Introdução
Uma das maiores autoridades no estudo das crônicas peruanas no século XIX foi
o espanhol Marcos Jiménez de la Espada. Além de realizar uma procura sistemática de
textos, cartas e mapas produzidos sobre o Peru nos primeiros decênios em arquivos e
bibliotecas europeias, ele também se interessou por desvendar quais eram os autores que
se encontravam detrás destes textos, os quais na sua maioria não eram conhecidos.
Desse trabalho, temos a aproximação de Jiménez de la Espada à obra de Pedro de Cieza
de León, principalmente no seu estudo à chamada Guerra de Quito. A partir deste
estúdio, publicado em 1877, e do descobrimento na época de textos completos ou quase
completos, foi possível corrigir o equívoco cometido contra Cieza, devido à usurpação
de partes importantes de sua obra que foram quase ingeridas na Historia General de los
hechos de los Castellanos en las Islas y Tierra Firme del Mar Oceáno e a sua
reelaboração por parte de Antônio de Herrera, cronista maior da coroa espanhola.
Graças a Jiménez de la Espada, a obra de Cieza se consolidou e ampliou sua
importância dentro do grupo de cronistas do século XVI.
Jiménez de la Espada considerava a Cieza de León como “el príncipe de los
cronistas de las Indias”, “el primero cronista del Perú, y quizás de las Indias” (Jiménez
de la Espada, 1877: XL). Em Cieza não é possível encontrar as posições favoráveis e
interesseiras de um Francisco de Xerez ou de Agustín de Zárate; o primeiro, secretário
do próprio Francisco Pizarro, e o segundo, contador da coroa no período turbulento da
guerra civil de Gonzalo Pizarro. Suas informações são reputadas por sua confiabilidade
e mesura. Nelas não encontramos etiquetas classificatórias sobre os índios, procurando
classificá-los como selvagens e bárbaros, da maneira como foi feita por Sarmiento de
Gamboa ou José de Acosta. Os índios são apresentados por Cieza através das
informações recolhidas de seus próprios especialistas, especialistas que tinham a função
de preservar a memória, seja através de cantares ou registradas nos quipos. Na medida
do possível, são os índios que eles mesmos se apresentam, são eles mesmos os sujeitos
de sua própria história.
Pelos fólios e linhas escritas se percebe a monumentalidade de seu esforço. Sua
obra abarca a descrição do território ao sul de Panamá até o Chile, descrevendo-se a
paisagem, a flora exuberante e os animais, assim como a forma de vida dos índios, sua
organização social e política, suas crenças e costumes diários. Recolhe as narrações
indígenas sobre seu passado, contendo informações sobre os primeiros reis incas, as
guerras que tiveram para poder manter no começo seu pequeno território e, logo depois,
o processo de expansão imperial de seu território até constituir o Tahuantinsuyo. Cieza
vá trás os conquistadores que tinham sobrevivido às guerras civis entre os próprios
espanhóis e trás seus descendentes para tentar construir o maior painel da história dos
fatos dos espanhóis desde que chegaram ao território do Tahuantinsuyo. O
descobrimento e a conquista do território se converte no espaço onde se desenrola a
grande gesta de Pizarro e sua companhia, gesta que continua no período das guerras
civis, enfrentamento entre os próprios espanhóis, onde a ação heroica se reparte entre os
bandos contrários.
A utilização da obra de Cieza, tanto as partes da sua autoria quanto aquelas que
eram atribuídas a outros autores, se converteram num pilar na História da Conquista do
Peru, o texto de William H. Prescott, a principal obra desse século que ajudou a
difundir a temática da conquista espanhola do império dos incas, publicado de 1847. A
consagração de Cieza por parte de Jiménez de la Espada como príncipe de los cronistas
teve como um elemento importante a confiabilidade de suas informações. Dessa
maneira, Cieza se converteria nas mãos destes dois historiadores, na principal fonte
histórica sobre o Peru do século XVI.
Da mesma maneira que estes dois historiadores elevaram a Cieza a um patamar
olímpico, a opinião de vários estudiosos do período durante o século XX foi a mesma.
A opinião de Raul Porras Barrenechea é fundamental porque aprecia por um lado, a sua
sensibilidade etnográfica e arqueológica, descrevendo com precisão e detalhe a vida
diária dos índios que ele encontrava à beira do caminho, exteriorizando a sua admiração
por a grandiosidade e engenhosidade de suas construções (Porras, 1968: 52). Por outro
lado, valorizou a utilização dos quipos por parte dos incas, lembrando que ele os
utilizou por ser uma fonte confiável de informações históricas (Porras, 1968: 119-121).
Outro historiador peruano que reserva um papel especial a Cieza é Franklin Pease.
Destaca Pease, além do mencionado por Porras, a importância de Cieza na
periodificação que estabeleceu na história do Peru no começo da sua própria história e
de suas observações em relação à forma de como deveria ser escrita a história (Pease,
1995: 199-204).
Junto a essas duas opiniões de peso, recentemente podemos somar mais uma.
Para Luis Millones Figueroa: “por supuesto, Cieza fue un historiador. El primer
historiador del Perú, a decir verdad” (Millones, 2001: 56). Se para muitos historiadores,
a importância de Cieza de León estribava em constituir uma fonte confiável e de
primeira-mão, Millones levanta um problema importante na obra de Cieza, sua
importância em sua totalidade, como uma obra de pensamento historiográfico, como
uma reflexão empírica de como poder fazer a história no Peru ou no Novo Mundo, no
século XVI e nas condições concretas que significavam a conquista de outro mundo.
Esse caminho apontado por Millones, de fazer de Cieza e de sua obra um
problema historiográfico, é o caminho que me interessa trilhar.
A importância do prefácio
O primeiro passo para compreender a Cieza, seria ler o prefácio de sua obra.
Como afirma François Hartog em relação aos autores antigos, estes autores gregos e
latinos argumentavam a favor do assunto e de sua importância, enquanto que como
leitores modernos, nós esperaríamos encontrar nessas linhas, uma argumentação a favor
do método seguido na pesquisa (Hartog, 2001: 11). A essa consideração sobre a
importância do prefácio ou proêmio em autores antigos, devemos somar a opinião de
Juan Luis Vives que na sua obra De ratione dicendi (1532), que afirma que uma obra de
história deve ser escrita num estilo mais “colorido” e o proêmio deve chamar a atenção
ao leitor (Vives o chama de “ouvinte”) devido à sua utilidade, à matéria agradável e por
ser amena (Vives, 1998: 241). Por esse motivo, é preciso delimitar quais seriam os
temas que encontramos no prefácio da Crónica del Perú, primeiro e único livro que foi
publicado pelo próprio Cieza.
Existe uma intenção de Cieza de realizar um resgate, tanto dos acontecimentos
pelos quais passaram os espanhóis nessas ignotas terras quanto de escrever sobre
“infinitas coisas dignas de perpetua memória de grandes e diferentes províncias” (Cieza,
1984: 6). Portanto, junto aparecem na sua obra tanto as façanhas dos espanhóis, suas
guerras, batalhas e outros, quanto às descrições sobre a natureza, clima, geografia dessas
terras, assim como os costumes e governo de seus índios.
Escolhido como escritor que pudesse registrar essa história, Cieza percebe que
“não deixe de conhecer (…) que para dizer as admiráveis coisas que neste Reino de
Peru houve e há, seria conveniente que as escreverá um Tito Lívio ou um Valério ou
outro dos grandes escritores que existiram no mundo” (Cieza, 1984: 6). Seu talento é
insuficiente e suas letras são poucas para poder registrar a memória dos espanhóis,
frente “aos grandes juízos e doutos foi concedido o compor histórias, dando-lhes lustre
com suas claras e sábias letras; e aos não tão sábios, o pensar em isso é desvario, e
como tal, passei algum tempo sem dar cuidado a meu fraco engenho” (Cieza, 1984: 8).
Mas, o que tem a seu favor? Principalmente a verdade. Em torno do problema da
história e a verdade contida nela, Cieza procurará destacar o valor de seu escrito e
definir o sentido da escrita da história no século XVI.
A história se define tendo como eixo o problema da verdade. A verdade histórica
se constrói no século XVI tomando como base o conjunto de fontes, sejam elas escritas
ou orais. Mas, no contexto peruano do século XVI não é possível fechar as fontes em
tornou destes dois elementos. Cieza percorre um espaço territorial pelo qual sua
memória registra e guarda todo um conjunto de percepções visuais: o agreste do
território, a arquitetura plasmada nas cidades ou nos caminhos indígenas, as vestimentas
dos índios e as formas de enterrar a seus mortos, etc. Mas também em procura de outras
opiniões e de apaziguar sua sede de informação, Cieza precisa escutar aos outros, tanto
espanhóis quanto indígenas, e dar o lugar apropriado para o coletado. É sua própria
experiência pessoal que se converte numa fonte histórica: aquilo que ele viu e aquilo
que ele escutou merecem crédito.
Mas sua história tem uma finalidade prática. Ela nós serve de exemplo. Desde a
chegada dos espanhóis ao Novo Mundo, desde que Deus pôs no caminho dos espanhóis
a estes índios, que são ao igual que eles, filhos de Adão e Eva, e que como instrumento
divino, eles os submeteram ao seio da santa igreja; se percebe que sua história procura
mostrar a eleição divina dos espanhóis para levar adiante essa tarefa seguindo um
determinado plano que é desconhecido para os homens.
“Mestra da vida”
Dentro do pequeno grupo de autores gregos e latinos que são mencionados por
Cieza, se encontra num lugar de destaque Marco Túlio Cícero. A sua obra não pode ser
considerada como um conjunto de textos de história; neles o aspecto principal está
voltado para uma reflexão sobre o papel da história ou a sua utilidade para a oratória.
Não se pode esquecer que a preocupação de Cícero não é o trabalho do historiador em
relação aos acontecimentos, mas a utilidade da história para o orador. Num primeiro
momento, ele estabelecia que se à poesia lhe correspondia produzir obras que nós
proporcionassem prazer, enquanto que à história lhe correspondia tratar dos
acontecimentos em procura da verdade (Cícero, De legibus: I, 1, 5). Mas agora para
Cícero, a história e a retórica de maneiras distintas tinham uma finalidade comum,
construir uma determinada opinião pública, com a ressalva de advertir o perigo de que a
retórica podia distorcer os acontecimentos da história. Em esse sentido é que Cícero
reforça a união entre história e verdade.
A história que é escrita de acordo com as leis que estabeleceu Cícero para a
história em relação à escrever sempre a verdade e nunca escrever coisas falsas possui
uma utilidade elevada. A história para Cícero se constitui em historia magistra vitae,
numa coleção de exemplos que permitem vislumbrar através da sua leitura o próprio
futuro ou conhecer a história para saber que nos depara o futuro (Koselleck, 2006: 46-
47). Nas palavras de Cícero “desconhecer o que aconteceu antes de nosso nascimento é
ser sempre uma criança. Em verdade, o que é a vida de um homem, se ela não se une à
vida de seus antepassados mediante a lembrança dos fatos passados? A lembrança do
passado e o recurso aos exemplos históricos proporcionam, com grande desfrute,
autoridade e crédito a um discurso” (Cícero, Orator: §120).
De muitas maneiras, Cícero se apresenta na obra de Cieza, assim como poderia
ser na obra de qualquer espanhol que escrevesse na época. Como exemplo, Millones
destaca nesse sentido o aproveitamento das máximas de Cícero na obra De ratione
dicendi de Juan Luis de Vives (Millones, 2001: 57). Da mesma maneira que Vives
aproveita o conhecimento da obra de Cícero, além de um enorme numero de outros
autores gregos e latinos, dos quais ele tinha um conhecimento profundo, para escrever
uma obra sobre a importância da retórica; Cieza comparte esse acervo clássico numa
versão básica e reduzida que lhe permite repetir no seu prefácio que “assim Cícero
chamou à escritura de testemunha dos tempos, mestra da vida e luz da verdade” (Cieza,
1984: 14).
Já em palavras de Cieza temos que “também escrevi esta obra para que viessem
em ela os grandes serviços que muitos nobres cavaleiros e mancebos fizeram à coroa
real de Castela, se animem e procurem imitá-los. Mas também para que percebendo
como outros não poucos se extremaram em cometer traições, tiranias, roubos e outros
erros, tomando exemplos em eles e nos famosos castigos que se fizeram, sirvam bem e
lealmente a seus reis e senhores naturais” (Cieza, 1984: 9). Na época em que ele
escreveu sua Crónica, Gonzalo Pizarro já tinha sido derrotado por Pedro de La Gasca
por ter tentado rebelar-se contra as leis da Coroa que procuravam extinguir as
encomiendas de índios em favor dos espanhóis, conquistadores e seus descendentes.
Portanto, o caminho já se encontra traçado para Cieza.
Conclusão
Poderíamos afirmar que a forma como Cieza narra sua história é principalmente
lineal, uma história cronológica que começa e termina segundo a ordem dos
acontecimentos. Essa característica pode ser encontrada tanto em El señorío de los
Incas, Descubrimiento y conquista assim como nos livros que constituem a Guerra
civil. Nesses livros, Cieza procura narrar sobre a história do Reino do Peru, antes da
chegada dos espanhóis, como se deu o descobrimento do território e logo sua conquista,
para depois narrar o porquê se originaram as guerras civis que enfrentaram aos
espanhóis, e como estas terminaram com a derrota de Gonzalo Pizarro pelo governador
La Gasca. Já no primeiro livro, Crónica del Perú, a característica que ressalta em
primeiro lugar é uma narrativa que se organiza em função de uma descrição de uma
viagem do norte para o sul, as vezes fazendo uma viagem marítima e outras, uma
viagem terrestre ao interior, seguindo os caminhos mandados construir pelos incas.
Neste livro, se descreve a natureza do território que foi conquistado, seus diversos
climas, os caminhos e as cidades, a localização geográfica destas e quais eram as
melhores rotas para chegar desde o litoral. Também se descrevem aos índios, seus
costumes e governo, suas roupas, armas e hábitos alimentares. A sua obra é histórica,
ainda que para nós possa resultar estranho que dentro da obra se reserve trechos
importantes para descrever o território do Reino e as formas de organização ou de
comportamento. História que para nós inclui história, geografia, etnologia, política e
outras disciplinas.
Lembro novamente a obra de Vives para esclarecer esse uso: “O discurso não
deve ser de quaisquer coisas, mas das mais importantes no argumento, muito dignas de
conhecer e onde o escritor acredita ter conseguido material para utilidade e deleite. Há
também frequentes descrições de cidades, de regiões, de montes e rios, que contribuem
muito à compreensão do fato” (Vives, 1998: 245). Não se encontra longe do horizonte
da história no século XVI, o fato de escrever a história e introduzir argumentos sobre a
geografia, o clima, a natureza, os costumes e outros, porque eles também ajudam a
explicar essa mesma história.
Mas a própria definição da história é estranha. Se há uma sequência cronológica
na maior parte da obra porque aparentemente corresponde a uma compreensão lineal do
tempo, encontramos evidencias da possibilidade dentro da concepção providencialista
da história de elementos de uma compreensão circular da mesma. O providencialismo
se manifesta como uma marcha, aparentemente reta, do homem para a salvação. A
história é construída de acordo a um plano divino, na qual as faltas que comete o
homem em seu transcurso devem ser castigadas para que ele compreenda sobre seus
erros e se aproxime cada vez mais a seu salvador. Nesse ponto é que a história escrita
por Cieza se aproxima às ideias de Bartolomé de Las Casas.
Las Casas tinha em diversos momentos de sua obra combatido a outros
escritores que tinham escrito sobre as Índias e não tinham sido autênticos em relação às
mortes dos índios causadas pelos espanhóis; na lista poderiam aparecer além de López
de Gómara, também Gonzalo Fernández de Oviedo. Frente à dedicatória de López de
Gómara de que “a maior coisa depois da criação do mundo, tirando a encarnação e
morte de aquele que o criou, é o descobrimento das Índias” (López de Gómara, 1979:
7), temos a Las Casas que afirma que “os grandes e inexplicáveis pecados que se
cometeram nas Índias são os maiores depois que se cometeu a morte do Filho de Deus”
(Las Casas, 1958: 231). Essa afirmação serve para narrar todas as maldades cometidas
pelos espanhóis contra os índios, as carnificinas, vexações, saqueios e outras mais. Para
Hidefuji Someda, a opinião de Las Casas era que “a essência da história indiana
consiste no fato de que os índios, que tinham vivido pacificamente em suas próprias
terras, foram maltratados e assassinados por invasores chamados cristãos” (Someda,
2005: 99). O sofrimento dos índios causado pelos espanhóis com o intuito de submetê-
los e a desapiedada exploração que sofreram, foram entendidos por Las Casas como
uma quebra da confiança dada aos espanhóis em relação a aquilo que eles fizeram na
reconquista. Como afirma Cantù em relação à aproximação de Cieza às ideias
lascasianas “segundo a qual a traição dos fins providencialistas da presença da Espanha
em América, vá preparando para os transgressores um justo e inevitável castigo”
(Cantù, 1987: LXXXIX).
A história do Peru, tanto a história dos índios quanto da história dos espanhóis
quando chegaram, se converte num pano de exemplos e que Cieza procura recolher os
acontecimentos importantes que possam servir de lição para os espanhóis que leiam
suas linhas. Cieza é consciente que o descobrimento e conquista das Índias se deve a um
plano divino e da importância que outorga aos pecados, afirma que “Deus se cansou de
sofrer os grandes pecados dos índios desta terra e enviou aos Incas a castigá-los, os
quais também não duraram muito e por sua culpa, Deus se cansou dos sofrimentos e
vieram vocês que tomaram sua terra na qual agora vocês estão, e Deus também se
cansará dos sofrimentos e viram outros” (Cieza, 1987: 145). É nesse sentido que Cieza
coincide com Bartolomé de Las Casas em que a história está encaminhada desde um
começo para a salvação, mas que os castigos sofridos pelos índios, também poderiam
ser sofridos pelos próprios espanhóis em razão de seus pecados. E ai o perigo da
previsão milenarista que volta com toda sua força tal “o poder passa de uma nação a
outra pela injustiça, pela violência e pela riqueza” (Eclo 10, 8).
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