MÁRIO SÈVE
O choro no estilo sambado: padrões rítmicos e fraseado musical E
DEBATES | UNIRIO, n. 17, p.219-249, nov. 2016.
B
O choro no estilo sambado:
padrões rítmicos e fraseado musical A
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Mário Sève E
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
S
Resumo: Este artigo tem por objetivo investigar e explicar as transformações
rítmicas no fraseado do choro ocorridas com o aparecimento de um novo estilo
do samba fixado em registros fonográficos a partir dos anos 1930. O texto em
questão parte de um recorte de minha dissertação Fraseado do choro: uma
análise de estilo por padrões de recorrência, que organizei, expandi e adaptei em 17
função do objetivo do artigo. As seções 1 e 2 apresentam o surgimento e as
características desse novo estilo do samba e suas influencias nas práticas do
choro. A seção 3 aborda conceitos para a análise rítmica de ambos os gêneros. A
seção 4 analisa fraseados de choros no estilo sambado, a partir de fragmentos
de peças de seu repertório. No quadro teórico encontram-se estudos de
musicólogos, etnomusicólogos, historiadores e biógrafos como Carlos Sandroni,
Kazadi wa Mukuna, Gerhard Kubik, Pedro Aragão, Baptista Siqueira, Mário de
Andrade, Henrique Cazes, José Ramos Tinhorão e Sérgio Cabral, entre outros.
Supostamente, tais transformações se deram em consequência do papel
mediador dos chorões nas gravações do novo estilo de samba.
Palavras-chave: Choro. Samba. Choro-sambado. Padrões rítmicos. Fraseado
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O emprego da palavra “síncope” (ou
síncopa) para designar as articulações
contramétricas foi, no Brasil, tão sincopado” é naturalmente usada por
frequente que entrou no vocabulário do não-músicos para definir sambas como
leigo e dos músicos populares, conheçam Falsa Baiana, de Geraldo Pereira (aonde,
eles ou não a leitura. (SANDRONI, na melodia, é recorrente a figura rítmica
2012:29). A expressão “samba dtg).
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métrico (constante). Ao
considerar “metricidade” de um
ritmo a medida em que este se
aproxima ou se afasta da métrica
subjacente, Kolinski criou os
termos “cometricidade” e
“contrametricidade” para
Figura 1. Perspectiva em diferentes descrever as duas situações.
níveis de subdivisão da “teoria dos Sandroni ilustra, sob o ponto de
acentos”, segundo modelo de Riemann. vista da posição rítmica ou da
Fonte: Interpretação e fraseado no
acentuação dos sons musicais, o
“Mosaico nº1” de José Vieira Brandão
(NOVAIS, 2014:59) que seriam fórmulas totalmente
cométricas e totalmente
A música barroca foi contramétricas em um compasso
desenvolvida, composta e 2/4 (figura 2).
interpretada de acordo com essa
lógica: “de acordo com os autores
musicais dos séculos XVII e XVIII,
temos, em um compasso 4/4
notas boas ou ruins, nobiles ou Figura 2. Fórmulas métricas e
viles: assim o primeiro tempo é contramétricas. Fonte: Feitiço decente
nobre, o segundo ruim, o terceiro (SANDRONI, 2012:29-30)
não tão nobre e o quarto tempo é
miserável.” (HARNONCOURT, Muitas músicas relacionadas
1988:50). As síncopes neste caso, a danças européias que chegaram
quando acontecem, aparecem ao Brasil construídas sobre
como um desvio e com o caráter melodias cométricas — como a
“pontual” de contradizer o fundo polca —, sob influência da música
métrico — talvez, por isso, negra, se transformaram e
recomenda-se que sejam passaram a assumir
acentuadas. O método de flauta características contramétricas.
de Charles De Lusse, de 1761, Síncope e contratempo são
orienta que as síncopes sejam situações de contrametricidade.
articuladas com a sílaba T-HÉ Mas a síncope, assim como o
(como demonstrado em a, b, c, d, compasso — só sistematizado no
e, f, g, h, i e j do exemplo 2 período barroco —, não é um
extraído do modelo de síncopes conceito universal na música. A
de De Lusse). forma de organização da música
africana — submetida à liberdade
de acentuações e articulações —
não parece depender de uma
recorrência periódica de tempos
Exemplo 2. Modelo de síncopes do método de
fortes, como acontece na música
flauta de Charles De Lusse. Fonte: Em busca
de um mundo perdido (RÓNAI, 2008:180) ocidental. Na música dessa
cultura, a contrametricidade não é
O ritmo de uma melodia pode exceção e seus estudiosos
confirmar ou contradizer o fundo costumam desconsiderar os
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Figura 3. Rítmica divisiva e rítmica aditiva em Segundo o teórico canadense Wallace
um compasso 2/4 Berry (1976), os pulsos costumam
repetir-se regularmente na maioria das
músicas; algumas, como os cantos
A pulsação musical é
litúrgicos da Idade Média, não obedecem
determinada por acentos que se uma pulsação regular.
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Time-lines (ou linhas guias) Figura 4. Clave “3 & 2”, clave “2 & 3” e “clave
da rumba” ou “clave africana”. Fonte: The
O etnomusicólogo africano J. H. jazz theory book (LEVINE, 1995:462)
Kwabena Nketia diz que tais
padrões são organizados, na
música da África, por “time-lines” Padrão contramétrico de oito
(linhas-guia). Estas aparecem pulsos
representadas por palmas ou
instrumentos de percussão O etnomusicólogo africano
agudos de som penetrante (como, Kazadi wa Mukuna (2010) relata
na música brasileira, o agogô, o que, ao estudar a contribuição da
tamborim e o cavaquinho) — na cultura Bantu13 na nossa música,
função de metrônomo, no meio encontrou elementos associados a
das polirritmias — e executadas time-lines como dtg rye
em desenhos assimétricos
repetidos em ostinato do início ao qqeqqqqeq. São padrões de oito e
fim da música. Em muitos casos, 16 pulsos, os quais opto por
esse ostinato pode ser variado, exemplificar com unidades
sujeito a improvisações do músico mínimas representadas por
responsável pela time-line. semicolcheias (como em nossas
O músico americano Mark práticas musicais) — portanto,
Levine (1995) fala, de forma oito e 16 semicolcheias. Escrevo
análoga, de um padrão para as time-lines sob a organização
tocar-se ritmos afro-cubanos em métrica da notação clássica (por
temas de jazz. Em um grupo de exemplo, como dtg ry e rydtg-
salsa, os instrumentos de
acompanhamento — como o dtg-dgy) com o objetivo de
piano, o baixo, as congas e outras facilitar sua visualização, mesmo
percussões — tocam ritmos sabendo de que esta forma possa
diferentes que se juntam em uma
espécie de “quebra-cabeça”. O 13
Bantu é o conjunto das tribos que
elemento que organiza o fraseado ocupavam o antigo Reino do Kongo no
musical e une todas as peças início das atividades escravagistas do
desse quebra-cabeça chama-se século XVI. Isto é, as tribos que
clave — um padrão rítmico de ocupavam o vale do Rio do Congo que se
estende pelos dois lados da fronteira
dois compassos, que costuma ser Congo-Angola, excluindo-se o Gabão e
tocado por um par de pequenos Mayombe, que nesse período estavam
bastões cilíndricos de madeira organizados em nações autônomas.
(MUKUNA, 2010:19).
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qqeQ qqqeq). O etnomusicólogo
Na opinião de Sandroni, parte
significativa da cultura brasileira separa o ciclo na sua batida
compreende a “síncope característica”, acentuada (na variação, a divisão
assim como o “ritmo da habanera”, está marcada por pausa),
como variantes do tresillo (SANDRONI, resultando em dois segmentos
2012:33). Mesmo que tais variações
(muitas delas, intercambiáveis dentro de principais de 7 e 9 colcheias — o
um mesmo gênero) não apresentem que caracteriza um caso de
figuras sincopadas, a contrametricidade imparidade rítmica 7+9. Ele
se apresenta na acentuação da posição ilustra sua exposição nos modelos
da quarta semicolcheia do grupo de oito.
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O samba-choro, o choro de
gafieira, o choro-sambado e
seus padrões rítmicos
O cavaquinista Henrique
Cazes, em seu método, apresenta Exemplo 5. Introdução do samba Até
a fórmula rítmica rydt g_\ dt g-dgy-
amanhã, em imparidade rítmica 9+7.
Fonte: Songbook Noel Rosa • v.2
dgypara o acompanhamento de (CHEDIAK, 1991:29)
seu instrumento no samba. Ele
escreve no padrão contramétrico
de 16 pulsos em imparidade
rítmica 7+9 — com a síncope na
oitava semicolcheia do primeiro
compasso, e não do segundo
Exemplo 6. Fragmento do samba-choro
como os exemplos até agora Conversa de botequim, em imparidade
mencionados em imparidade rítmica 7+9. Fonte: Songbook Choro,
rítmica 9+7. Se invertermos os v.1 (SÈVE; SOUZA; DININHO,
compassos (colocando-se o 2007:112)
segundo no lugar do primeiro)
chegaremos à _\ dt g-dgy\ rydt g_\, Para o ritmo do cavaquinho
no samba, há também fórmulas
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do acompanhamento (violões e
como Srgry\ rdg-dt g:\|, esta
cavaquinhos) e da melodia
recorrente em gravações de (flautas, clarinetes, bandolins
intérpretes como Paulinho da etc.).
Viola, por exemplo. A figura
Mais do que simplesmente
rítmica do primeiro compasso
fornecer acompanhamento para
poderia ser entendida como uma as gravações de samba, os
variação da “síncopa músicos de choro passaram a
característica” e a figura do incorporar o caráter
segundo compasso costuma ser contramétrico (típico do que no
um ritmo utilizado em uma senso comum e em categorias
infinidade de melodias de sambas nativas de músicos populares
(como em Até amanhã — c. 2, c. da atualidade é identificado
4 e c. 6, do Exemplo 5). como a figuração rítmica do
tamborim do samba) às
Cazes, em rydt g_\ dt g-dgy:\|, próprias composições de choro.
(ARAGÃO, 2013:459).
assinala movimentos de palheta
descendentes (mais fortes, ***
acentuadas) na primeira,
Apresento dois paradigmas
segunda, terceira, quinta, sexta,
rítmicos — em imparidades
sétima e nona notas da fórmula,
rítmicas 7+9 e 9+7 — que
e movimentos ascendentes (mais
parecem organizar fraseados do
leves) na quarta e oitava. Se
novo padrão sambado adaptado
considerarmos somente as notas
ao choro. Começo pelo padrão
acentuadas, chegamos à fórmula
sambado em 7+9, da figura 14:
ryr.g_\ dt g-ry:\|, em imparidade
rítmica 7+9. Esta fórmula
invertida para imparidade rítmica
9+7 (s\_\:dt gry\ ryr.g_:\|) assemelha- Figura 14. Paradigma rítmico do choro-
sambado em imparidade 7+9
se à fórmula s\_\:dy.ry\ ryr.g_:\|,
O padrão em imparidade
nominada por Sandroni de rítmica 7+9 tem como marca a
“versão de transição” do padrão síncope na oitava semicolcheia do
rítmico nas gravações do samba primeiro compasso, ligada à
do Estácio entre 1928 e 1933, no primeira nota do segundo
período de nascimento e compasso do padrão. Pixinguinha,
consolidação desse estilo. um dos “responsáveis pelo
Ao adaptar para seus estabelecimento dos primeiros
instrumentos as estruturas arranjos do ‘novo samba’”
rítmicas das percussões e dos (ARAGÃO, 2103:459), apresenta
fraseados dos cantores, os no fraseado de algumas
músicos de choro fizeram composições recorrência de tal
aparecer um novo modelo para característica (como nos choros
suas execuções ou composições, Passatempo, do exemplo 7, e
causando modificações nos ritmos Devagar e Sempre, do exemplo
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Exemplo 12. Fragmento de Um a zero, para flauta e sax tenor. Fonte: Choro duetos v.1
(SÈVE; GANC, 2011, 2010:40 e 42)
239
Outros autores compuseram já no de cantores do novo estilo de
padrão sambado, como é o caso samba. Seu choro Numa seresta,
do clarinetista Luiz Americano, regravado por Jacob do Bandolim
que além de ser líder de regional, (exemplo 13) é um choro no
participou de diversas gravações padrão sambado em 7+9.
Exemplo 13. Fragmento de Numa seresta, no padrão sambado em 7+9. Fonte: Songbook
Choro, v.3 (SÈVE; SOUZA; DININHO, 2011:150)
Exemplo 15. Fragmento de Saxofone por que choras?, gravado no padrão sambado em
9+7. Fonte: Songbook Choro, v.3 (SÈVE; SOUZA; DININHO, 2011:178)
242
Nos choros-sambados, pode-se Proezas de Solon, de Pixinguinha
observar que os intérpretes não e Benedito Lacerda, nos c. 4 a c.
realizam sistematicamente as 8 do exemplo 20) ou apresentar
antecipações rítmicas nas síncopes entre compassos em
melodias a cada dois compassos. lugares diferentes dos paradigmas
É mesmo comum que grandes rítmicos (como é possível
trechos melódicos possam estar perceber no c. 2 para c. 3 do
desenhados de forma mesmo exemplo), sem que isso
absolutamente cométrica (como é altere o padrão.
o caso do final da parte A, de
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