23 a 26 de maio de 2006
Brasília-DF
Resumo:
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“Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que
os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros”
Paulo Freire
Introdução
O trabalho tem como temática o sentido e os desdobramentos do termo “remanescentes de
comunidades de quilombos”, utilizado no artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias da
Constituição Federal de 1988, para definir o grupo que teria direito ao reconhecimento e titulação
das suas terras.
A polêmica gerada pelo termo cunhado no dispositivo, remetendo as comunidades
quilombolas ao passado, e negando-lhes a existência atual, leva-nos a optar, no âmbito deste ensaio,
pela inversão das palavras que, por si só, dão um sentido mais adequado. Portanto, optamos por
utilizar a expressão “comunidades remanescentes de quilombos”.
O caminho percorrido partiu do levantamento do ordenamento jurídico, no que diz respeito à
temática. Seguimos com o tratamento dos dois conceitos centrais para a análise crítica do art. 68 e
da legislação infraconstitucional: “população tradicional” e “quilombos”. Buscamos seguir algumas
“pegadas” no sentido de formar um mosaico de conceitos, compreendendo como “população
tradicional” e “quilombo” são percebidos por diversos autores. A intenção não foi de contrapor
conceitos/idéias/noções, mas considerar a complementaridade entre as diferentes abordagens.
Para dar um sentido prático à temática, analisamos a comunidade remanescente de
quilombo, denominada Forte, distrito de São João da Aliança, Goiás, a partir das seguintes
hipóteses: (1) A imprecisão do conceito utilizado pelo art. 68 faz com que a sua efetivação dependa
dos conceitos construídos em outros campos da ciência, que não o campo jurídico; (2) O direito à
titulação das terras das comunidades remanescentes de quilombos, garantido legalmente, só se
efetiva pela intervenção de movimentos populares e de organizações de apoio as suas causas.
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Entretanto, a problemática não se encerra no art. 68, e é na relação com outros dispositivos
constitucionais e infraconstitucionais que vai se configurando.
A Constituição, para garantir a todos o “direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”, compreendido
como direito fundamental (DERANI, 1998), nos termos do art. 225, caput, obriga o Poder Público a
criar “espaços territoriais especialmente protegidos”.
Para regulamentar os incisos I, II, III e VII do art. 225 foi instituído, pela Lei 9985/2000, o
Sistema Nacional de Unidade de Conservação (SNUC), que teve a presença humana em unidades
de conservação como a questão mais controvertida, durante seu longo processo de debate. Para
Leuzinger (2002) o SNUC foi forjado na disputa entre interesses governamentais, ruralistas, sociais
e, dentro do movimento ambientalista, entre conservacionistas e socioambientalistas.
Leuzinger (2002) e Leitão (2002) observam que a criação de unidades de conservação
sempre foi feita de forma autoritária, sem participação ou sequer consulta às populações tradicionais
afetadas. Neste sentido, Leitão faz a seguinte crítica ao SNUC: “... a lei não inova, não
conseguindo romper a rígida e antiga classificação utilitarista do meio ambiente que só enxerga os
atores pelo viés maniqueísta de quem faz uso ou não dos recursos naturais.” (2002, p. 77).
As populações tradicionais têm garantido ainda, pela Constituição, o direito à identidade e
perpetuidade cultural (LEUZINGER, 2002), declarados no art. 215. Assim, a Lei do SNUC não
pode deixar de levar em conta os direitos Constitucionais garantidos às populações tradicionais,
expressos nos dispositivos acima abordados, além dos direitos fundamentais à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, conforme o art.5°.
Outra questão que decorre do art. 68 diz respeito ao direito de propriedade, que assume
contornos específicos nas comunidades quilombolas. Segundo Valle (2002), em uma comunidade
quilombola a relação entre os indivíduos e o território não se enquadra no paradigma de propriedade
que é a base do direito civil, pois na maioria dos casos o território não é objeto de apropriação
privada e de uso exclusivo, mas de posse e uso coletivo.
Esta peculiaridade das comunidades quilombolas foi atendida pelo Decreto 4887/2003 i que
determinou no art. 17, caput: “A titulação prevista neste Decreto será reconhecida e registrada
mediante outorga de título coletivo e pró-indiviso às comunidades a que se refere o art. 2 o, caput,
com obrigatória inserção de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e de
impenhorabilidade”. Para a outorga do título determina ainda que as comunidades sejam
representadas por associações legalmente constituídas.
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No período de 15 anos entre a promulgação da Constituição e a regulamentação de seu art.
68 as disputas e atritos referentes à titulação das terras das comunidades remanescentes de
quilombos, tiveram foco central os conceitos de população tradicional e de comunidades
remanescentes de quilombos. A compreensão destes conceitos é ainda fundamental para a resolução
dos conflitos que se impõem no trato da problemática.
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econômica e socialmente, e onde residem por gerações; reduzida acumulação de capital; e auto-
identificação ou identificação por outros de pertencer a uma cultura distinta.
Para Filho (2005), as populações tradicionais são aquelas que vivem vida coletiva e
solidária, regidas por tradições que se encontram fora da formação capitalista ou moderna e que não
incluem a apropriação individual da terra.
Leuzinguer (2004, p. 69) define estas populações como “povos que dependem
historicamente e diretamente da existência de um ambiente natural preservado, agindo sempre de
forma a não o degradar, e utilizando os recursos florestais necessários à prática da atividade
extrativista de forma sustentável, ou seja, sem extingui-los”.
Para Vianna (1996, apud ADAMS, 2000), as populações tradicionais são idealizadas por
parte do movimento ambientalista e do poder público brasileiro, “permeada de referências que
remetem a idéias que as associam a povos ‘primitivos’, ‘harmônicos’, ‘simbióticos’e
‘conservacionistas’”. Muitos autores têm caracterizado as populações tradicionais como povos que
mantêm uma relação sustentável com seu meio, através de práticas que respeitam os ciclos naturais,
construídas empiricamente ao longo do tempo e transmitidas oralmente ao longo das gerações. Tal
definição acaba por idealizá-los como povos que vivem em harmonia, mantendo os mesmos hábitos
ao longo do tempo, hábitos que são tidos como sustentáveis.
A classificação de populações tradicionais, sendo muito generalista, pode levar a
interpretações equivocadas, de que estas são homogêneas e compartilham de práticas e hábitos, já
que se encaixam dentro de uma mesma categoria.
Para Little (2002), um grave problema, é a opção pela palavra ‘tradicional’, dada a sua
polissemia e a forte tendência de associá-la com concepções de imobilidade histórica e atraso
econômico.
Menezes (2004) aponta para uma das dicotomias clássicas, construída pela ciência moderna,
que estabelece uma oposição constante entre as sociedades “tradicionais” – consideradas estáticas –
e a “modernização” – fonte imediata de progresso – introduzida pela administração colonial. Para se
chegar a essa dicotomia, foi necessário transformar o passado em estagnação: subdesenvolvimento,
aldeias perdidas, práticas obscurantistas etc., idéias que, ao longo de anos de colonização,
transformam estas populações em não-civilizados, através da destruição do sujeito local,
aniquilação da sua cultura, dos seus saberes, inculcando-lhes os “verdadeiros” saberes da ciência,
para os quais a natureza apenas tem valor enquanto mercadoria, como fonte de recursos alienáveis.
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Para Adams (2002), somente a desconstrução do conceito apresentado no debate ambiental
permitirá resgatar o dinamismo e a riqueza destas populações, fortalecendo sua luta política pelo
direito de permanecer em suas terras.
No Brasil, o termo tem sido incorporado recentemente em instrumentos legais tais como a
Constituição de 1988 e a Lei do SNUC, fato que, para Little (2002), reflete a ressemantização do
termo e demonstra sua atual dimensão política. Diversas representações da sociedade civil,
organizações não governamentais, cooperativas, entre outras, têm importante participação neste
processo, representando as populações “tradicionais” na luta por seus direitos e pelo
reconhecimento das suas identidades.
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plenitude. (ANDRADE; TRECCANI, 2000). Com isso parecem concordar todos os autores
visitados.
O primeiro conceito de quilombo foi cunhado pelo Conselho Ultramarino que, em 1740,
reportando-se ao rei de Portugal, valeu-se da seguinte definição: "toda habitação de negros fugidos,
que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se
achem pilões nele". Este conceito perpetuou-se como definição clássica até a década de 1970,
influenciando diversos estudiosos. (SCHMITT; TURATTI; CARVALHO, 2002).
Wagner (1999) esclarece que o conceito do Conselho Ultramarino constitui-se basicamente
de cinco elementos: 1) a fuga; 2) uma quantidade mínima de fugidos; 3) o isolamento geográfico,
em locais de difícil acesso e mais próximos de uma "natureza selvagem" que da chamada
civilização; 4) moradia habitual, referida no termo "rancho"; 5) autoconsumo e capacidade de
reprodução, simbolizados na imagem do pilão de arroz.
Cada um desses elementos que estiveram presentes nos conceitos elaborados ao longo de
décadas no âmbito da ciência, são também aqueles que habitam o imaginário coletivo e que
compõem o senso comum sobre quilombo. O modelo de quilombo está baseado em Palmares,
símbolo da resistência negra, popularizado pela mídia, mas que, na realidade, constituiu apenas uma
modalidade de quilombo. O modelo palmarino orientou muitos estudos e foi apenas nas décadas de
1980 e 1990, na medida em que foram intensificando-se os contados com as comunidades
remanescentes de quilombos, que estudos inovadores ampliaram o conhecimento sobre quilombos
(Reis; Santos, 1996, apud ANDRADE; TRECCANI, 2000) e cada um dos elementos que compôs
por tanto tempo o conceito foi sendo refutado.
Os quilombos, durante o sistema escravocrata, e as comunidades remanescentes de
quilombos, após a sua extinção, se constituíram por meio de uma enorme diversidade de processos,
do qual a fuga e ocupação de territórios isolados é apenas um entre tantos outros, como: heranças;
doações; recebimento de terras como pagamento de serviços prestados ao Estado; compra de terras;
permanência ns terras que ocupavam e cultivavam no interior das grandes propriedades.
A questão do isolamento também é refutada. Historiadores demonstram que muitos
quilombos mantinham relações econômicas externas, e tal relacionamento fazia parte da estratégia
de garantia de autonomia. Descobriu-se, ainda, que existiam quilombos a apenas alguns metros da
casa grande.
O sistema repressor não fala por si e precisa de suporte econômico.
Escasseando os recursos financeiros dos grandes proprietários os
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mecanismos de coerção e justiça privada não funcionam com a mesma
intensidade. O processo de acamponesamento ou de pequena produção
familiar autônoma tende-se a se expandir e consolidar. ... o quilombo, em
verdade, descarnou-se dos geografismos tornando-se uma situação de
autonomia, que se afirmou ou fora ou dentro da grande propriedade.
(WAGNER, 1999, p.15).
No sentido de romper com o esquema interpretativo que fundamentou o conceito de
quilombo desde o período colonial, é preciso empreender uma análise crítica que tem como ponto
de partida, segundo Wagner (1999) compreender como as comunidades “remanescentes” se
autodefinem, pois é neste processo que se forja e afirma a identidade coletiva de um grupo.
Segundo SCHMITT; TURATTI; CARVALHO (2002), é o sentimento de pertença a um
grupo e a uma terra que faz uma comunidade capaz de se auto-definir e se auto-firmar, como forma
de expressão da identidade étnica e da territorialidade, construídas sempre em relação aos outros
grupos com os quais os quilombolas se confrontam e se relacionam. Para estes autores, portanto, a
identidade étnica e a territorialidade são os elementos que fundam a compreensão de comunidades
remanescentes de quilombos.
Estes elementos compõem a definição da Associação Brasileira de Antropologia/ABA:
“remanescentes de quilombo constituem grupos étnicos conceitualmente definidos pela
antropologia como um tipo organizacional que confere pertencimento através de normas e meios
empregados para indicar filiação ou exclusão" (ABA, 1994 apud ANDRADE; TRECCANI, 2000,
p.5).
Para Diegues (2001, p.49): “Descendentes de escravos negros, os quilombolas sobrevivem
em enclaves comunitários, muitas vezes antigas fazendas deixadas por outros proprietários. [...]
Vivem, em geral, de atividades vinculadas à pequena agricultura, artesanato, extrativismo e pesca,
variando de acordo com as regiões em que estão situados”.
Já o Decreto n° 4887 de 2003 considera remanescentes das comunidades dos quilombos os
grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados
de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a
resistência à opressão histórica sofrida.
No percurso histórico de construção de conceitos surgiram muitos nomes que, para Anjos
(2005a) dizem respeito a um mesmo grupo, referem-se a um mesmo patrimônio territorial e
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cultural: remanescentes de quilombos, “mocambos”, “comunidades negras rurais”, “quilombos
contemporâneos”, “comunidades quilombolas”, ou “terras de preto”.
A análise dos conceitos apresentados permite afirmar que se alteraram os elementos que
conformavam a definição de quilombo, mas o processo se repete e os cinco elementos iniciais são
trocados por outros que vão compor os conceitos/noções atuais: identidade étnica,
territorialidade, autonomia.
4. A visível invisibilidade
As idéias associadas aos negros ao longo da história são fios de um tecido que chama a
atenção pela exuberância de cores e formas de preconceito, mas que muitos sujeitos não
conseguem/querem ver. Essa cegueira do Estado, da história oficial, da escola e da sociedade
dominante foi a brecha para que fosse aprovado o artigo 68. Filho (2005, p. 29) afirma que “tão
bem estiveram escondidos que ao se aprovar o artigo 68 das Disposições Transitórias se imaginava
que um pequeno número de quilombos seria beneficiado”. Para Gusmão (apud SCHMITT;
TURATTI; CARVALHO, 2002, p.5) “esta visão reduzida que se tinha das comunidades rurais
negras refletia, na verdade, a ‘invisibilidade’ produzida pela história oficial, cuja ideologia,
propositalmente, ignora os efeitos da escravidão na sociedade brasileira. ...”.
Uma destas idéias é a que relaciona o negro à minoria, em uma tentativa de minimizar o
preconceito, fazendo supor que a população negra é pequena, quando de fato é consenso nas
entidades negras representativas que cerca de 70% da população brasileira é negra ou mestiça
(ANJOS,2005a).
Outra idéia consolidada está relacionada à negação dos saberes dos povos africanos,
considerados apenas a mão-de-obra dócil. Anjos (2005a, p.27) esclarece: “[...] dentre os principais
fatores que fizeram com que os povos europeus se voltassem para a África e a transformassem no
maior reservatório de mão-de-obra escrava jamais imaginado pelo homem foi a tradição dos povos
africanos de bons agricultores, ferreiros e mineradores [...]”
A abordagem de todos os “fios” do tecido não cabe no espaço deste ensaio, mas reconhecer
a invisibilidade da questão ajuda-nos a compreender as disparidades entre as informações sobre o
número de comunidades remanescentes de quilombos existentes no país, o que indica mais uma
dificuldade em relação à questão de titulação das terras.
Segundo pesquisa realizada pelo Centro de Geografia e Cartografia Aplicada (CIGA) da
Universidade de Brasília (UnB), publicada por ANJOS (2005b), o Brasil possui 2.228 comunidades
remanescentes de quilombos, totalizando uma população de mais de 2,5 milhões de pessoas.
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A identificação destas comunidades cresce aceleradamente. A primeira etapa do
mapeamento realizado no âmbito do “Projeto Geografia dos Remanescentes de Quilombo do
Brasil” computando dados obtidos até setembro de 1999 e publicado por ANJOS (2005a) em 2000,
identificou 848 comunidades no Brasil, assim distribuídas: 60% no Nordeste, com maiores
concentrações na Bahia e no Maranhão; 25% na região Norte, concentrados no Pará.
Em 2005, na publicação da “Segunda Configuração Espacial” (ANJOS, 2005b) o trabalho
de atualização do cadastro chegou às 2.228 ocorrências. Os dados foram coletados junto a três
segmentos: universidades públicas, por meio da rede de Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros;
entidades negras representativas do país; organismos oficiais federais, estaduais e municipais,
especialmente o INCRA e Fundação Cultural Palmares. O autor reconhece que existem ainda
muitas comunidades não identificadas.
Esta segunda configuração tirou das sombras uma entre milhares de comunidades
remanescentes de quilombos, a comunidade do Forte, distrito de São João D’Aliança (GO), que
inspirou e motivou a realização deste ensaio.
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desconhecimento da condição de comunidade remanescente de quilombo pela Prefeitura, que
desconhece também a legislação e os processos referentes à titulação.
Uma segunda observação é que a comunidade não conta com associações comunitárias ou
com a atuação de organizações que representem seus direitos e, além disso, sente-se abandonada
pelo poder local, em contraponto com épocas anteriores em que o Forte, sede do município, contava
com cartório, correio, e melhor acesso aos serviços públicos. Segundo o depoimento de um
morador: “[...] o Forte era forte, moço. Tinha aqui umas 200 famílias, quase trezentas, depois foi
acabando, acabando... O prefeito nunca ligou por aqui não. O homem que era dono do cartório
mudou, e carregou o cartório. Aí foi só derrubando o lugar, foi acabando. Entra um prefeito, não faz
nada, entra outro, não faz nada. Foi acabando porque o povo foi desgostando, foi vendendo as
casas”.
O terceiro elemento da problemática refere-se à questão da situação fundiária. As
informações sobre a propriedade das terras da Vila são contraditórias e indicam uma condição
fundiária diversificada: áreas devolutas, posse da igreja, grilagem, assentamentos regularizados do
INCRA. No depoimento de um dos antigos moradores, dono do cartório desde que o Forte era sede
do município, as terras são de domínio público, ou seja, devolutas. Há escrituras de compra de
direito de posse, mas se buscadas as origens de propriedade, nada será encontrado.
Outros moradores indicam que a terra foi doada à igreja e a ela pertence: “essa área de terra
aqui foi doada pra Igreja, pra igreja católica. [...] ninguém nunca conseguiu esse documento. Essas
casa é tudo sem documento”. Outro depoimento revela: “O terreno da vila do Forte pertence à
Igreja. Os fazendeiros doaram para o padroeiro. O título ficou sendo da Igreja”.
O distrito do Forte conta, para além da Vila, com latifúndios e assentamentos do INCRA. Na
área limítrofe à Vila há três assentamentos que com ela mantém relações estreitas: os assentados
freqüentam a escola, a igreja e o forró, utilizam o comércio e os bares. A população do distrito
chega, segundo o censo de 2000 (IBGE), a 927 pessoas, estando 829 na área rural, o que mostra a
forte presença dos assentamentos na composição populacional do distrito. Os três assentamentos –
Brejo da Onça, Nova Visão e Santa Maria – somam aproximadamente 251 famílias.
Há controvérsias também quanto à propriedade das grandes fazendas. Os moradores relatam
a perda de terra por ação de grilagem: “Nós mesmo era fazendeiro, meu avô tinha quatrocentos
alqueires de terra, nós perdeu ela com grilagem, tomaram de nós. Eu tava pra fora, eu era pequeno,
meus irmão tudo bobo também. A terra aí era nossa! Até hoje eu tenho documento velho aí, só
documento de fazenda, mas não vale mais nada. Quando eu cheguei já tinha requerido aquele uso
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de capião, tomou conta da terra. Ficamos sem nada. E desse jeito aqui não foi só nós, não, foi
vários, que ficou sem a terra”.
A análise dos aspectos presentes na composição do território da Vila do Forte indica a
complexidade e diversidade de atores envolvidos em um suposto processo de titulação e, portanto,
terão provável enfrentamento, pela comunidade, de muitas disputas de interesse para garantir o
direito à terra.
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fazer umas telhas aqui, fazer um forno’, aí fez um forno. Aí ficou morando lá até fazer as telhas,
‘agora nós já fez as telhas, vou voltar lá pra aquele córrego, é o Pipiri, vou fazer a casa lá’[...] Aqui
chama Forte porque é forte mesmo.” (Homem, 88 anos)
“Aqui é muito tempo. Muito tempo... Não sei nem que idade ele (o Forte) tem, tem mais de 300
anos... mais de 300. O meu pai chegou pra aqui menino, ele fez essa casa, ele morro com 83 anos”.
(Homem, 74 anos)
“Aqui é velho demais. É o lugar mais velho que tem. Todo lugar mudou de nome, aqui não. Isso é
velho demais, minha filha! Você vê que eu tô nessa idade e já conheci isso aqui velho. Isso aqui já
teve acabado, depois melhorou um pouquinho. Mas não acaba, acho que é a água que não deixa
acabar. ” (Homem, 83 anos)
“Aqui é muito antigo, tinham escravos trabalhando... A serra pode procurar que pode achar ouro
nela. O Forte é antigo, mas não cresceu porque foi construído perto da serra.” (Homem,
comerciante, 53 anos)
Os moradores e funcionários da prefeitura de São João D’Aliança deram os seguintes
depoimentos, também quando perguntados sobre a origem da comunidade:
“Ouvi falar que aqui começou com o garimpo. Já tiraram muito ouro daqui.” (Homem, comerciante,
subprefeito do Forte)
“O Forte começou com remanescentes de quilombos da Bahia. Criavam gado e vieram trazendo o
gado. A intenção era subir mais, mas pararam para descansar. O capim era bom. Começaram a tirar
mangaba para fazer borracha e fazer telha com o barro. Deu muito dinheiro. Só depois veio a
mineração de manganês.” (Mulher, membro da ONG AD Capetinga)
“Comunidade formada por negros livres vindos da Bahia que chegaram e ficaram por ali.”
(Homem, funcionário da prefeitura)
“O Forte não é quilombo. Foram pessoas que vieram procurando terra. Não são quilombolas. Acho
que eles chegaram da Bahia e não tiveram coragem de subir a serra. Lá embaixo é quente e aqui em
cima é frio.” (Homem, membro da Associação de Guias Turísticos)
As diferentes origens do povoado do Forte, apontadas acima, podem de fato ter ocorrido, já
que a região era rota de trânsito de pessoas vindas da Bahia em busca de terra, bem como alvo da
exploração de minérios, e procurada pelas terras férteis para lavoura e pecuária, sendo o trabalho
braçal feito pelos escravos. Conforme aponta Baiocchi (1983), o negro foi fundamental para a
formação da estrutura econômica de Goiás, desde o início do seu povoamento, no século XVIII.
Conclusão
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A questão do reconhecimento das comunidades quilombolas não se situa apenas no campo
jurídico, como não diz respeito apenas a uma categoria de população tradicional, objeto de estudo
da antropologia. O que está em jogo é uma luta política em defesa dos direitos do povo negro no
meio rural, reconhecendo-lhes a identidade étnica e cultural própria, forjadas no contexto das
desigualdades historicamente estabelecidas.
A experiência no Estado do Pará, pioneiro no reconhecimento e na titulação das terras,
mostra a importância do movimento negro na mobilização das comunidades em busca de seus
direitos. Boa Vista, a primeira comunidade quilombola a ser titulada no país - localizada em
Oriximiná, Pará - contou com iniciativas da Associação das Comunidades Remanescentes de
Quilombos do Município de Oriximiná, Comissão Pró-Índio de São Paulo e a Comissão Pastoral da
Terra Pará/Amapá. A auto-identificação e o reconhecimento da condição de remanescente de
quilombo se deram pela mediação dessas associações, cujas ações foram fundamentais para garantir
a agilidade do processo, a elaboração das propostas de limites das áreas tituladas e a reunião e
elaboração de subsídios históricos e antropológicos (ANDRADE; TRECCANI, 2000, p.14).
A experiência do Pará, relatada por Andrade e Treccani (2000) ensina ainda que a
regularização implica fixação das fronteiras territoriais que são fluidas, não têm coordenadas
geográficas rígidas. Este é o principal ponto de conflito: com posseiros, populações tradicionais não
remanescentes, que também querem garantir seu direito à terra; com povoados vizinhos; com
comunidades quilombolas vizinhas; com empresas madeireiras interessadas na área quilombola;
com mineradores que tem títulos minerários que incidem sobre suas áreas; com carvoeiros; com
fazendeiros, tanto latifundiários como minifundiários; com assentados; com o governo, quando
incidem sobre suas áreas unidades de conservação.
Por fim, ressaltamos que o art. 68, fruto da luta do movimento negro, trouxe à tona uma
problemática que vai muito além do reconhecimento e titulação de terras, colocando à sociedade
brasileira o desafio de refletir sobre nossa afro-descendência, sobre o paradigma ocidental
dominante que imprime uma representação do negro e dos povos africanos, condiciona nossa práxis
social e cuja lógica (criador e criatura)vi determina o modo com que escrevemos nossa história de
exclusão e preconceito.
Na lei somos todos iguais e um conceito também nos iguala a todos. É no compasso do
cotidiano que se revelam as verdadeiras relações, que se constroem e afirmam-se as identidades
coletivas postas em jogo na luta pelos direitos, pela vida, pela sobrevivência.
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LIMA, A.(Org.) O Direito para o Brasil Socioambiental. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
Editor, 2002. 107 – 134 p.
WAGNER, A. Os quilombos e as novas etnias. In: LEITÃO, S.(Org.). Direitos territoriais das
comunidades negras rurais. São Paulo, Doc. ISA n°05, 1999.
Notas
16
i
“Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras
ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias.”
ii
Disponível em https://planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/Mensagem_Veto/2000, visitado em 27/11/05.
iii
Em ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos. Territórios das Comunidades Remanescentes de Antigos Quilombos no
Brasil: Segunda Configuração Espacial. Brasília: Mapas Editora e Consultoria, 2005. Inclui mapa temático articulado.
iv
Fonte: Enciclopédia dos Municípios, vol. 36, p.407-408.
v
Revoltosos são, segundo moradores, os integrantes da Coluna Prestes.
vi
Segundo a concepção de recorrência proposta por Morin (1997), em que a lógica que determina nosso modo de pensar
é também alimentada pelos pensamentos por ela produzidos.