DESCONFIANZA DE LA PALABRA EN LA VANGUARDIA ANDINA
L PERUANA, EL CASO DE ANDE (1926) DE ALEJANDRO PERALTA
A María de los Angeles Morales Isla (UNMSM)
RESUMEN: El presente trabajo se centrará en el poema “Nocturno del vacío” de Ande
(1926), de Alejandro Peralta. Se buscaráubicar la angustia de la subjetividad del
hablante, en la medida que el poema se construye como un punto de fuga (es decir,
ubica un indecidible). Por tanto, se trata de la sustracción de toda «presentación»
• otorgada por la cultura significaque el hablante opera contra el sentido común;
830 se escenifica una crisis de sentido. En este procedimiento, Peralta indaga sobre la
escritura, señala una experiencia con el Otro, en este caso la situación se torna
• dolorosa, toda vez que este ya no otorga las significaciones y respuestas posibles
al sujeto lírico. Se apela así a la desconfianza de la palabra, se expone al vacío
experimentando una ruptura con el lenguaje. De manera que se entrega (en
términos de fidelidad) al acontecimiento, empleando un lenguaje disonante (en la
búsqueda unificadora de la modernidad y el mundo andino) que plasma un mundo
2 fragmentado y la descomposición del mundo representado.
Palabras claves: Función de ruptura. Errancia del vacío. Indigenismo. Lenguaje.
0 Vanguardia
Introducción
1 La vanguardia se instala en el Perú en los albores del siglo xx. Se trata de una
escritura literaria que tiene como objetivo principal la renovación y modernización
8 de la palabra. Bajo esta premisa, se opone y contradice a toda literatura anterior,
particularmente al modernismo peruano. Así, el escritor vanguardista elabora
procedimientos formales que se distancien de los rasgos estilísticos de la tradición.
Si bien es cierto se visibiliza, todavía, el uso de elementos de modernistas (o de
corrientes literarias anteriores), “estos son radicalizados y exagerados, llevándolos
hacia contextos inesperado, haciendo que sean irreconocibles” (CALINESCU, 2003,
p. 105).
Esta elaboración escritural significó un cambio significativo en las letras
peruanas, pues en su afán renovador se aproximaron a espacios desconocidos, a
fin de explorar dimensiones otras que estimulen la liberación creativa. Ello implicó
la inquietud por nuevos temas literarios, dado que la vanguardia se denominaba
como unos adelantados de su época, cuya mirada radica en el futuro (MONGUIÓ,
1954). Asimismo, problematizaron sobre el contexto de su tiempo, ya que en este
período el espacio peruano sufre determinados cambios (como la inserción de la
modernidad tecnológica, así como también la transformación de la vida política).
De manera que se reflexionó acerca de la práctica escritural y la labor del escritor
J en la sociedad.
Con la aparición de la modernidad tecnológica, la vanguardia peruana
A incluyó en su lenguaje poético estas nuevas apariciones. Esta situación establece,
así, un vínculo con las máquinas. Desde la perspectiva de Mirko Lauer (2003)
L se describen seis elementos de la poesía vanguardista y las máquinas, dirigidos
en tres etapas: la zoomorfización de la máquina; la aceptación del estatuto
diferenciado para los objetos mecánicos (ya sea, extrañamiento o familiaridad); la
L polémica acerca del significado de las máquinas; y tres aspectos: la mención de
las máquinas y artefactos de todo tipo; el interés por los principios técnicos que
A subyacen a la máquina; la incorporación de principios de intención mecánica en el
poema (tipografía visual, entre otros).
Si bien es cierto, la vanguardia peruana se erigió desde los procedimientos
descritos anteriormente, habría que señalar la coexistencia de dos modalidades:
una vanguardia cosmopolita y otra regionalista o indigenista. Sobre la base de
• esta última, la indigenista, López Lenci (2005) afirma lo siguiente: “[Es] el inicio del
831 proceso cultural descentralizador del Perú contemporáneo […] reevalúa el espacio
constitutivo del mismo” (p.143). La búsqueda de una descentralizacióntuvo como
•
finalidad, para la vanguardia andina, movilizar y desplazar el colonialismo cultural
(limeño y europeo) que habían determinado las instituciones, los lenguajes, etc. A
ello se añade, la asociación de la primera modalidad: el vanguardismo cosmopolita.
Estos es, la incorporación del registro nacional hacia una estética vanguardista
internacional. Se establecen correlaciones de la modernidad tecnológica con el
2 espacio rural a fin de enfatizar la modernidad de un espacio y sujeto emergente:
el mundo andino y el indio. Ello se establece con la necesidad de una apropiación
0 transcultural que asocie nación y modernidad.
En este contexto, se inscribe la poesía de Alejandro Peralta con la
1 publicación de Ande (1926) y el Boletín Titikaka (1926), este último se estableció
como el órgano de difusión de la vanguardia andina, así como también en un ente
8 legitimador. En su poesía se establecedos espacios antagónicos: la modernidad y
el espacio rural o el indio, situación que enfatiza la modernidad de esta última;
además de una constante preocupación por el sujeto emergente: el indio. Así, resulta
pertinente observar esta coalición entre estos dos mundos, sus contingencias y
divergencias. Se presenta en el poemario la zoomorfización de la máquina y la
incorporación de principios de intención mecánica, además de la inserción de un
espacio rural andino.
Pues bien, se intenta, en el presente artículo, visibilizar los mecanismos
que vinculen estos espacios disímiles. Para ello, analizaremos el poema “Nocturno
del vacío”, donde se presenta la angustia de la subjetividad, toda vez que indaga
sobre su radicalidad y su ruptura con el lenguaje. De lo que se trata es, entonces,
de ubicar la angustia de la propia subjetividad, en donde se aloja el indecidible. Se
convoca una exposición hacia el vacío y la desconfianza de la palabra.
La metodología empleada responde a la necesidad de ubicar en la textura
poemática procedimientos del plano del contenido como elementos formales. La
perspectiva analítica parte de la ontológica de Alain Badiou, así como también
algunos procedimientos empleados por Marcos Mondoñedo, desde una perspectiva
J lacaniana. Se ubicará el indecidible, posteriormente se observará la función de la
interrupción, siguiendo el proyecto de Rimbaud propuesto por Badiou, así como
A también la angustia cosmista y el fantasma. Estos procedimientos nos permiten
explicar la singularidad de nuestro poeta, quien postula un proyecto parecido a
L Parménides.
Análisis Ontológico: encuentros con el Otro
L En el texto del “Poema como recurso filosófico” de Condiciones (1992),
Alain Badiou reflexiona acerca de la relación entre la filosofía y el poema. Esta
indagación permite observarde otro modo el poema, y, por consiguiente, postula
A
que la poesía es el pensamiento de la presencia del presente (esto es, la presencia
sensible). Así, el poema presenta los recursos para pensar “fuera-de-lugar” o más
allá de todo lugar, “lo que del presente no se deja reducir a su realidad pero convoca
la eternidad de su presencia” (p. 89). Es decir, el poema “piensa lo impensable” (lo
indecidible, “lo fuera-de-lugar”), pero a través de lo no meramente capturable en
•
conceptos y, de esta manera, abre espacio para la filosofía, en tanto que indague
832 sobre ese “agujero en el sentido” (p.91). Por tanto, el poema sería la grieta por
• donde se inserta la filosofía para pensar lo indecidible. De manera que el poema
localiza aquello que está fuera de sí y escapa a la representación.
El método de la “interrupción”1 en Peralta: desconfianza de la palabra,
al borde del vacío
Ahora bien, explicada esta premisa base para el análisis, el poema
2 “Nocturno del Vacío” de Alejandro Peralta señala lo indecidible. Situación que
incluye la suspensión de lo sensible, entendido como la posibilidad de cercar el
0 acontecimiento de un modo totalizador o conceptual, asegurado por la presentación
y la representación. Se trata de una sustracción del sentido. El gran Otro2, el saber
1 enciclopédico, se enuncia como una falla; esto es, el impasse, la enciclopedia ya
no puede abastecer, se enuncia, por tanto, “pensar una actividad que se realiza a
expensas del Otro” (MONDOÑEDO, 2009, p.38). Para tal motivo, Peralta recurre a
8
otras metáforas, vinculada los procedimientos de la modernidad andina.
El poema escenifica la experiencia angustiante del hablante lírico por
enunciar, a través de la palabra, aquello que está fuera-de-sí. Así, el poema se
establece como un punto de fuga, pues cuando la referencia se aproxima, esta
renuncia a toda posibilidad, enfatiza aquello que se escabulle. De manera que, la
1 El método de la interrupción es empleado por Rimbaud, Badiou (1992) afirma una separación de
mundos, se elimina la síntesis (situación que será explicada para el caso de Peralta).
2 El Gran otro se presenta como la fuente de sentido, esto es, la enciclopedia. Se trata del bagaje
cultural que permite establecer la comunicación entre los sujetos (MONDOÑEDO, 2009).
palabra se torna muda. Es decir, el poema es la propia interrupción del pensamiento
impensable. Esta situación no solo es tematizada, sino que se presenta también
en el nivel enunciativo, así el significante escapa al significado, es decir aberrante.3
La interrupción en el poema es explícita, las metáforas resaltan la
insuficiencia de la palabra, pues no accede a lo impensable, entonces marca una
ruptura: “nada”, “vacío humo”, “cuencas de la luna”, éter”, entre otras metáforas.
Todas las palabras empleadas destacan por su fugacidad, así como también por
J su invisibilidad. Esta angustia se muestra en términos de un Otro inmanente.4 El
hablante lírico se enfrenta al vacío.
A nocturno del vacío
Solo
L para sentirme de éter
Nada
10 Entender lo múltiple en términos de Badiou (2003) implica sostener que solo se puede acceder
a él a través de cuenta operatoria de lo uno, es decir la presentación. A partir de ello, se accede
retroactivamente al múltiple.
se niega hacer signo. De manera que, aquello que vincula las metáforas no es más
que el vacío. Por tanto, ese Otro que se trata acceder con las palabras, enfatiza la
disyunción total de uno de otro, así no puede ser presentado en la situación más
que como un impensable.
Se observa, entonces, que la interrupción del poema es la impaciencia
por suspender y diluir lo indecidible. Ante esto, se toma una decisión dado que
es impaciente de sí misma, así niega que nunca fue indecidible: Yo soy pomo de
J éter destapado, el sujeto asume e irrumpe toda marca de indecibilidad. Entonces,
se presenta que si la verdad, agujereada de sentido no es dada, es mejor silenciar
A dicho hecho, cancelarlo, pues nada puede referirlo. Solo se enuncia a partir del
hecho de su negación.
L La angustia: ¿Peralta o la poética de Parménides?
El vacío como hemos observado es tematizado (e insertado en elementos
L formales), pero este elemento solo es especulativo, ya que no es, no tiene
representación. Se señala la ausencia. Esto angustia al hablante lírico. Sobre
este último aspecto, desde los postulados de Lacan, Mondoñedo (2009) afirmatres
A
modalidades sobre la reacción de la angustia.11Esto es, la primera relativa al
conocimiento científico, que lleva a la deriva interpretante; la segunda concerniente
a la magia y al cosmos, que promueve un intento de transcender el conocimiento;
y otra inherente a la destitución del sujeto como lugar de un deseo singular. Estos
tres vinculado al goce, deseo y demanda del gran Otro, y los objetos (del orden
•
epistemológico, cosmológico y a) del lado del sujeto.
839
Ahora bien, para el caso de Peralta, en la demanda y el gran Otro, el
• enunciatario confronta y evoca su impotencia y nadie viene a su auxilio, es decir,
no hay respuesta. Es una interpelación que exige el sujeto, cuya satisfacción se
presenta ante el objeto cosmológico. Este aspecto es elaborado con maestría por
Peralta, enuncia e interpela aquello que no puede enunciar, finalmente su poema
se silencia, no hay respuesta ni auxilio, solo la enunciación: “SOY UN POMO DE
2 ÉTER DESTAPADO” (2006, p. 61). Ante ésta situación, como habíamos mencionado,
el fantasma se enuncia como elemento que garantiza el sentido. Se trata de la
0 recuperación de “la naturaleza y el hombre, destruyendo, así, el pasaje por la
mediación simbólica”. Así, esta angustia cosmológica atormenta al hablante lírico,
toda vez que elabora metáforas asociadas bajo esta idea; de allí que constantemente
1 trata de hallar asociaciones en elementos disímiles, enuncia una verborrea excesiva
que no significa y se corta. El proyecto fracasa.
8 Expuesto lo anterior, la evaluación del proyecto cosmista se presenta
en Peralta a través del vínculo poético y filosófico de Parménides. Badiou (2012),
en Condiciones, afirma que Parménides es una pre-filosofía, en tanto que se
interrumpe la colusión de verdad que organiza el poema entre la voz poética y
la imagen enunciada. Ésta última, que escapa a la representación, es legitimada
y resguardada por la palabra, cuyo fin se enuncia como verdad: aquello que es.
11 Aquello que no debe tener presencia en el campo imaginario adquiere, sin embargo, presencia
no significativa en el discurso. Si esto es posible, se presenta la angustia. Esto es, el apoyo que
encontramos en la falta se ausenta (MONDOÑEDO, 2009).
Se elimina toda barrera simbólica. Entonces, de lo que se trata es de observar
los hechos deficientes de esta idea, del mismo modo que Parménides, a través
de la interrupción. En el apartado anterior este hecho ha sido analizado, pues se
observó la función de corte e irrupción sobre la continuidad metafórica, donde
los procedimientos elaborados fracasan por su laicidad argumentativa. Esto es, la
desacralización del lenguaje. Así, Peralta retorna a un orden cósmico que pretenda
dar y organizar el sentido ante la falla del gran Otro; además, del mismo modo que
J Parménides, busca otorgarle un estatuto de verdad a la palabra; no obstante, se
desconfía, pues la enciclopedia no basta, entonces se presenta el silencio. Es decir,
ante la falta de verdad es mejor callar. Situación que permite desvelamiento hacia
A
una posibilidad otra del lenguaje y el conocimiento. De allí que Peralta suscite
mucha interpretaciones, pues su proyecto cósmico es disonante, muestra una
L totalidad con resquebrajamiento en la búsqueda de una síntesis entre dos espacios
disímiles. No elige ni uno, ni otro, se silencia.
L
Reflexiones finales
En suma, Alejandro Peralta presenta la restitución de determinado
A orden lógico. Se presenta un texto poético que trata de acceder al indecidible con
la finalidad de confrontar el lenguaje enciclopédico y enfrentarse a una nueva
conceptualización de mundo. La singularidad de nuestro autor radica en la
articulación de dos mundos disímiles: la modernidad y el mundo andino, los cuales
son confrontados y puesto en escena. Así, el yo lírico- intérprete no manifiesta una
• armonización cultural, a pesar de seguir el proyecto de Parménides y la angustia
840 cósmica, pues, precisamente, es este conflicto lo que evita la transcendencia.
• Situación que ejemplifica metáforas disímiles, cuya asociación se torna aberrante,
se deja de lado la significación. El fantasma repliega al lenguaje, este solo muestra
la angustia y la falla del gran Otro. Dicha angustia apuntala a mostrar en el
indecidible los hechos insatisfactorios de la cosmovisión. Además, esta búsqueda
de la totalidad, en realidad, muestra un exceso, lo cual implica una instancia al
2 borde del vacío. Esto es, la construcción de un espacio inestable y fragmentado,
situación que muestra el conflicto de dos mundos contrapuestos. No hay armonía.
0 Bibliografía
PRIMARIA
SECUNDARIA
•
841
•
2
0
1
8
J
A
L DO CHÃO DA ÁFRICA PARA O CHÃO DO BRASIL: TEMPO,
MEMÓRIA E TRADIÇÃO NAS OBRAS DE MIA COUTO E RADUAN
L NASSAR
A Maria de Nazaré Barreto Trindade (UFPA)
RESUMO: A proposta deste artigo nasce das indagações acerca de algumas
categorias teóricas que comumente emergem das discussões quando se trata das
relações entre literatura e realidade, ou entre literatura e sociedade. São temas
muito presentes na academia que dão margem às diferentes interpretações sobre a
• escrita literária, ou ainda, sobre os significados que adquire a linguagem em uma
842 obra em prosa ou poesia. Assim, como trabalho humano que é, rarefeito e sujeito
a todas as intempéries próprias dos seres humanos, a produção literária, a meu
• ver, faz um esforço de dar significado à experiência humana em sociedades, em
diferentes lugares, e em tempos diversos. E dar significado a experiência humana é
muito próprio da antropologia. Neste sentido, a partir da leitura de dois romances
escritos em língua portuguesa, um produzido no chão africano, em Moçambique,
e outro no Brasil, pensei em tecer uma malha teórica das relações entre eles. Para
2 tanto, elegi três categorias: tempo, memória e tradição. O primeiro romance é
“Um rio chamado Tempo e uma casa chamada terra”, do escritor moçambicano
0 Mia Couto (MC). O segundo livro é o romance “Lavoura Arcaica”, obra do escritor
brasileiro natural de Pindorama, cidade do interior do estado de São Paulo, Raduan
1 Nassar (RN).
Palavras-chave: Tempo. Memória. Tradição. Literatura. Antropologia
8 Início das histórias contadas...
Este artigo foi construído com base em reflexões acerca de algumas
categorias teóricas que comumente emergem das discussões quando se trata das
relações entre literatura e realidade, ou entre literatura e sociedade. São temas
muito presentes na academia que dão margem às diferentes interpretações sobre
a escrita literária, sobre os significados que adquire a linguagem em uma obra em
prosa ou poesia. Assim, como trabalho humano que é, rarefeito e sujeito a todas
as intempéries próprias dos seres humanos, a produção literária, a meu ver, faz-se
um esforço de dar significado à experiência humana em sociedades, em diferentes
lugares, em tempos diversos. Assim, este artigo faz uma imersão em duas obras
literárias, cada uma com seu tecido humano próprio, com seus dilemas, interditos,
histórias. A partir da leitura de dois romances escritos em língua portuguesa, um
produzido no chão africano e outro no Brasil, pretende-se tecer uma malha teórica
das relações entre eles. Para tanto, foram eleitas três categorias como chaves para
leitura: tempo, memória e tradição.
O primeiro romance é Um rio chamado Tempo, uma casa chamada
terra(2002), do escritor moçambicano Mia Couto. O escritor nasceu na cidade de
J Beira em 1955. Mia Couto traz para sua literatura uma África desconhecida por
nós, suas tradições, seus valores, seus seres mergulhados em rios de cultura e
A tradição. Autor de vários romances, entre eles, O Último vôo do flamingo, Terra
sonâmbula, considerado um dos dez melhores livros africanos do século XX, e
L ainda, Venenos de Deus, remédios do Diabo, entre outros.
Este livro, publicado em 2002, compõe-se de vinte e duas partes. A
metáfora imbricada no título do romance índice da passagem do tempo como um
L
rio, às vezes impetuoso, por vezes tranqüilo, mas em constante e dialética fluidez.
Enquanto a terra guarda o sentido da casa, do pertencimento, do retorno, o que dá
A sentido às palavras tecidas pelo avôde Mariano: “O importante não é a casa onde
moramos. Mas onde, em nós, a casa mora” (epígrafe), portanto, os significados
afetivos, culturais e sociais que carregamos no corpo.
O romance inicia com uma profunda reflexão sobre o tempo intitulado
“Na véspera do tempo’ e conta a viagem de retorno do jovem Mariano, personagem-
• narrador para sua terra, em decorrência do falecimento do seu avô (paterno) Dito
843 Mariano. O romance, recheado de memórias e aconteceres vai encaminhando o
• leitor por enigmas, fatos postos sob segredo de família e que aos poucos vão sendo
revelados na trama. A missão de Marianoé organizar o cerimonial de sepultamento
do avô. Na tessitura da história central – a morte do patriarca- outras histórias vão
compondo o enredo, tempos d’antes, mostrando a cada linha formas próprias de
como se pensa a morte, de enfrentar os rituais em torno dela e também os rituais
2 da vida e das relações amorosas na ilha Luar do chão.
O segundo livro é Lavoura Arcaica, obra do escritor brasileiro natural de
Pindorama, cidade do interior do estado de São Paulo Raduan Nassar. Filho de
0
um casal de imigrantes libaneses, o escritor nasceu em 27 de novembro de 1935.
Em 1949 mudou-se com a família para Catanduva para dar prosseguimento aos
1 estudos primários. Graduou-se em filosofia em 1963. Esse romance foi lançado no
mercado editorial em dezembro de 1975, chamado de “novela trágica” pelo crítico
8 Alceu Amoroso Lima, a obra guarda um estilo literário concebido pela crítica ora
como prosa poética, ora como romance lírico.
São percepções cujo aprofundamento não cabe na tessitura deste artigo,
mas que constituem importantes linhas de análise para entender a forma como cada
autor organiza a sua ficção.Lavoura arcaica é composta em duas partes. A primeira
parte- A Partida tem 21 capítulos, a segunda parte – O Retorno- apresenta oito
capítulos, do 22 ao 30. A forma recitativa é bem comum na primeira parte onde se
encontram capítulos de poucas linhas.
O enredo é construído ao longo dessas trinta partes não nomeadas,
irregulares, algumas que não chegam nem a trinta linhas, o que dá ao romance
um movimento, um dinamismo, como se escrito num grande fôlego, que apresenta
passagens que podem ser, inclusive, recitadas:
Na modorra das tardes vadias na fazenda,
era num sitio lá do bosque
que eu escapava aos olhos apreensivos da família;
amainava a febre dos meus pés na terra úmida,
J cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra,
eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso de
A um botão vermelho ; (...) (NASSAR, 1989, p.11, livre leitura).
A Frente a uma literatura que faz uma reflexão tão densa, pensa-se ser
de profunda relevância estabelecer um enfoque mais sociológico e antropológico
às questões em torno dos romances. Portanto, essa tessitura terá como questões
reveladoras: como as categorias teóricas do tempo, memória e tradição constituem
chave interpretativa para o enredo das obras de Mia Couto e Raduan Nassar?Neste
• sentido, uma hipótese inicial é a de que essas três concepções se fundem. O tempo,
846 memória e tradição estão imbricadas e constituem a essência de interpretação das
temáticas dos dois romances e com isso um diálogo começa a ser construído.
•
Com esta perspectiva alguns autores são importantes para entenderos
elementos constitutivos dos romances e explicitar as relações entre os narradores,
personagens, temáticas, enredos, focos narrativos.Assim, para uma crítica,diálogo
e para discutir as categorias teóricas traz-se Walter Benjamin, Paul Ricouer, Ecléa
Bosi, Antonio Candido, Roberto Cardoso, entre outros autores.
2
Na crítica sociológica proposta por Antonio Candido (1918) há duas visões
acerca da relação literatura e sociedade. Uma primeira que privilegia a obra literária
0 em detrimento das condições socioeconômicas e uma segunda que privilegia e
condiciona a obra literária às questões socioeconômicas de uma sociedade, deste
1 modo concordo com Candido quando conclui,
Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma des-
8 sas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e
contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o
velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro,
norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se
combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sa-
bemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa não como causa,
nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel
na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno(CANDIDO, 2010,
p.13-14, grifo meu)
[...] o tempo está em tudo; existe tempo, por exemplo, nesta mesa antiga:
existiu primeiro uma terra propícia, existiu depois uma árvore secular feita
de anos sossegados, e existiu finalmente uma prancha nodosa e dura tra-
J balhada pelas mãos de um artesão dia após dia; existe tempo nas cadeiras
onde nos sentamos; (NASSAR, p.52).
J
A
L
L
A
•
853
•
2
0
1
8
J
A
L DU BLEUE DE LA MER AU BLANC DE LA NIÈGE: VESTÍGIOS DA
ESCRITA DE SI EM PHILOSOPHIE DE LA RELATION (2009), DE
L ÉDOUARD GLISSANT
A Maria Fernanda Isidoro Chaves (UFRJ)
RESUMO: Ao analisarmos a produção do escritor martiniquenho Édouard Glissant,
é evidente a presença do autobiográfico em Philosophie de la Relation (2009), foco
do presente artigo- que se manifesta por meio do uso da primeira pessoa, pela
referência aos lugares onde viveu o autor, pela descrição de fatos ocorridos em
• sua vida, como também pela própria escolha do gênero ensaio, já que esse é uma
854 mescla de poetização e realidade, que traz à tona aos olhos do leitor o processo mais
íntimo da produção escrita. Iremos analisar de que forma as referências à natureza
• apresentam-se como instrumentos que externalizam o eu mais íntimo do ensaísta
e, levando em consideração que Glissant nasceu e viveu parte da vida na ilha da
Martinica, é preciso considerar o quanto os cataclismos naturais presentes nessa
região serão de suma importância na construção de sua biografia. Terremotos,
ciclones e vulcões, causas do caos e da instabilidade, alegorizam, em suas obras, o
2 interior do ser humano conturbado, assim como a natureza caribenha.
Palavras-chave: Natureza. Autobiografia. Ilhas. Cataclismos. Relação.
0
No decorrer dos anos 70, o escritor francês Philippe Lejeune define em
1 sua obra O pacto autobiográfico (2008) – até os dias atuais referência nos estudos
da escrita de si- o termo autobiografia como: “narrativa retrospectiva em prosa
que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história
8 individual, em particular a história da sua personalidade” (LEJEUNE, 2008, p.14).
Ao apresentar tal conceituação, Lejeune associa a presença do autobiográfico
essencialmente ao gênero narrativo e ainda vai além ao acrescentar, na mesma
obra, a ideia de que, mais do que uma perspectiva retrospectiva da narrativa,
autor, narrador e personagem principal devem possuir a mesma identidade
para que um texto apresente, então, um caráter autobiográfico. Levantando e
aprofundando questões acerca da relação entre autor, narrador, uso da primeira
pessoa e construção da identidade, Lejeune conclui que o gênero autobiográfico
é um “gênero contratual” (LEJEUNE, 2008, p.45) por excelência, sendo essencial
a presença do nome próprio do autor na capa do livro a fim de que se construa
para o leitor uma associação explícita entre autor e narrador, configurando, então
o autobiográfico: “A autobiografia (narrativa que conta a vida do autor) pressupõe
que haja identidade de nome entre o autor (cujo nome está estampado na capa), o
narrador e a pessoa de quem se fala” (LEJEUNE, 2008, p.24).
Já iniciados os anos 2000, a argentina Leonor Arfuch, em sua obra
O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea (2010) recorre a
J Bakhtin para assinalar – e assim, rever alguns conceitos de Lejeune- que “não há
coincidência entre autor e personagem, nem sequer na autobiografia” (ARFUCH,
A 2010, p.11). Para a professora e intelectual argentina, o sujeito que se apresenta
a partir do discurso da escrita não é o mesmo que se constitui para o mundo
L através dela. Ao afirmar a impossibilidade da coincidência entre autor e narrador,
Arfuch não nega, entretanto, a possibilidade de uma obra apresentar um caráter
autobiográfico, afirmando, ao contrário, que a manifestação do autobiográfico é um
L campo muito mais extenso, que vai além do narrativo, podendo manifestar-se na
poesia, nas entrevistas, memórias, etc, e recorre a Paul de Man para concluir que:
A “toda escrita é autobiográfica” (ARFUCH, 2010, p.76).
Ao analisarmos algumas produções do escritor martiniquenho Édouard
Glissant (1928-2011), fica evidente o quanto para ele a escrita foi uma forma de
apresentação de sua própria vida. Embora seu primeiro romance, La Lézarde
(1958), não apresente o pacto autobiográfico proposto por Lejeune, não podemos
• deixar passar despercebido o quanto da vivência real do autor está presente não
855 apenas na referida obra, como em diversos de seus textos, como poemas e ensaios.
Seu amigo e biógrafo François Noudelmann inaugura a obra Édouard Glissant:
•
L’identité généreuse (2018), livro em que relata a biografia do escritor que parte
ainda jovem para Paris para tornar-se um dos intelectuais mais respeitados no
mundo, com o seguinte diálogo que teve com o poeta, ensaísta e romancista:
-Un jour, Édouard, quelqu’un écrira ta vie.
-Je dis tout dans mes romans, alor pas la peine de faire une biographie.
2
-Tu romances, tu triches, tu retranscris le réel une fois que tu l’as digéré
dans ton imagination, mais c’est une existence imaginaire!
0 -Rien est vrai, tout est vivant! Les vies sont toujours rêvées1 (NOUDELMANN,
2018, p.9).
1 La Lézarde é uma narrativa que descreve o desejo de justiça de três jovens
que percorrem a Martinica em busca de liberdade. Um dos protagonistas recebe o
8 nome de batismo de Glissant, Mathieu. Perseguindo seus objetivos, os personagens
atravessam o país - assim como o rio que dá nome ao romance - percurso esse
também concluído por Glissant e sua família quando, ainda criança, parte das
montanhas rumo ao litoral em busca de uma vida melhor:
Le Lamentin les ennuie, as vie trop placide, ses eaux immobiles, as beauté
26 Ao invés de se debater, ele se entrega ao mar, fascinado pelo azul de suas profundezas.
27 Se a terra é marcada por rastros e cercas que circunscrevem sua extensão, por outro lado a
água é caracterizada por fluxos de comprovações incertas.
28 o esquema de pertencimento e relação, ao mesmo tempo.
29 Não apresenta moral, cria poética e gera magnetismos entre diferentes.
de incerteza - a base da Relação- que, ao contrário do que se pensa, “ne figure pas
l’échec, il ne limite ni dénature”30 (GLISSANT, 2009, p.97).
A paisagem arquipelar típica do Caribe inspirou a pensée archipélique
proposta por Glissant, que se contrapõe ao pensamento continental. Para o
ensaísta, enquanto o pensamento continental é um pensamento que olha o mundo
como um bloco, uma estrutura fixa, de forma binária e muitas vezes estereotipada,
o pensamento arquipelar volta-se para as particularidades, a essência de cada
J realidade, valorizando-as e reconhecendo o quanto as diferenças são importantes
para a formação do indivíduo. E essa observação de cada realidade se dá, segundo
A ele, a partir de um olhar voltado para a paisagem de cada lugar. A particularidade
das paisagens de um local deve ser entendida como a parte de um todo, ser
L valorizada do micro para atingir o macro: “Quand vous n’entendiez plus ce bruit
(cette différence), vous étiez entre sans relais dans le paysage”31 (GLISSANT, 2009,
p.102). O homem calado, desconectado de suas vivências e da natureza que o
L cerca, nada mais é do que uma simples “estrutura” física e carnal que demarca
uma existência, uma expressão do pensamento continental. É apenas por meio
A das experiências vividas com outros homens e em determinados espaços com a
presença da natureza que ele será capaz de tornar-se, de fato, humano, e são as
paisagens nas quais estão inseridos que irão proporcionar as experiências a um ser
que nunca está totalmente pronto, mas em constante formação.
Para concluir, é preciso ainda salientar que a própria escolha do gênero
• ensaio como forma de escrita é mais um vestígio autobiográfico da produção
862 glissantiana, uma vez que, segundo Gomez-Martinez: “[...] como el ensayista expresa
no solo sus sentimientos, sino también el mismo proceso de adquirirlos, sus escritos
•
poseen siempre un carácter de íntima autobiografia. El “yo” del autor se destaca en
todas las páginas”32 (GOMEZ-MARTINEZ, 1981, p.48). O ensaísta, ao coletar dados
para sua escrita, situa-se em uma condição de pesquisador e escritor/artista ao
mesmo tempo, trazendo à tona o processo mais íntimo da produção da escrita. Além
disso, a escolha do tema sobre o qual irá fazer o ensaio é extremamente pessoal,
2 e será baseada em sua afinidade com determinados assuntos ou com seu desejo
de proposição de uma reflexão sobre um tema por ele demarcado. Para Glissant,
0 o pensamento arquipelar, por estar em constante formação, é o pensamento do
ensaio: “La pensée archipélique, pensée de l’essai, de la tentation intuitive, qu’on
1 pourrait apposer à des pensées continentales, qui seraient avant tout de système”33
(GLISSANT, 2009, p.45).
8 Ao contrário do que ocorre na construção de uma narrativa, em um
ensaio, o autor não cria uma ficção, mas expressa seu olhar pessoal, baseado em
suas experiências pessoais, subjetiva uma delimitada realidade. Nele, o ensaísta:
30 não representa fracasso, não limita nem desnatura.
31 Quando você já não ouve esse ruído (essa diferença), você não tem nenhuma relação com a
paisagem. v
32 Tradução livre: Como o ensaísta expressa não apenas seus sentimentos, como também o
processo de adquiri-los, seus escritos possuem sempre um caráter de íntima autobiografia. O “eu”
do autor se destaca em todas as páginas.
33 O pensamento arquipelar, pensamento do ensaio, da tentação intuitiva, que poderia ser anexado
a pensamentos continentais, que seria, antes de tudo, sistema.
“Escribe según piensa, y su producción la considera tan unida a su mismo ser,
que no cree necesario, o quizás possible, el volver la vista atrás para modificar,
adaptar o reorganizar lo ya escrito”34 (GOMEZ-MARTINEZ, 1981, p.35). Como o
ensaio não cria um assunto, mas fala sempre sobre algo já existente, a visão sobre
ele deve ser atualizada, por isso, seu processo de escrita reúne passado (assunto),
presente (momento da escrita) e futuro (reflexões e ensinamentos que podem
servir para o devir). Ao escolher o ensaio como materialização de seu pensamento,
J Glissant funde forma e conteúdo, uma vez que, assim como a proposição da
Relação ou da pensée archipélique, o ensaio não apresenta conclusões findadas
nem fechadas, mas relativiza o que afirma, convidando sempre à reflexão. Por meio
A
da perigrafia, oferece ao leitor dados, e não uma conclusão fechada sobre esses
dados, fragmentando a realidade, proporcionando um alargamento da percepção
L individual, tanto do leitor, quanto do próprio ensaísta. O ensaio é, assim, o gênero
da representação do caos pois, assim como o pensamento caribenho, é aberto, não
L tem forma fixa, já que obedece ao fluxo de pensamento, fazendo comungar forma e
conteúdo na produção glissantiana.
A O ensaio é o gênero da análise da realidade, do presente, da não utopia.
Homem à frente do seu tempo, ciente da necessidade de construir e apresentar
meios para a reflexão da situação não apenas de seu país, mas das relações
humanas, Édouard Glissant busca encontrar essa possibilidade analisando, então,
a realidade, sem esquecer-se de poetizá-la, uma vez que o ensaio é a expressão da
• realidade por meio de uma linguagem poética: “[...] le poème est en effet la seule
863 dimension de vérité ou de permanence ou de déviance qui relie les présences du
monde [...]”35 (GLISSANT, 2009, p.19).
•
O ensaio abre linhas de pensamento para um tema que pode ser inesgotável,
possibilitando variadas visões sobre o mesmo assunto. Para Glissant, é essencial a
diferença entre o “ser” e o “sendo”. Para ele, nenhum homem “é”, mas está “sendo”.
Assim como o pensamento arquipelar, o homem deve estar em constante mutação
e em uma eterna (trans) formação: “[...] non pas de l’Être, mais d’en dehors d’un
2 être-comme-étant [...]”36 (GLISSANT, 2009, p.97). O ensaio - gênero aberto, que
assim como a oralidade, vai e volta, deixa lacunas, se repete, se reinventa, está
0 sempre aberto ao novo - representa, assim, o desejo da construção de um homem
em eterna e infindável formação.
1 Referências
ARFUCH, Leonor. 2010. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea.
8 Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010.
GLISSANT, Édouard. Philosophie de la Relation. Paris: Gallimard, 2009.
GOMEZ-MARTINEZ, José Luiz. Teoria del Ensayo. Salamanca: Ediciones Universidad de
Salamanca, 1981.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte: Edi-
34 Escreve como pensa, e considera sua produção tão próxima do seu ser, que não é necessário,
ou talvez nem possível, olhar para trás para modificar, adaptar ou reorganizar o que já foi escrito.
35 O poema é, de fato, a única dimensão de verdade ou permanência ou desvio que conecta as
presenças do mundo.
36 [...]não do Ser, mas de fora do ser-como-sendo [...].
tora UFMG, 2008.
NOUDELMANN, François. L’identité généreuse. Paris: Flammarion, 2018.
PEDREIRA, Antonio. Insularismo - Ensayos de interpretación puertorriqueña. San
Juan: Puerto Rico Edil, 1968.
https://pacotilleuses.wordpress.com/le-projet/edouard-glissant/paysage-glissant/.
Acesso em 29/ 04/2018.
http://www.edouardglissant.fr/enfance.html. Acesso em 08/12/2017.
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L IMÁGENES DE LA AMAZONÍA: BRASIL, 1950-1960
L María Florencia Donadi (UNC)
RESUMEN: Este trabajo analiza la centralidad de la Amazonía (especialmente de
A la floresta amazónica) para la elaboración de un concepto de Estado-nación en las
décadas ‘50-‘60 en Brasil. Se analizarán, especialmente, dos operaciones puestas
en acción: por un lado, la incorporación de una amenaza “fantasma”, que consiste
en aprehender ese espacio y convertirlo en parte del “cuerpo nacional”; y por otro,
la espectralización de esa materialidad real, que se efectúa por una doble vía, como
• proceso de conversión en imágenes que idealizan ese espacio, se distancian, niegan
o desconocen lo real y como exterminio efectivo de poblaciones locales –muchas de
865
ellas indígenas- y sus modos de comunidad así como de modos de territorialidad
• tradicional que las convierte en “pasado” –inexistentes- o en meros fantasmas.
Palavras-clave: Amazonía. Brasília. Imágenes territoriales.
7 En “Reflexões em torno da nova capital”, Pedrosa sitúa el processo de Brasilia como una utopía
hacia la que se camina y para ello es necesario “estarmos a catar, dentro do seu programa, ou no
plano piloto adotado, as ervas de anacronismo que ali se aninham, com insuspeitada tenacidade”
(PEDROSA, 1981, p. 311). Páginas más adelante dirá que el plan de Lúcio Costa da a la metrópolis
“a progressão orgânica de uma arvore que se esgalha ou de um rio que se demora pelo caminho, em
remansos frondosos” (PEDROSA, 1981, p. 315).
el crecimiento de las ciudades puede funcionar como una “célula cancerosa” que
infecciona todo el cuerpo. Brasilia debe ser “sana” (PEDROSA, 1981, p.369).
La naturaleza que se quiere es el revés de la anterior: un elemento
plástico, integrada a la arquitectura moderna (tarea cumplida, como Pedrosa lo
menciona, por el paisajista Burle Marx).8 Se trata de una naturaleza domada, casi
artificial –como el oasis-Brasilia– puesto que la “naturaleza natural, isto é, tropical
e exuberante, nao era bem vista pelos nossos ancestrais lusos” ni por los indios
J que la quemaban, “Dela se tinha medo” (PEDROSA, 1981, p. 282). La pregunta es
si se tenía miedo o debía extenderse esa afirmación, más bien, hasta ese presente.
A En “Crecimento da cidade”, el crítico aproxima justamente ambas
metáforas (naturales e inmunitarias) luego de hacer un breve racconto sobre la
L evolución de la ciudad para llegar a la ciudad del capitalismo y del liberalismo,
del laissez-faire que funciona como “uma cêlula cancerosa que devora todo o
organismo”, “Esse desenvolvimento desordenado e chamado de espontâneo é como
L
um pedaço da natureza selvagem dos trópicos deixada a si mesma. Em pouco
tempo, o mato tudo invade” (PEDROSA, 1981, p.298), ese dejar-hacer es enemigo
A del espíritu comunitario. El liberalismo es el destructor de la communitas. Ante
esa situación es necesario reaccionar inmunitariamente –como un organismo vivo-
, identificar el factor infeccioso, productor del desorden y combatirlo. La reacción
inmunológica parece ser Brasilia, ciudad moderna, nueva, que podría devolverle a
la ciudad su sentido comunitario: ése es el ideal utópico sobre el que se yergue la
• pregunta: “Conseguirá?” (PEDROSA, 1981, p.299). Es casi obvia hoy la respuesta.
869 Sin embargo, el mismo Pedrosa ya visualizaba las contradicciones de su propio
argumento cuando al postular los peligros y amenazas del capitalismo, aliado directo
•
del liberalismo, elemento disgregador anti-comunitario, ponía sus expectativas en
un proyecto del poder centralizado cuya mano derecha era la apertura al capital
y su incentivo, aunque “controlado” por el estado, “atenuado” y ordenado, del
desarrollismo. Y digo que esas contradicciones se evidenciaban entonces puesto
que, como Segre asienta, las divisiones sociales de clases de la sociedad capitalista
2 estaban presentes de manera evidente en esas décadas, pero se las pasó por alto,
se las descuidó y, así, a la segregación funcional se le superpuso la segregación
0 social, no explicitada en los mapas de la ciudad (SEGRE, 2012, p.239).
Aplicando una conceptualización inmunitaria, ese peligro anticomunitario
1 no sólo no es eliminado, puesto que ya está dentro del cuerpo –la nación- sino
que se lo enfrenta sin alejarlo de los propios confines, es decir, crea una aporía:
8 la peligrosidad estaba desde el comienzo de la construcción de la ciudad –la
posible disgregación del sentido comunitario- pero se lo negó como realidad, la
cual persistió y para evitar el colapso “canceroso” fue resuelta con la expulsión
8 Pedrosa comenta las obras de Burle Marx, el paisaje natural ordenado e integrado a la arquitectura,
y para ello se describe los elementos pictóricos y plásticos como los colores y sus tonalidades; pone
especial atención en la forma (agrupamientos, masas, intervalos) que orquestan una composición
para ser, en una palabra, contemplada, destinada a la visión, fundamentalmente. Aspira a una
percepción estética o plástica nueva. El paisajista se valió de los recursos de la vegetación brasileña,
empleó las especies salvajes de la floresta amazónica, pero para conferirles un orden. Esto es lo que
Pedrosa valora. Ver PEDROSA, 1981, pp. 278, 283, 286, 333.
hacia las ciudades satélites y la preservación intocada de un plan piloto “exclusivo”
para algunos. Por lo tanto, el sentido amenazante persiste, pero sin transformar
el organismo, dosificado, sin infectar el cuerpo total, en remisión. La figura que
de este modo se bosqueja es la de una inclusión excluyente o de una exclusión
mediante inclusión (ESPOSITO, 2009, p. 17-18) que propicia la lógica inmunitaria
en la que “Lo negativo no sólo sobrevive a su cura, sino que constituye la condición
de eficacia de esta” (ESPOSITO, 2009, p.18).
J Algo semejante sucede con la amenaza de la naturaleza: se la incorpora,
pero para ello se habrá de reducir su magnitud al mínimo indispensable del jardín,
A la naturaleza domada, su aspecto plástico-artístico-operático-utilitario. Ambas
lógicas se interpenetran y son interdependientes. Si el capitalismo y el liberalismo
L son la célula cancerosa, se lo combate acogiéndolo en su seno para, inversamente,
proponer una utopía que lo limitaría, una utopía comunitaria que, asimismo, se
basa en despejar el elemento peligroso, monstruoso y amenazador de la naturaleza
L para tomarla, poseerla, apropiársela en su aspecto más productivo, como recurso
–natural- que nos dará el extractivismo intensivo de entonces y hasta el presente,
A alimento esencial del capitalismo, que no hace sino cortar toda posibilidad de
munus.9
La ligazón entre la construcción de Brasilia y la posición de dominio de las
fronteras territoriales (especialmente el norte) se expresan en el texto de Kubitschek
a través de la referencia a sus reiterados vuelos por una zona desierta. La visión
• aérea le permite dimensionar, planificar, apercibirse de la importancia geopolítica
870 del país, conquistar una tierra distante para industrializarla y, para ello, una tarea
–además del núcleo de poblamiento que sería Brasilia- es la de “rasgar um cruzeiro
•
de estradas” en cuyo centro estaría Brasilia (KUBITSCHEK, 2000, p.84). Esas rutas
debían llegar a recursos interesantes y no a una mera “taba de índios”: aquí se oye
el peso de los objetivos económicos. No es necesario insistir demasiado en que ese
objetivo se puede leer en el Plan de Valorización de la Amazonía y permea muchas
de las producciones “oficiales” de la década. Algunas de ellas, sintomáticas de ese
2 dominio de la selva que se encaraba son “Primeira viagem na Belém-Brasília” de
Pierre Arnaud (1960) o “Dez dias na Belém-Brasília” de Afranio Melo (1960), que
0 describe la caravana “de integración nacional” realizada entonces con motivo del
cuarto año de gobierno de Kubitschek y aclamada tanto en su partida como a su
1 llegada y que contrasta con la “monotonía” y “tristeza” de la selva.
En los textos y autores que aquí abordamos (Pedrosa, Kubitschek) la idea
8 venció al monstruo, el orden se impuso al caos, la imagen se imprimió en forma,
9 En estas décadas comienzan a gestarse una serie de conceptos cuya emergencia sintomática
debería analizarse con más detenimiento y que se ligan a este enmarañado de dependencias
económico-políticas que se diseñaban (interna y externamente): la literatura como conciencia
del subdesarrollo (CANDIDO, 1969), o la dialéctica en el campo artístico entre dos polos, el de la
vanguardia y el de un arte deliberadamente regional, idiosincrático y universal (PEDROSA, 1981,
p.245-247), la idea de una literatura “a pesar de dependiente universal” (SANTIAGO, 1980). Otros
términos empleados por Pedrosa (1981) remiten a esta dialéctica: desfasaje (p.259), la idea de
sumisión a los “precios internacionales” (p.351), la importancia de la “industrialización intensiva”,
“la creación de verdaderas y nuevas regiones” (p.351), “la necesidad de una reforma agraria”, éste
sí punto fundamental que no se consolidó y habría trazado otros itinerarios.
palabra clave del período. La comunidad se entendió entonces, en esos términos,
como un todo, como cuerpo-unidad, la nación misma como forma10, en la dialéctica
de los aportes de las diferentes regiones (anexos, partes) a un cuerpo, la nación
como ecúmene, tierra habitada, a su vez casa (oikos) administrada productivamente
(oikonomia) y conectada, a la que se refieren tantas metáforas como el sistema
circulatorio (las rutas) o la espina dorsal y las costillas (empleada por Sayão, según
KUBITSCHEK, 2000, p. 126). Para que la nación adquiriera forma, contornos,
J límites, fronteras, como comunidad, fue necesario –siguiendo los argumentos
expresados por Pedrosa y el mismo presidente- la incorporación de su mal, la
frontera natural –reduciéndola a su faceta menos ofensiva- y la inscripción en el
A
orden del capital, a través de un munus –un deber, una deuda- que se instauró
como trabajo y utilidad común.11 Al fin y al cabo “Brasília era um marco”, la obra
L era el Brasil mismo: la nación como unidad –de cuerpo y espíritu (KUBITSCHEK,
2000, p. 129).
L Brasilia se instituyó en la ciudad del orden, un orden que articulaba
“sentido histórico y valencias mitológicas” hacia la potencial “integración
A colectiva” y “desarrollo nacional” cuyo símbolo quedaba entonces esculpido en su
monumentalidad (GORELIK, 2012, p. 418).
Para ejemplificar ese orden, deseado para todo el Brasil, la conformación
de una imagen-símbolo (unívoco), en la que se instituyó Brasilia gracias a la
fotografía y a la propaganda, fue fundamental.
•
Entre imágenes
871
Marcel Gautherot fotografió diversos puntos del Brasil, entre ellos
• Brasilia. Sus fotografías documentan la construcción y a la vez se han convertido
en imágenes-íconos de la nueva capital. Asimismo, por disposición metonímica,
algunos elementos de la ciudad, como las columnas del Palacio da Alvorada o
el Plano Piloto en sí, se han instituido en elementos figurativos autónomos para
significar ‘Brasil’.
2 De hecho, si Brasilia, como sostiene Gorelik (2012) es un museo de
la modernidad y una fábrica de imágenes, no por la “colección” de obras, sino
0 por la autoconsciencia de su propio significado, se comprende naturalmente
que cada etapa de ese proceso haya sido inmortalizado en diversas instantáneas
1 10 Ver por ejemplo “Perspectiva de Brasília” (1981, p. 244). Una metáfora evoca la asociación entre
Brasilia, forma y racionalidad: la de la capital nueva como “cerebro” de la nación (PEDROSA, 1981,
8 p. 398).
11 En la designación de la nación como ecúmene, Pedrosa está trayendo a colación otro término
fundamental que es el de nomos, como norma, ley, y su encarnación en el Estado, y se contrapone
al caos o su fuerza ánomos, desorden, rebelión. Esa nueva “toma de posesión” del Planalto central
del Brasil –continuación del proyecto de Marcha hacia el Oeste y primer paso hacia la acción de
explorar la selva, el Norte- se vincula con las diversas rebeliones separatistas sistemáticamente
contenidas por el orden central. Llevar el nomos a los puntos extremos del territorio nacional era
una misión fundamental, para asegurar su supervivencia, y su soberanía, colocando como centro
“sagrado” una ley (la Constitución) e instaurando un tiempo trascendente situado en el futuro
(utópico-mesiánico). Brasilia es “um oásis, com seu clima e atmosfera inevitáveis de exceção”
(PERDROSA, 1981, p. 316), el centro vacío en que se crea la ley, en su origen no legal, de la
soberanía. Tal vez por eso mismo se recurra al imaginario colonial por excelencia: la primera misa.
y que quien lo haya hecho contara, por un lado, con una amplia experiencia
museística (recordemos los vínculos de Gautherot con el Musée de l’Homme, su
contribución en la organización y catalogación del Museu das Missões) y, por otro
lado, contara con la confianza de Oscar Niemeyer, el arquitecto de la ciudad, y que
las fotografías de Brasilia aparecieran en la revista por él dirigida, Módulo.12 La
proyección internacional de las fotografías de Gautherot se evidenció, asimismo,
cuando en 1962 integró la exposición itinerante, por diversas ciudades europeas,
J de arquitectura brasileña organizada por el Ministerio de Relaciones Exteriores
(BURGI, 2017).
A Keneth Frampton, afirma:
As suas imagens da capital em construção no hinterland, em meio a um
planalto parcamente povoado, ressurgem hoje como os stills esquecidos de
L um filme do realismo socialista, com a estrutura de aço e os 28 andares
da torre dupla do Congresso elevando-se como uma miragem por entre os
L redemoinhos de poeira do cerrado aplainado (FRAMPTON, 2012, p. 435. La
cursiva es mía).
13 Uno de los ejemplos más expresivos al respecto son las crónicas de Clarice Lispector en que
anota sus apreciaciones sobre Brasilia y afirma: “Brasilia sufre de levitación” (LISPECTOR, 2011,
p. 47). Estas crónicas también operan una deconstrucción de la imagen-símbolo de Brasilia como
metonimia del Brasil.
14 Hatoum y Titán Jr. sugieren esta idea en Norte cuando describen la fotografía del Teatro
Amazonas en Manaos. Es factible extrapolar y extender esas ideas a las fotografías, posteriores, de
Brasilia, como si haya hubiese desarrollado un “ojo” especialmente sensible al devenir, a lo flotante.
fronterizos para subrayar la necesidad de su intervención/rasgadura, la segunda
se acerca a su interior para descubrir su composición inherente. Gautherot
(…) mergulha com a câmara no emaranhado e se deixa envolver por ga-
lhos, cipós, ondulações e reflexos. Um tronco escuro, de ramos poderosos
se prolonga em sua sombra na água, tão imóvel e negra que por muito pouco
não anula a distinção entre a coisa e seu reflexo. Algumas das imagens são
perfeitamente reversíveis, e então o inventário documental cede lugar ao
grafismo, ao jogo quase abstrato de luz e sombra. Como também acontece
J nos crepúsculos e horizontes fluviais, que mais parecem uma tela não figu-
rativa, dedicada a explorar texturas (...) (TITÁN JR. y HATOUM, 2009, p. 20.
A Las cursivas son mías).
2 17 Llama la atención que Kubitschek se refiere a la época de ebullición de las obras de Brasilia
como un “formigueiro humano” de candangos anónimos –los constructores de Brasilia (2000, p.
0 95). Convendría, tal vez, analizar esa coincidencia metafórica.
18 En “O cabeção na praça dos Tres Poderes” Pedrosa afirma que el arte debe tener una misión,
ésta es ser la creación de comunidad a partir de un significado común y es, por lo tanto, un legado
1 del presente al futuro y del pasado hasta nosotros. El caso de Calado implica una torsión casi de
cambio de época puesto que también puede leerse en clave de distanciamiento y corte respecto de
8 las propuestas emancipatorias (racionalistas y utópicas de izquierda) como analiza, en otro corpus,
Mario Cámara en Restos épicos (2017).
19 Así lo refiere Perdosa: “(…) uma aspiração geral a síntese, as afinidades perdidas. E nesta
aspiração à síntese encontra-se um alto valor ético: o homem desnorteado e nevrosado de hoje aspira
à unidade dos contrários, a experiências delimitadas de possíveis associações comunitárias (...) uma
nova reconstrução do mundo é reclamada por todos” (PEDROSA, 1981, p.361). Para Kubitschek
toda esa gran región amazónica es una “región perdida”, “em cuja orla alguns aventureiros haviam
armados suas choupanas pioneiras” (KUBITSCHEK, 2000, p.101).
20 En diferentes textos respecto de la construcción de Brasilia, Pedrosa hace referencia a la
“Aventura-Brasilia” y también a la “Experiencia-Brasilia”. Kubitschek, en su libro, explicita en
qué término entiende la construcción de la ciudad como aventura y Niemeyer escribe sobre “Mi
experiencia de Brasilia”.
entre encontrar la aventura y el trovar poético, ‘encontrar’ y ‘componer poesía’ –en
sentido amplio, como poiesis- se dan la mano.
En las fronteras del peligro
En el catálogo de la reciente exposición, “Flávio de Carvalho, expedicionário”
(São Paulo, enero-marzo 2018), Renato Rezende sostiene acerca del artista y sus
producciones:
Subvertendo a ordem das clássicas expedições europeias ao Novo Mundo, e
J mesmo das expedições modernistas ao interior do país, Flávio de Carvalho
confunde as relações sujeito/objeto que tipificavam essas incursões, mis-
A tura arte e ciência, e antecipa e até mesmo supera discussões em torno do
artista como etnógrafo (REZENDE, 2018, p. 91).
L Mucho más cercano a la experiencia de artistas y etnógrafos como
Leiris, Bataille, Caillois y de los intelectuales nucleados en la revista Documents y
L Minotaure, Carvalho conducirá una serie de reflexiones cuyo derrotero se bifurca
drásticamente de los que claramente se evidenciaban en estas décadas.
24 Sobre esta serie sugiero consultar la excelente y minuciosa tesis de doctorado de Larissa Costa
da Mata (2013).
Al igual que para Kubitschek y Pedrosa, la selva posee un significado de separación
que, además de territorial, es cultural (el hombre civilizado, vestido, “comedor de
platos delicados” versus el hombre sonriente, desnudo, “comedor de animales y
carne humana”), pero esa línea de frontera que separa también es la de relación.25
Esa frontera es peligrosa y misteriosa, igual que para los otros autores. Sin
embargo, ese peligro es relativizado (pues en algún punto es comprendido a partir
de una intrusión) y junto al misterio, no pretenden ser eliminados, desterrados ni
J controlados para ofrecer una seguridad irrevocable, sino que seducen, se eligen
para redescubrir una emoción fundamental como es el miedo.
A En la caracterización de esa frontera hay, asimismo, gradaciones: desde
una inicial descripción con tintes paradisíacos: en el valle amazónico no existe
L el hambre, pues hay profusión de comida; existe una comunión entre hombre
y naturaleza que es casi un contacto “sexual”. Luego se atravesarán espacios
monótonos hasta el momento de máxima expectación en que se produce un cambio
L
de paisaje y de sensaciones: éstas ya no son las amenas, de ofrenda y de refugio,
sino de agresividad. El sol excesivo, la soledad, el calor, la repetición de lo mismo,
A y la aparición de los “piums” se convierten en “el verdadero infierno verde” (V. The
forbidden bath). Es allí, justamente, donde lo “desconocido” se vuelve frontera,
puesto que se siente un “invisible but known danger”.
Pueden inferirse en este punto dos cosas: por un lado, en oposición a lo
que sucede en Pedrosa y Kubitschek, para quienes lo invisible implica lo inexistente
• –casi una estrategia de defensa-, en Carvalho la peligrosidad surge de lo invisible,
878 como un sentimiento profundamente humano que no depende completamente del
• espacio que se recorre, sino de una carencia que pondría en acción mecanismos
arcaicos (que el hombre “civilizado” se ha esforzado en ocultar) compartidos hasta
por la vegetación, que adquiere entonces connotaciones metafóricas: se comienzan
a observar plantas parásitas que revelan la competencia por la supervivencia,26
actitud que inmediatamente después Carvalho descubre entre los miembros de la
2 expedición.
La invisibilidad no es inexistencia sino presencia fantasmal, presentida
–quizás irracional-, psíquica, que luego aparece y muestra su real. Mencionaré
0
algunos casos de esa presencia que, además, configuran una modalidad háptica
de los existentes, según adquiere relevancia el tacto para el autor. 1. Los “seres
1 telúricos” de la floresta son comparados con “fantasmas ecuménicos”, “monstruos”
que miran al hombre, gruñen y vuelan constituyendo su entorno: presencias que
8 ora aparecen ora se esconden del hombre de las selvas en una voluptuosidad pre-
lingüística, pero sonora. 2. Según la “psico-etnografía” que Carvalho elabora en
estas páginas, para las comunidades indígenas los animales y los ancestros son
25 La frontera, en los textos de Carvalho, se define más como confín que como separación. Como
tal, es una figura ambivalente pues el cum-finis es la línea a lo largo de la cual dos dominios se
tocan. Respecto de esta noción ver CACCIARI (2000) en que confín es el lugar del entre, limen
(umbral) y limes (límite). El confín es contacto, lo cual lo vuelve profundamente comunitario, y huye
de una determinación unívoca.
26 No se incluyen citas extensas en este trabajo para resguardo de los derechos de autor de los
“manuscritos amazónicos”, material inédito, depositados en el CEDAE-UNICAMP.
“spirits and gods”, revisten un carácter espectral, que se liga a la antropofagia:
cuando se come al animal, al enemigo y al ancestro (en sus cenizas) se elabora
simbólicamente la relación con cada uno de ellos que se convierte en dioses que
los controlan. Un último caso de estas presencias fantasmales se figura con los
“centinelas” xirianá: Carvalho adivina sus presencias, pero no son vistos hasta que
aquellos hayan medido y sopesado a los blancos intrusos: “In the silent wilderness
of the forest shadows, one has the constant feeling of being followed, yet one sees
J nothing and hear [sic] nothing.”
Por otro lado, la vista, en consecuencia, o bien recibe una conceptualización
A más amplia que no la cartesiana probatoria, racional, o bien pierde su carácter
dominante como sentido en torno al cual se establece la jerarquía. La vista aérea
L o del hombre en vuelo, tal como Carvalho desarrolla en otros textos,27 adquiere
una dimensión vertical que permite calibrar la dimensión profunda de los tiempos
actuantes –distinta de la visión panorámica-panóptica presentada por Kubitschek-
L o bien es una visión del detalle propia de un “arqueólogo malcomportado” sensible
a las capas superpuestas que habrá de desenterrar. La visión, según se infiere de
A esta serie de textos, puede dejarse seducir por las fantasías y los “miragens”, tanto
de las aguas (“the shiny dark geen of the waters”) como de los caminos que engañan
(“mislead”) al hombre, pues la soledad, la inmensidad, los olores y silencios de la
floresta en su voluptuosidad excitan la imaginación y ésta parece ser la capacidad
más verdadera de creación.
• En estos textos carvalheanos es el tacto el que se vuelve más relevante.
879 Éste se convierte en el sentido por excelencia dado que la selva parece “envolver”
al hombre, es su abrigo y refugio. La floresta vuelve táctil al hombre mismo y
•
es ese toque el que acaricia y enardece la imaginación. Esa tactilidad acaricia
voluptuosamente, como si les cepillara el cabello a los propios miembros de la
expedición.
En el último texto de la serie, la fiesta ritual, que viene a articular la mirada
2 (externa) a los elementos anteriores (el tacto y la imaginación), expresa la preocupación
y la conceptualización carvalheana respecto de los motivos comunitarios. Carvalho
relata la participación y también su rol de espectador en una festividad relativa a
0 las cosechas entre los xirianá, en la que el uso del “polvo de la verdad” extasía a
los hombres de la “maloca-city” quienes, después de luchar simbólicamente, se
1 confiesan mutuamente sus crímenes, sus “pecados” y sólo lo hacen en la medida
en que haya espectadores. En la gestualidad desmedida de los performers y en la
8 exigencia de ser observados por otros (espectadores u observadores participantes),
Carvalho lee los orígenes de la teatralidad y la representación simbólica. Esa
fiesta expresa, para el etnógrafo paulista, la instauración de la comunidad (“this
confession brings stronger ties between former enemies”) a partir del crimen/delito/
pecado.28 Es decir, en el centro vacío de la comunidad (nacional) está el crimen y la
muerte. Esta última, según el autor, es una de las preocupaciones más insistentes
de los xirianá. En la nación y el Estado modernos, como es el caso del Brasil, ese
centro vacío –que también figura Callado- es el crimen, el aniquilamiento, extinción
29 Ver el artículo de Pedrosa “Arquitetura e crítica de arte II” en que se centra en la importancia
de la percepción (“Olhamos e vemos”) y la fascinación que el espacio produce, sobre todo, a partir
de la noción de movimiento (1981, pp. 277-279).
30 En las primeras páginas de su libro, Kubitschek no sólo menciona un sueño “premonitorio” de
don Bosco respecto de su construcción, sino que afirma “Meditei sobre a Grande Civilização que
iria surgir entre os paralelos 15° e 20° -justamente a área em que estaba construindo, naquele
momento, Brasilia. O lago, da visão do santo, já figurava no Plano Piloto do urbanista Lúcio Costa.
E a Terra Prometida, anunciada repetidamente, pela misteriosa voz, ainda não existia de fato, mas
já se configurava através de um anseio coletivo, que passara a constituir uma aspiração nacional”
(KUBITSCHEK, 2000, p.18).
a un control del imaginario, lo que Ludueña (2017) llama “una política de los
sueños” y una “conquista estatal de la imaginación” que erradica los espectros de
la imaginación o de las ideas al sujetar esas imágenes creadas, ideas proyectadas
y sueños internamente entrevistos a una concreción: poner en acto la ciudad,
plasmar en un plan piloto las ideas, hacer emerger de la “nada” una civitas y,
a través de ese mecanismo, reducir lo imponderable, lo peligroso, el miedo de lo
invisible, de lo arcaico que pervive, de las fronteras. En cambio, es en la inmersión
J en ese miedo, en lo invisible/invisibilizado para tocarlo y dejarse acariciar, en ese
espacio del confín, en lo que se centra Flávio de Carvalho.
A Como sostiene Foot Hardman (2009), la configuración de la ilusión-Brasil
está marcada por la violencia instituyente (el centro vacío del crimen) en diferentes
L modos de operación: deleble, monumental, ruiniforme y espectral, agregaríamos
aquí.
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2
0
1
8
J
A
L EL ARTE DE LOS CONFINES DE GONZALO KENNY: ¿TRADUCCIÓN
HIPERMEDIA O “POSTRADUCCIÓN”?
L
María Inés Arrizabalaga (UNC)
A RESUMEN: Stefano Arduini y Siri Nergaard propusieron el concepto “Post Estudios
de Traducción” para señalar los objetos integrados al “diseño tradicional” de los
Estudios de Traducción, y perspectivas de abordaje y marcos teóricos convergentes
e hibridados. Por su parte, Núria Vouillamoz sostiene que el impacto de los entornos
virtuales como canales de circulación de obras literarias proporciona un efecto
• de “reproducción” que, añadida la morfología retórica hipermedia, permite hablar
de “traducción hipermedia”. Parece, entonces, procedente considerar la categoría
883
de “postraducción” en casos que, desde los Estudios de Traducción, desafían los
• bordes disciplinares y aventuran la renovación de escenarios críticos. En esta
comunicación, se presentan la obra de Liliana Bodoc, La saga de Los Confines,
y el blog El arte de Los Confines de Gonzalo Kenny. Los objetivos del trabajo son:
i) sistematizar procedimientos de “parcelación” y “ensamble” que operan sobre
las novelas y resultan en “síntesis visuales” de personajes, tópicos y desarrollos
2 argumentales; ii) listar recursos a los que se apela en el blog para prolongar y
diversificar desarrollos argumentales, originales de Bodoc; iii) describir efectos de
0 credibilidad, continuidad y disrupción del “universo ficcional” de Los Confines,
logrados en un sitio en red a través de diversos lenguajes, técnicas y estéticas,
1 principalmente plásticas. El blog de Kenny sobre La saga... de Bodoc parcela
significados y los ensambla en una combinatoria que atiende a la tensionada lógica
dialéctica de “la confianza” y “la sospecha” en la labor traductora, y ejecuta la retórica
8 del sistema de representación de la traducción hipermedia. En la programación
artística de Kenny sobre la poética de Bodoc, el ejercicio de reproducción de la
obra autoral acorde a pautas morfológicas de la traducción hipermedia sustancia
la ocurrencia de la postraducción en el doble sentido de fusión transdisciplinaria y
hecho de “posproducción” artística, siguiendo a NicolasBourriaud.
Palabras clave: Traducción; hipermedia; postraducción; posproducción;
transdisciplinariedad
The key here is that the elements making up the unity are held together in
being held apart – they don’t lose their mutual differences but rather those
differences are precisely the unity – hence the necessity of struggle (polemos).
This polemos […] emphasizes the fact that the difference between elements
J is essential. It is not a neutral melting pot that collapses the differences be-
tween the elements, but rather a dynamic unity of polemos that is unified in
A and through the tension across differences. The elements don’t precede the
unity as self-subsistent atoms that then, subsequently, come into relation.
Rather, they first emerge as what they are in and through the dynamic uni-
L ty of struggle. At the same time, the “unity” here is nothing other than the
interplay among the elements that make it up (Kisner, enFoshay, 2011: 74).
L Cabe preguntarse si este modelo de ensamble no dialéctico2, que expone
las diferencias y, a la vez, desactiva los elementos de disonancia soldándolos en
A una “auto-subsistencia” que no precede a la unidad dinámica del modelo, sino
que radica en ella, neutralizando así la tensión, no favorece acaso los términos y
condiciones de relacionamiento de las dos partes que traban vínculo en el encuentro
de soportes de producción de significado, la Literatura y las Artes Visuales.
Pensar la traducción en el pasaje de una obra literaria al formato
• visual no solamente focaliza en los problemas de parcelar significados para luego
890 ensamblarlos, aun preservando la percepción de una tensión en la individualidad
de los elementos; también señala una dialéctica de “la confianza” y “la sospecha”
•
en el conspicuo relieve que adquieren la especificidad material de los medios de
representación, las técnicas, los programas de escritura y de creación plástica. Si
bien la premisa ética implícita en la tensión fedataria no radica en los procesos de
construcción de significado, sino en el producto que arroja la traducción, dicha
vinculación dialéctica procede de la trayectoria de elucidación de significado que
2 es propia de un proceso hermenéutico. Especialmente en la propuesta de Paul
Ricoeur (2005 [2004]), y siguiendo a Jean Grondin (2012 [2006]), se plantea que
0 en la experiencia de la interpretación del modo en que se objetiva el sentido se
debaten dos percepciones: una de la confianza y otra de la sospecha3. El efecto de
1 la conciencia sobre la arqueología del sentido podría naturalizar lo que se llama
“sentido”, o sea: automatizar el proceso de efectuación de “aquello que significa”.
8 Por eso es crucial detener el análisis en la aleatoriedad como factor de-
terminante de la condición relacional en la morfología retórica hipermedia
2 El de WendellKisner es un modelo de tipo emergentista para explicar la tensión diferencial entre
distintos enfoques disciplinares (2011: 76 y ss.); se trata de un modelo que procura superar la
comprensión de crisoles de identidad en que la diferencia colapsa en una igualdad indiferente (2011:
80 y ss.), como ocurre en casos en que se trabaja con las nociones de “identidad abstracta”, “identidad
negativa” o “identidad mecanicista”. El concepto de “ensamble no dialéctico” implicacómodamente la
noción de “identidadintegrada” (o “positiva”): “rather than being maintained through an indifference
to others, it is an identity that is produced in and through its relations to others” (2011: 84 y ss.).
3 En torno al conflicto entre la Hermenéutica y la crítica de las ideologías, se ha forjado en esa área
del saber una tendencia que secciona las aportaciones en orientaciones hacia la confianza, o bien
del blog de Kenny. El entorno mediático sobre el que este artista plástico
“traduce”la obra de Bodoc posee una composición formal que depende par-
cialmente del tipo de plataforma de alojamiento de información que es un
blog, y por otra parte, de una selección del mismo Kenny, quien “cuenta” a
partir del diseño. Tal como ocurre en las versiones fílmicas de obras litera-
rias, la pregunta que cabe hacerse es ¿Qué Guerra de Los Confines conoce
aquél que conoce la tetralogía de Liliana Bodoc a través de “El arte de Los
Confines” de Gonzalo Kenny?
J
El relato sobre Los Confines que brinda Kenny selecciona y compartimenta
tópicos y personajes, y los reúne en una convivencia de estéticas que no vulnera
A la aceptabilidad del resultado plástico, ni la lógica de referenciación fuertemente
subvertida – sobre todo, volviendo a la mentada “ley de deslocalización”, en la que
L asienta sus bases la noción relacional de Bourriaud. Según este teórico: “Cada obra
es [...] el modelo de un mundo viable. Cada obra [...] pasa por ese estado de mundo
L viable, porque hace que se encuentren elementos hasta entonces separados” (2013
[2006]: 19-20). Si la viabilidad se cierne ante el “mundo posible” – o “Los Confines
posibles” – en el blog de Kenny, es sólo por la esperable disposición parcelada de
A una sumatoria de fragmentos (04. Calendario 2012). Con todo, inquieta la idea de
subestimar el impacto que, con los cambios ocurridos al modificarse el soporte de
producción de significado, se operan sobre la reprogramación poética de Bodoc
tras la programación artística de Kenny. Vale decir que es preciso balancear la
confianza dispensando una cuota de sospecha acerca de la distinción entre los
•
proyectos creativos de la escritora y el dibujante. El tipo de “escritura hipertextual”
891 (Vandendorpe, 2003 [1999]) contenida en el blog de Kenny, considerando su obra
• al modo de un “texto de cultura” (según Lotman), funciona de marcador ostensible
de una necesidad de traducción que conlleva apropiaciones y reversiones con el
sello de “nuevo autor” y, fundamentalmente, del cambio en soportes, formatos y
fuentes. Sostiene Lotman que el “poliglotismo” artístico asiste en la aceptación del
“efecto traductor” en el curso de “una misma obra” por distintas artes:
2 Precisamente la diferencia en los principios de apropiación del mundo hace
que las diferentes ramas del arte se necesiten mutuamente. Se deben distin-
guir dos diferentes costados de este problema. Por una parte, diversas artes,
0
en dirección de la sospecha. Grondinsostiene que hay
[...] duasformas distintas de interpretação aparentemente incompatíveis:
1 a. A primeira provém de uma hermenêutica da confiança ou da “recolecção de sentido”:
ela assume o sentido tal como se propõe ao entendimento e tal como ele orienta a
8 consciência, sentido no qual se revela uma verdade mais profunda e que pertence a
uma hermenéutica amplificadora a explorar [...]
b. A ela vem, contudo, se opor uma hermenêutica da suspeita, que desconfia do sentido
tal como ele se ofrece, porque ele pode abusar da consciencia. O que aparece como
verdade pode não pasar de um erro útil, de uma mentira ou de uma deformação,
cuja arqueologia subterrânea hermenéutica da suspeita se propõe reconstruir.
Essaarqueologia pode ser ideológica, social, pulsional e estrutural (2012 [2006]:
100-101).
Puede reconocerse una mirada hermenéutica optimista y otra escéptica acerca de la posibilidad de
aproximarse a la construcción de sentido con una conciencia alerta de que el producto no reviste
un valor intrínseco, sino que resulta de lógicas pasibles de ser desnaturalizadas por su carácter de
herramientas heurísticas, e inherentes a los procesos interpretativos.
modelizando de manera diversa los mismos objetos, le dan al pensamiento
artístico humano la multidimensionalidad que éste necesita, el poliglotismo
artístico. Por otra parte, cada rama del arte, para la plena toma de concien-
cia de su conjunto de rasgos específicos, necesita de la presencia de otras
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J
A
L AS CONSEQUÊNCIAS PERNICIOSAS DO BULLYING NO CONTO
RAQUINHO, DE JOHN BARROSO
L
Maria Ivonete Santos Silva (UFU)
A RESUMO: A veemência e a intensidade da produção contística de John Barroso
revelam um olhar crítico e profundamente comprometido com as transformações
da intimidade e da subjetividade humana. No seu livro Contos Psicológicos (2011)
e, sobretudo no conto Raquinho, sua preocupação com os problemas que afligem
a integridade física e psicológica do personagem protagonista provoca no leitor
• uma atitude reflexiva, na qual ele próprio questiona seus conceitos, seus valores
e suas ações no mundo. Ao abordar o problema da violência sexual cometida
900
contra Raquinho e, concomitantemente o bullying -problema ético/moral e social
• de extrema gravidade -, John Barroso deixa em aberto, para uma reflexão mais
profunda, a conduta daqueles que optam pela conivência de ações intoleráveis,
além de suscitar outros questionamentos: as desigualdades sociais decorrentes
de injustiças históricas, os preconceitos contra os mais fracos e mais humildes, o
assentimento às malfeitorias daqueles que se sentem imunes às regras e punições,
2 o egoísmo, o desrespeito em face das diferenças, a violência doméstica, entre
outros. Nesta comunicação, além de refletir sobre as questões estéticas presentes
0 na narrativa do conto Raquinho, a proposta é investigar as inúmeras possibilidades
que a narrativa oferece para uma leitura crítica substancial da sociedade e dos
1 indivíduos, haja vista a urgência de se pensar o papel do homem no mundo
contemporâneo, esvaziado de sentido devido a perda da sua humanidade.
Palavras-chave: Bullying. Violência. Conivência. Desumanidade.
8
A produção contística de John Barroso, brasileiro naturalizado americano
e professor da Universidade de Pittsburg (EUA),se insere na ordem das chamadas
narrativas contemporâneas devido, não somente à atualidade dos temas por
ele abordados, mas, e principalmente, aos recursos expressivos utilizados na
articulação de tramas reveladoras de um profundo mal-estar social causado pelo
estado de alienação dos indivíduos em face de atitudes de violência, de conivência
e de desumanidade.
As possibilidades de análises de seus contos apontam na direção de
algumas vertentes literárias atualmente reconhecidas pela crítica especializada,
entre as quais se destaca o “Novo Realismo1” - movimento estético, artístico/cultural
e filosófico que surgiu na França por volta dos anos 60 do século XX, inicialmente
vinculado às Artes Plásticas, mas que nos anos subsequentes além de se expandir
por toda Europa e Estados Unidos incorporou procedimentos narrativos específicos
e muito peculiares à produção literária contemporânea.Por esta razão, ao definirem
conceitos e metodologias, alguns estudiososidentificam,como estratégia ou modo
J de articulação entre as distintas realidades e sua consequente formas de expressão,
a recorrência arecursos expressivosque asseguram uma maior aproximação do
leitor com as questões suscitadas nos textos literários que levam a marca do “Novo
A
Realismo”.
L Em seu livro Ficção brasileira contemporânea (2009), o professor-
pesquisador e crítico literárioKarl Erik Schøllhammer, ao analisar a produção
narrativa das últimas décadas, destaca a heterogeneidade ou a confluência de
L recursos expressivosutilizados na elaboração de textos literários que tentam
abarcar a realidade.Em suas argumentações, e em defesa do “Novo Realismo”,
A ele problematiza o conceito de contemporâneoretomando o posicionamento de
pensadores como Giorgio Agamben e Nietzsche. A ideia é demonstrar como no Brasil
a crítica literária “ressalta insistentemente o traço da presentificação[…] visível no
imediatismo de seu processo criativo e na ansiedade de articular e de intervir sobre
uma realidade presenteconturbada”. (SCHØLLHAMMER, 2009, p.11-12).
• A partir de tal problematização, Schøllhammerressalta diferenças
901 fundamentais entre o realismo histórico do século XIX e o realismo atual ou “Novo
Realismo”. E, ainda, sobre o “Novo Realismo” e sua problemática conceituação
•
devido ao entrecruzamento de formas híbridas, em outro ensaio denominado Além
ou aquém do realismo de choque?Schøllhammer, fazendo referência às ideias de
Alain Badiou, presentes no livro O século (2007), afirma:
Alain Badiou não se interessa pelo realismo num sentido tradicional e que
o real, objeto da paixão do século, não deve ser confundido nem com a rea-
2 lidade da experiência comum nem com o realismo comprometido com uma
tradição mimética. Pelo contrário, o real parece ser perceptível apenas como
0 resultado de uma relação contrafactual entre realidade e representação que
torce ou rompe com os laços de semelhança e apenas pode ser reconhecido
indiretamente num ato de paixão reflexiva. (SCHØLLHAMMER, 2011, p. 80).
1
O “Novo Realismo”, portanto, se apresenta como uma forma de narrar
que se responsabiliza pela incorporação de uma visão circunstancial da vida e,
8
nesse sentido, não tem como objetivo buscar em estilos literários do passado
referências e métodos narrativos. O próprio Schøllhammer2 afirma que não está
comparando estilisticamente os escritores de hoje (sobretudo os que publicaram
1 Novo Realismo ou Nouveau Réalisme foi um movimento artístico e cultural fundado por Yves Klein
e pelo crítico de arte Pierre Restany, em 1960, por ocasião da primeira exposição coletiva de um
grupo de artistas franceses e suíços na galeria Apollinaire de Milão. O movimento foi considerado
uma das formações mais importantes da neo-vanguarda europeia do pós-guerra e mais tarde suas
principais características foram assimiladas pelas produções literárias.
2 A afirmação de Schøllhammer, encontra-se registrada em Ficção brasileira contemporânea (2009),
obra anteriormente citada
depois de 2000, corpus central de sua pesquisa), com os escritores realistas do
passado, pois está ciente de que não há um retorno às técnicas de verossimilhança
descritiva e de objetividade narrativa como ocorria no passado. Para o crítico, na
prosa contemporânea, é possível encontrar
(...) a vontade ou o projeto explícito de retratar a realidade atual da socieda-
de brasileira, frequentemente pelos pontos de vistas marginais ou periféri-
cos. Não se trata, portanto, de um realismo tradicional e ingênuo em busca
J da ilusão de realidade. Nem se trata tampouco, de um realismo propria-
mente representativo; a diferença que mais salta aos olhos é que os “novos
realistas” querem provocar efeitos de realidade por outros meios. (SCHØL-
A LHAMMER, 2009, p. 53-54).
De acordo com as proposições de Schøllhammer,o “Novo Realismo”tem
L uma vontade de ser referencial, mas não necessariamente de ser representativo ou
de estar engajado a nenhuma corrente político-ideológica específica. Considerando
L o grande interesse da mídia pelas várias formas de dar ênfase à realidade, o que no
dizer de Schøllhammer se chama “demanda pelo real”, os escritores conscientes da
A função transformadora da literatura se deparam
(...) com o problema de como falar sobre a realidade brasileira quando todos
os fazem e, principalmente, como fazê-lo de modo diferente, de modo que
a linguagem literária faça uma diferença. É possível mostrar que a busca
por um efeito literário ou estético, com força ética de transformação, de fato
existe e se apresenta claramente na preocupação em colocar a realidade na
• ordem do dia. Essa procura por um novo tipo de realismo na literatura é
movida hoje, pelo desejo de realizar o aspecto performático e transformador
902
da linguagem e da expressão artística, privilegiando o efeito afetivo e sensí-
• vel em detrimento da questão representativa. (SCHØLLHAMMER, 2009, p.
56-57).
3 A cultura traumática é uma cultura de interiorização do impacto, em que fica difícil discernir o
exterior e o interior, a percepção e a fantasia, o físico e o psíquico e até mesmo a causa e o efeito
(SCHØLLHAMMER, 2009. p. 115).
arrebatamento do leitor diante de “cenas” de grandes impactos ou de grandes
constrangimentos.
Em quase todos os contos de “Contos Psicológicos”, o narrador
comprometido com uma realidade de violência, uma vez que faz parte dela,expõe as
intimidades da personagem protagonista, fazendo com que o leitor também assuma
a condição partícipe ou de testemunha de situações constrangedoras, vexatórias
e, em alguns casos, de extrema crueldade, como se pode observar na análise do
J conto a seguir.
O conto “Raquinho”
A O desejo de realizar o aspecto performático e transformador da linguagem
e da expressão artística, do qual reiteradamente se refere Schøllhammer, se
L apresenta nos contos de Barroso como um dos elementos composicionais de
extrema relevância, na medida em que ele trata de dar, como resposta aos desafios
L enfrentados pela produção literária contemporânea outra dimensão de uma
realidade marcada pela violência, pela conivência e pela desumanidade.
A Em Raquinho, conto que faz parte da coletânea do seu livro “Contos
Psicológicos”,é visível a construção de uma consciência crítica que subjaz à história
narrada e que tem por objetivo mostrar o lado perverso e desumano das personagens
envolvidas na trama. Cumpre-se a partir de procedimentos narrativos voltados
para a reflexão de temas aparentemente desimportantes - e o conto Raquinhoé um
• bom exemplo disso -, a função que se impõe ao “Novo Realismo”e cujo movimento
que “se expressa pela vontade de relacionar a literatura e a arte com a realidade
903
social e cultural da qual emerge, incorporando essa realidade esteticamente dentro
• da obra e situando a própria produção artística como ‘força transformadora’”
(SCHØLLHAMMER, 2011, p. 54).
Em seus contos, Barroso traz à tona personagens que experimentam
sentimentos e situações distintas: algumas extremamente sensíveis, carregadas de
um lirismo patético principalmente no plano psicológico e emocional, expressam
2 dramas existenciais que denotam certa complexidade; outras trazem as marcas da
violência de forma explícita - as marcas das desigualdades sociais, das injustiças e
0 da falta de reconhecimento para com a humanidade do outro. No conto selecionado
para análise, a personagem-protagonista, Raquinho, incorpora esses dois modelos
1 de composição.
A narrativa, que envolve adolescentes de um mesmo ambiente escolar é
feita por meio de alguém que, em princípio, compactua com as atitudes de extrema
8
violência promovidas pelo pior agressor: o estuprador de Raquinho. Logo no início,
o narrador diz: “Naquela semana, diversão era aterrorizar Raquinho” (BARROSO,
2011, p. 27). Em seguida, em uma atitude de quem tenta dissimular sua culpa
pelos atos praticados ele acrescenta: “A ideia era do meu melhor amigo, que sempre
tinha ideias e eu, não sei porque, sempre o ajudando a concretizá-las” (BARROSO,
p. 27).
Uma descrição minuciosa das caraterísticas físicas de Raquinho
colaboram para que o leitor imediatamente tome ciência das condições degradantes
do personagem:
O Raquinho era um moleque também de treze anos, mas com aparência de
dez, devido à fome. Também devido à fome tinha barriga gigante onde se
hospedavam lombrigas. Sua cabeça parecia enorme devido o corpo magri-
nho (BARROSO, 2011, p. 27).
1 Aos poucos o próprio narrador deixa entrever suas suspeitas: seu melhor
amigo, na verdade não era de fato seu amigo. Vários são os indícios que, ao longo
8 da narrativa, revelam a personalidade deformada do amigo estuprador, dele próprio
e até mesmo da professora que, mesmo percebendo a situação de anormalidade
entre os alunos, não intervia para solucionar os problemas: “Na segunda-feira, na
sala de aula, lá estava Raquinho. A Professora o olhou sem piscar e prosseguiu
na aula de verbos intransitivos”. (BARROSO, 2011, p. 30). Em seguida, em uma
demonstração de repúdio às atitudes de seu melhor amigo ele se nega a participar
de mais um estupro conta Raquinho. Ele descobre que, sem sua participação,seu
melhor amigo perdia força, se sentia desmotivado a cometer aqueles atos de extrema
violência:
Naquele intervalo o meu melhor amigo havia me batido nas costas, já prepa-
rado para correr atrás de Raquinho. Eu vacilei e ele disse: “vamos lá”! Mas
eu não fui, fingi querer ir ao banheiro, comecei a andar para o outro lado.
Pós insistir um pouco, o meu melhor amigo riu largamente, agora rindo de
mim e preguntando se eu estava afrouxando. “Estou cansado”. Sozinho, ele
desistiu de se divertir com Raquinho, elo menos por um dia. Enfraquecido e
marcado, foi dia de folga: o Raquinho não precisou correr naquela segunda-
-feira (BARROSO, 2011, p. 30).
•
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8
J
A
L CAIS NÃO DORME: O PORTO NO CONTO-REPORTAGEM: “UM DIA
NO CAIS”, DE JOÃO ANTÔNIO
L
Mariana Filgueiras de Souza (UFF)
A RESUMO: Este trabalho analisa o simbolismo do espaço do cais em diferentes
excertos literários brasileiros. País com sua história colonial marcada pela chegada
de naus portuguesas a Porto Seguro em 1500, e com 37 portos em sua orla, o
Brasil tem no cais importante elemento representativo na sua literatura. Ora como
referência de origem, ora como ante-sala idílica pararecepcionar imigrantes, ora
• como espaço de socialização e de formação de uma classe trabalhadora, o cais
absorve a mudança do olhar de escritores em relação ao espaço periférico das
908
cidades. Em João Antônio, o cais aparece pela primeira vez como personificação
• da sociedade, com subjetividade construída nas relações sociais, comerciais e de
trabalho. A partir da reflexão do lugar do escritor de Jonathan Crarye do conceito
de não-lugar de Marc Augé, verifica-se como o ambiente híbrido, unindo mar e a
terra, é contado por um gênero híbrido, unindo conto e reportagem.
Palavras-chave: Cais. Periferia. Hibridismo
2
Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
Álvaro de Campos, 1915
0 A cidade, os prédios e os morros dormem de todo. Cais não dorme. Não se apaga. Lá pelos
cantões, um que outro olho aceso fica no rabo da manhã. E fica.
João Antonio, “Um dia no cais”, 1968
1
Em O pensamento do coração e a alma do mundo, o psicólogo James
Hillman lembra que cada elemento da vida urbana tem importância psicológica.
8 Mas também observa, com consternação,que “o mundo das coisas públicas,
objetivas e físicas – prédios, formulários, colchões, placas de trânsito, embalagens
de leite, ônibus – é excluído da etiologia e da terapia psicológicas” (HILLMAN, 2010,
p. 85). Apesar de terem importância, as coisas públicas permanecem fora da alma,
argumenta, e deixam de ser incorporadas aos tratamentos psicológicos:
(...) as queixas dos pacientes evidenciam problemas que não são mais me-
ramente subjetivos, no sentido antigo. Pois, durante o tempo em que a psi-
coterapia teve êxito em aumentar a consciência da subjetividade humana, o
mundo no qual todas as subjetividades são estabelecidas se desintegrou. A
crise está num lugar diferente (...) A doença está agora “lá fora” (HILLMAN,
2010, p. 85).
1 Expressão em latim que significa “a alma do mundo”, foi um conceito adotado por Platão em A
república, Timeu e Leis que se consiste em uma alma compartilhada pelo mundo, inseparável da
matéria.
2 De acordo com os dados oficiais da Secretaria Nacional de Portos, visualizados em 28 de janeiro
de 2018, em http://www.portosdobrasil.gov.br/assuntos-1/sistema-portuario-nacional, existem
37 portos públicos organizados no país, entre os quais portos com administração exercida pela
União ou delegada a municípios, estados ou consórcios públicos.
piolho e assobios” (MATOS, 1994, p.166). É o “meu cais”, o espaço de pertença na
terra onde resolveu viver, o pouco que tem além dos piolhos e assobios.
Outro exemplo marcante remonta ao século XIX: o Cais Pharoux, no Rio
de Janeiro, que também era conhecido como Cais dos Franceses (hoje, Praça XV),
e que emerge na literatura de Machado de Assisde maneira recorrente em crônicas,
contos e romances. Numa época em que os estrangeiros só poderiam chegar ao país
de navio, bem como todas as mercadorias e novidades, o Cais Pharoux é o primeiro
J oásis tropical para os desembarcados. O cais não é mais apenas a referência de
origem, como em Gregório de Matos, mas passa a ser também um personagem:
A o cais é belo, atraente, receptivo, um lugar onde as esperanças tomam fôlego.
No romanceEsaú e Jacó, de 1904, o cais era o início de um espetáculo: “No cais
L Pharoux esperavam por ele três carruagens, dois coupés e um Landau, com três
belas parelhas de cavalos. (...) A capital ofereciaainda aos recém-chegados um
espetáculo magnífico” (ASSIS, 2005, p. 79).
L
No romance Quincas Borba, de 1891, o mesmo cais aparecia como o
espaço das novidades, da modernidade, um microcosmo do mundo inteiro, com seus
A múltiplos sotaques e atividades simultâneas, provocando confusão ao personagem
que tomava contato com o lugar pela primeira vez. Numa das cenas do romance, o
personagem Rubião sofre um apagão ante todos aqueles estímulos:
Rubião acordou. Era a primeira vez que ia a um paquete. Voltava com a
alma cheia dos rumores de bordo, a lufa-lufa das gentes que entravam e
• saíam, nacionais, estrangeiros, estes de vária castas, franceses, ingleses,
alemães, argentinos, italianos, uma confusão de línguas, um cafarnaum
910
de chapéus, de malas, cordoalha, sofás, binóculos a tiracolo, homens que
• desciam ou subiam por escadas para dentro do navio, mulheres chorosas,
outras curiosas, outras cheias de riso, e muitas que traziam de terra flores
ou frutas, — tudo aspectos novos. Ao longe, a barra por onde tinha de ir o
paquete. Para lá da barra, o mar imenso, o céu fechado e a solidão. Rubião
renovou os sonhos do mundo antigo, criou uma Atlântida, sem nada saber
da tradição. Não tendo noções de geografia, formava uma idéia confusa dos
2 outros países, e a imaginação rodeava-os de um nimbo misterioso. (ASSIS,
1997, p.94)
0 Na crônica publicada em 20 de outubro de 1895, no jornal A semana, ao
imaginar a chegada da famosa anarquista francesa Louise Michel (1830-1905) ao
1 Rio, evento improvável e relatado com sátira, Machado também reforça o cais como
espaço onde se fundava a primeira impressão do Brasil:
8 Desde que li a notícia da vinda de Luísa Michel ao Rio de Janeiro tenho esta-
do a pensar no efeito do acontecimento. A primeira cousa que Luísa Michel
verá, depois da nossa bela baía, é o cais Pharoux atulhado de gente curiosa,
muda, espantada. A multidão far-lhe-á alas, com dificuldade, porque todos
quererão vê-la de perto, a cor dos olhos, o modo de andar, a mala. (ASSIS,
1995, p.293).
916 ANTÔNIO, João. Malhação do Judas Carioca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. 3v.
•
AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. 6a. edi-
ção. Trad. Maria Lúcia Pereira. Campinas, São Paulo: Papirus, 1994.
AZEVEDO FILHO, Carlos Alberto Farias de. Hibridismo e ruptura de generos em João
Antônio. Tese de doutorado. Universidade do Estado de São Paulo: Assis, 2008.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. 2a. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
2
BILAC, Olavo. Crônica publicada da Gazeta de Notícias em 23/11/1902
CAYMMI, Dorival. Cancioneiro da Bahia. Rio de Janeiro: Record, 1978.
0
CRARY, Jonathan. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2012.
1 HILLMAN. O pensamento do coração e a alma do mundo. Rio de Janeiro: Verus Editora,
2010.
8 LONGO, Mirella Márcia. Memórias do cais: Caymmi, canções e fontes. In: Literatura e
sociedade. No. 4. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999.
RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
SCALZO, Marília. Jornalismo de Revista. São Paulo: Contexto, 2003
SEVERIANO, Mylton. Paixão de João Antonio. São Paulo: Casa Amarela, 2005.
J
A
L HINO DO SERINGUEIRO: MÚSICA CANTADA PELOS
SERINGUEIROS DE XAPURI NOS EMPATES COMO
L ENFRENTAMENTO AO PODER
A Marilene Nascimento da Silva (UFF)
RESUMO: Este texto o qual apresenta informações de uma dissertação de Mestrado
em andamento, pretende reconhecer a música, de autoria de Toinho do Jutai,
denominada Hino do Seringueiro, cantada originalmente pelo movimento de
seringueiros do município de Jutaí - Am, motivado pelas Comunidades Eclesiais
• de Base – CEBs e pelo Movimento de Educação de Base – MEB, ambos ligados
917 à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, que tornou-se, para os
seringueiros de todos os Estados da Amazônia presentes no I Encontro Nacional
• de Seringueiros (1985), como símbolo de enfrentamento ao poder cantado nos
Empates pelos seringueiros de Xapuri – Ac. Este texto está vinculado ao programa
de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade da Universidade Federal do
Acre – UFAC e tem como objeto de estudo a Memória das Práticas Educativas do
Projeto Seringueiro. E o seu objetivo é Analisar as práticas educativas do Projeto
2 Seringueiro na formação dos alfabetizandos adultos acerca das questões cotidianas
e insere-se na metodologia dos estudos qualitativos e documental.
0 Palavras-chave: Música, empates, seringueiros.
1 A música, enquanto disciplina histórica insere-se na história da arte e no
estudo da evolução cultural dos povos. A teoria da área cultural analisa a música
de acordo com as regiões nas quais as pessoas compartilham a mesma cultura,
8 sem atribuir a essas áreas um significado ou valor histórico. A essas práticas,
Napolitano (2002) chama de música popular ou canção. Para este autor, a música
popular é um produto do século XX “adaptada a um mercado urbano e intimamente
ligada à busca de excitação corporal (música para dançar) e emocional (música
para chorar, de dor ou alegria...)” (p. 8).
Em sua gênese, a música popular, segundo Napolitano (2002),está
associada à urbanização e ao surgimento das classes populares e médias urbanas.
Esta nova estrutura socioeconômica, conforme o autor, é produto do capitalismo
monopolista, o qual fez com que o interesse por um tipo de música intimamente
ligada à vida cultural e ao lazer urbano, aumentasse. Daí as relações entre música
popular e história, assim como a “história da música popular no Ocidente, passou
a ser pensada dentro da esfera musical como um todo, sem as velhas dicotomias:
erudito versus popular” (p. 9).
Napolitano (2002) assegura, ainda, que aos meados de 1890, inaugura-
se o surgimento da cultura de massa e as novas estruturas monopolísticas, a qual,
segundo ele, passa a tomar conta do mercado.Com isso, surgem novas formas de
J dança e espetáculos. Outro momento significativo apontado por Napolitano é o que
marca a mudança na música popular, cujo acorrido se deu depois da II Guerra
A Mundial. De acordo com o autor
Nesse contexto, a experiência musical é o espaço de um exercício de “li-
berdade” criativa e de comportamento, ao mesmo tempo em que se busca
L a “autenticidade” das formas culturais e musicais, categorias importantes
para entender a rebelião de setores jovens, sobretudo oriundos das classes
L trabalhadoras inglesas ou da baixa classe média americana. (p. 9)
Nesse sentido, ele assegura que a música popular emergiu do sistema
A musical ocidental, tal como foi consagrado pela burguesia no início do século
XIX. Já a dicotomia popular/erudito nasceu mais em função das próprias tensões
sociais e lutas culturais da sociedade burguesa, do que por um desenvolvimento
natural do gosto coletivo, em torno de formas musicais fixas. Para ele, a questão
da música popular deve ser entendida e analisada dentro do campo musical como
• um todo e que deve nortear os trabalhos sobre música popular, principalmente na
918 área de história e sociologia.
Daí, dentre outras, a diferença entre CNS e CNB. O primeiro foi criado
pelos seringueiros, em 1985 no I Encontro Nacional dos Seringueiros. Já o segundo,
2 existia desde a época do mandonismo militar, aparecendo como representante e
defensor dos seringalistas, os patrões, que eram considerados como produtores
0 de borracha. Se os patrões e os seringalistas não produzem borracha, não havia
motivos para eles terem um conselho para beneficiá-los!
1 O senhor Jaime da Silva Araújo, que foi eleito o primeiro presidente do
CNS, compôs, com base na música do hino, uma segunda estrofe que foi a ele
8 anexada. Ei-lo abaixo.
“Pneu de bicicleta não é de requeijão!
Não é couro de gado o pneu do avião!
Não é com chifre de vaca que se apaga letra, não!
São produtos de borracha feitos pelas nossas mãos!”
Lendo os versos compostos pelo senhor Jaime, o leitor poderá identificar
algumas afirmações referentes aos produtos derivados da borracha que são positivos
para a sociedade e que contrastam com a produção agropecuária, mostrando que
estes não substituem aqueles.
Essa contradição de imagens torna-se relevantes para a compreensão da
indignação do seringueiro no que diz respeito à outra forma de exploração humana e
da natureza até então desconhecida por ele. No dizer de Souza (2016) “no serialismo
se instala a divisão instaurada pelo regime moderno-colonial entre seres humanos
(os patrões), seres sub-humanos (os seringueiros) e seres não humanos (animais,
plantas e indígenas)” (p.67).
No entanto, aqui se tem uma relação conflituosa. Ao produzir borracha
J o seringueiro não desmata a floresta, pois ele sabe cultivar a terra com equilíbrio,
fruto de sua observação da natureza e do aprendizado com os indígenas, primeiros
A donos da terra americana. Por outro lado, pensando nos produtos advindos
da criação bovina, tem-se primeiramente a floresta derrubada, a presença de
L queimadas, o assoreamento dos rios e a secagem de igarapés que os enchem e
drenam, entre outros prejuízos para a vida humana, animal e vegetal. Ainda na
fala de Chico Mendes, constata-se que a quantidade de terras que os fazendeiros
L desmataram entre as décadas de 1970 e 1980, foi superior a totalidade da que
todos os seringueiros da Amazônia desmataram em cem anos.
A Outra questão que a estrofe composta pelo senhor Jaime problematiza de
forma implícita, e que está expressa no verso “não é com chifre de vaca que se apaga
letra não [...]” diz respeito ao analfabetismo. Os seringueiros eram analfabetos,
portanto havia um maior grau de dificuldade em se organizarem sendo que a
sociedade em que eles estavam inseridos era grafocêntrica, o que agravava para
• essas pessoas que não sabiam ler e nem escrever ter acesso a formas escritas que
922 lhes propiciasse uma ampliação da consciência crítica a curto prazo, sobretudo no
que diz respeito aos conhecimentos que os usurpadores de seus territórios diziam
•
estar grafados em documentos validados pela escrita das autoridades, como o juiz
e o delegado. Para esses homens e mulheres o escrito tem um poder muito forte
e eles achavam que do alto de seus analfabetismos, não estavam à altura para
empreender a luta em defesa dos seus interesses e direitos que já vinham decretados
pela escrita apresentada pelos patrões seringalista e os fazendeiros como não
2 existentes. Para Chico Mendes, “foi exatamente isso o que o patrão fez para que
o seringueiro não se organizasse”. Mas, segundo Chico Mendes, os seringueiros
0 foram aos poucos superando essa inercia da falta de escolarização e começaram a
articular uma forma de criar um método de educação popular, a ponto que:
1 No início do ano de1981 nós construímos uma escola no meio da mata e com
o apoio de algumas entidades e de pessoas daqui e de São Paulo, ligadas ao
Paulo Freire, essas pessoas fizeram uma equipe, elaboramos uma cartilha
8 denominada PORONGA3 [...]. A cartilha, PORONGA, seria mais uma luz que
iria indicar os rumos da caminhada do seringueiro a partir daquele momen-
to. [...] A cartilha ensinava não só a ler e escrever, [...] Ela ensina como se dá
o ligamento do homem com a natureza, do amor que ele deve ter com a flo-
resta, pela sua sobrevivência, a forma como ele deve descobrir alternativas
3 PORONGA é uma lamparina feita com folha de flandres e alimentada com querosene, semelhante
a que os mineiros utilizam no interior escuro das minas. Como as dos mineiros, a poronga dos
seringueiros também é adaptada à cabeça e os seringueiros a usavam para caminhar na selva à
noite, com as mãos livres para realizar as atividades de extração do látex.
para sua sobrevivência na selva e ensina ao mesmo tempo alutar em defesa
daquela floresta. (Doc. A Luta dos Povos da Floresta: Chico Mendes). (p. 11)
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A
L DEUS NO ROMANCE EL HABLADOR DE MÁRIO VARGAS LLOSA
L Marinete Luzia Francisca de Souza (UFMT)
RESUMO: O premiado autor peruano Mario Vargas Llosa tem se dedicado a diversas
A temáticas ao longo de sua carreira, uma delas é a cultura amazônica ensaiada em A
Casa Verde (1966) e ampliada no pouco conhecido romance El Hablador (1987), no
qual ele cria um narrador indígena e um crioulo.Romance narrado a duas vozes, é
motivo para apresentação do onipresente do deus machinguenga, Tasurisnhi. Essa
condição não é questionada pelo narrador crioulo, nem pelo autor empírico, pois
• ele é sempre tido como uma criação do coletivo indígena, um deus algo imaginário.
Deus e o sagrado estão relacionados, no texto de Vargas Llosa, às ações, ou melhor,
925
a prática religiosa e ao modo como essa prática se vai modificando em função dos
• sucessivos encontros que se processam no interior da floresta, com os Incas, com
os espanhóis e, por fim, com os exploradores da borracha.
Palavras-chave: Literatura; Mário Vargas Llosa; El Hablador; Amazônia.
Mário Vargas Llosa e o deus machinguenga
•
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J
A
L DECONSTRUCCIÓN DE LA IMAGEN POÉTICA EN JAIME SAENZ:
EL CONCEPTO DE ‘FRAGMENTACIÓN DEL SER’ DE BACHELARD
L A PARTIR DEL ESPACIO COTIDIANO DE LA CASA EN LA NOVELA
LOS CUARTOS DE JAIME SAENZ
A
Melisa Balderrama Siles (UMSA)
RESUMEN: La imagen poética central en Bachelard es la casa. La casa como un
espacio de origen, refugio y despliegue del Ser. En Los cuartos de Jaime Saenz,
este espacio constituye un lugar fragmentario, donde es imposible que el Ser
• pueda ocupar su lugar pleno; no sólo debido a que no existe una casa como tal
934 (los cuartos son espacios deconstruidos e independientes), sino también porque
se producen rupturas en el Ser de la Tía, personaje principal de la novela, que
•
la llevan a declarar que su alma ha ingresado en la oscuridad. El espacio de la
casa, cuya integración conforma la imagen poética para Bachelard, es morada
del Ser, pero siendo esta casa fragmentaria para Saenz. ¿Cómo puede entonces
habitar el Ser? Los cuartos propone, desde este punto, otra forma de habitar el Ser
que deconstruye, no solamente la temporalidad ya planteada por Heidegger sino
2 también, la espacialidad de Bachelard.
Palabras clave: Poética. Espacio. Habitar. Ser. Imagen.
0
Bachelard y Saenz: dos cercanos (des)conocidos
Veintiocho años separan la obra de Gastón Bachelard (1957) y la novela
1
de Saenz (1985), pero no es imposible pensar que aquel autor boliviano de expresión
seria y ceño fruncido haya resultado lector del gran autor francés. Al menos así se
8 imaginará (utilizando el término en los amplios conceptos de ambos autores) en
estas páginas.
Si no se quiere elucubrar sobre la relación textual que hubiese podido
tener Jaime Saenz con Bachelard, no es necesario hacerlo; sin embargo, y esto es
una cosa cierta, no se puede negar que la pregunta por el Ser y el estar, en relación
al habitar el espacio, han sido (pre)ocupaciones constantes del escritor paceño.
Para Saenz, en el Ser y estar existe una construcción de identidad en la que reside
su obra poética y novelesca.
J
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Fig. 1: Jaime Saenz en los años 70 fotografiado por Alfonso Gumucio Dagrón
A
Una visión: la ciudad de La Paz
Es necesario ahora, hacer un paréntesis y conocer al escritor paceño que
inspira estas páginas.
Jaime Saenz Guzmán (1921 - 1986) nacido en La Paz y anclado a ella en
• alma y obra hasta su muerte, es uno de los escritores bolivianos más importantes
935 del siglo XX cuya obra abarca la poesía, novela, drama, ensayo y crítica, áreas en
• donde destaca sin lugar a duda; quizás la poesía sea su mayor virtud, aunque sus
novelas no quedan atrás, considerando que Felipe Delgado su novela más extensa,
es parte de las 10 obras fundamentales de la narrativa boliviana. El centro de su
obra siempre ha sido la ciudad de La Paz y sus vericuetos. Probablemente no sea
difícil entender el porqué de esta inquietud y fascinación por la ciudad, pero su
2 particular manera de retratarla deja interpretaciones sueltas y constante diálogo
hasta el día de hoy.
Quizás una de las cosas que haya provocado el encanto por la ciudad
0
de La Paz sea su cartografía: una hoyada a 3600 msnm cuyas calles, ríos, casas y
habitantes se confunden en laberintos intrincados de subidas y bajadas. Quizás
1 haya sido la transculturización de la cultura aymara que (con)vive con la ciudad
constantemente. Quizás los personajes que tipifican los misterios de la ciudad
8 perfectamente ocultos en los rincones variopintos. Quizás el paso de las cuatro
estaciones en un solo día. Quizás la asfixia de sus calles y el ruido de su constante
prontitud. Quizás todo, quizás nada. Probablemente sea, sobre todas las cosas,
lo que refiere su sobrina Gisela Morales, respecto a la relación de su tío con la
ciudad: “Tal vez no es que la ciudad tiene algo por sí misma, sino cómo uno la mira
y vive, dentro de una dinámica socio cultural que la construye y de-construye,
recreándola permanentemente.” (VASQUEZ, 2014) Y sí, lo cierto es que la visión de
Jaime Saenz es la que convierte a La Paz en la ciudad de su obra.
J
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Fig. 2: Ciudad de La Paz. Fotografía de Miguel Burgoa Valdivia (2018)
A
Bachelard y la imagen poética
Gastón Bachelard, autor inclasificable que le dedicó gran parte de su vida
al estudio de la imaginación en la literatura, trabaja su obra La poética del espacio
desde la perspectiva de la imagen, desarrollando una fenomenología en torno a
• ésta. El principal elemento de esta fenomenología de Bachelard es, en efecto, la
936 imagen poética que opera en el ser en tanto sublimación de sí misma.
• La imagen poética de Bachelard funciona como signo o símbolo de una
realidad latente fuera de nosotros, aunque siempre sea autorreferencial; al mismo
tiempo, esta imagen parte de lo más interno de nosotros, parte desde el propio Ser.
¿Cómo está esta imagen presente en el texto? Para Bachelard existen
dos niveles de existencia de la imagen poética, el primer nivel es la resonancia
2 y seguidamente se encuentra la repercusión. La resonancia es una especie de
percepción de la imagen literaria, mientras que la repercusión es la capacidad de
apropiación y contestación de la misma imagen; en palabras del propio Bachelard:
0
“En la resonancia oímos el poema, en la repercusión lo hablamos, es nuestro. La
repercusión opera un cambio del ser.” (BACHELARD, 1957, p. 14).
1 Esta imagen es siempre novedosa, pertenece al presente pues está en un
constante devenir.
8 El autor califica a la creatividad como origen de la imagen poética, “…al
desprender de este valor de origen de diversas imágenes poéticas debe abordarse,
en un estudio de la imaginación, la fenomenología de la imaginación poética.”
(BACHELARD, 1957, p. 16). La casa entonces no es sólo una imagen, sino también
el espacio donde habita el Ser que es, a su vez, el productor de la imagen poética.
La casa, Los cuartos
Bachelard plantea la idea de que el Ser habita un espacio y a partir de
esa toma física de un lugar es cuando se genera la imagen poética. Una imagen
común, por tanto, es la casa o refugio con todos sus elementos internos (miniaturas,
rincones, etc.)
A partir de esta premisa, el habitar un espacio se convierte entonces
en un requisito para la plenitud del Ser y un requisito, además, para la creación
poética de cualquier autor. Habitar un lugar se convierte también en una necesidad
de pertenencia de dicho espacio físico donde se pueda realizar el acto mismo de
crear y desplegar el Ser.
J Los cuartos de Jaime Saenz es una historia precisamente sobre la
pertenencia del espacio físico y cómo a partir de éste se pueden generar reflexiones
A sobre la vida misma. En la novela, el habitar se convierte en una necesidad imperiosa
para los personajes; necesidad que determina su vida no solo a niveles externos,
L sino también internos: se deambula por el espacio físico en búsqueda de la quietud
del Ser. Para Leonardo Pabón, quien prologa la primera edición de Los cuartos:
L Los cuartos relata lo sucesos -apariciones y desapariciones- de infinidad de
seres que, en torno a un personaje femenino (la tía), van tejiendo una exis-
tencia asociada a la búsqueda de un espacio habitable: una morada, una
A vida, un calor, un cuarto donde estarse. Y como si cada vez que se encontra-
se, se tuviese que pagar por ello, la muerte, la desgracia, la soledad, obligan
a la tía a seguir inexorable su búsqueda de espacio humano. Su hermana,
el Ismael, Soledad Vaca, el Paucara, cada uno a su turno, se le acercan
para quererla, ayudarla o solicitar su protección; y forman espacios donde,
breve pero intensamente, se vive en armonía. En cada espacio así formado,
• a fuerza de estoicismo, brillará la profunda alegría (unida al humor de la
narración) de estar en el mundo. (SAENZ, 1985, contratapa)
937
• El habitar un espacio físico también está relacionado con habitar un
tiempo, que es el tiempo de la Tía en la novela. La idea de habitar pasa al plano
temporal producto de la imaginación que retiene la memoria y actualiza los
recuerdos en el tiempo.
Los cuartos en los que habitan la Tía y el resto de los personajes, son
2 al mismo tiempo espacios físicos habitables y una metáfora que demuestra el
ejercicio de la imaginación Bachelardiana en Saenz. Son metáfora del propio Ser
0 (interno) así como del Universo (externo) y develan una profunda reflexión sobre
nuestra relación con los espacios que ocupamos a lo largo de nuestra vida y cómo
estos terminan definiendo nuestra condición humana y de existencia temporal en
1 el mundo.
8
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•
938
•
En los rincones
2 Tal como hace énfasis Bachelard para hablar se piensa, pero para
escribir se reflexiona. La relación del habitar tanto en Saenz como en Bachelard
0 está conectada también al agazaparse, actitud propia de los rincones: “sólo habita
con intensidad quien ha sabido agazaparse” (BACHELARD, 1957, p. 30)
1 Aunque la casa no sea completa en la novela, cada cuarto que ocupan
la Tía y el resto de los personajes tiene aquellos rincones donde se esconden
pedazos y composiciones del Ser; pero no es casual que la casa esté fragmentada
8
en cuartos. La casa que se constituye en Bachelard como un elemento de totalidad
y redondez, es en Saenz más bien fragmentaria. No se hable de una casa íntegra y
cerrada por cuatro paredes, sino más bien de habitaciones pequeñas, recónditas e
independientes, caracterizadas desde el principio por su plano más físico y visual:
“Los cuartos sumidos en la penumbra son grandes, fríos y desolados, y tienen olor
a cotense, a huacataya, a chalona, y a guardado.” (SAENZ, 1985, p.7)
El cuarto de la Tía es el principal abarrotado de presencias físicas, objetos
y paso de personajes que dejan su impresión “Hay bañadores aplastados, baldes
abollados, botellas pulverizadas y cotenses petrificados, y quién sabe qué mundo de
cosas, en este pasadizo.” (SAENZ, 1985, p.8) Aunque los espacios físicos empiezan
siendo una ‘casa’, la fragmentación se da casi de manera inmediata: producto de
la humedad, los ahorros de la Tía y su hermana se pierden por completo y ellas
deben mudarse a un galpón donde jamás logran alcanzar la sensación de habitar;
a pesar de que al poco tiempo regresan a los cuartos, la muerte de la hermana
produce que no se vuelva a tener la sensación de ‘casa’ nunca más y es allí donde
empieza la deconstrucción de la imagen, seguido por el nuevo traslado de la Tía a
J otras habitaciones aún más fragmentadas.
Sin embargo, no perdió la lucidez, y con admirable entereza decidió entregar
las antiguas habitaciones, que precisamente se las pedía el dueño de casa y
A las que habían vivido años y años. Y como contaba con los fondos anticre-
sis, que aquel le había devuelto oportunamente, muy pronto consiguió unos
L cuartos, amplios e independientes aunque ófricos y con paredes ennegreci-
das… (SAENZ, 1985, p. 32)
L En los primeros cuartos, aquellos a los que la Tía denomina ‘casa’ ella y
su hermana viven ahorrando su dinero, tranquilas como mujeres mayores y solas,
A pero que se tienen la una a la otra. A partir del problema con el dinero y el posterior
traslado al galpón, esta aparente paz, se rompe. Más aún cuando la Tía pasa a
habitar los otros cuartos, ya luego de la muerte de su hermana. Estos últimos
cuartos ya no son una casa, sino simples habitaciones. La fragmentación de la Tía
por el duelo y, a su vez, de la imagen poética de la casa, empieza a suceder con los
• infortunios y las varias muertes que tiene que llorar la Tía (puesto que así lo marca
su destino).
939
En Bachelard, la casa es un espacio de integración psicológica, morada
• de olvidos y recuerdos. En la novela, la casa se fragmenta a la vez que las memorias
y olvidos lo hacen, este paso es también acompañado por el tiempo.
El destino de la Tía, acarreando las incesantes muertes que debe ver,
así como los que se acumulan en ella pasan en la novela del mismo modo que
suceden en la memoria: unas líneas se está con la Tía en sus 70 años y sólo dos
2 páginas más allá la Tía tiene más de 80. El tiempo de la novela es el tiempo de la
memoria, ese tiempo al que Heidegger también asociaba con la existencia del Ser.
0 Este tiempo no respeta cronologías específicas, sino que acude a los rincones de la
memoria desde donde se forma la imagen.
1 La memoria habita en la Tía así como ella habita el espacio de los cuartos
y es precisamente por esto que al morir su hermana, siente la necesidad de salir
8 de aquel lugar. Si bien la necesidad de salir de las habitaciones está mediada por
el pedido del dueño de casa, sobre todo existe un deseo de encontrar otro espacio
donde pueda pertenecer en el que no exista la presencia no-física de la hermana.
Pero el habitar no sólo se resume al espacio como casa en general, en su
amplitud, sino también se habitan espacios internos de las habitaciones, tales como
los rincones. Precisamente en la novela, el autor dedica una considerable extensión
a los rincones. Específicamente a un rincón donde se encuentra un helecho, luego
de que en él se asentaran alimañas y varios otros sinsabores, la Tía y su hermana
deciden que el helecho en cuestión estaba maldito y se deshacen de él, pero al
poco tiempo notan que nada puede llenar ese rincón, cuando finalmente cierran
el espacio (renovando la circularidad del inicio) este rincón se constituye como un
espacio de no-apropiación o, un espacio que no permite la tranquilidad del Ser,
tanto como externa como internamente. “Sólo que, a los pocos días, la señora y la
tía empezaron a echar de menos al famoso helecho –en la ventana, se notaba un
vacío. Y con la intención de llenar este vacío, la señora colocó un candelero, y la
tía una taza; aquella una muñeca y ésta un almanaque.” (SAENZ, 1985, p.24) Este
rincón, pequeño y aparentemente insignificante, produce un hueco evidente en las
J mujeres cuando se ven obligadas a deshacerse del helecho por la infestación de los
gusanos. Es entonces cuando empiezan a rellenarlo de varias cosas, pero ninguna
logra llenar el vacío o, como dice el narrador “pero ninguna cumplía la función
A
requerida –resultaba imposible llenar el endiablado vacío.” (SAENZ, 1985, p.24)
L Para Bachelard, los rincones son espacios que se habitan como reflexión
de nuestro propio Ser, al mismo tiempo funcionan como lugares donde podemos
darnos cuenta de nuestra propia existencia. En este sentido los rincones funcionan
L también como un lugar de introversión y extroversión constante: en el lugar donde
nos encerramos a nosotros mismos, descubrimos todo lo que somos. Aquí radica
A la importancia de encontrar un elemento que llene el espacio y cumpla lo que en
la novela se denomina la ‘función’. Quizás la función sea entonces, ‘parchar’ el
Ser de las mujeres que ha sido carcomido por gusanos y alimañas, al igual que el
helecho. Finalmente, y por suerte para ellas, el objeto perfecto no tarda en llegar. El
advenimiento de este objeto en las circunstancias en las que lo hace, eleva al jarrón
• de lata que soluciona los problemas, a un estado casi religioso:
940 Sin embargo, un día de esos, advino la solución y ella ocurrió en circunstan-
cias poco peregrinas.
•
El hecho es que en consonancia con las campañas de Zapoteca – Pon y
Zapoteca – Saca, organizadas por la junta vecinal con motivo de la ascen-
sión al Huayna Potosí, apareció un señor llamado Eguino, o Merino o no sé
qué tantos, con el encargo de recolectar fondos; y casualmente, dejó olvida-
do un jarro de lata, justo en la ventana; y ni qué decir tiene que este jarrón
2 de lata, precisamente, para asombro y alegría de la señora y la tía, vino a
llenar a la maravilla el tan mentado vacío. (SAENZ, 1985, p.24 - 25)
Ao afirmar que Ele não estava lá, mas apenas repete o que os outros lhe
disseram, o narrador revela a importância da literatura oral. Além disso, é muito
importante notar que tudo começou com os sentidos (desejo e aroma) não com um
motivo racional. A racionalidade é então, menos importante do que os sentidos.
O leitor então aprende com história que, séculos mais tarde, o “mesmo
papagaio foi descoberto em uma goiabeira por Sir Thomas Roe”. (101) Sir Thomas
Roe, foi realmente uma figura histórica que viajou para o Orinoco em 1611. De
acordo com Melville Narrador, Sir Thomas era um cortesão inglês conhecido como
Fat Thom (101). Mais adiante, nos dizem que “Fat Thom despachou o papagaio
J imediatamente para a Inglaterra como um presente de casamento para a princesa
Elizabeth, filha de James I” e “Este foi o casamento cuja celebração a Tempestade
A de Shakespeare foi realizada pela primeira vez” (102)
O texto de Melville sugere que o papagaio sul-americano simboliza a
L tradição oral (p. 112.) e na Europa também representará, coisas terrenas e não
sofisticadas. No começo, ele parece desfrutar de lugares como Heidelberg, onde ele
conheceu o cristianismo e Praga, onde, entre as novidades, ele vê uma versão ruim
L
de The Tempest: “ [...] a maravilhosa cidade de Praga era anfitrião de todo tipo de
cabalistas , alquimistas e astrônomos e abrigou as coleções artísticas e científicas
A mais atualizadas “(105). Curioso, o pássaro sul-americano queria saber mais sobre
a Europa e sua cultura:
O papagaio inspecionou as pinturas de Arcimboldo, o Maravilhoso (que ti-
nha também sido o Mestre dos Mascarados) que mostravam homens feitos
de vegetais, panelas e livros. Tycho Brahe tinha descoberto a posição fixa
• de setecentas estrelas e John Kepler correu para descobrir as leis periódicas
dos planetas. O Castelo de Praga continha a Sala das Maravilhas de Rudolfo
946 e o piso de madeira da Grande Hall. Ali o papagaio voava despreocupada-
• mente, acostumando-se a seu novo habitat o qual tamborilava com homens
caminhando para cima e para baixo enquanto discutiam e debatiam. A sala
estava alinhada com livros, mapas, globos e gráficos. Homens discutiam as
rotas do mar, passagens navegáveis e astronomia. As ideias eram propostas
o que deixava a boca dos homens seca de entusiasmo e medo, causando
palpitações e ereções, muitas vezes ao mesmo tempo.(MELVILLE, TVT, 105)
2
As alusões a fatos históricos como a chegada de René Descartes como
soldado no exército dos Habsburgos e aos viajantes que se aventuraram na América
0 do Sul tornaram a história mais convincente. Além disso, a história de Melville revela
uma espécie de carnavalização da História Oficial, já que Descartes é apresentado
1 como alguém que não é mais importante que o papagaio. Assim, pode-se perceber
um diálogo entre a América do Sul e o Iluminismo Europeu moderno, pois o texto
8 sugere que esses centros de aprendizagem científica não eram separados da Magia,
das coisas inexplicáveis que a ciência não observou. No entanto, a batalha das
Montanhas Brancas pôs fim ao espírito da Boêmia e destruiu a unidade da ciência
com a magia. E “a magia e a tecnologia, então, seguem seus caminhos separados”
(109).
O papagaio de Melville reconhece intuitivamente o perigo de um homem
que acredita que “esses animais eram autômatos e papagaios deixavam de existir
quando estavam dormindo” (110). O sul-americano percebe que, por causa da
influência de Descartes, a “mente e a matéria começaram a dividir, corpo e alma
para separar ciência e magia para marchar em direções opostas” (111). Pode-
se perceber uma alusão à visão puritana, dicotômica, maniqueísta, separando
o racional do irracional, a alma do corpo, o “correto” do “incorreto” e assim por
diante. Ademais percebe-se claramente uma crítica à posição privilegiada dada
ao método científico e à palavra escrita em relação à magia, às experiências e
à tradição oral que pertencem ao papagaio. Como o narrador diz: “Os livros se
tornaram a verdade. A palavra escrita se tornou a prova. As leis foram baseadas em
livros que continham precedentes. As pessoas foram mortas em seu nome” (111).
J Argumento que esta peça literária de escritor guianense-britânico sugere
uma crítica ao eurocentrismo e uma visão dicotômica que separa a subjetividade
A racional da mágica, a cartesiana. Ou mais do que isso, uma visão do mundo
que tenta se concentrar no objetivismo racional e despreza a subjetividade
L e espiritualidade.. Uma visão colonizadora do mundo geralmente ignora as
experiências, as subjetividades e particularidades locais para privilegiar o que é
“universal”, “objetivo” e “correto”.
L
O crítico póscolonial australiano, Bill Ashcroft, explica, por exemplo,
que a “separação cartesiana do sujeito e do objeto, a separação da consciência
A do mundo que é consciente, é o esquema que ainda está subjacente à episteme
ocidental moderna com sua paixão pela” objetividade científica ‘E sua tendência
para ver o mundo como um contínuo de dados tecnológicos (Ashcroft, 2001:
67). Segundo Ashcroft, essa visão ajuda a separar as sociedades ocidentais das
não-ocidentais. A razão e a verdade estão no Ocidente, na Europa, da qual se
• pode olhar e medir os outros. Além disso, Ashcroft argumenta que o Discurso do
947 método de Descartes foi uma mudança crucial e enorme na “percepção especial
europeia”. (134) Para Descartes, o método científico possibilita e “também garante
•
as percepções universais do verdadeiro, regulando-o” (Ashcroft 135). Na visão de
Descartes, embora possa haver muitas percepções do mundo, “apenas uma pode
ser correta”. Essa visão, claro, ajudou a construir uma fronteira entre o civilizado e
o selvagem, o europeu e o “outro”. “O método cartesiano, portanto, era importante
para a Europa para a construção do outro e, consequentemente, para o projeto
2 do desenvolvimento do capitalismo. O Discurso do Método era necessário para a
representação dos colonizados, daqueles que não pertenciam ao mundo racional. No
0 final, espacial, como argumenta Ashcroft, “continua a operar como uma metonímia
do poder racial, político e cultural dentro do colonialismo”. (165)
1 O pensador pós-colonialista sul-americano (ou Decolonial) Walter Mignolo
também discute a conceptualização do conhecimento e produção da “verdade” do
8 ponto de vista ocidental como meio de colonização. Em seu texto “Desobediência
Epistêmica, Pensamento Independente e Liberdade Descolonial”, Mignolo critica o
sujeito conhecido, o europeu cartesiano, que “mapeia o mundo e seus problemas,
classifica pessoas e projetos no que é bom para eles”. Ele afirma que, durante o
tempo de Descartes, não houve atenção à geopolítica do conhecimento, nenhuma
questão sobre o local e o espaço onde o conhecimento foi gerado. Ele sugere
que precisamos transformar a enunciação de Descartes por dentro “, em vez de
assumir que o pensamento vem antes de ser, deve-se assumir que é um corpo
racialmente marcado em um espaço marcado geo-histórico que sente o impulso ou
o chamado para falar, Articular, em qualquer sistema semiótico, o impulso que faz
dos organismos vivos, seres humanos (2). Todo o conhecimento está situado e é
preciso perguntar de onde o conhecimento vem, quem é o enunciador e por que o
conhecimento produzido.
Além disso, Mignolo afirma que “segundo Bacon”, a melhor divisão da
aprendizagem humana é a derivada das três faculdades da alma racional, que
é a necessidade de aprender. A História, a Poesia e a Filosofia :a Historia tem
referência à Memória, Poesia à Imaginação e Filosofia à Razão ... Portanto, dessas
J três fontes, Memória, Imaginação e Razão, fluem essas três emanações, História,
Poesia e Filosofia, e não podem haver outras. “
A De acordo com Mignolo, a afirmação de que “não pode haver outros” foi
mantida mesmo depois de algumas revisões. E no momento em que o capitalismo
L começou a ser deslocado do Mediterrâneo para o Atlântico Norte (Holanda,
Grã-Bretanha), a organização do conhecimento foi estabelecida em seu alcance
universal. “Não pode haver outros” inscreveu uma conceituação de conhecimento
L
em um espaço geopolítico (Europa Ocidental) e apagou a possibilidade de produzir
conhecimento fora do espaço europeu. (MIGNOLO - Walter D. Mignolo - “A
A Geopolítica do Conhecimento”)
Portanto, a totalidade deve ser interrogada. Mignolo argumenta que a
totalidade nega, exclue, obstrui a diferença e as possibilidades de outras totalidades.
A racionalidade moderna é um engolfamento e, ao mesmo tempo, defensiva e
excludente. Mignolo menciona o pensador peruano Aníbal Quijano, que reconhece
• a necessidade de criticar a totalidade da perspectiva da colonialidade e não apenas
948 da perspectiva pós-moderna.
• Em seu texto “Coloniality of Power”, Aníbal Quijano afirma que, com
Descartes, houve uma separação radical entre razão / sujeito e corpo. A razão
não era apenas uma secularização da idéia da alma no sentido teológico, mas
uma mutação em uma nova entidade, a razão / sujeito, a única entidade capaz
de conhecimento racional. O corpo era e não podia ser mais que um objeto de
2 conhecimento “(23).
Além disso, Anibal Quijano acrescenta que, da perspectiva eurocêntrica,
0 certas raças são condenadas por serem consideradas inferiores por “não serem
racionais”. Eles só podem ser objetos de estudo “, conseqüentemente corpos
mais próximos da natureza” (24). É por isso que algumas raças de negros, índios
1 americanos ou amarelos - estão mais próximas da natureza do que brancas e,
portanto, podem ser consideradas como objeto de conhecimento e dominação /
8 exploração por pessoas racionais.
1 Este artigo é um viés da minha tese de doutorado sobre Literatura, Ecocrítica e Tradução (Inglês),
que se encontra em fase de desenvolvimento.
ecocrítica faz é condensar as metodologias de diferentes domínios das ciências
humanas e naturais. A proposta de análise ecocrítica do espaço natural, pode ser
compreendida como uma intervenção direta na sociedade, na política, na cultura e
nas artes, bem como em debates políticos e econômicos que envolvem discussões
sobre a conscientização e a preservação ambiental.
No Brasil, tem surgido uma preocupação ambiental, porém, ainda pouco
desenvolvida. É de suma importância que se trabalhe a consciência ambiental, pois
J a natureza antes rica, hoje, tem sido massacrada pelo domínio capitalista. Tem-
se presenciado a destruição da fauna e da flora, bem como a invasão do homem
A urbano e da tecnologia em áreas e contextos culturais indígenas e ágrafos. Como
um viés da crítica literária, a ecocrítica na sua proposta cultural e interdisciplinar,
L pode ser um elo entre os estudos científicos, culturais e literários, e o trabalho de
conscientização e preservação do nosso cenário ecológico.
Uma nova proposta de educação ambiental unindo a literatura e as
L
ciências ambientais poderá nos direcionar a uma forma mais consciente de ver e
tratar o nosso espaço natural. É necessário enfatizar a importância de uma relação
A saudável e consciente entre o ser humano e o não humano, e o seu próprio ambiente
de convívio. A capacidade de nos vermos em cada pequeno elemento da natureza,
pode nos proporcionar uma reflexão sobre a nossa própria condição humana, um
comportamento mais humanizado e uma nova visão de mundo.
O Rio Vermelho, rio que corta a cidade histórica de Goiás2, onde nasceu a
• poetisa Cora Coralina, vem sofrendoao longo dos anos com a degradação ambientalem
952 torno de sua nascente e encostas.Cora já relatava em seus textos as enchentes
• bravias do rioque, atualmente, vêm acontecendo com maior abrangência devido o
processo continuo de devastação da natureza. Desde o Brasil colônia, quando os
Portugueses começaram a garimpar o ouro do Rio Vermelho, ele começou a sofrer
com degradações e assoreamentos à tua volta.
Fragmentos do conto “Rio Vermelho”, de Cora Coralina, do livro Villa Boa
2 de Goyaz (2001):
Goiás tem um rio que a recorta, dividindo a cidade em duas partes iguais.
É um antigo e lendário rio de ouro e minerações passadas em cujas ribas
0 agrestes o bandeirante plantou o marco da primeira descoberta.
[...] Pelas cheias, quando as chuvas lentas e monótonas fazem os dias goia-
1 nos úmidos e tristonhos, a água do rio toma cor de sangue do seu nome e
num coro de vozes formidandas entoa um cantochão funéreo e grave.
2 Goiás é a antiga capital do Estado de Goiás, onde nasceu, viveu e morreu a escritora Cora
Coralina. Hoje a cidade se tornou Patrimônio Histórico da Humanidade.
os bandeirantes não se preocuparam com os impactos ambientais que começariam
a surgir posteriormente.
Podemos observar a devoção de Cora Coralina ao rio, no fragmento do
poema “Rio Vermelho”, de Cora Coralina, do livro Poemas dos Becos de Goiás e
Estórias Mais(1996):
Rio, santo milagroso.
Padroeiro que guarda e zela
J a saúde de minha gente,
da minha antiga cidade largada.
A Rio das lavadeiras lavando roupa.
De meninos lavando o corpo.
L De potes se enchendo d’água.
E quem já ficou doente da água do rio¿
L Quem já teve ferida braba, febre malina,
pereba, sarna ou coceira¿
O paciente deslizar,
O chorinho a lacrimejar
A
sútil, dúctil
na pedra, na terra.
Duas perenidades –
sobreviventes
• no tempo.
Lado a lado – conviventes,
955
diferentes, juntas, separadas.
• Coniventes.
957 Cora Coralina amava a natureza, não como uma ambientalista que,
• simplesmente a preserva, mas sim, como parte integrante dela, amando-a e
dedicando seus cuidados à ela. E, neste ínterim, concluo a proposta deste estudo,
que é de despertar em nós seres humanos, o valor da literatura de Cora Coralina,
como instrumento de grande eficácia para o processo de educação, conscientização
e preservação ambiental.
2 De certa forma, este estudo se mostraum pouco aleatório aqui, porém,
vale ressaltar que o mesmo vem sendo desenvolvido em pesquisas para a produção
0 da minha tese de doutorado, que trabalha na perspectiva ecocrítica, a natureza na
literatura de Cora Coralina. E como docente do Curso de Letras, da Universidade
Estadual de Goiás, Campus de Goiás - cidade da poetisa, firmei o propósito de
1 levar ao conhecimento dos meus alunos, os registros das riquezas naturais e as
contribuições que Cora deixou em sualiteratura - que muito irão somar à luta
8 pela preservação do nosso meio ambiente. perpetuando o legado interdisciplinar
deixado por Cora Coralina.
Referências
BRITO, Clóvis Carvalho; SEDA Rita Elisa. Cora Coralina: raízes de Aninha. Aparecida, SP:
Ideias & Letras, 2009.
CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. 1ª Edição. São Paulo:
Global, 1996.
_______________. Meu livro de Cordel.18ª Edição. São Paulo: Global, 2013.
_______________. Estórias da casa velha da ponte. 7ª. Edição. São Paulo: Global, 1994.
______________ . Villa Boa de Goyaz. 1ª Edição. São Paulo: Global, 2001.
GAARD, Greta. ESTOK, Simon, C. OPPERMANN, Serpil. International Perspectives in
Feminist Ecocriticism. Routledge, NYC, 2013.
GAARD, G. & MURPHY, P. Ecofeminist literary criticism – Theory, interpretation, pe-
dagogy. Urbane / Chicago: University of Illinois Press, 1998.
GARRARD, Greg. Ecocrítica. Tradução de Vera Ribeiro. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2006.
J GLOTFELTY, Cheryll. FROMM, Harold. The ecocriticism reader: landmarks in literary
Ecology. Georgia, EUA. British Library, 1996.
A RUECKERT, William. Literature and ecology: un experiment in Ecocriticism. In: GLOTF-
ELTY, Cheryll & FROMM, Harold; eds. The ecocriticism reader – landmarks in literary
ecology. Georgia, EUA. British Library, 1996, p. 105-123.
L
L
A
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958
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1
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A
L NATUREZA VIVA E O DESENHO DISPARADOR DE CONVERSAS
L Nena Balthar (UFRJ)
Lucia Vignoli (INES)
A RESUMO: Natureza Viva: uma ação-banquete-performance-coletiva é uma obra de
performance na qual o público é convidado a fazer desenhos de observação de frutas
e também a degustá-las. As frutas são ofertadas sobre um grande rolo de papel
branco, com medida aproximada de 5m x 1m formando uma extensa superfície na
qual estão dispostos lápis grafite, lápis de cor e giz de cera. A atmosfera de diálogo
• permite revelar modos de pertencimento e de estar no mundo e durante a ação são
feitas leituras de textos e poemas. A proposta instaura um campo para além do
959
artístico, sua contaminação com outros ramos de conhecimento permite questionar:
• como pensar esses territórios? Como ocupar e gerir em benefício da comunidade? A
ação proporciona uma experiência de compor uma narrativa coletiva em que todos
são sujeitos do discurso: ao desenhar, provar os alimentos, conversar, conviver e
acionar memórias.
Palavras-chave: Desenho. Poesia. Literatura. Partilha.
2
Todo homem tem o direito de participar livremente da vida cultural da co-
munidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de seus
0 benefícios.
Declaração dos Direitos Humanos, Artigo XXVII
1
A ação artística Natureza Viva: uma ação-banquete-performance-coletiva
8 é dispositivo “disparador de conversas” (KUSCHNIR, 2014, p.3), ou seja, a ação
proporciona cruzamentos e sobreposições dos vários campos do saber ao convidar o
público a desenhar, a degustar os alimentos, a ler poesia, a compartilhar memórias
e saberes, a habitar o território construído juntos, ampliando a reflexão sobre a
força de uma ação coletiva, permitindo o pensamento sobre questões de arte, do
espaço público e privado. O desenho como deflagrador da ação estabelece o sentido
de ideia como sistema de pensamento. Ao aderir o convite de desenhar frutas e
degusta-las o participante da proposta artística experimenta o gesto de desenhar.
As camadas de linhas e cores surgem nesses gestos, camadas da feitura do desenho
que desvelam a narrativa do fazer e atribui outros significados à essa ação quando
compartilhada e associada a provar alimentos e a ouvir e a ler poesias. O desenho
é pensamento, aquele que contribui para a produção de conhecimento.
Isso posto, consideramos o projeto plástico de caráter transdisciplinar,
instaurando uma atmosfera para além do campo artístico. Sua contaminação com
outras áreas do conhecimento permite questionamentos sobre nossos territórios,
em como habitá-los e geri-los em benefício da comunidade e de seus frequentadores.
O trânsito entre instituições, cidades, estados e países reforça o caráter
J plural da ação, revela o desenvolvimento de uma sensibilidade das artistas para
absorver e processar novos sentidos presentes nas diferentes experiências e
lugares onde a performance ocorre. As diversas sensibilidades experimentadas nas
A ações realizadas no Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), na Baixada
Fluminense na UFRRJ de Nova Iguaçu e na cidade do Porto – Portugal, entre
L outros, confere a ação o caráter de invocação-convite, a toda e qualquer pessoa que
deseje participar, ampliando o campo de possíveis surpresas e encontros. Assim
L o projeto artístico incentiva a manifestação criativa inerente a todos e contribui
para se pensar diversos tipos de ações coletivas no âmbito de transformações das
realidades dos participantes.
A A performance tomou força durante as Ocupações realizadas no Rio de
Janeiro, a partir de 2016, como modo de resistência política ao governo que se
instalou, intervindo no espaço no qual é proposta.
A ação artística se alinha ao que diz Jacques Rancière; “A partilha do
sensível faz ver quem pode tomar parte do comum em função daquilo que faz,
• dos tempos e espaços em que essa atividade se exerce”. (RANCIÈRE, 2005, p.16)
960 Portanto a dimensão política da Arte se dá na medida em que a Arte provoca um
deslocamento e/ou uma reestruturação em uma determinada forma de “partilha
•
do sensível”. Nesse contexto, participar da Natureza Viva: uma ação-banquete-
performance-coletiva proporciona uma experiência de construção de narrativa
coletiva em que todos são sujeitos do discurso, na medida em que, ao desenhar,
ao provar os alimentos, o convívio aciona memórias e seu partilhar transforma o
território em um lugar de representação coletiva. A experiência artística proposta
2 nessa ação nos torna a todos, naquele momento, etnógrafos.
As imagens a seguir, dispostas como uma narrativa visual, pretendem
0 compor um itinerário etnográfico e afirmar a condição processual da performance.
1
8
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L
A Foto 3. 1ª Semana da Alimentação Saudável. Instituto Nacional de Educação de Surdos/INES; Rio
de Janeiro – 2017
2
0
1 Fotos 4, 5 e 6. II Encontro Internacional de Reflexão em Práticas Artísticas Comunitárias – EIR-
PAC – Porto, Portugal - 2017
8
A performance cruza o Atlântico e traz novas reflexões para realçar a
potência de uma ação coletiva e comunitária. Como aponta Roberto Corrêa dos
Santos:
Lanço-lhes o corpo aqui: pondo-o na tela da escrita, e digo que, do termo
contemporâneo, menos vale a “raiz” (temporâneo) do vocábulo e mais o pre-
fixo : co-, a dar em: cooperativar, colaborar, compartir, coletivar: ser das
coisas: o copeiro. Não mais o prefixo contra-: e sim a conjunção e: eeee.
(SANTOS, 2015, p.18)
J
A Fotos 7 e 8. 9º Troca de Saberes, Universidade Federal de Viçosa/UFV. MG - 2017
L No encontro do curso de Agronomia da UFV convergiram-se saberes e
questões sobre o bem viver. A mesa de trocas de produtores e agricultores agregou
L a proposição Natureza Viva: uma ação-banquete-performance-coletiva ampliando
esse lugar de fala e escuta sobre a sustentabilidade e alimentação consciente.
A
•
962
•
2
0
Fotos 9 e 10. Instituto de Educação Clélia Nanci, São Gonçalo. Rio de Janeiro – 2016.
•
963
•
2
Fotos 13 e 14. Escola Estadual de Teatro Martins Pena, Rio de Janeiro – 2016.
0
No espaço de formação de atores a performance se deu com a fala e
leituras do artista, poeta e filósofo Roberto Corrêa dos Santos. Durante o processo
1 foram lidos trechos do livro O horror econômico de Viviane Forrester sobre a crise
global do trabalho.
8
J
A
L
L
Foto 15 e 16. Ministério da Cultura, Palácio Gustavo Capanema. Rio de Janeiro 2016.
A
Em um movimento de resistência ao governo que se instaurou e extinguiu
o Ministério da Cultura, muitos artistas ocuparam o MinC por longo período.
Durante a ocupação foram promovidas ações culturais: shows, debates, peças
teatrais, domingos de arte. Nesse contexto a performance Natureza Viva participou
• de um Domingo para Crianças com várias atividades visando esse público.
964
•
2
0 Foto 17 e 18. Seminário InDisciplinas: arte frente ao urgente - 4o Encontro de Pesquisadores dos
Programas de Pós-Graduação em Artes Visuais do Estado do Rio de Janeiro - Casa França-Brasil.
1 Rio de Janeiro – 2016.
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8 Foto 20 e 21. Galeria KM7, Nova Friburgo. RJ – 2016.
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966 Foto 25 e 26. QUE LEGADO! Espaço Cultural Sérgio Porto, Rio de Janeiro – 2017
•
A iniciativa multidisciplinar e manifesto artístico QUE LEGADO, foi uma
ocupação realizada por vários artistas no Centro Cultural Municipal Oduvaldo
Vianna Filho – Castelinho do Flamengo - importante equipamento cultural da
cidade do Rio de Janeiro. QUE LEGADO resultou em um evento de 16 dias com
atrações gratuitas e de variados campos de atuação artística: exposição, cinema,
2 artes visuais, dança, teatro, performances, literatura, sarau, música, psicanálise,
cortejo musical, cursos, debates e também festa com DJ e bar. QUE LEGADO foi
0 realizado em outras edições e espaços de arte como Espaço Cultural Sérgio Porto.
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Foto 27 e 28. Nuit Blanche – Museu de Arte Contemporânea (MAC), Niterói – 2017
Em consonância com o evento francês, Nuit Blanche, que movimenta
toda a cidade de Paris, a versão brasileira convidou artistas para caminharem pela
cidade de Niterói cujo final do percurso foi o Museu de Arte Contemporânea de
Niterói. No seu pátio foi instalada a proposta artística e colaborativa Natureza Viva.
Uma maneira de contribuir e fomentar a reflexão sobre como habitamos nossos
territórios: como geri-los em benefício de quem os habita, assim como em benefícios
de seus frequentadores.
J Referencias
ANDRADE, Mario de. O Banquete. Livraria Duas Cidades – 2º edição 1989.
A KUSCHNIR, Karina. GAMA, Ferraz Pedro. Contribuições do desenho para a pesquisa
antropológica. REVISTA DO CFCH • Universidade Federal do Rio de Janeiro ISSN 2177-
L 9325 • www.cfch.ufrj.br
Edição Especial JICTAC • agosto/2014
RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível. Ed 34. 2005.
L SANTOS, Roberto Correa dos. Cérebro-Ocidente / Cérebro-Brasil. Arte/escrita/vida/
pensamento/clínica Tratos Contemporâneos. Editora Circuito. FAPERJ. 2015.
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L OS SABERES DOS TERREIROS DE CANDOMBLÉ: O LUGAR DA
ORALIDADE E DA ESCRITA
L
Océlio Lima de Oliveira (UNESP)
A RESUMO: O candomblé é uma religião hierárquica e ritualística, baseada em
cargos sacerdotais e senioridade, portanto, o conflito e o poder estão presentes
entre os participantes do culto. Segundo Castillo (2010), o discurso religioso
do candomblé torna-se parte fundamental no processo de iniciação, já que os
conhecimentos serão repassados “oralmente” de acordo com uma escala iniciática.
• Nesse interstício, o iaô ( o recém-iniciado na religião) será observado enquanto sua
capacidade de guardar o segredo, haja vista que nem todos os filhos-de-santo serão
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alvo de confiança por parte do pai ou mãe-de-santo. Além disso, a oralidade torna-
• se uma forma de conexão entre os integrantes da comunidade. A palavra proferida
pela mãe ou pai-de-santo é considerada portadora de axé – força vital responsável
pelo equilíbrio espiritual do terreiro. Através da palavra, o sacerdote ou sacerdotisa
torna-se mediador ou mediadora entre os homens e o divino e logo no início da
convivência com os adeptos, o abiã, que ainda não passou pelo processo iniciático,
2 percebe o poder da palavra. Pode-se afirmar que foi na religião onde os africanos e os
seus descendentes construíram novos laços de solidariedade, novas identidades e
0 novas comunidades. O que se convencionou chamar de práticas mágico-religiosas,
por meio das quais os homens entram em contato com entidades sobrenaturais,
1 espíritos, deuses e ancestrais, foi um aspecto central da vida de todos os africanos
trazidos ao Brasil, assim como viria a ser na de seus descendentes brasileiros.
Palavras-chave: Oralidade; escrita; candomblé
8
Introdução
É no convívio dentro da comunidade, no caso desse estudo, da comunidade
de terreiro, que se desenvolvem os conflitos, a busca pelo poder dentro das casas
de candomblé faz parte do cotidiano desse povo que durante tanto tempo lutou
e ainda luta por igualdade e respeito dentro da sociedade mais ampla em que
está inserido a duras penas. Essa luta é quase sempre algo inevitável, talvez pela
necessidade de autoafirmação dentro do grupo, já que nem sempre os membros
dessa religião tinham lugar de destaque na sociedade civil ou mesmo uma busca
desse lugar de prestígio diante de outros grupos semelhantes, ou até mesmo com
o intuito de uma maior visibilidade com vistas a uma carreira religiosa, o fato é
que o conflito e a busca pelo poder existem e vai depender muito do sacerdote
ou sacerdotisa de cada casa a resolução deles, a maneira que esses problemas
serão administrados poderá ser fundamental para a existência da hierarquia, tanto
defendida dentro do candomblé, principalmente pelos adeptos mais antigos que
buscam perpetuar a tradição.
Observamos que no candomblé tudo tem um significado, uma simbologia
J e é através da experiência que cada um vai tomando seu entrelugar no grupo
religioso. Nesse sentido, pensando numa historiografia do candomblé, podemos
A mencionar que para os descendentes de africanos pudessem conservar na memória
coletiva seus ritos e para que esses elementos fossem ressignificados no contexto
L da diáspora, a transmissão cultural tornou-se, fundamentalmente, necessária:
“Esse movimento de volta à África, desde sempre presente no candomblé, é
uma reativação, mais simbólica que real, de uma tradição “pura” que deve
L ser reconstruída em solo brasileiro. A necessidade se faz sentir de modo
mais urgente, à medida que os efeitos nefastos do turismo e da participação
de brancos e mulatos no candomblé cavam um fosso cada vez mais níti-
A do entre os terreiros “tradicionais” e aqueles que “buscam tanto a estética
quanto à religião” (CAPONE, 2009).
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L CULTURA, DEMOCRACIA E DIREITOS HUMANOS NA OBRA A
NOITE DA ESPERA, DE MILTON HATOUM: REVISITANDO O
L APRENDIZADO DA DEMOCRACIA BRASILEIRA
A Patrícia Helena dos Santos Carneiro (UNIR)
Júlio César Barreto Rocha (UNIR)
RESUMO: Este estudo aborda a obra A noite da Espera, de Milton Hatoum, sob
uma perspectiva político-cultural, considerando os elementos democracia e direitos
humanos, situada a sua trama na cidade de Brasília, em 1968. Os personagens
• Nortista, Martin e os candangos são diferenciais na narrativa, mas similares aos
975 paradigmas da contemporaneidade. Repetem-se na época dos fatos e na data
presente da publicação a proximidade da destituição presidencial e o subsequente
• recorte de direitos. Há algum engajamento, debate sobre valores democráticos
e defesa da liberdade e dos direitos humanos, embora prevaleça a quebra da
democracia. A solução pessoal da época dos fatos narrados era o exílio na França:
medo e desesperança se instalariam por mais outros vinte anos no Brasil. E hoje?
Para traçar o paralelo destes 50 anos, fundamentando-se na Filologia Política, toma-
2 se a perspectiva de Terry Eagleton e de George Lukács, sobretudo, acompanhando
a História por matizações ideológicas de José Afonso da Silva e de Fábio Konder
0 Comparato. Aquela cultura da violência e do ódio levou décadas prevalecendo antes
de retornar o país ao período de defesa da paz e do respeito a direitos humanos.
1 Os processos políticos, fundamentados em normas jurídicas estatais que admitam
descompasso democrático conduzem à perda dos direitos fundamentais. Antes
(1968), como depois (2018).
8
PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Cultura. Democracia. Direitos Humanos. Filologia
Política.
Introdução
Este estudo aborda a obra A Noite da Espera, de Milton Hatoum, sob
uma perspectiva político-cultural, considerando os elementos da democracia e dos
direitos humanos, em uma Brasília de 1968, como espaço de encontro de vários
Brasis, representados por personagens como o Nortista, o paulista Martin, ou pelos
candangos. Surge com força realista o contraste entre o microuniverso de cada
personagem.
Cultura e Literatura em Defesa da Democracia e dos Direitos Humanos
A Literatura tem-nos brindado reflexões necessárias sobre os flagelos e
misérias humanas em cada momento da História. Desde a Antiguidade Clássica,
os formatos populares alcançaram um status de representatividade da sociedade à
qual foram dirigidos. Uma das primeiras expressivas obras literárias em defesa dos
Direitos Humanos é Antígona (442 a. C.), de Sófocles. A protagonista desafia um
Édito de Creonte, que não permitia a realização de ritos funerários no sepultamento
J de Polinices, irmão de Antígona, morto pelas mãos de Etéocles, igualmente irmão
da personagem principal. O exercício do poder e o abuso do direito são discutidos e
A a realidade de que o Direito pode servir aos interesses de uma pessoa ou de grupos
de interesses fica exposta, a fragilizar o equilíbrio social e desconsiderar valores da
L Justiça. Diz assim um nosso teórico:
Os problemas da Literatura, hoje discutidos por todos, possuem uma rela-
ção de continuidade objetiva com as questões estéticas colocadas na sua
L época pelos gregos e pelos renascentistas, e até por autores do século XIX.
(LUKÁCS, 2010, p. 14-15.)
A Atravessando a História, centenas de obras fazem referência a injustiças
e à quebra de valores sociais pelo Estado ou por algum símile, encontrando-se, no
século XIX, uma outra obra de permanente referencialidade, como são Os Miseráveis
(1862), de Victor Hugo, a revelar, por meio da condição de Jean Valjean, como o
aparelho ideológico do Estado (ALTHUSSER, 1970) continuava a ser empregado
• para perseguir os mais fracos em um contexto de completo desequilíbrio de forças
976 em favor do estado persecucionista. E assim centenas de outros autores e obras,
• pela História, sempre insistindo nessa dicotomia perniciosa para a Cidadania.
No Brasil do período recordado por Milton Hatoum, obras como 1968: O
ano que não terminou, de Zuenir Ventura, Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva,
dentre outros textos realistas, cumprem o papel de construir um registro histórico
da violência institucionalizada que se instaurava com o golpe militar em 31 de
2 março de 1964. Os Estatutos do Homem, de Thiago de Melo, poema-libelo escrito
no calor dos fatos, é também exemplo de Literatura de Resistência a descrever os
tempos sombrios da violação de direitos humanos e da oferta de “outros tempos
0 que virão”. Tornou-se, sobretudo, um grito (dentre outros menos sonoros) em favor
da liberdade de expressão e contra o exercício da força do poder estatal contra
1 pessoas de bem, opondo-as entre si, destruindo a pele da democracia.
A Literatura pode ser tomada, nestes exemplos, na percepção de Terry
8 Eagleton (2006), que diz:
Se é certo que muitas obras estudadas como literatura, nas instituições
acadêmicas, foram ‘construídas’ para serem lidas como literatura, também
é certo que muitas não o foram. Um segmento de texto pode começar sua
existência como história ou filosofia, e depois passar a ser classificado como
literatura; ou pode começar como literatura e passar a ser valorizado por
seu significado arqueológico. Alguns textos nascem literários, e a outros tal
condição é imposta. Sob esse aspecto, a produção do texto é muito mais im-
portante do que o seu nascimento. O que importa pode não ser a origem do
texto, mas o modo pelo qual as pessoas o consideram. Se elas decidirem que
se trata de literatura, então, ao que parece, o texto será literatura, a despeito
do que o seu autor tenha pensado (EAGLETON, 2006, p. 13).
1 Neste ano de 2018, o assassinato de Edson Luis Lima Souto completou cinquenta anos.
SANTOS, Taylan Santana: Edson Luís: 50 anos do tiro da impunidade. In: Revista Fórum, 29 de
março de 2018. Disponível em https://www.revistaforum.com.br/edson-luis-50-anos-do-tiro-da-
impunidade/ Acesso em 30/05/2018.
vigilância e o peso da polícia: é preso após adormecer em bote que navegava no
Paranoá. É colocado na mesma cela que os manifestantes dos comícios e é fichado.
O ponto de inflexão na vida de Martim foi justamente esta prisão, mesmo
que fruto desavisado da sua tentativa de fugir da realidade, que o irá marcar no
desdobramento da sua vida em direção ao exílio: “Um estudante pode ser preso por
engano, mas, depois de fichado pela polícia, a vida muda” (HATOUM, 2017, p. 46).
O posicionamento do pai de Martim ilustra bem o pensamento do
J brasileiro médio, com postura à direita, supondo-se acima dos demais por possuir
um diploma superior, a apoiar a ditadura militar:
A Ontem mais de mil estudantes foram à assembleia do Parlamento Latino-a-
mericano. Ele e os políticos da oposição dormiram no Congresso Nacional.
L Querem desmoralizar nosso governo patriótico. (HATOUM, 2017, p. 48.)
[…]
Livreiro vermelho! O que Rodolfo sabia de Jorge Alegre? Meu pai não anda
tão alheio à minha vida. Sem discriminação (ou com discrição detetivesca)
todos estão atentos à vida de todos. No silêncio da capital, rostos invisíveis
vigiam e depois caluniam, acusam, delatam… (HATOUM, 2017, p. 99).
A ‘Por que foram presos?’, ela perguntou. ‘Lázaro é o único líder estudantil da
nossa turma, e ele não estava lá’.
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L ¿CÉSAR VALLEJO, POR BULERÍAS?
L Pedro Granados (VASINFIN)
RESUMEN: El intérprete y compositor peruano, Micky González, lanzó el 2009 un
A disco titulado “Landó por bulerías”, donde fusiona de modo maravilloso música
afro-peruana (marinera limeña incluida) con palos flamencos. Por nuestra parte,
hemos publicado ya “Trilce: muletilla del canto y adorno del baile de jarana” (2007)
donde demostramos la pertinencia de relacionar la palabra Trilce con “!Trila!”,
término de resbalosa de la marinera limeña y, a su vez, glosolalia de “La Tirana”
• (la Madre Patria, España, para los soldados españoles de servicio en las Indias y,
en concreto, en el Perú). Por lo tanto, y lo intentaremos demostrar en el presente
988
ensayo, creemos que es tan pertinente y lograda la propuesta de Miky González
• --de fundir el landó a la bulería-- como puede ser observar ya no sólo qué tanto de
ritmo afroperuano existe en Trilce; sino también el grado de fusión de éste con los
palos flamencos –en voz y versos– y, obvio, asimismo con los tópicos medievales
que de manera directa --vía Jorge Manrique-- o a través de sus lecturas de los
autores del Siglo de Oro (Góngora o Quevedo, por ejemplo) pasaron a la poesía del
2 peruano. No olvidemos que, étnicamente, César Vallejo es un peruano de segunda
generación (abuelos, materno y paterno, españoles). Y curiosa o paradójicamente, un
0 mestizo que con su arte ha gravitado en los movimientos nativos más “beligerantes
y descolonizadores” del Perú y Bolivia (Elizabeth Monasterios Pérez); el Grupo
Orkopata, a manera de ejemplo.
1
Palabras clave: Poesía de César Vallejo,
8 Apostillas a “Trilce: muletilla del canto y adorno del baile de jarana”
En el contexto del dossier: “César Vallejo: ¿un hombre o una vanguardia?”
(Revista Casa Silva, No 22, 2008, 96-194)1, a raíz de la conmemoración de los 75
J “Landó” = Trilce
A Muy por el contrario, y no sólo por simplificadoras, consideramos que
aquellas atractivas equivalencias no resultan viables. Faltó a Garay superar
algunos prejuicios críticos o, es lo mismo, matizar ciertos tópicos o lastres en la
L
lectura de la poesía de César Vallejo (sobre todo el de la ubicuidad y preeminencia
del dolor). Junto con el ceñirse al enfoque referencial o temático y no animarse a
L analizar los poemas en su performatividad. Es decir, estos jamás son un tema,
sí, un evento; mucho más tratándose de una poesía como la de nuestro peruano
A universal. Evento –prosódico, sintáctico, emotivo… con todos sus elementos en
constante paralelismo– donde se ponen en movimiento los temas y, no es extraño
tampoco, giran e invierten estos incluso su inicial valor semántico.
Con todo, “César Vallejo y la música popular peruana” es un trabajo
inicial, sugestivo e interesante, que puede --una vez actualizadas o ecualizadas
• ciertas nociones generales de teoría y metodología literarias; y específicas, en lo que
990 atañe a la historia de la recepción de la poesía del autor de Trilce-- dar para un muy
productivo ulterior desarrollo.
•
“Landó por bulerías”
1.Micky González ha lanzado un disco, titulado “Landó por bulerías”, donde fusiona
de modo maravilloso música afro-peruana (marinera limeña incluida) con palos
flamencos.
2 2.Hemos ya publicado, de modo electrónico y en papel, “Trilce: muletilla del canto
y adorno del baile de jarana” donde demostramos la pertinencia de relacionar la
0 palabra Trilce con “!Trila!”, término de resbalosa de la marinera limeña y, a su vez,
glosolalia de “La Tirana” (la Madre Patria, España, para los soldados españoles de
1 servicio en las Indias y, en concreto, en el Perú).
8 3.Al presentar nuestro libro, Vallejo sin fronteras, en el contexto del II Encuentro
Universitario e Internacional de poesía en Bogotá (agosto 2010); en específico,
aquella relación de Trilce con la marinera limeña, uno de los asistentes al acto (el
poeta y actor español, Antonio Castaño) reparó en la pertinencia de mi trabajo y, a
su vez, en otras posibles glosolalias análogas; por ejemplo, aquellas de “Tus ojillos
negros”:
Camarón de la Isla. Camarón con Tomatito. París 1987. “Tus ojillos negros” (Video).
[http://www.youtube.com/watch?v=p6kd5B6Gh0w]
L
CASTAÑO, Antonio. [Comunicación personal].
GARAY, Juan Carlos. César Vallejo y la música popular peruana. Revista Casa Silva,
A No 22, 2008. 144-150.
GONZÁLEZ, Micky. Landó por bulerías (Video). [https://www.youtube.com/wat-
ch?v=W32YYTuHA_A]
GRANADOS, Pedro. César Vallejo en español selvagem y portunhol trasatlántico. Si-
bila, Año 17, 2017. Web.
• _______. Jaime Sáenz en el teleférico paceño: algunos cables de su poesía. Blog de Pe-
dro Granados, 4 de junio, 2016.
996
_______Trilce: Húmeros para bailar. Lima: VASINFIN, 2014.
• _______; AHAYU-WATAN. Suma poética de Gamaliel Churata/ Mauro Mamani
(compilación y estudio)”. Blog de Pedro Granados, 13 de octubre, 2013.
______ Vallejo sin fronteras. Lima: Arcadia/Cultura, 2010.
______ Trilce: muletilla del canto y adorno del baile de jarana. Lexis, Vol. 31,
Núm. 1-2, 2007. 151-164.
2 MANRIQUE, Jorge. Coplas por la muerte de su padre. Madrid: Editorial Casariego, 2011.
MOLINA, Ricardo y Mairena, Antonio. Mundo y formas del cante flamenco. Sevilla:
0 Librería Al-Andalus, 1971 (82-88) 82.
MOLLOY, Sylvia. Flâneries textuales: Borges, Benjamin y Baudelaire. Variaciones
1 Borges, No 8 (1999): 16-29.
MONASTERIOS PÉREZ, Elizabeth. La vanguardia plebeya del Titikaka. Gamaliel Chu-
rata y otras beligerancias estéticas en los Andes. La Paz, Bolivia: IFEA/ Plural,
8 2015.
PORTUGAL CATACORA, José. Alejandro Peralta Miranda. José Portugal Catacora, 15
septiembre de 2013. [http://joseportugalcatacora.blogspot.pe/ ]
aquí, abrirse a la posibilidad: “de una estética simultáneamente nueva, andina y comprometida con
reivindicaciones plebeyo-socialistas” (Monasterios 153).
11 Idea, por otro lado, y aunque con otros presupuestos, plenamente coincidimos: “César Vallejo
sepultó con su obra poética --aunque valiéndose también de sus persuasivas crónicas y ensayos--
todos los indigenismos; y sacó adelante un concepto y una práctica que podríamos motejar como
Indigenismo-3, pero que preferimos --junto con Édouard Glissant-- denominar ‘opacidad’” (Granados
2017)
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L ALGUNOS APUNTES SOBRE LAS ESTRUCTURAS EMOCIONALES
TRANSMITIDAS POR LAS FIGURAS MATERNAS EN BALÚN CANÁN
L DE ROSARIO CASTELLANOS
A Pilar Osorio Lora (UNIVERSITY OF MASSACHUSETTS)
RESUMEN: Este artículo explora cómo las estructuras emocionales transmitidas
por la figura de la nana y de la madre en Balún Canán (1957) de Rosario Castellanos
(1925-1974), a laformación emocional de la niña-narradora. Cada una de estas
mujeres y su forma de estar en el mundo proveen herramientas para que la niña
• construya una estructura emocional propia. Así, veremos cómo la condición de
997 niña que implica una marginalidad socioeconómica se convierte en un privilegio
epistémico, ya que tiene acceso a todos los saberes en la dinámica de poder. En
• este proceso de autolegitimación, la niña toma la herencia emocional de ambas
mujeres para empoderarse desde su lugar de enunciación híbrido.
Palabras Chave: Balún Canán. Emociones. Conciencia
A Lejos de haber una interacción y una intimidad, como la que hemos visto
entre la nana y la niña, la relación de la niña con su madre se construye desde la
distancia. La niña observa y escucha a una madre que no le habla directamente, su
falta de comunicación recíproca se convierte en un gesto desprecio. Este sentimiento
se refuerza cuando la madre afirma preferir la muerte de la niña (quiencarece de
• nombre) a la de Mario. La niña no tiene ningún tipo de valor a ojos de su madre
999 porque como mujer carece de valor social. Claro, esta idea de que Mario es amado
en tanto que es hombre y, por lo tanto, asegura un valor social, no deja de ser cruel
•
con el niño, pero esta no es una reflexión pertinente para el presente artículo. Ya
en otra ocasión tendremos que ocuparnos de ello.
La preferencia de la madre por Mario se configura como elemento
fundamental para que la niña sepa que el sexismo existe y sea testigo de sus
2 formas de operar. Mario tiene una posición claramente privilegiada desde la que
consigue lo que quiere con una facilidad a la que la niña ni siquiera aspira. Por
ejemplo, cuando la niña pide a su madre que la lleve al circo,Zoraida le dice: “Para
0 qué. Para ver a unas criaturas, que seguramente tienen lombrices, perdiéndoles
el respeto a sus padres porque los ven salir pintarrejeados, a ponerse en ridículo.
1 Mario también tiene ganas de ir. Él no discute. Únicamente chilla hasta que le dan
lo que pide” (CASTELLANOS, 2004 p.19)
8 Por si fuera poco, hay una expectativa social de que la niña observe
pasivamente esa diferencia de derechos entre ellos, tal como lo vemos en la escena
de las cometas:
“Mario tropieza y cae, sangran sus rodillas ásperas. Pero no suelta el cordel
y se levanta sin fijarse en lo que le ha sucedido y sigue corriendo. Nosotras
miramos, apartadas de los varones, desde nuestro lugar (…) -Pero qué tonta
eres. Te distraes en el momento en que gana el papelote de tu hermano.”
(CASTELLANOS, 2004, p. 24).
Este mismo lugar será el que la niña ocupe cuando la madre, en la tercera
parte, dé una golpiza a la nana, y será el mismo lugar que -intelectualmente- le
será designado cuando se le prohíba leer el cuaderno que pertenece a Mario.
En tanto que Mario es sinónimo de seguridad, Zoraida se obsesiona por
cuidarlo cuando, en la tercera parte de la novela, la nana prediga la muerte del
niño.En esta obsesión por salvarlo, Zoraida entra en diálogo con la tragedia griega,
ya que son sus propias acciones por prevenir la maldición sobre la muerte de su
hijo, las que suscitan la muerte de Mario. En este afán desmesurado de salvarlo,
J Zoraida busca ayuda en la religión. La contradicción es que la presenta a sus hijos
como un sistema dominado por la idea del castigo y del miedo.Es tal el miedo
A que Mario entra en una crisis de pánico que lo lleva a la muerte.La madre logra
exactamente lo contrario de lo que pretende. Los sentimientos promulgados por
L la religión en la novela son la enfermedad no sólo de Mario, sino los causantes de
la falta de compasión de la niña. Sabemos que el delirio de Mario es por la idea
del pecado, sabemos que en medio del delirio él habla de la llave del sagrario y la
L pide para salvarse, pero sabemos también que la niña esconde la llave del sagrario
porque está convencida de que Dios va a llevarse a uno de los dos y se escoge a sí
A misma por encima de su hermano. En buena parte, esta decisión es tomada porque
la figura materna lejos de proveer una sensación de seguridad y de compasión,
es una figura amenazante e inquisidora. La niña sabe que no la va a defender:
“¿Quién iba a defenderme? Mi madre no. Ella sólo defiende a Mario porque es el
hijo varón” (CASTELLANOS, 2004, p.278). Esta decisión nos da cuenta de que la
• protagonista comprende las dinámicas de una sociedad sexista en la que ella no
1000 tiene valor social y se posiciona frente a ello.
Aunque la rebelión de la niña contra un sistema patriarcal se manifiesta
•
en varias ocasiones a lo largo de la obra (cuando le habla de Colón o cuando lo
ignora en la competencia de cometas), la cúspide de la rebelión contra los privilegios
de género está hacia el final de la novela cuando la niña nos diga: “Pero Mario no
puede correr; está enfermo. Y yo no puedo esperar. No, me marcharé yo sola,
me salvaré yo sola” (CASTELLANOS, 2004, p.265) Así, con soberana libertada,
2 la niña no sólo expresa cómo ha entendido las dinámicas del sexismo sino que
se posiciona frente a él escogiendo su vida por encima de la de su hermano. Tal
0 como lo expresaRigoberta Menchú (1959- ) en su autobiografía Me llamo Rigoberta
Menchú y así me nació la conciencia (1983), el nacimiento de la conciencia está en
1 relación a la justificación de la violencia, en tanto que esta se ejerce de diferentes
formas. Es decir, la niña responde al acto violento de la madre de despreciarla por
8 medio de la violencia de callar la información que puede calmar el delirio de su
hermano. Escogerse a sí misma por encima de un hombre es rebelarse ante un
sistema patriarcal que la reifica (la vuelve objeto)quitándole su valor social.
Contrario a las estructuras emocionales relacionadas con el desprecio y
la reificación que su madre le inculca, la nana le presentaestructuras emocionales
que, de una u otra forma, promueven la formación de comunidades solidarias
regidas por el reconocimiento mutuo. Un ejemplo claro de ello es cuando están en
la feria y uno de los indios usa el “tú” con un ladino, con tal de defender su derecho
a usar el “tú” y a la autodeterminación, el indio pone en riesgo su vida. Lejos de
sentir algún tipo de empatía, los asistentes a la feria se burlan de él. La nana y la
niña son testigos de ello, y aunque la niña quiere subir a la rueda de Chicago, la
nana se la lleva. “Protesto. Ella sigue adelante sin hacerme caso. De prisa, como
si la persiguiera una jauría. Quiero preguntarle por qué. Pero la interrogación se
me quiebra cuando miro sus ojos arrasados en lágrimas” (CASTELLANOS, 2004 p.
41). La niña calla y siente pena por su nana. Así, vemos la capacidad de la nana
de sentir empatía con un desconocido, lo cual nos da un indicio de su conciencia
moral, ya que sabemos que una de las condiciones de la madurez emocional es
J la capacidad para empatizar con aquellos que no conocemos. Ahora, en este caso
la nana cuenta con lo que podríamos llamar una suerte de “ventaja emocional”
porque puede empatizar con el indio por la experiencia racial compartida. Sobre la
A
empatía nos dice Marta Nussbaum:
“Ahora bien, el pensamiento empático no es necesario para la comprensión,
L y sin duda tampoco es suficiente: una persona sádica podría emplearlo para
torturar a su víctima. Sin embargo, resulta de gran utilidad para la forma-
L ción de sentimientos comprensivos que, a su vez, se correlacionan con las
conductas de ayuda y colaboración.” (NUSSBAUM, 2010 p. 63)
Este gesto final de la niña puede ser interpretado como un triunfo del
• racismo, sin embargo, la niña quiere ver a su nana, la busca, pero es consciente
de la imposibilidad de reconocerla, en parte porque es consciente de que ella ha
1003
integrado las lógicas de la racialización, herencia de su madre. Hacia el final de la
• novela, cuando Mario ha muerto, la niña calla en la vida cotidiana acoplándose a las
expectativas de comportamiento social que hay sobre ella, pero escribe y ahí rompe
el silencio del lugar que le ha sido asignado. Nos encontramos entonces frente a una
suerte de rebeldía epistémica: apropiarse de la palabra para contar las historias
de ambos bandos de la dinámica social/ familiar. De esta forma la niña-narradora
2 autolegitima el privilegio epistémico que le había sido socialmente otorgado pero
no reconocido.Desde él hace uso de su libertad para exaltar la herencia emocional
0 de su nana sin negar la imposibilidad de escapar de la herencia emocional de su
madre: la reificación y el racismo. Así, esta autolegitmiación de su privilegio se
vuelve una suerte de traición a su propia clase social y un gesto de restauración a
1
una comunidad históricamente despreciada.
8 Bibliografía
CABEZAS, M. Ética y emoción. El papel de las emociones en la justificación de
nuestros juicios morales. Madrid: Plaza y Valdés, 2014.
CASTELLANOS, R. Balún Canán. México: Fondo de Cultura Económica, 2004.
GIL IRIARTE, M. Testamento de Hécuba: Mujeres e indígenas en la obra de Rosario Cas-
tellanos. España: Universidad de Sevilla, 1999.
HONNETH, A. El derecho de la libertad. Madrid: Katz Editores, 2014.
—. La lucha por el reconocimiento: por una gramática moral de los conflictos sociales.
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J
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•
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2
0
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L OCO DO MUNDO: O DESMORONAR DA FANTASIA EM UM CONTO
AMAZÔNICO
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Raelisson do Nascimento Walter (IFAC)
A Maria José da Silva Morais Costa (UFAC)
RESUMO: Este artigo se propõe uma aproximação da mulher presente na narrativa
“Espelho meu” de Florentina Esteves, que compõe a coletânea de contos Direito e
avesso. Para a leitura desse texto, alguns pontos de discussão são fundamentais,
como, a reflexão elaborada por Pizarro e Wolff, o conceito de esquizofrenia como
• epíteto do tempo caracterizado no âmbito da colocação/seringal, a poética da
imaginação de Bachelard, o jogo de relações que se estabelece nos espaços dentro/
1005
fora ou interior/exterior.Pizarro critica o fato de a Amazônia ter sido construída pela
• voz do estrangeiro e quase nunca por uma voz local. Wolff teve posicionamento na
escrita de seu texto como o “outro”, para distanciar-se dos locais em razão de sua
postura de pesquisadora. A reflexão feita aqui se estrutura a partir da análise do
conto “Espelho meu” em consonância às ideias das pesquisadoras Pizarro e Wolff,
direcionando ao leitor pensar o próprio processo de extração da borracha sendo
2 representado ficcionalmente pelo estupro da personagem principal, fazendo uma
analogia a seringueira através de cortes que se fazem no caule da árvoregomífera.
0 Florentina Esteves direciona a construção discursiva de uma realidade ficcional
que convida a problematizar um drama específico de um espaço tipicamente
1 amazônico. É o drama de uma mulher que, a partir de um ato de violência, precisou
criar alternativas para continuar a existir. Esse foi o drama do Acre, da Amazônia,
do Brasil, da América Latina, territórios que tiveram que se recriar a partir de atos
8 de violência jamais vistos.
Palavras-chave: Amazônia. Borracha. Florentina Esteves. Mulher.
Logo que chegava a uma casa, acompanhada de homens, esses eram con-
vidados a permanecer na sala, em conversa com o dono da casa. A mim era
dada a opção de ficar aí ou de participar da conversa e das atividades das
mulheres, na cozinha. Em uma ocasião, chegando à noite em uma casa
onde não esperavam que houvesse uma mulher entre os hóspedes, o dono
da casa gritou, logo que me viu, em direção aos fundos onde sempre fica a
cozinha: - Venha aqui, mulher, tem uma mulher aqui! Era necessário ter
uma mulher para me receber condignamente. (WOLFF, 1999, p.57)
A narrativa da pesquisadoraCristina Scheibe Wolff mimetiza um espaço/
tempo muito familiar nos seringais e cidades ribeirinhas da Amazônia. A chegada
dela em uma casa da região dá o tom da hierarquia social e do lugar que os gêneros
ocupam em algumas das diversas amazônias que se desenham por aqui. Os homens
permanecem na sala a conversar com o dono da casa, a mulher participa das
atividades das mulheres na cozinha. Espaços bem delimitados que levam à reflexão
a respeito do lugar de tantas mulheres que povoaram e povoam a região.
J Essa reflexão não é nova na academia. Alguns bons textos vêm sendo
produzidos e esse processo de ruminação pela escrita tem cumprido um papel
A importante na revisão de estereótipos nesse campo. Dois exemplos desse exercício
reflexivo são expostos a seguir. É o caso de Ana Pizarro no texto “Vozes do seringal:
L discursos, lógicas, desvios amazônicos” situado no livro Amazônia: as vozes do rio
em que são apresentados os principais personagens que compunham o seringal no
final do século XIX. Personagens esses que eram masculinos na sua maioria, como:
L os caucheiros, seringueiros, regatões. Pizarro passa então a apresentar quem são
esses personagens, suas funções, angústias, sofrimentos em um contexto histórico.
A Uma das várias críticas abordadas por Pizarro no texto é a respeito da
Amazônia ter sido construída pela voz do estrangeiro e quase nunca por uma
voz local. Isso gerou apagamento e silenciamento de várias outras personagens
presentes no seringal. Esse é o caso das mulheres, embora em pouca quantidade.
Eram apresentadas apenas as mulheres das famílias poderosas e em determinados
• momentos chamadas de heroínas românticas. A respeito dessas figuras femininas
1006 geralmente eram tecidas suas rotinas diárias, suas vestimentas, suas virtudes.
Enquanto as demais que não pertenciam às famílias com poder econômico, eram
•
somente “mulheres de serviços” (PIZARRO, 2012, p. 124).
A Belle Époque é a representação dessa marginalidade da diferença e
preconceito das mulheres ricas para com as de origem popular:
Eram as mães de família virtuosas, ocupadas dos cuidados dos filhos e no
governo da casa, que rodeadas de suas mulheres de serviço, de claros tra-
2 ços indígenas e escravas recém-libertadas do tráfico que havia chegado às
fazendas amazônicas, se vangloriavam de sua vocação cristã que, mais que
0 diferenciá-las das mulheres de origem popular, tinha a virtude de deixa-las
à margem das críticas e boatos alheios.” (PIZARRO, 2012. p 124)
Mulher era pouca, não era assim não. Quando um cara casava com uma mu-
lher e não dava conta, o patrão tomava e dava pra um que trabalhava.”(WOL-
FF, 1999, p. 71)
E ainda,
1 https://www.was-war-wann.de/1900/1960/literatur-der-60er.html
O objetivo de Audálio Dantas, ao pretender (em seu prefácio)2 a presentifi-
cação de Carolina, é o de enfatizar o valor sociológico do texto para que seja
lido como testemunho real da miséria, escrito por quem a viveu, pessoa da
classe mais desprotegida da sociedade.
2 Acréscimo nosso
(...) quando um polissistema ainda não está cristalizado, a saber, quando
uma literatura é ‘jovem’ este processo de construção; quando uma literatura
é ‘periférica’ (dentro de um amplo grupo de literaturas inter-relacionadas),
ou ‘fraca’, ou ambas as coisas; e quando existem pontos de inflexão, crises
ou vazios literários em uma literatura (EVEN-ZOHAR 1999b:84).
...
Seria Carolina de Jesus uma poetisa ou faria ela parte das descobertas
que, como cometa, aparecem, escrevem um livro impressionante e depois
desaparecem na escuridão? Há cem anos Harriet Beecher Stowe incitou à
J libertação dos escravos com ”A cabana do pai Tomás“ e „acordou“ o mundo
para refletir. Hoje, seus outros livros são esquecidos mas essa obra a tornou
imortal.
A
...
L Carolina é uma poetisa, além de ser também alguém que denuncia.
Utilizando sempre o título como ponto de partida, em – “Poetisa do lixo–
L diário de um bairro de miséria brasileiro” –, já podemos tecer algumas considerações.
Se levarmos em conta as palavras “poetisa” e “lixo”, podemos inferir a mescla de
A noções vindas dos eixos temáticos que definimos inicialmente para esta pesquisa:
poetisa (eixo literário) e lixo (eixo político-social). O subtítulo define, então, o tipo
de texto e sua origem.
No primeiro trecho destacado, podemos perceber que o autor se ocupa
em caracterizar Carolina primeiramente como alguém que “deu voz aos pobres, até
• então mudos”, para, em seguida, caracterizar a autora como uma mulher sofrida e
1022 de muita força, que luta para dar a seu “marido doente e a seus três filhos” o parco
sustento.
•
Intrigante nessa afirmação, contudo, é o fato de ela estar equivocada.
Não é possível reconstruir, na fortuna crítica sobre Carolina, esse mesmo perfil
de mulher: a autora nunca foi casada e muito menos teve um marido doente.
Por ser a primeira resenha escrita sobre a autora, não é possível saber de onde
essa informação foi tirada. No entanto, as conjecturas nos levam a pensar que se
2 trata aqui de uma tentativa, embora baseada em dados equivocados, de moldar e
caracterizar uma Carolina que os alemães se interessariam em ler.
0 Outro ponto interessante é que o jornal em que foi publicada a resenha
é de vertente conservadora da época e hoje é um suplemento extra do Die Zeit,
1 jornal de grande circulação na Alemanha. Nesse caso, parece ser importante que
Carolina, tendo filhos, tenha também um marido. E como esse marido não aparece
8 na narrativa, é possível que o articulista tenha inferido o fato de ele ser doente.
Analisando a partir da perspectiva alemã, o caráter exótico da vida de
Carolina, bem como o fato de o livro ser um diário (um registro autobiográfico,
portanto), do qual ela é a autora, e se considerarmos, ainda o fato de que ela
mesma pode ser também vista como um personagem do livro, é possível que o
resenhista tenha se sentido autorizado a recriar sobre os fatos da vida da autora.
O segundo trecho faz referência ao caráter mais literário da obra: “Mas
o livro não é somente um documento, ao contrário, em meio a toda a realidade
cruel, destacam-se passagens de lírica suave e da força de sentimentos humanos
universais”. A afirmação leva Carolina de um extremo a outro: do relato documental
e jornalístico da autora-personagem à dimensão da lírica, da prosa poética e da
literatura. Nesse sentido, o trecho em questão confirma os dois eixos em torno dos
quais gira o potencial de recepção do livro e busca compensar o caráter documental
da obra com a alusão à sua manifesta literariedade.
Resenha 2
Publicada apenas oito meses após à primeira num jornal de maior
circulação Frankfurter Allgemeiner Zeitung (FAZ), esta resenha já demonstra um
J pouco mais de aprofundamento no estudo dos dados sobre o livro e a autora. Os
trechos selecionados mesclam as dimensões pessoais, literárias, políticas e sociais
A de ambos.
04.08.1962,Frankfurter Allgemeiner Zeitung - FAZ, Das Schwarze
L Aschenputtel – Zudem Kopfkissenbucheiner brasilianischen Negerin (A cinderela
negra – sobre o livro de cabeceira deuma negra brasileira), HeleneHenze
L (...) as decepções, quando ela encontra seu campo já ceifado, quando o „Rea-
der´sDigest“ devolve seus manuscritos; sua oração sob o céu da manhã; seu
amor pelas flores e estrelas; suas alterações de humor; seus sonhos – esses
A cadernos são um verdadeiro diário, seu consolo, seu confidente, que a aju-
dam a se salvar como pessoa em um meio dominado pelo instinto.
....
Ela é uma leitora receptora, que emociona pelo anseio ingênuo por ”educa-
• ção formal“. Confiante, ela enfeita sua linguagem popular sóbria, direta, às
vezes maravilhosamente figurativa com palavras que leu em algum lugar,
1023 as quais ela utiliza com uma casualidade curiosa. Quando ela quer se ex-
• pressar de forma bela e poética, torna-se levemente rebuscada e os jargões
de jornal e do rádio a afetaram em cheio. Mesmo assim, também pelos tons
que não lhe são próprios, é possível perceber o sentimento sincero, a pessoa
genuína.
.....
2 Às vezes, Carolina espera à noite ”um certo alguém“ – ela tem um coração
quente e não faz disso um segredo. Ela acha muito feio, quando mulheres
casadas se preocupam com outros homens, elas deveriam se colocar no lugar
0 delas... “mas uma mulher livre, que não tem qualquer tipo de compromissos,
pode fazer como num jogo de cartas e passar de mão em mão“. Mas ela não
1 quer saber do pedido de casamento dele assim como não quer saber do dos
outros... ”pois sou uma mulher madura. E nenhum homem vai querer uma
mulher que não pode viver sem ler. E que se levanta para escrever. E que vai
8 para cama com lápis e papel debaixo do travesseiro”.
.....
......
Mas quando a sensação em torno dela se dissipar, fracassarão as reformas
pelas quais ela deu o impulso inicial, como acontece sempre com a política
inconstante dos países sul-americanos? Com uma casa de alvenaria e co-
mida suficiente não se resolve nada para o povo da favela; se a própria Ca-
rolina se tornar deputada, ela conheceria a natureza cancerígena do proble-
ma, que ela, em sua ingenuidade, não consegue vislumbrar. Em resposta a
pergunta de um incompetente se ela teria escrito um livro para as socialites
comunistas, ela replicou: Não – realista. Mas, caso a militância comunista
J se apropriasse do material explosivo contido ali, poderia Carolina evitar que
essa militância incitasse as favelas à barricada, como já fizera em outros
países? O conto de fadas da Cinderela negra ainda não chegou ao final, onde
A todos vivem felizes para sempre.
Mais uma vez, lançando o olhar primeiramente para o título, já podemos
L
identificar as referências utilizadas para definir Carolina. Também de 1962, esta
resenha foi publicada em um jornal conservador-liberal3 de circulação nacional
L alemã e evoca, de início, o contexto dos contos de fadas e uma de suas personagens
mais conhecidas: a cinderela. A personagem é, no conto de fadas, filha de um homem
A rico que morre e a deixa com a madrasta e suas filhas. A jovem vira empregada
delas, anda sempre maltrapilha e seus amigos são os bichos e os elementos da
natureza. Também Carolina, sai maltrapilha a limpar as ruas da cidade e possui
como alegria a contemplação da natureza. Então, de uma hora para outra, como na
magia do conto dos irmãos Grimm, ela começa a frequentar os melhores lugares da
• cidade a convite de pessoas influentes da alta sociedade. Seu sapatinho? O diário
Quarto de Despejo. No entanto, para a Cinderela negra do Canindé não houve um
1024
final feliz. Os trechos selecionados abaixo demonstram, em cada subárea temática,
• um pouco das expectativas e do viés da articulista sobre o texto.
Ao falar sobre Carolina, a autora da resenha ressalta a crença da escritora
na força do poeta e de sua escrita. É como se ele, transcendendo a missão de escrever
o belo que suscita emoções humanas, tivesse também um forte compromisso social
para com o outro: “Os políticos sabem que eu sou uma poetisa. E que um poeta
2 enfrenta a morte, quando ele vê que seu povo é oprimido”. Para Carolina, portanto,
a escrita é dotada de uma força capaz de alterar o rumo das coisas e, desse modo,
0 deveria ser temida pelos políticos.
Outro fator explorado pela resenhista é o fato de a escrita de Carolina
1 servir como uma espécie de salvação. Um lugar onde ela desabafava suas decepções
e alegrias: “esses cadernos são um verdadeiro diário, seu consolo, seu confidente,
8 que a ajudam a se salvar como pessoa num meio dominado pelo instinto”. Mais
uma vez temos a menção ao entorno como um lugar dominado pelo instinto, pelo
primitivo.
Sobre a escrita de Carolina, a resenhista não faz aqui qualquer referência
a outros autores, embora tente identificar as influências de escolha das palavras e
estilos dessa escrita. Ela apresenta a autora como uma grande leitora com vontade
de aprender e também como alguém que ouvia rádio e dele tirava a motivação de
3 “AlterWein in neuenSchläuchern” [Vinho velho em garrafas novas] é assim que o FAZ explica
sua orientação política. http://www.deutschlandfunk.de/alter-wein-in-neuen-schlaeuchen.761.
de.html?dram:article_id=113978 (Último acesso: 18/11/2015)
sua escrita: “Confiante, ela enfeita sua linguagem popular sóbria, direta, às vezes
maravilhosamente figurativa com palavras que leu em algum lugar, as quais ela
utiliza com uma casualidade curiosa”. A citação deixa entrever um estranhamento,
por parte da resenhista, na forma de escrever de Carolina; quer dizer, usos que
fogem ao que seria de se esperar como padrão para uma pessoa como ela. Do trecho
“também pelos tons que não lhe são próprios, é possível perceber o sentimento
sincero, a pessoa genuína” podemos inferir que a resenhista, embora reconheça a
J singularidade da escrita de Carolina, resiste a lhe conceder o status de autora, de
escritora, limitando-se a considerá-la uma pessoa que escreve.
A Por fim, a resenhista não deixa de mencionar passagens nas quais
Carolina recebe um “certo alguém” e escreve: “ela tem um coração quente e não
L faz disso um segredo”. A escritora tem uma atitude independente, se permite o
prazer, não aceita casamento nem ajuda para criar os filhos. Ao mencionar essa
faceta da vida da autora, a articulista apresenta uma Carolina que, além de ter um
L profundo anseio por conhecimento e reconhecer a responsabilidade social de sua
escrita, também pode fazer jus aos padrões feministas. Ainda que isso não seja dito
A de forma expressa, Carolina é apresentada ao público como uma mulher firme,
que não confunde os papeis de esposa e escritora, nem está disposta a sacrificar o
segundo pelo primeiro. É bem possível que este seja um ponto de empatia entre ela
e uma faixa do público feminino, não somente alemão.
Ao falar sobre a obra, a resenhista assume que as condições humanas
• descritas no diário não são novidade, mas ressalta a diferença de intensidade de
1025 um relato em primeira pessoa; o relato de alguém que realmente vivenciou de
dentro tais condições: “quando a miséria grita com sua própria voz e a imagem
•
interior fica visível”. De conteúdo “comovente”, os registros são descritos de acordo
com a forma – “sem rasuras e nem sempre ortograficamente corretos” – e conteúdo:
“tudo o que faz diferença em sua existência, a repetição monótona (...) da labuta,
da fome, dos cálculos; repetição que nunca cessa”.
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L MEUS DOCUMENTOS E FORMAS DE VOLTAR PARA CASA: O ATO
CONFESSIONAL E O TRAÇO AUTOBIOGRÁFICO EM ALEJANDRO
L ZAMBRA
A Raianny de Andrade Amaral (UFRJ)
RESUMO: O objetivo desse trabalho é discutir como o escritor chileno Alejandro
Zambra utiliza-se das formas da confissão e do traço autobiográfico, no conto
Meus Documentos (2015) e no romance As formas de voltar para casa (2014), para
construir a sua escrita autobiográfica. Diferenciaremos a confissão, intrínseca em
• Meus Documentos, em duas formas distintas: o ato religioso (FOUCAULT, 2006;
1028 2009; AGOSTINHO, 1980) e o ato confessional da escrita (DERRIDA, 1992; 1996),
com o intuito de analisar a passagem do narrador de cristão para não-crente. Em
• relação à noção de traço autobiográfico (DERRIDA, 1996;1992), no romance As
formas de voltar para casa, perceberemos a sua rasura na narrativa a partir do
narrador. No conto, o narrador só encontra a possibilidade de confissão a partir da
escrita, no romance a escrita também confessa uma parte de sua infância, agora
mais marcada pela ditadura e a impossibilidade de ação daqueles que a sofreram
2 como crianças.
Palavras-chave: Confissão. Traço autobiográfico. Alejandro Zambra.
0
Quando crescesse eu ia ser uma lembrança.
Alejandro Zambra.
1
Introdução
8 O escritor chileno Alejandro Zambra é conhecido por suas narrativas que
não limitam e nem excluem os gêneros literários, mas que caminham entre todos,
criando textos e formas distintas. Em uma entrevista a Folha de São Paulo, Zambra
foi indagado se teria um modo específico de escrita ou um plano de redação, e sua
resposta foi: “Fazer um plano para escrever uma redação é a própria negação da
literatura. Para mim, a literatura sempre esteve ligada a desordem. Começar pelo
final, reabilitar as digressões, enfrentar o desejo da simultaneidade e multiplicidade”
(ZAMBRA, 2017). Falar da narrativa de Zambra, portanto, é falar de simultaneidade,
multiplicidade e de desordem. Pensemos, agora, mais especificamente, em duas
narrativas de Zambra em que vamos nos concentrar nesse artigo: o conto Meus
documentos (2015) e o romance As formas de voltar para casa (2014). Vejamos a
última frase do conto: “Meu pai era um computador, minha mãe, uma máquina de
escrever. Eu era um caderno vazio e agora sou um livro” (ZAMBRA, 2015, p.14).
Essa frase já é um indício daquilo que queremos analisar na narrativa de Alejandro
Zambra: o teor autobiográfico. Mas como faremos isso? Para responder essa
pergunta, primeiramente, precisamos mergulhar nas duas narrativas e perceber o
que há de comum entre elas.
J Comecemos por Meus documentos (2015): O conto é dividido em quatorze
tópicos, não nomeados. No primeiro parágrafo nos é apresentado pelo narrador, que
A também não se nomeia, todo o plano de fundo que seguirá até o penúltimo tópico
da narrativa: Santiago, Chile, em plena ditadura de Pinochet, na década de 1980.
L No último tópico temos um pulo temporal: o narrador deixa de confessar o passado
para confessar o presente, o ano de 2013. A primeira etapa da narrativa, na década
de 1980, o narrador está matriculado em uma escola militar e cristã comandada
L por um Padre, chamado Limonta. Seu grande sonho é participar da banda militar
dos estudantes, um dos lugares mas disputados pelos alunos. Não sendo aceito
A por sua pouca idade, e se sentindo frustrado pela tentativa fracassada, o narrador
aceita o convite de seu amigo para ser coroinha de uma igreja da cidade, mesmo
sabendo não podia pois não tinha feito a Primeira Comunhão. Logo após esse
acontecimento, o mesmo amigo o chama para ir a sua casa, onde só estavam ele e
o irmão. Após o jantar, ao assistirem televisão no quarto os dois começaram a se
• “tatear, a (se) tocar inteiros, sem beijos”. (ZAMBRA, 2015, p.8).
1029 Esses dois acontecimentos são os que levam o narrador a procurar o
Padre Limonta, mas ao encontrá-lo não é capaz de confessar e volta aliviado as
•
aulas. A partir desse momento, o narrador convive com essa impossibilidade de
confissão, ao mesmo tempo que ainda participa ativamente das atividades da Igreja.
Contudo, depois de uma missa cansativa, o narrador diz: “resolvi renunciar ao
cargo e naquele mesmo instante deixei de ser católico. Suponho que então também
o sentimento religioso começou a se extinguir de todo.” (ZAMBRA, 2015) A partir
2 do momento que o narrador já não acredita no ato religioso da confissão, ele passa
a crer no ato confessional da escrita: “Nunca tive, em todo caso, esses devaneios
0 racionais sobre a existência de Deus, talvez por depois ter começado a crer, de
maneira ingênua, intensa e absoluta, na literatura.” (ZAMBRA, 2015, p.11).
1 Nas conversas de família, principalmente entre o narrador e sua avó, o
tema mais recorrente era o terremoto em Santiago no ano de 1985. Nesses diálogos,
8 a avó comentava como foi impactante para a vida dos chilenos aquela tragédia
e quantas pessoas tinham sido perdidas. E esse é o momento em que Zambra
retorna no início de seu romance As formas de voltar para casa (2014): Santiago
em meio a um terremoto em 1985. Ao voltar as suas memórias da infância, o seu
cotidiano como criança, o narrador mostra ao leitor a sua crítica ao momento
político que vivia o Chile: “Se havia algo a aprender, não aprendemos. Agora penso
que é bom perder a confiança no solo, que é necessário saber que de um momento
para outro tudo pode vir abaixo. Mas na época voltamos, sem mais, à vida de
sempre” (ZAMBRA, 2014, p.17).
O narrador do romance se apresenta de duas formas: aquele que está
relembrando a sua infância, os acontecimentos marcantes do passado e seus
relacionamentos e aquele que está relatando o presente, a consequência desses
relacionamentos e a escrita do próprio livro. Dentro de um mesmo capítulo o
narrador intercala passado e presente e a narrativa vai se construindo nas dobras
desses tempos. Na sua infância era uma criança em uma família de classe média,
que vivia em uma cidade relativamente pacata de Santiago. Mesmo estando na
ditadura, seus os pais não estavam envolvidos ativamente em questões políticas,
J seus professores também não explicavam e nem mencionavam a questão político-
social em que seu país se encontrava. A ditadura, então, se tornava uma influência
quase silenciosa, até a chegada de uma família a seu bairro. Uma amiga uns anos
A
mais velha, Cláudia, o pediu que vigiasse seu tio Raúl, um homem que vivia sozinho,
afastado da família e que recebia visitas de estranhos em sua casa. A partir desse
L acontecimento, perguntas e dúvidas sobre a situação em que estavam vivendo
foram surgindo, mas sempre sendo censuradas. Uma vez ao perguntar ao seu
L professor se era muito grave ser comunista, ele responde: “Por que você está me
perguntando isso, disse ele. Acha que sou comunista?” (ZAMBRA, 2014, p.35) E
A logo depois comenta: “Não é bom que você fique falado sobre essas coisas (...) Só o
que posso te dizer é que vivemos num momento em que não é bom falar sobre essas
coisas. Mas algum dia poderemos falar disso e de tudo” (ZAMBRA, 2014, p.35).
O narrador no tempo presente está escrevendo um livro sobre a sua
infância, mas principalmente, sobre a impressão que a mesma deixou nele
• como adulto. Como era ser uma criança, como era vivenciar a ditadura sem
1030 ter a possibilidade de entender a situação e muito menos agir sobre ela. Dessa
forma, o romance, que o narrador está escrevendo, e aquele que estamos lendo,
• se torna o romance sobre os pais, sobre os tios, homens e mulheres que agiam,
pois: “enquanto os adultos matavam ou eram mortos, nós fazíamos desenhos num
canto. Enquanto o país se fazia em pedaços, nós aprendíamos a falar, a andar (...)
Enquanto o romance acontecia, nós brincávamos de esconder, de desaparecer.”
(ZAMBRA, 2014, p.54).
2 Percebemos, assim, que nessas duas narrativas alguns acontecimentos e
algumas datas se repetem: poderiam esses ser indícios de uma escrita autobiográfica?
0 Eneida Maria de Souza (2011) discerne sobre essa questão refletindo que o destino
literário é marcado por injunções biográficas. Contudo, para a teórica não se
1 pode inferir que a vida esteja refletida na obra de uma maneira direta e imediata,
ou seja, não se pode sugerir que a arte seria o espelho da vida. Ao começar seu
8 texto especificando os escritos de perfis biográficos, Souza (2011) explica que a
preservação da liberdade poética na construção desses perfis está precisamente
nesse procedimento de mão dupla: juntar ao material biográfico o poético,
transformando, então, a linguagem cotidiana em literária. Souza (2011) esclarece
que na crítica biográfica recente há a possibilidade de reunir teoria e ficção ao se
considerar que os laços biográficos são feitos a partir da relação metafórica entre
obra e vida. Com o conceito de autoficção cunhado por Serge Doubrovsky Souza
(2011) apresenta uma forma de narrativa no qual a estetização da memória já não
a deixa subjugada ao teor da veracidade.
Trata-se da ação deliberadamente ficcional por parte do sujeito, do gesto
de dessubjetivação que o insere no jogo de fabular da narrativa. Estar ao
mesmo tempo no interior da linguagem e fora dela consiste na operação
paradoxal da presença/ausência do sujeito na complexa cena enunciativa.
(SOUZA, 2011, p. 23)
As lembranças dos familiares estão envolvidas com a forma com que eles
estavam interligados ou não com a escrita. É interessante perceber que a mãe, que
era uma escritora assídua, é descrita por ele como uma máquina de escrever. Já
J a relação com o pai, não havia esse fascínio pelas letras, mas sim pela tecnologia,
pelo computador. Toda vez que ia ao seu trabalho, seu pai tentava alimentar um
A interesse por essa novidade mas sem conquista. Assim que o pai se distraia, o
narrador ia brincar na mesa da secretária, com a “máquina de escrever elétrica da
Loreto (que) me parecia prodigiosa, com sua pequena tela onde as palavras iam se
L
acumulando até que uma poderosa rajada as cravava no papel.” (ZAMBRA, 2015,
p. 7)
L No começo do conto a escrita é apresentada pela perspectiva do outro, da
mãe, da avó, da secretária. Mas ao fim do conto, o narrador se descreve, primeiro,
A como um caderno vazio, e depois como um livro. Enquanto o narrador estava
participando ativamente nas atividades cristãs, a sua escrita não foi desenvolvida,
se vendo como um caderno vazio, sem palavras. No momento em que a fé cristã
se extingue, a escrita é introduzida, para no final o narrador se tornar um livro, se
tornar a escrita.
• “Agora sou um livro” (ZAMBRA, 2015, p.24), essas últimas palavras do
1035 narrador nos remete também a Derrida (1996) e a sua Circonfissão. Não podemos
falar escrita confessional e autobiográfica e não mencionarmos a Derrida. Mais
•
como o filósofo percebe essa forma de escrita? Comecemos com uma explicação do
professor e teórico Panesi (1996):
La historia ha sido convocada a la cita: la literatura es un invento moderno,
como aclara Derrida en una entrevista con Derek Attridge (...), un fruto de
la Ilustración habría que agregar, y que se caracteriza históricamente por la
2 posibilidad de decirlo todo. De decirlo todo pagando un precio, el precio de
que se la escuche como ficción, e inclusive como la ficción de decirlo todo.
0 ¿Qué otros géneros, entonces, podrían cumplir mejor con este mandato de-
mocrático moderno ligado tanto a la verdad como a la subjetividad, sino la
biografía, la confesión y el diario íntimo? (PANESI, 1996, p. 3)
1
Como evidencia Panesi (1996), para Derrida não há uma linguagem privada,
sublinhando assim, o caráter democrático da literatura em sua possibilidade de ser,
8 ao mesmo tempo, um discurso ligado tanto a verdade quanto a subjetividade. Ou
seja, o espaço da literatura não é somente aquele de uma ficção institucionalizada
mas também o de uma instituição fictícia, o que para Derrida (1992) possibilitaria,
teoricamente, se dizer tudo. Como ele mesmo exemplifica “the writer can just as
well be held as irresponsible. (…) This duty of irresponsibility, of refusing to reply
to one’s thought or writing to constituted powers, is perhaps the highest form of
responsibility. (DERRIDA, 1992, p. 38)
Panesi (1996) nos relata que o que Derrida concebe é como um ato
autobiográfico que permeia tanto a literatura, como a escrita e o texto em geral.
E o que podemos também chamar de traço autobiográfico nos escritos de Derrida
(1996) está bem sublinhado nos fragmentos de Circonfissão que vão se situar
como acontecimentos entre verdade e ficção, ou como explica Trocoli (2017) “nem
autobiografia, nem ficção, mas uma prática da escrita que produz uma terceira
forma e um novo modo de enunciar” (TROCOLI, 2017, p. 6). Essa escritura significa
“repetição, ausência, risco de perda e morte” (BENNINGTON, 1996, p.43) que está
misturada ao sangue derramado, a crueldade, a confissão e, todas encarnadas em
J sua primeira palavra: cru.
Essas características encontramos na nona perífrase de Circonfissão.
A Nesse fragmento, Derrida (1996) indaga sobre a questão da verdade na escrita
confessional, mencionando os escritos de Santo Agostinho. Contudo, para Santo
L Agostinho os seus escritos confessionais estavam carregados de verdade, “diz-
lhes que eu, ao confessar-me, não minto.” Para Derrida a verdade não propicia a
confidência, aquilo que chamou de confidência verdadeira, mas sim um perdão
L demandado, “ou melhor dizendo como demanda, à religião demandada como à
literatura, antes de uma e de outra, as quais não tem direito senão a esse tempo,
A de perdoar, perdão, por nada.” (DERRIDA,1996, p.43)
A literatura está nesse lugar de confissão, assim como a religião, onde é
necessário um perdão, mas um perdão por se escrever. Ela perde perdão e desvia-
se de Deus por meio do escrito, mais essa escritura “só interessa na proporção e na
experiência do mal mesmo que se trate de fazer a verdade em um estilo, um livro
• e perante testemunhas”. (DERRIDA, 1996, p. 42) O narrador de Zambra está na
1036 busca dessa verdadeira confidência, nessa escritura digna de ser chamada assim
por pedir perdão por se escrever. O silêncio de sua confissão é transformado nessa
•
escrita confessional onde é pedido esse perdão. A literatura se torna sacra em sua
ambiguidade, onde não confessa a Deus e nem se fala a Deus, mas se confessa a
própria literatura, como uma entidade. O livro se torna confidência, e o narrador
conclui seu caminho para se tornar o livro.
2 “Não quero falar nem de inocência nem de culpa, não quero mais do
que iluminar alguns recantos, os recantos onde estávamos”: o traço
autobiográfico em As formas de voltar para casa
0
Continuemos com Derrida (1992) mas agora em seu texto Acts of
literature. Em um dos tópicos o filósofo discerne sobre literatura e filosofia e a
1 decisão de escolher uma delas para concentrar seus estudos. Ao hesitar, ele acabou
não desistindo de nenhuma pois achava possível encontrar uma fronteira entre
8 literatura e filosofia que poderia ser pensada ou demonstrada a partir da escrita,
e não somente pela reflexão teórica e histórica. No entanto, se Derrida (1992) não
considerava sua escrita nem literária nem filosófica, o que seria? Eis sua resposta:
‘Autobiography’ is perhaps the least inadequate name, because it remains
for me the most enigmatic, the most open, even today. (…) The idea of an
internal polylogue, everything that later, in what I hope was a slightly more
refined way, was able to lead to Rosseau or to Joyce. (…) The unique event
whose trace one would like to keep alive – is also the very desire that what
does not happen should happen, and is thus a “story” in which the event
already crosses within itself the archive of the ‘real’ and the archive of the
‘fiction’. Already we’d have trouble not spotting but separating out historical
narrative, literary fiction and philosophical reflection. (DERRIDA, 1992, p.
35)
O que Derrida (1992) almejava era alcançar aquilo que estava acessível e
inacessível, aquilo que estava selado. Ou seja, ele queria uma escrita que levasse
em consideração tudo o que ocorresse ou falhasse em ocorrer com ele, e que fosse
selado e transformado naquilo que chamou de assinatura. A leitura de textos que
J continham o teor autobiográfico que tanto o interessava em sua juventude como
Rousseau, Gide, Nietzsche, textos esses que não eram simplesmente literários ou
A filosóficos mas confissões, o fizeram pensar que a literatura era uma instituição em
que se permitia dizer tudo, de todas as formas. Para ele o espaço da literatura não
L é somente da ficção institucionalizada mas também de uma instituição fictícia que,
em princípio, permite-se dizer tudo. Mas o que é “dizer tudo” para Derrida (1992)?
Seria juntar todas as formas e traduzi-las, torná-las outra, como em suas palavras,
L é totalizar a partir da formalização. Mas, além disso, “dizer tudo” é também se
liberar das proibições. Para o filósofo a literatura é “an institution which tends to
A overflow the institution” (DERRIDA, 1992, p.36). Seria possível uma escrita na qual
essa barreira fosse quebrada? O próprio Derrida em seu texto com co-autoria de
Geoffrey Bennington, nos exemplifica. Sua cinconfissão é essa escrita mergulhada
na autobiografia, na ficção e na reflexão filosófica. Ou então como Panesi (1996)
argumenta uma confissão ironicamente autobiográfica. A Circonfissão, esses textos
• escritos no fim de página do texto de Bennington, podem ser considerados uma
1037 ilustração prática da teoria que Derrida menciona em Acts of Literature.
Mas voltemos ao romance As formas de voltar para casa (2014) e queremos
•
aqui, com Derrida (1992) pensar nessa escrita onde se é permitido dizer tudo. Há
na escrita de Zambra essa “tradução” e liberação das formas tão bem explicada
e exemplificada por Derrida (1992)? Se há, como ocorre? Vamos, primeiramente,
entender como acontece o romance. A narrativa é dividida em quatro capítulos:
Personagens secundários, A literatura dos pais, A literatura dos filhos e por último,
2 Estamos bem. No primeiro capítulo, o narrador relembra sua infância em Santiago,
e sua mudança de percepção sobre os acontecimentos ao seu redor. Se concentra
0 no narrador criança, seus amigos, sua escola e sua visão dos adultos. Ao fazer
amizade com uma menina recém-chegada ao bairro, ele vai descobrindo novas
1 facetas de sua cidade e sua própria história que antes não conhecia ou não tinha
percebido. Ele, então, entende o que significava estar em uma ditadura e o que
8 isso representava para os chilenos. No segundo capítulo, com um tom mais
metalinguístico, o narrador fala sobre a escrita do livro sobre a sua infância. É um
capítulo em que a discussão sobre a escrita é pautada pela percepção do narrador
de que aqueles que viveram a ditadura como crianças só podem escrever sobre a
mesma se esse livro for de seus pais, ou seja, um romance sobre aqueles que, para
ele, realmente agiram. O terceiro já é um capítulo sobre sua juventude, na qual já
podia tomar decisões e agir. Aqui, o narrador volta a contar a sua história a partir
de seus vinte anos quando, depois de terminar a faculdade, volta ao seu bairro
para visitar a família. As memórias de Claúdia, e do Tio Raúl voltam a assombrá-
lo e a verdade é revelada.. Raúl era o pai de Claúdia, que viva escondido fugindo
dos militares e ajudando a esconder outros fugitivos que lutavam contra o regime.
No último capítulo, o narrador volta a escrita do romance e as observações sobre a
influências dessas memórias em sua vida adulta e seus relacionamentos.
Ao pensarmos com Derrida (1992), onde é cruzado as fronteiras do real e
da ficção, percebemos que é nessa escrita que se exprime a “passagem do singular à
cena de enunciação: do ‘isso era’ para o ‘é meu dever escrever isso que se inscreveu
em mim’” (TROCOLI, 2017). O que se inscreveu no escritor chileno? Zambra (2014)
J discute sobre isso em uma entrevista a Revista Clarín:
Me parece que esse es un texto que quiere narrar un despertar o más bien
A una historia personal que suena a prehistoria, por la capacidad de olvido
tan grande que tenemos, y por lo ajenos que suenan, al menos ahora, para
mi, algunos espacios y situaciones que sin embargo, gracias a la escritura,
L pude habitar nuevamente (ZAMBRA, 2014)
Queremos aqui nos embasar em Derrida (1992) para demonstrar a escrita
L de Zambra (2014) que convive com a dualidade de ser ficção, mas também, conter
traços autobiográficos que selam e rasuram a sua narrativa. O romance está, de
A uma certa forma, pensado e formado a partir desses traços autobiográficos desde a
nomeação dos capítulos, a divisão, o tema e a forma de escrita. Para percebermos
isso voltemos um pouco ao romance: dois capítulos, o segundo e o quarto, são
escritos em forma anotação, sendo cada fragmento separado por reticências e no
final do romance temos uma data “Santiago, fevereiro de 2010” (ZAMBRA, 2014,
• p.157). Esses fragmentos são como lembretes de acontecimentos, de encontros,
1038 anotações para a escrita, como por exemplo: “Eme veio, por fim. Como presente
de Natal, me deu um pote de ímãs com centenas de palavras em inglês. Armamos
•
juntos a primeira frase, que foi, de alguma forma oportuna: only love and noise.”
(ZAMBRA, 2014, p.58) ou “Muito resfriado, na cama há dias. Matizo a enfermidade
com altas doses de televisão. As visitas de Eme me parecem sempre breves demais.”
(ZAMBRA, 2014, p. 65-66). É interessante perceber que nesses capítulos em que
a escrita é o tema principal, a forma é a de um diário, onde os fragmentos do
2 cotidiano do narrador se mesclam com anotações sobre suas leituras e sobre a
escrita do romance, como: “(...) é que eu gosto de estar no livro. É que eu prefiro
0 escrever a já ter escrito. Prefiro permanecer, habitar esse tempo, conviver com
esses anos, perseguir longamente imagens esquivas e examiná-las com cuidado”
1 (ZAMBRA, 2014, p. 53).
Arfuch (2010) em seu livro O espaço biográfico faz um estudo do percurso
8 do biográfico e sua aparição na ficção. Como a teórica comenta a parição de um
“eu” como uma afirmação do teor biográfico pode ser visto a partir do século XVIII
com a consolidação do capitalismo e do mundo burguês. É consensual de que
a publicação de Confissões de Rosseau é começo de uma delineação de gêneros
literários autobiográficos. Dessa forma, confissões, autobiografias, memórias,
diários íntimos, correspondências formariam, para lá de seu teor literário, “um
espaço de autorreflexão decisivo para a consolidação do individualismo com um
dos traços típicos do Ocidente.” (ARFUCH, 2010, p.36). Arfuch explica que esses
gêneros literários, já instituídos como formas de prática de autocriação, e como
testemunhos de épocas, se expandiram e transladaram para outras formas literárias
e midiáticas. Ao nos aprofundarmos mais sobre a questão do diário, Arfuch (2010)
nos dá o exemplo de Samuel Pepys (1660-1690) que em seus escritos pessoais
expressava tudo: seu cotidiano, seus romances, desavenças e ciúmes. Dessa forma:
os rastros que emergem aqui e ali permitem reconstruir uma trama de in-
telecção pra a análise da produção literária do século XVIII, que iria conso-
lidando sei “efeito de verdade” tanto quanto a aparição de um sujeito “real”
como garantia do “eu” que se anuncia quanto com a apropriação da primei-
ra pessoa naquelas formas identificadas como fiction, que daria origem ao
J romance moderno. (ARFUCH, 2010, p. 44)
O que queremos com esse pequeno panorama da escrita biográfica?
A
Zambra (2014), ao escrever dois capítulos como um diário, não somente continua
a sua característica de não se fincar em somente um gênero literário, mas também
L alude na forma de sua narrativa a escrita autobiográfica. No romance os traços
autobiográficos, as memórias rasuradas, se mesclam a forma da sua narrativa,
L tão intrínsecos que o narrador afirma que já sabia que “quando crescesse eu ia
ser uma lembrança” (ZAMBRA, 2014, p.80) Mas como essas rasuras aparecem?
A Vejamos um exemplo do segundo capítulo, no qual o narrador, na casa de seus
pais, relata a lembrança de uma viagem e como ela serviu de inspiração para uma
parte de seu romance:
Escrevo na casa de meus pais. Fazia tempo que eu não vinha. Prefiro vê-los
no centro, na hora do almoço. Mas desta vez quis assistir com meu pai à
partida entre Chile e Paraguai, pensando também em refrescar alguns deta-
•
lhes do relato. É a viagem do romance, a viagem de volta que o protagonista
1039 faz, assustado, ao fim daquela longa tarde em que segue a suposta namo-
rada de Raúl. Escrevi essa passagem pensando numa viagem real, mais ou
•
menos naquela idade. (ZAMBRA, 2014, p.70-71)
A
L
L
A
•
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1
8
J
A
L CONTRA LA REDUCCIÓN NOMINAL: TENSIONES DE LA MEMORIA
Y RECONFIGURACIÓN DE LAS IDENTIDADES EN FORMAS DE
L VOLVER A CASA DE ALEJANDRO ZAMBRA
A Raúl Estrada (UNMSM)
RESUMEN: La intervención crítica del pasado que trabaja Alejandro Zambra en
Formas de volver a casa piensa la memoria sobre la dictadura chilena como una
experiencia removible. El relato propone conservar la adjetivación del presente
como posdictatorial y protegerlo de una posible reducción nominal. Este estudio
• ubica la novela dentro de lo que Ludmer entiende como literaturas postautónomas,
1042 considerando la marcada oscilación entre realidad y ficción en el relato, y a través
del cual se inaugura un procedimiento progresivo de interpelación a lo que persiste
• del pasado en el presente. A continuación, se examinan, siguiendo las ideas
propuestas por Benjamin y Bloch, las operaciones de reactivación, reconfiguración
y nominalización que articula Zambra tomando como punto de partida la infancia
como experiencia liberadora, desde la que se puede trazar puntos de convergencia
con otras experiencias, con las cuales se podría impedir la desaparición de las
2 huellas del pasado dictatorial en el presente.
Palabras clave: Posdictadura. Literaturas postautónomas. Memoria. Nominalización.
0
La condición irresoluta de la tensión que produce el pensar el recuerdo
1 emerge en la literatura latinoamericana contemporánea como una suerte de
recomposición compulsiva de la memoria mutilada por el aparato estatal para
recobrar los vínculos que la conectan al pasado y, con ello, fracturar su condición
8 estática dentro del escenario posdictatorial. La intervención de la memoria como
procedimiento progresivo y no inmediato en el discurso novelístico del chileno
Alejandro Zambra articula la aparición de una posible experiencia liberadora,
mediante el enjuiciamiento de la pérdida y la instrumentalización de su principal
efecto: el olvido. El desmembramiento de la memoria oficial en la conciencia
ficcionalizada de los niños de la dictadura revela la necesidad de auscultar el
silencio que recorre un pasado impreciso y difuso, más bien heredado, y al cual
se le ha sustraído la experiencia secundaria o, mal entendida, como experiencia
menor, para mantenerla soterrada a la homogeneidad del relato sobre el trauma
dictatorial y, a su vez, desconectándolo del mismo.
En Formas de volver a casa, novela publicada en 2011, se reconoce no
solo la necesidad manifiesta de la literatura latinoamericana actual de interpelar
las ruinas del pasado que aún persisten en las memorias colectivas, sino que su
lectura introduce una problemáticaclave para entender cómo operan aquí el duelo
por los ausentes y los escenarios de infancia como dispositivos de resistencia
J al olvido:la autorreferencialidad. Es, a través de ella, que la novela se disloca y
supone inadmisible cualquier interpretación unilateral, pues en su construcción
A se configura un contrapunteo experiencial entre la ficción y el espacio biográfico.
¿Cómo entender entonces esa experiencia binaria que no logra decantarse
L totalmente en el texto de Zambra? La aproximación que nos ocupa conduce a
alejar al texto de una ortodoxa categorización y permite leerlo acaso como una
escritura diaspórica, entenderlo más bien como literatura posautónoma, es decir,
L como parte de escrituras que
(…) no solo atraviesan la frontera de la ‘literatura’ sino también la de la ‘fic-
A ción’ [y quedan afuera-adentro en las dos fronteras]. Y esto ocurre porque
reformulan la categoría de realidad: no se las puede leer como mero ‘realis-
mo’, en relaciones referenciales o verosimilizantes. (LUDMER, 2006)
Son ustedes los que tomaron otro camino, pensaba yo, pero no lo decía.
En el antejardín de una de las casas los adultos montaron dos carpas para
que durmiéramos los niños.Al comienzo fue un lío, porque todos queríamos
dormir en la del estilo iglú, que entonces era una novedad, pero se la dieron
a las niñas.
(…) En eso volvió Raúl, el vecino, con Magali y Claudia. Ellas son mi herma-
na y mi sobrina, dijo. Después del terremoto había ido a buscarlas y regre-
saba ahora, visiblemente aliviado. (ZAMBRA, 2011, pp. 15-16)
8 ¿Y qué es tu papá?
Mi papá no es nada, respondí, con seguridad. (ZAMBRA, 2011, pp. 39-40)
Hacia el final del primer capítulo, Personajes secundarios, Raúl se muda
nuevamente, pero ante la pregunta del narrador niño que evidencia la necesidad de
saber hacia dónde es que va, Raúl se resiste a responder y evade con gesto neutro la
interrogante. También se muda Claudia, pero es algo que el narrador solo advierte
cuando va hasta la villa donde está su casa y los vecinos le notifican que se mudó,
que nadie sabe a dónde fueron, quizá a otra villa. Es con la interrupción de la
historia que solo será retomada muchos años después con un narrador adulto en el
tercer capítulo, La literatura de los hijos, que se inicia el proceso de desmontaje de
la inautenticidad que hasta entonces había definido la vida de algunos personajes.
El narrador pasará casualmente por la misma calle donde vivía Claudia y creerá
poder encontrarla allí. Sin embargo, Ximena, la que de niño creía que era la novia
de Raúl, le abre la puerta y va desenmarañando esa artificialidad que su recuerdo
había conservado incólume hasta entonces. Ximena es la hermana de Claudia, y
Claudia vive ahora en los Estados Unidos. Cuando el narrador adulto pregunta por
Raúl se inaugura la nominalización, ya que se pone en entredicho totalmente la
J identidad de quién se creía era Raúl y, además, se activa el dínamo de significación
al cuestionar incluso la condición del que pregunta, se le descubre, de este modo,
su falta de entendimiento, pero se le atribuye, por otro lado, la tarea de entender,
A
de saber, de conocer, de develar la identidad de quién dejó de ser Raúl. Es ese
instante en el que el pasado empieza a emerger en el presente y a ser removido:
L
Finalmente su destino estaba en ese país que cuando niña despreciaba,
pensé, y pensé también que debía irme, pero no pude evitar una última
L pregunta de cortesía:
¿Cómo está don Raúl?, le pregunté.
A No sé cómo está don Raúl. Debe estar bien. Pero mi padre está muriendo.
Chao, Aladino, dijo ella. No entiendes, nunca vas a entender nada, huevón.
(ZAMBRA, 2011, p. 92)
•
1062
•
2
0
1
8
J
A
L NATUREZA E SOBRENATUREZA: A SERPENTE NO IMAGINÁRIO
POPULAR NO QUILOMBO DE MATA CAVALO, Nª Sª DO
L LIVRAMENTO – MT
A Ronaldo Henrique Santana (UFPA)
Mario Cezar Silva Leite (UFMT)
RESUMO: A imagem da serpente constitui um dos mais importantes arquétipos da
história humana, presente em diferentes mitos cosmogônicos e estruturas simbólicas.
Considerando as complexas e multifacetadas conformações da imagem-serpente,
• buscamos investigar numa comunidade negra rural, que agrega aproximadamente
1063 420 famílias, denominada Quilombo de Mata Cavalo, as representações/
aproximações simbólicas sobre as cobras a partir de narrativas orais dos
• moradores. Partimos do pressuposto que a imagem da serpente nesta comunidade
se apresenta em universos que se entrecruzam, entre natureza e sobrenatureza,
com assentamentos religiosos. Segundo os relatos registrados, a serpente em Mata
Cavalo é apresentada com características humanas, antropomorfizada a partir
de elementos como vingança, rancor, astúcia e perspicácia contra aqueles que as
2 atinge, além de outras associações simbólicas.
Palavras-chave: Quilombo de Mata Cavalo. Serpentes. Narrativas Orais.
0
Introdução
Este texto é parte preliminar dos resultados da Tese intitulada Serpentes
1 e Poéticas do Imaginário Popular no Quilombo de Mata Cavalo - Nossa Senhora do
Livramento/MT, vinculada ao Programa de Pós Graduação em Estudos de Cultura
8 Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso, na qual discute parte
das aproximações simbólicas sobre as serpentes, verificadas nas narrativas
orais dos moradores da Comunidade rural Boa Vida de Mata Cavalo, que agrega
aproximadamente 450 famílias, distribuídas em seis comunidades menores: Mata
Cavalo de Cima, Mata Cavalo de Baixo, Mutuca, Estiva, Capim Verde e Aguassú.
Para realização desta pesquisa, buscamos conversar com os moradores
que residem em Mata Cavalo por muitos anos e possuem vasta experiência no trato
com o ambiente e seus animais. Dentre estes moradores, encontramos aqueles
mais conhecidos por realizarem rezas (em festividades católicas) e “benzedeiros (as)”
(que fazem remédios naturais e orações em pessoas e/ou animais), dentre outros,
para conversar sobre suas experiências com as serpentes, que esporadicamente
aparecem em suas residências ou próximos à elas, pelo fato da comunidade de Mata
Cavalo possuir aproximadamente 15 Mil hectares de terra segundo a Associação de
Moradores de Mata Cavalo, em um ambiente rico na diversidade de fauna e flora,
com os três biomas mato-grossenses: Floresta Amazônica, Cerrado e Pantanal.
O fazer da pesquisa se pauta no reconhecimento das experiências dos
J narradores com as serpentes existentes no ambiente local, das relações cotidianas
que constituem sentidos próprios aos moradores da comunidade de Mata Cavalo e
A no entendimento que o conhecimento por eles adquiridos em sua historicidade se
produz num palco de implicações cruzadas entre o ambiente, história pessoal, de
L sua família e da comunidade.
Em outras palavras, este trabalhoparte das percepções dos sujeitos
a partir de suas narrativas, que ilustram paisagens e histórias a partir de um
L
universo simbólico adquiridos no cotidiano, aproximando-nos assim de uma
Cartografia do imaginário. Para Sato (2011), a cartografia do Imaginário proporciona
A inúmeros caminhos que o pesquisador deve escolher ao longo da realização do
estudo. Segundo a autora, esta metodologia – cartografia do imaginário -não está
ligada a um único “itinerário”, na rigidez de uma única rota a ser seguida, mas
na perspectiva metafórica que o caminho se faz ao caminhar e assim, no “faro”
ou “tato” do(a) pesquisador(a)1 em percorrer em direção a seu objeto de pesquisa,
• deixa-o livre para tomar os caminhos que julgar necessário para alcançar os
1064 resultados desejados, por isso optamos por realizar visitas em locais diferentes
do complexo quilombola, alternando nas comunidades e contactando aqueles que
•
eram indicados pelos entrevistados anteriores.
Assim, a base de construção do conhecimento na perspectiva cartográfica
decorre, dentre outros fatores, do debruçar do pesquisador sobre seu campo de
estudos, a partir de categorias de atenção dispendidas neste processo. A s s i m ,
2 trazemos algumas aproximações simbólicas e análises a partir das narrativas dos
sujeitos que tivemos acesso.
0 Serpente ctônica, simbolismo vegetal e processos de cura em mata cavalo
8 A autora toma como medicina popular “uma medicina sacralizada, devido ao seu envolvimento
com diferentes sistemas de crença, as plantas, tornam-se, por sua vez seres sagrados. Considerando-
se, ainda, que, em rituais de caráter mágico-religioso que envolvem curas, tornam-se também
sagrados, ao serem investidos de poder, todos os elementos que compõem o conjunto ritualístico
adotado.” (CAMARGO, 2014, p.09)
E se eu vejo a cobra assim, eu vejo que ela é bem brava a gente tem que
matar ela né, porque senão ela vai pegar a gente. Eu pego e amarro na
blusa, faço com ela assim, pego e dou um nó na blusa e olho assim! Ela fica
segura assim até a gente matar ela, Ela não sai! Uma vez nós fomos lá na
minha irmã e uma cobra, eu não sei se era Jaracuçu ou canta galo, tinha uns
5 metros para mais, ela estava bem enrolada assim, bem na porteira da
minha irmã. Eu falei, porque que essa cobra esta enrolada ai? Quando ela
viu nós ela quis sair. Eu dei um nó assim na blusa e segurei ela. Fiquei
J mais de uma hora ali vigiando ela até o pessoal chegar. Quando o pes-
soal chegou ela quis sair assim, eu segurei de novo e ela parou onde estava,
brava! (Dona Berenice)
A
Sobre as outras ações de benzedores, Dona Ana exemplifica o benefício
L que o curandeiro trouxe a um rapaz, seu conhecido: “O irmão do Conrado, que ele
morava aqui, vivia doente, doente, com o pé inchado. bateu o derrame nele, o pé dele
vivia até redondo, inchado, até brilhava, ai ele foi lá na casa dele [do curandeiro]
L fazer garrafada. Aí ele sarou, acabou o inchaço. Registra-se em diversas etnias
e grupos humanos (ELIADE, 2008), homens que faziam papeis similares aos dos
A curandeiros (xamãs, pajés, feiticeiros, etc.), e ao fazê-lo, se tornam reconhecidos e
fundamentais nos cuidados com a saúde da população local, tribo ou comunidade.
Gomes et.al. menciona que “aqueles que praticavam as curas, que possuíam
conhecimento empírico sobre a fragilidade do ser humano, as virtudes das plantas
e dos venenos dos animais eram considerados detentores de poderes, de faculdades
• fantásticas, sendo diferenciados dos demais homens.” (2017, p.33),
1068 Estes indivíduos são detentores de “habilidades”, “conhecimentos” e/ou
“poderes” sagrados que os conferem grau diferenciado dos demais, de modo que
•
tais “dons” são legitimados pela fé e evocados no ato da reza ou “benzeção”, a partir
do chamamento do divino e na súplica pela cura do enfermo. Como diz Sousa, “o
agente da medicina popular é a mãe de família, o homem do povo, a avó e a parteira
[...] quem socorre a criança, o adulto enfermo, o velho. Os procedimentos adotados
são sempre inspirados nessas pessoas [...]”. (2014, p.02). Não encontramos em Mata
2 Cavalo pessoas que atualmente produzam a garrafada, com exceção de seu João
Leite (in memorian), que outrora fora indicado como um dos principais curandeiros
0 da comunidade. Dona Celina nos diz que,
Ninguém mais faz isso aqui, garrafada, essas coisas não. Porque gar-
1 rafada, tem que fazer para alguma coisa, diabetes, pressão, agora você vai
mexer com o que não conhece, daqui a pouco vai matar os outrosai. [...] tem
que ver o que você conhece, o que tem, o que a pessoa está tendo. Aí tomar
8 não é o problema, problema é vir a causa depois.(Dona Celina)
Outra moradora, dona Estevina, diz que não existem sequer benzedores
em Mata Cavalo atualmente9 e diz que seu pai e tio que realizavam procedimentos
de cura contra picada de cobra.
[...] Quem benzia aqui de cobra era meu pai e meu tio, que era o pessoal mais
velho aqui dos escravos, agora com nós aqui não tem mais, acabou, foi o tem-
po que existia, agora o pessoal aqui ninguém aprendeu oração de ben-
zer cobra, é muito difícil, aqui quando o povo fala que fulano foi ofendido
12 João Leite Barbosa, 66 anos – in memoriam. Entrevista realizada em 2011. Fonte: Banco de
dados do pesquisador.
quem está mordido de cobra. Geralmente, quase que os evangelistas não
acreditam nisso, mas eu acredito [...].(João Leite)
São Francisco nos Estados Unidos – O guiné (Petiveriaalliaceae, L.) da família Phytolacacceae, tinha
como sinonímia popular o nome Amansa-senhor. Este nome, deve-se ao fato de ser preparada por
escravos domésticos sob a forma de chá e misturada às refeições dos senhores e feitores, causando
sonolência e, portanto, tornando-os mais brandos na convivência diária. Estudos farmacológicos
pré-clínicos mais recentes, confirmam a ação da Petiveriaalliaceae L. sobre o sistema nervoso
central. (ALMEIDA, 2011, p.46)
plantas de “poder” são comuns enquanto conhecimento popular, como demonstra
Leite (2003): “À guisa de breves exemplos, no Brasil observa-se que alguns vegetais
possuem poderes para além dos terapêuticos-naturais. O famoso ‘banho de cheiro’,
para a boa sorte, atrair, marido/esposa, dinheiro é muito comum” (p.127) e ao
prosseguir, evoca Thomas Keith que acrescenta “certas árvores e arbustos – a
sorveira-brava, a verbena, o visco, a angélica – tinham seus ramos cortados para
se pendurar no corpo ou na casa, como amuletos contra feitiços. O louro, a faia e
J o alo porró eram plantados próximos as casas para protegê-las de raios.” (1988,
p.89)” Portanto, não é por acaso que estes elementos se incluem nas rezas contra
as serpentes, dada sua importância, poder e aplicação no uso popular em todo
A
Brasil, e agora, como registrado, também em Mata Cavalo.
L Outra crença na comunidade, dita por Dona Berenice, dá conta que
se vermos de alguma maneira os “braços” (ou pernas) da serpente (que estão
escondidas), nós instantemente morreremos, pois eles foram escondidos e
L agredirmos o animal com certos vegetais, eles aparecerão.
Cada um tem um jeito, cada um tem um estilo de benção, de praga. A cobra
A tem braço mas a gente não vê. Por isso que a gente não pode bater na co-
bra com pau de quiabo e nem com taquara, porque ela aparece as pernas
e se aparecer a gente morre! Não pode aparecer! Nem!(Dona Berenice)
Vizotto diz que o relato de pessoas que afirmam terem visto “braços” ou
“pés” em espécimes de serpentes é bastante comum no Brasil, fato que podem ser
• explicados por alguns fatores que se diversificam:
1075 Existem espécies de serpentes que se assemelham a certos lagartos (lacer-
tílios), da família Anguídeos (Ophiodesstriatus, Ophiodesvertebralis e Ophio-
• desyacupio), popularmente conhecidos como cobra-se-vidro, quebra-quebra
ou licranço que apesar do nome e aspectos serpentiformes, não são serpen-
tes; Algumas espécies de serpentes tem como item da alimentação certas
espécies de anuros (rãs, sapos e pererecas)16 dos quais são engolidos intei-
ros, iniciando o processo de deglutição da cabeça, de modo que no momento
2 do engolimento, os pés destes animais ficam expostos pela boca e passam a
impressão, para olhares desatentos, de que a cobra possui pés; Os machos
das serpentes possuem órgãos copuladores em uma bolsa na base da cau-
0 da, subdividida em duas partes que dão origem aos dois hemipênis17, que
durante a cópula ficam expostos, fato que podem levar observadores a acre-
ditar que são falsos “pés”; Uma última possibilidade, embora da confusão
1 de serpentes com pés é a de que um pequeno lagarto (embora não existente
no Brasil) que possui o corpo serpentiforme com a adição de uma cintura
8 escapular, o que dá a aparência de uma serpente com pés. (VIZOTTO, 2003,
p. 156-157)
Nenhuma destas situações está associada a perigos de morte para o ser
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1077
•
2
0
1
8
J
A
L A LITERATURA MARGINAL-PERIFÉRICA NOS ANOS INICIAIS DO
ENSINO FUNDAMENTAL: UM ESTUDO DE CASO
L
Sandra Cristina da Silva Rebelo (USCS)
A Ana Silvia Moço Aparício (USCS)
RESUMO: Neste trabalho, apresentamos resultados de uma pesquisa que investigou
o processo de inserção da literatura marginal-periférica nos anos iniciais do ensino
fundamental da rede municipal de São Paulo, por meio do projeto da Sala de Leitura.
Seguindo a metodologia do estudo de caso, realizamos análise de documentos oficiais
• e entrevistas semiestruturadas com os envolvidos no processo. Tomamos como
aporte teórico do trabalho autores como Canclini (2015), Freire (2001) Dalcastagné
1078
(2012), entre outros. O estudo buscou apontar aspectos sobre como a literatura
• marginal-periférica, tem sido inserido em ambientes educacionais formais e quais
valores representa, do ponto de vista social, cultural e estético. Os resultados
revelam interesse e preocupação de algumas políticas públicas educacionais com
a concretização de ações de inclusão social, cultural, de identidade e igualdade.
Concluímos que na contemporaneidade as necessidades sociais de práticas de
2 leitura no contexto escolar tornaram-se outras e têm sido usadas como ferramenta
de inclusão social.
0 Palavras chave: Literatura marginal-periférica. Salas de leitura. Formação de
professores dos anos iniciais. Leitura literária na escola.
1 Introdução
Jogando contra a massificação que domina e aliena cada vez mais os assim
8 chamados por eles de “excluídos sociais” e para nos certificar de que o povo
da periferia/favela/gueto tenha sua colocação na história, e que não fique
mais quinhentos anos jogado no limbo cultural de um país que tem nojo de
sua própria cultura, a literatura marginal se faz presente para representar a
cultura de um povo, composto de minorias, mas em seu todo uma maioria.
(FERRÉZ, 2005, p.11)
•
1087
•
2
Fonte: Professor do Contexto B
0
Nesse caso, os desenhos indicam que a atividade de leitura colaborou
com o processo de construção de conhecimento dos alunos, partindo da leitura
1
de mundo de cada um deles, pois considero possibilidades de reflexão sobre os
elementos expressivos apresentados em cada desenho. Os desenhos serviram e
8 servem como formas possíveis de interlocução entre: professores-alunos, situações
vividas-situações pensadas etc. Afinal, esses desenhos carregam as subjetividades
dos sujeitos producentes, permitindo leituras e interpretações. Ademais, em linhas
gerais, penso que a importância dessas representações resida no fato de servirem
como ferramenta de investigação de conhecimentos e valores.
Ainda sobre as possibilidades de trabalho com a literatura marginal-
periférica nos anos iniciais do ensino fundamental e, para concluir, seguem alguns
trechos de duas entrevistas realizadas com alunos do Contexto B, aqui denominados
de CB1, CB2, CB3, CB4, CB5, CB6, CB7 e CB8, que evidenciam e reforçam a fala
do professor, sobre os resultados do trabalho com a literatura marginal-periférica:
Pesquisadora: Eu queria saber um pouco sobre uma literatura chamada de
marginal-periférica. Vocês conhecem?
CB7: sim
Pesquisadora: O que vocês conhecem ou o que vocês ouviram falar da litera-
tura marginal-periférica?
J CB6: São as pessoas que moram na favela e escrevem livros, sobre a vida
delas.
Pesquisadora: E o que vocês acham disso?
A
CB7:Eu acho legal.
CB6:Porque elas falam nos livros o que acontece com elas, falam sobre a vida
L delas, aonde elas moram, o que elas sofrem.
Pesquisadora: E vocês gostam dessa literatura?
L CB5 /CB6 /CB7: Sim.
Pesquisadora: E o que faz vocês gostarem dessa literatura?
A CB2: Um exemplo... que nem, a minha vizinha, que mora na minha frente,
ela passa por necessidades. Ela, de vez em quando, tem que pedir dinheiro
emprestado porque não tem nada pra comer!
CB3: A maioria das pessoas que vivem na favela vivem catando latinha, tudo
pra reciclar, pra conseguir dinheiro porque não tem o que comer, não tem
casa, não tem essas coisas.
•
(Relato 3 – CB1, CB2, CB3, CB4, CB5, CB6, CB7 e CB8 - Alunos do Con-
1088 texto B).
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2
0
1
8
J
A
L O PAPEL DA TRADUÇÃO NA DIFUSÃO DA LITERATURA NAHUATL
L Sara Lelis de Oliveira (UNB)
RESUMO: Pretende-se evidenciar o papel da tradução na difusão da literatura
A nahuatl pelo historiador mexicano Miguel León-Portilla em sua obra El destino de
lapalabra(2013). A tradução atua como instrumento fundamental para divulgar
os manuscritos em língua nahuatlque foram transcritos da oralidade e da
interpretação oral dos livros pictoglíficos indígenas para o alfabeto latino durante
o século XVI.Esse material foi estudadopor León-Portilla no intuito de considerar
• as possibilidades de conservar, malgrado a transcrição do oral para o escrito, o
pensamento indígena. Constatou-se, no entanto,que sua hipótese é discutida
1093
mediante exemplosdos manuscritos apresentados em tradução para o espanhol
• mexicano, questão central que problematiza o estudo do historiador.
Palavras-chave: Miguel León-Portilla. Literatura nahuatl. Tradução.
Introdução
Narra o cronista espanhol Bernal Díaz del Castillo(1492 –1584) em sua
2 Historiaverdadera de la Conquista de la Nueva España(1632) que, ao chegarem os
primeiros castelhanos àpenínsula deYucatán – sul do território mesoamericano
conhecido atualmente como México1, eles se depararam com “muitos livros de
0 papel” (tradução nossa):
Y hallamos las casas de los ídolos y sacrificaderos, y sangre derramada e
1 inciensos con que sahumaban, y otras cosas de ídolos y de piedras con que
sacrificaban, y plumas de papagayos, y muchos libros de papel, cogidos a
8 dobleces, como a manera de paños de Castilla…(DÍAZ del CASTILLO, 1939,
p. 169, grifos nossos).
Os “livros” aos quais se refere Díaz del Castillo eram, em realidade,
osmanuscritos pictoglíficos pré-hispânicos ou os chamados códices2. Não se
pareciam de todo com os livros europeus: como observou Castilla, eles eram
1 Não totalmente, mas as questões territoriais mexicanas são históricas e merecem outro artigo.
2 O vocábulo “códice” provém de codex, termo utilizado na Antiguidade Clássica para designar
“as tábuas onde se escreve”. O termo foi apropriado para intitular os amoxtli(do nahuatl, “conjunto
de papéis de amate– os manuscritos) elaborados pelos povos indígenas pré-hispânicos (LEÓN-
PORTILLA, 2012, p.7).
elaborados “em dobras,como os panos de Castilla”. E ao passo quenos livros
europeus predominavam os caracteres, nos livros pré-hispânicos predominavam as
pinturas, seu elemento mais característico3. Em nahuatl, o vocábulo que designa
“livro” é amoxtli4 e este não é feito de papel, mas de fibra de maguey (um tipo de
agave).
A realidade da existência dos amoxtli no período pré-hispânico pode
despertar a curiosidade de muitos assim comochamou a atenção dos primeiros
J castelhanos que invadiram o território mesoamericano. Com a consumação da
Conquista do México (1519 – 1521) pelo exército do espanhol Hernán Cortés e
A pelospovos indígenas contrários ao Império Mexica, os livros pictoglíficos indígenas
foram também objeto de interesse dos missionários católicos que arribaram no
L território no propósito de evangelização durante o período colonial do século XVI.
Alguns com o objetivo de destrui-los e outros com o objetivo de preservá-los. Graças
a estes últimos, com a cooperação de indígenas descendentes, sobreviveram alguns
L desses manuscritos que servem de rastro para se acessar a cultura do antigo
México, sendo elesobjeto de pesquisa até os dias atuais.
A Os manuscritos pictoglíficos indígenas foram salvaguardados tanto
pelos indígenas quanto pelos frades católicos. Ambos trabalharam em prol de
transladar as tradições extraídas oralmente dos livros para serem ensinadas
nas calmecac(vocábulo em nahuatl para designar o lugar onde se transmitia
conhecimento), bem como das tradições orais memorizadas e transmitidas entre
• os povos, para a escritura alfabética (LEÓN-PORTILLA, 2013, p. 15).Paraos
1094 indígenas, o importante era não permitir o desaparecimento das tradições de seus
antepassados, de sua identidade, enquanto que para os frades os manuscritos
•
consistiam um meio de conhecer a cultura indígena no intuito de erradicar o que
era impróprio no Catolicismo Romano e, posteriormente, implantá-lo. “Também
houve o caso de alguns frades humanistas que chegaram a se interessar pelas
culturas indígenas e por suas criações literárias” (LEÓN-PORTILLA, 2012, p. 66),
como é o caso do missionário Bernardino de Sahagún (1500 – 1590).
2
Sahagún compilou, segundo o padre e filólogo mexicano Ángel María
Garibay Kintana (1892 – 1967), a grande obra Cantares Mexicanos5, um manuscrito
0
3 Leia-se “mais característico”, pois os povos nahuas utilizaram-se de glifos silábicos. Só não
de maneira tão desenvolvida quanto os povos maias (NATALINO dos SANTOS, 2002, p. 88).O
1 historiador mexicano Miguel León-Portilla também sustenta a mesma constatação: “Mucho menos
completa fuela escritura, también logo-silábica, de otros mesoamericanos como losmixtecas y nahuas.
8 No obstante, su sistema glífico les permitía consignar fechas, nombres de personas y lugares, así
como numerosas ideas incluso abstractas o referentes a determinados géneros de aconteceres(LEÓN-
PORTILLA, 2013, p. 12).
4 “O termo amoxtliestá composto de amatl, papel (feito de cutícula fibrosa que subjaz à casca
da árvore amate, do gênero dos fícus), e de ox-tli, o que está reunido ou emplastrado. O vocábulo
resultante, amoxtli, significa composição ou conjunto de papeis de amate”(LEÓN-PORTILLA, 2012,
p. 15, tradução de Carla Carbone). Todas as citações em língua portuguesa à obra de 2012 de
Miguel León-Portilla são traduções de Carla Carbone. No âmbito deste trabalho não discutiremos
as traduções do nahuatl para o espanhol aqui apresentadas, muito menos do espanhol para o
português, pois elas envolvem uma reflexão que transcende a proposta aqui apresentada.
5 A grande obra Cantares Mexicanos é formada por nove partes: 1. Cantares Mexicanos, 2.
KalendarioMexicano (en castellano), 3. Arte divinatorio de los Mexicanos (en castellano), 4. Ejemplos
que esteve perdido durante aproximadamente trezentos e trinta anos. Foi encontrado
na Biblioteca Nacional do México no final do século XIX e publicado no mesmo século
em edições fac-símiles e paleografias. Sua divulgação em tradução para o espanhol
mexicano aconteceu em parte em 1953, com Historia de la Literatura Nahuatl6, e
sua primeira parte na íntegra em 1965 com Poesia Nahuatl7, ambasobras do padre
Garibay. Com essas obras, Garibay foio responsável por, no século XX, resgatar e
difundir os Cantares e outros manuscritos indígenas pré-hispânicos em tradução.
J Não somente, constituiu a chamada Literatura Nahuatl defendendo o mesmo
ponto de vista que os missionários-cronistas deixaram como testemunho: os povos
indígenas pré-hispânicos foram produtores de poesia, no sentido etimológico grego
A
de criação literária (poietiké)8 que envolve o que conhecemos atualmente sob o
título poesia, mas também prosa:
L
Podría ya conjeturarse que los pueblos de esta lengua tuvieran su modo de
expresión poética. Todos los pueblos lo tienen. Pero aquí nos abundan los
L testimonios de los investigadores primitivos que fueron los misioneros
cristianos (GARIBAY, 1965, p. v, grifos nossos).
11 São eles: Primera parte: ¿Hemos traducido la antigua palabra?(p. 19-71), Segunda parte: Del
códice pictoglífico a la luminosa prisión del alfabeto (p. 73-115), Tercera parte: La religión de los
nicaraos. Análisis y comparación de tradiciones nahuas (p. 117-235), Cuarta parte: Cuicatl y Tlahtolli:
las formas de expresión en nahuatl (p. 237-255).
sistema indígena de preservación de conocimiento con raíces milenarias. En
realidad se produjo una sustitución. En los “textos indígenas que se pusieron
por escrito con el alfabeto quedó silenciada la oralidad y desaparecieron los
signos glíficos y, casi siempre, también o la mayor parte de las imágenes pin-
tadas con vivos colores (LEÓN-PORTILLA, 2013, p. 14).
12 No corpo do texto, León-Portilla afirma que a referência é de 1980 e de páginas 11-64, mas
nas Referências Bibliográficas consta que a edição é de 1983 e de páginas 15-64. Confirmo que é
de 1980. Trata-se de um artigo publicado na revista Estudios de Cultura Náhuatl, coordenada por
tribución de su texto en varios determinados conjuntos de palabras, a veces
verdaderos párrafos. […] Existencia de varias formas de ritmo y metro. […]
Estilística de los cuicatl. Abarca ésta las formas de estructuración interna,
[…] igualmente lo que se refiere a procedimientos característicos de este géne-
ro de composiciones nahuas, como los paralelismos, difrasismos, correlacio-
nes de frases, etcétera (LEÓN-PORTILLA, 2013, p. 265)
León-Portilla.
Na apresentação dos linguísticos dos tlahtolli os atributos linguísticos
identificados tampouco referem-se ao texto em língua nahuatl. No caso que se
apresentará, León-Portilla analisa a estilística de um huehuehtlahtolli¸ subgênero
dos tlahtolli que se refere aos discursos proferidos pelos anciãos ou sábios no intuito
de educar crianças e jovens ou em casa ou nas calmecac (LEÓN-PORTILLA, 2013,
p. 344).
Quadro 2: Trecho em língua nahuatl e tradução sem autoria declarada
J Trecho em nahuatl Tradução sem autoria declarada
Ca yztonoc in tiquauhtli, in tocelotl tú que estás aquí, águila, tú, ocelote
14 Do original : ...l’importance de la traduction pour le Collège réside [...] en ceci, que les différents
savoirs ou activités pris en vue [...] rencontrent tous la traduction comme question. Prenons les cas,
plus aisés à aborder, des savoirs et activités ayant déjà un nom et un statut dans notre société.
J
A
L OUTRAS ARTES DE CURAR NO ACRE TERRITORIAL: DIÁLOGOS
COM LEGISLAÇÕES E MATÉRIAS DE JORNAIS
L
Sérgio Roberto Gomes de Souza (UFAC)
A RESUMO: A perspectiva do texto é analisar a maneira frequente com que parcela
dos habitantes do então Território Federal do Acre recorria a outras artes de curar,
enfatizando a maneira como essas práticas e seus praticantes eram caracterizados
em jornais e documentos oficiais. As fontes históricas analisadas foram relatórios
oficiais de prefeitos e governadores, jornais, legislações que tratam sobre o tema e
• processos judiciais. As fontes trazem importantes evidências de que, entre os anos
de 1904 e 1930, foi significativo entre os habitantes do Acre o uso de saberes e
1102
fazeres relacionados a práticas de cura, constituídos a partir de relações empíricas
• com o espaço da floresta. A busca por outras artes de curar, nessa perspectiva, pode
ser compreendida como uma importante estratégia de sobrevivência, considerando
que, para muitos, passaram a representar a única alternativa para fazer frente às
moléstias que se manifestavam de forma endêmica e epidêmica na região.
Palavras-chave: Medicina popular. Médicos. Feiticeiros. Curandeiros
2
Práticas de cura fundadas em saberes tradicionais foram objetos de
0 debates no Brasil, desde o início da colonização. A partir do momento em que
os portugueses iniciaram o processo de ocupação e exploração de sua possessão
na América, viram-se às voltas com a necessidade de enfrentar as doenças que
1
acometiam os patrícios que migravam para o Novo Mundo. Segundo Luiz Otávio
Ferreira, as práticas de medicina que passaram a ser desenvolvidas foram forjadas a
8 partir da “convivência e combinação de três tradições culturais distintas: indígena,
africana e europeia, com inexpressiva participação dos profissionais de formação
acadêmica” (FERREIRA, 2003, p. 101).
Nos primórdios da colonização do Brasil, não foram os profissionais
médicos que estiveram à frente das artes de curar. Esse ofício, predominantemente,
ficou a cargo de “[...] curandeiros, feiticeiros, raizeiros, benzedores, padres,
barbeiros, parteiras, sangradores, boticários e cirurgiões” (FERREIRA, 2003, p.
101). O número insuficiente de médicos para atender às demandas da população
constituiu-se em importante fator a propiciara atuação de outros personagens,
que passaram a assumir um papel antes reservado exclusivamente aos doutores
em medicina (FERREIRA, 2003, p. 102). Ressalte-se que, à época, era difícil
estabelecer rígidas fronteiras entre a medicina acadêmica e a medicina popular,
considerando-se que a primeira “expunha uma concepção da doença e apregoava
um arsenal terapêutico fundado numa visão de mundo em que coexistiam o natural
e o sobrenatural, a experiência e a crença” (FERREIRA, 2003, p. 102).
A tradição da medicina popular não se esgotou com o fim do período
J colonial. Manteve-se durante o Império expressando-se, por exemplo, nas diversas
formas de resistência desenvolvidas por parte da população às campanhas vacínicas.
A Sidney Chalhoub destacou que “a inoculação de pus variólico realizada por curiosos
– talvez não só por eles – era prática comum tanto na Corte quanto no interior do
L país ao longo do século XIX” (CHALHOUB, 1996, p. 128). Nomes como José Pereira
do Rego, o Barão do Lavradio, responsabilizaram a variolização por difundir o
terror entre a população, que não conseguia distingui-la com clareza da vacinação,
L e temia pela disseminação da doença. O Barão do Lavradio não externou nenhuma
dúvida quando afirmou que esse era o principal fator que levava à recusa ao método
A profilático da vacina, contribuído para o agravamento de uma epidemia de bexigas
ocorrida em Pernambuco, no ano de 1873. (CHALHOUB, 1996, p. 127). Opinião
contrária, no entanto, foi expressa por um vacinador designado para atender um
povoado denominado de Inhaúma. Segundo disse, um dos principais motivos para
as negativas devia-se ao fato de que “muitos já se achavam vacinados e por isso não
• recorriam à vacina” (CHALHOUB, 1996, p. 127). A afirmação reforça a concepção
1103 de que não formados tinham participação efetiva em ações de imunização, e que
os métodos que desenvolviam eram recebidos com credulidade por considerável
• parcela dos habitantes do Brasil imperial.
Nos registros feitos por médicos do Instituto Oswaldo Cruz, nas duas
primeiras décadas do século XX, encontram-se importantes informações sobre
a prática de medicina popular no Brasil republicano. Fonte histórica de grande
relevância para pesquisadores que se interessam pela temática é o relatório
2 denominado “Viagem Científica pelo norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul
do Piauí e de norte a sul de Goiás”, de autoria de Belisário Penna e Arthur Neiva. O
0 documento foi publicado no ano de 1912, após expedição realizada por requisição
da Inspetoria de Obras Contra a Seca, dirigida no período por Arrojado Lisboa.
1 Em um tópico intitulado “Terapêutica Popular”, os pesquisadores descreveram
práticas de cura que faziam parte do cotidiano de moradores de algumas das
8 localidades visitadas que, em decorrência da impossibilidade de acesso a médicos
e medicamentos convencionais, “procuravam auxílio da flora e fauna locais a fim
de se tratarem” (PENNA; NEIVA, 1912, p. 161).
As relações que as instituições públicas e setores letrados da sociedade
brasileira mantiveram com a medicina popular foram caracterizadas por paradoxos.
Os médicos, por exemplo, perceberam que não era possível simplesmente negá-
la ou ignorá-la, devido à inserção e legitimidade destas práticas junto à grande
parcela da população. Dessa forma, não podendo simplesmente denunciar o
“charlatanismo” ou a “ignorância popular”, viam-se obrigados a dialogar com essa
tradição, “disputando em condições desfavoráveis a autoridade cultural no campo
da arte de curar” (FERREIRA, 2003, p. 119). Assim, a legitimidade do médico e
da medicina como conhecemos nos dias de hoje, foi constituída em meio a um
processo de intensa disputa, caracterizado por “dissensos, consensos e ampla
negociação política entre médicos e outras categorias de curadores” (FERREIRA, et
al, 2001, p. 61).
A legislação que regulamentava as profissões nas áreas de saúde não era
clara, de modo que gerava diversas interpretações. No dia 1º de fevereiro de 1900,
J o jornal paraense O Comercial publicou decisão judicial referente à ação proposta
pelo representante da justiça pública, contra um curandeiro que exercia o ofício
A na cidade de Belém. De acordo com o periódico, o promotor Sampaio Viana havia
denunciado o curandeiro Alexandre da Cunha por exercer ilegalmente a medicina.
L A denúncia não foi acatada pelo Juiz Viveiro de Castro. Como Sampaio Viana
recorreu da decisão junto ao Conselho do Tribunal Civil e Criminal, o magistrado
arguiu em seu despacho que se recusara a dar continuidade ao que fora proposto,
L por compreender que contrariava o que estava preconizado pela Constituição da
República que “garantia o livre exercício de todas as profissões, independente da
A prévia prova de capacidade e da exibição do diploma científico”.1
Faltava na peça jurídica, na compreensão de Viveiro de Castro, evidências
de que Alexandre da Cunha havia cometido estelionato, ou algum erro grave no
exercício da profissão, únicos fatores que poderiam incriminá-lo. Como lhe fora
imputado somente o crime de ser curandeiro, e praticar medicina sem ter um diploma
• científico, estes fatores não foram concebidos como delito, mas como garantia
1104 constitucional.2 No final do despacho, o magistrado ressaltou a importância dos
curandeiros na descoberta de plantas medicinais e assinalou como representavam
•
a única alternativa para quem procurava por auxílio em comunidades distantes
dos grandes centros, onde o atendimento médico era escasso:
É inútil todo e qualquer procedimento judiciário contra os curandeiros. Eles
existirão apesar de toda violência e arbitrariedade que terão como única
finalidade aumentar-lhes o prestígio. Há advogados que mediante pagamento
2 assinam todos os agravos e recursos e razões que os solicitadores escrevem.
Há também médicos que alugam seu nome aos consultórios dos curandeiros
e subscrevem-lhes receitas.
0
A perseguição aos curandeiros repousa sobre um duplo conceito: serem eles
1 sempre ignorantes e serem os médicos diplomados sempre homens de mui-
to saber. Ambos os conceitos são apenas presunções. É certo que há muito
curandeiro ignorante, mas também é certo que tem havido grande número
8 deles práticos, experientes, admiravelmente dotados de poder observador
a quem se tem descoberto na nossa flora preciosas plantas medicinais. O
Brasil não se limita a capital Federal e as cidades populosas dos estados. No
interior, onde é geral a falta de médicos diplomados, os curandeiros são os
recursos da população, para eles vão às esperanças dos aflitos.3
A Se resultar a morte:
Pena: de prisão celular por seis a vinte e quatro anos (BRASIL, 1890).
L
No ano de 1891ficou definido, através do parágrafo nº 24, do artigo nº
L 72 da Constituição Federal, que todos os nacionais e estrangeiros residentes no
país tinham direito ao livre exercício de qualquer profissão moral, intelectual e
industrial (BRASIL, 1891). O texto da Lei, que para alguns confrontava as proibições
A estabelecidas pelo Código Penal de 1890, contribuiu para múltiplas interpretações
jurídicas. Questionou-se, a partir de então, a necessidade de praticantes das
artes de curar serem portadores de diploma superior, ou apenas detentores de
experiência comprovada.
O Decreto nº 1.151, de 05 de janeiro de 1904, que reorganizou os
•
serviços de higiene administrativa da União, reafirmou a necessidade de formação
1106 específica para profissões nas áreas de saúde. Consta em seu parágrafo terceiro, a
• autorização para o governo federal promulgar o Código Sanitário regulamentando,
entre outras coisas, o exercício da medicina e farmácia (BRASIL, 1904). O Código
Sanitário teria validade em todo o território da República, ressalvando-se que,
nos estados, as infrações seriam julgadas pelas justiças locais, resguardadas, no
entanto, as competências privativas da justiça federal (BRASIL, 1904). O Acre, por
2 não se constituir no período em um estado autônomo, teria as infrações julgadas
pela justiça federal.
0 Novo regulamento para os serviços sanitários a cargo da União foi
implementado através do Decreto nº 5.156, de 08 de março de 1904. A referida
legislação tratou sobre a fiscalização de ofícios nas áreas de medicina e farmácia
1 definindo, em seu artigo nº 250, os que estavam aptos a desempenharem tais
profissões, tornando obrigatório o cumprimento das seguintes exigências:
8 I. Às pessoas que se mostrarem habilitadas por titulo conferido pelas Facul-
dades de Medicina da Republica dos Estados Unidos do Brasil;
II. Às que, sendo graduadas por Escolas ou Universidades estrangeiras
oficialmente reconhecidas, se habilitarem perante as ditas Faculdades, na
forma dos respectivos estatutos;
19 “Um surto de peste bubônica que se propagava no porto de Santos em 1899, levou o governo a
adquirir a Fazenda Butantã para instalar um laboratório de produção de soro antipestoso, vinculado
• ao Instituto Bacteriológico (atual Adolpho Lutz). Esse laboratório foi reconhecido como instituição
1113 autônoma em fevereiro de 1901, sob a denominação de Instituto Serumtherápico, sendo designado para
primeiro diretor, Vital Brazil Mineiro da Campanha, médico voltado para problemas de saúde pública.
• Em 1914 foi inaugurado o prédio principal, com as condições necessárias para abrigar os laboratórios,
em torno dos quais cresceu uma instituição que combina pesquisa e produção”. Informações
retiradas do endereço eletrônico http://www.butantan.gov.br/home/quem_somos.php, acessado
no dia 02 de julho de 2014, às 10horas.
20 Rudolf Kraus nasceu em 30 de outubro de 1868, em Mladá Boleslav, na Boêmia, atual República
Tcheca. Formou-se em medicina pela Universidade Alemã de Praga, em 1893. No ano seguinte, foi
2 para Viena, e depois seguiu para o Instituto Pasteur de Paris, onde permaneceu durante alguns
meses de 1895. Foi convidado então para trabalhar no recém-fundado Instituto Soroterápico
0 Federal de Viena. Nesse instituto, em que ingressou em 1896, logo se destacaria nos estudos sobre
as reações sorológicas e imunizações. Em 1903, Kraus trabalhou na estação zoológica de Rovigno,
com Fritz Schaudinn, e com Constantini Levaditi no Instituto Pasteur de Paris; dois anos depois fez
1 o curso de protozoologia no Instituto de Doenças Marítimas e Tropicais de Hamburgo. Tornou-se
Privatdozent, em 1906, da cátedra de patologia geral e experimental na Universidade de Viena, na
8 qual ministrava aulas de imunologia, soroterapia, doenças infecciosas, e malária desde 1901. Os
caminhos que levaram Kraus à América do Sul foram traçados também em função de sua situação
profissional em Viena. Entre o ingresso no instituto vienense e a partida para a Argentina, onde
assumiu a direção do Instituto Bacteriológico de Buenos Aires, Kraus acumulou cursos e períodos
de trabalho em importantes instituições.Sua posse na direção do Instituto Butantã, no Brasil,
deu-se no ano de 1921. In: CAVALCANTE, Juliana Manzoni. Rudolf Kraus em busca do “ouro
da ciência”: a diversidade tropical e a elaboração de novas terapêuticas, 1913 – 1923. História,
ciência,saúde- Manguinhos vol.20 n°. 01: Rio de Janeiro Jan./Mar. 2013.
21 A Reforma, 07 de outubro de 1923, ano VI, nº 272, p. 02.
22 No decorrer das pesquisas, a edição mais antiga de um jornal produzido no Território do Acre,
que foi encontrada, corresponde a nº 01, de 03 de maio de 1906, de um periódico denominado O
Cruzeiro do Sul, editado na cidade acreana de mesmo nome.
novos produtos medicinais, em meio a plantas e ervas que, após terem suas eficácias
comprovadas, passavam também a ser utilizadas pelos médicos. Percebe-se, nesse
caso, não uma relação de confronto, mas um processo de complementação de
saberes.
A dubiedade com que o tema era tratado pelos jornais, expressava-se em
matérias e artigos, bem como em anúncios de medicamentos e uma variedade de
outros produtos. Observe-se um anúncio intitulado “Aos Curandeiros”, publicado
J no jornal Folha do Acre em sua edição nº 515, de 07 de fevereiro de 1926. Tratava-
se da oferta de um guia prático de medicina, escrito pelo professor Tavares da
A Silveira Filho, da Escola de Farmácia de Ouro Preto (MG). A obra é indicada para
farmacêuticos, médicos recém-formados e leigos, que desejassem, por diferentes
L motivos, conhecer e tratar diversas moléstias. Observe-se que a terminologia
curandeiros, utilizada no título do anúncio, não referia-se somente a pessoas sem
formação acadêmica, abrangendo farmacêuticos e médicos habilitados, mas que
L ainda não haviam adquirido a experiência necessária para exercer o ofício com
segurança:
A Aos curandeiros:
Apareceu o livro Guia Prático de Medicina Doméstica do professor Tavares
da Silveira, da Escola de Farmácia de Ouro Preto. Obra interessantíssima,
como ninguém jamais fez outra igual, escrita em linguagem simples, ao al-
cance dos leigos. Com seu auxílio, pode-se tratar de todas as moléstias vul-
• gares com reduzido arsenal terapêutico de sessenta e poucos medicamentos
alopáticos e caseiros, com cerca de 250 fórmulas científicas. Descreve os
1114
remédios e as doenças, ensina a formular e aviar as receitas em casa, tão
• bem como na farmácia, dar inúmeros conselhos úteis sobre higiene, profi-
laxia, pediatria, enfermagem etc. De interesse dos farmacêuticos obrigados
a clinicar onde não há médicos e aos profissionais formados recentemente
e ainda sem a prática. Útil e indispensável nas fazendas, casas de família,
colégios seminários, onde quer que possa aparecer uma doença longe de
pronto recurso e que precisar ser atendido por leigos, para não deixar o do-
2 ente perecer a míngua.23
O anúncio publicado no ano de 1926, período bem posterior às legislações,
0 que estabeleciam a obrigatoriedade de diplomas e títulos para o exercício de ofícios
nas áreas de saúde, tornava explícito que, principalmente em localidades onde
1 existiam poucos profissionais habilitados, especificamente médicos, as artes de
curar ainda eram realizadas por leigos. O jornal e o anunciante ofereciam um
8 instrumento capaz de facilitar um serviço que, segundo eles, muitas vezes evitava
que pessoas morressem sem ter recebido qualquer tipo de assistência.
Também foram encontradas situações nas quais os curandeiros são
exaltados, sendo atribuída a eles a cura definitiva de doenças, para as quais
nenhuma terapêutica indicada pelos médicos fora eficaz. Assim, não era incomum
que os jornais publicassem sobre a descoberta de cura definitiva para a lepra,
câncer, tuberculose e outras doenças, por um curandeiro. Um desses casos,
publicado no dia 07 de fevereiro de 1926 pelo jornal O Rebate, de Cruzeiro do
Sul, em sua edição nº 165, diz respeito às atividades desenvolvidas pelo boliviano
23 Folha do Acre, 07 de fevereiro de 1926, ano XV, nº 515, p. 02.
Pedro Molina. Segundo o periódico, Pedro Molina era um curandeiro que havia
se estabelecido próximo ao rio Juruá, onde passou a realizar admiráveis curas
no tratamento da lepra. Para tanto, utilizava de diversas beberagens e unguentos
extraídos de vegetais, utilizando-se de um processo do qual era o único conhecedor,
de modo que guardava seu segredo a sete chaves.24
A partir do momento em que estas informações circularam, Pedro
Molina passou a ser muito procurado pelos portadores da enfermidade, “que
J se transportavam de longínquos pontos, atrás do benfazejo curandeiro”.25 Para
atender à clientela, que aumentava na mesma proporção que se espalhava sua
A fama, Molina construiu, ao lado de sua barraca, uma enorme casa de palha, que
passou a funcionar como abrigo para os enfermos que para lá se dirigiam em busca
L de auxílio.26O jornal não explica se o curandeiro cobrava pelos atendimentos que
realizava ou se os serviços eram gratuitos.
O prestígio do boliviano cresceu ainda mais, a partir do momento em que
L
começaram a ser disseminadas notícias sobre a constatação feita por médicos que
atuavam na cidade de Manaus, da cura definitiva de leprosos que receberam seus
A remédios e cuidados. Segundo o jornal O Rebate, os exames realizados nos enfermos
detectaram que o bacilo havia sido completamente expurgado, fato caracterizado
como “uma sensacional descoberta que estava impressionando extraordinariamente
o corpo médico”.27 Neste caso, chama atenção o título da publicação: “A lepra
é curável: fato indiscutível”, pelo fato do jornal creditar a suposta proeza, a um
• praticante de medicina popular.
1115 Antes, em 1910, outra publicação, dessa vez no jornal Folha do Acre,
• em sua edição nº 17, de 25 de novembro, registra que um homem de 54 anos de
idade, com um câncer na garganta, havia sido examinado por uma junta composta
por três médicos, que lhe recomendaram submeter-se a uma cirurgia. O enfermo
teria se oposto, passando a buscar por alternativas. De modo que uma curandeira
foi chamada, ato que, conforme o periódico seria explicado “pelo que a tradição
2 levou aos ouvidos do doente, fazendo-o crer que essa mulher tivesse gravado na
consciência uma série de observações preciosas”.28
De tal forma que o enfermo achou melhor não obedecer as indicações
0
médicas e passou a confiar seu tratamento às terapêuticas propostas pela dita
curandeira que, como primeira providência, passou a produzir o medicamento a
1 ser utilizado. Para isso, fez macerar em água durante 24 horas folhas de violeta,
depois ferveu o líquido e dividiu em duas partes. Uma foi reservada para uso
8 interno e outra na forma de compressas que eram colocadas sobre a garganta.29
Este procedimento foi repetido durante dois meses, de acordo com o relatado. Findo
este prazo, os médicos observaram que o doente estava completamente curado, de
forma que passaram a adotar o mesmo tratamento indicado pela curandeira, para
ramos verdes, gestos em cruz feitos com a mão direita, agulha, linha e pano, além do conjunto
2 de rezas. Estas podem ser executadas na presença do cliente, ou à distância. Em seu ofício, de
amplo reconhecimento, essas mulheres “rezam” os males de pessoas, animais ou objetos, bastando
0 apenas que alguém diga os seus nomes e onde moram. In: SANTOS, Francimário Vito dos. O ofício
das rezadeiras como patrimônio cultural: religiosidade e saberes de cura em Cruzeta na região do
Seridó Potiguar. Acessado através do site: http://www.usp.br/cpc/v1/php/wf07_revista_interna.
1 php?id_revista=12&tipo=5, em 09 de julho de 2014, às 11 horas e 56 minutos.
32 A Reforma, 21 de agosto de 1932, ano XV, nº 690, p. 02
8 33 O Alto Purus, 26 de março de 1909, ano II, nº 98, p. 02
34 O Alto Purus, 26 de março de 1909, ano II, nº 98, p. 02
35 O Alto Purus, 26 de março de 1909, ano II, nº 98, p. 02.
36 O Alto Purus, 26 de março de 1909, ano II, nº 98, p. 02.
37 O Alto Purus, 26 de março de 1909, ano II, nº 98, p. 02.
38 Em artigo denominado: “Caboclos na Amazônia: a identidade na diferença”, a antropóloga
Izabel Rodrigues disse que, ora o termo aparece como uma representação, uma categoria atribuída
pelos outros (brancos, não-caboclos), ora o termo torna-se mais “empírico” e “fixo”, referindo-
se a pequenos produtores familiares da Amazônia. Entre os diversos significados atribuídos ao
termo, predomina um sentido pejorativo, negativo, que define caboclo como indivíduo ou grupo que
ocupa uma posição social inferior. In: RODRIGUES, Izabel. Caboclos na Amazônia: a identidade na
diferença. Novos Cadernos – NAEA, v. 09, n° 01, junho de 2006, p. 122.
Segundo a edição nº 48, do jornal O Alto Purus, do dia 17 de outubro de 1917,
João Antônio cometeu o homicídio a mando da mãe, tratada como feiticeira por
fazer uso do livro de São Cipriano, ao qual eram atribuídos poderes mágicos. A dita
mulher tinha desavenças com o coronel José Ferreira, por este tê-la ameaçado de
expulsão, caso continuasse a praticar certos “abusos nocivos” à vida do seringal. O
citado jornal não especifica quais seriam os abusos nocivos cometidos, mas deixa
subentendido que guardavam relações com práticas de magia.
J João Antônio era um rapaz de aproximadamente 28 anos, criado pelo
próprio coronel José Ferreira. A mãe, como depois confessou, o havia induzido ao
A crime, “sequiosa de vingar-se do proprietário do seringal Liberdade e finda (sic) nas
regras de seu livro de São Cipriano, que ensinava a maneira de assassinar no dia
L 1º de outubro sem que o assassino viesse a ser descoberto”.39
A morte do Coronel José Ferreira repercutiu muito mal em Liberdade.
Alguns aviados40 do seringal quiseram logo tirar a revanche e vieram para a margem
L
(barracão) com homens armados. Uma vez reunidos no barracão do seringal,
souberam que o dito caboclo e sua mãe estavam no seringal Concórdia, local
A onde foram presos pouco antes da meia noite. Fortemente surrados, mãe e filho
terminaram por confessar o crime. Após João Antônio dar detalhes sobre o que
ocorrera, coube à “velha” confirmar as declarações do filho, indicando o livro de
São Cipriano, no qual encontrara tais regras. Acrescentou que as sublinhara com
tinta preta, e marcara o 1º de outubro com uma cruz. Ao lado do livro, encontrava-
• se uma ponta de cigarro do coronel José Ferreira, embrulhado em uma madeixa
1118 de cabelos, tudo conforme as orientações contidas no citado livro. A mala que
continha os objetos utilizados na prática de “magia” foi queimada, seguindo-se
•
um tiroteio contra os acusados. “Caboclo João tombou primeiro com cinco balas,
sendo posteriormente assassinada sua mãe”.41
Referências
Jornais
2 A Reforma, 07 de outubro de 1923, ano VI, nº 272.
A Reforma, 21 de agosto de 1932, ano XV, nº 690.
0 A Reforma, 21 de Agosto de 1932, ano XV, nº 690.
Folha do Acre, 31 de dezembro de 1927, ano XVI, nº 606.
1 Folha do Acre, 17 de janeiro de 1920, ano X, nº 296.
Folha do Acre, 07 de fevereiro de 1926, ano XV, nº 515.
8 Folha do Acre, 25 de novembro de 1910, ano I, nº 17.
Gazeta de Notícias, 27 de março de 1881, ano VII, nº 84.
O Alto Purus, 26 de março de 1909, ano II, nº 98.
O Alto Purus, 14 de outubro de 1917, ano X, n. 48.
O Comercial, 01 de fevereiro de 1900, ano XIX, nº 04.
2
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J
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L RUEDAS DE CONVERSASIONES: UM ESPAÇO DE INTERAÇÃO
BILÍNGUE E PEDAGÓGICA COM PROFESSORES BOLIVIANOS NA
L FRONTEIRA DO BRASIL COM A BOLÍVIA
A Silene Espinosa Quintão Alencar (UNIJIPA)
Zuila Guimarães Cova dos Santos (UNIR)
RESUMO:Esse artigo trata de uma experiência bilíngue realizada através de
práticas orais e pedagógicas utilizando o método das Rodas de Conversas com os
professores bolivianos da Rede Fé e Alegria em Guayaramerim, fronteira do Brasil
• com a Bolívia. As Rodas foram espaços de encontro e troca de experiências entre
1121 professores da educação infantil brasileiros e bolivianos para o aprendizado do
espanhol e o português respectivamente. Os encontros foram apresentados através
• de músicas, textos literários,históriasinfantis e jogos, estimulando a oralidade e
a ludicidade. Tornaram-se espaço para reflexões e registros do mundo vivido da
escola da fronteira. O Projeto nasceu para atender as necessidades dos professores
para atender alunos bolivianos. As oficinas de Línguas aconteceram tanto na
escola brasileira quanto na escola boliviana. Uma rica experiência intercultural,
2 que contribuiu para enriquecer as práticas pedagógicas, o processo bilíngue em
sala de aula e a formação cultural dos docentes participantes.
0 Palavras-chave: Fronteira. Língua. Educação.
Introdução
1 O artigo descreve uma experiência pedagógica bilíngue realizada através
do projeto de extensão Ruedas de Conversaciones, institucionalizado pelo Campus
8 de Guajará-Mirim da Universidade federal de Rondônia – UNIR e coordenado pela
profª Dra. Zuíla G. C. dos Santos. O Campus universitário está situado na fronteira
do Brasil com a Bolívia, especificamente na fronteira das cidades-gêmeas de Guajará-
Mirim (RO/BR) e Guayaramerín(BENI/BOL). No referido projeto, exercemos a
função de mediadora das Ruedas as quais passamos a nomear como Rodas a partir
deste momento. Os encontros aconteceram tanto em território brasileiro quanto
boliviano. Mas, para este artigo, descreveremos as nossas experiências realizadas
em território boliviano.
Nossos encontros de estudo eram realizados na unidade de ensino Fé Y
Alegria na cidade de Guayaramerín (Beni/Bol), eles ocorreram uma vez por semana,
num período de doismeses. Participavam destes encontros professores e gestores
das escolas bolivianas e o nosso objetivo foi o de desenvolver momentos de estudo
e práticas orais e escritas para aquisição da Língua Portuguesa na escola boliviana.
Destacamos que os encontros aconteciam tanto na escola boliviana para
o ensino do português com uma mediadora brasileira, quanto, na escola brasileira
para o ensino do espanhol com uma mediadora boliviana.
J Foi uma rica experiência de formação, que envolveu muito mais do que a
escrita e a leitura na língua portuguesa. Possibilitou que conhecêssemos histórias
A de vida, vidas regadas por frustrações e sonhos. Conhecemos um pouco da história
e da cultura boliviana, falamos das nossas histórias e, assim, construímos redes
L que se firmaram e hoje ultrapassam a fronteira das cidades-gêmeas.
Assim sendo, descreveremos a seguir as nossas reflexões sobre esse
L momento ímpar que experenciamos. Inicialmente destacamos o conceito sobre
a fronteira e trazemos um breve histórico das cidades-gêmeas; posteriormente
falamos das relações e interações construídas pelos sujeitos fronteiriços priorizando
A a dimensão educacional e linguística; em seguida apresentamos o projeto e para
finalizar apontamos como resultados os relatos dos professores que participaram
dessa ação de extensão.
Um olhar sobre a fronteira das cidades-gêmeas de Guajará-Mirim (RO/Br)
• e Guayramerín (Beni/Bol)
De acordo com Costa (2009) a fronteira éconstituída a partir de áreas
1122
contíguas de dois territórios nacionais, compõe o que se vem denominando zona
• de fronteira, área de fronteira, franja fronteiriça, dentre outras designações que
remetem a um espaço repleto de relações sociais de convivência e de produção.
Por isso, se diferencia do conceito de limite que é pontual – uma linha traçada nos
mapas que se materializa nas aduanas, postos de fiscalização e nos marcos. Nas
palavras de Piccolo (1998, p.218), “[...] a fronteira não é uma linha, mas um espaço
2 que define mais por seus atributos socioeconômicos e o limite, como conceito, é
essencialmente político”.
0 As fronteiras brasileiras são áreas povoadas, constituindo se um fator “de
integração, na medida que, for uma zona de interpenetração mútua e de constante
1 manipulação de estruturas sociais, políticas e culturais distintas”. Machado,
(1998, 42). Nesse sentido, entendemos que as pessoas que vivem na fronteira estão
interligadas, pois, ela não é o limite que encerra mais a ponte que liga os países
8
envolvidos. As pessoas estão constantemente indo e vindo de um lado para o outro
da fronteira, consomem produtos produzidos em ambos os lados e buscam a melhor
maneira de se comunicar.
A fronteira das cidades-gêmeas aqui destacadas é um espaço bilíngue
marcada pelo uso do português e do espanhol. No entanto, os sujeitos fronteiriços
em sua maioria, não dominam as duas línguas. Segundo o Ministério da Integração
Nacional, são consideradas cidades-gêmeas os municípios com mais de dois mil
habitantes, cortados pela linha de fronteira, seja essa seca ou fluvial, integrada
ou não por obra de infraestrutura, que apresentem grande potencial de integração
econômica e cultural, podendo ou não apresentar a unificação da malha urbana
com cidade do país vizinho. As cidades gêmeas ficam uma ao lado da outra em
países diferentes,e a linha divisória pode ser um rio como em Guajará-Mirim (RO/
BR) e Guayaramerín (BENI/BOL) ou separados por uma rua como em Santana do
Livramento (Rio Grande do Sul/BR) e Rivera (URUGUAI/BOL), o Brasil possui hoje,
29 cidades-gêmeas.
J
A
L
L
A
•
1123
•
Imagem1: Imagem de satélite das cidades-gêmeas, na parte superior lado direito desta-
ca-se a cidade de Guajará-Mirim no Brasil e na parte inferior lado esquerdo a cidade de
Guayaramerín na Bolívia ao centro , o rio Mamoré, marco divisor.
Fonte: https://www.google.com/maps/search/guajara-mirim+fronteira+bolivia/@-
2 -10.8164553,-65.4799886,34498m/data26/05/18.
0 As cidades-gêmeas, conforme fotos acima surgiram a partir de processos
históricos parecidos. Guajará-Mirimantes conhecido como Vila de Esperidião
Marques, tem sua origem relacionada a construção da Estrada de Ferro Madeira
1 Mamoré uma estrada que ligava Guajará-Mirim a Porto Velho e que foi construída
através de um tratado com a Bolívia denominado Tratado de Petrópolis para facilitar
8 o escoamento de produtos bolivianos. Imigrantes nordestinos vieram para essa
região para extração do látex no Ciclo da Borracha o que acelerou o povoamento
local e foram seguidos de imigrantes de diversas partes do mundo. O nome da
Cidade de Guajará-Mirim segundo Aleks Palitot em dialeto indígena local significa
“Cachoeira Pequena”e é o maior município do estado em extensão territorial.
A igreja católica teve presença marcante no processo de colonização da
cidade de Guajará-Mirim e nas interações com a cidade vizinha Guayaramerin.
A cidade irá surgir com a criação do Território Federal de Rondônia em 1943,
graças ao desmembramento de terras do Estado do Mato Grosso e do Estado do
Amazônia. O território fronteiriço onde a cidade surgiu, apresenta um montante de
36 etnias, povos nativos amazônicos originados da miscigenação e descendentes de
quilombos. Segundo Lima e Vitor Angenot:
Guajará-Mirim é a cidade que apresenta o maior número de atrativos tu-
rísticos do Estado de Rondônia que vão desde os encantos naturais – rios,
matas preservadas, parques, grutas, chapadas dos Pacaás Novos, Parque
Municipal Natural Serra dos Parecis - aos eventos culturais – festivais de
praias, festa da castanha, Boi Bumbá, festejos religiosos, etc, o que atrai
J alguns turistas aquela localidade. O principal meio de subsistência é o ex-
trativismo, agricultura e pecuária e o comercio. Sua população apresenta
A características de uma mistura de várias raças, como migrantes de diversas
origens em diferentes períodos históricos, descendentes de quilombos e os
nativos (indígenas aculturados) e conta também com moradores imigrantes
L bolivianos, podendo-se dizer que é uma população tipicamente amazônica.
(LIMA e VITOR ANGENOT, 2013, p. 2).
L A cidade boliviana de Guayaramerín fundada em 1892 fica a cerca de
93Km da capital boliviana Riberalta e se destaca por sua natureza exuberante,
A reserva indígena e pela intensa atividade econômica na agricultura, pecuária e o
comércio. A população fronteiriças das duas cidades pertencem a uma Área de
Livre Comercio e recebem muitos turistas, em comitivas e de todos cantos do estado
e do Brasil, que vem atraído pelos baixos preços dos produtos ali comercializados.
Outro atrativo da região são os festejos religiosos que acontecem na fronteira,
• atraindo turistas de diversas regiões brasileiras, bolivianas.
1124 As festividades do Divino Espírito Santo, que acontece nos dois lados
da fronteira, o festival Folclórico de Guajará-Mirim com as festa dos Bois Bumbás
•
Malhadinho e Flor do Campo que traz também apresentações culturais da Bolívia, A
festa em comemoração à Proclamação a Independência, com desfile cívico realizado
no Dia 7 de Setembro que tradicionalmente tem a participação de entidades civis
e Grupos organizados que vem da Bolívia, diversas festividades locais ganham
destaque na região fronteiriça, atraindo um grande número de devotos de todos os
2 lugares.
Segundo Juan Carlos Crespo Avaroma em sua obra: “Decálogo de la
0 geohistoria guayaramirense” registra que: “durante o processo colonizador da
região, padres se instalaram na região e fundam a missão católica franciscana,
1 disseminando tanto a fé como seus rituais, com ampla participação dos povos
região fronteiriça”. (JUAN, 2006, p. 117).
8 A igreja Católica do Brasil através da Diocese de Guajará-Mirim muito
contribuiu para as interações fronteiriças através da Pastoral do Imigrante com
a promoção social, da compra de terrenos para os imigrantes que residiam
ilegalmente em Guajará- Mirim, com um hospital social que atendia gratuitamente
aqueles que precisavam de auxilio médico, as festividades religiosas locais como
Festejo do Divino Espírito Santo que é realizado tradicionalmente dos dois lados
da fronteira e diversas outra obras como escolas,seminários, Rádio Educadora e
Centro Despertar para capacitação e formação.
Os moradores da fronteira buscam a melhor maneira de se comunicar,
facilitando assim o contato linguístico entreportuguêse o espanhol, nesse contato
é comum o portunhol que é uma mistura de português com espanhol como
popularmente é falado por pessoas que compreendem e falam fazendo uma mistura
das duas línguas. As relações educacionais ainda são tímidas, há um campo enorme
de saberes que podem ser explorados, pesquisados e aproveitados nos currículos
das escolas dos dois países. Saberes estes que fazem parte do universo fronteiriço
e, que envolvem também, comunidades ribeirinhas, indígenas e quilombolas dos
dois países. Nesse sentido, as Rodas foram espaços que propiciaram o contato
J com a língua portuguesa, mas também, instigou o olhar seus participantes para o
universo cultural brasileiro. Um universo que merece ser conhecido, compreendido
à partir das histórias do lugar e de seus habitantes. Compreendemos que esta é
A
uma forma de promovermos uma verdadeira integração educacional, ampliando
o conhecimento dos alunos e estimulando práticas interculturais e bilíngues nas
L instituições de ensino da fronteira. Contribuindo para que sejam minimizados os
preconceitos Lingüísticos dentro das escolas.
L
Da construção do projeto às vivências das ruedas de conversaciones
As Rodas foram espaços de encontro e trocas entre bolivianos, onde a
A língua portuguesa foiapresentada através de músicas,textosliterários,histórias e
jogos estimulando principalmente os aspectos da oralidade, tornando-se assim
espaço para reflexões e registro do mundo vivido na escola da fronteira.
O projeto
1 3Refrigério é como os bolivianos denominam um breve momento para uma pausa, um lanche um
pequeno descanso.
J
A
L
L
A
Imagem 2: Rodas de conversas entre os professores envolvidos no projeto.
Fonte: Acervo pessoal do pesquisador.
2 SegundoFern (2001), grupos focais vivenciais são o alvo da análise e estão subordinados a dois
propósitos: na vertente teórica o de permitir a comparação de seus achados com os resultados
de entrevistas por telefone e face a face. Neste caso, o nível de análise é intergrupal. O segundo
propósito é o da orientação prática centrada no entendimento específico da linguagem do grupo, nas
suas formas de comunicação, preferências compartilhadas e no impacto de estratégias, programas,
propagandas e produtos nas pessoas. A ênfase aqui recai na análise intragrupal.
Quanto ao Método de Ensino
Foram registrados 38 relatos, em dois momentos, apontando que a
metodologia aplicadafavoreceu a compreensão, interação e tradução das atividades
propostas. Já no primeiro encontro foram registradas 18 narrativas a respeito da
facilidade do método, tanto para a compreensão dos professores, quanto para
adaptação e aplicação aos alunos. No penúltimo encontro coletamos 20 narrativas
favoráveisà metodologia.Destacamos a seguir duas dessas narrativas:
J La classe de hoy dia me há parecido muy bonita, Su método de enseñanza
es muybuena y me há gustado que cada classe es my diferente pero lohace
A mas fácil suaprendisaje para nosotros.(ProfªZuleide Salazar).
Considerações finais
É fato que as interações culturais, sociais, educacionais,religiosas e política
fazem parte da história desta fronteira. Mesmo que de forma tímida o bilinguismo
aparece como um facilitador dessas interações. Apesar das dificuldades que o
sistema político internacional impõe é possível perceber que as cidades gêmeas têm
buscado promover ações de integração em vários setores e, apesar dos esforços de
alguns órgãos e instituições, ainda há muito a ser feito. Este projeto contribuiu não
somente para as interações linguísticas mais também para trocas de experiências
de práticas pedagógicas inovadoras e estreitar os laços entre educadores dos dois
países.
As narrativas, as dinâmicas eas apresentações dos professores e gestores
envolvidos no projeto,apontam uma consciência para o respeito a diversidade
J linguística presentes na fronteira. Promove o processo de reconhecimento das
diferentes identidades, grupo sociais e grupos culturais que circulam entre as
A cidades-gêmeas.
Destacamos que o projeto gerou um impacto positivo entre as escolas
L bolivianas, as quais já solicitaram a coordenadora do projeto novas versões das
Ruedas de Conversaciones. Portanto, o projeto ultrapassou o limite da fronteira
abrindo possibilidades para que outras escolas do Beni possam participar de
L
experiências bilíngues, na busca de promover novos espaços de interação e inclusão
da Língua Portuguesa e espanhola.
A
Referências
COSTA, E. A. ;Oliveira,M.A.M. Seminário de Estudos Fronteiriços. Campo Grande: Edi-
tora UFMS,2009.p.61-78.
LIBANEO,J.C. Didática. Velhos e Novos temas. Goiânia: Edição do Autor,2002.
• LIMA, V. A. Nome do artigo. Local. 2013.
PICCOLO, H. Nós e os Outros: Conflitos e interesses num espaço Fronteiriço (1828-1852).
1132
Anais...XVII Reunião da Sociedade Brasileira de Pesquisa e Historica (SBPH).Curitiba:
• SBPH,1998.P.217-222.
WARSCHAUER,C. Entre na Roda: A Formação Humana nas Escolas e nas Organizações.
Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra,2017.
WARSCHAUER, C. Rodas em rede: Oportunidades formativas na escola e fora dela. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2001.
2 Fonte: https://www.google.com/maps/search/guajara-mirim+fronteira+bolivia/@-
-10.8164553,-65.4799886,34498m/data26/05/18.
0 https://www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/educacao/concepcao-do-brincar-
-e-aprender-na-visao-de-piaget-e-vygotsky/32223. Acessado em: 06/06/2018.
1 https://www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/educacao/concepcao-do-brincar-
-e-aprender-na-visao-de-piaget-e-vygotsky/32223. Acessado em: 06/06/2018
8
J
A
L LITERATURA E ECOCRÍTICA NO PANTANAL DE MATO GROSSO
DO SUL
L
Susylene Dias de Araujo (UEMS)
A RESUMO: Em atendimento à chamada do ST 14, apresentado no XIII JALLA, nosso
trabalho tem intenção de apresentar uma leitura de Areôtorare (1935) e Poemas
Concebidos Sem Pecado (1937), obras poéticas de Lobivar Matos e Manoel de
Barros respectivamente, tendo a ecocrítica como parâmetro de análise. De acordo
com a origem do termo ecocrítica, (William Rueckert,1978), desenvolvido como
• aproximação entre ecologia e expressão literária, a palavra remete a um dos mais
recentes campos de comparação e interpretação da poesia. Quando observarmos
1133
a escolha temática de Matos e Barros em seus livros de estreia, fica evidente que
• os referidos poetas lançaram-se em busca de compreender a estética modernista
a partir de suas diferentes temáticas, incluindo algumas nuances da natureza,
sintonizadas pela atitude humana, conforme demonstraremos.
Palavras-chave: Ecocrítica. Lobivar Matos e Manoel de Barros. Literatura em Mato
Grosso do Sul.
2
Ecocrítica é palavra com aspecto de novidade. Formada pela junção
0 do prefixo eco, relativo ao termo ecologia ou ecossistema, quando associado ao
termo crítica, a palavra ecocrítica aparece pela primeira vez nos idos de 1978,
empregada por William Rueckert, alinhando o fenômeno natural da ecologia à
1
produção literária. Em 1996, registra-se a primeira inclusão do termo em textos
acadêmicos. Na esteira dos estudos culturais, lato sensu, os estudos da ecocrítica
8 são impulsionados pelos estudos de gênero e de temáticas afins, como aquelas
relativas aos estudos pós-coloniais. Em recente pesquisa sobre o assunto, o artigo
“Contribuição da Ecocrítica ao ensino de Literatura” de Francisco Neto Pereira
Pinto e Hilda Gomes Dutra Magalhães, publicado pela Litterata, Revista do Centro
de Estudos Portugueses Hélio Simões, em 2013, fornece alguns dados importantes
sobre o surgimento da ecocrítica como corrente interpretativa da literatura. A
despeito das limitações sobre o assunto, os autores enfatizam que:
Contudo, o momento crucial à Ecocrítica é o ano de 1992, quando é funda-
da, nos Estados Unidos, a Association for the Study of Literature and En-
vironment – ASLE – Entidade profissional que tem hoje importantes filiais
no Reino Unido e Japão. É a ASLE quem domina, do ponto de vista acadê-
mico, a Ecocrítica (GARRARD, 2006) e, inclusive, publica o periódico ISLE:
Interdisciplinary Studies in Literature and Environment, criado em 1993 por
Patrick Murphy. Grande fôlego ganha a Ecocrítica na década de 1990 e, em
1999, Cherill Glotfelty comentou que só nos dois últimos números da ISLE,
“foram resenhados 67 novos livros e outros 177 foram brevemente comenta-
dos. Mais de 200 livros neste campo nos últimos cinco anos!” (GLOTFELTY,
1999, p. 6, tradução nossa). Se, no âmbito internacional, grande é a pro-
J dução no campo ecocrítico, não se pode dizer o mesmo do Brasil. De fato,
como comenta Maria do Socorro Socorro Pereira Almeida (2008, p. 127),
“a ecocrítica ainda não é conhecida nacionalmente” e, ao que parece, dis-
A pomos apenas de um livro em língua portuguesa dedicado inteiramente ao
assunto, este intitulado Ecocrítica, de Greg Garrard (2006), traduzido para o
L português por Vera Ribeiro. (PINTO & MAGALHÃES, 2013, p. 39-40)
• Preta.
E a campina queimada
Ficou retinta como uma negra africana.
Galhadas, camalotes,
Passam rolando levados pela correnteza
Os habitantes dali, gente simples e amarela,
Espavoridos,
•
Deixam seus ranchos como ilhas flutuantes
1136 E, em canoas e batelões,
• Num esforço desumano,
Descem o rio a procura de um lugar bem alto
Onde não chegue o novo diluvio.
4
2 Nisso chega um vaqueiro e diz:
- Já se vai-se, Quério? Bueno, entonces seja felizardo
•
1140
•
2
0
1
8
J
A
L A (IN)VISIBILIDADE DO TRADUTOR NA OBRA THE EMPEROR OF
THE AMAZON
L
Tamara Afonso dos Santos (UFAC)
A RESUMO: Este trabalho tem por objetivo apresentar resultados de uma pesquisa
intitulada “Narrativas, Pós-colonialismo e Tradução: vozes e olhares em Galvez
Imperador do Acre e sua versão para a língua inglesa”, especificamente no que
concerne a análise da obra Galvez, Imperador do Acre (1976), de Márcio Souza, e
sua tradução para o inglês, feita por Thomas Colchie observando as estratégias de
• tradução utilizadas e a postura assumida pelo tradutor ao traduzir uma narrativa
sobre as Amazônias. Para essa pesquisa utilizou-se como orientação metodológica
1141
a pesquisa bibliográfica em relação às obras objeto de análise e na seleção do
• referencial teórico, estudos de tradução com enfoque na tradução pós-colonial
e questões relacionadas ao papel do tradutor a partir de autores como Basnett
(2003), Munday (2001) e Venutti (1995). A partir dessa análise verificou-se que
a tradução toma caminhos que não têm por intenção de fato de levar o autor e a
narrativa juntamente com suas particularidades até o leitor.
2 Palavras-chave:Tradução. Tradução Pós-colonial. Invisibilidade do Tradutor. The
Emperorof The Amazon.
0 Considerações iniciais
Até o século XI se chamava de intérprete aquele que fazia traduções
1 tanto de textos orais quanto escritos. Fora somente no século XII que surgiu a
diferenciação entre o tradutor que seria aquele que faz traduções de texto escrito
8 e intérprete aquele que faz traduções orais. Shleiermacher (apud MUNDAY, 2001)
destaca a posição do tradutor em relação ao intérprete, pois o primeiro por ter o poder
por meio da tradução escrita de textos clássicos, seja eles oriundos da literatura,
filosofia ou religiosos, tem o poder de fortalecer a língua e cultura nacional. O
autor entende que o tradutor também desempenha papel importante na divulgação
de obras de autores em diversos outros lugares, espalhando o alcance de tais obras.
Em diversas situações somos muito rápidos em julgar o trabalho do
tradutor sem nem nos darmos conta da gama de escolhas e decisões que este
sujeito enfrenta durante todo o seu processo de tradução. Traduzir um texto, um
livro, um romance seja qual for o texto é uma grande responsabilidade, muitos
são os aspectos que devem ser levados em consideração de acordo com o texto
objeto da tradução tendo sempre como fator definidor a decisão do tradutor em
consonância com o seu objetivo ao traduzir o texto.
Venutti (1995) discorre a respeito da invisibilidade do tradutor,
principalmente no que se refere a cultura anglo-americana, segundo o autor, a
invisibilidade do tradutor se produz por meio de uma tradução que torna o texto
fluente, de fácil leitura. Essa fluência do texto traduzido produz a ilusão de
J transparência, no sentido de ser isento de marcas linguísticas e estilísticas que são
requisitos precípuos para que as traduções sejam aceitas pelos editores, revisores
A e leitores, pois o atendimento a tais critérios reflete a personalidade e intenção
do texto estrangeiro, de forma a ter a impressão de que o que se lê não é uma
L tradução, mas o “original”.
Além disso, ao falar sobre o papel do tradutor, Venutti (1995) nos apresenta
dois conceitos domesticação e estrangeirização que considero fundamentais para
L
se discutir tradução, principalmente a tradução do texto objeto desta análise, uma
vez que opto por uma análise pautada na teoria da tradução pós-colonial, e um
A desses conceitos, apontados por Venutti (1995), está em sincronia com a proposta
da tradução pós-colonial.
O conceito de domesticação, segundo Venutti (1995), diz respeito a um
método de tradução no qual o tradutor escolhe transportar o texto objeto de tradução
e o autor para mais perto do leitor, tal escolha envolve “uma redução etnocêntrica
• do texto estrangeiro para os valores culturais da língua alvo” (MUNDAY, 2001, p.
1142 143). Essa redução resultaria numa tradução, transparente, “invisível” e fluente
• para o leitor diminuindo elementos estrangeiros do texto.
Por sua vez, o conceito de estrangeirização, segundo Venutti (1995), se
refere ao transporte do leitor até o autor, mantendo todos os elementos estrangeiros
do texto a ser traduzido. Tal estratégia de tradução torna o texto fonte diferente
não apenas linguisticamente, mas culturalmente, fazendo com que o leitor do texto
2 traduzido se transporte até o outro, até o desconhecido. Este transporte do leitor
até o desconhecido possibilita que o leitor se torne consciente de elementos que
não lhes são naturais, mas que são aspectos integrantes e fundamentais do texto
0
fonte, do seu autor e do seu lugar. Essa estratégia também chamada por Venutti
(1995) de resistência consiste em um estilo de tradução que deixe claro a existência
1 do tradutor ao destacar a identidade estrangeira do texto-fonte, protegendo-a da
dominância ideológica do texto-fonte.
8 Munday (2001) ainda alerta para o papel que a indústria editorial exerce
nessa questão. Na grande maioria das vezes os editores finais das obras não são
tradutores e sequer são fluentes na língua da qual fora traduzida o texto. De modo
que a única preocupação pauta-se na fluência do texto traduzido, o que no final das
contas acaba influenciando na sua versão final. Além disso, os agentes literários
dos autores também exercem certa influência sobre esses aspectos, visto que eles
recebem uma porcentagem dos lucros dos escritores que representam.
The Emperor of the Amazon
O livro The Emperor of the Amazon é uma tradução do livro Galvez
Imperador do Acre para a língua inglesa. A tradução foi feita pelo tradutor, autor e
editor norte americano Thomas Colchie, e fora publicado pela editora Avon/Bards,
uma marca registrada da The Hearst Corporation, sendo essa a primeira tradução
do livro para língua inglesa feita por meio de acordo com o autor Márcio Souza.
Essa obra teve sua primeira impressão em setembro de 1980 na cidade de Nova
York. A tradução de Colchie também ganhou uma edição publicada pela editora
Abacus em 1980 e outra publicada pela editora Sphere Books em 1982, ambas em
J Londres (SOUZA, 1980, p. 04).
Em publicação do The New York Times do dia 23 de setembro de 1980,
A John Leonard escreve de maneira entusiasmada sobre o livro que acabara de
ser lançado. Para ele, o livro é mais uma das surpresas que escritores latinos
L americanos insistem em fazer, e já se mostra ansioso pelo próximo livro de Souza
em língua inglesa, que seria Mad Maria. (THE NEW YORK TIMES, 1980)
The Emperor of the Amazon faz parte de um projeto promovido pela Avon
L
Bards chamado The Avon Bard series of Latin American Literature cujo propósito era
de publicar livros de autores latinos americanos para audiência norte americana.
A Tal projeto teve seu início com a publicação em capa dura do romance de One
Hundred Years Of Solitude (100 anos de solidão) de Garcia Marques traduzido por
Gregory Rabassa em 1970. No entanto, a maioria das publicações era feita em
brochuras, livros com capa mole e papel de menor qualidade.
Normalmente, esse formato de livros é destinado a reimpressões de
• títulos já antigos sem altos custos, porém no caso desse projeto há duas hipóteses
1143 para a escolha de publicação desses títulos em brochura. A primeira é não querer
• investir muito dinheiro e a segunda é já de antemão, não esperar que essas obras
se tornem best-sellers.
The Emperor of the Amazon foi o primeiro título original a ser publicado
em brochura pela Avon/Bard setembro de 1980, fora traduzido do português para
o inglês por Colchie que era o agente literário de Souza e de vários outros autores
2 brasileiros (THE AVON, 2016). O livro tinha como público alvo, leitores norte-
americanos e quanto a sua recepção pela audiência americana, percebe-se nas
notas dos jornais locais que aparecem na segunda impressão do livro que a obra
0
teve uma aceitação muito boa, como verificamos nas citações a seguir.
O IMPERADOR DA AMAZÔNIA1, que o The New Yorker chama de “um pra-
1 zer cômico”, marca a estréia norte-americana de um dos jovens escritores
mais brilhantemente divertidos da América Latina. “Para além das delícias
8 da narração”, diz The Washington Post, “o leitor é tratado com intermináveis
cenas de folia e arrogância, bem como reflexões bem-humoradas” (SOUZA,
1980)2.
1 Tradução literal que não condiz com o título original da obra em português.
2 THE EMPEROR OF THE AMAZON, which The New Yorker calls “a comic delight”, marks the
American debut of one of the most brilliantly entertaining Young writers in Latin America. “Aside
from the delights of the narration”, says The Washington Post, “the reader is treated to endless
scenes of revelry and ribaldry, as well as good-humored reflections” (SOUZA, 1980).
tradução acessível’, observa The New York Times Book Review. ‘Marcio Sou-
za merece nosso aplauso.’ (SOUZA, 1980)3
As críticas dos jornais americanos são tão animadoras que até mesmo
edições brasileiras posteriores à publicação da tradução nos Estados Unidos,
trazem na orelha do livro críticas de jornais tais como o The New York Times que
diz que o romance de Souza é “uma delícia” (SOUZA, 2011), e o New Yorker, como
verificamos no trecho transcrito a seguir.
J Ninguém deve temer a possibilidade de que o fluxo de admiráveis romances
latino-americanos esteja secando. Este romance do brasileiro Marcio Sou-
A za traz a garantia de sua aparente inesgotável vitalidade, pois o livro é ao
mesmo tempo uma delícia de comicidade e um conjunto de poucos prová-
veis, meio verdadeiras aventuras, recontadas com perícia e economia. New
L Yorker (SOUZA, 2011).
Vejamos, a seguir, uma análise comparativa entre a obra em português e
L sua versão para inglês, apontando suas diferenças e as escolhas feitas pelo tradutor
Colchie. Para esta análise, procuramos fazer uma leitura a partir da perspectiva da
A tradução pós-colonial.
Tradução Pós-Colonial na obra The Emperorof the Amazon
Para esta análisecomparativa entre a obra de Márcio Souza em português
Galvez Imperador do Acre (1976) e a tradução da mesma para a língua inglesa The
• Emperor of the Amazon (1980), utilizamos a segunda impressão de The Emperor of
the Amazon de 1980, e sabendo que para a tradução, publicada pela primeira vez
1144 em setembro de 1980, fora utilizada uma edição de 1977 da obra em português,
• tentamos encontrar um exemplar de Galvez Imperador do Acre da mesma edição
utilizada na tradução. No entanto, na impossibilidade de encontrar tal cópia, optamos
por procurar uma edição mais próxima a utilizada pelo tradutor e de preferência,
anterior à tradução, portanto, o exemplar mais próximo que encontramos foi a
sétima edição de 1978. Assim sendo, esta foi a edição utilizada nesta análise.
2 Durante esse estudo, encontramos na tradução para o inglês, elementos
que sob a perspectiva da tradução pós-colonial despertaram a nossa atenção para
0 certas escolhas do tradutor que podem transformar as imagens representadas no
livro sobre as Amazônias e sobre as pessoas, o que justifica e reforça a importância
deste trabalho. Elementos como, por exemplo, a descaracterização dos termos que
1
se referem às “Amazônias” e a mutilação de termos e palavras do “original” que
são essenciais para descrição e contextualização, dentro do romance, de pessoas,
8 lugares, etc.
O acréscimo ou omissão de informações pelo tradutor é uma estratégia
que pode ser utilizada com diversos propósitos, seja com o intuito de contextualizar
o texto à sua audiência tornando a sua leitura mais fluída e natural e o texto
estrangeiro mais doméstico ao leitor; seja com o intuito de deixar o texto mais
comercial, mais lucrativo às editoras. Esse exercício de domesticação, porém, se
por um lado pode ser, de certa forma, benéfico ao seu leitor e mais rentável para as
3 “It is a joy to see Marcio Souza’s intriguing novel published in an accessible translation”, notes
The New York Times Book Review. “Marcio Souza deserve our applause” (SOUZA, 1980).
editoras, por outro se torna extremamente infiel ao autor e ao texto traduzido. Tal
estratégia acaba provocando uma quebra na “identidade” e peculiaridade do texto,
um apagamento de suas particularidades que o tornam diferente. Um exemplo
disso ocorre no próprio título da obra. Na versão traduzida de Colchie, a obra
recebe o título de The Emperor of the Amazon (O Imperador da Amazônia). Porém,
em sua versão em português o título é Galvez Imperador do Acre.
De início temos a omissão do termo “Galvez”,que além de ser o nome
J da personagem principal da obra, é de fato um ícone marcante da história do
“Acre” representado na obra. Em seguida, a substituição do termo “Acre” por
A “Amazon”, que acaba dando ao título uma conotação diferente do “original”. No
título em português fica claro que o local em que a trama acontece é o “Acre”, o
L que já não acontece na tradução, pois, embora o “Acre” faça parte da “Amazônia”, a
região “amazônica” é muito abrangente. Além de estados brasileiros, a “Amazônia”
também se estende por outros oito países da América do Sul. Ou seja, outras
L nações, outros povos, outras culturas, costumes, todas elas muito peculiares e
diferentes umas das outras.
A Portanto, não se pode generalizar a história de um lugar específico à
região a qual ele pertence, pois, o “Acre” é apenas uma parcela dos territórios que
compõem a “Amazônia”, o “Acre” tem as suas particularidades e a sua própria
história, e vários outros espaços que compõem a região “Amazônica”, também têm
características próprias que não tem necessariamente uma relação direta com o
• “Acre”. Assim sendo, usar o termo “Amazon”, que é mais conhecido e estereotipado
1145 e tão abrangente, no título de uma história que se refere a um lugar específico,
torna-se questionável.
•
Dentre as razões que podem ter levado o tradutor a fazer essa escolha
e tamanha mudança no título do romance, está a questão comercial. Levando em
consideração o público alvo, o nome “Galvez” e o nome “Acre” não despertaria
interesse em um possível leitor, o termo “Amazônia” (Amazon) por outro lado, é um
2 termo muito mais conhecido e que instiga o interesse de muitas pessoas tornando
assim muito maior as chances de os leitores comprarem o livro, gerando mais
lucros para a editora. Além disso, essa troca permite a continuação da propagação
0 do mito da “Amazônia” homogênea.
Essa generalização e uso da palavra “Amazônia” tão estereotipada no
1 título não é exclusividade da tradução para língua inglesa, podemos encontrar essa
configuração do título em traduções do romance de Souza para outras línguas como
8 é o caso do alemão Galvez, Kaiser Von Amazonien (1983) (Galvez, imperador da
Amazônia); do espanhol Gálvez, Emperador del Amazonas (1981) (Galvez, imperador
da Amazônia); do francês L’Empereur d’Amazonie (1983) (O imperador da Amazônia);
do holandês De Keizer van de Amazone (1982) (O imperador da Amazônia) e do
italiano L’Imperatore d’Amazzonia (1984) (O imperador da Amazônia). Apesar de
que nas traduções do alemão e espanhol o nome de Galvez é preservado, nenhuma
foge da omissão do nome do “Acre”, todas apresentam o fator comum da figura do
“imperador da Amazônia”.
Assim como é discutível a omissão do nome “Galvez” do título da obra
traduzida para o inglês, essa mutilação bem como a substituição do termo “Acre”
por “Amazon”, constituem atitudes que nos dão sinais de uma visão colonizadora
por parte do tradutor desde o título da obra. Incapaz de enxergar as diferentes
culturas e costumes dentro de uma mesma região, o tradutor acaba reduzindo
todos os povos a um só, difundindo a imagem de que na região “Amazônica” todos
são iguais, inferiores e incapazes de sobressair por sua própria identidade.
Outro exemplo no qual isso fica bem evidente é o acréscimo do termo
“Primeval”, que no inglês significa “primitivo” ao título do primeiro capítulo “Floresta
J Latifoliada”, ficando o título da seguinte forma “Latifoliate Forest Primeval” Floresta
Latifoliada Primitiva”. O acréscimo de tal termo é totalmente desnecessário. Isso
A pode ser interpretado como um acréscimo de termos ao texto que visam “melhorar a
obra” ou “dar um toque pessoal” do tradutor à obra, conceito defendido por alguns
L tradutores e estudiosos da tradução como, por exemplo, Abraham Cowley (1618-
67) que afirma no seu prefácio às Odes Pendáricas (1656) que “tirou, deixou de fora
e acrescentou o que quis” nas suas traduções, com o intuito de dar a conhecer ao
L leitor não tanto o que o autor original disse precisamente, mas antes “o seu modo
e forma de dizer” (COWLEY, 1656, apud BASSNETT, p.105).
A No entanto, esse acréscimo nos diz muito sobre o modo de dizer, o olhar
e o imaginário do tradutor que imprime à obra muito mais que o seu toque pessoal,
mas seu discurso e visão colonialista. Outrossim, encontramos ainda no primeiro
capítulo do romance adições ao texto traduzido que não são necessárias para o
entendimento daobra, mas que demonstram de maneira clara o imaginário do
• tradutor em relação a “região amazônica”, como podemos ver nos trechos a seguir.
1146 Agora estamos fartos de aventuras exóticas e mesmo de adjetivos clássicos
e é possível dizer que este foi o último aventureiro da planície (SOUZA,
• 1978, p. 15)
And it is perhaps even possible to claim that this was the last exotic ad-
venturer of them all, in the vast, dark Amazonian basin; (SOUZA, 1980,
p. 11)
The colonel’s seringueiros would hold their festivity in the backyard of the
“big house,” and had been busily clearing the area of weeds since early
•
morning. (SOUZA, 1980, p. 38, grifo meu).
1147
O tradutor, ao utilizar o termo “big house” para traduzir “barracão”,
• deixa-o entre aspas. O uso de aspas deixa clara a incerteza do tradutor quanto
à equivalência de sua tradução. É perceptível que “big house” não contempla o
significado real de “barracão”, mas fora essa expressão mais próxima do significado
real que o tradutor encontrou e, portanto, traduziu-a de tal forma.
Diferente da conotação de um casarão onde a família se reúne, no contexto
2 amazônico, o barracão é caracterizado por ser o local onde se depositava as bolas
ou pranchas de borracha defumadas. Era também o local onde os seringueiros
0 compravam os produtos indispensáveis para o dia a dia, dentre elas: carne-seca,
farinha, querosene, sabão, bolachas, facão, lamparinas, e redes para dormir e
1 pescar. Talvez por sua experiência traduzindo outros autores brasileiros, Colchie
tenha ficado preso à ideia da “casa grande” e por isso sua tradução equivocada em
8 “big house”.
Segundo Bassnett (2003), o tradutor não deve apenas escolher na língua
de chegada uma expressão com o significado parecido com o original, é preciso
manter em mente a questão da interpretação e para enfim decidir que expressão
utilizar, é preciso levar em consideração alguns aspectos. É preciso aceitar a
intraduzibilidade de determinadas expressões e a falta de uma convenção social
parecida na língua de chegada. Para Bassnett (2003), “O tradutor tem de ter em
conta a questão da interpretação para além do problema de selecionar, na língua
de chegada, uma frase de sentido minimamente parecido” (BASSNET, 2003, p.48).
Para Paulo Rónai (1987, p. 13) “todo texto literário é fundamentalmente
intraduzível por causa da própria natureza da linguagem. (...) [A]s palavras isoladas
não têm sentido em si mesmas: a sua significação é determinada pelo respectivo
contexto”. Isso fica evidente no capítulo “Eros e Látex” (SOUZA, 2011, p. 50),
que na tradução recebe o título “Of Love and Latex” (SOUZA,1980, p. 45). Nesse
capítulo, a palavra “açaizeiros” é traduzida como “cabbage palm”, como se lê no
trecho destacado:
A lua começava a chegar na linha do horizonte entre silhuetas de esguios
J açaizeiros e estávamos deitados na grama. No quintal da casa de Cira.
(SOUZA, 1978, p. 43. Grifo meu)
A The moon began to nudge the horizon between slender silhouettes of cabag-
ge palm. The two of us were stretched out on the grass, in back of Cira’s
house. (SOUZA, 1980, p.45. Grifo meu).
L
O açaizeiro pertence à família das palmeiras, no entanto, é uma planta
L nativa da região “amazônica”. No inglês, “cabbagepalm” é utilizado para designar
qualquer espécie de palmeira. Assim, ao usar tal termo, o tradutor, elimina toda a
singularidade do açaizeiro enquanto planta nativa da região “amazônica”, igualando-o
A a outras espécies de palmeiras que não pertencem ao cenário “amazônico”.
Como Sapir (apud BASSNETT, 2003) afirma, a língua é a expressão de
sua realidade e cada estrutura linguística reflete características de sua própria
realidade que difere da realidade de todas as outras:
Nenhum par de línguas é suficientemente similar para que se possa consi-
•
derar que representam a mesma realidade social. Os mundos em que vivem
1148 diferentes sociedades são mundos distintos, não apenas o mesmo mundo
com rótulos diferentes! (SAPIR, 1956 apud BASSNETT, 2003, P. 36).
•
Partindo desse conceito, percebemos que é impossível que duas línguas
representem a mesma realidade, o que implica dizer que não há como encontrar na
língua de chegada termos e expressões capazes de mostrar fielmente a realidade
da sociedade ali traduzida.
2 Mais um exemplo disso é o que acontece no capítulo “Postcard”, no
“original” “Postal”. Aqui, o mercado popular intitulado “Ver-o-Peso”, recebe, na
0 tradução, o nome de “Get-the-Best”.
O Ver-o-Peso é uma silhueta, o mercado popular sempre movimentado, e
naquela madrugada as ruas estão mornas”. (SOUZA, 1978, p. 17, grifo meu)
1
The normally crowded popular Market, Get-the-Best, is an empty silhou-
ette, and at that late hour of the night the streets have finally become a little
8 cooler. (1980, p. 13, grifo meu)
4 translation is a highly manipulative activity that involves all kinds of stages in that process of
transfer across linguistic and cultural boundaries. Translation is not an innocent, transparent
activity but is highly charged with significance at every stage; it rarely, if ever, involves a relationship
of equality between texts, authors or systems (BASSNETT, TRIVEDI, 1999, p. 02).
omissões de elementos e termos essenciais da obra original. A tradução deveria
se manter mais fiel à obra, que por si só apresenta suas próprias dificuldades
em representar os habitantes da “Amazônia acreana”, quando o tradutor poderia
fazer uso da estratégia de estrangeirização e levar os seus leitores a conhecerem
um pouco mais o autor brasileiro e o que este diz, da forma como diz. Tal postura
permitiria que seus leitores fossem transportados para o texto estrangeiro e que a
partir do contato com a representação da cultura do “outro” construíssem novos
J conhecimentos a respeito dos elementos e expressões que lhes são culturalmente
desconhecidos.
A Ao relembrar as contribuições de Venutti (1995) e Munday (2001) na
seção sobre o papel do tradutor, o que percebemos é que o tradutor, Colchie, optou
L por uma domesticação do romance à língua alvo. O tradutor se fez invisível para
os leitores, tornando o texto de leitura fluente e podemos afirmar com convicção
que razões econômicas exerceram grande influência sobre o tradutor, visto que
L o próprio Colchie era o agente literário de Souza (2011) e, portanto, ele também
receberia uma porcentagem dos lucros sobre a venda do romance, e por isso, era
A lhe muito mais rentável vender uma “Amazônia” estereotipada, “O Imperador da
Amazônia” do que “Galvez Imperador do Acre”.
O romance traduzido apresenta-se recheado de apagamentos, omissões
e acréscimos que criam e recriam a “Amazônia” ali representada como menos
brasileira e mais como uma “terra à parte do mundo”, isolada, sem lei, primitiva.
•
Considerações finais
1152
Buscamos através deste texto analisar comparativamente a obra Galvez
• Imperador do Acre, sua versão em português e a sua tradução para o inglês.
Começamos por revisitar alguns conceitos da teoria da tradução pós-colonial
através de teóricos como Basnett (2003), Munday (2001) e Zahkir (2009), e as
considerações de Venutti (1995) sobre o papel do tradutor.
Nossa pesquisa, também envolveu um breve resumodo contexto de
2 publicação da tradução do romance assim como sua recepção pela audiência norte
americana por intermédio de jornais locais da época. Tal investigação nos levou a
0 conhecer que a iniciativa por meio da qual o romance de Márcio Souza (2001) foi
traduzido também possibilitou a tradução de diversos autores brasileiros e suas
1 obras.
Além disso, o que mais nos chama a atenção ao analisar as duas versões
do romance, foi perceber que o tradutor Thomas Colchie faz uso de estratégias de
8
tradução tais como a omissão de elementos e a substituição por termos genéricos
que vão, a cada palavra equivocadamente traduzida, construindo outra ficção verbal.
Os cortes e a generalização de termos como a que acontece no título traduzido da
obra condiz com uma visão colonizadora sobre a região perpetuando o imaginário
de uma “Amazônia” única e homogênea. Substituir a palavra “Acre” por “Amazon”
permite despertar mais uma vez os olhos curiosos dos estrangeiros sobre a “exótica
região amazônica”, olhares curiosos que certamente nunca visitaram a região e
que leem um texto traduzido pelo olhar de quem também claramente não conhece
o que explica a sua tradução do nome do mercado Ver-o-Peso pela expressão Get-
the-Best.
Nesse sentido, acreditamos que a tradução toma caminhos que não
têm por intenção de fato de levar o autor e a narrativa juntamente com suas
particularidades até o leitor. A intenção que se fez dominante foi a de fazer um
texto mais domesticado ao leitor norte americano e mais comercial às editoras.
Tendo em vista que a tradução pós-colonial preza pela estrangeirização
J do texto, tomando de empréstimo palavras e expressões que somente fazem sentido
dentro de seu local de origem, gostaríamos de ver uma tradução na qual o tradutor
A se faz mais visível e possibilite ao seu leitor se transportar e conhecer de maneira
mais verdadeira o que se diz e como se diz. Entendemos que o tradutor deve se
L esquivar de traduções genéricas que não se relacionam com os valores socio-
culturais inerentes à obra “original”, mas ao invés, manter as expressões tais como
aparecem em seu contexto de origem que, por não terem tradução, se faz necessário
L
o uso de notas de rodapé que possam explicar a que essas expressões se referem,
permitindo ao leitor mergulhar na cultura do “outro”.
A
Referências
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FundaçãoCalousteGulbenkian, 2003.
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1153
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VENUTTI, Lawrence. The Translator invisibility: a history of translation. London e New
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J
A
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L
A
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1154
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2
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1
8
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L ANÁLISE DE CAPITAL SOCIAL NUMA PERSPECTIVA
SOCIOAMBIENTAL: UMA PROPOSTA DE ESTUDO COM
L MULHERES NA RESEX CHICO MENDES – ACRE - BRASIL
A Tânia Gomes Façanha (UFSC)
Marcos Fábio Freire Montysuma (UFSC)
RESUMO: Esta pesquisa tem por escopo analisar a organização comunitária e
formação do capital social na Resex – Chico Mendes com enfoque na participação
das mulheres no processo histórico, em suas lutas e nas conquistas do movimento
• seringueiro no Acre. Para tal fimutilizamos a metodologia da História Oral.
1155 Pretendemos registrar o protagonismo histórico dessas mulheres que aturaram
e atuam ativamente na dinâmica das relações materiais, simbólicas, culturais e
• subjetivas. Partindo da premissa de que a avaliação dos aspectos que promovem o
crescimento econômico e desenvolvimento social de uma comunidade, geralmente
está relacionada aos aspectos históricos ou a dotação de diferentes estoques de
capital, como capital natural, físico, financeiro, humano e social.
Palavras-chave: Capital social. Mulheres seringueiras. Acre.
2
Introdução
0 A promoção do desenvolvimento comunitário também está relacionada à
formação e utilização de Capital Social, aqui entendido como redes de relacionamento
baseadas na confiança, cooperação e solidariedade, desenvolvidas pelas pessoas,
1 dentro e fora das organizações sociais. Entendendo que as pessoas não agem de
forma independente, isoladas e egoístas, o Capital Social serve como recurso para
8 o alcance de objetivos em comum, sendo um instrumento de ação coletiva e a
participação mais efetiva nos processos de desenvolvimento.
O aumento da exclusão, desigualdades sociais, insuficientes políticas de
governo ou estado, degradação ambiental, frágil governabilidade e descaracterização
cultural são aspectos que desafiam as propostas e projetos para o desenvolvimento
local, configurando necessidades de fortalecimento do Capital Social como
coparticipante no exercício de gestão das políticas voltadas para as comunidades
locais, como aquelas mulheres situadas nas florestas do Acre, atuantes na RESEX
Chico Mendes.
Esta pesquisa tem por escopo analisar a organização comunitária e
formação do capital social na Resex – Chico Mendes com enfoque na participação
das mulheres no processo histórico, em suas lutas e nas conquistas do movimento
seringueiro no Acre. Para tal fim utilizamos a metodologia da História Oral.
Historicamente, os movimentos de ocupação da Amazônia, em especial o extrativismo
da borracha, foram baseados na subordinação da força de trabalho de homens e
mulheres oriundos do Nordeste brasileiro. Os seringueiros e seringueiras eram de
J todo modo coagidos por este sistema, que se mantinha através da exploração de
seu trabalho.
A Pode-se destacar o amadurecimento do Capital Social, no Acre, a partir de
1970, por meio das organizações sociais que nascem da necessidade e do impulso
L dos trabalhadores e trabalhadoras diante da ameaça de perderem seu modo de
vida, cultura e condições de acesso a terra, ou meios de acesso à extração da
borracha e castanha. Eles e elas vencem as dificuldades de articulação política e se
L organizam em prol desse objetivo comum, assegurados nas relações de confiança
e solidariedade articulados pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri,
A dentre outros sob a liderança de Chico Mendes.
Neste contexto, os trabalhadores ditos rurais, mas da floresta, da categoria
de seringueiros criaram duas formas de cooperação, conceitos elaborados por eles
próprios, que foram importantes para o debate da formação do capital social e
que impulsionaram a criação das Reservas Extrativistas no Acre: os Adjuntos e
• os Empates. Salvo rara literatura, os registros e reconhecimento da mulher como
1156 trabalhadora nos seringais ainda é insipiente.
• Nas pesquisas e registros pouco se faz menção desse universo feminino
nos seringais acreanos, destacam mais a projeção masculina, principalmente por
conta de uma tradição cultural endrocentrica resultante de uma racionalidade
hegemônica colonizadora, um pensamento único, de um consenso fabricado sobre
os campos de significados produzidos acerca da sociedade que relegam a mulher
2 a personagem secundária. Assim, pretendemos registrar o protagonismo histórico
dessas mulheres que aturaram e atuam ativamente na dinâmica das relações
materiais, simbólicas, culturais e subjetivas. Bem como, analisar a contribuição
0 delas para o surgimento e fortalecimento do capital social da localidade.
Capital social: um instrumento da/para ação coletiva
1
O conceito de capital social vem conquistando espaço no glossário
das Ciências Sociais. Apesar de possuir diversas definições, tem sido usado,
8 principalmente para contrapor a visão economicista de desenvolvimento, uma vez
que, o conceito de capital social considera que os indivíduos estão imersos em
uma rede de relacionamentos na qual age não apenas em benefício próprio, mas
também em prol de interesses em comum.
Ao se pesquisar sobre a origem deste conceito tem-se que sua primeira
utilização conhecida do conceito foi feita por Luda Júdson Hanifan, que atuava
como supervisor estadual de escolas rurais no Estado de West Virginia, nos Estados
Unidos, no ano de 1916 com o intuito de enfatizar a importância do envolvimento
da comunidade para o sucesso escolar. Para Hanifan, capital social refere-se:
...às coisas intangíveis [que] são importantes para o cotidiano das pessoas:
boa vontade, amizade, solidariedade, interação social entre os indivíduos e
as famílias que compõem uma unidade social ... Uma pessoa apenas existe
socialmente, se deixada a si próprio... Mas se ela entrar em contato com o
seu vizinho, e estes com outros vizinhos, haverá uma acumulação de capital
social, que pode imediatamente satisfazer suas necessidades sociais e que
pode ostentar uma potencialidade social suficiente para a melhoria subs-
tancial da comunidade, para as condições de vida de toda a comunidade.
J A comunidade como um todo se beneficiará pela cooperação de todas as
suas partes, enquanto que o indivíduo vai encontrar nas suas associações
as vantagens da ajuda, da solidariedade... bem como seu vizinho no clube.
A (HANIFAN, 1916)1.
Desde então o conceito vem ganhando espaço, popularidade e avançando
L
como tema de pesquisas, bem como, sendo reconhecido, tanto no espaço acadêmico
como em empresas e organizações, quanto sua relevância em diversos aspectos do
L desenvolvimento social.
Bourdieu (1998) considera que é a partir da noção de que os indivíduos
A não agem de forma independente, isoladas e egoista, que existem as estruturas
sociais e que o capital social serve como recurso, um ativo de capital do qual
os indivíduos podem dispor, para alcançar objetivos em comum, que não seriam
possiveis sem o uso deste com instrumento para a ação coletiva.
Ainda segundo Bourdieu (1998), o campo social deve integrar não só a
• representação que os agentes têm do mundo social, mas também, a contribuição
1157 que eles dão para a construção da visão desse mundo e, assim, para sua própria
construção, na contraposição de interesses gerada pela prática e na luta, por meio
•
do trabalho, para tornarem sua concepção como a dominante.
A partir de tal perspectiva, pode-se conceber o espaço social como um
campo de forças cujo conjunto de relações de poder se impõe a todos que nele
entram. A posição de um indivíduo neste espaço é determinada pela quantidade
2 de volume de capital (econômico, cultural, social e simbólico) e de acordo com a
composição de seu capital, isto é, de acordo com o peso relativo desses diferentes
bens sociais dentro da totalidade social.
0 O conjunto dos recursos reais ou potenciais que estão ligados à posse de
uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de inter
1 conhecimento e de Inter reconhecimento mútuos, ou, em outros termos, à
vinculação a um grupo, como o conjunto de agentes que não somente são
dotados de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas pelo ob-
8 servador, pelos outros e por eles mesmos), mas também que são unidos por
ligações permanentes e úteis (BOURDIEU, 1998, p. 67).
Para Coleman (1990), assim como outras formas de capital, o capital
social é produtivo, e possibilita a realização de determinados objetivos que
seriam inalcançáveis se ele não existisse. Por isso, tanto a ideia de capital social,
quanto à de cooperação, nos últimos anos, têm sido destacadas por organismos
internacionais devido ao seu papel na implementação e fortalecimento de políticas
de desenvolvimento.
2 Adjuntos: forma tradicional do seringal de juntar pessoas, em comum acordo, para trabalharem
em benefício de um individuo da comunidade, o que se repetia até que todos os membros fossem
igualmente beneficiados.
3 Empates: os seringueiros e juntavam com o objetivo de impedir o desmate floresta, porém, os
seringueiros sempre faziam os empates de forma pacífica, sem o uso da violência.
Capital social e hitória oral: registrando singularidades
A história oral é uma metodologia de pesquisa que teve início nos anos
1950, após a invenção do gravador, sendo incialmente praticada nos Estados Unidos,
na Europa e no México. Atualmente esse método difundiu-se bastante e, cada vez
mais, pesquisadores aderem a essa forma de coleta de informações para analise em
suas pesquisas, dentre os quais destacam se historiadores, antropólogos, cientistas
políticos, sociólogos, pedagogos, teóricos da literatura, psicólogos e outros. Para
J Alberti (2004), a história oral consiste em realizar entrevistas gravadas com pessoas
que podem testemunhar sobre acontecimentos, conjunturas, instituições, modos
A de vida ou outros aspectos da história contemporânea.
A história oral tem sua relevância reconhecida atualmente na academia,
L pois além de fornecer dados que nos ajudam não só na construção como também
na compreensão da história ou memória coletiva, é também, um resgate de
L experiências de vidas singulares, pois cada experiência relatada são vivências ricas
e concretas de significância social, cultural e histórica.
A utilização da história oral ou história de vida permite captar informações
A importantes que definem hábitos, costumes e pensamentos referentes à cultura
local, ou seja, possibilita uma alternativa a documentos oficiais, que na maioria das
vezes não contempla o ponto de vista dos que constroem a história nos bastidores.
Assim, essa metodologia enriquece as pesquisas de diferentes áreas dis-
ciplinares ao apresentar novas perspectivas de abordagem das questões,
• projetando memórias locais sob diferentes óticas, além de trazer conteúdos
1162 relativos a acontecimentos e processos que não se encontram registrados
em outros tipos de documentos e, ainda, apresentando-se como outra pos-
• sibilidade de escrita da história, que confronta o caráter estático do docu-
mento escrito. A História Oral permite entrar em contato com experiências e
processos específicos vividos ou testemunhados pelos sujeitos. (MONTYSU-
MA e MOSER, 2015, p.03)
1 Este trabalho se realiza com o respaldo financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa da Minas
Gerais (FAPEMIG)
Wolfgang Iser (1926–2007) e seus estudos sobre estética da recepção podem aportar
ao estudo do Novo Realismo. Esses autores pressupõem o texto literário por meio
de um sistema definido pela sua produção, recepção e comunicação, interligando,
dessa maneira, autor, obra e leitor. Opondo-se às vertentes teóricas da época se
seu surgimento, como o formalismo, marxismo, ao new criticism etc., a estética da
recepção coloca a figura do leitor em destaque, conferindo-lhe o papel de produtor
de sentidos, como construtor de significados em seu contato com a obra de arte.
J Assim sendo, o universo existente em um texto dialoga com o conjunto
de conhecimentos prévios do leitor, o que vai criar, de acordo com a terminologia
A empregada por Jauss (1994), um horizonte de expectativas, que pode ser satisfeito
ou rompido durante o ato da leitura. E, para o teórico, é justamente a ruptura, a
L não correspondência com esse horizonte de expectativas, que vai indicar o carácter
artístico de uma obra, rompimento a que ele chama de “distância estética”. Se
esta não acontece no ato da leitura, a obra pode ser considerada como sendo “arte
L culinária” ou destinada à mera diversão.
Dessa forma, podemos pensar que “a partir deste pressuposto pode-
A se construir a análise de impacto, sendo que este ocorre quando há quebra de
expectativas — o que ainda promove o rompimento de barreiras e o cruzamento de
fronteiras” (ROSSETO,2010, p.1).
Iser (1996), por sua vez, considera a literatura como “estrutura
comunicativa”, uma vez que permite ao leitor vivenciar uma experiência estética,
• a partir da qual estabelece conexões que o fazem pensar sobre seu lugar na
1168 sociedade. Concorda com Jauss (1994) quando este afirma que para que isso
• ocorra, a literatura não pode se carregar de aspectos didáticos, nem oferecer um
caminho fechado que oriente o leitor. Muito pelo contrário, é pelos vazios deixados
na obra, ou pelas indeterminações, ainda que fazendo alusões a referências, que
o indivíduo se sente impulsionado a perceber durante a leitura certos aspectos do
mundo que antes estavam adormecidos pelo hábito e pelo cotidiano.
2 Para o pensador, literatura e realidade pragmática possuem uma relação
imbricada, no sentido de que a realidade da literatura desestabiliza a estrutura
dessa realidade, pois, mesmo que o universo da ficção faça menções às regras dos
0
sistemas sociais, não mantem o mesmo sistema vertical equilibrador das normas,
e essa desestabilização ocorre quando a literatura é construída em repertorio e
1 estratégias. O repertorio se relaciona com as referências da estrutura verbal que
são apresentadas de formas distintas, como alusões literárias, convenções sociais
8 e histórias, dados do contexto cultural, enfim, qualquer indicador da realidade
extratextual, mas sem referenciá-lo diretamente tampouco rejeitá-lo. Desse modo,
enquanto as regras do mundo estão, para Iser (1996), dispostas verticalmente,
a estrutura ficcional do repertorio literário é colocada por meio de estranhas
combinações, através do que pode ser chamado de “reagenciamento horizontal”,
fazendo com que na literatura elas estejam desprovidas da validade que possuem no
contexto referencial. Isso quer dizer que na literatura o que é oferecido é uma visão
aberta dos fatos sem que haja uma resposta ou opção para a verdade confrontada
pelas personagens em uma determinada trama. Ao apresentar os conflitos por
meio de indeterminações ou vazios, o que é se promove é uma desfamiliarização do
que a realidade havia posto como automático para o indivíduo na sociedade.
No entanto, para que essa desfamiliarização aconteça, é necessário que
seja acrescentado ao repertório o papel desempenhado pelas estratégias que são
constituídas pelas perspectivas textuais do narrador, enredo e personagens, haja
vista que são estas perspectivas as bases para que o leitor passe pelo efeito estético,
que está no nível do significado, e consiga elaborar uma resposta a esse efeito,
J chegando, por conseguinte, ao nível da significação. A partir daí o leitor é capaz de
escolher um caminho entre os muitos oferecidos pela obra.
A Jauss (1996) questiona a noção de experiência estética e suas
manifestações na história, além de sua importância. Para o pensador, essa noção,
L de grande importância para a teoria da arte contemporânea, possui grandes
indeterminações, de modo que precisa ser repensada. E, ao repensá-la, a partir
não somente de Aristóteles, mas também de Kant, Jauss (1996) coloca que o prazer
L
estético ocorreria por meio da criação artística, da recepção e do efeito catártico.
Desse modo, a poiesis – criação artistica – se refere à consciência produtora do
A autor; a aiesthesis – recepção – se refere à consciência do leitor que recebe essa
obra e confirma ou renova sua percepção da realidade tanto interna quanto externa
ao texto e a ele próprio; e a katharsis – efeito provocado no leitor – que se refere à
experiência subjetiva transformada em experiência intersubjetiva.
Tudo o que foi mencionado anteriormente, observamos na prosa de Cecília
• Giannetti, em seu livro de estreia, lançado em 2007, Lugares que não conheço,
1169 pessoas que nunca vi. Trata-se de uma obra que tenta narrar o trauma depois
• de uma experiência de violência extrema, testemunhada por uma jovem repórter
(obcecada pela aparência e casada com um poeta esquálido) em uma zona periférica
do Rio de Janeiro. Em uma manhã normal, ela sai para fazer uma entrevista com
uma senhora mãe de família em uma favela carioca e, no meio da reportagem, um
dos filhos da entrevistada aparece gritando com o irmão nos braços, sangrando
2 por haver sido baleado, e acaba morrendo ali, como é possível observar no seguinte
trecho:
A mulher [mãe dos meninos] farejava sangue nos gritos e já gritava também
0 quando os dois se tornaram o foco principal da matéria. O menorzinho per-
dia sangue pelo chão, tinha um buraco de bala em cada uma das mãos e
1 outro na cabeça, e antes de uma ambulância ser chamada já estava descor-
dado ou morto. O garoto maior gritava engasgado nas lágrimas, abraçado
pela mulher, que também se agarrava ao corpo do outro filho. Num canto
8 do quadro a repórter tossiu, o rosto amarfanhado, murcho, e então ela se
curvou para a frente. Queijo, pão, pasta, café e o golinho de nada de suco, a
devolução no segundo plano, por cima da blusa verde e da empatia do mi-
crofone com o logotipo da emissora, golfou cercada pelo garoto em choque,
pelo morto esburacado, pela entrevistada. (GIANETTI, 2007, p. 23).
O batismo em larga escala seria uma das suas propostas para o fim das
L correrias, metodologia que Thaumaturgo também consistia em ser adepto. A ação
missionária para ajudar a pôr fim às mortes centralizada no batismo marcava a
L passagem do paganismo à transformação de mais uma ovelha ao rebanho, “um
filho de Deus” que por esse viés precisaria de muita audácia/coragem para matar
ao passo que na fé tornavam-se irmãos perante a Deus.
A
Diferentemente de Thaumaturgo, Sombra não parecia concordar com a
tutela dado aos seringalistas, acreditava, porém, na implementação de povoados,
um lugar que pudessem viver separadamente dos civilizados. Um lugar reservado
dos vastos que já lhes foram tirados para que significativas mudanças ocorressem
ao quadro de extermínio indígena. Outras figuras além de Sombra serão lembradas
•
pelos Kachinawá como agentes protetores, o cearense Ângelo Ferreira e seu
1181 funcionário Felizardo Avelino de Cerqueira que estiverem no Iboiaçú no mesmo
• ano que Sombra visitando as malocas indígenas e em outros rios: no médio rio
Tarauacá, Liberdade e Gregório (IGLESIAS, 2008).
Partes das ações desenvolvidas ainda por Thaumaturgo e, em seguida por
Antônio Manuel Bueno de Andrada que ocuparia o cargo de prefeito do departamento
do Alto Juruá entre os anos de 1907 e 1909, estando igualmente no posto de
2 chefe da Comissão de Obras Federais, constituiu na construção de uma estrada
de rodagem para ligar Cruzeiro do Sul ao rio Tarauacá. Empreendimento realizado
0 por Ângelo Ferreira e Felizardo Cerqueira que tinham sobre sua proteção cerca de
150 índios catequizados. A estrada saiu de Cocamêra, residência de Ângelo, no
Tarauacá, e chegou até Cruzeiro do Sul em 1906.
1
Outro empreendimento desenvolvido pela Comissão de Obras Federais
no Território do Acre, no período de 1907-1908, foi a construção da estrada “Leste-
8 Oeste-Brazileira”, que ligava Cruzeiro do Sul a Sena Madureira, contratando para
os serviços de Ângelo Ferreira e Felizardo Cerqueira para “pacificação” dos índios
que estavam ao longo do trecho que cortaria a estrada.
Os projetos e ações para “pacificação” e “civilização” indígena que
permeavam os discursos para ações de políticas públicas no Alto Juruá constituiria,
pois, parte das ações destinados aos benefícios de seringalistas, para a própria
fortificação do Estado brasileiro nestas regiões de fronteira e da prefeitura na
figura do primeiro prefeito que articulou da melhor maneira possível a supremacia
de seu poder a regiões anteriormente de poder descentralizado, fazendo uso de
contratação dos “amansadores de índios” para a construção da estrada de rodagem
que possibilitou ao prefeito centralizar e ampliar a sua atuação departamental aos
rios do Tarauacá chegando a integrar até o departamento do Purus ao Juruá.
A estrada aberta por Ângelo Ferreira com a ajuda de 150 indígenas para o
a prefeitura municipal aproveitaria a abertura de uma estrada já aberta por Ângelo
ao rio Gregório, o novo varadouro sairia de sua propriedade no seringal Cocameira e
ligaria Cruzeiro do Sul ao rio Tarauacá, e posteriormente uma nova abertura ligaria
J o departamento do Juruá ao do Alto Purus já dito anteriormente. A importância
dessa estrada para a os agentes governamentais, incluindo, pois, as atividades
A da Comissão de Obras Federais que só poderiam executar o seu trabalho com o
auxílio de “catequistas” de índios que “pacificando” as áreas do traçado da estrada
L faziam possível a abertura do varadouro conquistada por prefeitos no Juruá.
Felizardo Cerqueira ficou responsável por policiar as áreas da estrada
de rodagem e “catequizar” os povos nativos contrato pela Comissão de Obras
L
Federais trabalho que, segundo ele mesmo, aceitou por compaixão e para ajudar os
seringueiros, seringalistas e a prefeitura na região, no trabalho de “policiamento”
A nos empreendimentos estruturais organizados pelo o órgão. Trabalho que marcou
sua profissão particular como catequista de índios, uma figura marcante para
os Kachinawa que consideravam Felizardo um “pai” que os defendiam contra
as correrias realizadas por seringalistas de diversos rios ao passo que Felizardo
combateria junto com as políticas do departamento a valorização da mão de obra
• indígena para o trabalho tanto do seringal quanto para a abertura de estrada e
1182 policiamento de áreas já abertas. Os indígenas já “amansados” por Felizardo foram
também usados como intérpretes para que pudessem abrir acordos com outros
•
povos trazendo-os para a “luz” da nação.
Entre os anos 1911 a 1920 na região do Alto Juruá, houve também a
breve atuação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores
Nacionais (SPILTN), por meio de inspetorias, um órgão federal responsável aos
2 cuidados legais dos povos indígenas, ligado ao Ministério da Agricultura, Industria
e Comércio (MAIC). As ações dirigidas pelo órgão indigenista a nível nacional
buscavamcolocar limites ao extermínio a que estavam submetidos, estabelecendo
0 estratégias para “pacificação” nas diversas regiões do território. Os discursos
assemelhavam-se bastante com as propostas da Prefeitura do Alto Juruá com
1 medidas que propunham a criação de povoados mediante a mão de obra indígena,
contribuindo, assim, para o seu processo de “civilização” e humanização, utilizando
8 a sua mão de obra para o benefício do desenvolvimento econômico do país.
Segundo Marcelo Iglesias (2008), especificamente, a nível do território
acreano a atuação do SPILTN é iniciada com a fundação de uma inspetoria com
sede em Sena Madureira, departamento do Alto Purus, gerenciada pelo inspetor
Francisco Escobar de Araújo que realizou expedições ao Acre, juntamente com
dois auxiliares (Máximo Linhares e Dagoberto de Castro e Silva) responsáveis por
irem ao encontro dos locais dos acontecimentos de confrontos entre seringueiros
e indígenas com o dever de reprimir práticas de correrias corriqueiras nas regiões
acreanas. Inspetoria esta que teve início em fevereiro de 1911 e término em
dezembro de 1912, provocada pela diminuição orçamentaria que juntaria os serviços
de proteção aos povos indígenas do território federal do Acre com a inspetoria de
Manaus constituindo uma direção única.
A expedição do SPILTN ao Alto Juruá esteve sobre o comando do próprio
inspetor Francisco Escobar de Araújo, acompanhado de Máximo Linhares,
“ajudante” da Inspetoria do Território do Acre. Araújo ao chegar na sede do
departamento de Cruzeiro do Sul, inicia os primeiros contatos com o prefeito e
com alguns seringalistas, dentre os quais, Carvalho Francisco Freire, proprietário
J de terras no Riozinho da Liberdade dentre outros do Rio Môa, alertando para a
institucionalização da proteção indígena que dali por diante estaria a cargo de sua
A responsabilidade. A ida até a região é ocasionada pela notícia de um atentado a um
funcionário da prefeitura:
L [...] Segundo Araújo, a expedição tornara-se necessária devido a informa-
ções, de que “correrias” estavam na eminência de acontecer no Riozinho da
Liberdade, como desdobramento do ferimento, a golpe de machado, de Gui-
L lherme Duque Estrada, “empregado no serviço de catequese, então mantido
pela Prefeitura”, durante a visita a uma maloca Jaminawa (IGLESIAS, 2008,
p.140).
A
Francisco Araújo sai da região otimista acreditando em uma possível
ajuda da prefeitura e dos seringalistas para a devida articulação do órgão para o
departamento, comprometendo-se estes últimos a não praticar correrias. A missão
de ir até as aldeias, oferecer presentes, conhecer as relações entre os índios e os
• seringueiros, garantir proteção aos povos encontrados e fazer conhecer aos demais
1183 seringalistas a existência do órgão indigenista ficaria a cargo das expedições de
Máximo Linhares ajudante da inspetoria com sede no Alto Purus, este, iria de
• encontro ao Riozinho da Liberdade “local dos conflitos” que trouxera o inspetor ao
departamento do Alto Juruá (IGLESIAS, 2008).
Ao chegar hospeda-se na sede do seringal Liberdade, propriedade do
Coronel Carvalho Francisco, que lhe dando toda a assistência e patrocínio no
deslocamento para chegada à sede do seringal Ceará, que inclusive disponibilizaria
2 Manoel Rodrigues da Cunha (gerente do Ceará) para levá-lo até as malocas habitadas
pelos Kachinawa e Arara, chefiados pelo “Tuxaua” Tescon. Este fato, pode dar
0 indícios de outras situações que aconteceram conforme a ida em diferentes partes
do território acreano da dependência que o órgão fora submetido por falta de verbas
1 que acabaria finalizando os serviços da própria inspetoria, para poder fazer frente
a uma certa regularização dos trabalhos que precisavam ser realizados para a
8 preservação das populações indígenas.
De acordo com Iglesias (2008), ao chegar, são recebidos muito bem.
Cunha, o gerente, é chamado pelos índios da comunidade como “papai Cunha”
à semelhança de outros personagens e novos que serão tratados. Linhares toma
conhecimento que os índios Jaminauas haviam sido aprisionados por Tescon, e
que preparativos para uma nova expedição para vingar a tentativa de morte do
funcionário da prefeitura ao serviço da catequização indígena seriam articuladas,
que, felizmente, é cancelado por Tescon por iniciativa do gerente do seringal Ceará.
Linhares por sua vez, volta a receber promessas de Carvalho de que ninguém faria
correrias contra os indígenas nas áreas daquele rio.
Outras visitas serão feitas por Linhares dessa vez ao rio Môa em que
contaria com a ajuda do seringalista Agostinho Rodrigues de Lima, proprietário
das fazendas Barão do Rio Branco e Canudos na tentativa de solucionar as
problemáticas que há anos sofria com ataques de cerca de 200 índios Poyanawa
em seu seringal. Ambos os seringalistas ofereceriam uma parte do seu terreno para
a fundação de um posto para pacificação dos “índios bravos”. Quais poderiam ser
os interesses por trás destas ajudas? Sobre a conquista dos Poyanawa por Mâncio
J Lima, Mário Cordeiro de Lima, conhecido como Mario Puyanawa traz uma visão
diferente da que possa parecer “bondade”:
A Outra coisa que eu alcancei que o meu pai falava também. Eu me lembro
muito também, por exemplo, um dia de trabalho que eles estavam traba-
lhando que na hora do almoço que caia uma chuva, não tinha esses negócio
L de ir pra debaixo de casa ou tapiri não; eles se alimentavam debaixo de chu-
va mesmo. Muitas vezes precisa derrubar a água da chuva pra poder... Mis-
L turava aquela comida com a água da chuva. Isso aí aconteceu não foi nem
uma vez, nem duas, muitas vezes.[...] Então, tudo isso é coisas que a gente
alcançou que era no tempo dos patrão que eles faziam isso. Então, quando
A era tempo de seringa eles cortavam seringa também. Os mais velhos era na
agricultura e os mais novo na seringa. Cortada no inverno no centro - cha-
mava o centro - e no verão na margem, era assim. Os índios eles passaram
uma vida muito difícil nos tempo dos patrão, porque eles só faziam o que
os patrão mandavam. [...]Ou com chuva ou sem chuva, carregavam muita
produção nas costa, no tempo de borracha, por exemplo, eram homens e
• mulher que iam carregar a borracha do centro pra cá, pra desembarcar na
1184 beira aqui do rio, pra pegar as embarcação, não é? Eram homens e mulher
que carregava a borracha, carregava coco, farinha, tudo levava [...]. Pois é,
• então era uma vida muito dura pra eles e ninguém podia trabalhar pra si
próprio, ninguém. E isso durou até a morte do Coronel Mâncio, morreu em
1950 (LIMA, 2010. Entrevista).
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A
L REPRESENTAÇÕES DOS POVOS INDÍGENAS EM ARQUIVOS DE
RIO BRANCO
L
Teresa Almeida Cruz (UFAC)
A Danilo Rodrigues do Nascimento (UFAC)
RESUMO:O presente trabalho vincula-se ao Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação Científica (PIBIC), em andamento, intitulado “Releituras da história: Povos
indígenas nos arquivos de Rio Branco”. Os objetivos deste texto são: descrever os
arquivos do Museu Universitário e do Museu da Borracha, em Rio Branco, Acre,
• mostrando as situações estruturais destes arquivos; analisar as representações dos
indígenas nos jornais, sobretudo, O Rio Branco e A Gazeta, analisando as temáticas
1187
de assuntos que englobam esses povos e compreendendo os discursos criados sobre
• esses grupos étnicos das Amazônias. A metodologia utilizada foi, a princípio, um
levantamento nesses arquivos dos Jornais, pesquisando e analisando as matérias
em que aparecem os povos indígenas. Além disso, o levantamento bibliográfico de
textos de embasamento teórico ao tema, sobretudo, ligados à História e à Antropologia
Histórica, bem como as discussões dos textos e a escrita dessa temática deste
2 assunto, a fim de divulgar novos conhecimentos e romper com o saber tradicional
imposto. Tivemos como resultado deste trabalho uma nova mentalidade acerca das
0 representações dos indígenas dentro dos jornais da cidade de Rio Branco – Acre,
sabendo que foi estabelecida a partir de uma interferência colonialista. Por fim,
1 se compreendeu a importância de ressignificar os discursos impostos a partir de
abordagens e compreensão de autores como a historiadora Maria Regina Celestino
de Almeida e o antropólogo João Pacheco de Oliveira. Sendo assim, é importante
8 perceber que o estudo das representações indígenas é bem mais amplo e diverso
do que se supõe e o mesmo pode se dizer das culturas indígenas que, embora
silenciadas, influenciaram profundamente nossa mentalidade contemporânea.
Palavras-chave: Povos Indígenas. Rio Branco. Representações de indígenas.
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Figura 2 - Fonte: O Rio Branco - quarta-feira, 12 de março de 1972, p. 8.
8 Esta matéria sobre a proibição de voos na taba dos “índios gigantes”
nas margens do rio Peixoto no norte do Mato Grosso, revela outra representação
ainda recorrente sobre os indígenas que está ligada ao exótico, ao inusitado. Por
outro lado, se dá em um contexto de “pacificação” dos indígenas para “limpar”
o território para o desenvolvimento das políticas desenvolvimentistas do governo
militar. Portanto, ainda são considerados como arredios, selvagens, como um perigo
à sociedade envolvente e empecilho para o progresso. Então, o governo tem o papel
oficial para tutelar esses indígenas. As notícias veiculadas nos meios midiáticos
trazem esse grupo sempre na perspectiva da marginalidade, isto é, reforçando que
os indígenas não têm o sentido de organização, resistência e cultura.
O senso comum que prevalece é ainda de que os índios precisam da tutela
do Governo, que surge no papel oficial do poder constituído, no papel da
Igreja, representando o discurso do poder. Há notícias veiculadas sobre o
índio onde não há sequer espaço para a verbalização do discurso indígena.
O índio não é sujeito de seu discurso e nem tem poder para construir sua
própria história. Quem tem poder para fazer declarações e anúncios é a
Funai, o Governo e a Igreja, reforçando o discurso oficial e retirando dos
índios o direito de se agrupar e reagrupar, enfim, de organizar seu discurso
J e ocupar espaço na imprensa de modo a ser sujeito ativo e verbalizar seu
discurso (MELO, s/d).
A Nos anos de 1980, os indígenas ganharam as páginas dos jornais com mais
frequência. No jornal O Rio Branco as temáticas sofrem mudanças significativas,
L porque os assuntos são diversos: demarcações de terras, assuntos relacionados
a Funai, às questões culturais dos indígenas. Neste sentido, no ano de 1987 são
destacadas as seguintes matérias: “Comunidade Indígena vai ter um programa
L
de rádio”, “A arte indígena assume seu dinamismo e antropofagia recusando a
estagnação”, “Acre reivindica demarcação de áreas indígenas”, “Índios seringueiros
A recebem financiamento”, “Funai inicia contenção para proteger índios autônomos”.
Os títulos destas matérias revelam o dinamismo das lutas dos povos indígenas que
exigem a demarcação de seus territórios, fortalecem suas culturas e se articulam
com os seringueiros no fortalecimento da aliança dos povos da floresta para que
seus direitos sejam respeitados.
• Os textos jornalísticos analisados nos permitem apreender que a
1196 representação social da mídia em Rio Branco – Acre, Brasil, se dá através de um
• discurso no primeiro momento excludente e que ressalta a violência dos indígenas,
mas depois, na década de 1980, sobretudo, a partir das lutas dos povos indígenas
pela retomada dos seus territórios como garantia de sua sobrevivência física
e cultural, há uma mudança em relação à produção das matérias dos jornais,
destacando as lutas indígenas, as culturas, as demarcações de terras e a educação
indígena, ou seja, os povos indígenas passam a fazer parte da cena histórica acreana
2
como importantes personagens na luta pelos seus direitos ancestrais. Desta forma,
como aborda Maria Celestino de Almeida (2010) saíram dos bastidores e passaram
0 para o palco da história, contrariando todas as estimativas de que desapareceriam
da história.
1 Referências
ALMEIDA, M. R. C. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010.
8 FIGUEIREDO, B. G.; VIDAL, D. V. (Orgs.). Museus: dos gabinetes de curiosidades à mu-
seologia moderna. 2ª.ed. Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2013.
GRUPIONÍ, L. D. B. (Org.). Índios no Brasil. 4ª. ed. São Paulo: Global; Brasília: MEC, 2000.
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MELO, P. B (s/d). O índio na mídia: discurso e representação social. Disponível em:
http://www.fundaj.gov.br/geral/observanordeste/indio.pdf Acessado em: 31/05/2018.
NETO, Manoel Façanha Tavares. Jornalismo Esportivo no Acre na era do futebol Pro-
fissional. 2012.
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OLIVEIRA, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”,
regime tutelar e formação de alteridade. Rio de Janeiro: Contra capa, 2016. 384p.
PIRES, Naylor George. Notícias de Jornais/ Naylor George Pires; ilustração de Dalmir
Ferreira e Jorge Rivasplata. Rio Branco: Editora Preview, 1996.
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 9. Ed. Ampl. Rio de
J Janeiro: FGV, 2007.
RIBEIRO, Veriano. Museu da Borracha passará por reforma. Disponível em: http://
A g1.globo.com/ac/acre/noticia/2013/08/museu-da-borracha-passara-por-reforma-apos-
-5-meses-fechado.html Acessado em: 23/05/2018.
L SOUZA, Márcio. História da Amazônia. Manaus: Valer, 2009.
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A
L EL ESTEREOTIPO DEL MATRIARCADO EN LAS OBRAS
LITERARIAS RIACHO DOCE, DE JOSÉ LINS DO REGO Y LOS
L FUNERALES DE LA MAMÁ GRANDE, DE GABRIEL GARCÍA
MÁRQUEZ
A
Terezinha de Jesus Rodrigues Barbagelata (UNAMA)
Alba Lúcia da Costa de López (SEDUC)
RESUMO: Para iniciar este estudio en torno a las principales ideologías culturales
de género matriarcal abordaremos las obras literarias de José Lins do Rego: Riacho
• Doce; y de Gabriel García Márquez: Los Funerales de la Mamá Grande. Los análisis
1198 literarios basados en ideas de Saussure, nos dice que todos los elementos que
compone una obra literaria son entendidos por la literalidad, es decir todos los
•
elementos son importantes. Un texto de los años 1962 como Los funerales de
la Mamá Grande y Riacho Doce de 1939, no se entiende igual que otro actual.
Otros aspectos importantes son las manifestaciones sociales y culturales de un
tiempo, son aspectos que ayudan a entender los textos literarios. Nos preocupa el
tratamiento del matriarcado presente en el discurso literario. Dada la amplitud de
2 la temática, centralizamos nuestro estudio al plantear cuáles son los estereotipos
que aparecen con la figura del matriarcado en las obras literarias analizadas.
0 Palabras Clave: Matriarcado. Estereotipos. Ideología Cultural.
El tema del matriarcado ha despertado la investigación entre varios
1 autores, de los principales autores está Juan Sebastián Bachofen, según él: el
matriarcado, es un forma de organización como un estadio importante dentro de
8 la historia de la vida en comunidades, que es capaz de desarrollar una cultura
centrada en la veneración de lo femenino, entendiendo «lo Femenino» como
una cosmovisión en donde la capacidad de fecundación y crianza de los seres
humanos en su larga infancia, configuran una manera de ver y organizar a las
personas en torno a la necesidad esencial de los seres vivos: la perpetuación. La
palabra matriarcado según la Real Academia Española, es: Organización social,
tradicionalmente atribuida a algunos pueblos primitivos, en que el mando residía
en las mujeres. Predominio o fuerte ascendiente femenino en una sociedad o grupo.
Etimológicamente, matriarcado deriva de la palabra latina mater (madre) y de la
terminología griega archein (gobernar). A partir de estos principios trataremos de
investigar por medio de análisis del discurso las distintas maneras en que cada
autor aborda el tema del matriarcado. Es importante comprender la relación de
poder (autoridad de la mujer en un grupo social) que se establecen entre el lenguaje
femenino, en el discurso del matriarcado por medio de las obras literarias Riacho
Doce de José Lins do Rego y los Funerales de la Mamá Grande de Gabriel García
Márquez.
En cuanto al estudio de la representación de las mujeres a través de
J la literatura, se puede ir a través de los muchos caminos que conducen a la
caracterización y la comprensión de cómo se ven las mujeres en la historia de la
A humanidad, que tiene como foco las creaciones artísticas de diferentes autores en
diferentes momentos. Cada época, cada pueblo y cada movimiento de la historia
L escrita se percibe como esta figura fue creada y (re) configurar en las páginas de
la literatura. Teniendo en cuenta la relación entre la literatura y el contexto de la
producción artística, la representación de las mujeres en la ficción nace de la unión
L entre estas dos esferas. Es por eso que creemos que el término representación
dentro de la literatura requiere un enfoque para investigar las relaciones de poder.
A Los escritores Gabriel García Márquez y José Lins do Rego desarrollan
un estudio que se centra en las implicaciones para hacer frente a la representación
de las mujeres. Aunque los escritores proceden de contextos históricos, culturales
y literarios distintos, y han escrito en diferentes idiomas, Gabriel García Márquez
y José Lins do Rego pueden tener sus obras aproximadas. El momento podemos
• destacar cómo los dos escritores representan a las mujeres y la necesidad que
1199 tuvieron que llamar la atención sobre una región particular de sus naciones. Estas
dos características de ellos, la caracterización de América del Sur y el Nordeste
•
brasileño y la representación del femenino, son, por sí mismos, un motivo suficiente
para crear un diálogo entre los dos escritores.
Así, si puede ver la historia presentarse como un corte ilustrativo de la
literatura Hispanoamericana contemporánea, que trata de construir una nueva
2 identidad cultural, teniendo como parámetro la destrucción de los modelos
preconcebidos, mostrando la tradición en un ángulo antagónico al diseño establecido.
Obviamente, la construcción de esta identidad macondiana no consolidado sin la
0 noción de alteridad. Mamá Grande existe solo en contacto con el mundo que nos
rodea, y con la relación con el otro. Impregna en el texto la concepción mitológica
1 de la protagonista que, por encima de los pobres mortales, que maneja todo y a
todos, sin esfuerzo. En el proceso de reafirmación de su perfil, a través del lenguaje
8 y la comprensión de los demás, legitimado cada vez más la identidad de la Mamá
Grande, que es lo que es, precisamente, porque, en sus relaciones sociales, se basa
este punto de vista de la grandeza absoluta.
Así, como en la obra Riacho Doce, el enfoque es un sistema patriarcal, y
que conduce los personajes femeninos un lugar de inferioridad, que es legítimo y
perpetúa el poder y la agresión masculina. La mujer gana espacio y poder cuando
el hombre sale de escena, como es el caso de Elba, la abuela de Edna. Por lo
tanto la mujer es siempre subyugada al hombre y para tal desprovista de acciones,
pensamientos y voluntad propia.
Hicimos una comparación de la figura del matriarcado, como un recurso
de análisis, se logró acercar a las matriarcas, en un intento de entender la
representación de la matriarca y su influencia en la sociedad en que vive, o sea,
lo que se ha verificado en relación al lenguaje femenino en una perspectiva del
análisis del discurso en las dos obras.
En la lectura de la historia de los funerales Mamá Grande, con Riacho
Doce, encontramos interesantes puntos de convergencia, junto con las diferencias
naturales - por el estilo de los autores y de las técnicas narrativas adoptados -
J aunque no es un espejo de una narración sobre otra. Teniendo en cuenta las
aproximaciones posibles se realizó una lectura, desde el ángulo de las marcas de
A identidad y de género que recorre las narrativas de ambos universos.
El funeral de Mamá Grande es un cuento que cumple una función
L desacralizadora, desmitificación de los engranajes de una sociedad y de un poder
institucional. La subversión de la realidad se apoya en la figura caricaturizada del
personaje central, una mujer que reina sobre todo y todos llegando al borde de lo
L
inimaginable, del absurdo y del divertido, rompiendo con toda norma o limitación.
Es una estrategia de García Márquez burlarse de las convenciones
A sociales, con su propio status quo, que muestran que, en el fantástico mundo de
Macondo, nada es imposible, ni siquiera la existencia de una Mamá Grande, como
legítima representante del género femenino de poder y dominación.
Se puede decir que es una ilusión creer que existe una identidad
unificada, completa y consistente, porque nos enfrentamos a un contexto social
•
en constante transformaciones en el que nos enfrentamos constantemente por
1200 una multiplicidad de identidades posibles, con el que nos pudimos identificar en
• diferentes momentos. Estos conceptos guiarán nuestro análisis sobre la identidad
de las figuras matriarcales en las obras de José Lins do Rego y Gabriel García
Márquez.
Dadas las funciones impuestas a las mujeres en la ficción, se observa que
ellas se encuentran, o sea, en una posición inferior a la ocupada por el hombre.
2 Esto refuerza la afirmación de que las construcciones literarias reflejan el sistema
cultural del patriarcado. Para enfocar mejor la incorporación de la mujer en la
0 literatura, los estudios de inclinación feministas deben por lo tanto centrarse,
entre otras cosas, “el carácter construido de las relaciones de género, y muestran
también que las referencias sexuales muy a menudo son aparentemente neutrales,
1 realidad engendrada en línea con la ideología dominante “(ZOLIN, 2009, p. 227).
Gabriel García Márquez y José Lins do Rego desarrollan implicaciones y
8 crean representación de las mujeres. Aunque ellos proceden de contextos históricos,
culturales y literarios distintos, y escriben en diferentes idiomas, pueden tener sus
obras aproximadas. El momento podemos destacar cómo los dos representan a las
mujeres y la necesidad que tuvieron de llamar la atención sobre una región particular
de sus naciones. Estas dos características de los escritores, la caracterización de
América del Sur y el Nordeste brasileño y la representación del femenino son, por
sí mismos, un motivo suficiente para crear un diálogo entre los dos escritores.
En el estudio de García Márquez, podemos identificar una concepción
de la feminidad que se origina en las raíces culturales de Occidente y reitera la
tradición, sea en las memorias, para restaurar las figuras femeninas de su vida,
a la que acredita la esencia de su ser y de su forma de pensar, ya sea en obras
de ficción, mediante el establecimiento de sus personajes. La concepción de lo
femenino que surge es reveladora, y nos permite dar a conocer el género como un
producto de ficción engendrada por el lenguaje.
Al analizar los subjetivemas de las obras relacionadas, se encuentra
varias expresiones que remite la presencia del matriarcado. Ésta es, incrédulos
J del mundo entero, la verídica historia de la Mamá Grande, soberana absoluta
del reino de Macondo, que vivió en función de dominio durante 92 años y murió
A en olor de santidad un martes del setiembre pasado, y a cuyos funerales vino el
Sumo Pontífice...(GARCÍA MÁRQUEZ, 1978, p. 193). El superlativo sirve aquí para
L parodiar el lenguaje religioso y arcaico, produciendo otro lenguaje que evoca el
grito del animador de feria y está asociado directamente con los pregones de la
plaza pública. Porque en la cultura colombiana numerosas formas de pregones,
L entre los cuales se destacan los gritos del presentador de circo, del artista callejero,
del predicador de plaza.
A Nadie conocía el origen, ni los límites, ni el valor real del patrimonio, pero
todo el mundo se había acostumbrado a creer que la Mamá Grande era dueña de
las aguas corrientes y estancadas, llovidas y por llover, y de los caminos vecinales,
los postes del telégrafo, los años bisiestos y el calor... (GARCÍA MÁRQUEZ, 1978,
p. 195). El verbo Pretérito imperfecto que está en negrita y manifiesta la valoración
• que hace el enunciador a la figura del matriarcado.
1201 […] La rigidez matriarcal de la Mamá Grande había cercado su fortuna y su
apellido con una alambrada sacramental, dentro de la cual los tíos se casa-
• ban con las hijas de las sobrinas, y los primos con las tías, y los hermanos
con las cuñadas, hasta formar una intrincada maraña de consanguinidad
que convirtió la procreación en un círculo vicioso [...] El sustantivo en ne-
grito refuerza la carga valorativa del enunciado. (GARCÍA MÁRQUEZ, 1978,
p. 195).
2 […] Los ancianos recordaban como una alucinación de la juventud los dos-
cientos metros de esteras que se tendieron desde la casa solariega hasta el
0 altar mayor, la tarde en que María del Rosario Castañeda y Montero asistió
a los funerales de su padre, y regresó por la calle esterada investida de su
nueva e irradiante dignidad, a los 22 años, convertida en la Mamá Gran-
1 de […] (GARCÍA MÁRQUEZ, 1978, p. 197).
La representación del femenino en la obra de José Lins do Rego es el
8 resultado de un contexto literario conocido como Romance de los 30, el trabajo
de él (1901-1957) fue ampliamente aceptado en su tiempo y, con los años, sigue
ganando más protagonismo. El escritor nació en el Engeño Corredor, ubicado en la
región geográfica del noreste que inmortalizó en sus escritos.
Centrándose principalmente en una región específica de Brasil, el
Noreste, con sus problemas, los tipos humanos, dialectos y costumbres, José
Lins funcionalizó el entorno regional noreste a la valoración de sus características
únicas. Algunas de sus novelas, injerida en el ciclo de la caña de azúcar – Menino
de Engenho (1932), Doidinho (1933), Banguê (1934), Usina (1936) y Fogo Morto
(1943) (véase Azevedo, 1991. p 221), llama a la llanura de inundación de Paraíba,
con sus ingenios de azúcar. En esta misma zona, pero distanciándose un poco, de
los ingenios surge, la novela Pureza (1937). Otras, novelas Pedra Bonita (1938) y
Cangaceiros, (1953) dan destaque a la región noreste conocida como el “sertão”.
También están aquellos que se centran en la costa noreste del país, como es el caso
de Moleque Ricardo (1935) y Riacho Doce (1939). Esta última novela, la diferencia
de todas las demás, porque tiene el escenario en una parte de su narrativa en otro
J país, Suecia.
En cuanto a la agregación de la obra del escritor y sin descalificar esta
A o aquella novela o grupo de ellas en los ciclos, se puede afirmar que José Lins se
centró en personajes que se encuentran en un proceso de decadencia. A menudo,
L este deterioro se extiende al entorno en el que el personaje va el relato, pero, y este es
el aspecto principal de sus obras, la mayor disminución se relaciona directamente
con los propios personajes y de sus expectativas existencial es, cuando se centra en
L la obra del escritor, se ha escrito mucho sobre el proceso de representar un mundo
que se deshace, donde antiguos ingenios son sustituidos por usinas, pero, como ya
A habíamos dicho, el objetivo principal no está aquí, sino en las relaciones entre los
personajes y sus aspiraciones. Independientemente de las novelas han pasado en la
llanura de inundación de Paraíba, en Recife, en Suecia, en Río de Janeiro, en Cabo
Frio, en una ciudad perdida en medio de Paraíba, o en las “caatingas” del noreste,
todos los protagonistas de José Lins do Rego enfrentan a sus tragedias humanas.
• Los enredos se encuentran cerca de estos personajes hacia un fin incierto o infeliz.
1202 Esta característica de la obra del escritor tiene un papel importante en Riacho
Doce, como se explica en el análisis de esta novela.
•
Otro hecho que marca la obra del escritor José Lins do Rego es la
explotación de un sistema social movido por el poder del patriarcado. Sus novelas
se centran en una sociedad cuyo mandato es el hombre, y sobre todo del señor de
ingenio con poderes dentro y fuera del hogar. Sus novelas más conocidas trazan
el retrato de una familia que destaca el panorama de los ingenios de la llanura de
2 Paraíba. Lo que vemos en estas novelas es el centro de un grupo de personajes
masculinos de diferentes edades, pero siempre del mismo grupo sanguíneo. El
0 Menino do Engenho hasta Fogo Morto, vemos el carácter familiar de Carlinhos del
primer libro materializado en diferentes hombres - Carlos de Melo, José Paulino,
1 Capitán Vieira, capitán Joca do Matravalha, Juca (Dr. José de Melo), entre otros
- que constituye el centro de todo lo que se relaciona con las narrativas de estas
8 novelas.
El enfoque en el sistema patriarcal hace que la obra del escritor conceda
a los personajes femeninos un lugar de inferioridad social que legitima y perpetúa
el poder masculino y la agresión. En las novelas, del escritor, vemos que la mujer,
en una sociedad donde prevalecen los valores masculinos, sea económica, social y
moralmente es sometida al poder del patriarcado.
La configuración de lo femenino, con mujeres capaces de ver y evaluar
las acciones de los hombres, no constituye la norma en la obra del escritor. Una
mujer con discernimiento es constante sólo en novelas cuyo narrador utiliza la
tercera persona. Cuando el narrador es un personaje masculino, la mujer es
completamente silenciada. En las novelas en primera persona, José Lins do Rego
lleva en la ardedura de la narrativa todo un sistema de valores patriarcales que
refuerzan la supremacía del hombre, mostrando mujeres como subyugadas,
carentes de acciones, pensamientos y deseos. No son más que proyecciones del
narrador masculino que “idealiza a la mujer dentro de un determinado modelo de
feminidad, se petrifica, como un objeto de deseo del narrador” (BRANDÃO, 2006,
p. 31).
J El papel que correspondía a estas mujeres era de procrear, responsables
de asegurar la descendencia del señor de ingenio. Pero no eran los responsables
A de dar a sus maridos el placer del sexo. Los hombres buscan fuera de la casa el
placer que el sexo les podía ofrecer. Era entre las mujeres de color, que vivían en los
L ingenios, o de prostitutas del pueblos o ciudades, que el señor de ingenio buscaba
el placer sexual.
Pero el relato de José Lins do Rego tiene, de hecho, realmente, como
L
la protagonista a una mujer es Riacho Doce. La novela de 1939, al igual que con
otras obras del escritor, se divide en partes: “Esther”, “Riacho Doce” y “No”. Este
A trabajo se centra en el personaje principal Edna o Eduarda, una mujer sueca que
viene con su marido para intentar una nueva vida en Brasil. La primera parte del
libro, considerada por la crítica como la menos desarrollada de todo el romance (cf.
LOUSADA, 1991), se centra en la infancia, la adolescencia y el inicio del matrimonio
de Edna / Eduarda en Suecia. Aquí es explotada principalmente para transferir
• relación que el protagonista sufre por su maestra Esther. Esta parte del libro es
1203 “establecer su heroína en el centro que era costumbre, los conflictos del alma y del
cuerpo, sus deseos reprimidos por medio hostil” (LOUSADA, 1991, p. 362).
•
La lectura que se pretende hacer entre las dos narrativas, el objetivo es
crear una posibilidad interpretativa para explorar no sólo lo que las dos historias
tienen en común, sino también las diferencias entre ellas, lo que permite identificar
cómo los Funerales Mama Grande y el Riacho Doce se aproximan y se alejan, en el
2 tratamiento dado a un tema común.
En esta propuesta de análisis, se pretende identificar los recursos
literarios utilizados por los dos escritores en la composición de sus narrativas, para
0
que se exploten las peculiaridades de cada obra.
Elba, Dueña absoluta de todo, inspirando miedo en los nietos y nuera,
1 además de intimidar a su hijo: “[a] la vieja abuela, era la que mandaba en toda la
familia. Era ella la que hacía que su padre sea tímido como un niño y su madre
8 inspiraba miedo [...] maniobró su tribu como la dueña de todo, como dueña
absoluta” (REGUERA e BUSATO, 2003, p. 38). La expresión que está en negrito es
una carga valorativa por tratarse de adjetivo que hace referencia al matriarcado,
así como, el verbo en pretérito imperfecto en negrito.
En el núcleo familiar de Nó, la vieja Aninha era quien gobernaba. De
edad, delgada y debilitado físicamente, Aninha tiene el poder de controlar no sólo a
los miembros de su familia, sino a toda una comunidad: “[la vieja Aninha] siempre
fuera de la fuerza, la parte superior, para las maniobras con los otros [….] vieja
sabia, de poderes extraños, dura de corazón. Era fuerte en el dolor, en la miseria,
en la alegría “(REGO, 2003, p. 137). […] La vieja Elba gritaba sus órdenes, y hacía
que la gente se curvara delante su vozarrón […] el verbo en negrita hace mención a
la carga valorativa de poder que ejerce la matriarca.
La novela Riacho Doce fue escrita por el Paraibano José Lins do Rego y
publicada en 1939. Se trata de un enfoque regional de la ficción literaria modernista,
cuya trama tiene como ejes principales el pueblo llamado Riacho Doce. La “escena”
es un pueblo de pescadores en la zona costera del estado de Alagoas (noreste de
J Brasil), donde la vida cotidiana de las familias de pescadores que viven allí va a
sufrir diversos “trastornos”, de orden ecológico y moral, como resultado de los
A intentos de explotar petróleo en el local, llevado a cabo por extranjeros.
Nó es el hijo de un pescador y nieto de Anita, la antigua guardiana de la
L moral del lugar, aquella que tiene las llaves de la iglesia, que tiene poderes curativos
y de maldición, su principal fuente de “poder simbólico” (BOURDIEU, 1989, p. 7).
Edna es una sueca, casada con un ingeniero que se mudó de Estocolmo (Suecia)
L
a Brasil, con el propósito de llegar a ser rico, aprovechando la situación para
proporcionar nuevos aires a su esposa, que vivía desalentada y desmotivada en
A su tierra natal, y en el campo. Edna y Nó vivían una relación amorosa que tendrá
consecuencias para el día a día de Riacho Doce y de los extranjeros ubicados allí.
El día a día “imaginado” de José Lins do Rego en Riacho Doce es el
escenario de un interesante fenómeno: cuando los residentes del pequeño pueblo
de pescadores se ponen de frente con la alteridad de los extranjeros “insertados” en
• su rutina, las sospechas sobre el peligro representado por la presencia de actitudes
1204 extrañas desencadena una actitud al orden interno de protección a través de la
• vigilancia que no lo hace, en principio, directamente sobre el otro, sino entre los
que están “adentro”, debido a la aparición de actitudes no sólo de alejamiento
sino también de asombro, admiración y, en cierta medida, de simpatía del mundo
“exterior”.
Así, establecida la hipótesis de que la singularidad de una cultura no
2 anula las tensiones de la diferencia, que se manifiesta, aunque tácita, también
internamente. De lo contrario, no habría ningún papel para sanciones sociales que
están presentes incluso en ambientes relativamente homogéneos, tales como las
0
llamadas sociedades de pequeña escala.
Otro hecho singular el trabajo del escritor José Lins do Rego es la
1 explotación de un sistema social movido por el poder del patriarcado. Sus novelas
se centran en una sociedad cuyo mandato es el hombre, y en especial la sembradora
8 con poderes dentro y fuera del hogar.
La abuela de edad era ella que mandaba en toda la familia. Era ella que
• hizo a su padre tímido como un niño e inspiraba temor a su madre. Todo el
mundo sabía que la vieja Elba sabía de las cosas, casi todo el mundo: ma-
1206 niobraba su tribu como la dueña de todo, dueña absoluta. Alta, gorda, se
• hablaba en voz baja cerca de ella. Chicos y grandes no hacía diferencia. Allí
estaba ejerciendo su poder despótico, sin ternura, sin un tratamiento. Ojos
que nunca se humedecieron con alegría, manos que nadie ha visto nunca
acariciar (REGO, 2003, p. 6).
J
A
L ENTRE SABERES, MARACÁS E DECOLONIALIDADE: PRÁTICAS
EDUCATIVAS DA PAJELANÇA
L
Thaís Tavares Nogueira (UEPA)
A RESUMO: Este estudo aponta as práticas educativas em um terreiro de pajelança
na ilha de Colares/ PA e toma como base as narrativas do sujeito mediador dessas
práticas: o pajé. Percorre as trilhas etnográficas em uma pesquisa de campo,
buscando um diálogo com a história oral. Com base em pressupostos da história
cultural, considera sujeitos e seus saberes até então subalternizados pela ciência
• moderna e lógica colonial. Ressalta a existência de uma prática educativa no
terreiro, a exemplo do rito de iniciação, ao observar o pajé como um educador que
1215
media toda a ritualística. Todos os participantes dos trabalhos experimentam algum
• tipo de aprendizagem: sobre a cultura das entidades nas suas falas e doutrinas,
onde sentar, no que tocar ou não, o que cantar para acompanhar o trânsito das
entidades no terreiro, receitas de banhos ou chás nos tratamentos de cura, bem
como a moral repassada nos aconselhamentos.
Palavras-chave: Pajelança. Resistência. Saberes. Práticas Educativas.
2
Introdução
Este texto resulta de uma pesquisa, em andamento, acerca dos processos
0
educativos que perpassam as práticas de pajelança na ilha de Colares-PA. Visto
que na ilha se observa a presença de vários terreiros, objetivamos traçar um perfil
1 pedagógico a partir de um lócus específico, o terreiro de São Jorge que tem como
pajé o senhor Robson.
8 Ancorado na perspectiva histórico-cultural, o estudo volta-se para uma
história do presente sem descurar dos processos políticos e sociais mais amplos.
Em sintonia com a “história vista de baixo” (SHARPE, 1992), volta-se para a história
de sujeitos e seus saberes até então subalternizados pela ciência moderna e lógica
colonial, como é o caso do pajé e suas práticas no terreiro, sujeito este que media
saberes, que os faz circular com significados diversos.
O diálogo com a história cultural possibilitou ampliar fontes e os sujeitos
da história de modo que é possível tomar como objeto de estudo a cultura popular,
as pessoas simples que carregam em seu dia-a-dia um conjunto de saberes e
tradições repassadas em suas comunidades, formas de trabalho e relações sociais,
na religiosidade, configurando o que Burke (2008) chama de “a descoberta do
povo”. Deriva disso a possibilidade de pesquisas em espaços e com sujeitos outros
para além daqueles circunscritos pela ciência moderna e hegemônica, a exemplo
dos terreiros e seus agentes: os pajés.
A linha de pesquisa “Saberes Culturais e Educação na Amazônia”, da
Universidade do Estado do Pará, na qual desenvolvo meu estudo de mestrado,
J tem possibilitado a construção teórica acerca de saberes e práticas educativas
diversas na região amazônica, apontando para a necessidade de se pensar a lógica
A do conhecimento de forma outra que não apenas àquela vinculada ao pensamento
eurocêntrico, mas principalmente a partir de experiências do cotidiano dos povos
L da Amazônia, ao reconhecer sua riqueza cultural.
E como cultura religiosa, trago, neste artigo, o tema da pajelança para
o campo da educação. A fim de levantar pontos de sua história de resistência em
L
nossa região e relacioná-los com os pensamentos acerca do desafio de rompimento
com o paradigma moderno da ciência. Assim, meu interesse está em refletir sobre
A as práticas da pajelança enquanto um saber tradicional, popular e de resistência à
luz do pensamento decolonial.
Entendo a decolonialidade como uma corrente de pensamento e ações
pautada no sentimento de liberdade, respeito e alteridade ao ser humano,
independentemente de sua raça, credo, lugar etc. E está voltada para aqueles
• que enfrentam ou necessitam enfrentar a exclusão, o preconceito, o racismo e
1216 impulsiona a superar toda e qualquer forma de opressão advinda do processo
• colonizador europeu.
Mota Neto (2016), obra na qual propõe uma pedagogia decolonial, traz à
reflexão a concepção de decolonialidade como:
um questionamento radical e uma busca de superação das mais distintas
formas de opressão perpetradas pela modernidade/ colonialidade contra as
classes e os grupos sociais subalternos, sobretudo das regiões colonizadas e
2 neocolonizadas pelas metrópoles euro-norte-americanas, nos planos de exis-
tir humano, das relações sociais e econômicas, do pensamento e da educa-
0 ção. (MOTA NETO, 2016, p. 44, grifo do autor).
Não pretendo aqui me aprofundar em conceitos, e sim dialogar com
1 pensamentos que se aproximem e possibilitem o debate epistemológico, no sentido
de sobrepor o embate político e de poder que perpassa o campo científico.
8 Nesse intuito, fico muito inclinada a fazer referência ao que Mota Neto
(2016) destaca sobre o conceito já apresentado:
Cabe, no entanto, ressaltar, mais uma vez, que não se deve utilizar o concei-
to de decolonialidade para se referir apenas às ideias daqueles que desen-
volveram o termo. Mais importante que o nome é a concepção política, ética
e epistemológica que lhe é subjacente, concepção, aliás, que tem sido teci-
da desde a origem do processo colonizador na América Latina, por muitas
mãos, no interior de uma plêiade de movimentos de resistência [...]. (p. 43).
Assim também, busco salientar a ideia dos sujeitos envolvidos nas práticas
de pajelança como sujeitos Outros de produção de conhecimento, dialogando aqui
com Dussel, quando conceitua este Outro a partir de sua análise sobre o início
da modernidade (ego moderno), onde a Europa do período dos “descobrimentos”
trata as outras culturas e povos como objetos que necessitam de um processo de
civilização, mesmo que violento e negador de que este objeto é o Outro com sua
história, seus saberes, sua diferença negados na colonização:
O Outro é a “besta” de Oviedo, o “futuro” de Hegel, a “possibilidade” de
O’Gorman, a “matéria bruta” para Alberto Caturelli: massa rústica desco-
J berta para ser civilizada pelo “ser” europeu da “Cultura Ocidental”, mas
“en-coberta” em sua alteridade. (DUSSEL, 1993, p.36).
A Nessa perspectiva, abordo a temática da pajelança, seu processo histórico
de resistência e sua concepção acerca de uma prática em que ocorre circulação
L de saberes e relaciono com teorias que possibilitam pensar uma proposta contra
hegemônica de construção do conhecimento, a partir de um conceito mais amplo
de educação e de respeito aos povos até então invisibilizados ou à margem desse
L processo.
Para tanto, aponto, neste primeiro momento – a introdução, os
A caminhos que me permitem refletir acerca desta proposta de estudo; no segundo
ponto, abordarei o tema da pajelança, relacionando-o à educação e práticas de
resistência; a seguir, apresento a metodologia e lócus deste estudo; logo após,
falarei das práticas educativas da pajelança a partir da trajetória de vida do sujeito
pajé e destacarei algumas questões e apontamentos para que se reflita acerca das
• práticas epistêmicas na ciência moderna e de como, à luz da decolonialidade, se
1217 pode pensar sua superação; por fim, concluo destacando a possibilidade de se
caminhar na direção de práticas de pesquisa e epistemologias contra hegemônicas.
•
Pajelança, educação e resistência
O termo pajelança, segundo os antropólogos Maués e Villacorta (2011, p.
11), refere-se a “uma forma de xamanismo em que se dá a ocorrência do fenômeno
de incorporação pelo pajé, sendo seu corpo tomado, no transe ritual, por entidades
2 conhecidas como encantados ou caruanas”. Durante esse ritual, a principal
ocupação do pajé é a cura de doenças.
0 A pajelança se caracteriza como uma prática religiosa com rituais
xamânicos1 de cura que teve sua origem com os povos indígenas, sofrendo
1 influências, no decorrer do processo colonizador, de outras culturas como a africana
e a europeia, por exemplo (MAUÉS, 2008).
Desde os primeiros registros dos colonizadores, nos relatos de viagem,
8
já se observa a existência da prática religiosa da pajelança, como se constata nas
cartas que descreviam o Brasil, durante a colonização. Assim, observa-se que
sempre existiu na história do Brasil, mais especificamente na história da Amazônia,
a presença desse sujeito chamado pajé.
Os pajés, citados como muito “prestigiados” nas aldeias por onde
andavam, desempenharam importante papel nas práticas de cura não só em suas
aldeias, mas estendendo esse saber ancestral aos colonos e colonizadores de nossa
1 Relativo ao xamanismo: conjunto de práticas e crenças mágicas do xamã, sacerdote tribal que
utiliza meio mágicos para curar males e doenças etc.
região. Eram, contudo, vistos como os “maiores inimigos” da igreja, que buscava
catequizar a todos eles, porém os pajés usavam “muitos enganos e feitiçarias”,
segundo os relatos do padre Manoel da Nóbrega, no século XVI (ALBUQUERQUE,
2012, p. 111). Ou seja, suas práticas religiosas e relação com a natureza, com o
sobrenatural, eram vistas como subversivas à ordem que a igreja católica tentava
impor.
Figueiredo (2008), destaca a persistência dos grupos praticantes da
J pajelança, fortemente marcada pela repressão religiosa e militar em nossa região
nos tempos da belle-époque2, bem como em todo o processo de ocupação de seus
A territórios no período da colonização. A religiosidade popular não era percebida
como merecedora de respeito ou reconhecimento em tempos de “modernização” de
L nossa região. Esta cultura popular era vista como “crendice” que destoava com a
ordem estabelecida e impulsionada pela modernidade que se chegava aqui:
Dentro desse quadro, as práticas da religiosidade popular foram pensadas
L como algo arcaico, obscuro e selvagem, que, portanto, deveriam ser extin-
tas para o bem do catolicismo. Dom Macedo Costa, bispo do Pará de 1861
A a 1891 e líder do clero brasileiro nos tempos da Romanização, colocou-se
ativamente contra todos os tipos de manifestações, rituais e formas popu-
lares de devoção que fugissem às regras impostas pelas cartas pastorais,
catecismos e missais, segundo Dom Antônio de Almeida Lustosa, seu maior
biógrafo, Dom Macedo Costa, numa de suas visitas pastorais à ilha do Ma-
rajó, mais precisamente ao município de Soure, esteve em entrevista com
• um célebre pajé, condenando em público suas imposturas. (FIGUEIREDO,
2008, p. 21).
1218
• Os praticantes da pajelança, aqueles que participavam de seus cultos ou
simplesmente recorriam aos seus rituais de cura, eram veementemente perseguidos,
presos, punidos, silenciados. Logo, pode-se encarar esses grupos como uma massa
de resistência a todas as formas de opressão e silenciamento pelas quais passaram.
Intendentes, bispo, delegado, propagadores de ideologias diversas – da “ci-
ência positiva” ao “discurso moralizador e romanizado” – todos como que
2 deixavam suas divergências de lado, para que, quando no trato com as tra-
dições religiosas populares, estivessem unidos bradando em favor da civili-
0 zação nos trópicos, da racionalização dos hábitos do povo, vistos como im-
pregnados de superstições, crenças arcaicas e práticas sociais que beiravam
à selvageria. Por outro lado, eu tinha consciência que esse grande número
1 de fontes documentais mostrava a persistência de tradições religiosas popu-
lares como um lócus dinâmico de conflitos [...]. (FIGUEIREDO, 2008, p. 21e
8 22, grifos do autor).
Dessa forma, pajé Robson nos narra sua trajetória na pajelança, desde
as primeiras manifestações das entidades, o sofrimento para se aceitar na missão
de pajé, a “perseguição” que enfrentou na vizinhança do bairro quando decidiu
“firmar” o terreiro no quintal de sua casa. Ele conta que os vizinhos chegaram a
protestar e fazer um “abaixo-assinado” para que ele saísse de lá e mudasse para
outro local, porém, resistiu e lutou por respeito durante anos, e que hoje muitos
desses vizinhos o procuram em busca de curas e ajudas diversas. Entretanto,
3 Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pa/colares/panorama. Acesso em: 22 jan.
2018.
relata que ainda enfrenta o preconceito com relação às suas práticas religiosas,
mas não desiste por se considerar “escolhido para atuar numa missão tão bonita
como a pajelança”.
Assim, o terreiro de São Jorge foi fundado no ano de 2000, quando o pajé
Robson tinha apenas 17 anos. Seus primeiros trabalhos eram realizados dentro
de sua casa, localizada no bairro de São Francisco, zona urbana de Colares. Em
seguida, passou a atender no quintal de sua residência, em meio a uma área verde.
J Segundo seu Robson, no início era apenas “uma armação de madeira e caibros,
cercado de lona e plástico e coberta de palha”. Hoje, o espaço do terreiro, construído
A em alvenaria, é disposto em dois ambientes de acordo com os trabalhos a realizar.
Um ponto que chama atenção desse terreiro é o fato de encontrar-se
L localizado na zona urbana, no centro da cidade, diferente da maioria localizada
na zona rural e contar com uma procura muito grande de pessoas que vem de
localidades distantes para terem atendimentos com o pajé Robson, em particular
L
em busca de cura.
No terreiro de São Jorge, logo que se chega para participar de um
A “trabalho”,4 deve-se escolher onde sentar. Os bancos e cadeiras estão dispostos
nas laterais do terreiro, próximo às paredes e janelas. São bancos compridos de
madeira e há algumas cadeiras de plástico. Existe um altar nesse terreiro, que o
pajé chama de gongá: uma mesa de madeira com muitos santos da igreja católica,
além de uma mesa com imagens dos “povos da mata” como índios guerreiros,
• que contam suas histórias através das letras das doutrinas entoadas a cada
1221 incorporação. Há também quadros e esculturas talhadas em madeira dispostos
• em uma parede lateral, representando os caboclos de origem africana como o Preto
Velho, por exemplo.
Ao adentrar no terreiro, o pajé ainda não está incorporado. Antes, ele
procura sempre pelo banco à frente do altar e senta-se sem falar com as pessoas
presentes, baixa a cabeça, faz uma reza em voz muito baixa, fica concentrado por
2 alguns instantes e, após isso, passa a entoar o chocalho, dando batidas sobre seus
ombros, pés e cabeça, próximo aos ouvidos.
0 Quando inicia o processo de incorporação, é perceptível a tentativa de
se manter em equilíbrio e com a coluna ereta, o que nem sempre é possível, pois
depende da entidade e da forma como a mesma chega em seu corpo. O pajé, então,
1 levanta e passa a caminhar lentamente pelo ambiente, com o corpo levemente
curvado. Em seguida, uma a uma, as entidades chegam ao terreiro incorporadas
8 no pajé, entoam suas doutrinas como forma de apresentar-se aos que ali estão,
cumprimentam, algumas vezes, as pessoas presente e seguem dando passagem às
demais entidades.
Há algo que chamou atenção desde o início das observações em campo, é
o conteúdo das mensagens que as entidades trazem a cada incorporação, sempre
falando de caridade e cura, o que remete aos preceitos da religião kardecista e
que conformam parte da educação ensinada no terreiro. Falam de amor e respeito
para com um ser maior que eles chamam Deus. Afirmam que vêm ao terreiro
Para Grosfoguel (2010), é preciso que a fala desse sujeito Outro e o lugar
de onde ele fala estejam enunciados, postos, sem intérpretes de fora. É o que se
chama de geopolítica e corpo-político. Logo, deve haver relação entre o sujeito da
enunciação e o lugar epistêmico. Ou seja, é preciso pensar epistemologicamente
como aqueles situados no lado oprimido da diferença colonial e não como aqueles
que se encontram em posição dominante.
Nesse sentido, uma reflexão sobre os saberes da pajelança, e esta como
uma cultura que se mantem e resiste à opressão desde o processo colonizador,
remete este estudo a pensá-la como uma episteme outra que possa ser construída
J a partir desse Outro, o sujeito pajé, numa interlocução possível na proposta de um
paradigma científico contra hegemônico.
A Contudo, entendo o sujeito Outro de meu estudo, o pajé Robson, como
um sujeito de conhecimento, que traz sua lógica de organização e de troca desse
L conhecimento, por meio dos saberes que circulam em suas práticas.
Logo, não posso me desprender da ideia de se pensar com urgência uma
L epistemologia a partir do Outro, na qual o olhar do pesquisador não o nega, não
o classifica, não o representa. O pesquisador apresenta. Torna visível por meio
de uma ciência que esteja para além da linha abissal. Reconhece esses saberes
A outros desses Outros sujeitos, que sempre estiveram aqui e que resistiram ao longo
do processo colonizador. Assim, “repensar o mundo colonial/ moderno a partir
da diferença colonial altera importantes pressupostos dos nossos paradigmas.”
(GROSFOGUEL, 2010, p. 418).
Pajé Robson assume em suas narrativas a postura de educador, quando
•
possibilita que se possa conhecer os rituais de cura e as entidades, a partir de
1226 seu olhar e de suas práticas. Sua narrativa assume, nesta pesquisa, a função
• de revelar e fazer pensar sobre a existência de um modo outro de perceber os
processos educativos para além do território da escola.
Arroyo discorre sobre as literaturas que partem de uma educação
popular, a qual vê a educação como um processo de humanização, uma pedagogia
em movimento. Assim, ao citar as reflexões e práticas educativas de Paulo Freire na
2 pedagogia da prática da liberdade e do oprimido, afirma que sua importância está
em passar a atenção dos objetos e métodos, dos conteúdos e das instituições para
0 os sujeitos, “sujeitos de sua educação, de construção de saberes, conhecimentos,
valores e cultura. Outros sujeitos sociais, culturais, pedagógicos em aprendizados,
em formação” (ARROYO, 2014, p. 27).
1
Logo, ao se revelar a prática educativa na pajelança, emerge a discussão
acerca desse sujeito educador representado aqui pelo pajé Robson, a educação
8 que permeia o terreiro, sua lógica, sua cultura, suas relações. Na tentativa de
compreender essa dinâmica, é preciso que se pense a partir de uma outra ideia
de pedagogia que não aquela circunscrita pela modernidade eurocêntrica, mas a
partir de sujeitos que resistiram a isso e que mantém vivas tradições milenares em
sua forma de educar, de se reinventar numa educação em que o humano é apenas
uma das formas de se conhecer, que a espiritualidade envolta das práticas de
pajelança passe a ser considerada na construção dessa outra pedagogia: dialógica
e cultural.
Considerações finais
Ao refletir sobre o estudo deste artigo, reporto-me à linha Pesquisa
“Saberes Culturais e Educação na Amazônia” do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade do Estado do Pará, a qual tenho minha pesquisa de
mestrado vinculada, e que traz como grande desafio a possibilidade de traçarmos
caminhos de pesquisa por campos epistemológicos que nos possibilitem avançar
no sentido de transpor a linha abissal imposta pelo paradigma da ciência moderna.
J As pesquisas desenvolvidas nesta linha seguem uma lógica contra
hegemônica quando passam a olhar e dialogar com práticas educativas de grupos
A até então subalternizados, avançando no sentido de conhecer o Outro e suas
diferenças; as experiências desse Outro, suas práticas cotidianas, como o estudo
L das práticas educativas na pajelança aqui tratado.
Em meio a tantas transformações num espaço globalizante atual é
L possível negarmos outras formas de ser e saber no mundo? De que maneira o
pesquisador se apresenta na atualidade, quando urge a necessidade de se pensar
a partir de grupos que resistem a este epistemicídio proporcionado por uma
A ciência excludente, e resistem por meio de sua cultura, suas tradições, suas lutas
e espaços? Urge sim, pois num mundo onde a desigualdade social e todo tipo de
preconceito estão postos a serem enfrentados, não se pode pensar em qualquer
campo de conhecimento em que não pese o olhar a estes sujeitos, como sujeitos
que constroem seu conhecimento, validam suas práticas de resistência e gritam no
•
invisível, no inaudível.
1227 Pesquisar sobre saberes e práticas educativas da pajelança me coloca
• o desafio de colaborar com as pesquisas no campo das religiões que compõem o
universo da encantaria no Brasil, em particular na Amazônia, na tentativa de dar
visibilidade ao processo educativo que favorece suas resistências e o enfrentamento
à intolerância, ao preconceito e toda forma de opressão que essas religiões têm
enfrentado.
2 Portanto, trazer as experiências educativas de grupos subalternizados
para a academia pode colaborar na construção de um novo olhar, uma epistemologia
0 a partir do Outro, pensada a partir de um projeto intercultural e descolonizado.
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• edição. Coimbra: CES, 2010. pp.405-439.
L Assim como Gonçalves Dias descreveu na Canção do Exílio um Brasil
com a valorização da terra, Silvio Carvão descreveu Cruzeiro do Sul, mostrando
o que há de mais relevância nela: as lindas morenas, o rio, as matas e o canto do
A sabiá. Malgrado, ter o ufanismo como característica, o autor revela o deslumbre
que sente pela cidade, além da saudade.
Já nos dias atuais, o discurso de autonomia e visão de que Cruzeiro do
Sul é a melhor cidade do Acre ainda é visível. Em 2013, ocorreu na cidade o evento
Dança da Galera promovido pela Rede Globo de Televisão. Cruzeiro do Sul concorria
•
com a cidade de Guararipi, no Espírito Santo e vence o concurso televisivo.
1235 (...) a participação desta cidade, importante, porém longínqua em relação
• aos grandes centros, foi motivo de orgulho para os cruzeirenses e também
para os acrianos. O desempenho foi espetacular e emocionante. (LIMA,
2015, p.402)
3 Música escrita e composta por Silvo Carvão. Publicada no livro Na Amazônia Ocidental: a
cidade-sede do Alto Juruá revelada de Raimundo Carlos de Lima, p. 394, 2015.
Eu vi os caboclos passar
Na praça de cima
Eu vi os marujos dançar. (...)4
4 Música Retórica Sentimental composta por Alberan Moraes, gravado em 2002. Publicada no
livro Na Amazônia Ocidental: a cidade-sede do Alto Juruá revelada de Raimundo Carlos de Lima,
p. 422, 2015.
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L O DIREITO AO CORPO E À CURA: ESCRAVIDÃO DOENÇA E
MORTE NO VALE DO GUAPORÉ - SÉCULOS XVIII - XX
L
Uílian Nogueira Lima (IFRO)
A Tatilene Silva Oliveira (UNIR)
RESUMO: O objetivo deste trabalho é analisar o quadro das doenças e formas de
tratamento empregadas pelas/às populações escravizadas do Vale do Guaporé e
seus descendentes entre os séculos XVIII e XX. Durante quase 150 anos, os conceitos
da medicina evolutiva e higienista impuseram aos negros a responsabilidade sobre
• os males tropicais que afetavam o Brasil. Tal posição tem sofrido duros reveses.
As formas de entendimento da doença, bem como dos elementos de sua cura
1238
sofreram consideráveis mutações ao longo desse período. A pesquisa é revisão
• da biblio-historiográfica, ligada à questão das doenças envolvendo as populações
que habitavam na região. Os resultados são apresentados na forma da descrição
das doenças e do tratamento, sofridas e praticadas pelas populações locais,
respectivamente. Durante o período colonial e o imperial brasileiro (séculos XVI/
XIX), as práticas medicinais eram exercidas por diversos agentes sociais, tais
2 como rezadeiras, curandeiros e benzedores. A presença de médicos com formação
acadêmica era rara e, quando existente, seus custos eram inviáveis à maioria
0 das populações. Os sertões brasileiros eram territórios de doenças e de morte.
No Vale do Guaporé, as doenças eram consideradas empecilho a toda empreitada
1 colonizadora. A região ficou conhecida como “o Inferno da América”. As expectativas
de vida eram baixas e. as possibilidades de contrair doenças contagiosas muito
elevadas. No conjunto das doenças, pairavam as febres sazonais, encabeçadas pela
8 malária (sezão), mas também outras tantas doenças, tidas como doenças de negros,
essas afetavam as pessoas mais vulneráveis, principalmente os escravizados,
libertos pobres, indígenas aculturados e outros. Os tratamentos eram incertos
e, marcados por práticas híbridas de herbalismo, rezas e devoções religiosas e,
quando possível, integrados a algum elemento medicinal europeu. Só tardiamente,
a medicina científica chegou à região. Doenças e curas ainda portam, em algumas
comunidades, um evidente componente sobrenatural e religioso.
Palavras-chave: Escravidão, doença, morte, cura, populações do Vale do Guaporé.
Introdução
O Vale do Guaporé desde o século XVIII, quando da primeira ocupação
humana mais intensa, que se deu com a chegada das frentes exploradoras de
caráter extrativista, mineradora, militar, catequética e escravista, tem sido palco
de doenças, conhecidas na região como doenças tropicais.
Tão logo a região começou seu processo de povoação, depois de 1799, as
doenças já aparecem como fatores preocupantes, dentre eles o clima, a péssima
J qualidade da água e a quantidade de insetos. Esses fatores de propagação das
doenças, principalmente a malária e a mortalidade da população somavam-se à
A baixa fecundidade das mulheres.
O povoamento está associado fortemente à militarização do distrito do
L Mato Grosso (vale do Guaporé), porque, à época, Portugal precisava integrar os
Estados do Brasil e do Grão-Pará e Maranhão, alargar o comércio entre essas
L distantes espacializações, além de ampliar sua política imperial para deter fronteiras
(CHAVES, 2008).
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L DEZOITO DE ESCORPIÃO: FICÇÃO CIENTÍFICA, INDÍGENAS E
BIOPOLÍTICA
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Vítor Castelões Gama (UNB)
A RESUMO: “Dezoito de Escorpião” obra de Alexey Dodsworth (2016), insere-se em
um espectro biopolítico ao apresentar como foco narrativo a “preservação” de tribos
indígenas. Estas tribos são levadas para outro planeta com a intenção de criar
um “novo mundo”. Perante a esta premissa, questionamos como se operacionaliza
a representação indígena no romance. Apoiamo-nos em Fredric Jameson para
• pensar os conceitos de “Identidade” e “Diferença” no campo específico da ficção
científica e procedemos também à análise do aparelho da biopolítica foucaultiana e
1247
os desdobramentos do biopoder estudados por Alfredo Veiga-Neto e Maura Corcini.
• Desse modo, é possível como a performance de contraconduta atua na criação da
identidade étnica.
Palavras-chave: Ficção científica brasileira. Dezoito de escorpião. Biopolítica.
Identidade étnica.
1 Doravante: FC
2 No original: turns around a change in the environment that can be understood only scientifically
sol no silêncio da floresta, que nasceu a ideia de Dezoito de Escorpião com a floresta
como palco” (DODSWORTH, 2016, p. 6). E a curiosidade sentida por ele acabou
transposta para o personagem principal, quando este estava impressionado pelo
encontro dos rios.
-Estes peixes parecem iguais e têm o mesmo nome: cascudo. Os índios da
tribo tukano o chamam ‘yaka’. Entretanto, pertencem a espécies distintas,
e cada um vive em águas diferentes. Há o cascudo do rio negro e o cascudo
J do Rio Amazonas. Eles não são o mesmo tipo de peixe, apenas parecem ser
(DODSWORTH, 2016, p. 80)
A Este parágrafo é uma prefiguração que permeará toda a narrativa. A
trama começa no final do século 20 quando um astrofísico brasileiro descobre uma
estrela igual ao Sol. Anos depois, os personagens são levados para uma comunidade
L
utópica em um planeta parecido com a Terra, Neokosmos, onde vivem várias
etnias indígenas, a maior parte Tukano. Afinal, chega-se ao cerne da questão: as
L comunidades que foram para outro planeta, são as mesmas da Terra, a vivência se
modifica? Os peixes aparentam ser diferentes por causa das densidades e o mesmo
A ocorre com os seres humanos em relação à gravidade?
Frente a este contexto, como ocorre a criação da identidade? Cabe
ressaltar que este é um conceito amplo, por exemplo, pode ser visto como um
símbolo de alteridade ou, ao contrário, como pertencimento a um grupo. Neste caso,
trabalharemos a questão da identidade étnica, mais especificamente a identidade
• indígena na obra. Portanto, a primeira questão é: o que define uma etnia indígena
1248 como tal?
Durante muito tempo, pensou-se que a definição de um grupo étnico per-
• tencesse à biologia. Um grupo étnico seria um grupo racial, identificável
somática ou biologicamente. Grupo indígena seria, nessa visão, uma comu-
nidade de descendentes “puros” de uma população pré-colombiana. Esse
critério ainda é vigente no senso comum popular. Ora, é evidente, que a
não ser em casos de completo isolamento geográfico, não existe população
2 alguma que se reproduza biologicamente sem miscigenação com os grupos
com os quais está em contato. Segundo esse critério, raríssimos e apenas
transitórios seriam quaisquer grupos étnicos (CUNHA, 2012, p. 104).
0
A perspectiva biológica aparenta ser a premissa da obra. Mas, assim como
na vida real, em Neokosmos vivem várias etnias juntas, a miscigenação é esperada.
1 Além disso, a composição corporal é mudada para fazer face à gravidade diferente,
como atestam os personagens no início da narrativa. Então, como o corpo genético
8 e a raça não são elementos seguros para a identificação étnica, outras formas
foram teorizadas:
A noção de cultura veio substituir-se à de raça, dentro de um movimento
que se quis generoso — e certamente o foi — mas que acabou transferindo
à noção de cultura reificação semelhante à noção de raça. Mas essa não é
agora a questão: como cultura era adquirida, inculcada e não biologicamen-
te dada, também podia ser perdida. Inventou-se o conceito de aculturação e
com ele foi possível pensar — para gáudio de alguns, como os engenheiros
sociais, e para pesar de outros, entre eles vários antropólogos — na perda
da diversidade cultural e em cadinhos de raças e culturas (CUNHA, 2017,
p. 240)
A cultura é outro critério problemático, que é também utilizado na
narrativa. Isto é, ao mesmo tempo em que as tradições indígenas são colocadas
em um pedestal, também são representados como seres anacrônicos, uma cultura
parada no tempo. Não há posse emocional e intelectual dos instrumentos que são
usados na sobrevivência diária. Se aborrecer com a tecnologia, seria análogo a
renunciar o status de “indianidade”.
Muhipu era um supremo exemplo de comunidade ecossustentável. Um so-
J fisticado sistema de captação solar, construído em exóticos padrões que
faziam lembrar galhos de árvore, garantia energia para o sistema de bombe-
amento da água do rio para a vila (DODSWORTH, 2016, p. 134)
A
A falta de acesso a tecnologias essenciais ou a possibilidade de criação
L demonstra o status ambíguo dos indígenas na narrativa. De fato, acabam por
inserir-se diretamente em uma questão biopolítica. Michel Foucault comenta que
o biopoder é a capacidade de gerenciar a vida, e este é centrado em duas formas:
L Um dos polos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo
como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na ex-
A torsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade,
na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos – tudo isso
assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas:
anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco
mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espé-
cie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos
• processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível
de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que
1249
podem fazê-los varias; tais processos são assumidos mediante toda uma sé-
• rie de intervenções e controles reguladores: uma bio-política da população
(FOUCAULT, 1998, p. 151-152).
Dessa forma, os índios são utilizados como força de trabalho para guarda,
enquanto a cultura é despojada. Os personagens principais vivenciam as tradições,
mas, não possuem as mesmas responsabilidades. Podendo, caso escolham, manter-
2 se no trabalho intelectual. Porém, toda a vida é gerida para que possa servir melhor
ao trabalho. “O que fizemos foi criar microambientes controlados que copiam numa
0 versão melhorada, alguns lugares especiais do nosso planeta original. E quando falo
em ‘versão melhorada’ quero dizer sem muitos dos vírus, bactérias e protozoários
1 que nos seriam nocivos” (DODSWORTH, 2016, p. 241).
Ademais, pelo argumento da “conservação”, as etnias indígenas são
8 tuteladas, sem garantir voz ativa. Um planeta com a “tecnologia ecologicamente
correta. Animais que corriam risco de extinção, além de tribos indígenas
exterminadas, encontraram um paraíso em Neokosmos” (DODSWORTH, 2016, p.
263).
A dominação por tutela não reconhece desejo e, tampouco, capacidade de
autonomia moral do outro [...] enquanto o poder é uma ação sobre ações
(e não sobre coisas), a violência é uma sobre um corpo, sobre as coisas e
a tutela é uma forma de proteção de uns sobre outros, considerados mais
frágeis e ainda incapazes de decidirem sobre suas próprias vidas. A domina-
ção por violência e por tutela não reconhecem o desejo nem a racionalidade
naqueles que toma como objeto: respectivamente, o violentado e o tutelado
(VEIGA-NETO; LOPES, 2013, p. 110-111).
attempt to imagine the most fundamental difference of all and to project ourselves into the Novum
of a new mode of production?
uma linguagem oficial. Ademais, a maior parte das palavras utilizadas é derivada
do tronco Tupi.
Em conclusão, “Dezoito de Escorpião” parte de preceitos científicos para
abordar a questão da transferência compulsória e da identidade étnica, demonstrando
os limites do pensamento utópico e apontando a necessidade de novas maneiras
de pensar a questão indígena. Dodsworth, ao indagar a relação indígena com a
tecnologia, demonstrou como o desejo de conservação de uma cultura pode ser
J uma forma perversa de apagamento. E ao final da narrativa, encontra um desfecho
irônico, no qual Neokosmos (Novo mundo) é devolvido para os povos originários:
A “Ficou então acordado que as tribos indígenas permaneceriam no Novo Mundo.
Se a Areté realizara um grande feito, era este: as tribos supostamente extintas no
L planeta Terra estavam todas lá, em Neokosmos, herdeiras legítimas de florestas que
jamais lhes seriam roubadas” (DODSWORTH, 2016, p. 307). Terminando então,
como uma forma simbólica de reconhecer os erros dos portugueses e espanhóis.
L
Referências
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VEIGA-NETO, Alfredo; LOPES, Maura Corcini. Rebatimentos: a inclusão como dominação
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2 cio Alves da Fonseca (orgs.) O mesmo e o outro: 50 anos de História da Loucura. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
0
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A
L NATALIE BOOKCHIN E JORGE LUÍS BORGES: A LITERATURA
ELETRÔNICA E O SENTIDO DE AGÊNCIA
L
Vítor Castelões Gama (UNB)
A Verônica Maria Biano Barbosa (UNB)
RESUMO: Buscamos entender o lugar do jogo eletrônico de Natalie Bookchin,
“The Intruder”, no panorama cultural da contemporaneidade. Este jogo é uma
transcriação, nos termos de Haroldo de Campos, do conto de Jorge Luis Borges,
“La intrusa”, que ao deixar de lado a fidelidade textual em prol de uma adaptação
• criativa, modifica e transpõe o sentido original para outro contexto geopolítico.
Apoiando-nos em teóricos da literatura eletrônica como N. Katherine Hayles, Lucia
1254
Leão e Janet H. Murray é possível perceber a literatura eletrônica como difusora de
• conhecimentos e como um procedimento artístico-literário singular. Murray propõe
que Imersão, Agência e Transformação compõem uma tríade de elementos específicos
da poética eletrônica. “The Intruder” trabalha a “agência” em uma perspectiva do
contato literário eivada pelo afeto, que induz a uma “tomada” de posição do leitor/
jogador. A virada afetiva do jogo traz ao leitor um corpo marginalizado que atua
2 como uma crítica ao espaço biopolítico.
Palavras-chave: Literatura eletrônica. Biopolítica. Transcriação. Borges. Bookchin.
0
“Angustiado estou por ti, meu irmão Jônatas; quão amabilíssimo
me eras! Mais maravilhoso me era o teu amor do que o amor das
1 mulheres.”
2 Samuel, 1: 26
8
Natalie Bookchin baseou-se num conto de Jorge Luís Borges, chamado
La intrusa (1970) para criar um jogo eletrônico, nomeado The Intruder (1999). La
Intrusa é a história contada de dois irmãos, Cristián e Eduardo Nilsen que começam
a ter problemas quando o primeiro leva para casa uma prostituta chamada Juliana
Burgos. Eduardo, o segundo irmão, também se apaixona por ela, mas, em lugar
de disputarem-na, os dois resolvem partilhar Juliana. Porém, esse acordo não
cessará as tensões e, a fim de resolver o conflito, Cristián decide vender Juliana
a um bordel e dividir o dinheiro com o irmão. Todavia, a necessidade de possuí-la
permanece, de modo que cada um dos Nilson faz viagens às escondidas para vê-la.
Os irmãos acabam, então, por trazê-la de volta à casa, suscitando cada vez mais
o ciúme entre si. Finalmente, no ápice do conto, Cristián confessa ter posto fim à
Juliana e, assim, coloca fim à desavença.
Cabe ressaltar, que The Intruder não é uma adaptação completamente
fiel ao original. Isto porque a segunda obra utiliza-se da primeira para fazer uma
adaptação criativa. Nas palavras de Haroldo de Campos, a
tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação paralela, au-
J tônoma, porém recíproca. [...] Numa tradução dessa natureza, não se traduz
apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade,
sua materialidade mesma (CAMPOS, 2015, p. 5).
A
Esse tipo de tradução foi definido pelo autor como “transcriação”, pois ao
L mesmo tempo em que descontrói a história, também a reconstrói, ou seja, “traduz
a tradição, reinventando-a” (CAMPOS, 2015, p. 39).
L Traduzir é recriar, é transcrever transformando. E essa pode ser também
uma tradução cultural, especialmente a da poesia digital que circula na in-
ternet e necessita de traduções de linguagens (português, inglês, espanhol,
A francês, etc.), de criações, de adaptações, de entrecruzamentos de códigos,
de interpretações e de releituras, de conversores de softwares, de filtros de
equivalências para linguagens computacionais diferentes (ANTONIO, 2005,
p. 322).
1 Tradução nossa. No original: Because the games compel the user to enter dynamically into the
production of text, they serve to connect the user in surprisingly powerful ways to the narrative; I
found myself more engaged with Bookchin’s deliberately kitschy games than with Borges’s satirical
tale, which is dark enough to make most readers feel emotionally distanced from its brutal plot
(BOOKCHIN, 1999) Disponívelem: https://bookchin.net/projects/the-intruder/. Último Acesso em
19/01/2018
transmissível, mas é inseparável do sujeito que a sofre (TAYLOR, 2013, p.
236).
2 Tradução nossa. No original:As we will see the contemporary forms of production, which we will
call biopolitical production, are not limited to economic phenomena but rather tend to involve all
aspects of social life, including communication, knowledge, and affects. (HARDT; NEGRI, 2005, p.
101)
estado corporal e um determinado modo de pensar (HARDT; NEGRI, 2005,
p. 108).3
3 Tradução nossa. No original:Unlike emotions, which are mental phenomena, affects refer equally
to body and mind. In fact, affect such as joy and sadness, reveal the present state of life in the entire
organism, expressing a certain state of the body along with a certain mode of thinking.(HARDT;
NEGRI, 2005, p.108).
para os oprimidos ou como podem estabelecer um âmbito de resistência no qual os
discursos silenciados são ouvidos.
Referências
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caleidoscópio: reflexões sobre as novas mídias. São Paulo: Editora SENAC São Paulo,
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J ardo F. Coutinho (Org.) Tradução de Teresa Dias Carneiro. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
BOOKCHIN, Natalie. The Intruder, Web Project, 1999. Disponível em: https://bookchin.
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1 Tradução Eliana Lourenço de Lima Reis. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2013.
8
J
A
L A UTILIZAÇÃO DAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E
COMUNICAÇÃO NO ENSINO DE HISTÓRIA EM EXPERIÊNCIAS DO
L PIBID HISTÓRIA UFAC/2017
A Wálisson Clister Lima Martins (UFAC)
Maria Rosana Lopes do Nascimento (UFAC)
RESUMO: Busca-se explorar as associações entre as tecnologias da informação
e comunicação e ensino de História, estabelecidas em experiências do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid) de História da Universidade
• Federal do Acre (Ufac) no ano de 2017. Como objetivo, é pretendido compreender de
1261 que forma essas tecnologias foram utilizadas no Ensino de História pelos Bolsistas de
Iniciação à Docência (ID) do programa, valendo-se das experiências compartilhadas
• durante o recorte temporal. A metodologia utilizada será qualitativa, fazendo uso
de análise de materiais bibliográficos, artigos produzidos pelos bolsistas IDs e
entrevistas com os mesmos. Quanto à base teórica, são utilizados os textos de
BITTENCOURT (2011), PERRENOUD (2000) e artigos científicos que discorrem
sobre a temática. Defende-se a utilização das tecnologias no ensino de História em
2 auxílio no processo de ensino-aprendizagem, que, aplicadas ao Pibid, contribuem
de maneira bilateral na formação dos discentes de História e dos alunos.
0 Palavras-chave: Tecnologias da informação e comunicação. Ensino de história.
Pibid. Experiências.
1
Este trabalho decorre de um projeto em andamento, pensado nas
disciplinas de Pesquisa Histórica I e II e Trabalho de Conclusão de Curso do Curso de
8 Licenciatura em História da Universidade Federal do Acre (Ufac), sendo constituído
como uma análise da utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação na
prática do Ensino de História desenvolvido por bolsistas do Programa de Bolsas de
Iniciação à Docência (Pibid) de História da Ufac durante o ano de 2017.
De início, é importante afirmar que a construção deste trabalho não tem
a pretensão de corrigir os problemas que se percebem no Ensino de História; em
contrapartida, constitui-se como uma avaliação que procura analisar o período
de produções científicas, desenvolvidas pelos bolsistas do Pibid-História-Ufac
em 2017, no momento de formação inicial dos futuros professores de História. A
proposta aqui é pesquisar se houve a utilização das Tics no ensino de História,
nas chamadas “Aulas Inovadoras”, o termo se refere às culminâncias dos projetos
nas escolas, realizadas de acordo com o planejamento de cada bolsista, sendo,
geralmente, criadas exposições do tipo: feira, visando mostrar de forma dinâmica
aos outros alunos o conhecimento produzido durante as experiências. Entretanto,
a Aula Inovadora não consiste, per si, em uma única aula, se constituindo em um
ponto a ser levado em conta a cada planejamento e encontro com os alunos, buscando
J modos diferentes de abordagem do conhecimento histórico. Nesta, nasciam novas
ideias e metodologias diferenciadas, com o uso ou não das tecnologias. A partir dos
artigos analisados sobre as Aulas Inovadoras, objetiva-se perceber se o uso das
A
Tics favoreceu ou não a aprendizagem de ambos os alunos.
L Procura-se entenderde que forma os futuros docentes de História pensam
as novas tecnologias, e em que perspectivas as atividades propostas e desenvolvidas
nas escolas encaram/fazem uso das tecnologias informacionais, de modo a refletir
L como se encontra o processo de construção de uma educação mais dinâmica,
acessível e democrática.
A Segundo a pesquisa a cerca do acesso a internet “Acesso a internet e posse
de telefone móvel celular para uso pessoal” (IBGE, 2018) divulgada recentemente
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 116,073 milhões de pessoas
(cerca de 64,7% da população brasileira acima de 10 anos) fizeram acesso à rede
mundial de computadores no Brasil no ano de 2016, número que demonstra um
• aumento de 320% em relação à pesquisa anterior (ano de 2005, em que apenas
1262 20, 9% da população havia acessado a internet). A partir desses dados, pode-se
perceber o crescimento exponencial da utilização das TICs pelos brasileiros; os
•
estudantes não se encontram fora desses dados: em 2016, cerca de 25,78% dos
que acessam à rede são estudantes da educação básica pública e privada (IBGE,
2018).
Faria e Silva (SILVA, T., 2013) afirma a necessidade de a escola pensar
2 modelos de inserção de ferramentas comuns do cotidiano do alunado nas práticas
educacionais, dessa forma, constata-se que esse universo on-line, como exemplo
as redes sociais e aplicativos para reprodução de mídia, que permeia a vida desses
0 discentes, são ferramentas eficientes para a sala de aula, no processo de aprender.
Destarte, como objetivo geral do trabalho busca-se compreender de
1 que forma as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) foram utilizadas
no Ensino de História pelos Bolsistas de Iniciação à Docência (ID) do programa,
8 valendo-se das experiências compartilhadas durante o último ano (2017) através
dos trabalhos apresentados no V Seminário Pibid História Ufac 2017: Direitos
Humanos e Cidadania. Fazer isso impele em identificar as Tics nos projetos
elaborados pelos bolsistas, para, em seguida, analisar as formas como estas foram
desenvolvidas e, logo após, refletir sobre as implicações da inserção das tecnologias
na vida acadêmica e profissional dos bolsistas.
A metodologia utilizada no desenvolvimento do projeto será qualitativa,
constituindo-se por leitura de bibliografias que discorrem sobre as possibilidades e
reflexões acerca das relações estabelecidas entre Ensino de História e as Tecnologias
da Informação e Comunicação; seguindo para a análise de artigos no prelo (em
processo de publicação), que relatam as experiências dos bolsistas em escolas da
educação básica de Rio Branco no ano de 2017, produzidos a partir do V Seminário
Pibid História Ufac. Posteriormente, em um estudo mais aprofundado, far-se-a
entrevistas para coleta de informações, buscando explorar as práticas vivenciadas
por estes de forma mais completa.
Como bases teóricas para o desenvolvimento do projeto foram utilizados
textos de Bittencourt (2011), Perrenoud (2000), Pavanati, Pereira e Sousa (2011),
J Ferreira (1999) e vários outros artigos que procuram compreender as formas de
inter-relação entre as TICs e o Ensino de História.
A Para fins de apoio e manutenção ao desenvolvimento da carreira docente,
foram criados, desde a década de 1980 no contexto internacional, mecanismos
L de indução profissional que atuam de diversas formas, sendo, geralmente,
desenvolvidos por instituições universitárias – públicas ou não – com o apoio do
Estado. Esses programas e projetos visam sempre a resolução dos problemas que
L
têm sido encontrados em investigações acerca da profissão; sendo o exemplo mais
característico dessa situação o abandono da docência motivado pelo despreparo ou
A pela idealização construída antes da atuação do professor na escola.
Nesse sentido, foi instituído no Brasil, por meio do Decreto nº 7.219, no
ano de 2010, o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid), que
tem por finalidade o “aperfeiçoamento da formação de docentes em nível superior” e
“a melhoria de qualidade da educação básica pública brasileira” (BRASIL, 2010). O
• programa nasce em um contexto em que o Governo Federal outorga à Coordenação
1263 de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), a competência de atuar
• na formação de professores da educação básica.
A organização do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação a Docência
– Pibid, da Ufac, conta com os bolsistas de iniciação à docência, que são discentes
de cursos de licenciatura, atuam em escolas da educação básica – 5º ao 9º ano
do Ensino Fundamental e todo o Ensino Médio – sob a supervisão de professores
2 dessas escolas e de coordenadores da Universidade, que organizam o programa
e orientam os bolsistas; todos esses sujeitos recebem bolsas que variam de R$
400,00 até R$ 1.300,00, de acordo com a atribuição.
0
A intenção, no caso, é aproximar os estudantes do cotidiano docente, a fim
de fornecer uma prática docente mais completa na formação inicial, funcionando
1 o programa, então, como uma experiência complementar, que, por mais que não
corresponda ao labor professoral, coloca o licenciando em contato com os alunos
8 da educação básica. Ademais, o programa objetiva, ainda, uma articulação – e
consequente aproximação – entre asescolas, secretarias de educação estaduais e
as universidades.
Inicialmente, o programa era desenvolvido apenas nos cursos em
que tinham maior carência de professores da educação básica, como ciências,
matemática, física, química e biologia. Entretanto, quando se começou a perceber
o sucesso dessas iniciativas, as áreas de aplicação do programa foram expandidas
também para as linguagens e ciências humanas, colaborando assim para a
experiência dos discentes de outras áreas.
O Pibid no recorte de História da Ufacsurge em2012, e érenovado em
2014, a partir do edital Pibid nº 61/2013 da Capes. Nesse segundo período, a
proposta do programa renasce com enfoque na inovação metodológica e tecnológica
das práticas docentes, visando ressignificar a forma como o conhecimento
histórico é apresentado e discutido nas escolas. A alternativa encontrada para o
desenvolvimento de uma proposta que coubesse a esse objetivo gira em torno da
pesquisa como elemento presente nas ações dos bolsistas IDs e dos discentes da
J educação básica.
Desde o ano de 2016, a estrutura de organização do Pibid História Ufac
A nas escolas segue um modelo de funcionamento em que cada escola abriga um
grupo de cinco bolsistas IDs e um supervisor, que selecionam alunos da própria
L escola para participar das atividades no período do contra turno em que estudam.
Cada grupo se enquadra em uma ou duas das quatro linhas de pesquisa do
programa1, desenvolvendo uma problemática – abordada por todos que escolherem
L determinada linha de pesquisa – e uma questão de estudo decorrente desta, que é
específica a cada subprojeto.
A Ao voltar o olhar para as bases teóricas que discorrem sobre o
desenvolvimento de uma atividade docente mais dinâmica, é possível notar a
quantidade de produções acadêmicas que apontam as Tecnologias da Informação
e Comunicação (Tics) como elementos essenciais para o desenvolvimento desse
processo. O principal argumento para essa ideia é o de que o aluno deve encontrar na
• escola uma aproximação com o próprio cotidiano, e, estando este imbuído de redes
1264 sociais, produções midiáticas e conexões que se baseiam em códigos e tecnologias
informacionais, se observa a necessidade dessa interação entre o Ensino e as TIC.
•
(SILVA, T., 2013).
Conforme explicitado anteriormente em breve análise à pesquisa do IBGE
acerca do “Acesso à internet e posse de telefone móvel celular para uso pessoal”
(IBGE, 2018), percebe-se o crescimento exponencial do uso das Tics no cotidiano
2 da população brasileira, em especial dos alunos da educação básica.
Pavanati, Pereira e Sousa (2011) afirmam a divisão teórica dos que
estudam a associação entre ensino e tecnologia em três grandes grupos: o primeiro
0
é composto pelos profissionais da educação que são entusiastas às possibilidades
de interação entre o ensino e as tecnologias da informação e comunicação digital;
1 o segundo é aquele em que os profissionais evitam o uso dessas tecnologias no
ensino, dando ênfase nos riscos e problemas trazidos por essa utilização; sendo
8 o último integrado por aqueles que defendem “uma apropriação crítica dessas
tecnologias” (PAVANATI et al., 2011). Nesse sentido, entende-se ser necessário
discutir a utilização dessas tecnologias de forma crítica, tomando cuidado para
não cair em discursos criados e encorpados por empresas que se beneficiariam ao
vender equipamentos a estados nacionais, ou que indiquem um grande gasto que
não seria, por fim, recompensado, conforme afirmado por Perrenoud (2010).
2 Estruturas de terras formadas por valetas que, quando vistas de cima, formam grandes desenhos
geométricos ou mais complexos. Encontram-se em grande parte na Amazônia Sul Ocidental,
principalmente no Estado do Acre, e são entendidas como reminiscências da vivência de populações
indígenas anteriores ao século XVI.
Cardboard” – aos outros alunos na “Feira do Pibid de História” da escola anfitriã do
grupo. (MARTINS, 2017, no prelo).
O segundo exemplo vem do projeto do bolsista Fábio de Farias Soares,
que trabalha a Amazônia a partir da visão dos cronistas do século XVI. Aqui a
dinâmica do projeto consistiu no dialogo mais aprofundado com os discentes:
foram construídos mapas e jogos através de ferramentas on-line, em que os alunos
construíram um jogo com regras, cartas e um mapa da Amazônia – As regras foram
J digitalizadas, as cartas escritas a partir do editor de textos (Office Word) e o mapa
desenhado no papel e posteriormente transformado em digital através do editor
A de imagens online Canva. Como parte planejada – mas não efetivada –, tem-se a
produção de um filme de curtíssima metragem por parte dos alunos a partir do
L aplicativo Quick. (SOARES, 2017, no prelo).
Os bolsistas Jardel Silva França e Sandy Maria Gomes de Andrade entram
nesse rol para exemplificar o uso dinâmico das tecnologias não de uma forma
L
metodológica e sim técnica. Nos dois trabalhos percebe-se a criação de grupos de
interação com os alunos no aplicativo Whatsapp como ferramenta de comunicação
A com os discentes, além da utilização de mídias como filmes e músicas propostos
para a análise em aulas dialogadas.(FRANÇA, 2017, no prelo; ANDRADE, 2017, no
prelo).
São nestes trabalhos, chamados de “Aulas Inovadoras”, que percebemos
a utilização das tecnologias, não só para as pesquisas, mas para trocar ideias
• e dúvidas pelo whatsapp, produzir vídeos de finalização da pesquisa, enfim um
1267 meio de comunicação facilitador das linguagens próprias da escola e do cotidiano
• discente. Dessa forma, o aluno realizando sua própria pesquisa, sente-se parte
do processo de ensinar e de aprender; está no topo e percebe que tem as “armas”
ideais para conhecer e construir sobre o que quiser. O discente da Universidade
estará lhe dando direções que o ajudarão a entender a pesquisa e o fará perceber o
quão próximo está, este conteúdo das vivências.
2 Considerações finais
O que é a escola senão um lugar aberto a novas adaptações tecnológicas?
0 Deve-se olhar para a escola como um lugar de aprender, mas sabemos que o
aprendizado é/ou pode ser construído em qualquer lugar. A tecnologia, se utilizada
1 adequadamente, favorecerá a aprendizagem, levando a lugares qualquer, a saberes
desconhecidos.
Na primeira metade do século XXI, as crianças já nascem em meio a uma
8
cultura tecnológica, desse modo não há como professores fugirem desse universo. A
escola do século XXI, em que o conhecimento é concentrado na figura do professor,
já não traz mais segurança de saberes para os jovens; aparentemente, esse tipo
de ensinar já é considerado ultrapassado para os próprios jovens que veem na
tecnologia novas formas de conhecer, de aprender e de ser.
Espera-se que, no recorte do ano de 2017, o Pibid História Ufac, como
elemento complementar à formação de futuros docentes de História, tenha atuado
de forma a contribuir com o desenvolvimento do saber tecnológico no pensar
dos professores e alunos a partir do uso de ferramentas já conhecidas ou do
conhecimento de novas.
Referências
ALBINO, R. D., SOUZA, C. A. Avaliação do nível do uso das TICs em escolas brasileiras: Uma ex-
ploração dos dados da pesquisa “TIC Educação”. In: XXXIX Encontro da ANPAD. Belo Horizonte:
ANPAD, 2015.
ANDRADE, S. M. G.Arte(s), vida(s) e diversidade dos “povos indígenas.In: Anais do V Seminário
J Pibid História Ufac: Direitos, humanidades e História. (no prelo). 2017.
BITTENCOURT, C. M. F.Ensino de História: Fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004.
A FERREIRA, C. A. Ensino de História e a incorporação das Novas Tecnologias da Informação e Co-
municação: Uma Reflexão. In: Revista de História Regional. Ponta Grossa: UEPG, inverno, 1999.
L Disponível em: <http://www.revistas2.uepg.br/index.php/rhr/article/view/ 2087>. Acesso em: 03
mar. 2018.
J
A
Imagem 1 (00:11:48) Imagem 2 (00:12:45)
L Após esta introdução, dá-se sequência à cena homóloga ao do romance:
Juan penetra no quarto de Ramona sorrateiramente e a toca aos poucos. Esta, num
L primeiro momento, permite o contato, mas quando vê que o hóspede tira as calças
e prepara-se para uma investida sexual, tenta gritar e escapar, mas é vencida pelo
homem que a toma à força. A violência sexual é seguida do sufocamento com o
A travesseiro, a exemplo do romance, e a aparente morte da garota. Esta sequência
na casa dos anfitriões de Juan, o doutor Muniente e sua esposa, que inclui o jantar
e o acontecimento narrado, é introduzida pelo foco numa lua muito cheia, com tons
quentes, entre o amarelo, o laranja e o vermelho.
• Tal escolha imagética do diretor talvez seja uma saída para a falta do
elemento relativo ao calor, haja vista que faz frio, contrastando com o cenário
1273 argentino do Chaco presente na obra de partida. Além disso, é inevitável que
• associemos a lua a certa condição de transformação do personagem, muito ligada
ao mito licantrópico do lobisomem, isto é, a uma natureza animalesca e monstruosa
do sujeito.
2
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Tendo em vista tais marcos históricos, fica patente que a transposição
fílmica busca ressignificar o contexto histórico do romance de Giardinelli a partir
do mesmo discurso crítico contra um regime militar e opressor. No roteiro escrito
pelo próprio diretor, Vicente Aranda, ele mesmo uma vítima do regime franquista
como outros tantos artistas e intelectuais, Juan é um poeta premiado e vive na
França, onde atua como integrante de uma Comissão de Direitos Humanos da
UNESCO. Esse elemento da caracterização do personagem será fundamental no
J roteiro quando Juan estiver diante dos policiais a serviço do regime franquista.
Interessa ao regime de Franco, acusado de constantes violações aos
A direitos humanos pela barbárie lançada contra seus opositores, ter a seu favor
um escritor de prestígio como Juan, ainda mais pela posição internacional que
L este ocupa. Assim, tanto o inspetor de polícia quando o Coronel, representantes
do regime ditatorial, chantageiam Juan e o pressionam para que confesse o crime
e peça abrigo ao governo, inclusive afirmando que “Nosotros podemos probarlo
L que queremos” e ainda “No estamos en Ginebra”. A simbologia não poderia ser
mais nevrálgica: nada mais coerente que um estado psicopata tentar cooptar um
A assassino. Entretanto, tão labiríntico quando a natureza humana parece ser o
devir histórico. Apesar de o protagonista ser um criminoso, nega-se a confessar e
servir o Estado.
De alguma maneira, parece despertar em Juan, assim como em Ramiro,
uma loucura e um mal adormecidos. Tanto um quanto o outro já não conseguem
• entender para onde se movem, mas têm consciência de que não é para um lugar
1276 melhor. Na última página do romance Ramiro pensa consigo mesmo que sua maior
condenação é “[...] ser joven y estar vivo, y no poder morirni amar, enesastierras
•
de nadie.” (2014, p.158). Juan e Ramiro agem tanto como agente quanto reféns do
terror nestes espaços que se tornaram um limbo, “terra de ninguém”, cujo reflexo
é a ausência de valores humanísticos, de altruísmo. No entanto, um e outro vêm
de outro espaço, de outro tempo, e daí advém sua crise de consciência, pois há
algo dentro de si e para além de si que se nega a aceitar o regime de terror. O
2 ambiente claustrofóbico e patológico em que esta sociedade está mergulhada deixa
vir à tona o Mr. Hyde dentro daqueles que flertam com as sombras. Num dado
0 momento do filme, o espectador tem acesso ao seguinte poema de Juan “Manos
enegrecidasarañan mi alma, las sombras tienendientes y muerden.”
1 Aranda e sua equipe realizam um trabalho bastante significativo e não
menos provocador nesta adaptação do premiado romance de Giardinelli. Dada a
8 pouca atenção dada pela crítica a esta obra fílmica, bem como a rarefeita fortuna
acadêmica a respeito, em oposição à obra fonte, esta breve análise entende que
pode trazer ao campo de estudos alguma contribuição, sobretudo no sentido de
valorizar a adaptação como processo dialógico e produção autônoma. Também
entende que o romance e o filme formam um território de potencial reflexão histórica,
ambos concretizam-se em leituras inquietantes de um passado nunca totalmente
compreendido e ainda menos resolvido.
Referências
ALIGHIERI, D. A divina comédia. São Paulo: Editora 34, 1998.
FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. Disponível em lacan.orgfree.com/freud/
textosf/alemdoprincipiodeprazer.pdf. Acesso em 12/05/2018.
GALASSO, Norberto. Historia de la Argentina. Desde los pueblos originarios hasta el
tiempo de los Kirchner. Buenos Aires: Editorial Colihue, 2012.
GIARDINELLI, Mempo. Luna Caliente. 2ª edição. Madrid: Alianza editorial, 2014.
GIARDINELLI, Mempo. Novela policial y cine negro. Vasos comunicantes de la narrativa
del crimen. In: Narrativas del crimen en América Latina. Transformaciones y transcul-
J turaciones del policial. Berlim: LitVerlag, 2012, p.27-38.
LUNA Caliente. Direção de Vicente Aranda. RTVE producciones. Espanha, 2009. 90 min.
A Color. [DVD]
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J
A
L DSOPPINEJE: SISTEMA DE SAÚDE MADIJA (KULINA) E O USO DE
SUBSTÂNCIAS SAGRADAS
L
Wladimyr Sena Araújo (PMRB)
A RESUMO: Os Madija, povo indígena da família Arauá, vivem no sul do Amazonas,
região central do Acre e no Peru (fronteira com o Acre/Brasil). Madija significa gente
e desta forma os mesmos afirmam que se reconhecem pelos clãs ou gentes que
habitam estes territórios. É um povo indígena extremamente voltado ao xamanismo
que, por sua vez, é designado por eles de dsoppineje. O dsoppineje é o sistema
• de saúde e a relação central de existência destes índios, visto que é ele quem
possibilita a conexão direta do plano ordinário para outras realidades sagradas. Os
1278
Madija vivem em constante conflito entre a doença e a cura. Esta relação é mítica
• e se materializa no cotidiano das aldeias por meio de enfermidades, geralmente
causada por espíritos a mando de terceiros. Neste contexto, o xamã (também
chamado de dsoppineje) tem o papel de buscar o reestabelecimento daqueles que
estão em desequilíbrio físico e espiritual. Neste contexto, duas plantas sagradas
são fundamentais no processo doença/cura: o tabaco (sina) e a ayahuasca (rami).
2 As duas tem significados simbólicos importantes que aproxima a “história antiga”
(mito) ao mundo humano através de rituais e celebrações do sistema dsoppineje.
0 Palavras chave: Saúde – Xamanismo - Madija
Introdução
1 Os Madija, pertencentes ao tronco Aruaque, sub – grupo Arawa, habitam
o Acre, Sul do Amazonas e Peru. No Estado do Acre vivem no Alto Rio Purus e Alto Rio
8 Envira, sendo os habitantes deste segundo rio nossos principais os interlocutores
desta pesquisa situados na Terra Indígena Alto Rio Envira.
Esta investigação foi feita durante várias fases: i) ainda quando pertencia
ao Adsaba1 Núcleo de Pesquisa Teatral na década de 90 e quando ainda era estudante
do curso de História pela Universidade Federal do Acre (onde obtivemos também o
precioso apoio de Abel Kanaú – na ocasião também estudante de História, técnico
do CIMI e residente na aldeia Igarapé do Anjo)2; ii) como estudante do Mestrado
1 Palavra que significa espírito auxiliar da pajelança (ikorime dsoppineje)
2 Na minha opinião Kanaú foi um dos precursores de estudos sobre populações indígenas no
curso de História da UFAC. Seu trabalho abordando a história, o mito e os aspectos lúdicos do
em Antropologia Social da Unicamp, ao elaborar texto para disciplina intitulada
Organização Social II, ministrado pelo professor Carlos Rodrigues Brandão, que
fez a avaliação de Huaji (caminhos) que abordava a organização social da Terra
Indígena Cacau do Tarauacá, Sul do Amazonas; iii) enquanto antropólogo de
consultorias voltadas para a revisão do Estudo de Impacto Ambiental/ Relatório de
Impacto ao Meio Ambiente da pavimentação da rodovia BR 364 sub - trecho Manoel
Urbano – Feijó; iv) como antropólogo responsável pela coordenação e elaboração do
J Etnozoneamento da Terra Indígena supracitada.
Os Kulina se autodenominam Madija, que significa “gente”, sendo que
A predominam onze tipos de “gente” no rio Envira. São elas: dsomahi madija (gente
da onça), pissi madija (gente do macaco de cheiro), acomi madija (gente da piranha),
L aboro madija (gente do papagaio), ccorobo madija (gente do peixe jeiju), dsohuiji
madija (gente do macaco prego), nara madija (gente do jaci), tocodso madija (gente
do jacaré preto), aba madija (gente do peixe), jomo madija (gente do macaco preto)
L e qquere madija.
Este texto pretende apresentar aspectos da principal atividade deste Povo:
A o sistema intitulado de dsoppineje que vincula-se diretamente à saúde, mas que
é também transversal a outras áreas de conhecimento. Desta forma, o texto está
dividido em seções que tratam de suas histórias antigas e recentes, cosmologia e
dimensões xamânicas, além da ênfase destinada à relação saúde/ doença.
A noção de sistema cosmológico Xamânico
•
Para a literatura antropológica e de história das religiões, Xamanismo
1279
é o mais antigo sistema de tratamento da mente e do corpo da humanidade. O
• termo xamanismo tornou-se corriqueiro para antropólogos, historiadores e demais
especialistas que lidam com religião. O termo é oriundo dos Tungue da Sibéria.
Quem utilizou principalmente este termo foi o historiador ligado à corrente cultural
Mircea Eliade.
O xamã (saman para os Tungue), principal ator do xamanismo, é o
2 especialista do êxtase. Ele é aquele que faz a mediação do mundo ordinário com
o mundo sobrenatural, penetra no mundo dos espíritos e negocia com seres
0 sagrados em função dos humanos. Pode “viajar” para outras dimensões cósmicas
para aprender também com esses seres. O equilíbrio é uma de suas principais
1 características.
Para Mircea Eliade, xamanismo não tem como foco central o encantamento,
mas o êxtase, a forma do indivíduo se afastar do “próprio ser ou estado normal”.
8
Ele passa, portanto, a intensificar as suas sensações.
Atualmente existem duas grandes correntes para lidar com xamanismo.
A primeira está baseada na figura do xamã que pode ser reconhecido como chefe
cerimonial, profeta, sacerdote, líder espiritual, adivinho, curador, dentre outras
designações. Neste caso, o peso conceitual recai na figura do especialista do êxtase
e no papel que ele representa para o grupo.
povo Madija causaram estranheza aos acadêmicos e também a diversos professores que na época
incentivavam pesquisas embasadas em teorias marxistas e estruturalistas. A pesquisa por ele
desenvolvida consistia em uma etnografia, muito próxima a uma etnohistória.
Alguns estudiosos do início do século passado associavam o xamã a uma
figura excêntrica e mística, que faziam viagens mágicas e obtinham poderes por
meio de espíritos (LANGDON, 1992).
O poder desta figura xamânica pode ser adquirido de várias formas,
das quais os contatos com os espíritos correspondem apenas a um viés para a
construção de poder. Destacamos o uso de elementos como o tabaco e também o
uso de enteógenos3.
J Entretanto, este conceito torna-se limitado visto que alguns grupos não
detém xamã em todas as suas comunidades, mas há características simbólicas que
A são revividas cotidianamente pela prática cultural. Mencionamos como exemplo, a
feitura dos Kene pelos Huni kui (Kaxinawá).
L A segunda corrente aponta o xamanismo como um sistema coletivo na
qual o xamã é apenas um dos elementos, mas não o único. Desta maneira, a sua
L existência implica em relacionar os elementos simbólicos a momentos cotidianos e
especiais de um grupo. Ainda assim, o fenômeno está associado a várias áreas do
conhecimento humano que, por sua, vez estão inter-relacionadas e seus elementos
A podem ser visíveis ou invisíveis.
Teoricamente, podemos considerar que o xamanismo deve ser entendido
como um sistema cultural e social. Segundo a antropóloga Esther Jean Landon,
o xamanismo tem vínculos diretos com a saúde, educação, arte, política, religião,
produção e outras características de um Povo indígena. A visão, portanto, deve ser
•
mais holística e não fragmentada, ou seja, o assunto não deve ser tratado apenas
1280 no âmbito da religião.
• Langdon sustenta a sua concepção a partir da visão de cultura elaborada
pelo antropólogo norte americano e interpretativista Clifford Geertz (1979), pela
qual a mesma nada mais é do que uma “teia de significados” e o homem está
envolto à esta teia.
Desta maneira, além de ser um sistema simbólico coletivo, ele é público e
2 expressivo. O fenômeno torna-se, portanto, de extrema importância para organizar
a visão de universo e definir o lugar dos grupos frente ao mundo.
0 O xamanismo existe em todos os continentes do mundo e ocorre com
grande freqüência no continente americano. A região amazônica é fértil nesta área
1 na qual povos indígenas são praticantes da pajelança e de seus sistemas holísticos
de conjugação da realidade ordinária a extraordinária.
8 É diante deste argumento conceitual de Xamanismo que desenvolvemos
a idéia de dsoppineje como um sistema que está presente nas diversas áreas de
conhecimento dos Madija e em suas práticas cotidianas e ritualísticas.
Os Madija da terra indígena Kulina do rio Envira diante da história
Este povo está localizado na Amazônia Ocidental, mais precisamente
entre os estados do Acre e Amazonas no Brasil e parte da zona peruana. Estes são
Todos aqueles que são Madijadeni (aqueles que são gente), tem uma
• característica comportamental bastante particular. Desta forma, aqueles que são
1281 gente da onça são ferozes, agressivos e guerreiros, uma oposição, por exemplo, a
gente do peixe Jeju, com características silenciosas e quietas.
•
Os Madija pertencem à família lingüística Arauan, que inclui as línguas
Arauá, Paumari e Yamamadi, do tronco lingüístico Aruaque (RIVET, 1924;
TASTEVIN, 1938; MELATTI, 1938; NOBLE, 1965).
Durante o período de procura pelas “drogas do sertão”, eles já eram
2 mencionados e no ano de 1709, foram citados entre um dos 49 Povos indígenas
catalogados.
0 Segundo relatos, foram localizados na região do Juruá, descendo para o rio
Tarauacá, rumo aos rios Gregório e Acuraua. Esta afirmativa pode ser confirmada
nos relatórios de Francis de Castenau (1850 – 1851).
1
Nas imediações do rio Tarauacá foram identificadas outras sociedades
indígenas, dentre os quais os Huni Kuin (Kaxinawá). Eram considerados
8 extremamente hostis a aproximação dos não – índios, como registrou Tastevin
em seu relato manuscrito de 1908 e 1914 na qual estes índios haviam expulsado
brancos do rio Gregório em 1885 (SILVA, 1985:08).
Os Madija, assim como outros Povos Indígenas da Amazônia, passaram
a conviver, na virada do século XIX para o XX, com uma história de contato
extremamente violenta, brutal e impiedosa, quando os não – índios passaram a
ocupar esta região em função da atividade extrativista.
Portanto, as frentes extrativistas, tanto brasileiras como peruanas,
tinham como finalidade a extração do látex, para atender o mercado externo. O
contato destas frentes com os indígenas provocou um dos maiores massacres aos
Povos tradicionais já conhecidos na história.
Desta forma, quando os nordestinos vieram para a Amazônia, o trânsito
de pessoas nesta região foi grande. Estima-se que em 1913 cerca de 40.000 pessoas
se instalaram na bacia do Juruá e 60.000 na bacia do Purus.
Á princípio tentou-se a utilização dos índios como mão – de – obra
para a extração do látex. Entretanto, com o fracasso inicial desta experiência, os
J seringalistas começaram a observá-los como “barreiras” para a instalação dos
seringais na região.
A Logo, os patrões seringalistas influenciaram os seringueiros para
participar de expedições com a finalidade de “limpar as áreas”. Os seringalistas,
L portanto, promoveram “correrias” que eram espécies de expedições punitivas que
tinham como objetivo o extermínio dos índios.
L Á partir de 1913, os seringalistas juntamente com as Prefeituras que foram
criadas por oportunidade do Território Federal do Acre, centraram esforços para
transformar os indígenas em mão – de – obra destinada à prática do extrativismo,
A
visto o declínio da atividade gumífera.
As correrias neste momento passaram a ser praticadas não mais com o
objetivo de exterminar índios, mas de escravizá-los e revertê-los ao “mercado de
trabalho” e os índios passaram a ser “amansados”. Este segundo tipo de “correrias”
• não foi efetuado apenas do lado brasileiro, mas também no Peru.
Para Michael Taussig, as “correrias” eram formas mascaradas de prender
1282
o índio a um trabalho imposto, que “não podia” ser caracterizado como escravidão.
•
Com o “amansamento”, os índios, que antes habitavam o centro da mata,
passaram a morar nas margens dos rios. A passagem do centro à margem é marcada
pelo deslocamento e fragmentação espacial. Neste sentido, os Madija tiveram que
se adaptar a uma nova forma de vida (ALTMANN, 1994),
Á princípio, como os Madija conheciam a mata, foram usados como
2 mateiros para localizar áreas, fornecer produtos da mata como caça, pesca, frutos
e, por fim, acabaram virando seringueiros.
0 Com a crise da produção extrativista, muitos seringais foram
desestruturados. É diante deste contexto que foi intensificada a mão – de – obra
1 indígena.
A partir de 1950 em diante o látex sofre declínio fazendo surgir o “pequeno
8 camponês seringueiro”, que vendia a borracha e a produção agrícola ao regatão4.
O regatão também passa a entrar na economia destes índios quando estabeleceu
troca de produtos naturais por industrializados como sal, querosene, tecidos,
munição, dentre outros (ALTMANN, 1994).
O avanço da frente extrativista foi apenas um dos motivos que auxiliou
o processo de dizimação indígena. Com a entrada, surgiram outros problemas que
4 Regatão ou marreteiro é um tipo de comerciante que com um pequeno barco subia e descia os
rios vendendo mercadorias e comprando borracha, galinha, porcos e outros produtos.
afetaram os Madija, dentre eles as doenças externas, a dependência de mercadorias
e mudanças na organização social interna.
Destacamos que a entrada dos primeiros grupos no rio Envira se deu
pelo igarapé Cumaru, um dos afluentes do Jaminawá (tributário do rio Envira).
Aparecem também os locais de morte dos principais representantes e também
períodos de delimitação das Terras Indígenas Jaminawá e Kulina do Envira. Este
igarapé é importante do ponto de vista histórico porque foi local de moradia das
J primeiras lideranças deste povo na região e onde muitas delas faleceram.
Antes de se fixar em atuais aldeias às margens do rio Envira, foram atraídos
A para trabalhar no seringal Califórnia Os Madija construíram malocas em aldeias
nas imediações deste seringal e lá instalaram os seus roçados. Porém, começaram
L a adquirir hábitos dos cariú5 que incluíram alimentação industrializada, uso de
vestimentas e utilização de ferramentas que não faziam parte de sua cultura.
L Durante a década de 70, grandes fazendas foram criadas na Amazônia
com o propósito de desenvolver as atividades econômicas agrícolas e da pecuária.
Os Madija foram afetados, uma vez que os mais velhos chegaram a trabalhar
A na Fazenda Califórnia (instalada na década de 70 no alto rio Envira) limpando
áreas, abrindo picadas e realizando caçadas e pescarias para suprir os peões e
administradores com proteína animal.
As histórias antigas e o começo de tudo
• Na visão dos Madija, o mundo foi criado por dois heróis mitológicos:
Quirá e Tamaco. O primeiro, mais velho, passava o tempo todo ensinando o mais
1283
novo a como usar os seus poderes. Esta relação de transmissão de conhecimentos
• é observada também na atividade de pajelança.
Os heróis mitológicos foram os responsáveis pela criação de plantas,
espécies de animais e outras raças de gente indígenas e não – indígenas. Os
elementos que compõem este plano foram resultado da construção primordial.
Os Madija dividem o tempo em histórias antigas e histórias recentes. As
2 primeiras dizem respeito ao tempo dos avós e são as histórias de criação dos heróis
mitológicos, dos seres míticos, lugares e elementos sagrados. No que diz respeito à
0 história dos tempos primordiais, existe uma confluência do tempo e espaço.
É comum se referirem ao mito como a “história antiga” ou “história de
1 nossa gente”. Na verdade, além das narrativas dos tempos primordiais, existem
outras mais atuais onde está incluído o contato e outros eventos mais recentes.
8 O ato de narrar ou contar, é uma forma de atualizarem o mito, os eventos
históricos e de se afirmarem no mundo. As histórias são tão importantes, assim
como a terra e as atividades de pajelança que também são vitais para esta sociedade.
Na narrativa mítica de criação do mundo Madija não há uma ordem
cronológica linear. Esta é uma das características de algumas sociedades indígenas.
O mito da criação (história antiga) deve ser visto como um enorme
processo de mutação, com novos elementos que passam a ser incorporados. Há
várias fases do tempo mítico manifestadas na narrativa de criação. Neste sentido,
6 Entidade mítica dotada de poder que destruiu a aldeia mítica do povo após a morte de seu filho
por estes.
Aqui onde vivemos é chamado de nami. É onde nascemos, crescemos,
morremos e mantemos uma relação com aquilo que nos cerca como plantas,
animais e até mesmo pedras. Existem vários lugares que são ocupados, para o uso
da terra, para os animais, para os peixes, e assim por diante.
O que está acima do nami ou mundo posterior às nuvens é chamado de
patsô dsamarini. Ele é um lugar formado, em sua maior parte, por água. É dali que
se origina a chuva.
J Em seguida encontra-se o memé tsuení ou céu azul escuro e, mais abaixo
o memé etsení, que em oposição ao memé tsuení , é bastante claro e com ventos
A fortes. É o memé tsuení que moram os mesué codé, ou aqueles que vivem no céu
como o urubu, o jaburu e outros pássaros que tem a carne ruim.
L Lá em cima está o patsô dsamariní ou memé huaji, onde moram os heróis
mitológicos da criação. Residem lá também Maji que para os moradores do Igarapé
L do Anjo está relacionado ao sol. É um ser que tem as cores do arco – íris. Há
também o Ttottorodé, espécie de anta mítica que produz o relâmpago pingando
gordura sobre a fogueira.
A
Na parte de baixo do nami encontra-se o namibudi ou interior do chão. O
que se passa no nami ocorre também no namibudi. Portanto, se há roçado no nami,
há também no namibudi e assim por diante. Mas há uma diferença fundamental: é
no namibudi que vivem as almas, os espíritos.
• É neste mundo que se encontram as almas de animais como o tatu, o
javali e outros que fazem parte do cotidiano. Moram também as almas das pessoas.
1285
Estas levam vida idêntica à deste plano.
• Mais abaixo está o namibudi inami-ká, que é escuro e desabitado e,
finalmente, o hua – hohopadé dsa, uma região seca e deserta onde nunca há noite
e onde moram os espíritos ruins.
Os mundos apresentam posições e discursos diferentes. Se no memé
huaji vivem Quirá e Tamaco, aqueles que criaram o mundo e outras entidades
2 consideradas como boas, no último mundo abaixo do nami localizam-se os espíritos
ruins ligados à destruição.
0 A água do plano acima das nuvens é sinônimo de fertilidade, contrário
ao hua – hohopadé dsa onde a seca indica infertilidade. Tanto a fertilidade quanto
1 a infertilidade interferem diretamente no nami, o plano onde vivemos e estão
diretamente relacionados a estes dois espaços.
8 Há também uma oposição entre o memé tsuení e o namibudi. No primeiro,
a carne é ruim de caça. O segundo indica a carne boa para a caça e reflete a
relação mais íntima dos Madija que vivem no nami com o seu duplo: o namibudi.
A carne boa, portanto, está relacionada à saúde enquanto a carne ruim refere-se à
impureza. A carne boa é comida enquanto a carne ruim não é.
A ligação entre esses dois mundos marca a relação de sobrevivência
dos Madija pois é para o namibudi que vão as almas dos animais. Estas voltam
materializadas, através do pedido do dsoppineje, quando a aldeia precisa de
alimento.
Conforme será visto adiante, a carne boa relaciona-se à cura, pois o
dsoppineje não vai buscar a cura em algum espírito de animal que pertence ao
memé tsuení pois sujeira não limpa sujeira. Portanto, os espíritos de animais vindos
do namibudi são considerados limpos e são chamados para extrair impureza. É a
carne desses animais que alimenta e mantém com saúde os Madija.
Daí a importância do dsoppineje em estabelecer uma relação mais íntima
com o namibudi pois é nele que vai haver alianças com os espíritos para proveito de
alimentação e saúde. Desta forma, como as almas ou espíritos sobem para darem-
J se limpos e serem comidos, também tiram a sujeira e realizam a cura. Por isso, a
relação entre nami e namibudi.
A Sistema cosmológico Dsoppineje
O dsoppineje deve ser observado como um sistema que está relacionado
L ao contexto coletivo das aldeias indígenas no Alto Rio Envira. Desta maneira, ele
manifesta a visão de mundo do mito de origem tão peculiar deste povo indígena por
L meio de suas manifestações simbólicas e sócio – culturais as quais incluem rituais,
festas lúdicas, política, saúde, educação, arte, uso dos recursos naturais, dentre
outras. Logo abaixo, vamos mencionar alguns exemplos desta afirmativa ao tratar
A
da saúde, educação e uma cerimônias expressiva desta cultura: o tokorime.
Na medicina dsoppineje não há fronteira entre homem e natureza, mas
uma integração entre todos os seus aspectos. Neste mundo, o nami, os Madija
vivem da relação doença/saúde e desequilíbrio/equilíbrio. A saúde é chamada de
• dsoppineje, assim como esta palavra serve também para designar os especialistas
tradicionais de saúde.
1286
A saúde ou dsoppineje permeia toda a vida deste Povo. Ela pode ser
• encontrada nas boas caças (que servem para suprir a aldeia comproteínas), estão
nas águas (rio Envira, igarapés, lagos, poços e cacimbas), nos peixes que servem
para a dieta, nas plantas comestíveis, nos ikorimes (almas) e em outros aspectos da
vida cotidiana e extra – cotidiana.
Os moradores do Igarapé do Anjo comentaram que antigamente todo
2 homem era dsoppineje (pajé). Hoje, os homens que não são iniciados para assumir
este papel são considerados “domados”, foram “domesticados” e não adquiriram
0 as características dos seres míticos (heróis mitológicos, avós onça, massosso e
ikorimes).
1 O dsoppineje, em sua atividade, “busca a mata” porque ele “voa para
longe” para negociar com as almas. Negocia, principalmente, a cura, a saúde
8 daqueles que estão doentes. A cura estabelece uma performance ritual (ARAÚJO,
1993, 1997), na qual especialista do êxtase se torna um dos atores cruciais no
processo de mediação dos mundos e na reativação dos símbolos primordiais.
O “buscar a mata” fica bastante manifestado em um ritual de cura
quando o dsoppineje transforma-se na alma ou espírito e através da dança e gestos
a manifesta.
Geralmente voltam com formas de animais e em raros casos como ikorime
que são provenientes do mundo subterrâneo. É lá que o dsoppineje vai negociar
com o espírito para a cura.
É dito que há uma permuta de ikorime (alma) que passam por um buraco
próximo dos roçados para alimentar os Madija ou para curá-los através de alianças
estabelecidas entre o dsoppineje e as almas. Esses buracos por onde ocorre esta
troca entre o ikorime de animais ou pajés antigos com a do dsoppineje para o
mundo subterrâneo são chamados de dsacatana.
Se as almas vem através destes caminhos. É para lá que vão os dsoppineje
por meio do tabaco. O tabaco é importante para este Povo e pode ser inalado,
fumado ou mascado.
J O tabaco é um produto de uso diário e, constantemente, dsoppinejes
ou outros homens da aldeia fixam-no no lábio inferior. Porém, existe uma grande
A diferença entre cheirar o tabaco cotidianamente para fazê-lo extraordinariamente,
pois, é através dele que entidades e ikorimes podem ser chamadas para curar
L porque ele propicia uma via de comunicação entre este mundo que habitamos e o
mundo em que moram os espíritos.
L Ao mesmo tempo em que o dsoppineje está buscando o espírito através
do tabaco, o seu corpo vai tomando a forma da entidade chamada. O seu corpo
passa a se relacionar com o movimento dos animais para a extração do dori.
A
O dori contém diversos significados, dentre os quais o feitiço. Ele está
ligado à parte da narrativa da história antiga na qual os dois heróis mitológicos
mataram o filho de massosso. É daí que tem início o surgimento da tragédia deste
povo pelo fato do assassinato do filho desta entidade da mata e pela destruição da
aldeia mítica. Outras tragédias humanas vieram na sequência e são vistas até os
•
dias atuais.
1287
O dori é uma substância que permeia todo o corpo do dsoppineje. Tê-lo é
• forma de garantir poder pois introjetar dori no corpo equivale a garantia de viagem
a outros mundos correspondentes ao plano mítico acima ou abaixo do nami.
Quando é materializado, ele pode ser uma pedra, um pequenino pedaço
de pau, uma unha de tatu ou de outro animal, que pode ser colocado no abdômen.
O dori pode tirar a vida de uma pessoa rapidamente.
2 Em resumo, ele é uma substância ambígua que se concretiza e cresce
no corpo do dsoppineje, pois, quando massosso foi transformada no dori, a sua
0 cólera antes de sua transformação no dori está associada a morte de seu filho pelos
criadores. Portanto, tendo a substância no corpo o dsoppineje pode curar, mas por
1 um ato de traição (como manifestado na história antiga) pode matar.
Na verdade, Tamaco e Quirá domesticaram o dori. Seguindo os passos
8 dos criadores, os dsoppineje necessitam domá-lo para voar para longe. No processo
de iniciação xamânica é necessária uma preparação que envolve um processo de
treinamento no qual os homens jovens são iniciados por um homem mais velho. É
nesta transmissão de poder que o iniciando aprende a dominar a substância, como
nos tempos primordiais.
A iniciação está ligada ao tabaco e ao dori. O primeiro é introjetado
através de sopros no nariz do cahuahiji (iniciando na arte da pajelança). Além
disso, constantemente o cahuaniji passará a utilizá-lo no dia – a – dia e em contexto
“extraordinário”.
O uso do tabaco relaciona-se ao fragmento da história antiga relacionada
à onça. Sendo assim, a canela – de – velho7 mencionada na narrativa, é bastante
usada no rito de iniciação. A árvore está ligada a mistura que o dsoppineje faz do
tabaco e das raízes desta árvore para alçar vôo e, associado à onça que representa
um símbolo de poder. Resta lembrar que as onças eram avós de Tamaco e Quirá,
na história antiga.
Como já foi dito, o dori está ligado ao ato de Quira o introduzir no corpo,
absorvendo os poderes de massosso. No caso dos iniciandos, a adolescência
J constitui o período ideal para realizar a transmissão de poder onde são repassados
aos cahuaniji dois tipos de dori: o noma e o Koronaua.
A O noma ajuda o jovem durante o processo da aprendizagem xamânica.
O koronaua o ensina o caminho do bom canto. O canto, bem como a dança são as
L formas mais poderosas de manifestação dos dsoppineje madija diante dos humanos
e dos ikorimes.
L O processo que leva um madija da fase de cahuaniji a dsoppineje pode
ser iniciado também durante a vida adulta. Este aprendizado entre adolescentes e
adultos pode demorar aproximadamente um ano.
A
Para chegar a ser um dsoppineje o cahuaniji obedece as seguintes
restrições: a) dieta alimentar – com proibição para alguns alimentos que podem
quebrar a iniciação e a consolidação de dori em seu corpo; b) abstinência sexual
– para eles a perca de sêmen implica na diminuição de poder. Por isso, os Madija
acham a adolescência a fase ideal para o treinamento, pelo motivo dos rapazes serem
•
solteiros e poderem ser controlados por normas que proíbem a relação sexual; c)
1288 proibição à jogos, festas e brincadeiras – visa buscar o lado mais selvagem e menos
• sociável da aldeia. Por isso, são isolados em lugares distantes da aldeia e roçados
(espaços de sociabilidade), para o interior da floresta.
Estes jovens aprenderão com os mais velhos as formas e os caminhos
que podem levar a outros mundos (mais precisamente ao namibudi) e a fazer o uso
do dori adequadamente, pois o emprego inadequado da substância pode colocar
2 em perigo indivíduos e toda a comunidade.
Aprendem ainda a utilizar o: a) rami (ayahuasca). Ela serve como
0 ferramenta para que os iniciandos e os pajés entrem em contato com o mundo dos
espíritos; b) sina (tabaco torrado junto à outra substância). O sina é introjetado no
1 nariz do cahuaniji através de um longo canudo feito de taboquinha pelo dsoppineje.
Esta ação possibilita que ele se aproxime do mundo dos espíritos.
Destacamos que os conhecimentos são transmitidos através da oralidade.
8
Neste sentido, os mais velhos são responsáveis pelos ensinamentos aos mais
novos e isto acontece desde os tempos das odsa beje (malocas antigas). Logo,
contar história antiga é uma forma de repassar o conhecimento dos avós, daqueles
que viveram nos tempos antigos, no começo do mundo. Ouvir a história antiga é
aprender e narrar é uma forma de manter viva a memória deste povo.
Os Madija têm um grande respeito pelas histórias antigas. Ela é
fundamental para continuar ligando este Povo com os seus ancestrais e seres que
7 Canela de velho recebe o nome científico de Miconia albicans e é uma planta que pertence à
família das Melastomataceae.
estão em outros mundos. Ensinar aos mais novos é uma arte que já aparece no
mito de criação, quando Quira ensina e transmite para Tamaco os seus poderes
mágicos.
Existem outras formas de passar conhecimento. Ele está presente nos
afazeres da aldeia como cozinhar, caçar, pescar, preparar e tirar o roçado, andar
na mata, fazer medicina ou ainda aprender a tirar o dori. Este tipo de educação
encontra-se fora do domínio da escola e está inserida no dia a dia dos Madija.
J Portanto, toda lógica que envolve o repasse de conhecimentos é chamado de
papehuahua.
A Logo, O processo de iniciação de um cahuaniji para se tornar dsoppineje
também é papehuahua porque ocorre a transmissão de conhecimento ancestral
L na qual o primeiro vai ser treinado para lidar com as doenças que pertencem ao
quadro simbólico e cultural deste povo.
L Destacamos que há dois tipos de doenças: as exógenas e aquelas que
fazem parte da cultura. Logo, são várias as doenças trazidas pelos “de fora” e a
lista inclui gripe, sarampo, catapora, tuberculose, coqueluxe, gonorréia, hepatite,
A pneumonia, vaginite, catapora, malária e crista de galo. Há também sintomas para
uma série de doenças detectadas que envolvem a febre, o vômito e a diarréia. Por
isso que ao serem consultados podem indicar os sintomas como doenças porque
não tem o conhecimento sobre as doenças de cariú.
O contato com os cariú fez com que Madija morressem devido o contágio de
•
doenças até então desconhecidas por eles. Muitos daqueles que foram amansados
1289 para trabalhar no seringal Califórnia e na fazenda Califórnia padeceram.
• Existem vários tipos de doenças. Sendo assim, a febre, as doenças de
pele ou infecções intestinais são considerados “sintomas normais”, havendo um
reconhecimento público de que o enfermo não foi vítima de raiva, inveja, motivos
ruins e espíritos malignos, mas que naturalmente adoeceu.
A gripe, o sarampo, a catapora, as doenças dentárias e venéreas são
2 designadas como doenças de cariú. Estas podem ser tratadas com ervas através de
chás, banhos e massagens. Fora essas técnicas tradicionais, os Madija aprenderam
0 a conviver com os remédios alopáticos no tratamento de enfermidades. Atualmente
algumas dessas doenças são contraídas na sede dos municípios com destaque
1 para as doenças venéreas que constituem forte ameaça para a integridade física
dos moradores das aldeias.
Na categoria êmica há duas doenças que são legitimadas por eles:
8
o epetuka´i e o dori. Logo, há intervenção direta do conjunto de dsoppineje das
comunidades sobre estas duas enfermidades.
O epetuka´i é uma doença exclusiva de bebês. Ela é decorrente da quebra
de tabus alimentares, problemas familiares como discussão entre homem e mulher,
relacionamentos extra – conjugais e fracasso de um genro na obtenção de alimentos
para o pai da esposa.
Esta doença é caracterizada por uma enfermidade no sistema digestivo
da criança, marcada também por dores intestinais e diarréia. Existem casos de
ocorrência de vômito no pequenino bebê.
O dori, por sua vez, é também considerado como uma doença. Ele afeta
adultos e nunca a crianças pequenas e bebês. Os adultos contraem o dori por
hostilidade de um dsoppineje. No caso de crianças ficarem doentes, é dito que
foram alvo de dori por inveja, raiva e outros fatores que recaem sobre seus pais.
Esta doença pode estar concentrada em qualquer parte do corpo, pois,
qualquer enfermidade dentro deste contexto de retaliação é considerado dori e, toda
a comunidade é consciente disso, porque este é um tipo de doença completamente
J diferente das demais.
No ritual de cura, seja ele do epetuka´i como no dori, o dsoppineje vai
A buscar as almas com poder para curar. Ele vai ao namibudi negociar com os
espíritos a sua vinda.
L Desta maneira, ele pode voltar transformado no jidsama tokorime, isto é,
um queixada, que para os membros do grupo é o reflexo de sua vida em sociedade.
L O queixada anda em bando e é para o seu corpo que vai a carne dos Madija
quando eles morrem. Estes tokorimes representam o lado feminino e delicado deste
povo.
A
Ao contrário do jidsama tokorime, o dsumahe tokorime ou espírito da onça,
manifesta justamente o oposto, ou seja, o lado agressivo, solitário e masculino,
referindo-se ao caçador predador e indomável.
A cura é geralmente executada durante o período noturno, para o espírito
• obter uma visão melhor do objeto introduzido no corpo do enfermo, pois a luz do
dia pode atrapalhar a visão do feitiço. Ao passo que a alma não consegue extrair
1290
o feitiço, há retorno para a mata para a vinda de outra e assim sucessivamente,
• marcando uma sequência de buscas e tentativas que pode chegar a durar de horas
a dias, onde estas tentam, através da sucção, extrair o dori. De acordo com a cor
do feitiço, o dsoppineje poderá dizer o grau da doença e se o paciente viverá ou
morrerá.
Quando o dori é extraído, o espírito ou alma salta e dança aceleradamente,
2 mostrando-o aos demais integrantes da aldeia. Festejam e são legitimados pelos
que assistem à cura.
0 Após a extração do dori, o paciente deve tomar automaticamente
banho com água fria, para desprender-se das marcas dos resíduos impuros que
1 podem estar contidos sobre o seu corpo. Enquanto isso é servido coidsa (bebida
fermentada de mandioca) para o ikorime que se encontra no corpo do dsoppineje.
8 Esta bebida pode ser apresentada simbolicamente para ela também através de
canções entoadas, principalmente, pelas mulheres.
O tratamento aplicado para a cura pode ser contínuo ou não. Se contínuo,
o dsoppineje ou conjunto deles permanece até o momento em que o dori é extraído,
não importando o tempo de duração. Isto é mais freqüente nos casos mais graves.
Se não é contínuo, o paciente poderá ser consultado de forma alternada,
ou seja, não terá o atendimento do dsoppineje todos os dias. São os casos menos
graves que podem ser executados desta forma.
Os Madija acreditam que o poder é construído culturalmente visto que
nenhuma pessoa nasce dsoppineje, mas se torna através da iniciação, onde a
substância de poder dori é colocada no corpo dos cahuaniji. Aos poucos, os mais
experientes passam o seu poder para aqueles que estão aprendendo.
Esta passagem se dá apenas entre homens, embora haja fraca incidência
de mulheres a se tornarem dsoppineje após a menopausa, mas é uma possibilidade
remota. Não ouvi nenhum relato a respeito da existência de mulheres exercendo
este tipo de atividade em aldeias da Terra Indígena Kulina do Alto Rio Envira.
Há uma importância na continuidade desta atividade para a sobrevivência
J deste povo e de sua cultura, por isso a iniciação é extremamente respeitada entre
eles. Neste contexto, qualquer homem adulto pode ter esta habilidade podendo
A gerar desconfiança para com aqueles que são mais afastados da comunidade.
Quando o dsoppineje causa algum mal, jogando o dori, logo é acusado
L por outro especialista. Portanto, cura e acusação caminham juntas, pois ao passo
que ocorre a recuperação física e espiritual torna-se sua a responsabilidade de
L indicar a origem do feitiço e quem cometeu o ato8. Portanto, a acusação fornece a
este ator grande prestígio diante da comunidade ao passo que a informação pública
pode provocar cisões no âmbito das comunidades.
A
A confirmação da desconfiança deste agente como causador de infortúnios
produz rupturas, ocasionando o afastamento de famílias e a construção de colocações
ou mesmo aldeias distantes de onde houve a delação pública. É claro que a acusação
sobre uso do dori não é o único fator para as cisões comunitárias. As relações extra
– conjugais e mortes a parentes constituem duas outras características.
•
Existe também outro motivo de mobilidade que diz respeito ao tabu
1291
referente ao enterro de um parente nas imediações de uma aldeia. Para eles há
• uma crença sobre a improdutividade do solo. Na concepção local, a terra torna-
se impura, manchada e suja de sangue. Ainda assim, enterrar um corpo próximo
da área onde moram os coloca em uma situação complexa de medo do ikorime do
morto que passará a rondar as imediações de onde vivem.
Existe dsoppineje em todas as aldeias. Entretanto, não houve clareza
2 de quantos e quem são, visto que este é um assunto reservado. É um segredo
guardado e respeitado, embora a grande maioria tenha passado por ritos de
0 iniciação, especialmente os mais velhos.
Para celebrar a cura é realizado um tokorime (festa das almas). É neste
1 contexto que os Madija chamam os ikorime (almas) para dançar. São festas onde
é possível encontrar de maneira mais clara o manaco. Ele é uma espécie de troca
e reciprocidade que é encontrado em qualquer atividade da sociedade. Além das
8
celebrações relacionadas à cura pode ser visto em festas, jogos, relações familiares
e atividades cotidianas. Mas extrapola tudo isso porque até mesmo pequenos gestos
como o sorriso ou aperto de mão podem ser considerados manaco. Ainda assim, a
dança, a pintura, a música são trocas entre os homens, mas podem ser também
troca das pessoas da aldeia com as almas.
O tokorime é efetuado em momentos especiais, principalmente após a
cura de algum enfermo. Parte da estrutura desta festa é parecida com o ritual de
8 É digno de nota que o dsoppineje pode jogar o feitiço, embora possam ocorrer casos de solicitação
destes aos ikorimes (almas) para que lancem o dori a terceiros.
cura, quando as almas são chamadas para curar. A diferença é que no tokorime os
ikorime são convocados para celebrar a vitória da saúde sobre a doença e do bem
contra o mal.
Todavia, para a sua celebração, ocorre uma detalhada preparação. Em
primeiro lugar, é necessário que os homens se desloquem durante o dia para coletar
palhas da palmeira jarina. Essas palhas são desfiadas durante o crepúsculo,
momento ideal para a confecção do jajacca, roupa dos ikorime, que consistem na
J parte inferior, feito de um saiote e o superior, cobrindo da cabeça à cintura, o corpo
do dsoppineje.
A Após a confecção das roupas, é feita a sua distribuição nos caminhos dos
roçados. Há a crença de que são os buracos sagrados, localizados entre os roçados
L e o pátio da aldeia, que ligam este mundo (nami) ao mundo subterrâneo (namibudi).
É para estes buracos que os dsoppineje vão se encontrar com as outras almas
debaixo da terra e é de lá que vem os ikorime para “brincar” com os Madija.
L
Do roçado é extraída a mandioca ou poho para ser feita bebida para ser
consumida durante a festa. A mandioca é retirada pelas mulheres e levada em
A cestos chamados de qquiqui. Os qquiqui são confeccionados com a palha da jarina
ou da palmeira ouricuri.
A bebida é feita em panelas de barro e o fogo abanado com caccade
(abanador), feito de palhas de murmuru ou jarina. Ela é servida em cabaças (pajo)
de jamaru. Nela é servida também paso (água). São confeccionadas também a
•
tinta de dsipa (jenipapo) e do urucum para a pintura dos participantes durante a
1292 cerimônia.
• A festa tem início quando um grupo reduzido de mulheres entoa cantos
chamando as almas para “brincar”. Aos poucos, a cerimônia vai sendo ampliada
com a incorporação de outras mulheres e, finalmente, homens. Estes cantam e
dançam em semi círculo ou aliadas a uma fileira, olhando para a mata à espera
das entidades.
2 No ritual de cura, as mulheres cantam evocando os espíritos e entidades
a virem pelos caminhos sagrados para efetuar uma boa cura. No caso do tokorime,
0 serve como um incentivo para que estes venham para o pátio da aldeia se divertir
com a comunidade. Há várias canções pela qual as mulheres chamam as almas
1 para ficarem diante delas e para mostrarem-se aos demais componentes da
comunidade, como um ato de estabelecer alianças com o grupo.
Na mata, os dsoppineje vestidos com o ssajará feito de jarina, chamam
8
as almas pacientemente através de assobios, com as mãos em forma de concha.
Ele negocia a vinda das almas para o pátio da aldeia, mas para que este ato seja
completado, é necessário que o dsoppineje tome o seu lugar, até que a mesma
retorne para o namibudi.
Entidades que vivem no memé ou mundo do alto, dificilmente participam
deste tipo de cerimônia ou mesmo da cura. Desta forma, a onça com características
solitárias, selvagens e fonte de inspiração para os dsoppineje e cahuaniji não vem
para “brincar”. Na cura, por ser mais poderosa, a onça só pode curar dsoppineje.
Seu poder curador pode matar pessoas comuns e que não estão preparadas para
o seu contato.
Vem para “brincar” o jidsama ikorime (alma do queixada), ikorime madija
(alma de Madija que já morreu). Ambos aparecem em grupo. O primeiro, por andar
em bando e representar o espírito da coletividade. Os segundos pertencem ao grupo
daqueles que foram iniciados e, apesar de terem características individuais devido à
construção de poder, passaram a maior parte da vida convivendo em comunidade,
J especialmente após o casamento, quando foram “domados” pelas mulheres.
Chegam também outras almas de animais como a cutia, a paca e também
A vários tipos de macacos (jomo), especialmente o jomo pissi (macaco de cheiro) que
provoca risos e correrias entre os presentes. Este é um dos grandes momentos de
L descontração da festa onde é desfeito o círculo da dança, a canção é interrompida,
há grande algazarra de mulheres e crianças, os velhos contam piadas e os homens
fazem provocações.
L
Os espíritos que compartilham a festa trazem o seu próprio alimento. Na
verdade, são folhas da mata que são trazidas na mão ou amarradas na cintura dos
A ikorime.
A festa geralmente é retomada com mais intensidade e com canções cada
vez mais surpreendentes. Para auxiliar o belíssimo canto, são usados totore (espécie
de flauta doce) feita de taboquinha. O totore é usado também em várias festas e na
vida cotidiana da aldeia. Quando um homem madija sente falta de alguém, toca
•
totore para lembrar a pessoa e dos bons momentos que conviveram. Assim um
1293 marido toca a flauta para a ausência da esposa, um amigo para outro ou mesmo
• para aqueles que já se foram. O totore é, portanto, um instrumento de comunhão
nas festas, mas é também aquele que representa as lembranças mais íntimas.
Nesta festa, o casco do dsanecoá (jabuti) tem um papel fundamental. Ele
é uma espécie de banco que os ikorime identificam para várias funções. É nele, por
exemplo, que um madija pode ser identificado como portador de dori. Sobre o casco
2 o bebê é curado de epetuka´i. Do casco do dsanecoá pequeno é confeccionado o
tottoke, um instrumento musical importante nesta festa e outras celebrações.
0 É nele que um jovem pode aderir a se tornar um cahuaniji. Em 2011,
notamos a aceitação de Aniba, jovem da aldeia Igarapé do Anjo para se tornar um
1 iniciando quando os ikorime que foram participar da festa introduziram dori em
seu corpo. Este foi o primeiro passo para a reclusão dele na mata onde teve que
passar por dieta alimentar e abstinência sexual e social.
8
Ainda na festa, os ikorime são chamados para identificar enfermidades.
Desta forma, eles acusam a doença de dori nos adultos, indicando a estes a
necessidade de tratamento através de um dsoppineje.
Da taboquinha é feita também o canudo para a inserção de sina. O sina,
usado também na cura e no dia – a – dia é feito com as cinzas do toniro (canela de
velho) e tabaco. Este é soprado, causando forte torpor àquele que o recebe. Este
instrumento é chamado de jajappo.
O sina pode ser inalado individualmente através do uso do osso do
mutum. Este é soprado, alcançando as vias nasais. Ambas as cinzas misturadas
(canela de velho e tabaco) servem para que o dsoppineje entre em contato com o
mundo dos espíritos.
A celebração do tokorime atravessa a noite. Ao mesmo tempo em que as
“brincadeiras” celebram a vitória da saúde sobre a doença, ela tem um aspecto
de continuidade do próprio sistema por meio de cura de bebês, detecção de
enfermidades e localização de potenciais cahuaniji.
Considerações finais
J
Os Madija associam o mundo em que vivem e as histórias recentes
com tempo histórico (datadas e permeadas de contato com nosso mundo) com as
A histórias antigas ou dos avós (tempos imemoriais).
Revivem o mito pela expressão dos símbolos que permeiam seu cotidiano
L e seus rituais e cerimônias sagradas e reafirmam as histórias antigas nas suas
mais diversas instituições sociais e nas áreas de conhecimento daquele povo.
L O sistema dsoppineje é a expressão máxima desta cultura. Nesta sociedade
tudo gira em torno das relações assimétricas deste mundo com os ikorime (espíritos)
A e com os seres sagrados que fazem parte de seus planos míticos e simétricas das
relações entre os homens e de suas ações que remetem ao sagrado, especialmente
o lançamento de dori pelos dsoppineje.
Ao mesmo tempo em que admitem a coletividade deste fenômeno,
reconhecem a importância da figura do dsoppineje, que cura, acusa e pode jogar
• dori (feitiço). Se o dsoppineje enquanto sistema existe é porque consideram o xamã
1294 (dsoppineje) como seu principal ator.
O dsoppineje enquanto sistema é encontrado na saúde. Porém, não é
•
restrito a ela. Ele atravessa todas as áreas de conhecimento deste povo e para
compreendê-lo é preciso aceitar a idéia de que ele está presente na educação,
política, arte, histórias antigas (de onde foi criado), festas lúdicas, religião e na
organização social (incluindo as relações de parentesco).
2 É sobre este sistema que se encontra, de fato, a essência de vida dos
Madija, pois demonstra a importância de continuidade de formação de seus agentes
curadores locais que permite o equilíbrio nas aldeias e também a mediação com o
0 mundo dos espíritos.
Apesar de todos os problemas ocorridos com este povo que incluem o
1 contato com os cariú que quase os dizimou por meio de doenças trazidas pelos
cariús e pela ressignificação nos hábitos e organização social devido o contato,
8 ocorreu tentativas recentes de evangelização por missionários. O contato com os
seringais, Fazenda Califórnia e centros urbanos trouxe a dependência com álcool.
Mesmo diante do quadro desgraça com a sua integração à sociedade
nacional eles ainda mal falam o português e insistem em manter a sua vida em
consonância constante com os seres sagrados das histórias antigas.
Finalmente, há uma insistência para a iniciação de dsoppineje pois há
uma crença escatotógica pelo qual afirmam que no momento em que nenhum povo
tiver dsoppineje, a terra acabará em um dilúvio. Este sistema, que envolve também
a saúde é o mediador para evitar a destruição do mundo. O fim escatológico e
milenarista constitui o último ato de ruptura já previsto na história antiga.
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A
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1295
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2
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1
8
J
A
L CARTOGRAFIAS DE UMA ESCOLA NA FRONTEIRA DO
BRASIL COM A BOLÍVIA: CURRÍCULO, PRÁTICA DOCENTE,
L INTERCÂMBIO E RESISTÊNCIA
A Zuíla Guimarães Cova dos Santos (UNIR)
RESUMO: O presente tem como objetivo cartografar as dinâmicas construídas
por uma escola brasileira situada na fronteira de Guajará-Mirim (RO/BR) e
Guayaramerin (BENI/BOL). A escola situada em fronteira internacional parece
uma situação comum. Mas, cada fronteira tem suas peculiaridades, as quais as
• condições geográficas da região onde se localizam e as relações dos sujeitos que aí
1296 habitam. O movimento que a escola realizou na fronteira envolveu a comunidade
escolar, instigou o olhar crítico ao currículo, garantiu a inclusão e o acolhimento
• de alunos oriundos do país vizinho (Bolívia). Optamos pela pesquisa participante
por nos possibilitar ir além da observação e da descrição. A escola é um espaço
com territorialidades diversas, presentes: no currículo, na prática docente, na
hierarquia administrativa, nas relações subjetivas da sala de aula entre outros
espaços. Territorialidades que podem contribuir para a manutenção da ordem ou
2 promover resistências e transformações.
Palavras-chave: Currículo. Fronteira. Território. Prática Docente.
0
Introdução
O estudo, ora apresentado, coloca em destaque uma situação comum e
1 presente nas cidades brasileiras localizadas em uma área de fronteira internacional:
a presença de alunos imigrantes, no espaço escolar. Esta presença pode parecer
8 comum a um primeiro olhar; no entanto, cada fronteira tem suas peculiaridades
espaciais, as quais envolvem não apenas as condições geográficas da região onde se
localizam, mas também, as relações dos sujeitos que aí habitam, vivem e circulam.
Relações envolvidas pela política, economia, cultura e história do espaço fronteiriço.
Assim, pensar a fronteira internacional é abrir infinitas possibilidades de estudos
em diferentes áreas do conhecimento. Neste sentido priorizamos, em nosso estudo,
as relações educacionais desenvolvidas por uma escola brasileira na fronteira e
damos uma atenção especial para a situação do aluno imigrante boliviano. A escola
analisada localiza-se na cidade de Guajará-Mirim, estado de Rondônia, no limite
internacional entre o Brasil e a Bolívia É importante já informar que Guajará-Mirim
(Brasil) conjuntamente com Guayaramerin (Bolívia) são consideradas cidades-
gêmeas, devido ao fluxo de interações existentes entre estas duas cidades.
Analisar a presença do aluno imigrante no espaço escolar em área de
fronteira internacional é ir além das discussões linguísticas sobre o bilinguismo,
ir além das discussões pedagógicas sobre o processo de ensino e aprendizagem e
ir além das políticas públicas de acesso e inclusão. É, principalmente, procurar
entender as dinâmicas construídas por estes alunos e seus familiares com a escola
J brasileira na zona de fronteira. No desenvolvimento da pesquisa constatamos uma
lacuna nas discussões e produções acadêmicas sobre o processo de interação
A e práticas transfronteiriças de escolas na fronteira internacional. Os estudos
relacionados à temática da educação na fronteira, em sua maioria, analisam o
L processo de implantação de políticas do Governo Federal, como por exemplo: o
Programa Escolas Interculturais Bilíngues de Fronteiras – PEIBF e, estudos que
analisam as interações bilíngues na escola de fronteira e práticas docentes, alguns
L destes trabalhos serão apresentados para exemplificar a situação aqui destacada.
Ao longo de nossa experiência como educadora e habitante de uma zona
A fronteiriça, passamos a entender que a escola é uma instituição importante na
dinâmica fronteiriça por ter a condição de colocar, em seu currículo, os saberes
locais que envolvem o mundo vivido pelos habitantes desta região. A realidade
vivida na fronteira passa a ter acesso aos diálogos construídos dentro da escola
e, assim gradativamente, professores e alunos, em um processo dialético, passam
• a ressignificar o espaço fronteiriço, entendendo melhor o mundo em que vivem,
1297 pois a partir da realidade objetiva passam a construir o mundo subjetivo, o
mundo das significações, o que os leva à condição de compreender o outro.
•
Nesta perspectiva, buscamos, neste estudo, identificar e compreender o lugar
da escola em uma fronteira internacional. Qual é o papel que a escola assume
neste espaço geográfico? Para isso foi necessário conhecermos os sujeitos que
circulam no espaço escolar brasileiro, que têm influência nos espaços de decisões
e promovem ações para o fortalecimento das interações fronteiriças. Os resultados
2 deste estudo serão descritos a seguir: em um primeiro momento apresentamos
alguns elementos que consideramos formadores e constitutivos da paisagem da
0 fronteira Internacional entre as cidades gêmeas de Guajará-Mirim (Rondônia/
Brasil) e Guayaramerin (Beni/Bolívia),posteriormente apresamos nosso caminho
1 investigativo e as principais diretrizes sobre a escola na fronteira e, para finalizar
destacamos o mundo vivido da Escola Durvalina Estilbem de Oliveira –D.E.O na
8 fronteira. Movimentos para além da fronteira sem a certeza de onde pode chegar.
Mas que ganha força, forma redes, promove fluxos, interações, lutas e resistência,
em processo de devir.
A fronteira da cidades gêmeas de Guajará-Mirim (RO/Br) e Guayaramerím
(Beni/Bol)
Esta apresentação se faz necessária para entendermos a dinâmica
atual da fronteira que trazemos para o nosso estudo, em especial, às interações
construídas pela escola neste espaço geográfico. Interações estas, que não merecem
ser compreendidas como atributos de um espaço vazio, sem história. Ao contrário,
para serem entendidas foi necessário voltarmos ao passado e conhecermos a área
de fronteira no período da sua demarcação.
No início do século XIX, as ex-colônias portuguesas e espanholas
tornaram-se países independentes e as questões dos limites fronteiriços ganharam
novas conotações. Naquele período, as margens dos rios Madeira, Purus e Juruá já
estavam povoadas e os diplomatas brasileiros tentavam estabelecer um novo ponto
inicial da fronteira entre o Brasil e a Bolívia, na confluência entre os rios Mamoré
J e Beni. Iniciou-se então um novo momento de negociações sobre a fronteira, dessa
vez entre o Brasil e a Bolívia. O Brasil consegue, habilidosamente, demarcar um
A novo limite fronteiriço, uma linha imaginária que deveria ir da confluência entre
os rios Mamoré e Beni até a nascente do rio Javari. Assim, foi firmado o Tratado
L de Ayacucho em 1867. Porém, a partir das expedições de demarcação da fronteira
descobriu-se que a nascente do rio Javari não estava situada no marco determinado
pelo Tratado. De acordo com os estudos de Machado (2008), ela só foi localizada em
L 1991, o rio nasce na Serra da Contamana – Peru. O longo período de indefinição da
fronteira permitiu às frentes exploradoras e de produção da borracha avançarem
A para as áreas fronteiriças e estimulou o interesse do Brasil na disputa do território
que atualmente pertence ao Acre.
A extensão de terra que hoje pertence ao estado do Acre, no ano de
1750, era propriedade da Bolívia. Naquele período, o látex produzido na região
despertou o interesse de brasileiros que ali viviam. Como era uma região de difícil
• acesso, a Bolívia não promoveu sua ocupação imediata, porém, ao perceber que a
1298 região estava sendo ocupada por brasileiros, organizou tropas militares bolivianas
para expulsá-los à força. Foram organizados vários movimentos militares de
•
ocupação, mas todos encontraram a resistência local de brasileiros estabelecidos
na região, que tinham o apoio do governo do Amazonas. Apenas em 1902, após a
3ª Revolução Acreana, coordenada por Plácido de Castro, o governo brasileiro agiu
diplomaticamente propondo um novo acordo, o Tratado de Petrópolis (1903).
•
1299
•
Mapa 1: Fronteira das cidades-gêmeas Guajará-Mirim (RO/BR) e Guayaramerín (BENI/BOL).
Fonte: Adaptado do gupo RETIS, disponível em http:// www.ig.e.o.ufrj.br/fronteiras/mapas/
zfoidgemr.jpg
Nota: Projeto cartográfico: Iranilda Moraes; Execução: Patricia Oliveira, 01/04/2008
1 Machado (2000), define cidades-gêmeas como núcleos urbanos localizados de um lado e de outro
do limite internacional cuja interdependência é, muitas vezes, maior do que de cada cidade com
sua região ou com o próprio território nacional, sem que estejam necessariamente em condição de
fronteira seca, formando uma conurbação ou ocupando posições simétricas à linha divisória. Elas
têm forte potencial de atuar como nódulos articuladores de redes locais, regionais, nacionais e
transnacionais.
rios é intensa, juntos, os dois rios fazem aproximadamente 1.400 quilômetros de
extensão com linhas regulares de navegação dos dois lados da fronteira. Atualmente,
tal qual como foi no passado, o rio é o elemento integrador das pessoas que vivem
em suas margens: índios, ribeirinhos, caboclos, entre outros. O rio é o coração da
fronteira, é através dele que as interações acontecem independentes da vontade
política do Estado.
O surgimento das duas cidades está relacionado ao ciclo da exploração da
J castanha e extração do látex do início do século XIX, e ao processo de implantação
da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, no início do século XX. Ao longo da história
A da fronteira, as relações políticas, econômicas, culturais e educacionais sempre
estiveram presentes no modo de vida desses povos fronteiriços.
L O devir fronteiriço
Atualmente, no mundo globalizado, as fronteiras estão cada vez mais
L porosas e atravessáveis, House (1980) destaca que a atual tendência de blocos
econômicos regionais e as diásporas de povos com nacionalidades compósita numa
escala sem precedente no passado, provocaram uma mudança fundamental na
A
abordagem de fronteiras e limites internacionais.
Para o cotidiano do habitante fronteiriço, ou seja, que habita uma zona
geográfica entre dois ou mais países as relações são estabelecidas a partir de
dinâmicas pessoais ou coletivas que procuram ultrapassar não apenas a fronteira
• geográfica, mas também as fronteiras culturais e as fronteiras políticas que podem
interferir nas interações das pessoas que vivem na região de fronteira.
1300
O devir-fronteiriço é aqui caracterizado como relações de movimento,
• repouso, velocidade e lentidão. Relações incertas em uma zona de fronteira, capaz
de desterritorializar “extrai partículas entre as quais instauramos relações (...) as
mais próximas daquilo que estamos em vias de devir, e através das quais devimos”.
(DELLEUZE; GATTARI, 2012,p.34)
As fronteiras culturais se estabelecem a partir da língua, das crenças,
2 dos valores e as fronteiras políticas são estabelecidas a partir das leis, dos códigos
de conduta, dos acordos. São formas simbólicas e complexas que permeiam as
0 interações humanas, promovendo uma maior ou menor aproximação dos diferentes.
Para existir a diferença é necessário que existam margens, os limites que
1 separam o eu do outro possibilitando a proximidade e a distância ao mesmo tempo,
possibilitando novos conhecimentos e a abertura de um diálogo. Mas, nem sempre
8 isso é possível, pois depende de como cada um vê o outro e, se a diversidade torna-
se barreira, surge o sentimento de medo, de insegurança e distanciamento.
Na fronteira, o encontro dos diferentes está envolvido por relações que
se constroem ou são desconstruídas através de uma multiplicidade de práticas
complementares ou confrontantes, tendo em vista a diversidade cultural presente
em cada lado da fronteira e as experiências que cada sujeito traz. Tudo é incerto,
um devir constante,que não se sabe necessariamente onde vai chegar.
Viver no espaço de fronteira internacional tem possibilitado percebermos
e vivenciarmos processos de trocas e intercâmbios que se firmam em negociações
linguísticas, culturais e identitárias. São processos onde a identidade cultural não
se perde, conserva-se assim a tensão e o equilíbrio entre a diversidade e a unidade
cultural, em um constante movimento interativo de se conhecer e conhecer o outro
em sua própria história.
[...] a fronteira não é linha, fronteira é um dos elementos da comunicação
biossocial que assume uma função reguladora. Ela é a expressão de um
equilíbrio dinâmico que não se encontra somente no sistema territorial mas
em todos os sistemas biossociais. (RAFFESTIN, 1993, p.13).
2 http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=110010&search=rondonia|guaja
ra-mirim Consultado em 04/05/2015.
04 EEEFM Simon Bolívar 04
05 EEEF DurvalinaEsthilbem de Oliveira 12
Total: 38
Tabela 1: Número de alunos e alunas bolivianas matriculados no ensino fundamental das escolas
públicas, urbanas, do município de Guajará-Mirim.
Fonte: : Pastas individuais dos alunos disponibilizadas para consulta pelas secretarias das esco-
las. Consulta feita pela a autora em 2012
2
0
1
8
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