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Maio, M. C.

ARTIGO / ARTICLE

A Medicina de Nina Rodrigues: Análise de uma


Trajetória Científica
Brazilian Physician Nina Rodrigues: Analysis of a Scientific Career

Marcos C. Maio1

MAIO, M. C. Brazilian Physician Nina Rodrigues: Analysis of a Scientic Career. Cad. Saúde
Públ., Rio de Janeiro, 11 (2): 226-237, Apr/Jun, 1995.
One of the most productive ways of investigating the history of Brazilian medical practice at the
turn of this century is to focus on the fruitful and ambiguous careers of those physicians that
played an important role in the changes affecting the medical field at that time. This paper aims
at analyzing the scientific career of physician-anthropologist Raimundo Nina Rodrigues, taking
as its conceptual basis Pierrre Bourdieu’s notion of “scientific field “. The paper’s point of
departure is the notion that the medical field is a space of confrontation that is structurally
determined by previous conflicts in which physicians try to monopolize claims to scientific
authority and competence. Nina Rodrigues’ medical profile appears in this context as a precise
indicator of the process of specialization and competition that took place during that period.
Key words: History of Medicine; History of Anthropology; History of Science; Legal Medicine

INTRODUÇÃO 1982; Schwarcz, 1993), que investigam os estrei-


tos vínculos entre Nina Rodrigues e a medicina
Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) é con- brasileira do final do século XIX. Portanto, este
siderado por historiadores e memorialistas da é o tema do presente artigo que tem por objetivo
medicina no Brasil como o principal responsável abordar a trajetória científica de Nina Rodri-
pela elevação da medicina legal a condição de gues definida como a série de posições institu-
especialidade e disciplina científica (Coni, 1952; cionais sucessivamente ocupadas por ele como
Peixoto, 1957; Santos-Filho, 1991; Azevedo, um agente singular do campo médico. Ao utilizar
1943). O médico maranhense, além do pioneiris- o conceito de campo, tomo por base a definição
mo de seus estudos em antropologia física, foi de campo científico de Pierre Bourdieu. Para o
alçado a condição de fundador de uma escola de sociólogo francês:
pensamento, a “Escola Nina Rodrigues” (Peixo-
to, 1931; Ramos, 1934). “O campo científico, enquanto sistema de
No âmbito das ciências sociais, Nina Rodri- relações objetivas entre posições
gues tornou-se presença obrigatória nas investi- adquiridas (em lutas anteriores), é o lugar,
gações etnográficas sobre a cultura afro-brasi- o espaço de jogo de uma luta
leira e nas análises sobre o pensamento social concorrencial. O que está em jogo
brasileiro, especialmente as relações entre raça, especificamente nessa luta é o monopólio
ciência e nação na República Velha. da autoridade científica definida, de
Afora as “leituras edificantes” sobre o médi- maneira inseparável, como capacidade
co-antropólogo (Coni, 1952; Lins e Silva, 1945; técnica e poder social; ou, se quisermos, o
Lima, 1980) são poucos os trabalhos (Corrêa, monopólio da competência científica,
compreendida enquanto capacidade de
falar e de agir legitimamente (isto é, de
1
Departamento de Pesquisa, Casa de Oswaldo Cruz,
maneira autorizada e com autoridade), que
Fundação Oswaldo Cruz. Avenida Brasil, 4036, Rio é socialmente outorgada a um agente
de Janeiro, RJ, 21040-361, Brasil. determinado”. (Bourdieu, – 1983: 122-123)

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Medicina Legal

As batalhas que se desenvolvem pela domi- tratégia de sucessão, aquela que assegura “ao
nação no interior do campo científico são en- término de uma carreira previsível, os lucros
tre agentes que ocupam lugares sociais previ- prometidos aos que realizam o ideal oficial
amente estabelecidos no campo, à semelhan- da excelência científica pelo preço de inova-
ça de qualquer agente na sociedade. Esses ções circunscritas aos limites autorizados”
atores são informados por interesses, objeti- (Bourdieu, 1983: 138).
vando a maximização da autoridade científica
mediante o reconhecimento dos seus pares.
Esta constante expectativa de valorização do MEDICINA BAIANA: DO IMPÉRIO
seu trabalho através do intenso conflito inter- AO INÍCIO DA REPÚBLICA
pares é o que caracteriza a relativa autonomia
do campo científico em relação a outros cam- Ao longo do Império, formar-se em direito ou
pos sociais. medicina era sinômino de status, uma estratégia
O alvo da contenda, que estimula cada agen- de preservação ou ascensão social e um passa-
te do campo científico a lutar pelo reconhe- porte de entrada no mundo da política. Na Bahia,
cimento de seus produtos e de sua autoridade segundo Gomes (1957), havia uma divisão de
de produtor legítimo, é o poder de impor uma classes nas opções acadêmicas a serem segui-
definição de ciência, ou seja, o poder de defi- das. Enquanto a elite econômica, predominante-
nição do conjunto de problemas, dos métodos, mente rural, preferia a faculdade de direito, as
das teorias que podem ser consideradas camadas médias e subalternas escolhiam a me-
científicas e que estejam em consonância com dicina. Nina optou pela segunda carreira. Sua
seus interesses específicos. trajetória acadêmica esteve balizada por dois
Neste sentido, uma carreira científica é defini- marcos fundamentais: a Faculdade de Medicina
da fundamentalmente “pela posição que ela ocu- da Bahia (FMBA) e a denominada “Escola Tro-
pa na estrutura do sistema de carreiras possí- picalista Baiana” (ETB).
veis” (Bourdieu, 1983: 133). Ela é a série de posi-
Criada em 1832, a FMBA veio a substituir a
ções sucessivamente ocupadas por um agente
antiga Escola Médico-Cirúrgica da Bahia fun-
no campo científico que
dada em 1808 com a chegada da Corte de D.
João VI ao Brasil. Recursos escassos, exces-
“é sempre o lugar de uma luta, mais ou siva centralização administrativa sob responsa-
menos desigual, entre agentes bilidade do Governo Imperial, o que reduzia
desigualmente dotados de capital drasticamente a autonomia da Faculdade, des-
específico e, portanto, desigualmente preparo de professores e alunos, instalações
capazes de se apropriar do produto do precárias e arcaicas, carência de funcionários,
trabalho científico que o conjunto dos falta de equipamentos, baixos salários, eram
concorrentes produz pela sua colaboração registros recorrentes nas “Memórias Históri-
objetiva ao colocarem em ação o conjunto cas da Faculdade de Medicina da Bahia”. Este
dos meios de produção cientifico quadro gerava um jogo contraditório de
disponíveis”. (Bourdieu, 1983: 136) contestação verbal e acomodação burocrática
(SantosFilho, 1991). Acrescente-se o fato a-
Com base nesses pressupostos teóricos, pre- pontado por grande parte da historiografia da
tendo acompanhar os caminhos trilhados por presença de um ensino “teórico, livresco,
Raimundo Nina Rodrigues no período compre- declamatório (...) [responsável pelo] desca-
endido entre sua admissão na Faculdade de so pelo ensino prático, de que se descurou
Medicina da Bahia em 1882, até sua conversão até a segunda metade do século XIX, supri-
definitiva à medicina legal, com a ocupação da am a falta de laboratórios pela explanação
cátedra desta disciplina, em 1895. de sistemas e pela discussão de doutrinas”
Proponho demonstrar que dentre as estraté- (Gomes, 1957: 33).
gias possíveis no campo médico, a de Nina Ro- Recentemente, Edler (1992), Ferreira (1994) e
drigues pode ser classificada como uma es- Ferreira et al. (1995) procuraram relativizar de-

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terminadas dicotomias presentes em discursos A origém da ETB está associada a três mé-
médicos do século XIX e em parcela expressi- dicos estrangeiros: o português de origem ale-
va da literatura vigente (Santos-Filho, 1991; mã, Otto Wucherer (1820-1875); o escocês John
Stepan, 1976; Coni, 1952), tais como: ensino L. Paterson (1820-1882) e o português José
retórico versus ensino prático, medicina Francisco Silva Lima (1826-1910). A visibilida-
pré-científica em contraposição a uma medici- de desse grupo estava calcada, basicamente,
na científica. Sem desconsiderar as mazelas no diagnóstico preciso das epidemias que, com
vividas pela medicina oficial, estes autores freqüência, assolavam Salvador; no trabalho
apontam não só para o caráter político dessas que desenvolviam no Hospital de Caridade da
críticas das elites médicas no sentido de sen- Santa Casa de Misericórdia, nas “sessões mé-
sibilizar o governo Imperial, mas também res- dicas”, onde eram debatidos casos clínicos e
gatam uma importante tradição clínica, de for- nos artigos publicados na Gazeta Médica da
te influência francesa, vigente na primeira me- Bahia, publicação fundada pelos “tropicalis-
tade do século XIX. tas” em 1866, e que veio a se constituir na
De qualquer modo, os limites institucionais principal revista científica nacional do século
do ensino médico baiano suscitou, no final XIX (Peard, 1990).
dos anos 60, a constituição de um grupo que Mas o sucesso de tal empreendimento não
seria posteriormente denominado de Escola deve ser atribuído somente à competência ci-
Tropicalista Baiana (ETB) (Coni, 1952; entífica dos médicos da ETB. A conjuntura
Santos-Filho, 1976; Peard, 1990; Oliveira, política dos anos 70 favorecia a politização
1982). Santos-Filho (1976: 478) considera que de diversas demandas da sociedade civil. Al-
estes médicos, ao buscarem guns membros da ETB, além de médicos, eram
políticos, o que não destoava da tradição da
“o reconhecimento de doenças e afecções época. Muitos deles eram republicanos e
reinantes em outros países e que sensíveis ao “bando de idéias novas” (Silvio
grassariam no Brasil, repetiram pesquisas Romero) do darwinismo, positivismo, materi-
pela microscopia, repetiram exames histo e alismo, que aportavam na antiga capital do
anatomo-patológicos, observaram a Brasil colonial.
sintomatologia, conseguiram, por vezes, Nos anos 80, após a era das reformas de en-
acrescentar novos dados à etiologia, à sino iniciadas na década passada (Edler, 1992),
própria sintomatologia e à terapêutica, e os “tropicalistas” foram quase totalmente ab-
confirmaram, em primeira mão, a presença sorvidos pela própria Faculdade de Medicina.
de entidades mórbidas da chamada Alguns de seus membros tornaram-se pro-
patologia tropical. Foram pioneiros. fessores e, mais tarde, diretores da instituição
Demonstraram, em qualquer dúvida, a de ensino oficial.
incidência de diversas e graves doenças. Este período registra um momento de inflexão
São perfeitas as suas observações na trajetória de profissionalização da medicina
considerando-se os conhecimentos que “acadêmica”. Foi a partir de então que emergiu
possuíam e o confinamento científico em uma nova representação sobre os fundamen-
que viviam”. tos do saber médico, expressa pela noção de
“medicina experimental”. Ao mesmo tempo em
Projeto de medicina nacional (Peard, 1990) sin- que se redefinia o estatuto de cientificidade em
tonizado com o conhecimento científico interna- moldes universalistas, elaborava-se um progra-
cional na área da parasitologia, a ETB lutou pela ma de pesquisas orientado para a nosologia e a
afirmação da singularidade brasileira no terreno terapêutica nacionais. Simultaneamente, a re-
das pesquisas das doenças tropicais sem, com forma do ensino médico consolidada pelos no-
isso, ser capturada pela armadilha determinista vos estatutos das faculdades de medicina do
tanto climática quanto racial. Num primeiro mo- Império (1884), representou uma importante vi-
mento, sua atuação se deu à margem da Facul- tória de parcelas da categoria médica, com es-
dade de Medicina da Bahia. pírito mudancista, no esforço orientado para a

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emancipação da formação profissional, até en- base em alguns estudos (Lima, 1980; Corrêa,
tão sujeita à tutela exercida pela burocracia im- 1982), traçar um perfil da trajetória do “médi-
perial (Ferreira et al., 1992). co-antropólogo”. Nina Rodrigues nasceu no
As mudanças tiveram resultados diferencia- interior do Maranhão, zona algodoeira, em 4
dos nos dois principais centros médicos do país. de dezembro de 1862. Seu pai, Franscisco So-
O Rio de Janeiro, por estar num processo de ins- lano Rodrigues, era proprietário de terras, en-
titucionalização da medicina mais avançado que quanto sua mãe, Luiza Rosa Solano Rodrigues,
o da Bahia e ser a sede do poder central conse- seria descendente de uma das cinco famílias de
guiu extrair maiores recursos do governo imperi- judeus sefarditas que chegaram às terras mara-
al. Na Bahia veio a ocorrer um descompasso en- nhenses, fugidas de perseguições político-religi-
tre as mudanças legislativas e a alocação de ver- osas da Península Ibérica (Lima, 1980).
bas para o sucesso das transformações propos- Criado em fazenda, entre sete irmãos, Nina
tas. A Gazeta Médica da Bahia denunciou com iniciou sua vida escolar na sede do município
freqüência o tratamento desigual exercido pelo de Vargem Grande, Maranhão, onde se situa-
Segundo Reinado. vam as propriedades da família. No início da
Mesmo assim, os “tropicalistas” consegui- década de 1870 transfere-se para São Luís,
ram criar uma tradição médica na Bahia, em onde fez o curso de humanidades no Seminá-
consonância com os ensinamentos contempo- rio das Mercês. Em seguida fez o curso
râneos da medicina experimental européia, com preparatório (correspondente ao curso secun-
ênfase nas investigações das então denomina- dário) no Colégio São Paulo. Em 1882 ingres-
das doenças tropicais. O surgimento e posterior sou na Faculdade de Medicina da Bahia, onde
inserção da ETB na Faculdade de Medicina da permaneceu até o início do quarto ano. Em 1885
Bahia é um indicador preciso das mudanças que transferiu-se para a Faculdade de Medicina do
ocorreram na segunda metade do século XIX, Rio de Janeiro, concluindo o quarto ano. Em
período notabilizado pelo processo de estrutu- 1886 retorna à Bahia onde freqüenta o quinto
ração do campo médico brasileiro. ano. Foi neste período, quando estagiou na
Desse modo, a Bahia presenciou na segun- Santa Casa de Misericórdia, espaço privilegi-
da metade do século XIX um vigoroso proces- ado de atuação da ETB, que Nina estreitou
so de estruração do campo médico com as re- suas relações com o então professor de clíni-
formas de ensino (1879 e 1884), com o aumento ca médica e importante político do Império, Al-
da visibilidade do periodismo médico (Gazeta meida Couto (Mattoso, 1992). Além disso, par-
Médica da Bahia, Gazeta Acadêmica, Revista ticipou da direção da Gazeta Acadêmica
Médico-Legal da Bahia) e a criação de asso- (1885-1887), revista dos estudantes da Faculda-
ciações profissionais (Sociedade Médico-Farm- de de Medicina da Bahia, inspirada na Gazeta
acêutica de Beneficência Mútua, Sociedade Médica da Bahia.
Médica da Bahia, e Sociedade Médico-Legal A Gazeta Acadêmica, como outros periódi-
da Bahia). Esta dinâmica institucional não só cos desse tempo, era não só um importante ins-
refletia a preocupação com a delimitação da trumento de formação acadêmico-científico, no
esfera de atuação da prática médica em opo- qual publicavam-se casos clínicos observados
sição aos considerados curandeiros e charla- em hospitais e clínicas, estudos científicos reali-
tães (Rodrigues, 1899), mas também estava em zados no Brasil ou no exterior, e artigos voltados
sintonia com o processo de especialização que para o ensino médico (Gazeta Acadêmica, 1885),
se iniciava no interior da categoria médica na- mas também um degrau importante na ascensão
quele momento. profissional, um canal de socialização para a fu-
tura carreira docente.
Em 1886 voltou ao Rio de Janeiro para con-
A TRAJETÓRIA DE NINA RODRIGUES cluir o curso de graduação e elaborou sua tese
de doutorado, sobre três casos de paralisia pro-
Apesar de não haver uma biografia sobre gressiva cujo o título era Das Amiotrofias de
Raimundo Nina Rodrigues, é possível, com Origem Periférica, defendida no final de 1887.

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Ao longo do ano de 1888, clinicou em São que se realizaram em diferentes Estados, supera-
Luís e escreveu uma série de artigos sobre higi- ram a marca regional da medicina dando-lhe
ene pública com atenção especial para o regime amplitude nacional ao aproximar grupos médi-
alimentar inadequado da população maranhen- cos do Rio de Janeiro, Bahia, São Paulo e Minas
se. Nesta ocasião, começou a colaborar com a Gerais (Ferreira et al., 1995).
Gazeta Médica da Bahia, mediante um conjun- Em 1891, com a Reforma Benjamin Constant,
to de trabalhos acerca da lepra no Maranhão. Nina foi transferido para a Cadeira de Medicina
Nesse extenso trabalho introduziu um quadro Legal, como professor-substituto do catedráti-
classificatório das raças no Brasil. co Virgilio Damázio. No mesmo ano tornou-se
Estudo clínico no doutoramento, atenção redator-chefe da Gazeta Médica da Bahia,
com a alimentação, uma das variáveis interve- escreveu artigos na Revista Brasil-Médico,
nientes na relação saúde-doença e o estudo de o mais recente órgão da imprensa médica do
uma doença tropical, a Lepra, indicavam que Rio de Janeiro, criado em 1887, e foi nomeado
Nina Rodrigues cumpria o programa da Escola para a Congregação da Faculdade de Medi-
Tropicalista Baiana. cina da Bahia.
No início de 1889, prestou concurso para a Em 1892, Nina Rodrigues participa da comis-
Faculdade de Medicina da Bahia, tornando-se são de reforma dos estatutos da Faculdade, além
adjunto da 2a Cadeira de Clínica Médica, cujo de debater, ao longo do ano, um projeto em an-
titular era o Conselheiro José Luiz de Almei- damento no legislativo estadual a respeito da
da Couto, que viria a tornar-se sogro de Nina organização dos serviços sanitários no Estado.
Rodrigues. O casamento revelou-se uma É desse período a publicação de artigos que re-
importante estratégia de ascensão social (Mi- velam a influência das doutrinas do médico itali-
celi, 1979). ano Cesare Lombroso.
Entre 1888 e 1892, escreveu uma série de
artigos na Gazeta Médica da Bahia sobre epi-
MEDICINA LEGAL: EM TEMPOS
demias (abasia coreiforme, influenza, beribéri,
DE CONVERSÃO
febre amarela), casos clínicos, higiene pública
e revisitou a questão racial no país, já associ-
A conversão definitiva de Nina Rodrigues
ada à medicina legal, com o artigo Os Mesti-
à medicina legal data da publicação de As Ra-
ços Brasileiros.
ças Humanas e a Responsabilidade Penal no
Em 1890, participou, ao lado dos Drs. José
Brasil (1894). Este livro foi dedicado a médi-
Francisco da Silva Lima (presidente do Con-
cos e juristas consagrados à época no campo
gresso) e Manoel Victorino Pereira (orador ofici-
da medicina legal, como: Cesare Lombroso,
al), da comissão organizadora do 3o Congresso
Enrico Ferri, Garófalo, Alexandre Lacassagne
Brasileiro de Medicina e Cirurgia realizado em
e o Dr. Corre (Rodrigues, 1957). Por conta da
outubro, em Salvador. Patrocinado pela Socie- influência dos arautos da antropologia crimi-
dade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro nal do final do século XIX, Nina se identifica-
(SMCRJ) em conjunto com a Sociedade Médica rá também com certos postulados de Francis
da Bahia, este Congresso, junto com os demais, Galton, criador de uma teoria social posterior-
vieram a se constituir num importante fórum ci- mente denominada eugenia, e do social darwi-
entífico e político em que foram decididas impor- nismo (Castañeda, 1994).
tantes controvérsias a respeito da saúde públi- Já haviam se passado quase vinte anos des-
ca. Além disso, os congressos médicos repre- de a impactante publicação de L’Uomo
sentaram uma estratégia bem-sucedida de asso- Delinquente de Cesare Lombroso, em 1876. A
ciações médicas não oficiais como a SMCRJ, o teoria lombrosiana não seria somente uma vaga
Brazil Médico, a Gazeta Médica da Bahia, a Soci- proclamação de que o crime é hereditário, mas
edade Médica da Bahia na luta contra a “apatia e uma teoria evolucionista específica baseada
o indiferentismo” (Brazil Médico, 1887) que rei- em dados antropométricos. Criminosos seri-
nava nas instituições oficiais. Por último, é im- am casos de atavismo evolutivo em nosso
portante destacar que os congressos médicos meio, germes de um passado ancestral que

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Medicina Legal

permaneceriam adormecidos em nossa heredi- No Brasil, a cadeira de medicina legal sur-


tariedade. Em alguns indivíduos desafortuna- giu no período de transformação das Acade-
dos, o passado tornar-se-ia presente. A iden- mias Médico-Cirúrgicas do Rio de Janeiro e da
tificação de “criminosos natos” poderia ser re- Bahia em Faculdades de Medicina, em 1832.
alizada através da apreciação dos seus sinais Segundo Santos-Filho (1991: 530), “o ensino
anatômicos. O atavismo presente neles seria prático dessa matéria só se verificou em fins
tanto físico quanto mental, sendo os primei- do século XIX Até então foi totalmente de
ros os mais importantes. Comportamentos cri- natureza teórica, e versou sobre toxicologia,
minosos poderiam também aparecer em ho- perícias, autópsias, embalsamento, atestados
mens normais, contudo a anatomia teria os ins- para fins jurídicos e a responsabilidade pe-
trumentos necessários para revelar o “crimi- nal dos médicos”.
noso nato”, não escapando, assim, das carac- De início, como historia Peixoto (1914: 502),
terísticas herdadas (Gould, 1991). “a matéria era vinculada à seção das ciências
Durante duas décadas, as idéias de Lombro- médicas. Com a reforma de 1854, ocorreu a
so foram coroadas de êxito, como se verifica pe- transferência da cadeira para a seção de ciên-
las diversas edições de suas obras e a publi- cias acessórias, dotando-a de um laboratório
cação de artigos. O sucesso do médico italiano de Toxicologia e um preparador”. Magalhães
chegou ao auge em 1885, com o Primeiro Con- (1932) apresenta o seguinte quadro da medicina
gressso Internacional de Antropologia Criminal, legal na Faculdade de Medicina do Rio de Janei-
reunido em Roma, quando “afirma sem rodeios ro, nos anos cinqüenta do século passado: “Os
que sua teoria do criminoso nato predisposto laboratórios de Química Mineral e de Medici-
ao crime por sua constituição física não é pas- na Legal estão baldos de recursos, à mingua de
sível de discussão por ser o resultado da obser- aparelhos, faltando-lhes não só os mais moder-
vação positiva dos fatos” (Darmon, 1991: 37). nos como os mais essenciais” (p. 59). Na Bahia
A cientifização do fenômeno criminológico o cenário não era distinto.
inaugura uma febre de medições, de exercícios Até o final do século XIX a cadeira de medici-
antropométricos, de invenções de instrumentos na legal não gozava de prestígio. Não muito di-
de aferição jamais vistos. Uma década após o sur- ferente de outras matérias, seu ensino carecia da
gimento de O Homem Criminoso aparece um novo parte investigativa. Labra (1985) cita os relatóri-
universo de publicações e a realização de vários os da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro
congressos. Como observa Darmon (1991: 84): (FMRJ), transcritos por Bruno Lobo, que
“Através dessas revistas e desses congressos,
manifesta-se o sonho de uma grande antropolo- “mostram que as dificuldades por que passou
gia criminal de essência pluridisciplinar. Antro- a medicina legal foram semelhantes às da
pólogos, biólogos, psiquiatras, médicos-legistas, higiene, no sentido de que sempre lhe
sociólogos, juristas participam do movimento”. faltaram recursos técnicos para as análises,
A medicina legal, com toda sua bagagem ins- as demonstrações e a pesquisa, tendo o
trumental de aferição e classificação, através da problema adicional de não poder contar
craniometria, da antropometria, da frenologia para as autópsias senão com cadávares de
ofereceu a mediação técnica e empírica que ou- negros, indigentes, loucos e anti-sociais”
tras áreas mais gerais do saber médico não (Labra apud Lobo, 1985: 324).
possuíam em seu tempo. Pierre Darmon, avalia-
ndo a medicina na França na passagem do sé-
culo XIX para o XX, afirma que “se a cardio- Peixoto (1914: 502) registra os avanços ocor-
logia, a ginecologia, a laringologia e outras ridos nos anos 80 e 90, quando:
especialidades ainda est[avam] na fase de
improvisação, a medicina legal pode ser consi- “a reforma de ensino de 1882 ampliou o
derada, graças ao emprego das novas técni- quadro técnico e além do lente catedrático,
cas, a primeira especialidade médica digna do adjunto, do preparador, do ajudante de
desse nome” (Darmon, 1991: 232). preparador, deu ao laboratório um

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conservador e um servente. Em 1891 outra Este livro revela a crescente influência, desde
reforma modificava o ensino: a Medicina o final do século XIX, da medicina no campo do
Legal perdia a Química Toxicológica, que foi direito. O foco privilegiado desta confluência foi
ter à cadeira de Química Analítica; o ensino a questão penal e mais especificamente o discur-
podia exercer-se nos casos de clínica forense so biológico sobre o criminoso, como vimos an-
da Polícia; as Faculdades de Direito foram teriormente. Um dos aspectos centrais desta in-
dotadas de cursos de Medicina Legal. Em teração entre médicos e juristas, muitas vezes
1895, uma reforma das Faculdades de Direito conflitante, dizia respeito ao debate entre “clás-
fundiu as cadeiras de Higiene e de Medicina sicos” e “positivistas”. Para o “direito clássico”,
Legal na única de Medicina Pública”. portador de uma concepção liberal, os indivídu-
os estariam investidos de uma consciência livre
Quando Souza Lima assumiu a cadeira na e soberana. Já o “direito positivo”, com diversas
FMRJ houve uma mudança radical, com a ênfa- nuances, concebia o indivíduo como ato reflexo
se na pesquisa e experimentação. O mesmo pro- de um meio genético e social únicos. Na visão
cesso ocorreu na Bahia com as alterações de dos “clássicos” a fronteira entre o criminoso e o
rumo introduzidas pelo médico e político Virgílio não criminoso seria tênue, não havendo nenhu-
Damázio no início dos anos 80 (Rodrigues, 1904), ma diferença de substância e sim apenas um equí-
e reforçadas por Raimundo Nina Rodrigues que voco de natureza egoísta que exigiria punição.
procurou alçar a medicina legal à condição de Para os “positivistas”, o criminoso estaria a pri-
disciplina científica. No entanto, este processo ori condicionado por sua natureza, que se revela-
não foi destituído de alguns percalços. va em impulsos anormais e doentios. Desta forma,
Num período em que a ciência tornou-se este ser estranho à “boa sociedade” deveria ser
uma fonte preciosa para a legitimação das aná- devidamente localizado, curado ou segregado para
lises sobre o social, a medicina legal no Brasil sempre. Estas duas imagens sobre o indivíduo se
foi uma das primeiras disciplinas a conquistar expressavam, também, em duas concepções dis-
um espaço institucional próprio e a demarcar tintas do Estado e seu papel na sociedade. De um
a atuação de um profissional adequado: o pe- lado, um Estado gendarme, liberal; de outro, um
rito. Nas palavras de Corrêa (1982: 6869), “es- Estado hobbesiano sem uma nítida separação en-
pecialidade e especialista se encontraram em tre o público e o privado (Fry & Carrara, 1986).
Nina Rodrigues”. A polêmica entre “positivistas” e “clássicos”
está no cerne de As Raças Humanas, onde Ro-
drigues (1957: 47) afirma que “a cada fase da
A “ÉPOCA DE OURO” DA evolução de um povo, e ainda melhor, a cada
MEDICINA LEGAL fase da evolução da humanidade, se se compa-
ram raças antropológicamente distintas, cor-
Professor e pesquisador da Faculdade de responde uma criminalidade própria, em har-
Medicina da Bahia, Nina desenvolveu seus es- monia e de acôrdo com o seu grau de seu de-
tudos iniciais em fisiologia, doenças tropicais senvolvimento intelectual e moral”.
e, adiante, em medicina legal, que tinha como O poligenista e relativista Nina Rodrigues é
um de seus suportes científicos a antropolo- bastante explícito na sua defesa de que os ne-
gia física da época. Suas análises médi- gros não poderiam ser tratados em pé de igual-
co-legais, etnográficas e psicossociais cami- dade com os brancos, já que seriam inferiores
nharam pari passu com as lutas pelo monopó- biologicamente e, portanto, incapazes de se con-
lio do saber e da prática médica e pelo incre- duzirem como cidadãos em seus plenos direitos.
mento da especialização no campo da medici- No contexto científico do final do século XIX, o
na que, entre outros efeitos, resultou no forta- saber médico-legal localizará nos corpos a fonte
lecimento da perícia médica. As Raças Huma- das desigualdades sociais e terá como meta a
nas e a Responsabilidade Penal no Brasil defesa da criação de padrões diferenciados de
(1894) pode ser considerado o arcabouço teó- acesso à cidadania. Em especial, no Brasil, este
rico deste projeto. debate envolveu o tema do futuro da nação

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Medicina Legal

pós-abolicionista e republicana, onde a incor- A prática e o ensino da medicina atingiram


poração de amplos segmentos da sociedade ao no Brasil aquele grau de desenvolvimento
mundo do trabalho e da política, sob novas ba- além do qual tornam-se condições iniludíveis
ses, tornou-se questão central (Corrêa, 1982; de todo aperfeiçoamento ulterior à criação e
Schwarcz, 1993). ao cultivo de especialidades. Em clínica, em
Raça e nação, fio condutor das reflexões de higiene mesmo, a direção e a disciplina das
As Raças Humanas, é o binômio que informa a atividades profissionais enterreiradas neste
conversão definitiva de Nina Rodrigues à medi- sentido vão sendo coroadas de pleno sucesso.
cina legal. Entretanto, Nina não operou este des- Mas para a medicina legal, dir-se-ia com
locamento como mera peça ritualística. A predo- mais verdade, para a solução toda ocasional
minância da clínica na formação dos alunos da dos problemas médico-legais, ainda são tidos
Faculdade de Medicina corria o risco de conti- por suficientes os conhecimentos gerais da
nuar a manter à margem a cadeira de medicina arte, não se admitindo especialização de
legal, como acontecia até então. Atento a este preparo, não se requerendo especial tirocínio
perigo, Nina procurou deslocar a visibilidade prático. Por toda parte, são esses problemas
prevalecente das disciplinas ligadas à Clínica confiados, aqui a clínicos notáveis nas
Médica, para sua matéria, através da mobiliza- especialidades que cultivam, mas que não
ção de, pelo menos, três recursos. curaram nunca das suas aplicações legais;
O primeiro deles, diz respeito à introdução, ali há médicos que, na frase dura mas
por parte do racialista (Todorov, 1993) Nina Ro- expressiva de ilustre profissional, desiludidos
drigues, da medicina legal no debate intelectual de conseguir clientela, vão buscar empregos
e político sobre os destinos da nação com im- remunerados nas comissões periciais, mal
portantes interlocutores como: Tobias Barreto, reputadas de categoria, de pouca estima
Silvio Romero e José Veríssimo. Um dos objeti- mesmo forense, e mercê das quais em
vos centrais de seu programa para uma medicina jurisprudência criminal, as mais das vezes se
aparenta no nosso foro, num respeito não
legal brasileira era “promover a solução daque-
sentido pelas praxes processuais”
les problemas médico-legais que nos são pecu-
liares, ou tem para nós uma feição peculiar, em
razão do clima, da raça, da natureza das novas Se no século passado a luta dos médicos se
instituições políticas e judiciárias, ou do grau desenvolveu no sentido de monopolizar o exer-
de civilização” (Rodrigues, 1904: 34-35). Dessa cício da medicina contra os leigos e os charla-
maneira, a ciência em ação de Nina não se limita- tães, a partir da passagem do século uma nova
va ao laboratório. disputa se associará à primeira. Desta vez, a com-
O segundo recurso foi a criação, na condição petição se refletirá no interior da própria catego-
de catedrático de Medicina Legal, junto com ria médica, a partir da era das especialidades.
outros médicos, da Sociedade Médico-Legal da Desde o final do século XIX, os médicos-le-
Bahia e da Revista Médico-Legal (Rodrigues, gistas procuraram questionar os fundamentos
1895: 1-2). Esta publicação, de caráter trimestral, dos clínicos gerais em matéria de medicina le-
afirmava, no seu primeiro editorial, que gal. Esta crítica apareceria com maior evidên-
cia na cotidiana tarefa de comprovar a
fragilidade das perícias realizadas por clínicos.
“representa ao mesmo tempo uma tentativa É nesta luta com os médicos clínicos que se
de especialização em matéria científica e constituirá o campo autônomo da medicina
um ensaio de confraternização e legal, campo este que será configurado defi-
cooperação profissional. nitivamente nas três primeiras décadas deste
(...) Pois se nosso país já de muito devia ter século. Desse modo, a criação de uma associa-
soado para a medicina legal a hora de sua ção e de uma revista não-oficiais voltadas para
plena diferenciação da medicina clínica ou as questões médico-legais deram maior legiti-
curativa, a autonomia em que é mister midade à especialização.
concretizar-se essa diferenciação, de fato, Esta tendência foi reforçada pela vasta pro-
não existe. dução médico-legal de Nina Rodrigues publica-

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da em revistas nacionais e estrangeiras reconhe- (...) Insisto em declarar, diante dos fatos,
cidas pelo mundo acadêmico. Alguns de seus que ainda por muitos anos o ensino prático
trabalhos apareceram na Gazeta Médica da da Medicina Forense há de ser uma simples
Bahia, na revista Brasil-Médico, na Revista aspiração entre nós. Nesse resultado
Médica de São Paulo e na Revista de Cursos da entram por partes iguais a
Faculdade de Medicina da Bahia. A partir de responsabilidade do atraso e
1897, o médico maranhense entrou no circuito desorganização da Justiça Administrativa
internacional com artigos publicados nas seguin- da Justiça no país e a responsabilidade
tes revistas: Annales Mèdico-Psycologiques desta Congregação que não tem querido
(França), Annales D’Hygiene Publique et de Mèdi- tomar na devida consideração as
cine Legale (França), Archives D’Antropologie exigências deste ensino. A falta de uma
Criminelle (França), Archivos de Criminologia, organização médico judiciária no país, a
Medicina Legal Y Psiquiatria (Argentina). carência de um título ou diploma especial
Além disso, seu livro O Animismo Fetichista do médico-perito, que, aliás, contra todas
dos Negros Baianos foi lançado primeiro na as tendências do ensino moderno nos países
França e depois no Brasil. Em 1901 foi publica- civilizados, a Congregação já declarou que
do seu terceiro livro, O Alienado no Direito não é necessário entre nós (...). O ensino
Civil Brasileiro. prático da Medicina Legal, tão ligado à
O terceiro recurso acionado por Nina Rodri- ordem pública, só em parte pode ser dado
gues foi a tentativa de criar no interior da Facul- em laboratório. A clínica forense que é o
dade de Medicina uma habilitação específica verdadeiro terreno das aplicações médico
para o estudante que se especializasse em medi- judiciárias, da mesma maneira que a
cina legal. Esta proposta encaminhada à Con- clínica civil, só pode ser aprendida ou
gregação da instituição, em 1892, foi recusada ensinada nos hospitais, ela precisa dos
pela mesma. Mais tarde, em 1895, Nina propôs à necrotérios, dos laboratórios, dos serviços
Sociedade Médico-Legal da Bahia que sugeris- policiais e dos Tribunais. (...) Tenho
se à Assembléia Legislativa do Estado a criação conseguido particularmente das
de um serviço médico-legal do Estado. A idéia autoridades policiais e dos médicos peritos
foi aprovada sem ter sido executada. Mesmo da polícia, todo o concurso em favor do
assim, Nina persistiu no estabelecimento de uma ensino prático da cadeira de Medicina
série de alianças com o aparato jurídico-policial Legal, mas duvido que os alunos possam
com vistas ao ensino prático de sua disciplina aproveitar esse material de ensino,
(Rodrigues, 1904). atentando-se à disposição dos cursos da
Faculdade a se moldarem pela rotina do
CONCLUSÃO ensino teórico, para o qual só a palavra e
não os fatos tem valor e merece respeito.
Na “Memória Histórica da Faculdade de Me- Foi precisamente o que se deu em 1896. Os
dicina” de 1897, redigida pelo catedrático Nina alunos nunca tiveram ocasião de ir à
Rodrigues e recusada pela Congregação da ins- chefatura de polícia e poucas vezes foram
tituição, o médico maranhense apresenta um ao hospital, e então, quer nos casos de
quadro desalentador das condições materiais e ferimentos que estudamos, quer nas
de ensino existentes na instituição. No caso es- autópsias judiciárias que fizemos ou
pecífico da medicina legal, Nina afirma que: ajudamos, o número dos alunos não excedia
de meia dúzia” (Rodrigues, 1976: 16-17)
“Em matéria de instalação, o laboratório
de Medicina Legal é o menos afortunado A “Memória” de Nina revela claramente seu
desta Faculdade (...). A desabar pelos projeto acadêmico. As críticas ao Estado e à
fundos, crivado de goteiras, sem caiação, Congregação foram estendidas aos professores,
nem água encanada, com o seu pelo desinteresse para com o ensino e a pro-
instrumental todo incompleto... dução acadêmica. Como constata Nina:

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“Podem-se contar os trabalhos que nestes Após a Revolução de 30, a medicina legal
últimos anos têm saído dos laboratórios e tornou-se política de Estado e deixou de ser,
gabinetes desta Faculdade. A não ser uma como observa Peixoto (1931: 04), “um comen-
ou outra observação clínica, de pouca tário de leis, porém ciência de observação e
monta e sempre mais ou menos incompleta, experimentação, ciência aplicada ao meio e
me recordo de um trabalho sobre beribéri ao povo brasileiro.” Nesta década, Nina foi
do Dr. Pacheco Mendes, quando professor lembrado não apenas por seus trabalhos
de Anatomia Patológica; um ensaio do Dr. médico-legais, mas, principalmente, pelos es-
Sá Oliveira sobre craniometria; uma tudos etnográficos. Procurando relativizar o
modificação ligeira do processo de determinismo biológico do médico maranhen-
Katistoffer para análise da manteiga, Dr. se num período em que prevalecia o interesse
Saraiva; talvez uma ou outra modificação pelas investigações sobre as “sobrevivênci-
ligeira de teoria que não chega a ser as” africanas e a concepção de aculturação,
publicada e ...nada mais” Arthur Ramos (1939: 12-13) afirma que: “se,
(Rodrigues, 1976: 21) nos trabalhos de Nina Rodrigues, substituir-
mos os termos raça por cultura, e mestiça-
A censura à conduta do governo no que mento por aculturação, pôr exemplo, as suas
concerne às carências existentes nas Faculda- concepções adquirem completa e perfeita
des de Medicina da época eram registros co- atualidade”.
muns nas “Memórias Históricas”. No entan- O campo intelectual brasileiro se caracteri-
to, a desaprovação da “Memória” elaborada zou pela reduzida diferenciação interna até
por Nina Rodrigues é um importante indicador as primeiras décadas do século XX. Por esta
do nível de conflito instaurado no interior da ocasião era comum que “o médico, o bacha-
Faculdade de Medicina. O propósito de afir- rel, o militar ou o engenheiro que, além dos
mar sua autoridade científica, leva o catedráti- temas técnicos de sua especialização, ver-
co de medicina legal a uma disputa com a tra- sasse a política e a literatura, esta em nume-
dição estabelecida, criando articulações exter- rosos gêneros de prosa e verso” (Ma-
nas à instituição oficial de ensino médico e chado-Netto, 1973: 51).
fomentando uma produção científica voltada Neste sentido, podemos considerar que
para sua área específica. Nina Rodrigues foi um agente singular do cam-
Não obstante o insucesso momentâneo da po médico no momento de sua estruturação no
luta pela melhoria das condições materiais de Brasil. Participante ativo do processo de institu-
ensino de sua especialidade, Nina Rodrigues cionalização da medicina na virada do século,
conseguiu obter estatuto científico para sua dis- Nina canalizou suas ações para uma série de
ciplina. É o que revela o número crescente de investimentos que resultaram no avanço da au-
teses de doutoramento sobre temas médico- tonomia da categoria médica. Para isso, compe-
legais nas duas primeiras décadas do século tiu com a tradição clínica, até então dominante,
XX (Schwarcz, 1993). Isto significa dizer que, demarcando o espaço de atuação específica da
dentro das possibilidades de atuação institucio- medicina legal. Sua militância foi basicamente
nal no interior do campo médico, Nina Rodri- desenvolvida a partir da Faculdade de Medici-
gues fez da medicina legal um espaço autôno- na da Bahia e das revistas científicas consagra-
mo de conhecimento. das, ou seja, nos marcos institucionais consi-
Nina não se transformou em mito da ciência, derados de maior legitimidade naquela ocasião.
como foi o caso de Oswaldo Cruz (Britto, 1992). Foi na condição de médico e cientista que abor-
A denominada “Escola Nina Rodrigues” foi uma dou os temas obrigatórios (Bourdieu, 1987) de
invenção criada nos anos 30 do presente século seu tempo. A produção acadêmica de Nina Ro-
pelos médicos Afrânio Peixoto e Arthur Ramos drigues e o subseqüente reconhecimento de
como forma de dar maior credibilidade às suas sua obra revelam que a estratégia de sucessão
respectivas militâncias no campo da medicina seguida pelo médico maranhense foi extrema-
legal (Maio, 1994; Corrêa, 1982). mente bem-sucedida.

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RESUMO CONI, A. C., 1952. A Escola Tropicalista Baiana.


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sentido, este artigo tem por objetivo analisar Descrição da carreira médica no século XIX. Physis,
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médico é um espaço de confrontos e dos Congressos Médicos (1880-1903). Rio de
estruturalmente determinado pelos embates Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo
passados, onde os médicos buscam Cruz. (Mimeo.)
monopolizar a autoridade/competência , 1995. A Sociedade de Medicina e
científica, considero que o perfil médico de Cirurgia do Rio de Janeiro: A Gênese De Uma
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