UNIVERSIDADE DO PORTO
2013
Dissertação/relatório/Projeto/IPP:
Versão definitiva
Helder Renato Lôro Nunes
Índice
Resumo…………………………………………………………………. 4
Introdução…………………………………………………………….. 5
1 ª P a r t e – A n t e s d e Ta l e s :
mitologia grega………………………………………………………. 8
Capítulo II – Na polis……………………………………………………. 15
C a p í t u l o I I I – O To d o e o K o s m o s … … … … … … … … … … … … … . . . 2 3
Capítulo I – Devir…………………………………………………… 28
Physis……………………………………………………………………...... 28
1 - A rc h é e S t o i c h e i o n … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … . . 4 2
1.1 – Água……………………………………………………………. 42
1 . 2 – A p e i ro n … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … 4 3
1.3 – Ar………………………………………………………………... 45
1.4 – Fogo……………………………………………………………… 47
1 . 5 – A r, Á g u a , F o g o , Te r r a … … … … … … … … … … … … … … … … 4 9
1.6 – Sementes………………………………………………………… 53
1.7 – Átomos……………………………………………………....... 58
Capítulo II – Ser…………………………………………………….. 62
Ser e não-ser…………………………………………..................... 64
Ser e aparência………………………………………………………… 69
O ser e o uno…………………………………………………………… 72
Conclusão………………………………………………………………. 87
Bibliografia……………………………………………………………. 91
Resumo
Introdução
4
O s u rg i m e n t o d a f i l o s o f i a , n a G r é c i a d o s é c u l o V I a . C . ,
assinala uma nova forma de o homem estar no mundo. Essa nova
postura vem a ser o fundamento originário de todo o pensamento
filosófico e, consequentemente, do pensamento científico, pois
como se verifica com Platão e Aristóteles, a episteme, a ciência,
está no centro da indagação filosófica. É certo que a ciência
moderna está longe de ser a episteme pensada por Platão e
A r i s t ó t e l e s , c u j a a t e n ç ã o s e v i r a v a p a r a o To d o e p a r a o s e r
e n q u a n t o s e r, e n q u a n t o o c o n h e c i m e n t o c i e n t í f i c o m o d e r n o f o i
progressivamente se voltando para o ente, tendo em vista o projeto
humano de domínio e transformação da natureza pela técnica. Daí
que a atividade científica tenha fragmentado e multi-espartilhado o
conhecimento, acabando por se tornar na tecnociência atual. Porém,
os princípios epistemológicos por eles fundados – e que fizeram
prevalecer a filosofia sobre a sofística – constituem até à
contemporaneidade o solo intransponível em que assenta toda a
ciência. Pense-se na superação platónica da antítese entre o
eleatismo e a tradição heraclítica, que resulta na síntese entre
experiência e razão na determinação (no conhecimento) daquilo que
é (o ente); e nos princípios lógicos aristotélicos de «não-
contradição» e de «terceiro excluído».
5
natureza, não encontram um conjunto arbitrário de fenómenos
incognoscíveis, como faria sentido que acontecesse se a experiência
do homem no mundo fosse remissível para aquilo que é da ordem do
mito e da fábula. Encontram sim a regularidade de certos
fenómenos, um Kosmos.
6
7
1ª Parte
Antes de Tales
Algumas questões sobre religião, mitologia e sociedade grega que
p r e c e d e r a m o s u rg i m e n t o d a f i l o s o f i a
8
Capítulo I
I nf l u ê n c i a d e H o m e r o e H e s í o d o n a r e l i g i ã o e m i t o l o g i a
grega
8
“são os poetas quem criam novas canções para cada ocasião das
festividades em honra dos deuses 3. Outros testemunhos religiosos
são os monumentos da arte Grega: templos, estátuas, pinturas.
3
C f. Wal t er B urkert , Rel i gi ão Grega na Época C l ássi ca e Arcai ca , p. 29.
4
Após a i nvasão dóri ca de 1100 a. C ., a escri t a (o Li near B ) desapare ce e só é
redescobe rt a pel o fi m do sécul o IX, t om ada aos fení ci os.
5
Poet as popul ares.
9
a Te b a s , a s e p o p e i a s d o s A rg o n a u t a s e a d e H é r c u l e s . É p r o v á v e l
que Homero tenha reunido num todo obras folclóricas-epopeias
cantadas durante séculos pelos aedos.
10
N a Te o g o n i a , H e s í o d o e l a b o r a u m a g e n e a l o g i a d o s d e u s e s ,
o r d e n a d a e m t r ê s g e r a ç õ e s , d a s q u a i s a s e g u n d a a l c a n ç a o p o d e r, e a
terceira, liderada por Zeus, consegue estabelecer o domínio da
o r d e m a p ó s v e n c e r a b a t a l h a c o n t r a o s Ti t ã s . A v i s ã o c o s m o g ó n i c a
d e H e s í o d o a s s e n t a e m t e r m o s c o m o : p h y e i n , e n g e n d r a r, f a z e r
c r e s c e r, p r o d u z i r, génesis, nascimento e origem, a rc h é ,
simultaneamente origem numa série temporal e a primazia na
hierarquia social. Na obra de Hesíodo tem o significado de origem,
temporalidade. Este termo vem a ser fundamental nas cosmologias
dos primeiros filósofos, porém, já desvinculado da dimensão
religiosa e mitológica.
6
C f. Wal t er B urkert , op. ci t ., p. 51.
11
p a í s e s d a A n t i g u i d a d e , v e i o a c o n s t i t u i r- s e o m a i s i m p o r t a n t e
centro de produção de bronze e posto intermediário no comércio do
estanho vindo da Península Ibérica e do cobre vindo de Chipre para
todas as civilizações orientais. Cnossos era a capital do império, à
frente do qual se sucediam os reis, eleitos por sacerdotes. A realeza
era representante na terra da Deusa-Mãe- geradora do género
humano, animal e vegetal – e do seu marido, ou filho,
frequentemente representados na figura de um toiro. O nome Minos
p e n s a - s e d e s i g n a r, n ã o u m r e i c r e t e n s e e m p a r t i c u l a r, m a s s i m o
título dos soberanos que se sucediam no trono. Por 2000 a. C. eram
possuidores de uma escrita hieroglífica, a qual foi substituída por
uma escrita silábica, o Linear A, após o tremor de terra de 1730 a.
C. que destruiu os primeiros palácios.
12
mito até à época da polis, e poderá ter servido de inspiração ao
"filósofo-rei" platónico.
13
Capítulo II
Na Polis
P o r v o l t a d e 11 0 0 a . C . , u m a g r a n d e u n i ã o d e t r i b o s v i n d a s d o
noroeste da Península Balcânica deslocou-se para sul, Grécia
C e n t r a l e P e l o p o n e s o . I n v a d i r a m a A rg ó l i d a , t o m a r a m M i c e n a s e
outros centros. Desse prolongado período de colonização dórica
resulta a formação da nacionalidade Grega. Era constituída por
grupos de tribos de jónios, dórios, aqueus e eólios.
14
D a n ú b i o , n a Tr á c i a e n a G r é c i a d o N o r t e d e s d e o I I I m i l é n i o .
Quanto à sua proveniência geográfica não há certezas. Sabe-se
apenas, a partir da reconstrução de uma protolíngua – o Indo-
europeu, de um antepassado comum, um povo, ou grupos de tribos,
que partilhavam essa língua. Esse povo, ou grupos de indo-
e u r o p e u s , t e r- s e - á c i n d i d o e m m e a d o s d o I I I m i l é n i o , e m g r u p o s q u e
s e d i r i g i r a m p a r a a Í n d i a , Á s i a M e n o r, G r é c i a , I t á l i a , E u r o p a
Ocidental e Europa do Norte.
15
a n t e p a s s a d o c o m u m , e q u e c u l t i v a v a m u m d e u s p r o t e t o r. A s d u a s
forças sociais até então harmonizadas sobre o comando do wanáx:
as comunidades aldeãs e a aristocracia guerreira entram em
confronto.
11
C f. F rançoi s Cham oux, op. ci t . p. 205.
12
C f. A. B erguer , Hi st óri a da Gréci a Ant i ga, p.82.
16
interesse geral. O poder pertencia aos principais proprietários de
terra – a aristocracia, os únicos que possuíam meios para sustentar
o s c a v a l o s , o s c a r r o s d e g u e r r a e o a r m a m e n t o m i l i t a r.
A j ó n i a , n a Á s i a M e n o r, e r a u m d o s p r i n c i p a i s f o c o s d e
desenvolvimento. Aí retomou-se o intercâmbio económico e
cultural com o Oriente, culturas: egípcia, babilónica e assíria. Os
jónios aperfeiçoaram o alfabeto recebido dos orientais, dos
fenícios, e introduziram-no em todo o mundo Grego. Foi na jónia
que foram compostos os poemas homéricos e onde, no espaço de um
s é c u l o , d e V I a V a . C . n a s c e r a m o s p r i m e i r o s f i l ó s o f o s : Ta l e s ,
Anaximandro e Anaxímenes, e pouco tempo depois Xenófanes e
Heraclito.
17
peithó, torna-se o instrumento político por excelência. No entanto,
o ideal de isonomia, a igualdade de todos os cidadãos perante a lei,
ainda não materializava o espírito democrático, como viria a
acontecer na Atenas de Clístenes, século VI. Nesta primeira fase da
polis, a isonomia e a isocracia, a igual participação de todos os
c i d a d ã o s n o e x e r c í c i o d o p o d e r, e x i s t i a m a p e n a s e n t r e o c í r c u l o
aristocrático, que assim formava um regime oligárquico, podendo
i m p e d i r a f o r m a ç ã o d e r e g i m e s c o m o a m o n a rc h i a e a t y r a n n i s , e m
q u e a a rc h é é d e t i d a p o r u m s ó . A s d i s c u s s õ e s n a Á g o r a s ã o f e i t a s à
luz do dia perante um público que ajuíza de acordo com o poder de
persuasão dos oradores. As decisões são gravadas em tábuas de
pedra e expostas na Ágora à vista de todos e a todos devem ser
impostas. A justiça transita da thémis, conformidade à vontade dos
deuses, o que na prática resultava na arbitrariedade das punições,
que eram conformes aos mais poderosos, para a diké. A
determinação da lei e da justiça passou a ser discutida, escrita,
p u b l i c a d a e d i v u l g a d a , o q u e v e m a t r i b u i r- l h e u m c a r á c t e r d e
universalidade e permanência (podendo ser modificável por
decreto) e acabar com a arbitrariedade das punições. Dessa forma
está já instituída a ideia de que o Estado não é uma causa privada,
mas sim uma questão pública á qual, progressivamente, mais
i n d i v í d u o s t e r ã o d i r e i t o d e p a r t i c i p a r.
O a rc o n t a d o e r a e l e i t o d e e n t r e a a r i s t o c r a c i a . E r a c o m p o s t o
pelo arconte principal que dá o nome ao ano do seu governo,
13
Sobre a poli s arcai ca conferi r Mari e- C l ai re Am ouret t i op. ci t ., Li vro S egundo .
18
fiscaliza os negócios internos e resolve os litígios das famílias. O
segundo arconte é o basilense, que exerce as funções religiosas. O
t e r c e i r o é o p o l e m a rc a , o c h e f e m i l i t a r. O s s e i s r e s t a n t e s s ã o o s
arcontes testometes, legistas, que zelam pela aplicação das leis e
julgam os cidadãos. Em meados do século VIII a. C. a duração do
arcontado é de dez anos e a partir de 683 passa a ser de apenas um
ano.
14
C f. Gi ovanni R eal e, op. ci t . , p. 183-185.
15
Cf. Vernant, op. cit., Cap. IV.
19
plano religioso individual, pela expiação catártica das faltas
cometidas.
20
política deve manifestar uma relação hierárquica em que os
melhores ocupam os estratos mais elevados. Para os democratas
todos os cidadãos são iguais, por isso, só o ideal de isonomia é
capaz de estabelecer a justa medida. A equidade é entendida como o
d i r e i t o à i g u a l p a r t i c i p a ç ã o d e t o d o s o s c i d a d ã o s n a a rc h é .
17
C f. Gi ovanni R eal e, op. ci t ., pp. 25-27.
21
Capítulo III
O To d o e o K o s m o s
Tu d o i s s o r e f l e t e o f o r t e a p e l o à r a c i o n a l i d a d e c o m q u e o s
Gregos se dirigiam à vida política e social, mesmo antes do
s u rg i m e n t o d a f i l o s o f i a . A s p r ó p r i a s c o s m o g o n i a s e t e o g o n i a s ,
sobretudo a de Hesíodo, são também reveladoras de um espírito
racional esquemático voltado para a tentativa de explicação da
origem do mundo.
22
reflexão filosófica apresenta uma teoria, um quadro de conjunto
onde os homens, a divindade e o mundo estão no mesmo plano: no
kosmos. Ao mito da criação, que pressupõe noções como origem
temporal, engendramento, um começo, sucede a reflexão acerca da
physis, o que implica a noção de que a natureza não operou de
maneira diferente na origem, da maneira que opera na atualidade,
mas sim que as mesmas forças operam desde sempre da mesma
forma e para as quais existe uma cognoscibilidade humana.
19
C f. Gi ovanni R eal e, op. ci t ., p.389.
23
descontinuidade absoluta entre a filosofia e o pensamento que a
precede. Nas palavras de Aristóteles, o sentimento de thaumazein
estabelece a continuidade:
“ D e f a t o o s h o m e n s c o m e ç a r a m a f i l o s o f a r, a g o r a c o m o n a
origem, por causa da admiração: enquanto no início ficavam
maravilhados diante de dificuldades mais simples, em seguida,
progredindo pouco a pouco, chegaram a pôr- se problemas
sempre maiores: por exemplo, os problemas relativos aos
fenómenos da lua e os relativos ao sol e aos astros, ou os
problemas relativos à geração de todo o universo. Ora, quem
experimenta uma sensação de dúvida e de maravilha reconhece
que não sabe; e é por isso que também aquele que ama o mito
é, de certo modo, filósofo: o mito, com efeito, é constituído
por um conjunto de coisas que despertam admiração” 20.
24
ordem, a moderação e a justiça, e é por esta razão que chamam
ao universo a ordem das coisas [ kosmos] e não a desordem
nem o desagregamento [caos] ”22.
22
C f. Pl at ão, Górgi as , 507 e – 508 a.
25
2ª Parte
Devir e Ser
Capítulo I
Devir
26
Physis
23
Ari st ót el es, op. ci t . , A 2/ 3, 983 a 19 – b 13.
24
Idem , i bi dem , E 1, 1025 b.
25
Idem , i bi dem , Θ, 5, 1009 a 29 – b 13.
27
A r i s t ó t e l e s d i r i g e - s e a s s i m a o To d o , o q u a l , n e s s a p e r s p e t i v a ,
contempla o supra-sensível. Os filósofos denominados de físicos,
dirigem-se, por sua vez:
E s s a p a r t e d o To d o à q u a l o s f í s i c o s s e d i r i g e m é a p h y s i s
( n a t u r a n a t r a d u ç ã o p a r a l a t i m ) , n a t u r e z a , a r e a l i d a d e e m d e v i r.
Destas considerações fica claro que Aristóteles interpreta a
filosofia que lhe é precedente à luz do seu próprio sistema
filosófico. Contudo, isso não o impede de considerar que os físicos
s e d i r i g i a m a o To d o , s i m p l e s m e n t e c o n s i d e r a v a m q u e s ó o s e r f í s i c o
existe, e que pode ser explicado unicamente com princípios físicos.
26
Idem , i bi dem , 1010 a 7 – 32, 1010 a 23 – b 20.
28
que tudo se gera e se destrói, outros que nada se gera e nada
se destrói”27.
“ P a r m é n i d e s [ … ] f e z r e a l ç a r, p o e t i c a m e n t e p e n s a n d o , o S e r
do ente na sua contraposição ao devir […] O que devirá ainda
n ã o é . A q u i l o q u e é j á n ã o n e c e s s i t a d e v i r a s e r, d e d e v i r. O
q u e « é » , o e n t e , d e i x o u a t r á s d e s i t o d o o d e v i r, c a s o s e q u e r
alguma vez tenha vindo a sê-lo e podido sê-lo. Aquilo que, no
sentido próprio, «é» resiste mesmo a todo e qualquer impacto
d o d e v i r. ” 2 8
27
C f. Gi o vanni R eal e, op. ci t ., p.255.
28
Mart i n Hei degger, Int rodução à Met af í si ca , p.106.
29
No entanto, Heidegger considera não existir uma antítese
entre uma teoria do Ser e uma teoria do Devir na filosofia pré-
socrática. Rejeita, particularmente, a interpretação histórico-
filosófica tradicional que apresenta Heraclito e Parménides em dois
pólos opostos:
29
Idem , i bi dem , pp. 107-108.
30
tentaram escapar a esta simultaneidade e a esta cisão da ordem
universal em duas partes homogéneas.” 30
30
Ni et zsche, A Fi l osof i a na Idade Trági ca dos Gregos , p.58.
31
nem explicar nascimento algum. […] Em resumo, resulta daí a
sentença: «o ser e o não-ser são igualmente necessários para o
devir; da colaboração de ambos resulta um devir». […] Mas
como é que o positivo chega a contactar o negativo? Não
deveriam, pelo contrário, fugir eternamente um do outro, como
contrários, e tornar deste modo impossível o devir? Aqui
Parménides apela para uma qualitas oculta, para uma
propensão mística de os contrários se aproximarem e atraírem
mutuamente, e concretiza essa oposição por meio do nome de
Afrodite e mediante a relação recíproca empiricamente
conhecida do masculino e do feminino.” 31
31
Idem , i bi dem , pp. 59 – 61.
32
aquilo de que se pode dizer: «foi» ou «será», não é; do ser é
que nunca se pode dizer: «não-é».” 32
32
Idem , i bi dem , pp. 65 – 66.
33
C f. Art ur Morão na advert ênci a à obra, Idem , i bi dem , p.9.
34
Idem , i bi dem, p. 57.
33
f i l ó s o f o d o d e v i r. P o s t e r i o r m e n t e p r o d u z i u a t e o r i a d o S e r, a q u a l é
completamente subtraída da realidade empírica:
35
Idem , i bi dem , p. 67.
34
de um repouso divino, na fixidez de todas as coisas no interior
de uma paz panteísta original.” 36
“ O s e r, a s u b s t â n c i a , o a b s o l u t o , a i d e n t i d a d e , a c o i s a : f o i h á
muito tempo que o pensamento inventou conjuntamente tais
e s q u e m a s , q u e c o n t r a d i z e m f r o n t a l m e n t e o m u n d o d o d e v i r,
mas que, à primeira vista, pareciam corresponder-lhe, tendo
em conta o estado obtuso e indiferenciado da consciência
n a s c e n t e , a i n d a e m s i t u a ç ã o a n i m a l i n f e r i o r. ” 3 8
36
Idem , i bi dem , pp. 63 – 64.
37
Idem , A Gai a Ci ênci a , p. 47.
38
Idem , A Vont ade de Poder , p. 24.
39
Idem , O Crepúscul o dos Ídol os , p. 30.
35
Em ultima análise, o conceito do ser tem validade na filosofia
de Nietzsche apenas no âmbito da sua conceção do eterno retorno
do mesmo. O devir universal: a perpétua criação e destruição de si
mesmo – conceção nietzschiana de devir dionisíaco – necessita de
u m p r i n c í p i o d e c o n s e r v a ç ã o d e e n e rg i a , d o q u a l r e s u l t a o e t e r n o
retorno do mesmo. Por isso Nietzsche fala em “imprimir ao devir o
caráter do ser”. Em todo o caso o conceito do ser é para o filósofo:
“um dos «conceitos mais altos», isto é, mais gerais, mais vazios, o
último fumo da realidade diluída.” 40
Heidegger pegou nesta última afirmação de Nietzsche sobre o
conceito do ser e fez a seguinte contraposição: “Será o Ser o último
fumo da realidade diluída ou será o destino da civilização
Ocidental?”41
Para o objetivo desta tese, que é defender os conceitos de
Devir e Ser como correspondentes a duas teorias distintas na
filosofia pré-socrática – onde se contrapõem como ideias principais
o fluxismo e o perpetuamente imóvel – importa, relativamente à
d o u t r i n a h e i d e g g e r i a n a d o s e r, r e f l e t i r s o b r e a s u a t e o r i a d o s e r
como physis, segundo a qual a conceção do ser como physis era
comum aos filósofos pré-socráticos, particularmente a Heraclito e
Parménides. Segundo Heidegger:
40
Idem , i bi dem , p. 31.
41
Hei degger, op. ci t ., p. 50.
36
experiência poético-pensante. A interpretação da physis como
natureza – resultado da tradução para latim ( natura) revela um
esquecimento do ser: próprio de toda a metafísica, que conduz às
d e t e r m i n a ç õ e s c a t e g o r i a i s ô n t i c a s , d o e n t e , e n ã o à v e r d a d e d o s e r,
à sua essência.
A essência do ser está precisamente na definição deste como
p h y s i s e o u s i a . S i g n i f i c a d e s a b r o c h a r, e m e rg i r d e d e n t r o d e s i
m e s m o , a q u i l o q u e a o a b r i r- s e s e d e s d o b r a e s e m a n i f e s t a e m t a l
desabrochamento, mantendo-se e permanecendo nele. Um vigorar
q u e e m e rg i n d o p e r m a n e c e . E s s e d e s a b r o c h a r e s u s t e n t a r- s e - e m - e -
p a r a - f o r a - d e - s i - m e s m o é o p r ó p r i o s e r, e m v i r t u d e d o q u a l o e n t e s e
t o r n a o b s e r v á v e l e p e r m a n e c e . O e s t a r- a í - e rg u i d o - s o b r e - s i - m e s m o é
aquilo que se expõe, o que se oferece naquilo que apresenta, na sua
aparência. A coisa repousa no aparecimento, que é entendido como
o s u rg i m e n t o d a s u a e s s ê n c i a . O q u e s e s u s t é m e m s i m e s m o e a s s i m
se apresenta, é.
A p h y s i s n o s e n t i d o o r i g i n á r i o s i g n i f i c a o e m e rg e n t e e rg u e r-
s e , o d e s d o b r a r- s e q u e p e r m a n e c e . N e s s e v i g o r a r o r e p o u s o e o
movimento são a partir de uma unidade originária fechados e
abertos, sendo esse vigorar a presença da essência. 42 É pelo
essenciar da essência que acontecem os entes, pois o vigorar é um
desocultamento que se conquista a si mesmo como um mundo e
assim possui forma. Há portanto uma dissensão criadora que
p e r m i t e o e m e rg i r d e t u d o o q u e e s s e n c i a . I s s o é o f a z e r m u n d o , u m
processo que resulta da dissensão, a luta guardiã vigorante de tudo.
Como se trata de um processo originário, na própria dissensão, que
consiste em separar o essenciado da própria dissensão, dá-se a
f o r m a ç ã o d e u m a u n i d a d e , q u e é o p r ó p r i o s e r.
37
a p e n a s q u e o d e v i r é u m a o u t r a f o r m a d o s e r. N a r e a l i d a d e d e l i m i t a
o ser e dessa forma determina-o, mas essa distinção face ao ser dá-
se na origem, o que para Heidegger significa uma relação de co-
p e r t e n ç a c o m o s e r.
A s u a i n t e r p r e t a ç ã o d o f r a g m e n t o « A n a t u r e z a a m a o c u l t a r-
s e » , é a d e q u e o s e r, e n q u a n t o p h y s i s , s i g n i f i c a o a p a r e c e r q u e
e m e rg e e s e e n c o b r e : c o n c e p ç ã o d o d e v i r c o m o a p a r ê n c i a d o s e r. O
d e v i r, n a m e d i d a e m q u e n ã o é o n a d a e n ã o é o q u e e s t á d e s t i n a d o
a s e r, t a m b é m n ã o é u m d e v i r, m a s a p e n a s s e m p r e u m o u t r o , u m a
inconstância que se mostra de diversos modos. Uma constante
necessidade, uma carência que persiste. Sendo o ser a presença, a
essencialidade que e m e rg i n d o aparece e, o não-ser – a não-
essencialidade, a não-presença, a ausência; o aparecer significa
esse e m e rg i r e s u b m e rg i r do próprio ser (na medida que o
encobrimento também faz parte da essência do ser). Assim, o devir
é e s s a a p a r ê n c i a f u n d a d a n o a p a r e c e r d o s e r : o e m e rg i r, o c h e g a r á
p r e s e n ç a e d e l a s a i r. N o s e n t i d o o r i g i n á r i o e m q u e o a p a r e c e r s e
relaciona com o ser como sendo-lhe co-pertencente é o vigor que
e m e rg i n d o p e r m a n e c e , t r a z à l u z , a p r e s e n t a e p r o p o r c i o n a a s a í d a
para fora do velado.43
O problema com que nos confrontamos relativamente à
filosofia pré-socrática consiste no facto de os escritos que nos
chegaram da época serem fragmentos, os quais são, em grande
número, de natureza sibilina e, como tal, sujeitos a interpretações
subjetivas. O problema da interpretação de Heidegger está em ser a
mais subjetiva de todas, porquanto é excêntrica relativamente à
própria História da Filosofia. Heidegger não tem em conta aspetos
essências da filosofia pré-socrática como são, relativamente aos
físicos, o pensamento da a rc h é e stoicheion, a relação
43
S egundo Hei degger, o sent i do Grego de verdade, a Al êt hei a , é o ser com o physi s .
A verdade pert ence à essênci a do ser na m edi da em que o ent e é o que vi gorando se
m ost ra e se si t ua fora da di m ensão do vel ado O ser ent e i m pli ca vi r à l uz, apresent ar-
se, expor al go. O ent e i nst al a- se e sit ua- se no desvendam ent o: Al êt hei a , enquant o o
não- ser si gni fi ca o afast ar- se do apareci m ent o e da presenç a.
38
uno/múltiplo, as questões da geração e destruição de todas as
coisas sensíveis, o movimento e a mudança, e a teoria heraclítica
do fluxismo universal. Enquanto, por outro lado, Parménides e os
eleatas estavam empenhados em refutar a multiplicidade, o
m o v i m e n t o , o c o n t r a d i t ó r i o , e e m p r o v a r, c o m o ú n i c a r e a l i d a d e
existente e verdadeira, aquilo que é estável, permanente, imóvel e
uno.
39
as coisas sensíveis estão em contínuo fluxo e das quais não se
pode fazer ciência.”44
1 . A rc h é e s t o i c h e i o n
O s e n t i d o f i l o s ó f i c o d o t e r m o a rc h é , i n t r o d u z i d o p o r
A n a x i m a n d r o , d i s c í p u l o d e Ta l e s , e s t á n o c e n t r o d a e m e rg ê n c i a d a
filosofia entre os pré-socráticos. Além dos significados
a n t e r i o r m e n t e r e f e r e n c i a d o s , a rc h é s i g n i f i c a p r i n c í p i o . E s s e é o
significado filosófico do termo. Mas, o princípio dos filósofos não
44
Ari st ót el es, op. ci t ., A 5/ 6, 987 a 27 – b 15.
45
Ari st ót el es, op. ci t ., Γ 5, 1010 a 7-32 .
40
designa aquilo que é primeiro numa série temporal, como acontece
n a o b r a d e H e s í o d o : p r i m e i ro q u e t u d o g e ro u - s e o c a o s . A a rc h é d o s
filósofos é princípio imprincipiado. Sendo physis ação de
p h y e s t h a y , b r o t a r, n a s c e r, é , e n q u a n t o a rc h é , c e n t r o d e i r r a d i a ç ã o ,
fonte da geração, princípio originário: aquilo do qual as coisas
provêm e ao qual regressam.
1.1. A Água
A r i s t ó t e l e s r e f e r e Ta l e s c o m o : “ O i n i c i a d o r d a f i l o s o f i a d a
physis, enquanto por primeiro afirmou a existência de um princípio
único, causa de todas as coisas que são, e disse que esse princípio é
a água”46.
Ta l e s n a s c e u e m M i l e t o , n a J ó n i a . C a l c u l a - s e q u e t e n h a s i d o
pelo final do século VII a.C. Essa estimativa tem por base a
p r e d i ç ã o a t r i b u í d a a Ta l e s d e u m e c l i p s e s o l a r q u e o c o r r e u e m 5 8 5 .
Esse mesmo ano é apontado como o ano da sua acme47. Não existem
vestígios de escritos seus, ao contrário do seu discípulo
Anaximandro, que escreveu uma obra sob o título tradicional
” S o b re a N a t u re z a ” . A p a r t i r d o f r a g m e n t o q u e n o s c h e g o u d e s s a
obra, a doxografia estabelece Anaximandro como o introdutor do
t e r m o a rc h é , n o s e u s e n t i d o f i l o s ó f i c o . P o r é m , é c o m u m m e n t e
aceite, desde logo em função da afirmação supracitada de
Aristóteles, que o termo a rc h é é o que melhor exprime o
p e n s a m e n t o d e Ta l e s d e q u e a á g u a é a o r i g e m d e t u d o .
46
C f. Ari st ót el es, op. ci t . A3, 983 b 6 ss.
47
Fl oresci m ent o. O t erm o vi sa desi gnar o pont o m ai s al t o da vi da de um a pessoa, a
fl or da idade. Era na Ant i gui dade um a refer ênci a m ai s usual que a dat a de
nasci m ent o.
41
sentido corrente e pode designar algo mais abstrato como o
á p e i ro n , o I n d e t e r m i n a d o , I n d e f i n i d o / I l i m i t a d o , d e A n a x i m a n d r o .
1 . 2 . O Á p e i ro n
A versão de Simplício:
1 - O « p r i n c í p i o » e « e l e m e n t o » d a s c o i s a s é o a p e i ro n ;
48
C f. Ki rk e R aven, op. ci t . pp.101- 103.
42
2 - O a p e i ro n é i n g é n i t o e i m p e r e c í v e l , l o g o é i n f i n i t o n o t e m p o ;
3 - O a p e i ro n c i r c u n d a t o d o s o s m u n d o s , q u e s ã o e m n ú m e r o
infinito, logo é também infinito no espaço;
4 - O a p e i ro n é a q u i l o d e q u e t o d a s a s c o i s a s s ã o c o n s t i t u í d a s e ,
as coisas existem em número infinito, logo é ilimitado;
5 - O a p e i ro n , s e n d o « e l e m e n t o » , m a s n ã o s e n d o d e t e r m i n á v e l ,
c o m o o s o u t r o s e l e m e n t o s ( a á g u a , o a r, o f o g o , a t e r r a ) é o
Indeterminado, o Indefinido.
1.3. O Ar
49
C f. Gi ovanni R eal e, op. ci t ., p. 52.
50
Ki rk e R aven, op. ci t ., p. 142.
51
Idem , i bi dem .
43
“ […] o homem exala da boca calor e frio: pois o hálito é
arrefecido ao ser comprimido e condensado pelos lábios, mas,
quando a boca é afrouxada, o hálito escapa-se e torna-se
quente devido à rarefação” 52.
52
C f. Ki rk e R aven, op. ci t . p.147.
53
Idem , i bi dem , p. 143.
44
constitui uma injustiça: “pois pagam castigo e retribuição uns aos
outros, pela sua injustiça, de acordo com o decreto do tempo.”
1.4. O Fogo
Q u a n d o o s f í s i c o s s e d i r i g i a m à p h y s i s e p e n s a v a m a a rc h é e o
stoicheion procuravam uma representação da unidade. Essa
concepção da realidade é, segundo Nietzsche “um dogma
metafísico, que tem a sua origem numa intuição mística e que nós
encontramos em todas as filosofias 55”. Independentemente daquilo
q u e p o s t u l a m c o m o s e n d o a u n i d a d e ( a á g u a , o a r, o f o g o e t c . ) o s e u
pensamento é o de que tudo é um.
54
Ari st ót el es, Fí si ca , A4, 187 a 12.
55
C f. Ni et zsche, A Fi l osof i a na Idade Trági ca dos Gregos , p.28.
45
Nas palavras de Heraclito: “Dando ouvidos não a mim mas ao
Logos, é avisado concordar em que todas as coisas são uma”. 56 Para
Heraclito é o fogo:
56
Ki rk e R aven, op. ci t . p. 189.
57
Idem , i bi dem . p. 201.
58
Idem , i bi dem , p.193.
59
Idem , i bi dem , p.56.
60
Idem , i bi dem , p.195.
46
unidade: “Uma conexão invisível é mais poderosa que uma
visível.”61 A conexão faz-se pela oposição entre os contrários:
“Eles não compreendem como o que está em desacordo concorda
consigo mesmo, há uma conexão de tensões opostas, como no caso
do arco e da lira." 62 A oposição entre contrários é polemos, guerra,
d a q u a l t o d a s a s c o i s a s e m e rg e m : “ É n e c e s s á r i o s a b e r q u e a g u e r r a
é comum e que a justiça é discórdia, e que tudo acontece mediante
discórdia e necessidade.” 63 No mesmo sentido: “A guerra é a origem
de todas as coisas e de todas ela é soberana, e a uns ela apresenta-os
como deuses, a outros, como homens; de uns ela faz escravos, de outros,
homens livres.”64 Referindo-se à totalidade dos contrários afirma:
1 . 5 . Á g u a , A r, F o g o , Te r r a
61
Idem , i bi dem , p.195.
62
Idem , i bi dem , p.195
63
Idem , i bi dem , p.197.
64
Idem , i bi dem , p.197.
65
Idem , i bi dem , p.193.
66
Idem , i bi dem , p.206.
47
Entre Heraclito e Empédocles s u rg i u Parménides. Como
anteriormente referimos, Parménides e a escola eleata produziram a
t e o r i a d o s e r, t e o r i a q u e s e c o n t r a p õ e c o m g r a n d e e v i d ê n c i a à
filosofia que lhe é precedente, nomeadamente, a produzida pelos
j ó n i o s . E n t r e e s t e s , Ta l e s , A n a x í m e n e s e H e r a c l i t o p o s t u l a m q u e o
u n o é m ú l t i p l o . O « p r i n c í p i o » e « e l e m e n t o » ( á g u a e m Ta l e s , o a r e m
Anaxímenes, o fogo em Heraclito) é aquilo de onde todas as coisas
provêm e no qual por fim se dissolvem, é a nascente e a foz de
todas as coisas, mas é também aquilo de que todas as coisas são
constituídas. Anaximandro afirma igualmente a multiplicidade dos
seres, no entanto separa o uno do múltiplo. Comum a todos os
j ó n i o s é o m o v i m e n t o e a m u d a n ç a . A p h y s i s d e Ta l e s , A n a x í m e n e s
e Heraclito é o mundo do devir: o perpétuo movimento de todas as
coisas desde a sua geração à sua destruição. Anaximandro postula
uma realidade separada da qual as coisas se cindem entrando no
mundo do devir e regressando por fim à unidade. Os eleatas ao
postularem o puro ser negam a multiplicidade, o movimento e a
mudança, contrapondo-se assim aos jónios.
48
amor e a discórdia: “E estas coisas nunca cessam de mudar
c o n t i n u a m e n t e , o r a c o n v e r g i n d o n u m t o d o , g r a ç a s a o A m o r, o r a c a d a
uma separada das outras pela Discórdia”. 68
68
Idem , i bi dem , p.335.
69
Idem , i bi dem , p.337.
70
Idem , i bi dem , p.342.
49
“ D e s t a s c o i s a s [ a r, á g u a , f o g o , t e r r a ] b r o t a r a m t o d a s a s c o i s a s
que foram e são e serão, árvores e homens e mulheres, animais
e pássaros e peixes criados na água, e também os deuses de
vida longa, os mais poderosos nas suas prerrogativas. Pois há
somente estas coisas, e correndo umas pelas outras, assumem
muitas formas: tantas mudanças produz a mistura.” 71
50
1.6. As Sementes
“ To d a s a s c o i s a s e s t a v a m j u n t a s , i n f i n i t a s t a n t o n o q u e d i z
respeito ao número como à pequenez, pois o pequeno também
era infinito. E enquanto todas as coisas estavam juntas,
nenhuma delas era evidente por causa da sua pequenez; porque
o ar e o éter cobriam todas as coisas, tanto em número como
em tamanho […] Mas antes de estas coisas se separarem,
enquanto todas as coisas estavam juntas, nem sequer havia
uma só cor que se reconhecesse; pois a mistura de todas as
coisas impedia-o, a mistura do húmido e do seco, do quente e
do frio, do claro e do escuro, e de muita terra na mistura e de
sementes sem conta, em nada semelhantes umas às outras. Pois
nenhuma das outras coisas se assemelha à outra. E visto que
isto é assim, temos que supor que todas as coisas estão no
todo.”73
A m i s t u r a d e A n a x á g o r a s n ã o é o a p e i ro n d e A n a x i m a n d r o ,
como Nietzsche observa:
73
Idem , i bi dem , p.341.
51
“Mas seria um grande engano pôr em pé de igualdade a
mistura originária de todos esses pontos, das «sementes das
coisas», e o elemento primordial de Anaximandro: este último
elemento, chamado «Indefinido», é uma massa absolutamente
h o m o g é n e a e p e c u l i a r, a o p a s s o q u e o c a o s d e A n a x á g o r a s
constitui um agregado de matérias diversas. Acerca deste
agregado de matérias pode dizer-se, sem dúvida, o que se dizia
do Indefinido de Anaximandro: foi o que fez Aristóteles; o
agregado de matérias não podia ser nem branco, nem cinzento,
n e m p r e t o , n e m d e o u t r a c o r q u a l q u e r, e r a i n s í p i d o , i n o d o r o e ,
no seu todo, não era determinado nem quantitativamente, nem
qualitativamente; é neste aspeto que o Indefinido de
Anaximandro e a mistura primordial de Anaxágoras são
semelhantes. Mas, à parte esta semelhança negativa,
distinguem-se de maneira positiva, na medida em que o
segundo é composto e o primeiro uma unidade.” 74
74
C f. Ni et zsche, op. C it . p. 95- 96.
52
“Os Gregos estão errados ao admitir o nascimento e a morte;
pois nada nasce ou morre, mas tudo se une e se separa, a partir
das coisas que existem. Por isso, andariam melhor em chamar
ao nascer composição e ao morrer dissolução.” 75
“ To d a s a s c o i s a s t ê m u m a p o r ç ã o d e t u d o [ s ã o h o m e o m e r i a s ] ,
mas o Espírito é infinito e autónomo, e não se mistura com
coisa alguma, mas existe só, de per si. Pois, se não existisse
de per si, mas se misturasse com qualquer outra coisa, teria
uma porção de todas as coisas, se se misturasse com alguma;
75
Ki rk e R aven, op. C it ., p. 382.
53
pois em tudo há uma porção de tudo […]; e as coisas com ele
misturadas opor-lhe-iam tal obstáculo, que ele não poderia
controlar nada, como o faz agora, existindo de per si.”76
76
Idem , i bi dem , p. 385.
77
C f. Ni et zsche, op. C it . p. 90.
78
Idem , i bi dem , p. 386.
54
i n c l u i n d o e s t a r o t a ç ã o e m q u e a g o r a a s e s t r e l a s e s t ã o a r o d a r,
o Sol e a Lua, o ar e o éter que estão separados. E esta rotação
provocou a separação. E o denso está separado do raro, o
quente do frio, o claro do escuro e o seco do húmido. Mas há
muitas porções de muitas coisas e nada está absolutamente
separado nem dividido da outra, exceto o Espírito. o Espírito é
todo semelhante, tanto as suas quantidades maiores como as
mais pequenas, ao passo que nenhuma outra coisa é igual a
qualquer outra, mas cada coisa é e era mais claramente aquilo
de que contém uma maior quantidade.” 79
1.7. Os Átomos
55
O seu discípulo, Demócrito, aponta para 40 anos antes de
Anaxágoras a data de nascimento do seu mestre. A Leucipo
atribuem-se duas obras: “A Grande Cosmologia” e “ S o b re a
Inteligência (ou Espírito)”.
81
Idem , i bi dem , 420.
82
Idem , i bi dem.
56
“À medida que eles [os átomos] se movem, colidem e
emaranham-se de tal maneira que se agarram uns aos outros
num contacto íntimo mas não tanto que na realidade formem
uma substância, seja de que espécie for; pois é muito simplista
supor-se que dois ou mais podiam alguma vez tornar-se um. A
razão que ele [Demócrito] dá para os átomos permanecerem
juntos por um tempo é entrelaçamento e adesão mútua dos
corpos primários; pois alguns deles são angulares, outros
recurvos, outros côncavos, outros convexos, e, na verdade,
com inúmeras outras diferenças; por isso ele pensa que eles se
agarram uns aos outros e ficam juntos até à altura em que
alguma necessidade mais forte vem do ambiente circundante e
os agita e dispersa.”83
“Ele [Demócrito] pensa que eles [os átomos] são tão pequenos,
que escapam aos nossos sentidos, mas têm toda a espécie de
formas e feitios e diferenças de tamanho. Assim ele pode, a
partir deles, como a partir dos elementos, c r i a r, por
83
Idem , i bi dem , p. 433.
84
Idem , i bi dem , p. 442.
57
agregação, massas que são percetíveis à vista e aos outros
sentidos.”85
85
Idem , i bi dem .
86
Idem , i bi dem , pp. 421- 422.
58
que as diferenças dos átomos são as causas das outras
87
coisas.”
Capítulo II
S er
59
unidade. A especificidade do pensamento de Xenófanes está na
conexão que estabelece entre a unidade e o divino. Nesse sentido
Aristóteles afirma:
60
diferentes ocasiões, mas antes, sem esforço, ele abala todas as
c o i s a s c o m o p e n s a m e n t o d o s e u e s p í r i t o [ … ] To d o e l e v ê ,
todo ele pensa, e todo ele ouve.”
Ser e não-ser
91
C f. Gi ovanni R eal e, op. ci t , p 97.
92
Idem , i bi dem . p 98.
61
Parménides nasceu entre 515 a 510 a.C. na Grécia Magna,
onde terá sido governante, em Eleia, e fundado a escola eleática.
Segundo o relato de Antifonte, no diálogo platónico “ Parménides”,
este e o seu discípulo Zenão visitaram Atenas por volta de 450-445,
altura em que contactaram com o então jovem Sócrates.
93
Ki rk e R aven, op. ci t . p. 274.
62
c a m i n h o q u e é e n ã o p o d e n ã o s e r, é a v i a d a P e r s u a s ã o , p o i s
acompanha a verdade; o outro, o que não é e é forçoso que não
exista, esse, digo-te, é um caminho totalmente impensável.
Pois não poderás conhecer o que não é (isso é impossível),
nem declará-lo, pois a mesma coisa tanto pode ser pensada
94
c o m o p o d e e x i s t i r. ”
94
Idem , i bi dem . p 275.
95
Idem , i bi dem . P. 277.
63
“De um só caminho nos resta falar: do que é; e neste caminho
há indícios de sobra de que o que é, é incriado e indestrutível,
porque é completo, inabalável e sem fim. não foi no passado
nem será no futuro, uma vez que é agora, ao mesmo tempo,
uno, contínuo; pois que origem lhe poderás encontrar? Como e
d e o n d e s u r g i r ? N e m e u t e p e r m i t i r e i d i z e r o u p e n s a r, « a p a r t i r
daquilo que não é», pois não é para ser dito nem pensado o
q u e n ã o é . E q u e n e c e s s i d a d e o t e r i a i m p e l i d o a s u r g i r, s e
viesse do nada, num momento posterior de preferência a um
anterior? Portanto é forçoso ou que seja inteiramente, ou nada.
Nem a força da verdadeira crença permitirá que, além do que
é, possa algo surgir também do que não é; por isso, a Justiça
n ã o s o l t a a s a l g e m a s d e d e i x a r n a s c e r o u p e r e c e r, a n t e s a s
segura. Acerca disto a decisão reside neste fato: é ou não é.
Decidido está pois, como é de necessidade, deixar um dos
caminhos como impensável e indizível – pois não é o caminho
verdadeiro - e que o outro é real e verdadeiro. Como poderia o
que é perecer depois disso? E como poderia ser gerado?
Porque se foi gerado, não é, nem se o vai ser no futuro. Assim
a geração se extingue ea destruição é impensável.” 96
96
Idem , i bi dem . p. 279- 280 .
64
1- O que não se pode pensar e dizer não existe! E daí
e s t a b e l e c e a c o n t r a p o s i ç ã o e m t e r m o s a b s o l u t o s : s e s e p o d e p e n s a r,
existe, ou seja, o mesmo é pensar e ser:
O s e r é , p o r t a n t o , o To d o , n ã o c o m o s o m a d a s p a r t e s , p o r q u e
n ã o h á p a r t e s , m a s c o m o u m t o d o - c o n t i n u u m e , a o To d o , n a d a f a l t a .
Mais uma razão para que do nada nada venha. Se o ser de nada
necessita, e é ingénito e imperecível, pois é eterno, então
permanece o mesmo desde sempre e para sempre:
97
Idem , i bi dem . p. 284.
98
Idem , i bi dem . p. 281.
65
n o s e u l u g a r. P o i s a f o r t e N e c e s s i d a d e o r e t é m n o s l i a m e s d o s
limites, que de cada lado o encerram, porque não é lícito ao
que é ser ilimitado; pois de nada necessita – se assim não
fosse, de tudo careceria […] Mas uma vez que tem um limite
extremo, está completo de todos os lados, à maneira da massa
de uma esfera bem rotunda, em equilíbrio a partir do centro,
em todas as direções; pois não pode ser algo mais aqui e algo
menos ali. Porque nem há o que não é, o qual poderia impedi-
lo de encontrar o seu igual, nem o que é pode ser mais aqui e
menos ali do que aquilo que é, visto ser todo inviolável; pois
sendo igual a si próprio em todos os lados, repousa
99
uniformemente dentro dos seus limites.”
Ser e aparência
99
Idem , i bi dem . p. 282.
66
“[…] no qual vagueiam os mortais que nada sabem, bicéfalos;
pois a incapacidade lhes guia no peito a mente errante; eles
são levados, surdos e cegos a um tempo, totalmente
confundidos – multidões sem discernimento, persuadidos de
que ser e não ser são a mesma coisa, apesar de o não serem, e
para quem o caminho de todas as coisas é reversível.” 100
Ta l c o m o o c a m i n h o d o n ã o - s e r, o c a m i n h o d a s a p a r ê n c i a s
d e v e s e r r e j e i t a d o . I s t o p o r q u e o p u r o s e r, t a l c o m o P a r m é n i d e s
postula, é a abstração de toda a realidade sensível, isto é, é tudo
aquilo que a razão pode dizer do mundo sem o recurso aos sentidos.
Ou melhor dizendo, é a negação daquilo que atestam os sentidos, é
a n e g a ç ã o d o d e v i r. O s e r é , p o r t a n t o , a n e g a ç ã o d o m ú l t i p l o , p o i s é
uno, é a negação do movimento, pois é imóvel, é a negação da
geração e da destruição, pois é eterno.
100
Idem , i bi dem , p. 277.
101
Idem , i bi dem .
67
crítica, construtiva em todo o caso, a essa forma de fazer filosofia.
Assim, estabelece dois «princípios» e «elementos», segundo os
r e l a t o s d e Te o f r a s t o e A r i s t ó t e l e s :
102
Idem , i bi dem , p. 286.
103
Idem , i bi dem , p. 285.
68
filosofia jónia. No entanto ressalva que o discurso da aparência é
ilusório:
O Ser e o Uno
É s o b r e a s q u e s t õ e s d o s e r- u n o e d a i m o b i l i d a d e d o s e r
parmenídeo que Zenão, discípulo de Parménides, vai sair em
defesa. Zenão nasceu em Eleia, por fins do século VI ou no início
d o s é c u l o V a . C . 1 0 5 . D a s u a o b r a c h e g a r a m - n o s q u a t r o a rg u m e n t o s
contra o pluralismo (terá produzido cerca de quarenta) e quatro
contra o movimento. É considerado o inventor da dialética,
e n q u a n t o m é t o d o d e a rg u m e n t a ç ã o e r e f u t a ç ã o a t r a v é s d e p e rg u n t a s
e respostas, procurando provar determinada tese reduzindo ao
absurdo a tese oposta. Neste seu estádio inicial a dialética é assim
um método que, mais do que procurar o verdadeiro, como vem a
acontecer na filosofia de Platão, que a considerava uma ciência,
procura desmascarar o falso.
“ – Ve j o b e m , P a r m é n i d e s – d i s s e e n t ã o S ó c r a t e s – q u e n ã o é
só o laço da amizade que te une a Zenão mas também o dos
escritos, pois Zenão expõe, mais ou menos, as mesmas coisas
que tu; emprega apenas palavras diferentes e esforça-se por
n o s c o n v e n c e r d e q u e d i z c o i s a s d i f e r e n t e s . Tu , n o s t e u s
poemas, afirmas que tudo é um, e apresentas belas e
104
Idem , i bi dem , p. 285.
105
C f. Gi ovanni R eal e, op. ci t ., p. 117.
69
excelentes provas; ele afirma que a pluralidade não existe, e
oferece-nos provas abundantes e sólidas. Deste modo, dizendo
tu que tudo é um, e ele que nada é múltiplo, parece que
apresentais pontos de vista diferentes (se bem que, no fundo,
sejam o mesmo) e julgais enganar-nos. – É verdade, Sócrates –
d i s s e Z e n ã o . – To d a v i a , n ã o a p r e n d e s t e o v e r d a d e i r o s e n t i d o
do meu livro, embora, à semelhança dos cães da Lacónia,
saibas seguir admiravelmente o rasto dos pensamentos que se
exprimem. No entanto, deixaste escapar qualquer coisa de
primordial: é que o meu livro não tem pretensões tão altas e,
ao escrevê-lo, não tive o propósito que me atribuis de
dissimulá-lo aos olhos dos leitores como se tivesse realizado
uma grande obra. Porém, houve um ponto em que acertaste: é
perfeitamente certo que que esse escrito obedeceu ao
propósito de apoiar a tese de Parménides, contra aqueles que
procuram escarnecê-la dizendo que, se tudo fosse uno,
resultariam daí inúmeras consequências absurdas e
contraditórias. É uma réplica dirigida aos defensores da
pluralidade. Devolve-lhes os seus argumentos, e com usura. A
sua finalidade consiste em demonstrar que a hipótese da
pluralidade é muito menos consistente que a unidade, para
quem saiba ver bem as coisas. o amor da discussão levou-me,
quando ainda era jovem, a escrever essa obra. e, como a
plagiaram, não pude refletir se deveria ou não deixá-la sair à
luz. Enganas-te, pois, Sócrates, se atribuis esse livro à
ambição dum velho, quando é obra de um moço, amigo da
p o l é m i c a . To d a v i a , r e p i t o , n ã o o i n t e r p r e t a s - t e m a l . ” 1 0 6
A a rg u m e n t a ç ã o d e Z e n ã o c o n t r a a p l u r a l i d a d e a s s e n t a n a
conceção de que a haver multiplicidade esta teria de ser uma
multiplicidade de unidades, mas isso, para ele, é impossível:
70
multiplicidade de unidades, é necessário que existam aquelas
múltiplas unidades da qual, justamente, a multiplicidade é
constituída. Se, pois, demonstrar-mos ser impossível existir
múltiplas unidades, é evidente que resultará (ser) impossível a
existência da multiplicidade, porque a multiplicidade é
composta de unidades. Se é impossível que exista a
multiplicidade e se, de outro lado, é necessário que exista ou
o Uno ou a multiplicidade, porque não é possível que exista a
multiplicidade, não resta senão admitir que só existe a
107
unidade."
107
C f. Gi ovanni R eal e, Op. cit , p. 122.
71
pois não tendo tamanho algum, não podia, ao ser acrescentado,
causar qualquer aumento de tamanho. E assim, o que fosse
acrescentado seria evidentemente nada. E também se, ao ser
tirado, a outra coisa não fica m e n o r, tal como, quando
acrescentada, não aumenta, é óbvio que o que foi juntado ou
tirado era nada.
E s t e é o p r i m e i r o a rg u m e n t o d e Z e n ã o c o n t r a a p l u r a l i d a d e . O
segundo vem no seguimento do primeiro neste sentido: a haver uma
multiplicidade, então existe uma infinidade. Havendo uma
infinidade, não existe qualquer tipo de unidade, pois uma
infinidade completa é inconcebível. Daí nada pode existir de
infinito, pois seria uma infinidade completa.
108
Ki rk e R aven, Op. C it ., p. 295.
72
e ainda outras coisas entre essas outras. E assim as coisas que
existem são infinitas.”109
109
Idem , i bi dem , p.296.
110
Idem , i bi dem , p 383.
73
não deve ter corpo algum. Se tivesse grandeza, teria partes e
já não seria Uno.” 111
“Se não fosse um só, seria limitado por alguma outra coisa
[…] Porque, se fosse (infinito), seria um só; porque, se fosse
111
Idem , i bi dem , p 312.
112
Idem , i bi dem , pp 282-283.
113
Idem , i bi dem , p 308.
74
dois, os dois não podiam ser infinitos, mas seriam limitados
um pelo outro.” 114
114
Idem , i bi dem , p 309.
115
Idem , i bi dem .
116
É esse pensam ent o que se encont ra na fi l osofi a dos At omi st as.
117
Idem , i bi dem , p.314.
75
Na sua crítica do pluralismo, Melisso não tem em mente os
Pitagóricos, como acontecia com Zenão, mas sim os físicos,
particularmente Heraclito e a teoria do devir entre contrários,
conforme se induz do seguinte fragmento:
118
Idem , i bi dem , (C ont .).
76
vemos de cada vez. é, pois, evidente que, afinal, não vimos
bem, nem temos razão em acreditar que todas estas coisas são
plurais. elas não mudariam se fossem reais, antes cada coisa
seria precisamente aquilo que acreditávamos que era; pois
nada é mais forte do que a verdadeira realidade. Mas se
acontece que mudou, o que é, pereceu, e o que não é, chegou a
s e r. P o r c o n s e g u i n t e , s e h o u v e s s e u m a p l u r a l i d a d e , a s c o i s a s
teriam que ser precisamente da mesma natureza que o Uno.” 119
Capítulo III
A questão do movimento
Ta m b é m a t r i b u í a m u m a n a t u r e z a c i n é t i c a a o s e l e m e n t o s : o
curso dos rios e as ondas do mar no caso da água, o vento no caso
d o a r, a n a t u r e z a e x p a n s i v a d o f o g o . E e s s a é t a m b é m u m a d a s
razões porque a terra é o único dos corpos simples que não aparece
119
Idem , i bi dem , p 315.
120
Ari st ót el es, Fí si ca , 1,250b11.
77
como “princípio” e “elemento” entre os físicos. A terra é o
elemento mais pesado, mais denso, menos sujeito a transformações
qualitativas, em suma, é o elemento inerte, quando comparado com
os outros elementos.
121
Ari st ót el es, Met af í si ca , A4/ 5, 985 b 19 – 986 a 10.
122
Idem , i bi dem , de A 6/ 7, 988 a 8 – 33 a A7/ 8, 988 a 34 – b 23.
78
«Este [Parménides], com efeito, ao reconstruir a origem do
universo diz: “Primeiro entre todos os deuses (a deusa)
produziu o Amor”; enquanto Hesíodo diz: “Antes de tudo
existiu o caos, depois foi a terra do amplo ventre e o Amor
que resplandece entre todos os imortais”, como se ambos
reconhecessem que deve existir nos seres uma causa que move
e reúne as coisas”.123
123
Idem , i bi dem , pp. A ¾, 984 b 1 – 25 a A 4, 984 b 26 – 985 a 22.
124
Idem , i bi dem , p. A 7/ 8, 988 a 34 – b 23.
125
Ki rk e raven, op. C it . p. 282.
79
massa de uma esfera bem rotunda, em equilíbrio a partir do centro,
em todas as direcções.” 126
Ta l c o m o c o m a q u e s t ã o d a p l u r a l i d a d e , a a rg u m e n t a ç ã o d e
Zenão contra o movimento visa defender o ser uno e imóvel
p a r m e n í d e o . O s a rg u m e n t o s q u e n o s c h e g a r a m t ê m e m m i r a o s
Pitagóricos. Dada a confusão que esses filósofos faziam entre
unidades da aritmética com pontos da geometria, atribuíam
dimensão física aos números – massa e extensão espacial. Assim,
todas as coisas, incluindo espaço e tempo, seriam constituídas por
essas unidades (aritmética) - pontos (geometria) – átomos
(constituição material das coisas). Dessa forma caíam na seguinte
contradição: cada uma dessas unidades-pontos-átomos seria,
simultaneamente, indivisível, pois a unidade aritmética seria a
realidade última de todas as coisas, mas teria extensão espacial, e
a s s i m s e r i a i n f i n i t a m e n t e d i v i s í v e l . O s a rg u m e n t o s d e Z e n ã o v i s a m
e s s a s d u a s i d e i a s q u e o s P i t a g ó r i c o s t i n h a m d e a d m i t i r. Te n t a n d o
a s s i m e n c u r r a l a r, r e d u z i n d o a o a b s u r d o , a s t e s e s , s o b r e t u d o a s
pitagóricas, defensoras do movimento.
O a rg u m e n t o d o E s t á d i o :
126
Idem , i bi dem , p 282.
80
“O primeiro argumento afirma a não existência do movimento
com base em que aquilo que está em locomoção deve chegar a
meio do caminho antes de chegar à meta…” 127
E s t e a rg u m e n t o b a s e i a - s e n a d i v i s i b i l i d a d e i n f i n i t a d o e s p a ç o .
Com efeito, a distância compreendida entre o ponto de partida e o
ponto de chegada da pista de corrida tem uma determinada extensão
espacial. Para se cumprir essa extensão terá de se chegar
primeiramente a meio do caminho, e para se atingir essa primeira
metade da pista tem de se cumprir primeiro a primeira metade da
primeira metade… e o raciocínio prossegue assim ad infinitum, de
forma a se concluir pela impossibilidade do movimento.
O a rg u m e n t o d e A q u i l e s e a Ta r t a r u g a :
N e s t e a rg u m e n t o Z e n ã o p a r t e d a o u t r a c o n c e ç ã o c o m q u e o s
Pitagóricos também teriam de concordar: o espaço e o tempo, tal
como todas as coisas, são constituídos por unidades-pontos-átomos
indivisíveis. A tartaruga, partindo de um ponto mais à frente de
Aquiles, terá sempre a dianteira, pois Aquiles, mesmo sendo mais
rápido, terá sempre de alcançar os mesmos pontos por onde a
127
Ari st ót el es, Fí si ca , Z9,239 b11.
128
Ki rk e R aven, op. ci t ., p. 301.
81
tartaruga já passou e não a pode ultrapassar porque não pode
o c u p a r, e m n e n h u m a a l t u r a , o m e s m o p o n t o d a t a r t a r u g a , p o i s o
espaço é indivisível.
O a rg u m e n t o d a “ S e t a v o a d o r a ” v a i n o m e s m o s e n t i d o :
129
Ari st ót el es, Fí si ca , z9, 239 b 30.
82
Conclusão
83
A filosofia nasce na periferia do mundo Grego. É nos dois
pólos opostos da Grécia: na Jónia a Oriente e na Península Itálica a
O c i d e n t e q u e s u rg e m a s p r i m e i r a s f i l o s o f i a s . P r i m e i r o s e n t r e t o d o s ,
os físicos jónios fundam a filosofia da physis, natureza,
crescimento. Os físicos apresentam uma explicação racional para a
origem do mundo fundada, tanto quanto possível, na observação dos
fenómenos da natureza. Procurando dessa forma fazer a rutura com
as cosmogonias, que remetem as explicações sobre a origem do
mundo para entidades sobrenaturais. A explicação dos físicos jónios
consiste em subsumir a physis a um «princípio» e «elemento»
ingénito e imperecível, eterno, portanto. O pensamento contido na
ideia de eternidade da physis é o de que os fenómenos que atuam
agora na natureza existem desde sempre, são cognoscíveis e não
resultam de uma intervenção sobrenatural.
84
interpretação tradicional, de forma a colocar Parménides e
Heraclito em dois pólos opostos do pensamento.
85
abstrata, a razão. Das suas observações do mundo do devir os
físicos extraíram a ideia de eternidade: a physis como «princípio» e
«elemento» é eterna, e a ideia de unidade: o múltiplo é o
desdobramento do «princípio» e «elemento», tal é a representação
abstrata contida no pensamento: o uno é múltiplo.
O s e l e a t a s , q u e e s t a v a m a p a r d e s s a f o r m a d e p e n s a r, c h e g a r a m
aonde os físicos chegaram e a partir desse ponto distinguiram-se
deles. Enquanto na teoria dos físicos estão conciliadas a
representação intuitiva da natureza e a representação abstrata, os
eleatas tomaram por verdadeira e absoluta a realidade do
p e n s a m e n t o q u e c o n c e b e o u n o e o e t e r n o e a t r i b u í r a m - l h e o s e r.
Daí que para Parménides: “O mesmo são o ser e o pensar”. Assim
p r o d u z i r a m a t e o r i a d o S e r- U n o - I m ó v e l .
86
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