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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

UNIRIO
CENTRO DE LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

O CÍRCULO VELOSO-GUERRA E DARIUS MILHAUD


NO BRASIL:
Modernismo musical no Rio de Janeiro antes da Semana

Volume I

MANOEL ARANHA CORRÊA DO LAGO

RIO DE JANEIRO, 2005


UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
UNIRIO
CENTRO DE LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

MANOEL ARANHA CORRÊA DO LAGO

O CÍRCULO VELOSO-GUERRA E DARIUS MILHAUD NO BRASIL:


Modernismo musical no Rio de Janeiro antes da Semana

Volume I

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Música do Centro de
Letras e Artes da Universidade Federal do
Rio de Janeiro – UNIRIO, como
requisito parcial para obtenção do grau de
Doutor, sob a orientação da Professora
Doutora Elizabeth Travassos.

RIO DE JANEIRO, 2005


DEDICATÓRIA

A Violeta Corrêa de Azevedo, e à memória de José Maria Neves


RESUMO

TÍTULO: O “CÍRCULO VELOSO-GUERRA” E DARIUS MILHAUD NO BRASIL:

Modernismo musical no Rio de Janeiro antes da Semana

O texto procura, inicialmente, situar o Modernismo musical brasileiro no

contexto mais geral do Modernismo musical europeu, discutindo - dentre as suas tendências -

aquelas de maior repercussão no Brasil da Belle-Époque e, em particular, o caso da música de

Debussy e das inovações que comportava, no que se refere à sua difusão no Rio de Janeiro,

antes da chegada de Darius Milhaud em 1917. Os Capítulos II, III e IV procuram traçar um

perfil das atividades de Godofredo Leão-Veloso, de Nininha e Oswaldo Guerra, do seu papel

na difusão do Modernismo musical europeu no Brasil, e dos desdobramentos da carreira

européia de Nininha e Oswaldo. O Capítulo V discute a correspondência Milhaud - Guerra no

período que sucedeu a partida de Milhaud do Brasil e a chegada dos Guerra na França. O

capítulo final discute algumas inter-relações entre o Modernismo musical praticado no

“Círculo Veloso-Guerra” (que incluiu Darius Milhaud no período 1917-18) e o perfil que

adquiriria o Modernismo musical brasileiro, após a Semana de 22.

Palavras-chave: Modernismo, Politonalidade, Nacionalismo.


ABSTRACT

TITLE: THE “VELOSO-GUERRA CIRCLE” AND DARIUS MILHAUD IN BRAZIL: musical

Modernism in Rio de Janeiro before the ‘Semana’

In the first chapter, the text discusses the Brazilian musical Modernism in

relation to the broader context of the European Modernism, attempting to identify those trends

which had a greater impact in Brazil during the Belle-Époque period, particularly Debussy´s

music and innovations, as well as its diffusion in Rio de Janeiro before Darius Milhaud`s

arrival in 1917. Chapters II, III and IV provide a profile of the Godofredo Leão-Veloso,

Nininha and Oswaldo Guerra´s diverse activities, of their role in the diffusion of the European

musical Modernism, and the subsequent development of Nininha and Oswaldo´s European

careers. Chapter V discusses the Milhaud - Guerra correspondence, during the period between

his departure from Brazil and their arrival in France. The final chapter discusses the points of

contact between the musical Modernism practiced around the Veloso-Guerra (which included

Darius Milhaud during the period 1917-18) and the future profile of the Brazilian musical

Modernism after “São Paulo Modern Art Week” in 1922.

Key-words: Modernism, Polytonality, Nationalism.


SUMÁRIO

Volume I

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................................1

Capítulo I: MODERNISMO MUSICAL NA BELLE-ÉPOQUE......................................................7


1.1 MODERNISMO MUSICAL EUROPEU ANTES DA 1ª GUERRA MUNDIAL................................................7
1.2 MODERNISMO MUSICAL FRANCÊS...................................................................................................15
1.3 UMA PREPARAÇÃO PARA O MODERNISMO: A INFLUÊNCIA PÓS-WAGNERIANA.............................18
1.3.1 Influência do pós-wagnerianismo francês: César Franck, Vincent D’Indy e Glauco
Velásquez...................................................................................................................................18
1.3.2 D’Indy e a “Schola Cantorum”, uma ponte para a “Revolução Debussista”...................22
1.3.3 O Atonalismo, um caminho não trilhado..........................................................................28
1.4 O MODERNISMO FRANCÊS: ABERTURA CULTURAL E COSMOPOLITISMO.......................................30
1.4.1 A Influência Russa............................................................................................................30
1.4.2 Modernismo Francês: exotismo e abertura a outras culturas............................................33
1.5 A VALORIZAÇÃO DO NACIONAL: CONDIÇÃO DE INSERÇÃO NO MODERNISMO INTERNACIONAL...35
1.5.1 Música Popular e identidade nacional..............................................................................35
1.5.2 Um Modernismo “Sob o signo do Nacional”...................................................................38
1.6 ANTES DE MILHAUD E RUBINSTEIN: “MEDIADORES” BRASILEIROS DO MODERNISMO..................41
1.6.1 Alberto Nepomuceno........................................................................................................45
1.6.2 Henrique Oswald..............................................................................................................48
1.6.3 João Nunes........................................................................................................................50
1.6.4 Glauco Velásquez.............................................................................................................53
1.7 CONCLUSÃO......................................................................................................................................54

Capítulo II: RELEVÂNCIA DO “CÍRCULO VELOSO-GUERRA” E SUA POSIÇÃO NA


BIBLIOGRAFIA..................................................................................................................................55
2.1 DARIUS MILHAUD E O “CÍRCULO VELOSO-GUERRA”......................................................................55
2.2 O “CÍRCULO VELOSO-GUERRA” E A DIFUSÃO DA MÚSICA MODERNA NO BRASIL.........................62
2.3 HEITOR VILLA-LOBOS E O “CÍRCULO VELOSO-GUERRA”...............................................................66
2.4 POSIÇÃO DOS VELOSO-GUERRA NA BIBLIOGRAFIA.........................................................................73
2.4.1 Bibliografia Estrangeira....................................................................................................73
2.4.2 Bibliografia Brasileira......................................................................................................75

Capítulo III: NININHA VELOSO-GUERRA (1895-1921)............................................................83


3.1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................................................83
3.1.1 Nininha Guerra: Intérprete e Compositora.......................................................................83
3.1.2 Godofredo Leão-Veloso e Música Moderna....................................................................86
3.2 CONCERTOS E PRIMEIRAS AUDIÇÕES...............................................................................................88
3.2.1 Dos “Concertos Íntimos” de Leão-Veloso à chegada de Darius Milhaud (1907-1917)....88
3.2.2 Concertos realizados com o concurso de Darius Milhaud (1917-1918)..........................95
3.2.3 Concertos de Nininha Guerra, após a partida de Darius Milhaud (1919)........................99
3.2.4 Concertos Nininha Veloso-Guerra em Paris (1920-1921).............................................103
3.3 COMPOSIÇÕES E ESBOÇOS..............................................................................................................107
3.3.1 A Coleção Para Piano Com as Crianças........................................................................107
3.3.2 Manuscritos autógrafos existentes no Arquivo Paul Guerra..........................................110
3.3.2.1 Juvenilia............................................................................................................110
3.3.2.2 Três peças para orquestra................................................................................111
3.3.2.3 Variations (peu sérieuses) sur un thème serieux de Darius Milhaud...............114
3.3.3 Outras Composições.......................................................................................................114
3.3.3.1 Para canto e piano............................................................................................115
3.3.3.2 Para piano........................................................................................................115
3.4 TRANSCRIÇÕES DE OBRAS DE DARIUS MILHAUD..........................................................................116
3.4.1 Os Quartetos de Cordas.................................................................................................116
3.4.2 L’Homme et Son Desir...................................................................................................117
3.5 CONCLUSÃO........................................................................................................... ........................119

Capítulo IV: OSWALDO GUERRA (1892-1980)..........................................................................151


4.1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................151
4.2 O CATÁLOGO DE OBRAS.................................................................................................................158
4.2.1 A forte predominância de Obras de Câmera................................................................158
4.2.1.1 Três Quartetos de corda....................................................................................158
4.2.1.2 Três Sonatas de câmara e uma Sonatina...........................................................159
4.2.1.3 Melodias para canto e piano.............................................................................161
4.2.1.4 Coleções e peças para piano de 3 coleções para piano de Oswaldo Guerra.....163
4.2.1.5 Obras para orquestra.........................................................................................164
4.2.2 Uma Distribuição Cronológica Concentrada................................................................164
4.2.3 Localização de Obras e Edições...................................................................................165
4.3 EXECUÇÕES PÚBLICAS EM PARIS DE OBRAS DE OSWALDO GUERRA............................................165
4.3.1 Anos 1920.....................................................................................................................166
4.3.2 Anos 1930 e Pós-Guerra...............................................................................................168
4.4 CARACTERÍSTICAS DE ESTILO E LINGUAGEM.................................................................................169
4.5 OSWALDO GUERRA E MODERNISMO BRASILEIRO..........................................................................172
4.6 CONCLUSÃO....................................................................................................................................176

Capítulo V: A CORRESPONDÊNCIA MILHAUD-GUERRA...................................................196


5.1 O CONTEXTO DA CORRRESPONDÊNCIA..........................................................................................196
5.1.1 Darius Milhaud no Brasil.............................................................................................196
5.1.2 Milhaud e os Veloso-Guerra.........................................................................................201
5.2 CORRESPONDÊNCIA MILHAUD-GUERRA 1919-1920......................................................................203
5.2.1 Correspondência de viagem: a bordo e experiência nos E.U.A...................................207
5.2.2 Primeiros meses na França: Saudades do Brasil..........................................................207
5.2.3 Concertos Brasileiros....................................................................................................211
5.2.4 Projeto de Vinda dos Guerra a Paris.............................................................................212
5.2.5 Informações sobre as Composições de Milhaud em 1919-20......................................219
5.3 LACUNAS NA CORRESPONDÊNCIA MILHAUD-GUERRA..................................................................222
5.3.1 Ausência de referências a Villa-Lobos.........................................................................222
5.3.2 Ausência de correspondência passiva...........................................................................225
5.4 CONCLUSÃO....................................................................................................................................226

Capítulo VI: MODERNISMO MUSICAL NO “CÍRCULO VELOSO-GUERRA” E


MODERNISMO MUSICAL BRASILEIRO PÓS-1922.................................................................231
6.1 RIO DE JANEIRO E MORGES............................................................................................................231
6.2 BRASIL E MILHAUD: INFLUÊNCIAS RECÍPROCAS............................................................................233
6.3 MODERNISMO BRASILEIRO E INFLUÊNCIA DE MILHAUD...............................................................238
6.3.1 O Nacionalismo............................................................................................................238
6.3.2 “Atualização” da Linguagem........................................................................................245
6.4 O “CÍRCULO VELOSO-GUERRA” E O MODERNISMO MUSICAL NO BRASIL....................................248

BIBLIOGRAFIA................................................................................................................................263
Volume II

Anexo I: Nininha Veloso-Guerra...........................................................................................................1


Programas de Concerto.............................................................................................................................1
Brasil, de 1907 a 1916.................................................................................................................1
Brasil, de 1917 a 1919.................................................................................................................7
França, de 1919 a 1921..............................................................................................................18

Críticas...................................................................................................................................................26
Brasil, de 1907 a 1916...............................................................................................................26
Brasil, de 1917 a 1919...............................................................................................................42
França, de 1919 a 1921..............................................................................................................66

Anexo II: Oswaldo Guerra....................................................................................................................72


Catálogo de obras (manuscritos).............................................................................................................72
Programas de Concerto...........................................................................................................................78
de 1916 a 1939...........................................................................................................................78
de 1947 a 1978...........................................................................................................................89
Críticas....................................................................................................................................................96
Capa e trabalhos diversos.....................................................................................................................103
Autógrafos diversos..............................................................................................................................108

Anexo III: Correspondência Milhaud-Guerra 1919-1920...............................................................113


Correspondências de viagem................................................................................................................113
Fevereiro a Julho de 1919.....................................................................................................................123
Setembro de 1919 a Agosto de 1920....................................................................................................147

Anexo IV: Capas de partituras/Dedicatórias......................................................................................176


Partituras impressas com dedicatória....................................................................................................176
Capas Oswaldo Guerra.........................................................................................................................185

Anexo V:
Autógrafos............................................................................................................................................189
Fotos......................................................................................................................................................192
LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS

Exemplo 1 a: Variações sobre um tema original, 10ª Variação, compassos 1 - 3, f. 46;

Exemplo 1 b: Variações sobre um tema original, 10ª Variação, compassos 9 - 10, f. 47;

Exemplo 2 a: Le Miracle de la Semence, 1ª parte, compassos 21 - 23, f. 47;

Exemplo 2 b: Le Miracle de la Semence, 1ª parte, compassos 42 - 43, f. 47;

Exemplo 3 a: Chauve-Souris, compassos 14 e 15, f. 48;

Exemplo 3 b: Chauve-Souris, compasso 24, f. 49;

Exemplo 4 a: “Les Cloches”, compassos 6 e 7, f. 50;

Exemplo 4 b: “Les brebis qui rentrent”, compassos 10 e 11, f. 50;

Exemplo 5: Les Harmonies de la Cathedrale, compassos 9 - 13, f. 52;

Exemplo 6 a: “Sérénade des Clowns”, compasso 3, f. 53;

Exemplo 6 b: “Sérénade des Clowns”, compassos 8 - 10, f. 53;

Exemplo 7 a: peça nº II, “Com as bonecas em dança”, compassos 41 e 42, f. 108;

Exemplo 7 b: peça nº II, “Com as bonecas em dança”, compasso 45, f.108;

Exemplo 7 c: peça nº II, “Com as bonecas em dança”, compassos 48 e 49, f. 109;

Exemplo 7 d: peça nº II, “Com as bonecas em dança”, compassos 59 e 60, f. 109;

Exemplo 8 a: peça nº III: “Histórias da babá”, compassos 2 e 3, f. 109;

Exemplo 8 b: peça nº III: “Histórias da babá”, compassos 9 - 12, f. 110;

Exemplo 8 c: peça nº III: “Histórias da babá”, compassos 18 e 19, f. 110;

Exemplo 9: Berceuse, versão orquestral, 1ª página, compassos 1 - 7, f. 120;

Exemplo 10: Nocturne, compassos 1 - 33, fls.. 121 a 123;

Exemplo 11: Variations (peu serieuses) sur un thème serieux de Darius Milhaud - Tema e 1ª
Variação, fls. 124 e 125;

Exemplo 12 a: Com as Crianças - peça nº 2, compassos 39 a 59, f. 126;

Exemplo 12 b: Com as Crianças - peça nº 3, compassos 1 – 12; 36 - 60, fls. 127 e 128;
Exemplo 12 c: Com as Crianças - peça nº 4, f. 129;

Exemplo 13 a: 4º Quarteto de Cordas - 1º movimento, 1ª página (manuscrito), f. 130;

Exemplo 13 b: 4º Quarteto de Cordas - 1º movimento, compassos 57 - 73, f. 131;

Exemplo 14 a: 5º Quarteto de Cordas - 1º movimento, compassos 1 - 27, f. 132;

Exemplo 14 b: 5º Quarteto de Cordas, compassos 1 - 18, f. 133;

Exemplo 15 a: L’Homme et son Désir, compassos 1 - 21, fls. 135 a 138 ;

Exemplo 15 b: L’Homme et son Désir (manuscrito NVG), compassos 1 - 22, fls. 139 e 140 ;

Exemplo 16 a: L’Homme et son Désir, seção “L”, compassos 1 - 4, f. 141;

Exemplo 16 b: L’Homme et son Désir, seção “L”, compassos 1 - 8, f. 142;

Exemplo 17: L’Homme et son Désir, seção “X”, compassos 1 - 24, f. 143 a 146;

Exemplo 18: L’Homme et son Désir, seção “X”, compassos 1 - 21, f. 147; a 149;

Exemplo 19: L’Homme et son Désir, ed. Universal, compassos 1 - 13, f. 150;

Exemplo 20: “Parfois quand je suis triste”, Tristesses, compassos 1 - 24, f. 178;

Exemplo 21: “Une goute de pluie”, Clairières dans le ciel, compassos 1 - 15, f. 179;

Exemplo 22: “Ce sont de grandes lignes”, Clairières dans le ciel, compassos 1 - 9, f. 180;

Exemplo 23: “La Valleuse”, Trois Poèmes de Marc Chesnau, compassos 1 - 8, f. 181;

Exemplo 23 a: Promenoir des deux amants, nº 1, f.182;

Exemplo 24: 3º Quarteto de Cordas, 1º movimento, compassos 1 - 12, f. 183;

Exemplo 25: Sonatine Pastorale - 1º movimento, compassos 1 - 12, f. 184;

Exemplo 26: “Elle était descendue”, Tristesses, compassos 13 - 18, f. 185;

Exemplo 27: Esquisses, nº 8, compassos 4 - 8, f. 186;

Exemplo 28: Sonata para flauta, oboé, viola e piano, compassos 8 - 10, após marcação 19, f.
187;

Exemplo 28 a: Sonata para flauta, viola e harpa, 1º movimento, f. 188;

Exemplo 29: “La Valleuse”, Trois Poèmes de Marc Chesnau, compassos 68 - 77, f. 189;

Exemplo 30: “Elle était descendue”, Tristesses, compassos 1 - 8, f. 190;


Exemplo 31: “Nous nous aimerons tant”, Tristesses, compassos 1 - 14, f. 191;

Exemplo 31 a: Promenoir des deux amants, nº 2, f. 192;

Exemplo 32: “Si tout ceci”, Tristesses, compassos 1 - 20, f. 193;

Exemplo 33: Pièces Drôles, nº 2, compassos 1 - 20, f. 194;

Exemplo 34: Chansons de Bilitis, nº 2, f. 195;

Exemplo 35: Sonata para Piano, final do 1º movimento (acordes de 12 notas), f. 255;

Exemplo 36: Euménides, final do 1º Ato (acordes de 12 notas), f. 255;

Exemplo 37: Sonata para Piano e Instrumentos de Sopro (utilização total cromático), f. 256;

Exemplo 38: Sonata para Piano e Instrumentos de Sopro (poliritmia), f. 257;

Exemplo 39: Sonata para Piano e Instrumentos de Sopro (escrita pianística/Debussy) f. 258;

Exemplo 40: Epigramas Irônicos e Sentimentais, nº 2, (“Acordes multitonais”), f. 261;

Exemplo 41: Epigramas Irônicos e Sentimentais, nº 4, (“Acordes bitonais”), f. 262.


LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – “Datas: 1ªs Audições mundiais x 1ªs Audições brasileiras (1890 a 1920)”, f. 13;

Tabela 2 – “Obras orquestrais modernas: 1a Audição no Rio de Janeiro”, f. 14;

Tabela 3 – “Concertos com participação de Nininha Veloso-Guerra (1907-1916)”, f. 94;

Tabela 4 – “Concertos realizados com o concurso de Darius Milhaud (1917-18)”, f. 98;

Tabela 5 – “Debussy/Ravel: 1ªs Audições no Brasil de obras para Piano e de Câmera”, f. 101;

Tabela 6 – “Concertos Nininha Veloso-Guerra em Paris: 1920-1921”, f. 102;

Tabela 7 – “C.N.R.S.: Fundo Oswald d’Estrade Guerra”, f. 175;

Tabela 8 – “Correspondência de Milhaud dirigida à Nininha e Oswaldo Guerra – 1919”, f.


204;

Tabela 9 – “Correspondência de Milhaud dirigida à Nininha e Oswaldo Guerra – 1920”, f,


206;

Tabela 10 – “Correspondência Passiva”, f. 226.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Folha 6 - “Exposição Darius Milhaud”, Biblioteca Nacional – RJ, 1977, capa do Catálogo;

Folha 80 - Capa do manuscrito autógrafo da transcrição para piano a 4 mãos de L’Homme et


son Désir”, realizada no Rio de Janeiro por Nininha Veloso-Guerra, em Maio-Junho 1918
(Arquivo Paul Guerra);

Folha 81 - Villa-Lobos: Homenagem a Nininha, (“Ilustração Brasileira” – Janeiro 1922);

Folha 82 - Milhaud: dedicatória a Godofredo Leão-Veloso das Chansons Bas: “ces mélodies
qu’il a entendues souvent chez lui...” (Deptº de Música – Biblioteca Nacional – RJ);

Folha 229 - Carta de Milhaud a Nininha Guerra (25/VI/1920: anunciando a composição das
Saudades do Brazil);

Folha 230 - Carta de Milhaud a Oswaldo Guerra (23/XI/1922: pelo 1º aniversário da morte de
Nininha, e anunciando a publicação da sua transcrição do 5º Quarteto de Cordas;

Folhas 259 e 260 - Exemplos de politonalidade em Villa-Lobos, no artigo de Oscar Lorenzo


Fernandez, intitulado A contribuição harmônica de Villa-Lobos.
INTRODUÇÃO

Meu interesse pelos nomes de Godofredo Leão-Veloso, Oswaldo Guerra e

Nininha Veloso-Guerra foi despertado pelas menções altamente elogiosas que Milhaud faz a

eles nos textos em que trata do Brasil, e pelo número impressionante de obras que lhes dedica,

principalmente a Nininha (também dedicatária da 3ª Dança Africana de Villa-Lobos). No

período 1972-74, período em que residia em Paris como estudante de composição, tive acesso

a algumas de suas obras, sendo que o maior impacto me foi causado pela partitura de

L´Homme et son Désir, por suas tão instigantes audácias - nos campos da politonalidade, da

poliritmia, e mesmo da “estereofonia” - e por sua associação ao Brasil, com a presença de

ritmos e temas populares brasileiros, e pelo fato de ter sido escrita no Rio, em 1918. Esse

interesse ganhou um maior foco em 1977, por ocasião da Exposição organizada por Mercedes

Reis Pequeno, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, em comemoração aos 60 anos da

chegada de Milhaud ao Brasil, que permitiu: perceber melhor a qualidade de intercâmbio de

Milhaud com o establishment musical de então (como revelam as cartas a Nepomuceno e

Henrique Oswald, ali apresentadas); a sua intensa dedicação às atividades da “Sociedade

Glauco Velásquez”; a grande riqueza documental sobre Claudel e Milhaud - e visitantes

musicais ilustres como Enrico Caruso, Arthur Rubinstein, e os Ballets Russes - contida na

imprensa brasileira; mas, sobretudo, a revelação do elo entre os Veloso-Guerra e Villa-Lobos:

uma matéria da revista Ilustração Brasileira - reproduzindo um autógrafo de Villa-Lobos

intitulado “Homenagem a Nininha”, o qual contém os primeiros compassos de dois temas, a

1
partir dos quais pretendia escrever uma obra dedicada à sua memória - era uma demonstração

definitiva da existência de relacionamento entre Villa-Lobos e os Guerra, e um testemunho de

sua admiração por Nininha. A tese, ora apresentada, é basicamente condicionada pelo roteiro

desta exposição. O tema me foi reavivado, durante meu Mestrado em 1978-80, ao encontrar

na Biblioteca de Princeton os diários de Paul Claudel - que contêm diversas menções aos

Veloso-Guerra , entre as quais uma entrada datada de 1918 mencionando “ o Pássaro de

Fogo e a Sagração da Primavera a 4 mãos , em casa dos Guerra” - , e o texto inspirador de

Alexandre Eulálio sobre a Aventure Brésilienne de Blaise Cendrars, que recria - com

pinceladas curtas, porém, extremamente sugestivas - o ambiente encontrado por Milhaud no

Rio.

O principal impulso, entretanto, ocorreu em 1998. Primeiramente, com a

leitura do Coro dos Contrários de José Miguel Wisnik, através do qual o “Círculo Veloso-

Guerra” é introduzido de fato na bibliografia brasileira, e adquire uma perspectiva nova ao ser

duplamente relacionado com Milhaud e Villa-Lobos : penso que as avaliações e os ricos

insights, introduzidos por José Miguel Wisnik, são confirmados na documentação apresentada

nesta tese. A essa leitura seguiu-se uma longa e decisiva conversa com Mercedes Reis

Pequeno, graças a quem - em relação a Godofredo - pude compreender que a sua coleção de

partituras se encontrava na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, e - em relação a Oswaldo

Guerra - que este nos anos 70 ainda estava ativo na França, pois ela chegou a ser-lhe

apresentada por François Lesure no Departamento de Música da Bibliothèque Nationale.

Graças a Violeta Corrêa de Azevedo, pude ter um encontro com François Lesure, ao qual se

seguiu uma visita a Madeleine Milhaud, viúva do compositor, que me informou da existência

de uma entrevista radiofônica de Oswaldo Guerra, realizada por ela e Francine Bloch nos anos

70, e forneceu as coordenadas de seu filho Paul Guerra, então, residente em Le Pecq

(Yvelines), uma localidade próxima de Paris. O contato, a partir de então, desenvolvido com

2
Paul Guerra - que se transformou numa relação de amizade por ele e sua família - me deu

acesso a um acervo que consiste de: manuscritos musicais autógrafos de Darius Milhaud,

Oswaldo Guerra e Nininha; programas e críticas de concertos no Rio de Janeiro de 1907 a

1920, fotos, e uma correspondência inédita entre Milhaud e os Guerra concentrada nos anos

1919 e 1920. A partir daquele momento, Paul e seu filho Bernard Guerra me forneceram um

vasto material composto de fotocópias de grande parte do seu acervo, o que tornou viável o

trabalho à distância, ao mesmo tempo em que diversos reencontros - ao longo dos últimos

cinco anos - permitiram um melhor entendimento da “tradição oral” da família a respeito de

Oswaldo Guerra e do distante “passado brasileiro”. Ao longo desse período, Bernard

procedeu a um rastreamento das partituras de Oswaldo (manuscritos e obras publicadas),

elaborou dois memorandos curtos, porém, muito informativos (“Travail de Recherche

Nininha Guerra” e “Travail de Recherche Oswaldo Guerra”), e obteve da O.R.T.F. a gravação

em CD da entrevista de Oswaldo Guerra a Francine Bloch e Madeleine Milhaud, realizada em

1978, constituindo uma das fontes documentais importantes desse trabalho. A descoberta

desse acervo por Paul só se deu por ocasião da morte de Oswaldo em 1980: segundo o

testemunho da família, Oswaldo falava pouco de seu passado brasileiro e esse material nunca

lhes havia sido mostrado. Paul e Bernard organizaram esse material - que permanece inédito -

e forneceram cópias para o Arquivo de Madeleine Milhaud, a quem contactaram naquela

ocasião.

Devo a idéia e estímulo de fazer desse acervo o objeto de uma tese de

doutorado a José Maria Neves, que chegou a visitar Paul Guerra em Le Pecq, e lá teve

oportunidade de examinar o acervo, que o encantou. A tese se propõe a traçar um perfil da

atividade dos músicos e do ambiente do “Círculo Veloso-Guerra” a partir desse rico material

documental, complementado por documentação existente em outros acervos: o Departamento

3
de Música da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB)

da USP, o arquivo Darius Milhaud em Mills College em Oakland, o “Centre de

Documentation Musicale” da Bibliothèque Gustav Mahler e o “Centre de Documentation

Claude Debussy” do CNRS, em Paris. O trabalho se apresenta em dois volumes: o primeiro

consistindo do texto distribuído em seis capítulos e contendo exemplos musicais; o segundo,

consistindo de uma coleção de anexos, contendo cópias de documentos existentes no Arquivo

Paul Guerra (cartas de Milhaud aos Guerra, programas de concerto, críticas, autógrafos e

fotos). Essa tese se insere no conjunto de pesquisas recentes, sendo realizadas no Brasil,

focando a História da Música Brasileira: se, por um lado, ela se apresenta dentro de um

recorte temporal extremamente limitado, por outro, penso que esse período corresponde a um

momento decisivo e extremamente singular, no desenvolvimento do Modernismo musical

brasileiro.

Diversas pessoas contribuíram de forma essencial à realização desse

trabalho, tanto na fase de pesquisa quanto de sua elaboração. Queria agradecer em primeiro

lugar a Mercedes Reis Pequeno, com quem tudo se iniciou, e que - com sua inteligência e

amizade - deu um suporte de todos os momentos para esse trabalho; ao Professor Aloysio de

Alencar Pinto - aluno de Godofredo Leão-Veloso aos dez anos de idade, que recorda o luto da

família Leão-Veloso um ano após a morte de Nininha - que foi um interlocutor freqüente,

generoso e indispensável; à Professora Flavia Camargo Toni, a quem devo idéias e tantos

documentos do IEB de decisiva importância para esse trabalho; ao Turíbio Santos pelo acesso

irrestrito a ele e ao acervo do Museu Villa-Lobos; a Flavio Silva por instigantes trocas de

idéias e informações a respeito da documentação brasileira de Milhaud; ao Rogério Bergold,

por me haver revelado e comunicado os textos de Milhaud e Jose Rodrigues Barbosa sobre

Glauco Velásquez; ao Frank Langlois, biógrafo de Milhaud, que me comunicou uma vasta

4
correspondência de Milhaud escrita no Brasil; a Daniela Thompson, por diversas informações

relacionadas com Milhaud; ao J. Braun da F.W. Olien Library, que gentilmente me enviou as

apostilas sobre música brasileira de Milhaud em Mills College; a Myriam Chimenes por ter

me indicado a existência e dado acesso ao “Fonds Oswald d´E. Guerra”, no “Centre de

Documentation Claude Debussy”, no CNRS; a Catherine Massip por cópias de materiais

relativos à atuação de Oswaldo Guerra na Bibliothèque Nationale de Paris; aos meus

professores da UniRio: Salomea Gandelman, Carol Gubernikof, Ricardo Tacuchian e Luiz

Paulo Sampaio, que ao longo do Doutorado foram sempre pródigos nas idéias e no apoio. Na

fase final de elaboração da tese, contei com duas ajudas essenciais: a de Leonardo Taveira,

que me deu sugestões preciosas na estruturação interna dos capítulos, e a de Roseli de Sá, pela

sua dedicação, amizade e a qualidade excepcional de seu trabalho secretarial.

Fico grato a Madeleine Milhaud por ter me recebido em 1999 e 2003 -

antes e depois de comemorar o seu centenário - com sua extraordinária vivacidade,

inteligência, e interesse pelo Brasil; não tenho palavras para expressar a Paul e Nicole Guerra,

e a Bernard e Florence Guerra, minha gratidão pela ajuda incondicional, e as tantas provas de

amizade demonstradas ao longo desses últimos anos; e à minha maravilhosa família - Isabel,

Miguel e Ana - pela paciência infinita, interesse e apoio nesses anos de convivência forçada

com os Veloso-Guerra e Milhaud. Entretanto, minhas maiores dívidas de gratidão são com

três pessoas: minha professora e orientadora Elizabeth Travassos, que aceitou a tarefa ingrata

de assumir no meio do caminho a orientação desse trabalho, e com quem tanto aprendi ao

longo do seu processo de elaboração; a Violeta Corrêa de Azevedo, amiga incomparável, e

que acompanhou desde o início os encontros e pesquisas que levaram a essa tese; a meu

querido amigo José Maria Neves, a quem devo tantos encorajamentos para me direcionar para

a pesquisa musicológica, e o estímulo para empreender esse Doutorado.

5
6
I

MODERNISMO MUSICAL NA BELLE-ÉPOQUE

1.1 - MODERNISMO MUSICAL EUROPEU ANTES DA 1ª GUERRA MUNDIAL

Costuma-se datar o Modernismo musical europeu a partir de dois

movimentos paralelos que se desenvolveram entre a última década do século XIX e às

vésperas da Primeira Guerra Mundial:

- a “Revolução Debussista”1, que levou a uma profunda transformação da

linguagem tonal, e a uma abertura para tradições musicais populares (de

grande riqueza quanto à rítmica e ao modalismo), conservadas na

“periferia” da Europa Ocidental (Espanha, Rússia e países da Europa

Central), assim como para tradições musicais extra-européias. Por sua vez,

o forte impulso que ganharam as escolas nacionais – ex. Igor Stravinski

1
Segundo Manuel de Falla (1950:136): “La obra de aquel mágico prodigioso que se llamó Claude Debussy
representa el punto de partida de la más profunda revolución que registra la historia del arte sonoro”, enquanto
Murilo Mendes (1993: 78) diria que: “[...] a revolução de Debussy foi mais importante que a de Wagner. Wagner
foi um ponto de chegada, Debussy um ponto de partida [...]”; Mário de Andrade (Coli, 1998), em uma de suas
últimas reavaliações do papel de Debussy (Folha da Manhã: 27/5/1943), diria: “[...] não tem dúvida que iremos
encontrar nele toda a base técnica da música atual. Mas o edifício erguido sobre essas bases foi tão outro que
seria inócuo falar em filiação [...]”, que se assemelha a outro comentário de Falla (1950: 30): “La reforma
debussysta há constituído uno de los hechos más importantes que registra la historia musical contemporanea
[...] todos esos artistas que han seguido el noble empeño de conquistar para el arte nuevas formas y nuevos

7
(1882-1971)2 e Serge Prokofiev (1891-1953) na Rússia; Manuel de Falla

(1876-1946) na Espanha; Bela Bartok (1881-1945) na Hungria - levaram

ao resgate e adoção de processos rítmicos e melódicos (por sua vez

requerendo novas soluções harmônicas) e polifônicos, esquecidos - na

música “culta”3 - desde o Renascimento;

- o “Expressionismo” germânico, que entre os poemas sinfônicos (ex.

Assim falava Zaratustra (1896)) e as primeiras óperas (Salomé, em 1905, e

Elektra, em 1909) de Richard Strauss (1864-1947), e algumas obras da

Escola de Viena que antecedem a Primeira Guerra Mundial - ex. o Pierrot

Lunaire (1912) de Arnold Schoenberg (1874-1951), as Bagatelas para

quarteto de cordas (1913) de Anton Webern (1883-1945), e as 3 Peças

para Orquestra (1914) de Alban Berg (1885-1935) - leva o cromatismo

pós-wagneriano de Gustav Mahler (1860-1911), Strauss e Max Reger

(1873-1916) às suas últimas conseqüências, conduzindo-o ao Atonalismo.

Podem se distinguir nesses dois movimentos paralelos - um de origem

germânica e outro de irradiação francesa - dois momentos principais:

procedimientos hán tomado como basis de sus especulaciones las conquistas que en todos esos sentidos habia
yá realizado Debussy [...]”.
2
Uma indicação da influência de Debussy sobre Stravinski ainda, em 1909, é dada por seu biógrafo Alexandre
Tansman (1948:178): “[...] Le premier acte du Rossignol montre encore dans le langage une influence sensible
de Debussy [...] cet élément stylistique persistant [...]”; quanto à influência de Debussy sobre Bartok, num artigo
datado de 1921 (ver Szabolcsi, 1968:32), Bartok declararia a respeito de Kodaly: “Son art a une double racine,
tout comme le mien: il procède de la musique paysanne hongroise, et de la musique française moderne”.
3
Sobre a revitalização desses processos, Bartok escreveria em 1921, em seu texto intitulado “Autobiografia”
(Szabolcsi, 1968: 143): “L´etude de la musique paysanne a été pour moi d´une importance capitale, car elle m´a
permis de me liberer de l´hégémonie du système des modes majeur et mineur [...] la plupart des mélodies
recueillies [...] sont bâties sur des modes d´église ou grecs classiques, voire primitifs (pentatoniques) et
contiennent les formules rythmiques et les changements de rythme les plus divers et les plus libres. [...] Il s´est
donc avéré que les gammes anciennes dont on ne sert plus dans la musique savante n´ont rien perdu de leur

8
- o primeiro momento, que poderia ser delimitado entre o L´Après-Midi

d´un Faune (1894) de Debussy e as 5 Peças para Orquestra op.15 (1908)4

de Arnold Schoenberg, compreendendo a produção de Richard Strauss

entre Zaratustra e Elektra, as Sinfonias e o Canto da Terra (1908) de

Gustav Mahler, e a floração impressionista na França de Debussy (ex.

Pélleas et Mélisande (1902), La Mer (1905), o 1º caderno de Prelúdios

para piano (1910)), Maurice Ravel (1875-1937)5, Paul Dukas (1865-

1935)6, Florent Schmitt (1870-1958)7 e Albert Roussel (1869-1937);

- um segundo momento, no qual o “centro de gravidade“ do Modernismo

se desloca de Debussy e Strauss para as duas figuras-chave da geração

seguinte: Stravinski e Schoenberg. As obras-emblema desse período, o

Pierrot Lunaire de Schoenberg e a Sagração da Primavera (1913) de

Stravinski - cujas contrapartidas cronológicas nas artes plásticas são as

primeiras pinturas abstratas de Vassili Kandinsky8 (1866-1944) e o

Cubismo analítico de Pablo Picasso (1883-1973) e Georges Braque (1882-

1963)9 - passariam a simbolizar dois procedimentos que iriam marcar

profundamente o perfil de toda a música do século XX: o Atonalismo, ao

qual se ligaria a tradição expressionista ; e a adoção sistemática de uma

vitalité. Le retour a leur utilisation a permis de créer de nouvelles combinaisons harmoniques.Cet usage a eu
pour consequence finale la libre utilisation de chaque son de notre système chromatique à douze notes [...]”.
4
Que, junto as 3 peças para piano op.11 (também de 1908), são vistas como o início do “atonalismo livre”.
5
Em obras como: Jeux d’Eau, Ma Mere L’Oye e Gaspard de la Nuit, todas anteriores a 1908.
6
Destacando-se o Aprendiz de Feiticeiro e o balé La Peri.
7
Destacando-se La Tragédie de Salomé, que seria apresentada em 1913 no Rio por ocasião da temporada dos
Ballets Russes, e o Psaume XLVII (do qual Villa-Lobos daria a 1ª audição brasileira nos anos 30).
8
A identificação de Schoenberg com o movimento liderado por seu amigo Kandinski fica claramente
evidenciada no catálogo da exposição Blau Reiter (1912), o qual não somente contém pinturas de Schoenberg,
como também obras musicais suas (1ª publicação de sua Herzgewachse (1911) para celesta, harpa e harmônio
soprano), e obras para canto e piano de Berg e Webern (Kandinski & Marc, 1974).
9
Herbert Read propõe a seguinte delimitação cronológica: “Pode-se dizer que o movimento cubista nasceu em
1907 [com as Demoiselles d’ Avignon], e que ele morreu com o início da Guerra de 14 ”. [Read, 1960: 82. T. do
A.].

9
métrica aditiva de grande poder expressivo10 - da qual a Danse Sacrale,

episódio final e culminante da Sagração da Primavera, se tornaria o

paradigma - aliada a um “tonalismo ampliado” (comportando desde os

mais diversos modalismos até a politonalidade), no qual se calcariam as

diversas escolas nacionais que - “emancipadas” da influência germânica, a

partir dos novos horizontes abertos por Debussy11 - procuravam

desenvolver uma música de concerto moderna e, ao mesmo tempo,

enraizada no seu folclore (como no caso de Bela Bartok12).

Na década de 1920, o diálogo e o interesse que haviam existido entre as

duas tendências na década anterior (ex. o interesse de Stravinski e Ravel pelo Pierrot

Lunaire13; a apresentação de obras de Stravinski na “Verein für Musikalishe

Privatauffürungen 14”, fundada em Viena por Schoenberg para a difusão da música nova) se

transformaria numa polarização acirrada entre dois campos opostos: de um lado, o

Atonalismo, representado pelos grandes mestres da Escola de Viena (Schoenberg, Berg e

Webern), convencidos de que haviam descoberto uma sintaxe (as operações da série

dodecafônica) capaz de fornecer uma alternativa ao sistema tonal; do outro, diversas escolas

10
Ver a análise clássica de Pierre Boulez, no artigo “Stravinski Demeure” (Boulez,1966: 75-145), onde estende e
sistematiza a análise de Messiaen dos “personagens rítmicos” no Sacre du Printemps.
11
Segundo Szabolcsi (1968: 32): “[...] pour les pionniers de la nouvelle musique hongroise, se libérer de
l’emprise allemande etait plus important que tout. Pour Bartok comme pour Kodaly, le nom de Debussy etait
l’etendard d’un mouvement de liberation européen. [...] Malgré tout, Debussy apprend relativement peu de
choses à Bartok. C’est dans la transparence des harmonies et de l’orchestration qu’on perçoit le mieux son
influence [...]”.
12
Entre as obras importantes de Bartok anteriores à Primeira Guerra Mundial, podem ser destacadas: a ópera O
Castelo de Barbazul, o Allegro Bárbaro e, sobretudo, as Bagatelas para piano.
13
Tanto os Três Poemas da Lírica Japonesa de Stravinski quanto os Três poemas de Mallarmé de Ravel, ambas
as obras de 1913, são conhecidos exemplos do impacto do Pierrot Lunaire sobre dois dos mais importantes
contemporâneos de Schoenberg. Jean Cocteau, reconhecendo essa influência, mas colocando Schoenberg na
categoria dos compositores “cerebrais”, escreveria em 1918 no Coq et l´Arlequin (1979: 55): “Schoenberg est un
maitre; tous nos musiciens et Stravinski lui doivent quelque chose, mais Schoenberg est surtout un musicien de
tableau noir”.
14
que pode ser traduzida como: “Sociedade para execuções privadas” .

10
“neo-tonais”, entre as quais a “politonalidade” de Darius Milhaud, o “pandiatonismo”15 de

Stravinski do período neo-clássico, e escolas nacionalistas, onde - apesar do modalismo

chegar, às vezes, ao limite da utilização do total cromático16 (notadamente no caso de Bartok)

- o princípio da polaridade mantinha-se como uma precondição essencial de enraizamento no

folclore17.

Se nos orientarmos pela Tabela 1 - como uma amostragem das obras mais

marcantes do Modernismo musical anteriores à Primeira Guerra Mundial - e nos guiarmos

pelo critério “apresentação pública” como um índice da absorção das novas linguagens por

parte do meio musical brasileiro, pode-se observar o forte contraste entre:

a) A rápida difusão no Brasil de um primeiro momento do Modernismo:

as obras de Richard Strauss18, mas, sobretudo, as do Modernismo francês; e

b) A difusão extremamente tardia de obras do segundo momento do

Modernismo. Como já assinalado por Bruno Kiefer (1986:21), não

procedem as afirmações de Lisa Peppercorn (freqüentemente repetidas na

literatura19) de que as principais obras modernas do repertório dos Ballets

15
Para uma discussão teórica do “pandiatonismo”, ver Alexander Tansman (1947: 97-112).
16
Bartok, em Szabolcsi (1968: 33): “[…] il est vrai que, pendant un certain temps, j’ai approché une certaine
catégorie de musique dodécaphonique. Mais l´un des traits de mes oeuvres de cette époque [... le Mandarin
Merveilleux et les deux Sonates pour piano/violon...] est qu´elles sont construites sur une base tonale sans
équivoque [...]”.
17
Szabolcsi (1968: 34): “[…] il se refuse à suivre Schoenberg et son école jusqu´à la dodécaphonie totale et
complète. Bartok considérait en effet que sa source à lui était la musique populaire, or,à son avis, la musique
populaire atonale était une chose inconcevable [...]”.
18
Assim como das últimas óperas de Puccini como a Fanciulla del Ovest (que se utiliza amplamente da escala
de tons inteiros) , o Tritico e Turandot
19
Peppercorn (1989: 34): “[…] the year 1917 represented a real breakthrough in his career. Diaguilev and his
Russian ballet came again to Rio and Villa-Lobos heard works of Igor Stravinski […] such as Petrushka,
L’Oiseau de Feu, le Sacre du Printemps, [...] for the first time […]”. A informação de Peppercorn é duplamente
incorreta: Villa-Lobos não só não podia ter ouvido (no Rio) execuções (sinfônicas) dessas obras antes de sua ida
a Paris, em 1923, como a única obra “moderna” apresentada na temporada dos Ballets Russes em 1917 foi o
L’Apres-Midi d’un Faune, conhecida no Rio de Janeiro desde 1908. Por outro lado, Serge Diaguilev não

11
Russes (ex. Pássaro de Fogo, Petrushka, Sagração da Primavera de

Stravinski, Dafnis e Cloé de Ravel) teriam sido apresentadas por ocasião

das suas duas excursões (191320 e 1917) no Rio21 (Peppercorn (1989: 34)).

A “oportunidade perdida” de ter esse repertório apresentado no Brasil é

bem refletida na frustração manifestada por Oswaldo Guerra, em carta

endereçada a Charles Koechlin em 1917:

Nós aqui tivemos os Ballets Russes. Infelizmente, eles já partiram para São Paulo.
[...] Nós fomos apresentados a Nijinski. Trata-se não somente de um grande artista,
mas também de um homem muito inteligente e de grande distinção [...] Haviam-
nos prometido Dafnis e Cloé, Petrushka e o Pássaro de Fogo, mas a Direção
não quis apresentá-los porque seria preciso aumentar o número de músicos na
orquestra (!). Eles também não queriam apresentar L’Aprés Midi d’un Faune por
ser este um balé de Nijinski, e ele estar estremecido com a Direção; felizmente,
tudo se resolveu e ele foi tocado na noite passada [...] 22

Na realidade, a primeira audição da maior parte dessas obras só aconteceria

após 1940, as únicas exceções sendo Petrushka e o Chant du Rossignol, apresentadas sob a

regência de Villa-Lobos23 , nos anos 30. As únicas audições de obras de Stravinki em sala de

acompanhou os Ballets Russes em suas duas excursões à América do Sul (1913 e 1917). Essa colocação de
Peppercorn é repercutida em diversos autores, entre os quais Simon Wright (1992: 21) (“The influence of
Stravinski has been often perceived in Amazonas and Uirapuru. L’Oiseau de Feu was produced in Rio in 1917
[...]”) e Eero Tarasti: (1995: 4) (“another important impulse was undoubtedly the visit of the Diaguilev ballet in
1917, when Stravinski’s Petrushka, Firebird and Feux d’Artifice as well as Ravel’s Daphnis et Chloé were
performed”).
20
A única obra do repertório moderno dos Ballets Russes, além do Prelude à l’Après-Midi d’ un Faune, foi - em
1913 - a Tragédie de Salomé do compositor francês Florent-Schmitt [ver Brito Chaves, 1971], o qual se tornaria
um grande amigo de Villa-Lobos, a partir dos anos 20, e um dos raros compositores a quem Villa-Lobos atribuía
um impacto na sua própria evolução.
21
Ao impacto da audição (imaginária) dessas obras costuma ser atribuído e “explicado” o impulso de Villa-
Lobos em compor os balés Amazonas e Uirapurú (essa questão será discutida no Capítulo VI). Como exemplo
em Tarasti (1995: 4), “[...] the symphonic poems and ballets Villa-Lobos composed immmediately thereafter-
Amazonas, Naufrágio de Kleonicos e Uirapuru are a direct reflection of these events […]”.
22
Carta datada do Rio de Janeiro, 3/IX/1917: “[...] nous avons eu ici les Ballets Russes.Malheureusement ils
sont dejá partis à Saint Paul [...] Nous avons été présentés à Nijinski. C´est non seulement un grand artiste, mais
um homme très distingué et très intelligent[...]On nous avait promis Daphnis et Chloé,Petrushka et l´Oiseau de
Feu mais la Direction n´a pas voulu le donner parce qu´il fallait augmenter le nombre de musiciens à
l´orchestrte (!!). Ils ne voulaient non plus nous donner L´Aprés Midi d´un Faune parce que c´est un ballet de
Nijinsky et Nijinsky est à peu prés brouillé avec la Direction; heureusement tout s´est arrangé et on l´a joué le
dernier soir (carta inédita , “Fonds Charles Koechlin” - Centre de Documentation Musicale Bibliothèque Gustav
Mahler –Paris )
23
Os “Concertos Villa-Lobos” também revelariam ao público brasileiro obras de Ravel, Poulenc, Milhaud,
Florent Schmitt, Casella e Gershwin.

12
concerto são devidas a Felix Weingartner24, com Fogos de Artifício25, apresentado em 1922, e

a Arthur Rubinstein, que incluiu uma transcrição para piano da cena final do Passaro de

Fogo26 nos seus recitais, em 1918. Por sua vez, as obras mais ousadas da “fase russa”, como a

Sagração da Primavera e Les Noces, só viriam a ser tocadas em público após a Segunda

Guerra Mundial. Quanto à Bela Bartok, a única obra apresentada em público, até o pós-

guerra, seria ocasionalmente o Allegro Bárbaro (por pianistas como Rubinstein e Cláudio

Arrau). No que se refere à Escola de Viena, suas obras só começaram a fazer parte da

programação de concertos, no pós-guerra, na esteira do movimento “Música Viva”, liderado

por Koellreuter. Portanto, discutir as influências do Modernismo musical europeu no Brasil da

Belle-Époque equivale a discutir a influência do Modernismo musical francês, na sua fase

pré-stravinskiana.

TABELA 1 – Datas: 1ªs Audições mundiais* x 1ªs Audições brasileiras


(Período 1890-1920)
(1,a ) (2,a) (3,a) (4,a) (1,b ) (2,b) (3,b) (4,b)

Data Compositor Obra Brasil Data Compositor Obra Brasil

1894 Debussy L'Après-Midi d'un Faune 1908 Debussy Jeux


1896 R. Strauss Zaratustra 1923 Stravinski Sacre du Printemps
1899 Debussy Nocturnes 1920 Stravinski 3 Poemas L. Japonesa
1902 Debussy Pélleas et Mélisande 1920 Ravel 3 Poemas Mallarmé
1913
6 Bagatelas para
Debussy La Mer 1931 Webern
Quarteto de Cordas
1905
5 Peças para Orquestra
R. Strauss Salome 1910 Webern
op. 10
1906 Schoenberg Kammersymphonie Stravinski Pribaoutki
1914 5 Peças para Orquestra
1908 Ravel Gaspard de la Nuit 1913 Berg
op. 6

24
Felix Weingartner (1863-1942). Regente e compositor alemão, um dos maiores regentes da geração de
Richard Strauss. Realizou diversas tournées no Brasil, onde apresentou o grande repertório sinfônico alemão,
assim como a Tetralogia de Richard Wagner.
25
Feux d’Artifice é ainda uma “obra de juventude” de Stravinski, extremamente próxima do estilo de seu mestre
Rimski-Korsakov, mostrando também uma clara influência do Aprendiz de Feiticeiro de Paul Dukas.
26
Ver Brito Chaves (1971) e coleção de programas de concerto do Acervo Ayres de Andrade na BN-RJ.

13
Ravel Ma Mère l'Oye 1918 Debussy Estudos para piano 1920
Bartok 14 Bagatelas Milhaud Les Choéphores [1919]
R. Strauss Elektra 1923 Falla El Amor Brujo 1931
1915
Schoenberg 3 Peças op.11 Ives Concord Sonata [1939]
1909 5 Peças para Orquestra
Schoenberg Prokofiev Suite Scita
op. 15
Schoenberg Erwartung Prokofiev Sinfonia Clássica
1916
Debussy 1o caderno de Prelúdios 1910 Stravinski Renard [1922]
1910
Stravinski Pássaro de Fogo 1940 Satie Parade
1917
Stravinski Petrushka 1935 Falla Tricornio 1940
Debussy Martyre.de St Sebastien 1922 Stravinski Historia do Soldado
O Castelo do Barbazul L'Homme & son.Destin
1911 Bartok 1918 Milhaud
[1918] [1921]
Bartok Allegro Bárbaro 1932 Poulenc Rhapsodie Nègre 1935
Prokofiev Sarcasmos 1928 Satie Socrate
Mandarim Maravilhoso
Ravel Dapnnis & Chloé 1939 1919 Bartok
1912 [1926]
Schoenberg Pierrot Lunaire Milhaud Boeuf sur le Toit
* e/ou compsição.

Nota: 1) as datas indicadas nas colunas “1,a” e “1,b” referem-se às primeiras audições mundiais; nos casos em
que estejam apostas datas entre colchetes, as colunas “1,a” e “1,b” referem-se à data de composição. (compilados
a partir de Candé [1970] e Marengo [1983]).
2) as datas indicadas nas colunas “4,a” e “4,b” referem-se às primeiras audições brasileiras (compilados a
partir Brito Chaves [1971] e BN-RJ [Departamento de Música: programas de concertos do Teatro Municipal e
Teatro Lírico]).

TABELA 2 – Obras orquestrais modernas: 1a Audição no Rio de Janeiro

Datas Autores Obras Regente

1908 Debussy Prélude à L'Après-Midi d'un Faune Braga/ Nepomuceno


Debussy L' Enfant Prodigue (extr.) Braga/ Nepomuceno
P. Dukas L'Apprenti Sorcier Braga/ Nepomuceno
1910 R. Strauss Salomé G. Baroni
1913 Fl- Schmitt La Tragédie de Salo1mé P. Monteux
1914 Puccini Fanciulla del West E. Vitale
1915 R. Strauss O Cavaleiro da Rosa G. Marinuzzi
1917 P. Dukas Symphonie en Ut, Polyeucte A. Nepomuceno
V. D'Indy L'Etranger G. Marinuzzi
1918 Debussy Petite Suite F. Braga
Ravel Introduction & Allegro A. Nepomuceno
Milhaud 1a Sinfonia de Câmara A. Nepomuceno
1919 Ravel Ma Mère l'Oye G. Marinuzzi
Respighi Fontane di Roma G. Marinuzzi
Roussel Poème de la Forêt A. Nepomuceno
1920 Debussy Nocturnes (1, 2) R. Strauss
Debussy Pélleas et Mélisande E. Vitale

14
Morte & Transfansfiguração/
R. Strauss R. Strauss
Till Eulenspiegel
1921 Malipiero Le Pause del Silencio G. Marinuzzi
Casella Le Couvent sur l'Eau G. Marinuzzi
1922 Stravinski Fogos de Artifício F. Weingarten
Debussy Martyre de St. Sebastien F. Weingarten
1923 R. Strauss Zaratustra/ Heidenleb. R. Strauss
R. Strauss Electra R. Strauss
M.de Falla La Vida Breve V. Belleza
1926 Ravel L'Heure Espagnole E.Vitale
1927 Respighi Pinheiros de Roma/ C. Mixolídio O. Respighi
1928 Respighi Impressione Brasiliane O. Respighi
1929 Honegger Pacific 231 F. Braga
1930 Honegger Pastorale d' Été F. Braga
1931 Debussy La Mer, Iberia [ Images p. orq.] F. Braga
M.de Falla El Amor Brujo W. Burle-Marx
Ravel Bolero W. Burle-Marx
1932 Ravel Concerto em Sol W. Burle-Marx
1933 Fl- Schmitt Psaume XLVII H. Villa-Lobos
Stravinski Chant du rossignol H. Villa-Lobos
Gershwin Rhapsody in Blue H. Villa-Lobos
1935 Poulenc Rhapsodie Nègre H. Villa-Lobos
Hindemith Divertimento H. Villa-Lobos
Stravinski Petrushka H. Villa-Lobos
1936 Casella Itália H. Villa-Lobos
Stravinski Persephone I. Stravinski
Stravinski Concerto para Piano e Sopros I. Stravinski
1939 Ravel Daphnis et Chloé J. Morel
1940 Stravinski Pássaro de Fogo L. Stokovski
Fontes: BRITO CHAVES, A. Corrêa, BN-RJ

1.2 – MODERNISMO MUSICAL FRANCÊS

Pode-se considerar que um dos pontos de partida mais fecundos da música

do século XX foi o período da música francesa que, gravitando em torno de Pélleas et

Mélisande (1902), se situa entre L’Après Midi d’un Faune de Debussy e Parade27 (1917) de

Satie: a música desse período, que se convencionou denominar de “Impressionista”,

representou um corte radical em relação à tradição romântica do século XIX, e - não só do

27
O balé Parade, produzido por Diaguilev com argumento de Jean Cocteau e cenários de Pablo Picasso, é
comumente considerado como o ponto de partida do movimento (nacionalista) francês que levaria em 1921 à
formação do “Grupo dos Seis”, cuja estética havia sido definida no manifesto Le Coq et l’Arlequin de Jean
Cocteau. Neste, Cocteau propõe aos jovens compositores que se liberem de dois “polvos” sedutores: o
Impressionismo e a música russa, valorizando as características francesas de “clareza” e “senso de proporção”.

15
ponto de vista da linguagem como, sobretudo, da retórica musical - o primeiro momento de

forte abalo (ainda que não tão radical quanto se tornaria o Atonalismo vienense, às vésperas

da Primeira Guerra Mundial) do sistema tonal. O “Impressionismo” representa, portanto,

dentro do quadro proposto acima, um primeiro momento do Modernismo musical europeu,

em sua vertente francesa.

A figura de Debussy domina esse período sob mais de um aspecto. Quanto

à linguagem musical28 , devem ser mencionadas:

a) a incorporação ao vocabulário harmônico de uma vasta gama de novos

acordes e agregados até então tidos como “dissonantes” (acordes de 7a, 9a,

11a e 13a; acordes por superposição de 4as);

b) a utilização “autônoma” dos acordes (tanto consonantes quanto

“dissonantes”) descontextualizados das funções harmônicas que

desempenhavam na sintaxe tradicional e, portanto, desvinculados de

quaisquer necessidades de preparação e resolução, sendo um exemplo a

utilização sistemática de acordes paralelos (os quais, por construção,

representam uma “transgressão” à tradicional regra de “proibição” das 5as

paralelas);

c) em contraste com o cromatismo exacerbado do romantismo tardio, o

desenvolvimento de uma linguagem fortemente modal - distanciada dos

tradicionais modos Maior e Menor - através da incorporação dos antigos

28
Para uma discussão contemporânea da sintaxe da música de Debussy, ver Emmanuel (1926) e Koechlin
(1927).

16
modos litúrgicos, de modos pentatônicos “exóticos” e da utilização

sistemática da escala de tons-inteiros.

Quanto à postura estética, destacam-se: a atitude de contestação (quando

não de irreverência) diante do “academismo” oficial; o primado do ouvido frente às regras e

formas pré-estabelecidas; a valorização de “alteridades musicais”, seja do passado (o interesse

pelos pré-clássicos, pela música medieval e renascentista), seja extra-européias, vistas como

uma oportunidade de arejamento e renovação da linguagem musical.

A obra de Debussy e a profunda renovação que esta trouxe à linguagem

musical não podem ser dissociadas de seu entorno - notadamente das influências wagneriano/

franckistas por um lado e por outro dos nacionalistas russos do “Grupo dos Cinco” - nem

tampouco da produção de seus contemporâneos, em relação aos quais existiram diversas

influências recíprocas, devendo-se destacar particularmente entre esses: Erik Satie, Paul

Dukas, Maurice Ravel, Albert Roussel e o próprio Vincent D’Indy (1851-1931).

É comum na literatura29 datar-se a introdução da música de Debussy30, no

Brasil, a partir de alguns “choques externos”: as duas tournées dos Ballets Russes (em 1913 e

1917), a longa e fecunda estada do compositor Darius Milhaud (1917-18) e o triunfo do

29
Notadamente Peppercorn (1989), Wright (1992) e Tarasti (1995).
30
Devem ter contribuído para essa percepção os depoimentos de Villa-Lobos no que se refere à sua tomada de
contato tardia com a obra de Debussy: a) na biografia resumida (“Casos e Fatos Importantes sobre H. Villa-
Lobos - uma biografia autêntica resumida”) que ditou (na 3ª pessoa) à revista Música Viva (Ano 1, ns 7/8 – pg.
13), em 1941: “[...] ouviu pela primeira vez obras de Debussy por intermédio de Arthur Rubinstein (seu afetuoso
amigo) e Darius Milhaud, pela qual muito se entusiasmou e procurou conhecê-la mais profundamente, sem, no
entanto, nada ter influído na maneira de compor, porém com alguns processos originais e curiosos de
combinações de harmonia e timbre debussianos [...]”; no longo estudo de Suzanne Demarquez sobre Villa-
Lobos, publicado na Revue Musicale (1929: 5 e 6), lê-se que à época da composição das Historietas (1920) para
canto e piano: “[...] Villa-Lobos ne connaissait de lui que la Sonate pour flute/alto et harpe, et quelques melodies
du répertoire de Mme Janacopoulos [...] la gamme par tons entiers, fort employé alors par le compositeur
provient des études qu ´il a faites de l´ accord du IIIeme degré de la gamme mineure [...]”; c) segundo Vasco
Mariz (1962: 37): “[...] c’est au cours de son voyage à Bahia qu´il entendit pour la premiere fois une oeuvre

17
jovem Arthur Rubinstein com a dezena de recitais que realizou em junho de 1918, quando

tocou uma grande parte da obra pianística de Debussy e Ravel.

Será discutido ao longo do presente texto que a interação com a música

moderna francesa vinha se dando, no Brasil, há mais de dez anos antes da ocorrência desses

“choques externos” (certamente estimulantes, porém eles próprios resultantes de uma

demanda pré-existente), pela adoção por intérpretes brasileiros de parte desse novo repertório

e pela crescente incorporação à linguagem de alguns compositores - não só da geração de

Villa-Lobos quanto da anterior - de características que são comumente associadas à música

moderna francesa.

De que essa música estava bem assimilada no período imediatamente

posterior à Primeira Guerra Mundial se depreende da conhecida resenha feita, em 1920, por

Milhaud na Revue Musicale sobre a “a situação da música no Brasil” [Milhaud, 1920: 60-61],

na qual destacava o grau elevado de atualização do establishment musical brasileiro em

relação à música francesa moderna:

O papel da França na cultura musical do Brasil é absolutamente preponderante.


Graças aos compositores Alberto Nepomuceno e Henrique Oswaldo, que foram
ambos diretores do Conservatório do Rio de Janeiro, a Biblioteca desse
estabelecimento possui todas as partituras de orquestra de Debussy e de todo o
grupo da SMI ou da Schola, assim como todas as obras publicadas de Satie. Os
concertos sinfônicos do Rio têm permitido ouvir com freqüência obras de
Chausson, Debussy, Dukas, D’Indy, Roussel. 31

d´un compositeur appelé Debussy. Il eut une impression favorable mais n´y attacha pas d´importance
particuliere; Rubinstein, quelques années plus tard devait se charger de la faire connaitre”.
31
“[...] Le rôle de la France dans la culture musicale au Bresil est tout à fait préponderant. Grâce aux
compositeurs Alberto Nepomuceno et Henrique Oswald, qui ont tous deux été directeurs du Conservatoire de
Rio de Janeiro, la bibliothèque de cet établissement possède toutes les partitions d´orchestre de Debussy et de
tout le groupe de la SMI ou de la Schola, ainsi que toutes les oeuvres publiées de M. Satie. Les concerts

18
1.3 – UMA PREPARAÇÃO PARA O MODERNISMO: A INFLUÊNCIA PÓS-WAGNERIANA

1.3.1 – Influência do pós-wagnerianismo francês: César Franck, Vincent D’Indy e

Glauco Velásquez

No mesmo artigo na Revue Musicale, Milhaud observava que:

A curva traçada pela evolução da música na Franca, desde Wagner, se reproduz


exatamente na outra extremidade da Terra. Cada movimento, cada tendência
encontra um eco no hemisfério austral. Enquanto o Sr. Vincent D’Indy e a Schola
servem de modelo aos compositores argentinos e chilenos, no Brasil a orientação é
nitidamente debussista e impressionista. 32

A menção a D’Indy e à “Schola Cantorum” é de particular relevância, em

relação ao Brasil (ainda que ele sinalize, em 1920, a maior proximidade dos compositores

brasileiros do Impressionismo relativamente a seus congêneres argentinos e chilenos): Villa-

Lobos afirmou diversas vezes a importância, para sua formação33, do estudo do seu Cours de

Composition Musicale (então recém-lançado34, e ao qual teve acesso através de Godofredo

Leão-Veloso (Nóbrega, 1969: 14)). Além disso, as primeiras obras importantes de Villa-

Lobos, compostas entre 1912 e 1915 - entre as quais se destacam os Trios 1 e 2 com piano, as

Sonata para Piano e Violino 1 e 2, a 2ª Sonata para Piano e Violoncelo, os dois primeiros

Quartetos de Cordas e a Suíte para Instrumentos de Cordas - mostram a marca do

symphoniques de Rio ont fait entendre frequemment des oeuvres de Chausson, Debussy, de MM Dukas, D´Indy,
Roussel etc.[...]” [Milhaud, 1920].
32
Milhaud (in Drake, 1982: 97): “[...] La courbe tracée par l´évolution de la musique em France depuis Wagner
se reproduit exactement de l´autre côté de la Terre. Chaque mouvement, chaque tendance trouvent un écho dans
l´hemisphere austral: M Vincent D´Indy et la Schola servent de modèle aux compositeures argentins et chiliens,
tandis qu´au Bresil l´orientation est nettement debussyste et impressioniste”. [Milhaud, 1920].
33
Na “biografia autêntica e resumida” de Villa-Lobos (Música Viva, 1941) consta entre os eventos mais
importantes do ano de 1914: “[...] Aprofundou-se com extremo interesse no tratado de composição de Vincent
D’Indy [...]”. Segundo seu biógrafo Vasco Mariz: “Calou-lhe mais fundo, porém, a leitura cuidadosa do Cours
de Composition Musical’ de Vincent D’Indy. O método de composição desse autor francês deixaria traços
sensíveis na obra de Villa-Lobos. As duas primeiras Sinfonias, a 2ª Sonata para cello, os Trios, salvo o primeiro,
subordinaram-se a essa influência cíclica.”. [Mariz, 1989: 45]. É revelador da durabilidade da admiração de
Villa-Lobos por D’Indy o seguinte relato de Mariz (1967: 65) que pode ser situado em princípios de 1924:
“Villa-Lobos teve, em Paris, a oportunidade de conhecer um dos compositores que mais admirou: Vincent
D’Indy. Seis meses após a sua chegada, procurou o mestre francês, sendo felicitado pelo novo material estético
que trazia à música francesa. O autor de Istar examinou-lhe a obra atentamente e aconselhou-o a fazer algumas
modificações na terceira e quarta Sinfonias”. [Mariz, 1989: 65-66].

19
cromatismo franckista. Entretanto, mesmo em obras posteriores escritas entre 1916 e 1919

(esse período será discutido com mais detalhe no Capítulo VI), utilizando uma linguagem

harmônica francamente “moderna”35, a influência de D’Indy/Franck se manifesta não mais

nos processos harmônicos, mas na manutenção do conceito da “Forma Cíclica”: são exemplos

as quatro primeiras sinfonias (1916 a 1919), o 3º Trio com piano (1918), e mesmo o muito

impressionista Quatuor (1921) para flauta, saxofone, harpa e celesta36 (com adição de vozes

femininas).

D’Indy foi o principal expoente e divulgador da escola de César Franck

(1822-1890), o qual havia dado origem, na França, a uma escola pós-wagneriana sui generis

mais orientada para a “música pura” que para o “drama musical” (donde o forte peso da

música de câmara na sua produção e na de seus discípulos37), que aliava uma linguagem

harmônica que incorporava todas as ousadias do (ultra-) cromatismo a uma revitalização de

formas e do contraponto bachianos (ex. Prelúdio, Coral e Fuga para piano). Buscava conferir

uma unidade/organicidade composicional, através da “Forma Cíclica” (cuja ascendência,

Franck e D’Indy buscavam nas últimas Sonatas para piano e Quartetos de Cordas de

Beethoven).

A influência wagneriana no Brasil se manifestaria através da obra e ensino

de compositores (e professores do Instituto Nacional de Música) como Carlos de Mesquita

34
Os dois primeiros volumes haviam sido publicados (ed. Durand) em 1909 e 1912.
35
Ver a análise que Oscar Lorenzo Fernandez (1946) faz do Trio n. III (1918), uma das obras de Villa-Lobos que
mais uso faz da politonalidade.
36
Cuja distribuição instrumental (Soprano, Harpa, Harmônio e Celesta) evoca a de Herzgewasche de
Schoenberg, publicada em 1912, no Almanaque do Blaue Reiter [ver Kandinsky & Marc, 1974: 226-233].
37
Vincent D’Indy - cuja obra de câmara e sinfônica é vasta - daria maior relevo que Franck ao “Drama Musical”
(ex. suas óperas L´Etranger e Fervaal) sem, no entanto, transformá-lo como nos casos de Wagner, Strauss e,
posteriormente, Engelbert Humperdinck e Hans Pfitzner, no foco principal de sua atividade composicional.

20
(1864-1953)38, Francisco Braga (1868-1945) e Leopoldo Miguez (1850-1902) e mesmo de

Alberto Nepomuceno (1864-1920)39, e preparou um terreno favorável, dentro do ambiente

então predominante de francofilia, à receptividade da escola franckista.

O ápice dessa influência no Brasil se encontra na obra de Glauco

Velásquez (1884-1914): entre 1908 e 1912, compõe os 4 Trios com piano, um Quarteto de

Cordas para piano e violoncelo, 2 Sonatas e 2 Fantasias, 2 Sonatas para piano e violino, uma

vasta obra para canto e piano e, sobretudo, o 1º ato da ópera inacabada Soeur Beatrice. Em

algumas obras, o cromatismo conduz a um efeito de “suspensão da tonalidade” próximo ao

que resultava nas obras (ainda tonais) de Arnold Schoenberg, escritas no período

compreendido entre Verklachte Nacht (1899) e a Kammersymphonie op.9 (1906). Quanto ao

2º ato (inacabado) de Soeur Beatrice - do qual foi publicada uma cena (o Cantique de

Beatrice) - Luciano Gallet (1934:19) avalia que Velásquez “chegou às raias do modernismo

cuja existência em Franca ele apenas conheceu”.

O impacto de Velásquez sobre seus contemporâneos, tanto da geração de

seus mestres40 quanto da sua41, não pode ser subestimado: ele representava a principal

esperança de professores (Frederico Nascimento (1852-1924)), intérpretes (Paulina

38
Segundo a Enciclopédia da Música Brasileira: “Em 1877, matriculou-se no Conservatório de Paris, nas
classes de [piano com Marmontel; harmonia com Durand; composição, contraponto e fuga com Massenet] e
órgão com César Franck. Classificou-se em primeiro lugar em todos os cursos. Foi também organista auxiliar da
Igreja de Santa Clotilde de Paris, substituindo muitas vezes seu mestre César Franck [...] No Rio de Janeiro
passou a ocupar a cadeira de harmonia e contraponto no Conservatório de Música, onde foi professor de
Francisco Braga. Em 1887, criou a “Sociedade de Concertos Populares”. Responsável pela primeira audição de
concertos sinfônicos públicos, organizada no Rio de Janeiro [...] Autor de quase 300 obras [...]”. [Marcondes,
1977: 475].
39
Apesar de constituir uma experiência isolada em sua obra, a ópera em um ato Artemis (1898) revela uma
perfeita assimilação do cromatismo de Tristão e Isolda.
40
Luiz Heitor [1956: 240]: “[...] Os grandes mestres de então, Oswald, Nepomuceno, alguns havendo sido seus
professores, como Nascimento e Braga, todos têm os olhos voltados para o jovem compositor, estimulando-o e
formando um círculo que depois se amplia com outros fiéis amigos, intérpretes e admiradores [...]”.
41
Em carta datada de 14/09/1924, Gallet declara a Mario de Andrade: “[...] até 1918 estudei muito Glauco [...]
Da convivência com sua música ganhei uma percepção intensa para todas as outras músicas [...]” [Gallet, 1934:

21
d´Ambrosio), críticos (José Rodrigues Barboza42 (1857-1939)) e compositores (Oswald,

Nepomuceno, Braga) que posteriormente reportariam essa mesma expectativa sobre Villa-

Lobos. E é do padrão velasquiano - de obras de câmara tensamente elaboradas dentro dos

padrões da forma cíclica (implicando em desenvolvimentos baseados num forte trabalho

motívico/temático) e do acentuado cromatismo de Franck e D’Indy - que mais se aproximam

as primeiras obras de Luciano Gallet e Villa-Lobos.

Outros aspectos sintomáticos do efeito de “modernidade” que a obra de

Velásquez produzia em seu tempo foram:

a) A atuação da “Sociedade Glauco Velásquez” através de concertos e

edição de obras do compositor, particularmente entre 1915 e 191843, que

contou com a participação “militante” de Luciano Gallet e Darius Milhaud

(que restaurou o seu Trio n. IV (1913-14)44, do qual realizou a primeira

audição);

14]. José Miguel Wisnik observou a respeito de Velásquez: “[...] um compositor estranho, enigmático, que
marcou profundamente seus contemporâneos, entrando depois na sombra [...]”. [Wisnik, 1977: 52].
42
Já em 1908, por ocasião das três apresentações do Prelude à l’Après-Midi d’ un Faune por Nepomuceno e
Francisco Braga, Rodrigues Barbosa aparecia como um defensor das novas tendências escrevendo no Jornal do
Commércio: [...] O Prelúdio para a Tarde de um Fauno, de C. Debussy, é um trecho de rara sutileza e de rara
originalidade de concepção. É música em moldes inteiramente novos na técnica e na finíssima trama sinfônica.
As melodias se entrelaçam umas às outras [...] e todas aquelas idéias que se fundem sem se confundirem dão um
conjunto sinfônico em que se percebe uma forma nova de arte, que impressiona por sua beleza esquisita,
conquanto não inteiramente compreendida em toda a sua essência numa primeira audição [...]”. Após a segunda
audição, escreveria: “[...] o segundo concerto teve todas as condições favoráveis para um belo triunfo que
conquistou ontem, tornando-se um acontecimento artístico de primeira ordem [...] O Prelúdio para a Tarde de
um Fauno teve uma realização delicadíssima, que revelou mais uma vez a beleza daquela magistral página
sinfônica [...]”. Ver o artigo de Ayres de Andrade (1962: 17-21), no qual é também reproduzida uma pequena
crônica de Roberto Gomes, crítico musical do jornal Gazeta de Notícias, sugestivamente intitulada: A Música na
Exposição. Impressões Debussianas. Pequena Fantasia para o Teatro Nacional.
43
Ver Luiz Heitor (1956: 246) e Neves & Ribas Carneiro (2002: 111-115) para uma descrição da “Sociedade
Glauco Velásquez”.
44
O catálogo (manuscrito) das obras de Velásquez, realizado por Gallet, indica que Milhaud “descobriu” o Trio
em Paquetá e que o restaurou sob a supervisão de Francisco Braga (o rascunho de Velásquez, a restauração de
Milhaud assim como o catálogo manuscrito de Gallet encontram-se na Biblioteca Alberto Nepomuceno, ENM-
UFRJ).

22
b) O fato de Glauco Velásquez ser o principal “alvo” de Mário de

Andrade, tanto no Ensaio quanto na sua correspondência com Gallet,

apontado como o modelo a não ser seguido45 pela nova geração de

compositores brasileiros, menos pelo pathos romântico que pela total

ausência de preocupação com um projeto de música nacional.

A influência de D’Indy e da escola franckista se dá, portanto, tanto de

forma direta (através da sua música), quanto de forma indireta pelo impacto da trajetória de

Velásquez.

1.3.2 – D’Indy e a “Schola Cantorum”, uma ponte para a “Revolução Debussista”

É comum a associação do nome de D’Indy e da escola que formou - a

“Schola Cantorum” - a um forte conservadorismo musical: de fato, à época do surgimento do

“Grupo dos Seis” (1920) - em que triunfava a música de Igor Stravinski e era apresentado

pela primeira vez na França o Pierrot Lunaire46 - sua música e orientação estética se

encontravam num pólo oposto: naquele momento, a posição de D’Indy era provavelmente

equivalente - no plano musical - à de Anatole France (1844-1924), que após ter representado

uma “vanguarda” da literatura francesa, entre o final do séc. XIX e o início do séc. XX, seria,

nos anos 1920, objeto de um “enterro simbólico” por parte dos Surrealistas47.

45
Como, por exemplo, na Pequena História da Música (Andrade, 1929: 162), essa sentença sobre Glauco: “[...]
uma experiência inquieta, dolorosamente precária, com lampejos de gênio num resultado quase ineficaz: um
enigma verdadeiro [...]”; ou na sua contrariedade com a influência de Glauco sobre Gallet (1934: 12): “[...] a
influência de Glauco surge, sobretudo, em certas obras criadas em pleno delírio de interpretação de acorde, de
um cromatismo bastante maníaco, que Luciano Gallet não abandonará jamais [...]”.
46
O Pierrot Lunaire, composto em 1912, só veio a ter sua primeira audição francesa em 1921, sob a regência de
Darius Milhaud.
47
Uma semana após a morte de France, em outubro de 1924, ele foi alvo de um panfleto coletivo dos
Surrealistas, intitulado “Un Cadavre”, com textos (entre outros) de Breton, Eluard, Aragon e Souppault.

23
D’Indy não somente acolheu com entusiasmo L´Après-Midi d´un Faune

desde a sua estréia, como também regeu essa e outras obras de Debussy (ex. os Nocturnes e a

cantata La Demoiselle Elue)48; por seu lado, Debussy sempre reconheceu a influência de

Franck49 e D´Indy , como uma ponte decisiva entre a fase juvenil de entusiasmo wagneriano e

a da formação do seu próprio estilo (a partir do seu Quarteto de Cordas50), sendo que a obra

que mais evidencia essa influência é a Fantasia para piano e orquestra51. Por outro lado,

certas “inovações” associadas à “revolução debussista”, como a sucessão paralela de acordes

de 7ª e 9ª, o espaço recuperado pelo modalismo sobre a exclusividade dos modos maior e

menor – inclusive, com a utilização da escala de tons inteiros52 - e uma rítmica inspirada no

folclore e na tradição do Canto Gregoriano.

Quanto à “Schola Cantorum”, deve ser observado seu papel “progressista”

por ocasião de sua fundação (1894): fundada como “escola livre” em contraposição à rigidez

48
Paul Le Flem em suas “Reminiscências debussistas” [1962: 7-8] lista Vincent D’Indy entre os primeiros
defensores da música de Debussy. Ele relata: “A essas lembranças longínqüas, junto à de Vincent D’Indy,
tocando ao paino e comentando, em um de seus cursos de composição, Pélleas et Mélisande. D’Indy,
certamente, não pertencia ao eixo estético de Debussy. Formado dentro de uma forte educação clássica. Ele
buscava o traço firme, os contornos menos fugidios. Mas ele era capaz de se abstrair de suas próprias concepções
e de admirar as páginas penetradas de sinceridade expressiva, de onde fosse que ela viesse, e particularmente a
de seu jovem colega. D’Indy era sensível à força do patetismo de Pélleas, a uma arte a qual ele apreciava por
permancer profundamente francesa. No decorrer de suas tournées no estrangeiro, ele regeu diversas vezes a
música de Debussy. E mesmo, em Roma, após uma execução dos Nocturnes, recompensada por copiosas vaias,
ele não deixou esta acolhida sem resposta, e obrigou seus retratores a se submeterem a uma segunda execução.”
(T. do A.)
49
Mário de Andrade escreveria, em 1943 (Coli, 1998: 39): “[...] César Franck fora um libertador técnico genial,
e o autor de La Mer já recebia uma linguagem muito mais livre de harmonia lógica, usando concatenações que
eram sofismas puros”.
50
Segundo Jean Barraqué (1967: 82-3): “[...] parmi les oeuvres de jeunesse, le Quatuor est la seule qui puisse
retenir l´attention autrement que d´un point de vue historique [...] Composée des quatre mouvements
traditionnels [...] un thème cyclique [...] circule sous differents aspects à travers toute l´oeuvre [...] dans le
troisième mouvement, en particulier, la belle phrase du début évoque ,para sa longueur, certaines tournures
franckistes (de même que la courbe mélodique du deuxième thème de ce mouvement) [...]”.
51
Debussy retirou essa obra do repertório por considerar que apresentava uma influência demasiado marcada de
D’Indy. Ver Barraqué (1967: 64): “[...] Bien que la partition fut gravée, il s´opposa toute sa vie à la parution et
á l´execution de la Fantaisie [...] Dès les premieres repetitions, Debussy s´etait rendu compte que [...] l´oeuvre se
ressentait trop des habitudes franckistes:travail symphonique du developpement,tecnique thematique classique
[...]. Et puis Debussy n´y decelait-il pas comme um echo de la Symphonie Montagnarde de D´Indy?”.
52
A ópera L´Etranger, apresentada no Rio de Janeiro em 1913 (ver Brito Chaves, 1971), incorporava, por
exemplo, muitas dessas características. D’Indy faz parte do movimento que – na descrição de José Miguel
Wisnik (1986: 36) - leva a música do século XX a inserir “[...] cada vez mais elementos perturbadores do código
tonal [...]”.

24
do Conservatório. Ela dava uma ênfase nova ao repertório da recém-redescoberta música

medieval e renascentista (desde o canto gregoriano53 até a polifonia do período

palestriniano54) e à valorização dos folclores regionais franceses (basco, bretão, borgonhês,

normando, etc.), desembocando numa especial receptividade a novas linguagens explorando o

modalismo e novas soluções rítmicas. Se por um lado, alguns alunos da “Schola” persistiram

numa linguagem pós-wagneriana de Franck e D´Indy desenvolvida dentro dos cânones da

forma cíclica, outros estiveram fundamentalmente ligados ao Modernismo: Albert Roussel,

Erik Satie e os amigos de Villa-Lobos: Edgard Varèse (1883-1965) e Paul Le Flem.(1881-

1984). É reveladora da percepção no Brasil da música de Vincent D’Indy, como associada a

rupturas modernistas, o seguinte comentário do jornal Correio da Manhã (16/IV/1914) sobre

uma obra de Nininha Guerra: “A teoria debussiana, o catecismo de Vincent D’Indy, com

todas as audácias harmônicas que vão minando o vetusto edifício [...] abriram brecha no

espírito da compositora.”.

Se de fato a música de D’Indy deixara de ser “vanguarda” no decênio que

precedeu a Primeira Guerra Mundial - frente a Debussy e Ravel, ao politonalismo e à rítmica

dos balés de Stravinski e ao atonalismo livre da Escola de Viena - ela apresentava importantes

pontos de tangência com algumas linhas de força que caracterizariam o modernismo musical,

tal como chegou ao Brasil, na primeira metade do século XX:

53
O nome “Schola Cantorum” é uma homenagem ao colegiado homônimo instituído pelo papa Gregório Magno,
no séc. VI, incumbido de reformar e consolidar as diversas práticas musicais vinculadas à liturgia, num corpus
único (o Antiphonarium), dando origem à expressão “canto gregoriano” para denominar essa reforma.
54
A grande referência foi o músico Charles Bordes (1863-1909), um entusiasta do folclore basco, e que colocou
no repertório europeu através do célebre conjunto coral “Chanteurs de Saint Gervais”, que fundou uma grande
quantidade de obras corais do período medieval e renascentista, ressuscitando obras de mestres da polifonia
como Josquin des Pres, Orlando di Lasso , Victoria e Palestrina - autores que Villa-Lobos posteriormente tanto
valorizaria, publicando-os nos anos 1930, na “Coleção Escolar” do SEMA, no repertório do “Orfeão de
Professores”.

25
a) O abalo da hegemonia dos modos maior e menor, frente a um modalismo

variado oriundo tanto da revitalização dos antigos modos litúrgicos, quanto

daqueles hauridos em fontes folclóricas;

b) Na rítmica: uma rejeição da “ditadura da barra de compasso”,

alimentando-se por um lado em trabalhos como o de Maurice Emmanuel

(1862-1938), sobre as rítmicas grega e gregoriana55, e por outro na

“polirritmia” intrínseca ao movimento independente das vozes na polifonia

medieval e renascentista. D’Indy se insurge mais de uma vez, em seu Cours

de Composition, contra o predomínio da “quadratura” rítmica na música

européia a partir do séc. XVIII, que considera um “empobrecimento” tanto

em relação às músicas pré-clássicas quanto às tradições folclóricas;

c) A valorização do “folclore”: Vincent D’Indy foi um forte incentivador de

pesquisas dos diversos folclores regionais franceses. Alguns alunos da

“Schola Cantorum” se notabilizaram nesse campo56, sendo que, no início de

sua carreira, o próprio Edgard Varèse compôs uma sinfonia intitulada

Bourguogne (1910). Quanto a Vincent D’Indy, sua coleta de cantos

folclóricos da região do Vivarais57 (que se tornaria um modelo de pesquisa e

de harmonização de cantos populares) e sua Sinfonia sobre um Tema

Montanhês (1886) são exemplos claros da importância que atribuía ao

55
O caráter aditivo das rítmicas gregas e do canto gregoriano, oposto ao caráter sub-divisivo da rítmica clássica e
romântica, “justificava” os processos de polimetria, inspirados nos folclores leste-europeus, de cuja utilização
Stravinski e Bartok seriam os principais representantes. Ver Emmanuel (1951: 108-133 e 226-273).
56
Entre os que se dedicaram aos diversos folclores regionais franceses: Deodat de Severac (1873-1921) para o
Languedoc; Raoul Laparra (1876-1943.) e Charles Bordes para o país basco; Joseph Canteloube (1879-1957)
para a Auvergne.
57
Com o título Chansons Populaires du Vivarais (1887).

26
folclore, como fonte de renovação da linguagem musical e garantia de

enraizamento de uma “música nacional”58;

d) A introdução de uma nova perspectiva histórica: se por um lado D’Indy é

herdeiro da visão teleológica Lizst-Wagneriana contida na fórmula “música

do futuro”, com uma crença em vetores evolutivos (de “organismos” mais

simples para os “modernos” mais complexos: ex. a sinfonia romântica

originando-se historicamente no moteto medieval), por outro, a perspectiva

histórica que adotou em seus cursos na “Schola Cantorum” (posteriormente

transcritos em seu Cours de Composition Musicale) - indo do canto

gregoriano a Claude Debussy - representava um enorme alargamento de

horizontes para os jovens compositores. Ao valorizar formas do passado

como o Moteto medieval, o Madrigal renascentista, a Suíte barroca etc.,

conferindo-lhes uma importância comparável à das formas (então) modernas;

ao resgatar formas de escrita como o contraponto medieval ou a fuga

bachiana tão distantes da “fuga de escola”; e o antigo modalismo litúrgico,

com sua liberdade métrica, o ensinamento da “Schola Cantorum” induzia a

compreender a linguagem musical e os conceitos formais que triunfaram nos

séculos XVIII e XIX como eventos historicamente determinados, cuja

universalidade no tempo e no espaço deveria ser relativizada, já que uma

música de estatura comparável (pensando-se em mestres do Renascimento

58
A derrota e ocupação da França pela Prússia em 1870 exacerbaram diversas correntes de opinião
“nacionalistas”, quando não revanchistas. No plano musical, esboçaram-se vários movimentos de reação à
música alemã difíceis de compatibilizar com a profunda influência wagneriana. O lema da “Société Nationale”,
fundada em 1872 por compositores como Saint-Saens, Duparc, Fauré e D’Indy era o de “Ars Gallica”,
propondo-se à realização de concertos regulares de música nova (exclusivamente) de compositores franceses
(Ver Duchesnau, 1977). O cosmopolitismo parisiense das duas primeiras décadas do século XX, marcado pela
influência russa e, sobretudo, a de Stravinski, daria lugar a reações de caráter nacionalista (ex. nos anos da
Primeira Guerra Mundial, Debussy passa a assinar “Claude de France”; Saint-Saens lidera um movimento

27
como Josquin des Prés, Orlando di Lasso, e Palestrina, ou do início do

Barroco como Claudio Monteverdi e Heinrich Schutz) havia sido produzida a

partir de outros pressupostos;

e) o Cromatismo da escola de César Franck e D’Indy, que se inseria em

prolongamento direto às inovações harmônicas herdadas de Liszt (1811-

1886) e Wagner (1813-1883)59, estava - pelo freqüente efeito de suspensão

(dissolução) da tonalidade - próximo de várias tendências “avançadas”, que

se manifestavam em alguns pontos da Europa, no limiar do séc. XX. O

entorno de 1900 constitui um momento de rara convergência, entre linhas de

força que, no seu desenvolvimento posterior, assumiriam direções muito

distintas: o efeito de suspensão da tonalidade na Chanson d’Ève de Gabriel

Fauré (1845-1924) e D´un Vieux Jardin de sua discípula Lili Boulanger

(1893-1918) encontra pontos de tangência na obra do russo Scriabine (1872-

1915), do polonês Szymanovski (1882-1937); e na Áustria: na 10ª Sinfonia

de Mahler (1860-1911), na Sonata op.1 do jovem Alban Berg (1885-1935) e,

sobretudo, nos opus 8 e 9 de Arnold Schoenberg - obras no limiar do

atonalismo livre - que este inauguraria com as 3 peças para piano op.11.

1.3.3 – O Atonalismo, um caminho não trilhado

chauvinista de proibição de execução em concertos de música alemã), que desembocariam no manifesto Le Coq
et l´Arlequin de Cocteau e na formação subseqüente do “Grupo dos Seis”.
59
Milhaud, na linha anti-germânica do “Grupo dos Seis”, alegaria – em tom jocoso - que Franck (nascido na
Bélgica) não era um “músico francês”, referindo-se a ele como “o grande compositor flamengo”, ou ainda (em
1924, no texto “Hommage á Gabriel Fauré” ): “[...] L´influence de Cesar Franck, ce grand musicien belge (sic)
a determiné un courant de serieux á tout prix [...] dont les oeuvres, à l´exception de quelque-unes dues à Mr.
d´Indy, ont aidé á transformer la musique em une “serre d´ennui”. [Milhaud, 1982: 114].

28
Portanto, se uma das vertentes do cromatismo pós-wagneriano dirigiu-se

para o que se tornaria o Expressionismo germânico - numa trajetória que, partindo das

primeiras óperas de Richard Strauss, culmina nas soluções radicais adotadas pela Escola de

Viena (o atonalismo livre às vésperas da Primeira Guerra Mundial e, a partir de 1923, o

serialismo dodecafônico) - uma outra vertente (tendo como ponte a escola Franck/D’Indy)

desembocou no Impressionismo francês60.

No Brasil, o cromatismo exacerbado da obra de câmara de Velásquez

(tendo como modelos Franck e D’Indy) - que seria emulado nas obras de juventude de dois

dos principais expoentes do modernismo musical brasileiro: Villa-Lobos e Gallet - estavam,

portanto, em sintonia61 (com “atraso” de poucos anos) com esse momento da música do início

do século XX62, no qual estavam sendo testados os limites da tonalidade, e relativizados os

dogmas que se haviam cristalizado ao longo do séc. XIX63. Potencialmente, o pós-

wagnerismo brasileiro (Miguez, Francisco Braga, Nepomuceno de Artemis e, sobretudo,

60
Sobre a percepção contemporânea da importância de Franck no advento do Impressionismo, Leon Vallas
(1958:238) cita o crítico Jean Marnold, num artigo de 1902: “[...] Sans Schubert, sans Lizst [...], Wagner,
Franck, Fauré et Vincent D’Indy, l’harmonie de Debussy eut été non seulement irréalisable, mais impen sable”;
Cocteau (1979: 78): “[...] L’Impressionisme est un contrecoup de Wagner [...] L’école impressioniste substitue le
soleil à la lumière et la sonorité au rythme”.
61
Um artigo de 1912 do crítico Rodrigues Barboza, a respeito de um concerto dedicado a Glauco Velásquez, é
revelador dessa percepção: “Não é isolado o fenômeno musical que se observa atualmente no Rio de Janeiro,
onde, entre os nossos mais reputados compositores - e os possuímos de grande valor - aparece o Sr. Glauco
Velásquez representando tendências absolutamente modernas, marcando uma diretriz inteiramente nova,
abandonando as condições consagradas do espírito romântico e clássico e abrindo caminhos novos para
estranhos ideais. O fato, porém, mais característico - como apologia da simultaneidade do fenômeno musical
em diversos pontos geográficos de intensa cultura intelectual - é o que se tem dado em Viena, onde Arnold
Schoenberg, cindindo profundamente o espírito musical em duas correntes, tornou-se o chefe do grupo
mais adiantado, em completa oposição ao tradicionalismo.” [Jornal do Comércio, 12/VII/1912, citado em
Bergold].
62
Bruno Kiefer observaria que: “A influência francesa em Villa-Lobos se deu a partir de duas raízes: a dos pós-
romantismo e a dos impressionistas.”. [Kiefer, 1986: 36].
63
(Neves & Ribas Carneiro, 2002: 51-53): a carta aberta a Rodrigues Barboza, datada de 1912, reflete essa nova
percepção quando Glauco relativiza historicamente a denominação “Sonata”, fazendo referência às “Sonatas”
para conjuntos de metais do compositor seiscentista veneziano Andréa Gabrieli. Por outro lado, nessa mesma
carta afirma: “[...] deixo demonstrado [...] o motivo que justifica nos meus trabalhos o abandono dos moldes
clássicos [...] a forma dos meus Trios’ e ‘Sonatas’ depende unicamente dos meios que acho mais naturais como
expressão [...]”.

29
Velásquez) continha, entre as suas virtualidades, a do desenvolvimento de uma linha

expressionista direcionada para o atonalismo:

a) A ópera Soeur Beatrice (com apenas o 1º ato completo) de Velásquez

deixa clara a influência straussiana64, enquanto o Cantique de Beatrice

(previsto para o 2º ato) contém agregados harmônicos que, como diria

Gallet (1934: 13), fazem pressentir a “politonia”65;

b) Em sua peça para piano Hieróglifo (1922)66, cujas tendências seriam tão

resolutamente desencorajadas por Mário de Andrade67, Gallet chegou

muito perto da atmosfera do op.11 de Schoenberg68;

c) A leitura do Harmonielehre de Schoenberg por um grupo “avançado” de

mestres e alunos do Instituto Nacional de Música (entre os quais Alberto

Nepomuceno, Frederico Nascimento e Oscar Lorenzo Fernandez)

incentivou Alberto Nepomuceno69 a iniciar a sua tradução (que ficaria

inconclusa) visando sua introdução no currículo da escola. Entretanto -

com a morte de Velásquez (1914) e Nepomuceno (1921) e a contradição

aparentemente inconciliável entre o atonalismo e o programa andradiano de

64
Entre 1908 (1ª audição da ópera Salomé no Rio) e as suas duas tournées Rio em1920 e 23, uma boa parte da
obra de Richard Strauss havia sido ouvida no Rio.
65
Gallet descreve a “naturalidade” da evolução de Velásquez em direção a um Modernismo extremamente
pessoal [Gallet, 1934:13]: “[...] o processo adiantado entre nós era o de Wagner. Ele partiu daí e ultrapassou. No
Trio IV atinge as raias do modernismo cuja existência em Franca ele apenas conheceu. Na sua última página, o
início do 2º Ato de Soeur Bestrice, ele aproxima-se da politonia de Stravinski. E tudo isso logicamente, uma
coisa atrás da outra”.
66
Em carta a Mario de Andrade (citada em Chagas, 1978), diria sobre Hieróglifo: “Há aí um pouco de
Schoenberg.”.
67
Carta de 14/09/1926, citada em Gallet (1934).
68
É curioso notar que Gallet concebeu um sistema próprio de “serialização” (ainda que não dodecafônico), que
denominou de “esboços temáticos” e que expôs em carta a Mário de Andrade, e analisado por Paulo César de
Amorim Chagas (1978: 172-175), que o descreve como: “[...] a tentativa de construção de um método próprio, a
que ele chama de “esboços”, onde encontramos o embrião de um pensamento serial, ainda que distante do
dodecafonismo de Schoenberg [...]”.

30
uma música nacional alicerçada no folclore (que triunfaria entre as décadas

de 1920 e 40), esses exemplos permaneceriam como fatos isolados, sem

maiores conseqüências na vida musical brasileira. Como escreveria Darius

Milhaud, em 1920:

[...] Em compensação [em contraste com a forte “atualização” do meio musical


carioca em relação à música francesa], a música austro-germânica é praticamente
desconhecida [no Brasil] e o movimento tão importante determinado pelo Sr.
Schoenberg permanece praticamente ignorado [...] 70.

1.4 – O MODERNISMO MUSICAL FRANCÊS: ABERTURA CULTURAL E COSMOPOLITISMO

O modernismo musical brasileiro seguiu, portanto, através do filtro da

escola franckista, uma vertente da tradição pós-wagneriana distinta daquela que desembocaria

na Escola de Viena: a do Impressionismo francês, na qual se fundiam as “aquisições”

germânicas de dissolução da tonalidade (através do cromatismo e as audácias harmônicas dele

resultante) com o melodismo francês - de Charles Gounod (1818-1893) e Jules Massenet

(1842-1912) - e uma abertura sem precedentes para influências de outras culturas musicais.

1.4.1 - A Influência Russa

Tanto Debussy quanto Ravel reconheciam sua grande dívida em relação à

nova música de concerto russa, notadamente a do “Grupo dos Cinco”, que se inspirava no

“experimentalismo” harmônico de Lizst71 e, sobretudo, no folclore russo com seu rico

69
Como bem observou, entretanto, José Miguel Wisnik (1977: 54): “Nepomuceno só deve ter concordado em
parte com a relativização da tonalidade nos termos em que a coloca Schoenberg [no] Tratado de Harmonia [...]”.
70
Milhaud: “[...] par contre, la musique contemporaine austro-allemande est presque inconnue lá-bas et le
mouvement si important determiné para Mr. Schoenberg est à peu pres ignorée”. [Milhaud, 1920: 60-61].
71
Bartok considerava Liszt um inovador mais importante que Wagner: “[...] l’étude renouvelée de Liszt [...] me
conduisit, en depit de quelques apparences exterieures qui me deplaisaient, jusqu’au fond des choses, je compris
enfin le véritable message de cet artiste. Pour l´ évolution future de la musique, la portée de ses oeuvres me
parut beaucoup plus considérable que celle, par exemple, des créations de Wagner et Strauss” (Szabolcsi, 1968:
143).

31
modalismo, cuja rítmica contrastava fortemente com a “quadratura” imperante na Europa

Ocidental. Leon Vallas ressalta a sua influência “salutar”, notadamente na “des-

wagnerizacão” (1958: 113) do meio musical francês.

Do ponto de vista harmônico, as influências mais fortes foram Mussorgski

(1839-1881)72 e Borodine (1833-1887) - cuja canção La Princesse Endormie (1868), por

exemplo, é inteiramente construída na escala de tons inteiros - enquanto, do ponto de vista da

técnica orquestral, a influência dominante seria a de Nikolai Rimski-Korsakov (1844-1908).

Por outro lado, a rítmica (polimetria, ritmos ímpares que Rimski-Korsakov tão

freqüentemente transpôs do folclore russo para suas óperas) e o modalismo do folclore eslavo

(para os quais Mili Balakirev (1837-1910), em suas coleções folclóricas, haviam encontrado

soluções harmônicas inovadoras), assim como a prosódia quase em recitativo que Mussorgski

adotaria em muitas das suas melodias (e que constituiria um dos antecedentes mais diretos da

prosódia de Pélleas et Mélisande), foram entusiasticamente assimiladas por compositores

franceses como Debussy73, Dukas, Ravel, Roussel.

O repertório do “Grupo dos Cinco” foi vigorosamente “defendido” na

programação sinfônica do Rio de Janeiro74, notadamente a partir de 1908, com os concertos

organizados por Alberto Nepomuceno por ocasião da comemoração do “Centenário da

Abertura dos Portos”. Segundo Luiz Heitor (1956: 234) “esses concertos constituem a

verdadeira iniciação do público brasileiro às produções da música moderna, ou que haviam

aberto o caminho para a música moderna”. De fato, Nepomuceno - dando continuidade à sua

72
Ex. o encadeamento em trítono da “Cena da Coroação” na ópera Boris Godunov.
73
Cocteau [1979: 57]: “[...] Debussy a devié [...] de l’embûche allemande, il est tombé dans le piège russe [...] il
transpose Claude Monet à la russe”.
74
A inclusão no repertório, por Nepomuceno e Braga de obras dos compositores russos - uma escola “nacional”
que surgia como uma alternativa ao wagnerismo, e que apresentavam tantos pontos de tangência com a de
Debussy quanto ao modalismo, à flexibilidade rítmica e ao brilho orquestral - contribuiu para “abrir o caminho”
a uma predisposição favorável ao debussismo.

32
iniciativa anterior dos “Concertos Populares”, que realizara em 1896, revelando numerosas

obras de Wagner (entre as quais o “Prelúdio e Morte de Isolda”, de Tristão e Isolda) -

realizou, juntamente com Francisco Braga, um verdadeiro “festival de música moderna”,

consistindo de uma quinzena de concertos e apresentando uma dezena de primeiras audições75

(Alvim Corrêa, 1985: 30), com grande foco nas modernas escolas russa (Rimski-Korsakow,

Borodin, Mussorgski, Balakirev, Glazunov, Rebikof) e francesa (Debussy e Dukas). Entre as

primeiras audições realizadas nesse festival, constam: Scheherazade, Sadko, Suíte do Galo de

Ouro e o Concerto para piano e orquestra de Rimski Korsakov; a Noite no Monte Calvo de

Mussorgski; as “Danças Polovitsianas” da ópera Príncipe Igor e Nas Estepes da Ásia Central

de Borodin76; A Floresta de Glazunov; a Árvore de Natal de Rebikof; L´Après–Midi d´un

Faune e trechos do L’Enfant Prodigue de Debussy; o Aprendiz de Feiticeiro de Dukas; todas

obras que Francisco Braga retomaria regularmente na programação da “Sociedade de

Concertos Sinfônicos” anteriormente às visitas dos Ballets Russes em 1913 e 1917 (muitas

vezes tida na literatura como um momento decisivo de introdução do repertório “moderno” no

Brasil)77. Se é acertada a insistência de Lisa Peppercorn quanto à influência “modernizadora”

no meio musical brasileiro dessa música russa (pré-stravinskiana) - da qual a primeira versão

do balé Uirapuru, o poema sinfônico Tédio da Alvorada, constitui um exemplo eloqüente (em

que pesem as influências straussianas, também visíveis) - em compensação, ela se equivoca

completamente78 quanto à precedência cronológica (Ballets Russes, em 1913, ao invés de

Nepomuceno e Braga a partir de 1908) e à direcionalidade (“atualização” provocada pela

75
A programação detalhada dos concertos do “Centenário da Abertura dos Portos” está exposta de forma muito
completa em Alvim Corrêa (1985: 36-37).
76
Esse repertório havia feito sensação na Exposição Internacional de Paris, em 1889, na qual Rimski-Korsakov
havia regido obras suas assim como de Borodine, Mussorgsky e Balakirev.
77
Peppercorn (1989), Wright (1992) e Tarasti (1995).
78
Lisa Peppercorn (1989: 31): “[…] a marked influence on Villa-Lobos´ musical development was the Russian
Ballet: minor compositions by Glazunov and Balakirev´s Overture on three Russian themes as well as with
Debussy´s Les Cloches and Mandoline since these works had been performed in Rio de Janeiro in 1911 and
1912 [...] It was different when they performed parts of Borodin´s Prince Igor, Rimski´ Scheherazade,
Balakirev´s Tamar and Debussy´s L ´Apres-Midi d´un Faune.”.

33
irrupção de fatores “exógenos”, como uma temporada dos Ballets Russes, e não como

resultante de uma dinâmica “endógena” do próprio meio musical brasileiro).

1.4.2 – Modernismo Francês: exotismo e abertura a outras culturas

O interesse pelo “exotismo” esteve presente na música européia bem antes

de Debussy fascinar-se pelos gamelãos79 balineses na Exposição Internacional de Paris, em

1889: os exemplos são numerosos desde as “Marchas turcas” de Mozart e Beethoven até a

ópera Carmen de Bizet (passando pelos temas russos utilizados por Beethoven nos Quartetos

Rasumovski80). No entanto, a partir da geração de Debussy81, desenvolve-se um interesse

intenso pelas manifestações musicais de culturas tanto da periferia da Europa (Espanha,

Rússia e regiões do leste europeu) quanto extra-européia. Nesse interesse, a busca do

pitoresco e da “cor local” cede o passo a uma percepção de que nessas culturas82 - onde

estavam conservados intuições e reflexos musicais “desaprendidos” no Ocidente desde a

Renascença - residia um forte potencial de renovação da linguagem musical83. Entre alguns

79
Barraqué (1967: 74-75): “[...] A l´Exposition Universelle de 1889, Debussy a la révelation d´une musique qui
échappe aux règles academiques européennes. Plus que les concerts de musique russe dirigés par Rimski, c´est
la musique des traditions extrème-orientales – javanaises et annamites surtout –qui l´impressione. La sonorité
des gamelangs le fascine [...]”.
80
A mesma démarche se reencontra, dez anos mais tarde, em composições do compositor austríaco Sigismund
Neukomm( 1778-1858), durante sua estada no Brasil no período 1816-1821, com a utilização de temas de
modinhas e lundús em peças como L´Amoureux para flauta e piano, e a fantasia para piano O Amor Brasileiro.
81
Barraqué (1967: 74): “[...] Debussy, s´il fut sans doute le premier musicien moderne que seduisirent les magies
de l´exotisme, ne s´est jamais abandonné à elles au point d´accomoder, d’'occidentaliser’ les sonorités
entendues à l’Exposition”.
82
A partir de 1913, sob o impulso de Charles Lavignac, o Conservatório de Paris publicou a monumental
Encyclopédie Universelle de la Musique, na qual estavam “consolidados” esses novos conhecimentos: listagem
exaustiva, acompanhada freqüentemente de profunda analise teórica, dos modos chineses, árabes, e dos modos
melódicos e rítmicos indianos; contém igualmente estudos aprofundados sobre os folclores das “periferias”
européias (Rússia, Espanha, Hungria, Romênia), assim como das músicas medieval, renascentista e barroca
européias.
83
Barraqué (1976: 75) cita uma observação de Debussy, em 1913, reveladora dessa nova atitude: “[...] la
musique javanaise observe um contrepoint auprès duquel celui de Palestrina n´est qu´un jeu d´enfants. Et si l´on
écoute, sans parti pris européen, le charme de leur percussion, on est bien obligé de constater que la nõtre n´est
qu´un bruit barbare de cirque forain [...]”.

34
exemplos: o fascínio de Debussy e Ravel pela Espanha84; as experiências com escalas
85
orientais por Debussy (escalas pentatônicas indonésias) e Roussel (escalas indianas86); as

harmonizações de Ravel de melodias gregas e hebraicas inauguram uma tendência - dentro da

música francesa - que resultaria, nas duas gerações subseqüentes, na exploração do “universo

mediterrâneo ampliado” de Darius Milhaud e no fascínio pela música indiana que tanto

marcaria a linguagem musical de Olivier Messiaen (1908-1992) 87.

Uma demonstração da receptividade do ambiente musical francês a

manifestações musicais inspiradas em outras tradições musicais era o interesse pela música

“culta” de outros países e a acolhida a compositores estrangeiros, utilizadores de seus próprios

folclores. Antes da Primeira Guerra Mundial, nomes como Isaac Albeniz (1860-1909) e Falla

(Espanha), Georges Enesco (1881-1959, Romênia), Bartok e Zoltan Kodaly (1882-1967,

Hungria) e, principalmente, Stravinski (Rússia) haviam-se tornado parte integrante do cenário

musical francês, abrindo novas vertentes na renovação da música tonal.

O interesse por novas experiências e intuições musicais, não mais como

exotismo, mas como oportunidade de renovação da linguagem - da qual, no campo das artes

plásticas, o exemplo emblemático havia sido as Demoiselles d’Avignon (1907)88, resultado

dos estudos de Picasso sobre as máscaras africanas - abria para os compositores estrangeiros

84
Falla (1950: 135-7): “[...] A un hombre como Claude Debussy [...] su musica no está hecha “a la española”
sino ‘en español’, o mejor dicho ‘en andaluz’, puesto que nuestro Cante jondo és [...] el que há dado origen a
las obras escritas [...] con caráter español [...] y sin embargo el gran compositor frances no habia estado nunca
en España [...] Maurice Ravel es también de aquellos que no se hán contentado en hacer musica ‘a la española’
[...]”.
85
Bartok in Szabolcsi (1958: 144): “[...] lorsque [...] en 1907 [...] je commencai à etudier la musique de
Debussy,je fus surpris du rôle que jouent dans l’oeuvre de ce compositeur, les tournures pentatoniques
analogues à celles de notre musique populaire. Il n´est pas douteux que leur influence doit être attribuée à
l’influence d’une musique d ‘Europe orientale, probablement vla musique russe”.
86
Apesar da sua obra mais famosa nesse sentido ser Padvamati (estreada em 1923, porém composta no período
1914-18), seu poema sinfônico Evocations (1911) já era impregnado de modos hindus.
87
Ver seu tratado Technique de mon Langage Musical (1948).

35
um tipo de “demanda” na qual, em relação às tradições européias, os fatores de alteridade

passavam a ser mais valorizados que os de identidade. Isto ainda se aplicaria nos anos 1920 a

Villa-Lobos: num estudo sobre os Choros, Suzanne Demarquez (1928:707) daria destaque à

observação de que: “[...] É de fato o ambiente próprio ao caráter ancestral do seu país o que

busca principalmente o compositor [...]”.89

1.5 - A VALORIZAÇÃO DO NACIONAL: CONDIÇÃO DE INSERÇÃO NO MODERNISMO

INTERNACIONAL

1.5.1 – Música popular e identidade nacional

O Brasil, país contendo um vasto e inexplorado “folclore”, apresentava

para os jovens compositores a oportunidade de trabalhar materiais, nos quais se

interpenetravam os aportes europeus, africanos e indígenas, que por si só conferiam um forte

selo de originalidade para quem os utilizasse. Compositores estrangeiros como Ottorino

Respighi (1879-1936) (Impressione Brasiliane, 1928) e, sobretudo, Darius Milhaud

(L´Homme et son Désir (1918), Boeuf sur le Toit (1919), Saudades do Brasil (1921))

deixariam em sua obra alguns exemplos memoráveis. A eloqüente recomendação de Milhaud,

feita em 1920 reflete bem esse novo espírito: “É, no entanto, lamentável [...] que a influência

do folclore brasileiro, tão rico de ritmos e com uma linha melódica tão peculiar, se faça

raramente sentir nas obras dos compositores [brasileiros]”90.

88
Ver a observação de Herbert Read de que: “O Cubismo se apresenta como uma fusão deste elemento
conceitual da arte africana com o princípio da linha e [do conceito cezaniano] da réalisation du motif .”. [Read,
1960: 83, T.do A.].
89
C’est en effet l’ambiance propre au caractèr ancestral de son pays que cherche surtout le compositeur.
[Demarquez, 1929b, T. do A.].
90
“[…] Il est regrettable [...cependant...] que l´influence du folklore brésilien si riche de rythmes et d´une ligne
mélodique si particulière, se fait rarement sentir dans les oeuvres des compositeurs Cariocas. [...]”. [Milhaud,
1920: 61]. A citação mais extensa pode ser encontrada no Capítulo VI (seção “6.3.1”)

36
Tal observação não diferia, na substância, de um anseio similar

manifestado, em 1917, por Alberto Nepomuceno em entrevista à Revista Teatral (Alvim

Corrêa, 1985: 37):

As notas características da música popular brasileira são as indicativas das suas


origens étnicas indígena, africana e peninsular; são fatores de importância o mouro
e o cigano. Infelizmente a parte musical nos estudos do folclore brasileiro não foi
estudada. [...] Esses elementos ainda não estão incorporados ao patrimônio artístico
dos nossos compositores. Será por culpa da nossa educação musical européia,
refinada, que impede a aproximação do artista flor-da-civilização - e da alma
singela e simples dos sertanejos [...] ou será por não ter aparecido ainda um gênio
musical imbuído de sentimentos regionalistas que, segregando-se de toda influência
estrangeira, consiga criar uma música brasileira [...] sincera, simples, mística [...],
tenaz e humanamente sofredora, como o são a alma e o povo do sertão.

Portanto, perspectivas distintas - como as de Milhaud e Nepomuceno -

podiam convergir num mesmo interesse pela valorização do “nacional”, respondendo

simultaneamente tanto a uma demanda externa quanto interna. A esse respeito, José Miguel

Wisnik (1983: 49) faz notar que:

A passagem de Milhaud pelo Brasil oferece a possibilidade de se comparar as


relações entre a música brasileira e a européia num momento em que, por motivos
diferentes, ambas concentram-se num mesmo objetivo: submeter um material que
tem origem no repertório popular à elaboração de uma técnica estranha a esse
repertório. Como sabemos, tal problema está profundamente vinculado aos destinos
do modernismo musical no Brasil, cujo maior empreendimento foi, depois da
Semana, tentar assimilar a musica folclórica à linguagem culta.

A fusão das inovações harmônicas implícitas nas obras de Claude Debussy

com os folclores regionais teve um imenso efeito “liberatório” para a música nacional de

vários países, e os testemunhos de Manuel de Falla na Espanha, de Bela Bartok na Hungria, e

de Igor Stravinski na Rússia91 são particularmente convergentes esse respeito: a reação contra

a quadratura rítmica, a abertura a um amplo modalismo, a busca de novas soluções

harmônicas independentes da harmonia funcional, tinham como contrapartida a preservação

91
Ver as observações de Stravinski em “Chroniques de ma Vie” (1935: 44-48).

37
de um senso de polaridade tonal (ainda que ampliada para a multi-polaridade implícita no

politonalismo) indispensável à inserção da melódica de inspiração folclórica.

A abertura para o mundo para além das fronteiras francesas e mesmo

européia por parte de Debussy (e na sua esteira Ravel e Roussel) representava um duplo

atrativo para compositores de outros países: a revelação de uma nova paleta harmônica,

rítmica e tímbrica infinitamente mais moldável ao material de origem folclórica sobre os quais

trabalhavam92; uma demanda nos “países centrais” por uma arte - e, portanto, uma música -

que soubesse aliar sofisticação técnica com o reatamento com instintos (reprimidos) abafados

por séculos de “civilização”; um compositor de “país periférico” seria tanto mais interessante

quanto mais diferenciado e, portanto, “nacional”. O sucesso avassalador em Paris do

repertório proposto por Serge Diaguilev (1872-1929) - entre a primeira apresentação de Boris

Godunov de Moussorgski em 190993 e a de Les Noces (1923) - teve como símbolo máximo a

primeira audição da Sagração da Primavera, em 1913, uma obra onde justamente se aliava

uma técnica harmônica, rítmica e orquestral de uma ousadia sem precedentes, com a evocação

dionisíaca de um passado “primitivo” (a Rússia pré-histórica).

Se o modernismo de Luciano Gallet (1893-1931), Francisco Mignone

(1897-1986) e Oscar Lorenzo Fernandez (1897-1948) apresentaria como molde dominante o

ambiente da música francesa originado na “revolução debussista” 94, com Villa-Lobos - uma

vez absorvida a influência francesa - o paradigma dominante torna-se o Stravinski da “fase

92
Beneficiando-se do preconceito favorável de que o folclore dos países da “periferia” seria presumivelmente
mais rico que nos países “centrais”.
93
A importância de Boris Godunov não se limita à geração de Debussy e Ravel. Darius Milhaud relata, em suas
memórias, que as suas duas partituras “de cabeceira” no período de sua formação eram Pélleas et Mélisande, de
Debussy, e Boris (Milhaud, 1949).
94
Em Gallet, mesclado a uma influência de Velásquez e Richard Strauss (ex. referindo-se ao seu Tango-Batuque
escrito em 1919): “[...] acabara de ouvir o Rosenkavalier. Detalhes harmônicos a Strauss na segunda parte
(Gallet, 1934: 99); e em Mignone, com o “filtro” do impressionismo italiano de Respighi, resultado de seus

38
russa”, notadamente de Petrushka e da Sagração: todos esses compositores têm em comum o

esforço, num contexto (neo-) tonal e dentro de uma técnica musical “avançada”, de tentar

criar uma música de concerto “brasileira”, na qual estariam incorporadas e desenvolvidas

características presentes na música popular brasileira.

1.5.2 – Um modernismo “sob o signo do Nacional”

O alinhamento do modernismo musical brasileiro com as vertentes

impressionista e pós–impressionista, cujo centro de irradiação era a França, em detrimento da

vertente expressionista de irradiação germânica, pode, portanto, ser atribuído a vários fatores,

ligados à valorização do elemento “nacional”, e que André Coeuroy, ao fazer uma resenha do

estado da música contemporânea nos anos 1920, resumiu na fórmula “sob o signo do

nacional” (1928: 7-11):

a) Nessa análise, não só o expressionismo das primeiras óperas de Richard

Strauss como a própria experiência da Escola de Viena eram vistos (numa

percepção que estenderia até a Segunda Guerra Mundial) como um

fenômeno circunscrito geograficamente, isto é, como uma expressão do

“nacional” em países da Europa Central de cultura germânica.

Que esta visão de segmentação cultural entre mundos “germânico” e

“latino” era parte do Zeitgeist pode ser notada por opiniões manifestadas

por expoentes dos dois lados: enquanto Alban Berg (1924) via na

contribuição teórica de Schoenberg a garantia da “supremacia da música

germânica nos próximos cinqüenta anos” e Schoenberg declarava que

estudos na Itália, e seu contato com Respighi por ocasião de sua visita ao Brasil em 1928, quando o compositor
italiano regeu obras de Mignone e Gallet.”.

39
Milhaud era “o mais importante representante do movimento
95
contemporâneo, em todos os países latinos” , Milhaud por sua vez

teorizava no seu artigo Polytonalité et Atonalité (1923) que a

politonalidade e o atonalismo eram, respectivamente, as resultantes

naturais do pendor “latino” pelo diatonismo e do pendor “germânico” pelo

cromatismo. E, em 1924, num texto intitulado “A música em Viena e

Paris” 96, Milhaud faria o seguinte diagnóstico:

[...] esta diferença entre latinos e teutões sempre se manifestou ao longo da história
[...] esses dois caminhos [... paralelos...] desembocam, nos nossos dias, em Erik
Satie de um lado e Arnold Schoenberg do outro, ou Poulenc e Auric em face de
Anton Webern e Alban Berg. Na Europa, nós nos deparamos com duas tendências
absolutamente opostas [...].

Tal clivagem - ainda que mais imaginária que real - traduzida para o

contexto dos compositores brasileiros, tendia a colocá-los resolutamente

num campo de sensibilidade “latina”.

b) Apesar de coincidir com um momento de forte impulso de nacionalismo

musical na França, a “revolução debussista” representava uma abertura

para outras culturas musicais, o que a tornou um fermento fecundo para um

grande número de “escolas nacionais” que nela pensavam encontrar os

elementos integradores entre suas tradições populares e a música de

concerto (Enesco, Bartok, Falla, Vaugham Williams (1872-1958),

Stravinski). O cosmopolitismo que caracterizou o ambiente cultural

parisiense no meio-século entre o final do séc. XIX e o início da Segunda

95
Em 1922, em resposta a uma carta de Zemlinski, Schoenberg escreve: “[...] Quant à Milhaud ´l´insignifiant´,
je ne suis pas d´accord.Milhaud me semble être le representant le plus important du mouvement contemporain
dans tous les pays latins: la polytonalité [...]”, citado por Drake [in Milhaud, 1982: 48-9]. Como observado por
Drake [in Milhaud, 1982: 50]: “[...] dans ‘Polytonalité et Atonalité’, l´on relève pour la premiere fois dans ses
ecrits en français le thème de l´opposition complementaire des traditions françaises (diatonique) et germanique
(chromatique)”.

40
Guerra Mundial - do qual, na pintura, a “Escola de Paris” 97 é um exemplo

particularmente revelador - conciliava o convívio numa mesma cidade de

artistas de várias procedências (entre os espanhóis Picasso, Miró e Falla, os

romenos Brancusi e Enesco, os russos Chagall, Stravinski e Prokofiev, os

americanos Man Ray (1890-1976) e Georges Antheil (1900-1959)) com a

expectativa de que esses artistas se mantivessem fiéis às suas origens

culturais. Nas variadas vertentes neotonais que se desenvolveram a partir

da experiência debussista, os novos compositores de diversos países (entre

os quais os brasileiros) pensavam encontrar um caminho que conciliava

contemporaneidade com nacionalismo;

c) No Brasil, somaria-se às tendências acima, dando-lhes coerência

doutrinária e uma imensa irradiação, o programa de “construção” de uma

música nacional proposto por Mário de Andrade98 no Ensaio sobre a

Música Brasileira. O compositor deve trabalhar as características rítmicas,

melódicas, harmônicas, tímbricas e formais contidas na música popular e

desenvolver suas virtualidades. Como explicitado por Luciano Gallet:

“[...] continuar a tarefa de dar a aquele material primitivo uma vida nova e própria,
e formar com tudo isso uma obra de significação e caráter racial que se incorpore

96
Ver Milhaud [1982: 194-5].
97
Segundo o Phaidon Dictionary of 20th Century Art, aplica-se a denominação “Escola de Paris”, num sentido
estrito, ao grupo formado pelos seguintes artistas: o russo Marc Chagall (1897), o lituano Chain Soutine (1894-
1943), o japonês Foujita (1886-1968), o italiano Amadeo Modigliani (1884-1920), o polonês Kisling (1891-
1953), o húngaro Marcel Vertes (1895-1961). Num sentido mais amplo (Phaidon, 1972: 105-6): “a phrase
loosely applied to the artistic life of Paris during the year just before the Great War and between the world
Wars, when the city offered the freeest opportunity for discussion and exhibition anywhere in Europe, and
consequently formed the focal point of artistic activity [...] the presence of the masters of the Ávant-Garde - drew
artists from abroad”. [Phaidon, 1972: 105-106].
98
Essa construção de uma música nacional é vista como uma militância: “[...] o critério atual da música
brasileira deve ser não filosófico, mas social. Deve ser um critério de combate [... Dizer que...] um artista
brasileiro escrevendo agora [...] a tal da música universal [...] faz música brasileira e é músico brasileiro. Não e
não. A força nova que voluntariamente se desperdiça por um motivo [...] Por mais sublime que seja, [...] por
valiosa que a obra seja, devemos repudiá-la que nem faz a Rússia com Stravinski e Kandinski”. [Andrade, 1928:
17].

41
definitivamente ao domínio universal, tal é a missão dos músicos brasileiros de
agora [...]” 99.

1.6 – ANTES DE MILHAUD E RUBINSTEIN: “MEDIADORES” BRASILEIROS DO MODERNISMO

Às vésperas da 1ª Guerra Mundial, algumas obras de Debussy já haviam

sido, portanto, incorporadas ao repertório sinfônico: L´Après-Midi d´un Faune, desde 1908,

sob a regência de Nepomuceno e Braga; e pianístico (como se poderá ver com mais detalhe

no Capítulo III): as Estampes, Chidren´s Corner, 1º livro das Images, por Antonieta Rudge,

Nininha Veloso-Guerra.

Entretanto, no curto período entre a chegada de Darius Milhaud em 1917 e

a realização da Semana de Arte Moderna em São Paulo, a vida musical carioca sofreu um

verdadeiro “bombardeio” de música moderna francesa, com um foco especial na obra de

Debussy: a ópera Pélleas et Mélisande, fragmentos sinfônicos do Martyre de Saint Sebastien,

os Nocturnes para orquestra, toda a obra pianística (inclusive os Estudos e o 2º caderno dos

Prelúdios), uma grande parte do repertório para canto e piano (ex. Chansons de Bilitis) e as

recentíssimas (compostas entre 1915 e 1917) 3 Sonatas de Câmara.

De Ravel, a ópera L´Heure Espagnole, Ma Mere L´Oye e Introduction et

Allegro, para orquestra, uma grande parte da obra pianística (Jeux D´Eau, Sonatine, Miroirs,

Gaspard de la Nuit), entre as obras de câmera, o Trio para violino, cello e piano. Dentre

outros compositores franceses: Roussel (a 1ª Sinfonia “Poème de la Forêt” e o Quarteto com

99
Citado em Chagas (1978: 28-29). Um indicador do enraizamento dessa percepção é a declaração do jovem
Claudio Santoro - publicada às vésperas do seu alinhamento ao dodecafonismo (Música Viva, 1941, ano 1, 9: 3)
sob o título “Considerações em torno da música brasileira contemporânea”: “[...] desde os primeiros
compositores nacionais que se dedicaram ao estudo do nosso folclore [...] que se vem lutando por uma arte
essencialmente brasileira. [...] A formação de uma escola nacional de composição [... requer...] um estudo
rigoroso e organizado [...] com uma finalidade o conhecimento profundo do nosso folclore, para que dele se

42
piano), Charles Koechlin (Paysages et Marines para piano, e obras para canto/piano), e

Darius Milhaud (1ª Sinfonia de Câmara “Printemps”, 2ª Sonata para violino e piano, Sonata

para 2 violinos e piano, obras para canto e piano). O poema “Debussy”, que figura em

Carnaval (1919) de Manuel Bandeira (e que Villa-Lobos colocaria em música sob o título

“Novelo de linha” nas suas Historietas para canto e piano, de 1920) é revelador da

“assimilação” da figura do compositor francês (falecido um ano antes) no meio cultural

carioca.

Por outro lado, o reconhecimento por estrelas internacionais em temporada

de concertos no Brasil (como o pianista Arthur Rubinstein100, a cantora Vera Janacopoulos101,

os regentes Felix Weingartner e Gino Marinuzzi102) do valor da obra de Villa-Lobos, de forte

conotação “modernista” e associada pelo público ao movimento debussista, contribui para um

clima de maior receptividade e interesse por inovações no campo da música.

Também é indicador dessa maior receptividade o fato de que as casas

editoras brasileiras passavam a incorporar com mais desembaraço obras modernas a seus

catálogos: se no catálogo de 1915, as únicas obras publicadas de Debussy eram seus juvenis

Arabesques; em 1920, a casa Artur Napoleão/Sampaio Araújo publicava algumas peças das

possa tirar um sistema de construção musical [...] a escola neo-clássica guiada pela polifonia é, a meu ver, o
passo mais sensato para o desenvolvimento da nossa escola nacional [...]”.
100
Para um relato do encontro Rubinstein x Villa-Lobos, ver Sachs [1995: 192-196].
101
Cantora brasileira (1892-1955). Uma das principais cantoras do repertório moderno nas primeiras décadas do
século XX. Amiga de Stravinski, Prokofiev, Falla, Milhaud, Poulenc, Markevietch e Villa-Lobos. Realizou
diversas primeiras audições mundiais de obras desses compositores. [Lago, 1999: 2 a 17].
102
Regente e compositor italiano (1882-1945). Foi um dos principais regentes de ópera na 1ª metade do século
XX, tendo terminado sua carreira como diretor no Scala de Milão. Além do repertório italiano, era grande
intérprete de óperas de Wagner e Richard Strauss (cujo Cavaleiro da Rosa ele deu a primeira audição brasileira
em 1915). Em relação à música brasileira, ele foi responsável pela primeira audição mundial de Jupyra de
Francisco Braga, do Miracle da la Semence e Abul de Alberto Nepomuceno e de L’Enseigne de Henrique
Oswald. Regeu igualmente do jovem Villa-Lobos dois movimentos da sua 1ª Sindonia e abertura de Izath. Em
1936, ele organizou no Scala de Milão um concerto inteiramente dedicado a Carlos Gomes para comemorar o
seu Centenário. Do repertório moderno, ele realizou a primeira audição brasileira de obras como L’Etranger de
Vincent D’Indy (em 1917), de Ma mèr l’Oye de Ravel (em 1918), das Fontane di Roma de Respighi e de obras
de Malipiero e Casella (em 1921).

43
Estampes e do 1º caderno dos Prelúdios, além de oferecer em suas lojas uma grande

quantidade de partituras (modernas) importadas103. Por outro lado, alguns compositores

brasileiros ganhavam edições extremamente abrangentes e cuidadas, notadamente Alberto

Nepomuceno, Heitor Villa-Lobos e João Nunes: entre as obras avançadas desses

compositores podem-se notar, no primeiro, a Brazileira, a canção Jangada, as Variações

sobre um tema original para piano e, sobretudo, o melodrama Le Miracle de la Semence; no

segundo, a Prole do Bebê I, as Danças Africanas e Carnaval das Crianças para piano e as

Miniaturas e Historietas para canto e piano; e, de João Nunes, Pieces Droles, Harmonies de

la Cathedrale, Vie des Abeilles.

No entanto, da mesma forma que as influências wagnerianas e franckistas

se transmitiram no Brasil por intermédio de mediações sucessivas, a incorporação - no campo

composicional - de inovações associadas ao Debussismo também apresenta suas próprias

mediações, podendo-se destacar os nomes de Alberto Nepomuceno, Francisco Braga,

Henrique Oswald, Glauco Velásquez e João Nunes.

De fato, a geração de compositores que mais se destacam no Instituto

Nacional de Música104 na primeira década republicana - que antecede e, em larga medida,

103
Entre alguns exemplos: a) um exemplar de peças para piano de Debussy, com o carimbo da “Casa Mozart”,
pertencente a Luciano Gallet, assinado e datado por ele em 1914; atualmente no Departamento de Música da
Biblioteca Nacional – RJ. (ver Volume II, Anexo IV - “Capas de Partituras/Dedicatórias”); b) coleção de
partituras de Godofredo Leão-Velloso (também no Departamento de Música da BN – RJ, como parte da na
Coleção Abraão de Carvalho), contendo numerosas primeiras edições de música moderna francesa, com os
carimbos de casas de músicas brasileiras que as importavam no início do século; c) os carimbos das casas de
músicas brasileiras, importadoras de partituras, podem também ser observados na coleção de partituras de
Oswaldo Guerra (ver Tabela 7, no Capítulo IV, intitulada “Fonds Oswald d’ Estrade Guerra”) que se encontram
no Centre de Documentation Musicale Claude Debussy – CNRS (Paris ).
104
Paulo Renato Guérios (2003: 105), referindo-se à criação do INM em 1889, em substituição ao extinto
Imperial Conservatório de Música, observa: “[...] a mudança de nome sinalizava o desejo de mudanças
estruturais profundas. [...] Músicos de sólida formação, como Leopoldo Miguez e Alberto Nepomuceno, traziam
da Europa as mais fortes tendências estéticas e lutavam para implementá-las [...] Quando Miguez assumiu a
direção do Instituto em 1890 fez questão de impor uma estética ‘moderna’ para combater o “conservadorismo”
ali reinante”. Para Miguez, “modernas” eram a estética alemã de Wagner e a francesa de Saint-Saens, e
“conservadorismo” significava a insistência no privilégio do canto lírico italiano. Em outro plano, contudo,

44
prepara a dos modernistas Villa-Lobos, Gallet, Oswaldo Guerra, Mignone e Lorenzo

Fernandez - não poderia ser enquadrada no paradigma de “filisteísmo”, que se associa

geralmente a um establishment hostil a inovações105 (como, ironicamente, a instituição

acabaria se tornando mais tarde, nas décadas de 1940 a 1960). Na realidade, músicos como

Leopoldo Miguez, Francisco Braga106, Alberto Nepomuceno107 e Henrique Oswald se

identificaram - em que pesem as numerosas diferenças entre eles, com as tendências as mais

avançadas da música européia do final do século XIX, tanto em sua abertura face às

inovações na linguagem musical, quanto no projeto de uma música nacional - e mantiveram

com a nova geração uma interlocução ativa108.

1.6.1 - Alberto Nepomuceno

Apesar de que a influência mais forte na sua formação tenha sido a

germânica109, Alberto Nepomuceno teve alguns pontos de contacto notáveis com Debussy e

sua obra: esteve presente na primeira audição mundial de L`Apres Midi d´un Faune, sendo

que, alguns anos mais tarde (em 1910), teve contato pessoal com o compositor que lhe doou

Wagner, Saint-Saens, Miguez e a República eram a “Modernidade” que vinha substituir Verdi, o Conservatório e
o Imperador [...]”.
105
Do qual um exemplo famoso foi a postura de Theodore Dubois, diretor de Conservatório de Paris, que
proibira que seus alunos assistissem a Pélleas et Mélisande e que seria forçado a renunciar (sendo substituído por
Gabriel Fauré em 1905) em conseqüência da indignação pública - refletida na imprensa - causada por sua
oposição a conceder a láurea máxima do Conservatório, o “Prix de Rome”, a Ravel.
106
Quanto a Francisco Braga, além da incorporação do L’Après-Midi d´un Faune ao repertório dos seus
concertos, foi responsável pela primeira audição de outras obras Debussy - como La Mer, o movimento “Ibéria”
(das Images para orquestra) e a Petite Suíte - e até mesmo de um compositor da nova geração como Honegger,
com suas obras Pacific 231 e Pastorale d´Eté.
107
Ver entrevista à “Revista Teatral”, previamente citada: (Alvim Corrêa, 1985: 37).
108
Referindo-se ao período de formação de Villa-Lobos, Adhemar Nóbrega (1969) escreve: “[...] daqueles
contatos com Frederico Nascimento e Francisco Braga conservava sempre inequívoca admiração pelos dois
mestres. Aliás, declarou-me, em 1955, ouvir e aproveitar muito os conselhos que lhe deram Alberto
Nepomuceno, Henrique Oswald e Francisco Braga. Anos depois, o Dr Leão-Veloso lhe trouxe da Europa o
Cours de Composition Musicale de Vincent D’Indy [...]”.
109
Cabendo, como ressalva, a observação de Wisnik (pág. 54) de que: “[...] Nepomuceno não está à frente dos
compositores europeus da época [...]”.

45
uma partitura autografada de Pélleas e Mélisande110. Nepomuceno foi também, a partir de

1908, responsável por um grande número de primeiras audições brasileiras de obras francesas

modernas para orquestra: L´Aprenti Sorcier, a 1ª Sinfonia, e a abertura de Polieucte de Paul

Dukas; L`Apres Midi d´un Faune e extratos da cantata L´Enfant Prodigue de Debussy; a

Introdução e Allegro de Ravel e a 1ª Sinfonia (Poème de la Foret) de Albert Roussel; a 1ª

Sinfonia de câmera (Le Printemps) de Darius Milhaud.

Com os jovens compositores, são exemplos de sua abertura de espírito a

leitura do Harmonielere111 de Schoenberg, a sua defesa da obra de Glauco Velásquez, e no

caso de Heitor Villa-Lobos, as primeiras audições que realiza de obras como a Elegie e o 1º

Concerto para Violoncelo e Orquestra assim como as gestões em prol da edição da sua

obra112.

Chama a atenção, na produção de Nepomuceno, a sua versatilidade

estilística: algumas obras podem ser muito próximas de mestres germânicos tão distintos entre

si como Brahms (o segundo movimento da Sinfonia em Sol) e Wagner (na ópera em um ato

Artemis); na vertente do nacionalismo, algumas peças acentuarão características rítmicas

(Galhofeira e Brazileira para piano, “Batuque” da Série Brasileira e Guaratuja para

orquestra) ou modais (Jangada para canto/piano, “Sesta na Rede” da Série Brasileira para

orquestra) da música popular brasileira ou até mesmo estrangeira (o “Cake Walk” (1911) da

opereta João Valdez), enquanto outras evocarão o estilo de seu amigo o compositor norueguês

110
Sergio Alvim Corrêa (1985: 10-11) informa que: a) “[... Nepomuceno, em 1894...] assiste à estréia mundial
do Prelude à L’Après-Midi d´un Faune [...] obra que seria o primeiro a revelar no Brasil em 1908”; b) em 1910:
“[...] comissionado pelo Governo brasileiro, Nepomuceno empreende sua terceira viagem ao Velho Mundo,
regendo programas de compositores nossos em Bruxelas, Genebra e Paris. Nessa cidade, visita Debussy em
“Nevilly sur Seine”, recebendo dele a partitura autografada de Pélleas et Mélisande [...]”.
111
Sergio Alvim Corrêa (1985: 11): “[em 1916] Alberto Nepomuceno inicia a tradução do alemão para o
português do ‘Tratado de Harmonia’ de Schoenberg, e tenta por todos os meios implantá-lo no Instituto Nacional
de Música, encontrando, porém, severa oposição [...]”.

46
Edvard Grieg (ex. as fortes afinidades entre a 1ª parte de sua Série Brasileira com a 1ª parte,

também cognominada “Alvorada”, de Peer Gynt).

Além do recurso ao modalismo e à rítmica popular em suas obras

nacionalistas, o “experimentalismo” de Nepomuceno se manifestaria em outras obras,

podendo-se salientar:

a) Nas Variações sobre um tema original op.29 (1902-17, ed. Arthur

Napoleão), para piano, a utilização do bi-tonalismo (inclusive, na técnica

“teclas brancas x teclas pretas”, celebrizada por Villa-Lobos no

“Polichinelo” da Prole do Bebê I (1918)).

Exemplo 1a – 10a Variação, compassos 1-3

Exemplo 1b – 10a Variação, compassos 9 – 10

112
Sergio Alvim Corrêa (1985: 11): “[... em 1920...] intercede com êxito junto a seu editor Sampaio Araújo,
proprietário da Casa Artur Napoleão, para a publicação da obra de Villa-Lobos [...]”.

47
b) No melodrama Le Miracle de la Semence (1917, ed. Arthur Napoleão),

para canto e orquestra, que incorpora plenamente o tratamento da prosódia

inaugurado em Pélleas e Mélisande, estão presentes diversas características

idiomáticas distantes da harmonia funcional: (ex. as 7ªs consecutivas sobre

um pedal dissonante do Exemplo 2a) assim como a utilização da escala de

tons inteiros (Exemplo 2b):

Le Miracle de la Semence, 1a parte: “Le Semeur”

Exemplo 2a – compassos 21-23

Exemplo 2b – compassos 42-43

1.6.2 - Henrique Oswald

Segundo Luiz Heitor (1956: 132), a música de Henrique Oswald mostra


uma grande afinidade com a de Fauré, a linguagem de ambos coincidindo num cromatismo
extremo ainda que não wagneriano, e numa atmosfera “impressionista” na qual - ao contrário
de Debussy - a funcionalidade harmônica nunca é abandonada. Referindo-se à sua obra a
partir do op. 33, declara:

48
[...] nessas obras, o compositor com seu espírito compreensivo, isento de
preconceitos artísticos, abriga fórmulas harmônicas mais ousadas, e troca o
romantismo declarado de suas partituras juvenis pelo sedutor enleio de
encadeamentos raros, da meia-tinta do impressionismo, que tão bem convinha a seu
temperamento [...].

A diluição da tonalidade é uma característica recorrente na sua obra,

através do cromatismo, de modulações inesperadas, do recurso freqüente a acordes alterados e

eventualmente a escala de tons inteiros113, como no exemplo abaixo extraído de “Chauve-

Souris” (peça dedicada a Godofredo Leão-Veloso) - do seu op.36 (1914, ed. Bevilacqua):

Exemplo 3a – compassos 14-15

Exemplo 3b – compasso 24

113
Possivelmente estimulada por seu encontro com o compositor russo Vladimir Rebikov em 1906 e por suas
idéias, declarando numa entrevista: “O maestro Rebikov é um revolucionário da música. Expôs-me recentemente
suas teorias. A música para ele deve ser exclusivamente a expressão do sentimento: o sentimento não tendo
tonalidade nem cadências a música também não deve ter cadência nem tonalidade [...] tive ocasião de ouvir em
minha casa em Florença algumas de suas composições e a impressão que recebi foi deliciosa. A música desse
autor é sempre originalíssima, quase toda baseada na escala de grandes tons” [Martins, 1995: 156]. É
interessante comparar as declarações de Oswald com o testemunho de Nicolas Nabokov (1903-1978),
compositor de outra geração e ambiente, que estudou com Rebikov em 1917-19: “A Yalta je me mis à suivre
serieusement des cours d’harmonie et de composition sous la tutelle de [...] Rebikov [...] connu dans toute la
Russie pour avoir composé un opéra pour enfants, L’Arbre de Noel. C’etait aussi um vrai excentrique [...] La
plus grande partie de son cours de composition consistait à me montrer sa propre production; il avait, disait-
il,depassé Debussy en ayant utilisé bien avant lui, des progressions harmoniques assez peu ortodoxes. C´etait
moi l’avant-garde! Proclamait-il!” (Nabokov, 1975: 17-18). Sobre Rebikov, Stravinski comentaria para
Nabokov que: “Je l’ai connu. C’était peut-être un original mais sa musique ne l’était pas...”.

49
A abertura de espírito de Oswald - que se refletia na vivacidade do seu

salão114 onde podiam se encontrar jovens compositores como Luciano Gallet, Oswaldo

Guerra e Darius Milhaud ou intérpretes como Casals e Rubinstein - pode ser deduzido das

significativas dedicações de obras a ele feitas por compositores de tendências diversas das

suas: Batuque (1908) de Ernesto Nazareth, a coleção de melodias para canto e piano

Miniaturas (1916) de Villa-Lobos, a Suíte Bucólica (1921) para orquestra de cordas de

Luciano Gallet, e a dedicatória de uma das peças das Saudades do Brazil de Darius Milhaud

feita a Sra. Henrique Oswald115.

Seu filho, o pianista Alfredo Oswald (1884-1972) - que por sua vez seria o

dedicatário das Variações sobre um Tema original de Nepomuceno e das Cirandas (1926),

uma das obras mais “modernistas” da produção villa-lobiana, e que realizaria em 1924 a

primeira audição integral da Prole do Bebê I nos EUA - havia por sua vez composto algumas

obras impressionistas, das quais é exemplo a coleção Le Soir au Village (1916, ed.

Bevilacqua). É interessante notar a utilização da escala de tons inteiros na peça “Les Cloches”

(Exemplo 4a) e do efeito bitonal na peça “Les brebis qui rentrent” (Exemplo 4b) de oposição

“teclas brancas x teclas pretas” já utilizadas nas Variações de Nepomuceno.

Exemplo 4a – “Les Cloches”, compassos 6-7

114
Ver Rubinstein (1980: 39) e Milhaud (1949: 89).
115
Sobre o relacionamento de Milhaud com a família de Henrique Oswald e o ambiente do seu salão, ver o
capítulo “Darius Milhaud: o interlocutor antagônico”, em Martins (1995: 97-102).

50
Exemplo 4b – “Les brebis qui rentrent”, compassos 10-11

1.6.3 - João Nunes

O pianista e compositor maranhense João Nunes116 descobre a música de

Debussy nos dois anos passados, como bolsista de seu estado, em Paris (1910-11). Segundo

Luiz Heitor (1956: 246):

Um concerto de obras de Debussy [...] lança-o de chofre, num mundo de sonoridades


novas para ele e aparentemente caóticas. [...] Dois anos de estadia em Paris são
suficientes [...] para que se familiarize completamente com as obras de Debussy e dos
impressionistas [...].

De volta ao Brasil, passa a incluir as obras do compositor francês em seus

programas117, constituindo um novo foco de difusão da sua obra, em adição àquele constituído

pelos alunos de Luigi Chiaffarelli em São Paulo118 e de Godofredo Leão-Veloso no Rio. A

partir de 1914, quando se muda para o Rio de Janeiro como professor livre-docente do

Instituto Nacional de Música, suas composições em estilo debussista se tornam mais

conhecidas (passando também a constar, a partir de 1920, do catálogo Arthur

Napoleão/Sampaio Araújo). Entre essas se destacam: Pieces Drôles, Vie des Abeilles, Les

Harmonies de la Cathedrale. Essas duas últimas peças - excetuando-se a produção posterior

116
Wisnik (1977: 51): “[...] João Nunes que teve tempo de estar na Europa no início deste século, compõe uma
obra pianística pouco divulgada, e bastante marcada pelo impressionismo francês”.
117
Jansen (1975: 26): em fevereiro de 1912, no Teatro da Paz de Belém do Pará, o concerto compunha-se de
músicas de Chopin e Schubert, na primeira parte, e a segunda foi toda dedicada a Debussy.
118
Destacando-se Antonieta Rudge, Guiomar Novaes, Souza Lima, Ernani Braga e Walter Burle-Marx. (o papel
de Chiaffarelli e seu círculo serão tratados mais extensamente no Capítulo III).

51
de Oswaldo Guerra - são provavelmente as peças mais ostensivamente debussistas escritas no

Brasil: não apenas pelos aspectos mais visíveis como a utilização de escalas pentatônicas e

por tons inteiros, mas, sobretudo, pela natureza dos encadeamentos harmônicos, pelos efeitos

de ressonância e pelo pianismo próprio ao compositor francês. Delas diria Luiz Heitor

(1956:221): “[...] combina ao jogo de acordes do impressionismo um sopro lisztiano, que faz

o piano vibrar em toda a sua extensão e utiliza sutilíssimos recursos técnicos para chegar

àquela plenitude que parece transcender os limites do instrumento [...]”.

No exemplo seguinte, da peça Les Harmonies de la Cathedrale (1917, ed.

Arthur Napoleão):

Exemplo 5 – compassos 9-13

As Pièces Drôles (1914, ed. Arthur Napoleão) chamam à atenção a mais de

um título: pelas dedicatórias (Barroso Neto, Homero Barreto, Oswaldo Guerra), que sugerem

a existência de um círculo de “iniciados”, favoravelmente predispostos às “novidades” da

música moderna francesa; pelas características estilísticas: ex. ritmos ímpares, efeitos

tímbricos de ressonâncias, encadeamentos harmônicos distintos dos da harmonia funcional,

52
dissonâncias não resolvidas. Sobre elas, diria Luiz Heitor (1956: 247): “[...] essa adorável

série para piano intitulada Pieces Drôles, tão frescas tão sugestivas (a segunda, ‘Un parfum

qui s´envole’119 é em seus minúsculos detalhes, uma das coisas mais suaves e finas que se têm

escrito para piano) [...]”.

Exemplo 6a – “Sérénade des Clowns”, compasso 3

Exemplo 6b – “Sérénade des Clowns”, compassos 8-10

1.6.4 - Glauco Velásquez

É comum associar-se o Modernismo musical do inicio do séc XX a uma

reação contra o Romantismo: se é verdade que tanto o Impressionismo francês, quanto a

música de Stravinski e das diversas escolas nacionalistas (ex. Falla na Espanha, Bartok na

Hungria, o “Grupo dos Seis” na França) refletiam uma reação contra o “pathos” romântico, a

Escola de Viena (com a exceção de Webern) incorporava-o com naturalidade na sua estética

expressionista (especialmente na obra de Alban Berg). Portanto, dissociar a música de Glauco

Velásquez do movimento que levaria ao Modernismo, por causa de suas características hiper-

românticas (de fato, tão próximas do Schoenberg da Verklachte Nacht e do Berg da Sonata

119
Essa peça de João Nunes, dedicada a Oswaldo Guerra, figura como o Exemplo 14, do Capítulo IV.

53
op.1) equivaleria a esquecer o papel do Expressionismo germânico com um dos seus afluentes

mais determinantes. Se por um lado, nas palavras de Luiz Heitor (1956: 239-40) “Glauco

Velásquez é o primeiro compositor brasileiro envolvido pela sedução de harmonias novas e da

nova estética” e sua música representou a “primeira investida de um compositor brasileiro

contra a cidadela do tradicionalismo”120, por outro, foi a exploração dos limites do

cromatismo tonal pelos vienenses que levou, na expressão de René Leibowitz, ao

“estilhaçamento da tonalidade” com utilização, entre outros, dos acordes de mais de sete sons

que Schoenberg, no seu conceito de “emancipação da dissonância”, acabava de incluir no seu

Harmonielehre. Nesse aspecto, o Cantique de Beatrice, publicado em 1917, e que deveria ser

parte do 2º Ato (inacabado) da ópera Soeur Beatrice é especialmente revelador.

1.7 - CONCLUSÃO

Portanto, quando em 1918 Artur Rubinstein dá a sua série de recitais dando

grande destaque à música de Debussy e Ravel, e Darius Milhaud organiza os “Festivais

Debussy” (que serão examinados no Capítulo III), o meio musical brasileiro (nos capítulos

seguintes será comentada a produção de compositores da nova geração, especialmente

Oswaldo e Nininha Guerra, Villa-Lobos e Luciano Gallet) já vinha, há alguns anos, se

familiarizando com o modernismo musical francês (especialmente com a música de Debussy),

seja através de concertos - de músicos estrangeiros, mas, sobretudo, de músicos brasileiros -

seja através de características idiomáticas que vinham progressivamente se incorporando à

linguagem dos seus compositores.

120
De que esta era a percepção do lado “conservador”, pode se depreender das seguintes observações de
Cernicchiaro (1926: 570-1): “[...] il primo apostolo delle fatale combinazione bizarre della scuola accenata fu
Glauco Velásquez [...] la sinceritá di cui parlava Glauco Velásquez, le piu preocupante della sua vita, era
quella de continuare Debussy, Strauss e Wagner, copiando male la bizarria e stravagante idelitá del primo, per
non rimanere ne individuale, ne geniale [...]”. Luiz Heitor (1956: 240-1) adverte, entretanto, que: “não se pense,
todavia, que a música de Glauco Velásquez era extremamente moderna para a época. Na realidade, ele não havia
atingido nem mesmo a liberdade de estruturação rítmica e melódica da música de Debussy [...]. Só em suas

54
II

RELEVÂNCIA DO “CÍRCULO VELOSO-GUERRA”

E SUA POSIÇÃO NA BIBLIOGRAFIA

2.1 - DARIUS MILHAUD E O “CÍRCULO VELOSO-GUERRA”

Quando o compositor Darius Milhaud chegou ao Brasil, em 1917121, ele se

surpreendeu por encontrar - junto a um grupo seleto de músicos brasileiros - um grau elevado

de atualização em relação à música moderna francesa. Dias após a sua chegada, ele escreveria

a seu amigo o compositor Charles Koechlin (1867-1950):

Há aqui dois grupos [de músicos]: 1o) alguns jovens e até mesmo mais velhos,
encantadores, que escrevem como Fauré e Ravel, com - de tempos em tempos - uma
grande explosão de sensibilidade tropical; eles estão muito a par do nosso
movimento contemporâneo e dignos de conhecer a sua música; 2o) e o resto, que
deve ser suportado.122

De fato, durante sua permanência no Brasil - que se estenderia até o final de

1918 - Milhaud desenvolveu um excelente relacionamento tanto com compositores da geração

derradeiras obras, o 4º Trio para piano, violino e violoncelo e a ópera Soeur Beatrice [...] é que ele se aproximou,
realmente, da linguagem musical então considerada moderna”.
121
Os diários de Paul Claudel (1968: 369, 427) informam as datas de chegada no Rio de Janeiro (01/II/1917) e
partida (23/XI/1918).
122
Carta inédita de Milhaud a Koechlin (Rio de Janeiro, 13/II/19170), depositada na “Bibliothèque Gustav
Mahler (Paris) - Centre de Documentation Musicale - Archives Charles Koechlin”: “[...] il y a ici deux groupes:
1º) des jeunes et même vieux, charmants, qui écrivent comme Fauré et Ravel, avec de temps en temps un gros
éclat de sensibilité tropicale; ils sont très au courant de notre mouvement contemporain et dignes d’apprecier
votre musique; 2º) le reste, qui doit être ménagé [...]”. Nessa mesma carta, ele escreve (T. do A.): “Conheci um
[...] músico chamado Braga que esteve na classe Massenet na sua época. Ainda bem que o Brasil evoluiu depois
dele”.

55
dos “mais velhos”123 - como Alberto Nepomuceno124, Henrique Oswald e Francisco Braga125 -

quanto na dos “mais jovens” - como Luciano Gallet126 e Heitor Villa-Lobos127.

Entretanto, seu “núcleo de eleição” no Rio era constituído pela família do

pianista e professor Godofredo Leão-Veloso (1859-1926), sua filha a pianista e compositora

Maria Virgínia (Nininha) Veloso-Guerra (1895-1921) e seu genro, o compositor e futuro

musicólogo Oswaldo Guerra (1892-1980).

123
O catálogo da “Exposição Milhaud” - realizada em 1977 na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro -
organizado por Mercedes Reis Pequeno, reproduz cartas de Milhaud para Nepomuceno e Oswald que colocam
em evidência o intercâmbio musical entre o jovem francês e os dois maîtres brésiliens (Reis Pequeno, 1977).
124
Sobre Alberto Nepomuceno escreveria em 1942-1943, na sua apostila sobre música brasileira, em Mills
College: “Alberto Nepomuceno, que era chamado ‘pai do nacionalismo’ na música brasileira era um homem
encantador e modesto, a quem eu conheci muito bem. Ele era um excelente professor e tocava o piano
admiravelmente bem” (Milhaud/Mills, 1942-3, T. do A.). Alberto Nepomuceno seria responsável pela primeira
audição pública de uma obra orquestral de Milhaud, regendo a sua 1ª Sinfonia de Câmara “Printemps” com a
Sociedade de Concertos Sinfônicos, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1918.
125
A relação entre Milhaud e Henrique Oswald foi objeto de um capítulo intitulado “Darius Milhaud: o
interlocutor antagônico”, no livro de José Eduardo Martins (1995). Já retornado à França, ele escreveria aos
Oswald, em 28/X/1919: “Faz frio e eu tenho inveja do sol, e das grandes palmeiras e do engraçado cactus da rua
São Francisco Xavier, perto de sua casa, à esquerda quando se vem de bonde [...] Se me pedissem escolher entre
‘ir ao paraíso’ ou ‘retornar ao Rio’, creio que escolheria retornar ao Rio [...]” (Martins, 1995: 100). A
correspondência entre Milhaud e a família Oswald se prolongaria até os anos 1930, conforme explica Martins:
“entre os Oswald e Milhaud, a correspondência será de certa regularidade. Cumprimentam-se mutuamente nos
aniversários e trocam notícias do cotidiano [...]. Por ocasião da morte de Henrique Oswald, Milhaud escreve
carta pungente à madame Oswald. Quando da morte desta, à filha do casal desaparecido, Mimma” (Martins,
1995: 100). Sobre Henrique Oswald e Francisco Braga, escreveria na mesma apostila de Mills College:
“Escrevia uma música deliciosa (‘delightful music’), que era ligeiramente convencional. Ele também era
extremamente reservado. Ele mostrava um grande interesse em jovens compositores e sua casa costumava ser
um centro de atração para muitos jovens artistas [...] Lá, podia-se encontrar regularmente Francisco Braga, que
ainda está vivo. Ele estudou em Paris, no Conservatório com Massenet e entre as suas obras estão umas
variações sobre um tema brasileiro, no qual o tema é desenvolvido à maneira de 1880. Ele segue uma forma
cíclica com harmonias um pouco fora de moda e modulações, às quais ele dá tanta importância, que o elemento
rítmico, geralmente vital numa composição brasileira, fica como pano de fundo” (Milhaud/Mills, 1942-3, T. do A.).
126
Ver Milhaud (1949: 89) e o depoimento de Gallet (1934: 15) a Mário de Andrade: “[...] em 1917 conhecera
Darius Milhaud. Aproximou-nos o seu interesse extremo por Glauco. Tomou conhecimento de sua obra e
reconstituiu, adivinhou é o termo, o ‘Trio IV’ [...] Por meio de Milhaud penetrei na música moderna [...]”.
Segundo Luis Heitor: “Desse convívio Gallet tira o maior proveito. Milhaud é seu verdadeiro professor de
harmonia [...] e é quem o inicia nas teorias musicais modernas e na arte contemporânea, explicando o sistema de
Schoenberg, familiarizando-o com as obras de Erik Satie e de Stravinski. A admiração de Gallet pelo mestre
francês era muito grande” (Corrêa de Azevedo, 1956: 78). Os comentários de Milhaud sobre Gallet, na apostila
de Mills College, sugerem que alguma correspondência deve ter continuado entre eles, pois ele menciona
elogiosamente as Canções Populares Brasileiras, que foram compostas por Gallet entre 1924 e 1929: “Ele se
especializou nesse tipo de estudo [o folclore brasileiro] e harmonizou uma série de melodias populares com um
gosto extremamente sutil” (Milhaud/Mills, 1942-3, T. do A.).
127
Ver Milhaud (1949: 92).

56
Na sua autobiografia ele relataria as circunstâncias da sua tomada de contato

com o “grupo”:

[...] em 1917, na casa de Henrique Oswald [...] encontrei um jovem casal de recém-
casados: os Guerra. Oswaldo compunha uma música impregnada de influência
francesa. Sua mulher Nininha, dotada para a composição, era, sobretudo, uma
excelente pianista. Seu pai, Leão-Veloso, era professor de piano e ele a tinha
treinado a tocar muita música contemporânea, da qual ele inculcava o gosto a todos
que o cercavam: sua filha, seus alunos, e até mesmo seu cão que respondia pelo
nome de “Satie”. Desde então eu me liguei aos Veloso-Guerra, que eu encontrava
com freqüência, e foram eles que me iniciaram à música de Satie que, até então, eu
conhecia de modo muito imperfeito. Eu a percorri com Nininha, que tinha uma
excepcional capacidade de leitura a primeira vista da música moderna128 [...].

Alguns fatos colocam em evidência a importância do relacionamento entre Milhaud e

os Veloso-Guerra:

a) É a eles que ele dedica o maior espaço, bem mais que a Villa-Lobos, na

sua correspondência com amigos franceses (notadamente Koechlin)129 e

nos seus depoimentos sobre o Brasil - tanto em seu artigo “Brésil” (1920)

publicado na prestigiosa e recém-fundada Revue Musicale, quanto no

capítulo dedicado ao Brasil em sua autobiografia Notes sans Musique

(1949);

128
Ver Milhaud (1949: 89-90): “[...] chez le Henrique Oswald [...] j´y rencontrai [...] un jeune couple de
musiciens tout nouvellement mariés: les Oswald Guerra. Oswald composait de la musique imprégnée
d´influence française. Sa femme Nininha, douée pour la composition, était surtout une excellente pianiste. Son
père Leão-Veloso était professeur de piano et il l´avait entrainée à jouer beaucoup de musique contemporaine. Il
en inculquait le gout a tout son entourage, à sa fille, à ses élèves, et jusqu´à son chien qui repondait au nom de
Satie. Dès lors je me liai avec les Veloso-Guerra et je les voyais souvent. Ils m´initierent a la musique de Satie
que je connaissais alors très imparfaitement, et je la parcourus avec Nininha, qui déchiffrait exceptionellement
bien toute la musique contemporaine.”.
129
Entre alguns exemplos, na correspondência dirigida a Koechlin: “[...] As Paysages et Marines chegaram bem
[...] Elas serão tocadas num concerto em junho por Mme. Oswaldo Guerra-Velloso, que é juntamente com sua
família entusiasmada com sua música, e já encomendou de Rouart os seus 3 cadernos de melodías”; “[...] Este
país é tão curioso [...] Eu me vingo convertendo ao cubismo os seus jovens pintores e introduzindo os acordes de
13 notas junto a seus jovens músicos. Aquí só há de agradável o jovem casal Oswald Guerra e seu pai Leão-
Veloso, que já lhe escreveram manifestando sua admiração. Eles são realmente pessoas como nós, dignas de

57
b) São os únicos compositores jovens brasileiros dos quais promoveu a

música quando de seu retorno a Paris: de Nininha, Milhaud tocou seus 2

Epigrammes para piano em concerto no teatro de vanguarda “Vieux

Colombier”130, em abril de 1919131, e de Oswaldo inscreveu sua Sonata

para Piano e Violino (1918)132 na programação da SMI133 em novembro do

mesmo ano; dessa forma, os Veloso-Guerra foram os dois primeiros

compositores brasileiros, da geração de Villa-Lobos, a terem obras suas

apresentadas ao público francês, num contexto modernista;

c) Os “Veloso-Guerra” seriam objeto da dedicação de várias obras de

Milhaud entre 1917 e 1921: Oswaldo e Godofredo seriam ambos

dedicatários de uma das peças das Saudades do Brasil, (1921)134, sendo

que Godofredo seria também dedicatário de uma das melodias dos Quatre

Poèmes de Paul Claudel; por sua vez Nininha seria dedicatária de cinco

obras: três peças (os nº.s II, III e V) da série Printemps (1917-1920) para

piano, uma peça das Saudades do Brazil, a Sonata para piano e

habitar futuramente na França […]”. (Cartas de 05/V e 21/VI/1917, T. do A.). Cartas inéditas depositadas na
“Bibliothèque Gustav Mahler (Paris) – Centre de Documentation Musicale - Archives Charles Koechlin”.
130
Sobre as atividades de Jane Bathori, na sua gestão do “Vieux Colombier”, em prol da música contemporânea,
ver o depoimento de Madeleine Milhaud (Nichols: 1998: 18-19).
131
Esse concerto (que será discutido no Capítulo IV), intitulado Concert de Musique Brésilienne - que Milhaud
organizaria juntamente com a grande cantora Jane Bathori, a qual havia assumido a direção do “Theatre du
Vieux Colombier” - realizou-se em 13/IV/1919, consistindo, por um lado, de obras de Glauco Velásquez, Alberto
Nepomuceno, Henrique Oswald, Nininha Veloso-Guerra e, por outro, de uma seleção de “tangos, maxixes,
sambas e cateretês” (ver Volume II, Anexo I, seção “Programas de Concerto - França”).
132
O concerto na SMI foi realizado em 20 /XI/1919 na “Salle Gaveau” (ver Volume II, Anexo II, seção
“Programas de Concerto ”); a primeira audição mundial havia sido realizada no Rio de Janeiro em 30/VIII/1918,
no “Salão do Jornal do Commércio”, tendo como intérpretes Milhaud (violino) e Nininha (piano).
133
A “Société Musicale Independente” (SMI) tornara-se a mais prestigiosa sociedade de concertos de música
nova em Paris, ao final da Primeira Guerra Mundial, e fora fundada em 1910 por compositores como Gabriel
Fauré, Maurice Ravel, Florent Schmitt e Charles Koechlin, como uma cisão da “Société Nationale”, dirigida
então por Vincent D´Indy (Duchesnau, 1997: 65-122).
134
As peças II (“Botafogo”), III (“Leme”) e IV (“Copacabana”) das Saudades do Brazil são dedicadas,
respectivamente, a Oswaldo Guerra, Nininha Veloso-Guerra e Godofredo Leão-Veloso.

58
instrumentos de sopro (1920), e o 5º movimento das Études para piano e

orquestra (1921);

d) Nos quase dois anos de permanência de Milhaud no Brasil, eles

participam de uma grande quantidade de concertos (que serão discutidos

adiante, no Capítulo III), nos quais são realizadas diversas primeiras

audições brasileiras (obras de Debussy, Ravel, Satie, Koechlin, Deodat de

Severac, Milhaud) e mundiais (Milhaud, Nepomuceno e Oswaldo Guerra);

e) Os “Veloso-Guerra” representaram o principal elo de interação entre

Milhaud e o Brasil, tanto ao longo de sua estada no Brasil (1917-1918)

quanto nos três anos subseqüentes ao seu retorno à França, como o atesta a

correspondência conservada na Arquivo Paul Guerra (que será examinada

adiante no Capítulo V): esse período de intensa ligação com o Brasil

(1917-1922) é considerado por Jeremy Drake135 como o mais ousado e

experimental de sua produção, notadamente em função de obras como

L’Homme et son Désir, o 1o ato das Euménides, os Quartetos de Cordas nºs

4 e 5, a Sonata para piano e instrumentos de sopro, as 2 primeiras

Sinfonias de Câmara e as Études para piano e orquestra;

f) Na correspondência de dois anos com os Guerra entre a sua partida do

Brasil e a chegada deles na França em novembro de 1920: Milhaud fornece

um relato detalhado de seus planos e atividades: as novas composições (por

135
Segundo Jeremy Drake: “[...] após 1917, estamos em presença da politonalidade linear, do contraponto [...] do
qual o ‘nec plus ultra’ é o ‘5o Quarteto de Cordas de 1920’, dedicado como um ‘morceau de maitrise’, ao pai do
atonalismo: Arnold Schoenberg [...]” (Drake, 1982: 39, T. do A.).

59
exxemplo, Protée, Soirées de Petrograd, Saudades do Brazil, Cinq Études

para piano e orquestra), primeiras audições de suas obras (Protée,

Choéphores, Le Boeuf sur le Toit), e contatos (Satie, Koechlin, Poulenc,

Auric, André Gide, Jean Cocteau, a cantora Jane Bathori); a

correspondência revela um enorme esforço de trazer os Guerra à França:

afirma diversas vezes que a primeira audição mundial da Sonata para

piano e sopros está reservada a Nininha Guerra por ocasião de sua chegada

à França; planeja envolvê-los em concertos dos Nouveaux Jeunes

(denominação que antecede a do “Grupo dos Seis”136); propõe para eles

uma programação de estudos em Paris; envia periodicamente a Godofredo

Leão-Veloso partituras das suas obras recém-editadas137 e aos Guerra

partituras de novas composições (como o Socrate (1919) de Satie);

g) Alguns meses antes da chegada dos Guerra à França, na sua resenha

sobre o Brasil na Revue Musicale, Milhaud refere-se a eles da seguinte

forma:

[Nininha Veloso-Guerra] representa juntamente com seu marido Oswaldo Guerra


(de quem foi aplaudida uma encantadora Sonata para piano e violino, neste ano, na
SMI), o elemento o mais jovem, o mais avançado e particularmente identificado
com as obras do “Grupo dos Seis” [...].

136
Quando Milhaud chegou ao Brasil ainda não se havia formado o famoso “Groupe des Six”, que seria
constituído, a partir de 1920, pelos compositores Darius Milhaud, Arthur Honegger (1892-1955), Francis
Poulenc (1899-1963), Georges Auric (1899-1983), Louis Durey (1888-1979) e Germaine Tailleferre (1892-
1983). Sua chegada ao Rio também antecede a consagração “pós-impressionista” de Satie, com o sucesso de
suas obras Parade (1917) e Socrate (1919), e o lançamento do manifesto Le Coq et l’Arlequin (1918) de Jean
Cocteau.
137
que se encontram atualmente no Departamento de Música da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

60
h) Logo na chegada dos Guerra na França, em novembro de 1920, Nininha

é convidada a participar do Premier Concert du Groupe des Six138, onde

realiza a primeira audição mundial de algumas peças das Saudades do

Brazil, e - até fevereiro de 1921- dá uma série de recitais em Paris, e

participa de perto do ambiente do Groupe des Six. A correspondência de

Milhaud com o diplomata Henri Hoppenot apresenta alguns ecos da

chegada dos Guerra a Paris139:

[...] Os petits Guerra (você se lembra dessas mãos tão frágeis sobre o teclado?)
devem chegar a Paris. Eu os passearei de coleira em todos os concertos [...] (carta de
19/III/1921);
[...] continuamos com os nossos Samedis140. Temos à nossa disposição um bar na
Rue Duphot, onde temos um jazz-band141. Os petits Guerra estão em Paris e se
tornaram samedistes muito assíduos, ela, sobretudo [...]”.

i) Nininha adoece gravemente, falecendo um ano depois de sua chegada à

França. Após a sua morte, as suas reduções para quatro mãos de obras de

Milhaud são publicadas: os Quartetos de Cordas n°s 4 e 5 pela editora

Salabert (Paris) e do balé L´Homme et son Désir pela Universal (Viena);

j) Por ocasião da morte de Milhaud em 1978, Oswaldo Guerra - residente

na França desde 1921 - foi um dos músicos escolhidos por sua viúva

Madeleine (para o programa de entrevistas de Francine Bloch, na

138
Ver Volume II, Anexo I - seção “Programas de Concerto - França”.
139
Correspondência inédita, localizada na “Bibliothèque Littéraire Jacques Doucet”, Paris, comunicada pelo Sr.
Frank Langlois. Em 25/IX/1920: “[...] Les petits Guerra (vous souvenez-vous de ces mains si frêles sur le
clavier?) doivent venir à Paris. Je les promenerai en laisse dans tous les concerts [...]”; em 19/III/1921: “[...]
Nos Samedis continuent. Nous avons à notre disposition un Bar Rue Duphot ou nous faisons du jazz-band. Les
petits Guerra sont à Paris et sont devenus des ‘samedistes ‘très assidus, surtout elle’ [...]”.
140
Milhaud descreve os “Samedis”, nos quais se reuniam inicialmente em sua casa (e posteriormente no “Bar
Gaya” e no “Le Boeuf sur le Toit”) Cocteau, os integrantes do “Grupo dos Seis” e alguns poucos amigos como o
escritor Paul Morand e a pianista Marcelle Meyer - a cada sábado (Milhaud, 1949: 120-22).
141
Trata-se do recém-inaugurado “Boeuf sur le Toit”, bar famoso durante o período de entre-guerras, cujo nome
foi tomado de empréstimo ao balé Le Boeuf sur le Toit de Milhaud e Cocteau, cujo nome por sua vez havia sido
tomado de empréstimo do tanguinho O Boi no Telhado, de José Monteiro, sucesso do carnaval carioca de 1918.

61
Radiodifusão Francesa, O.R.T.F.)142 para fazer um depoimento sobre a

estada de Milhaud no Rio, e discutir qual sua influência do Brasil sobre

Milhaud, assim como a de Milhaud no meio musical brasileiro.

Como já observado por José Miguel Wisnik (1983: 44):

O depoimento de Milhaud sobre sua passagem pelo Brasil faz também


reconsiderarmos o peso de sua influência sobre músicos brasileiros,
tradicionalmente descrita como a revelação de 1917, num meio totalmente
inconsciente das novidades da arte européia, da obra de Debussy [...] Pelo menos em
relação à musica francesa não haveria essa defasagem de informação; tal como
relata o compositor, o jovem Darius Milhaud deparou no Rio de Janeiro com um
forte interesse pelo impressionismo francês, pelo menos num meio musical restrito.

2.2 - O “CÍRCULO VELOSO-GUERRA” E A DIFUSÃO DA MÚSICA MODERNA NO BRASIL

O núcleo em torno de Godofredo Leão-Veloso desempenhou um papel

muito importante na circulação de novas idéias musicais, no Rio de Janeiro, nas duas

primeiras décadas do século XX:

a) Através da atividade concertística: os concertos promovidos por

Godofredo a partir de 1907, nos quais era dado espaço a um repertório

pouco convencional, entre as quais obras modernas (Henrique Oswald,

Nepomuceno, Fauré, Debussy, Ravel, Satie); a partir de 1914, os concertos

dados por Nininha Veloso-Guerra, aos quais se juntaria Milhaud em 1917-

1918, nos quais foi revelada uma parte substancial da obra pianística e de

câmara de Debussy (já mencionados acima e detalhados no Capítulo III) e

O “Le Boeuf sur le Toit” seria um dos principais locais dos princípios do Jazz na França, e a expressão faire le
boeuf tornou-se sinônima de jam session (ver site “The Boeuf Chronicles” da jornalista Daniela Thompson).
142
CD realizado em 2001, pela Rádio-France, a pedido da família Oswaldo Guerra.

62
de outros franceses modernos; no período entre a partida de Milhaud do

Brasil e a chegada dos Guerra na França, Nininha seria responsável por

novas audições de compositores modernos franceses (D’Indy, Debussy,

Roussel, Milhaud) e de Villa-Lobos;

b) Através da atividade pedagógica de Godofredo: quando, em sua

autobiografia, Milhaud declara sua admiração, em 1917, pela facilidade e

familiaridade de Nininha com o repertório contemporâneo, ele atribui os

méritos dessa formação surpreendente exclusivamente ao pai143. Na

menção a Godofredo em sua resenha sobre o Brasil (1920), ele também

assinala que, além das obras de Debussy, Ravel e Satie, “o Professor

Godofredo Leão-Veloso faz seus alunos trabalharem obras de

compositores, como Koechlin e Abel Decaux: o primeiro foi um pioneiro

da politonalidade144 e o segundo, um dos precursores do atonalismo na

França145, o que sinaliza a abertura de Godofredo para outros caminhos,

para além do Impressionismo146. Entre seus alunos, podem ser

mencionados Elza Cameu, Aloysio de Alencar Pinto e Arnaldo Rebelo;

143
Cernicchiaro (1926: 600) refere-se nos seguintes termos à escola livre fundada por Godofredo em 1907, e que
contava no seu corpo docente com Artur Napoleão, Henrique Oswald, Francisco Braga, Frederico Nascimento e
o próprio Cernicchiaro: “[...] lodata pei suoi sforzi amorevoli nel libero insegnamento, fondata dal colto e
pregiato pianista Dr.Godofredo Veloso col titolo di “Escola de Música”, com sede nella Avenida Rio Branco
[...]”. Essa informação é repercutida em Luiz Heitor (1956: 130), ao descrever as atividades de Henrique
Oswald, ao sair do Instituto de Música: “Passa a lecionar na Escola de Música particular que o pianista
Godofredo Leão-Veloso fundara em 1907, e que funcionava em um prédio da recém-inaugurada Avenida
Central”.
144
Milhaud (1949: 70-71) refere-se em sua autobiografia à influência de Koechlin na formação da sua própria
linguagem politonal: “Eu gostava da sua música, de suas pesquisas harmônicas e da sua maravilhosa abertura de
espírito” (Milhaud, 1949: 70, T. do A.).
145
Ver comentários de Claude Rostand sobre Decaux no Capítulo III. O exemplar dos Clairs de Lune de Decaux,
na Biblioteca Nacional (RJ), com o selo da Coleção Abraão de Carvalho (“AC”), contém anotações de
Godofredo datadas de 1914. Milhaud, em seu artigo de 1920 na Revue Musicale, confunde – provavelmente pela
semelhança de imagens que esses títulos evocam o real título da obra com o de Nocturnes.
146
Indicativo dessa abertura é o fato da Coleção Abraão de Carvalho - atualmente na BN-RJ e na qual o
repertório do início do século XX se compõe essencialmente do acervo que havia anteriormente pertencido a
Godofredo Leão-Veloso - conter, por exemplo, a redução para dois pianos realizada por Webern para as 5 peças
para orquestra op.15 de Schoenberg.

63
c) A atividade musical nos salões: se, no Brasil da Belle-Époque, essa

atividade era um pálido reflexo daquela que Myriam Chimenes (2004: 9-39)

descreve em relação à França na mesma época, as reuniões musicais

realizadas por Luigi Chiaffarelli em São Paulo, e no Rio por Henrique

Oswald147 e Godofredo Leão-Veloso não deixavam de constituir espaços

importantes (e intercomunicantes148) de circulação de novas idéias musicais,

incluindo músicos como os compositores e professores do Instituto Nacional

de Música Henrique Oswald, Alberto Nepomuceno, Francisco Braga, e

Frederico Nascimento149, os pianistas Alfredo Oswald e Luciano Gallet, a

violinista Paulina d´Ambrosio150, o crítico José Rodrigues Barbosa e os

cantores Carlos de Carvalho151 e Frederico Nascimento Filho152. É

147
Descritas por Milhaud (1949), Rubinstein (1980) e Martins (1995).
148
Entre alguns exemplos desse intercâmbio: a) entre os Veloso-Guerra e Henrique Oswald: é no salão de
Oswald que Milhaud conhece os Veloso-Guerra (Milhaud, 1949: 89) e Rubinstein (Rubinstein, 1980: 38-9); a
dedicatória de Nininha a Oswald de sua composição Com as Crianças (ver Volume II: Anexo IV - “Capas de
Partituras/Dedicatórias”), e a dedicação da 3ª peça (Chauve-Souris) do op.53 de H. Oswald a Godofredo, assim
como a freqüência da apresentação de obras de Oswald nos “Concertos Íntimos”, promovidos por Godofredo
(examinados adiante no Capítulo III), são índices do grau de proximidade existente entre eles; b) entre Leão-
Veloso e Chiaffarelli: a correspondência e a ida de Leão-Veloso a São Paulo para visitar Chiafarelli
documentadas por Maria Francisca Junqueira (1987), e a semelhança entre o repertório de seus alunos; c) entre
Chiaffarelli e H. Oswald: a freqüência das obras de Oswald nos “Concertos Históricos” promovidos por
Chiaffarelli, o relato de Chiafarelli do encontro entre Saint-Saens e H. Oswald (Martins, 1995).
149
Violoncelista português (1852-1924). Desenvolveu uma intensa atividade pedagógica como professor de
Harmonia e de seu instrumento no Instituto Nacional de Música. Professor de compositores ilustres, como
Glauco Velásquez e Oscar Lourenço Fernandes, também era procurado por Villa-Lobos. Aberto a novas idéias,
iniciou, juntamente com Alberto Nepomuceno, uma tradução do Tratado de Harmonia de Schoenberg. Segundo
a Enciclopédia da Música Brasileira: “Profundo conhecedor dos problemas acústicos, criou um departamento de
acústica no Instituto e inventou um aparelho, o melofonômetro, que consistia numa régua graduada, aplicável a
qualquer instrumento de corda, e na qual se acham determinados, exatamente, os comprimentos necessários para
a corda dar todos os sons, tanto da chamada escala pitagórica, como da escala temperada.”. (Marcondes, 1977:
517).
150
Violinista brasileira (1890-1976). Segundo a Enciclopédia da Música Brasileira: “Dedicou-se ao ensino e
formação de uma geração de músicos. Ao mesmo tempo, apresentou-se em vários recitais como solista,
acompanhada por Villa-Lobos, Artur Napoleão, Antonieta Rudge, Glauco Velásquez, Alberto Nepomuceno [...]
Henrique Oswald e Luciano Gallet entre outros [...] por longo período, inclusive na Semana de Arte Moderna em
1922, colaborou com Villa-Lobos, que a considerava sua violinista predileta, e que lhe dedicou, da mesma forma
que outros compositores brasileiros, diversas composições” (Marcondes, 1977: 221).
151
Cantor e professor brasileiro (1870-1938). Professor do Instituto Nacional de Música (INM) do Rio de
Janeiro, foi, segundo a Enciclopédia da Música Brasileira: “Um dos maiores defensores do canto em idioma
português, ao lado de Alberto Nepomuceno, compositor a quem dedicou grande amizade e cuja obra vocal
divulgou. Em 1913 viajou para a Europa, vivendo 2 anos em Paris [...] onde se aperfeiçoou, inclusive, com Jane
Bathori [...] Foi um dos primeiros a revelar entre nós os lieder de Henri Duparc [...] Gabriel Fauré, Debussy [...]”
(Marcondes, 1977: 163). Em sua resenha sobre o Brasil, na Revue Musicale, Milhaud comenta: “O Professor

64
representativo do clima de conviavibilidade desse ambiente o seguinte

trecho de carta dirigida por Milhaud à senhora Oswald em 26/VII/1919:

[...] É sábado à noite e eu penso que se ele estivesse no Rio, iria visitá-los. Eram
exquis os sábados em casa dos Oswalds. Talvez nesta noite vocês tenham: os Guerra
tocando a música moderna francesa; Braga que ri; Gallet que toca a Sonata de Liszt;
Otaviano153 fantasiado de índio; Mimma154 jogando almofadas nas cabeças de todo
mundo [...] fora o luar tropical que inunda o belo cactus perto de sua casa, na rua
São Francisco Xavier.

Se Godofredo e, sobretudo, Nininha seriam responsáveis por diversas

primeiras audições brasileiras de obras de Debussy, de Ravel e de Satie, deve-se notar que o

interesse deles pela modernidade não se limitava a obras do Impressionismo:

- no intercâmbio entre Milhaud e os Veloso-Guerra: verifica-se o profundo

envolvimento desses nas novas obras - de um politonalismo radical - que

Milhaud vinha compondo no Rio. Esse alto grau de envolvimento se

reflete nas complexas transcrições para piano a quatro mãos realizadas

por Nininha (a serem discutidas no Capítulo III) de obras como os 4º e 5º

Quartetos de Cordas, o balé L´Homme et son Désir e pela participação

de Nininha em concertos, no Rio, realizando primeiras audições de obras

de Milhaud. Quanto ao intercâmbio com Godofredo, o valor dado por

Milhaud pode ser medido através da coleção de partituras enviadas por

Carlos de Carvalho realiza com freqüência recitais de cantos consistindo de melodias de Debussy e Ravel”
(Milhaud, 1949: 60, T. do A.).
152
Cantor, filho do precedente, dedicou-se ao moderno repertório brasileiro realizando primeiras audições de
obras de Glauco Velásquez, Alberto Nepomuceno (Miracle de la Semence) e Heitor Villa-Lobos (Festim Pagão,
Louco, Mal Secreto, L’Oiseau Blessé d’une Flèche, Les Mères, A Cegonha, A Cascavel). Participou da Semana
de Arte Moderna de 1922.
153
João Otaviano Gonçalves (1892-1962): compositor e pianista , aluno de Henrique Oswald (piano) e Francisco
Braga (composição). Segundo a Enciclopédia da Musica Brasileira: “Em 1913, concluiu o curso de piano,
obtendo o 1º prêmio e medalha de ouro. Quando terminou o curso de composição, em 1918, já havia estreado,
como compositor, apresentando em 1914 um trio e um quarteto de cordas, além de peças para piano, violino e
violoncelo. Em 1922, foi premiado com uma viagem à Europa por sua obra Poema da vida, encenada [...] em
1923, no Teatro Lírico, do Rio de Janeiro. [...] foi docente livre da, então, E.N.M.U.B., suscedendo a Francisco
Braga na cátedra de composição, quando este se aposentou em 1938.”. [Marcondes, 1977: 369].
154
“Mimma” era o apelido de Maria Clara Oswald Marchesini, filha de Henrique Oswald. [Martins, 1995].

65
ele a Godofredo, após seu regresso à França (que se encontram

atualmente no Departamento de Música da Biblioteca Nacional - RJ),

tanto pelas características radicalmente modernistas dessas obras (que

acabavam de ser editadas) quanto pelo tom das dedicatórias autógrafas de

Milhaud. Entre essas dedicatórias a Godofredo pode ser destacada a da

partitura do ciclo de melodias Chansons Bas, compostas no Rio sobre

curtos poemas de Mallarmé e extremamente ousadas do ponto de vista

rítmico e no manejo da politonalidade, com os dizeres: “Ao Sr.Veloso,

essas melodias tantas vezes ouvidas em sua casa”155.

- através de dois testemunhos distintos156 - de Paul Claudel e Arthur

Rubinstein - sabe-se da audição em 1918 na casa dos Guerra, da

Sagração da Primavera de Stravinski, a quatro mãos, cinco anos antes da

viagem de Villa-Lobos a Paris. Enquanto na entrada datada de

28/VI/1918 do diário de Claudel consta a observação: “[....] à noite, em

casa dos Guerra, a Sagração da Primavera a quatro mãos com Milhaud,

e o Pássaro de Fogo [...]”157, em suas memórias, Rubinstein relata (sem

mencionar os nomes):

(...) Milhaud me apresentou a uma família extremamente musical, com quem


costumávamos tocar o Sacre du Printemps e outras obras a 4 mãos. A filha da casa
era uma pianista excelente e ela e Darius nos deram belas apresentações de Sonatas
para piano e violino, inclusive uma Sonata muito bonita de sua autoria158.

155
Dedicatória de Milhaud, no exemplar da BN-RJ, das Chansons Bas: “A Mr.Veloso, ces mélodies qu´il a
entendues souvent chez lui”, reproduzido na página 82.
156
Sobre os testemunhos de Claudel e Rubinstein, ver Lago (1999).
157
“[...] le soir chez les Guerra, le ‘Sacre du Printemps’ à quatre mains avec Milhaud, ‘L´Oiseau de Feu’ [...]”
(Claudel, 1968, I, 407).
158
Ver Rubinstein (1980: 42): “[...] Milhaud me présenta à une famille extrèmement musicienne avec qui nous
jouions le Sacre du Printemps et autres choses à quatre mains. La jeune fille de la maison était bonne pianiste.
Avec Darius elle donna d’excellentes interpretations de Sonates pour piano et violon , parmi lesquelles une très
belle Sonate de Milhaud lui-même [...]”. A obra em questão é a 2ª Sonata para piano e violino de Milhaud,
composta no Rio, e que teve sua 1ª audição mundial na interpretação de Milhaud e Nininha.

66
2.3 - HEITOR VILLA-LOBOS E O “CÍRCULO VELOSO-GUERRA”

Existem diversos pontos de tangência significativos entre Villa-Lobos e o

Círculo Veloso-Guerra:

a) com Godofredo Leão-Veloso: segundo Ademar Nóbrega159 foi “o Dr.

Leão-Veloso [que] lhe trouxe da Europa o Cours de Composition Musicale

de Vincent d’Indy”, ao qual Villa-Lobos atribuía tanta importância em sua

formação e cujo estudo aprofundado situava em 1914160, enquanto Vasco

Mariz161 informa que Leão-Veloso foi o responsável por sua apresentação a

Milhaud;

b) com Nininha Veloso-Guerra: Villa-Lobos lhe dedica a terceira peça das

3 Danças Africanas, “Kankikis”: em 1919, no período entre a partida de

Milhaud do Brasil e a mudança dos Guerra para a França, Nininha realiza a

sua primeira audição mundial em 12/XI/1919, no Teatro Municipal,

juntamente com a primeira audição das peças “Valsa Mística” (da coleção

Simples Coletânea) e “Uma Camponesa Cantadeira” (da coleção Suíte

Floral). Por ocasião da morte de Nininha, em 1921, Villa-Lobos escreveu

na revista “Ilustração Brasileira”, sob o título “Homenagem a Nininha”, os

primeiros compassos de dois temas de uma obra que projetava escrever em

sua homenagem162 com os seguintes comentários do editor:

159
Nóbrega (1969: 14), in Presença de Villa-Lobos nº 4.
160
Ver Música Viva (Ano 1, nºs 7/8: 12).
161
“[...] Por volta de 1917, o Dr. Leão-Veloso apresentara-lhe [a Villa-Lobos] um jovem francês Darius
Milhaud, então secretário de Paul Claudel na Legação de França, no Rio de Janeiro” (Mariz, 1989: 50).
162
Ver reprodução, no final desse capítulo da página da revista “Ilustração Brasileira” (janeiro-1922), contendo a
“Homenagem a Nininha” por Heitor Villa-Lobos.

67
Na manhã em que foi rezada missa de 7º dia pela alma de Nininha Veloso-
Guerra, Heitor Villa-Lobos compôs no templo as primeiras frases de um
pensamento elegíaco que lhe inspiraram aquele ambiente e aquela cerimônia.
São essas frases que publicamos, prestando assim pelo talento de um grande
músico novo, uma homenagem à pianista e compositora tão cedo levada pela
Morte.

c) com Oswaldo Guerra: Oswaldo e Villa-Lobos dividem programas em

alguns dos primeiros concertos de Villa-Lobos em Paris163, e serão os dois

compositores brasileiros editados pela Max Eschig, nos anos 1920.

A questão que naturalmente se coloca, em função das numerosas evidências

de contato entre Villa-Lobos e os Veloso-Guerra, é em que grau ele teria absorvido o

conhecimento existente naquele meio, da música moderna francesa (Debussy, Ravel, Satie),

das obras radicalmente politonais que Darius Milhaud estava escrevendo no Rio de Janeiro

(tal como L´Homme et son Désir, da qual Nininha Veloso-Guerra realizou uma transcrição

para piano a 4 mãos), de obras de Stravinski como Petrushka e especialmente a Sagração da

Primavera, a qual tanto Claudel quanto Rubinstein testemunham ter sido tocada a 4 mãos em

casa dos Guerra, em 1918.

Se não é demonstrável que a tomada de conhecimento da música de

Stravinski, por parte de Villa-Lobos, tenha se dado desde 1918 através de Milhaud e do grupo

Veloso-Guerra, é comprovado que em 1920 (ano da partida dos Guerra para a França), Villa-

Lobos teve - através de Vera Janacopoulos, durante sua estada de alguns meses no Brasil - a

oportunidade de se familiarizar com o seu repertório (que incluía, além de Debussy e Ravel,

163
Concerto no Museu Galliera, em 28/III/1924, em que o pianista Afonso Aníbal da Fonseca apresentou 2 peças
da Prole do Bebê I, juntamente com 2 Esquisses de Oswaldo Guerra, sendo também apresentada neste concerto
sua Sonata para flauta, oboé, viola e piano; Recital do pianista João de Souza Lima (12/VI/1922) (?),
apresentando, de Oswaldo Guerra, 2 Esquisses e, de Villa-Lobos, a Lenda do Cabloco (com o título francês
Légend Indigène) e “Rhodante” da Simples Coletânea (ver Volume II, Anexo II - “Oswaldo Guerra”) ; Recital
do pianista Ricardo Viñes, em 19/IV/1926, (Semaine Musicale - Musiques et Musiciens de l’Amérique du Sud):
Viñes tocou, de Villa-Lobos, a Lenda do Caboclo e Polichinelo e, de Oswaldo Guerra, a peça “Matin Clair” da
Suíte Pastels (Guimarães, 1972: 124-5).

68
obras recentes de Falla, Stravinski e Prokofief) a ponto de ter realizado para ela uma cópia

manuscrita dos Pribaoutki de Stravinski164, da qual a cantora brasileira havia - um ano antes -

realizado a primeira audição norte-americana165.

Por outro lado, como ressaltado por Gerard Behague, é “inconcebível” que,

no contato de Villa-Lobos com Milhaud e Rubinstein, as repercussões da primeira audição

parisiense da Sagração da Primavera, assim como o impacto da obra de Stravinski, não

tenham sido objeto de comentários e intenso interesse. Por outro lado, Behague (1994: 10)

também observa:

[...] é provável que Rubinstein tenha chamado a atenção de Villa-Lobos para a


música de Stravinski. Milhaud confirma, nas suas memórias, que ‘Rubinstein tocava
com perfeição ao piano obras orquestrais complexas como L´Apres Midi d´un Faune
ou a Sagração da Primavera [...]166.

De fato, Rubinstein tinha - desde 1914 - um conhecimento de primeira mão

dos três mais famosos balés de Stravinski: seu biógrafo Harvey Sachs relata a revelação que

foi para ele a audição da Sagração da Primavera em 1913 (1996:134), a forte amizade que

desenvolve com o compositor, a partir de 1914, em torno de leituras ao piano das três obras,

as leituras ao piano com Szymanovski da partitura orquestral de Petrushka em 1919. Antes de

encomendar a Stravinski, em 1921, os Três Movimentos de Petrushka (que são uma

transcrição parcial da obra orquestral) Rubinstein já havia sido o dedicatário de seu Piano-

164
A qual se encontra no Acervo Vera Jancopoulos, na Biblioteca da UNIRIO (Lago, 1999).
165
Ver carta de Prokofiev a Stravinski, datada de 1919 (Lago, 1999).
166
“[...] it is probable, however, that Rubinstein brought Stravinsky to the attention of Villa-Lobos. Milhaud
confirms in his memoirs that Rubinstein ‘executed with mastery the most subtle scores such as ‘L´Apres-Midi
d´un Faune’ or ‘the Sacre du Printemps’ […]”. (Behague, 1994: 10).

69
Rag-music em 1918, e em 1920 incluira na programação de seus recitais no Rio167 uma

transcrição para piano da cena final do Pásssaro de Fogo.

Portanto, por ocasião da sua segunda excursão ao Brasil em 1920 - ano no

qual tanto Luis Guimarães quanto o biógrafo de Rubinstein Harvey Sachs (1996: 191-6)

datam o primeiro encontro entre Rubinstein e Villa-Lobos - o pianista polonês havia

incorporado a seu repertório, além de obras de Debussy e Ravel, as de numerosos modernistas

como Falla, Prokofiev e Stravinski168.

A colocação de Luiz Heitor (1956: 255) de que “Villa-Lobos antes de partir

para a Europa ignorava totalmente as partituras do autor de Petrushka”169 reflete a realidade

da atividade concertística no Brasil dos anos 1920: mesmo com a vinda dos Ballets Russes em

duas ocasiões (1913 e 1917), esses não encontraram condições170 de viabilidade para a

apresentação dos grandes balés de Stravinski, os quais só viriam a ser ouvidos pelo público

brasileiro, pela primeira vez, nos anos 1930 e 1940171. Entretanto, a colocação não reflete as

oportunidades, que existiram em alguns meios avançados do Rio de Janeiro, aos quais Villa-

Lobos teve acesso - de tomada de conhecimento da música de Stravinski e outros

compositores modernos - dentro do contexto informal de tertúlias musicais, nas quais

167
Enquanto na sua 1ª tournée no Brasil, em 1918, Rubinstein revelou numerosas obras de Debussy e Ravel, na
sua 2ª tournée, em 1920, Rubinstein revelou compositores como Manuel de Falla (Fantasia Bética), Karol
Szymanovski (2ª Sonata para piano), Serge Prokofiev (Visions Fugitives) e Francis Poulenc (Mouvements
Perpetuels).
168
Sendo que tanto a Fantasia Bética de Falla quanto os Três Movimentos de Petrushka de Stravinski foram
encomendadas por Rubinstein.
169
Repercutida em Kiefer (1986:42): “[...] Antes de ir a Paris em 1923, o nosso compositor não conhecia a obra
de Stravisnki, Bela Bartok e muito menos de Schoenberg”.
170
Conforme carta (inédita depositada no “Centre de Documentation Musicale/Bibliothèque Gustav Mahler -
Paris”) de 03/IX/1917 do jovem Oswaldo Guerra a Charles Koechlin, citada no Capítulo IV e reproduzida no
Volume II, Anexo II - “Oswaldo Guerra”.
171
É conhecido o fato de que foi só por ocasião de sua primeira ida à Europa, em 1923, que Villa-Lobos teve a
oportunidade de ouvir pela primeira vez a Sagração da Primavera; segundo o relato de Manuel Bandeira, citado
em Behague (1994:10), o compositor lhe havia declarado ter sido “a maior emoção musical de minha vida”.

70
participaram músicos excepcionalmente atualizados com a música contemporânea (como

Milhaud, Rubinstein, Ansermet e Janacopoulos).

José Miguel Wisnik já havia demonstrado (1977, 1986: 45) que - na

hipótese a mais tardia - o contato de Villa-Lobos com os Guerra se teria dado em 1919172,

quando da primeira audição de três peças mencionadas acima (das quais uma dedicada a ela),

num concerto para várias formações instrumentais, inteiramente dedicado ao compositor173.

Quanto a Godofredo, esse contato pode ser datado pelo menos a partir de 1914, ano no qual

Villa-Lobos (no esboço biográfico de Música Viva) situa seus estudos do tratado de Vincent

D´Indy.

Parece plausível antedatar-se pelo menos para 1918 seu contato com os

Guerra já que, no mesmo esboço biográfico, Villa-Lobos ressalta o papel de Milhaud - que

parte do Rio em novembro de 1918, e que realizara juntamente com os Guerra os principais

concertos dedicados a Debussy entre 1917 e 1918 - na sua tomada de contato com a música de

Debussy.

As declarações de Villa-Lobos no sentido de que só veio a descobrir a

música de Debussy a partir de 1918 - ainda que possam refletir suas circunstâncias pessoais174

- não podem ser tomadas como índice do grau de atualização do meio musical carioca em

relação à música moderna francesa. Nos dez anos que precederam a chegada de Milhaud e

172
Ver Wisnik (1986: 45): “[...] Villa-Lobos e Gallet conheciam as atividades musicais de Oswaldo e Nininha
Guerra que em 1919 executou uma das ‘Danças Africanas’ [...] É possível afirmar-se que pelo menos a partir de
1919 Villa-Lobos teria acesso a esse grupo onde se cultivava música francesa de vanguarda [...]”.
173
Realizado em 12/XI/1919 no Teatro Municipal. (ver Volume II, Anexo I, seção “Programas de Concerto -
Brasil”).
174
Entre as circunstâncias pessoais de Villa-Lobos, podem ser mencionadas: suas prolongadas ausências do Rio
entre 1908 e 1912; o fato de sua apresentação a Rubinstein só ter ocorrido em 1920, por ocasião da 2ª tournée do
pianista ao Brasil.

71
Rubinstein, e independentemente das apresentações dos Ballets Russes, intérpretes brasileiros

haviam apresentado obras orquestrais como o Prelude à l´Après-Midi d´un Faune e as Danses

Sacrées et Profanes, assim como uma grande parte da obra pianística de Debussy. Os

depoimentos de Milhaud, quanto a ter travado conhecimento com a música de Satie através

dos Veloso-Guerra, e sua observação a Koechlin (ao chegar ao Brasil) refletem a

familiaridade com a música moderna francesa preexistente à sua chegada.

O fato de que, em 1918-1920, o “Círculo Veloso-Guerra” estivesse

informado da música de Stravinski e extremamente a par da música de Debussy, Ravel,

Satie175 - e, particularmente, das grandes ousadias de linguagem que Milhaud estava adotando

em suas obras compostas no Rio - não implica necessariamente numa absorção equivalente

dessas informações por parte de Villa-Lobos176, o qual, aliás, não parece ter sido parte do

inner circle Veloso-Guerra/Milhaud. No seu depoimento radiofônico, Oswaldo Guerra faz a

observação de que:

Villa-Lobos à época em que Darius lá chegou [...] ouvia-se falar nele vagamente [on
entendait parler de lui comme ça]… Ele era conhecido apenas de nome [...] Ele
estava no início de sua carreira [...] Ele tocava violoncelo nos cafés para ganhar sua
vida [...] foi somente mais tarde que ele tomou impulso [...] (O.R.T.F., 1978, T. do
A.).

Seu contato com os Guerra deverá, portanto, ter ganho maior intensidade no

período posterior à partida de Milhaud, culminando na dedicação de “Kankikis” a Nininha, e à

participação desta no concerto de 12/XI/1919, inteiramente dedicado a obras de Villa-Lobos.

175
Na correspondência com os Guerra (examinada no Capítulo V), Milhaud menciona em 1919 o envio para eles
de Socrate, a obra recém-composta de Satie que se tornaria - juntamente com Parade - a principal referência da
estética “pós-impressionista” do Grupo dos Seis.
176
No seu importante estudo, publicado em 1929 na Revue Musicale, Suzanne Demarquez reporta a informação
de Villa-Lobos: de que à época da composição das suas Historietas (1920): “Só conhecera de Debussy a ‘Sonata
para flauta, viola e harpa’ e algumas melodias do repertório da senhora Janacopoulos [...]” (Demarquez, 1929:
5-6, T. do A.).

72
Entretanto, mesmo não fazendo parte do inner circle dos Veloso-Guerra,

pode-se afirmar que - entre a revelação do Cours de Composition Musicale de Vincent

D’Indy, em 1914 por Godofredo Leão-Veloso e os compassos iniciais da “Homenagem a

Nininha”, que Villa-Lobos pretendia compor em 1921 - houve um número suficiente de

pontos de contato importantes entre Villa-Lobos e os Veloso-Guerra, para poder-se considerar

que esses representaram uma das fontes importantes de “atualização” de Villa-Lobos em

relação à música moderna, no período de formação que precedeu sua partida para Paris.

2.4 - POSIÇÃO DOS VELOSO-GUERRA NA BIBLIOGRAFIA

2.4.1 Bibliografia Estrangeira

A fonte mais extensa sobre os Veloso-Guerra se encontra nos textos bem

conhecidos de Milhaud sobre sua experiência brasileira: o artigo “Brésil”, publicado em 1920

na Revue Musicale, e o capítulo sobre o Brasil em sua autobiografia Notes sans Musique177,

publicada em 1949, nos quais destaca: a familiaridade do grupo com a música moderna178; a

atividade pedagógica de Godofredo em prol da música moderna; o extraordinário

desenvolvimento musical de Nininha, evidenciado na sua capacidade de realizar reduções

para piano de obras da complexidade de L´Homme et son Désir, dos 4o e 5º Quartetos de

Cordas, da cantata Le Retour de l´Enfant Prodigue de Milhaud; o papel de Nininha na

realização de 1as audições de obras francesas modernas (Debussy, Ravel, Satie, Koechlin); a

boa receptividade (1919), nos concertos da SMI, da Sonata para Violino e Piano de Oswaldo

177
Que seria ampliada em 1973, recebendo o título Ma Vie Heureuse.
178
Ainda em 1996, Madeleine Milhaud responderia a uma pergunta de Roger Nichols de como Milhaud havia
tomado contato com a obra de Satie: “[...] Foi através dos Guerra no Rio de Janeiro [...]” (Nichols, 1996: 12, T.
do A.).

73
Guerra, e a declaração de Mihaud, em 1920, de que Nininha e Oswaldo Guerra representavam

“o elemento mais avançado” da nova geração brasileira.

Paul Claudel (1968) em seus diários - além da referência à leitura a 4 mãos

de obras de Stravinski em 1918 (igualmente testemunhadas por Arthur Rubinstein) - refere-se

diversas vezes aos Veloso-Guerra: eventos alegres como a comemoração do Armistício em

Campos179, e tristes como a morte “serena” da mulher do “vieux professeur” Leão-Veloso (em

conseqüência da epidemia de gripe espanhola no Rio) contrastando com a morte

“atormentada” de Nininha em Paris180:

[...] morte de santa da mulher do velho professor de musica Leão-Veloso, tratando


dos pobres. Ela pede que lhes dêem o valor de suas jóias. Sua filha, a pobre petite
Perruche, morta de phtisie galopante em Paris em 1921, tem delírios, acredita estar
no inferno, e vê seu corpo apodrecido, seus órgãos jogados aqui e ali. O corpo da sua
mãe, pelo contrario, ela o vê como um “amontoado de pétalas de rosas” [...].

O agravamento da situação de saúde de Nininha, poucos meses após a

chegada dos Guerra em Paris, é acompanhada de perto por amigos de Milhaud, o que se

reflete nas correspondências de Francis Poulenc e Jean Cocteau181:

Darius está em Aix. Nininha está a ponto de partir para a Borgonha. Ela está
esgotada e tem muita necessidade de cuidar de seus brônquios [...] [Poulenc a
Cocteau, VII/1921];

[...] voltei muito depressa por causa da doença de Perruche. Você não pode imaginar
que coisa assustadora ela está [...] Ela conseguirá vencer esta crise ou será que isto

179
Ver no Volume II, Anexo V, seção “Fotos”: fotografias de Claudel e Milhaud com os Guerra, em Campos,
por ocasião do Armistício.
180
Ver Claudel (1968: 425-6): “[...] mort de sainte de la femme du vieux professeur de musique Leão-Veloso, en
soignant les pauvres. Elle demande qu´on leur donne le prix de tous ses bijoux. Sa fille, la pauvre petite
Perruche, morte de phtisie galopante à Paris em 1921, a le délire, elle se croit en enfer, et voit tout son corps
pourri, ses organes jetés ça et lá. Le corps de sa mère, au contraire, elle le voit comme un ‘amas de pétales de
rose’ [...]”. “Perruche” era o apelido dado por Claudel a Nininha, e adotado por Milhaud e Cocteau.
181
A excelente edição da correspondência Cocteau-Milhaud, realizada por Pierre Caizergues e Josiane Mas
(1999: 61, T. do A.), contém as seguintes informações, entretanto, com um equívoco a respeito das
circunstâncias da vinda de Nininha à França: “[...] este apelido [Perruche] designa Nininha Veloso-Guerra,
pianista que Milhaud havia conhecido durante sua estada no Rio. Ela tocou várias obras de Milhaud em primeira
audição e o acompanhou quando voltou a Paris em 1918. Ela morreu no Hospital da Pitié, em 15/XI/1921”.

74
se tornará uma lenta e longa agonia [...] Vou todos os dias ao hospital ver a pobre
Perruche que sofre tanto [...] [Milhaud a Cocteau, VIII e IX/1921];

Carinhos à Perruche [...] [Cocteau a Milhaud, IX/1921]182.

Quanto a Oswaldo Guerra, toda a sua atividade a partir dos anos 1920 se

desenvolveria na França, onde muitas de suas obras foram publicadas por editoras prestigiosas

(por exemplo, Max Eschwig, Heugel, Jobert) e apresentadas regularmente - até os anos 1970 -

na programação de concertos da “Société Nationale”. Escreveria também dois clássicos da

moderna musicologia francesa: o artigo na Revue Musicale (1957) sobre os manuscritos de

Pélleas et Mélisande e o livro Debussy em co-autoria com Yvonne Tienot (1962)183.

2.4.2 Bibliografia Brasileira

As referências aos músicos do “Circulo Veloso-Guerra” são

extraordinariamente escassas na bibliografia brasileira, e, praticamente, limitadas à

reprodução dos comentários feitos por Milhaud a respeito de sua experiência brasileira no

capítulo sobre o Brasil, em Notes sans Musique, e na sua resenha de 1920 sobre o Brasil, na

Revue Musicale, que foi traduzida quatro anos mais tarde para o português em Ariel (1924).

Ausentes da Enciclopédia da Música Brasileira, não aparecem nos escritos

de Mário de Andrade, ocorrendo apenas referências de passagem à atividade pedagógica de

Godofredo Leão-Veloso nos 150 Anos de Música no Brasil (1956: 130) e em textos

182
Em VII/1921, Poulenc escreve a Cocteau (Chimenes, 1992: 131): “Darius est à Aix. Nininha est sur le point
de partir en Bourgogne. Elle est très lasse et a beaucoup besoin de soigner ses bronches [...]”. Em agosto,
Milhaud escreve a Cocteau (Caizergues & Mas, 1999: 60-4): “Je suis revenu très vite à cause de la maladie de
Perruche. Tu n´imagines pas quelle effroyable chose elle est [...] Surmontera-t-elle cette crise ou est-ce – que
cela va être une lente et longue agonie [...]”; em setembro, ele escreve: “[...] Je vais chaque jour à l´hôpital voir
la pauvre Perruche qui souffre tant [...]”; em resposta, Cocteau escreve a Milhaud: “[...] Tendresses à Perruche
[...]”.
183
“Les Manuscrits de Pélleas et Mélisande de Debussy” - Carnets critiques/Revue Musicale.

75
biográficos sobre Villa-Lobos já mencionados anteriormente (Mariz, 1967; Nóbrega, 1969).

Entre outras referências tangenciais, Nininha é mencionada no Catálogo do Museu Villa-

Lobos, associada à primeira audição mundial das peças para piano “Valsa Mística”,

“Camponesa Cantadeira” e “Kankikis” e como dedicatária dessa última peça.

Na primeira edição da História da Música Brasileira de Renato de Almeida,

Godofredo é incluído (juntamente com Alfredo Bevilacqua e Luigi Chiaffarelli) entre “os

mestres de grande valor” (Almeida, 1926: 219) no ensino do piano, enquanto Nininha e

Oswaldo são apresentados de forma muito positiva (1926: 1975-6):

[...] O Sr. Oswaldo Guerra, ainda pouco conhecido entre nós, é autor de
composições muito apreciáveis, e com uma emoção nova; Nininha Leão-Veloso
Guerra que não só era uma compositora deveras interessante, mas, sobretudo, uma
intérprete admirável dos modernos, em cuja obra a sua sensibilidade criava novas
emoções e se revelava do mais alto subjetivismo [...].

No entanto, os três desaparecem completamente na muito ampliada

segunda edição (1942)184.

No livro Storia della Musica nel Brasile de Vicenzo Cernicchiaro185, as

referências a Godofredo dizem respeito à “Escola de Música” (1926: 600) que fundou, e sua

participação nas atividades do “Club Beethoven” (1926: 548), enquanto Nininha recebe um

comentário extenso (1926: 437)186:

184
Luiz Heitor se refere a essa 2ª edição (529 págs e 151 textos musicais) como: “Obra capital para o
conhecimento do folclore musical brasileiro e história da música artística brasileira. A 1ª edição foi publicada em
1926, pelos mesmos editores com 238 páginas. A atual edição é antes um livro novo, com muita matéria nova e
nova redação de muitas partes já incluídas na primeira, do que uma ‘2ª edição correta e aumentada’”. (Corrêa de
Azevedo, 1952: 19).
185
No Capítulo III, se verá que Cernicchiaro participou ativamente como intérprete nos “Concertos Íntimos”
promovidos por Godofredo.
186
No capítulo dedicado a pianistas brasileiros, ele escreve: “[...] una delle piú notevole pianiste é Maria
Virginia Leão-Veloso. Si trata di un talento che in poco tempo há ottenuto l´onore di portare la palma fra tante
pianiste sue contemporanee. Nininha Veloso-Guerra [...] era la pianista che arrichiava di poesia e di luce ogni
concetto sublime della musica ideale. Ma le sue dita, fatte per eseguire le cose angeliche, cerca di preferenza
impiegarle a fare onore ai rivoluzionari ed anarchici maestri dell´arte pianistica del momento, credendo cosi

76
[...] Dentre os pianistas [brasileiros] Maria Virgínia Leão-Veloso é um dos mais
notáveis. Trata-se de um talento que em pouquíssimo tempo passou a ombrear com
os maiores dentre os seus contemporâneos. Nininha Veloso-Guerra [...] enriquecia
de luz e poesia qualquer obra musical em que estivessem presentes o sublime e o
ideal. Seus dons, destinados para a execução de coisas angelicais, preferiu empregá-
los para homenagear os mestres revolucionários e anárquicos da arte pianística do
momento, pensando dessa forma juntar o mais elevado grau de excelência com a
divulgação de uma arte absurda e detestável. Infeliz idéia num coração feito de
gentileza e sentimento, feito para dar realce às mais belas inspirações de Mozart, de
Beethoven, e de outros nobres engenhos. Mas, abstração feita dessa idealização
deplorável, Nininha Veloso-Guerra sempre chamará a atenção sobre si, cada vez que
seu espírito estiver em contato com o verdadeiro gênio inspirado, que ela saberá,
como poucos, interpretar. Compositora, escreveu páginas graciosas, tais como
“Spleen” para canto, e outras peças para piano [...]
[em nota de rodapé posterior ao texto acima, adicionaria a seguinte observação:]
Morreria na flor dos seus anos em Paris em 1921.

Quanto a Oswaldo Guerra, o jornalista português Gastão de Bettencourt lhe

dedicaria, numa conferência proferida em 1940 em Lisboa sobre a música moderna brasileira

(incluída em 1941 no livro Temas de Música Brasileira), comentários extremamente

admirativos sobre sua obra, lamentando “a perda que representava seu desaparecimento” (sic:

Oswaldo Guerra só viria a falecer em 1982). Esse texto, além de sua importância intrínseca, e

de sinalizar a que ponto Oswaldo Guerra estava afastado da cena brasileira, é extremamente

significativo por consistir na única “entrada” registrada por Mário de Andrade, em seus

“fichários analíticos” (atualmente no IEB-USP), com referência aos Veloso-Guerra.

No Brasil, a pesquisa mais importante, tanto do ponto de vista interpretativo

quanto documental foi a “Exposição Milhaud” - da qual foi feito o Catálogo - organizada em

1977 na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, por Mercedes Reis Pequeno, que:

giungere al piu alto grado di excellenza con la propaganda di un arte assurdo e detestabile. Infelice idea in un
cuore fatto di gentilezza e di sentimento per dare rialzo alle piú belle ispirazione di Mozart, di Beethoven, e di
altri nobile ingegni. Ma, astrazione fatta di questa diplorevole idealitá, Nininha Veloso-Guerra richiamerá
sempre l’attenzione su di sé, quando il suo gênio si troverá in contatto col vero gênio ispiratore, che ella saprá,
come poche, interpretare. Compositrice, scrisse graziosi pagine: ‘Spleen’ per canto ed altri pezzi per pianoforte
[...]”. Cernicchiaro adiciona a nota de rodapé: “moriva nel fior degli anni a Parigi nel 1921”.

77
a) reconstituiu, admiravelmente, a multiplicidade do ambiente musical

carioca com o qual Milhaud conviveu (o relacionamento com Henrique

Oswald, Alberto Nepomuceno, Francisco Braga; as atividades da

“Sociedade Glauco Velásquez”; os concertos com primeiras audições de

obras de Debussy, Ravel, e Milhaud), permitindo - pela primeira vez -

situar o papel do “Circulo Veloso-Guerra”;

b) revelou a existência, no acervo do Departamento de Música da

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, de uma rica coleção de primeiras

edições de partituras de Milhaud com dedicatórias autógrafas, de grande

valor documental.

c) revelou o mais forte dos elos entre Villa-Lobos e o “Círculo Veloso-

Guerra”: a “Homenagem a Nininha”, de Villa-Lobos, publicado na

Illustração Brasileira em matéria dedicada à pianista recém-falecida.

Entre os textos brasileiros mais recentes fazendo referência aos personagens

do “Círculo Veloso-Guerra” destacam-se Alexandre Eulálio [1969], José Miguel Wisnik

[1977] e Bruno Kiefer [1981]. Os três se apóiam nos textos de Milhaud, sendo que Wisnik faz

uma rica articulação destes com a documentação mais recente também apresentada na

“Exposição Milhaud” / BN, enquanto Kiefer realça os comentários de Cernicchiaro.

Há, portanto, um enorme contraste entre o impacto dos Veloso-Guerra junto

a seus contemporâneos, brasileiros e estrangeiros, e sua atual presença na bibliografia

histórica brasileira.

78
Pretende-se, nos próximos capítulos - especialmente com o auxílio da

documentação existente no Arquivo Paul Guerra (manuscritos musicais, correspondência,

programas de concerto, críticas musicais) - desenvolver um perfil mais claro a respeito de

atuação de Godofredo Leão-Veloso, Nininha Veloso-Guerra e Oswaldo Guerra, e desta forma

contribuir para preencher essa lacuna.

79
80
81
82
III

NININHA VELOSO-GUERRA (1895-1921)

3.1 - INTRODUÇÃO

3.1.1 Nininha Guerra: intérprete e compositora

Maria Virginia (“Nininha”) Leão-Veloso - que se tornou conhecida como

Nininha Veloso-Guerra, após seu casamento com o compositor Oswaldo Guerra - teve uma

carreira tão fulgurante quanto breve. De fato, no curto período compreendido entre 1907 e sua

morte em Paris em 1921, com 26 anos de idade, ela havia deixado uma impressão profunda

nos seus contemporâneos: escritores como Paul Claudel e Jean Cocteau; compositores como

Darius Milhaud, Francis Poulenc e Heitor Villa-Lobos; intérpretes como Arthur Rubinstein187;

críticos de tendências tão diversas quanto Cernicchiaro188, Rodrigues Barboza189 e Renato de

Almeida190, no Brasil; e Paul Le Flem191 e Roland-Manuel192, na França.

187
O jornal A Notícia reporta a seguinte observação a respeito dos Guerra: “Falando-se em música moderna,
Rubinstein não esqueceu de mostrar toda a sua admiração pelo casal Oswaldo Guerra, para quem a música
moderna não tem segredos, louvando com grande entusiasmo a admirável artista que é a Sr.ª Nininha Velloso-
Guerra, intérprete admirável.” (01/VII/1918). O Arquivo Paul Guerra possui uma foto autografada de Rubinstein
para Nininha com os seguintes termos: “À Madame Guerra, avec beaucoup d´admiration et amitié. Rio, 1918,
Arthur Rubinstein”.
188
Violinista italiano (1858-1928), crítico de tendências conservadoras: “Deixou várias composições para canto,
violino e orquestra, mas a sua contribuição fundamental para a música brasileira foi a Storia della Musica nel
Brasile publicada em Milão, Itália, em 1926, onde estuda a música brasileira desde os tempos coloniais até a sua
época” (Marcondes, 1977: 184).

83
De Villa-Lobos, ela é a dedicatária de “Kankikis”, a 3ª peça das Danças

Africanas, cuja primeira audição foi realizada por ela em 1919, sendo que o compositor

também escreveu – em 1921 - o esboço de uma obra em sua memória intitulada “Homenagem

a Nininha”; de Darius Milhaud, ela é dedicatária de peças das coleções para piano Printemps

e Saudades do Brazil (das quais realizou parcialmente a primeira audição mundial, no Rio e

em Paris), da Sonata para piano e instrumentos de sopro e do 5º Étude para piano e orquestra.

Pertencendo a uma geração particularmente brilhante de pianistas

brasileiras - como Antonieta Rudge (1885-1974)193, Guiomar Novaes (1894-1979)194 e

Magdalena Tagliaferro (1894-1986)195 - a trajetória de Nininha Guerra se distinguiria por seu

intenso envolvimento com a música moderna, fato que refletia sua dupla condição de pianista

e compositora, profundamente interessada nos novos caminhos da linguagem musical.

Na realidade, seu envolvimento com a música moderna precede de alguns

anos a vinda ao Rio de Darius Milhaud, dos Ballets Russes e de Arthur Rubinstein, e fica

189
Crítico musical (1857-1939) do “Jornal do Commércio”. Ativo defensor das novas tendências musicais,
representadas por Alberto Nepomuceno, Glauco Velásquez e Villa-Lobos.
190
Musicólogo brasileiro (1895-1981), autor de História da Música Brasileira, cuja 2ª edição (1942) é um
clássico da musicologia brasileira, omitindo, entretanto, os nomes de Godofredo, Oswaldo e Nininha,
elogiosamente mencionados na 1ª edição de 1926. Tornar-se-ia uma das maiores autoridades brasileiras nos
estudos do Folclore. Ver notas biográficas em Marcondes (1977).
191
Compositor e crítico francês (1881-1984) que se tornaria um grande amigo e suporte de Heitor Villa-Lobos,
em Paris (ver correspondência de Paul Le Flem para Heitor Villa-Lobos no Museu Villa-Lobos, no Rio de
Janeiro).
192
Compositor e crítico francês (1891-1968). Segundo Rostand: “Foi dito que ele poderia ter sido o sétimo do
“Grupo dos Seis”, porém possuía senso crítico demais e tinha um temperamento demasiado clássico para
assumir tal engajamento [...] Ele compôs num estilo neoclássico extremamente rigoroso e às vezes influenciado
por Ravel, de quem ele foi o amigo e musicógrafo”. É também conhecido o fato de que foi a ele que Stravinski
confiou a redação final da Poética Musical, série de 6 conferências que proferiu em Harvard em 1942.
193
Antonieta Rudge-Miller, junto com Guiomar Novaes, foi a mais famosa aluna de Luigi Chiaffarelli., e a partir
de 1904, a primeira difusora no Brasil da obra pianística de Debussy e Ravel. Grande amiga de Villa-Lobos, que
lhe dedicou o “Miudinho” (4º movimento da Bachiana Brasileira nº. 4) participou com ele, Lucila Villa-Lobos e
João de Souza Lima da “Excursão artística” que estes realizaram em dezenas de cidades no interior paulista,
durante a gestão de João Alberto em 1931-32.
194
Considerada uma das maiores pianistas do século XX. Após estudar com Luigi Chiaffarelli, em São Paulo,
estudou no Conservatório de Paris com Isidore Philipp.
195
Pianista franco-brasileira, tendo estudado no Conservatório de Paris com Alfred Cortot, tornou-se em 1937 a
sucessora de Isidore Philipp em sua cátedra no Conservatório.

84
aparente em composições como a coleção para piano Com as Crianças (1913); Spleen para

canto e piano (1914); Berceuse, Minuete, Nocturne para orquestra (1916-1917). Mais tarde,

seus esboços de uma peça para 2 pianos com o título Variations peu sérieuses sur un thème

serieux de Darius Milhaud196 indicam - pela irreverência do título e recurso à politonalidade -

sua sintonia com o espírito do Groupe des Six, aliás assinalada pelo próprio Milhaud:

“Nininha Veloso Guerra [...] representa com seu marido Oswaldo Guerra [...] o elemento mais

jovem, o mais avançado e particularmente identificado com as obras do “Grupo dos Seis”.

(Milhaud, 1920: 60).

Segundo Milhaud, “Nininha, dotada para a composição, era, sobretudo,

uma excelente pianista com uma excepcional capacidade de leitura à primeira vista da música

moderna” (Milhaud, 1949: 89), e sua compreensão da linguagem moderna ficava

particularmente evidenciada por sua capacidade de transcrição para piano a 4 mãos de obras

novas de extrema complexidade: o 4º Quarteto de cordas, o 5º Quarteto de cordas (o mais

ousado experimento de Milhaud de politonalidade linear197) e, sobretudo, o balé L´Homme et

son Désir, uma das obras-mestras da primeira metade do século XX, caracterizada por uma

densa combinação de politonalidade e polirritmia. Referindo-se ao 1º ato das Euménides198,

Milhaud relata aos Guerra o seguinte encontro com Rubinstein:

Passei oito dias muito agradáveis em Nova Iorque. Lá, reencontrei Rubinstein.
Tentei fazê-lo ler as Euménides à primeira vista. Ele acabou deixando o piano,
sentando no chão e dizendo com gestos de desespero: “Eu aposto cem mil dólares
que a Sr.ª Veloso-Guerra não consegue decifrar isto , se eu perder, eu me darei dois
tiros de revólver”.

196
O “thème serieux” é o 1º tema do movimento inicial do 4º Quarteto de cordas de Milhaud, composto no Rio
de janeiro em 1918, para o qual Nininha havia realizado uma transcrição para piano a 4 mãos.
197
Ver Drake, citado no Capítulo II.
198
Carta de Milhaud aos Guerra, datada de 08/II/1919: “J´ai passé huit jours très agréables à NewYork. J´y ai
retrouvé Rubinstein. J´ai essayé de lui faire déchiffrer les ‘Euménides’. Il a fini par quitter le piano, s’assoir par
terre et dire avec des gestes de desespoir: je parie 100.000U$ que Mme Velloso-Guerra ne peut pas dechiffrer
ça, et si je perds je me tire deux coups de revolver”.

85
3.1.2 Godofredo Leão-Veloso e Música Moderna

O envolvimento de Nininha com a música moderna parece derivar - em

grande parte - da educação musical recebida de seu pai, Godofredo Leão-Veloso. Segundo

Milhaud, ele havia treinado Nininha “para tocar muita música contemporânea, cujo gosto ele

inculcava em todos que o cercavam, sua filha, seus alunos199 e até mesmo seu cachorro que

respondia pelo nome de Satie” (Milhaud, 1949:89); e chegava a fazer seus alunos estudarem

obras politonais de Koechlin (como Paysages et Marines) ou de um atonalismo livre de Abel

Decaux200, como Clairs de Lune (Milhaud, 1920:60), sendo sempre apontado, na crônica

jornalística da época, como o “único mestre” de Nininha. A importância atribuída a

Godofredo por seus contemporâneos, que contrasta com o seu esquecimento subseqüente,

pode ser observada no texto abaixo do crítico Rodrigues Barboza201:

E o Sr. Godofredo Leão-Veloso? Abandonando a esterilidade das abstrações


matemáticas, que lhe não desalteraram a imaginação sedenta de ideal, ele entregou-
se definitivamente ao culto dos sons, que desde a mocidade lhe reclamavam os
melhores afetos. E o seu espírito penetrante caminhava adiante da mentalidade dos
seus contemporâneos. Ele pressentia, adivinhava um novo “etos” musical e
procurava incessantemente, investigava-o na obra clássica, buscava-o no tesouro
dos românticos, inquiria-o na arte wagneriana, sofrida as torturas do inatingível,
pesquisava os segredos do inacessível, até que um dia se lhe desvendaram os olhos,
no deslumbramento da luz “debussyana”. E ele amou com ardor essa arte, que era o
seu ideal sonhado e ensinou-a com carinho e propagou-a com entusiasmo [em
“País-Jornal” (sic), 30/IV/1918].

199
A familiaridade dos Veloso-Guerra com o repertório do modernismo francês fica patente através da coleção
de partituras de Godofredo, conservada na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (onde se destacam as primeiras
edições de obras para piano e canto de Debussy, Ravel e Satie, às quais se adicionariam posteriormente as
partituras com dedicatória de Milhaud).
200
Claude Rostand o considera “um verdadeiro precursor: antes dos vienenses Hauer e Schoenberg, ele praticou
um atonalismo surpreendente em ‘4 Clairs de Lune’ [...] Enquanto as ‘lunologias’ de Schoenberg se expressam
dentro de um atonalismo violentamente expressionista, as de Abel Decaux pertencem a um atonalismo que
poderíamos chamar ‘impressionista’ (com todas as precauções que implica o uso deste vocábulo)” (Rostand,
1970: 75, T. do A.).
201
A “História da Música Brasileira” de F. Aquarone contém uma foto de Godofredo Leão-Veloso em
companhia de Rodrigues Barboza e Barroso Neto [Acquarone, 1946: 256], que está reproduzida no Vol. II,
Anexo V, seção “Fotos”.

86
A única referência biográfica que pode ser encontrada na bibliografia é

uma curta notícia no “Suplemento biográfico dos músicos que influíram em nossa cultura

musical do XVI ao XIX século”, último capítulo do livro Origem e evolução da música em

Portugal e sua influência no Brasil, de Maria Luiza de Queiroz Amâncio dos Santos (1943):

Leão-Veloso (Godofredo) – Nasceu a 25 de agosto de 1859, no Estado da Bahia.


Formou-se em engenharia, estudando música em Paris202. Membro honorário e
professor de piano do Instituto Nacional de Música, desempenhou as funções de
diretor neste estabelecimento, no período de 13 de fevereiro a 14 de maio de 1915.
Referem às crônicas um concerto no Clube Beethoven, realizado a 6 de dezembro
de 1882, em que tomou parte Leão Veloso, executando um Trio de Beethoven,
Arabesca de Schumann, Elegia de Massenet, duas Dansas zingarescas e uma
Mazurka de Chopin. Como professor gozava de boa reputação; alguns alunos foram
laureados no seu curso. Ocupou-se da revisão de algumas peças de piano adotadas
no programa do curso oficial do Instituto Nacional de Música203. Faleceu a 6 de
abril de 1926.

Alguma informação adicional sobre Godofredo é obtida através do necrológio a

seguir, saído no “Correio da Manhã”, em 08/IV/1926:

Godofredo Leão Veloso204: A modéstia de seu feitio em que havia um pouco de


indiferença do ‘gentleman’ artista para as manifestações da coletividade, não
permitiu ao professor Godofredo Leão Velloso conquistar a nomeada a que fazia
jus no nosso meio. Era, contudo, um artista de raça, virtuose excelente do piano,
que cultivava há muitos anos com estranho carinho e um pouco de egoísmo, raras
vezes se fazendo ouvir. [...] Fôra, se não nos enganamos, discípulo do célebre
Marmontel, em Paris, e de outros pianistas não menos notáveis. Dedicando-se ao
professorado, ingressou para o Instituto Nacional de Música, onde prestava valiosos
serviços, não só como técnico, mas ainda pela sólida erudição que adquirira e o
202
Pelo jornal francês “Figaro” (16/III/1921), evidentemente informado por Milhaud ou pelos Guerra, temos
mais precisões: “Filha do mestre Veloso-Guerra, professor no Conservatório do Rio, que por sua vez havia sido
um aluno de Delaborde” [T. do A.]. Segundo o Dicionário Grove (1947, vol. II:42): “Delaborde, Elie Miriam
(1839-1913) um eminente pianista e compositor francês, aluno de Alkan e Moscheles, ao completar os seus
estudos, ele realizou com grande sucesso tournées na Inglaterra, Alemanha e Rússia. A Guerra de 1870 o
expulsou para Londres, durante algum tempo, com seus 121 papagaios e cockatoes [...] Em 1873, ele foi
nomeado professor no Conservatório de Paris, dedicando-se ao ensino com o maior sucesso [...]” (T. do A.).
203
Em carta dirigida ao “Jornal do Commércio” (30/I/1925), com o título “Ainda sobre o meio pedal”,
Godofredo responde a críticas feitas a ele por Oscar Guanabarino de sua edição da Fantasia Cromática de Bach.
204
O necrológio do dia 08/IV/1926 havia sido precedido pela seguinte nota no “Correio da Manhã”: “À última
hora tivemos informação de haver falecido o Dr. Godofredo Leão-Veloso, antigo professor do Instituto Nacional
de Música, gozando como mestre um notável conceito nos nossos meios artísticos. O Dr. Godofredo Leão-
Veloso, formado em engenharia, profissão que exerceu no antigo regime, era irmão do nosso pranteado ex-
diretor Dr. Pedro Leão-Veloso (“Gil Vidal”) e tio do querido companheiro Dr. Antonio Leão-Veloso e do Dr.
Leão-Veloso Neto, conselheiro da nossa embaixada em Paris. Deixa viúva a Srª. Bertha Leão-Veloso, com quem
era casado em terceiras núpcias. O seu enterramento será realizado hoje às três horas da tarde, no Cemitério de
São João Baptista, saindo o corpo da rua Humaitá n. 240” (07/IV/1926).

87
estudo e a prática. Durante algum tempo exerceu a direção interina do nosso
primeiro estabelecimento de ensino musical [...] se dedicou à anotação das peças do
programa oficial do Instituto [...] havendo [...] várias edições de música com
explicações, [...] dedilhação por ele determinada e numerada. O “Correio da
Manhã” teve-o no número de seus colaboradores, sendo-lhe confiada a crítica
musical em certo período [...]. O Dr. Godofredo Leão-Velloso era pai da distinta
virtuose do piano e compositora Nininha Leão Velloso Guerra, falecida não há
muito em Paris [...].

Serão discutidas, a seguir, algumas das realizações de Nininha nas áreas da

atividade concertística, da composição e da transcrição de obras modernas.

3.2 - CONCERTOS E PRIMEIRAS AUDIÇÕES

Pode-se acompanhar a trajetória da atividade concertística de Nininha, a

partir da coleção de programas de concerto e críticas musicais existentes no Arquivo Paul

Guerra. Essa atividade inicia-se no Rio, em 1907 (quando ela tinha onze anos de idade) e

termina em 1921 (ano de sua morte) em Paris, com seu recital na Salle Pleyel.

3.2.1 Dos “Concertos Íntimos” de Leão-Veloso à chegada de Darius Milhaud (1907-

1917)

O Arquivo Paul Guerra contém três programas de concerto datados de

1907 (24/VII, 21/VIII, 18/IX), nos quais figura, juntamente com o título de “Concerto

Íntimo”, a seguinte recomendação de Godofredo: “São proibidos os aplausos; são permitidos

os comentários”, com um repertório de câmara consistindo de sonatas para piano e violino

(Mozart, Beethoven e Grieg) e de peças do repertório pianístico (Schumann, Chopin,

Debussy). Ainda que esses três programas correspondam a uma amostragem pequena, eles

bem refletem a importante mudança no gosto e repertório musicais, introduzida por grandes
88
professores como Alfredo Bevilacqua205, no Rio, e Luigi Chiaffarelli206, em São Paulo, os

quais, segundo Luiz Heitor (1956: 217):

[... condicionaram...] uma completa renovação do repertório pianístico [...]. A


música clássica como era impropriamente chamada, por oposição à música de
ópera, ganhava terreno, impondo às jovens estudantes as obras dos grandes mestres
alemães, de Chopin, Lizst, Saint-Saens e de autores brasileiros que passam a
contribuir [...] para a renovação dos catálogos das casas editoras nacionais [...].

O crítico (“R. de L.”) do Diário de Notícias escreveu, numa crônica

intitulada “Uma audição íntima” (26/VII/1907):

[...] Os nossos musicistas, em geral, se ressentem duma absoluta falta de “cultura


estética”, isto é, um preparo anterior de conjunto que os liberte dos simples
conhecimentos técnicos especialistas de seus instrumentos [...] Um artista que antes
de tudo seja um artista, e alie a esta disposição privilegiada de espírito um preparo
técnico acurado da sua arte.

Se nesses concertos Godofredo participa tocando as Kinderzenen de

Schumann ou acompanhando o violinista e futuro historiador da música brasileira Vincenzo

Cernicchiaro em Sonatas para piano e violino (Grieg, e Sonata a Kreutzer de Beethoven),

observa-se que Maria Virginia – com onze anos de idade - acompanha Cernicchiaro em

Sonatas para piano e violino de Mozart, e apresenta um repertório pianístico com obras de

Bach, Haydn, Chopin e Debussy. Segundo o comentário do mesmo crítico:

205
Pianista e pedagogo brasileiro (1846-1927). Segundo Enciclopédia da Música Brasileira (1977:93): “Foi
nomeado o primeiro catedrático de seu instrumento, tendo sido o fundador da moderna escola pianística
nacional. No I.N.M., aboliu as fantasias de ópera e pots-pourris, incluindo no repertório as Sonatas [de
Beethoven, Chopin, Schumann]”.
206
Pianista e pedagogo italiano (1856-1923). Segundo Enciclopédia da Música Brasileira (1977: 188): “Em
junho de 1883, veio para o Brasil, fixando residência em São Paulo, onde exerceu o magistério durante 40 anos.
Teve intensa atuação na vida musical paulistana, lançando os fundamentos de uma escola de piano que marcou
época. Formou inúmeros pianistas, entre os quais Francisco Mignone, Guiomar Novaes, Antonieta Rudge e
Souza Lima”. A tese de Maria Francisca Junqueira (1987) reproduz no seu anexo os programas dos “Concertos
Históricos”, promovidos, em São Paulo, por Chiaffarelli e tendo principalmente como intérpretes os seus alunos.
Neles observa-se, a partir de 1904, a apresentação freqüente de obras de Debussy e Ravel. Dele diria Rubinstein:
“Um grande professor de piano [...] Um homem de grande inteligência, falando quatro línguas fluentemente,
muito lido e com uma vasta compreensão dos problemas humanos e das questões mundiais [...] Tinha um

89
[...] à sombra, ou antes, à claridade desse espírito superior e desse temperamento
fino de artista, que é o Dr. Godofredo Leão Veloso, cresce e se desenvolve uma
aptidão evidente de musicista que é a sua filhinha Maria Virginia. Se não é uma
menina prodígio, porque para isto lhe faltam poses com que se fazem o reclamo, é
verdadeiramente uma criança prodigiosa. Menina de onze anos, é notável a intuição
artística - essa causa raríssima - com que Maria Virginia interpreta, porque os ama e
os sente: Bach, Mozart, Beethoven, Chopin, Wagner ou Schumann. Pianista já há
alguns anos [...] é hoje uma conhecedora completa do seu instrumento [...] como
intérprete é d’um sentimento e d’uma correção notáveis [...].

Do período 1908-1911, existem - no Arquivo Paul Guerra - seis programas

de concertos realizados em locais diferentes: na residência do cantor Larrigue de Faro (em

29/V/1908), no Salão do Instituto Nacional de Música (22/X/1908), no Salão da Associação

dos Empregados do Comércio (29/V/1909, 20/II/1910, e uma data não especificada em 1911)

e na Associação Brasileira de Estudantes (data não especificada). No seu conjunto, o

repertório desses concertos procura equilibrar períodos distintos da história da música (de

Rameau e Bach a Chopin e Liszt), dando ao mesmo tempo destaque a compositores

brasileiros - como Henrique Oswald, Alberto Nepomuceno, Francisco Braga, Glauco

Velásquez e Edgardo Guerra - e a compositores europeus como Seriex (discípulo de Vincent

d’Indy), Gabriel Pierné, Gabriel Fauré e Debussy (Arabesques e Jardins sous la Pluie para

piano, Mandoline para canto e piano). Maria Virginia consta entre os participantes desses

concertos (nos quais, juntamente com outras alunas de Godofredo, encontram-se artistas

profissionais como Henrique Oswald, Alberto Nepomuceno, Artur Napoleão, Barroso Neto,

Larrigue de Faro, Berthe Janin). Sua participação se dá como solista (Bach, Chopin, Liszt,

Debussy e Henrique Oswald), ou acompanhando obras de câmara (para violino ou canto).

Deve-se observar que, no concerto de 29/V/1908, ela já aparece como “compositora”, com a

peça juvenil Jeannon et Suzette.

fabuloso senso de humor. Nós ficamos amigos durante a minha primeira visita [...] e assim ficamos pelos anos
seguintes” (citado em Sachs, 1996: 174, T. do A.).

90
Entretanto, é no período 1914-1916 que se define, com uma maturidade

precoce, o perfil de Nininha, não mais a “menina Maria Virginia”, mas uma pianista

equilibrando o pleno domínio do repertório virtuosístico tradicional, com um interesse

assumido pela música moderna, do qual é um exemplo seu primeiro recital, realizado em

23/VIII/1916, no Salão Nobre do Jornal do Commércio: nesse recital, no qual Nininha

realizou a primeira audição brasileira do Children´s Corner207 de Debussy, constavam entre

outras obras, o opus 110 de Beethoven, a Kreisleriana de Schumann, e a 3ª Balada de

Chopin.

Esse recital é acolhido como uma consagração. O Arquivo Paul Guerra

contém cópias das críticas dos seguintes jornais: “Gazeta de Notícias” (25/VIII), “A Epocha”

(24/VIII), “A Noite” (24/VIII), “O Imparcial” (25/VIII), “A Notícia” (24/VIII), “Correio da

Manhã” (24/VIII), “Jornal do Commércio” (24/VIII), “Jornal do Brasil” (26/VIII), “O Jornal”

(26/VIII) e “Careta” (02/IX). Dois anos antes, em 1914, Nininha havia dado a primeira

audição brasileira das Danses Sacrées et Profanes de Debussy, para piano e orquestra, sob a

regência de Francisco Braga, no Teatro Lírico, com os seguintes comentários de Rodrigues

Barboza (Jornal do Commércio, II/1914):

[...] A Senhorinha Leão Veloso, filha e discípula de um artista de escol [...] soube
firmar definitivamente seu nome de artista de temperamento e de ideais,
interpretando, com uma riqueza de meias-tintas da mais deliciosa palheta, aquela
mimosa produção debussyana [...] que afirma eloqüentemente a convergência dos
modernos objetivos da música francesa na musa admirável do criador de Peleas e
Melissandra. Aplaudida com grande calor pelo auditório, [...] a talentosa pianista
foi chamada por vezes ao proscênio para receber novas homenagens de seus
admiradores.

207
Cuja 6ª peça “Golliwogg’s cake walk” é freqüentemente citada na literatura villa-lobiana como a principal
influência sobre as Danças Africana; e indicada por Luciano Gallet como tendo fornecido o plano do seu Tango-
Batuque para orquestra, datado de 1919 (Gallet, 1934: 106).

91
Nininha apresentou-se como compositora em dois concertos, ambos no

Salão Nobre do Jornal do Commércio, apresentando Spleen para canto e piano (16/IX/1914),

e, sobretudo, a coleção Com as Crianças, em concerto (21/VI/1914) organizado pelo

professor de canto Carlos de Carvalho208. Nesse concerto, Nininha também apresentou três

peças do 1º Caderno de Prelúdios de Debussy, acompanhou Carlos de Carvalho em diversas

melodias (entre as quais três Melodias Gregas de Ravel, e o Colloque Sentimental de

Debussy), provocando os seguintes comentários do crítico do “Correio da Manhã”

(25/VI/1914):

[...] Seguimos com interesse o deslizar daqueles seis esboços, todo perfume,
fantasia, garridice. Ouvimos as modulações abruptas, as escabrosidades
harmônicas, as quintas que fazem torcer o nariz aos teóricos, as dissonâncias
irreverentes, as passagens iconoclastas, mas a senhorita Maria Virginia dilui tudo
isso numa deliciosa policromia de sons acariciadores que reconciliam ouvidos
menos acomodatícios [...].

Num comentário anterior, ao receber a partitura de Com as Crianças, o

mesmo crítico havia comentado:

[...] A senhorita Maria Virginia é uma decidida modernista; percebe-se logo nos
primeiros compassos do primeiro número, e o seu modernismo vai
assombrosamente se afirmando, avultando e elevando tudo de vencida: fórmulas
métricas, harmonias e ritmos. As modulações, algo rebuscadas, revelam o
deliberado intuito da compositora de evitar, o mais possível, a melodia do antigo
molde. A teoria debussyana, o catecismo de Vincent D’Indy, com todas as audácias
harmônicas que vêm minando o vetusto edifício, abriram brecha no espírito da
compositora, a qual é por hora noviça da nova religião.

Quanto a Rodrigues Barboza, concluiu a crítica desse concerto (“Jornal do

Commércio”, 22/VI/1914), com as seguintes palavras: “[...] a senhorinha Nininha Leão-

208
Carlos de Carvalho é elogiosamente mencionado por Milhaud em sua resenha de 1920 sobre a vida musical
no Brasil, dizendo que: “O professor Carlos de Carvalho realiza freqüentemente recitais de canto com melodias
de Debussy e Ravel” (Milhaud, 1920: 60, T. do A.).

92
Veloso, possui um sistema nervoso de tão fina vibratilidade, que ele chega a perceber a vida

das coisas, adivinha-lhe a tragédia sutil e a revela nas suas composições”.

A percepção de Nininha como compositora, e do fato dessa faceta

condicionar seu estilo interpretativo, se reflete nos seguintes comentários do crítico Oscar

Guanabarino209 (“O Paiz”, 24/VIII/1916):

[...] Não é uma pianista brilhante, nem se lhe nota a sonoridade pomposa visando os
grandes efeitos: o seu tocar revela todas as qualidades que devem ser exigidas de
um pianista. É grande a sua agilidade, dispõe de muita força [...] o seu teclado é
aveludado e as suas escalas e passagens são nítidas e ‘perlées’. No entanto, não são
esses os característicos da pianista quando interpreta Beethoven ou Schumann,
Chopin ou Liszt, Oswald ou Debussy. A sua feição artística é o resultado de um
grande talento aplicado ao piano [...] Esse grande talento manifesta-se não ao piano
como virtuose, mas como compositora - o que é raro entre senhoras [...] Percebe-se
que as suas produções, sem que sejam cópias, recebem a influência de Debussy, e
era como compositora que devia ser apresentada ao público dessa capital.
Conhecendo-se a compositora, a sua inclinação, a tendência do seu talento e da sua
imaginação criadora, é que se pode perceber que a pianista executa os outros
autores através desse seu modo de sentir e produzir [...] O que desejamos é vê-la de
novo em público, mas como compositora. Não terá talvez tantos aplausos do
auditório, mas terá mais admiradores de seu grande talento, entre os quais se
inscreve o signatário destas linhas.

209
Os comentários de Guanabarino, não obstante seu tom elogioso, poderiam ser interpretados como uma ironia
de duplo sentido: ao considerá-la essencialmente uma compositora, ele a desqualifica como pianista
(contrariamente ao resto da crítica, unânime em consagrá-la como uma grande pianista). Como as composições
de Nininha, até então apresentadas ao público (Com as Crianças e Spleen) eram fortemente marcadas pelo
modernismo francês, pode-se duvidar da sinceridade da admiração de Guanabarino. Pode-se observar, pelo tom
da “carta aberta”, dirigida por Godofredo ao “Jornal do Commércio”, de 30/I/1925, com o título “Ainda sobre o
meio pedal”, a frieza do relacionamento entre ele e Guanabarino: “Senhor Diretor do Jornal do Commércio: é
notória a insistência com que o colaborador do Jornal do Commércio, Sr. Oscar Guanabarino, nos folhetins
semanais que trazem a epígrafe ‘Pelo mundo das artes’, agride sistematicamente o Instituto Nacional de Música
e o grupo de seus professores. Antes de mim, foram muitos injuriados e caluniados. Houve mesmo um que,
mesmo depois de morto, quando o seu nome se achava inscrito nas páginas da nossa história, como o de uma
figura gloriosa que fora arrebatada das míseras contingências humanas para o respeito e admiração da
posteridade, teve a sua memória ultrajada [Godofredo refere-se a Alberto Nepomuceno]. Chegou a minha vez. A
princípio eram leves referências tímidas como se houvesse receio de uma reação violenta ou de um desforço para
reparação de afronta. O meu silêncio, porém, indicador de uma compostura digna e do respeito que devo a
quantos me conhecem, animou a protérvia e vieram as diátribes. Nada disso conseguiu irritar-me: entretanto,
apenas no interesse da arte e dos que estudam e aprendem, assim como no empenho de demonstrar a ignorância
dos que se empavonam com uma autoridade docente que lhes falta, sou obrigado a solicitar a hospedagem
fidalga do Jornal do Commércio para, do alto de suas próprias colunas, demonstrar a inanidade dos aleives que
me assacou o seu colaborador. Eles são numerosos e serão todos demolidos já que me abalancei ao propósito de
restabelecer as coisas na sua existência real [...]”.

93
TABELA 3 - CONCERTOS COM PARTICIPAÇÃO DE NININHA VELOSO-GUERRA
RIO DE JANEIRO: 1907 – 1916

OUTROS MÚSICA
ATA LOCAL MÚSICOS MODERNA OBRAS JORNAIS
1907 24/VII "Conc. Íntimos" Cernichiaro Diário de Noticias: 26/VII
21/VIII (res. GLV) Cernichiaro Debussy Arabesques
18/IX Cernichiaro Debussy Arabesques

1908 ? /IV Larrigue de Faro Larrigue de Faro Debussy Arabesques Diário de Notícias: 18/IV
(residência) Maria Siqueira Debussy Estampes n.3
Edgardo Guerra Debussy Mandoline
Álvaro Oliveira Fauré Les Berceaux
Fauré Apres un reve
Nepomuceno (duas 1ªs aud.)
? /VI Larrigue de Faro Larrigue de Faro Debussy Arabesques Gazeta de Notícia: 8/VI
Jeanon &Suzette J. do Comércio: 8/VI
22/XI I. N. de Música Larrigue de Faro Debussy Mandoline
Maria Siqueira Pierné Le sais-tu bien?
Jeronymo Silva
1909 29/V Ass. Emprega- Edg. Guerra Ballade
dos Comércio

1910 20/II Ass. Emp. Comer. H . Oswald 3 peças


1914 ? /II Teatro Lírico Francisco Braga Debussy Danses sacrées J. do Comércio: fev
(Sociedade de et profanes
C. Sinfônicos) Hom. Barreto Série de Danças Correio da Manhã: fev

21/VI Salão Nobre C. de Carvalho NVG C. as Crianças Correio da Manhã: 25/VI


J. do Comércio Debussy Preludes – vol. 1:
nºs. 5, 10 e 11
Debussy Colloque Sent J. do Comércio: 22/VI
Debussy 2 p.C. d´Orleans
Ravel 3 Ch. Grecques
Fauré Ch. du Pecheur
16/IX Salão Nobre J.C. Larrigue de Faro NVG Spleen J. do Comércio: 17/IX

1916 23/VIII Salão Nobre [ recital] Debussy Children´s Corner Gazeta de Notícias: 25/VIII
J. do Comércio Turina Sous les orangers A Epocha: 24/VIII
A Noite: 24/VIII
O Imparcial: 25/VIII
A Notícia: 24/VIII
C. da Manhã: 24/VIII
J. do Com.: 24/VIII
J. do Brasil: 26/VIII
O Jornal: 26/VIII
Careta: 2/IX

94
3.2.2 Concertos realizados com o concurso de Darius Milhaud (1917-1918)

A chegada de Paul Claudel e Darius Milhaud, em 1917, daria origem a uma

série de concertos extremamente significativos, entre junho de 1917 e outubro de 1918, nos

quais uma parte importante do mais novo repertório francês (com as Sonatas de câmara de

Debussy e o Trio de Ravel, assim como obras de Koechlin e Milhaud), foi apresentada no

Brasil.

No Arquivo Paul Guerra, encontram-se programas e críticas de concertos

realizados no Liceu Francês do Rio de Janeiro (07/VII/1917, 17/VI/1918), no Salão Nobre do

Jornal do Commércio (30/VI/1917, 02/V/1918), no Instituto Nacional de Música

(09/VII/1917, 30/VIII/1918), no Palácio de Cristal em Petrópolis (24/III/1918) e no Teatro

São Salvador em Campos (06/X/1918), destacando-se entre esses o “Festival Claude

Debussy“ de maio de 1918, realizado no Salão Nobre do Jornal do Commércio “em favor dos

feridos dos exércitos francês e inglês”. A respeito desse Festival, as críticas foram

particularmente elogiosas, sendo um exemplo o seguinte comentário de “T. G.” do “Jornal A

Gazeta” (maio de 1918):

A morte desse artista gigante que foi Claude Debussy, a cujo espírito genial deve a
música francesa à reforma por que passou nos últimos anos [...] não poderia ficar,
no nosso meio, assinalada pela comemoração efêmera de apenas meia dúzia de
referências feitas nos jornais. Era preciso que uma homenagem mais solene se lhe
fizesse à memória imortal [...] Daí o Festival de ontem, para cuja realização
ninguém, com mais justiça estava naturalmente apontado, do que aqueles que, entre
nós, foram os maiores paladinos do ideal de Debussy, os maiores propagandistas de
sua obra, os mais fervorosos devotos do novo culto musical: o Dr. Godofredo Leão-
Veloso, espírito dos mais eminentes profissionais que não deslustraria a sua cadeira
nos mais adiantados centros artísticos do mundo, como bem alto vem de proclamar
a própria França, com as “palmas acadêmicas” com que acaba de condecorá-lo: e a
senhora Nininha Veloso Guerra, a nossa maior intérprete de Debussy, compositora
que à sua escola se filiou como uma das mais talentosas discípulas; e outras
produções se caracterizam pela inspiração, pela singeleza e pela sua graciosa
concepção.

95
Numerosas primeiras audições resultaram desse conjunto de concertos:

a) de Debussy: a Sonata para violino e piano; a Sonata para harpa, flauta

e viola; a Sonata para piano e violoncelo; En Blanc et en Noir para piano a

4 mãos; diversas melodias (dentre as quais as Chansons de Bilitis e as

Trois Chansons de France) para canto e piano; entre as primeiras audições

de obras para piano destacam-se: L’Isle Joyeuse, alguns Estudos ( “Sixtes”

e “ Arpeges Composés” );

b) de Ravel: o Trio para piano e cordas, Ma Mére L´Oye, para piano a 4

mãos, e a Sonatina;

c) de Erik Satie: Quatre Morceaux en forme de Poire;

d) de Milhaud: a Sonata para dois violinos e piano, a 2ª Sonata para piano

e violino, os Poemas de Tagore para canto e piano;

e) de outros autores franceses: peças para piano de Charles Koechlin

(Chanson des Pommier en Fleur, Chant de Pêcheurs) e Deodat de Severac

(Sur l´Etang le Soir, e A Cheval dans la Prairie);

f) de autores brasileiros: Au coeur les souvenirs pleurent confusement para

piano e a 1ª Sonata para piano e violino de Oswaldo Guerra; e, sobretudo,

Le Miracle de la Semence de Alberto Nepomuceno.

96
A participação de Nininha nesses concertos foi predominante, tanto como

solista (obras de Debussy, Ravel, Oswaldo Guerra, Koechlin e Deodat de Severac, assinaladas

acima), quanto em obras de câmara:

a) com Milhaud ao violino: o Trio de Ravel, as Sonatas para piano e

violino de Couperin, Cesar Franck, Debussy, Oswaldo Guerra e Milhaud;

ao piano a 4 mãos, Ma Mere L’Oye de Ravel e Morceaux en forme de

Poire de Satie210;

b) com outros intérpretes: Deux poèmes de Tagore de Milhaud, Beau Soir,

Trois Chansons de France, Noel pour les Enfants qui n´ont plus de Maison

de Debussy, com o cantor Carlos de Carvalho; En Sourdine, Fantoches e

Trois Chansons de Bilitis com a cantora Regis de Oliveira; En Blanc et

Noir para piano a 4 mãos, de Debussy, com seu pai Godofredo Leão-

Veloso; a Sonata para piano e violoncelo de Debussy, com Alfredo

Gomes.

210
Na entrevista (O.R.T.F., 1978) de Oswaldo Guerra a Francine Bloch e Madeleine Milhaud, Oswaldo e
Madeleine elogiam a qualidade da sonoridade de Milhaud ao piano (sonorité de compositeur, segundo
Madeleine), apesar do seu instrumento ser o violino (no qual, surpreendentemente Madeleine Milhaud declara
que ele era apenas correto).

97
.
TABELA 4 - CONCERTOS REALIZADOS COM O CONCURSO DE DARIUS MILHAUD (1917-18)

OUTROS MÚSICA
DATA LOCAL MÚSICOS MODERNA OBRAS JORNAIS
1917 30/VI Salão Nobre D. Milhaud M. Ravel Sonatina J. do Comércio: 1/VII
J. do Comércio Nascimento Fo D. Milhaud Sonata piano/2 viol. A Noite: 3/VII
H. Oswald C. Koechlin Ch. Pommiers en fleur J. do Brasil: 2/VII
M. Caminha C. Koechlin Ch. De pecheurs Gazeta de Notícias: 2/VII
Nepomuceno Miracle de la Semence
(1ª aud.)
Nininha V. G. Com as Crianças n. 2
Oswaldo G. Au coeur les souvenirs
pleurent confusemment
7/VII Lycée Français C. de Carvalho D. Milhaud 2a Sonata piano/ violino J. do Comércio: 6/VII
D. Milhaud D. Milhaud 2 Poemes de Tagore ? : 8/VII
M.A. Moura Castro Debussy Noel pour les enfants
Eric Satie Morceaux en forme de poire
9/VII I. N. de Música D. Milhaud D. Milhaud Sonata piano/2 violinos
M. Caminha
24/III Palácio Cristal
1918 (Petrópolis) D. Milhaud D. Milhaud 2a Sonata piano/ violino Correio da Manhã: ?

Ravel Ma Mere L´Oye


Debussy Images I: n. 1
Preludes I: ns. 8 e 9 ? : 8/VII
2/V Salão Nobre Godofredo L.V. Debussy Sonata piano/violino O Jornal ("R.B."): 7/V
J. do Comércio
Srª.Regis de Oliveira Sonata alto/harpa/violino A Noite ("E. de M."):
(“Festival Cl. Darius Milhaud 3 Chansons de Bilitis Gazeta de N. ("T.G."):
Debussy”)
Nicanor Nascimento ( outras melodias) Arte: ?/V
Carlos Damasco En Blanc et en Noir Correio da Manhã:
L´Isle Joyeuse ? : Julio Reis s.d.
Preludes II: ns 8 e 9 Notícia: Guy de M.
17/VII Lycée Français Srª.Regis de Oliveira Sonata piano/ cello O Jornal ("R. B."): 18/VII
(“2º Festival Darius Milhaud Sonata alto/harp/viol.
Cl. Debussy”)
Nicanor Nascimento 3 Chansons de Bilitis
Carlos Damasco Etudes I: nºs. 4 e 12
Alfredo Gomes
30/VIII Salão Nobre Darius Milhaud Debussy 3 Chansons de France J. do Comércio:
J. do Comércio
Carlos Carvalho Oswaldo G. Sonata piano/violino O. Guanab. : 31/VIII
( I. N. Música) Alfredo Gomes D. Milhaud 2a Sonata piano/viol. Noticia: ("Guy de M."):
31/VIII
Ravel Trio: piano/violino/cello Gazeta – ("T.G."): s.d.
T. São Salvador Darius Milhaud Debussy Sonata piano/violino 4 recortes não identificados
6/X (Campos) de jornais de Campos
Srª. H. Hoppenot Debussy Estampes: ns. 2 e 3
Ravel Ma Mere L´Oye

98
3.2.3 Concertos de Nininha Guerra, após a partida de Darius Milhaud (1919)

Entre a partida de Milhaud, em novembro de 1918, e a chegada dos Guerra

à França em setembro de 1920, Nininha prosseguiu - com interrupções resultantes do

nascimento de seu segundo filho - uma atividade concertística vinculada à difusão da música

moderna. Segundo os programas existentes no Arquivo Paul Guerra, os principais concertos

foram:

a) no Salão Nobre do Jornal do Commércio (21/IX/1919): nesse concerto

de câmara, com a participação da violinista Paulina d’Ambrosio, do

violista Orlando Frederico e do violoncelista Alfredo Gomes, foram

realizadas as primeiras audições brasileiras do Quarteto com piano de

Vincent d’Indy, a Sonata para piano e violino de Albert Roussel, e com a

cantora Nair Tem Brinck dois Poemas de Lucile de Chateaubriand de

Milhaud, e Le Repas Preparé de Koechlin; como solista, Nininha

apresentou diversas peças de Debussy e a primeira audição mundial de

duas peças da coleção Printemps (que lhe são dedicadas) de Milhaud;

b) no Teatro Municipal do Rio de Janeiro (29/X/1919): um recital com a

mesma dosagem de seu recital anterior, de 1916; entre o repertório

tradicional (Beethoven, Chopin e César Franck) e moderno (Severac e

Debussy);

c) no Teatro Municipal (12/XI/1919): participou de um concerto

inteiramente dedicado a Villa-Lobos, com vários intérpretes, no qual deu a

99
primeira audição mundial – como solista – de três peças do compositor:

“Kankikis”, que lhe é dedicada, das Danças Africanas; “Uma camponesa

Cantadeira” da Suíte Floral; e “Valsa Mística” da Simples Coletânea.

Deve-se notar que, nesse período, algumas peças de Nininha foram

apresentadas por outros intérpretes: duas das peças de Com as Crianças pela pianista Heloisa

Accioli de Brito (em 11/XI/1919, em recital no Teatro Municipal), e duas Esquisses para

piano no Concert de Musique Brésilienne, no Teatro do “Vieux Colombier “(13/IV/1919), por

Darius Milhaud. Portanto, às vésperas de partir para Paris, Nininha era – apesar da sua pouca

idade - uma pianista com quase quinze anos de experiência com música de câmara (que fazia

com os melhores instrumentistas da época, tais como o violoncelista Alfredo Gomes ou a

violinista Paulina d’Ambrosio) e de apresentação em público211: um concerto com orquestra

(quando realizou em 1914 a primeira audição das Danses Sacrées et Profanes de Debussy,

sob a regência de Francisco Braga), dois importantes recitais (1916 e 1919), e participado de

mais de quinze concertos como solista ou em obras de câmara, resultando num extraordinário

elenco de primeiras audições brasileiras (Debussy, Ravel, Satie, Koechlin) e mundiais

(Milhaud, Oswaldo Guerra e Villa-Lobos), realizadas no curto período entre 1914 e 1919.

O quadro a seguir permite situar o papel de intérpretes brasileiros (entre os

quais Nininha Veloso-Guerra) e estrangeiros na difusão de obras de câmara e para piano de

Debussy e Ravel, nas duas primeiras décadas do século XX:

211
Desde os 11 anos de idade, em 1907, acompanhando Cernicchiaro em Sonatas para piano e violino de
Mozart, e com um repertório de piano já incluindo as Arabesques de Debussy, nos “Concertos Íntimos”
organizados por seu pai.

100
TABELA 5 - DEBUSSY / RAVEL: 1ªS AUDIÇÕES NO BRASIL DE OBRAS PARA PIANO E DE CÂMERA

DATA PIANO CÂMERA MÚSICA

1904 MR Jeux d'Eau [1901] Antonieta Rudge


CD Estampes [1903] n. 3 Antonieta Rudge

1909 CD Images I [1905] n. 3 Antonieta Rudge

1910 CD Estampes [1903] 1, 2, 3 Antonieta Rudge


CD Preludes I [1910] ns. 5, 8 Antonieta Rudge
CD La pl- q. Lente [1910] Antonieta Rudge
CD Ar. Oubliées [1888] n. 2 Antonieta Rudge
MR Miroirs [1905] n. 6 Antonieta Rudge

1913 MR G. de la Nuit [1908] Antonieta Rudge


CD Preludes II [1913] 8, 11, 12 Antonieta Rudge
CD Suite Bergam [1890] n. 3

1916 Children´s Corner Nininha Veloso-Guerra

1917 MR Sonatina [1905] Nininha Veloso-Guerra

1918 CD Preludes II [1913] n. 9 Nininha Veloso-Guerra


CD L'Isle Joyeuse [1904] Nininha Veloso-Guerra
CD 3 Ch. De Bilitis [1897] 1, 2, 3 N. Veloso-Guerra / al
CD Fêtes Galantes I [1892] ns. 1, 3 N. Veloso-Guerra / al
CD 3 Ch. de France [1904] N. Veloso-Guerra / al
CD Noel des Enf. [1915] N. Veloso-Guerra / al
CD En Blanc&Noir [1915] N. V-G / G. Leão-Veloso
CD Son. Alto/fl/harpa [1916] Milhaud / al
CD Son. Piano/viol. [1917] NVG / Milhaud
MR Ma Mère L'Oye [1908] NVG / Milhaud
MR Trio c/ piano NVG / Milhaud / al
CD Images I [1905] n. 2 Arthur Rubinstein
CD Images II [1907] n. 3 Arthur Rubinstein
CD Preludes I [1910] 8, 1 Arthur Rubinstein
CD Preludes II [1913] n. 7 Arthur Rubinstein
CD Masques [1904] Arthur Rubinstein

1919 CD Etudes [1915] Nininha Veloso-Guerra

Nota-se, por um lado, a importância da atuação dos alunos de Luigi

Chiaffarelli em São Paulo – particularmente da pianista Antonieta Rudge212 - e por outro que,

212
Nos “Concertos Históricos” e “Saraus Musicais”, organizados por Chiaffarelli, Antonieta Rudge havia
apresentado em 5/VIII/1904: “Jardins sous la pluie” das Estampes de Debussy e Feux d’Artifice de Ravel; em
7/IV/1910, a série completa das Estampes; entre 1909-1913, peças das Images e dos 2 cadernos de Prelúdios de

101
diversas primeiras audições realizadas por ela e Nininha, precedem os concertos que Arthur

Rubinstein realizaria no Rio em 1918, conforme refletido nas seguintes críticas de jornais

cariocas:

Os admiradores do grande pianista Arthur Rubinstein não deixaram vaga uma só


das localidades do Municipal, de onde têm acompanhado a série de concertos que
ele vem realizando aqui [...] A 2ª. Parte do programa continha dois números de
Scriabine, um deles, Vers de flamme, paupérrimo de inspiração, de originalidade e
de interesse; e cinco de Debussy, alguns dos quais não despertaram no público o
entusiasmo com que recebem as obras do genial músico francês: não porque sejam
peças que desmereçam entre as do imortal autor de Pélleas et Mélissande, mas
talvez porque o público já tenha ouvido algumas delas, através da execução
impecável, surpreendente pela compreensão de que se reveste, maravilhosa
pela segurança dos dedos que a tocam – a execução dessa grande pianista
brasileira, que ainda não vimos suplantada como intérprete de Debussy, a Sr.ª
Nininha Leão Veloso Guerra [“T. G.”, “Gazeta”, 30/VI/1918].

No Teatro Municipal, ouvimos ontem o Sr. Arthur Rubinstein pela quinta vez,
admirando-lhe sempre as mesmas qualidades de técnica e a variedade da sua
palheta no colorido das sonoridades [...] O célebre pianista fez jus a muitos
aplausos na sarabanda Hommage a Rameau [...] apresentando uma caudal de
alegrias com L’Isle Joyeuse, de que a insigne pianista Nininha Veloso-Guerra
nos deu há pouco tempo, uma impressão inolvidável de brilho, de riqueza de
efeitos policrômicos. (Rodrigues Barboza, “O Jornal”, junho de 1918).

Debussy, assim como a “Alborada del Gracioso” dos Miroirs; em 1913, Gaspard de la Nuit de Ravel. [ver
Junqueira, 1982: Anexos].

102
3.2.4 Concertos Nininha Veloso-Guerra em Paris (1920-1921)

TABELA 6 - CONCERTOS NININHA VELOSO GUERRA EM PARIS: 1920-21

DATA LOCAL OUTROS REPERTÓRIO OBRAS JORNAIS


MÚSICOS CONCERTOS

1920 29/XI Galerie Montaigne Darius Milhaud Milhaud Saudades do Brazil


(“Premier concert Georges Auric Milhaud 2ª Sonata piano/violino
du Groupes des Six”)
Marcelle Meyer Honegger
Fernande Capelle Auric
Tailleferre
Durey

1921 26/I Hotel Majestic Varella-Cid Milhaud Boeuf sur le toit (4 mãos)
(“Une Heure de
Musique”)
Emilia Melo Viana A. Levy Tango Brasileiro
Raul Costa H. Oswald Il Neige

26/I Galerie Devambez Diversos Nininha V. G. Esquisse


(“Salon del’Oeuvre
Anonyme”)

1/II Salle Pleyel Corbiniano Vilaça Oswaldo Guerra Prelude (1920) Roland-Manuel:
3/II
("Concert de Oswaldo Guerra Oswaldo Guerra Oraison
musique brésilienne
et française”)
Debussy Images II: n.3
Debussy Preludes I: ns 4 e5
Chabrier Aubade/Idylle

15/III Le Figaro Diversos Debussy Images II: n.3 Figaro: 16/III


(“Five o’clock du
Figaro”)
Darius Milhaud Tango

16/IV Salle Pleyel Recital Cesar Franck Chorale 3 Comoedia: 27/IV


(P. Le Flem)
Beethoven Sonata op. 27 n. 1
Chopin Barcarolle; Valse op. 42
Chopin Balada n. 3 New-York
Herald: 18/IV
Poulenc Mouvements perpetuels
Chabrier Idylle
Debussy Images II: n.3
Debussy Etudes I : n 12
Debussy L´Isle Joyeuse
Milhaud Tango; Printemps

103
A estada de Nininha em Paris - que terminaria de forma dramática com sua

morte, pouco mais de um ano após sua chegada - começou de forma espetacular: poucos

meses após sua partida do Brasil, participava com destaque no histórico “Premier Concert

donné par le Groupe des Six” na “Galerie Montaigne” (29/XI/1920), dando a primeira

audição mundial de quatro peças das Saudades do Brazil213 (entre elas “Leme”, dedicada a

ela), e tocando a 2ª Sonata para piano e violino de Milhaud, cuja primeira audição mundial

ela havia dado no Rio de Janeiro, em 1917. Nesse concerto, onde foram também realizadas

primeiras audições mundiais de Arthur Honegger, Germaine Tailleferre e Georges Auric,

Nininha e a legendária Marcelle Meyer eram, entre os executantes, os únicos pianistas não

membros do “Grupo dos Seis”.

Nos seis meses entre esse concerto e o seu recital na Salle Pleyel

(16/IV/1921), período ao longo do qual seu quadro de saúde foi se agravando, Nininha

participou de diversos concertos “coletivos”, cujos programas constam do Arquivo Paul

Guerra: Hotel Majestic - “Une Heure de Musique” (26/I/1921), Galerie Devambez - “Salon de

L’Oeuvre Anonyme” (26/I/1921), Salle Pleyel - “Concert de Musique Brésilienne et

Française” (01/II/1921), Le Figaro - “Five o’Clock”.

Os dois concertos mais significativos foram o do Hotel Majestic, no qual -

além de peças de Alexandre Levy, Henrique Oswald, Chabrier e Chopin - Nininha tocou
214
juntamente com o pianista Varella-Cid a versão a 4 mãos do Le Boeuf sur le Toit , e na

Salle Pleyel conjuntamente com o cantor Corbiniano Vilaça, que cantou uma obra de

Oswaldo Guerra (acompanhado ao piano pelo autor), onde Nininha executou obras de

213
Na conversa radiofônica entre Oswaldo Guerra, Francine Bloch e Madeleine Milhaud, esta declara a
Oswaldo: “Ninguém jamais tocou a Saudades como sua mulher” (O.R.T.F., 1978, T. do A.).
214
Significativamente, com o subtítulo Cinema–Symphonie sur des airs bresiliens, ao invés de Cinema-
Symphonie sur des airs sud-americains, como consta da partitura.

104
Chabrier, Oswaldo Guerra e Debussy; desses concertos, o único no qual apresentou obra sua

foi no “Salon de L’Oeuvre Anonyme”, com uma de suas Esquisses para piano.

Esses concertos tiveram algum reflexo na crítica. No “Figaro”, de

16/III/1921, lê-se o seguinte comentário, a respeito da apresentação de Nininha no “Five

o’Clock”:

Ao receber a Senhora Nininha Veloso-Guerra, o “Figaro” tinha o prazer de acolher,


não apenas uma grande artista, mas também uma fervorosa amiga da França.
Brasileira, a Senhora Veloso-Guerra contribuiu poderosamente no Rio de Janeiro
[...] a fazer conhecer e amar a música francesa. Filha do mestre Veloso-Guerra,
professor no Conservatório do Rio, que por sua vez havia sido um aluno de
Delaborde, ela havia aprendido na sua família o gosto por nossos músicos. Ontem,
ela executou sucessivamente um tango de Darius Milhaud e Poissons d’Or de
Claude Debussy, e nós podemos admirar juntamente com o seu virtuosismo o
sentimento delicado, nuance que ela trouxe na interpretação dessas obras.215

Em relação ao concerto na “Salle Pleyel”, em 1921, Roland-Manuel comentou:

No mesmo concerto, a senhora Nininha Veloso Guerra, pianista inteligente e de


grande finura fez aplaudir, juntamente com a música de seu marido, algumas obras
primas de Chabrier e de Debussy, que não se conseguiria interpretar com uma
compreensão mais graciosa.216

Quanto ao último concerto de Nininha, seu recital na “Salle Pleyel” foi

basicamente moldado em seu último recital no Teatro Municipal: iniciando-se com Franck,

Beethoven, Chopin, e concluindo com L’Isle Joyeuse de Debussy. As poucas alterações foram

obras de Poulenc (Mouvements Perpetuels) e Milhaud (Printemps, e um Tango em 1ª

audição). Entre as críticas:

215
In Arquivo Paul Guerra: O texto original em francês encontra-se no Volume I, Anexo 1 , seção “ Críticas
França”.
216
Ibid.

105
Na Salle Pleyel, no sábado passado, apreciamos muito o talento de uma jovem
pianista brasileira, a senhora Nininha Veloso-Guerra. Esse talento é feito de senso
de medida, bom gosto, estilo sóbrio e nuance: poucas mulheres interpretando
Chopin, por exemplo, nos habituaram a esta simplicidade elegante que nos
encantou. O programa [...] ia de Beethoven a Francis Poulenc, passando por
Chopin, Franck, Chabrier, Debussy, Darius Milhaud; tivemos a ocasião de
constatar que a artista soube moldar suas belas qualidades para servir com a mesma
devoção às intenções de autores tão distantes entre si [New York Herald,
18/IV/1921].

A senhora Veloso-Guerra obtém um equilíbrio igual entre clássicos e modernos. As


simpatias dessa artista, cuja maneira de tocar é fortemente expressiva, são
manifestamente em favor dos modernos. Ela confere frescor ao Idylle de Chabrier,
elegância aos Mouvement perpetuels de Poulenc, ritmo e colorido a um Tango de
Darius Milhaud, dado em primeira audição. Dentre as três peças de Debussy,
inscritas no programa, eu gostei muito especialmente da interpretação de L’Isle
Joyeuse, com o único reparo de que o final requeria uma interpretação mais
calorosa [Paul Le Flem, “Comoedia”, 27/IV/1921].

A Senhora Guerra é brasileira e nós lhe somos devedores fato de ela ter feito
conhecer e apreciar no seu país a maior parte das obras importantes de piano e de
música de câmara dos compositores contemporâneos - de Debussy ao “Grupo dos
Seis”. O programa do recital era extremamente variado [...] A maneira de tocar da
senhora Guerra era inteiramente feito de sutileza e inteligência. O equilíbrio das
sonoridades é quase sempre dosado e mantido com uma segurança que vem da
extrema facilidade de seus dons. Mas foi, sobretudo, na segunda parte do concerto,
que nós tivemos a oportunidade de admirar as suas qualidades, pois consistia de
músicas que convêm especialmente bem ao estilo pianístico da jovem brasileira [...]
[“G. J.”, “Courrier Musical”, 15/VI/1921]217.

O agravamento dramático da saúde de Nininha cortaria em pleno vôo suas

atividades e projetos: terá sido particularmente dolorosa sua impossibilidade de assistir às

representações do balé L’Homme et son Désir em junho de 1921, obra da qual tanto

participou, e da qual foi a principal “ouvinte” e interlocutora de Milhaud, ao longo de sua

elaboração no Rio de Janeiro.

Se a atividade pianística de Nininha em Paris foi apenas uma promessa

(considerando-se, notadamente, sua participação no “Premier Concert des Six”), no Brasil ela

teve uma grande significação: poucos artistas brasileiros terão tido um papel, na difusão da

música de seu tempo (no caso, a música de Debussy e da moderna escola francesa),

comparável à que desenvolveu nos seis anos entre 1914 e 1919, tornando-se ao mesmo tempo

106
um ponto de referência importante no desenvolvimento de dois jovens compositores que

viriam a marcar a música do século XX: Darius Milhaud e Heitor Villa-Lobos.

A profunda vinculação de sua imagem à de Debussy, no Brasil do entorno

da 1ª Guerra Mundial, era ao mesmo tempo resultante de sua participação na realização desse

conjunto tão abrangente de primeiras audições, e da percepção da sua condição de

“compositora”, fortemente envolvida com o modernismo musical francês218. É sintomática

dessa imagem, o seguinte comentário da “Ilustração Brasileira”, por ocasião da morte de

Nininha:

Mais um vulto artístico de valor incontestável desaparece na sombra da morte,


deixando um vácuo difícil de ser preenchido. Mme. Veloso Guerra, que faleceu a
pouco em Paris era uma das mais raras criaturas privilegiadas pela natureza com as
qualidades que constituem o verdadeiro artista – vocação e intuição – auxiliadas
por uma bem disciplinada técnica. Nestas condições era a desejada embaixatriz que
poderia o Brasil enviar ao estrangeiro para estabelecer um intercâmbio artístico que
mostraria ao velho mundo o pouco que podemos apresentar sem influências das
outras escolas [...].

3.3 - COMPOSIÇÕES E ESBOÇOS

3.3.1 A Coleção Para Piano Com as Crianças

217
Ibid.
218
Dentre as poucas declarações de Nininha a esse respeito, recolhidas na imprensa, podem ser destacados os
seguintes trechos de entrevista (em “A Época”, 19/VI/1918): “Não existe dissonância [em Debussy]; a música de
Debussy é música e a melodia destaca-se pertencendo ao mesmo tempo ao conjunto e vivendo com ele,
integralizando-se e tomando naturalmente o relevo próprio e inconfundível. A primeira condição para se
executar bem um trabalho de Debussy é não o julgar difícil, incompreensível. Não pode bem interpretar quem
tem preconceitos: o preconceito aniquila o sentimento. Penso que a música de Debussy será em pouco tempo
considerada clássica [...] Em Debussy não existem rubatos, frases brilhantes, exageros, e sim sentimento e
emotividade. Às vezes ele exige contrastes, contrastes que devem ser seguidos, pois tudo na sua música vêm
naturalmente e vive na sua harmonia e na sua elegância [...]”. O jornalista Virgílio Maurício comenta a respeito
de Ravel que: “Existem quem afirme que a obra do ilustre compositor é um reflexo positivo daquela de Debussy,
o que é falso. Existe apenas uma influência, e que não é de admirar”. Ao que Nininha responde: “A estética de
Ravel e o seu ponto de vista melódico diferem totalmente do de Debussy”.

107
Com menos de 20 anos de idade, em 1913, Maria Virginia Leão-Veloso

compôs uma coleção de peças para piano intitulada Com as Crianças editada pela casa

Bevilacqua em 1914 e que, provavelmente, constitui a primeira obra impressa brasileira

apresentando características francamente modernistas (ver Exemplos 12a, 12b, 12c, págs. 125

a 128) Apesar de sua composição ser contemporânea das coleções infantis de Villa-Lobos

Petizada, Brinquedos de Roda e Suíte Infantil, essas só seriam publicadas após a Primeira

Guerra Mundial.

Os exemplos abaixo são extraídos de duas peças da coleção Com as

Crianças (1913, ed. Arthur Napoleão), e se utilizam de escala de tons inteiros, atritos bitonais,

paralelismo de acordes, efeitos de ressonância.

Exemplos 7a – peça n. II: “Com as Bonecas em Dança” compassos 41-42

Exemplos 7b – peça n. II: “Com as Bonecas em Dança”, compasso 45

108
Exemplos 7c – peça n. II: “Com as Bonecas em Dança”, compassos 48-49

Exemplo 7d – peça n. II: “Com as Bonecas em Dança”, compassos 59-60

Exemplos 8a – peça n. III: “Histórias da Babá”, compassos 2-3

109
Exemplos 8b – peça n. III: “Histórias da Babá”, compassos 9-12

Exemplos 8c – peça n. III: “Histórias da Babá”, compassos 18-19

3.3.2 Manuscritos autógrafos existentes no Arquivo Paul Guerra

3.3.2.1 Juvenilia

No Arquivo Paul Guerra, existem três curtas peças datadas de 1906 e 1907,

portanto, escritas por Nininha entre os 11 e 12 anos de idade. Dentre essas peças, duas são

escritas para piano: a primeira (datada de 1906), em ritmo ternário (evocando uma

“Courante”), tem 36 compassos; a segunda (datada de 1907), em ritmo binário, com 34

110
compassos, é claramente uma “Musette”, evocando a gaita de fole, com o característico drone

de 5as justas (sem 3ª) no acompanhamento.

A terceira peça Jeannon et Suzette (com o subtítulo “Musette”), e escrita

para voz e trio de sopros, foi apresentada em 1908 pelo cantor Larrigue de Faro – a quem é

dedicada – acompanhado ao piano por Nininha. O aspecto mais notável, no caso específico

dessa peça, é primeiramente o seu relativo grau de complexidade: escrita para voz e

acompanhamento instrumental; transcrição instrumental do acompanhamento pianístico para

oboé, clarineta em si bemol (incluindo, portanto, um instrumento transpositor) e fagote. Por

outro lado, a peça é reveladora da originalidade dos métodos pedagógicos de Godofredo, ao

treinar um aluno – no caso, numa idade tão precoce – a pensar simultaneamente o plano da

realização pianística e o da transcrição para outros instrumentos, característica que – como se

verá adiante – acompanhará diversos trabalhos futuros de Nininha.

3.3.2.2 Três peças para orquestra

O Arquivo Paul Guerra também contém três peças orquestrais, escritas

entre março de 1916 e janeiro de 1917, portanto, no período de um ano antecedendo a

chegada de Darius Milhaud ao Brasil. Os manuscritos das três peças revelam uma

característica comum: a de serem inicialmente concebidas numa particella, para dois pianos.

No caso das duas primeiras peças, Berceuse e Minuete, os manuscritos para piano a 4 mãos e

para orquestra estão completos, enquanto a terceira peça – a mais desenvolvida – está

incompleta e contém apenas a versão para piano a 4 mãos (ainda que com numerosas

indicações orquestrais). As duas primeiras peças, e presumivelmente a terceira, são escritas

para uma orquestra de vários naipes: Cordas (1º e 2º violinos, violas, violoncelos,

111
contrabaixo), Madeiras (flauta, oboé & corne inglês, clarineta e fagote), Metais (trompa em fá

e trompete) e Harpa219 (ver Exemplo 9 pág. 120: Berceuse, versão orquestral, 1ª página).

Algumas características parecem denotar, na composição das três peças, um propósito de

“exercício de orquestração”: o curto lapso de tempo entre a composição (na particella a 4

mãos) e a orquestração: tanto no caso da Berceuse quanto do Minuete, a orquestração foi

concluída no mesmo mês da composição (março de 1916 para a Berceuse, e abril de 1916

para o Minuete); com exceção da 3ª peça Nocturne, a ausência da preocupação

“experimental” tão presente na coleção Com as Crianças, escrita três anos antes. Enquanto o

Nocturne é fortemente “debussista” (entretanto, com menos ousadias que em Com as

Crianças), as outras duas peças parecem mais próximas da linguagem de Chabrier:

a) Berceuse: essa peça, em ritmo ternário, com a indicação “Lentamente”

(na particella) e “Andante” na versão orquestral, tem 54 compassos e se

apresenta no Arquivo Paul Guerra em dois manuscritos: quatro páginas na

versão para dois pianos e cinco páginas na versão para orquestra. Ela pode

ser subdividida em três partes (ABA): uma primeira seção na tonalidade

principal (La M), onde é exposto o material melódico (12 compassos); uma

segunda parte (14 compassos), onde o mesmo material temático é

desenvolvido em tonalidades contrastantes, retornando à tonalidade inicial

com uma recapitulação modificada da 1ª seção. Na orquestração, nota-se o

uso dos “divisi” nas cordas;

b) Minuete: essa peça em ritmo ternário com a indicação “semínima =

132”, contém 48 compassos e se apresenta em dois manuscritos: quatro

219
Com adição de celesta e triâgulo no Minuete.

112
páginas na particella (com numerosas indicações de orquestração) e oito

páginas na versão orquestral. Segue um plano em três partes (ABA’),

próximo ao da Berceuse. A orquestração é muito semelhante, com a adição

de celesta e triângulo, e sem uso de “divisi” nas cordas;

c) Nocturne: o manuscrito (cinco páginas) de Nocturne, com a indicação

“Andante molto lento”, é datado de janeiro de 1917 e consiste de 44

compassos. A particella para piano a 4 mãos contém diversas indicações

orquestrais: “Harpa“ e “Viola”, na introdução; “Violino”, “Cordas” e

“Madeiras”, na seção principal. Apesar de incompleta, trata-se de uma peça

extremamente expressiva e de grande interesse musical, e que parece

diretamente pensada para orquestra, com uma textura muito mais próxima

de obras como Danses Sacrées et Profanes de Debussy ou Introduction et

Allegro de Ravel, que das obras pianísticas desses compositores. Assim

como Com as Crianças, constitui o primeiro conjunto de peças para piano

escritas no Brasil, apresentando uma total assimilação do Modernismo

francês, Nocturnes parece ser – juntamente com o Naufrágio de Kleonicos

de Villa-Lobos - a primeira peça orquestral, claramente marcada pelo

“debussismo”, escrita no Brasil. Entre os aspectos mais salientes podem ser

destacados: a extrema mobilidade harmônica, onde são numerosos os

encadeamentos paralelos a intervalos não diatônicos (ver Exemplo 10, pág.

122: Nocturne, compassos 20 e 23); a freqüência dos acordes de 7ª e 9ª

(pág. 122, compassos 20 a 25); o modalismo e uso da escala de tons

inteiros; e a criação de “atmosferas”, que resultam da superposição de

113
texturas contrastantes (pág. 121: compassos 1 a 12; págs 122 e 123:

compassos 20 a 34).

3.3.2.3 Variations (peu sérieuses) sur un thème serieux de Darius Milhaud

Essa peça incompleta para piano a 4 mãos se apresenta em 3 manuscritos

distintos, no Arquivo Paul Guerra (sendo que uma contém a indicacão “pour le jour de son

anniversaire” - o que permite datá-la como anterior a um 4 de setembro), num total de 30

compassos, e consistindo apenas de 2 variações. O “tema sério” de Milhaud é o tema inicial

do 4o Quarteto de cordas, composto no Rio de Janeiro em 1918, ano mais provável de

datação dessas variações. Seu principal interesse reside na utilização extensiva da

politonalidade. Enquanto no “experimento” de Nepomuceno, a bitonalidade consistia da

superposição de desenhos melódicos curtos entre teclas pretas e brancas (ver Capítulo I,

págs 40-41), nesses esboços, Nininha Veloso Guerra aplica a técnica (posteriormente

teorizada por Milhaud, em 1923, no artigo “Polytonalité et Atonalité”) de formação de

novos agregados harmônicos, através da superposição de acordes perfeitos (Maiores e

Menores), não redutíveis a uma mesma escala diatônica (ver Exemplo 11, pág. 124, 1ª

Variação e o início da 2ª Variação nos compassos 22-23).

3.3.3 Outras Composições

Com exceção da coleção para piano Com as Crianças apresentada em

concerto diversas vezes entre 1914 e 1919, Nininha não publicou nenhuma de suas outras

obras.Os programas de concerto e a correspondência de Milhaud apontam para a existência de

outras obras suas que, entretanto, não foram localizadas. Entre essas, destacam-se:

114
3.3.3.1 Para canto e piano

a) Spleen: apresentada em concerto em 16/IX/1914, no “Salão Nobre do

Jornal do Commércio”, e que fez parte da exposição de partituras (cedidas

pelo Conservatório Dramático e Musical de São Paulo), realizada durante o

Congresso da Língua Nacional Cantada, em 1937;

b) Poussiére: mencionada na correspondência (carta de 01/IX/1919) de

Milhaud aos Guerra como analisada conjuntamente por Koechlin e

Milhaud, e que teria sido objeto de uma carta de Koechlin a Nininha.

Milhaud escreveu o seguinte comentário para Nininha: “Gosto muito desta

melodia e penso que se a senhora Guerra retocasse ligeiramente os poucos

locais assinalados por Koechlin, cuja opinião compartilho, ficaria

charmant”.

3.3.3.2 Para piano

a) Epigramas: apresentados por Milhaud, a bordo do navio “Lorraine”, em

13 de fevereiro de 1919, e no Concert de “musique bresiliénne”, em abril

de 1919. Milhaud submeteu esses Epigramas ao SMI, porém foram

recusados por constituir uma série demasiadamente curta para um

programa de concerto;

b) Esquisses: apresentada por Nininha em concerto de “L´Oeuvre

Anonyme”, em janeiro de 1921.

115
3.4 - TRANSCRIÇÕES DE OBRAS DE DARIUS MILHAUD

Se as composições de Nininha, anteriores à chegada de Milhaud, tais como

Com as Crianças, Spleen e os esboços de Noturno, revelam uma grande familiaridade com o

Modernismo Musical francês, as transcrições para piano a 4 mãos - que realiza entre 1917 e

1921 de obras importantes de Milhaud, tais como o 4º e 5º Quartetos de Cordas, mas,

sobretudo, do balé sinfônico L´Homme et son Désir - constituem uma impressionante imersão

numa música, então, fortemente “experimental”.

3.4.1 Os Quartetos de Cordas

Em relação ao Quarteto de cordas nº 4, o Arquivo Paul Guerra possui o

manuscrito autógrafo (9 páginas) do 1º movimento, assim como a 1ª prova do editor da

totalidade dos três movimentos do Quarteto, com numerosas correções e observações

manuscritas. Composto no Rio em 1918, apresenta uma politonalidade pouco agressiva

baseada predominantemente em contrastes bitonais (ver Exemplo 13a, pág. 130: 4º Quarteto

de Cordas, 1º movimento, 1ª página, manuscrito; Exemplo 13b, pág. 131, compassos 57 a

73). Em compensação, o Quarteto nº. 5 (do qual o Arquivo Paul Guerra possui unicamente a

edição original) dedicado a Arnold Schoenberg, constitui um dos experimentos mais radicais

de Milhaud, no campo da politonalidade “linear”: o 1º movimento, notadamente, sustenta 4

polaridades tonais distintas em superposição (ver Exemplo 14a, pág. 132: 5º Quarteto de

Cordas, 1º movimento, compassos 1-27).

Se por um lado Nininha tenta preservar ao máximo a lógica polifônica

dessas obras (ver Exemplo 14b, pág. 133, compassos 1-14), o entrelaçamento e cruzamento

116
entre linhas melódicas independentes obrigam-na às vezes - na transcrição a 4 mãos - a

priorizar as relações “verticais” (ver Exemplo 14b, pág. 134: ver solução compassos 15-18).

3.4.2 L’Homme et son Désir

Dentre todas as transcrições, entretanto, a mais notável é - em vista de sua

extrema complexidade - o da “Sinfonia sobre um poema plástico de Paul Claudel”, L´Homme

et son Désir, obra na qual Milhaud recorre tanto à politonalidade “harmônica” quanto

“polifônica”220, criando texturas que vão da bitonalidade simples à utilização do total

cromático. Se era impossível reconstituir no “plano em duas dimensões” - que é uma redução

para piano a 4 mãos - o efeito de estereofonia, resultante da presença de vários grupos

independentes de instrumentos solistas, distribuídos em planos distintos no palco, Nininha

encontra, entretanto, soluções que preservam, na medida do possível, a independência de

planos tonais e pulsações que o recurso, combinado à polirritmia e à polimetria, confere à

interação entre esses grupos221. Segundo Milhaud (1949: 96):

A complexidade dessa partitura tornava praticamente impossível a redução para


piano, porém Nininha não se desencorajou e ela conseguiu realizar uma para 4
mãos; as notas se entrelaçam, mas assim mesmo consegue-se acompanhar a linha
da música.

Se examinarmos os compassos iniciais da versão original para orquestra

(ver Exemplo 15a, pág. 135), observa-se que estamos em presença de 5 grupos independentes,

cada qual numa distribuição espacial própria: um quarteto de cordas, um quarteto vocal, uma

220
Segundo a nomenclatura que emprega em seu artigo Polytonalité et Atonalité. [Milhaud, 1923].
221
Milhaud expressou sua intenção nos seguintes termos: “Eu desejava conservar uma total independência entre
esses grupos, tanto do ponto de vista melódico, tonal, quanto rítmico. Procurei realizar minhas aspirações e na
minha partitura - escrita a quatro tempos para alguns instrumentos, para outros a três, para outros a seis por oito,
etc., a fim de facilitar a execução - eu marquei uma barra de compasso arbitrária a cada quatro tempos, indicando
os acentos com a finalidade de conservar o ritmo autêntico [...] (Milhaud, 1949: 96, T. do A.).

117
seção de percussão, uma seção de madeiras, e uma seção compósita (oboé, trompete, harpa,

contrabaixo). O Grupo I (quarteto de cordas) inicia no compasso 2 um longo pedal com uma

polaridade clara em Dó Maior. No terceiro compasso, o Grupo IV (madeiras) estabelece uma

polaridade contrastante em Mi bemol Maior (ver Exemplo 15a, pág. 135) A partir do 7º

compasso, ele se desloca para a polaridade de Mi Maior, e no compasso 10, o grupo das

madeiras estabelece um cânone à distância de 3ª Maior (ver Exemplo 15a, pág. 136) com o

grupo das cordas. Essa superposição de dois pedais (cada qual a três vozes), em relação

bitonal de 3ª Maior, se estenderá até o compasso 23. A partir do 10º compasso, o Grupo V

estabelece uma nova polaridade em La bemol Maior (ver exemplo 15a, pág. 137) A partir do

compasso 15, e até o compasso 23, se estabelece um cânone duplo entre os três pedais em Dó,

Mi e La bemol Maior (este a duas vozes: oboé e trompete). Esta subdivisão da oitava em três

partes iguais resulta num gigantesco pedal (ver exemplo 15a, pág. 138), que corresponde a

uma mobilização permanente do total cromático. O efeito da polaridade em La bemol do

quinto grupo é reforçado a partir do compasso 19 pela entrada no mesmo tom do segundo

grupo (vocal). Quanto à escrita rítmica: enquanto o terceiro grupo (percussão) mantém uma

pulsação regular de quatro tempos até o compasso 24, os Grupos I, IV e V estão – na maior

parte do tempo – a três tempos, sem, entretanto, produzirem cânones rítmicos entre si. Um

problema semelhante se reproduz na seção “L” (ver exemplo 16a, pág. 141), na qual

contrastam, com a pulsação regular a 4 tempos da seção de percussão, uma pulsação em 5/8

no Grupo V e uma pulsação em 5/4 no Grupo I, produzindo um efeito de deslocamentos não

coincidentes de acentos. Na transcrição de Nininha, o contraste entre as pulsações a 3 tempos

dos Grupos I, IV e V e a 4 tempos dos Grupos II e III, na seção “A”, é resolvida com a escrita

em agrupamentos de 3 tempos, que atravessam os compassos de 4 tempos, e, através do

auxílio de acentos (ver Exemplo 15b, págs. 139 e 140); o mesmo sistema é usado na seção

“L”, através de agrupamentos de 5 colcheias que contrastam com as pulsações em semínimas

118
dos compassos em 4/4 e 5/4 (ver Exemplo 16b, pág. 142). Outro exemplo de cânone encontra-

se na penúltima seção da peça (marcação X na partitura), na qual o Grupo IV enuncia um

tema de 8 compassos imitado à distância de semi-tom, ao longo dos 12 níveis

transposicionais, e a cada 2 compassos (ver Exemplo 17, págs. 143 a 146 , após a marcação

“X”). Esse cânone no Grupo IV contrasta com pedais de acordes nos Grupos I, II e V. Apesar

da impossibilidade - em conseqüência dos numerosos cruzamentos - de preservar a identidade

dos Grupos numa transcrição para piano a 4 mãos, Nininha procura preservar a condução das

linhas melódicas sinalizando a sua condução no interior da polifonia (ver Exemplo 15b, págs.

139 e 140, para o cânone duplo da seção “A”; Exemplo 18, págs. 147 a 149, cânone à

distância de semitom, na seção “X”).

3.5 - CONCLUSÃO

A realização, no Rio de Janeiro em 1918, dessa redução, que

posteriormente seria adotada pela Editora Universal (ver Exemplo 19, pág. 150) - editora de

Milhaud e dos compositores da Escola de Viena - é reveladora da capacidade de absorção por

parte de Nininha, e do seu domínio, de uma técnica de “vanguarda”, unicamente comparável

àquela que havia sido praticada pela Escola de Viena às vésperas da 1ª Guerra Mundial, ou

nas últimas e mais radicais obras da sua “fase russa”, que Stravinski estava elaborando

naquele momento, na Suíça (Histoire du Soldat, Renard, Pribaoutki e Noces).

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IV

OSWALDO GUERRA (1892-1980)

4.1 - INTRODUÇÃO

O compositor Oswaldo Guerra foi um dos mais singulares destinos musicais

da geração de Villa-Lobos e Luciano Gallet. Aluno de Francisco Braga e Godofredo Leão-

Veloso, era um dos jovens compositores brasileiros mais em evidência222 na época da estada

de Milhaud no Rio. Dois anos antes de Villa-Lobos ter obras suas223 apresentadas em Paris, a

Sonata para violino e piano de Oswaldo Guerra já era apresentada na “Salle Gaveau” dentro

da programação prestigiosa da SMI (“Société Musicale Indépendante”), recebendo

comentários elogiosos da crítica224. Junto com Villa-Lobos, seria o compositor brasileiro mais

freqüentemente executado em Paris nos anos 20. Entretanto, ele desaparece da cena brasileira,

a partir da morte de Nininha em 1921225. Sua vida passou então a realizar-se totalmente na

222
Ver referência já citada no Capítulo II.
223
A primeira apresentação de obras (Miniaturas para canto e piano) de Villa-Lobos ocorreu em recital da
cantora Vera Janacopoulos em 20/V/1921, antecedendo de dois anos a primeira viagem de Villa-Lobos à França.
224
Darius Milhaud na Revue Musicale [1920:60]; Roland-Manuel em L’Eclair (8/II/1921): “Com Oswaldo
Guerra, voltamos aos mais belos jardins do impressionismo francês. Eu já havia escrito no ano passado sobre os
‘agréments’ de uma Sonata do Sr. Guerra, que foi muito notada por ocasião de um dos concertos da SMI” Mais
adiante na mesma crítica, referindo-se a algumas obras de Oswaldo Guerra, escritas no Brasil, e apresentadas
num concerto na “Salle Pleyel” (“Concert de musique brésilienne et française”) em 1/II/1921: “É com prazer que
reencontramos as mais preciosas qualidades do Sr. Guerra numa melodia e numa peça para piano, que dão
testemunho do bom gosto e da delicadeza de um compositor encantador, ainda emocionado com as primeiras
confidências que lhe fez a musa de Claude Debussy.”.
225
Ainda que o corte não tenha sido totalmente abrupto: em 1924, ele figura com Villa-Lobos e outros
compositores latino-americanos nas séries de concertos latino-americanos do “Musée Galliera” (28/III/1924);

151
França, cuja nacionalidade assumiu226, assinando seus trabalhos de composição e musicologia

como Oswald d’Estrade Guerra227, tendo suas composições publicadas por casas editoras

prestigiosas como Max Eschig, Heugel e Jobert, e executadas por intérpretes do quilate de

Jane Bathori 228, Ricardo Viñes 229, Monique Haas 230 e o Quarteto Parrenin 231.

Um indício particularmente sugestivo de seu alheamento da vida musical

brasileira é a existência de apenas uma menção a seu nome no conjunto dos “Fichários

Analíticos” de Mario de Andrade232. Essa menção, proveniente de uma conferência

radiofônica sobre “Música Brasileira”, proferida em 1940, pelo jornalista português Gastão

Bittencourt, em Lisboa, é extremamente elogiosa e informativa, porém o dá equivocadamente

como tendo morrido “muito novo com pouco mais de 40 anos” (Oswaldo Guerra viveria até

1980):

[...] vamos conhecer [...] outro compositor novo, que por ter vivido largo tempo no
estrangeiro, é pouco conhecido na sua pátria, não obstante seu incontestável valor. É
Oswaldo Guerra, cujas composições modernas, sem exageros, revelam um
temperamento fortemente impressionista. As suas obras são de grande sensibilidade,
graciosa, serena, revelando bons conhecimentos e segurança de técnica [...] Viveu
[...] bastante tempo em Paris, onde foi também um dos diretores da Sociedade “Pró-

nas suas Esquisses para piano, editadas em 1928 pela Max Eschig, há uma peça dedicada a Tomas Teran e outra
a João de Souza Lima; o exemplar da BN-RJ tem uma dedicatória a Luciano Gallet datada de 1930.
226
Na revista “Réactions” (Bienne, set–out de 1965), por ocasião da publicação de seu poema “La Naïade”,
apresenta-se como: “compositeur français, d’origine lusitanienne”.
227
O seu nome completo era Oswaldo Duque Estrada Tavares Guerra.
228
Cantora francesa (1877-1970). Segundo Claude Rostand: “Ela foi uma das grandes intérpretes das melodias
de Debussy, de Ravel, assim como de Erik Satie e do ‘Grupo dos Seis’. Desses últimos, no decorrer do período
heróico dos anos 20, ela realizou a primeira audição mundial de numerosas obras em concertos memoráveis e
que se tornaram históricos.”. [Rostand, 1970:25]. Jane Bathori foi a dedicatária de Clairières dans le Ciel de
Oswaldo Guerra, tendo estreado esta obra em 1927. Nos anos 50, ela dedicaria dois programas radiofônicos
(1955 e 1958) a obras vocais de Guerra.
229
Pianista espanhol (1885-1943). “Tendo residido quase que a vida toda em Paris, ele foi um incomparável
intérprete de Debussy, Ravel, Satie, Poulenc, assim como dos mestres espanhóis modernos. Ele colocou um
devotamento total, assim como uma riquíssima sonoridade a serviço da música nova do seu tempo.”. [Rostand,
1970: 238]. Defensor da obra de Oswaldo Guerra, seu aluno, tendo freqüentemente apresentado suas Esquisses
(em cuja coleção ele é dedicatário de uma peça), assim como de outras obras para piano, escritas no Brasil.
230
Pianista francesa (1909-1987), esposa do compositor Marcel Mihalovici (1898-1985). “Afirmou-se como
intérprete do repertório francês do século XX” [Marengo, 1983: 329].
231
Segundo Claude Rostand, o Quarteto Parrenin “dedicou uma parte muito importante de sua atividade à
música de vanguarda: primeiras audições mundiais de obras de W. Waltan [...] Elliot Carter, H. W. Henze [...] P.
Boulez, I. Xenakis, L. Berio, etc.” [Rostand, 1970: 170].
232
Arquivos Mario de Andrade, IEB-USP.

152
Música” e da Revista “R.I.M.D.” [...] Algumas de suas peças têm sido executadas na
França e na Suíça, como por exemplo, um seu Quarteto e uma Sonatina para oboé e
clarinete, um bailado [...] e as suas melodias têm sido cantadas por artistas de
renome, como Jane Bathori e outros. [...] Morreu muito novo com pouco mais de 40
anos, [sic]233, quando o seu talento prometia uma obra vasta, inconfundível e genial.
Max Eschig editou os seus Esquisses para piano que vamos ter o encantamento de
ouvir agora [...]234.

Na realidade, Oswaldo Guerra ainda prosseguiria suas atividades por muitos

anos e em várias frentes: como compositor, tendo suas obras periodicamente apresentadas nos
235
concertos da “Société Nationale” , como poeta contribuindo para revistas literárias236, e,

sobretudo - enquanto funcionário do Departamento de Música da Biblioteca Nacional de Paris

- aprofundaria seus trabalhos musicológicos237 sobre a obra de Debussy, dentre os quais se

destacam um artigo “clássico” sobre os manuscritos de Pélleas et Mélisande (1957)238 e um

livro sobre Debussy239 (1962) em co–autoria com Yvonne Tienot. O seu nome permanece

estatutariamente ligado ao “Centre de Documentation Claude Debussy” do CNRS (“Centre

National de Recherches Scientifiques”), através do “Fonds Oswald d´E. Guerra” (consistindo

de sua coleção de documentos relativos a Debussy).

Nascido em Paris em 22/VII/1892, de pais brasileiros, passou parte de sua juventude no Rio,

onde viveria os primeiros anos de seu casamento240 com Nininha Leão-Veloso. Era irmão

233
A publicação de “Notes sans Musique”, de Milhaud, onde este relataria em detalhes sua temporada no Rio e
seu forte contato com os Guerra, ocorreu 3 anos após a morte de Mario de Andrade; o nome de Oswaldo Guerra
talvez tenha passado desapercebido para Mario de Andrade, leitor atento da “Revue Musicale” desde seus
primórdios, apesar das referências feitas a ele por Milhaud no seu artigo “Brésil” (“Revue Musicale”, 1920);
republicado em Ariel em 1924, ressaltando a boa acolhida de sua Sonata para violinoe piano em concerto da
SMI e sua proximidade do “Groupe des Six”.
234
Bittencourt (1941:177-8), numa conferência realizada nos estúdios da Rádio Renascença em 3/V/1940,
intitulada “Mais alguns compositores brasileiros”, na qual junto com Oswaldo Guerra são tratados Luis Cosme,
Mario Camerini, Celeste Jaguaribe, Nepomuceno e Mignone.
235
Por exemplo: Monique Haas daria a versão integral das Esquisses em 1962, enquanto o Quarteto Parrenin
retomaria em 1978 o 3o Quarteto de cordas, dos quais eram dedicatários e haviam dado a primeira audição
mundial em 1959.
236
Como exemplo, o poema La Naïade, publicado em 1965, pela revista literária Suíça Réactions, ligada ao
grupo “Poésie Vivante”.
237
Entre os quais sua colaboração para o estudo (1960) de François Lesure: “Collection Musicale André Meyer”.
238
“Les Manuscrits de Pélleas et Mélisande de Claude Debussy”, La Revue Musicale (1957) – Les Carnets
Critiques.
239
“Debussy”, de Yvonne Tienot e O. d’Estrade Guerra, Henry Lemoineet Cie, Paris 1962.
240
Com a qual teria os filhos Charles [1917-1940] e Paul [1920], ambos nascidos no Rio.

153
mais moço do conhecido violinista e compositor Edgardo Guerra241. Numa reportagem sobre

Oswaldo, em 1916, sua formação era descrita da seguinte forma:

Iniciou muito cedo a sua educação musical, existindo na sua própria família um
ambiente de arte, plenamente favorável ao seu desenvolvimento. Tendo feito os seus
estudos de piano sob a direção do insigne mestre Godofredro Leão-Veloso,
matriculou-se mais tarde no I.N.M., na classe de Harmonia do professor Agnello
França, passando depois a freqüentar as aulas do Maestro Francisco Braga. (“A
Rua”, 1/VII/1916).

A presença de Milhaud no Rio, provocaria para Oswaldo e Nininha Guerra uma exposição

particularmente forte à música moderna:

a) pelo convívio próximo, através de Milhaud e Claudel, com músicos de

passagem como o regente Ernest Ansermet242, por ocasião da vinda dos

Ballets Russes 243 ao Rio em 1917244; e com Arthur Rubinstein, durante

suas longas temporadas em 1918 e 1920;

241
Violinista e compositor (1886-1952), aluno de José White e futuro professor de Claudio Santoro.
“Apresentou-se em diversas capitais da Europa, retornando ao Brasil no início do século. Consagrou-se como
intérprete, compositor e professor, atividade que desenvolveu no I.N.N. no Rio de Janeiro [...] Em 1908, Alberto
Nepomuceno incluiu nos programas da Exposição Nacional sua Suíte orquestral Esboços Sinfônicos, bem
recebida pela crítica. Suas principais composições, entretanto, foram escritas para violino.” [Marcondes, 1970:
336]. É também autor de ”Bases Racionais da técnica moderna do violino” [RURJ, II, n°s 4/5, junho 1934].
242
Ernest Ansermet (1883-1969), regente suíço. Segundo Rostand: “Seu nome permanece como um símbolo de
algumas das conquistas musicais entre as duas Guerras Mundiais [...] Primeiramente, ele foi maestro dos Ballets
Russes de Serge de Diaghilev, e depois fundou a Orquestra da Suisse Romande [1918], que ele dirigiu até 1966.
Desta forma, ele teve a oportunidade de realizar a 1ª audição mundial de um grande número de obras-primas
contemporâneas (Ravel, Bartok, Prokofiev, Hindemith, Honegger, etc.), mas, sobretudo, as grandes obras de
Stravisnsky, de quem ele foi um amigo íntimo.” [Rostand, 1970: 12].
243
a carta de 3/IX/1917 de Oswaldo a Koechlin, citada anteriormente quanto à não- apresentação no Rio de
obras modernas do repertório dos Ballets Russes, é reveladora dos interesses de Oswaldo: “Caro Mestre, eu
queria ter- lhe escrito há mais tempo [...] Recebi os seus 3 volumes de melodias e eu não poderia lhe agradecer o
suficiente por haver solicitado a Rouart o seu envio. Logo que eles chegaram, a senhora Guerra e eu os
engolimos de uma só vez (avalés d’un trait ) Eu não saberia lhe dizer o quanto nós as admiramos. A terceira,
sobretudo, é uma verdadeira obra prima [...] difícil decidir qual a melhor. [...] Eu ficaria muito feliz de conhecer
toda a sua música e lhe agradeceria de me avisar quando novas obras suas forem editadas para que eu possa
encomendá-las [...]. Ver reprodução dessa carta no Volume II, Anexo II, seção “Autógrafos diversos” .
244
No depoimento de Oswaldo Guerra a Francine Bloch e Madeleine Milhaud, ele relata a forma casual pela
qual Milhaud fez a eles uma visita surpresa em companhia de Ansermet e do casal Nijinsky. Oswaldo relata
terem, ele e Nininha, saído diversas vezes com o casal durante a estada deles no Rio [O.R.T.F., 1978]. Entre
outros encontros informais, Milhaud relata a representação de Parade (recém-apresentada em Paris) e o ensaio
por Ansermet da 1ª cena do 1° Ato das Euménides. [Milhaud, 1949: 92-93].

154
b) a extrema proximidade intelectual com um dos compositores mais

“avançados” e articulados245 de sua geração, que viveu - em seu

período carioca - uma fase particularmente criativa de sua carreira

(bastando mencionar a composição, naquele período, de L’Homme et

son Désir, a Sinfonia de câmera Printemps, e o 1° Ato das Euménides),

cujos interesses e composicões foram acompanhados de perto pelos

Guerra;

c) a execução freqüente de obras modernas, em sua casa246 ou na de seu

sogro Godofredo Leão-Veloso247, e para os diversos concertos

organizados por Milhaud que resultaram nas numerosas primeiras

audições brasileiras de obras de Debussy e Ravel, e primeiras audições

mundiais de obras de Milhaud.e do próprio Oswaldo Guerra;

d) no período de dois anos que se seguem à partida de Milhaud, observa-

se por sua correspondência com os Guerra, o quanto esses são

informados em primeira mão - por um dos principais atores da

vanguarda musical francesa - dos últimos desenvolvimentos da vida

musical parisiense e com um grande intercâmbio de partituras recém-

publicadas, revistas musicais e programas de concertos. Recebe e cobra

deste partituras de suas novas composições, tais como a Sonata para

violino, a Sonata para viola, e o 1o Quarteto de cordas.

245
Seu papel como principal expoente e teórico da “Politonalidade” seria expresso, principalmente, no seu artigo
Polytonalité et Atonalité [1924].
246
Sacre du Printemps e Oiseau de Feu (a 4 mãos), relatados por Claudel e Rubinstein (ver Lago 1999).
247
Como o atesta a dedicatória das Chansons Bas previamente citada no Capítulo II”.

155
Já antes da chegada de Milhaud ao Brasil, a orientação “moderna” de

Oswaldo Guerra estava definida. Isso se reflete em matérias de jornais cariocas248, às vésperas

da apresentação, em 4/VII/1916, de uma música incidental249 sua para orquestra - com o título

Sonho de uma noite de luar250 - sob a regência de Francisco Braga:

Embebido das idéias musicais atuais, filiou-se à escola moderna francesa,


adaptando-lhe os moldes, a feição e o estilo. (“A Rua”, 1/VII/1916). Em entrevista à
Gazeta de Notícias (4/VII/1916), responde da seguinte forma ao jornalista: “Como
costuma trabalhar? – Oswaldo Guerra: aos poucos, lentamente.”; “Ouvimos dizer
que sua música é – Oswaldo Guerra: É muito esquisita, diga sem receio. Tem razão,
e por isso mesmo creio que ela não as agradará. [...] meus compositores prediletos
são todos os grandes compositores, desde os clássicos até os modernos [...] por uma
questão de temperamento sou mais chegado aos russos e à escola francesa moderna,
isto é, a de Debussy.”.

Em Paris, Oswaldo estuda com Koechlin e Ricardo Viñes, e volta a casar-se

após a morte de Nininha, constituindo uma nova família. Seu neto Bernard Guerra251

identifica, entre as suas atividades no período de entre-guerras: trabalhos junto a Casa Pleyel,

participação ativa no Comitê artístico e no Comitê administrativo da “Sociedade Pró-Música”;

secretário-geral da “Revue Internationale de Musique et de Danse” (R.I.D.M.) entre 1930 e

1937; secretário-adjunto da União Sindical dos Compositores. Em 1937, entrou no

Departamento de Música da Biblioteca Nacional de Paris como bibliotecário, onde

permaneceria até 1959, tendo sido o responsável por todo o registro legal da música na

França. Bernard Guerra também lista as seguintes exposições, cuja realização contou com o

concurso de Oswaldo Guerra: na Bibliotheque Nationale: “Exposição Berlioz”, “Debussy e o

Teatro”, “Centenário da Morte de Chopin”, “Centenário de Bizet”; no Opera-Comique:

“Exposition André Messager”, “Exposition Richard Strauss”, “Cinquentenaire de la creation

248
In arquivo Paul Guerra: “J. do Commércio”, 3 e 5/VII/1916; ”Gazeta de Notícias”, 4 e 5/VII/1916; “A Rua”,
de 1/VII/1916.
249
Para a peça “Sonho de uma Noite de Luar” - ‘Noturno’ em 1 ato, de Roberto Gomes (1882-1923) [ver:
Raimundo de Menezes: “Dicionário Literário Brasileiro”].
250
Partitura não localizada.
251
Bernard Guerra preparou dois curtos textos sinópticos intitulados “Travail de Recherche Oswaldo Guerra”
(23/IX/1999), e “Travail de Recherche Nininha Guerra” (3/X/1999).

156
de Pélleas et Mélisande”; no Palais des Beaux-Arts de Bruxelas: “Exposição Debussy e

Maeterlinck”.

As fontes documentais sobre Oswaldo Guerra são escassas, ainda que mais

abundantes que aquelas existentes sobre Nininha e Godofredo. Consistem essencialmente de:

a) documentos no Arquivo Paul Guerra: programas de concertos, alguns

dos quais acompanhados de crítica de jornal; partituras manuscritas:

Clairières dans le Ciel para canto e piano, e fragmento da Sonata para

flauta, oboé, viola e piano; fotos; e sobretudo um detalhado catálogo

manuscrito (autógrafo) de suas obras;

b) partituras impressas: Tristesses (Heugel 1921 & 1956) e Trois Poèmes

de Marc Chesnau (Max Eschig, 1929) para canto e piano; Esquisses

(Max Eschig, 1928) para piano; 3eme Quatuor (Heugel, 1961) para

quarteto de cordas;

c) trabalhos musicológicos: seu artigo para a “Revue Musicale” sobre os

manuscritos de Pélleas et Mélisande, e o livro co-autorado sobre

Debussy;

d) entrevista radiofônica: de Oswaldo Guerra por Francine Bloch e

Madeleine Milhaud em 21/VI/1978 (O.R.T.F.);

157
e) programas radiofônicos realizados por Jane Bathori (14/04/1955 e

18/12/1958), com o título “Exposition de Melodies Inédites”.

4.2 - O CATÁLOGO DE OBRAS

O Arquivo Paul Guerra possui dois rascunhos autógrafos de Oswaldo

Guerra contendo uma catalogação de suas obras, na qual estas são listadas por gênero, e onde

são informadas as edições e 1ªs audições. Dessa catalogação depreende-se:

4.2.1 - A forte predominância de Obras de Câmera

4.2.1.1 - Três Quartetos de cordas

a) o 1º Quarteto de cordas, inédito (e não localizado), escrito no Brasil,

em 1919, encontra ecos na correspondência de Milhaud para os Guerra:

em 10/IV/1919, ele solicita: “Peça ao Oswaldo me enviar o Quarteto,

logo que estiver pronto”. O 1º Quarteto de Cordas sofreria duas

revisões: em 1922 - versão, na qual foi apresentado pelo “Quatuor

Capella”, em concerto do “Pró-Música” em 9/II/1923 - e em 1938: essa

versão foi apresentada pelo “Quatuor Quatrocchi” em concerto da

“Société Nationale” em 1/III/1947. Podemos saber pelo programa de

concerto que ele se divide em 3 movimentos: 1º Modérement anime, 2º

Lente et triste, 3º Anime et très rythmé.

158
b) o 2o Quarteto de cordas, também inédito e não localizado, foi escrito

em Paris, em 1946. Podemos saber, através dos programas de concerto

do Arquivo Paul Guerra, que ele se divide em 3 movimentos: 1º Allant,

2º Recueilli et três modèrè, 3º Rondement. Foi estreado em 25/I/1951,

pelo “Quatuor Quatrocchi”, voltando a ser apresentado em 26/1/1952 e

9/V/1973, nos concertos da “Société Nationale”.

c) o 3º Quarteto de cordas, composto em 1953 e estreado pelos seus

dedicatários, os membros do “Quatuor Parrenin”, em 17/VI/1959, em

concerto da “Société Nationale”, tendo sido reapresentado na Salle

Cortot em 13/III/1978. Ele foi publicado pela editora Jobert e se divide

em 3 movimentos: 1º Aimable, 2º Fantaisiste avec humour, puis

modèrè, 3º Très décidé.

4.2.1.2 - Três Sonatas de câmera e uma Sonatina

a) Sonata para violino e piano: esta obra inédita, e não localizada,

composta o Rio de Janeiro em 1918, se reveste de importância histórica

por ter sido a primeira obra de Oswaldo apresentada na França, no

concerto da SMI de 20/XI/1919252, tendo sido anteriormente estreada

no Brasil em 30/VIII/1918 por Nininha Guerra e Darius Milhaud253,

dedicatário da obra254. Pelos programas dos dois concertos, sabemos

que ela é dividida em 3 movimentos: 1º Lento, moderadamente

252
Pelo violinista André Pascal e a pianista Janine Weil.
253
O programa deste concerto, existente no Arquivo Paul Guerra, indica que o concerto foi realizado no Salão do
Jornal do Comércio, sob os auspícios do Instituto Nacional de Música.

159
animado, 2º Romance, lento, 3º Vivo. Numa carta de Milhaud de

25/X/1919, ele se diz ciente de que Oswaldo estava reescrevendo o 2º

movimento, mas poucos dias antes da apresentação no SMI (carta de

5/XI/1919) Milhaud informa a eles que a nova versão do 2º movimento

não havia chegado e que não mais daria tempo para esperar por ela,

mas que ele se sentia satisfeito da obra ser apresentada na sua versão

original, comentando:

Sei que você refez o 2º movimento, mas como ele não chegou, não digo nada e
deixo tocá-la [a Sonata] tal como você a submeteu originalmente. Aliás, a Romance
é muito bonita (est très jolie) e ela resultou tão bem quando nós a tocamos no Rio.
Portanto, podemos ouvi-la em Paris nas mesmas condições [...]; a revisão final é
datada de 1925, tendo sido estreada em 10/XII/1926255.

b) Sonata para viola e piano: esta obra também inédita, e não-localizada,

foi composta no Rio no período 1919-20. Ela é mencionada três vezes

na correspondência: nas cartas de 20 e 29/IX/1919, onde pergunta pelos

progressos da sua composição, e em IV/1920, quando acusa seu

recebimento escrevendo a Oswaldo que procuraria inscrevê-la na


256
programação da “Société Nationale” . Sabe-se que, pelos programas

de concerto do Arquivo Paul Guerra, ela se divide em 4 movimentos,

sendo que os 3 últimos devem se encadear sem interrupção: 1º Lent, 2º

Fantaisiste, 3º Très calme, 4º Animé. Sua 1ª audição se deu, entretanto,

na programação “L´Oeuvre Inédite” em 26/IV/1924, interpretada por

254
Segundo informação prestada por Oswaldo Guerra [1978], na entrevista a Francine Bloch e Madeleine
Milhaud.
255
Os intérpretes foram: Marie-Antoinette Pradier e Leon Zighera.
256
Na carta de 9/I/1920, Milhaud relatara aos Guerra que o “Grupo dos Seis” e a SMI se encontravam em
campos opostos.

160
Jeanne Herscher-Clement e Leion Pascal. Foi reapresentada em

10/III/1971, na Salle Cortot.

c) Sonata para flauta, oboé, viola e piano (ou cravo): composta em 1920

(provavelmente antes da chegada à França, em outubro de 1920), teve

sua primeira audição realizada em 6/II/1924, na programação da SMI257

por Blanquart, Lamorlette, Leon Pascal e Pierre Blois; esta obra, na

qual o piano pode ser substituído pelo cravo, foi estreada nessa forma

em 8/II/1939, com a cravista Marcelle de Lacour, em programação da

“Société Nationale”. Foi provavelmente a obra mais freqüentemente

executada de Oswaldo (o Arquivo Paul Guerra possui programas de

quatro concertos: 28/III/1924, 30/III/1925, 15/VI/1925, 26/V/1975).

Esta obra permanece inédita, e o Arquivo Paul Guerra possui dela um

manuscrito parcial, e sabemos, através dos programas de concerto, que

ela se divide em 3 movimentos: 1º Modéré, 2º Triste et lent , 3º Ronde.

d) Sonatina Pastoral, para oboé e clarineta: esta peça, cuja 1ª versão data

de 1925, e a final de 1956, teve essa versão estreada em 12/IV/1957, na

programação da “Société Nationale”, por R. Casier e André Boutard. A

Sonatina foi publicada em 1956 pela editora Heugel, e contém 3

movimentos: 1º Allant, 2º Très modéré, 3º Lent et modérément. Ela foi

reapresentada na “Société Nationale” em 12/IV/1967.

257
Com os intérpretes Gaston Blancquart, Roland Lamoulette, Leon Pascal e Pierre Benoit.

161
4.2.1.3 - Melodias para canto e piano

O Catálogo de Oswaldo assinala 12 coleções de melodias, escritas entre

1912 e 1945, entre as quais destacam-se:

a) Tristesses: composto em 1924 (e revisto em 1953) em Paris: é um ciclo

de 11 melodias sobre os poemas de Francis Jammes, os quais já haviam

sido musicados (com o título Clairières dans le Ciel) em 1914 por Lili

Boulanger (1894-1993), e o seriam em 1956, por Darius Milhaud258.

Trata-se do mais importante ciclo de melodias de Oswaldo Guerra, de

um grande refinamento – muito próximo de Pélleas et Mélisande

quanto à prosódia [ver Exemplo 20, pág. 178: a 3ª melodia “Parfois

quand je suis triste”], e do ciclo Promenoir des deux Amants, de

Debussy [ver Exemplo 23a, pág. 182, e Exemplo 31a, pág. 192], quanto

à escrita para piano. Teve sua primeira audição em 30/III/1925, com a

cantora Alicita Felici, e tendo sido posteriormente reapresentada em

12/12/1926, 25/II/1945 e 25//II/1955. Jane Bathori retransmitiria em

14/IV/1955, em seu programa radiofônico, algumas das melodias de

Tristesses, comentando com os seus ouvintes: “Vocês ouvirão em

seguida cinco dessas melodias e poderão sentir o sabor de toda a sua

sensibilidade delicada”. Foi publicada pela editora Heugel, em 1956.

258
Nos capítulos que adicionou em 1972 (Ma Vie Heureuse) à sua autobiografia (Notes sans Musique, 1949),
Milhaud escreve: “Eu sempre desejei colocar em música Tristesses, uma série de 24 poemas de Francis Jammes,
desde quando eu era jovem; porém eu sempre hesitava, com receio de não conseguir dar sustentação a um
trabalho longo dessa espécie. Eu adiei o projeto por anos, mas finalmente me decidi a trabalhar nele em 1956.
Esse ciclo de melodias foi executado durante um dos concertos dedicados a mim na “Ecole Normale de
Musique”.”.

162
b) Clairières dans le Ciel: compostos em Paris, em 1927, e dedicados à

cantora Jane Bathori, o Arquivo Paul Guerra possui uma cópia

autógrafa: consiste de 4 melodias sobre poemas do mesmo ciclo

(“Tristesses”) de Jammes, tendo tido sua primeira audição realizada

em 21/II/1927 por Jane Bathori, dentro da programação de concertos do

“Pró-Música”. O manuscrito autógrafo é particularmente revelador de

um “preciosismo” gráfico - quase icônico - de Oswaldo Guerra (que, de

alguma forma, evoca o de Erik Satie), notadamente nas melodias “Une

goutte de pluie” [Exemplo 21, pág. 179: compassos 1 a 15] - onde a

repetição constante de uma mesma nota, ao longo de toda a peça, evoca

a movimentação repetitiva de gotejamento, e “Ce sont de grandes

lignes” [Exemplo 22, pág. 180: compassos 1 a 9] - onde a grafia do

acompanhamento do piano, com agrupamentos de quatro colcheias

distribuídas entre as duas mãos, produz o efeito visual de várias

pequenas linhas paralelas.

c) Trois Poèmes de Marc Chesnau: também compostos em Paris em

1927: consiste de três melodias. Com uma escrita muito próxima à do

Promenoir des deux Amants de Debussy [ver Exemplos 23 e 23a, págs.

181 e 182: a 3ª melodia, “La Valleuse”, compassos 1 a 8], foram

publicadas em 1929 pela editora Max Eschig, sendo que o Arquivo

Paul Guerra possui os programas de dois concertos em que foram

apresentados (23/V/1931 e 13/III/1935).

163
4.2.1.4 - Coleções e peças para piano de 3 coleções para piano de Oswaldo Guerra:

Pastels, 3 peças escritas no Brasil, entre 1915 e 1918, e apresentadas por Ricardo Viñes em

30/III/1925), Improvisations (escrita em Paris, em 1923, e apresentada por Ricardo Vimes. A

única localizada é Esquisses, composta em 1925 e publicada em 1927 pela editora Max

Eschig. Essa coleção, composta de 10 peças, foi apresentada diversas vezes, notadamente por

Ricardo Viñes (30/III/1925, 12/XII/1926, 23/V/1931, 13/III/1935), e por Monique Haas

(21/II/1962).

4.2.1.5 - Obras para orquestra: A única obra, no seu catálogo, que Oswaldo Guerra aponta

como sendo para orquestra intitula-se Pierrot d´Hiver, não-localizada e para a qual ele não

indica data. Sabe-se, através da coleção de programas de concerto do Arquivo Paul Guerra,

que ela foi executada em versão a 4 mãos nos concertos “Au Camaléon” (12/XII/1926). Como

Oswaldo Guerra havia apresentada uma música incidental para orquestra, em 1916, no Rio,

sob a regência de Francisco Braga, com o título Sonho de uma Noite de Luar, a qual não é

assinalada no catálogo, poder-se-ia especular que Pierrot d´Hiver fosse uma 2ª versão dessa

obra, escrita e executada no Brasil.

4.2.2 - Uma distribuição cronológica concentrada

→ observa-se, no Catálogo, a importância do “período brasileiro”, durante o qual

foram compostas 3 coleções de melodias para canto e piano (Trois Epigrammes

d´Henri de Regnier [1912], Deux Poèmes d´Albert Samain [1914] e Trois Poèmes

Symbolistes [1919]), uma coleção de peças para piano (Pastels [1915-18]) e,

sobretudo, uma grande parte da sua obra de câmera (embora estas tenham sofrido

revisões posteriores): o 1º Quarteto de cordas e as 3 Sonatas de câmera.

164
→ uma produção expressiva na França, durante o período de entre-guerras, mas,

sobretudo, durante os anos 20: a coleção de peças para piano Esquisses; o ciclo de

melodias Tristesses e coleções para canto e piano como Clairières dans le Ciel e Trois

Poèmes de Marc Chesnau; composição da Sonatina para oboé e clarineta e revisões

das obras de câmera compostas no Brasil.

→ uma forte desaceleração de sua produção a partir dos anos 50, correspondendo aos

últimos 30 anos da sua vida, possivelmente refletindo seu maior envolvimento tanto

com seu trabalho musicológico quanto com suas responsabilidades na “Bibliotheque

Nationale” de Paris.

4.2.3 - Localização de Obras e Edições

Apesar de que algumas de suas obras terem sido publicadas por prestigiosas

casas de edição (Max Eschig, Heugel e Jobert), nota-se que a maior parte da obra de Oswaldo

Guerra permanece não somente inédita, como também não localizada (notadamente as três

Sonatas de câmera): portanto, a obra conhecida de Oswaldo Guerra consiste das obras

publicadas (Esquisses para piano, Tristesses e Trois Poèmes de Marc Chesnau, Sonatina

Pastoral para oboé e clarineta, e o 3º Quarteto de cordas), do manuscrito completo de

Clairières dans le Ciel e incompleto da Sonata para flauta, oboé, viola e piano (ou cravo),

que se encontram no Arquivo Paul Guerra. Apesar da obra de Oswaldo Guerra ser

quantitativamente modesta, ela demonstra um grande refinamento, e uma preocupação com o

“acabamento” que encontra poucos paralelos entre seus contemporâneos brasileiros.

165
4.3 – EXECUÇÕES PÚBLICA EM PARIS DE OBRAS DE OSWALDO GUERRA

De 1919 ao final dos anos 70, obras de Oswaldo Guerra são regularmente

apresentadas em Paris. O Arquivo Paul Guerra possui: a) o programa do concerto de

20/XI/1919, organizado pela SMI e realizado na “Salle Gaveau”, onde foi apresentada a sua

Sonata para piano e violino, juntamente com 1as audições de obras de Milhaud e Aaron

Copland; b) 23 programas de concerto cobrindo o período 1924-1978, com uma maior

concentração nos anos 20 (9 programas), porém com uma periodicidade ainda regular no pós-

guerra (13 programas):

4.3.1 - Anos 20

O Arquivo Paul Guerra apresenta três programas realizados em 1924, onde

as obras apresentadas são: a Sonata para flauta, oboé, viola e piano (duas vezes) e a Sonata

para viola e piano: 6/II, na “Salle Pleyel”, (concerto organizado pela SMI, com 1ªs audicões

de Nicolas Tcherepnin, Aaron Copland e Albert Roussel); 28/III, no “Musée Galliera”, como

parte da “Exposition d’Art Americain-Latin” (com obras de Villa-Lobos, Elpidio Pereira, do

cubano Joaquin Nin, e do argentino Herberto Paz); em 26/V, na “Salle de Concerts Touche”,

na série “L’ Oeuvre Inédite”, do qual foi publicado (“Comoedia”, 1/V/1921) o seguinte

registro do compositor Paul Le Flem: “Assinalemos a Sonata para viola e piano do Sr.

Oswaldo Guerra com estilo sucinto, nervoso, e que foi traduzida com muita vivacidade [pelos

intérpretes]”259.

259
“Signalons la Sonate pour Alto et Pianode Mr. Oswaldo Guerra, d’ un tour bref et nerveux, et qui fut traduit
avec beaucoup de vivacité par Mme. Herscher-Clementet Leo Pascal.”.

166
Em 1925, ocorrem dois concertos dedicados a Oswaldo Guerra: em 30/III,

um “Festival Oswald Guerra” na “Université Alexandre Mercerau”, onde foram

reapresentadas as duas Sonatas de câmera - apresentadas no ano anterior, o ciclo de melodias

Tristesses, enquanto o grande pianista Ricardo Viñes tocou, além de três Esquisses (datadas

de 1921), peças escritas no Brasil (Pastels, Le Parc Endormi, Matin Clair, Vers la Mer un

Soir); em 15/VI, um “Concert Oswaldo Guerra” na “Salle Pleyel”, no qual foi repetido (com

outros intérpretes) o programa anterior do “Festival” (com exceção o da Sonata para viola e

piano) e incluindo adicionalmente obras de piano de Debussy, Rachmaninov, e com Oswaldo

Guerra tocando - no “Pleyela” - a “Danse Russe” do Petrushka de Stravinsky.

Em 10/XII/1926, a Sonata para piano e violino é apresentada na “Salle

Comoedia” em, enquanto em 12/XII ocorre um novo “Festival Oswald Guerra” na

“Université Alexandre Mercereau”: Ricardo Viñes retoma parte do programa do “Festival” do

ano anterior (Matin Clair, três Esquisses), adicionando um 2eme Impromptu (o qual não

figura no Catálogo); entre as melodias para canto e piano é retomado o ciclo Tristesses e

algumas das melodias compostas no Brasil: Oraison, Les Repons de l´Aube et de la Lune.

Nesse programa foi apresentado, a piano 4 mãos, a única obra de Oswaldo Guerra assinalada

no Catálogo como sendo para orquestra: Pierrot d´Hiver260.

Os dois últimos programas, referentes aos anos 20, são realizados pelo “Pró-

Música”, uma sociedade de concertos da qual Oswaldo Guerra era um dos organizadores: em

21/II/1927, na “Salle Comoedia”, a cantora Jane Bathori apresenta Trois melodies de Oswaldo

Guerra, acompanhada por ele ao piano, em concerto também incluindo obras de Koechlin e

Lord Berners; em 9/II/1928, é dada na “Salle des Agriculteurs” a 1ª audição do 1º Quarteto de

cordas de Oswaldo Guerra, a respeito do qual o crítico do jornal “Figaro” (S. Golestan)

167
escreveu os seguintes comentários (13/II/1928): “O concerto apresentado pela ‘Pró-Música’

[...] revelou outras novidades, um Quarteto de cordas do Sr. Oswald Guerra, que se distingue

pela clareza da sua estrutura, o relevo dos seus temas, e sua plenitude sonora”. Por sua vez, o

crítico Marcel Delannoy comentou:

O Quarteto de cordas do Sr. Oswaldo Guerra nada deve à estética dos senhores
Schoenberg e Berg. Eu o parabenizo por acreditar na melodia, na forma e no ritmo.
É fácil de mais suprimir estes elementos e substituí-los por outra regra do jogo
frouxa demais para a manifestação do talento, e que afinal chama-se à liberdade pura
e simples. A obra do Sr. Oswaldo Guerra, que não fugiu da dificuldade, se mostra
construída com lógica e soa bem; só é pena que se sinta às vezes como uma espécie
de excitação com coloridos diferentes. (“Chantecler”, 18/II/1928)

4.3.2 - Anos 30 e Pós-Guerra

Os programas existentes no Arquivo Paul Guerra assinalam os seguintes

concertos nos anos 30: na “Salle d’Iena”, em 23/V/1931, organizado pela “Revue

Internationale de Musique et de Danse” (da qual Oswaldo Guerra foi por alguns anos o

secretário executivo), são apresentadas algumas Esquisses para piano e melodias para canto e

piano (Trois Poèmes de Marc Chesnau, Trois petits airs de flute, Jota aragonesa); em

13/III/1935, um programa semelhante no “Salon du Pantheon”; em 5/II/1939, na “Salle

Chopin”, sob os auspícios da “Société Nationale de Musique”, é apresentada a Sonata para

flauta, oboé, viola e cravo (substituindo o piano).

No pós-Guerra, a execução de obras de Oswaldo Guerra passa a se

concentrar na programação da “Société Nationale de Musique”, realizando-se na atual “Salle

Cortot”, da “Ecole Normale de Musique”. Com base nos programas existentes no Arquivo

Paul Guerra, podem ser identificadas as execuções das seguintes obras:

260
O programa de 12/XII/1926 a descreve como “Ballet en un acte, de Georges Lanteline, reduction de l´auteur”.

168
- 1º Quarteto de cordas: 1/III /1947;

- 2º Quarteto de cordas: 25/I /1952 e 9/V/1973;

- 3º Quarteto de cordas: 17/VI /1959 e 13/III/1978;

- Sonata para flauta, oboé, viola e piano (ou cravo): 26/V/1975;

- Sonata para viola e piano: 10/III/1971;

- Sonata “Pastoral” para oboé e clarineta: 12/IV/1957 e 12/V/1967;

- Melodias para canto e piano: Trois Melodies sur des poèmes de Henri de Regnier

(24/III/1953) e Tristesses (25/II/1955);

- Esquisses para piano: 21/II/1962.

4.4 – CARACTERÍSTICAS DE ESTILO E LINGUAGEM

Ao relatar seu primeiro encontro com os Guerra, em 1917, em casa de

Henrique Oswald, Milhaud descreveu Oswaldo como um compositor “impregnado de música

francesa”. Em sua resenha sobre a música no Brasil, escrita em 1921, Milhaud refere-se à

Nininha e Oswaldo como “os elementos mais próximos do Grupo dos Seis”, e menciona a boa

impressão causada pela apresentação da Sonata para piano e violino de Oswaldo na SMI,

porém o engloba na crítica geral que faz aos compositores brasileiros por se posicionarem

excessivamente sob a influência da música francesa. [Milhaud, 1920: 61].

Em 1924, por ocasião da 1ª audição da sua Sonata para flauta, oboé, viola e piano, Roland-

Manuel escreveria:

O último concerto da “Sociedade Musical Independente” (SMI) nos revelou uma


Sonata para flauta, oboé, viola e piano de um jovem compositor brasileiro, o Sr.
Oswald Guerra. Trata-se de uma obra do mais alto mérito, de uma espontaneidade
muito saborosa, muito bem escrita e deliciosamente instrumentada. O senhor Guerra
não é insensível nem ao encanto envolvente de Debussy nem à quente sensualidade

169
das melhores páginas de Darius Milhaud. Existe uma distância suficiente entre
Pélleas e Protée para que se possa movimentar à vontade. Nela, o senhor Guerra
passeia com a maior liberdade do mundo, para o nosso prazer. (“L’Eclair” –
fev/1924) 261.

De fato, esses dois pólos coexistem ao longo da obra de Oswaldo Guerra,

entretanto, com uma forte predominância do primeiro sobre o segundo: a influência de

Milhaud se dá menos pela politonalidade, geralmente discreta - na qual Oswaldo se aproxima

mais de seu mestre Charles Koechlin e de Debussy do 2º Caderno dos Prelúdios - que pela

quadratura e um franco diatonismo em certas melodias [ver Exemplo 24, pág. 183: nº 1º

movimento do 3º Quarteto de cordas, a melodia no violino dos compassos 1 a 8, retomada

pela viola dos compassos 9 a 12], e quando se utiliza de texturas mais lineares [Exemplo 25,

pág. 184: no 1º movimento da Sonatine Pastorale, a frase inicial do oboé, e a nova frase da

clarineta iniciando no compasso 12].

O recurso à bitonalidade - tanto entre polaridades próximas quanto distantes, no ciclo das

quintas - pode ser observado nos Exemplos 26, pág. 185 e 27, pág. 186: a) nos compassos 12

a 18 da melodia “Elle était descendue” do ciclo de melodias Tristesses; b) nos compassos 4 a

8 da 8ª peça da coleção Esquisses para piano.

O que caracteriza muito particularmente a influência de Debussy sobre

Oswaldo - e nisso o diferenciando fortemente de outros compositores brasileiros seus

contemporâneos (que incorporaram aspectos mais exteriores da “revolução debussista”262), é

seu profundo conhecimento do conjunto da obra do compositor francês, inclusive, a da sua

261
Roland-Manuel, in “L’Eclair” de fev/1924: “C’est une oeuvre du plus haut mérite, d’une spontanéité très
savoureuse, très bien écrite et délicieusement instrumentée. Mr. Guerra n’est insensible ni au charme prenant de
Debussy, ni à la chaude sensualité des meilleurs pages de Darius Milhaud. La distance est suffisante entre
Pélleas et Protée pour qu’on puisse se mouvoir à l’aise. Mr. “Guerra s’y promène le plus librement du monde,
pour notre plaisir”.
262
Maior recurso ao modalismo e escala de tons inteiros, acordes paralelos, abandono parcial da harmonia
funcional.

170
última fase263 (tão valorizada pela geração de Boulez). São exemplos em sua produção: a) as

três Sonatas de câmera de Oswaldo Guerra, escritas a cinco anos de distância das três Sonatas

de câmera de Debussy, que parecem um reflexo direto destas, sendo particularmente aparente

no fragmento manuscrito da Sonata para flauta, oboé viola e piano a filiação [ver Exemplo

28, pág. 187: os acordes paralelos de 11ª no piano nos compassos 8 a 10, após a marcação 19,

mas, sobretudo, a distribuição sonora] em relação à Sonata para flauta, viola e harpa264, de

Debussy [ver Exemplo 28a, pág. 188]; b) os Trois Poèmes de Marc Chesnau e as melodias de

Clairières dans le Ciel, impregnados de elementos presentes no Promenoir des deux amants.

O perfil de Oswaldo, no que se refere à influência de Debussy, se distingue,

portanto, da de seus contemporâneos brasileiros e mesmo latino-americanos, por sua profunda

imersão na obra do compositor francês [ver Exemplo 29, pág. 189: os compassos 68 a 77 da

3ª melodia dos Trois poémes de Marc Chesnau; Exemplos 30, 31 e 32, págs. 190, 191 e 193,

os oito primeiros compassos da 1ª melodia de Tristesses, os 14 primeiros compassos da 6ª, e a

5ª melodia].

Dirão que Villa-Lobos sofreu de início grande influência de Debussy. Naturalmente,


essa influência fez-se sentir em todos os músicos do começo deste século, e mais
que uma influência pessoal, era a influência de ambiente e de época, [...] Admitida a
influência que, particularmente, mais do que a de Debussy foi a da escola
francesa, que então predominava, exercendo salutar e benéfica atração, rompendo
a prepotente predominância wagneriana, [...] forçoso é convir que Villa-Lobos,
assenhorando-se dela e transportando-a para o nosso meio [...], contribui, de forma
definitiva, para atualização da nossa criação musical. [Lorenzo Fernandez, 1946:
285].

Na América Latina, [...] a verdade é que mesmo os imitadores de Debussy foram


raros. Na realidade, a influência do compositor se exerceu de uma outra forma; sua
lição abria caminhos para além da tonalidade e libertava a nova música dos alicerces
da harmonia tradicional; o que fez que, imitando ou não Debussy, os compositores
da América Latina tinham podido tomar consciência das perspectivas que ele lhes
abria. Eles tiraram suas próprias conclusões. [Correa de Azevedo, 1965: 235].

263
Que vai do Promenoir des deux Amants às Sonatas de câmera (passando pelo 2º Caderno dos Prelúdios para
piano, de En Blanc et en Noir para 4 mãos e Jeux para orquestra).

171
A obra de Oswaldo Guerra se inscreve, portanto, nessa primeira fase do

Modernismo musical do século XX, tão profundamente impactada por Debussy. As fases

ulteriores - com exceção da influência de Milhaud - não parecem afetá-lo: sua linguagem

permanece intocada pelas inovações de Stravinski e Schoenberg265, assim como pelo

movimento de reação ao “debussysme”, proposta por Cocteau no Le Coq et l´Arlequin, e tão

ostensivamente promovida pelo “Grupo dos Seis”, ao qual o ligavam tantas relações de

contigüidade266.

A distância de Oswaldo em relação ao ideário do Coq et l´Arlequin é bem

representada nesse comentário de seu mestre Charles Koechlin, insurgindo-se contra a

postura “anti-debussista” os “Six” 267, no seu livro de 1924 sobre Debussy: “por mais ativo e

talentoso que seja um agrupamento musical, ele estará sempre longe de representar o

conjunto de uma arte pujante, e é sabido que existem jovens para quem Pélleas permanece

como uma espécie de modelo”268.

264
De cuja primeira leitura, em casa de Debussy, Milhaud havia participado, tocando a parte de viola: “Foi a
primeira e única ocasião que eu tive de encontrá-lo! Que emoção eu senti entrando na sala onde trabalhava o
músico que ocupava um lugar tão importante em meu coração ...”. [Milhaud, 1949: 77].
265
Apesar do “Fonds Oswald d´E. Guerra” conter primeiras edições do Pássaro de Fogo, Petrushka e a
Sagração da Primavera do primeiro, e as peças para piano do opus 11 e opus 19, do segundo.
266
Na nota biográfica sobre Oswaldo Guerra, em apenso a seu poema La Naïade, ele se descreve como:
“compositor francês de origem lusitaniana, amigo e contemporâneo de Darius Milhaud [...] freqüentou “Cocteau,
Radiguet” e o “Groupe des Six”.”. [Réactions, 1965].
267
O seguinte comentário de Koechlin mostra a perspectiva histórica dentro da qual relaciona os “Six” com
Debussy: “Não foi suficientemente observado o quanto a linguagem dos músicos mais jovens (inclusive aqueles
que foram intitulados os “Six”) toma primeiramente sua origem no “debussysmo”. Leiam as primeiras obras de
Darius Milhaud e Germaine Tailleferre - que eles tenham posteriormente sofrido outras influências pouco
importa: a sua liberdade harmônica e também sua liberdade polifônica prevêem, em grande parte, de Claude
Debussy.”. (pág. 88, T. do A,).
268
Un groupement,si actif ,si talentueux même qu´il soit, est loin de representer l´ensemble d´un art prospère, et
l´on sait des jeunes pour qui Pélleas reste une sorte de modèle . [Koechlin,1924: 94n].

172
4.5 – OSWALDO GUERRA E MODERNISMO BRASILEIRO

O “modernismo” de Oswaldo Guerra se situa nas antípodas do

“Modernismo musical brasileiro”, tal como foi formulado e proposto por Mario de Andrade

no Ensaio sobre a Música Brasileira, em 1928:

O critério atual de Música Brasileira deve ser não-filosófico, mas social. Deve ser
um critério de combate. A força nova que voluntariamente se desperdiça, por um
motivo que só pode ser indecoroso (comodidade própria, covardia ou pretensão), é
uma força antinacional e falsificadora. [...] Se um artista brasileiro sente em si a
força do gênio [...] está claro que deve fazer música nacional. Porque como gênio
saberá fatalmente encontrar os elementos essenciais da nacionalidade [...] Terá, pois,
um valor social enorme, sem perder em nada o valor artístico [...] E se o artista faz
parte dos 99 por cento dos artistas e reconhece que não é gênio, então, é que deve
mesmo de fazer arte nacional. Porque, incorporando-se à escola italiana ou francesa,
será apenas mais um na fornada, ao passo que na escola iniciante será benemérito e
necessário [...] Turina269 é de importância universal mirim. Na escola espanhola, o
nome dele é imprescindível. Todo artista brasileiro que no momento atual fizer arte
brasileira é um ser eficiente com valor humano. O que fizer arte internacional ou
estrangeira, se não for gênio, é um inútil, um nulo. E é uma reverendíssima besta.
[Mario de Andrade, 1928: 5-6].

Na entrevista radiofônica a Francine Bloch e Madeleine Milhaud [O.R.T.F.,

1978], esta interroga Oswaldo Guerra, a respeito do grau de interesse dos músicos clássicos

brasileiros pela música popular, no período 1917-18: Oswaldo responde que a questão ainda

não se colocava naquele momento, ressaltando que o Nacionalismo só “viria a tomar impulso

mais tarde, por intermédio de Villa-Lobos”, e que quando características da música popular

afloravam em algumas composições tratava-se ainda de manifestações episódicas (sendo que

ele dá como exemplo o Batuque de Alberto Nepomuceno). Como ilustração dessa

desconexão, Oswaldo cita a obra de Glauco Velásquez, referindo-se a ele como compositor de

269
O compositor Joaquin Turina [1882-1949], aluno da “Schola Cantorum” em Paris, foi um dos mais
destacados compositores da “Escola Espanhola” na geração de Manuel de Falla.

173
uma geração mais nova que a de Nepomuceno, Oswald e Braga, e cuja obra estava muito em

evidência à época em que Oswald e Milhaud se conheceram no Rio.

De fato, se examinarmos as obras que outros compositores mais jovens,

como João Nunes, Luciano Gallet e Nininha Guerra escreviam naquela ocasião - assim como

a maior parte da obra de Villa-Lobos - pode-se verificar que o comentário de Oswaldo espelha

bem esse primeiro momento de um modernismo musical brasileiro, no qual o Nacionalismo

parecia mais ligado ao Romantismo que a uma bandeira para o futuro270. Por outro lado,

mesmo na fase de convívio com Milhaud no Rio de Janeiro, o entusiasmo deste pelo Brasil e

sua música popular - tão exótica para Oswaldo quanto para um compositor europeu - não

parece em momento algum tê-lo contagiado.

Nascido na França, falando francês como língua nativa271, tendo todas as

suas obras vocais compostas no Brasil escritas sobre textos franceses, Oswaldo Guerra foi

tomando distâncias claras e crescentes em relação ao Brasil: se em 1924, ele ainda se


272
apresentava como “compositeur brésilien” , ladeando Villa-Lobos em concerto no “Musée

Galliera” (“Exposition d´Art Americain-Latin”), por ocasião da publicação de seu poema

“Naïade” 273 em 1965, ele se descrevia como compositeur français d’origine lusitanienne.

270
Fato que realça o papel pioneiro em grande medida, solitário, de Alberto Nepomuceno, que havia formulado
sua aspiração por uma música nacional, inspirada na música popular, quando da entrevista à “Revista Teatral”, já
citada no Capítulo I.
271
Conforme se pode observar no poema “À Mademoiselle Julia Rimes”, escrita aos dezoito anos, em Friburgo,
1910. (Coleção Pedro Corrêa do Lago).
272
A pasta referente a Oswaldo Guerra, no “Fonds Montpensier” da Biblioteca Nacional de Paris (onde foi
funcionário de 1937 a 1959), contém riscada a indicação “brésilien” subsituída por “français”, e apresenta na
capa a seguinte indicação manuscrita: “né à Paris rue Corambert et baptisé à l’Église de Notre-Dame de Passy”.
273
A revista literária suíça Réactions, ligada ao grupo “Poésie Vivante”, publica em seu primeiro número (set -
out de 1965) o longo poema La Naïade, apresentando Oswaldo Guerra da seguinte forma: “compositor francês
de origem lusitaniana, é também, bissestamente, um poeta sutil e refinado. Sua ‘Naïade’ retraça em versos
flexíveis e ondulantes o caminho da inspiração artística em sua lenta e sábia maturação em direção à eclosão
da obra criadora.”.

174
Se parece pouco discutível, numa estratégia retrospectiva que Oswaldo -

“incorporando-se à escola italiana ou francesa, [foi] apenas mais um na fornada” - enquanto

no Brasil ele poderia ter sido um dos compositores mais importantes da sua geração - deve-se

notar que sua partida do Brasil, em 1920, antecede de alguns anos a reflexão andradiana sobre

“música brasileira”274 e, de oito anos, o projeto nacionalista formulado no Ensaio, em cuja

data (1928) já estava plenamente realizada sua inserção no meio musical francês.

Portanto, a partida de Oswaldo Guerra do Brasil, precede o momento em que se deu uma

guinada mais decididamente nacionalista por parte de seus contemporâneos brasileiros (como

também ainda era o caso de Luciano Gallet, cujo Hieróglifo data de 1922).

A relevância do “modernismo” de Oswaldo Guerra em relação ao

“Modernismo musical brasileiro” se encaixa numa outra perspectiva - anterior e distinta

daquela que se tornaria dominante a partir da Semana de Arte Moderna de São Paulo - mais

preocupada com as novas liberdades abertas à linguagem musical por Debussy que por um

projeto de “construção” de uma música nacional: nesse sentido, Oswaldo Guerra está próximo

- em que pesem as diferenças entre esses compositores - do Henrique Oswald do op.33, das

Suítes Infantis 1&2 de Villa-Lobos, mas, sobretudo, das Pièces Drõles de José Nunes [ver

Exemplo 33, pág. 194], assim como de obras de Luciano Gallet escritas nesse período [ver

Exemplo 34, pág. 195: os compassos 1 a 15 de “Lykas”, a 2ª peça das Chansons de Bilitis].

Nessas obras são exploradas (ainda que com menos ousadia que na coleção

Com as Crianças, de Nininha) algumas das novas possibilidades abertas pela “revolução

debussista”, e elas fornecem um índice do grau de absorção dessa linguagem, antes da sua

posterior fusão com elementos nacionais, que seria posteriormente feita por compositores com

Villa-Lobos, Gallet, Francisco Mignone e Oscar Lorenzo Fernandez.

274
Esta observação se deve à professora Flávia Camargo Toni.
175
Um exemplo da assimilação da música de Debussy no Brasil, no entorno da

Primeira Guerra Mundial, é dado pela coleção de partituras pertencente ao “Fonds Oswald

d’Estrade Guerra”, legadas por Oswaldo ao “Centre de Documentation Claude Debussy” do

CNRS , em Paris , onde uma grande parte foi adquirida em casas comerciais do Rio de Janeiro

(Artur Napoleão, Casa Mozart-Lino José Barboza) e São Paulo (Casa Beethoven-

Chiaffarelli), antes de sua partida para a França em 1920.

TABELA 7 – C.N.R.S.: Fundo Oswald d’Estrade Guerra

Casa
Casa Mozart Beethoven A. Napoleão Editor Catálogo
Lino J. Barbosa Chiaffarelli francês C. Debussy
I – DEBUSSY
a) Canto e piano
1 Les Angelus Hamelle 23.01
2 Ariettes oubliées Fromond 23.02
3 Les Cloches Durand 23.03
4 Les Frissons Hamelle 23.05
5 Fetes Galantes Durand 23.12
Trois Poèmes de
6 S. Mallarme
Durand 23.19
Promenoir des
7 deux Amants
Durand 23.31
b) Piano a 2 mãos
8 Deux Arabesques Durand 23.66
9 Pour le Piano Jobert 26.05: 1a 11
(encadernação única) D´un Cahier d´E.
L´Isle Joyeuse
10 Estampes Durand 26.16

c) Piano a 4 mãos
11 Petite Suíte Durand 26.02
Six Epigraphes A. Durand 26.13
II – OUTROS
- Ravel Daphnis&Chloe Durand ñ-catalogada
(red. Piano 4m)
- Mussorgski Sans Soleil Bessel ñ-catalogada
( canto&piano) Enfantines Augener ñ-catalogada

176
4.6 – CONCLUSÃO

A trajetória de Oswaldo Guerra - à margem tanto do projeto nacionalista

brasileiro quanto da reação “anti-debussista” representada pelo Groupe des Six - nos lega um

conjunto de obras de um extremo refinamento de fatura, que contam entre as melhores

produções do repertório de câmera, na primeira geração modernista brasileira. Se por um

lado, é possível re-introduzir no repertório as obras editadas, por outro parecem existir pistas

suficientes de obras que foram freqüentemente executadas, como as Sonatas de câmera (ainda

escritas no Brasil no período 1918-20), para que se tenha a esperança de sua localização.

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V

A CORRESPONDÊNCIA MILHAUD-GUERRA

5.1 - O CONTEXTO DA CORRRESPONDÊNCIA

5.1.1 Darius Milhaud no Brasil

Quando Darius Milhaud chegou ao Brasil, em fevereiro de 1917, ele ainda

não era o expoente famoso do Groupe des Six, o qual só viria a constituir-se em 1920275.

Entretanto, apesar de seus 25 anos de idade, já era um compositor com uma bagagem

significativa e dono de uma linguagem musical extremamente pessoal276. Entre as suas obras

anteriores a 1917, podem ser destacadas: a Sonata para dois violinos e piano (1914), a Sonata

para piano (1916), três quartetos de cordas (escritos entre 1912 e 1916), os Sept Poèmes sur

la Connaissance de l´Est (1913) e os Huit Poèmes Juifs para canto e piano (1916) uma

275
Contrariamente a comentários freqüentes na literatura como o seguinte de Tarasti: “[...] o interesse de
Milhaud pela música brasileira tinha como pano de fundo (background) a estética do Groupe des Six fundado
por volta de 1916 [...]” (Tarasti, 1995: 15, T. do A.).
276
Segundo Paul Collaer (1947, T do A.): “[...] Desde quando Milhaud começou a escrever música, esta não se
alterou. Sua técnica, certamente, se libertou dos entraves, pelos quais passa todo o principiante; ela se
enriqueceu; o discurso pode se tornar mais completo, mais homogêneo; porém, a natureza das melodias, o
sentido do contraponto, o espírito da música são hoje, como em 1910, os mesmos [...] Toda a sua música é de um
só jorro, ela não evolui, ela não foi impressionista e depois fauve, e mais tarde clássico. Ela é hoje tal como ela
nasceu [...]”.

196
Sonata277 para piano [1916] e, sobretudo, as Choéphores para recitante, soprano e barítono

solistas, com orquestra e coro (1915-1916) - considerada um dos marcos da música francesa

da primeira metade do século XX, e na qual a “Politonalidade Harmônica” (seguindo a

nomenclatura que ele proporia no seu artigo clássico “Polytonalité et Atonalité” (Milhaud,

1923) é utilizada de forma ampla e sistemática.

O período que se estende de 1917 a 1921, compreendido entre a chegada

de Milhaud ao Rio e os dois anos que se seguiram ao seu retorno à França (ainda muito

marcados pelo Brasil), se constituiria num dos momentos mais determinantes da sua

carreira278 e, certamente, o período mais experimental de sua produção279, no qual mais

radicalizaria o recurso a Politonalidade.

Seu principal propósito ao acompanhar como “secretário particular”280 o

diplomata e célebre escritor Paul Claudel (função dentro da qual acabou atuando como um

excepcional “adido cultural”) era o de dar continuidade ao projeto que haviam iniciado

conjuntamente em 1913, quando Milhaud havia colocado em música o Agamenon - a 1ª parte

da Orestéia de Ésquilo, que Claudel estava traduzindo para o francês e para a qual previa uma

representação evocando o teatro grego clássico, com o papel que este atribui à música, e à

interação entre recitante, atores e coro. Com a conclusão da 2ª parte em 1916 (as

Choéphores), faltava realizar a parte final da Orestéia: as Euménides. Esta obra, um dos

277
No primeiro exemplo musical do Capítulo VI - o final do 1º movimento da Sonata para piano - pode-se
observar a utilização do total cromático através da superposição de acordes perfeitos formando agregados de 12
sons.
278
Na entrevista radiofônica feita por Oswaldo Guerra a Francine Bloch, com a presença de Madeleine Milhaud,
esta declararia: “O Brasil esteve presente durante a nossa existência cotidiana, como ele esteve presente até o fim
da vida de Darius [...] É um país onde nunca estive, mas que eu amei por procuração [...]” (O.R.T.F., 1978, T. do
A.).
279
Ver Drake, citado no Capítulo II.
280
Em seu diário, Claudel anota em 5/I/1917: “[Encontro com] Boutroux, Bergson, Barres, Imbart de la Tour,
em casa de Graça Aranha. Partida de Paris, próximo 9 [de janeiro] às 9:50h da noite na Gare d’ Orsay com

197
pontos culminantes da produção de Milhaud, só seria concluída em 1928. Entretanto, a quase

totalidade281 do 1º ato pôde ser composta durante a estada no Rio.

Dois conjuntos importantes de obras de Milhaud podem ser relacionados

com o Brasil: obras compostas no Rio de Janeiro, durante a sua estada, e algumas obras

escritas, durante os dois anos subseqüentes ao seu retorno à França, de alguma forma

vinculadas ao Brasil. Dentro do primeiro conjunto, são particularmente famosos o balé

sinfônico L’Homme et son Désir, a 1ª Sinfonia de Câmara “Printemps” e as Euménides.

Dentro do segundo conjunto, são particularmente famosos o balé Le Boeuf sur le Toit e a

coleção de peças para piano Saudades do Brazil.

Segundo Myriam Chimènes (1998):

Esse corte, de aproximadamente dois anos, equivale para ele àquele vivido com a
mesma idade por seus colegas coroados pelo Prix de Rome [...] Verdadeiramente
iniciática, essa estada se revelará crucial para Milhaud. Apesar do afastamento
geográfico, ele lá encontra referências de familiaridade num universo mediterrâneo,
que ele considera como seu, “de Jerusalém ao Rio de Janeiro” e descobre uma
música popular que o intriga e o fascina282.

De fato, a estada de dois anos de Milhaud no Brasil foi decisiva na sua

carreira, dando-lhe diversas oportunidades: tempo para compor num ambiente estimulante

com interlocutores de peso (brasileiros e estrangeiros de passagem como Rubinstein e

Ansermet) e a oportunidade de apresentar em público diversas composições (de câmara e para

orquestra). Durante a estada de Milhaud no Rio de Janeiro, ocorreram duas primeiras audições

mundiais de obras suas: a sua 2ª Sonata para violino e piano283 executada por ele e Nininha

Darius Milhaud a quem estou levando como secretário e encarregado do serviço da propaganda.”. (Claudel,
1968: 366 – T. do A.)
281
O 1º Ato seria concluído na Martinica, um mês após a partida do Brasil, em escala de sua viagem de retorno à
França, via EUA.
282
Chimènes, 1998: 45, T. do A.
283
O programa desse concerto (“Hora artística – Lycée Français, Rua do Catete, 351”), existente no Arquivo
Paul Guerra, contém a respeito da Sonata o seguinte comentário: “A Sonata de M. Darius Milhaud é inédita e

198
Guerra em 07/VII/1917, no Liceu Francês do Rio de Janeiro, e a sua 1ª Sinfonia de Câmara

“Printemps”, pela Sociedade de Concertos Sinfônicos (dirigida por Francisco Braga), sob a

regência de Alberto Nepomuceno, em 22/VIII/1918 no Teatro Municipal284. Foram

igualmente executadas no Rio de Janeiro a sua Sonata para dois violinos e piano, 2 Poèmes

de Tagore para canto e piano e - após o seu retorno à França (concerto em 21/IX/1919) - em

primeira audição mundial, duas peças da coleção para piano Printemps, assim como Deux

poèmes en prose de Lucile de Chateaubriand (sendo que o segundo “A la lune” também em

primeira audição mundial.

Sua atividade no Rio também despertou algumas das primeiras críticas

musicais de que foi objeto, tanto do ângulo “conservador” quanto daquele mais aberto a novas

tendências. A partir do primeiro ângulo, Oscar Guanabarino escreveria (31/VIII/1918):

O programa pôs em relevo mais uma vez o talento musical do Sr. Darius Milhaud,
compositor e violinista. Pondo de parte a nossa antipatia à escola ultramoderna,
somos forçados a reconhecer que o ilustre músico é fecundo e que assimilou os
melhores autores dessa escola que, se está divorciado da inspiração, exige do
compositor muito engenho e ardil. Quando nas suas composições, o descuido ou
imposição do seu verdadeiro estro, ela deixa de se afastar do seu firme propósito,
surgem das suas partituras páginas de incontestáveis belezas. Neste caso, e como

composta recentemente aqui no Rio”. Na primeira parte do concerto, Milhaud tocou uma sonata (não
especificada) para violino e piano de Mozart com a jovem pianista Maria Antonia de Moura Castro (o programa
assinala: “Melle. Maria Antonia de Moura Castro conta só 6 anos e é discípula do Prof. Henrique Oswald”); na
segunda parte, tocou ao violino a sua Sonata e, a 4 mãos com Nininha Guerra, os Morceaux en forme de poire de
Erik Satie, assim como duas peças de Henrique Oswald (Berceuse e Serenade). Milhaud voltaria a tocar a sua 2ª
Sonata com Nininha em dois concertos: no Palácio de Cristal, em Petrópolis (24/III/1918), e no Salão do Jornal
do Commércio (30/VIII/1918). Quanto à Nininha, ela ainda a tocaria em Paris, por ocasião do Premier Concert
donné par le Groupe des Six, em 29/XI/1920, acompanhada pela violinista Fernande Capelle (informações
contidas em programa de concerto, Arquivo Paul Guerra).
284
Sobre essa audição, Milhaud (1949: 91-92, T. do A.) comenta em suas memórias: “Fiquei tentado pela
qualidade sonora tão especial do agrupamento instrumental [que Milhaud acabava de realizar no Retour de
l’Enfant Prodigue] e iniciei uma série de ‘pequenas sinfonias’ para 7 ou 10 instrumentos diferentes. Eu estava
ansioso por poder ouvir essas tentativas de independência tonal: Braga dirigiu a 1ª Sinfonia, em um de seus
concertos; o público não pareceu surpreso pelas sonoridades da minha música, porém, ignorando ou esquecendo
que à época de Monteverdi, a palavra ‘sinfonia’ designava às vezes uma única página de música instrumental,
ele esperava ouvir uma obra imensa com uma imensa orquestra; ele ficou chocado pela brevidade da minha
peça”. O lapso de Milhaud trocando o nome de Nepomuceno (que regeu a obra) pelo de Francisco Braga, diretor
da orquestra da “Sociedade dos Concertos Sinfônicos” (ver Sergio Alvim Corrêa, 1985: 38), se repetiria em
todas as reedições da autobiografia de Milhaud, no seu Catálogo de Obras e na bibliografia. Em carta (sem data)
enviada a Alberto Nepomuceno, ele diz: “‘Mon bien cher maître’, eu o procurei todos estes dias passando em
frente à Casa Napoleão para lhe agradecer mais uma vez pela maneira com o senhor fez a sua orquestra trabalhar
‘Printemps’ e pela execução que o senhor conseguiu obter, a qual, se não tiver agradado a todo mundo, a mim
me deu um grande prazer, do qual lhe fico devedor.” (in Reis Pequeno, 1977, T. do A.).

199
exemplo, citaremos os três primeiros temas de sua 2ª Sonata para piano e violino
[...] Não se executaram os dois poemas de Paul Claudel [...] musicados, ainda, pelo
ilustre artista amador [sic].

Já o crítico “T. G.” do jornal A Gazeta faria o seguinte comentário:

Outro compositor que se vai formando com a convivência do nosso ambiente


artístico [sic] é o Sr. Darius Milhaud, de quem ouvimos no programa de ontem uma
2ª Sonata para piano e violino, composta de 4 partes [...] das quais melhor
impressão deixaram a 2ª e a 3ª. É tão diverso o Sr. Darius Milhaud, sóbrio, artista,
elevado, criterioso, das 2ª Sonata, do mesmo Sr. Darius Milhaud, tapageur da
Sinfonia para 9 instrumentos que ninguém diria se tratasse do mesmo autor.

Quanto ao crítico Rodrigues Barboza, defensor das novas tendências,

escreveria no Jornal do Comércio (08/VII/1917):

Foi ontem no salão do Liceu Francês a primeira audição da 2ª Sonata para piano e
violino do senhor Darius Milhaud, que a escreveu a pouco, aqui no Rio de Janeiro.
É uma sonata carioca por nascimento, francesa e modernista pela escola, ou antes
pelo seu modo de ser [...] Somos forçados a resumir numa generalização de frase,
uma banalidade de conceito apreciativo, toda a nossa admiração pelo que ouvimos,
e que era belo, e que era novo, e que era sentido, porque continha uma parcela de
humanidade.285

5.1.2 Milhaud e os Veloso-Guerra

Entretanto, para Milhaud, os dois impactos fundamentais que lhe foram

causados no Brasil foram, por um lado, a música popular286 - é bem conhecido o relato de

Milhaud de sua chegada no Rio em pleno carnaval de 1917287 - e, por outro, o contato com os

Veloso-Guerra, sobre os quais declarou que: “eles me iniciaram à música de Satie que eu

conhecia, então, muito imperfeitamente”.

285
Outra crítica existente no Arquivo Paul Guerra e datada de 8/VIII/1917 (porém sem indicação do jornal ou do
crítico) revela as mesmas disposições favoráveis: “Os espíritos que ficaram estratificados na audição das
consonâncias e se tornaram incapazes de apreender as belezas inenarráveis das combinações que não repousam
sobre acordes perfeitos [...] esses acreditaram que a 2ª Sonata do Sr. Milhaud é um sintoma de loucura; aqueles,
porém, que se emanciparam dessa imperfeição auditiva e tiveram a felicidade de transpor os umbrais dos
rudimentos da harmonização de penetrar na amplidão das combinações livres do contraponto, nas formas da
composição temática, esses terão a faculdade de apreender as inúmeras belezas da 2ª Sonata do Sr. Darius
Milhaud e de sentir as emoções que ela desperta com a sua idealização muito sincera”.
286
Segundo Madeleine Milhaud: “O folclore brasileiro [...] despertou nele o amor ao Folclore [em geral], e é o
primeiro a tê-lo realmente impressionado [...] antes mesmo do próprio folclore provençal [...] Isto transparece e
se ouve ao longo de toda a sua música” (O.R.T.F., 1978, T. do A.).

200
Em sua autobiografia, Milhaud relata que travou conhecimento com os

Veloso-Guerra na casa do compositor Henrique Oswald (relato anteriormente citado no

Capítulo II), o qual costumava realizar regularmente, aos sábados, tertúlias musicais288.

Oswaldo Guerra, em entrevista radiofônica (1978), com Francine Bloch e Madeleine

Milhaud, fornece mais detalhes:

A empatia entre nós foi imediata [...] Sentimo-nos logo em sintonia. Após [a partida
da casa de Henrique Oswald] minha mulher, Darius, e eu voltamos no mesmo
bonde [...] Ao nos despedirmos, ele me disse: dêem-me o seu endereço, gostaria
muito de revê-los289 [...] A partir deste dia, nós nos vimos muito, muito
freqüentemente290 [...] Nós morávamos bastante perto291 [...] e ele vinha tocar piano
[...] Logo que ele escrevia alguma coisa, ele vinha lá em casa para tocar (Eu penso
que no início ele ainda não tivesse um piano). Ele trazia o que havia escrito [...] e
queria testar ao piano [...] Minha mulher, que você conheceu e que lia
admiravelmente bem292 à primeira vista, [...] decifrava dentro da medida do
possível, pois - como sempre é o caso com manuscritos - tratava-se de obras que
não estavam ainda terminadas [...] Vi quantidades de obras293 dele [nessa ocasião] e
possuo até mesmo autógrafos que ele nos deu.294

Quanto a esse hábito de Milhaud de mostrar aos Guerra as suas

composições ao longo de seu processo de elaboração transparece claramente em sua carta de

287
“Meu contato com o folclore brasileiro foi brutal; cheguei ao Rio em pleno carnaval e pude sentir imediata e
profundamente o vento de loucura que se abatia sobre a cidade inteira [...] Os ritmos desta música popular me
intrigavam e me fascinavam” (Milhaud, 1949: 87-88, T. do A.).
288
às quais Oswald Guerra (O.R.T.F., 1978) se refere como “reuniões íntimas que se passavam aos sábados em
casa de Henrique Oswald”.
289
Pela dedicatória da partitura do seu 2º Quarteto de Cordas (ver Volume II, Anexo IV - “Capas de
Partituras/Dedicatórias): “aos meus amigos da rua Marques de Olinda”, datada de 3 /IV/1917, pode-se deduzir
que o encontro com os Guerra se deu nos primeiros meses de sua chegada ao Brasil.
290
“[...] très, très, très souvent [...]” (Oswaldo Guerra, in O.R.T.F., 1978). Essa observação de Oswaldo ecoa a
de Milhaud relatando seu encontro com os Guerra em casa de Henrique Oswald: “Desde então fiquei muito
ligado aos Veloso e os via freqüentemente”.
291
Milhaud morava na Legação de França, na Rua Paissandu, enquanto os Guerra se mudariam alguns meses
depois do bairro de Botafogo (residiam na Rua Marquês de Olinda, de onde - ainda em setembro de 1917 -
Oswaldo dataria sua carta a Koechlin sobre a vinda dos Ballets Russes) para o de Laranjeiras. Segundo Oswaldo
Guerra: “Ele morava pertinho (tout près) da Rua das Laranjeiras.”. (O.R.T.F., 1978).
292
Nesse momento da entrevista, Madeleine Milhaud comenta: “Ela era uma musicista admirável (“remarquable
musicienne”)”. (O.R.T.F., 1978, T. do A.).
293
Na entrevista radiofônica, Oswaldo Guerra refere-se à 2ª Sonata para violino e piano como “a Sonata
dedicada a [André] Gide, que eu vi sendo escrita”.
294
Descrevendo as circunstâncias da composição, no Rio em 1917, da sua cantata Le Retour de l’Enfant
Prodigue, Milhaud dá um exemplo que ilustra esse relato de Oswaldo Guerra: “Compus e terminei L’Enfant
Prodigue [...] Dado o [extremo] entrelaçamento polifônico entre as partes instrumentais, o único arranjo que eu
consegui fazer foi para dois pianos e eu imediatamente (aussitôt) fui tocá-lo com Nininha” (Milhaud, 1949:91, T.
do A.).

201
26/X/1918 escrita num período de afastamento (involuntário), em função de terem todos

contraído a gripe espanhola295:

Quanto a mim, continuo acamado. Tenho a gripe espanhola, porém, leve, e espero
que esteja recuperado em 5 ou 6 dias. Quando nós todos estivermos curados haverá
muita música para vermos e pouco tempo, pois Cacique296 recebeu oficialmente a
ordem que ele deveria partir para Washington pelo 1º navio a partir de 11/XI e que
o encarregado de negócios, que assumirá a Legação, já está a caminho [...] Me
parece tão estranho ter aqui música minha que vocês não conheçam, tanto eu
me habituei a ensaiar com vocês minhas novas obras no mesmo momento que
eu as escrevo.

Segundo Madeleine Milhaud, essas reuniões tiveram, no desenvolvimento

de Darius, “uma grande importância para ele sobre todos os pontos de vista” (O.R.T.F., 1978).

Quanto a Milhaud, ele se referiria freqüentemente a essas reuniões na correspondência com os

Guerra como, por exemplo, na carta de 21/VII/1919: “não esqueço [...] essas soirées de

música em Laranjeiras297 que estão entre as melhores reuniões musicais que eu jamais tive

[...]”. Por outro lado, tanto o depoimento de Oswaldo Guerra quanto a carta que Milhaud lhes

dirige do Rio em outubro de 1918 (quando, então, afastado pela gripe espanhola) dão

testemunho do hábito que este tinha de mostrar a eles as suas composições na medida em que

iam sendo compostas.

5.2 - CORRESPONDÊNCIA MILHAUD-GUERRA 1919-1920

O Arquivo Paul Guerra contém 22 cartas de Milhaud aos Guerra: entre a

primeira (carta de 26/X/1918, a única durante o período brasileiro) e a última (21/XI/1922,

295
Em carta de 24/X/1918 (inédita, informada por Frank Langlois), Milhaud se refere à extensão da epidemia de
“gripe espanhola”: “Feliz aniversário, caro amigo. Seu presente lhe espera. Mas não volte. Morre-se demais no
Rio [...] Estou acamado desde ontem e deverei permanecer por mais uns quatro dias. Meu médico, Dr. Raul
Leitão da Cunha, é perfeito porque ele me receita tudo o que eu lhe sugiro [...] A incúria e o pânico têm sido
aterradores (épouvantables) e têm ocorrido coisas terríveis nos bairros pobres [...] Os petits Guerra também
estão ambos acamados e têm febre alta [...] Todos cariocas estão gripados numa proporção maior ou menor [...]”.
(in “Bibliothèque Littéraire Jacques Doucet”, T. do A.).
296
Apelido dado a Claudel por seus subordinados Milhaud e Hoppenot na Legação francesa.
TP297 Referência à casa dos Guerra (Oswaldo Guerra, in O.R.T.F., 1978).

202
dirigida a Oswaldo no primeiro aniversário da morte de Nininha) existe um conjunto de 20

cartas enviadas entre a sua partida do Brasil e a chegada dos Guerra à França. As primeiras

são escritas durante a longa viagem298 de retorno à França via EUA299: nas Antilhas Francesas

(Point à Pitre, 01/I/1919), Nova Iorque (08/II), a bordo do navio “Lorraine” (13/II/1919)300; a

partir de 20/II/1919, todas as cartas - com exceção de duas (17/III/1919 da Suíça, e

28/VI/1920 de Copenhague) - são escritas de Paris ou de Aix-en-Provence.

TABELA 8 - CORRESPONDÊNCIA DE MILHAUD DIRIGIDA A NININHA E OSWALDO GUERRA -1919


Data/Local Informações Informações musicais Referências aos Guerra Referências ao Brasil
correntes
01/I Escala da viagem Termina 3a peça de “Printemps” (1º
Pointe à Pitre Brasil / EUA Vol.)
8 e 13/II EUA, e viagem a) audição privada, em NY, de seu 4º a) acusa recepção de cartas OG e “[...] não haverá novos
(a bordo) de retorno à Quarteto de cordas, composto no GLV; tangos para o Carnaval?
França Rio; b) elogios Rubinstein a respeito de [...]”.
b) contatos com a Editora Schimer; Nininha;
c) encontro com o compositor Ernest c) Milhaud toca os “Epigramas”
Bloch; de NVG e peças de sua coleção
d) reencontro com Rubinstein: leitura para piano “Printemps” em
do recém-terminado 1º Ato das concerto a bordo do navio
“Euménides”. “Lorraine”.
20/II Anunciadas as audições em março de a) intenção de inscrever obras de
Paris “Printemps”, e da 2ª Sinfonia de OG e NVG nos concertos da SMI
câmera (escrita a bordo), e para maio:(“Société de Musique
“L’Homme et son Désir”. Indépendante”);
b) queixa-se da escassa
correspondência dos Guerra:
“[...] não me esqueçam [...]”.
28/II Reassume suas Contato intenso com a cantora Jane a) efetuada no SMI a inscrição da Anuncia propósito de
Paris funções no Quai Bathori, que assumiu o “Vieux Sonata para piano e violino de OG, fazer uma conferência
d’Orsay. Colombier”; faz a leitura da cantata e dos Epigramas de NVG; sobre o Brasil,
“Retour de l’Enfant Prodigue” b) insistência na vinda dos Guerra a apresentando não só
composta no Rio e se propõe a estrear Paris. “[...] fico furioso por não obras de H. Oswald,
os “4 Poèmes de Claude”, de poder contar com coces aqui: vocês Nepomuceno, Glauco
Milhaud. são o verdadeiro elemento musical Velásquez de OG &
do Rio”. NVG, mas também de
tangos e maxixes.
17/III Em missão a) envia programas de concerto,
Suíça (diplomática) por para a coleção de OG;
8 dias. b) queixa-se da falta de
correspondência: “[...] você é um
preguiçoso [...]”.
06/IV a) "vida estúpida a) “[...] desde a minha chegada não a) “[...] recebi correio do Rio: de a) comentário sobre

TP298PT Milhaud descreve essa viagem no Capítulo XII de sua autobiografia (Milhaud, 1949: 100-106).
299
Através dos diários de Paul Claudel (1969), as datas dessa viagem podem ser reconstituídas: após a partida do
Rio em 23/XI, eles permanecem na Bahia de 26/XI a 01/XII e, em Pernambuco, de 4 a 10/XII; seguem-se
escalas na Martinica (22 a 29/XII, quando Milhaud conclui o 1º ato das Euménides), em Guadalupe (01/I/1919,
quando Milhaud termina a terceira peça da coleção Printemps, dedicada à Nininha e da qual o Arquivo Paul
Guerra possui o manuscrito autógrafo) e Porto Rico (04 a 08/01); eles permanecem nos Estados Unidos (Nova
Iorque e Washington) de 14/I a 05/II.
300
Em 13/II/1919, a bordo do navio “Lorraine”, ele escreve à Nininha: “‘Chère Madame’, é meia noite. Amanhã
de manhã chegarei na França [...] Na França. Amanhã estarei na França, com os meus pais. É tão bonito. Será tão
bom!”.

203
Paris e sem interesse; escrevo nada [...] os amigos da minha vocês, nada [...]”; Antonieta Rudge: “[...]
[...] uma agitação música acham “excessivamente b) anuncia que a SMI concordou toca como uma máquina
fictícia [...].”; dissonante” o que escrevi no Rio em apresentar a Sonata de OG, mas de costura [...]”;
b) porém, revê [...].”; não os Epigramas de NVG por b) “[...] mandem-me
André Gide e b) “Koechlin me pede para tocar no serem demasiado curtos”; muitos detalhes sobre
Francis Jammes. SMI, em junho, os ‘Marines et c) “[...] Paris vos espera [...]”. vocês e sobre a vida
Paysages’”. musical no Rio [...]”;
c) anuncia apresentação
no “Vieux Colombier”
do Trio de Glauco, junto
com obras de H. Oswald,
Nepomuceno.
10/IV a) “pretendo ficar a) 1ª audição, "tumultuosa", do 4º a) anuncia que Koechlin enviou a
Paris algum tempo em Quarteto de cordas; eles (OG&NGV) a partitura de
Aix [para b) Durand publicará a Sonata para “Marines et Paysages”;
repouso]. Já revi piano e instrumentos de sopro; b) “[...] Bathori pede composições
quase todo c) possibilidade de Delgrange reger de vocês. Façam por ela e por mim
mundo [... as “Choéphores na primavera”. [...]”;
Paris...]”; c) pede que OG mande seu (1º)
b) comentários Quarteto de cordas;
encontros com d) queixa-se da ausência de cartas
Satie, Auric, de NVG.
Poulenc e Durey;
c) opiniões sobre
Ravel.
28/VI a) anuncia ida à a) “não escrevi nada desde meu a) acusa recebimento de carta de
Paris Dinamarca com retorno exceto as ‘Soirées de OG de 12/05, de NGV datadas de
Claudel; Petrograd’”; 17 e 23, assim como de novos
b) relata 1ª b) a 2ª Sonata para piano e violino foi tangos;
Audição das tocada “mal” por Y. Guiraud e L. b) “[...] quando vocês estiverem na
"Choéphores": Aubert [...] eu só pensava em nossas Europa, será necessário que vocês
“[...] teria tão boas pequenas apresentações no estudem muito seriamente com
encarregado Liceu e no Conservatório [...] como Gedalge e comigo [...]”;
vocês da seção tudo isso era encantador [...]”; c) pede a OG que envie sua Sonata
de percussão c) Protée: apresentação prevista para para piano e viola.
[...]”; o “próximo interno”; também
c) comentários a projetos para: Brebis Egarée e
respeito de Choéphores.
Koechlin, Ravel
e Satie.
21/VII a) descreve os a) “[..] quanto a esse novo a) acusa recebimento cartas de
Aix festejos da movimento musical: não poderia GLV e NVG (com comentários
Vitória em Paris. sentir-me mais distante dele [...]”; sobre “Tombeau de Couperin” de
Não aceita b) “quanto a Protée: estou fazendo Ravel);
proposta do uma nova versão para orquestra b) envio de artigo de Marnold, de
Ministério de adicionando uma abertura e alguns partituras pedidas pelos Guerra, e
missão na fragmentos sinfônicos [...]”; programas para OG;
Dinamarca; c) envolvimento em diversos projetos c) remetendo carta Koechlin a
b) comentários de apresentações de suas obras: respeito da melodia (canto/piano)
diversos sobre Brebis Egarée, l’Enfant Prodigue, “Poussière” de NVG: “[...] que
Auric Poulenc e Protée, Choéphores; analisamos com grande cuidado
Durey (futuros d) “[...] conto com vocês (Nininha ao [...]”.
membros do piano) para realizar a 1ª audição da
“Groupe des Sonata (para piano/sopro) no
Six”. próximo inverno [...]”.
19/IX Agradece votos Expectativa quanto à próxima “[..] eu tinha com vocês dois as tão
Aix de aniversário. apresentação de Protée no “Theatre boas noitadas de música que nunca
Lyrique”; e espera, para março, consegui voltar a ter em Paris.
audições de Printemps e das Vocês me anunciam seis meses na
Choéphores. França: é pouco [...]”.
20/IX “[...] sinto muita “os cartazes de Protée já estão nas a) enviando autógrafos de Albert “[...] Gosto tanto de
Paris falta da ruas [...] trata-se de uma música Roussel e de um dos “Nouveaux receber notícias do
tranqüilidade que cubista pela forma [...] a senhora Jeunes” (como eram conhecidos os Brasil [...]”.
tinha no Brasil detestará a cantiga de beber, mas futuros membros do “Groupe dês
para trabalhar. penso que gostará das Aberturas Six”): Louis Durey;
Há uma [...]”. b) “[...] o irmão do OG continua
possibilidade de em Londres? (trata-se do violinista

204
eu passar 8 dias Edgardo Guerra)”.
em Londres, em
dezembro, (para
apresentação do
Boeuf sur le
Toit)”.
29/IX Refere-se aos três “[...] Minha Sonata “carioca” para a) assina a carta em português
Aix dias passados na piano/violino acaba de ser publicada. como “o Milhaud”;
Camargue, que Dei o endereço de vocês para a b) “[...] espero que vocês me
diz ser sua região Durand enviá-la [...]”. escrevam detalhes precisos quanto
preferida na a suas intenções [...] espero que
Europa. vocês demorarão demais para que
eu consiga programar a 1ª audição
da Sonata [...]”.
05/XI Anuncia a OG “[...] Meu caro amigo, tenho uma
Paris que sua Sonata boa notícia. A SMI apresentará sua
para Sonata para piano/violino no seu
piano/violino próximo concerto do dia 20 de
será apresentada novembro [com os excelentes
nos concertos da intérpretes Jeaninne Weil e A.
SMI. Pascal]”.

TABELA 9 - CORRESPONDÊNCIA DE MILHAUD DIRIGIDA A NININHA E OSWALDO GUERRA -1920


Data/ Local Informações correntes Informações musicais Referências aos Guerra

09/I a) “[...] estou trabalhando num a) anuncia montagem do Le a) acusa recebimento de fotos e
Paris ritmo intenso; aguardo Boeuf sur le Toit para da Sonata para piano/viola de
impacientemente a vinda de fevereiro: “[...] Regerei a OG, que pretende inscrever
vocês [...]”; orquestra [...] estou muito junto a SNM (“Société
b) comentários sobre Cocteau, satisfeito com o espetáculo” Nationale de Musique”);
e sobre a súbita morte de (tent ce spectacle); b) congratulações pelas fotos e
Fauconnet; b) anuncia composição da pelos três anos de idade do filho
c) brasileiros em Paris: Regis “Serenade”, baseado em Charles (Guerra);
de Oliveira, Tristão da Cunha, “formas antigas”; c) encantado com a notícia da
Alfredo Oswald, Macedo. c) “[...] é preciso entender que vinda deles em setembro;
o Impressionismo acabou [...] e d) enviando a partitura de
que as pesquisas de Ravel e “Sócrates”, de Satie: “[...] obra
Florent Schmidt se esgotaram”. admirável, de uma pureza de
linha admirável [...]”;
e) protesta contra a idéia de a 1ª
audição da Sonata para piano e
sopros (dedicada a NVG) ser
sem a presença deles em Paris.
10/I Termina 5ª peça de Printemps. Encenação do Boeuf marcada
Paris para fevereiro.
"Páscoa" a) doença após temporada do Satisfação com a temporada do Felicita NVG pela nova
Aix Le Boeuf sur le Toit; Le Boeuf sur le Toit: “[...] um gravidez.
b) esteve com Alfredo Oswald espetáculo alegre e plenamente
(o pianista, filho de Henrique bem-sucedido [...]”.
Oswald).
14/VI “[...] quando vocês estiverem Acusa recepção da carta de
Paris aqui, verão como são nossas NGV de 21/V, na qual: “[...] a
pequenas reuniões de sábado” senhora me fala de Rubinstein
(as reuniões do “Grupo dos [...]”. (naquele momento em
Seis”).”. nova temporada no Rio).
29/VI Anuncia projeto de compor as a) anuncia início da a) “[...] me escrevam com mais
Copenhague “Saudades do Brazil”, uma composição das Études para freqüência [...]”;

205
suíte disposta como “um piano/orquestra; b) conta que a “Société Moderne
passeio que começa na rua dos b) a respeito da Sonata para d 'instruments à vent” pediu
jovens Guerra” e termina na rua piano/sopros, diz que será para fazer a 1ª audição da
da Legação” [de França]. editada pela Sirène, e que está Sonata para piano/sopros, mas
“[...] muito satisfeito com o que respondeu que esperaria a
último movimento que vocês chegada dos Guerra.
não conhecem [...]”.
27/VIII Manifesta sua enorme a) acaba de terminar as 5 a) acusa recebimento carta NGV
Aix decepção com a notícia de Études, das quais diz que a 5ª é datada de 03/VII sobre as
cancelamento (que acabou dedicada a NVG; apresentações no Rio de Pelleas
sendo apenas um adiamento de b) “[...] trabalhei como um et Mélisande e Parsifal.
dois meses) da vinda dos louco nesse mês: terminei meu b) “[...] eu tinha tantos projetos
Guerra a Paris: “[...] eu me 5º Quarteto (contava pedir-lhe de concertos com vocês”
regozijava tanto com a idéia de a redução para 4 mãos).”; [refere-se, entre outros, à
tê-los em Paris [...] eu já havia c) anuncia que Protée está realização da 1ª audição da
organizado meu ano inteiro em programado nos concertos Sonata para piano /sopros];
função de vocês fazerem parte Colonne. c) “[...] vou enviar-lhes meus
dele o máximo possível [...]”. “Poèmes Juifs”, que eu contava
entregar-lhes, pessoalmente, no
momento da chegada [...]”.

5.2.1 Correspondência de viagem: a bordo e experiência nos E.U.A.

Nas cartas escritas durante a viagem (cartas de 01/I, 01, 08 e 13/II/1919),

Milhaud faz um relato de suas novas composições: peças para piano da coleção Printemps, a

sua 2ª Sinfonia de Câmara “Pastorale”, finalização do 1º ato das Euménides; de reações às

suas obras: leitura de seu Quarteto de Cordas n.4 em Nova Iorque pelo “Quarteto Flonzaley”,

tratativas com a editora Schirmer para publicar os poemas em inglês de Tagore (que havia

musicado no Brasil), de Rubinstein quanto à complexidade (e “impossibilidade” de leitura a

primeira vista) das Euménides; reencontro de artistas que havia conhecido no Brasil (Artur

Rubinstein, o dançarino e coreógrafo dos “Ballets Russes” Adolf Bohlm) e novos contatos (o

compositor Ernest Bloch); de suas primeiras impressões inicialmente negativas dos EUA, país

que o acolheria durante a 2ª Guerra Mundial e que se tornaria uma segunda pátria301: “Estou

ansioso por deixar este país. Aí está um país que não é feito para mim e ao qual eu não me

TP301PT Milhaud, que descobriria o jazz em Londres, assistindo Billy Arnold e sua banda (1949: 133-4),
mudaria por completo sua visão dos Estados Unidos, quando lá retornou várias vezes a partir de 1922. A partir
de 1940, passou a residir na Califórnia, onde - durante décadas - foi professor de composição em Mills College.

206
habituaria nunca. Enquanto que no Rio, eu teria ficado indefinidamente”. Em outro trecho da

mesma carta, certamente respondendo a uma pergunta dos Guerra sobre o recente sucesso da

pianista Guiomar Novaes nos Estados Unidos, ele diz: “Eu nunca ouvi falar de Guiomar N.

[sic]. Será que ela já não teria deixado este país mecânico e perfeccionista, que é complicado

demais para a alma simples que eu sou?”. Sabendo-se à distância, em pleno período do

carnaval, pergunta: “Já existem novos tangos para o carnaval? Não me esqueçam”.302

5.2.2 Primeiros meses na França: saudades do Brasil

O conjunto de cartas de Milhaud, escritas entre sua chegada na França e

junho de 1919, reflete bem o estado de espírito, que ele assim descreveu em sua autobiografia:

Reencontrei Paris na alegria da Vitória. Entretanto, foi mais me sentindo como um


estrangeiro que retornei ao meu apartamento; meus olhos se haviam habituado em
demasia aos reflexos do céu do Brasil e meus ouvidos ainda vibravam com os
ruídos suntuosos da floresta e dos ritmos sutis dos tangos. Eu retirei de minha mala
todo tipo de objetos baratos ou de inspiração popular que eu havia comprado na
América: conchas gravadas e pintadas pelos índios, apitos em terracota
representando pássaros [...] e espécimes de prataria colonial portuguesa. Juntei,
então, todas estas testemunhas silenciosas de minha bela viagem em cima da
lareira. Felizmente, o movimento artístico que se desenvolvia em torno de mim
logo me interessou o suficiente para me arrancar as minhas lembranças303.

Sobre esse estado de espírito, Milhaud se expressa em termos muito

semelhantes na correspondência (06/IV/1919) dirigida aos Guerra:

TP302PT Carta de Milhaud, datada de 8/II/1919: “ y-a-t-il eu de nouveaux tangos pour le Carnaval? Ne
m´oubliez pas!”
303
Ver Milhaud (1949: 107-108, T. do A.): “.Je reretrouvai Paris dans la joie de la victoire. Mais c´est comme
um étranger que je revins à mon appartement: mes yeux avaient trop retenu les reflets troubles du ciel brésilien,
mes oreilles étaient encore trop vibrantes des bruits somptueux de la forêt et t des rythmes subtils des tangos.Je
sortis de ma malle toute sorte d´objets de pacotille ou d´inspiration populaire que j´avais achetés em Amérique:
des coquilles de noix gravées et peintes par les indiens,sifflets en terre cuite representant des oiseaux[...] des
specimens de l´argenterie coloniale portugaise.J´accumulai tous ces temoins silencieux de mon beau voyage sur
la cheminée.Heureusement le mouvement artistique qui se developpait autour de moi m´intéressa bientôt assez
pour m´arracher à mes souvenirs

207
Eu me esforço a me re-habituar a Paris sem conseguí-lo e me sinto como um
estranho em meu apartamento [...].A cada dia eu sinto mais falta do Rio e penso o
tempo todo no belo sol, com as grandes palmeiras e, sobretudo, as boas sessões de
música304 [20/II/1919].
[...] Aqui a vida é impossível e estúpida [...] Em Paris, vive-se numa agitação tão
ilusória (factice). Parecemos um motor de avião ou uma máquina de costura. A vida
se parece com a técnica pianística de Rudge Miller305, isto é, tão rápida, burra e sem
interesse [...] Desde a minha chegada na França eu ainda não compus nada. Será
que a minha música teria ficado no Brasil?

Em 10 de abril, ele relata que: “muitos amigos da minha música acham

que o que eu escrevi no Brasil é excessivamente dissonante e me dão as costas. Quanto a

mim eu digo: pior para eles...”, e anuncia que iria para a sua casa familial em Aix-en-

Provence “repousar-me ou, aliás, tentar trabalhar um pouquinho, pois desde a minha chegada

à Europa, eu não compus mais nada”. Em 28 de junho, reclama de uma execução da sua 2ª

Sonata para piano e violino306 e declara:

Eu só pensava nas nossas boas e pequenas apresentações no Liceu Francês e na


Sala do Jornal do Comércio! Como isso era encantador. O que é incrível é que
desde a minha volta eu não tenho produzido nada. Eu apenas escrevi 12 pequenas
melodias (com a mesma extensão das Chansons Bas) [...] que se chama Les soirées
de Petrograd.

Em 21 de julho, ele termina uma carta para os Guerra, nos seguintes termos:

Aqui é verão, um bom verão bem calmo, com pássaros que cantam em francês -
mas eu não esqueço o bem-te-vi, o sabiá, nem o ardor do sol tropical, quando ele se
derrama sobre as palmeiras, nem as noitadas (soirées) de música em Laranjeiras
que estão entre as melhores reuniões musicais que eu jamais tive. Eu desejo que nós
possamos recomeçar esses saraus em breve e em Paris307.

304
Em francês: bonnes soirées de musique.
305
Milhaud se refere à grande pianista Antonieta Rudge-Miller, já referida no Capítulo III. Sua observação,
talvez lisonjeira em relação à Nininha, contrasta com a opinião de grandes músicos e críticos que a ouviram, e
com a frase atribuída a Rubinstein de que: “as três coisas, das quais mais gosto são: Beethoven, Mozart e os dois
tocados por Antonieta Rudge”.
306
“Louis Auteil e Yvonne Giraud tocaram minha ‘2ª Sonata’; estava um horror (“c’etait affreux”)” (carta de
28/VI/1919).
307
Uma carta à Srª Henrique Oswald, datada de 26/VII/1919 revela um estado de espírito semelhante: “Aqui,
apesar do verão, acho que não faz calor, que a lua não é tão brilhante, que as árvores são muito pequenas, que as

208
Apesar de que, a partir do segundo semestre de 1919, Milhaud retomaria a

sua atividade composicional - notadamente Protée308 e Le Boeuf Sur Le Toit - ele ainda

escreveria aos Guerra em 20 de setembro:

Eu sinto tanta falta da tranqüilidade que eu tinha no Brasil para trabalhar. Eu havia
me habituado de tal maneira que não tenho conseguido, desde a minha volta
trabalhar seriamente aqui fora “Protée”, que me ocupou todo o verão [...] e para o
qual fui impelido pelas circunstâncias.

Nesses primeiros meses de retorno à França, Milhaud leva também algum

tempo para se desvencilhar de suas atividades como funcionário do Quai d’Orsay309. Em 28

de fevereiro, ele escreve: “aqui estou instalado com Claudel num escritório do Ministério, mas

infelizmente (helás!) pela janela não são as palmeiras da Rua Paissandu que eu vejo”. Em 17

de março, ele escreve: “Parto em missão na Suíça por oito dias”.

Num primeiro momento, Milhaud havia pensado se apresentar para a

competição anual, do Conservatório de Paris, para o Prix de Rome. Em 8 de fevereiro, ele

escreveria aos Guerra que o futuro posto do Claudel era incerto - podendo tanto ser a chefia

da Legação francesa na Polônia quanto um eventual retorno ao Brasil - comentando: “em todo

caso não voltarei com ele, pois devo retomar os preparativos para o Prix de Rome”. Já no final

de fevereiro, suas dúvidas quanto ao Prix de Rome se acentuam, comentando para os Guerra

frutas não têm o mesmo sabor, que a flores não têm o mesmo perfume, e que as pessoas são bem menos gentis
que os meus amigos do Rio, como vocês, e os meus outros caros.” (citada em Martins, 1995:100).
308
Conforme relata em sua autobiografia (Milhaud, 1949:68-69): “Milhaud compôs [...] três versões diferentes
de ‘Protée’: a primeira [1913] exigia pouca música: um pequeno coro à capela [...] uma fanfarra para metais [...]
um noturno pianíssimo [...] um final [...] para coro masculino e grande orquestra. [...] Em 1919, Gheusi [diretor
do ‘Théâtre du Vaudeville’] tentou fazer uma montagem muito luxuosa de ‘Protée’ [...] com cenários de José
Maria Sert; e me pediu para ampliar a minha partitura e escrevê-la para grande orquestra. Nessas novas
circunstâncias, eu compus aberturas para cada ato, um prelúdio e fuga [...] e um final para o primeiro ato [...] Eu
re-orquestrei as peças já existentes. Porém, a experiência teatral de ‘Gheusi’ foi efêmera [...] Cansado após todas
estas tentativas, eu extrai de ‘Protée’ minha segunda ‘Suíte Sinfônica’. É sob esta forma que esta obra é tocada
em concertos e está gravada”.
309
Endereço em Paris do Ministério das Relações Exteriores da França, e pelo qual é correntemente referido.

209
que: “no Conservatório é de se chorar tellement c’est bête. O concurso de Roma será talvez

em setembro e não sei se o farei”.

Na realidade, Milhaud acabaria decidindo não concorrer ao Prix de Rome,

sendo logo absorvido pela solicitação de novas obras, pela execução pública e edição de suas

composições: já nos primeiros meses de sua chegada, seriam apresentadas a sua Sonata para

2 Violinos e Piano, a 2ª Sonata para Piano e Violino, as duas primeiras sinfonias de câmara

Printemps e Pastorale, e, sobretudo, uma apresentação com grande sucesso de suas

Choéphores, em junho310. Ao mesmo tempo estavam sendo editados Dois Poemas de Tagore

pela Schirmer de Nova York, sua 2ª. Sonata para Violino e Piano e seu 4º Quarteto de

Cordas pela Durand, e sua Sonata para Piano pela Demets.

5.2.3 Concertos brasileiros

Pela correspondência de Milhaud, verifica-se que logo na sua chegada à

França, Milhaud toma duas iniciativas relacionadas com a difusão de música brasileira:

a) organiza com Jane Bathori, que então dirigia o teatro de vanguarda

“Vieux Colombier”, um Concert de Musique Brésilienne 311, que se realiza

310
Em carta datada de 28/VI/1919, ele relata algumas de suas impressões deste concerto aos Guerra: “O
acontecimento musical importante foi a 1ª audição de minha música para as Choéphores – foram dados
fragmentos importantes da minha partitura e posso dizer a vocês que se trata realmente de uma obra com a qual
eu estou contente e feliz. A execução produziu uma impressão muito forte. Sentia-se que se tratava da primeira
manifestação musical importante e nova desde o Sacre. A cena com percussão e declamação desencadeou o
entusiasmo. Vocês me fizeram muita falta e eu os teria feito tocar na percussão” .
311
Em carta de 28/II/1919, Milhaud anunciava da seguinte forma aos Guerra suas intenções quanto a esse
concerto: “Eu talvez faça uma conferência sobre a música no Brasil, na qual eu faria cantar tangos e maxixes e
em seguida apresentaria A Sesta de Nepomuceno, a 2ª Berceuse de Oswald, uma parte do Trio n. IV de Glauco.
Será que eu devo colocá-los na seqüência de ‘ces braves gens’? Nesse caso, eu terminaria a sessão com as obras
de vocês, mas minha preferência seria fazê-las ouvir em concerto da SMI”.

210
em 13 de abril de 1919312, com obras de Glauco Velasquez, Alberto

Nepomuceno, Henrique Oswald, Nininha Veloso Guerra, uma seleção de

“tangos, maxixes, sambas, e cateretês” e Deux Poèmes Tupis (para 4 vozes

femininas e palmas) de Darius Milhaud313;

b) em 28 de fevereiro, ele anuncia aos Guerra: “inscrevi na SMI a Sonata

de Oswaldo [Guerra] e os Epigramas da Senhora Nininha Veloso Guerra.

Eu os manterei informados quanto à decisão do Comitê a respeito destas

obras”314. Em carta de 6 de abril, Milhaud anunciava que: “A SMI

apresentará este ano a Sonata de Oswaldo Guerra. Quanto aos Epigramas,

foram julgados demasiado curtos pelo Comitê, não sendo numerosos o

suficiente para figurarem num programa315. Eu os tocarei, portanto,

domingo no ‘Vieux Colombier’, no concert brésilien”.

De fato, a Sonata para Piano e Violino de Oswaldo Guerra, cuja 1ª audição

mundial havia sido dada por Milhaud e Nininha Guerra no Rio de Janeiro, em 30/VIII/1918,

teria sua 1ª audição francesa realizada em concerto do SMI em 20 de novembro de 1919316.

Deve-se notar que esse concerto precedeu de dois anos a primeira apresentação, em Paris, de

obras de Villa-Lobos317, e juntamente com os Epigramas de Nininha Guerra - executados por

312
Em 13/IV/1919, Claudel anota em seu diário: “à tarde concerto de música brasileira”.
313
Em carta datada de 10/IV/1919, Milhaud envia o programa do concerto com os seguintes dizeres: “‘Chère
Madame’, aqui está o programa onde encontrará em companhia de meus coros tupis seus encantadores
Epigramas. Paris lhe espera”.
314
Uma semana antes (carta datada de 20/II/1919), Milhaud escrevia aos Guerra: “Eu farei tocarem na SMI,
provavelmente sua Sonata para piano e violino, caro Oswaldo, e tocarei seus ‘Epigramas’, tão encantadores,
‘chère Madame’”.
315
Em carta (13/II/1919) a bordo do navio “Lorraine”, onde Milhaud havia tocado os Epigramas num pequeno
concerto, ele premonitoriamente avisava: “Eles [os dois Epigramas] continuam sempre tão bonitos e eu gosto
muito deles, mas ainda é necessário escrever outros (não havia sido programado um total de cinco?) e me
enviar”.
316
Juntamente com 1ªs audições de obras de Milhaud, Turina, Grovlez e Goossens.
317
Ver referência à precedência da Sonata de Oswaldo Guerra, no Capítulo IV.

211
Darius Milhaud no “Vieux Colombier” - constituem as primeiras obras apresentadas no

exterior de compositores brasileiros da geração de Villa-Lobos e Luciano Gallet.

5.2.4 Projeto de vinda dos Guerra a Paris

Em mais de uma ocasião, na correspondência dessa época, Milhaud sugere

que Oswaldo Guerra deveria tentar obter o “Prêmio de Viagem”318, manifestando também a

esperança de que o prestígio resultante da aceitação pelo SMI de execução de uma obra sua

pudesse influir na obtenção de uma bolsa do governo brasileiro. De fato, às vésperas do

concerto da SMI (carta de 5/XI/1919), ele escreveria:

Eu lhe enviarei vários programas [desse concerto] para que vocês os mostrem a
todo Rio de Janeiro (tout Rio). Isto incitará o Governo a dar a vocês o Prêmio de
Viagem. Ficaria feliz se este concerto fizesse com que os seus compatriotas
entendessem que você já é apreciado na França.

O projeto de fazer os Guerra virem à França é uma tônica de toda

correspondência, e o empenho de Milhaud é extremo. Em 20 de fevereiro, ele declara:

Todos os pianistas me parecem terrivelmente medíocres, quando eu penso em como


a Senhora Guerra toca piano [...] Espero que vocês estejam fazendo planos para vir
para cá319 [...] Paris precisa de artistas notáveis (artistes remarquables) e vos
espera.

Em 28 de fevereiro: “Enraiveço de encontrar tantos brasileiros e de não ver

vocês dois que são o elemento musical do Rio”.

318
Ainda em 21/VII/1919, Milhaud perguntava a Oswaldo: “Informe-me como vai a questão da subvenção para
o seu prêmio de viagem para a Europa, pois conto com a presença de vocês para este inverno”.
319
Nessa mesma carta, Milhaud faz a seguinte sugestão (provavelmente jocosa a Oswaldo) comparando com a
sua própria situação no Brasil enquanto “secretário particular” de Paul Claudel: “Oswaldo deveria se fazer trazer
por Regis como secretário particular”. Raul Régis de Oliveira (1874-1942) “[...] No final de 1919, após breve
passagem por Paris, seguiu para Haia, na Holanda, como enviado extraordinário, e ministro plenipotenciário”
(Abreu, 2001: 4177 - Volume IV).

212
Em junho, diante de uma perspectiva de vinda (posteriormente não

concretizada) ainda em 1919, ele sugere um “plano de estudos”: “será necessário que vocês

estudem intensamente com Gedalge320 e comigo, mas muito seriamente”. Num momento

ulterior321, ele sugere que esses estudos também sejam feitos com Charles Koechlin. Essa

ênfase na necessidade de um trabalho mais aprofundado do contraponto e da composição322 -

que Milhaud tanto valorizava em relação aos estudos que realizara com Gédalge - se por um

lado aponta para uma lacuna na formação técnica de Oswaldo e Nininha, por outro

corresponde a recomendações idênticas que fazia ao seu colega e amigo, o compositor Francis

Poulenc, quando recomendou a este que aprofundasse sua técnica com Koechlin.

Entretanto, seria equivocado ver no projeto de Milhaud de trazer os Guerra

a Paris, o de uma mera viagem de estudos. O propósito central que atravessa toda essa

correspondência é, na realidade, o de integrá-los ao seu círculo de amigos e à vida musical de

vanguarda de Paris323. Primeiramente, ele os mantém a par das execuções de suas obras e de

suas novas composições (como exemplos, Soirées de Petrograd, Protée, Le Boeuf sur le Toit,

Machines Agricoles, Sérénade, Saudades do Brazil, Cinq Etudes para piano e orquestra,

5º Quarteto de Cordas). Ele também os mantém informados quanto aos seus principais

interlocutores: os compositores Koechlin, Albert Roussel, Erik Satie, Francis Poulenc,

320
André Gedalge, professor francês (1856-1926). Segundo Rostand: “Ele viu passar por sua classe, no
Conservatório de Paris, tudo o que a música daquela época teve como celebridades, de Florent-Schmitt a Darius
Milhaud [...] De 1905 até a sua morte, ele professou o contraponto e a fuga. Ele escreveu um ‘Tratado da fuga’,
em 1904” (Rostand, 1970:97, T. do A.). Em 1965, Dariu Milhaud escreveu um prólogo para a tradução
americana do Tratado de Gedalge, com os seguintes comentários: “Eu tive a grande sorte de estudar com André
Gedalge durante vários anos. Eu tenho a impressão que tudo o que eu sei quanto ao aprendizado, eu devo a ele. É
absolutamente necessário para um compositor adquirir uma forte técnica: harmonia, contraponto e fuga. E, para
o estudo da técnica da fuga, sobre todos os detalhes possíveis, André Gedalge nos deixou um verdadeiro
monumento” [Gedalge, 1965: vii, T. do A.]
321
Em carta de 19/IX/1919, ele “reclama” da curta duração prevista para a viagem: “Vocês me dizem que virão
passar talvez seis meses na França. Como é pouco! Eu passei dois anos no Rio...”.
322
É sintomática dessa ênfase no trabalho da técnica composicional a seguinte observação numa carta aos Guerra
de 29 de setembro de 1919: “Meus caros amigos, eu aproveito a passagem em Aix de Louis Durey para pedir-lhe
um autógrafo para vocês. Trata-se de um dos ‘nouveaux jeunes’ que é um estudioso aplicado. Evidentemente, ele
tem muito que aprender! Mas isso eu também e vocês também”.

213
Georges Auric, Louis Durey; a cantora Jane Bathori, a pianista Georgette Gueller; a violinista

Yvonne Guiraud; os escritores Francis Jammes, Claudel, André Gide e Jean Cocteau. Ele

procura interessar músicos franceses na música dos Guerra: a análise que faz com Koechlin

da melodia Poussière de Nininha, tendo como conseqüência uma carta de Koechlin dirigida a

Nininha com sua análise e recomendações324; o pedido que Jane Bathori faz de melodias de

Nininha, logo após o concerto do “Vieux Colombier”; a insistência de Milhaud para que

Oswaldo envie à França sua recém-composta Sonata para viola e piano para poder enviá-la à

“Société Nationale”. Ele mantém os Guerra informados da transformação paulatina do grupo

dos Nouveaux Jeunes no Groupe des Six. Já a partir de abril de 1919, ele expressava para os

Guerra, o seu encantamento com Satie:

Conversei longamente com Satie, que é absolutamente adorável e jovem de


espírito. Ele fala de Ravel como de um velho trapo (10/IV/1919); eu vejo Satie com
freqüência. Ele diz que vai escrever um quarteto de cordas que intitulará “Ultimo
Quarteto”. Ele faz um grande bem à jovem escola. Sua influência é excelente.
(28/VI/1919);
Satie tornou-se crítico musical do L’Humanité. Eu lhes enviarei os seus artigos.
Isso será uma verdadeira loucura (insensé). Ele está completamente toqué
(25/XI/1919).

323
Numa carta de 25/XI/1919, ele diz: “É preciso que vocês venham, pois é só em Paris, no fundo, que a música
acontece”.
324
Essa carta de Koechlin, mencionada por Milhaud em sua carta de 01/IX/1919, não foi localizada. A
correspondência com Koechlin envolvendo os Guerra havia começado mais cedo, como se pode observar na
seguinte carta de Milhaud a Koechlin, datada de 05/V/1917 [T.do A.] : “Caro amigo, as ‘Paysages et Marines’
chegaram bem [...] Elas serão tocadas num concerto em junho pela senhora Oswaldo Guerra-Veloso, que assim
como toda a sua família, é entusiasmada pela sua música e encomendou diretamente através de Rouart os seus 3
cadernos de melodias [...] assim como a sua ‘2ª coleção de melodias’”; em 21/VI/1917, relatando as dificuldades
para realizar o concerto de 02/VII/1917, no “Salão do Jornal do Commércio” (no qual Nininha apresentou 2
peças de Koechlin: La chanson dês pommiers en fleurs e Chant de pécheurs), diz estar “enfrentando
continuamente a moleza, a preguiça, a inércia deste país delicioso [...] Eles são bem indignos de seu país
magnífico. Eu me vingo convertendo ao cubismo os seus jovens pintores e introduzindo os acordes de 13 notas
juntos aos seus jovens músicos. Aqui só há de realmente interessante o jovem casal Oswaldo Guerra e seu pai
Leão-Veloso que já lhe escreveram a sua admiração. Eles são realmente pessoas como nós e dignos de um dia
habitar a França”; em 27/VIII/1917, ele escreve: “Estou na casa dos meus amigos Guerra [...] Nós
freqüentemente tocamos as suas melodias do 3º volume. A senhora Guerra toca ao piano e eu canto [...] e o seu
4º volume? Ele nos desperta um desejo agudo”. Nessa mesma carta são adicionadas curtas mensagens de
Oswaldo e Nininha para Koechlin. Esta lhe escreve: “Como aprecio tanto a sua música, gostaria muito se
pudesse escrever uma peça para mim e enviá-la”; na carta a Koechlin previamente citada , de 03/IX/1917
,Oswaldo agradece os “ 3 volumes de melodias “enviados diretamente a ele pelo editor Rouart .

214
Em relação aos Nouveaux Jeunes, manifestaria a eles suas opiniões quanto

aos pontos fortes e fracos de Poulenc, Auric e Durey, assim como seus pontos de

concordância e discordância com essas novas tendências. Numa carta datada de 21/VII/1919,

ele escreve:

Esse novo movimento musical de jovens é bem curioso: ódio ao romantismo e à


expressão, busca da vulgaridade e da paródia, atmosfera de circo , music hall,
acrobatas e ilusionistas. Esse movimento se origina em Parade - escrita simples e
freqüentemente banal, porém com animação e alegria. Eu me sinto tão distante
quanto seria possível de todos esses símios (tous ces singes). Durey trabalha mais
seriamente, porém sua personalidade é bem minúscula. Auric tem uma técnica
espantosa, mas o resultado é seco e malvado. Poulenc, maravilhosamente dotado,
mas cujos estudos são insuficientes: tem um sucesso louco, mas não sabe
orquestrar325. Eis os novos. Nós somos bem diferentes e somos nós que temos
razão.

Seis meses mais tarde, às vésperas do retumbante sucesso musical e

mundano do Le Boeuf sur le Toit, Milhaud parece muito mais identificado com o que se

tornaria o ideário do “Grupo dos Seis”326, escrevendo aos Guerra os seguintes comentários

que parecem diretamente extraídos das páginas do Coq et L’Arlequin”:

Eu lhes enviarei, logo que for editado, o Socrate [...]327 É uma obra admirável com
uma pureza de linhas incomparável! Não se pode deixar de constatar atualmente
que o Impressionismo acabou; que as pesquisas de Ravel328 e Schmitt329 etc., não
levar a lugar nenhum; que foi preciso livrar-se de todo o exotismo dos Russos, por
mais cativante que seja e das asperezas de um Stravinski e que nós reencontramos

325
Em carta aos Guerra datada de 10/IV/1919, ele já dizia a respeito de Poulenc: “Poulenc é muito jovem e não
estudou o suficiente, mas o resultado é vivo e claro, muito ritmado. Ele é muito talentoso” [T. do A.].
326
A expressão “Grupo dos Seis” só seria cunhada algumas semanas depois dessa carta no famoso artigo de
Henri Collet, com o título “Les Six Français: Darius Milhaus, Louis Durey, Georges Auric, Arthur Honegger,
Francis Poulenc e Germaine Tailleferre”, publicado no jornal “Comoedia”, em 23/I/1920.
327
Em carta de Milhaud aos Guerra datada de 09/I/1920. Esta obra de Satie se tornaria um paradigma na estética
“francesa” dos Six, na busca de uma “nova simplicidade”. Claude Rostand a comenta da seguinte forma: “Este
inimigo do ‘sublime’ comporia ‘Socrate’ (1918) ‘drama sinfônico’ para voz e pequena orquestra, sobre texto de
Platão, nos quais o autor atinge uma certa forma de ‘sublime’, através de recursos de uma extrema simplicidade”
(Rostand, 1970: 196, T. do A.).
328
Em carta de 28/VI/1919, Milhaud declarava aos Guerra: “Ravel se torna insustentável (“insoutenable”)”.
329
Florent-Schmitt, compositor francês (1870-1958). Segundo Rostand (1970:200, T. do A.): “Desde [1907] seu
estilo está formado: apesar das vizinhanças perigosas deste início de século, ele se impõe por sua independência.
Debussy, Ravel, Stravinsky e Schoenberg, de quem ele conhece perfeitamente as obras não terão nunca qualquer
influência sobre ele [...] Músico de grande temperamento, uma natureza generosa, um artista sem compromissos,
em relação à quem é verdadeiramente um erro negligenciar-se a sua produção, como aconteceu após a sua
morte.” Amigo de Stravinsky (que lhe dedicou “Mazatsumi”, a 2ª peça das Três poesias da lírica japonesa,
1913) e de Schoenberg, cujas primeiras obras apoiou eloqüentemente como crítico musical, ele se tornaria no
final dos anos 1920 um grande defensor e amigo de Villa-Lobos. Suas relações, entretanto, com o “Grupo dos
Seis” (com exceção de Honegger) foram de uma antipatia que estes lhe retribuíam.

215
uma música mais despojada, mais FRANCESA [sic], clara e sem desenvolvimento
ou harmonias inúteis. O sentimento puro, expresso com simplicidade, de nosso
grupo, tendo Satie como estandarte (Auric, Durey, Honegger, Milhaud, Poulenc,
Tailleferre) entrou nitidamente em oposição com todos os músicos da SMI, e o fato
de estarmos em grupo nos torna mais fortes!! Aguardo com a maior impaciência a
chegada de vocês. Eu ficaria tão feliz de torná-los participantes de nossas reuniões
de música.

Diversas vezes, Milhaud manifesta o quanto gostaria que os Guerra participassem das

suas atividades:

Estou ansioso para que vocês cheguem. Eu ficaria tão feliz de fazê-los participar
das nossas reuniões de músicas [09/I/1920];
Quando vocês vierem, vocês verão nossas pequenas reuniões de sábado entre
colegas. Isso tem sido muito agradável ao longo deste ano e o será ainda mais no
ano que vem, já que Oswaldo e a senhora aqui estarão [...] [14/VI/1920].

Em relação à Nininha, ele manifesta desde o início da correspondência seu

interesse intenso em organizar concertos para ela. Dentre esses projetos, destaca-se como um

tema recorrente o firme propósito de Milhaud de realizar a primeira audição mundial de sua

Sonata para piano e instrumentos de sopro, tendo Nininha como intérprete: a dedicação dessa

obra à Nininha - que acompanhou de perto a composição dos seus três primeiros movimentos

no Rio - e a insistência de Milhaud quanto ela ser a protagonista da primeira audição mundial,

sugerem que a obra e a sua escrita pianística foram pensadas em função das suas

características específicas enquanto intérprete. No início da correspondência (carta de

01/II/1919), ele já dizia: “Não esqueçam que eu os espero para a audição de minha Sonata

com instrumentos de sopro. Não me façam esperar dez anos (ela ficaria fora de moda e velha

demais) e eu também”330. Na última carta (27/VIII/1920) de Milhaud, antes da chegada dos

Guerra na França, ele manifesta a sua decepção com o fato da sua Sonata ainda não ter podido

330
Entre outras menções na sua correspondência à Sonata para piano e instrumentos de sopro: “Conto com
vocês para realizar a primeira audição no próximo inverno” (21/VII/1919); ele escreve: “Espero que vocês não
se demorem para que eu possa programar a 1ª audição da ‘Sonata’” (21/VII). Em carta de 09/I/1920, protesta
contra uma sugestão dos Guerra de não se retardar por causa deles a realização da primeira audição; em
25/VI/1920 informa que a obra seria publicada pela Sirene, que recusou a proposta da “Société Moderne
d´instruments à vent” da execução da obra por estar reservada a Nininha, e se diz “muito satisfeito com o último
movimento que vocês ainda não conhecem”.

216
ser executada, comentando que “ela será publicada na próxima primavera” e que, a partir

desse momento, não poderia impedir a sua execução por terceiros. A Sonata, uma das mais

ousadas de Milhaud, no campo da politonalidade331 seria estreada em junho de 1921,

momento em que a doença de Nininha já se havia agravado de maneira inexorável. Uma

medida da importância que Milhaud atribuía à vinda dos Guerra é a sua profunda decepção,

manifestada em sua carta a Nininha, de 27/VIII/1920, com a notícia (posteriormente

desmentida) de que os Guerra não mais viriam à França332:

Minha decepção é enorme (un vrai gros chagrin) [...] Estava tão feliz com a
perspectiva de ter vocês dois em Paris. Eu havia organizado todo o meu ano
musical de maneira a tê-los incluídos. Eu pretendia voltar em final de setembro
para estar presente quando vocês aqui chegassem. Eu tinha um monte de projetos
de realização de concertos com vocês. Eu contava poder apresentar enfim a minha
Sonata com instrumentos de sopro [...] Eu acabo de terminar os meus Cinq Études
para piano e orquestra: a 5ª lhe é dedicada. Eu teria gostado muito que você as
tocasse [...] Terminei o meu 5º Quarteto de Cordas (em quatro partes). Eu esperava
pedir a você, logo na sua chegada, que fizesse redução a quatro mãos! Helas!... Eu
vou lhes enviar os meus Poèmes Juifs333 que acabam de ser publicados e que
pretendia dar pessoalmente a vocês na sua chegada. Escrevam-me com freqüência.

Outro aspecto que se depreende da correspondência é a importância que

Milhaud atribui a eles, e particularmente a Nininha, como interlocutores. A carta de

27/VIII/1920 fornece um exemplo: “Vocês dois estão entre os melhores amigos da minha

música. É tão raro e tão precioso”. Por outro lado, fica claro pelo tom e teor de sua

correspondência que ele está se dirigindo a pessoas que conhecem a fundo as suas

331
Essa obra foi avaliada nos seguintes termos por Paul Collaer (1947: 222, T. do A.): “quatro estados líricos:
tranqüilo, alegre, raivoso, doloroso são expostos ao longo dos 4 movimentos. Os dois primeiros, são pastorais. O
3º, sobre blocos harmônicos, excessivamente compactos, expõe a torrente veemente dos instrumentos de sopro.
O 4º é como uma marcha fúnebre [...] Os 1º e 4º movimentos dessa Sonata são extremamente belos. O 3º contém
um excesso de passagens formais que diminuem a sua qualidade”.
332
Depreende-se da carta de Milhaud de 27/VIII/1920, que os motivos alegados seriam “as preocupações que lhe
dá a saúde da Srª Tavares Guerra”, mãe de Oswaldo. Nessa mesma carta, Milhaud pergunta: “Se ela está muito
doente, porque vocês não a trariam para a França? Temos tão bons médicos em Paris. Qual a sua doença? (de
quoi souffre-t-elle?)”.
333
O Departamento de Música da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro possui esse exemplar (ver Volume II,
Anexo IV – “Capas de Partituras/Dedicatórias”), enviado por Milhaud, em setembro de 1920, de Aix-en-
Provence, com a seguinte dedicatória: “Para os meus caros amigos Guerra, esses poemas da minha terra que eu
teria gostado entregar pessoalmente em Paris, ao invés de confiá-los ao correio, que os leva ao seu país tão
distante” (T. do A.).

217
composições, e cujas opiniões têm peso para ele. Um exemplo é o comentário que escreve a

Nininha a respeito da re-elaboração de Protée:

Coloquei na parte final, uma grande seção coral com um tema popular de chanson à
boire. Eu penso que você a detestará. Porém o texto me conduziu logicamente a
isto e eu não poderia fazer diferentemente. Entretanto, penso que você realmente
gostará (vous aimerez bien) das aberturas que precedem cada ato.

O que se pode verificar, portanto, é que se - em relação a compositores

brasileiros como Glauco, Oswald e Nepomuceno - Milhaud se dispunha a tentar difundir a sua

música na França, diferentemente - em relação aos Guerra - ele pretendia integrá-los como

compositores, intérprete e colegas no movimento de música contemporânea, que então se

desenvolvia em Paris.

5.2.5 Informações sobre as composições de Milhaud em 1919-20

A correspondência de Milhaud aos Guerra também traz precisões de

interesse sobre algumas de suas novas composições desse período:

a) Soirées de Petrograd (sua única composição durante os primeiros

meses de retorno à França): em 10/IV/1919, ele as descreve como similares

às Chansons Bas (compostas no Rio em 1918)334;

b) Machines Agricoles: em carta de 25/X/1919, ele as descreve “no gênero

do L’Enfant Prodigue335 e das minhas pequenas Sinfonias”336. Nessa carta,

334
Essa série de 10 curtos e irreverentes poemas de Mallarmé contém numerosas “audácias” harmônicas
(agregados politonais) e rítmicas. Que essa obra era bem conhecida do Círculo Veloso-Guerra se depreende da
dedicatória de Milhaud a Godofredo Leão-Veloso, citada e reproduzida no Capítulo II.
335
Milhaud referiu-se nos seguintes termos à cantata Le Retour de l’Enfant Prodigue, composta no Rio de
Janeiro em 1917: “Eu escolhi uma orquestra de 21 solistas para sustentar as vozes dos cantores [...] eu desejava

218
ele informa: “Fiz uma redução a 4 mãos das 6 Pastorales para canto e 7

instrumentos [...] as Máquinas Agrícolas [...] são ‘pastorais’ que

correspondem às modernas exigências do campo”;

c) Sonata para piano e instrumentos de sopro: essa obra aparece no

Catálogo de Milhaud como composta no Rio de Janeiro em 1918. Pela

correspondência de Milhaud com os Guerra, fica-se sabendo que - apesar

de os três primeiros movimentos terem sido compostos no Rio - o 4º

movimento foi composto entre a partida do Rio e a chegada à França;

d) Protée: cartas escritas entre junho e setembro de 1919 trazem precisões

cronológicas sobre a evolução da composição da obra:

Eu vou ter de retomar completamente Protée e vou fazer dois prelúdios sinfônicos
para preceder os atos (28/VI) [...]; eu estou retomando a música de Protée que é
escrita para pequena orquestra [...] Estou refazendo uma outra versão para orquestra
adicionando aberturas e alguns fragmentos sinfônicos (21/VII) [...]; vou começar a
orquestração de Protée (01/IX) [...]; estou orquestrando Protée todos os dias. Acho
que terei terminado tudo daqui a um mês (15/IX) [...]; terei muito que me ocupar
com Protée, pois teremos no final do 1º ato uma cena de cinema, o que me diverte
muito. Eu fiz para esta cena uma música um tanto crispada, brusca, cubista de
forma. Há ao todo 5 partes sinfônicas que formam um conjunto que pode ser tocado
independentemente em concerto. O resto da música consiste ou de fanfarras ou
pedaços de música como toques violentos que vêem se chocar contra o texto, seja
côros (20/IX) [...]; fui passar 3 dias na Camargue [...] Isto interrompeu a finalização
de Protée que devo terminar nos próximos dias (29/IX).

e) Sérénade: em carta datada “Páscoa 1920”, Milhaud anuncia ter

“começado uma peça sinfônica em 3 partes intitulada Sérénade”, e o

suprimir todo elemento que não fosse essencial e atribuir a cada instrumento uma linha independente tendo sua
própria expressão melódica ou tonal [...] A politonalidade, nesse caso, não mais residia nos acordes e sim nos
encontros entre as linhas. Ao escrever esta música eu havia reencontrado a sonoridade com a qual eu sonhava,
quando criança, quando, antes de adormecer, eu imaginava - com os olhos fechados - uma música que me
parecia impossível de expressar. Fiquei tentado por essa qualidade sonora tão especial de um grupo de
instrumentos e comecei uma série de ‘Pequenas Sinfonias’ para 7 a 10 instrumentos” (Milhaud, 1949: 91, T. do
A.).

219
comentário que faz sobre esta obra (“estou re-aproveitando velhas formas

musicais”) se inscreve bem no novo espírito, onde floresceria o “Neo-

classicismo” dos “Retornos a ...” das décadas de 1920 e 1930. Note-se que

Sérénade precede de dois anos o Octeto de Stravinski, considerado o

“ponto de partida” desse movimento;

f) Cinq Etudes para piano e orquestra: a correspondência fornece

precisões cronológicas quanto ao início da composição (carta de

25/VI/1920) e o seu término (carta de 27/VIII/1920). A respeito dessa obra,

Milhaud escreve à Nininha que o 5º Estudo lhe é dedicado (notando-se,

entretanto, que na edição definitiva este é o único dentre os cinco

movimentos que não contém indicação de dedicatário) e que pretendia que

a primeira audição fosse realizada por ela;

g) 5º Quarteto de cordas: a carta de 27/VIII/1920 traz a precisão

cronológica da conclusão recente desta obra, para a qual Nininha realizaria,

em Paris, uma redução para piano a 4 mãos;

h) Saudades do Brazil: na mesma carta em que informava o início da

composição das Cinq Etudes, datada de 25/VI/1920, em Copenhague,

Milhaud anunciava:

Comecei a composição de peças para piano que se chamarão “Saudades do Brazil -


Suíte de danças”. Haverá 12 “falsos-tangos à la Milhaud” e eu darei a eles como
títulos nomes do Rio337 [...] Que belo passeio nós faríamos com todos esses títulos
que vão da rua dos petits Guerra à Rua da Legação [de França].
336
Refere-se às duas primeiras Sinfonias de Câmara (“Printemps” e “Pastorale”).
337
Na lista de títulos que Milhaud informa aos Guerra nessa carta, estava previsto o título Paquetá que foi
substituído, no formato definitivo, por Ipanema.

220
Através da correspondência aos Guerra, fica muito visível - com exceção

do primeiro semestre de 1919, no qual a única composição de Milhaud foi as Soirées de

Petrograd - a sua intensa atividade composicional em alguns períodos: no segundo semestre

de 1919, ele compõe Protée, Machines Agricoles e Le Boeuf sur le Toit; no segundo semestre

de 1920, ele empreende simultaneamente as Cinq Etudes para piano e orquestra, a Saudades

do Brazil, e o 5º Quarteto de cordas.

5.3 - LACUNAS NA CORRESPONDÊNCIA MILHAUD-GUERRA

Apesar de numerosa e altamente informativa, a correspondência Milhaud-

Guerra deixa alguns pontos de interrogação. Primeiramente, ela apresenta intervalos mais ou

menos longos (último trimestre de 1919, e apenas duas cartas no primeiro semestres de 1920)

que tanto podem refletir uma diminuição no ritmo da correspondência, quanto significar uma

eventual perda de documentos. Por outro lado chamam particularmente a atenção alguns

silêncios, notadamente as poucas referências à composição de uma obra eminentemente

“brasileira” como Le Boeuf sur le Toit (nas cartas existentes há referências à apresentação,

porém, não à composição da obra)338 e à ausência de qualquer menção a Villa-Lobos.

5.3.1 Ausência de referências a Villa-Lobos

A ausência de menções a Villa-Lobos na correspondência (e mesmo na

programação dos concertos de Nininha em Paris, nos quais chegou a apresentar obras de

338
Entretanto, há uma carta de 28/X/1919 dirigida à Srª Oswald, na qual anuncia, sem nomear o título, a
composição do Le Boeuf sur le Toit: “[...] Vou escrever música para um filme de Carlitos. Adoro Carlitos [...]
Vocês podem me achar ainda mais louco que no Rio, [assinado] o Milhaud maluco [...]” (citado em Martins,

221
Oswald, Levy e Oswaldo Guerra) é surpreendente quando se considera que Nininha havia

realizado a 1ª audição de algumas peças para piano, entre as quais a Dança Africana n. 3, que

lhe é dedicada. Villa-Lobos havia ficado muito em evidência, no período de 1919 a 1920

(quando Milhaud já havia retornado à França), e era objeto da atenção de intérpretes ilustres -

como os maestros Felix Weingartner339, Gino Marinuzzi340, Alberto Nepomuceno341 e solistas

de projeção internacional como Arthur Rubinstein342 e Vera Janacopoulos343 - o que se

refletiria na menção que Milhaud faria a Villa-Lobos, em 1920, ao mesmo tempo elogiosa

(“um jovem de temperamento robusto e cheio de ousadia”) e reticente: Milhaud o engloba na

categoria daqueles compositores brasileiros, segundo ele, ainda excessivamente dominados

pela música francesa e que, quando introduzem o “elemento nacional” na sua música, o fazem

“através das lentes de Debussy, se só têm trinta anos de idade”. De fato, obras orquestrais de

Villa-Lobos apresentadas no Rio em agosto de 1918 (às quais, se Milhaud não tiver assistido,

terá tido ecos) como Tédio da Alvorada344 e o Naufrágio de Kleonikos não continham

qualquer “elemento nacional”, ao mesmo tempo em que revelavam uma forte marca - junto

com influências straussianas e dos “Cinco” russos - da música moderna francesa. Tal

percepção contrasta com a que expressaria mais tarde em apostila para seus cursos em Mills

College em 1942-1943:

1995: 100). Como a obra foi concluída em dezembro de 1919, pode-se inferir pela data da carta, a rapidez com a
qual foi escrito o Le Boeuf sur le Toit.
339
Weingartner (ver Guimarães, 1972: 48) havia regido o poema sinfônico Naufrágio de Kleonikos, em junho de
1920.
340
Marinuzzi regeu os 2º e 3º movimentos de sua 1ª Sinfonia em 29/IX/1919 (Guimarães, 1972: 42), e ainda
regeria a abertura de Izath em 02/VIII/1921 (Guimarães, 1972: 54).
341
Nepomuceno realizou a 1ª audição de seu Concerto para violoncelo e orquestra, em 10/V/1919.
342
Rubinstein, numa entrevista ao jornal “A Notícia” em 24/VI/1920 declararia: “É justo declarar [...] que me
surpreende o Sr. Villa-Lobos. Um grupo de amigos desse compositor brasileiro proporcionou-me o ensejo de
ouvir trabalhos seus e dessa audição ficou-me a convicção de que seu país tem nesse compositor um artista
eminente, em nada inferior aos maiores compositores modernos da Europa. Tem todas as características de um
gênio musical. Do que necessita ele é viajar, para tornar-se conhecido n’outros países [...]” (in Guimarães, 1972:
46).
343
Vera Janacopoulos encomendaria e realizaria a 1ª audição mundial da transcrição para canto e orquestra de
“Viola”, das Miniaturas, sob a regência de Francisco Braga, no Rio, em agosto de 1920.
344
Luiz Fernando Vallim revelou as diferenças e adições da versão final do Uirapuru (anos 1930) em relação à
sua primeira versão como Tédio da Alvorada, numa comunicação no “Colloques Villa-Lobos”, realizados em
Paris (Institut Culturel Finlandais), em 2000.

222
A lista de suas obras é imensa345. Sua personalidade romântica se dirige a todas as
fontes: portuguesa, africana e indígena [...] [e referindo-se às Bachianas Brasileiras
n° 5 346] peças de música de câmara para uma pequena orquestra e vozes que
produzem um efeito muito marcante, fundindo linhas melódicas no estilo de Bach
com um acompanhamento muito brasileiro. Elementos muito diversos foram aqui
reunidos de uma maneira extremamente atraente. Esta mistura de dissonâncias,
romantismo, selvageria e também nostalgia constituem o elemento básico de
Villa-Lobos347 .

O reconhecimento por Milhaud da importância de Villa-Lobos, talvez

imposta pelo próprio sucesso internacional do compositor brasileiro, parece ter se dado

somente a partir da estada deste em Paris nos anos 1920348, ainda que não existam dúvidas

quanto aos dois músicos terem previamente se conhecido no Rio349. Na apostila de Mills

College350, Milhaud relata: “Eu também encontrei um jovem violoncelista que tocava num

cinema para ganhar a sua vida; eu fui à sua casa e ele lá me mostrou as suas primeiras

composições: este homem era Heitor Villa-Lobos. Eu o reencontrei mais tarde em Paris”351.

345
Na apostila, Milhaud enumera alguns títulos nos seguintes termos: “Arthur Rubinstein foi um dos primeiros a
introduzir a música de Villa-Lobos na Europa. O Rudepoema lhe foi dedicado. A maior parte das composições
de Villa-Lobos apresenta títulos remanescentes de seu país natal: Amazonas, Descobrimento do Brasil,
Sertanejo, Uirapuru. Ele escreveu uma série de composições bastante originais (strange) numa época, na qual,
em toda parte, os compositores haviam retornado a Bach. Elas se intitulam Bachianas Brasileiras”
(Milhaud/Mills, 1942-43, T. do A.).
346
Que haviam sido recentemente reveladas nos EUA, por ocasião da Feira Internacional de Nova Iorque.
347
Ver Milhaud/Mills College, 1942-43: “The list of his works is tremendous. His romantic character adresses
itself to every source: Portuguese, Negro and Indian [...] They [Bachianas Brasileiras] are chamber music pieces
for a small orchestra and voices producing a striking effect, and using melodic lines in the style of Bach mixed
with a very Brazilian background. A diversity of elements has here been brought together in a most pleasing
way. This mingling of dissonances, of romanticism, of a savagery and sadness are also the basis of Villa-Lobos”.
348
Sobre o relacionamento entre Milhaud e Villa-Lobos no Rio, a discussão mais aprofundada até o momento é a
realizada por Anaïs Flechet [2004].
349
No relato autobiográfico em Música Viva, Villa-Lobos data de 1918 o seu contato com Darius Milhaud,
ressaltando o papel deste no seu contato com a música de Debussy; enquanto Milhaud (1949) em sua
autobiografia refere-se a ele da seguinte forma: “Rubinstein foi um dos primeiros a tornar conhecida na Europa e
nos Estados Unidos a música de Villa-Lobos, e este compositor atualmente tão célebre que era obrigado, nesta
época, a tocar violoncelo num cinema, a fim de obter alguns recursos financeiros”.
350
Mais detalhada, a esse respeito, que no capítulo “Brasil” em sua autobiografia.
351
Na apostila de Mills College, ele fornece os seguintes detalhes suplementares sobre Villa-Lobos em Paris:
“Ele pertencia ao grupo que se reunia às quintas-feiras, na casa de Florent-Schmitt em Saint Cloud, e o próprio
Villa-Lobos convidava os seus amigos nos domingos para o seu apartamento na Place Saint Michel”
(Milhaud/Mills, 1942-3, T. do A.). Se essa última observação pode fazer supor alguma freqüentação à Villa-
Lobos em seu apartamento em Saint Michel, a primeira sinaliza uma situação de distanciamento, tendo em vista
as relações pouco amistosas entre Florent-Schmitt e os Six, que se reflete na seguinte ironia de Milhaud a seu
respeito, referindo-se à Sagração da Primavera: “Esta verdadeira ruptura na história da música virou de cabeça
para baixo as concepções de um grande número de compositores. Debussy, por exemplo, preocupava-se com a

223
É provável, entretanto, que o contato no Rio, como sugerido por Anaïs

Flechet [2004] e pelo depoimento de Oswaldo Guerra352, tenha sido pouco intenso, e não

tenha despertado maior entusiasmo em Milhaud. (que parece sublinhar, ao mencionar sua

visita à casa de Villa-Lobos, que o que este lhe mostrou foram “suas primeiras

composições”).

5.3.2 Ausência de correspondência passiva

A principal lacuna, entretanto, é a ausência do espelho dessa

correspondência: as cartas enviadas a Milhaud pelos Veloso-Guerra constituiriam não

somente uma documentação complementar importante, como, sobretudo, uma preciosa fonte

de informação sobre a vida musical - particularmente intensa - no Rio no período 1919-1920.

Essa correspondência não foi encontrada nos Arquivos Milhaud353.

Apesar da correspondência de Milhaud aos Guerra ser, provavelmente, a mais numerosa354,

várias de suas cartas acusam recebimento de correspondência de Godofredo, Oswaldo e

Nininha, assim como de alguns assuntos nelas tratados (perguntas sobre Guiomar Novaes,

opiniões sobre o Tombeau de Couperin de Ravel, reações às apresentações de Pelleas e da

Tetralogia, novos concertos de Nininha, a presença de Rubinstein355), o que permite alguma

reconstituição dessa correspondência passiva. Conforme se pode observar na tabela abaixo,

Milhaud assinala datas precisas para uma grande parte das cartas, e observa-se que essa

evolução de Stravinski ao mesmo tempo em que o admirava. Já Schmitt dizia que ‘só lhe restava queimar a sua
música’ (por quê que ele não o fez!...)”. (Milhaud, 1949: 71-T. do A.).
352
Ver citação do depoimento radiofônico de Oswaldo Guerra, no Capítulo II.
353
Segundo declaração de Madeleine Milhaud e de Frank Langlois, autor que está preparando a biografia de
Milhaud, para a editora Fayard, e a quem a família Milhaud confiou toda a sua documentação epistolar. A
família Milhaud atribui à ocupação alemã a destruição de uma grande parte do seu acervo documental, tanto no
apartamento de Darius Milhaud em Paris, quanto na casa de seus pais (“L’Enclos”) em Aix-en-Provence. Uma
resposta semelhante foi fornecida por Milhaud ao Professor Flavio Silva.
TP354 É freqüente a queixa de Milhaud quanto à ausência de cartas dos Guerra, “ameaçando” parar de escrever
enquanto não recebesse correspondência; em carta de 17 de março a Oswaldo, queixava-se do fato de Nininha
ainda não ter escrito nenhuma carta desde a sua partida.

224
correspondência (num total de, aproximadamente, 20 cartas) incluía envio de fotos,

programas de concerto e partituras (como “novos tangos” e novas composições de Nininha e

Oswaldo).

TABELA 10 - CORRESPONDÊNCIA PASSIVA


CARTAS
Milhaud Godofredo Oswaldo Nininha Partituras
1919
1/II 28/XI 28/XI
16/XII 16/XII

28/VI 12/V 17/V “novos tangos”


23/V

1/IX junho junho


julho julho “Poussière” [NVG]

20/IX 15/VIII

1920
9/I fotos

“Páscoa” “carta anterior” “Sonata viola e


piano” [OG]

14/VI 21/V

27/VIII 3/VII
22/VII

5.4 - CONCLUSÃO

A correspondência Milhaud-Guerra, cujos originais se encontram no

Arquivo Paul Guerra e a qual ainda permanece inédita, constitui um conjunto documental de

grande riqueza:

TP355PT Em 1920, Rubinstein estava fazendo uma nova tournée no Brasil.

225
- Por um lado, ela é extremamente informativa a respeito da atividade de

Milhaud, tanto composicional quanto de edição e apresentação de suas obras, nos dois

primeiros anos do seu retorno à França. Nela também se verificam ecos importantes do

movimento de idéias: o encantamento com Satie; o envolvimento com os Nouveaux Jeunes,

inicialmente reticente, mas que se transforma numa adesão entusiasta ao ideário do Coq et

l´Arlequin; a cristalização da teoria do “ocaso do Impressionismo”356, posicionando-se em

campo oposto aos “compositores da SMI” (na qual participara ativamente de 1913 a 1919),

notadamente Ravel e Florent-Schmitt, “cujas pesquisas levam a um beco-sem-saída”;

- Por outro, ela deixa clara a marca deixada pela estada no Brasil, muito

além de impressões meramente “tácteis” e de depaysement produzidas por um meio tropical.

A principal dificuldade que ele menciona, nos seus primeiros meses de retorno à França, é a

de reencontrar o ambiente propício à composição de que dispunha no Rio, e a qualidade das

reuniões musicais (“entre as melhores que eu jamais tive”, em 21/VII/1919; ou ainda: “que eu

não consegui reencontrar aqui”, em 20/IX/1919) e de intercâmbio que tinha com os Veloso-

Guerra. Essa cumplicidade é ressaltada em observações, tais como: “muitos amigos da minha

música acham que o que eu escrevi no Brasil é excessivamente dissonante e me dão as costas”

(10/IV/1919); ou ainda, referindo-se criticamente a Auric e alguns Nouveaux Jeunes: “Esse

movimento se origina em Parade [...] Eu me sinto tão distante quanto seria possível de todos

esses símios [...] Eis os novos. Nós somos bem diferentes e somos nós que temos razão”

(21/VII/1919); ou ainda, ao comentar sua versão final de Protée, antecipar o que Nininha iria

“detestar” ou aprovar (20/IX/1919);

- A correspondência de Milhaud é um exemplo da importância dos réseaux

(redes de contato), ressaltada por Myriam Chimènes (2004: 647-690), na circulação de obras e

TP356PT Título do famoso artigo de Paul Landormy, publicado na Revue Musicale em 1921.
226
idéias musicais na história da 1ª metade do século XX: a troca epistolar entre os Guerra e

Milhaud, envolvendo partituras, programa de concerto, revistas musicais e contatos com

terceiros (Milhaud envia a eles dedicatórias autógrafas dos compositores Roussel e Durey);

faz Koechlin enviar carta a Nininha com análise de uma de suas composições; interessa

Bathori e as sociedades de concerto por obras de Nininha e Oswaldo; coloca-os a par, no Rio

de Janeiro, do movimento musical parisiense, ao mesmo tempo em que cria condições

favoráveis de acolhida num meio extremamente crítico e fechado357.

Portanto, quando os Guerra chegam a Paris, em outubro de 1920, eles

estavam extremamente a par do movimento musical parisiense, graças à correspondência de

Milhaud que - adicionalmente ao seu teor - incluía um abundante envio de livros, partituras e

revistas musicais. Por outro lado, eles haviam vivenciado dois anos de intensa atividade

musical no Rio de Janeiro: apresentação integral da Tetralogia e do Parsifal de Wagner,

diversos concertos com música orquestral de Debussy e Ravel (apresentação da ópera Pelleas

et Mélisande; Nocturnes, de Debussy sob a regência de Richard Strauss358; Ma Mère l’Oye de

Ravel, com Félix Weingartner), de importantes concertos sinfônicos e de câmara, dedicados à

obra de Villa-Lobos, e grandes solistas internacionais apresentando obras modernas (Arthur

Rubinstein: Falla, Prokofiev, Szymanovski, Stravinski; Vera Janacopoulos; Debussy, Ravel,

Prokofiev). Por sua vez, Nininha havia sido uma protagonista importante na vida musical do

Rio de Janeiro nesse período (especialmente em 1919), tendo feito novas primeiras audições

de obras de Debussy, Roussel, D’Indy e do próprio Villa-Lobos.

357
Um exemplo do acesso dos Guerra a esse meio - ainda que esses relacionamentos não tenham se aprofundado
- é a menção a Nininha em cartas escritas por Cocteau e Poulenc e a existência, no Arquivo Paul Guerra, de
correspondência de Satie, Poulenc, Cipa Godebski e Honegger.
358
No colóquio internacional sobre Debussy, organizado pelo CNRS, de 24 a 31/X/1962, Oswaldo Guerra
testemunha, numa intervenção, ter assistido a essa execução dos dois primeiros Nocturnes no Rio, sob a regência
de Richard Strauss. Na sessão Compte rendu de la discussion da conferência de Hans-Heinz Stuckendenschmidt,
sobre A influência de Debussy na Áustria e Alemanha, figura o seguinte comentário: “O Sr. d’Estrade Guerra
recorda que quando ele se encontrava no Rio, R. Strauss lá veio para a execução de Till Eulenspiegel, e regeu
dois ou três dentre os Nocturnes” [in Weber, 1965: 261, T. do A.]

227
A importância que Milhaud atribui aos Guerra é extrema: “Todos os

pianistas me parecem terrivelmente medíocres, quando eu penso em como a Senhora Guerra

toca piano [...] Espero que vocês estejam fazendo planos para vir para cá [...] Paris precisa de

artistas notáveis (artistes remarquables) e vos espera” (20/II/1919); “enraiveço de encontrar

tantos brasileiros e de não ver vocês dois que são o elemento musical do Rio” (28/II/1919).

Na carta de 27/VIII/1920, quando se dá o falso alerta de que os Guerra não mais viriam a

Paris, escreve: “Eu havia organizado todo o meu ano musical de maneira a tê-los incluídos

[...] Eu tinha um monte de projetos de realização de concertos com vocês [...]”. Outra

indicação dessa importância, é sua persistência (uma espera de dois anos) em ter Nininha

como intérprete de sua Sonata para piano e instrumentos de sopro, o projeto de ela fazer a 1ª

audição mundial dos Cinq Études para piano e orquestra, e o de reservar para ela a realização

da redução para piano a 4 mãos de seu 5º Quarteto de Cordas.

Quase todos esses projetos seriam frustrados pela doença de Nininha e sua

morte em 23/XI/1921. Milhaud ainda dirigiria essa última carta a Oswaldo, por ocasião do

primeiro aniversário da sua morte, encaminhando para ele um exemplar da recém-publicada

transcrição de Nininha para o 5º Quarteto de Cordas (dedicado a Arnold Schoenberg):

Meu caro Oswaldo, eu gostaria tanto de vê-lo no dia deste tão triste aniversário.
Justamente a redução que Nininha tinha feito do meu 5º Quarteto acaba de ser
publicada há poucos dias e era minha intenção trazê-la até você. Infelizmente eu
acabo de chegar da Inglaterra e já tenho de partir para Amsterdã, onde toco depois
de amanhã. Logo que estiver de volta, espero revê-lo. Bem afetuosamente,
Milhaud359.

359
O texto original dessa carta está reproduzido na pág. 230.

228
229
230
VI

MODERNISMO MUSICAL NO “CÍRCULO VELOSO-GUERRA”


E
MODERNISMO MUSICAL BRASILEIRO PÓS-1922

6.1 - RIO DE JANEIRO E MORGES

Em 1917-1918, anos que Darius Milhaud passou no Brasil em contato

intenso com o Círculo Veloso-Guerra, muitos dentre os principais compositores europeus se

encontravam mobilizados ou dispersos: Schoenberg permanecia no longo silêncio que havia

iniciado em 1915, após a composição do op.22 (Quatro Cantos para orquestra), e que só se

interromperia a partir de 1923, com a Suíte op.23 para piano e o enunciado da teoria

dodecafônica; Alban Berg, mobilizado pelo exército austríaco, iniciava a longa gestação de

Wozzeck - que seria concluído em 1923 - porém sem apresentar novas composições; Webern,

cujos opus 9 e 11 (Seis Bagatelas para Quarteto de Cordas e Cinco Peças para orquestra

precedem a Primeira Guerra Mundial se limitaria à composição dos Lieder opus 12 a 14; Bela

Bartok, no período entre seus dois balés o Príncipe de Madeira (1914-1916) e o Mandarim

Maravilhoso (1919), só compõe - além de arranjos sobre temas folclóricos rumenos - a Suíte

op.14 para piano; quanto a Parade de Erik Satie, estreada em Paris em 1917 e que se tornaria

um símbolo e exemplo para o futuro Groupe des Six, sua novidade consistia mais no
231
happening e na atitude de incorporação à esfera erudita de músicas de music-hall que em

ousadias de linguagem.

O conjunto de obras compostas por Milhaud no Rio de Janeiro em 1917-

1918, como a cantata Le Retour de l´Enfant Prodigue, o balé sinfônico L´Homme et son

Désir, o 1º ato da ópera Les Euménides, as Chansons Bas para canto e piano, a Sonata para

piano e instrumentos de sopro , a 1ª Sinfonia de Câmara “Printemps” e os Trois Poèmes

Tupi360 para coro feminino e palmas, se situam entre as obras “experimentais” mais

importantes que estavam sendo compostas naquele momento [ver Exemplos 35 a 38, págs.

255 a 258], só encontrando paralelo na produção de Stravinski, durante sua longa estada em

Morges - na Suíça - período em que procedia a uma decantação das inovações contidas em

obras anteriores à 1ª Guerra (como Petrushka, Le Roi des Étoiles, os Três Poemas da Lírica

Japonesa e a Sagração da Primavera) nas composições escritas entre 1915 e 1920 que
361
representam o ponto mais “avançado” de sua “Fase Russa”: Pribaoutki, Berceuses du

Chat, História do Soldado, Renard e a 1ª versão de Les Noces.

Portanto, com o silêncio de Schoenberg entre 1915 e 1923, não seria

exagero dizer que, em 1917-1918 (e pelas circunstâncias da 1ª Guerra Mundial), era em dois

locais “periféricos”362 - o Rio de Janeiro e Morges - que se elaboravam as obras mais

experimentais da jovem música do século XX.

360
Esta obra, que figura no Catálogo como opus 52, está extraviada.
361
Segundo Roland de Candé: “De 1914 a 1920: ele se torna cosmopolita, permanecendo, entretanto, original.
Após ter distribuído generosamente suas riquezas harmônicas, rítmicas e instrumentais, bruscamente ele opta
pela simplicidade, lógica, clareza. ‘História do Soldado’, ‘Pribaoutki, ‘Renard’, ‘Noces’ (apresentada em 1923,
porém iniciada bem antes) são pequenas obras-primas, refinadas e freqüentemente agressivas, cuja novidade
insolente representava para a elite culta dos anos 20 a vanguarda do progresso musical [...] É no plano da
instrumentação que a influência dessas obras se exerceu com grande força nesse período: formações
instrumentais muito reduzidas, com os timbres nitidamente diferenciados, prestando-se à escrita contrapuntística
e freqüentemente politonal” (Candé, 1967: 245, T. do A.).
362
“Periféricos” em relação aos grandes centros irradiadores do Modernismo musical: Paris, Viena, Berlim e São
Petersburgo.

232
6.2 - BRASIL E MILHAUD: INFLUÊNCIAS RECÍPROCAS

O arrebatamento de Milhaud pela música popular e pela natureza dos

trópicos é bem conhecido, tendo deixado marcas permanentes na sua rítmica e no seu

tratamento do timbre363. Entretanto, em que medida o terá marcado um certo meio musical

“erudito” carioca, tendo como centro de gravidade o Círculo Veloso-Guerra, e contribuindo

para o tão acelerado amadurecimento e radicalização experimental364, que se observa em sua

obra desse período?

Quanto à percepção dessa radicalização, é sintomática essa observação

escrita aos Guerra, nos primeiros meses de seu retorno à França: “muitos amigos da minha

música acham que o que eu escrevi no Brasil é excessivamente dissonante e me dão as costas”

(carta de 10/IV/1919).

Também é reveladora a importância que atribui ao apoio que representa

poder contar com interlocutores que acompanham a sua composição e demonstram um real

interesse por sua música, tal como na carta dirigida aos Guerra em 27/VIII/1920: “Vocês dois

estão entre os melhores amigos da minha música. É tão raro e tão precioso”; ou a Charles

Koechlin, nos primeiros meses de sua chegada ao Brasil em carta de 27/VIII/1917365:

Eu estou lhe escrevendo da casa de meus amigos Guerra, músicos de um


refinamento extremo366, e por quem eu tenho tanto reconhecimento, pois eles

363
José Miguel Wisnik observa, a respeito da música popular urbana: “Esse tipo de música brasileira interessava
duplamente a Milhaud: ao músico francês à procura de novas fontes, de novos materiais estranhos ao repertório
europeu saturado e em crise; e ao cultor da politonalidade, riqueza do material, (verve melódica, novidade
rítmica) adequada à elaboração técnica prevista. Coincidentemente, essas preocupações convergem ao mesmo
tempo para o programa dos Seis, que preconiza a exploração do humor e da maneira popular, e para o roteiro
pessoal de Milhaud, tendente à politonalidade” (Wisnik, 1983: 48).
364
Ver comentários de Jeremy Drake (in Milhaud, 1982, citado no Capítulo II).
365
Carta inédita pertencente aos Arquivos Koechlin, no Centre de Documentation Gustav Mahler - Paris.
366
A expressão utilizada por Milhaud é: des musiciens exquis.

233
acompanham a minha música com a atenção que é necessária àqueles que
compõem; você sabe disso tão bem quanto eu [...].

Talvez sua dificuldade em reencontrar um clima propício para a

composição, nos primeiros meses de seu retorno à França, fosse um reflexo da falta e,

portanto, da necessidade de interlocutores dessa qualidade, o que parece transparecer em

observações como:

O que é incrível é que desde a minha volta eu não tenho produzido nada
[28/VI/1919];
Desde a minha chegada à França eu ainda não compus nada. Será que a minha
música teria ficado no Brasil? [6/IV/1919].

Sem poder atribuir aos Veloso-Guerra um papel propriamente

“provocador” na radicalização da linguagem de Milhaud367, o fato de eles estarem preparados

- particularmente Nininha- para a sua compreensão e absorção (demonstrada pela capacidade

de leitura à primeira vista e capacidade de verter para piano a 4 mãos texturas extremamente

complexas como o Retour de l´Enfant Prodigue e L´Homme et son Désir) terá tido um papel

particularmente estimulante nessa nova fase criativa de Milhaud. É igualmente interessante

notar a sua relação com Godofredo, a quem dedicou ainda no Brasil uma das melodias da

coleção Quatre Poèmes de Paul Claudel (a de número 3, “Le Sombre Mai”, composta em

Petrópolis em março de 1917) - onde a politonalidade permanece próxima dos processos

utilizados nas Choéphores - e a quem manteria atualizado (após seu retorno à França) sobre

suas composições enviando-lhe sistematicamente todas as novas edições de suas obras368. É

particularmente evocadora do ambiente “modernista” das tertúlias musicais, não só em casa

367
O conjunto da obra de Oswaldo Guerra, assim como as composições de Nininha não parecem autorizá-lo.
368
As quais se encontram no Departamento de Música da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

234
dos Guerra369 como também do próprio Godofredo, a informação contida na dedicatória do

exemplar (da BN-RJ) das Chansons Bas: “essas melodias ouvidas tantas vezes na sua casa”.

A irradiação dessas tertúlias era ampla o suficiente para que Francisco Braga decidisse incluir

na programação da sua “Sociedade de Concertos Sinfônicos” a 1ª Sinfonia de Câmara

“Printemps”, em concerto regido por Alberto Nepomuceno, dando a Milhaud - pela primeira

vez - a oportunidade de ouvir uma composição sua para orquestra. Outro exemplo desse

ambiente (informal) de trocas está na sua carta a Nepomuceno, no final de 1918370, na qual o

convida na casa dos Guerra para ler a dois pianos o seu balé L´Homme et son Désir, assim

como obras de compositores franceses:

Estou copiando a partitura do meu balé. Quando eu a tiver terminado, eu lhe


escreverei. O senhor virá jantar aqui comigo e depois nós iremos à casa dos Guerra
tocá-lo a dois pianos, e lhe mostrar na mesma ocasião os Nocturnes de Debussy e a
2ª Sinfonia de Magnard371.

Se o período passado por Milhaud no Rio foi uma de uma extrema

importância do ponto de vista criativo, ele o foi também no seu aprofundamento na obra de

outros compositores, como Satie e do próprio Debussy - através de Nininha - e provavelmente

369
Recordando-se os testemunhos (já citados no Capítulo II) de Claudel e Rubinstein quanto ao Sacre du
Printemps ser tocado a piano 4-mãos em casa dos Guerra.
370
Ver Reis Pequeno (1977). A carta não é datada, mas é - por seu conteúdo (agradecimento pela apresentação
da sua 1ª Sinfonia de Câmara “Printemps”, no Teatro Municipal) – facilmente datável no intervalo entre 23/VIII
e 23/XI (partida do Brasil de Claudel e Milhaud).
371
Alberic Magnard (1865-1914). Segundo Roland de Candé: “As muitas raras execuções de suas obras (graves,
austeras, fortemente construídas e às vezes singularmente expressivas) suscitaram o entusiasmo sem reservas de
um pequeno grupo de admiradores, entusiasmo tão excessivo quanto à indiferença do grande público” (Candé,
1967:145). Apesar do caráter pós-wagneriano de Magnard, aluno de Vincent D’Indy, Milhaud se sentia atraído
por sua música: “O que mais me interessava nessa época [1913] era a música de Magnard, pois eu encontrava
nele qualidades rudes e agrestes, uma austeridade harmônica que eram um abrigo contra as tendências
impressionistas [...] Eu havia ouvido Bérénice que, apesar de sua instrumentação sem refinamento, ou talvez por
causa disso mesmo, me havia tocado; eu gostava do sentimento profundo da música, as longas melodias
expressivas que Magnard confiava ao flautim. No entanto, eu não entendia por que, no prefácio de Berenice por
não ter o gênio necessário a um estilo dramático próprio, havia adotado o leitmotiv wagneriano’. Magnard me
parecia tão absolutamente distante de Wagner? Suas 4 ‘Sinfonias’ me agradavam também por sua franqueza; os
seus ‘scherzos’ firmes têm o sabor da terra camponesa francesa. O seu próprio personagem era simpático, pois
ele era suficientemente independente para dispensar um editor e ele entregava a publicação das suas obras a uma
cooperativa de gráficos” (Milhaud, 1949: 61.T. do A.).

235
de Stravinski372 através de Ansermet373 e Rubinstein374 (músicos extremamente ligados a

Stravinski375 e que passaram temporadas relativamente longas no Rio: o primeiro em 1917 e o

segundo em 1918). Além de sua declaração bem conhecida de que foi através dos Guerra que

passou a conhecer a obra de Satie, ele escreveria à sua amiga Yvonne de Casa-Fuerte:

Debussy é o músico que eu prefiro. É curioso como nós o conhecemos mal. Foi no
Rio que eu aprendi a amá-lo. Aliás, me dei conta domingo que você também não
conhecia todas as admiráveis melodias que eu lhe mostrei. Há belas páginas em
Jeux e Kammah e o 2º livro dos Prelúdios é (da mesma forma que os Estudos) uma
obra capital na história do piano376.

Essa declaração quanto a “ter aprendido a amar” Debussy no Rio parece

um reflexo direto dos concertos que organizou no Rio - nos quais tantas obras recentes de

Debussy (que morreu em princípios de 1918) foram apresentadas com o concurso seu e de

Nininha - mas, sobretudo, do seu convívio de quase dois anos com as qualidades excepcionais

de Nininha como intérprete, cuja imersão na obra do compositor francês era única:

começando aos onze anos, com os Arabesques, e culminando com a apresentação do 2º

Caderno dos Prèludes, dos Estudos e das sonatas de câmara em 1918-1919.

372
Milhaud, como jovem estudante do Conservatório, conhecia as obras de Stravinski, pertencentes ao repertório
dos Ballets Russes, cujas temporadas em Paris acompanhou fervorosamente, notadamente a apresentação do
Sacre du Printemps, obra que - antes de vir ao Brasil - tocava a 4 mãos. Ele relata uma visita que Koechlin lhe
faz em Aix en Provence, em 1914: “nós passávamos horas agradáveis a falar de música, a analisar o Sacre du
Printemps que nos havia tanto entusiasmado por ocasião de sua primeira audição, no ano anterior; nós tanto
admirávamos a violência rítmica quanto as dissonâncias harmônicas e politonais, as quais Petrushka já nos fazia
antever, porém num plano totalmente novo. Dessa vez o balé escapava do pitoresco exterior e entrava numa via
bárbara e dramática. Essa verdadeira quebra na música transtornou um grande número de músicos [...] Minha
geração se sentia respaldada por esta obra a despeito de sua expressão profundamente russa que a mantinha
afastada das nossas aspirações” (Milhaud, 1949: 71, T. do A.).
373
Através de Ansermet, Milhaud e Claudel tiveram a oportunidade de assistir a uma “apresentação privada” (na
Legação de França), por membros dos Ballets Russes, de Parade de Erik Satie, estreada um ano antes em Paris,
enquanto Milhaud teve a possibilidade de testar a 1ª cena (para recitante e coro) de suas Euménides.
374
A amizade de Rubinstein e Stravinski, já datava de 1913 (Sachs, 1996: 137) e este lhe dedicaria, entre 1919 e
1921, duas obras: Piano-Rag-Music e os 3 Movimentos de Pretushka.
375
Rubinstein tocava ao piano reduções do Pássaro de Fogo, Petrushka e Sacre du Printemps, enquanto
Ansermet - novo maestro dos Ballets Russes, do qual dominava todo o repertório - acompanhava de perto (como
vizinho e grande amigo), na Suíça, a nova produção de Stravinski, de quem iria estrear a Histoire du Soldat, no
ano seguinte.

236
Esse impacto da obra recente (a fase 1910-1918) de Debussy pode ser

notado na escrita da parte de piano [ver Exemplo 39, pág. 258] da Sonata para piano e

instrumentos de sopro (em que pese a ousadia da obra e a futura postura “anti-debussista” do

Groupe des Six), sua última obra composta no Brasil (e dedicada a Nininha).

Enquanto Morges terá sido para Stravinski um local “neutro” e passivo, na

sua elaboração de obras como Pribaoutki, Berceuses du Chat, Renard, Les Noces e Histoire

du Soldat377, o Rio de Janeiro representou para Milhaud - numa nova etapa de sua criação

musical - um local profundamente estimulante. Em adição às novas sensações (o depaysement

e ao mesmo tempo seu encantamento com os trópicos; o swing da música popular), encontra

um meio musical, através do qual aprofunda seu próprio conhecimento de aspectos da música

francesa contemporânea (Satie e Debussy, por exemplo), que lhe permite testar suas novas

composições de maneira extremamente eficaz: leituras das composições in progress com

Nininha; audições em casa dos Guerra ou de Godofredo; execução em concertos de obras suas

novas e antigas. Por outro lado, as circunstâncias da vida musical no Rio (enriquecida por

visitas como as dos Ballets Russes e de Rubinstein) criaram oportunidades tais como poder

testar o efeito tímbrico da 1ª Sinfonia de Câmara e da 1ª cena das Euménides graças a

Nepomuceno e Ansermet378.

Portanto, quando Milhaud retornava à França em 1919, sua bagagem -

consideravelmente mais rica que a que aqui trouxera quando aportou no Rio de Janeiro às

376
Carta inédita, datada “Fevereiro 1919”, que se encontra na Biblioteca Literária Jacques Doucet, informada
pelo pesquisador Frank Langlois.
377
Com exceção de Ansermet, seus principais interlocutores não eram músicos: os escritores suíços Ramuz e
Cingria, o pintor Aubergenois e, ocasionalmente, Diaghilev e Massine (ver em Stravinsky, 1935).
378
Numa entrada do diário de Claudel (1969: 383, T. do A.) ele se refere ao ensaio de Ansermet: “Ensaio de
Milhaud de sua pequena orquestra, magra, cada instrumento conservando a sua voz e movimentos individuais,
manifestando a intenção de todos os atritos - Ensaio de declamação sustentado unicamente pela percussão, com
um sucesso completo. Ansermet”.

237
vésperas do Carnaval de 1917 - era a de um dos compositores mais avançados do cenário

contemporâneo europeu.

6.3 - MODERNISMO BRASILEIRO E INFLUÊNCIA DE MILHAUD

Uma pergunta insistente de Madeleine Milhaud, ao longo da entrevista com

Oswaldo Guerra (1978), é sobre qual poderia ter sido a influência de Milhaud sobre os jovens

compositores brasileiros. Essa questão pode ser desdobrada em dois planos: o do

“nacionalismo” e o da “atualização”.

6.3.1 O Nacionalismo

Na entrevista, nota-se que a ênfase de Madeleine Milhaud se concentra

nesse primeiro ponto, levantando a hipótese de Milhaud - antes dos compositores brasileiros

(Villa-Lobos inclusive) - poder ter sido o primeiro músico “erudito” a dirigir sua atenção para

a riqueza do “folclore” brasileiro, incorporando-o à sua obra379.

Se essa hipótese não é sustentável no que diz respeito a uma precedência na

incorporação de ritmos e motivos populares380 - tanto à luz da produção musical brasileira

379
Ao apresentar essa hipótese, ela estabelece um paralelo com os EUA, dizendo que - quando em 1923 Milhaud
respondeu a um repórter americano que para ele “a Música Americana é o Jazz’ e compôs seu balé La Création
du Monde (baseado no Jazz) - também teria precedido os compositores americanos” (O.R.T.F., 1978).
380
As “obras brasileiras” mais famosas de Milhaud - Le Boeuf sur le Toit (1919) e Saudades do Brazil (1920),
Carnaval d´Aix (1924) e Scaramouche (1936) - são posteriores à sua partida do Brasil, e tiveram pouca presença
na vida musical brasileira dos anos 1920 e 1930 (com exceção da versão orquestral das Saudades do Brazil que
Villa-Lobos regeu em São Paulo em 1931). Quanto à L´Homme et son Désir (cuja primeira audição mundial se
realizaria em 1921 em Paris), foi de fato composto no Rio em 1917-1918, onde foi lido e ouvido em sua versão
para piano a 4 mãos; entretanto, suas extraordinárias inovações no plano harmônico (politonalidade), orquestral
(subdivisão “estereofônica” da orquestra, utilização “solo” da percussão) e mesmo rítmico (polirritmia),
apresentam pouca relação com os elementos que a obra toma de empréstimo ao “folclore”.

238
entre a última década do século XIX e a 1ª Guerra Mundial381 quanto à de Villa-Lobos em

algumas obras382 anteriores a 1917383 - a precedência que se poderia atribuir a Milhaud seria

mais no “plano das idéias”: de fato, a sua resenha “Brésil” na Revue Musicale em 1920, cuja

tradução em português foi publicada em 1924 na revista Ariel, precede de oito anos o Ensaio

sobre a Música Brasileira de Mário de Andrade, tanto na importância atribuída ao folclore

quanto na valorização da música popular urbana, denominada por ele como música dos

“compositores de tangos, maxixes, sambas e cateretês”, sendo bem conhecido seu comentário

de que:

É de se lamentar que todos os trabalhos dos compositores brasileiros


[A.Nepomuceno, H. Oswald, O. Guerra, Villa-Lobos] sejam um reflexo das
diferentes fases que se sucederam na Europa de Brahms a Debussy, e que o
elemento nacional não esteja expresso de uma maneira mais viva e original. A
influência do folclore brasileiro, tão rico de ritmos e de uma linha melódica tão
original, se faz raramente sentir nas obras dos compositores Cariocas [sic]. Quando
um tema popular ou ritmo de uma dança é utilizado numa obra musical, este
elemento nativo é deformado porque o autor o enxerga seja através das lentes de
Wagner ou de Saint-Saens se ele tiver 60 anos, ou das de Debussy se ele só tiver
30. Seria desejável que os compositores brasileiros entendessem a importância dos
compositores de tangos, maxixes, sambas e cateretês, como Tupinambá ou o genial
Nazareth. A riqueza rítmica, a fantasia constantemente renovada, a verve, a
animação e uma imaginação prodigiosa na invenção melódica, que se encontram
em cada obra desses dois mestres, fazem deles a glória e a jóia da arte brasileira.
Nazaré e Tupinambá estão à frente da música de seu país assim como aquelas duas
grandes estrelas do céu austral (Centauro e Alfa do Centauro) precedem os cinco
diamantes do Cruzeiro do Sul384.

381
Suíte Brasileira para orquestra e Tango Brasileiro para piano de Alexandre Levy; Série Brasileira e
Guaratuja para orquestra, 3º Quarteto de Cordas e Galhofeira para piano de Alberto Nepomuceno; Variações
sobre um tema popular brasileiro para orquestra e diversos episódios da ópera Contratador de Diamantes, de
Francisco Braga.
382
Nessas obras, mais do que o eventual recurso à citação de temas folclóricos, impressiona a adoção de
processos rítmicos inspirados na música popular bastante mais sofisticados (na poliritmia e no recurso a
imparidades rítmicas como o “3-3-2”), que aqueles utilizados por Milhaud, mais próximos de Nepomuceno e
Levy que de Villa-Lobos.
383
Quanto a Villa-Lobos, apesar de que é a partir da “Semana” que sua obra torna-se assumidamente
nacionalista., a incorporação de elementos nacionais à sua música precede a chegada de Milhaud, manifestando-
se em algumas obras significativas, que culminariam em 1918 na Prole do Bebê I : as duas coleções para piano
Petizada e Brinquedo de Roda (1912); as Três Danças Africanas para piano (1914-1916); em 1916: “Viola” a 5ª
peça da coleção Miniaturas para canto e piano, o 3º movimento do seu 3º Quarteto de Cordas e o 3º movimento
da sua Sinfonia n°.1.
384
“Il est regrettable que tous les travaux des compositeurs brésiliens [...] soient un reflet des diffèrentes phases
qui se sont succédées en Europe de Brahms á Debussy et que l´élement national ne soit pas exprimé d´une
manière plus vivante et plus originale. L´influence du folklore bresilien si riche de rythmes et d´une ligne
melodique si particuliere, se fait rarement sentir dans les oeuvres des compositeurs Cariocas. Lorsqu’un theme
populaire ou le rythme d’une danse est utilisé dans une oeuvre musicale, cet élement indigène est deformé parce
que l´auteur le voit a travers les lunettes de Wagner ou Saint Saens s´il a soixante ans, ou á travers celles de
Debussy, s´il n’a que trente ans. Il serait souhaitable que les musiciens brésiliens comprissent l’importance des

239
Se por um lado Mário de Andrade coincidiria com Milhaud ao identificar

Ernesto Nazareth e Marcelo Tupinambá como as duas principais expressões da música

popular urbana385, faria, entretanto, no Ensaio, o seguinte alerta:

Mas um elemento importante coincide com essa falsificação da entidade


brasileira: opinião de europeu. [...] A Europa completada e organizada num
estádio de civilização campeia elementos estranhos pra se libertar de si mesma [...]
O que a Europa tira da gente são elementos de exposição universal: exotismo
divertido. Na música, mesmo os europeus que visitam a gente, perseveram nessa
procura do esquisito apimentado. Si escutam um batuque brabo muito que bem,
estão gozando, porém si é modinha sem sincopa ou certas efusões líricas dos
tanguinhos de Marcelo Tupinambá, isso é música italiana! Falam de cara enjoada.
E os que são sabidos se metem criticando e aconselhando o que é perigo vasto
[...] (Andrade, 1928: 5-6).

E que José Miguel Wisnik sintetizaria da seguinte forma:

O balanço crítico da música brasileira, feito por Milhaud, apresenta uma certa
duplicidade: se a importância dada a Nazareth acerta num caso feliz de estilização
da música popular, uma certa fascinação pelo exotismo tropical leva-o
possivelmente a subestimar a importância da introdução do compositor brasileiro,
ainda que atrasada, nas técnicas modernas dominada pelo europeu. Restringir o
músico brasileiro à filiação ao folclore do seu país não seria negar-lhe o acesso a
outras técnicas, numa atitude análoga à do colonialismo, que restringe o dominado
ao fornecimento de matéria-rima, detendo para si o processo da industrialização?
(Wiznik,1983: 50).

Se a idéia de uma música brasileira alicerçada no conhecimento do folclore

precede de alguns anos386 a sua formulação em 1917 por Nepomuceno387 e em 1920 por

compositeurs de tangos, de maxixes, de sambas et de catérétés comme Tupynamba ou le génial Nazareth. La


Richesse rythmique, la fantaisie indéfiniment renouvelée, la verve, l´entrain, l´invention melodique d´une
imagination prodigieuse,qui se trouvent dans chaque oeuvre de ces deux maîtres, font de ces derniers la gloire et
le joyau de l´Art bresilien. Nazareth et Tupinamba précèdent la musique de leur pays comme ces deux grosses
étoiles du ciel austral (Centaure et Alpha du Centaure) précèdent les cinq diamants de la Croix du Sud”
(Milhaud, 1920: 61).
385
Ver seu texto de 1924 sobre Marcelo Tupinambá (Andrade, 1963: 115-120) e de 1926 sobre Ernesto Nazareth
(Conferência na Sociedade de Cultura Artística de São Paulo) [Andrade, 1963: 121-130].
386
Um exemplo é o livro de Guilherme de Melo (1908) A Música no Brasil, onde - na esteira das propostas de
Silvio Romero para a literatura brasileira – observa: “[...] Para achar-se a pedra fundamental da arte musical em
um país, basta consultarem-se suas lendas e a influência dos povos que contribuíram para a constituição de sua
nacionalidade. Por este princípio é que, estudando-se o estilo característico da música popular brasileira, a
modinha, o lundú e a tirana, vê-se que ela se constitui da fusão do elemento indígena com o português, o africano
e o espanhol [...] Foi, pois, na observância destes modos que procurei achar as leis étnicas que presidiram à

240
Milhaud, o artigo de Milhaud - que provocava os brios dos compositores brasileiros388 (e

certamente lido pela intelligentsia musical brasileira da época389) - contribuía, a partir do

ângulo de observação inesperado de um músico estrangeiro, para reforçar uma tendência já

pré-existente. A precedência que se pode atribuir a Milhaud está no destaque que ele dá aos

compositeurs de tangos, maxixes, sambas e catérétés (notadamente Ernesto Nazareth e

Marcelo Tupinambá), valorizando a sua produção a ponto de colocá-la no “primeiro plano” da

música brasileira, declarando-a digna de ser admirada e estudada pelos “músicos eruditos”.

Em que pese à oposição390 que encontrou, a iniciativa de Luciano Gallet de apresentar música

de Ernesto Nazareth no Instituto Nacional de Música (INM) em 1922, que tinha um

precedente no convite de Alberto Nepomuceno a Catulo da Paixão Cearense para apresentar-

se no mesmo Instituto, fazia parte de um novo espírito ao qual o artigo de Milhaud conferia

um respaldo intelectual prestigioso, e do qual havia sido a primeira manifestação.

Entretanto, se é importante notar que se o Modernismo brasileiro também

valorizou a música popular urbana defendida por Milhaud (nisso tanto se distinguindo do

formação do gênio, do espírito e do caráter do povo brasileiro e de sua música [...] isto é, como o povo português
sob a influência do clima americano em contato com o índio e o africano se transformou, constituindo o mestiço
ou o brasileiro propriamente dito. [...] Com a proclamação da República, a arte nacional reivindica todo o seu
passado de glória e inicia uma nova época que bem poderíamos denominar ‘Período de Nativismo’ [...] Hoje,
porém, o maior orgulho dos brasileiros é correr em suas veias, tingindo-lhes as faces tisnadas pelo sol dos
Trópicos, sangue dos nossos aborígenes” [Melo, 1947: 8/9; 281-282].
387
Entrevista para a “Revista Teatral”, citada no Capítulo I.
388
Um exemplo é a observação feita de Mário de Andrade no seu discurso de paraninfo para os formandos de
1922, no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo: “Ainda há pouco, um músico francês contava aos
leitores da ‘Revue Musicale’ que o que de mais interesse ouvira entre nós fora a música de Tupinambá e
Nazareth [...] embora houvesse no país alguns compositores de talento [...]”.
389
Mário, leitor da Revue Musicale desde o início; a cópia no IEB não tem anotações, mas é sublinhada; discurso
de paraninfo lido por Mário de Andrade antes de sua re-publicação em Ariel, que era dirigida por Antonio Sá
Pereira.
390
Para a qual foi necessária proteção policial. Mário de Andrade comentava em 1926, numa conferência na
Sociedade de Cultura Artística de São Paulo dedicada a Ernesto Nazareth: “Esta homenagem prestada a Ernesto
Nazareth pela Cultura Artística de São Paulo me parece que é sintomática de tempos mais úteis [...] E é um gosto
a gente constatar que não se carece aqui de garantia da polícia, como sucedeu no Instituto Nacional de Música,
em 1922, quando num concerto organizado por Luciano Gallet, aí se executou o Brejeiro, o Nenên, o Bambino e
o Turuna” (Andrade, 1963: 130).

241
nacionalismo centro-europeu391), ele a via como parte de um universo muito mais amplo,

enquanto Milhaud - no seu artigo - tendia a equacionar “folclore brasileiro” a música

urbana dos “compositores de tangos, maxixes, sambas e cateretês”.

Essa diferença de visões, notadamente quanto à extensão do “universo

folclórico” brasileiro e seu tratamento, já é bem expressa por Mário de Andrade no seu

discurso de paraninfo392 aos formandos de 1922, no Conservatório Dramático e Musical de

São Paulo, em que ao mesmo tempo apóia e toma suas distâncias em relação à abordagem de

Milhaud, tanto no que se refere às recomendações do artigo da Revue Musicale (1920) quanto

ao conteúdo de “brasilidade” na sua composição Saudades do Brazil (publicada em 1921).

Quanto a essa última declara:

[...] Conheço uma quantidade de maxixes barcaroleiros de clara procedência


italiana. O Senhor Dario Milhaud publicou a pouco tempo em Paris uma série de
danças brasileiras, em cujo maior número é manifestada a naturalização francesa
[...]393. Não é isso, não é na intronização do samba e maxixe que está o grande
trabalho de fundação de uma escola musical nossa. O trabalho está em
refinarmos todo este tesouro musical, respeitando, defendendo, salientando o que,
de elementos raciais, possamos ainda conservar neste vertiginoso mistifório de
raças e sub-raças que é o Brasil [...].

Quanto ao artigo na Revue Musicale:

391
Toda a abordagem de Bartok e Kodaly é a de ir às fontes camponesas tradicionais buscando preservá-las da
“contaminação” do “popularesco” representado pela música urbana, no caso húngaro, da música cigana (ver
Travassos, 2000).
392
Comunicado pela Professora Flavia Camargo Toni.
393
Em crítica de 15/VII/1930, Mário de Andrade faria os seguintes comentários sobre as Saudades do Brazil,
apresentadas em sua versão orquestral por Villa-Lobos em São Paulo: “Villa-Lobos inaugurou no sábado
passado a série de concertos sinfônicos que veio dirigir em São Paulo [...] Do programa constavam ainda, em 1ª
audição, as Saudades do Brazil de Dario Milhaud, que já fizeram a volta do mundo. Está claro que o grande
compositor judeu jamais teve intenção de fazer música brasileira. Filiado à Escola Francesa, o que fez foi bem
música francesa [...] De Brasil o que há nessas pecinhas são alguns ritmos, algumas melodias tradicionais ou de
música impressa maxixeira. E as saudades. Talvez mais saudade do que o resto, graças a Deus. O que não
impede, é certo, que, embora a execução integral da Saudades do Brazil elas sejam adoráveis, admiravelmente
orquestradas, repletas de invenções, de polifonia e instrumentação. Como conceito politonal a impressão que tem
é mais de perplexidade que outra coisa. Está claro que sou favorável à politonalidade e muito acostumado a ela.
Mas o que deixa a gente perplexo é não perceber às vezes nenhuma lógica musical em certos empregos de
tonalidades diferentes e tais como faz Milhaud. Uma linha quadrada numa tonalidade, acompanhada por um

242
[...] É preciso que não nos envergonhem mais os estrangeiros nossos visitantes que,
assumindo o papel de Colombos, vêm descobrir em nosso seio o que já deveria
estar descoberto por nós. Ainda há pouco, um músico francês contava aos leitores
da Revue Musicale que o que de mais interesse ouvira entre nós fora a música de
Tupinambá e Nazareth; e que, embora houvesse no país alguns compositores de
talento, ainda não tinham estes descoberto a música brasileira nem seguido pela
orientação a que os ilustraria, isto é, o emprego de ritmos e motivos nacionais
[grifo nosso]. É preciso raciocinar sobre a afirmativa audaciosa. Existe nela uma
luz de razão. [...] Senhores diplomandos: defendei esse nosso tesouro da
contrafacção meteca394; pregai a música verdadeiramente nacionalizante! [...] A
matéria-prima é abundante para nós. Saibamos com urgência encetar a construção
dessas bases de nossa escola musical [...] Esse trabalho de fundação não significa
endeusarmos repentinamente o maxixe e o samba [...] Não há dúvida, que o maxixe
e o samba podem também trajar-se com roupagem artística. Mas essa estilização
única de danças populares não é suficiente e nem muito freqüente. A música
italiana não é somente feita de tarantelas sicilianas nem a francesa só de minuetes,
correntes, e musettes [...] (Andrade/IEB, 1923)395.

Deve ser notado que - apesar da (alguma) utilização de motivos rítmicos e

melódicos brasileiros em L´Homme et son Désir e no 2º movimento da Sonata para piano e

instrumentos de sopro - essa questão só parece cristalizar-se no espírito de Milhaud, após a

sua partida do Brasil, quando organiza em abril de 1919 o concerto no “Vieux Colombier”

incluindo - na seqüência de obras de Velásquez, Nepomuceno, Oswald, Nininha e dele

próprio - uma seleção de “tangos, maxixes, sambas e cateretês”; esse concerto é seguido, no

mesmo ano pela composição do Le Boeuf sur le Toit, no segundo semestre de 1920 pela

composição das Saudades do Brazil e a publicação do artigo “Brésil” na Revue Musicale. Ela

não transparece nas suas atividades na Sociedade Glauco Velasquez - notadamente sua

conferência sobre Glauco onde o tema “nacional” não é sequer citado - na correspondência

com os Guerra (a não ser pedir “novos tangos do Carnaval” em fevereiro e acusar seu

recebimento em abril de 1919), nem do testemunho que dá a Gallet de sua experiência com

Milhaud, onde ressalta as perspectivas que este lhe abriu no que diz respeito a novas

movimento rítmico quadrado também e harmonizador, mas noutra tonalidade, onde qualquer lógica musical que
explique isso? Não acho por mim” (Andrade, 1963: 146).
394
Alusão pejorativa, aplicável a Milhaud que residiu quase dois anos no Brasil: a denominação “meteco”, na
Atenas do V século a.C. era aplicada aos estrangeiros residentes em Atenas, cujo estatuto legal era inferior aos
dos cidadãos atenienses.
395
Documento inédito da Série Materiais extraídos da Imprensa, do Arquivo Mário de Andrade, transcrito por
Fabiana Agreste Bruber e Flavia Camargo Toni. Texto comunicado pela Professora Flavia Toni.

243
possibilidades da linguagem musical mas sem mencionar (logo a Mário de Andrade) qualquer

“provocação” no sentido de uma “nacionalização” da sua linguagem composicional396. Já

Luiz Heitor, grande amigo de Gallet, relata o que parece ser um testemunho de primeira mão:

Constatando, pois, a predileção de Milhaud pela nossa música popular, o


entusiasmo divertido com que ouvia Cabocla de Caxangá, São Paulo Futuro, o Boi
no Telhado, e outras músicas de sucesso cujos temas e ritmos havia de aproveitar
mais tarde, em suas partituras, [...] não é de estranhar que o futuro compositor
também sentisse a tentação de empregar tais elementos em sua própria música. Só
mais tarde, entretanto, haveria de tentar a experiência [grifo nosso] (Corrêa de
Azevedo, 1956: 78).

No intervalo de tempo entre o “entusiasmo divertido” em 1917-1918 com

que Milhaud ouvia essa música que o encantava e “intrigava”, e o da formulação de um

projeto “nacionalista” para a música brasileira na Revue Musicale em 1920 - no qual a

“intronização do maxixe e do samba” ocupava um lugar de destaque - Milhaud havia se

tornado o mais destacado representante do Groupe des Six, cujo programa eminentemente

“nacionalista” (em prol de uma “música francesa”) ele parecia estar transpondo para o caso

brasileiro, ao mesmo tempo em que acabava de experimentar o enorme sucesso do Le Boeuf

sur le Toit (em Paris e Londres), baseado justamente na utilização de “tangos, maxixes,

sambas e cateretês”.

Em relação à conversão de Gallet ao “nacionalismo”, o papel de Milhaud

(relevante ainda que menos decisivo que o de Mário) parece ter surtido um maior efeito após

o seu retorno à França397 que durante sua estada no Brasil, já que as obras de Gallet,

compostas à época da participação de Milhaud no Círculo Veloso-Guerra, são ainda

396
Gallet menciona a Mário de Andrade, à margem de seu Catálogo de Obras, o comentário “Milhaud gostou”
para sua obra para canto e piano Allanguissement, apresentada em concerto no Liceu Francês em 23/VIII/1918,
por Frederico Nascimento Filho (Gallet, 1934: 99).
397
O efeito “a retardamento” ao qual se refere Luiz Heitor, o artigo da Revue Musicale, o sucesso internacional
das suas “obras brasileiras” como o Le Boeuf sur le Toit e Saudades do Brazil.

244
eminentemente “internacionalistas” e assim o permaneceriam até a composição de Hieróglifo

em 1922.

6.3.2 “Atualização” da linguagem

É no plano da linguagem musical que parece se manifestar uma possível

influência de Milhaud sobre alguns jovens compositores brasileiros: difusão de um maior

conhecimento das inovações introduzidas nas obras de Stravinski e Schoenberg, assim como

daquelas - ligadas a politonalidade - que Milhaud estava introduzindo naquele momento em

suas composições. Gallet escreveria a Mário em 1926 que:

Por meio de Milhaud, penetrei na música moderna, com ele comecei o estudo
da harmonia. Era terrível quanto às quintas e oitavas. Não admitia. Em Harmonia
escolar, bem entendido. Por ele, conheci as teorias adiantadas, Stravinsky e
Schoenberg, a politonia fundamentada em Bach, Satie, a concepção dos vários
modernos e os processos usados. Posso afirmar-te que Milhaud sabe onde tem a
cabeça (Gallet, 1934: 15).

No caso de Villa-Lobos, é interessante notar que uma obra à qual ele daria

grande importância, ao longo dos anos 1920, o seu 3º Trio para piano, violino e violoncelo398,

uma obra sem conotações “nacionalistas”, composta em 1918 (coincidindo cronologicamente

398
Em junho de 1920, Rubinstein fazia a seguinte declaração no Jornal “A Notícia”: “Vou fazer executar nos
EUA, por Thibaut, Pablo Casals e eu o Trio nº 3 de sua autoria que me foi dado ouvir [numa recente] audição”
(Guimarães, 1972: 1946). Guimarães observa, entretanto: “Não podemos constatar se realmente o 3º Trio foi
executado na América, conforme Rubinstein pretendia” (Guimarães, 1972: 102). O Trio nº 3 seria apresentado
na “Semana de Arte Moderna” por Paulina d’Ambrosio, Alfredo Gomes e Lucila Villa-Lobos, em 17/II/1922.
Souza Lima relata que em 1923: “A partir desse primeiro encontro com Villa-Lobos, nosso convívio tornou-se
diário. Morando em Paris já há alguns anos [...] não tive dúvida em proporcionar ao nosso músico as primeiras
ligações com os mestres do momento, tanto assim que o apresentei e fiz uma execução nos seu Terceiro Trio
juntamente com Raul Laranjeira (violino) e Mário Camerini (violoncelo) a Henri Prunières, conceituado
musicólogo e diretor da Revue Musicale, em sua residência numa daquelas terças-feiras, quando eram
apresentados artistas e obras novas aos grandes mestres. Naquela tarde estavam presentes: Paul Dukas, Albert
Roussel, Samazeuhil, Florent Schmitt, Louis Aubert, Roger Ducasse e muitos outros que se surpreenderam com
as pitorescas harmonias, com as combinações mais surpreendentes aliadas a uma perfeita fatura instrumental [...]
Foi assim o seu primeiro contato com os mestres franceses, o primeiro passo para um caminho que já se abria
com vislumbres de consagração [...]” (Souza Lima, 1972: 100). Souza Lima apresentaria essa obra com os
mesmos intérpretes em concerto no Musée Galliera, em 04/IV/1924.

245
com a estada de Milhaud no Rio), é justamente considerada por Oscar Lorenzo Fernandez

como sua obra a mais ousada no campo da politonalidade: “É no Trio no. 3 que vamos

encontrar em maior número os processos bitonais, alguns bem audaciosos e outros de curioso

efeito [...]” [Fernandez, 1946: 285]. No seu famoso artigo sobre “A contribuição harmônica

de Villa-Lobos” [ver Ilustrações, págs. 259 e 260], o Trio n. 3 é a obra da qual extrai o maior

número de exemplos, declarando que: “Já em 1918, Villa-Lobos, que depois evoluiu para uma

maior simplicidade, muito mais forte e expressiva, empregava combinações bitonais,

politonais e atonais” [Fernandez, 1946: 285], sugerindo que a absorção dos processos mais

“modernos” da nova linguagem musical da 1ª metade do século XX precede, em Villa-Lobos,

a guinada radicalmente “nacionalista” que daria nos anos 1920399, uma percepção que também

se reflete na seguinte observação de Mário de Andrade em 1928400:

Mesmo antes da pseudo-música indígena, de agora, Villa-Lobos era um grande


compositor. A grandeza dele, a não ser pra uns poucos, sobretudo, Arthur
Rubinstein e Vera Janacopoulos, passava despercebida. Mas bastou que fizesse
uma obra extravagando bem do continuado pra conseguir o aplauso [...].

O que impressiona, no caso do Trio n. 3, onde não transparece qualquer

semelhança estilística com obras de Darius Milhaud401, é um tratamento da politonalidade402

que, no entanto, evoca o sistema que Milhaud posteriormente teorizaria em Politonalité et

Atonalité de construção de agregados politonais complexos, através da superposição de

acordes simples (sendo freqüente, no caso de Milhaud, a superposição de acordes perfeitos

399
Principalmente a partir da Semana de Arte Moderna.
400
Momento em que Villa-Lobos estava experimentando um enorme sucesso em Paris, com obras “brasileiras”,
tais como o Noneto, os Três Poemas Indígenas, os Choros VIII e X, as Serestas.
401
O crítico argentino Cirilo Grassi Diaz, que havia conhecido Villa-Lobos em Buenos Aires, em 1925, e lá o
havia reencontrado em 1935, relata desse encontro: “Escuto, também, sua voz falar-me entusiasticamente de
Darius Milhaud, adido à embaixada da França no Rio de Janeiro. Envolveu o seu nome em cálidos adjetivos,
porém de repente, de maneira cortante, manifestou-me: ‘Não bebi nessa fonte. Eu fui o meu próprio mestre’ [...]”
(Grassi Diaz, 1966).
402
Bruno Kiefer observa: “[...] Teria a politonalidade [em Villa-Lobos] resultado da influência direta de Darius
Milhaud na época residente no Rio de Janeiro?” (Kiefer, 1986:44).

246
maiores e menores)403. Esse processo também pode ser observado em algumas obras

subseqüentes como as Historietas404 e os Epigramas Irônicos e Sentimentais [ver Exemplos

40 e 41, págs. 261 e 262].

Se é difícil avaliar com precisão a influência de Milhaud sobre o

Modernismo musical brasileiro, pode-se, entretanto, afirmar que:

a) sua contribuição em prol da “causa” de um “nacionalismo musical”

brasileiro (a resenha na Revue Musicale em 1920, traduzida em Ariel em

1924) e sua postura de valorização da música popular urbana parecem ter

se tornado mais fortes após seu retorno à França - reforçada pelo prestígio

de sua posição destacada no Groupe des Six e do sucesso internacional de

suas “obras brasileiras” Le Boeuf sur le Toit e Saudades do Brazil - que

durante sua estada no Brasil (mesmo no caso de Luciano Gallet);

b) em compensação, no plano da circulação de idéias e da “atualização” da

linguagem musical, o fermento que ele trouxe (e recebeu) no “Círculo

Veloso-Guerra”, teve reflexos declarados em Gallet, evidentes em Oswaldo

e Nininha Guerra e presumíveis em Villa-Lobos (o uso da politonalidade

no 3º Trio)405. Essa “atualização” resultava tanto dos concertos que

organizou onde se deram tantas primeiras audições de obras de Debussy,

403
Se aplicarmos a classificação de agregados proposta por Milhaud (1923) a alguns exemplos no artigo de
Lorenzo Fernandez ( reproduzidos nas páginas 259-60 ), teremos: “Acorde I”: exemplos 66 e 68; “Acorde II”:
exemplo 64 (1º tempo); “Acorde III”: Exemplo 70; “Acorde VI”: Exemplos 63 e 64 (2º tempo). Nos Exemplos 6
e 7, ao final desse capítulo, observa –se a utilização de acordes bitonais a distancias de 2ª m. 2, M e 3ª m (na
classificação de Milhaud “Acordes I”, “II” e “III”), e no Inútil Epigrama acordes de 9 sons superpondo 3 acordes
maiores (à distancia de semitom e tom).
404
Ver análise de José Miguel Wisnik (1986) das Historietas.
405
Segundo Tarasti (1995: 17, T. do A.): “[...] em todo caso, o contato com Milhaud terá representado um
impulso importante para os compositores brasileiros que conheceu, dentre os quais Villa-Lobos [...]”.

247
Ravel, Satie e Koechlin, quanto de contatos informais, onde se liam obras

de Stravinski (como a Sagração da Primavera), Debussy e as obras que ele

estava compondo naquele momento no Rio de Janeiro.

6.4 - O “CÍRCULO VELOSO-GUERRA” E O MODERNISMO MUSICAL NO BRASIL

O Modernismo musical brasileiro, tal como ele se definiria a partir da

Semana de Arte Moderna, se caracterizou por um lado pela “atualização” nos recursos

técnicos utilizados (se não uma atualização radical, pelo menos “liberada” das regras da

escola) e, por outro, por um “nacionalismo” freqüentemente militante.

Portanto, uma diferença clara que pode ser identificada entre o

“modernismo musical” no Rio de Janeiro, à época de atuação do “Círculo Veloso-Guerra” -

que se estende até a partida destes para a França em 1920 - e o futuro perfil do Modernismo

musical brasileiro está na questão do “nacionalismo”: ela está ausente tanto das composições

de Oswaldo e Nininha Guerra quanto na de seus contemporâneos João Nunes, Alfredo

Oswald, Homero Barreto406, e só aparece na de Luciano Gallet de forma episódica a partir de

1919407 (que continuaria escrevendo obras predominantemente “internacionalistas” até 1922,

como as Trois Pièces Burlesques (1920), as Chansons de Bilitis (1921)408 e Hieróglifo

(1922)). Mesmo no caso de Villa-Lobos, que contava em 1920 com um conjunto expressivo

406
Homero Barreto (1884-1924) deixou algumas obras entre as quais uma ópera (Jati), um poema sinfônico
(Fiat Lux) e música de câmara. Segundo a Enciclopédia da Música Brasileira, foram adaptadas por Villa-Lobos
para orfeão, interessando principalmente por sua linha melódica (Marcondes, 1977: 72).
407
Com o seu Tango-Batuque para orquestra.
408
Nos seus comentários a Mário de Andrade à margem de seu Catálogo de Obras, Gallet comenta a respeito da
Chansons de Bilitis: “Escrita à Debussy” (Gallet, 1934: 103).

248
de obras já utilizando elementos da música popular409 estas, mesmo no período 1918-1920,

ainda não correspondiam à maior parte da sua produção, destacando-se entre as obras

“internacionalistas” composições importantes como o 3º Trio para piano e cordas, as

Historietas (1920), os primeiros Epigramas Irônicos e Sentimentais, e a Fantasia para

Movimentos Mistos para violino e orquestra (1921). De fato, como observaria Araci Amaral:

“Foi somente num segundo estágio do Movimento Modernista que surge lucidamente o

nacional como objetivo a eclodir a partir de 1924 com o Manifesto Pau Brasil, de Oswald [de

Andrade]”410.

Em que pese o entusiasmo de Milhaud, ao descobrir o “swing” no Carnaval

do Rio de 1917, em ouvir Nazareth tocando piano “em frente a um cinema da Av. Rio

Branco”411 - e comprar compulsivamente partituras de “tangos, maxixes, samba e cateretês”

para melhor entender a rítmica da música popular - deve-se notar que a questão do

“nacionalismo” não parece ter tido maior relevo à época da participação de Milhaud no

Círculo Veloso-Guerra, e que é após sua partida do Brasil que as suas “obras brasileiras”

(L’Homme et son Désir (1918)412, Le Boeuf sur le Toit (1919) e Saudades do Brazil (1920)) e

sua articulada “pregação” em favor de um “nacionalismo” musical ganham evidência.

É, portanto, no plano da “atualização” que o modernismo musical praticado

em torno do “Círculo Veloso-Guerra” tanto se aproxima do Modernismo Musical brasileiro

pós-1922: o grau de absorção por parte de Nininha Guerra de novos processos composicionais

de alta complexidade harmônica (politonalidade) e rítmica pode ser medido pelas transcrições

409
Entre 1919 e 1920, foram adicionadas mais obras utilizando elementos da música popular, como Carnaval
das Crianças e a Lenda do Cabloco, para piano, e Sertão no Estio, para voz e pequena orquestra.
410
Citado em Kiefer (1986: 80).
411
“Devant la porte d’un cinema de l’avenue Rio Branco”, Milhaud comenta que: “Sua maneira de tocar
escorregadia, imprevisível e triste também me ajudou a melhor conhecer a alma brasileira” (Milhaud, 1949: 88,
T. do A.).

249
para piano a 4 mãos que realizou de obras de Milhaud, e derivava de seu profundo

conhecimento da música moderna francesa de Debussy, Ravel e Satie e - a partir da estada de

Milhaud no Rio - de sua familiarização com obras de Stravinski e daquelas que Milhaud

estava escrevendo sob seus olhos. Por outro lado, ainda que com graus variáveis de

proximidade, a irradiação das músicas e idéias estudadas e discutidas no ambiente dos

Veloso-Guerra (fortemente acentuada pela presença de Milhaud) no meio musical carioca -

além dos próprios concertos em que participaram - foi extensa: os Guerra tocando música

francesa nos “salões de sábado” em casa dos Oswalds413; Nepomuceno sendo convidado por

Milhaud para uma leitura em casa dos Guerra do seu balé L´Homme et son Désir414; Claudel,

Milhaud e Rubinstein participando de uma soirée em casa dos Guerra onde o Pássaro de

Fogo e o Sacre du Printemps são tocados em transcrição para piano a 4 mãos; Godofredo que

apresenta Villa-Lobos ao Cours de Composition Musicale de Vincent D´Indy e a Milhaud, e

em cuja casa são ouvidas (souvent) as Chansons Bas; Luciano Gallet estudando “Harmonia

tradicional” e sendo introduzido a Stravinski e Schoenberg por Milhaud; Villa-Lobos

dedicando Kankikis a Nininha, que realiza a sua primeira audição mundial em 1919.

José Miguel Wisnik, ao discutir a Semana de Arte Moderna, observa a

defasagem que pode haver entre: “a absorção de informações sobre a atualidade européia [e] o

amadurecimento técnico propriamente dito no nível da criação”. Por outro lado (considerando

o hiato entre as obras apresentadas na Semana e a vanguarda européia daquele momento)

observa que o “alcance afetivo das obras apresentadas na Semana de Arte Moderna deve ser

distinguido [...] do alcance das agitações estéticas, das obras citadas, dos nomes europeus que

vêm continuamente à baila”; e propõe que se distingam os seguintes aspectos: a) a música

412
As inovações contidas no L´Homme et son Désir tem pouca relação com os elementos que são tomados de
empréstimo ao “folclore”.
413
Carta de Milhaud aos Oswalds de julho de 1919, citada no Capítulo II [Martins, 1995].
414
Carta citada no Capítulo V (Reis Pequeno, 1977).

250
como acontecimento; b) a música no contexto das idéias modernistas; c) a linguagem musical

propriamente dita.

Se transpusermos algumas dessas categorias ao período de atuação e

irradiação do Círculo Veloso-Guerra, poderíamos dizer que:

a) numa primeira fase (1907-1916), compreendida entre os “Concertos

Íntimos” organizados por Godofredo e a chegada de Milhaud ao Brasil, a

estética debussista ganha terreno no plano das idéias (por exemplo, as

críticas de José Rodrigues Barbosa e de Roberto Gomes em 1908, citadas

no Capítulo I); transforma-se gradativamente em “acontecimento” ao ser

apresentada em concertos e ao incorporar-se ao repertório de músicos

brasileiros (por exemplo, Antonieta Rudge, Nininha Veloso-Guerra); a

nova linguagem é assimilada e resulta no “amadurecimento técnico

propriamente dito no nível da criação”, através das obras de João Nunes

(Vie des Abeilles), Oswaldo Guerra (Sonata para piano e violino, Sonata

para flauta oboé e piano) e Nininha Guerra (Com as Crianças, Nocturne),

Luciano Gallet (Trois Pièces Burlesques, Chansons de Bilitis) e Villa-

Lobos (Prole do Bebê I, Carnaval das Crianças, Historietas);

b) numa segunda fase (1917-18): o período de permanência de Milhaud no

Brasil, no qual suas obras são discutidas (e à vezes executadas em

concerto), há alguma difusão de sua visão da politonalidade (aulas a Gallet;

o fato eventualmente fortuito, porém extremamente coincidente do Trio nº

3 de Villa-Lobos de 1918 ser a mais politonal das suas obras segundo

251
Lorenzo Fernandez; no mesmo ano, a composição incompleta de Nininha

Variations (peu sérieuses) sur un thème serieux de Darius Milhaud).

Entretanto, diferentemente da fase anterior - na qual a inovação musical no

“plano das idéias” (no caso a “revolução debussista”) não só se tornava

“acontecimento” (os numerosos concertos públicos realizados) como,

sobretudo, se havia incorporado à linguagem dos compositores - nessa

segunda fase a música de Stravinski e os aspectos mais radicais das obras

que Milhaud estava compondo parecem, basicamente, ter ficado no plano

das idéias (com a possível exceção de Villa-Lobos415) não se traduzindo em

novas “aquisições” de linguagem.

c) numa terceira fase (1919-1920): o período entre o retorno de Milhaud à

França e a partida dos Guerra do Brasil, os Veloso-Guerra são mantidos

informados em “primeira mão” dos novos acontecimentos musicais através

da correspondência de Milhaud (à qual se juntam partituras recém-

publicadas, programas de concerto, artigos musicais): o relacionamento

com Satie, o movimento dos Nouveaux Jeunes que desemboca no Groupe

des Six e sua postura anti-impressionista, a posição antagônica a Ravel,

Florent Schmitt e o SMI etc. Em relação a essa fase, pode ser transposta a

observação de Wisnik em relação à Semana de Arte Moderna: “O alcance

efetivo das obras apresentadas na Semana de Arte Moderna deve ser

distinguido, portanto, do alcance das agitações estéticas, das obras citadas,

dos nomes europeus que vêm continuamente à baila”.

415
Mesmo no caso do 3º Trio de Villa-Lobos, o recurso freqüente a um procedimento “moderno” - a
politonalidade - está enxertado num discurso musical pós-romântico.

252
O “Círculo Veloso-Guerra” teve, portanto, um papel decisivo nessa

primeira fase do Modernismo Musical no Brasil, que correspondeu a uma assimilação ao

mesmo tempo rápida e abrangente da “revolução debussista”, a qual se traduziu por uma

presença dessas novas obras no repertório de concertos e pela incorporação das inovações que

trazia à linguagem de alguns jovens compositores brasileiros:

a) num primeiro momento - que pode ser datado entre a apresentação das

Arabesques de Debussy, por Nininha nos “Concertos Íntimos” de

Godofredo em 1907, e seu recital em 1916 onde realizou a 1ª audição

brasileira dos Children´s Corner (precedida em 1914 pela 1ª audição

brasileira dada por ela sob a regência de Francisco Braga das Danses

Sacrées et Profanes e pela publicação e apresentação de Com as Crianças)

- encontrou condições particularmente favoráveis no ambiente musical do

Rio, junto a um establishment que não se enquadrava nos estereótipos de

“filisteismo” (como o crítico Rodrigues Barbosa, e compositores e

professores do Instituto Nacional de Música como Alberto Nepomuceno,

Henrique Oswald, Francisco Braga e Frederico Nascimento ) , e junto a

intérpretes interessados na “música nova” como Frederico Nascimento

Filho, Carlos de Carvalho, Barroso Neto, Paulina d´Ambrosio e Alfredo

Gomes - muitos dos quais futuros defensores da música de Villa-Lobos na

Semana de Arte Moderna- , mas naquele momento polarizados em torno da

“causa” que era a promoção da música de Glauco Velásquez (pela qual

tanto se interessariam Gallet e Milhaud);

253
b) num segundo momento (1917 a 1920), que inclui a participação ativa de

Milhaud em 1917-1918, a irradiação do “Círculo Veloso-Guerra” atinge

seu máximo de intensidade: concertos em que são realizadas primeiras

audições de Satie, Ravel, Koechlin e, sobretudo, das obras mais recentes de

Debussy (o 2º caderno dos Prelúdios e os Estudos; En Blanc et en Noir

para piano a 4 mãos; as 3 Sonatas de câmera); contato com personalidades

extremamente próximas de Stravinski como Arthur Rubinstein e membros

dos Ballets Russes (Nijinski, Ansermet), e em 1918 leitura a 4 mãos da

Sagração da Primavera ;convívio intenso com a atividade composicional

de Milhaud no Rio, com a apresentação em concerto de algumas de suas

obras , e transcrição para piano a 4 mãos de L´Homme et son Désir ;

mesmo após a partida de Milhaud, a realização por Nininha de novas 1as

audições, entre as quais a 3ª Dança Africana de Villa-Lobos.

c) ao desaparecimento do ambiente musical em torno dos Veloso-Guerra

no Rio - com a morte de Nininha e Godofredo e a decisão de Oswaldo de

radicar-se na França - correspondeu um equivalente desaparecimento de

sua presença na crônica musical brasileira e na bibliografia, antes mesmo

do Modernismo musical brasileiro assumir suas feições tão marcadamente

nacionalistas. Entretanto o “Circulo Veloso-Guerra” representou um

singular e importante marco no movimento de idéias da vida musical do

Rio no entorno da Primeira Guerra Mundial, e contribuiu de maneira

particularmente relevante no processo de “atualização” de dois mestres

fundamentais do Modernismo Musical brasileiro: Luciano Gallet e Heitor

Villa-Lobos.

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