CIP-Brasil. Catalogação-na-Publicação
Câmara Brasileira do Livro, SP
Brueggemann, Walter.
B914d O dinamismo das tradições do Antigo Testamento /
Walter Brueggemann, Hans W. Wolff ; (tradução Getúlio
B ertelli; revisão Carlos V ido). — São Paulo : Ed. Pauli
nas, 1984.
(Coleção temas bíblicos)
ISBN 85-05-00053-6
1. Bíblia. A.T. Pentateuco — Crítica e interpretação
I. Wolff, Hans Walter. II. Título.
83-2027 CDD-222.106
O DINAMISMO
DAS TRADIÇÕES
DO ANTIGO
TESTAMENTO
020944
Edições Paulinas
Título original
The vitality of Old Testament traditions
© John Knox Press, Atlanta, 1982, 2- ed.
(ISBN 0-8042-0112-9)
Tradução
Getúlio Bertelli
Revisão
CmiirrfW)
ep ED IÇ Õ ES P A U L IN A S
Rua Dr, Pinto Forra/, 183
04117 — São Paulo SP (Unisil)
End. telegr.: PAULINGS
ED IÇ Õ ES P A U L IN A S - SÃ O PA U LO - 1984
I S B N 0-8042-0112-9 ( O b r a o r ig in a l)
I S B N 85-05-00053-6
Prefácio
A interpretação da Escritura é e sempre foi problemática,
tanto para a sinagoga, quanto para a Igreja. Desejamos inter
pretar com liberdade para que possa irromper entre nós uma
nova percepção e um novo sentido. Dizemos que isso é ação
do Espírito. Mas não com tanta liberdade a ponto de a Bíblia
se tornar tão-somente um veículo de nossas idéias preferidas.
Por outro lado, devemos interpretar com disciplina, de maneira
que haja um método eficaz e consistência intelectual em nossa
interpretação. Mas não com tanta disciplina a ponto de nossa
tarefa interpretativa se tornar fria e inofensiva.
Os ensaios que aqui apresentamos pretendem tomar a
Bíblia a sério, em todo seu frescor e novidade. Eles exigem um
tipo de vitalidade que não requer entusiasmo irracional, ou des
crédito da disciplina crítica. Esses ensaios afirmam sentidos
fundamentais no texto. Isto é, estão voltados para aquilo que o
texto diz, e nessa consideração encontram nova base. Mas
também são estudos sobre método. Seguindo um modelo bem
evangélico, unem o melhor pensamento crítico da ciência disci
plinada e a mais profunda paixão por ouvir o texto como pala
vra de Deus. Os autores estão convencidos de que não precisa
mos escolher entre consciência crítica e paixão; na verdade,
não podemos possuir uma sem a outra. A hermenêutica evan
gélica, tal como é aqui caracterizada, crê que duas coisas não
podem ser transigidas em exegese: uma fé que responde e uma
mente pesceptiva.
Muita gente insiste em afirmar que uma exegese crítica
pura é um obstáculo à escuta do Evangelho no texto bíblico.
Sem dúvida, tais opiniões fazem parte de um crescente anti-
intelectualismo de nossos dias, que considera a razão como ini
miga da fé, da percepção e da liberdade. Esses ensaios ofere-
5
cem uma alternativa e insistem nela, a saber: que a disciplina
crítica é um caminho seguro através do qual o texto se abre
para uma nova escuta c recebe sua verdadeira autoridade. A
autoridade do texto não se fundamenta no descrédito piedoso
daquilo que conhecemos, mas na mobilização de nossas me
lhores faculdades críticas para compreender e levar a sério o
texto.
Aqui se afirma que o próprio estrato do Pentateuco repre
senta um novo sabor de vitalidade nas tradições antigas, revi
sando a fé para um novo contexto, quando a fé estava sendo
amargamente testada e posta à prova. Exatamente nessas pro
vações a fé revela sua vitalidade, sua poderosa autoridade
como forma de discernir o que está ocorrendo e o que é exigido
em nossa situação. O teste da exegese ocorre quando o crente
defende sua fé contra formas, sutis ou não, de sincretismo e
perversão. A tarefa de Hans Walter Wolff, destacado professor
de exegese do Antigo Testamento em Heidelberg, respira o
espírito da Igreja Confessante da Alemanha; expressa uma
paixão pelo texto e a certeza de que este fala com vitalidade
quando sabemos escutá-lo com ouvido disciplinado. Wolff in
tuiu essa perspectiva do texto na época em que os cristãos da
Alemanha tiveram que decidir quanto à sua seriedade frente ao
Evangelho. Ele começou a ver, a partir da provação daquele
período, que cada geração, na Bíblia, teve que tomar uma deci
são semelhante.
Reuni estes ensaios especificamente para estudantes que
desejam desenvolver um método eficiente de interpretação e
para membros da Igreja, ministros e leigos, que desejam ouvir
o texto em toda sua vitalidade, com fé e disciplina. Recorri,
para a elaboração do ensaio introdutório, à ajuda gratificante e
ao sábio conselho de Hans Walter WolfT, que em sua vida
combinou o mais amadurecido conhecimento crítico com a
mais rica forma confessional de ser fiel ao Deus da Escritura.
Por isso, meu apreço e minha dívida para com ele são muito
6
grandes. E, além de Wolff, também seu amigo e colega
Gerhard von Rad merece minha gratidão, que é grande e ób
via.
O professor Wolff e eu chegamos a um acordo a respeito
da publicação destes ensaios no outono de 1973, quando ele
estava residindo no Seminário de Concórdia, em Saint Louis.
Ele estimulou seus colegas dali a defenderem o Evangelho as
sim como a Igreja Confessante o fez durante a sua provação,
sob as críticas e ameaças dos nazistas. A partir daquele outo
no, aqueles de nós que tinham passado pela crise naquele Semi
nário vimo-la, entre outras coisas, como uma disputa sobre
pressupostos hermenêuticos e método exegético. O assunto
principal daquela discussão, assim como destes ensaios, é o di
namismo de uma tradição que sempre conduz a comunidade a
novas afirmações e a novas profundidades de fé, porque essa
tradição sempre conserva sua dinâmica em novas situações. A
posição hermenêutica de Wolff, ao mesmo tempo livre e crente,
se evidencia como sendo de proveito à Igreja no cumprimento
de sua tarefa, na confissão de sua fé e na celebração de suas
doxologias.
WALTER BRUEGGEMANN
7
Abreviaturas
A B ....................................................................................................Anchor Bible
BASOR ..................................Bulletin of the American Schools of Oriental
Research in Jerusalém and Baghdad
Bibi. Eph. Th. L............. Bibliotheca Ephemerides theologicae Lovanienses
B Z ......................................................................................... Biblische Zeitschrift
BZAW .. Beihefte zur Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenschaft
CBQ .......................................................................... Catholic Biblical Quarterly
E vT h...............................................................................Evangelische Theologie
F R L A N T ......................Forschungen zur Religion und Literatur des Altes
und Neuen Testaments
H T R ....................................................................Harvard Theological Review
ID B .........................................................Interpreter's Dictionary of the Bible
IDB S u p p l...............Supplement to Interpreter's Dictionary of the Bible
J A A R ..................................Journal of the American Academy of Religion
J B L ..................................................................... Journal of Biblical Literature
JS O T ......................................Journal for the Study of the Old Testament
JSOT Suppl.. .Supplement to Journal for the Study of the Old Testament
KBL L.Köhler, W.Baumgartner,Lexicon in Veteris Testament Libros
K T A V ........................................................................... KTAV Publishing House
KuD ...................................................................................Kerygma und Dogma
M T ............................................................................................... Masoretic Text
R B ................................................................................................. Revue Biblique
R H P hR ..................................Revue d’histoire et de philosophie religieuses
T h B ...................................................................................Theologische Bücherei
ThZ .............................................................................Theologische Zeitschrift
T L Z ....................................................................Theologische Literaturzeitung
U SQ R ....................................................... Union Seminary Quarterly Review
V T ...........................................................................................Vetus Testamentum
VT Suppl ......................................................Vetus Testamentum Supplement
WuD N F .................................................................................Wort und Dienst
ZAW . . ; ......................... Zeitschrift für die altestamentliche Wissenschaft
ZAW Beih ... Zeitschrift für die altestamentliche Wissenschaft, Beiheft
ZTK .....................................................Zeitschrift für Theologie und Kirche
Introdução
A PALAVRA EM SUA PARTICULARIDADE
E PODER
Walter Brueggemann
31
2
A METODOLOGIA QUERIGMATICA DE
WOLFF
Walter Brueggemann
46
3
O QUERIGMA DO JAVISTA1
Hans Walter Wolff
II
77
4
OS FRAGMENTOS ELOISTAS
NO PENTATEUCO1
Hans Walter Wolff
III
Os temas especiais e a forma característica com que as
narrativas são entrelaçadas nos obrigam a considerar as partes
eloístas do Pentateuco não como simples variantes que comen
tam o material j avista, nem como uma mera coleção superficial
de relatos paralelos e de contribuições origimiis. Elas são frag
mentos de uma obra originalmente independente, que mostra
um elevado grau de reflexão teológica e de habilidade narrati
va. Em que época pode ser situada essa mensagem característi
ca? Muitos notaram que existem numerosas indicações de que
o material teve sua origem no reino do Norte23. Pode-se mos
trar que o autor estava familiarizado com as tradições locais
próprias do norte. Além disso, a profecia é um fenómeno tão
significativo para ele que Abraão aparece como aquele que re
cebe a promessa de Deus (Gn 15) e como intercessor profético
(Gn 20,7); José, como alguém qualificado a interpretar sonhos
95
e assim recebe mensagens que revelam a vontade de Deus (Gn
40,8ss; 11,16); e sobretudo Moisés, como mediador da vonta
de de Deus (Ex 20,19); por último, Balaão, como mensageiro
da palavra de Deus que não pode rejeitar seu envio e em cujos
oráculos — em contraste com o relato javista (Nm 24) — a pa
lavra de Deus, em seu poder de dirigir a história, se torna o
tema central (Nm 23,19).
Sob este prisma, devemos pensar num século entre Elias e
Oséias. Este era um tempo perigoso, em que Israel era tentado
a desobedecer ao Deus de Israel e seguir a senhores estrangei
ros. A religião cananéia, com seu culto da fertilidade, põe à
prova a fé de Israel. Relatos como os do sacrifício de criança
(cf. Os 13,2) e de mulheres estrangeiras se tornaram muito rele
vantes para Israel24. Às vezes, a obediência a Deus deve resul
tar em desobediência ao rei. A justiça corre o perigo de ser per
vertida por juizes corruptos (cf. Ex 18,2.1 e Am 5,12).
Não nos é possível conhecer essa época com mais profun
didade. Por isso permanece em aberto as seguintes questões,
juntamente com uma das expressões-chave da literatura sa-
piencial: Onde o eloísta encontrou sua palavra-chave: “temor
de Deus”? Qual o significado de sua identidade?25 O eloísta
aborda Israel como “um povo que habita à parte e não é clas
sificado entre as nações” (Nm 23,9). Israel deve entender sua
própria história como uma manifestação única do temor de
Deus. Isso é visto na liberdade de obedecer ou desobedecer,
porque Israel respeita os direitos do estrangeiro e é capaz de
ceder seus próprios direitos, devido à sua confiança no Deus
que pode usar até mesmo os infortúnios como meios de salva
ção de seu povo. Como terceira tese podemos formular o se
guinte:
A nova interpretação que o eloísta dá dos materiais tradicio
nais de Israel pode ser explicada melhor como um clamor
contra o sincretismo imperante no tempo de Elias. Durante
96
aquele período, Israel teve que enfrentar suas maiores tenta
ções religiosas, políticas e sociais.
O tema do eloísta apresenta os seguintes desafios para nós
na atualidade: O que o amor de Deus exige de nós hoje? O que
é obediência ou desobediência hoje? Todo aquele que se exami
na com profundidade verá que sua vida é uma questão aberta.
Todo aquele que olhar com profundidade para a época em que
vive ver-se-á confrontado com mistérios e tentações difíceis. Se
ouvirmos aquilo que o eloísta ensina, poderemos superar as
respostas superficiais. Poderemos evitar abertamente reações
precipitadas, vendo-nos a nós mesmos postos à prova, se de
fato tememos a Deus.
Porventura não estamos perdendo o segredo mais profun
do de nossas vidas, quando deixamos de enfrentar o desafio do
eloísta?
III
Se o verdadeiro e real querigma do DtrH consistisse nesse
apelo, então apareceria claramente não apenas nas principais
junções da história. Deveria se evidenciar claramente também
em outros lugares nos grandes discursos. Será que é esse o ca
so?
Jz 2,1 lss e ISm 12 acabam de nos mostrar o papel decisi
vo que a conversão de Israel a Iahweh desempenhou para a
continuidade da história da salvação. Em ISm 12 a conversão
ocorre como resultado de um discurso direto de advertência
feito por Samuel (vv. 14-15). De fato, encontramos o tema da
“conversão” (“volta”) em quase todas as passagens importan
tes que nos permitem reconhecer a intenção do DtrH. Por ou
tro lado, em nenhum lugar encontramos um estímulo à espe
rança.
A palavra chave shub (“volta”, no sentido de “conversão”)
é encontrada já em ISm 7,3, no discurso de Samuel:
Se é de todo coração que voltais a Iahweh, tirai do meio de
vós os deuses estranhos e as astartes, fixai o vosso coração
em Iahweh e a ninguém mais sirvais a não ser a ele; então ele
vos livrará das mãos dos filisteus.
Israel obedece e experimenta a libertação no conflito com
os filisteus.
Numa passagem decisiva, 2Rs 17, DtrH faz uma pausa
para meditar sobre o fim do Estado de Israel. Ela resume, no v.
13, a mensagem de Iahweh pronunciada “por todos os profetas
e videntes de Israel e Judá” com uma única palavra: Shubu!
108
Convertei-vos (shubu) de vossa má conduta e observai meus
mandamentos e meus estatutos, conforme toda a lei que pres
crevi a vossos pais e lhes comuniquei por intermédio de meus
servos, os profetas.
O juízo sobre Israel ocorreu porque o apelo a essa volta, e
portanto também à aliança feita com os pais (v. 15), foram ig
norados. O que faz com que esse juízo seja final não é tanto a
apostasia total, como a desconsideração depreciativa do apelo
à conversão.
A volta invertia o juízo, mesmo que este já tivesse sido de
cretado. DtrH mostra isso no caso de alguém que considera
como a figura mais brilhante de toda a história de Israel, Josias
(2Rs 23,25):
Não houve antes dele rei algum que se tivesse voltado, como
ele, para Iahweh, de todo o seu coração, de toda a sua alma e
com toda a sua força, em toda a fidelidade à Lei de Moisés;
nem depois dele houve algum que se lhe pudesse comparar.
Josias não é descrito como alguém fiel, que nunca incorreu
em apostasia. Nem como alguém que confia numa palavra de
promessa. Em vez disso, é apresentado precisamente neste úni
co fato: ele voltou.
Assim o tema da “volta” aparece em momentos culminan
tes da apresentação deuteronomista da história, demonstrando,
mediante diferentes exemplos, o que Israel devia ouvir e fazer,
quando estava sob o juízo no exílio.
Mas não poderia ocorrer que esta idéia da volta estivesse
ainda subordinada à ênfase do DtrH no juízo em tempo de
apostasia?
109
IV
Para responder a essa pergunta devo suscitar uma outra:
será que DtrH diz especificamente o que Israel deve fazer na
hora do juízo? Sim, ele o faz, numa passagem de especial des
taque: a oração de Salomão por ocasião da dedicação do Tem
plo.
A palavra-chave shub ocorre na oração nada menos que
quatro vezes. Primeiro, em lR s 8,33.35, onde está a idéia de
que Israel pode ser derrotado por um inimigo ou ser vítima de
uma seca “porque pecou contra mim’\ Em ambos os casos é
dito:
Se ele se converter, louvar teu Nome, orar e suplicar a ti neste
Templo, escuta no céu, perdoa o pecado de Israel, teu povo.
Estes dois exemplos confirmam antes de mais nada apenas
isto: que o imperativo daquela hora, para DtrH, era voltar,
onde quer que ocorra o juízo por causa da apostasia, com o já
vimos em Jz 2,1; ISm 7 e 12 e indiretamente em 2Rs 17 e
23,25.
Mas porventura esse imperativo também prevalece nesta
situação em que se encontra Israel, longe de seu santuário des
truído? Um a resposta exata a isso é dada pela oração feita por
ocasião da dedicação do templo (em lR s 8,46-56). Esta res
posta apresenta detalhes notáveis:
111
V
Existem ainda, em DtrH, duas outras passagens nas quais
se levanta a questão sobre o que se deve fazer no exílio. Ambas
as passagens dão a mesma resposta: voltar a lahweh, vosso
Deus! — e ambas aparecem dentro dos discursos de Moisés no
Deuteronômio. Isso parece significar que DtrH queria que Is
rael lesse a totalidade de sua obra, desde o início, como um
chamado à conversão em meio ao juízo. Mas aqui nos vemos
diante de uma questão crítico-literária bastante difícil, a saber:
se as duas passagens são formulações do próprio DtrH ou não.
A primeira passagem, mais detalhada, é Dt 30,1-10. Mar
tin Noth considera que ela pertence às composições mais anti
gas do Deuteronômio. Isso ele vê representado em 4,44-30,20.
Em sua opinião, não devemos estabelecer uma relação muito
estrita entre ela e DtrH porque foi assumida por DtrH em sua
totalidade25.
Dt 30,1-10 pressupõe, à primeira vista, a mesma situação
do exílio de lRs 8,46ss. Aqui também se pergunta: o que se
deve fazer agora que a sentença de juízo já foi executada? E
também aqui se responde com a palavra-chave shub, “voltar”,
que é repetida três vezes (vv. 2.8.10):
VI
120
6
O QUERIGMA
DOS ESCRITORES SACERDOTAIS1
Walter Brueggemann
III
Para entender esta fórmula, precisamos concentrar a aten
ção na expressão integral de Gn 1. É bem plausível supor que os
outros usos derivem deste, e devam ser interpretados como sua
realização na história. Em Gn 1,1-2.4a, esta fórmula ocupa
uma posição central entre o descanso da criação e o Shabbat,
o que sugere poder ser este o núcleo central do texto. Sem dúvi
da, é verdade que essa composição literária contém muitas par
tes derivadas de materiais do antigo Oriente Próximo37 ou pelo
131
menos paralelas aos mesmos. Também é evidente que esta
composição conclui com uma etiologia do Shabbat38. Mas não
é nem a narrativa da criação, nem a introdução do Shabbat,
que molda a narrativa de P. É precisamente esta palavra radi
cal, pronunciada com uma autoridade inconteste, que confere
a P sua moldura e caráter. Nossa análise da fórmula de P suge
re que Gn l,l-2.4a deva ser interpretado no contexto da inten
ção total da narrativa de P. Com muita freqüência essa compo
sição literária foi tratada num vácuo, e isso levou a interpreta
ções equívocas. Quando a narrativa da criação se relaciona
com o restante da tradição de P, não pode haver dúvida de que
o cerne do texto é a palavra de bênção, expressa em cinco va
riações.
A linguagem desta fórmula, como indicamos, é reminiscên
cia das antigas tradições de conquista. Estas tradições conti
nham várias afirmações importantes, mas nem sempre fáceis
de harmonizar: (a) a terra é um dom de Iahweh; (b) a terra será
tomada pela conquista de Israel; (c) a terra é um lugar de bên
ção; (d) caso Israel venha a se tornar infiel irá perder a terra.
Como von Rad indicou 39, no antigo credo e na estrutura do
Hexateuco de J, a entrada na Terra Prometida é o coroamento
da história da salvação. Quando este relato foi remodelado
para servir às necessidades da comunidade exílica40, podemos
supor que continha dois elementos: (1) fidelidade aos materiais
antigos que utilizava, e (2) liberdade de remodelar esses mate
riais em função das necessidades contemporâneas. Os antigos
materiais incluem sem dúvida a estrutura integral de promes
sa/cumprimento, centrando a atenção na terra41. Essa idéia
norteia o uso que P faz das tradições antigas. A teologia da ter
ra domina DtrH (presumivelmente um pouco mais cedo do que
P42). Assim, a conquista como dom e como exigência se encon
tra no centro da tradição já existente, empregada por P. Elas
estão formalmente associadas no Deuteronômio como parêne-
se e mandamento.
132
O problema da comunidade exílica, abordado por P, era o
desarraigamento da comunidade, bem como o fato de se en
contrar deslocada, ou seja: ser um povo sem pátria. A opinião
corrente é que P buscou, de forma bastante estática, legitimar
as práticas cultuais. Isto ajudaria a comunidade a suportar sua
situação de desarraigamento durante o exílio. Sem negá-lo, ad
mito que P também estava orientado para o futuro. Ele estava
vislumbrando um tempo em que a terra seria novamente recebi
da das mãos de Deus; em que seria feita a reentrada; em que
o domínio de novo seria exercido; em que se celebraria a fertili
dade e se dinamizaria a promessa de Deus. Ele vislumbrava o
tempo em que Israel experimentaria novamente a bênção e a
prosperidade da nova conquista, como ocorrera com seus pais
no passado.
Já foi notado que o Dêutero-Isaías fala tanto de criação
quanto P43. Também é fato bastante conhecido que o Dêutero-
Isaías dá muita importância à volta à pátria. O que se atribui
ao Dêutero-Isaías vale também para P. Em Gn 1, P não está
interessado em afirmações especulativas sobre as origens cós
micas, mas na reconquista da terra. Assim, a idéia de criação é
simplesmente um veículo para a promessa e expectativa de
uma nova conquista44 e bênção renovada, porque Iahweh con
tinua a ser fiel e poderoso45.
O versículo distintivo de Gn 1,2 já há muito foi reconheci
do como tendo precursores mitológicos. Mas nosso argumento
sugere que este versículo também pode ser entendido em ter
mos político-históricos, sem negar, sem dúvida, seus antece
dentes mitológicos. Uma compreensão político-histórica suge
re que o caos (tohu-bohu) seja a situação de desarraigamento
do exílio. E o espírito que paira no ar, dando ordens, talvez seja
o ato de Iahweh reconduzindo o povo à sua terra com toda a
bênção e prosperidade. Sem dúvida, não se podem ignorar os
horizontes universais e expansivos desta composição literária.
Mas este horizonte universal é vivenciado pelos contemporâ-
133
neos de P pomo sendo primeiro a situação de desarraigamento,
sem terra; e a seguir, a posse da terra.
Assim, a criação é a restauração da terra. Os antigos feitos
salvíficos estão por acontecer novamente, quando Israel for as
segurado em sua Terra Prometida46. Talvez isso explique por
que não há quase nada, ou muito pouco relato de conquista em
P. Isso foi explicado de múltiplas maneiras, sendo a mais
plausível a de que a narrativa de conquista de P foi substituída
por DtrH. Mas nosso argumento sugere outro tipo de raciocí
nio: (a) a tradição da conquista está lá — o antigo material a
continua e P retém este material antigo; (b) mas ele é subordi
nado, porque para P o momento importante da conquista ain
da se encontra no futuro.
Devemos notar ainda dois outros traços de Gn 1: (1) O
clímax de Gn 1 é a afirmação divina: “É muito bom.” Tal
como se encontra na tradição, este comentário se refere à cria
ção. Mas, à luz do uso de tob com a terra47, poderíamos tam
bém sugerir que esta fórmula evoca a conquista. Ela é assim
uma descrição festiva da terra que Iahweh deu a seu povo e
que eles ainda vão reaver. (2) O movimento de toda essa com
posição literária em direção ao Shabbat (2,1-4a) foi explicado
como característico da obsessão exilica por esse dia. Mas é
preciso notar que Shabbat não significa apenas a recuperação
(sagrada), de homens, como Herschel afirmou tão eloqüente
mente48. Em textos geralmente ligados aos materiais de P,
Shabbat significa também a recuperação da terra:
IV
Tentamos interpretar P a partir de um ângulo diferente de
muitos intérpretes. Sugerimos que a forma narrativa seja a
chave de interpretação do querigma de P, e não a lei nem a ge
nealogia. Admitindo isto, devemos tentar, à continuação, rela
cionar os outros elementos com a proclamação da narrati
va. Embora devamos fazer esta sugestão, cada componente
deve preservar alguma independência, para não precisar ajus-
tar-se todo ele nitidamente a uma única afirmação.
Se a mensagem central de P for a reentrada na Terra Pro
metida, então o material legal sobre a adequada provisão cul
tual para o encontro do Deus santo com o povo pecador é um
programa de garantia de que a terra em que se vai reingressar
não sofrerá o abuso de alguma ação errônea ou prepotente50.
Essas ações podem provocar uma nova expulsão da terra — o
que P tenta evitar a todo custo. Na verdade, a intenção central
da legislação sacerdotal é fazer com que não volte a ocorrer tal
expulsão da terra. Assim, as leis presumem a reconquista e a
reentrada na terra. Elas são guias para evitar que se perca,
por castigo, tanto a promessa quanto a bênção de Deus.
As genealogias são muito difíceis e complexas. Mas com
certeza a estrutura de P acentua a continuidade entre os pais e
a geração atual do exílio. No que tange à nossa hipótese, P se
esforça por unir a antiga promessa com o projetado cumpri-
135
mento atual. E a conexão entre o antigo e o novo não significa
apenas a geração da conquista que experimentou por primeiro
o cumprimento da promessa/bênção no período Moisés/Josué,
mas se remonta também à criação. Isto porque a promessa da
terra a ser atualizada é ordenada conforme a própria estrutu
ra da criação. A promessa não é um evento que ocorreu ao
longo da caminhada e se tornou obsoleto à medida em que se
sucediam os eventos históricos. Ao invés disso, é algo que está
enraizado no mais profundo da realidade — no sim de Deus já
durante a criação —, de maneira que não pode ser anulado por
nenhuma eventualidade histórica, nem mesmo pelo exílio. Des
de toda eternidade Deus dispôs a terra como bênção. P dá tes
temunho desta esperança. As genealogias fazem a conexão en
tre os tempos da promessa e seu cumprimento51.
137
7
A TAREFA PERMANENTE
DA CRÍTICA DA TRADIÇÃO
Walter Brueggemann
153
Adendo à primeira edição
OS RECENTES DESENVOLVIMENTOS
Walter Brueggemann
172
Notas
1. A afirmação recente mais radical desta ligação é feita por Walter Wink, The
Bible in Human Transformation, Philadelphia, Fortress Press, 1973, 1-15.
2. Qualquer compreensão legítima da Escritura como revelação —e que não seja
meramente mecânica —deve centrar a atenção na atividade criativa e crente da
comunidade de fé. Cf. H. Richard Niebuhr, The Meaning of Revelation, Nova
York, The Macmilan Company, 1967, e cf. uma declaração católica feita por
John L. McKenzie, “The Social Character of Inspiration”, CBQ, 24 (1962),
115-124.
3. Paul Tournier repetidas vezes aclarou esta questão, fazendo a distinção entre
“medicina técnica” e “medicina pessoal”. Ele não deseja ter que escolher uma
entre ambas. As conquistas de medicina técnica sem dúvida sao de grande va
lor. Mas o pêndulo mudou de direção, de maneira que agora a questão é re
cobrar a dimensão pessoal. Cf. The Healing of Persons, Nova York, Harper
and Row, 1965; The Whole Person in a Broken World, Nova York, Harper
and Row, 1964; e A doctor’s Casebook, Nova York, Harper and Brothers,
1960. De modo semelhante as descobertas da abordagem científica são de
grande valor para a compreensão da Bíblia. Mas o pêndulo também mudou de
direção: a “exegese pessoal” deve receber agora uma nova ênfase. Este ê o pon
to que Wink defende com mais paixão.
4. J. Wellhausen, Prolegomena to the History of Ancient Israel, Nova York, Meri
dian Books, 1957. Declarações sucintas da síntese de Wellhausen se acham em
Samuel Terrien, “History of the Interpretation of the Bible”, The Interpreter’s
Bible, ed. George Buttrick, Nashville, Abingdon Press, 1952, I, 127-141; A.
Weiser, The Old Testament: Its Formation and Development, Nova York, As
sociation Press, 1961, 74-81. Quanto á evolução posterior a Wellhausen, ver C.
North, “Pentateuchal Criticism”, The Old Testament and Modern Study, ed.
H. H. Rowley, Oxford, Claredon Press, 1951, 48-83; e especialmente o ensaio
crítico feito por John Bright, “Modern Study of Old Testament Literature”, The
Bible and the Ancient Near East, ed. G. E. Wright, Garden City, N. Y.,
Doubleday and Company, Inc., 1961, 13-31.
173
5. Embora a obra principal de Wellhausen já esteja traduzida, o Gênesis, obra
programática de Gunkel (Gottingen, Vandenhoeck e Ruprecht, 1917) continua
fora do alcance dos leitores de língua inglesa. Felizmente, a introdução a este
comentário foi traduzida e traz como título The Legends of Genesis, Nova
York, Schocken Books, 1964. A principal avaliação da obra de Gunkel foi feita
por Werner Klatt, Hermann Gunkel, Göttingen, Vandenhoeck e Ruprecht,
1969. Ver uma descrição sucinta de sua contribuição em John H. Hayes, “The
History of the Form-Critical Study of Prophecy”, Seminar Papers, I, ed. G*
MacRae, Society of Biblical Literature, Missoula, Mont. Scholars Press, 1973,
60-70. Embora esteja enfocado nos profetas, o estudo de Hayes apresenta a
abundante contribuição de Gunkel.
6. Hans Joachim Kraus, Geschichte der historisch-kritischen Erforschung des Al
ten Testaments von der Reformation bis zur Gegenwart, Neukirchen, Verlag
der Buchhandlung des Erziehungsvereins, 1956, 331. A declaração é uma cita
ção de Gunkel, “Ziele und Methoden der Erklärung des Alten Testaments”, Re
den und Aufsätze, Göttingen, Vandenhoeck e Ruprecht, 1913, 14.
7. Ver declaração programática de James Muilenburg, “Form Criticism and
Beyond” JBL, 88 (1969) 1-18. O próprio Childs não publicou um estudo im
portante nesta área, mas seus alunos estão incluídos entre os grandes precurso
res da crítica da forma na pesquisa científica norte-americana. O importante
processo da crítica da forma da Abingdon Press é em grande medida ocupado
por alunos de Childs. Ver o ensaio introdutório de Gene M. Tucker, For Criti
cism of the Old Testament, Guides to Biblical Scholarship Series, Philadelphia,
Fortress Press, 1971. Tucker é aluno de Childs.
8. Sua declaração básica provém de From the Stone Age to Christianity, Baltimo
re, The Johns Hopkins Press, 1940, 1957; mas suatese também aparece em Ar
chaeology and the Religion of Israel, Baltimore, The Johns Hopkins Press,
1941, 1956 e lahweh and the Gods of Canaan, Nova York, Humanities Press,
1968.
9. John Bright, o.e., 14-15, faz a mesma distinção que Albright em sua crítica a
Wellhausen: ele aceita a hipótese dos documentos, mas rejeita o corolário dedu
zido sobre o desenvolvimento da religião. Esta distinção, extremamente impor
tante, freqüentes vezes é desconsiderada.
10. William F. Albright, “Introduction” a The Legends of Genesis, por Hermann
Gunkel, pp. VII-XII. Sem dúvida, Gunkel não compartilhou da mesma opinião
de Wellhausen sobre o desenvolvimento evolutivo da religião de Israel, ponto
que para Albright é do maior interesse.
11. Ver a abrangente visão do método e contribuição de von Rad feita por Douglas
A. Knight, Redescovering the Traditions of Israel, Society of Biblical Literatu
re, Missoula, Mont., Scholars Press, 1973, 97-142.
12. Brevard S. Childs, Biblical Theology in Crisis, Philadelphia, The Westminster
Press, 1970. Ver também The Book of Exodus, Philadelphia, The Westminster
Press, 1974, deste autor.
174
13. Gene M. Tucker, o.e., 22-38, notou a dificuldade dos termos usados para des
crever os vários gêneros literários.
14. Gerhard von Rad, Genesis, The Old Testament Library Series, Philadelphia,
The Westminster Press, 1961, edição revista, 1973, 35.
15. Cf. von Rad, Genesis, 13-20; idem “The Problem of the Hexateuch”, The
Problem of the Hexateuch and Other Essays, Nova York, McGraw-HillBook
Company, 1966, 3-13; idem, Old Testament Theology, Nova York, Harper and
Brothers, 1962, I, 48-56.
16. Este termo é usado em Gênesis, 17. O termo alemao é Neukomposition.
17. Genesis, 19. O termo alemão è schmieden.
18. Genesis, 36. O termo alemão para “requisição” é Beschlagnahme.
19. Ver Kraus, o.e., 405. Ele fala na Aussagegehalt do texto.
20. Quanto ás contribuições e métodos de Martin Noth, ver Knight, o.e. 143-176; e
Bernard Anderson, “Introduction: Martin Noth’s Traditio-Historical Approach
in the Context of Twentieth-Century Biblical Research”,/* History ofPentateu-
chal Traditions, Englewood ClifTs, N. J. Prentice-Hall, Inc., 1971, XIII-
XXXII.
21. B. Davie Napier, From Faith to Faith, Nova York, Harper and Brothers, 1955.
182
CAPÍTULO 4: OS FRAGMENTOS ELOÍSTAS NO PEN-
TATEUCO
186
CAPÍTULO 6: O QUERIGMA DOS
ESCRITORES SACERDOTAIS
NOTAS DO ADENDO
204
ÍNDICE
5 Prefácio
9 Introdução
A PALAVRA EM SUA PARTICULARIDADE E
PODER
Walter Brueggemann
11 1. QUESTÕES ABORDADAS NO ESTUDO DO
PENTATEUCO
Walter Brueggemann
33 2. A METODOLOGIA QUERIGMÁTICA DE
WOLFF
Walter Brueggemann
47 3. O QUERIGMA DO JAVISTA
Hans Walter Wolff
79 4. OS FRAGMENTOS ELOÍSTAS NO PENTATEU
CO
Hans Walter Wolff
99 5. O QUERIGM A DA OBRA HISTÓRICO-
DEUTERONOMISTA
Hans Walter Wolff
121 6. O QUERIGMA DOS ESCRITORES SACERDO
TAIS
Walter Brueggemann
139 7. A TAREFA PERMANENTE DA CRÍTICA DA
TRADIÇÃO
155 Adendo à primeira edição
OS RECENTES DESENVOLVIMENTOS
Walter Brueggemann
173 NOTAS
Impresso na Gráfica de Edições Paulinas - 1984
C áceres
rece o melhor tratamento atual das tradições do Pen- *
Capa: Francisco
ajudar a Igreja hoje.
W olff considera a tradição de fé de Israel como uma
contínua resposta querigmática a uma variedade de
desafios culturais. Brueggemann apresenta essa vi
são dinâmica da tradição. #