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IHU A economia

ON-LINE
ON-LINE
e o paradoxo
Revista do Instituto Humanitas Unisinos
Nº 454 - Ano XIV - 15/09/2014
ISSN 1981-8769 (impresso)
da felicidade
ISSN 1981-8793 (online)

Foto: Doug88888/Flickr-Creative Commons

Hervé Kempf: Castor Ruiz: John Ralston:


O sistema oligárquico A dívida como A superação da
que está nos levando dispositivo biopolítico globalização e
à destruição de governo da vida do crescimento
E MAIS

Stefano Zamagni: Ivan Izquierdo: Nísia Martins do Rosário:


O desenvolvimento “A vida é uma As implicações do capitalismo tardio
da economia civil sequência de memórias” na reconfiguração do humano
A economia e o paradoxo
Editorial

da felicidade

A
colonização do econômico, John Ralston Saul, ensaísta e filó- Três entrevistas completam a edi-
e neste do setor financeiro, sofo canadense, afirma que precisamos ção. Ivan Izquierdo, professor de Medici-
sobre todas as dimensões da dar atenção a uma distribuição mais na e coordenador do Centro de Memória
vida humana é que faz emer- interessante dos bens e a uma passa- da Pontifícia Universidade Católica –
gir a pergunta pela felicidade. O Para- gem gradativa da produção em massa PUCRS, descreve a importância da me-
doxo da Felicidade evidencia que não para a produção com qualidade, capaz mória para a vida humana e os modos
há uma relação direta entre o enrique- de gerar mais empregos e com melhor como esta é impactada pela tecnologia.
cimento de um País e a felicidade de seu qualificação. Nísia Martins do Rosário, profes-
povo. Ou seja, erigir o Produto Interno Cláudio Oliveira da Silva, profes- sora do Programa de Pós-Graduação em
Bruto – PIB – como categoria e critério sor do Departamento de Filosofia da Comunicação e Informação da Univer-
de uma política econômica é um enga- Universidade Federal Fluminense – UFF, sidade Federal do Rio Grande do Sul –
no. Uma economia que está a serviço da propõe, a partir de Agamben, que a UFRGS, reflete sobre as representações
sociedade e da pessoa humana, e não o ideia de estado mínimo e da mão invi- do corpo nas audiovisualidades. Para
contrário, exige outras categorias e cri- sível do mercado estariam relacionadas ela, o imaginário do corpo na contem-
térios que levem em conta a felicidade com a decadência da dimensão política
poraneidade é dirigido pelo capitalismo
dos seres humanos. – que se torna subjugada à economia.
tardio, que aplica a regra da liberação do
Na discussão do tema central da Isso leva a uma animalização do huma-
fluxo do desejo para atingir o consumo.
revista IHU On-Line desta semana, par- no, implicando no que o filósofo chama
José Roque Junges, professor e pes-
ticipam professores e pesquisadores de de zoopolítica.
quisador do Programa de Pós-Gradua-
diferentes áreas do conhecimento. Richard Easterlin, criador do Pa-
Castor Bartolomé Ruiz, professor ção em Saúde Coletiva, comenta o livro
radoxo da Felicidade, argumenta que o
nos cursos de graduação e pós-gradu- Produto Interno Bruto de um País men- A Política da própria Vida: Biomedicina,
ação em Filosofia da Unisinos, reflete sura somente bens ou mercadorias, sem Poder e Subjetividade no Século XXI de
sobre a lógica sacrifical em Agamben e, levar em conta critérios “não materiais” Nikolas Rose. O livro será apresentado
especialmente, em Benjamin para pro- como família, vida e saúde. e comentado pelo professor da Unisinos
por a dívida e a culpa como dispositivos Por fim, o artigo de Stefano Za- no dia 23 de setembro. Nikolas Rose é
biopolíticos de governo da vida pelo magni, professor da Universidade de um dos conferencistas que participará
Capital. Bolonha, Itália, e vice-diretor da sede do XIV Simpósio Internacional IHU: Re-
Hervé Kempf, jornalista e ensaísta italiana da Johns Hopkins University, de- voluções tecnocientíficas, culturas, indi-
francês, alega que mais do que em uma fende as bases para uma Economia Civil víduos e sociedades. A modelagem da
democracia ou mesmo uma ditadura, fundamentada não mais na “dicotomia vida, do conhecimento e dos processos
vivemos atualmente em uma oligarquia público-privado” (Estado e mercado), produtivos na tecnociência contemporâ-
bancária, cuja defesa das potências fi- mas na “tricotomia público, privado e nea, nos dias 21 a 23 de outubro.
nanceiras tende a nos encaminhar à civil” – organizações e corpos sociais A todas e a todos uma boa leitura e
própria destruição. intermediários. uma excelente semana!
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IHU
Instituto Humanitas
REDAÇÃO Colaboração: César Sanson,
Unisinos
André Langer e Darli Sampaio,
Diretor de redação: Inácio do Centro de Pesquisa e Apoio
Neutzling (inacio@unisinos.br). aos Trabalhadores – CEPAT, de
Endereço: Av. IHU On-Line é a revista Redação: Inácio Neutzling, Curitiba-PR.
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Humanitas Unisinos – IHU Experimental de Comunicação
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ISSN 1981-8769. da Unisinos – Agexcom.
Márcia Junges MTB 9447
Telefone: 51 3591 1122 – ramal 4128. Editoração: Rafael Tarcísio
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acessada às segundas-feiras, Patrícia Fachin MTB 13.062
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Sua versão impressa circula às
Gerente Administrativo: Jacinto (ricardom@unisinos.br). Farias, Julian Kober, Nahiene
terças-feiras, a partir das 8h,
Schneider (jacintos@unisinos.br).
na Unisinos. Revisão: Carla Bigliardi Machado e Larissa Tassinari

2
Índice
LEIA NESTA EDIÇÃO
TEMA DE CAPA | Entrevistas
5 Hervé Kempf – O sistema oligárquico que leva à destruição
8 John Ralston Saul – A superação da globalização e do crescimento
12 Richard Easterlin – O aumento dos bens ou mercadorias e o crescimento das
“necessidades”
14 Stefano Zamagni – O desenvolvimento da economia civil. Por um estado social
subsidiário
18 Castor Bartolomé Ruiz – A dívida como dispositivo biopolítico de governo da vida
humana
25 Cláudio Oliveira – O domínio avassalador da economia sobre a política
29 Baú da IHU On-Line

DESTAQUES DA SEMANA
31 Destaques On-Line
33 Entrevista da Semana – Ivan Izquierdo – “A vida é uma sequência de memórias”
36 Entrevista da Semana – Nísia Martins do Rosário – Corpo audiovisual – As implicações
do capitalismo tardio na reconfiguração do humano

IHU EM REVISTA
43 José Roque Junges – A vida nas interfaces das mutações tecnocientíficas e suas
repercussões sobre a subjetividade
46 Publicação em Destaque – Cadernos IHU ideias: Foucault e a Universidade: entre o
governo dos outros e o governo de si mesmo
47 Retrovisor

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3
Tema
de
Capa

Destaques
da Semana
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IHU em
Revista
4 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
O sistema oligárquico que leva à

Tema de Capa
destruição
“O que está em jogo é a existência de uma sociedade humana estável e pacífica, que
garanta a cada ser humano uma existência digna. Este estado tem sua existência
gravemente afetada pela crise ecológica, que ameaça a biosfera, e pela amplitude
das desigualdades, que geram uma guerra civil mundial”, aponta Hervé Kempf

Por Márcia Junges e Luciano Gallas / Tradução: Vanise Dresch

“N
ão estamos nem na ditadura, nem seja uma potência, não deixa de estar em fase
na democracia. O sistema em que de decrepitude. Por quê? Porque, hoje, ele só
vivemos tem um nome: oligarquia. pode se perpetuar pela especulação financeira
Uma casta defende os interesses das potências (que levou justamente ao abalo de 2007-2008),
financeiras, que exercem uma influência des- isto é, segundo uma lógica perversa que privile-
medida na vida política, notadamente graças gia o rendimento dos ativos financeiros em de-
às mídias de massa e aos lobbies. No sistema trimento do funcionamento da economia real
oligárquico, a casta dos dirigentes reúne os po- da produção e da comercialização dos bens”,
deres econômico, político e midiático. Este sis- complementa.
tema visa manter os privilégios dos ricos, des- Hervé Kempf é jornalista e ensaísta francês.
prezando as urgências sociais e econômicas”, É editor do sítio Reporterre – http://www.repor-
constata Hervé Kempf na entrevista que segue, terre.net. Entre suas obras, podem ser citadas
concedida por e-mail à IHU On-Line. Como os Ricos Destroem o Planeta (Comment
“No que se refere ao capitalismo, o abalo les riches détruisent la planète – São Paulo: Edi-
financeiro que ocorreu a partir de 2007-2008 tora Globo, 2010), Para Salvar o Planeta, Liber-
deu início a uma fase de profunda mutação do te-se do Capitalismo (Pour sauver la planète,
sistema econômico mundial. Concretamente, sortez du capitalisme – Campinas: Saberes Edi-
isso significa que estamos saindo do capitalis- tora, 2012), O Fim do Ocidente e o Nascimen-
mo, da mesma maneira que a Europa saiu do to do Mundo (Fin de l’Occident, naissance du
Império Romano a partir do século III, ou saiu monde – Barcarena: Editorial Presença, 2013),
da Idade Média pelo Renascimento. Devemos, L’oligarchie ça suffit, vive la démocratie (“Basta
pois, considerar o capitalismo como um mo- de oligarquia, viva a democracia” – Paris: édi-
mento histórico que teve sua juventude e sua tions du Seuil, 2013) e Notre-Dame-des-Landes
expansão (séculos XVIII e XIX), alcançando seu (Paris: éditions du Seuil, 2014).
apogeu no fim do século XX. Mesmo que ainda Confira a entrevista.
www.ihu.unisinos.br
IHU On-Line – O senhor afirma lítica, notadamente graças às mídias viciada, porque as mídias de massa são
que nossa democracia caminha para de massa e aos lobbies. No sistema amplamente controladas pela oligar-
o fim e que uma oligarquia assumirá oligárquico, a casta dos dirigentes re- quia. A escolha majoritária está viciada
o seu lugar. O Ocidente conheceu, no úne os poderes econômico, político e pelo peso dos lobbies ou, às vezes, pela
passado, alguma democracia autênti- midiático. Este sistema visa manter os negação pura e simples da escolha po-
ca, ou isso é uma ficção? privilégios dos ricos, desprezando as pular, como vimos na Europa por oca-
Hervé Kempf – Não falo do futu- urgências sociais e econômicas. sião do referendo de 2005, quando a
ro, mas, sim, do presente. O que digo No Ocidente, a democracia nunca vontade popular (que recusou o proje-
é que não estamos nem na ditadura, alcançou uma forma perfeita. Porém, to do tratado constitucional) foi traída
nem na democracia. O sistema em que sua vitalidade foi bem maior entre os (o tratado acabou sendo imposto). O
vivemos tem um nome: oligarquia. anos de 1945 e 1980 do que é hoje. Sua reconhecimento das minorias se per-
Uma casta defende os interesses das saúde, se assim podemos dizer, degra- de sob o efeito da repressão cada vez
potências financeiras, que exercem dou-se progressivamente desde a dé- mais aberta dos rebeldes, enquanto
uma influência desmedida na vida po- cada de 1980: a deliberação livre está o respeito aos direitos humanos e às

EDIÇÃO 454 | SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 5


liberdades públicas é vilipendiado em considerar o capitalismo como um Por fim, a ideologia capitalista
Tema de Capa
nome das políticas antimigratórias. E momento histórico que teve sua ju- não oferece mais um horizonte de
por toda parte, a influência dos bancos ventude e sua expansão (séculos XVIII pensamento às sociedades modernas:
e das finanças é imensa, principalmen- e XIX), alcançando seu apogeu no fim ela não faz senão repetir compulsiva-
te nos meios políticos. do século XX. Mesmo que ainda seja mente a apologia do mercado, do cres-
uma potência, não deixa de estar em cimento e do individualismo, valores
IHU On-Line – É possível recon- fase de decrepitude. Por quê? Porque, esses que se tornam manifestamente
quistar a democracia? hoje, ele só pode se perpetuar pela contrários ao interesse comum.
Hervé Kempf – Sim. Os regimes especulação financeira (que levou jus-
políticos não são estados inertes, e tamente ao abalo de 2007-2008), isto IHU On-Line – Então podemos
sim processos dinâmicos. O sistema é, segundo uma lógica perversa que falar de várias crises concomitantes,
oligárquico visa à estabilidade da or- privilegia o rendimento dos ativos fi- como a da economia, da ecologia, do
dem que mantém os privilégios dos nanceiros em detrimento do funcio- trabalho e a energética?
poderosos. No entanto, ele não conse- namento da economia real da produ- Hervé Kempf – Entendo o que
gue sufocar a cultura democrática que ção e da comercialização dos bens. você chama de crise do trabalho
impregna as sociedades ocidentais, como a existência de um desemprego
tampouco destruir totalmente os ins- Capitalismo mortífero maciço em escala mundial, que afeta
trumentos da representação, mesmo A crise ecológica em que entra- especialmente as jovens gerações.
que os tenha amplamente pervertido mos – e que envolve um campo his- Esta crise me parece estar ligada a
pelo dinheiro. No que se refere aos tórico com uma profundidade muito dois fenômenos característicos do ca-
Estados Unidos, o peso da oligarquia maior que o do capitalismo – corres- pitalismo atual.
é tão grande que eu duvido que eles ponde ao momento em que, pela pri- De um lado, a estruturação in-
consigam resgatar a democracia. Po- meira vez desde que a espécie humana ternacional do poder impediu muitos
rém, na Europa, muitas lutas atestam existe, ela se depara com os limites da países de alcançar um desenvolvi-
a grande vontade de recuperá-la. E no biosfera. Enquanto sempre nos desen- mento autônomo que lhes permitisse
mundo inteiro, da Tunísia ao Egito ou volvemos sem nos preocuparmos com dar trabalho a todos os seus cidadãos.
da China à Turquia, vemos afirmar-se o meio ambiente, ou contra ele muitas O livre comércio generalizado é pos-
a consciência democrática dos povos. vezes, eis o momento em que devemos to em xeque, pois coloca no mesmo
encontrar um meio de nos realizarmos plano de concorrência os países ricos
IHU On-Line – Em que medida como sociedade, mas restringindo, ao e fortes e os países pobres e fracos:
a crise global que se intensificou em mesmo tempo, o que extraímos da refiro-me especialmente à África, mas
2008 caminha para uma crise mais biosfera e nosso impacto sobre ela. isso vale para muitos outros países
profunda do capitalismo, que amea- A amplitude desse desafio, que o (vejam, por exemplo, como o Tratado
ça a sua existência? capitalismo é incapaz de enfrentar, ex- de Livre Comércio entre Canadá, Esta-
Hervé Kempf – Precisamos assi- plica por que ele está atingindo o seu dos Unidos e México – NAFTA enfra-
nalar aqui que o problema da existên- fim histórico: ele não está mais adap- queceu a economia deste último). Do
cia ou não do capitalismo – uma for- tado às necessidades da nossa época outro lado, a concepção econômica
ma histórica particular – não tem uma e tornou-se mortífero. Para manter a predominante hoje privilegia a busca
importância primordial. O que está sua existência, ele é obrigado a levar da produtividade do trabalho no jogo
em jogo é a existência de uma socie- cada vez mais longe a lógica de pri- da concorrência econômica. Isso leva
dade humana estável e pacífica, que vatização e mercantilização dos bens a eliminar cada vez mais os trabalha-
garanta a cada ser humano uma exis- comuns, o que conduz a uma explora- dores para substituí-los por máquinas,
tência digna. Este estado, que, em es- ção desmedida e à destruição destes gerando desemprego.
cala mundial, é o ideal a que devemos bens. Na verdade, é a própria lógica
visar, tem sua existência gravemen- do capitalismo, baseada na apropria- IHU On-Line – Por que a demo-
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te afetada pela crise ecológica, que ção individual das riquezas com o ob- cracia e a ecologia são inseparáveis?
ameaça a estabilidade indispensável jetivo de aumentar indefinidamente o Hervé Kempf – A crise ecológica
da biosfera, e pela amplitude das de- lucro, que leva à destruição do meio gera uma restrição histórica totalmen-
sigualdades, que geram uma guerra ambiente. Num momento histórico te nova e nos impõe uma verdadeira
civil mundial mais ou menos latente. em que esta destruição não é mais transformação das sociedades oci-
No que se refere ao capitalismo, aceitável devido ao perigo que repre- dentais, de seus modos de vida, de
o abalo financeiro que ocorreu a par- senta para a salvação da humanidade, seus hábitos culturais de consumo.
tir de 2007-2008 deu início a uma fase o capitalismo deve desaparecer ou Nossa economia repousa num cresci-
de profunda mutação do sistema eco- transformar-se em outra forma eco- mento contínuo do consumo, ao mes-
nômico mundial. Concretamente, isso nômica de relação com o meio am- mo tempo que sabemos pertinente-
significa que estamos saindo do capi- biente. A menos, é claro – hipótese mente que não poderemos prosseguir
talismo, da mesma maneira que a Eu- sempre possível –, que ele consiga nessa corrida para o enriquecimento
ropa saiu do Império Romano a partir manter-se, mergulhando então a bio- material. Seja em termos de extração
do século III, ou saiu da Idade Média sfera num caos que arrastará a estabi- de matérias-primas ou em termos de
pelo Renascimento. Devemos, pois, lidade da sociedade mundial. reciclagem, atingimos os limites da

6 SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 454


biosfera. Além disso, avançamos, do economia deveria deixar de ser a re- mesma casta a política, a finança e as

Tema de Capa
ponto de vista histórico, rumo a uma ferência absoluta de toda e qualquer mídias.
convergência do nível de vida de to- atividade humana, para integrar ple-
dos os países do planeta, porque há namente os valores de respeito ao IHU On-Line – É a partir do âmbi-
uma reivindicação legítima dos países meio ambiente e de justiça social. to de autorreferencialidade do mer-
emergentes, que desejam ser trata- cado que podemos compreender a
dos em pé de igualdade com os países IHU On-Line – Seria possível ruptura entre a economia e a ética?
ocidentais em termos de acesso aos “humanizar” o mercado, fazendo Hervé Kempf – Parece-me que
recursos e ao consumo. Ora, a situa- com que ele adquira sentido para as não. Repito mais uma vez, a economia
ção ecológica não permite que essa pessoas? não é o capitalismo, que não é senão
convergência ocorra por um alinha- Hervé Kempf – Não devemos um sistema econômico específico. Em
mento ao nível de vida ocidental. Por- confundir economia de mercado e ca- sua forma atual decadente, o capita-
tanto, este deve mudar, o que significa pitalismo. O capitalismo é um sistema lismo divergiu da ética, ou seja, de um
reduzir o nível de vida material. Este no qual se quer que o mecanismo do enquadramento moral que visa à re-
é o principal desafio que se apresenta mercado reja todas as atividades hu- alização da humanidade. No entanto,
às sociedades ocidentais. A oligarquia manas. Mas o passado teve muitas nada impede que se conceba e se dê
não é capaz de enfrentá-lo. sociedades em que existia um mer- vida a uma economia ética, isto é, uma
cado que ocupava apenas uma parte economia que satisfaça as necessida-
Redução das desigualdades das relações sociais, e estas se desen- des dos seres humanos sem destruir
Na verdade, para a oligarquia, é volviam em muitos outros campos as condições biosféricas necessárias
vital que o crescimento econômico simbólicos. Sair do capitalismo não à perenidade da humanidade e que
e a promessa de aumento do consu- significa abandonar a economia de garanta, ao mesmo tempo, relações
mo material sejam considerados um mercado, mas, sim, colocá-la no seu justas entre todos.
absoluto indispensável. É a condição devido lugar, restringindo-a ao comér- Essa economia ética rompe com
para que a desigualdade atual seja cio de bens e serviços. A chave para o capitalismo: ela põe as finanças no
aceitável, porque o crescimento eco- recolocá-la no seu devido lugar está passo certo, ou seja, faz com que es-
nômico supostamente permitirá a em postular muito claramente que tas voltem a exercer sua função pri-
elevação do nível de vida de todos. A muitos bens comuns (refiro-me ob- mordial que é a de facilitar as trocas
questão ecológica, portanto, é sempre viamente aos recursos naturais, mas de bens. E desenvolve ao máximo, por
diminuída, e a crítica ao crescimento, também a atividades essenciais como toda parte, as capacidades de produ-
considerada absurda. a educação e a saúde) não devem ser ção local, reduzindo o comércio inter-
De fato, é essencial que a deli- regidos pelo mercado. nacional aos bens verdadeiramente
beração coletiva se interesse por es- úteis e indisponíveis localmente. A
sas questões, que constituem a chave IHU On-Line – Quais são os prin- globalização prosseguirá, mas não
para um futuro pacífico. E a delibe- cipais desafios dessa tarefa? tanto pela economia quanto pelas tro-
ração coletiva livre e informada é o Hervé Kempf – Em primeiro lu- cas culturais, inspiradas na ética mun-
cerne da democracia. Por esta razão, gar, a resistência virulenta do sistema dial comum em formação: esta aspira
a democracia é o único meio de al- oligárquico: ele não tem mais ideias, a uma humanidade em paz consigo
cançar essa transição, que deve ser mas tem o poder, principalmente o mesma e com a biosfera, a fim de en-
refletida e escolhida coletivamente e de formar a consciência coletiva pelas contrar um novo impulso para a etapa
dentro de uma lógica de redução das mídias, ou seja, submetê-la às suas fi- seguinte de seu magnífico destino.
desigualdades. nalidades. Em seguida, conseguir reu-
nir todos os movimentos de resistên-
IHU On-Line – Em que medida cia que buscam caminhos para sair do Leia mais...
economia e felicidade poderiam ca- capitalismo e transmitir sua mensa-
www.ihu.unisinos.br
minhar juntas? gem ao maior público, isto é, ao povo. • “A autoridade pública está nas mãos
Hervé Kempf – O próprio fato de do sistema financeiro”, afirma Hervé
a questão ser abordada dessa manei- IHU On-Line – O mercado reina Kempf. Entrevista publicada no sítio
ra mostra que a economia – e aqui, sobre a política nestes tempos de do Instituto Humanitas Unisinos –
convém especificar, a economia capi- economia financeirizada. Quais são
IHU em 18-02-2013, disponível em
talista, pois outra economia é possível as perspectivas de mudança?
http://bit.ly/1rXRJxa;
– e a felicidade não andam juntas. Na Hervé Kempf – O objetivo priori-
tário é colocar as finanças e os bancos • “Pela primeira vez, a humanidade
verdade, a economia capitalista fun-
ciona atualmente pela manutenção, no passo certo. Em outras palavras, a se encontra com o limite dos recur-
ou mesmo pelo aumento, de enormes política deve retomar o poder sobre sos naturais”. Entrevista com Hervé
desigualdades e pela destruição do o dinheiro. A democracia, que é o re- Kempf publicada no sítio do Insti-
meio ambiente, o qual, no entanto, é gime em que o interesse coletivo se tuto Humanitas Unisinos – IHU em
a base essencial do bem-estar coleti- impõe a todos após uma deliberação 12-01-2010, disponível em http://
vo. É claro que economia e felicidade livre e informada, deve suplantar a bit.ly/1qmz7FJ.
deveriam andar juntas. Para isso, a oligarquia, que fusiona justamente na

EDIÇÃO 454 | SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 7


A superação da globalização e
Tema de Capa

do crescimento
“A realidade é que não estamos mais num período de globalização. Os países e as
regiões estão tratando de levantar muros de várias espécies ao seu redor, e estão
tratando de reconstruir sistemas bancários pré-globalistas”, avalia John Ralston Saul

Por Márcia Junges e Luciano Gallas / Tradução: Moisés Sbardelotto

“O
modelo de crescimento implan- pagar-lhes [os trabalhadores] por empregos
tado no final do século XVIII per- de tempo integral ou empregos que tenham
deu, mais ou menos, sua força. benefícios vinculados a eles. Esta é a razão
Atualmente nós produzimos mais bens do pela qual se vê, em toda a Organização para
que necessitamos no mundo. O que neces- a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
sitamos, portanto, não é de mais crescimen- – OCDE, que um número cada vez maior de
to. Precisamos, em vez disso, dar atenção a pessoas está trabalhando em tempo parcial,
uma distribuição mais interessante dos bens ou sem seguridade ou benefícios. Tudo isso
e a uma passagem gradativa da produção em cria lentamente o tipo de atmosfera social
massa para a produção com qualidade. Por que leva ao populismo e a sentimentos an-
quê? Porque a produção com qualidade pro- tidemocráticos. O que estamos vivenciando
duz mais empregos num nível salarial mais hoje é uma versão mais extrema do tipo de
alto e, por conseguinte, torna possível vender privação econômica e de abismo entre ricos e
bens a um preço mais alto. A estratégia glo- pobres que levou a fenômenos como o pero-
balista tem sido exatamente o contrário disso nismo”, pontua ele.
– reduzir os preços continuamente, tornando, John Ralston Saul é escritor, ensaísta e
com isso, não só possível, mas essencial pa- filósofo canadense. É presidente da PEN In-
gar cada vez menos às pessoas”, afirma John ternational, associação de escritores fundada
Ralston Saul. em 1921 e que luta pela liberdade de expres-
Conforme enfatiza Ralston, a manutenção são. É autor de vários livros, entre os quais
de uma economia de excedentes, inevitavel- O colapso da globalização e a reinvenção do
mente, levará a uma baixa dos preços e, con- mundo (El colapso de la globalización y la
sequentemente, a uma redução dos salários reinvención del mundo – RBA, 2012).
pagos. “Na verdade, não há condições de Confira a entrevista.
www.ihu.unisinos.br

IHU On-Line – O dinheiro não to real, ou então fica simplesmente excedente de bens manufaturados, de
passa de uma convenção, mas toda a muito fácil para um grupo pequeno modo que não conseguiram manter o
humanidade parece não se dar conta ganhar dinheiro a partir do dinheiro. crescimento em curva ascendente.
disso. Por quê? E neste ponto entramos num daque- Em vez de se fazer algumas perguntas
John Ralston Saul – Esse é um les períodos ilusórios de empolgação sérias sobre o que fariam em seguida,
problema cíclico. Todo o mundo sabe excessiva com a possibilidade de tra- elas entraram em pânico e recaíram
que o dinheiro não é real, que ele é tar o dinheiro como algo real. A causa no antigo erro de tratar o dinheiro
meramente o lubrificante para as en- provável disso ao longo dos últimos como um substituto de bens reais.
grenagens da economia, como se dizia 40 anos tem sido que as economias Nesse ponto, o problema realmente
no século XVIII. Mas periodicamente industrializadas do Ocidente produzi- passa a ser a ilusão. E quanto mais nos
ou se torna difícil criar crescimen- ram uma situação em que havia um tornamos dependentes da ilusão, tan-

8 SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 454


to mais difícil é admitir que o dinheiro
“Não há, na implicavam. A mais famosa delas foi a

Tema de Capa
não é real. ideia da mão invisível, que de alguma

IHU On-Line – Vivemos uma era


história, exemplo maneira assegurava que o mercado
seria autorregulatório. Isso sempre é
de ontologização da economia, isto
é, a economia tornou-se uma espécie
de que a apresentado como um aspecto cen-
tral da filosofia de Adam Smith1, o que
de deus ao qual a humanidade vem
se curvando?
austeridade leve à não era o caso. Na verdade, ele fez
apenas um comentário muito rápido
John Ralston Saul – Essa questão
tem duas partes. Em primeiro lugar,
prosperidade. sobre a mão invisível ao fazer referên-
cia a uma situação específica dos mer-
a iniciativa revolucionária do período A única finalidade cados locais. Outra das características
globalista (que começa no início da curiosas dos defensores da ciência
década de 1970) consistiu em promo- da austeridade econômica como o principal meca-
ver a ciência econômica à posição su- nismo da civilização é de que eles não
perior em todas as explicações da civi- é servir de parecem ler muito. Eles sequer pare-
lização e de como ela funciona. Assim, cem ter lido Adam Smith, a não ser
de um ponto de vista prático, a ciência tratamento de em resumos. Assim, entenderam de
econômica foi solicitada a substituir
Deus, ou um monarca, ou conceitos choque quando modo tremendamente equivocado o
que ele estava dizendo.
do Estado. Na verdade, isso jamais foi
tentado antes, pela simples razão de se está sofrendo Adoção da austeridade
que a ciência econômica é realmente
uma atividade terciária no que diz res- de umainflação De qualquer modo, eles pare-
cem imaginar que dentro de sua teo-
peito às civilizações. É claro
que ela é essencial, assim como a
grave” ria econômica havia uma capacidade
para uma partilha natural da riqueza,
economia o é. Mas é apenas uma ati- o que, por sua vez, tornaria as pessoas
vidade utilitária, e isso significa que felizes. Como sabemos, estamos ago-
ela não tem a imaginação ou a ética estão dizendo e o que está realmente ra num período de divisões inauditas e
ou outras qualidades necessárias para acontecendo. crescentes entre os ricos e os pobres.
moldar uma civilização. E o próprio fato de que países como
Em segundo lugar, a linguagem IHU On-Line – Que tipo de mo-
a Espanha ou Portugal, ou a Irlanda
que acompanhou essa deificação da ral foi aplicada à economia pelo
e a Grécia, estão sendo obrigados a
economia tinha muito pouco a ver Ocidente?
adotar a austeridade quando já estão
com o que estava acontecendo efeti- John Ralston Saul – O interessan-
numa espiral econômica demonstra
vamente. Em outras palavras, a lingua- te é que toda a questão da moralidade
quão ausente o conceito de ética ou
gem da globalização só falava de um e da ética foi colocada de lado. Acho
moralidade tem estado da liderança
mercado autorregulatório, crescimen- que é importante lidar com a ética e
econômica.
to perpétuo, que o crescimento maior a moralidade separadamente, pois
Não há, na história, exemplo de
levaria à riqueza compartilhada, etc. A esta última tende a ter toda espécie
que a austeridade leve à prosperida-
realidade é que a maior parte da ativi- de tendências românticas e religiosas,
de. A única finalidade da austerida-
dade tinha a ver com a promoção do ou a ser vinculada a hábitos pessoais/
de é servir de tratamento de choque
sociais, que diferem de grupo para
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dinheiro a um estado de realidade e quando se está sofrendo de uma in-
com a crescente diminuição da con- grupo, de lugar para lugar. De qual-
corrência através do favorecimento quer modo, jamais houve qualquer 1 Adam Smith (1723-1790): considerado
de empresas cada vez maiores. Em pretensão real de que a nova ciência o fundador da ciência econômica tradi-
cional. A Riqueza das Nações, sua obra
outras palavras, o período globalista econômica ou de que a globalização principal, de 1776, lançou as bases para
levou ao retorno do mercantilismo, teriam um núcleo ético ou um núcleo o entendimento das relações econômicas
moral. A globalização sempre teve a da sociedade sob a perspectiva liberal,
dos oligopólios e até de monopólios. superando os paradigmas do mercantilis-
Isso é exatamente o contrário do que ver, abertamente, com a redução dos mo. Sobre Adam Smith, veja a entrevis-
estava sendo prometido. Agora que seres humanos ao nível do interesse ta concedida pela professora Ana Maria
Bianchi, da Universidade de São Paulo –
essa estrutura intelectual está esta- próprio. USP, à IHU On-Line nº 133, de 21-03-2005,
belecida, não importa quão falha ela Mais curiosamente ainda, há disponível em http://bit.ly/ihuon133, e
a edição 35 dos Cadernos IHU ideias, de
seja. As elites foram ensinadas a fa- uma série de referências abraâmicas 21-07-2005, intitulada Adam Smith: filó-
lar e argumentar de acordo com essa na linguagem da globalização, mas sofo e economista, escrita por Ana Maria
Bianchi e Antônio Tiago Loureiro Araújo
estrutura, e parecem incapazes de elas parecem ser usadas sem qual- dos Santos, disponível em http://bit.ly/
lidar com o abismo entre o que elas quer percepção consciente do que ihuid35. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 454 | SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 9


flação grave. E esse não é o problema
“A globalização que atualmente nós produzimos mais
Tema de Capa
atualmente. Na Espanha, mais de 50% bens do que necessitamos no mundo.
dos jovens estão desempregados e
a cada dia 500 pessoas estão sendo
sempre teve a O que necessitamos, portanto, não é
de mais crescimento. Precisamos, em
despejadas de suas casas. Ainda as-
sim, o governo está aquiescendo às
ver, abertamente, vez disso, dar atenção a uma distri-
buição mais interessante dos bens e a
exigências de austeridade da União com a redução dos uma passagem gradativa da produção
Europeia. Isso é profundamente não em massa para a produção com qua-
ético e imoral. seres humanos ao lidade. Por quê? Porque a produção
com qualidade produz mais empregos
IHU On-Line – No contexto da nível do interesse num nível salarial mais alto e, por con-
globalização, qual deve ser o papel seguinte, torna possível vender bens
do sistema bancário? próprio” a um preço mais alto. A estratégia
John Ralston Saul – A realidade globalista tem sido exatamente o con-
é que não estamos mais num período trário disso – reduzir os preços conti-
de globalização. Os países e as regiões to, não é útil dizer que as relações nuamente, tornando, com isso, não só
estão tratando de levantar muros de econômicas internacionais superam possível, mas essencial pagar cada vez
várias espécies ao seu redor, e estão o interesse e a vida dos cidadãos menos às pessoas.
tratando de reconstruir sistemas ban- que vivem dentro dos países. Qua-
cários pré-globalistas. Por exemplo, se todos os programas sociais que IHU On-Line – Quais são os ris-
países que permitiram a combinação ajudam as pessoas a viver – como cos dessa “religião do crescimento”
de bancos de depósitos com bancos a educação, por exemplo – são na- para a democracia?
de investimentos estão tentando se- cionais ou regionais; 99% dos sis- John Ralston Saul – O maior ris-
pará-los de novo. temas judiciários são nacionais ou co é a espiral declinante que acabo de
Entretanto, há um aspecto central regionais. Se você priva o estado descrever. Se se mantém uma econo-
que precisa ser ressaltado. Disseram- nacional de seu poder, em nome da mia de excedentes, inevitavelmente
nos, durante toda a era da globaliza- economia internacional, você solapa se fará com que os preços baixem. E
ção, que a nova tecnologia da comu- necessariamente o estado de bem- quanto mais os preços baixam, tanto
nicação nunca é desligada e que está estar social e de justiça dentro dos menos se tem condições de pagar às
rodando incessantemente, 24 horas países. Além disso, já que a teoria pessoas pelo que fazem em seu em-
por dia, no mundo inteiro. Por isso, os da globalização levou diretamente a prego. Na verdade, não há condições
mercados monetários não poderiam um aumento do abismo entre ricos e de pagar-lhes por empregos de tem-
mais ser regulados. Foi esse ato de fe- pobres, temos condições de ver até po integral ou empregos que tenham
char os olhos para a regulamentação que ponto essa inversão no equilí- benefícios vinculados a eles. Esta é a
que levou ao colapso financeiro há brio entre os interesses do povo e os razão pela qual se vê, em toda a Or-
poucos anos. interesses das forças econômicas in- ganização para a Cooperação e Desen-
A realidade é exatamente o con- ternacionais está se tornando cada volvimento Econômico – OCDE,2 que
trário. Pela primeira vez, há tecno- vez mais negativa. um número cada vez maior de pes-
logia que liga todos os mercados do soas está trabalhando em tempo par-
mundo e funciona 24 horas por dia. IHU On-Line – Até quando será cial, ou sem seguridade ou benefícios.
Por isso, jamais foi tão fácil regular e possível sustentar o crescimento in- Tudo isso cria lentamente o tipo de at-
www.ihu.unisinos.br

gerir os sistemas bancários e financei- suflado pelo capitalismo? mosfera social que leva ao populismo
ros. Os governos estão começando a John Ralston Saul – É difícil di- e a sentimentos antidemocráticos. O
entender isso agora, e é isso que está zer isso em países onde a industriali- que estamos vivenciando hoje é uma
começando a acontecer. zação só agora está levando a certos versão mais extrema do tipo de pri-
níveis de prosperidade para aqueles vação econômica e de abismo entre
IHU On-Line – Em que aspectos que foram muito pobres. Entretanto, ricos e pobres que levou a fenômenos
a globalização representa retroces- o modelo de crescimento implanta- como o peronismo.
sos em termos de economia e justiça do no final do século XVIII perdeu,
social? mais ou menos, sua força. Perdeu IHU On-Line – De certa forma,
John Ralston Saul – Veja bem, sua força porque, como eu disse an- seu livro O colapso da globalização
não há nada de errado com o co- tes, atingimos um estado de produ- e a reinvenção do mundo previu a
mércio internacional. As economias ção de excedentes. Certamente não
2 OCDE: sigla em inglês para Organização
sempre precisaram ter um aspecto os estamos distribuindo de maneira de cooperação Econômica e desenvolvi-
internacional importante. Entretan- justa. Mas continua sendo verdade mento. (Nota da IHU On-Line)

10 SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 454


atual crise econômica mundial. É
“Pela primeira autocomplacência fora do contexto

Tema de Capa
possível apontar as possíveis rotas a da sociedade. A ideia butanesa da Fe-
serem tomadas pela economia daqui
para frente?
vez, há tecnologia licidade Interna Bruta se situa na tra-
dição do bem-estar do povo existente
John Ralston Saul – Isso é intei-
ramente uma questão de opção. Se
que liga todos no século XVIII, e nesse sentido ela é
extremamente realista.
continuarmos a agir como se o di-
nheiro fosse real e, por isso, enten-
os mercados do IHU On-Line – É possível que
der que as dívidas impagáveis devem
ser pagas, mesmo que isso destrua o
mundo e funciona felicidade e economia andem lado a
lado?
bem-estar dos cidadãos, então a eco- 24 horas por dia. John Ralston Saul – Disso se se-
gue que a ciência econômica vai fun-
nomia simplesmente vai continuar a
piorar. E quaisquer recuperações se- Por isso, jamais foi cionar melhor se formos honestos em
rão obtidas disfarçando os problemas relação ao que ela é. A ciência econô-
fundamentais. Creio firmemente que tão fácil regular e mica deve servir à sociedade. Sempre
precisamos eliminar grande parte das houve alguma forma de setor privado,
dívidas que atualmente bloqueiam o gerir os sistemas capitalista ou não. Sempre haverá al-
crescimento dos países. Precisamos guma forma de setor privado. Isso não
recomeçar da estaca zero. Se per- bancários e é uma coisa ruim. Mas ele não signifi-
dermos alguns bancos ao longo do ca substituir o bem público ou o inte-
caminho, isso realmente não impor- financeiros” resse público ou o poder de governos
ta. Há mais bancos atualmente do escolhidos pelo povo. As sociedades
que jamais houve, e a quantidade de funcionam melhor quando admitem
dinheiro que está se esparramando pelo ex-rei do Butão3 para fazer troça alguma forma de equilíbrio entre os
não tem precedentes. Na verdade é das medições erradas e falhas do PIB. diferentes elementos. Acho que de-
bem engraçado que os neoconserva- O que ele realmente estava dizendo veríamos parar de nos preocupar com
dores, que defenderam o monetaris- é que precisamos adotar uma abor- a globalização. Ela já passou. Já fra-
mo a partir da década de 1970, es- dagem inclusiva se quisermos enten- cassou. A dificuldade agora é que, na
tejam agora se esforçando tanto para der como as economias funcionam média, o mundo está em crise, e, se
proteger uma situação monetária dentro das sociedades. Poder-se-ia não tomarmos cuidado, entraremos
completamente inflacionária. A his- dizer que ele estava dando a respos- numa era de protecionismo, violência
tória é muito clara nesse sentido. Os ta última às pessoas que creem que e formas repulsivas de nacionalismo à
países inteligentes suprimem as dívi- a ciência econômica deveria dirigir a moda antiga. Tudo isso pode ser evita-
das quando elas se tornam inviáveis. sociedade. do se formos simplesmente sensatos
Lembrem-se de que a palavra em relação ao papel da ciência eco-
IHU On-Line – Em que medida o “felicidade” realmente significa “o nômica e ao papel de liderança bem
conceito de Felicidade Interna Bruta bem público” ou “o bem-estar das mais fundamental que tem de ser as-
(FIB) é mais realista do que o de Pro- pessoas”. Ela era muito usada nos sé- sumido pelos cidadãos. Temos de cair
duto Interno Bruto (PIB)? culos XVIII, XIX e no início do século fora do romantismo do globalismo à
John Ralston Saul – O PIB não XX, e seu significado, em todos esses moda antiga, ao estilo do século XIX,
tem sido uma medição acurada da casos, é “o bem-estar do povo”. Na e agir sensatamente, usando o poder www.ihu.unisinos.br
realidade há muito tempo. Ele sem- verdade, é só com o advento de coi- que têm os cidadãos.
pre implicou uma medição muito sas como a televisão, que instituem
mínima do que está acontecendo.
Sempre se baseou na separação de
uma visão muito romântica da felici-
dade, que a palavra muda de sentido
Leia mais...
elementos financeiros, em vez de
para se tornar uma representação da
juntá-los. Foi o tipo de abordagem • “Não há razão para salvar os ban-
do PIB que nos levou a crer que se 3 Jigme Singye Wangchuck (1955): rei cos”, afirma filósofo canadense.
poderia, por exemplo, comer uma do Butão entre 24 de julho de 1972 e 14
maçã proveniente da Nova Zelândia de dezembro de 2006. Cunhou o termo Entrevista com John Ralston Saul
Felicidade Interna Bruta (FIB) no início
a um preço barato na América do Sul de seu governo, em resposta às críticas publicada no sítio do Instituto Hu-
ou na Europa. Isso só era possível que afirmavam que a economia de seu
país crescia a passos muito lentos. O con- manitas Unisinos – IHU em 06-
porque ninguém estava medindo os ceito de FIB ilustrava o compromisso do
custos totais daquela maçã. A Feli- líder político de construir uma economia 02-2013, disponível em http://bit.
adaptada à cultura do seu país, baseada
cidade Interna Bruta é um conceito nos valores espirituais budistas. (Nota da ly/1stpW5Q
maravilhosamente irônico inventado IHU On-Line)

EDIÇÃO 454 | SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 11


O aumento dos bens ou
Tema de Capa

mercadorias e o crescimento
das “necessidades”
Richard Easterlin, criador do Paradoxo da Felicidade, argumenta que o PIB mensura
somente bens ou mercadorias, sem levar em conta critérios “não materiais” como
família, vida e saúde

Por Márcia Junges e Andriolli Costa/ Tradução: Moisés Sbardelotto

E
m 2013 foi lançada a segunda edição do Nesta entrevista, concedida por e-mail à
Relatório Mundial da Felicidade. Produ- IHU On-Line, ele comenta sobre o tema e ale-
zido pela ONU, ele leva em conta seis ga que o PIB mensura somente bens ou mer-
fatores para mensurar a sensação de felici- cadorias, sem levar em conta critérios “não
dade em países do mundo todo: PIB real per materiais” como família, vida e saúde.
capita, suporte social, generosidade, expecta- Richard A. Easterlin é graduado em
tiva de vida saudável, liberdade e percepção Engenharia pelo Stevens Institute of Te-
de corrupção. O relatório mostra mudanças chnology, com mestrado e doutorado em
significativas na felicidade dos países ao lon-
Economia pela University of Pennsylvania.
go do tempo, e propõe chamar atenção para
Membro da National Academy of Sciences e
fatores que vão além dos econômicos para
da American Academy of Arts and Sciences,
mensurar o bem-estar da população.
atualmente é professor de Economia da
Um dos precursores nesta linha de pensa-
University of Southern California. É autor,
mento foi o economista Richard A. Easterlin,
que criou em 1974 o conceito do Paradoxo da entre outros livros, de Happiness, Growth,
Felicidade. O paradoxo é composto por três and the Life Cycle (Oxford: University Press,
assertivas: 2011), The Reluctant Economist: Perspec-
1) Em uma sociedade, os ricos tendem a tives on Economics, Economic History, and
ser mais felizes do que os pobres. Demography (Cambridge: University Press,
2) Sociedades ricas não tendem a ser (mui- 2006) e de Birth and Fortune: The Impact
to) mais felizes do que sociedades pobres. of Numbers on Personal Welfare (Chicago:
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3) O enriquecimento do País não leva, ne- University Press, 1987).


cessariamente, à felicidade. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Diante do colap- Richard Easterlin – As pessoas põe que suas “necessidades” ficarão
so ocasionado pela crise econômica não se dão conta de que, quando ob- inalteradas.
mundial e da situação das nações ri- têm mais bens ou mercadorias, sua
cas, seu “paradoxo da felicidade” de- concepção de “necessidades” aumen- IHU On-Line – Nesse sentido,
monstra ser mais atual do que nunca. ta na mesma proporção. Em consequ- qual é a pertinência do conceito de
Nossa sociedade continua confundin- ência disso, elas acham que mais di- Felicidade Interna Bruta (FIB), em
do dinheiro como sinônimo inequí- nheiro as fará mais felizes, porque sua contraposição ao Produto Interno
voco de felicidade? Por quê? projeção da felicidade futura pressu- Bruto (PIB)?

12 SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 454


Richard Easterlin – O PIB só tem
Eu descrevo e quais são os motivos que levam a

Tema de Capa
a ver com bens ou mercadorias. A feli- esse sentimento?
cidade leva em conta coisas não mate-
riais, como família, vida e saúde.
as evidências Richard Easterlin – Se olharmos
o Relatório da Felicidade Global2 de

IHU On-Line – Nos dias de hoje


referentes à 2012 da Organização das Nações Uni-
das, os países com os mais elevados
é possível que felicidade e economia felicidade, e não índices de felicidade tendem a ser
andem lado a lado? Nesse sentido, aqueles que têm políticas públicas
qual é a importância da eudaimonia1 estou dizendo que se concentram nas preocupações
para a vida em uma sociedade globa-
lizada e capitalista? que as pessoas imediatas das pessoas, como, por
exemplo, emprego e rede de seguran-
Richard Easterlin – Há uma rela-
ção positiva das flutuações na econo- devam buscar a ça social.

mia e na felicidade. Mas a tendência


ascendente a longo prazo na econo-
felicidade. IHU On-Line – Em tempos de
globalização, qual deve ser o espaço
mia não é acompanhada por uma e o papel do sistema bancário?
tendência ascendente na felicidade. autores que as propõem. Eu descrevo
Richard Easterlin – A regulamen-
A eudaimonia é prescritiva – há tan- as evidências referentes à felicidade,
tação mais rigorosa deve ser o impe-
tas concepções de vida boa quanto há e não estou dizendo que as pessoas
rativo para o sistema bancário do nos-
devam buscar a felicidade.
so tempo.
1 Eudaimonia: palavra grega geralmente
traduzida como felicidade, bem-estar ou
desenvolvimento humano. (Nota da IHU
IHU On-Line – Hoje, quais são 2 Acesse pelo link http://bit.ly/Hapin-
On-Line) os países considerados mais felizes nesReport2013

Acesse o Twitter do IHU em twitter.com/_ihu

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EDIÇÃO 454 | SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 13


O desenvolvimento da
Tema de Capa

economia civil. Por um


estado social subsidiário
Por Stefano Zamagni / Tradução: Moisés Sbardelotto

N
este artigo o economista Stefano Za- in Veritate, publicada em 2009, acerca do “de-
magni defende as bases para uma senvolvimento humano integral”. Desde 2007
Economia Civil, cujas raízes remetem é presidente da Agência para as Organizações
ao Humanismo civil e com estrutura social Não Lucrativas de Utilidade Social – Onlus, en-
baseada na Doutrina Social da Igreja. Nesta tidade do governo italiano responsável pelas
perspectiva, a ordem social não se basearia associações sem fins lucrativos. Desde 1991,
mais na “dicotomia público-privado” (Estado é consultor do Conselho Pontifício “Justiça e
e mercado), mas na “tricotomia público, pri- Paz”, do Vaticano. De 1999 a 2007, foi tam-
vado e civil” – este último representado pelas bém presidente da Comissão Católica Inter-
organizações e corpos sociais intermediários. nacional para as Migrações – ICMC. Em 2010,
De acordo com ele, propor a perspectiva da recebeu o título de doutor honoris causa em
economia civil significa visar a dois objetivos economia da Universidade Francisco de Vito-
fundamentais: resolver a escassez do forneci- ria, de Madri, Espanha. É autor de inúmeros
mento de bens comuns e de bens públicos e livros, dentre os quais destacamos Microeco-
acelerar os tempos da passagem do welfare nomia (Ed. II Mulino, 1997), Per una Nuova
state à welfare society. Teoria Economica della Cooperazione (Ed. Il
Stefano Zamagni é professor da Universi- Mulino, 2005) e L’Economia del Bene Comu-
dade de Bolonha, na Itália, e vice-diretor da ne (Ed. Città Nuova, 2007). Em português,
sede italiana da Johns Hopkins University. Za- publicou em 2010 Economia Civil: Eficiência,
magni ganhou destaque mundial por ter sido Equidade e Felicidade (Ed. Cidade Nova), com
um dos principais consultores e assessores do coautoria de Luigino Bruni.
Papa Bento XVI na redação da encíclica Caritas Confira o artigo.

Uma pluralidade de índices assi- bem, de uma vez por todas). A ideia ordem social, portanto, não se baseia
nala uma retomada de interesse em central de tal linha de pensamento mais na dicotomia público-privado
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relação à proposta da economia civil, é a de fundamentar a arquitetura da (ou seja, sobre Estado e mercado),
uma proposta que tem as suas raízes sociedade não sobre dois, mas sobre mas na tricotomia público, privado,
no Humanismo civil e cuja estrutura três pilares: público (Estado e Enti- civil. Nisso, é a essência do princípio
conceitual se baseia nos princípios dades públicas); privado (mundo das de subsidiariedade circular, que é a
centrais da Doutrina Social da Igreja empresas); civil (organizações da so- versão da subsidiariedade hoje mais
(como a Caritas in veritate1 esclareceu ciedade civil, isto é, os corpos sociais avançada em comparação tanto com
intermediários de que fala a constitui- a vertical quanto com a horizontal.
1 Caritas in Veritate: Terceira encíclica ção [italiana]). Cada um deles tem os 1. Uma boa política pelo bem
do Papa Bento XVI, publicada no dia 7 de
julho de 2009, “sobre o desenvolvimento seus próprios princípios reguladores comum, então, deve reconhecer e
humano integral na caridade e na verda- e é caracterizado por modos específi- assumir tal articulação da sociedade,
de”. Foi a primeira encíclica de Bento XVI
que versa sobre vários temas socioeconô- cos de ação, mas todos os três devem porque só dela pode derivar a solução
micos, após a profunda crise económica interagir entre si de maneira orgânica de problemas de urgência prioritária
e financeira das últimas décadas, dispo-
nível em http://migre.me/4mY6b. (Nota
(isto é, não esporádica) segundo os para o nosso país [Itália]. De fato, en-
da IHU On-Line) cânones do método deliberativo. A tre as urgências político-culturais mais

14 SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 454


prementes da atual passagem de épo-
“Precisamos de mercados, ainda inexistentes no

Tema de Capa
ca está certamente a de ir além das nosso país: os mercados de qualidade
duas concepções de mercado hoje
dominantes. Por um lado, a visão do
urgentemente social. Trata-se de mercados sui gene-
ris, certamente, mas, mesmo assim,
mercado como “mal necessário”, ou
seja, de uma instituição da qual não
de um Estado mercados. Neles, os recursos que o
Estado decide destinar ao welfare são
se pode prescindir, por ser garantia
de progresso e sucesso econômico,
facilitador da utilizados não para financiar os sujei-
tos de oferta, mas para intervenções
mas, mesmo assim, um “mal” do qual sociedade civil de promoção e sustento da demanda
é preciso se guardar e que, portan- dos serviços sociais, transformando,
to, deve-se manter sob controle com organizada: essa assim, em efetiva uma demanda que,
a fixação de vínculos rigorosos. Essa caso contrário, permaneceria apenas
é a posição adotada pelos teóricos é a ideia de um virtual, ou seja, não pagante. Por ou-
da chamada “terceira via”, segundo tro lado, o Estado intervém no lado
a qual é preciso manter separada a estado social da oferta com medidas, tanto legis-
esfera da economia do resto da so- lativas quanto administrativas, para
ciedade e servir-se da primeira como subsidiário” assegurar a pluralidade dos sujeitos
instrumento para alcançar os fins que de oferta das várias tipologias de ser-
a segunda se estabelece. Por outro viços, e isso com o objetivo de evitar
outro; e, em segundo lugar, a econo-
lado, encontramos a concepção do os riscos da formação de rent-seeking,
mia em que se permite ao consumi-
mercado como meio para resolver o e para permitir uma real capacida-
dor não somente escolher dentro de
problema político. Trata-se de uma de de escolha dos cidadãos. Nisso, é
um dado menu, mas também lhe per-
concepção plenamente em sintonia uma ideia de um welfare subsidiário
mite poder “ter voz” sobre a composi-
com o espírito – mesmo que nem que se serve de mecanismos de mer-
ção do próprio menu (esse é o sentido
sempre com a práxis – do liberalismo cado como instrumento para reforçar
do chamado “voto com a carteira”).
clássico, que, justamente, pode ser o vínculo social – e em que o Estado
2. Propor a perspectiva da econo-
definido como a solução do problema se torna promotor da sociedade ci-
mia civil significa visar a dois objetivos
político por uma via essencialmente vil organizada, incentivando todas
fundamentais. O primeiro é o de che-
econômica. gar a resolver uma escassez típica das aquelas formas de ação coletiva que
O destino ao qual se deve tender nossas sociedades avançadas, que se geram benefícios públicos. Em outros
é mais o de realizar as condições para encontram, todas, acertando as con- termos, precisamos urgentemente
uma economia de mercado pluralis- tas com um problema de inadequado de um Estado facilitador da socieda-
ta, em que possam operar, de modo fornecimento de bens comuns e de de civil organizada: essa é a ideia de
autônomo e independente, ao lado bens públicos. Como eles são bens um estado social subsidiário. O mode-
de empresas com fins lucrativos, tam- essenciais, a sociedade que não fosse lo do Estado-gestor podia funcionar
bém sujeitos econômicos que, embo- capaz de assegurar níveis adequados bem no pós-guerra imediato, quando
ra não buscando o fim do lucro, sejam de ofertas deles seria uma sociedade eram prevalecentes as condições da
igualmente capazes de gerar valor de nível mais baixo de bem-estar (e sociedade fordista e, em particular, as
agregado e, portanto, riqueza. São isso independentemente do volume e necessidades das pessoas eram abs-
esses os sujeitos que compõem a va- da qualidade de bens individuais que tratas, isto é, indiferenciadas. Tornar a
riada galáxia do Terceiro Setor (coope- ela fosse capaz de assegurar). Hoje, propô-lo agora, mesmo que na forma
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rativas, cooperativas sociais, empre- diante de uma sobreprodução de do welfare mix, só poderia produzir
sas sociais, fundações comunitárias). bens privados, registramos uma subs- efeitos perversos e financeiramente
Lembre-se que a defesa das razões da tancial escassez de bens públicos e desastrosos.
liberdade exige que o pluralismo seja uma escassez ainda mais preocupante 3. Em que âmbitos hoje é maxi-
defendido não só na esfera do políti- de bens comuns. A noção de desen- mamente urgente intervir? A Itália é o
co – o que é óbvio –, mas também na volvimento humano integral capta primeiro país europeu em número de
do econômico. Pluralista e democrá- essa necessidade de equilíbrio entre regiões (entre as primeiras 25 em nível
tica, portanto, é a economia em que as três categorias diferentes de bens. continental) que empregaram nos se-
encontram espaço, em primeiro lugar, O segundo objetivo é acelerar os tores culturais e criativos: nada menos
mais princípios de organização econô- tempos da passagem do welfare sta- do que 20%, cinco em cada 25, contra
mica – desde o da busca do lucro ao te à welfare society. Já é aceito que a os três da Alemanha e da Holanda, os
de reciprocidade – sem que a organi- superação do modelo estatalista de dois do Reino Unido e um da região da
zação institucional vigente privilegie, welfare [bem-estar] pressupõe que se França. No entanto, a Itália é um dos
mais ou menos abertamente, um ou disponha de uma tipologia específica poucos dos 27 países da Europa a não

EDIÇÃO 454 | SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 15


ter nenhum plano estratégico para o
“O sistema invés, que as políticas de harmoni-
Tema de Capa
desenvolvimento das suas indústrias zação devem ser propostas em nível
culturais e criativas, com a conse-
quência de literalmente pôr em risco
fiscal italiano de casal, porque a família não é uma
questão apenas feminina, e não po-
os seus melhores talentos criativos nos
mercados internacionais, diante de
defende de dem fazer uso daquelas tecnologias
de alta frequência – tão em voga hoje
colegas de outros países que podem
contar com o apoio ativo e competen-
modo ignóbil a no setor financeiro da economia –
que permitem extrair o máximo valor
te de instituições e de programas in- renda (financeira; monetário de cada unidade de tempo.
teiramente voltados a favorecer a sua Isto implica, concretamente, que
penetração profissional nos mercados imobiliária; se passe do gender mainstreaming –
mais ricos e dinâmicos em nível glo- noção acolhida no Tratado de Amster-
bal, além do mercado europeu e dos burocrática), dã de 1997, segundo a qual deve-se
seus mercados domésticos. pôr em prática medidas voltadas a
Alavancar as energias dessa gera- enquanto penaliza oferecer oportunidades iguais entre
ção para relançar de modo estratégico os gêneros – ao family mainstrea-
a produção criativa na Itália como pi- o salário e o lucro” ming, segundo o qual é às relações
lar do nosso modelo futuro de desen- intrafamiliares que se deve prestar
volvimento é um sinal fortíssimo que atenção no momento em que se põe a
possam nos fazer falar de duas pola-
pode mobilizar um impulso social e mão na reorganização do processo de
ridades entre as quais sejam neces-
geracional muito notável. A partir do trabalho. Creches, serviços de cuida-
sárias práticas conciliatórias, porque,
raciocínio sobre os impactos econô- do para os idosos não autossuficien-
se é verdade que o tempo do trabalho
micos diretos e indiretos da produção tes e outras instituições desse tipo
também é um tempo de vida, é igual-
cultural e criativa e da participação são, sim, uma ajuda formidável para a
mente verdade que a vida familiar in-
social a ela associada, é possível, as- família, mas, se forem projetados de
clui uma atividade de trabalho espe-
sim, lançar o projeto de uma coalizão modo a desresponsabilizar os pais em
cífica, embora esta não transite pelo
nacional entre público, privado e civil relação à sua missão educativa ou de
mercado.
para a produção criativa, que vise a modo a afrouxar os laços de solidarie-
É duplo, então, o fim que atri-
produzir um investimento estratégico buímos às políticas de harmonização dade intergeracional, é evidente que
de recursos no setor, com base em um entre família e trabalho de mercado: eles levarão, a longo prazo, a desle-
plano estratégico nacional que falta superar a feminilização generalizada gitimar o papel da família. Por isso, é
na Itália – caso quase único da Europa da questão conciliatória em favor de necessário introduzir algum indicador
dos 27, em um setor em que podería- uma abordagem recíproca entre fa- que expresse a avaliação de impacto
mos ter uma liderança reconhecida – mília e trabalho, por um lado; provo- familiar (AIV) das medidas de política
e o desenvolvimento de um plano de car um repensamento radical sobre o do trabalho e de welfare que vão ser
incentivo às novas formas de empre- modo pelo qual ocorre a organização adotadas.
endedorismo juvenil de setor. do trabalho na empresa de hoje, por Uma riqueza extraordinária do
Em segundo lugar, é preciso en- outro lado. Em outras palavras, não nosso país [Itália] é a presença de um
frentar urgentemente a questão da compartilhamos a posição daqueles Terceiro Setor produtivo (cooperativas
relação entre vida familiar e vida de que consideram que os múltiplos ins- sociais; empresas sociais; BCC; coope-
trabalho. No debate público contem- trumentos de conciliação até agora rativas de comunidade), que nenhum
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porâneo, esse tema é expresso como propostos e às vezes postos em práti- dos outros países do Ocidente avança-
work-life balance, isto é, equilíbrio, ca (licença parental; trabalho a tempo do possui (tais países podem competir
conciliação entre família e trabalho. parcial; creches; bancos de horas; fle- com a Itália no Terceiro Setor redistri-
Trata-se de uma expressão infeliz, que xibilidade dos horários; programas de butivo; certamente não no produti-
trai uma certa configuração cultural “bom retorno” à empresa; mentoring, vo). Trata-se, então, de finalmente
que não podemos compartilhar. O etc.) devem ser pensados unicamen- soltar aquele Prometeu acorrentado
próprio termo de conciliação, de fato, te para permitir especialmente que a que é o nosso Terceiro Setor produti-
postula a existência de um conflito, ao mulher que tem família se adapte me- vo. Como? Reformando radicalmente
menos potencial, entre esses dois âm- lhor às exigências da empresa, e tudo o Livro I, Título II do Código Civil – que
bitos fundamentais de vida, cada um isso com o fim último de aumentar a ainda é o de 1942! –; atualizando as
dos quais é dotado de uma especifi- taxa de participação feminina no mer- leis de setor (sobretudo aquelas sobre
cidade própria e de um sentido pró- cado de trabalho – taxa que, como o voluntariado e sobre as cooperati-
prio. Ao contrário, consideramos que veremos, é particularmente baixa no vas sociais, ambas de 1991), também
não existem razões de princípio que nosso país [Itália]. Consideramos, ao para eliminar as muitas incongruên-

16 SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 454


cias; mas, acima de tudo, desfazendo
“É preciso turação legal, superando a lógica da

Tema de Capa
o nó dos financiamentos. Não é mais suspeita em relação àqueles que têm
tolerável que empresas que buscam
fins de utilidade social sejam racio-
enfrentar empresas. Por isso, é urgente chegar a
um “estatuto das empresas”, em ana-
nadas no crédito e não possam ter
acesso a esses instrumentos finan-
urgentemente logia ao que se faz com o “estatuto
dos trabalhadores”.
ceiros (por exemplo: obrigações de
solidariedade, obrigações de impacto
a questão da Uma terceira frente é a da es-
candalosa desigualdade, seja pessoal,
social, fundos de investimento sociais)
que permitiriam encontrar os recur-
relação entre vida seja territorial, da renda. Sabemos
que o aumento das desigualdades,
sos necessários para o seu desenvol- familiar e vida de além de um certo limite, desencoraja
vimento. Isto é, não é concebível que a inovação da empresa, porque reduz
as finanças que, historicamente, nas- trabalho” a perspectiva de crescimento da eco-
ceram para favorecer a busca do bem nomia. Mas, acima de tudo, reduz o
comum devam continuar a serviço capital social (ou seja, a confiança ge-
exclusivamente daqueles que perse- falta de talento individual. Ao contrá- neralizada) e coloca uma séria amea-
guem fins especulativos. rio, é a falta de “capital conectivo” o ça à paz social.
A criação de um mercado de ca- verdadeiro gargalo. Depois da longa
pitais paralelo ao especulativo para
financiar o Terceiro Setor produtivo
temporada dos distritos industriais, o
nosso capital conectivo foi decrescen-
Leia mais...
também serviria para eliminar a grave do progressivamente. • A identidade e a missão de uma
anomalia italiana que faz com que a Uma frente imediata para se in- universidade católica na atualida-
subsidiariedade dependa da tributa- tervir é a da reforma fiscal. O siste- de. Edição 185 do Cadernos IHU
ção geral, o que é uma patente con- ma fiscal italiano defende, de modo Ideias, disponível em http://bit.ly/
tradição pragmática. A ideia de dar ignóbil, a renda (financeira; imobili- ihuid185;
à luz a uma Bolsa Social é conhecida ária; burocrática), enquanto penaliza • A ética católica e o espírito do ca-
e foi elaborada pela primeira vez na o salário e o lucro. Com uma cota da pitalismo. Edição 159 do Cadernos
Itália, mas não consegue deslanchar. renda sobre o PIB de cerca de 33%, IHU Ideias, disponível em http://bit.
Agora, no entanto, a recente diretriz não poderá haver um crescimento ly/ihuid159;
da Comissão Europeia fala explicita- sustentado e duradouro. A luta contra • Globalização e o pensamento eco-
mente da exigência de criar uma “Bol- a evasão fiscal – em parte favorecida nômico franciscano: orientação do
sa Social Europeia” (estranho destino, pelo atual regime fiscal – nunca pode- pensamento econômico franciscano
o dos italianos!). rá servir para compensar tal distorção e Caritas in Veritate. Edição 153 do
Não podemos continuar repe- com o objetivo do relançamento do Cadernos IHU Ideias, disponível em
tindo que o país precisa crescer e, empreendedorismo. http://bit.ly/ihuid153;
depois, mortificar, como há tempo Uma segunda frente de ataque é • “Eficiência e justiça não bastam pa-
está acontecendo, o espírito empre- a que diz respeito à responsabilidade ra assegurar a felicidade”: o valor
endedor. A empresa é o motor do social da empresa, ainda tímida de-
do dom na economia. Entrevista
crescimento. A taxa de empreende- mais no nosso país. É urgente instituir
especial com Stefano Zamagni, pu-
dorismo diminuiu de modo preocu- prêmios para os comportamentos vir-
blicada nas Notícias do Dia, de 08-
pante ao longo do último quarto de tuosos, tendo em mente que a virtude
05-2011, disponível em http://bit.
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século, especialmente entre os jovens é mais contagiosa do que o vício! Por-
ly/1nX9zJH.
e no Sul do país. O problema não é a tanto, deve ser mudada a infraestru-

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EDIÇÃO 454 | SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 17
A dívida como dispositivo
Tema de Capa

biopolítico de governo da
vida humana
O filósofo Castor Bartolomé Ruiz aproxima os conceitos de Culpa e
Dívida, para evidenciar os modos como a lógica sacrifical nos submete
ao Capitalismo

Por Márcia Junges e Andriolli Costa

E
m alemão, a palavra schuld é utilizada que, a princípio, não seria nada mais que
para significar “dívida” ou “débito”. uma forma de organizar a produção, a co-
Curiosamente, o mesmo termo pode mercialização e as relações econômicas en-
ser utilizado, em outro contexto, no senti- tre pessoas e sociedades, mas que passa a
do de “culpa”. A ambiguidade não passa dominar e objetificar o homem. “O mercado
despercebida para Walter Benjamin, que foi ressignificado como se fosse uma entida-
chama atenção para o fato em Capitalismo de com natureza própria (...), cuja natureza
como Religião (São Paulo: Boitempo, 2013). se rege pelo interesse próprio dos indiví-
A partir desta reflexão, o filósofo Castor Bar- duos”, explica. Ruiz expõe ainda o egoísmo
tolomé Ruiz discorre sobre os modos como como estruturante do mercado, e afirma:
o sacrifício foi incorporado secularmente no “o egoísmo foi instituído como categoria
capitalismo na categoria de dívida. “A dívida antropológica da natureza humana que por
se tornou, para o capitalismo, o meio de cul- sua vez estrutura o modo natural do merca-
par a vida humana de modo a exigir dela o do de se comportar”.
sacrifício necessário para compensar o que Castor Bartolomé Ruiz é graduado em
deve”, afirma ele. Filosofia pela Universidade de Comillas, na
“O dispositivo teológico do sacrifício foi Espanha, com mestrado em história pela
interiorizado como técnica econômica de Universidade Federal do Rio Grande do
governo. O capitalismo financeiro só pode Sul – UFRGS e doutorado em Filosofia pela
subsistir produzindo dívidas. Na hipótese de Universidade de Deusto, Espanha. É pós-
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que não houvesse ninguém com dívidas, o -doutor pelo Conselho Superior de Investi-
capitalismo financeiro entraria em um co- gações Científicas. Atualmente é professor
lapso total. É a dívida que gera o lucro.” A nos cursos de graduação e pós-graduação
culpa no Capitalismo, no entanto, não é ex- em Filosofia da Unisinos. Entre outros, des-
piante, mas é mais e mais culpabilizante, e tacamos os seguintes livros de sua autoria:
seu único modo de remissão é o sacrifício Os paradoxos do imaginário (São Leopoldo:
através de um trabalho maior, mais exte- Unisinos, 2003); Os labirintos do poder. O
nuante ou mais explorador. Desta forma, poder (do) simbólico e os modos de subjeti-
alerta, “temos aqui sinalizado um dispositi- vação (Porto Alegre: Escritos, 2004) e As en-
vo biopolítico de governo da vida humana”. cruzilhadas do humanismo. A subjetividade
Nesta entrevista concedida por e-mail à e alteridade ante os dilemas do poder ético
IHU On-Line, o filósofo retoma também a (Petrópolis: Vozes, 2006).
discussão sobre a entificação do Mercado Confira a entrevista.

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IHU On-Line – A partir da obra O
“A vida de uma culpa, que é dívida contraída

Tema de Capa
reino e a glória (São Paulo: Boitempo, com a divindade. Através da dívida a
2011), de Agamben1, em que medida
pode-se dizer que a lógica sacrificial endividada está vida humana se torna culpada, e por
sua vez se vê obrigada a pagar com
da religião “entrou” no capitalismo?
Castor Bartolomé Ruiz – A obra condenada ao sacrifício. A culpa gerada pela dívida
justifica a necessidade do sacrifício
de Agamben O Reino e a Glória é como dispositivo compensador. A vida
uma pesquisa sobre a arqueologia sacrifício” endividada é uma vida culpada que
das formas de governo nas socieda- deve sacrificar-se para pagar a dívida.
des ocidentais e sua matriz teológi- blemática da filosofia estoica2 sobre A vida endividada está condenada ao
ca. Nela há referências ao sacrifício, a providência do mundo, porém de- sacrifício.
porém sua tese principal é que o senvolve a tensão que há entre a so- O capitalismo, analisa Benjamin,
aparato conceitual do governo da berania imutável da natureza divina fez da dívida um de seus principais
vida, implementado nas modernas e o governo providente da liberdade mecanismos de sustentação. A dívida
técnicas de governo e administra- humana. Segundo Agamben, essa se tornou, para o capitalismo, o meio
ção (como o contrato e o mercado, fissura entre soberania e governo, de culpar a vida humana de modo a
entre outras), foi desenvolvido nos que foi detectada pela teologia, se exigir dela o sacrifício necessário para
debates teológicos sobre o governo mantém como fissura da política compensar o que deve. O dispositivo
providencial do mundo por Deus. A ocidental tal e como a conhecemos teológico do sacrifício foi interioriza-
matriz teológica cristã retoma a pro- na modernidade. Ela é a chave her- do como técnica econômica de gover-
menêutica para compreendermos no. O capitalismo financeiro só pode
criticamente nossos dispositivos de subsistir produzindo dívidas. A dívida
governo e soberania. dos outros gera o lucro dos credores.
1 Giorgio Agamben (1942): filósofo ita-
liano. É professor da Facolta di Design Nesta obra, Agamben não desen- Na hipótese de que não houvesse
e arti della IUAV (Veneza), onde ensina volve o que poderíamos chamar uma ninguém com dívidas, o capitalismo
Estética, e do College International de arqueologia política do sacrifício. Esta financeiro entraria em um colapso to-
Philosophie de Paris. Formado em Direi-
to, foi professor da Universitá di Mace- é uma pesquisa que talvez esteja por tal. É a dívida que gera o lucro. Este
rata, Universitá di Verona e da New York ser feita em toda sua profundidade e dispositivo induz o capital a oferecer
University, cargo ao qual renunciou em dimensão. Contudo, há reflexões que créditos fáceis para estimular o endi-
protesto à política do governo estaduni-
dense. Sua produção centra-se nas rela- já esboçaram esta problemática. Des- vidamento amplo. Quanto mais pes-
ções entre filosofia, literatura, poesia e, taco, entre outros, o fragmento de soas se endividarem, maior é o lucro
fundamentalmente, política. Entre suas artigo de Walter Benjamin3: O capita- que se obterá delas.
principais obras, estão Homo Sacer: o
poder soberano e a vida nua (Belo Ho- lismo como religião (São Paulo: Boi-
rizonte: Ed. UFMG, 2002), A linguagem tempo, 2013). Neste ensaio, Benjamin Dispositivo sacrificial da dívida
e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, explora a dimensão religiosa do capi- O dispositivo da dívida é cons-
2005), Infância e história: destruição da
experiência e origem da história (Belo talismo, em especial através de seu tantemente ativado pelo capitalismo
Horizonte: Ed. UFMG, 2006); Estado de componente sacrificial. O sacrifício foi como meio de manter funcionando
exceção (São Paulo: Boitempo Editorial, incorporado secularmente no capita- o sistema. A conjuntura em que vive-
2007), Estâncias – A palavra e o fantas-
ma na cultura ocidental (Belo Horizon- lismo na categoria de dívida (Schuld, mos de uma ampla oferta de crédito
te: Ed. UFMG, 2007) e Profanações (São que também significa culpa). tem por objetivo manter e ampliar o
Paulo: Boitempo Editorial, 2007). Em dispositivo sacrificial da dívida como
04-09-2007, o sítio do Instituto Humani-
tas Unisinos – IHU publicou a entrevista Endividamento meio econômico de governar lucrati-
Estado de exceção e biopolítica segundo Teologicamente, a genealogia do vamente a vida dos outros. As pessoas
Giorgio Agamben, com o filósofo Jasson sacrifício se justifica como pagamento endividadas terão que dedicar longos
da Silva Martins, disponível em http://
períodos de sua vida a trabalhar sacri-
www.ihu.unisinos.br
bit.ly/jasson040907. A edição 236 da
IHU On-Line, de 17-09-2007, publicou 2 Filosofia Estóica: Escola de filosofia ficadamente para compensar a dívida
a entrevista Agamben e Heidegger: o helenística fundada em Atenas por Zenão adquirida. O trabalho para pagar a dí-
âmbito originário de uma nova experi- de Cítio no início do século III a.C. Os
ência, ética, política e direito, com o estoicos ensinavam que as emoções
vida representa a oferta do sacrifício
filósofo Fabrício Carlos Zanin, disponível destrutivas resultam de erros de desse tempo de vida para compensar
em http://bit.ly/ihuon236. A edição julgamento, e que um sábio, ou pessoa a culpa inerente ao crédito. Quem se
81 da publicação, de 27-10-2003, teve com “perfeição moral e intelectual”, não
como tema de capa O Estado de exce- sofreria dessas emoções (Nota da IHU
endivida terá que sacrificar-se. Para
ção e a vida nua: a lei política moderna, On-Line) que o sistema de acumulação do lucro
disponível para acesso em http://bit.ly/ 3 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo funcione, haverá que estimular o en-
ihuon81. Além disso, de 16 de abril a 23 alemão. Foi refugiado judeu e, diante da
de outubro de 2013, o IHU organizou o perspectiva de ser capturado pelos nazis-
dividamento através do crédito relati-
ciclo de estudos O pensamento de Gior- tas, preferiu o suicídio. Um dos principais vamente fácil, embora com garantias.
gio Agamben: técnicas biopolíticas de pensadores da Escola de Frankfurt. Sobre O sacrifício, através da dívida,
governo, soberania e exceção, cujas ati- Benjamin, confira a entrevista Walter
vidades integraram o I e o II seminários Benjamin e o império do instante, con-
tornou-se um dispositivo gerador de
preparatórios ao XIV Simpósio Interna- cedida pelo filósofo espanhol José Anto- lucro, mas também uma técnica de
cional IHU – Revoluções tecnocientíficas, nio Zamora à IHU On-Line nº 313, dispo- governo da vida humana. As vidas en-
culturas, indivíduos e sociedades. (Nota nível em http://bit.ly/zamora313. (Nota
da IHU On-Line) da IHU On-Line)
dividadas são vidas governadas pela

EDIÇÃO 454 | SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 19


culpa cujo único meio de remissão um índice médio de desempregados, que gera o sofrimento humano, dele
Tema de Capa
é o sacrifício através de um trabalho de pessoas que poderão morrer sem se nutre e sem ele definha.
maior, mais extenuante ou mais ex- atendimento médico, de falta de mo- Desde uma outra perspectiva, já
plorado. Temos aqui sinalizado um radia, de educação precária, etc. O Marx8 tinha apontado para o caráter
dispositivo biopolítico de governo da sacrifício dessas pessoas é um efeito idolátrico do mercado ao analisar a
vida humana. colateral planejado para que o siste- dimensão fetichista da mercadoria
ma funcione corretamente. O capita- capitalista. No capitalismo, o fetichis-
Sacrifício em escala planetária lismo projeta um sacrifício em escala mo da mercadoria se desenvolve num
O caráter sacrificial do capitalis- planetária, que o torna a religião mais duplo aspecto. No modo de produção
mo também tem sido amplamente universal que nunca existiu. capitalista, a mercadoria é um fim, e a
desenvolvido entre nós por estudos mão de obra, um meio. O ser humano
de pensadores como Franz Hinke- Objetivação do ser humano é objetivado, sacrificado no processo
lammert4, Hugo Assmann5, Jung Mo O paradoxal do caráter sacrifi- produtivo, como mero recurso mate-
Sung6, entre outros. O capitalismo é cial é que, em plena modernidade, rial e biológico para a obtenção do fim
um sistema econômico que planeja o capitalismo retroagiu a economia primário da produção: a mercadoria.
o sofrimento humano de uns como política ao debate teológico ances- A mercadoria se humaniza e a vida hu-
efeito colateral necessário para man- tral entre os ídolos e o Deus da vida. mana se mercantiliza.
ter o lucro e o crescimento de outros. Na revelação bíblica esse debate está
A lógica do benefício próprio que se bem caracterizado. O que diferencia o O ocaso das utopias e a ascen-
contrapõe à procura do bem comum Deus da Vida dos ídolos é que estes são da mercadoria
se legitima como algo natural. A natu- necessitam dos sacrifícios humanos Num outro aspecto, a merca-
ralização desta lógica leva a aceitar so- para existirem, enquanto o Deus da doria capitalista incorporou um va-
cialmente que os mais espertos e ca- Vida nega o sacrifício como elemento lor simbólico de troca para além do
pazes gerenciem o sistema de modo constitutivo de sua revelação. Deus valor de uso. A compra e possessão
que seu interesse individual seja o detém o braço de Abraão no sacrifício da mercadoria oferecem muito mais
motor natural da produção. Esse in- do filho. René Girard7 foi um pensador que seu valor material de uso. A mer-
teresse individual, enaltecido pelo que destacou o caráter antissacrificial cadoria adquire, no atual modelo de
liberalismo econômico como algo ine- da cruz de Jesus. Sua morte política é mercado, um valor humano fetichista.
rente à natureza humana, traz como a negação do valor do sacrifício por- Ela oferece felicidade, status, segu-
consequência, também supostamen- que assumiu o sacrifício em si mesmo rança, paz, alegria, bem-estar, etc. A
te “natural”, que muitos devam ser para invalidá-lo. mercadoria é portadora dos valores
sacrificados. O capitalismo é um sistema eco- humanos mais nobres e utópicos.
O sacrifício forma parte das pla- nômico que emula o ídolo. Subsiste a Numa época de niilismo pragmático,
nilhas, das metas e dos resultados de base do sacrifício humano. Sem o sa- a mercadoria brilha como o novo ho-
ministérios, das corporações e das crifício humano, o capitalismo, como rizonte utópico das aspirações sociais
empresas que projetam um índice o ídolo, desapareceria. A genealogia e individuais. De alguma forma pode-
necessário de sacrifício humano para do sacrifício coloca em questão mui- mos dizer que a nova utopia é a posse
que o sistema funcione. Planeja-se tas teologias do sacrifício, assim como de mercadorias. A morte das utopias
desmascara o caráter sacrificial ine- e das convicções fortes de nossas so-
4 Franz Hinkelammert (1931): econo- rente ao capitalismo como sistema ciedades pós-metafísicas parece ter
mista e teólogo alemão, conhecido por encontrado um ponto de escoamento
suas críticas teológicas ao capitalismo.
(Nota da IHU On-Line)
5 Hugo Assmann: é professor na Univer- 7 René Girard (1923): filósofo e antro-
sidade Metodista de Piracicaba, São Pau- pólogo francês. Partiu para os Estados 8 Karl Marx (Karl Heinrich Marx, 1818-
lo. É doutor em Teologia pela Pontifícia Unidos para dar aulas de francês. De suas 1883): filósofo, cientista social, econo-
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Universidade Gregoriana (PUG), Itália. É obras, destacamos La Violence et le Sacré mista, historiador e revolucionário ale-
gaúcho, foi professor de teologia no Se- (A violência e o sagrado), Des Choses Ca- mão, um dos pensadores que exerceram
minário de Viamão na década de 1960. chées depuis la Fondation du Monde (Das maior influência sobre o pensamento
Exilado, foi um dos pioneiros da teologia coisas escondidas desde a fundação do social e sobre os destinos da humanida-
da libertação. Uma vez radicado na Costa mundo), Le Bouc Émissaire (O Bode ex- de no século XX. A edição número 41 dos
Rica, iniciou uma importante pesquisa, piatório), 1982. Todos esses livros foram Cadernos IHU ideias, de autoria de Leda
juntamente com Franz Kinkelammert so- publicados pela Editora Bernard Grasset, Maria Paulani, tem como título A (anti)
bre Economia e Teologia. Já de volta para de Paris. Ganhou o Grande Prêmio de Fi- filosofia de Karl Marx, disponível em
o Brasil, dedica-se aos temas da educa- losofia da Academia Francesa, em 1996, http://bit.ly/173lFhO. Também sobre o
ção. (Nota da IHU On-Line) e o Prêmio Médicis, em 1990. O seu livro autor, confira a edição número 278 da
6 Jung Mo Sung: é professor do Programa mais conhecido em português é A violên- IHU On-Line, de 20-10-2008, intitulada
de Pós-graduação em Ciências da Religião cia e o sagrado (São Paulo: Perspectiva, A financeirização do mundo e sua crise.
da PUC-SP e da UMESP. É também pes- 1973). Sobre o tema desejo e violência, Uma leitura a partir de Marx, disponível
quisador do IFAN-USF. Autor de diversos confira a edição 298 da revista IHU On-Li- em http://bit.ly/ihuon278. Leia, igual-
livros, entre eles, Competência e sensibi- ne, de 22-06-2009, disponível em http:// mente, a entrevista Marx: os homens
lidade solidária: educar para esperança, bit.ly/ihuon298. Leia, também, a edição não são o que pensam e desejam, mas
2ª. ed., 2001, Vozes (em coautoria com especial 393 da IHU On-Line, de 21-05- o que fazem, concedida por Pedro de
Hugo Assmann); Desejo, mercado e re- 2012, sobre o pensamento de Girard, Alcântara Figueira à edição 327 da IHU
ligião, 3ª. ed., 1998, Vozes; Teologia e intitulada O bode expiatório, o desejo e On-Line, de 03-05-2010, disponível em
Economia, 2ª. ed., 1995, Vozes. (Nota da a violência, disponível em http://bit.ly/ http://bit.ly/ihuon327. (Nota da IHU On-
IHU On-Line) ihuon393. (Nota da IHU On-Line) -Line)

20 SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 454


da irrenunciável aspiração humana: a
“Sem o sacrifício de produção baseados na acumula-

Tema de Capa
mercadoria. ção privada de capital, assim como
A mercadoria toma o lugar dos
valores e ideais humanos, os absorve, humano, o uma nova classe social dominante, a
burguesia, desconstruiu o paradigma
oferecendo uma felicidade material
concreta na sua posse e desfrute ma- capitalismo, clássico do bem comum que legitima-
va os mercados medievais. Recuou
terial. Ela é o novo fetiche que oferece os princípios do bem comum para as
a ilusão de uma alienação sob aparên- como o ídolo, declarações formais do direito cons-
cia de felicidade irrestrita. O fetiche titucional e liberou a economia dessa
da mercadoria criou a promessa de desapareceria” “intrusão”. O mercado, que era uma
redenção no novo paraíso do con- instituição periférica nas sociedades
sumo. O Éden bíblico foi substituído medievais, foi consolidado como um
pelo hedonismo mercantil. em linhas gerais poderia se dizer que dispositivo central da nova política.
A humanização fetichista de o funcionamento do mercado medie- Nascia a economia política.
mercadoria é proporcional à objeti- val que se praticava nas urbes estava O mercado foi ressignificado
vação mercantil da vida humana. Este organizado em torno do princípio do como se fosse uma entidade com na-
processo fetichista desemboca no bem comum. tureza própria similar ao conceito de
inevitável sacrifício da vida humana Embora no marco de economias natureza humana criado nesse século.
em prol da mercadoria. Esse sacrifício e sociedades muito menos complexas Assim, foi estruturado como uma en-
também se faz num duplo aspecto. que as nossas, o mercado durante tidade cuja natureza se rege pelo inte-
1) O processo produtivo adquire toda a Idade Média tinha o princípio resse próprio dos indivíduos. Ou seja,
uma matriz biopolítica em que a vida do intercâmbio justo das mercado- o egoísmo foi instituído como catego-
humana é sacrificada para atingir as rias. O conceito de justiça era central ria antropológica da natureza humana
metas. ao mercado e ao intercâmbio. O mer- que por sua vez estrutura o modo na-
2) Na dinâmica de consumo, a cado era um espaço em que se visava tural do mercado de se comportar.
vida humana é sujeitada por dispo- estabelecer relações justas através O modelo antropológico do in-
sitivos de produção de desejos que, teresse próprio se mostrou muito efi-
das trocas equitativas. Por exemplo,
numa outra dimensão da matriz bio- ciente na legitimação dos novos dis-
se impedia a especulação pela escas-
política, a tornam um meio útil para positivos reguladores da economia.
sez. Havia uma regulação e um con-
um fim eficiente. O mercado tornou-se um dispositivo
trole baseado no bem comum sob o
regulador das relações sociais e po-
critério da troca justa e do lucro justo.
IHU On-Line – Qual é a diferença líticas, tendo como eixo legitimador
Este modelo de mercado seguia os
entre o mercado medieval e o merca- a naturalidade do interesse próprio.
princípios clássicos da filosofia políti-
do hoje? Como se deu essa mudança Sua eficiência consiste em haver
ca clássica do bem comum, mantidos
de significados? conseguido legitimar a desigualdade
pelo ideal cristão dominante de que
Castor Bartolomé Ruiz – Em pri- social como algo natural. Os mecanis-
todo governo deve visar ao bem cole-
meiro lugar é conveniente firmar o mos de concentração de riqueza e do
tivo e evitar ao máximo a especulação
princípio de que o mercado não é uma poder através da acumulação privada
dos interesses privados. Por isso, os
entidade natural com leis próprias. É do capital é concomitante ao despoja-
uma instituição histórica criada a par- filósofos e teólogos medievais conde-
mento de acesso ao poder e à riqueza
tir dos interesses em jogo. As chama- navam a usura no mercado e proibiam das grandes maiorias sociais.
das leis do mercado são regulamentos os juros por serem um mecanismo ex- A desigualdade é produzida pe-
e normatizações históricas criadas propriatório injusto de riqueza alheia. los mecanismos do mercado como
para seu funcionamento concreto. Da Esta concepção de mercado foi algo normal. Naturalizam-se, por um
mesma forma que foram criadas, po- possível porque o mercado medieval lado, os dispositivos de concentração
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dem ser mudadas. Quanto mais com- era uma instituição periférica do sis- de poder em cartéis e oligopólios e,
plexas, mais difícil sua transformação. tema político daquelas sociedades. A por outro, normaliza-se a necessidade
O mercado não é culpado de nada, injustiça estrutural que eivava as so- das políticas sociais de sacrifícios ine-
nem é o salvador de ninguém. Ele é ciedades estamentais na Idade Média vitáveis, tudo referido a supostos dis-
uma forma de organizar a produção, não utilizava o mercado como disposi- positivos naturais de funcionamento
comercialização e relações econômi- tivo e tecnologia, algo que irá mudar a do mercado.
cas entre pessoas e sociedades. partir do século XVII.
O mercado medieval não era Criadores e criatura
uma instituição-chave da estrutura O egoísmo como estruturante Este modelo de mercado tem-se
estamental daquelas sociedades, nem do mercado complexificado enormemente a pon-
um dispositivo central da organização Atualmente, a noção de merca- to de não mais conseguirmos per-
da sua estrutura de poder. Embora do em voga foi construída a partir das ceber onde começa a criatura que
devêssemos fazer algumas distinções mudanças conceituais e estruturais fizemos e até onde estamos sendo
pertinentes sobre o mercado das ligas acontecidas no século XVII na Euro- criados à sua imagem e semelhança.
comerciais e os mercados das urbes, pa. A emergência dos novos modos A criatura parece devorar seus cria-

EDIÇÃO 454 | SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 21


dores tornando-nos à sua imagem Embora cada vez as teorias crí- cial de acesso restrito a especialistas.
Tema de Capa
e semelhança. Para sobreviver, nos ticas do mercado tenham maior res- A sacralidade impõe o especialista no
adaptamos às leis do mercado que sonância, face às crises que desmas- lugar do povo. Só as pessoas devida-
nós criamos. Caso contrário, seremos caram a falácia do seu naturalismo, mente preparadas e reconhecidas po-
incapazes de sobreviver. Por sua vez, continua a persistir o discurso hege- derão lidar com o sagrado. As pessoas
as sociedades abandonadas à lógica mônico que caracteriza o mercado comuns se caracterizam por sua in-
da pura acumulação ilimitada imposta como uma entidade. Nos discursos capacidade natural de aceder ao uso
pelo modelo de mercado imperante vigentes dos dirigentes políticos e em- das coisas sagradas. A sacralização
encontram-se à mercê das decisões presariais é comum falar do mercado impede o acesso das pessoas comuns
de poucas corporações que, adminis- com artigo determinado, como um àquilo que é sagrado porque está fora
tradas por uma minoria, conseguiram sujeito. Atribui-se ao mercado pro- de seu alcance.
acumular poder e riqueza em escala priedades e qualidades de um sujeito A modernidade racionalizou a
planetária. transcendental. O mercado regula, o realidade pretendendo dessacralizá-la
A última crise do capitalismo fi- mercado define, o mercado estipu- através do dispositivo da seculariza-
nanceiro ocorrida em 2008 é uma la. Inclusive atribuem-se ao mercado ção. Porém, em muitos casos, a se-
pequena amostra das consequências sentimentos: o mercado está nervoso, cularização manteve instituições e
reais a que conduz a lógica do “livre” o mercado está inseguro, o mercado realidades na condição de entidades
mercado. Utiliza-se falaciosamente o está feliz, etc. inacessíveis à ação humana. Ou seja,
símbolo de “liberdade” para legitimar Ainda que muitas destas metá- sob a aparência de racionalização
uma prática oligopolizadora do poder foras sejam captadas em seu sentido manteve o dispositivo da separação
pelos mercados. Atualmente, socie- metafórico, também é verdade que e dos especialistas como elementos
dades inteiras encontram-se presas a permanece um tipo de naturalização constitutivos da racionalidade de mui-
políticas de sacrifícios extremos pro- desta criatura chamada mercado, pela tas instituições modernas. O merca-
vocadas pela crise de solvência a que qual parece que nos confrontamos do, o Estado, a nação, a lei, as formas
conduziu o modelo de “livre merca- com uma entidade metafísica. Esta de governo, congresso, senado, circu-
do” implementado pelos acordos de percepção é parte da estratégia ideo- lação do capital, entre outros, apare-
Washington no modelo neoliberal. lógica (consciente ou não) pela qual, cem revestidos de uma racionalidade
ao naturalizar um dispositivo de po- própria que deve ser respeitada por
IHU On-Line – Pode-se dizer que der, mantém o caráter sacral, se legi- ter uma natureza intrínseca que exce-
o mercado hoje é algo como uma tima socialmente seu funcionamento de a ação humana. Parece que só es-
“entidade metafísica”? Por quê? e se tornam aceitáveis as consequên- pecialistas podem conhecer e operar
Castor Bartolomé Ruiz – Des- cias exigidas. Lembremos que duran- com essas racionalidades imanentes
de sua ressignificação simbólica pela te séculos foi naturalizada a origem que a pessoa comum não compre-
modernidade, foi conferida ao merca- divina do poder, assim como agora ende, ou não consegue atingir com
do uma série de qualidades próprias se naturaliza a origem extrínseca do suas decisões. São realidades sociais
de um “ente” natural. O conceito de mercado. A consequência desta natu- secularizadas que imanentizaram o
“mão invisível” idealizado por Adam ralização é que se evita a consciência dispositivo da sacralidade na forma de
Smith foi o ponto de partida do agi- crítica, precondição para sua transfor- racionalidade intrínseca inacessível ao
gantamento da autonomia do merca- mação histórica. povo comum impedindo que a ação
do separando da ação humana a lógi- política dos sujeitos vulgares (vulgo)
ca de seu funcionamento. O mercado Sob a capa da secularização possa transformá-las.
foi dotado de uma potência própria, O caráter metafísico com que foi Agamben propõe a retomada
semelhante à natureza científica dos revestido o mercado remete às impli- crítica da ação humana sobre as insti-
objetos, cujas leis existem além da cações políticas da secularização mo- tuições econômicas, políticas e sociais
vontade humana e por ela devem ser derna. Agamben analisa criticamente que sob uma capa de secularizadas
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respeitadas. Ele foi simbolizado com o processo moderno de secularização. permanecem na condição de inaces-
um naturalismo próprio que deve ser A modernidade pretendeu libertar o sibilidade para ação social direta. Para
acatado pelas políticas dos Estados ser humano de determinações exter- tanto, propõe a categoria da profana-
e as decisões sociais para que possa nas, como a religião, porém, sob apa- ção. Aquilo que se profana é retirado
funcionar corretamente. rência de secularização, em muitas de de sua condição de inacessibilidade
Apresenta-se o mercado como suas instituições e discursos imanen- sacral para voltar ao domínio do uso
onipresente, pois está em todas as tizou os dispositivos da sacralidade. A comum das pessoas.
partes. Ele se mostra onipotente, pois sacralidade se caracteriza por separar
consegue regular todas as relações a realidade do uso comum das pesso- Profanação como categoria
econômicas, sociais, políticas, até afe- as colocando-a num outro patamar, filosófica
tivas. Ele é justiceiro porque premia sagrado, em que se tornam inatingí- As categorias teológicas ofere-
os bons investidores e castiga os maus veis para a vontade humana. Quando cem a possibilidade de pensar uma
ou ineficientes. Estes são atributos algo ou alguém é declarado sagrado, filosofia crítica inovadora além da
divinos que se imanentizaram nesta se retira imediatamente do uso co- mera categorização conceitual ha-
instituição. mum e fica consagrado ao uso espe- bitualmente desenvolvida pelo pen-

22 SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 454


samento ocidental. Esta perspectiva
“Numa época eficiência produtiva. O que está em

Tema de Capa
filosófica foi apontada agudamente jogo nestes discursos é a instrumen-
por Benjamin nas suas teses sobre fi-
losofia da história. Na tese I apresenta de niilismo talização da vida humana como meio
útil para um fim outro: o lucro. A vida
a teologia como se fosse um anão feio
e escondido na penumbra da história pragmático, a humana é objetiva como recurso na-
tural do qual se podem extrair benefí-
porque os pensadores modernos não cios, lucros, eficiência, produtividade.
a valorizam. Porém, mesmo relegada mercadoria brilha O dispositivo biopolítico da economia
à penumbra, a teologia continua a es- coloca a questão de como governar
tar presente na trama dos fios da ação como o novo de forma útil a vida humana, não para
histórica. Agamben, com suas diferen- benefício da vida, senão para consecu-
ças, também reflete esta perspectiva horizonte utópico ção de lucros. Essa lógica foi derivan-
filosófica que retoma da teologia su- do numa crescente sujeição da vida
gestões instigantes para pensar criti- das aspirações humana ao conceito de recurso bio-
camente nossa realidade. lógico com potencialidades inesgotá-
O uso político do conceito de pro-
fanação que Agamben propõe, ainda
sociais” veis. Evidentemente que esse proces-
so acontece num campo de tensões,
que seja uma contribuição inovadora, resistências, cessões e ajustes de to-
nos permite encontrar rastros cla- Castor Bartolomé Ruiz – Fou- das as partes implicadas. Mas o dispo-
ros de uma genealogia clássica desse cault dedicou uma parte significativa sitivo biopolítico almeja o máximo de
conflito. Se tomamos como referência de suas últimas pesquisas a perfazer a lucratividade com o mínimo de custo.
duas grandes figuras históricas como genealogia dos dispositivos de gover- Nessa equação a vida humana é cap-
Sócrates e Jesus Cristo, perceber-se-á no da modernidade, que ele caracteri- turada como recurso útil, e o nível de
que, em ambos os personagens, a zou como sendo dispositivos biopolíti- exploração será inversamente propor-
sentença oficial que os condenava à cos. Entre os dispositivos biopolíticos, cional à sua resistência. Neste marco,
morte argumentava que foram pro- Foucault destaca a segurança e tam- o poder soberano, próprio das socie-
fanadores. Sócrates profanou a lei da bém a economia. No curso minis- dades autoritárias pré-modernas, não
cidade corrompendo a juventude com trado entre 1978-1979, intitulado mais era eficiente para governar capi-
novas ideias. Jesus profanou perma- Nascimento da biopolítica, Foucault larmente a vida humana. Fazia-se ne-
nentemente as principais instituições desenvolveu a genealogia da econo- cessário desenvolver outras técnicas e
de sua sociedade. Afirmou que a lei é mia política moderna e contemporâ- dispositivos de governo que não fos-
para o homem, e não o homem para nea, chegando a analisar a genealogia sem mais percebidos como autoritá-
a lei; profanou o sábado, curando do modelo neoliberal de economia. rios, no sentido clássico do termo. Era
quando estava proibido; profanou o A tese de Foucault é que os mé- prioritário criar dispositivos e técnicas
templo, expulsando os vendilhões; todos modernos de governo, espe- que governassem a liberdade huma-
profanou deixando-se tocar por mu- cialmente a economia, provocaram na. Esta aparente aporia, governar a
lheres impuras, etc. A profanação foi uma virada conceitual e prática em liberdade, constitui-se no âmago das
uma estratégia utilizada, entre outros, relação com a vida humana. Nas so- técnicas de administração modernas,
por Sócrates9 e Jesus, em sociedades ciedades antigas, a vida humana natu- que são técnicas de governo da liber-
donde a sacralidade operava como ral, denominada pelos gregos de zoé, dade. Elas são eficientes quando con-
dispositivo altamente eficiente para não era objeto de governo porque seguem que os sujeitos se sujeitem
evitar que as pessoas comuns tives- se considerava que era regida pelas “livremente” às necessidades institu-
sem o poder de aceder ou transfor- leis ontológicas da natureza sobre cionais ou estruturais.
mar a realidade. as quais a vontade humana não tem Foucault alcunhou uma expres-
são para indicar a diferença entre o
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poder. A modernidade, em especial
IHU On-Line – Tomando os es- os discursos econômicos, percebeu poder soberano e o biopoder, que se
critos de Foucault em consideração, que o governo dessa vida humana tornou muito conhecida: O poder so-
é correto afirmar que atualmente a natural, a vida biológica, era muito berano faz morrer e deixa viver, o bio-
economia funciona como normaliza- importante para a produção. Os no- poder faz viver e deixa morrer.
dora dos sujeitos? Por quê? vos conhecimentos de anatomia, es-
tatística, organização espacial, etc.,
Sujeição ou exclusão
foram se deslocando paulatinamente Para conseguir este complexo
9 Sócrates (470 a.C.–399 a.C.): filósofo
para a produção de discursos sobre o objetivo, governar a liberdade, utili-
ateniense e um dos mais importantes
ícones da tradição filosófica ocidental. aprimoramento do governo da vida zou-se, entre outras, a técnica da nor-
Sócrates não valorizava os prazeres dos humana no processo produtivo, nas ma. A norma, diferentemente da lei,
sentidos, todavia escalava o belo entre
instituições, pelo Estado. tende a regular capilarmente os com-
as maiores virtudes, junto ao bom e ao
justo. Dedicava-se ao parto das ideias Por exemplo, as modernas linhas portamentos. A norma estabelece os
(Maiêutica) dos cidadãos de Atenas. O de produção das fábricas surgem a procedimentos corretos para que um
julgamento e a execução de Sócrates são
partir de estudos sobre anatomia hu- sujeito seja aceito numa instituição
eventos centrais da obra de Platão (Apo-
logia e Críton). (Nota da IHU On-Line) mana, o espaço e sua relação com a ou processo. Ela regula, no mínimo

EDIÇÃO 454 | SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 23


detalhe possível, todas as operações a
Tema de Capa edição 372, de 05-09-2011, disponí- edição 390, de 30-04-2012, disponí-
serem desenvolvidas no tempo certo, vel emhttp://bit.ly/nPTZz3 vel emhttp://bit.ly/L2PyO1
no espaço concreto, com a eficiência • O estado de exceção como paradig- • O advento do social: leituras biopolí-
desejada, atingindo as metas propos- ma de governo. Revista IHU On-Line, ticas em Hannah Arendt. Revista IHU
tas, etc. O dilema do sujeito moderno edição 373, de 12-09-2011, disponí- On-Line, edição 392, de 14-05-2012,
é aceitar as normas que o sujeitam ou vel emhttp://bit.ly/nsUUpX disponível em http://bit.ly/J88crF
• A exceção jurídica e a vida huma- • O trabalho e a biopolítica na pers-
ser excluído. Ele deve decidir, mas a na. Cruzamentos e rupturas entre C. pectiva de Hannah Arendt. Revista
alternativa que lhe resta, a exclusão, é Schmitt e W. Benjamin. Revista IHU IHU On-Line, edição 393, de 21-05-
sempre a pior, por isso tende a sujei- On-Line, edição 374, de 26-09-2011, 2012, disponível em  http://bit.ly/
tar-se aos processos de normalização disponível em http://bit.ly/pDpE2N KOOxuX
de conduta exigidos. • A testemunha, um acontecimento. • Giorgio Agamben, genealogia teo-
Não cabe dúvida de que vivemos Revista IHU On-Line, edição 375, de lógica da economia e do governo.
03-10-2011, disponível emhttp://bit. Artigo de Castor Bartolomé Ruiz na
em sociedades de normalização. To- ly/q84Ecj Revista IHU On-Line edição 413, de
das as instituições aprimoraram ao • A testemunha, o resto humano na 01-04-2013, disponível em  http://
máximo as técnicas de normatização dissolução pós-metafísica do sujeito. bit.ly/1aobf9t.
dos sujeitos nos diversos aspectos de Revista IHU On-Line, edição 376, de • A verdade, o poder e os modelos de
sua vida. O tempo, o espaço, os resul- 17-10-2011, disponível em  http:// subjetivação em Foucault. Publicado
migre.me/66N5R nas Notícias do Dia, de 25-09-2013,
tados, a produção, os deslocamentos,
• A vítima da violência: testemunha do no sítio do Instituto Humanitas Uni-
etc., tudo é normatizado ao detalhe incomunicável, critério ético de justi- sinos, disponível em http://bit.ly/
para que os indivíduos se ajustem ins- ça. Revista IHU On-Line, edição 380, GB38Nt.
titucionalmente às metas desejadas. de 14-11-2011, disponível em ht- • Genealogia do governo e da econo-
Caso contrário, estão fora da normali- tp://bit.ly/vQLFZE mia política. Artigo de Castor Bar-
dade definida, o que acarretará sua ex- • Genealogia da biopolítica. Legitima- tolomé Ruiz na Revista IHU On-Line
ções naturalistas e filosofia crítica. edição 437, de 17-03-2014, disponí-
clusão institucional por não ajustar-se
Revista IHU On-Line, edição 386, de vel em http://bit.ly/1jtTFnB;
à norma exigida. 19-03-2012, disponível em  http:// • O poder pastoral, a economia po-
bit.ly/GHWSMF lítica e a genealogia do Estado mo-
Leia mais... • A bios humana: paradoxos éticos e
políticos da biopolítica. Revista IHU
derno. Artigo de Bartolomé Ruiz na
Revista IHU On-Line edição 446, de
• Agamben. Cadernos IHU em Forma- On-Line, edição 388, de 09-04-2012, 16-06-2014, disponível em http://
ção, edição 45, disponível em http:// disponível em http://bit.ly/Hsl5Yx bit.ly/XcRuRm.
bit.ly/1ynejNw; • Objetivação e governo da vida hu- • Forma de vida e os dispositivos bio-
• Homo sacer. O poder soberano e a mana. Rupturas arqueo-genealó- políticos de exceção e governamen-
vida nua. Revista IHU On-Line, edi- gicas e filosofia crítica. Revista IHU talização da vida humana. Entrevista
ção 371, de 29-08-2011, disponível On-Line, edição 389, de 23-04-2012, com Castor Bartolomé Ruiz na Revis-
emhttp://bit.ly/naBMm8 disponível em http://bit.ly/JpA8G3 ta IHU On-Line edição 450, de 11-
• O campo como paradigma biopolí- • A economia e suas técnicas de gover- 08-2014, disponível em http://bit.ly/
tico moderno. Revista IHU On-Line, no biopolítico. Revista IHU On-Line, ihuon450.

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24 SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 454
O domínio avassalador da

Tema de Capa
economia sobre a política
“A animalização do humano é uma característica fundamental da política moderna e
contemporânea, o que justificaria ainda mais que falássemos em zoopolítica, e não
em biopolítica”, pondera Cláudio Oliveira
Por Márcia Junges e Luciano Gallas1

“D
1
entro da perspectiva de Agamben, nomia, mas um domínio avassalador da primeira
poderíamos dizer que a ideia de pela segunda, a ponto de reduzir a primeira, a
estado mínimo e da mão invisível política, a quase nada, ou, para usar um termo
do mercado estariam relacionadas com a de- muito na moda, a um problema de gestão. Creio
cadência da dimensão política enquanto tal, na que o modo como se deu esse processo foi ex-
medida em que, no capitalismo, as coisas pa- plicado do modo mais radical até hoje por Marx,
recem se resolver apenas desde uma perspec- quando nos mostrou que, a partir do capitalis-
tiva econômica. A oposição entre econômico e mo, os homens deixam de se encontrar no mer-
político já está dada desde o livro I da Política cado, na medida em que são as mercadorias, e
de Aristóteles. O que Agamben nos ensina, des- não os homens, que passam a se encontrar no
de o livro I de Homo Sacer, é que, ao contrário mercado. Algo que Marx chamou de o fetichis-
do que acreditava Aristóteles, que julgava que mo da mercadoria”, enfatiza.
o econômico deveria estar submetido ao polí- Cláudio Oliveira da Silva é graduado, mestre e
tico, na modernidade temos a total submissão doutor em Filosofia pela Universidade Federal do
da política ao econômico, quando não simples- Rio de Janeiro – UFRJ. Atualmente, é professor do
mente uma eliminação do primeiro pelo segun- Departamento de Filosofia da Universidade Fe-
do. É de algum modo o sentido de toda a refle- deral Fluminense – UFF. É membro, desde a sua
xão de Marx, sobretudo em O Capital”, afirma fundação, do grupo de trabalho Filosofia e Psica-
o filósofo Cláudio Oliveira. nálise da Associação Nacional de Pós-Graduação
Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU em Filosofia – ANPOF e da International Society
On-Line, o pesquisador analisa a obra de Giorgio of Psychoanalysis and Philosophy. Integra o Con-
Agamben e sua relação com o trabalho de pen- selho Editorial da Coleção Filô, da editora Autênti-
sadores dos mais variados ramos do conheci- ca, na qual dirige a série Agamben – é o tradutor
mento, debatendo as interações entre economia para o português usado no Brasil do livro A comu-
e política no atual sistema de produção hegemô- nidade que vem (“La Comunità che viene” – Belo
nico. “O que aconteceu no mundo moderno não Horizonte: Autêntica Editora, 2013).
foi propriamente uma cisão entre política e eco- Confira a entrevista.

IHU On-Line – A partir das ideias teologica dell’economia e del gover- pode ser compreendido como uma
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de Agamben1 em O Reino e a glória (Il no – São Paulo: Boitempo Editorial, zoopolítica?
Regno e la Gloria. Per una genealogia 2011), em que medida o capitalismo

____________ Infância e história: destruição da experi- política e direito, com o filósofo Fabrício
1 Giorgio Agamben (1942): filósofo italia- ência e origem da história (Belo Horizonte: Carlos Zanin, disponível em http://bit.ly/
no. É professor da Facolta di Design e arti Ed. UFMG, 2006); Estado de exceção (São ihuon236. A edição 81 da publicação, de
della IUAV (Veneza), onde ensina Estética, Paulo: Boitempo Editorial, 2007), Estâncias 27-10-2003, teve como tema de capa O
e do College International de Philosophie – A palavra e o fantasma na cultura oci- Estado de exceção e a vida nua: a lei po-
de Paris. Formado em Direito, foi profes- dental (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007) lítica moderna, disponível para acesso em
sor da Universitá di Macerata, Universitá di e Profanações (São Paulo: Boitempo Edito- http://bit.ly/ihuon81. Além disso, de 16
Verona e da New York University, cargo ao rial, 2007). Em 04-09-2007, o sítio do Ins- de abril a 23 de outubro de 2013, o IHU
qual renunciou em protesto à política do tituto Humanitas Unisinos – IHU publicou a organizou o ciclo de estudos O pensamento
governo estadunidense. Sua produção cen- entrevista Estado de exceção e biopolítica de Giorgio Agamben: técnicas biopolíticas
tra-se nas relações entre filosofia, literatu- segundo Giorgio Agamben, com o filóso- de governo, soberania e exceção, cujas
ra, poesia e, fundamentalmente, política. fo Jasson da Silva Martins, disponível em atividades integraram o I e o II seminários
Entre suas principais obras, estão Homo http://bit.ly/jasson040907. A edição 236 preparatórios ao XIV Simpósio Internacio-
Sacer: o poder soberano e a vida nua (Belo da IHU On-Line, de 17-09-2007, publicou a nal IHU – Revoluções tecnocientíficas, cul-
Horizonte: Ed. UFMG, 2002), A linguagem e entrevista Agamben e Heidegger: o âmbito turas, indivíduos e sociedades. (Nota da
a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005), originário de uma nova experiência, ética, IHU On-Line)

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Cláudio Oliveira – Na verdade, o termo biopolítica, não tem como é uma característica fundamental da
Tema de Capa
a noção de zoopolítica foi por mim referência o sentido grego da pala- política moderna e contemporânea,
desenvolvida a partir do primeiro vra bíos, mas já o sentido dado pelo o que justificaria ainda mais que fa-
volume de Homo Sacer, “O poder surgimento da biologia como ciência lássemos em zoopolítica, e não em
soberano e a vida nua” (Belo Hori- na modernidade; ou seja, a biopolí- biopolítica. O autor que talvez mais
zonte: Editora UFMG, 2010), e não tica, para Foucault, é uma política tenha se aproximado da ideia de
a partir de “O Reino e a Gloria” em que a biologia tem um papel uma zoopolítica é Peter Sloterdijk4,
[segundo volume de Homo Sacer]. fundamental. em seu livro Regras para o parque
Após demonstrar já na Introdução Agamben, no entanto, dife- humano.
de “O poder soberano e a vida nua” rentemente de Foucault, tem total
que há, em Aristóteles1, no livro I da consciência do sentido grego do IHU On-Line – Dentro desta
“Política”, uma distinção entre os termo, mas, mesmo assim, para se perspectiva, como podemos compre-
termos gregos bíos e zoé, Agamben manter referido a Foucault e às dis- ender o estado mínimo e a “mão in-
relaciona a discussão aristotélica cussões que ele lançou, manteve visível” do mercado?
com as investigações foucaultianas o termo biopolítica. A meu ver, se Cláudio Oliveira – Dentro da
sobre a biopolítica. Mas o estranho levarmos em consideração o senti- perspectiva de Agamben, podería-
é que, como o mostra o próprio do etimológico do termo, o mundo mos dizer que a ideia de estado mí-
Agamben, é o termo zoé que carac- moderno e o capitalismo como seu nimo e da mão invisível do mercado
terizaria aquilo que hoje chamamos “modus vivendi” fundamental, de- estaria relacionada com a decadência
de vida biológica, enquanto o ter- veria ser entendido como uma zoo- da dimensão política enquanto tal,
mo bíos estaria relacionado, segun- política, e não como uma biopolítica. na medida em que, no capitalismo,
do Aristóteles e de acordo com o Um outro argumento nesse sentido as coisas parecem se resolver apenas
próprio uso dessa palavra entre os é que tanto em Foucault como em desde uma perspectiva econômica. A
gregos antigos, não com a vida que Agamben, assim como em Hannah oposição entre econômico e político
nós chamamos indevidamente de Arendt3, a animalização do humano já está dada desde o livro I da Polí-
“biológica”, mas com aquela qualifi- tica de Aristóteles. O que Agamben
cada politicamente. A vida que nós com as concepções modernas destes ter-
nos ensina, desde o livro I de “Homo
chamamos hoje, indevidamente, de mos, motivo pelo qual é considerado por Sacer”, é que, ao contrário do que
“biológica” deveria ser chamada, certos autores, contrariando a própria acreditava Aristóteles, o qual julgava
opinião de si mesmo, um pós-moderno.
seguindo o sentido dos étimos gre- Seus primeiros trabalhos (História da
gos, de “zoológica”. Em grego bíos Loucura, O Nascimento da Clínica, As
não diz respeito à vida biológica, Palavras e as Coisas, A Arqueologia do filosofia assenta numa crítica à sociedade
Saber) seguem uma linha estruturalista, de massas e à sua tendência para atomi-
mas à vida politicamente qualifica- o que não impede que seja considerado zar os indivíduos. Preconiza um regresso
da; bíos significa um modo de vida geralmente como um pós-estruturalista a uma concepção política separada da
ou o modo como vivemos a vida, e devido a obras posteriores, como Vigiar esfera econômica, tendo como modelo
e Punir e A História da Sexualidade. de inspiração a antiga cidade grega. A
não a vida no sentido biológico do Foucault trata principalmente do tema edição mais recente da IHU On-Line que
termo. Estranhamente, ao se criar do poder, rompendo com as concepções abordou o trabalho da filósofa foi a 438, A
uma nova ciência na modernidade clássicas do termo. Para Foucault, o po- Banalidade do Mal, de 24-03-2014, dispo-
der não somente reprime, mas também nível em http://bit.ly/ihuon438. Sobre
que estudava o fenômeno da vida, produz efeitos de saber, constituindo Arendt, confira ainda as edições 168 da
a biologia, se partiu do étimo grego verdades, práticas e subjetividades. Em IHU On-Line, de 12-12-2005, sob o títu-
que não tinha nada a ver com esse várias edições, a IHU On-Line dedicou lo Hannah Arendt, Simone Weil e Edith
matéria de capa a Foucault: edição 119, Stein. Três mulheres que marcaram o
aspecto da vida. Foucault2, ao criar de 18-10-2004, disponível em http://bit. século XX, disponível em http://bit.ly/
ly/ihuon119; edição 203, de 06-11-2006, ihuon168, e a edição 206, de 27-11-2006,
disponível em http://bit.ly/ihuon203; intitulada O mundo moderno é o mundo
1 Aristóteles de Estagira (384 a.C.-322 edição 364, de 06-06-2011, intitulada sem política. Hannah Arendt 1906-1975,
www.ihu.unisinos.br

a.C.): filósofo nascido na Calcídica, Esta- ‘História da loucura’ e o discurso racio- disponível em http://bit.ly/ihuon206.
gira. Suas reflexões filosóficas – por um nal em debate, disponível em http:// (Nota da IHU On-Line)
lado, originais; por outro, reformula- bit.ly/ihuon364; edição 343, O (des) 4 Peter Sloterdijk (1947): filósofo ale-
doras da tradição grega – acabaram por governo biopolítico da vida humana, de mão. Desde a publicação de Crítica da ra-
configurar um modo de pensar que se 13-09-2010, disponível em http://bit.ly/ zão cínica, é considerado um dos maiores
estenderia por séculos. Prestou signifi- ihuon343, e edição 344, Biopolitica, es- renovadores da filosofia atual. Em 2004,
cativas contribuições para o pensamento tado de exceção e vida nua. Um debate, encerrou sua trilogia Esferas (Sphären),
humano, destacando-se nos campos da disponível em http://bit.ly/ihuon344. cujos primeiros volumes foram publica-
ética, política, física, metafísica, lógica, Confira ainda a edição nº 13 dos Cader- dos em 1998 e 1999. Interessado na mí-
psicologia, poesia, retórica, zoologia, nos IHU em formação, disponível em dia, dirige Quarteto filosófico, programa
biologia e história natural. É considerado http://bit.ly/ihuem13, Michel Foucault. cultural da cadeia de televisão estatal
por muitos o filósofo que mais influenciou Sua contribuição para a educação, a po- alemã ZDF. Tem inúmeras obras traduzi-
o pensamento ocidental. (Nota da IHU lítica e a ética. (Nota da IHU On-Line) das para o português, como Regras para
On-Line) 3 Hannah Arendt (1906-1975): filósofa e o parque humano – uma resposta à carta
2 Michel Foucault (1926-1984): filósofo socióloga alemã de origem judaica. Foi de Heidegger sobre o humanismo (São
francês. Suas obras, desde a História da influenciada por Husserl, Heidegger e Paulo: Estação Liberdade, 2000). No sítio
Loucura até a História da sexualidade (a Karl Jaspers. Em consequência das per- do IHU On-Line, foram publicadas várias
qual não pôde completar devido a sua seguições nazistas, em 1941, partiu para traduções de entrevistas concedidas pelo
morte), situam-se dentro de uma filoso- os Estados Unidos, onde escreveu gran- filósofo. Elas podem ser acessadas pela
fia do conhecimento. Suas teorias sobre de parte das suas obras. Lecionou nas busca em www.ihu.unisinos.br. (Nota da
o saber, o poder e o sujeito romperam principais universidades deste país. Sua IHU On-Line)

26 SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 454


que o econômico deveria estar sub- deu conta deles, embora não os te- prefácio à edição francesa de Infância

Tema de Capa
metido ao político, na modernidade nha desenvolvido a fundo. Mas ele e História. O texto apresentado no co-
temos a total submissão da política nos mostra que uma biopolítica é lóquio, no entanto, jamais foi publica-
ao econômico, quando não simples- condição fundamental para a ins- do. Tenho tentado, nos últimos anos,
mente uma eliminação do primeiro tauração do capitalismo. A obra de convencer Agamben a publicá-lo,
pelo segundo. É de algum modo o Agamben é uma oportunidade para mas até agora meus esforços foram
sentido de toda a reflexão de Marx5, nos aprofundarmos nessa questão. em vão. Acho que é um texto que
sobretudo em “O Capital”. Eu diria que o capitalismo é uma bio- permitiria esclarecer alguns pontos
política (ou uma zoopolítica, se qui- obscuros da relação entre Lacan e
IHU On-Line – Há uma cisão en- sermos ser mais precisos), na medida Agamben.
tre ética e economia? Como se deu em que o indivíduo e o cidadão se O pensamento de Agamben, seu
esse processo? tornam para o governo um problema trabalho e obra são tão próximos de
Cláudio Oliveira – Na verdade econômico. Lacan que exatamente essa proxi-
não se trata, a meu ver, de uma ci- midade tem que nos deixar atentos.
são, nem de uma cisão entre ética IHU On-Line – Que conexões Existe um conhecimento – depois de
e economia. A relação fundamen- podem ser percebidas entre Lacan6 e muitos anos de certo convívio com
tal seria entre política e economia, Agamben? Agamben, tenho noção disso – por
a ética fazendo parte de um domí- Cláudio Oliveira – Na obra de parte de Agamben da literatura psica-
nio dentro da política. O que acon- Agamben, elas começam a aparecer já nalítica. Um conhecimento por parte
teceu no mundo moderno não foi em seu segundo livro, Estâncias (Belo dele de certo Freud7, de certo Lacan,
propriamente uma cisão entre po- Horizonte: Editora UFMG, 2007), no mas esse conhecimento não vai até
lítica e economia, mas um domínio terceiro ensaio do livro, que é dedica- o nível que imaginamos, pelo fato de
avassalador da primeira pela segun- do, dentre outros, a Jacques Lacan, e vermos grandes coincidências. A meu
da, a ponto de reduzir a primeira, a onde Agamben se utiliza da teoria psi- ver, essas coincidências se devem
política, a quase nada, ou, para usar canalítica, sobretudo lacaniana, para menos a um conhecimento profun-
um termo muito na moda, a um pro- construir sua própria teoria do fan- do da obra de Lacan ou de Freud por
blema de gestão. Creio que o modo tasma ou da fantasia. Essa referência parte de Agamben, e mais a um certo
como se deu esse processo foi expli- permanecerá em livros posteriores, conjunto de referências intelectuais
cado do modo mais radical até hoje como “Infância e História”, mas tende compartilhadas no século XX: a an-
por Marx, quando nos mostrou que, a desaparecer depois, pelo menos de tropologia estrutural de Lévi-Strauss8,
a partir do capitalismo, os homens modo explícito. Em 1990, Agamben
deixam de se encontrar no mercado, participou do Colóquio “Lacan avec les
7 Sigmund Freud (1856-1939): neuro-
na medida em que são as mercado- philosophes”, promovido pelo Collège logista, fundador da psicanálise. Inte-
rias, e não os homens, que passam a International de Philosophie, do qual ressou-se, inicialmente, pela histeria e,
se encontrar no mercado. Algo que Agamben era um dos diretores de Pro- tendo como método a hipnose, estudou
pessoas que apresentavam esse quadro.
Marx chamou de o fetichismo da grama. Apresentou, na ocasião, um Mais tarde, interessado pelo inconscien-
mercadoria. texto intitulado “Experimentum lin- te e pelas pulsões, foi influenciado por
guae”, mesmo título que viria a dar ao Charcot e Leibniz, abandonando a hip-
nose em favor da associação livre. Estes
IHU On-Line – Quais são os nexos elementos tornaram-se bases da psica-
que unem a biopolítica à economia? nálise. Freud nos trouxe a ideia de que
Cláudio Oliveira – Esses nexos 6 Jacques Lacan (1901-1981): psica- somos movidos pelo inconsciente. Freud,
nalista francês. Realizou uma releitura suas teorias e o tratamento com seus pa-
são muitos, e o próprio Foucault se do trabalho de Freud, mas acabou por cientes foram controversos na Viena do
eliminar vários elementos deste autor século XIX, e continuam ainda muito de-
(descartando os impulsos sexuais e de batidos hoje. A edição 179 da IHU On-Li-
5 Karl Marx (Karl Heinrich Marx, 1818- agressividade, por exemplo). Para Lacan, ne, de 08-05-2006, dedicou-lhe o tema www.ihu.unisinos.br
1883): filósofo, cientista social, econo- o inconsciente determina a consciência, de capa sob o título Sigmund Freud. Mes-
mista, historiador e revolucionário ale- mas ainda assim constitui apenas uma tre da suspeita, disponível em http://
mão, um dos pensadores que exerceram estrutura vazia e sem conteúdo. Confira bit.ly/ihuon179. A edição 207, de 04-12-
maior influência sobre o pensamento a edição 267 da revista IHU On-Line, de 2006, tem como tema de capa Freud e
social e sobre os destinos da humanida- 04-08-2008, intitulada A função do pai, a religião, disponível em http://bit.ly/
de no século XX. A edição número 41 dos hoje. Uma leitura de Lacan, disponível ihuon207. A edição 16 dos Cadernos IHU
Cadernos IHU Ideias, de autoria de Leda em http://bit.ly/ihuon267. Sobre Lacan, em formação tem como título Quer en-
Maria Paulani, tem como título A (anti) confira, ainda, as seguintes edições da tender a modernidade? Freud explica,
filosofia de Karl Marx, disponível em revista IHU On-Line, produzidas tendo disponível em http://bit.ly/ihuem16.
http://bit.ly/173lFhO. Também sobre o em vista o Colóquio Internacional A ética (Nota da IHU On-Line)
autor, confira a edição número 278 da da psicanálise: Lacan estaria justifica- 8 Claude Lévi-Strauss (1908-2009):
IHU On-Line, de 20-10-2008, intitulada do em dizer “não cedas de teu desejo”? antropólogo belga que dedicou a vida
A financeirização do mundo e sua crise. [ne cède pas sur ton désir?], realizado à elaboração de modelos baseados na
Uma leitura a partir de Marx, disponível em 14 e 15 de agosto de 2009: edição linguística estrutural, na teoria da infor-
em http://bit.ly/ihuon278. Leia, igual- 298, de 22-06-2009, intitulada Desejo e mação e na cibernética para interpretar
mente, a entrevista Marx: os homens não violência, disponível em http://bit.ly/ as culturas, que considerava como siste-
são o que pensam e desejam, mas o que ihuon298, e edição 303, de 10-08-2009, mas de comunicação, dando contribui-
fazem, concedida por Pedro de Alcântara intitulada A ética da psicanálise. Lacan ções fundamentais para a antropologia
Figueira à edição 327 da IHU On-Line, de estaria justificado em dizer “não cedas social. Sua obra teve grande repercus-
03-05-2010, disponível em http://bit.ly/ de teu desejo”?, disponível em http:// são e transformou, de maneira radical,
ihuon327. (Nota da IHU On-Line) bit.ly/ihuon303. (Nota da IHU On-Line) o estudo das ciências sociais, mesmo

EDIÇÃO 454 | SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 27


a linguística de Jakobson9, a referên- IHU On-Line – Quais são as como a questão que ele quis pensar
Tema de Capa
cia hegeliana10, uma discussão com ideias centrais da obra de Agamben obstinadamente, como ele diz no pre-
Foucault, com Derrida11. A obra de “A comunidade que vem”? fácio que escreveu, em 1989, para a
Agamben constitui-se no mesmo Cláudio Oliveira – É difícil definir edição francesa de Infância e Histó-
terreno em que a psicanálise de La- quais são as ideias centrais de um li- ria: “Se para todo autor existe uma
vro como “A comunidade que vem”. interrogação que define o motivum
can se constituiu. Nesse cenário da
Há, sem dúvida, algumas noções que do seu pensamento, o âmbito que es-
filosofia do século XX – agora já do
se repetem ao longo do livro, como, sas perguntas circunscrevem coincide
século XXI –, eu diria que a posição por exemplo, a noção de “qualquer”, sem resíduos com aquele em direção
filosófica mais próxima da psicaná- que, não por acaso, é precisamente do qual se orienta todo o meu traba-
lise lacaniana é a de Agamben, sem aquela que dá título ao primeiro capí- lho. Nos livros escritos e naqueles não
dúvida nenhuma. As possibilidades tulo do livro. A ideia central, embutida escritos, eu não quis pensar obstina-
de fazer esse diálogo, então, são no uso dessa noção, poderia ser então damente senão uma só coisa: o que
inúmeras. descrita assim: qual é o estatuto dos significa ‘há linguagem’, o que signifi-
indivíduos singulares numa comu- ca ‘eu falo’?”.
provocando reações exacerbadas nos nidade por vir. Uma série de outras É interessante notar que, em-
setores ligados principalmente às tradi- noções são então convocadas a fim bora uma questão sub-reptícia, a
ções humanista, evolucionista e marxis-
ta. Ganhou renome internacional com o de auxiliar o trabalho de descrição do questão da mística, em Agamben, é
livro Les Structures élémentaires de la que seria essa comunidade, tais como uma questão que insiste e aparece,
parenté (1949). Em 1935, Lévi-Strauss as noções de “limbo”, de “exemplo”, em geral, relacionada à questão da
veio ao Brasil para lecionar Sociologia
na Universidade de São Paulo – USP. Inte- de “exterior”, dentre tantas outras. O linguagem ou a questões que estão,
ressado em etnologia, realizou pesquisas que essas noções teriam em comum é de algum modo, relacionadas à ques-
em aldeias indígenas do Mato Grosso. As o fato de todas elas porem em ques- tão da linguagem. Desenvolvi esse
experiências foram sistematizadas no
livro Tristes Trópicos (São Paulo: Com- tão a ideia tradicional de comunida- tema numa conferência que deve
panhia das Letras, 1996), publicado ori- de, enquanto reunião de semelhantes ser publicada em breve sob o título
ginalmente em 1955 e considerado uma fundada em uma noção de identida- “Mística e Linguagem”. Tratava-se
das mais importantes obras do século
XX. (Nota da IHU On-Line) de. É impressionante como Agamben, de um encontro da sociedade ibero-
9 Roman Jakobson (1896-1982): linguista neste livro, se servirá de referências americana de neoplatonistas, mas
e crítico literário russo, um dos fundado- as mais díspares, como a teoria dos eu quis participar para mostrar que
res da fonologia. É autor de Ensaios de
linguística geral e Que é poesia?, além conjuntos, a ideia de uma sociedade essa é uma questão que insiste não
de outros numerosos ensaios sobre lin- sem classes, os cartoons, as discus- só em Agamben, mas também em
guística e crítica literária. (Nota da IHU Lacan. Agamben, aliás, em sua confe-
On-Line)
sões teológicas sobre o princípio de
10 Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo individuação, etc. rência inédita sobre Lacan, feita du-
alemão idealista. Como Aristóteles e San- rante o colóquio Lacan avec les phi-
to Tomás de Aquino, tentou desenvolver
um sistema filosófico no qual estivessem
IHU On-Line – Que desafios fo- losophes, lembra que Lacan quis que
integradas todas as contribuições de seus ram enfrentados na tradução desta os seus “Escritos” fossem colocados
principais predecessores. Sobre Hegel, obra? entre os escritos dos místicos. Seria
confira no link http://bit.ly/ihuon217 a
edição 217 da IHU On-Line, de 30-04-
Cláudio Oliveira – O desafio impossível reproduzir aqui toda a ar-
2007, intitulada Fenomenologia do espí- maior, como sempre, é manter-se gumentação que eu desenvolvo na
rito, de Georg Wilhelm Friedrich Hegel fiel ao original, sobretudo no caso de conferência citada, mas a ideia fun-
(1807-2007), em comemoração aos 200
anos de lançamento dessa obra. Veja
uma obra de grande aventura literá- damental é a de que o místico não é
ainda a edição 261, de 09-06-2008, Car- ria, como “A comunidade que vem”. É algo que a linguagem não alcançaria
los Roberto Velho Cirne-Lima. Um novo sempre também um desafio descobrir a não ser através de uma experiência
modo de ler Hegel, disponível em http://
bit.ly/ihuon261, e Hegel. A tradução da
as referências de Agamben, já que em mística, mas, ao contrário, que isso
muitos de seus livros ele faz citações que é o inalcançável para a lingua-
www.ihu.unisinos.br

história pela razão, edição 430, disponí-


vel em http://bit.ly/ihuon430 (Nota da sem dar referências bibliográficas. gem, e, portanto, místico para ela, é
IHU On-Line).
11 Jacques Derrida (1930-2004): filóso- ela mesma enquanto tal.
fo francês, criador do método chamado IHU On-Line – Qual é a relação
desconstrução. Seu trabalho é associado, entre mística e linguagem em Giorgio
com frequência, ao pós-estruturalismo e
ao pós-modernismo. Entre as principais
influências de Derrida encontram-se Sig-
Agamben?
Cláudio Oliveira – A questão da Leia mais...
mund Freud e Martin Heidegger. Entre mística não é uma questão que po-
sua extensa produção, figuram os livros • O inédito de Agamben. Artigo de
Gramatologia (São Paulo: Perspectiva, deríamos considerar central na obra
1973), A farmácia de Platão (São Paulo: de Giorgio Agamben. Eu diria que, Cláudio Oliveira publicado no sítio
Iluminuras, 1994), O animal que logo sou embora fundamental, ela é uma ques-
(São Paulo: UNESP, 2002), Papel-máquina
(São Paulo: Estação Liberdade, 2004) e tão sub-reptícia em sua obra: uma do Instituto Humanitas Unisinos –
Força de lei (São Paulo: WMF Martins Fon- questão de fundo, essencial, mas que
tes, 2007). Dedicamos a Derrida a edito- IHU em 25-11-2012, disponível em
só ocasionalmente vem à frente. A
ria Memória da IHU On-Line nº 119, de
18-10-2004, disponível em http://bit.ly/ questão da linguagem, ao contrário, é http://bit.ly/1otlz5O.
ihuon119. (Nota da IHU On-Line) aquela que o próprio Agamben define

28 SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 454


Baú da IHU On-Line

Tema de Capa
Confira outras edições da IHU On-Line cujo tema de capa aborda autores e temas ligados à
economia.

• Dívida pública. Quem ganha? Quem perde? Edição 440, de 07-04-2014, disponível em http://bit.ly/1wndxDn;
• A economia internacional e o Brasil. A crise financeira e seus (possíveis) impactos. Edição 372, de 05-09-2011, disponí-
vel em http://bit.ly/1h7LG2b;
• A política econômica do governo Dilma. Continuidade ou mudança? Edição 356, de 04-04-2011, disponível em
http://bit.ly/OrwMrC;
• Economia de baixo carbono. Desafios e oportunidades. Edição 351, de 22-11-2010, disponível em http://bit.ly/1g0BW5x;
• Economia brasileira. Desafios e perspectivas. Edição 338, de 09-08-2010, disponível em http://bit.ly/1mUcztP;
• Renda Básica de Cidadania, universal e incondicional. Um direito. Edição 333, de 14-06-2010, disponível em
http://bit.ly/1hxb2Sq;
• A crise da zona do euro e o retorno do Estado regulador em debate. Edição 330, de 24-05-2010, disponível em
http://bit.ly/1lFFsqA;
• A reestruturação do capitalismo brasileiro. Edição 322, de 22-03-2010, disponível em http://bit.ly/1e51hjs;
• Euclides da Cunha e Celso Furtado. Demiurgos do Brasil. Edição 317, de 30-11-2009, disponível em http://bit.ly/1e51qmV;
• O capitalismo cognitivo e a financeirização da economia. Crise e horizontes. Edição 301, de 20-07-2009, disponível em
http://bit.ly/1elNBv6;
• Ecoeconomia. Uma resposta à crise ambiental? Edição 295, de 01-06-2009, disponível em http://bit.ly/1jnILSG;
• A financeirização do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de Marx. Edição 278, de 21-10-2008, disponível em
http://bit.ly/1ss1otA; www.ihu.unisinos.br
• A crise financeira internacional. O retorno de Keynes. Edição 276, de 06-10-2008, disponível em http://bit.ly/ihuon276;
• Uma nova classe média brasileira? Edição 270, de 25-08-2008, disponível em http://bit.ly/1fWlVko.

LEIA OS CADERNOS IHU IDEIAS


NO SITE DO IHU
WWW.IHU.UNISINOS.BR
EDIÇÃO 454 | SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 29
Tema
de
Capa

Destaques
da Semana
www.ihu.unisinos.br

IHU em
Revista
30 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
Destaques On-Line

Destaques da Semana
Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line no período de 09-09-2014 a 12-09-2014, disponíveis nas Entrevistas do Dia
do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).

A presença da mulher na Igreja: demonstra que o valor gasto nas campanhas


políticas gira em torno de 10 bilhões de reais,
retórica sem mudanças significativas afirma o economista Gil Castello Branco à
Entrevista com Ivone Gebara, doutora em IHU On-Line. “As eleições não só são caras,
Filosofia pela Universidade Católica de São como estão cada vez mais caras, fazendo
Paulo e em Ciências Religiosas pela Université com que o poder econômico se torne, a cada
Catholique du Louvain, na Bélgica eleição, mais significativo”, pontua. Para ele, o
financiamento privado de campanha revela que
Publicada no dia 09-09-2014
“os empresários, cada vez mais, não doam, mas
Acesse o link http://bit.ly/ihu090914
investem, ou seja, repassam recursos com a
expectativa de ganhos futuros. Não é apenas por
A teologia feminista adotada por Ivone
espírito democrático que eles fazem doações,
Gebara parte da aproximação “das dores e das
inclusive, a candidatos adversários. Eles doam
perguntas das pessoas sem ter uma resposta
apenas com o intuito de manter uma boa relação
arrumada e doutrinária” e “das situações reais
com qualquer um dos candidatos que seja
onde as pessoas se encontram”. É assim que a
eleito”.
teóloga católica, da ordem das irmãs de Nossa
Senhora – Cônegas de Santo Agostinho, narra
sua aproximação com o feminismo e como foi
“levada a perceber” o quanto sua “maneira de
fazer teologia não incluía os sofrimentos e sonhos O deserto eleitoral. ‘O que é um
das mulheres”. Por conta disso, foi necessário
programa de esquerda hoje em dia?’
pensar uma teologia feminista. Para Ivone, “há
uma grande diferença entre o fazer teológico Entrevista com Francisco de Oliveira, cientista
feminista e o fazer teológico tradicional afirmado social e professor aposentado do Departamento
como atual teologia oficial da Igreja”. Segundo de Sociologia da Universidade de São Paulo –
ela, apesar de a “afirmação comum”, “Deus é USP
Deus”, refletir “o pensamento de muita gente”, há Publicada no dia 11-09-2014
“múltiplas significações da palavra Deus”. Acesse o link http://bit.ly/ihu110914
“Até chegarem as eleições, mais de um ano depois,
www.ihu.unisinos.br
o que poderia ser consequência das manifestações
de junho já se apagou”, afirma o cientista social
“As empresas não votam, mas são elas Francisco de Oliveira à IHU On-Line, ao avaliar
que elegem” possíveis impactos das manifestações de rua na
escolha do candidato à Presidência da República
Entrevista com Gil Castello Branco, economista,
deste ano. Para ele, os protestos foram efusivos,
fundador e secretário-geral da Associação mas não se viu nem nos partidos nem nos
Contas Abertas candidatos consequências das manifestações. “É
Publicada no dia 10-09-2014 lamentável, porque mostra que a política circula
Acesse o link http://bit.ly/ihu100914 em áreas distantes das manifestações populares.”
Para ele, as manifestações não terão impacto na
O ciclo eleitoral completo, com base nas disputa eleitoral por serem efêmeras e terem
últimas eleições presidenciais e municipais, pouca duração, “o que é normal, porque não

EDIÇÃO 454 | SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 31


têm folego para atravessar meses de um deserto Publicada no dia 12-09-2014
Destaques da Semana
eleitoral”. E reitera: “Elas estão apenas na memória Acesse o link http://bit.ly/ihu120914
de pessoas como eu e você que gostamos de
política, mas na maior parte da população, isso já Um dos primeiros teólogos indígenas a trabalhar
passou. Até os candidatos já se esqueceram das com a teologia índia na América Latina, Eleazar
manifestações”. López Fernández analisa a repercussão desta
teologia no continente e sua relação com o
cristianismo. Segundo ele, em entrevista à IHU
On-Line, a teologia indígena “distingue-se de
outras vertentes teológicas cristãs porque tem
Teologia índia: “O Reino de Deus passa sua raiz e origem antes e fora do cristianismo, e
também pela construção de utopias ou pode prosseguir seu caminho sem relação com
a fé cristã”. Hernández destaca ainda o papel
sonhos de futuro” político, econômico e social a ser desempenhado
Entrevista com Eleazar López Fernández, pela teologia índia, como “uma proposta que os
teólogo e filósofo mexicano, do Centro indígenas fazem para o resto da sociedade e das
Nacional de Ayuda a las Misiones Indígenas – Igrejas, assinalando que a cosmovisão e os valores
CENAMI dos povos podem ser uma alternativa de vida para
toda a humanidade”.

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32 SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 454


Entrevista da Semana

Destaques da Semana
“A vida é uma sequência de
memórias”
O médico Ivan Izquierdo reflete sobre a importância da memória para a vida humana
e os modos como esta é impactada pela tecnologia

Por Ricardo Machado e Andriolli Costa

D
o ponto de vista biológico, a memória é fende: “O computador não pode me mudar, mas
elemento fundamental para a vida huma- o uso que eu faço dele, sim. O que meu cérebro
na, e ocupasse do ato de caminhar até o faz com os dados fornecidos pelo computador
reconhecimento do perigo. Conforme o profes- pode modificar sinapses – e a memória se guarda
sor e médico Ivan Izquierdo, a importância da justamente modificando sinapses”.
memória está intimamente ligada ainda ao fun- Ivan Izquierdo é graduado em Medicina, com
cionamento do corpo. “Todos os processos meta- doutorado em Farmacologia pela Universidad
bólicos de qualquer organismo são sequências de de Buenos Aires – UBA. Seu pós-doutorado, em
processos bioquímicos bem estabelecidos onde }Neuropsicofarmacologia, foi pela University of
cada um depende do anterior. Cada um deve se California – UCLA. Professor Titular de Medicina, é
lembrar do anterior”. E afirma: “Sem memória coordenador do Centro de Memória da Pontifícia
não há vida. É possível, inclusive, dizer que a vida Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS
é uma sequência de memórias”. e coordenador científico de seu Instituto do Cére-
Mas de que forma as revoluções tecnológicas bro. Membro de 21 sociedades científicas do país
afetaram nossa memória? De que modo os peri- e do exterior, é autor, entre diversas obras, de Me-
féricos digitais colaboram para expandir as fron- mória (Porto Alegre: ArtMed, 2011), Releituras do
teiras entre lembrança e esquecimento? Nesta óbvio (São Leopoldo: Unisinos, 2006) e A arte de
entrevista, concedida por telefone à IHU On-Line, esquecer (Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2004).
Izquierdo reflete sobre estas problemáticas, e de- Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que maneira a hoje se tornou fartamente conhecida. completamente incompreensíveis para
revolução tecnológica que estamos Conhecemos os mecanismos bioquími- um sujeito de 100 anos atrás.
vivendo, da nanobiotecnologia, im- cos que fazem a memória, os lugares
www.ihu.unisinos.br
pacta em nosso modo de compreen- onde elas são feitas. IHU On-Line – Qual a impor-
der o conceito de memória tradicio- Quantitativamente é impossível tância da memória para a nossa
nalmente concebido pela medicina, dizer, pois estas coisas não têm medi- sobrevivência?
por exemplo? da, mas é como ouvir uma música de Ivan Izquierdo – Se não nos lem-
Ivan Izquierdo – O conceito de longe pela primeira vez e conhecer a brássemos de que certas coisas são
memória talvez não tenha mudado, perigosas, morreríamos no instante
partitura completa para dirigir a or-
mas graças à revolução tecnológica seguinte. Por exemplo, quando tenho
questra. Meus alunos de graduação,
conseguimos compreender muito mais que atravessar a rua, preciso lembrar
os mecanismos da memória. Avança- quando leem o que profissionais des- que o carro pode me atropelar, que
mos mais neste sentido do que nos tacados escreviam sobre o cérebro 15 ele vem em uma direção, se a veloci-
últimos 200 anos, sem dúvida. Mais do ou 20 anos atrás, riem. Quando veem dade que ele está vindo é compatível
que um avanço dos aparelhos eletrô- o que se escrevia há 50 anos, às vezes com a que eu preciso empreender para
nicos, a grande evolução veio dos pro- se interessam pelo valor histórico, mas atravessar na frente dele, enfim. Tudo
cessos químicos do funcionamento ce- é como ler um conto cômico. As coisas isso devo me lembrar à perfeição, por-
rebral. Esta era uma área praticamente que fazemos hoje em qualquer labora- que envolve risco de vida. Precisamos
desconhecida duas décadas atrás e tório onde se trabalha a memória são aprender (e lembrar) como se usa uma

EDIÇÃO 454 | SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 33


escada; se há elevador, como se usa... temente toda a sorte de aparelhos todas as memórias da infância, isso não
Destaques da Semana
Até mesmo para andar é preciso lem- eletrônicos podem ser considerados era verdade. Naquela época não
brar que se deve colocar uma perna na como banco de dados de memórias sabíamos nada de neuroanatomia,
frente e depois a outra. Sem memória ou como dispositivos de acionamento não sabíamos nada de neuroquímica e
não há vida. É possível, inclusive, dizer de nossa memória cerebral? Por quê? muito menos computação. Era fácil di-
que a vida é uma sequência de memó- Ivan Izquierdo – São bancos de da- zer isso quando se sabia tão pouco. Eu
rias. O coração precisa lembrar que fez dos, sim, mas também dispositivos para tenho um curso de pós-graduação que
uma sístole1 para bioquimicamente ter mudar nossa memória, fazê-la crescer, tem quatro ou cinco alunos. Não sei o
condição de fazer uma diástole. Todos diminuir... O computador não pode me nome de nenhum deles. Eles também
os processos metabólicos de qualquer mudar, mas o uso que eu faço dele, sim. não devem estar seguros se “Izquierdo”
organismo são sequências de proces- O que meu cérebro faz com os dados é com Z ou com S. Nós esquecemos as
sos bioquímicos bem estabelecidos fornecidos pelo computador pode mo- coisas, mas com o pouco que nos sobra
onde cada um depende do anterior. dificar sinapses – e a memória se guar- fazemos tudo que há no mundo.
Cada um deve se lembrar do anterior. da justamente modificando sinapses.
IHU On-Line – De que maneira
IHU On-Line – Como o esqueci- IHU On-Line – Como a ideia mui- as novas concepções que existem
mento, também, torna-se essencial to corrente há 20 anos de que o cé- sobre o funcionamento cerebral são
para que possamos viver? rebro se pareceria a um computador, também resultado de novas formas
Ivan Izquierdo – Em primeiro com circuitos fixos, foi superada em de compreensão do nosso tempo,
lugar, porque não cabe tudo. Nós te- nome de uma perspectiva mais aber- menos binárias e mais complexas?
mos capacidade de armazenar uma ta atribuindo novas e mais elásticas Ivan Izquierdo – De que forma
quantidade de informação finita. É funções aos neurônios? Esta visão não sei, mas sem dúvida há uma in-
uma capacidade muito extensa, mas mais contemporânea do funciona- fluência tremenda. Partes de nosso
não é possível guardar tudo. E nem mento cerebral está mais alinhada cérebro funcionam de forma binária,
ao mesmo tempo. A vida diária exige ao ponto de vista do software livre, porém as estruturas cerebrais, em seu
mais o uso desse tipo de seleção de sempre aberto e possível de ser todo, funcionam de forma complexa.
memória, que chamamos multitarefa. expandido?
Mas mesmo o multitarefa tem um li- Ivan Izquierdo – Foi superada por IHU On-Line – Deseja acrescen-
mite também. Existe um determinado uma perspectiva muito mais aberta. tar mais alguma coisa?
número de tarefas que podemos fazer O cérebro se assemelha em alguns Ivan Izquierdo – A cultura tec-
ao mesmo tempo, com alguma práti- aspectos ao computador, mas em ou- nofóbica é uma ignorância. Quem
ca, mas não são muitas. tros lembra mais uma vasilha cheia. O
tem este pensamento está perdendo
cérebro está constantemente mudan-
o mundo. Este é um mundo cada vez
IHU On-Line – Qual o impacto do. Apesar da idade, todos nós somos
mais técnico, é preciso conhecer a
das novas tecnologias em nossos pro- hoje mais do que ontem. Aprendemos
tecnologia para entendê-lo.
cessos de construção de memória? coisas, deletamos algumas, perdemos
Os dispositivos móveis eletrônicos de várias. As memórias na verdade são
armazenamento de memórias contri-
buem ou prejudicam nossa capacida-
apenas frações mínimas do que intera-
gimos a cada dia. Por exemplo, ao pen-
Leia mais...
de memorial? Por quê? sar na tarde de ontem, não consegui-
• Esquecimento e memória do ser.
Ivan Izquierdo – A nossa capaci- mos lembrar mais do que 10 minutos
dade de memória agora é muitíssimo sobre todo aquele período. A menos Edição 53 da IHU On-Line, de 12-
maior, pois temos periféricos onde que tenha acontecido algo fantástico,
ou que tenhamos visto um filme fan- 05-2003, disponível em http://bit.
guardá-las e utilizá-las. Podemos
crescer, decrescer, apagar, modificar, tástico, a maior parte do que vemos é
ly/1q74HRR.
acessar o sistema de processamento esquecida segundos depois. O melhor
médico do mundo pode contar tudo
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de texto. Agora uma máquina faz isso


pelo cérebro. Se eu quero saber ago- que sabe sobre medicina em menos de
Leibniz, abandonando a hipnose em fa-
ra, nos próximos 10 minutos, quais os uma manhã. Eu posso relatar minha in- vor da associação livre. Estes elementos
principais passos metabólicos para fância em todos os altos e baixos, com tornaram-se bases da psicanálise. Freud
uma sístole cardíaca, vou na internet e os conteúdos imensos que aprendi du- nos trouxe a ideia de que somos movidos
rante esse período, em poucas horas. pelo inconsciente. Freud, suas teorias e
vou saber isso em muito menos de10 o tratamento com seus pacientes foram
minutos. Assim, aumentou o acesso A maior parte da informação que controversos na Viena do século XIX, e
do cérebro aos dados e a capacidade processamos é perdida em seguida e continuam ainda muito debatidos hoje.
e velocidade de processá-los. desaparece por completo. Então, quan- A edição 179 da IHU On-Line, de 08-05-
do Freud2 dizia que era possível lembrar 2006, dedicou-lhe o tema de capa sob o
título Sigmund Freud. Mestre da suspei-
IHU On-Line – Fotografias, agen- ta, disponível em http://bit.ly/ihuon179.
das de telefone, diários e mais recen- 2 Sigmund Freud (1856-1939): neurolo- A edição 207, de 04-12-2006, tem como
gista, fundador da psicanálise. Interessou- tema de capa Freud e a religião, dispo-
-se, inicialmente, pela histeria e, tendo nível em http://bit.ly/ihuon207. A edição
1 Sístole e diástole: período de contra- como método a hipnose, estudou pessoas 16 dos Cadernos IHU em formação tem
ção muscular das câmaras cardíacas que que apresentavam esse quadro. Mais tar- como título Quer entender a modernida-
alterna com o período de repouso, diás- de, interessado pelo inconsciente e pelas de? Freud explica, disponível em http://
tole. (Nota da IHU On-Line) pulsões, foi influenciado por Charcot e bit.ly/ihuem16. (Nota da IHU On-Line)

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Destaques da Semana
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EDIÇÃO 454 | SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 35


Entrevista da Semana
Destaques da Semana

Corpo audiovisual – As
implicações do capitalismo tardio
na reconfiguração do humano
Para a pesquisadora Nísia Martins do Rosário, as revoluções tecnológicas são
potencialmente positivas, entretanto a inclinação meramente mercadológica
deve ser posta em causa

Por Ricardo Machado

“O
paradigma da felicidade embasa- Para a pesquisadora, os filmes trazem à tona
da no progresso perdeu credibili- desafios éticos e “questionam as possibilidades
dade na modernidade e, por isso de as tecnologias serem nocivas ao humano.
mesmo, contemporaneamente instituiu-se um Não há mais, como outrora houve no cinema, a
novo questionamento acerca das verdades, da ideia da tecnologia como algo à parte do corpo
felicidade e das metas sociais. Os mecanismos humano, sendo objeto facilmente identificável
da ordem da produção, entretanto, não estão pela distinção. A tecnologia, agora, está dentro
esquecidos, a sociedade do capitalismo tardio do próprio homem, invisível, mas onipresente,
aplica a regra da liberação do fluxo do dese- já que a principal forma de domínio do homem
jo para atingir o consumo. Essa abertura, por sobre o artificial é a conexão mental”. Por fim,
certo, estimula a aquisição de bens materiais, argumenta que os avanços tecnológicos permi-
provocando, necessariamente, a atenção re- tiram avanços e melhorias na vida cotidiana,
dobrada ao corpo, à saúde, ao prazer e à se- mas coloca em causa uma inclinação merca-
xualidade”, argumenta a professora doutora e dológica que, avalia, deve ser questionada. “A
pesquisadora Nísia Martins do Rosário, em en- quem pertence o domínio técnico? Se os inte-
trevista por e-mail à IHU On-Line. resses técnicos e financeiros se sobrepõem aos
Ao debater sobre as reconfigurações do cor- progressos genéticos e cibernéticos, qual o pre-
po na tecnocultura, a entrevistada sustenta que ço a ser pago para ser parte da hegemonia? E o
a vontade do ser humano de recriar a si próprio que é, afinal, ser humano?”, provoca.
encaminhou as buscas pelo tecnológico, mas Nísia Martins do Rosário é professora e pes-
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reconhece as limitações desse processo. “Nes- quisadora da Universidade Federal do Rio Gran-
sa mesma via a medicina altera aparências em de do Sul – UFRGS, no curso de Comunicação
prol da estética com cirurgias plásticas, implan- Social e no Programa de Pós-Graduação em
tes, entre outros. Contudo, é preciso lembrar Comunicação e Informação. Possui graduação
que essas inovações tecnológicas não estão em Comunicação Social – Habilitação Jornalis-
disponíveis a todos os corpos que delas neces- mo e mestrado em Comunicação pela Unisinos.
sitam ou pensam necessitar. Entram aí variáveis Realizou doutorado em Comunicação Social na
econômicas que se cruzam com a tecnologia”, Pontifícia Universidade Católica – PUCRS. A ên-
argumenta. “Na esteira da industrialização, há fase de suas investigações é em Comunicação
um atrelamento cada vez maior do ser humano Visual e integra o Grupo de pesquisa semiótica
à técnica e à tecnologia. Os meios de comunica- e cultura da comunicação – Gpesc e o grupo de
ção pegam carona com os avanços tecnológicos pesquisa Processos comunicacionais: episte-
e, ao mesmo tempo que se aperfeiçoam, fun- mologia, midiatização, mediações e recepção
cionam como propulsores da reprodutibilidade – Processocom.
técnica do corpo”, destaca. Confira a entrevista.

36 SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 454


IHU On-Line – Que implicações Ainda nessa perspectiva, as Tec- e físico). Pelo ponto de vista da arti-

Destaques da Semana
e transformações as tecnologias con- nologias de Informação e Comuni- culação dual, o corpo operaria apenas
temporâneas trouxeram àquilo que cação – TICs permitem que pessoas como um mediador da mente ou da
entendemos como corpo? possam interagir não presencialmen- alma para com o mundo.
Nísia Martins do Rosário – São te, numa ambiência de velocidade Mesmo se na Antiguidade já se
muitas as implicações e transforma- e instantaneidade. Os corpos, nesse pensava o ser humano como consti-
ções do corpo no mundo contempo- caso, se conectam pela mediação da tuído por um corpo físico e uma outra
râneo, mas é importante entendê-las internet e, se agora é possível intera- parte subjetiva, a partir de Descar-
como movimento contínuo, como gir com pessoas que não víamos há tes3 (Iluminismo) essa divisão dual
processo complexo, articulado por muito tempo, que estão distantes ge- foi consolidada e, consequentemen-
diferentes variáveis, entre as quais as ograficamente, e até mesmo fazer ci- te, o físico passou a estar a serviço
inovações tecnológicas. Ao longo da bersexo, alguns defendem que as pes- da razão, a rex cogitans. A sociedade
história da civilização o corpo sempre soas não mais se comunicam, ficam ocidental, paulatinamente, parece
foi afetado por tecnologias das mais presas em suas casas e às suas máqui- ter incorporado esses sentidos, am-
variadas, mas não com tanta veloci- nas, um corpo que não age, um corpo pliando essa dualidade para outros
dade e impacto como hoje em dia. preguiçoso do contato “real”. Enfim, preceitos como: espírito/matéria;
Tentando responder de forma direta há controvérsias sobre as implicações masculino/feminino; branco/preto;
à pergunta, entendo que o corpo con- das tecnologias no corpo, mas enten- dominante/dominado; civilizado/pri-
temporâneo está mais potente por- do que isso seja muito positivo e faz mitivo; culto/inculto; letrado/analfa-
que aparatado pelas tecnologias que o parte do processo humano. beto; desenvolvido/subdesenvolvido.
tornam, de certa forma, um ciborgue. Na esteira da industrialização, há
Se entendermos ciborgue na sua for- IHU On-Line – Que corpo é esse um atrelamento cada vez maior do
ma mais básica, veremos que o termo que emerge na tecnocultura? Como ser humano à técnica e à tecnologia.
vem da junção dos prefixos cyberne- se difere do conceito moderno e até Os meios de comunicação pegam ca-
tic + organism e que, portanto, serve mesmo medieval de corpo? rona com os avanços tecnológicos e,
para representar a simbiose entre o Nísia Martins do Rosário – De ao mesmo tempo que se aperfeiço-
orgânico e o inorgânico, e é justamen- acordo com Braunstein1 e Pépin2 (O am, funcionam como propulsores da
te nesse último que o corpo se apoia lugar do corpo na cultura ocidental. reprodutibilidade técnica do corpo.
para melhorar sua performance. De São Paulo: Piaget, 2003), é possível A reprodução do corpo não fica mais
certa maneira, somos todos ciborgues afirmar que, ao longo dos séculos somente no âmbito da pintura, do de-
se a tecnologia estiver ligada a nós, predominam no mínimo três formas senho e da escultura, ela, agora, pode
por exemplo, com o uso de óculos. diferentes de reflexão sobre o corpo: atingir uma diversidade maior de indi-
Considerando a abrangência da no- a ênfase na matéria e no seu contro- víduos e apresentar um grande núme-
ção de prótese, a classe dos ciborgues le e disciplina; a ênfase no espírito/ ro de cópias, de poses, de formatos. O
pode agrupar um número significativo razão e a busca da transcendência; e Instagram é um exemplo disso. Assim,
de exemplares. O avanço tecnológico por fim, a harmonia entre a matéria o corpo pode ser mostrado, exibido,
e a vontade do ser humano de recriar e a parte abstrata. Entendo que essa copiado, clonado, multiplicado, coloca-
a si mesmo encaminharam as buscas última forma é a mais adequada para do em movimento sempre como signo.
pelo tecnológico. De certa forma, no pensar o corpo, mas todas elas foram Deve-se levar em conta tam-
início do século XXI a maioria dos se- se tensionando ao longo da história. bém que o paradigma da felicidade
res humanos é um pouco prótese, um O ponto de vista que enfatiza o embasada no progresso perdeu cre-
pouco reinvenção ou recriação. espírito e a razão em detrimento do fí- dibilidade na modernidade e, por
Num contexto mais cotidiano, sico tem parte de sua episteme ligada isso mesmo, contemporaneamente
pode-se pensar, por exemplo, em a um conceito de corporificação vin- instituiu-se um novo questionamento
como os avanços na área da medici-
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culado ao entendimento modernista, acerca das verdades, da felicidade e
na permitiram o prolongamento de à organização dual da sociedade, ca-
vidas, a solução de problemas de saú- paz de criar classificações de forma bi- 3 René Descartes (1596-1650): filósofo,
de e a facilitação nos cuidados com o nária, assimétrica e polarizada (mente físico e matemático francês. Notabilizou-
físico, inclusive com próteses diversas, -se sobretudo pelo seu trabalho revolu-
cionário da Filosofia, tendo também sido
implantes de chips, microcâmeras que 1 Florence Braunstein: é doutora em li- famoso por ser o inventor do sistema de
percorrem os órgãos internos. Nessa teratura, professora, escritora e diretora coordenadas cartesiano, que influenciou
mesma via a medicina altera aparên- da coleção chamda Le corps, da editora o desenvolvimento do cálculo moderno.
L’Harmattan, que aborda o problema Descartes, por vezes chamado o fundador
cias em prol da estética com cirurgias do corpo nas ciências humanas, quer do da filosofia e matemática modernas, ins-
plásticas, implantes, entre outros. ponto de vista da filosofia, literatura, pirou os seus contemporâneos e gerações
Contudo, é preciso lembrar que essas sociologia e antropologia. (Nota da IHU de filósofos. Na opinião de alguns comen-
On-Line) tadores, ele iniciou a formação daquilo
inovações tecnológicas não estão dis- 2 Jean-François Pépin: é doutor em fi- a que hoje se chama de racionalismo
poníveis a todos os corpos que delas lologia, professor de história e geografia continental (supostamente em oposição
necessitam ou pensam necessitar. En- e dá aulas preparatórias de Relações In- à escola que predominava nas ilhas bri-
ternacionais para alunos em escolas de tânicas, o empirismo), posição filosófica
tram aí variáveis econômicas que se negócios internacionais. (Nota da IHU dos séculos XVII e XVIII na Europa. (Nota
cruzam com a tecnologia. On-Line) da IHU On-Line)

EDIÇÃO 454 | SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 37


das metas sociais. Os mecanismos da fundamenta os valores cotidianos e mídia percebe-se uma ambiência de
Destaques da Semana
ordem da produção, entretanto, não é o articulador da representação do tecnofilia. As notícias se constroem
estão esquecidos, a sociedade do ca- ‘eu’. Paralelamente, ganham força o num tom de descoberta, de inovação,
pitalismo tardio aplica a regra da libe- hedonismo, o presenteísmo, o sensu- de progresso, de salvação.
ração do fluxo do desejo para atingir alismo, tudo isso engendrando uma Por outro lado, no cinema o ho-
o consumo. Essa abertura, por certo, forma diferente de ‘estar junto’ e re- mem aparece como ser genial, cria-
estimula a aquisição de bens mate- forçando a exaltação do corpo. dor do desenvolvimento e capaz de
riais, provocando, necessariamente, a A estética que atravessa a cons- submeter a seu jugo o que está ao
atenção redobrada ao corpo, à saúde, trução do corpo se reflete de diferen- seu redor, mas é também subjugado à
ao prazer e à sexualidade. tes modos no mundo contemporâneo, técnica e à tecnologia. Dessa maneira,
Se, na modernidade, o corpo inclusive retratando-se em correntes é possível encontrar nos discursos do
perdeu definitivamente seu caráter como o body building, o body modifi- cinema de ficção científica sentidos
uno, dividindo-se em dois – matéria cation e inspirando a body art. A es- de que a ciência pode ser sinônimo de
física e a parte abstrata representada tética da aparência está ligada, hoje, melhorias, mas não necessariamen-
pela alma –, na contemporaneidade, afinal, a corpos que simulam o ideal, te de evolução e de progresso. Basta
o corpo é a própria fragmentação, o perfeito, sendo que essa ‘perfeição’ ver filmes como o recente Robocop
parte-se em pedaços que adquirem está dada pelo social, pela ciência, (2014); ou Transformers (2007); Ava-
significados próprios. O físico, agora, pela economia, pela filosofia e disse- tar (2009); Distrito 9 (2009); Homem
se de-compõe em músculos, glúteos, minada na cultura. Não tem, portan- de Ferro (2008); Depois da Terra
coxas, seios, bocas, olhos, cabelos, to, um sentido unívoco. Ao mesmo (2003); Gamer (2009); Substitutos
órgãos genitais, quadris, entre outras tempo, a construção e a modificação (2009); Repo Men (2010). Todas as
partes. Não se pode deixar de pensar, do corpo é hipervalorizada por vias estórias retratam a tecnocultura ao
também, que a parte abstrata do ser diversas, que vão desde a muscula- centrarem-se em temáticas que dizem
humano recebeu sua cota de divisões. ção, passando pela cirurgia plástica e respeito a algum tipo de progresso
Ao que parece, coexistem dentro do pelos implantes, até chegar ao natura- científico: a produção de inteligência
corpo físico o espírito, a alma, a inteli- lismo e ao vegetarianismo. Refazer-se artificial ou de órgãos humanos artifi-
gência e a psiquê, todos com funções melhor, mais saudável, mais perfeito, ciais para transplante; a disponibiliza-
distintas e problemas particulares. A mais belo: essa é a meta. Paradoxal- ção de robôs para substituírem os hu-
mídia – através dos recursos de pau- mente, ao mesmo tempo que se mul- manos; a potencialização do homem
tas, closes, ângulos, recortes, edições tiplicam os corpos melhorados, mais pela máquina; a criação genética de
– é a grande propulsora desse traço, saudáveis, mais jovens, mais esbeltos, um ser híbrido (humano/extraterres-
transformando cada parte do corpo multiplicam-se, também, os casos de tre) que tem mais habilidades que
em um texto gerador de sentidos. obesidade, de anorexia, de bulimia, os humanos; o controle de pessoas
O corpo assume, então, um valor de vícios – drogas, fumo, álcool –, de através da implantação de chips no
de significação que está intimamen- depressão. sistema nervoso central. A humanida-
te ligado ao subjetivo, ao motivado de precisa jogar olhares para o futuro
(buscando romper com o arbitrário). IHU On-Line – Que imaginários com vistas a prever fatos e aconteci-
Esse traço não está livre do ciclo da os corpos eletrônicos cinematográfi- mentos. De certa forma, é isso que os
produção, mas volta-se com potên- cos constroem? filmes de ficção científica tentam fa-
cia à fantasia, ao desejo e ao fictício, Nísia Martins do Rosário – De- zer: construir representações do futu-
construindo cadeias de sentidos que fendo a tese de que os corpos no ci- ro com base nas experiências de vida
se adequam a uma das necessidades nema assumam o imaginário tecno- do presente.
dessa época: a visibilidade. Um corpo lógico da tecnofobia. Por um lado, a
construído para ser visto. A sociedade mídia informativa mostra que a tecno- IHU On-Line – Como tais produ-
ções cinematográficas do corpo colo-
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somatófila – defendida por Maffe- logia e a ciência invadem a vida coti-


soli4 – ancora-se no narcisismo que diana. Entre as pautas estão: a cura de cam em causa as ideias iluminista e
transtornos do pânico através de tra- antropocêntrica do corpo?
4 Michel Maffesoli: sociólogo francês. tamentos que nos levam a realidades Nísia Martins do Rosário – Con-
Leciona na Sorbonne – Paris V, é diretor forme defendi anteriormente, as
do Centro de Estudos sobre o Atual e o alternativas com o uso de avatares;
Quotidiano (CEAQ) e edita a revista Soci- chips implantados em nossos corpos produções cinematográficas que en-
étés. Escreveu inúmeros livros importan- que farão com que não envelheçamos volvem a tecnocultura colocam em
tes para a compreensão da mutabilidade evidência os contextos de seus tem-
social moderna e pós-moderna, como A mais; as palmas das mãos servirão
conquista do presente (Rio de Janeiro: como suportes físicos de computado- pos. Atualmente, há quem defenda
Rocco, 1984); A contemplação do mundo res. Em tal cenário apresentado pela que nossa sociedade não é mais an-
(Porto Alegre: Artes & Ofícios, 1995); A tropocêntrica, mas tecnocêntrica (e
transfiguração do político: a tribalização
do mundo (Porto Alegre: Sulina, 1997); Maffesoli sob o título Culturas locais es- deixou para trás, há muito tempo, o
Lógica da dominação (Rio de Janeiro: tão sendo revalorizadas, disponível em teocentrismo). De qualquer forma,
Zahar, 1978); Moderno e pós-moderno http://migre.me/69ujD. Leia também A indo contra muitas posições, enten-
(Rio de Janeiro: UERJ, 1994). A edição política moderna não tem mais sentido,
162 da IHU On-Line, de 31-10-2005, disponível em http://bit.ly/ihu230414. do que as questões da sociedade ain-
publicou uma entrevista exclusiva com (Nota da IHU On-Line) da se voltam para o humano, seja na

38 SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 454


relação com o deus mítico ou com o mano e máquina – também expressa tados na televisão, no cinema e em

Destaques da Semana
deus máquina. no pensamento clássico por alma e produtos da internet em forma de
Percebe-se que os avanços tec- matéria e no marxismo por subjetivo imagens e que, portanto, são sempre
nológicos que resultaram, também, e produção – forma dois polos que signos, buscando dar significado às
no aperfeiçoamento das técnicas de tendem a apagar-se na contempora- formas de expressão, ao imaginário,
comunicação, permitiram uma efi- neidade devido aos novos rumos que ao cotidiano, aos contextos culturais
ciência maior na representação do assume o pensamento, sobretudo em que vivemos. Nesse sentido, o
corpo no imaginário cinematográfico. no que diz respeito às tecnologias do corpo eletrônico é produto da tecno-
Unindo som, imagens em movimento imaginário, à subjetividade e, logica- logia e da possibilidade de reproduti-
e efeitos especiais, o audiovisual reve- mente, à relação homem/máquina. O bilidade do humano. Como produto,
la-se capaz de simular uma “realida- atravessamento da vida pela tecnolo- ele fica cada vez mais sofisticado em
de” muito semelhante à realidade co- gia causa muitas inquietações acerca termos daquilo que pode representar
tidiana e estimular a crença na ficção, da subjetividade humana incorporada e fazer em função do aparato técnico,
colocando em ação os sentidos pro- à máquina e que, do meu ponto de ou seja, efeitos especiais, produções
duzidos em torno das imagens sociais. vista, estão bem expressas em um tre- de maquiagem e figurino, etc. Ele nem
Tais características posicionam o au- cho do filme Eu, robô (2004). precisa mais ter um referente mate-
diovisual entre as chamadas “tecno- rializado, precisa apenas das referên-
Sempre existiram ‘fantasmas na
logias do imaginário”, que são os ins- cias em linguagem algorítmica para se
máquina’. Trechos de códigos ran-
trumentos de ficcionalização de que o construir no ambiente digital.
dômicos que se uniram para formar
homem dispõe para criar, interpretar Se, como afirma Bystrina5, o
protocolos inesperados. De forma
ou traduzir textos que se originam medo é a teleonomia mais forte da
não antecipada, esses radicais livres
num processo de significação estru- espécie humana, é relevante enfatizar
elaboram perguntas sobre livre-
turado sobre um conjunto de códigos que o cinema não o exclui, revela o
-arbítrio, criatividade e até mesmo a
partilhados social e midiaticamente. que é comum desde o Iluminismo: o
natureza daquilo que chamamos de
Vale ressaltar que, ao mesmo medo da ciência e das consequências
alma. Por que será que, ao ficarem
tempo em que as tecnologias possibi- que ela pode trazer. Mas, talvez, esteja
no escuro, eles procuram a luz? Por
litam que o imaginário seja atualizado, implícito aí um receio mais essencial:
que será que, quando armazenado
elas também induzem à construção o das ações humanas sobre a técnica.
num lugar vazio eles se agrupam ao
do imaginário tecnológico. Logo, o au- De qualquer forma, o cinema assume
invés de ficarem sós? Como expli-
diovisual – e mais propriamente o ci- um papel de mediador da cultura, ao
car tal comportamento? Segmentos
nema – não apenas materializa o que oferecer caminhos para dissipar es-
randômicos de códigos? Ou é algo a
já está presente no imaginário acerca ses temores através das histórias que
mais? Quando um esquema de per-
da relação do homem com a tecnolo- conta, seja por meio de catarse ou de
cepção se torna uma consciência?
gia, como também constrói significa- projeção. Assim, os discursos fílmicos,
Quando calcular probabilidades co-
ções a partir do que representa. ao falarem do futuro e de todas as
meça a busca de verdade? Quando
É preciso considerar também que, ansiedades relacionadas a ele, apre-
é que uma simulação de personali-
a partir do cinema e da literatura, as sentam soluções, propiciam sentidos
dade se torna o doloroso átomo de
expressões da subjetividade humana à vida e às vivências do próprio espec-
uma alma?
se mostram de diversas formas, e com tador no momento presente.
as questões da tecnocultura não seria O que parece certo na contem- Nessa perspectiva, é possível en-
diferente. Nesse contexto aparecem poraneidade é que a tecnocultura e tender que os contextos das épocas em
muitas criaturas que, de alguma forma, suas máquinas infocomunicacionais que os filmes são criados e produzidos,
representam o humano e que muitas articulam transformações considerá- bem como as bases tecnológicas exis-
das vezes estão também atravessadas veis no cotidiano humano, seja pelos tentes naqueles momentos, têm re-
pelo maquínico, pelo digital. Tornam- dispositivos de produção de bens e de
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percussão sobre a forma como o corpo
-se tão interessantes, provavelmente, conteúdos, seja pelos dispositivos de e o imaginário sobre ele é construído e
pelo elemento artificial que trazem, produção de subjetividade. inserido na narrativa. Por isso, Metró-
se contrapondo ao elemento humano polis (1927) parte de visão crítica ao ca-
– corresponde à carne, ao pensamen- IHU On-Line – De que forma as pitalismo e ao mecanicismo, em meio
to, à subjetividade. Assim, seres como imagens do corpo eletrônico evo- ao expressionismo alemão, e Transcen-
robôs, androides, mutantes, avatares luíram no cinema? De que maneira dence – A Revolução (2014) aborda o
são a representação da alteridade hu- as tecnologias foram se interconec- poder da onipresença online e a des-
mana, uma outra forma de significar os tando ao homem, migrando de uma
monstros, os freaks, o estranho. perspectiva bem dualista em Metró- 5 Ivan Bystrina (1924 – 2004): foi um se-
Por outro lado, a modernida- polis (1927) para as obras contem- mioticista tcheco formado em Direito, Fi-
losofia e Ciências Políticas e Doutor pela
de, ao estabelecer dualidades para o porâneas como Transcendence – A Universidade de Praga. Leciounou tam-
pensamento, acabou por colocar em Revolução (2014)? bém na Universidade de Moscou, Acade-
polos opostos conceitos e concepções Nísia Martins do Rosário – En- mia das Ciências da Tchecoslováquia, das
Universidades de Heildelberg, Manhein,
que não podem ser pensadas sepa- tendo como corpos eletrônicos, de Bochun e da Universidade Livre de Ber-
radamente. Assim, a dualidade hu- maneira sintética, os corpos apresen- lim. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 454 | SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 39


corporificação do homem. É relevante essa virtualidade que permite atuali- humanos em seu funcionamento, até
Destaques da Semana
que ambos – e muitos outros filmes zá-lo com o auxílio da tecnologia de o surgimento das máquinas cerebrais,
entre esses dois – levantam questões diferentes formas, multiplicando-o, que trouxeram consigo novos rumos
éticas e questionam as possibilidades ‘reencarnando-o’ em diferentes pa- para o envolvimento sociocultural.
de as tecnologias serem nocivas ao péis e aparências. É assim, também, Toda essa problemática que en-
humano. Não há mais, como outrora que o audiovisual pode usar o corpo volve o homem, a máquina e a cultura
houve no cinema, a ideia da tecnologia como metáfora da sociedade, como não se deve tão somente às insatisfa-
como algo à parte do corpo humano, recurso de dominação ou como pos- ções surgidas das restrições mecâni-
sendo objeto facilmente identificável sibilidade democratizante. cas, tecnológicas e de aperfeiçoamen-
pela distinção. A tecnologia, agora, to e aproveitamento dos aparelhos,
está dentro do próprio homem, invisí- IHU On-Line – O que os corpos mas também pela necessidade de
vel, mas onipresente, já que a principal tecnoculturais dizem sobre a nossa superar as limitações que o homem
forma de domínio do homem sobre o sociedade? Que debates éticos estão percebeu acerca do próprio corpo.
artificial é a conexão mental. implicados nas construções destas
Em complemento, pode-se dizer corporalidades? IHU On-Line – O que há de mais
que o corpo eletrônico (tecnologizado) Nísia Martins do Rosário – Mui- humano nos corpos eletrônicos?
é um espelhamento do mundo que tas são as implicações éticas advindas Como são capazes de revelar a nossa
vivemos, da cultura, da sociedade, do da tecnocultura em relação ao corpo, própria (des)humanidade?
imaginário. Mas, seja pelo brilho que a duas delas estão colocadas na res- Nísia Martins do Rosário – Os
tela lhes concede ou pelo glamour do posta à primeira pergunta, no que diz corpos eletrônicos (tecnologizados)
audiovisual, os sujeitos que aparecem respeito à medicina e à comunicação. são sempre uma representação do
na tela ganham um tipo de aura – que, Por um lado, a tecnologia propicia humano e de sua subjetividade, po-
claro, não é a mesma abordada por tantos avanços e melhorias na vida dendo ser produzidos analógica, digi-
Walter Benjamin6 – que lhes empres- cotidiana, por outro, há uma motiva- tal ou figurativamente; assim, deve-se
ta signicidades (qualidades múltiplas ção mercadológica a ser questionada. ter em mente que ele é um texto vir-
de signos). Ver nas ruas, por exemplo, A quem pertence o domínio técnico? tual. Contudo, são criações feitas pelo
uma pessoa das telas causa um de- Se os interesses técnicos e financeiros humano (dos homens e mulheres que
sajuste de compreensão inicial e, em se sobrepõem aos progressos genéti- trabalham com audiovisual) e, nessa
seguida, obriga a uma reconstrução cos e cibernéticos, qual o preço a ser via, representam tanto as humanida-
dos significados – por que o brilho se pago para ser parte da hegemonia? E des quanto os aspectos desumanos
perdeu, o sujeito é mais baixo, ou tem o que é, afinal, ser humano? na nossa sociedade e cultura. O que
menos cabelo, ou a pele é menos viço- Sem dúvida, o modo como esses os corpos eletrônicos têm de mais hu-
corpos são construídos, significados, mano? A criação pelo humano.
sa, entre outros. Os atores (apresen-
reproduzidos e imaginados, tanto no É preciso levar em conta, entre-
tadores, etc.), em geral, decepcionam
cotidiano como no audiovisual, está fa- tanto, que para se tornar corpo ele-
‘ao natural’ porque o modo como as
lando sobre a nossa sociedade, essa é trônico deve se submeter à lingua-
tecnologias nos afetam permite a im-
uma das maneiras de expressar receios, gem, à técnica e ao discurso próprios
pressão de que esses corpos (ao natu-
expectativas, potencialidades, discor- das audiovisualidades. Em decorrên-
ral) estejam descorporizados ao saírem
dâncias, aquiescências, indiferenças. cia dessa premissa, o corpo eletrôni-
do ambiente eletrônico/digital.
A tecnocultura, sem dúvida, for- co só tem existência nos domínios do
Tendo em vista os traços do cam-
talece um estreitamento na relação audiovisual (delineados aqui pelos
po audiovisual, é preciso considerar,
homem-máquina e levanta muitos meios televisão, cinema e internet).
em primeiro lugar, que ele perpassa
questionamentos éticos e morais. São, portanto, os corpos representa-
de uma forma ou de outra o domínio
Mas, de certa forma, essa inquietação dos por essas mídias e que, em função
do corpo quando este se torna objeto
se estabeleceu desde que o homem disso, adaptam-se às suas linguagens,
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da imagem e/ou do áudio. Em se-


percebeu que poderia valer-se de me- tanto nos aspectos culturais quanto
gundo lugar, deve-se ter em mente
canismos capazes de amplificar a for- semânticos. O corpo eletrônico se
que o corpo eletrônico é um texto ça e a rapidez muscular na execução constrói a partir de normas e regras
virtual – se se entender esse termo de determinadas tarefas. Essa ligação próprias das técnicas e estéticas au-
como aquilo que existe em potência passou por diversos estágios, seguin- diovisuais e habitam suas narrativas
e tende a atualizar-se. É justamente do numa linha evolutiva que traça, por meio de construções imaginárias
paralelamente, os usos que a huma- que de alguma forma estão em po-
6 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo
alemão. Foi refugiado judeu e, diante nidade deu para as máquinas, para tência no mundo “real”. Seu êxito é
da perspectiva de ser capturado pelos o desenvolvimento da tecnologia e justamente unir aos padrões e ao lé-
nazistas, preferiu o suicídio. Um dos para as questões mitológicas que per- xico audiovisual as características do
principais pensadores da Escola de
Frankfurt. Sobre Benjamin, confira a meiam a cultura. Essa relação prosse- cotidiano, construindo a naturaliza-
entrevista Walter Benjamin e o império guiu com a invenção dos dispositivos ção sobre o artifício. Assim, ele repre-
do instante, concedida pelo filósofo sensoriais – que já traziam em seus senta não apenas como interpretação
espanhol José Antonio Zamora à IHU On-
Line nº 313, disponível em http://bit.ly/ mecanismos certo nível de inteligên- pura, mas até mesmo como simulação
zamora313. (Nota da IHU On-Line) cia – visto que reproduziam sentidos eletrônica.

40 SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 454


Confira as publicações do

Instituto Humanitas Unisinos - IHU

Elas estão disponíveis na página eletrônica

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EDIÇÃO 454 | SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 41


Tema
de
Capa

Destaques
da Semana
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IHU em
Revista
42 SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000
Entrevista de Eventos

IHU em Revista
A vida nas interfaces das
mutações tecnocientíficas e
suas repercussões sobre a
subjetividade
O professor doutor e pesquisador José Roque Junges debate o livro de
Nikolas Rose The Politics of Life Itself: Biomedicine,
Power, and Subjectivity in the Twenty-First Century
Por Suélen Farias

“N o momento em que a biologia define a


cidadania e a própria existência somáti-
ca, o que isso significará para a saúde? A
cultura somática da otimização e subjetivação da vida
A obra de Nikolas Rose será apresentada e discu-
tida no dia 23 de setembro, na Sala Ignacio Ellacu-
ría e Companheiros, em mais um pré-evento do XIV
Simpósio Internacional IHU. Revoluções Tecnocientí-
são base para a gradativa medicalização da saúde que ficas, Culturas, Indivíduos e Sociedades, promovido
faz crescer continuamente, nos manuais de diagnós- pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU em outubro
tico, o rol das patologias pela inclusão de diferenças deste ano.
somáticas consideradas como não normais ou de pe- José Roque Junges é jesuíta, graduado em Filo-
quenas disfunções biológicas ou psíquicas que não sofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
impossibilitam uma vida normal”, reflete o professor Grande do Sul, possui mestrado em Teologia pela
José Roque Junges ao discutir o livro, de Nikolas Rose Pontificia Universidad Catolica de Chile e doutorado
na entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail. em Teologia Moral pela Pontifícia Universidade Gre-
O pesquisador explica as cinco mutações cien- goriana de Roma, Itália. Tem experiência na área de
tíficas que possibilitam a governabilidade bipolítica Teologia, Filosofia e Ética, com ênfase em Bioética.
da vida, baseado no livro de Rose: The Politics of Life Entre seus livros publicados citamos Bioética: pers-
Itself: Biomedicine, Power, and Subjectivity in the pectivas e desafios (São Leopoldo: Unisinos, 1999);
Ecologia e Criação: resposta cristã à crise ambiental
Twenty-First Century (New Jersey: Princenton Uni-
(São Paulo: Loyola 2001); Ética ambiental (São Leo-
versity Press, 2007). Reflete, desta forma, sobre uma
www.ihu.unisinos.br
poldo: Unisinos, 2004); e Bioética: hermenêutica e
visão da vida que não é mais vitalista, mas genética
casuística (São Paulo: Loyola, 2006). Atualmente é
e molecular.
professor e pesquisador do Programa de Pós-Gradu-
Segundo o professor, Rose é um seguidor de Fou-
ação em Saúde Coletiva da Unisinos.
cault no contexto anglo-saxão e isso é nítido em sua Saiba mais sobre Nikolas Rose, autor do livro The
perspectiva da biopolítica. Junges ainda enfatiza que Politics of Life Itself: Biomedicine, Power and Subjecti-
alguns podem não estar de acordo com essa pers- vity in the Twenty-First Century, biólogo, psicólogo e
pectiva, preferindo um enfoque mais genealógico sociólogo, que apresentará no dia 22-10-2014 a confe-
típico, como o de Agamben e Esposito. Porém a dis- rência A biopolítica no século XXI: cidadania biológica
cussão sobre a biopolítica do ponto de vista de Rose e ética somática. O evento faz parte da programação
é bastante pertinente para entender o atual contexto do XIV Simpósio Internacional IHU. A modelagem da
das biotecnologias. Por isso sua obra foi traduzida ao vida, do conhecimento e dos processos produtivos na
português pela editora Paulus em 2013 intitulada “A tecnociência contemporânea, promovido pelo Institu-
Política da própria Vida: Biomedicina, Poder e Subje- to Humanitas Unisinos – IHU.
tividade no Século XXI”. Confira a entrevista.

EDIÇÃO 454 | SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 43


IHU On-Line – De que trata o
“No momento mos biológicos ao nível molecular e
IHU em Revista
livro The Politics of Life Itself: Bio- não mais com energias e dinamismos
medicine, Power and Subjectivity in
the Twenty-First Century, de Nikolas em que a vitais, explicação característica do
vitalismo. A vida perde seu mistério,
Rose? explicando-se por mecanismos mole-
José Roque Junges – O autor é biologia define culares de base genética. Com isso a
um seguidor de Foucault1 que parte vida não é mais puro fruto do acaso,
do conceito de Biopolítica, mas lhe a cidadania e a mas pode ser controlada em seus
dá uma perspectiva nova, porque ex- mecanismos.
plicita os novos campos aplicativos própria existência Essa constatação aponta para a
das pesquisas biotecnológicas como segunda mutação científica que é a
expressões atuais da biopolítica em somática, o que possibilidade da otimização da vida,
nossos dias, apontando principalmen- isto é, o melhoramento das capaci-
te para uma nova compreensão de isso significará dades da vida, já que é possível inter-
vir para corrigir disfunções genéticas
vida que já não é mais vitalista, mas
molecular e genética e para as novas
possibilidades que se abrem de me-
para a saúde?” que criam dificuldades para a vida e
para aperfeiçoar os mecanismos que
lhorar e aperfeiçoar a vida. Nesse sen- produzem a vida. Essa possibilidade
tido não existe apenas um governo melhoramento torna a vida sujeito e
mentalidade biopolítica em que ela é
da vida como aparece nos primeiros não puro objeto, apontando para a
sujeito.
sentidos dados à palavra biopoder em terceira grande mutação científico-
Rose assume mais essa segunda
que a vida é um objeto do poder, mas -cultural que é a subjetivação da vida,
perspectiva que já se encontra nas
a própria vida assume uma governa- que instaura a cidadania biológica,
obras mais maduras de Foucault.
pois sua identidade é definida por
Tendo presente a tri funcionalida-
1 Michel Foucault (1926-1984): filósofo critérios biológicos de inclusão e ex-
francês. Suas obras, desde a História da de de toda ideologia apontada por
Loucura até a História da sexualidade (a
clusão, inaugurando a necessidade de
Georges Dumézil2 – a teológico – re-
qual não pôde completar devido a sua uma ética somática que defina esses
morte) situam-se dentro de uma filoso- ligiosa que instaura o poder como
critérios e oriente as intervenções
fia do conhecimento. Suas teorias sobre sagrado, a político-jurídica que
o saber, o poder e o sujeito romperam genéticas necessárias para confor-
com as concepções modernas destes ter- inaugura o regime da lei, a econô-
mar-se a essa cidadania. Para esse
mos, motivo pelo qual é considerado por mica que configura a satisfação da
certos autores, contrariando a própria aconselhamento são indispensáveis
opinião de si mesmo, um pós-moderno. constelação dos desejos – distinção
especialistas com expertise somática
Seus primeiros trabalhos (História da que influenciou profundamente os
Loucura, O Nascimento da Clínica, As que possam orientar as condutas de
autores que explicitaram o concei-
Palavras e as Coisas, A Arqueologia do governo da existência somática, como
Saber) seguem uma linha estruturalista, to de biopolítica. Pode-se dizer que
o que não impede que seja considerado poderiam ser geneticistas, nutricio-
Rose insere-se na terceira funciona-
geralmente como um pós-estruturalista nistas, endocrinologistas, educadores
devido a obras posteriores, como Vigiar lidade em que a biopolítica assume
e Punir e A História da Sexualidade. físicos, dermatologistas, bioeticistas
uma face econômica.
Foucault trata principalmente do tema etc. A necessidade de pessoas, proce-
do poder, rompendo com as concepções
clássicas do termo. Para Foucault, o po-
dimentos e produtos que possibilitem
IHU On-Line – Quais pontos
der não somente reprime, mas também essa existência somática optimizada
produz efeitos de saber, constituindo principais que o senhor abordará na
pela subjetivação da vida abre para
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verdades, práticas e subjetividades. palestra do dia 23 de setembro, o


Em várias edições, a IHU On-Line de- uma última grande mutação que en-
dicou matéria de capa a Foucault: edi- evento “Abrindo o Livro”?
globa as anteriores que é a inaugu-
ção 119, de 18-10-2004, disponível em José Roque Junges – Vou abor-
http://bit.ly/ihuon119; edição 203, ração da economia da vitalidade que
de 06-11-2006, disponível em http:// dar as cinco mutações científicas,
se expressa como bioeconomia ou
bit.ly/ihuon203; edição 364, de 06-06- apontadas por Nikolas Rose, que
2011, intitulada ‘História da loucura’ e biocapitalismo, pois a vida adquire
o discurso racional em debate, disponí-
possibilitam essa governamentali-
valor econômico de troca não apenas
vel em http://bit.ly/ihuon364; edição dade biopolítica da vida. A primeira
343, O (des)governo biopolítico da vida de uso. Por isso as grandes empresas
grande revolução científica foi a mo-
humana, de 13-09-2010, disponível em biotecnológicas são as que têm mais
http://bit.ly/ihuon343, e edição 344, lecularização da vida, cuja compre-
Biopolitica, estado de exceção e vida valor de mercado, porque a vida se
ensão identifica a vida com mecanis-
nua. Um debate, disponível em http:// transformou num bem de troca de
bit.ly/ihuon344. Confira ainda a edição
nº 13 dos Cadernos IHU em Formação, 2 DUMÉZIL G. Mito y Epopeya. Volume I: mercado. Aqui aparece claramente a
disponível em http://bit.ly/ihuem13, La ideología de las tres funciones en las terceira funcionalidade da biopolítica
Michel Foucault. Sua contribuição para epopeyas de los pueblos indoeuropeus.
a educação, a política e a ética. (Nota Barcelona: Seix Barral, 1977. (Nota do
como ideologia – a econômica – se-
da IHU On-Line) entrevistado) guindo a distinção de Dumézil.

44 SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 454


IHU On-Line – De que modo as
“A vida perde Esposito,4 mas sua discussão sobre a

IHU em Revista
cinco grandes mutações científico- biopolítica é muito pertinente para
culturais implicam no ponto de vista
social?
seu mistério, entender o atual contexto das biotec-
nologias. Por isso sua obra foi tradu-
José Roque Junges – É possível
imaginar as suas consequências sobre
explicando-se zida ao português pela editora Paulus
em 2013 com o título A Política da
a concepção e o cuidado da saúde e por mecanismos própria Vida: Biomedicina, Poder e
sobre a organização do próprio siste- Subjetividade no Século XXI.
ma de saúde. No momento em que a moleculares de
biologia define a cidadania e a própria
existência somática o que isso signifi- base genética” Leia mais...
cará para a saúde? A cultura somática
da optimização e subjetivação da vida • O Concílio Vaticano II e a ética cristã
são base para a gradativa medicaliza- cas que exigirá uma ética e expertise na atualidade. Entrevista com Ro-
ção da saúde que faz crescer continu- para orientar as boas condutas de que Junges publicada na IHU On-Li-
amente, nos manuais de diagnóstico, uma existência somática, inauguran- ne 401, de 03-09-2012, disponível
o rol das patologias pela inclusão de do uma bioeconomia na qual a vida em http://bit.ly/1tWdSME;
diferenças somáticas consideradas torna-se um bem de troca de merca- • “Se o aborto é um problema, a sua
como não normais ou de pequenas do não apenas um valor de uso.
solução não é o próprio aborto”.
disfunções biológicas ou psíquicas que
Entrevista com Roque Junges pu-
não impossibilitam uma vida normal. IHU On-Line – Qual foi a reper-
blicada na IHU On-Line 219, de 14-
Para cada uma dessas formas conside- cussão do livro?
05-2007, disponível em http://bit.
radas somática ou psiquicamente des- José Roque Junges – Nikolas Rose,
ly/1qQLRU5;
viantes sempre existirá uma solução como um especialista e seguidor de
• Agenciamentos imunitários e biopo-
medicamentosa ou procedimental Foucault no contexto anglo-saxão (ele
líticos do direito à saúde. Entrevista
interventiva. Essa tendência alimen- é professor da London School of Eco-
ta a biologização e medicalização da com Roque Junges publicada na IHU
nomics and Political Science), assume
saúde. O cuidado da saúde perde em On-Line 344, de 21-09-2010, dispo-
uma perspectiva própria desse contex-
autonomia, porque ela está sempre to em suas explicitações da biopolítica, nível em http://bit.ly/1BG0Lju;
mais entregue aos experts responsá- diferente de autores do âmbito francês • Transformações recentes e prospec-
veis por uma existência somática opti- e italiano. Assume um enfoque analíti- tivas de futuro para a ética teológi-
mizada e pretensamente subjetivada. co-pragmático da biopolítica. Por isso ca. Cadernos de Teologia Pública,
Contudo Rose não chega a essa visão sua repercussão é maior no âmbito da edição 7, disponível em http://bit.
crítica da medicalização da vida. cultura anglo-saxã. ly/1m5JBbK.
Alguns podem não estar de
IHU On-Line – Como o tema acordo com essa perspectiva, prefe-
abordado por Nikolas Rose se insere rindo um enfoque mais genealógico
na discussão do XIV Simpósio Inter- típico, por exemplo, de Agamben3 e Boitempo Editorial, 2007). Em 04-09-
2007, o sítio do Instituto Humanitas Uni-
nacional IHU e como pode contribuir sinos – IHU publicou a entrevista Estado
para o debate da temática? 3 Giorgio Agamben (1942): filósofo ita- de exceção e biopolítica segundo Giorgio
José Roque Junges – A análise liano. É professor da Facolta di Design Agamben, com o filósofo Jasson da Silva www.ihu.unisinos.br
e arti della IUAV (Veneza), onde ensina Martins, disponível em http://bit.ly/jas-
de Nikolas Rose insere-se plenamente Estética, e do College International de son040907. A edição 236 da IHU On-Line,
na discussão, tomando apenas os ter- Philosophie de Paris. Formado em Direi- de 17-09-2007, publicou a entrevista
to, foi professor da Universitá di Mace- Agamben e Heidegger: o âmbito originá-
mos, usados para explicitar, no título, rata, Universitá di Verona e da New York rio de uma nova experiência, ética, po-
a temática do simpósio. A resposta à University, cargo ao qual renunciou em lítica e direito, com o filósofo Fabrício
protesto à política do governo estaduni- Carlos Zanin, disponível em http://bit.
pergunta anterior demonstra isso. A dense. Sua produção centra-se nas rela- ly/ihuon236. A edição 81 da publicação,
obra de Rose explicita as mutações ções entre filosofia, literatura, poesia e, de 27-10-2003, teve como tema de capa
fundamentalmente, política. Entre suas O Estado de exceção e a vida nua: a lei
que foram ocasionadas pela revo- principais obras, estão Homo Sacer: o política moderna, disponível para acesso
lução biotecnocientífica, quais são poder soberano e a vida nua (Belo Ho- em http://bit.ly/ihuon81. (Nota da IHU
rizonte: Ed. UFMG, 2002), A linguagem On-Line)
as consequências dessas mutações e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 4 Roberto Esposito: filósofo italiano,
para cultura ao tratar da optimização 2005), Infância e história: destruição da especialista em filosofia moral e política. De
experiência e origem da história (Belo sua vasta produção bibliográfica, citamos
e subjetivação da vida e como essa Horizonte: Ed. UFMG, 2006); Estado de Pensiero vivente. Origine e attualità della
cultura somática afeta os indivíduos exceção (São Paulo: Boitempo Editorial, filosofia italiana (2010), Bios. Biopolitica
2007), Estâncias – A palavra e o fantasma e filosofia (2008), L’origine della politica.
e as sociedades ao instaurar uma ci- na cultura ocidental (Belo Horizonte: Ed. Hannah Arendt o Simone Weil? (1996).
dadania com características biológi- UFMG, 2007) e Profanações (São Paulo: (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 454 | SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 45


Publicação em destaque
IHU em Revista

Foucault e a Universidade: entre


o governo dos outros e o governo
de si mesmo
Cadernos IHU ideias, em sua 211ª
edição, traz o debate sobre Foucault e a
Universidade: entre o governo dos outros
e o governo de si mesmo, sob autoria de
Sandra Caponi, professora do Departa-
mento de Sociologia e Ciências Políticas
da Universidade Federal de Santa Cata-
rina – UFSC.
Segundo ela: “Há trinta anos, no dia
25 de junho de 1984, morria Foucault.
Esse filósofo, intelectual comprometido
e professor universitário foi uma figura
que certamente influenciou imensamen-
te na formação intelectual e na educa-
ção político-sentimental de muitos de
nós. Muito já se falou sobre Foucault e a
educação, porém são poucas as páginas
efetivamente dedicadas em seus livros a
tematizar esta questão. Nada especifica-
mente dedicado à educação universitá-
ria. Sabemos, no entanto, que a relação
saber-poder, que mais tarde se transfor-
mará numa discussão sobre os espaços
de veridição e sua relação com os diver-
sos modos que adota a governamentali-
dade, será uma temática que retorna nos
www.ihu.unisinos.br

textos de Foucault. Se considerarmos


que a universidade é hoje o espaço por
excelência de construção, transmissão
e consolidação de saberes e verdades:
como pensar nesse marco definido por
Foucault, a tarefa que nos cabe como
professores universitários? Uma rápida análise dos textos e cursos de Foucault, assim como um simples olhar para a
história de sua prática concreta como docente, corrobora que a tarefa do professor não pode limitar-se ao exercício do
governo sobre os outros, e que, pelo contrário, nos cabe, como aos filósofos clássicos, auxiliar nossos alunos na difícil
tarefa de governar-se a si mesmos.”
Esta e outras edições dos Cadernos IHU ideias podem ser adquiridas diretamente no Instituto Humanitas Unisinos
– IHU ou solicitadas pelo endereço humanitas@unisinos.br. Informações pelo telefone 55 (51) 3590 8213.

46 SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 | EDIÇÃO 454


Retrovisor

IHU em Revista
Releia algumas das edições já publicadas da IHU On-Line.

Biocapitalismo e trabalho. Novas formas de exploração e novas pos-


sibilidades de emancipação
Edição 327 – Ano X – 03-05-2010
Disponível em http://bit.ly/ihuon327

A intenção desta edição é contribuir para uma análise das características pe-
culiares da crise financeira do período, identificada como uma crise da globalização
tal como a conhecemos, a partir e sob a perspectiva das mudanças do mundo do
trabalho. O número foi inspirado pelo livro Crise da economia global. Mercados
financeiros, lutas sociais e novos cenários políticos, em tradução livre (Verona: Om-
bre Corte/Uninomade, 2009), organizado por Andrea Fumagalli e Sando Mezzadra.
Contribuem para a discussão Carlo Vercellone, Christian Marazzi, Federico Chicchi e
Stefano Lucarelli, além da própria Andrea Fumagalli.

O capitalismo cognitivo e a financeirização da economia. Crise e


horizontes
Edição 301 – Ano IX – 20-07-2009
Disponível em http://bit.ly/ihuon301

Em mais uma busca por compreender as implicações da Crise Econômica mun-


dial de 2008, esta edição da IHU On-Line aborda os modos como a financeirização
torna-se forma adequada e perversa de um sistema que se reproduz na captura do
comum. “Comum”, neste sentido, é compreendido como algo que não existe in na-
tura, mas que é continuamente produzido pela cooperação do trabalho/saber vivo.
E o comum tem um duplo estatuto: é prática cooperativa de liberdade e igualdade,
mas é também aquilo que é continuamente desfrutado pelo capital. Contribuem
para a discussão Gigi Roggero, Carlo Vercellone, Christian Marazzi, Yann Moulier
Boutang e Giuseppe Cocco.

O mundo desconhecido das nanotecnologias


Edição 120 – Ano IV – 25-10-2004
Disponível em http://bit.ly/ihuon120
www.ihu.unisinos.br
No universo virtualmente invisível das nanotecnologias, onde as medidas são
tratadas pela escala bilionésima do metro, é possível reconstruir tecidos, modificar
a composição dos alimentos, intervir diretamente na saúde humana e na medicina.
No entanto, como de praxe, os grandes grupos empresariais tendem a apropriar-se
das novas tecnologias, à revelia de qualquer contribuição social. Para debater estas
questões, esta edição da IHU On-Line convidou Ney Lemke, Paulo Roberto Martins
e Edmilson Lopes.

EDIÇÃO 454 | SÃO LEOPOLDO, 15 DE SETEMBRO DE 2014 47


Contracapa IHU Ideias
Foucault além de Foucault: uma política da Filosofia

Prof. Dr. Sandro Chignola – Università di Padova – Itália


Data: 25/09/2014 | Horário: 17h30min às 19h | Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU

Abrindo o Livro
A política da própria vida. Biomedicina, Poder e Subjetividade no Século XXI

Prof. Dr. José Roque Junges – Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS
Data: 23/09/2014 | Horário: das 17h às 19h |Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU

Territórios e Políticas Públicas


O IV Seminário Observatórios,
Metodologias e Impactos - Territórios e
Políticas Públicas dá sequência à tem-
atização de interesse de um coletivo de
Observatórios comprometidos com a
organização e democratização das in-
formações, assim como com a afirma-
ção de políticas públicas no contexto
da sociedade e Estado contemporâ-
neos. O evento ocorre nos dias 29 e
30 de setembro. Mais informações em
http://bit.ly/SemObserva.

twitter.com/_ihu bit.ly/ihuon

youtube.com/ihucomunica

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