Marginalia poderia ser um subtítulo conveniente para esta comunicação. Segundo se lê nos
termos introdutórios a essa publicação: “…são escritos com a distância suficiente, a fim que o
espírito do leitor seja descarregado de um pensamento, seja este ligeiro, naïf ou trivial,
todavia, um pensamento e não algo que pudesse sê-lo, com o auxílio do tempo e de
circunstâncias mais favoráveis.”2 Edgar A.Poe assinala a incapacidade de qualquer leitor (no
relativo à respectiva “velocidade” do acto de ler), se procedesse a uma leitura em voz alta -
quanto diminuição significativa da extensão e quantidade do seu acto; consciencializando, por
oposição, a amplitude de recepção do “lido” (espécie de “vécu”), quando “lemos para nós
próprios”…Poder-se-ia transpor esta argumentação no relacionável às artes visuais: ou seja, a
diferença incontornável entre o que seja olhar as fotografias em acto directo e em acto
intermediado (publicadas em uma qualquer edição impressa ou olhadas no ecrã de um
computador…e salvaguardas as diferenças entre estes dois últimos actos).
1
Edgar Allan Poe -“Dreamland”, Poems and Essays, ed. Lit. John H. Ingram, Leipzig: Bernhard Taucnhitz,
1884, pp. 87/88
Cf. A tradução portuguesa:
“Por escuro e ermo trajecto,
Por anjos maus assombrado,
Onde à Noite, em triste Espectro
Reina em preto trono erecto,
Eis-me aqui recém-chegado
Da última Thule encoberta…
De um clima agreste e deserto, sublime,
conquanto incerto,
Do Espaço e Tempo liberto. (…)”
Edgar Allan Poe - “O País dos Sonhos”, Obra Poética (Completa), p.149
2 Egdar Allan Poe – Marginalia, p.8.
Na leitura de seus textos de ensaio e de recorte filosófico e estético, centrei-me em fragmentos
de Marginalia, Eureka e Filosofia da Composição. Igualmente, estes me guiaram na
subsistência e caminho cumprido em obras específicas dos artistas acima citados. A viagem
E.A.P. incorporou ambas vertentes: poética e ensaística; esta, mais intensamente no início,
devendo ser ouvida/lida como uma aproximação à dei continuidade – em termos curadoriais –
considerando as variantes e endereçamentos ricos a que permitem aceder.
Analisando os seus poemas, ao mesmo tempo que me debrucei sobre as iconografias de
Molder, Woodman e Tschäpe, apercebi-me de que as reflexões de E.A. Poe se reflectiam
mutuamente…por assim o afirmar, uma espécie de ressonância em “duplo sentido”.
Seleccionei aquelas imagens fotográficas e videográficas – fixas e em movimento, nas quais
mais se evidenciam os tópicos que entendi como denominadores comuns, aquelas que quase
se exigiam logo após as ter confrontado nos inícios da minha pesquisa. Assim, se instaurou
uma plataforma de reflexão, interpretações e transfigurações possíveis quanto intermináveis
(quase).
No panorama literário português é incontornável a tradução empreendida por Fernando
Pessoa de alguns dos poemas e contos de Poe, quanto no séc. XIX, o fora a acção de
Baudelaire em França.
A ênfase das traduções incidia, direccionando fortemente as premissas efabulatórias que
tenderam à maior divulgação e mediaticidade (popularização equivalendo mesmo a uma
desvalorização/banalização) estereotipada da obra de Poe – a configuração de um imaginário
“excêntrico”, sobrecarregado e inusitado (até então). Entenda-se a sua obra de valência mais
directamente “gótica”, agindo como impulso, que muito tem sido abordado, antecipando
criações que se converteram em estereótipos recorrentes: a idiossincrasia manifesta nos contos
intensificou-se pelo recurso que a cinematografia – nos seus primórdios – lhe procurou.
Em termos de contextualização, assinale-se que a obra de Poe privilegia (é sustentada) a
expansão do imaginário, não somente por recurso a uma escrita imputável à imaginação,
quanto alimentada por metáforas, alegorias e convencionalismos adstritos a um vocabulário
enfaticamente visual, onde se destacam as transfigurações. As transfigurações
consubstancializam-se em morfologias humanas, animais e de vertente paisagística
(arquitectural, urbana e natural). A sua representação por vezes assume proporções de uma
certa convencionalização artístico/literária, detectável através de tópicos de externalidade –
facilitando a recepção estética), tanto quanto propugna os domínios fantasmáticos do self.
Numa cumplicidade que poderia entender-se de paradoxal, o autor americano afirmou a sua
anterioridade científica, filosófica e estética (1848) quanto:
à sistematização da psicanálise freudiana (1898);
à explanação de conteúdos fenomenológicos (iniciados por Husserl e expandidos em
distintas especificidades, destacando-se, Gaston Bachelard e Merleau-Ponty;
à formulação de uma estética simbolista (finais séc. XIX).
Relembrem-se os antecedentes quer filosóficos, quer psicológicos propugnados pelo
pensamento grego que E.A.Poe recupera e reinventa, em argumentações de foro cosmológico
e quando recorre – em moldes de escrita – à tipologia privilegiada por Platão, travestindo-o no
Diálogo Eiros and Charmion ou no Colloque of Monos and Una …
Atenda-se, também, aos antecedentes estéticos e artísticos na historiografia ocidental no
respeitante à tradição onírica, ao predomínio de um imaginário híbrido – Jeronimus Bosch…
(salvaguardado e/ou enfatizado em alguns autores, assim cumprindo superior missão
cristianizadora).
A proposta que me coloquei, centra-se na explanação de excertos de poemas, por referência a
imagens seleccionadas na iconografia de cada um dos três artistas visuais em causa. Ainda, a
inserção de excertos de Marginalia, onde se encontram enunciados princípios, conceitos e
ideias articuláveis, subjacentes, relacionáveis aos mencionados conteúdos iconográficos –
devidamente inscritos nas correspondentes tendências estéticas propugnadas: Jorge Molder,
Francesca Woodman e Janaina Tschäpe.
Um dos denominadores comuns entre os 3 autores é a recorrência, ascendendo à
compulsividade, no tocante ao “auto-retrato”, salvaguardando embora as diferenças estéticas e
artísticas de sua assunção. O auto-retrato é gerido entre a fisicalidade [e transcendência]
(Molder), a evanescência (Woodman) e a corporalidade presentificada [no caso de algumas
das séries, a transfiguração] (Tschäpe]. Todas estas acepções remetem, a meu ver, para os
conteúdos semânticos apreendidos na poética de Poe, quanto nos anteriormente anunciados
excertos de âmbito filosófico e estético em sua prosa. Saliente-se, ainda, a concordância aos
estereótipos (visuais) configurados em protagonistas e nos ambientes que aglutinam os
enredos dos contos mais divulgados…
1. Jorge Molder:
Sob signo de sombras, silhuetas e ocultações, Molder concretizou através do recurso a
diferentes estratégias visuais as motivações identitárias que revelam o questionamento
ontológico mais determinante na caracterização/fundamentação da sua obra de fotografia.
Em Desconhecimento Imediato (2005), à semelhança do que se pode constatar em Pequeno
Mundo impõe-se a “dissolução”, a “desmaterialização” simuladas do corpo, assumindo a
fisicalidade uma justificação para uma suposta anulação, em prol da metaforização, através da
constituição de uma retórica visual, porventura desconcerteante. Em termos metonímicos, o
rosto cumpre essa decisão, numa sequencialidade oscilando entre a pseudo-revelação e
soluções ônticas de seu paradoxo.
No rosto, o olhar destaca-se, quer pela sua opacidade, pelo ocultamento absoluto ou parcial,
quer pela translucidez de onde parece submergir. O olhar interpela pelo espanto, pela ameaça
latente, pela dilaceração, promovendo emoções, desígnios que cativam o corpo próprio,
organizando numa perspectiva de incidência quase aérea (construtivista, dir-se-ia…) O olhar
residindo no rosto é suportado por um busto “invertido” ou cativado no reflexo sub-
camuflado com esgar…
3
Edgar Allan Poe, “Silêncio” – O.C., p.143
Todos os enunciados visuais centrados nesse olhar, que promotor da acuidade do auto-retrato,
correspondem, em toda a sua expansão mítico-simbólica, a tópicos qualificativos
(estereótipos) banalizados na narrativa e na poesia de Poe, como acima se assinalou,
conformada num imaginário romanticista que preanuncia o “ultra-romantismo”, o
“decadentismo”, tanto quanto o “simbolismo” – tanto quanto o designado por “goticismo”.
Em derradeira instância atinge um estádio quase extremo de máscara mortuária como em
Pinocchio (2009). A fotografia regista o molde de gesso do rosto próprio, uma espécie de
doppelganger. Igualmente as mãos são presentificadas em moldes, também à semelhança de
certa tradição de cativação para a eternidade do indivíduo humano e pessoal…Assim, através
deste (auto)retrato-máscara, se consumam as distintas acepções do rosto nas suas imagens
fotográficas. As máscaras significam, quiçá, a “perda do rosto” (individuado para o holista ou
vice-versa?), numa acepção antropológica, para agregação de um dividendo ontológico (?),
quase ascendendo a “teleologização”?
Num outro direccionamento cúmplice, analisando as inúmeras e rigorosas Séries de Molder, o
corpo próprio torna-se objecto de culto, de pregnância: Linha do tempo (2000) e Curtas
metragens (2000). Vê-se a identidade em fuga (de e) no tempo (ocorrem as argumentações
enriquecedoras de Sto. Agostinho nas Confissões e de Bergson em Matière et Mémoire).
Identidade em fuga no tempo é visibilizada, provando que é possível cumprir a
complementaridade da noção que Poe, precisamente, assinalava como incompleta: o tempo
apenas entendido - que “se dá”/”se torna” - enquanto súmula, sucessão de eventos. O tempo é
consignado por externalização na sucessão de corpo(s) do mesmo em movimentos que,
supostamente, definiriam (à semelhança) o espaço – na sua amplitude e configuração de área.
Jorge.Molder.“curtas.metragens.linha.tempo”.2000
“Linha do tempo
Um homem procura esboçar uma ombreira de porta. Não é bem um desenho aquilo que vai fazendo, é mais
como se quisesse tornar precisa uma indicação urgente da qual poderia depender a sua sobrevivência, ou
apenas uma memória. Não deixa transparecer qualquer atitude desesperada, mas antes alguma coisa entre a
concentração e o devaneio. Percorre alguns locais certamente ligados ao seu passado.
Outro homem percorre incessantemente uma casa como se procurasse alguma coisa, alguma coisa que está
mais dentro dele do que na casa, que se percebe já não ser habitada.” (Jorge Molder)
O corpo próprio do artista discorre nos corredores de uma casa, alertando-nos para os valores
simbólicos, arquetípicos de que Poe soube povoar as suas criações: casa como cenário, casa
como substância, casa como conceito…; casa onde a sombra, onde a silhueta de Jorge Molder
vagueia.
“…Ser minha fala a música de um sonho.
E enquanto não vier brusco ruído
Quebrar o teu deleite adormecido,
Nossas mentes e almas…Ó, Senhor!...
Em tudo se hão-de unir, meu grande amor.”4
A deambulação remete para a afirmatividade das imagens psíquicas que Poe já soube
diferenciar das imagens mentais reunidas, talvez, sob a entrega das imagens memória…No
espaço arquitectónico exerce-se a quase dissolução do corpo – O Pequeno Mundo (2001). A
casa apropria-se do protagonista. Essa acção é consequência do processo deambulatório que
propicia uma pertença quase indistinta a nível percepcional (e ontológica) entre um
(protagonista/corpo) e outra (casa/arquitectura): paredes, corredores, portas... absorvem o ser
pessoal na assunção celebrada sobre o seu “invólucro”, esse “eu-pele” que Didier Anzieu
soube designar.
4
Edgar Allan Poe, “Serenata”, Obra Poética (Completa), p. 209
5
Edgar Allan Poe, “Tamarlão”, Obra Poética (Completa), pp. 57-58
2. Francesca Woodman:
6
Edgar Allan Poe, “ Espíritos dos Mortos”, Obra Poética (Completa), p. 65
House #4, Providence, Rhode Island, 1976 From Angel Series, Roma,1977-1978
7
Edgar Allan Poe, “Tamerlão”, Obra Poética (Completa), p. 53
8
Cf. Poem about 14 hands high:
“i am apprehensive. it is like when/ i played the piano. first i learned to/ read music and then at one point i/ no
longer needed to translate the notes:/ they went directly to my hands. After a/ while i stopped playing and when i
started again i found i could not/ play. i could not play by/ instinct and i had forgotten how
to read music.”
From Angel series. Rome. 1977 Untitled. Rome. 1977-78
3. Janaina Tschäpe:
9
Edgar Allan Poe, “Israfel”, Op.cit., p.111
10 Edgar Allan Poe, “À Minha Mãe”, Op.cit., p.185
11
Edgar Allan Poe, “Só”, Op.cit., p.199
The Moat and the Moon. Ghost.2003
“…To give form and narrative to the trance of art making, to portray not a dream world, but the sensation of being in one
and to allow the viewer to temporarily embody the mind of the artist when everything is still at play is my main objective
through a indiscriminatingly ample repertoire of multi- media and multi-disciplinary attitudes.”- Janaina Tschäpe, 2004
12
Edgar Allan Poe, “O País das Fadas”, Op.Cit., p.103
100 Little Deaths, Mana.2002 100 Little Deaths, Antiparos, 1998
13
Edgar Allan Poe, “Um sonho”, Op.Cit., p.73
14 Edgar Allan Poe, “O Lago”, Op.Cit., p.78
100 Little Deaths, Frac Champagne-Ardenne, 2001
Em 100 Little Deaths, Tschäpe encena situações, proporciona enredos, estimula o nosso
imaginário particular a enredar-se com os estereótipos do mistério, mais do que do hermético
ou esotérico. Tampouco confere o primado ao mítico e as simbologias que impõe são bastante
conclusivas, contrariamente ao que mais frequente as caracteriza. Ao escolher-se a si mesma
como protagonista que atravessa cartografias, assinala lugares efectivos por onde passa ou
fixa. Como se referiu, os lugares são denominados, ao contrário de outros lugares presentes
em diversas Séries da artista, que se assumem como “terra-de-ninguém” ou não-lugares
quase…
Janaina Tschäpe, sendo figura única de seus “tableaux presque vivants”, segura um tempo que
transpõe a noção de sucessão pois radica num tempo sem cronometria objectiva…apenas
experiencial – quer da parte da artista, quer por parte dos receptores (do público). A natureza,
na sua dimensão cosmogónica, acolhe tempo e espaço, transcendendo-os e prometendo-lhes
transcendência. Aí, os territórios do imaginário ganhem um dimensionamento credível, pela
força semântica que exalam quanto o reverso, consequente da projecção ekfrástica dos
fragmentos poéticos de E.A.Poe.
Coda:
15
Edgar Allan Poe, “O País dos Sonhos”, Op.Cit., p.149
estando o sopro nos limites. A alma (através do sopro) toca o mais íntimo do íntimo, velando.
É a fronteira entre o interior e o exterior. Na tradição esotérica, o homem na sua tríplice
condição (corpo, alma, espírito) converge na imagem do carro atrelado + condutor +
carro/veículo…
Nas suas reflexões, à semelhança dos conteúdos poéticos, E.A. Poe aborda os fenómenos que
qualifica, denomina mais incisivamente de “psíquicos” do que de “intelectuais”,
estabelecendo-lhes a distinção (em termos epistemológicos). Menciona o que se sabe serem as
imagens hipnagógicas…as “impressões psíquicas” expondo que, por vezes, estas se
transferem para a memória, ficando assim disponíveis para a consciência…em toda a sua
densidade pulsional (diríamos). Em Marginalia (1849) reafirma o “psíquico” como oposto a
mental e em Princípio Poético, associa-o à alma. O valor do poema centrar-se-ia, na
capacidade e proporção de elevação e estimulação que, por necessidade psíquica, é efémera.
Os textos de E.A.Poe anunciam e corporalizam, já muito aprofundadamente mesmo nalguns
aspectos, uma tarefa de conquista gnoseológica, incidindo em territórios que então se
pressentiam mais do que estruturavam rigorosamente. Através de uma consciência pessoal, os
campos informulados e anónimos adquiriram, progressivamente, uma consistência reflexiva
inquestionável.
Em termos iconográficos o mundo estético estudado por Poe, reuniu conhecimentos
pluridisciplinares que seriam explorados posteriormente por diferentes autores, como se sabe.
A estética da vertigem, das bi-polaridades, das oposicionalidades, as dualidades…avançando
para uma capacitação hermenêutica por parte do espectador/leitor.
No caso dos três artistas aqui propostos enquanto externalizando conceito e reflexões
constitutivas do pensamento e criação de E.A.Poe, mais se poderia estender, particularizando
detalhes essenciais e peculiaridades ínfimas. Concluindo, assinalo:
Ficam as palavras do autor e as imagens e pensamentos dos 3 artistas, num processo que
apenas agora se inicia.