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Nelson Rodrigues

DEZ OIT O
QUILÔMET ROS DE
MULHER NUA
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A barriga do Chacrinha é uma paisagem. Digo isso e paro.


Não ia começar com o homem da buzina e sim com Dostoievski.
(Chacrinha virá depois.) Eis o que eu queria dizer: – num aniversário
da morte de Pushkin, o romancista fez-lhe um discurso. Falou uma
hora, duas, sei lá. E o discurso foi uma alucinação. O olhar de
Dostoievski vazava luz como o de um santo. Pushkin foi apresentado
como um profeta. O poeta tem de ser profético ou não é poeta. E o que
anunciava Pushkin? A Nova Rússia. Sim, anunciava uma Rússia que se
virava e revirava no ventre do tempo. E essa Rússia ainda não revelada
diria ao mundo a grande Palavra Nova. Foi isso, se bem me lembro, o
que disse Dostoievski.
E, quando acabou, o auditório enlouqueceu. As pessoas se
abraçavam, as pessoas se beijavam. Havia um choro unânime, um
gemido geral e grosso, como que vacum. Uns trepavam nas cadeiras,
outros as cavalgavam. Um velhinho soluçava: – “Quero morrer, quero
morrer”. Ninguém entendia essa brusca e senil nostalgia da morte. E
uma moça, de uma beleza jamais concebida, veio do fundo do salão.
Caminhava, ereta, de fronte alta, como uma sonâmbula. E, diante de
Dostoievski, cai-lhe aos pés. Foi terrível o que se viu. Ela curva-se e
beija as botas do romancista. Depois levanta-se e desaparece, para
sempre, como se jamais tivesse existido. De repente, todos sentiram que
o profeta não era Pushkin, mas Dostoievski. Era ele que via a Rússia
ainda uterina, a Rússia não nascida.
Passo finalmente ao Chacrinha. Disse eu, no início da presente
confissão, que a sua barriga é uma paisagem. Mas o que me importa,
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mais do que essa plenitude do ventre, é o ordenado do Chacrinha. Já


disse e aqui repito: – seu ordenado deflagra, no momento, toda uma
indignação nacional. Oitenta milhões por mês.
A princípio ninguém acreditou. Nenhum brasileiro merecia
tanto. Mas chegou um momento em que a evidência varreu a última
dúvida. Era a pura, santa e imaculada verdade. Lembro-me de colegas
que, na redação, abriam os braços para o céu: – “Como pode? Como
pode?”. Cabe então a pergunta: – e onde nasceu a primeira irritação?
Resposta: – nas esquerdas.
Não sei que crudelíssimo fatalismo está sempre a empurrar as
nossas esquerdas para o erro, para o equívoco, para a alienação. Um
brasileiro ganha oitenta milhões. As esquerdas deviam estar exultantes.
Sim, elas deviam sonhar com um Brasil de Chacrinhas. Seríamos
oitenta milhões a ganhar oitenta milhões. Mas as esquerdas não
aceitam o Chacrinha ou, melhor dizendo, não aceitam o salário do
Chacrinha. É o salário, e não vagos preconceitos éticos e estéticos, que
explica o feio, o torvo ressentimento. Num domingo recente saiu um
imenso ensaio, quase uma página inteira, em corpo seis. Seu autor era,
justamente, uma flor das esquerdas. E metia o pau no Chacrinha, e não
só no Chacrinha: – também na música popular, na escola de samba,
no Chico Buarque, no Fla-Flu e, por fim, no sexo.
O esquerdista negava tudo o que o brasileiro adora. Li aquilo e
saí perguntando: – “Você gosta de sexo? De música popular? De
futebol?”. E, de repente, relendo o tal artigo, percebi por que a nossa
esquerda não se comunica com ninguém e vive na mais obtusa solidão.
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Repito: – a nossa esquerda só fala, escreve, gesticula e só doutrina


para si mesma. Por isso é que no 31 de março e no 1º de abril ela
ficou mais só do que um Robinson Crusoé sem radinho de pilha.
Claro que no caso dos oitenta milhões há uma unanimidade.
Até o Walther Moreira Salles está em pânico. Se um brasileiro passa a
ganhar oitenta milhões mensais, algo mudou ou vai mudar. Semelhante
fato não pode ser intranscendente. Por trás dessa abundância salarial
esconde-se alguma ameaça apavorante.
Foi isso, mais ou menos isso, o que eu disse ao Otto Lara
Resende; e foi isso, mais ou menos isso, o que ele me disse. Ontem,
almoçamos juntos; o Hélio Pellegrino foi a terceira presença. E depois
saímos. O Hélio foi para o consultório. Vim para a cidade na carona
do Otto. Propus-lhe um itinerário praiano para pôr uma paisagem no
nosso papo. Seguimos então a orla que vai do Forte ao Leme. O Otto
bramava: – “São os mais lindos brotos do mundo. Olha ali, rapaz,
olha!”.
“E o Chacrinha?” – perguntará o leitor. Já voltaremos a ele.
Por enquanto, abro um parêntese paisagístico. O Otto reagia como se
ele fosse a Idade Média atirada no meio dos umbigos em flor. Ele
próprio reconhecia: – “Eu sou a Idade Média!”. E íamos dizendo, um
ao outro, que somos o povo mais lindo do mundo. O Otto gemia: –
“Dezoito quilômetros de mulher nua!”. Sentíamos que essa nudez,
múltipla, molhada, inédita no mundo, era o aviso de um Brasil novo.
Há dois Ottos: – um, público, e outro, do terreno baldio. E
poucos provam do bom, do legítimo, do escocês Otto secretíssimo. Ah,
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o que ele disse da esquerda. Claro que a esquerda tem o direito de ser
esquerda. O que lhe negamos é o direito de ser tão inepta, tão
incompetente, tão irrealista, tão alienada do Brasil e, repito, tão
antibrasileira. Examine-se um esquerdista. Ele não chove uma chuva
própria. Pensa “idéias feitas”, diz “frases feitas”, sente “sentimentos
feitos”. Seu ódio aos Estados Unidos não é realmente um ódio, um
sentimento, uma paixão. Não. É uma Palavra de Ordem. Se aqui faz
calor, e nos Estados Unidos, frio, foi o imperialismo norte-americano
que roubou a nossa neve e a faz chover como papel picado.
E já que o Otto chovia a própria chuva, eu quis chover a minha.
Voltamos ao Chacrinha. Perguntei-lhe: – “E o padre Ávila?”. Que
fazia o padre Ávila ou que faziam os outros sociólogos? Os oitenta
milhões do Chacrinha eram um dado sociológico gravíssimo. Não é
por acaso que um brasileiro, altamente subdesenvolvido, passa a
ganhar oitenta milhões. Minto, minto. O Chacrinha vai ganhar cem.
Não mais oitenta. Cem milhões. Quem o afirma é, não o Otto público,
inautêntico, das salas, mas o luminoso Otto do terreno baldio. A partir
da Primeira Missa até a semana passada, o brasileiro não ganharia
tanto, nem juntando cada vintém de várias encarnações. Hoje, em
trinta dias, o Chacrinha vai ganhar cem milhões.
Eis o que eu queria dizer: – isso significa que começou todo
um processo. Certas coisas não acontecem de graça. Há, nos milhões
do Chacrinha, um toque de mistério. Ou por outra: – é um mistério
não tão misterioso. Se a nossa sociologia limpasse a poeira das
próprias lentes, veria o óbvio ululante. Na verdade, o salário do
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Chacrinha é, para nós, o que Pushkin foi para a Rússia. Sim, o salário
do Chacrinha profetiza um Brasil que vem por aí com uma saúde de
centauro. Foi isso o que eu disse ao Otto, foi isso o que o Otto me
disse.
O amigo me deixou na porta de O Globo. Assim me despedi:
– “Até logo, Idade Média”. Ainda fiquei, por um momento, em cima
do meio-fio vendo sumir na primeira esquina o seu medieval Fusca.
[27/1/1968]

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