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Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
INTRODUÇÃO2
Este artigo, de caráter etnográfico, consiste em uma descrição daquilo
que ouvi e vi sobre a morte e os diferentes rituais a ela ligados no batuque
de Oyó. À exceção do trabalho de Norton Corrêa (2006) que dedica a
segunda parte de seu livro, “O batuque no Rio Grande do Sul”, aos mortos,
não encontramos trabalhos sobre o batuque gaúcho que tenham se
debruçado sobre o tema. Autores como Melville J. Herskovits (1943) e
Roger Bastide3 (1985) tangen- ciam a temática à luz de suas experiências
etnográficas com o candomblé baiano4. Esses autores discorrem sobre a
relação dos adeptos com os eguns, os espíritos ou almas dos mortos,
ressaltando aquilo que não fora encontrado no Rio Grande do Sul – como
as sociedades de eguns encontradas na África e na Ilha de Itaparica/BA. A
descrição que será oferecida vai ao encontro
2
As expressões nativas virão entre aspas, as palavras em ioruba e os conceitos em
português que diferem do uso corrente da língua serão grafadas sem ênfases, seguidas
de notas explicativas, ou com sua definição entre parênteses.
3
Bastide (1978) faz uma primeira síntese de rituais fúnebres no candomblé baiano, em
tom mais descritivo, próximo ao pretendido neste artigo. Contudo, devo frisar, aqui
importa o desfazer em si e não sua descrição para construir interpretações sobre a
relação entre vivos e mortos. De acordo com meus informantes, esse momento é
decisivo para os pais e mães de santo demonstrarem seu saber sobre o fundamento
religioso (o que será tratado adiante).
4
Vale lembrar as preocupações de Herskovits com a construção de escalas, ou seja,
aquilo que teria “guardado” mais ou menos da África no Novo Mundo. Já em
Bastide (1985) encontramos o candomblé baiano como a mais africana das praticas
religiosas no Brasil. Seu modelo seria, mais tarde, criticado como sendo nagocêntrico.
Além disso, notemos que ambos os autores realizaram curtas incursões etnográficas no
Rio Grande do Sul Corrêa (2006) já apontara tal questão.
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Corrêa (1998) apresenta a relação entre vivos e mortos e deuses e mortos, com ênfase
nos conflitos envolvidos. Enfatiza o caráter liminar da identidade dos eguns, o aspecto
transformativo que o aressum (missa dos mortos) representa para a alma da pessoa,
que se transforma em egum. Esse é, portanto, considerado um rito de passagem e um
anti-ritual. Os eguns, diferente do que acontece no lado de Oyó, podem incorporar
em corpos humanos. Além do mais, o aressum deve ocorrer todos os anos para que os
eguns não saiam de sua morada, o balé, para perturbar os vivos (ver Corrêa, 2006, p.
168-172; 1998, p. 93-102). Em sua tese de doutorado, o autor acrescenta que o egum
exerce papel duplo, promovendo ordem e caos nos rituais, sendo assim considerado
um anti-homem e um anti-deus, com comportamento anti-social (cf. Corrêa, 1998,
p. 102). Para uma crítica ao conceito de rito de passagem e a sua simplificação ante a
complexidade ritual, que não promove uma “ruptura definitiva”, mas uma “repetição
contínua” com exigência de cuidados cotidianos, ver Barbosa Neto (2012, p. 295-
298).
6
O conceito nativo de obrigação engloba o que tendemos a traduzir por objetos rituais,
por algumas ações e pelos próprios orixás em seus assentamentos. Obrigação designa
o fazer e o cuidar, mas também aquilo que fica guardado sobre as prateleiras, atrás das
cortinas, em sopeiras e manteigueiras. São as ferramentas e armas dos orixás, como a
chave e a foice do Bará. São, também, os próprios ocutás (pedras/assentamentos). E,
ainda, momentos, como os cortes (matanças), festas e outros eventos. Ouvimos falar
do tempo em que fizeram sua obrigação, ou “[...] na obrigação da minha mãe vai ori
(banha de carneiro)”. Obrigação corresponde, também, ao cuidado cada vez mais
obrigatório que se passa a ter com os orixás, de acordo com a escala na hierarquia
religiosa.
a partir de uma série de rituais que desligarão o morto dos vivos e vice-
versa, sendo o mais importante deles o eru.
Proponho que se tome o desfazer como lugar privilegiado para alargar
o conhecimento antropológico sobre as noções de alma (relacionada ao
conceito de egum), corpo e pessoa (geralmente estudadas a partir da
feitura), e de vida e morte, como ficará claro ao longo do artigo. Não se
trata de uma postura que vá de encontro aos estudos sobre feitura e
construção de pessoas e corpos nas religiões afro-brasileiras. Nelas
encontramos importantes contri- buições, como as de Anjos (1995), e a
ideia do apronte (do fazer o chão)como metáfora recíproca com o
nascimento biológico, e as de Goldman (1984), para o qual a pessoa
construída ritualmente no candomblé é folheada, composta por múltiplos
componentes que só entram em equilíbrio após vinte e um anos de
iniciação, momento quando se atinge o tata (quando a pessoa possui
domínio sobre eguns e vodunisis e uma não-submissão aos orixás). Essa
realidade múltipla e folheada que parece dar lugar a um ser Uno e
indiviso, na verdade, nunca se realiza, pois somente os orixás são os seres
verdadeiramente unitários. Por isso, tem-se uma pessoa descontínua em
constante busca pelo equilíbrio. O que o desfazer evidenciará não é apenas
uma concepção outra de pessoa, mas que as porções que a compuseram
ao longo da vida se destacam umas das outras, recebendo diferentes
destinos com o eru.
Os dados são provenientes de meu trabalho de campo em uma casa
do lado7 de Oyó, em Gravataí/RS, presidida pelo pai de santo Odacir do
Ogum. A nação é composta pelos descendentes no santo de Mãe Emília
da Oyá Ladjá – princesa africana que iniciou esse lado no Rio Grande do
7
O batuque é uma religião brasileira de “matriz” africana que cultua doze orixás e é
praticada, principalmente, no Rio Grande do Sul. Essa religião é dividida em “lados”
(ou nações): Jêje, Ijexá, Cabinda, Nagô, Oiá e Maçambique, “[...] cada lado
corresponde, teoricamente, a formas rituais diversas” (Cf. Corrêa, 2006, p. 50). Oro
(1999) vem estu- dando a transnacionalização dessa religião para a Região Platina.
Há relatos de casas de batuque abertas no estado de Santa Catarina, também. Sobre
Oyó, Oro (2002) aponta para o escasso conhecimento sobre a nação. O único trabalho
dedicado a essa nação é a dissertação de mestrado de Jacqueline Pólvora (1994). Para
maiores informações sobre as diferentes nações e modalidades de culto, ver Oro
(1994; 2002) e Corrêa (1994).
LUTO
É justamente nos sete dias que sucedem a morte de um batuqueiro
que as Nanãs10 aparecem. Nanã é a dona da vida, da morte e dos espíritos.
8
Corrêa (2006, p. 159) fala sobre a missa católica como parte do ritual fúnebre dos
batuques.
9
O que está próximo da descrição de Bastide em seu texto “o mundo dos candomblés”
é de que a pessoa africana, assim como a dos candomblés, não nasce de uma vez só,
tampouco morre assim. “Pela iniciação fez-se o espírito passar para um corpo vivo;
trata-se agora de desfazer o que foi feito, recuando aos poucos, o que é um
procedimento habitual na magia, o processo de inversão, refazer em sentido contrário
o que já foi feito, desfazer o nó dado” (1978, p. 288).
10
Nanã Burukê é a dona do barro, lugar do qual todos viemos e para o qual voltaremos,
despachados na kalunga.
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Sem entrar em controvérsias sobre a existência ou não de sincretismo, ou com relação
às suas muitas formas, posso afirmar que, nas casas de Oyó por onde passei, São Jorge
é Ogum em formato de imagem. O contrário não é valido, Ogum não é São Jorge. Os
chamados santos africanos, ou as imagens tridimensionais de orixás, são novidades
nem sempre bem-vindas. Afora isso, não se cogita uma eliminação das estatuetas
“católicas” (utilizo aspas, já que os batuqueiros não as chamam de católicas), pois
grande parte delas “[...] já come há tanto tempo [...]”. As imagens antigas
concentram, portanto, grande quantidade de axé. É nesse sentido que ser africano, para
o povo de Oyó, é seguir o que os mais antigos lhes ensinaram, por isso é que não há
necessidade de africanizar ou reafricanizar práticas, como certa vez comentou Odacir,
em relação a se guardar a quaresma: “[...] não somos africanos da gema (entende?),
somos afro-brasileiros. Se as nega velha guardavam a quaresma quem sou eu para
questionar, para mudar, ou pensar que africanizarei qualquer coisa. Nossa tradição é a
do batuque de Oyó já no Brasil”.
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Leve é um conceito êmico e tem principalmente, mas não somente, a ver com
serviços/ feitiços envolvendo matança de animais, ou os chamados “serviços de
dano”.
se pode começar a trabalhar, mas com serviços “leves”15. Três meses após
a morte, mata-se para Bará (orixá que é dono dos caminhos, o princípio de
tudo e para o qual se deve prestar homenagens em primeiro lugar. Dizem
que “sem Bará não acontece nada”) e pede-se autorização para fazer
serviços mais pesados, o que o orixá pode ou não conceder.
Diferente do que acontece nos períodos em que não se está de luto,
não se deve cumprimentar o quarto de santo, nem bater cabeça. Apenas
beijos, abraços e o beija-mão – é importante notar que ao beijar as mãos
de alguém, estamos cumprimentando, beijando as mãos de seu orixá de
cabeça. O tempo de luto varia com a hierarquia do falecido na religião:
aos babalaus (ou babalaoas – modo como também são chamados os pais
e mães de santo, respectivamente), com casa aberta 16, guarda-se um ano;
aos prontos17, mas sem os santos em casa, seis meses; àqueles com
borido18, três
15
Aqueles que já possuem os axés de faca (para poder cortar animais) e de búzios (para
jogar) e já receberam o direito ou desígnio de abrirem suas próprias casas de religião.
É quando levam todas as suas obrigações para casa. É dito dessas pessoas que “se
governam”.
16
Aqueles que “deram” quatro-pés para seus pais. Dito de outro modo, são aqueles em
cujas cabeças e assentamentos foram sacrificados animais de quatro patas. Passaram
por longo período de reclusão, fazendo o “chão” (ver Anjos, 1995), tempo em que se
permanece deitado sobre uma esteira para que o orixá possa comer na cabeça de seu
filho. Esses sacrifícios e rituais marcam a fixação do orixá na cabeça e no ocutá
(pedra). Além disso, elevam o adepto para a categoria em que está feito por completo,
ou como o nome já diz, pronto. O ritual é chamado de apronte.
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Obrigação que envolve sacrifício de aves na cabeça e em obrigações como quartinhas,
guias e manteigueiras. Existe, também, o borido de quatro-pés ou o “ter angolista na
cabeça”: grau mais elevado que o borido e menos que o apronte na iniciação, que
envolve o corte de galinhas d’angola sobre a cabeça e obrigações.
18
Com obrigações menores, como sanapismo (sacrifício de pombos ou ebis – caramujo
de Oxalá) e o aribibó (sacrifício de pombos e da ave do orixá de cabeça).
19
As diferenças no ritual de desligamento se devem não somente à hierarquia, mas
também ao orixá de cabeça, e por vezes ao “cargo” ocupado na casa – em especial o
de tamboreiro (a). Como demonstrou Braga (1998) e Silveira (2008), o tambor é vivo,
e se alimenta e se faz junto com seus tamboreiros ou tamboreiras. O tambor também
deve ser despachado na kalunga, para que seu dono receba-o de volta das mãos de
Nanã Burukê. No caso recente da morte do tamboreiro Adãozinho do Bará, o erú
contou com a especificidade de seu “cargo” e de seu orixá de cabeça. Por todo o
trajeto realizado de carro da casa de religião até a kalunga, a cada cruzeiro (sinônimo
de encruzilhada aberta) – domínio dos Barás – o tambor com o couro afrouxado era
tocado. Tambor chocho, como se diz. Apesar de não encontrarmos os cargos de ogãn e
de ekedi no batuque gaúcho, os tamboreiros(as) ocupam lugar de destaque na religião,
o qual se equipara ao dos pais e mães de santo (cf. Braga, 1998; Silveira, 2008).
20
Interessante notar que balé no Xangô de Recife, segundo Halloy (2005), como no
batuque gaúcho, é o quarto dos eguns, onde ficam seus assentamentos. Ainda, o autor
refere-se ao perigo desse lugar e à obrigatoriedade de se cultuar os eguns antes de
qualquer ritual. Corrêa (2006) chama atenção para o perigo do buraco, por isso dele
ser geral- mente cercado: “Muitas casas de batuque possuem o balé ou buraco, local
especialmente dedicado aos eguns e onde os ancestrais de religião do chefe do templo
‘moram’ sempre fica nos fundos da casa e em local pouco acessível ou até cercado,
especialmente se há crianças na casa. [...] este (o balé) pode ter conotações e formas
diferentes de acordo com o tipo de compromisso que o chefe resolveu assumir com os
mortos, além dos objetivos que tem em relação a eles” (p. 147-8). Corrêa (1998)
descreve a não necessidade de se arrumar a casa que é o balé (casa, geralmente, do
tamanho de uma casinha de cachorro ou espécie de caixão), onde se prestam os cultos
anuais e que pode ser utilizada para a realização de feitiços (p. 129-130). No Oyó é
um buraco que será coberto com terra após os rituais.
da casa, para depois ser coberto com terra, pois no Oyó não se deixa
balé21 aberto, ou seja, não se cultua aos mortos. Atualmente, comenta
Odacir, com a dificuldade em se adquirir terrenos grandes, as casas
possuem pouco espaço nos fundos, então mata-se para o egum em uma
talha, quando quem morreu tem cabeça de orixá masculino (Bará,
Ogum, Xapanã, Odé, Ossanha, Xangô e Oxalá), e num alguidar,
quando a cabeça pertence a orixás femininos (Iemanjá, Oxum, Otim,
Obá, Iansã)22. As talhas e alguidares são, posteriormente, despachados
junto com toda a obrigação do morto, ao final do eru, na kalunga23 (o
que será tratado adiante).
***
Em uma gaiola ou outro espaço previamente preparado estão os
animais que serão cortados. Para o início da matança, pedem silêncio, e
que os prontos se aproximem, da ordem do mais antigo na religião ao mais
novo. Os não prontos não assistem de perto, olham de longe, por entre os
braços e pernas daqueles que estão mais próximos.
21
Nanã Burukê e Ewá são orixás cultuados no lado de Oyó, porém, a elas não se dá
cabeça. Ambas estão ligadas à morte. Ewá é a dona do buraco, diferente de Iansã que é
a dona dos eguns e do buraco. Note-se que Otim normalmente não é dona de cabeça e
aparece mais como dona do corpo dos filhos de Odé, com o qual forma o “casal
perfeito”. Contam, contudo, que antigamente se dava cabeça para essas orixás, e a
feitura de Otim e de Ewá foi perdida (com os mais velhos que não ensinaram e
faleceram). Nanã Burukê é dona de muitas cabeças, mas suas filhas são dadas para
Iemanjá ou para Oxum Dôco. Odacir diz que tal fato se deve a grande responsabilidade
que uma filha de Nanã carrega, e que hoje em dia não haveria mais pessoas à altura
dessa orixá. Existem outras explicações para tal troca de orixás de cabeça, como o mito
sobre a briga de Nanã com Ogum (dono do aço), que faria com que os sacrifícios
tivessem de ser feitos com os dentes. Além dessas há outras muitas explicações, mas o
fato é que Nanã não fica com a cabeça de suas filhas.
22
Kalunga, aqui, designa o que seria o equivalente a um “cemitério” para as obrigações:
o fundo do mar, território de Nanã Burukê, e suas águas lodosas. No lado de Oyó não
se faz a distinção entre Kalunga e Kalunga Grande, nem se refere aos cemitérios como
Kalunga.
23
As substâncias podem variar. Sendo, por exemplo, pemba verde, amarela, rosa, azul,
branca e preta, sabão da costa e, finalmente, os palitos de dente. Seguindo, é claro,
uma ordem de colocação.
MISSA E ERU
No sétimo dia é encomendada a missa católica, conforme ilustrado
no caso de Tia Lurdinha, na qual todos que participam do corte devem
ir. Além deles, parentes de santo que não puderam estar na noite
anterior
24
Corrêa (2006) apresenta descrição semelhante sobre as substâncias utilizadas antes de
se entrar para o café da manhã no dia do desligamento. Fala que o movimento é de
passar na palma das mãos aquilo que vai do branco ao preto. A diferença parece
consistir no fato de que onde realizou-se trabalho de campo é que a porta de entrada da
casa deve ficar bem aberta.
25
Esse vazio representa perigo. O perigo de que alguém que não seja uma pessoa ocupe
o lugar (ver Barbosa Neto, 2012, p. 308; Corrêa, 2006, p. 156).
participam da missa. Deve ser a primeira missa da manhã, pois após ela
ocorre o importante ritual do café da manhã.
Após a missa, os parentes de santo se reúnem em frente à igreja para
irem à casa onde ocorrerá o eru. Na porta de entrada, um filho ou filha dá
instruções de como proceder na hora de entrar. Ao lado da porta, um
móvel contém cascas de coco, formando pequenos pratos, que são
preenchidos por pemba branca, pemba azul, pó de tijolo, pemba vermelha,
cinza e carvão, sabão da costa e palitos de dente26. Ao lado esquerdo, em
outro móvel, uma bacia de louça de ágata branca com o mieró (preparado
de água e ervas) de egum, que leva erva-mate. Deve-se passar na palma da
mão esquerda com os dedos da mão direita cada uma das substâncias
contidas nas cascas de coco, na direção que vai da esquerda para a direita,
fazendo um círculo até chegar aos palitos. Movimentação que vai da
pemba branca ao carvão preto27. Também lavar as mãos com o sabão,
dentro da bacia, escolher o número de palitos de acordo com o número de
pessoas que residem com quem está juntando os palitos, quebrá-los, e
então entrar na casa. Dizem que assim se quebra os laços do morto com
os parentes de santo, com suas casas e com as pessoas que moram nela.
Assim não se corre o risco de receber visita inesperada e indesejada do
egum.
Ao adentrar a casa se deve dar uma volta ao redor da mesa – que já
está posta para o café da manhã – a partir da esquerda até a ponta, onde
está sentado o dono da casa. Como de costume em casas de religião,
deve-se
26
É importante deixar claro que os orixás não morrem, apenas deixam de vir ao
nosso mundo, pois sua ligação maior, a pessoa e o ocutá, deixam de existir em
Aiyê. Contudo, os orixás de pessoas que já morreram são sempre lembrados e
pode-se fazer pedidos a eles, independentemente do tempo que seus filhos
humanos já tenham morrido. Além do mais, os orixás vivem concomitantemente
em Orum, nos ocutás, nas cabeças de seus filhos e nas demais obrigações.
27
Quebrar consiste no ato de uma pessoa ou orixá auxiliar um orixá que acaba de chegar
no mundo, tocando-lhe a parte interna dos cotovelos, fazendo com que o orixá dobre
os braços de modo a abraçar a si próprio. Além disso, sopram-lhe os ouvidos e tocam
em seu peito. Odacir diz que se quebra um orixá para que ele aprenda a ocupar e saber
os limites do corpo, pois “[...] o orixá é natureza, é uma força muito forte e pode
passar pelo corpo e não ficar”, caso não se faça tal ritual.
orixá que transita entre mel e dendê, e algumas oxuns jovens chegam a
traba- lhar no cruzeiro com os barás. Mas Oxum Doco, a velha, não
participa dos erus. Por conta disso, esses orixás também não chegam nos
corpos de seus filhos, a não ser que se trate de eru para esses orixás. Todos
os outros orixás (o povo do azeite) podem e devem chegar. A chegada de
cada orixá em festas e outros rituais é festejada e saudada com os
cumprimentos específicos de cada um. No eru eles chegam gritando de
maneira mais intensa, chorando e/ou contorcendo-se. Não há saudações,
nem festejos, nem cumprimentos ou troca de axé. Os santos chegam para
trabalhar e se despedirem de vez de um orixá conhecido .
Na roda de eru não se dança descalço, como nas festas. Ficar
descalço é uma obrigatoriedade em quartos de santo nos demais momentos.
Os calçados, além de desrespeitosos para com as divindades, bloqueiam o
contato da sola dos pés com o chão, lugar sagrado de concentração de axé
em uma casa de religião. Contudo, no eru, por não se estar homenageando
orixás, mas sim o egum, não se tiram os calçados, e o contato com o chão
é mediado por sapatos, sandálias, chinelos etc. Por isso, quando os orixás
chegam no mundo, vão aos fundos da casa para cumprimentarem o egum
e, logo em seguida, os assistentes correm para quebrá-los e tirarem seus
calçados e meias. Pois os orixás, mesmo nos erus, não vestem sapatos.
Afora isso, não se cumpri- menta o quarto de santo e a rua na parte da
frente da casa, como nas festas e outros rituais.
Uma espécie de mesa é posta no chão, forrada com toalha branca.
Servem-na com comidas para os orixás e para o egum, e as comidas de
“gente”, como se diz. Deve haver aquilo que o morto mais gostava de
comer e beber para quando ele, junto com Nanã Burukê, tiver de juntar os
cacos daquilo que tinha na Terra, não passe fome. Que tenha um pouco de
tudo o que mais gostava. A comida vai para Orum, quebrada/amassada
também. Com ajuda de Nanã Burukê ela será reconstruída, assim como
todo o restante.
amarelo, branco e vermelho, e vai limpando todo mundo que está ali.
Depois de limpar todo mundo, apaga as velas com esse espanador28.
Os sacos são fechados e as comidas que restaram nos pratos das
pessoas ao longo do dia e foram reservadas são trazidas. A toalha é
enrolada e os axós (roupas religiosas) e outras roupas são rasgados. Tudo
partirá para a Kalunga. Pessoas e orixás se dividem, Iansãs (de
preferência) devem segurar uma das pontas dos sacos, que são embalados
ao som de um axexé até os carros que levaram tudo para a praia. Os que
ficam na casa cantam para o egum, embalando os braços, num movimento
que se assemelha ao tocar/ empurrar para fora. De trás para frente os
braços não param de balançar, até que os carros saiam.
Mas o eru ainda não terminou, é preciso que na Kalunga (praia) –
que em Porto Alegre é feita no Rio Guaíba – tudo seja entregue para
Nanã Burukê. Quem fica na casa não pode sair até que aqueles que foram
à praia voltem. Ao sinal de sua volta, todos ficam em pé, outro axexé é
tirado, os orixás se cumprimentam uns aos outros e as pessoas que
permaneceram na casa, também. Por fim, trazem um grande alá (pano
branco que cobrirá todos os orixás) na qual todos os orixás se agrupam.
Com um gole d’água, o orixá mais antigo asperge o chão. Sob o pano e
sobre a água, de uma única vez, todos vão embora, sem passar pelo estado
de axere. A assistência corre para calçar os sapatos nas pessoas, ainda um
tanto aparvalhadas.
RITOS FINAIS
Como já referido, três meses após a morte acontece o primeiro corte
após o eru. É quando se mata para Bará, pedindo licença ao dono dos
cami- nhos para que se possa voltar a realizar feitiços que envolvam a
matança de animais. Quando um pronto morre, sua família de santo mais
próxima
– mãe/pai, irmãos, filhos –, assim como os parentes de sangue que são
de religião, não podem/devem cortar até que se complete o ciclo
determinado para o luto. Ademais, o ritual dos três meses, como o
chamam – pois não
28
Essa parte do ritual pode variar. Ao invés de espanar, podem apagar as velas com o
ossagéu.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo busquei dar lugar central ao desfazer, tomando tal
conceito como um agrupamento de práticas relacionadas à morte de um
adepto do batuque. Como certa vez me disse Odacir do Ogum: “[...]
assim como
29
É interessante fazer uma conexão com o estudo sobre religião e mediação de
Robbins (2008). O autor demonstra, na esteira de Mauss e Hubert, como os rituais
e o sacrifício desempenham o papel não apenas de aproximar pessoas e
divindades, mas também de criar distâncias necessárias. “Traditional Urapmin
religion was less concerned with creating divine or even inter-human presence and
proximity than it was to creating distance between people and between people and
the divine by sacrificial and other kinds of mediations” (2008, p. 28).
um bom pai de santo tem que saber iniciar, tem que saber terminar”.
Não pretendo conferir ao texto um caráter conclusivo, mas sugerir que o
desfazer nas religiões de matriz africana deva ser tomado como tão
importante quanto o fazer, e que essa atenção etnográfica possa alargar a
discussão sobre a noção de pessoa nessas religiões. No eru, se encontra alto
grau de fundamento da religião, haja vista seu alto grau de complexidade,
perigo e segredo – não que em outros rituais ou na natureza não haja
fundamento. Procurei demonstrar que o desligamento não é um passo ritual
para outro culto – pois no Oyó os eguns não são cultuados. Através da
própria descrição do ritual, podemos alargar nossa compreensão sobre as
noções de corpo, alma e pessoa nas reli- giões de matriz africana e nas
descrições mais gerais feitas sobre as mesmas.
Como a vasta bibliografia sobre as religiosidades de matriz africana
no Rio Grande do Sul (e no Brasil) já demonstrou (ver Bastide, 1978;
Goldman, 1984; Corrêa, 2006; Halloy, 2005, para citar alguns), fazer um
santo, uma pessoa, uma obrigação ou uma oferenda/presente para os
orixás, requer um longo engajamento no aprendizado ritual e dos rituais,
além de um crescente acúmulo de objetos e axés – e objetos são axés, ou
portadores dele – que coincide com o grau de poder e plenitude –
enquanto pessoa religiosa – que os adeptos passam e adquirem ao longo
de suas vidas.
Guias, quartinhas, axós, imagens, alás, ocutás, louças, objetos de
barro e toda sorte de coisas que compõem as obrigações são adquiridas
aos poucos, no tempo dos orixás. A íntima relação que os filhos e filhas
de santo cons- troem com seus orixás está diretamente relacionada a
aquisição desses axés. Ao adquiri-los, dizem que a pessoa passa a ficar
mais importante, maior. Junto a essa construção de uma relação íntima e
cumulativa com divindades e objetos, criam-se e fortalecem-se laços entre
pessoas. Um filho de santo será tão mais filho quanto mais axés possuir
(axé de faca, de búzios). É claro que essas relações são entrecortadas por
muitas outras, como afinidades, laços sanguíneos, etc. No entanto, na hora
de desfazer obrigações, é a hierarquia no santo que conta30.
30
Ver Barbosa Neto (2012, p.300).
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