UNIRIO
CENTRO DE LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
Volume I
Volume I
contexto mais geral do Modernismo musical europeu, discutindo - dentre as suas tendências -
Debussy e das inovações que comportava, no que se refere à sua difusão no Rio de Janeiro,
antes da chegada de Darius Milhaud em 1917. Os Capítulos II, III e IV procuram traçar um
perfil das atividades de Godofredo Leão-Veloso, de Nininha e Oswaldo Guerra, do seu papel
período que sucedeu a partida de Milhaud do Brasil e a chegada dos Guerra na França. O
“Círculo Veloso-Guerra” (que incluiu Darius Milhaud no período 1917-18) e o perfil que
In the first chapter, the text discusses the Brazilian musical Modernism in
relation to the broader context of the European Modernism, attempting to identify those trends
which had a greater impact in Brazil during the Belle-Époque period, particularly Debussy´s
music and innovations, as well as its diffusion in Rio de Janeiro before Darius Milhaud`s
arrival in 1917. Chapters II, III and IV provide a profile of the Godofredo Leão-Veloso,
Nininha and Oswaldo Guerra´s diverse activities, of their role in the diffusion of the European
musical Modernism, and the subsequent development of Nininha and Oswaldo´s European
careers. Chapter V discusses the Milhaud - Guerra correspondence, during the period between
his departure from Brazil and their arrival in France. The final chapter discusses the points of
contact between the musical Modernism practiced around the Veloso-Guerra (which included
Darius Milhaud during the period 1917-18) and the future profile of the Brazilian musical
Volume I
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................................1
BIBLIOGRAFIA................................................................................................................................263
Volume II
Críticas...................................................................................................................................................26
Brasil, de 1907 a 1916...............................................................................................................26
Brasil, de 1917 a 1919...............................................................................................................42
França, de 1919 a 1921..............................................................................................................66
Anexo V:
Autógrafos............................................................................................................................................189
Fotos......................................................................................................................................................192
LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS
Exemplo 1 b: Variações sobre um tema original, 10ª Variação, compassos 9 - 10, f. 47;
Exemplo 11: Variations (peu serieuses) sur un thème serieux de Darius Milhaud - Tema e 1ª
Variação, fls. 124 e 125;
Exemplo 12 b: Com as Crianças - peça nº 3, compassos 1 – 12; 36 - 60, fls. 127 e 128;
Exemplo 12 c: Com as Crianças - peça nº 4, f. 129;
Exemplo 15 b: L’Homme et son Désir (manuscrito NVG), compassos 1 - 22, fls. 139 e 140 ;
Exemplo 17: L’Homme et son Désir, seção “X”, compassos 1 - 24, f. 143 a 146;
Exemplo 18: L’Homme et son Désir, seção “X”, compassos 1 - 21, f. 147; a 149;
Exemplo 19: L’Homme et son Désir, ed. Universal, compassos 1 - 13, f. 150;
Exemplo 20: “Parfois quand je suis triste”, Tristesses, compassos 1 - 24, f. 178;
Exemplo 21: “Une goute de pluie”, Clairières dans le ciel, compassos 1 - 15, f. 179;
Exemplo 22: “Ce sont de grandes lignes”, Clairières dans le ciel, compassos 1 - 9, f. 180;
Exemplo 23: “La Valleuse”, Trois Poèmes de Marc Chesnau, compassos 1 - 8, f. 181;
Exemplo 28: Sonata para flauta, oboé, viola e piano, compassos 8 - 10, após marcação 19, f.
187;
Exemplo 29: “La Valleuse”, Trois Poèmes de Marc Chesnau, compassos 68 - 77, f. 189;
Exemplo 35: Sonata para Piano, final do 1º movimento (acordes de 12 notas), f. 255;
Exemplo 37: Sonata para Piano e Instrumentos de Sopro (utilização total cromático), f. 256;
Exemplo 39: Sonata para Piano e Instrumentos de Sopro (escrita pianística/Debussy) f. 258;
Tabela 1 – “Datas: 1ªs Audições mundiais x 1ªs Audições brasileiras (1890 a 1920)”, f. 13;
Tabela 5 – “Debussy/Ravel: 1ªs Audições no Brasil de obras para Piano e de Câmera”, f. 101;
Folha 6 - “Exposição Darius Milhaud”, Biblioteca Nacional – RJ, 1977, capa do Catálogo;
Folha 82 - Milhaud: dedicatória a Godofredo Leão-Veloso das Chansons Bas: “ces mélodies
qu’il a entendues souvent chez lui...” (Deptº de Música – Biblioteca Nacional – RJ);
Folha 229 - Carta de Milhaud a Nininha Guerra (25/VI/1920: anunciando a composição das
Saudades do Brazil);
Folha 230 - Carta de Milhaud a Oswaldo Guerra (23/XI/1922: pelo 1º aniversário da morte de
Nininha, e anunciando a publicação da sua transcrição do 5º Quarteto de Cordas;
Nininha Veloso-Guerra foi despertado pelas menções altamente elogiosas que Milhaud faz a
eles nos textos em que trata do Brasil, e pelo número impressionante de obras que lhes dedica,
período 1972-74, período em que residia em Paris como estudante de composição, tive acesso
a algumas de suas obras, sendo que o maior impacto me foi causado pela partitura de
L´Homme et son Désir, por suas tão instigantes audácias - nos campos da politonalidade, da
ritmos e temas populares brasileiros, e pelo fato de ter sido escrita no Rio, em 1918. Esse
interesse ganhou um maior foco em 1977, por ocasião da Exposição organizada por Mercedes
musicais ilustres como Enrico Caruso, Arthur Rubinstein, e os Ballets Russes - contida na
1
partir dos quais pretendia escrever uma obra dedicada à sua memória - era uma demonstração
sua admiração por Nininha. A tese, ora apresentada, é basicamente condicionada pelo roteiro
desta exposição. O tema me foi reavivado, durante meu Mestrado em 1978-80, ao encontrar
na Biblioteca de Princeton os diários de Paul Claudel - que contêm diversas menções aos
Alexandre Eulálio sobre a Aventure Brésilienne de Blaise Cendrars, que recria - com
Rio.
leitura do Coro dos Contrários de José Miguel Wisnik, através do qual o “Círculo Veloso-
Guerra” é introduzido de fato na bibliografia brasileira, e adquire uma perspectiva nova ao ser
insights, introduzidos por José Miguel Wisnik, são confirmados na documentação apresentada
nesta tese. A essa leitura seguiu-se uma longa e decisiva conversa com Mercedes Reis
Pequeno, graças a quem - em relação a Godofredo - pude compreender que a sua coleção de
Guerra - que este nos anos 70 ainda estava ativo na França, pois ela chegou a ser-lhe
Graças a Violeta Corrêa de Azevedo, pude ter um encontro com François Lesure, ao qual se
seguiu uma visita a Madeleine Milhaud, viúva do compositor, que me informou da existência
de uma entrevista radiofônica de Oswaldo Guerra, realizada por ela e Francine Bloch nos anos
70, e forneceu as coordenadas de seu filho Paul Guerra, então, residente em Le Pecq
(Yvelines), uma localidade próxima de Paris. O contato, a partir de então, desenvolvido com
2
Paul Guerra - que se transformou numa relação de amizade por ele e sua família - me deu
acesso a um acervo que consiste de: manuscritos musicais autógrafos de Darius Milhaud,
1920, fotos, e uma correspondência inédita entre Milhaud e os Guerra concentrada nos anos
1919 e 1920. A partir daquele momento, Paul e seu filho Bernard Guerra me forneceram um
vasto material composto de fotocópias de grande parte do seu acervo, o que tornou viável o
trabalho à distância, ao mesmo tempo em que diversos reencontros - ao longo dos últimos
1978, constituindo uma das fontes documentais importantes desse trabalho. A descoberta
desse acervo por Paul só se deu por ocasião da morte de Oswaldo em 1980: segundo o
testemunho da família, Oswaldo falava pouco de seu passado brasileiro e esse material nunca
lhes havia sido mostrado. Paul e Bernard organizaram esse material - que permanece inédito -
ocasião.
doutorado a José Maria Neves, que chegou a visitar Paul Guerra em Le Pecq, e lá teve
atividade dos músicos e do ambiente do “Círculo Veloso-Guerra” a partir desse rico material
3
de Música da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB)
Paul Guerra (cartas de Milhaud aos Guerra, programas de concerto, críticas, autógrafos e
fotos). Essa tese se insere no conjunto de pesquisas recentes, sendo realizadas no Brasil,
focando a História da Música Brasileira: se, por um lado, ela se apresenta dentro de um
recorte temporal extremamente limitado, por outro, penso que esse período corresponde a um
brasileiro.
trabalho, tanto na fase de pesquisa quanto de sua elaboração. Queria agradecer em primeiro
lugar a Mercedes Reis Pequeno, com quem tudo se iniciou, e que - com sua inteligência e
amizade - deu um suporte de todos os momentos para esse trabalho; ao Professor Aloysio de
Alencar Pinto - aluno de Godofredo Leão-Veloso aos dez anos de idade, que recorda o luto da
família Leão-Veloso um ano após a morte de Nininha - que foi um interlocutor freqüente,
generoso e indispensável; à Professora Flavia Camargo Toni, a quem devo idéias e tantos
documentos do IEB de decisiva importância para esse trabalho; ao Turíbio Santos pelo acesso
irrestrito a ele e ao acervo do Museu Villa-Lobos; a Flavio Silva por instigantes trocas de
por me haver revelado e comunicado os textos de Milhaud e Jose Rodrigues Barbosa sobre
Glauco Velásquez; ao Frank Langlois, biógrafo de Milhaud, que me comunicou uma vasta
4
correspondência de Milhaud escrita no Brasil; a Daniela Thompson, por diversas informações
relacionadas com Milhaud; ao J. Braun da F.W. Olien Library, que gentilmente me enviou as
apostilas sobre música brasileira de Milhaud em Mills College; a Myriam Chimenes por ter
Paulo Sampaio, que ao longo do Doutorado foram sempre pródigos nas idéias e no apoio. Na
fase final de elaboração da tese, contei com duas ajudas essenciais: a de Leonardo Taveira,
que me deu sugestões preciosas na estruturação interna dos capítulos, e a de Roseli de Sá, pela
inteligência, e interesse pelo Brasil; não tenho palavras para expressar a Paul e Nicole Guerra,
e a Bernard e Florence Guerra, minha gratidão pela ajuda incondicional, e as tantas provas de
amizade demonstradas ao longo desses últimos anos; e à minha maravilhosa família - Isabel,
Miguel e Ana - pela paciência infinita, interesse e apoio nesses anos de convivência forçada
com os Veloso-Guerra e Milhaud. Entretanto, minhas maiores dívidas de gratidão são com
três pessoas: minha professora e orientadora Elizabeth Travassos, que aceitou a tarefa ingrata
de assumir no meio do caminho a orientação desse trabalho, e com quem tanto aprendi ao
que acompanhou desde o início os encontros e pesquisas que levaram a essa tese; a meu
querido amigo José Maria Neves, a quem devo tantos encorajamentos para me direcionar para
5
6
I
Central), assim como para tradições musicais extra-européias. Por sua vez,
1
Segundo Manuel de Falla (1950:136): “La obra de aquel mágico prodigioso que se llamó Claude Debussy
representa el punto de partida de la más profunda revolución que registra la historia del arte sonoro”, enquanto
Murilo Mendes (1993: 78) diria que: “[...] a revolução de Debussy foi mais importante que a de Wagner. Wagner
foi um ponto de chegada, Debussy um ponto de partida [...]”; Mário de Andrade (Coli, 1998), em uma de suas
últimas reavaliações do papel de Debussy (Folha da Manhã: 27/5/1943), diria: “[...] não tem dúvida que iremos
encontrar nele toda a base técnica da música atual. Mas o edifício erguido sobre essas bases foi tão outro que
seria inócuo falar em filiação [...]”, que se assemelha a outro comentário de Falla (1950: 30): “La reforma
debussysta há constituído uno de los hechos más importantes que registra la historia musical contemporanea
[...] todos esos artistas que han seguido el noble empeño de conquistar para el arte nuevas formas y nuevos
7
(1882-1971)2 e Serge Prokofiev (1891-1953) na Rússia; Manuel de Falla
procedimientos hán tomado como basis de sus especulaciones las conquistas que en todos esos sentidos habia
yá realizado Debussy [...]”.
2
Uma indicação da influência de Debussy sobre Stravinski ainda, em 1909, é dada por seu biógrafo Alexandre
Tansman (1948:178): “[...] Le premier acte du Rossignol montre encore dans le langage une influence sensible
de Debussy [...] cet élément stylistique persistant [...]”; quanto à influência de Debussy sobre Bartok, num artigo
datado de 1921 (ver Szabolcsi, 1968:32), Bartok declararia a respeito de Kodaly: “Son art a une double racine,
tout comme le mien: il procède de la musique paysanne hongroise, et de la musique française moderne”.
3
Sobre a revitalização desses processos, Bartok escreveria em 1921, em seu texto intitulado “Autobiografia”
(Szabolcsi, 1968: 143): “L´etude de la musique paysanne a été pour moi d´une importance capitale, car elle m´a
permis de me liberer de l´hégémonie du système des modes majeur et mineur [...] la plupart des mélodies
recueillies [...] sont bâties sur des modes d´église ou grecs classiques, voire primitifs (pentatoniques) et
contiennent les formules rythmiques et les changements de rythme les plus divers et les plus libres. [...] Il s´est
donc avéré que les gammes anciennes dont on ne sert plus dans la musique savante n´ont rien perdu de leur
8
- o primeiro momento, que poderia ser delimitado entre o L´Après-Midi
vitalité. Le retour a leur utilisation a permis de créer de nouvelles combinaisons harmoniques.Cet usage a eu
pour consequence finale la libre utilisation de chaque son de notre système chromatique à douze notes [...]”.
4
Que, junto as 3 peças para piano op.11 (também de 1908), são vistas como o início do “atonalismo livre”.
5
Em obras como: Jeux d’Eau, Ma Mere L’Oye e Gaspard de la Nuit, todas anteriores a 1908.
6
Destacando-se o Aprendiz de Feiticeiro e o balé La Peri.
7
Destacando-se La Tragédie de Salomé, que seria apresentada em 1913 no Rio por ocasião da temporada dos
Ballets Russes, e o Psaume XLVII (do qual Villa-Lobos daria a 1ª audição brasileira nos anos 30).
8
A identificação de Schoenberg com o movimento liderado por seu amigo Kandinski fica claramente
evidenciada no catálogo da exposição Blau Reiter (1912), o qual não somente contém pinturas de Schoenberg,
como também obras musicais suas (1ª publicação de sua Herzgewachse (1911) para celesta, harpa e harmônio
soprano), e obras para canto e piano de Berg e Webern (Kandinski & Marc, 1974).
9
Herbert Read propõe a seguinte delimitação cronológica: “Pode-se dizer que o movimento cubista nasceu em
1907 [com as Demoiselles d’ Avignon], e que ele morreu com o início da Guerra de 14 ”. [Read, 1960: 82. T. do
A.].
9
métrica aditiva de grande poder expressivo10 - da qual a Danse Sacrale,
duas tendências na década anterior (ex. o interesse de Stravinski e Ravel pelo Pierrot
Privatauffürungen 14”, fundada em Viena por Schoenberg para a difusão da música nova) se
Webern), convencidos de que haviam descoberto uma sintaxe (as operações da série
dodecafônica) capaz de fornecer uma alternativa ao sistema tonal; do outro, diversas escolas
10
Ver a análise clássica de Pierre Boulez, no artigo “Stravinski Demeure” (Boulez,1966: 75-145), onde estende e
sistematiza a análise de Messiaen dos “personagens rítmicos” no Sacre du Printemps.
11
Segundo Szabolcsi (1968: 32): “[...] pour les pionniers de la nouvelle musique hongroise, se libérer de
l’emprise allemande etait plus important que tout. Pour Bartok comme pour Kodaly, le nom de Debussy etait
l’etendard d’un mouvement de liberation européen. [...] Malgré tout, Debussy apprend relativement peu de
choses à Bartok. C’est dans la transparence des harmonies et de l’orchestration qu’on perçoit le mieux son
influence [...]”.
12
Entre as obras importantes de Bartok anteriores à Primeira Guerra Mundial, podem ser destacadas: a ópera O
Castelo de Barbazul, o Allegro Bárbaro e, sobretudo, as Bagatelas para piano.
13
Tanto os Três Poemas da Lírica Japonesa de Stravinski quanto os Três poemas de Mallarmé de Ravel, ambas
as obras de 1913, são conhecidos exemplos do impacto do Pierrot Lunaire sobre dois dos mais importantes
contemporâneos de Schoenberg. Jean Cocteau, reconhecendo essa influência, mas colocando Schoenberg na
categoria dos compositores “cerebrais”, escreveria em 1918 no Coq et l´Arlequin (1979: 55): “Schoenberg est un
maitre; tous nos musiciens et Stravinski lui doivent quelque chose, mais Schoenberg est surtout un musicien de
tableau noir”.
14
que pode ser traduzida como: “Sociedade para execuções privadas” .
10
“neo-tonais”, entre as quais a “politonalidade” de Darius Milhaud, o “pandiatonismo”15 de
folclore17.
Se nos orientarmos pela Tabela 1 - como uma amostragem das obras mais
pelo critério “apresentação pública” como um índice da absorção das novas linguagens por
15
Para uma discussão teórica do “pandiatonismo”, ver Alexander Tansman (1947: 97-112).
16
Bartok, em Szabolcsi (1968: 33): “[…] il est vrai que, pendant un certain temps, j’ai approché une certaine
catégorie de musique dodécaphonique. Mais l´un des traits de mes oeuvres de cette époque [... le Mandarin
Merveilleux et les deux Sonates pour piano/violon...] est qu´elles sont construites sur une base tonale sans
équivoque [...]”.
17
Szabolcsi (1968: 34): “[…] il se refuse à suivre Schoenberg et son école jusqu´à la dodécaphonie totale et
complète. Bartok considérait en effet que sa source à lui était la musique populaire, or,à son avis, la musique
populaire atonale était une chose inconcevable [...]”.
18
Assim como das últimas óperas de Puccini como a Fanciulla del Ovest (que se utiliza amplamente da escala
de tons inteiros) , o Tritico e Turandot
19
Peppercorn (1989: 34): “[…] the year 1917 represented a real breakthrough in his career. Diaguilev and his
Russian ballet came again to Rio and Villa-Lobos heard works of Igor Stravinski […] such as Petrushka,
L’Oiseau de Feu, le Sacre du Printemps, [...] for the first time […]”. A informação de Peppercorn é duplamente
incorreta: Villa-Lobos não só não podia ter ouvido (no Rio) execuções (sinfônicas) dessas obras antes de sua ida
a Paris, em 1923, como a única obra “moderna” apresentada na temporada dos Ballets Russes em 1917 foi o
L’Apres-Midi d’un Faune, conhecida no Rio de Janeiro desde 1908. Por outro lado, Serge Diaguilev não
11
Russes (ex. Pássaro de Fogo, Petrushka, Sagração da Primavera de
das suas duas excursões (191320 e 1917) no Rio21 (Peppercorn (1989: 34)).
Nós aqui tivemos os Ballets Russes. Infelizmente, eles já partiram para São Paulo.
[...] Nós fomos apresentados a Nijinski. Trata-se não somente de um grande artista,
mas também de um homem muito inteligente e de grande distinção [...] Haviam-
nos prometido Dafnis e Cloé, Petrushka e o Pássaro de Fogo, mas a Direção
não quis apresentá-los porque seria preciso aumentar o número de músicos na
orquestra (!). Eles também não queriam apresentar L’Aprés Midi d’un Faune por
ser este um balé de Nijinski, e ele estar estremecido com a Direção; felizmente,
tudo se resolveu e ele foi tocado na noite passada [...] 22
após 1940, as únicas exceções sendo Petrushka e o Chant du Rossignol, apresentadas sob a
regência de Villa-Lobos23 , nos anos 30. As únicas audições de obras de Stravinki em sala de
acompanhou os Ballets Russes em suas duas excursões à América do Sul (1913 e 1917). Essa colocação de
Peppercorn é repercutida em diversos autores, entre os quais Simon Wright (1992: 21) (“The influence of
Stravinski has been often perceived in Amazonas and Uirapuru. L’Oiseau de Feu was produced in Rio in 1917
[...]”) e Eero Tarasti: (1995: 4) (“another important impulse was undoubtedly the visit of the Diaguilev ballet in
1917, when Stravinski’s Petrushka, Firebird and Feux d’Artifice as well as Ravel’s Daphnis et Chloé were
performed”).
20
A única obra do repertório moderno dos Ballets Russes, além do Prelude à l’Après-Midi d’ un Faune, foi - em
1913 - a Tragédie de Salomé do compositor francês Florent-Schmitt [ver Brito Chaves, 1971], o qual se tornaria
um grande amigo de Villa-Lobos, a partir dos anos 20, e um dos raros compositores a quem Villa-Lobos atribuía
um impacto na sua própria evolução.
21
Ao impacto da audição (imaginária) dessas obras costuma ser atribuído e “explicado” o impulso de Villa-
Lobos em compor os balés Amazonas e Uirapurú (essa questão será discutida no Capítulo VI). Como exemplo
em Tarasti (1995: 4), “[...] the symphonic poems and ballets Villa-Lobos composed immmediately thereafter-
Amazonas, Naufrágio de Kleonicos e Uirapuru are a direct reflection of these events […]”.
22
Carta datada do Rio de Janeiro, 3/IX/1917: “[...] nous avons eu ici les Ballets Russes.Malheureusement ils
sont dejá partis à Saint Paul [...] Nous avons été présentés à Nijinski. C´est non seulement un grand artiste, mais
um homme très distingué et très intelligent[...]On nous avait promis Daphnis et Chloé,Petrushka et l´Oiseau de
Feu mais la Direction n´a pas voulu le donner parce qu´il fallait augmenter le nombre de musiciens à
l´orchestrte (!!). Ils ne voulaient non plus nous donner L´Aprés Midi d´un Faune parce que c´est un ballet de
Nijinsky et Nijinsky est à peu prés brouillé avec la Direction; heureusement tout s´est arrangé et on l´a joué le
dernier soir (carta inédita , “Fonds Charles Koechlin” - Centre de Documentation Musicale Bibliothèque Gustav
Mahler –Paris )
23
Os “Concertos Villa-Lobos” também revelariam ao público brasileiro obras de Ravel, Poulenc, Milhaud,
Florent Schmitt, Casella e Gershwin.
12
concerto são devidas a Felix Weingartner24, com Fogos de Artifício25, apresentado em 1922, e
a Arthur Rubinstein, que incluiu uma transcrição para piano da cena final do Passaro de
Fogo26 nos seus recitais, em 1918. Por sua vez, as obras mais ousadas da “fase russa”, como a
Sagração da Primavera e Les Noces, só viriam a ser tocadas em público após a Segunda
Guerra Mundial. Quanto à Bela Bartok, a única obra apresentada em público, até o pós-
guerra, seria ocasionalmente o Allegro Bárbaro (por pianistas como Rubinstein e Cláudio
Arrau). No que se refere à Escola de Viena, suas obras só começaram a fazer parte da
pré-stravinskiana.
24
Felix Weingartner (1863-1942). Regente e compositor alemão, um dos maiores regentes da geração de
Richard Strauss. Realizou diversas tournées no Brasil, onde apresentou o grande repertório sinfônico alemão,
assim como a Tetralogia de Richard Wagner.
25
Feux d’Artifice é ainda uma “obra de juventude” de Stravinski, extremamente próxima do estilo de seu mestre
Rimski-Korsakov, mostrando também uma clara influência do Aprendiz de Feiticeiro de Paul Dukas.
26
Ver Brito Chaves (1971) e coleção de programas de concerto do Acervo Ayres de Andrade na BN-RJ.
13
Ravel Ma Mère l'Oye 1918 Debussy Estudos para piano 1920
Bartok 14 Bagatelas Milhaud Les Choéphores [1919]
R. Strauss Elektra 1923 Falla El Amor Brujo 1931
1915
Schoenberg 3 Peças op.11 Ives Concord Sonata [1939]
1909 5 Peças para Orquestra
Schoenberg Prokofiev Suite Scita
op. 15
Schoenberg Erwartung Prokofiev Sinfonia Clássica
1916
Debussy 1o caderno de Prelúdios 1910 Stravinski Renard [1922]
1910
Stravinski Pássaro de Fogo 1940 Satie Parade
1917
Stravinski Petrushka 1935 Falla Tricornio 1940
Debussy Martyre.de St Sebastien 1922 Stravinski Historia do Soldado
O Castelo do Barbazul L'Homme & son.Destin
1911 Bartok 1918 Milhaud
[1918] [1921]
Bartok Allegro Bárbaro 1932 Poulenc Rhapsodie Nègre 1935
Prokofiev Sarcasmos 1928 Satie Socrate
Mandarim Maravilhoso
Ravel Dapnnis & Chloé 1939 1919 Bartok
1912 [1926]
Schoenberg Pierrot Lunaire Milhaud Boeuf sur le Toit
* e/ou compsição.
Nota: 1) as datas indicadas nas colunas “1,a” e “1,b” referem-se às primeiras audições mundiais; nos casos em
que estejam apostas datas entre colchetes, as colunas “1,a” e “1,b” referem-se à data de composição. (compilados
a partir de Candé [1970] e Marengo [1983]).
2) as datas indicadas nas colunas “4,a” e “4,b” referem-se às primeiras audições brasileiras (compilados a
partir Brito Chaves [1971] e BN-RJ [Departamento de Música: programas de concertos do Teatro Municipal e
Teatro Lírico]).
14
Morte & Transfansfiguração/
R. Strauss R. Strauss
Till Eulenspiegel
1921 Malipiero Le Pause del Silencio G. Marinuzzi
Casella Le Couvent sur l'Eau G. Marinuzzi
1922 Stravinski Fogos de Artifício F. Weingarten
Debussy Martyre de St. Sebastien F. Weingarten
1923 R. Strauss Zaratustra/ Heidenleb. R. Strauss
R. Strauss Electra R. Strauss
M.de Falla La Vida Breve V. Belleza
1926 Ravel L'Heure Espagnole E.Vitale
1927 Respighi Pinheiros de Roma/ C. Mixolídio O. Respighi
1928 Respighi Impressione Brasiliane O. Respighi
1929 Honegger Pacific 231 F. Braga
1930 Honegger Pastorale d' Été F. Braga
1931 Debussy La Mer, Iberia [ Images p. orq.] F. Braga
M.de Falla El Amor Brujo W. Burle-Marx
Ravel Bolero W. Burle-Marx
1932 Ravel Concerto em Sol W. Burle-Marx
1933 Fl- Schmitt Psaume XLVII H. Villa-Lobos
Stravinski Chant du rossignol H. Villa-Lobos
Gershwin Rhapsody in Blue H. Villa-Lobos
1935 Poulenc Rhapsodie Nègre H. Villa-Lobos
Hindemith Divertimento H. Villa-Lobos
Stravinski Petrushka H. Villa-Lobos
1936 Casella Itália H. Villa-Lobos
Stravinski Persephone I. Stravinski
Stravinski Concerto para Piano e Sopros I. Stravinski
1939 Ravel Daphnis et Chloé J. Morel
1940 Stravinski Pássaro de Fogo L. Stokovski
Fontes: BRITO CHAVES, A. Corrêa, BN-RJ
Mélisande (1902), se situa entre L’Après Midi d’un Faune de Debussy e Parade27 (1917) de
27
O balé Parade, produzido por Diaguilev com argumento de Jean Cocteau e cenários de Pablo Picasso, é
comumente considerado como o ponto de partida do movimento (nacionalista) francês que levaria em 1921 à
formação do “Grupo dos Seis”, cuja estética havia sido definida no manifesto Le Coq et l’Arlequin de Jean
Cocteau. Neste, Cocteau propõe aos jovens compositores que se liberem de dois “polvos” sedutores: o
Impressionismo e a música russa, valorizando as características francesas de “clareza” e “senso de proporção”.
15
ponto de vista da linguagem como, sobretudo, da retórica musical - o primeiro momento de
forte abalo (ainda que não tão radical quanto se tornaria o Atonalismo vienense, às vésperas
acordes e agregados até então tidos como “dissonantes” (acordes de 7a, 9a,
paralelas);
28
Para uma discussão contemporânea da sintaxe da música de Debussy, ver Emmanuel (1926) e Koechlin
(1927).
16
modos litúrgicos, de modos pentatônicos “exóticos” e da utilização
pelos pré-clássicos, pela música medieval e renascentista), seja extra-européias, vistas como
musical não podem ser dissociadas de seu entorno - notadamente das influências wagneriano/
franckistas por um lado e por outro dos nacionalistas russos do “Grupo dos Cinco” - nem
influências recíprocas, devendo-se destacar particularmente entre esses: Erik Satie, Paul
Brasil, a partir de alguns “choques externos”: as duas tournées dos Ballets Russes (em 1913 e
29
Notadamente Peppercorn (1989), Wright (1992) e Tarasti (1995).
30
Devem ter contribuído para essa percepção os depoimentos de Villa-Lobos no que se refere à sua tomada de
contato tardia com a obra de Debussy: a) na biografia resumida (“Casos e Fatos Importantes sobre H. Villa-
Lobos - uma biografia autêntica resumida”) que ditou (na 3ª pessoa) à revista Música Viva (Ano 1, ns 7/8 – pg.
13), em 1941: “[...] ouviu pela primeira vez obras de Debussy por intermédio de Arthur Rubinstein (seu afetuoso
amigo) e Darius Milhaud, pela qual muito se entusiasmou e procurou conhecê-la mais profundamente, sem, no
entanto, nada ter influído na maneira de compor, porém com alguns processos originais e curiosos de
combinações de harmonia e timbre debussianos [...]”; no longo estudo de Suzanne Demarquez sobre Villa-
Lobos, publicado na Revue Musicale (1929: 5 e 6), lê-se que à época da composição das Historietas (1920) para
canto e piano: “[...] Villa-Lobos ne connaissait de lui que la Sonate pour flute/alto et harpe, et quelques melodies
du répertoire de Mme Janacopoulos [...] la gamme par tons entiers, fort employé alors par le compositeur
provient des études qu ´il a faites de l´ accord du IIIeme degré de la gamme mineure [...]”; c) segundo Vasco
Mariz (1962: 37): “[...] c’est au cours de son voyage à Bahia qu´il entendit pour la premiere fois une oeuvre
17
jovem Arthur Rubinstein com a dezena de recitais que realizou em junho de 1918, quando
moderna francesa vinha se dando, no Brasil, há mais de dez anos antes da ocorrência desses
demanda pré-existente), pela adoção por intérpretes brasileiros de parte desse novo repertório
moderna francesa.
posterior à Primeira Guerra Mundial se depreende da conhecida resenha feita, em 1920, por
Milhaud na Revue Musicale sobre a “a situação da música no Brasil” [Milhaud, 1920: 60-61],
d´un compositeur appelé Debussy. Il eut une impression favorable mais n´y attacha pas d´importance
particuliere; Rubinstein, quelques années plus tard devait se charger de la faire connaitre”.
31
“[...] Le rôle de la France dans la culture musicale au Bresil est tout à fait préponderant. Grâce aux
compositeurs Alberto Nepomuceno et Henrique Oswald, qui ont tous deux été directeurs du Conservatoire de
Rio de Janeiro, la bibliothèque de cet établissement possède toutes les partitions d´orchestre de Debussy et de
tout le groupe de la SMI ou de la Schola, ainsi que toutes les oeuvres publiées de M. Satie. Les concerts
18
1.3 – UMA PREPARAÇÃO PARA O MODERNISMO: A INFLUÊNCIA PÓS-WAGNERIANA
Glauco Velásquez
relação ao Brasil (ainda que ele sinalize, em 1920, a maior proximidade dos compositores
Lobos afirmou diversas vezes a importância, para sua formação33, do estudo do seu Cours de
Leão-Veloso (Nóbrega, 1969: 14)). Além disso, as primeiras obras importantes de Villa-
Lobos, compostas entre 1912 e 1915 - entre as quais se destacam os Trios 1 e 2 com piano, as
Sonata para Piano e Violino 1 e 2, a 2ª Sonata para Piano e Violoncelo, os dois primeiros
symphoniques de Rio ont fait entendre frequemment des oeuvres de Chausson, Debussy, de MM Dukas, D´Indy,
Roussel etc.[...]” [Milhaud, 1920].
32
Milhaud (in Drake, 1982: 97): “[...] La courbe tracée par l´évolution de la musique em France depuis Wagner
se reproduit exactement de l´autre côté de la Terre. Chaque mouvement, chaque tendance trouvent un écho dans
l´hemisphere austral: M Vincent D´Indy et la Schola servent de modèle aux compositeures argentins et chiliens,
tandis qu´au Bresil l´orientation est nettement debussyste et impressioniste”. [Milhaud, 1920].
33
Na “biografia autêntica e resumida” de Villa-Lobos (Música Viva, 1941) consta entre os eventos mais
importantes do ano de 1914: “[...] Aprofundou-se com extremo interesse no tratado de composição de Vincent
D’Indy [...]”. Segundo seu biógrafo Vasco Mariz: “Calou-lhe mais fundo, porém, a leitura cuidadosa do Cours
de Composition Musical’ de Vincent D’Indy. O método de composição desse autor francês deixaria traços
sensíveis na obra de Villa-Lobos. As duas primeiras Sinfonias, a 2ª Sonata para cello, os Trios, salvo o primeiro,
subordinaram-se a essa influência cíclica.”. [Mariz, 1989: 45]. É revelador da durabilidade da admiração de
Villa-Lobos por D’Indy o seguinte relato de Mariz (1967: 65) que pode ser situado em princípios de 1924:
“Villa-Lobos teve, em Paris, a oportunidade de conhecer um dos compositores que mais admirou: Vincent
D’Indy. Seis meses após a sua chegada, procurou o mestre francês, sendo felicitado pelo novo material estético
que trazia à música francesa. O autor de Istar examinou-lhe a obra atentamente e aconselhou-o a fazer algumas
modificações na terceira e quarta Sinfonias”. [Mariz, 1989: 65-66].
19
cromatismo franckista. Entretanto, mesmo em obras posteriores escritas entre 1916 e 1919
(esse período será discutido com mais detalhe no Capítulo VI), utilizando uma linguagem
nos processos harmônicos, mas na manutenção do conceito da “Forma Cíclica”: são exemplos
as quatro primeiras sinfonias (1916 a 1919), o 3º Trio com piano (1918), e mesmo o muito
impressionista Quatuor (1921) para flauta, saxofone, harpa e celesta36 (com adição de vozes
femininas).
(1822-1890), o qual havia dado origem, na França, a uma escola pós-wagneriana sui generis
mais orientada para a “música pura” que para o “drama musical” (donde o forte peso da
música de câmara na sua produção e na de seus discípulos37), que aliava uma linguagem
formas e do contraponto bachianos (ex. Prelúdio, Coral e Fuga para piano). Buscava conferir
Franck e D’Indy buscavam nas últimas Sonatas para piano e Quartetos de Cordas de
Beethoven).
34
Os dois primeiros volumes haviam sido publicados (ed. Durand) em 1909 e 1912.
35
Ver a análise que Oscar Lorenzo Fernandez (1946) faz do Trio n. III (1918), uma das obras de Villa-Lobos que
mais uso faz da politonalidade.
36
Cuja distribuição instrumental (Soprano, Harpa, Harmônio e Celesta) evoca a de Herzgewasche de
Schoenberg, publicada em 1912, no Almanaque do Blaue Reiter [ver Kandinsky & Marc, 1974: 226-233].
37
Vincent D’Indy - cuja obra de câmara e sinfônica é vasta - daria maior relevo que Franck ao “Drama Musical”
(ex. suas óperas L´Etranger e Fervaal) sem, no entanto, transformá-lo como nos casos de Wagner, Strauss e,
posteriormente, Engelbert Humperdinck e Hans Pfitzner, no foco principal de sua atividade composicional.
20
(1864-1953)38, Francisco Braga (1868-1945) e Leopoldo Miguez (1850-1902) e mesmo de
Velásquez (1884-1914): entre 1908 e 1912, compõe os 4 Trios com piano, um Quarteto de
Cordas para piano e violoncelo, 2 Sonatas e 2 Fantasias, 2 Sonatas para piano e violino, uma
vasta obra para canto e piano e, sobretudo, o 1º ato da ópera inacabada Soeur Beatrice. Em
que resultava nas obras (ainda tonais) de Arnold Schoenberg, escritas no período
2º ato (inacabado) de Soeur Beatrice - do qual foi publicada uma cena (o Cantique de
Beatrice) - Luciano Gallet (1934:19) avalia que Velásquez “chegou às raias do modernismo
seus mestres40 quanto da sua41, não pode ser subestimado: ele representava a principal
38
Segundo a Enciclopédia da Música Brasileira: “Em 1877, matriculou-se no Conservatório de Paris, nas
classes de [piano com Marmontel; harmonia com Durand; composição, contraponto e fuga com Massenet] e
órgão com César Franck. Classificou-se em primeiro lugar em todos os cursos. Foi também organista auxiliar da
Igreja de Santa Clotilde de Paris, substituindo muitas vezes seu mestre César Franck [...] No Rio de Janeiro
passou a ocupar a cadeira de harmonia e contraponto no Conservatório de Música, onde foi professor de
Francisco Braga. Em 1887, criou a “Sociedade de Concertos Populares”. Responsável pela primeira audição de
concertos sinfônicos públicos, organizada no Rio de Janeiro [...] Autor de quase 300 obras [...]”. [Marcondes,
1977: 475].
39
Apesar de constituir uma experiência isolada em sua obra, a ópera em um ato Artemis (1898) revela uma
perfeita assimilação do cromatismo de Tristão e Isolda.
40
Luiz Heitor [1956: 240]: “[...] Os grandes mestres de então, Oswald, Nepomuceno, alguns havendo sido seus
professores, como Nascimento e Braga, todos têm os olhos voltados para o jovem compositor, estimulando-o e
formando um círculo que depois se amplia com outros fiéis amigos, intérpretes e admiradores [...]”.
41
Em carta datada de 14/09/1924, Gallet declara a Mario de Andrade: “[...] até 1918 estudei muito Glauco [...]
Da convivência com sua música ganhei uma percepção intensa para todas as outras músicas [...]” [Gallet, 1934:
21
d´Ambrosio), críticos (José Rodrigues Barboza42 (1857-1939)) e compositores (Oswald,
Nepomuceno, Braga) que posteriormente reportariam essa mesma expectativa sobre Villa-
audição);
14]. José Miguel Wisnik observou a respeito de Velásquez: “[...] um compositor estranho, enigmático, que
marcou profundamente seus contemporâneos, entrando depois na sombra [...]”. [Wisnik, 1977: 52].
42
Já em 1908, por ocasião das três apresentações do Prelude à l’Après-Midi d’ un Faune por Nepomuceno e
Francisco Braga, Rodrigues Barbosa aparecia como um defensor das novas tendências escrevendo no Jornal do
Commércio: [...] O Prelúdio para a Tarde de um Fauno, de C. Debussy, é um trecho de rara sutileza e de rara
originalidade de concepção. É música em moldes inteiramente novos na técnica e na finíssima trama sinfônica.
As melodias se entrelaçam umas às outras [...] e todas aquelas idéias que se fundem sem se confundirem dão um
conjunto sinfônico em que se percebe uma forma nova de arte, que impressiona por sua beleza esquisita,
conquanto não inteiramente compreendida em toda a sua essência numa primeira audição [...]”. Após a segunda
audição, escreveria: “[...] o segundo concerto teve todas as condições favoráveis para um belo triunfo que
conquistou ontem, tornando-se um acontecimento artístico de primeira ordem [...] O Prelúdio para a Tarde de
um Fauno teve uma realização delicadíssima, que revelou mais uma vez a beleza daquela magistral página
sinfônica [...]”. Ver o artigo de Ayres de Andrade (1962: 17-21), no qual é também reproduzida uma pequena
crônica de Roberto Gomes, crítico musical do jornal Gazeta de Notícias, sugestivamente intitulada: A Música na
Exposição. Impressões Debussianas. Pequena Fantasia para o Teatro Nacional.
43
Ver Luiz Heitor (1956: 246) e Neves & Ribas Carneiro (2002: 111-115) para uma descrição da “Sociedade
Glauco Velásquez”.
44
O catálogo (manuscrito) das obras de Velásquez, realizado por Gallet, indica que Milhaud “descobriu” o Trio
em Paquetá e que o restaurou sob a supervisão de Francisco Braga (o rascunho de Velásquez, a restauração de
Milhaud assim como o catálogo manuscrito de Gallet encontram-se na Biblioteca Alberto Nepomuceno, ENM-
UFRJ).
22
b) O fato de Glauco Velásquez ser o principal “alvo” de Mário de
forma direta (através da sua música), quanto de forma indireta pelo impacto da trajetória de
Velásquez.
“Grupo dos Seis” (1920) - em que triunfava a música de Igor Stravinski e era apresentado
pela primeira vez na França o Pierrot Lunaire46 - sua música e orientação estética se
encontravam num pólo oposto: naquele momento, a posição de D’Indy era provavelmente
equivalente - no plano musical - à de Anatole France (1844-1924), que após ter representado
uma “vanguarda” da literatura francesa, entre o final do séc. XIX e o início do séc. XX, seria,
nos anos 1920, objeto de um “enterro simbólico” por parte dos Surrealistas47.
45
Como, por exemplo, na Pequena História da Música (Andrade, 1929: 162), essa sentença sobre Glauco: “[...]
uma experiência inquieta, dolorosamente precária, com lampejos de gênio num resultado quase ineficaz: um
enigma verdadeiro [...]”; ou na sua contrariedade com a influência de Glauco sobre Gallet (1934: 12): “[...] a
influência de Glauco surge, sobretudo, em certas obras criadas em pleno delírio de interpretação de acorde, de
um cromatismo bastante maníaco, que Luciano Gallet não abandonará jamais [...]”.
46
O Pierrot Lunaire, composto em 1912, só veio a ter sua primeira audição francesa em 1921, sob a regência de
Darius Milhaud.
47
Uma semana após a morte de France, em outubro de 1924, ele foi alvo de um panfleto coletivo dos
Surrealistas, intitulado “Un Cadavre”, com textos (entre outros) de Breton, Eluard, Aragon e Souppault.
23
D’Indy não somente acolheu com entusiasmo L´Après-Midi d´un Faune
desde a sua estréia, como também regeu essa e outras obras de Debussy (ex. os Nocturnes e a
cantata La Demoiselle Elue)48; por seu lado, Debussy sempre reconheceu a influência de
Franck49 e D´Indy , como uma ponte decisiva entre a fase juvenil de entusiasmo wagneriano e
a da formação do seu próprio estilo (a partir do seu Quarteto de Cordas50), sendo que a obra
que mais evidencia essa influência é a Fantasia para piano e orquestra51. Por outro lado,
de 7ª e 9ª, o espaço recuperado pelo modalismo sobre a exclusividade dos modos maior e
menor – inclusive, com a utilização da escala de tons inteiros52 - e uma rítmica inspirada no
por ocasião de sua fundação (1894): fundada como “escola livre” em contraposição à rigidez
48
Paul Le Flem em suas “Reminiscências debussistas” [1962: 7-8] lista Vincent D’Indy entre os primeiros
defensores da música de Debussy. Ele relata: “A essas lembranças longínqüas, junto à de Vincent D’Indy,
tocando ao paino e comentando, em um de seus cursos de composição, Pélleas et Mélisande. D’Indy,
certamente, não pertencia ao eixo estético de Debussy. Formado dentro de uma forte educação clássica. Ele
buscava o traço firme, os contornos menos fugidios. Mas ele era capaz de se abstrair de suas próprias concepções
e de admirar as páginas penetradas de sinceridade expressiva, de onde fosse que ela viesse, e particularmente a
de seu jovem colega. D’Indy era sensível à força do patetismo de Pélleas, a uma arte a qual ele apreciava por
permancer profundamente francesa. No decorrer de suas tournées no estrangeiro, ele regeu diversas vezes a
música de Debussy. E mesmo, em Roma, após uma execução dos Nocturnes, recompensada por copiosas vaias,
ele não deixou esta acolhida sem resposta, e obrigou seus retratores a se submeterem a uma segunda execução.”
(T. do A.)
49
Mário de Andrade escreveria, em 1943 (Coli, 1998: 39): “[...] César Franck fora um libertador técnico genial,
e o autor de La Mer já recebia uma linguagem muito mais livre de harmonia lógica, usando concatenações que
eram sofismas puros”.
50
Segundo Jean Barraqué (1967: 82-3): “[...] parmi les oeuvres de jeunesse, le Quatuor est la seule qui puisse
retenir l´attention autrement que d´un point de vue historique [...] Composée des quatre mouvements
traditionnels [...] un thème cyclique [...] circule sous differents aspects à travers toute l´oeuvre [...] dans le
troisième mouvement, en particulier, la belle phrase du début évoque ,para sa longueur, certaines tournures
franckistes (de même que la courbe mélodique du deuxième thème de ce mouvement) [...]”.
51
Debussy retirou essa obra do repertório por considerar que apresentava uma influência demasiado marcada de
D’Indy. Ver Barraqué (1967: 64): “[...] Bien que la partition fut gravée, il s´opposa toute sa vie à la parution et
á l´execution de la Fantaisie [...] Dès les premieres repetitions, Debussy s´etait rendu compte que [...] l´oeuvre se
ressentait trop des habitudes franckistes:travail symphonique du developpement,tecnique thematique classique
[...]. Et puis Debussy n´y decelait-il pas comme um echo de la Symphonie Montagnarde de D´Indy?”.
52
A ópera L´Etranger, apresentada no Rio de Janeiro em 1913 (ver Brito Chaves, 1971), incorporava, por
exemplo, muitas dessas características. D’Indy faz parte do movimento que – na descrição de José Miguel
Wisnik (1986: 36) - leva a música do século XX a inserir “[...] cada vez mais elementos perturbadores do código
tonal [...]”.
24
do Conservatório. Ela dava uma ênfase nova ao repertório da recém-redescoberta música
modalismo e novas soluções rítmicas. Se por um lado, alguns alunos da “Schola” persistiram
uma obra de Nininha Guerra: “A teoria debussiana, o catecismo de Vincent D’Indy, com
todas as audácias harmônicas que vão minando o vetusto edifício [...] abriram brecha no
espírito da compositora.”.
dos balés de Stravinski e ao atonalismo livre da Escola de Viena - ela apresentava importantes
pontos de tangência com algumas linhas de força que caracterizariam o modernismo musical,
53
O nome “Schola Cantorum” é uma homenagem ao colegiado homônimo instituído pelo papa Gregório Magno,
no séc. VI, incumbido de reformar e consolidar as diversas práticas musicais vinculadas à liturgia, num corpus
único (o Antiphonarium), dando origem à expressão “canto gregoriano” para denominar essa reforma.
54
A grande referência foi o músico Charles Bordes (1863-1909), um entusiasta do folclore basco, e que colocou
no repertório europeu através do célebre conjunto coral “Chanteurs de Saint Gervais”, que fundou uma grande
quantidade de obras corais do período medieval e renascentista, ressuscitando obras de mestres da polifonia
como Josquin des Pres, Orlando di Lasso , Victoria e Palestrina - autores que Villa-Lobos posteriormente tanto
valorizaria, publicando-os nos anos 1930, na “Coleção Escolar” do SEMA, no repertório do “Orfeão de
Professores”.
25
a) O abalo da hegemonia dos modos maior e menor, frente a um modalismo
55
O caráter aditivo das rítmicas gregas e do canto gregoriano, oposto ao caráter sub-divisivo da rítmica clássica e
romântica, “justificava” os processos de polimetria, inspirados nos folclores leste-europeus, de cuja utilização
Stravinski e Bartok seriam os principais representantes. Ver Emmanuel (1951: 108-133 e 226-273).
56
Entre os que se dedicaram aos diversos folclores regionais franceses: Deodat de Severac (1873-1921) para o
Languedoc; Raoul Laparra (1876-1943.) e Charles Bordes para o país basco; Joseph Canteloube (1879-1957)
para a Auvergne.
57
Com o título Chansons Populaires du Vivarais (1887).
26
folclore, como fonte de renovação da linguagem musical e garantia de
58
A derrota e ocupação da França pela Prússia em 1870 exacerbaram diversas correntes de opinião
“nacionalistas”, quando não revanchistas. No plano musical, esboçaram-se vários movimentos de reação à
música alemã difíceis de compatibilizar com a profunda influência wagneriana. O lema da “Société Nationale”,
fundada em 1872 por compositores como Saint-Saens, Duparc, Fauré e D’Indy era o de “Ars Gallica”,
propondo-se à realização de concertos regulares de música nova (exclusivamente) de compositores franceses
(Ver Duchesnau, 1977). O cosmopolitismo parisiense das duas primeiras décadas do século XX, marcado pela
influência russa e, sobretudo, a de Stravinski, daria lugar a reações de caráter nacionalista (ex. nos anos da
Primeira Guerra Mundial, Debussy passa a assinar “Claude de France”; Saint-Saens lidera um movimento
27
como Josquin des Prés, Orlando di Lasso, e Palestrina, ou do início do
atonalismo livre - que este inauguraria com as 3 peças para piano op.11.
chauvinista de proibição de execução em concertos de música alemã), que desembocariam no manifesto Le Coq
et l´Arlequin de Cocteau e na formação subseqüente do “Grupo dos Seis”.
59
Milhaud, na linha anti-germânica do “Grupo dos Seis”, alegaria – em tom jocoso - que Franck (nascido na
Bélgica) não era um “músico francês”, referindo-se a ele como “o grande compositor flamengo”, ou ainda (em
1924, no texto “Hommage á Gabriel Fauré” ): “[...] L´influence de Cesar Franck, ce grand musicien belge (sic)
a determiné un courant de serieux á tout prix [...] dont les oeuvres, à l´exception de quelque-unes dues à Mr.
d´Indy, ont aidé á transformer la musique em une “serre d´ennui”. [Milhaud, 1982: 114].
28
Portanto, se uma das vertentes do cromatismo pós-wagneriano dirigiu-se
para o que se tornaria o Expressionismo germânico - numa trajetória que, partindo das
primeiras óperas de Richard Strauss, culmina nas soluções radicais adotadas pela Escola de
serialismo dodecafônico) - uma outra vertente (tendo como ponte a escola Franck/D’Indy)
(tendo como modelos Franck e D’Indy) - que seria emulado nas obras de juventude de dois
portanto, em sintonia61 (com “atraso” de poucos anos) com esse momento da música do início
60
Sobre a percepção contemporânea da importância de Franck no advento do Impressionismo, Leon Vallas
(1958:238) cita o crítico Jean Marnold, num artigo de 1902: “[...] Sans Schubert, sans Lizst [...], Wagner,
Franck, Fauré et Vincent D’Indy, l’harmonie de Debussy eut été non seulement irréalisable, mais impen sable”;
Cocteau (1979: 78): “[...] L’Impressionisme est un contrecoup de Wagner [...] L’école impressioniste substitue le
soleil à la lumière et la sonorité au rythme”.
61
Um artigo de 1912 do crítico Rodrigues Barboza, a respeito de um concerto dedicado a Glauco Velásquez, é
revelador dessa percepção: “Não é isolado o fenômeno musical que se observa atualmente no Rio de Janeiro,
onde, entre os nossos mais reputados compositores - e os possuímos de grande valor - aparece o Sr. Glauco
Velásquez representando tendências absolutamente modernas, marcando uma diretriz inteiramente nova,
abandonando as condições consagradas do espírito romântico e clássico e abrindo caminhos novos para
estranhos ideais. O fato, porém, mais característico - como apologia da simultaneidade do fenômeno musical
em diversos pontos geográficos de intensa cultura intelectual - é o que se tem dado em Viena, onde Arnold
Schoenberg, cindindo profundamente o espírito musical em duas correntes, tornou-se o chefe do grupo
mais adiantado, em completa oposição ao tradicionalismo.” [Jornal do Comércio, 12/VII/1912, citado em
Bergold].
62
Bruno Kiefer observaria que: “A influência francesa em Villa-Lobos se deu a partir de duas raízes: a dos pós-
romantismo e a dos impressionistas.”. [Kiefer, 1986: 36].
63
(Neves & Ribas Carneiro, 2002: 51-53): a carta aberta a Rodrigues Barboza, datada de 1912, reflete essa nova
percepção quando Glauco relativiza historicamente a denominação “Sonata”, fazendo referência às “Sonatas”
para conjuntos de metais do compositor seiscentista veneziano Andréa Gabrieli. Por outro lado, nessa mesma
carta afirma: “[...] deixo demonstrado [...] o motivo que justifica nos meus trabalhos o abandono dos moldes
clássicos [...] a forma dos meus Trios’ e ‘Sonatas’ depende unicamente dos meios que acho mais naturais como
expressão [...]”.
29
Velásquez) continha, entre as suas virtualidades, a do desenvolvimento de uma linha
b) Em sua peça para piano Hieróglifo (1922)66, cujas tendências seriam tão
64
Entre 1908 (1ª audição da ópera Salomé no Rio) e as suas duas tournées Rio em1920 e 23, uma boa parte da
obra de Richard Strauss havia sido ouvida no Rio.
65
Gallet descreve a “naturalidade” da evolução de Velásquez em direção a um Modernismo extremamente
pessoal [Gallet, 1934:13]: “[...] o processo adiantado entre nós era o de Wagner. Ele partiu daí e ultrapassou. No
Trio IV atinge as raias do modernismo cuja existência em Franca ele apenas conheceu. Na sua última página, o
início do 2º Ato de Soeur Bestrice, ele aproxima-se da politonia de Stravinski. E tudo isso logicamente, uma
coisa atrás da outra”.
66
Em carta a Mario de Andrade (citada em Chagas, 1978), diria sobre Hieróglifo: “Há aí um pouco de
Schoenberg.”.
67
Carta de 14/09/1926, citada em Gallet (1934).
68
É curioso notar que Gallet concebeu um sistema próprio de “serialização” (ainda que não dodecafônico), que
denominou de “esboços temáticos” e que expôs em carta a Mário de Andrade, e analisado por Paulo César de
Amorim Chagas (1978: 172-175), que o descreve como: “[...] a tentativa de construção de um método próprio, a
que ele chama de “esboços”, onde encontramos o embrião de um pensamento serial, ainda que distante do
dodecafonismo de Schoenberg [...]”.
30
uma música nacional alicerçada no folclore (que triunfaria entre as décadas
Milhaud, em 1920:
escola franckista, uma vertente da tradição pós-wagneriana distinta daquela que desembocaria
(1842-1912) - e uma abertura sem precedentes para influências de outras culturas musicais.
nova música de concerto russa, notadamente a do “Grupo dos Cinco”, que se inspirava no
69
Como bem observou, entretanto, José Miguel Wisnik (1977: 54): “Nepomuceno só deve ter concordado em
parte com a relativização da tonalidade nos termos em que a coloca Schoenberg [no] Tratado de Harmonia [...]”.
70
Milhaud: “[...] par contre, la musique contemporaine austro-allemande est presque inconnue lá-bas et le
mouvement si important determiné para Mr. Schoenberg est à peu pres ignorée”. [Milhaud, 1920: 60-61].
71
Bartok considerava Liszt um inovador mais importante que Wagner: “[...] l’étude renouvelée de Liszt [...] me
conduisit, en depit de quelques apparences exterieures qui me deplaisaient, jusqu’au fond des choses, je compris
enfin le véritable message de cet artiste. Pour l´ évolution future de la musique, la portée de ses oeuvres me
parut beaucoup plus considérable que celle, par exemple, des créations de Wagner et Strauss” (Szabolcsi, 1968:
143).
31
modalismo, cuja rítmica contrastava fortemente com a “quadratura” imperante na Europa
Por outro lado, a rítmica (polimetria, ritmos ímpares que Rimski-Korsakov tão
freqüentemente transpôs do folclore russo para suas óperas) e o modalismo do folclore eslavo
(para os quais Mili Balakirev (1837-1910), em suas coleções folclóricas, haviam encontrado
soluções harmônicas inovadoras), assim como a prosódia quase em recitativo que Mussorgski
adotaria em muitas das suas melodias (e que constituiria um dos antecedentes mais diretos da
Abertura dos Portos”. Segundo Luiz Heitor (1956: 234) “esses concertos constituem a
aberto o caminho para a música moderna”. De fato, Nepomuceno - dando continuidade à sua
72
Ex. o encadeamento em trítono da “Cena da Coroação” na ópera Boris Godunov.
73
Cocteau [1979: 57]: “[...] Debussy a devié [...] de l’embûche allemande, il est tombé dans le piège russe [...] il
transpose Claude Monet à la russe”.
74
A inclusão no repertório, por Nepomuceno e Braga de obras dos compositores russos - uma escola “nacional”
que surgia como uma alternativa ao wagnerismo, e que apresentavam tantos pontos de tangência com a de
Debussy quanto ao modalismo, à flexibilidade rítmica e ao brilho orquestral - contribuiu para “abrir o caminho”
a uma predisposição favorável ao debussismo.
32
iniciativa anterior dos “Concertos Populares”, que realizara em 1896, revelando numerosas
(Alvim Corrêa, 1985: 30), com grande foco nas modernas escolas russa (Rimski-Korsakow,
primeiras audições realizadas nesse festival, constam: Scheherazade, Sadko, Suíte do Galo de
Ouro e o Concerto para piano e orquestra de Rimski Korsakov; a Noite no Monte Calvo de
Mussorgski; as “Danças Polovitsianas” da ópera Príncipe Igor e Nas Estepes da Ásia Central
Concertos Sinfônicos” anteriormente às visitas dos Ballets Russes em 1913 e 1917 (muitas
no meio musical brasileiro dessa música russa (pré-stravinskiana) - da qual a primeira versão
do balé Uirapuru, o poema sinfônico Tédio da Alvorada, constitui um exemplo eloqüente (em
75
A programação detalhada dos concertos do “Centenário da Abertura dos Portos” está exposta de forma muito
completa em Alvim Corrêa (1985: 36-37).
76
Esse repertório havia feito sensação na Exposição Internacional de Paris, em 1889, na qual Rimski-Korsakov
havia regido obras suas assim como de Borodine, Mussorgsky e Balakirev.
77
Peppercorn (1989), Wright (1992) e Tarasti (1995).
78
Lisa Peppercorn (1989: 31): “[…] a marked influence on Villa-Lobos´ musical development was the Russian
Ballet: minor compositions by Glazunov and Balakirev´s Overture on three Russian themes as well as with
Debussy´s Les Cloches and Mandoline since these works had been performed in Rio de Janeiro in 1911 and
1912 [...] It was different when they performed parts of Borodin´s Prince Igor, Rimski´ Scheherazade,
Balakirev´s Tamar and Debussy´s L ´Apres-Midi d´un Faune.”.
33
irrupção de fatores “exógenos”, como uma temporada dos Ballets Russes, e não como
1889: os exemplos são numerosos desde as “Marchas turcas” de Mozart e Beethoven até a
ópera Carmen de Bizet (passando pelos temas russos utilizados por Beethoven nos Quartetos
pitoresco e da “cor local” cede o passo a uma percepção de que nessas culturas82 - onde
79
Barraqué (1967: 74-75): “[...] A l´Exposition Universelle de 1889, Debussy a la révelation d´une musique qui
échappe aux règles academiques européennes. Plus que les concerts de musique russe dirigés par Rimski, c´est
la musique des traditions extrème-orientales – javanaises et annamites surtout –qui l´impressione. La sonorité
des gamelangs le fascine [...]”.
80
A mesma démarche se reencontra, dez anos mais tarde, em composições do compositor austríaco Sigismund
Neukomm( 1778-1858), durante sua estada no Brasil no período 1816-1821, com a utilização de temas de
modinhas e lundús em peças como L´Amoureux para flauta e piano, e a fantasia para piano O Amor Brasileiro.
81
Barraqué (1967: 74): “[...] Debussy, s´il fut sans doute le premier musicien moderne que seduisirent les magies
de l´exotisme, ne s´est jamais abandonné à elles au point d´accomoder, d’'occidentaliser’ les sonorités
entendues à l’Exposition”.
82
A partir de 1913, sob o impulso de Charles Lavignac, o Conservatório de Paris publicou a monumental
Encyclopédie Universelle de la Musique, na qual estavam “consolidados” esses novos conhecimentos: listagem
exaustiva, acompanhada freqüentemente de profunda analise teórica, dos modos chineses, árabes, e dos modos
melódicos e rítmicos indianos; contém igualmente estudos aprofundados sobre os folclores das “periferias”
européias (Rússia, Espanha, Hungria, Romênia), assim como das músicas medieval, renascentista e barroca
européias.
83
Barraqué (1976: 75) cita uma observação de Debussy, em 1913, reveladora dessa nova atitude: “[...] la
musique javanaise observe um contrepoint auprès duquel celui de Palestrina n´est qu´un jeu d´enfants. Et si l´on
écoute, sans parti pris européen, le charme de leur percussion, on est bien obligé de constater que la nõtre n´est
qu´un bruit barbare de cirque forain [...]”.
34
exemplos: o fascínio de Debussy e Ravel pela Espanha84; as experiências com escalas
85
orientais por Debussy (escalas pentatônicas indonésias) e Roussel (escalas indianas86); as
música francesa - que resultaria, nas duas gerações subseqüentes, na exploração do “universo
mediterrâneo ampliado” de Darius Milhaud e no fascínio pela música indiana que tanto
manifestações musicais inspiradas em outras tradições musicais era o interesse pela música
folclores. Antes da Primeira Guerra Mundial, nomes como Isaac Albeniz (1860-1909) e Falla
exotismo, mas como oportunidade de renovação da linguagem - da qual, no campo das artes
dos estudos de Picasso sobre as máscaras africanas - abria para os compositores estrangeiros
84
Falla (1950: 135-7): “[...] A un hombre como Claude Debussy [...] su musica no está hecha “a la española”
sino ‘en español’, o mejor dicho ‘en andaluz’, puesto que nuestro Cante jondo és [...] el que há dado origen a
las obras escritas [...] con caráter español [...] y sin embargo el gran compositor frances no habia estado nunca
en España [...] Maurice Ravel es también de aquellos que no se hán contentado en hacer musica ‘a la española’
[...]”.
85
Bartok in Szabolcsi (1958: 144): “[...] lorsque [...] en 1907 [...] je commencai à etudier la musique de
Debussy,je fus surpris du rôle que jouent dans l’oeuvre de ce compositeur, les tournures pentatoniques
analogues à celles de notre musique populaire. Il n´est pas douteux que leur influence doit être attribuée à
l’influence d’une musique d ‘Europe orientale, probablement vla musique russe”.
86
Apesar da sua obra mais famosa nesse sentido ser Padvamati (estreada em 1923, porém composta no período
1914-18), seu poema sinfônico Evocations (1911) já era impregnado de modos hindus.
87
Ver seu tratado Technique de mon Langage Musical (1948).
35
um tipo de “demanda” na qual, em relação às tradições européias, os fatores de alteridade
passavam a ser mais valorizados que os de identidade. Isto ainda se aplicaria nos anos 1920 a
Villa-Lobos: num estudo sobre os Choros, Suzanne Demarquez (1928:707) daria destaque à
observação de que: “[...] É de fato o ambiente próprio ao caráter ancestral do seu país o que
INTERNACIONAL
(L´Homme et son Désir (1918), Boeuf sur le Toit (1919), Saudades do Brasil (1921))
feita em 1920 reflete bem esse novo espírito: “É, no entanto, lamentável [...] que a influência
do folclore brasileiro, tão rico de ritmos e com uma linha melódica tão peculiar, se faça
88
Ver a observação de Herbert Read de que: “O Cubismo se apresenta como uma fusão deste elemento
conceitual da arte africana com o princípio da linha e [do conceito cezaniano] da réalisation du motif .”. [Read,
1960: 83, T.do A.].
89
C’est en effet l’ambiance propre au caractèr ancestral de son pays que cherche surtout le compositeur.
[Demarquez, 1929b, T. do A.].
90
“[…] Il est regrettable [...cependant...] que l´influence du folklore brésilien si riche de rythmes et d´une ligne
mélodique si particulière, se fait rarement sentir dans les oeuvres des compositeurs Cariocas. [...]”. [Milhaud,
1920: 61]. A citação mais extensa pode ser encontrada no Capítulo VI (seção “6.3.1”)
36
Tal observação não diferia, na substância, de um anseio similar
simultaneamente tanto a uma demanda externa quanto interna. A esse respeito, José Miguel
com os folclores regionais teve um imenso efeito “liberatório” para a música nacional de
de Igor Stravinski na Rússia91 são particularmente convergentes esse respeito: a reação contra
91
Ver as observações de Stravinski em “Chroniques de ma Vie” (1935: 44-48).
37
de um senso de polaridade tonal (ainda que ampliada para a multi-polaridade implícita no
européia por parte de Debussy (e na sua esteira Ravel e Roussel) representava um duplo
atrativo para compositores de outros países: a revelação de uma nova paleta harmônica,
rítmica e tímbrica infinitamente mais moldável ao material de origem folclórica sobre os quais
trabalhavam92; uma demanda nos “países centrais” por uma arte - e, portanto, uma música -
que soubesse aliar sofisticação técnica com o reatamento com instintos (reprimidos) abafados
por séculos de “civilização”; um compositor de “país periférico” seria tanto mais interessante
repertório proposto por Serge Diaguilev (1872-1929) - entre a primeira apresentação de Boris
Godunov de Moussorgski em 190993 e a de Les Noces (1923) - teve como símbolo máximo a
primeira audição da Sagração da Primavera, em 1913, uma obra onde justamente se aliava
uma técnica harmônica, rítmica e orquestral de uma ousadia sem precedentes, com a evocação
ambiente da música francesa originado na “revolução debussista” 94, com Villa-Lobos - uma
92
Beneficiando-se do preconceito favorável de que o folclore dos países da “periferia” seria presumivelmente
mais rico que nos países “centrais”.
93
A importância de Boris Godunov não se limita à geração de Debussy e Ravel. Darius Milhaud relata, em suas
memórias, que as suas duas partituras “de cabeceira” no período de sua formação eram Pélleas et Mélisande, de
Debussy, e Boris (Milhaud, 1949).
94
Em Gallet, mesclado a uma influência de Velásquez e Richard Strauss (ex. referindo-se ao seu Tango-Batuque
escrito em 1919): “[...] acabara de ouvir o Rosenkavalier. Detalhes harmônicos a Strauss na segunda parte
(Gallet, 1934: 99); e em Mignone, com o “filtro” do impressionismo italiano de Respighi, resultado de seus
38
russa”, notadamente de Petrushka e da Sagração: todos esses compositores têm em comum o
esforço, num contexto (neo-) tonal e dentro de uma técnica musical “avançada”, de tentar
vertente expressionista de irradiação germânica, pode, portanto, ser atribuído a vários fatores,
ligados à valorização do elemento “nacional”, e que André Coeuroy, ao fazer uma resenha do
estado da música contemporânea nos anos 1920, resumiu na fórmula “sob o signo do
“latino” era parte do Zeitgeist pode ser notada por opiniões manifestadas
por expoentes dos dois lados: enquanto Alban Berg (1924) via na
estudos na Itália, e seu contato com Respighi por ocasião de sua visita ao Brasil em 1928, quando o compositor
italiano regeu obras de Mignone e Gallet.”.
39
Milhaud era “o mais importante representante do movimento
95
contemporâneo, em todos os países latinos” , Milhaud por sua vez
[...] esta diferença entre latinos e teutões sempre se manifestou ao longo da história
[...] esses dois caminhos [... paralelos...] desembocam, nos nossos dias, em Erik
Satie de um lado e Arnold Schoenberg do outro, ou Poulenc e Auric em face de
Anton Webern e Alban Berg. Na Europa, nós nos deparamos com duas tendências
absolutamente opostas [...].
Tal clivagem - ainda que mais imaginária que real - traduzida para o
95
Em 1922, em resposta a uma carta de Zemlinski, Schoenberg escreve: “[...] Quant à Milhaud ´l´insignifiant´,
je ne suis pas d´accord.Milhaud me semble être le representant le plus important du mouvement contemporain
dans tous les pays latins: la polytonalité [...]”, citado por Drake [in Milhaud, 1982: 48-9]. Como observado por
Drake [in Milhaud, 1982: 50]: “[...] dans ‘Polytonalité et Atonalité’, l´on relève pour la premiere fois dans ses
ecrits en français le thème de l´opposition complementaire des traditions françaises (diatonique) et germanique
(chromatique)”.
40
Guerra Mundial - do qual, na pintura, a “Escola de Paris” 97 é um exemplo
“[...] continuar a tarefa de dar a aquele material primitivo uma vida nova e própria,
e formar com tudo isso uma obra de significação e caráter racial que se incorpore
96
Ver Milhaud [1982: 194-5].
97
Segundo o Phaidon Dictionary of 20th Century Art, aplica-se a denominação “Escola de Paris”, num sentido
estrito, ao grupo formado pelos seguintes artistas: o russo Marc Chagall (1897), o lituano Chain Soutine (1894-
1943), o japonês Foujita (1886-1968), o italiano Amadeo Modigliani (1884-1920), o polonês Kisling (1891-
1953), o húngaro Marcel Vertes (1895-1961). Num sentido mais amplo (Phaidon, 1972: 105-6): “a phrase
loosely applied to the artistic life of Paris during the year just before the Great War and between the world
Wars, when the city offered the freeest opportunity for discussion and exhibition anywhere in Europe, and
consequently formed the focal point of artistic activity [...] the presence of the masters of the Ávant-Garde - drew
artists from abroad”. [Phaidon, 1972: 105-106].
98
Essa construção de uma música nacional é vista como uma militância: “[...] o critério atual da música
brasileira deve ser não filosófico, mas social. Deve ser um critério de combate [... Dizer que...] um artista
brasileiro escrevendo agora [...] a tal da música universal [...] faz música brasileira e é músico brasileiro. Não e
não. A força nova que voluntariamente se desperdiça por um motivo [...] Por mais sublime que seja, [...] por
valiosa que a obra seja, devemos repudiá-la que nem faz a Rússia com Stravinski e Kandinski”. [Andrade, 1928:
17].
41
definitivamente ao domínio universal, tal é a missão dos músicos brasileiros de
agora [...]” 99.
sido, portanto, incorporadas ao repertório sinfônico: L´Après-Midi d´un Faune, desde 1908,
sob a regência de Nepomuceno e Braga; e pianístico (como se poderá ver com mais detalhe
no Capítulo III): as Estampes, Chidren´s Corner, 1º livro das Images, por Antonieta Rudge,
Nininha Veloso-Guerra.
a realização da Semana de Arte Moderna em São Paulo, a vida musical carioca sofreu um
os Nocturnes para orquestra, toda a obra pianística (inclusive os Estudos e o 2º caderno dos
Prelúdios), uma grande parte do repertório para canto e piano (ex. Chansons de Bilitis) e as
Allegro, para orquestra, uma grande parte da obra pianística (Jeux D´Eau, Sonatine, Miroirs,
Gaspard de la Nuit), entre as obras de câmera, o Trio para violino, cello e piano. Dentre
99
Citado em Chagas (1978: 28-29). Um indicador do enraizamento dessa percepção é a declaração do jovem
Claudio Santoro - publicada às vésperas do seu alinhamento ao dodecafonismo (Música Viva, 1941, ano 1, 9: 3)
sob o título “Considerações em torno da música brasileira contemporânea”: “[...] desde os primeiros
compositores nacionais que se dedicaram ao estudo do nosso folclore [...] que se vem lutando por uma arte
essencialmente brasileira. [...] A formação de uma escola nacional de composição [... requer...] um estudo
rigoroso e organizado [...] com uma finalidade o conhecimento profundo do nosso folclore, para que dele se
42
piano), Charles Koechlin (Paysages et Marines para piano, e obras para canto/piano), e
Darius Milhaud (1ª Sinfonia de Câmara “Printemps”, 2ª Sonata para violino e piano, Sonata
para 2 violinos e piano, obras para canto e piano). O poema “Debussy”, que figura em
Carnaval (1919) de Manuel Bandeira (e que Villa-Lobos colocaria em música sob o título
“Novelo de linha” nas suas Historietas para canto e piano, de 1920) é revelador da
carioca.
editoras brasileiras passavam a incorporar com mais desembaraço obras modernas a seus
catálogos: se no catálogo de 1915, as únicas obras publicadas de Debussy eram seus juvenis
Arabesques; em 1920, a casa Artur Napoleão/Sampaio Araújo publicava algumas peças das
possa tirar um sistema de construção musical [...] a escola neo-clássica guiada pela polifonia é, a meu ver, o
passo mais sensato para o desenvolvimento da nossa escola nacional [...]”.
100
Para um relato do encontro Rubinstein x Villa-Lobos, ver Sachs [1995: 192-196].
101
Cantora brasileira (1892-1955). Uma das principais cantoras do repertório moderno nas primeiras décadas do
século XX. Amiga de Stravinski, Prokofiev, Falla, Milhaud, Poulenc, Markevietch e Villa-Lobos. Realizou
diversas primeiras audições mundiais de obras desses compositores. [Lago, 1999: 2 a 17].
102
Regente e compositor italiano (1882-1945). Foi um dos principais regentes de ópera na 1ª metade do século
XX, tendo terminado sua carreira como diretor no Scala de Milão. Além do repertório italiano, era grande
intérprete de óperas de Wagner e Richard Strauss (cujo Cavaleiro da Rosa ele deu a primeira audição brasileira
em 1915). Em relação à música brasileira, ele foi responsável pela primeira audição mundial de Jupyra de
Francisco Braga, do Miracle da la Semence e Abul de Alberto Nepomuceno e de L’Enseigne de Henrique
Oswald. Regeu igualmente do jovem Villa-Lobos dois movimentos da sua 1ª Sindonia e abertura de Izath. Em
1936, ele organizou no Scala de Milão um concerto inteiramente dedicado a Carlos Gomes para comemorar o
seu Centenário. Do repertório moderno, ele realizou a primeira audição brasileira de obras como L’Etranger de
Vincent D’Indy (em 1917), de Ma mèr l’Oye de Ravel (em 1918), das Fontane di Roma de Respighi e de obras
de Malipiero e Casella (em 1921).
43
Estampes e do 1º caderno dos Prelúdios, além de oferecer em suas lojas uma grande
segundo, a Prole do Bebê I, as Danças Africanas e Carnaval das Crianças para piano e as
Miniaturas e Historietas para canto e piano; e, de João Nunes, Pieces Droles, Harmonies de
103
Entre alguns exemplos: a) um exemplar de peças para piano de Debussy, com o carimbo da “Casa Mozart”,
pertencente a Luciano Gallet, assinado e datado por ele em 1914; atualmente no Departamento de Música da
Biblioteca Nacional – RJ. (ver Volume II, Anexo IV - “Capas de Partituras/Dedicatórias”); b) coleção de
partituras de Godofredo Leão-Velloso (também no Departamento de Música da BN – RJ, como parte da na
Coleção Abraão de Carvalho), contendo numerosas primeiras edições de música moderna francesa, com os
carimbos de casas de músicas brasileiras que as importavam no início do século; c) os carimbos das casas de
músicas brasileiras, importadoras de partituras, podem também ser observados na coleção de partituras de
Oswaldo Guerra (ver Tabela 7, no Capítulo IV, intitulada “Fonds Oswald d’ Estrade Guerra”) que se encontram
no Centre de Documentation Musicale Claude Debussy – CNRS (Paris ).
104
Paulo Renato Guérios (2003: 105), referindo-se à criação do INM em 1889, em substituição ao extinto
Imperial Conservatório de Música, observa: “[...] a mudança de nome sinalizava o desejo de mudanças
estruturais profundas. [...] Músicos de sólida formação, como Leopoldo Miguez e Alberto Nepomuceno, traziam
da Europa as mais fortes tendências estéticas e lutavam para implementá-las [...] Quando Miguez assumiu a
direção do Instituto em 1890 fez questão de impor uma estética ‘moderna’ para combater o “conservadorismo”
ali reinante”. Para Miguez, “modernas” eram a estética alemã de Wagner e a francesa de Saint-Saens, e
“conservadorismo” significava a insistência no privilégio do canto lírico italiano. Em outro plano, contudo,
44
prepara a dos modernistas Villa-Lobos, Gallet, Oswaldo Guerra, Mignone e Lorenzo
acabaria se tornando mais tarde, nas décadas de 1940 a 1960). Na realidade, músicos como
identificaram - em que pesem as numerosas diferenças entre eles, com as tendências as mais
avançadas da música européia do final do século XIX, tanto em sua abertura face às
germânica109, Alberto Nepomuceno teve alguns pontos de contacto notáveis com Debussy e
sua obra: esteve presente na primeira audição mundial de L`Apres Midi d´un Faune, sendo
que, alguns anos mais tarde (em 1910), teve contato pessoal com o compositor que lhe doou
Wagner, Saint-Saens, Miguez e a República eram a “Modernidade” que vinha substituir Verdi, o Conservatório e
o Imperador [...]”.
105
Do qual um exemplo famoso foi a postura de Theodore Dubois, diretor de Conservatório de Paris, que
proibira que seus alunos assistissem a Pélleas et Mélisande e que seria forçado a renunciar (sendo substituído por
Gabriel Fauré em 1905) em conseqüência da indignação pública - refletida na imprensa - causada por sua
oposição a conceder a láurea máxima do Conservatório, o “Prix de Rome”, a Ravel.
106
Quanto a Francisco Braga, além da incorporação do L’Après-Midi d´un Faune ao repertório dos seus
concertos, foi responsável pela primeira audição de outras obras Debussy - como La Mer, o movimento “Ibéria”
(das Images para orquestra) e a Petite Suíte - e até mesmo de um compositor da nova geração como Honegger,
com suas obras Pacific 231 e Pastorale d´Eté.
107
Ver entrevista à “Revista Teatral”, previamente citada: (Alvim Corrêa, 1985: 37).
108
Referindo-se ao período de formação de Villa-Lobos, Adhemar Nóbrega (1969) escreve: “[...] daqueles
contatos com Frederico Nascimento e Francisco Braga conservava sempre inequívoca admiração pelos dois
mestres. Aliás, declarou-me, em 1955, ouvir e aproveitar muito os conselhos que lhe deram Alberto
Nepomuceno, Henrique Oswald e Francisco Braga. Anos depois, o Dr Leão-Veloso lhe trouxe da Europa o
Cours de Composition Musicale de Vincent D’Indy [...]”.
109
Cabendo, como ressalva, a observação de Wisnik (pág. 54) de que: “[...] Nepomuceno não está à frente dos
compositores europeus da época [...]”.
45
uma partitura autografada de Pélleas e Mélisande110. Nepomuceno foi também, a partir de
1908, responsável por um grande número de primeiras audições brasileiras de obras francesas
Dukas; L`Apres Midi d´un Faune e extratos da cantata L´Enfant Prodigue de Debussy; a
caso de Heitor Villa-Lobos, as primeiras audições que realiza de obras como a Elegie e o 1º
Concerto para Violoncelo e Orquestra assim como as gestões em prol da edição da sua
obra112.
estilística: algumas obras podem ser muito próximas de mestres germânicos tão distintos entre
si como Brahms (o segundo movimento da Sinfonia em Sol) e Wagner (na ópera em um ato
orquestra) ou modais (Jangada para canto/piano, “Sesta na Rede” da Série Brasileira para
orquestra) da música popular brasileira ou até mesmo estrangeira (o “Cake Walk” (1911) da
opereta João Valdez), enquanto outras evocarão o estilo de seu amigo o compositor norueguês
110
Sergio Alvim Corrêa (1985: 10-11) informa que: a) “[... Nepomuceno, em 1894...] assiste à estréia mundial
do Prelude à L’Après-Midi d´un Faune [...] obra que seria o primeiro a revelar no Brasil em 1908”; b) em 1910:
“[...] comissionado pelo Governo brasileiro, Nepomuceno empreende sua terceira viagem ao Velho Mundo,
regendo programas de compositores nossos em Bruxelas, Genebra e Paris. Nessa cidade, visita Debussy em
“Nevilly sur Seine”, recebendo dele a partitura autografada de Pélleas et Mélisande [...]”.
111
Sergio Alvim Corrêa (1985: 11): “[em 1916] Alberto Nepomuceno inicia a tradução do alemão para o
português do ‘Tratado de Harmonia’ de Schoenberg, e tenta por todos os meios implantá-lo no Instituto Nacional
de Música, encontrando, porém, severa oposição [...]”.
46
Edvard Grieg (ex. as fortes afinidades entre a 1ª parte de sua Série Brasileira com a 1ª parte,
podendo-se salientar:
112
Sergio Alvim Corrêa (1985: 11): “[... em 1920...] intercede com êxito junto a seu editor Sampaio Araújo,
proprietário da Casa Artur Napoleão, para a publicação da obra de Villa-Lobos [...]”.
47
b) No melodrama Le Miracle de la Semence (1917, ed. Arthur Napoleão),
48
[...] nessas obras, o compositor com seu espírito compreensivo, isento de
preconceitos artísticos, abriga fórmulas harmônicas mais ousadas, e troca o
romantismo declarado de suas partituras juvenis pelo sedutor enleio de
encadeamentos raros, da meia-tinta do impressionismo, que tão bem convinha a seu
temperamento [...].
Souris” (peça dedicada a Godofredo Leão-Veloso) - do seu op.36 (1914, ed. Bevilacqua):
Exemplo 3b – compasso 24
113
Possivelmente estimulada por seu encontro com o compositor russo Vladimir Rebikov em 1906 e por suas
idéias, declarando numa entrevista: “O maestro Rebikov é um revolucionário da música. Expôs-me recentemente
suas teorias. A música para ele deve ser exclusivamente a expressão do sentimento: o sentimento não tendo
tonalidade nem cadências a música também não deve ter cadência nem tonalidade [...] tive ocasião de ouvir em
minha casa em Florença algumas de suas composições e a impressão que recebi foi deliciosa. A música desse
autor é sempre originalíssima, quase toda baseada na escala de grandes tons” [Martins, 1995: 156]. É
interessante comparar as declarações de Oswald com o testemunho de Nicolas Nabokov (1903-1978),
compositor de outra geração e ambiente, que estudou com Rebikov em 1917-19: “A Yalta je me mis à suivre
serieusement des cours d’harmonie et de composition sous la tutelle de [...] Rebikov [...] connu dans toute la
Russie pour avoir composé un opéra pour enfants, L’Arbre de Noel. C’etait aussi um vrai excentrique [...] La
plus grande partie de son cours de composition consistait à me montrer sa propre production; il avait, disait-
il,depassé Debussy en ayant utilisé bien avant lui, des progressions harmoniques assez peu ortodoxes. C´etait
moi l’avant-garde! Proclamait-il!” (Nabokov, 1975: 17-18). Sobre Rebikov, Stravinski comentaria para
Nabokov que: “Je l’ai connu. C’était peut-être un original mais sa musique ne l’était pas...”.
49
A abertura de espírito de Oswald - que se refletia na vivacidade do seu
salão114 onde podiam se encontrar jovens compositores como Luciano Gallet, Oswaldo
Guerra e Darius Milhaud ou intérpretes como Casals e Rubinstein - pode ser deduzido das
significativas dedicações de obras a ele feitas por compositores de tendências diversas das
suas: Batuque (1908) de Ernesto Nazareth, a coleção de melodias para canto e piano
Luciano Gallet, e a dedicatória de uma das peças das Saudades do Brazil de Darius Milhaud
Seu filho, o pianista Alfredo Oswald (1884-1972) - que por sua vez seria o
dedicatário das Variações sobre um Tema original de Nepomuceno e das Cirandas (1926),
uma das obras mais “modernistas” da produção villa-lobiana, e que realizaria em 1924 a
primeira audição integral da Prole do Bebê I nos EUA - havia por sua vez composto algumas
obras impressionistas, das quais é exemplo a coleção Le Soir au Village (1916, ed.
Bevilacqua). É interessante notar a utilização da escala de tons inteiros na peça “Les Cloches”
(Exemplo 4a) e do efeito bitonal na peça “Les brebis qui rentrent” (Exemplo 4b) de oposição
114
Ver Rubinstein (1980: 39) e Milhaud (1949: 89).
115
Sobre o relacionamento de Milhaud com a família de Henrique Oswald e o ambiente do seu salão, ver o
capítulo “Darius Milhaud: o interlocutor antagônico”, em Martins (1995: 97-102).
50
Exemplo 4b – “Les brebis qui rentrent”, compassos 10-11
Debussy nos dois anos passados, como bolsista de seu estado, em Paris (1910-11). Segundo
programas117, constituindo um novo foco de difusão da sua obra, em adição àquele constituído
partir de 1914, quando se muda para o Rio de Janeiro como professor livre-docente do
Napoleão/Sampaio Araújo). Entre essas se destacam: Pieces Drôles, Vie des Abeilles, Les
116
Wisnik (1977: 51): “[...] João Nunes que teve tempo de estar na Europa no início deste século, compõe uma
obra pianística pouco divulgada, e bastante marcada pelo impressionismo francês”.
117
Jansen (1975: 26): em fevereiro de 1912, no Teatro da Paz de Belém do Pará, o concerto compunha-se de
músicas de Chopin e Schubert, na primeira parte, e a segunda foi toda dedicada a Debussy.
118
Destacando-se Antonieta Rudge, Guiomar Novaes, Souza Lima, Ernani Braga e Walter Burle-Marx. (o papel
de Chiaffarelli e seu círculo serão tratados mais extensamente no Capítulo III).
51
de Oswaldo Guerra - são provavelmente as peças mais ostensivamente debussistas escritas no
Brasil: não apenas pelos aspectos mais visíveis como a utilização de escalas pentatônicas e
por tons inteiros, mas, sobretudo, pela natureza dos encadeamentos harmônicos, pelos efeitos
de ressonância e pelo pianismo próprio ao compositor francês. Delas diria Luiz Heitor
(1956:221): “[...] combina ao jogo de acordes do impressionismo um sopro lisztiano, que faz
o piano vibrar em toda a sua extensão e utiliza sutilíssimos recursos técnicos para chegar
Arthur Napoleão):
um título: pelas dedicatórias (Barroso Neto, Homero Barreto, Oswaldo Guerra), que sugerem
música moderna francesa; pelas características estilísticas: ex. ritmos ímpares, efeitos
52
dissonâncias não resolvidas. Sobre elas, diria Luiz Heitor (1956: 247): “[...] essa adorável
série para piano intitulada Pieces Drôles, tão frescas tão sugestivas (a segunda, ‘Un parfum
qui s´envole’119 é em seus minúsculos detalhes, uma das coisas mais suaves e finas que se têm
música de Stravinski e das diversas escolas nacionalistas (ex. Falla na Espanha, Bartok na
Hungria, o “Grupo dos Seis” na França) refletiam uma reação contra o “pathos” romântico, a
Escola de Viena (com a exceção de Webern) incorporava-o com naturalidade na sua estética
Velásquez do movimento que levaria ao Modernismo, por causa de suas características hiper-
românticas (de fato, tão próximas do Schoenberg da Verklachte Nacht e do Berg da Sonata
119
Essa peça de João Nunes, dedicada a Oswaldo Guerra, figura como o Exemplo 14, do Capítulo IV.
53
op.1) equivaleria a esquecer o papel do Expressionismo germânico com um dos seus afluentes
mais determinantes. Se por um lado, nas palavras de Luiz Heitor (1956: 239-40) “Glauco
“estilhaçamento da tonalidade” com utilização, entre outros, dos acordes de mais de sete sons
Harmonielehre. Nesse aspecto, o Cantique de Beatrice, publicado em 1917, e que deveria ser
1.7 - CONCLUSÃO
Debussy” (que serão examinados no Capítulo III), o meio musical brasileiro (nos capítulos
120
De que esta era a percepção do lado “conservador”, pode se depreender das seguintes observações de
Cernicchiaro (1926: 570-1): “[...] il primo apostolo delle fatale combinazione bizarre della scuola accenata fu
Glauco Velásquez [...] la sinceritá di cui parlava Glauco Velásquez, le piu preocupante della sua vita, era
quella de continuare Debussy, Strauss e Wagner, copiando male la bizarria e stravagante idelitá del primo, per
non rimanere ne individuale, ne geniale [...]”. Luiz Heitor (1956: 240-1) adverte, entretanto, que: “não se pense,
todavia, que a música de Glauco Velásquez era extremamente moderna para a época. Na realidade, ele não havia
atingido nem mesmo a liberdade de estruturação rítmica e melódica da música de Debussy [...]. Só em suas
54
II
surpreendeu por encontrar - junto a um grupo seleto de músicos brasileiros - um grau elevado
de atualização em relação à música moderna francesa. Dias após a sua chegada, ele escreveria
Há aqui dois grupos [de músicos]: 1o) alguns jovens e até mesmo mais velhos,
encantadores, que escrevem como Fauré e Ravel, com - de tempos em tempos - uma
grande explosão de sensibilidade tropical; eles estão muito a par do nosso
movimento contemporâneo e dignos de conhecer a sua música; 2o) e o resto, que
deve ser suportado.122
derradeiras obras, o 4º Trio para piano, violino e violoncelo e a ópera Soeur Beatrice [...] é que ele se aproximou,
realmente, da linguagem musical então considerada moderna”.
121
Os diários de Paul Claudel (1968: 369, 427) informam as datas de chegada no Rio de Janeiro (01/II/1917) e
partida (23/XI/1918).
122
Carta inédita de Milhaud a Koechlin (Rio de Janeiro, 13/II/19170), depositada na “Bibliothèque Gustav
Mahler (Paris) - Centre de Documentation Musicale - Archives Charles Koechlin”: “[...] il y a ici deux groupes:
1º) des jeunes et même vieux, charmants, qui écrivent comme Fauré et Ravel, avec de temps en temps un gros
éclat de sensibilité tropicale; ils sont très au courant de notre mouvement contemporain et dignes d’apprecier
votre musique; 2º) le reste, qui doit être ménagé [...]”. Nessa mesma carta, ele escreve (T. do A.): “Conheci um
[...] músico chamado Braga que esteve na classe Massenet na sua época. Ainda bem que o Brasil evoluiu depois
dele”.
55
dos “mais velhos”123 - como Alberto Nepomuceno124, Henrique Oswald e Francisco Braga125 -
123
O catálogo da “Exposição Milhaud” - realizada em 1977 na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro -
organizado por Mercedes Reis Pequeno, reproduz cartas de Milhaud para Nepomuceno e Oswald que colocam
em evidência o intercâmbio musical entre o jovem francês e os dois maîtres brésiliens (Reis Pequeno, 1977).
124
Sobre Alberto Nepomuceno escreveria em 1942-1943, na sua apostila sobre música brasileira, em Mills
College: “Alberto Nepomuceno, que era chamado ‘pai do nacionalismo’ na música brasileira era um homem
encantador e modesto, a quem eu conheci muito bem. Ele era um excelente professor e tocava o piano
admiravelmente bem” (Milhaud/Mills, 1942-3, T. do A.). Alberto Nepomuceno seria responsável pela primeira
audição pública de uma obra orquestral de Milhaud, regendo a sua 1ª Sinfonia de Câmara “Printemps” com a
Sociedade de Concertos Sinfônicos, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1918.
125
A relação entre Milhaud e Henrique Oswald foi objeto de um capítulo intitulado “Darius Milhaud: o
interlocutor antagônico”, no livro de José Eduardo Martins (1995). Já retornado à França, ele escreveria aos
Oswald, em 28/X/1919: “Faz frio e eu tenho inveja do sol, e das grandes palmeiras e do engraçado cactus da rua
São Francisco Xavier, perto de sua casa, à esquerda quando se vem de bonde [...] Se me pedissem escolher entre
‘ir ao paraíso’ ou ‘retornar ao Rio’, creio que escolheria retornar ao Rio [...]” (Martins, 1995: 100). A
correspondência entre Milhaud e a família Oswald se prolongaria até os anos 1930, conforme explica Martins:
“entre os Oswald e Milhaud, a correspondência será de certa regularidade. Cumprimentam-se mutuamente nos
aniversários e trocam notícias do cotidiano [...]. Por ocasião da morte de Henrique Oswald, Milhaud escreve
carta pungente à madame Oswald. Quando da morte desta, à filha do casal desaparecido, Mimma” (Martins,
1995: 100). Sobre Henrique Oswald e Francisco Braga, escreveria na mesma apostila de Mills College:
“Escrevia uma música deliciosa (‘delightful music’), que era ligeiramente convencional. Ele também era
extremamente reservado. Ele mostrava um grande interesse em jovens compositores e sua casa costumava ser
um centro de atração para muitos jovens artistas [...] Lá, podia-se encontrar regularmente Francisco Braga, que
ainda está vivo. Ele estudou em Paris, no Conservatório com Massenet e entre as suas obras estão umas
variações sobre um tema brasileiro, no qual o tema é desenvolvido à maneira de 1880. Ele segue uma forma
cíclica com harmonias um pouco fora de moda e modulações, às quais ele dá tanta importância, que o elemento
rítmico, geralmente vital numa composição brasileira, fica como pano de fundo” (Milhaud/Mills, 1942-3, T. do A.).
126
Ver Milhaud (1949: 89) e o depoimento de Gallet (1934: 15) a Mário de Andrade: “[...] em 1917 conhecera
Darius Milhaud. Aproximou-nos o seu interesse extremo por Glauco. Tomou conhecimento de sua obra e
reconstituiu, adivinhou é o termo, o ‘Trio IV’ [...] Por meio de Milhaud penetrei na música moderna [...]”.
Segundo Luis Heitor: “Desse convívio Gallet tira o maior proveito. Milhaud é seu verdadeiro professor de
harmonia [...] e é quem o inicia nas teorias musicais modernas e na arte contemporânea, explicando o sistema de
Schoenberg, familiarizando-o com as obras de Erik Satie e de Stravinski. A admiração de Gallet pelo mestre
francês era muito grande” (Corrêa de Azevedo, 1956: 78). Os comentários de Milhaud sobre Gallet, na apostila
de Mills College, sugerem que alguma correspondência deve ter continuado entre eles, pois ele menciona
elogiosamente as Canções Populares Brasileiras, que foram compostas por Gallet entre 1924 e 1929: “Ele se
especializou nesse tipo de estudo [o folclore brasileiro] e harmonizou uma série de melodias populares com um
gosto extremamente sutil” (Milhaud/Mills, 1942-3, T. do A.).
127
Ver Milhaud (1949: 92).
56
Na sua autobiografia ele relataria as circunstâncias da sua tomada de contato
com o “grupo”:
[...] em 1917, na casa de Henrique Oswald [...] encontrei um jovem casal de recém-
casados: os Guerra. Oswaldo compunha uma música impregnada de influência
francesa. Sua mulher Nininha, dotada para a composição, era, sobretudo, uma
excelente pianista. Seu pai, Leão-Veloso, era professor de piano e ele a tinha
treinado a tocar muita música contemporânea, da qual ele inculcava o gosto a todos
que o cercavam: sua filha, seus alunos, e até mesmo seu cão que respondia pelo
nome de “Satie”. Desde então eu me liguei aos Veloso-Guerra, que eu encontrava
com freqüência, e foram eles que me iniciaram à música de Satie que, até então, eu
conhecia de modo muito imperfeito. Eu a percorri com Nininha, que tinha uma
excepcional capacidade de leitura a primeira vista da música moderna128 [...].
os Veloso-Guerra:
a) É a eles que ele dedica o maior espaço, bem mais que a Villa-Lobos, na
nos seus depoimentos sobre o Brasil - tanto em seu artigo “Brésil” (1920)
(1949);
128
Ver Milhaud (1949: 89-90): “[...] chez le Henrique Oswald [...] j´y rencontrai [...] un jeune couple de
musiciens tout nouvellement mariés: les Oswald Guerra. Oswald composait de la musique imprégnée
d´influence française. Sa femme Nininha, douée pour la composition, était surtout une excellente pianiste. Son
père Leão-Veloso était professeur de piano et il l´avait entrainée à jouer beaucoup de musique contemporaine. Il
en inculquait le gout a tout son entourage, à sa fille, à ses élèves, et jusqu´à son chien qui repondait au nom de
Satie. Dès lors je me liai avec les Veloso-Guerra et je les voyais souvent. Ils m´initierent a la musique de Satie
que je connaissais alors très imparfaitement, et je la parcourus avec Nininha, qui déchiffrait exceptionellement
bien toute la musique contemporaine.”.
129
Entre alguns exemplos, na correspondência dirigida a Koechlin: “[...] As Paysages et Marines chegaram bem
[...] Elas serão tocadas num concerto em junho por Mme. Oswaldo Guerra-Velloso, que é juntamente com sua
família entusiasmada com sua música, e já encomendou de Rouart os seus 3 cadernos de melodías”; “[...] Este
país é tão curioso [...] Eu me vingo convertendo ao cubismo os seus jovens pintores e introduzindo os acordes de
13 notas junto a seus jovens músicos. Aquí só há de agradável o jovem casal Oswald Guerra e seu pai Leão-
Veloso, que já lhe escreveram manifestando sua admiração. Eles são realmente pessoas como nós, dignas de
57
b) São os únicos compositores jovens brasileiros dos quais promoveu a
que Godofredo seria também dedicatário de uma das melodias dos Quatre
Poèmes de Paul Claudel; por sua vez Nininha seria dedicatária de cinco
obras: três peças (os nº.s II, III e V) da série Printemps (1917-1920) para
habitar futuramente na França […]”. (Cartas de 05/V e 21/VI/1917, T. do A.). Cartas inéditas depositadas na
“Bibliothèque Gustav Mahler (Paris) – Centre de Documentation Musicale - Archives Charles Koechlin”.
130
Sobre as atividades de Jane Bathori, na sua gestão do “Vieux Colombier”, em prol da música contemporânea,
ver o depoimento de Madeleine Milhaud (Nichols: 1998: 18-19).
131
Esse concerto (que será discutido no Capítulo IV), intitulado Concert de Musique Brésilienne - que Milhaud
organizaria juntamente com a grande cantora Jane Bathori, a qual havia assumido a direção do “Theatre du
Vieux Colombier” - realizou-se em 13/IV/1919, consistindo, por um lado, de obras de Glauco Velásquez, Alberto
Nepomuceno, Henrique Oswald, Nininha Veloso-Guerra e, por outro, de uma seleção de “tangos, maxixes,
sambas e cateretês” (ver Volume II, Anexo I, seção “Programas de Concerto - França”).
132
O concerto na SMI foi realizado em 20 /XI/1919 na “Salle Gaveau” (ver Volume II, Anexo II, seção
“Programas de Concerto ”); a primeira audição mundial havia sido realizada no Rio de Janeiro em 30/VIII/1918,
no “Salão do Jornal do Commércio”, tendo como intérpretes Milhaud (violino) e Nininha (piano).
133
A “Société Musicale Independente” (SMI) tornara-se a mais prestigiosa sociedade de concertos de música
nova em Paris, ao final da Primeira Guerra Mundial, e fora fundada em 1910 por compositores como Gabriel
Fauré, Maurice Ravel, Florent Schmitt e Charles Koechlin, como uma cisão da “Société Nationale”, dirigida
então por Vincent D´Indy (Duchesnau, 1997: 65-122).
134
As peças II (“Botafogo”), III (“Leme”) e IV (“Copacabana”) das Saudades do Brazil são dedicadas,
respectivamente, a Oswaldo Guerra, Nininha Veloso-Guerra e Godofredo Leão-Veloso.
58
instrumentos de sopro (1920), e o 5º movimento das Études para piano e
orquestra (1921);
quanto nos três anos subseqüentes ao seu retorno à França, como o atesta a
135
Segundo Jeremy Drake: “[...] após 1917, estamos em presença da politonalidade linear, do contraponto [...] do
qual o ‘nec plus ultra’ é o ‘5o Quarteto de Cordas de 1920’, dedicado como um ‘morceau de maitrise’, ao pai do
atonalismo: Arnold Schoenberg [...]” (Drake, 1982: 39, T. do A.).
59
exxemplo, Protée, Soirées de Petrograd, Saudades do Brazil, Cinq Études
piano e sopros está reservada a Nininha Guerra por ocasião de sua chegada
forma:
136
Quando Milhaud chegou ao Brasil ainda não se havia formado o famoso “Groupe des Six”, que seria
constituído, a partir de 1920, pelos compositores Darius Milhaud, Arthur Honegger (1892-1955), Francis
Poulenc (1899-1963), Georges Auric (1899-1983), Louis Durey (1888-1979) e Germaine Tailleferre (1892-
1983). Sua chegada ao Rio também antecede a consagração “pós-impressionista” de Satie, com o sucesso de
suas obras Parade (1917) e Socrate (1919), e o lançamento do manifesto Le Coq et l’Arlequin (1918) de Jean
Cocteau.
137
que se encontram atualmente no Departamento de Música da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
60
h) Logo na chegada dos Guerra na França, em novembro de 1920, Nininha
[...] Os petits Guerra (você se lembra dessas mãos tão frágeis sobre o teclado?)
devem chegar a Paris. Eu os passearei de coleira em todos os concertos [...] (carta de
19/III/1921);
[...] continuamos com os nossos Samedis140. Temos à nossa disposição um bar na
Rue Duphot, onde temos um jazz-band141. Os petits Guerra estão em Paris e se
tornaram samedistes muito assíduos, ela, sobretudo [...]”.
França. Após a sua morte, as suas reduções para quatro mãos de obras de
na França desde 1921 - foi um dos músicos escolhidos por sua viúva
138
Ver Volume II, Anexo I - seção “Programas de Concerto - França”.
139
Correspondência inédita, localizada na “Bibliothèque Littéraire Jacques Doucet”, Paris, comunicada pelo Sr.
Frank Langlois. Em 25/IX/1920: “[...] Les petits Guerra (vous souvenez-vous de ces mains si frêles sur le
clavier?) doivent venir à Paris. Je les promenerai en laisse dans tous les concerts [...]”; em 19/III/1921: “[...]
Nos Samedis continuent. Nous avons à notre disposition un Bar Rue Duphot ou nous faisons du jazz-band. Les
petits Guerra sont à Paris et sont devenus des ‘samedistes ‘très assidus, surtout elle’ [...]”.
140
Milhaud descreve os “Samedis”, nos quais se reuniam inicialmente em sua casa (e posteriormente no “Bar
Gaya” e no “Le Boeuf sur le Toit”) Cocteau, os integrantes do “Grupo dos Seis” e alguns poucos amigos como o
escritor Paul Morand e a pianista Marcelle Meyer - a cada sábado (Milhaud, 1949: 120-22).
141
Trata-se do recém-inaugurado “Boeuf sur le Toit”, bar famoso durante o período de entre-guerras, cujo nome
foi tomado de empréstimo ao balé Le Boeuf sur le Toit de Milhaud e Cocteau, cujo nome por sua vez havia sido
tomado de empréstimo do tanguinho O Boi no Telhado, de José Monteiro, sucesso do carnaval carioca de 1918.
61
Radiodifusão Francesa, O.R.T.F.)142 para fazer um depoimento sobre a
muito importante na circulação de novas idéias musicais, no Rio de Janeiro, nas duas
1918, nos quais foi revelada uma parte substancial da obra pianística e de
O “Le Boeuf sur le Toit” seria um dos principais locais dos princípios do Jazz na França, e a expressão faire le
boeuf tornou-se sinônima de jam session (ver site “The Boeuf Chronicles” da jornalista Daniela Thompson).
142
CD realizado em 2001, pela Rádio-France, a pedido da família Oswaldo Guerra.
62
de outros franceses modernos; no período entre a partida de Milhaud do
143
Cernicchiaro (1926: 600) refere-se nos seguintes termos à escola livre fundada por Godofredo em 1907, e que
contava no seu corpo docente com Artur Napoleão, Henrique Oswald, Francisco Braga, Frederico Nascimento e
o próprio Cernicchiaro: “[...] lodata pei suoi sforzi amorevoli nel libero insegnamento, fondata dal colto e
pregiato pianista Dr.Godofredo Veloso col titolo di “Escola de Música”, com sede nella Avenida Rio Branco
[...]”. Essa informação é repercutida em Luiz Heitor (1956: 130), ao descrever as atividades de Henrique
Oswald, ao sair do Instituto de Música: “Passa a lecionar na Escola de Música particular que o pianista
Godofredo Leão-Veloso fundara em 1907, e que funcionava em um prédio da recém-inaugurada Avenida
Central”.
144
Milhaud (1949: 70-71) refere-se em sua autobiografia à influência de Koechlin na formação da sua própria
linguagem politonal: “Eu gostava da sua música, de suas pesquisas harmônicas e da sua maravilhosa abertura de
espírito” (Milhaud, 1949: 70, T. do A.).
145
Ver comentários de Claude Rostand sobre Decaux no Capítulo III. O exemplar dos Clairs de Lune de Decaux,
na Biblioteca Nacional (RJ), com o selo da Coleção Abraão de Carvalho (“AC”), contém anotações de
Godofredo datadas de 1914. Milhaud, em seu artigo de 1920 na Revue Musicale, confunde – provavelmente pela
semelhança de imagens que esses títulos evocam o real título da obra com o de Nocturnes.
146
Indicativo dessa abertura é o fato da Coleção Abraão de Carvalho - atualmente na BN-RJ e na qual o
repertório do início do século XX se compõe essencialmente do acervo que havia anteriormente pertencido a
Godofredo Leão-Veloso - conter, por exemplo, a redução para dois pianos realizada por Webern para as 5 peças
para orquestra op.15 de Schoenberg.
63
c) A atividade musical nos salões: se, no Brasil da Belle-Époque, essa
atividade era um pálido reflexo daquela que Myriam Chimenes (2004: 9-39)
147
Descritas por Milhaud (1949), Rubinstein (1980) e Martins (1995).
148
Entre alguns exemplos desse intercâmbio: a) entre os Veloso-Guerra e Henrique Oswald: é no salão de
Oswald que Milhaud conhece os Veloso-Guerra (Milhaud, 1949: 89) e Rubinstein (Rubinstein, 1980: 38-9); a
dedicatória de Nininha a Oswald de sua composição Com as Crianças (ver Volume II: Anexo IV - “Capas de
Partituras/Dedicatórias”), e a dedicação da 3ª peça (Chauve-Souris) do op.53 de H. Oswald a Godofredo, assim
como a freqüência da apresentação de obras de Oswald nos “Concertos Íntimos”, promovidos por Godofredo
(examinados adiante no Capítulo III), são índices do grau de proximidade existente entre eles; b) entre Leão-
Veloso e Chiaffarelli: a correspondência e a ida de Leão-Veloso a São Paulo para visitar Chiafarelli
documentadas por Maria Francisca Junqueira (1987), e a semelhança entre o repertório de seus alunos; c) entre
Chiaffarelli e H. Oswald: a freqüência das obras de Oswald nos “Concertos Históricos” promovidos por
Chiaffarelli, o relato de Chiafarelli do encontro entre Saint-Saens e H. Oswald (Martins, 1995).
149
Violoncelista português (1852-1924). Desenvolveu uma intensa atividade pedagógica como professor de
Harmonia e de seu instrumento no Instituto Nacional de Música. Professor de compositores ilustres, como
Glauco Velásquez e Oscar Lourenço Fernandes, também era procurado por Villa-Lobos. Aberto a novas idéias,
iniciou, juntamente com Alberto Nepomuceno, uma tradução do Tratado de Harmonia de Schoenberg. Segundo
a Enciclopédia da Música Brasileira: “Profundo conhecedor dos problemas acústicos, criou um departamento de
acústica no Instituto e inventou um aparelho, o melofonômetro, que consistia numa régua graduada, aplicável a
qualquer instrumento de corda, e na qual se acham determinados, exatamente, os comprimentos necessários para
a corda dar todos os sons, tanto da chamada escala pitagórica, como da escala temperada.”. (Marcondes, 1977:
517).
150
Violinista brasileira (1890-1976). Segundo a Enciclopédia da Música Brasileira: “Dedicou-se ao ensino e
formação de uma geração de músicos. Ao mesmo tempo, apresentou-se em vários recitais como solista,
acompanhada por Villa-Lobos, Artur Napoleão, Antonieta Rudge, Glauco Velásquez, Alberto Nepomuceno [...]
Henrique Oswald e Luciano Gallet entre outros [...] por longo período, inclusive na Semana de Arte Moderna em
1922, colaborou com Villa-Lobos, que a considerava sua violinista predileta, e que lhe dedicou, da mesma forma
que outros compositores brasileiros, diversas composições” (Marcondes, 1977: 221).
151
Cantor e professor brasileiro (1870-1938). Professor do Instituto Nacional de Música (INM) do Rio de
Janeiro, foi, segundo a Enciclopédia da Música Brasileira: “Um dos maiores defensores do canto em idioma
português, ao lado de Alberto Nepomuceno, compositor a quem dedicou grande amizade e cuja obra vocal
divulgou. Em 1913 viajou para a Europa, vivendo 2 anos em Paris [...] onde se aperfeiçoou, inclusive, com Jane
Bathori [...] Foi um dos primeiros a revelar entre nós os lieder de Henri Duparc [...] Gabriel Fauré, Debussy [...]”
(Marcondes, 1977: 163). Em sua resenha sobre o Brasil, na Revue Musicale, Milhaud comenta: “O Professor
64
representativo do clima de conviavibilidade desse ambiente o seguinte
[...] É sábado à noite e eu penso que se ele estivesse no Rio, iria visitá-los. Eram
exquis os sábados em casa dos Oswalds. Talvez nesta noite vocês tenham: os Guerra
tocando a música moderna francesa; Braga que ri; Gallet que toca a Sonata de Liszt;
Otaviano153 fantasiado de índio; Mimma154 jogando almofadas nas cabeças de todo
mundo [...] fora o luar tropical que inunda o belo cactus perto de sua casa, na rua
São Francisco Xavier.
primeiras audições brasileiras de obras de Debussy, de Ravel e de Satie, deve-se notar que o
Carlos de Carvalho realiza com freqüência recitais de cantos consistindo de melodias de Debussy e Ravel”
(Milhaud, 1949: 60, T. do A.).
152
Cantor, filho do precedente, dedicou-se ao moderno repertório brasileiro realizando primeiras audições de
obras de Glauco Velásquez, Alberto Nepomuceno (Miracle de la Semence) e Heitor Villa-Lobos (Festim Pagão,
Louco, Mal Secreto, L’Oiseau Blessé d’une Flèche, Les Mères, A Cegonha, A Cascavel). Participou da Semana
de Arte Moderna de 1922.
153
João Otaviano Gonçalves (1892-1962): compositor e pianista , aluno de Henrique Oswald (piano) e Francisco
Braga (composição). Segundo a Enciclopédia da Musica Brasileira: “Em 1913, concluiu o curso de piano,
obtendo o 1º prêmio e medalha de ouro. Quando terminou o curso de composição, em 1918, já havia estreado,
como compositor, apresentando em 1914 um trio e um quarteto de cordas, além de peças para piano, violino e
violoncelo. Em 1922, foi premiado com uma viagem à Europa por sua obra Poema da vida, encenada [...] em
1923, no Teatro Lírico, do Rio de Janeiro. [...] foi docente livre da, então, E.N.M.U.B., suscedendo a Francisco
Braga na cátedra de composição, quando este se aposentou em 1938.”. [Marcondes, 1977: 369].
154
“Mimma” era o apelido de Maria Clara Oswald Marchesini, filha de Henrique Oswald. [Martins, 1995].
65
ele a Godofredo, após seu regresso à França (que se encontram
mencionar os nomes):
155
Dedicatória de Milhaud, no exemplar da BN-RJ, das Chansons Bas: “A Mr.Veloso, ces mélodies qu´il a
entendues souvent chez lui”, reproduzido na página 82.
156
Sobre os testemunhos de Claudel e Rubinstein, ver Lago (1999).
157
“[...] le soir chez les Guerra, le ‘Sacre du Printemps’ à quatre mains avec Milhaud, ‘L´Oiseau de Feu’ [...]”
(Claudel, 1968, I, 407).
158
Ver Rubinstein (1980: 42): “[...] Milhaud me présenta à une famille extrèmement musicienne avec qui nous
jouions le Sacre du Printemps et autres choses à quatre mains. La jeune fille de la maison était bonne pianiste.
Avec Darius elle donna d’excellentes interpretations de Sonates pour piano et violon , parmi lesquelles une très
belle Sonate de Milhaud lui-même [...]”. A obra em questão é a 2ª Sonata para piano e violino de Milhaud,
composta no Rio, e que teve sua 1ª audição mundial na interpretação de Milhaud e Nininha.
66
2.3 - HEITOR VILLA-LOBOS E O “CÍRCULO VELOSO-GUERRA”
Círculo Veloso-Guerra:
Milhaud;
juntamente com a primeira audição das peças “Valsa Mística” (da coleção
159
Nóbrega (1969: 14), in Presença de Villa-Lobos nº 4.
160
Ver Música Viva (Ano 1, nºs 7/8: 12).
161
“[...] Por volta de 1917, o Dr. Leão-Veloso apresentara-lhe [a Villa-Lobos] um jovem francês Darius
Milhaud, então secretário de Paul Claudel na Legação de França, no Rio de Janeiro” (Mariz, 1989: 50).
162
Ver reprodução, no final desse capítulo da página da revista “Ilustração Brasileira” (janeiro-1922), contendo a
“Homenagem a Nininha” por Heitor Villa-Lobos.
67
Na manhã em que foi rezada missa de 7º dia pela alma de Nininha Veloso-
Guerra, Heitor Villa-Lobos compôs no templo as primeiras frases de um
pensamento elegíaco que lhe inspiraram aquele ambiente e aquela cerimônia.
São essas frases que publicamos, prestando assim pelo talento de um grande
músico novo, uma homenagem à pianista e compositora tão cedo levada pela
Morte.
conhecimento existente naquele meio, da música moderna francesa (Debussy, Ravel, Satie),
das obras radicalmente politonais que Darius Milhaud estava escrevendo no Rio de Janeiro
(tal como L´Homme et son Désir, da qual Nininha Veloso-Guerra realizou uma transcrição
Primavera, a qual tanto Claudel quanto Rubinstein testemunham ter sido tocada a 4 mãos em
Stravinski, por parte de Villa-Lobos, tenha se dado desde 1918 através de Milhaud e do grupo
Veloso-Guerra, é comprovado que em 1920 (ano da partida dos Guerra para a França), Villa-
Lobos teve - através de Vera Janacopoulos, durante sua estada de alguns meses no Brasil - a
oportunidade de se familiarizar com o seu repertório (que incluía, além de Debussy e Ravel,
163
Concerto no Museu Galliera, em 28/III/1924, em que o pianista Afonso Aníbal da Fonseca apresentou 2 peças
da Prole do Bebê I, juntamente com 2 Esquisses de Oswaldo Guerra, sendo também apresentada neste concerto
sua Sonata para flauta, oboé, viola e piano; Recital do pianista João de Souza Lima (12/VI/1922) (?),
apresentando, de Oswaldo Guerra, 2 Esquisses e, de Villa-Lobos, a Lenda do Cabloco (com o título francês
Légend Indigène) e “Rhodante” da Simples Coletânea (ver Volume II, Anexo II - “Oswaldo Guerra”) ; Recital
do pianista Ricardo Viñes, em 19/IV/1926, (Semaine Musicale - Musiques et Musiciens de l’Amérique du Sud):
Viñes tocou, de Villa-Lobos, a Lenda do Caboclo e Polichinelo e, de Oswaldo Guerra, a peça “Matin Clair” da
Suíte Pastels (Guimarães, 1972: 124-5).
68
obras recentes de Falla, Stravinski e Prokofief) a ponto de ter realizado para ela uma cópia
manuscrita dos Pribaoutki de Stravinski164, da qual a cantora brasileira havia - um ano antes -
Por outro lado, como ressaltado por Gerard Behague, é “inconcebível” que,
tenham sido objeto de comentários e intenso interesse. Por outro lado, Behague (1994: 10)
também observa:
dos três mais famosos balés de Stravinski: seu biógrafo Harvey Sachs relata a revelação que
foi para ele a audição da Sagração da Primavera em 1913 (1996:134), a forte amizade que
desenvolve com o compositor, a partir de 1914, em torno de leituras ao piano das três obras,
transcrição parcial da obra orquestral) Rubinstein já havia sido o dedicatário de seu Piano-
164
A qual se encontra no Acervo Vera Jancopoulos, na Biblioteca da UNIRIO (Lago, 1999).
165
Ver carta de Prokofiev a Stravinski, datada de 1919 (Lago, 1999).
166
“[...] it is probable, however, that Rubinstein brought Stravinsky to the attention of Villa-Lobos. Milhaud
confirms in his memoirs that Rubinstein ‘executed with mastery the most subtle scores such as ‘L´Apres-Midi
d´un Faune’ or ‘the Sacre du Printemps’ […]”. (Behague, 1994: 10).
69
Rag-music em 1918, e em 1920 incluira na programação de seus recitais no Rio167 uma
qual tanto Luis Guimarães quanto o biógrafo de Rubinstein Harvey Sachs (1996: 191-6)
da atividade concertística no Brasil dos anos 1920: mesmo com a vinda dos Ballets Russes em
duas ocasiões (1913 e 1917), esses não encontraram condições170 de viabilidade para a
apresentação dos grandes balés de Stravinski, os quais só viriam a ser ouvidos pelo público
brasileiro, pela primeira vez, nos anos 1930 e 1940171. Entretanto, a colocação não reflete as
oportunidades, que existiram em alguns meios avançados do Rio de Janeiro, aos quais Villa-
167
Enquanto na sua 1ª tournée no Brasil, em 1918, Rubinstein revelou numerosas obras de Debussy e Ravel, na
sua 2ª tournée, em 1920, Rubinstein revelou compositores como Manuel de Falla (Fantasia Bética), Karol
Szymanovski (2ª Sonata para piano), Serge Prokofiev (Visions Fugitives) e Francis Poulenc (Mouvements
Perpetuels).
168
Sendo que tanto a Fantasia Bética de Falla quanto os Três Movimentos de Petrushka de Stravinski foram
encomendadas por Rubinstein.
169
Repercutida em Kiefer (1986:42): “[...] Antes de ir a Paris em 1923, o nosso compositor não conhecia a obra
de Stravisnki, Bela Bartok e muito menos de Schoenberg”.
170
Conforme carta (inédita depositada no “Centre de Documentation Musicale/Bibliothèque Gustav Mahler -
Paris”) de 03/IX/1917 do jovem Oswaldo Guerra a Charles Koechlin, citada no Capítulo IV e reproduzida no
Volume II, Anexo II - “Oswaldo Guerra”.
171
É conhecido o fato de que foi só por ocasião de sua primeira ida à Europa, em 1923, que Villa-Lobos teve a
oportunidade de ouvir pela primeira vez a Sagração da Primavera; segundo o relato de Manuel Bandeira, citado
em Behague (1994:10), o compositor lhe havia declarado ter sido “a maior emoção musical de minha vida”.
70
participaram músicos excepcionalmente atualizados com a música contemporânea (como
hipótese a mais tardia - o contato de Villa-Lobos com os Guerra se teria dado em 1919172,
quando da primeira audição de três peças mencionadas acima (das quais uma dedicada a ela),
Quanto a Godofredo, esse contato pode ser datado pelo menos a partir de 1914, ano no qual
Villa-Lobos (no esboço biográfico de Música Viva) situa seus estudos do tratado de Vincent
D´Indy.
Parece plausível antedatar-se pelo menos para 1918 seu contato com os
Guerra já que, no mesmo esboço biográfico, Villa-Lobos ressalta o papel de Milhaud - que
parte do Rio em novembro de 1918, e que realizara juntamente com os Guerra os principais
concertos dedicados a Debussy entre 1917 e 1918 - na sua tomada de contato com a música de
Debussy.
música de Debussy a partir de 1918 - ainda que possam refletir suas circunstâncias pessoais174
- não podem ser tomadas como índice do grau de atualização do meio musical carioca em
relação à música moderna francesa. Nos dez anos que precederam a chegada de Milhaud e
172
Ver Wisnik (1986: 45): “[...] Villa-Lobos e Gallet conheciam as atividades musicais de Oswaldo e Nininha
Guerra que em 1919 executou uma das ‘Danças Africanas’ [...] É possível afirmar-se que pelo menos a partir de
1919 Villa-Lobos teria acesso a esse grupo onde se cultivava música francesa de vanguarda [...]”.
173
Realizado em 12/XI/1919 no Teatro Municipal. (ver Volume II, Anexo I, seção “Programas de Concerto -
Brasil”).
174
Entre as circunstâncias pessoais de Villa-Lobos, podem ser mencionadas: suas prolongadas ausências do Rio
entre 1908 e 1912; o fato de sua apresentação a Rubinstein só ter ocorrido em 1920, por ocasião da 2ª tournée do
pianista ao Brasil.
71
Rubinstein, e independentemente das apresentações dos Ballets Russes, intérpretes brasileiros
haviam apresentado obras orquestrais como o Prelude à l´Après-Midi d´un Faune e as Danses
Sacrées et Profanes, assim como uma grande parte da obra pianística de Debussy. Os
depoimentos de Milhaud, quanto a ter travado conhecimento com a música de Satie através
Satie175 - e, particularmente, das grandes ousadias de linguagem que Milhaud estava adotando
em suas obras compostas no Rio - não implica necessariamente numa absorção equivalente
dessas informações por parte de Villa-Lobos176, o qual, aliás, não parece ter sido parte do
observação de que:
Villa-Lobos à época em que Darius lá chegou [...] ouvia-se falar nele vagamente [on
entendait parler de lui comme ça]… Ele era conhecido apenas de nome [...] Ele
estava no início de sua carreira [...] Ele tocava violoncelo nos cafés para ganhar sua
vida [...] foi somente mais tarde que ele tomou impulso [...] (O.R.T.F., 1978, T. do
A.).
Seu contato com os Guerra deverá, portanto, ter ganho maior intensidade no
175
Na correspondência com os Guerra (examinada no Capítulo V), Milhaud menciona em 1919 o envio para eles
de Socrate, a obra recém-composta de Satie que se tornaria - juntamente com Parade - a principal referência da
estética “pós-impressionista” do Grupo dos Seis.
176
No seu importante estudo, publicado em 1929 na Revue Musicale, Suzanne Demarquez reporta a informação
de Villa-Lobos: de que à época da composição das suas Historietas (1920): “Só conhecera de Debussy a ‘Sonata
para flauta, viola e harpa’ e algumas melodias do repertório da senhora Janacopoulos [...]” (Demarquez, 1929:
5-6, T. do A.).
72
Entretanto, mesmo não fazendo parte do inner circle dos Veloso-Guerra,
relação à música moderna, no período de formação que precedeu sua partida para Paris.
conhecidos de Milhaud sobre sua experiência brasileira: o artigo “Brésil”, publicado em 1920
na Revue Musicale, e o capítulo sobre o Brasil em sua autobiografia Notes sans Musique177,
publicada em 1949, nos quais destaca: a familiaridade do grupo com a música moderna178; a
realização de 1as audições de obras francesas modernas (Debussy, Ravel, Satie, Koechlin); a
boa receptividade (1919), nos concertos da SMI, da Sonata para Violino e Piano de Oswaldo
177
Que seria ampliada em 1973, recebendo o título Ma Vie Heureuse.
178
Ainda em 1996, Madeleine Milhaud responderia a uma pergunta de Roger Nichols de como Milhaud havia
tomado contato com a obra de Satie: “[...] Foi através dos Guerra no Rio de Janeiro [...]” (Nichols, 1996: 12, T.
do A.).
73
Guerra, e a declaração de Mihaud, em 1920, de que Nininha e Oswaldo Guerra representavam
Campos179, e tristes como a morte “serena” da mulher do “vieux professeur” Leão-Veloso (em
chegada dos Guerra em Paris, é acompanhada de perto por amigos de Milhaud, o que se
Darius está em Aix. Nininha está a ponto de partir para a Borgonha. Ela está
esgotada e tem muita necessidade de cuidar de seus brônquios [...] [Poulenc a
Cocteau, VII/1921];
[...] voltei muito depressa por causa da doença de Perruche. Você não pode imaginar
que coisa assustadora ela está [...] Ela conseguirá vencer esta crise ou será que isto
179
Ver no Volume II, Anexo V, seção “Fotos”: fotografias de Claudel e Milhaud com os Guerra, em Campos,
por ocasião do Armistício.
180
Ver Claudel (1968: 425-6): “[...] mort de sainte de la femme du vieux professeur de musique Leão-Veloso, en
soignant les pauvres. Elle demande qu´on leur donne le prix de tous ses bijoux. Sa fille, la pauvre petite
Perruche, morte de phtisie galopante à Paris em 1921, a le délire, elle se croit en enfer, et voit tout son corps
pourri, ses organes jetés ça et lá. Le corps de sa mère, au contraire, elle le voit comme un ‘amas de pétales de
rose’ [...]”. “Perruche” era o apelido dado por Claudel a Nininha, e adotado por Milhaud e Cocteau.
181
A excelente edição da correspondência Cocteau-Milhaud, realizada por Pierre Caizergues e Josiane Mas
(1999: 61, T. do A.), contém as seguintes informações, entretanto, com um equívoco a respeito das
circunstâncias da vinda de Nininha à França: “[...] este apelido [Perruche] designa Nininha Veloso-Guerra,
pianista que Milhaud havia conhecido durante sua estada no Rio. Ela tocou várias obras de Milhaud em primeira
audição e o acompanhou quando voltou a Paris em 1918. Ela morreu no Hospital da Pitié, em 15/XI/1921”.
74
se tornará uma lenta e longa agonia [...] Vou todos os dias ao hospital ver a pobre
Perruche que sofre tanto [...] [Milhaud a Cocteau, VIII e IX/1921];
Quanto a Oswaldo Guerra, toda a sua atividade a partir dos anos 1920 se
desenvolveria na França, onde muitas de suas obras foram publicadas por editoras prestigiosas
(por exemplo, Max Eschwig, Heugel, Jobert) e apresentadas regularmente - até os anos 1970 -
reprodução dos comentários feitos por Milhaud a respeito de sua experiência brasileira no
capítulo sobre o Brasil, em Notes sans Musique, e na sua resenha de 1920 sobre o Brasil, na
Revue Musicale, que foi traduzida quatro anos mais tarde para o português em Ariel (1924).
Godofredo Leão-Veloso nos 150 Anos de Música no Brasil (1956: 130) e em textos
182
Em VII/1921, Poulenc escreve a Cocteau (Chimenes, 1992: 131): “Darius est à Aix. Nininha est sur le point
de partir en Bourgogne. Elle est très lasse et a beaucoup besoin de soigner ses bronches [...]”. Em agosto,
Milhaud escreve a Cocteau (Caizergues & Mas, 1999: 60-4): “Je suis revenu très vite à cause de la maladie de
Perruche. Tu n´imagines pas quelle effroyable chose elle est [...] Surmontera-t-elle cette crise ou est-ce – que
cela va être une lente et longue agonie [...]”; em setembro, ele escreve: “[...] Je vais chaque jour à l´hôpital voir
la pauvre Perruche qui souffre tant [...]”; em resposta, Cocteau escreve a Milhaud: “[...] Tendresses à Perruche
[...]”.
183
“Les Manuscrits de Pélleas et Mélisande de Debussy” - Carnets critiques/Revue Musicale.
75
biográficos sobre Villa-Lobos já mencionados anteriormente (Mariz, 1967; Nóbrega, 1969).
Lobos, associada à primeira audição mundial das peças para piano “Valsa Mística”,
Godofredo é incluído (juntamente com Alfredo Bevilacqua e Luigi Chiaffarelli) entre “os
mestres de grande valor” (Almeida, 1926: 219) no ensino do piano, enquanto Nininha e
[...] O Sr. Oswaldo Guerra, ainda pouco conhecido entre nós, é autor de
composições muito apreciáveis, e com uma emoção nova; Nininha Leão-Veloso
Guerra que não só era uma compositora deveras interessante, mas, sobretudo, uma
intérprete admirável dos modernos, em cuja obra a sua sensibilidade criava novas
emoções e se revelava do mais alto subjetivismo [...].
referências a Godofredo dizem respeito à “Escola de Música” (1926: 600) que fundou, e sua
participação nas atividades do “Club Beethoven” (1926: 548), enquanto Nininha recebe um
184
Luiz Heitor se refere a essa 2ª edição (529 págs e 151 textos musicais) como: “Obra capital para o
conhecimento do folclore musical brasileiro e história da música artística brasileira. A 1ª edição foi publicada em
1926, pelos mesmos editores com 238 páginas. A atual edição é antes um livro novo, com muita matéria nova e
nova redação de muitas partes já incluídas na primeira, do que uma ‘2ª edição correta e aumentada’”. (Corrêa de
Azevedo, 1952: 19).
185
No Capítulo III, se verá que Cernicchiaro participou ativamente como intérprete nos “Concertos Íntimos”
promovidos por Godofredo.
186
No capítulo dedicado a pianistas brasileiros, ele escreve: “[...] una delle piú notevole pianiste é Maria
Virginia Leão-Veloso. Si trata di un talento che in poco tempo há ottenuto l´onore di portare la palma fra tante
pianiste sue contemporanee. Nininha Veloso-Guerra [...] era la pianista che arrichiava di poesia e di luce ogni
concetto sublime della musica ideale. Ma le sue dita, fatte per eseguire le cose angeliche, cerca di preferenza
impiegarle a fare onore ai rivoluzionari ed anarchici maestri dell´arte pianistica del momento, credendo cosi
76
[...] Dentre os pianistas [brasileiros] Maria Virgínia Leão-Veloso é um dos mais
notáveis. Trata-se de um talento que em pouquíssimo tempo passou a ombrear com
os maiores dentre os seus contemporâneos. Nininha Veloso-Guerra [...] enriquecia
de luz e poesia qualquer obra musical em que estivessem presentes o sublime e o
ideal. Seus dons, destinados para a execução de coisas angelicais, preferiu empregá-
los para homenagear os mestres revolucionários e anárquicos da arte pianística do
momento, pensando dessa forma juntar o mais elevado grau de excelência com a
divulgação de uma arte absurda e detestável. Infeliz idéia num coração feito de
gentileza e sentimento, feito para dar realce às mais belas inspirações de Mozart, de
Beethoven, e de outros nobres engenhos. Mas, abstração feita dessa idealização
deplorável, Nininha Veloso-Guerra sempre chamará a atenção sobre si, cada vez que
seu espírito estiver em contato com o verdadeiro gênio inspirado, que ela saberá,
como poucos, interpretar. Compositora, escreveu páginas graciosas, tais como
“Spleen” para canto, e outras peças para piano [...]
[em nota de rodapé posterior ao texto acima, adicionaria a seguinte observação:]
Morreria na flor dos seus anos em Paris em 1921.
dedicaria, numa conferência proferida em 1940 em Lisboa sobre a música moderna brasileira
admirativos sobre sua obra, lamentando “a perda que representava seu desaparecimento” (sic:
Oswaldo Guerra só viria a falecer em 1982). Esse texto, além de sua importância intrínseca, e
de sinalizar a que ponto Oswaldo Guerra estava afastado da cena brasileira, é extremamente
significativo por consistir na única “entrada” registrada por Mário de Andrade, em seus
quanto documental foi a “Exposição Milhaud” - da qual foi feito o Catálogo - organizada em
1977 na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, por Mercedes Reis Pequeno, que:
giungere al piu alto grado di excellenza con la propaganda di un arte assurdo e detestabile. Infelice idea in un
cuore fatto di gentilezza e di sentimento per dare rialzo alle piú belle ispirazione di Mozart, di Beethoven, e di
altri nobile ingegni. Ma, astrazione fatta di questa diplorevole idealitá, Nininha Veloso-Guerra richiamerá
sempre l’attenzione su di sé, quando il suo gênio si troverá in contatto col vero gênio ispiratore, che ella saprá,
come poche, interpretare. Compositrice, scrisse graziosi pagine: ‘Spleen’ per canto ed altri pezzi per pianoforte
[...]”. Cernicchiaro adiciona a nota de rodapé: “moriva nel fior degli anni a Parigi nel 1921”.
77
a) reconstituiu, admiravelmente, a multiplicidade do ambiente musical
valor documental.
[1977] e Bruno Kiefer [1981]. Os três se apóiam nos textos de Milhaud, sendo que Wisnik faz
uma rica articulação destes com a documentação mais recente também apresentada na
histórica brasileira.
78
Pretende-se, nos próximos capítulos - especialmente com o auxílio da
79
80
81
82
III
3.1 - INTRODUÇÃO
Nininha Veloso-Guerra, após seu casamento com o compositor Oswaldo Guerra - teve uma
carreira tão fulgurante quanto breve. De fato, no curto período compreendido entre 1907 e sua
morte em Paris em 1921, com 26 anos de idade, ela havia deixado uma impressão profunda
nos seus contemporâneos: escritores como Paul Claudel e Jean Cocteau; compositores como
Darius Milhaud, Francis Poulenc e Heitor Villa-Lobos; intérpretes como Arthur Rubinstein187;
187
O jornal A Notícia reporta a seguinte observação a respeito dos Guerra: “Falando-se em música moderna,
Rubinstein não esqueceu de mostrar toda a sua admiração pelo casal Oswaldo Guerra, para quem a música
moderna não tem segredos, louvando com grande entusiasmo a admirável artista que é a Sr.ª Nininha Velloso-
Guerra, intérprete admirável.” (01/VII/1918). O Arquivo Paul Guerra possui uma foto autografada de Rubinstein
para Nininha com os seguintes termos: “À Madame Guerra, avec beaucoup d´admiration et amitié. Rio, 1918,
Arthur Rubinstein”.
188
Violinista italiano (1858-1928), crítico de tendências conservadoras: “Deixou várias composições para canto,
violino e orquestra, mas a sua contribuição fundamental para a música brasileira foi a Storia della Musica nel
Brasile publicada em Milão, Itália, em 1926, onde estuda a música brasileira desde os tempos coloniais até a sua
época” (Marcondes, 1977: 184).
83
De Villa-Lobos, ela é a dedicatária de “Kankikis”, a 3ª peça das Danças
Africanas, cuja primeira audição foi realizada por ela em 1919, sendo que o compositor
também escreveu – em 1921 - o esboço de uma obra em sua memória intitulada “Homenagem
a Nininha”; de Darius Milhaud, ela é dedicatária de peças das coleções para piano Printemps
e Saudades do Brazil (das quais realizou parcialmente a primeira audição mundial, no Rio e
em Paris), da Sonata para piano e instrumentos de sopro e do 5º Étude para piano e orquestra.
intenso envolvimento com a música moderna, fato que refletia sua dupla condição de pianista
anos a vinda ao Rio de Darius Milhaud, dos Ballets Russes e de Arthur Rubinstein, e fica
189
Crítico musical (1857-1939) do “Jornal do Commércio”. Ativo defensor das novas tendências musicais,
representadas por Alberto Nepomuceno, Glauco Velásquez e Villa-Lobos.
190
Musicólogo brasileiro (1895-1981), autor de História da Música Brasileira, cuja 2ª edição (1942) é um
clássico da musicologia brasileira, omitindo, entretanto, os nomes de Godofredo, Oswaldo e Nininha,
elogiosamente mencionados na 1ª edição de 1926. Tornar-se-ia uma das maiores autoridades brasileiras nos
estudos do Folclore. Ver notas biográficas em Marcondes (1977).
191
Compositor e crítico francês (1881-1984) que se tornaria um grande amigo e suporte de Heitor Villa-Lobos,
em Paris (ver correspondência de Paul Le Flem para Heitor Villa-Lobos no Museu Villa-Lobos, no Rio de
Janeiro).
192
Compositor e crítico francês (1891-1968). Segundo Rostand: “Foi dito que ele poderia ter sido o sétimo do
“Grupo dos Seis”, porém possuía senso crítico demais e tinha um temperamento demasiado clássico para
assumir tal engajamento [...] Ele compôs num estilo neoclássico extremamente rigoroso e às vezes influenciado
por Ravel, de quem ele foi o amigo e musicógrafo”. É também conhecido o fato de que foi a ele que Stravinski
confiou a redação final da Poética Musical, série de 6 conferências que proferiu em Harvard em 1942.
193
Antonieta Rudge-Miller, junto com Guiomar Novaes, foi a mais famosa aluna de Luigi Chiaffarelli., e a partir
de 1904, a primeira difusora no Brasil da obra pianística de Debussy e Ravel. Grande amiga de Villa-Lobos, que
lhe dedicou o “Miudinho” (4º movimento da Bachiana Brasileira nº. 4) participou com ele, Lucila Villa-Lobos e
João de Souza Lima da “Excursão artística” que estes realizaram em dezenas de cidades no interior paulista,
durante a gestão de João Alberto em 1931-32.
194
Considerada uma das maiores pianistas do século XX. Após estudar com Luigi Chiaffarelli, em São Paulo,
estudou no Conservatório de Paris com Isidore Philipp.
195
Pianista franco-brasileira, tendo estudado no Conservatório de Paris com Alfred Cortot, tornou-se em 1937 a
sucessora de Isidore Philipp em sua cátedra no Conservatório.
84
aparente em composições como a coleção para piano Com as Crianças (1913); Spleen para
canto e piano (1914); Berceuse, Minuete, Nocturne para orquestra (1916-1917). Mais tarde,
seus esboços de uma peça para 2 pianos com o título Variations peu sérieuses sur un thème
sua sintonia com o espírito do Groupe des Six, aliás assinalada pelo próprio Milhaud:
“Nininha Veloso Guerra [...] representa com seu marido Oswaldo Guerra [...] o elemento mais
jovem, o mais avançado e particularmente identificado com as obras do “Grupo dos Seis”.
uma excelente pianista com uma excepcional capacidade de leitura à primeira vista da música
particularmente evidenciada por sua capacidade de transcrição para piano a 4 mãos de obras
son Désir, uma das obras-mestras da primeira metade do século XX, caracterizada por uma
Passei oito dias muito agradáveis em Nova Iorque. Lá, reencontrei Rubinstein.
Tentei fazê-lo ler as Euménides à primeira vista. Ele acabou deixando o piano,
sentando no chão e dizendo com gestos de desespero: “Eu aposto cem mil dólares
que a Sr.ª Veloso-Guerra não consegue decifrar isto , se eu perder, eu me darei dois
tiros de revólver”.
196
O “thème serieux” é o 1º tema do movimento inicial do 4º Quarteto de cordas de Milhaud, composto no Rio
de janeiro em 1918, para o qual Nininha havia realizado uma transcrição para piano a 4 mãos.
197
Ver Drake, citado no Capítulo II.
198
Carta de Milhaud aos Guerra, datada de 08/II/1919: “J´ai passé huit jours très agréables à NewYork. J´y ai
retrouvé Rubinstein. J´ai essayé de lui faire déchiffrer les ‘Euménides’. Il a fini par quitter le piano, s’assoir par
terre et dire avec des gestes de desespoir: je parie 100.000U$ que Mme Velloso-Guerra ne peut pas dechiffrer
ça, et si je perds je me tire deux coups de revolver”.
85
3.1.2 Godofredo Leão-Veloso e Música Moderna
grande parte - da educação musical recebida de seu pai, Godofredo Leão-Veloso. Segundo
Milhaud, ele havia treinado Nininha “para tocar muita música contemporânea, cujo gosto ele
inculcava em todos que o cercavam, sua filha, seus alunos199 e até mesmo seu cachorro que
respondia pelo nome de Satie” (Milhaud, 1949:89); e chegava a fazer seus alunos estudarem
Decaux200, como Clairs de Lune (Milhaud, 1920:60), sendo sempre apontado, na crônica
Godofredo por seus contemporâneos, que contrasta com o seu esquecimento subseqüente,
199
A familiaridade dos Veloso-Guerra com o repertório do modernismo francês fica patente através da coleção
de partituras de Godofredo, conservada na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (onde se destacam as primeiras
edições de obras para piano e canto de Debussy, Ravel e Satie, às quais se adicionariam posteriormente as
partituras com dedicatória de Milhaud).
200
Claude Rostand o considera “um verdadeiro precursor: antes dos vienenses Hauer e Schoenberg, ele praticou
um atonalismo surpreendente em ‘4 Clairs de Lune’ [...] Enquanto as ‘lunologias’ de Schoenberg se expressam
dentro de um atonalismo violentamente expressionista, as de Abel Decaux pertencem a um atonalismo que
poderíamos chamar ‘impressionista’ (com todas as precauções que implica o uso deste vocábulo)” (Rostand,
1970: 75, T. do A.).
201
A “História da Música Brasileira” de F. Aquarone contém uma foto de Godofredo Leão-Veloso em
companhia de Rodrigues Barboza e Barroso Neto [Acquarone, 1946: 256], que está reproduzida no Vol. II,
Anexo V, seção “Fotos”.
86
A única referência biográfica que pode ser encontrada na bibliografia é
uma curta notícia no “Suplemento biográfico dos músicos que influíram em nossa cultura
musical do XVI ao XIX século”, último capítulo do livro Origem e evolução da música em
Portugal e sua influência no Brasil, de Maria Luiza de Queiroz Amâncio dos Santos (1943):
87
estudo e a prática. Durante algum tempo exerceu a direção interina do nosso
primeiro estabelecimento de ensino musical [...] se dedicou à anotação das peças do
programa oficial do Instituto [...] havendo [...] várias edições de música com
explicações, [...] dedilhação por ele determinada e numerada. O “Correio da
Manhã” teve-o no número de seus colaboradores, sendo-lhe confiada a crítica
musical em certo período [...]. O Dr. Godofredo Leão-Velloso era pai da distinta
virtuose do piano e compositora Nininha Leão Velloso Guerra, falecida não há
muito em Paris [...].
Guerra. Essa atividade inicia-se no Rio, em 1907 (quando ela tinha onze anos de idade) e
termina em 1921 (ano de sua morte) em Paris, com seu recital na Salle Pleyel.
1917)
1907 (24/VII, 21/VIII, 18/IX), nos quais figura, juntamente com o título de “Concerto
Debussy). Ainda que esses três programas correspondam a uma amostragem pequena, eles
bem refletem a importante mudança no gosto e repertório musicais, introduzida por grandes
88
professores como Alfredo Bevilacqua205, no Rio, e Luigi Chiaffarelli206, em São Paulo, os
observa-se que Maria Virginia – com onze anos de idade - acompanha Cernicchiaro em
Sonatas para piano e violino de Mozart, e apresenta um repertório pianístico com obras de
205
Pianista e pedagogo brasileiro (1846-1927). Segundo Enciclopédia da Música Brasileira (1977:93): “Foi
nomeado o primeiro catedrático de seu instrumento, tendo sido o fundador da moderna escola pianística
nacional. No I.N.M., aboliu as fantasias de ópera e pots-pourris, incluindo no repertório as Sonatas [de
Beethoven, Chopin, Schumann]”.
206
Pianista e pedagogo italiano (1856-1923). Segundo Enciclopédia da Música Brasileira (1977: 188): “Em
junho de 1883, veio para o Brasil, fixando residência em São Paulo, onde exerceu o magistério durante 40 anos.
Teve intensa atuação na vida musical paulistana, lançando os fundamentos de uma escola de piano que marcou
época. Formou inúmeros pianistas, entre os quais Francisco Mignone, Guiomar Novaes, Antonieta Rudge e
Souza Lima”. A tese de Maria Francisca Junqueira (1987) reproduz no seu anexo os programas dos “Concertos
Históricos”, promovidos, em São Paulo, por Chiaffarelli e tendo principalmente como intérpretes os seus alunos.
Neles observa-se, a partir de 1904, a apresentação freqüente de obras de Debussy e Ravel. Dele diria Rubinstein:
“Um grande professor de piano [...] Um homem de grande inteligência, falando quatro línguas fluentemente,
muito lido e com uma vasta compreensão dos problemas humanos e das questões mundiais [...] Tinha um
89
[...] à sombra, ou antes, à claridade desse espírito superior e desse temperamento
fino de artista, que é o Dr. Godofredo Leão Veloso, cresce e se desenvolve uma
aptidão evidente de musicista que é a sua filhinha Maria Virginia. Se não é uma
menina prodígio, porque para isto lhe faltam poses com que se fazem o reclamo, é
verdadeiramente uma criança prodigiosa. Menina de onze anos, é notável a intuição
artística - essa causa raríssima - com que Maria Virginia interpreta, porque os ama e
os sente: Bach, Mozart, Beethoven, Chopin, Wagner ou Schumann. Pianista já há
alguns anos [...] é hoje uma conhecedora completa do seu instrumento [...] como
intérprete é d’um sentimento e d’uma correção notáveis [...].
dos Empregados do Comércio (29/V/1909, 20/II/1910, e uma data não especificada em 1911)
repertório desses concertos procura equilibrar períodos distintos da história da música (de
d’Indy), Gabriel Pierné, Gabriel Fauré e Debussy (Arabesques e Jardins sous la Pluie para
piano, Mandoline para canto e piano). Maria Virginia consta entre os participantes desses
concertos (nos quais, juntamente com outras alunas de Godofredo, encontram-se artistas
profissionais como Henrique Oswald, Alberto Nepomuceno, Artur Napoleão, Barroso Neto,
Larrigue de Faro, Berthe Janin). Sua participação se dá como solista (Bach, Chopin, Liszt,
Deve-se observar que, no concerto de 29/V/1908, ela já aparece como “compositora”, com a
fabuloso senso de humor. Nós ficamos amigos durante a minha primeira visita [...] e assim ficamos pelos anos
seguintes” (citado em Sachs, 1996: 174, T. do A.).
90
Entretanto, é no período 1914-1916 que se define, com uma maturidade
precoce, o perfil de Nininha, não mais a “menina Maria Virginia”, mas uma pianista
assumido pela música moderna, do qual é um exemplo seu primeiro recital, realizado em
Chopin.
contém cópias das críticas dos seguintes jornais: “Gazeta de Notícias” (25/VIII), “A Epocha”
(26/VIII) e “Careta” (02/IX). Dois anos antes, em 1914, Nininha havia dado a primeira
audição brasileira das Danses Sacrées et Profanes de Debussy, para piano e orquestra, sob a
[...] A Senhorinha Leão Veloso, filha e discípula de um artista de escol [...] soube
firmar definitivamente seu nome de artista de temperamento e de ideais,
interpretando, com uma riqueza de meias-tintas da mais deliciosa palheta, aquela
mimosa produção debussyana [...] que afirma eloqüentemente a convergência dos
modernos objetivos da música francesa na musa admirável do criador de Peleas e
Melissandra. Aplaudida com grande calor pelo auditório, [...] a talentosa pianista
foi chamada por vezes ao proscênio para receber novas homenagens de seus
admiradores.
207
Cuja 6ª peça “Golliwogg’s cake walk” é freqüentemente citada na literatura villa-lobiana como a principal
influência sobre as Danças Africana; e indicada por Luciano Gallet como tendo fornecido o plano do seu Tango-
Batuque para orquestra, datado de 1919 (Gallet, 1934: 106).
91
Nininha apresentou-se como compositora em dois concertos, ambos no
Salão Nobre do Jornal do Commércio, apresentando Spleen para canto e piano (16/IX/1914),
professor de canto Carlos de Carvalho208. Nesse concerto, Nininha também apresentou três
(25/VI/1914):
[...] Seguimos com interesse o deslizar daqueles seis esboços, todo perfume,
fantasia, garridice. Ouvimos as modulações abruptas, as escabrosidades
harmônicas, as quintas que fazem torcer o nariz aos teóricos, as dissonâncias
irreverentes, as passagens iconoclastas, mas a senhorita Maria Virginia dilui tudo
isso numa deliciosa policromia de sons acariciadores que reconciliam ouvidos
menos acomodatícios [...].
[...] A senhorita Maria Virginia é uma decidida modernista; percebe-se logo nos
primeiros compassos do primeiro número, e o seu modernismo vai
assombrosamente se afirmando, avultando e elevando tudo de vencida: fórmulas
métricas, harmonias e ritmos. As modulações, algo rebuscadas, revelam o
deliberado intuito da compositora de evitar, o mais possível, a melodia do antigo
molde. A teoria debussyana, o catecismo de Vincent D’Indy, com todas as audácias
harmônicas que vêm minando o vetusto edifício, abriram brecha no espírito da
compositora, a qual é por hora noviça da nova religião.
208
Carlos de Carvalho é elogiosamente mencionado por Milhaud em sua resenha de 1920 sobre a vida musical
no Brasil, dizendo que: “O professor Carlos de Carvalho realiza freqüentemente recitais de canto com melodias
de Debussy e Ravel” (Milhaud, 1920: 60, T. do A.).
92
Veloso, possui um sistema nervoso de tão fina vibratilidade, que ele chega a perceber a vida
condicionar seu estilo interpretativo, se reflete nos seguintes comentários do crítico Oscar
[...] Não é uma pianista brilhante, nem se lhe nota a sonoridade pomposa visando os
grandes efeitos: o seu tocar revela todas as qualidades que devem ser exigidas de
um pianista. É grande a sua agilidade, dispõe de muita força [...] o seu teclado é
aveludado e as suas escalas e passagens são nítidas e ‘perlées’. No entanto, não são
esses os característicos da pianista quando interpreta Beethoven ou Schumann,
Chopin ou Liszt, Oswald ou Debussy. A sua feição artística é o resultado de um
grande talento aplicado ao piano [...] Esse grande talento manifesta-se não ao piano
como virtuose, mas como compositora - o que é raro entre senhoras [...] Percebe-se
que as suas produções, sem que sejam cópias, recebem a influência de Debussy, e
era como compositora que devia ser apresentada ao público dessa capital.
Conhecendo-se a compositora, a sua inclinação, a tendência do seu talento e da sua
imaginação criadora, é que se pode perceber que a pianista executa os outros
autores através desse seu modo de sentir e produzir [...] O que desejamos é vê-la de
novo em público, mas como compositora. Não terá talvez tantos aplausos do
auditório, mas terá mais admiradores de seu grande talento, entre os quais se
inscreve o signatário destas linhas.
209
Os comentários de Guanabarino, não obstante seu tom elogioso, poderiam ser interpretados como uma ironia
de duplo sentido: ao considerá-la essencialmente uma compositora, ele a desqualifica como pianista
(contrariamente ao resto da crítica, unânime em consagrá-la como uma grande pianista). Como as composições
de Nininha, até então apresentadas ao público (Com as Crianças e Spleen) eram fortemente marcadas pelo
modernismo francês, pode-se duvidar da sinceridade da admiração de Guanabarino. Pode-se observar, pelo tom
da “carta aberta”, dirigida por Godofredo ao “Jornal do Commércio”, de 30/I/1925, com o título “Ainda sobre o
meio pedal”, a frieza do relacionamento entre ele e Guanabarino: “Senhor Diretor do Jornal do Commércio: é
notória a insistência com que o colaborador do Jornal do Commércio, Sr. Oscar Guanabarino, nos folhetins
semanais que trazem a epígrafe ‘Pelo mundo das artes’, agride sistematicamente o Instituto Nacional de Música
e o grupo de seus professores. Antes de mim, foram muitos injuriados e caluniados. Houve mesmo um que,
mesmo depois de morto, quando o seu nome se achava inscrito nas páginas da nossa história, como o de uma
figura gloriosa que fora arrebatada das míseras contingências humanas para o respeito e admiração da
posteridade, teve a sua memória ultrajada [Godofredo refere-se a Alberto Nepomuceno]. Chegou a minha vez. A
princípio eram leves referências tímidas como se houvesse receio de uma reação violenta ou de um desforço para
reparação de afronta. O meu silêncio, porém, indicador de uma compostura digna e do respeito que devo a
quantos me conhecem, animou a protérvia e vieram as diátribes. Nada disso conseguiu irritar-me: entretanto,
apenas no interesse da arte e dos que estudam e aprendem, assim como no empenho de demonstrar a ignorância
dos que se empavonam com uma autoridade docente que lhes falta, sou obrigado a solicitar a hospedagem
fidalga do Jornal do Commércio para, do alto de suas próprias colunas, demonstrar a inanidade dos aleives que
me assacou o seu colaborador. Eles são numerosos e serão todos demolidos já que me abalancei ao propósito de
restabelecer as coisas na sua existência real [...]”.
93
TABELA 3 - CONCERTOS COM PARTICIPAÇÃO DE NININHA VELOSO-GUERRA
RIO DE JANEIRO: 1907 – 1916
OUTROS MÚSICA
ATA LOCAL MÚSICOS MODERNA OBRAS JORNAIS
1907 24/VII "Conc. Íntimos" Cernichiaro Diário de Noticias: 26/VII
21/VIII (res. GLV) Cernichiaro Debussy Arabesques
18/IX Cernichiaro Debussy Arabesques
1908 ? /IV Larrigue de Faro Larrigue de Faro Debussy Arabesques Diário de Notícias: 18/IV
(residência) Maria Siqueira Debussy Estampes n.3
Edgardo Guerra Debussy Mandoline
Álvaro Oliveira Fauré Les Berceaux
Fauré Apres un reve
Nepomuceno (duas 1ªs aud.)
? /VI Larrigue de Faro Larrigue de Faro Debussy Arabesques Gazeta de Notícia: 8/VI
Jeanon &Suzette J. do Comércio: 8/VI
22/XI I. N. de Música Larrigue de Faro Debussy Mandoline
Maria Siqueira Pierné Le sais-tu bien?
Jeronymo Silva
1909 29/V Ass. Emprega- Edg. Guerra Ballade
dos Comércio
1916 23/VIII Salão Nobre [ recital] Debussy Children´s Corner Gazeta de Notícias: 25/VIII
J. do Comércio Turina Sous les orangers A Epocha: 24/VIII
A Noite: 24/VIII
O Imparcial: 25/VIII
A Notícia: 24/VIII
C. da Manhã: 24/VIII
J. do Com.: 24/VIII
J. do Brasil: 26/VIII
O Jornal: 26/VIII
Careta: 2/IX
94
3.2.2 Concertos realizados com o concurso de Darius Milhaud (1917-1918)
série de concertos extremamente significativos, entre junho de 1917 e outubro de 1918, nos
quais uma parte importante do mais novo repertório francês (com as Sonatas de câmara de
Debussy e o Trio de Ravel, assim como obras de Koechlin e Milhaud), foi apresentada no
Brasil.
Debussy“ de maio de 1918, realizado no Salão Nobre do Jornal do Commércio “em favor dos
feridos dos exércitos francês e inglês”. A respeito desse Festival, as críticas foram
A morte desse artista gigante que foi Claude Debussy, a cujo espírito genial deve a
música francesa à reforma por que passou nos últimos anos [...] não poderia ficar,
no nosso meio, assinalada pela comemoração efêmera de apenas meia dúzia de
referências feitas nos jornais. Era preciso que uma homenagem mais solene se lhe
fizesse à memória imortal [...] Daí o Festival de ontem, para cuja realização
ninguém, com mais justiça estava naturalmente apontado, do que aqueles que, entre
nós, foram os maiores paladinos do ideal de Debussy, os maiores propagandistas de
sua obra, os mais fervorosos devotos do novo culto musical: o Dr. Godofredo Leão-
Veloso, espírito dos mais eminentes profissionais que não deslustraria a sua cadeira
nos mais adiantados centros artísticos do mundo, como bem alto vem de proclamar
a própria França, com as “palmas acadêmicas” com que acaba de condecorá-lo: e a
senhora Nininha Veloso Guerra, a nossa maior intérprete de Debussy, compositora
que à sua escola se filiou como uma das mais talentosas discípulas; e outras
produções se caracterizam pela inspiração, pela singeleza e pela sua graciosa
concepção.
95
Numerosas primeiras audições resultaram desse conjunto de concertos:
e “ Arpeges Composés” );
mãos, e a Sonatina;
96
A participação de Nininha nesses concertos foi predominante, tanto como
solista (obras de Debussy, Ravel, Oswaldo Guerra, Koechlin e Deodat de Severac, assinaladas
Poire de Satie210;
Trois Chansons de France, Noel pour les Enfants qui n´ont plus de Maison
Noir para piano a 4 mãos, de Debussy, com seu pai Godofredo Leão-
Gomes.
210
Na entrevista (O.R.T.F., 1978) de Oswaldo Guerra a Francine Bloch e Madeleine Milhaud, Oswaldo e
Madeleine elogiam a qualidade da sonoridade de Milhaud ao piano (sonorité de compositeur, segundo
Madeleine), apesar do seu instrumento ser o violino (no qual, surpreendentemente Madeleine Milhaud declara
que ele era apenas correto).
97
.
TABELA 4 - CONCERTOS REALIZADOS COM O CONCURSO DE DARIUS MILHAUD (1917-18)
OUTROS MÚSICA
DATA LOCAL MÚSICOS MODERNA OBRAS JORNAIS
1917 30/VI Salão Nobre D. Milhaud M. Ravel Sonatina J. do Comércio: 1/VII
J. do Comércio Nascimento Fo D. Milhaud Sonata piano/2 viol. A Noite: 3/VII
H. Oswald C. Koechlin Ch. Pommiers en fleur J. do Brasil: 2/VII
M. Caminha C. Koechlin Ch. De pecheurs Gazeta de Notícias: 2/VII
Nepomuceno Miracle de la Semence
(1ª aud.)
Nininha V. G. Com as Crianças n. 2
Oswaldo G. Au coeur les souvenirs
pleurent confusemment
7/VII Lycée Français C. de Carvalho D. Milhaud 2a Sonata piano/ violino J. do Comércio: 6/VII
D. Milhaud D. Milhaud 2 Poemes de Tagore ? : 8/VII
M.A. Moura Castro Debussy Noel pour les enfants
Eric Satie Morceaux en forme de poire
9/VII I. N. de Música D. Milhaud D. Milhaud Sonata piano/2 violinos
M. Caminha
24/III Palácio Cristal
1918 (Petrópolis) D. Milhaud D. Milhaud 2a Sonata piano/ violino Correio da Manhã: ?
98
3.2.3 Concertos de Nininha Guerra, após a partida de Darius Milhaud (1919)
nascimento de seu segundo filho - uma atividade concertística vinculada à difusão da música
foram:
Debussy);
99
primeira audição mundial – como solista – de três peças do compositor:
apresentadas por outros intérpretes: duas das peças de Com as Crianças pela pianista Heloisa
Accioli de Brito (em 11/XI/1919, em recital no Teatro Municipal), e duas Esquisses para
Darius Milhaud. Portanto, às vésperas de partir para Paris, Nininha era – apesar da sua pouca
idade - uma pianista com quase quinze anos de experiência com música de câmara (que fazia
(quando realizou em 1914 a primeira audição das Danses Sacrées et Profanes de Debussy,
sob a regência de Francisco Braga), dois importantes recitais (1916 e 1919), e participado de
mais de quinze concertos como solista ou em obras de câmara, resultando num extraordinário
(Milhaud, Oswaldo Guerra e Villa-Lobos), realizadas no curto período entre 1914 e 1919.
211
Desde os 11 anos de idade, em 1907, acompanhando Cernicchiaro em Sonatas para piano e violino de
Mozart, e com um repertório de piano já incluindo as Arabesques de Debussy, nos “Concertos Íntimos”
organizados por seu pai.
100
TABELA 5 - DEBUSSY / RAVEL: 1ªS AUDIÇÕES NO BRASIL DE OBRAS PARA PIANO E DE CÂMERA
Chiaffarelli em São Paulo – particularmente da pianista Antonieta Rudge212 - e por outro que,
212
Nos “Concertos Históricos” e “Saraus Musicais”, organizados por Chiaffarelli, Antonieta Rudge havia
apresentado em 5/VIII/1904: “Jardins sous la pluie” das Estampes de Debussy e Feux d’Artifice de Ravel; em
7/IV/1910, a série completa das Estampes; entre 1909-1913, peças das Images e dos 2 cadernos de Prelúdios de
101
diversas primeiras audições realizadas por ela e Nininha, precedem os concertos que Arthur
Rubinstein realizaria no Rio em 1918, conforme refletido nas seguintes críticas de jornais
cariocas:
No Teatro Municipal, ouvimos ontem o Sr. Arthur Rubinstein pela quinta vez,
admirando-lhe sempre as mesmas qualidades de técnica e a variedade da sua
palheta no colorido das sonoridades [...] O célebre pianista fez jus a muitos
aplausos na sarabanda Hommage a Rameau [...] apresentando uma caudal de
alegrias com L’Isle Joyeuse, de que a insigne pianista Nininha Veloso-Guerra
nos deu há pouco tempo, uma impressão inolvidável de brilho, de riqueza de
efeitos policrômicos. (Rodrigues Barboza, “O Jornal”, junho de 1918).
Debussy, assim como a “Alborada del Gracioso” dos Miroirs; em 1913, Gaspard de la Nuit de Ravel. [ver
Junqueira, 1982: Anexos].
102
3.2.4 Concertos Nininha Veloso-Guerra em Paris (1920-1921)
1921 26/I Hotel Majestic Varella-Cid Milhaud Boeuf sur le toit (4 mãos)
(“Une Heure de
Musique”)
Emilia Melo Viana A. Levy Tango Brasileiro
Raul Costa H. Oswald Il Neige
1/II Salle Pleyel Corbiniano Vilaça Oswaldo Guerra Prelude (1920) Roland-Manuel:
3/II
("Concert de Oswaldo Guerra Oswaldo Guerra Oraison
musique brésilienne
et française”)
Debussy Images II: n.3
Debussy Preludes I: ns 4 e5
Chabrier Aubade/Idylle
103
A estada de Nininha em Paris - que terminaria de forma dramática com sua
morte, pouco mais de um ano após sua chegada - começou de forma espetacular: poucos
meses após sua partida do Brasil, participava com destaque no histórico “Premier Concert
donné par le Groupe des Six” na “Galerie Montaigne” (29/XI/1920), dando a primeira
audição mundial de quatro peças das Saudades do Brazil213 (entre elas “Leme”, dedicada a
ela), e tocando a 2ª Sonata para piano e violino de Milhaud, cuja primeira audição mundial
ela havia dado no Rio de Janeiro, em 1917. Nesse concerto, onde foram também realizadas
Nininha e a legendária Marcelle Meyer eram, entre os executantes, os únicos pianistas não
Nos seis meses entre esse concerto e o seu recital na Salle Pleyel
(16/IV/1921), período ao longo do qual seu quadro de saúde foi se agravando, Nininha
Guerra: Hotel Majestic - “Une Heure de Musique” (26/I/1921), Galerie Devambez - “Salon de
além de peças de Alexandre Levy, Henrique Oswald, Chabrier e Chopin - Nininha tocou
214
juntamente com o pianista Varella-Cid a versão a 4 mãos do Le Boeuf sur le Toit , e na
Salle Pleyel conjuntamente com o cantor Corbiniano Vilaça, que cantou uma obra de
Oswaldo Guerra (acompanhado ao piano pelo autor), onde Nininha executou obras de
213
Na conversa radiofônica entre Oswaldo Guerra, Francine Bloch e Madeleine Milhaud, esta declara a
Oswaldo: “Ninguém jamais tocou a Saudades como sua mulher” (O.R.T.F., 1978, T. do A.).
214
Significativamente, com o subtítulo Cinema–Symphonie sur des airs bresiliens, ao invés de Cinema-
Symphonie sur des airs sud-americains, como consta da partitura.
104
Chabrier, Oswaldo Guerra e Debussy; desses concertos, o único no qual apresentou obra sua
foi no “Salon de L’Oeuvre Anonyme”, com uma de suas Esquisses para piano.
o’Clock”:
basicamente moldado em seu último recital no Teatro Municipal: iniciando-se com Franck,
Beethoven, Chopin, e concluindo com L’Isle Joyeuse de Debussy. As poucas alterações foram
215
In Arquivo Paul Guerra: O texto original em francês encontra-se no Volume I, Anexo 1 , seção “ Críticas
França”.
216
Ibid.
105
Na Salle Pleyel, no sábado passado, apreciamos muito o talento de uma jovem
pianista brasileira, a senhora Nininha Veloso-Guerra. Esse talento é feito de senso
de medida, bom gosto, estilo sóbrio e nuance: poucas mulheres interpretando
Chopin, por exemplo, nos habituaram a esta simplicidade elegante que nos
encantou. O programa [...] ia de Beethoven a Francis Poulenc, passando por
Chopin, Franck, Chabrier, Debussy, Darius Milhaud; tivemos a ocasião de
constatar que a artista soube moldar suas belas qualidades para servir com a mesma
devoção às intenções de autores tão distantes entre si [New York Herald,
18/IV/1921].
A Senhora Guerra é brasileira e nós lhe somos devedores fato de ela ter feito
conhecer e apreciar no seu país a maior parte das obras importantes de piano e de
música de câmara dos compositores contemporâneos - de Debussy ao “Grupo dos
Seis”. O programa do recital era extremamente variado [...] A maneira de tocar da
senhora Guerra era inteiramente feito de sutileza e inteligência. O equilíbrio das
sonoridades é quase sempre dosado e mantido com uma segurança que vem da
extrema facilidade de seus dons. Mas foi, sobretudo, na segunda parte do concerto,
que nós tivemos a oportunidade de admirar as suas qualidades, pois consistia de
músicas que convêm especialmente bem ao estilo pianístico da jovem brasileira [...]
[“G. J.”, “Courrier Musical”, 15/VI/1921]217.
representações do balé L’Homme et son Désir em junho de 1921, obra da qual tanto
(considerando-se, notadamente, sua participação no “Premier Concert des Six”), no Brasil ela
teve uma grande significação: poucos artistas brasileiros terão tido um papel, na difusão da
música de seu tempo (no caso, a música de Debussy e da moderna escola francesa),
comparável à que desenvolveu nos seis anos entre 1914 e 1919, tornando-se ao mesmo tempo
106
um ponto de referência importante no desenvolvimento de dois jovens compositores que
da 1ª Guerra Mundial, era ao mesmo tempo resultante de sua participação na realização desse
Nininha:
217
Ibid.
218
Dentre as poucas declarações de Nininha a esse respeito, recolhidas na imprensa, podem ser destacados os
seguintes trechos de entrevista (em “A Época”, 19/VI/1918): “Não existe dissonância [em Debussy]; a música de
Debussy é música e a melodia destaca-se pertencendo ao mesmo tempo ao conjunto e vivendo com ele,
integralizando-se e tomando naturalmente o relevo próprio e inconfundível. A primeira condição para se
executar bem um trabalho de Debussy é não o julgar difícil, incompreensível. Não pode bem interpretar quem
tem preconceitos: o preconceito aniquila o sentimento. Penso que a música de Debussy será em pouco tempo
considerada clássica [...] Em Debussy não existem rubatos, frases brilhantes, exageros, e sim sentimento e
emotividade. Às vezes ele exige contrastes, contrastes que devem ser seguidos, pois tudo na sua música vêm
naturalmente e vive na sua harmonia e na sua elegância [...]”. O jornalista Virgílio Maurício comenta a respeito
de Ravel que: “Existem quem afirme que a obra do ilustre compositor é um reflexo positivo daquela de Debussy,
o que é falso. Existe apenas uma influência, e que não é de admirar”. Ao que Nininha responde: “A estética de
Ravel e o seu ponto de vista melódico diferem totalmente do de Debussy”.
107
Com menos de 20 anos de idade, em 1913, Maria Virginia Leão-Veloso
compôs uma coleção de peças para piano intitulada Com as Crianças editada pela casa
apresentando características francamente modernistas (ver Exemplos 12a, 12b, 12c, págs. 125
a 128) Apesar de sua composição ser contemporânea das coleções infantis de Villa-Lobos
Petizada, Brinquedos de Roda e Suíte Infantil, essas só seriam publicadas após a Primeira
Guerra Mundial.
Crianças (1913, ed. Arthur Napoleão), e se utilizam de escala de tons inteiros, atritos bitonais,
108
Exemplos 7c – peça n. II: “Com as Bonecas em Dança”, compassos 48-49
109
Exemplos 8b – peça n. III: “Histórias da Babá”, compassos 9-12
3.3.2.1 Juvenilia
No Arquivo Paul Guerra, existem três curtas peças datadas de 1906 e 1907,
portanto, escritas por Nininha entre os 11 e 12 anos de idade. Dentre essas peças, duas são
escritas para piano: a primeira (datada de 1906), em ritmo ternário (evocando uma
110
compassos, é claramente uma “Musette”, evocando a gaita de fole, com o característico drone
para voz e trio de sopros, foi apresentada em 1908 pelo cantor Larrigue de Faro – a quem é
dedicada – acompanhado ao piano por Nininha. O aspecto mais notável, no caso específico
dessa peça, é primeiramente o seu relativo grau de complexidade: escrita para voz e
treinar um aluno – no caso, numa idade tão precoce – a pensar simultaneamente o plano da
chegada de Darius Milhaud ao Brasil. Os manuscritos das três peças revelam uma
característica comum: a de serem inicialmente concebidas numa particella, para dois pianos.
No caso das duas primeiras peças, Berceuse e Minuete, os manuscritos para piano a 4 mãos e
para orquestra estão completos, enquanto a terceira peça – a mais desenvolvida – está
incompleta e contém apenas a versão para piano a 4 mãos (ainda que com numerosas
para uma orquestra de vários naipes: Cordas (1º e 2º violinos, violas, violoncelos,
111
contrabaixo), Madeiras (flauta, oboé & corne inglês, clarineta e fagote), Metais (trompa em fá
e trompete) e Harpa219 (ver Exemplo 9 pág. 120: Berceuse, versão orquestral, 1ª página).
concluída no mesmo mês da composição (março de 1916 para a Berceuse, e abril de 1916
“experimental” tão presente na coleção Com as Crianças, escrita três anos antes. Enquanto o
versão para dois pianos e cinco páginas na versão para orquestra. Ela pode
principal (La M), onde é exposto o material melódico (12 compassos); uma
219
Com adição de celesta e triâgulo no Minuete.
112
páginas na particella (com numerosas indicações de orquestração) e oito
diretamente pensada para orquestra, com uma textura muito mais próxima
113
texturas contrastantes (pág. 121: compassos 1 a 12; págs 122 e 123:
compassos 20 a 34).
distintos, no Arquivo Paul Guerra (sendo que uma contém a indicacão “pour le jour de son
superposição de desenhos melódicos curtos entre teclas pretas e brancas (ver Capítulo I,
págs 40-41), nesses esboços, Nininha Veloso Guerra aplica a técnica (posteriormente
Menores), não redutíveis a uma mesma escala diatônica (ver Exemplo 11, pág. 124, 1ª
concerto diversas vezes entre 1914 e 1919, Nininha não publicou nenhuma de suas outras
outras obras suas que, entretanto, não foram localizadas. Entre essas, destacam-se:
114
3.3.3.1 Para canto e piano
charmant”.
programa de concerto;
115
3.4 - TRANSCRIÇÕES DE OBRAS DE DARIUS MILHAUD
Com as Crianças, Spleen e os esboços de Noturno, revelam uma grande familiaridade com o
Modernismo Musical francês, as transcrições para piano a 4 mãos - que realiza entre 1917 e
sobretudo, do balé sinfônico L´Homme et son Désir - constituem uma impressionante imersão
baseada predominantemente em contrastes bitonais (ver Exemplo 13a, pág. 130: 4º Quarteto
73). Em compensação, o Quarteto nº. 5 (do qual o Arquivo Paul Guerra possui unicamente a
edição original) dedicado a Arnold Schoenberg, constitui um dos experimentos mais radicais
polaridades tonais distintas em superposição (ver Exemplo 14a, pág. 132: 5º Quarteto de
dessas obras (ver Exemplo 14b, pág. 133, compassos 1-14), o entrelaçamento e cruzamento
116
entre linhas melódicas independentes obrigam-na às vezes - na transcrição a 4 mãos - a
priorizar as relações “verticais” (ver Exemplo 14b, pág. 134: ver solução compassos 15-18).
et son Désir, obra na qual Milhaud recorre tanto à politonalidade “harmônica” quanto
cromático. Se era impossível reconstituir no “plano em duas dimensões” - que é uma redução
(ver Exemplo 15a, pág. 135), observa-se que estamos em presença de 5 grupos independentes,
cada qual numa distribuição espacial própria: um quarteto de cordas, um quarteto vocal, uma
220
Segundo a nomenclatura que emprega em seu artigo Polytonalité et Atonalité. [Milhaud, 1923].
221
Milhaud expressou sua intenção nos seguintes termos: “Eu desejava conservar uma total independência entre
esses grupos, tanto do ponto de vista melódico, tonal, quanto rítmico. Procurei realizar minhas aspirações e na
minha partitura - escrita a quatro tempos para alguns instrumentos, para outros a três, para outros a seis por oito,
etc., a fim de facilitar a execução - eu marquei uma barra de compasso arbitrária a cada quatro tempos, indicando
os acentos com a finalidade de conservar o ritmo autêntico [...] (Milhaud, 1949: 96, T. do A.).
117
seção de percussão, uma seção de madeiras, e uma seção compósita (oboé, trompete, harpa,
contrabaixo). O Grupo I (quarteto de cordas) inicia no compasso 2 um longo pedal com uma
polaridade contrastante em Mi bemol Maior (ver Exemplo 15a, pág. 135) A partir do 7º
compasso, ele se desloca para a polaridade de Mi Maior, e no compasso 10, o grupo das
madeiras estabelece um cânone à distância de 3ª Maior (ver Exemplo 15a, pág. 136) com o
grupo das cordas. Essa superposição de dois pedais (cada qual a três vozes), em relação
bitonal de 3ª Maior, se estenderá até o compasso 23. A partir do 10º compasso, o Grupo V
estabelece uma nova polaridade em La bemol Maior (ver exemplo 15a, pág. 137) A partir do
compasso 15, e até o compasso 23, se estabelece um cânone duplo entre os três pedais em Dó,
Mi e La bemol Maior (este a duas vozes: oboé e trompete). Esta subdivisão da oitava em três
partes iguais resulta num gigantesco pedal (ver exemplo 15a, pág. 138), que corresponde a
quinto grupo é reforçado a partir do compasso 19 pela entrada no mesmo tom do segundo
grupo (vocal). Quanto à escrita rítmica: enquanto o terceiro grupo (percussão) mantém uma
pulsação regular de quatro tempos até o compasso 24, os Grupos I, IV e V estão – na maior
parte do tempo – a três tempos, sem, entretanto, produzirem cânones rítmicos entre si. Um
problema semelhante se reproduz na seção “L” (ver exemplo 16a, pág. 141), na qual
contrastam, com a pulsação regular a 4 tempos da seção de percussão, uma pulsação em 5/8
dos Grupos I, IV e V e a 4 tempos dos Grupos II e III, na seção “A”, é resolvida com a escrita
auxílio de acentos (ver Exemplo 15b, págs. 139 e 140); o mesmo sistema é usado na seção
118
dos compassos em 4/4 e 5/4 (ver Exemplo 16b, pág. 142). Outro exemplo de cânone encontra-
transposicionais, e a cada 2 compassos (ver Exemplo 17, págs. 143 a 146 , após a marcação
“X”). Esse cânone no Grupo IV contrasta com pedais de acordes nos Grupos I, II e V. Apesar
dos Grupos numa transcrição para piano a 4 mãos, Nininha procura preservar a condução das
linhas melódicas sinalizando a sua condução no interior da polifonia (ver Exemplo 15b, págs.
139 e 140, para o cânone duplo da seção “A”; Exemplo 18, págs. 147 a 149, cânone à
3.5 - CONCLUSÃO
posteriormente seria adotada pela Editora Universal (ver Exemplo 19, pág. 150) - editora de
àquela que havia sido praticada pela Escola de Viena às vésperas da 1ª Guerra Mundial, ou
nas últimas e mais radicais obras da sua “fase russa”, que Stravinski estava elaborando
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IV
4.1 - INTRODUÇÃO
Veloso, era um dos jovens compositores brasileiros mais em evidência222 na época da estada
de Milhaud no Rio. Dois anos antes de Villa-Lobos ter obras suas223 apresentadas em Paris, a
Sonata para violino e piano de Oswaldo Guerra já era apresentada na “Salle Gaveau” dentro
comentários elogiosos da crítica224. Junto com Villa-Lobos, seria o compositor brasileiro mais
freqüentemente executado em Paris nos anos 20. Entretanto, ele desaparece da cena brasileira,
a partir da morte de Nininha em 1921225. Sua vida passou então a realizar-se totalmente na
222
Ver referência já citada no Capítulo II.
223
A primeira apresentação de obras (Miniaturas para canto e piano) de Villa-Lobos ocorreu em recital da
cantora Vera Janacopoulos em 20/V/1921, antecedendo de dois anos a primeira viagem de Villa-Lobos à França.
224
Darius Milhaud na Revue Musicale [1920:60]; Roland-Manuel em L’Eclair (8/II/1921): “Com Oswaldo
Guerra, voltamos aos mais belos jardins do impressionismo francês. Eu já havia escrito no ano passado sobre os
‘agréments’ de uma Sonata do Sr. Guerra, que foi muito notada por ocasião de um dos concertos da SMI” Mais
adiante na mesma crítica, referindo-se a algumas obras de Oswaldo Guerra, escritas no Brasil, e apresentadas
num concerto na “Salle Pleyel” (“Concert de musique brésilienne et française”) em 1/II/1921: “É com prazer que
reencontramos as mais preciosas qualidades do Sr. Guerra numa melodia e numa peça para piano, que dão
testemunho do bom gosto e da delicadeza de um compositor encantador, ainda emocionado com as primeiras
confidências que lhe fez a musa de Claude Debussy.”.
225
Ainda que o corte não tenha sido totalmente abrupto: em 1924, ele figura com Villa-Lobos e outros
compositores latino-americanos nas séries de concertos latino-americanos do “Musée Galliera” (28/III/1924);
151
França, cuja nacionalidade assumiu226, assinando seus trabalhos de composição e musicologia
como Oswald d’Estrade Guerra227, tendo suas composições publicadas por casas editoras
prestigiosas como Max Eschig, Heugel e Jobert, e executadas por intérpretes do quilate de
Jane Bathori 228, Ricardo Viñes 229, Monique Haas 230 e o Quarteto Parrenin 231.
brasileira é a existência de apenas uma menção a seu nome no conjunto dos “Fichários
radiofônica sobre “Música Brasileira”, proferida em 1940, pelo jornalista português Gastão
como tendo morrido “muito novo com pouco mais de 40 anos” (Oswaldo Guerra viveria até
1980):
[...] vamos conhecer [...] outro compositor novo, que por ter vivido largo tempo no
estrangeiro, é pouco conhecido na sua pátria, não obstante seu incontestável valor. É
Oswaldo Guerra, cujas composições modernas, sem exageros, revelam um
temperamento fortemente impressionista. As suas obras são de grande sensibilidade,
graciosa, serena, revelando bons conhecimentos e segurança de técnica [...] Viveu
[...] bastante tempo em Paris, onde foi também um dos diretores da Sociedade “Pró-
nas suas Esquisses para piano, editadas em 1928 pela Max Eschig, há uma peça dedicada a Tomas Teran e outra
a João de Souza Lima; o exemplar da BN-RJ tem uma dedicatória a Luciano Gallet datada de 1930.
226
Na revista “Réactions” (Bienne, set–out de 1965), por ocasião da publicação de seu poema “La Naïade”,
apresenta-se como: “compositeur français, d’origine lusitanienne”.
227
O seu nome completo era Oswaldo Duque Estrada Tavares Guerra.
228
Cantora francesa (1877-1970). Segundo Claude Rostand: “Ela foi uma das grandes intérpretes das melodias
de Debussy, de Ravel, assim como de Erik Satie e do ‘Grupo dos Seis’. Desses últimos, no decorrer do período
heróico dos anos 20, ela realizou a primeira audição mundial de numerosas obras em concertos memoráveis e
que se tornaram históricos.”. [Rostand, 1970:25]. Jane Bathori foi a dedicatária de Clairières dans le Ciel de
Oswaldo Guerra, tendo estreado esta obra em 1927. Nos anos 50, ela dedicaria dois programas radiofônicos
(1955 e 1958) a obras vocais de Guerra.
229
Pianista espanhol (1885-1943). “Tendo residido quase que a vida toda em Paris, ele foi um incomparável
intérprete de Debussy, Ravel, Satie, Poulenc, assim como dos mestres espanhóis modernos. Ele colocou um
devotamento total, assim como uma riquíssima sonoridade a serviço da música nova do seu tempo.”. [Rostand,
1970: 238]. Defensor da obra de Oswaldo Guerra, seu aluno, tendo freqüentemente apresentado suas Esquisses
(em cuja coleção ele é dedicatário de uma peça), assim como de outras obras para piano, escritas no Brasil.
230
Pianista francesa (1909-1987), esposa do compositor Marcel Mihalovici (1898-1985). “Afirmou-se como
intérprete do repertório francês do século XX” [Marengo, 1983: 329].
231
Segundo Claude Rostand, o Quarteto Parrenin “dedicou uma parte muito importante de sua atividade à
música de vanguarda: primeiras audições mundiais de obras de W. Waltan [...] Elliot Carter, H. W. Henze [...] P.
Boulez, I. Xenakis, L. Berio, etc.” [Rostand, 1970: 170].
232
Arquivos Mario de Andrade, IEB-USP.
152
Música” e da Revista “R.I.M.D.” [...] Algumas de suas peças têm sido executadas na
França e na Suíça, como por exemplo, um seu Quarteto e uma Sonatina para oboé e
clarinete, um bailado [...] e as suas melodias têm sido cantadas por artistas de
renome, como Jane Bathori e outros. [...] Morreu muito novo com pouco mais de 40
anos, [sic]233, quando o seu talento prometia uma obra vasta, inconfundível e genial.
Max Eschig editou os seus Esquisses para piano que vamos ter o encantamento de
ouvir agora [...]234.
anos e em várias frentes: como compositor, tendo suas obras periodicamente apresentadas nos
235
concertos da “Société Nationale” , como poeta contribuindo para revistas literárias236, e,
livro sobre Debussy239 (1962) em co–autoria com Yvonne Tienot. O seu nome permanece
Nascido em Paris em 22/VII/1892, de pais brasileiros, passou parte de sua juventude no Rio,
onde viveria os primeiros anos de seu casamento240 com Nininha Leão-Veloso. Era irmão
233
A publicação de “Notes sans Musique”, de Milhaud, onde este relataria em detalhes sua temporada no Rio e
seu forte contato com os Guerra, ocorreu 3 anos após a morte de Mario de Andrade; o nome de Oswaldo Guerra
talvez tenha passado desapercebido para Mario de Andrade, leitor atento da “Revue Musicale” desde seus
primórdios, apesar das referências feitas a ele por Milhaud no seu artigo “Brésil” (“Revue Musicale”, 1920);
republicado em Ariel em 1924, ressaltando a boa acolhida de sua Sonata para violinoe piano em concerto da
SMI e sua proximidade do “Groupe des Six”.
234
Bittencourt (1941:177-8), numa conferência realizada nos estúdios da Rádio Renascença em 3/V/1940,
intitulada “Mais alguns compositores brasileiros”, na qual junto com Oswaldo Guerra são tratados Luis Cosme,
Mario Camerini, Celeste Jaguaribe, Nepomuceno e Mignone.
235
Por exemplo: Monique Haas daria a versão integral das Esquisses em 1962, enquanto o Quarteto Parrenin
retomaria em 1978 o 3o Quarteto de cordas, dos quais eram dedicatários e haviam dado a primeira audição
mundial em 1959.
236
Como exemplo, o poema La Naïade, publicado em 1965, pela revista literária Suíça Réactions, ligada ao
grupo “Poésie Vivante”.
237
Entre os quais sua colaboração para o estudo (1960) de François Lesure: “Collection Musicale André Meyer”.
238
“Les Manuscrits de Pélleas et Mélisande de Claude Debussy”, La Revue Musicale (1957) – Les Carnets
Critiques.
239
“Debussy”, de Yvonne Tienot e O. d’Estrade Guerra, Henry Lemoineet Cie, Paris 1962.
240
Com a qual teria os filhos Charles [1917-1940] e Paul [1920], ambos nascidos no Rio.
153
mais moço do conhecido violinista e compositor Edgardo Guerra241. Numa reportagem sobre
Iniciou muito cedo a sua educação musical, existindo na sua própria família um
ambiente de arte, plenamente favorável ao seu desenvolvimento. Tendo feito os seus
estudos de piano sob a direção do insigne mestre Godofredro Leão-Veloso,
matriculou-se mais tarde no I.N.M., na classe de Harmonia do professor Agnello
França, passando depois a freqüentar as aulas do Maestro Francisco Braga. (“A
Rua”, 1/VII/1916).
A presença de Milhaud no Rio, provocaria para Oswaldo e Nininha Guerra uma exposição
241
Violinista e compositor (1886-1952), aluno de José White e futuro professor de Claudio Santoro.
“Apresentou-se em diversas capitais da Europa, retornando ao Brasil no início do século. Consagrou-se como
intérprete, compositor e professor, atividade que desenvolveu no I.N.N. no Rio de Janeiro [...] Em 1908, Alberto
Nepomuceno incluiu nos programas da Exposição Nacional sua Suíte orquestral Esboços Sinfônicos, bem
recebida pela crítica. Suas principais composições, entretanto, foram escritas para violino.” [Marcondes, 1970:
336]. É também autor de ”Bases Racionais da técnica moderna do violino” [RURJ, II, n°s 4/5, junho 1934].
242
Ernest Ansermet (1883-1969), regente suíço. Segundo Rostand: “Seu nome permanece como um símbolo de
algumas das conquistas musicais entre as duas Guerras Mundiais [...] Primeiramente, ele foi maestro dos Ballets
Russes de Serge de Diaghilev, e depois fundou a Orquestra da Suisse Romande [1918], que ele dirigiu até 1966.
Desta forma, ele teve a oportunidade de realizar a 1ª audição mundial de um grande número de obras-primas
contemporâneas (Ravel, Bartok, Prokofiev, Hindemith, Honegger, etc.), mas, sobretudo, as grandes obras de
Stravisnsky, de quem ele foi um amigo íntimo.” [Rostand, 1970: 12].
243
a carta de 3/IX/1917 de Oswaldo a Koechlin, citada anteriormente quanto à não- apresentação no Rio de
obras modernas do repertório dos Ballets Russes, é reveladora dos interesses de Oswaldo: “Caro Mestre, eu
queria ter- lhe escrito há mais tempo [...] Recebi os seus 3 volumes de melodias e eu não poderia lhe agradecer o
suficiente por haver solicitado a Rouart o seu envio. Logo que eles chegaram, a senhora Guerra e eu os
engolimos de uma só vez (avalés d’un trait ) Eu não saberia lhe dizer o quanto nós as admiramos. A terceira,
sobretudo, é uma verdadeira obra prima [...] difícil decidir qual a melhor. [...] Eu ficaria muito feliz de conhecer
toda a sua música e lhe agradeceria de me avisar quando novas obras suas forem editadas para que eu possa
encomendá-las [...]. Ver reprodução dessa carta no Volume II, Anexo II, seção “Autógrafos diversos” .
244
No depoimento de Oswaldo Guerra a Francine Bloch e Madeleine Milhaud, ele relata a forma casual pela
qual Milhaud fez a eles uma visita surpresa em companhia de Ansermet e do casal Nijinsky. Oswaldo relata
terem, ele e Nininha, saído diversas vezes com o casal durante a estada deles no Rio [O.R.T.F., 1978]. Entre
outros encontros informais, Milhaud relata a representação de Parade (recém-apresentada em Paris) e o ensaio
por Ansermet da 1ª cena do 1° Ato das Euménides. [Milhaud, 1949: 92-93].
154
b) a extrema proximidade intelectual com um dos compositores mais
Guerra;
245
Seu papel como principal expoente e teórico da “Politonalidade” seria expresso, principalmente, no seu artigo
Polytonalité et Atonalité [1924].
246
Sacre du Printemps e Oiseau de Feu (a 4 mãos), relatados por Claudel e Rubinstein (ver Lago 1999).
247
Como o atesta a dedicatória das Chansons Bas previamente citada no Capítulo II”.
155
Já antes da chegada de Milhaud ao Brasil, a orientação “moderna” de
Oswaldo Guerra estava definida. Isso se reflete em matérias de jornais cariocas248, às vésperas
da apresentação, em 4/VII/1916, de uma música incidental249 sua para orquestra - com o título
após a morte de Nininha, constituindo uma nova família. Seu neto Bernard Guerra251
identifica, entre as suas atividades no período de entre-guerras: trabalhos junto a Casa Pleyel,
permaneceria até 1959, tendo sido o responsável por todo o registro legal da música na
França. Bernard Guerra também lista as seguintes exposições, cuja realização contou com o
248
In arquivo Paul Guerra: “J. do Commércio”, 3 e 5/VII/1916; ”Gazeta de Notícias”, 4 e 5/VII/1916; “A Rua”,
de 1/VII/1916.
249
Para a peça “Sonho de uma Noite de Luar” - ‘Noturno’ em 1 ato, de Roberto Gomes (1882-1923) [ver:
Raimundo de Menezes: “Dicionário Literário Brasileiro”].
250
Partitura não localizada.
251
Bernard Guerra preparou dois curtos textos sinópticos intitulados “Travail de Recherche Oswaldo Guerra”
(23/IX/1999), e “Travail de Recherche Nininha Guerra” (3/X/1999).
156
de Pélleas et Mélisande”; no Palais des Beaux-Arts de Bruxelas: “Exposição Debussy e
Maeterlinck”.
As fontes documentais sobre Oswaldo Guerra são escassas, ainda que mais
abundantes que aquelas existentes sobre Nininha e Godofredo. Consistem essencialmente de:
(Max Eschig, 1928) para piano; 3eme Quatuor (Heugel, 1961) para
quarteto de cordas;
Debussy;
157
e) programas radiofônicos realizados por Jane Bathori (14/04/1955 e
Guerra contendo uma catalogação de suas obras, na qual estas são listadas por gênero, e onde
158
b) o 2o Quarteto de cordas, também inédito e não localizado, foi escrito
252
Pelo violinista André Pascal e a pianista Janine Weil.
253
O programa deste concerto, existente no Arquivo Paul Guerra, indica que o concerto foi realizado no Salão do
Jornal do Comércio, sob os auspícios do Instituto Nacional de Música.
159
animado, 2º Romance, lento, 3º Vivo. Numa carta de Milhaud de
não havia chegado e que não mais daria tempo para esperar por ela,
mas que ele se sentia satisfeito da obra ser apresentada na sua versão
original, comentando:
Sei que você refez o 2º movimento, mas como ele não chegou, não digo nada e
deixo tocá-la [a Sonata] tal como você a submeteu originalmente. Aliás, a Romance
é muito bonita (est très jolie) e ela resultou tão bem quando nós a tocamos no Rio.
Portanto, podemos ouvi-la em Paris nas mesmas condições [...]; a revisão final é
datada de 1925, tendo sido estreada em 10/XII/1926255.
254
Segundo informação prestada por Oswaldo Guerra [1978], na entrevista a Francine Bloch e Madeleine
Milhaud.
255
Os intérpretes foram: Marie-Antoinette Pradier e Leon Zighera.
256
Na carta de 9/I/1920, Milhaud relatara aos Guerra que o “Grupo dos Seis” e a SMI se encontravam em
campos opostos.
160
Jeanne Herscher-Clement e Leion Pascal. Foi reapresentada em
c) Sonata para flauta, oboé, viola e piano (ou cravo): composta em 1920
qual o piano pode ser substituído pelo cravo, foi estreada nessa forma
d) Sonatina Pastoral, para oboé e clarineta: esta peça, cuja 1ª versão data
257
Com os intérpretes Gaston Blancquart, Roland Lamoulette, Leon Pascal e Pierre Benoit.
161
4.2.1.3 - Melodias para canto e piano
sido musicados (com o título Clairières dans le Ciel) em 1914 por Lili
Debussy [ver Exemplo 23a, pág. 182, e Exemplo 31a, pág. 192], quanto
258
Nos capítulos que adicionou em 1972 (Ma Vie Heureuse) à sua autobiografia (Notes sans Musique, 1949),
Milhaud escreve: “Eu sempre desejei colocar em música Tristesses, uma série de 24 poemas de Francis Jammes,
desde quando eu era jovem; porém eu sempre hesitava, com receio de não conseguir dar sustentação a um
trabalho longo dessa espécie. Eu adiei o projeto por anos, mas finalmente me decidi a trabalhar nele em 1956.
Esse ciclo de melodias foi executado durante um dos concertos dedicados a mim na “Ecole Normale de
Musique”.”.
162
b) Clairières dans le Ciel: compostos em Paris, em 1927, e dedicados à
163
4.2.1.4 - Coleções e peças para piano de 3 coleções para piano de Oswaldo Guerra:
Pastels, 3 peças escritas no Brasil, entre 1915 e 1918, e apresentadas por Ricardo Viñes em
única localizada é Esquisses, composta em 1925 e publicada em 1927 pela editora Max
Eschig. Essa coleção, composta de 10 peças, foi apresentada diversas vezes, notadamente por
(21/II/1962).
4.2.1.5 - Obras para orquestra: A única obra, no seu catálogo, que Oswaldo Guerra aponta
como sendo para orquestra intitula-se Pierrot d´Hiver, não-localizada e para a qual ele não
indica data. Sabe-se, através da coleção de programas de concerto do Arquivo Paul Guerra,
que ela foi executada em versão a 4 mãos nos concertos “Au Camaléon” (12/XII/1926). Como
Oswaldo Guerra havia apresentada uma música incidental para orquestra, em 1916, no Rio,
sob a regência de Francisco Braga, com o título Sonho de uma Noite de Luar, a qual não é
assinalada no catálogo, poder-se-ia especular que Pierrot d´Hiver fosse uma 2ª versão dessa
d´Henri de Regnier [1912], Deux Poèmes d´Albert Samain [1914] e Trois Poèmes
sobretudo, uma grande parte da sua obra de câmera (embora estas tenham sofrido
164
→ uma produção expressiva na França, durante o período de entre-guerras, mas,
sobretudo, durante os anos 20: a coleção de peças para piano Esquisses; o ciclo de
melodias Tristesses e coleções para canto e piano como Clairières dans le Ciel e Trois
→ uma forte desaceleração de sua produção a partir dos anos 50, correspondendo aos
últimos 30 anos da sua vida, possivelmente refletindo seu maior envolvimento tanto
Nationale” de Paris.
Apesar de que algumas de suas obras terem sido publicadas por prestigiosas
casas de edição (Max Eschig, Heugel e Jobert), nota-se que a maior parte da obra de Oswaldo
Guerra permanece não somente inédita, como também não localizada (notadamente as três
Sonatas de câmera): portanto, a obra conhecida de Oswaldo Guerra consiste das obras
publicadas (Esquisses para piano, Tristesses e Trois Poèmes de Marc Chesnau, Sonatina
Clairières dans le Ciel e incompleto da Sonata para flauta, oboé, viola e piano (ou cravo),
que se encontram no Arquivo Paul Guerra. Apesar da obra de Oswaldo Guerra ser
165
4.3 – EXECUÇÕES PÚBLICA EM PARIS DE OBRAS DE OSWALDO GUERRA
De 1919 ao final dos anos 70, obras de Oswaldo Guerra são regularmente
20/XI/1919, organizado pela SMI e realizado na “Salle Gaveau”, onde foi apresentada a sua
Sonata para piano e violino, juntamente com 1as audições de obras de Milhaud e Aaron
concentração nos anos 20 (9 programas), porém com uma periodicidade ainda regular no pós-
4.3.1 - Anos 20
as obras apresentadas são: a Sonata para flauta, oboé, viola e piano (duas vezes) e a Sonata
para viola e piano: 6/II, na “Salle Pleyel”, (concerto organizado pela SMI, com 1ªs audicões
de Nicolas Tcherepnin, Aaron Copland e Albert Roussel); 28/III, no “Musée Galliera”, como
cubano Joaquin Nin, e do argentino Herberto Paz); em 26/V, na “Salle de Concerts Touche”,
na série “L’ Oeuvre Inédite”, do qual foi publicado (“Comoedia”, 1/V/1921) o seguinte
registro do compositor Paul Le Flem: “Assinalemos a Sonata para viola e piano do Sr.
Oswaldo Guerra com estilo sucinto, nervoso, e que foi traduzida com muita vivacidade [pelos
intérpretes]”259.
259
“Signalons la Sonate pour Alto et Pianode Mr. Oswaldo Guerra, d’ un tour bref et nerveux, et qui fut traduit
avec beaucoup de vivacité par Mme. Herscher-Clementet Leo Pascal.”.
166
Em 1925, ocorrem dois concertos dedicados a Oswaldo Guerra: em 30/III,
Tristesses, enquanto o grande pianista Ricardo Viñes tocou, além de três Esquisses (datadas
de 1921), peças escritas no Brasil (Pastels, Le Parc Endormi, Matin Clair, Vers la Mer un
Soir); em 15/VI, um “Concert Oswaldo Guerra” na “Salle Pleyel”, no qual foi repetido (com
outros intérpretes) o programa anterior do “Festival” (com exceção o da Sonata para viola e
ano anterior (Matin Clair, três Esquisses), adicionando um 2eme Impromptu (o qual não
figura no Catálogo); entre as melodias para canto e piano é retomado o ciclo Tristesses e
algumas das melodias compostas no Brasil: Oraison, Les Repons de l´Aube et de la Lune.
Nesse programa foi apresentado, a piano 4 mãos, a única obra de Oswaldo Guerra assinalada
Os dois últimos programas, referentes aos anos 20, são realizados pelo “Pró-
Música”, uma sociedade de concertos da qual Oswaldo Guerra era um dos organizadores: em
21/II/1927, na “Salle Comoedia”, a cantora Jane Bathori apresenta Trois melodies de Oswaldo
Guerra, acompanhada por ele ao piano, em concerto também incluindo obras de Koechlin e
cordas de Oswaldo Guerra, a respeito do qual o crítico do jornal “Figaro” (S. Golestan)
167
escreveu os seguintes comentários (13/II/1928): “O concerto apresentado pela ‘Pró-Música’
[...] revelou outras novidades, um Quarteto de cordas do Sr. Oswald Guerra, que se distingue
pela clareza da sua estrutura, o relevo dos seus temas, e sua plenitude sonora”. Por sua vez, o
O Quarteto de cordas do Sr. Oswaldo Guerra nada deve à estética dos senhores
Schoenberg e Berg. Eu o parabenizo por acreditar na melodia, na forma e no ritmo.
É fácil de mais suprimir estes elementos e substituí-los por outra regra do jogo
frouxa demais para a manifestação do talento, e que afinal chama-se à liberdade pura
e simples. A obra do Sr. Oswaldo Guerra, que não fugiu da dificuldade, se mostra
construída com lógica e soa bem; só é pena que se sinta às vezes como uma espécie
de excitação com coloridos diferentes. (“Chantecler”, 18/II/1928)
concertos nos anos 30: na “Salle d’Iena”, em 23/V/1931, organizado pela “Revue
Internationale de Musique et de Danse” (da qual Oswaldo Guerra foi por alguns anos o
secretário executivo), são apresentadas algumas Esquisses para piano e melodias para canto e
piano (Trois Poèmes de Marc Chesnau, Trois petits airs de flute, Jota aragonesa); em
Cortot”, da “Ecole Normale de Musique”. Com base nos programas existentes no Arquivo
260
O programa de 12/XII/1926 a descreve como “Ballet en un acte, de Georges Lanteline, reduction de l´auteur”.
168
- 1º Quarteto de cordas: 1/III /1947;
- Melodias para canto e piano: Trois Melodies sur des poèmes de Henri de Regnier
francesa”. Em sua resenha sobre a música no Brasil, escrita em 1921, Milhaud refere-se à
Nininha e Oswaldo como “os elementos mais próximos do Grupo dos Seis”, e menciona a boa
impressão causada pela apresentação da Sonata para piano e violino de Oswaldo na SMI,
porém o engloba na crítica geral que faz aos compositores brasileiros por se posicionarem
Em 1924, por ocasião da 1ª audição da sua Sonata para flauta, oboé, viola e piano, Roland-
Manuel escreveria:
169
das melhores páginas de Darius Milhaud. Existe uma distância suficiente entre
Pélleas e Protée para que se possa movimentar à vontade. Nela, o senhor Guerra
passeia com a maior liberdade do mundo, para o nosso prazer. (“L’Eclair” –
fev/1924) 261.
mais de seu mestre Charles Koechlin e de Debussy do 2º Caderno dos Prelúdios - que pela
quadratura e um franco diatonismo em certas melodias [ver Exemplo 24, pág. 183: nº 1º
pela viola dos compassos 9 a 12], e quando se utiliza de texturas mais lineares [Exemplo 25,
pág. 184: no 1º movimento da Sonatine Pastorale, a frase inicial do oboé, e a nova frase da
O recurso à bitonalidade - tanto entre polaridades próximas quanto distantes, no ciclo das
quintas - pode ser observado nos Exemplos 26, pág. 185 e 27, pág. 186: a) nos compassos 12
261
Roland-Manuel, in “L’Eclair” de fev/1924: “C’est une oeuvre du plus haut mérite, d’une spontanéité très
savoureuse, très bien écrite et délicieusement instrumentée. Mr. Guerra n’est insensible ni au charme prenant de
Debussy, ni à la chaude sensualité des meilleurs pages de Darius Milhaud. La distance est suffisante entre
Pélleas et Protée pour qu’on puisse se mouvoir à l’aise. Mr. “Guerra s’y promène le plus librement du monde,
pour notre plaisir”.
262
Maior recurso ao modalismo e escala de tons inteiros, acordes paralelos, abandono parcial da harmonia
funcional.
170
última fase263 (tão valorizada pela geração de Boulez). São exemplos em sua produção: a) as
três Sonatas de câmera de Oswaldo Guerra, escritas a cinco anos de distância das três Sonatas
de câmera de Debussy, que parecem um reflexo direto destas, sendo particularmente aparente
no fragmento manuscrito da Sonata para flauta, oboé viola e piano a filiação [ver Exemplo
28, pág. 187: os acordes paralelos de 11ª no piano nos compassos 8 a 10, após a marcação 19,
mas, sobretudo, a distribuição sonora] em relação à Sonata para flauta, viola e harpa264, de
Debussy [ver Exemplo 28a, pág. 188]; b) os Trois Poèmes de Marc Chesnau e as melodias de
Clairières dans le Ciel, impregnados de elementos presentes no Promenoir des deux amants.
imersão na obra do compositor francês [ver Exemplo 29, pág. 189: os compassos 68 a 77 da
3ª melodia dos Trois poémes de Marc Chesnau; Exemplos 30, 31 e 32, págs. 190, 191 e 193,
5ª melodia].
263
Que vai do Promenoir des deux Amants às Sonatas de câmera (passando pelo 2º Caderno dos Prelúdios para
piano, de En Blanc et en Noir para 4 mãos e Jeux para orquestra).
171
A obra de Oswaldo Guerra se inscreve, portanto, nessa primeira fase do
Modernismo musical do século XX, tão profundamente impactada por Debussy. As fases
ulteriores - com exceção da influência de Milhaud - não parecem afetá-lo: sua linguagem
ostensivamente promovida pelo “Grupo dos Seis”, ao qual o ligavam tantas relações de
contigüidade266.
postura “anti-debussista” os “Six” 267, no seu livro de 1924 sobre Debussy: “por mais ativo e
talentoso que seja um agrupamento musical, ele estará sempre longe de representar o
conjunto de uma arte pujante, e é sabido que existem jovens para quem Pélleas permanece
264
De cuja primeira leitura, em casa de Debussy, Milhaud havia participado, tocando a parte de viola: “Foi a
primeira e única ocasião que eu tive de encontrá-lo! Que emoção eu senti entrando na sala onde trabalhava o
músico que ocupava um lugar tão importante em meu coração ...”. [Milhaud, 1949: 77].
265
Apesar do “Fonds Oswald d´E. Guerra” conter primeiras edições do Pássaro de Fogo, Petrushka e a
Sagração da Primavera do primeiro, e as peças para piano do opus 11 e opus 19, do segundo.
266
Na nota biográfica sobre Oswaldo Guerra, em apenso a seu poema La Naïade, ele se descreve como:
“compositor francês de origem lusitaniana, amigo e contemporâneo de Darius Milhaud [...] freqüentou “Cocteau,
Radiguet” e o “Groupe des Six”.”. [Réactions, 1965].
267
O seguinte comentário de Koechlin mostra a perspectiva histórica dentro da qual relaciona os “Six” com
Debussy: “Não foi suficientemente observado o quanto a linguagem dos músicos mais jovens (inclusive aqueles
que foram intitulados os “Six”) toma primeiramente sua origem no “debussysmo”. Leiam as primeiras obras de
Darius Milhaud e Germaine Tailleferre - que eles tenham posteriormente sofrido outras influências pouco
importa: a sua liberdade harmônica e também sua liberdade polifônica prevêem, em grande parte, de Claude
Debussy.”. (pág. 88, T. do A,).
268
Un groupement,si actif ,si talentueux même qu´il soit, est loin de representer l´ensemble d´un art prospère, et
l´on sait des jeunes pour qui Pélleas reste une sorte de modèle . [Koechlin,1924: 94n].
172
4.5 – OSWALDO GUERRA E MODERNISMO BRASILEIRO
“Modernismo musical brasileiro”, tal como foi formulado e proposto por Mario de Andrade
O critério atual de Música Brasileira deve ser não-filosófico, mas social. Deve ser
um critério de combate. A força nova que voluntariamente se desperdiça, por um
motivo que só pode ser indecoroso (comodidade própria, covardia ou pretensão), é
uma força antinacional e falsificadora. [...] Se um artista brasileiro sente em si a
força do gênio [...] está claro que deve fazer música nacional. Porque como gênio
saberá fatalmente encontrar os elementos essenciais da nacionalidade [...] Terá, pois,
um valor social enorme, sem perder em nada o valor artístico [...] E se o artista faz
parte dos 99 por cento dos artistas e reconhece que não é gênio, então, é que deve
mesmo de fazer arte nacional. Porque, incorporando-se à escola italiana ou francesa,
será apenas mais um na fornada, ao passo que na escola iniciante será benemérito e
necessário [...] Turina269 é de importância universal mirim. Na escola espanhola, o
nome dele é imprescindível. Todo artista brasileiro que no momento atual fizer arte
brasileira é um ser eficiente com valor humano. O que fizer arte internacional ou
estrangeira, se não for gênio, é um inútil, um nulo. E é uma reverendíssima besta.
[Mario de Andrade, 1928: 5-6].
1978], esta interroga Oswaldo Guerra, a respeito do grau de interesse dos músicos clássicos
brasileiros pela música popular, no período 1917-18: Oswaldo responde que a questão ainda
não se colocava naquele momento, ressaltando que o Nacionalismo só “viria a tomar impulso
mais tarde, por intermédio de Villa-Lobos”, e que quando características da música popular
desconexão, Oswaldo cita a obra de Glauco Velásquez, referindo-se a ele como compositor de
269
O compositor Joaquin Turina [1882-1949], aluno da “Schola Cantorum” em Paris, foi um dos mais
destacados compositores da “Escola Espanhola” na geração de Manuel de Falla.
173
uma geração mais nova que a de Nepomuceno, Oswald e Braga, e cuja obra estava muito em
como João Nunes, Luciano Gallet e Nininha Guerra escreviam naquela ocasião - assim como
a maior parte da obra de Villa-Lobos - pode-se verificar que o comentário de Oswaldo espelha
parecia mais ligado ao Romantismo que a uma bandeira para o futuro270. Por outro lado,
mesmo na fase de convívio com Milhaud no Rio de Janeiro, o entusiasmo deste pelo Brasil e
sua música popular - tão exótica para Oswaldo quanto para um compositor europeu - não
suas obras vocais compostas no Brasil escritas sobre textos franceses, Oswaldo Guerra foi
“Naïade” 273 em 1965, ele se descrevia como compositeur français d’origine lusitanienne.
270
Fato que realça o papel pioneiro em grande medida, solitário, de Alberto Nepomuceno, que havia formulado
sua aspiração por uma música nacional, inspirada na música popular, quando da entrevista à “Revista Teatral”, já
citada no Capítulo I.
271
Conforme se pode observar no poema “À Mademoiselle Julia Rimes”, escrita aos dezoito anos, em Friburgo,
1910. (Coleção Pedro Corrêa do Lago).
272
A pasta referente a Oswaldo Guerra, no “Fonds Montpensier” da Biblioteca Nacional de Paris (onde foi
funcionário de 1937 a 1959), contém riscada a indicação “brésilien” subsituída por “français”, e apresenta na
capa a seguinte indicação manuscrita: “né à Paris rue Corambert et baptisé à l’Église de Notre-Dame de Passy”.
273
A revista literária suíça Réactions, ligada ao grupo “Poésie Vivante”, publica em seu primeiro número (set -
out de 1965) o longo poema La Naïade, apresentando Oswaldo Guerra da seguinte forma: “compositor francês
de origem lusitaniana, é também, bissestamente, um poeta sutil e refinado. Sua ‘Naïade’ retraça em versos
flexíveis e ondulantes o caminho da inspiração artística em sua lenta e sábia maturação em direção à eclosão
da obra criadora.”.
174
Se parece pouco discutível, numa estratégia retrospectiva que Oswaldo -
no Brasil ele poderia ter sido um dos compositores mais importantes da sua geração - deve-se
notar que sua partida do Brasil, em 1920, antecede de alguns anos a reflexão andradiana sobre
data (1928) já estava plenamente realizada sua inserção no meio musical francês.
Portanto, a partida de Oswaldo Guerra do Brasil, precede o momento em que se deu uma
guinada mais decididamente nacionalista por parte de seus contemporâneos brasileiros (como
também ainda era o caso de Luciano Gallet, cujo Hieróglifo data de 1922).
daquela que se tornaria dominante a partir da Semana de Arte Moderna de São Paulo - mais
preocupada com as novas liberdades abertas à linguagem musical por Debussy que por um
projeto de “construção” de uma música nacional: nesse sentido, Oswaldo Guerra está próximo
- em que pesem as diferenças entre esses compositores - do Henrique Oswald do op.33, das
Suítes Infantis 1&2 de Villa-Lobos, mas, sobretudo, das Pièces Drõles de José Nunes [ver
Exemplo 33, pág. 194], assim como de obras de Luciano Gallet escritas nesse período [ver
Exemplo 34, pág. 195: os compassos 1 a 15 de “Lykas”, a 2ª peça das Chansons de Bilitis].
Nessas obras são exploradas (ainda que com menos ousadia que na coleção
Com as Crianças, de Nininha) algumas das novas possibilidades abertas pela “revolução
debussista”, e elas fornecem um índice do grau de absorção dessa linguagem, antes da sua
posterior fusão com elementos nacionais, que seria posteriormente feita por compositores com
274
Esta observação se deve à professora Flávia Camargo Toni.
175
Um exemplo da assimilação da música de Debussy no Brasil, no entorno da
Primeira Guerra Mundial, é dado pela coleção de partituras pertencente ao “Fonds Oswald
CNRS , em Paris , onde uma grande parte foi adquirida em casas comerciais do Rio de Janeiro
(Artur Napoleão, Casa Mozart-Lino José Barboza) e São Paulo (Casa Beethoven-
Casa
Casa Mozart Beethoven A. Napoleão Editor Catálogo
Lino J. Barbosa Chiaffarelli francês C. Debussy
I – DEBUSSY
a) Canto e piano
1 Les Angelus Hamelle 23.01
2 Ariettes oubliées Fromond 23.02
3 Les Cloches Durand 23.03
4 Les Frissons Hamelle 23.05
5 Fetes Galantes Durand 23.12
Trois Poèmes de
6 S. Mallarme
Durand 23.19
Promenoir des
7 deux Amants
Durand 23.31
b) Piano a 2 mãos
8 Deux Arabesques Durand 23.66
9 Pour le Piano Jobert 26.05: 1a 11
(encadernação única) D´un Cahier d´E.
L´Isle Joyeuse
10 Estampes Durand 26.16
c) Piano a 4 mãos
11 Petite Suíte Durand 26.02
Six Epigraphes A. Durand 26.13
II – OUTROS
- Ravel Daphnis&Chloe Durand ñ-catalogada
(red. Piano 4m)
- Mussorgski Sans Soleil Bessel ñ-catalogada
( canto&piano) Enfantines Augener ñ-catalogada
176
4.6 – CONCLUSÃO
brasileiro quanto da reação “anti-debussista” representada pelo Groupe des Six - nos lega um
lado, é possível re-introduzir no repertório as obras editadas, por outro parecem existir pistas
suficientes de obras que foram freqüentemente executadas, como as Sonatas de câmera (ainda
escritas no Brasil no período 1918-20), para que se tenha a esperança de sua localização.
177
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V
A CORRESPONDÊNCIA MILHAUD-GUERRA
não era o expoente famoso do Groupe des Six, o qual só viria a constituir-se em 1920275.
Entretanto, apesar de seus 25 anos de idade, já era um compositor com uma bagagem
significativa e dono de uma linguagem musical extremamente pessoal276. Entre as suas obras
anteriores a 1917, podem ser destacadas: a Sonata para dois violinos e piano (1914), a Sonata
para piano (1916), três quartetos de cordas (escritos entre 1912 e 1916), os Sept Poèmes sur
la Connaissance de l´Est (1913) e os Huit Poèmes Juifs para canto e piano (1916) uma
275
Contrariamente a comentários freqüentes na literatura como o seguinte de Tarasti: “[...] o interesse de
Milhaud pela música brasileira tinha como pano de fundo (background) a estética do Groupe des Six fundado
por volta de 1916 [...]” (Tarasti, 1995: 15, T. do A.).
276
Segundo Paul Collaer (1947, T do A.): “[...] Desde quando Milhaud começou a escrever música, esta não se
alterou. Sua técnica, certamente, se libertou dos entraves, pelos quais passa todo o principiante; ela se
enriqueceu; o discurso pode se tornar mais completo, mais homogêneo; porém, a natureza das melodias, o
sentido do contraponto, o espírito da música são hoje, como em 1910, os mesmos [...] Toda a sua música é de um
só jorro, ela não evolui, ela não foi impressionista e depois fauve, e mais tarde clássico. Ela é hoje tal como ela
nasceu [...]”.
196
Sonata277 para piano [1916] e, sobretudo, as Choéphores para recitante, soprano e barítono
solistas, com orquestra e coro (1915-1916) - considerada um dos marcos da música francesa
nomenclatura que ele proporia no seu artigo clássico “Polytonalité et Atonalité” (Milhaud,
de Milhaud ao Rio e os dois anos que se seguiram ao seu retorno à França (ainda muito
marcados pelo Brasil), se constituiria num dos momentos mais determinantes da sua
diplomata e célebre escritor Paul Claudel (função dentro da qual acabou atuando como um
excepcional “adido cultural”) era o de dar continuidade ao projeto que haviam iniciado
da Orestéia de Ésquilo, que Claudel estava traduzindo para o francês e para a qual previa uma
representação evocando o teatro grego clássico, com o papel que este atribui à música, e à
interação entre recitante, atores e coro. Com a conclusão da 2ª parte em 1916 (as
Choéphores), faltava realizar a parte final da Orestéia: as Euménides. Esta obra, um dos
277
No primeiro exemplo musical do Capítulo VI - o final do 1º movimento da Sonata para piano - pode-se
observar a utilização do total cromático através da superposição de acordes perfeitos formando agregados de 12
sons.
278
Na entrevista radiofônica feita por Oswaldo Guerra a Francine Bloch, com a presença de Madeleine Milhaud,
esta declararia: “O Brasil esteve presente durante a nossa existência cotidiana, como ele esteve presente até o fim
da vida de Darius [...] É um país onde nunca estive, mas que eu amei por procuração [...]” (O.R.T.F., 1978, T. do
A.).
279
Ver Drake, citado no Capítulo II.
280
Em seu diário, Claudel anota em 5/I/1917: “[Encontro com] Boutroux, Bergson, Barres, Imbart de la Tour,
em casa de Graça Aranha. Partida de Paris, próximo 9 [de janeiro] às 9:50h da noite na Gare d’ Orsay com
197
pontos culminantes da produção de Milhaud, só seria concluída em 1928. Entretanto, a quase
com o Brasil: obras compostas no Rio de Janeiro, durante a sua estada, e algumas obras
escritas, durante os dois anos subseqüentes ao seu retorno à França, de alguma forma
Dentro do segundo conjunto, são particularmente famosos o balé Le Boeuf sur le Toit e a
Esse corte, de aproximadamente dois anos, equivale para ele àquele vivido com a
mesma idade por seus colegas coroados pelo Prix de Rome [...] Verdadeiramente
iniciática, essa estada se revelará crucial para Milhaud. Apesar do afastamento
geográfico, ele lá encontra referências de familiaridade num universo mediterrâneo,
que ele considera como seu, “de Jerusalém ao Rio de Janeiro” e descobre uma
música popular que o intriga e o fascina282.
carreira, dando-lhe diversas oportunidades: tempo para compor num ambiente estimulante
orquestra). Durante a estada de Milhaud no Rio de Janeiro, ocorreram duas primeiras audições
mundiais de obras suas: a sua 2ª Sonata para violino e piano283 executada por ele e Nininha
Darius Milhaud a quem estou levando como secretário e encarregado do serviço da propaganda.”. (Claudel,
1968: 366 – T. do A.)
281
O 1º Ato seria concluído na Martinica, um mês após a partida do Brasil, em escala de sua viagem de retorno à
França, via EUA.
282
Chimènes, 1998: 45, T. do A.
283
O programa desse concerto (“Hora artística – Lycée Français, Rua do Catete, 351”), existente no Arquivo
Paul Guerra, contém a respeito da Sonata o seguinte comentário: “A Sonata de M. Darius Milhaud é inédita e
198
Guerra em 07/VII/1917, no Liceu Francês do Rio de Janeiro, e a sua 1ª Sinfonia de Câmara
“Printemps”, pela Sociedade de Concertos Sinfônicos (dirigida por Francisco Braga), sob a
igualmente executadas no Rio de Janeiro a sua Sonata para dois violinos e piano, 2 Poèmes
de Tagore para canto e piano e - após o seu retorno à França (concerto em 21/IX/1919) - em
primeira audição mundial, duas peças da coleção para piano Printemps, assim como Deux
musicais de que foi objeto, tanto do ângulo “conservador” quanto daquele mais aberto a novas
O programa pôs em relevo mais uma vez o talento musical do Sr. Darius Milhaud,
compositor e violinista. Pondo de parte a nossa antipatia à escola ultramoderna,
somos forçados a reconhecer que o ilustre músico é fecundo e que assimilou os
melhores autores dessa escola que, se está divorciado da inspiração, exige do
compositor muito engenho e ardil. Quando nas suas composições, o descuido ou
imposição do seu verdadeiro estro, ela deixa de se afastar do seu firme propósito,
surgem das suas partituras páginas de incontestáveis belezas. Neste caso, e como
composta recentemente aqui no Rio”. Na primeira parte do concerto, Milhaud tocou uma sonata (não
especificada) para violino e piano de Mozart com a jovem pianista Maria Antonia de Moura Castro (o programa
assinala: “Melle. Maria Antonia de Moura Castro conta só 6 anos e é discípula do Prof. Henrique Oswald”); na
segunda parte, tocou ao violino a sua Sonata e, a 4 mãos com Nininha Guerra, os Morceaux en forme de poire de
Erik Satie, assim como duas peças de Henrique Oswald (Berceuse e Serenade). Milhaud voltaria a tocar a sua 2ª
Sonata com Nininha em dois concertos: no Palácio de Cristal, em Petrópolis (24/III/1918), e no Salão do Jornal
do Commércio (30/VIII/1918). Quanto à Nininha, ela ainda a tocaria em Paris, por ocasião do Premier Concert
donné par le Groupe des Six, em 29/XI/1920, acompanhada pela violinista Fernande Capelle (informações
contidas em programa de concerto, Arquivo Paul Guerra).
284
Sobre essa audição, Milhaud (1949: 91-92, T. do A.) comenta em suas memórias: “Fiquei tentado pela
qualidade sonora tão especial do agrupamento instrumental [que Milhaud acabava de realizar no Retour de
l’Enfant Prodigue] e iniciei uma série de ‘pequenas sinfonias’ para 7 ou 10 instrumentos diferentes. Eu estava
ansioso por poder ouvir essas tentativas de independência tonal: Braga dirigiu a 1ª Sinfonia, em um de seus
concertos; o público não pareceu surpreso pelas sonoridades da minha música, porém, ignorando ou esquecendo
que à época de Monteverdi, a palavra ‘sinfonia’ designava às vezes uma única página de música instrumental,
ele esperava ouvir uma obra imensa com uma imensa orquestra; ele ficou chocado pela brevidade da minha
peça”. O lapso de Milhaud trocando o nome de Nepomuceno (que regeu a obra) pelo de Francisco Braga, diretor
da orquestra da “Sociedade dos Concertos Sinfônicos” (ver Sergio Alvim Corrêa, 1985: 38), se repetiria em
todas as reedições da autobiografia de Milhaud, no seu Catálogo de Obras e na bibliografia. Em carta (sem data)
enviada a Alberto Nepomuceno, ele diz: “‘Mon bien cher maître’, eu o procurei todos estes dias passando em
frente à Casa Napoleão para lhe agradecer mais uma vez pela maneira com o senhor fez a sua orquestra trabalhar
‘Printemps’ e pela execução que o senhor conseguiu obter, a qual, se não tiver agradado a todo mundo, a mim
me deu um grande prazer, do qual lhe fico devedor.” (in Reis Pequeno, 1977, T. do A.).
199
exemplo, citaremos os três primeiros temas de sua 2ª Sonata para piano e violino
[...] Não se executaram os dois poemas de Paul Claudel [...] musicados, ainda, pelo
ilustre artista amador [sic].
Foi ontem no salão do Liceu Francês a primeira audição da 2ª Sonata para piano e
violino do senhor Darius Milhaud, que a escreveu a pouco, aqui no Rio de Janeiro.
É uma sonata carioca por nascimento, francesa e modernista pela escola, ou antes
pelo seu modo de ser [...] Somos forçados a resumir numa generalização de frase,
uma banalidade de conceito apreciativo, toda a nossa admiração pelo que ouvimos,
e que era belo, e que era novo, e que era sentido, porque continha uma parcela de
humanidade.285
causados no Brasil foram, por um lado, a música popular286 - é bem conhecido o relato de
Milhaud de sua chegada no Rio em pleno carnaval de 1917287 - e, por outro, o contato com os
Veloso-Guerra, sobre os quais declarou que: “eles me iniciaram à música de Satie que eu
285
Outra crítica existente no Arquivo Paul Guerra e datada de 8/VIII/1917 (porém sem indicação do jornal ou do
crítico) revela as mesmas disposições favoráveis: “Os espíritos que ficaram estratificados na audição das
consonâncias e se tornaram incapazes de apreender as belezas inenarráveis das combinações que não repousam
sobre acordes perfeitos [...] esses acreditaram que a 2ª Sonata do Sr. Milhaud é um sintoma de loucura; aqueles,
porém, que se emanciparam dessa imperfeição auditiva e tiveram a felicidade de transpor os umbrais dos
rudimentos da harmonização de penetrar na amplidão das combinações livres do contraponto, nas formas da
composição temática, esses terão a faculdade de apreender as inúmeras belezas da 2ª Sonata do Sr. Darius
Milhaud e de sentir as emoções que ela desperta com a sua idealização muito sincera”.
286
Segundo Madeleine Milhaud: “O folclore brasileiro [...] despertou nele o amor ao Folclore [em geral], e é o
primeiro a tê-lo realmente impressionado [...] antes mesmo do próprio folclore provençal [...] Isto transparece e
se ouve ao longo de toda a sua música” (O.R.T.F., 1978, T. do A.).
200
Em sua autobiografia, Milhaud relata que travou conhecimento com os
Capítulo II), o qual costumava realizar regularmente, aos sábados, tertúlias musicais288.
A empatia entre nós foi imediata [...] Sentimo-nos logo em sintonia. Após [a partida
da casa de Henrique Oswald] minha mulher, Darius, e eu voltamos no mesmo
bonde [...] Ao nos despedirmos, ele me disse: dêem-me o seu endereço, gostaria
muito de revê-los289 [...] A partir deste dia, nós nos vimos muito, muito
freqüentemente290 [...] Nós morávamos bastante perto291 [...] e ele vinha tocar piano
[...] Logo que ele escrevia alguma coisa, ele vinha lá em casa para tocar (Eu penso
que no início ele ainda não tivesse um piano). Ele trazia o que havia escrito [...] e
queria testar ao piano [...] Minha mulher, que você conheceu e que lia
admiravelmente bem292 à primeira vista, [...] decifrava dentro da medida do
possível, pois - como sempre é o caso com manuscritos - tratava-se de obras que
não estavam ainda terminadas [...] Vi quantidades de obras293 dele [nessa ocasião] e
possuo até mesmo autógrafos que ele nos deu.294
287
“Meu contato com o folclore brasileiro foi brutal; cheguei ao Rio em pleno carnaval e pude sentir imediata e
profundamente o vento de loucura que se abatia sobre a cidade inteira [...] Os ritmos desta música popular me
intrigavam e me fascinavam” (Milhaud, 1949: 87-88, T. do A.).
288
às quais Oswald Guerra (O.R.T.F., 1978) se refere como “reuniões íntimas que se passavam aos sábados em
casa de Henrique Oswald”.
289
Pela dedicatória da partitura do seu 2º Quarteto de Cordas (ver Volume II, Anexo IV - “Capas de
Partituras/Dedicatórias): “aos meus amigos da rua Marques de Olinda”, datada de 3 /IV/1917, pode-se deduzir
que o encontro com os Guerra se deu nos primeiros meses de sua chegada ao Brasil.
290
“[...] très, très, très souvent [...]” (Oswaldo Guerra, in O.R.T.F., 1978). Essa observação de Oswaldo ecoa a
de Milhaud relatando seu encontro com os Guerra em casa de Henrique Oswald: “Desde então fiquei muito
ligado aos Veloso e os via freqüentemente”.
291
Milhaud morava na Legação de França, na Rua Paissandu, enquanto os Guerra se mudariam alguns meses
depois do bairro de Botafogo (residiam na Rua Marquês de Olinda, de onde - ainda em setembro de 1917 -
Oswaldo dataria sua carta a Koechlin sobre a vinda dos Ballets Russes) para o de Laranjeiras. Segundo Oswaldo
Guerra: “Ele morava pertinho (tout près) da Rua das Laranjeiras.”. (O.R.T.F., 1978).
292
Nesse momento da entrevista, Madeleine Milhaud comenta: “Ela era uma musicista admirável (“remarquable
musicienne”)”. (O.R.T.F., 1978, T. do A.).
293
Na entrevista radiofônica, Oswaldo Guerra refere-se à 2ª Sonata para violino e piano como “a Sonata
dedicada a [André] Gide, que eu vi sendo escrita”.
294
Descrevendo as circunstâncias da composição, no Rio em 1917, da sua cantata Le Retour de l’Enfant
Prodigue, Milhaud dá um exemplo que ilustra esse relato de Oswaldo Guerra: “Compus e terminei L’Enfant
Prodigue [...] Dado o [extremo] entrelaçamento polifônico entre as partes instrumentais, o único arranjo que eu
consegui fazer foi para dois pianos e eu imediatamente (aussitôt) fui tocá-lo com Nininha” (Milhaud, 1949:91, T.
do A.).
201
26/X/1918 escrita num período de afastamento (involuntário), em função de terem todos
Quanto a mim, continuo acamado. Tenho a gripe espanhola, porém, leve, e espero
que esteja recuperado em 5 ou 6 dias. Quando nós todos estivermos curados haverá
muita música para vermos e pouco tempo, pois Cacique296 recebeu oficialmente a
ordem que ele deveria partir para Washington pelo 1º navio a partir de 11/XI e que
o encarregado de negócios, que assumirá a Legação, já está a caminho [...] Me
parece tão estranho ter aqui música minha que vocês não conheçam, tanto eu
me habituei a ensaiar com vocês minhas novas obras no mesmo momento que
eu as escrevo.
de Darius, “uma grande importância para ele sobre todos os pontos de vista” (O.R.T.F., 1978).
Guerra como, por exemplo, na carta de 21/VII/1919: “não esqueço [...] essas soirées de
música em Laranjeiras297 que estão entre as melhores reuniões musicais que eu jamais tive
[...]”. Por outro lado, tanto o depoimento de Oswaldo Guerra quanto a carta que Milhaud lhes
dirige do Rio em outubro de 1918 (quando, então, afastado pela gripe espanhola) dão
testemunho do hábito que este tinha de mostrar a eles as suas composições na medida em que
295
Em carta de 24/X/1918 (inédita, informada por Frank Langlois), Milhaud se refere à extensão da epidemia de
“gripe espanhola”: “Feliz aniversário, caro amigo. Seu presente lhe espera. Mas não volte. Morre-se demais no
Rio [...] Estou acamado desde ontem e deverei permanecer por mais uns quatro dias. Meu médico, Dr. Raul
Leitão da Cunha, é perfeito porque ele me receita tudo o que eu lhe sugiro [...] A incúria e o pânico têm sido
aterradores (épouvantables) e têm ocorrido coisas terríveis nos bairros pobres [...] Os petits Guerra também
estão ambos acamados e têm febre alta [...] Todos cariocas estão gripados numa proporção maior ou menor [...]”.
(in “Bibliothèque Littéraire Jacques Doucet”, T. do A.).
296
Apelido dado a Claudel por seus subordinados Milhaud e Hoppenot na Legação francesa.
TP297 Referência à casa dos Guerra (Oswaldo Guerra, in O.R.T.F., 1978).
202
dirigida a Oswaldo no primeiro aniversário da morte de Nininha) existe um conjunto de 20
cartas enviadas entre a sua partida do Brasil e a chegada dos Guerra à França. As primeiras
são escritas durante a longa viagem298 de retorno à França via EUA299: nas Antilhas Francesas
(Point à Pitre, 01/I/1919), Nova Iorque (08/II), a bordo do navio “Lorraine” (13/II/1919)300; a
TP298PT Milhaud descreve essa viagem no Capítulo XII de sua autobiografia (Milhaud, 1949: 100-106).
299
Através dos diários de Paul Claudel (1969), as datas dessa viagem podem ser reconstituídas: após a partida do
Rio em 23/XI, eles permanecem na Bahia de 26/XI a 01/XII e, em Pernambuco, de 4 a 10/XII; seguem-se
escalas na Martinica (22 a 29/XII, quando Milhaud conclui o 1º ato das Euménides), em Guadalupe (01/I/1919,
quando Milhaud termina a terceira peça da coleção Printemps, dedicada à Nininha e da qual o Arquivo Paul
Guerra possui o manuscrito autógrafo) e Porto Rico (04 a 08/01); eles permanecem nos Estados Unidos (Nova
Iorque e Washington) de 14/I a 05/II.
300
Em 13/II/1919, a bordo do navio “Lorraine”, ele escreve à Nininha: “‘Chère Madame’, é meia noite. Amanhã
de manhã chegarei na França [...] Na França. Amanhã estarei na França, com os meus pais. É tão bonito. Será tão
bom!”.
203
Paris e sem interesse; escrevo nada [...] os amigos da minha vocês, nada [...]”; Antonieta Rudge: “[...]
[...] uma agitação música acham “excessivamente b) anuncia que a SMI concordou toca como uma máquina
fictícia [...].”; dissonante” o que escrevi no Rio em apresentar a Sonata de OG, mas de costura [...]”;
b) porém, revê [...].”; não os Epigramas de NVG por b) “[...] mandem-me
André Gide e b) “Koechlin me pede para tocar no serem demasiado curtos”; muitos detalhes sobre
Francis Jammes. SMI, em junho, os ‘Marines et c) “[...] Paris vos espera [...]”. vocês e sobre a vida
Paysages’”. musical no Rio [...]”;
c) anuncia apresentação
no “Vieux Colombier”
do Trio de Glauco, junto
com obras de H. Oswald,
Nepomuceno.
10/IV a) “pretendo ficar a) 1ª audição, "tumultuosa", do 4º a) anuncia que Koechlin enviou a
Paris algum tempo em Quarteto de cordas; eles (OG&NGV) a partitura de
Aix [para b) Durand publicará a Sonata para “Marines et Paysages”;
repouso]. Já revi piano e instrumentos de sopro; b) “[...] Bathori pede composições
quase todo c) possibilidade de Delgrange reger de vocês. Façam por ela e por mim
mundo [... as “Choéphores na primavera”. [...]”;
Paris...]”; c) pede que OG mande seu (1º)
b) comentários Quarteto de cordas;
encontros com d) queixa-se da ausência de cartas
Satie, Auric, de NVG.
Poulenc e Durey;
c) opiniões sobre
Ravel.
28/VI a) anuncia ida à a) “não escrevi nada desde meu a) acusa recebimento de carta de
Paris Dinamarca com retorno exceto as ‘Soirées de OG de 12/05, de NGV datadas de
Claudel; Petrograd’”; 17 e 23, assim como de novos
b) relata 1ª b) a 2ª Sonata para piano e violino foi tangos;
Audição das tocada “mal” por Y. Guiraud e L. b) “[...] quando vocês estiverem na
"Choéphores": Aubert [...] eu só pensava em nossas Europa, será necessário que vocês
“[...] teria tão boas pequenas apresentações no estudem muito seriamente com
encarregado Liceu e no Conservatório [...] como Gedalge e comigo [...]”;
vocês da seção tudo isso era encantador [...]”; c) pede a OG que envie sua Sonata
de percussão c) Protée: apresentação prevista para para piano e viola.
[...]”; o “próximo interno”; também
c) comentários a projetos para: Brebis Egarée e
respeito de Choéphores.
Koechlin, Ravel
e Satie.
21/VII a) descreve os a) “[..] quanto a esse novo a) acusa recebimento cartas de
Aix festejos da movimento musical: não poderia GLV e NVG (com comentários
Vitória em Paris. sentir-me mais distante dele [...]”; sobre “Tombeau de Couperin” de
Não aceita b) “quanto a Protée: estou fazendo Ravel);
proposta do uma nova versão para orquestra b) envio de artigo de Marnold, de
Ministério de adicionando uma abertura e alguns partituras pedidas pelos Guerra, e
missão na fragmentos sinfônicos [...]”; programas para OG;
Dinamarca; c) envolvimento em diversos projetos c) remetendo carta Koechlin a
b) comentários de apresentações de suas obras: respeito da melodia (canto/piano)
diversos sobre Brebis Egarée, l’Enfant Prodigue, “Poussière” de NVG: “[...] que
Auric Poulenc e Protée, Choéphores; analisamos com grande cuidado
Durey (futuros d) “[...] conto com vocês (Nininha ao [...]”.
membros do piano) para realizar a 1ª audição da
“Groupe des Sonata (para piano/sopro) no
Six”. próximo inverno [...]”.
19/IX Agradece votos Expectativa quanto à próxima “[..] eu tinha com vocês dois as tão
Aix de aniversário. apresentação de Protée no “Theatre boas noitadas de música que nunca
Lyrique”; e espera, para março, consegui voltar a ter em Paris.
audições de Printemps e das Vocês me anunciam seis meses na
Choéphores. França: é pouco [...]”.
20/IX “[...] sinto muita “os cartazes de Protée já estão nas a) enviando autógrafos de Albert “[...] Gosto tanto de
Paris falta da ruas [...] trata-se de uma música Roussel e de um dos “Nouveaux receber notícias do
tranqüilidade que cubista pela forma [...] a senhora Jeunes” (como eram conhecidos os Brasil [...]”.
tinha no Brasil detestará a cantiga de beber, mas futuros membros do “Groupe dês
para trabalhar. penso que gostará das Aberturas Six”): Louis Durey;
Há uma [...]”. b) “[...] o irmão do OG continua
possibilidade de em Londres? (trata-se do violinista
204
eu passar 8 dias Edgardo Guerra)”.
em Londres, em
dezembro, (para
apresentação do
Boeuf sur le
Toit)”.
29/IX Refere-se aos três “[...] Minha Sonata “carioca” para a) assina a carta em português
Aix dias passados na piano/violino acaba de ser publicada. como “o Milhaud”;
Camargue, que Dei o endereço de vocês para a b) “[...] espero que vocês me
diz ser sua região Durand enviá-la [...]”. escrevam detalhes precisos quanto
preferida na a suas intenções [...] espero que
Europa. vocês demorarão demais para que
eu consiga programar a 1ª audição
da Sonata [...]”.
05/XI Anuncia a OG “[...] Meu caro amigo, tenho uma
Paris que sua Sonata boa notícia. A SMI apresentará sua
para Sonata para piano/violino no seu
piano/violino próximo concerto do dia 20 de
será apresentada novembro [com os excelentes
nos concertos da intérpretes Jeaninne Weil e A.
SMI. Pascal]”.
09/I a) “[...] estou trabalhando num a) anuncia montagem do Le a) acusa recebimento de fotos e
Paris ritmo intenso; aguardo Boeuf sur le Toit para da Sonata para piano/viola de
impacientemente a vinda de fevereiro: “[...] Regerei a OG, que pretende inscrever
vocês [...]”; orquestra [...] estou muito junto a SNM (“Société
b) comentários sobre Cocteau, satisfeito com o espetáculo” Nationale de Musique”);
e sobre a súbita morte de (tent ce spectacle); b) congratulações pelas fotos e
Fauconnet; b) anuncia composição da pelos três anos de idade do filho
c) brasileiros em Paris: Regis “Serenade”, baseado em Charles (Guerra);
de Oliveira, Tristão da Cunha, “formas antigas”; c) encantado com a notícia da
Alfredo Oswald, Macedo. c) “[...] é preciso entender que vinda deles em setembro;
o Impressionismo acabou [...] e d) enviando a partitura de
que as pesquisas de Ravel e “Sócrates”, de Satie: “[...] obra
Florent Schmidt se esgotaram”. admirável, de uma pureza de
linha admirável [...]”;
e) protesta contra a idéia de a 1ª
audição da Sonata para piano e
sopros (dedicada a NVG) ser
sem a presença deles em Paris.
10/I Termina 5ª peça de Printemps. Encenação do Boeuf marcada
Paris para fevereiro.
"Páscoa" a) doença após temporada do Satisfação com a temporada do Felicita NVG pela nova
Aix Le Boeuf sur le Toit; Le Boeuf sur le Toit: “[...] um gravidez.
b) esteve com Alfredo Oswald espetáculo alegre e plenamente
(o pianista, filho de Henrique bem-sucedido [...]”.
Oswald).
14/VI “[...] quando vocês estiverem Acusa recepção da carta de
Paris aqui, verão como são nossas NGV de 21/V, na qual: “[...] a
pequenas reuniões de sábado” senhora me fala de Rubinstein
(as reuniões do “Grupo dos [...]”. (naquele momento em
Seis”).”. nova temporada no Rio).
29/VI Anuncia projeto de compor as a) anuncia início da a) “[...] me escrevam com mais
Copenhague “Saudades do Brazil”, uma composição das Études para freqüência [...]”;
205
suíte disposta como “um piano/orquestra; b) conta que a “Société Moderne
passeio que começa na rua dos b) a respeito da Sonata para d 'instruments à vent” pediu
jovens Guerra” e termina na rua piano/sopros, diz que será para fazer a 1ª audição da
da Legação” [de França]. editada pela Sirène, e que está Sonata para piano/sopros, mas
“[...] muito satisfeito com o que respondeu que esperaria a
último movimento que vocês chegada dos Guerra.
não conhecem [...]”.
27/VIII Manifesta sua enorme a) acaba de terminar as 5 a) acusa recebimento carta NGV
Aix decepção com a notícia de Études, das quais diz que a 5ª é datada de 03/VII sobre as
cancelamento (que acabou dedicada a NVG; apresentações no Rio de Pelleas
sendo apenas um adiamento de b) “[...] trabalhei como um et Mélisande e Parsifal.
dois meses) da vinda dos louco nesse mês: terminei meu b) “[...] eu tinha tantos projetos
Guerra a Paris: “[...] eu me 5º Quarteto (contava pedir-lhe de concertos com vocês”
regozijava tanto com a idéia de a redução para 4 mãos).”; [refere-se, entre outros, à
tê-los em Paris [...] eu já havia c) anuncia que Protée está realização da 1ª audição da
organizado meu ano inteiro em programado nos concertos Sonata para piano /sopros];
função de vocês fazerem parte Colonne. c) “[...] vou enviar-lhes meus
dele o máximo possível [...]”. “Poèmes Juifs”, que eu contava
entregar-lhes, pessoalmente, no
momento da chegada [...]”.
Milhaud faz um relato de suas novas composições: peças para piano da coleção Printemps, a
suas obras: leitura de seu Quarteto de Cordas n.4 em Nova Iorque pelo “Quarteto Flonzaley”,
tratativas com a editora Schirmer para publicar os poemas em inglês de Tagore (que havia
primeira vista) das Euménides; reencontro de artistas que havia conhecido no Brasil (Artur
Rubinstein, o dançarino e coreógrafo dos “Ballets Russes” Adolf Bohlm) e novos contatos (o
compositor Ernest Bloch); de suas primeiras impressões inicialmente negativas dos EUA, país
que o acolheria durante a 2ª Guerra Mundial e que se tornaria uma segunda pátria301: “Estou
ansioso por deixar este país. Aí está um país que não é feito para mim e ao qual eu não me
TP301PT Milhaud, que descobriria o jazz em Londres, assistindo Billy Arnold e sua banda (1949: 133-4),
mudaria por completo sua visão dos Estados Unidos, quando lá retornou várias vezes a partir de 1922. A partir
de 1940, passou a residir na Califórnia, onde - durante décadas - foi professor de composição em Mills College.
206
habituaria nunca. Enquanto que no Rio, eu teria ficado indefinidamente”. Em outro trecho da
mesma carta, certamente respondendo a uma pergunta dos Guerra sobre o recente sucesso da
pianista Guiomar Novaes nos Estados Unidos, ele diz: “Eu nunca ouvi falar de Guiomar N.
[sic]. Será que ela já não teria deixado este país mecânico e perfeccionista, que é complicado
demais para a alma simples que eu sou?”. Sabendo-se à distância, em pleno período do
carnaval, pergunta: “Já existem novos tangos para o carnaval? Não me esqueçam”.302
junho de 1919, reflete bem o estado de espírito, que ele assim descreveu em sua autobiografia:
TP302PT Carta de Milhaud, datada de 8/II/1919: “ y-a-t-il eu de nouveaux tangos pour le Carnaval? Ne
m´oubliez pas!”
303
Ver Milhaud (1949: 107-108, T. do A.): “.Je reretrouvai Paris dans la joie de la victoire. Mais c´est comme
um étranger que je revins à mon appartement: mes yeux avaient trop retenu les reflets troubles du ciel brésilien,
mes oreilles étaient encore trop vibrantes des bruits somptueux de la forêt et t des rythmes subtils des tangos.Je
sortis de ma malle toute sorte d´objets de pacotille ou d´inspiration populaire que j´avais achetés em Amérique:
des coquilles de noix gravées et peintes par les indiens,sifflets en terre cuite representant des oiseaux[...] des
specimens de l´argenterie coloniale portugaise.J´accumulai tous ces temoins silencieux de mon beau voyage sur
la cheminée.Heureusement le mouvement artistique qui se developpait autour de moi m´intéressa bientôt assez
pour m´arracher à mes souvenirs
207
Eu me esforço a me re-habituar a Paris sem conseguí-lo e me sinto como um
estranho em meu apartamento [...].A cada dia eu sinto mais falta do Rio e penso o
tempo todo no belo sol, com as grandes palmeiras e, sobretudo, as boas sessões de
música304 [20/II/1919].
[...] Aqui a vida é impossível e estúpida [...] Em Paris, vive-se numa agitação tão
ilusória (factice). Parecemos um motor de avião ou uma máquina de costura. A vida
se parece com a técnica pianística de Rudge Miller305, isto é, tão rápida, burra e sem
interesse [...] Desde a minha chegada na França eu ainda não compus nada. Será
que a minha música teria ficado no Brasil?
mim eu digo: pior para eles...”, e anuncia que iria para a sua casa familial em Aix-en-
Provence “repousar-me ou, aliás, tentar trabalhar um pouquinho, pois desde a minha chegada
à Europa, eu não compus mais nada”. Em 28 de junho, reclama de uma execução da sua 2ª
Em 21 de julho, ele termina uma carta para os Guerra, nos seguintes termos:
Aqui é verão, um bom verão bem calmo, com pássaros que cantam em francês -
mas eu não esqueço o bem-te-vi, o sabiá, nem o ardor do sol tropical, quando ele se
derrama sobre as palmeiras, nem as noitadas (soirées) de música em Laranjeiras
que estão entre as melhores reuniões musicais que eu jamais tive. Eu desejo que nós
possamos recomeçar esses saraus em breve e em Paris307.
304
Em francês: bonnes soirées de musique.
305
Milhaud se refere à grande pianista Antonieta Rudge-Miller, já referida no Capítulo III. Sua observação,
talvez lisonjeira em relação à Nininha, contrasta com a opinião de grandes músicos e críticos que a ouviram, e
com a frase atribuída a Rubinstein de que: “as três coisas, das quais mais gosto são: Beethoven, Mozart e os dois
tocados por Antonieta Rudge”.
306
“Louis Auteil e Yvonne Giraud tocaram minha ‘2ª Sonata’; estava um horror (“c’etait affreux”)” (carta de
28/VI/1919).
307
Uma carta à Srª Henrique Oswald, datada de 26/VII/1919 revela um estado de espírito semelhante: “Aqui,
apesar do verão, acho que não faz calor, que a lua não é tão brilhante, que as árvores são muito pequenas, que as
208
Apesar de que, a partir do segundo semestre de 1919, Milhaud retomaria a
sua atividade composicional - notadamente Protée308 e Le Boeuf Sur Le Toit - ele ainda
Eu sinto tanta falta da tranqüilidade que eu tinha no Brasil para trabalhar. Eu havia
me habituado de tal maneira que não tenho conseguido, desde a minha volta
trabalhar seriamente aqui fora “Protée”, que me ocupou todo o verão [...] e para o
qual fui impelido pelas circunstâncias.
de fevereiro, ele escreve: “aqui estou instalado com Claudel num escritório do Ministério, mas
infelizmente (helás!) pela janela não são as palmeiras da Rua Paissandu que eu vejo”. Em 17
escreveria aos Guerra que o futuro posto do Claudel era incerto - podendo tanto ser a chefia
da Legação francesa na Polônia quanto um eventual retorno ao Brasil - comentando: “em todo
caso não voltarei com ele, pois devo retomar os preparativos para o Prix de Rome”. Já no final
de fevereiro, suas dúvidas quanto ao Prix de Rome se acentuam, comentando para os Guerra
frutas não têm o mesmo sabor, que a flores não têm o mesmo perfume, e que as pessoas são bem menos gentis
que os meus amigos do Rio, como vocês, e os meus outros caros.” (citada em Martins, 1995:100).
308
Conforme relata em sua autobiografia (Milhaud, 1949:68-69): “Milhaud compôs [...] três versões diferentes
de ‘Protée’: a primeira [1913] exigia pouca música: um pequeno coro à capela [...] uma fanfarra para metais [...]
um noturno pianíssimo [...] um final [...] para coro masculino e grande orquestra. [...] Em 1919, Gheusi [diretor
do ‘Théâtre du Vaudeville’] tentou fazer uma montagem muito luxuosa de ‘Protée’ [...] com cenários de José
Maria Sert; e me pediu para ampliar a minha partitura e escrevê-la para grande orquestra. Nessas novas
circunstâncias, eu compus aberturas para cada ato, um prelúdio e fuga [...] e um final para o primeiro ato [...] Eu
re-orquestrei as peças já existentes. Porém, a experiência teatral de ‘Gheusi’ foi efêmera [...] Cansado após todas
estas tentativas, eu extrai de ‘Protée’ minha segunda ‘Suíte Sinfônica’. É sob esta forma que esta obra é tocada
em concertos e está gravada”.
309
Endereço em Paris do Ministério das Relações Exteriores da França, e pelo qual é correntemente referido.
209
que: “no Conservatório é de se chorar tellement c’est bête. O concurso de Roma será talvez
sendo logo absorvido pela solicitação de novas obras, pela execução pública e edição de suas
composições: já nos primeiros meses de sua chegada, seriam apresentadas a sua Sonata para
2 Violinos e Piano, a 2ª Sonata para Piano e Violino, as duas primeiras sinfonias de câmara
Choéphores, em junho310. Ao mesmo tempo estavam sendo editados Dois Poemas de Tagore
pela Schirmer de Nova York, sua 2ª. Sonata para Violino e Piano e seu 4º Quarteto de
França, Milhaud toma duas iniciativas relacionadas com a difusão de música brasileira:
310
Em carta datada de 28/VI/1919, ele relata algumas de suas impressões deste concerto aos Guerra: “O
acontecimento musical importante foi a 1ª audição de minha música para as Choéphores – foram dados
fragmentos importantes da minha partitura e posso dizer a vocês que se trata realmente de uma obra com a qual
eu estou contente e feliz. A execução produziu uma impressão muito forte. Sentia-se que se tratava da primeira
manifestação musical importante e nova desde o Sacre. A cena com percussão e declamação desencadeou o
entusiasmo. Vocês me fizeram muita falta e eu os teria feito tocar na percussão” .
311
Em carta de 28/II/1919, Milhaud anunciava da seguinte forma aos Guerra suas intenções quanto a esse
concerto: “Eu talvez faça uma conferência sobre a música no Brasil, na qual eu faria cantar tangos e maxixes e
em seguida apresentaria A Sesta de Nepomuceno, a 2ª Berceuse de Oswald, uma parte do Trio n. IV de Glauco.
Será que eu devo colocá-los na seqüência de ‘ces braves gens’? Nesse caso, eu terminaria a sessão com as obras
de vocês, mas minha preferência seria fazê-las ouvir em concerto da SMI”.
210
em 13 de abril de 1919312, com obras de Glauco Velasquez, Alberto
mundial havia sido dada por Milhaud e Nininha Guerra no Rio de Janeiro, em 30/VIII/1918,
Deve-se notar que esse concerto precedeu de dois anos a primeira apresentação, em Paris, de
312
Em 13/IV/1919, Claudel anota em seu diário: “à tarde concerto de música brasileira”.
313
Em carta datada de 10/IV/1919, Milhaud envia o programa do concerto com os seguintes dizeres: “‘Chère
Madame’, aqui está o programa onde encontrará em companhia de meus coros tupis seus encantadores
Epigramas. Paris lhe espera”.
314
Uma semana antes (carta datada de 20/II/1919), Milhaud escrevia aos Guerra: “Eu farei tocarem na SMI,
provavelmente sua Sonata para piano e violino, caro Oswaldo, e tocarei seus ‘Epigramas’, tão encantadores,
‘chère Madame’”.
315
Em carta (13/II/1919) a bordo do navio “Lorraine”, onde Milhaud havia tocado os Epigramas num pequeno
concerto, ele premonitoriamente avisava: “Eles [os dois Epigramas] continuam sempre tão bonitos e eu gosto
muito deles, mas ainda é necessário escrever outros (não havia sido programado um total de cinco?) e me
enviar”.
316
Juntamente com 1ªs audições de obras de Milhaud, Turina, Grovlez e Goossens.
317
Ver referência à precedência da Sonata de Oswaldo Guerra, no Capítulo IV.
211
Darius Milhaud no “Vieux Colombier” - constituem as primeiras obras apresentadas no
que Oswaldo Guerra deveria tentar obter o “Prêmio de Viagem”318, manifestando também a
esperança de que o prestígio resultante da aceitação pelo SMI de execução de uma obra sua
Eu lhe enviarei vários programas [desse concerto] para que vocês os mostrem a
todo Rio de Janeiro (tout Rio). Isto incitará o Governo a dar a vocês o Prêmio de
Viagem. Ficaria feliz se este concerto fizesse com que os seus compatriotas
entendessem que você já é apreciado na França.
318
Ainda em 21/VII/1919, Milhaud perguntava a Oswaldo: “Informe-me como vai a questão da subvenção para
o seu prêmio de viagem para a Europa, pois conto com a presença de vocês para este inverno”.
319
Nessa mesma carta, Milhaud faz a seguinte sugestão (provavelmente jocosa a Oswaldo) comparando com a
sua própria situação no Brasil enquanto “secretário particular” de Paul Claudel: “Oswaldo deveria se fazer trazer
por Regis como secretário particular”. Raul Régis de Oliveira (1874-1942) “[...] No final de 1919, após breve
passagem por Paris, seguiu para Haia, na Holanda, como enviado extraordinário, e ministro plenipotenciário”
(Abreu, 2001: 4177 - Volume IV).
212
Em junho, diante de uma perspectiva de vinda (posteriormente não
concretizada) ainda em 1919, ele sugere um “plano de estudos”: “será necessário que vocês
estudem intensamente com Gedalge320 e comigo, mas muito seriamente”. Num momento
ulterior321, ele sugere que esses estudos também sejam feitos com Charles Koechlin. Essa
que Milhaud tanto valorizava em relação aos estudos que realizara com Gédalge - se por um
lado aponta para uma lacuna na formação técnica de Oswaldo e Nininha, por outro
corresponde a recomendações idênticas que fazia ao seu colega e amigo, o compositor Francis
Poulenc, quando recomendou a este que aprofundasse sua técnica com Koechlin.
a Paris, o de uma mera viagem de estudos. O propósito central que atravessa toda essa
vanguarda de Paris323. Primeiramente, ele os mantém a par das execuções de suas obras e de
suas novas composições (como exemplos, Soirées de Petrograd, Protée, Le Boeuf sur le Toit,
Machines Agricoles, Sérénade, Saudades do Brazil, Cinq Etudes para piano e orquestra,
5º Quarteto de Cordas). Ele também os mantém informados quanto aos seus principais
320
André Gedalge, professor francês (1856-1926). Segundo Rostand: “Ele viu passar por sua classe, no
Conservatório de Paris, tudo o que a música daquela época teve como celebridades, de Florent-Schmitt a Darius
Milhaud [...] De 1905 até a sua morte, ele professou o contraponto e a fuga. Ele escreveu um ‘Tratado da fuga’,
em 1904” (Rostand, 1970:97, T. do A.). Em 1965, Dariu Milhaud escreveu um prólogo para a tradução
americana do Tratado de Gedalge, com os seguintes comentários: “Eu tive a grande sorte de estudar com André
Gedalge durante vários anos. Eu tenho a impressão que tudo o que eu sei quanto ao aprendizado, eu devo a ele. É
absolutamente necessário para um compositor adquirir uma forte técnica: harmonia, contraponto e fuga. E, para
o estudo da técnica da fuga, sobre todos os detalhes possíveis, André Gedalge nos deixou um verdadeiro
monumento” [Gedalge, 1965: vii, T. do A.]
321
Em carta de 19/IX/1919, ele “reclama” da curta duração prevista para a viagem: “Vocês me dizem que virão
passar talvez seis meses na França. Como é pouco! Eu passei dois anos no Rio...”.
322
É sintomática dessa ênfase no trabalho da técnica composicional a seguinte observação numa carta aos Guerra
de 29 de setembro de 1919: “Meus caros amigos, eu aproveito a passagem em Aix de Louis Durey para pedir-lhe
um autógrafo para vocês. Trata-se de um dos ‘nouveaux jeunes’ que é um estudioso aplicado. Evidentemente, ele
tem muito que aprender! Mas isso eu também e vocês também”.
213
Georges Auric, Louis Durey; a cantora Jane Bathori, a pianista Georgette Gueller; a violinista
Yvonne Guiraud; os escritores Francis Jammes, Claudel, André Gide e Jean Cocteau. Ele
procura interessar músicos franceses na música dos Guerra: a análise que faz com Koechlin
da melodia Poussière de Nininha, tendo como conseqüência uma carta de Koechlin dirigida a
Nininha com sua análise e recomendações324; o pedido que Jane Bathori faz de melodias de
Nininha, logo após o concerto do “Vieux Colombier”; a insistência de Milhaud para que
Oswaldo envie à França sua recém-composta Sonata para viola e piano para poder enviá-la à
dos Nouveaux Jeunes no Groupe des Six. Já a partir de abril de 1919, ele expressava para os
323
Numa carta de 25/XI/1919, ele diz: “É preciso que vocês venham, pois é só em Paris, no fundo, que a música
acontece”.
324
Essa carta de Koechlin, mencionada por Milhaud em sua carta de 01/IX/1919, não foi localizada. A
correspondência com Koechlin envolvendo os Guerra havia começado mais cedo, como se pode observar na
seguinte carta de Milhaud a Koechlin, datada de 05/V/1917 [T.do A.] : “Caro amigo, as ‘Paysages et Marines’
chegaram bem [...] Elas serão tocadas num concerto em junho pela senhora Oswaldo Guerra-Veloso, que assim
como toda a sua família, é entusiasmada pela sua música e encomendou diretamente através de Rouart os seus 3
cadernos de melodias [...] assim como a sua ‘2ª coleção de melodias’”; em 21/VI/1917, relatando as dificuldades
para realizar o concerto de 02/VII/1917, no “Salão do Jornal do Commércio” (no qual Nininha apresentou 2
peças de Koechlin: La chanson dês pommiers en fleurs e Chant de pécheurs), diz estar “enfrentando
continuamente a moleza, a preguiça, a inércia deste país delicioso [...] Eles são bem indignos de seu país
magnífico. Eu me vingo convertendo ao cubismo os seus jovens pintores e introduzindo os acordes de 13 notas
juntos aos seus jovens músicos. Aqui só há de realmente interessante o jovem casal Oswaldo Guerra e seu pai
Leão-Veloso que já lhe escreveram a sua admiração. Eles são realmente pessoas como nós e dignos de um dia
habitar a França”; em 27/VIII/1917, ele escreve: “Estou na casa dos meus amigos Guerra [...] Nós
freqüentemente tocamos as suas melodias do 3º volume. A senhora Guerra toca ao piano e eu canto [...] e o seu
4º volume? Ele nos desperta um desejo agudo”. Nessa mesma carta são adicionadas curtas mensagens de
Oswaldo e Nininha para Koechlin. Esta lhe escreve: “Como aprecio tanto a sua música, gostaria muito se
pudesse escrever uma peça para mim e enviá-la”; na carta a Koechlin previamente citada , de 03/IX/1917
,Oswaldo agradece os “ 3 volumes de melodias “enviados diretamente a ele pelo editor Rouart .
214
Em relação aos Nouveaux Jeunes, manifestaria a eles suas opiniões quanto
aos pontos fortes e fracos de Poulenc, Auric e Durey, assim como seus pontos de
concordância e discordância com essas novas tendências. Numa carta datada de 21/VII/1919,
ele escreve:
mundano do Le Boeuf sur le Toit, Milhaud parece muito mais identificado com o que se
tornaria o ideário do “Grupo dos Seis”326, escrevendo aos Guerra os seguintes comentários
Eu lhes enviarei, logo que for editado, o Socrate [...]327 É uma obra admirável com
uma pureza de linhas incomparável! Não se pode deixar de constatar atualmente
que o Impressionismo acabou; que as pesquisas de Ravel328 e Schmitt329 etc., não
levar a lugar nenhum; que foi preciso livrar-se de todo o exotismo dos Russos, por
mais cativante que seja e das asperezas de um Stravinski e que nós reencontramos
325
Em carta aos Guerra datada de 10/IV/1919, ele já dizia a respeito de Poulenc: “Poulenc é muito jovem e não
estudou o suficiente, mas o resultado é vivo e claro, muito ritmado. Ele é muito talentoso” [T. do A.].
326
A expressão “Grupo dos Seis” só seria cunhada algumas semanas depois dessa carta no famoso artigo de
Henri Collet, com o título “Les Six Français: Darius Milhaus, Louis Durey, Georges Auric, Arthur Honegger,
Francis Poulenc e Germaine Tailleferre”, publicado no jornal “Comoedia”, em 23/I/1920.
327
Em carta de Milhaud aos Guerra datada de 09/I/1920. Esta obra de Satie se tornaria um paradigma na estética
“francesa” dos Six, na busca de uma “nova simplicidade”. Claude Rostand a comenta da seguinte forma: “Este
inimigo do ‘sublime’ comporia ‘Socrate’ (1918) ‘drama sinfônico’ para voz e pequena orquestra, sobre texto de
Platão, nos quais o autor atinge uma certa forma de ‘sublime’, através de recursos de uma extrema simplicidade”
(Rostand, 1970: 196, T. do A.).
328
Em carta de 28/VI/1919, Milhaud declarava aos Guerra: “Ravel se torna insustentável (“insoutenable”)”.
329
Florent-Schmitt, compositor francês (1870-1958). Segundo Rostand (1970:200, T. do A.): “Desde [1907] seu
estilo está formado: apesar das vizinhanças perigosas deste início de século, ele se impõe por sua independência.
Debussy, Ravel, Stravinsky e Schoenberg, de quem ele conhece perfeitamente as obras não terão nunca qualquer
influência sobre ele [...] Músico de grande temperamento, uma natureza generosa, um artista sem compromissos,
em relação à quem é verdadeiramente um erro negligenciar-se a sua produção, como aconteceu após a sua
morte.” Amigo de Stravinsky (que lhe dedicou “Mazatsumi”, a 2ª peça das Três poesias da lírica japonesa,
1913) e de Schoenberg, cujas primeiras obras apoiou eloqüentemente como crítico musical, ele se tornaria no
final dos anos 1920 um grande defensor e amigo de Villa-Lobos. Suas relações, entretanto, com o “Grupo dos
Seis” (com exceção de Honegger) foram de uma antipatia que estes lhe retribuíam.
215
uma música mais despojada, mais FRANCESA [sic], clara e sem desenvolvimento
ou harmonias inúteis. O sentimento puro, expresso com simplicidade, de nosso
grupo, tendo Satie como estandarte (Auric, Durey, Honegger, Milhaud, Poulenc,
Tailleferre) entrou nitidamente em oposição com todos os músicos da SMI, e o fato
de estarmos em grupo nos torna mais fortes!! Aguardo com a maior impaciência a
chegada de vocês. Eu ficaria tão feliz de torná-los participantes de nossas reuniões
de música.
Diversas vezes, Milhaud manifesta o quanto gostaria que os Guerra participassem das
suas atividades:
Estou ansioso para que vocês cheguem. Eu ficaria tão feliz de fazê-los participar
das nossas reuniões de músicas [09/I/1920];
Quando vocês vierem, vocês verão nossas pequenas reuniões de sábado entre
colegas. Isso tem sido muito agradável ao longo deste ano e o será ainda mais no
ano que vem, já que Oswaldo e a senhora aqui estarão [...] [14/VI/1920].
interesse intenso em organizar concertos para ela. Dentre esses projetos, destaca-se como um
tema recorrente o firme propósito de Milhaud de realizar a primeira audição mundial de sua
Sonata para piano e instrumentos de sopro, tendo Nininha como intérprete: a dedicação dessa
obra à Nininha - que acompanhou de perto a composição dos seus três primeiros movimentos
no Rio - e a insistência de Milhaud quanto ela ser a protagonista da primeira audição mundial,
sugerem que a obra e a sua escrita pianística foram pensadas em função das suas
01/II/1919), ele já dizia: “Não esqueçam que eu os espero para a audição de minha Sonata
com instrumentos de sopro. Não me façam esperar dez anos (ela ficaria fora de moda e velha
Guerra na França, ele manifesta a sua decepção com o fato da sua Sonata ainda não ter podido
330
Entre outras menções na sua correspondência à Sonata para piano e instrumentos de sopro: “Conto com
vocês para realizar a primeira audição no próximo inverno” (21/VII/1919); ele escreve: “Espero que vocês não
se demorem para que eu possa programar a 1ª audição da ‘Sonata’” (21/VII). Em carta de 09/I/1920, protesta
contra uma sugestão dos Guerra de não se retardar por causa deles a realização da primeira audição; em
25/VI/1920 informa que a obra seria publicada pela Sirene, que recusou a proposta da “Société Moderne
d´instruments à vent” da execução da obra por estar reservada a Nininha, e se diz “muito satisfeito com o último
movimento que vocês ainda não conhecem”.
216
ser executada, comentando que “ela será publicada na próxima primavera” e que, a partir
desse momento, não poderia impedir a sua execução por terceiros. A Sonata, uma das mais
medida da importância que Milhaud atribuía à vinda dos Guerra é a sua profunda decepção,
Minha decepção é enorme (un vrai gros chagrin) [...] Estava tão feliz com a
perspectiva de ter vocês dois em Paris. Eu havia organizado todo o meu ano
musical de maneira a tê-los incluídos. Eu pretendia voltar em final de setembro
para estar presente quando vocês aqui chegassem. Eu tinha um monte de projetos
de realização de concertos com vocês. Eu contava poder apresentar enfim a minha
Sonata com instrumentos de sopro [...] Eu acabo de terminar os meus Cinq Études
para piano e orquestra: a 5ª lhe é dedicada. Eu teria gostado muito que você as
tocasse [...] Terminei o meu 5º Quarteto de Cordas (em quatro partes). Eu esperava
pedir a você, logo na sua chegada, que fizesse redução a quatro mãos! Helas!... Eu
vou lhes enviar os meus Poèmes Juifs333 que acabam de ser publicados e que
pretendia dar pessoalmente a vocês na sua chegada. Escrevam-me com freqüência.
27/VIII/1920 fornece um exemplo: “Vocês dois estão entre os melhores amigos da minha
música. É tão raro e tão precioso”. Por outro lado, fica claro pelo tom e teor de sua
correspondência que ele está se dirigindo a pessoas que conhecem a fundo as suas
331
Essa obra foi avaliada nos seguintes termos por Paul Collaer (1947: 222, T. do A.): “quatro estados líricos:
tranqüilo, alegre, raivoso, doloroso são expostos ao longo dos 4 movimentos. Os dois primeiros, são pastorais. O
3º, sobre blocos harmônicos, excessivamente compactos, expõe a torrente veemente dos instrumentos de sopro.
O 4º é como uma marcha fúnebre [...] Os 1º e 4º movimentos dessa Sonata são extremamente belos. O 3º contém
um excesso de passagens formais que diminuem a sua qualidade”.
332
Depreende-se da carta de Milhaud de 27/VIII/1920, que os motivos alegados seriam “as preocupações que lhe
dá a saúde da Srª Tavares Guerra”, mãe de Oswaldo. Nessa mesma carta, Milhaud pergunta: “Se ela está muito
doente, porque vocês não a trariam para a França? Temos tão bons médicos em Paris. Qual a sua doença? (de
quoi souffre-t-elle?)”.
333
O Departamento de Música da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro possui esse exemplar (ver Volume II,
Anexo IV – “Capas de Partituras/Dedicatórias”), enviado por Milhaud, em setembro de 1920, de Aix-en-
Provence, com a seguinte dedicatória: “Para os meus caros amigos Guerra, esses poemas da minha terra que eu
teria gostado entregar pessoalmente em Paris, ao invés de confiá-los ao correio, que os leva ao seu país tão
distante” (T. do A.).
217
composições, e cujas opiniões têm peso para ele. Um exemplo é o comentário que escreve a
Coloquei na parte final, uma grande seção coral com um tema popular de chanson à
boire. Eu penso que você a detestará. Porém o texto me conduziu logicamente a
isto e eu não poderia fazer diferentemente. Entretanto, penso que você realmente
gostará (vous aimerez bien) das aberturas que precedem cada ato.
brasileiros como Glauco, Oswald e Nepomuceno - Milhaud se dispunha a tentar difundir a sua
música na França, diferentemente - em relação aos Guerra - ele pretendia integrá-los como
desenvolvia em Paris.
334
Essa série de 10 curtos e irreverentes poemas de Mallarmé contém numerosas “audácias” harmônicas
(agregados politonais) e rítmicas. Que essa obra era bem conhecida do Círculo Veloso-Guerra se depreende da
dedicatória de Milhaud a Godofredo Leão-Veloso, citada e reproduzida no Capítulo II.
335
Milhaud referiu-se nos seguintes termos à cantata Le Retour de l’Enfant Prodigue, composta no Rio de
Janeiro em 1917: “Eu escolhi uma orquestra de 21 solistas para sustentar as vozes dos cantores [...] eu desejava
218
ele informa: “Fiz uma redução a 4 mãos das 6 Pastorales para canto e 7
Eu vou ter de retomar completamente Protée e vou fazer dois prelúdios sinfônicos
para preceder os atos (28/VI) [...]; eu estou retomando a música de Protée que é
escrita para pequena orquestra [...] Estou refazendo uma outra versão para orquestra
adicionando aberturas e alguns fragmentos sinfônicos (21/VII) [...]; vou começar a
orquestração de Protée (01/IX) [...]; estou orquestrando Protée todos os dias. Acho
que terei terminado tudo daqui a um mês (15/IX) [...]; terei muito que me ocupar
com Protée, pois teremos no final do 1º ato uma cena de cinema, o que me diverte
muito. Eu fiz para esta cena uma música um tanto crispada, brusca, cubista de
forma. Há ao todo 5 partes sinfônicas que formam um conjunto que pode ser tocado
independentemente em concerto. O resto da música consiste ou de fanfarras ou
pedaços de música como toques violentos que vêem se chocar contra o texto, seja
côros (20/IX) [...]; fui passar 3 dias na Camargue [...] Isto interrompeu a finalização
de Protée que devo terminar nos próximos dias (29/IX).
suprimir todo elemento que não fosse essencial e atribuir a cada instrumento uma linha independente tendo sua
própria expressão melódica ou tonal [...] A politonalidade, nesse caso, não mais residia nos acordes e sim nos
encontros entre as linhas. Ao escrever esta música eu havia reencontrado a sonoridade com a qual eu sonhava,
quando criança, quando, antes de adormecer, eu imaginava - com os olhos fechados - uma música que me
parecia impossível de expressar. Fiquei tentado por essa qualidade sonora tão especial de um grupo de
instrumentos e comecei uma série de ‘Pequenas Sinfonias’ para 7 a 10 instrumentos” (Milhaud, 1949: 91, T. do
A.).
219
comentário que faz sobre esta obra (“estou re-aproveitando velhas formas
classicismo” dos “Retornos a ...” das décadas de 1920 e 1930. Note-se que
Milhaud anunciava:
220
Através da correspondência aos Guerra, fica muito visível - com exceção
de 1919, ele compõe Protée, Machines Agricoles e Le Boeuf sur le Toit; no segundo semestre
de 1920, ele empreende simultaneamente as Cinq Etudes para piano e orquestra, a Saudades
Guerra deixa alguns pontos de interrogação. Primeiramente, ela apresenta intervalos mais ou
menos longos (último trimestre de 1919, e apenas duas cartas no primeiro semestres de 1920)
que tanto podem refletir uma diminuição no ritmo da correspondência, quanto significar uma
eventual perda de documentos. Por outro lado chamam particularmente a atenção alguns
“brasileira” como Le Boeuf sur le Toit (nas cartas existentes há referências à apresentação,
programação dos concertos de Nininha em Paris, nos quais chegou a apresentar obras de
338
Entretanto, há uma carta de 28/X/1919 dirigida à Srª Oswald, na qual anuncia, sem nomear o título, a
composição do Le Boeuf sur le Toit: “[...] Vou escrever música para um filme de Carlitos. Adoro Carlitos [...]
Vocês podem me achar ainda mais louco que no Rio, [assinado] o Milhaud maluco [...]” (citado em Martins,
221
Oswald, Levy e Oswaldo Guerra) é surpreendente quando se considera que Nininha havia
realizado a 1ª audição de algumas peças para piano, entre as quais a Dança Africana n. 3, que
lhe é dedicada. Villa-Lobos havia ficado muito em evidência, no período de 1919 a 1920
(quando Milhaud já havia retornado à França), e era objeto da atenção de intérpretes ilustres -
refletiria na menção que Milhaud faria a Villa-Lobos, em 1920, ao mesmo tempo elogiosa
pela música francesa e que, quando introduzem o “elemento nacional” na sua música, o fazem
“através das lentes de Debussy, se só têm trinta anos de idade”. De fato, obras orquestrais de
Villa-Lobos apresentadas no Rio em agosto de 1918 (às quais, se Milhaud não tiver assistido,
terá tido ecos) como Tédio da Alvorada344 e o Naufrágio de Kleonikos não continham
qualquer “elemento nacional”, ao mesmo tempo em que revelavam uma forte marca - junto
com influências straussianas e dos “Cinco” russos - da música moderna francesa. Tal
percepção contrasta com a que expressaria mais tarde em apostila para seus cursos em Mills
College em 1942-1943:
1995: 100). Como a obra foi concluída em dezembro de 1919, pode-se inferir pela data da carta, a rapidez com a
qual foi escrito o Le Boeuf sur le Toit.
339
Weingartner (ver Guimarães, 1972: 48) havia regido o poema sinfônico Naufrágio de Kleonikos, em junho de
1920.
340
Marinuzzi regeu os 2º e 3º movimentos de sua 1ª Sinfonia em 29/IX/1919 (Guimarães, 1972: 42), e ainda
regeria a abertura de Izath em 02/VIII/1921 (Guimarães, 1972: 54).
341
Nepomuceno realizou a 1ª audição de seu Concerto para violoncelo e orquestra, em 10/V/1919.
342
Rubinstein, numa entrevista ao jornal “A Notícia” em 24/VI/1920 declararia: “É justo declarar [...] que me
surpreende o Sr. Villa-Lobos. Um grupo de amigos desse compositor brasileiro proporcionou-me o ensejo de
ouvir trabalhos seus e dessa audição ficou-me a convicção de que seu país tem nesse compositor um artista
eminente, em nada inferior aos maiores compositores modernos da Europa. Tem todas as características de um
gênio musical. Do que necessita ele é viajar, para tornar-se conhecido n’outros países [...]” (in Guimarães, 1972:
46).
343
Vera Janacopoulos encomendaria e realizaria a 1ª audição mundial da transcrição para canto e orquestra de
“Viola”, das Miniaturas, sob a regência de Francisco Braga, no Rio, em agosto de 1920.
344
Luiz Fernando Vallim revelou as diferenças e adições da versão final do Uirapuru (anos 1930) em relação à
sua primeira versão como Tédio da Alvorada, numa comunicação no “Colloques Villa-Lobos”, realizados em
Paris (Institut Culturel Finlandais), em 2000.
222
A lista de suas obras é imensa345. Sua personalidade romântica se dirige a todas as
fontes: portuguesa, africana e indígena [...] [e referindo-se às Bachianas Brasileiras
n° 5 346] peças de música de câmara para uma pequena orquestra e vozes que
produzem um efeito muito marcante, fundindo linhas melódicas no estilo de Bach
com um acompanhamento muito brasileiro. Elementos muito diversos foram aqui
reunidos de uma maneira extremamente atraente. Esta mistura de dissonâncias,
romantismo, selvageria e também nostalgia constituem o elemento básico de
Villa-Lobos347 .
imposta pelo próprio sucesso internacional do compositor brasileiro, parece ter se dado
somente a partir da estada deste em Paris nos anos 1920348, ainda que não existam dúvidas
quanto aos dois músicos terem previamente se conhecido no Rio349. Na apostila de Mills
College350, Milhaud relata: “Eu também encontrei um jovem violoncelista que tocava num
cinema para ganhar a sua vida; eu fui à sua casa e ele lá me mostrou as suas primeiras
composições: este homem era Heitor Villa-Lobos. Eu o reencontrei mais tarde em Paris”351.
345
Na apostila, Milhaud enumera alguns títulos nos seguintes termos: “Arthur Rubinstein foi um dos primeiros a
introduzir a música de Villa-Lobos na Europa. O Rudepoema lhe foi dedicado. A maior parte das composições
de Villa-Lobos apresenta títulos remanescentes de seu país natal: Amazonas, Descobrimento do Brasil,
Sertanejo, Uirapuru. Ele escreveu uma série de composições bastante originais (strange) numa época, na qual,
em toda parte, os compositores haviam retornado a Bach. Elas se intitulam Bachianas Brasileiras”
(Milhaud/Mills, 1942-43, T. do A.).
346
Que haviam sido recentemente reveladas nos EUA, por ocasião da Feira Internacional de Nova Iorque.
347
Ver Milhaud/Mills College, 1942-43: “The list of his works is tremendous. His romantic character adresses
itself to every source: Portuguese, Negro and Indian [...] They [Bachianas Brasileiras] are chamber music pieces
for a small orchestra and voices producing a striking effect, and using melodic lines in the style of Bach mixed
with a very Brazilian background. A diversity of elements has here been brought together in a most pleasing
way. This mingling of dissonances, of romanticism, of a savagery and sadness are also the basis of Villa-Lobos”.
348
Sobre o relacionamento entre Milhaud e Villa-Lobos no Rio, a discussão mais aprofundada até o momento é a
realizada por Anaïs Flechet [2004].
349
No relato autobiográfico em Música Viva, Villa-Lobos data de 1918 o seu contato com Darius Milhaud,
ressaltando o papel deste no seu contato com a música de Debussy; enquanto Milhaud (1949) em sua
autobiografia refere-se a ele da seguinte forma: “Rubinstein foi um dos primeiros a tornar conhecida na Europa e
nos Estados Unidos a música de Villa-Lobos, e este compositor atualmente tão célebre que era obrigado, nesta
época, a tocar violoncelo num cinema, a fim de obter alguns recursos financeiros”.
350
Mais detalhada, a esse respeito, que no capítulo “Brasil” em sua autobiografia.
351
Na apostila de Mills College, ele fornece os seguintes detalhes suplementares sobre Villa-Lobos em Paris:
“Ele pertencia ao grupo que se reunia às quintas-feiras, na casa de Florent-Schmitt em Saint Cloud, e o próprio
Villa-Lobos convidava os seus amigos nos domingos para o seu apartamento na Place Saint Michel”
(Milhaud/Mills, 1942-3, T. do A.). Se essa última observação pode fazer supor alguma freqüentação à Villa-
Lobos em seu apartamento em Saint Michel, a primeira sinaliza uma situação de distanciamento, tendo em vista
as relações pouco amistosas entre Florent-Schmitt e os Six, que se reflete na seguinte ironia de Milhaud a seu
respeito, referindo-se à Sagração da Primavera: “Esta verdadeira ruptura na história da música virou de cabeça
para baixo as concepções de um grande número de compositores. Debussy, por exemplo, preocupava-se com a
223
É provável, entretanto, que o contato no Rio, como sugerido por Anaïs
Flechet [2004] e pelo depoimento de Oswaldo Guerra352, tenha sido pouco intenso, e não
tenha despertado maior entusiasmo em Milhaud. (que parece sublinhar, ao mencionar sua
visita à casa de Villa-Lobos, que o que este lhe mostrou foram “suas primeiras
composições”).
somente uma documentação complementar importante, como, sobretudo, uma preciosa fonte
Nininha, assim como de alguns assuntos nelas tratados (perguntas sobre Guiomar Novaes,
Milhaud assinala datas precisas para uma grande parte das cartas, e observa-se que essa
evolução de Stravinski ao mesmo tempo em que o admirava. Já Schmitt dizia que ‘só lhe restava queimar a sua
música’ (por quê que ele não o fez!...)”. (Milhaud, 1949: 71-T. do A.).
352
Ver citação do depoimento radiofônico de Oswaldo Guerra, no Capítulo II.
353
Segundo declaração de Madeleine Milhaud e de Frank Langlois, autor que está preparando a biografia de
Milhaud, para a editora Fayard, e a quem a família Milhaud confiou toda a sua documentação epistolar. A
família Milhaud atribui à ocupação alemã a destruição de uma grande parte do seu acervo documental, tanto no
apartamento de Darius Milhaud em Paris, quanto na casa de seus pais (“L’Enclos”) em Aix-en-Provence. Uma
resposta semelhante foi fornecida por Milhaud ao Professor Flavio Silva.
TP354 É freqüente a queixa de Milhaud quanto à ausência de cartas dos Guerra, “ameaçando” parar de escrever
enquanto não recebesse correspondência; em carta de 17 de março a Oswaldo, queixava-se do fato de Nininha
ainda não ter escrito nenhuma carta desde a sua partida.
224
correspondência (num total de, aproximadamente, 20 cartas) incluía envio de fotos,
Oswaldo).
20/IX 15/VIII
1920
9/I fotos
14/VI 21/V
27/VIII 3/VII
22/VII
5.4 - CONCLUSÃO
Arquivo Paul Guerra e a qual ainda permanece inédita, constitui um conjunto documental de
grande riqueza:
225
- Por um lado, ela é extremamente informativa a respeito da atividade de
Milhaud, tanto composicional quanto de edição e apresentação de suas obras, nos dois
primeiros anos do seu retorno à França. Nela também se verificam ecos importantes do
inicialmente reticente, mas que se transforma numa adesão entusiasta ao ideário do Coq et
campo oposto aos “compositores da SMI” (na qual participara ativamente de 1913 a 1919),
- Por outro, ela deixa clara a marca deixada pela estada no Brasil, muito
A principal dificuldade que ele menciona, nos seus primeiros meses de retorno à França, é a
reuniões musicais (“entre as melhores que eu jamais tive”, em 21/VII/1919; ou ainda: “que eu
não consegui reencontrar aqui”, em 20/IX/1919) e de intercâmbio que tinha com os Veloso-
Guerra. Essa cumplicidade é ressaltada em observações, tais como: “muitos amigos da minha
música acham que o que eu escrevi no Brasil é excessivamente dissonante e me dão as costas”
movimento se origina em Parade [...] Eu me sinto tão distante quanto seria possível de todos
esses símios [...] Eis os novos. Nós somos bem diferentes e somos nós que temos razão”
(21/VII/1919); ou ainda, ao comentar sua versão final de Protée, antecipar o que Nininha iria
(redes de contato), ressaltada por Myriam Chimènes (2004: 647-690), na circulação de obras e
TP356PT Título do famoso artigo de Paul Landormy, publicado na Revue Musicale em 1921.
226
idéias musicais na história da 1ª metade do século XX: a troca epistolar entre os Guerra e
terceiros (Milhaud envia a eles dedicatórias autógrafas dos compositores Roussel e Durey);
faz Koechlin enviar carta a Nininha com análise de uma de suas composições; interessa
Bathori e as sociedades de concerto por obras de Nininha e Oswaldo; coloca-os a par, no Rio
Milhaud que - adicionalmente ao seu teor - incluía um abundante envio de livros, partituras e
revistas musicais. Por outro lado, eles haviam vivenciado dois anos de intensa atividade
diversos concertos com música orquestral de Debussy e Ravel (apresentação da ópera Pelleas
Prokofiev). Por sua vez, Nininha havia sido uma protagonista importante na vida musical do
Rio de Janeiro nesse período (especialmente em 1919), tendo feito novas primeiras audições
357
Um exemplo do acesso dos Guerra a esse meio - ainda que esses relacionamentos não tenham se aprofundado
- é a menção a Nininha em cartas escritas por Cocteau e Poulenc e a existência, no Arquivo Paul Guerra, de
correspondência de Satie, Poulenc, Cipa Godebski e Honegger.
358
No colóquio internacional sobre Debussy, organizado pelo CNRS, de 24 a 31/X/1962, Oswaldo Guerra
testemunha, numa intervenção, ter assistido a essa execução dos dois primeiros Nocturnes no Rio, sob a regência
de Richard Strauss. Na sessão Compte rendu de la discussion da conferência de Hans-Heinz Stuckendenschmidt,
sobre A influência de Debussy na Áustria e Alemanha, figura o seguinte comentário: “O Sr. d’Estrade Guerra
recorda que quando ele se encontrava no Rio, R. Strauss lá veio para a execução de Till Eulenspiegel, e regeu
dois ou três dentre os Nocturnes” [in Weber, 1965: 261, T. do A.]
227
A importância que Milhaud atribui aos Guerra é extrema: “Todos os
toca piano [...] Espero que vocês estejam fazendo planos para vir para cá [...] Paris precisa de
tantos brasileiros e de não ver vocês dois que são o elemento musical do Rio” (28/II/1919).
Na carta de 27/VIII/1920, quando se dá o falso alerta de que os Guerra não mais viriam a
Paris, escreve: “Eu havia organizado todo o meu ano musical de maneira a tê-los incluídos
[...] Eu tinha um monte de projetos de realização de concertos com vocês [...]”. Outra
indicação dessa importância, é sua persistência (uma espera de dois anos) em ter Nininha
como intérprete de sua Sonata para piano e instrumentos de sopro, o projeto de ela fazer a 1ª
audição mundial dos Cinq Études para piano e orquestra, e o de reservar para ela a realização
Quase todos esses projetos seriam frustrados pela doença de Nininha e sua
morte em 23/XI/1921. Milhaud ainda dirigiria essa última carta a Oswaldo, por ocasião do
Meu caro Oswaldo, eu gostaria tanto de vê-lo no dia deste tão triste aniversário.
Justamente a redução que Nininha tinha feito do meu 5º Quarteto acaba de ser
publicada há poucos dias e era minha intenção trazê-la até você. Infelizmente eu
acabo de chegar da Inglaterra e já tenho de partir para Amsterdã, onde toco depois
de amanhã. Logo que estiver de volta, espero revê-lo. Bem afetuosamente,
Milhaud359.
359
O texto original dessa carta está reproduzido na pág. 230.
228
229
230
VI
iniciado em 1915, após a composição do op.22 (Quatro Cantos para orquestra), e que só se
interromperia a partir de 1923, com a Suíte op.23 para piano e o enunciado da teoria
dodecafônica; Alban Berg, mobilizado pelo exército austríaco, iniciava a longa gestação de
Wozzeck - que seria concluído em 1923 - porém sem apresentar novas composições; Webern,
cujos opus 9 e 11 (Seis Bagatelas para Quarteto de Cordas e Cinco Peças para orquestra
precedem a Primeira Guerra Mundial se limitaria à composição dos Lieder opus 12 a 14; Bela
Bartok, no período entre seus dois balés o Príncipe de Madeira (1914-1916) e o Mandarim
Maravilhoso (1919), só compõe - além de arranjos sobre temas folclóricos rumenos - a Suíte
op.14 para piano; quanto a Parade de Erik Satie, estreada em Paris em 1917 e que se tornaria
um símbolo e exemplo para o futuro Groupe des Six, sua novidade consistia mais no
231
happening e na atitude de incorporação à esfera erudita de músicas de music-hall que em
ousadias de linguagem.
1918, como a cantata Le Retour de l´Enfant Prodigue, o balé sinfônico L´Homme et son
Désir, o 1º ato da ópera Les Euménides, as Chansons Bas para canto e piano, a Sonata para
Tupi360 para coro feminino e palmas, se situam entre as obras “experimentais” mais
importantes que estavam sendo compostas naquele momento [ver Exemplos 35 a 38, págs.
255 a 258], só encontrando paralelo na produção de Stravinski, durante sua longa estada em
Morges - na Suíça - período em que procedia a uma decantação das inovações contidas em
obras anteriores à 1ª Guerra (como Petrushka, Le Roi des Étoiles, os Três Poemas da Lírica
Japonesa e a Sagração da Primavera) nas composições escritas entre 1915 e 1920 que
361
representam o ponto mais “avançado” de sua “Fase Russa”: Pribaoutki, Berceuses du
exagero dizer que, em 1917-1918 (e pelas circunstâncias da 1ª Guerra Mundial), era em dois
360
Esta obra, que figura no Catálogo como opus 52, está extraviada.
361
Segundo Roland de Candé: “De 1914 a 1920: ele se torna cosmopolita, permanecendo, entretanto, original.
Após ter distribuído generosamente suas riquezas harmônicas, rítmicas e instrumentais, bruscamente ele opta
pela simplicidade, lógica, clareza. ‘História do Soldado’, ‘Pribaoutki, ‘Renard’, ‘Noces’ (apresentada em 1923,
porém iniciada bem antes) são pequenas obras-primas, refinadas e freqüentemente agressivas, cuja novidade
insolente representava para a elite culta dos anos 20 a vanguarda do progresso musical [...] É no plano da
instrumentação que a influência dessas obras se exerceu com grande força nesse período: formações
instrumentais muito reduzidas, com os timbres nitidamente diferenciados, prestando-se à escrita contrapuntística
e freqüentemente politonal” (Candé, 1967: 245, T. do A.).
362
“Periféricos” em relação aos grandes centros irradiadores do Modernismo musical: Paris, Viena, Berlim e São
Petersburgo.
232
6.2 - BRASIL E MILHAUD: INFLUÊNCIAS RECÍPROCAS
trópicos é bem conhecido, tendo deixado marcas permanentes na sua rítmica e no seu
tratamento do timbre363. Entretanto, em que medida o terá marcado um certo meio musical
escrita aos Guerra, nos primeiros meses de seu retorno à França: “muitos amigos da minha
música acham que o que eu escrevi no Brasil é excessivamente dissonante e me dão as costas”
(carta de 10/IV/1919).
poder contar com interlocutores que acompanham a sua composição e demonstram um real
interesse por sua música, tal como na carta dirigida aos Guerra em 27/VIII/1920: “Vocês dois
estão entre os melhores amigos da minha música. É tão raro e tão precioso”; ou a Charles
363
José Miguel Wisnik observa, a respeito da música popular urbana: “Esse tipo de música brasileira interessava
duplamente a Milhaud: ao músico francês à procura de novas fontes, de novos materiais estranhos ao repertório
europeu saturado e em crise; e ao cultor da politonalidade, riqueza do material, (verve melódica, novidade
rítmica) adequada à elaboração técnica prevista. Coincidentemente, essas preocupações convergem ao mesmo
tempo para o programa dos Seis, que preconiza a exploração do humor e da maneira popular, e para o roteiro
pessoal de Milhaud, tendente à politonalidade” (Wisnik, 1983: 48).
364
Ver comentários de Jeremy Drake (in Milhaud, 1982, citado no Capítulo II).
365
Carta inédita pertencente aos Arquivos Koechlin, no Centre de Documentation Gustav Mahler - Paris.
366
A expressão utilizada por Milhaud é: des musiciens exquis.
233
acompanham a minha música com a atenção que é necessária àqueles que
compõem; você sabe disso tão bem quanto eu [...].
composição, nos primeiros meses de seu retorno à França, fosse um reflexo da falta e,
observações como:
O que é incrível é que desde a minha volta eu não tenho produzido nada
[28/VI/1919];
Desde a minha chegada à França eu ainda não compus nada. Será que a minha
música teria ficado no Brasil? [6/IV/1919].
de leitura à primeira vista e capacidade de verter para piano a 4 mãos texturas extremamente
complexas como o Retour de l´Enfant Prodigue e L´Homme et son Désir) terá tido um papel
notar a sua relação com Godofredo, a quem dedicou ainda no Brasil uma das melodias da
coleção Quatre Poèmes de Paul Claudel (a de número 3, “Le Sombre Mai”, composta em
utilizados nas Choéphores - e a quem manteria atualizado (após seu retorno à França) sobre
367
O conjunto da obra de Oswaldo Guerra, assim como as composições de Nininha não parecem autorizá-lo.
368
As quais se encontram no Departamento de Música da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
234
dos Guerra369 como também do próprio Godofredo, a informação contida na dedicatória do
exemplar (da BN-RJ) das Chansons Bas: “essas melodias ouvidas tantas vezes na sua casa”.
A irradiação dessas tertúlias era ampla o suficiente para que Francisco Braga decidisse incluir
“Printemps”, em concerto regido por Alberto Nepomuceno, dando a Milhaud - pela primeira
vez - a oportunidade de ouvir uma composição sua para orquestra. Outro exemplo desse
ambiente (informal) de trocas está na sua carta a Nepomuceno, no final de 1918370, na qual o
convida na casa dos Guerra para ler a dois pianos o seu balé L´Homme et son Désir, assim
importância do ponto de vista criativo, ele o foi também no seu aprofundamento na obra de
369
Recordando-se os testemunhos (já citados no Capítulo II) de Claudel e Rubinstein quanto ao Sacre du
Printemps ser tocado a piano 4-mãos em casa dos Guerra.
370
Ver Reis Pequeno (1977). A carta não é datada, mas é - por seu conteúdo (agradecimento pela apresentação
da sua 1ª Sinfonia de Câmara “Printemps”, no Teatro Municipal) – facilmente datável no intervalo entre 23/VIII
e 23/XI (partida do Brasil de Claudel e Milhaud).
371
Alberic Magnard (1865-1914). Segundo Roland de Candé: “As muitas raras execuções de suas obras (graves,
austeras, fortemente construídas e às vezes singularmente expressivas) suscitaram o entusiasmo sem reservas de
um pequeno grupo de admiradores, entusiasmo tão excessivo quanto à indiferença do grande público” (Candé,
1967:145). Apesar do caráter pós-wagneriano de Magnard, aluno de Vincent D’Indy, Milhaud se sentia atraído
por sua música: “O que mais me interessava nessa época [1913] era a música de Magnard, pois eu encontrava
nele qualidades rudes e agrestes, uma austeridade harmônica que eram um abrigo contra as tendências
impressionistas [...] Eu havia ouvido Bérénice que, apesar de sua instrumentação sem refinamento, ou talvez por
causa disso mesmo, me havia tocado; eu gostava do sentimento profundo da música, as longas melodias
expressivas que Magnard confiava ao flautim. No entanto, eu não entendia por que, no prefácio de Berenice por
não ter o gênio necessário a um estilo dramático próprio, havia adotado o leitmotiv wagneriano’. Magnard me
parecia tão absolutamente distante de Wagner? Suas 4 ‘Sinfonias’ me agradavam também por sua franqueza; os
seus ‘scherzos’ firmes têm o sabor da terra camponesa francesa. O seu próprio personagem era simpático, pois
ele era suficientemente independente para dispensar um editor e ele entregava a publicação das suas obras a uma
cooperativa de gráficos” (Milhaud, 1949: 61.T. do A.).
235
de Stravinski372 através de Ansermet373 e Rubinstein374 (músicos extremamente ligados a
segundo em 1918). Além de sua declaração bem conhecida de que foi através dos Guerra que
passou a conhecer a obra de Satie, ele escreveria à sua amiga Yvonne de Casa-Fuerte:
Debussy é o músico que eu prefiro. É curioso como nós o conhecemos mal. Foi no
Rio que eu aprendi a amá-lo. Aliás, me dei conta domingo que você também não
conhecia todas as admiráveis melodias que eu lhe mostrei. Há belas páginas em
Jeux e Kammah e o 2º livro dos Prelúdios é (da mesma forma que os Estudos) uma
obra capital na história do piano376.
um reflexo direto dos concertos que organizou no Rio - nos quais tantas obras recentes de
Debussy (que morreu em princípios de 1918) foram apresentadas com o concurso seu e de
Nininha - mas, sobretudo, do seu convívio de quase dois anos com as qualidades excepcionais
de Nininha como intérprete, cuja imersão na obra do compositor francês era única:
372
Milhaud, como jovem estudante do Conservatório, conhecia as obras de Stravinski, pertencentes ao repertório
dos Ballets Russes, cujas temporadas em Paris acompanhou fervorosamente, notadamente a apresentação do
Sacre du Printemps, obra que - antes de vir ao Brasil - tocava a 4 mãos. Ele relata uma visita que Koechlin lhe
faz em Aix en Provence, em 1914: “nós passávamos horas agradáveis a falar de música, a analisar o Sacre du
Printemps que nos havia tanto entusiasmado por ocasião de sua primeira audição, no ano anterior; nós tanto
admirávamos a violência rítmica quanto as dissonâncias harmônicas e politonais, as quais Petrushka já nos fazia
antever, porém num plano totalmente novo. Dessa vez o balé escapava do pitoresco exterior e entrava numa via
bárbara e dramática. Essa verdadeira quebra na música transtornou um grande número de músicos [...] Minha
geração se sentia respaldada por esta obra a despeito de sua expressão profundamente russa que a mantinha
afastada das nossas aspirações” (Milhaud, 1949: 71, T. do A.).
373
Através de Ansermet, Milhaud e Claudel tiveram a oportunidade de assistir a uma “apresentação privada” (na
Legação de França), por membros dos Ballets Russes, de Parade de Erik Satie, estreada um ano antes em Paris,
enquanto Milhaud teve a possibilidade de testar a 1ª cena (para recitante e coro) de suas Euménides.
374
A amizade de Rubinstein e Stravinski, já datava de 1913 (Sachs, 1996: 137) e este lhe dedicaria, entre 1919 e
1921, duas obras: Piano-Rag-Music e os 3 Movimentos de Pretushka.
375
Rubinstein tocava ao piano reduções do Pássaro de Fogo, Petrushka e Sacre du Printemps, enquanto
Ansermet - novo maestro dos Ballets Russes, do qual dominava todo o repertório - acompanhava de perto (como
vizinho e grande amigo), na Suíça, a nova produção de Stravinski, de quem iria estrear a Histoire du Soldat, no
ano seguinte.
236
Esse impacto da obra recente (a fase 1910-1918) de Debussy pode ser
notado na escrita da parte de piano [ver Exemplo 39, pág. 258] da Sonata para piano e
instrumentos de sopro (em que pese a ousadia da obra e a futura postura “anti-debussista” do
Groupe des Six), sua última obra composta no Brasil (e dedicada a Nininha).
sua elaboração de obras como Pribaoutki, Berceuses du Chat, Renard, Les Noces e Histoire
du Soldat377, o Rio de Janeiro representou para Milhaud - numa nova etapa de sua criação
e ao mesmo tempo seu encantamento com os trópicos; o swing da música popular), encontra
um meio musical, através do qual aprofunda seu próprio conhecimento de aspectos da música
francesa contemporânea (Satie e Debussy, por exemplo), que lhe permite testar suas novas
Nininha; audições em casa dos Guerra ou de Godofredo; execução em concertos de obras suas
novas e antigas. Por outro lado, as circunstâncias da vida musical no Rio (enriquecida por
visitas como as dos Ballets Russes e de Rubinstein) criaram oportunidades tais como poder
Nepomuceno e Ansermet378.
consideravelmente mais rica que a que aqui trouxera quando aportou no Rio de Janeiro às
376
Carta inédita, datada “Fevereiro 1919”, que se encontra na Biblioteca Literária Jacques Doucet, informada
pelo pesquisador Frank Langlois.
377
Com exceção de Ansermet, seus principais interlocutores não eram músicos: os escritores suíços Ramuz e
Cingria, o pintor Aubergenois e, ocasionalmente, Diaghilev e Massine (ver em Stravinsky, 1935).
378
Numa entrada do diário de Claudel (1969: 383, T. do A.) ele se refere ao ensaio de Ansermet: “Ensaio de
Milhaud de sua pequena orquestra, magra, cada instrumento conservando a sua voz e movimentos individuais,
manifestando a intenção de todos os atritos - Ensaio de declamação sustentado unicamente pela percussão, com
um sucesso completo. Ansermet”.
237
vésperas do Carnaval de 1917 - era a de um dos compositores mais avançados do cenário
contemporâneo europeu.
Oswaldo Guerra (1978), é sobre qual poderia ter sido a influência de Milhaud sobre os jovens
“nacionalismo” e o da “atualização”.
6.3.1 O Nacionalismo
nesse primeiro ponto, levantando a hipótese de Milhaud - antes dos compositores brasileiros
(Villa-Lobos inclusive) - poder ter sido o primeiro músico “erudito” a dirigir sua atenção para
379
Ao apresentar essa hipótese, ela estabelece um paralelo com os EUA, dizendo que - quando em 1923 Milhaud
respondeu a um repórter americano que para ele “a Música Americana é o Jazz’ e compôs seu balé La Création
du Monde (baseado no Jazz) - também teria precedido os compositores americanos” (O.R.T.F., 1978).
380
As “obras brasileiras” mais famosas de Milhaud - Le Boeuf sur le Toit (1919) e Saudades do Brazil (1920),
Carnaval d´Aix (1924) e Scaramouche (1936) - são posteriores à sua partida do Brasil, e tiveram pouca presença
na vida musical brasileira dos anos 1920 e 1930 (com exceção da versão orquestral das Saudades do Brazil que
Villa-Lobos regeu em São Paulo em 1931). Quanto à L´Homme et son Désir (cuja primeira audição mundial se
realizaria em 1921 em Paris), foi de fato composto no Rio em 1917-1918, onde foi lido e ouvido em sua versão
para piano a 4 mãos; entretanto, suas extraordinárias inovações no plano harmônico (politonalidade), orquestral
(subdivisão “estereofônica” da orquestra, utilização “solo” da percussão) e mesmo rítmico (polirritmia),
apresentam pouca relação com os elementos que a obra toma de empréstimo ao “folclore”.
238
entre a última década do século XIX e a 1ª Guerra Mundial381 quanto à de Villa-Lobos em
algumas obras382 anteriores a 1917383 - a precedência que se poderia atribuir a Milhaud seria
mais no “plano das idéias”: de fato, a sua resenha “Brésil” na Revue Musicale em 1920, cuja
tradução em português foi publicada em 1924 na revista Ariel, precede de oito anos o Ensaio
quanto na valorização da música popular urbana, denominada por ele como música dos
“compositores de tangos, maxixes, sambas e cateretês”, sendo bem conhecido seu comentário
de que:
381
Suíte Brasileira para orquestra e Tango Brasileiro para piano de Alexandre Levy; Série Brasileira e
Guaratuja para orquestra, 3º Quarteto de Cordas e Galhofeira para piano de Alberto Nepomuceno; Variações
sobre um tema popular brasileiro para orquestra e diversos episódios da ópera Contratador de Diamantes, de
Francisco Braga.
382
Nessas obras, mais do que o eventual recurso à citação de temas folclóricos, impressiona a adoção de
processos rítmicos inspirados na música popular bastante mais sofisticados (na poliritmia e no recurso a
imparidades rítmicas como o “3-3-2”), que aqueles utilizados por Milhaud, mais próximos de Nepomuceno e
Levy que de Villa-Lobos.
383
Quanto a Villa-Lobos, apesar de que é a partir da “Semana” que sua obra torna-se assumidamente
nacionalista., a incorporação de elementos nacionais à sua música precede a chegada de Milhaud, manifestando-
se em algumas obras significativas, que culminariam em 1918 na Prole do Bebê I : as duas coleções para piano
Petizada e Brinquedo de Roda (1912); as Três Danças Africanas para piano (1914-1916); em 1916: “Viola” a 5ª
peça da coleção Miniaturas para canto e piano, o 3º movimento do seu 3º Quarteto de Cordas e o 3º movimento
da sua Sinfonia n°.1.
384
“Il est regrettable que tous les travaux des compositeurs brésiliens [...] soient un reflet des diffèrentes phases
qui se sont succédées en Europe de Brahms á Debussy et que l´élement national ne soit pas exprimé d´une
manière plus vivante et plus originale. L´influence du folklore bresilien si riche de rythmes et d´une ligne
melodique si particuliere, se fait rarement sentir dans les oeuvres des compositeurs Cariocas. Lorsqu’un theme
populaire ou le rythme d’une danse est utilisé dans une oeuvre musicale, cet élement indigène est deformé parce
que l´auteur le voit a travers les lunettes de Wagner ou Saint Saens s´il a soixante ans, ou á travers celles de
Debussy, s´il n’a que trente ans. Il serait souhaitable que les musiciens brésiliens comprissent l’importance des
239
Se por um lado Mário de Andrade coincidiria com Milhaud ao identificar
O balanço crítico da música brasileira, feito por Milhaud, apresenta uma certa
duplicidade: se a importância dada a Nazareth acerta num caso feliz de estilização
da música popular, uma certa fascinação pelo exotismo tropical leva-o
possivelmente a subestimar a importância da introdução do compositor brasileiro,
ainda que atrasada, nas técnicas modernas dominada pelo europeu. Restringir o
músico brasileiro à filiação ao folclore do seu país não seria negar-lhe o acesso a
outras técnicas, numa atitude análoga à do colonialismo, que restringe o dominado
ao fornecimento de matéria-rima, detendo para si o processo da industrialização?
(Wiznik,1983: 50).
precede de alguns anos386 a sua formulação em 1917 por Nepomuceno387 e em 1920 por
240
Milhaud, o artigo de Milhaud - que provocava os brios dos compositores brasileiros388 (e
pré-existente. A precedência que se pode atribuir a Milhaud está no destaque que ele dá aos
música brasileira, declarando-a digna de ser admirada e estudada pelos “músicos eruditos”.
Em que pese à oposição390 que encontrou, a iniciativa de Luciano Gallet de apresentar música
se no mesmo Instituto, fazia parte de um novo espírito ao qual o artigo de Milhaud conferia
valorizou a música popular urbana defendida por Milhaud (nisso tanto se distinguindo do
formação do gênio, do espírito e do caráter do povo brasileiro e de sua música [...] isto é, como o povo português
sob a influência do clima americano em contato com o índio e o africano se transformou, constituindo o mestiço
ou o brasileiro propriamente dito. [...] Com a proclamação da República, a arte nacional reivindica todo o seu
passado de glória e inicia uma nova época que bem poderíamos denominar ‘Período de Nativismo’ [...] Hoje,
porém, o maior orgulho dos brasileiros é correr em suas veias, tingindo-lhes as faces tisnadas pelo sol dos
Trópicos, sangue dos nossos aborígenes” [Melo, 1947: 8/9; 281-282].
387
Entrevista para a “Revista Teatral”, citada no Capítulo I.
388
Um exemplo é a observação feita de Mário de Andrade no seu discurso de paraninfo para os formandos de
1922, no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo: “Ainda há pouco, um músico francês contava aos
leitores da ‘Revue Musicale’ que o que de mais interesse ouvira entre nós fora a música de Tupinambá e
Nazareth [...] embora houvesse no país alguns compositores de talento [...]”.
389
Mário, leitor da Revue Musicale desde o início; a cópia no IEB não tem anotações, mas é sublinhada; discurso
de paraninfo lido por Mário de Andrade antes de sua re-publicação em Ariel, que era dirigida por Antonio Sá
Pereira.
390
Para a qual foi necessária proteção policial. Mário de Andrade comentava em 1926, numa conferência na
Sociedade de Cultura Artística de São Paulo dedicada a Ernesto Nazareth: “Esta homenagem prestada a Ernesto
Nazareth pela Cultura Artística de São Paulo me parece que é sintomática de tempos mais úteis [...] E é um gosto
a gente constatar que não se carece aqui de garantia da polícia, como sucedeu no Instituto Nacional de Música,
em 1922, quando num concerto organizado por Luciano Gallet, aí se executou o Brejeiro, o Nenên, o Bambino e
o Turuna” (Andrade, 1963: 130).
241
nacionalismo centro-europeu391), ele a via como parte de um universo muito mais amplo,
folclórico” brasileiro e seu tratamento, já é bem expressa por Mário de Andrade no seu
São Paulo, em que ao mesmo tempo apóia e toma suas distâncias em relação à abordagem de
Milhaud, tanto no que se refere às recomendações do artigo da Revue Musicale (1920) quanto
391
Toda a abordagem de Bartok e Kodaly é a de ir às fontes camponesas tradicionais buscando preservá-las da
“contaminação” do “popularesco” representado pela música urbana, no caso húngaro, da música cigana (ver
Travassos, 2000).
392
Comunicado pela Professora Flavia Camargo Toni.
393
Em crítica de 15/VII/1930, Mário de Andrade faria os seguintes comentários sobre as Saudades do Brazil,
apresentadas em sua versão orquestral por Villa-Lobos em São Paulo: “Villa-Lobos inaugurou no sábado
passado a série de concertos sinfônicos que veio dirigir em São Paulo [...] Do programa constavam ainda, em 1ª
audição, as Saudades do Brazil de Dario Milhaud, que já fizeram a volta do mundo. Está claro que o grande
compositor judeu jamais teve intenção de fazer música brasileira. Filiado à Escola Francesa, o que fez foi bem
música francesa [...] De Brasil o que há nessas pecinhas são alguns ritmos, algumas melodias tradicionais ou de
música impressa maxixeira. E as saudades. Talvez mais saudade do que o resto, graças a Deus. O que não
impede, é certo, que, embora a execução integral da Saudades do Brazil elas sejam adoráveis, admiravelmente
orquestradas, repletas de invenções, de polifonia e instrumentação. Como conceito politonal a impressão que tem
é mais de perplexidade que outra coisa. Está claro que sou favorável à politonalidade e muito acostumado a ela.
Mas o que deixa a gente perplexo é não perceber às vezes nenhuma lógica musical em certos empregos de
tonalidades diferentes e tais como faz Milhaud. Uma linha quadrada numa tonalidade, acompanhada por um
242
[...] É preciso que não nos envergonhem mais os estrangeiros nossos visitantes que,
assumindo o papel de Colombos, vêm descobrir em nosso seio o que já deveria
estar descoberto por nós. Ainda há pouco, um músico francês contava aos leitores
da Revue Musicale que o que de mais interesse ouvira entre nós fora a música de
Tupinambá e Nazareth; e que, embora houvesse no país alguns compositores de
talento, ainda não tinham estes descoberto a música brasileira nem seguido pela
orientação a que os ilustraria, isto é, o emprego de ritmos e motivos nacionais
[grifo nosso]. É preciso raciocinar sobre a afirmativa audaciosa. Existe nela uma
luz de razão. [...] Senhores diplomandos: defendei esse nosso tesouro da
contrafacção meteca394; pregai a música verdadeiramente nacionalizante! [...] A
matéria-prima é abundante para nós. Saibamos com urgência encetar a construção
dessas bases de nossa escola musical [...] Esse trabalho de fundação não significa
endeusarmos repentinamente o maxixe e o samba [...] Não há dúvida, que o maxixe
e o samba podem também trajar-se com roupagem artística. Mas essa estilização
única de danças populares não é suficiente e nem muito freqüente. A música
italiana não é somente feita de tarantelas sicilianas nem a francesa só de minuetes,
correntes, e musettes [...] (Andrade/IEB, 1923)395.
sua partida do Brasil, quando organiza em abril de 1919 o concerto no “Vieux Colombier”
próprio - uma seleção de “tangos, maxixes, sambas e cateretês”; esse concerto é seguido, no
mesmo ano pela composição do Le Boeuf sur le Toit, no segundo semestre de 1920 pela
composição das Saudades do Brazil e a publicação do artigo “Brésil” na Revue Musicale. Ela
não transparece nas suas atividades na Sociedade Glauco Velasquez - notadamente sua
conferência sobre Glauco onde o tema “nacional” não é sequer citado - na correspondência
com os Guerra (a não ser pedir “novos tangos do Carnaval” em fevereiro e acusar seu
recebimento em abril de 1919), nem do testemunho que dá a Gallet de sua experiência com
Milhaud, onde ressalta as perspectivas que este lhe abriu no que diz respeito a novas
movimento rítmico quadrado também e harmonizador, mas noutra tonalidade, onde qualquer lógica musical que
explique isso? Não acho por mim” (Andrade, 1963: 146).
394
Alusão pejorativa, aplicável a Milhaud que residiu quase dois anos no Brasil: a denominação “meteco”, na
Atenas do V século a.C. era aplicada aos estrangeiros residentes em Atenas, cujo estatuto legal era inferior aos
dos cidadãos atenienses.
395
Documento inédito da Série Materiais extraídos da Imprensa, do Arquivo Mário de Andrade, transcrito por
Fabiana Agreste Bruber e Flavia Camargo Toni. Texto comunicado pela Professora Flavia Toni.
243
possibilidades da linguagem musical mas sem mencionar (logo a Mário de Andrade) qualquer
Luiz Heitor, grande amigo de Gallet, relata o que parece ser um testemunho de primeira mão:
tornado o mais destacado representante do Groupe des Six, cujo programa eminentemente
“nacionalista” (em prol de uma “música francesa”) ele parecia estar transpondo para o caso
sur le Toit (em Paris e Londres), baseado justamente na utilização de “tangos, maxixes,
sambas e cateretês”.
(relevante ainda que menos decisivo que o de Mário) parece ter surtido um maior efeito após
o seu retorno à França397 que durante sua estada no Brasil, já que as obras de Gallet,
396
Gallet menciona a Mário de Andrade, à margem de seu Catálogo de Obras, o comentário “Milhaud gostou”
para sua obra para canto e piano Allanguissement, apresentada em concerto no Liceu Francês em 23/VIII/1918,
por Frederico Nascimento Filho (Gallet, 1934: 99).
397
O efeito “a retardamento” ao qual se refere Luiz Heitor, o artigo da Revue Musicale, o sucesso internacional
das suas “obras brasileiras” como o Le Boeuf sur le Toit e Saudades do Brazil.
244
eminentemente “internacionalistas” e assim o permaneceriam até a composição de Hieróglifo
em 1922.
conhecimento das inovações introduzidas nas obras de Stravinski e Schoenberg, assim como
Por meio de Milhaud, penetrei na música moderna, com ele comecei o estudo
da harmonia. Era terrível quanto às quintas e oitavas. Não admitia. Em Harmonia
escolar, bem entendido. Por ele, conheci as teorias adiantadas, Stravinsky e
Schoenberg, a politonia fundamentada em Bach, Satie, a concepção dos vários
modernos e os processos usados. Posso afirmar-te que Milhaud sabe onde tem a
cabeça (Gallet, 1934: 15).
No caso de Villa-Lobos, é interessante notar que uma obra à qual ele daria
grande importância, ao longo dos anos 1920, o seu 3º Trio para piano, violino e violoncelo398,
398
Em junho de 1920, Rubinstein fazia a seguinte declaração no Jornal “A Notícia”: “Vou fazer executar nos
EUA, por Thibaut, Pablo Casals e eu o Trio nº 3 de sua autoria que me foi dado ouvir [numa recente] audição”
(Guimarães, 1972: 1946). Guimarães observa, entretanto: “Não podemos constatar se realmente o 3º Trio foi
executado na América, conforme Rubinstein pretendia” (Guimarães, 1972: 102). O Trio nº 3 seria apresentado
na “Semana de Arte Moderna” por Paulina d’Ambrosio, Alfredo Gomes e Lucila Villa-Lobos, em 17/II/1922.
Souza Lima relata que em 1923: “A partir desse primeiro encontro com Villa-Lobos, nosso convívio tornou-se
diário. Morando em Paris já há alguns anos [...] não tive dúvida em proporcionar ao nosso músico as primeiras
ligações com os mestres do momento, tanto assim que o apresentei e fiz uma execução nos seu Terceiro Trio
juntamente com Raul Laranjeira (violino) e Mário Camerini (violoncelo) a Henri Prunières, conceituado
musicólogo e diretor da Revue Musicale, em sua residência numa daquelas terças-feiras, quando eram
apresentados artistas e obras novas aos grandes mestres. Naquela tarde estavam presentes: Paul Dukas, Albert
Roussel, Samazeuhil, Florent Schmitt, Louis Aubert, Roger Ducasse e muitos outros que se surpreenderam com
as pitorescas harmonias, com as combinações mais surpreendentes aliadas a uma perfeita fatura instrumental [...]
Foi assim o seu primeiro contato com os mestres franceses, o primeiro passo para um caminho que já se abria
com vislumbres de consagração [...]” (Souza Lima, 1972: 100). Souza Lima apresentaria essa obra com os
mesmos intérpretes em concerto no Musée Galliera, em 04/IV/1924.
245
com a estada de Milhaud no Rio), é justamente considerada por Oscar Lorenzo Fernandez
como sua obra a mais ousada no campo da politonalidade: “É no Trio no. 3 que vamos
encontrar em maior número os processos bitonais, alguns bem audaciosos e outros de curioso
efeito [...]” [Fernandez, 1946: 285]. No seu famoso artigo sobre “A contribuição harmônica
de Villa-Lobos” [ver Ilustrações, págs. 259 e 260], o Trio n. 3 é a obra da qual extrai o maior
número de exemplos, declarando que: “Já em 1918, Villa-Lobos, que depois evoluiu para uma
politonais e atonais” [Fernandez, 1946: 285], sugerindo que a absorção dos processos mais
a guinada radicalmente “nacionalista” que daria nos anos 1920399, uma percepção que também
399
Principalmente a partir da Semana de Arte Moderna.
400
Momento em que Villa-Lobos estava experimentando um enorme sucesso em Paris, com obras “brasileiras”,
tais como o Noneto, os Três Poemas Indígenas, os Choros VIII e X, as Serestas.
401
O crítico argentino Cirilo Grassi Diaz, que havia conhecido Villa-Lobos em Buenos Aires, em 1925, e lá o
havia reencontrado em 1935, relata desse encontro: “Escuto, também, sua voz falar-me entusiasticamente de
Darius Milhaud, adido à embaixada da França no Rio de Janeiro. Envolveu o seu nome em cálidos adjetivos,
porém de repente, de maneira cortante, manifestou-me: ‘Não bebi nessa fonte. Eu fui o meu próprio mestre’ [...]”
(Grassi Diaz, 1966).
402
Bruno Kiefer observa: “[...] Teria a politonalidade [em Villa-Lobos] resultado da influência direta de Darius
Milhaud na época residente no Rio de Janeiro?” (Kiefer, 1986:44).
246
maiores e menores)403. Esse processo também pode ser observado em algumas obras
se tornado mais fortes após seu retorno à França - reforçada pelo prestígio
403
Se aplicarmos a classificação de agregados proposta por Milhaud (1923) a alguns exemplos no artigo de
Lorenzo Fernandez ( reproduzidos nas páginas 259-60 ), teremos: “Acorde I”: exemplos 66 e 68; “Acorde II”:
exemplo 64 (1º tempo); “Acorde III”: Exemplo 70; “Acorde VI”: Exemplos 63 e 64 (2º tempo). Nos Exemplos 6
e 7, ao final desse capítulo, observa –se a utilização de acordes bitonais a distancias de 2ª m. 2, M e 3ª m (na
classificação de Milhaud “Acordes I”, “II” e “III”), e no Inútil Epigrama acordes de 9 sons superpondo 3 acordes
maiores (à distancia de semitom e tom).
404
Ver análise de José Miguel Wisnik (1986) das Historietas.
405
Segundo Tarasti (1995: 17, T. do A.): “[...] em todo caso, o contato com Milhaud terá representado um
impulso importante para os compositores brasileiros que conheceu, dentre os quais Villa-Lobos [...]”.
247
Ravel, Satie e Koechlin, quanto de contatos informais, onde se liam obras
Semana de Arte Moderna, se caracterizou por um lado pela “atualização” nos recursos
técnicos utilizados (se não uma atualização radical, pelo menos “liberada” das regras da
que se estende até a partida destes para a França em 1920 - e o futuro perfil do Modernismo
musical brasileiro está na questão do “nacionalismo”: ela está ausente tanto das composições
(1922)). Mesmo no caso de Villa-Lobos, que contava em 1920 com um conjunto expressivo
406
Homero Barreto (1884-1924) deixou algumas obras entre as quais uma ópera (Jati), um poema sinfônico
(Fiat Lux) e música de câmara. Segundo a Enciclopédia da Música Brasileira, foram adaptadas por Villa-Lobos
para orfeão, interessando principalmente por sua linha melódica (Marcondes, 1977: 72).
407
Com o seu Tango-Batuque para orquestra.
408
Nos seus comentários a Mário de Andrade à margem de seu Catálogo de Obras, Gallet comenta a respeito da
Chansons de Bilitis: “Escrita à Debussy” (Gallet, 1934: 103).
248
de obras já utilizando elementos da música popular409 estas, mesmo no período 1918-1920,
ainda não correspondiam à maior parte da sua produção, destacando-se entre as obras
Movimentos Mistos para violino e orquestra (1921). De fato, como observaria Araci Amaral:
“Foi somente num segundo estágio do Movimento Modernista que surge lucidamente o
nacional como objetivo a eclodir a partir de 1924 com o Manifesto Pau Brasil, de Oswald [de
Andrade]”410.
do Rio de 1917, em ouvir Nazareth tocando piano “em frente a um cinema da Av. Rio
para melhor entender a rítmica da música popular - deve-se notar que a questão do
“nacionalismo” não parece ter tido maior relevo à época da participação de Milhaud no
Círculo Veloso-Guerra, e que é após sua partida do Brasil que as suas “obras brasileiras”
(L’Homme et son Désir (1918)412, Le Boeuf sur le Toit (1919) e Saudades do Brazil (1920)) e
pós-1922: o grau de absorção por parte de Nininha Guerra de novos processos composicionais
de alta complexidade harmônica (politonalidade) e rítmica pode ser medido pelas transcrições
409
Entre 1919 e 1920, foram adicionadas mais obras utilizando elementos da música popular, como Carnaval
das Crianças e a Lenda do Cabloco, para piano, e Sertão no Estio, para voz e pequena orquestra.
410
Citado em Kiefer (1986: 80).
411
“Devant la porte d’un cinema de l’avenue Rio Branco”, Milhaud comenta que: “Sua maneira de tocar
escorregadia, imprevisível e triste também me ajudou a melhor conhecer a alma brasileira” (Milhaud, 1949: 88,
T. do A.).
249
para piano a 4 mãos que realizou de obras de Milhaud, e derivava de seu profundo
Milhaud no Rio - de sua familiarização com obras de Stravinski e daquelas que Milhaud
estava escrevendo sob seus olhos. Por outro lado, ainda que com graus variáveis de
além dos próprios concertos em que participaram - foi extensa: os Guerra tocando música
francesa nos “salões de sábado” em casa dos Oswalds413; Nepomuceno sendo convidado por
Milhaud para uma leitura em casa dos Guerra do seu balé L´Homme et son Désir414; Claudel,
Milhaud e Rubinstein participando de uma soirée em casa dos Guerra onde o Pássaro de
Fogo e o Sacre du Printemps são tocados em transcrição para piano a 4 mãos; Godofredo que
em cuja casa são ouvidas (souvent) as Chansons Bas; Luciano Gallet estudando “Harmonia
dedicando Kankikis a Nininha, que realiza a sua primeira audição mundial em 1919.
defasagem que pode haver entre: “a absorção de informações sobre a atualidade européia [e] o
amadurecimento técnico propriamente dito no nível da criação”. Por outro lado (considerando
observa que o “alcance afetivo das obras apresentadas na Semana de Arte Moderna deve ser
distinguido [...] do alcance das agitações estéticas, das obras citadas, dos nomes europeus que
412
As inovações contidas no L´Homme et son Désir tem pouca relação com os elementos que são tomados de
empréstimo ao “folclore”.
413
Carta de Milhaud aos Oswalds de julho de 1919, citada no Capítulo II [Martins, 1995].
414
Carta citada no Capítulo V (Reis Pequeno, 1977).
250
como acontecimento; b) a música no contexto das idéias modernistas; c) a linguagem musical
propriamente dita.
(Vie des Abeilles), Oswaldo Guerra (Sonata para piano e violino, Sonata
251
Lorenzo Fernandez; no mesmo ano, a composição incompleta de Nininha
Florent Schmitt e o SMI etc. Em relação a essa fase, pode ser transposta a
415
Mesmo no caso do 3º Trio de Villa-Lobos, o recurso freqüente a um procedimento “moderno” - a
politonalidade - está enxertado num discurso musical pós-romântico.
252
O “Círculo Veloso-Guerra” teve, portanto, um papel decisivo nessa
mesmo tempo rápida e abrangente da “revolução debussista”, a qual se traduziu por uma
presença dessas novas obras no repertório de concertos e pela incorporação das inovações que
a) num primeiro momento - que pode ser datado entre a apresentação das
brasileira dada por ela sob a regência de Francisco Braga das Danses
253
b) num segundo momento (1917 a 1920), que inclui a participação ativa de
Villa-Lobos.
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