CCS, Relatório da Aula de Segunda, Filme sobre Van Gogh
Loving, Vincent, 30.10.2017
E vou mostrar–te algo distinto
De tua sombra a caminhar atrás de ti quando amanhece Ou de tua sombra vespertina ao teu encontro se enlevando, Vou revelar–te o que é o medo num punhado de pó. T. S. Eliot, Terra Desolada
Elementos repetitivos de Van Gogh – a crescente maré – as
estrelas a se confundirem com chamas de velas a furarem lençóis azuis – ou mesmo as plantações sujas, empesteadas por um amarelo doente a se dizer de trigo – diziam algo, sobretudo, a Van Gogh. Caso contrário, bastaria que ele as pintasse uma única vez – ou nunca se deparasse com elas em vida. O que elas diziam ao seu ouvido ultrassensível, a ponto de fazê-lo cortar-lhe uma parte – para, talvez, ouvirem menos seus murmúrios? Viveria, nestas paisagens oscilantes, uma Sibila – uma sibila que, de tanto viver, já não desejava mais nada além da morte? Seria ela uma voz que, enclausurada em pó, plasmava–se em pinturas por precisar de um corpo maior para continuar dizendo o que precisava – pedindo sua nutrição – morrer – por isso – tanto viveu? Os resquícios de seu pó estão espalhados na paisagem tão loucamente serena em sua última aparição, Campo de trigo com corvos – talvez ali, estivera prestes a ser ouvida – não sabe–se se ouvida por Van Gogh ou por aquele que ouve em Van Gogh – aquele cuja audição tornou–se maldição – de tão afinada que era, gostaria de não ser tanto assim. Talvez a condição que ele tinha para parar de ouvi-la era ouvi-la até o fim de sua voz – até que ela não pudesse mais lhe falar – não havia concessão a ser feita para alcançar uma suposta paz de sua própria audição. Eu me pergunto então como pode-se achar uma paz num lugar que não concede paz a menos que se pinte oito horas por dia – cem pinturas por ano? Neste caso, recomenda-se fortemente que se mude, completamente, o que se entende pelo significado da palavra paz. A paz aqui – na verdade, o caminho que parece levar a ela – não difere do caminho que leva a uma festa interna: a margem da sufocante consciência de estar, antes de qualquer coisa (sobre qualquer coisa – sob, também, qualquer coisa – estou, mesmo que debaixo de uma pilha de quinquilharias – ou um monte de feno, que, teoricamente, não deixariam nenhum ser continuar assim) tão vivo. Ao sufocar–se nessa consciência – ao beirar o pé no chão imaterial –, não parece mais existir opções alternativas entre estar vivo e viver: um estado leva ao outro através das constantes necessidades de se relacionar com a voz que sempre vem ou que sempre precisa vir – pintar transmuta–se numa interpolação de demandas: silenciar e fazer falar. ___ No fundo de seus olhos sem pestana de açougueiro, Van Gogh dedicava-se incansavelmente a uma dessas operações de alquimia sombria que veem a natureza por objeto e o corpo humano por vasilhame ou crisol. Antonin Artaud, Van Gogh: O suicidado pela sociedade, pág. 28
Uma das coisas que me fascinam em Rubens – e que é vista
nessa frase de Artaud sobre Van Gogh – é o poder de conversão de uma coisa para outra – de um estado para outro – seja ele qual for – o que implica que essa coisa a ser transformada não está delimitada por uma gramática específica – o que leva a característica de ser mesmo algo incompreensível – pois já não se trata mais de uma questão de dominar algo para transformá-lo – mas de deixar algo para que seja possível alguma transformação. Isso me faz pensar que, se existe medo – agonia – desespero – podem ele ser materializados, de forma que isso altere, inclusive, a forma de sua matriz – a ponto de que, se eles existirem numa outra instância, podem inaugurar, portanto, uma nova relação? E que esta, por ser nova, nomeá–los–ia imediatamente – novamente – sempre novamente – pois uma vez que a matriz foi alterada, esta não mais reconhece nome algum? Posso, então, deixá–los que vivam aqui – um pouco fora de mim? Como se dá qualquer alquimia aqui? Eu lanço para a pergunta um pedido – a de que o desespero tome esta forma literária, que seja – ela vai mudar de nome eternamente – para si – e que, sob outra forma, passe a andar sob novos calçados – que, por ser um aprendiz do andar, irá fabricar passos tortos que trilharão um caminho – também torto – sobre o qual eu não poderei ir – mas irei pois o desespero – sob nova tutela – já terá ido na frente.