179-206
© 2009, CIEd - Universidade do Minho
Resumo
Este estudo analisa as políticas oficiais destinadas à educação brasileira e
catarinense da década de 1930 aos dias de hoje e seus impactos no acesso
ao ensino fundamental e médio. Procuramos caracterizar nossos sistemas de
ensino como seletivos entre 1930 e 1945, quando o acesso à escola é
extremamente restrito; como diferenciados entre 1946 e 1969, quando o
princípio da igualdade de oportunidades é apreendido em termos de seleção
e de diferenciação; como regulados entre 1970 e 1987, quando o controle
ideológico e a qualificação para o trabalho são prioridades; como
meritocráticos desde 1988, quando os brasileiros conquistam efetivamente o
direito à educação. Para tentar apreender as principais conseqüências desses
dispositivos legais sobre o movimento de acesso à escola, examinamos
alguns índices de escolarização, sobretudo de Santa Catarina.
Palavras-chave
Meritocracia escolar; Política educacional; Ensino fundamental; Ensino médio
Que terrível trabalho tem um homem, sem padrinhos e sem cabala, sem estar
escrito em nenhuma corporação, sendo sozinho e só tendo por recomendação
um grande mérito, para fazer luz sobre a obscuridade em que se encontra, e
chegar ao nível de um tolo bem cotado! Quase ninguém percebe por si mesmo
o mérito dos outros [...]. O gênio e os grandes talentos muitas vezes faltam, às
vezes também faltam apenas as ocasiões: alguns podem ser louvados pelo que
fizeram, outros pelo que teriam feito.
(Jean de La Bruyère, 1645-1696)
180 Ione Ribeiro Valle & Elizete Ruschel
Grandes promessas
Embora não introduza importantes inovações por inscrever-se no
mesmo quadro desenvolvimentista e nacionalista, a Constituição Federal de
1946, "primeira carta com pretensões a estabelecer um regime democrático
no país" (Pinto, 1999: 50), retoma o princípio do direito de todos à educação,
devendo ser dada no lar e na escola nos termos da Carta de 1934, e reafirma
a obrigatoriedade e a gratuidade (Santa Catarina, 1984, Constituição 1946,
arts. 166 e 168). Segundo Boaventura (1996: 194), esta Constituição pode ter
sido "um passaporte para reingressarmos na vida democrática" ou "um
instrumento para uma nova redemocratização que nos garantiu uma curta
viagem liberal de 1946 a 1964". Além disso, a noção de obrigatoriedade
aparece associada à oferta de "serviços de assistência educacional que
assegurem aos alunos necessitados condições de eficiência escolar" (idem,
art. 172), confirmando sua adesão aos ideais meritocráticos. A Constituição de
Santa Catarina de 1947 reafirma o dispositivo das bolsas escolares, previsto
na Carta de 1945, explicitando de maneira clara o compromisso do Estado
com "os alunos economicamente necessitados" portadores de "vocação e
capacidade" (Santa Catarina, 1984, Constituição 1947, art. 113).
No centro desse contexto de democratização e de industrialização é
concebida a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº
4.024). Promulgada em 1961, ela reafirma princípios de liberdade e ideais de
solidariedade humana, próprios das modernas sociedades democráticas. A
educação é considerada direito de todos e compete ao Estado "fornecer
recursos indispensáveis para que a família, e na falta desta, os demais
membros da sociedade se obriguem dos encargos da educação, quando
provada a insuficiência de meios de modo que sejam asseguradas iguais
oportunidades a todos" (Lei nº 4.024/1961, art. 3º. item II).
A meritocracia na política educacional brasileira (1930-2000) 189
Perspectivas limitadas
Para verificar o movimento de escolarização, examinamos alguns
dados estatísticos sobretudo das décadas de 1960 e 1970, por considerarmos
que a política educacional idealizada e aprovada nesse período vigorou até o
final de 1960, quando foram introduzidas, efetivamente, as medidas
autoritárias do regime ditatorial.
A população catarinense representava 3% do total de brasileiros
(Censos Demográficos 1950 e 1970), mas sua distribuição entre as zonas
rural e urbana se modificou consideravelmente: cerca de 67% dos
catarinenses habitavam na zona rural em 1960; eles eram 57% em 1970
(Santa Catarina, 1984: 47). Esse movimento foi seguido por alterações nos
índices de analfabetismo: quase 40% da população brasileira era analfabeta
em 1960, enquanto em Santa Catarina eles eram 25,7%; o percentual de
brasileiros que não sabiam ler e escrever em 1970 caiu para 34% e subiu para
30% em Santa Catarina (Censos Demográficos 1960 e 1970).
Esses percentuais revelam que as oportunidades de acesso ao ensino
primário brasileiro cresceram, mas no Estado catarinense a expansão foi
refreada. Em 1970, dos alunos de mais de 5 anos freqüentando a escola, 78%
estavam matriculados no ensino primário, 20% no ensino secundário
(ginasial/colegial) e 1,1% no ensino superior (Censos Demográficos, 1970).
Todavia, a matrícula no ensino secundário foi incrementada em 70% entre
1955 e 1960 (passando de 15.031 para 26.345 alunos) (Santa Catarina,
1967), o que representou uma taxa de escolarização dos jovens catarinenses
de 15 a 19 anos no ensino secundário de 5,3% em 1971 (Valle, Schvaab &
Schneider, 2006b: 111). Como se pode ver, a expansão das oportunidades foi
lenta e os percursos escolares foram marcados pela exclusão: os próprios
órgãos oficiais estimavam que dos 1.000 alunos que ingressaram na 1ª série
em 1966, apenas 319 concluiriam a 4ª série, 47 terminariam o curso ginasial
e 18 obteriam um diploma de nível médio (Kock, 1995: 35).
Além disso, os percursos permaneciam divididos em 1960,
demonstrando que a dupla via que caracterizou o ensino secundário nas
décadas anteriores (preparando para o ingresso no ensino superior ou para o
mercado de trabalho) foi mantida: o ensino propedêutico abrangia 51% dos
jovens catarinenses que freqüentavam o ensino secundário; os demais se
dividiam entre os diversos cursos profissionalizantes (normal, comercial,
A meritocracia na política educacional brasileira (1930-2000) 191
Vocação e profissionalização
Analisando a Constituição Federal de 1967, seguida de diversos Atos
Institucionais, constatamos que, a exemplo das cartas anteriores, a educação
aparece como "direito de todos e será dada no lar e na escola", e que a
obrigatoriedade do ensino primário abrange a faixa etária dos 7 aos 14 anos.
192 Ione Ribeiro Valle & Elizete Ruschel
de 1º grau cresceu apenas 13%" (Koch, 1995: 34) entre 1970 e 1985. Essa
queda persistiu nos anos seguintes: somente 81,4% das crianças de 7 a 14
anos freqüentavam a escola em 1990 (Santa Catarina, 1992, Tabela nº 19).
Em relação às redes mantenedoras, constata-se que o Estado e os
municípios compartilhavam a responsabilidade: mais de 97% do número de
escolas entre 1980 e 1990 (idem, Tabela nº 30).
Além disso, os percursos escolares foram marcados pela evasão e
repetência ou pela exclusão na escola: dos 1.000 alunos matriculados na 1ª
série em 1974, um terço concluiu a 8ª série em 1981; apenas 12,9%
terminaram o ensino médio em 1985; metade destes ingressou no ensino
superior em 1986 (Kock, 1995: 39). Segundo Valle, Mizuki & Castro (2004:
195), esses índices demonstram que "o déficit de escolarização e o fracasso
escolar, fortemente combatidos ao menos desde os anos 70, resistem às
medidas administrativas, assumem outras formas no cotidiano da escola e
desafiam as forças sociais envolvidas na democratização da educação".
No que concerne ao ensino médio, observa-se que a taxa de
escolarização da população catarinense de 15 a 19 anos cresceu lentamente:
de 11,7% em 1971 (Valle, 1991: 319) para 15,4% em 1980 (Santa Catarina,
1986: 13), chegando a 16% em 1990 (Santa Catarina, 1992, Tabela nº 36).
Mas, diferentemente do que ocorreu no ensino fundamental, a matrícula do
ensino médio, assim como o número de unidades escolares, apresentou um
crescimento contínuo de 1986 a 1990. As redes estadual e particular dividiam
as responsabilidades na sua manutenção, mais de 95% da matrícula, tendo
crescido paralelamente até 1980, quando a expansão da rede estadual se
acentua, atingindo 67% da matrícula em 1990 (Valle, Schvaab & Schneider,
2006b). O total de estabelecimentos de ensino dobrou em dez anos (de 244
em 1977 a 480 em 1987): a rede estadual passou de 73 para 249
estabelecimentos e a rede particular de 164 para 215 (Valle, 1991: 323).
O ensino médio catarinense (pós-Reforma de 1971) apresentou dois
momentos distintos: o da profissionalização, que oferecia 449 habilitações
profissionais em 1977, passando para 772 em 1987; e o da flexibilização, que,
pela Lei nº 7.044/1982, possibilitou a oferta de cursos "sem habilitação
profissional". Apesar da obrigatoriedade, 1,2% dos cursos continuavam não-
profissionalizantes em 1981; a oferta desses cursos era superior a 17% em
1986, demonstrando que a expansão priorizou a via profissionalizante.
A meritocracia na política educacional brasileira (1930-2000) 195
Notas
1 Segundo Cury (2000: 574), "a gratuidade nasceu em 1824 e morreu em 1891, em
termos nacionais [...] valendo para o ensino primário, isto é, para os quatro
primeiros anos".
2 Direito público subjetivo é "aquele pelo qual o titular de uma prerrogativa pode fazer
cumprir um dever cuja efetivação apóia-se em um dispositivo legal que visa à
satisfação de um bem indispensável à cidadania" (Cury, 2000: 575).
3 A Reforma Capanema (1942) estabeleceu, segundo Cunha (2000: 171), uma
estrutura marcadamente discriminatória para o ensino médio caracterizada pelo
"ensino propedêutico para as elites condutoras e o ensino profissional para as
A meritocracia na política educacional brasileira (1930-2000) 201
Referências
AKOUN, André & ANSART, Pierre (Orgs.) (1999). Dictionnaire de Sociologie. Paris: Le
Robert Seuil.
AMORIM, Maria das Dores Daros; AURAS, Marli; BAZZO, Vera Lúcia & KOCH, Zenir
Maria (1985). A democratização da educação em Santa Catarina: um outro
estilo de diagnóstico. Cadernos do CED. Florianópolis: UFSC, n° 1/2, pp. 11-
222.
AZEVEDO, Fernando de (1978). Os sistemas escolares. In L. Pereira & M. M. Foracchi,
Educação e Sociedade: Leituras de Sociologia da Educação. São Paulo: Ed.
Nacional, pp. 138-149.
BOAVENTURA, Edivaldo M. (1996). A educação na Constituinte de 1946: Comentários.
In O. Fávero (Org.), A Educação nas Constituições Brasileiras 1823-1988.
Campinas: Editora Autores Associados, pp. 191-199.
BOURDIEU, Pierre (1979). La Distinction; Critique Sociale du Jugement. Paris: Éditions
de Minuit.
BOURDIEU, Pierre (1989). La Noblesse d’État; Grandes Écoles et Esprit de Corps.
Paris: Minuit.
BOURDIEU, Pierre (1994). Raisons Pratiques; sur la Théorie de l’Action. Paris: Seuil.
BOURDIEU, Pierre & PASSERON, Jean-Claude (1964). Les Héritiers; les Étudiants et
la Culture. Paris: Éditions de Minuit.
BOURDIEU, Pierre & PASSERON, Jean-Claude (1975). A Reprodução; Elementos para
uma Teoria do Sistema de Ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
BRASIL (1934). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 16 de
julho de 1934. [Em linha] [Acedido em 19 de Outubro de 2006, disponível em
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao34.htm].
202 Ione Ribeiro Valle & Elizete Ruschel
Abstract
This study analyzes official education policies in Brazil and Santa Catarina
from the 1930’s until today and their impacts on access to elementary and high
school education. We sought to characterize our teaching systems as
selective from 1930 to 1945, when access to schooling was extremely
restricted. From 1946 - 1969, we classified them as differentiated, when the
principal of equal opportunity was understood in terms of selection and
differentiation. From 1970 -1987, we see them as regulated, when ideological
control and preparation for work were priorities. Since 1988, a meritocratic
policy has been emphasized, as Brazilians have effectively conquered the
right to education. To try to understand the principal consequences of these
legal guidelines on the changes in the access to school, we examine some
rates of school participation, particularly in Santa Catarina.
Keywords
School meritocracy; Educational policy; Elementary education; High school
Résumé
Cette étude analyse les politiques officielles destinées à l'éducation
brésilienne et de l'État de Santa Catarina de 1930 à présent et leurs impacts
dans l'accès à l'enseignement fondamental et moyen. Nous cherchons à
caractériser nos systèmes d'enseignement comme sélectifs entre 1930 et
1945, quand l'accès à l'école est extrêmement restreint; comme différenciés
entre 1946 et 1969, quand le principe de l'égalité des chances est appréhendé
en tant que séléction et différenciation; comme maîtrisé entre 1970 et 1987,
quand le contrôle idéologique et la qualification pour le travail sont des
206 Ione Ribeiro Valle & Elizete Ruschel
Mots-clé
Méritocratie scolaire; Politique éducative; Enseignement fondamental;
Enseignement moyen
Recebido em Novembro/2007
Aceite para publicação em Janeiro/2009
Toda a correspondência relativa a este artigo deve ser enviada para: Ione Ribeiro Valle,
Universidade Federal de Santa Catarina, Campus Universitário, Trindade, 88040-900
Florianópolis/SC, Brasil.