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OS PARÊNTESES DO HUMANISMO*
Processos contra animais
Em 1545, os habitantes do vilarejo de Saint-Julien
moveram uma ação junto ao juiz episcopal de Saint-Jean-
de-Maurienne contra uma colônia de carunchos. Esses
insetos invadiram os vinhedos, onde provocaram estragos
consideráveis.
O caso terminou com a vitória dos insetos,
defendidos, é verdade, pelo advogado que lhes escolhera o
próprio juiz episcopal, como assim exigia o procedimento
legal. Esse juiz, arguindo do fato que os animais, criaturas
de Deus, tinham os mesmos direitos que os homens em
alimentar-se de vegetais, recusara-se a excomungar os
besouros, limitando-se, por meio de um despacho do dia 8
de maio de 1546, a prescrever muitas orações públicas aos
infelizes habitantes, constrangidos a se arrepender
sinceramente dos seus pecados e a apelar para a
misericórdia divina. Aproveitando o ensejo, convidava-os a
pagar o dízimo sem demora – era uma oportunidade de
ouro –, bem como a fazer “durante três dias consecutivos,
três ladairos [preces coletivas por ocasião de calamidades]
em volta dos vinhedos invadidos”. Seguiam-se ainda outras
devoções ou penitências da mesma ordem. Teria sido o
efeito dessas recomendações ou, simplesmente, levara o
processo muito tempo? Acontece que, tendo os carunchos
abandonado o local, as coisas ficaram assim.
De fato, ocorria com relativa frequência que o juiz
episcopal tomasse posição em favor dos animais. O tratado
Dos Exorcismos (1497), redigido pelo teólogo suíço Foelix
Hemmerlein1, nos fornece vários exemplos no mesmo
sentido. É o caso da história dos “besouros escamosos”,
que merece ser aqui mencionada por analogia:
Nos arredores da cidade de Coire, houve uma
súbita invasão de larvas com cabeça preta, corpo
branco, do tamanho de um dedo mindinho,
locomovendo-se em seis patas e muito conhecidas
dos lavradores: em patoá alemão, são chamadas de
Laubkäfer (besouros escamosos); elas penetram na
terra no início do inverno, atacam as raízes,
comendo-as com voracidade, a tal ponto que,
quando a primavera volta, as plantas, longe de
brotarem, ficam ressecadas. (...) Acontece que os
habitantes intimaram esses insetos destruidores
perante o tribunal provincial, através de três éditos
consecutivos; constituíram lhes um advogado e um
procurador, observadas as formalidades da justiça,
e depois, processaram-nas com todas as
formalidades exigidas. Finalmente, o juiz,
considerando que as ditas larvas eram criaturas de
Deus, que tinham o direito de viver, que seria
injusto privá-las de seu sustento, relegou-as numa
região florestal selvagem, para que, doravante, não
tivessem mais pretexto de devastar as áreas
cultivadas. E assim foi feito.
Mas podia ter acontecido também que, a exemplo
daquilo que ocorreu com as sanguessugas do lago de Berna
no ano de 1451, os gorgulhos tivessem sido amaldiçoados e
devidamente excomungados. Após ter dado aos bichinhos
1 1389-1457. Seus dois tratados foram reimpressos em Lyon em
1604, no tomo II de uma coletânea sobre demonologia chamada
Mallei Maleficarum (3 vol.). O trecho citado é tirado da tradução
feita por Ménabréa no seu relatório.
Luc Ferry**
um prazo de três dias para deixarem as águas por elas
infestadas, o bispo de Lausanne, constatando que seu
ultimato ficara sem efeito, deslocou-se em pessoa para
fulminar a seguinte maldição: “Em nome de Deus todo-
poderoso, de toda a corte celestial, da Santa Igreja Divina,
amaldiçoo-vos, onde quer que vós vades, e sereis malditas,
assim como vossos descendentes, até desaparecerdes de
todo lugar”.
Donde se pode constatar que a sentença podia variar
conforme os animais eram considerados como criaturas de
Deus, limitando-se a obedecer à lei natural, como flagelo
enviado aos homens como castigo dos seus pecados, ou
ainda como instrumentos do demônio, desafiando
abertamente a própria autoridade eclesiástica. Sendo
criaturas de Deus, podia-se contentar com penitências e
devoções, antes de compensar os animais que, no caso,
eram convidados a se mudarem para algum outro local;
sendo instrumento do demônio, eles eram “excomungados”
ou no mínimo, amaldiçoados.
Daí também, o fato de se exigir um contraditório
para decidir o seu destino. As formas a serem respeitadas
em casos assim foram minuciosamente descritas por
Gaspard Bally, advogado que exercia seu ofício em
Chambéry na segunda metade do século XVII e que foi um
fervoroso partidário desse tipo de processos, que só foram
desaparecendo no século XVIII.
Na segunda parte da sua obra intitulada Tratado das
convocações judiciais, com um arrazoado contra os
insetos, pelo respeitável Gaspard Bally, advogado junto ao
soberano Senado de Savoie (1668), ele argumenta
veementemente em favor da opinião segundo a qual
não se pode desprezar as monitórias [isto é, aqui, os
discursos “fulminados” pela autoridade eclesiástica
contra os animais], visto que se trata de uma coisa
sumamente importante, que carrega em si a arma
mais perigosa usada pela nossa Santa Mãe Igreja, a
saber, a excomunhão, que corta tanto a madeira
seca quanto a verde, não poupando nem vivos nem
mortos; ela não atinge apenas as criaturas
racionais, mas se importa com as irracionais, que
2
são os animais .
E depois Bally fazia questão de explicar “como se
faz o processo deles, a fim de se garantir contra eles por
meio da maldição que lhes lança a Igreja”.
Detemo-nos um instante nesse aspecto jurídico: ele é
totalmente representativo de uma relação pré-moderna, isto
é, pré-humanística, com a animalidade assim como com a
natureza em geral. Salvo exceção, o processo na justiça
conformava-se às seguintes etapas: começava pela petição
dos queixosos junto ao juiz episcopal. Seguiam-se um
exame cuidadoso da realidade dos fatos, a intimação para
os animais comparecerem e a nomeação de um procurador
(se necessário, acompanhado de um advogado) para
defender a causa dos acusados.
Assim, por exemplo, na petição, além dos detalhes a
respeito da natureza e do local exato dos prejuízos, os
animais incriminados, insetos, répteis, ratos, camundongos,
sanguessugas ou outros (houve até uma excomunhão de
2 Este texto faz parte dos documentos publicados por Ménabréa no
final do seu relatório.
golfinhos em Marselha, que obstruíam o porto e
dificultavam o trânsito), deviam ser descritos e citados com
grande exatidão a fim de que, intimados a comparecer, eles
não pudessem alegar alguma confusão. Eis um ponto no
qual Barthélemy de Chassanée insiste especialmente.
Esse jurista, então famoso, compilou nos seus
Conseils (Conselhos), publicados em 1531, tudo que se
sabia na época a respeito dos processos movidos contra os
animais perante as autoridades jurídicas eclesiásticas. Sabe-
se, por exemplo, fato confirmado por Foelix Hemmerlein,
que fornece vários exemplos, que era comum mandar para
o lugar onde viviam os acusados, um sargento ou um
oficial de justiça encarregado de ler para eles, em voz alta,
a intimação para apresentar-se em pessoa, tal dia a tal hora,
perante a autoridade judicial. Conforme a prática do direito
romano, era preciso que a intimação fosse repetida três
vezes, incluindo prazos bem definidos, para que a situação
de contumácia [não comparecer ao julgamento] pudesse ser
decretada. No dia e hora combinados, o tribunal esperava
os réus, de portas abertas, no tribunal eclesiástico. E como,
só Deus sabe por que, eles não compareciam, era preciso
encontrar uma desculpa plausível para poder lhes indicar
um procurador – a respeito do qual Chassanée ressalta que
era então considerado legítimo, desde que não fosse
desautorizado por aqueles que era encarregado de
representar! Léon Ménabréa relata assim, segundo
L’histoire universelle (A história universal) de Thou
(1550), o arrazoado vitorioso feito por Chassanée em
pessoa quando do processo contra os ratos da diocese de
Autun:
Ainda jovem, ele foi nomeado para defender esses
animais. Embora os ratos tivessem sido citados
segundo as formas legais, ele foi tão hábil que
conseguiu que seus clientes fossem novamente
intimados pelos vigários de cada paróquia, visto
que, disse ele, como a causa era de interesse de
todos os ratos, todos eles tinham de ser convocados.
Obtendo êxito nesse ponto, esforçou-se para
demonstrar que o prazo a eles concedido fora
insuficiente, que se devia levar em consideração não
apenas a distância dos locais, mas também a
dificuldade da viagem, ainda mais que os gatos
estavam à espreita em todos os pontos de
passagem...3
Durante o processo dos besouros de Coire, cujo
desenrolar foi relatado por Hemmerlein, o juiz, constatando
que sua intimação para comparecer ficara sem efeito,
julgou que não convinha recriminar os bichinhos,
“considerando sua pouca idade e a exiguidade dos seus
corpos”. Assemelhados a menores de idade, era então
possível atribuir-lhes um representante, assistido por um
advogado, os quais se comprometiam sob juramento a
servir lealmente seus clientes. No processo das
sanguessugas de Berna, acima referido, julgando que não
poderiam escapar tão facilmente do tribunal, o bispo
mandou prender alguns exemplares para que fossem
fisicamente colocados na presença do tribunal. Isto feito,
mandou que se intimasse "as ditas sanguessugas, tanto as
presentes quanto as ausentes, a abandonar os locais que
tinham imprudentemente invadidos, e a retirar-se para onde
fossem incapazes de causar prejuízo, dando-lhes para tanto
3 Vartier contestou a autenticidade desse arrazoado. As razões
invocadas por ele não estão bem claras. Em todo caso, ele está
totalmente conforme ao espírito desses processos, bem como às
recomendações dadas pelo próprio Chassanée nos seus Conselhos
no que diz respeito à intimação para comparecer.
três curtos prazos de um dia cada, num total de três dias
inteiros, e isso sob a cláusula de que, terminado o prazo,
elas incorreriam a maldição de Deus e de sua corte
celeste4”. E para provar a seriedade desse ultimato, as
sanguessugas sorteadas foram executadas sem mais
delongas após terem ouvido esta convocação judicial!
Deixemos de lado, por enquanto, a questão do
significado que podia ter essa estranha dramaturgia aos
olhos dos seus diversos protagonistas. Evitemos também –
os historiadores da Idade Média não nos perdoariam – fazer
dessas obscuras práticas a realidade de uma época que, hoje
sabemos, foi mais bela e mais complexa do que daria a
pensar uma imagem herdada das Luzes. É verdade que
esses processos, que aconteceram às dúzias entre os séculos
XIII e XVIII em toda Europa, suscitam em nós um
irrefreável sentimento de estranheza. Problema cultural
clássico: como entender que aquilo que foi evidente para
um mundo, se torna tão perfeitamente hermético para
outro? Por qual abismo aberto dentro de uma mesma
humanidade, o ritual executado com a maior seriedade por
uns transformou-se numa coisa cômica para os outros?
Para nós, Modernos, a resposta não deixa nenhuma
dúvida. Ela diz respeito a uma evidência que acreditamos
facilmente ser “natural”: parece-nos simplesmente
insensato tratar animais, seres de natureza e não de
liberdade, como pessoas jurídicas. Consideramos evidente
que apenas essas últimas são, por assim dizer, “dignas de
um processo”.
Para nós, a natureza é letra morta. No sentido
próprio: ela não nos fala mais, pois paramos há muito –
pelo menos desde Descartes – de lhe atribuir uma alma e de
acreditar que ela estaria habitada por forças ocultas. No
entanto, a noção de crime implica, para nós, a ideia de
responsabilidade, ela pressupõe uma intenção deliberada –
a tal ponto que nossos sistemas jurídicos concedem as
“circunstâncias atenuantes” em todos os casos em que a
transgressão da lei for cometida “sem total consciência de
seus atos”, sob a influência de sua natureza inconsciente e,
portanto, sem a liberdade de uma vontade soberana.
Verdade ou nova imagem que, ela também, provocará riso
nas futuras gerações? De fato, pode ser que a separação do
homem e da natureza, que levou o humanismo moderno a
atribuir somente ao primeiro a qualidade de pessoa moral e
jurídica, tenha sido apenas um parêntese, que está se
fechando, porque começam a surgir alguns processos
contra animais.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
FERRY, Luc. Le nouvel ordre écologique: l’arbre, l’animal
et l’homme. Paris: Grasset, 1992.
4 L. Ménabréa, op. cit., p. 500.
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