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MÚSICA POPULAR AFRO-BRASILEIRA E O ENSINO DE

HISTÓRIA
AFRO-BRAZILIAN POPULAR MUSIC AND HISTORY TEACHING

RESUMO: Este artigo tem como objetivo principal destacar o emprego da música
popular afro-brasileira no ensino da História escolar. Perseguindo esse objetivo, visamos
ainda compreender a centralidade da ancestralidade na identidade afro-brasileira,
determinar que as representações do passado mítico africano nas canções dizem respeito
à identidade afro-brasileira, evidenciar as influências da ancestralidade africana nas
letras, nos ritmos, nos instrumentos e nas vestimentas da música popular afro-brasileira
e, por último, compreender o direito à educação ancestral quilombola como uma política
educacional específica.

Palavras-Chave: Música popular afro-brasileira. Ensino de História. Políticas


educacionais. História.

ABSTRACT: This article aims to emphasize the use ofof Afro-Brazilian popular music
in school history teaching. In pursuit of this objective, we also intend to understand the
centrality of the ancestry in the Afro-Brazilian identity, to determine that the
representations of the African mythic past in the songs are related to Afro-Brazilian
identity, to evidence the influences of African ancestry in letters, rhythms, instruments
and clothes of afro-Brazilian popular music, and, lastly, to understand the right to
ancestral education in the Quilombos as an educational policy.

Keywords: Afro-brazilian popular music. History teaching. Educational policies.


History.

Introdução

Genocídio: emprego deliberado de medidas sistemáticas [...] visando a atingir


a exterminação de uma raça, grupo político ou cultural, ou destruição da
língua, religião ou cultura de um grupo (GOVE, 1976, p. 195).

A diversidade étnica e cultural brasileira foi, por muito tempo, alvo do genocídio
epistemológico no ensino escolar. Mesmo após os anos de 2003, quando se aprovou a
lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino de História da África e da Cultura Afro-
Brasileira, e 2015, momento no qual foi promulgada a lei 11.645 que incluiu nessa
equação o estudo das raízes indígenas, podemos dizer que o ensino de História ainda
resiste em seus padrões eurocêntricos (BITTENCOURT, 1993).

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Padrões que validam apenas uma visão muito particular da História de uma só
cultura: a ocidental. Uma generalização aplicada às culturas sem nenhuma escolha,
calcificando o tempo como quadripartide (Hist. Antiga; Hist. Medieval; Hist. Moderna;
Hist. Contemporânea), linear e evolutivo (progressivo), tal como encontrado em muitos
livros didáticos e nos currículos das universidades.
De acordo com Rüsen (2010, p. 57), observamos que o Ensino de História visa ao
desenvolvimento da consciência histórica, isto é, “o ato de se reconhecer de a suma das
operações mentais com as quais os homens interpretam sua experiência da evolução
temporal de seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar,
intencionalmente, sua vida prática no tempo”. E mais, para Bittencourt (2010), os
Ensinos Fundamental e Médio têm como objetivo formar cidadãos situados
historicamente nas suas dimensões individuais e sociais. Assim, aos professores, cabe
criar as condições necessárias para que os alunos produzam uma reflexão crítica sobre
os seus diversos cotidianos e das relações que os cercam.
Agora, uma pergunta retórica: mas todos nós, os milhões de brasileiros,
pertencemos a uma só cultura? A resposta é não! No caso da cultura afro-brasileira é
possível investigar a sua resistência em diversas localidades no Brasil, em especial nos
quilombos da Bahia,1 onde ela é sempre existiu de forma muito viva e efervescente.
Neles, os comportamentos, as religiões, as cosmovisões, enfim, grande parte das
práticas e das mentalidades são distintas das da ocidental e europeia. De acordo com
Gabriel (2008, p. 79), [...] apreciando o panorama cultural brasileiro, podemos notar que
os encontros étnicos criaram e criam interlocuções muito interessantes que, de alguma
forma, se mostram resistentes
Lemos (2013, p. 8) considera a música popular brasileira repleta da presença das
tradições africanas, porquanto há uma longa trajetória de identificação dessas
populações “desde o surgimento do samba e sua posterior associação como ritmo
nacional durante a era Vargas na década de 30, até as recentes reapropriações das
musicalidades africanas por artistas brasileiros contemporâneos”.
Nossa perspectiva, longe de ser abrangente, almeja dissertar acerca do ensino da
História africana e afro-brasileira a partir da música. A escolha deste tipo de fonte reside
1
A Fundação Cultural Palmares considera que a Bahia tem 736 comunidades reconhecidas como de
descendentes de quilombolas, enquanto o Brasil possui 3.524. Cf. http://www.palmares.gov.br/?
page_id=37551. Acesso em 11/12/2018.

2
no fato de que “os processos de aprendizado histórico não ocorrem apenas no ensino de
história, mas nos mais diversos e complexos contextos da vida concreta dos aprendizes,
nos quais a consciência histórica desempenha um papel (RÜSEN, 2010, p. 91). E como
a música faz parte da nossa consciência histórica, devemos olhar para ela como uma
fonte a ser criticada no Ensino. Ademais, Abud (2005, p. 310-316) define a música
como “linguagem alternativa” que mobiliza conceitos e processa símbolos culturais e
sociais, mediante os quais apresentam certa imagem do mundo. Assim, ao compreender
as novas linguagens como um evento histórico, o aluno conseguirá se aproximar das
pessoas do passado, elaborando a compreensão histórica que “vem da forma como
sabemos como é que as pessoas viram as coisas, sabendo o que tentaram fazer, sabendo
o que sentiram em relação à determinada situação”.
Ademais, para Machado e Abib (2011), a música popular brasileira transpira
ancestralidade africana em suas letras. E Sodré (1988) situa tal relação como oriunda
dos terreiros de candomblé e na prática da capoeira, ou seja, lugares onde o corpo fala
através das danças, do canto e da oralidade. Locais que, segundo Lopes (2016, p. 21-
36), resistiram às mudanças e preservaram as formas, as cores, as técnicas e os ritmos
africanos, como por exemplo, no samba carioca, no samba de roda do Recôncavo, no
axé, nos maracatus e nos afoxés.
Acreditamos no papel da História como um poderoso instrumento de luta, tal
como defendido por Silva (1999, p. 85-141). Recorremos também à preocupação de
Munanga (1988) de que é preciso combater o racismo e o genocídio cultural por meio
de uma pedagogia antirracista. E em busca dela, nos alicerçamos no estudo de Oliveira e
Candau, a respeito da pedagogia decolonial, que defende o resgate da ancestralidade e
da cosmovisão africanas e indígenas como forma de combater a naturalização do
imaginário europeu e a colonização epistemológica. Para tanto, na sequência
analisaremos cinco sambas produzidos décadas de 1960, 1970, 1980 e 1990 em três
estilos: samba, “romântico” (música popular brasileira, propriamente dita), samba jazz e
religioso. São eles: Samba dos ancestrais, de Martinho da Vila, Zumbi a Felicidade
Guerreira, de Gilberto Gil, Zumbi e Ogum, ambos de Jorge Ben Jor, e, por último,
Samba da benção, de Vinícius de Moraes.
Ensino de História: currículos praticados e perspectivas de mudança

3
Ao avaliar a história da disciplina História, Bittencourt (2004, p. 25) comenta que
esta matéria nunca se desenvolveu de forma homogênea e equânime. Pelo contrário,
houve especificidades no que tange as suas finalidades, sejam elas o despertar de um
sentimento patriótico ou de uma consciência histórica, nos conteúdos, por um lado, o
estudo dos grandes feitos dos heróis, e de outro, dos populares e dos subalternos, e nos
métodos, que podem ser tradicionais ou pós-críticos.
De uma forma geral, a historiografia do ensino de História no Brasil concorda que
este teve início com o Colégio Pedro II em 1837. O currículo da instituição seguia o
modelo francês, calcado na oposição entre a História Universal e a Eclesiástica, e tendo
como objetivo exercitar a imaginação, fortificar o senso moral e aliar-se à instrução
cívica. Tal modelo de ensino foi fortemente influenciado pelas produções do recém-
criado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), o mesmo que tinha como
diretrizes o estudo da História tendo o Estado como o seu principal agente, em um
tempo linear, progressivo e contínuo.
Ao longo das obras dos intelectuais do IHGB, é possível observar a incessante
procura por um projeto de constituição da nacionalidade brasileira por meio da
homogeneização da cultura. Projeto que correu sem a devida valorização da pluralidade
étnica e a partir do reconhecimento de que havia raças inferiores e superiores.
Destacamos duas teses importantes: a de Von Martius e a Varhagen. A primeira
apresenta uma hierárquica rígida entre as raças do Brasil, sendo o branco superior ao
negro e ao indígena. A segunda tese, por sua vez, sustenta que os índios e negros eram
selvagens para o uso dos europeus e insinuava o desaparecimento dessas etnias pelo
processo de aculturação e civilização.
Como exemplo, trazemos o Decreto número 847, de 11 de outubro de 1890. No
Capítulo XIII (Dos vadios e capoeiras), fica clara a hostilidade à cultura negra no Brasil,
ao considerar a capoeira como crime. Vejamos:

Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercício de [...] Capoeiragem:
andar em carreiras, com armas ou instrumentos capazes de produzir lesão
corporal, provocando tumulto ou desordens [...]; Pena -- de prisão celular
por dois a seis meses. A penalidade é a do art. 96. Parágrafo único. É
considerada circunstância agravante pertencer o capoeira a alguma banda
ou malta. Aos chefes ou cabeças, se imporá a pena em dôbro.
Essa visão permaneceu dominante até os anos de 1930, quando a tese da
democracia racial de Roger Bastide entrou em vigor. Com ela houve crítica da

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superioridade e da inferioridade racial, pois considerava europeus, índios e negros como
iguais, sem distinção. Ademais, defendia a inexistência de categoriais raciais rígidas, a
partir da criação e do uso do conceito de mestiçagem, o qual aludia à ausência de
conflitos raciais em nosso passado, marcado, na verdade, pela convivência harmônica.
O branco, dentro dessa visão, era um amante bondoso, o negro pacífico na escravidão, e
o indígena imaginado como o “bom selvagem”.
De certa forma, a democracia racial se fez (e ainda se faz) presente no imaginário
histórico e político brasileiro, especialmente nos manuais didáticos à época e nos livros
de historiadores muito renomados, a exemplo de Gilberto Freyre. Em sua obra Casa-
grande & Senzala, diz:

[...] os europeus e seus descendentes tiveram [...] de transigir com índios e


africanos quanto às relações genéticas e sociais. A escassez de mulheres
brancas criou zonas de confraternização entre vencedores e vencidos, entre
senhores e escravos. Sem deixarem de ser relações – a dos brancos com as
mulheres de cor – de “superiores” com “inferiores” [...]. A miscigenação que
largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que de outro modo se
teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-
grande e a senzala. O que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou
no sentido de aristocratização, extremando a sociedade brasileira em senhores
e escravos, com uma rala e insignificante lambujem de gente livre
sanduichada entre os extremos antagônicos, foi em grande parte contrariado
pelos efeitos sociais da miscigenação (FREYRE, 2006, p. 33).

E mais, para o autor

nenhum povo colonizador dos modernos, excedeu ou sequer igualou nesse


ponto [a miscibilidade] os portugueses. Foi misturando-se gostosamente com
mulheres de cor logo ao primeiro contato e multiplicando-se em filhos
mestiços que uns milhares apenas de machos atrevidos conseguiram firmar-se
na posse de terras vastíssimas [...] (Idem, 2006, p. 70).

Mesmo com a sua importância intelectual, Freyre não considerou que as


“misturas”, por assim dizer, não ocorriam somente na ordem biológica e arranjadas sem
violência. Na verdade, a história do Brasil nos revela que a “miscigenação” deve ser
avaliada culturalmente e sob o signo da imposição (religiosa e cultural), da violência
(física e simbólica) e do genocídio (humano e epistemológico).

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Trouxemos três exemplos contemporâneos à democracia racial que por si já
serviriam para classificá-la como mito.2 O primeiro é uma poesia composta em 1926,
intitulada Candomblé. Ela foi escrita por um baiano de Feira de Santana chamado
Godofredo Filho, considerado por muitos um intelectual importantíssimo em seu Estado
para a construção de uma memória negra na vida cotidiana do município de Salvador.
Vejamos um trecho do poema:

Zangam na sala como taiocas _


êh! êh!
Olhos abertos, esbugalhados,
_ êh! êh!...
os negros minas em reboleios,
trancos, meneios,
saracoteios...
No roxo fogaréu o azeite chia,
de dendê louro.
E as pipocas queimadas
Papocam estaladas.
Taco-praco-pataco
Taco-taco;
(FILHO, 1923, p. 34)

Percebemos que Godofredo não vê o Candomblé como uma religião séria, mas,
sim, de maneira folclórica, exacerbando o seu caráter exótico. Os próprios negros
presentes no culto são retratados de forma estereotipada, pois, primeiramente, são
comparados a animais, as formigas, e, posteriormente, são representados como
caricaturados, com os olhos esbulhados e rebolando.
O mesmo preconceito é percebido nas observações de Mário de Andrade em sua
Pequena História da Música (1942).

Uma fonte importante da música popular é a feitiçaria com suas cerimônias


em que o canto e a dança dominam. Nos cultos de direta origem africana
(Candomblé, Macumba, Xangô) até hoje se consegue recolher música
originalíssima com caráter que, sem ser legitimamente africana, foge bastante
das nossas constâncias melódicas populares (ANDRADE, 1987, p. 44).

2
O entendimento de que tal paraíso racial seria um mito veio com Florestan Fernandes na década de
1980. Para ele, o racismo sempre esteve presente no funcionamento da sociedade brasileira, pois ela não
proporcionava nem a ascensão social de certa porção de negros e de mulatos, nem a igualdade racial, mas,
ao contrário, a hegemonia da raça dominante. Em suas palavras, “jamais contaremos com uma
democracia efetiva se não [...] eliminarmos [o racismo]. O negro ainda constitui o ponto central de
referência de nossos atrasos e avanços históricos, a esperança maior na luta dos oprimidos pela criação de
uma sociedade nova” (FERNANDES, 1995, p. 2).

6
Para Andrade, a religião e os ritmos africanos também são considerados como
exóticos, uma vez que adquirem o caráter de feitiçaria, e não de religião. Ademais, estão
situados em algum lugar entre a cultura africana e a brasileira, com ênfase no
distanciamento desta com a música popular (branca).
Por último, a coleção do Museu de Magia Negra do Museu (1938), localizada na
ala de criminologia do da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Esse exemplo é importante,
porque o Museu abrangia, em sua grande maioria, peças dedicadas aos cultos africanos
e afro-brasileiros. De acordo com Corrêa (2010, p. 6), por se encontrar em uma sala de
criminologia, o Museu revela o preconceito à cultura negra, esse que fica mais evidente
ainda nas especialistas em patrimônio que classificaram esse conjunto de objetos como
“‘sinistros’, ‘bizarros’, ‘primitivos’ e ‘grotescos’”.
Anos depois, com a promulgação da primeira Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB) n. 4.024/ 1961, pouca coisa mudou. Apesar da legislação
apresentar em seu texto algumas linhas defendendo o respeito à dignidade e à liberdade,
condenando qualquer tratamento desigual na educação, sem preconceitos de raça ou cor,
permaneceu como letra morta, pois não apresentou políticas públicas aos negros,
indígenas e quilombolas. Na verdade, tal documento fixou o currículo escolar e
acadêmico em Hist. Antiga, Hist. Medieval, Hist. Moderna, Hist. Contemporânea, Hist.
da América e Hist. do Brasil (a partir do “descobrimento”);
Dez anos após a primeira LDB, em 1971, o governo da Ditadura Militar publicou
a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n. 5.692. Nela apresentou as diretrizes
para o ensino de 1º e 2º graus, dentre elas, a obrigatoriedade do ensino em português aos
quilombolas e indígenas. Houve também o sequestro da especificidade História pelos
Estudos sociais e a Educação Moral e Cívica. Os conteúdos foram esvaziados ou
diluídos com contornos ideológicos e ufanistas nacionalistas.
Uma nova perspectiva somente surgiu com a promulgação da Constituição
Federal de 1988 (apelidada de “Constituição cidadã”). Nela, pela primeira vez, foram
apresentados os preceitos do direito à igualdade de crença, livre expressão artística e
cultural, indicando o reconhecimento do abismo entre brancos, negros e indígenas. E
não só, cabia agora ao Estado proteger as manifestações das culturas populares
indígenas e afro-brasileiras com o tombamento dos quilombos remanescentes, bem
como o reconhecimento da posse das suas terras.

7
Fruto dessa mudança, em 1996, foi aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB) n. 9.394 com as seguintes mudanças: os movimentos sociais
(a exemplo dos movimentos negro e indígena) teriam algumas de suas demandas
reconhecidas, como o ensino na língua natal. O texto também passou a considerar as
mais diversas manifestações culturais, o pluralismo de ideias, diversidade de ideias e
étnico-racial e o direito à memória de todos os grupos étnicos (embora não explicite
diretamente quais etnias ou grupos étnicos).
Justamente por causa dessas exigências, foram publicados os três PCN´s, dois
para o Ensino Fundamental e o um para o Ensino Médio. O primeiro do Fundamental é
de 1997 e critica, dentre outras coisas, a narrativa linear europeia, propondo uma
reflexão acerca das identidades e temporalidades locais. O segundo é de 1998 e
apresenta críticas aos métodos tradicionais de memorização e reprodução, reconhecendo
que os livros didáticos estão carregados de ideologias e de exercícios sem nenhuma
exigência de raciocínio. Finalmente, em 1999, chegou a vez do PCN do Ensino Médio,
o qual defende uma História que deve dar voz aos silenciados, a exemplo dos negros,
dos indígenas e das mulheres.
Posteriormente, temos a já mencionada Lei 10. 639/ 2003 que reconheceu a
obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, a História da África e
dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na
formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas
social, econômica e política pertinentes à História do Brasil nas disciplinas de Educação
Artística, Literatura e História do Brasil.
Essa legislação abriu o caminho para a elaboração de duas Diretrizes Curriculares.
A primeira voltou-se à inclusão da História e da Cultura Afro-Brasileira e africana no
Sistema de Ensino de Salvador (2005). O texto defende resgatar os saberes locais e os
cotidianos, a partir das histórias dos mais velhos, da valorização dos contadores de
histórias locais, rezadeiras e parteiras. A outra diretriz é voltada à Educação das
Relações Étnico- Raciais e ao ensino de História e Cultura Afro-Brasileira (2004). De
uma forma sintética, deparamos com as seguintes orientações: desconstruir o mito
democracia racial, dar dignidade aos afrodescendentes, valorizar a oralidade, a
corporeidade e a arte afro-brasileira, para além do foco na ancestralidade e religiosidade
destaque às celebrações locais.

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No ano de 2006, foram divulgadas as Orientações e Ações para a Educação das
Relações Étnico-Raciais. O documento em questão é muito importante para este
trabalho, uma vez que defende resgatar cosmovisão africana no ensino, definida a partir
do elemento da ancestralidade. Mas o que é esse elemento?

A ancestralidade é um princípio que norteia a visão de mundo das populações


africanas e afro-brasileiras. Os que vieram primeiro, os mais antigos, os mais
velhos são referências importantes para as famílias, comunidades e indivíduo.
Portanto, o processo de aprender não é possível fora da dimensão da relação,
da interrelação entre os mais novos e os mais velhos. Os adultos são
fundamentais nesse processo de caminhada para a compreensão da vida e das
relações com o mundo que as crianças iniciam desde que nascem (BRASIL,
2006, p. 41).

E mais

Para todo o segmento negro e para os quilombolas em especial, os vínculos


entre educar e formar são ancestrais, não são atributos exclusivos da escola;
ancestralidade é tudo o que antecede ao que somos, por isso ela nos forma.
Existe um passado e um presente de populações negras que vêm se educando
secularmente através de uma resistência que não é passiva, que apenas reage
às diversidades, mas que é, igualmente, provocadora de reações. Assim, o que
antecedeu aos antigos quilombolas foi a história da colonização, do
escravizar que não obstante o contexto de perversidade, estes/as reafirmaram
o desejo/direito à liberdade; se havia escravização, havia resistência, havia
reação; os capitães-do-mato não surgiram da imobilidade: foram reações do
outro campo, do campo da opressão (BRASIL, 2006, p. 144).

Pensando na proposta de uma educação antirracista, ela verdadeiramente ocorrerá


quando houver valorização da memória africana ou afro–brasileira. Assim, necessitamos
promover uma pedagogia multicultural, coletiva, cooperativa e comunitária,
multidimensional e polifônica, voltada à circularidade, à territorialidade e à
ancestralidade africanas. De acordo com Oliveira (2007, p. 259):

A ancestralidade converte-se no princípio máximo da educação. Educar o


olhar é Educação. No caso da cosmovisão africana, educa-se para a
sabedoria, para a filosofia da terra, para a ética do encantamento. Educar é
conhecer a partir das referências culturais que estão no horizonte da minha
história (ancestralidade). Olhar é um treino de sensibilidade. Aguça-se a
sensibilidade para perceber o encanto que tece as coisas. Sensibilizado, o
Outro deixa de ser apenas um conceito, e me interpela para uma ação de
justiça e me convida a uma conduta ética. Sensibilizado posso fazer da vida
uma obra de arte, uma construção estética. Edifico uma moral e uma ética
baseada na criatividade e na tradição.

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Essa nova perspectiva educacional é muito distinta da europeia e deve ser
entendida em conjunto com o Decreto 4.887/ 2003. Nele, os quilombos são
reconhecidos como grupos étnicos-raciais, segundo critérios de auto atribuição, com
trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção
de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. E,
como espaços de resistência da identidade negra, devem ser atendidos por profissionais
aptos a trabalhar com a temática da ancestralidade.
Em busca, portanto, de uma reflexão sobre o ensino de história e cultura africanas
e afro-brasileiras, defendemos que ela deve perpassar os aspectos fundamentais da
ancestralidade, no que se refere a lugares de constituição de identidades da população
negra. Voltando, então, às Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-
Raciais, observamos que se sugere:

A partir da genealogia da família dos/das estudantes para contar e recontar a


história de África e de africanos, bem como de seus descendentes
escravizados no Brasil; retomar conhecimentos que a vida ensinou: medidas
construídas de maneira alternativa, curas populares, jogos e brincadeiras
infantis que remontam aos séculos passados, de origem africana; realizar
leitura de textos que se referem aos processos de resistência da diáspora
africana no Brasil; pensar na contribuição cultural, popular e “clássica”,
incluindo os(as) artistas negros(as) na música, artes plásticas, dramaturgia e
literatura (BRASIL, 2006, p. 114).

Vimos que os elementos culturais de matriz africana, tais como o samba de roda, a
capoeira e até mesmo a religião candomblé, ficaram reféns, do preconceito e ódio racial
no Brasil. Questões funestas que ainda existem. Afinal, hoje são inúmeros os casos de
terreiros apedrejados3, políticos que relacionam quilombolas aos animais 4, ou que
defendem o branqueamento de raça como algo bom e 5, por fim, ainda existem músicos
que acusam o samba de ser uma prática de bandido6. Ou seja, há muito caminho pela
frente, principalmente se levarmos em consideração que a reforma do Ensino Médio
vem aí para retirar a obrigatoriedade desse ensino tão importante.
3
https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2018/08/27/terreiro-de-candomble-em-juazeiro-e-apedrejado-
templo-e-alvo-de-ataques-desde-2015.ghtml. Acesso em 11/12/2018.
4
https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/bolsonaro-quilombola-nao-serve-nem-para-
procriar/. Acesso em 11/12/2018.
5
https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/10/06/mourao-cita-branqueamento-da-
raca-ao-falar-que-seu-neto-e-bonito.htm. Acesso em 11/12/2018.
6
https://www.revistaforum.com.br/samba-e-coisa-de-bandido-diz-sertanejo-cesar-menotti-em-piada-na-
globo/. Acesso em 11/12/2018.

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Cultura popular e identidades no Ensino de História

A meu ver, a cultura brasileira contemporânea tornou-se palco de uma sutil


disputa simbólica. De um lado, propõem-se a crítica da desigualdade social
[...]. De outro lado, ainda que à revelia de seus realizadores acredita-se no
retorno à velha ordem da conciliação das diferenças (ROCHA, 2004).

“Negro é lindo/Negro é amor/Negro também é Filho de Deus” (Negro é


Lindo – Jorge Benjor).

A produção cultural popular é uma possibilidade de fala dos subalternos. E os


trechos acima ressaltam não só que ela passou pela substituição da proposta
conciliatória por uma ordem crítica e de denúncia, como indicam que a pode ser vista
como um campo de resistência simbólica.
Dois documentos são importantes para justificarmos o porquê desta seção debater
os conceitos de cultura popular e identidades no Ensino de História. O primeiro é a Lei
13.005/ 2014 – Plano Nacional de Educação – que apresenta como objetivos a
aplicação das leis 10.639 e 11.645, a superação as desigualdades educacionais, a
promoção da cidadania e o combate à discriminação. Busca também incentivar o
atendimento das populações do campo e das comunidades indígenas, quilombolas, isto
é, as populações menos favorecidas. Importante ressaltar que defende a vinculação da
realidade escolar dentro das peculiaridades de cada comunidade, a exemplo da
alfabetização em língua materna e o ensino por meio da educação ancestral, ambos
disponibilizados em materiais didáticos específicos.
O segundo documento é normativo para as redes de ensino pública e privada, cujo
principal objetivo é o de fixar conteúdos mínimos: a Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) de 2017. No caso da História, propõe valorizar a diversidade de
manifestações artísticas oriundas da cultura popular, afirmando, de tal modo, o seu
compromisso com grupos marginalizados. Dentre as habilidades gerais pretendidas,
destacamos o ato de estimular o pensamento crítico a respeito da diversidade cultural,
das identidades locais e das regionais. A Base também prevê a meta de valorizar o
tempo presente e o protagonismo do estudante por meio do diálogo entre as histórias
locais com as da Europa e África. Por fim, é exigido como habilidades específicas
identificar os grupos populacionais da cidade (as identidades locais), a diversidade
religiosa e os patrimônios culturais.

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A temática da cultura popular adentrou os debates acadêmicos no século XIX.
Antes disso, é observável em comentadores das obras dos irmãos Grimm que esse tipo
de saber era entendido como folclore, ou seja, aquilo que se refere à tradição, o depósito
da criatividade camponesa (folk).
Essa visão começou a mudar a partir da década de 1960, com as contribuições de
Geertz, Chartier e Ginzburg. Na obra A interpretação das culturas, Geertz defende que
a cultura auxilia o indivíduo a compor a sua identidade, a partir de um sistema de
signos, símbolos, mitos e ritos. Estudar cultura, portanto, é estudar signos, símbolos,
mitos e ritos. Chartier, por sua vez, considera no artigo Cultura popular: revisitando um
conceito historiográfico que a cultura popular é um mundo fechado em si, independente
da cultura erudita, por exemplo, na diferenciação entre uma cultura popular oral a
cultura erudita letrada. Por fim, Ginzburg, em O queijo e os vermes, defende que as
pessoas a existência da circularidade cultural, uma vez que a cultura popular sempre
está em contato com a das classes dominantes.
Tais pesquisadores são importantes e possibilitaram uma ampla compreensão
sobre o significado de cultura, em distinção ao folclore, bem como a relação entre os
populares e os dominadores. Todavia, ainda restava definir quem são esses populares,
uma vez que o popular europeu não corresponde necessariamente a realidade desses
indivíduos na América Latina.
Saímos, portanto, do camponês europeu para o mundo dos subalternos negros da
diáspora. Essa saída se deu em pesquisas realizadas pelo Centro de Estudos Culturais
Contemporâneos da Universidade de Birmingham, observamos o reconhecimento, em
primeiro lugar, que a cultura não é um depositório estático, mas um campo de
contestação e significação política. O maior expoente é Hall (2001) que, no artigo Que
negro é esse na cultura negra?, defende a cultura popular americana como negra e
como uma forma de contestação da ordem social. Hall (2000; 2003) também observa
que nas nações modernas o particularismo ocidental foi transformado em universalismo
global, o que caracteriza a artificialidade das identidades pós-diáspora. Sendo assim,
todas as identidades devem estar sujeitas à historicização radical, pois é um ato de poder
e uma questão política que implica na criação e na subordinação do outro. E ao
sabermos que essa subordinação existe, podemos olhar para o passado e para o presente
buscando as marcas de resistência:

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Imagem 1: Samba de roda do Recôncavo Imagem 2: Os blocos de Afoxés e a sua
e o princípio da circularidade. vinculação com os terreiros.

Fonte:
Fonte:
http://revistamusicalia.blogspot.com/2010/
https://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/do
ssie-samba-de-roda-do-reconcavo-baiano. 05/o-som-dos-afoxes_20.html. Acesso em
Acesso em 12/12/2018. 12/12/2018.

A música popular afro-brasileira, portanto, será vista como parte integrante de


uma identidade específica e o símbolo de resistência dessa. Nela encontramos não só a
ancestralidade nas suas letras, nos seus instrumentos e nos seus ritmos, como também
na sua circularidade e nas roupas. Nas palavras de Munanga e Gomes (2006, p. 116)

De uma ponta a outra do continente americano e do Brasil a população negra


utilizou o corpo como instrumento de resistência sociocultural e como agente
emancipador da escravidão. Seja pela religiosidade, pela dança, pela luta,
pela expressão, a via corporal foi o percurso adotado para combate,
resistência e construção da identidade.

A ancestralidade na música popular afro-brasileira e o Ensino de História

A ancestralidade é o principal elemento da cosmovisão africana no Brasil. E


como tal, é um tipo de conhecimento diferente do predominante na sociedade ocidental,
a saber o helênico-cristão. Ela também é uma filosofia entre mito, rito e o corpo,
conectando, ao mesmo tempo, o presente aos antepassados, à natureza e às divindades,
além de promover a igualdade por meio da circularidade.

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No que tange à música, o Samba dos ancestrais de autoria de Martinho da Vila e
Rosinha de Valença e interpretação de Martinho da Vila, no ano de 1994, é um bom
ponto de partida para estabelecermos de uma só vez a relação entre ancestralidade e
música popular afro-brasileira. Vamos a ela:

Se teu corpo se arrepiar


Se sentires também o sangue ferver
Se a cabeça viajar
E mesmo assim estiveres num grande astral
Se ao pisar o solo teu coração disparar
Se entrares em transe em ser da religião
Se comeres fungi, quisaca e mufete de cara-pau
Se Luanda te encher de emoção
Se o povo te impressionar demais
É porque são de lá os teus ancestrais
Pode crer no axé dos teus ancestrais
(Samba dos ancestrais – Martinho da Vila)

Nesta música há relação harmoniosa entre letra e canção. Afinal, ele representa
o que seria o rito da chegada de um ancestral africano de Luanda, por meio do transe, na
forma do Guia. Para Oliveira (2007, p. 266), os ancestrais são

a referência cultural maior para orientar as ações do grupo. [...] O ancestral


detém a memória do grupo e é seu principal arquiteto na construção de uma
vida comunitária saudável. Os ancestrais e a natureza estão para a
comunidade assim como o leito para as águas do rio. São seus “guias”, sua
“visão”; sua sabedoria e direção. A comunidade, por sua vez, alimentará os
ancestrais com iguarias da terra e da água. Ancestral é natureza divinizada!

Esse mesmo rito evocado pela música é uma prática comum dos adeptos das
religiões afro-brasileiras, os quais buscam no transe a orientação dos seus ancestrais
africanos. Esse aprendizado é claramente oriundo do candomblé, pois chega a ser uma
experiência religiosa envolvendo os ancestrais, sendo também apreciada junto às
iguarias da natureza. Voltando ao ritmo, o transe em busca da ancestralidade somente
ocorre por meio do som dos instrumentos dos terreiros, como o tambor. Aliás, nesse
momento, é importante dizer que a ancestralidade e a corporeidade são relacionáveis e
complementares – uma não existe sem a outra – sendo que esses mesmos instrumentos
são encontrados no samba. Vejamos:

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Imagem 3: Afoxé de Cabaça. Imagem 4: Agogô.

Fonte:
Fonte:
https://brasilescola.uol.com.br/geografia/instr
https://brasilescola.uol.com.br/geografia/instr
umentos-musicais-africanos.htm . Acesso em
umentos-musicais-africanos.htm . Acesso em
12/12/2018.
12/12/2018.

Imagem 5: Cuíca. Imagem 6: Reco-reco.

Fonte:
Fonte:
https://brasilescola.uol.com.br/geografia/instr
https://brasilescola.uol.com.br/geografia/instr
umentos-musicais-africanos.htm . Acesso em
umentos-musicais-africanos.htm . Acesso em
12/12/2018. 12/12/2018. em 12/12/2018.

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Imagem 7: Pandeiro Imagem 8: Atabaque

Fonte:
Fonte: https://brasilescola.uol.com.br/geografia/instr
https://brasilescola.uol.com.br/geografia/instr umentos-musicais-africanos.htm . Acesso em
umentos-musicais-africanos.htm . Acesso em 12/12/2018.
12/12/2018.

Imagem 9: Terreiro de Candomblé Imagem 8: Samba de Roda do Recôncavo

Fonte:
Fonte:
https://brasilescola.uol.com.br/geografia/inst
https://afinsophia.wordpress.com/category/ca
rumentos-musicais-africanos.htm . Acesso
ndomble. Acesso em 12/12/2018.
em 12/12/2018.

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O samba, portanto, é nascido do Candomblé. E, como tal, possui como cerne a
ancestralidade africana. E a primeira indagação a esse respeito deve ser no sentido de
entendê-la como uma forma de resistência da cultura afro-brasileira visando preservar
as suas principais características e valores. Ou seja, a música, antes de qualquer coisa,
revela que ancestralidade é também resistência:

Zumbi, comandante guerreiro


Ogunhê, ferreiro-mor capitão
Da capitania da minha cabeça
Mandai a alforria pro meu coração

Minha espada espalha o sol da guerra


Rompe mato, varre céus e terra
A felicidade do negro é uma felicidade guerreira
Do maracatu, do maculelê e do moleque bamba

Minha espada espalha o sol da guerra


Meu quilombo incandescendo a serra
Tal e qual o leque, o sapateado do mestre-escola de
samba
Tombo-de-ladeira, rabo-de-arraia, fogo-de-liamba

Em cada estalo, em todo estopim, no pó do motim


Em cada intervalo da guerra sem fim
Eu canto, eu canto, eu canto, eu canto, eu canto, eu
canto assim:

A felicidade do negro é uma felicidade guerreira!


A felicidade do negro é uma felicidade guerreira!
A felicidade do negro é uma felicidade guerreira!

Brasil, meu Brasil brasileiro


Meu grande terreiro, meu berço e nação
Zumbi protetor, guardião padroeiro
Mandai a alforria pro meu coração
(Zumbi – a Felicidade Guerreira – Gilberto Gil)

A canção inicia-se com a evocação de duas personagens do passado guerreiro


africano: Zumbi e Ogum. Uma convocação que vem acompanhada do pedido de
liberdade, a mesma que somente viria pela alforria conquistada por meio da luta. Afinal,
o negro é um guerreiro, cujos movimentos de combate, aqui, se assemelham ao samba e
aos maracatus, sendo acompanhados de cantos. No fim, a letra se encerra com a
lembrança de dois locais onde de resistência: o quilombo e o terreiro. Esse último nada
mais é do que a ancestralidade que liga o Brasil à África.

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Angola, Congo, Benguela
Monjolo, Cabinda, Mina
Quiloa, Rebolo
Aqui onde estão os homens
Há um grande leilão
Dizem que nele há
Um princesa à venda
Que veio junto com seus súditos
Acorrentados em carros de boi
Eu quero ver
Eu quero ver
Eu quero ver
Angola, Congo, Benguela
Monjolo, Cabinda, Mina
Quiloa, Rebolo
Aqui onde estão os homens
Dum lado cana de açúcar
Do outro lado o cafezal
Ao centro senhores sentados
Vendo a colheita do algodão tão branco
Sendo colhidos por mãos negras
Eu quero ver
Eu quero ver
Eu quero ver
Quando Zumbi chegar
O que vai acontecer
Zumbi é senhor das guerras
È senhor das demandas
Quando Zumbi chega é Zumbi
É quem manda
Eu quero ver
Eu quero ver
Eu quero ver
(Zumbi – Jorge Benjor)

Outro elemento importante da ancestralidade africana no Brasil é que ela não


corresponde a uma só etnia. Foram várias as nações da diáspora que aportaram em
nossas terras. Essa diversidade é muito importante de ser trabalhada em sala de aula e
ela se faz evidente na listagem feita no início dessa canção. Outra questão umbilical é
que a ancestralidade serve para promover a autoestima dos afro-brasileiros, uma vez que
os liga às pessoas importantes do passado africano, como reis e rainhas, que foram
acorrentados juntos aos seus súditos. Os africanos que chegaram ao Brasil, portanto,
longe de serem “selvagens” e despidos de cultura, tal como a historiografia tradicional
nos tentou fazer acreditar, vieram de sociedades muito complexas e ricas que foram
destroçadas pela presença do homem branco. Aos que antes viviam livres, restou o
trabalho na lavoura e a resistência.

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Eu sou descendente Zulu
Sou um soldado de Ogum
devoto dessa imensa legião de Jorge
Eu sincretizado na fé
Sou carregado de axé
E protegido por um cavaleiro nobre

Sim vou nà igreja festejar meu protetor


E agradecer por eu ser mais um vencedor
Nas lutas nas batalhas
Sim vou no terreiro pra bater o meu tambor
Bato cabeça firmo ponto sim senhor
Eu canto pra Ogum

Ogum
Um guerreiro valente que cuida da gente que sofre demais

Ogum
Ele vem de Aruanda ele vence demanda de gente que faz

Ogum
Cavaleiro do céu escudeiro fiel mensageiro da paz

Ogum
Ele nunca balança ele pega na lança ele mata o dragão

Ogum
É quem da confiança pra uma criança virar um leão

Ogum
É um mar de esperança que traz a bonança pro meu coração
Ogum

"Deus adiante paz e guia


Encomendo-me a Deus e a virgem Maria minha mãe ..
Os doze apóstolos meus irmãos
Andarei nesse dia nessa noite
Com meu corpo cercado vigiado e protegido
Pelas as armas de são Jorge
São Jorge sentou praça na cavalaria
Eu estou feliz porque eu também sou da sua companhia"

Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge


Para que meus inimigos tenham pés e não me alcancem
Tenham mãos e não me peguem e não me toquem
Tenham olhos e não me enxerguem
E nem em pensamento eles possam ter para me fazerem mal
Armas de fogo o meu corpo não alcançarão
Facas e lanças se quebrem sem o meu corpo tocar
Cordas e correntes se arrebentem se o meu corpo amarrar
Pois eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge
Jorge é da Capadócia.

Salve Jorge
(Ogum - Jorge Ben Jor e Zeca Pagodinho)

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No samba Ogum, a ancestralidade aparece logo no início da música, quando o
eu-lírico se diz um descente Zulu, e ao final, momento em que introduz no samba uma
prece a São Jorge, perfazendo a mesma lógica já debatida aqui a respeito da
ancestralidade com religiosidade (no caso, dos terreiros) por meio da musicalidade.
Todavia, ela é mais importante para discutirmos a questão das identidades puras. Como
vimos em nosso debate com Hall, não existem identidades puras e imutáveis, uma vez
que as identidades modernas são verdadeiros híbridos que mesclam diversas tradições,
por exemplo, a africana e a brasileira (os afro-brasileiros). Essa relação é apresentada
pelos autores como “sincretismo”, ou seja, uma mistura entre as tradições do terreiro e
da igreja, marcada pela identificação entre Ogum e São Jorge. O narrador também
revela se identifica com esses dois locais de adoração, a ponto de frequentá-los para
louvar os dois protetores. E não só, ele prossegue a sua cantoria mesclando elementos
simbólicos de Ogum e São Jorge, como o dragão do imaginário cristão medieval com a
Aruanda, o paraíso da Umbanda.

[...] Porque o samba nasceu lá na Bahia


E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração
Eu, por exemplo, o capitão do mato Vinícius De Moraes
Poeta e diplomata
O branco mais preto do Brasil
Na linha direta de Xangô, saravá!
A bênção, Senhora
A maior ialorixá da Bahia
Terra de Caymmi e João Gilberto
A bênção, Pixinguinha, tu que choraste na flauta, todas as minhas mágoas de
amor
A bênção, sinhô, a benção, Cartola
A bênção, Ismael Silva
Sua bênção, Heitor dos Prazeres
A bênção, Nelson Cavaquinho
A bênção, Geraldo Pereira
A bênção, meu bom Cyro Monteiro você, sobrinho de Nonô
A bênção, Noel, sua bênção, Ary
A bênção, todos os grandes sambistas do Brasil
Branco, preto, mulato
Lindo como a pele macia de Oxum
A bênção, maestro Antônio Carlos Jobim
Parceiro e amigo querido, que já viajaste tantas canções comigo
E ainda há tantas por viajar
A bênção, Carlinhos Lyra, parceiro cem por cento
Você que une a ação ao sentimento e ao pensamento
A bênção, a bênção, Baden Powell
Amigo novo, parceiro novo, que fizeste este samba comigo [...]
(Samba da Bênção – Vinicius de Moraes)

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O Samba da Benção de Vinícius de Morais, de certa forma é uma exceção às
outras canções. Afinal, o compositor, neste caso, não era um afrodescente, mas, pelo o
que ele mesmo diz, o branco mais preto do Brasil.
Dialogando com a música Ogum, percebemos que o autor do Samba da Benção
reconhece haver o mesmo sincretismo, só que de uma maneira complementar: a cultura
negra transforma a branca. Tanto que, e aqui entra outro elemento importante da
ancestralidade, Moraes escreve um samba reclamando a sua ancestralidade por meio da
criação de uma genealogia, ligando-o à origem do samba. Caminho que perpassa a
partir dos compositores negros, que são tratados como heróis ou divindade míticas do
passado africano, assim saudados, como se o compositor fosse tomar a benção dos
antepassados antes mesmo de iniciar os ritos.

Considerações finais

O ensino escolar brasileiro por muito tempo negligenciou a influência dos


africanos e seus descendentes na formação do povo brasileiro. Por causa desse quadro,
promulgou-se a Lei 10639/03 e uma série de Parâmetros e Diretrizes para os educadores
trabalharem as relações étnico-raciais em sala de aula. Mesmo assim, é inegável que a
cultura afro-brasileira ainda não possui o mesmo reconhecimento da europeia.
Pensando em contribuir com o debate, foi que propusemos esta reflexão a respeito
da ancestralidade na música popular afro-brasileira, em especial o samba, justamente
por fazer parte do nosso cotidiano. Assim, pensamos este artigo no sentido de educar
(ou até mesmo letrar) os alunos a identificarem os elementos da cosmovisão africana
ainda presentes no Brasil contemporâneo.
Por fim, educar para a ancestralidade é mudar a nossa matriz de pensamento afim
de que compreendermos que não existe uma só racionalidade a ser seguida, mas formas
distintas, e ao mesmo tempo semelhantes, de se compreender o mundo, suas diversas
etnias e práticas culturais ou religiosas.

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