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“TEM QUE SABER INICIAR, TEM QUE SABER TERMINAR”:

O DESFAZER NO BATUQUE GAÚCHO.

Cauê Fraga Machado1

Resumo: A partir do caso etnográfico da nação Oyó/RS, discuto a noção


de desfazer no batuque gaúcho. Com a descrição do ritual do eru
(desligamento), proponho que se tome o ritual em si como importante para
pensar as práticas que compõem o processo de fazer o santo e a pessoa, e as
noções de vida e de morte nas diferentes religiões de matriz africana. Eru não
é um passo ritual para o culto aos eguns (mortos), mas ele mesmo trata da
duração de uma pessoa, que é feita aos poucos, desfeita no ritual e refeita
noutro mundo, onde passará a ter uma qualidade diferente de relação com os
orixás.
Palavras-Chave: Desfazer; Batuque Gaúcho; Morte; Rito Fúnebre.

“KNOWING HOW TO BEGINNING, KNOWING


HOW TO FINISH”: THE UNDOING IN THE BATUQUE
GAUCHO (AN AFRO-RELIGION).
Abstract: From the ethnographic case of the nation Oyo in Rio Grande do
Sul/ Brasil, I discuss the notion of undoing in the batuque gaucho (an afro-
religion). With the description of the ritual of the eru (delinking), I propose to
take the ritual itself as important to think about the practices that make up the
process of do an orisha and a person, and the notions of life and death in
different afro- religions. Eru is not just a ritual step in eguns’ (dead people)
worship. Instead, it is regarded to one´s endurance. In this way, a person is
done gradually, undone in this particular ritual and redone in a posthumous
world, where they will gain a different quality of relationship with orishas.
Keywords: Undoing; Batuque Gaucho; Death; Funeral Rite.

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Debates do NER, Porto Alegre, ano 14, n. 23 p. 145-165, jan./jun.


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INTRODUÇÃO2
Este artigo, de caráter etnográfico, consiste em uma descrição daquilo
que ouvi e vi sobre a morte e os diferentes rituais a ela ligados no batuque
de Oyó. À exceção do trabalho de Norton Corrêa (2006) que dedica a
segunda parte de seu livro, “O batuque no Rio Grande do Sul”, aos mortos,
não encontramos trabalhos sobre o batuque gaúcho que tenham se
debruçado sobre o tema. Autores como Melville J. Herskovits (1943) e
Roger Bastide3 (1985) tangen- ciam a temática à luz de suas experiências
etnográficas com o candomblé baiano4. Esses autores discorrem sobre a
relação dos adeptos com os eguns, os espíritos ou almas dos mortos,
ressaltando aquilo que não fora encontrado no Rio Grande do Sul – como
as sociedades de eguns encontradas na África e na Ilha de Itaparica/BA. A
descrição que será oferecida vai ao encontro

2
As expressões nativas virão entre aspas, as palavras em ioruba e os conceitos em
português que diferem do uso corrente da língua serão grafadas sem ênfases, seguidas
de notas explicativas, ou com sua definição entre parênteses.
3
Bastide (1978) faz uma primeira síntese de rituais fúnebres no candomblé baiano, em
tom mais descritivo, próximo ao pretendido neste artigo. Contudo, devo frisar, aqui
importa o desfazer em si e não sua descrição para construir interpretações sobre a
relação entre vivos e mortos. De acordo com meus informantes, esse momento é
decisivo para os pais e mães de santo demonstrarem seu saber sobre o fundamento
religioso (o que será tratado adiante).
4
Vale lembrar as preocupações de Herskovits com a construção de escalas, ou seja,
aquilo que teria “guardado” mais ou menos da África no Novo Mundo. Já em
Bastide (1985) encontramos o candomblé baiano como a mais africana das praticas
religiosas no Brasil. Seu modelo seria, mais tarde, criticado como sendo nagocêntrico.
Além disso, notemos que ambos os autores realizaram curtas incursões etnográficas no
Rio Grande do Sul Corrêa (2006) já apontara tal questão.

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da de Corrêa (2006; 1998)5 em muitos pontos. Entretanto, as linhas que
seguem exploram um lado da religião que a produção antropológica
não se preocupou ou deixou em segundo plano, o desfazer.
Desfazer é o complexo de práticas relacionadas com a morte e os
rituais que ela implica, que não devem ser negligenciados, mas antes
tomados como tão importantes quanto as práticas que compõem o
processo de fazer o santo e a pessoa. Fazer, ligar (fazer laços), assentar,
firmar o santo e acumular obrigações6 culminarão no desfazer. A noção
será utilizada neste artigo para agrupar outros conceitos como desligar,
embalar, quebrar, destruir e terminar. Desfazer, portanto, será considerado
em sua importância ritual, para desligar na terra, para construir alhures, e
não como a descrição de um culto ou anti-culto aos mortos. No batuque
de Oyó, veremos esses conceitos

5
Corrêa (1998) apresenta a relação entre vivos e mortos e deuses e mortos, com ênfase
nos conflitos envolvidos. Enfatiza o caráter liminar da identidade dos eguns, o aspecto
transformativo que o aressum (missa dos mortos) representa para a alma da pessoa,
que se transforma em egum. Esse é, portanto, considerado um rito de passagem e um
anti-ritual. Os eguns, diferente do que acontece no lado de Oyó, podem incorporar
em corpos humanos. Além do mais, o aressum deve ocorrer todos os anos para que os
eguns não saiam de sua morada, o balé, para perturbar os vivos (ver Corrêa, 2006, p.
168-172; 1998, p. 93-102). Em sua tese de doutorado, o autor acrescenta que o egum
exerce papel duplo, promovendo ordem e caos nos rituais, sendo assim considerado
um anti-homem e um anti-deus, com comportamento anti-social (cf. Corrêa, 1998,
p. 102). Para uma crítica ao conceito de rito de passagem e a sua simplificação ante a
complexidade ritual, que não promove uma “ruptura definitiva”, mas uma “repetição
contínua” com exigência de cuidados cotidianos, ver Barbosa Neto (2012, p. 295-
298).
6
O conceito nativo de obrigação engloba o que tendemos a traduzir por objetos rituais,
por algumas ações e pelos próprios orixás em seus assentamentos. Obrigação designa
o fazer e o cuidar, mas também aquilo que fica guardado sobre as prateleiras, atrás das
cortinas, em sopeiras e manteigueiras. São as ferramentas e armas dos orixás, como a
chave e a foice do Bará. São, também, os próprios ocutás (pedras/assentamentos). E,
ainda, momentos, como os cortes (matanças), festas e outros eventos. Ouvimos falar
do tempo em que fizeram sua obrigação, ou “[...] na obrigação da minha mãe vai ori
(banha de carneiro)”. Obrigação corresponde, também, ao cuidado cada vez mais
obrigatório que se passa a ter com os orixás, de acordo com a escala na hierarquia
religiosa.

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a partir de uma série de rituais que desligarão o morto dos vivos e vice-
versa, sendo o mais importante deles o eru.
Proponho que se tome o desfazer como lugar privilegiado para alargar
o conhecimento antropológico sobre as noções de alma (relacionada ao
conceito de egum), corpo e pessoa (geralmente estudadas a partir da
feitura), e de vida e morte, como ficará claro ao longo do artigo. Não se
trata de uma postura que vá de encontro aos estudos sobre feitura e
construção de pessoas e corpos nas religiões afro-brasileiras. Nelas
encontramos importantes contri- buições, como as de Anjos (1995), e a
ideia do apronte (do fazer o chão)como metáfora recíproca com o
nascimento biológico, e as de Goldman (1984), para o qual a pessoa
construída ritualmente no candomblé é folheada, composta por múltiplos
componentes que só entram em equilíbrio após vinte e um anos de
iniciação, momento quando se atinge o tata (quando a pessoa possui
domínio sobre eguns e vodunisis e uma não-submissão aos orixás). Essa
realidade múltipla e folheada que parece dar lugar a um ser Uno e
indiviso, na verdade, nunca se realiza, pois somente os orixás são os seres
verdadeiramente unitários. Por isso, tem-se uma pessoa descontínua em
constante busca pelo equilíbrio. O que o desfazer evidenciará não é apenas
uma concepção outra de pessoa, mas que as porções que a compuseram
ao longo da vida se destacam umas das outras, recebendo diferentes
destinos com o eru.
Os dados são provenientes de meu trabalho de campo em uma casa
do lado7 de Oyó, em Gravataí/RS, presidida pelo pai de santo Odacir do
Ogum. A nação é composta pelos descendentes no santo de Mãe Emília
da Oyá Ladjá – princesa africana que iniciou esse lado no Rio Grande do
7
O batuque é uma religião brasileira de “matriz” africana que cultua doze orixás e é
praticada, principalmente, no Rio Grande do Sul. Essa religião é dividida em “lados”
(ou nações): Jêje, Ijexá, Cabinda, Nagô, Oiá e Maçambique, “[...] cada lado
corresponde, teoricamente, a formas rituais diversas” (Cf. Corrêa, 2006, p. 50). Oro
(1999) vem estu- dando a transnacionalização dessa religião para a Região Platina.
Há relatos de casas de batuque abertas no estado de Santa Catarina, também. Sobre
Oyó, Oro (2002) aponta para o escasso conhecimento sobre a nação. O único trabalho
dedicado a essa nação é a dissertação de mestrado de Jacqueline Pólvora (1994). Para
maiores informações sobre as diferentes nações e modalidades de culto, ver Oro
(1994; 2002) e Corrêa (1994).

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Sul. As pessoas com as quais me relacionei em campo dizem que Oyó é
um lado puro, ou seja, distingue-se das outras nações pela exclusividade
de culto aos orixás, deixando fora do campo de culto exus e pombagiras,
caboclos e caboclas, pretos e pretas velhas e cosminhos e cosminhas, além
dos eguns. Daí que os ritos fúnebres se dedicam às obrigações últimas aos
orixás daquele que partiu. É através de obrigações aos orixás e ao próprio
morto (ou egum) que se desfazem as obrigações e se quebram os laços
religiosos e afetivos.
Já no dia da morte de algum parente de santo se deve apagar luzes
e velas do quarto de santo, deixando-o escuro, em sinal de luto. Além
disso, as obrigações devem ser arriadas. No enterro, axexes (rezas de
egum) são tirados. No sétimo dia, além da missa católica8, ocorrerá o
eru momento mais importante no pós-morte. É nessa hora em que
humanos e orixás devem quebrar seus laços com o orixá de quem
morreu e com egum9.O próprio morto também deve aprender que não
faz mais parte do “nosso mundo” e deve se desligar dos humanos e
orixás que permanecem aqui, vivos. Passo agora à descrição de práticas
e rituais que sucedem a morte e que, paulatinamente, desfazem na
Terra o que será refeito em Orum (espécie de correlato do paraíso
cristão; local onde os orixás vivem).

LUTO
É justamente nos sete dias que sucedem a morte de um batuqueiro
que as Nanãs10 aparecem. Nanã é a dona da vida, da morte e dos espíritos.
8
Corrêa (2006, p. 159) fala sobre a missa católica como parte do ritual fúnebre dos
batuques.
9
O que está próximo da descrição de Bastide em seu texto “o mundo dos candomblés”
é de que a pessoa africana, assim como a dos candomblés, não nasce de uma vez só,
tampouco morre assim. “Pela iniciação fez-se o espírito passar para um corpo vivo;
trata-se agora de desfazer o que foi feito, recuando aos poucos, o que é um
procedimento habitual na magia, o processo de inversão, refazer em sentido contrário
o que já foi feito, desfazer o nó dado” (1978, p. 288).
10
Nanã Burukê é a dona do barro, lugar do qual todos viemos e para o qual voltaremos,
despachados na kalunga.

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Acontece que se morre de várias formas e ao morrer pode-se perder uma


parte do corpo, como um braço ou uma perna, ou ficar deformado. É
Nanã Burukê quem juntará as partes e quem consertará os estragos,
juntando os caquinhos. Nanã Anarauim está sempre correndo, passa e não
para. Nanã Anansurê passa, para e olha, mas vê que aquilo não é para ela.
Nanã Burukê é a que para, recolhe as partes do corpo e leva para algum
lugarzinho na praia – pedras, mata, beira de mar ou rio – e fica
esperando o que a “lei manda”. Se nesse tempo, “tudo” (rituais e
oferendas) for feito direitinho, ela irá juntar os pedaços para reconstruir e
levar o egum para perto do seu orixá de cabeça. Diz-se que a cada ritual
realizado a pessoa, agora egum, vai se aproximando mais e mais de seu
orixá. Nanã vai levando o egum – ou alma11 – para perto dele. Pois o
final de todos aqueles que são de religião é aos pés de seu orixá12.
***
As pessoas com quem conversei me contaram que batuqueiro tem
de ser enterrado, nunca cremado. O caixão deve ser embalado (para
frente e para trás). Somente homens “prontos” podem segurar as alças
do caixão.
11
Em meu campo, alma é equivalente à pessoa sem a sua parte corpo. O corpo é algo a
ser ocupado, seja por essa parcela da pessoa, seja por um orixá inteiro, seja pela
metade orixá/metade pessoa – os axeres. Pessoa é o resultado da soma das parcelas
alma e corpo, e também seu orixá – esse não como parcela. Aqui, talvez, a evidência
de que as opera- ções de adição e subtração talvez sejam metáforas deficientes.
Contudo, são capazes de, por meio de simplificações, dar inteligibilidade a conceitos
formulados com tamanha complexidade pelos batuqueiros. Alma, corpo e orixá se
tornam espécies de parcelas da soma total, que se separam. Orixá fica em Orum
(mundo dos orixás). A alma – agora egum – deve ir para Orum, também. E o corpo
fica debaixo da terra, vazio. O egum, alma sem corpo, é, portanto, perigoso, pois que
desejoso de outros (novos) corpos para ocupar. Por isso, o eru não apenas desligará os
vivos daquele que morreu, mas ensinará o egum que ele não pertence mais a este
mundo, como já mencionado. Sobre os perigos dos eguns, ver Corrêa (2006, p. 174).
12
Para uma descrição alternativa dos velórios entre os batuqueiros, ver Corrêa (2006,
p. 136-139). Note-se que o autor realizou etnografia no tempo em que se velavam os
mortos no salão das casas de religião, daí uma serie de diferentes rituais. É ao redor
do corpo velado que a roda de eguns acontece (Corrêa, 2006, p. 157).

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Com agê (instrumento feito com uma cabaça/porongo inteira trançada
com cordão e contas/miçangas de diferentes cores), os axexes (rezas de
egum) são entoados durante o percurso, que vai da capela do cemitério
até a cova. O enterro é apenas uma parte da despedida. Nele deve-se ir
com a guia do orixá de corpo (no batuque, ao invés de enredo, se tem um
orixá dono da cabeça, que casa com outro que será o dono do corpo) tal,
leva-se cinza – para afastar os eguns– e um pedaço de morim (tipo de
tecido) branco para abanar o que há de ruim e se despedir do morto 13.
Contam com a simpatia ou antipatia do padre responsável pela paróquia do
cemitério. No enterro de Tia Lourdinha do Ogum, em julho de 2011,
contaram com a boa vontade do padre. A descrição feita pelos presentes
foi a de um ritual triste e belo ao mesmo tempo. Após o sermão do padre,
colocaram a música “Jorge de Capadócia14”, de Jorge Ben, para
homenagear a filha de Ogum que estava deixando a terra.
Como venho demonstrando, a morte é motivo de luto e isso implica
em várias prescrições. Durante sete dias que seguem a morte, não se
acende velas nem luzes no quarto de santo. Além disso, os
serviços/feitiços devem cessar. Apenas após o ritual de desligamento, aos
poucos, as atividades da casa voltam ao seu normal. No oitavo dia se
acende apenas velas. Aos poucos

13
Sem entrar em controvérsias sobre a existência ou não de sincretismo, ou com relação
às suas muitas formas, posso afirmar que, nas casas de Oyó por onde passei, São Jorge
é Ogum em formato de imagem. O contrário não é valido, Ogum não é São Jorge. Os
chamados santos africanos, ou as imagens tridimensionais de orixás, são novidades
nem sempre bem-vindas. Afora isso, não se cogita uma eliminação das estatuetas
“católicas” (utilizo aspas, já que os batuqueiros não as chamam de católicas), pois
grande parte delas “[...] já come há tanto tempo [...]”. As imagens antigas
concentram, portanto, grande quantidade de axé. É nesse sentido que ser africano, para
o povo de Oyó, é seguir o que os mais antigos lhes ensinaram, por isso é que não há
necessidade de africanizar ou reafricanizar práticas, como certa vez comentou Odacir,
em relação a se guardar a quaresma: “[...] não somos africanos da gema (entende?),
somos afro-brasileiros. Se as nega velha guardavam a quaresma quem sou eu para
questionar, para mudar, ou pensar que africanizarei qualquer coisa. Nossa tradição é a
do batuque de Oyó já no Brasil”.
14
Leve é um conceito êmico e tem principalmente, mas não somente, a ver com
serviços/ feitiços envolvendo matança de animais, ou os chamados “serviços de
dano”.

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se pode começar a trabalhar, mas com serviços “leves”15. Três meses após
a morte, mata-se para Bará (orixá que é dono dos caminhos, o princípio de
tudo e para o qual se deve prestar homenagens em primeiro lugar. Dizem
que “sem Bará não acontece nada”) e pede-se autorização para fazer
serviços mais pesados, o que o orixá pode ou não conceder.
Diferente do que acontece nos períodos em que não se está de luto,
não se deve cumprimentar o quarto de santo, nem bater cabeça. Apenas
beijos, abraços e o beija-mão – é importante notar que ao beijar as mãos
de alguém, estamos cumprimentando, beijando as mãos de seu orixá de
cabeça. O tempo de luto varia com a hierarquia do falecido na religião:
aos babalaus (ou babalaoas – modo como também são chamados os pais
e mães de santo, respectivamente), com casa aberta 16, guarda-se um ano;
aos prontos17, mas sem os santos em casa, seis meses; àqueles com
borido18, três

15
Aqueles que já possuem os axés de faca (para poder cortar animais) e de búzios (para
jogar) e já receberam o direito ou desígnio de abrirem suas próprias casas de religião.
É quando levam todas as suas obrigações para casa. É dito dessas pessoas que “se
governam”.
16
Aqueles que “deram” quatro-pés para seus pais. Dito de outro modo, são aqueles em
cujas cabeças e assentamentos foram sacrificados animais de quatro patas. Passaram
por longo período de reclusão, fazendo o “chão” (ver Anjos, 1995), tempo em que se
permanece deitado sobre uma esteira para que o orixá possa comer na cabeça de seu
filho. Esses sacrifícios e rituais marcam a fixação do orixá na cabeça e no ocutá
(pedra). Além disso, elevam o adepto para a categoria em que está feito por completo,
ou como o nome já diz, pronto. O ritual é chamado de apronte.
17
Obrigação que envolve sacrifício de aves na cabeça e em obrigações como quartinhas,
guias e manteigueiras. Existe, também, o borido de quatro-pés ou o “ter angolista na
cabeça”: grau mais elevado que o borido e menos que o apronte na iniciação, que
envolve o corte de galinhas d’angola sobre a cabeça e obrigações.
18
Com obrigações menores, como sanapismo (sacrifício de pombos ou ebis – caramujo
de Oxalá) e o aribibó (sacrifício de pombos e da ave do orixá de cabeça).

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meses; aos outros19, sete dias. Essa conta pode variar de acordo com os
laços sanguíneos, com a afinidade e com o tempo de religião que alguém
tenha. Assim, por exemplo, alguém que é pronto e não tem os santos em
casa, pode levar ao luto de um ano, pelo seu tempo de religião. Como já
mencionado, é nessa semana em que Nanã toma conta do egum, que assim
como os outros orixás, exige oferendas para trabalhar. Dito isso sobre o
luto, podemos passar aos rituais que acontecem no sexto e sétimo dias
após a morte.
Na noite que antecede a missa de sétimo dia é realizado o corte
para o egum20. Antigamente, o ritual era realizado em um buraco nos
fundos

19
As diferenças no ritual de desligamento se devem não somente à hierarquia, mas
também ao orixá de cabeça, e por vezes ao “cargo” ocupado na casa – em especial o
de tamboreiro (a). Como demonstrou Braga (1998) e Silveira (2008), o tambor é vivo,
e se alimenta e se faz junto com seus tamboreiros ou tamboreiras. O tambor também
deve ser despachado na kalunga, para que seu dono receba-o de volta das mãos de
Nanã Burukê. No caso recente da morte do tamboreiro Adãozinho do Bará, o erú
contou com a especificidade de seu “cargo” e de seu orixá de cabeça. Por todo o
trajeto realizado de carro da casa de religião até a kalunga, a cada cruzeiro (sinônimo
de encruzilhada aberta) – domínio dos Barás – o tambor com o couro afrouxado era
tocado. Tambor chocho, como se diz. Apesar de não encontrarmos os cargos de ogãn e
de ekedi no batuque gaúcho, os tamboreiros(as) ocupam lugar de destaque na religião,
o qual se equipara ao dos pais e mães de santo (cf. Braga, 1998; Silveira, 2008).
20
Interessante notar que balé no Xangô de Recife, segundo Halloy (2005), como no
batuque gaúcho, é o quarto dos eguns, onde ficam seus assentamentos. Ainda, o autor
refere-se ao perigo desse lugar e à obrigatoriedade de se cultuar os eguns antes de
qualquer ritual. Corrêa (2006) chama atenção para o perigo do buraco, por isso dele
ser geral- mente cercado: “Muitas casas de batuque possuem o balé ou buraco, local
especialmente dedicado aos eguns e onde os ancestrais de religião do chefe do templo
‘moram’ sempre fica nos fundos da casa e em local pouco acessível ou até cercado,
especialmente se há crianças na casa. [...] este (o balé) pode ter conotações e formas
diferentes de acordo com o tipo de compromisso que o chefe resolveu assumir com os
mortos, além dos objetivos que tem em relação a eles” (p. 147-8). Corrêa (1998)
descreve a não necessidade de se arrumar a casa que é o balé (casa, geralmente, do
tamanho de uma casinha de cachorro ou espécie de caixão), onde se prestam os cultos
anuais e que pode ser utilizada para a realização de feitiços (p. 129-130). No Oyó é
um buraco que será coberto com terra após os rituais.

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da casa, para depois ser coberto com terra, pois no Oyó não se deixa
balé21 aberto, ou seja, não se cultua aos mortos. Atualmente, comenta
Odacir, com a dificuldade em se adquirir terrenos grandes, as casas
possuem pouco espaço nos fundos, então mata-se para o egum em uma
talha, quando quem morreu tem cabeça de orixá masculino (Bará,
Ogum, Xapanã, Odé, Ossanha, Xangô e Oxalá), e num alguidar,
quando a cabeça pertence a orixás femininos (Iemanjá, Oxum, Otim,
Obá, Iansã)22. As talhas e alguidares são, posteriormente, despachados
junto com toda a obrigação do morto, ao final do eru, na kalunga23 (o
que será tratado adiante).
***
Em uma gaiola ou outro espaço previamente preparado estão os
animais que serão cortados. Para o início da matança, pedem silêncio, e
que os prontos se aproximem, da ordem do mais antigo na religião ao mais
novo. Os não prontos não assistem de perto, olham de longe, por entre os
braços e pernas daqueles que estão mais próximos.
21
Nanã Burukê e Ewá são orixás cultuados no lado de Oyó, porém, a elas não se dá
cabeça. Ambas estão ligadas à morte. Ewá é a dona do buraco, diferente de Iansã que é
a dona dos eguns e do buraco. Note-se que Otim normalmente não é dona de cabeça e
aparece mais como dona do corpo dos filhos de Odé, com o qual forma o “casal
perfeito”. Contam, contudo, que antigamente se dava cabeça para essas orixás, e a
feitura de Otim e de Ewá foi perdida (com os mais velhos que não ensinaram e
faleceram). Nanã Burukê é dona de muitas cabeças, mas suas filhas são dadas para
Iemanjá ou para Oxum Dôco. Odacir diz que tal fato se deve a grande responsabilidade
que uma filha de Nanã carrega, e que hoje em dia não haveria mais pessoas à altura
dessa orixá. Existem outras explicações para tal troca de orixás de cabeça, como o mito
sobre a briga de Nanã com Ogum (dono do aço), que faria com que os sacrifícios
tivessem de ser feitos com os dentes. Além dessas há outras muitas explicações, mas o
fato é que Nanã não fica com a cabeça de suas filhas.
22
Kalunga, aqui, designa o que seria o equivalente a um “cemitério” para as obrigações:
o fundo do mar, território de Nanã Burukê, e suas águas lodosas. No lado de Oyó não
se faz a distinção entre Kalunga e Kalunga Grande, nem se refere aos cemitérios como
Kalunga.
23
As substâncias podem variar. Sendo, por exemplo, pemba verde, amarela, rosa, azul,
branca e preta, sabão da costa e, finalmente, os palitos de dente. Seguindo, é claro,
uma ordem de colocação.

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A talha, que faz as vezes de buraco, deve ser batizada. Batiza-se com
farinha de mandioca e se coloca folha de mamoneira, para que só então o
axorô (sangue) possa ser ali depositado; junto com ele, a cabeça das aves
e do animal de quatro-pés, quando for o caso. O restante do animal vai
diretamente para bacias, separadas por orixá, para que depois as inhálas
(vísceras e patas) sejam separadas, e as aves depenadas e preparadas para
serem temperadas. É delas que se fará o arroz com galinha, a comida de
egum. É importante mencionar que diferente das inhálas de obrigação,
que são fritas e refogadas na banha com coloral e outros temperos, as de
egum ficam cruas, e só têm que ser lavadas para que não estraguem até o
dia seguinte, quando são servidas.
Como em qualquer obrigação, inicia-se por Bará24. Após cada ave
cortada, tempera-se a obrigação com mel e dendê25. Diferente das
matanças feitas por motivo de homenagens, quinzenas (corte de aves para
o orixá) ou quatro-pés, o corte é rápido. Após a matança, é acesa uma
vela branca atrás da talha ou alguidar, com um protetor contra o vento. Ao
lado da vela acesa, pacotes de vela branca para que ao final de cada vela
já se acenda a seguinte. Alguém deve ficar responsável por cuidar da vela
e repô-la para que o egum não fique no escuro. Assim deve ser até a hora
do eru.

MISSA E ERU
No sétimo dia é encomendada a missa católica, conforme ilustrado
no caso de Tia Lurdinha, na qual todos que participam do corte devem
ir. Além deles, parentes de santo que não puderam estar na noite
anterior

24
Corrêa (2006) apresenta descrição semelhante sobre as substâncias utilizadas antes de
se entrar para o café da manhã no dia do desligamento. Fala que o movimento é de
passar na palma das mãos aquilo que vai do branco ao preto. A diferença parece
consistir no fato de que onde realizou-se trabalho de campo é que a porta de entrada da
casa deve ficar bem aberta.
25
Esse vazio representa perigo. O perigo de que alguém que não seja uma pessoa ocupe
o lugar (ver Barbosa Neto, 2012, p. 308; Corrêa, 2006, p. 156).

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156 Cauê Fraga Machado

participam da missa. Deve ser a primeira missa da manhã, pois após ela
ocorre o importante ritual do café da manhã.
Após a missa, os parentes de santo se reúnem em frente à igreja para
irem à casa onde ocorrerá o eru. Na porta de entrada, um filho ou filha dá
instruções de como proceder na hora de entrar. Ao lado da porta, um
móvel contém cascas de coco, formando pequenos pratos, que são
preenchidos por pemba branca, pemba azul, pó de tijolo, pemba vermelha,
cinza e carvão, sabão da costa e palitos de dente26. Ao lado esquerdo, em
outro móvel, uma bacia de louça de ágata branca com o mieró (preparado
de água e ervas) de egum, que leva erva-mate. Deve-se passar na palma da
mão esquerda com os dedos da mão direita cada uma das substâncias
contidas nas cascas de coco, na direção que vai da esquerda para a direita,
fazendo um círculo até chegar aos palitos. Movimentação que vai da
pemba branca ao carvão preto27. Também lavar as mãos com o sabão,
dentro da bacia, escolher o número de palitos de acordo com o número de
pessoas que residem com quem está juntando os palitos, quebrá-los, e
então entrar na casa. Dizem que assim se quebra os laços do morto com
os parentes de santo, com suas casas e com as pessoas que moram nela.
Assim não se corre o risco de receber visita inesperada e indesejada do
egum.
Ao adentrar a casa se deve dar uma volta ao redor da mesa – que já
está posta para o café da manhã – a partir da esquerda até a ponta, onde
está sentado o dono da casa. Como de costume em casas de religião,
deve-se
26
É importante deixar claro que os orixás não morrem, apenas deixam de vir ao
nosso mundo, pois sua ligação maior, a pessoa e o ocutá, deixam de existir em
Aiyê. Contudo, os orixás de pessoas que já morreram são sempre lembrados e
pode-se fazer pedidos a eles, independentemente do tempo que seus filhos
humanos já tenham morrido. Além do mais, os orixás vivem concomitantemente
em Orum, nos ocutás, nas cabeças de seus filhos e nas demais obrigações.
27
Quebrar consiste no ato de uma pessoa ou orixá auxiliar um orixá que acaba de chegar
no mundo, tocando-lhe a parte interna dos cotovelos, fazendo com que o orixá dobre
os braços de modo a abraçar a si próprio. Além disso, sopram-lhe os ouvidos e tocam
em seu peito. Odacir diz que se quebra um orixá para que ele aprenda a ocupar e saber
os limites do corpo, pois “[...] o orixá é natureza, é uma força muito forte e pode
passar pelo corpo e não ficar”, caso não se faça tal ritual.

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O DESFAZER NO BATUQUE GAÚCHO 157

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abraçar o dono da casa, prostrar-se e beijar-lhe as mãos. Quando alguém
termina o café e se levanta, outras pessoas são chamadas para que se
sentem para comer, visto que não pode haver lugar vago . Depois de
comer é preciso dar outra volta ao redor mesa.
O ritual do café da manhã tem seu término ao meio-dia. Numa das
pontas da mesa serve-se o egum. São duas xícaras de café com leite,
um martelinho de vinho e outro de cachaça, e um pouco de tudo o que
está sobre a mesa. Quem preside o eru esmaga as comidas e as coloca
dentro das xícaras, que são entregues para os prontos na religião, que
deverão despachar o conteúdo de uma das xícaras e o vinho na frente
de casa, e o conteúdo da outra e a cachaça nos fundos. Logo todo o
conteúdo da mesa é retirado, dando fim ao ritual.
Entre o café da manhã e o eru, a cozinha não para de funcionar. É lá
que preparam as frentes (comidas) dos orixás e as comidas de egum, além
do almoço. No final da tarde é que, geralmente, se dá início ao ritual de
desligamento. Primeiro, todos os presentes comem as comidas de orixás e
de egum que passam. De orixás, o acarajé, a pipoca, o amendoim, a
canjica, o amalá, o churrasco e a galinha assada da obrigação. De egum, o
arroz com galinha. Por vezes é servida, também, galinha ensopada. É
preciso comer um pouquinho de tudo. Segundo Odacir, é o único dia em
que todos comem e se come a comida de todos, dos vivos, dos orixás e
dos eguns. Cuida-se para não deixar nada sobrando nos pratos, pois todas
as sobras são depositadas em um recipiente que terá seu conteúdo
despachado junto com as coisas do morto, na kalunga.
O eru tem seu início com o dono da casa chamando todos para que
entrem na roda, que inicia pelas rezas de Bará. No centro da roda uma
toalha de mesa branca é estendida, e é sobre ela que as obrigações serão
postas. Deve-se dançar, balançando bastante os braços para frente e para
trás. Além disso, as rezas de egum (axexés) são dançadas em sentido
horário
– contrário ao dançado para os orixás. Há alternância de rezas, e com ela
o sentido da roda.
A não ser quando se trata de eru de um filho/a de Oxalá e de
Iemanjá, não se tira reza para esses dois, pois são os velhos. Note-se
que Oxum é um

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orixá que transita entre mel e dendê, e algumas oxuns jovens chegam a
traba- lhar no cruzeiro com os barás. Mas Oxum Doco, a velha, não
participa dos erus. Por conta disso, esses orixás também não chegam nos
corpos de seus filhos, a não ser que se trate de eru para esses orixás. Todos
os outros orixás (o povo do azeite) podem e devem chegar. A chegada de
cada orixá em festas e outros rituais é festejada e saudada com os
cumprimentos específicos de cada um. No eru eles chegam gritando de
maneira mais intensa, chorando e/ou contorcendo-se. Não há saudações,
nem festejos, nem cumprimentos ou troca de axé. Os santos chegam para
trabalhar e se despedirem de vez de um orixá conhecido .
Na roda de eru não se dança descalço, como nas festas. Ficar
descalço é uma obrigatoriedade em quartos de santo nos demais momentos.
Os calçados, além de desrespeitosos para com as divindades, bloqueiam o
contato da sola dos pés com o chão, lugar sagrado de concentração de axé
em uma casa de religião. Contudo, no eru, por não se estar homenageando
orixás, mas sim o egum, não se tiram os calçados, e o contato com o chão
é mediado por sapatos, sandálias, chinelos etc. Por isso, quando os orixás
chegam no mundo, vão aos fundos da casa para cumprimentarem o egum
e, logo em seguida, os assistentes correm para quebrá-los e tirarem seus
calçados e meias. Pois os orixás, mesmo nos erus, não vestem sapatos.
Afora isso, não se cumpri- menta o quarto de santo e a rua na parte da
frente da casa, como nas festas e outros rituais.
Uma espécie de mesa é posta no chão, forrada com toalha branca.
Servem-na com comidas para os orixás e para o egum, e as comidas de
“gente”, como se diz. Deve haver aquilo que o morto mais gostava de
comer e beber para quando ele, junto com Nanã Burukê, tiver de juntar os
cacos daquilo que tinha na Terra, não passe fome. Que tenha um pouco de
tudo o que mais gostava. A comida vai para Orum, quebrada/amassada
também. Com ajuda de Nanã Burukê ela será reconstruída, assim como
todo o restante.

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DESFAZER
Dos fundos da casa, os orixás trazem as obrigações que ficaram no
“tempo”: os ocutás, as quartinhas, os pratos e as manteigueiras. Essas
devem ser depositadas em sacos de tecido branco. As comidas que
estavam sobre a toalha serão unidas às obrigações. Os sacos, cheios,
devem ser segurados pelas bordas, de modo a fechá-los, para que, com um
porrete de madeira, ao som do alujá (reza tirada para Xangô), tudo possa
ser quebrado. A quebra de todas as obrigações é, sem dúvida, o ponto alto
de um eru. É nessa ocasião que é dado o verdadeiro adeus ao egum. Pois o
enterro foi apenas uma parte da despedida. O eru, dizem, é a saudação
definitiva. Depois de tudo quebrado, destruído e desfeito, não há mais
volta.
Os vínculos estão cortados. Os vivos e o morto se desligam um do
outro. É o momento descrito como o mais triste e mais pesado de todo o
ritual. Ao som das obrigações que são quebradas a pauladas, orixás que
ainda não haviam chegado podem vir ao mundo para se despedir do
egum.
As rezas seguem, não pode haver silêncio, e é preciso continuar
cantando. O choro coletivo é, aos poucos, substituído pela resposta à reza
que está sendo tirada. Os orixás que presidem o eru assim exigem. No
batuque, dizem que se faz festa até quando se morre. Ao mesmo tempo, os
orixás ficam responsáveis por passar comidas, varas de marmelo e aves –
que diferem, dependendo de qual santo era a pessoa que faleceu (quando o
santo for Oxalá, haverá pombos brancos, por exemplo) – nos corpos dos
presentes, sejam pessoas ou orixás. Por fim, o ossagéu (aspergir água da
quartinha sobre as pessoas), que é utilizado tanto para afastar espíritos e
energias ruins quanto para despachar os orixás – pelo primeiro motivo –
sua importância no eru. Após isso, as aves, as comidas e as varas de
marmelo são quebradas e vão para os sacos.
Flores e balas são distribuídas para que cada pessoa e orixá presente
deposite nos sacos, como forma de homenagem. Pede-se para que o egum
tenha uma partida. As pessoas e orixás com mais tempo de religião
recebem velas, que são acesas dentro dos sacos, de modo a formar uma
grande oferenda. Um orixá vem com um espanador feito de TNT nas
cores azulão,

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amarelo, branco e vermelho, e vai limpando todo mundo que está ali.
Depois de limpar todo mundo, apaga as velas com esse espanador28.
Os sacos são fechados e as comidas que restaram nos pratos das
pessoas ao longo do dia e foram reservadas são trazidas. A toalha é
enrolada e os axós (roupas religiosas) e outras roupas são rasgados. Tudo
partirá para a Kalunga. Pessoas e orixás se dividem, Iansãs (de
preferência) devem segurar uma das pontas dos sacos, que são embalados
ao som de um axexé até os carros que levaram tudo para a praia. Os que
ficam na casa cantam para o egum, embalando os braços, num movimento
que se assemelha ao tocar/ empurrar para fora. De trás para frente os
braços não param de balançar, até que os carros saiam.
Mas o eru ainda não terminou, é preciso que na Kalunga (praia) –
que em Porto Alegre é feita no Rio Guaíba – tudo seja entregue para
Nanã Burukê. Quem fica na casa não pode sair até que aqueles que foram
à praia voltem. Ao sinal de sua volta, todos ficam em pé, outro axexé é
tirado, os orixás se cumprimentam uns aos outros e as pessoas que
permaneceram na casa, também. Por fim, trazem um grande alá (pano
branco que cobrirá todos os orixás) na qual todos os orixás se agrupam.
Com um gole d’água, o orixá mais antigo asperge o chão. Sob o pano e
sobre a água, de uma única vez, todos vão embora, sem passar pelo estado
de axere. A assistência corre para calçar os sapatos nas pessoas, ainda um
tanto aparvalhadas.

RITOS FINAIS
Como já referido, três meses após a morte acontece o primeiro corte
após o eru. É quando se mata para Bará, pedindo licença ao dono dos
cami- nhos para que se possa voltar a realizar feitiços que envolvam a
matança de animais. Quando um pronto morre, sua família de santo mais
próxima
– mãe/pai, irmãos, filhos –, assim como os parentes de sangue que são
de religião, não podem/devem cortar até que se complete o ciclo
determinado para o luto. Ademais, o ritual dos três meses, como o
chamam – pois não
28
Essa parte do ritual pode variar. Ao invés de espanar, podem apagar as velas com o
ossagéu.

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O DESFAZER NO BATUQUE GAÚCHO 161

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há nome em “africano” para ele –, é realizado com “tudo que a lei
manda” (oferendas e rezas). Esse, assim como o de seis meses – realizado
apenas quando da morte de um pronto –, o de nove e o de um ano –
realizado apenas quando da morte de babalau ou de uma babalaoa–,
fazem parte do segredo da religião, não podendo ser descritos.
Assim como o sétimo dia, “o um mês, o três meses, o nove meses e o
um ano” marcam tempos de prestar mais homenagens e fazer com que o
egum se aproxime cada vez mais de seu orixá. Como Oyó não cultua seus
antepassados em balés e nem em cemitérios, a cada um desses rituais
afasta-se o morto dos vivos. É importante manter a maior distância possível
dos eguns29.
É preciso lembrar que cada ritual desses varia de acordo com o orixá,
o tempo de religião e o que se tem na cabeça (sanapismo, aribibó, borido,
angolistas, quatro-pés, o “se governar” e o “possuir filhos e filhas de
santo”). Assim o sétimo dia de quem possui apenas uma quartinha
consistirá em apagar as luzes do quarto de santo e entregar na kalunga o
que esse egum tinha de obrigação. Além disso, como já mencionado, o
carinho que se tinha por determinada pessoa faz com que esse esquema
mais ou menos estruturado sofra modificações. Como quase tudo no Oyó,
não existem receitas prontas, existe jogo de búzios e orixás... Mas também
existe o que “a lei manda”...

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo busquei dar lugar central ao desfazer, tomando tal
conceito como um agrupamento de práticas relacionadas à morte de um
adepto do batuque. Como certa vez me disse Odacir do Ogum: “[...]
assim como
29
É interessante fazer uma conexão com o estudo sobre religião e mediação de
Robbins (2008). O autor demonstra, na esteira de Mauss e Hubert, como os rituais
e o sacrifício desempenham o papel não apenas de aproximar pessoas e
divindades, mas também de criar distâncias necessárias. “Traditional Urapmin
religion was less concerned with creating divine or even inter-human presence and
proximity than it was to creating distance between people and between people and
the divine by sacrificial and other kinds of mediations” (2008, p. 28).

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um bom pai de santo tem que saber iniciar, tem que saber terminar”.
Não pretendo conferir ao texto um caráter conclusivo, mas sugerir que o
desfazer nas religiões de matriz africana deva ser tomado como tão
importante quanto o fazer, e que essa atenção etnográfica possa alargar a
discussão sobre a noção de pessoa nessas religiões. No eru, se encontra alto
grau de fundamento da religião, haja vista seu alto grau de complexidade,
perigo e segredo – não que em outros rituais ou na natureza não haja
fundamento. Procurei demonstrar que o desligamento não é um passo ritual
para outro culto – pois no Oyó os eguns não são cultuados. Através da
própria descrição do ritual, podemos alargar nossa compreensão sobre as
noções de corpo, alma e pessoa nas reli- giões de matriz africana e nas
descrições mais gerais feitas sobre as mesmas.
Como a vasta bibliografia sobre as religiosidades de matriz africana
no Rio Grande do Sul (e no Brasil) já demonstrou (ver Bastide, 1978;
Goldman, 1984; Corrêa, 2006; Halloy, 2005, para citar alguns), fazer um
santo, uma pessoa, uma obrigação ou uma oferenda/presente para os
orixás, requer um longo engajamento no aprendizado ritual e dos rituais,
além de um crescente acúmulo de objetos e axés – e objetos são axés, ou
portadores dele – que coincide com o grau de poder e plenitude –
enquanto pessoa religiosa – que os adeptos passam e adquirem ao longo
de suas vidas.
Guias, quartinhas, axós, imagens, alás, ocutás, louças, objetos de
barro e toda sorte de coisas que compõem as obrigações são adquiridas
aos poucos, no tempo dos orixás. A íntima relação que os filhos e filhas
de santo cons- troem com seus orixás está diretamente relacionada a
aquisição desses axés. Ao adquiri-los, dizem que a pessoa passa a ficar
mais importante, maior. Junto a essa construção de uma relação íntima e
cumulativa com divindades e objetos, criam-se e fortalecem-se laços entre
pessoas. Um filho de santo será tão mais filho quanto mais axés possuir
(axé de faca, de búzios). É claro que essas relações são entrecortadas por
muitas outras, como afinidades, laços sanguíneos, etc. No entanto, na hora
de desfazer obrigações, é a hierarquia no santo que conta30.

30
Ver Barbosa Neto (2012, p.300).

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Desfazer o engajamento de uma vida dedicada à religião requer
um saber menos difundido do que o fazer. Dizem que têm muitos pais
e mães de santo por aí que por serem aprontados em pouco tempo, não
sabem de quase nada sobre os rituais fúnebres e nem sobre muitos
outros. É na hora da morte que aquele que não sabe como proceder
pede humildemente auxílio aos mais velhos – e, portanto, mais sábios
– na religião. Como me disseram, é no eru que se encontra o verdadeiro
fundamento da religião. Diante de tal importância, é digno de nota que
o desfazer não tenha recebido muita atenção na produção
antropológica sobre a noção de pessoa nas religiões de matriz africana
e na descrição mais geral destas.
Se fazer um santo e aprontar um filho despende tempo, dinheiro,
carinho, cuidados e sentimentos, desfazer suas obrigações e desligar os
laços do morto com os vivos requer de forma concentrada a mobilização
de emoções e recursos que poderiam ser dispensados ao longo de um
período maior de atividades em memória do morto, fazendo com que se
inflacione os gastos e o engajamento emocional em um curto período no
qual se prepara o eru e os rituais que seguem. Tão importante quanto fazer
um filho e um santo, é saber desfazer, desligar, embalar, empacotar e
destruir as obrigações para que o egum e o orixá de cabeça possam, com a
ajuda de Nanã Burukê, se encontrar em Orum. Desfazer, na Terra (Aiyê),
obrigações, é propiciar a sua feitura noutro plano, fazendo a pessoa para
uma diferente qualidade de relação com seu orixá e com Orum, dando
matéria e ocupação para o início de sua nova vida. Desfazer é, nesse
sentido, fazer. É um duplo acontecimento, o desligamento na Terra e a
(re)construção em Orum.

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164 Cauê Fraga Machado

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