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Karel Kapac

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A MANCHA

(prosa)
Pela calçada espalhavam-se as poças e as luzes dos candeeiros. Ouvia-se o vento,
desesperado, a remexer os cantos à procura de folhas de árvores, que há muito já lá não
estavam. Apesar desta aparente prostração do abandono, sentia-se o trabalho íntimo das coisas,
em diálogo, aproveitando a ausência dos humanos para conspirar e planear o que haveria de
lhes acontecer no dia seguinte quando retomassem as suas vidas na ilusão de que só os seus
passos deslocam o mundo. Era um diálogo subtil, sorrateiro, e arrepiante, como um frio que
entra pela roupa adentro vindo não se sabe de onde. Mas nessa noite o diálogo foi de repente
interrompido. No início da rua instalou-se um súbito silêncio, como se houvesse tudo levantado
o ouvido para ouvir quem lá vem: o vento parou, um candeeiro desligou-se, e algumas poças
desapareceram, parecendo ter-se evaporado de uma só vez. E de seguida outro candeeiro,
outras poças, sem vento. Assim sucessivamente se formava um apagão com poucos metros de
diâmetro que se deslocava e anulava a rua, como um buraco negro que absorve tudo. Uns
segundos depois, voltavam a aparecer no seu lugar, por trás, purificadas pela mancha negra: os
feixes secos de luz, o sibilar da brisa, os reflexos inacabados da água morta no chão.
Vista do alto de uma janela, esta mancha poderia ser difícil de distinguir, de a diferenciar
de um momento na rua em que um candeeiro se desliga e o vento pára, como tantas vezes
acontece. Mas ‒ e as poças, que dizer das poças que desaparecem?
Bem, talvez não houvesse poças ali, pensou o homem atrás da janela.
Bem, talvez ele ainda esteja a dormir, pensamos nós.
De facto, ele próprio acabava por se questionar a si o mesmo. Há já algumas horas que
esperava, e a ansiedade fazia-o remexer a cabeça ao ponto de não conseguir bem ter a certeza
de nada. Podia estar a sonhar e não a olhar pela janela; esse simples acto, que tantas vezes
repetira, essa imagem que o seu cérebro registava, reproduzia e estampava, tornava-se agora
um nevoeiro de distorção à sua volta. Assim se lhe revelava que o passado realmente não
existia. Por mais dias que vivesse, nenhum se somava a outro. Só havia hoje, hoje, hoje: tentava
agarrá-los, acumulava calendários, fotografias, diários, mas abria o baú abarrotado e as coisas
transbordavam para fora, para o dia de hoje, onde tudo cabe.
Não podia então deixar de sentir que era a primeira vez que olhava por aquela janela. E ao
pensar estas palavras, alguns músculos espalhados pelo seu corpo contraíram-se, fazendo-o
mexer e andar de um lado para o outro: o seu corpo fugia para o lado oposto à janela e ele
trazia-o de volta. Incessantemente, percorriam quilómetros quase sem saírem do mesmo sítio.
Mas a mancha, se não estava ali, pertencia ao futuro, e se o futuro não existia, a mancha
também não. Era um paradoxo de Zenão: cada vez mais perto sem, no entanto, chegar. Olhava
e olhava para a rua, acumulando por cima da sua consciência os mais ínfimos sinais, que

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agarrava com todos os braços que conseguia encontrar e inventar, mas começavam também a
transbordar. Caiam. As coisas que conhecia estavam todas em sítios diferentes e via-se perdido
no meio delas: podia dizer-se que era isto a definição de um sonho.
Apesar disso, estava escrito, algures numa pintura rupestre nas paredes do seu cérebro, que
tinha de ficar ali. (Era a imagem que usaria se tivesse de explicar o seu medo.) Era demasiado
importante: este ano tinha de antecipar-se.
Mas quem é que tinha medo? Onde estava o medo? Não era o corpo, era outra coisa. Alma?
Que dizer da sua alma intermitente que por vezes deixava de se ver?
Bem, talvez não houvesse alma naquele homem, pensamos nós.
Bem, talvez ainda esteja a dormir, pensou a rapariga no interior da mancha, ao ver o
homem atrás da janela.
Estava compactada entre homens e mulheres muito antigos. Há tanto tempo cumpriam
aquela função, que naturalmente acabaram por se fundir uns com os outros, tornando-se feitos
da mesma matéria. Cada vez que, por acidente, tocava num deles, sentia uma textura estranha,
como uma massa ainda não cozida. Não os conseguia distinguir: via uma entidade só; ainda
assim, distinguia-se a si própria: era, portanto, uma intrusa.
O que foi que a levara a fazer parte daquilo? Nem ela conseguia ainda bem compreender.
Em sua casa, todos os anos se repetia a tradição: após o jantar, toda a família se ia deitar,
mas ela não chegava nunca a adormecer realmente: a antecipação combatia o sono, deixando-
a dormitando, entre o sonho e a vigília. Por isso, quando a melodia tétrica e insólita se
introduzia e reverberava nos seus ouvidos, que eram catedrais de carne, mesmo não sabendo
bem a qual dos dois estados pertencia, saltava logo da cama. Ia primeiro à janela, e só depois
se lembrava que tinha de descer as escadas. Ao chegar lá abaixo já o seu pai se encontrava atrás
da porta, a ouvir.

Ó almas que estais dormindo


Nesse sono tão profundo
Rezem um pai-nosso
Pelas almas no outro mundo

O resto da família ia-se juntando, de ouvido colado à porta, e assim ficavam todos, à escuta.
Quando davam pelo cântico ter acabado, os minutos de silêncio que sucediam estas palavras
haviam já passado. Durante esse intervalo, ela punha-se a imaginar o que seria o outro mundo
do Purgatório, e como seriam as almas, e arrepiava-se. Mas ainda mais arrepiante, para ela, era

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o momento seguinte, quando abriam a porta e uma ou mais figuras se subtraíam à massa
sombria e se aproximavam. Cumprimentavam-nos com alegria e amabilidade, pois eram
vizinhos; em seguida, o pai ou a mãe entregavam-lhes um saquinho com moedas e, após uma
breve troca de palavras, as figuras voltavam a dissolver-se no meio da mancha. Como podiam
movimentar-se entre um lugar e o outro com tanta facilidade? Aproximavam-se com um sorriso
de quem estava apenas a passar e encontra alguém conhecido, de quem sempre foi tal ou tal
pessoa da vila durante aquela noite; e depois voltavam para dentro daquilo que não era bem
humano; iam e vinham inconscientes da insólita mudança de estado que lhes acontecia. Falar
às almas e depois falar aos homens, como se fossem amigos de países diferentes. Alma – seria
apenas uma palavra?
No último ano convencera-se disso: de que aquelas pessoas não se apercebiam bem do que
estava a acontecer. Olhou à volta, e a família, ainda que com emoção, também aceitava tudo
com naturalidade. Só ela se apercebia. E no próprio cântico as palavras perdiam-se para dar
lugar a uma nova linguagem. Estavam a chamá-la. Mas não eram as pessoas quem a chamava.

À porta das almas santas,


Bate Deus a toda a hora.
As almas lhe responderam:
‒ Ó meus Deus que quereis agora?
Quero que deixeis o mundo,
E que venhais para a Glória.

E agora ali estava ela, do lado de dentro, a chamar também. Que estou eu aqui a fazer?,
pensou enquanto cantava. Sentia-se como uma espiã porque não estava ali a cumprir nenhuma
tradição, antes viera ‒ dizia ela para si ‒ tentar compreender as pessoas e o fenómeno, como é
que aquilo acontecia, e ainda que se esforçasse, não pertencia de todo à mancha. Mas, na
verdade, não conseguia perceber o que é que estava realmente a fazer: era uma espiã apanhada
numa armadilha. Haviam chamado por si: ali estava ela: e agora? Até que avistou o homem
atrás da janela, ao fundo da rua, um sonâmbulo de olhar nervoso à procura de algo. Embora
estivessem já perto da sua casa e ele perscrutasse toda a rua, não olhava para eles, não os via.
Pouco a pouco se iam aproximando da sua casa e de exortar as almas que ali havia. Mas que
alma ali havia? Aquele homem por trás da janela era tão concreto, tão material: estaria num
sono profundo, à espera que a alma caísse em si?, ou imerso no sonho a tentar resgatá-la? Via-
se absorvida por esse homem estranho, suspenso, como o personagem de um conto que ainda

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está a meio e não se sabe bem quem é e para onde vai. E então, de súbito, todo o seu corpo
despertou ao aperceber-se do que poderia ser a resposta à sua pergunta. Mas estavam já debaixo
da janela: era altura de começar o cântico:

Acorda ó pecador
Acorda não durmas mais
Olha que se estão queixando
As almas dos vossos pais.

Mas o homem não acordava de qual fosse o seu estado. Estava paralisado, e deu por si a
observar de longe o seu corpo abandonado, e este não apercebia o coro negro, pelo qual tanto
esperara, ali, a poucos metros de si. O seu olhar, os seus ouvidos, toda a sua atenção estavam
ainda fechados, imersos num outro ponto longínquo, no seu peito, que era algo frágil e posto a
descoberto que tinha de proteger a todo o custo. Que ponto era esse? Reparou que o seu coração
despertava, alvoroçado, e começava a bater com força, tentava expandir-se ao máximo, mas
não conseguia: algo interrompia a sua expansão, algo duro. A mão acordou para ver o que era
e ao chegar ao peito sentiu um objecto quadrado no bolso interior do casaco. Tirou para fora
uma pequena caixinha de madeira. E, logo após ter pegado nela, o coração bombeou tudo
quanto podia, e a certa altura já não era sangue: até onde chegassem as veias se alastravam
todas as memórias associadas à caixinha.

Acordai, se estais dormindo,


Desse sono tão profundo
Que à porta vos estão pedindo
Prás almas do outro mundo.

Tinha sido a sua mãe a oferecer-lhe, e antes tinha pertencido ao seu avô, ao bisavô, por aí
fora, gerações e gerações atrás (até ao tempo em que o homem havia começado a trabalhar a
madeira, imaginava ele desde pequeno). Era apenas um bloco minúsculo, não trabalhado, não
especialmente cuidado ou preservado, mas duro e intacto, como uma pedra sagrada: havia
sobrevivido vários séculos por ter passado despercebido aos bichos e a tudo o que deteriora a
madeira.
‒ Dentro desta caixa está o teu segredo e da nossa família. É uma coisa que irás querer
saber um dia ‒ tinha-lhe dito a mãe, quando ele cumpriu 18 anos. A frase tinha provavelmente

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sido transmitida pelo seu pai, ainda que o tenha dito com toda a naturalidade, como se a história
começasse ali, naquele dia, entre eles os dois.

As almas do outro mundo


Elas nos mandam pedir,
Dai esmola, se puderes
Que elas não podem cá vir.

A caixa não tinha nada lá dentro. Muitas vezes a voltava a abrir, na esperança de não ter
visto bem, ou que a sua mãe tivesse voltado para lá colocar alguma coisa; ou, com o
conhecimento que havia acumulado ao longo da vida, podia ser que então já conseguisse ver
alguma coisa lá dentro. Mas permanecia um bloco mudo, impassível, vazio.
E o coração, ao cumprir a sua parte, voltou ao esquecimento. Era a caixa que tinha de
proteger. Mais uma vez, abriu-a.

As esmolas que nos dais


Não penseis que as comemos;
Elas são pra dizer missas
Pelas almas que lá temos.

Seguiu-se o silêncio. Será que ele tinha ouvido alguma coisa?, pensou a rapariga. O homem
tinha a cabeça baixa e olhava para qualquer coisa nas mãos. Será que não iria descer? Era agora
o momento decisivo, era por isso que estava ali, tinha de agir. Voltou a pensar nas almas no
Purgatório, mas o que se interpunha visualmente era o rosto vazio do homem. Até que uma das
pessoas à sua volta se adiantou e dirigiu à porta.
‒ Não vale a pena. Esse nunca abre… ‒ saiu uma voz de entre a mancha.
‒ Ó da casa! ‒ gritou o homem junto à porta, e começou a bater nela com o punho, decidido
a fazê-lo sair pela primeira vez. Ficaram um momento à espera; o homem voltou a bater, mas
sem resultado. Imperava do outro lado um silêncio ainda mais profundo.
Voltou para dentro da mancha, que retomou a marcha em direcção a outra rua. Ali não
havia salvação. E a rapariga viu-se arrastada por essa força antiga da tradição; mas não podia,
não podia ser assim, não podia ser só uma tradição, um teatro bizarro que, por não se conseguir
explicar, estava fora do controlo dos seus agentes. Tinha de ser ela própria a sair dali, a rasgar
aquele tecido ‒ era através dela que algo poderia acontecer. Foi então que uma imagem lhe

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irrompeu em flash na sua mente: um homem de neandertal, perseguido por um grupo de outros
homens, atravessa um rio empunhando uma tocha, que é o único fogo possuído pelo embrião
da humanidade. Era o fogo do Purgatório e no seu interior ardiam as primeiras almas desse
embrião. E o homem, o primeiro herói, no seu esforço épico, com todos os seus músculos,
mantinha o fogo vivo e a salvo. Assim saltou ela para fora da mancha.
‒ Ó menina, onde é que vai?
Mas já ela estava a meio caminho da casa que haviam deixado para trás.
Do alto da janela o homem reparou na figura que corria. Reparar é na verdade um
eufemismo: o seu olhar nasceu. E era tão intensa a visão, tão ofuscante, que não conseguia
sequer perceber o rosto que lhe pertencia. Era uma chama em movimento, dentro da forma de
um corpo.
Seria ela? A sua mãe, que sempre desaparecia naquelas noites de sexta-feira para cumprir
a tradição? Quando ela morreu, ainda ele era criança, pensou que tinha partido para ir cantar a
todas as casas do mundo e que regressaria quando já não houvesse mais. Por isso todos os anos
esperava, atrás da janela, que ela regressasse. Mas desde então não conseguia distinguir a
mancha e o seu canto. De tanto a imaginar, de tanto ressoarem aquelas vozes nos seus ouvidos,
era como se as não ouvisse; interior e exterior confundiam-se: se o canto ressoava de verdade
lá fora na rua, não era em nada diferente do que o que havia na sua mente, apenas o amplificava,
aumentando o seu torpor. Ver a mancha lá em baixo era ainda mais ansiar por ela; embora não
o soubessem, aqueles homens e mulheres perpetuavam o limbo da sua dor. Sempre que se dava
conta de que algo tinha realmente acontecido corria a abrir a porta, mas já não estava lá
ninguém.
Ao ver então pela primeira vez esse sinal de vida, o homem acordou. Valera a pena toda a
antecipação, toda a espera. Distinguia claramente as duas entidades: a mancha e a mulher ‒ o
fogo e as trevas. Não podia ter outra reacção que não fosse descer as escadas a correr e abrir a
porta.

***

‒ Era um fogo enorme.


‒ Enorme não era… Era só no espaço da porta. Mas era muito forte. Devia ser da luz,
parecia maior.

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‒ Sim, era isso. E não se distinguiam… Mal o homem abriu a porta, nem deu para o ver:
passado um segundo, nem isso, e era só fogo.
‒ A rapariga também, desapareceu.
‒ Desapareceu como?
‒ Desapareceu, mesmo. Assim!
‒ Pois, e ele também.
‒ Bem, não sabemos…
‒ Sim…
‒ O que eu queria dizer é que não dava para ver homem ou mulher: era só uma figura, uma
coisa, dentro das chamas.
‒ Depois tirámos logo todos o capote para pôr por cima, a ver se o apagávamos.
‒ E a seguir foi muito estranho. Não conseguíamos estar perto do fogo, era demasiado
forte.
‒ Não era só isso! Pelo menos eu… senti que não me podia aproximar daquilo, não era só
por me poder queimar. Era um… que tínhamos de respeitar, não sei. Olha, quase como se
aquilo não fosse uma coisa má!
‒ Sim, um pouco. Não sabíamos bem o que fazer. Ficámos para ali à espera, e depois…
foi tão estranho, comecei a ouvir uns barulhos bizarros, parecia mesmo que eram as almas que
estavam ali no fogo a bradar. Então pus-me a cantar com elas, era a única coisa que podia fazer.
Mas nem imaginas!, olho à volta e vejo que estão todos a cantar também ‒ aquele barulho
éramos nós! E não sei se era daquilo ser muito forte ou do medo ou o que era, mas cantava
cada um para seu lado, todos numa nota diferente. Até me deu uma tontura!
‒ Comigo foi a mesma coisa. Também ouvi uma coisa horrenda. E tive de começar a
cantar.
‒ Era uma cacofonia.
‒ Ca-co-fo-nia…. Cacos a cantar?
‒ Ah, meu filho, era quase isso.
‒ E depois, que aconteceu?
‒ Quando o fogo apagou, pegámos outra vez nos capotes.
‒ Era um cheiro que não se podia. Cheirava a almas queimadas.
‒ Sempre soube que aquela casa não era normal. Havia ali qualquer coisa de mágico, ou
diabólico.
‒ Diabo ou não, só sei que não havia homem nem mulher.
‒ Morreram queimados?!

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‒ Não te sei dizer o que lhes aconteceu. Quando tirámos os capotes, tudo cheio de fumo,
só estava lá uma criança.
‒ Uma criança??
‒ Sim.
‒ Queimada?
‒ Estava tão branquinha como neve. Mais queimados estávamos nós.
‒ Depois olhou para nós, tinha uma caixinha de madeira na mão, abriu a caixinha e
mostrou-nos.
‒…
‒ Como é que foi a seguir?...
‒ Olha, a seguir levámos a criança connosco e continuámos.
‒ Pois foi, ainda nos faltavam muitas ruas.
‒ E com aquele cheiro e com o fumo tivemos de deixar os capotes no terreno. Fomos assim,
com a roupa que tínhamos por baixo.
‒ Estava um frio horrível, mas era como se não sentíssemos.
‒ A verdade é que nunca ninguém ficou doente por causa disso.
‒ Aquecíamo-nos a cantar. Acho que a partir daí começou tudo a fazer mais sentido.
‒ Sim, antes disso andávamos disfarçados. Parecia que não éramos nós que cantávamos.
‒ É mais humano assim. Sentimo-nos mais vivos! Pronto, e foi assim que deixámos de
usar capotes.
‒ E quem é que era essa criança?
‒ Era…
‒ Acho que já lhe podemos contar.
‒ Meu filho… A criança eras tu.

‒ Só mais uma coisa: o que é que estava dentro da caixinha? ‒ pergunta o leitor.
‒ Toma. Abre e vê.

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