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David Hume e

os limites da
razão

Lívia Guimarães
Ceticismo, naturalismo e
sentimentalismo: as contribuições de Hume E mais:

>> Herman Daly


Adriano Naves de Brito “A economia é um subsistema
A atualidade da filosofia humeana do ecossistema’’

369
>> Jorge Ferreira
César Kiraly “Brizola foi a única liderança civil
Ano XI Outros critérios: os 300 anos a derrotar um golpe militar’’
15.08.2011 de David Hume
ISSN 1981-8769
David Hume e os limites da razão

Os 300 anos de nascimento do filósofo David Hume ensejam a IHU On-Line desta semana. Inquietante
a ponto de despertar Kant de seu “sono dogmático”, o escocês é conhecido, sobretudo, em função de seu
ceticismo e por apontar a impossibilidade de a razão abarcar as ideias, o mundo e seus fenômenos. Para
debater a importância do legado humeano, a revista entrevistou diversos especialistas brasileiros.
Dogmatismo e perseguição científica ou religiosa estavam entre os grandes temores do pensador,
avalia Lívia Guimarães, professora da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, e representante no
Brasil da Hume Society.
Para o coordenador do PPG em Filosofia da Unisinos, Adriano Naves de Brito, a filosofia contemporâ-
nea tem valorizado a obra desse pensador.
Na opinião de Andrea Cachel, do Instituto Federal do Paraná, a atualidade de Hume se dá principal-
mente em função de suas facetas crítica e naturalista.
Os limites da razão e um ceticismo mitigado são o tema explorado pelo coordenador do curso de Di-
reito da Unisinos, André Luiz Olivier da Silva, que pontua o fato de sermos pouco racionais para realizar
escolhas, e estas estão, em sua maioria, “envolvidas por percepções sensíveis”. O contato com o mundo
empírico é que faz surgirem as ideias no sujeito, diz, apoiado na filosofia humeana.
O ceticismo e o naturalismo são facetas que se unem no pensamento de Hume, aponta Bruno Pettersen, da
Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia – Faje. Isso abre espaço para a investigação da racionalidade.
César Kiraly, da Universidade Federal Fluminense – UFF, afirma que investigar é um processo destru-
tivo, e na filosofia humeana a destrutividade é um imperativo moral.
Eduardo Barra, da Universidade Federal do Paraná – UFPR, examina o problema da indução e suas
incursões “devastadoras”. Conforme o pesquisador, a segunda metade da terceira Crítica de Kant busca
reconstruir algo seguro sobre os escombros deixados pelo ceticismo humeano.
Maria Isabel Limongi, também da UFPR, analisa a compreensão do sujeito constituinte da experiência
empírica enquanto uma novidade em relação à razão clássica moderna.
Completando o tema de capa, José Oscar de Almeida Marques, da Universidade Estadual de Campinas
– Unicamp, debate a teoria da causalidade em Hume, e acentua a determinação mecânica das ocorrências
no mundo.
“A direita aprendeu com os acontecimentos de 1961” afirma o historiador Jorge Ferreira, que estará
na Unisinos participando do Seminário 50 anos da Campanha da Legalidade: memória da democracia
brasileira, promovido pelo IHU no dia 18 de agosto. O seminário se desenvolve até o 1º de setembro de
2011.
O renomado economista Herman Daly, analisa as possibilidades de um planeta no qual todos possamos
viver bem. O jornalista Dênis de Moraes afirma que a “América Latina vive uma batalha midiática sem
precedentes”, e que falta vontade política para democratizar a comunicação.
“Unesco desperta polêmica no debate sobre regulação da comunicação no Brasil” é o título do artigo
de Gislene Moreira, doutora em Ciências Sociais e Políticas pela Faculdade Latino-Americana de Ciências
Sociais – Flacso-México, e membro do Grupo Cepos.
A secretária Dinorá Huckriede revela aspectos de sua trajetória pessoal e profissional.

A todas e todos uma ótima semana e uma excelente leitura!

IHU On-Line é a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU – Universidade do Vale do
Rio dos Sinos - Unisinos. ISSN 1981-8769. Diretor da Revista IHU On-Line: Inácio Neutzling (ina-
Expediente

cio@unisinos.br). Editora executiva: Graziela Wolfart MTB 13159 (grazielaw@unisinos.br). Redação:


Márcia Junges MTB 9447 (mjunges@unisinos.br) e Patricia Fachin MTB 13062 (prfachin@unisinos.
br). Revisão: Isaque Correa (icorrea@unisinos.br). Colaboração: César Sanson, André Langer e Darli
Sampaio, do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, de Curitiba-PR. Projeto gráfico:
Bistrô de Design Ltda e Patricia Fachin. Atualização diária do sítio: Inácio Neutzling, Rafaela Kley
e Stefanie Telles. IHU On-Line pode ser acessada às segundas-feiras, no sítio www.ihu.unisinos.br.
Sua versão impressa circula às terças-feiras, a partir das 8h, na Unisinos. Apoio: Comunidade dos
Jesuítas - Residência Conceição. Instituto Humanitas Unisinos - Diretor: Prof. Dr. Inácio Neutzling.
Gerente Administrativo: Jacinto Schneider (jacintos@unisinos.br). Endereço: Av. Unisinos, 950 – São
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mail do IHU: humanitas@unisinos.br - ramal 4121.
Leia nesta edição
PÁGINA 02 | Editorial

A. Tema de capa
» Entrevistas
PÁGINA 07 | Lívia Guimarães: Ceticismo, naturalismo e sentimentalismo: as contribuições de Hume
PÁGINA 13 | André Luiz Olivier da Silva: Os limites da razão e um ceticismo mitigado
PÁGINA 19 | César Kiraly: Outros critérios: os 300 anos de David Hume
PÁGINA 23 | Eduardo Barra: O problema da indução e suas incursões devastadoras
PÁGINA 28 | Maria Isabel Limongi: Uma alternativa à noção de sujeito
PÁGINA 30 | José Oscar de Almeida Marques: A teoria da causalidade em David Hume
PÁGINA 32 | Andrea Cachel: Hume e a razão provável
PÁGINA 35 | Adriano Naves de Brito: A atualidade da filosofia humeana
PÁGINA 37 | Bruno Pettersen: Um cético e um naturalista

B. Destaques da semana
» Entrevista da Semana
PÁGINA 41 |Herman Daly: Por um planeta em que se possa viver, em vez de todos se darem mal juntos
» Livro da Semana
PÁGINA 43 |Dênis de Moraes: “A América Latina vive uma batalha midiática sem precedentes”

» Coluna do Cepos
PÁGINA 48 |Gislene Moreira: Unesco desperta polêmica no debate sobre regulação da comunicação no Brasil

» Destaques On-Line
PÁGINA 50 | Destaques On-Line

C. IHU em Revista
» Eventos
PÁGINA 56 | Jorge Ferreira: “A direita aprendeu com os acontecimentos de 1961”

» IHU Repórter

PÁGINA 62 | Dinorá Huckriede

SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369 


 SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369
Razão e bom humor. A pequena grande filosofia de David Hume

É provável que boa parte da como escritor. Em 1748, ele


atração que o leitor sente ao publica a Investigação sobre o
contato com os textos de David entendimento humano e, em
Hume (1711-1776) ainda hoje, 1751, a Investigação sobre a
nos 300 anos de seu nascimento, moral [Editora Unesp, 2003,
se deva à saudável inquietação 438 p.], a qual ele próprio
que provocam. considerava sua obra mais bem-
Enquanto Descartes (1596- acabada.
1650) procura extirpar os Reações eclesiásticas a
“preconceitos da infância” à esses escritos não se fizeram
força de uma intensificação esperar. Por causa deles,
hiperbólica da dúvida, lançando Hume não foi aceito como
mão de recursos retóricos e professor na Universidade de
cênicos como o Gênio Maligno e Edimburgo e, posteriormente,
o Deus Enganador, Hume avança na Universidade de Glasgow.
teses frontalmente contrárias Em 1756, sofreu um processo de
ao senso comum sem alterar o excomunhão, sendo absolvido
tom, procurando evitar que o pela Assembleia Geral da Igreja
leitor reacenda no espírito suas da Escócia. Em 1757, publicou
prevenções costumeiras. a História natural da religião,
Será verdade que o instinto e em 1779, três anos após sua
é mais importante para a vida morte, aparecem os Diálogos
que a razão? E que o raciocínio sobre a religião natural [trad.
de causa e efeito não tem José O. A. Marques, Martins
origem racional, mas é fruto de Fontes, 1992, 188 p.].
uma conjunção fortuita, a que
apenas educação e hábito dão Grandeza e baixeza
consistência? Apesar do sucesso como
Levar o leitor comum a se convencer da verdade de tais escritor, a imagem que provavelmente ficou de Hume no
proposições supõe uma concepção peculiar do exercício público britânico em geral é aquela que Samuel Johnson
filosófico e literário, que pode ser explicado como busca deixou dele: a de um “homem infiel, embora benevolente
de um ajuste fino entre excentricidade e bom-senso, cujo e bom”.
indicador se exprimiria por sinais de serenidade e bom
humor. Quanto maior o destempero, maior o indício de que Sabe-se hoje que a apreciação de Johnson sobre o
se perdeu a razão, ensinava Shaftesbury (1671-1713). Na filósofo escocês se deve menos a leituras de suas obras e ao
mesma linha, Hume definiu sua filosofia como ceticismo pouco contato pessoal que teve com ele do que àquilo que
temperado ou “mitigado”, por oposição ao ceticismo lhe foi soprado por seu grande biógrafo, James Boswell.
excessivo ou de “cabeça quente”. Seja como for, a disputa entre o grupo ligado a Johnson e o
ligado a Hume foi decisiva para os rumos da vida filosófica,
Obra artística e literária na Grã-Bretanha.
O primeiro livro que Hume publicou, em 1739-40, o Um exemplo, entre tantos outros: Edgar Wind escreveu
Tratado da natureza humana [trad. Déborah Danowski, um estudo admirável sobre a pintura britânica do século
Editora Unesp, 2000, 712 p.], quase não teve repercussão. XVIII, David Hume e o retrato heroico: Estudos sobre a
A obra era pesada demais, e seu fracasso levou felizmente imagística no século XVIII [Oxford University Press, 146
o autor a repensar sua maneira de escrever. p.], no qual procura mostrar que as diferenças de estilo
Em 1742, saem os Ensaios, bem mais acessíveis, nos nos retratos dos dois maiores pintores do século XVIII na
quais mimetiza os artigos de Addison na revista Spectator. Grã-Bretanha, Joshua Reynolds e Thomas Gainsborough, se
Foram 17 reedições durante a vida de Hume; junto com devem a concepções filosóficas antagônicas a respeito da
a História da Inglaterra, contribuíram para seu renome natureza humana.

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A arte de Gainsborough nobre, assim como, para o
representaria uma visão fã de música techno, que é
rebaixada do homem, melhor ouvir música clássica.
sustentada no ceticismo A opção é só aparentemente
humeano, que afirma que a irracional, pois se explica por
razão humana é muito fraca um mecanismo natural, ligado
se comparada ao instinto e, ao instinto de conservação e
portanto, não muito superior à prazer e ao temperamento
razão encontrada nos animais. de cada um.
Já a grandiosidade das figuras Assim, tão importante
nos retratos de Reynolds se quanto o refinamento do
explicaria como reação a gosto e dos costumes é a
esse rebaixamento do homem atenção para as diferenças
e de sua razão. Reynolds de sensibilidade e
teria buscado fazer jus a temperamento. Tal respeito
uma concepção “heroica” do pela diversidade explica por
homem, que ele partilhava que Hume acertou bem mais
com Johnson e com o filósofo do que Samuel Johnson no que
James Beattie, adversário de se refere ao Tristram Shandy,
Hume. de Laurence Sterne (trad.
José Paulo Paes, Companhia
Kant das Letras), romance
Hamann e Jacobi eram inteiramente avesso ao gosto
bem próximos de Kant clássico de ambos. Em carta
(1724-1804), ele também a William Strahan, de 1773,
bastante influenciado pela Hume diz que, nos últimos 30
obra do escocês, a ponto de afirmar que foi Hume quem o anos, o melhor livro escrito por um “englishman” era o de
despertou do “sono dogmático”. Kant investiu anos de vida Sterne – “por pior que ele seja” (“as bad as it is”).
tentando mostrar que o raciocínio de causa e efeito não
é fruto de repetição e hábito. O seu esforço é explicável: Idiossincrasias
diferentemente de Hamann e Jacobi, Kant não se enganou O filósofo galante sabe compreender o que há de
sobre as reais intenções de Hume. fundamental nas idiossincrasias dos outros e também
Embora a própria ideia de crítica da razão tenha no brincar com as próprias. É o que Hume faz com sua entrega
ceticismo humeano uma de suas mais fortes inspirações, um tanto intemperada aos prazeres da mesa.
era preciso lhe responder à altura, mostrando que Mas o principal é que a singularidade deve ser respeitada,
entendimento e razão não são tão impotentes assim como porque, se não é prova, pode ao menos ser sinal do novo.
ele queria fazer crer. Como afirma no ensaio intitulado Do comércio, os pensadores
Até hoje corre muita tinta para saber quem, Hume ou “abstrusos” são mais interessantes do que os superficiais,
Kant, venceu a controvérsia (a causalidade é um hábito porque “indicam caminhos” e “apontam dificuldades” que
originado na experiência ou um conceito a priori do podem levar a “finas descobertas” de pensadores “mais
entendimento?), que sobrevive em posições epistemológicas ajuizados”.
bem distintas, uma mais afeita a uma concepção racional Para a filosofia séria, “profissional”, há uma consequência
do conhecimento, outra ao utilitarismo, ao positivismo bastante incômoda a tirar de todas essas ideias. É que, se
lógico e ao pragmatismo. toda ocupação é importante, não havendo razões para
dizer que uma seja superior à outra, a conclusão também é
Miragens válida para o sublime amor ao saber. Comparar a meditação
Mesmo a mais trivial das ocupações tem valor para o filosófica a um passatempo frívolo qualquer parece, assim,
indivíduo que nela se aplica - valor que está menos naquilo perturbar muito mais do que todos os argumentos céticos
que se busca do que na própria atividade. ou cristãos sobre a fraqueza de nossa razão.
O dinheiro cobiçado na mesa de jogo, o javali A lição de David Hume talvez resida nessa combinação
freneticamente disputado numa caçada são apenas miragens de excentricidade e modéstia: o máximo que o exercício
que a natureza institui para nos impelir à atividade. filosófico pode almejar são pequenas descobertas - ou,
Indivíduos mais excêntricos correm atrás de outros tipos parafraseando Kant, transgressões judiciosas dos limites do
de recompensa, como o imperador Domiciano (51-96 d.C.), bom-senso.
para quem o troféu dos seus esforços eram as moscas que
pegava. Fonte: Márcio Suzuki, artigo publicado no jornal Folha de
Impossível demonstrar mediante argumentos, para S.Paulo, 07-08-2011, disponível em http://bit.ly/rdSCMW e
quem gosta de sinuca, que o golfe é um esporte mais aqui adaptado.
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Ceticismo, naturalismo e sentimentalismo:
as contribuições de Hume
Dogmatismo e perseguição científica ou religiosa estavam entre os grandes temores do pensa-
dor, avalia Lívia Guimarães. Base sentimental da ação foi um de seus grandes temas de estudo

Por Márcia Junges

T
ido como o filósofo mais influente de língua inglesa, Hume ofereceu legados inestimáveis à filoso-
fia. Uma delas, enumera a filósofa Lívia Guimarães, é apontar a “existência da falácia naturalista
nas teorias morais que não distinguem valores de fatos, enunciados prescritivos de enunciados
descritivos”. Além disso, tomando em consideração os resultados teóricos da “nova cena de pen-
samento”, pode-se dizer que “a maior contribuição de Hume esteja na intuição de que as paixões
estão na origem de todos os nossos juízos e de que a moral, a estética e mesmo o conhecimento possuem
uma base sentimental”. Resumidamente, ceticismo, naturalismo e sentimentalismo compõem as intenções
e contribuições fundamentais do filósofo escocês. Lívia acentua que um dos maiores temores de Hume era
endereçado aos “perigos do dogmatismo e perseguição científico ou religioso”. As declarações fazem parte
da entrevista concedida pela pesquisadora por e-mail à IHU On-Line.
Graduada e mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Lívia é doutora em Filosofia
pela Catholic University of America e pós-doutora pela University of North Carolina at Chapel Hill e pela Universi-
dade de Nova Iorque. Professora na UFMG, é membro do Comitê Executivo da Hume Society e co-organizadora do
seu 40o. Congresso Internacional, que ocorrerá no Brasil, em 2013. Organizou a obra Leituras de Hume (Belo Ho-
rizonte: Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2009) e é uma das organizadoras de Filosofia Analítica,
Pragmatismo e Ciência (Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998). Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a importância e entre verdades analíticas e sintéticas. expressões de gosto e sentimento emi-
atualidade da filosofia de Hume 300 Ele formulou o problema da indução, tidas sob um ponto vista geral e desin-
anos após seu nascimento? Quais são que é matéria de intenso debate na teressado, constituindo-se, assim, em
as maiores contribuições de seu pen- epistemologia e na metafísica: exis- importante referência para posições
samento para a ética, a epistemolo- tem conexões necessárias entre os ob- não cognitivistas. Embora melhor re-
gia e a metafísica? jetos? Ou seja, existem causas reais? conhecido como filósofo da virtude,
Lívia Guimarães – Hume é considera- Podemos conhecê-las? Ou as causas re- Hume também inspirou posições conse-
do o mais influente filósofo de língua duzem-se a regularidades empíricas? quencialistas e utilitaristas modernas.
inglesa. Suas contribuições abrangem, Acusou a existência da falácia natura- Finalmente, no Tratado da natureza
além da filosofia, o conjunto das ci- lista nas teorias morais que não dis- humana Hume traçou os contornos da
ências humanas (política, história, tinguem valores de fatos, enunciados psicologia cognitiva, substituindo es-
economia, demografia, sociologia, psi- prescritivos de enunciados descritivos. peculação apriorística pela investiga-
cologia) que, em seu tempo, reunia- Articulou, em sua abordagem sobre o ção empírica da mente. E, nos textos
se sob o título de “filosofia moral”. problema da liberdade, uma solução posteriores ao Tratado, deu contorno
A importância do pensamento de compatibilista, que procura conciliar às atuais ciências humanas, tendo sido
Hume para a filosofia é inestimável. liberdade e necessidade, afirmando conhecido, até o século XIX, antes
Seja pela formulação inovadora dos que as ações livres são causadas por como historiador que como filósofo.
problemas filosóficos, seja pela plau- determinações da vontade, e que li-
sibilidade da solução proposta, suas vres são as ações não coagidas. Na Rejeição ao dogmatismo e superstição
contribuições repercutem até os dias metaética, Hume contribuiu com a te- A pergunta sobre a natureza da filoso-
atuais. Hume estabeleceu a distinção oria segundo a qual juízos morais são fia é central para Hume. A “nova cena

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de pensamento” que se lhe descortina A razão disso é nossa propensão à
em 1729, e que resultará na escrita do
“Hume é considerado o simpatia – “a receber por comunica-
Tratado da natureza humana (1739- ção suas inclinações e sentimentos,
40), tem uma tradução possível na
mais influente filósofo de por diferentes ou mesmo contrários
proposta naturalista de sua filosofia, que sejam aos nossos próprios”. No
que pode ser entendida em vários sen-
língua inglesa” orgulho e demais paixões indiretas
tidos. Tanto o Tratado quanto a Inves- um novo conceito de sentimento, pos- (amor, ódio, humildade e suas varian-
tigação sobre o entendimento humano suidor de elementos cognitivos e não tes), a comunicação de sentimentos
(1748) iniciam-se com essa pergunta e cognitivos, dotando-o de ampla influ- intensifica, modera ou até mesmo
se desenvolvem como respostas a ela. ência e autoridade. A análise da infe- extingue o prazer e dor originais.
No Resumo do tratado, Hume caracte- rência causal confere ao sentimento No Tratado, Hume também define sim-
riza sua filosofia como extremamente um status epistemológico – a conexão patia como conversão de uma ideia em
cética e, na Uma investigação acerca necessária entre causa e efeito consis- impressão pela força da imaginação,
dos princípios da moral (1751), dá-lhe te num sentimento de determinação que se traduz na força dos princípios
o título de ceticismo mitigado. Este da mente, que concebe com força e de associação de impressões e ideias.
ceticismo rejeita ideais racionalistas vividez a ideia de um (a) quando tem Uma paixão ou inclinação de outrem
de explicação, com seus parâmetros a impressão do (a) outro (a); e crença primeiro nos aparece como ideia – seu
de certeza e de evidência, mas não diferencia-se de mera ficção por um comportamento é um efeito, que nos
ameaça a aquisição do conhecimento. sentimento, ou maneira de concepção, conduz à ideia da causa, a paixão.
Ao contrário, ao refletir a vida comum novamente, que é mais vívida e forte, Nossa associação a ele, por contigui-
e rejeitar o dogmatismo e a supers- podendo, desse modo, nos determinar dade e semelhança, confere força e
tição, ele favorece a “ciência do ho- e dispor. O juízo moral expressa um vividez a essa ideia, convertendo-a
mem” e chega mesmo a coincidir com sentimento de aprovação de qualida- em impressão – ou seja, na própria
ela, visto que as leis dessa ciência uni- des de caráter úteis ou agradáveis a paixão, que agora passamos a sentir.
ficam os fenômenos sem, contudo, ex- seu possuidor ou aos demais (por qua-
pressarem necessidades metafísicas. lidades desagradáveis ou prejudiciais, Simpatia e moral
Hume adota um naturalismo metodo- sentimos desaprovação). O juízo es- Para haver simpatia, é suficiente a
lógico e filosófico, ao defender uma tético de gosto expressa uma emoção mera proximidade de alguém que per-
metodologia relacionada à das ciên- agradável, ao mesmo tempo em que cebamos como semelhante e, portan-
cias naturais e buscar explicações li- estabelece uma determinação teórica to, sujeito a experiências de prazer
vres de princípios sobrenaturais. Com acerca do belo, estabelecendo um pa- e dor semelhantes às nossas. Quanto
efeito, a ciência da natureza huma- drão compartilhado. Em uma palavra, mais forte nossa relação, mais fácil
na, a teoria dos sentimentos morais, ceticismo, naturalismo e sentimenta- será a transição pela qual a vívida
a epistemologia empirista e o próprio lismo talvez resumam as intenções e concepção que temos de nós mesmos
ceticismo dependem do abandono de principais contribuições filosóficas de transmite vividez à ideia da dor ou pra-
pressupostos religiosos e teológicos. Hume. zer alheio. A simpatia pode dirigir-se a
Podemos ainda dizer que Hume adota IHU On-Line – Quais são as prin- seres presentes, passados e até mesmo
um naturalismo metafísico, se consi- cipais conclusões a que chegou com imaginados no futuro. Pode limitar-se
deramos que, para ele, nada existe o acompanhamento da evolução do à sensação e momento imediatos, ou
senão a natureza, entendida como conceito de simpatia no pensamento se estender a todas as circunstâncias
aquilo que se dá à nossa experiên- de Hume? Como o conceito de simpa- de seu objeto, tornando-nos interes-
cia. Mas, observe, esse não é neces- tia implica na constituição das socie- sados em sua felicidade. Pode resultar
sariamente um naturalismo normati- dades humanas, educação moral dos em sentimentos contrários: grande dor
vo: para Hume, natural nem sempre indivíduos e no estudo dos fenôme- ou grande simpatia dão origem à bene-
equivale ao que é bom ou verdadeiro. nos históricos e sociais? volência e à compaixão, enquanto um
Lívia Guimarães – Hume intro- grau pequeno origina desprezo ou ódio.
Base sentimental duz o conceito de simpatia na seção A simpatia explica a uniformidade
Quanto aos resultados teóricos da “Do amor à fama”, livro 2, parte 1 de sentimentos e opiniões entre os
“nova cena de pensamento”, talvez do Tratado, ao analisar as paixões do membros de uma nação. Ela explica
a maior contribuição de Hume esteja orgulho e humildade. Segundo ele, o mudanças de humor quando estamos
na intuição de que as paixões estão orgulho é um sentimento agradável, em companhia. Nas palavras de Hume:
na origem de todos os nossos juízos e causado pela boa opinião que temos “ódio, ressentimento, estima, amor,
de que a moral, a estética e mesmo o de nós mesmos, devido a possuirmos coragem, alegria, e melancolia; todas
conhecimento possuem uma base sen- ou termos associadas a nós qualidades essas paixões sinto mais por comuni-
timental. Hume desenvolve esta intui- e objetos de valor. Todavia, adverte cação do que pelo meu próprio tem-
ção numa complexa psicologia das re- que essas causas pouco valem se não peramento e disposição naturais”.
lações entre impressões e ideias, que são confirmadas por outras pessoas. Definida como operação original da
relaciona a razão às paixões e propõe mente humana, a simpatia é também
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condição necessária da moral. O senti- “A importância do dor, ele nos incita ao exercício da ima-
mento moral de aprovação depende de ginação moral, levando-nos a ampliar
uma simpatia isenta das flutuações re- pensamento de Hume a esfera de nossa simpatia para muito
lacionadas a proximidade e distância. além do próximo e imediato. Ele exci-
Nós a obtemos ao assumirmos pontos para a filosofia é ta nossas paixões e nos faz, como ele
de vista gerais, adotando uma posição mesmo diz, sentir a diferença entre
imaginativamente próxima de um in- inestimável” virtude e vício. Para Hume, a felicida-
divíduo e todos à sua volta, de modo a de associa-se a virtude, conhecimen-
sentirmos, por simpatia, os efeitos de to, indústria, ação, prazer e repouso.
tores de mudança. Aqui se insinuam os
sua ação sobre eles. O prazer que ele Condições que promovem as virtudes
perigos da simpatia não reflexiva – um
causa induz nossa aprovação, a dor, de- sociais, que contribuem para a paz so-
exemplo são consequências sociais e
saprovação. Portanto, o ponto de vista cial e para o desenvolvimento das artes
políticas da superstição e entusiasmo
geral, a partir do qual emitimos juízos e ciências são propícias à felicidade.
religioso moderno. Evidenciam-se aqui
morais, resume-se à expansão reflexiva Apontando-as, ele procura nos predis-
também as vantagens da simpatia re-
de nosso envolvimento simpático com por favoravelmente a elas. Mais que
flexiva, que nos torna perceptivos em
outros indivíduos humanos (podendo isso, ele procura regular nossa condu-
relação a contextos morais e que fa-
se estender, em nossos dias, a não hu- ta. Sem precisar ensiná-la ou advogá-
vorece o cultivo das virtudes sociais.
manos) e à regulação de nossa tendên- la diretamente, Hume promove a vir-
cia à simpatia. É por isso que dizemos tude pelo cultivo das paixões calmas,
Instrumento moral
que a simpatia nos torna seres morais. combate às violentas e às falsas cren-
Um outro sentido em que a simpatia
O Tratado investiga a influência da ças, em cada leitor de sua obra. Temos
adquire relevância está nos casos em
simpatia nas paixões e na moral em aqui, decerto, um Hume diferente
que a simpatia pelos participantes e
grande detalhe e sugere, mas não daquele que foi criticado por Hutche-
práticas é necessária para se obter
elabora, uma influência comparável son, por não ter sido mais caloroso a
verdadeiro conhecimento acerca dos
na esfera do conhecimento. Hume favor da virtude no Tratado e que, na
fatos. A obra História da Inglaterra
alude à simpatia nos casos onde há ocasião, defendeu-se dizendo não ser
(1754-62) nos conduz das ações às
transmissão de crenças pelo simples esta a tarefa do cientista moral. Mas é
paixões e qualidades de caráter dos
contágio das opiniões e sentimen- este o Hume que me parece se reve-
atores. Ela, inclusive, pressupõe que a
tos. Este é um modo não filosófico da lar no pervasivo alcance da simpatia.
narrativa de eventos históricos pouco
crença, em que a força da mera con-
instrui se não ensina sobre a felicidade
tiguidade toma o lugar de raciocínios IHU On-Line – Do que tratam os con-
e miséria dos protagonistas. Mas não
e argumentos – seria exemplo de uma ceitos de superstição e entusiasmo
podemos julgar, não podemos sequer
experiência não reflexiva de simpatia em Hume?
compreender os fatos sem exercitar-
na cognição. Mas o Tratado pouco faz Lívia Guimarães – Originalmente,
mos simpatia. Afinal, para se explicar
além de mencioná-lo, e jamais aborda para Hume, no ensaio Da superstição
as ações humanas, é preciso antes
a questão de uma possível influência e do entusiasmo (1741), ambos desig-
perceber as paixões que as motivam.
da simpatia reflexiva sobre as crenças. nam manifestações religiosas vulgares.
Creio que não exagero ao afirmar que
A comunicação de crenças por meio da A superstição resulta do medo, justifi-
simpatia reflexiva é condição para o
simpatia só se torna, de fato, relevan- cado pelas circunstâncias adversas da
conhecimento da totalidade dos fe-
te quando a filosofia de Hume dirige-se vida humana, mas intensificado nos
nômenos humanos. Parece-me que
mais particularmente às relações hu- indivíduos com disposição melancólica
nem o Tratado prevê essa cláusula,
manas em sociedade, cuja base repou- e exacerbado sob a forma de terror,
nem seus intérpretes geralmente a
sa em paixões compartilhadas. Afinal, no caso do crente religioso. Temero-
reconhecem, muito embora, de certo
observando-se que, pela simpatia, so de catástrofes reais e imaginadas,
modo, ela represente um desdobra-
somos susceptíveis às emoções de ou- este dedica-se à prática constante
mento natural do programa filosófico
tras pessoas (a simpatia estende nosso de rituais e sacrifícios a fim de propi-
que, no Tratado, trouxe “sentimento”
interesse para além de nosso círculo ciar poderes invisíveis desconhecidos.
e agora traz “simpatia” para o interior
imediato; ela é causa da benevolên- Hume afirma: “Fraqueza, medo, me-
da cognição. (Vale, porém, lembrar
cia, compaixão, afabilidade, genero- lancolia, juntamente com ignorância,
que, já no Tratado, a fonte de norma-
sidade e outras virtudes sociais), con- são, portanto, as verdadeiras fontes
tividade mais abrangente – a extensão
clui-se que a simpatia é causa da nossa da superstição”. O catolicismo vulgar
dos sentimentos – dá-se por associação
própria existência em sociedade, ao é o caso paradigmático. Já o entusias-
e transferência imaginativa e deriva,
estabelecer laços afetivos, padrões de mo é característico de uma disposi-
portanto, do conceito de simpatia.)
convívio e conduta, e experiências e ção otimista e confiante, exacerbada
Por fim, através da simpatia, Hume faz
conceitos compartilhados. Ademais, em exaltação, que faz crer numa re-
de sua ciência, ou filosofia, um instru-
as paixões e as crenças associadas a lação privilegiada, inspirada e direta
mento moral. Ao nos apresentar um
elas são causas dos acontecimentos com divindades benéficas. Para Hume:
grande número de cenas de prazer e
históricos e representam poderosos fa- “Esperança, orgulho, presunção, uma
SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369 
imaginação viva, juntamente com ig- “Em uma palavra, parecer ofensivas. Ele procurou assim
norância, são, portanto as verdadeiras se precaver contra o entusiasmo filo-
causas do entusiasmo”. As seitas cal- ceticismo, naturalismo e sófico. Em suas palavras: “Eu estava
vinistas manifestam essa tendência. decidido a não ser um entusiasta em
Ocorre que, além de seu papel na ex- sentimentalismo talvez filosofia, enquanto denunciava outros
plicação da credulidade e da religião entusiasmos”. Ao mesmo tempo, como
vulgar, estes são conceitos que Hume resumam as intenções e relata uma anedota presente em várias
emprega também como divisores entre biografias de Hume, certa vez, entre
orientações políticas, morais e filosófi- principais contribuições amigos, ele se descreveu como “um
cas. “Timorosa e abjeta”, a supersti- entusiasta sem religião, um filósofo
ção favorece o poder clerical e hierár- filosóficas de Hume” que não espera alcançar a verdade”.
quico, é contrária à liberdade civil e IHU On-Line – Hoje, há um “cis-
impõe sujeição aos governados. Pela quência representam o oposto dos seus ma” entre fé e ciência, tendo Hi-
ação incansável dos seus defensores, próprios ideais. Na coluna dos vícios, tchens e Dawkins como alguns de
o domínio que ela conquista sobre a ele inscreve as virtudes monásticas seus maiores expoentes. Em que me-
sociedade culmina em governo tirâni- do celibato, jejum, penitência, mor- dida o ceticismo humeano participa
co. O entusiasmo inicialmente produz tificação, autonegação, humildade, da fundamentação desse debate?
“desordens cruéis”, ao se manifestar silêncio e solidão, às quais se opõem Lívia Guimarães – Pode-se segura-
com maior violência, mas esta rapida- as virtudes sociáveis do “partido da mente afirmar que Hume contemplou,
mente se abate. E, como se caracte- humanidade” humeano. No Diálogo em sua análise da crença religiosa, a
riza por independência e aversão ao que acompanha a Investigação sobre quase totalidade de perspectivas e
intermédio de sacerdotes, ele propi- os princípios da moral, ainda servindo- desdobramentos possíveis no contexto
cia maior tolerância política. Tolerân- se do entusiasmo e superstição, Hume da época. Com respeito à justificação
cia, estabilidade, sujeição e liberdade cunha o conceito de “vidas artificiais” da crença religiosa, ele desafiou as cre-
são problemas nas relações políticas – vidas que não seguem os princípios denciais da revelação (Dos milagres), o
os quais, em Hume, explicam-se pelo do útil e agradável, por efeito ou de argumento pelo desígnio, o argumento
uso das categorias da superstição e entusiasmo filosófico, ou de supersti- cosmológico e, mais difusamente, ar-
entusiasmo. Na História, aquela de- ção religiosa. Os últimos desvalorizam gumentos fideístas (Diálogos sobre a
fine os conflitos da Inglaterra medie- o mundo natural em proveito de uma religião natural e De uma providên-
val, e este, os conflitos que resultam obscura existência sobrenatural. Mais cia particular e de um estado futuro).
na Guerra Civil que depôs Charles I. dignos de pena do que de condenação, Na História natural da religião (1757)
Além disso, como observou Knud Ha- eles são vítimas de autoengano, per- e, mais brevemente, no Da supersti-
akonssen, estes conceitos indicam dois seguem fins ilusórios e, tendo que re- ção e entusiasmo, Hume propôs uma
tipos de orientação teórica na esfera conciliar contradições insolúveis (por explicação psicológica de sua origem
política. Hume associa as teorias de exemplo, na concepção de um Deus ao nas paixões e circunstâncias humanas.
origem aristotélica à superstição, e as mesmo tempo benevolente e punitivo), Ainda nesses textos, Hume investigou
teorias contratualistas modernas ao têm suas condutas fadadas ao fracasso. as consequências da religião para a fe-
entusiasmo. Ou seja, enquanto aque- Por fim, Hume utiliza-se destes con- licidade individual, o bem-estar social
las propunham uma teleologia das ceitos para indicar posições filosóficas. e a estabilidade política. Os efeitos
formas políticas, culminando numa Ele denomina entusiasta a filosofia dos morais, ele abordou de forma geral
rígida hierarquia, estas enfatizam a li- cínicos antigos, personificada no feroz na segunda Investigação, ao defender
vre vontade individual dos contratan- Diógenes. Na modernidade, condena a que, além de desnecessária, a religião
tes. Desse modo, Hume se apropria, superstição religiosa, por corromper o sequer favorece a moral podendo, in-
na explicação das teorias e práticas pensamento de Malebranche, na for- clusive, prejudicá-la. Os efeitos da re-
políticas, de sua tipologia das formas mulação do ocasionalismo. Ecoando ligião sobre a estabilidade, autoridade
religiosas. Essa apropriação aconte- sua advertência, nos Diálogos sobre a e liberdade políticas, ele aprofundou
ce relativamente cedo. Suas linhas religião natural (1779), quanto à con- no livro História da Inglaterra. Além
gerais já se encontram, como disse, taminação da filosofia pela supersti- da jutificação, causas e consequên-
delineadas no ensaio intitulado Da su- ção, numa carta para Edward Gibbon, cias, morais e cognitivas, individuais
perstição e entusiasmo. Na História da ele diz: “entre muitos outros sinais de e coletivas, da crença, Hume esboçou
Inglaterra, ela se concretiza em defi- declínio, a prevalência da superstição uma tipologia das religiões (politeísta
nitivo, voltando a se afirmar no Da ori- na Inglaterra prognostica a queda da e monoteísta, vulgar e não vulgar, su-
gem do governo, publicado em 1777. filosofia e decadência do gosto”. Refe- persticiosa e entusiástica).
rindo-se a si próprio, numa carta de ju- Decerto, Hume foi um cético irre-
“Entusiasta sem religião” ventude para Henry Home, Hume afir- ligioso. Mas, o que significa ser céti-
Na esfera moral, Hume elabora um sis- ma ter excluído do manuscrito original co? A resposta não é fácil. Não existe
tema geral de oposições, onde os tipos do Tratado certas partes que poderiam consenso na tradição de intérpretes
derivados da religião vulgar com fre- sobre as posições de Hume. Um caso
10 SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369
ilustrativo seria a questão dos mila- “‘Timorosa e abjeta’, a o projeto, que também resume sua
gres, onde interpretações apontando concepção de filosofia, de estudar as
a existência de um argumento a priori superstição favorece o operações e princípios da natureza
na parte I do ensaio conflitam com as humana, segundo um método natural
que atribuem a Hume somente um ar- poder clerical e de investigação. O método consiste
gumento a posteriori. Robert Fogelin na observação e generalização, sob a
e Anthony Flew representaram, nas hierárquico, é contrária forma de leis, das regularidades de-
décadas de 1980 e 1990, os extremos tectadas em padrões ordenados e es-
desta controvérsia. Em um ponto ain- à liberdade civil e impõe táveis do comportamento humano. Ele
da mais fundamental, há divergência pretende, assim, explicar nossa ex-
sobre se a posição assumida por Hume sujeição aos governados” periência moral, epistêmica, estética
acerca da religião se qualificaria, afi- e política. No Tratado, isso equivale,
nal, como ateísta, teísta, deísta ou fi- transplantada para a Inglaterra pelos primeiro, a mostrar como funciona a
deísta. Ou, ainda, se, segundo ele, a normandos, traz, segundo Hume, algu- mente e, a partir de um certo ponto,
crença religiosa é injustificada e deve mas consequências benéficas, acres- como funcionam mentes e seres hu-
ser por isso abandonada ou se, assim centando refinamento e sofisticação à manos nas diversas circunstâncias de
como a crença em objetos externos, sociedade saxônica. Hume chega a re- suas vidas. Portanto, Hume confia na
relações causais, identidade pessoal, conhecer que os sentimentos religiosos prática científica, desde que qualifi-
e tantas outras, pertence ao grupo das são agradáveis, que é possível a ocor- cada, ou seja, concebida como pro-
crenças naturais, cuja falta de justifi- rência de milagres e que uma socie- babilística, falibilista e revisável. Sua
cação não implica em abandono. João dade perfeita reservará um lugar para ciência é uma narrativa causal que se
Paulo Monteiro, Norman Kemp Smith, o clero e para as práticas religiosas. interrompe muito antes de se alcan-
Stanley Tweyman, J.C.A. Gaskin, Te- çarem causas primeiras ou princípios
rence Penelhum, Paul Russell, Thomas Dogmatismo e perseguição últimos, que em tudo extrapolam a
Holden, são alguns dos autores nesse As tensões na análise de Hume exibem experiência humana. Hume chega a
debate. a condição humana, ela própria cons- dizer algo como: “quanto mais cres-
Ademais, não creio que se possa tituída por oscilação e instabilidade, e ce nosso saber, mais ainda cresce a
afirmar que Hume teve uma única res- suscitam um problema ao qual Hume consciência de nossa ignorância”.
posta para todas as questões relativas acabou por dedicar seus maiores esfor- Ao ler Hume, no momento, eu não
à crença religiosa. Sobre este e outros ços de pensamento: emergindo sobre aproximaria o estatuto da crença fi-
problemas, sua posição varia entre os bases fracas e instáveis, a religião pode losófica ao da fé religiosa; não in-
textos. Por um lado, a História natural se elevar a níveis de fanatismo perigo- cluiria a crença religiosa no conjunto
da religião torna insustentável a ideia sos, e poderosamente afetar a socieda- das crenças naturais (inevitáveis, sem
de um teísmo esclarecido, admitindo, de e determinar a vontade. Até mesmo elas, pereceríamos), nem das crenças
na melhor das hipóteses, uma inter- em eras ilustradas, apesar do remédio racionais. Também não vejo em Hume
minável oscilação entre teísmo não do ceticismo e da reflexão, a fé vulgar um apologista da verdade da ciência,
vulgar e vulgar (este último bastante segue perturbando os seres humanos. e do supremo poder do conhecimen-
próximo do politeísmo). Por outro, a Portanto, como lidar com costume, to. Estudioso da natureza humana, ele
parte XII dos Diálogos faz o teísmo in- educação, preconceito, ignorância, e me parece serenamente convencido
vulgar parecer perfeitamente susten- paixão? De onde vem a força da reli- de sua fragilidade e variabilidade no
tável para todas as pessoas reflexivas. gião? E de onde vem sua fraqueza? agir, no sentir e no pensar. Se fosse ar-
Enquanto a História natural favorece No entanto, a sua é uma pergunta é riscar uma resposta, eu acrescentaria
a conclusão de que a crença religiosa bastante difícil. Um dos legados de que Hume teme, acima de tudo, as
pode se declarar falsa, os Diálogos, em Hume aos dias de hoje consiste no perdas e perigos, da perseguição e do
parte, favorecem uma suspensão cé- projeto realizado de uma filosofia sem dogmatismo, científico ou religioso.
tica do juízo acerca de sua validade. religião. Há, porém, autores cuja pro-
Por vezes, sua resposta parece evoluir posta vai além disso, ao manter que IHU On-Line – Em que medida o su-
com o passar do tempo. O exemplo a filosofia de Hume impossibilita a re- jeito enquanto um “grande feixe de
mais claro está na superstição e en- ligião. A favor, não necessariamente percepções transitórias”, como pro-
tusiasmo. Enquanto o ensaio de 1741 da proposta, mas do princípio em que pôs Hume, antecipa o surgimento do
declara que, por favorecer a liberdade repousa, creio realmente que Hume sujeito “fragmentário” da pós-mo-
e tolerância, o entusiasmo é preferí- admita a quase impossibilidade de se dernidade?
vel na política, a História da Inglaterra manterem tais fronteiras rígidas nas Lívia Guimarães – Esta é outra per-
aponta uma grave ameaça para a so- mentes e sociedades humanas. gunta difícil. Para Hume, a mente é
ciedade no efeito desestabilizador do No início desta entrevista, procurei um feixe de percepções. Observando
entusiasmo. Ao mesmo tempo, a su- descrever Hume como um praticante que facilmente fazemos a distinção
perstição que, no ensaio se alia unica- da ciência ou “filosofia moral”. Na entre sentir e pensar, ele distingue as
mente à submissão, na História, ao ser introdução do Tratado, ele anuncia percepções em duas categorias: im-
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pressões e ideias. As impressões (que “Definida como operação a “natureza se confunde inteiramen-
temos ao ver, ouvir, sentir, amar, odiar, te”. Isso também ocorre nos sonhos,
desejar) são fortes e vívidas; são irre- original da mente febre e loucura. Mentirosos acabam
sistíveis e nos afetam e dispõem invo- por acreditar em suas mentiras. Do
lutariamente. Ideias são cópias fracas humana, a simpatia é mesmo modo, podem atingir a força
e esmaecidas das impressões. Hume de crenças ideias que seriam ficções
conclui que as ideias simples são cau- também condição não resultantes de experiência passa-
sadas pelas impressões simples, ao no- da uniforme ou, em outras palavras,
tar que se assemelham e são posterio- necessária da moral. do princípio de causalidade, mas dos
res a estas e que, faltando a impressão princípios instáveis e triviais da ima-
original, também falta a ideia corres- O sentimento moral de ginação (semelhança, contiguidade)
pondente. Mas, enquanto as impres- e do artifício (educação, eloquência).
sões de sensação (dos órgãos sensórios aprovação depende de Este é apenas o ponto de partida de
e prazer e dor) causam as ideias, as um modelo de mente que vai incluir,
próprias ideias causam novas impres- uma simpatia isenta das além das crenças, as paixões e os sen-
sões de reflexão (paixões, desejos e timentos. Neste modelo, a pergunta
emoções). Por sua vez, estas últimas flutuações relacionadas a sobre a identidade pessoal, ou sobre
são novamente copiadas em ideias, e o “eu”, deverá buscar a impressão da
assim por diante. Hume relega o es- proximidade e distância” qual se origina a ideia. Não a encon-
tudo das sensações aos anatomistas trando, Hume encontra o feixe, que
e escolhe, como ponto de partida do contudo, apenas ao nosso sentimento talvez não seja fragmentado ou, me-
Tratado, ideias das sensações, delas interno: ideias de memória são sen- lhor dizendo, cuja ênfase ele talvez
seguindo para as demais percepções. tidas vívida e fortemente, ou seja, prefira colocar não na fragmentação,
As ideias na mente não se encon- nós as sentimos como se não pudes- mas nas possibilidades de associação
tram inteiramente soltas e desconecta- sem ser outras. Mas, na imaginação, entre as percepções, embora deva-se
das, nem se associam por mero acaso. “uma percepção é fraca e lânguida notar que Hume pensa nas diferen-
Hume observa que há qualidades pelas e somente com dificuldade pode ser ças, talvez fragmentações, pelas quais
quais uma ideia naturalmente introduz preservada firme e uniforme por um passa um suposto “mesmo” eu, dadas
outra e que há uniformidade na manei- tempo considerável”. Num contraste suas relações e circunstâncias, por
ra como se associam. Os princípios que paralelo, uma associação de ideias exemplo, entre amigos ou estranhos,
as guiam, ele os caracteriza como uma pode se constituir em mera concep- solitário ou em sociedade, na cidade
“força gentil”, apontada pela nature- ção imaginada, ou em crença, como ou no campo, sob um governo monár-
za, e são: semelhança, contiguidade é o caso da associação por causação, quico ou republicano, dotado de poder
(no espaço ou tempo), causa e efeito. do que força e vividez resultam de ou destituído, jovem ou ancião, em
Definida em sentido amplo, a imagina- experiência regular passada – numa diversas épocas e lugares, etc. Enfim,
ção é a própria mente – um feixe de expressão de Hume, de evidência simplesmente por negar substanciali-
percepções unidas por esses princí- “moral”, baseada na razão provável. dade ao “eu”, Hume já torna possíveis
pios. Numa acepção mais restrita, a as abordagens pós-modernas. Gostaria
imaginação distingue-se da memória e Abordagens pós-modernas de dizer só mais uma palavra nesta
da razão, em um contraste que reto- Com o passar do tempo, uma ideia de entrevista: quando Hume abandona o
ma aquele entre ideias e impressões, memória pode se enfraquecer ao pon- tradicional problema da substância,
segundo o critério da força e vividez. to de tornar-se praticamente indistin- ele dirige sua atenção ao problema da
Enquanto a imaginação combina ideias guível de uma ideia de imaginação. causalidade. Isto vai trazer uma alte-
sem preservar a forma e ordem das E é possível a uma ideia imaginada ração radical na orientação de grande
impressões originais, na memória as adquirir vividez quase (ou até) com- parte da metafísica futura. Esta, sem
ideias associam-se segundo sua or- parável à da memória. Poemas e ro- dúvida, é uma de suas grandes contri-
dem original. Essa distinção deve-se, mances produzem vivas imagens, onde buições para o nosso tempo.

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12 SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369
Os limites da razão e um ceticismo mitigado
Somos pouco racionais para realizar escolhas, e estas estão, em sua maioria, “envolvidas
por percepções sensíveis”, pondera André Luiz Olivier da Silva, analisando o pensamento de
Hume. Contato com o mundo empírico é que faz surgirem as ideias no sujeito

Por Márcia Junges

U
ma filosofia instigante “porque põe à prova o papel da razão para explicar e justificar o ato de
conhecer dos seres humanos, mostrando que a natureza humana é constituída mais por paixões
do que pela razão”. Assim é o legado de David Hume, analisa o filósofo André Luiz Olivier da
Silva, na entrevista que por e-mail concedeu à IHU On-Line. “O método experimental de Hume
mostra que não há ideias inatas ao ser humano, mas, ao contrário, as ideias são adquiridas com
a experimentação que o sujeito desenvolve em contato com o mundo empírico”. E continua: “A mente cria
ideias como identidade, necessidade, poder, força, dentre outros termos que nomeiam coisas abstratas. Mas
de onde vêm tais ideias? Como são produzidas pela natureza humana? Segundo Hume, o ponto de partida
do processo de conhecimento é sempre a experiência, que, por meio de impressões sensíveis, movimenta
os sentidos do ser humano e estimula a produção de ideias”. Outro tema explorado por André é a questão
do ceticismo humeano, autodenominado como “mitigado”, isto é, moderado, “que não propõe exatamente
a dúvida exacerbada como solução aos problemas filosóficos e muito menos a suspensão de nossas crenças
causais devido à ausência de justificação racional. A conclusão de Hume em relação ao ceticismo é a de que
o cético não consegue viver o seu próprio ceticismo, que, nos casos extremos, chegaria ao absurdo de negar
o conhecimento”. E completa: “É um ceticismo que constata que não se pode duvidar de todas as coisas
justamente porque é preciso viver, agir e, principalmente, sentir”.
André é graduado em Direito e em Filosofia pela Unisinos. É mestre e doutorando em Filosofia por essa
mesma instituição, com a dissertação Ceticismo, imaginação e identidade em Hume e a tese Lei e liberdade na
antropologia kantiana. Leciona no curso de Direito da Unisinos, do qual é coordenador. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que aspectos a fi- o empirismo, um método segundo o qual os de Francis Bacon (1561–1626), René
losofia de Hume continua instigante o conhecimento provém da experiência Descartes (1596–1650), Thomas Hobbes
e atual? sensível.
 Francis Bacon (1561-1626): político, filósofo
André Luiz Olivier da Silva – A filosofia O método experimental de Hume e ensaísta inglês. Sua principal obra filosófica
de David Hume (1711–1776) é instigan- mostra que não há ideias inatas, mas, ao é o Novum Organum. (Nota da IHU On-line)
te porque põe à prova o papel da razão contrário, as ideias são adquiridas com  René Descartes (1596-1650): filósofo, físico
e matemático francês. Notabilizou-se sobretu-
para explicar e justificar o ato de conhe- a experimentação que o sujeito desen- do pelo seu trabalho revolucionário da Filoso-
cer dos seres humanos, mostrando que volve em contato com o mundo empíri- fia, tendo também sido famoso por ser o in-
a natureza humana é constituída mais co. O impacto da metodologia proposta ventor do sistema de coordenadas cartesiano,
que influenciou o desenvolvimento do cálculo
por paixões do que pela razão. Somos por Hume fomentou o período moderno moderno. Descartes, por vezes chamado o fun-
muito pouco racionais para decidir e da filosofia porque inseriu uma nova so- dador da filosofia e matemática modernas, ins-
escolher alguma coisa, de modo que to- lução para os problemas tradicionais da pirou os seus contemporâneos e gerações de
filósofos. Na opinião de alguns comentadores,
das as nossas decisões estão, no fundo, metafísica, principalmente ao afirmar ele iniciou a formação daquilo a que hoje se
envolvidas por percepções sensíveis, por que não há ideia inata, mas sim um pro- chama de racionalismo continental (suposta-
afetos e sentimentos, que fundamentam cesso cognitivo constantemente esti- mente em oposição à escola que predomina-
va nas ilhas britânicas, o empirismo), posição
não só o nosso ato de conhecer e pen- mulado por impressões sensíveis e por filosófica dos séculos XVII e XVIII na Europa.
sar o mundo, mas, principalmente, os um sucessivo encadeamento natural de (Nota da IHU On-Line)
nossos julgamentos sobre a moral. Para ideias. Além disso, a obra de Hume se  Thomas Hobbes (1588 – 1679): filósofo in-
glês. Sua obra mais famosa, O Leviatã (1651),
mostrar isso, Hume apresenta um mape- mostra atual porque participa dos textos trata de teoria política. Neste livro, Hobbes
amento da natureza humana, adotando filosóficos do período moderno, como nega que o homem seja um ser naturalmen-
te social. Afirma, ao contrário, que os homens

SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369 13


(1588–1679), John Locke (1632–1704), relação à existência de corpos físicos O binômio impressão/ideias que
George Berkeley (1685–1753) e Imma- e de outras pessoas ou as crenças na guia a investigação humeana a uma
nuel Kant (1724–1804). Esses textos nun- existência de valores morais como o abordagem sobre as crenças produz
ca saíram de moda porque traçam uma certo e o errado, o justo e o injusto. outro questionamento relevante: de
ampla discussão sobre diversos temas fi- No processo de conhecimento, primei- que maneira raciocinamos sobre os
losóficos impermeados pela controvérsia ramente, a natureza humana formula fatos? Como resposta, Hume fornece
entre empirismo e racionalismo, a qual um vasto repertório de ideias, ideias uma descrição do processo de conheci-
é base de outras tantas discussões con- de todo tipo, desde a ideia de que cor- mento da natureza humana, explican-
temporâneas. pos físicos ou outras pessoas existem do o modo segundo o qual o ser huma-
como entidades reais e autônomas, no é levado, por sua própria natureza,
Razão, escrava das paixões até a ideia de que se pode agir moral- a extrair consequências e conclusões
Segundo a minha opinião, o aspec- mente com base em virtudes como a de uma determinada causa. Analisa,
to que torna a filosofia de Hume tão justiça e a benevolência. Algumas des- mais especificamente, a inferência
instigante ainda nos dias de hoje é a sas ideias, quando se mantêm vívidas causal nas questões de fato, quando
célebre conclusão de que a razão é e intensas no longo processo cogniti- a mente raciocina sobre os fenômenos
escrava das paixões, pois é justamen- vo, tornam-se percepções mais fortes naturais, generalizando os fatos obser-
te a partir desse ponto que Hume irá e chegam a gerar crenças naturais no vados, quando, por exemplo, deriva a
propor uma solução cética ao processo ser humano que se estruturam a par- conclusão de que, se o dia amanheceu
associativo de ideias na mente huma- tir daquela coleção de ideias. A mente nublado, é porque cairá uma chuva;
na e ao processo natural de formação cria ideias como identidade, neces- ou que poderá saciar a fome se comer
das crenças sobre as coisas do mun- sidade, poder, força, dentre outros o pão. Por meio de um procedimento
do, como por exemplo, as crenças em termos que nomeiam coisas abstratas. indutivo, a natureza humana extrai
são impulsionados apenas por considerações Mas de onde vêm tais ideias? Como conclusões (muitas vezes precipitadas)
egoístas. Também escreveu sobre física e psi-
cologia. Hobbes estudou na Universidade de são produzidas pela natureza humana? ao antecipar os fenômenos do mundo
Oxford e foi secretário de Sir Francis Bacon. A Segundo Hume, o ponto de partida do natural, julgando-os necessários, infe-
respeito desse filósofo, confira a entrevista O processo de conhecimento é sempre a rindo a necessidade de que um dado
conflito é o motor da vida política, concedida
pela Profa. Dra. Maria Isabel Limongi à edição experiência, que, por meio de impres- objeto a seja a causa (necessária) da
276 da revista IHU On-Line, de 06-10-2008. O sões sensíveis, movimenta os sentidos existência do objeto b. Assim, nessa
material está disponível em http://bit.ly/bDU- do ser humano e estimula a produção relação entre os fenômenos a e b, ve-
pAj. (Nota da IHU On-Line)
 John Locke (1632-1704): filósofo inglês, pre- de ideias. Neste ponto, pode-se identi- rifica-se uma “conjunção constante”,
decessor do Iluminismo, que tinha como noção ficar o traço empirista de Hume, quan- mas não propriamente uma “conexão
de governo o consentimento dos governados do propõe que toda ideia que surge na necessária”. Não há uma relação de
diante da autoridade constituída, e, o respeito
ao direito natural do homem, de vida, liberda- mente humana tem a sua origem na necessidade entre a causa e o efeito,
de e propriedade. Com David Hume e George experiência; e é o constante retorno mas uma relação probabilística, pela
Berkeley era considerado empirista. (Nota da à experiência sensível que torna toda qual não se podem extrair verdades
IHU On-Line)
 George Berkeley (1685-1753): filósofo irlan- ideia sensivelmente forte e vívida a dos fatos, mas não mais do que pre-
dês. (Nota da IHU On-Line) ponto de poder estimular a natureza visões e conjeturas. Eis a conjunção
 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussia- humana a formar suas crenças. constante.
no, considerado como o último grande filósofo
dos princípios da era moderna, representante
do Iluminismo, indiscutivelmente um dos seus IHU On-Line – Qual é a relação entre Dominó causal
pensadores mais influentes da Filosofia. Kant a conjunção constante e a formação Ao raciocinar sobre os fatos, a mente
teve um grande impacto no Romantismo ale-
mão e nas filosofias idealistas do século XIX, de crenças na teoria do conhecimen- parte de um determinado número de ob-
tendo esta faceta idealista sido um ponto de to de Hume? servações empíricas, e, no momento da
partida para Hegel. Kant estabeleceu uma dis- André Luiz Olivier da Silva – O conhe- extração de suas conclusões, generaliza,
tinção entre os fenômenos e a coisa-em-si (que
chamou noumenon), isto é, entre o que nos cimento se inicia na impressão sensí- indo além da experiência ao dizer que
aparece e o que existiria em si mesmo. A coisa- vel. No processo de conhecimento, as em “todos” os casos ou que “sempre” os
em-si não poderia, segundo Kant, ser objeto percepções da natureza humana co- fenômenos observados irão acontecer. A
de conhecimento científico, como até então
pretendera a metafísica clássica. A ciência se nectam uma ideia à outra não a partir inferência causal (que vai da impressão
restringiria, assim, ao mundo dos fenômenos, de uma faculdade racional, mas sim da à ideia) estimula, então, o fluxo de ima-
e seria constituída pelas formas a priori da sen- imaginação, que associa uma à outra gens na mente a ultrapassar os limites
sibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias
do entendimento. A IHU On-Line número 93, usando como referência uma lógica de da experiência e a ir além e extrapolar
de 22-03-2004, dedicou sua matéria de capa à causa e efeito. Uma percepção provo- o que está presente aos sentidos; faz a
vida e à obra do pensador com o título Kant: ca a outra, de modo que impressões mente enxergar semelhança entre o pas-
razão, liberdade e ética, disponível para do-
wnload em http://migre.me/uNrH. Também geram ideias simples, as quais se tor- sado e o futuro, sugerindo que o passado
sobre Kant foi publicado este ano o Cadernos nam ideias complexas na medida em e o presente estão habilitados a explicar
IHU em formação número 2, intitulado Emma- que se afastam das impressões sen- o futuro por meio de um dominó causal.
nuel Kant - Razão, liberdade, lógica e ética,
que pode ser acessado em http://migre.me/ síveis e se unem a outras ideias pelo Faz também a mente extrair um “dever
uNrU. (Nota da IHU On-Line) princípio da causalidade. ser” do “ser”, como propõe o problema
14 SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369
da falácia naturalista, ao apontar que a “Mais recentemente, dúvida e, nos casos mais radicais, na
mente observa um objeto a, e, a partir impossibilidade do conhecimento e na
dele, extrai injustificadamente um obje- alguns comentadores de suspensão das crenças sobre o mundo.
to b, como, por exemplo, um dever. Nes- O ceticismo visa, em resumo, a refuta-
se movimento mental, os objetos per- Hume estão a relacionar ção da razão como fundamento do co-
cebidos pela natureza humana e o seu nhecimento. No entanto, o ceticismo
respectivo processo de associação entre o seu naturalismo de Hume é denominado por ele mes-
as ideias impulsionam, por fim, a nature- mo um ceticismo mitigado, ou seja,
za humana a elaborar crenças factuais, filosófico ao naturalismo um ceticismo moderado, que não pro-
crenças sobre os fatos (o mundo ou ou- põe exatamente a dúvida exacerbada
tras pessoas, por exemplo), crenças que da antiguidade, como em como solução aos problemas filosóficos
revelam um ser humano levado passio- e muito menos a suspensão de nossas
nalmente a acreditar na ocorrência de Pirro, Sexto Empírico crenças causais devido à ausência de
determinados fenômenos com base na justificação racional. A conclusão de
conjunção constante e repetitiva pela e Cícero” Hume em relação ao ceticismo é a de
qual os objetos aparecem diante do seu que o cético não consegue viver o seu
horizonte. sível à ideia mais abstrata do conhe- próprio ceticismo, que, nos casos ex-
A natureza humana associa ideias e cimento. A imaginação engendra um tremos, chegaria ao absurdo de negar
produz crenças por meio de um pro- movimento uniforme que constitui, o conhecimento. Este não é o caso de
cesso de conhecimento, que, na me- então, a pedra de toque para a for- Hume, que observa, com base no mé-
dida em que o ser humano acumula mação das crenças. Assim, a origem da todo experimental, que o ser humano
experiência, atua na sua mente como inferência causal reside na conjunção não pode abandonar as suas crenças
um exercício repetitivo, costumeiro, constante entre os objetos da mente, por completo e precisa acreditar, ao
constante e habitual. Trata-se de um ou seja, reside no hábito ou costume menos, em algum conjunto de crenças
processo que conjuga e organiza os de inferir conclusões causais sobre os mínimas, como, por exemplo, as cren-
objetos na mente humana sempre do fatos por meio de objetos conjugados. ças morais, para conseguir viver.
mesmo jeito, a partir dos princípios O hábito, por sua vez, é um produto Por certo, Hume não encontra uma
da contiguidade, semelhança e, prin- da imaginação e não surge por causa razão para justificar as nossas crenças
cipalmente, causalidade dos objetos. de uma faculdade racional. É justa- básicas, mas, nem por isso, propõe
Esse processo de formação das crenças mente o hábito o princípio apontado a suspensão delas, como se tivésse-
se torna um movimento uniforme de- por Hume para contrapor e submeter mos que deixar de viver porque não
vido à “conjunção constante” segun- a razão às regras das paixões quando há uma razão para explicar a nossa
do a qual os objetos são percebidos e da elaboração de crenças causais por vida. Hume não cai no erro de refutar
relacionados na natureza humana. Ao parte da natureza humana. O princí- e contradizer a razão; propõe apenas
ser induzido pela conjunção constante pio do hábito revela que a investiga- o seu abandono, como se deixásse-
e repetitiva de alguns objetos que lhe ção de Hume sobre o conhecimento e mos a razão de lado e centrássemos
aparecem à mente, o ser humano, por a moralidade está estruturada a partir a investigação filosófica aos limites da
sua vez, é levado a acreditar na ocor- de uma base empírica e psicológica, experiência. Nesse sentido, Hume, às
rência de determinados fatos e, na me- que aborda as funções subjetivas do vezes, não se parece com um cético,
dida em que os objetos percebidos vão entendimento e aponta o papel das ao menos não nos moldes tradicionais,
se tornando ideias, a mente adquire o percepções humanas sobre as ques- daqueles céticos que visam refutar a
hábito ou o costume de antecipar as tões de fato. Sua análise deixa de lado razão. Parece-se mais com um cético
percepções já sentidas anteriormen- o raciocínio lógico e, ao recorrer aos naturalista, que não propõe a recusa
te e, com isso, passa a inferir, dado poderes da imaginação, é identifica- de crenças básicas devido ao desam-
um determinado objeto, que algumas da como uma postura cética peran- paro da razão. Ao contrário, visa ana-
percepções do passado poderão (ou te a filosofia, principalmente por seu lisar o seu processo de formação sob
melhor, deverão) se repetir no futuro, método experimental, que, se levado uma perspectiva naturalista, no anseio
pois aparentam estar necessariamente às últimas consequências, reduziria a de descrevê-lo por meio do método
ligadas umas às outras. crença a um fenômeno muito pessoal experimental. O ceticismo de Hume
e subjetivo, que não seria comparti- é moderado porque duvida da própria
IHU On-Line – Em que consiste o ceti- lhado com ninguém. postura cética que duvida de tudo. É
cismo da filosofia humeana? um ceticismo que constata que não se
André Luiz Olivier da Silva – A teoria Ceticismo mitigado pode duvidar de todas as coisas justa-
do conhecimento de Hume analisa o O ceticismo, segundo o seu sentido mente porque é preciso viver, agir e,
exercício repetitivo que se estabelece usual, diz respeito à doutrina filosófica principalmente, sentir.
na natureza humana quando a infe- que não encontra certeza ou verdade
rência causal percorre indutivamente nos fatos, e que, por isso, insiste na IHU On-Line – Quais são os aspectos
o caminho que liga a impressão sen- desse ceticismo mitigado que con-
SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369 15
tinuam a influenciar a filosofia con- (1842–1910); no positivismo de August (1889–1951) em relação à linguagem.
temporânea? Comte11 (1798–1857); no princípio de O resumo dessa semelhança é que
André Luiz Olivier da Silva – Além de verificação empírica do Positivismo ambos afirmam que na natureza hu-
influenciar profundamente a teoria do Lógico do Círculo de Viena, em Rudolf mana haverá sempre um conjunto de
conhecimento de Kant e de cultivar Carnap12 (1891–1970) e Moritz Schlick13 proposições ou crenças que não pode
uma estreita relação com Jean-Jac- (1882–1936); na falácia naturalista de ser colocado em dúvida, tais como as
ques Rousseau (1712–1778) e Adam G. E. Moore14 (1873–1958) e, por fim, crenças básicas da vida comum de um
Smith (1723–1790), o empirismo de na filosofia analítica a partir de Ber- ser humano.
Hume se desdobra, a partir do século trand Russell15 (1872–1970). Sobre o ceticismo de Hume, as lei-
das luzes, no utilitarismo de John Stu- O legado de Hume reside na apli- turas contemporâneas oscilam entre
art Mill (1806–1873); no pragmatismo cação do método experimental e do uma interpretação propriamente cé-
norte-americano de William James10 seu consequente ceticismo mitigado, tica e outra denominada naturalista.
 Jean Jacques Rousseau (1712-1778): filó- que consiste na análise do processo de A interpretação cética tenta mostrar
sofo franco-suíço, escritor, teórico político e formação das crenças naturais a partir que a investigação humeana está fa-
compositor musical autodidata. Uma das figu- de elementos empíricos, e não a par- dada a um subjetivismo irracionalista,
ras marcantes do Iluminismo francês, Rousse-
au é também um precursor do romantismo. As tir da razão. Nesse sentido, o ceticis- segundo o qual nenhum conhecimento
idéias iluministas de Rousseau, Montesquieu e mo de cunho empirista proposto por seria possível. Entre os comentadores
Diderot, que defendiam a igualdade de todos Hume se assemelha muito à postura da obra de Hume que defendem o ce-
perante a lei, a tolerância religiosa e a livre
expressão do pensamento, influenciaram a terapêutica de Ludwig Wittgenstein16 ticismo encontram-se não só os positi-
Revolução Francesa. Contra a sociedade de tionar a existência de Deus, a imortalidade da vistas lógicos do Círculo de Viena, mas
ordens e de privilégios do Antigo Regime, os alma e o livre-arbitrio, ele publicou o livro A também Thomas Reid17, R. Popkin e R.
iluministas sugeriam um governo monárquico vontade de crer e outros ensaios sobre filoso-
ou republicano, constitucional e parlamentar. fia popular (1897). (Nota da IHU On-Line) J. Fogelin. A leitura cética de Hume
(Nota da IHU On-Line) 11 Augusto Comte (1798-1857): filósofo e pen- é a interpretação mais tradicional da
 Adam Smith (1723-1790): considerado o fun- sador social francês. Fundou a escola filosófica sua obra, que considera o seu ceticis-
dador da ciência econômica. A Riqueza das conhecida como positivismo e criou um con-
Nações, sua obra principal, de 1776, lançou ceito de ciência social a que deu o nome de mo em relação à razão o ponto central
as bases para um novo entendimento do me- sociologia. O positivismo comteano afirma que da sua investigação, ceticismo esse
canismo econômico da sociedade, quebrando a verdade da ciência é indiscutível e demons- destrutivo e nem um pouco moderado.
paradigmas com a proposição de um sistema trável universalmente. (Nota da IHU On-Line)
liberal, ao invés do mercantilismo até então 12 Rudolf Carnap (1891-1970): filósofo alemão Quanto à interpretação naturalista,
vigente. Outra faceta de destaque no pensa- que trabalhou na Europa Central antes de 1935 pode-se citar Kemp Smith18, Strawson19
mento de Smith é sua percepção das sofríveis e nos Estados Unidos após esse período. Foi um e J. A. Passmore, que mostram um
condições de trabalho e alienação às quais os dos principais membros do Círculo de Viena e
trabalhadores encontravam-se submetidos com um eminente defensor do positivismo lógico. Hume mais propenso a descrever a in-
o advento da Revolução Industrial. O Instituto (Nota da IHU On-Line) fluência dos princípios da imaginação
Humanitas Unisinos – IHU promoveu em 2005 13 Moritz Schlick (1882-1936): filósofo ale- sobre as crenças do entendimento do
o I Ciclo de Estudos Repensando os Clássi- mão, figura central do positivismo lógico e do
cos da Economia. No segundo encontro deste Círculo de Viena. (Nota da IHU On-Line) que a dar atenção à dúvida cética. A
evento a professora Ana Maria Bianchi, da USP, 14 George Edward Moore (1873-1958): filóso- leitura naturalista, por sua vez, é mais
proferiu a conferência A atualidade do pensa- fo britânico, juntamente com Bertrand Russell
mento de Adam Smith. Sobre o tema, conce- foi co-fundador do movimento analítico em tgenstein, com Luigi Perissinotto, disponível
deu uma entrevista à IHU On-Line nº 133, de filosofia. (Nota da IHU On-Line)
��������� para download emhttp://migre.me/qQYt.
21-03-2005, disponível em http://migre.me/ �� Bertrand Arthur William Russell (1872- Leia, também, a entrevista A religiosidade
xQmm. Ainda sobre Smith, confira a edição 35 1970): matemático, filósofo. Foi ��������������
também um mística em Wittgenstein, concedida por Pau-
do Cadernos IHU Ideias, de 21-07-2005, in- importante politico liberal, ativista e popu- lo Margutti, concedida à revista IHU On-Line
titulada Adam Smith: filósofo e economista, larizador da Filosofia, além de um crítico das 362, de 23-05-2011, disponível em http://bit.
escrita por Ana Maria Bianchi e Antônio Tiago armas nucleares e da guerra estadunidense no ly/lUCopl. ���������
(Nota da IHU On-Line)
Loureiro Araújo dos Santos, disponível para Vietnã. Em 1950, recebeu o Prêmio Nobel de 17 Thomas Reid (1710-1796): filósofo britâni-
download em http://migre.me/xQnc. Smith Literatura, em reconhecimento dos seus varia- co contemporâneo de David Hume, fundador
foi o tópico número I do Ciclo de Estudos em dos e significativos escritos, nos quais apresen- da Escola Escocesa do Senso Comum, e que
EAD – Repensando os Clássicos da Economia – tava ideais humanitários e liberdade de pensa- desempenhou um papel importante no Ilumi-
Edição 2009, estudado de 13-04-2009 a 02-05- mento. (Nota da IHU On-Line) nismo Escocês. (Nota da IHU On-Line)
2009. O Ciclo de Estudos em EAD – Repensan- 16 Ludwig Wittgenstein (1889-1951): �������filóso- 18 Norman Kemp Smith (1872 - 1958): filóso-
do os Clássicos da Economia - Edição 2010, fo austríaco, considerado um dos maiores do fo escocês que lecionava na Universidade de
em seu primeiro módulo, falou sobre Adam século XX, tendo contribuido com diversas Princeton e foi professor de lógica e metafísica
Smith: filósofo e economista. Para conferir a inovações nos campos da lógica, filosofia da na Universidade de Edimburgo. (Nota da IHU
���������
programação do evento, visite http://migre. linguagem, epistemologia, dentre outros cam- On-Line)
me/xQsg. (Nota da IHU On-Line) pos. A maior parte de seus escritos foi publi- 19 Peter Frederick Strawson (1919-2006): fi-
 John Stuart Mill (1806-1873): filósofo e eco- cada postumamente, mas seu primeiro livro lósofo associado com movimento da filosofia
nomista inglês. Um dos pensadores liberais foi publicado em vida: Tractatus Logico-Philo- da linguagem, dentro da filosofia analítica.
mais influentes do século XIX, foi defensor do sophicus, em 1921. Os primeiros trabalhos de Tornou-se conhecido com o seu artigo “On Re-
utilitarismo. (Nota da IHU On-Line) Wittgenstein foram marcados pelas idéias de ferring” (1950), uma crítica a Bertrand Russell
10 William James (1842-1910): teólogo, filó- Arthur Schopenhauer, assim como pelos novos e sua teoria das descrições definidas, além
sofo e psicólogo norte americano. Ao lado de sistemas de lógica idealizados por Bertrand da reconstrução analítica dos argumentos de
Charles Peirce foi um dos fundadores do prag- Russel e Gottllob Frege. Quando o Tractatus Immanuel Kant na Crítica da Razão Pura, e
matismo. Escreveu livros sobre a ciência da foi publicado, influenciou profundamente o pela defesa de uma reabilitação da metafísica
psicologia, religião, misticismo e filosofia do Círculo de Viena e seu positivismo lógico (ou como disciplina filosófica, especialmente no
pragmatismo. Sua primeira obra foi sobre a empirismo lógico). Confira na edição 308 da seu livro Individuals, no qual delineia e forne-
aplicação do funcionalismo à psicologia, intitu- IHU On-Line, de 14-09-2009, a entrevista O ce uma amostra de emprego de seu projeto de
lado Princípios de psicologia (1980). Ao ques- silêncio e a experiência do inefável em Wit- metafísica descritiva. (Nota da IHU On-Line)

16 SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369


recente e surge a partir dos estudos mente nos assuntos morais, quando
de Norman Kemp Smith (1872–1958),
“A vontade não é livre, se aborda a vontade que causa a ação
que introduz uma nova discussão na com base em valorais morais de bem
filosofia de Hume, a partir de um con-
mas determinada e mal, certo e errado, justo e injusto.
ceito positivo da teoria humeana, mais A vontade não é livre, mas determi-
atenta à construção da ciência por
naturalmente, nada naturalmente, condicionada por
meio de um conjunto de crenças natu- sua natureza passional, sem que tal-
rais do que à dúvida cética e à suspen-
condicionada por sua vez a liberdade possa ser atribuída à
são das crenças. O naturalismo desta- ação e à escolha dos valores morais.
ca que a investigação humeana propõe
natureza passional, sem Isso mostra que a vontade e o deter-
uma geografia da natureza humana ao minismo causal estão intimamente en-
descrever o modo pelo qual as crenças
que talvez a liberdade trelaçados na natureza humana, pois
são geradas a partir da regra empiris- ela (a vontade) escolhe o bem e o mal
ta segundo a qual toda ideia deriva de
possa ser atribuída à com vista à utilidade pessoal, que é
uma impressão sensível. Por fim, cabe um critério fortemente vinculado ao
destacar que a investigação humeana
ação e à escolha dos interesse natural de cada indivíduo. A
reverbera nas discussões contempo- vontade é um efeito imediato da dor
râneas sobre a formação das crenças
valores morais” e do prazer, e, quando se observa a
e isso repercute nas ciências empíri- ação dos outros, conclui-se que ela
cas do nosso tempo, ao influenciar as vestigação de Hume, que pretendeu está sempre submetida aos interesses
atuais ciências cognitivas e comporta- aplicar o método experimental da da natureza, tendo em vista que todo
mentais, como, por exemplo, a socio- física ao campo da ação e dos juízos homem reage por meio dos sentimen-
biologia e a neurociência. sobre o certo e o errado. Nesse dia- tos ao prazer e à dor, elaborando uma
pasão, Hume visa inserir nos assuntos concepção sobre o bem e mal usando
IHU On-Line – Quais são os autores morais a conclusão de que a origem como referência aquilo que considera
que influenciam sua concepção de das ideias se dá a partir de impressões naturalmente agradável ou desagradá-
ceticismo? sensíveis por meio de um processo as- vel. Portanto, o método experimental,
André Luiz Olivier da Silva – O prin- sociativo que induzirá o ser humano quando aplicado à moral, constata
cipal objetivo de Hume é “introduzir a formar suas crenças em relação ao que a vontade é, por certo, a causa da
o método experimental de raciocínio mundo, a outras pessoas e também ação; no entanto, é uma causa inabili-
nos assuntos morais”, como estabele- aos valores morais. Hume insere-se, tada a constituir a origem de uma ação
ce o subtítulo do Tratado da natureza então, no debate sobre a origem das completamente livre.
humana (1739–1740). Nesse sentido, ideias a partir de Locke e Berkeley, e
verifica-se o interesse pela contro- também por outros pensadores como Ideia de liberdade
vérsia metodológica entre empirismo Pierre Bayle21, Nicolas Malebranche22, O curioso é que a natureza humana
e racionalismo; mas também se pode Samuel Clarke23 e Francis Hutcheson. acredita cegamente na ideia de liberda-
identificar a aplicação do método em- Mais recentemente, alguns comen- de e tem certeza de que a sua própria
pírico aos questionamentos sobre a tadores de Hume estão a relacionar o ação é livre porque determinada por
moralidade, tais como vontade, ação, seu naturalismo filosófico ao natura- uma vontade livre e não condicionada
juízos de valor, liberdade, entre tantos lismo da antiguidade, como em Pirro, por determinações empíricas. No entan-
outros assuntos polêmicos que envol- Sexto Empírico e Cícero. Há muita to, as consequências do empirismo di-
vem o nosso mais genuíno interesse. semelhança entre Hume e os antigos; zem respeito à relação entre moralida-
Por um lado, fica clara a influência porém, o texto de Hume não enfatiza de e natureza, segundo a qual a mente
de Isaac Newton20 (1743–1727) na in- tanto assim essa relação com os anti- humana é induzida a imaginar um mun-
gos, de modo que não se sabe até que do com liberdade para o agir humano,
20 Isaac Newton (1642-1727): físico, astrôno-
mo e matemático inglês. Revelou como o uni-
ponto ele concordaria com esse tipo mesmo quando o observa a partir de
verso se mantém unido através da sua teoria de leitura da sua obra. uma perspectiva determinista. A mente
da gravitação, descobriu os segredos da luz IHU On-Line – Como vontade e de- é confundida por raciocínios absurdos
e das cores e criou um ramo da matemática,
o cálculo infinitesimal. Essas descobertas fo-
terminismo moral se entrelaçam em e contraditórios, que se misturam às
ram realizadas por Newton em um intervalo Hume? suas próprias paixões, e contrapõe, por
de apenas 18 meses, entre os anos de 1665 e André Luiz Olivier da Silva – As conse- exemplo, o determinismo causal à ideia
1667. É considerado um dos maiores nomes na
história do pensamento humano, por causa da
quências mais relevantes provocadas de liberdade, lançando um problema
sua grande contribuição à matemática, à física pelo método empírico ocorrem justa- que talvez não possa nem mesmo ser re-
e à astronomia. O IHU promoveu de 3 de agos-
to a 16-11-2005 o Ciclo de Estudos Desafios 21 Pierre Bayle (1647-1706): filósofo e escri-
solvido por uma investigação filosófica.
da Física para o Século XXI: uma aventura (Nota da IHU On-Line)
tor francês. ��������� Repare-se que Hume não está propria-
de Copérnico a Einstein. Sobre Newton, em 22 Nicolas Malebranche (1638-1715): filósofo mente dizendo que a vontade é ou não é
específico, o Prof. Dr. Ney Lemke proferiu pa- (Nota da IHU On-Line)
francês. ���������
lestra em 21-09-2005, intitulada A cosmologia 23 Samuel Clarke (1675-1729): filósofo inglês.�
livre para agir (embora tenha fortes indí-
de Newton. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) cios para dizer que não o seja), mas está
SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369 17
mostrando que a justificação da moral se cia da experiência, estando enqua- mos que ambos discordam quanto
caracteriza por disputas verbais históri- drada dentro dos limites desta. Mas às determinações da vontade e os
cas, disputas que são insolúveis, como é isso não significa dizer que a razão motivos que conduzem a vontade a
o caso da investigação sobre a vontade e não possui autonomia e superiori- praticar uma ação considerada boa.
a ação, em se saber se são determinadas dade para guiar não só o processo Hume é um empirista e não concor-
empiricamente ou se são livres. Obser- cognitivo do ser humano, mas, prin- da com a tese das ideias inatas e,
vamos a ação dos outros e não notamos a cipalmente, os julgamentos morais quando observa o fenômeno moral,
liberdade, mas, quando se trata de nos- sobre o certo e o errado. Kant arrola não vê mais do que uma vontade
sa própria ação, tendemos a ter como um argumento racional para justi- determinada pela utilidade do seu
norte da ação a ideia de liberdade. ficar o conhecimento, denominado próprio prazer. Kant, por sua vez,
argumento do tipo transcendental, mostra uma vontade capaz de ela-
IHU On-Line – Qual é o significado e, com isso, não propõe definitiva- borar regras para si mesmo, uma
desses dois conceitos para esse fi- mente a mesma resposta que a de vontade que constitui a causa de sua
lósofo e sob quais aspectos dialoga Hume ao problema do conhecimen- própria ação, e, com isso, torna-se
com Kant? to. Kant parte do fato de que todos livre das determinações empíricas.
André Luiz Olivier da Silva – A in- os seres humanos estão sob a posse Para tanto, recorre aos conceitos
fluência de Hume em Kant é notória do conhecimento e enunciam juí- da razão pura e explica o fenômeno
e admitida pelo próprio Kant, que zos de toda ordem, sobre o mundo, moral a partir do imperativo cate-
afirma ter sido despertado do sono os valores morais de justo e injus- górico, ao prescrever a conduta dos
dogmático da razão justamente por to, etc. É preciso legitimar a posse seres humanos a fim de garantir a
causa da filosofia de Hume. Kant visa deste conhecimento e encontrar as sua própria liberdade. Hume, creio
apresentar uma solução ao problema condições a priori do conhecimento, eu, não concordaria com o compa-
do ceticismo empírico e, para tanto, isto é, as condições que possibilitam tibilismo entre determinismo causal
reconhece, a partir da metodologia a experiência. Assim, ao indagar as e liberdade, como o que se observa
empirista de Hume, os limites da ra- condições necessárias de possibilida- na razão prática de Kant. Se estiver-
zão pura, os seus limites empíricos, de das representações mentais sobre mos naturalmente determinados a
determinados pelo interesse natural a experiência, Kant fornece uma res- agir de um determinado modo, diria
de cada ser humano. Kant aceita que posta racionalista ao conhecimento, Hume, é porque não somos livres, de
a “coisa em si” permaneça incognos- justificando-o a partir de intuições e sorte que não resta à investigação
cível, mas pretende mostrar que a conceitos anteriores a toda e qual- filosófica outra alternativa a não ser
realidade objetiva pode ser conhe- quer experiência possível. observar a maneira como os seres
cida mediante uma investigação do Razão pura humanos reagem ao fenômeno moral
“fenômeno”. Dessa maneira, a ra- No que tange à moralidade, se por meio dos seus sentimentos.
zão, para Kant, sofre forte influên- compararmos Hume e Kant, vere-

Ciclo de Estudos: Perspectivas do Humano

Data de início: 16/08/2011


Data de término: 25/09/2011
Informações em http://migre.me/5uPKG

18 SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369


Outros critérios: os 300 anos de David Hume
Investigar é um processo destrutivo, e na filosofia humeana a destrutividade é um imperativo
moral, pontua César Kiraly. Ceticismo sobre o conhecimento não exclui o ceticismo sobre valo-
res, e Hegel poderia ter se dado conta disso

Por Márcia Junges

“A
narrativa humeana, aquela que nasce da decantação do discurso de Hume, se interessa
pelas coisas comuns, mas sob olhares de esteta”. A declaração faz parte da entrevista a
seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line por César Kiraly. Ele menciona “os abismos
deixados por Hume”, ou as “gramáticas do abismo, como as teorias da projeção elabo-
radas por Nelson Goodman ou David Lewis, para lidar com o paradoxo da crença causal”.
A respeito do ceticismo, acentua que possa haver um “gosto cético pela destruição”. E complementa: “Não é
difícil compreender que os céticos são causadores de problemas. A atividade filosófica proposta por Hume é
destrutiva, porque parte de uma concepção construtiva do pensamento”. Segundo Kiraly, “uma investigação
é uma atividade destrutiva, muito embora demande certo cuidado para não fazer perder fragmentos, mas
que não impede que a história das nossas representações políticas e filosóficas não seja percebida enquanto
acrescentadora de novos elementos”. A destrutividade nesse pensador faz as vezes de “um imperativo moral
de desconstrução de sistemas de pensamento e paisagens de crenças”.
César Kiraly é graduado em Direito pela Universidade Cândido Mendes – UCAM, e em Filosofia pela Universi-
dade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, onde cursou mestrado em Filosofia. É mestre e doutor em Ciência Po-
lítica pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ-Tec com a dissertação Conhecimento e
moralidade em David Hume. Autor de Os limites da representação: um ensaio desde a filosofia de David Hume
(São Paulo: Giz Editorial, 2010), leciona na Universidade Federal Fluminense – UFF. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a atualidade do ce o mesmo. As cosmologias muito se vida diferente da nossa, ela é identi-
pensamento de Hume? alteram. Não temos como saber da camente compartilhada por aqueles
César Kiraly – De alguma forma existe pressão sobre Pirro ou Sócrates pelo que veem na experiência os veios de
algo na preocupação com o cotidiano carregamento das suas respectivas. A sua construção. A narrativa humeana,
que não se altera. Talvez seja o caso ordinariedade da vida cotidiana, tam- aquela que nasce da decantação do
de dizer que existe algo no cotidia- bém, muito se altera. Hume não paga- discurso de Hume, se interessa pelas
no que se altera muito pouco com o va suas contas como Sócrates, e não coisas comuns, mas sob olhares de
passar dos séculos. Algo que faz com o fazia como fazemos etc. Assim, há esteta. Atitude que sempre se opõe à
que as vidas de Pirro, de Sócrates, uma atualidade muito forte em Hume. abstrusidade filosófica, ou a sisudez de
de Hume etc., sob certa observação, E atualidade é um termo muito mais Estado.
sejam muito parecidas, não no modo acertado do que contemporaneidade. Existe, também, em Hume, uma
pelo qual viram o mundo, mas a par- Aquela exercida pela narrativa das atualidade guardada aos grandes es-
tir do qual o fizeram. Mas há também impressões, das crenças e das institui- critores. Sobretudo, aos grandes es-
algo que muito se altera. Na verdade, ções, mas tomando-as pela construção critores, que, por terem começado a
muitas coisas se alteram. Mas o coti- presente em seus veios, ou, até mes- escrever muito cedo, permitem-nos
diano da natureza humana permane- mo, no efeito causado pelo discurso seguir a sua juventude até os seus der-
 Pirro (318-272 a.C.): rei do Épiro e da Mace- religioso nesses veios. Se existe um radeiros textos. A obra de Hume é atu-
dônia, tendo ficado famoso por ter sido um dos encantamento cotidiano, ele se deve al, porque como grande escritor que é,
principais opositores a Roma. Ele era filho de
Eácida do Épiro, e pai de Alexandre II do Épiro. mais ao susto e quase nada à reve- esconde-se na maneira de mostrar os
(Nota da IHU On-Line) lação, a não ser o susto da presença problemas, e, por mais clara que sua
 Sócrates (469-399): filósofo ateniense, um de uma coisa tal chamada revelação. prosa vá se tornando, ela não é clara
dos mais importantes ícones da tradição filo-
sófica ocidental, e um dos fundadores da atual Dessa forma, ainda que fale de uma a despeito de sua beleza, e, por isso,
Filosofia Ocidental. (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369 19


o gosto pode se aprofundar indefinida-
mente nela. Além do que, enquanto
“Hegel poderia ter visto afetada. A instituição pelo discurso,
depois de Hume, precisa fazer muito
houver disposição, seus conceitos po-
dem ser interpretados. Isso sem falar
que o ceticismo sobre o mais para se inscrever.

nos abismos deixados por Hume, que


seus leitores não puderam resolver, e
conhecimento não exclui Destrutividade humeana
Mas se deve perceber que nem
que precisamos elaborar argumentos
de contorno, ou gramáticas do abis-
o ceticismo sobre Hume é apenas cético, nem o ceticis-
mo pode ser percebido de um modo
mo, como as teorias da projeção ela-
boradas por Nelson Goodman ou David
valores” linear. Se atentarmos bem, Hume tem
um corpo filosófico diphônico, mas não
Lewis, para lidar com o paradoxo da poliphônico, como no canto diaphôni-
crença causal. mesmo cria boa parte da condição da co dos mongóis; falam por ele um cé-
possibilidade da assertiva, do pertenci- tico, um epicurista, um estoico, um
Contorno impossível mento de todo conhecimento à nature- socrático, um platônico etc. Na poli-
Por causa das atualidades aborda- za humana, faz com que a interrogação phonia existe a necessidade de muitos
das, Hume é especialmente relevante sobre a dimensão estrutural, formal instrumentos com trajetória própria
para o que se pensa na teoria das ciên- e elementar consista numa atividade preservados em suas especificidades,
cias humanas de nossos dias, para mais eminentemente filosófica, sem possibi- mas na diphonia todos os instrumen-
já não bastasse ter, relativamente so- lidade de contorno. tos são tocados por uma única fonte
zinho, invertido a relação de subservi- e todos perdem as suas características
ência das ciências do homem com rela- IHU On-Line – O ceticismo é destru- de origem. No canto diphônico mon-
ção às outras. Por certo que lemos um tivo? gol, a garganta humana faz um ruído
Hume hoje que não foi lido nos séculos César Kiraly – Talvez haja um gosto que não é convencional e o instrumen-
precedentes, mas de um modo diferen- cético pela destruição. Não é difícil to, como o Igil é tocado incitando a
te à inexorável originalidade concer- compreender que os céticos são cau- anomalia vocal; o mesmo acontece
nente à passagem do tempo sobre os sadores de problemas. A atividade fi- com Hume, pois, ainda que seja um
cânones, e sim porque a ciência expe- losófica proposta por Hume é destru- grande historiador da filosofia, ele faz
rimental da natureza humana permite tiva, porque parte de uma concepção com que os autores não sejam vistos
o desvio a muitos excessos dogmáticos construtiva do pensamento. Hume, em suas particularidades, mas como
cometidos nos séculos XIX e XX, como a num certo sentido, é um elementa- incitadores da voz filosófica que pre-
morte do sujeito e outras mortes. Pare- rista construtivo; vê o pensamento e tende instituir. Perceba-se que Hume
ce que Hegel, o estruturalismo e suas a experiência em termos de crenças, não é diaphônico em sua enunciação,
formas posteriores cansaram o vínculo ideias e impressões. De modo que im- ainda que esteja imerso nela como
das ciências humanas com a filosofia. pressões formam ideias, que formam todo cético moderno, porque não é
Isso pode ser percebido na necessida- impressões, que formam crenças; e muito respeitoso com as propriedades
de de rígidas disciplinas para renovar ainda que as ideias e as impressões dos discursos exógenos ao seu, nem
as ciências humanas e para servirem possam ter os seus sentidos alterados para interpretá-los, nem para recusá-
de fiel nos embates entre os discursos. nas crenças, elas, como num sítio ar- los em função da perturbação que por
A linguística exerceu esse papel entre queológico, permanecem formalmen- ventura provoquem. A diaphonia é um
os franceses, a atividade metateórica, te preservadas. Assim, uma investiga- ambiente propício para o surgimento
atentando para o oximoro, entre os ção é uma atividade destrutiva, muito da atonalidade, mas Hume compõe
anglo-americanos e a teoria da comu- embora demande certo cuidado para nela esse excesso de harmonia. Toda-
nicação entre os de expressão alemã. não fazer perder fragmentos, mas que via, há vozes que Hume diretamente
Hume, com a simples enunciação, e ele não impede que a história das nossas não tenta tocar. Nele pode falar um
representações políticas e filosóficas cartesiano, mas não fala um escolásti-
 Deve-se uma nota às iniciativas de congres- não seja percebida enquanto acres- co. Assim, melhor do que ver em Hume
sos para o estudo da obra de Hume, no Bra- centadora de novos elementos. A his-
sil, seja pelo Encontro Hume, de estudantes um cético, é melhor vê-lo como partí-
de pós-graduação, ou pelo Colóquio Hume, de tória da filosofia, de modo humeano, cipe diphônico da diaphonia do ceti-
pesquisadores seniores. Além disso, devemos pode ser lida como a história dos siste- cismo moderno e sua descritividade.
mencionar o Grupo Hume da UFMG, liderado mas de crenças. Agora, os sistemas re-
por Lívia Guimarães, representante da Hume Historiograficamente, podemos
Society no Brasil. No Rio de Janeiro, cabe ligiosos, ou filosoficamente absolutos, dizer que Hume descreve diphonica-
menção ao Laboratório de Estudos Humeanos sofrem muito com a parcela cética do mente a diaphonia moderna, tal como
da UFF, coordenado por mim e pelo professor pensamento de Hume. Pois desmontar
Renato Lessa. Algumas revistas acadêmicas Montaigne e Pierre Bayle antes dele,
veiculam trabalhos sobre Hume ou a partir de um sistema é também neutralizar o
Hume, como a Revista Sképsis e a Revista Es- efeito retórico de todas as suas peças  Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592):
tudos Humeanos. (Nota do entevistado) funcionando conjuntamente. Aquela escritor e ensaísta francês, considerado por
 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831): muitos como o inventor do ensaio pessoal.
filósofo alemão. Recebeu sua formação no Tü- sensação de evidência ocasionada pela (Nota da IHU On-Line)
binger Stift (seminário da Igreja Protestante enunciação dogmática resta bastante  Pierre Bayle (1647-1706): filósofo e um es-
em Württemberg). (Nota da IHU On-Line) critor francês. (Nota da IHU On-Line)

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mas com ela faz algo de improvável: será combatido. Esse procedimento Hegel tem uma concepção parcial do
acrescenta à paisagem de crenças não é muito diferente do dogmáti- ceticismo, porque não pode fazê-lo de
de Montaigne e ao retrato de cren- co pintado e combatido pelo cético. modo mais interessante. Ainda que sem
ças de Bayle a descrição da crença Diga-se, de passagem, que é uma for- a sensibilidade historiográfica e capa-
como entidade abstrata compositiva ma de proceder muito mais elegante cidade de pintura de personagem de
de paisagens e retratos. Se pudésse- do que a contraposição oportunista, Hegel, o exercício do ceticismo sobre
mos utilizar um conceito estranho às e de mão única, entre racionalistas e valores está associado a certo mal-es-
circunstâncias de Hume, diríamos que irracionalistas. Pois sempre se é o irra- tar com a filosofia universitária, com a
ele descobre a dimensão concreta do cionalista de alguém. Mas para se ser centralidade do tema da crença ou da
pensamento como imagem. Dessa for- o cético ou o dogmático de alguém, vontade e com a prática estilística da
ma, a destrutividade em Hume fun- algum componente dramatúrgico deve inovação formal da escritura seja pelo
ciona como um imperativo moral de ser apresentado pelos enunciados da ensaio, pelo aforismo ou pelo diário.
desconstrução de sistemas de pensa- filosofia examinada que permite a en- Não seria irônico notar que a estrutura
mento e paisagens de crenças, uma trevisão da predominância em um dos da obra de Hume é a mesma que a de
vez que expô-las a esse exercício de dois personagens. Num caso há uma Schopenhauer: um grande tratado or-
imaginação artística, faz-nos esta- classificação de inimigo, injusta, pois bitado por ensaios que lhe definem o
belecer critérios de conservação ou arbitrária; do outro lado, há apenas sentido e dissertações que explicitam
abandono de ideias. um efeito de superfície discursivo, pontos. Assim, a imagem do cético de
levado a cabo por vícios presentes no Hegel é pior do que poderia ser, por-
IHU On-Line – O ceticismo é superado conflito entre as filosofias. Mas vejo que Hegel não foi um historiador tão
por Kant? um problema em historiograficamente bom quanto poderia ser. Pois, de algu-
César Kiraly – Acredito que Hegel é o se limitar a imaginação do persona- ma forma, o ceticismo sobre valores,
responsável pelo estabelecimento de gem “o cético”, como é presente no já está na linhagem fundamental do
uma relação de superador e superado fetichismo de sua superação. Acredito ceticismo moderno.
entre Hume e Kant, ainda que Kant que o procedimento de Hegel deve ser Hegel poderia ter visto que o ceti-
se esforce para resolver problemas aprofundado, deve se fazer como ele, cismo sobre o conhecimento não ex-
colocados por Hume. Mas, apesar da e não o que ele fez, até mesmo um cé- clui o ceticismo sobre valores, se não
relevância de Hume para Kant, os dois tico pode ganhar muito imaginando e encarnasse de modo tão excessivo a
habitam em continentes de ideias bem enfrentando o seu próprio cético, sem filosofia universitária, e que um fler-
diferentes. Kant se preocupa com nor- falar dos seus já tradicionais dogmá- ta com o outro. Por isso, superar uma
mas, um problema que é rapidamen- ticos. tese cética sobre o conhecimento não
te destruído por Hume. Uma vez que ultrapassa a possibilidade valorativa
Hume se preocupa com a relação entre Cauterização de dogmas dessa mesma tese. O ceticismo sobre
crenças e regras, a norma surge como Antes de tudo, cabe dizer que o o conhecimento não é capaz de cau-
uma crença demasiadamente arrogan- cético visto por Hegel é simplesmen- terizar um enunciado desmontado,
te, que procura algum privilégio públi- te cético sobre o conhecimento, ig- mas apenas abrir a oportunidade para
co pelo seu ponto de enunciação, que norando, portanto, o ceticismo sobre o ceticismo sobre valores fazer o tra-
prevalecerá pela coerência regular e valores que lhe era contemporâneo. balho. Isso pode ser visto no trabalho
não pela vontade normativa. Mas isso Assim, a imagem de um cético que se que Hume empreende de cauterização
não significa que Kant não tenha supe- opõe a enunciados sobre conhecimen- dos dogmas religiosos naquilo que é
rado o seu cético imaginativo. Il faut to, auxiliando o dogmático a realizar aberto com a sua crítica do conheci-
tuer son mandarin imaginaire. Mas tal a descoberta de fundamentos, é bem mento. Além disso, Hegel poderia ser
superação tem pouca relevância para menor do que poderia ser. Poderia nos visto, no que concerne a caracteriza-
os problemas que preocupam Hume. ser objetado que o ceticismo sobre ção do cético, que um cético pode ser
Por exemplo, a descrição da experi- valores, como aparecerá em Kierkega- apenas perspectivo, seja de um modo
ência pela relação entre impressões e ard ou Schopenhauer, não vale como amplo ou parcial, de maneira tal que
ideias, como percebe Husserl, parece ceticismo, pois não se relaciona com a uma tese pareça cética com relação à
ser a origem, pelo menos indireta, da linhagem de Montaigne, Bayle e Hume. outra, mas que não o seja de nenhuma
problemática do transcendental, mas Mas, se apelarmos para uma descrição forma. Ou que o cético pode ter, como
o uso não elementar dessa ideia, como das condições da ideia, diríamos que dissemos, uma estrutura retórica de
o faz Kant, surgiria em Hume no cam-  Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855): fi- amigo e inimigo. Ou, ainda, que este-
lósofo e teólogo dinamarquês. Kierkegaard
po das ideias a serem desmontadas. criticava fortemente quer o hegelianismo do jamos diante de um cético, cuja iden-
Mas não vejo com maus olhos o pro- seu tempo quer o que ele via como as formali- tidade cética é relevante para seus
cesso iniciado por Hegel, desde 1802, dades vazias da Igreja da Dinamarca. (Nota da argumentos, seja em primeira ordem,
IHU On-Line)
com o texto A relação do ceticismo com  Arthur Schopenhauer (1788-1860): filósofo como em Pirro, que não é outra coisa
a filosofia, e que já possuía elementos alemão do século XIX. Seu pensamento é ca- que não um cético, ou em segunda or-
em muitos pensadores como Grotius racterizado por não se encaixar em nenhum dem, na qual ser cético significa mui-
dos grandes sistemas de sua época. (Nota da
e Descartes, de pintar um cético que IHU On-Line) tas coisas, inclusive, ceticismo.

SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369 21


IHU On-Line – E a forma suicidária do volvido nos momentos humeanos da
pensamento?
“Na verdade, Hume tira obra de Durkheim10, não leva a um
César Kiraly – Um dos traços funda- pensamento suicida, mas suicidário.
cionais do ceticismo moderno é a to-
o suicídio do âmbito das Porque a investigação das causas do
lerância religiosa. A releitura da es- tratamento ignonimioso ao suicida
critura de Sexto Empírico serviu de
noções, e dos estrangula o dogma e libera a dig-
epistemologia para a admissibilidade nidade do suicídio para aparecer.
da pluralidade de religiões, tal como
preconceitos, e o Esse modo de pensar, suicidário, é
de sistemas filosóficos. Bastante natu- iniciado pensando o suicídio, mas se
ral foi que os céticos organizassem a
transfigura num torna em modo abstrato e serve para
sua identidade filosófica em torno de outros dogmas. Se o dogma tornou o
reflexões de província religiosa, tais
conceito. Assim, suicídio na questão, o ceticismo fez
com o cotidiano, a morte, a sexuali- da questão um conceito, um modo
dade e o suicídio. De uma forma bem
existe uma dupla de pensar que leva ao suicídio do
drástica, eu gostaria de dizer que o dogma.
ponto de inflexão do cético moderno
dimensão complementar
é a preocupação com o suicídio, ou, Ceticismo, política e linhagem anô-
até mesmo, com a boa morte. Desse
no suicídio, o seu mala
centro, podemos deduzir a relevância Acredito que podemos continuar
do pensamento político cético.
aspecto solitário e o com o suicídio para explicar o modo
A posição histórica e religiosa com anômalo pelo qual o ceticismo, junto
relação ao suicídio pode ser resumi-
político” com outros pensadores, pensa a polí-
da na expressão de Montesquieu: tica. Digamos que o suicídio pode ser
“As leis na Europa são furiosas contra crenças públicas. E o suicídio solitá- pensado de duas formas: de modo
aqueles que matam a si mesmos. Elas rio, que não tenha na sua justificati- soberano ou de maneira anômala. A
fazem com que morram uma segun- va um enunciado explicitamente li- maneira soberana se preocupa com
da vez; eles são tratados com indig- gado à soberania ou ao parlamento, as possíveis implicações de descum-
nidade pelas ruas, nós os marcamos também é bastante político em seus primento hierárquico da ação sobre
de infâmia, confiscamos seus bens”. efeitos, uma vez que institui uma a vida, ou, até mesmo, da simples
É contra esse ambiente que escreve percepção bastante cruel sobre um reflexão sobre a matéria. Nessa cha-
Hume. Mas mesmo ele teve receio de estado de coisas. Tanto na esfera so- ve o suicídio pode significar descum-
escrever sobre a matéria, como pode litária, quanto na política, Hume não primento das obrigações com Deus,
ser percebido na sua hesitação para defende que se pratique o suicídio; com a Instituição, o uso indevido de
publicar o ensaio sobre o suicídio. ele não é um pensador suicida, mas uma propriedade – aquela sobre a
Deve-se notar que o suicídio abriga faz perceber que a dinâmica interna própria vida – etc. O modo anômalo
em si um sem número de questões: não é condenável. Um suicida não tentará explicar sem recorrer exces-
(1) o problema da pluralidade, (2) o é condenável por ser suicida. Ele é sivamente às hierarquias, mas sim às
problema da tolerância, (3) o proble- reprovável quando violento com al- circunstâncias. Sem o mandamento
ma da laicidade, (4) o problema da guém se valendo do suicídio. Além essencial da hierarquia, restou ao
dignidade e (5) o problema da puni- disso, se vinculado a moralidade da cético indagar sobre as condições do
ção. Ou seja, o suicídio é um carre- boa morte (e isso não inclui a mor- suicídio, das pessoas e das ideias, e
four político. te dos outros), ele pode ser tomado o que sobre ele se fala, comparando,
Mas Hume faz mais do que es- como um ato virtuoso. Não só não portanto, a experiência cotidiana da
crever um ensaio sobre o suicídio: há o que se condenar no suicídio, presença do suicídio, seja como no-
ele aborda a vida política utilizando quanto nele existem elementos com tícia do feito ou manifestações de
este conceito diphônico. Na verda- os quais se deve aprender. Dessa horror, com a narrativa soberana.
de, Hume tira o suicídio do âmbito forma, nota-se que o suicídio não é O cético não supera o mandamento
das noções, e dos preconceitos, e bem um ato, mas uma circunstância. soberano, mas o destrói por redução
o transfigura num conceito. Assim, Nada mais cético do que isso. O sui- aos seus elementos compositivos.
existe uma dupla dimensão comple- cídio é algo que leva ao suicídio. Ele Se a soberania pode abandonar, por
mentar no suicídio: os seus aspectos é a saída digna a uma situação de es- oportunismo, a sua narrativa sobre o
solitário e político. O suicídio políti- trangulamento. Mas é inegavelmente horror do suicídio, isso não significa
co nasce de uma solidão acerca das um problema. Mas o que Hume nos 10 Émile Durkheim (1858-1917): considerado
leva a perceber é que o aprendiza- um dos pais da sociologia moderna. Durkheim
 Charles de Montesquieu (1689-1755): polí- do com o suicídio, algo que é desen- foi o fundador da escola francesa de sociolo-
tico, filósofo e escritor francês. Ficou famoso gia, posterior a Marx, que combinava a pes-
pela sua Teoria da Separação dos Poderes, atu- quisa empírica com a teoria sociológica. É am-
almente consagrada em muitas das modernas plamente reconhecido como um dos melhores
constituições internacionais. (Nota da IHU On- teóricos do conceito da coesão social. (Nota
Line) da IHU On-Line)

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superação da condição cética, mas
reconhecimento, puro e simples, de
um argumento que a derrotou.
Esse modo anômalo de pensar
problemas políticos pode ser muito
limpidamente coerente, mas a sua O problema da indução e suas
construção, por assim dizer, o seu
modo de ver, é construído com mui-
ta dificuldade, porque a linhagem
incursões devastadoras
anômala se constitui pelo acidente
e não pela substância. Existe mui-
Segunda metade da terceira Crítica de Kant busca reconstruir
to pouca afinidade metafísica entre algo seguro sobre os escombros deixados pelo ceticismo hume-
Maquiavel, Spinoza e Hume, mas o ano, adverte Eduardo Barra. Legado filosófico desse pensador
reconhecimento que o componente
cotidiano é prioritário à política os
continua atual, mas foi mal apropriado por Richard Dawkins em
faz complementares, mas de modo seu Deus, um delírio
fortuito, na percepção da cruelda-
de. Por essa razão justifica-se o uso
Por Márcia Junges
da expressão “linhagem anômala
do pensamento político”, pois são

P
bem poucos os pensadores que se
ara o filósofo Eduardo Barra, é compreensível que Hume seja, ain-
reconhecem de modo direto e que
pensam no contrapé da hierarquia. da em nossos dias, “lembrado pelas suas incursões devastadoras no
Hume, com a descrição de crenças assim chamado ‘problema da indução’”. Ele explica: “As dúvidas
políticas, seja de modo abstrato, ou, que Hume levantou sobre o alcance dos nossos raciocínios induti-
como na História da Inglaterra, pela vos conflitam com as convicções de certos cientistas que extem-
história das representações, não ini- poraneamente ainda se fiam nos cânones do chamado ‘método científico’,
cia a anomalia, mas a desenvolve e acreditando, por exemplo, que suas teorias preferidas sejam ou possam ser
a aperfeiçoa. Essa linhagem, como provadas pela experiência”. Barra fala, também, sobre a ideia de religião
dissemos, inicia-se com Maquiavel e natural humeana: “O interesse renovado pela religião natural naquela altura
com a percepção de que a política do século XVIII respondia, então, a uma motivação surgida do sucesso obtido
descreve a crueldade como prática com a aplicação dos novos métodos de investigação do mundo material e de
cotidiana e a crueldade no discurso
descoberta de suas leis e princípios. Entre esses métodos, destacava-se a
soberano, em Maquiavel representa-
assim chamada ‘filosofia experimental’. Hume fora um dos que se entusias-
do pelo cristianismo, como modo de
encobrimento para aprofundamento maram imoderadamente com as promessas desse método, tanto que colocara
do vício. Montaigne e La Boétie exer- como subtítulo da sua obra de juventude, o Tratado sobre a natureza humana
citam o mesmo modo de ver, mas (1739), o sugestivo subtítulo: “uma tentativa de introduzir o método expe-
atrelam a falta de inteligibilidade rimental nos assuntos morais”. Barra, comenta, ainda, o fato de Dawkins se
à servidão, pelo menos a percepção remeter a Hume como autoridade filosófica para “um certo evolucionismo
imediata do discurso hierárquico não apenas não criacionista, mas sobretudo anticriacionista”. Em sua opi-
na vida pública. Spinoza, por outro nião, “qualquer ‘cisma’ entre religião e ciência ou entre fé e crença (isto é,
lado, atrela a liberdade à percepção conhecimento) tem, portanto, um caráter estrutural e insuperável. Essa me
da crueldade – não ver como políti- parece ser uma lição importante a ser apreendida da leitura das filosofia de
co, mas ver os políticos – e Hume, Hume e de Kant. Repito que ela poderia valer como corretivo para os dois
no ensaio Que a política pode ser
lados do debate criacionismo versus darwinismo”.
reduzida numa ciência, utilizando
Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF,
redução no sentido nominalista de
imagem elementar, atrela a liber- é mestre e doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo – USP com a
dade política ao modo de conhecer tese De Newton a Kant: a metafísica e o método da ciência da natureza. É
que exercita o estabelecimento de pós-doutor pela Recherches Epistémologiques et Historiques sur les Sciences
princípios a partir da descrição das Exactes et sur les Institutions Scientifiques – REHSEIS, na França. Atualmente,
circunstâncias. Pode-se dizer que a leciona na Universidade Federal do Paraná – UFPR. Confira a entrevista.
linhagem anômala faz uma filosofia
ontologicamente democrática da
política.

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IHU On-Line – Em que aspectos a que imediatamente constamos
filosofia de Hume continua sendo
“Tudo o que fizemos foi nesses mesmos alimentos, quando
relevante para a discussão da ciência empregamos os nossos sentidos:
em nosso século?
deslocar a base sólida cor, textura, consistência, odor etc.
Eduardo Barra – Creio que há muitos Digamos que essa qualidade nutritiva é
aspectos nos quais a filosofia de Hume
do nosso conhecimento, uma estranha no ninho, isto é, nenhum
permanece de grande relevância para dos nossos sentidos pode nos fornecer
ainda hoje compreender a ciência.
que passou dos aspectos o mesmo vestígio do que quer que seja
Sou daqueles que pensam que Willard a respeito delas. A rigor, nada podemos
Quine, filósofo norte-americano
macroscópicos (cor, odor, mesmo saber a respeito delas.
que faleceu em 2000 e que talvez Ora, é natural que as pessoas se
tenha sido o mais influente filósofo
sabor etc.) para os perguntem se esse tipo de dúvida
da sua geração, estava totalmente continua válida ainda hoje, quando
correto quando disse que “a condição
aspectos microscópios tanto progresso se fez no conhecimento
humeana é a condição humana”. da estrutura atômica e subatômica
Isso quer dizer que há problemas
(proteínas, aminoácidos, da matéria, sobretudo das diversas
nos quais Hume tocou – e o fez com possibilidades de traduzir as supostas
tamanha propriedade e discernimento
sais minerais etc.) qualidades nutritivas dos alimentos
– que, se não ocorrer uma improvável em termos de proteínas, aminoácidos,
alteração estrutural do nosso modo
das coisas” sais minerais etc. e das diversas
de ser no mundo ou daquilo que maneiras como as suas estruturas
sejam ou possam ser provadas pela
alguns preferem chamar de natureza moleculares podem ser fragmentadas
experiência.
humana, tampouco aqueles problemas e combinadas.
se alterarão substantivamente. Embora seja compreensível essa
IHU On-Line – Em que consistia a
Vejamos um exemplo extraordinário desconfiança sobre a atualidade das
crítica de Hume ao conceito de
disso que estou dizendo. É dúvidas humeanas, ela não resiste a
causalidade?
compreensível que ainda hoje Hume um exame mais atento. Tudo o que
Eduardo Barra – O problema da
seja lembrado pelas suas incursões podemos dizer é que empurramos
indução, da maneira como Hume
devastadoras no assim chamado o problema para frente, isto é, o
o formulou e discutiu, surge em
“problema da indução”. A meu ver, é remetemos a um domínio de estruturas
meio a outro problema talvez ainda
mesmo muito acertado chamar esse invisíveis e, portanto, inobserváveis,
mais abrangente, que denominamos
problema de “problema de Hume”, mas que de modo algum podem
justamente de problema da causalidade.
conforme fez Karl Popper, um filósofo responder a exatamente aquilo que
Não seria difícil mostrar o nexo entre
austríaco, radicado na Inglaterra, que se espera do suposto conhecimento
os dois problemas se começarmos
morreu em 1994 e que talvez tenha das essências das coisas. Tudo o que
notando que o primeiro inclui uma
sido quem mais se interessou por essa fizemos foi deslocar a base sólida
severa restrição à nossa pretensão
questão desde Hume. do nosso conhecimento, que passou
de conhecer a essência das coisas.
O problema consiste em avaliar em dos aspectos macroscópicos (cor,
Normalmente, queremos conhecer a
que medida a experiência pode ter odor, sabor etc.) para os aspectos
essência ou a natureza das coisas com
um papel na justificação das nossas microscópios (proteínas, aminoácidos,
a intenção de assim poder saber de
crenças sobre o mundo, sobretudo sais minerais etc.) das coisas.
antemão com razoável certeza o modo
daquelas que elaboramos na forma Todavia, por mais sólida que seja
como as coisas serão ou se comportarão
de leis naturais ou de generalizações essa base – uma solidez que resulta da
amanhã, depois de amanhã e sempre.
probabilísticas. As dúvidas que Hume qualidade da nossa experiência –, nada
Por exemplo, supomos que com o que
levantou sobre o alcance dos nossos ela pode nos informar sobre a eficácia que
conhecemos sobre a natureza de certos
raciocínios indutivos conflitam com invariavelmente associamos a qualquer
alimentos podemos antecipar o seu
as convicções de certos cientistas conjunto daqueles aspectos macro ou
comportamento no nosso organismo,
que extemporaneamente ainda microscópios das coisas. Que um certo
que produzirão, por exemplo, aquela
se fiam nos cânones do chamado complexo de proteínas, aminoácidos,
agradável sensação de saciedade. Isso
“método científico”, acreditando, por sais minerais etc. possua, além de
nos faz atribuir ao pão, por exemplo,
exemplo, que suas teorias preferidas todas as suas conhecidas propriedades
 Willard Van Orman Quine (1908-2000): um uma determinada qualidade nutritiva
químicas, a propriedade de proporcionar
dos mais influentes filósofos e lógicos norte- ou algo do gênero.
americanos do século XX, considerado o maior
aquilo que normalmente atribuímos
O que Hume notou nesse modo
filósofo analítico da segunda metade deste sé- a uma boa alimentação: saciedade,
culo. (Nota da IHU On-Line) de pensar é que a qualidade que
saúde e bem-estar, eis algo que jamais
 Karl Popper (1902-1994): filósofo austríaco- assim anexamos aos alimentos nada
britânico. Destacou-se como filósofo social e
poderemos saber com a certeza que
se assemelha ou não pertence à
político e defensor da democracia liberal. comumente pretendemos ter. Nossa
(Nota da IHU On-Line) mesma família das demais qualidades

24 SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369


certeza vem apenas da experiência, a época de Hume era explicar a natureza preocupação de Hume com respeito à
experiência de verificar que a ingestão da força gravitacional. A teoria da causalidade foi justamente esclarecer
de alimentos dotados de determinadas gravitação universal, a invenção genial as condições de sua inteligibilidade para
propriedades ditas nutricionais é do físico, matemático e filósofo britânico nós – aquilo que ele considerou como
frequentemente acompanhada de certos Isaac Newton (1643-1727), apesar de sendo a investigação sobre a origem da
comportamentos visíveis nos organismos explicar e resolver um grande número de ideia de conexão necessária.
que os ingere. Fora dessa experiência, problemas de extrema complexidade,
nada conhecemos sobre a relação que deixara esta questão em aberto: qual a IHU On-Line – Quais foram as
os alimentos mantêm com os estados causa da gravidade que faz os corpos se constatações mais importantes
dos organismos – uma relação que, como atraírem a distâncias gigantescas como desse filósofo no que diz respeito à
todos sabem, chamamos de relação de aquela que separa a Terra do Sol? De “religião natural”?
causa e efeito. nada adiantaram os esforços do próprio Eduardo Barra – Hume escreveu um dos
Newton e de seus primeiros discípulos mais influentes e polêmicos tratados
IHU On-Line – O que essa concepção para dissuadir os seus críticos da sobre a religião natural: o provocativo
altera na compreensão da ciência urgência de responder a essa pergunta. Diálogos sobre a Religião Natural. Ele
moderna? Ela foi certamente a principal dificuldade começou a escrevê-lo por volta de 1750,
Eduardo Barra – Infelizmente, as ideias enfrentada pela teoria newtoniana logo mas jamais o publicou. Os Diálogos foram
de Hume não tiveram grande repercussão após a sua publicação, em 1687. publicados postumamente em 1776. Mas
na sua época. Demorou mais de um século Não creio que seja uma distorção esse não foi o único tratado que Hume
para que surgisse uma nova reflexão flagrante encarar a teoria da escreveu sobre a religião nem as únicas
sistemática sobre a ciência – a filosofia causalidade desenvolvida por Hume incursões críticas que fez nos temas da
da ciência, conforme a conhecemos hoje como uma resposta ao problema no religião (Deus, milagres, providência
– para que suas ideias fossem novamente qual se enrendaram os newtonianos. A etc.). Os escritos anteriores aos Diálogos
recuperadas. No início dos anos 1920, o demanda por uma explicação da causa lhe renderam a fama de ateu. Talvez
principal expoente do então nascente da gravitação vinha principalmente dos isso tenha pesado na sua decisão de
positivismo lógico, Rudolf Carnap (1891- filósofos continentais simpáticos ao não publicar os Diálogos, mas disso não
1970), reivindicou uma certa concepção mecanicismo cartesiano. É um princípio se tem nenhuma certeza. O fato é que
da causalidade que fazia referência direta do mecanicismo que toda fonte de os Diálogos, depois de publicados, não
aos resultados de Hume. Recomendava eficácia e mudança na natureza deve tiveram quase nenhuma influência sobre
ele que se deveriam abandonar todas provir diretamente da natureza da os juízos daqueles que lhe acusavam de
as questões “concernentes à ‘essência matéria inerte ou de alguma ação ateísmo.
da causalidade’, que transcende a externa supranatural, isto é, de Deus. A Isso sugere que a religião natural
afirmação de certas regularidades de teoria humeana da causalidade funciona era mesmo um domínio especulativo
sucessão”. como uma contenção a tais tipos de que pouco ou nada tinha a ver com
É óbvio que muito do que eu pretensões, que inevitavelmente a religião revelada ou as instituições
mesmo disse antes pode servir envolvem o conhecimento da essência eclesiais da Grã-Bretanha do século
para corroborar essa concepção da da matéria, além do conhecimento da XVIII. A religião natural parecia ter
causalidade como mera “regularidade natureza de um ser dotado de poderes uma relação muito mais intensa com
de sucessão”. Muitos comentadores de sobrenaturais para agir sobre o mundo. a recente filosofia natural, essa sim a
Hume têm hoje em dia defendido que Por outro lado, entretanto, discordo grande novidade intelectual daquele
isso é tudo o que o filósofo escocês daqueles que veem na redução da século.
quis dizer sobre a causalidade. Eu causalidade à mera regularidade a Na época de Hume, ainda vivia-
não concordo com essa leitura que última palavra de Hume sobre o assunto. se na Europa o clima de grande
identifica a causalidade humeana à Concordo que é difícil expressar efervescência cultural proporcionado
mera regularidade. Mas não quero com o seu próprio vocabulário a sua pela assim chamada revolução
polemizar diretamente com ela aqui. própria concepção de causalidade científica do século XVII, que mobilizara
Quero aproveitar a pergunta que me que preservasse algum sentido para a algumas das mentes mais criativas
foi proposta para defender que Hume atribuição de eficácia ou de qualidades que o Ocidente jamais conheceu, tais
deveria ter uma visão um pouco mais produtivas aos objetos identificados como Descartes, Kepler, Galileu, e,
rica da causalidade, no mínimo para como causas ou, em outras palavras,  Johannes Kepler (1571-1630): astrônomo,
que as suas análises pudessem ser de que mantivesse uma metafísica mínima matemático e astrólogo alemão e figura-chave
da revolução científica do século XVII. É mais
alguma relevância para enfrentar os da causalidade. Portanto, creio ser conhecido por formular as três leis fundamen-
desafios colocados pela ciência do seu inevitável recorrer a Kant para encontrar tais da mecânica celeste, conhecidas como Leis
tempo. um modo de expressar aquilo que Hume de Kepler, codificada por astrônomos posterio-
res com base em suas obras Astronomia Nova,
parece jamais recusar: certas coisas, Harmonices Mundi, e Epítome da Astronomia
Hume e os newtonianos que de modo algum podemos conhecer, de Copérnico. Elas também forneceram uma
Um dos grandes problemas podem – e devem – ser ao menos pensadas. das bases para a teoria da gravitação universal
de Isaac Newton. (Nota da IHU On-Line)
conceituais enfrentados pela ciência à Não foi por acaso que a derradeira  Galileu Galilei (1564-1642) físico, matemáti-

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finalmente, para glória dos britânicos,
Isaac Newton. O gênero de trabalho
“Os escritos anteriores si na mesma razão que a terceira
estaria para essa quarta que se deseja
que esses autores fizeram no campo
da astronomia, mecânica, óptica e,
aos Diálogos lhe descobrir.
No caso do argumento do desígnio,
por vezes, até mesmo da química,
frequentemente recebia o nome
renderam a fama o ponto de partida da analogia é um
edifício qualquer pelos homens e
de “filosofia natural” e raramente
recebia o nome de “ciência”, que hoje
de ateu” a ordem em que ali se encontram
combinados certos materiais tais
lhes damos – o termo “cientistas”, por como pedras, tijolos, ferragens, vidros
exemplo, dizem ser uma invenção de Um dos modos de ler os Diálogos etc. Constata-se, em primeiro lugar,
William Whewell apenas no século é encará-los como uma extensão da que há ali uma certa ordem e que ela
XIX; na época em que viveram, todos crítica anterior de Hume à compreensão não pode ter surgido ao acaso. Sendo
esses autores eram indistintamente do escopo e da legitimidade dos assim, é necessário supor a mente de
conhecidos como “filósofos”. raciocínios que realizamos a partir de um arquiteto na qual ela tenha sido
O interesse renovado pela religião informações recolhidas da experiência. antes planejada. Em segundo lugar,
natural naquela altura do século XVIII Isso significa vê-lo como uma extensão constata-se que o universo, tomado
respondia, então, a uma motivação da crítica ao raciocínio indutivo. Dessa como um todo, está disposto numa
surgida do sucesso obtido com a perspectiva, a parte mais destacada ordem similar àquela que, em menor
aplicação dos novos métodos de dos Diálogos seria a sua análise ao escala, se observa nas construções
investigação do mundo material e de argumento do desígnio (design). Por humanas. Se tomarmos, por exemplo,
descoberta de suas leis e princípios. meio desse argumento, eminentes o sistema solar, veremos planetas
Entre esses métodos, destacava- teólogos e filósofos tais como Samuel girando harmonicamente em torno
se a assim chamada “filosofia Clarke (1675-1729), que manteve uma do Sol, todos descrevendo órbitas
experimental”. Hume fora um dos que célebre troca de correspondência que se encontram razoavelmente
se entusiasmaram imoderadamente com o filósofo e matemático alemão no mesmo plano, todos girando
com as promessas desse método, tanto Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646- na mesma direção, todos sujeitos
que colocara como subtítulo da sua 1716), pretendiam estabelecer a à mesma regra de aceleração em
obra de juventude, o Tratado sobre a um só tempo a necessidade de um direção ao Sol etc. Com essas duas
natureza humana (1739), o sugestivo criador e de todas as qualidades premissas, o raciocínio analógico
subtítulo: “uma tentativa de introduzir que comumente lhe são atribuídas prossegue, então, com o objetivo de
o método experimental nos assuntos – entre elas, sabedoria, onisciência, estabelecer, como conclusão, que é
morais”. Pode-se talvez considerar onipotência, benevolência, eternidade também imprescindível, nesse último
que a religião natural, conforme e infinitude. Em uma palavra, os caso, haver um arquiteto em escala
Hume a enxergava, era uma tentativa teóricos do desígnio pretendiam por cósmica. Logo, está assim provada a
de introduzir o método experimental meio do mesmo argumento tanto existência de Deus.
nos assuntos da religião, numa nítida provar a existência de Deus quanto dar Mais uma vez, o problema que
tentativa de promovê-la como uma a conhecer a sua natureza. Hume detecta nesse tipo de raciocínio
extensão da filosofia natural. não é tanto com o esquema que acabo
IHU On-Line – Em que consiste o de lhes apresentar. Grosso modo,
co, astrónomo e filósofo italiano que teve um argumento do desígnio e qual foi
papel preponderante na chamada revolução
Hume nada reprovou nessa forma de
científica. Desenvolveu os primeiros estudos o problema que Hume encontrou raciocinar; segundo ele, uma forma
sistemáticos do movimento uniformemente nele? tão legítima quanto seriam todos
acelerado e do movimento do pêndulo. Des- Eduardo Barra – O argumento do
cobriu a lei dos corpos e enunciou o princípio
os demais raciocínios indutivos. O
da inércia e o conceito de referencial inercial, desígnio está sustentado numa problema surge quando se pretende
idéias precursoras da mecânica newtoniana. analogia. Um raciocínio analógico pode estender o resultado do raciocínio
Galileu melhorou significativamente o telescó- ser apresentado como uma espécie
pio refrator e terá sido o primeiro a utilizá-lo
para além da simples afirmação da
para fazer observações astronómicas. Com ele de “regra de três” que se utiliza em existência de Deus. Essa extensão
descobriu as manchas solares, as montanhas cálculos matemáticos, quando três abarca a pretensão de que, assim
da Lua, as fases de Vênus, quatro dos satéli- quantidades são conhecidas e deseja-
tes de Júpiter, os anéis de Saturno, as estrelas
também, se possa conhecer a natureza
da Via Láctea. Estas descobertas contribuíram se encontrar uma quarta, sabendo que de Deus – uma natureza que, nesse
decisivamente na defesa do heliocentrismo. a primeira e a segunda estão entre caso, seria similar àquela de qualquer
Contudo a principal contribuição de Galileu  Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716):
foi para o método científico, pois a ciência filósofo, cientista, matemático, diplomata e
arquiteto humano, qual seja, uma
se assentava numa metodologia aristotélica bibliotecário alemão. A ele é creditada a cria- mente que age guiada pelo desígnio e
de cunho mais abstrato. Por essa mudança de ção do termo “função” (1694), que usou para pela sabedoria, digamos, guardadas as
perspectiva é considerado o pai da ciência mo- descrever uma quantidade relacionada a uma
(Nota da IHU On-Line)
derna. ��������� curva. Geralmente, juntamente com Newton,
diferenças de escala entre ambas. Ora,
 William Whewell (1794-1866): polímata in- é creditado a Leibniz o desenvolvimento do isso é o que não podemos saber com
glês, além de padre anglicano, filósofo, teó- cálculo moderno; em particular por seu desen- nenhum grau razoável de certeza. A
logo, e historiador da ciência. (Nota da IHU volvimento da Integral e da Regra do Produto.
On-Line) (Nota da IHU On-Line)
presença da ordem implica a existência

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do arquiteto, mas nada se pode disso se apropriou do roteiro que Daniel possíveis, desde o muitíssimo
inferir sobre a natureza do arquiteto Dennett havia proposto em seu A pequeno até o muitíssimo grande.
que a projetou. Em parte, porque a perigosa ideia de Darwin, publicado Todavia, quando se fala aqui em
ordem também poderia ter originado no Brasil em 1998. totalidade, entende-se algo que
de outras fontes além do desígnio ou A meu ver, está claro que o abarca rigorosamente tudo o que
da sabedoria, por exemplo. Darwin de Dawkins e Dennett está existe, sem que nada lhe escape. A
situado muito além do Darwin biólogo segunda metade da terceira Crítica
IHU On-Line – Hoje, há um “cisma” que conhecemos na maioria dos de Kant, a Crítica da Faculdade do
entre fé e ciência, tendo Hitchens ambientes científicos. Para eliminar Juízo, é inteiramente dedicada a
e Dawkins como alguns de seus a possibilidade de que a vida tenha esse tema. Kant tenta delimitar
maiores expoentes. Em que medida surgido ao acaso – o ponto em que um espaço que nos permitisse ao
o ceticismo humeano participa da darwinianos e criacionistas estão de menos pensar ou refletir sobre essas
fundamentação desse debate? acordo –, eles convertem o darwinismo totalidades, tendo como ponto
Eduardo Barra – Eu penso que, numa genuína hipótese cosmogônica, de partida as limitações muito
se os argumentos de Hume forem isto é, numa autêntica explicação da similares àquelas que Hume impôs ao
compreendidos como acima eu os “natureza em sua totalidade”, uma pretenso conhecimento delas. Pode-
expus, eles seriam de muito pouco expressão do próprio Hume nos seus se ver o esforço de Kant como uma
auxílio para o neoateísmo de Hitchens e Diálogos. tentativa de reconstruir algo seguro
Dawkins. No seu livro de maior impacto Se forem compreendidas como a partir dos escombros deixados pelo
nessa discussão, Deus: um delírio hipóteses explicativas da “natureza em ceticismo de Hume.
(2007), Dawkins de fato reivindica a sua totalidade”, a meu ver criacionismo Em parte, creio que seja
autoridade filosófica de Hume para e darwinismo tornam-se indistintos, exatamente sobre isso que os
sustentar os seus argumentos em isto é, ambos estão igualmente devotados ao debate atual entre
favor de um certo evolucionismo equivocados em suas pretensões. Essa criacionismo e darwinismo precisam
não apenas não criacionista, mas para mim seria uma das maneiras de refletir melhor. Nem converter o
sobretudo anticriacionista. Ele, traduzir a possível posição de Hume criacionismo numa versão rival à
meio desajeitadamente, eu diria, frente ao debate atual protagonizado versão científica sobre a origem da
 Christopher Hitchens (1949): jornalista, por Dawkins e por seus críticos, que, vida ou do universo nem converter
escritor e crítico literário britânico. ��������
Durante em sua maior parte, são os partidários o darwinismo numa versão rival da
a guerra do Iraque, tornou-se um combativo do chamado design inteligente. versão religiosa para conferir sentido
apoiante da decisão de George W. Bush, o que
o tornou muito conhecido, impopular, entre à totalidade tão amplas como a
uma esquerda que ele acusou de trair os pró- Kant e os escombros de Hume natureza ou o mundo; nada disso
prios ideais. Amor, Pobreza e Guerra (Ediouro: As análises de Hume, assim parece funcionar bem. Ao contrário
2006. 370p.), que reúne 34 artigos de sua au-
toria com críticas à Madre Teresa de Caucu- compreendidas, ligam-se a temas do que ele pensa, creio que o
tá, fala sobre o 11 de setembro e a Guerra do que outros filósofos logo em seguida ceticismo humeano pesa mais contra
Iraque, é uma das suas obras. (Nota da IHU colocaram no centro das suas atenções. do que a favor desse segundo ponto
On-Line)
 Clinton Richard Dawkins (1941): zoólogo, Eu destacaria, em particular, os temas de vista defendido por Dawkins.
etólogo, evolucionista e escritor britânico, que mobilizaram o filósofo alemão Se nos contentarmos em
nascido no Quênia. Catedrático da Universi- Immanuel Kant (1724-1804). Uma das meramente pensar “natureza em sua
dade de Oxford, é conhecido principalmen-
te pela sua visão evolucionista centrada no questões centrais para Kant era limitar totalidade” e abdicamos de todas
gene, exposta em seu livro O gene egoísta, nossas expectativas de conhecer certos as nossas pretensões de conhecê-
publicado em 1976. O livro também introduz aspectos da realidade que se colocam la, nada que a ciência diga pode
o termo “meme”, o que ajudou na criação da
memética. Em 1982, realizou uma grande con- para além da nossa experiência ser tomado como sendo a última
tribuição à ciência da evolução com a teoria, possível. Um desses presumidos palavra. A ciência não pode exercer
apresentada em seu livro O fenótipo estendi- objetos era justamente algo muito sua autoridade epistemológica para
do. Desde então escreveu outros livros sobre
evolução e apareceu em vários programas de próximo daquilo que Hume chamou de além do domínio do conhecimento.
televisão e rádio para falar de temas como a “natureza em sua totalidade” e que Nosso conhecimento está limitado
biologia evolutiva, criacionismo, religião. Por Kant chamou simplesmente de Mundo, ao domínio da nossa experiência – e,
sua intransigente defesa à teoria de Darwin,
recebeu o apelido de “rottweiler de Darwin”, talvez assim com “M” maiúsculo para mesmo aí, está restrito às condições
em alusão ao apelido de Thomas H. Huxley, destacar a sua magnitude. precárias dos nossos raciocínios
que era chamado de “buldogue de Darwin Obviamente que conhecemos este indutivos, analógicos etc. Portanto,
(Darwin’s bulldog). Recentemente está envol-
to em grande polêmica por conta das ideias ou aquele aspecto do mundo, que os assuntos sobre os quais as religiões
contidas em sua obra Deus, um delírio (São pode ter dimensões as mais variadas têm algo a dizer estão muito além
Paulo: Cia das Letras, 2007), publicada em  Daniel Clement Dennett (1942): filósofo do alcance conceitual da ciência.
2006 sob o título The God delusion. Confira o norte-americano cujas pesquisas estão dire-
debate sobre diversas de suas ideias na edição cionadas à filosofia da mente e da biologia. Penso que esse seria um bom modo
245 da IHU On-Line, de 26-11-2007, intitulada Sobre ele, confira a matéria As 6 questões que de parafrasear as possíveis visões de
O novo ateísmo em discussão, disponível para mobilizam as grandes mentes, publicada pelo Hume sobre o nosso assunto.
download em http://bit.ly/jSY3h9 . ���������
(Nota da site do IHU, www.unisinos.br/ihu, em 08-01-
IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)
2007.����������

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Limites do conhecimento
Qualquer “cisma” entre religião e
ciência ou entre fé e crença (isto é,
conhecimento) tem, portanto, um
caráter estrutural e insuperável.
Essa me parece ser uma lição
Uma alternativa à noção de sujeito
importante a ser apreendida da
leitura das filosofia de Hume e de Compreender um sujeito constituinte da experiência empírica é
Kant. Repito que ela poderia valer uma novidade em relação à razão clássica moderna, frisa Maria
como corretivo para os dois lados
do debate criacionismo versus
Isabel Limongi. Tal modificação terá impactos na forma de con-
darwinismo. Ao sujeitar a ciência ceber o homem e suas relações com a natureza e a história
à fé – como desejam fazer aqueles
que defendem o design inteligente –
Por Márcia Junges
, promove-se uma restrição indevida
e espúria daquilo que podemos, de

É
fato, conhecer. O mesmo vale no
possível dizer que o legado mais significativo de David Hume esteja
sentido contrário – e atinge os que
“no modo como antecipou e ofereceu uma alternativa à noção de
compartilham os pontos de vista
de Dawkins –, isto é, ao sujeitar a sujeito, tal como será pensada por Kant, isto é, de um sujeito cons-
fé à ciência, promove-se não uma tituinte da própria experiência, que para Hume não é transcenden-
restrição, mas uma igualmente tal, mas empírico, como mostrou Deleuze”. A reflexão é da filósofa
indevida e espúria extensão do Maria Isabel Limongi, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line.
domínio de objetos próprios do Ela analisa os pontos de convergência e divergência entre Thomas Hobbes e
conhecimento. Hume e frisa a proximidade de suas concepções a respeito da justiça como
Aqui vale o mesmo que antes um construto humano. Contudo, completa, Hobbes compreende a justiça via
valia para o exemplo dos alimentos contrato, e Hume, via história. “Hume entende a justiça enquanto um con-
e da sua eficácia nutricional: não é junto de regras de partilha da propriedade, às quais os homens aderem e
uma questão de dizer que “é líquido pelas quais regulam sua conduta”.
e certo que com o progresso da
Graduada em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP, Maria Isabel
ciência conheceremos sempre mais
Limongi cursou mestrado e doutorado na mesma instituição com a tese O
e mais a respeito da natureza e das
condições de surgimento da vida e do homem excêntrico – Paixões e virtudes em Thomas Hobbes. Docente na Uni-
universo e poderemos, finalmente, versidade Federal do Paraná – UFPR, é autora de Entre a ética e o interesse
sustentar como bons argumentos (Londrina: Lido, 1995) e Hobbes (Rio de Janeiro: Zahar, 2002). Organizou a
científicos que as religiões estavam obra Filosofia britânica nos séculos XVII e XVIII (Curitiba: Revista Dois Pontos,
erradas”; não é um problema que se 2005). Leciona no departamento de Filosofia na Universidade Federal do Pa-
decide apenas expandindo o nosso raná – UFPR. Confira a entrevista.
atual conhecimento. Os cientistas
que pensam assim precisam
IHU On-Line – Qual é o principal le- de sujeito, tal como será pensada por
refletir melhor sobre as bases
gado filosófico de David Hume? Kant, isto é, de um sujeito constituin-
epistemológicas da sua prática
Maria Isabel Limongi – Hume nos le- te da própria experiência, que para
investigativa. Um bom começo seria
gou uma concepção de razão com- Hume não é transcendental, mas em-
pensar melhor sobre isto que Hume
pletamente nova em relação à razão pírico, como mostrou Deleuze.
nos mostrou: que há genuínos limites
clássica moderna, uma razão que não
no nosso conhecimento, além dos
é mais intuição ou percepção da or- IHU On-Line – Quais são as possíveis
quais não se pode avançar seja qual
dem das coisas, mas reflexão sobre o aproximações entre o pensamento
for o grau de precisão ou a extensão
nosso modo de associar ideias; uma político de Thomas Hobbes e o de
do estoque de conhecimentos que
razão que não se opõe, substitui ou Hume?
pudermos mobilizar. Mais uma
submete à imaginação, mas que é for- Maria Isabel Limongi – Há muitos
vez creio que vale aqui também a
mada a partir de suas operações. Com modos de aproximar esses autores,
observação de Quine: a condição
isso, Hume alterou significativamente como também de afastá-los. As dife-
humeana é a condição humana.
o nosso modo de conceber o homem, renças talvez sejam mais significati-
sua relação com a natureza e a histó- vas e importantes que as semelhan-
ria. O seu legado mais importante tal- ças. No essencial – no modo como
vez esteja no modo como antecipou compreendem a razão – são diferen-
e ofereceu uma alternativa à noção tes. No campo do direito, um ponto
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importante no qual esses autores se Hume, um sistema de justiça não se Maria Isabel Limongi – Para Hume
encontram consiste na ideia de que a forma sem governo, sem autoridade. e Smith, o fenômeno da simpatia,
justiça é uma invenção humana, ainda Ao conceber a justiça no interior de ainda que concebido de maneira di-
que eles concebam de maneira muito uma história política, Hume retoma ferente, é responsável pela relação
diferente a natureza dessa instituição. um aspecto importante do jusnatu- entre moralidade e sociabilidade. É
Hobbes a pensa pela via do contrato, ralismo clássico, contra a tendência na medida em que os homens convi-
e Hume, da história. do jusnaturalismo moderno, acentu- vem socialmente uns com os outros
ada por Locke, de pensar a história que aprendem a julgar as ações de
IHU On-Line – A partir de Hume, como da justiça nos termos de uma histó- um ponto de vista que não é estrita-
podemos compreender o caráter his- ria social, mas não civil. mente o seu, mas um ponto de vista
tórico da justiça? geral, pelo qual chegam a valores
Maria Isabel Limongi – Hume enten- IHU On-Line – Qual é a atualidade comuns e partilhados. É a simpatia
de a justiça enquanto um conjunto de dessas concepções? – a possibilidade de sentir com ou
regras de partilha da propriedade, às Maria Isabel Limongi – A contribuição a partir dos outros e que pressupõe
quais os homens aderem e pelas quais de Hume é relevante, na medida em o convívio social – o que permite a
regulam sua conduta. Como a tradição que uma articulação de mão dupla en- formação desse ponto de vista, em
jusnaturalista moderna (Grotius, Pu- tre o direito e a política, do tipo da torno do qual a moral se forma.
fendorf, Locke), Hume entende que empreendida por ele, permite superar
essas regras se formam aos poucos, a alternativa que, por vezes, se coloca IHU On-Line – De que forma Hume
como resultado de certas práticas e de entre reduzir o direito a relações po- respondeu à questão sobre como a
mudanças nas circunstâncias de vida líticas ou pensar a política a partir de norma pode se inscrever no âmbito
do homem. Nesse sentido, a justiça se princípios jurídico-normativos puros de uma história natural da sociabili-
forma na história. Essa história é, de que a antecedem. dade?
um lado, história natural – que narra Maria Isabel Limongi – Hume tem
os efeitos de causas gerais atuantes na IHU On-Line – O que é a tradição sen- uma reflexão bastante interessante
formação dos diversos sistemas de jus- timentalista britânica? Como Hume sobre o modo de formação daquilo
tiça – e, do outro, história civil – histó- se insere dentro desse contexto? que ele denomina as “regras gerais”,
ria das circunstâncias que determinam Maria Isabel Limongi – A tradição sen- que, para ele, regulam a imaginação
a aplicação dos princípios gerais da timentalista britânica é aquela que, (racionalizando-a), o gosto e a mo-
justiça aos casos particulares, sem o além de Hume, passa por Shaftesbury, ral (refinando-os) e a conduta com
que não há justiça. Hutcheson e Adam Smith, para men- relação à propriedade (conduzindo à
cionar os mais conhecidos. Esses au- liberdade). Em todos esses âmbitos,
IHU On-Line – Sua filosofia propõe tores têm em comum o fato de pensar Hume vê a atuação de regras gerais,
uma nova compreensão de história e a gênese da moral a partir dos senti- formadas por reflexão sobre o modo
justiça? Por quê? mentos ou afetos. Para essa tradição, como naturalmente nos comporta-
Maria Isabel Limongi – Como eu dis- a moral se forma quando julgamos os mos, nas operações da imaginação,
se, Hume partilha com a tradição afetos por uma espécie de reflexão so- do gosto etc. Trata-se de observar
jusnaturalista moderna a ideia de bre eles. A contemplação dos afetos e esses comportamentos no que eles
que a justiça tem uma história, e seus efeitos gera um afeto de segunda têm de regular e retirar dessa ob-
nesse ponto não é inovador. Ele inova ordem, a partir do qual os aprovamos servação regras que, aplicadas sobre
no modo de conceber essa história, ou reprovamos. Todo isso é pensado os aspectos irregulares do compor-
que para ele é inteiramente huma- como um processo de formação do ju- tamento, permitem regulá-lo ainda
na, assim como a justiça (e a própria ízo moral, e também do caráter vir- mais. Isso dá às regras um caráter
razão). Além disso, a história da jus- tuoso. Hume se singulariza no interior histórico e adventício. No caso da
tiça é para Hume história civil, o que dessa tradição pelo modo como enten- justiça, a reflexão sobre a gênese dos
quer dizer não apenas história parti- de esse processo – como um processo sistemas de justiça e a identificação
cular e circunstancial, mas também (volto a esse ponto) puramente huma- das causas gerais que atuam em suas
– e esse aspecto me parece muito no e social. Não há para ele nenhuma formações podem fornecer regras a
importante – história política. Para medida extrassocial e histórica da vir- partir das quais criticar e corrigir os
 Hugo Grotius (1583-1645): jurista a serviço tude (como penso haver para os outros sistemas e instituições efetivos. O
da República dos Países Baixos. É considerado autores mencionados, inclusive Adam mesmo se aplica no caso da moral
o precursor, junto com Francisco de Vitória, do
Direito internacional, baseando-se no Direito Smith). e do gosto. É assim, portanto, como
natural. Foi também filósofo, dramaturgo, po- um processo reflexivo de formação
eta e um grande nome da apologética cristã. IHU On-Line – Como moralidade e de regras gerais que a norma se ins-
(Nota da IHU On-Line)
 Samuel Pufendorf (1632-1694): jurista ale- sociedade se relacionam na tradição creve no âmbito da história social,
mão. Ao tornar-se nobre, em 1684, seu nome sentimentalista? Especificamente, como algo que não apenas se forma
passou a ser Samuel von Pufendorf; elevado a como isso se manifesta em Hume e na história, mas que também a faz
barão poucos meses antes de sua morte, em
1694. (Nota da IHU On-Line) Adam Smith? e conduz.

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A teoria da causalidade em David Hume
Para Hume, todas as ocorrências no mundo estão precisamente determinadas, não teleologi-
camente, em vista de algum fim, mas mecanicamente, em consequência de eventos prece-
dentes, considera José Oscar de Almeida Marques

Por Márcia Junges e Graziela Wolfart

N
a visão do professor José Oscar de Almeida Marques, “o interesse de Hume não é fazer uma teoria
da causalidade enquanto tal, mas explicar como chegamos a adquirir nossas crenças causais, ou
seja, como somos levados a acreditar, por exemplo, que um copo irá cair ao chão se eu o largar,
antes mesmo de tê-lo largado”. Nesse sentido, explica ele, “a questão que Hume investiga não
é metafísica, mas psicológica. Ela diz respeito ao funcionamento da mente humana. Para Hume,
não chegamos a essas crenças por nenhum raciocínio dedutivo a partir dos princípios acima, mas apenas pela
experiência e pelo hábito. Ao observar que um evento de certo tipo é regularmente seguido por um evento
de outro tipo, somos levados automaticamente, sem nenhuma reflexão, a esperar a ocorrência de um evento
do segundo tipo ao observarmos um evento do primeiro tipo”. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail
para a IHU On-Line, José Oscar defende que “Hume pretende que nosso conhecimento das relações de causa
e efeito deve se derivar exclusivamente da experiência, mas ele nota que, com isso, não estamos justifica-
dos racionalmente em projetar para o futuro as regularidades do passado (porque não temos uma prova do
princípio de uniformidade), e não podemos, portanto, pensar a relação de causa e efeito como envolvendo
uma conexão necessária entre os dois termos”.
José Oscar de Almeida Marques é professor no Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas – IFCH da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Doutor em Filosofia e mestre em Lógica e
Filosofia da Ciência pela Unicamp, é bacharel em Engenharia de Eletrônica pelo Instituto Tecnológico de Aero-
náutica, de São José dos Campos. Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é o princípio da = fim). O que ele afirma é que tudo po. Basicamente, consiste em afirmar
razão suficiente de Hume? que acontece ou existe tem uma cau- que as leis da natureza são invariáveis
José Oscar de Almeida Marques - O sa, e, causas, para ele, como em geral e continuarão operando no futuro tal
princípio de razão suficiente é a tese para os filósofos da Modernidade, não como operaram no passado. A conse-
de que tudo o que acontece ou exis- envolvem, como para Aristóteles, a di- quência disso é que podemos supor
te tem uma razão para sua ocorrência reção a um objetivo futuro, mas ape- que causas que tiveram certos efeitos
ou existência. É um princípio defendi- nas a referência a eventos passados. no passado continuarão tendo os mes-
do por muitos autores e faz parte de Para Hume, portanto, todas as ocor- mos efeitos no futuro, o que nos per-
muitas doutrinas filosóficas. Quando rências no mundo estão precisamente mite fazer inferências seguras acerca
Aristóteles afirma, na Política, que “a determinadas não teleologicamente, da ocorrência de eventos ainda não
natureza nada faz em vão”, ele está em vista de algum fim, mas mecani- observados.
apresentando uma versão desse prin- camente em consequência de eventos
cípio. Frequentemente o princípio é precedentes. IHU On-Line – Como esses conceitos
apresentado como significando que se mesclam na composição da teoria
tudo que ocorre tem uma finalidade, ou IHU On-Line – E o princípio da unifor- da causalidade humeana?
está dirigido para um certo fim, o que midade, do que se trata? José Oscar de Almeida Marques - O in-
se supõe que há um desígnio governan- José Oscar de Almeida Marques - O teresse de Hume não é fazer uma teoria
do o curso da natureza. No entanto, princípio de uniformidade é a tese de da causalidade enquanto tal, mas ex-
aquilo que, em Hume, corresponderia que a natureza é uniforme em suas plicar como chegamos a adquirir nossas
a um princípio de razão suficiente não operações em qualquer região do es- crenças causais, ou seja, como somos
tem essa dimensão teleológica (télos paço e em qualquer intervalo do tem- levados a acreditar, por exemplo, que

30 SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369


um copo irá cair ao chão se eu o largar,
antes mesmo de tê-lo largado. Nesse
“A discussão humeana justificados racionalmente em projetar
para o futuro as regularidades do pas-
sentido, a questão que Hume investiga
não é metafísica, mas psicológica. Ela
sobre a questão da sado (porque não temos uma prova do
princípio de uniformidade), e não pode-
diz respeito ao funcionamento da men-
te humana. Para Hume, não chegamos
existência dos objetos mos, portanto, pensar a relação de cau-
sa e efeito como envolvendo uma cone-
a essas crenças por nenhum raciocínio
dedutivo a partir dos princípios acima,
externos e do próprio eu xão necessária entre os dois termos. Essa
situação pareceu inaceitável para Kant,
mas apenas pela experiência e pelo
hábito. Ao observar que um evento de
encontra uma resposta e que pretendeu resolvê-la propondo que
o conceito de causa e efeito pré-existe
certo tipo é regularmente seguido por
um evento de outro tipo, somos leva-
tentativa de solução na em nós anteriormente a qualquer expe-
riência, como uma categoria a priori,
dos automaticamente, sem nenhuma por meio da qual a relação entre causa e
reflexão, a esperar a ocorrência de um
Crítica da razão pura” efeito é pensada como necessária.
evento do segundo tipo ao observarmos
gível, ou um nexo, entre causa e efei-
um evento do primeiro tipo. IHU On-Line – Poderia contextualizar
to. A concepção de causalidade deri-
a influência de Hume em Kant?
vada de Hume é, ainda hoje, a mais
IHU On-Line – Em que aspectos a cau- José Oscar de Almeida Marques -
amplamente aceita pelos que estudam
salidade de Hume continua uma pro- Como indicado acima, pode-se dizer
o tema da causalidade e teve grande
posição atual no século XXI? que a crítica que Hume fez à noção
importância no desenvolvimento do
José Oscar de Almeida Marques - Em- de causa, tal como tradicionalmente
positivismo lógico e de seus desdobra-
bora Hume estivesse interessado nos concebida na metafísica, foi o prin-
mentos até os dias de hoje.
aspectos psicológicos envolvidos em cipal motivo para que Kant, em suas
nossa apreensão da causalidade, e não próprias palavras, “despertasse de seu
IHU On-Line – Quais são os pontos de
na questão metafísica sobre o que po- sono dogmático”. Há muita discussão
proximidade e distanciamento entre
deria ser a causalidade ela própria, in- sobre quanto Kant realmente chegou
obras Tratado da natureza humana,
dependentemente de nossa apreensão, a conhecer do Tratado de Hume, mas
de Hume, e Crítica da razão pura,
é possível extrair de seu trabalho uma parece claro que, além da questão da
de Kant?
teoria desse tipo e propor não apenas causalidade, também a discussão hu-
José Oscar de Almeida Marques - Há
que as regularidades são o meio pelo meana sobre a questão da existência
inúmeros pontos de contato, e pode-se
qual chegamos a discernir relações dos objetos externos e do próprio eu
dizer que a Crítica da razão pura pode
causais, mas que a própria causalidade encontra uma resposta e tentativa
ser tomada como uma resposta sistemá-
se esgota totalmente nisso. Isso signi- de solução na Crítica da razão pura.
tica e completa aos problemas levanta-
fica dizer que as relações causais não Note-se ainda que, mesmo no caso dos
dos por Hume no Livro I do Tratado. Para
envolvem nenhuma relação inteligível juízos morais e de gosto, o grande pro-
ficarmos apenas no tema da causalidade,
entre causa ou efeito, e esgotam-se jeto crítico de Kant pode ser entendi-
Hume pretende que nosso conhecimento
simplesmente na existência de uma do como uma resposta ao tratamento
das relações de causa e efeito deve se
regularidade. Com isso se recusa uma puramente empírico que Hume desen-
derivar exclusivamente da experiência,
tradicional concepção de causalidade volveu nesses domínios.
mas ele nota que, com isso, não estamos
que via nela uma certa relação inteli-

Ciclo de Palestras: Economia de Baixo Carbono. Limites e Possibilidades

Limites da economia sustentável na perspectiva de Georgescu-Roegen

Andrei D. Cechin - USP

22-08-2011

Informações em http://migre.me/5uPRA

SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369 31


Hume e a razão provável
Atualidade desse filósofo se dá, sobretudo, em função de suas facetas crítica e naturalista,
pondera Andrea Cachel

Por Márcia Junges

U
m autor que “rompe com a concepção tradicional de racionalidade, ao mostrar que a razão pro-
vável não se funda na razão clássica, mas sim em uma atuação do hábito sobre a imaginação”.
Assim é David Hume, analisa a filósofa Andrea Cachel, em entrevista concedida por e-mail à IHU
On-Line. E completa: “Penso que a atualidade da filosofia humeana está ligada precisamente ao
seu viés crítico, por um lado, e, por outro, ao naturalismo característico das suas tentativas de
resposta aos problemas por ele mesmo formulados”.
Andrea Cachel é graduada em Direito e em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, onde
também cursou mestrado em Filosofia com a dissertação A inteligibilidade da existência externa na filosofia
humeana. É doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP com a tese Regras gerais e racionalidade
em Hume. Leciona Filosofia no Instituto Federal do Paraná, campus Curitiba, e é coordenadora do Grupo de
Pesquisa em Epistemologia da mesma instituição. Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que são as regras ge- formulação, torna-se uma questão re- das a partir das regras para se julgar
rais do juízo na filosofia de Hume? levante diferenciar regras gerais legí- sobre a causa e efeito. E sugere que
Andrea Cachel - A temática das regras timas ou não, epistemologicamente. O apenas as inferências que partem de
gerais do juízo aparece na filosofia hábito, enquanto tal, não pode ser o regras gerais do juízo são racionais.
humeana no âmbito de uma discussão que determina a legitimidade ou não Mas há uma dificuldade de se enten-
sobre a causa e efeito, especialmen- das regras, ainda que participe des- der qual é o próprio fundamento des-
te na seção 15, da terceira parte do sa separação. Tanto as regras gerais sas metarregras, em especial da regra
primeiro livro do Tratado da natureza cognitivamente legítimas (todo fogo das mesmas causas os mesmos efeitos
humana. De modo geral, na discussão queima) – chamadas de regras gerais e vice-versa, da qual decorrem as re-
sobre o fundamento das inferências do juízo – como as regras gerais da gras cinco a oito. Isso porque apenas
causais, Hume mostra que elas não imaginação, que não possuem essa le- as três primeiras regras (anterioridade
são embasadas pela razão demonstra- gitimidade epistemológica (todo fran- da causa em relação ao efeito, conti-
tiva, não estando justificada a priori a cês é frívolo), envolvem o processo de guidade espaço-temporal entre ambos
passagem de uma conjunção passada determinação do hábito sobre a ima- e conjunção constante) já tinham sido
à inferência futura. Quanto à razão ginação. discutidas por Hume e incorporadas no
provável, mostra que seria um círculo Na seção do Tratado dedicada ao âmbito do conceito de “relação filo-
vicioso pressupor que essa passagem tema, Hume estipula oito regras que sófica”. A regra das mesmas causas os
parte dela, tendo em vista a impossibi- permitiriam realizar essa distinção, mesmos efeitos e vice-versa, contudo,
lidade de se estabelecer pela probabi- dentre as quais figura a regra das é precisamente a essência da pressu-
lidade o princípio segundo o qual o fu- mesmas causas os mesmos efeitos e posição de uma regularidade na natu-
turo se assemelha ao passado, origem, vice-versa. Discutir o estatuto dessas reza, a qual fora excluída enquanto
segundo Hume, do próprio raciocínio regras implica trabalhar com a pró- um princípio racional.
provável. Nesse contexto, sua filosofia pria necessidade de se entender a di-
desloca para o hábito essa tarefa epis- ferença entre princípios regulares e Hábito e imaginação
temológica. irregulares da imaginação, a oposição O que Hume afirma é que essa re-
De certa forma, a passagem do pas- entre imaginação e juízo (no interior gra tem origem na aplicação do juízo
sado ou presente ao futuro implica a da própria imaginação) e a constitui- sobre si mesmo e sobre a experiência
formulação de regras gerais (todo fogo ção da noção de entendimento. Hume de julgar. Em linhas gerais, portanto,
queima, por exemplo). E, não sendo opõe regras gerais da imaginação e as remete a um campo não totalmen-
possível justificar racionalmente essa do juízo, sendo as últimas as formula- te explicitado em sua filosofia. Não se

32 SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369


trata nem puramente da imaginação, “Hume parece ser um a ideia de que há um mundo exterior
tampouco do hábito. O juízo, tal como e, ainda, que não se pode fazer uma
presente no texto humeano até esse autor fundamental para inferência das nossas percepções para
momento das discussões, ainda se in- um suposto objeto externo, ao contrá-
sere no espaço interno da imaginação. a percepção kantiana da rio do que tentaria fazer a grande par-
Entretanto, sua atuação nas regras ge- te da filosofia moderna, em especial a
rais do juízo é autônoma em relação necessidade de se partir de uma divisão entre qualidades
aos princípios e tendências daquela. primárias e secundárias.
Dessa forma, implicitamente fica indi- estender a Sua resposta à origem da crença no
cada a composição de um campo que mundo exterior, portanto, identificará
entendo como interno a uma faculda- espontaneidade da a imaginação como a responsável por
de que não pôde ser totalmente de- tal noção. Cabe observar que a imagi-
senvolvida por Hume: o entendimento. consciência na nação, na filosofia humeana, consisti-
Certamente esta é uma caracterização rá em um vasto campo de atividades
polêmica, mas me parece necessário constituição daquilo que cognitivas, dentre as quais algumas in-
perceber em que medida Hume já vis- tegrarão o conceito de racionalidade
lumbra o tema da espontaneidade, ao entendemos por experimental, nos termos que expus
mesmo tempo em que pode também na questão anterior. No caso da forma-
ser caracterizado como naturalista. ‘objeto’” ção da crença nos corpos, contudo, os
Dessa forma, é interessante obser- princípios e tendências da imaginação
var que um olhar mais detido sobre a envolvidos são os que Hume chama de
discussão humeana das regras gerais Andrea Cachel - Entendo que o ob- “irregulares”. Ele explica que essas
do juízo nos permite ponderar me- jetivo central da seção 2, da quarta tendências e princípios fariam com
lhor a própria noção de racionalida- parta do primeiro Livro do Tratado da que a mente humana considerasse as
de inaugurada por Hume. Esse autor natureza humana, é defender a con- impressões coerentes e constantes
rompe com a concepção tradicional sistência da crença do senso comum como existências contínuas e distin-
de racionalidade, ao mostrar que a nos objetos externos. Hume inicia a tas, a partir da pressuposição vulgar
razão provável não se funda na razão discussão afirmando que sua intenção de que não há uma diferença específi-
clássica, mas sim em uma atuação do não é discutir se os corpos existem ou ca entre percepções e objetos.
hábito sobre a imaginação, conforme não. Segundo ele, devemos tomar a A crença nos corpos, nessa medida,
já mencionei. As regras para se julgar existência dos corpos como pressupos- seria fruto de uma ficção natural da
sobre causas e efeitos são os parâme- ta. Porém, reconhece que não temos mente humana. Ela partiria, sobre-
tros para a formulação de regras ge- acesso a esse suposto “mundo exte- tudo, da tendência da imaginação de
rais epistemologicamente legítimas, rior”. Nessa medida, propõe-se a dis- estender as regularidades observadas
chamadas de regras gerais do juízo, cutir apenas as causas da crença que e da impossibilidade da mente huma-
em contraposição às regras gerais da depositamos na existência de objetos na de suportar uma contradição entre
imaginação. Ou seja, elas determinam externos. E esclarece: a noção de “ob- princípios regulares e irregulares da
o modo correto de se passar da con- jeto externo” deve ser traduzida como imaginação, origem, principalmente,
junção constante passada à inferência a ideia de que há existências que con- da noção de identidade e da substan-
futura. Em última análise, elas se re- tinuam a existir mesmo quando não cialização das percepções.
metem a uma capacidade reflexiva da percebidas (existência contínua) e
natureza humana, a de fazer o juízo que são independentes das situações IHU On-Line - Em que medida Hume
voltar-se sobre si mesmo, autorregu- observadas no sujeito cognoscente dialoga com Berkeley no que diz res-
lar-se, tomando-se como base o pró- (existência independente). peito à questão da inteligibilidade
prio sentido da tendência natural de Hume analisa três possibilidades da existência externa? Quais são os
se realizar inferências causais. É esse para a origem da crença nos corpos: pontos em que ambos divergem?
processo que configura um espaço de sentidos, razão e imaginação. Ele ar- Andrea Cachel - O desafio enfrentado
legitimidade epistemológica no in- gumenta ao longo do texto que nem por Hume na discussão sobre a crença
terior do que será qualificado como os sentidos, nem a razão podem dar nos corpos é precisamente aquele co-
racionalidade experimental, numa origem à nossa crença de que há ob- locado por Berkeley, em especial nos
acepção renovada. Assim, a raciona- jetos que continuam a existir mesmo Princípios do Conhecimento Humano.
lidade experimental passa a ser uma quando não percebidos e que têm uma Hume reconhece o que Berkeley já ha-
faculdade vinculada a uma capacidade existência que não se modifica a partir via admitido, a saber, que, supondo-se
reflexiva da mente humana. das alternações que ocorrem na situ- uma diferença entre objetos e percep-
ação do sujeito que percebe. Desse ções, não é possível explicar porque
IHU On-Line - Em que aspectos se pode modo, mostra que não é simplesmen- acreditamos que há um mundo externo.
falar de uma inteligibilidade da exis- te na forma como certas impressões
aparecem aos sentidos que se origina  George Berkeley (1685-1753): filósofo irlan-
tência externa na filosofia de Hume? dês. (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369 33


Para defender a consistência da crença alismo berkeleyano implica a prefigura- constituição daquilo que entendemos
vulgar na matéria, enquanto a crença ção da nova forma de se interpretar o por “objeto”. Entretanto, ressalto no-
de que nossas impressões coerentes e problema da “correspondência” entre vamente que a importância da filoso-
constantes são também contínuas e in- mundo e representação, conforme já fia humeana nas observações de Kant
dependentes, uma das etapas centrais indiquei na questão anterior. Isso, sem é um tema ainda a ser mais explorado
será refutar o princípio berkeleyano dúvida, influencia o criticismo kantiano. pelos comentadores.
segundo o qual ser é ser percebido. Porém, a discussão humeana que reco-
Para tanto, coube à filosofia humeana nhecidamente apresenta consequências IHU On-Line - Qual é a atualidade
mobilizar uma série de princípios da na filosofia de Kant é a pertinente à rela- da filosofia de Hume? Quais são suas
imaginação, e, mais especificamente, ção causal. Mencionando-a, Kant afirma contribuições ao debate quanto à
elaborar uma nova “teoria da mente”. que Hume o “despertou de seu sonho possibilidade do conhecimento?
A concepção da mente como um feixe dogmático”. Andrea Cachel - Penso que a atuali-
de percepções – ou um teatro sem pal- O debate quanto à extensão dessa dade da filosofia humeana está ligada
co – explicaria, segundo Hume, em que influência na filosofia kantiana ainda precisamente ao seu viés crítico, por
medida não é contraditório pensar que está aberto. Contudo, de modo geral, um lado, e, por outro, ao naturalismo
algumas percepções podem se ausentar podemos perceber que as evidências característico das suas tentativas de
da mente sem que isso implique a sua apresentadas por Hume quanto à im- resposta aos problemas por ele pró-
não existência enquanto percepções e, possibilidade de se fundamentar a re- prio formulados. Quanto ao primeiro
no sentido contrário, que novas percep- lação causal na percepção direta dos aspecto, podemos citar o exemplo da
ções possam se conectar ao feixe sem objetos ou numa razão compreendida análise humeana sobre a causa e efei-
que isso implique a criação constante ainda à luz do paradigma clássico ins- to. A argumentação humeana, segundo
de novas existências. piram toda a constituição kantiana de a qual não há uma base racional para
um campo de determinação a priori a passagem da observação presente
IHU On-Line - Ainda sobre esse tema, dos objetos, em especial o campo das de uma conjunção constante para uma
qual é a influência de Hume nas con- categorias do entendimento. Isso não inferência futura, ainda é uma das
cepções kantiana? significa ignorar as diferenças cruciais grandes questões filosóficas a respeito
Andrea Cachel - Ao procurar vencer entre esses autores, tampouco incor- do conhecimento. Ela inspira opiniões
os desafios colocados pelo idealismo rer no erro do anacronismo. Entendo como a de Popper, que diz que as teo-
berkeleyano, defendendo a inteligibili- que a maioria das respostas dadas por rias científicas devem ser falseáveis e
dade da ideia de objeto externo, Hume Hume às questões por ele discutidas, não propriamente confirmadas. Assim,
já prefigurou um novo horizonte de sobretudo as atividades da imagina- suas percepções quanto aos limites à
compreensão sobre a natureza da “re- ção implicadas nessas respostas, seria possibilidade do conhecimento man-
presentação”, dando impulso às tenta- completamente rejeitada por Kant. têm seu espírito inovador. Por outro
tivas de superação da teoria das ideias Porém, aquilo que hipoteticamente lado, o enfoque humeano nas tendên-
modernas. Nesse contexto, apontou a Kant poderia compreender como um cias naturais da mente humana e no
necessidade do percurso a ser trilhado equívoco parece fazer parte do espí- hábito parece bastante compatível
por filósofos a ele posteriores, tais como rito das respostas oferecidas pela sua com as discussões epistemológicas
Kant. No caso específico da discussão so- filosofia. Hume parece ser um autor contemporâneas que procuram deba-
bre a crença nos corpos, entendo que a fundamental para a percepção kan- ter os temas pertinentes ao conheci-
tentativa de defender a consistência da tiana da necessidade de se estender mento à luz de ciências como a biolo-
mesma dos desafios colocados pelo ide- a espontaneidade da consciência na gia e a neurociência.

EAD - Jesus e o reino no Evangelho de Marcos - 2011


Início - 22-08-2011

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34 SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369


A atualidade da filosofia humeana
Filosofia contemporânea tem valorizado obra do pensador escocês, pondera Adriano Na-
ves de Brito. É preciso promover intersecções entre seu legado filosófico e outras áreas
do conhecimento

Por Márcia Junges

H
á um interesse crescente na filosofia de David Hume. É possível, inclusive, “falar de uma aborda-
gem humeana em moral que vem ganhando espaço na filosofia contemporânea”, aponta o filóso-
fo Adriano Naves de Brito, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. O coordenador
do PPG em Filosofia da Unisinos diz que é preciso, junto com Hume “mas não apenas com ele”,
misturar a filosofia com outras áreas do conhecimento como psicologia, neurociências, biologia e
estatística. Analisando o nexo entre vontade e determinismo moral em Hume, afirma: “A vontade para Hume
é vontade natural, e não uma vontade livre (e pura), capaz, portanto, de inaugurar cadeias causais sem a
influência de outra causa que não ela mesma. Nesse sentido, a vontade humeana tem de ser vista desde o
prisma do determinismo causal, ou, em outros termos, sob a ótica dos eventos físicos”.
Coordenador do Programa de Pós-Graduação da Unisinos, Adriano é graduado em Pedagogia pela Pontifícia
Universidade Católica de Goiás – PUC Goiás, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul – UFRGS com a tese Nomes próprios. Estudo em semântica e ontologia (Brasília: UnB, 2003).
Dirige a Sociedade Brasileira de Filosofia Analítica – SBFA. Investigou obras teóricas de Hume e Kant e dedicou-
se à filosofia da linguagem contemporânea, área na qual estudou as teorias da referência de nomes próprios,
confrontando as posições fregeana e kripkeana. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são os principais samento de Tugendhat, dialogando buscando apresentar uma alternativa
temas do pensamento da Hume que com o legado humeano e kantiano? teórica para o tratamento dos temas
continuam atuais e pertinentes ao Adriano Naves de Brito - Minha leitura morais que não estivesse orientada
debate filosófico no século XII? de Tugendhat o coloca entre as duas pelo neokantismo (e pelo racionalis-
Adriano Naves de Brito - Hume é um perspectivas, a de Hume e a de Kant. mo, em sentido amplo) latente nas
autor muito atual devido a sua aborda- Do primeiro, como vejo, ele se aproxi- posições contratualistas. O resultado
gem não apriorista em filosofia, seja no ma pela importância que dá aos sen- tem sido uma teoria de cunho forte-
campo teórico, seja no campo prático. timentos na dinâmica da moral para a mente naturalista (e evolucionista)
A inspiração moderna, mas não car- nossa espécie, mas do segundo, pela quanto à motivação moral e imanente
tesiana, de investigação da natureza via da filosofia neokantiana, dominan- quanto ao valor.
humana, está bastante em conformi- te no século XX, sobretudo pelo viés
dade com as investigações de discipli- do contratualismo, ele se aproxima IHU On-Line – Qual é a importância
nas novas como as neurociências e as devido ao tema da justificação dos ju- da filosofia de Hume para o debate
ciências cognitivas. No campo prático, ízos morais. Acho as duas perspectivas em filosofia moral?
sua abordagem dos temas éticos pelo inconciliáveis, e esse é o eixo de mi- Adriano Naves de Brito - Sua impor-
viés dos sentimentos é profundamente nha crítica a Tugendhat. A partir dessa tância, graças à naturalização crescen-
compatível com o naturalismo e, por crítica, enveredei pelo naturalismo, te da discussão filosófica nesse século,
isso, compatível com as ciências, em  Ernst Tugendhat (1930): filósofo tcheco, tem crescido enormemente. Sua filoso-
especial com a perspectiva darwinista nascido em Brno. É autor de, entre outros, fia já era um ponto de referência de-
da biologia. Der Wahrheitsbegriff bei Husserl und Heide- vido a sua famosa falácia naturalista,
gger (2 ed., Berlin: Walter de Gruyter, 1970);
Lições introdutórias à filosofia analítica da assim nomeada por G. Moore. O pro-
IHU On-Line - Poderia explicar a in- linguagem (Ijuí: UNIJUÍ, 1992); Lições sobre blema aqui é o da explicação da nor-
terseção que você realiza em suas ética (Petrópolis: Vozes, 1997) e Não somos de matividade, do dever ser, a partir de
arame rígido: conferências apresentadas no
pesquisas no campo da moral, na fun- Brasil em 2001 (Canoas: ULBRA, 2002). (Nota bases empíricas, com base naquilo que
damentação da ética, a partir do pen- da IHU On-Line) é, de onde as ciências partem. Esse
SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369 35
problema ainda ocupa as teorias morais Adriano Naves de Brito - A vontade de animais com sistema nervoso com-
de diferentes matizes, sobretudo as de para Hume é vontade natural, e não plexo como o nosso, isso é, animais
cunho naturalista, já que, por sua op- uma vontade livre (e pura), capaz, com grande autonomia de ação.
ção de princípios, partem da natureza, portanto, de inaugurar cadeias causais
logo, daquilo que é, para alcançar as sem a influência de outra causa que IHU On-Line - Gostaria de acrescen-
suas explicações sobre o âmbito nor- não ela mesma. Nesse sentido, a von- tar algum aspecto no questionado?
mativo humano. Recentemente, con- tade humeana tem de ser vista des- Adriano Naves de Brito - Gostaria de
tudo, ela tem sido revisitada também de o prisma do determinismo causal, exortar à leitura desse interessante e
em sentido positivo, por conta da rein- ou, em outros termos, sob a ótica dos fundamental autor, Hume, que, ade-
clusão das emoções como base da mo- eventos físicos. mais, é um grande escritor. Para além
ralidade. Na literatura recente, Hume disso, gostaria de convidá-los a ousar
tem sido um autor muito citado. Pode- IHU On-Line - Qual é o nexo que une – em par com Hume, mas não apenas
se falar de uma abordagem humeana utilidade e simpatia em Hume? E a com ele – misturar filosofia com outras
em moral que vem ganhando espaço na que se refere a contraposição desse disciplinas, como a psicologia, a neu-
filosofia contemporânea. pensador ao egoísmo cético? rociência, a biologia e a estatística,
Adriano Naves de Brito - O tema da para citar algumas. Em suma, a mis-
IHU On-Line - Em que aspectos o utilidade em Hume é mais complexo turar filosofia e ciências. Embora essa
universalismo na moral a partir de do que se pode intuir à primeira vista. tenha sido sempre a vocação da filo-
Hume se configura numa alternativa A história da filosofia cunhou o termo sofia, não raro ela se esquece de uma
não kantiana? utilitarismo e acabou incluindo Hume lição fundamental de Kant; sim, de
Adriano Naves de Brito - O univer- sob esse conceito. Contudo, Hume não Kant!, qual seja, o criticismo. Ao fazê-
salismo é um problema para a filoso- é um utilitarista nos termos de Ben- lo, a filosofia envereda pelo dogmatis-
fia da Hume, pois uma filosofia moral tham ou Mill. A utilidade, para Hume, mo apriorístico e se perde em aporias.
que parte do que agrada tende, sem tem um sentido naturalista e não de A matemática, nesse caso, é, via de
ulteriores explicações e pressupostos cálculo de vantagens. As ações morais regra, o modelo único de ciência com
(como o evolucionismo, por exemplo), são boas porque são úteis e são úteis o qual se conta, mas isso não precisa e
ao subjetivismo, ou, no mínimo, ao porque são conformes ao nosso bem e, não deve ser assim. Kant mesmo pode
culturalismo. Mas essa não era a vi- por isso, agradam. É claro que, visto ter sucumbido a esse erro, de nota
são de Hume, embora lhe faltassem os desde o ponto de vista da evolução, platonista, vale dizer, mas isso não
elementos para defendê-la contra to- essa equação se fecha perfeitamente. desautoriza o seu juízo de que o criti-
das as objeções. Ele via a sua perspec- Esse elemento evolucionista faltava a cismo (e posso traduzi-lo por “natura-
tiva como universalista, pois cria na Hume, óbvio, mas sua teoria casa-se lismo”) é a via que permanece aberta
universalidade da natureza humana. perfeitamente com ele. Ora, a simpa- à filosofia.
Essa perspectiva, contudo, não é nada tia é um sentimento de conexão entre
kantiana, para quem o fundamento da seres vivos de vida social complexa e
Leia Mais...
moral não é nossa natureza fisiológi- que resulta numa comunicação afeti-
ca ou psíquica, mas racional. Se posso va. Sentimos as dores e os prazeres dos Confira outras entrevistas concedidas por
Adriano Naves de Brito à IHU On-Line.
dizê-lo de modo um pouco caricatural outros. O termo, portanto, deve ser
com respeito à história da filosofia, lido como uma empatia compassiva. * IHU Repórter. Edição número 211, Revista IHU
Kant foi o vencedor desse duelo da mo- Como não gostamos de dor, buscamos, On-Line, de 12-03-2007, disponível em http://bit.
ly/mq2mox
dernidade até o século XX, mas a mesa como qualquer outro ser vivo, evitá-la, * Cirne-Lima, um filósofo com grande respeito pelas
começa a virar em favor de Hume. o que, no tocante à vida social, signifi- ciências. Revista IHU On-Line número 261, de 09-
ca interessar-se pelo bem estar dos de- 06-2008, disponível em http://bit.ly/l0UHgt
* Ética e sentimentos morais. Cadernos IHU Ideias
IHU On-Line - Como vontade e de- mais, sobretudo dos que nos são mais número 52, em autoria com Thomas Kesselring, dis-
terminismo moral se entrelaçam em próximos. Esse sentimento, evidente- ponível em http://bit.ly/kx7y3z
Hume? mente, é muito útil para a vida social

Seminário 50 anos da Campanha da Legalidade: memória da


democracia brasileira

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36 SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369


Um cético e um naturalista
Ambas tendências são unidas na filosofia humeana, abrindo espaço para a investigação
da racionalidade. Tal tentativa, aponta Bruno Pettersen, explica exemplarmente “como
pensamos e como deveríamos pensar”

Por Márcia Junges

“H
ume é tanto um cético como um naturalista, unindo duas tendências filosóficas diver-
sas apenas como um grande filósofo pode fazê-lo”, observa o filósofo Bruno Pettersen
na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Para ele, Hume pavimentou os
caminhos da investigação “a partir de seu ceticismo, naturalismo, empirismo e princi-
palmente a junção que ele faz destas várias tendências em sua filosofia”. E completa:
“historicamente é fundamental conhecermos o empirismo humeano como uma tentativa exemplar de expli-
car como pensamos e como deveríamos pensar”.
Graduado e mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Bruno é doutorando
em Filosofia pela mesma instituição com a tese A narrativa neopirrônica. Atua como professor visitante do
Departamento de Filosofia da UFMG, é professor da Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia – Faje e membro
do Grupo Hume – UFMG-CNPq. É um dos organizadores de Ensaios sobre Hume (Belo Horizonte: Segrac, 2006).
Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são os pontos em nos. No entanto, Quine é um empirista gância a partir de princípios simples
comum entre o empirismo de Hume como Hume, e isto quer dizer simples- apoiados na distinção entre impres-
e Quine? mente que, ao fim e ao cabo, para am- sões e ideias. A partir desta distinção,
Bruno Pettersen – Hume pode certa- bos o acesso ao mundo se dá por meio Hume estabelece seu “princípio da có-
mente ser pensado como um dos he- das nossas terminações nervosas. pia”, onde toda ideia deve ter surgido
róis da filosofia analítica. De Russell Voltemos ao começo da fala, como de uma impressão. Este princípio per-
a Quine, ele sempre fora um dos filó- disse: há duas características humea- mite a Hume verificar qual ideia seria
sofos citados com mais atenção. Mais nas herdadas por Quine, o empirismo justificada (aquelas decorrentes de
especificamente, quando nos volta- e o naturalismo; vejamos esta última. uma impressão) e aquelas ideias que
mos a Quine, essa influência humeana O naturalismo de Quine é uma doutri- carecem de justificação (aquelas que
se deve a dois motivos: o empirismo na que, pelo menos inicialmente, é não podemos encontrar uma impressão
e o naturalismo. Apesar de podermos idêntica à tese humeana: se queremos correspondente). Tal movimento dá
dizer que Quine herda de Hume o em- estudar o ser humano (e o mundo), a energia epistêmica necessária para
pirismo, precisamos distinguir o que devemos partir para uma investigação que Hume desenvolva a sua investiga-
realmente do empirismo de Hume que da natureza física. O naturalismo de ção da mente. Assim, historicamente
Quine herda. Assim, se Hume tem um Quine é mais radical que o de Hume, é fundamental conhecermos o empi-
tipo de empirismo do “véu das ideias” mas certamente o fundamento é o rismo humeano como uma tentativa
onde impressões são sucedidas por mesmo. exemplar de explicar como pensamos
ideias na mente, Quine, e boa parte e como deveríamos pensar.
da tradição contemporânea, nega esse IHU On-Line – Qual é a atualidade do Já no que tange à atualidade ar-
tipo de empirismo fundacionista e re- conceito de empirismo humeano? gumentativa do empirismo de Hume,
ducionista. O empirismo de Quine é, Bruno Pettersen – Podemos separar não há realmente uma tese no empi-
ao contrário de Hume, holista com a essa questão em dois pontos: o primei- rismo de Hume que permaneça. De-
justificação se dando no todo teórico ro da história da filosofia, e o segundo pois da crítica de autores como Quine
e não nas partes (impressões/ideias). argumentativo. No que tange à histó- e Sellars é praticamente impossível
O que há de especial no empirismo de ria da filosofia, o empirismo de Hume  Wilfrid Stalker Sellars (1912-1989): filósofo
Quine surge justamente da negação é absolutamente central. Hume estru- americano que apresentou a doutrina do “no-
minalismo psicológico”, em que todo o estar
do empirismo reducionista dos moder- tura o conhecimento humano com ele- ciente é uma questão linguística. Chamou

SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369 37


manter o empirismo de Hume, afinal Esse trabalho está agora chegando
o reducionismo extremo e o fundacio-
“Do modo que eu vejo, ao final com a defesa de minha tese
nismo não são, hoje, teses com forte sobre este assunto.
apelo argumentativo. Contudo, não
há um ponto no qual Acerca deste ceticismo neopirrô-
podemos perder de vista outros as- nico podemos colocar alguns desa-
pectos da filosofia de Hume que per-
Hume é certamente um fios. Vamos a eles. O primeiro é o
manecem tão atuais como eram em desafio histórico: Como o ceticismo
sua época, tais como o naturalismo e
cético: ele duvida neopirrônico é realmente inovador
a crítica a uma metafísica puramente em relação ao pirronismo clássico?
especulativa.
seriamente das O ponto central da inovação do ce-
ticismo contemporâneo é a atualiza-
IHU On-Line – Há uma relação entre
capacidades de a razão ção tanto dos modos céticos quanto
o empirismo e o ceticismo desse fi- da descrição da vida comum.
lósofo?
humana compreender O segundo é um desafio teórico: A
Bruno Pettersen – Esta é uma questão quem o cético contemporâneo com-
de difícil resposta, isto porque o real
o real” bate? Porchat focou sua análise des-
aspecto do “ceticismo” de Hume é algo te assunto na crítica de teorias da
que é debatido pelos seus intérpretes. investigação. verdade que supõem oferecer uma
Muitos destes como Don Garrett não descrição metafísica da verdade.
aceitam o ceticismo de Hume, e ou- IHU On-Line – Quais são os grandes Porchat aponta que o único modo
tros como Robert Fogelin pensam em desafios do ceticismo contemporâ- de falarmos acerca da verdade é se
um Hume cético. neo? optarmos por uma descrição menos
Do modo que eu vejo, há um ponto Bruno Pettersen – O ceticismo vivia comprometida com a metafísica,
no qual Hume é certamente um céti- atualmente um período de forma- sendo por outro lado mais focada
co: ele duvida seriamente das capaci- ção. Até recentemente não havia, na descrição do mundo. Já Fogelin,
dades de a razão humana compreen- de fato, um conjunto bem estrutu- concentrou sua tese na crítica da ra-
der o real. Hume, como muitos outros rado de teses que poderíamos cha- cionalidade, indicando que é próprio
céticos modernos, tais como Bayle e mar de um ceticismo eminentemen- da razão ter anomalias irresolúveis;
Montaigne, é um cético no que tange te contemporâneo. Se voltarmos um para ele muitos dos problemas filo-
ao uso da razão. Mas Hume certamen- pouco, veremos que depois do sé- sóficos atuais (como o problema de
te não é um cético acerca da possibili- culo XVIII, quando tínhamos fortes Gettier) surgem justamente da ten-
dade de construção de uma ciência da tendências céticas, entre o século tativa de superação destas anoma-
natureza física e humana. Para ele é XIX e o fim do século XX, quase não lias.
possível descrever as propriedades da tivemos manifestações originais de O terceiro e mais importante de-
natureza e as características da natu- ceticismo. Já por outro lado, houve safio é: Qual é a relevância do ceti-
reza humana desde que não se busque um aprofundamento das pesquisas cismo hoje? Em minha opinião, o ce-
uma explicação fora daquilo que nos é acerca dos céticos antigos e moder- ticismo atual surge como um crítico
acessível pelos sentidos. Deste ponto nos. Este interesse por uma história da racionalidade, em dois sentidos.
de vista, Hume é tanto um cético como do ceticismo não gerou inicialmente No primeiro sentido, como Hume, o
um naturalista, unindo duas tendên- uma reação cética clara. ceticismo contemporâneo entende
cias filosóficas diversas apenas como Podemos marcar como iniciativas que a razão humana é apenas parte
um grande filósofo pode fazê-lo. locais no século XX o ceticismo de da descrição do conhecimento. No
Depois desta explanação acerca do Stanley Cavell, Barry Stroud e Peter segundo sentido da crítica à razão, o
ceticismo de Hume, voltemos à ques- Unger. Mas eles não têm realmente ceticismo nos ajuda a compreender
tão do empirismo. Se pensarmos que um conjunto de teses semelhantes. como lidar com certos aspectos da
o empirismo de Hume é uma forma de Contudo, no começo da década de vida contemporânea, como a ciên-
apontar que a fonte de justificação é a 1990, o brasileiro Oswaldo Porchat cia, mesmo depois de percebermos
experiência e não a razão, vemos que e o americano Robert Fogelin publi- a fragilidade da razão.
o empirismo de Hume é dado em sim- cam quase simultaneamente obras
biose com o seu ceticismo: enquanto sobre um tipo de ceticismo que re- IHU On-Line – Gostaria de acres-
o ceticismo bloqueia o uso da razão, o almente é contemporâneo, e eles, centar algum aspecto não questio-
empirismo estabelece os caminhos da mesmo sem nunca ter tido qualquer nado?
contato, começaram a trabalhar no Bruno Pettersen – Neste ano em que
a atenção para o problema das impressões que eles chamam de um ceticismo
sensoriais da tradição empirista humeana e se completam os 300 anos do nasci-
a posterior noção de dados dos sentidos, por- neopirrônico. Desde 2006 tenho tra- mento de David Hume, é oportuno
que confunde o que causa uma crença com o balhado no ceticismo destes dois au- relembrarmos o pensamento deste
conteúdo dessa crença. Faz uma abordagem tores tentando oferecer alguma uni-
original das relações entre raciocínio teórico, filósofo com a intensidade que ele
prático e moral. (Nota da IHU On-Line) dade ao ceticismo contemporâneo.
38 SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369
merece. Do ponto de vista teórico, hoje que Hume organizou estas três ma década um florescimento da pes-
Hume é um dos maiores filósofos da orientações, mas realmente perma- quisa em Hume indo de trabalhos de
história, desenvolvendo um tipo de nece um desafio exegético entender iniciação científica, dissertações, te-
filosofia unindo uma argumentação como ele o fez, desafio este funda- ses até artigos e livros sobre este fi-
penetrante e um estilo de escrita mental na tentativa de compreensão lósofo. Não podemos deixar de men-
impressionante. Não podemos nos do humano. cionar os muitos eventos nacionais
esquecer dos muitos caminhos de Do ponto de vista acadêmico, é e internacionais sobre Hume aqui
investigação que Hume pavimentou ótimo pensar que atualmente exis- no Brasil e inúmeros fora. Essa rele-
a partir de seu ceticismo, naturalis- tem vários grupos de pesquisa nas vância acadêmica da obra de Hume
mo, empirismo e principalmente a universidades pelo mundo dedicados se faz mais presente agora, quando
junção que ele faz destas várias ten- ao pensamento de Hume, e aqui no completamos três séculos desde que
dências em sua filosofia. Sabemos Brasil temos especialmente na últi- este grande filósofo nascera.

Ciclo de Palestras: Economia de Baixo Carbono.


Limites e Possibilidades

Prof. Dr. Ignacy Sachs (Escola de Altos Estudos em


Ciências Sociais, França)

Biocivilização: o potencial brasileiro

Data: 1/9/2011

Informações em http://migre.me/5uPZG

SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369 39


40 SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369
Entrevista da Semana
“A economia é um subsistema do ecossistema’’
“Certamente podemos viver num nível próspero sem necessidade de que o nível de prosperi-
dade aumente continuamente”, pondera Herman Daly

Por Graziela Wolfart e Gilberto Faggion | Tradução de Luis Marcos Sander

P
ara ele não é possível haver crescimento econômico mantendo a sustentabilidade ecológica. E ele é
ninguém mais, ninguém menos do que Herman Daly, importante economista americano. Daly aceitou
gentilmente conceder a entrevista a seguir para a IHU On-Line, por e-mail, em que afirma que “a
economia é um subsistema do ecossistema, e o ecossistema é finito, não cresce e é materialmente
fechado. Temos um fluxo contínuo de energia solar entrante, mas que também não está aumentando”.
Na sua visão, “os países ricos precisam dar os primeiros passos rumo a um estado estacionário liberando espaço
ecológico para que os países pobres cresçam até atingir um nível de prosperidade suficiente para uma vida boa
– o mesmo objetivo que todos os países deveriam tentar alcançar”.
O economista estadunidense Herman Daly, de 93 anos, é professor emérito da Escola de Política Pública de
College Park, nos Estados Unidos. Foi economista-chefe do Departamento Ambiental do Banco Mundial, onde
auxiliou a desenvolver princípios políticos básicos relacionados ao desenvolvimento sustentável. Enquanto lá
esteve, envolveu-se em operações ambientais na América Latina. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em sua opinião, é pos- ou PIB) para o qual os custos adicionais IHU On-Line - Como se aplicaria no
sível haver crescimento econômico (incluindo os custos ambientais e so- cenário mundial atual o conceito de
mantendo a sustentabilidade ecoló- ciais) são maiores do que os benefícios estado estacionário?
gica? adicionais em termos de produção. Herman Daly - Se nem o crescimento
Herman Daly – Não. Não a longo pra- nem o decrescimento são sustentá-
zo. A economia é um subsistema do IHU On-Line - O senhor conhece o veis, isso deixa o estado estacionário
ecossistema, e o ecossistema é finito, conceito de decrescimento, defendi- como único candidato. Mas nem mes-
não cresce e é materialmente fecha- do por Serge Latouche? Em que sen- mo um estado estacionário pode durar
do. Temos um fluxo contínuo de ener- tido ele se relaciona com o conceito para sempre num mundo entrópico, de
gia solar entrante, mas que também de “crescimento deseconômico”? modo que o objetivo é a longevidade,
não está aumentando. Herman Daly - Suponho que decresci- e não a vida eterna neste mundo. Os
mento seja a correção para o fato de países ricos precisam dar os primeiros
IHU On-Line - Podemos imaginar um se ter tido um período de crescimen- passos rumo a um estado estacionário,
mundo com prosperidade sem cres- to deseconômico – ou de ter crescido liberando espaço ecológico para que
cimento econômico? além da escala ótima da economia em os países pobres cresçam até atingir
Herman Daly – Sim. Certamente po- relação ao ecossistema. A escola do um nível de prosperidade suficiente
demos viver num nível próspero sem decrescimento reconhece que a esca- para uma vida boa – o mesmo objetivo
necessidade de que o nível de prospe- la atual da economia é grande demais que todos os países deveriam tentar
ridade aumente de modo contínuo. para se manter num estado estacio- alcançar.
nário. Por conseguinte, precisamos
IHU On-Line - Como define o concei- decrescer até chegar a uma escala IHU On-Line - Como o senhor enten-
to de “crescimento deseconômico”? sustentável que, então, procuramos de e define o que se chama hoje de
Herman Daly - O crescimento deseco- manter num estado estacionário. O “economia de baixo carbono”?
nômico é um crescimento que começou decrescimento, assim como o cresci- Herman Daly - Ela significa nos de-
a custar mais do que vale – um cresci- mento, não pode ser um processo per- sacostumar dos combustíveis fósseis,
mento (seja em volume de produção manente. mas poderia significar dependência da

SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369 41


energia solar, como eu gostaria que “O crescimento dificuldades surgem para o Brasil e
acontecesse, ou também de energia outros países emergentes com a eco-
nuclear, como defendem outros. realmente não satisfaz nomia de baixo carbono?
Herman Daly - O mesmo vale para to-
IHU On-Line - Qual a importância, na mais as verdadeiras dos os países – um planeta em que se
sua visão, de iniciativas como o IPCC possa viver durante muito tempo em
(1988), o Protocolo de Kyoto (1997) necessidades humanas vez de todos se darem mal juntos.
e a Convenção do Clima (1992) no
sentido de promover a economia de de comunidade, bons IHU On-Line - Que relação o senhor
baixo carbono? Essas convenções estabelece entre economia e felici-
têm algum impacto na prática? relacionamentos e paz” dade?
Herman Daly - Até agora elas foram Herman Daly - O PIB e a felicidade es-
uma decepção, porque não se confron- tão correlacionados positivamente até
taram com a questão do crescimento setor financeiro – o setor financeiro se um certo limiar de suficiência. Para
versus estado estacionário. Aceitam o tornou um parasita. além dele, o PIB não parece aumen-
contexto do crescimento e evitam a tar a felicidade, mas continua a causar
discussão a respeito da economia do IHU On-Line - Uma crise financeira problemas ambientais.
estado estacionário. como a que vivemos justifica o desca-
so ambiental e a tomada de medidas IHU On-Line - Quais as implicações
IHU On-Line - Quais seriam as gran- restritivas radicais, com emissão de de uma sociedade em que o cresci-
des transformações estruturais que poluentes, como único meio de sair mento econômico não dá conta da
as economias e as sociedades teriam do cenário sombrio, ou é justamen- dimensão subjetiva do ser humano?
que fazer para a passagem a uma te um momento que favorece uma Herman Daly - Creio que o cresci-
economia de baixo carbono? mudança no paradigma econômico, mento realmente não satisfaz mais as
Herman Daly - Elas precisam adotar como oportunidade para se pensar verdadeiras necessidades humanas de
o paradigma do estado estacionário e em alternativas no sentido da econo- comunidade, bons relacionamentos e
esquecer o crescimento contínuo. mia de baixo carbono? paz. Uma economia calcada no cres-
Herman Daly - Certamente a opção cimento leva à guerra por recursos e
IHU On-Line - Que análise o senhor seria a segunda, não a primeira. território.
faz da crise financeira mundial atual?
Que rumos o senhor vislumbra e que IHU On-Line - Uma economia de baixo
mudanças vê surgir? carbono abriria quais novas possibili-
Herman Daly - Vejo a crise financeira dades para a sociedade, que sairia da Leia Mais...
como decorrência de se tentar forçar economia baseada em combustíveis
* A sustentabilidade é turquesa (http://bit.
o crescimento para além dos limites fósseis? Bastaria mudar as estruturas ly/qRJzwV)
físicos e econômicos. À medida que o externas ou seria exigida uma meta- * Por uma Declaração Universal dos Direitos da Natu-
reza. Reflexões para a ação (http://bit.ly/gLcP8S)
crescimento fica fisicamente mais difí- morfose dos sujeitos, como sugere
* Manfred Max-Neef e Herman Daly: dois economis-
cil, tentamos continuar crescendo em Edgar Morin? tas alternativos (http://bit.ly/bavPuI)
termos monetários, financeiros emi- Herman Daly - Se isso significa con- * Mundo em transe: os desafios do ecodesenvolvi-
mento. Entrevista especial com José Eli da Veiga
tindo montanhas de títulos da dívida versão, uma mudança do coração e da
(http://bit.ly/c84kxL)
e tratando isso como se fosse cresci- mente, então, sim, acho que é neces- * “Separar economia do meio ambiente é não enten-
mento real – supondo que toda essa sário, mas não suficiente sem políticas der nada’’. Entrevista especial com José Eli da Veiga
(http://bit.ly/BeXiO)
dívida venha a ser saldada pelo cres- públicas para um estado estacionário.
* Ciclo de Palestras: Economia de Baixo Carbono. Li-
cimento futuro. Nos EUA, atualmente mites e Possibilidades (http://bit.ly/fmmTpa)
40% de todos os lucros são obtidos no IHU On-Line - Que oportunidades e

Participe dos Eventos do IHU. A programação do segundo semestre está

disponível no endereço eletrônico

www.ihu.unisinos.br

42 SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369


Livro da Semana
Vozes abertas da América Latina: Estado, políticas públicas
e democratização da comunicação (Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2011).

“A América Latina vive uma batalha midiática


sem precedentes”
Dênis de Moraes afirma que tem faltado vontade política à Presidência da República e a uma
parte ponderável do Congresso Nacional para assumir a causa urgente da democratização da
comunicação

Por Graziela Wolfart

“P
ela primeira vez no continente, políticas que reestruturam os sistemas de comunicação pros-
peram nas agendas públicas. É uma tentativa de superar a histórica letargia do Estado diante
da avassaladora concentração das indústrias de informação e entretenimento nas mãos de
um reduzido número de corporações, quase sempre pertencentes a dinastias familiares”. A
afirmação é de Dênis de Moraes, autor do livro recém-lançado pela Mauad Vozes abertas da
América Latina: Estado, políticas públicas e democratização da comunicação. Na entrevista que concedeu por
e-mail para a IHU On-Line sobre a obra, ele declara que “a chamada grande imprensa é a primeira a faltar com
isenção e neutralidade quando intenta orientar ideologicamente os leitores, em editoriais e artigos; quando
adota juízos particulares para selecionar, tratar e hierarquizar as informações; quando exerce controle sobre
o que vai ser difundido, restringindo, silenciando ou amplificando questões e pontos de vista; quando nos diz
quais são os escândalos, as crises, os banhos de sangue e as tragédias que devem ser conhecidos, discutidos,
aceitos, rejeitados ou tolerados; quando espetaculariza situações e até guerras e atentados, seja para despertar
comoção e adesão, seja para infundir ódio e preconceito, ou mesmo para naturalizar desigualdades; e ainda
quando descontextualiza e isola as notícias de suas causas ou consequências históricas, políticas e culturais”. E
conclui: “o prosseguimento das transformações em curso na América Latina dependerá, fundamentalmente, de
vontade política permanente e de uma sólida sustentação popular às iniciativas democratizadoras de governos
progressistas”.
Dênis de Moraes é professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminen-
se, pesquisador do CNPq e da Faperj, autor e organizador de vários livros, entre os quais Mutações do visível: da
comunicação de massa à comunicação em rede (Rio de Janeiro: Pão e Rosas Editora, 2010), A batalha da mídia
(Rio de Janeiro: Pão e Rosas Editora, 2009), Sociedade midiatizada (Rio de Janeiro: Mauad, 2006) e Por uma
outra comunicação (Rio de Janeiro: Record, 2003). Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que relações podem ser participação do poder público nos cas que reestruturam os sistemas de
estabelecidas entre as novas ações sistemas de comunicação da América comunicação prosperam nas agendas
comunicacionais e os reordenamen- Latina ganhou ímpeto com o consen- públicas. É uma tentativa de superar
tos políticos, econômicos e socio- so estabelecido entre governos pro- a histórica letargia do Estado diante
culturais promovidos por “governos gressistas quanto à importância de se da avassaladora concentração das in-
eleitos com as bandeiras da justiça fortalecer a pluralidade e facilitar o dústrias de informação e entreteni-
social e da inclusão das massas nos acesso dos cidadãos à informação, ao mento nas mãos de um reduzido nú-
processos de desenvolvimento”? conhecimento e às tecnologias. Pela mero de corporações, quase sempre
Dênis de Moraes – O debate sobre a primeira vez no subcontinente, políti- pertencentes a dinastias familiares.

SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369 43


As pretensões monopólicas foram be- que ultrapasse 35% da população do
neficiadas por legislações omissas ou
“Cabe ao Estado um país. Ainda em 2011, a agência regu-
complacentes e pela adesão de su- ladora do audiovisual, criada pela lei,
cessivos governos às doxas neoliberais
papel regulador, promoverá, por editais públicos, a li-
do “Estado mínimo” e do “máximo de citação de nada menos de 110 canais
mercado”.
harmonizando anseios e digitais de televisão aberta, em todo
O que governos progressistas alme- o país, destinados a setores sociais e
jam agora são intervenções que, mes-
zelando pelos direitos à comunitários sem fins lucrativos.
mo quando limitadas ou parciais, di- Têm havido ainda progressos consi-
versifiquem os meios de comunicação.
informação e à deráveis em termos de reconhecimen-
Tornam-se essenciais a discussão e a to legal da radiodifusão comunitária
fixação de critérios e parâmetros de
diversidade cultural” como um dos instrumentos de expres-
interesse social para a definição das são dos setores sociais e populares, so-
linhas gerais de programação das em- bloco mais ativo é formado por Vene- bretudo em países como Uruguai, Bolí-
presas concessionárias de rádio e tele- zuela, Bolívia, Equador e Argentina, via, Venezuela, Paraguai e Equador.
visão, bem como a renovação de mar- cujos governos são ostensivos na re- É importante mencionar outras
cos regulatórios para as outorgas de jeição ao monopólio privado da mídia ações governamentais, em andamen-
canais; a descentralização dos meios e ao seu desmedido predomínio na to ou planejadas, tais como apoios
de veiculação; o fomento ao audiovi- vida social. Entre as medidas que vêm institucionais a meios alternativos e
sual independente; o estabelecimento sendo tomadas, devemos destacar as comunitários, fomento ao audiovisual
de cotas de produção, distribuição e novas legislações para a radiodifusão independente e à produção cultural
exibição de conteúdos nacionais nos sob concessão pública, a fim de coibir nacional, reorganização da comunica-
cinemas e nas televisões aberta e a concentração dos setores de rádio e ção estatal e fortalecimento da coo-
paga; e a integração cultural em bases televisão nas mãos de poucos grupos peração regional em moldes não mer-
cooperativas. privados. As disposições legais visam cantis.
O fato alentador, na América Lati- assegurar condições equânimes em Para tentar se contrapor às sis-
na, é a conversão de algumas dessas termos de acesso, participação e re- temáticas campanhas opositoras da
premissas em fontes inspiradoras de presentatividade nos sistemas de ra- mídia comercial, os governos de Ve-
políticas públicas. Há uma série de diodifusão, para que haja equilíbrio nezuela, Equador, Bolívia e Paraguai
coincidências nos modos de repensar a nas prerrogativas de atuação entre estão ampliando seus sistemas de co-
atuação do Estado, a começar pelo en- três instâncias envolvidas: o próprio municação, lançando jornais diários
tendimento de que as questões comu- Estado (com serviço público de quali- ou semanais, com preços simbólicos,
nicacionais dizem respeito, na maioria dade e diversificado), o setor privado para divulgar suas realizações e ex-
das vezes, aos interesses coletivos. (com fins lucrativos e responsabilida- por seus pontos de vistas, tendo como
Não podem restringir-se a vontades des sociais bem definidas) e a socie- público-alvo leitores das classes po-
particulares ou corporativas, pois en- dade civil (movimentos sociais, co- pulares, que, por razões econômicas
volvem múltiplos pontos de vista. Cabe munitários e étnicos, universidades, e culturais, geralmente têm poucas
ao Estado um papel regulador, harmo- associações profissionais, produtores oportunidades de acesso a fontes di-
nizando anseios e zelando pelos direi- independentes, etc.). versificadas de informação. No plano
tos à informação e à diversidade cul- Um exemplo a ser seguido é o da televisivo, merecem ser lembradas as
tural. Também existe consenso quanto Lei de Serviços de Comunicação Au- experiências promissoras de canais es-
à importância de se repor o papel do diovisual, da Argentina, sancionada tatais de televisão educativa e cultu-
Estado como articulador e gestor de pela presidenta Cristina Kirchner em ral, como Encuentro (Argentina), Vive
plataformas de comunicação e como 10 de outubro de 2009. Segundo o Co- (Venezuela) e EcuadorTV, além do
fomentador de espaços autônomos de mitê para a Liberdade de Expressão canal multiestatal Telesur (que tem,
expressão no seio da sociedade civil, da Unesco, é uma das legislações anti- entre seus acionistas, os governos de
evitando-se que os canais informativos monopólicas mais avançadas do mun- Venezuela, Bolívia, Equador, Argenti-
e de entretenimento fiquem concen- do. Trata-se de um marco regulatório na, Cuba e Nicarágua). Nesse sentido,
trados no setor privado. abrangente para a comunicação midi- há governos latino-americanos que se
ática, incluindo convergência digital tornam operadores de mídia, sem fins
IHU On-Line – Quais as principais mu- entre TV a cabo, telefonia e internet, lucrativos, com o propósito de am-
danças nos sistemas de comunicação e um regime de outorgas em condições pliar seus espaços de veiculação e de
na América Latina? equitativas e não discriminatórias, im- interferência junto à opinião pública,
Dênis de Moraes – As providências pedindo a concentração de canais de mesmo que sejam muito desiguais as
antimonopólicas variam de país para TV aberta e paga e rádio AM e FM por condições de concorrência com o po-
país, refletindo peculiaridades socio- grupos midiáticos, além de determinar der da mídia comercial.
culturais e correlações de força es- que nenhuma concessionária de rádio
pecíficas de cada cenário político. O e TV pode ter uma área de cobertura IHU On-Line – Quais os principais
44 SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369
obstáculos para que esse processo
de democratização da comunicação
“As políticas públicas de depende de políticas públicas consis-
tentes, debatidas e formuladas em
prospere na América Latina?
Dênis de Moraes – A América Latina
comunicação, quando sintonia com anseios de segmentos
reivindicantes da sociedade civil.
vive uma batalha midiática sem pre-
cedentes, em função das resistências
existem, são IHU On-Line – Como o senhor qualifi-
ca, de modo geral, as políticas públi-
e tensões patrocinadas por corpora-
ções midiáticas contra as medidas que
absolutamente tímidas, cas na área da comunicação no Bra-
sil? Quais as principais urgências e os
governos progressistas têm procurado
implementar para tentar democratizar
limitadas, fragmentadas maiores desafios?
Dênis de Moraes – A legislação de ra-
os sistemas de comunicação. As cam-
panhas opositoras da mídia denunciam
e desencontradas” diodifusão brasileira continua sendo
“ameaças à liberdade de expressão” uma das mais anacrônicas da Améri-
que estariam sendo praticadas por go- foi lúcido e preciso ao salientar que ca Latina. Até hoje, não foram regu-
vernos progressistas, sempre que de- o conceito de liberdade de expressão lamentados os artigos 220 e 221 da
cidem instituir legislações antimono- está indissociavelmente vinculado aos Constituição promulgada em 5 de ou-
pólicas. O propósito, deliberado, mas direitos públicos e às aspirações co- tubro de 1988, que, respectivamente,
não assumido publicamente, dessa letivas, sem qualquer subordinação a impedem monopólio ou oligopólio dos
argumentação facciosa é impedir um interesses privados ou ambições par- meios de comunicação de massa (art.
convencimento mais amplo em torno ticulares. Na verdade, qualquer mo- 220, § 5º) e asseguram preferência, na
da necessidade de garantir diversida- dificação que possa afetar as receitas produção e programação das emisso-
de informativa e cultural. dos grupos midiáticos com as joias da ras de rádio e televisão, a “finalida-
Editoriais falam em hipotéticos coroa – as licenças de canais de rádio e des educativas, artísticas, culturais e
riscos de “censura” e “dirigismo esta- televisão – é rechaçada pela violência informativas”, além da “promoção da
tal”. Ora, certos grupos midiáticos que discursiva dos grupos midiáticos. Como cultura nacional e regional e estímulo
os publicam não têm autoridade moral se as outorgas de radiodifusão fossem à produção independente que objeti-
e ética para fazê-lo. Com honrosas propriedades exclusivas, quando, ape- ve sua divulgação” (art. 221, I e II).
exceções, a chamada grande impren- nas, são concessões do poder público, O imobilismo dos sucessivos gover-
sa é a primeira a faltar com isenção e com prazo de validade fixado em lei, nos chega a ser alarmante. As políti-
neutralidade quando intenta orientar sendo renováveis ou não. É uma ba- cas públicas de comunicação, quando
ideologicamente os leitores, em edi- talha difícil de ser travada, porque os existem, são absolutamente tímidas,
toriais e artigos; quando adota juízos governos progressistas não dispõem da limitadas, fragmentadas e desencon-
particulares para selecionar, tratar e potência de difusão dos conglomera- tradas. Não há uma visão estratégica,
hierarquizar as informações; quando dos privados, nem a influência social por parte do poder público, sobre o
exerce controle sobre o que vai ser di- daí decorrente. estratégico campo da comunicação de
fundido, restringindo, silenciando ou O prosseguimento das transforma- massa. Isso é grave porque as políticas
amplificando questões e pontos de vis- ções em curso na América Latina de- públicas são indispensáveis para a afir-
ta; quando nos diz quais são os escân- penderá, fundamentalmente, de von- mação do pluralismo, como também
dalos, as crises, os banhos de sangue tade política permanente e de uma para definir o que deve ser público e o
e as tragédias que devem ser conheci- sólida sustentação popular às inicia- que pode ser privado, resguardando o
dos, discutidos, aceitos, rejeitados ou tivas democratizadoras de governos interesse coletivo frente às ambições
tolerados; quando espetaculariza situ- progressistas. Os instrumentos legais particulares.
ações e até guerras e atentados, seja que podem viabilizar o reequilíbrio e As consequências do imobilismo
para despertar comoção e adesão, a descentralização dos sistemas de co- são de várias ordens. Persiste o coro-
seja para infundir ódio e preconceito, municação são indispensáveis, mas as nelismo eletrônico (concessões dire-
ou mesmo para naturalizar desigualda- mudanças dependem de um leque de tas ou indiretas de licenças de rádio e
des; e ainda quando descontextualiza ações coordenadas e permanentes, e televisão a parlamentares e políticos
e isola as notícias de suas causas ou não apenas da letra de forma jurídica. profissionais). Entidades que defen-
consequências históricas, políticas e Até porque não adianta ter princípios dem a democratização da comunica-
culturais. gerais democráticos se não houver a ção frequentemente protestam contra
O jurista Fábio Konder Comparato determinação política de governantes o fechamento de rádios comunitárias,
 Fábio Konder Comparato (1936): advoga- de fazer valer normas, regulamenta- com a apreensão, autorizada pela
do, escritor e jurista brasileiro, formado pela ções e procedimentos que garantam a Anatel ou por mandados judiciais, de
Faculdade de Direito da Universidade de São sua aplicação. Além de leis que impe-
Paulo. É professor titular aposentado (em equipamentos pela Polícia Federal e
2006) da Faculdade de Direito da Universida- çam práticas monopólicas, uma nova o indiciamento dos responsáveis com
de de São Paulo, doutor em Direito pela Uni- feição dos sistemas de comunicação base em dispositivos ultrapassados do
versidade de Paris e doutor Honoris Causa da
Universidade de Coimbra. Em 2009, recebeu Direito da Universidade de São Paulo. (Nota da Código Brasileiro de Telecomunicações
o título de Professor Emérito da Faculdade de IHU On-Line) (1962) e da Lei Geral de Telecomuni-
SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369 45
cações (1997). Torçamos para que a governista. E tudo isso enfrentando as
presidenta Dilma Rousseff leve adian-
“Tem-se a percepção de fortes pressões e resistências dos gru-
te o Plano Nacional de Outorgas para pos midiáticos e seus aliados. Cristina
Rádios Comunitárias, lançado por ela
que os governos se não recuou em momento algum.
em março de 2011 com o objetivo de
tornar mais ágil o processo de autori-
omitem em relação ao IHU On-Line – Em que sentido a obra
zação das emissoras e dar mais trans- de Eduardo Galeano lhe inspirou para
parência aos trâmites exigidos.
grave problema da o livro em questão?
De maneira geral, tem-se a percep- Dênis de Moraes – O título de meu li-
ção de que os governos se omitem em
concentração vro, intencionalmente, inspira-se no
relação ao grave problema da concen- clássico do mestre Eduardo Galeano, As
tração monopólica da mídia, por receio
monopólica da mídia, por veias abertas da América Latina, escri-
de contrariar os grandes grupos privados to na sombria era das ditaduras milita-
que controlam, há décadas, o setor.
receio de contrariar os res, na década de 1970. Galeano aludia
Não é por falta de diagnósticos abran- aos contrastes de uma região com ricas
gentes e de proposições consequentes
grandes grupos privados identidades e tradições culturais, porém
que não se renova o sistema de mídia assolada pelas clamorosas desigualdades
do Brasil. A 1ª Conferência Nacional de
que controlam, há que vicejam na engrenagem universal
Comunicação (Confecom), realizada do capitalismo e vítima de dois ciclos do
em dezembro de 2009 com a expressi-
décadas, o setor” colonialismo mais deletério. O primei-
va participação de delegados escolhidos ro representado pela pilhagem de suas
por entidades da sociedade civil, pelo o nosso país ficou para trás, nos últi- matérias-primas e riquezas naturais; o
empresariado e pelo próprio governo, mos anos, em termos de providências segundo, sem que o primeiro tenha de-
foi um marco histórico em termos de governamentais em prol da diversida- saparecido por completo, marcado por
esclarecimento e discussão pública das de informativa e cultural. Espero que privatizações e corrupções de toda or-
questões comunicacionais, tendo sido a presidenta Dilma rompa com a inér- dem, que fazem vibrar os mecanismos da
precedida por uma série de conferências cia de seus antecessores e demonstre espoliação. Tudo isso, enfatizava Galea-
estaduais e municipais. A Confecom de- vontade política e coragem para pro- no, para que “a injustiça continue sen-
finiu os temas prioritários que devem ser mover mudanças significativas no atu- do injusta e a fome faminta”. Quarenta
enfrentados pelo poder público para a al sistema de comunicação, a partir anos depois, ainda que desigualdades e
democratização da comunicação no país. de consultas aos setores da socieda- injustiças sociais persistam, em vários
E, no entanto, um ano e meio depois, a de civil envolvidos na questão. Dilma países notam-se progressos no combate
imensa maioria das 633 proposições da poderia inspirar-se no processo parti- à pobreza e à miséria, além de esforços
Conferência, ao que se sabe, ainda não cipativo que a presidenta Cristina Kir- para que as vozes historicamente silen-
foi incorporada à ação governamental. chner liderou na Argentina, com vistas ciadas pela mídia comercial e pelas eli-
à elaboração da Lei de Serviços de Co- tes dominantes possam se expressar na
IHU On-Line – Quais os principais municação Audiovisual. Cristina ouviu, cena pública, em defesa de suas aspira-
impasses que impedem a real demo- em audiências públicas na Casa Rosa- ções e necessidades. Mais do que nun-
cratização da comunicação em nosso da, as avaliações e reivindicações de ca, é preciso liberar o que os discursos
país? representantes das centrais sindicais, hegemônicos desejam silenciar ou neu-
Dênis de Moraes – Historicamente, das associações profissionais e comu- tralizar: a emergência de outras vozes,
tem faltado vontade política à Pre- nitárias, da Igreja, das universidades, portadoras de outras visões de mundo
sidência da República e a uma parte dos organismos de direitos humanos, e valores. Após décadas de domínio do
ponderável do Congresso Nacional do empresariado da mídia e da Coali- pensamento único neoliberal, é necessá-
para assumir a causa urgente da de- zão por uma Radiodifusão Democráti- rio entender que as novas vozes abertas
mocratização da comunicação. É uma ca, entre outros participantes. Vários que despontam no continente podem ser
lástima que, nesse campo, o Brasil es- pleitos apresentados à presidenta fo- a base da quebra da dominação secular e
teja na vanguarda do atraso na Amé- ram incorporados ao anteprojeto, de- da recuperação e multiplicação de bens
rica Latina. Basta olhar a maioria dos pois convertido em lei pelo Congres- e sonhos que lhes foram historicamente
países vizinhos para verificarmos como so, com apoio da maioria parlamentar usurpados.

Entrevista do Dia em www.ihu.unisinos.br

46 SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369


Confira as publicações do
Instituto Humanitas Unisinos - IHU

Elas estão disponíveis na página eletrônica


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SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369 47


Unesco desperta polêmica no debate sobre
regulação da comunicação no Brasil
Por Gislene Moreira�*

No último dia 6 de julho, a Frente do evento foram unânimes em reco-


Parlamentar pela Liberdade de Ex- nhecer a insuficiência (ou inexistên-
pressão e o Direito a Comunicação cia) do modelo de regulação brasileiro
– Frentecom deu um passo impor- para o tema, Puddephatt reascendeu
tante na tentativa de mobilizar a so- antigos debates internos entre as en-
ciedade e de qualificar o debate da tidades da sociedade civil. Nos fóruns
regulação midiática. No entanto, o de discussão interna do movimento,
seminário realizado em Brasília aca- muitas organizações deixaram claro
bou expondo as divergências internas sua discordância da visão apresentada
do movimento pelo direito a comuni- pelo consultor da Unesco.
cação no país. Roseli Goffman, do Fórum Nacio-
A polêmica foi despertada pelo nal pela Democratização da Comu-
consultor internacional da Organiza- nicação – FNDC, acredita que essa
ção das Nações Unidas para a Educa- postura possui equívocos para a reali-
ção, a Ciência e a Cultura – Unesco, dade brasileira, e cita como exemplo
Andrew Puddephatt. O especialista a questão da regulação da publicida-
destacou a necessidade de garantir a de infantil, na qual as empresas mi-
independência dos meios de comuni- diáticas expressam posturas bastante
cação e defendeu a criação de órgãos conservadoras em detrimento de in-
de mídia que autorregulem os conte- teresses sociais.
údos jornalísticos. Para ele, a liber- Mas as críticas ao posicionamento
dade de expressão precisa de algu- da Unesco não param por aí. Muitas
mas restrições, como em relação aos entidades apontam problemas nas pu-
discursos discriminatórios, mas essas blicações da entidade. Segundo Alice
medidas podem ser reguladas pelas Campos, da Frenavetec, os textos da
próprias empresas de comunicação. “Série debates CI: comunicação e in-
Ainda que todos os participantes formação”, produzido pela organiza-
ção das Nações Unidas sobre a regu-
 Criada em abril de 2011, a frente é inte-
grada por 206 parlamentares e conta com  Um exemplo do conservadorismo foi a men-
a participação de 104 entidades da socie- ção do relator do Conar ao Instituto Alana,
dade civil. O objetivo da frente é formular defensor da regulação para a área, como a
propostas para uma nova lei visando o setor “Bruxa Alana”. Ver detalhes em: http://www.
de comunicações. Mais informações, acesse consumismoeinfancia.com/2011/07/05/enti-
http://frentecom.wordpress.com. dades-divulgam-apoio-ao-instituto-alana/.

* Doutora em Ciências Sociais e Políticas pela Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso-
México), atua nos temas de participação, movimentos sociais e políticas de comunicação na América
Latina e é membro do Grupo Cepos. Email: gislene.moreira@flacso.edu.mx.

48 SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369


lação da comunicação no Brasil, pouco “Nas principais nização Mundial do Comércio para
contribuem na defesa do direito a o tema da exceção cultural, quando
comunicação. “Uma pena que o texto conquistas recentes dos tentava evitar que questões como
sobre o ‘Ambiente Regulatório’ ouviu a comunicação e a cultura fossem
a TV Globo e o Conar e se esqueceu movimentos sociais no reduzidas a mais um produto mer-
de dialogar também com nós, os ato- cantil no jogo do comércio interna-
res sociais diretamente envolvidos na tema da regulação de cional. Esse momento coincide com
comunicação”, afirma. o aumento da pressão da sociedade
A Abraco reclama que a insti- meios, como na civil e a reação de alguns países, es-
tuição pouco tem dado atenção ao pecialmente da América Latina em
tema dos meios comunitários. E ou- Argentina, a Unesco enfrentar a regulação midiática de
tros segmentos vão ainda mais longe, corte neoliberal. Mas também com a
e questionam a relação estabelecida foi um ator quase que volta dos EUA à organização.
pela Unesco com a Globo na parceria Esse breve panorama parece indi-
do Criança Esperança. Para o profes- insignificante” car que a entidade, historicamente na
sor Adilson Cabral, o debate é mais vanguarda do direito à comunicação,
profundo. A Unesco precisaria rever enfrenta ainda uma série de disputas
necessidade de um debate mais pro-
seus próprios conceitos internos, e e contradições internas que dificul-
fundo. A Unesco liderou, nos anos
a partir daí posicionar-se no cená- tam uma posição clara e unificada em
1970, os debates para um Nova Or-
rio. Ele acredita que o movimento relação à bandeira da liberdade de
dem Mundial da Informação e Comu-
precisa perder o receio de discutir a expressão. Nas principais conquistas
nicação – Nomic. Mas depois da feroz
postura dos organismos multilaterais recentes dos movimentos sociais no
reação de países como Estados Uni-
e pressionar por modelos mais próxi- tema da regulação de meios, como na
dos e Inglaterra ao famoso Relatório
mos às suas reivindicações. Argentina, a Unesco foi um ator quase
MacBride, que recomendava políti-
Já Bia Barbosa, do Intervozes, ten- que insignificante.
cas públicas que reduzissem a he-
ta trazer uma visão mais ponderada. No Brasil, em um complexo e di-
gemonia norte-americana no setor,
“Acho que precisamos ter um pouco fícil cenário para o tema, os movi-
a instituição passou por momentos
mais de cautela para não jogar o bebê mentos que levantam a bandeira da
delicados e recuou no debate. Com
fora com a água da banheira. O risco comunicação têm buscado apoio na
a retirada desses dois países da en-
de avançar nesse tipo de crítica é fi- entidade internacional. Mas a polê-
tidade, a Unesco perdeu recursos.
carmos falando sozinhos e tudo con- mica que se evidenciou depois do
Com as pressões políticas, também
tinuar como está”. Bia relembra que Seminário sobre autorregulação re-
perdeu seu papel de vanguarda. E
a parceria com o Criança Esperança é vela que esses grupos ainda estão
por mais de 30 anos pouco atuou no
um tema polêmico dentro da própria distantes de definir uma política de
tema da comunicação.
organização, e que o movimento não alianças e um programa unificado.
No início dos anos 2000, a orga-
pode desconsiderar a história e re- E assim, em meio a disputas e acu-
nização voltou a atuar no cenário
levância da Unesco na promoção do sações recíprocas, continua lenta a
internacional para o tema, princi-
tema do direito à comunicação. marcha de uma mudança progressis-
palmente em disputas com a Orga-
Toda essa discussão nos indica a ta na regulação midiática brasileira.

SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369 49


Destaques On-Line
Essa editoria veicula entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU.
Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente.

Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line e disponíveis Entrevista especial com Ronaldo Lemos, diretor do Creative
nas Notícias do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br) Commons Brasil
de 28-6-2011 a 03-6-2011. Confira nas Notícias do Dia de 10-08-2011
Acesse no link http://bit.ly/oTDrcQ
Paraísos fiscais: “A sonegação é um descompromisso com “A tecnologia abre o caminho para o compartilhamento de
uma sociedade mais justa”. responsabilidades pela tomada de decisões políticas”, assi-
Entrevista especial com Lucídio Bicalho, assessor político do nala o diretor do Creative Commons Brasil.
Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc.
Confira nas Notícias do Dia de 08-08-2011 A ideologia Slow: da ecogastronomia à crítica da velocidade
Acesse no link http://bit.ly/oT8ZU1 como vetor da globalização capitalista.
Bicalho avalia que “os paraísos fiscais estimulam o crime ou Entrevista especial com Isabel Carvalho, psicóloga
– no mínimo – a dissimulação de empresas e pessoas ricas. Es- Confira nas Notícias do Dia de 11-08-2011
timulam a sonegação de impostos e também são refúgios para Acesse no link http://bit.ly/qTEOa6
o dinheiro de origem ilegal”. A psicóloga e professora da PUCRS explica que “dentro do
princípio da ecogastronomia, o Slow Food apoia um novo
Hidrelétricas construídas em áreas tropicais emitem mais modelo de agricultura, que é menos intensivo e mais sau-
gases de efeito estufa. dável e sustentável, com base no conhecimento das comu-
Entrevista especial com Philip Fearnside, biólogo nidades locais”.
Confira nas Notícias do Dia de 09-08-2011
Acesse no link http://bit.ly/q00IEP Fome generalizada na Somália. Um problema político
O biólogo e pesquisador do Inpa adverte que “os 30 bilhões Entrevista especial com Frido Pflueger, jesuíta alemão
destinados à construção de Belo Monte, se investidos ade- Confira nas Notícias do Dia de 12-08-2011
quadamente em outros setores da economia, poderiam gerar Acesse no link http://bit.ly/pHxkll
mais emprego no Brasil”. “Todas as declarações e avaliações não farão sentido se não
forem traduzidas em ações concretas no campo”, diz o diretor
A democracia está sendo transformada pelas redes sociais. do Serviço Jesuíta aos Refugiados – SJR para a África do Sul.

Seminário Observatórios, Metodologias e Impactos nas Políticas Públicas

Paulo de Martino Januzzi - Secretário de Avaliação e Gestão da Informação do


Ministério do Desenvolvimento Soci

Data: 27/9/2011

Informações em http://migre.me/5uQ6N

50 SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369


Destaques On-Line – 04-07 a 14-08-2011
Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line e disponíveis nas Notícias do Dia do
sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br) no período de 04-07-2011 a 14-08-2011.

A concentração de terras no Brasil O poder soberano e a vida nua, a obra do filósofo italiano
Entrevista especial com Gerson Luiz Mendes Teixeira, en- Giorgio Agamben analisa várias figuras políticas clássicas,
genheiro agrônomo, integrante do núcleo agrário do Partido em especial a do conceito de estado de exceção e suas
dos Trabalhadores implicações biopolíticas. “A primeira tese que Agamben
Confira nas Notícias do Dia de 13-07-2011 propõe é a intrínseca e sutil conexão que existe entre a
Acesse no link http://bit.ly/mRoD8X vida humana e a política desde suas origens”.
Segundo dados recentes do Incra, a região sul do Brasil (e
não a Amazônia) foi a que apresentou o maior incremento “Integrar água e natureza: eis uma abordagem
no número de grandes propriedades improdutivas. A infor- sustentável’’
mação é do engenheiro agrônomo, que desenvolveu um es- Entrevista especial com Gerôncio Rocha, geólogo da Co-
tudo com o objetivo de realizar um cotejo entre os perfis ordenadoria de Recursos Hídricos da Secretaria do Meio
das estruturas fundiárias do Brasil de 2003 e de 2010, re- Ambiente do Estado de São Paulo
tratados nas respectivas atualizações das Estatísticas Cadas- Confira nas Notícias do Dia de 28-07-2011
trais do Incra. Acesse no link http://bit.ly/ph7YA9
“A crença na capacidade infinita da depuração dos rios
“O campo não foi inventado pelos nazistas. Eles só levaram não se sustenta, pois nos centros urbanos fica muito
a suas últimas consequências a figura política da exceção” claro o déficit de saneamento e o quanto as águas e os
Entrevista especial com Castor Ruiz, filósofo espanhol, pro- rios estão sofrendo as consequências, daí crises de abas-
fessor na Unisinos tecimento em meio a tanta água”, assinala o geólogo, ao
Confira nas Notícias do Dia de 26-07-2011 comentar o Relatório de Conjuntura dos Recursos Hídri-
Acesse no link http://bit.ly/qzaodV cos no Brasil, produzido pela Agência Nacional de Águas
Projetada internacionalmente a partir de O Homo Sacer: – ANA.

Ciclo de Estudos: Repensando os Clássicos


da Economia – Edição 2011

Data de início: 29 de agosto de 2011


Data de término: 07 de novembro de 2011

Informações em http://migre.me/5uQ8c

SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369 51


52 SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369
Agenda da Semana
Confira os eventos desta semana realizados pelo IHU.
A programação completa dos eventos pode ser conferida no sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).

Dia 15-8-2011
Evento: Tópicos Especiais II: Giorgio Agamben:
“O Homo Sacer I, II, III. A exceção jurídica e o governo da vida humana”
Palestrante: Prof. Dr. Castor Bartolomé Ruiz – Unisinos
Tema: A lógica da soberania
Horário: 14 às 17h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
Mais informações em: http://bit.ly/qQ7NQp
Dia 16-08-2011
Evento: Ciclo de Estudos: Perspectivas do Humano
Palestrante: Prof. Dr. José Mora Galiana - Universidad Pablo Olavide, Sevilla, Espanha
Tema: Miguel de Unamuno e o sentimento trágico da vida
Horário: 19h30min às 22h30min
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
Mais informações em: http://bit.ly/imNmTU
Dia 17-08-2011
Evento: Ciclo de Estudos: Perspectivas do Humano
Palestrante: Prof. Dr. José Maria Aguirre Oraá – Universidade de La Rioja - Espanha
Tema: Ortega y Gasset: sua perspectiva raciovitalista
Horário: 19h30min às 22h30min
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
Mais informações em: http://bit.ly/imNmTU
Dia 18-08-2011
Evento: Seminário 50 anos da Campanha da Legalidade: memória da democracia brasileira
Palestrante: Prof. Dr. Jorge Ferreira – UFF
Tema: Contexto e significados da legalidade
Horário: 20h
Local: Auditório Maurício Berni – C4
Mais informações em: http://bit.ly/mG3UrL
Evento: IHU ideias
Palestrante: Prof. Dr. Jorge Ferreira – UFF
Tema: Jango. Uma biografia
Horário: 17h30min às 19h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
Mais informações em: http://bit.ly/oWxdQv
Evento: Ciclo de Estudos: Perspectivas do Humano
Palestrante: Prof. Dr. José Maria Aguirre Oraá – Universidade de La Rioja - Espanha
Tema: José Luis Aranguren: ética e política
Horário: 19h30min às 22h30min
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
Mais informações em: http://bit.ly/imNmTU

SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369 53


Dia 20-8-2011
Evento: Gênero e Cinema
Palestrante: Maria Helena Guarezi
Tema: Exibição do filme: O caminho de Kandahar (Direção: Mohsen Makhmalbaf)
Horário: 8h30min às 12h
Local: Sindicato dos Engenheiros – Senge, Curitiba-PR (Edif. CCI - Mal. Deodoro, 630, 22º andar)
Mais informações em: http://bit.ly/j1JaVQ
Dia 20 e 21-08-2011
Evento: Escola de Formação Fé, Política e Trabalho 2011
Palestrantes: Prof. MS Lucas Henrique da Luz - Unisinos e Prof. Dr. Pedro Kramer - Estef
Temas: Contexto cultural na pós-modernidade na sociedade capitalista; e Bíblia: Projeto de uma
sociedade sem exclusão
Horário: 8h30min do sábado às 14h do domingo
Local: Centro Diocesano de Formação Pastoral, em Caxias do Sul-RS
Mais informações em: http://bit.ly/eNZgB0
Dia 22-08-2011
Evento: Ciclo de Palestras: Economia de Baixo Carbono. Limites e Possibilidades
Palestrante: MS Andrei D. Cechin – USP
Tema: Limites da economia sustentável na perspectiva de Georgescu-Roegen
Horário: 20h às 22h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
Mais informações em: http://bit.ly/fmmTpa

>> Publicações do IHU e líderes comunitários das regiões Dossiê sobre o Motu Proprio
envolvidas, a intenção do IHU é expor Cadernos Teologia Pública, em sua
Cadernos IHU a reflexão atualíssima a respeito da 56ª edição, apresenta o texto “Igreja
“E o Verbo se fez bit”: Uma análise da realidade das usinas hidrelétricas no Introvertida: Dossiê sobre o Motu Proprio
experiência religiosa na internet Brasil, cujo panorama é polêmico. Confira ‘Summorum Pontificum’”, no qual o autor
Em sua 35º edição, Cadernos IHU a publicação em http://bit.ly/ih0UqU Andrea Grillo apresenta suas reflexões a
apresenta “E o Verbo se fez bit”: Uma partir da publicação da Instrução Universae
análise da experiência religiosa na Cadernos IHU ideias Ecclesiae da Comissão Ecclesia Dei: “Ao
internet, texto de Moisés Sbardelotto que, Revolução Mexicana e o Movimento de teólogo compete examinar criticamente
ao observar as mídias como ambiente Chiapas cada expressão da fé eclesial: respeito
de mobilidade da vida social, analisa Cadernos IHU ideias, em sua 152ª, crítico e crítica respeitosa fazem parte de
as mudanças na experiência religiosa e edição apresenta o texto “Entre a seu instrumentário obrigatório. Nesta nova
de fé. “Junto com o desenvolvimento Revolução Mexicana e o Movimento de fase, é necessário que os teólogos façam
de um novo meio, como a internet, vai Chiapas”, em que a autora, Claudia ouvir sua voz e que os pastores encontrem
nascendo também um novo ser humano e, Wasserman, faz uma análise do impacto o modo de expressar o seu mal-estar. Esta
por conseguinte, um novo sagrado e uma que a Revolução Mexicana, que completou coletânea de intervenções quer contribuir
nova religião”, considera o autor. Leia a recentemente 100 anos, provocou nos para este fim, para que amadureça a
publicação em http://bit.ly/oy0voy movimentos do México atual, em especial consciência eclesial em torno do delicado
o movimento chiapaneco, passando pela problema da “unidade do rito romano”
Cadernos IHU em formação peculiaridade histórica de ausência de que o Motu Proprio e a recente Instrução
Usinas hidrelétricas no Brasil: matrizes uma ditadura de segurança nacional na submetem a um estresse muito grave
de crises socioambientais década de 1970, justamente o período em e muito perigoso. Para a comunhão
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU que a América Latina vivenciou de forma eclesial, são necessárias palavras
apresenta a 39ª edição dos Cadernos ampla a violência de Estados autoritários. claras: com as murmurações e com as
IHU em formação, intitulada “Usinas A partir de 15-8-11, o artigo completo hipocrisias, mina-se o próprio sentido da
hidrelétricas no Brasil: matrizes de estará disponível no sítio do IHU em PDF. Igreja”.
crises socioambientais”. Por meio da A versão intregral deste artigo estará
seleção de uma série de entrevistas com Cadernos Teologia Pública disponível neste sítio a partir de 11-8-
ambientalistas, estudiosos, pesquisadores Última edição de Igreja Introvertida: 2011 em PDF.

54 SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369


Eventos
Ciclo de Estudos Perspectivas do Humano
Uma reflexão sobre as perspectivas do ser humano baseada em pensadores contemporâneos

Começa nesta semana o Ciclo de Estudos Perspectivas evento, “o humano, sendo o mais próximo de nós mesmos,
do Humano. A primeira fase acontece nos dias 16, 17 e nos resulta sempre o mais incompreensível. Todas as áreas
18 de agosto próximos, e pretende oferecer uma reflexão do conhecimento - direito, educação, economia, gestão,
atualizada e plural sobre a condição humana. tecnologias, etc. – têm que se confrontar com uma ou outra
Primeiramente, o professor José Maria Aguirre Oraá, perspectiva do humano para constituir seus discursos e
catedrático de Filosofia Moral da Universidade de La Rioja, práticas. Não podemos deixar de refletir sobre nossa própria
apresentará o pensamento de Miguel de Unamuno, filósofo, condição para seguir existindo como pessoas, projetar um
reitor da Universidade de Salamanca, exilado da ditadura tipo de sociedade e criar história”.
de Franco e morto na França. O eixo filosófico aqui é “a Castor explica que o título Ciclo de Estudos, Perspectivas
condição trágica da existência humana”, entendendo o do Humano já reflete a insuficiência de qualquer teoria
trágico no sentido clássico, de agon, de luta permanente para esgotar uma explicação plena ou definitiva sobre o ser
por ser e existir. humano. “O humano é sempre uma fronteira por atingir.
Num segundo momento, será exposto o pensamento de O humano só pode ser dito em perspectiva, ou seja, de
José Ortega y Gasset, catedrático de filosofia de Madri; forma plural, diversa, diferente e até divergente. Todas as
exilado em Buenos pela ditadura de Franco, teve uma reflexões sobre a pessoa, o sujeito, a condição humana,
grande contribuição na formação de toda uma geração são aproximações possíveis, necessárias, mas que nunca
de pensadores desse país. Ortega y Gasset faz uma crítica conseguem esgotar uma compreensão explicativa do ser
ao racionalismo “chato” da cultura ocidental e propõe humano. Até porque o humano existe como alteridade
pensar o humano a partir do raciovitalismo. Por último, singular que sempre é diferente e não se deixa normatizar
será apresentado o pensamento de José Luis Aranguren, por regularidades científicas nem padronizar por teorias”.
que foi catedrático de ética na Universidade Complutense, O Ciclo de Estudos Perspectivas do Humano é um
Madri, cuja ênfase está centrada nos estudos de ética na projeto da Cátedra Unesco Unisinos de Direitos Humanos
política. e Violência, Governo e Governança, com o apoio da
Já na segunda parte do Ciclo, a ser realizada nos dia 8, 12 Agência Espanhola de Cooperação Internacional – AECID,
e 15 de setembro de 2011, será apresentado o pensamento que financia a vinda dos professores da Espanha. “Com
de Ignacio Ellacuria, que foi reitor da Universidade Central esta circunstância, decidimos apresentar uma panorâmica
del Salvador. Assassinado tragicamente por paramilitares, de alguns dos principais pensadores espanhóis do século
junto com outros oito companheiros, seu pensamento XXI, alguns deles com uma relação muito estreita com a
remete sempre à obra de Zubiri, embora esteja muito realidade latino-americana”, explica Castor. O evento é
focado em pensar filosoficamente a realidade latino- também copromovido pelo Instituto Humanitas Unisinos
americana. – IHU e pelo PPG e curso de Filosofia da Unisinos.
Segundo o professor Dr. Castor Bartolomé Ruiz, do PPG Mais informações podem ser obtidas em www.ihu.
em Filosofia da Unisinos, que é um dos coordenadores do unisinos.br.

Acesse as publicações do IHU em


www.ihu.unisinos.br

SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369 55


“A direita aprendeu com os acontecimentos de 1961”
Para Jorge Ferreira, a característica marcante do movimento da legalidade foi a sociedade
brasileira organizada em suas entidades representativas na luta pela continuidade do pro-
cesso democrático

Por Graziela Wolfart

“A
Campanha da Legalidade traduz seus próprios propósitos: a manutenção da ordem legal, a
preservação do sistema político, o cumprimento da Constituição. Essas bandeiras mobiliza-
ram a sociedade brasileira”. A constatação é do professor Jorge Ferreira, da Universidade
Federal Fluminense – UFF, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Ele compara
o Brasil da legalidade, em 1961, quando “a luta era pela defesa da ordem constitucional
vigente, (...) as esquerdas e os setores progressistas e democráticos infligiram grande derrota aos golpistas e
direitistas”, com o Brasil de 1964, quando “o movimento das esquerdas foi outro. A luta não era pela defesa da
Constituição, mas pela implantação de reformas. Reformas que necessitariam de revisão constitucional – para
viabilizar, por exemplo, a reforma agrária. As direitas, de maneira hipócrita, defenderam o lema de que ‘a
Constituição é intocável’”. E conclui: “as direitas aprenderam com os acontecimentos de 1961”. Ferreira ainda
destaca que “Brizola recusou-se a acatar o golpe de Estado. Ele foi a única liderança civil na história contempo-
rânea brasileira a resistir a um golpe militar, dividir as Forças Armadas e derrotar os golpistas”.
Jorge Ferreira é professor de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense e autor de Jango. Uma
biografia (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011). Ele estará na Unisinos participando do Seminário 50 anos
da Campanha da Legalidade: memória da democracia brasileira, promovido pelo IHU de 18 de agosto a 1º de
setembro de 2011. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que aspectos da bio- parlamentarismo e o confronto que mesmo partido. Criou-se uma inter-
grafia de Jango são fundamentais poderia resultar em guerra civil, ele dependência entre eles. Goulart, no
para entender o processo da Campa- preferiu a primeira opção. plano nacional, apoiava Brizola no Rio
nha da Legalidade? Grande do Sul. Brizola, por sua vez,
Jorge Ferreira – Creio que duas ques- IHU On-Line – O que significava, na- apoiava Jango nos momentos difíceis.
tões são fundamentais. A primeira, sua quele contexto, a posse de João Foi o que ocorreu em agosto/setembro
formação política fundamentada no Goulart? de 1961. Brizola recusou-se a acatar o
regime da democracia representativa. Jorge Ferreira – O cumprimento da golpe de Estado. Ele foi a única lide-
Jango ingressou na política em tem- Constituição e a continuidade do proces- rança civil na história contemporânea
pos de grande prestígio da democra- so democrático. Isso foi conseguido por brasileira a resistir a um golpe militar,
cia-liberal, em 1945-1946. Esse é um um amplo acordo no Congresso Nacional dividir as Forças Armadas e derrotar os
aspecto importante a ser ressaltado. e por diversas forças políticas com a im- golpistas. Ele convocou a população
Ele nunca esteve envolvido com pro- plantação do parlamentarismo. para a resistência e, inclusive, distri-
postas de golpes contra as instituições buiu armas ao povo. A causa era justa
democráticas. Daí sua determinação IHU On-Line – Como entender a força e legítima: defender o regime demo-
em tomar posse na presidência da Re- da figura política de Brizola no senti- crático. Daí que seus argumentos fo-
pública em cumprimento da Constitui- do de conseguir levantar o movimen- ram ouvidos e a população se engajou
ção. A segunda, uma característica de to da legalidade aqui do Rio Grande na luta pela posse de Goulart.
sua personalidade. Jango era homem do Sul para todo o país?
do diálogo, do entendimento, do acor- Jorge Ferreira – Leonel Brizola despon- IHU On-Line – O que motivou a atitu-
do. Mas acordos que avançassem na tou na política brasileira, desde 1945, de de solidariedade política ao gover-
questão política e social. Assim, en- com arrojo político. Ele e Goulart eram nador Brizola por parte da multidão
tre aceitar o acordo que implantou o amigos, parentes e correligionários do de voluntários civis que aderiram à

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Campanha da Legalidade? “É muito curioso que a IHU On-Line – Como o senhor define
Jorge Ferreira – Havia na sociedade a crise política que se abriu com a
brasileira fortes vínculos com o sis- sociedade brasileira, tão renúncia de Jânio Quadros e que he-
tema de democracia representativa. rança essa crise deixa para a trajetó-
As tentativas de golpes em agosto de ciosa da democracia e da ria histórica da política brasileira?
1954, novembro de 1955 e agosto/se- Jorge Ferreira – Jânio Quadros, nos
tembro de 1961 demonstram que os legalidade em agosto/ poucos meses na presidência da Repú-
grupos golpistas não conseguiram ar- blica, realizou um governo conserva-
regimentar amplos setores sociais – e setembro de 1961, tenha dor. Nesse sentido, nada de surpreen-
inclusive das próprias Forças Armadas dente. Mas uma única atitude dele foi
– para a consumação do golpe. No Rio assistido, praticamente extremamente negativa para o proces-
Grande do Sul, a população da capital so democrático brasileiro: a renúncia.
e das cidades do interior engajou-se de braços cruzados, à Com o ato, ele desacreditou o sistema
nesse sentido: a defesa da legalidade democrático, as eleições, os partidos
e da Constituição. Em Goiás, o gover- marcha de recrutas do políticos e todo o sistema representa-
nador Mauro Borges, também agiu no tivo. Mais ainda, ele apostou na crise
mesmo sentido, encontrando amplo general Mourão em institucional, pois sabia que a posse do
apoio de estudantes e operários. No vice-presidente criaria graves conflitos
Rio de Janeiro ocorreu o inverso: a po- março de 1964” políticos no país. Jânio apostou no que
pulação foi para as ruas exigir a posse poderia acontecer de pior no sistema
de Goulart e a polícia civil e militar, a político brasileiro: o colapso das insti-
mando do governador Carlos Lacerda, Jorge Ferreira – O parlamentarismo tuições democráticas.
reprimiu duramente as manifestações. resultou de amplo consenso no Con-
Em outras palavras, não foi apenas no gresso Nacional e entre as forças po- IHU On-Line – Quais eram os bens
Rio Grande do Sul que o povo se enga- líticas em conflito. Goulart assumiria simbólicos que estavam em jogo na
jou na defesa da Constituição, embora a presidência, mas teria seus poderes disputa pela autoridade e legitimida-
tenha sido no estado em que o destino restringidos. de política durante a Campanha da
do país foi decidido. Legalidade?
IHU On-Line – O que caracterizou a Jorge Ferreira – O que estava em
IHU On-Line – O que fez com que o resistência popular que levou Jango jogo, em termos simbólicos, era o sig-
exército mudasse de lado e apoiasse ao poder? nificado de democracia. Para os con-
o movimento liderado por Brizola? Jorge Ferreira – A característica mar- servadores e direitistas, Goulart e o
Jorge Ferreira – Os militares têm seus cante daqueles acontecimentos foi a Partido Trabalhista Brasileiro manti-
códigos de conduta baseados na disci- defesa da continuidade do processo nham diálogo constante com os traba-
plina e na hierarquia. Contudo, eles democrático. Federações de empresá- lhadores e o movimento sindical. Para
não são obrigados a obedecer a ordens rios e associações comerciais, em nota, o conservadorismo político brasileiro,
esdrúxulas ou absurdas. Exemplo disso exigiram o cumprimento da Constitui- a participação do movimento sindical
foi a ordem do ministro da Guerra, Odí- ção; sindicatos de trabalhadores em na política era uma ameaça às insti-
lio Denys, para que o comandante do várias partes do país declaram-se em tuições democráticas. As notas dos mi-
III Exército, José Machado Lopes, bom- greve, enquanto a diretoria da UNE nistros militares e os pronunciamentos
bardeasse o Palácio Piratini. O general foi para Porto Alegre; os partidos po- de Carlos Lacerda são claros nesse
Machado Lopes tomou uma decisão líticos, inclusive a UDN, defenderam a sentido. Democracia, nessa concep-
junto com seu Estado-Maior baseado posse de Goulart, rejeitando a coação ção, era uma prática elitista que ex-
em cálculos políticos. Para obedecer dos ministros militares que queriam a cluía os trabalhadores da participação
ao ministro do Exército, teria que votação do impeachment dele; a OAB, política. Daí o perigo que a posse de
matar centenas de pessoas no Palácio a ABI e a CNBB também reiteraram a Jango representava. Para as esquerdas
Pirantini. Depois, praticar verdadeira necessidade do cumprimento da Cons- e amplas parcelas da população, de-
carnificina no estado do Rio Grande tituição; as Forças Armadas se dividi- mocrático era manter os fundamentos
do Sul. Somente assim ele conseguiria ram; diversas religiões, de católicos da Constituição de 1946.
impor a “ordem”. Diante de tamanho a umbandistas, defenderam a posse
custo, ele e seu Estado-Maior preferi- de Goulart; até mesmo diretorias de IHU On-Line – Quem foi o grande
ram o bom-senso: obedecer à Consti- clubes de futebol apoiaram a posse mito político da Campanha da Lega-
tuição e à legalidade democrática. de Jango. O que se observa, nesse lidade?
momento, é a sociedade brasileira or- Jorge Ferreira – Em termos políticos,
IHU On-Line – Qual o significado po- ganizada em suas entidades represen- sem dúvida Leonel Brizola saiu do epi-
lítico, na época, da mudança de re- tativas na luta pela continuidade do sódio com a imagem engrandecida. No
gime de governo para parlamentaris- processo democrático. governo do Rio Grande do Sul, ele havia
mo? adquirido a admiração das esquerdas e
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“Estatizar multinacionais
era o grande programa Ciclo de Estudos: Repensando os Clássicos
das esquerdas da Economia – Edição 2011
latino-americanas”
dos nacionalistas com o projeto desenvol-
vimentista e a escolarização em massa.
Seu prestígio cresceu ainda mais quando
nacionalizou duas empresas norte-ameri-
canas. Lembro que estatizar multinacio-
nais era o grande programa das esquerdas
latino-americanas. Mas com o destemor
que enfrentou os ministros militares na
Campanha da Legalidade, Brizola alcan-
çou prestígio político difícil de ser men-
surado. Ao se candidatar como deputado
federal pela Guanabara, obteve votação
extraordinária. A partir daí, ele aglutina-
ria diversas esquerdas sob a Frente de
Mobilização Popular, radicalizando cada
vez mais à esquerda.

IHU On-Line – Em que medida a Cam-


panha da Legalidade influenciou no
cenário que constituiu o golpe mili-
tar, três anos mais tarde?
Jorge Ferreira – É muito curioso que a
Adam Smith: os sentimentos morais
sociedade brasileira, tão ciosa da de-
mocracia e da legalidade em agosto/
e as razões da acumulação e da
setembro de 1961, tenha assistido, pra-
ticamente de braços cruzados, à mar-
conservação da fortuna material
cha de recrutas do general Mourão em
março de 1964. A Campanha da Lega-
lidade traduz seus próprios propósitos:
a manutenção da ordem legal, a pre-
Palestrante: Prof. Dr. André Filipe Zago
servação do sistema político, o cumpri-
mento da Constituição. Essas bandeiras
de Azevedo - Unisinos
mobilizaram a sociedade brasileira: em
1961, a luta era pela defesa da ordem
constitucional vigente. Nesse sentido,
as esquerdas, os setores progressis-
tas e democráticos infligiram grande
derrota aos golpistas e direitistas. Em
Data de início: 29 de agosto de 2011
1964, o movimento das esquerdas foi
outro. A luta não era pela defesa da
Data de término: 07 de novembro de 2011
Constituição, mas pela implantação de
reformas. Reformas que necessitariam
de revisão constitucional – para viabi-
lizar, por exemplo, a reforma agrária.
Local: Sala Ignacio Ellacuría
As direitas, Carlos Lacerda em particu-
lar, de maneira hipócrita, defenderam
e Companheiros – IHU
o lema de que “a Constituição é into-
cável”. As direitas aprenderam com os
Informações em www.ihu.unisinos.br
acontecimentos de 1961.

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SÃO LEOPOLDO, 15 DE AGOSTO DE 2011 | EDIÇÃO 369 61
IHU Repórter
Dinorá Huckriede
Por Graziela Wolfart | Foto Arquivo Pessoal

U
ma pessoa sensível, que sabe o que quer e para onde vai. Assim é
a secretária referência do PPG em Filosofia da Unisinos, Dinorá Hu-
ckriede. Natural de Teutônia-RS, ela conta as alegrias da maternida-
de, com a vinda festejada e planejada da pequena Valentina, hoje
com dez meses. Feliz com seu trabalho e apegada às suas origens
familiares, Dinorá recordou momentos marcantes de sua vida, como a infância e
a perda do pai. Ao lado do marido, João, construiu uma nova família e, sempre
que pode, volta à terra natal para rever a mãe.

Quem sou eu – Determinada, brin- cação até boas escolas. Estudei na Esco- de Comunicação. Foi uma experiência
calhona, teimosa e batalhadora. Por la Cenecista de Teutônia, onde trabalhei importante. Minha formatura aconte-
tudo que passei na vida, sobretudo a por cinco anos como secretária. Come- ceu em janeiro de 2005. Infelizmente,
perda do meu pai, consegui crescer cei a trabalhar com 14 anos e estudava à o curso foi extinto em 2005/1, o que
e evoluir bastante. Amadureci muito. noite. Lembro muito bem de um perío- acho lamentável. Fiquei muito triste
Procuro fazer isso com os aconteci- do da minha infância, quando passamos com isso, porque, quando comecei a
mentos bons e ruins. Traço objetivos dificuldades financeiras. Quando tinha trabalhar aqui, havia, inclusive, uma
e vou em busca deles. Só assim conse- 7 anos, lembro de ver meu pai chegar especialização em Secretariado.
guimos realizar nossos sonhos. em casa e chamar minha mãe para uma
conversa. Ele estava desempregado num Vinda para São Leopoldo – Com 20
Origens e lembranças da infância momento em que faltavam 2 anos para anos, deixei a casa dos meus pais e fui
– Nasci em Teutônia, no Rio Grande do se aposentar. Passamos um período difí- morar em São Leopoldo. Posso dizer que
Sul, quando o município ainda pertencia cil, mas continuei com meus estudos na foi uma mudança radical e rápida. Colo-
a Estrela. Uma cidade pequena e tran- escola, a família unida e, na medida do quei a mochila nas costas, viajei cerca
quila, que gosto de visitar quando posso possível, organizada. No decorrer daque- de 1 hora e meia e percorri os corredo-
para rever os amigos e minha mãe. Tive le ano, as coisas foram tomando rumo e res da universidade em busca de aluguel
uma infância maravilhosa e guardo boas meu pai voltou a trabalhar. de imóveis ou pessoas com interesse
recordações. Tive muito contato com a em dividir apartamentos com estudan-
natureza; na casa dos meus pais tinha Hoje, minha mãe tem 71 anos. É uma tes da Unisinos. Em dois dias, conheci
um pátio grande, cercado de muitas mulher batalhadora, guerreira, com uma pessoa maravilhosa, a Taysa, que
plantas e flores e, nos fundos, um pomar uma história de vida dura. Nosso rela- hoje é professora no PPG em Direito da
de frutas cítricas. Fui muito serelepe; cionamento sempre foi bom; ela sempre Unisinos. Moramos juntas durante cinco
subia nas árvores, comia frutas em cima demonstrou muita abertura para o diálo- anos, foi uma experiência valiosa e en-
do telhado e brincava muito. Meus pais, go amigo e sincero. A confiança continua riquecedora. Hoje, almoçamos juntas e
Ethel e Ersi, trabalharam em indústria do sendo o nosso ponto forte. nos encontramos quando podemos, para
setor calçadista. Sou filha única. Quando compartilhar novos acontecimentos e
nasci, minha mãe parou de trabalhar Formação educacional – Do jardim relembrar os momentos de crescimento
para se dedicar a cuidar exclusivamente de infância até o segundo grau estudei e aprendizado que tivemos juntas. Des-
de mim. Para ela foi uma decisão difí- na Escola Cenecista de Teutônia, onde de que vim para cá, o aprendizado em
cil, pois não existiam escolinhas boas no cursei Técnico em Contabilidade. Em minha vida é diário. Após dez meses de
interior. Meu pai continuou a trabalhar 1997 ingressei na Unisinos, no curso de estágio, fui efetivada no Instituto de Lín-
para sustentar a família. A vida dos meus Secretariado Executivo Bilíngue – Por- guas – Unilínguas, onde trabalhei duran-
pais foi mais dura: ele estudou até a 8ª tuguês/Inglês. No quarto ano de curso, te cinco anos com os coordenadores. Há
série e minha mãe até a 5ª. Mesmo vin- ingressei como estagiária na área da quatro anos trabalho na Secretaria Com-
do de uma família simples, nunca faltou Comunicação da Universidade. Fiz dez partilhada da Área de Humanas, como
nada para mim. Meus pais sempre me meses de estágio e era responsável referência do Programa de Pós-Gradua-
proporcionaram tudo, desde afeto, edu- pelos cursos de especialização da área ção em Filosofia.

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tranquila, pois fundamental para a construção
fizemos tudo da vida psicológica. Desejo que
que estava ao tenhamos muita saúde para viver
nosso alcance. muitos anos ao lado da Valentina.
O João esteve
sempre ao meu Valores – Quero ensinar à Va-
lado, demons- lentina valores como lealdade,
trando afeto, humildade, respeito e preserva-
companheirismo ção do meio ambiente. Penso que
e conforto. não exista criança boa ou má,
nem inteligente ou boba. Cabe a
Casamento nós tocarmos seu coração para es-
e maternidade timular seu desenvolvimento.
– Em 2007, ca-
samos no civil. A Sonho – a Valentina é um sonho
Família – Conheci meu marido Valentina, hoje realizado. Além disso, gostaria de
numa situação muito delicada da com dez meses, foi planejada, e é viajar com minha família e conhe-
minha vida. Em 2005, meu pai teve a maior luz de nossas vidas. Agora cer vários lugares. De toda forma,
um diagnóstico de uma doença gra- compreendo melhor muitas situa- sou muito feliz hoje.
ve. Eu estava triste, fragilizada. ções e atitudes que minha mãe tinha
Foi quando encontrei o João, em comigo. Sou uma pessoa mais tran- Religião – Deus é importante na
uma danceteria, em São Leopoldo. quila. Antes de ser mãe não tinha minha vida. Sou evangélica lutera-
Ele me conquistou de uma manei- noção do que a maternidade pode- na, da Igreja Evangélica de Confis-
ra tranquila, calma, respeitosa. Ele ria significar. É um amor incondicio- são Luterana no Brasil – IECLB. Em
morava e trabalhava em Horizontina nal, sublime. A vinda da Valentina janeiro desse ano, batizamos a Va-
e passamos a nos encontrar todos os trouxe alegria e renovou a vida da lentina e casamos em Teutônia. Meu
finais de semana. Em pouco tempo, minha mãe. A Valentina é o bebê da pai fazia trabalhos voluntários para
ele conheceu meus pais e começa- família. Risonha, tranquila, curiosa a IECLB, e eu ajudava na medida do
mos a namorar. É uma pessoa cari- e sapeca, conquista a todos com seu possível. Assim, já fui mais envolvi-
nhosa, tranquila e romântica. Seis jeitinho meigo e carinhoso. da com a igreja. Minha mãe acom-
meses após nos conhecermos, veio panha, semanalmente, os cultos
o diagnóstico de câncer do meu pai, Autor – Adoro ler. É um hábi- luteranos e, sempre que podemos,
o que nos abalou demais. Em janei- to que foi introduzido logo na mi- o João, a Valentina e eu vamos tam-
ro de 2006, meu pai passou por uma nha infância. Meu tio, já falecido, bém. Na universidade, quando pos-
cirurgia delicada. O médico relatou foi sócio-fundador da editora Nova so, gosto de ir às missas na Capela
que o tratamento com quimiotera- Fronteira e tinha uma livraria em Universitária.
pia não era suficiente e que viveria, Porto Alegre. Ganhei muitos livros e
no máximo, cinco meses, devido ao cheguei a montar uma biblioteca de Unisinos – Uma criança em
estágio avançado da doença. Mesmo livros infantis no meu quarto. Um li- desenvolvimento. Assim é a Unisi-
assim, encaminhou a um oncologis- vro que li e gostei foi O caçador de nos. Acompanho seu crescimento
ta. Minha mãe acompanhava todas pipas. desde que ingressei, em 1997, e
as consultas. Foi então que fizemos fico surpresa a cada ano com as
um pacto: resolvemos não contar a Filme – Gosto dos filmes do dire- inovações que surgem. Gosto de
ele sobre a doença, com medo de tor espanhol Pedro Almodóvar. Atu- trabalhar no câmpus. É uma uni-
vê-lo depressivo e sem ânimo para almente, assisto desenhos (risos). versidade que mantém seus valo-
lutar. Tomamos um cuidado extre- res e que, ao mesmo tempo, está
mo com as visitas e conversamos Lazer – Gosto de estar em fa- em constante transformação. Sua
com os médicos sobre essa decisão. mília, brincar com a Valentina. expansão é visível, sobretudo por-
Mesmo à distância, eu estava pre- Quero proporcionar a ela o que que agora tem vários campi em
sente e o João sempre permaneceu meus pais me proporcionaram: outras cidades. Para nosso muni-
ao meu lado, assim como meus ami- uma infância feliz, uma família cípio, é a grande referência.
gos daqui e de Teutônia. O médico unida e muitas brincadeiras. Que-
foi preciso: foram 5 meses de muito ro que ela tenha como referência IHU – O PPG em Filosofia tem
sofrimento, internações, cuidados e seus pais, assim como meus pais muitas parcerias com o IHU. Acom-
de muitos atestados meus para po- foram para mim. Falo ao João so- panho isso e tenho contato com o
der cuidá-lo no hospital e, também, bre a importância da figura pater- IHU regularmente. O Instituto tam-
auxiliar minha mãe, em Teutônia. na, como referência masculina, bém está em constante crescimento
Em junho de 2006, ele partiu de ma- para a vida da filha, pois a mulher e oferece uma gama variada tanto
neira tranquila. Eu estava presente tem uma relação diferente com de cunho humanístico como social.
nesse momento e, de certa forma, o pai. A referência masculina é São atividades muito interessantes.
Destaques
Seminário 50 anos da Campanha da Legalidade: memória da democracia brasileira
No intuito de trazer à tona a memória e a história do movimento, tendo em vista sua significativa importância
na política brasileira contemporânea, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU e o Programa de Pós-Graduação em
História da UNISINOS propõem a realização do Seminário “50 anos da Campanha da Legalidade: memória da
democracia brasileira (1961-2011)”. Confira a programação.
18 de agosto de 2011
17h30min - IHU Idéias - Jango. Uma biografia - Prof. Dr.Jorge Ferreira – UFF
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
19h30min – Abertura do Seminário - Local: Auditório Maurício Berni
20h – Conferência de Abertura:Contexto e Significados da Legalidade - Prof. Dr. Jorge Ferreira – UFF
Local: Auditório Maurício Berni - C4

29 de agosto de 2011
20h – Palestra - Do rádio à internet: a legalidade e a mobilização popular hoje - Profa. Dra. Christa
Berger - Unisinos
Local: Auditório Central – Unisinos

30 de agosto de 2011
9h – Apresentação da pesquisa “História e Memória de João Goulart” – para o PPGH e aberto ao público
Profa. Dra. Lucília de Almeida Neves Delgado – UnB
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
17h30min – IHU Ideias - PTB: do getulismo ao reformismo - Profa. Dra. Lucília de Almeida Neves Delgado – UnB
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU
20h – Conferência - O catolicismo e a conjuntura do Governo João Goulart: interações políticas e sociais -
Profa. Dra. Lucília de Almeida Neves Delgado – UnB
Local: Auditório Central – Unisinos

01 de setembro de 2011
17h30min – IHU Ideias - A política diplomática Norte-Americana no contexto da Legalidade - Profa. Dra. Carla
Simone Rodeghero – UFRGS
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU

20h – Conferência de Encerramento: Questões de memória na abordagem histórica: João Goulart e o PTB
Palestrante Profa. Dra. Marieta de Moraes Ferreira - FGV e UFRJ
Local: Auditório Central - Unisinos
A programação completa está no endereço eletrônico http://migre.me/5uJFw.
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