Anda di halaman 1dari 204

Temas Bíblicos

CIP-Brasil. Catalogação-na-Publicação
Câmara Brasileira do Livro, SP

Brueggemann, Walter.
B914d O dinamismo das tradições do Antigo Testamento /
Walter Brueggemann, Hans W. Wolff ; (tradução Getúlio
B ertelli; revisão Carlos V ido). — São Paulo : Ed. Pauli­
nas, 1984.
(Coleção temas bíblicos)
ISBN 85-05-00053-6
1. Bíblia. A.T. Pentateuco — Crítica e interpretação
I. Wolff, Hans Walter. II. Título.
83-2027 CDD-222.106

índices para catálogo sistemático:


1. Pentateuco: Interpretação e crítica 222.106

Coleção “TEMAS BÍBLICOS”


• A imaginação profética, W. Brueggemann
• Nossas grandes palavras, N. Lohfink
• O anúncio do Antigo Testamento, A. Deissler
• A perseguição religiosa na Sagrada Escritura, X. Pikaza
• O dinamismo das tradições do Antigo Testamento, W. Brueggemann
e W. Wolff
• A perseguição religiosa na Sagrada Escritura , Xavier Pikaza
W. Bruegjíeiiiiinii
Hans W. Wolff

O DINAMISMO
DAS TRADIÇÕES
DO ANTIGO
TESTAMENTO

020944

Edições Paulinas
Título original
The vitality of Old Testament traditions
© John Knox Press, Atlanta, 1982, 2- ed.
(ISBN 0-8042-0112-9)
Tradução
Getúlio Bertelli
Revisão
CmiirrfW)

ep ED IÇ Õ ES P A U L IN A S
Rua Dr, Pinto Forra/, 183
04117 — São Paulo SP (Unisil)
End. telegr.: PAULINGS

Corn aprovação eclesiástica

ED IÇ Õ ES P A U L IN A S - SÃ O PA U LO - 1984
I S B N 0-8042-0112-9 ( O b r a o r ig in a l)
I S B N 85-05-00053-6
Prefácio
A interpretação da Escritura é e sempre foi problemática,
tanto para a sinagoga, quanto para a Igreja. Desejamos inter­
pretar com liberdade para que possa irromper entre nós uma
nova percepção e um novo sentido. Dizemos que isso é ação
do Espírito. Mas não com tanta liberdade a ponto de a Bíblia
se tornar tão-somente um veículo de nossas idéias preferidas.
Por outro lado, devemos interpretar com disciplina, de maneira
que haja um método eficaz e consistência intelectual em nossa
interpretação. Mas não com tanta disciplina a ponto de nossa
tarefa interpretativa se tornar fria e inofensiva.
Os ensaios que aqui apresentamos pretendem tomar a
Bíblia a sério, em todo seu frescor e novidade. Eles exigem um
tipo de vitalidade que não requer entusiasmo irracional, ou des­
crédito da disciplina crítica. Esses ensaios afirmam sentidos
fundamentais no texto. Isto é, estão voltados para aquilo que o
texto diz, e nessa consideração encontram nova base. Mas
também são estudos sobre método. Seguindo um modelo bem
evangélico, unem o melhor pensamento crítico da ciência disci­
plinada e a mais profunda paixão por ouvir o texto como pala­
vra de Deus. Os autores estão convencidos de que não precisa­
mos escolher entre consciência crítica e paixão; na verdade,
não podemos possuir uma sem a outra. A hermenêutica evan­
gélica, tal como é aqui caracterizada, crê que duas coisas não
podem ser transigidas em exegese: uma fé que responde e uma
mente pesceptiva.
Muita gente insiste em afirmar que uma exegese crítica
pura é um obstáculo à escuta do Evangelho no texto bíblico.
Sem dúvida, tais opiniões fazem parte de um crescente anti-
intelectualismo de nossos dias, que considera a razão como ini­
miga da fé, da percepção e da liberdade. Esses ensaios ofere-
5
cem uma alternativa e insistem nela, a saber: que a disciplina
crítica é um caminho seguro através do qual o texto se abre
para uma nova escuta c recebe sua verdadeira autoridade. A
autoridade do texto não se fundamenta no descrédito piedoso
daquilo que conhecemos, mas na mobilização de nossas me­
lhores faculdades críticas para compreender e levar a sério o
texto.
Aqui se afirma que o próprio estrato do Pentateuco repre­
senta um novo sabor de vitalidade nas tradições antigas, revi­
sando a fé para um novo contexto, quando a fé estava sendo
amargamente testada e posta à prova. Exatamente nessas pro­
vações a fé revela sua vitalidade, sua poderosa autoridade
como forma de discernir o que está ocorrendo e o que é exigido
em nossa situação. O teste da exegese ocorre quando o crente
defende sua fé contra formas, sutis ou não, de sincretismo e
perversão. A tarefa de Hans Walter Wolff, destacado professor
de exegese do Antigo Testamento em Heidelberg, respira o
espírito da Igreja Confessante da Alemanha; expressa uma
paixão pelo texto e a certeza de que este fala com vitalidade
quando sabemos escutá-lo com ouvido disciplinado. Wolff in­
tuiu essa perspectiva do texto na época em que os cristãos da
Alemanha tiveram que decidir quanto à sua seriedade frente ao
Evangelho. Ele começou a ver, a partir da provação daquele
período, que cada geração, na Bíblia, teve que tomar uma deci­
são semelhante.
Reuni estes ensaios especificamente para estudantes que
desejam desenvolver um método eficiente de interpretação e
para membros da Igreja, ministros e leigos, que desejam ouvir
o texto em toda sua vitalidade, com fé e disciplina. Recorri,
para a elaboração do ensaio introdutório, à ajuda gratificante e
ao sábio conselho de Hans Walter WolfT, que em sua vida
combinou o mais amadurecido conhecimento crítico com a
mais rica forma confessional de ser fiel ao Deus da Escritura.
Por isso, meu apreço e minha dívida para com ele são muito
6
grandes. E, além de Wolff, também seu amigo e colega
Gerhard von Rad merece minha gratidão, que é grande e ób­
via.
O professor Wolff e eu chegamos a um acordo a respeito
da publicação destes ensaios no outono de 1973, quando ele
estava residindo no Seminário de Concórdia, em Saint Louis.
Ele estimulou seus colegas dali a defenderem o Evangelho as­
sim como a Igreja Confessante o fez durante a sua provação,
sob as críticas e ameaças dos nazistas. A partir daquele outo­
no, aqueles de nós que tinham passado pela crise naquele Semi­
nário vimo-la, entre outras coisas, como uma disputa sobre
pressupostos hermenêuticos e método exegético. O assunto
principal daquela discussão, assim como destes ensaios, é o di­
namismo de uma tradição que sempre conduz a comunidade a
novas afirmações e a novas profundidades de fé, porque essa
tradição sempre conserva sua dinâmica em novas situações. A
posição hermenêutica de Wolff, ao mesmo tempo livre e crente,
se evidencia como sendo de proveito à Igreja no cumprimento
de sua tarefa, na confissão de sua fé e na celebração de suas
doxologias.
WALTER BRUEGGEMANN

7
Abreviaturas
A B ....................................................................................................Anchor Bible
BASOR ..................................Bulletin of the American Schools of Oriental
Research in Jerusalém and Baghdad
Bibi. Eph. Th. L............. Bibliotheca Ephemerides theologicae Lovanienses
B Z ......................................................................................... Biblische Zeitschrift
BZAW .. Beihefte zur Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenschaft
CBQ .......................................................................... Catholic Biblical Quarterly
E vT h...............................................................................Evangelische Theologie
F R L A N T ......................Forschungen zur Religion und Literatur des Altes
und Neuen Testaments
H T R ....................................................................Harvard Theological Review
ID B .........................................................Interpreter's Dictionary of the Bible
IDB S u p p l...............Supplement to Interpreter's Dictionary of the Bible
J A A R ..................................Journal of the American Academy of Religion
J B L ..................................................................... Journal of Biblical Literature
JS O T ......................................Journal for the Study of the Old Testament
JSOT Suppl.. .Supplement to Journal for the Study of the Old Testament
KBL L.Köhler, W.Baumgartner,Lexicon in Veteris Testament Libros
K T A V ........................................................................... KTAV Publishing House
KuD ...................................................................................Kerygma und Dogma
M T ............................................................................................... Masoretic Text
R B ................................................................................................. Revue Biblique
R H P hR ..................................Revue d’histoire et de philosophie religieuses
T h B ...................................................................................Theologische Bücherei
ThZ .............................................................................Theologische Zeitschrift
T L Z ....................................................................Theologische Literaturzeitung
U SQ R ....................................................... Union Seminary Quarterly Review
V T ...........................................................................................Vetus Testamentum
VT Suppl ......................................................Vetus Testamentum Supplement
WuD N F .................................................................................Wort und Dienst
ZAW . . ; ......................... Zeitschrift für die altestamentliche Wissenschaft
ZAW Beih ... Zeitschrift für die altestamentliche Wissenschaft, Beiheft
ZTK .....................................................Zeitschrift für Theologie und Kirche
Introdução
A PALAVRA EM SUA PARTICULARIDADE
E PODER
Walter Brueggemann

Israel, comunidade de fé do Antigo Testamento, foi um


povo de uma memória preciosa. Bem cedo registrou uma me­
mória de promessa e libertação. Considerava tais memórias
como normativas para a totalidade de sua vida e fé. Mas Israel
era também um povo que vivia no meio das pressões e tensões
históricas. E assumiu, ou tentou assumir, com seriedade, esses
riscos e ameaças, ousando crer que exatamente no meio deles
descobriria o sentido e destino de sua vida.
O Antigo Testamento é o esforço (às vezes luta) contínuo
para trazer sua memória preciosa à arena da pressão histórica
que estava moldando sua vida. Assim, o Antigo Testamento
não é apenas a memória fluida daquilo em que mais e melhor
cria. Antes, porém, para aqueles que assim o lêem, o Antigo
Testamento representa o choque entre a tradição de fé e o fato
histórico. Hans Walter Wolff, mais do que qualquer outro eru­
dito atual, enfatizou este ponto — que a memória de Israel não
começou ou continuou num vácuo. A Bíblia não se formou iso­
ladamente. Ela se formou e remodelou em meio a um árduo
confronto entre Israel e aqueles que, dentro e fora, queriam
perverter sua fé. Novos eventos, que surgiam continuamente,
apresentavam novas questões para a memória de Israel e soli­
citavam novas respostas da comunidade de fé.
Às vezes a situação de Israel convidava a fazer afirmações
corajosas, de enorme penetração e poder. Outras vezes o con-
9
texto cultural punha amargamente à prova a tradição, evocan­
do reações meramente defensivas e provincianas. Mas em cada
caso, e portanto por trás de cada texto, havia um momento de
encontro; e a partir dele surgia uma nova afirmação e uma
nova declaração de fé. A partir de cada encontro a tradição era
remodelada e a fé assumia nova forma, uma forma que nunca
teve anteriormente. Mas também o contexto cultural, a partir
desse encontro, era redefinido. A nova declaração de fé coloca­
va a questão histórica, qualquer que fosse, dentro de um novo
contexto. Naquele momento eram feitas novas exigências. A-
queles que podiam crer eram oferecidas novas esperanças. E
cada vez a fé se tornava novamente possível, justamente quan­
do as antigas formas de fé pareciam ter perdido sua importân­
cia.
Nos três ensaios aqui apresentados, Wolff conseguiu foca­
lizar aquele momento preciso do encontro. Na verdade, ele
converteu o encontro entre memória e crise num ponto de par­
tida hermenêutico. A questão interpretativa inicial, que ele
apresenta diante de qualquer texto, é: O que podemos des­
cobrir do encontro entre memória e pressão histórica neste tex­
to? Assim, em todo texto ele começa com a busca do Verkün-
digungswille (a intenção principal ou mensagem do texto sem­
pre deriva sua declaração a partir da tradição; contudo, é sem­
pre uma declaração no presente: ela muda o cenário histórico
do presente; ela permite ao crente ver ao seu redor algo que
não podia ver sem essa memória, algo dos dons inacreditáveis
de Deus ou suas exigências inflexíveis.
O propósito deste livro é apresentar três ensaios de Wolff e
um quarto de Brueggemann, que segue a metodologia de
Wolff. Mas é óbvio que a metodologia neles utilizada não sur­
giu de repente. Ela tem uma história gradual e variada, e Wolff
é fiel herdeiro autoconsciente dessa história. Assim, para ava­
liar inteligentemente os ensaios que se seguem, devemos rever a
história da erudição que está por trás deles.
10
1
QUESTÕES ABORDADAS
NO ESTUDO DO PENTATEUCO
Walter Brueggemann

A tradição científica que Wolff herdou remonta aos pri­


mórdios da interpretação bíblica, mas para nossos propósitos,
basta considerar a tarefa dos pesquisadores dos séculos dezoi­
to e dezenove, sobretudo na Alemanha, onde se conseguiram
os maiores resultados. Nesse período, havia uma insistência
crescente de que o texto bíblico fosse submetido ao estudo
mais rigoroso segundo os melhores cânones de análise científi­
ca. Notaremos que essa abordagem supõe ser a Bíblia um livro
como qualquer outro e que nenhuma reivindicação de autori­
dade divina pode servir de escudo para anular o estudo cuida­
doso, analítico. Tal abordagem, típica desse período confessa-
damente racionalista, levou à secularização da Bíblia e, inques­
tionavelmente, à destruição de sua autoridade1. Assim, o juízo
corrente dos literalistas, de que o estudo crítico mina a autori­
dade da Escritura, tem um fundo de verdade em si. Mas deve­
mos entender esse fato no contexto de outros lucros e perdas
relacionados com o surgimento do estudo crítico. A aborda­
gem dos grandes críticos históricos representa uma decisão de
interpretação extremamente importante. Estava claro que os
que sujeitaram a Bíblia às normas da análise científica não se
preocupavam com questões de autoridade, e em geral estavam
11
desinteressados quanto ao sentido do texto, além de um sentido
histórico e científico unidimensional. Por outro lado, é preciso
dizer que esses peritos também não pretendiam negar a autori­
dade do texto. Eles simplesmente não tinham interesse nessa
questão, de uma forma ou de outra.
Inevitavelmente o texto passou a ser controlado pelos peri­
tos, enquanto que os peritos anteriormente tinham que se sujei­
tar ao texto. O texto agora estava sujeito aos seus instrumen­
tais, métodos e conclusões. O fator decisivo já não era mais ne­
nhuma reivindicação de autoridade bíblica, mas sim o método
científico, que gozou de enorme popularidade e prestígio du­
rante esse período. Os peritos já não eram mais escravos do
texto. Eles pretendiam claramente ser mestres do texto, e os
seus possíveis sentidos eram controlados por critérios de racio­
nalidade. Em princípio negavam ou explicavam de maneira di­
ferente aquilo que era considerado como “sobrenatural”.
Inevitavelmente o texto veio a ser tratado com um sinal de
evidência a ser examinado e explicado. Ele foi isolado da co­
munidade que o moldou e preservou2. Qualquer dimensão de
defesa do texto, seja antiga ou contemporânea, foi perdida e ele
se tornou uma mera “coisa”. Já não se apresentava como um
sujeito com o qual é preciso tratar com seriedade, mas tornou-
se um objeto a ser explicado. Obviamente, não podia haver
diálogo com uma mera “coisa”. O processo era totalmente uni-
direcional. O perito controlava o texto; o livro se tornou um
objeto inanimado. Nesse tipo de abordagem, o perito nunca é
alguém interpelado pelo texto ou levado em conta por ele; nun­
ca está em contato direto com a comunidade que o criou e pre­
serva, vislumbrada por trás dele. A profunda mudança de pers­
pectiva realizada pela ciência na cultura em geral produziu
uma mudança igualmente profunda no caráter da Bíblia.
Já que todos nós, escritor e leitores, somos herdeiros da
mudança cultural que a ciência produziu, todos nós fomos nu­
tridos e moldados por ela, por isso não devemos tratá-la com
12
rispidez ou rejeitá-la completamente. Precisamos reconhecer,
em primeiro lugar, que somos produtos dessa cultura e que,
não importa qual seja nossa visão do texto, se radical ou con­
servadora, a totalidade de nossas vidas e maneiras de pensar
foi moldada pela erudição. Mas, em segundo lugar, devemos
reconhecer, como ponto mais importante, que esse tipo de eru­
dição alcançou resultados de valor incomensurável para nós,
de maneira que não podemos descartá-la. É interessante ver
uma analogia na história da pesquisa médica. A medicina só
pôde progredir realmente quando possibilitou que considerás­
semos o corpo humano como uma “mera coisa” a ser disseca­
da e examinada com detalhe, sem levar em conta questões de
personalidade e sentido. Na verdade, muitas das questões da
pesquisa médica atual se preocupam em livrar-se dessa abor­
dagem fria e analítica do corpo, e em redescobrir as dimensões
humanas de mistério e valor3. Igualmente, o estudo da Sagrada
Escritura teve sua época de excessiva manipulação do texto,
sem prestar atenção à sua estranha reivindicação de poder.
Mas, como na medicina, só depois que deixarmos isso de lado
é que poderemos abordar com honestidade a integridade estéti­
ca do texto.
Assim, a pesquisa médica analítica encontra sua contra­
partida no estudo objetivo da Bíblia. A medicina humanista en­
contra sua contrapartida no reconhecimento da dimensão sim­
bólica, estética e religiosa da Bíblia. Em cada um desses casos
o segundo elemento se falsificaria se não tivéssemos as grandes
conquistas do primeiro. Tanto no estudo da medicina, quanto
da Escritura, avançamos para além da mera análise, rumo a di­
mensões de totalidade e mistério em que o corpo humano ad­
quire valor e o texto bíblico, autoridade. Em nenhum desses ca­
sos somos mestres incondicionais. Em ambos os casos somos
chamados a nos curvar diante de um mistério mais profundo
do que aquilo que os melhores instrumentos de dissecação po­
dem revelar. Mas, para descobrir o lugar onde nos encontra-
13
mos, devemos procurar apreciar os esforços da erudição do
passado, que agora parecem tão problemáticos.
Sem dúvida, houve muitos peritos que se dedicaram a dis­
secar o texto segundo a metodologia científica, mas esse movi­
mento só culminou na obra de Julius Wellhausen (1844-1918).
Wellhausen era professor nas universidades de Marburgo e
Halle, e escreveu os Prolegômenos à História de Israel4, obra
que resume todo esse empreendimento de pesquisa. Ele foi um
erudito reconhecidamente competente e dificilmente podemos
sobreestimar a importância deste seu livro. Wellhausen foi edu­
cado na melhor tradição de erudição histórica alemã. Ele se
inspirou em Ewald e no tipo vigoroso de metodologia histórica
associada correntemente com Ranke. Para entender sua con­
tribuição é importante notar que Wellhausen era antes de tudo
historiador e estava interessado principalmente em escrever ou
na verdade reconstruir uma história de Israel. E, à moda de seu
tempo, pretendia escrever história baseado em fontes literárias
claras. Assim, empreendeu a busca de documentos fidedignos.
Seus prolegômenos visam ser um breve tratado sobre as fontes.
Já que Wellhausen estava interessado tão-somente em re­
compor fatos da história, abordou o Pentateuco apenas com
questões fatuais. Ele o considerava — como era de se esperar
dentro do universo cultural do século XIX — antes de tudo
sob o aspecto literário, de modo que as questões importantes
eram as referentes à data, ao autor, à unidade literária e credi­
bilidade histórica. Sem dúvida, tais questões limitavam grande­
mente o tipo de conhecimento que poderia ser adquirido.
O que nos interessa é a contribuição mais importante da
obra de Wellhausen, que consiste em ter proposto a hipótese
dos documentos. Mediante cuidadosa atenção à forma grama­
tical, ao estilo, vocabulário e perspectiva religiosa, Wellhausen
e seus colegas apresentaram a hipótese consistente e persuasi­
va de que nos primeiros livros do Antigo Testamento (os pri­
meiros cinco ou seis ou nove, dependendo do ponto de vista)
14
podemos distinguir quatro camadas literárias muito diferentes,
cada uma moldada por um “escritor” ou grupo de escritores
diferentes. Cada camada (documento) diferente possui caráter
próprio, vocabulário característico, tendências e compreensão
da história e da geografia diferentes, bem como interesses e
pressupostos religiosos próprios.
O centro dessa hipótese situava trechos do Deuteronômio
(D) em 621 a.C., com base em 2Rs 22-23. O rolo encontrado
ali foi considerado como sendo alguma forma do livro do Deu­
teronômio. Podemos notar com clareza que nas partes mais
antigas do Antigo Testamento, existem tradições primitivas,
que carecem da sofisticação de determinação próprias do Deu­
teronômio, e que portanto são anteriores. Considera-se que
esse material mais antigo é constituído por dois empreendimen­
tos literários: um usa o nome “Iahweh” para Deus e se intitula
J; o outro usa “Elohim”, e por isso é chamado E. Cogitou-se
numa quarta fonte, posterior ao ano 621 a.C.; seu estilo é tão
marcadamente prosaico — obcecado por formalismos cultuais
— que deve ter sido escrita por sacerdotes e por isso foi chama­
da de P (do alemão Priester, “sacerdote”).
Assim, essa abordagem científica revelou a noção de qua­
tro “documentos” separados:
J — do oitavo século
E — do sétimo século
D — do sétimo século, e
P — do quinto século.
Embora tenha havido melhoramentos e críticas a esse es­
quema, e ocasionalmente tenha sido rejeitado, em seu conjunto
ainda é o critério que percorre todos os estudos do AntigoTes­
tamento. Para nosso escopo, oimportante não é aceitar ou re­
jeitar essa hipótese, mas notar o clima psicológico de sua inves­
tigação.
Os estudiosos representados por Wellhausen atribuíram ao
texto não apenas uma falta de autoridade particular, como
15
também de dinamismo. E ficaram apenas com fragmentos e
trechos literários — tão sem brilho como um cadáver. A hipóte­
se dos documentos, tal como foi formulada em sua maneira ca­
racterística, tinha conotações negativas, e não foi empregada
para ouvir melhor o texto, mas somente para explicar proble­
mas literários tais como duplicados, repetições e contradições.
A essência das conclusões de Wellhausem ainda é amplamente
aceita, mas a intenção de sua investigação é considerada hoje
em dia como intoleravelmente restrita: tomar um documento li­
terário e, com o instrumental de uma crítica rigorosa, dissecá-
lo de forma totalmente mecânica. A análise de Wellhausen foi
uma descoberta impressionante, mas acabou transformando a
Bíblia numa amostra sem vida para o observador.
É óbvio que a enorme influência de Wellhausen moldou em
grande escala o estudo do Pentateuco. O resultado foi uma vi­
são do texto tão estática quanto fixa. Para realizar sua inten­
ção de escrever um relato histórico e objetivo, Wellhausen redu­
ziu o Pentateuco a um documento a ser dissecado, um docu­
mento não apenas sem autoridade, mas, o que é mais impor­
tante, sem relevância, do qual nada se podia esperar.
O próximo passo importante no estudo do Pentateuco se
deu com a obra de Hermann Gunkel (1862-1932), que era pro­
fessor em Berlim, Giessen e Halle e publicou seu comentário
sobre o Gênesis na virada do século5. A obra de Gunkel é mais
do que um comentário, pois propõe uma abordagem totalmen­
te nova ao estudo das antigas tradições narrativas. É um esfor­
ço para ir além dos pressupostos literários de Wellhausen e le­
vantar questões referentes à forma mais antiga da tradição, a
forma oral — questão que Wellhausen não levantou e nem po­
dia fazê-lo por causa de seu interesse pelos “documentos”. Ao
passar dos documentos escritos para as tradições orais, Gun­
kel propunha uma forma de estudo que era bastante subjetiva e
que carecia necessariamente dos controles científicos tão es­
senciais a Wellhausen. Exigia-se uma nova atmosfera intelec-
16
tual, incorporada à tradição romântica de Herder e Lessing,
da qual o próprio Gunkel se sentia herdeiro. Enquanto Well-
hausen era um cientista em seus métodos e perspectivas, Gun­
kel acreditava que uma abordagem científica não poderia res­
ponder e nem mesmo formular todas as questões relevantes.
Ele afirmava que “exegese, em seu sentido mais elevado, é mais
uma arte (Kunst) do que uma ciência (Wissenschaft)6.” Ele
queria dizer com isso que a sensibilidade estética à dinâmica e
à forma de uma passagem é essencial para a sua compreensão,
e que essa sensibilidade não poderia ser criada pelo controle
científico, nem por sua dissecação sem vida. Gunkel sugeria e
cultivava uma perspicácia como de criança, aberta às dimen­
sões da admiração e da fantasia. Ele estava atento ao mistério
da forma poética e sabia que essa interpretação requeria um
aspecto subjetivo, além do objetivo. Dissemos que para Well-
hausen o texto se converteu numa “mera coisa” a ser contro­
lada. Não exageramos ao afirmar que para Gunkel o texto se
converteu num “tu” vivo e que interpela o intérprete, convidan­
do-o a entrar em diálogos que encerram sentidos não estrita­
mente sujeitos à indagação científica.
A perspectiva de Gunkel resultou em importantes desco­
bertas para a interpretação. Embora aceitasse a análise das
fontes de Wellhausen, reconhecendo uma grande dívida para
com o mesmo, e nunca tentasse romper com ele, foi levado a
formular questões que Wellhausen considerava ilegítimas ou
triviais.
Quanto à data dos documentos, Wellhausen assumiu a po­
sição positivista de que só podemos datar o documento como
tal e de que não há meio seguro para se datar seus anteceden­
tes móveis, orais. Gunkel ousou seguir um estudo dessas for­
mas orais, pré-escritas, e afirmava a grande antiguidade do
material, para além do alcance da crítica científica. Enquanto
Wellhausen pretendia situar os documentos em datas razoavel­
mente tardias, Gunkel atribuía a seus antecedentes orais uma
17
data anterior, isto é, situava-os nos tempos dos quais eles mes­
mos falam. Isso marca uma guinada com relação ao ceticismo
científico referente às reivindicações históricas dos documen­
tos.
Gunkel deu o passo mais importante, sociologicamente,
quando sugeriu que o estágio oral da tradição só podia ser en­
tendido como um esforço da comunidade que procurava pre­
servar sua memória e afirmar sua identidade. As histórias do
Pentateuco não existem num vazio literário, mas no intercâm­
bio oral entre aqueles que falam e aqueles que escutam. E a ta­
refa dos intérpretes modernos consiste em reconstruir e ouvir
esses intercâmbios da melhor maneira possível, entender o que
está sendo dito e ouvido, comunicado e entendido. Obviamen­
te, tal compreensão não se refere simplesmente à clara intenção
das palavras usadas (nisso Wellhausen era mestre), mas ao
acontecimento formal e estético total envolvido no falar e
ouvir.
Foi esse interesse sociológico que levou Gunkel, seguindo
as antigas sugestões de Herder e De Wette, a desenvolver o mé­
todo da crítica da forma, isto é, a descobrir a forma caracterís­
tica com a qual as comunidades transmitem e comunicam vá­
rios tipos de materiais. Ele observou que as comunidades de­
senvolvem maneirismos de fòrma, estilo e matiz que são impor­
tantes portadores de sentido. Sobretudo, é possível descobrir as
situações (Sitze im Leben) em que uma comunidade comunica
sentido, poderemos sentir muito mais a carga de interação do
texto que está sob a superfície das palavras.
A perspectiva e a experiência de Gunkel levaram-no a ver
que a Bíblia não emergiu nem existiu num vazio literário, mas
num vibrante contexto sociológico. E à medida em que ele ia
estudando e redescobrindo algo desse contexto, era levado a
considerar que a comunidade de Israel não teve o monopólio
de nenhuma dessas formas de comunicação ou situações. Isso
o levou a enfocar os textos do Antigo Testamento à luz dos re­
18
manescentes culturais de outros povos do antigo Oriente Pró­
ximo. Gunkel rjão tinha interesse na religião do Antigo Testa­
mento como tal, mas queria compreendê-la nos termos mais
abrangentes possíveis; assim procurou a repetição de temás e
formas semelhantes em outros lugares.
Enquanto Wellhausen buscava as grandes continuidades li­
terárias (documentos), a atenção de Gunkel para o detalhe le-
vou-o a enfocar a unidade menor — o episódio individual ou
perícope. Embora ele desse alguma atenção aos desenvolvi­
mentos posteriores do conjunto e agrupamento de entidades li­
terárias maiores, suas energias mais dinâmicas foram devota­
das à compreensão das formas e situações da unidade literária
individual, onde julgava que ia encontrar o poder estético mais
intenso. Ele caracterizou os tipos especiais de narrativas de mi­
to, saga, lenda e fábula, como portadores de um sentido parti­
cular. Estes tipos têm múltiplas funções na comunidade, tais
como: criar o assombro e admiração, conferir identidade e
conceder legitimidade.
A tarefa de Gunkel permaneceu durante muito tempo
como uma investigação de menor importância, própria de um
pequeno grupo apenas. Ela não coadunava com o racionalis-
mo que caracterizava o ambiente científico desse período; e era
considerada com particular desdém na América do Norte, pois
requeria um tipo de sensibilidade não valorizada ou não consi­
derada legítima nos meios científicos. Só mais tarde, principal­
mente graças aos esforços de James Muilenburg e Brevar
Childs e seus alunos, o estudo das formas ganhou aceitação na
América 7.
Os parâmetros para questões de interpretação foram colo­
cados em grande parte por Wellhausen e Gunkel. A aborda­
gem de Wellhausen é científica; a de Gunkel é artística. Well­
hausen é consistentemente analítico; Gunkel sintético. Well­
hausen busca precisão; Gunkel, o matiz sugestivo. Wellhausen
19
fala de documentos; Gunkel, de tradições. Wellhausen valoriza
a disciplina; Gunkel sublinha a imaginação. Felizmente, a in­
vestigação científica rejeitou ter que escolher entre ambas, pois
é evidente que uma exegese responsável precisa das duas. De­
vemos perguntar com Wellhausen: O que de fato os documen­
tos querem dizer? e com Gunkel: O que parece estar ocorren­
do na transmissão do texto? A disciplina da investigação
científica convida-nos a considerar o texto como uma “mera
coisa”, um objeto que controlamos e explicamos. A sensibilida­
de poética requer que consideremos o texto também como um
“tu”, um parceiro de conversa que não pode ser reduzido a
apenas um sentido, mas que sempre sugere novos sentidos e
afirmações. Após um longo período de estudo crítico preciso,
vivemos agora numa época em que é grande a tentação de
abandonar a disciplina crítica em favor da intuição. Ou, para
dizê-lo de outro modo, após os rigores do racionalismo, a for­
ma de a Igreja manusear o texto agora caminha em direção ao
romantismo. Mas a posição relevante tanto de Wellhausen,
quanto de Gunkel, na história da interpretação, deve recordar-
nos que é preciso manter certo equilíbrio entre ambos.
No que diz respeito ao Pentateuco, Wellhausen e Gunkel
não devem ser considerados como estágios sucessivos na in­
vestigação científica, como se um superasse o outro; nem
como alternativas, como se uma pudesse excluir a outra. Pelo
contrário, eles articulam duas tarefas interpretativas muito di­
ferentes, sendo que ambas são necessárias a qualquer com­
preensão responsável do texto. Devemos tratar as duas abor­
dagens como complementares.
O grande passo seguinte que influenciou decisivamente o
estudo do Pentateuco está ligado a William Foxwell Albright.
Um dos homens mais cultos da América do Norte, foi ele com
certeza o pesquisador do Antigo Testamento mais reconhecido
e influente. Albright deu inquestionavelmente a mais importan­
tes contribuição aos estudos bíblicos, e especificamente aos es­
20
tudos do Antigo Testamento, do que qualquer outro ameri­
cano.
Nascido em 1891, passou sua carreira acadêmica desen­
volvendo um programa na universidade John Hopkins, que
treinou a maioria dos pesquisadores mais dinâmicos dos EUA
no período de 1925 a 1960. O interesse primordial de Albright
se concentrou na filosofia da história, e grande parte de seu es­
forço consistiu em demolir uma concepção evolucionista do
desenvolvimento progressivo da religião na Bíblia, uma con­
cepção aparentemente moldada por Hegel e associada a Well-
hausen. Como refutação a esse evolucionismo, Albright ofere­
ceu a alternativa de se compreender a história como orgânica8.
Ele afirmou que a história religiosa de Israel não testemunhou
novos emergentes, mas sim a atualização contínua daquilo que
de fato estava implícito ab ovo em sua religião mais antiga, des­
de o tempo de Moisés. À luz desta concepção da história (con­
firmada por um acervo de evidência filológica e arqueológica),
suas interpretações sempre acentuaram a importância do
período dos primórdios (Moisés), e deram aos materiais do
Pentateuco a data mais antiga que a evidência podia permitir.
(Podemos notar que, à semelhança de Gunkel, Albright aceita­
va em princípio a hipótese dos documentos de Wellhausen,
mas rejeitava firmemente a idéia de uma religião progressiva,
que derivara dessa hipótese9.)
A evidência à qual Albright apelava era arqueológica, e em
matéria de arqueologia encontramos uma perspectiva tipica­
mente americana. Albright formou um grande número de estu­
dantes capazes e competentes, e ele mesmo criou uma enorme
produção: tudo isso desenvolveu uma nova perspectiva e uma
nova metodologia de investigação do material bíblico. Sem dú­
vida, Albright não inventou a idéia de usar as descobertas ar­
queológicas para interpretar a Bíblia, mas mais do que qual­
quer outro criou critérios de verificação científicos, de maneira
que os dados podiam ser avaliados e utilizados. Junto com a
21
arqueologia, ele e seus alunos colocaram num novo plano os
estudos linguisticos e filológicos, estabelecendo controles de ve­
rificação de epígrafes a fim de descobrir sua data.
Albright nos ensinou a colocar novas questões frente ao
texto: questões referentes à sua credibilidade enquanto história.
Ainda mais do que Gunkel, ele levou a sério os dados de todas
as culturas do Oriente Próximo como subsídio para a com­
preensão da Bíblia. As conclusões de Albright foram tipica­
mente conservadoras quanto às questões históricas, de modo
que as reivindicações históricas da Bíblia foram defendidas por
todos os meios possíveis. Em seus múltiplos e fecundos escri­
tos, ensinou-nos que o texto sempre deve ser considerado em
relação à evidência arqueológica dos documentos em si e, por
outro lado, dos escritos dos cananeus, bem como do Oriente
Médio em geral.
Na história da pesquisa científica, Albright dificilmente
pode ser situado em relação aos alemães. O livro As Sagas do
Gênesis, de Gunkel, foi reimpresso em 1964, e em sua introdu­
ção Albright se alinhava ao lado de Gunkel contra Wellhau-
sen10. Na verdade, chegamos a perceber em seus vários escri­
tos esse ataque contra Wellhausen e sua hipótese desenvolvi-
mentista como uma preocupação dominante — em detrimento
de outras questões mais positivas. Albright coincide com Gun­
kel especialmente em (a) sua preocupação com a antiguidade
da tradição e (b) sua atenção à evidência e paralelos não-
bíblicos.
Mas este breve ensaio de Albright sobre Gunkel é desorien-
tador. Na verdade, as simpatias e interesses de Albright estão
bem mais próximos de Gunkel, mas o tom e a textura de sua
obra lembram muito mais a Wellhausen. E evidente que o mé­
todo de Albright é mais cientifico do que artístico. Ele valoriza
a evidência metódica e científica mais do que a imaginação
criativa. Também é evidente que sua preocupação última é his­
tórica. Como vimos, a hipótese literária de Wellhausen, em sua
22
totalidade, pretendia estabelecer uma valoração dos documen­
tos para se escrever história. Dentro desse modelo, a datação
cronológica feita por Albright, bem como seu estudo de epigra­
fia e lingüística, visavam situar as tradições, e portanto defen­
der a historicidade do período primordial reivindicada na pró­
pria Bíblia. Sem dúvida, essa é uma tarefa legítima e importan­
te. Devemos notar aqui a tensão entre a disciplina da pesquisa
científica e a sensibilidade artística que embasa a obra de
Albright, tensão que deve ser mantida por todo exegeta respon­
sável.
Para nosso escopo, a contribuição mais importante de
Albright é a reivindicação convincente de que as tradições do
Pentateuco não se originaram nem existiram num vazio social,
político ou literário. A compreensão fiel do texto exige que seu
início e sua transmissão sejam considerados à luz de seu meio
ambiente. E, obviamente, o tipo de evidência confirmado por
Albright e seus alunos é pré-requisito para a compreensão do
meio ambiente.
O quarto grande impulso do estudo do Pentateuco provém
da obra de Gerhard von Rad (1901-1971), que era professor
na Universidade de Heidelberg. Ao mesmo tempo em que acei­
tou plenamente a moldura de Wellhausen das quatro fontes do­
cumentárias e demonstrou sua própria habilidade na análise li­
terária, deu continuidade à disposição estética e à intenção de
Gunkel. Na verdade, abordou tarefas deixadas inacabadas por
este.
Von Rad aprecia imensamente o senso estético de Gunkel
ao considerar a “saga” como uma forma de se compreender a
história11. A abordagem da saga resiste à procissão e objetivi­
dade defendidas por Wellhausen e Albright. As sagas exigem
uma abordagem mais criativa e von Rad obviamente conse­
guiu apresentá-la. Enquanto Gunkel se preocupa com unidades
literárias individuais, von Rad amplia a abordagem estética e
os métodos da crítica da forma às unidades maiores, a saber:
23
às camadas literárias (“documentos”) identificadas por Well-
hausen.
É importante notar as perspectivas diferentes de Gunkel e
von Rad na confirmação de suas respectivas contribuições.
Todo pesquisador crítico admite que a literatura do Pentateuco
tenha atrás de si um longo processo de crescimento e desenvol­
vimento. Embora não possamos distinguir cada estágio, pode­
mos sugerir pelo menos três evoluções principais: (a) a forma
mais antiga, a tradição oral, que provavelmente consistia em
breves unidades de material separadas; (b) a combinação des­
sas unidades separadas em conjuntos coerentes, que se torna­
ram fios condutores, linhas-mestras do Pentateuco (embora
esse estágio seja tido como escrito, sem dúvida inclui uma di­
mensão oral); e (c) a combinação de fontes ou camadas numa
unidade que agora conhecemos como Pentateuco. Sem dúvida,
esse processo é bem mais complexo. Grande parte dele está
para além de nossa descoberta.
Uma análise completa do material deve considerar cada es­
tágio de seu desenvolvimento e dar atenção não somente ao
processo, mas também aos motivos que estão por trás de cada
seqüência específica. Tanto Gunkel quanto von Rad deseja­
vam explorar esse processo total, mas de fato ambos resolve­
ram só um estágio. Gunkel se propôs estudar toda a história da
literatura, mas no fim restringiu-se ao estágio mais antigo — o
material oral. Isso levou-o a ser mais sensível aos matizes líri­
cos e poéticos, e a não estar especialmente interessado numa
substância teológica mais consistente. Para o primeiro estágio
da literatura, esta ênfase era inteiramente apropriada. Von
Rad, como Gunkel, também pretendia focalizar a atenção no
processo integral da literatura, mas acabou se interessando por
um momento, o do acabamento final das camadas. Já que esta­
va menos interessado do que Gunkel na dimensão mais antiga,
oral, do material, prestou muito mais atenção a suas tendên­
cias teológicas conscientes. Reiteramos: esse enfoque era apro­
24
priado ao estágio do material. Esses dois pesquisadores fixa­
ram-se em um período do desenvolvimento literário. Essa deci­
são facilitou-lhes certo aprendizado para a sua pesquisa.
Até hoje sentimos falta de um estudo completo e consisten­
te deste processo global, desde as menores unidades literárias
até sua forma acabada. Talvez nenhum pesquisador sozinho,
nem um grupo de pesquisadores, possa concluir essa tarefa. E
talvez nenhum método consiga tratar das várias questões que
poderia levantar. Contudo, a ênfase canônica de Brevard
Childs12 sugere que cada estágio do desenvolvimento merece
cuidadosa atenção. E provável que o comentário sobre o Gêne­
sis, de Bernard Anderson, ainda por ser impresso, concentre
sua atenção no Gênesis completo, expressando assim um inte­
resse sintético mais abrangente do que o de Gunkel ou de von
Rad. Anderson sugere que em certo sentido o estudo adequado
da Escritura consiste na consideração de entidades integrais, e
que outras inquirições, embora sejam importantes, na verdade
só tratam da pré-história da Bíblia.
Para nós é importante notar que a escolha do estágio cujo
desenvolvimento vamos estudar influencia tanto na metodolo­
gia quanto nas conclusões. É importante que os estudantes de li­
teratura evitem a preocupação com qualquer estágio particular
e percebam a literatura em sua trajetória total. Esta só progride
estando em relação com as necessidades e a imaginação da co­
munidade que está em diálogo com ela. Os quatro ensaios aqui
apresentados obviamente focalizam um único momento neste
desenvolvimento — a realização final das grandes correntes.
Foi esta a ênfase de von Rad. Na pesquisa mais recente quase
sucumbimos à tentação de transformar esse momento em nor­
ma. Na verdade, ele é apenas um estágio no longo processo. E
cada estágio do processo é importante para nossa compreen­
são. Von Rad é sensível ao fato de que, nas unidades literárias
analisadas por Gunkel, perdemos a direção quando aceitamos
a unidade literária “pura”, sem acrescentar nada — como uma
25
simples saga como outra qualquer (foi isso que de fato Gunkel
fez).
Von Rad tem consciência de que no Pentateuco estamos li­
dando com histórias que foram “remodeladas”13. No antigo Is­
rael, o principal poder formador de sagas era a fé. “Não encon­
tramos nem uma única saga que não tivesse recebido da fé sua
marca e orientação decisivas14”. Notemos que nesta afirmação
von Rad introduziu uma idéia totalmente nova e um método
particular de interpretação que não estão no texto, mas são tra­
zidos ao texto pelo intérprete. Com essa declaração von Rad
distingue claramente a si mesmo de Gunkel. As investigações
de von Rad se interessam pela forma como o material primitivo
(nas pequenas unidades literárias que Gunkel havia percebido)
era remodelado e unificado numa afirmação de fé. Em seus
principais escritos sobre este tema15, von Rad começa por si­
tuar uma confissão de fé básica, que considera antiga e decisi­
va para a religião de Israel. As três confissões de fé de Dt 6,20-
25; 26,5-9 e Js 24,2-13 apresentam as convicções normativas
que Israel afirma sobre si mesmo. Von Rad incorre em certo
tipo de positivismo teológico neste ponto, porque crê que essas
formulações sejam o início adequado para a interpretação, sem
dados auxiliares. Em cada uma dessas formulações fundamen­
tais os elementos básicos são o êxodo e a entrada na terra — e
num grau menor, a promessa aos pais bem como a peregrina­
ção pelo deserto. Essas formulações silenciam a respeito do Si­
nai. Von Rad não defende nem demonstra quer a antiguidade,
quer a centralidade desses textos. Em vez disso, afirma sim­
plesmente, como ponto de partida de sua hipótese, que estes
são os elementos em que Israel creu com mais consistência e
antiguidade, com o máximo de fidelidade e imaginação.
Assim, na tentativa de ultrapassar a Gunkel, põe esta ques­
tão frente a cada texto: “Como este relato criativo se relaciona
com a formulação da confissão de fé mais apaixonada de Is­
rael?” Sua resposta é que as sagas, que são essencialmente pré-
26
israelitas e anteriores à fé em sua origem, foram “remodela­
das” sob a influência do credo16. Ou em outro lugar afirma que
os “elementos básicos daquilo que ocorreu a Israel em sua his­
tória com Iahweh” foi “derramado” nos receptáculos destas
sagas. Perdeu-se, para nós, o exato processo litúrgico ou literá­
rio mediante o qual isso ocorreu, mas é evidente que neste pro­
cesso as histórias foram transformadas. Aquilo que era simples
história tribal destinada ao ensino e lazer (conforme Gunkel),
passou a ser afirmação de fé. Traz agora consigo uma mensa­
gem que originalmente não fazia parte dela.
Por exemplo, a curiosa história da mentira de Abraão para
se salvar (Gn 12,10-20; 20,1-18; 26,6-16) provavelmente só foi
conservada para mostrar a beleza de Sara e a perspicácia de
Abraão. Como tal, essa história não teve um peso decisivo
além da celebração da memória e identidade da comunidade.
Mas sob a influência do credo, essa história se torna confirma­
ção de que a promessa de Iahweh a Abraão é válida, exceto se
ele duvidar dela e assumir o destino em suas próprias mãos.
Neste caso a promessa retardará, e a meta da história terá sido
posta em dúvida. Este relato, assim transformado, refere-se ao
risco de confiar na promessa e à tentação de seguir formas al­
ternativas de sobrevivência. Von Rad provou, com considerá­
vel êxito, que num contexto mais tardio (século décimo) de se-
cularização e racionalismo, o credo se tornou o pólo magnético
do ordenamento de todos os vários relatos, que foram gradual­
mente estruturados num conjunto dinâmico e coerente. Aquilo
que era uma mistura de muitos tipos de relatos desconexos se
tornou (“foi feito”) um só relato com uma mesma fluência,
indo da criação à conquista da terra, ou, dito de outra forma,
da promessa à sua realização.
Veremos que von Rad derivou do texto uma nova inferên­
cia. Ele está interessado — e de um modo que nem Wellhausen,
nem Gunkel, nem Albright estiveram — pelo elemento querig-
mático da Escritura, isto é, pela afirmação de fé que a comuni-
27
dade expressou na preservação e transmissão de suas sagas.
Von Rad afirma que este interesse na preservação e transmis­
são é teológico. O povo passa adiante esses relatos não porque
sejam especulação interessante, mas porque trazem consigo
uma mensagem que se relaciona com a vida e identidade da co­
munidade.
No contexto da Igreja Confessante na Alemanha na déca­
da de trinta, e influenciada pelo interesse querigmático domi­
nante a partir de Barth, von Rad decidiu situar a mensagem de
cada texto em termos da fé de Israel. Ele começa com a pre­
missa de que a Bíblia, em última análise, não é nem história
nem literatura, mas uma confissão de uma comunidade que
aproveitava qualquer oportunidade para confessar e reiterar
sua fé. Obviamente, nem todo relato antigo continha a mensa­
gem correta; por isso, aqueles que não a traziam, eram requisi­
tados para fazê-lo.

A requisição de antigas sagas por parte da reflexão teológica


não espelha outra coisa senão aquilo que todo o Israel experi­
mentou pela revelação de Iahweh: a requisição de todas as
esferas da vida e de todos os âmbitos profanos pela vontade
exigente e promissora de Deus1K.

Por isso, as concepções de von Rad referentes à literatura


seguem sua dinâmica fé evangélica. Assim como Deus reivindi­
ca os relatos profanos para sua mensagem.
A forma de teologizar de von Rad não consiste em criá-la,
mas em observar o processo que ocorre no próprio texto. Sua
posição hermenêutica é esta: prestar atenção à forma ousada e
vigorosa com que o próprio texto faz teologia. O momento
crítico na vida do texto ocorre quando é requisitado e se torna
um veículo para a mensagem da fé de Israel. E exegese signifí-
28
ca precisamente detectar o conteúdo da afirmação recém-
descoberta no texto19.
E óbvio que já superamos Gunkel. Von Rad não está mais
r _

interessado na estética como tal, embora seu próprio comentá­


rio seja extremamente delicado nesses pontos. Ele está interes­
sado na maneira como um texto é recrutado para servir a uma
mensagem. De fato, ele é um fiel herdeiro de Gunkel tanto em
seu método quanto em inspiração. Seu método leva a sério a
forma e a situação. Ele sempre procura perceber a interação
entre o falar e o ouvir que se desenrola no texto. E sempre está
em busca da afirmação mais abrangente que a pura dissecação
talvez ignore ou perverta. Von Rad tem consciência de que o
poder inicial de uma saga nunca é reduzido ao racional e lógi­
co. Quando o texto faz teologia, ele o faz de maneira a respei­
tar o espírito e a inspiração do relato. Mas von Rad entende a
saga transformada como tendo uma nova reivindicação, que
cobra a crença da comunidade. Já não é mais um texto que
“está aí” para ser analisado: transformou-se num texto dirigido
a comunidade de fé no momento de sua fé.
A partir de von Rad, o estudo do Antigo Testamento ga­
nhou a hipótese interpretativa mais importante. O Pentateuco
não surgiu num vazio, mas foi elaborado por uma comunidade
confessante, que procurava cuidadosa e inteligentemente mol­
dar a tradição que expressava sua confissão. A construção de
uma confissão não é algo que o intérprete traz para dentro do
texto. Ele já a encontra aí. Deixar de considerar esse elemento
num texto significa rejeitar sua intenção primeira, que é o pró­
prio querigma.
Antes de deixar von Rad, devemos notar que, além de ter
uma grande dívida para com Gunkel, ele a tem igualmente
para com dois importantes historiadores do estudo veterotesta-
mentário: seu professor Albrecht Alt e seu colega Martin
Noth20. Foi Alt quem formulou a hipótese de uma confedera­
ção tribal, que foi essencial à tese de von Rad, sugerindo, como
29
de fato o fez, um contexto comunitário e litúrgico em que o
credo era recitado. E foi Noth quem isolou os temas do Penta-
teuco; isso permitiu que von Rad interpretasse seu trabalho da
maneira que o fez. Von Rad veio a acentuar a interação entre
povo e tradição, ou, podemos dizer, entre Igreja e livro. E nesta
interação que o texto é ouvido e aceito como normativo. Entre
os livros norte-americanos sobre von Rad, podemos notar o
sugestivo título de Napier, De Fé em Fé21. De fato, foi von Rad
quem viu na Bíblia um movimento não apenas “em direção à
fé”, mas também “a partir da fé”. Portanto, o livro e a comuni­
dade de fé pertencem um ao outro. A fé da comunidade mol­
dou textos que originalmente não tinham nenhum vínculo com
ela.
O estudo do Pentateuco testemunhou assim uma variedade
de abordagens de investigação científica: literária, crítica das
formas, arqueológica, e as que foram feitas a partir da história
das tradições. Sem dúvida, elas não vêm numa seqüência níti­
da, nem visam, as novas abordagens, substituir as anteriores.
Cada abordagem forneceu importantes questões a serem dirigi­
das ao texto, e qualquer compreensão adequada do texto exige
que enfrentemos todas as demais questões.
Assim, de Wellhausen aprendemos a perguntar: A que es­
trato literário pertence o texto? Talvez este seja o ponto de par­
tida de qualquer interpretação responsável.
De Gunkel aprendemos a levantar a questão da tradição
oral pré-literária: Em que forma está expresso o texto, de que
contexto vital (Sitz im Leben) deriva e o que está ocorrendo no
texto enquanto evento de fala e escuta?
De Albright aprendemos a perguntar: O que num texto é
fatualmente verídico para a história, dentre uma variedade de
elementos tradicionais? E a isso podemos acrescentar: O que
nesse texto sugere o caráter único e específico de Israel e o que
sugere sua semelhança com seus vizinhos culturais?
30
E de von Rad aprendemos a perguntar: Em que forma o
texto foi “remodelado” de maneira a se tornar uma expressão
da fé normativa de Israel e ser compreendido em sua intenção
querigmática? Como este texto pode se tornar veículo da fé
confessante da comunidade?

31
2
A METODOLOGIA QUERIGMATICA DE
WOLFF
Walter Brueggemann

Agora estamos preparados para tratar dos ensaios sobre as


quatro fontes J, E, D e P apresentadas aqui por Wolff e Brueg­
gemann. É evidente que Wolff é um herdeiro consciente e fiel
da longa história do estudo do Pentateuco. Obviamente, ele se­
gue Wellhausen quando considera fundamental localizar um
texto em sua camada de tradição (“documento” segundo Well­
hausen). Sem dúvida, Wolff nem sempre aceita a atribuição de
um texto, mas sempre começa com a pergunta de Wellhausen.
E a designação de um texto a uma camada de tradição estabe­
lece limites provisórios de interpretação. Enquanto Wolff não
se interessa aqui pelo estágio oral do texto, é diretamente mol­
dado pelos preceitos sociológicos de Gunkel. Certamente os
textos não existem num vácuo, mas pertencem a uma situação
social. Os textos sempre são apenas uma parte do falar e ouvir
da interação social.
Wolff, em sua abordagem, leva mais em conta von Rad do
que qualquer outro. Do estudo do credo de von Rad surgiu um
novo interesse entre os estudos do Antigo Testamento pela
questão querigmática. Pelo fato de von Rad ter mostrado que
os textos são remodelados pelo credo e não têm um sentido ori-
33
2 — 0 dinamismo das tradições do Antigo Testamento
ginal, a questão da fé confessada por Israel é a primeira a ser
levantada diante de cada texto.
Essa decisão referente à questão a ser posta diante do texto
(que é compartilhada por von Rad e Wolfí) é hermeneutica-
mente importante, porque determina o que o texto é e o que
não é. Essa questão torna certas perguntas legitimas e urgen­
tes, e vice-versa; de início, exclui totalmente outras questões. O
fato de buscarmos um querigma no texto supõe que temos em
algum lugar, em algum texto, uma afirmação de fé normativa,
feita pela comunidade confessante. Assim von Rad e Wolff ca­
minham na direção de Barth ao insistir em que a exegese seja
eclesial, não no sentido de que só a Igreja confessante pode ler
a Bíblia com discernimento, mas de que somente a Igeja, co­
munidade de fé consciente, pode ser autora do texto. O texto
tal como o temos agora, isto é, como cânone, é obra de uma
comunidade confessante, e a exegese consiste principalmente
em investigar aquilo que a comunidade pretendia confessar.
Essa decisão significa que Wolff e von Rad rejeitaram mui­
tas preocupações como sendo irrelevantes para eles. Sobretu­
do, não se interessaram de maneira especial por questões de
história, levantadas em forma negativa por Wellhausen ou po­
sitiva por Albright. Não mostraram maior interesse pelo está­
gio pré-literário, que Gunkel tão sugestivamente abordava;
nem qualquer interesse central pela noção do desenvolvimento
da religião de Israel, interesse que é fundamental em Wellhau­
sen e que Albright estava preocupado em refutar. E, finalmen­
te, não mostraram interesse real pelas relações da Bíblia com
os textos do antigo Oriente Próximo nem com os respectivos
contextos, tal como Albright havia acentuado.
Na verdade, não é suficiente dizer que eles não têm interes-
se por esses assuntos. (E mais acertado dizer, de acordo com
sua decisão hermenêutica, que o próprio texto, por sua nature­
za enquanto confissão, torna ilegítimas tais questões. E o texto
que impede tais questões, e não o intérprete. Questões de histó­
34
ria ou de desenvolvimento religioso podem ser levantadas, mas
não podem ser respondidas a partir do texto sem perder sua
importância. A Bíblia, e especialmente o Hexateuco, não é uma
coleção de relatos interessantes sobre convicções ou práticas
religiosas de ninguém. Antes, porém, é uma afirmação norma­
tiva criada pelos melhores teólogos de Israel para dar expres­
são àquilo que todos deviam crer — o que não significa que
sempre creram nisso, mas que concordaram em ser essa a me­
dida da fé autêntica.
A pesquisa científica de Wolff, como ele mesmo reconhe­
ce1, é dependente tanto da obra de Wellhausen quanto da de
Gunkel; e se interessa também por aquilo que no texto é verídi­
co quanto à historicidade (questão levantada por Albright).
Esse interesse histórico é evidente em seus ensaios hermenêuti­
cos, que insistem em que a exegese deva ser feita em termos
históricos. Mas para nosso escopo é interessante notar que a
abordagem de WolfT está mais diretamente ligada a von Rad. E
para entender o que Wolff pretende nesses ensaios, é necessá­
rio ter em vista o quadro de referência em que seus pressupos­
tos foram moldados.
A obra fundamental de von Rad sobre o Pentateuco e os
anos de formação acadêmica de WolfT se deram ao redor de
1930, quando estavam vivas na Igreja alemã profundas ques­
tões de fé. Na metade da década de trinta, sob o impacto das
articulações de Barth, formou-se a Igreja Confessante — cris­
tãos evangélicos que, por causa do Evangelho, rejeitaram as
reivindicações teológicas do movimento nacional-socialista2.
Em seu ato mais dramático, a Igreja Confessante emitiu a De­
claração de Barmen. Trata-se de um drástico repúdio a atitude
dos “cristãos alemães”, que se acomodaram a Hitler e não
viam conflito entre Igreja e cultura. Muitos líderes eclesiásticos
alemães desse período, especialmente pastores, se posiciona­
ram corajosamente do lado do Evangelho e arriscaram muito.
Alguns pagaram alto preço. Sem dúvida, o mais conhecido é
35
Dietrich Bonhoeffer. Mas também von Rad e Wolff estavam
neste grupo de fiéis. Não é preciso ter muita imaginação para
ver o que tal decisão acarretaria para a exegese. O estudo das
Sagradas Escrituras ganhou nova urgência. Não havia ocasião
para um interesse pedante. Havia agora uma necessidade pre­
mente, desesperada, de ouvir a Palavra de Deus no texto, pois
a Igreja Confessante aprendera que somente assim poderia
descobrir recursos adequados.
Foi precisamente esse interesse em ouvir a Palavra no texto
que estabeleceu o programa de estudo de von Rad, e mudou
radicalmente a direção da investigação científica. As questões
criticas foram redirecionadas “da esfera estético-arcaica (Gun­
kel) para o reino das Credenda do Antigo Testamento e sua
história traditiva3”. A questão levantada por von Rad é: “Qual
é o objetivo querigmático das fontes às quais o credo ordenou
e imprimiu uma intenção?4” A localização da intenção querig-
mática do texto era uma questão candente para a Igreja Con­
fessante, e levou tanto von Rad quanto Wolff a considerar
cada texto como afirmação confessional.
Assim, o ensaio de Wolff supõe aqui que a Igreja não ga­
nhou uma posição confessional na Alemanha, em 1930. Antes,
porém, em seus tempos de fé a Igreja, incluindo sem dúvida Is­
rael, sempre foi uma Igreja confessante, isto é, sempre manteve
uma confissão que protestava e questionava os valores cultu­
rais dominantes. A tarefa da exegese consiste então em situar
em qualquer texto dado a posição confessante da comunidade
de fé — uma posição que será tanto protesto quanto afirmação.
Encontramos essa posição confessional numa formulação que-
rigmática particular que anuncia o fim de uma velha ordem,
agora rejeitada, e dá a “boa nova” de uma nova ordem que re­
flete a intenção e o poder de Iahweh.
Vale a pena notar a atração exercida pela obra de Wolff na
década de 70. Sem dúvida, seus ensaios apresentam mais do
que um interesse científico ou acadêmico. A guinada conserva-
36
dora na vida da Igreja, a inesperada descoberta do Evangelho
por parte dos jovens e a volta à Escritura como resposta a uma
situação de confusão e desorientamento — tudo isso sugere a
necessidade de fazer referência a um credo, de viver a partir de
uma afirmação querigmática. Existem muitos sinais hoje em
dia de que a Igreja está caminhando para uma nova inspiração
confessional, não no sentido de uma rigidez orgulhosa, mas no
sentido dos alemães em Barmen, fixando uma posição teológi­
ca que está além de qualquer transigência, uma posição que
protesta contra os valores culturais dominantes e os questiona.
Os ensaios de Wolff sugerem que quando ocorre tal desenvol­
vimento, a Igreja é fiel herdeira de outras gerações que enun­
ciaram o querigma e presumivelmente mantiveram uma confis­
são fiel.
Assim, Wolff comparte com von Rad dois importantes
pressupostos: (1) que no texto não temos simplesmente uma
coleção de relatos interessantes; temos confissões de fé que fo­
ram remodeladas para conferir sentidos não visados original­
mente5 — isto é, temos textos completos, carregados da mais
autêntica fé da Igreja; e (2) a confissão feita não é uma decla­
ração atemporal, mas sempre está em relação com uma dada
crise histórica. As confissões da comunidade de fé são de inte­
resse permanente para a Igreja. Mas em primeiro lugar são tre­
chos para seu próprio tempo, e devem ser entendidas antes de
mais nada nesse contexto. Não é muito dizer, com relação a
von Rad e Wolff, que a Igreja fiel vive sempre a partir de um
Barmen. em direção a outro Barmen. Não são poucas as evi­
dências de que atualmente a Igreja está sendo de novo convi­
dada a assumir assim a Escritura.
Os quatro documentos básicos do Pentateuco, JEDP
(sobre os quais há um consenso entre os pesquisadores a partir
da metade do século passado) não são simples criações literá­
rias, e certamente não são colchas de retalho, como às vezes
foram apresentados. Ao contrário, são as quatro principais
37
tentativas de fazer uma confissão de fé numa situação de crise.
Podemos considerá-los brevemente e cada um de uma vez.
O relato javista, tal como é hoje correntemente aceito, foi
uma tentativa de expressar a fé durante a monarquia unificada
sob Davi e Salomão5. Este período da história israelita (1000-
922), que von Rad chamou muito bem de “Iluminismo de Is­
rael”, foi um tempo de revolução econômica e de seculariza-
ção. Nele, a luta pelo poder e pela prosperidade fazia oscilar à
auto-interpretação de Israel como povo de fé. A tradição J,
como sugere Wolff, simultaneamente critica e defende a mo­
narquia. Critica-a porque acusa a auto-elevação, põe a nu o in­
teresse próprio, e denuncia qualquer interesse último da mo­
narquia. Essa monarquia — ele nos recorda — não existe para
seus próprios fins, mas só para ser uma bênção. Contudo, ao
mesmo tempo J é uma defesa da dinastia, ligando Davi a
Abraão, e argumentando que essa dinastia particular é a porta­
dora escolhida da bênção a um mundo vítima de maldição. As­
sim, a tradição J representa uma afirmação muito antiga, mas
muito sofisticada sobre o poder e a fé, sobre a confiança em
Deus e o apoiar-se nas possibilidades humanas. Ela se interes­
sa pelo equilíbrio sempre instável entre realidade política e vi­
são de fé.
Quem pode dizer que J não é uma teologia elevada? Ou
quem pode dizer que ela não é uma inflamada propaganda
política a favor da monarquia? Mas é esta a natureza da fé na
história. A fé deve levar em conta a realidade do poder e, caso
queira fazer alguma reivindicação, deve fazê-la nessa situação.
O javista, atuando sob uma provável e cuidadosa supervisão
do trono, discerniu nas memórias mais antigas de Israel ele­
mentos de uma nova autoconsciência: Israel existia não para si
mesmo, mas para ser uma bênção. De uma situação de confor­
tável auto-satisfação, no século décimo, emergiu um dos mais
poderosos detonadores de missão da Bíblia. Como Wolff des­
cobriu, J fez uma notável declaração eclesiológica sobre poder
38
e finalidade, sobre percepção religiosa e fato político, numa
tensão atual e efetiva.
A tradição eloísta colocou algumas das questões mais difí­
ceis para o estudo do Pentateuco. Não há muita clareza quan­
to à existência de E como tradição independente. Mesmo que
tivesse existido, parece que esteve completamente à sombra
de J.
Wolff conseguiu uma realização singular ao (a) identificar
seu núcleo teológico, e (b) relacionar esse núcleo efetivamente
a uma crise religiosa histórica. Ele começa, como em outros lu­
gares, com uma busca da mensagem característica de E (Ver-
kündigungsabsicht). Talvez seja insuficiente traduzir esta pala­
vra por “mensagem”, pois com ela Wolff entende o ponto prin­
cipal da proclamação: a ordem de atuar. Wolff encontra esse
momento querigmático no apelo ao “temor de Deus”. Ele con­
sidera essa expressão como uma clara proibição de prestar
lealdade a quaisquer outros deuses. A crise abordada por este
querigma, conforme Wolff, era o sincretismo, no tempo de
Elias. Sincretismo, naquela época como agora, é a acomoda­
ção da fé às fés alternativas, numa aberta tolerância. Como em
outras partes, Wolff consegue mostrar que intenção querigmá-
tica e nexo cultural pertencem um ao outro e se iluminam mu­
tuamente. A afirmação eloísta de lealdade radical a Iahweh
não é um chamado eterno à fé, mas uma mensagem de urgên­
cia específica, para um tempo em que a acomodação se tornou
atraente, fácil e generalizada.
Mais do que em outras partes, Wolff trilha novos caminhos
ao lidar com E. Ele não mudou a cronologia nem a situação
histórica de E, geralmente aceitos pelos investigadores. E con­
cordou com o consenso de que E é uma tradição do norte, ori­
ginária provavelmente do século nono. Mas levou a sério a si­
tuação do século nono e descobriu nela a chave para a com­
preensão do verdadeiro alvo da narrativa: o sincretismo. Se­
gundo, embora Wolff não resolvesse todos os problemas literá­
39
rios — tendo reconhecido que as questões são difíceis e a evi­
dência é fragmentária —, contudo não deixou que os pontos in­
solúveis atrapalhassem seu argumento. Ele se contentou em
aceitar os dados tais como são. E terceiro, com esses dados e a
hipótese de sincretismo, ele apresentou sua questão da intenção
querigmática e conseguiu ver no texto um enorme poder novo.
O peculiar da obra de Wolff, e obviamente o mais importante,
é este terceiro componente: a questão da intenção querigmáti­
ca do texto. Wolff tem a convicção de que o texto é confessio­
nal. Essa convicção confere legitimidade a seu manuseio do
texto, bem como necessidade a seus pressupostos críticos. E
em cada um de seus ensaios, os pressupostos hermenêuticos
mais claros e característicos de WolfT estão sob a superfície —
na verdade, a finalidade deste ensaio é apresentar seus pressu­
postos7.
Ao discutir a história deuteronomista, Wolff constrói sobre
fundamentos colocados por von Rad, e mais especialmente por
Martin Noth.
A “obra histórica-deuteronomista” (DtrH) se refere ao
conjunto de material que combina amplas seções de Josué, Jui­
zes, Samuel e Reis, juntamente com Deuteronômio 1-4 e partes
de 31-34. O material de Deuteronômio 5-28 (“deuteronômio”)
é tido como consideravelmente mais antigo — provavelmente
alguma forma do rolo encontrado no templo em 621 a.C. (2Rs
22-23). A DtrH deriva do material do Deuteronômio. Sua da­
ta, conseqüentemente, é posterior a ele. Talvez seja anterior a
609, como Cross comprovou recentemente; e com certeza (em
parte pelo menos) ao redor de 561, como Noth comprovou e
Wolff retoma. A relação entre o deuteronômio e a DtrH é a
mesma que há entre uma tradição de aliança mais antiga, usa­
da como modelo, e uma tradição posterior, dela derivada, e
que é uma renarração e redefinição mais ampla da história de
Israel.
40
Mas Wolff rejeita as conclusões teológicas rclcrcnlt-s íi
DtrH tanto de Noth quanto de von Rad. Noth concluiu que «
PtrH simplesmente descrevia ou mesmo anunciava o fim da
história sagrada de Israel. Mas isso não convence a Wolff, por
que dificilmente alguém faria uma declaração tão extrema só
para afirmar um tema óbvio e negativo. Por outro lado, von
Rad ofereceu sugestão mais imaginativa: a tensão entre o juí­
zo mosaico e a esperança davídica produziram o anúncio de
uma nova história de promessa. Esta conclusão, rebate Wolff,
coloca mais peso em 2Rs 25,27-30 do que este texto pode su­
portar. As alusões à promessa davídica ou estão ausentes ou
muito restringidas para permitir uma construção positiva. Um
estudo posterior colocou-se ou ao lado da conclusão negativa
de Noth ou da positiva de von Rad. Mas o ensaio de Wolff re­
jeita ambas. Ele levanta novamente a questão da afirmação8 ou
proclamação9 pretendidas que nem Noth nem von Rad perce­
beram. E como Wolff faria mais tarde em outros ensaios, situa
isso num modelo de discurso-formulário particular, que marca
o ponto de mudança na narrativa histórica. Especificamente,
ele descobre o querigma10 no apelo ao arrependimento e retor­
no, contidos no termo shüb.
Sua conclusão rejeita o ponto negativo de Noth, afirmando
que a história ainda não chegou ao fim e o futuro não está fe­
chado. Assim, supera a dificuldade que Noth encontrou para
explicar por que este imenso relato foi escrito, já que chega a
um final tão brusco. E, por outro lado, contra von Rad, Wolff,
atribui prioridade as exigencias mosaicas de obediencia: com
l| 1 * * 1 1 ^ « A * • 1 4 | 1^ *

toda certeza esta prioridade se encontra no texto, mas von Rad


teve que subordiná-la em sua supervalorização da tradição real
de promessa. Assim, o querigma do shüb é uma declaração ni­
tidamente equilibrada da possibilidade futura e uma rigorosa
exigência presente. Além disso, ele se ajusta ao critério mais
crucial: é óbvio dentro do texto. A conclusão de Wolff deriva
do texto, utilizando a melhor opinião crítica, mas recusando-se
41
a impor qualquer construção teórica rígida sobre o sentido ób­
vio. Discussões posteriores, que são numerosas11, não avança­
ram muito além desta declaração. Vale a pena tomar essa de­
claração de Wolff e comparar este querigma da DtrH com o
da literatura contemporânea do período exílico.
O quarto ensaio desta coleção, escrito por Brueggemann,
trata da tradição sacerdotal conforme a linha traçada por
Wolff. No que diz respeito a P, existe um consenso quanto às
questões da crítica da forma. São questões de estilo, extensão
de literatura, período (exílico), e, em certa medida, de tendên­
cias teológicas. Contudo, ninguém formulou a questão carac­
terística de Wolff, a saber: qual é a fórmula muitas vezes repe­
tida, que serve de chave de interpretação do impulso querigmá-
tico? Wolff12 sugeriu que abordagem faria caso lidasse com P.
Ele acentua particularmente a fórmula da aliança “Eu serei o
teu Deus — tu serás o meu povo”. Esta é a fórmula mediante a
qual o povo disperso do período exílico recebe uma garantia de
identidade e de pertença a Iahweh. Essa fórmula fornece a
Wolff uma modalidade de entender tanto a DtrH quanto P,
que dificilmente são contemporâneas. Essas duas tradições es­
tão estruturadas pela fórmula de aliança. Mas cada uma traz
sua ênfase característica. A tradição sacerdotal, interessada
sobretudo em transmitir uma certeza no meio da dispersão,
acentua a primeira parte: “Eu serei o teu Deus” (cf. Gn 17,7-8;
Ex 29,45-46). E vice-versa, a DtrH, com seu apelo ao arrepen­
dimento e à obediência, acentua: “Tu serás o meu povo”, isto
é, observarás a Torá.
A questão central para a interpretação do documento sa­
cerdotal desde há muito tem sido a relação entre as partes nar­
rativas e jurídicas, ambas tratadas como P13. O problema da
relação entre as duas é muito antigo. Continuou sendo uma di­
ficuldade para os grandes críticos literários do século dezeno­
ve, até atribuírem convincentemente ambas as partes à mesma
fonte literária. Mas quanto à intenção querigmática, o proble­
42
ma continua insolúvel. Conforme nossa compreensão atual de
P, seguir o método de Wolff parece exigir que se opte por uma
direção ou por outra, isto é, pelo material narrativo ou pelo
jurídico. Assim, Claus Westermann, colega de Wolff em Hei-
delberg, opta pelo material jurídico, acentuando o motivo de
glória como foco da atenção de P14; mas este foco tende a se li­
mitar a alguns textos. O próprio Wolff não publicou nenhum
estudo extensivo, mas em conversas pessoais deixou transpare­
cer que o motivo central é Deus entre seu povo, enfatizando es­
pecialmente a “tenda de reunião”. Daí sua breve declaração
acentuando: “Eu serei o vosso Deus”.
O presente ensaio de Brueggemann caminha em direção
oposta, buscando a intenção querigmática de P no material
narrativo. Este estudo é muito influenciado pela obra de Elli-
ger15, mas procura ser fiel ao método de Wolff (a) na localiza­
ção da fórmula dominante nos textos, e (b) na consideração
desta fórmula em relação à crise cultural existente quando essa
tradição assumiu forma canônica. Isso levou a concentrar a
atenção na frase: “Sede fecundos, e multiplicai-vos, enchei a ter­
ra e submetei-a; dominai sobre . . Usando a antiga lingua­
gem da conquista da terra, a tradição P transmite à comunida­
de exílica a certeza de que a terra ainda é seu destino, de acor­
do com as promessas de Iahweh. Assim, P é uma afirmação
querigmática, fazendo uso de antigas tradições contra as agruras
do exílio. Afirma que Deus não esqueceu suas promessas, e
portanto a história de Israel não chegou ao fim. Wolff, em sua
breve discussão, presta atenção especial ao relato da morte de
Moisés, em Dt 34, em que Moisés vê a terra de longe, mas não
pode entrar nela. É importante notar que Dt 34, no final do
Pentateuco, termina com uma afirmação sobre a entrada (reen­
trada?) na terra prometida, que ao mesmo tempo garante a Is­
rael a entrada na terra e sutilmente insiste numa demora pro­
longada, isto é, até que chegue a geração seguinte. Essa afirma­
ção bifacetada confirma a conclusão querigmática proposta
43
por Brueggemann, de que P promete a terra, mas não nega a
realidade presente no exílio, que é a situação de necessidade de
uma pátria. Assim, muito mais vigorosamente e sem reservas
do que seu contemporâneo DtrH, P dirige Israel a um novo fu­
turo16.
Wolff respondeu (oralmente) ao ensaio de Brueggemann,
dizendo que sua ênfase diferia da dele. Wolff teria argumentado
a partir do material jurídico; Brueggemann tomou partido a fa­
vor do material narrativo. Contudo, Wolff admite que a discus­
são de Brueggemann é fiel a seu próprio método, e segue este
método até uma conclusão que Wolff considera legítima, em­
bora não seja a mesma a que ele chegou. Esperamos que a ar­
gumentação de Wolff seja publicada em breve, quer para corri­
gir, quer para complementar o presente ensaio. Num comuni­
cado oral, Wolff disse que o “complementaria”; talvez isto sig­
nifique admitir que devemos levar em conta ambas as partes —
narrativas e jurídicas — caso queiramos perceber um querigma
unificado.
Estes quatro ensaios levam-nos obrigatoriamente a uma
importante conclusão hermenêutica: o Pentateuco (e DtrH)
contêm quatro empreendimentos literários principais (JEDP)
em três crises profundas. Cada resultado literário propõe um
querigma — uma reformulação da fé e um apelo apropriado à
sua crise. Para moderar a auto-elevação e prosperidade da mo­
narquia unificada, J relembrou-lhe que “Por ti serão benditos
todos os clãs da terra”. Para salvar Israel da areia movediça
do sincretismo cananeu, E incentivou-o: “Temei a Deus”. E
para chamá-lo de volta do exílio, a DtrH exortou-o: “Retor­
nai”, enquanto P, para encorajá-lo, disse-lhe: “Sede fecundos,
multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai
sobre . . .” Em cada um desses casos, trata-se da confissão de
fé fundamental de Israel no Deus da promessa e libertação. Em
cada caso as novas afirmações são feitas mediante uma sim­
ples reelaboração dos registros, lendas, materiais jurídicos e re-
44
latos antigos. Se a hipótese dos documentos deve servir como
instrumental efetivo da exegese, como defendemos aqui, enlno
a linha-mestra de sentido deve ser buscada no exato momenlo
em que o antigo material é reivindicado pelo crente e aplicado
à crise atual. A hermenêutica de Wolff tenta mostrar em cada
texto a luta de Israel para manter sua fé, ao mesmo tempo em
que responde seriamente ao contexto cultural. Qualquer outra
abordagem irá descolorir o texto em sua mensagem intencio­
nal.
A hermenêutica de Wolff leva o intérprete para dentro de
um círculo em que algo decisivo está ocorrendo. O encontro
entre o texto e nosso tempo felizmente pode ser um debate de
grande significado. E é esta, obviamente, a intenção da herme­
nêutica de Wolff. Este encontro pode ser o anúncio de boas no­
vas, uma declaração de juízo sobre nós, ou uma advertência
que convida ao arrependimento.
Mas não será nada disso a não ser que o intérprete possa
ver a dinâmica do próprio texto, pois estes são textos que se
encontram num processo de transformação, pelo anúncio da
boa nova (o credo), em algo que antes não eram. Muitas vezes
esses textos consistem em antigos relatos e memórias que se
adaptavam bem a seu próprio contexto, avaliado como parte
dos dispositivos naturais da cena.
Mas os textos foram remodelados à medida em que eram
transmitidos na comunidade primitiva. Sagas se transforma­
ram em querigma. Lendas se tornaram anúncios de boas no­
vas, advertências, juízos e promessas. E no processo de se tor­
narem aquilo que não eram, os textos sofreram uma mudança
frente a seu contexto original. Já não estão mais confortavel­
mente em cena. Não são apenas um outro componente na reli­
gião estabelecida ou na herança popular de seu tempo. Agora
são palavras provenientes de fora, que põem em questão toda
uma cena confortável.
45
Assim a pessoa seguramente secularizada do século déci­
mo (tempo do javista) podia se comprazer com um antigo rela­
to sobre um homem que, quando dormia, teve um sonho em
que viu uma escada subindo ao céu (Gn 28,10-22). Ela podia
apreciar sua simplicidade e estranheza. E podia se sentir con­
firmada pelo vago sentimento religioso de que é bom conseguir
entrar no céu, embora talvez não mediante uma subida gráfica
como aquela. Sobretudo, ela podia ficar tranqüila pelo fato de
que o texto, sob nenhum aspecto, dizia respeito a ela, não se di­
rigia a ela nem a questionava. Mas no meio desse relato, pelo
poder transformador do querigma javista, ela podia notar que
o texto mudara. Já não era mais seguramente remoto, nem di­
vertidamente inacreditável. Era como um anúncio desafiador
(vv. 13-15) de que, através de ti, Israel, a vida de todos teria
que ser uma bênção. Seu lugar já não era mais exterior; ela era
chamada para dentro do texto. O texto não se referia simples­
mente a escadas idílicas, nem a uma remota montanha sagrada
em que se acreditava só nos tempos passados. Agora o texto se
referia a seu lugar (o da pessoa secularizada do século décimo)
na vida, à promessa que tinha e à missão que devia realizar. O
texto penetrava em seu ambiente secular e ela se sentia interpe­
lada por um chamado divino que a levava a sério, e esperava
que ela, por sua vez, levasse a sério seu mundo.
Esse tratamento de Gn 28,10-22 é o método que esses en­
saios sugerem17. No século décimo, ou no sexto, bem como no
nosso, sem dúvida houve pessoas que preferiram textos afasta­
dos e remotos. Mas nossa hermenêutica sugere que o processo
transformador era poderoso e persistente; e que todo aquele
que usar esta abordagem será levado para dentro da insistência
do texto sobre mudança. Também o intérprete será convidado
a se tornar aquilo que nunca tinha sido antes.

46
3
O QUERIGMA DO JAVISTA1
Hans Walter Wolff

A tarefa de reconhecer a relação que há entre o Novo e o


Antigo Testamento constitui um desafio especial para a exege­
se atual e. envolve a exegese de ambos os Testamentos. Essa ta­
refa não pode ser cumprida apenas do ponto de vista do Novo
Testamento.
O fato de que o Antigo Testamento seja citado a cada pas­
so no Novo Testamento, direta ou indiretamente, a princípio
atrapalha ao invés de ajudar nessa tarefa. Os escritos do Anti­
go Testamento são encontrados em grande medida pelo intér­
prete do Novo Testamento na forma de citações atomizadas
que, conforme nosso senso histórico, não confirmam realmente
aquilo a que se destinam. Ou então descobrimos reconstruções
históricas, feitas a partir de algumas séries simples do Antigo
Testamento, que de modo algum são verificáveis para nós da
mesma maneira. Essa dificuldade2, que resulta da maneira
como os antigos lidavam com os textos, torna quase impossível
esclarecer a relação entre os dois Testamentos usando apenas
os documentos do Antigo Testamento tais como são vistos
através dos olhos do Novo Testamento.
Contudo, o recurso do Novo Testamento a esses documen­
tos não só é freqüente, como também parece ser indispensá­
47
vel3. Mesmo no Evangelho de João, as pessoas recusam-se a
aceitar quem Jesus é, exceto quando há o testemunho das “Es­
crituras”4. O fato de que a justiça de Deus se manifesta em Je­
sus de uma forma totalmente nova não pode ser explicado a
não ser que se acrescente “a Lei e os Profetas”5. O que ocorre
na “fé” de alguma forma deve encontrar paralelo naquilo que
ocorreu aos patriarcas de Israel, caso queiramos manter-nos
no estreito caminho entre fanatismo e ortodoxia morta6. Sem o
Antigo Testamento, o ser de Jesus aparentemente continua to­
talmente escondido. O mesmo vale para aquilo que nele é dado
como dom e também para o conhecimento de como o homem
deve se relacionar adequadamente com ele. Devemos questio­
nar sempre de novo se e por que a referência do Novo Testa­
mento ao Antigo Testamento é inevitável, quando estudamos o
Novo Testamento. Mas precisamos ter em mente essa questão
agora que estamos estudando o Antigo Testamento. Para com­
preender os testemunhos do Novo Testamento, sem dúvida de­
vemos levar em conta seu antigo método de considerar os tex­
tos. Mas primeiro, para entender plenamente aquilo de que o
Novo Testamento dá testemunho, devemos reconhecer de
novo o Antigo Testamento em sua própria função de testemu­
nha, e a pertinência disso a nossos tempos.
Por isso, começamos tentando entender os querigmata em
seus contextos históricos7, primeiramente as grandes obras lite­
rárias nas quais a proclamação do antigo Israel foi compilada
como “Escritura” para acompanhar Israel permanentemente.
A mera análise da linguagem8, mesmo quando complementada
pela pesquisa sobre o mundo de idéias e convenções literárias
do Antigo Testamento, não nos fornecerá a chave para enten­
der as intenções veterotestamentárias. Precisamos de uma
abordagem diferente para entender essas intenções, voltada
tanto para os aspectos externos — como o contexto histórico e
os precursores literários — quanto para os aspectos internos
dos textos; e uma vez que conseguirmos isolar as intenções do
48
Antigo Testamento poderemos relacioná-las com as do Novo.
Como exemplo, vamos escolher o material do javista, que é o
estrado básico de sustentação do Pentateuco. Aqui temos dian­
te de nós, num estilo magnífico, a mais antiga composição lite­
rária das tradições mais antigas de Israel. Ela determinou em
grande medida os contornos e o tema do Pentateuco atual, a
Torá, como cânon básico. “Podemos dizer, sem exagero, que
dentre tudo o que a narrativa do Pentateuco apresenta, ela
contém o que é de maior significado teologicamente9.”
Devemos esclarecer algumas questões preliminares antes
de determinar a mensagem do javista.
1. Qual é a extensão do corpus literário? Iremos avançan­
do a partir de um mínimo criticamente seguro. Seguindo o
exemplo de outros10, Gustav Hölscher11 pensou que podia pro-
jeitar o javista para além do Pentateuco, através dos livros de
Josué e Samuel, até lRs 12-19 — isto é, até à desintegração do
reino davídico, após a morte de Salomão. Contudo, não só a
disparidade do material assimilado, quanto a linguagem usada
em cada um deles resiste à visão de um Eneateuco javista unifi­
cado; sobretudo, há uma diversidade imensa na maneira como
as peças do material foram entrelaçadas nas várias partes12,
Isto vale até mesmo para o livro de Josué13. Gerhard von Rad
prefere manter um Hexateuco porque considera a tradição da
conquista da terra como sendo a “base de sustentação” que
embasa toda a obra javista14. Certamente, devemos pressupor
no javista uma estreita conexão com as tradições do êxodo e
da conquista15; mas nossa questão sobre a sua intenção de fato
vai demonstrar sua impressionante falta de interesse pela con­
quista16. Por esse motivo devemos aceitar as propostas crítico-
literárias obrigatórias de Noth sobre o livro de Josué; e daqui
por diante, em vez de um Hexateuco, devemos falar em termos
de um Tetrateuco como sendo o âmbito da obra javista. Isto
significa que o último grande complexo do javista é a narrativa
49
de Balaão, à qual pertence Nm 25,1-5, a breve passagem refe­
rente à apostasia de Israel diante de Baal de Fegor.
A decisão de se atribuir a ele ou não algumas frases de Nm
32,1.16.39-4217 depende da questão sobre o interesse do javis-
ta pela tradição da conquista e se a conclusão de seu trabalho
deve ser, portanto, considerada fragmentária18. Seu interesse
principal, de qualquer forma (como demonstraremos a seguir),
termina com a narrativa de Balaão em Nm 22 e 24. Antes des­
ta e de algumas poucas passagens a mais da tradição da con­
quista, ele trata da tradição do Sinai com uma surpreendente
brevidade. Por outro lado, as narrativas do êxodo do Egito e,
acima de tudo, as narrativas patriarcais recebem uma forma
muito mais extensa. Descrições totalmente diferentes da histó­
ria humana servem de prefácio a todo esse conjunto. Assim, o
objeto de nossa investigação é o material do Tetrateuco, a par­
tir de Gn 2,4b até Nm 25,5, que na atualidade os críticos literá­
rios em geral atribuem ao javista.
2. A que situação histórica se dirige o javista? Se, de fato,
ele proclama um querigma, será importante esclarecer exata­
mente que círculo de leitores tem em mira. Duas considerações
servirão inicialmente para traçar alguns limites não muito bem
definidos. As várias tradições das tribos israelitas há muito
tempo cresceram juntas numa completa unidade. A tradição
do Sinai, das tribos do sul, está ligada à tradição do êxodo, das
tribos de José; o Deus do Pais é idêntico a Iahweh, o Deus de
Israel, e é assim chamado sem hesitação; as tradições patriar­
cais, originalmente variadas, com seus centros de tradição difu­
sos, desde há muito tempo se tornaram propriedade comum de
todas as tribos19. A fusão das tradições em tal medida é con­
cebível, o mais remotamente possível, ao redor do final do
período pré-monárquico. Por outro lado, em nenhum lugar en­
contramos evidências de conflito entre os dois Estados de Is­
rael, tal como ocorreu após a morte de Salomão. Assim, o
50
período que temos em vista é geralmente o do império davídico
e salomônico20.
Isto se torna mais claro quando definirmos o escopo histó­
rico dessa obra. Se perguntarmos por quais povos, além de Is­
rael, o narrador está interessado, a resposta será: exatamente
aqueles povos que, conforme 2Sm 8, foram anexados ao reino
de Davi: os filisteus (Gn 26,1-8; comparar 10,14), os moabi-
tas (Nm 22; 24,17) e amonitas (Gn 19,37-38; comparar
27,39ss; Nm 24,18) e os amalecitas (Ex 17,8-16), além dos ca-
naneus que foram conquistados e incorporados ao império
davídico (Gn 9,25)21. Os grandes reinos da Babilônia e Egito
são, para o autor, poderes desde há muito tempo sem expres­
são (Gn 1 l,7ss; Ex 14,13). Esse panorama político não apare­
ce em nenhuma época a não ser durante os reinados de Davi e
Salomão.
Sem dúvida, preferimos pensar na época de Salomão mais
do que na de Davi. A grande cultura literária que o javista
mostra sugere isso. Encontramos exatamente esse tipo de cul­
tura na narrativa da sucessão do trono a partir do tempo de
Salomão. Sobretudo, existe o amplo escopo do desenvolvimen­
to internacional, refletido na enumeração de povos em Gn
10,8-19.21.25-3022 pelo javista e, finalmente, “a ausência qua­
se completa de uma atmosfera cúltica”, que parece “o sopro de
uma nova brisa a partir da era do livre-pensar de Salomão23”.
Podemos ver uma alusão concreta ao tempo de Salomão no
dito de Isaac a respeito de Esaú, em Gn 27,39ss, onde a qualifi­
cação do verso 40b parece ser um pós-escrito: “Mas, quando
te libertares, sacudirás seu jugo de tua cerviz.” Isso é uma alu­
são ao príncipe edomita Adad que, conforme lRs 11,14-
22.25b, rebelou-se e conseguiu reaver o controle de parte do
reino edomita24.
Assim, devemos situar o javista, com maior probabilidade,
no período que segue à morte de Davi e imediatamente anterior
ao início do reinado de Roboão, não muito distante dos círcu­
51
los da corte — em todo caso em Judá. Pois no relato javista de
José, Judá é o primogênito e porta-voz dos demais (Gn 37,26;
43,3; 44,16-34); as tradições de Mambré-Hebron, de Betei e
Siquém são atribuídas por ele (Gn 12,6.8) também a Abraão,
que pertence ao sul25. A própria história de Judá aparece em
destaque em Gn 38.
Supomos, assim, que o javista se encontra na vizinhança
da capital salomônica num período em que, talvez, já estives­
sem despontando as primeiras crises do império no horizonte
de então. Contudo, no âmbito geral, o sentimento de segurança
e superioridade é ainda mais forte do que nos dias de Davi,
sendo confirmado pelo crescimento de riquezas através de tra­
tados pacíficos e por uma grande florescência cultural — desde
monumentos arquitetônicos até à sabedoria proverbial e o bri­
lho literário. O que o javista tem a dizer ao Israel do seu tem­
po?
3. Antes de levar adiante essa questão, devemos explicar
como, nessa obra, podemos nos certificar se há uma intenção
querigmática ( Verkündigungswille) peculiar a ela e como pode
ser encontrada. E esta questão é importante, porque o javista é
um fiel compilador, que acrescenta muito pouca coisa ao mate­
rial que lhe foi transmitido.
Contudo, seu próprio testemunho se reflete em certas va­
riantes e acréscimos, na medida em que afloram mediante a
comparação com textos paralelos — sobretudo com os do
eloísta. Sua perspectiva se torna ainda mais nítida pela maneira
de colecionar o material que lhe foi transmitido e de lhe atribuir
importância: grandes blocos de tradição pré-literária às vezes
são representados profusamente, tais como a tradição patriar­
cal, e às vezes raramente, como a tradição do Sinai. Concorda­
mos em que não há evidência segura de que esta avaliação seja
do javista, já que não sabemos o que foi sacrificado pelos edi­
tores posteriores, que entreligaram sua obra com a do eloísta e,
bem mais tarde, com o documento sacerdotal. Contudo, inde-
52
pendentemente disso, é o próprio esquema como um todo, e
sobretudo o estado do grande edifício introdutório, a assim
chamada proto-história (Urgeschichte), que em geral é consi­
derado um empreendimento literário próprio do javista26. A
proto-história tem um significado extraordinário para se deter­
minar sua mensagem, embora a maior parte da pesquisa sobre
ela tenha incorrido, até agora, no perigo de considerá-la um
bloco isolado.
Fica evidente, a partir de algumas inserções livremente for­
muladas, que o javista, com sua compilação, ordenamento, se­
leção e ampliação da tradição, visa proclamar uma mensagem.
As inserções foram feitas em tradições decisivas para iluminar
a composição como um todo e para esclarecer as pequenas va­
riantes da tradição. Essas passagens de transição altamente
convincentes podem ser detectadas sobretudo em Gn 6,5-8;
8,21; 12,l-4a e 18,17-18.22b-3327. A perícope 12,1-3 se desta­
ca entre esses trechos já desde o início, porque constitui a tran­
sição da história do homem para a história patriarcal; 6,5ss e
8,21 só indiretamente preparam para isso, 18,17ss a conti­
nua2«.
Portanto, em vista dessa evidência para sua metodologia li­
terária, será aconselhável começar a busca do querigma do ja­
vista em 12,1-3. Conseqüentemente, a composição como um
todo deve confirmar e elucidar o querigma; deve pôr em evi­
dência que é uma redação completa e unificada.

II

Agora passamos ao texto de Gn 12,l-4a. Após familiarizar


seus leitores com a terra natal, de Abraão com seu clã, e sobre­
tudo com Sara, sua esposa estéril, o javista continua em 12,1-
4a:
53
(1) Iahweh disse a Abrão: “Deixa tua terra, tua parentela e a
casa de teu pai, para a terra que te mostrarei.
(2) Eu farei de ti um grande povo, eu te abençoarei, engran­
decerei teu nome; sê tu uma bênção!
(3) Abençoarei os que te abençoarem,
amaldiçoarei os que te desprezarem . . .
Assim, portanto31, todos os clãs da terra
podem ganhar32 uma bênção em ti.”
(4) Abrão partiu, como lhe disse Iahweh,
e Ló partiu com ele.
Esta última frase abre o caminho para o ciclo da saga
Abraão-Ló. Indica com restrição, mas expressamente, que
tudo o que se segue deve ser entendido como resultado da or­
dem de Iahweh nos vv. 1-3.
1. Essa ordem mostra um claro dispositivo, que pode ser
explicitado inicialmente mediante uma análise de sua sintaxe.
Ela é iniciada por um único imperativo (v. 1), ao qual se acres­
centa uma longa cadeia de frases consecutivas. Elas assumem
cinco vezes a forma de imperfeito consecutivo (vv. 2-3a). O
perfeito só é empregado na última frase (v. 3b). Esta perícope
se inicia com a ordem de partir. Contudo, obviamente o acento
recai nas frases consecutivas subseqüentes, que por cinco vezes
contêm o prospecto de um ato gracioso de Iahweh àquele que é
interpelado, adquirindo assim o caráter de uma promessa. O
imperativo anterior não apresenta nenhum tipo de conotação
condicional, como se a promessa de Iahweh dependesse da
obediência de Abraão. Em vez disso, soa como um apelo a re­
ceber o dom reiteradamente prometido. Por isso, de acordo
com o versículo 4a, Abraão “parte” sem qualquer “se” ou “po­
rém”, aparentemente sem qualquer indecisão.
O predomínio da promessa é claro. Entretanto, o que ela
na realidade tem em mira? Observamos na seqüência de pro­
messas uma mudança sintática na última frase, v. 3b. Aqui a
série de cinco frases com imperfeito consecutivo é interrompi­
54
da por uma frase com um perfeito consecutivo. Assim, o v. 3b
é claramente destacado como resultado das conseqüências (vv.
2-3a) da partida de Abraão; é o resultado real, e, portanto,
confirmado definitivamente pelo tempo perfeito33. A mudança
brusca na frase final é esclarecida mais adiante pelo fato de que
no v. 3b o sujeito já não é mais Iahweh, mas “todos os clãs da
terra”. Assim se estabelece claramente quem é objeto do inte­
resse último da ação de Iahweh e o que esta ação realizará a
seu favor. Assim a clara tendência sintática desse longo perío­
do é dirigir-se com rapidez a esta frase de conclusão. Ela é a
conclusio resumida, concisa, de todo o conjunto.
Se nos guiarmos pelo esquema literário, então o querigma
da obra javista aparece em Gn 12, l-4a, e a análise sintática
que sua forma mais exata se encontra em 12,3b.
Se considerarmos o conteúdo dos verbos anteriores, que
estão na forma de imperfeito consecutivo, então o movimento
em direção ao v. 3b fica plenamente claro. Antes de mais nada,
as três primeiras frases contêm promessas apenas para
Abraão. A primeira frase promete que Iahweh fará dele uma
grande nação. A segunda acrescenta que Iahweh irá abençoá-
lo — isto é, o fato de que Abraão irá se tornar um povo e um
efeito da bênção. Contudo, estamos mais perto do simples dis­
positivo sintático do texto quando consideramos o conteúdo da
terceira frase como sendo o efeito da bênção, a saber, a fama e
superioridade que o nome de Abraão vai alcançar, tornando-se
um povo.
Com a terceira frase, atingimos o auge que, como tal, já es­
tava preparado pela segunda. Contudo, seu significado real
aparece pela primeira vez no fato de que é acrescentada uma
frase resultante ou de intenção à terceira afirmação de promes­
sa, com uma mudança de sujeito: “ . . .Sê tu uma bênção”34.
Como anúncio preliminar, a meta dos feitos prometidos por
Iahweh ecoa pela primeira vez: ele quer fazer de Abraão um
povo grande e poderoso, para que este, por sua vez, possa se
55
tornar uma bênção. A bênção de Iahweh a Abraão teria como
resultado o fato de que o próprio Abraão produzirá bênção.
Como e para quem, ainda não é dito.
Somente a quarta e quinta frases, que seguem após essa
nítida pausa, formam a transição através da qual Iahweh anun­
cia seus feitos futuros. Elas mostram que o envolvimento de
Iahweh com Abraão e seu povo se estende aos seus contempo­
râneos. Estes, conforme sua atitude para com o povo de
Abraão, se tornarão merecedores de bênção ou maldição. O v.
2b está em contraste, como exceção, no singular35, para que
aqueles que são destinados à bênção, de acordo com o versículo
2b, possam se tornar os mesmos que são desprezados. Supõe-
se como caso normal (v. 3a) que os que são abençoados por
Iahweh também são abençoados pelo mundo ao seu redor.
Conseqüentemente, se o v. 2 estabelece a meta da bênção
abraâmica no fato de que ele próprio se tornará uma bênção, e
se o v. 3a acrescenta que nesta bênção se decide o destino de
seus contemporâneos por Iahweh, então a conclusio do v. 3b
só pode chegar a fazer esta magnífica promessa: todos os clãs
da terra podem herdar a bênção, ao reconhecerem Abraão. A
tendência sintática observada acima corresponde assim preci­
samente ao movimento dó conjunto todo em direção ao v. 3b
como conclusio: no povo de Abraão toda a humanidade pode
herdar a bênção.
2. Como o javista chega a essa afirmação estupenda? En­
contra ele algum respaldo na tradição que recebeu? Em sua in­
terpretação, como ele lida com as tradenda? Se quisermos
compreender o interesse especial e dominante do javista, tere­
mos que estudar sua frase-chave à luz da história da tradição.
Se ele recebeu algo da tradição patriarcal foi, antes de mais
nada, a promessa de uma terra. Pois foi exatamente por causa
dessa promessa que a tradição patriarcal estava ligada aos san­
tuários cananeus. Evidentemente, o javista a conhecia como
tradição de Siquém ou Betei (Gn 12,6ss; 28,19)36. É igualmente
56
certo que a conexão entre a tradição patriarcal e a do êxodo-
conquista era algo já dado para ele. Para os que transmitiram a
tradição patriarcal, mais antiga, só interessava na medida em
que encerrava a promessa da terra37. É surpreendente o fato de
que este tema da Terra Prometida, que era tão decisivo para a
tradição da conquista, e do qual o javista com certeza estava
bem consciente, quase tenha desaparecido de suas palavras in­
trodutórias em Gn 12,1-3. A promessa da terra aparece so­
mente como vaga lembrança na cláusula subordinada do v. 1:
“Vai . . . para a terra que te mostrarei.” “Mostrarei!”: dificil­
mente se trata aqui da promessa espetacular da terra, tal como
aparece em 12,7 ou em 28,13, no material tradicional, cujo
motto é: “Eu dou.” Esse tema é reduzido pelo javista, a ponto
de se tornar um mero comentário de rodapé de página38.
Ele prefere a promessa de descendência. E aparentemente a
primeira, promessa de nossa passagem, a de que Abraão se tor­
nará um grande povo, deriva dela. O javista provavelmente re­
monta assim à camada mais antiga, talvez pré-palestina, da
tradição patriarcal39. A fonte dessa antiquíssima promessa de
um filho, que está ligada á ordem de partir, pode ser o antigo
trecho da tradição de Gn 15,1 ss, que não está em conexão com
nenhum lugar de culto palestino40.
Até mesmo o lema principal de nossa passagem chave, a
palavra “bênção”, numa quíntupla variação, é inteligível so­
mente a partir deste antigo elemento de promessa. Tão certo
como esta palavra traz em si a marca da interpretação javista,
assim também não é invenção sua, tendo sua origem respecti­
vamente na promessa de um filho e de descendentes; comparar
24,34-36 (J); 22,17 (R JE); 48,15s (E); 28,3s (P). A terra nunca
é penhor da “bênção”; a terra, ao contrário, é simplesmente
algo que Iahweh prometeu incondicionalmente em seu “jura­
mento”41: Gn 24,7; 26,3; Nm 11,12 (J); Gn 50,24 (E). Por isso
a promessa de bênção em 12,2a é colocada imediatamente de­
pois de se tornar um povo. O resultado da “bênção” de Iahweh
57
não é a terra, mas um dinamismo vital benéfico e abundante.
“Bênção é poder de vida, intensificação da vida, acúmulo de vi­
da; ela se expressa concretamente como fertilidade que torna
produtivo o solo, multiplica os rebanhos e torna forte, numero­
sa e respeitada a comunidade.”42 Assim a promessa de bênção
leva naturalmente da promessa de crescimento à promessa de
um grande nome. A bênção é a causa de ambas.
Ao fazer essas conexões, a interpretação da tradição do ja-
vista começa diferentemente. Se, na estrutura de família dos
antigos, a bênção era entendida como uma palavra imediata­
mente eficaz e poderosa (ver Gn 24,34-36), aqui (ligada à pro­
messa de crescimento) é prometida aos tempos futuros. “Bên­
ção” se torna a palavra-motor (Deutewort) da grande história
de Israel, desde a partida de Abraão até o império davídico. E
embora na palavra-chave do javista Deus não prometa direta­
mente um “filho” ou “descendentes” a Abraão (13,16 /J/;
15,5; 21,12 [Ef) como efeito da bênção (como em 24,36; 15,4;
e 18,10), ele promete “um grande povo” e um “grande nome”,
que no tempo do javista conotava precisamente a expressão
“filhos” de Abraão. Se é correto o que tem sido objeto de fre­
qüente observação, isto é, que Gn 12,2a fala do “grande no­
me” de Abraão como dom de Iahweh em contraste com o “no­
me” autoprojetado dos construtores da torre de Babel em Gn
11,4, é pelo fato de que este dom, naquele intervalo de tempo,
tinha assumido uma forma concreta no “grande nome” (2Sm
7,9) de Davi e na fama de Israel, que lhe fora prometida.
Agora o Israel pré-monárquico entendia a conquista como
um ato de Iahweh destinado a cumprir a promessa de uma ter­
ra, feita na tradição patriarcal. Essa era uma reinterpretação
ousada, mas congruente com os atos de Iahweh. Da mesma
maneira, na época do império davídico e salomônico, o javista
chega a uma reinterpretação não menos ousada — mas tam­
bém não menos congruente: a de que o grande povo e o nome
grande e notável devem ser reconhecidos como resultado da
58
bênção de Iahweh. Ele o faz isolando de todo o conjunto iln
tradição patriarcal apenas um elemento: a promessa de descen­
dentes. Os antigos relatos fornecem a compreensão da nova
história; isto é, os novos atos de Iahweh na história reinterpre-
tam a plenitude dos antigos relatos, que antes não foram vistos
dessa maneira.
Mesmo que o v. 2a seja considerado congruente com a tra­
dição, sua continuidade levanta dificuldades. Onde a cláusula
consecutiva (2b) “sê tu uma bênção” e sobretudo, sua interpre­
tação última na conclusio: “todos os clãs da terra podem ga­
nhar uma bênção em ti”, encontram algum respaldo na tradi­
ção? Com certeza na tradição patriarcal. Existe apenas a pala­
vra-chave “bênção”, que, como vimos, estava enraizada na
promessa de descendência. Mas no v. 2b, e provavelmente
também em 2a, esta palavra está sendo duplamente modifica­
da: por um lado, aquele que é abençoado, por sua vez deve ser
causa de bênção; por outro lado, ele é posto em relação com
todos os clãs da terra. Em resumo, isso significa que esta senha
se torna a palavra-chave da relação entre Israel e os povos da
terra e vice-versa.
Com isso, o javista exprime sua posição diante de um
problema que se tornou presente com a formação do império.
Seu ponto de vista não era exatamente algo natural nos círcu­
los de influência. Estes tinham a consciência do triunfo e uma
sensação de superioridade, depois de todo o sofrimento causa­
do a Israel pelos vizinhos nos anos anteriores. As crises que
começaram no tempo de Salomão ainda mostram a persistên­
cia da intranqüilidade entre os povos subjugados. A partir da
passagem-chave do javista surge esta pergunta: O povo de
Abraão até agora trouxe bênção para eles? Os povos encontra­
ram bênção em Israel? A “grande nação”, com seu “grande
nome”, corresponde à vontade proclamada pelo Senhor?
De onde o javista tira sua autoridade para essas questões?
Porventura terá ele recebido confidencialmente um querigma
59
completamente novo, que é capaz de ligar só de modo vago à
antiga tradição patriarcal? Só em forma de alusão podemos
traçar aquilo que o confirma. Por exemplo, existe a antiga ex­
pressão de desejo de que os descendentes possam “possuir as
portas de seus inimigos”, o que é assumido secundariamente
na promessa de Iahweh em 22,17. (O acréscimo editorial em
Gn 22,15-18 — a saber, 17-18 — une-o muito estreitamente a
12,3b de nossa passagem). Gn 24,60 mostra que o javista co­
nhece essa antiga expressão de desejo a partir das tradições.
Ela conduz para além da promessa de descendentes, com a
qual está unida em Gn 24,60, já que considera sua relação com
o mundo circunvizinho; contudo, basicamente só cobre a pro­
messa de preeminência (12.2« /i)43 — não a senha decisiva
“bênção” em relação ao mundo circunvizinho.
Essa palavra volta novamente no v. 3a, que ainda não foi
considerado:

“Abençoarei os que te abençoarem,


amaldiçoarei os que te desprezarem.”
Foi esse dito que provocou a questão se não há aqui uma
“palavra cultual em estilo elevado44”. Certamente, o javista as­
sume esse dito da tradição; mas selecionou-o cuidadosamente,
para introduzir sua declaração única e decisiva no v. 3b. E usa
esse dito mais duas vezes — uma delas na conclusão da bênção
de Isaac a Jacó (Gn 27,29b).
“Maldito seja quem te amaldiçoar!
Bendito seja quem te abençoar!”
E outra no final do primeiro dito de Balaão, em Nm 24,9b,
onde, além do fato de que aqui a palavra de bênção vem antes,
apresenta exatamente a mesma forma. O quanto essa palavra é
60
familiar a nosso narrador fica evidente no uso que dela faz, em
variação livre, no relato de Balaão em Nm 22,6b.
O javista assume esse dito como ponto de partida. Mas a
reformulação que dele faz na passagem-chave mostra que dese­
ja ampliá-lo. Além disso, o fato de que a palavra de bênção em
Nm 24,9b seja colocada primeiro, ao contrário de Gn 27,29b
— e o fato de que as frases paralelas são alteradas para formar
um quiasmo — altera o dito de três maneiras. A palavra de
maldição ou bênção, formada no culto e dita por homens, se
torna a palavra da promessa, pronunciada por Deus: “Eu
abençoarei!” “Eu amaldiçoarei!” Assim, isto é acrescentado à
seqüência de promessas que começam com o v. 2a. Em segun­
do lugar, o pronunciamento é mais radical e enérgico: em vez
de “quem te amaldiçoar”, diz “quem quer que te desprezar”.
Talvez mesmo o uso de ’rr ao invés de qll (piei) indique que
não é aquele que usa a palavra ‘a rur contra Israel que atrai
sobre si a maldição de Iahweh, mas sim todo aquele que consi­
dera Israel, enquanto povo de Deus, como vil e desprezível45.
Podemos parafrasear isso livremente assim: “Eu amaldiçoarei
todo aquele que não te tratar como bendito.” Finalmente, o
singular é surpreendente!46 O caluniador é considerado como
exceção. Evidentemente, o javista modificou conscientemente
o paralelismo estrito da palavra cultual tradicional. A ênfase
recai sobre a bênção, algo absolutamente ir esperado depois do
v. 2b. Assim, no v. 3a o javista cobriu e preparou sua frase
conclusiva através da tradição. A análise da história traditiva
enfatiza assim a clareza da frase conclusiva e sua acentuada
unil ater alidade, mostrando que aquele que escreve a história,
como testemunha, quer realmente culminar exatamente com
este pronunciamento: “ . . . Todos os clãs da terra podem ga­
nhar uma bênção em ti”. Mesmo que o javista diga estar teste­
munhando apenas a vontade de Deus, que sempre foi procla­
mada em Israel, ainda assim não temos provas de que fosse ex­
pressa exatamente deste modo no passado.
61
3. Nosso texto é a palavra-chave da transição da história
da humanidade à história de Israel. O que é característico do
javista, juntamente com a metodologia literária, é o fato de que
sua interpretação consiste na compilação de composições lite­
rárias da tradição em seu contexto, e no seu modo próprio de
se expressar. Sabemos muito bem que 12,1-3 não é apenas a
“conclusão da proto-história” (Urgeschichte), “mas também
sua verdadeira chave de interpretação47”. Isso concorda com o
fato de que 12,1-3, com sua ênfase particular, só pode ser en­
tendido quando interligado com Gn 1,11. Se lido após 2-11, se
confirma com clareza aquilo que sua própria disposição inter­
na, bem como a história da tradição mostraram, a saber, que a
palavra decisiva só aparece em 12,3b.
A assim chamada proto-história explica de antemão por­
que todas as famílias da terra precisam da bênçãos. Isso é reve­
lado em retrospectiva por 12,3b como sua questão latente,
condutora (Leitfrage). Podemos aqui resumir isso brevemente,
porque o material é bem conhecido, já que freqüentes vezes foi
tratado. Com vários tipos de materiais tirados da tradição, o
javista mostra insistentemente onde sua atenção está fixada:
em toda a humanidade, na vida do próprio homem (cap. 2-3),
em sua família e trabalho, harmonia e conflito, em suas cria­
ções culturais e sociais (cap. 4) e em todas as ramificações da
gigantesca árvore genealógica do homem, na medida em que
estas são conhecidas à sua geografia (cap. 10), nas nações do
mundo em sua desesperada alienação causada pela preocupa­
ção e hybris (11,1-9). “Todas as famílias da terra” — este tema
de sua mensagem em 12,3b é introduzido já nos cap. 2-11.
Sem dúvida, o leitor sabe com precisão aquilo de que a hu­
manidade está carecendo. A palavra de bênção, que apresenta
cinco variantes diferentes na passagem-chave (Leitsatz), não
ocorre no relato javista do homem. (A fórmula baruk YHWH
em Gn 9,26b não é uma exceção, porque não é um caso de
bênção ao homem). Ao contrário, a raiz Vr aparece cinco ve-
62
zes: 3,14.17; 4,11; 9,24 e 5,29 (numa referência à passagem de
3,17). Depois que a maldição foi lançada sobre a serpente e o
jardim, recai sobre Caim e Canaã, representantes dos homens
que são os pais das nações. Particularmente na paráfrase da
antiga saga sobre Noé, o primeiro vinicultor, e no enxerto do
nome maldito de Canaã no nome de Cam (ver 9,18.22.25), tor­
na-se claro que segmentos da população escravizada que vive
no império como “servo(s) dos servos” foram introduzidos ali
para indicar uma lição. A maldição destrói a liberdade: ela ex­
pulsa o homem da árvore da vida (4,11) e lança-o como erran­
te fugitivo numa peregrinação sem destino e vitima do temor
da morte (4,14). A palavra sobre a serpente já mostra como a
maldição acarreta completa degradação — prisão ao pó e ex­
clusão da comunidade dos livres (3,14); a maldição abandona
a terra aos espinhos e abrolhos, amplia a infertilidade e portan­
to força o homem a um trabalho vão e estafante (3,17).
Mediante uma genealogia que estabelece conexões, todos
esses relatos de-maldição estão interligados em ordem histórica
com aqueles que não têm a mesma palavra-chave, mas tratam
do mesmo assunto. A peculiaridade aqui é que a maldição
não deve levar o processo de destruição até o fim; ela é limita­
da, para que o homem não morra, mas continue a viver por um
sentido ainda não explicitado48. Existe ainda uma consolação
no meio do trabalho e sofrimento da vida sob a maldição, en­
contrada na quinta passagem ’rr (5,29)49. Além das cinco refe­
rências ’rr, existe uma sexta que fala da maldição, usando a pa­
lavra qll (piei) que agora, contudo, é negada (8,21). Iahweh
diz: “Eu não amaldiçoarei nunca mais a terra por causa do ho­
mem.” Olhando retrospectivamente para 3,17, isto é como um
anúncio prévio de 12,3 em forma negativa50; indica a com­
preensão javista da história: com o homem, nada permanece
como era; ele enfrenta mudanças grandes e reais.
Não amaldiçoar o mal que o homem faz ainda não é o
mesmo que abençoá-lo. Mas o que significa “herdar a bênção”
63
em 12,3? A resposta já foi preparada por uma parte das pala­
vras de maldição, embora em forma negativa: entrar numa
vida livre e frutífera, sair da escravidão, do esforço vão e da pe­
regrinação sem destino, da hybris e do temor da morte. E da
história de Babel se acrescenta, como promessa antecipada:
superar a incapacidade que os povos têm de se compreenderem
mutuamente e de agir solidariamente.
Esses breves lembretes daquilo que é muito bem conhecido
bastam para mostrar como as narrativas que precedem 12,1-
3 confirmam que a primeira mensagem do javista pode ser des­
coberta em 12,3b.
Mas essa passagem expressa o sentido de todo seu labor
teológico? Esta questão ainda não foi abordada. Para respon­
dê-la devemos olhar para o restante da obra javista.
III
Se nossa análise de 12,1-3 e nossa ênfase em 12,3b em co­
nexão com Gn 2-11 estiverem corretas, então é possível ler
tudo o que o javista compilou e apresenta a seguir, em termos
de sua pergunta temática: Como, através de Abraão, os povos
herdarão a bênção? Como podem chegar a uma vida livre e
produtiva? Os cap. 2,4b-12,3 afirmaram que todos os povos
estão destinados a receber a bênção, e mostraram em que me­
dida todos os povos necessitam dela. Mas como os povos todos
vão receber apoio vital a partir de Israel é algo que o javista
ainda vai dizer. É esta a questão que realmente interessa à sua
audiência no reino salomônico.
Podemos perguntar se e como o javista desenvolve seu
tema ao apresentar os grandes complexos de tradição.
1. Que ele se dedica aos mesmos mais adiante transparece
no fato de que por duas vezes mais enxerta 12,3b por inteiro na
tradição patriarcal (18,18; 28,14). E transparece também no
fato de que o javista amplia a tradição patriarcal, particular-
64
mente porque nela se realiza o sentido de 12,3b. O tema do ja-
vista aparece acentuado pela primeira vez quando molda o re­
lato sobre Mambré-Sodoma. Quando ele parte de Mambré,
Iahweh hesita, perguntando a si mesmo se pode esconder de
Abraão o juízo merecido por Sodoma (18,17)51. Por que deixa­
ria de fazê-lo? A resposta é altamente significativa: “Abraão se
tornará uma nação grande e poderosa para que todas as na­
ções da terra possam ganhar nela uma bênção” (v. 18). Esta
tendência corresponde exatamente à de 12,2-3. Com a referên­
cia à “nação grande e poderosa” o leitor é conduzido ao pre­
sente. Este igualmente se lembrará de que Sodoma desperta in­
teresse precisamente porque foi o berço dos moabitas e amoni-
tas, que foram incorporados ao império (19,37-38). O tema es­
sencial, que torna impossível Iahweh silenciar, nasce da recor­
dação da promessa a Abraão de que haveria de se tornar um
grande povo: “Em Abraão-Israel todos os povos encontrarão
salvação.
Seguindo essa introdução literal de seu tema, o javista reve­
la no relato seguinte, e pela primeira vez, como em Abraão-
Israel a bênção atinge aqueles que são ameaçados de morte.
Sua resposta é: na atuação intercessória constante de Abraão-
Israel por aqueles que estão perecendo. O simbolismo da nar­
rativa é claramente distinguido pelo fato de que, em 18,25,
Iahweh é invocado como “Juiz de toda a terra”. Assim, a cul­
pada Sodoma permanece como exemplo para “todas as nações
da terra” (v. 18b). Como a bênção podia ser evidenciada? No
perdão da culpa (v. 26) e no cancelamento da decisão de des­
truir (v. 31-32). Naquela ocasião a intercessão de Abraão por
Sodoma não podia ter êxito. A tarefa posta diante de Israel no
período salomônico fica completamente clara: a missão de Is­
rael não consiste em concordar com o juízo muito bem mereci­
do de seus súditos, ou mesmo em sua execução, mas na ativi­
dade intercessória constante, tendo em vista o perdão e a mag­
nanimidade.
65
3 — 0 dinamismo das tradições do Antigo Testamento
Provavelmente todas as demais perícopes referentes a
Abraão devam ser consideradas à luz desta brilhante passagem
do j avista, mesmo que originalmente elas pretendessem dizer
algo diferente ou mesmo que continuem a conservar sua pró­
pria função secundária. Assim, a narrativa de Abraão-Ló, no
cap. 13, diz que o abençoado se torna uma bênção ao dar a seu
irmão a livre escolha da terra. O relato da situação de perigo
deste antepassado revela, por outro lado, a correspondente
maldição: ao mentir e fazer passar por irmã sua mulher,
Abraão traz o mal sobre o Egito, em vez da bênção (12,10-20).
Que o sentido principal do tema javista foi entendido nos tem­
pos posteriores transparece através da ampliação redacional
do relato sobre o sacrifício de Isaac em 22,15ss, especificamen­
te: na segunda proclamação do anjo. Aqui a questão referente
à maneira em que a bênção será transmitida aos povos é res­
pondida no estilo do deuteronomista: “ . .. porque obedeceste
à minha voz”. Os vv. 16-18 apresentam-no em estilo narrativo:
“porque não me recusaste teu filho, teu único, eu te cumularei
de bênçãos, eu te darei uma posteridade . . . e por tua posteri­
dade todas as nações da terra poderão ganhar uma bênção.”
Isto é um guia para a compreensão do pensamento javista em
passagens que não sugerem diretamente o tema.
Contudo, nos ateremos às narrativas que são interpretadas
pelo próprio javista. Sua interpretação da tradição de Isaac é
um exemplo particularmente eloqüente, sobretudo porque aqui
podemos fazer uma comparação com os paralelos eloístas que
falam da aliança de Abraão com Abimelec em Bersabéia (cap.
20-21). No relato javista, Abimelec é apresentado imediata­
mente como “rei dos filisteus” (26,1). Aqui aparece o antigo
arquiinimigo de Israel, de quem Davi finalmente tomou os cen­
tros de hegemonia sobre a Palestina (2Sm 8,1). Numa teofania,
Iahweh ordena a Isaac que resida na terra dos filisteus (Gn
26,3). Num pós-escrito literário, nos vv. 4 e 5 o tema-chave de
66
12,3b é expressamente invocado, nas mesmas palavras de
22,17s.
Entretanto, o próprio javista interpretou sua mensagem
com muito mais originalidade. Isaac-Israel não cumpre sua
missão entre as nações; e, por causa de seu medo, é atraída a
culpa sobre eles (26,10). Depois do relato da negação da ante­
passada (agora Rebeca), aplicado a Abimelec como perícope
de contraste, o javista começa novamente em 26,12 com sua
senha: “Iahweh o abençoou” dando a Isaac fartas colheitas na
terra dos filisteus. O v. 13 continua: “ . .. e o homem se enri­
queceu, enriqueceu-se cada vez mais, até tornar-se extrema­
mente rico”. Assim a dupla senha “grande” (ver 12,2a) apare­
ce no relato novamente como uma interpretação da bênção.
Este quadro é colocado então em relação aos filisteus: “ . . . os
filisteus ficaram invejosos” (v. 14b). A seguir vem a querela
por causa dos poços, em que os filisteus figuram com predomi­
nância (vv. 15-16), e a aliança com Abimelec. Junto com seus
cúmplices, Abimelec exclama no v. 28: “Vimos com clareza
que Iahweh está contigo”; e após solicitar uma aliança conclui:
“Agora és um abençoado de Iahweh.” Aqui o javista chega
exatamente ao ponto central: as nações necessariamente bus­
cam a relação com Isaac como alguém abençoado por Iahweh.
Como ele atrai a bênção? Aqui a resposta é: fazendo uma
aliança solene (b erit) com os filisteus, apesar de sua hostilidade
anterior. De que maneira se processa a bênção? Shalon se es­
tabelece (vv. 29 e 31) na promessa de não causarem nenhum
dano mútuo. Assim o javista, recordando o pacto com os filis­
teus, apresenta um segundo sermão para o reino salomônico52.
Passemos rapidamente ao ciclo de Jacó. O ciclo Jacó-Esaú
merece um interesse apenas passageiro. Pertence ao nosso
tema na medida em que a continuidade da bênção, de uma ge­
ração à outra, se torna um tema importante. Pois surge entre
os irmãos a possibilidade de perdê-la. Vimos anteriormente que
a bênção dada por Isaac a Jacó em 27,27-29 é uma variante de
67
12,2-3, embora seja formulada menos livremente. As estranhas
formas plurais, “teus irmãos” e “filhos de tua mãe” em 27,29a
jS que trazem visivelmente impressas as senhas do tema javis-
ta de “povos” e “nações” no v. 29a , contudo rompem o con­
texto do relato Jacó-Esaú. Em 28,14 o tema, formulado exata­
mente como 12,3b, é repetido no uso javista do relato de Betei.
Nisto a questão de como transmitir bênção às nações encontra
mais uma resposta: ao se multiplicar e se expandir Israel para
o ocidente, oriente, norte e sul, chega-se ao ponto em que, “a-
través de Jacó e sua descendência” — esta frase é agora acres­
centada expressamente — “todos os clãs da terra podem en­
contrar bênção”. Israel se mistura às nações: esta é a maneira
pela qual o próprio Iahweh efetiva a plenitude da bênção, mes­
mo no império.
O ciclo seguinte de Jacó-Labão traz maiores esclarecimen­
tos: “Fiquei sabendo por presságios que Iahweh me abençoou
por causa de ti.” No v. 30 Jacó assume a senha: “O pouco que
tinhas antes de mim cresceu enormemente, e Iahweh te aben­
çoou com a minha chegada.” Desta vez a bênção chega às na­
ções na forma de ovelhas: com sua habilidade de pastor, Jacó
produz abundância entre os arameus. Além deste ponto o ja­
vista dá livre curso à narrativa, com suas múltiplas tensões.
Contudo no final existe aqui, igualmente, uma aliança de paz
entre Jacó e Labão (31,51-52).
Para resumir: o javista expõe seu querigma através da nar­
rativa patriarcal. Ele lida com “todas as famílias da terra”,
usando como exemplos os moabitas, amonitas, filisteus e ara­
meus. Como eles vão encontrar bênção em Israel? Através da
intercessão de Israel junto a Deus, no exemplo de Abraão;
através da prontidão em chegar a um acordo pacífico, no
exemplo de Isaac; através da ajuda econômica, no exemplo de
Jacó. Iahweh criou o pré-requisito executando a promessa de
crescimento e expansão. Como se encontra bênção através de
68
tudo isso? Na anulação da culpa e punição, na vida comunitá­
ria sem conflito na ajuda material efetiva.
O tema javista emergiu tão claramente da tradição patriar­
cal, que é fácil ver a importância por ele atribuída ao uso de
outro material. E naquilo que segue ele não deixará de dedicar-
se integralmente a este ponto.
2. A história de José é como um prelúdio do êxodo. É um
drama em miniatura que mostra como, através da sabedoria de
um dos patriarcas de Israel, a bênção chegou até mesmo ao
poderoso império do Egito. Sem dúvida, não há um uso direto
de 12,3b no texto javista recebido. Talvez, ao ser editado ele te­
nha sido sacrificado às passagens eloístas que, em vista do
tema, dificilmente poderiam ter dito outra coisa além daquilo
que o próprio javista disse. No eloísta há esta passagem muito
bem conhecida: “O mal que tínheis intenção de fazer-me, o
desígnio de Deus o mudou em bem, a fim de cumprir o que se
realiza hoje: salvar a vida a um povo numeroso” (Gn 50,20;
compare com 45,3-13). Se esta referência a “um povo numero­
so” inclui o Egito, é uma questão que deve continuar incerta no
caso do eloísta (ver 46,3)- Mas o javista certamente pretendia
incluí-la (ver 47,13-26).
Na cena de Putifar encontramos um traço muito significa­
tivo. Este oficial do faraó coloca José para cuidar de toda sua
casa. Daí em 39,5 diz: “E a partir do momento em que ele foi
preposto à sua casa e ao que lhe pertencia, Iahweh abençoou a
casa do egípcio, em consideração a José: a bênção de Iahweh
atingiu tudo o que ele possuía em casa e nos campos.” Toda
essa cena parece um esboço imperfeito da atividade futura do
grão-vizir José e seu efeito salutar sobre todo o Egito (ver Gn
41,49-57). Aqui a sabedoria dada ao patriarca de Israel é o
meio através do qual a bênção é transmitida — tendo a preser­
vação da vida como seu efeito. Talvez, com a sabedoria políti­
ca de José, o javista deseje colocar um espelho diante do “sá­
bio” Salomão e seus conselheiros. Portanto, nem mesmo os im­
69
périos distantes vão ser excluídos, quando todas as famílias da
terra encontrarem bênção em Israel.
Sob este tema o javista coloca também a famosa tradição
do êxodo que, em lugar de sua antiga conexão com o tema da
conquista, recebe um propósito totalmente novo53. Provavel­
mente por causa deste interesse primordial, ele haja assumido e
moldado sobretudo as narrativas das pragas. Em seu clímax,
numa cena que não encontra paralelo nos livros eloístas ou sa­
cerdotais, ele dramatiza a mensagem numa mudança bonita e
brilhante.
Em Ex 10,28-29, todas as negociações do faraó com Moi­
sés são taxativamente cortadas: “Aparta-te de mim, e guarda-
te de veres a minha face, porque no dia em que vires a minha
face, morrerás.” E Moisés responde com a mesma severidade:
“Nunca mais tornarei a ver a tua face!” assim, com maestria
artística, aquilo que é completamente inesperado é preparado
nesta cena final, começando em Ex 12,29, sendo que tudo de­
pende disto. Durante a noite do extermínio dos primogênitos,
o próprio faraó, apesar de tudo o que tinha ocorrido anterior­
mente, chama Moisés de volta. E na audiência noturna diz, a
partir de uma decisão totalmente pessoal (depois que Iahweh
afligiu o Egito com a maldição por causa dos filhos de José
oprimidos): “Levantai-vos e saí do meio de meu povo . . . ide,
servi a Iahweh, como tendes dito. Levai também vossos reba­
nhos e vosso gado, como pedistes, parti e — a conclusão enfáti­
ca do faraó — abençoai a mim também!”
Aqui se usa uma senha que pode esclarecer todas as passa­
gens anteriores. Poder-se-ia inclusive colocar sobre elas as pa­
lavras: “Eu amaldiçoarei todo aquele que te desprezar.” Nem
aqui esta afirmação tem significado independente, mas deve ir
além, até ao ponto em que aquele que incorreu em maldição
acabe encontrando bênção em Israel. Aqui a bênção é transmi­
tida através da celebração cultual de Israel. As cenas anterio­
res prepararam este sentido. Reiteradas vezes depois da praga
70
o faraó implora aos israelitas: “Rogai a Iahweh que afaste de
mim . . (Ex 8,4b; 9,28). E em 10,17: “Mas agora perdoai-me
ainda esta vez o meu pecado, e rogai a Iahweh vosso Deus que
tire de mim esta morte.” A maneira de conceder a bênção é as­
sim semelhante a Gn 18: intercessão e perdão! O resultado da
bênção é a eliminação da maldição do juízo. E pelo fato de o
Egito ser ao mesmo tempo uma potência mundial e o domina­
dor de Israel, o relato javista se torna particularmente direto
aos seus contemporâneos: apesar de todo sofrimento recebido
sob suas mãos, Israel está destinado a levar até mesmo o Egito
à bênção. Não é de surpreender que esta faceta de seu querig-
ma tenha sido retomada e repensada nos séculos posteriores,
em que Israel, uma vez mais, se viu dominado sob o jugo das
potências mundiais54.
3. Ao tratar dos temas dos patriarcas e do êxodo, o javista
é exuberante; mas ao expor a peregrinação pelo Sinai é parci­
monioso55. Como poderia ter sido diferente, à luz de seu que-
rigma? Os povos do mundo, dos quais ele tratou na proto-
história e que tornaram tão fecundo o tema patriarcal e que fi­
guravam tão ousadamente nas histórias de José e do êxodo —
não tiveram um lugar sequer na tradição do Sinai! Natural­
mente ele não podia simplesmente omitir este relato, já que
bem cedo foi amalgamado ao restante dos temas56. Ele tam­
bém não quer eliminá-lo, porque Israel só pode ser uma bênção
enquanto povo de Iahweh. A Aliança no Sinai destina todo Is­
rael à bênção abraâmica. (Gn 26,28s nos mostrou que às vezes
a bênção vem na forma de uma aliança.) Da mesma forma,
mediante uma aliança Iahweh torna válido para Israel tudo
aquilo que valia para os patriarcas. Além disso, o relato do Si­
nai não oferece mais coisas de grande importância. Em Ex
34,12a e 15a as palavras do javista sobre a efetivação da alian­
ça são secundariamente ampliadas: “Abstém-te de fazer alian­
ça com os moradores da terra para onde vais.” Estas afirma-
71
ções pertencem a um estilo deuteronomista57. O javista não po­
dia assumir facilmente algo semelhante, e não o fez.
A situação é diferente com a tradição da conquista. Já vi­
mos e percebemos que o javista não lhe dá muita ênfase58. Mas
não lhe parecia tão decididamente retrógrada como o relato do
Sinai, pois nela Israel encontrava as nações. Exatamente por
esse motivo o relato de Balaão, no qual aparecem novamente
os moabitas, vem no fim. Assim, à medida em que a história ia
se desenrolando diante dele, a narrativa dizia respeito à bênção
e maldição; e principalmente à maldição, que o rei moabita Ba-
lac solicitou ao vidente Balaão contra Israel (Nm 22,6). Esta
tradição aparece vagamente na palavra de maldição (qbb) em
22,11.17; 24,10 (J); 23,8.11.13.25.27 (E) — palavra esta que
não é comum no javista. Balaão não pode aceitar tal solicita­
ção; ele deve abençoar Israel, que é abençoado. A bênção de
Israel é irrevogável. Assim, Balac fica sabendo que a própria
bênção acampa no meio deste Israel sofrido:
Como são formosas as tuas tendas, ó Jacó! e as tuas mora­
das, ó Israel!
Como vales que se estendem,
como jardins ao lado de um rio,
.. . e sua semente estará em muitas águas.
Seu rei é maior que Agag,
seu reinado se exalta.
. . . Bendito seja aquele que te abençoar,
e maldito aquele que te amaldiçoar! (Nm 24,5-9).
Fica em aberto a questão se Moab recebe a bênção. O se­
gundo dito fala em esmagar as têmporas de Moab (24,17). Isso
corresponde às narrativas das pragas e ao sofrimento do início
do reino davídico. O javista é cuidadoso ao lidar com a tradi­
ção. Na conclusão da narrativa (Nm 24,25) Balaão volta para
casa, e “Balac também seguiu o seu caminho”. A bênção de
Moab ainda não chegou.
72
Isso corresponde à primeira passagem interpretativa da
história patriarcal onde, apesar da intercessão de Abraão, So-
doma é destruída, e à narrativa do êxodo, onde o faraó e os
egípcios são lançados ao mar. Em Nm 25,1-5 o javista une à
narrativa de Balaão o relato da apostasia de Israel a Baal de
Fegor, deus dos moabitas59. Conseqüentemente, Moab não
apenas perdeu sua partilha na bênção de Israel, como também
o próprio Israel, em sua apostasia de Iahweh, perdeu o propó­
sito que lhe foi mostrado na promessa a Abraão. Esta passa­
gem conclusiva tem uma função de advertência semelhante à
de Gn 12,10ss, que segue de perto 12,3.
Esses textos nos indicam que o javista ainda não deseja es­
crever a história da realização da promessa. Ele escreveu o re­
lato da maldição do homem de uma forma plenamente abran­
gente. Nesta altura, todas as famílias da terra estão de fato pre­
sentes. Mas que elas encontram bênção em Israel é algo que o
javista ainda deve apresentar diante de Israel como um querig-
ma. Sem dúvida, a realização plena brilha aqui e ali: na aliança
de Isaac com o rei filisteu Abimelec; no serviço abençoado de
Jacó ao arameu Labão; nas obras de José junto aos egípcios.
Até o próprio javista prega a uma situação “entre a promessa e
a realização60”. A realização — “todos os clãs da terra ganha­
rão uma bênção em Israel” — por ora só está presente na pro­
messa. Ela é colocada diante de Israel como uma tarefa. Nu­
merosos exemplos vão servir de garantia de seu cumprimento.
Deve ter sido humilhante para a hybris61 daqueles que vi­
viam com ostentação nos dias de Salomão saber que não ti­
nham alcançado a bênção de Iahweh, e que não a alcançariam
a não ser quando, através deles, todas as nações encontrassem
bênção: a salvação para uma vida livre, autônoma e produtiva.
Assim, para este alto propósito, o javista remete o desiludido
aos primórdios da ação de Iahweh, reinterpretando as tradi­
ções para seu próprio tempo com um poder arrebatador62.
73
IV
Recentemente von Rad falou da “atualização incessante da
história da salvação (geschichtliche Heilsfakten)". Isto faz
com que cada geração se veja na situação de “sair de novo em
direção à realização plena63”. Podemos assinalar facilmente
este fato na proclamação do javista. Como vimos, o javista
trouxe a tradição patriarcal para dentro de sua própria época,
de uma forma surpreendentemente nova. E sua mensagem — de
que o propósito de Iahweh é abençoar todas as nações da terra
através de Israel — produziu ecos e interpretações nos séculos
posteriores.
Talvez, conforme as palavras características do Salmo 47,
o hino a Iahweh, rei de Israel e do mundo, encontremos um eco
do javista:
Iahweh é o grande rei sobre a terra inteira;
.. . senta-se Deus em seu trono sagrado.
Os príncipes dos povos se aliam
com o povo do Deus de Abraão.
Pois os escudos da terra são de Deus,
e ele subiu ao mais alto. (O grifo é nosso)
Se o salmo 47 chama todas as nações que estão ao redor
do trono de Deus de “povo do Deus de Abraão64”, então Gn
12,3b surgiu na tradição cultual de Jerusalém. Aqui a poesia
cultual de Jerusalém assume a mensagem do javista sob a figu­
ra do reinado de Iahweh. Esta figura de linguagem supõe que
só Iahweh, como rei das nações, pode cumprir sua promessa a
elas — mas vai fazê-lo através de Israel.
De um modo muito mais direto o tema do javista é assumi­
do por duas afirmações escatológico-proféticas encontradas
em Is 19,23-25: “Naquele dia, haverá uma vereda do Egito até
a Assíria: os assírios irão ao Egito e os egípcios irão à Assíria e
os egípcios servirão juntamente com a Assíria. Naquele dia, Is-
74
rael será o terceiro, ao lado do Egito e da Assíria, uma bênção
no seio da terra, bênção que pronunciará Iahweh dos Exérci­
tos: ‘Bendito meu povo, o Egito e a Assíria, obra da minhas
mãos, e Israel, minha herança!’ ” Nesta reinterpretação o im­
pério brutal, a Assíria, e o antigo opressor, o Egito, são condu­
zidos a uma tríplice aliança, pela primeira vez, com o povo da
bênção, Israel, no meio. A ousadia com que títulos honoríficos
pertencentes a Israel são atribuídos ao Egito e à Assíria não
encontra paralelo no Antigo Testamento: “meu povo”, “obra
de minhas mãos”. Assim, indo além de Gn 12,3b, esta passa­
gem declara que até mesmo as potências mundiais mais obsti­
nadas estão incluídas, e que “bênção para todas as nações” su-
pÕe relacionamento igual com Israel.
A interpretação da mensagem javista caminha numa dire­
ção diferente em Jr 4,1-2: “Se te converteres, Israel — oráculo
de Iahweh —, se afastares teus horrores de minha presença . ..
se jurares pela vida de Iahweh na verdade, no direito e na justi­
ça, então se abençoarão nele as nações e nele se glorificarão!”
A mudança da linguagem direta para a terceira pessoa no v. 2b
mostra provavelmente que encontramos aqui uma interpreta­
ção secundária. Fiel à forma, Jeremias diz aqui que Israel só
pode cumprir seu destino redentor no mundo (Heilsauftrag) —
tarefa sua já desde Gn 12,3b — quando ele próprio confessar a
Deus com lealdade indivisa e retidão de vida.
A profecia pós-exílica atua a partir do lado oposto da pro­
messa: Israel pode se tornar uma maldição e de fato o foi. Zc
8,13 diz: “Assim como fostes uma maldição entre as nações,
casa de Judá e casa de Israel, do mesmo modo eu vos salvarei
e sereis uma bênção. Não temais! Que vossas mãos se revigo­
rem.” De acordo com isso, Israel requer uma ação salvífica to­
talmente nova da parte de Iahweh, de maneira que possa atin­
gir seu destino entre as nações do mundo.
Através de rupturas históricas totais e de totais desconti-
nuidades, a palavra de promessa é continuamente colocada
75
diante de Israel. Mas, isto é feito de tal maneira que novos atos
de Iahweh são proclamados para fazer frente ao fracasso de Is­
rael. A promessa encoraja Israel a viver novamente diante do
futuro que é anunciado.
Zc 8,23 dá um passo adiante ao oferecer um exemplo con­
creto da realização escatológica da antiga promessa: “Assim
disse Iahweh dos Exércitos: ‘Naqueles dias, dez homens de to­
das as línguas das nações agarrarão um judeu pelas vestes, di­
zendo: Nós iremos contigo porque ouvimos que Deus está con­
vosco!’ ” A missão à humanidade é ilustrada numa única cena:
um israelita levará dez estrangeiros. Nisto a extensão universal
não é abandonada, mas esclarecida de uma forma nova. Os
dez estrangeiros “provêm das nações de todas as línguas”,
como se a confusão de línguas no final do relato da torre de
Babel formasse o pano de fundo (como em Gn 12,3). Da mes­
ma forma, o motivo da vinda dos estrangeiros —“ouvimos que
Deus está convosco” é reminiscência do motivo da vinda de
Abimelec à Isaac, em Gn 26,28 (J)65.
Assim, em situações completamente novas, é apresentada a
Israel a antiga palavra em formas sempre novas. Transcenden­
do as revoluções históricas, a palavra de promessa é revelada
como um continuum, em que a vontade salvífica de Iahweh em
Israel continua sendo verdadeira para todas as nações da terra.
Esta imutabilidade é o motivo último pelo qual construções
querigmáticas aparentemente diferentes se tornaram mais tar­
de “Escritura”.
Vou encerrar com duas questões:
A. Não devemos dizer algo correspondente a isso quando
Paulo, em G1 3,8, assume querigma do javista e, ao fazê-lo, as­
sume um motivo querigmático básico do Antigo Testamento?
Certamente, a maneira de transmitir a bênção e seu efeito são
vistos agora sob uma luz nova: Paulo entende a palavra da
promessa de Gn 12,3b sob uma perspectiva cristológica, e dá
testemunho de Jesus a partir dessa palavra. Mas porventura
76
ocorre aqui algo basicamente diferente do javista e de seus su­
cessores (Zc 8,13) quando encontram a palavra recebida já in­
terpretada por novos atos de Iahweh? Não é necessário, em
termos da história traditiva, falar de uma certa continuidade
com a história da proclamação do Antigo Testamento, ou mes­
mo de sua assimilação? Porventura a história precedente da
proclamação não adquire um significado orientador e legitima-
dor para Paulo?66
B. Além disso, pergunto: podemos hoje entender plena­
mente a Jesus sob uma perspectiva teológica e pregar, se não
fazemos uso, entre outras coisas, do querigma do javista e de
seu rico desenvolvimento como ajuda na compreensão e pro­
clamação? Referimo-nos não apenas à sua apresentação da
história da humanidade, mas, acima de tudo, aos relatos dos
patriarcas e do êxodo. Os eventos escatológicos do Novo Tes­
tamento deveriam guiar-nos seguramente a um exame crítico
do Antigo, assim como os feitos de Iahweh no tempo de Davi
levaram o javista a olhar criticamente a tradição patriarcal.
Portanto, com suas interpretações narrativas, o javista porven­
tura não avança nossa percepção de por que, como e para que
a bênção do Deus de Israel vem no filho de Abraão, Jesus,
como a bênção de vida para todas as nações da terra? Porven­
tura não nos mostra também como a Igreja, enquanto novo Is­
rael, pode servi-lo na história dos dias atuais? Podemos discer­
nir o caminho da Igreja no mpndo de hoje e amanhã, sem abrir
nossas mentes à maneira como esta palavra atuou para conos­
co na história e sem considerarmos cuidadosamente a prepara­
ção do Caminho e seu fim no querigma do javista — que se tor­
naram realmente efetivos com Jesus de Nazaré?

77
4
OS FRAGMENTOS ELOISTAS
NO PENTATEUCO1
Hans Walter Wolff

O tema mais importante do eloista


é o temor de Deus.
Ainda existem entre nós aqueles que se sentam em suas es­
crivaninhas e fulminam o eloísta com suas palavras. Não estou
pensando apenas naquela escola escandinava que julga ter ha­
vido uma longa tradição oral dos materiais do Pentateuco, e
defende que a edição final destes ocorreu numa edição literária
que é simultaneamente primeira e última. Tenho em mente
mais particularmente aqueles eruditos que consideram as as­
sim chamadas passagens eloístas como meras reinterpretações
da obra do javista.
Muitas questões da pesquisa do Pentateuco são em grande
medida discutíveis, mas várias conclusões relevantes em geral
são aceitas como verídicas. Entre estas está a concepção de
que os editores finais usaram o documento sacerdotal como
base de seu labor teológico e como moldura para o conjunto
todo2. Além disso, existe um consenso geral de que as formula­
ções literárias mais antigas foram adaptadas à moldura poste­
rior. Nesta conexão, o javista goza de um reconhecimento es­
pecial por seu papel dominante final, ao determinar o esquema
79
do Pentateuco atual3. Por outro lado, continuam a ser levanta­
das algumas dificuldades. Devemos considerar a seção do Pen­
tateuco que precede o documento sacerdotal como obra abran­
gente de uma única escola do tempo da monarquia4, ou anali­
sá-la dentro de várias camadas5? Outra questão que sempre
aparece de novo é esta: não devemos atribuir ao eloísta, pelo
menos em algumas das narrativas do Pentateuco, uma formu­
lação original independente do javista6? Em materiais mais an­
tigos do que P, ocorrem vários temas em duplicata, e estes não
apenas tratam dos mesmos materiais, mas também mostram
traços de linguagem, estilo narrativo e modalidades de pensa­
mento teológico distintos. Encontramos duplicados já nas nar­
rativas patriarcais que descrevem Abraão e Sara entre os es­
trangeiros (Gn 12,20). Mais tarde encontramo-los nos mate­
riais do Sinai, dentro do livro do Êxodo, bem como nos relatos
de Balãao (Nm 22-24). Foram investigadas freqüentes vezes as
diferenças de linguagem e conceitos; mas se prestou pouca
atenção ao papel característico e dominante que os discursos
desempenham nas narrativas eloistas, em contraste com o do­
cumento javista.
O verdadeiro tema de discussão é como esses duplicados
devem ser explicados. São talvez variantes isoladas do material
de J, que foram acrescentadas em cada caso por um editor?
Ou remontam a uma coleção de relatos separados, que circula­
ram independentemente uns dos outros? Ou têm sua origem
numa concepção totalmente diferente dos principais temas do
Pentateuco? Baseado em minhas pesquisas, estou inclinado a
responder afirmativamente à última questão. Devo imediata­
mente acrescentar a observação de que há evidências no senti­
do de que só foram acrescentados a J fragmentos da obra to­
tal7. Os editores acima de tudo emitiram os duplicados que não
acrescentavam nada de significativo. Portanto, falamos em
“fragmentos eloistas8”.
80
A opinião de que havia uma obra independente, com uma
interpretação totalmente distinta das antigas tradições israeli­
tas, não pode ser fundamentada simplesmente nas diferenças
de vocabulário e perspectiva. Repetidas vezes assinalamos que
o eloísta chamava a Deus de “Elohim”, os habitantes originais
da terra de “amorreus”, e as donzelas de “amah”; ao passo
que o javista os chamava de “Iahweh”, “cananeus” e
“shifhah”. Em E, por causa de Sara, Deus se comunica com o
rei estrangeiro num sonho contendo longos discursos e respos­
tas do rei (Gn 20,3-7), enquanto que em J, na mesma situação,
Deus repentinamente envia várias pragas e não diz absoluta­
mente nada (Gn 12,17). Em E, o Anjo de Deus chama a Hagar
desde o céu (Gn 21,17), enquanto que em J ela encontra o
Anjo de Iahweh numa fonte, caminhando pelo deserto (Gn
16,7). Em J, Iahweh diz aos israelitas no Egito: “Far-vos-ei su­
bir da aflição do Egito” (Ex 3,17), e em E Moisés recebe a or­
dem: “Vai, pois, e eu te enviarei a Faraó, para fazer sair do
Egito o meu povo” (Ex 3,10; cf. 12). Em E, durante a travessia
do mar Vermelho o Anjo de Deus protege o acampamento is­
raelita; ao passo que, conforme o javista, o próprio Iahweh
olha do céu e luta a favor de Israel (Ex 14,24-25). Estas e ou­
tras observações semelhantes foram registradas, mas todas po­
dem ser explicadas como variantes verbais e conceituais devi­
das à reinterpretação10. Contudo, além dos duplicados, existem
muitos e variados relatos interligados que pertencem ao mate­
rial característico de E. Eles são encontrados desde o relato do
sacrifício de Isaac, em Gn 22, até a guerra contra Seon, em
Nm 21. Assim o eloísta veio a ser considerado no mínimo
como um colecionador especial de relatos.
Contudo, será justificável afirmar que, além desses frag­
mentos remanescentes, podemos distinguir um trabalho que foi
composto como unidade independente e que num período es­
pecífico de tempo recolheu os materiais da tradição em seu
próprio tema? A mera demonstração de duplicados, mostran­
81
do diferenças lingüísticas e modelos divergentes de pensamento
teológico, não é suficiente para nos convencer disso. Antes de
se considerar o eloísta como uma testemunha nova e diferente
das antigas tradições de Israel, é necessário demonstrar que há
um elo intrínseco unindo os relatos e mostrar, pelo menos pro­
visoriamente, que havia originalmente a intenção de apresentar
um ponto de vista definido. Várias observações me levaram a
ir em busca dessa demontraçao. É minha intenção defender
aqui a seguinte tese básica:
Os fragmentos eloistas do Pentateuco apontam para uma
fonte documentária originalmente independente, com sua
própria técnica de composição e uma mensagem indepen­
dente.
Começarei procurando estabelecer o tema específico da
mensagem. Depois vou tratar dos vários laços significativos
que unem entre si o conjunto de relatos. Finalmente, considera­
rei a situação de Israel para dentro da qual esta nova versão da
tradição canônica teria sido dirigida. Neste estudo me limitarei
aos textos que a pesquisa científica da atualidade aceita como
sendo do eloísta; e especificamente aos círculos mais amplos
de relatos dentro do Pentateuco.

A primeira narrativa eloísta plenamente desenvolvida no


Gênesis trata da entrada de Sara no harém do rei Abimelec, de
Gerara (Gn 20,1-18). Abraão falsamente apresentou-a como
sua irmã. Já que o javista preservou o mesmo material em dois
contos com diferentes participantes (Gn 12,10-20; 26,7-11), po­
demos distinguir claramente as ênfases específicas do eloísta.
Em ambas as versões javistas existe diálogo somente no início
82
e no fim. No início, o patriarca diz que Sara é sua irmã. No
fim, ele é reprimido pelo rei estrangeiro e mandado embora.
A culpa do patriarca é indiscutível. Ele foi chamado a abençoar
os estrangeiros (Gn 12,3b). Mas, ao invés disto, os tinha colo­
cado em extremo perigo. O relato eloísta, por outro lado, é
composto quase exclusivamente de diálogo. Um elemento com­
pletamente novo é o fato de que Deus fala a um rei estrangeiro
num sonho, e até mesmo troca idéias com ele por duas vezes.
O único assunto em debate é uma questão muito envolvente: a
culpa. Objetivamente, Abimelec é culpado porque tomou Sara
como esposa. Subjetivamente, é inocente, pois não apenas fora
enganado, como também nem tinha tocado em Sara. Deus im­
pediu que ele pecasse. Como profeta, Abraão devia interceder
para que a ameaça de morte fosse afastada de Abimelec. Senti­
mos aqui a maneira teológica séria com a qual a questão da
culpa é confrontada. Logo de manhã cedo, Abimelec contou a
seus servos o que tinha acontecido, e assim introduziu-os na
discussão. “Os homens tiveram grande temor” (Gn 20,8). De­
pois disso, Abimelec dirige a Abraão uma pergunta dupla, que
expressava seu tormento. Mesmo aqui, o ponto de debate era
somente a complicada questão da culpa. “Que ofensa cometi
contra ti para que atraias tão grande culpa sobre mim e sobre
meu reino?” “Em que estavas pensando, quando fizeste tal coi­
sa?” é o que Abraão deve responder. Agora sua culpa é o foco
da atenção. Ele é subjetivamente culpado porque levou Abime­
lec ao perigo de cometer um pecado punível com a morte. E,
contudo, pode justificar o que fez apontando para o fato de
que Sara realmente é sua meio-irmã. Sobretudo ele possui o
poder profético de intercessão, que pode eliminar a maldição
da casa de Abimelec. Assim vemos que o eloísta, a partir de
uma falha não ambígua do patriarca, elaborou um problema
teológico de culpa muito envolvente. Contudo, em meio a tudo
isso, uma única frase projeta luz sovre o restante. É a primeira
parte da resposta de Abraão a Abimelec: “Eu disse para comi-
83
go: Certamente não haverá nenhum temor de Deus neste lu­
gar” (v. 11).
A narrativa já nos tinha preparado para essa declaração
mediante a consideração que se seguia à conversa de Abimelec
com seus servos: “e os homens tiveram grande temor”. Por­
ventura essa declaração sobre o temor de Deus não explica tu­
do? Em Gerara nada aconteceria a Sara se soubessem que ela
era esposa de Abraão. Aqui são honradas as ordens de Deus.
O diálogo em sonho entre Deus e Abimelec demonstrou nova­
mente isto. Abraão é absolvido, mas ao mesmo tempo conde­
nado, porque não levou em conta o temor de Deus naquele lu­
gar. Podemos perguntar: não é esta a chave de tudo o que aqui
é novo? Algo que era completamente desconhecido às outras
versões dos mesmos materiais. Porventura tal chave não mos­
tra que esse relato está sendo considerado como uma tentação
dupla? Quem é que foi de fato tentado com mais seriedade,
Abraão ou Abimelec? O problema está em ver em que consiste
o temor de Deus em ambas as partes em tela. O temor de Deus
é entendido aqui como respeito pela liberdade e responsabilida­
de daquele que é hóspede. Onde quer que Deus for temido, isto
é, onde quer que os homens forem obedientes à vontade prote­
tora de Deus, temos esperança de encontrar também o respeito
pelos direitos dos hóspedes.
A outra narrativa, altamente artística, que pertence ao
eloísta, o relato do sacrifício de Isaac, em Gn 22, é seu escrito
mais conhecido. Mostra, de maneira notável, resquícios dos
passos de sua transmissão11. Nesta evolução o estrato impor­
tante do material é aquele em que tudo é enfocado na salvação
do filho. Já durante a longa caminhada se prepara o caminho
para isso. Nela, pai e filho estabelecem um diálogo em solidão
e temor. Abraão diz: “É Deus quem proverá ( elohimyireh) o
cordeiro para o holocausto, meu filho” (22,8). Chega-se ao
clímax quando Abraão vê o carneiro preso na moita (v. 13). A
84
salvação é comemorada permanentemente pelo nome dado ao
lugar: “Iahweh proverá (Iahweh yireh)” (v. 14). O uso do ter­
mo “Iahweh” mostra que o eloísta permite à tradição encon­
trar aqui sua expressão. Mas ao mesmo tempo confere uma
nova ênfase a este relato, e ouve nele uma nova mensagem. Já
no início ele expressou o tema do relato: “Deus pôs Abraão à
prova” (v. 1).
A exigência feita a Abraão, de que ofereça seu único filho
amado, Isaac, assume o antigo material da salvação do filho e
o reelabora na tentação de Abraão. Agora o interesse principal
consiste em traçar, de forma sucinta e provocadora, passo a
passo, o caminho da obediência. Esta vai desde a partida pri­
mordial, depois que Abraão ouve a ordem, passando pelo cur­
so da caminhada, até o ponto em que ele desembainha seu pu­
nhal. O eloísta expressa a palavra decisiva mediante um jogo
sutil12 com a expressão-chave da antiga tradição, elohim yireh
(v. 8; cf. v. 14), quando, no momento de maior tensão, o anjo
pede que Abraão pare, e explica: “Não estendas a mão contra
o menino! Não lhe faças nenhum mal! Agora sei que temes a
Deus” y ere elohim (v. 12). Aqui o tema elohim yireh é
transformado em L're elohim. O eloísta volta assim ao tema do
temor de Deus, já anunciado no cap. 20. Esse tema conferia ao
antigo relato sua relevância atual. Aqui ele define “temor de
Deus” como obediência que não preserva para si nem mesmo
aquilo que é mais precioso, quando Deus o exige, e entrega a
Deus até mesmo aquele futuro prometido por ele próprio. Aqui
o antigo relato demonstra como é respondida essa obediência
irrestrita: Deus proverá. Esta certeza confere força suficiente
para executar até mesmo o sacrifício mais amargo.
Gn 22 confirma assim nossa opinião de que o eloísta esta­
va especialmente interessado em ensinar o verdadeiro temor de
Deus. Não procurarei mostrar que outras passagens indivi­
duais registram novas provas de obediência, mesmo que essa
85
tarefa não seja difícil. Em vez disto, limitar-me-ei à questão de
se o tema do temor de Deus é importante para o eloísta em ou­
tros lugares.
Quem lê as narrativas eloístas sobre José não pode pensar
que seja acidental o fato de que nos fragmentos remanescentes
o próprio José apareça como alguém que teme a Deus. O autor
coloca a palavra-chave na boca de José numa passagem que é
quase periférica ao relato. No relato da primeira viagem dos ir­
mãos ao Egito, José trama um ardil. Em vez da palavra nissah,
que o eloísta usava para a prova a que Deus submete Abraão
em 22,1, aqui é usado repetidamente o nifal de bahan (42,15s)
para descrever a forma como José trata seus irmãos. Eles de­
vem ser provados para ver se são espiões ou não, se ainda são
dominados por sua antiga animosidade, ou se podem ser corri­
gidos13. Eles devem trazer seu irmão menor. Enquanto isso, to­
dos serão mantidos como reféns, exceto aquele que deve levar
a mensagem para casa (42,16). Finalmente, só Simeão é manti­
do como refém (v. 24). José lhes diz: “Eis o que fareis (isto é,
submetei-vos a esta prova), para terdes salva a vida, pois eu
temo a Deus” ( ani yare’ ethha’ elohim, 42,18). Neste contexto,
o fato de um homem temer a Deus é garantia de que sua pala­
vra merece toda a credibilidade. Causa surpresa que a palavra-
chave só seja encontrada aqui! Quanto não ficou perdido para
nós através do processo editorial! A obediência de José é pro­
vada sempre de novo. Citarei apenas as suas palavras finais
aos irmãos, muito bem conhecidas, em resposta ao temor nu­
trido por eles de que, após a morte de Jacó, seriam punidos.
Ele lhes diz: “Não tenhais medo algum! Acaso estou no lugar
de Deus?” (50,19). Para ele o fato de que que Deus transfor­
mou em bem o mal que seus irmãos lhe tinham feito era algo
decisivo. Aqui o tema do temor a Deus de José atinge seu
clímax. Deus faz brotar a salvação mesmo a partir das mais sé­
rias transgressões humanas. Portanto, todo aquele que reflete
que Deus pode fazer a desumanidade servir a seu propósito,
86
pode de fato confiar nele — até mesmo os irmãos livres da cul­
pa. Ainda estamos nos trilhos da palavra-chave!
Ela reaparece no início do livro do Êxodo, na transição da
história dos patriarcas para a da nação. Encontramo-la numa
passagem que chama pouca atenção, mas que é ao mesmo
tempo notável e significativa: o relato da desobediência das
parteiras hebréias. Isto pertence claramente ao material eloísta
(Ex 1,15-21). O javista nota o fato sucintamente: “Mas, quan­
to mais os oprimiam, tanto mais se multiplicavam e cresciam”
(1,12). “Então Faraó ordenou a todo o seu povo: ‘Jogai no rio
todo menino que nascer. Mas deixai viver as meninas’ ” (1,22).
Contudo, o eloísta desenvolve essa questão em extensos conta­
tos entre o “rei do Egito”14 e as parteiras hebréias, cujos nomes
são explicitamente mencionados: Sefra e Fua (v. 15). As par­
teiras devem observar o sexo de cada recém-nascido e deixar
viver somente as meninas. Depois diz: “As parteiras, porém,
temeram a Deus e não fizeram o que o rei do Egito lhes havia
ordenado” (v. 17). O rei chamou-as para prestar contas por te­
rem permitido que vivessem as crianças do sexo masculino. As
parteiras, porém, se escusaram, explicando como as mulheres
hebréias, com rapidez e sem ajuda, davam à luz seus filhos. O
relato conclui com as palavras: “Por isso Deus favoreceu essas
parteiras; e o povo tornou-se muito numeroso e poderoso” (v.
20). A afirmação final repete claramente qual é o motivo deci­
sivo: “E porque as parteiras temeram a Deus, ele lhes deu uma
posteridade” (v. 21). Essa repetida acentuação do temor de
Deus neste ponto decisivo da formação do povo de Israel no
Egito não pode ser considerada acidental, especialmente quan­
do nos recordamos das passagens eloístas anteriores. O temor
de Deus protegeu o berço do povo de Israel. Mas aqui “temor
de Deus” significa desobediência às ordens do rei do Egito. As
ações dessas mulheres são decisivas para a formação do povo
de Deus. A obediência a Deus leva a desobedecer à vontade
87
dos opressores políticos. Estes decretam a morte ali onde Deus
deseja a vida.
Sendo assim, não é de causar surpresa quando lemos, já no
início do fragmento eloísta sobre o chamado de Moisés: “En­
tão Moisés cobriu o rosto, porque temia olhar para Deus” (Ex
3,6b). O javista não apresenta nada que se compare a isso.
No principal relato eloísta, em Ex 18, se evidencia como E
sentia ser decisivo para todos os líderes de Israel o temor a
Deus. Jetro vê que seu genro está sobrecarregado. Aconselha-o
a diminuir seu fardo de responsabilidade de julgar os vários ca­
sos. Para fazer isso, Moisés devia escolher homens idôneos;
homens conhecidos por temerem a Deus (yirê’ elohim, Ex
18,21). O temor de Deus é sua característica distintiva. O que
se segue demonstra que aqui “temer a Deus” significa: serem
homens de confiança e avessos a adquirir lucros desonestos.
Ainda podemos dizer ser acidental o fato de que o eloísta,
com tamanha freqüência, assuma o temor de Deus como tema
central de seus relatos? Devemos recordar-nos de quão poucos
são os relatos que foram preservados em sua integridade. E
preciso notar também que, apesar da natureza fragmentária do
material transmitido, quase todos os grandes homens são expli­
citamente chamados de tementes a Deus: Abraão, José e as
parteiras (por ocasião do nascimento da nação), Moisés e seus
juizes. Como nenhum outro escritor do material do Pentateuco
antes ou depois dele, o eloísta obviamente está acentuando a
importância do temor de Deus para o Israel de seu tempo.
Espero que a narrativa eloísta do Sinai elimine a última dú­
vida, porque aqui finalmente, todo Israel é confrontado com a
vontade fundamental de Deus. Como o eloísta apresenta isso?
Em Ex 19 só encontramos alguns acréscimos eloístas ao texto
javista. Eles falam sobretudo do som da trombeta, que ficava
cada vez mais forte e fazia todo o povo tremer na montanha da
teofania (vv. 16.19). Daí, após a inserção do decálogo, surge
em 20,18b-21 uma composição inconfundivelmente eloísta15.
88
Conforme o texto original de 18b16, o povo permanecia à dis­
tância, tremendo de medo. E pediu que Moisés lhe comunicas­
se as palavras de Deus, de maneira que pudesse ouvi-las. Se
Deus lhe falasse diretamente, o povo morreria (v. 19). Então
Moisés pronuncia a palavra decisiva: “Não temais, Deus veio
para vos provar (nassoth) e para que o seu temor esteja diante
de vós, e não pequeis” (v. 20). Por isso Moisés entra sozinho
na escuridão da presença de Deus. O discurso a Israel apresen­
ta muito sucintamente aquilo que, na opinião do eloista, o Is­
rael de seu tempo precisava ouvir. Quando Deus começou a fa­
lar a Israel, sua vontade era idêntica àquela que manifestou a
Abraão. E como em outras narrativas, Deus visita seu povo
através de difíceis provas (nissah em Gn 22,1 como aqui em Ex
20,20). A palavra normativa de Deus no monte Sinai a todo
Israel visa à mesma meta que ele colocou aos patriarcas: o te­
mor de Deus, que produziu obediência através da confiança na
promessa de Deus (Gn 22). O temor aceita obedientemente as
garantias de Deus. Prefere desobedecer às ordens humanas a
apostatar da palavra de Deus (hata\ Ex 1,15-21)18. Na ques­
tão da obediência e desobediência não podemos deixar de ver
que o interesse principal da proclamação do eloista é tornar
claro o significado do temor de Deus. Nossa primeira tese é en­
tão a seguinte:

O tema principal do eloista é o temor de Deus. Por meio dos


materiais tradicionais da história da salvação o eloista queria
conduzir o Israel de seu tempo através dos eventos pelos
quais era tentado e levá-lo a uma nova obediência e a uma
nova desobediência.

Naturalmente ele recontou muito outro material simples­


mente por respeito àquilo que tinha sido transmitido pela tradi­
ção.
89
II
A consciência interna do documento eloísta é vista não
apenas na acentuação de um tema comum que perpassa toda
uma série de narrativas. Este documento difere também dos
documentos javista e sacerdotal pela forma de unir as narrati­
vas e blocos de materiais da tradição. O javista coordena seus
materiais de maneira bastante flexível; usa poucas inserções
(como em Gn 6,5-8 e 12,1-3) e repete certas palavras-chave
para dar ao documento um caráter querigmático19. O eloísta
procede de forma mais deliberada e expressa as conexões com
as narrativas anteriores e posteriores dentro dos próprios rela­
tos orignalmente separados. Isto é feito, como no documento
javista, na forma puramente externa de um itinerário interliga­
do. O eloísta, por exemplo, faz Abraão voltar ao seu ponto de
partida em Bersabéia (Gn 21,33), depois da prova de sua obe­
diência no relato do sacrifício de Issac (Gn 22,19).
No relato da ameaça à mãe ancestral encontramos algo bem
mais característico do eloísta. Quando Abraão está se descul­
pando com Abimelec, diz: “Quando Deus me fez andar errante
longe de minha família, eu disse a ela (Sara): ‘Em todo lugar
em que estivermos, dirás a meu respeito que eu sou teu ir­
mão’ ” (Gn 20,13). O javista não apresenta nada comparável a
isso nem em 12,10ss, nem em 26,7ss. O eloísta une essa passa­
gem ao relato da partida de Abraão de sua terra natal. Só fo­
ram preservados alguns fragmentos do mesmo em Gn 15,1-5
(como, por exemplo, a afirmação do v. 2: “Continuo sem fi­
lho . . .”20).
Numerosas outras ligações com os relatos anteriores são
tematicamente muito mais interessantes. O eloísta seguiu o es­
quema estilístico de inserção dos mesmos nos discursos que
construiu de maneira característica. Primeiro existe o relato de
Jacó deixando o serviço de Labão. Isto não é uma simples fu­
ga, como em J (Gn 31,20-22), mas se dá em resposta a uma or­
90
dem específica de Deus: “Eu sou o Deus que te apareceu em
Betei, onde ungiste uma esteia e me fizeste um voto. Agora le-
vanta-te, sai deste país, e retorna à tua pátria” (31,13). O termo
“esteia”, o ato de ungir e o voto são reminiscências exatas da
linha de pensamento eloísta no relato do sonho em Betei (Gn
28,18-20). Esta continuidade faz lembrar o voto de Jacó, rein-
troduzindo assim o tema básico do eloísta: a obediência.
Na história de José existe uma rede visível dessas conexões.
Reminiscências e antecipações revelam aqui a combinação de
três ou quatro relatos de tentação que têm um significado es­
pecífico nos materiais eloístas. Podemos começar com a inter­
pretação que José faz dos sonhos do copeiro e do padeiro de
Faraó na prisão. No fim ele diz ao copeiro: “Lembra-te de
mim quando te suceder o bem, e sejas bondoso para falares de
mim a Faraó, a fim de que me faça sair desta prisão. Com efei­
to, fui arrebatado da terra dos hebreus e aqui mesmo nada fiz
para que me pudessem prender” (Gn 40,14-15). A referência
ao fato de José ter sido trazido pelos mercadores madianitas
(Gn 37,28a) não está ligada de forma especial ao enredo. Ela é
típica da referência cruzada do eloísta. Ainda mais significativa
é a referência ao futuro (em 41,9-13). Ali o copeiro-mor conta,
novamente em diálogo, que agora, depois de dois anos, os so­
nhos de Faraó fizeram com que ele se lembrasse de suas faltas
(hata ’a). O copeiro reconta então a história de seu sonho quan­
do era prisioneiro e como foi interpretado. Fala do jovem
hebreu, “servo do capitão da guarda” (37,36; 40,3). Assim, Jo­
sé é agora recomendado ao Faraó como intérprete experiente
de sonhos. As conexões mostram como José esteve muito per­
to de perder uma prova de sua fidelidade.
Conhecemos muito bem como o relato dos irmãos de José
é desenvolvido durante um longo intervalo de tempo. Uma vez
mais, no diálogo é mostrado que este é um relato de provações
que não foram superadas satisfatoriamente. Depois de José
testar sua credibilidade com uma detenção temporária e com a
91
exigência de que trouxessem Benjamin até ele, os irmãos dizem
uns para os outros: “Em verdade, expiamos o que fizemos a
nosso irmão; vimos a aflição de sua alma, quando ele nos pedia
graça, e não o ouvimos. Por isso nos veio esta aflição” (Gn
42,21). Isto se refere a uma cena — entre 37,24 (José lançado
na cisterna) e 37,28-29 (José tirado da cisterna pelos madiani-
tas) — que foi omitida no processo editorial de unir os docu­
mentos eloísta e javista. Nesta cena, a misericórdia dos irmãos
aparentemente foi posta à prova quando José pleiteava com
eles (behithhannô, Gn 42,21). Sua derrota na hora da prova é
duplamente pesada porque Rúben os tinha advertido. Somos
recordados disso em seguida, no cap. 42,22: “Não vos disse
para não cometerdes falta contra o menino? Mas vós não me
ouvistes e eis que se nos pede conta de seu sangue.” Isso tam­
bém faz remontar ao relato de 37,22 (cf. v. 29): formula a cren­
ça de que o fracasso na prova de nossa obediência é resultado
da falta de atenção à advertência ou apelo.
O fracasso dos irmãos de José é posto em contraste com
sua própria fidelidade. Isso é igualmente dramatizado pelas li­
gações com as cenas anteriores. Depois da morte de Jacó, os
irmãos de José lhe recordam: “Antes de morrer, teu pai expres­
sou esta vontade: ‘Assim falareis a José: Perdoa a teus irmãos
seu crime e seu pecado, todo o mal que te fizeram!” (50,16-17).
Isso se refere a uma cena que aparentemente foi sacrificada no
processo editorial de combinar E com J. (A omissão das cenas
da súplica de José, 42,21, e do pedido de Jacó, 50,16-17, teste­
munha de forma muito clara que a obra do eloísta é uma gran­
de composição literária, cujo estado fragmentário atual se deve
a um processo de edição literária.) José, então, é considerado
como alguém tentado a se desforrar de seus irmãos. Mas ele re­
sume a totalidade do relato de sua relação com os irmãos nes­
tas palavras: “Não tenhais medo algum! Acaso estou no lugar
de Deus? O mal que tínheis intenção de fazer-me, o desígnio de
Deus o mudou em bem, a fim de cumprir o que se realiza hoje:
92
salvar a vida de um povo numeroso” (50,19-20). José é apro­
vado neste teste, reconhece o sentido das provações enviadas
por Deus — o Deus que é capaz de converter até mesmo os fra­
cassos em instrumentos de seu próprio propósito.
A natureza característica deste uso de temas para forjar
elos entre acidentes não pode ser explicada simplesmente como
um esquema das narrativas de José. Em primeiro lugar, pode
ser encontrada nas partes javistas da narrativa. Em segundo
lugar, essa forma de olhar retrospectiva e prospectivamente se
estende muito além da narrativa de José. Isso está demonstra­
do não apenas pelas observações anteriores, referentes à narra­
tiva de Abraão (Gn 20,13) e os relatos de Jacó-Labão (Gn
31,13), mas também pela conclusão da narrativa de Jacó em E.
Ela se inicia em 46,3ss com um lembrete da antiga cena em
Bersabéia. Numa visão noturna, Jacó é interpelado, como
Abraão o fora em Gn 22. Deus chama: “Jacó, Jacó.” E ele res­
ponde: “Aqui estou.” Daí vem a confirmação: “Não tenhas
medo de descer ao Egito, porque lá farei de ti uma grande na­
ção . . . eu te farei voltar a subir, e José te fechará os olhos.” A
frase final se refere a uma cena que não foi conservada21, mas
que provavelmente estava antes da passagem eloísta de Gn
50,10b-11. A promessa de uma grande nação aponta para
além dos limites do relato de José. Ela se refere àquela cena em
que as parteiras tiveram êxito em sua desobediência a Faraó.
Ali as palavras conclusivas são: “E o povo tornou-se muito nu­
meroso e muito poderoso” (Ex 1,20b).
Os elos se estendem para além das tradições do êxodo nos
relatos que falam da conquista da Terra Prometida. Também
aqui o eloísta faz deles uma parte de diálogo. No relato do en­
contro de Moisés com seu sogro madianita Jetro, lemos em Ex
18,8: “Moisés contou a seu sogro .. . todas as tribulações que
encontraram pelo caminho” (kel hattela ’ah asher
m esa’atham). Como mostra o v. 9, isso se refere aos seus sofri­
mentos no Egito. Mais tarde, no início da conquista, as mes-
93
mas palavras sào usadas no pedido de permissão para atraves­
sar a terra de Edom. De Cades, Moisés enviou mensageiros ao
rei de Edom jpara dizer: “Assim fala teu irmão Israel. Tu mes­
mo sabes quantas tribulações nos têm advindo” (Nm 20,14).
Aqui também, naquilo que se segue, faz-se referência aos sofri­
mentos que tiveram no Egito (v. 15) e daí a seu êxodo, condu­
zido pelo anjo (comp. Nm 20,16 com Ex 14,19).
Conforme o eloísta, Edom recusou-se a dar a permissão
(Nm 20,18-21) e também o rei dos amorreus, Seon (Nm
21,23). Mas Israel expulsou os amorreus (Nm 21,3a). Nos
fragmentos que foram conservados não há aqui registro especí­
fico de relatos anteriores. Contudo, somos recordados da pas­
sagem de Gn 15, que deve ser atribuída ao eloísta. Ela contém,
nos vv. 13 e 16, a palavra de Deus a Abraão que preve opres­
são numa terra estrangeira. Também promete uma volta à Ter­
ra Prometida na quarta geração após Abraão, quando a iniqüi­
dade dos amorreus estiver completa (v. 16)22. Aqui se põe o
problema da culpa, que interessa ao eloísta de maneira óbvia, à
medida que traça os caminhos pelos quais Deus conduziu seu
povo, de Gn 20 a 50,20.
Mas acima de tudo a ênfase é colocada na palavra de
Deus. Ela abarca todos os eventos e é adequada a todos os de­
safios. O último grande relato do Pentateuco que com certeza
pode ser atribuída ao eloísta, no ciclo de Balaão, Nm 23, glori­
fica esta palavra digna de confiança. Esse relato é típico da ati­
tude expressa frente à ocupação da terra. Os moabitas querem
destruir Israel, mas sua intenção não pode competir com a pa­
lavra que Deus coloca na boca de Balaão (Nm 23,11 s. 19-20):

Deus não é homem para que minta,


nem filho de Adão, para que se retrate.
te
Por acaso ele diz e não o faz,
fala e não realiza?
94
Assim está traçada a linha de Gn 15 a Nm 23. Todo o in­
tervalo de tempo da história da salvação traz de volta ao Israel
da época do eloísta o ponto que se tornou especifico nos rela­
tos de José e nos vários contos da obediência de Abraão posta
à prova: em todas as provações de Israel o povo deve se deixar
conduzir por sua confiança nas palavras de seu Deus e prestar
obediência tão-somente a ele. Como segunda tese podemos
afirmar:
O eloísta uniu relatos tradicionais originalmente separados
mediante diálogos que revelam uma habilidade de composi­
ção altamente desenvolvida. As referências a cenas que não
foram conservadas supõem um processo de edição feito por
outra pessoa. Os elos de ligação mostram que durante um
longo período de tempo Deus conduziu seu povo através de
uma série de provas de sua obediência.

III
Os temas especiais e a forma característica com que as
narrativas são entrelaçadas nos obrigam a considerar as partes
eloístas do Pentateuco não como simples variantes que comen­
tam o material j avista, nem como uma mera coleção superficial
de relatos paralelos e de contribuições origimiis. Elas são frag­
mentos de uma obra originalmente independente, que mostra
um elevado grau de reflexão teológica e de habilidade narrati­
va. Em que época pode ser situada essa mensagem característi­
ca? Muitos notaram que existem numerosas indicações de que
o material teve sua origem no reino do Norte23. Pode-se mos­
trar que o autor estava familiarizado com as tradições locais
próprias do norte. Além disso, a profecia é um fenómeno tão
significativo para ele que Abraão aparece como aquele que re­
cebe a promessa de Deus (Gn 15) e como intercessor profético
(Gn 20,7); José, como alguém qualificado a interpretar sonhos
95
e assim recebe mensagens que revelam a vontade de Deus (Gn
40,8ss; 11,16); e sobretudo Moisés, como mediador da vonta­
de de Deus (Ex 20,19); por último, Balaão, como mensageiro
da palavra de Deus que não pode rejeitar seu envio e em cujos
oráculos — em contraste com o relato javista (Nm 24) — a pa­
lavra de Deus, em seu poder de dirigir a história, se torna o
tema central (Nm 23,19).
Sob este prisma, devemos pensar num século entre Elias e
Oséias. Este era um tempo perigoso, em que Israel era tentado
a desobedecer ao Deus de Israel e seguir a senhores estrangei­
ros. A religião cananéia, com seu culto da fertilidade, põe à
prova a fé de Israel. Relatos como os do sacrifício de criança
(cf. Os 13,2) e de mulheres estrangeiras se tornaram muito rele­
vantes para Israel24. Às vezes, a obediência a Deus deve resul­
tar em desobediência ao rei. A justiça corre o perigo de ser per­
vertida por juizes corruptos (cf. Ex 18,2.1 e Am 5,12).
Não nos é possível conhecer essa época com mais profun­
didade. Por isso permanece em aberto as seguintes questões,
juntamente com uma das expressões-chave da literatura sa-
piencial: Onde o eloísta encontrou sua palavra-chave: “temor
de Deus”? Qual o significado de sua identidade?25 O eloísta
aborda Israel como “um povo que habita à parte e não é clas­
sificado entre as nações” (Nm 23,9). Israel deve entender sua
própria história como uma manifestação única do temor de
Deus. Isso é visto na liberdade de obedecer ou desobedecer,
porque Israel respeita os direitos do estrangeiro e é capaz de
ceder seus próprios direitos, devido à sua confiança no Deus
que pode usar até mesmo os infortúnios como meios de salva­
ção de seu povo. Como terceira tese podemos formular o se­
guinte:
A nova interpretação que o eloísta dá dos materiais tradicio­
nais de Israel pode ser explicada melhor como um clamor
contra o sincretismo imperante no tempo de Elias. Durante
96
aquele período, Israel teve que enfrentar suas maiores tenta­
ções religiosas, políticas e sociais.
O tema do eloísta apresenta os seguintes desafios para nós
na atualidade: O que o amor de Deus exige de nós hoje? O que
é obediência ou desobediência hoje? Todo aquele que se exami­
na com profundidade verá que sua vida é uma questão aberta.
Todo aquele que olhar com profundidade para a época em que
vive ver-se-á confrontado com mistérios e tentações difíceis. Se
ouvirmos aquilo que o eloísta ensina, poderemos superar as
respostas superficiais. Poderemos evitar abertamente reações
precipitadas, vendo-nos a nós mesmos postos à prova, se de
fato tememos a Deus.
Porventura não estamos perdendo o segredo mais profun­
do de nossas vidas, quando deixamos de enfrentar o desafio do
eloísta?

4 - 0 dinamismo das tradições do Antigo Testamento


97
5
O QUERIGMA DA OBRA
HISTÓRICO-DEUTERONOMISTA1
Hans Walter Wolff

Com um vigor inédito, os profetas de Israel dos séculos


VIII e VII a.C. descreveram a realidade humana de sua época
como parte da ininterrupta atividade divina. Homens como
Oséias, Isaías e Jeremias anteciparam novos acontecimentos
cataclísmicos, provocados por Deus. Puseram a nu a culpa de
seu próprio tempo, submetendo-o à clara luz das ações divinas
que ocorreram anteriormente. Como resultado, deu-se quase
necessariamente uma pronta atenção ao movimento contínuo
de coisas e à interconexão de todos os eventos. Isto ocorreu
particularmente porque a palavra profética abarcava o conjun­
to todo da história universal2.
Como fruto da profecia, surgiu no século VI a.C. uma obra
histórica gigantesca, sem paralelos no mundo circunvizinho.
Hoje, ela se nos apresenta composta pelos livros do Deutero-
nômio, Josué, Juizes, Samuel e Reis. Segue o curso de aproxi­
madamente sete séculos da história de Israel, desde o tempo de
Moisés até o exílio babilónico. Com um cuidado escrupuloso,
ela assimila tanto as tradições literárias quanto os fatos que fo­
ram diretamente vividos. Nesse processo, consegue elaborar
um esquema unificado impressionante.
99
Após uma variedade de informações preliminares, em 1943
Martin Noth demonstrou-o convincentemente e em detalhe,
com seus estudos sobre a história das tradições usadas nesta
obra3. Seus resultados foram confirmados, na essência, pelas
pesquisas de Alfred Jepsen. Este — para grande surpresa, pois
seguiu um caminho autônomo — também tomou com o ponto
de partida as fontes dos livros dos Reis4. Por isso, podemos
aceitar em linhas gerais os resultados de Noth. N a obra históri-
co-deuteronomista (DtrH )5 os materiais tradicionais foram dis­
postos numa ordem sistemática. Em seguida foram realçados
por algumas novas passagens. Percebemos isso a partir de m o­
delos de discursos proferidos pelas figuras históricas mais im­
portantes. Esta obra provavelmente surgiu ao redor do ano
550 a.C. no território de Judá-Benjamin.
Os seus pressupostos teológicos sâo apresentados dentro
de um modelo geralmente claro e convincente. A história é en­
tendida com o a realização da palavra de Deus que os profetas
proclamaram. Mais especificamente, ela è o cumprimento das
palavras de M oisés, situadas bem no início de todo o conjunto
da obra do Deuteronômio. Em primeiro plano sempre transpa­
rece a questão se Israel ainda é o povo de Deus — já que isso
corria perigo por causa da apostasia.
Mas o que a DtrH pretendia proclamar com sua cosm ovi-
são ainda não foi explicado satisfatoriamente, na minha opi­
nião. Que sermão ele pretendia fazer aos seus contemporâneos
do século VI, através dessa obra extensa? É preciso lembrar
que eles eram meros remanescentes de Israel. Sem rei, sem o
templo de Jerusalém sem a soberania sobre sua terra, estavam
desprovidos de seu próprio estado e de seu culto público orga­
nizado. É consenso geral de que é muito importante descobrir
o querigma de DtrH. Antes de mais nada porque esta obra é fi­
lha da profecia. Com a habitual urgência profética ela quer
transmitir uma mensagem. Mas qual é essa mensagem?
100
I
Martin Noth afirma: “A punição por causa da desobediên­
cia .. . considerada pelo Deuteronômio como (mera) possibilida­
de, (mas) que poderia levar à destruição da nação, agora tinha
se tornado, para a DtrH, um fato consumado.” A seguir afir­
ma: “Para ela, a ordem de coisas que o Deuteronômio tinha
pressuposto chegou a seu estágio final”. Portanto, “o propósito
real de toda a sua apresentação histórica” é mostrar que esse
estágio final deve ser “interpretado como um juízo divino”6.
Nessa concepção, sem dúvida, não há lugar para um futuro de
esperança. Muito ao contrário: o juízo deve ser “considerado
como algo definitivo e final7. Esta perspectiva é muito bem
comprovada pelos vários discursos e reflexões mediante os
quais a DtrH apresenta sua visão da história. O que ela diz é
algo mais ou menos assim: “Se você transgredir a ordem da
aliança que Iahweh seu Deus lhe assinalou, e se for servir a ou­
tros deuses e adorá-los, então a ira de Iahweh irá se acender
contra você. Será então expulso da boa terra que ele lhe deu”8.
Para começar, podemos perguntar apenas isto: Por que um
israelita do século VI a.C. tomaria sua pena para escrever, se
quisesse apresentar a meta final da história de Israel como sen­
do tão-somente o justo juízo de Deus? Gerhard von Rad res­
pondeu a esta pergunta apontando para aquilo que a obra his­
tórica representa: “Uma grande doxologia de juízo, transposta
da esfera cúltica para o âmbito literário.” Ela confessa diante
de Deus: “Tens razão ao falar, e tua vitória se manifesta ao jul­
gar” (SI 5 1,60)9.
Por outro lado, von Rad considera que a DtrH está de fato
muito interessada no “problema da atuação da palavra de Iah-
weh na história”. Juntamente com a palavra de maldição do
Deuteronômio e de ameaça dos profetas, encontramos nela
também a palavra da promessa de salvação. Ela está contida
no oráculo de Natã. Contudo, parece ainda não ter sido reali-
101
zada. Na menção do perdão de Joaquim, no final de 2Rs, em
25,27ss, pode-se afirmar que a DtrH estava apontando para
uma “oportunidade com a qual Iahweh parece estar inaugu­
rando um novo inicio10”. De fato, von Rad considera que “o
verdadeiro conteúdo temático desta obra . . . (é) messiânico11”.
Nesta concepção, DtrH não quis apenas ensinar que o exílio
era o juízo merecido e a realização da ameaça que Moisés e os
profetas tinham proclamado. Mais que isso, queria nutrir em
seus leitores a expectativa de que algum dia, a promessa de sal­
vação, feita a Davi, também seria cumprida.
A cena final, na verdade, não levanta sérias questões sobre
a tese de Noth de que a DtrH apresenta somente o fim da his­
tória de Israel. Não podemos ficar satisfeitos com a interpreta­
ção de Noth de que a DtrH, “por causa de sua própria cons­
ciência e reverência pelo curso real dos acontecimentos, . . .
simplesmente relatou como tal este último fato que ele conhe­
cia sobre o tema da história dos reis de Judá12”. Esta interpre­
tação simplesmente não comporta a idéia de que DtrH — como
o próprio Noth insistia — tenha usado do maior cuidado na se­
leção e organização de seus materiais13.
Por outro lado, fica ainda menos claro para mim saber por
que devemos reconhecer nesta passagem final “o início da es­
perança de libertação”14. Seria como se, além de declarar o jus­
to juízo de Deus, DtrH também quisesse estimular a esperança
no cumprimento do oráculo de Natã. Isto já é contradito pelo
fato de que a informação, a partir do ano 561, em 2Rs 25,27-
30, não contém nenhuma referência ao oráculo de Natã. Ao
passo que a catástrofe de Jerusalém, no ano 587, é especifica­
mente considerada por DtrH, em 2Rs 24,2, como algo que vi­
ria “conforme a palavra que Iahweh havia pronunciado por in­
termédio de seus servos, os profetas”. Além do mais, a noção
de uma expectativa inesperada é puramente inconsistente dian­
te do oráculo de Natã. Seu cumprimento, como DtrH invaria­
velmente confirma, depende da obediência à palavra de Moisés
102
do Deuteronômio15. Até mesmo os reis estão sujeitos à palavra
de aliança que Moisés pronunciou16. Mediante essa aliança são
avaliados não apenas os reis do Reino do Norte como também,
em última análise, até mesmo os reis davídicos17. Quando se
abandona a palavra da aliança, também o oráculo de Natã já
não tem mais vigência. Portanto, seria difícil afirmar que DtrH
esteja dando rédeas a uma esperança baseada no oráculo de
Natã — simplesmente através deste frágil texto sobre a ascen­
são de Joaquim.
Contudo, é exatamente esta nota sobre um evento real que
nos impede de afirmar que DtrH não pretendia outra coisa a
não ser apontar para a catástrofe de Jerusalém do ano de 587
como um juízo divino justo e final. Era, portanto, o merecido
fim da história de Israel.
O que, então DtrH pretende dizer a seus contemporâneos?
II
A própria extensão da obra exige que perguntemos se
DtrH não tinha em mente uma intenção bastante complexa. Se
quisesse acalentar esperanças mediante o oráculo de Natã, te­
ria escolhido um setor da história muito mais limitado e curto.
Qual era a finalidade do tratamento detalhado que deu à época
de Moisés, Josué, Juizes e Samuel? Se, por outro lado, sua
meta fosse mostrar que Iahweh cumpriu sua antiga ameaça
proferida quando fez a aliança com Moisés e que a história de
Israel agora chegou justamente a seu fim, então devemos per­
guntar: tendo em vista o volume global de sua apresentação,
por que não a terminou muito antes? Por que mantém seus lei­
tores ocupados com os altos e baixos dos acontecimentos, con­
catenados através dos séculos?
O tratamento que ele dá ao período dos Juizes já nos assi­
nala uma resposta. Ele atribui grande valor à demonstração de
que a apostasia começa imediatamente depois do tempo de Jo­
103
sué. “O povo serviu a lahweh durante toda a vida de Josué”
(Jz 2,7). M as a apostasia aparece imediatamente após a ocupa­
ção da terra. Com isso se recorda a visão da história de Oséias.
Ele não vislumbra apenas uns poucos exemplos de infidelidade,
mas afirma abertamente que “todos os filhos de Israel fizeram
o que era mau aos olhos de lahweh e serviram aos baals”
2 11).
( ,

Deixaram a lahweh, o Deus de seus pais, que os tinha feito


sair da terra do Egito, e serviram a outros deuses dentre os
dos povos ao seu redor. Prosternaram-se ante eles, e irrita­
ram a lahweh. Então a ira de lahweh se acendeu contra Is-
rael . . . e os entregou aos inimigos que o cercavam, e não pu­
deram mais oferecer-lhes resistência (vv. 12.14).
Este mesmo ciclo, conforme o DtrH — a apostasia de toda
a nação e a ira inflamada de lahweh — levou ao fim do reino
do Norte. E nos dias de M anassés selou o destino de Judá e Je­
rusalém18. Por que então a história de Israel não chegou a um
fim naquela ocasião?

Quando gritaram, lahweh lhes suscitou Juizes que os livras­


sem das mãos dos que os pilhavam . . . portanto lahweh se
comovia por causa dos seus gemidos perante os seus perse­
guidores e opressores (vv. 16.18).

O grito a lahweh invertia simultaneamente a apostasia já


efetuada, bem com o a ira inflamada de lahweh. Esta, no passa­
do, tinha executado seu juízo entregando o povo nas mãos dos
inimigos. Depois de cada nova libertação sempre se seguia
uma nova apostasia, de geração em geração, na época dos Jui­
zes. Por que, não obstante isso, a história de Israel ainda sub­
sistia? Porque Israel implorou novamente a lahweh, que se
compadeceu deles.
104
Contudo, este esquema de apostasia e conversão a Iahweh,
de catástrofes e libertações, não ficou sem conseqüências para
a história do povo de Deus. Iahweh ordena uma nova guinada
da história. Conforme a promessa original, Israel devia tomar
posse de toda aquela terra. Mas agora é dito:
Também eu não expulsarei mais de diante dele nenhuma das
nações que Josué deixou ficar quando morreu, a fim de, por
meio delas, submeter Israel à prova, para ver se seguirá ou
não os caminhos de Iahweh (2,21-22).

A simbiose com Canaã parece ser, aos olhos de DtrH, uma


nova sanção de Iahweh na história, depois de uma longa fase
de desobediência (cf. Jz 3,4). Mas, além desta sanção nova que
foi acrescentada, também aparece a proteção marcial que Iah-
weh providencia para Israel, nos salvadores que suscitou.
Assim, o período dos Juizes é claramente colocado à parte
com relação ao tempo de Moisés e Josué. Mas igualmente,
com a mesma clareza, o tempo dos reis também é colocado à
parte com relação ao período dos Juizes, numa época poste­
rior. O grande discurso de despedida de Samuel, em ISm 12,
enfatiza de forma convincente esta diferença que menciona­
mos. Os Juizes eram libertadores enviados por Iahweh por
causa das orações dos israelitas. Contudo, eles exigiram um rei
num protesto desafiador da vontade de Iahweh. Este desejo do
povo se opõe à própria soberania de Iahweh, que DtrH consi­
dera como o toque final do período dos Juizes20. Como resulta­
do desta rebelião contra Iahweh, a antiga ordem da aliança da
liga tribal sagrada se rompe e despedaça — com conseqüências
desastrosas21. Israel acabaria se tornando um Estado seme­
lhante a todos os Estados circunvizinhos.
Contudo, mesmu continuando essa rebelião contra a alian­
ça de Deus — rebelião que faz parecer um disparate até mesmo
a apostasia do tempo dos Juizes —, a história de Israel não che-
105
ga a um fim. Iahweh consente em aceder a seu povo. Ele pró­
prio estabelece-lhe um rei (ISm 12,13b). Na verdade, em Davi
ele escolhe o rei como seu rei. Ao mesmo tempo escolhe Jeru­
salém para ser o lugar em que o nome de Iahweh vai encontrar
uma morada (lRs 8,16). Ambas essas sanções são elementos
completamente novos na história. Elas vêm depois do revolta­
do protesto de Israel contra a soberania de Iahweh.
Mas esse novo ordenamento da história não ocorre sem di­
ficuldades subseqüentes. Talvez até fossem maiores do que as
do tempo dos Juizes. A continuação do discurso de despedida
em ISm 12,14-15 o demonstra. Israel é advertido, juntamente
com seu rei, a permanecer sob o domínio de Iahweh e ouvir a
sua voz. Através de um trovão, na época da colheita de trigo,
Israel chega a perceber sua rebelião (vv. 17-18). A seguir Israel
suplica a Samuel que interceda junto a Iahweh:
Intercede por nós teus servos a Iahweh teu Deus, para que
não morramos; foi o maior de nossos pecados pedir para nós
um rei (v. 19).
Israel sabe que seu fim é merecido. Por isso Samuel dá uma
garantia de salvação, dizendo:
Não temais! É verdade que cometestes um grande erro . ..
Certamente Iahweh não se esquecerá do seu povo, pela honra
do seu grande nome, porque Iahweh decidiu fazer de vós o
seu povo (vv. 20.22).

O tempo dos Juizes não volta mais, assim como o tempo


de Josué também não retornou no passado. A história, em seu
movimento recíproco entre a palavra de Iahweh e a conduta de
Israel, é irreversível. E a história da salvação nunca se rompe,
nem mesmo em meio às catástrofes provocadas pela apostasia
e pelos juízos de Iahweh — embora por um momento pareça
106
que essa história esteja estagnada. O movimento inverso ao juí­
zo recomeça quando Israel clama a Iahweh. Isso é mostrado
por essa segunda incisão profunda no curso da história de Is­
rael a qual, mutatis mutandis, corresponde perfeitamente à pri­
meira. O clamor representa um apelo à compaixão atenta de
Iahweh para com seu povo. Esta compaixão conduz Israel a
novas sanções e a uma fase inteiramente nova de sua história
da salvação.
Na própria época do DtrH, a terceira e última fase da his­
tória de Israel, isto é, a fase de sua existência nacional, chega a
um fim. Já desde a apostasia de Manassés se tornou um fato ir­
remediável que Judá, à semelhança do que ocorrera com Is­
rael, também seria rejeitado. Inclusive Jerusalém, a cidade es­
colhida, e a casa onde habitava o nome de Iahweh seria rejeita­
da22. Mas esse juízo, agora efetivado, e embora parecendo ta­
xativo, é apenas um a mais na corrente das inversões históri­
cas. Não há motivo para pensar que nem este será invertido,
caso o povo se arrependa. Portanto, afirmar que Iahweh, con­
forme a opinião de DtrH, queria pôr um ponto final na história
de Israel, terminando assim irremediavelmente com ela, é na
verdade um exagero. Sem dúvida, esse juizo parece especial­
mente duro. O Estado de Israel, o Estado de Judá, e até mesmo
a cidade escolhida foram rejeitados. Mas quem pode dizer que
não virá uma fase completamente diferente, com oportunida­
des inteiramente novas para o povo de Iahweh, assim como
ocorrerá depois das rejeições anteriores? Por que, então, o
DtrH teria remontado a tão longe e apresentado essa corrente
consistente de inversões?
Contudo, nessa hora de profunda catástrofe, não há um
discurso convincente capaz de restaurar a esperança. Noth as­
sinalou, muito acertadamente, que se existir esta intenção, deve
ser buscada nos grandes discursos23. Mas, se merecem crédito
Jz 2 e ISm 12, ainda há lugar para a esperança: o clamor a
Iahweh, com uma confissão de culpa, uma oração pela liberta-
107
ção, e a disposição de prometer uma obediência renovada, po­
dem ser novamente eficazes.

III
Se o verdadeiro e real querigma do DtrH consistisse nesse
apelo, então apareceria claramente não apenas nas principais
junções da história. Deveria se evidenciar claramente também
em outros lugares nos grandes discursos. Será que é esse o ca­
so?
Jz 2,1 lss e ISm 12 acabam de nos mostrar o papel decisi­
vo que a conversão de Israel a Iahweh desempenhou para a
continuidade da história da salvação. Em ISm 12 a conversão
ocorre como resultado de um discurso direto de advertência
feito por Samuel (vv. 14-15). De fato, encontramos o tema da
“conversão” (“volta”) em quase todas as passagens importan­
tes que nos permitem reconhecer a intenção do DtrH. Por ou­
tro lado, em nenhum lugar encontramos um estímulo à espe­
rança.
A palavra chave shub (“volta”, no sentido de “conversão”)
é encontrada já em ISm 7,3, no discurso de Samuel:
Se é de todo coração que voltais a Iahweh, tirai do meio de
vós os deuses estranhos e as astartes, fixai o vosso coração
em Iahweh e a ninguém mais sirvais a não ser a ele; então ele
vos livrará das mãos dos filisteus.
Israel obedece e experimenta a libertação no conflito com
os filisteus.
Numa passagem decisiva, 2Rs 17, DtrH faz uma pausa
para meditar sobre o fim do Estado de Israel. Ela resume, no v.
13, a mensagem de Iahweh pronunciada “por todos os profetas
e videntes de Israel e Judá” com uma única palavra: Shubu!
108
Convertei-vos (shubu) de vossa má conduta e observai meus
mandamentos e meus estatutos, conforme toda a lei que pres­
crevi a vossos pais e lhes comuniquei por intermédio de meus
servos, os profetas.
O juízo sobre Israel ocorreu porque o apelo a essa volta, e
portanto também à aliança feita com os pais (v. 15), foram ig­
norados. O que faz com que esse juízo seja final não é tanto a
apostasia total, como a desconsideração depreciativa do apelo
à conversão.
A volta invertia o juízo, mesmo que este já tivesse sido de­
cretado. DtrH mostra isso no caso de alguém que considera
como a figura mais brilhante de toda a história de Israel, Josias
(2Rs 23,25):
Não houve antes dele rei algum que se tivesse voltado, como
ele, para Iahweh, de todo o seu coração, de toda a sua alma e
com toda a sua força, em toda a fidelidade à Lei de Moisés;
nem depois dele houve algum que se lhe pudesse comparar.
Josias não é descrito como alguém fiel, que nunca incorreu
em apostasia. Nem como alguém que confia numa palavra de
promessa. Em vez disso, é apresentado precisamente neste úni­
co fato: ele voltou.
Assim o tema da “volta” aparece em momentos culminan­
tes da apresentação deuteronomista da história, demonstrando,
mediante diferentes exemplos, o que Israel devia ouvir e fazer,
quando estava sob o juízo no exílio.
Mas não poderia ocorrer que esta idéia da volta estivesse
ainda subordinada à ênfase do DtrH no juízo em tempo de
apostasia?

109
IV
Para responder a essa pergunta devo suscitar uma outra:
será que DtrH diz especificamente o que Israel deve fazer na
hora do juízo? Sim, ele o faz, numa passagem de especial des­
taque: a oração de Salomão por ocasião da dedicação do Tem ­
plo.
A palavra-chave shub ocorre na oração nada menos que
quatro vezes. Primeiro, em lR s 8,33.35, onde está a idéia de
que Israel pode ser derrotado por um inimigo ou ser vítima de
uma seca “porque pecou contra mim’\ Em ambos os casos é
dito:
Se ele se converter, louvar teu Nome, orar e suplicar a ti neste
Templo, escuta no céu, perdoa o pecado de Israel, teu povo.
Estes dois exemplos confirmam antes de mais nada apenas
isto: que o imperativo daquela hora, para DtrH, era voltar,
onde quer que ocorra o juízo por causa da apostasia, com o já
vimos em Jz 2,1; ISm 7 e 12 e indiretamente em 2Rs 17 e
23,25.
Mas porventura esse imperativo também prevalece nesta
situação em que se encontra Israel, longe de seu santuário des­
truído? Um a resposta exata a isso é dada pela oração feita por
ocasião da dedicação do templo (em lR s 8,46-56). Esta res­
posta apresenta detalhes notáveis:

Quando tiverem pecado contra ti . . . e, irritado contra eles,


os entregares ao inimigo e seus vencedores os levarem cativos
para uma terra inimiga, longínqua e próxima, se eles caírem
em si, na terra para onde houverem sido levados, se se arre­
penderem (weshabu) e te suplicarem na terra de seus
vencedores, dizendo: ‘Pecamos, agimos mal, nós nos perver­
temos’, se retornarem a ti (weshabu’eleka) de todo coração e
110
de toda a sua alma na terra dos inimigos que os tiverem de­
portado, e se orarem a ti voltados para o país que deste a
seus pais, para a cidade que escolheste e para o Templo que
construí para o teu Nome, escuta do céu onde resides.

Esta passagem é de extraordinária importância para nossa


pergunta sobre o verdadeiro querigma de DtrH por dois moti­
vos. Em primeiro lugar, ela se encontra num ponto de inflexão:
na introdução à terceira grande fase da história de Israel. Em
segundo lugar, nesta passagem DtrH mostra explicitamente
seu interesse pelo juízo que agora estava ocorrendo sobre Is­
rael. Ele assume expressamente a pergunta: O que Israel deve
fazer nesta hora? Martin Noth assinalou com razão que, se
DtrH quisesse dar rédeas à esperança da “irrupção de um
novo futuro” ele o teria feito exatamente nesta passagem24.
Mas, por outro lado, DtrH não diz que este juízo, colapso e
exílio, por mais catastróficos que sejam, são finais, ou que Is­
rael não possa fazer mais nada a não ser sujeitar-se a eles sem
qualquer esperança. Não, ele diz uma terceira coisa, e deixa
aberta a possibilidade de esperança: o grito a Iahweh uma vez
mais faz-se necessário. A confissão de culpa, e assim o reco­
nhecimento da justiça de Iahweh, fazem parte de uma volta de
todo coração e de toda a alma (v. 48). Mas esta oração não
apenas aponta retrospectivamente para uma história cujo final
é reconhecido como justo. É verdade que a ênfase não é posta
naquilo que se segue. Contudo é esperado, sem ser expresso em
esperanças definidas, que Israel seja ouvido uma vez mais e en­
contre compaixão entre as nações, por ser “povo e propriedade
de Iahweh” (v. 51). O imperativo neste momento é voltar a
Iahweh com todo o coração e com toda a alma. Todavia, esta
volta é considerada, até mesmo aqui, como uma mudança para
uma nova fase da história da salvação.

111
V
Existem ainda, em DtrH, duas outras passagens nas quais
se levanta a questão sobre o que se deve fazer no exílio. Ambas
as passagens dão a mesma resposta: voltar a lahweh, vosso
Deus! — e ambas aparecem dentro dos discursos de Moisés no
Deuteronômio. Isso parece significar que DtrH queria que Is­
rael lesse a totalidade de sua obra, desde o início, como um
chamado à conversão em meio ao juízo. Mas aqui nos vemos
diante de uma questão crítico-literária bastante difícil, a saber:
se as duas passagens são formulações do próprio DtrH ou não.
A primeira passagem, mais detalhada, é Dt 30,1-10. Mar­
tin Noth considera que ela pertence às composições mais anti­
gas do Deuteronômio. Isso ele vê representado em 4,44-30,20.
Em sua opinião, não devemos estabelecer uma relação muito
estrita entre ela e DtrH porque foi assumida por DtrH em sua
totalidade25.
Dt 30,1-10 pressupõe, à primeira vista, a mesma situação
do exílio de lRs 8,46ss. Aqui também se pergunta: o que se
deve fazer agora que a sentença de juízo já foi executada? E
também aqui se responde com a palavra-chave shub, “voltar”,
que é repetida três vezes (vv. 2.8.10):

Quando se cumprirem em ti todas estas palavras — a bênção


e a maldição que eu te propus — se as meditares em teu cora­
ção, em meio a todas as nações para onde lahweh teu Deus
te houver expulsado, e quando te converteres (w€shabta) a
lahweh teu Deus, obedecendo à sua voz conforme tudo o que
hoje te ordeno, tu e teus filhos, . . . então lahweh teu Deus
mudará a tua sorte para melhor e se compadecerá de ti e (v.
7) . . . fará recair todas essas imprecações sobre os teus ini­
migos, sobre os que te odiaram e perseguiram. Quanto a ti,
voltarás (tashub) a obedecer à voz de lahweh teu Deus, pon­
de em prática todos os seus mandamentos que hoje te orde-
112
no . . . (v. 9) Iahweh voltará a se comprazer com a tua felici­
dade, assim como se comprazia com os teus pais, caso obe­
deças à voz de Iahweh teu Deus, observando seus manda­
mentos e seus estatutos escritos neste livro da Lei, caso te
convertas (tashub — isto é dito ainda uma vez mais como re­
sumo na conclusão, sob a mesma palavra chave básica) com
todo o teu coração e com toda a tua alma.

Até mesmo uma análise preliminar mostra que 30,1-10,


com suas formulações no singular, deve estar ligado ao cap. 28
com seu tema de bênção e maldição (omito o cap. 29 porque
este usa a forma plural). A introdução — “Quando se cumpri­
rem em ti todas estas palavras26” — remonta claramente às pa­
lavras introdutórias de bênção e maldição de 28,2 (“Estas são
as bênçãos que virão sobre ti e te atingirão, se obedeceres à voz
de Iahweh teu Deus”) e de 28,15 (“Se não obedeceres à voz de
Iahweh, teu Deus, cuidando de pôr em prática todos os seus
mandamentos e estatutos . . . todas estas maldições virão
sobre ti e te atingirão”). O mesmo ocorre com o v. 45. Mais es­
pecificamente, a promessa dos dons abundantes de Iahweh em
30,9a assume exatamente as mesmas palavras de 28,11a. E a
afirmação sobre o apreço de Iahweh por Israel em 30,9b re­
monta conscientemente a 28,63. Não encontramos nenhuma
dessas afirmações, nesta formulação, em nenhum outro lugar a
não ser em DtrH. Mas esta última aparece em Jr 32,41. Por­
tanto, Dt 30,1-10 pressupõe sem sombra de dúvida o cap. 28 —
todo ele, até mesmo os acréscimos exílicos de 28,45ss.
Nesta conexão, uma comparação da formulação “caso
obedeças à voz de Iahweh, teu Deus, observando seus manda­
mentos e seus estatutos” (30,10a) mostra que 30,1-10 está
mais perto do antigo acréscimo 28,45ss (cf. 45b) do que o tex­
to mais antigo (cf. 28,1.15). Além disso, ambos os textos
28,45ss e 30,1-10 pressupõem os “estatutos escritos neste li-
113
vro” (compare 30,10 com 28,58.61). Por isso nossa única per­
gunta consiste em saber se 30,1-10 foi formulado no mesmo
tempo que 28,45ss ou mais tarde.
30,1-10 revela alguns elementos lingüísticos característicos,
que não ocorrem nem no cap. 28, nem em outro lugar de
DtrH. Estes, ao invés, são bem característicos das tradições de
Jeremias. Notemos apenas o seguinte: ndh, hifil por: “te hou­
ver expulsado”, no v. 1, aparece freqüentemente em Jr (16,15;
32,37; e 46,28 nesta mesma conexão); shub shebuh (v. 3) em Jr
29,14; 30,3.18 e em outros lugares; qbs piej. nos vv. 3-4 para a
reunião dos dispersados em Jr 23,3; 29,14; 32,37; a circunci­
são do coração, no v. 6, em Jr 4,4b e 9,25-26; o “apreço de
Iahweh” em Jr 32,41, bem como em Dt 28,63 e 30,9. Junto
com esta última expressão muito típica existem ainda outras
que no apêndice às maldições (28,45ss) fazem lembrar as tradi­
ções de Jeremias. Menciono como o mais notável 28,49: “uma
nação de longe . . . cuja língua não conheces, e não compreen­
des o que ela fala” (— Jr 5,15) e em 28,53 a descrição da extre­
ma aflição quando o povo consome a carnt de seus filhos e fi­
lhas (= Jr 19,9). Assim, palavras de ameaça em 28,45ss são ti­
radas da tradição de Jeremias, ao passo que 30,1-10 faz uso de
palavras de salvação da tradição de Jeremias. Isso indica que
28,45ss e 30,1-10 remontam ao mesmo autor, que nestas se­
ções seguiu estritamente as tradições de Jeremias.
Em nossa passagem do Deuteronômio existem ainda várias
conexões com DtrH. A conexão mais impressionante se encon­
tra em lRs 8,46ss, através da rara expressão “levar algo ao co­
ração” (heshib el-leb em Dt 30,1b e em lRs 8,47a; compare
também hakinu l ebabekem em ISm 7,3). Esta expressão que
fala do “amor por Iahweh . . . para que vivas” (30,6b) é encon­
trada de forma semelhante em Js 23,11 e 23,14. Também é
particularmente instrutivo, a esta altura, chamar a atenção para
o aparecimento freqüente de shub em pontos culminantes de
DtrH. Nesta conexão precisamos comparar a correspondência
114
peculiar entre a volta do homem e a volta de Iahweh em 30,2s
e 2Rs 23,25s. Finalmente, devemos fazer menção das freqüen­
tes referências aos “estatutos escritos neste livro da Lei” em
30,10, bem como em Js 1,8; 23,6; lRs 2,3, 2Rs 17,37;
23,3.24s. Este último exemplo é o mais notável de todos.
Em tudo a linguagem de Dt 30,1-10 (e 28,45ss) mostra
uma harmonia maior com as tradições de Jeremias do que com
os elementos DtrH posteriores, com a possível exceção de lRs
8,46ss. Nossas primeiras conclusões, embora provisórias, são
as seguintes: (1) Dt 30,1-10, tanto no conteúdo quanto na lin­
guagem, pertence ao cap. 28,45ss. (2) Ambas as seções foram
influenciadas por tradições de Jeremias. (3) Ao mesmo tempo,
ambas têm afinidades com a linguagem de DtrH. (4) Ambas
enfatizam o tema do “retorno” como mensagem de DtrH para
sua época.
As duas passagens acima mencionadas certamente não
pertencem a nenhum corpo de material de um período anterior;
elas são contemporâneas de DtrH. A questão é apenas esta:
tais composições foram feitas pelo historiador deuteronomista?
Em caso positivo — como Martin Noth sugere que pensemos27
— devemos supor que o historiador ilustrou seu quadro de
Moisés, com tradições de Jeremias. Estas inclusões são respon­
sáveis pelas mudanças de linguagem com relação aos outros
discursos de DtrH. Ou, ao contrário, devemos supor a existên­
cia de um segundo escritor do círculo deuteronomista, que faz
remontar o tema da obra histórica ao tempo de Moisés para
garantir que todo esse empreendimento seria lido e meditado
em sua própria época28?
Estou inclinado para a segunda opinião. Um exemplo para­
lelo também sugere isso. As duas partes de Dt 4,25-31 sem dú­
vida são de autores diferentes: os vv. 25-28 empregam a forma
plural, enquanto os vv. 29-31 usam o singular. E, além disso, a
segunda parte (vv. 29-31) é sem dúvida do mesmo autor de
30,1-10 e 28,45ss. Assim, caso a primeira parte for de DtrH,
115
como Noth sugere, então a segunda parte (bem como 30,1-10
e 28,45ss) não pode ser dele. Deve ser provavelmente de outra
pessoa, que estava tentando enxertar não apenas o querigma
da DtrH, mas também as tradições de Jeremias, no material
mais antigo do Deuteronômio. Vamos considerar esta segunda
parte (4,29-31) e seu autor de forma mais detalhada:
De lá, então, irás procurar Iahweh teu Deus, e o encontrarás,
se o procurares com todo o teu coração e com toda a tua al­
ma. Na tua angústia todas estas coisas te atingirão; no fim
dos tempos, porém, voltarás (weshabta) a Iahweh teu Deus e
obedecerás à sua voz; pois Iahweh, teu Deus é um Deus mi­
sericordioso: não te abandonará e não te destruirá, pois nunca
vai se esquecer da Aliança que concluiu com os teus pais por
meio de um juramento.
Tematicamente, esta passagem flui diretamente da passa­
gem anterior (vv. 25-28); mas o uso do singular sem dúvida a
coloca à parte. Por outro lado, tanto em substância quanto em
estilo, mostra uma completa uniformidade com 30,1-10. O v.
29 assume palavras da tradição de Jeremias (Jr 29,13), o v. 30
faz lembrar Oséias (3,5; 5,15); shub só aqui (v. 30) e em 30,2 é
construído com ’ad (Iahweh), além disso nunca mais aparece
em DtrH (30,10, como de costume, usa 'el). Também aqui o
texto fala do “cumprimento de todas estas palavras” (4,30;
cf. 30,1). Se 4,39 pertence ao mesmo acréscimo, então o reapa­
recimento ali da expressão heshib el lebab (“levar ao coração”)
é uma recordação significativa de 30,1 e lRs 8,47.
A estreita relação temática e lingüística entre 4,29-31 e
30,1-10 sugere que ambas são parte do esforço de um só autor
para entrelaçar o Dt com DtrH. Contudo, admito que este dêu-
tero-DtrH, este segundo autor, ainda seja uma mera hipótese.
Só um novo e detalhado exame nos pode fornecer uma clareza
final, com base em Dt 28-30 e Dt 4, da interconexão literária
entre o Deuteronômio e DtrH.
116
Contudo, se for correta a hipótese de um dêutero-DtrH, sig­
nifica que mais de um autor, dentro do círculo deuteronomista,
descobriu ser o convite à volta (conversão) o ponto da mais ex­
trema importância para sua época. Na verdade, o segundo es­
critor julgou-o tão importante que o proclamou duas vezes
mais: antes e depois da incorporação do Dt — como sendo a
palavra decisiva e final de Moisés à geração dos exilados. Com
isso o leitor, desde o começo, já é levado a uma adequada com­
preensão de toda esta obra. Bem mais tarde, esta mesma obra
apresentará o rei Salomão, na oração de dedicação do Templo,
como o grande advogado da volta, e Josias, o último rei-
modelo, como o exemplo brilhante da volta proposta.

VI

Só brevemente poderemos discutir aqui a questão de como


devia ocorrer esta volta, proclamada por DtrH.
1. Deveria ocorrer como uma volta incondicional a Iahweh
na oração. Jz 2,16; 3,9; ISm 12,19; e lRs 8,47 revelam-no
muito claramente. Também estão incluídas: uma confissão de
culpa, uma súplica pela libertação e uma disposição de renovar
a obediência.
2. Essa volta inclui um “ouvir a palavra de Iahweh, teu
Deus, de acordo com a instrução de Moisés” e ouvir os contí­
nuos alertas dos profetas. O exemplo de Josias em 2Rs 23,25 e
o resumo da pregação profética em 2Rs 17,13 apontam para
isso. O que significa, antes de mais nada, a eliminação dos deu­
ses estranhos, como nos mostra especialmente ISm 7,3 e tam­
bém 2Rs 23,24. Em Dt 4,30 e 30,2.8.10 “voltar” e “ouvir à
voz de Iahweh” se tornam uma combinação indissolúvel.
3. E importante notar o caráter não-cultual da volta. O in­
r

teresse apaixonado pela eliminação dos cultos estrangeiros não


mostra um interesse positivo correspondente pela performance
117
de certos rituais a Iahweh. Isso vale especialmente para o Tem­
plo de Jerusalém. Em sua essência, ele é apenas um lugar de
oração. Nunca se exige uma proximidade direta com ele. No
exílio, basta voltar-se em sua direção30. DtrH tem em mente es­
sencialmente um serviço de oração, em que tudo depende da
volta à própria voz de Iahweh tal como se tornou conhecida
através de Moisés e dos profetas.
4. É especialmente o segundo escritor do círculo deutero-
nomista, reconhecível em Dt 4,29-31 e 30,1-10, quem demons­
tra claramente que DtrH considera a volta menos como um
feito humano e mais como um evento psicológico, prometido
por Iahweh, que virá após seu juízo sobre eles. A volta é assim
prometida em 4,29s, para o tempo de aflição, em estreito para­
lelo com as palavras de promessa de Oséias e Jeremias31. Tam­
bém em 30,8 a volta é simplesmente parte da promessa. O
pressuposto em 4,30s, como em 30,2s, é a vigilante compaixão
de Iahweh. Ele, por sua vez, nunca esquecerá a aliança esta­
belecida mediante juramento aos pais (4,31). Sem dúvida, já
que está próximo o tempo em que irromperá a compaixão de
Iahweh, 30,ls e 10 colocam uma maior ênfase no caráter con­
dicional da volta. Contudo, afirma-se que “Iahweh circuncida­
rá o teu coração” (v. 6). Assim, a volta em 4,30, bem como na
redação correspondente de Os 3,5, constitui de fato a salvação
escatológica “do fim dos tempos”32.
Por causa dessa ênfase na intervenção de Iahweh, a prega­
ção de DtrH não tem o caráter de urgência legalista. Os histo­
riadores deuteronomistas educam seus contemporâneos para a
volta esperada, mediante um quadro da história da salvação,
ao mesmo tempo impressionante e desenvolvido com extrema
paciência. É uma história ininterrupta, da qual a presente gera­
ção é uma parte viva. A volta, o regresso à aliança com os
pais, que Iahweh ainda não esqueceu, é tudo o que resta para
Israel fazer. Em uma época de aflição isso oferece a única pos­
sibilidade de salvação.
118
Assim, essa obra serve como um convite urgente para vol­
tar ao Deus da história da salvação. Este terceiro querigma dos
escritos veterotestamentários emerge da “emoção do louvor e
do remorso” em cujos termos Israel estava, além do mais, fa­
lando de sua própria história.33.
VII
Não podemos afirmar que com tudo isso DtrH estava
combinando sua idéia da volta com alguma esperança específi­
ca. Considerando-se sua visão em aberto de um fim da histó­
ria, seria absurdo apresentar imagens concretas e presíveis.
Como nos dias dos Juizes e reis, porém, deveríamos contar
com dispositivos completamente novos por parte de Iahweh.
Só Dt 30,4 fala de uma volta à terra. lRs 8,49s se limita a uma
oração pedindo justiça e misericórdia para o povo de Deus en­
tre as nações estrangeiras. A humildade associada à volta
substitui qualquer esperança específica. lRs 8 fala só um pou­
co de um novo rei, como de um regresso para casa. O rei incor­
reu em juízo, juntamente com Israel e seu estado nacional.
Quando Joaquim recebe a permissão de tirar suas vestes de
prisioneiro, isto significa que Deus ainda está atuando em fa­
vor de seu povo. Assim DtrH recordou esse evento por respei­
to aos fatos. Contudo, não associa a isso nenhuma esperança
messiânica. Esperanças messiânicas, neste evento, foram tal­
vez vislumbradas pelos adversários de Jeremias, como Ana-
nias. Estes estiveram esperando pela volta do rei por tanto tem­
po, que suas esperanças se tornaram delirantes34. Como discí­
pulo de Jeremias, DtrH é muito mais reservado.
Talvez um dos dispositivos totalmente novos seja a função
de testemunha que o povo de Deus vai desempenhar no meio
das nações. Assim ocorreu com Joaquim numa terra distante,
comendo na mesa real durante toda a sua vida, gozando de um
estranho privilégio, bem acima dos demais reis (2Rs 25,28-29).
119
O templo destruído será, em todo o caso, testemunha do Deus
de Israel entre as nações (lR s 9,8-9). Todo aquele que nele
orar, conforme a intercessão de Salomão, será ouvido. Mesmo
que seja um estrangeiro de um país distante, “a fim de que to­
dos os povos da terra reconheçam teu nome” (lR s 8,41-43).
Contudo, esses novos dispositivos estão ocultos e não podem
de forma nenhuma se ajustar a um programa de esperança.
Por contraste, Israel deve esperar, mesmo quando volta
atrás, que a aflição ainda dure “muitos dias”. DtrH aponta
para essa possibilidade já no início de sua obra, quando faz uma
descrição da geração de Moisés (Dt 1,45-46). A volta não pode
ser imaginada como uma passagem para a restauração ou o
melhoramento.
Deuteronômio 29,28 o expressa com muita clareza35:
As coisas escondidas pertencem a lahweh nosso Deus; as
coisas reveladas, porém, pertencem a nós e aos nossos filhos
para sempre, para que coloquemos em prática todas as pala­
vras desta Lei.
Esta palavra revelada contém agora o convite à volta (no
texto de Dt este convite vem imediatamente em seguida). Vol­
tar significa que Israel vai ouvir com todo seu coração tão-
somente à voz de seu Deus. Vai esperar tão-somente dele todo
o bem, para que se torne agente de Deus no meio de todas as
nações. Se estou entendendo corretamente, é este o interesse
característico desta primeira história que abrange não só o An­
tigo Testamento, mas toda a literatura universal.

120
6
O QUERIGMA
DOS ESCRITORES SACERDOTAIS1
Walter Brueggemann

Nos três importantes artigos anteriores, H. W. Wolff abor­


dou o foco querigmático de três das fontes do Pentateuco: o ja-
vista, o eloísta e o historiador deuteronomista. Até o momento
ele ainda não publicou um quarto artigo sobre o querigma do
autor sacerdotal, para completar a seqüência, embora isso já
esteja prestes a ocorrer. O presente artigo procura dar uma
contribuição ao tema que acabamos de mencionar.
Tentamos seguir o mesmo método geral de Wolff. Em cada
um dos três artigos, Wolff conseguiu isolar uma fórmula usada
freqüentemente, como pista para a compreensão da tradição
em discussão2. Além disso, em cada caso, ele conseguiu rela­
cionar essa fórmula com a situação história e com as questões
teológicas que o autor abordou3.
Os juízos críticos a respeito da tradição sacerdotal rece­
bem, em geral, um consenso muito grande. A tradição sacerdo­
tal é a mais característica e autoconsciente dentre as da assim
chamada hipótese documentária. E a que se reconhece com
maior facilidade e a que com mais propriedade merece ser cha­
mada de “documento”4. Ela tem seu próprio vocabulário e esti­
lo e projeta seu próprio esquema de compreensão da história
121
universal e da história de Israel5. Pertence, com toda a probabi­
lidade, ao período exílico ou imediatamente pós-exílico6. É en­
tendida como um grupo de tradições que consideravam as
questões cultuais como básicas para a reconstrução da comu­
nidade de fé, caracterizada agora como judaísmo. Supõe-se
em todas as partes que, embora sejam utilizados materiais
mais antigos, a intenção da forma final é fornecer uma base e
legitimidade ao aparato cultual. Em torno dele a comunidade
devia se agrupar em sua condição restaurada.
Podemos resumir com facilidade os componentes literários
desta condição restaurada. Embora existam variantes de deta­
lhes, a maior parte do material pode ser classificado em três tó­
picos:
1. Leis e regulamentos relacionados com o devido ordena-
mento do aparato cultual. E isto que mais se conhece e estuda
sobre P, e que com maior freqüência se considera como o seu
enfoque mais importante7. Isso abrange o grande volume de
material detalhista e enfadonho, contido em Ex 25-31 e 35-40,
Lv e Nm 1-10. Embora esteja ali representada uma variedade
de estratos8, os interesses incluídos encontram seu enfoque co­
mum no culto. Ele torna possível a interação entre o Deus san­
to e seu povo.
2. Genealogias, que manifestam o interesse de P por pure­
za, simetria, legitimidade e ordem9. A recitação repetitiva de
nomes causa nos leitores modernos uma sensação de tédio ou
curiosidade. Nas mentes de seus autores, porém, ela ligava tra­
dições do presente a recursos e raízes do passado. Seguramen­
te, isso não era pouca coisa naquele contexto histórico de de-
sarraigamento.
3. Elementos narrativos, espalhados pelo Pentateuco. Cada
um deles é minuciosamente colocado. Essas narrativas, em
contraste com a força primitiva dos relatos j avistas, geralmen­
te têm pouca dinâmica ou movimento. Contudo, são veícu­
los transparentes de uma mensagem. Em sua função, elas não
122
se assemelham à obra de ficção de C. P. Snow, em que os títu­
los de capítulos fazem uma clara alusão à mensagem de cada
composição literária e o relato existe em função da mensagem.
Essas narrativas refletem novamente a disciplina e a autocons­
ciência impressionantes de P.
A construção total de P aparentemente se prolonga desde a
criação até a conclusão da obra de Moises. É extremamente
difícil situar o fim desta tradição. Esta dificuldade está associa­
da á complexa questão do Tetrateuco-Pentateuco-Hexateuco10.
Já foi afirmado que podemos encontrar materiais de P em Jo­
sué", mas essa afirmação parece ser agora de todo imprová­
vel.
Aparentemente, está relacionada com a tentativa de unir todos
os materiais do Hexateuco a uma das quatro fontes “literá­
rias”. O que, sem dúvida, não é possível. (Também se afirmou
que P tinha um extenso relato de conquista, mas que foi elimi­
nado quando DtrH se ligou ao Tetrateuco. Este argumento, na
melhor das hipóteses, é precário.) Por razões que aparecerão
mais adiante, aqui se dá por suposto que P termina com a obra
de Moisés. Esta não contém nenhuma narrativa de conquista12.
Isso corresponde à evidência da análise literária e confirma o
juízo teológico que será apresentado na discussão seguinte.
I
Na mesma linha de WolfT, começo minha análise com
aquilo que parece ser a afirmação querigmática central, que a
obra procura transmitir a seus contemporâneos (para WolfT:
Aussagewillen, Verkündigungsabsicht). Essa afirmação, como
em outras tradições, pode ser identificada através de uma fór­
mula estabelecida, que reiteradas vezes aparece no material,
em lugares cruciais. É possível compreender P a partir do pon­
to de vista de qualquer um dos três componentes que notamos.
Embora a maior parte dos estudos tenha acentuado o corpus
jurídico, enfocarei aqui os elementos narrativos13. Dentro dis­
123
to, sugiro que a formidável declaração de bênção de Gn 1,28 é
a que oferece o melhor enfoque para a compreensão do querig-
ma de todo o conjunto14:
Deus os abençoou e Deus lhes disse: “Sede fecundos, multi­
plicai-vos, enchei a terra e submetei-a . . . dominai. .
Esses cinco verbos, em minha opinião, formam a mensa­
gem central da fé do círculo sacerdotal. Embora outras ques­
tões sejam importantes, e sejam apresentadas com igual cuida­
do, aqui nos achamos no coração da afirmação confessional
que é corretamente chamada de querigmática. O uso do nome
Elohim, repetido aqui duas vezes, é bem conhecido em P. Ele
se adapta ao esquema revelatório que culmina com a revelação
de Moisés (Ex 6,3-13). Mas este nome também reflete o grande
impulso e o escopo universal da afirmação de P15.
“Bênção” é uma palavra ousada e muito poderosa, em que
se evidencia a intenção dominante. Embora os verbos sejam
expressos na forma imperativa, não são tanto ordens como au­
torizações16 mediante as quais o povo recebe o poder de crer
e atuar em vista do futuro. Assim, os cinco verbos afirmam a
intenção radical de Deus de promover o bem-estar e a prospe­
ridade. E esta intenção não pode ser frustrada por nenhuma
circunstância, nem mesmo pela circunstância expressa no con­
texto tradicional do exílio. A reivindicação à soberania, feita por
Deus (conforme o texto), é sobre a criação que acaba de ser
chamada ao ser, a partir do caos. Historicamente, essa reivin­
dicação se refere à situação exílica de pobreza, derrota e deses­
pero que agora ele transforma numa situação de alegria e sha-
lom. Essas cinco afirmações completam a criação do homem,
afirmando sua primazia e investindo-o como agente da ordem
no mundo, que ele deseja que seja fértil e produtivo.
Talvez possamos entender melhor os cinco termos colo-
cando-os como refutação de seus contrários, como segue:
124
sede fecundos nao mais esterilidade17
multiplicai-vos não mais falta de herdeiros18
enchei a terra não mais despovoamento
submetei-a .. não mais escravidão
dominai não mais ser dominado19

Esta proclamação é surpreendentemente apropriada a um


povo no exílio, desarraigado e sem teto, alienado da pátria e das
tradições. Ela é uma afirmação de que seu Deus ainda está
atuando. Portanto, seu destino ainda é o bem-estar e o domí­
nio. Assim, esta palavra é um impressionante desafio a uma si­
tuação histórica sem esperanças20.
A forma plena de bênção ocorre somente em Gn 1, mas
ecoa por todas as narrativas de P. Assim , no relato do dilúvio a
narrativa de P utiliza a mesma fórmula:
. . . que pululem sobre a terra21,
sejam fecundos e multipliquem-se sobre a terra (8,17) .. .
Deus abençoou Noé e seus filhos e lhes disse:
“Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra (9,1) . . .
Quanto a vós, sede fecundos, multiplicai
povoai a terra e dominai-a” (9,7)22.

O primeiro uso da fórmula de bênção, dirigida a pássaros e


animais, tem uma contrapartida em 1,22, no primeiro relato da
criação. O segundo se desenvolve numa direção notável, pois a
declaração seguinte é: “O vosso temor e tremor serão . .
Esta linguagem está em sintonia com a ordem de submeter e
dominar. Parece que também ecoam as antigas afirmações da
conquista sobre o terror, quando a poderosa comunidade con­
duzida por Iahweh toma a terra23. A terceira aplicação da for­
mula está ligada, aqui, à afirmação inicial de Gn 1,26-30, pois
esta também usa uma declaração sobre o homem à “imagem
de D eus”. Rendtorff escreveu sobre a ocorrência de uma gui­
125
nada na narrativa de J em 8,22. De forma paralela o anúncio
marca uma guinada em P, pois trata-se de uma nova criação
depois do dilúvio. É uma nova criação que é novamente emer­
gida para fora do caos. Se, como proponho mais adiante, o
símbolo do caos corresponde à experiência histórica do exílio,
então a afirmação de P é um anúncio do fim do exílio e a volta
bem sucedida à pátria. Vale a pena notar a reiterada referência
“à terra”, que também pode ser traduzida por “país”. Assim,
nas três afirmações (8,17; 1,1; 9,7) é colocada a ênfase na pro­
messa de que a bênção seria realizada na forma de um país25.
Sem dúvida, isto bate numa tecla melancólica da comunidade
exílica, que considerava a volta à pátria como sendo a esperan­
ça mais urgente. Esta fórmula se interessa claramente pelo uso
adequado e jubiloso da terra, impelindo para aquilo a que a ter­
ra foi destinada, a saber: ser fecunda e dominada26. Reitera­
mos: a bênção é exatamente a antítese da experiência vivida
pela comunidade exilica.

O terceiro uso desta fórmula em Gn 17,20. Num discurso


sobre Ismael é dito:
Eu o abençôo, torná-lo-ei fecundo, fá-lo-ei crescer extrema­
mente . . . : dele farei uma grande nação.

Embora esta afirmação não se refira diretamente a Israel,


mas a Ismael, ela é pertinente à nossa discussão. Primeiro, o v.
21 sugere uma promessa ainda maior a Isaac. Segundo, talvez
no século VI a promessa de Deus visasse à restauração de todo
o povo descendente de Abraão da dominação babilónica. Até
mesmo a restauração do povo de Ismael acentua o poder e a fi­
delidade de Deus. Embora o tema de Ismael seja assumido em
consideração à antiga tradição, está claramente subordinado à
promessa de Isaac pela qual P está interessado. Tal como está
126
formulado, este trecho reforça indiretamente a promessa a
Abraão em 17,1:
. . . e te multiplicarei extremamente.

O uso seguinte desta fórmula se encontra em 28,1-


428:
Que El Shaddai te abençoe,
que ele te faça frutificar e multiplicar,
a fim de de que te tornes uma assembléia de povos (v. 3).
Este texto acentua a pureza do povo santo, um tema no
qual P é perito. Mas reitera também o interesse pelo país: “ . . .
a fim de que possuas a terra em que vives e que Deus deu a
Abraão” (v. 4). O povo exilado recebe novamente a promessa
de estabilidade, prosperidade e de poder lançar raízes. Esta
composição literária é um bom exemplo da maneira como as
antigas tradições servem de fontes e recursos para as afirma­
ções de fé do presente. As memórias das antigas andanças são
agora uma fonte de esperança para a posse da terra.
A mesma fórmula é dirigida novamente a Jacó em 35,11 e
uma vez mais é ligada ao repovoamento da t;rra. Embora esta
afirmação não contenha elementos novos, é c lugar apropriado
para se notar a ocorrência de três elementos juntos:
a) a menção de El Shaddai, que é o agente do querigma30.
b) a fórmula derivada de 1,28, que tomamos como elemen­
to central do querigma;
c) a referência à posse da terra que é o escopo do querig­
ma31.
O nome de Deus está ligado (e até subordinado) à ordem/
promessa de fertilidade, prosperidade e promessa de uma terra.
Embora o nome de Deus seja importante para a história esque­
mática de P, provavelmente deve ter recebido uma excessiva
127
ênfase por parte dos pesquisadores, às custas da bênção e ante­
cipação da terra. P não está tão interessado numa teoria da re­
velação, como na realidade da promessa da terra, que sobrevi­
ve mesmo nos tempos de exílio. Quando o nome é ligado a ou­
tros dois elementos (verbos da fórmula e promessa da terra),
adquire importância e força para a tradição. Sem os outros ele­
mentos ligados a ele, este nome é de pouca força para a tradi­
ção32.
Em 47,27 a fórmula é menos completa. Nela não é mencio­
nado o nome da divindade. As palavras familiares “sede fecun­
dos e multiplicai-vos” não são dadas em perspectiva, mas so­
mente como relato daquilo que já ocorreu. Mas fundamental­
mente Israel é o povo fecundo. Sobretudo, este versículo men­
ciona também a terra e a posse33, mesmo que não enfoque a
terra de Canaã. As circunstâncias do relato exigem um outro
lugar. O fato de que Israel é fecundo no Egito significa para P
que ele é um povo fundamentalmente destinado a dominar a
terra. Seja em Israel ou em outro lugar, este povo,domina a ter­
ra e prospera. Esta afirmação é de importância decisiva para
os exilados!
Esta fórmula integral ocorre novamente em 48,3-4 com o
nome divino, a ordem/promessa e a referência à posse da ter­
ra. Essa ocorrência completa as narrativas patriarcais, que vi­
ram a afirmação feita a Abraão e em antecipação a Isaac
(17,20-21), Jacó (28,3; 35,11) e agora a José (47,27; 48,4).
A tradição P não introduz esse tema na era mosaica, talvez
porque nem seja predominante o material jurídico. Mas em Ex
1,1-5.7 faz-se uma transição:
Os filhos de Israel foram fecundos e
se multiplicaram;
tornaram-se cada vez mais numerosos e poderosos
a tal ponto que o país ficou repleto deles.
128
Essa afirmação não é apenas uma introdução ao material
do êxodo, (embora seja isto também), mas uma afirmação pro­
gramática de toda a história restante do povo. Esse tema se
prolonga desde a criação até à libertação, desde o anúncio da
bênção até à sua realização — que é o relato perene de Israel e
se constitui na ênfase característica de P. Deus mantém sua
promessa. Ele é poderoso e o povo prospera na terra. Este ain­
da não está na terra, mas já se vislumbram sinais da realização
da promessa de Iahweh. Na seqüência de discursos referentes a
El Shaddai, chegamos àquele que é o clímax, em Ex 6,2-4,
onde não são empregados os termos da fórmula de Gn 1,28.
Mas o que é típico ali é o fato de que este trecho vai desde o
nome até à terra (vv. 3.4.8).
II
Quando consideramos mais atentamente a fórmula de P,
esta se revela como uma criação autoconsciente e original. Em
sua forma atual, ela não apresenta antecedentes. Mas suas par­
tes componentes estavam à disposição nas antigas tradições da
terra, preservadas especialmente nos materiais deuteronomis-
tas. (Não vou considerar aqui nenhuma interação possível en­
tre o historiador deuteronomista e o círculo de P. Mas farei re­
ferência às tradições mais antigas enraizadas no Deuteronô-
mio.) Sugiro que o querigma de P foi feito a partir das tradi­
ções de posse da terra, datando da primeira entrada de Israel
em Canaã34.
A mais óbvia de todas é a promessa de Deus de conduzir
Israel à terra e multiplicá-lo (Dt 6,3; 7,13; 8,1.13; 11,21;
28,63; 30,16). Esta multiplicação na terra é oferecida como si­
nal do beneplácito divino, bem como de prosperidade35. O
Deuteronômio não fala em ser fecundos, mas em fartura (6,11;
8,6-9; e especialmente 7,13-14) e com os termos mais eloqüen­
tes. Entendo “ser fecundo” e “encher a terra” como paralelos
129
5 — 0 dinamismo das tradições do Antigo Testamento
de “multiplicar”, que têm suas raízes na antiga tradição, mas
que foram desenvolvidos por P para causar simetria e repeti­
ção, características desta tradição.
Os dois outros termos da fórmula completa, “sujeitai-a” e
“dominai”, não são derivados de forma específica da tradição
mais antiga. Mas, seguramente, refletem a intenção e o propó­
sito da tradição de conquista da terra. É precisamente por isso
que ocorre a “conquista”: para expulsar, derrotar, subjugar ou
destruir os antigos habitantes e assumir o controle. O termo
“sujeitai” é usado em Ntn 32,22.29 e Js 18,1. A relação desses
textos com P é obscura. Se forem de P, este termo se prolonga
desde Gn 1,28 até Nm e Js, mostrando a estreita conexão entre
a linguagem e o tema da criação e a conquista. Se não forem
de P (e suponho que não o sejam), então P se apropriou da lin­
guagem da conquista para sua própria afirmação36. Em cada
um desses casos, a criação passa a ser expressa na linguagem
da conquista. A terra (país), destinada em Gn 1 à ocupação,
uso e controle humanos, é a mesma terra (país) referida nas
tradições da conquista. Essa conclusão é confirmada pela afir­
mação adicional de Gn 9,2, de que haverá temor e tremor no
povo escolhido. Será muito semelhante ao pavor sentido pelos
futuros inimigos de Israel (cf. Ex 1,12) à medida que Israel se
fortalecia e se expandia.
Resta pouca dúvida quanto a esta fórmula em P:
1. Ela perpassa todo o material de P; acha-se:
Na fórmula integral dada a Adão (Gn 1,28);
Na fórmula parcial dada respectivamente a:
Noé (Gn 8,17; 9,1.7)
Abraão (Gn 17,2.20-21)
Jacó (Gn 28,3-4; 35,11)
José (Gn 47,27; 48,3-4)
À geração de Moisés (Ex 1,7)
130
Assim, esta fórmula conduz a narrativa de P desde a cria­
ção até à Terra Prometida.
2. Esta fórmula está claramente relacionada com a teologia
da terra. Isto está indicado no fato de que (a) fórmula é carac­
teristicamente combinada com a promessa de terra, e (b) o vo­
cabulário da fórmula tem algo a ver com a bênção e o domínio
da terra:
“sede fecundos e multiplicai”: refere-se à fertilidade e reprodução
não apenas do homem, mas tam­
bém da terra e dos animais.
“Submetei, dominai”: refere-se ao domínio da terra, ao
poder de impor a própria vontade
sobre o território.
“Enchei”: refere-se novamente à prosperida­
de.
Portanto, a linha de pensamento que atravessa toda a nar­
rativa P diz respeito à promessa e ao dom da terra como bên­
ção. E o momento em que esta palavra é pronunciada é exata­
mente uma situação de desarraigamento nacional: o exílio. As-
si, constitui-se numa afirmação radical, contra as circunstân­
cias para dentro das quais é pronunciada.

III
Para entender esta fórmula, precisamos concentrar a aten­
ção na expressão integral de Gn 1. É bem plausível supor que os
outros usos derivem deste, e devam ser interpretados como sua
realização na história. Em Gn 1,1-2.4a, esta fórmula ocupa
uma posição central entre o descanso da criação e o Shabbat,
o que sugere poder ser este o núcleo central do texto. Sem dúvi­
da, é verdade que essa composição literária contém muitas par­
tes derivadas de materiais do antigo Oriente Próximo37 ou pelo
131
menos paralelas aos mesmos. Também é evidente que esta
composição conclui com uma etiologia do Shabbat38. Mas não
é nem a narrativa da criação, nem a introdução do Shabbat,
que molda a narrativa de P. É precisamente esta palavra radi­
cal, pronunciada com uma autoridade inconteste, que confere
a P sua moldura e caráter. Nossa análise da fórmula de P suge­
re que Gn l,l-2.4a deva ser interpretado no contexto da inten­
ção total da narrativa de P. Com muita freqüência essa compo­
sição literária foi tratada num vácuo, e isso levou a interpreta­
ções equívocas. Quando a narrativa da criação se relaciona
com o restante da tradição de P, não pode haver dúvida de que
o cerne do texto é a palavra de bênção, expressa em cinco va­
riações.
A linguagem desta fórmula, como indicamos, é reminiscên­
cia das antigas tradições de conquista. Estas tradições conti­
nham várias afirmações importantes, mas nem sempre fáceis
de harmonizar: (a) a terra é um dom de Iahweh; (b) a terra será
tomada pela conquista de Israel; (c) a terra é um lugar de bên­
ção; (d) caso Israel venha a se tornar infiel irá perder a terra.
Como von Rad indicou 39, no antigo credo e na estrutura do
Hexateuco de J, a entrada na Terra Prometida é o coroamento
da história da salvação. Quando este relato foi remodelado
para servir às necessidades da comunidade exílica40, podemos
supor que continha dois elementos: (1) fidelidade aos materiais
antigos que utilizava, e (2) liberdade de remodelar esses mate­
riais em função das necessidades contemporâneas. Os antigos
materiais incluem sem dúvida a estrutura integral de promes­
sa/cumprimento, centrando a atenção na terra41. Essa idéia
norteia o uso que P faz das tradições antigas. A teologia da ter­
ra domina DtrH (presumivelmente um pouco mais cedo do que
P42). Assim, a conquista como dom e como exigência se encon­
tra no centro da tradição já existente, empregada por P. Elas
estão formalmente associadas no Deuteronômio como parêne-
se e mandamento.
132
O problema da comunidade exílica, abordado por P, era o
desarraigamento da comunidade, bem como o fato de se en­
contrar deslocada, ou seja: ser um povo sem pátria. A opinião
corrente é que P buscou, de forma bastante estática, legitimar
as práticas cultuais. Isto ajudaria a comunidade a suportar sua
situação de desarraigamento durante o exílio. Sem negá-lo, ad­
mito que P também estava orientado para o futuro. Ele estava
vislumbrando um tempo em que a terra seria novamente recebi­
da das mãos de Deus; em que seria feita a reentrada; em que
o domínio de novo seria exercido; em que se celebraria a fertili­
dade e se dinamizaria a promessa de Deus. Ele vislumbrava o
tempo em que Israel experimentaria novamente a bênção e a
prosperidade da nova conquista, como ocorrera com seus pais
no passado.
Já foi notado que o Dêutero-Isaías fala tanto de criação
quanto P43. Também é fato bastante conhecido que o Dêutero-
Isaías dá muita importância à volta à pátria. O que se atribui
ao Dêutero-Isaías vale também para P. Em Gn 1, P não está
interessado em afirmações especulativas sobre as origens cós­
micas, mas na reconquista da terra. Assim, a idéia de criação é
simplesmente um veículo para a promessa e expectativa de
uma nova conquista44 e bênção renovada, porque Iahweh con­
tinua a ser fiel e poderoso45.
O versículo distintivo de Gn 1,2 já há muito foi reconheci­
do como tendo precursores mitológicos. Mas nosso argumento
sugere que este versículo também pode ser entendido em ter­
mos político-históricos, sem negar, sem dúvida, seus antece­
dentes mitológicos. Uma compreensão político-histórica suge­
re que o caos (tohu-bohu) seja a situação de desarraigamento
do exílio. E o espírito que paira no ar, dando ordens, talvez seja
o ato de Iahweh reconduzindo o povo à sua terra com toda a
bênção e prosperidade. Sem dúvida, não se podem ignorar os
horizontes universais e expansivos desta composição literária.
Mas este horizonte universal é vivenciado pelos contemporâ-
133
neos de P pomo sendo primeiro a situação de desarraigamento,
sem terra; e a seguir, a posse da terra.
Assim, a criação é a restauração da terra. Os antigos feitos
salvíficos estão por acontecer novamente, quando Israel for as­
segurado em sua Terra Prometida46. Talvez isso explique por­
que não há quase nada, ou muito pouco relato de conquista em
P. Isso foi explicado de múltiplas maneiras, sendo a mais
plausível a de que a narrativa de conquista de P foi substituída
por DtrH. Mas nosso argumento sugere outro tipo de raciocí­
nio: (a) a tradição da conquista está lá — o antigo material a
continua e P retém este material antigo; (b) mas ele é subordi­
nado, porque para P o momento importante da conquista ain­
da se encontra no futuro.
Devemos notar ainda dois outros traços de Gn 1: (1) O
clímax de Gn 1 é a afirmação divina: “É muito bom.” Tal
como se encontra na tradição, este comentário se refere à cria­
ção. Mas, à luz do uso de tob com a terra47, poderíamos tam­
bém sugerir que esta fórmula evoca a conquista. Ela é assim
uma descrição festiva da terra que Iahweh deu a seu povo e
que eles ainda vão reaver. (2) O movimento de toda essa com­
posição literária em direção ao Shabbat (2,1-4a) foi explicado
como característico da obsessão exilica por esse dia. Mas é
preciso notar que Shabbat não significa apenas a recuperação
(sagrada), de homens, como Herschel afirmou tão eloqüente­
mente48. Em textos geralmente ligados aos materiais de P,
Shabbat significa também a recuperação da terra:

O próprio sábado da terra vos nutrirá, a ti, ao teu servo, à tua


serva, ao teu empregado, ao teu hóspede, enfim, a todos
aqueles que residem contigo (Lv 25,6).
Então a terra cumprirá os seus sábados durante todos os dias
de sua desolação, enquanto estiverdes na terra dos vossos ini­
migos. Então a terra repousará e poderá cumprir os seus sá­
bados. Repousará durante todos os dias da sua desolação, o
134
que não acontecu nos vossos dias de sábado, quando nela ha­
bitáveis (Lv 26,34-35).
Esta conexão está longe de ser compreensível. Mas é possí­
vel que Shabbat tenha sido introduzido em Gn 1,1-2.4a por
causa da teologia da terra e do repovoamento que lhe advém; e
daí então a seus habitantes restaurados. É um Shabbat para a
terra, que a torna novamente produtiva e fértil49.

IV
Tentamos interpretar P a partir de um ângulo diferente de
muitos intérpretes. Sugerimos que a forma narrativa seja a
chave de interpretação do querigma de P, e não a lei nem a ge­
nealogia. Admitindo isto, devemos tentar, à continuação, rela­
cionar os outros elementos com a proclamação da narrati­
va. Embora devamos fazer esta sugestão, cada componente
deve preservar alguma independência, para não precisar ajus-
tar-se todo ele nitidamente a uma única afirmação.
Se a mensagem central de P for a reentrada na Terra Pro­
metida, então o material legal sobre a adequada provisão cul­
tual para o encontro do Deus santo com o povo pecador é um
programa de garantia de que a terra em que se vai reingressar
não sofrerá o abuso de alguma ação errônea ou prepotente50.
Essas ações podem provocar uma nova expulsão da terra — o
que P tenta evitar a todo custo. Na verdade, a intenção central
da legislação sacerdotal é fazer com que não volte a ocorrer tal
expulsão da terra. Assim, as leis presumem a reconquista e a
reentrada na terra. Elas são guias para evitar que se perca,
por castigo, tanto a promessa quanto a bênção de Deus.
As genealogias são muito difíceis e complexas. Mas com
certeza a estrutura de P acentua a continuidade entre os pais e
a geração atual do exílio. No que tange à nossa hipótese, P se
esforça por unir a antiga promessa com o projetado cumpri-
135
mento atual. E a conexão entre o antigo e o novo não significa
apenas a geração da conquista que experimentou por primeiro
o cumprimento da promessa/bênção no período Moisés/Josué,
mas se remonta também à criação. Isto porque a promessa da
terra a ser atualizada é ordenada conforme a própria estrutu­
ra da criação. A promessa não é um evento que ocorreu ao
longo da caminhada e se tornou obsoleto à medida em que se
sucediam os eventos históricos. Ao invés disso, é algo que está
enraizado no mais profundo da realidade — no sim de Deus já
durante a criação —, de maneira que não pode ser anulado por
nenhuma eventualidade histórica, nem mesmo pelo exílio. Des­
de toda eternidade Deus dispôs a terra como bênção. P dá tes­
temunho desta esperança. As genealogias fazem a conexão en­
tre os tempos da promessa e seu cumprimento51.

A chave querigmática da teologia sacerdotal está no fato


de que a promessa da terra da bênção ainda é válida e será
cumprida em breve. Sem dúvida, tal sugestão não considera
toda a diversidade na tradição, assim como Wolff pôde fazê-lo
com tudo o mais nas outras tradições. Nem pretendo localizar
ou reduzir os amplos horizontes que foram largamente atribuí­
dos a P. Não sugiro que a linguagem da criação seja simples­
mente uma linguagem em código para a restauração da terra.
Na verdade, P fala em termos do conjunto todo da criação,
como o Dêutero-Isaías. Mas esta linguagem não é abstrata
nem existe num vazio. O que eu defendo é que o ponto de
contato histórico, a maneira em que o Israel do exílio vivenciou
o caos e a criação, foi na forma de exílio e restauração. As
nuances mitológico-cósmicas e histórico-políticas não são con­
traditórias, mas devem ser associadas. Só assim esta teologia
pode ser séria para seu próprio tempo, e pertinente quando o
136
ordenamento da vida por parte de Deus parece tao impotente e
precário.
Finalmente, esta maneira de apresentar a mensagem de P
procura apreciar a dialética da tradição do passado e a situa­
ção do presente. O argumento acima mencionado (1) afirma
que os escritores sacerdotais entenderam profundamente as ne­
cessidades de seus contemporâneos e (2) que eles penetraram
no poder das afirmações de fé em torno das quais foi estrutura­
do o Hexateuco. Tudo isso juntamente com os recursos da tra­
dição mitológica também disponíveis a P, é combinado numa
afirmação admirável. Não é apenas uma ação de apoio (como
P geralmente é apresentado), mas uma poderosa teologia da
esperança em que a ação de ordenamento e bênção por parte
de Deus ainda está por ser plenamente efetivada (cf. Is 45,18-
19)52.

137
7
A TAREFA PERMANENTE
DA CRÍTICA DA TRADIÇÃO
Walter Brueggemann

Embora ultrapasse aquilo que nos propusemos aqui como


escopo, um estudo das quatro tentativas do Pentateuco que re­
lacionam tradição de fé com crise cultural pode projetar muita
luz sobre a compreensão de outras literaturas que enfrentaram
as mesmas crises. Na verdade, a maior parte da literatura vete-
rotestamentária pode ser considerada como resposta exata­
mente aos três tipos de crise abordadas no Pentateuco.
A. As quatro tradições do Pentateuco
Existe consenso generalizado quanto ao fato de J ter escri­
to durante uma crise da monarquia e secularização de Israel.
Múltiplas evidências e opiniões cientificamente abalizadas con­
sideram o relato da Sucessão, em 2Sm 9-20 e lRs 1-2, como
enderaçado à mesma crise. Uma opinião mais antiga, em gran­
de parte seguindo o juízo de Leonhard Rost1, considerava que
esta literatura mais tardia estava interessada sobretudo na
questão de qual dos filhos de Davi seria seu sucessor. Daí o
título: Relato da Sucessão. Mas a pesquisa mais recente está
139
inclinada a considerar esta literatura não em termos de suces­
são, mas em termos da luta entre norte e sul; ou seja, da luta
entre Absalão e Salomão, ou simplesmente: a questão básica
da legitimidade real2. Tomadas em qualquer uma dessas for­
mas, tais questões abordam a delicada relação entre o propósi­
to e a providência de Deus, de um lado e o poder histórico, de
outro. Davi e sua família são portadores tanto da promessa de
Iahweh, quanto de enorme poder político. Von Rad notou o
quanto este relato deixa velada a atividade de Deus — e este é
um fato típico da secularização do século X a.C.3 Na verdade,
o divórcio crescente entre as reivindicações de Deus e as reivin­
dicações da realeza do século X produziu uma crise teológica4.
Essa questão assumiu duas formas: uma visão de fé que era im­
potente, e portanto irrelevante; e um poder histórico que era in­
disciplinado e se recusava a assumir responsabilidade por qual­
quer visão. A resposta que tanto J quanto o relato da Sucessão
assumiram é atípica e forte. Eles se esforçam por levar a sé­
rio tanto a fé quanto o poder, e por dar expressão a formas em
que ambos pudessem coexistir em algum esquema intelectual
responsável. Assim, J não é uma construção literária isolada,
mas uma tentativa de lidar com uma verdadeira crise de valo­
res, causada pela alienação entre fé e política.
Quanto a E, seguindo a Steck, Wolff sugeriu um contexto
teológico e histórico. Cronológica e tematicamente, E se liga
aos protestos dos profetas do Norte. Estes profetas, especial­
mente Elias e Oséias, lançaram um poderoso desafio contra as
pretensões da realeza, que ameaçavam alterar as próprias ba­
ses da vida social5. Com arrogância dramática, a dinastia de
Omri e Acab começou aquilo que Jeroboão II, com maior es­
perteza, mais tarde quase conseguiu: o domínio sobre o Norte,
assim como Salomão tinha reduzido o Sul a um estado despóti­
co, confederado à religião cananéia.
Com Elias e Oséias, E denunciou as práticas da religião ca­
nanéia, disfarçadas sob uma máscara javista. Estes amálgamas
140
sincretistas degeneraram em alguns casos até ao ponto de ou­
sar afirmar que a vida pode ser controlada e está à nossa dis­
posição somente se formos suficientemente fortes e inteligentes.
Com base nesta ideologia, a corte real imprimia sua orientação
— além do mais, a estrutura real controlava um gigantesco
aparato bélico, e geralmente conseguia impor sua vontade. Ela
se propôs a usar a guerra como política imperial (lR s 22). Pro­
curou confiscar terras para satisfazer os caprichos reais (lR s
21). Acomodou-se a todos os tipos de valores da produção/
consumo (Os 13,2). O progresso que daí resultou era evidente
a todos.
Contudo, Elias e Oséias manifestaram, de forma nada di­
plomática, que esta mecanização tão eficiente não pode trazer
vida. No encontro dramático no monte Carmelo (lRs 18), fica
claro que somente a palavra de Iahweh controla a história e
traz vida, embora na forma de chuva. Na história da vinha de
Nabot trata-se desta mesma palavra, que o regime é incapaz de
controlar ou resistir. Em uma de suas declarações mais sucin­
tas (4,1-3), Oséias afirma que a coerência da criação depende
do conhecimento da Torá de Iahweh, e não dos artifícios, me­
canizações e “nova ideologia” do reinado. E em seu poema
mais eloqüente (2,4-13), ele nota que Israel atribui os dons de
Iahweh a outros deuses. Por causa desta atribuição errônea,
tudo vai acabar numa paralisação mortal. Tanto Elias como
Oséias afirmam o ciúme de Iahweh e a convicção de que só ele
contém em sí o poder de vida. E nenhum grau de ingenuidade
que combine a manipulação humana com o mistério divino
(entenda-se sincretismo, sinergismo) pode alterar esse fato.
Este contexto possibilita que vejamos E de forma diferente.
Por exemplo, Gn 22, que é um dos textos centrais de E, já não
é mais considerado como uma composição literária isolada6. É
visto como parte de um grande empreendimento dos séculos
IX-XIII, visando afirmar o domínio zeloso de Iahweh sobre a
vida e convidando os fiéis a se entregarem a esse domínio. As­
141
sim, E é entendido como parte de um esforço maior no sentido
de confirmar a reivindicação exclusiva de Iahweh sobre seu po­
vo, exatamente quando sua reivindicação estava sendo posta
em dúvida.
Para se entender plenamente a história das tradições deute-
ronomista e sacerdotal, é necessário ver seus contextos em seu
significado integral. O exílio representa o fim de todo o esquema
da história da salvação, como mostrou von Rad7. O problema
do exílio era uma profunda alienação: entre a cidade e o tem­
plo, a terra e os costumes; mas, acima de tudo, entre Iahweh e
suas promessas — que agora pareciam falsas. Surpreende-nos
o fato de o exílio ter sido um tempo de atividade literária tão in­
tensa. Mas podemos entendê-lo como uma busca. Talvez fosse
uma busca desesperada de formas de fidelidade num cenário
de alienação8. Gottwald9 afirmou que o Antigo Testamento
deve ser entendido antes de tudo como uma tentativa de resol­
ver a questão do exílio. Mesmo que essa afirmação seja exage­
rada, sugere com grande propriedade que a fé é muito mais de­
safiada, e buscada com maior paixão, durante o exílio. Israel
estava sendo confrontado com uma “trágica mudança”10: de
abençoado antes a amaldiçoado agora, de recordado antes a
esquecido agora, de amado antes a abandonado agora.
O pesadelo deste período produziu esta obra de tom fú­
nebre que é o livro das Lamentações, a ira e indignação de
Jó11, as visões de Jeremias12, a mensagem ambígua de Eze-
quiel, bem como a novidade radical e ousada de Isaías 40-55.
É aconselhável, para nossos propósitos, colocar DtrH e P nes­
te contexto, porque representam os dois pólos da fé exílica.
Machholz descreveu esses pólos como sendo o protestante e o
católico. DtrH, em seu convite ao arrependimento, acentua vi­
gorosamente a obrigação e responsabilidade humanas. Ao pas­
so que P, em seu edito real, coloca a ênfase na fidelidade de
Deus e na garantia de felicidade mesmo durante o exílio. Em­
bora use uma conceitualização diferente. Wolff concorda com
142
este aspecto de Machholz, a saber: que DtrH (“Tu serás o meu
povo”) e P (“Eu serei o teu Deus”) abordam o sentido da alian­
ça no exílio13.
Nem sempre é possível ou desejável uma correlação exata
com outra literatura. Contudo, as sugestões neste sentido po­
dem ser reveladoras. Certas partes de P têm afinidades com
Ezequiel, em seu interesse pela glória de Deus14, em seu horror
por aquilo que é impuro, e em sua corajosa e manifesta pro­
messa de novidade15. Inversamente, DtrH pode ter laços com
Lamentações e Jó, em seus temas comuns de retribuição. Pro­
vavelmente com o Dêutero-Isaías, também, em sua confiança
na palavra de Deus como fonte de vida e esperança17. O fato
de que podemos atribuir com certeza duas das tradições do
Pentateuco ao período exílico sugere a profundidade desta cri­
se. Quase a totalidade da literatura de Israel é fruto dela.
Sem dúvida, devemos levar em conta o argumento forte e
recente de Frank M. Cross Jr.18, de que devemos datar DtrH
em sua maior parte num período anterior ao exílio, sendo que
somente durante este é que ocorreu sua edição. Esta opinião,
que durante algum tempo gozava de menos popularidade, só
agora está sendo retomada. Caso for aceita, ela tornará neces­
sária uma reavaliação da questão apresentada por Wolff de
que P e DtrH são contemporâneos da literatura exílica. Contu­
do, na discussão atual é essencial trabalhar com os pressupos­
tos críticos de Wolff. Em qualquer das hipóteses, mesmo que a
opinião de Cross seja aceita, as considerações de Wolff se apli­
cariam à tradição completa, tal como ficou conservada para
nós.
A correspondência entre a tradição do Pentateuco e as de­
mais literaturas veterotestamentárias tem um importante valor
heurístico. As semelhanças entre J e o relato da Sucessão, entre
E e o material profético, bem como entre DtrH e P e a litera­
tura exílica, sugerem que os escritos do Pentateuco não estão
isolados, nem podem ser interpretados como se estivessem em
143
relação mútua (como se supõe com bastante freqüência). Estas
inter-relações sugerem sobretudo que as questões enfrentadas
pelas tradições do Pentateuco penetram capilarmente por todo
o Antigo Testamento, constituindo os temas básicos da fé
bíblica. O Antigo Testamento assim apresentado é considerado
como uma literatura que com muita consistência entra em
aberto Auseinandersetzung (“confronto”) com as falsas for­
mas de fé induzidas pela cultura. Isto é, a Bíblia se acha em
aberto confronto com os valores e práticas emergentes de tem­
po em tempo na comunidade de Israel. A Bíblia protesta con­
tra as falsas formas de relacionar fé e poder político (J); contra
as falsas formas de relacionar a energia e competência huma­
nas com o propósito divino (E); e contra falsas formas de crer
e duvidar, embora estando na alienação (DtrH e P). E sí a
Bíblia afirma e protesta sempre numa situação de perversão
potencial, a tarefa da interpretação bíblica e da proclamação já
está nitidamente definida. Ela mesma se acha sempre num A u-
seinandersetzung (“confronto”). É sempre uma afirmação não
acreditada e um protesto não aceito. É sempre uma tentativa
de articular a verdadeira forma de Evangelho, e de negar a que
é falsa.
B. Continuidade do processo da tradição
Por razões ainda não plenamente esclarecidas, o Pentateu­
co parece ter chegado à sua forma fixa, definitiva ao redor do
final do século V a.C. Talvez sua forma definitiva esteja asso­
ciada ao movimento histórico relacionado com Esdras. Em um
determinado momento daquele período, o Pentateuco se solidi­
ficou num corpo de literatura. Já não mais mantinha uma inte­
ração dinâmica com a cultura. Já não estava aberto ao cresci­
mento, através da continuidade do processo da tradição. Ele se
tornou um cânon, fixo e imutável. Mas, por isso mesmo, ele se
tornou uma tradição19.
144
Em nossa compreensão da Escritura é importante conside­
rar que, embora esta literatura já não mais respondesse com
flexibilidade às novas crises, o processo que se desenvolvia an­
teriormente no Pentateuco não se deteve depois que este atin­
giu sua forma definitiva. Uma multidão incontável de pessoas
desconhecidas continuou a tarefa de transmitir a tradição, isto
é, de reformular a fé em moldes que entrassem em contato com
novas formas e situações culturais.
A mais importante dessas tentativas foi o “Cronista”. Este
nome é dado àquele(s) que compilou os livros de 1 e 2 Crôni­
cas, Esdras e Neemias. Assim como os transmissores mais an­
tigos da tradição do Pentateuco, também eles reorganizaram o
material recebido dentro de um molde novo. Não vamos reali­
zar um estudo do material de acordo com a metodologia de
Wolff. Contudo, com base em vários estudos, podemos sugerir
que o Cronista estava respondendo a uma dentre várias ques­
tões20. Primeiro, pode ser que esta tradição fosse moldada
como resposta de Jerusalém a uma disputa com a Samaria. Já
evidenciada nas partes mais antigas da tradição de Esdras/
Neemias, visava estabelecer o primado e a legitimidade do tem­
plo de Jerusalém. Ou talvez essa literatura seja uma resposta a
questões referentes a esperanças messiânicas. Em apoio a esta
hipótese, os eruditos notaram que esses livros têm interesse em
mostrar as reivindicações davídicas sobre a comunidade de fé.
Uma terceira alternativa também foi sugerida: a de que esta li­
teratura surgiu como resposta a uma rivalidade entre ordens
sacerdotais. Especificamente, tratava-se de uma rivalidade
sobre os fundamentos das reivindicações da ordem levítica.
Embora careçamos de evidência para decidir a respeito destas
hipóteses plausiveis, fica claro que o Cronista, em nenhum dos
casos, atuou como historiador em sentido objetivo. (Isso tam­
bém se aplica aos demais transmissores da tradição, que até
agora estudamos). Ao invés disso, ele era participante de um
debate teológico crucial, que tentava influenciar mediante um
145
apelo à tradição. Escrever história no antigo Israel era (e ainda
o é na maior parte da historiografia moderna) uma afirmação e
um protesto.
É característico, especialmente dos estudiosos cristãos, su­
por que no período pós-exílico, tal como refletido em Crônicas,
os assuntos eram mundanos, sem imaginação, e portanto sem
importância. Esta literatura parece polemizar apenas a respeito
de questões de ordem, estrutura e formalidades. Mas não deve­
mos descartar com leviandade esse processo da tradição (em­
bora façamos o mesmo no Novo Testamento, quando descar­
tamos as epístolas pastorais e o desenvolvimento do cristianis­
mo “católico” dos primórdios). As controvérsias versavam
sobre a estrutura da comunidade de fé e sobre a distribuição e
administração do poder. E embora outras questões possam ser
intelectualmente mais estimulantes, nenhuma é mais crucial do
que a questão da estruturação da autoridade. Isso se eviden­
ciou nas discussões católico-romanas sobre a colegialidade dos
bispos a partir do Vaticano II, e nas discussões atuais sobre
uniões de igrejas protestantes. Ficou evidente que as “questões
formais” são assuntos através dos quais são articuladores
problemas teológicos cruciais. Também se evidencia que, em se
tratando de estrutura e ordem, nosso pensar teológico é ainda
de principiantes. O fato de o Cronista ter usado antigas tradi­
ções para prescrever ordens e estruturas é uma afirmação de
que as tradições antigas têm ao mesmo tempo poder e relevân­
cia para a problemática posterior, mesmo que esta seja munda­
na e sem importância.
Outra grande tarefa traditiva que vamos encontrar no
período pós-Pentateuco é a apocalíptica. Sob muitos aspectos
devemos entendê-la como antítese da obra do cronista, que de­
seja resolver questões dentro do establishment21. Em contraste
com ela, a apocalíptica é uma forma cósmica e corajosa de
pensar. Mostra-se impaciente com esses limites porque crê que
eles impedem a formulação de qualquer afirmativa teológica
146
autêntica. O establishment limita a fé a uma ação secundária,
não permitindo o aparecimento do que é novo. Ora, o coração
da apocalíptica é o “algo novo”.
Parece claro que o estudo mais importante nesta área foi o
de Paul Hanson22. Ele elaborou a ousada hipótese de que a lin­
guagem, as imagens e a literatura apocalíticas aparecem quan­
do as agruras e os dilemas da história já não podem mais ser
resolvidos ou enfrentados em termos de possibilidade histórica.
E as agruras dos períodos exílico e pós-exílico eram insuportá­
veis. Com o surgimento da apocalítica (no Antigo Testamento
isto aparece com a maior clareza em Zc 9,14 e Dn), ocorre uma
progressiva separação entre a visão da fé e a realidade históri­
ca. E pelo fato de a realidade histórica ser tão insuportável, a
atenção toda é dirigida à visão da fé sobre a nova era.
Contudo, para nós é importante notar que mesmo a tradi­
ção apocalíptica, apresentando uma visão não-histórica da rea­
lidade, utiliza com seriedade muitos materiais tradicionais. Os
autores apocalípticos não criam seu simbolismo imaginativo,
mas o tomam de tradições muito antigas. Remodelando-o,
transformam-no em portador de uma mensagem viva e nova.
Os materiais que eles usam incluem o simbolismo profético.
Contudo, na maioria das vezes esses autores apelam para tra­
dições cósmicas que em parte tinham sido menosprezadas, ou
recebido uma importância secundária no período profético23.
Por causa do ímpeto radical de sua mensagem, esses autores
precisam utilizar as tradições mais radicais, que são as do con­
flito e renovação cósmica. Aqui, como ocorre com todos os de­
mais transmissores da tradição, seria esclarecedor prestar aten­
ção aos materiais selecionados e aos motivos por que foram
considerados apropriados.
As tradições do Pentateuco foram elaboradas a partir de
outras mais antigas. E o material apocalíptico, pelo menos em
parte, foi feito a partir daquelas. E assim como seus precurso­
res do Pentateuco, a apocalítica entrou num combate corpo-a-
147
corpo contra tentações provindas do ambiente cultural. Ela
anunciou a corajosa mensagem de que a nova era de Deus esta­
va prestes a irromper. Denunciou enfaticamente a sugestão de
que os poderes históricos podiam controlar seu próprio desti­
no, controlar a nova era ou resistir ao poder invencível de
Deus. A apocalíptica é acima de tudo uma Auseinandersetz­
ung um “confronto” — com os “amantes desta era”. (E
também um querigma sobre a era que está por vir. Uma her­
menêutica evangélica liberta o estudo desta literatura de muitos
comentários monótonos e não-instrutivos. Deve enfocar a
atenção na crise de fé e na resposta querigmática. A crise de fé,
como mostrou Hanson, provém das agruras insuportáveis do
presente e do esforço inútil para conviver com elas. A resposta
querigmática é uma afirmação da nova era, prestes a aparecer.
O processo de transmissão da tradição, tal como sugerido
pela metodologia querigmática de Wolff, não se limita ao Anti­
go Testamento. Este mesmo processo está atuando nas tradi­
ções dos Evangelhos do Novo Testamento. O núcleo da tradi­
ção do Evangelho de Jesus deve ter sido fixado já muito cedo.
Mas, a Igreja, assim como Israel, não se contentou simples­
mente em repeti-lo. Ao invés disso, esta tradição teve que ser
continuamente remodelada para enfrentar novas situações e
assumir novas questões e desafios apresentados pela cultura.
Assim, os quatros Evangelhos podem ser entendidos em
termos de um processo traditivo não muito diferente das tradi­
ções do Pentateuco24. Sem dúvida, existem diferenças: o inter­
valo de tempo é mais curto; há separação dos Evangelhos, tais
como transmitidos a nós (as fontes do Pentateuco estão interli­
gadas); e é muito reduzida a função da transmissão oral. Mas
assim como ocorre nas tradições do Pentateuco, cada corrente
do Novo Testamento é seletiva naquilo que relata. Cada uma
delas começa onde lhe parece adequado. Cada uma remodela a
tradição corajosamente, para fazer frente a uma crise entre fé e
contexto cultural. Assim como no Antigo Testamento, os ma-
148
teriais do Novo não foram estruturados para ser uma resposta
precisa de afirmação e protesto a uma questão específica colo­
cada frente à fé. A interpretação, tanto do Antigo quanto do
Novo Testamento, é condicionada pela descoberta desta inter­
dependência de fé e cultura. E freqüentemente ocorre que,
quando descobrimos isso, vemo-nos igualmente envolvidos
numa interdependência semelhante. Esta é uma descoberta ou
uma expectativa a partir da qual uma Igreja confessante deriva
sua força e mesmo sua vida.

C. Autoridade e exegese crítica

Até aqui temos evitado a questão da autoridade, em nossa


discussão. Temos abordado amplamente os processos de
transmissão da tradição e suas dimensões literárias, históricas
e teológicas. Mas a questão da autoridade da Escritura é sem­
pre uma questão central. Em especial para a Igreja de hoje ela
é extremamente importante. Em vista de nossas lutas em torno
daquilo que é de fato relevante bem como de nossa desorienta­
ção, torna-se ainda mais urgente a questão de quem nos legiti­
ma.
Na antiga disputa, e ainda hoje, infelizmente, em alguns as­
suntos não resolvidos entre “fundamentalistas” e “modernis­
tas”, toda esta questão de análise de documentos foi apresenta­
da como uma controvérsia sobre a autoridade. Os que tinham
uma “alta” visão da Bíblia como Palavra de Deus considera­
vam a hipótese dos documentos como uma rejeição da autori­
dade bíblica. E infelizmente alguns eruditos careciam de bom
humor, ou de paciência, ou talvez de perspicácia para dar qual­
quer resposta convincente a esta acusação. Tratavam-na, ao
invés com certo desprezo. Este é um problema que deve ser
enfrentado. Aqui estão em jogo profundas questões hermenêu­
ticas.
149
A acusação de que a hipótese dos documentos questiona a
autoridade da Bíblia25 pode ser dividida em duas partes. Pri­
meiro, existe a reinvindicação puramente formal das tradições
posteriores, de que Moisés escreveu o Pentateuco. Este é um
interesse e um temor que muitas vezes os eruditos críticos evi­
tam. Esse problema é apresentado como sendo também cristo-
lógico, porque o próprio Jesus se refere aos textos do Pentateu­
co como palavras de Moisés. Portanto, dizem alguns, questio­
nar a autoridade de Moisés é questionar a própria autoridade
de Jesus, bem como todo seu conhecimento desse tipo de as­
sunto. Contra alguém que faz tais ligações, qualquer argumen­
to lógico provavelmente não vai adiantar muito. Mas é impor­
tante assinalar que as questões de autoria, em nosso sentido
moderno, não poderiam ser importantes a Jesus nem a qual­
quer pessoa que vivesse no século I de nossa era. Referir-se ao
Pentateuco como os “Livros de Moisés” dificilmente pode ser
tomado como juízo literário sobre a origem dos livros. Ao in­
vés disso, é uma afirmação sobre a autoridade teológica rei­
vindicada pelos livros e atribuída a eles26. Isto significa que
aquele que esteve diante da sarça ardente, que aprovou a arca
e o tabernáculo, que esteve face a face com Deus, é quem auto­
riza nossa fé e nossos livros sagrados. Aqui “autoriza” é usado
não no sentido de uma criação literária, mas sim em termos de
conferir legitimidade. Sem dúvida, é esta a reivindicação feita
pelo Novo Testamento. Ela de nenhuma forma é afetada pelo
trabalho dos eruditos críticos.
Assim, frente à reivindicação da antiga tradição, a primeira
resposta que devemos dar se refere à distinção entre autoria lite­
rária e legitimidade teológica. Uma descreve a maneira como o
material foi elaborado. A outra aborda a reinvindicação teoló­
gica dessa literatura sobre a vida da comunidade dos que
crêem. Não é vantagem para ninguém confundir as duas ques­
tões. Sem dúvida, a que deve se constituir em interesse da Igre­
ja é a segunda. Este é um interesse que a abordagem dos docu-
150
mentos não afeta de maneira alguma, seja no sentido de confir­
mar ou negar. A abordagem dos documentos não está interes­
sada nesse tipo de problema. Embora possamos falar em em­
preendimentos literários de JEDP, ninguém jamais pensou em
interpelar esses artistas anônimos quanto à sua autoridade teo­
lógica. Caso o fizéssemos, estaríamos confundindo a natureza
do problema teológico, bem como a natureza da discussão lite­
rária.
Segundo, além da atribuição formal a Moisés, existe uma
preocupação mais fundamental: a de que essa análise parece
não respeitar a integridade do material. Ela o considera sim­
plesmente como uma série de encontros fortuitos, dentro de
circunstâncias cambiantes. E certamente uma colcha de reta­
lhos assim cambiante dificilmente pode ser base de fé de uma
comunidade, seja judaica seja cristã.
Nesta preocupação está implícito um pressuposto sobre a
“Palavra de Deus” e o caráter da história sagrada. Existe uma
tentação de querer colocar a Bíblia para além do âmbito da
história, e especialmente para além dos caprichos e controvér­
sias da comunidade de fé. E cômodo pensar na palavra de
Deus como dita de uma vez por todas, através de um processo
claro, a uma pessoa identificável, para uma referência futura
da comunidade dos que crêem. Mas mesmo que não aceitemos
a hipótese dos documentos, não é isso que a Bíblia nos oferece.
Ao invés disso, a Palavra de Deus, tal qual relatada na tradi­
ção, sempre vem a pessoas inesperadas, em tempos e lugares
inesperados. A palavra de Deus não é metódica nem se acha
“à disposição”. Ela é livre: vem e vai como Deus quer. O
exemplo clássico é a expectativa de que o novo rei nasceria em
Jerusalém. Na realidade, porém, a Palavra encarnada nasceu
na insignificante e indigna Belém.
E assim ocorre em toda a Bíblia: com um homem desespe­
rado, fora de sua tenda, e sua mulher rindo (Gn 18,1-15); com
um pastor (Ex 3); um pouco mais tarde com outro (Am 7,14-
151
15). E a palavra dita a eles nunca é um anúncio eterno. Sempre
é um “legado existencial próprio de seu tempo”. É endereçado
a uma crise particular e destinado a trazer novidade para den­
tro da história. A Palavra de Deus entrando em ação nunca é
incoerente. Há consistência intrínseca em seu dinamismo. E
sempre nova, contemporânea e poderosa; sempre suscitando
questões; sempre na história, para a história, transformando a
história; sempre desafiando a pessoa e a comunidade numa si­
tuação particular de crise. Ela tem um dinamismo intrínseco
que leva a pessoa que crê a discernir novas percepções, novas
afirmações e exigências inesperadas.
O Pentateuco não é Palavra de Deus como massa literária
amorfa. Ao invés disso, é um relato de como essa Palavra pe­
netra, em uma variedade de formas, nos cenários particulares
de crise. É preciso que fique evidente a todos que a metodolo­
gia de WolfT leva muitíssimo a sério essa penetração da Pala­
vra. Esta Palavra nunca interpela a história num vazio. Ela
sempre a interpela dentro de uma situação particular. A busca
da intenção querigmática de Wolff consiste em discernir esse
dinamismo da Palavra em cada irrupção particular. Longe de
desafiar a noção da Bíblia como Palavra de Deus, Wolff a
toma exatamente como sendo isso mesmo. Toda a sua aborda­
gem exegética consiste em ouvir a Palavra em toda a sua parti­
cularidade e autoridade. Mas ele rejeita qualquer tentativa de
afastar a Palavra de seu contexto histórico e de colocá-la num
vazio, onde não precisa ser levada a sério. Assim, é falso o
problema levantado entre autoridade e crítica literária. O
problema não é saber se a tarefa crítica questiona a autoridade
da Bíblia. Essa questão é hermenêutica e não tem nada a ver
com o estudo crítico. Ao invés disso, a pergunta é: o que signi­
fica a Palavra de Deus no texto? É uma Palavra viva, dirigida
a um momento histórico particular, ou uma Palavra eterna,
sem referência à história? A última alternativa é uma negação
do caráter histórico do Evangelho. Tal posição foi rejeitada já
152
há muito tempo pela Igreja. Usar esse problema para fazer
com que desviemos a atenção de questões que nos fariam to­
mar a Palavra de Deus a sério, é um expediente só utilizado
por uma fé insegura.
Deve ficar claro que os ensaios deste volume centralizam a
atenção no querigma, isto é, na proclamação da boa nova. Eles
tentam ouvir como e por quais meios a Igreja foi chamada ao
arrependimento e à aceitação do senhorio de Iahweh. O que
está em jogo na autoridade da Escritura não é um processo de
criação literária, mas uma irrupção do Deus santo na história
humana, para convocar uma comunidade a seus propósitos e
às suas promessas. Assim, estes ensaios afirmam a autoridade
da Escritura, pela qual, em última análise, é anunciada a Pala­
vra que se torna carne.
O Pentateuco, dentre todos os textos da Bíblia, parece ser o
mais distanciado de nós no tempo e por esse motivo o mais fi­
xo. Esses ensaios, porém, sugerem que o Pentateuco seja consi­
derado não como uma massa amorfa de textos, mas como um
processo através do qual os propósitos infalíveis de Deus ir­
rompam em novas situações. O texto faz novas revelações:
provoca novos discernimentos sobre aquele em que podemos
confiar e a quem devemos servir. O dinamismo do texto reside
no fato de ser ele um parceiro vivo e dinâmico, que entra em
diálogo com seu parceiro que crê, interpreta e transmite a tra­
dição, o Israel de Deus. O texto enquanto parceiro não fala
como um horóscopo fixo e previsível. Ele é como uma pessoa
que nos dá uma resposta inesperada. Ele é alguém que de vez
em quando nos enche de assombro. Interessante que o dina­
mismo desta nova revelação na antiga tradição é melhor perce­
bido quando seu povo se encontra numa terra estranha!

153
Adendo à primeira edição
OS RECENTES DESENVOLVIMENTOS
Walter Brueggemann

Ao tomar a decisão de reeditar esta coleção de ensaios, o au­


tor e o editor determinaram que a primeira edição deveria ficar
como está. Obviamente, não podemos reescrever os principais
ensaios (feitos por Wolff) porque em si mesmos já são uma ex­
pressão clássica de um aspecto da pesquisa científica. E tendo
em vista sua perspectiva e metodologia, eles ainda conservam
sua validade, em meio à contínua evolução da pesquisa cien­
tífica.
Por isso decidimos que seria melhor acrescentar uma nota
sobre a pesquisa científica posterior. Este adendo visa a capa­
citar os estudantes a seguirem os delineamentos e participarem
do interesse contínuo da tarefa científica, observando como as
mudanças de metodologia e de questionamentos apresentados
conduzem a novos argumentos e ocasionalmente a novas intui-
ções. Podemos comentar sete desses desenvolvimentos, sendo
os dois últimos os mais importantes e interessantes.
1. Na primeira edição deste livro aludimos à síntese históri-
co-arqueológica estabelecida sob a direção de William Foxwell
Albright. Desde então ocorreu uma considerável desintegração
desta síntese1. Embora aqueles assuntos estejam bastante dis­
tanciados das questões literário-teológicas que aqui nos interes­
sam, é necessário, ao estudar essas tradições, reconhecer que
as questões arqueológicas atualmente não estão muito seguras.
155
Talvez a crítica mais significativa desta síntese seja a nova
incerteza referente aos materiais patriarcais2. Independente­
mente, mas de forma paralela, John van Seters3 e Thomas L.
Thompson4 apresentaram as maiores críticas à coleção históri­
ca convencional da tradição. A crítica de van Seters é mais ra­
dical, porque propõe que as tradições centralizadas em Abraão
são de fato criações do século VI e não fornecem dados históri­
cos seguros do período anterior. Van Seters ainda precisa apli­
car seu argumento aos outros materiais ancestrais.
A evidência arqueológica relacionada com os materiais
mais tardios do Pentateuco, isto é, de Moisés em diante, não
recebeu um tratamento tão rigoroso. Mas é correto registrar que
a•certeza com a qual as revindicações arqueológicas estão di­
retamente ligadas aos materiais bíblicos foi abalada em formas
que se aplicam a toda questão histórica. Os materiais de Moi-
sés-Josué foram sujeitos a uma revisão e avaliação cuidadosas
por John J. Bomson3. E embora não precisemos concordar
com seus argumentos ou conclusões, o fato de que ele oferece
uma proposta contrária ao consenso recente mostra como as
coisas estão inseguras.
Um dos melhores resultados da tarefa recente é a publica­
ção do manual de metodologia arqueológica6 de Darrel Lance.
Sua apresentação aborda os limites e as possibilidades de uma
posterior tarefa arqueológica. No seu conjunto, fica claro que
há um reconhecimento da distância e incerteza quanto à forma
em que a tarefa arqueológica ilumina o texto. Geralmente tal
iluminação se dá de maneira indireta.
2. Bem mais diretamente relacionado com os ensaios em
tela é o estudo recente das tradições literárias do Pentateuco.
E, nesse campo, talvez a obra mais importante e a que mostra
uma maior divergência científica com o antigo consenso, diz
respeito à tradição javista. O esplêndido artigo de WolfT se ba­
seia na síntese de von Rad. Ele situa J na época do “Iluminis-
156
mo Salomônico” do século X, do qual esta tradição seria o re­
flexo literário-teológico. É justo afirmar que tal localização ain­
da é opinião corrente da maioria dos estudiosos. Mas é uma lo­
calização cada vez mais insegura, questionada por eles.
Rendtorff7 é quem com mais seriedade se afasta da posição
de von Rad. Ele propõe não apenas uma datação diferente
para J, mas uma objeção radical à teoria das fontes literárias
como um todo. Ele insiste, em seu artigo crucial de 19388, que
von Rad na verdade deslocou a questão das fontes literárias
para a estrutura do Pentateuco (Hexateuco), embora o próprio
von Rad não percebesse essa mudança.
De qualquer forma, Rendtorff não está realmente interessa­
do no processo editorial, enquanto relacionado às “fontes”. Ele
crê que não podemos descobrir os estratos da tradição do Pen­
tateuco. Em vez disso, insiste em que existem “complexos de
tradição separados”: por exemplo, os materiais sobre Abraão-
Isaac, o relato de Jacó, o ciclo do Êxodo. Cada um deles é uma
declaração teológica intencional própria. Negativamente, é im­
possível traçar camadas de tradição através desses complexos
diferentes. Positivamente, é possível estudar então as formas
em que estes núcleos foram relacionados uns aos outros. Espe­
cialmente quando apresentam diferentes intenções teológicas.
Ainda é muito cedo para avaliar o impacto ou a importân­
cia da proposta de Rendtorff. Ele propõe um afastamento tão
radical e taxativo com relação às categorias da investigação
científica veterotestamentárias comumente aceitas, que conti­
nuará em discussão por muito tempo no futuro. Embora tenha
sido bem recebido por um pequeno número de estudiosos que
estão intensamente envolvidos por esse tipo de questões, pare­
ce que a maioria deles continua a operar com as categorias
convencionais. Mas é impossível dizer se isto é simplesmente
resultado de um hábito estabelecido já desde longa data, ou se
Rendtorff foi seriamente considerado, mas sua posição não en­
controu fundamento. Seu escrito, de fato, propõe um paradig­
157
ma alternativo9. Vamos ver se ele consegue desafiar a atenção
dos estudiosos.
A síntese associada a von Rad, com relação a J, fundamen­
ta-se na opinião cultural referente ao período salomônico10.
Quer dizer, supõe-se que J reflita um tempo de mudanças nas
categorias epistemológicas, derivadas de circunstâncias cultu­
rais diferentes. E estas categorias epistemológicas mudadas re­
querem uma formulação teológica muito diferente. James
Crenshaw11 criticou a hipótese de um Uuminismo Salomônico
e lançou dúvida sobre a conveniência desse tipo de opinião
sobre a cultura israelita.
H. H. Schmidt12 publicou um estudo independente sobre o
javista, um ano antes de aparecer o livro de Rendtorff. Ele con­
clui que J deve ser do século VII; portanto, pertence à mesma
época do deuteronomista. É evidente que, a partir de caminhos
muito diferentes, Schmidt chegou a conclusões parecidas com
as de van Seters.
Estes vários estudos criaram uma situação diferente no es­
tudo das tradições. Certamente, não há um novo consenso,
nem um modelo que reivindique uma aceitação científica ge­
neralizada. Por enquanto só podemos dizer que o estudo de J é
incerto e confuso. Duas coisas ficam claras. Primeiro, as ques­
tões não envolvam apenas as conclusões a serem deduzidas,
mas também as categorias e métodos de estudo. Estes em­
preendimentos científicos mais recentes, especialmente a pro­
posta de Rendtorff, representam uma nítida ruptura com as an­
tigas metodologias. Segundo, fica claro que estes novos estu­
dos constituem um sério ataque à síntese das duas últimas ge­
rações. Contudo, ainda não está claro se esse ataque vai sair
vitorioso. Certamente, muitos estudiosos continuam a traba­
lhar com base na síntese de von Rad e do artigo de Wolff13.
Talvez essa síntese não estivesse tão preocupada com sutilezas
e com o rigor acadêmicos, mas evidenciasse uma sensibilidade
teológica que não está presente nas discussões mais recentes.
158
3. O eloísta não foi considerado como uma corrente literá­
ria tão formidável, nem exigiu grande atenção da pesquisa
científica recente. Por isso é mais fácil talvez entender porque o
artigo de Wolff não recebeu tanta atenção quanto sua obra
sobre J, e nem houvesse grande atividade científica subseqüen­
te14. Há um consenso generalizado entre os estudiosos, junta­
mente com Wolff, de que esta tradição visa a combater o sin-
cretismo religioso. Jaros15 estudou esse material tendo tal as­
pecto em mente, como se evidencia já a partir do título de seu
livro. Não há concordância específica quanto à data do livro.
Provavelmente, seja de cerca de 922 (época das ações de Jero-
boão) e do tempo de Oséias, como Jaros deixou claro. O pró­
prio Jaros está inclinado a lhe atribuir uma data dentro da pri­
meira metade do século VIII16. H. Klein17, de maneira não to­
talmente convincente, situa o material ao redor do ano 800, e
dá como local o santuário de Betei. Entre os estudos mais im­
portantes de E está a dissertação de Alan Jenks18. Contra a
maioria dos estudiosos, ele situa esta tradição no século X (ao
redor de 922) e condiciona sua interpretação a uma polêmica
contra Jeroboão. Contudo, em outros assuntos Jenks está de
acordo com Wolff no tocante às afinidades com Oséias e à li­
gação com a tradição profético-levítica.

4. A tradição sacerdotal continua a ser um enigma em mui­


tos aspectos. Talvez a questão mais importante, a que chamou a
atenção dos estudiosos, seja a data. Ela é muito importante,
pois disso depende grande parte de sua avaliação. Em meu ar­
tigo deste volume sugeri como data o período exílico. E a partir
desta data propus uma intencionalidade teológica. É óbvio que
muito depende desta cronologia.
Podemos citar vários estudos que se interessam pela inten­
cionalidade teológica, os quais consideram P como uma res­
posta teológica à situação do exílio.
159
a) Ralph Klein19 interpreta P em termos de uma esperança es-
catológica. Sua opinião (seguindo Michael V. Fox) é a de
que P oferece uma série de “sinais”, que servem para fazer
tanto Deus quanto Israel no exílio se lembrarem da promes­
sa, ainda em vigência e ainda merecedora de confiança.
b) Joseph Blenkinsopp20 abordou magistralmente a estrutura
de P. Ele observou uma característica marcante que une o
início e o fim da tradição em torno a um traço mítico, inte­
ressado na ereç enquanto criação do mundo e distribuição
da terra. Sugere, por exemplo, que o relato do dilúvio de P
deve ser “entendido como um tipo de parábola da inunda­
ção de Israel pelas nações, resultando no exílio, longe do
país (terra)21”.
c) Eugene March, num artigo apresentado em 197622, inter­
pretou a tradição sacerdotal como uma “teologia para pere­
grinos”, interessada na presença de Deus, na terra e “no
problema exílico da culpa”.
d) Talvez a proposta mais sugestiva e valiosa para o trabalho
futuro seja a de Mary Douglas23. Ela considerou a função
social do “mundo elaborado” por P em termos de restrições
dietéticas, de distinções entre “puro e impuro”, e da preocu­
pação com os detalhes minuciosos da devida celebração ri­
tual. E conclui que nos séculos VI e V Israel estava lutan­
do por sua existência. Ele articulou estas leis para preservar
os limites da comunidade. Traçou uma linha fronteiriça, se­
parando os de dentro dos de fora.
Agora percebemos claramente que nenhuma dessas discus­
sões tratou de forma detalhada das questões críticas referentes
à datação. Em vez disso, teceram algumas considerações críti­
cas que permitiram uma reflexão teológica. Cada uma delas é
amplamente concorde com o ensaio deste volume.
160
A principal questão crítica, a da datação, continua a ser le­
vantada a partir da obra de Y. Kaufmann24. Menahem Haran25
apresentou um argumento convincente e cuidadoso, situando a
tradição P nos primórdios do século VIII. Ela provém do san­
tuário de Silo e está relacionada precisamente com a obra de
Ezequias. O argumento de Haran é sério e os estudiosos deve­
rão tê-lo em grande consideração. Se a datação for mudada,
então grande parte do argumento acima indicado, referente à
intencionalidade teológica, precisará de uma drástica revisão.
Obviamente, a decisão de colocar a fonte P antes ou depois
de 587 é uma questão crucial. Mas vale a pena observar que a
diferença entre Haran e os outros eruditos mencionados é mais
do que uma questão de datação crítica. Fica claro que Klein,
Blenkinsopp, March e Fretheim interpretaram o texto com um
tipo de imaginação e liberdade teológicas pelas quais Haran
não está interessado. Sem dúvida, podemos perguntar se esta
imaginação é valida ou não. Mas à medida em que revisamos
as questões críticas, vale a pena notar que normalmente existe
uma questão que a acompanha: a questão dos modos “estêni-
co/tensivos” de interpretação. E, a longo prazo, isto pode se
tornar um assunto crucial26.
5. A história deuteronomista continua a ser entendida fun­
damentalmente segundo a hipótese dominante de Noth. Mas
este enfoque permite um enorme campo de investigação. Pare­
ce correto afirmar que os estudiosos continuam a minar a hi­
pótese de Noth de várias formas. Mas nenhuma dessas tentati­
vas parece afetar a força-motriz deste argumento. À página 144
eu notava que Frank Cross ofereceu a principal alternativa à
datação de Noth no exílio, ao propor duas edições do deutero­
nomista. Ao apresentar esta proposta, Cross não estava nada
fazendo de novo, mas apenas revitalizando uma antiga concep­
ção. Desde que foi articulada a proposta de Cross, temos a im­
pressão de que seu argumento ganhou algum terreno entre os
161
6 — 0 dinamismo das tradições do Antigo Testamento
estudiosos. Contudo, parece que esta conquista não se deve a
alguma nova evidência, mas à repetição freqüente e regular
daquela evidência, que talvez seja considerada cada vez mais
convincente27. Como defendemos anteriormente, mesmo que
admitamos duas edições do deuteronomista, isso não refuta a
sugestão de Wolf referente à forma completa do texto nem sua
evidente intencionalidade teológica.
A hipótese de Noth também foi criticada a partir de outro
ângulo, por sugerir não somente que a afirmação exílica tem
antecedentes importantes, mas que também tem desenvolvi­
mentos literários posteriores, para fazer frente a novas situa­
ções sociais e suas questões de fé. O impulso para esta investi­
gação parece provir da obra de Rudolph Smend28, mas foi
elaborado com maior detalhe na obra de Dietrich29 e Veijola30.
Estes estudiosos tentaram identificar no texto tendências teoló­
gicas que, segundo crêem, refletem camadas de literatura e,
portanto, diferentes estágios da tarefa editorial. Podemos
aprender muita coisa destas análises esmeradas. Mas duvido
deste método, pois parece ser um novo tipo de volta à disseca­
ção do texto. Metodologicamente, esse processo exige que,
onde quer que haja uma tensão ou incongruência literária, seja
resolvida (ou melhor dissolvida) mediante a fragmentação dos
elementos, isolando-os, e atribuindo-os a diferentes fontes ou
autores. E isto em princípio priva a literatura da sofisticação e
tensão que permitem uma comunicação não direta, mas sutil.
Embora essa tarefa seja feita com grande esmero, não creio
que faça progredir muito nossa compreensão do texto31.
Uma terceira mudança que vale a pena notar, referente à li­
teratura deuteronomista, é a proposta programática apresenta­
da por Robert Polzin32. Seu livro é uma tentativa vigorosa e fir­
me de lidar com um grande bloco da Escritura, segundo a me­
todologia e os critérios da nova crítica literária. Polzin começa
afirmando que a tarefa histórico-crítica anterior, inclusive a de
Noth, não é muito útil ou válida e que não podemos confiar ne­
162
la33. Portanto, propõe começar de outra forma, assumindo o
texto do narrador deuteronomista tal qual é. Seu ponto de con­
tato metodológico deriva de V. N. Voloshinov. Ele nota a ten­
são e interação entre o discurso “relatado” de Moisés e o dis­
curso “relatante” do deuteronomista. A conclusão a que chega
Polzin é que o discurso relatante travava uma polêmica contí­
nua contra o ensinamento fixo e rígido de Moisés. Ou como
Polzin o coloca34, trata-se do “tradicionalismo crítico” protes­
tando contra o “dogmatismo autoritário” no “diálogo ideológi­
co” da literatura.
O estudo de Polzin é impressionante e ousado. Seguramen­
te apresenta novos questionamentos à investigação científica.
Sem dúvida, será duramente criticado e muito combatido. Isso
porque, à semelhança de Rendtorff, ele propõe uma aborda­
gem totalmente nova para esta literatura. Sua desconsideração
sincrônica das questões histórico-redacionais opÕe-se completa­
mente aos métodos de Smend, Dietrich e Veijola, dos quais já
falamos. A questão se volta não apenas para a própria obra de
Polzin, mas para as grandes questões metodológicas do estudo
sincrônico e diacrônico, para a relativa prioridade do estudo li­
terário ou histórico. Polzin concorda em que devemos ter am­
bos, mas dá uma evidente prioridade ao primeiro.
Neste estágio preliminar, parecem apropriadas as seguintes
observações:

a) E importante notar que até aqui Polzin lidou apenas com os


livros do Deuteronômio, Josué e Juizes. Ainda não sabemos
o resultado de seu programa completo. Devemos aguardar
sua abordagem de Samuel e Reis.
b) Ele vai muito longe com pouca coisa. Na maior parte da li­
teratura, o discurso relatante é esparso e é preciso criativi­
dade para resolver essa questão.
163
c) Eu me pergunto se Polzin (ou se não ele, pelo menos seus
leitores) talvez não se apóie na hipótese dominante de Noth
bem mais do que se possa reconhecer explicitamente. Até
mesmo o falar sobre um corpo “deuteronomista” depende
da crítica anterior. Talvez a vitalidade desta crítica anterior
necessite ser melhor explorada, até mesmo no contexto des­
ta nova abordagem.
d) Duvido que algum esquema particular (no caso, o de Vo-
loshinov) venha a exercer influência tão decisiva. Sem dúvi­
da, Polzin não deve ser acusado nesta particularidade. Mas
a questão metodológica deve ser cuidadosamente avaliada.
e) Como disse em minha resenha do livro (publicado em Inter-
pretation), creio que a conclusão hermenêutica de Polzin
(favorecendo Gadamer mais do que Hirsch) baseada em seu
estudo é precária. Valorizo sua coragem de estar disposto a
pôr em risco esta ligação. Mas não estou convencido de que
deriva de seu argumento.

De qualquer forma, Polzin levantou as questões mais radi­


cais no que diz respeito ao estudo do corpus deuteronomista. E
embora ele se separe da obra crítica de Noth, há indicações de
que o resultado final não é tão diferente do de Wolff. Assim ele
se expressa:

Certamente sua mistura de destruição e esperança é um traço


óbvio e essencial, que os estudos posteriores, como os de von
Rad, Wolff e Cross, apontaram facilmente. Veremos no pró­
ximo capítulo como o tema deuteronomista da esperança
condicional está inseparavelmente ligado à introdução pro­
gramática à história duteronomista, o livro do Deuteronô-
mio35.
164
A conclusão da “esperança condicional” é sem dúvida a
forma pela qual WolfF entendeu o material. Podemos pergun­
tar, com Polzin, como também com estes estudos em geral, se
esta enorme proposta técnica e metodológica não acaba dando
resultados que são estreitamente ligados às conclusões já al­
cançadas por outros estudiosos de forma menos cansativa e
elaborada.
6. O mais importante desenvolvimento da investigação
científica para nosso escopo tem sido uma crescente reserva
quanto à legitimidade da distinção de fontes, seja como for. De
maneiras diferentes, Rendtorff e Polzin têm reservas quanto a
este empreendimento. Podemos incluir aqui a mais respeitada
das vozes que se levantam para propor a mesma questão: Bre-
vard Childs. Ele apresenta a proposta mais interessante contra
o tipo de trabalho analítico refletido no presente ensaio36. O
próprio programa de Childs consiste em estudar cada livro do
Antigo Testamento em sua forma canônica, e ver assim a lite­
ratura como um todo, sem tentar separar os estágios e proces­
sos mais antigos. Ele indica as afinidades que sua tarefa tem
com os “métodos crítico-literários mais recentes37”. E assim,
em certos pontos, seus interesses não são diferentes dos de Pol­
zin. Contudo, separa-se deste em dois pontos importantes. Pri­
meiro, está teologicamente atento de uma forma que Polzin
não pretende estar. Tenta interpretar “o texto bíblico em rela­
ção a uma comunidade de fé e vivência, para a qual desempe­
nhava um papel teológico particular, por possuir autoridade di­
vina38”. Obviamente, tal interesse caminha em direções bem di­
ferentes daquelas dos assim chamados críticos literários. Em­
bora Polzin queira tomar o texto tal qual é, Childs deseja ouvi-
lo em termos da comunidade confessante à qual pertence. Se­
gundo, ao tentar tomar o texto tal qual é, sem dúvida Childs
evitaria a busca de “estruturas profundas”, pois a identidade
das “estruturas profundas” quase sempre representa uma im-
165
posição sobre o texto mais desorientadora do que a imposição
de “fontes literárias”.
Childs critica de forma explícita o método representado
nestes presentes ensaios:

Novamente, o método canônico que está sendo delineado di­


fere radicalmente da assim chamada “exegese querigmática”,
popularizada por von Rad e seus alunos nas décadas de 50 e
60. Podemos encontrar exemplos clássicos deste método nos
escritos de H. W. Wolfí, C. Westermann, W. Brueggemann,
entre outros. Durante vários anos, a partir de 1966, Interpre-
tation apresentou uma sèrie de artigos sob o título “Querig-
ma da Bíblia”. Este método tentava descobrir a intenção cen­
tral de um escritor, geralmente mediante fórmulas ou temas.
A partir daí se ligava esta intenção à reconstrução de uma si­
tuação histórica que presumivelmente evocava tal resposta
dada. Seu interesse principal era combinar a análise históri-
co-crítica com um tipo de interpretação teológica. Uma im­
portante crítica ao método reside no fato de que ele é extre­
mamente subjetivo e reducionista: ele foi ampliado para além
de sua função original de procurar uma mensagem teológica.
Muitas vezes a opinião de que o labor teológico deve estar re­
lacionado com uma intenção original, dentro de um contexto
histórico reconstruído, vai diretamente contra a afirmação
explícita da literatura de sua função dentro da forma final do
texto bíblico39.

Childs, portanto, crê que um estudo das partes é uma adul­


teração do texto. E isso não porque não tenha havido um pro­
cesso editorial ou redacional. Em vez disso, o texto tal qual se
encontra é uma afirmação confessional, feita por uma com uni­
dade que pretende fazer uma declaração teológica através do
texto. E para esta finalidade todos os estágios anteriores não
são apenas irrelevantes, mas equivocados, pois reduzem enor­
memente o caráter e a intencionalidade do texto canônico, tal
166
qual é apresentado e avaliado. Childs desta maneira insiste no
método de investigação científica a partir de sua compreensão
teológica40.
Mas agora devemos continuar o diálogo para avaliar se o
juízo de Childs sobre o método literário é uma extrapolação
adequada, a partir de sua compreensão teológica. Podemos in­
sistir, contra Childs, em que a abordagem analítico-literária
não reduz, mas ilumina e amplia a declaração canônica e teoló­
gica? Esta é uma intenção permanente do método crítico, que
muitos eruditos continuam a defender, na minha opinião.
Childs está certo quando afirma que a tarefa crítica muitas ve­
zes não serviu para iluminar nem para ampliar a afirmação
teológica. Contudo, Childs não está escrevendo sobre excessos
ou falhas, mas sobre esta tarefa como tal, em princípio. Essa
questão depende de saber se os métodos analítico-críticos são
de vez em quando o inimigo da interpretação canônico-
teológica, ou se eles são uma redução em princípio. Embora a
atitude de Childs não seja ambígua nesta questão, o debate vai
continuar. Wolff pretende claramente que seu método sirva à
plena intenção teológica do texto (como Childs sabe muito
bem).
Talvez isso levante uma questão delicada. Childs tende a
escrever como se o foco da discussão fosse o método como tal.
Pode ocorrer que a intenção, possibilidade e risco de um méto­
do necessitem ser afirmados somente enquanto ele for usado
por um intérprete específico? Não temos métodos abstratos,
mas somente o uso do método nas mãos de especialistas es­
pecíficos, identificáveis. Sem dúvida, este argumento pode ser
considerado como demasiadamente ad hominem. Mas o que
parece claro de fato é que este mesmo método fornece resulta­
dos totalmente diferentes, dependendo da forma em que é usa­
do. Esta sugestão pode parecer não-científica e indisciplinada.
Mas eu me detenho em fazer uma referência particular a Wolff.
167
Na verdade, Childs pode dizer que as interpretações de Wolff
são superiores a seus métodos41.
Contudo, fica claro que agora as questões metodológicas
são básicas, e não mais um mero luxo. Rendtorff, Polzin e
Childs, de formas diferentes, questionaram a totalidade do em­
preendimento da análise das fontes. E os ensaios de WolfT po­
deriam ser proveitosamente reestudados em termos da relação
entre métodos literários e intenção teológica. Sem dúvida, esta­
mos apenas no início de um programa de trabalhos42.

7. Finalmente devemos acrescentar uma nota sobre o tra­


balho de Norman Gottwald43. Talvez seja problemático intro­
duzir Gotwald nesta conversa. Contudo, sugiro que sua obra
seja pertinente pelo seguinte motivo. Polzin (e os novos críticos
literários) e Childs (e os críticos do cânon) querem tomar o tex­
to tal qual está formulado. E mesmo que concorde (contra Pol­
zin) quanto à importância fundamental de uma comunidade de
fé e vivência, para o qual o texto desempenhava um “papel teo­
lógico particular enquanto dotado de autoridade divina”.
Childs ainda quer tomar o texto tal como está, sem se questio­
nar sobre a circunstância histórica e todo esse conjunto de
problemas teológicos.
Contra toda essa perspectiva, Gotwald tornou-se ainda
mais atento à intencionalidade político-teológica da comunida­
de ligada ao texto. Ele insiste especificamente em que os “te­
mas narrativos” do Pentateuco são uma construção ideológica
para servir à iniciativa política do antigo Israel. Atuando a par­
tir de uma perspectiva da sociologia crítica, Gottwald distingue
entre as “modalidades de subestrutura cultual” e as “objetiva-
ções narrativas da superestrutura da tradição44”. A distinção
entre subestrutura e superestrutura vai contra a insistência de
Childs. E embora essas categorias possam ser derivadas de
Marx, na opinião de Gottwald, elas estão ligadas à distinção
168
feita por von Rad entre as tradições de teofania e lei do Sinai e
o relato histórico de Guilgal45.
A reivindicação de Gottwald consiste em que os temas nar­
rativos são articulações (projeções, invenções, extrapola­
ções?) visando a dar um respaldo ideológico a uma experiên­
cia social radical do Israel libertado e igualitário. A intenção de
Gottwald é provar que a experiência social da comunidade
vem primeiro e a partir dela surge a justificativa ideológica do
texto46. Agora fica claro que Gottwald não opera num espaço
vazio, mesmo que ele tenha sido um dos precursores. Fica cla­
ro que ainda está intimamente ligado à hipótese do credo de
von Rad47. E também fica evidente que sua sensibilidade socio­
lógica não está isenta de paralelo com a obra de Wolff, espe­
cialmente sobre os profetas48. O que nos interessa é o fato de
que sua noção de uma justificativa ideológica não é tão diver­
gente da noção de uma invenção confessional tardia, de van
Seters, embora sua datação distinta leve a uma direção total­
mente diferente49. O que fica claro é que Gottwald, mais do
que qualquer outro estudioso relacionado com o nosso assun­
to, usou adequadamente os instrumentais sociológico-críticos
de uma forma nova e sugestiva.
Esse uso, que eu considero um avanço significativo, sem
dúvida apresenta nitidamente a questão de como entender
problemas surgidos entre Childs e Gottwald. Talvez seja esta a
questão mais importante com a qual a investigação científica
deva se confrontar nesta área. À primeira vista parece que ca­
minham em direções totalmente opostas. E é bem provável que
Childs considere grande parte da obra de Gottwald ilegítima
dentro de seu programa. Contudo, observemos que Childs afir­
mou que procura interpretar o “texto bíblico em relação a uma
comunidade de fé e vivência50”. Gottwald tenta focalizar sua
atenção nessa comunidade e nas formas em que o texto e a co­
munidade se relacionam mutuamente.
169
Sugiro que devamos entender Childs e Gottwald dialetica-
mente. Childs enfatiza a autoridade objetiva do texto, mesmo
acima da comunidade. É assim que funciona um cânon. Gott­
wald, por outro lado, está interessado no fato de que a comuni­
dade é um agente ativo, que cria o texto tendo em vista uma in­
tenção específica. Eles usam a dialética de forma muito dife­
rente. Mas não consigo ver como se pode funcionar sem am­
bos os acentos51.
Através do que dissemos acima fica claro que a investiga­
ção científica caminhou rápida e significativamente para além
da tarefa representada por estes ensaios. Contudo, suspeito de
que os problemas agora postos diante de nós não são tão dife­
rentes daqueles que Wolff pretendia tratar. Os próprios ensaios
não precisam de defesa a partir desta perspectiva. Todavia, li­
dos a partir da reviravolta e confusão metodológicas atuais,
causa impacto o fato de que Wolff, dados os seus compromis­
sos metodológicos, não tenha deixado que os problemas críti­
cos coibissem seu labor teológico. Ele fez com que seus pressu­
postos críticos servissem, de maneira importante, à sua notável
sensibilidade teológica. Os problemas metodológicos continua­
rão diante de nossos olhos. Mas o labor teológico não pode es­
perar até que eles sejam plenamente resolvidos.
Fica evidente, então, que os problemas surgidos desde a
publicação dos artigos de Wolff são em parte metodológicos.
Isto é, quais são os métodos literários apropriados ao mate­
rial? Estamos testemunhando a importante passagem de uma
abordagem analítica a uma abordagem sintética, ou talvez
possamos dizer: de diacrônica a sincrônica. Este movimento se
reflete na mudança notável nas mesmas séries, a partir dos es­
tudos de Habel52, referentes à “antiga crítica literária”, e de
Robertson53, referentes à “nova crítica literária”. Como é es­
tranho que a mesma linguagem seja usada para caracterizar
ambos os métodos! Não há dúvida sobre a direção que está
sendo enfatizada. E contudo um “novo crítico literário” como
170
Polzin reconhece que o trabalho diacrônico também deve ser
considerado. Não é provável que possamos escolher entre eles.
Para a geração atual pode ser adequado capitalizar aquilo que
já foi feito mediante análise e dissecação. Mas uma nova gera­
ção de estudiosos e pesquisadores terá que reutilizar esses es­
treitos métodos, caso queiramos evitar um novo reducionismo.
Além dos problemas de método literário, porém, somos
pressionados na direção dos problemas hermenêuticos. Estes
problemas são bem mais difíceis e complexos. Clines e Childs
ofereceram uma questão-chave a ser considerada. Em que sen­
tido esses textos são literatura e em que sentido são Escritura ?
Não há dúvida de que foi preciso tomar o texto como literatu­
ra. Mas isso não significa que esta literatura também não seja
Escritura, isto é: o texto normativo de uma comunidade de fé
confessante. A designação de “Escritura” não nos autoriza a
fazer dissecação. Mas nos permite indagar sobre sua mensa­
gem ou querigma. E é reconfortante saber que, apesar de suas
respectivas diferenças, Clines e Childs continuam a levantar
essa questão, mesmo usando vocabulário diferente. A catego­
ria de “cânon”, que Childs tornou tão útil para a discussão,
muda nosso estudo, afastando-o daquela neutralidade tão pre­
ferida por alguns críticos literários mais novos. “Enquanto Es­
critura”, “enquanto cânon”, significa que o texto nunca é trata­
do meramente como literatura de uma comunidade que procu­
ra ser fiel. Na verdade, o próprio Childs aceita esta tarefa:
“Por ora a abordagem canônica difere de uma abordagem es­
tritamente literária, mediante a interpretação do texto bíblico
em relação a uma comunidade de fé e vivência, para a qual ele
desempenhava uma função teológica particular, enquanto pos­
suidor de autoridade divina, visando a uma comunidade con­
creta, podemos esperar que seja portador de uma proclama­
ção56, para além de um interesse estético generalizado.
Se com Sanders57 partimos da moldura canônica para o
processo canônico, podemos sugerir que a dinâmica da análise
171
das fontes58 ou sua vitalidade (como dizemos) seja de fato uma
maneira em que a comunidade tenha praticado tanto a veraci­
dade quanto a adaptação. Assim, não existe um conflito funda­
mental entre o processo de desenvolvimento dinâmico e uma
afirmação permanente da autoridade canônica. Meu interesse
aqui não é “defender” a abordagem assumida por Wolff, mas
insistir em que não deva ser descartada com leviandade. Pois
esta abordagem “querigmática”, em seu próprio contexto, pro­
cura ouvir as reinvidicações canônicas do texto para uma co­
munidade de fé especifica. Tais reinvidicações subsistem, mes­
mo quando o texto responde a novos desafios.
O que fica claro, em todo caso, é que questões de metodo­
logia literária não podem ser separadas de questões de teolo­
gia e hermenêutica. Esta ligação, sem dúvida, nos convida a
uma nova abordagem. As sugestões de Clines e a proposta de
Childs aceitam esse convite. Mas não chegamos ainda a uma
solução nem mesmo provisória desses difíceis problemas.

172
Notas

CAPÍTULO 1: QUESTÕES ABORDADAS


NO ESTUDO DO PENTATEUCO

1. A afirmação recente mais radical desta ligação é feita por Walter Wink, The
Bible in Human Transformation, Philadelphia, Fortress Press, 1973, 1-15.
2. Qualquer compreensão legítima da Escritura como revelação —e que não seja
meramente mecânica —deve centrar a atenção na atividade criativa e crente da
comunidade de fé. Cf. H. Richard Niebuhr, The Meaning of Revelation, Nova
York, The Macmilan Company, 1967, e cf. uma declaração católica feita por
John L. McKenzie, “The Social Character of Inspiration”, CBQ, 24 (1962),
115-124.
3. Paul Tournier repetidas vezes aclarou esta questão, fazendo a distinção entre
“medicina técnica” e “medicina pessoal”. Ele não deseja ter que escolher uma
entre ambas. As conquistas de medicina técnica sem dúvida sao de grande va­
lor. Mas o pêndulo mudou de direção, de maneira que agora a questão é re­
cobrar a dimensão pessoal. Cf. The Healing of Persons, Nova York, Harper
and Row, 1965; The Whole Person in a Broken World, Nova York, Harper
and Row, 1964; e A doctor’s Casebook, Nova York, Harper and Brothers,
1960. De modo semelhante as descobertas da abordagem científica são de
grande valor para a compreensão da Bíblia. Mas o pêndulo também mudou de
direção: a “exegese pessoal” deve receber agora uma nova ênfase. Este ê o pon­
to que Wink defende com mais paixão.
4. J. Wellhausen, Prolegomena to the History of Ancient Israel, Nova York, Meri­
dian Books, 1957. Declarações sucintas da síntese de Wellhausen se acham em
Samuel Terrien, “History of the Interpretation of the Bible”, The Interpreter’s
Bible, ed. George Buttrick, Nashville, Abingdon Press, 1952, I, 127-141; A.
Weiser, The Old Testament: Its Formation and Development, Nova York, As­
sociation Press, 1961, 74-81. Quanto á evolução posterior a Wellhausen, ver C.
North, “Pentateuchal Criticism”, The Old Testament and Modern Study, ed.
H. H. Rowley, Oxford, Claredon Press, 1951, 48-83; e especialmente o ensaio
crítico feito por John Bright, “Modern Study of Old Testament Literature”, The
Bible and the Ancient Near East, ed. G. E. Wright, Garden City, N. Y.,
Doubleday and Company, Inc., 1961, 13-31.
173
5. Embora a obra principal de Wellhausen já esteja traduzida, o Gênesis, obra
programática de Gunkel (Gottingen, Vandenhoeck e Ruprecht, 1917) continua
fora do alcance dos leitores de língua inglesa. Felizmente, a introdução a este
comentário foi traduzida e traz como título The Legends of Genesis, Nova
York, Schocken Books, 1964. A principal avaliação da obra de Gunkel foi feita
por Werner Klatt, Hermann Gunkel, Göttingen, Vandenhoeck e Ruprecht,
1969. Ver uma descrição sucinta de sua contribuição em John H. Hayes, “The
History of the Form-Critical Study of Prophecy”, Seminar Papers, I, ed. G*
MacRae, Society of Biblical Literature, Missoula, Mont. Scholars Press, 1973,
60-70. Embora esteja enfocado nos profetas, o estudo de Hayes apresenta a
abundante contribuição de Gunkel.
6. Hans Joachim Kraus, Geschichte der historisch-kritischen Erforschung des Al­
ten Testaments von der Reformation bis zur Gegenwart, Neukirchen, Verlag
der Buchhandlung des Erziehungsvereins, 1956, 331. A declaração é uma cita­
ção de Gunkel, “Ziele und Methoden der Erklärung des Alten Testaments”, Re­
den und Aufsätze, Göttingen, Vandenhoeck e Ruprecht, 1913, 14.
7. Ver declaração programática de James Muilenburg, “Form Criticism and
Beyond” JBL, 88 (1969) 1-18. O próprio Childs não publicou um estudo im­
portante nesta área, mas seus alunos estão incluídos entre os grandes precurso­
res da crítica da forma na pesquisa científica norte-americana. O importante
processo da crítica da forma da Abingdon Press é em grande medida ocupado
por alunos de Childs. Ver o ensaio introdutório de Gene M. Tucker, For Criti­
cism of the Old Testament, Guides to Biblical Scholarship Series, Philadelphia,
Fortress Press, 1971. Tucker é aluno de Childs.
8. Sua declaração básica provém de From the Stone Age to Christianity, Baltimo­
re, The Johns Hopkins Press, 1940, 1957; mas suatese também aparece em Ar­
chaeology and the Religion of Israel, Baltimore, The Johns Hopkins Press,
1941, 1956 e lahweh and the Gods of Canaan, Nova York, Humanities Press,
1968.
9. John Bright, o.e., 14-15, faz a mesma distinção que Albright em sua crítica a
Wellhausen: ele aceita a hipótese dos documentos, mas rejeita o corolário dedu­
zido sobre o desenvolvimento da religião. Esta distinção, extremamente impor­
tante, freqüentes vezes é desconsiderada.
10. William F. Albright, “Introduction” a The Legends of Genesis, por Hermann
Gunkel, pp. VII-XII. Sem dúvida, Gunkel não compartilhou da mesma opinião
de Wellhausen sobre o desenvolvimento evolutivo da religião de Israel, ponto
que para Albright é do maior interesse.
11. Ver a abrangente visão do método e contribuição de von Rad feita por Douglas
A. Knight, Redescovering the Traditions of Israel, Society of Biblical Literatu­
re, Missoula, Mont., Scholars Press, 1973, 97-142.
12. Brevard S. Childs, Biblical Theology in Crisis, Philadelphia, The Westminster
Press, 1970. Ver também The Book of Exodus, Philadelphia, The Westminster
Press, 1974, deste autor.
174
13. Gene M. Tucker, o.e., 22-38, notou a dificuldade dos termos usados para des­
crever os vários gêneros literários.
14. Gerhard von Rad, Genesis, The Old Testament Library Series, Philadelphia,
The Westminster Press, 1961, edição revista, 1973, 35.
15. Cf. von Rad, Genesis, 13-20; idem “The Problem of the Hexateuch”, The
Problem of the Hexateuch and Other Essays, Nova York, McGraw-HillBook
Company, 1966, 3-13; idem, Old Testament Theology, Nova York, Harper and
Brothers, 1962, I, 48-56.
16. Este termo é usado em Gênesis, 17. O termo alemao é Neukomposition.
17. Genesis, 19. O termo alemão è schmieden.
18. Genesis, 36. O termo alemão para “requisição” é Beschlagnahme.
19. Ver Kraus, o.e., 405. Ele fala na Aussagegehalt do texto.
20. Quanto ás contribuições e métodos de Martin Noth, ver Knight, o.e. 143-176; e
Bernard Anderson, “Introduction: Martin Noth’s Traditio-Historical Approach
in the Context of Twentieth-Century Biblical Research”,/* History ofPentateu-
chal Traditions, Englewood ClifTs, N. J. Prentice-Hall, Inc., 1971, XIII-
XXXII.
21. B. Davie Napier, From Faith to Faith, Nova York, Harper and Brothers, 1955.

CAPÍTULO 2: A METODOLOGIA QUERIGMÁTICA DE


WOLFF

1. Seu projeto global se baseia nas propostas documentárias de Wellhausen, Na


verdade, nenhum dos estudiosos posteriores que mencionamos levantou dúvi­
das quanto à exatidão geral desta hipótese.
2. Numa declaração pública em St. Louis, a 9 de outubro de 1973, Hans Walter
WolfT descreveu a situação da Igreja Confessante a partir de sua própria expe­
riência, e se deteve particularmente no papel da Bíblia nesta Igreja. Ele assina­
lou claramente que a Escritura era a seiva vital desta comunidade. Grande par­
te da experiência comunitária se centrava no estudo da Bíblia. A meditação da
Escritura era sua disciplina mais regular. WolfT acentuou especialmente a estri­
ta exigência de sujeitar-se ao texto em vez de ser seu mestre. Vale a pena notar
que Wolff e seus colegas da Igreja Confessante, que permaneceram integral­
mente dentro da fé bíblica, se tornaram líderes da exegese crítica na Alemanha.
Este fato põe em dúvida a idéia de que a ciência é hostil à fé, como Wink e ou­
tros sugeriram. Wolff é mestre do método crítico; contudo, manifesta uma apai­
xonada fé bíblica.
3. Kraus, o.c., 403.
4. Ibid., 405.
5. Kraus, o.c., 405, fala do processo de Durchíeuchtung pelo credo. O texto mos­
tra novos sentidos em cada nova situação. Esta compreensão do texto sem dú-
175
vida se relaciona com a “Nova Hermenêutica” de Fuchs e Ebeling, e também
com a idéia católico-romana do “sensus plenior”, hoje em dia rejeitada em
grande medida pelos estudiosos, na forma particular em que foi expressa. Cf.
Raymond E. Brown, The Sensus Plenior of Sacred Scripture, Baltimore, St.
Mary’s University, Dissertação, 1955.
6. Além das várias discussões de von Rad, cf. Peter Ellis, The Yahwist: The
Bibles ’s First Theologian, Notre Dame, Indiana, Fides Publishers, Inc., 1968;
Wolfgang Richter, “Urgeschichte und Hoftheologie”, BZ, 10 (1966) 96-105; L.
Ruppert, “O Javista, anunciador da história da salvação”, Wort und Botschaft,
ed. Josef Schreiner, Würzburg, Echter-Verlag, 1967, 88-107; trad, bras.: Pala­
vra e Mensagem, Ed. Paulinas, SP, 1978, pp. 138-163; Rolf Rendtorff, “Gene­
sis 8,21 und die Urgeschichte des Jahwisten”, KUD, (1961), 69ss; Walter
Brueggemann, “David and his Theologian”, CBQ, 30 (1968), 156-181; e mais
recentemente Odil Hannes Steck, “Genesis 12,1-3 und die Urgeschichte des
Jahwisten”, Problemen Biblischer Theologie, ed. H. W. Wolff, Munique, Chr.
Kaiser Verlag, 1971, 525-554.
7. Ver a declaração de Wolff, “The Hermeneutics of the Old Testament”, Essays
on Old Testament Hermeneutics, ed. Claus Westermann, Richmond, John
Knox Press, 1963, 160-199.
8. O termo alemão é Aussagewille.
9. O termo alemão é Verkündigungswille.
10. O artigo usa muito o termo atual “querigma”. O próprio uso deste termo sugere
uma nova hermenêutica.
11. Ver, por exemplo, Alberto Soggin, “Deuteronomistische Geschichtsauslegung
wärend des babylonischen Exils”, Oikonomia, ed. Felix Christ, Cullman
Festschrift, Hamburgs-Bergstedt, Herbert Reich Evangelischer Verlag, 1967,
11-17; Walter Brueggemann, “The Kerygma of the Deuteronomist Historian”,
Interpretation 22 (1968), 387-402; Erich Zenger, “Die deuteronomistische In­
terpretation der Rehabilitierung Jojachins”, BZ, 12 (1968), 16-30; Lothar Per­
litt, Bunsdetheologie im Alten Testament, Neukirchen-Vluyn, Neukirchener
Verlag des Erziehungsvereins, 1969; G. Machholz, “Israel und das Land. Vor­
arbeiten zu einen Vergleich zwischen Priesterschirft und deuteronomistischem
Geschichtsweerk”, Heidelberg, Dissertação, 1969; Jorg Debus, Die Sünde Jero-
beams, Göttingen, Vandenhoeck e Ruprecht, 1967, especialmente pp. 93-115.
Deveríamos fazer uma referência especial ao importante artigo de Frank M.
Cross Jr., “The Structure of the Deuteronomic History”, Perspectives in Jewish
Learning, 3 (1964), 9-24, reimpresso agora como: “The Themes of the Book of
Kings in the Structure of the Deuteronomistic History”, Canaanite Myths and
Hebrew Epic, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1973, 274-289. O
artigo de Cross questiona a hipótese de Noth como um todo. Sobre este se ba­
seou o estudo de Wolff e a maior parte do trabalho posterior.
12. Hans Walter Wolff, Bíblia — Antigo Testamento — Introdução aos escritos e
aos métodos de estudo, Ed. Paulinas, SP, 1982, 2? ed., pp. 33ss.
13. A datação tardia da lei foi a conclusão mais importante do período de Wellhau-
176
sen; cf. Herbert Hann, Old Testament in Modem Research, Philadclphia, For-
tress Press, 1966, 4-10, mas foi difícil estabelecer a conexão entre a narrativa
sacerdotal e a lei sacerdotal.
14. Claus Westermann, “Die Herrlichkeit Gottes in der Priesterschrift”, Wort, Ge-
bot, Glaube, ed. Hans Joachim Stoebe, Eichrod Festschrift, Zurique, Zwingli
Verlag, 1970, 226-249. Westermann procura estudar a tradição sacerdotal sob
o tema “a glória de Iahweh”. Embora apresente um forte argumento, parece
que não superou o problema da diferença entre material narrativo e jurídico.
Sem dúvida, o termo “glória” se encontra em algumas narrativas referentes ao
deserto, mas somente em uma perícope aparece em relação ao êxodo (Ex 14).
Ele não nota seu uso, nem em relação à história primordial nem à patriarcal.
Talvez argumente que a presença de Iahweh, para P, interesse simultaneamente
à história e ao culto. Mas nao há forte evidência de que este seja um tema domi­
nante em todo o material normalmente atribuído a P. Contudo, deveríamos no­
tar que, como Westermann, WolfF se inclina a entender P em termos da “tenda
de reunião”.
15. Karl Elliger, “Sinn und Ursprung der priesterlichen Geschichteserzàhlung”,
ZTKf 49 (1952), 121-143. Outros estudos importantes da tradição sacerdotal
são documentados nesse ensaio sobre P. Para uma análise mais atualizada, ver
Frank M. Cross Jr., “The Priestly Work”, o.c. (nota 11 acima), 293-325, que
confirma as apreciações críticas feitas aqui. De especial interesse é o estudo da
fórmula de bênção feito por Cross que, conforme ele diz, “está relacionado com
a promessa da terra e a multiplicação de Israel na terra” (pp. 295-296).
16. Isso foi amplamente pesquisado por G. Machholz, o.c. (nota 11 acima).
17. Ver a interessante discussão sobre esta metodologia, em referência a Gn 32,22-
32, texto paralelo a 28,10-22, em Tucker, o.c. 41-54. Tucker não apenas assu­
me a forma original, mas também traça sua transformação, de modo que se tor­
na um texto sobre o sentido e a fé de Israel. O exemplo de Tucker mostra clara­
mente como os vários métodos são inter-relacionados e interdependentes. Note
especialmente sua referência à afirmação de von Rad. “Nenhum estágio neste
longo período de crescimento do trabalho é realmente obsoleto; alguma coisa de
cada fase se conservou e passou adiante como duradoura, até o Hexateuco
atingir sua forma final” (Genesis, p. 27). Sobre a questão mais ampla do uso do
relato de Jacó nas várias tradições, ver Terence Fretheim, “The Jacob Tradi-
tions”, Interpretation, 26 (1972), 419-436. Ver também F. R. MacCurley Jr.,
Proclaiming the Promise, Philadelphia, Fortress Press, 1974.

CAPÍTULO 3 : O QUERIGMA DO JA VISTA

1. Foi impresso originalmente em Evangelische Theologie, 24 (fevereiro de 1964),


73-97, e incluído mais tarde em Gesammelte Studien zum Alten Testament do
177
7 — 0 dinamismo das tradições do Antigo Testamento
professor WolfT (Munique, Chr. Kaiser Verlag, 1964, 345-373). Reimpresso
aqui a partir de Interpretation , 20 (1966) 131-158, e usado com permissão de
Interpretation e Chr. Kaiser Verlag.
2. Cf. Rudolf Bultmann, “Weissagung und Erfüllung”, Glauben und Verstehen,
Tübingen, J. C. B. Mohr, 1952, II, 162ss; H. Braun, “Das Alte Testament im
Neuen Testament” ZTK. 59 (1962), 16-31.
3. Cf, a pesquisa feita por Gerhard von Rad, Theologie des Alten Testaments , Mu­
nique, Chr. Kaiser Verlag, 1960, II, 349.
4. Jo 5,39; cf. R. Bultmann, Das Evangelium des Johannes, Göttingen, Vande-
nhoeck e Ruprecht, 1952, 201.
5. Rm 3,21; se além desta passagem, também em 3,31 (cf. Ulrich Wilkens, “Die
Rechtfertigung Abrahams nach Rom 4”, Studien zur Theologie der alttesta-
mentlichen Uberleferung (1961), 120; nomos entendido como grafé . é uma
questão que deixaremos em aberto; para uma opinião diferente, ver Gustav
Klein, “Römer 4 und die Idee der Heilsgeschichte”, Evth, 23 (1963), 443s. Jo
5,39 e Rm 3,21 chamam a função do Antigo Testamento de martyrein.
6. Hb 11; Rm 4. '
7. Cf. G. von Rad, “Offene Fragen im Umkreis einer Theologie des Alten Testa­
ments”, TLZ, 88 (1963), col. 444.
8. Cf. James Barr, The Semantics of Biblical Language, Nova York, Oxford Uni­
versity Press, 1961,
9. Martin Noth, Überlieferungsgeschichte des Pentateuch, Stuttgart, W. Kohl­
hammer Verlag, 1948, 256; tradução em inglês: A History of Pentateuchal Tra­
ditions , Englewood Cliffis, N. J., Prentice-Hall, Inc., 1971.
10. P. ex., Rudolf Smend, Die Erzählung des Hesateuch auf ihre Quellen unter­
suchtt Berlim, 1912; e, “JE in den geschichtlichen Büchern des AT”, ZA W, 39
(1921), 181-217.
11. Gustav Hölscher, Geschichtsschreibung in Israel , Lund, C. W. K. Gleerup,
1952, 20-32.
12. Além disso, sobretudo M. Noth, Überlieferungsgeschichte Studien, Tübingen,
Max Niemeyer Verlag, 1943, I, 3ss.
13. Cf. M. Noth, Uberlieferungsgeschichte des Pentateuch , 5s; idem, Das Buch Jo-
sua, Tübingen, J. C. B. Mohr, 1953, 8ss.
14. G. von rad, Gesammelte Studien zum Alten Testament, Munique, Chr. Kaiser
Verlag, 1958, 58.
15. Além disso, conforme recentemente Rudolf Smend, Jahwekrieg und Stämme­
bund, Göttingen, Vandenhoeck e Ruprecht, 1963, 83.
16. Ver abaixo, p. 57.
17. Assim M. Noth, Uberlieferungsgeschichte des Pentateucht 35.
18. Cf. M. Noth, loc. cit., nota 127; além disso, B. L. Goff, “The Lost Iahwistic Ac­
count of the Conquest of Canaan”, JBL, 53 (1934), 241-249. No tocante à con­
clusão ou à extensão da narrativa do Sinai, não podemos chegar a qualquer tipo
de certeza, já que desconhecemos aquilo que foi sacrificado no processo de edi­
ção.
178
19. Cf, recentemente, Otto Eissfeldt, “Iahwe, der Gott der Väter”, TLZ, 88 (1963),
481-490.
20. G. Hölscher, loc.cit., 12, considera a “idéia da unidade das doze tribos” como
sendo o “motivo dominante que moldou o quadro histórico de J”. Considera
também que ela ganhou corpo no Reino de Davi e Salomão, mesmo que tenha
que transferir sua data de composição para a era pós-salomônica, por causa de
sua hipótese de que J vai até lRs 12,19. Hartmut Schmökel, “Zur Datierung
der Pentateuchquelle J’\ ZA W, 62 (1950), 319-321, concluiu a partir de Ex
14,13 que J deve ter sido escrito antes dos eventos de lRs 14,25 e, assim, antes
do quarto ano de Roboão, em que Jerusalém e o Templo foram saqueados pelo
Faraó Sesac I.
21. Cf. 2Sm 24,5-7 e lRs 4,7-19; M. Noth, Geschichte Israels, Göttingen, Vanden-
hoeck e Ruprecht, 1950, 176ss. Merece particular atenção a forma persistente
e diligente como J leva aos ouvidos de seus contemporâneos as narrativas de
Jacó (pastor) e Esaú (caçador), que estavam circulando entre os efraimitas da
Jordânia oriental, por meio de etimologias de nomes em Gn 25,25.30 (cf. M.
Noth, Uberlieferungsgeschichte des Pentateuch , 107), Isso os forçaria a pensar
nos edomitas dominados (2Sm 8,13-14). Cf. V. Maag, “Jakob-Esau-Edom”,
THZ, 13 (1957), 418-429; também Leonhard Rost, “Zum geschichtlichen Ort
der Pentateuchquellen”, ZTK, 53 (1956), 5.
22. Cf. IRs 4,9-14; cap. 10.
23. G. von Rad, Gesammelte Studien, 76; cf. M. Noth, “Die Bewärung von Salo­
mos ‘göttilicher Weisheit’ ”, VT Supl 3 (1955), 225-237. Gn 27,40b parece um
pós-escrito a 39b-40, (whyh!). Podemos perguntar se J complementa aqui o dito
tradicional ou se é um caso de adendo, com base em 2Rs 8,20-22, vindo do
período ao redor de 850 a.C.
24. Cf. G. von Rad, Das erste Buch Mose , Munique, Chr. KaiserVerlag, 1955,
243; Otto Eissfeldt, Die Genesis der Genesis , Tübingen, J. C. B. Mohr, 1958,
27; M. Noth, Geschichte Israels , 188s.
25. Cf. M. Noth, Überlieferungsgeschichte des Pentateuch, 217.
26. Cf. G. von Rad, Gesammelte Studien, 7Iss.
27. Cf. von Rad, Das erste Buch Mose, 136; e M. Noth, Uberlieferungsgeschichte
des Pentateuch, 256ss. Gn 18,19 é um acréscimo posterior. Que seja posterior e
secundário é sugerido pelo estilo deuteronomista do material.
28. Ver abaixo, p. 62. e Rolf RendtorfT, “Gênesis 8,21 und die Urgeschichte des
Jahwisten” Kudt 7 (1961), 69.
29. Depois de um imperativo, uma frase consecutiva na primeira pessoa é formada
com um coortativo (Gn 27,4; ISm 28,22); uma frase consecutiva na segunda
pessoa, depois de um coortativo, é formada com o imperativo indireto (lRs
1,12; 2Rs 5,10); cf. Paul Joüon, Grammaire de THébreu Biblique, Roma, Pon­
tifício Instituto Bíblico, 1947, § 116 b.f.h.; e Georg Beer e D. R. Meyer,
Hebräische Grammatik , Berlim, Walter de Gruyter, 1955, § 117(1). Essas fra­
ses consecutivas podem ter o sentido de resultado, bem como de intenção. A su­
gestão para que 2b seja lido w ehayah e seja traduzido “para que se torne uma
179
palavra de bênção” (Hermann Gunkel, Genesis, Göttingen, Vandenhoeck e Ru­
precht, 1917, 164) não encontra respaldo nem na transmissão textual nem no
contexto; cf. recentemente Josef Schreiner, “Segen für die Völker in der
Verheissung an die Vater”, BZ NF, 6 (1962), 4s. O v. 3b e sua explicação pelo
próprio J exclui isso já desde o início; cf. H. Junker, “Segen als heilsgeschichtli­
ches Motivwort im AT”, Sacra Pagina, I~Bibl£ph. Th.L. (1959), 548-558.
30. Cf. C. H. Ratschow, “Werden und Wirken”, ZA W Beih, 70 (1941), 54ss.
31. Para o perfeito consecutivo como frase consecutiva depois de frases imperfei­
tas, ver Joüon, § 119 c.i.j. e Gn 31,44; Am 1,2; J1 4,18b.
32. Brk no nifal é encontrado somente no javista, em Gn 12,3; 18,18; 28,14. Para
o sentido puramente passivo, além do particípio passivo cal, o pual ocorre 13
vezes no Antigo Testamento. Já que o nifal é semelhante à voz média grega, e
já que o javista não excluirá uma atitude peculiar das nações frente a Abraão,
conforme 3b bem como 3a, teremos captado com êxito seu sentido ao traduzi-
lo com Schreiner, loc.cit., 7, “obter uma bênção (para) si mesmo, granjear para
si uma bênção”. Algo semelhante também se aplica ao uso do hitpael em Gn
22,18; 26,4; Jr 4,2, já que o contexto não indica qualquer variante de sentido a
partir do parágrafo de Gn 12,3.
33. Quanto ao perfeito de constatação, cf. Carl Brockelmann, Hebräische Syntax,
Neukirchen, Verlag der Buchhandlung des Erziehungsvereins, 1956, §§ 41s.
34. Ver acima nota 29; também KBL, 22, col. 246a.
35. Como lectio foecundior o singular merece uma preferência total sobre o plural,
que nos LXX e em outras testemunhas é inteligível como assimilação a Ba.
36. Cf. M, Noth, Uberlieferungsgechichte des Pentateuch, 59; Geschichte Israels,
115s.
37. Cf. M. Noth, Uberlieferungsgeschichte des Pentateuch, 59; G. von Rad, Das
erste Buch Mose, 14s. Ntn é a palavra chave da promessa e dom da terra em Dt
6,23; Js 24,13, e muitas outras vezes.
38. Por esse motivo não devemos surpreender-nos se o tema da conquista no fim da
obra javista nao aparece em seu significado próprio e em sua amplitude espera­
da; ver acima p. 43. Pois tão certo quanto o javista a conhece e passa adiante
em sua lealdade à tradição, assim é igualmente certo que ela não pertence ao
seu campo de interesse particular.
39. Cf. Albrecht Alt, “Der Gott der Väter”, Kleine Schriften zur Geschichte des
Volkes Israel, Munique, C. H. Beck Verlag, 1959, I, 66.
40. Cf. recentemente Horst Seebass, “Zu Genesis 15”, WuD NF, 7 (1963), 132-149
(esp. 144), na discussão com Otto Kaiser, “Traditionsgeschichtliche Untersu­
chung zu Genesis 15”, ZAW, 70 (1958), 107-126, e com referência a A. Alt,
loc.cit. 66s e Kurt Galling, “Die Erwählungstraditionem Israels”, ZA W Beith,
48 (1928) 44-46.
41. F. Horst, “Gottes Recht”, ThB, 12 (1961) 293.
42. F. Horst, loc.cit,, 194ss.
43. Assim como em Gn 27,29a.
44. G. von Rad, Das erste Buch Mose, 133.
180
45. Para a diferença de sentido, ver Josef Scharbert, “ ‘Fluch’ und ‘Segen’ im AT”,
Biblica, 39 (1958) 1-26. Deveríamos considerar também que *rr nunca tem
Deus como objeto; Ex 22,28 é particularmente significativo neste ponto (Schar­
bert, loc.cit„ 7; cf. 16). Com a mudança de ‘rr para o piei de qll, estará o javista
pensando no fato de que o Deus de Israel é encontrado em Israel e que tão-
somente aqueles que desprezam Israel vão ser afligidos com a maldição de
Deus? Esta interpretação se ajusta à conclusão de Rendtorff (“Genesis 8,21
und die Urgeschichte des Jahwisten”, KuD , 7 [ 1961/pp. 69-78) que o piel de qll
significa antes de tudo “designar f p. 12] (e tratar) alguém como amaldiçoado
por Deus”; cf. sobretudo 2Sm 16,7ss.
46. Ver acima, nota 35.
47. G. von Rad apresentou isso com consistência em sua forma mais clara; cf. Ge­
sammelte Studien , 72.
48. Cf. H. W. Wolff, “Weltgeschichte — Heilsgeschichte im AT”, Der evangelische
Erzieher , 14 (1962) 129-136.
49. R. Rendtorff, lo c .c it 74, quer aplicar a consolação que Noé traz em 5,29 à eli­
minação da maldição em 8,21. Contudo, a dificuldade permanece, porque em
8,21 Noé não é o sujeito, como em 5,29. Como Inventor da vinicultura, Noé
torna mais fácil a vida em meio à árdua tarefa. Através disso o javista esclarece
a suspensão da maldição em 8,2 ls, que, todavia, ainda não é uma benção como
tal.
50. Cf. Rendtorff, lo c .c it 72ss. Vaie a pena notar que ‘rr, além de 12,3, só ocorre
uma vez na história patriarcal (em 27,29); por outro lado, brh ocorre mais do
que trinta vezes em J.
51. Rudolf Bohren, Predigt und Gemeinde, Zurique, Zwingli Verlag, 1963, 134s:
tradução em inglês: Preaching and Community , trad. de David E. Green, Rich­
mond, John Knox Press, 1965: “É inconcebível que Deus aponte para si um
‘pastor’. E estranho que ele ainda ‘precise de um ministro’, que ele estabeleça
homens como vigias.”
52. Particularmente em vista de Gn 26, não devemos dizer com M. Noth Überliefe­
rungsgeschichte des Pentateuch, 256, nota 622) que depois de Gn 12,1-3, J “ra­
ramente voltou às considerações que sao colocadas de uma vez por todas no
início”.
53. Como os filisteus entram em contato com Isaac por causa de sua imensa “gran­
deza” (ver acima, p. 66), assim também a corte egípcia, fica intranqüila por
causa deste povo “numeroso e grande” — e pelo número e poder crescente dos
israelitas (Ex 1,9).
54. Ver abaixo, p. 75, sobre Is 19,23-25.
55. Cf. M. Noth, Das zweite Buch Mose: Exodus , Göttingen, Vandenhoeck e Ru­
precht, 1959, 214.
56. Quanto à conexão entre a tradição do Sinai e as demais, cf. R. Smend, Jah­
wekrieg und Stämmebund 83ss.
57. Cf. M. Noth, Das zweite Buch, 216s.
58. Ver acima, p. 48.
181
59. Cf. M. Noth, Uberlieferungsgeschichte des Pentateuch, 83. “A conexão com o
santuário de Baal Fegor, assim como o nome, é comum a todos os ramos da
narrativa de Balaão, e deve ser incluída na coleção mais antiga da tradição.”
60. G. von Rad, “OfTene Frage”, col 405. Em Gn 19,29, P parece ter considerado a
libertação de Ló como resposta ao pedido de Abraão e, nesta medida, o cum­
primento da promessa feita a Abraão.
61. Cf. Marie-Louise Henry, Jahwist und Priesterschrift, Stuttgart, Calwer Verlag,
1960, especialmente pp. 15ss: “A concepção de história do javista . . . afasta
para longe a auto-elevação própria da época da fundação do reino.”
62. Justifica-se falar em “querigma” para o conjunto todo da obra, pois: o autor
apresenta (1) uma mensagem de Deus, que (2) tem o caráter de uma reivindica­
ção, a qual (3) se dirige a um momento específico da história (como mostrou a
exegese de Gn 12,3b, no quadro da grande estrutura literária). Esta mensagem
aparece direta ou indiretamente em todas as partes essenciais do trabalho. E im­
portante reconhecer que a concepção do javista é determinada por uma palavra
de promessa em que ele acredita e que, por sua vez, continua válida para seus
ouvintes.
Sem dúvida, devemos enfatizar ao mesmo tempo que esta palavra de pro­
messa é claramente confirmada pelas tradições históricas em que Israel celebra
o cumprimento das antigas promessas divinas. Isso concorda com o fato de que
o javista oferece primeiramente só a antiga Heilsgeschichte. Ele nao pretende
eliminar a importância original desses materiais. Via de regra, permite que eles
expressem sua própria intenção, a qual com muita freqüencia demonstra dife
rentes níveis de desenvolvimento (cf. G. von Rad, “Offene Frage”, cols. 411­
412). Contudo, com muita frequência introduz seu próprio ponto de vista. As­
sim, à luz de sua frase-chave em Gn 12,3b, as antigas narrativas se tornam es­
pelhos em que os leitores devem reconhecer a si mesmos e sua tarefa como es­
tando sob a promessa de Iahweh. Até mesmo as tradições históricas expressam
a mensagem pela qual o javista pretende conduzir Israel para o futuro.
63. G. von Rad, “Offene Frage”, col. 405.
64. Cf. U. Schreiner, loc.cit., 13; Hans Joachim Kraus, Psalmen, Neukirchen Kreis
Moers, Verlag der Beuchhandlung des Erziehungsvereins, 1960, 353.
65. Ver acima, p. 65. Is 44,1-5 também deve ser levado em conta.
66. Cf. von Rad, Theologie des Alten Testaments, II, 400; H. W. Wolff, “Das Alte
Testament und das Problem der existentiellen Interpretation”, EvTh, 23 (1963)
9ss.= Gesammelte Studien zum Alten Testament, 325ss; além disso, Hans Urs
von Balthasar, Herrlichkeit, Einsiedeln, Johannes Verlag, 1961, I, 617ss.

182
CAPÍTULO 4: OS FRAGMENTOS ELOÍSTAS NO PEN-
TATEUCO

1. O presente capítulo é uma tradução de “Zur Thematik- der elohistischen Frag­


mente im Pentateuch”, Ev Th, 29 (Fevereiro de 1969) 59-72. Foi feito como
preleção inaugural na Universidade de Heidelberg, em 24 de maio de 1968, c
reimpresso aqui tal como foi traduzido em Interpretation 26 (1972) 158-173. É
usado com a permissão de Interpretation e Chr. Kaiser Verlag. Foram feitas
mudanças menores no vocabulário para a edição de John Knox Press.
2. A concepção de Martin Noth, Uberlieferungsgeschichte des Pentateuch, Sttu-
gart, W. Kohlahemmer Verlag, 1948; tradução em inglês: A History of Penta-
teuchal Iraditions, Englewood Cliffs, N. J., Prentice-Hall, Inc., 1971. Rolf
Rendtorff está em desacordo com a tese de que “P é idêntico à edição final do
Pentateuco’\ em “Literarkritik und Traditionsgeschichte”, EvTh, 27 (1967)
138-153; ver espec. 147.
3. Gerhard von Rad, “Das formgeschichtliche Problem des Hexateuch”, Gesam­
melte Studien zum Altem Testament, Munique, Chr. Kaiser Verlag, 1958, 58­
75.
4. Esta é a concepção a que conduzem os estudos de Paul Volz e Wilhelm Ru­
dolph. Ver “Der Elohist als Erzähler —ein Irrweg der Pentateuchkritik?”, Zaw
Beith, 68 (1938) e “Der 'Elohist’ von Exodus bis Josua” (1938), por Rudolph;
ver também Claus Westermann, “Forschung am Alten Testament”, Gesammel­
te Studien, Munique, Chr. Kaiser Verlag, 1964, 10s.
5. Otto Eissfeldt apresenta uma “fonte leiga (L)” além do javista (J) e eloísta (E)
em Einleitung in das Alte Testament, Tübingen, J. C. B. Mohr /"Paul Siebeck/,
1964, par. 27; tradução em inglês: The Old Testament: An Introdution , traduzi­
do pôr Peter R. Ackroyd, Nova York, Harper and Row, Publisheres, 1966.
Georg Fohrer apresenta uma “fonte nômade (N)” além de J e E. Ver Ernst
Sellin e Georg Fohrer, Einleitung in das Alte Testament. Heidelberg, Quelle and
Meyer, 1965, par. 23; tradução em português: Introdução ao Antigo Testamen­
to, Ed. Paulinas, SP, 1983, 2* edição, par. 23.
6. Em conexão com isso e com a seção seguinte, cf. Noth, Überlieferungsge-
chichte, par 5.
7. Pode haver um considerável desacordo quanto à extensão do material omitido.
Cf. Noth, ibid, 36ss, e Fohrer, Einleitung, 169. Julius Wellhausen escreveu: “JE
é sobretudo um conjunto de materiais destes dois relatos históricos palalelos. J
formou a base; estes materiais foram tomados de E, e quer estivessem numa
forma diferente de J, quer não se achassem lá absolutamente.” Die composition
des Hexateuchs und der historischen Bücher des Alten Testaments, Berlim,
Walter de Gruyter, 1963, reimpresso a partir do original: Berlim, Georg Rei­
mer, 1885, 22.
8. Ver pp. 89-90.
183
9. Cf. as várias introduções ao Antigo Testamento, mais recentemente Fohrer,
op.cit., 170s, e Hermann Gunkel, Genesis, Göttingen, Vandenhoeck e Ruprecht,
1917, LXXXVIss.
10. Volz considerava E como uma nova versão de J; cf. Rudolf, “Der Elohist als
Erzähler”, ZA W Beith , 68 (1938) 22.
11. Ver a exegese de von Rad sobre esta passagem, em seu comentário sobre o Gê­
nesis (traduzido para o inglês por John H. Marks, Philadelphia, The Westmins­
ter Press, 1961, 232ss), Das erste Buch Mose: Genesis, GÖttingen, Venden-
hoeck e Ruprecht, 1956, 203ss.
12. Ver H. Graf Reventlow, Opfere deinen Sohn: eine Auslegung von Genesis 22,
Neukirchen-Vluyn Neukirchener Verlag des Erziehungsvereins, 1968, 44s,
49,71.
13. Quanto ao duplo sentido de “provar”, cf. von Rad, Genesis, 234,238,239.
14. É assim que E se expressa, em vez de “faraó”, como em J.
15. Quanto a esta passagem, ver Georg Beer, Exodus, Tübingen, J. C. B, Mohr
/Paul Siebeck/, 1939, III, e Noth, Exodus: A commentary, trad. por J. S. Bow­
den, Philadelphia, The Westminster Press, 1962, de Das zweite Buch Mose:
Exodus.
16. Em vez de: “e ele viu”, deveríamos ler com o Pentateuco samaritano, a LXX e a
Vulgata: wayir'u. O plural concorda melhor com o que se segue,
17. Martin Buber traduziu literalmente: “para que seu medo esteja sobre seus ros­
tos”. Noth traduziu: “para que o medo dele esteja diante de seus olhos”, Exo­
dus . Mas o contexto está interessado na força da ocorrência. Para hayah como
“ter efeito sobre”, cf. Gn 9,2 (P) e 42,36 (E),
18. Além de Ex 20,20, hatah aparece como contraste a temor de Deus nas passa­
gens eloistas em Gn 20,9; 42,22. Cf. 41,9.
19. Ver o capítulo 3, acima.
20. A pesquisa dos fragmentos eloistas em Gn 15,1-2 não deveria ignorar o que foi
dito em Gn 20,13. Portanto, penso que merece uma nova consideração aquilo
que Kurt Galling apresenta em “ Die Erwahlungstraditionem Israels”, ZAW
Beith , 48 (1928) 44s, e o que von Rad assumiu novamente em seu Genesis, 177.
Noth tem outra concepção, Uberlieferungsgeschichte, 29ss Cf. Horst Seebass,
“Zu Genesis 15”, WuD NF, 7 (1963) 132-149, e Norbert Nohfink, Die Land-
verheissung als Eid, Stuttgar, Verlag Katholisches Bibelwerk, 1967, 35-44.
21. Ver acima, p. 89 sobre Gn 20,13; 42,21 e 50,16.
22. Ver mais recentemente Rudolf Kilian, “Der heilsgeschichtliche Aspekt in der
elohistischen Geschichtstradition”, Theologie und Glaube, Bohn, Peter Han-
stein, 1968, 369-384.
23. Ver Odil Hannes Steck, Überlieferung und Zeitgeschichte in den Elia­
Erzählungen, Neukirchen, Neukirchener Verlag, 1968. Encontram-se, no índice
de Steck, itens sob o título “eloista”.
24. Cf. Wolff sobre 1,2 e 12,2 em Hosea, Neukirchen, Verlag der Buchhandlung
des Erziehungsvereins, 1961.
184
25. Ver Siegfried Plath, Furcht Gottes: der Begriff YR* im Alien Testament, Stutt­
gart, Calwer Verlag, 1963, e Jürgen Becker, Gottesfurcht im Alten Testament,
Roma, Pontifício Instituto Bíblico, 1965.

CAPÍTULO 5: O QUERIGMA DA OBRA


HISTÓRICO DEUTERONOMISTA

1. Zeitschrift fur die Alttestementliche Wissenschaft, 73 (1961) 171-186. Reim­


presso em Hans Walter Wolff, Gesammelte Studien zum Altem Testament, Mu­
nique, Chr. Kaiser Verlag, 1964. Este artigo foi apresentado primeiramente como
preleçao, a convite do corpo docente da faculdade de teologia da Universidade
de Göttingen, em 15 de julho de I960. Foi traduzido e incluído aqui com a per­
missão de Zeitschrift fur die A Ittestamentliche Wissenschaft e Chr. Kaiser Ver­
lag.
2. Cf. H. W. Wolff, “Das Geschichtsverständnis der alttestamentlichen
Prophetie”, EvTh, 20 (1960) 218-235.
3. Martin Noth, Überlieferungsgeschichtliche Studien 1, Die sammelnden und
bearbeitenden Geschichtswerke im Alten Testament , Tübingen, Max Niemeyer
Verlag, 1943, 2? edição, 1957.
4. Alfred Jepsen, Die Quellen des Königsbuches, Halle, Max Niemeyer Verlag,
1953, 2- ed., 1956. O manuscrito deste livro ficou completo já em 1939, i.é, an­
tes que aparecessem os estudos de Noth (p. 116).
5. Wolff utiliza a abreviatura DtrG (para “deuteronomistisches Geschichtswerk”
- N. do T.).
6. O.e., 109.
7. O.e., 108.
8. Assim Js 23,16; de forma semelhante Dt 4,25-28; ISm 12,14-15.25; lRs 9,8-9;
2Rs 17,23; 21,14-15.
9. Gerhard von Rad, Theologie des Alten Testaments, Munique, Chr. Kaiser Ver­
lag, 2? ed., 1958, I, 340. Tradução em inglês por D. M. G. Stalker, Old Testa­
ment Theology, Nova York, Harper and Row Publishers, 1962, I, 343.
10. O x 341.
11. O.e., 342.
12. O.e., 108.
13. O.e., 11.
14. Assim Enno Janssen, Juda in der Exilszeit, Göttingen, Vandenhoeck e Ru­
precht, 1956, 76.
15. IRs 2,3-4; 9,5-7.
16. Dt 17,18s.
17. 2Rs 18,6; 21,8s; 23,25.
185
18. 2Rs 17,15-18; 21,2-15; 23,26.
19. Com relação a este texto, ver 39 ed. da Biblia Hebraica de Rudolf Kitel (Stutt­
gart, Bibelanstalt, 1949); restaurado com referência a 3,9.15 e outros lugares.
20. ISm 12,10-13; cf. Jz 8,23; ISm 8,7.
21. ISm 8,10ss.
22. 2Rs 21,12-13; 23,27. “Israel”, “Judá”, “Jerusalém” aqui significam entidades
nacionais e a monarquia. De outra forma seria incompreensível porque um rei
como Manassés nao é explicitamente mencionado.
23. O.e., 108.
24. O.c., 108.
25. O.e., 16.
26. Seguindo a tradução da Bíblia de Jerusalém, usamos tu, te, ti nas explicações
todas as vezes em que o hebraico (e o alemão de WolfY) indica a segunda pessoa
do singular; a distinção do plural em geral é significativa. (N. do T.).
27. Neste ponto precisamos levar em conta as observações de Jepsen, que estabele­
cem uma clara relação entre as tradições de Jeremias e seu R II (igualada a
DtrH, o.e., 100s) para os livros dos Reis igualmente. Jepsen deve contar, tam­
bém para os livros dos Reis, com pelo menos duas mãos deuteronomistas. Vale
a pena notar, para nossa questão, o fato de que ele atribui ÍRs 8,27-39 (exceto
29 . 30. 36 ) a uma redação “sacerdotal” e ÍRs 8,44-53 a uma reda­
ção “profética”. É claro que ambas conhecem o tema de uma “volta”; cf. pp.
15ss e 80ss, também as secões resumidas em Jepsen, pp. 76 e 94. Deste ponto de
partida deveríamos examinar novamente a união entre Deuteronômio e DtrH
em Dt 28-30!
28. Hans Wilhelm Hertzberg, Die Bücher Josua, Richter, Ruth, Göttingen, Vanden-
hoeck e Ruprecht, 1954, 8, Jepsen, pressupõe um “grupo de teólogos”.
29. O.e., 104s.
30. Compare M. Noth, o.e., 104s.
31. Compare Os 2,9; 3,5; 5,15; Jr 3,1.224,2; sobre isso, ver H. W. Wolff, Hosea,
Neukirchen, Verlag der Buchhandlung des Erziehungsvereins, 1961, 43,79s; e
H. W. Wolff, “Das Thema ‘Umkehr’ in der alttestamentlichen Prophetie”,
ZTK, 48 (1951) 138ss.
32. Cf. WolfT, Hosea, 79.
33. G. von Rad, o.e., 114.
34. Jr 28,4; cf. M. Noth, “Die Katastrophe von Jerusalem im Jahre 587 v. Chr. und
ihre Bedeutung für Israel”, RHPhR (1953) 82-102 = Gesammelte Studien zum
Alten Testament, II, 346-371; trad. ingl. por D. R. Ap. Thomas, “The Jerusalém
Catastrophe of 587, a.C. and its Significance for Israel”, The Laws in the Pen­
tateuch and Other Studies, Philadelphia, Fortress Press, 1967, 267.
35. E. Janssen, o.e., 74, caracterizou a palavra volta como regra hermenêutica da
escola deuteronomista. Janssen mostra, com base na passagem de Jz 10,6-16,
que DtrH só assegura esperança a Israel mediante uma volta.

186
CAPÍTULO 6: O QUERIGMA DOS
ESCRITORES SACERDOTAIS

1. Reimpresso a partir de Zeitschrift für die Alttestementliche Wissenschaft, 84


(1972) 397-413, e usado com permissão de ZA W e do autor.
2. Em J: “Em ti serão abençoados todos os clãs da terra”, em E: “Teme a Deus” e
em DtrH: “Volta”.
3. Em J: o problema de tratar responsavelmente os outros povos em tempo de vi­
tória da monarquia unificada; em E: o problema do sincretismo dos séculos IX-
VIII, quando a monarquia do norte estava estreitamente ligada aos fenícios; e
em DtrH: o problema da culpa e renovação no exílio após o desastre de 587.
4. A recente crítica do Pentateuco tem sido mais cautelosa e tende a preferir “tra­
dição” em vez de “documento”. Mas, no caso de P, é plausível admitir uma fon­
te escrita na medida em que entendemos que a criação final utiliza materiais
mais antigos da tradição. Cf. J. Bright, “Modern Study of Old Testament Lite­
rature”, The Bible and the Ancient Near East, ed. G. E. Wright, Garden City,
N. Y., Doubleday and Company, Inc., 1961, 14-25.
5. Isso é apresentado nas introduções-modelo do Antigo Testamento, por exmplo:
Otto Eissfeldt, Einleitung in das Alte Testament, Tübingen, J. C. B. Mohr/Paul
Siebeck/, 1964, 243; Ernst Sellin e Georg Fohrer, Introdução ao Antigo Testa­
mento, Ed. Paulinas, SP, 1983, 2? ed., vol. I. 254-256. Mas Eissfeidt, por exem­
plo, tende a fixar uma data mais tardia, bem como a estender os materiais de P
mais além do que se presume nesta discussão. Bernard W. Anderson, Under-
standin the Old Testament, Englewood ClifTs, N. J. Prentice-Hall, Inc., 29 ed.,
1966, 380-393, apresentou o esquema de P de uma forma gráfica.
6. Suponho aqui uma data exílica. Contudo, pode ser um pouco mais tarde. Isso
não afetaria o presente argumento de maneira substancial.
7. Entre os mais importantes estudos de materiais estão as análises minuciosas de
Gerhard von Rad, Die Priesterschrift im Hexateuch, Stuttgart, W. Kohlham­
mer Verlag, 1934, e sua discussão mais recente em Old Testament Theology,
Nova York, Harper and Row, 1962, I, 232ss; Rolf Rendtorff, Die Gesetze in
der Priesterschrift, Göttingen, Vandenhoeck e Ruprecht, 1954; Klaus Kock,
Die Priesterschrift von Exodus 25 bis Leviticus 16, Göttingen, Vandenhoeck e
Ruprecht, 1959; e Peter Ackroyd, Exile and Restoration, Philadelphia, The
Westminster Press, 1968, 84-102. São de interesse especial os estudos mais bre­
ves de Kuschkc e Koch. Kuschke, “Die Lagevorstellung der priesterchriftlichen
Erzählung”, ZA W, 63 (1951), 74-105 tenta interpretar a presença de lahweh na
comunidade e nos dispositivos cultuais para sua presença. Koch, “Die Eigenart
der priesterschriftlichen Sinaigesetzgebung”, ZTK, 55 (1958) 36-51, tenta en­
tender a teologia dos materiais jurídicos ao redor dos focos de santidade, recon­
ciliação c encontro. Ver também a tese muito sugestiva de G. Machholz, “Israel
187
und das Land. Vorarbeiten zu einem Vergleich zwischen Priesterschrift und
deuteronomistischen Geschichtswerk”, Heidelberg, tese, 1969.
8. Bruno Baentsch, Exodus, Levictus, Numeri, Göttingen, Vandenhoeck e Ru­
precht, 1900, fez a dissecação de estratos mais bem elaborada.
9. Claus Westermann, Genesis Accounts of Creation, Philadelphia, Fortress Press,
1964, 93-95, nota a função teológica das genealogias. Elas servem para (a) esta­
belecer uma continuidade entre a criação e a história; e (b) afirmar que essas
narrativas particulares dizem respeito à totalidade da história humana. Quando
a narrativa de P é apresentada como uma realização da promessa de Gn 1,28,
então obviamente o elo entre criação e história se torna essencial. Ver também a
análise detalhada de M. D. Johnson, The Purpose of the Biblical Genealogies,
Nova York, Cambridge University Press, 1969, 14-39.
10. Este problema foi investigado por Sigmund Mowinckel num livro do mesmo no­
me, Tetrateuch-Pentateuch-Hexateuch, Berlim, Alfred Töpelmann, 1964. Le­
vantou-se a questão crítica sobretudo por causa da hipótese de von Rad sobre o
Hexateuco, “The Form-Critical Problem of the Hexateuch”, The Problem of
the Hexateuch and other Essays, Nova York McGraw-Hill Book Co., 1966, 1-
78, e a proposta igualmente importante de Martin Noth sobre a história deute-
ronomista, Überlieferungsgeschichtliche Studien, Tübingen, Max Niemeyer
Verlag, 1957, I, 3-100. Como resultado, é difícil atribuir o material às fontes,
em termos dos materiais da conquista, porque os mesmos materiais não servem
facilmente a ambas as hipóteses.
11. Ver o juízo cuidadoso e equilibrado de John Bright, “The Book of Joshua, In-
troduction and Exegesis”, The Interpreters Bible, Nashville, Abingdon Press,
1952, II, 542-546.
12. Esse é também o juízo de Eiliger, “Sinn und Usprung der priesterlichen Ge-
schichtserzählung”, ZTK, 49 (1952) 121 ss. Eiliger conclui que P, além de Nú­
meros, inclui somente Dt 34,la.7-9, isto é, o relato da morte de Moisés e a
transferência da liderança para Josué. E mesmo na segunda parte de Números,
Eiliger atribui a P somente partes de Nm cap. 20, 21, 22 e 27. Sem dúvida, ele
considera outros materiais que lá existem como sendo secundariamente de P.
(Ver o delineamento levemente diferente feito por Noth, Überlieferungsges-
schichte des Pentateuch, Stuttgart, W. Kohlhammer Verlag, 1948, 17-19.) Em­
bora eu não esteja inclinado a ser tao radical, neste juízo como em muitos ou­
tros, concordo com a cuidadosa afirmação de Eiliger. E apesar de minha pro­
posta básica ser formada independentemente de Eiliger, ela è amplamente con­
firmada por sua obra.
13. Pelo que sei, somente Eiliger tentou enfocar as narrativa. Embora Kuschke
usasse o termo “Erzählung” em seu título, sem dúvida não é esse seu interesse.
Não defendo a idéia de que um enfoque nas narrativas seja mais legítimo ou de­
sejável ou talvez produtivo do que um enfoque nos materiais jurídicos, mas sim­
plesmente que dará resultados diferentes.
14. Esta fórmula já aparece no v. 22 em forma parcial, mas, como veremos, o
acréscimo dos dois verbos finais na fórmula integral dos cinco verbos do v. 28
188
(e faltando no v. 22) é de grande importância para a compreensão da mensa­
gem de P.
15. Como é amplamente sabido, o esquema revelatório de P apresenta a divindade
ocultando seu nome, Iahweh, até revelá-lo a Moisés. Tanto o nome Elohim
quanto o nome peculiar a P, El Shaddai, sao menos ligados à história salvífica,
mas são mais impressionantes em termos de escopo universal. No contexto his­
tórico de P, o anúncio de universalidade contido no nome de Deus era ampla­
mente importante —especialmente diante das atraentes alternativas babilónicas.
16. G. von Rad, Genesis, Philadelphia, The Westminster Press, 1961, 57, descreve-
o como um “envio”.
17. Note especialmente o espírito paralelo em Is 54,1-3, que é também um estreito
paralelo cronológico de P. Quanto à sua atmosfera, este texto também é parale­
lo ao tom celebratório de Gn 1. Note que ele se encaminha a uma afirmação da
posse das nações (gôyim yiros) um motivo ao qual ainda voltaremos.
18. Cf. Gn 17,5-8. O poder desta afirmação é evidente na repetição bim*od me’od
(v. 6) e nos vários usos de ‘o/am. Novamente o discurso da multiplicação termi­
na na promessa da terra como posse eterna Çahuzzat*olam, v. 8).
19. G. von Rad, Genesis, p. 58, nota que os dois últimos verbos sao especialmente
fortes.
20. Elliger, o.c., 143, em seu último parágrafo faz uma afirmação impressionante:
“No exilio babilónico a palavra se origina como um conforto e uma advertência
do maravilhoso, poderoso e soberano Deus da promessa, que é Senhor da histó­
ria universal e em especial da história de Israel, e que permanece definitivamen­
te comprometido com este propósito: dar novamente a um grande povo a posse
eterna da terra de Canaá.”
21. A versão RSV de saresu.
22. O duplo uso de “manipular” na mesma linha pode sugerir uma dificuldade, BH
propõe traduzir uredu (“sujeitar”) por urebu (“multiplicar”), que fortale­
ceria o paralelo com 1,28. Contudo, urebu é um bom paralelo de saresu
tal qual se encontra agora.
23. Esta combinação de palavras, “Temor e tremor”, sem dúvida não foi criada
pelos escritores sacerdotais; eles escolheram deliberadamente um par de pala­
vras que sempre foram usadas no passado em contextos de guerra santa: os
fiéis recebiam a incumbência de confiar em Iahweh durante a batalha e ser fiéis.
Em alguns textos provavelmente mais antigos é usada esta fórmula, como em Js
8,1 (referente a Hai) e 10,25 (referente à batalha no sul). Em ambos os casos,
trata-se do acesso de Israel à Terra Prometida, sob a liderança de Iahweh. Em­
bora os textos em sua forma atual (quanto aos materiais) estejam relacionados
com DtrH, não pode haver dúvida de que está fórmula provém de tradições
mais antigas sobre a guerra santa, em que Israel era chamado do temor à fé. Uma
série de textos empregam a mesma fórmula, embora a maioria deles seja clara­
mente mais antiga (Dt 1,21; 31,8; Js 1,9). Um uso mais antigo aparece em ISm
17,11, em que Israel não confiou em Iahweh e por isso temeu os filisteus.
189
Uma forma estreitamente paralela é usada em dois outros textos. O termo
hat cedeu a pahad, mas o sentido e a força emocional não mudaram:
“Ninguém resistirá a vós: Iahweh vosso Deus espalhará o medo e o terror
de vós por toda a terra em que pisardes, conforme vos falou” (Dt 11,25; os
itálicos são acréscimo). A partir de hoje começo a espalhar o terror e o
medo de ti em meio aos povos que existem sob o céu. Eles ouvirão a tua fa­
ma, tremerão de medo diante de ti e desfalecerão” (Dt 2,25).
Embora este segundo versículo aparentemente seja DtrH e portanto tardio,
a referência a Dt 11,25 parece ser muito antiga. Sobretudo, ele usa o termo da-
rak não diferente de “dominai” de Gn 1,28.
Com base nesta evidência resta pouca dúvida de que P emprega aqui uma
antiga fórmula de conquista para falar da reentrada na terra após o dilúvio.
Este uso não é diferente do relato da entrada na terra no período de Moisés/Jo­
sué. O uso que P faz refere-se, sem sombra de dúvida, à reentrada na terra após
o exílio.
24. “Genesis 8,21 und die Urgeschichte des Jahwisten”, KuD, 1 (1961) 69ss.
25. O uso de ereç é notável e não pode ser acidental. Nas fórmulas da narrativa do
dilúvio, que citamos, o termo é usado nos três textos, e duas vezes em 8,17.
Também é usado na fórmula integral de Gn 1,28. No esquema dos cinco verbos
ele é juntado ao terceiro e ocupa assim uma posição central. E sem dúvida é o
objeto implícito do quarto e quinto verbo. Elliger, o.c„ 134, notou que em Nm
20 uma pergunta-chave diz respeito àquela tribo que irá entrar na terra prometi­
da, a dos pais pecadores ou de seus filhos (Nm 20,12.24). Isso se ajusta muito
bem à questão colocada durante o exílio: se os filhos da geração rebelde (que
aparentemente é responsável pelo exílio) retornarão à terra (cf. Ez 18). Elliger
nota também o motivo da terra presente na discussão de Ex 29,45, referente à
morada de Deus, bem como em Nm 13,2; 26,12. Assim, mesmo nas seções
jurídicas, notamos o interesse pela terra.
WolfT, em sua discussão do querigma javista, cap. 3, supra, sugeriu que a
“terra” de que se fala refere-se às realidades políticas do século X. Em P, num
esquema paralelo, “terra” seguramente se relaciona com a realidade política da
expulsão da terra e com a expectativa de um retorno. Uma opção totalmente
nova na exegese aparece quando se traduz ereç por “país” em vez de “terra”.
Esta é uma maneira pela qual Israel politizou e historicizou motivos mitológi­
cos. Resta pouca dúvida quanto a isso.
26. Nos antigos materiais homiléticos do Deuteronômio, como em 8,12-16, nao há
dúvida de que a terra se destina à fertilidade, produtividade, segurança (cf. as
bênçãos e maldições de Dt 28 e Lv 26). Muitos desses materiais se referem à
prosperidade na terra; e como a terra é abençoada ou amaldiçoada, esse propó­
sito é fonte de vida ou de morte. Sucintamente, em Lv 26,6: “Estabelecerei a
paz na terra”, (shalom ba'areç) e em Jr 29,10-11: “ . . . eu realizarei a minha
promessa de vos fazer retornar a este lugar . . . (com) desígnios de paz (sha-
lom) . .
27. Samuel R. Jiilling, Zur Datierurtg der “Genesis-P-Stücke”, namentlich des Ka-
190
pitel Genesis 17, Kampen, Netherlands, Kok, 1964, provou que este capítulo é
muito antigo, mas seu argumento não teve muitos adeptos significativos, cmbo
ra não haja dúvidas de que este capitulo contém elementos antigos.
28. Estou omitindo a extensa narrativa de P em Gn 23 porque nossa fórmula nao
ocorre ali. Contudo, M. R. Lehmann, “Abraham’s Purchase of Machpelah and
Hittite Law”, BASOR, 129 (1953) 15ss, provou, à base de um paralelo heteu,
que P, quando não usa a fórmula querigmática, usa um relato de compra da ter-
ra para legitimar uma nova conquista. E surpreendente que, embora a narrativa
seja P, e muitos estudiosos tenham aceitado a proposta de Lehmann, na minha
opinião nossa compreensão do interesse teológico de P não fica significativa­
mente alterada. O mínimo que podemos dizer é que Gn 23 apresenta P interes­
sado na aquisição da terra, sem relacionar isso com a questão mais geral da in­
tenção de P. Uma exceção que podemos notar é von Rad, “The Promised Land
and Yahweh’s Land in the Hexateuch”, The Problem of the Hexateuch, 90: ele
de fato atribui este sentido a P. Mais recentemente G. M. Tucker, “The Legal
Background of Genesis 23”, JBL, 85 (1966) 77-84, levantou importantes ques­
tões sobre a hipótese geralmente aceita de Lehmann.
29. A afirmação de P é reminiscência da afirmação muito mais antiga em 24,60.
30. O nome “El Shaddai” é sem dúvida propriedade peculiar de P em termos de sua
importância teológica. Existem ainda uns outros poucos usos nos antigos poe­
mas (Gn 49,25; Nm 24,4.16), mas isso nao afeta sua função na tradição. É uma
chave da teologia da revelação de P (cf. Gn 17,1; 28,3; 35,11; 48,3 e especial­
mente Ex 6,2-5), mas seu sentido é obscuro. Presumivelmente seu sentido pode
ser determinado quando o relacionamos com os materiais extrabíblicos, mas
isso pouco ajuda na compreensão de P. Para uma revisão dos dados filológicos,
cf. Bailey, “ Israelite ‘El Shadday and Amorite Bêl Shadê”, JBL, 87 (1968) 434-
438.
31. A fórmula em 35,11 é digna de nota (a) porque menciona reis que viriam da
família da promessa, uma referência clara ao esquema anterior de realeza
abraâmico/davídica (cf. 17,6 e Ronald E. Clemente, Abraham and David, Chi-
gago, Alec R. Allenson, Inc., 1967) e uma alusão e uma esperança política no
futuro, não diferente do Dêutero-Isaías e (b) por causa do duplo uso de ereç no
v. 12:
“Eu te dou a terra que dei a Abraão e a Isaac.
Darei esta terra a ti e à tua posteridade depois de ti.”
O duplo uso é paralelismo, de maneira que não há dúvida quanto à ênfase.
32. Metodologicamente, é importante distinguir entre a tarefa da filologia e a tarefa
da teologia bíblica, que procura compreender a mensagem da tradição. Para
esta última, a filologia do nome divino não é particularmente importante, e não
lhe devemos atribuir grande relevância.
33. O termo para posse ‘ahazt é diferente dos encontrados anteriormente, mas a
substância não se altera. Esse termo é preferido especialmente por P.
34. Albrecht Alt, “Der Gott der Vàter”, Kleine Schriften zur Geschichte des Volkes
Israel, Munique, C. H. Beck Verlag, 1959, mostrou que a promessa da terra é
191
muito antiga e profundamente enraizada na tradição patriarcal. Cf. também
Frank M. Cross Jr., “Yahweh and the God of the Patriarchs”, HTR, 55 (1962)
225-259, para uma discussão mais recente dos dados.
35. Este tema foi totalmente revisado recentemente por Gerhard Wehmeier, Der
segen im Alten Testament, Basiléia, F. Reinhardt Verlag, 1970; e Willy Schot-
troff, Der altiraelitsche Fluchspruch, Neukirchen-Vluyn, Neukirchener Verlag,
1969, 211, nota que a combinação sacerdotal: “Sede fecundos e multiplicai”
ocorre somente em Jr 3,16; 23,3 e Ez 36,11, além de P. A promessa de uma
nova multiplicação é também importante tema do Dêutero-Isaías no exílio; cf.
Is 49,21; 54,1-3.
36. De especial interesse e importância é o uso de “subjugado” em 2Sm 8,11, ao
descrever os sucessos de Davi num texto que é antigo: uO rei Davi os consa­
grou também a Iahweh, com a prata e o ouro que ele tinha consagrado, prove­
niente de todas as nações que tinha subjugado (Kibbesh). .
37. Estes dados foram resumidos e discutidos em muitos lugares. Cf. Alexandre
Heidel, The Babylonian Genesis, Chicago, University of Chicago Press, 2? ed.,
1951, e Claus Westermann, Genesis Accounts of Creation, 26ss. Westermann,
104ss, oferece uma extensa bibliografia.
38. Quanto à centralidade do Shabbat para o exílio, ver G. von Rad, Old Testa-
ment Theology, I, 79.
39. Isso é evidente em muitos de seus escritos, p. ex.: Genesis, Old Testament Theo­
logy, I e The Form-Critical Problem of the Hexateuch. Em 0T f I, 135, ele escre­
ve que o Hexateuco “caminha em majestosa procissão pelo deserto até chegar à
promessa última, a terra de Canaã”. As últimas linhas do estudo do Hexateuco
(p. 78) fazem eco a esta afirmação: “Da criação do mundo em diante, que ca­
minho notável, que vicissitudes, que riqueza de ordenamentos e planos divi­
nos conduzem a esse único objetivo: o assentamento! Mas daí então o Hexateu­
co não está apenas interessado na religião de Israel, nem mesmo na reivindica­
ção de toda obediência humana por Deus; ele tem como meta colocar as bases
do reino de Deus na terra, no alicerce de toda existência humana.”
40. A data do exílio agora parece segura: cf. G. von Rad, Old Testament Theology,
I, 79. Elliger foi longe ao mostrar que P não contém um programa adaptado a
qualquer situação, como se afirmou freqüentemente a respeito de seus interesses
cultuais “estáticos”, mas sim um programa que corresponde precisamente às
necessidades do exílio. Como as outras tradições do Pentateuco, também esta
foi composta para fazer frente a uma crise. Sem dúvida, datar essas tradições
não é um exercício acadêmico, mas uma necessidade para se conhecer a intera­
ção de um mundo e história.
41. A tradição da terra reúne o motivo muito antigo da promessa, que Alt discerniu,
e o momento de maior controle da íerra no tempo da monarquia unificada. As­
sim, Davi e Salomão representam o cumprimento das antigas promessas.
42. Ver o resumo de P. D. Miller Jr., “The Gift of God: the Deuteronomic Theolo­
gy of the Land”, Interpretation, 23 (1969) 451-465.
43. Cf. C. Stuhlmueller, “The Theology of Creation in Second Isaias”, CBQ, 21
192
(1959) 429-467, e Rolf Rendtorff, “Die theologische Stellung des Schöpfungs­
glaubens bei Deuterojesaja”, ZTK, 51 (1954) 3-13.
Para comparação mais ampla entre o Dêutero-Isaías e as tradições sacerdo­
tais, ver A. Eitz, Studien zum Verhältnis von Priesterschrift und Deuterojesaja,
Heidelberg, Dissertação não-publicada, 1970. Sou grato a Gary Stansell por
esta referência. Infelizmente, Eitz não examinou especificamente os motivos da
conquista.
44. Que o centro do querigma de P está numa nova posse da terra foi sugerido por
Eiliger; e agora ficou mais claro através de Horst Dietrich Preuss, Jahweglaube
und Zukunftserwartung, Stuttgart, W. Kohlhammer Verlag, 1968. Preuss pres­
ta particular atenção a Nm 14,20-24. Nesta perícope convergem vários motivos
sacerdotais importantes: (a) que a terra será cheia de glória faz paralelo com Ex
40,34-38. Muitos acham que este é o centro de P; (b) mas este enunciado é leva­
do a uma afirmação mais ampla sobre a terra, olhando retrospectivamente para
a promessa dos pais (v. 23) e projetando em direção à posse da terra pelo cren­
te, simbolizado por Caleb (v. 24); e (c) o interesse predominante desta composi­
ção literária em distinguir entre a geração infiel do passado, que não pode en­
trar na terra, e a geração futura que vai possuí-la. Este contraste é especialmen­
te adequado ao momento do exílio anterior à reentrada. Preuss cita, na p. 123, a
nova conquista da terra como também Ez 11,4-21; 36,11-32; 37,1-28; Os 2,21-
23; e culmina em Mt 5,5. Não há necessidade de dizer que também o Dêutero-
Isaías compartilha esse mesmo motivo (assim Preuss p. 38).
45. As demandas do Dêutero-Isaías sem dúvida aguçam a questão do poder relati­
vo de Iahweh e dos deuses babilônios. P está claramente interessado na mesma
questão, na medida em que ela se relaciona com a posse e reentrada na terra.
46. G. von Rad, Old Testament Theology, II, 373, nota a abertura do simbolismo
da conquista. Embora seus comentários se refiram ao Novo Testamento, certa­
mente a mesma utilização dos tipos é pertinente dentro do próprio Antigo Tes­
tamento.
47. Cf. meu artigo, “The Kerigma of the Deuteronomistic Historian”, Interpreta­
tion, 22 (1968), 387ss. Pelo fato de este adjetivo ser particularmente apropriado
à terra, é improvável que a afirmação de Gn 1,31 se refira a algo que não seja a
criação, isto é, à terra Prometida, já profundamente apreciada na antiga tradi­
ção, cf. p. ex., Gn 6,2.
48. Abraham Heschel, The Sabbath: íts Meaning for Modern Man, Nova York,
Farrar, Strauss e Young, 78-83.
49. Embora as sugestões (a) da fórmula: “É bom” e (b) do Shabbat como descanso
da terra não sejam desenvolvidas e até sejam precárias nesta conexão, basta no­
tar que grande parte do texto começa a se concentrar ao redor da terra fértil,
como sendo o ato criativo mais supremo de Iahweh.
50. Koch, o.e. 41, numa notável afirmação observou que o culto deve tornar possí­
vel a santidade. Em seus significativos parágrafos finais, Koch descreve a visão
que P tem do povo de Deus, isto é: vivendo sempre entre Deus e o nada, entre a
saúde e o pecado, entre a perdição e a salvação. O culto de P aborda esse
193
problema. Talvez as percepções de Koch possam estar mais diretamente rela­
cionadas com nosso tema. O culto serve como garantia da santidade necessária
à preservação da terra.
51. A estrutura hermenêutica de promessa-cumprimento na obra de von Rad e
Zimmerli, por exemplo, depende da continuidade da antiga promessa e do pos­
terior cumprimento histórico. As genealogias devem ser entendidas em termos
desta hermenêutica. Não há dúvida de que P afirma seu próprio tempo como
sendo de cumprimento das promessas da criação.
52. Nao é intenção deste capítulo relacionar P com o presente. Mas podemos notar
que este querigma tem implicações radicais entre as convulsões políticas, eco­
nômicas e culturais que determinam o futuro dos deserdados e privados de seus
direitos.

CAPÍTULO 7: A TAREFA PERMANENTE


DA CRÍTICA DA TRADIÇÃO
1. Leonhard Rost, “Die Uberlieferung von der Thronnachfolge Davids”, Das Klei-
ne Credo und andere Studien zum alien Testament, Heidelberg, Quelle and
Meyer, 119-253.
2. Ver especialmente James Flanagan, “Court History or Sucession Document? A
Study of 2 Samuel 9-20 and 1 Kings \-T \JB L , 91 (1972) 172-181; e L. Dele-
kat, “Tendens uns Theologie der David-Salomo-Erzàhlung”, Das fem e und
nahe Wort, ed. Leonhard Rost, Berlim, Alfred Topelmann, 1967, 26-36. Flana­
gan fornece a outra bibliografia correspondente.
3. Ver Gerhard von Rad, “The Beginnings of Historical Writing in Ancient Is­
rael”, The Problem of the Hexateuch and Other Essays, Nova York, McGraw-
Hill Book Co., 1966, 166-205. Ver, porém, Walter Brueggemann, “On Trust
and Freedom” interpretation, 26 (1972) 3-19, para uma apreciação do tema
narrativo da fé em Deus.
4. Walter Brueggemann, “Davi and his Theologian”, CBQ, 30 (1968) 156-181,
sugeriu estreitos laços de estrutura e motivo entre as duas obras de literatura.
5. Hans Walter Wolff, “Hoseas geistige Heimat”, TLZ, 81 (1956) col. 83-94, su­
geriu a base sobre a qual Osêias faz sua argumentação. Ver a crítica e aprecia­
ção desta conexão feita por Rolf RendtorfT, “Reflections on the Early History
of Prophecy in Israel”, History and Hermeneutict ed. Robert Funk, Nova York,
Harper and Row, 1967, 18-27. RendtorfT mostra as fortes ligações da tradição
entre Elias e Oséias. Quanto às amplas questões de lealdade religiosa e manipu­
lação politica, ver os vários ensaios de George Nendenhall, The Tenth Genera­
tion, Baltimore, The Johns Hopkins Press, 1972.
6. Ver a discussão do texto feita por George Coats, “Abraham’s Sacrifice of
Faith”, Interpretation, 27 (1973) 389-400, para uma abordagem metodologica­
mente autoconsciente.
194
7. Von Rad, Old Testament Theology, Nova York, Harper and Row, 1962, II,
263-277.
8. Quanto à crise teológica e à literatura do período exílico, ver especialmente Pe­
ter Ackroyd, Exile and Restoration, Old Testament Library Series, Phila­
delphia, The Westminster Press, 1968; e Enno Janssen, Juda in der Exilszeit,
Gottingen, Vandenhoeck e Ruprecht, 1956.
9. Norman Gottwald, Studies in the Book of Lamentations, Chicago, Alec R.
Allenson, Inc., edição revista em 1962, cap. 3.
10. Ibidem , 63, nota 1. Citando U. C. Todd, Gottwald escreve sobre o exílio o se­
guinte: “As circunstâncias que conduziram até ele, o próprio desastre e as con­
seqüências que se seguiram, constituem o tema global (do Antigo Testamen
to).”
11. A cronologia do livro de Jó sem dúvida não é certa, mas sugerimos a hipótese,
bastante plausível, de colocar Jó entre Jeremias e o Dêutero-Isaías. Ver espe­
cialmente as várias declarações de Samuel Terien sobre esta cronologia.
12. Aqui se faz referência às várias passagens de esperança em Jeremias 29-33. A
relação entre Jeremias e as tradições deuteronomistas é complexa, mas não tem
influência sobre o assunto em pauta. Ver. S. Hermann. Die prophetische Heils-
erwartungen im Alien Testament, Stuttgart, W. Kohlhammer Verlag, 1965,
188-204.
13. Hans Walter Wolff, Bíblia — Antigo Testamento — Introdução aos escritos e
aos métodos de estudo, Ed. Paulinas, SP, 1982, 2? ed., pp. 33ss.
14. Quanto à tentativa de Westermann de encontrar o núcleo central de P no con­
ceito de “glória”, ver o cap. 2, nota 14, acima.
15. Walter Zimmerli, “The Word of God in the Book of Ezequiel”, History and
Hermeneutic, 13, conclui com a afirmação: “Em Ezequiel ouvimos uma curiosa
e estranha formulação da sola g r a tia Essa ênfase é dada a P por Machholz e
no presente ensaio por Brueggemann.
16. Bertil Albrektson, Studies in the text and Theology o f the Book of Lamenta­
tions, Lund C. W. K. Gleerup, 1963, 214-239, vê a teologia deuteronomista
como uma das fontes importantes para a teologia de Lamentações.
17. Waiter Brueggemann, “Isaiah 55 and Deuteronomic Theology”, ZAW, 80
(1968) 191-203, sugeriu afinidades entre o historiador DtrH e o Dêutero-Isaías.
18. Ver o cap. 2, nota 11, acima. Cross questionou a opinião básica de Noth, de
que DtrH è em sua totalidade uma produção exílica. A hipótese de Noth foi a
premissa de toda a discussão recente. Cross contestou a cronologia de Wolff (c
Noth), baseado na idéia de que a destruição total de Jerusalém nao ocorre se­
não nos livros dos Reis, isto é, acha-se ausente de Josué, Juizes e Samuel. Em­
bora este juízo possa de fato ser correto, a força de seu argumento é reduzida
consideravelmente caso se reconheça que, conforme os historiadores, (a) a exi­
gência de destruição não precisa aparecer, a não ser com a vulgaridade de Salo­
mão, e (b) de qualquer forma a centralidade do Templo em lRs 8 pode exigir
restrição do tema da destruição, enquanto estiver sendo traçado o perfil do
Templo, seguramente no dia em que está sendo dedicado. Esta interpretação ex­
195
plicaria porque o anúncio de destruição é retardado. Sobretudo, como
Marchholz notou, a demora tornaria a passagem que se refere pela primeira vez
ao exílio e à destruição do Templo (lRs 9,1-9) plenamente relevante. Esta perí-
cope está intencionalmente situada logo após a oraçao de dedicação, quando o
historiador começa a tratar do tema que Cross considera como exííico. Em con­
traste com a opinião de Cross, sugiro que a demora no anúncio não tem nada a
ver com a cronologia, mas com a estrutura da narrativa: o historiador reservou
sua grande surpresa por uma questão de ênfase. Pode ser que em sua busca do
cenário histórico dos textos, Cross tenha desconsiderado a dialética de pro­
messa e ameaça, que pode ser entendida como sutil e irônica, e portanto não
precisa ser explicada em termos de estratos literários como ele sugeriu.
19. Ver especialmente a discussão de James Sanders, Torah and Canon, Phila­
delphia, Fortress Press, 1972, com especial referência às pp. 91-121.
20. Entre os estudos básicos de Crônicas se inclui Uberlieferungsgeschichtliche
Studien, Tubingen, Max Niemeyer Verlag, 1957,1; e von Rad, Das Geschichts-
bild des chronistichem Werkes, Stuttgart, W. Kohlhamme Verlag, 1930; ver
também sua Old Testament Theology, I, 347-354. Para localizar a tendência
central desta literatura, ver as discussões de D. N. Freedman, “The Chronicler’s
Purpose”, CBQ, 23 (1961) 436-442; Robert Noth, “Theology of the Chroni­
cler”, JBL , 82 (1963) 369-380; e Willian Stinespring, “Eschatology in Chroni­
cles”, 80 (1961) 209-219; e mais recentemente Roddy L. Braun, “Solomo­
nic Apologetic in Chronicles” JBL , 92 (1973) 503-516. Em relação aos ensaios
de WolfT e Brueggemann apresentados aqui, a mais séria abordagem paralela
da obra do Cronista é feita por Jacob Meyeres, “The Kerygma of the Chroni­
cler”, Interpretation, 20 (1966) 259-273. Ver também von Rad, “The Levitical
Sermons in 1 and 2 Chronicles”, The Problem of the Hexateuch and Other Es­
says, 267-280.
21. Esta antítese já foi afirmada por von Rad, Das Geschichtsbild, que pôs em con­
traste as formas escatológicas e nomistas de fé, e mais tarde Otto Plòger propôs
ser ela o motivo dominante da fé pós-exílica, em Theocracy and Eschatology,
Richmond, John Knox Press, 1968.
22. Ver Paul Hanson, “Jewish Apocalyptic against its Ancient Near Eastern Envi­
ronment”, RB, 78 (1971) 31-58; idem, “Zechariah 9 and the Recapitulation of
an Ancient Ritual Pattern”, JBL , 92 (1973) 37-59; e especialmente seu ensaio
programático, “Old Testament Apocalyptic Reexamined”, Interpretation, 25
(1971) 454-479.
23. Ver Frank M. Cross, “New Directions in the Study of Apocalyptic” Apocalyp­
ticism, ed. Robert W. Funk, Nova York, Seabury Press, Inc., 1969, 157-165.
Cross trabalha com os temas já indicados por Gunkel no apelo às antigas tradi­
ções míticas da criação e caos.
24. Ver Norm Perrin, What is Redaction Criticism?> Philadelphia, Fortress Press,
1969, sobre os sucessos atuais da pesquisa do Novo Testamento para situar a
tendência teológica de um escritor particular. Embora use métodos mais am­
plos e menos precisos, Perrin busca um objetivo não diferente do de Wolff.
196
25. Notamos novamente a posição radical assumida por Wink neste tipo de ques­
tão. Na p. 12, o.c. (cap. 1, nota 1, acima), ele discute especificamente a hipótese
de Graf-Wellhausen: “Nao há muita objeção quanto ao significado histórico da
hipótese Graf-Wellhausen (que hoje ninguém aceita tal como foi então formula­
da). Trata-se de um método útil para destruir a visao conservadora das origens
e da inspiração bíblicas, destruindo assim toda sua ideologia .. . Contudo, hoje
esta guerra em grande medida está terminada e a pesquisa crítica da Bíblia se
tornou o status quo estabelecido. Agora se tornaram visíveis os elementos ideo­
lógicos inconscientes em sua posição. E a infeliz conseqüência deste desmasca­
ramento não é só o fato de que a pesquisa bíblica liberal também se mostre
como ideologia, mas também a constatação de que deixou de ser utopia, e já
não mais caminha rumo a uma maior compreensão da verdade”.
26. A discussão de Sanders coloca a questão da autoridade num contexto comple­
tamente novo: na história dos relatos a comunidade veio a crer em si mesma.
Esta compreensão de autoridade tem importantes conexões com a compreen­
são de revelação na comunidade, notada acima, de H. Richard Niebuhr (cap. 1,
nota 2). Também pode esclarecer o atual interesse dominante pelos relatos e
contos de diversas fontes como Margaret Mead, Sam Keen e Harvey Cox.

NOTAS DO ADENDO

1. Esta progressiva perda de confiança se evidencia na terceira edição de História '


de Israel, Ed. Paulinas, SP, 1981, 2^ ed. Bright continua ligado a uma visão da
história de Israel baseada na síntese de Albright e seus alunos. Mas o tom das
reivindicações desta síntese é menos inflamado e polêmico. É como se houvesse
um novo respeito moderado pelas complexidades da história, que o método ar­
queológico não pode resolver nem reduzir substancialmente.
2. O termo convencional “patriarcal” se torna cada vez mais discutível por causa
de seu caráter exclusivo. Sugerimos ser mais conveniente usar a expressão “re­
latos ancestrais” para nos referirmos às narrativas de Gn 12-50 —tal como o fi­
zemos aqui.
3. John van Seters, Abraham in History and Tradition, New Haven, Yale Univer­
sity Press, 1975, e sua declaração anterior, “Confessional Reformulation in the
Exilic Period”, VT, 22 (1972) 448-459.
4. Thomas L. Thompson, The Historicity of the Patriarcal Narratives, BZA W,
133; Berlim, Walter de Gruyter, 1974.
5. John J. Bimson, Redating the Exodus and Conquest, JSOT, Suppl. 5, Sheffield,
Departament of Biblical Studies, University of Sheffield, 1978.
197
6. H. Darrel Lance, The Old Testament and the Archaeologist, Philadelphia, For­
tress Press, 1981.
7. Rolf RendtorfT, Das uberlieferungeschichtliche Problem des Pentateuch,
BZA W, 147, Berlim, Walter de Gruyter, 1977, e “Der ‘Jahwist’ als Theologe?
Zum Dilemma der Pentateuchkritik”, VT, Suppl. 28 (1975) 158-166. Felizmen­
te este segundo artigo está traduzido em inglês com o título “The ‘Yahwist’ as
Theologian? The Dilemma of Pentateuchal Criticis”,JSOT, 3 (1976) 2-10. Esta
questão de JOST inclui certo número de respostas críticas a Rendtorff, além de
uma cuidadosa revisão de seu livro feita por Ronald Clements, pp. 46-56. Esta
questão de JSOT é o resumo mais importante da presente discussão.
8. Já se encontra em inglês “The Form-Critical Problem of the Hexateuch”, The
Problem of the Hexateuch and Other Essays, Nova York, McGraw-Hill, 1966,
1-78.
9. A luta diante da proposta de RendtorfT e a possibilidade que ela oferece ilustra
o uso do “paradigma” de Thomas S. Kuhn, The Structure of Scientific Revolu­
tions, Chicago, University of Chicago Press, 1974. Na verdade, Rendtorff pro­
pôs uma revolução na metodologia científica.
10. No presente volume, por exemplo, Wolff (p. 73) segue von Rad quando fala da
“alta cultura literária revelada pelo javista . . .” Ver o resumo crítico desta in­
terpretação feito por Brueggemann, “Yahwist”, ÍDB SuppL, 971-975.
11. James L. Crenshaw, Studies in Ancient Israelite Wisdom, Nova York, KTAV,
1976, 16-20).
12. Hans H. Schmidt, Der sogenannte Jahwist: Beobachtungen und Fragen zur
Pentateuchforschung, Zurique, Theologischer Verlag, 1976. Ver também seu
comentário, “In Search of New Approaches in Pentateuchal Research”,
JSOT , 3 (1976) 33-42, e a resenha de seu livro feita por G. J. Wenham no mes­
mo número de JSOTt pp. 57-60.
13. Ver, por exemplo, Terence E. Fretheim, “The Theology of the Major Traditions
in Genesis-Numbers”, Revivew and Expositor, 74 (1977) 305-311, e Halligan,^
Critique of the City in the Yahwist Corpus, Tese, University of Notre Dame,
1975. Ludwig Schmidt, “Überlegungen zum Jahwisten”, EvTh, 37 (1977) 239
et passim argumenta vigorosamente em favor do século X como data, no con­
texto do império.
14. Ver a resenha de Peter Craghan, “The Elohist in Recent Literature”, Biblical
Theological Bulletin, 1 (1977) 23-35, e o cuidadoso resumo de T. E. Fretheim,
“Elohist”, IDB Suppl, 259-263.
15. Karl Jaros, Die Stellung des Elohisten zur Kanaanaischen Religion, Gottingen,
Vandenhoeck e Ruprecht, 1974.
16. O.e., 67-68.
17. H. Klein, “Ort und Zeit des Elohisten”, EvTh, 37 (1977) 247-260.
18. The Elohist and North Israelite Traditions, Missoula, Montana, Scholars
Press, 1977, 101-106. Ver a breve citação “Summaries of Doctoral Disserta­
tions”, HTR, 58 (1965) 455.
19. Ralph W. Klein, Israel in Exile, Philadelphia, Fortress Press, 1979, cap. 6, e
198
seu artigo “The Message of P”, Die Botschaft und die fíoten, ed. Jorg Jeremias
e Lothar Perlitt, Neukirchen-Vluyn, Neukirchener Verlag, 1981, 57-66. Ver
também a discussão de Terence E. Fretheim, “The Theology of the Major Tra­
ditions in Genesis-Numbers”, Review and Expositor, 74 (1977) 314-319, na
qual trata de P sob o título “Theology Forged in a Time of Dispair”.
20. Joseph Blenkinsopp, “The Structure of P’\ CBQ, 38 (1976) 275-292.
21. Ibid., 284.
22. Eugene E. March, “The Priestly Tradition: A Theology for Sojourners”, um ar­
tigo apresentado na Society of Biblical Literature, 1976.
23. Mary Douglas, Implicit Meanings, Londres, Routledge and Paul, 1975, cap.
17.
24. Y. Kaufmann, The Religion of Israel: From Its Beginnings to the Babylonian
Exile, Chicago, Chicago University Press, 1960.
25. Menahen Haran, Temples and Temple Service in Ancient Israel, Oxford, Cla­
rendon Press, 1978. A p. 7, n. 8, Haran reconhece que segue a direção de Kauf­
mann, mas que seu raciocínio difere um pouco deste. Minha impressão pessoal
é que Haran apresenta a questão com muito mais cuidado e precisão, já que
não está interessado nos pontos mais amplos e esquemáticos do hegelianismo
de Wellhausen, como Kaufmann. Haran (p. 204) resume assim sua tese:
“Em resumo, os autores de P relatam uma saga cultual separada de seu refe­
rencial atual. Esta saga converteu-se num tratado literário quando o próprio
Templo deixou de existir. O templo de Silo tornou-se em suas mãos, um mo­
numento artístico, o centro de um sistema utópico relembrando, dentro da
atmosfera do Templo de Jerusalém.”
B. A. Levine, “Priestly Writers” IDB SuppL, 683-687, notou e apreciou o pro­
gresso da abordagem de Haram além da de Kaufmann. A afirmação de Levine é
uma apresentação útil das principais questões.
26. Este problema de interpretação está na raiz de grande parte da discussão atual
referente aos modos de interpretação “literários” e “históricos”. Quanto à inter­
pretação “estênica” e “tensiva”, achei muito útil a discussão de Phyllis Trible,
God and the Rhetoric of Sexuality, Philadelphia, Fortress Press, 1978, cap. 2,
mesmo que seu trabalho seja secundário no tocante às categorias de crítica lite­
rária. Quanto à função da imaginação, na medida em que influencia os modos
de interpretação, ver o breve comentário de Roberto Polzin, Moses and the
Deuteronomist, Nova York, Seabury Press, 1980, 205-212. Quanto à função da
imaginação na interpretação, ver Michael Fishbane, Text and Texture, Nova
York, Schocken, 1979, XIII e passim. Fishbane fala alternadamente em “imagi­
nação reflexiva”, “imaginação projetiva” (p. 125) e “imaginação histórica” (p.
140). Quanto ao papel libertador da imaginação na interpretação, ver especial­
mente Paul Ricoeur, “The language of Faith” USQR, 28 (1973) 213-224, reim­
presso em The Philosophy of Paul Ricoeur, ed. por Charles E. Reagan e David
Stewart, Boston, Beacon Press, 1987, especialmente as pp. 230-238. Eu não su­
giro que estas obras “construtivas” devam ser preferidas a uma análise como a
199
de Haran, mas que estas diferentes perspectivas e metodologias darão inevita­
velmente resultados diferentes.
27. Este assunto foi revisto integral e cuidadosamente por Richard D. Nelson, The
double Redaction of the Deuteronomistic History, JSOT SuppL, 18 (1981).
28. Rudolf Smend, “Das Gesetz und die Vòlker: Ein Beitrag zur deuteronomistis-
chen Redaktionsgeschichte”, Probleme biblischer Theologie, ed. por Hans Wal-
ter WolfT, Munique, Chr. Kaiser Verlag, 1971, 494-509.
29. Walter Dietrich, Prophetie und Geschichte: Eine redaktionsgeschichtliche Un-
íersuchung zum deuteronomistischen Geschichtswerk, FRLANT, 108, GÒttin-
gen, Vandenhoeck e Ruprecht, 1972.
30. Timo Veijola, Die Ewige Dynastie, Helsinki: Suomalainen Tiedeakatemia,
1975.
31. Tenho a impressão de que o mesmo princípio está em operação quando Cross
atribui elementos do texto a diferentes editores, Esta maneira de dividir o texto
evita quaisquer incongruências literárias deliberadas.
32. Robert Polzin, Moses and the Deuteronomist, n9 26.
33. Ibid.t 12-16.
34. Ibid., 74,84; cf. 162.
35. Ibid., 15-16.
36. Brevard S. Childs, Introduction to the Old Testament as Scripture, Philadelphia,
Fortress Press, 1979. Em 1976, George W. Coats (From Canaan to Egypt,
CBQ Monograph Series, 4, Washington, The Catholic Biblical Association of
America, especialmente pp. 55-79) demonstrou ter grande sensibilidade frente a
esses problemas. Coats está bem consciente da problemática da crítica de fon­
tes e sua inconveniência para um programa teológico. De forma bastante cuida­
dosa ele se fixa na análise das fontes, mas sua tendência dominante é tentar ver
toda a narrativa tal como apresentada a seguir:
“A questão é que o texto massorético deveria constituir o fundamento básico
da exegese. O ponto de partida, portanto, nao é uma reconstrução de um
texto javista, nem de um texto eloísta, nem de um texto nômade. Em vez
disso, o ponto de partida deveria ser o texto massorético em sua forma fi­
nai, o texto recebido. O pressuposto por trás desta questão é que o texto
massorético é um texto unificado e consistente, aberto à exegese tal qual es­
tá, a não ser que alguma evidência segura prove em contrário que ele abran­
ge duas ou mais fontes ou exija reconstrução. Portanto, parece-me que seria
uma metodologia inadequada supor desde o início que qualquer texto dado
do Pentateuco seja uma composição, sendo a principal tarefa a de dividir
essa composição em suas várias partes. Em vez disso, devemos supor meto­
dologicamente que o texto que desejamos analisar é uma unidade literária.
Acima de tudo, não é necessário provar a unidade literária, já que o texto
massorético se encontra agora numa forma unificada. O peso da prova resi­
diria no argumento contrário. Seria necessário provar que o texto reflete
uma unidade sintética composta por duas ou mais camadas textuais diferen­
tes (p. 58), caso a evidência permitisse tal crença referente a qualquer texto
dado.”
200
37. Childs, ox., 74.
38. Ibid.
39. Ibid., 74-75.
40. Como indiquei em meus breves comentários, “The Childs Proposal: A Sympo
sium”, Word and World (1981) 11-115, creio que existe uma grande incon
gruência entre o programa teológico de Childs e os fundamentos literários
sobre os quais eie procura apresentar seu assunto. Parece-me que o escopo deve
ser traçado mediante argumento teológico e não em termos da moldura literá
ria. A insistência de Childs nisto pode ter algum mérito, mas enquanto argu
mento literário, deve competir com propostas literárias alternativas. Nâo c pre
ciso dizer que a proposta de Childs recebeu séria resposta crítica. As respostas
mais importantes, que eu saiba, são as de James Barr, “Childs’ Introduction to
the Old Testament as Scripture”, J S O T 16 (1980) 12-13 e Walter Harrelson
em JBL, 100 (1981) 99-103.
41. Em seu comentário sobre Oséias, Francis I. Andersen e David Noel Freedman,
Hosea: A New Translation with Introduction and Commentary, vol. 24, An­
chor Bible, Garden City, N. Y., Doubleday and Co., 1980, tendem a ser radi­
calmente críticos frente ao método de crítica da forma de Wolff. Contudo, valo­
rizam sua sensibilidade teológica: “Já assinalamos as limitações resultantes da
dedicação de Wolff a uma abordagem histórico-Iiterária estrita. Mas em contra­
partida apresenta um tom positivo e agradável em sua exposição teológica” (p.
76). Nas mãos de tal expositor, o método não pode se tornar o assunto prepon­
derante.
42. Este novo programa, que diz respeito à análise de fontes no Pentateuco e tenta
ver o texto integralmente, evidencia-se na declaração equilibrada e sensata de
Bernhard W. Anderson, “From Analysis to Synthesis: The Interpretation of
Genesis 1-11” JBL, 97 (1978) 23-29. Ver também sua declaração mais comple­
ta e programática destas questões em “Tradition and Scripture in the Commu­
nity of Faith”, JBL, 100 (1981) 5-21. Vale a pena notar também o proveitoso
estudo de Davi J. A. Clines, The Theme of the Pentateuch (JSOT SuppL, 10,
1978). Clines faz alusão (pp. 7-8) a estes ensaios, mas seu próprio trabalho é
uma proposta de uma “abordagem mais holística”, que inicia com “o Pentateu-
co em sua forma final” (pp. 8 e 10). Clines agrupa os presentes ensaios sob as
abordagens metodológicas gerais “atomísticas” e obcecadas com o “geneticis-
mo”. Clines, juntamente com Polzin, é mais precavido do que Childs, pois pare­
ceria tratar-se de conciliar ambas. Mas é justamente esta a questão apresentada
aos estudiosos. Devemos também chamar a atenção para o artigo importante e
perspicaz de Clines, “Story and Poem: The Old Testament as Literature and as
Scripture”, Interpretation, 34 (1980) 115-127. A insistência de Clines é que de­
vemos entender os materiais bíblicos como literatura. Só depois de nos termos
ocupado com eles como literatura é que podem ser considerados como Escritu­
ra. Neste sentido, seu programa concorda com muitos dos desenvolvimentos
recentes que registramos aqui. Contudo, as categorias de Clines não estão niti­
damente definidas. No final de sua obra, distingue entre o “sentido” que o texto
201
tem em seus próprios termos (que ele endossa) e a “mensagem” ou “querigma”
do texto (frente ao qual ele mantém grandes reservas). A questão está muito
bem formulada, se por mensagem ou querigma se entende uma tendência de re­
duzir o assunto ou remodelá-lo em categorias estranhas. Mas ainda precisamos
perguntar se existe necessariamente uma mútua exclusão entre o sentido intrín­
seco primordial e a mensagem interpretada. Se tomamos isso com toda serieda­
de, devemos concluir que não podemos fazer nenhum comentário interpretativo
sequer, porque isso já significaria passar do próprio sentido do texto a uma
mensagem produzida pelo intérprete. E com toda certeza Clines não tinha em
mente tal exclusão.
Por outro lado, é evidente que Clines e Childs, entre outros, estão situados
metodologicamente em lugares bem diferentes daqueles refletidos pelos ensaios
de Wolff. Quanto a isso não podemos discutir. Mas, por outro lado, é importan­
te que esta questão não seja entendida erroneamente. Para resolvê-la, devemos
perguntar se Clines e os outros não aplicam algum tipo de peso à “mensagem”
ou “querigma” que é inapropriado, dada sua própria inclinação a encontrar
também uma afirmação teológica no texto, mesmo que seja chamada “tema”
em vez de “mensagem”. Por isso sugiro que a verdadeira questão diz respeito a
uma tendência analítico-dissecadora contra uma tendência mais sintética. Isso é
muito diferente de tomar um sentido primordial ou encontrar uma mensagem.
Pois todos estes intérpretes, inclusive Childs, trabalham com uma enorme sensi­
bilidade teológica e vão longe articulando a reinvindicaçao teológica do texto.
Não importa que não seja chamada de “mensagem”, “querigma” ou “tema”.
Não obstante, é um sentido ou afirmação que não se desprende do texto sem
passar pelo processo de elaboração destes intérpretes. Assim, não deveríamos
confundir um problema de método literário com uma relutância frente ao labor
teológico. Existe uma crescente relutância frente a um certo método literário
que tem uma tendência à dissecação do texto. Mas no uso do instrumental teo­
lógico, parece-me que Childs e Clines no final querem fazer exatamente aquilo
que antes deles von Rad e Wolff já tinham feito.
43. Norman K. Gottwald, The Tribes ofYahweh, Maryknoll, N. Y., Orbis Books,
1979. Tradução em português em preparação por Ed. Paulinas.
44. Ibid.t pp. 100-114.
45. Quanto ao estudo básico de von Rad, ver nota 8. Gottwald, o.c. 88-99, está ple­
namente consciente das críticas feitas à obra de von Rad, especialmente por
Weiser. Mas ele percebe igualmente algumas importantes convergências com
sua própria análise sociológica:
“De minha parte, von Rad demonstrou que algum tipo de história traditiva
e separação cultual das duas correntes de tradição embasam o hiato literá­
rio. Mas contesto a conveniência da explicação particular que ele oferece.
Estou pronto a admitir que a hipótese de von Rad sobre cenários de festa
originalmente diferentes para os dois tipos de tradição podem remontar cor­
retamente á situação dos povos proto-israelitas.”
Contudo, a análise de von Rad não pode ser usada tão livremente (pp. 89 e 91).
202
46. Em minha revisão de seu livro, “The Tribes of Yahweh: An Hssay Review",
JAAR, 48 (1980) 441-451, asinaiei que talvez Gottwald superviüorize a iniciativa
da dinâmica social em detrimento do fator teológico. Talvez ele não seja sufi­
cientemente dialético em seu materialismo. Mas à p. 697 ele cita com razão Bu
ber contra estas sociologias que consideram a religião como "um tipo de projc
ção passiva ou um espelho refletor do sentimento de grupo". F!c insiste num ou
tro tipo de sociologia da religião que afirma a força dinâmica do fator religioso.
Esta alusão se encontra ali, embora eu preferisse que Gottwald não tivesse mc
nosprezado tanto esse fator.
47. Note que Childs, o.c., 75, cita o apego a esta hipótese como sendo uma tias fra
quezas dos métodos que ele critica. Embora esta hipótese seja arriscada, é im
possível imaginar que a investigação científica possa avançar sem hipóteses di
retivas. Sobretudo, não creio que a interpretação teológica de von Rad e de
Wolff seja dependente de certas construções eruditas, mesmo que o argumento
necessariamente seja lançado em relação às terorias reinantes. Isto é, o lança
mento deste argumento poderia estar relacionado com as construções do credo,
aliança, ação no culto, confederação tribal, etc. Contudo, não penso que estas
construções sejam decisivas para o manuseio teológico do texto. Havendo ou
tros esquemas científicos, o mesmo instrumental teológico pode simplesmente
receber uma disposição diferente. Assim, uma violação de certos esquemas
científicos nao anula necessariamente uma interpretação teológica feita em rela
ção a ela.
48. A atenção de Gottwald aos fatores sociais nas tradições proféticas apresenta
estreitos paralelos na obra de Wolff, especialmente com referência a Miquéias.
Cf. WolfT, “Micah the Moreshite —the Prophet and His Back-ground”, Isrueli
te Widsom, ed. por John Gammie, Missoula, Montana, Scholars Press, 1978,
77-84. Ver seu tratamento mais expositivo de Miquéias em Micah the Prophet,
Philadelphia, Fortres Press, 1981. A influência de Gottwald no estudo dos pro
fetas é evidente no esmerado estudo feito por Robert B. Coote, Amos Anumg
the Prophets, Philadelphia, Fortress Press, 1981, especialmente às pp. 24-32. A
análise sociológica de Coote, feita com mais precisão, não é muito diferente tia
conclusão a que chegou Wolff, referente ao ambiente de Miquéias.
49. Quanto ao artigo de van Seters, ver nota 3. É instrutivo observar as diferentes
formas de método, dependentes da maneira como a questão é colocada. Gott
wald usa análise social primeiramente para discernir a função positiva do texto.
Van Seters, por outro lado, está preocupado com as questões históricas. Por is
so, em primeiro lugar está interessado em refutar uma cronologia comum.
50. O.c., 74.
51. A obra de Gottwald, “Sociological Matrix and Canonical Shape in Old l esta
ment Studies”, artigo não publicado, 1980, ofereceu uma discussão honesta e
sugestiva das formas em que estas abordagens poderiam servir de auxilio mú­
tuo.
52. Norman Habel, Literary Criticism of the Old Testament, Guides to Biblical
Scholarship. Old Testament Series, Philadelphia, Fortres Press, 1971.
203
53. David Robertson, The Old Testament and the Literary Critic, Guides to Bibli­
cal Scholarship, Old Testament Series, Philadelphia, Fortress Press, 1977.
54. Polzin, o.c., 7-13. Especificamente, “uma análise histórico-científica do que ele
significa” (p. 3); “uma análise literária competente do material bíblico ê neces­
sária até mesmo para uma compreensão científica preliminar daquilo que este
texto antigo significa” (p. 5). Assim, Polzin considera ambos necessários. Mas,
pelo fato de enfatizar respectivamente as palavras “adequado” e “preliminar”,
não deixa dúvida quanto à prioridade a ser dada entre eles.
55. Childs, o.c., 74.
56. Uso o termo “proclamação” de propósito, na forma sugerida por Paul Ricoeur,
“manifestation and Proclamation”, The Journal of the Blaisdell Institute, 12
(1978). Ver o desenvolvimento do modelo de Ricoeur, especialmente ilustrativo,
feito por David Tracy, The Analogical Imagination, Nova York, Crossroad,
1981, 202-218.371-404.
57. James A. Sanders, “Adaptable for Life: The Nature and Function of Canon”,
Magnalia Dei: The Mighty Acts of God, ed. Por Frank Moore Cross, Werner
E. Lemke e Patrick D. Miller, J., Garden City, N. Y. Doubleday and Co. Inc.,
1976. Sanders abordou este assunto em vários lugares, mas este é sua declara­
ção mais compreensiva sobre ele.
58. Paul hanson, Dynamic Transcendence, Philadelphia, Fortress Press, 1978, fez
um valioso uso do termo dinâmica. Seguramente, Hanson não está interessado
na dinâmica das fontes/tradiçÔes enquanto tal, mas nas duas trajetórias que ele
chama de “teológica” e “cósmica”. Mais tarde ele desenvolve este argumento
em seu livro Diversity in the Bible: Maligned Guardian of the Living Word,
prestes a aparecer pela Fortress Press. Ver minha declaração sumária sobre as
duas camadas da tradição que grosseiramente correspondem às de Hanson em
“Trajectories in OL Literature and the Sociology of Ancient Israel”, JBL, 98
(1979) 161-185. É claro que este estudo das duas trajetórias seja questionável
para Clines e Childs com base nos fundamentos metodológicos e hermenêuticos
das antigas fontes. Contudo, não vejo como essas reinvidicações do texto pos­
sam ser plenamente entendidas sem prestar atenção à dinâmica do texto.

204
ÍNDICE

5 Prefácio
9 Introdução
A PALAVRA EM SUA PARTICULARIDADE E
PODER
Walter Brueggemann
11 1. QUESTÕES ABORDADAS NO ESTUDO DO
PENTATEUCO
Walter Brueggemann
33 2. A METODOLOGIA QUERIGMÁTICA DE
WOLFF
Walter Brueggemann
47 3. O QUERIGMA DO JAVISTA
Hans Walter Wolff
79 4. OS FRAGMENTOS ELOÍSTAS NO PENTATEU­
CO
Hans Walter Wolff
99 5. O QUERIGM A DA OBRA HISTÓRICO-
DEUTERONOMISTA
Hans Walter Wolff
121 6. O QUERIGMA DOS ESCRITORES SACERDO­
TAIS
Walter Brueggemann
139 7. A TAREFA PERMANENTE DA CRÍTICA DA
TRADIÇÃO
155 Adendo à primeira edição
OS RECENTES DESENVOLVIMENTOS
Walter Brueggemann
173 NOTAS
Impresso na Gráfica de Edições Paulinas - 1984

Via Raposo Tavares, Km 18,5 - 05550 SÃ O PA U LO


O dinamismo das tradições do Antigo Testamento ofe­

C áceres
rece o melhor tratamento atual das tradições do Pen- *

tateuco tais como atuaram no passado e como podem

Capa: Francisco
ajudar a Igreja hoje.
W olff considera a tradição de fé de Israel como uma
contínua resposta querigmática a uma variedade de
desafios culturais. Brueggemann apresenta essa vi­
são dinâmica da tradição. #

Os autores abordam o Pentateuco como um tesouro


de novas expressões de fé resultantes dos conflitos
entre as fórmulas tradicionais e as condições sociais
em transformação.
A Igreja de hoje só conseguirá permanecer espiritual­
mente viva se suas tradições continuarem a ser tão
*

adaptáveis quanto o foram na comunidade de vetero-


testamentária.
W olff e Brueggemann afirmam que as modernas cri­
ses de fé deveriam ser resolvidas com novas articula­
ções, à maneira do Antigo Israel — inovadoras e per­
tinentes quando fortalecidas pela relevância do
passado.

WALTER B R U E G G E M A N N é professor de Exegese do Antigo T estam en to e decano


para assuntos acadêmicos do Eden Theological Seminary, Estados Unidos.
É autor de inúmeras obras sobre tem as bíblicos, entre as quais, A im agin ação p ro ­
fética, Edições Paulinas, São Paulo, 1983.

H A N S WALTER WOLFF é professor de Exegese do Antigo testam en to da Universi­


dade de Heildelberg, Alemanha. Escreveu vários comentários sobre o Antigo Tes­
ta m e n to e é pastor da Igreja Evangélica na Alemanha.
De suas obras encontra-se em português: Bíblia: A n tig o Testam ento — Introdução
aos escritos e aos métodos de estudo, Edições Paulinas, São Paulo, 1979.
5-00053-6

Anda mungkin juga menyukai