João Figueiredo
Secretário-Geral do MEC po
Mário Pasquali
Anais
do
Seminário
Multidisciplinar
de
Alfabetizacão
São Paulo (SP) - 11 a 13 de agosto de 1983
INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS
Diretora-Geral
Lena Castello Branco Ferreira Costa
CDU 372.415
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA INSTITUTO
NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAL
ANAIS DO SEMINARIO
MULTIDISCIPLINAR DE ALFABETIZAÇÃO
BRASILIA
1984
EQUIPE TÉCNICA
Editora-Assistente
Silvia Maria Galliac Saavedra
Assistente de Produção
Elisabeth Ramos Barros
Revisão
Catarina de Carvalho Guerra
Elisabeth Ramos Barros
Luzitano Garcia C. Filho Maria
Thereza L. Nogueira Terezinha
Zelinda Werlang
Capa e Diagramação
Ana Maria Boaventura
Divulgação e Distribuição
Moacyr Ribeiro de Macedo
Eleonora A. M. Maia
(Programa de Lingüística Aplicada ao Ensino de Línguas, PUC/SP) Leila
Barbara
(Programa de Lingüística Aplicada ao Ensino de Línguas, PUC/SP) Maria
Regina Maluf
(Programa de Psicologia da Aprendizagem, PUC/SP) Mary
Aizawa Kato
(Programa de Lingüística Aplicada ao Ensino de Línguas, PUC/SP) Mauro
Spinelli
(Programa de Distúrbios da Comunicação, PUC/SP) Sérgio
Luna
(Programa de Psicologia da Aprendizagem, PUC/SP)
Suzana Vieira
(Programa de Distúrbios da Comunicação, PUC/SP)
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
CONCLUSÃO
ANEXOS
Motivados por esse mesmo espírito, o de abrir fronteiras e quebrar barreiras, e convictos, ainda,
de que sugestões educacionais construtivas só poderiam brotar de uma compreensão mais global
do objeto a ser ensinado, formamos um grupo de trabalho na Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, composto de professores do Programa de Lingüística Aplicada ao Ensino de Línguas,
de Psicologia da Aprendizagem e de Distúrbios da comunicação. O tema de trabalho foi:
Alfabetização. Dos encontros nasceu a idéia de se promover um Seminário Multidisciplinar sobre
o tema, com o objetivo de aprofundar um dos tópicos abordados pelo Seminário do INEP sobre
Aprendizagem da Língua Materna. 0 projeto foi submetido à PUC/SP e ao INEP e de ambos
tivemos pleno endosso: a PUC concedendo-nos espaço e infra-estrutura e o INEP a ajuda
financeira necessária para trazer ao encontro especialistas das diversas áreas com trabalhos que
a comissão julgou relevantes.
Ao refletir sobre a escola, temos que encarar seus aspectos propriamente técnicos e
pedagógicos, especialmente no caso da alfabetização e ver também seus aspectos sociais e
políticos, sobre os quais faremos algumas colocações, não estritamente voltadas para a
alfabetização, mas para a questão da escola em geral.
A educação de um modo geral é política, como a escola é política. Não porque lida com relações
sociais de maneira ampla, mas sobretudo porque se insere em relações sociais de classes ou
grupos diferentes dentro da sociedade e porque lida com um bem que é diferentemente
distribuído e não é igualmente apropriado pelas diferentes categorias sociais.
Assim, ela é política porque se insere diretamente em relações que são emoções de grupos
diferentes, eventualmente antagônicas. Ora, o processo de alfabetização neste sentido seria
duplamente político, porque a entrada na escola para aprender a ler e a escrever se constitui em
demarcador claro e nítico desta distribuição desigual de um bem. Aprender a ler e a escrever
constitui, nos países de economia dependente, um divisor de águas que separa os que têm
condições de se apropriar da habilidade de ler e escrever — cuja utilidade ninguém põe em
dúvida - e os que não têm. Isto ocorre sobretudo nos países dependentes, pois naqueles de
capitalismo avançado o processo através do qual se seleciona os que vão ou não vão ter acesso
ao bem é mais elástico e mais sutil.
No Brasil, como em outros países do terceiro mundo, a exclusão da escola tem sido selvagem e
avassaladora. Desde 1930 até hoje as taxas-de reprovação em processo de alfabetização são
enormes. Isso põe em dúvida que a escola seja um simples reflexo de condições sociais e
econômicas, na medida em que o país passou por um processo de desenvolvimento bastante
acelerado nas últimas décadas e as taxas de reprovação são as mesmas. Não representam
portanto um simples fenômeno de detcrioração recente por causa de um aumento quantitativo. Há
uma tendência estrutural que parece ser rebelde a qualquer influência exterior ao próprio sistema
de ensino. O fato está aí para ser explicado.
uma teoria explicativa que predominou durante certo tempo é aquela que se coloca no âmbito da
cultura, explicando assim as diferenças entre os grupos que se cruzam na escola. A criança não
aprenderia a ler porque vem de uma cultura diferente e domina um universo de vocabulário
diferente daquele que a escola trabalha e procura transmitir. Ainda que uma tal teoria não negue
que a questão é política, ela a coloca sobretudo no ámbito da cultura, dando assim à cultura uma
autonomia que a desvincula das condições materiais e concretas da existência, correndo o risco
de supor a existência totalmente separada de uma cultura do rico e uma cultura do pobre. Isto
pode estar na raiz, embora com outras versões, das tentativas que vêm ocorrendo de elaboração
de cartilhas e materiais de alfabetização que se prendem estritamente ao universo vocabular da
clientela a que se destinam. Um aspecto sério desse posicionamento é a suposição de que na
relação das classes sociais se dá uma separação estrita entre as diferentes culturas. Ora, se
assim fosse, não existiria aquilo que se chama cultura dominante, que por ser dominante
obviamente domina e dominando de certa maneira implica dentro dela as diferentes classes
sociais, inclusive aqueles que são excluídos da escola. A conseqüência disto é imaginar que as
classes chamadas populares, subalternas, dominadas ou trabalhadoras existiriam dentro de uma
redoma de vidro social e seriam imunes não só ao universo vocabular que é dominado na
sociedade, mas principalmente aos valores, posturas e concepções de vida que vêm embutidos
dentro do universo vocabular. Por aí há uma zona extremamente polêmica para se discutir a
respeito do que seja o conhecimento, o vocabulário, a linguagem. Argumenta-se que o ponto de
partida deve ser a cultura popular, a linguagem popular, que é o material significativo. Porém, não
se consegue objetivar suficientemente o ponto de chegada. Nao temos clareza sobre como fazer
a caminhada deste ponto de partida da linguagem local para o ponto de chegada.
É preciso que os conteúdos da escola sejam vivos, digam alguma coisa para a criança. É preciso
ensinar conteúdos significativos, ensinar uma História do Brasil que remeta a problemas
realmente relevantes. Mas isso não basta. Quando se escolhe a palavra para iniciar a
alfabetização, não basta que a palavra seja significativa. É preciso que ela preencha requisitos
que a Psicologia ou a Lingüística já nos ensinaram, por exemplo. Onde é que fica o meio termo
entre o político que certamente existe e o conhecimento técnico? O fato da educação ser política
justifica o equívoco do ponto de vista técnico?
Temos que encontrar a forma de, sem alienar e sem mistificar o conteúdo político da educação,
considerar que ela é também uma atividade que envolve conhecimento técnico. Saber que
ensinar a ler e a escrever é uma atividade sobre a qual já acumulamos algum conhecimento.
Seriam basicamente esses dois caminhos de recuperação do sentido político da escola que eu
gostaria de trazer para debate.
Regionalismo Lingüístico e a Contradição da
Alfabetizacão no Intervalo
0 tema desta mesa-redonda é bastante amplo. Abrange, necessariamente, aspectos que devem
ser levados em conta em qualquer reflexão que se pretenda séria sobre a nunca suficientemente
discutida questão da alfabetização. A exigüidade do tempo impõe, porém, uma limitação, e, nas
considerações que a seguir farei, abordarei apenas os seguintes problemas, sem dúvida
correlatos: a relação entre diversidade lingüística regional e alfabetização, a conveniência ou não
da utilização de material regional na alfabetização e, por fim, o que chamo de a contradição da
alfabetização no intervalo.
como introdução, gostaria de dizer que entendo educação, de maneira geral, como uma atividade
que se realiza no intervalo entre realidades por definição diversas: a do educador e a do
educando. Tal concepção, cumpre frisar, pressupõe o reconhecimento de diferenças e não de
carências. Pressupõe ainda, da parte do educador, não só a sensibilidade para com a realidade
cultural e lingüística eventualmente diversa do educando, mas também, se for o caso, o
conhecimento mesmo dessa realidade, ponto de partida necessário para um processo educativo
eficaz e honesto.
Tomemos como exemplo a situação de alfabetização. Deixo de considerar aqui a questão que
antecede, por definição, as que levanto neste artigo, ou seja, a da introdução da escrita em uma
sociedade. Lembro apenas ter sido este um dos tópicos discutidos por Maurizio Gnerre nesta
mesa-redonda. Parto do pressuposto de que, em uma sociedade como a nossa, a opção pela
escrita é uma fatalidade. Pensando, portanto, em todos os contextos possíveis em que alguém
desempenha o papel de introduzir crianças ou adultos no mundo da escrita, é lícito afirmar que,
por mais homogênea que seja uma turma, por menor que seja a distância lingüística e social
entre professor e alunos (situação que está longe de ser a típica, em termos de Brasil...), existirá
sempre, entre alfabetizador e alfabetizandos, a distância imposta pela própria escrita. Quem
escreve, e, particularmente, quem escreve há um certo tempo, tem toda uma prática de reflexão
sobre a própria língua mediada pela atividade da escrita, fortemente condicionada por
segmentações que essa pressupõe, pela expectativa das estruturas prescritas, das formas
"certas" ou "erradas" em termos absolutos. Quem, por outro lado, ainda não entrou em contato
sistemático com a escrita, apresenta um desempenho lingüístico mais espontâneo, adequado às
necessidades do seu contexto imediato. É capaz de refletir, se lhe for solicitado, sobre usos da
língua, mas dificilmente sobre o seu sistema lingüístico. E, por mais socialmente marginalizado
que seja, possui, ao iniciar o processo de alfabetização, um repertório lingüístico perfeitamente
adequado e suficiente para a expressão de seu universo de experiências. Há quem afirme,
inconseqüentemente,
que crianças socialmente marginalizadas, como os filhos de favelados da periferia de
São Paulo, possuem vocabulário reduzido, constituído de não mais do que cinqüenta
palavras! Há quem afirme, ainda, que essas mesmas crianças apresentam dificuldades
de verbalização, razão pela qual se utilizam prevalentemente de gestos como recurso
compensatório na comunicação... Tais afirmações baseiam-se em uma perigosa teoria
do déficit cultural e lingüístico que tem levado a uma desastrosa e equivocada política
educacional. Estão aí, a demonstrar o que se diz, as famosas classes ditas "carentes" e
os discutibilíssimos critérios para classificação de crianças em "normais" ou "carentes".
Não é casual que os filhos de imigrantes nordestinos em São Paulo sejam
freqüentemente encaminhados para classes "carentes". A diferença, particularmente em
termos lingüísticos, vem freqüentemente interpretada como um déficit, já que a escola
não sabe lidar de maneira sensata com a variação lingüística, seja ela regional ou social.
Qualquer que seja a situação particular de alfabetização, há, portanto, que considerar
realidades lingüísticas diversas: a do alfabetizador e a(s) dos seus alunos. No caso de
relativa homogeneidade social e regional, a diversidade lingüística é, como já se disse,
determinada pelo contato ou não com a escrita, o que define diferentes relações com
os recursos de um mesmo sistema. Em situações heterogêneas, por outro lado, a diver-
sidade é geralmente grande: entre a modalidade escrita, a ser ensinada pela escola, e a
modalidade falada pelo professor, de um lado, e a(s) variedade(s) falada(s) pelos alu-
nos, de outro, há a distância de sistemas lingüísticos, por vezes bastante diferentes,
com características fonético-fonológicas, morfológicas, sintáticas e semântico-lexicais
específicas. Reconhecida a diversidade, o ideal seria que a escola fosse capaz de definir,
para cada situação específica, o intervalo onde se daria a alfabetização, a partir da
situação lingüística dos alfabetizandos. Infelizmente, a escola não tem condições de
definir esse intervalo, em parte porque os professores não recebem, em sua formação,
o mínimo necessário de informação lingüística que os prepararia para lidar com a
variação, e, em grande parte talvez, porque simplesmente não lhe interessa mesmo definir
tal intervalo. Afinal, a escola, em nossa sociedade, é uma instituição que reforça as
discriminações impostas pelo Estado. como tal, cabe-lhe acentuar, agudizar as dife-
renças sociais, papel que ela vem desempenhando satisfatoriamente, embora, é óbvio,
não de maneira explícita. A propósito, não sei até que ponto se poderia afirmar que a
escola, enquanto instituição, tem consciência de ser espaço que privilegia o reforço das
distâncias sociais.
com essas considerações iniciais pretendo ter criado o contexto para breve discussão
da primeira questão levantada, a da relação entre diversidade lingüística regional e alfa-
betização. Cabe indagar, inicialmente: como tem a escola, no Brasil, lidado com a varia-
ção lingüística sócio-regional? De maneira sem dúvida equivocada (ou, eu diria ainda,
de maneira, no mínimo, equivocada). Porque, ao reduzir a diversidade lingüística aos
conhecidos estereótipos regionais e ao considerar o "português padrão" (que, diga-se
de passagem, não sabe bem o que seja) não propriamente como meta, mas sobretudo
como parâmetro com base no qual se avaliam desempenhos, categorizando-os como
mais "certos" ou mais "errados", a escola contribui para reforçar diferenças que a
sociedade já estabeleceu. Afinal, falam mais freqüentemente "errado" as crianças de
periferia, as crianças de zona rural, os filhos de imigrantes nordestinos em cidades
como São Paulo, e assim por diante. Poderíamos, sem muito esforço, aumentar esta
lista... Por outro lado, falam mais "certo" (entenda-se: apresentam uma variedade oral
mais próxima da norma escrita) as crianças de classe média e alta. como a norma escrita
costuma ser o único parâmetro de avaliação, saem-se necessariamente melhor as
crianças que têm um percurso menor a percorrer na direção dessa norma. O grande
esforço que devem fazer os que dela estão mais distantes não costuma ser levado em
conta para fins de avaliação. Deixando de lado os problemas ortográficos com os quais
temos todos, independentemente de classe social, que conviver (do tipo: uso, na escrita,
de s, ss, c, sc, sç, x, xc para representar o som [ s ] ), sobram ainda, para os falantes de
variedades socialmente estigmatizadas, problemas decorrentes da maior distância entre
essas variedades e a norma escrita. Quem diz [ 'fro ], [ 'beya ], [ muy'e], terá,
certamente, maior dificuldade para aprender a escrever em português do que quem diz
, considerando-se as formas escritas flor, abelha, mulher.
Cada variedade de português apresenta especificidades nos vários níveis, fônico,
morfossintático e semântico, o que equivale a dizer que as dificuldades para o aprendi-
zado da norma de prestígio (escrita ou, se for o caso, oral) só podem ser definidas a
partir de um conhecimento prévio de tais especificidades. O conhecimento da realidade
lingüística dos alunos deveria, portanto, preceder o trabalho de alfabetização e o
ensino de uma variedade de prestígio. A escola, porém, não se dá ao trabalho de
indagar a respeito da bagagem lingüística que trazem os alunos. Impõe, violenta e
arbitrariamente, a norma, classificando procedimentos lingüísticos em "certos" e
"errados" e, certamente, gerando perplexidades. Em síntese: a escola deveria ter
condições de conhecer lingüisticamente os alunos, de avaliar as diferenças e a distância
entre as diversas variedades sócio-regionais e a norma, de programar o ensino da norma
em função das diferenças, de deixar claro que nenhuma variedade é "melhor" ou "pior",
"certa" ou "errada" do ponto de vista puramente lingüístico, mas que tais avaliações
existem e se baseiam em uma discriminação social prévia. Escamotear esta última
informação em nome de uma pretensa equivalência de sistemas lingüísticos seria,
aliás, extremamente desonesto. Variedades diversas não costumam ter o mesmo valor
social...
Parece evidente, então, que a escola lida de maneira equivocada com a diversidade lin-
güística sócio-regional, porque não a incorpora, de maneira significativa, no processo
de alfabetização. Ao ignorar o background lingüístico dos alunos prejudica a sua atua-
ção como sujeitos do próprio processo. A escola perde, assim, a possibilidade de
recuperar o percurso de cada aluno, de interpretar as suas primeiras produções escri-
tas, de entender as hipóteses que ele vai formulando sobre a relação fala/escrita, e de
trabalhar, enfim, a partir dessas próprias hipóteses.
Todas as considerações anteriores permitem concluir que a escola não lida de maneira
adequada com a variação lingüística sócio-regional. E, já que foram mencionados, de
passagem, métodos e cartilhas, cabe introduzir agora a segunda questão que me propus
discutir, ou seja, a conveniência ou não da utilização de material regional na alfabe-
tização.
Quero deixar bem claro que não estou fazendo aqui a apologia de uma escola alienada. Muito
pelo contrário, acho que os professores realmente sensíveis aos problemas sociais dos alunos
deveriam se aproveitar dos poucos espaços que a escola, enquanto instituição, oferece para
reflexão e conscientização. As cartilhas regionais também não lidam de maneira adequada com a
variação social e regional, na medida em que o regional fica aí reduzido ao vocabulário, enquanto
se sabe que as pessoas são estigmatizadas a partir da pronúncia. É nesse sentido que afirmo
que os alunos estariam melhor instrumentalizados para lutas futuras se os professores tivessem
condições de explicar para eles, desde que ingressam na escola, que não há nada de
lingüisticamente "ruim" com a variedade que falam, que essa variedade é estigmatizada
socialmente por serem eles os discriminados em termos sociais. Este tipo de conscientização cria
talvez um contexto mais favorável para uma eventual opção, por parte dos alunos socialmente
marginalizados, pela aprendizagem da escrita e da modalidade oral de prestígio regional. Se o
professor consegue lidar desta forma com a variação lingüística, a cartilha, se necessária, pode
tranqüilamente ser espaço para atividades mais amenas.
uma alfabetização natural é aquela que se faz, portanto, a partir do próprio sujeito do processo e
da sua realidade lingüística. É a que se dá no intervalo entre alfabetizando e alfabetizador,
levando em conta o saber lingüístico e a vivência cultural de ambos. Pressupõe, por definição,
um professor com sensibilidade e formação suficientes para identificar, entender e incorporar no
processo a diversidade lingüística do aluno. Um professor que tenha o bom senso de criar
condições para o desenvolvimento da oralidade, da arte verbal, como estágio necessário para a
introdução da escrita. Que saiba tomar decisões a respeito de momentos e espaços adequados
para trabalhar a partir do vocabulário e experiências regionais, mas que perceba também quando
se faz importante introduzir informações e conceitos mais universais. Que tenha tranqüilidade
para utilizar uma cartilha criticamente, como material de apoio, ou mesmo para elaborar uma
cartilha a partir da motivação da própria turma, entendendo-a apenas como subsí-
dio que pode, eventualmente, ser dispensado. Ela pressupõe, enfim, um alfabetizador
que torne o aluno consciente da discriminação social de que ele é freqüentemente víti-
ma e que se apóia, sempre que possível, em diferenças lingüísticas. E assim por
diante... Mas reside aí, exatamente, a contradição da alfabetização no intervalo, que
seria a que se define pelas características acima enumeradas. A escola, como instituição
do Estado que ampara as diferenças sociais, não pode criar, institucionalmente, um
espaço para a alfabetização que instrumentaria os alunos para uma busca de igualdade
e liberdade sociais. Não faria sentido, evidentemente, que a própria instituição adotas-
se uma postura suicida. O que acontece, como já se mencionou, é que a escola em
vários momentos reforça a própria discriminação. Isso se dá de maneira clara, por
exemplo, quando ela opta por definir suas políticas educacionais a partir de uma teoria
do déficit lingüístico e cultural, o que lhe permite, de maneira demagógica, afirmar que
se preocupa com as populações carentes, com o alto índice de evasão e repetência,
argumentos freqüentemente usados para justificar a imposição de métodos de duvidosa
eficácia. A essa escola não interessa trabalhar a partir de uma teoria das diferenças
culturais e lingüísticas, porque tal opção não lhe permitiria pressupor as "carências".
Resta saber que há lugar para contradições dentro da própria escola, onde indivíduos
podem optar por uma alfabetização no intervalo, o que vai sem dúvida exigir muita
abnegação e uma boa dose de bom senso e trabalho artesanal. Os resultados de tal
opção serão, tenho absoluta certeza, muito gratificantes.
Alfabetização, Interpretação e Mediação
Maurizio Gnerre
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
No que segue vou dizer algo para estimular a reflexão sobre a natureza desse processo
interpretativo recíproco. Temos que refletir tanto sobre as atitudes, as expectativas e
as crenças que outros grupos étnicos, outras classes sociais ou outros grupos de ¡dade
podem ter sobre a escrita, como sobre as atitudes e as crenças sobre a escrita comparti-
FERREIRO, E. & TEBEROSKY, A. Los sistemas de escritura en el desarrollo del niño. México, Siglo
Veinteuno, 1979.
Ihadas dentro da própria tradição escrita, elaborada por minorias letradas ligadas ao poder
político e económico. Deixaremos de lado aqui o problema da construção da imagem do próprio
alfabeto, em contraposição à imagem de outros tipos de escrita, problema este que delineamos
2
em outro trabalho e somente falaremos um pouco das crenças implícitas ou explícitas sobre a
escrita.
"Este ataque platônico contra a escrita não é um exemplo isolado na história da nossa cultura.
Rousseau e Bergson, por exemplo, estabelecem uma relação, por razões diferentes, entre os
males principais que assolam a civilização e a escrita... com a escrita começou a separação, a
tirania, e a desigualdade... A fragmentação da comunidade de falantes, a divisão da terra, a
3
analiticidade do pensamento, e o reino do dogmatismo foram todos originados com a escrita."
4
Derrida discutiu em profundidade as posições de Rousseau e de outros autores, como Lévi-
Strauss, que se preocuparam com a escrita. O que nos importa aqui é deixar claro que a tradição
de discussão ou de questionamento teórico da escrita é uma tradição minoritária na cultura
européia.
GNERRE, M. 0 campo de estudo da escrita. In: LllMGÜA, escrita e discriminação. São Paulo, Martin
Fontes, s.d. (no prelo).
RICOEUR. P. Interpretation theory: discourse and the surplus of meaning. Forth Worth, Texas Christian
University, 1976. p. 39.
4
DERRIDA. J. De la grammatologie. Paris, Les Editions de Minuite, 1967.
Outro seria o discurso necessário para uma história da perspectiva explicitamente política sobre a
escrita. Podemos lembrar, por exemplo, que:
"os reformadores de imposição leiga tiveram uma atitude dupla com relação à educação
popular. Ainda que desconfiando (...) de grande parte da cultura oral tradicional, eles temiam
por outro lado que a educação poderia causar nos pobres uma sensação de insatisfação com
as próprias condições de vida e teria estimulado os camponeses a abandonarem as terras.
Alguns deles, como Voltaire, tinham a opinião que à maioria das crianças não se deveria
ensinar a ler e escrever; outros, como Jovenalles, achavam que os camponeses deveriam
5
aprender somente a ler, escrever e contar."
Certamente falta-nos uma visão de conjunto sobre a posição e o prestígio da escrita em outras
áreas culturais do mundo, onde, apesar de existir uma longa tradição escrita, tal como a cultura
da Índia, atribui-se grande valor à memorização. Sabemos, por exemplo, que Gandhi nos
primeiros tempos da sua militância não foi favorável às grandes campanhas de alfabetização na
India. Segundo ele, estas campanhas podiam expor grandes massas à difusão de idéias e de
6
valores de tipo ocidental.
A reflexão sobre as atitudes relativas à escrita me parece particularmente relevante não somente
para desvendar a interpretação recíproca presente na situação de alfabetização, mas também
para chegar a alguma proposta prática para os processos de alfabetização em geral, na tentativa
de superar algumas das dificuldades que os alfabetizadores encontram. É bastante óbvio, ou
deveria ser, pelo menos, que nas culturas somente ou principalmente orais, onde a comunicação
verbal acontece sempre em presença dos que estão comunicando, isto é, face a face, a escrita
seja percebida, pelo que diz respeito ao valor de informação que ela carrega nas suas atuações
comunicativas, como algo incompleto, parcial, pouco confiável, falsificável. A comunicação face
a face é, ao mesmo tempo, verbal e gestual, só acontece na presença da pessoa. É, por assim
dizer, viva e tridimensional. Nela não existem palavras na sua versão abstrata: o abstrato rabisco
bidimensional custa a ser levado a sério, a ser considerado tão legítimo (ou mais, como para nós)
quanto a comunicação face a face. Certamente a introdução de tipos de comunicação como a
telefônica ou a radiofônica representa um passo na direção de uma maior abstração da
mensagem lingüística de outros canais paralelos, presentes na interação face a face. De qualquer
forma, ainda para quem esteja acostumado com este tipo de comunicação, as vantagens da
escrita em muitas situações não são nem um pouco óbvias. Em geral, nas culturas orais a escrita
não vem a substituir a memória, no máximo ela é usada como um complemento, um suporte
visual de informações essencialmente memorizadas.
5
BURKE, P. Cultura popolare nell'Europa moderna. Milano .Mondadori, 1980. p. 244-5.
6
BRIGHT, W. Le virtú dell'analfabetismo. La Ricerca Folklórica, 5:15-20, 1982.
nos parece naturalmente conhecido, isto é, para produzir uma maiêutica das nossas próprias
7
hipóteses implícitas sobre a escrita. Em um recente artigo, Bright lembra algumas atitudes de
rejeição da palavra escrita encontradas no mundo moderno. Bright conclui o seu artigo afirmando
que
"nós, os alfabetizados com uma tradição escrita, não podemos jogar fora a escrita, que veio a
ser parte de nós mesmos, mas podemos chegar a ter consciência dos custos da escrita, e
8
podemos tentar conquistar algumas das virtudes perdidas que a falta de escrita apresenta."
Muitas vezes descobrimos em culturas que não dispõem de uma tradição escrita, ou em classe
subalternas das nossas sociedades, uma polaridade de atitudes: ou a rejeição total, ou a
aceitação total e acrítica do que está escrito e, ainda mais, impresso, acompanhada, esta última
atitude, por declarações tautológicas, do tipo "tudo que está escrito é importante, porque foi
9
escrito" . Por outro lado, a "rejeição do que está em relação com a escrita, do livro, é
10
desconfiança com relação a tudo que não pode ser controlado, que provém de fora."
"O único início cabível numa declaração deste gênero é que eu detesto escrever. O próprio
processo resume o conceito europeu do pensamento legítimo: o que é escrito tem uma
importância que é negada ao falado. A minha cultura, a cultura lakota, tem tradição oral e,
portanto, eu usualmente rejeito escrever. Um dos meios de que se vale o mundo dos brancos
para destruir as culturas de povos não-europeus é impor uma abstração à relação falada de
um povo.
Por isso, o que você lê aqui não é o que escrevi. É o que eu disse e outra pessoa escreveu.
Permito que assim seja feito porque me parece que a única via de comunicação com o mundo
11
dos brancos são as folhas mortas e secas dos livros."
Especialmente com relação ao livro impresso existe uma distância incalculável entre o produtor
do texto, o escritor e o leitor. Há uma quase impossibilidade para quem é apenas alfabetizado em
12
se imaginar como escritor diante da página impressa. A mediação tecnológica entre o eventual
manuscrito e o livro impresso é incontrolável. Num depoimento, produzido várias décadas atrás,
Tuiávii, um homem Samoano que viajou
7
BRIGHT, W. op. cit.
BEDUSCHI. L. Atteggiamenti e indeologie della tradizione orale. La Ricerca Folklórica, 5:92, 1982.
10
SOBRERO, A.M. Problemi di riconstruzione della mentalitá subalterna: letteratura e circola-
zione culturale alla fine dell'800. Problemi del socialismo, 1979, p. 24.
11
MEANS, R. O marxismo e as tradições indígenas. Religião e Sociedade (7):49, 1981.
12
BEDUSCHI, L. op. cit., p. 92.
22
t
pela Europa, descreveu o mundo dos Papalagui (homens brancos) nos termos seguintes, no que
diz respeito aos livros e à educação formal:
"é particularmente ruim, é nefasto que todos os pensamentos, bons e maus, sejam logo
inscritos em umas esteiras finas, brancas. Então, diz o Papalagui que "estão impressos", quer
dizer, o que aqueles doentes pensam é escrito por uma máquina, muitíssimo estranha,
esquisita, que tem mil mãos e que encerra a vontade poderosa de muitos grandes chefes. E
não é uma vez só, nem duas; mas muitas vezes infindáveis, que ela escreve os mesmos
pensamentos. Depois, comprimem-se muitas esteiras de pensamentos em pacotinhos,
chamados "livros" que são enviados para todas as partes do país. Todos que absorvem estes
pensamentos num instante contaminam-se. Eles engolem estas esteiras como se fossem
bananas doces. Levam estes livros para casa, amontoam-nos, enchem com eles baús
inteiros, e todos, moços e velhos, roem-nos feito ratos que roem a cana-de-açúcar. É por isto
que existem tão poucos Papalaguis capazes ainda de pensar com sensatez, de ter idéias
13
naturais, como são as de qualquer samoano ajuizado."
Estas palavras de Tuiávii claramente expressam a sensação de que a leitura seria percebida
como uma renúncia de si próprio para aderir ao texto. Esta renúncia seria necessária para a
conquista de uma suposta condição mais alta dentro da sociedade de classes.
Muitos viajantes, missionários e até mesmo antropólogos que viveram em contato com culturas
orais relataram situações de contato de "nativos" analfabetos com a escrita. Infelizmente, só
encontramos relatos em que transparece a admiração e a maravilha dos "nativos", nunca sua
desconfiança e sua crítica. Por outro lado, é previsível que os que operam como agentes
ideológicos e econômicos do Ocidente no meio de outras culturas têm a tendência a acreditar
que os nativos nutrem uma incondicional admiração pelo nosso mundo. Em muitos relatos nada
mais achamos que a mistificadora mes-quinhês de Anhangüeras letrados vangloriando suas artes
de deixar os "nativos" admirados com as capacidades dos homens ocidentais.
Talvez o primeiro autor a escrever páginas de importantes reflexões sobre a escrita nas
sociedades, a partir de experiências com sociedades orais, tenha sido Lévi-Strauss. com base
em uma sua experiência específica entre os Nhambikuara do Brasil Central, o antropólogo
francês elaborou uma reflexão de ordem histórico-cultural, numa linha de crítica à atitude corrente
e corriqueira de glorificação e louvor da escrita e de suas conseqüências:
"Depois que eliminamos todos os outros critérios que foram propostos para estabelecer uma
distinção entre barbárie e civilização, é tentador preservar pelo menos este: existem povos
com e povos sem escrita, os primeiros são capazes de armazenar suas conquistas
intelectuais, ... enquanto os outros... parecem condenados a ficar presos numa história
flutuante.
13
TUlAVII. O Papalagui. comentários recolhidos por Erich Schermano. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1983. p. 91.
tuou mais que cresceu... De qualquer forma este é o padrão típico de desenvolvimento
que observamos desde o Egito até a China, ao tempo em que a escrita apareceu pela
primeira vez: parece ter favorecido a exploração dos seres humanos, mais que sua
iluminação.
Minha hipótese, se correta, nos obrigaria a reconhecer o fato de que a função primária da
comunicação escrita é a de favorecer a escravidão... Ainda que a escrita não haja sido
suficiente para consolidar o conhecimento, ela foi talvez indispensável para fortalecer a
dominação... A luta contra o analfabetismo está então em relação com um crescimento da
autoridade dos governos sobre os cidadãos. Todos têm que ser capazes de ler, de forma que
14
o governo possa dizer: a ignorância da lei não é desculpa."
Desenvolvendo a mesma temática, M. Rahnema escreve, do interior das estruturas das Nações
Unidas: "A luta contra o analfabetismo está no ponto de se transformar numa luta contra os
analfabetos". E, analisando o conteúdo das grandes campanhas de alfabetização que foram
lançadas em todas as partes do mundo nos últimos sessenta anos, a partir da primeira
campanha, a da União Soviética, escreve:
"Estas campanhas, que muitas vezes foram concebidas pelos privilegiados da escrita, foram
quase sempre caracterizadas por um estado de espírito de cruzada de que somente hoje
medimos toda a gravidade. Seus inspiradores as conceberam como cruzadas de caráter
quase que maniqueísta e redentor. No quadro daquelas campanhas encontramos referências
constantes à vergonha que constitui o analfabetismo.
Por toda parte se tinha a impressão de que se tratava de uma nova missão civilizadora, desta
vez empreendida por bons "colonos" de tipo novo: uma operação de caridade que devia
quase que impor a dignidade às categorias inferiores da população que viviam mergulhadas
15
na vergonha da oralidade."
Esta pressa em alfabetizar, se por um lado responde a exigências muito justas e profundamente
étnicas, por outro lado implica uma visão dos alfabetizandos quase como seres amorfos aos
quais, como já disse, sumariamente atribuímos o desejo de serem alfabetizados. Talvez seja
justo em termos gerais operar com esta hipótese, mas certamente é necessário refletir um pouco
sobre ela. Esta hipótese nada mais é que uma interpretação que nós construímos sobre os outros
e sua conseqüência é uma visão da alfabetização bastante técnica: a alfabetização cada vez
mais é vista e discutida como um processo técnico no qual o fator tempo é importante para a
avaliação dos métodos. Ao contrário, deveríamos lembrar que as aspirações dos alfabetizandos
variam não somente de acordo com diferenças de idade, de classe social, de grupo étnico, mas
também de acordo com as relações de classe próprias de cada momento histórico. Certamente
há momentos históricos que parecem favorecer o sucesso de grandes campanhas de
alfabetização. Me parece que podemos buscar estes momentos em situações revolucionárias nas
quais existe em grandes massas um tipo de esperança no futuro, na possibilidade de mudar as
relações de classe e com elas também os conteúdos da cultu-
14
LÉVI-STRAUSS, C. Tristes Tropiques. Paris. Plon. 1974. p. 336-8.
15
RAHNEMA, M. Pas d'alphabetisation san les "analphabetes". IFDA Dossier (31):5, 1982.
ra dominante, esperança esta que certamente falta na maioria das situações de alfabe-
tização. Parece, então, que existem raros momentos históricos em que as atitudes com
relação à escrita mudam e favorecem o processo de alfabetização.
Motivações fortes para um uso ativo da escrita foram estimuladas algumas vezes em
situações históricas de opressão, nas quais se produziu a separação forçada da família e
da comunidade. Estas situações foram, na história de vários países europeus, a migra-
ção e a primeira guerra mundial. Isto é, em termos mais gerais, a escrita começou a ser
usada de forma ativa em situações de necessidade, nas quais já era disponível um tipo
de infra-estrutura dos estados modernos, o sistema de correios. Não são muitos os
casos conhecidos de usos ativos da escrita quantitativamente significativos em grupos
sociais diferentes das elites cultas.
Pensar a questão da diversidade regional que caracteriza a realidade brasileira nos leva a refletir
sobre as diferenças culturais, sociais, políticas e econômicas advindas de tal diversidade e quais
as implicações que dela decorrem quando se pensa, por exemplo, em contato interregional e
contexto educacional.
O nosso interesse pelo problema do regionalismo e da fala regional levou-nos a realizar uma
pesquisa com crianças oriundas do Norte e Nordeste do país e suas respectivas professoras em
escolas de 19 grau da periferia da região do ABC (São Paulo). Os dados foram obtidos através
de entrevistas e observações em salas de aula e as reflexões aqui apresentadas são fruto de tal
investigação.
Encontramos uma tal rejeição à utilização da fala regional por crianças nordestinas na escola
paulista que evidenciou-se a ocorrência de algo maior que uma simples rejeição a uma forma de
falar. Num efeito de halo, a rejeição se estendia ao falante como um todo e a vários aspectos de
sua vida. Diante do fato, percorremos uma trajetória passando pela Lingüística e pela
Sociolingüística, terminando na Psicologia Social para tentarmos entender o que ocorre no
contexto educacional (sem esquecermos o referencial mais amplo, o social) como resultado do
confronto entre a veiculação da norma padrão da língua, por parte da escola, e a utilização do
português não-padrão, nordestino, por parte das crianças migrantes. Em virtude da limitação de
espaço e tempo, apresentaremos aqui apenas alguns aspectos da trajetória por nós percorrida.
O enfoque adotado nos deixa entrever a possibilidade de encararmos a relação língua padrão e
língua não-padrão não só do ponto de vista da língua como tal, mas também do ponto de vista
dos falantes que interagem numa sociedade.
Do ponto de vista estritamente lingüístico, segundo John Lyons, O. Ducrot e T. Todorov, por
exemplo, os dialetos podem ser classificados como línguas regionais que apresentam entre si a
coincidência de traços lingüísticos fundamentais, costumando-se recorrer a motivos
extralingüísticos (de ordem psíquica, social ou política) para estabelecer a língua padrão de uma
nação, não havendo, lingüisticamente falando, uma língua superior à outra. Neste sentido, pode-
se considerar o dialeto (do ponto de vista lingüístico) como uma variante regional da mesma
língua (exemplo: baiano, carioca). Do ponto de vista político (social, histórico), trata-se da
coexistência geográfica de línguas diversas que possuem uma origem comum, sendo possível
que um dos dialetos se eleve à condição de língua padrão, como observa Monica Rector.
O lingüista Jurn Jacob Philipson, do Instituto de Psicologia da USP, mais especifica-
mente, mostra o aspecto problemático da relação língua padrão e dialeto, conside-
rando o português não-padrão nordestino como homogêneo, apesar das possíveis dife-
renças regionais e de gradação social. Diz ele: "considero o português não-padrão nor-
destino um sistema lingüístico diferente do português padrão regional, mas perfeita-
mente correto e adequado para todos que o usam e aprenderam como língua ma-
terna".
A Sociolingüística nos oferece pelo menos dois caminhos de análise, representados
pelas posições de William Labov e Basil Bernstein, respectivamente. Apoiamo-nos no
primeiro a fim de refletir sobre nosso problema, sem desconsiderar as implicações da
teoria de Bernstein. Acreditamos que a variante dialetal nordestina seria vista como
uma utilização aproximada daquilo que Bernstein denominou de código restrito, vin-
culado às classes sociais de baixa renda, em oposição ao código elaborado, utilizado
pela classe média.
Bernstein considera que o código restrito é inadequado no que diz respeito a favorecer
a educação formal, e a chave do êxito da criança na escola depende do fato de possuir
ou estar orientada para um código amplo. Considera o código restrito como deficiente
para expressar abstrações e estabelece distinções sutis de sentimentos, porquanto é
orientado para o concreto e situações sociais estereotipadas. Além do mais, é restrito
quanto à variedade de significados que podem ser transmitidos, oferecendo alternati-
vas sintáticas muito mais reduzidas àqueles que dele se utilizam.
A seguirmos este caminho, teríamos que considerar a variante dialetal nordestina como
produto de determinada estrutura social, própria de classes de baixa renda e inade-
quada no sentido de não oferecer a quem dela se utiliza muitas alternativas para a
comunicação e expressão do pensamento. Ao que tudo indica, tal caminho conduz às
justificativas que fazem parte do chamado "mito da privação verbal e cultural", como
diz Labov. Isso faz com que se passe a justificar falhas do sistema educacional como
sendo devidas à falta de capacidade da criança, restrita que está às delimitações impos-
tas por um ou outro tipo de código lingüístico. Podemos exemplificar a utilização de tal
tipo de justificativa através de algumas das afirmações que nos foram feitas pelas
professoras entrevistadas.
"Os alunos que vêm do Nordeste apresentam muito mais dificuldades que os alunos
daqui. Falam até diferente, têm uns termos que a gente desconhece e acho que isso
é uma das dificuldades que atrapalham o seu rendimento."
"A origem influencia em todo o rendimento escolar... A taxa de alunos nordestinos
que são bem aplicados é bem pequena. O problema não é eles serem pobres, por-
que pobre também tem aqui. O problema é eles terem vindo do Nordeste, o que faz
com que falem errado..."
"... essas crianças apresentam mais dificuldades que as crianças daqui e têm mais
dificuldades para se expressar e comunicar."
Os dados que obtivemos junto às crianças nordestinas mostram o outro lado da situa-
ção, muito mais coerente com as observações de Labov.
Labov questiona a noção de "privação verbal" — baseado em seu trabalho com o black
anglisti — acentuando que tal noção não apenas não está baseada na realidade social,
como esta ainda a desmente. Destaca, para tanto, a necessidade de se observar a crian-
ça mergulhada em situações de estimulação verbal, de manhã à noite, assim como a da
observação de eventos de fala que dependem de uma exibição competitiva de habili-
dades verbais e atividades nas quais o indivíduo ganha status através de seu uso da lín-
gua. Acrescenta também a necessidade de se promover uma alteração metodológica nas
investigações, modificando-se a situação social de entrevista, quase sempre inibidora e
baseada numa relação de poder por parte do investigador, o que acaba por provocar a
ocorrência de respostas monossilábicas, atribuídas às limitações do falante.
"A professora começou a falá que não era assim que se falava: trem, botá. Que isso
era errado. Dizia que a gente tinha que aprendê do jeito que eles falava, porque
senão ninguém entendia, pensava que era outra coisa. Ela entendia, mas achava feio
o jeito da gente falá palavras que até já esqueci. Os colegas que também achava feio.
A professora sempre dizia que era errado que tinha que aprendê a fala do jeito dela,
que as palavra era feia e não servia não.
A palavra que a gente mais gostava de fala era trem e botà. Agora não falo mais.
Tanto corrigiro que eu agora não falo mais não. Os daqui acha ignorante falá do jeito
de lá. Eu não acredito não porque lá é o costume da gente falá e aqui tem outro
costume.
Acho que certo é o costume, mas eles diz que trem é condução e botá é do ovo da
galinha. A professora sempre dizia isso prá mim e meus irmãos. Quando ela falava
isso, tinha uns que dava risada."
"Dissero que aqui não se usava os nome que eu falava, que prá eles isso era pala-
vrão. A professora falou que aqui não se usava essas palavra, que as do Norte era
diferente e se usar, as pessoas não entende, ignora.
Achava que era bom esquece o meu jeito, sabendo os dois era bom, mas não tão
bom porque aí eu podia esquecê e falá as palavra do Norte. Até poderiam dizê que
eu era ignorante, soltava palavrão e ficava mais chato. É melhor esquecê o jeito do
Norte.
A professora dava conselhos prá eu falá direito, porque é errado isto aqui. Aqui tem
outros modelo e não tem o jeito que eu usava prá falá. Mas penso que aqui também
não é muito certo, porque se eu chegá no Norte e falá: dá uma bala, vão falá: eh
você é criminoso. Lá é confeito que se diz e se eu pedi confeito aqui também igno-
ram..."
Acreditamos que esses exemplos são suficientes para mostrar que a utilização da
variante dialetal não mutilou as crianças nordestinas do ponto de vista intelectual, nem
as tornou incapazes para a vida social. Ao contrário, essas crianças se mostraram
perfeitamente capazes de se utilizarem de frases cuja seqüência esclareça a organização
lógica do significado, bem como de estabelecer uma conversação onde o fluxo de idéias
não se apresenta de forma descontínua, desordenada e incidental. Tais exemplos con-
trastam também com as afirmações que ouvimos no sentido de que as crianças nordes-
tinas têm mais dificuldades para se expressarem e comunicarem.
Na realidade, a rejeição que essas crianças sofrem em função do sistema lingüístico que
utilizam, não se deve a uma inadequação do mesmo, uma vez que as professoras em
geral fazem objeções ao falar típico, que elas corrigem como algo errado, como fazem
questão de enfatizar, dizendo que a fala nordestina é errada e que elas a corrigem mes-
mo. Assim, temos "... elas falam: fui caçar meu lápis. Aí eu digo: é procurar e não
caçar". O que a professora está entendendo aqui como dificuldade de expressão e com-
preensão (como nos disse), deve-se a uma confusão ou mesmo ignorância de sua parte a
respeito da utilização de significantes típicos da variante dialetal, cujo emprego não
compromete o significado.
À medida que um tal tipo de discriminação aparece, em que o falante é visto como me-
nos capaz para aprender; como tendo dificuldades herdadas; em que passa a ser isolado
em classes de recuperação para não contaminar os demais com o seu falar típico; em
que é rejeitado e humilhado, a questão não pode mais ser vista apenas como limitada
ao âmbito da língua e do contexto educacional. Ao contrário, acreditamos que os
rótulos colocados nessas crianças e a maneira como são tratadas indicam implicações
a um nível maior, envolvendo um preconceito manifesto contra as mesmas e que atin-
ge os seus costumes, crenças, modo de vida, inteligência, performance escolar, etc.
Temos que considerar, então, alguns aspectos psicossociais que nos parecem relevantes
para o tipo de articulação entre língua, contexto cultural regional e sócio-político e
educação, que encontramos.
"As nossas crianças são alfabetizadas pelo método global. Seus erros são normais e a
criatividade é muito rica. Os nordestinos não têm criatividade como os nossos alu-
nos e acho que uma das causas é devido ao método global..."
"As crianças paulistas usam termos muito mais elevados, possuem um vocabulário
melhor."
"... Os pais são analfabetos e transmitem sua ignorância aos filhos... Eles ainda são
muito enraizados nos seus costumes, não têm os nossos modos de paulistas."
"O problema não é eles serem pobres, porque pobre também tem aqui. O problema
é eles terem vindo do Nordeste... Eles são agressivos também no modo de falar. A
gente está costumada com os daqui, que são pobres mas educadinhos."
"... Eles são tão fracos que é difícil explicar para eles o que é o Estado de São
Paulo. Imagine que tem até verduras que eles não conhecem."
Não é necessário estender-se muito na ilustração para se observar que, ao mesmo tem-
po em que os padrões nordestinos (língua, costumes, tradições, métodos de alfabeti-
zação etc.) são rejeitados e negados, há uma tendência em se privilegiar tudo o que é
paulista como superior e correto. Pode se observar um mesmo erro ser corrigido no
falante nordestino e não no paulista. Passa a haver, então, até uma relativização no
que diz respeito ao emprego das regras gramaticais.
Deve-se, então, cogitar das causas que estariam subjacentes a esse preconceito contra os
nordestinos e que não parece restrito ao âmbito escolar, segundo referências feitas
pelas crianças por nós ouvidas. Isto nos leva a pensar na existência de aspectos outros,
políticos, econômicos, sociais e psicológicos por detrás daquilo que aparentemente
seria um problema educacional, uma questão de inadequação de métodos de alfabeti-
zação, de "mau uso da língua". Não se pode esquecer, por exemplo, que os migrantes
nordestinos têm crescido em número e que isso pode ser visto como uma ameaça ao
grupo majoritário em termos de ocupação de espaço físico e de espaço econômico-
social. A situação se configura mais ameaçadora ainda diante do atual panorama político-
econômico, onde o desemprego agudo intensifica as disputas pelo já tão saturado
mercado de trabalho. Além disso, uma "teoria da inferioridade dos nordestinos" pode
servir de justificativa para uma remuneração mais baixa e um tratamento desigual,
proporcionando mais lucros a quem emprega.
Não se pode esquecer, também, além dos aspectos já considerados, que a escola (ou
pelo menos, parte dela) está se prestando a um tal tipo de situação, pois pudemos cons-
tatar uma predisposição negativa em relação aos alunos nordestinos já na 1a escola que
pesquisamos. Lá a diretora nos informou que os alunos nordestinos, assim que chegam
à escola, são diretamente encaminhados às "classes especiais". Isso ocorre antes mesmo
que sejam submetidos a alguma forma de avaliação, por serem considerados suposta-
mente inferiores. Ao mesmo tempo, encontramos também quase que uma busca de
suporte biológico para tal atitude, contida em afirmações do tipo: "acho que a dificul-
dade é herdada..." Ora, se se considerar que a dificuldade é herdada, assim como o
temperamento é herdado ("... são valentões, tipo Lampião", "... são briguentos... É o
temperamento do nordestino"), não há o que se fazer e assim a escola encontra um
mecanismo de defesa que justifica a sua omissão, rejeição, hostilidade e discriminação,
construindo um outro mito a respeito dos nordestinos.
Por outro lado, é preciso não perder de vista as conseqüências que a discriminação con-
tra os nordestinos provoca do ponto de vista psicossocial. Essas conseqüências podem
ser vistas pelo menos sob dois níveis: o da identidade individual e o da identidade gru-
pal. Ao se atingir a identidade do grupo nordestino através da rejeição de seus costumes,
crenças, valores, lingua, está se atingindo também a identidade individual do nordestino, através
de seu referencial grupai, ou seja, atacando-se as raízes culturais e psicológicas do meio em que
a criança vive e se desenvolve, as figuras que lhe são mais significativas, pois a língua e os
costumes que aprende são os de sua gente, de seus pais, de seus avós. É significativo o que nos
disse uma criança a respeito: "a gente não pode esquecê a fala da terra da gente, porque é onde
a gente nasceu, se criou desde pequena..."
Não se está pretendendo que a criança não deva aprender a norma padrão da língua, pois ela
terá necessidade de saber manejá-la em um contexto regional diferente do seu. O que é preciso
ter-se em conta é que tal aprendizado não pode ser realizado às custas de um verdadeiro
processo de "desenraizamento cultural", onde os próprios nordestinos começam a negar a sua
língua e seus padrões como forma de se identificarem com o grupo dominante e diminuírem a dor
e a frustração derivadas da rejeição de que são alvo. Não se pode admitir, por desconhecimento,
omissão ou causas outras, que a escola seja o instrumento de tal processo, semelhante a um
doloroso rito de iniciação voltado para a pretensa adaptação a um novo contexto sócio-cultural.
Acreditamos até ser possível levantar-se uma hipótese da perspectiva psicanalítica, no sentido de
que ocorrências como as que aqui foram apontadas podem ser o resultado de um split, de um
processo de divisão que ocorre no inconsciente nacional, por assim dizer. Em função desse split,
o paulista, por exemplo, atribuiria ao nordestino aquelas que são consideradas as características
negativas e ficaria com as positivas, em um jogo de identificações e projeções. Só que o objeto
dividido, "splitado" em partes "boas" e "más" seria a própria identidade nacional, tão difícil de se
constituir, como bem apontou Dante Moreira Leite. É só uma hipótese, mas talvez valha a pena
refletir sobre ela, principalmente pensando-se em como a educação pode contribuir positivamente
para uma nova atitude a ser desenvolvida quanto às diversidades regionais. Assim, vale a pena
tentar trazer ao nível da consciência nacional os mecanismos de defesa subjacentes às formas
como são encaradas as diferenças regionais.
As características regionais são parte integrante da realidade brasileira e não podem ser
destruídas, negadas ou eliminadas, sem se correr o risco de mutilar tal realidade. É somente a
partir do reconhecimento e da aceitação do que é diferente e múltiplo que se pode tentar
promover a integração e unicidade, forma madura e adulta de se começar a pensar em identidade
nacional.
Referências Bibliográficas
DAMERGIAN, Sueli. A fala regional e o contexto social: um estudo sobre como são recebidos
os falantes que se utilizam do português não-padrão nordestino em um contexto onde só o
português padrão é admitido. São Paulo, USP, Instituto de Psicologia, 1981. (Tese mestrado)
DUCROT, 0. & TODOROV, T. Dicionário das ciências da linguagem. Lisboa, Dom Quixote,
1974.
LABOV, William. The logic of nonstandard english. In: GIGLIOLI, Pier Paolo, ed. Language
and social context, s.l.. Great Britain, Penguin Books, 1973.
__________________ The study of language in its social context. In: GIGLIOLI, Pier
Paolo, ed. Language and social context. Great Britain, Penguin Books, 1973.
— Quais os aspectos m mimos que a criança deve ter desenvolvido para apresentar um bom
rendimento durante a alfabetização?
Para Ana Maria Poppovic, Prontidão para Alfabetização poderia ser definida como o momento
ótimo no desenvolvimento do Sistema Funcional da Linguagem (SFL) - em relação aos requisitos
exigidos pela aprendizagem da leitura e da escrita.
Linguagem, ou seja, a capacidade que o ser humano tem de simbolizar, está estreitamente ligada
ao desenvolvimento das capacidades Sensoriais, perceptuais e motoras, bem como ao das
operações cognitivas. Linguagem, entendida como uma forma de organização das experiências
vividas, do pensamento; através da linguagem é possível generalizar, pensar logicamente,
adquirir, reter e selecionar conceitos e desta forma ir criando novas formas de ação.
Fala, leitura e escrita não podem ser vistas como funções isoladas, mas como manifestações de
um mesmo mecanismo, mecanismo este que resulta do harmônico desenvolvimento e integração
de várias funções que servem de base ao SFL desde o início da sua organização, ou seja, desde
os primeiros tempos de vida da criança.
No entanto, o desenvolvimento de cada um desses aspectos não deve ser entendido como uma
seqüência linear que determina uma evolução cada vez mais complexa.
Não se trata, portanto, de promover o treino puro e simples destas funções num processo
pedagógico, mas sim, promover situações que favoreçam o desenvolvimento global da criança.
Além disso, os exercícios são quase que exclusivamente feitos através de trabalhos gráficos,
sem respeitar a grande necessidade desta faixa etária de ter um aprendizado feito através de
experiências reais e concretas. A criança é submetida a uma rotina que pode levá-la ao vício de
responder padronizadamente a certas situações sem analisá-las previamente. Os caminhos são
pré-determinados, o que impede a busca de novas soluções. Os diferentes exercícios pedem
sempre o mesmo tipo de resposta — assinalar com um "X", ligar, contornar, pintar — fazendo
com que ela passe a ser executora de tarefas, sem participar das propostas.
Outro aspecto a ser mencionado diz respeito ao acompanhamento das crianças feito durante as
atividades. Sendo o material consumido rapidamente, ou sendo os grupos muito numerosos,
torna-se difícil verificar o trabalho de cada criança no momento da execução. Desta forma, o
material é recolhido, e a criança nem sempre recebe o feedback do seu trabalho e, quando o
recebe, dias ou semanas mais tarde, a experiência já foi esquecida.
O trabalho de exploração corporal, quando acontece, é feito em educação física e atra-
vés da nomeação e identificação, em desenhos, das partes do corpo.
Nossa proposta de trabalho se insere dentro da concepção da escola que tem como
objetivo ensinar A pensar, ensinar como pensar e não O QUE pensar; uma escola que
visa a formação de um indivíduo consciente e crítico, que atua na realidade que o
cerca.
Não tem como objetivo "treinar" a criança, mas propor situações que a mobilizem
através de instruções simples e claras, do contacto com material concreto, rico e esti-
mulante e das exigências dos exercícios sempre partindo da realidade, evitando verba-
lização excessiva por parte do professor, bem como uma fantasia exagerada; propor
exercícios onde não existem respostas prontas e não se indiquem procedimentos que
facilitem a execução da atividade proposta.
O objetivo é que o trabalho seja vivenciado de forma plena, dando liberdade á criança
para a escolha dos meios com os quais vai atuar para executar a atividade, dentro de
alguns limites para que a experiência não se perca. Incentivar a utilização da linguagem
oral como forma de explorar e conhecer o meio, propiciando situações de comunica-
ção em que a criança possa falar espontaneamente, usar a sua própria linguagem e não
apenas a linguagem que a escola adota. Respeitar a linguagem que a criança traz de
casa, deixar que ela fale e não apenas escute e execute tarefas.
Mostraremos agora como esta proposta de trabalho é desenvolvida em uma escola atra-
vés da metodologia Ramain.
O tipo de material utilizado, que difere muito do usualmente empregado na maioria das
escolas, é caracterizado pela simplicidade, pela sua forma própria de acordo com as
funções que pretende desenvolver. As crianças trabalham com materiais simples, da
natureza — como folhas de árvores, sementes de cereais, madeira etc. — ou com tampas
de garrafas, canudos, tecidos, rolhas, fios de vários tipos, plásticos, contas etc.
Logo após o término da atividade, a criança sempre faz a verificação de seu trabalho.
Às vezes através de um gabarito, às vezes uma nova proposta de trabalho partindo da
atividade executada permite a verificação pela própria criança. Esta verificação repre-
senta uma nova tarefa, pois o "fazer" e o "desfazer" se constituem como trabalho.
Enfatizar a importância de antes atender às exigências da proposta, do que simples-
mente concluir a atividade. O importante é o processo e não somente o produto final.
Não há exercícios específicos para desenvolver aspectos isolados; em cada um, várias áreas do
ser humano, igualmente importantes, são mobilizadas. O que deve ser enfatizada é a relação que
é estabelecida com a situação que está sendo proposta.
A exploração verbal do material utilizado, suas características, atributos, está sempre presente
antes do início de cada atividade.
Assim, em RECORTES, além do ato motor específico, desenvolve-se uma série de conceitos
como: entre, ao lado, em cima, sobre, sob, até; trabalha-se as noções de direção, de
horizontalidade e verticalidade e de proporção na relação de espaço, tão importantes para a
realização da escrita.
Os exercícios de ATIVIDADE DIRIGIDA fazem com que a criança, dentro dos limites definidos
peia proposta, tenha liberdade para escolher os meios que vai utilizar para executá-la. Assim, na
organização de uma horta, os locais possíveis e as ferramentas disponíveis são dados pelo
professor, e a organização do grupo, a divisão de tarefas, as sementes a serem plantadas ficam a
critério das próprias crianças.
Todo trabalho específico de mesa, sempre que possível, é precedido de uma proposta de
vivência corporal. Explorar antes, no próprio corpo, os aspectos que serão objeto de uma
proposta de mesa.
Assim, em MOVIMENTOS, se trabalha a percepção de si e do outro, do tempo e do espaço que
cada um tem e ocupa, sendo desta forma responsável por ele; a percepção do tempo e do
espaço do outro, respeitando esses limites.
Referências Bibliográficas
Os dados aqui apresentados fazem parte de uma pesquisa por enquanto incompleta. Nela
procuramos analisar cartilhas para alfabetização de crianças com o objetivo de se chegar às
propostas metodológicas dos autores. O aspecto metodológico que pretendemos estudar refere-
se a como as propostas combinam elementos tais como: 1) dificuldades da língua escrita
(encontros consonantais, dígrafos, sílabas complexas e sílabas compostas); 2) categorias
gramaticais (verbos, advérbios, substantivos e adjetivos);
3) estrutura das frases (omissão de elementos, enriquecimentos, complexidade);
4) conjunto de frases (conexos, desconexos, repetitivos); 5) ilustração (decorativa, rela
cionada ao tema, decodificável); e 6) vocabulário (conhecido, usual, não identificado).
Até o presente momento já levantamos os cinco primeiros elementos, faltando, portanto, saber se
o vocabulário existente nas cartilhas é disponível ou pelo menos reconhecível por crianças que
deverão ser alfabetizadas.
Sob a rubrica ilustração procuramos classificar se ela estava ou não relacionada com algo do
texto, e, em caso afirmativo, se seria identificável ou não. Em conjunto de frases analisamos a
repetição desnecessária ou não de palavras e se havia ou não conexão entre as frases que
estivessem dispostas em forma de conjunto. Foram catalogadas todas as dificuldades da língua
escrita por palavra.
a) A partir dos anos 70 o descuido pela ilustração é dos mais contundentes: apenas 1 cartilha
pode ser classificada como boa (menos de 30% de deficiências, isto é, apresentando
desenhos decorativos ou não decodificáveis), enquanto as outras podem ser classificadas
como inaceitáveis (mais de 60% de deficiências). As cartilhas da década de 60 e anteriores a
1952 possuem proporções semelhantes: 1/3 aceitável ou boa e o restante inaceitável.
A partir sobretudo das idéias de Piaget e Chomsky, a criança passou a ser vista como um ser que
constrói ativamente o seu conhecimento e busca compreender o mundo de objetos que a cerca.
No que concerne ao aprender a ler e escrever, este ser que pensa e elabora hipóteses só
recentemente começa a ser conhecido. Abordaremos a questão dos pré-requisitos para
alfabetização, focalizando alguns aspectos do desenvolvimento cognitivo e lingüístico da criança e
sua relevância para a aprendizagem do nosso sistema de escrita.
Contrariamente aos sistemas ideográficos, como o da escrita chinesa, cujos símbolos gráficos
representam significados, os sistemas alfabéticos são representações de significantes verbais
com base numa análise da palavra ao nível do fonema. Dominar este sistema de escrita significa
ser capaz de utilizar os seus elementos produtivamente, isto é, um leitor que reconhece as
palavras "bota" e "calo" deve ser capaz também de ler "talo", "bala", "cata" e assim por diante,
pois ütilizando-se dos símbolos gráficos aprendidos, ele pode ler ou escrever novas palavras.
Atingir esta produtividade só é possível quando se compreende o funcionamento do sistema.
Entender um sistema alfabético pressupõe dois aspectos fundamentais: uma capacidade para
focalizar o significante verbal e uma noção adequada de como a fala está representada naquele
tipo de escrita. Este entendimento não é tarefa fácil para uma criança. Tornar a forma lingüística
um objeto de reflexão em si e perceber como a seqüência de sons se encontra representada na
escrita alfabética envolve aspectos do desenvolvimento cognitivo da criança.
E. Ferreiro e A. Teberosky (1979) demonstraram que entre 4 a 6 anos as crianças passam por
diferentes níveis de concepção da escrita. As autoras salientaram que um marco muito importante
desse desenvolvimento é a emergência de uma hipótese silábica sobre a escrita. A criança que
afirma, por exemplo, que para escrever a palavra "bola" são
necessárias 2 letras está demonstrando que sua hipótese sobre a escrita se apóia numa análise
do significante verbal ao nivel da sílaba, um caminho necessário para a elaboração de uma
concepção alfabética.
T. IM. Carraher (1978) e T. N. Carraher e L. L. B. Rego (1981a, 1981b, 1982), buscando uma
explicação no desenvolvimento cognitivo para a emergência de uma capacidade de refletir sobre
a forma lingüística e de perceber a relação entre fala e escrita, propuseram que o realismo
nominal investigado por Piaget (1929) poderia ser uma variável importante neste contexto.
Superar o realismo nominal significa ser capaz de distinguir o significante do significado, tarefa
bastante difícil para crianças entre 4 e 5 anos como também já o havia constatado L. S. Vigotsky
(1962). Crianças que ainda não superaram o realismo nominal afirmam, convictamente, que "boi é
uma palavra grande porque o boi é grande", mostrando assim a sua incapacidade em separar os
atributos do nome dos atributos do objeto a que ele se refere.
Nas nossas pesquisas (CARRAHER, T. N. & REGO, L. L. B., 1981a, 1981b, 1982) constatamos
que as crianças chegavam à alfabetização em diferentes níveis de realismo nominal. Algumas
crianças já haviam superado o realismo e apresentavam uma clara consciência do significante,
enquanto que outras se encontravam num nível inicial e eram incapazes de separar o significante
do significado. Havia ainda um terceiro nível que seria o intermediário, constituído por crianças
que ora apresentavam uma capacidade de focalizar o significante e ora se deixavam ainda
seduzir por concepções realísticas. Assim, se em um determinado momento afirmavam que a
palavra "aranha" é maior do que a palavra "boi" "porque tem mais som", em outra ocasião
consideravam que "bola" e "laranja" são palavra parecidas porque a "bola é redonda e a laranja
também".
Criança do nível 2
Leitura : Ó (Qual é essa daqui?) ó ba (Oxente, o que é isso?) rr ó ba (como é que se forma esse
daqui com esse?) o ba-rru- • u (Não) r e - i - r o ce co bota r r r r - t a o ea (É prá ler isso
tudinho, né?) o r a b e l o do ne-ne (não) m me-ni-no.*
Também encontramos crianças que, em tarefa de escrita, reconhecem as letras que usam sem ,
no entanto, serem capazes de fazer as correspondências entre fala e escrita, demonstrando
assim seu total desconhecimento de como funciona o sistema alfabético.
E. Ferreiro e M. G. Palácio (1982) salientam que as dificuldades gráficas são mais facilmente
superadas do que as de ordem conceitual. Numa amostra de 959 crianças, em estudo realizado
no México, 90% chegavam à alfabetização sem entender as relações entre fala e escrita. A
maioria dos fracassados eram exatamente aquelas crianças que haviam iniciado o ano escolar
em niveis pré-silábicos de concepção da escrita. Resultados como estes sugerem que ler e
escrever são atividades complexas que envolvem muito mais do que o treinamento das
habilidades perceptuais e motoras tão enfatizadas pela escola na preparação para a
alfabetização. É também de fundamental importância que se leve em conta o desenvolvimento
cognitivo da criança (REGO, L. L. B., 1983).
• Na transcrição da leitura usamos as seguintes convenções: o acento agudo indica que a vogai foi
produzida com som aberto; o traço horizontal sobre a vogai indica alongamento da mesma; um
traço horizontal entre as sílabas indica pausa breve; dois traços horizontais entre as sílabas indi-
cam pausa longa; o espaço em branco, intervalo entre palavras; as frases entre parênteses
comentários da criança e as letras repetidas as repetições da criança.
Estudos recentes têm demonstrado que as crianças mais bem-sucedidas na escola são aquelas
que desde cedo estão expostas a experiências com livros (HEATH, S., 1981). G. Wells (1982,
1983) e B. M. Kroll (1983) encontraram como fator preditivo mais forte do sucesso posterior de
uma criança na leitura e na escrita a variável escutar estórias lidas em voz alta por um adulto, nos
anos que antecedem o ensino da leitura e da escrita na escola. Segundo Wells (1982, p. 184) é
através desta atividade que a criança desenvolve uma capacidade para reconstruir o significado
com base na própria lingua e não no contexto extralingüistico, como é freqüente na fala. E através
desta experiência, salienta o autor, que "a criança entra em contacto com o potencial simbólico da
linguagem e o seu poder para representar experiências através de símbolos que são
independentes dos objetos, dos eventos e das relações simbolizadas, e que podem ser
interpretadas em contextos outros que aqueles nos quais a experiência ocorreu originariamente".
Somando a favor dessas idéias podemos citar o caso reportado por Scollon e Scollon (1981)
relativo à sua própria filha, Rachel, que pouco antes dos três anos de idade, já demonstrava uma
capacidade para descontextualizar a linguagem. Rachel era capaz de idealizar os papéis de
autor, de audiência e do próprio eu nas suas narrativas, bem como de fazer uso de uma coesão
interna nas estórias que criava. Os autores contrastam as narrativas de Rachel com as de uma
criança indígena de 10 anos que, apesar de escolarizada, era culturalmente marcada por uma
tradição oral, apresentando sérias dificuldades em usar uma linguagem descontextualizada.
Em um estudo de caso (REGO, L.L.B., 1983) também nos foi possível constatar a emergência de
uma capacidade para elaborar textos utilizando convenções próprias da língua escrita muito antes
de uma criança se tornar de fato um leitor. Embora na pré-escola que freqüentava a ênfase fosse
no treinamento perceptual e motor, as suas oportunidades de explorar a língua escrita livremente
com adultos e de escutar estórias lidas em voz alta eram amplas no contexto familiar. Aos 4 anos,
ela já era capaz de diferenciar uma estória de uma carta, de uma notícia, de uma poesia,
demonstrando algum conhecimento do tipo de língua usada nestes tipos de texto através dos
seus jogos simbólicos, isto é, quando fazia de conta que estava lendo um jornal, uma revista. um
livro ou uma carta. Onde, porém, revelou um maior desenvolvimento foi na construção das
narrativas. Contrastemos, por exemplo, um texto produzido oralmente por esta criança, numa
situação em que fazia de conta que lia rabiscos feitos por ela num papel, com uma estória escrita
por uma criança já alfabetizada.
Era um dia uma menina que só vivia de verde/ Ela adorava o verde/ a cor verde/ Ela foi para
uma praça que tinha um bocado de árvores/ E/ arrancou umas folhas das árvores lindas/ E
uma folha tava machucada e ela rasgou/ A folhinha chorou/ A menina do chapéu verde teve
pena da coitada da plantinha/ Então/ veio uma ambulância de folhas/ levou a folhinha para o
hospital/ e curou-la/ E a menina foi embora/ Viu a cor verde/ Viu muitas cos (cores) verde/ mas
não arrancou/ E a menina ficou feliz que só gostava de verde/ A menina do chapéu verde."*
(F., 6 anos)
• Na história "A Menina do Chapéu Verde", o traço vertical indica as pausas da criança ao pro-
nunciar a história oralmente.
"Era uma vez uma escola que tinha muitas crianças bonitas. Aí a tia da menina tava fazendo
muitas tarefas para a menina aí a menina disse tia praque tanta tarefa por que você faltou as
aulas."**
Não há dúvida de que a primeira criança embora ainda não fosse um leitor, conhecia muito mais
sobre a linguagem dos livros do que a segunda. Além de uma noção mais apropriada do que seja
uma narrativa, como se pode ver pela presença de um título e a própria estrutura global do texto
(na sua estória é possível distinguir uma abertura, a colocação de um problema e uma solução
final), há também uma certa preocupação com a forma. A ação reprovável de maltratar uma
planta é apresentada nos moldes de uma ficção literária, transportando o leitor para um mundo
imaginário tal como é apresentado na literatura infantil em que a língua, criando o seu próprio
contexto, libera-se das convenções do mundo real e permite folhas chorarem e serem socorridas
por ambulâncias.
Quando contrastamos com o texto produzido pela segunda criança, percebemos que neste não
chegamos a vislumbrar a estrutura completa de uma estória, nem há uma preocupação com a
forma. Os personagens principais são introduzidos de uma maneira que pressupõe no leitor a
informação suficiente para identificá-los. A utilização do "aí" aproxima esta narrativa muito mais de
um estilo oral do que propriamente das formas escritas. Veja-se que a primeira criança não só
eliminou o "aí" como fez uso de paráfrase para evitar a repetição, como quando emprega a
expressão "a coitada da plantinha", para se referir à folha. Chama-nos também atenção a anáfora
expressa pelo pronome "Ia", que embora empregado com a forma verbal inapropriada já demons-
tra que a criança começa a perceber a função destas partículas que são muito mais freqüentes
nos estilos formais de linguagem.
Não é necessário, portanto, esperar que uma criança se torne um leitor para que possa
desenvolver um estilo de linguagem mais compatível com os textos escritos. Tanto o exemplo
acima apresentado, como o estudo de Scollon e Scollon, mostram que a criança pode estender
as suas estratégias de aquisição de linguagem à língua escrita, desde que seja regularmente
exposta à linguagem dos textos escritos através de leituras feitas por adultos.
Embora durante a maioria dos processos de alfabetização a língua escrita seja apresentada à
criança sob a forma de palavras ou de frases isoladas, sabemos que a maior parte das
informações escritas que esta mesma criança terá que processar posteriormente na escola vai
estar sob a forma de textos. A criança que já teve oportunidade de adquirir estratégias para
processar informações fora de um contexto imediato, desenvolvendo as habilidades lingüísticas
necessárias, estará muito mais bem equipada para desenvolver estratégias de leituras e para se
expressar através da escrita do que a criança que só inicia seu processo de transposição do estilo
oral para o escrito após ter dominado o sistema de representação alfabética.
"As crianças aprendem facilmente sobre a língua falada quando estão envolvidas no seu uso,
quando a língua tem possibilidade de fazer sentido para elas. E do mesmo modo, as crianças
procurarão entender como ler, sendo envolvidas no uso da leitura, em situações em que a
língua escrita possa fazer sentido para elas e com isto elas possam gerar e testar hipóteses."
Referências Bibliográficas
CARRAHER, T. N. & REGO, L. L B. "Word, things and reading". In: SYMPOSIUM OF JEAN
a
PIAGET SOCIETY, 11 ., Filadélfia, 1981.
FERREIRO, E. & TEBEROSKY, A. Los sistemas de escritura en el desarollo del niño. Mexico
City, Siglo Veintiuno Editores, 1979.
HEATH, Shirley. What no bedtime story means: narrative skills at home and school. Language in
Society, London, v. 11, 1982.
OLSON, D. From utterance to text: the bias of language in speech and writing, Harvard
Educational Review, Cambridge, 47(3) : 257-281, aug. 1977.
PIAGET, J. The child's conception of the world. London, Routledge e Kegan Paul, 1929.
REGO, L. L. B. A child's discovery of literacy: a case study in the early acquisition of reading and
writing. In: WORLD CONGRESS OF APPLIED LINGUISTICS, Bruxelas, 7th, 1983.
_____ Desenvolvimento cognitivo e a prontidão para alfabetização. In: CARRAHER,
T. N., org. Aprender pensando. Recife, Secretaria de Educação e Universidade Fe-
deral de Pernambuco, 1983.
SCOLLON, Ron & SCOLLON, Suzanne B. K. Narrative, literacy and face in intereth-
nic communication. Norwood, New Jersey, Ablex Publishing Corporation, 1981.
WEILS, Gordon. Preschool literacy; related activities and success in school. In:
OLSON, D et alli, eds. The nature and consequence of literacy (no prelo).
---------Story reading and the development of symbolic skills. In: WELLS, Gordon
(org.). Language learning and education, Bristol, University. Center for the Study of
Language and communication, 1982.
Aspectos Neurológicos
Paulo Bearzoti*
Número dos Neurônios - Para termos uma idéia basta citarmos que só no córtex cerebral
existem catorze bilhões.
Arborização Dendritica - Os dendrítos são estruturas neuroniais vinculadas ao corpo celular dos
neurônios. O aumento de volume e das ramificações dos dendrítos recebe o nome de arborizaçao
dendritica.
Formação das Redes Sinapsiais - O encontro de dois neurônios recebe o nome de Sinapse.
Nessas estruturas, o estímulo passa de uma célula para outra através de uma ponte bioquímica
representada pela liberação dos neurotransmissores ou mediadores químicos. É sabido que dois
neurônios podem manter mais de uma Sinapse entre si. Em áreas corticais motoras de alguns
animais, um só neurônio pode exibir até cem mil sinapses, o que significa que uma só célula pode
entrar em contato com outras sessenta mil.
* Neurologista.
Circuitos Reverberantes {Feedback) - Um dos recursos mais usados no sistema nervoso central
é a disposição da rede sinapsial de tal maneira que permita uma retroalimentação positiva ou
negativa dos estímulos nervosos.
Mielinização - Um grande número dos axônios, que são prolongamentos provenientes do corpo
celular neuronal, são revestidos por urna membrana lipo-protéica, a mielina, indispensável ao
funcionamento dos neurônios. Embora algumas estruturas já estejam mielinizadas no recém-
nascido, a mielinização ocorre de maneira marcante após o nascimento.
Os hemisférios cerebrais se comunicam amplamente entre si, permitindo, até certo ponto, um
funcionamento unitário. Em outras palavras: a integração inter-hemisféri-ca ou transversal é
praticamente perfeita. Ela ocorre às custas das fibras de associação que trafegam,
principalmente, pelo corpo caloso.
Este aspecto é o mais difícil de ser abordado e é, também, o mais vulnerável às críticas. Existem
naturalistas que clamam pela falta de uma integração vertical mais rígida, mais limitante, a
exemplo do que ocorre na transversal. Se existisse esta disposição estrutural, o sistema nervoso
funcionaria dentro de um regime de contenção, com menor grau de liberdade. Eles acreditam que
dessa maneira o homem não estaria entregue à destruição da própria espécie através de
homicídios, violências, guerras etc. Arthur Koestler, em seu delicioso livro JANO, aborda este
aspecto de maneira profunda e interessante. Em última análise, é a velha disputa entre o prazer e
a realidade, entre o cognitivo e o afetivo, entre o que desejamos e o que podemos ou devemos
fazer. Faremos uma abordagem sucinta desse tópico, aceitando a sugestão dos neuro-
fisiologistas quando consideram as quatro funções do sistema nervoso:
Função Motora - Entre os atos motores, os reflexos são os mais rígidos e quase não permitem
variações. Os movimentos automáticos já gozam de maior liberdade de expressão. Os atos
voluntários são os mais livres possíveis, estando ligados à iniciativa individual. Verticalmente,
esses movimentos são regidos pela medula, pelo tronco cerebral, pelo cerebelo, pelo sistema
extrapiramidal, pelo piramidal, pela corticalidade etc. Contudo, desconhecemos o modelo
neurônico para o ato motor voluntário.
Função Sensitiva e/ou Sensorial - Nesta função, os estímulos aferentes cristalizam-se sob a
forma de sensações. Estas, contudo, só adquirem significado com o surgimento
das percepções. Verticalmente, participam dessa integração a medula, o bulbo, o tálamo, o
córtex cerebral etc.
Função Neurovegetativa - Esta função diz respeito à ação eferente visceral levada a cabo
através do sistema nervoso autônomo. Quanto à integração vertical, participam cadeias
ganglionares, a medula, nervos cranianos e, principalmente, o hipotálamo.
Função Integrativa - como já vimos, são, por exclusão, as funções não motoras, não sensitivas
e/ou Sensoriais e não neurovegetativas. Se nas três primeiras existe uma certa vinculação entre a
estrutura e a função até certo ponto rígida ou limitante, nas integra-tivas abre-se um enorme
leque de possibilidades. Em outras palavras: a estrutura entra com sua cota de disponibilidade
funcional mas será, acima de tudo, a ação do meio que ditará as regras do funcionamento do
sistema nervoso. Obviamente, todas as estruturas corticais e subcorticais são envolvidas neste
processo. Se houvesse uma integração vertical rígida, estrutural, com certeza não teríamos
tantas possibilidades adaptativas e funcionais. Parece-nos que a natureza, dentro de um contexto
evolutivo e em relação ao sistema nervoso do homem, teve o seu grande momento de opção
paradoxal: ou permitia grande liberdade nas funções integrativas com todos os riscos inerentes a
esta escolha, ou a tolhia por meio de uma estruturação restritiva criando, talvez, um mal maior.
Daí, alguns autores acharem que a natureza dotou o homem de um sistema nervoso que vai além
de suas necessidades e, por isto, os seres humanos ainda não sabem como usá-lo
convenientemente. A nosso ver, a natureza optou "inteligentemente" ao fazer esta escolha. Várias
estruturas entram nesta integração vertical. Contudo, merece destaque especial a formação
reticular por seu caráter de estrutura integrativa através de suas conexões córtico-retículo-
corticais. Não é demais, porém, frisar a importância da ação do meio.
Vamos supor que eu queira pegar um livro que sei estar em um determinado cômodo. Quando eu
o vejo, ocorre o seguinte: as aferências visuais (função sensorial) permitirão uma sensação que
só adquire significado através da percepção que daí resulta (ainda função sensorial). Ora, a
percepção é o meio caminho entre a sensação e o processo do pensamento. Contudo, sensação
e percepção correm simultaneamente. Mas o livro só se torna uma realidade objetai porque lanço
mão de funções integrativas, como memória, representação etc. Através das vias associativas,
outras funções integrativas são deflagradas, como a vontade de pegar o livro. O processo sofrerá
uma reversão passando para a função motora e, então, um ato motor voluntário, cujo processo
neu-rônico desconhecemos, será desencadeado. Encontrar o livro e poder manuseá-lo, poderá
dar-me muita satisfação, o que terá repercussão visceral através do sistema nervoso autônomo
(função neurovegetativa).
RESUMO E CONCLUSÕES
As espécies no geral e os indivíduos em particular não podem ir além dos limites estabelecidos
por seus sistemas nervosos.
O aprendizado depende, em parte, da integridade estrutural que, por sua vez, garante uma
potencialidade funcional adequada.
A integração transversal, no sistema nervoso, é mais "perfeita" e, por isto mesmo, mais rígida que
a vertical.
Na integração vertical merece destaque a formação reticular por causa de suas conexões córtico-
retículo-corticais.
Em nível de funções integrativas existe uma grande interação com o meio ambiente.
Embora o sistema nervoso sempre esteja nos bastidores dos distúrbios de aprendizagem, o palco
terapêutico deve ser ocupado pelo terapeuta(s) cuja(s) área(s) esteja(m) mais comprometída(s)
ou que permita(m) uma melhor abordagem do caso.
COMUNICAÇÃO
O INEP e a Alfabetização*
INTRODUÇÃO
Este trabalho pretende realizar uma análise inicial da participação do INEP, em diferentes
momentos, sob influências metodológicas e políticas educacionais distintas, na busca de
soluções para o problema da alfabetização. Essa participação se deu de forma direta - execução
de projetos - e indireta - apoio técnico e financeiro — e em momentos específicos de organização
e funcionamento do órgão.
PRIMEIRO MOMENTO
Em 13 de janeiro de 1937 foi criado o Instituto Nacional de Pedagogia que, no ano seguinte,
passou a ser denominado Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP).
O seu primeiro diretor-geral foi o professor Lourenço Filho, que deixou sua marca de alfabetizador
nos trabalhos desenvolvidos pela Instituição. Lembremo-nos que ele foi o criador dos Testes ABC
para verificação da maturidade necessária à aprendizagem da leitura e da escrita, de cartilha e
livros de leitura até hoje utilizados por nossos professores.
Este trabalho contou com o apoio e a colaboração de José Luiz Domingues e Mariza Vieira da Silva.
51
1
O livro Linguagem na Idade Pré-Escolar , publicado em 1944, em primeira edição, com
introdução de Lourenço Filho, foi produto da primeira investigação. O objetivo era estudar o
vocabulário de uma amostra de crianças (6 grupos de 10 crianças cada um) de 2 anos a 6 anos e
11 meses de idade, freqüentando classes de maternal e jardim de infância. Conforme depoimento
da Coordenadora de Projeto, professora Heloisa Marinho, não houve utilização de questionários
ou formulários. O método empregado foi o registro da linguagem espontânea da criança, em
situações naturais de jogos, brinquedos ou desenhos. Nestas eram anotados os comentários ou
explicações das crianças. A publicação dos resultados da pesquisa teve apoio do INEP nas duas
primeiras edições.
Essa investigação, de natureza psicológica, refletindo a filosofia da "Escola Nova", evidencia uma
mudança no setor educacional em direção à democratização (ou expansão) do ensino,
estendendo-o a crianças com problemas de aprendizagem e, até mesmo, de excepcionalidade. A
propósito, afirmou-nos a professora Heloisa Marinho: "o aluno não pode ficar preso aos
currículos. A professora deve olhar para a capacidade de cada um, que este indivíduo possa
crescer".
Esta foi, sem dúvida, no INEP, uma etapa que se caracterizou pelo estudo da psicologia da
2
criança brasileira de áreas urbanas, de classe média.
As outras duas "investigações" realizadas no periodo não são aqui discutidas por não incidirem
diretamente sobre o problema tratado neste trabalho.
SEGUNDO MOMENTO
No CBPE e nos CRPE constituíram-se serviços para estudos e pesquisas nos campos da
Educação e das Ciências Sociais, através da Divisão de Estudos e Pesquisas Educacionais
(DEPE) e da Divisão de Estudos e Pesquisas Sociais (DEPS), dirigidas por Jayme Abreu e Darcy
Ribeiro, respectivamente. Foi criada também a Divisão de Aperfeiçoamento do Magistério (DAM)
onde se ministravam cursos de atualização para professores, alunos bolsistas, de todo o Brasil.
MARINHO. Heloisa. A linguagem na idade do pré-escolar. 2.ed.. Rio de Janeiro, INEP, 1955.
(Apresentamos, em anexo, uma relação dos trabalhos publicados pela autora na Revista Brasileira de
Estudos Pedagógicos).
* Este depoimento foi obtido em entrevista realizada por técnico do INEP, em 1983. É o início de uma série de
entrevistas com antigos pesquisadores do INEP, que tiveram atuação significativa na área de alfabetização.
2
Consultar COSTA, Lena Castello Branco Ferreira. A educação no Brasil. In: HISTÓRIA das ciências no
Brasil. São Paulo, EPU, EDUSP. 1981. v. 3. p. 277-346.
••Os Centros Regionais de Pesquisas Educacionais estavam localizados nas seguintes capitais: Recife (PE),
Salvador (BA). Belo Horizonte (MG). São Paulo (SP) e Porto Alegre (RS).
No desenvolvimento dos cursos, parte importante era atribuída à prática de ensino,
inclusive por solicitação das secretarias de estado da educação. Para o ensino desses
cursos, o então diretor-geral do INEP, professor Anísio Spinola Teixeira, conseguiu
mediante convênio, a cessão da Escola Guatemala, da rede pública do Rio de Janeiro
(ex-Distrito Federal). A maior dificuldade apresentada pelos professores-alunos referia-
se ao processo de alfabetização, que já se constituía no maior problema das séries ini-
ciais do então curso primário.
• Apresentamos, em anexo, uma relação dos trabalhos realizados ou supervisionados por Lúcia Marques
Pinheiro.
"Eu falo caipira como todo mundo aqui. Eu digo bamo e nóis. Desde pequeno que
eu ouço as pessoas falarem assim, e eu me acostumei a falar assim também. Mas eu
sei como escrever estas palavras; elas deviam ser vamos e nós. Todos nós que fomos
à escola sabemos disso. Mas a professora mostra como se escreve, nunca como se
fala. Ela não diz nada quando a gente fala como não deve; mas se a gente escreve
uma palavra errada, ela corrige."5
Observa-se, também, que a falta de vestuário, ao lado de outros fatores como pobreza,
doença e desinteresse, é apontado como responsável pelas flutuações na freqüência
escolar.
como se observa, esses mesmos fatores continuam a ser apontados nas pesquisas recen-
tes apoiadas pelo INEP como causadores ou responsáveis pelo fracasso escolar.
4
GOMES, Josildeth. A educação nos estudos de comunidade no Brasil. Educação e Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, 1(2)63-102, ago. 1956.
5
Idem, ibidem, p. 81-2.
A esse Programa fundiu-se a Campanha Nacional de Erradicação ao Analfabetismo,
promovida pelo Departamento Nacional de Educação (DNE/MEC) e iniciada nas
cidades-laboratório de Leopoldina (MG) e Cataguases (MG), estendendo-se mais tarde a
Catalão (GO) e Timbaúba (PE).
Muitos trabalhos foram produzidos pelo Programa e pela Campanha. Neste trabalho
faremos referência a apenas dois: "Levantamento Lingüístico de Leopoldina-MG"7 e
"uma comunidade Teuto-Brasileira (Jarim)".8
6
RIBEIRO. Darcy. O programa de pesquisas em cidades-laboratório. Educação e Ciências Sociais,
Rio de Janeiro, 3 (9):13-30, dez. 1958.
7
LEVANTAMENTO lingüístico de Leopoldina. Educação e Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 3
(9)31-56, dez. 1958. (Relatório elaborado pelo Summer Institute of Linguistics sobre o estudo realizado
em Leopoldina, Minas Gerais, para o Setor de Estudos e Levantamentos da companhia Nacional de
Erradicação do Analfabetismo.)
8
ALBERSHEIM, Ursula. Uma comunidade teuto-brasileira (Jarim), Rio de Janeiro, CBPE, 1962.
(Série VI - Sociedade e Educação. Coleção O Brasil provinciano, 2).
Em 1964, é nomeado diretor-geral do INEP, o Dr. Carlos Pasquale, ex-Secretário de
Estado da Educação de São Paulo, que viria a realizar o "Censo Escolar no Brasil —
1964".9 Cumpria o INEP, com esta ação, compromissos internacionais. Estabeleceu,
ainda, metas a serem atingidas até 1970, de criação de painéis de informações locais,
regionais e nacionais que espelhassem a situação educacional da criança brasileira em
idade escolar.
TERCEIRO MOMENTO
Outras mudanças se sucedem face aos Planos Setoriais de Educação, Cultura e Des-
porto10 que estabelecem as diretrizes e prioridades da educação nacional, em todos os
níveis, e, conseqüentemente, da pesquisa educacional. O INEP, como órgão vinculado
à Secretaria Geral do MEC, passa a ter como finalidade: "coordenar a formulação e a
implementação da política ministerial de pesquisa educacional, cultural e despor-
tiva..."11
* Caso pitoresco aconteceu na zona rural de Goiás, quando a SEC/GO convenia com o MEC por ocasião do
programa OE um novo acordo para construção de uma escola. Esse acordo foi objeto de tanta discussão
local e a escola construída atraiu tantas pessoas para o lugarejo que este passou a cidade com o nome de
Novo Acordo.
Consultar BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. lII Plano Setorial de Educação. Cultura e Desporto
1980/1985. Brasília, MEC, DDD, 1982. p. 23.
Não é grande o número de pesquisas e estudos realizados e menor ainda o dos que
estão em andamento tendo a alfabetização como objetivo primordial ou como subpro-
duto relevante (ver Anexos). Dentre todos esses trabalhos, distingue-se por sua forma
de abordagem "O Estado da Arte da Pesquisa sobre Evasão e Repetência no Ensino de
19 Grau no Brasil".12 A revisão bibliográfica, o conteúdo e a metodologia empregada
evidenciam o valor e consistência do trabalho e a sua importância como subsídio a
outros estudos e pesquisas.
"0 saber ler, escrever e contar ainda é fundamental, segundo a opinião dos sujeitos
de escolarização."
BRANDÃO, Zaia. O estado da arte da pesquisa sobre evasão e repetência no ensino de 10 grau no
Brasil (1971-1981); relatório técnico. Rio de Janeiro. IUPER J / I N E P , 1982. 3v.
causas simplistas e correntes de reprovação escolar, como as deficiências biológicas
e físicas dos alunos, a desintegração de seus lares, o retardamento intelectual e a
falta de prontidão entre outras."
"De fato, a única diferença observada entre crianças de escolas públicas e particu-
lares foi a melhor compreensão de uma dada formulação verbal (quantos elementos
a mais/a menos?) por crianças das escolas particulares."
"Estatisticamente, não foi possível detectar com clareza o peso específico da habili-
tação do professor sobre o rendimento de seus alunos. O maior efeito-benefício
ainda se encontra primordialmente atrelado à experiência do professor. Contudo, a
hipótese de que a experiência acrescida da habilitação produza maiores benefícios
do que simplesmente a experiência acumulada, é uma hipótese que permanece sem
ser negada. Foram encontradas evidências que sugerem sua corroboração. É esta
corroboração que deverá ser buscada em novo estudo, talvez daqui a dois ou três
anos."
"Pode-se ainda concluir que o sistema escolar de 1º grau embora se afirme que tem
'capacidade ociosa' (a pesquisa abrangeu o Estado de São Paulo) atende diferen-
cialmente à população escolar, ou seja, as camadas mais baixas do meio rural que
vêem a escola como um valor primordial e indiscutível, são as menos atendidas pelo
sistema escolar."
"Tendo encontrado uma repercussão maior do que a prevista dos problemas sócio-
afetivos na alfabetização das crianças, concluimos que a eficácia do trabalho na
escola passa pela adesão dos pais não só a nível de discurso consciente (aspirações
exteriorizadas), mas a nível mais profundo do desejo até mesmo inconsciente."
"A falta de condições dos pais para acompanhar os temas e o conjunto das ativida-
des do filho torna a escola o único apoio possível para a criança carente."
13
INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS. Documento C -anexo à Conferência
da Ministra Esther de Figueiredo Ferraz na Escola Superior de Guerra. Brasília, MEC, 2.8.83. (lII -
Perspectivas de atuação).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ainda é prematura uma avaliação dos resultados das pesquisas apoiadas pelo INEP,
desde sua criação, por se tratar de um trabalho inicial, como dissemos na introdução.
O CBPE e os CRPE possibilitavam essa articulação, pois davam uma maior abrangência
aos estudos e pesquisas, assim como à aplicação de seus resultados, mas forarn extin-
tos, o que é de lamentar-se.
Nosso país é feito de contrastes de toda ordem. Aqui, neste Seminário, estamos discu-
tindo o problema de alfabetização, da posse e domínio da palavra escrita. Apesar da
secular invenção de Gutemberg a palavra escrita ainda não é do domínio de todas as
nossas crianças de 7 a 14 anos de idade. Por outro lado, já sabemos de estudos, pesqui-
sas e experimentos que estão sendo realizados para utilização do computador no
processo de alfabetização. A linguagem humana e a linguagem computacional coexis-
tem. Contudo, temos prioridades. Em que ponto do progresso tecnológico se encontra
a maior parte da população? como fazê-la avançar, sem saltos que enfraqueçam ou
retirem sua identidade cultural? como prosseguir?
O que foi feito até agora, partindo do INEP, dos centros produtores de pesquisa, das
universidades, através de técnicos e instrumentos considerados científicos, não trouxe,
de modo abrangente, os resultados esperados. Que este Seminário seja um sinal, como
um sonar, que retorne carregado de informações, qualquer que seja a linguagem. Da
parte do INEP, esta comunicação é o primeiro sinal de nosso sonar.
59
ANEXOS
A Sintaxe da Fala das Crianças e dos Materiais Didáticos do Estado do Rio de Janeiro
Sebastião Josué Votre
Universidade Gama Filho
Conclusão : setcmbro/1982
Pesquisas em Desenvolvimento
PINHEIRO, Lúcia Marques. Iniciação à leitura. R. bras. Est. pedag., Rio de Janeiro, 49
(110)285-310, abr./jun. 1968.
. Por que tanta repetência na 1a série? R. bras. Est. pedag.. Rio de Janei
ro, 55 (122)242-53, abr./jun. 1971.
INEP e Outros
MARINHO, Heloísa. A linguagem na idade pré-escolar. 3. ed. Rio de Janeiro, INEP,
1955.87p.
Ora, parece evidente que não é possível admitir que exista uma explicação a priori, natural, seja
genética, física, biológica, nutricional ou até ambiental para que este imenso contingente passe
pela escola sem conseguir aprender a ler e a escrever. Será que todas estas crianças possuem
alguma espécie de retardamento mental ou incapacidade? É difícil acreditar nesta hipótese. Pelos
resultados de muitos países - inclusive países como Paraguai e Bolívia - sabemos que o domínio
da leitura e da escrita é um aprendizado possível para a imensa maioria das populações. Acresce
que aprender a ler e a escrever é também uma aspiração da maioria. Sabe-se, até a saciedade,
que a educação básica é um bem valorizado sobremaneira pelas camadas populares, inclusive
concretamente como estratégia de sobrevivência e de melhoria de vida.
Dentro deste enfoque a primeira questão que eu gostaria de abordar é a das lacunas e falhas
por parte das teorias da educação quando se trata de instrumentalizar a atuação dos professores
junto às crianças das camadas populares.
Sabe-se que o fracasso em parte se deve à inadequada preparação que os professores recebem
nos seus cursos de formação. Cabe aqui uma pergunta: será que esta inadequação dos cursos
de formação de professores se deve somente à desatualização e a falhas dos currículos e dos
professores destes cursos? Ou será que decorre também de lacunas no corpo teórico da
educação? Creio que ainda não foi possível, por parte das teorias psicopedagógicas e até mesmo
por parte das ciências que as embasam, formular de maneira rigorosa, estruturada e precisa
aquilo que os professores, e a escola em geral, precisam saber para enfrentar com sucesso o
trabalho com esta criança concreta, que é a criança pobre brasileira.
1
como afirmam T. Carraher, D. Carraher e A. Schlieman a escola fracassa porque: 1) é incapaz de
aferir as reais capacidades dos seus alunos; 2) desconhece os processos naturais que levam a
criança a adquirir o conhecimento; e 3) é incapaz de estabelecer uma ponte entre o conhecimento
prático, a competência que a criança já possui e o conhecimento formal que deseja, precisa e
deve transmitir.
A estes três itens correspondem outras tantas perguntas a respeito de nossas crianças oriundas
das camadas populares que as ciências que embasam a educação não conseguem ainda
responder de maneira completa e sistemática, a saber:
Quando se cogita desta incapacidade das teorias psicopedagógicas, e até das ciências que
embasam a educação, para instrumentalizar a atuação dos professores junto às crianças das
camadas populares, é o momento do mundo acadêmico voltar-se para o mundo da realidade
escolar, para o mundo dos professores em suas salas de aula, para lá buscar o encaminhamento
para os problemas do ensino-aprendizagem das crianças mais pobres.
com base em minha prática pedagógica atual estou convencida de que o enfoque da teoria
lingüística contemporânea deve se constituir o principal fundamento de uma metodologia eficaz
da alfabetização. Isto significa a aceitação, da minha parte, da hipótese da competência
lingüística inata. Significa também reconhecer o valor instrumental da lingüística para a
alfabetização. Dentro deste enfoque a proposta do lingüista é a de que na alfabetização se realize
uma ordenação dos elementos da língua (relação fonema/grafema) que serão apresentados à
criança pela primeira vez. Esta ordenação não pode ser a ordenação arbitrária de uma estorinha,
mas deve respeitar o processo de aquisição da linguagem pela criança, que não é casual mas
altamente sistemático. A proposta do lingüista é, pois, que se trabalhe com o aluno as relações
internas da língua, e que estas relações sejam trabalhadas o tempo todo.
É preciso desenvolver nos professores uma competência técnica específica para utilizar a
contribuição da Lingüística que se traduziria, por exemplo, na capacidade de identi-
CARRAHER, Terezinha Nunes et alli. Na vida, dez; na escola, zero: os contextos culturais da aprendizagem
da matemática. Cadernos de Pesquisa, São Paulo (42) :79-81, ago. 1982.
* Agradeço a valiosa contribuição de Heloisa Villas Boas para as reflexões que se seguem.
ficar em que pontos, métodos, cartilhas e outros materiais didáticos contradizem os pressupostos
e fundamentos lingüísticos.
Um dos principais pontos críticos do sistema, no que diz respeito à alfabetização, está na
inexistência de uma ponte entre o lingüista e o professor que está na sala de aula.
Temos de um lado o especialista, que domina a área lingüística, mas que desconhece o que está
a a
acontecendo nas salas de aula de 1 a 4 séries, e que, paradoxalmente, se expressa numa
linguagem incompreensível para o leigo. Do outro lado temos o pedagogo, que sabe o que se
passa na sala de aula, mas ainda não domina o conteúdo lingüístico. A contribuição teórica do
lingüista por mais relevante, significativa e perti nente, não garante a eficiência da alfabetização,
enquanto prática pedagógica, se não se construir esta ponte. Há que construí-la a nível de
massa, através de pessoas que, além de educadores, deverão necessariamente possuir uma
fundamentação lingüística.
Acredito que muitos lingüistas, hoje, estão pensando a prática pedagógica e têm importantes
contribuições que não chegam ao professor.
2
Em recente trabalho, Sebastião J. Votre aponta vantagens em cartilhas que levam em conta o
nível de desenvolvimento emocional e cognitivo das crianças quando confrontadas com propostas
de utilização sistemática de vocábulos regionais.
A questão da subnutrição e aprendizagem tem se constituído num dos principais álibis para o
fracasso da escola, especialmente em relação à alfabetização.
Não coloco em dúvida os efeitos maléficos da subnutrição sobre a aprendizagem. Esta é, porém,
uma questão que continua em aberto por dificuldades tanto metodológicas como teóricas. O que
fica claro é que a subnutrição não constitui fator impeditivo da aprendizagem. Quando a criança
estiver impedida de aprender por desnutrição, o mais provável é que ela esteja igualmente
impedida de freqüentar a escola. O maior impacto da subnutrição incide sobre as áreas da
atenção, participação ou motivação da criança
2
VOTRE. Sebastião Josué. Um léxico para cartilhas. Rio de Janeiro, INEP/UGF, 1983. p. 6.
e não sobre a capacidade cognitiva e de aprendizagem. Pesquisas demonstram que
crianças subnutridas submetidas a experiências educacionais apropriadas aprendem.
Ainda que só de passagem gostaria de mencionar uma última questão que está relacio-
nada de maneira mais indireta com a formação do alfabetizador: a delicada questão do
envolvimento da comunidade no processo educacional, questão esta que, do meu ponto
de vista, tem sido tratada de maneira equivocada.
A escola precisa criar um novo vínculo com a comunidade e a família pois o que atual-
mente existe é baseado geralmente não só na exigência, na reprovação, até mesmo na
exploração, mas, sobretudo na omissão da escola de suas responsabilidades e na trans-
ferência de tarefas para a comunidade e de culpas, pelo desempenho dos alunos, para
as famílias. Esta é mais uma das facetas do processo de culpabilização da vítima
realizado pela escola.
Finalmente, gostaria de lembrar que cada uma dessas questões mereceria um trata-
mento muito mais profundo. Tentei explicitá-las e sublinhar seus aspectos polêmicos
com o objetivo de estimular o debate, pois é deste que todos esperamos colher os
melhores frutos desse encontro.
A Formação do Professor Alfabetizador:
Considerações a Respeito do Ensino de Português
Não faz sentido tanta reclamação quanto às condições deficientes dos alunos como se
ouve em toda parte... Os alunos aprendem aquilo que a escola ensina. Acontece,
porém, que a escola não sabe ensinar. Ou pior ainda, às vezes ensina errado. Por outro
lado o excesso de pedagogia, metodologia e de técnicas (e técnicos) de educação, a
meu ver, é em grande parte responsável pela extração do cérebro do professor. Ele não
é mais um ser que pensa, mas que aplica um programa cujos mínimos detalhes se
encontram num script chamado Manual do Professor. O comodismo do professor se
justifica pelo refinamento da técnica. Em vez de se fazer manuais de professor, onde se
tira toda a imaginação do professor, alegando, às vezes, às claras ou às escondidas, a
incompetência do mesmo, deveria cuidar-se com maior atenção dos currículos das
escolas de formação. Aí é que estão as principais causas do insucesso da educação no
Brasil.
A escola não sabe qual é a realidade lingüística de uma criança (mesmo falante do dia-
leto da escola) que começa sua alfabetização. A impressão que eu tenho, vendo livros e
programas, é a de que se considera a criança que entra para a escola como uma "tábula
rasa", lingüisticamente. Reduz-se a criança a zero, para se começar a construir o
homem-novo. Tanta psicologia na escola de formação, tão pouca psicologia na sala de
aula!
As crianças de sete anos já dominam a língua que falam. São de certo modo lingüis-
ticamente maduras. São capazes de usar a variedade da língua de que são falantes nati-
vos para expressarem seus pensamentos, para dizerem o que querem. São capazes de
entender o que os outros lhes dizem. Ouvem estórias, assistem à televisão, ouvem o
rádio, cantam músicas e quando não entendem uma palavra perguntam qual o seu sig-
nificado, como, aliás, fazemos todos nós adultos. Certamente o vocabulário de uma
criança de sete anos é bem menor do que o de um adulto, mas esse fato é muito secun-
dário na estruturação de uma língua e nas exigências de seu uso.
Qualquer variedade lingüística usada pela criança é tão complexa como qualquer outra
e em sua fala ela se utiliza de regras muito precisas e não raramente de grande
complexidade, como acontece com a fala dos adultos de qualquer variedade da língua.
Um estudo da fala das crianças nessa idade, e até mesmo antes dos sete anos, compa-
rado com um estudo da fala dos adultos, revela isto. Basta ler os estudos de aquisição
da linguagem e de psicolingüística. O aluno que fala "craro", "pranta", "paia"
simplesmente fala de maneira diferente dos que falam "claro, planta, palha". Não fala
errado! Quando dizem "os menino veio", esse enunciado é estruturado de maneira
diferente da forma "os meninos vieram". E essa diferença não significa que a primeira
forma revela uma incapacidade para aplicar as regras complexas da concordância,
porque de fato a primeira versão significa o que significa a segunda, isto é, a primeira
versão transmite a mesma idéia de plural, embora de maneira diferente da segunda
forma.
O que é ensinar Português para pessoas que já sabem falar o português? As escolas de
formação põem essa questão aos futuros professores? O ensino de Português, nas nossas
escolas, tem como objetivo ensinar como a língua portuguesa funciona e quais os usos que tem,
como a linguagem em geral se caracteriza, como os alunos devem fazer para estenderem ao
máximo, nas mais variadas situações, os usos que podem fazer da língua pátria na sua
modalidade escrita e oral. Ensinar a ler. Isso parece óbvio, mas até hoje não foi corretamente
entendido pela escola.
Essa criança não só sabe falar o português como sabe também refletir sobre a sua própria língua.
De fato, as crianças se divertem manipulando a linguagem: compõem palavras novas, a partir da
análise que fazem dos processos de formação de palavras, às vezes criando formas
surpreendentes; adora traduzir a sua própria língua em códigos, como a língua do P; falar
invertendo sílabas, substituindo certos segmentos por outros, com uma destreza que o adulto
dificilmente consegue acompanhar. As respostas que as crianças dão às perguntas que lhes são
feitas revelam a incrível capacidade que têm de manipular fatos semânticos de alta complexidade,
como a pressuposição, a argumentação lógica, sem contar com a expressão de metáforas e o
poder de abstração e generalização claramente revelados numa análise de seu comportamento
lingüístico. Além disso, elas contam ainda com uma capacidade enorme de análise da linguagem
oral, coisa que irão perder logo que entrarem na escola, sufocadas pelo modo como se ensina o
Português, tomando-se a escrita ortográfica como base para tudo. Da análise de muitos erros
encontrados em provas e nas avaliações feitas na alfabetização, é fácil observar que, em muitos
casos, a criança demonstra um apego às formas fonéticas da língua, em lugar das formas
ortográficas, o que, não raramente, deixa o professor perplexo com a burrice do aluno, devido a
sua incapacidade de analisar a fala com a mesma competência que a criança tem. A
incompetência dos professores de alfabetização em lidar com a linguagem oral é tão trágica que,
a meu ver, é um dos pontos que provocam o impasse ao progresso escolar de muitos alunos.
A escola não parte do conhecimento que a criança tem de sua fala e da fala de seus colegas para
daí ensinar o que deve. A escola parte de um abecedário e de uma fala (típica de "professora
primária") completamente estranha à criança.
Um tipo comum de exercício nas cartilhas consiste em fazer o aluno identificar "letras" através da
escrita de palavras e dos sons que as compõem. Nesses casos, o que conta para a escola não é
a representação fonética localizada pela letra em questão conforme aparece nas palavras, mas o
próprio som da letra, conforme aparece no abecedário. Observe os seguintes exemplos:
1. Elefante 3. Edson
2. Estante 4. Encontro
como se pode observar, embora todas as quatro palavras comecem com a letra E,
nenhuma delas começa com um mesmo som foneticamente:
Por isso é que mesmo quando a escola diz que está levando em consideração a escrita e
a fala, o que ela entende por fala é uma leitura dos nomes das letras e não a fala real
propriamente dita.
Todos nós, sem dúvida, aprendemos na escola a dividir palavras em sílabas. Ainda mais,
há regras ortográficas de corte de palavras em final de linha, seguindo a sua divisão silá-
bica. E ninguém estranha! Acontece porém que o nosso sistema de escrita não é
silábico (por exemplo, como é o japonês). Portanto a escrita do português não tem
nada a ver com a sílaba. Esta é uma realidade que só existe na fala do português. Então
não faz sentido falar em sílabas, referindo-se à escrita. Em princípio, ninguém sabe
quantas sílabas têm as palavras "lápis", "piscina", "antes", "táxi", "poesia" etc. ... É
preciso que alguém diga essas palavras para que se possa analisar e dizer com quantas
sílabas foram ditas. Veja alguns exemplos a seguir:
Separar as sílabas na fala é algo que qualquer falante consegue fazer com extrema faci-
lidade, apesar de opiniões contrárias, preconceituosas e falsas de algumas pessoas, in-
cluindo alguns lingüistas.
Um outro fato fonético que não é marcado no nosso sistema de escrita é a tonicidade.
uma sílaba pode ser tônica ou átona, mas isso só existe na fala e depende essencial-
mente da maneira como alguém pronuncia o que diz. Porém nossas gramáticas norma-
tivas dizem até que há palavras tônicas e átonas (por exemplo, o, a, lhe, para, etc. ...),
pressupondo, naturalmente, que todas as outras palavras têm uma sílaba tônica... Não
é raro encontrar professores que ensinam o artigo "a" como átono, "há" como tônico, e
"à" como supertônico, valendo um longo [ a:: ] dito com grande ênfase... O professor
pode explicar isso quantas vezes quiser, que jamais um aluno entenderá. E nem pode
entender. Quando o professor fala, como é possível distinguir "a" de "há", ditos
isoladamente? Um monossílabo falado isoladamente não é tônico nem átono, porque a
tonicidade é uma medida relativa, que necessita de um termo de comparação. Pode-se
estudar o acento em palavras isoladas, mas o que acontece nos enunciados formados
por conjuntos de palavras não é a soma dos acentos das palavras pronunciadas isolada-
mente. Um enunciado como o seguinte:
Pode ser dito com uma variedade de esquemas de distribuição de sílabas tônicas e
átonas, como se mostra a seguir, onde as sílabas tônicas vem em negrito:
etc...
A ESCRITA
Em primeiro lugar, deve-se dizer que aprender a escrever exige um uso especial do bra-
ço, da mão e sobretudo dos dedos. O lápis como qualquer ferramenta tem um modo
próprio de uso, sem o qual não se consegue obter o trabalho com a perfeição que se
pretende. Por isso sou de opinião de que a escola deve ensinar às crianças como segurar
corretamente o lápis (e mantê-lo adequadamente apontado), como traçar as letras,
num verdadeiro exercicio de treinamento de habilidade manual. Muitos dos exercícios de
"controle motor" que se encontram nas cartilhas são desprovidos de qualquer planejamento
educativo para a escrita, ou, na maioria dos casos, não são elaborados com o objetivo específico
de treinar a arte de escrever.
Um outro aspecto é ensinar à criança o equilíbrio das formas das letras, a proporção das partes e
a correção dos traços. A criança aprende a desenhar (a seu modo) antes de aprender a
escrever:.. uma casinha pode ser desenhada de muitas maneiras e perspectivas, incluindo planos
inclinados ou até mesmo de cabeça para baixo. A forma das letras tem um equilíbrio com relação
a quem lê e por isso não pode ser feita como um desenho. É preciso dizer isso às crianças. As
letras d, p e b podem parecer a mesma coisa para uma criança, como o desenho de uma casinha
vista de pontos de vista diferentes. Um m com quatro pernas pode lhe parecer semelhante a uma
casinha com uma janela a rnais, o que realmente não causa nenhum problema no desenho mas
torna a letra estranha. A escrita tem regras diferentes daquelas que as crianças usam para
desenhar e, muitas vezes, como partimos dos desenhos para a escrita, deixamos as crianças
durante muito tempo privadas de uma explicação simples e fácil, que ajudaria a evitar diversos
problemas iniciais de representação gráfica das letras. Alguns métodos de alfabetização ensinam
a escrever pela escrita cursiva, chegando mesmo a proibir a escrita de forma. A razão que alegam
freqüentemente é que a criança que aprende a escrever com letras de forma tem que aprender
depois de escrever com letras cursivas, e isso representa o dobro do trabalho, com o
inconveniente da criança confundir as coisas.
Eu acho que esse tipo de argumento é falso e sem sentido. A escrita de forma é muito rnais fácil
de se aprender e de se reproduzir do que a escrita cursiva. Ainda mais, é a escrita de forma que
aparece nos livros (exceto nas cartilhas...). A escrita cursiva tem um uso muito particular,
individual mesmo nos dias de hoje. É de difícil leitura e exige um controle muito refinado dos
movimentos na sua escrita, o que representa um esforço muito grande por parte das crianças que
nem sequer conseguem segurar o lápis e controlá-lo com facilidade.
Alguns autores fazem tanta questão de enfatizar o uso da escrita cursiva que se esquecem, por
exemplo, de ensinar à criança como funciona o mundo da escrita em que irá mergulhar. Por isso,
acho conveniente fazer aqui algumas observações que considero fundamentais.
Historicamente sabemos que, à medida em que um sistema alfabético é usado por um número
grande de pessoas e em lugares diferentes, para usos diversos, a forma das letras do alfabeto
que era única, passa a admitir variantes. No mundo antigo, as variantes das letras se restringiam
a uns poucos casos. O Latim, por exemplo, não tinha as letras minúsculas. A escrita cursiva vai
aparecer só na Idade Média, mas nessa época o latim já era escrito com muitos alfabetos. Hoje,
mesmo numa única folha da cartilha, encontramos uma variedade de alfabetos. Por exemplo: a
primeira letra pode aparecer escrita das seguintes formas: etc, cada uma
dessas formas pertencen-
do a um alfabeto diferente. De fato, A é tão diferente de a, quanto p é de m, por exemplo. As
letras p, b, d e g são muito rnais semelhantes entre si do que b e B, g e G etc. Vivemos num
mundo onde a escrita se realiza através de milhares de alfabetos. como aprendemos a ler todos
eles, não tomamos consciência dessa realidade. Para nós adultos, "A" é "A", seja ele escrito
como for. Quando a criança começa a aprender a escrever, ninguém lhe diz isso e ela, muitas
vezes, fica perplexa diante das coisas
que a professora (e os adultos) fazem com as letras. com o tempo acaba aprendendo
indiretamente o que a escola pretende. O grande problema neste caso é que a escola
ensina a escrever sem ensinar o que é escrever, joga com a criança sem lhe dizer as
regras do jogo. A escrita do Português não põe como problema só o fato de se utilizar
de muitos alfabetos, mas, independentemente desse fato, seu sistema já não é tão alfa-
bético quanto muita gente supõe que seja.
O nosso sistema de escrita deixa de lado muitos aspectos fonéticos da língua, como a
sílaba, o acento, a duração dos segmentos, certos fenômenos como a nasalidade em
alguns casos, a entoação, a velocidade da fala, as qualidades de voz, para citar os aspec-
tos mais importantes, além, é claro, de dar conta de maneira muito precária da parte
segmentai. Isto não é um mal em si, mas o caráter mágico inerente ao próprio ato de
se escrever. Ler é uma obra de iniciados e objeto de muitas interpretações. No momen-
to em que se tira essa alma da escrita, se acaba com a própria vida da escrita. Quando
se fala, a organização do pensamento segue uma ordem que permite correções momen-
tâneas a partir da reação do ouvinte. Isto porém não acontece quando se escreve, por
isso quem escreve deve ter o cuidado de transportar através de palavras tudo aquilo
que, na fala, pode ser entendido com um olhar, um gesto, uma pausa etc. Um texto
transcrito de uma conversa informal, mesmo produzido por "pessoas que falam bem",
soa estranho a quem lê, porque em nossa sociedade e cultura a própria elaboração do
texto escrito exige regras específicas, diferentes das regras de elaboração de textos de
conversa. A escrita facilita a realização de uma argumentação discursiva com uma
certa ordem, uma certa lógica, que deve ser ensinada aos alunos sob pena de muitos
deles jamais desconfiarem como se escreve um texto. Se por um lado existe esse modo
tradicional de se escrever, por outro lado os aspectos mais rígidos desse jogo ficam
amenizados peia criatividade do autor. O aspecto criativo é também uma marca regis-
trada da produção escrita. Do equilíbrio entre essas duas exigências se constitui um
texto bem escrito.
Porque a escola não tem usado um método como esse para o ensino da fala, observa-se
que as pessoas (incluindo os professores) têm uma dificuldade enorme, gigantesca, para
analisar a pronúncia de um falante de sua própria língua, uma vez que sempre pensam
a fala em função da escrita ortográfica. Professores que insistem em problemas de dis-
criminação auditiva das crianças (por exemplo p/b, f/v etc.) levam um tempo enorme
para se convencerem de que o S de "mesmo" soa Z, que o R de "barriga", "sorriso" é
pronunciado comumente como uma fricativa velar sonora, ao passo que em palavras
como "carro", "erra", é pronunciado comumente como uma fricativa velar surda. uma
vogai sussurrada (ensurdecida) é vista como uma vogai que foi "comida" pelo aluno e
portanto indesejável, embora a própria professora use esse fenômeno fonético a todo
instante. Ela não percebe como fala e corrige a leitura do aluno. Este, que compara sua
fala com a da professora, fica perplexo. Um outro exemplo é o reconhecimento das
qualidades vocálicas dos ditongos em português. Para alguns professores, o fato de
palavras como "céu" e "vai" terem as qualidades fonéticas apresentadas logo a seguir é
algo que só admitem após exaustivos exercícios de demonstração:
As nossas professoras primárias têm uma dificuldade imensa em distinguir uma vogai
nasalizada de uma vogai oral, ou em observar a presença ou não de consoantes nasais
no contexto pós-vocálico final de sílaba, como nos exemplos abaixo:
As pessoas estudam Português por mais de dez anos e não conseguem nem sequer saber
exatamente como falam. Algumas sabem errado e culpam as crianças de terem proble-
mas de discriminação auditiva, de serem incapazes intelectualmente, classificando-as de
"alunos carentes". Que caos é o ensino. como um professor que não sabe analisar o que
ele próprio diz pode ensinar os alunos a falarem corretamente?
Muitos dos artificialismos da fala da escola têm sua origem no fato da escola não saber
ensinar como a fala é realmente, porque as próprias escolas de formação não sabem
ensinar isso aos futuros professores. Esses problemas básicos não se resolvem com
psicólogos, fonoaudiólogos, neurologistas ou mesmo pedagogos, mas sim com um bom
treinamento lingüístico.
O Que a Lingüística Tem a Dizer ao Alfabetizador
Há problemas que só conseguimos ver quando já estamos dentro deles. Assim, a ordem
cronológica que decidimos, democraticamente, para as várias partes deste Seminário é agora um
problema para mim, pois sinto-me um pouco encabulada de vir deitar falação sobre a formação de
alfabetizadores antes de ouvir dos próprios alfabetizadores o que eles tém a nos mostrar sobre as
suas experiências de trabalho e o que eles têm a questionar em decorrência dessas experiências.
A este meu imaginário alfabetizador abstrato, vou, então, tentar mostrar o que acho que ele
poderia desejar saber sobre o seu material de trabalho, a língua, e sobre os primeiros passos do
caminho que o aprendiz da língua escrita terá de percorrer, conduzido pelo mestre.
Essa mesma passagem precisa ser vivida pelo futuro alfabetizador. Para que ele possa respeitar
o alfabetizando, precisa estar convencido de que a variedade de língua utilizada pelo grupo social
que compõe a clientela da escola merece respeito. O alfabetizador que não respeita a linguagem
do alfabetizando não respeita o alfabetizando. Falta-lhe a estrutura afetiva indispensável ao
desempenho do seu trabalho. E sabemos que em toda preparação profissional há um
componente cognitivo, um componente afetivo e um componente psicomotor. Para que a
mudança ideológica acima referida venha a realizar-se, é preciso conhecer um pouco dos
mecanismos da variação e da mudança lingüística e ter uma idéia clara de qual é a relação entre
a língua falada e a língua escrita. O conhecimento adequado dos fatos cria automaticamente a
postura
humana apropriada ao alfabetizador. Vou esboçar um pouco desse repertório minimo de
conhecimentos lingüísticos que alterarão o modo de ser do alfabetizador.
O alfabetizador precisa ter as idéias claras quanto à relação entre língua falada e língua escrita.
Ele precisa saber que a língua escrita, na nossa sociedade complexa, é uma entidade autônoma,
diferente da língua falada por quem quer que seja.
Ele precisa ser ajudado a não assumir a crença de que a língua escrita é o modelo da língua
"certa" e a língua falada é uma deturpação ou decomposição do certo. O alfabetizador que
compreendeu as duas modalidades de língua como entidades separadas sabe que a tarefa do
aprendiz da língua escrita precisa ser decomposta em várias descobertas, contraditórias entre si.
No momento inicial da aprendizagem da escrita, o alfabetizando tem que descobrir que as letras
representam sons da fala. Basicamente, toda metodologia de alfabetização pretende conduzir o
alfabetizando a depreender na seqüência das letras escritas a seqüência dos sons da fala, na
atividade da leitura, e, na atividade da escrita, a representar por meio de letras em seqüência os
sons em seqüência na cadeia da fala.
Pois bem, deve haver um segundo momento em que o alfabetizando descobre que as letras não
representam sons da fala. Quando digo [ pau ] e [ sau ], por que devo escrever pau e sal? Se
digo [ disputa ] e ( discuido ], por que devo escrever disputa e descuido? Por que roça e possa,
girafa e jipe, habitação e agitação, peso e desprezo, queixo e mexo, queijo e bocejo?
Tomando de outra variedade dialetal, por que devo escrever clima e crime, se digo [ crima ] e [
crime ]? Por que escrever anzol e cipó, se digo [ anzó ] e [ cipó ]? Por que escrever o baiano
dançando, se digo o baiano dançano?
O alfabetizador que parte para o trabalho armado da crença de que a língua escrita é o modelo
sobre o qual se deve calcar a língua falada "certa" está fadado ao insucesso, o que é gravíssimo,
uma vez que o insucesso do alfabetizador é o analfabetismo do alfabetizando.
Entretanto, o alfabetizador que compreendeu que a correspondência entre língua falada e língua
escrita é indireta e em vários casos irregular vai tratar de fazer ver com sistematicidade ao
alfabetizando todos os casos em que não há uma correspondência de um para um entre os sons
das palavras na linguagem falada e as letras na linguagem escrita. O alfabetizador que
compreendeu de que maneira se dá a correspondência entre língua falada e língua escrita sabe
que, segundo as características específicas da variedade dialetal falada pelo aprendiz, as
dificuldades maiores dos alfabetizandos se darão em pontos diferentes do repertório de palavras.
Assim, o alfabetizando que pertence a uma comunidade que pronuncia [ arraiá ], [ carnavá ], [
anzó ], terá problemas de escrita diferentes daquele que pronuncia [ arraiau ], [ carnavau ], [
anzóu ]. A nenhum dos dois tipos de falante o alfabetizador precisa classificar como "falando
errado", mas a ambos ele deverá alertar para a discrepância entre a modalidade de língua falada
e a modalidade escrita. Alertar, aliás, é um termo fraco. O alfabetizador deverá inventar meios de
ajudar o aluno a fixar a forma padrão escrita, cotejando-a com a falada, mas sem expressar
desprezo por esta. São suas variedades de língua diferentes, para ocasiões diferentes.
Consideremos agora outro componente essencial para a boa formação ideológica do
alfabetizador: o conhecimento dos mecanismos da mudança lingüística. Quem compreendeu
bem qual é o mecanismo pelo qual as formas das palavras vão mudando não pode sentir
desprezo por uma variedade de lingua diferente da língua escrita.
Um pouco de filologia não faz mal a ninguém. Tomemos por um momento um documento
filológico do latim vulgar, o chamado Appendix Probi, um documento de autor desconhecido
encontrado apenso à gramática de Probus, obra do século lII da nossa era. Trata-se de uma lista
de palavras do latim falado na época, onde se recomendava a pronúncia tida como correta em
comparação com a pronúncia tida como errada. Por exemplo: speculum non speclum, oculus non
oclus, calida non calda, persica non pessi-e a, rivus non rius, ansa non asa, auris non oricla.
Discursos como o de Mario Marroquim ainda não penetraram, por incrível que pareça às pessoas
iniciadas em estudos lingüísticos, nos cursos de formação de alfabetizadores. O que se sabe é
que os alfabetizadores, salvo honrosas exceções, costumam considerar "problemas de fala",
"maus hábitos de linguagem", "modelo de linguagem defeituosa trazido de casa", os traços da
fala regional dos alfabetizandos. Neste momento, aqui neste meio bastante sofisticado, é
desnecessário tecer considerações sobre o grau de perniciosidade de atitudes desse tipo para a
relação alfabetizador-alfabetizando e para todo o processo ensino-aprendizagem. Mas se cada
um de nós se transformasse num multiplicador da psicoterapia da ideologia corrente sobre
linguagem seria já um bom resultado deste encontro.
Até aqui falamos de conteúdos de informação relevantes para a formação afetiva dos
alfabetizadores, por terem conseqüências nas suas atitudes diante dos usos lingüísticos dos
alunos.
Agora passo a mostrar, em termos muito sumários, uma ordem de informação relevante para a
organização do trabalho mesmo da alfabetização.
1
MARROQUIM, Mario. A língua do Nordeste. São Paulo, Nacional, 1934. p. 44.
Repito: estou falando de alfabetização no sentido mais literal e estreito possível: o
saber o bê-a-bá.
uma coisa que muitos de nossos alfabetizadores parecem não ter ainda percebido é que
o bê-a-bá da alfabetização não é um simples bê-a-bá. Na realidade dos fatos lingüísti-
cos, be mais a nem sempre dá bá. Ba mais ó dá bó em bola, dá bô em bolo e dá bu em
cabo. Mas os alfabetizadores, quando lançam mão daquele procedimento didático tão
comum nas primeiras séries primárias, de pronunciar as palavras com artificialidade,
como por exemplo, em "ê-lê cô-mê bô-lô dê cô-cô (para "ele come bolo de coco"), o
que estão fazendo senão criar um artifício para fazer crer que toda letra deve soar sem-
pre com o mesmo som?
Não é mais realista mostrar desde cedo, sistematicamente, que nem sempre é verdade que
cada letra representa sempre o mesmo som da fala e que cada som da fala nem sempre
é representado na escrita com a mesma letra?
É uma coisa tão simples, um verdadeiro "ovo de Colombo", que os nossos alfabetiza-
dores em geral (os abstratos de quem falo, não necessariamente os concretos a quem
falo, é claro) ainda não vêem: é que há três tipos de casos diferentes, na correspondên-
cia entre o plano grafêmico e o plano fonêmico.
O caso ideal: uma letra representa sempre o mesmo som da fala, um som da fala é
representado sempre pela mesma letra. Por exemplo, a letra p corresponde sempre ao
mesmo tipo de som, e o tipo de som [ p ] é sempre transcrito pela letra p. São surpre-
endentemente poucos os casos em português em que encontramos esse fiel casamento
monogâmico entre as unidades da escrita e as unidades da fala.
O segundo tipo de caso: é preciso levar em conta o contexto para formular a regra de
correspondência entre as unidades grafêmicas e as unidades fonêmicas. Por exemplo,
a letra I corresponde ao som de consoante lateral em posição inicial de sílaba (como
em lua) e ao som da vogai [ u ] em posição final de sílaba (como em alto). Indo na dire-
ção do som para a letra: o som da vogal [ u ] é transcrito com a letra u quando em posi-
ção de sílaba tônica, mas com a letra o quando átona em fim de palavra: pulo. Não é
mais racional oferecer esta regra aos meninos do que falsear a pronúncia, pu-lô?
0 terceiro tipo de caso: não é possível formular regra de correspondência entre unida-
des grafêmicas e unidades fonêmicas, pois a história da língua contém mudanças em
decorrência das quais, pela convenção ortográfica, conservadora inevitavelmente, há
posições nas quais duas ou mais letras concorrem para representar o mesmo som da
fala. Exemplo: ç e ss em roça e fossa, z e s em mesa e certeza. Neste terceiro tipo, a
aprendizagem da forma escrita não pode escapar de ser uma memorização de formas.
O claro entendimento desta divisão das relações entre sons da fala e letras da ortografia
em três tipos teria conseqüências práticas muito nítidas no trabalho do alfabetizador.
A primeira dessas conseqüências é a de que fica claro que toda a discussão, em torno
de metodologia didática, sobre a comparação de eficácia de métodos sintéticos (partir
das letras para sintetizar palavras) e métodos analíticos (partir de unidades maiores,
frases ou palavras para depreender delas as letras) é uma discussão que leva em conta
apenas o primeiro dos três tipos possíveis de relação entre sons e letras — a relação de
um para um. Isso porque, para ambos os métodos, o objetivo final é conduzir o apren-
diz a saber qual letra representa qual som e qual som é representado por qual letra.
Reconhecer o segundo tipo de caso, o das correspondências entre sons e letras deter-
minadas pelo contexto, levaria o alfabetizador a projetar atividades que visassem
especificamente conduzir o alfabetizando a verificar as variações de correspondência
previsíveis entre sons e letras. Mais ou menos assim: Vamos estudar a letra I. Que sons
ela pode ter? Em lua, sala, alegre, bola, é o som [ | J. Mas em alto, calma, sal, jornal, é
o som [ u ]. Vamos agora estudar como se escreve o som [ u ]. Em lua, pulo, tudo, nu,
suja, é com a letra u. Mas em rabo, sapo, pato, amo, falo, pinto, escrevo, é com a letra
o. E em alto, sal, jornal, é com a letra I. Posição acentuada, posição final de palavra
depois de consoante, posição final de sílaba depois de vogai, são os três contextos do
[ u ] que determinam se a escrita que lhe corresponde é u, o ou I. Não fica melhor
assumir as regras da língua do que deturpar a língua para forçá-la a caber dentro de um
mentiroso esquema de correspondência de um para um? É claro que não vamos dar a
regra ao alfabetizando. O alfabetizador, sim, tem que estar consciente da regra para
planejar as suas aulas.
O alfabetizador que entendeu bem as coisas da língua saberá que os fatos lingüísticos
estigmatizadores, aqueles característicos das variedades de fala das camadas sociais
mais pobres, podem muito bem ser agrupados junto com o estudo deste terceiro tipo
de correspondência entre som e letra. Vejam: depois de estudar que [ z ] pode ser
representado por z, s ou x, que [ s ] pode ser representado por ç, ss, sc, xc, que [ s ]
pode ser representado por ch ou por x, que [ z ] pode ser representado por j ou por g,
estamos bem preparados para estudar, com a mesma atitude objetiva e despida de pre-
conceito, que o [ r ] que falamos em crube, Framengo, crima, prano, recramação,
crime, praia, frango, praça, tem que se tornar, na língua escrita, às vezes um I (clube,
Flamengo, clima, plano, reclamação) e outras vezes um r (crime, praia, frango). Depois
de verificarmos que em hoje, hora, homem, haver, temos uma letra resquício de algum
som de outrora, podemos encarar com igual tranqüilidade a necessidade de aprender-
mos esta outra letra resquício de um som que a evolução lingüística de nosso grupo
deixou cair: falá, namorá, amô, frô. Há um [ r ] que não pronunciamos mas deveremos
escrever: falar, namorar, amor, flor. 0 alfabetizador que entendeu bem as coisas da
língua saberá admitir que as variedades da fala das camadas sociais mais pobres podem
também ser escritas seguindo as mesmas convenções de relação entre sons e letras utili-
zadas pela ortografia convencional.
Vejam só que mina de dados relevantes para o alfabetizador que trabalha em comuni-
dades rurais é este poeta do Nordeste, Patativa do Assaré, cuja poesia a Vozes publi-
cou em 1982 com o título Cante lá que eu canto cá.*
Acho uma verdadeira preciosidade este livro. Primeiro porque é uma preciosidade poé-
tica. O homem é realmente inspirado. Segundo porque a escrita adotada no livro, ao
mesmo tempo fiel à linguagem do matuto e obedecendo às correspondências som-letra
convencionais na ortografia padrão, é exatamente o tipo de escrita que deveria, a meu
ver, ser adotada como transição, nas escolas rurais, entre a primeira etapa da alfabeti-
zação, em que o aluno deve ser levado a crer que entre letras do alfabeto e sons da fala
há um fiel casamento monogâmico, e a etapa terminal, em que o aluno, resignado com
as duras verdades da vida, incorpora ao seu saber de sons e letras as numerosas poli-
gamias e poliandrias que sons e letras costumam praticar. Seria esta etapa transitória
àquela em que, sem ser uma transcrição fonética (o que está escrito é fio e não fiu,
fumo e não fumu, de e não di), a escrita assume como "escrevível" e não como "des-
prezível" os traços lingüísticos da variedade local da fala da comunidade, diferente de
maneira sistemática, e não tumultuária (para retomar o termo usado por Mario Marro-
quim), do sistema da língua escrita convencional.
Assim, fechamos o círculo. O saber da língua resulta num saber fazer o ensino da lín-
gua, e o saber fazer contém um saber amar, amar a língua nas suas variedades, e os
usuários da língua com o seu saber nativo.
É muito freqüente, nos contatos que temos mantido com professores, verificarmos que
suas preocupações se localizam nas questões práticas, metodológicas, didáticas. Se isto
é válido para os professores que lidam com crianças com alguma patologia, não é
menos válido para os professores em geral. Surgem perguntas do tipo: "como agir
neste caso?"; "como aplicar tal exercicio?"; "como organizar tal atividade?". Ora, à
primeira vista, tais indagações poderiam indicar que o professor não tem nenhuma
preocupação teórica, mas que conscientemente optou pela separação teoria-prática e
cumpre seu papel de técnico eficiente, procurando se atualizar. Mas é necessário se per-
guntar. se não são as teorias pedagógicas estudadas por eles, antigas ou não, que contri-
buem para gerar este afastamento: são teorias desvinculadas da realidade social ou são
instrumentais? Informações adicionais a respeito de áreas importantes para a sua ação,
oriundas da Filosofia, da Sociologia, da Psicologia, da Lingüística, da Biologia, são apresentadas
como dados. Meros fatores e como tais, externos ao processo educacional, funcionando como
variáveis que podem auxiliar ou impedir, retardar ou acelerar seu desenvolvimento. Então, estes
dados são interpretados como variações de grau, em vez de constituírem o próprio processo
educacional.
Situar a problemática da formação do professor alfabetizador nesta ótica pode causar estranheza
já que o fonoaudiólogo é um profissional fundamentalmente clínico. Talvez eu devesse me referir
às patologias de linguagem, como se manifestam, como o professor poderia fazer para detectá-
las e auxiliar em seu processo de superação. Seria um caminho, mas não o único. Parece que
tais conhecimentos já deveriam, inclusive, estar sistematizados no próprio curriculum da formação
acadêmica do professor alfabetizador, como em poucos lugares ocorre. Mas parece também que
há um trabalho maior a ser desenvolvido através da união de professores, psicólogos,
fonoaudiólo-gos, lingüistas. Examinar com rigor um perfil freqüente de crianças que, iniciando,
desenvolvendo ou aparentemente finalizando um processo de alfabetização, apresentam-se
desmotivadas, desatentas, sem usar seu potencial para lidar com abstrações e, con-
seqüentemente, com raciocínio matemático, apresentando dificuldades de compreensão que se
expressam através de um mau rendimento escolar. A solução deste problema tem sido buscada
no auxílio terapêutico, no acompanhamento escolar feito por especialistas, fora da escola. Esta
dita "patologia", cuja etiología não é nem orgânica, nem emocional, encontra sua origem no
processo social do qual todos nós fazemos parte. É importante que o professor alfabetizador
esteja atento a este fato e que se reúna com outros profissionais para que, em igualdade de
condições, possa compreender e encaminhar as possíveis transformações. Em meu nome
pessoal e em nome do Programa de Estudos Pós-Graduados em Distúrbios da comunicação
desta Universidade, estamos abertos e interessados nesta discussão.
MESA-REDONDA 4: DEPOIMENTOS DE
EXPERIÊNCIAS PROFISSIONAIS EM
ALFABETIZAÇÃO
a
NIVEL DE EXECUÇÃO: Professores da 1 série e Pedagogos das Unidades Escolares. Pedagogos
da COTEP.
a
POPULAÇÃO ALVO: Alunos de 1 . série do 1º grau de unidades de ensino da rede estadual de
Aracaju.
0 trabalho de alfabetização, como experiência alternativa, teve início em sete escolas, sendo que
uma fica localizada no centro, quatro na periferia da cidade, em conjuntos habitacionais, e duas
em um bairro que teve origem com a classe operária.
Diante deste fato, a equipe da COTEP resolveu enfrentar o desafio e partir para o campo de
trabalho à procura de uma possível proposta alternativa.
como primeiro passo, fomos buscar na "fonte" os dados que embasariam nosso trabalho. Nesta
"fonte", que para nós foi o contexto existencial do aluno, o seu dia-a-dia, colhemos as evidências
de que o mundo das nossas crianças a serem alfabetizadas não é o das "fadas", nem tão pouco
dos brinquedos prontos, da proteção dos pais e babás, do acesso a livros, revistas, lápis, caderno
e massa de modelar. O mundo das nossas crianças é o "mundo do trabalho", é o da criança que
luta para sobreviver, conse-
guindo através de subempregos o seu ganha-pão. É o mundo da criança que dribla a morte e
consegue sobreviver comendo jaca, pedaços de pão "catados" no lixo, restos de frutas podres
rejeitadas pelos compradores e jogadas fora pelos feirantes, como imprestáveis para alimentação
humana.
A partir daí, chegamos a uma dedução óbvia: este não é o mundo dos "Livros Didáticos", logo, a
alfabetização dessas crianças deve ter por base situações concretas dentro da sua realidade e
portanto livre de livros e cartilhas.
Passamos então a definir os princípios que norteariam o nosso trabalho, ficando assim
determinado:
a) Respeito ao saber do professor - Não existe um método definido, o professor utiliza aquele
sobre o que tem mais domínio e que se identifica com sua prática anterior. A partir dos
subsídios teóricos a que ele tem acesso, das discussões e da troca de experiência com o
grupo, ele passa a recriar e inovar a sua prática.
b) A criança que chega à escola já tem o domínio da língua materna - Tem um saber lingüístico
que utiliza inconscientemente em seus atos de comunicação cotidianos, logo, o professor vai
trabalhar considerando o saber dos alunos, respeitando a sua fala como sendo reflexo de seu
meio, valorizando mais a expressão oral. A escrita é considerada não pelo "primor" ortográfico
mas pela coerência lógica do pensamento, transformando esta atividade numa forma de
expressão útil e agradável para a criança.
Sistemática de Trabalho
1. composição das equipes de trabalho — Frente aos citados pressupostos, o grupo da COTEP
iniciou a composição das equipes de trabalho nas escolas, formadas por um pedagogo,
independente da habilitação, e por professores alfabetizadores. A organização dessas
equipes processou-se a partir de consultas feitas aos pedagogos que já tinham demonstrado
interesse em desenvolver atividades voltadas para as primeiras séries do 1? grau.
2. Cursos - com as equipes já formadas, antes do início do ano letivo de 82, em janeiro, foi
realizado um primeiro curso para os pedagogos e os professores alfabetizadores na área de
Lingüística, sobre fonética e fonologia. Este curso representou o primeiro passo para
despertar nos professores a necessidade de repensar a sua prática e descobrir novos
caminhos no processo de alfabetização.
No decorrer da experiência, forarn surgindo necessidades de outros cursos para dar
suporte às ações que vinham sendo desenvolvidas pelos pedagogos e professores.
Assim sendo foram utilizados cursos sobre:
— Política educacional
— Matemática
— Alfabetização
— Metodologia da pesquisa
— textos de lingüística
— textos de alfabetização
— textos de psicolingüística
— política educacional
— filosofia da educação
— educação popular
1. Aula — Para introduzir em sala de aula uma forma de trabalho mais próximo do
mundo da criança de periferia e coerente com os princípios norteadores deste traba-
lho, antes de mais nada, tem sido necessária "paciência histórica". 0 professor só
pouco a pouco vai incorporando à sua prática o que esta nova concepção educativa
vai interferir em sua aula. Assim, fica bem claro uma coisa: não tivemos pressa, não
tentamos impor um novo saber, nem tentamos travestir o professor com roupagens
de novas técnicas, maquiando-o de brilhantes e coloridos "materiais didáticos" e
"audiovisuais" por etc desconhecidos. Deixamos que pouco a pouco, tal qual a na-
tureza, também as aulas tomassem seu rumo. Confiamos na capacidade criadora do
professor. Sabíamos que sem romper com a sua antiga prática, já cristalizada em
tantos anos de ensino, iria encontrar um meio de somá-la à nova concepção de alu-
no, à nova visão de mundo que estava tendo, recriando daí uma nova abordagem,
uma nova aula.
Assim pensamos e assim aconteceu. Não, é evidente, em 100% das salas de aula. Há
sempre aqueles que embora querendo mudar, são mais lentos, mais resistentes. Res-
peitamos também esta limitação humana. Mas mesmo nestas salas, em relação a
anos anteriores, os resultados foram menos calamitosos, isto é, chegando ao final do
ano foi constatado que os alunos entraram no processo de alfabetização e que uma
grande parte conseguiu ler e escrever compreensivamente e com uma condição de
verbalização bem mais elevada.
como era de se esperar, surgiu, não em cada escola, mas em cada sala de aula, uma
variedade de experiências; em todas porém um ponto comum: o aluno passou a ser
o falante da sala. O estímulo à verbalização foi intenso. Antes de introduzir o aluno
no mundo das letras, papel até então prioritário para o professor alfabetizador, ele
foi exercitado em sua condição de falante da língua. Surgiram narrativas dos alunos,
relatos de suas vidas, de suas experiências, de suas brincadeiras, dos seus trabalhos,
de suas aventuras e fantasias. Estes relatos eram geralmente aproveitados para temas
de desenhos com recortes. Só a partir daí, o que durou mais ou menos o primeiro
mês de aula, os professores foram se definindo em relação ao método a ser adotado.
Naturalmente, a grande maioria optou pelo sintético, pela segurança com que o ma-
nejavam. Houve, como sempre, alguns mais corajosos que escolheram o analítico,
mesmo sabendo que para eles seria uma experiência nova. Um deles selecionou as
palavras geradoras a partir dos relatos diários das crianças. Esta prática foi bastante
rica pela participação efetiva dos alunos e conseqüente motivação para a aula. No
quarto mês de alfabetização, surgiu a necessidade incontestável de permitir a essas
crianças o acesso à literatura infantil. Era fundamental para a fase em que se encon-
travam aguçar a sua imaginação e fantasia ntroduzindo-as na beleza das letras. Era
o ler não por obrigação, não porque a escola é para ler, mas porque era hora dessas
crianças perceberem que as letras têm vida, têm beleza, e que o saber tem sabor.
como enfrentar o desafio se as nossas escolas não têm biblioteca, se nossas crianças
não dispõem de qualquer livro em sua própria casa e o nosso projeto não tinha re-
curso? Encontramos uma saída. com base nos relatos das crianças, foram criadas
três estórias que, mimeografadas, foram para as salas de aula. Para as crianças que já
liam eram lidas e ilustradas por elas, que muitas vezes não se conformavam em
externar a sua expressão apenas em desenho, escreviam no rodapé frases ou de con-
testação ao personagem ou de expressão mesmo de quem faz parte da estória e por
isso quer completá-la. Do comentário das estórias surgiram novos textos produzidos
e ilustrados pelos alunos. Para as crianças que ainda não liam, as professoras liam em
voz alta para elas. Passamos a dramatizar os textos e usá-los como ponto de partida
para a narração oral de novas estórias conforme o envolvimento dos alunos.
com base também nos relatos dos alunos foi composto um livro com texto deles,
mimeografado e usado por todas as escolas.
Este ano, como já dispomos de recurso, além destas estórias criadas para eles, intro-
duzimos livros de literatura infantil para utilização em sala de aula. Assim estamos
tentando estimular o gosto pela leitura e usando-a também como lazer. Esperamos
que pouco a pouco a leitura fria e impessoal dos livros didáticos passe a ser substi-
tuída por algo mais vivo, mais vibrante.
Nessa tarefa, eles são geralmente acompanhados dos coordenadores que orientam na
escolha dos textos e nas atividades em geral.
Há quatro anos está sendo realizado um trabalho numa creche de São Paulo, freqüen-
tada por 130 crianças de famílias de baixa renda que residem em habitações precárias
como cortiços, quartos de pensões do Bom Retiro e adjacências. A Creche UNIBES é
conveniada com a Fabes-Programa Creche e mantida pela toletividade israelita. Nesta
creche as crianças permanecem no período de 7:30 às 17:30 horas. Durante o período
da manhã a creche funciona como qualquer escola, com classes de mini, maternal I,
maternal II, jardim e pré, contando com professores especializados. No período da
tarde são recreacionistas que trabalham com as crianças (exceto nos minis e maternal
I, onde permanece a mesma professora em período integral, em função do vínculo com
a criança). O objetivo da creche é atender crianças pertencentes a famílias de parcos
recursos financeiros, cujas mães necessitam trabalhar para a manutenção da casa ou
complemento do orçamento familiar e não têm com quem deixar o filho no período em
que estão trabalhando. Em termos da criança, busca-se o seu desenvolvimento através
da execução de atividades pedagógicas e recreativas, visando sua socialização e
preparação escolar. Esta creche é diferenciada na medida em que lá trabalham diferentes
profissionais. Na direção trabalha uma assistente social cuja função é administrativa,
como controle de alimentos, compras, convênios etc. Trabalha também uma outra
assistente social que desenvolve um trabalho de conscientização junto aos pais,
objetivando a promoção da família como um todo. Os demais membros que formam a
equipe são duas fonoaudiólogas, duas psicólogas e uma psicopedagoga que trabalham
durante um período de 12 horas semanais, atendendo não somente às crianças da
creche mas também a 140 crianças da recreação (7 a 16 anos). As fonoaudiólogas, assim
como a psicomotricista e a psicopedagoga, realizam cursinhos e supervisões com as
professoras e recreacionistas a fim de conscientizá-las das necessidades das crianças e
buscar com isto uma ação educativa mais efetiva e eficiente. As assistentes sociais
realizam todo um trabalho comunitário, promovendo reuniões mensais com
profissionais escolhidos pelos pais para discutir suas necessidades e anseios. Orga-
nizam passeios, bingo etc. As crianças da creche são divididas em classes de acordo com
a faixa etária e realização escolar. Cada classe é composta de 25 crianças sendo que
somente no mini-maternal há 2 classes com 15 crianças em cada uma. Na pré-escola há
um planejamento por faixa etária fundamentado nos pré-requisitos das áreas percepti-
vas, motoras e cognitivas, com ênfase na comunicação oral (50% das crianças que
entram no mini possuem um vocabulário muito reduzido). Quando a criança entra para
a creche é realizado um trabalho no sentido de adaptá-la socialmente à nova realidade.
Posterior e gradativamente introduz-se conteúdos formais, selecionados em função da
realidade dessas crianças e introduzidos sempre que possível através de situações
informais como jogos e brincadeiras. As crianças mais lentas ou com déficit motor,
assim como as crianças com dificuldade articulatória, são observadas e, quando
necessário, encaminhadas para Psicomotricidade ou atendimento fonoaudiológico. A
média anual de crianças encaminhadas para esses dois departamentos varia de 7 a 10.
Antes do início do pré é realizada uma testagem pelas fonoaudiólogas em todas as
crianças desta classe para evitar que distúrbios articulatórios possam comprometer a
aprendizagem da leitura e escrita. Durante a pré-escola é iniciada a aprendizagem da
leitura e escrita após um trabalho de reflexão sobre a escrita, com a colocação de ques-
tões como: O que são palavras? Para que serve a leitura? etc. O método de alfabeti-
zação parte das vogais, que são trabalhadas visual, auditiva e cinestesicamente. como
segundo passo, apresenta-se as vogais aos pares, em expressões significativas, contextua-
lizadas através de estórias contadas pela professora. Em seguida são introduzidas fami-
lias silábicas que são retiradas das palavras escolhidas pelos alunos. como as crianças
estão muito disponíveis para a aprendizagem, elas mesmas formam novas palavras, só
que estas são inicialmente escritas na lousa, no ar, nas carteiras. Para isso elas contam
com o material confeccionado por elas mesmas. As vogais e sílabas estão em cartolina
com o contorno de lã. como último passo, as crianças passam o dedo nas palavras,
com os olhos fechados, pronunciando a palavra em voz alta. Quando há uma garantia
mínima de que a criança não vai errar, ela copia a palavra no caderno e depois a
escreve de memória. com estes procedimentos, 23 a 25 crianças estão dominando a
leitura e escrita de palavras e frases compostas de várias famílias silábicas, e só duas
crianças sentem alguma dificuldade (estas recebem reforço na própria sala de aula).
Nos últimos 4 anos, das 25 crianças, 22 a 23 estão iniciando com muito sucesso o seu
processo de alfabetização e, como conseqüência, terão boas possibilidades de obter
sucesso na escola.
Muito se tem escrito sobre crianças com dificuldades de leitura e escrita, mas muitas
confusões ainda persistem principalmente devido ao desconhecimento de uma grande
maioria de professores, orientadores, pais e da sociedade em geral. O resultado é que
muitas crianças são rotuladas gratuitamente como incapazes, sendo então marginali-
zadas pelo sistema de ensino comum, obrigadas muitas vezes a freqüentar classes espe-
ciais ou abandonar a escola.
O que se busca com esse relato é explicitar as possíveis causas das dificuldades apre-
sentadas por estas crianças. No trabalho clínico percebe-se que não há tanta distância
quanto se pensa entre as crianças que estão momentaneamente com dificuldades de
aprendizagem e as crianças ditas normais. Todas as manifestações apresentadas por
crianças com dificuldades são também apresentadas pelas crianças "normais", princi-
palmente no início do processo de alfabetização.
O que ocorre é que nas crianças ditas normais essas dificuldades são passageiras, enquanto nas
outras, dependendo da etiología e das possibilidades ou não de encaminhamento para trabalhos
específicos, as dificuldades são mais duradouras e em maior quantidade.
Em caso de dificuldade de aprendizagem, o aspecto inicial a ser excluído deve ser o orgânico,
através de anamnese, observação e exames médicos quando houver necessidade.
Os problemas emocionais e sua repercussão na aprendizagem são óbvios e portanto não serão
tratados aqui.
Gostaríamos de salientar uma outra entidade, denominada dislexia, como uma das responsáveis
por dificuldades persistentes e sobre a qual até o momento não se têm dados em termos de
incidência no Brasil. Dislexia é uma dificuldade para aprender a ler e escrever em crianças com
QI normal ou acima do normal que tenham tido acesso a oportunidades educacionais
convencionais. Estão excluídas desse quadro crianças com comprometimentos Sensoriais, como
cegueira, surdez ou deficiência mental. A dislexia engloba um conjunto de sintomas que afetam a
continuidade da aprendizagem da leitura e escrita num grau que vai do mais leve ao intenso.
Para Halgreen (NIETO, M.), a dislexia obedece a um caráter hereditário, sendo encontrada com
maior freqüência em crianças do sexo masculino. Este dado é refutado por outros autores como
M. Condemarín e M. Blomquist, ao afirmarem que a dislexia pode ser adquirida durante o parto,
por exemplo, quando a criança apresenta anoxia e resulta de uma disfunção neurológica.
Segundo C. C. Santos encontra-se nestas crianças uma discrepância entre o potencial e a
realização no âmbito escolar. J. B. Quirós acrescenta que encontramos um padrão harmônico
entre a dificuldade de ler e escrever.
Os erros de leitura e escrita que comumente encontramos nessas crianças são de natureza
peculiar e específica. Dificilmente as crianças apresentam o mesmo tipo de dificuldade e esta
pode se manifestar em diversas áreas além da leitura e escrita, como ortografia, gramática e
redação.
Nessas crianças a leitura freqüentemente tende a ser lenta, silabada com regressões, sem
entonação, o que acaba comprometendo toda a compreensão. Além disso, o nível de leitura
tende a não ser fluente, dando lugar a omissões, substituições, reduções ou extensão de
vocábulos com trocas de natureza espacial (patelo/paleto) ou de natureza auditiva (cat/gato).
Na escrita as crianças podem apresentar disortografias, que são trocas de letras, substituições ou
omissões e/ou disgrafias - alterações gráficas, alteração no formato das letras etc. As
disortografias rnais freqüentes são:
-- trocas de grafemas com valores fonéticos próximos, com o mesmo ponto de articulação, sendo
que na emissão um é surdo e o outro é sonoro: f/v, d/t, p/b etc;
- trocas de grafemas com valores fonéticos iguais que dependem apenas da memória visual: s/ss,
s/c, s/ç, ch/x etc;
- fragmentações, ou seja, divisão de palavras de forma inadequada, como por exemplo, qualquer;
- agregados ou aglutinações, que é a junção de duas ou rnais palavras como quiqueria etc;
Através desta classificação, pode-se notar que o orientador ou o psicólogo escolar necessita
possuir informações a respeito de cada uma das dificuldades, pois atentos a elas poderão poupar
crianças de fracassos já no início de sua escolaridade, impedindo assim que se acrescente rnais
um comprometimento emocional às dificuldades existentes. O conhecimento e reconhecimento
desses problemas permitirão ao orientador prestar uma assistência "precoce", eventualmente na
própria escola, num outro período, sem que seja necessário reprovar repetidamente essas
crianças ou colocá-las em classes especiais com todos os custos que isto acarreta para a
criança.
Referencias Bibliográficas
FROSTING, M. Educación especial para una ubicación social apropriada. Buenos Ayres,
Ed. Médica Panamericana, 1978.
Eu sou normalista de formação. No meu tempo não havia a Habilitação para o Magistério do atual
29 grau. 0 curso normal preparava as professoras primárias para lecionarem nas primeiras séries
do 1? grau.
Apesar de ter feito um curso normal de boa qualidade, num dos melhores institutos de educação
desta cidade, que me preparou para prestar com êxito exame na Faculdade de Educação da
USP, a minha passagem pela escola da periferia me mostrou que eu não sabia alfabetizar. O
instituto de educação dava uma excelente bagagem cultural, mas não ensinava a trabalhar com
as crianças da periferia com as quais me deparei desde o primeiro dia que saí da escola normal.
A ida para a universidade foi uma tentativa de buscar respostas para a angústia que eu sentia
frente aos alunos que não conseguia alfabetizar, pois não sabia como fazê-lo. A universidade
acabou por me afastar da prática pedagógica e me aproximar da pesquisa sofisticada, na linha de
testes e medidas psicológicas.
Há quase dez anos atrás voltei a trabalhar com a problemática da alfabetização. Na passagem
pela pesquisa educacional acabei me aproximando de um grupo de pesquisadoras da Fundação
Carlos Chagas, tendo o privilégio de me tornar discípula e colaboradora da professora Ana Maria
Poppovic. Esse foi para mim um período muito rico; um período de reflexão e estudo sobre a
prática pedagógica, na procura de alternativas capazes de auxiliar o professor e o aluno a superar
o impasse mais grave da escola de 1? grau: o da alfabetização.
Penso que foi devido a esta postura de estar sempre buscando soluções adequadas para o
trabalho das professoras das primeiras séries de nossas escolas, que acabei sendo convidada
pela professora Guiomar Namo de Mello para fazer parte do primeiro escalão que hoje dirige a
Secretaria Municipal de Educação do Estado de São Paulo.
A taxa de 37 a 38% de repetência se mantém constante nos quatro últimos anos, somando-se a
um índice de evasão de 5 a 6%, o que eleva o índice de perdas a 42 ou 43%.
uma vez que, do ponto de vista técnico-pedagógico, é uma secretaria para ninguém botar defeito,
começamos a nos perguntar porque uma rede de ensino com tantos recursos humanos continua
mantendo índices de reprovação tão altos.
Na verdade, há muitos entraves que podem justificar este quadro. Grande parte dos cargos de
professor não são efetivos. São os chamados cargos em comissão. A situação é a mesma no
que se refere aos cargos de assistente pedagógico, orientador educacional, supervisor e diretor.
Esta alta incidência de cargos não efetivos enfeixados nas mãos da administração central
alimenta o clientelismo e o autoritarismo nas relações escolares, resultando numa atitude de
submissão. como poderia ser de outra forma, se pelo menos metade dos educadores da rede
depende, para manter suas posições, da boa vontade dos seus superiores? Outra possível
conseqüência desta situação é o descompromisso em relação à unidade escolar e aos alunos,
uma vez que a qualquer momento o profissional pode ser afastado da escola onde trabalha.
Ao nos defrontarmos com tais problemas, nos perguntamos o que fazer para tentar modificar
esse quadro. Na medida em que seria impossível fazer concursos em todos os níveis,
procuramos possibilitar à escola, neste momento, a escolha dos seus especialistas: diretores,
assistentes pedagógicos e orientadores educacionais.
Para tanto acionamos o Conselho de Escola, formado por representantes dos professores, dos
pais e pela equipe técnico-pedagógica de cada unidade. A este Conselho, que já existia, mas não
funcionava, foi atribuída a função de eleger, dentre os seus quadros, aqueles que julgassem mais
competentes para ocupar os cargos vagos de especialistas em educação.
Esta foi a primeira medida que a nova administração tomou no sentido de favorecer um melhor
desempenho do Sistema Municipal de Ensino.
A segunda medida foi dar oportunidade aos educadores para refletirem sobre a realidade politica
e pedagógica das escolas. Foi assim que realizamos, há quinze dias, o Encontro de Educadores
da Rede Municipal de Ensino, onde, pela primeira vez, os educadores tiveram a oportunidade de
discutir em conjunto as diretrizes de uma administração.
Elaboramos, para este momento, dois pequenos documentos. Um sobre alguns pontos da política
educacional, como a crítica ao autoritarismo e ao clientelismo e a valorização do magistério, do
compromisso do educador com a sua clientela, da autonomia da escola. Outro, sobre os pontos
críticos da escola municipal: a falta de integração entre escola de educação infantil e escola de 1º
as as
grau, a repetência nas 1 e nas 5 séries do 1? grau. Neste documento apresentamos as
propostas de ação em relação a estes problemas prioritários. Ao elaborá-las, utilizamos
elementos de trabalhos que haviam sido feitos pelos próprios professores e especialistas da rede,
como remanejamento de classes, recuperação fora do horário de aula, acompanhamento das
crianças aprovadas com sílabas simples. Em relação a este último ponto estava acontecendo na
rede um fenômeno sério: em algumas escolas, crianças aprovadas com sílabas simples não
a
recebiam nenhum trabalho visando a continuidade da alfabetização na 2 série, o que resultava
numa deterioração do nível de escolaridade.
Cada unidade teve plena autonomia para elaborar seu plano de ação, que teve o respaldo do
Conselho de Escola, convocado especialmente para discuti-lo e dar o seu aval. A autonomia da
escola, entretanto, deve implicar o compromisso assumido junto ao Conselho de Escola de
melhorar o aproveitamento de seus alunos, evitando o seu fracasso. Por exemplo, uma escola
pode fazer proposta de remanejamento, mas na medida em que exista também uma proposta de
recuperação dos alunos, de trabalho com as classes mais lentas, que não podem ser
simplesmente rotuladas como tais e esquecidas.
Esta semana já estamos recebendo as propostas vindas das escolas e pretendemos seguir de
perto o seu desenvolvimento. O acompanhamento didático-pedagógico será oferecido às escolas
através do Departamento de Planejamento e Orientação Pedagógica (DEPLAN) e sugestões
serão oferecidas à medida que as escolas as solicitarem.
Assim, não há nenhuma proposta fechada em cima das escolas. Parece-nos que era isso que
elas estavam precisando no primeiro momento: um espaço de autonomia para pensar e tentar
resolver seus próprios problemas. Apostamos na vida inteligente que existe dentro da escola. É
preciso deixar que ela emerja.
Nós acreditamos que é assim que a comunidade escolar aprende a assumir compromissos. O
preço que vamos ter que pagar por isso só o saberemos no final do segundo semestre, ao
término da primeira etapa dessa experiência.
PAINEL: DESCRIÇÃO E AVALIAÇÃO DE
PROGRAMAS DE PRÉ-ESCOLA E DE
ALFABETIZACÃO
É inegável a importância da leitura para o homem. Seja qual for o prisma pelo qual se
analise este comportamento, uma etapa relevante no estabelecimento e desenvolvi-
mento do mesmo é a que se convencionou denominar alfabetização. De fato, este
repertório complexo e hierarquizado tem seus primeiros elos estabelecidos bem antes
da etapa de alfabetização e projeta-se para muito além dela, até que se alcance os mais
altos níveis de leitura crítica e criativa.
VIESSI, V. R. Sistema contratual para leitores relutantes: um estudo com escolares do 1º grau. São Paulo,
USP, 1979. (Tese doutorado).
3
WITTER, G. P. & COPIT, M. S. Lendo e escrevendo. São Paulo, VETOR, 1981; ______________________
Lendo e escrevendo: manual do professor. São Paulo, VETOR, 1971-1974.
4
WITTER, G. P., KERR, V. E. & FONSECA, 0. J. M. Cartilha da Amazônia: livro do aluno.
Manaus, Imprensa Oficial do Estado do Amazonas, 1976; _________________________ Cartilha da
Amazônia: livro do professor. Manaus, Imprensa Oficial do Estado do Amazonas, 1976.
informações úteis à melhoria da sua qualidade de vida. A população-alvo nos dois
casos foi inicialmente a criança em fase de alfabetização. Estes objetivos e esta popula-
ção foram aos poucos se diversificando e se ampliando, passando o material a ser em-
pregado também na remediação da leitura e em idades diversas, incluindo crianças,
adultos, adolescentes e excepcionais, vindo a abranger inclusive o atendimento a pro-
blemas na área da escrita.5
Lendo e Escrevendo foi, após uma pesquisa psicolingüística, adaptado e usado com
êxito na Venezuela para crianças que vinham enfrentando dificuldades de alfabetiza-
ção por dois ou mais anos6, estando hoje em uso também com crianças recém-ingressas
nos programas de alfabetização. Experiência similar está programada visando uma
adaptação da Cartilha da Amazônia, com início no próximo ano letivo, incluindo
crianças no início da alfabetização, crianças com as quais não se obteve êxito anterior-
mente e crianças de classes para excepcionais.
5
BETETTO, A.M. F. op. cit.; BONAMIGO, E.M.R. Possibilidades da técnica de Greenspoon no
estudo do comportamento em escolares. São Paulo, USP, 1972. (Tese doutorado); GUZZO,
R. L. Eficiência de um treino em linguagem oral: desenvolvimento do repertório básico para
alfabetização. São Paulo, USP, 1981. (Tese mestrado); HUSSEIN, C. L & ARNOLDI. M. A.
G. C. Aplicação de um sistema motivacional na revisão da letra cursiva, em um adulto. Bole
tim de Psicologia, São Paulo 29 (72/73)33-38, 1977; LIBERALESSO, A. comparação da
influência de cinco esquemas de reforçamento na aquisição inicial de respostas textuais,
através da técnica de escolha de acordo com o modelo. São Paulo, USP, 1973 (Tese mestra
do); MACEDO, E. M. comparação entre realização no teste metropolitano de prontidão e
em aprendizagem de discriminação. Ribeirão Preto, FFCL, 1971; MACHADO, V. L. S.
Efeito de um treino de discriminação na aprendizagem de leitura por privados culturais. São
Paulo, USP, 1975. (Tese mestrado);----------------------------------- Medida da dificuldade de discrimi
nação de sílabas simples e formadas por grupos consonantais usando um método de compa
ração com o modelo. Ribeirão Preto, FFCL, 1971; OLIVEIRA, M. B. F. Vocabulário, imi
tação e compreensão de pré-escolares em niveis socioeconômicos distintos. São Paulo, USP,
1978. (Tese mestrado); OLIVEIRA, Q. L. Eficiência de variações na técnica de emparelha
mento com um modelo da discriminação visual de sílabas. Ribeirão Preto, FFCL, 1979;
PULLIN, E. M. M. P. Audiência e repertório verbal: um estudo com pré-escolares carentes
culturais. São Paulo, USP, 1979. (Tese mestrado); ROCHA, N. M. D. Desempenho verbal de
pré-escolares: emissão de "tato" face a figuras. São Paulo, USP, 1975. (Tese mestrado);
SANTIAGO, N. V. Remediação verbal em crianças carentes culturais: estudos experimentais.
São Paulo, USP, 1973. (Tese mestrado); VOLLET, V. T. & MARCHEZI.S. R. S. B. Aplica
ção de um programa de treinamento em leitura e escrita através de um sistema motivacio
nal de vales: um estudo de caso. Didática, São Paulo, 17:91-97, 1982; WITTER, G.P. Alguns
aspectos do vocabulário do pré-escolar. Ciência e Cultura, São Paulo, 19 (2)284, 1967;
----------------. Bases científicas para produção e avaliação de ilustração de cartilhas. Boletim
de Psicologia, São Paulo 80 : 32-39, 1981; ____________________ Psicologia escolar: pesquisa e
ensino. São Paulo, USP, 1977. (Tese livre docência)
CASTILLO, H. V. op.cit.
discriminação visual, de nível de coordenação viso-motora necessário etc, já tem cerca de sete
anos com três revisões básicas em decorrência delas. Além disso, pequenas mudanças foram
introduzidas para adaptação psicolingüística a regiões diferenciadas da Amazônia, como Acre,
Roraima, Rondônia, norte do Mato Grosso, e, mais recentemente, a uma região específica do
norte do Pará.
Entre as outras particularidades vale lembrar que estes materiais partem das características e
nível de desempenho dos alunos, os quais determinam com seu comportamento as
características intrínsecas do material; permitem obedecer ao ritmo individual de cada criança;
garantem reforçamento imediato; provêem revisões freqüentes e estrategicamente colocadas
para garantir a fixação das respostas; obedecem a uma graduação do mais simples para o mais
complexo de acordo com um critério múltiplo (linguagem oral e escrita); recorrem ao princípio de
discriminação usando tanto apresentação simultânea como sucessiva de estímulos; utilizam a
técnica de desvanecimen-to de estímulos no processo de modelagem da resposta; usam a
linguagem de imagem como meio de estabelecer a ponte experiência não-verbal—experiência
verbal-oral—leitura e escrita, bem como veículo de integração funcional com o mundo cultural da
criança. Além disso, asseguram freqüentes contatos pessoais aluno-professor a nível individual e
coletivo.
7
com os dois materiais, como é comum em outros paises , trabalha-se no começo da
alfabetização com a letra de forma do tipo bastão ou script para só posteriormente introduzir a
letra cursiva. Em Lendo e Escrevendo há um programa à parte, de 40 páginas, para fazer esta
passagem da letra bastão para a cursiva. Todavia, este material só é recomendado para crianças
com mais problemas motores na escrita, pois o ideal é que elas passem por si próprias de um
para outro tipo de letra. De fato, cerca de 80% das crianças fazem automaticamente esta
passagem. Na Cartilha da Amazônia não foi incluido esse tipo de material adicional para a
aprendizagem da letra cursiva, pois nas pesquisas básicas ficou evidente que apenas um
percentual muito reduzido de crianças tinha necessidade desse treino extra. Neste caso, no livro
do professor foram incluídas instruções de como deve atuar o professor para facilitar essa
passagem.
As pesquisas básicas que forneceram os dados para a elaboração inicial dos materiais
focalizaram aspectos como os que são descritos a seguir:
Para cada um destes tópicos foram feitas diversas pesquisas, com técnicas e metodologias
diferentes. Além disso, assimilou-se na produção dos materiais os resultados de pesquisas feitas
no exterior e no Brasil.
WITTER, G. P. Psicologia escolar: pesquisa e ensino. São Paulo. USP. 1977. (Tese livre docên-etai
Em função destes resultados os dois materiais diferem entre si em aspectos básicos, tais como o
léxico empregado, posto que as diferenças regionais do país assim o determinaram, e a forma de
apresentação, que, por questão de ordem técnica, muda de uma para outra região. uma vez que o
material, para evitar saciação por parte da criança, é apresentado em folhas avulsas e se espera
que o mesmo seja usado para vários fins, tais como aulas de Arte, de Matemática, de Estudos
Sociais etc., devendo ser inclusive recortado para a composição de jogos de Linguagem e de
Matemática, surgem opções sobre como concretizá-lo. A Vetor, que é a editora de Lendo e
Escrevendo, resolveu apresentar o material em sacos plásticos individualizados. As edições da
Cartilha da Amazônia são feitas pelo governo e optou-se por uma capa de cartolina onde as
folhas são presas, servindo de arquivo transitório entre o uso inicial do material pela criança e o
recorte, jogo ou cartaz por ela produzido como etapa final de utilização de cada folha.
uma vez composta a primeira versão desses materiais eles foram submetidos a pesquisas de
campo, comprovando-se a sua eficiência ao mesmo tempo em que se obtinha dados para a sua
melhoria. Após o lançamento comercial, no caso de Lendo e Escrevendo, e oficial, da Cartilha
da Amazônia, que é de distribuição gratuita e não implica em direitos autorais, continuaram a ser
feitos trabalhos de pesquisa pelos autores ou por outras pessoas que têm contribuído com dados
interessantes que são incorporados na renovação de cada edição.
De um modo geral estas pesquisas têm mostrado não apenas a eficiência destes meios de
instrução como também a sua superioridade quando contrastada com outros materiais utilizados
nas respectivas regiões. Esta superioridade tem se verificado não apenas no que tange à
alfabetização como instrumento de comunicação. Ela foi observada em outros aspectos do
comportamento verbal escrito, na aprendizagem de noções de Ciências (Matemática, Biologia,
Sociologia, História). Certamente, com o prosseguimento das pesquisas, aperfeiçoamentos
sucessivos poderão ser feitos.
Ao longo desses anos tem se registrado também uma série de dificuldades. Elas não são
intransponíveis, mas muitas têm sido apenas contornadas e se eliminadas poderiam conduzir
facilmente a um progresso superior à média de aproveitamento, que nas pesquisas oscila entre
90 e 98% quando este último percentual deveria ser o mínimo.
WITTER, G. P. Psicologia escolar: pesquisa e ensino. São Paulo, USP. 1977. (Tese livre docên
cia); WITTER, G. P. & COPIT. M. S. Estudo comparativo da eficiência de um texto progra
mado para alfabetização. Ciência e Cultura, São Paulo, 23:118. 1971; ------------------------------------uma
experiência em alfabetização em classes pré-primárias. Educação para o Desenvolvimento,
26:96-102, 1971 ;------------------------- Um estudo experimental de aplicação de alguns principios
de reforço em sala de aula Boletim de Psicologia. São Paulo, 2459-69, 1972; WITTER, G. P., KERR,
V. E. & RAMOS, M. A. A. Retenção da informação científica aprendida durante a alfabetização: um
estudo com a Cartilha da Amazônia. Ciência s Cultura, São Paulo, 31 (81:898-900. ago. 1979; WITTER,
G. P. & RAMOS, M. A. A. Cartilha da Amazônia. Ciência e Cultura, São Paulo, 30 (6)677-85, jun..
1978.
— a falta de formação e preparo dos professores para empregar tecnologia de ensino mais
avançada, especialmente a nivel de individualização. Alguns resultados têm sido obtidos com
cursos breves de 6 a 10 horas ou com técnicas de dramatização;
Certamente o êxito dos materiais aqui apresentados provém do fato deles serem decorrentes de
pesquisas e da incorporação do vasto acervo de conhecimentos internacionais disponíveis na
área, alguns dos quais forarn particularmente úteis no processo de tomada de decisão
determinando opções como, por exemplo, o uso de figuras não coloridas. Além disso, como há
respeito ao mundo cultural e psicológico da criança, já era de se esperar este resultado,
possibilitando ainda ao professor uma fácil adaptação à realidade particular de seus alunos. Outra
fonte a contribuir é a existência de um contacto individual e freqüente do professor com o aluno
como exigência da utilização deste tipo de material. Finalmente vale destacar que muito há que
ser feito na realidade brasileira antes que índices de alfabetização compatíveis com os dos países
mais desenvolvidos possam ser efetivamente alcançados. Estas necessidades vão desde
pesquisas básicas até o treinamento e formação de professores, passando pela própria
construção de escolas. As universidades brasileiras têm aqui um papel relevante que deve ser
assumido de forma mais sistemática, indo além do esforço ¡solado de pesquisadores ou da
realização de encontros e eventos. Só assim poderá integrar-se à realidade e contribuir para um
desenvolvimento efetivo do país.
Programa Alfa
Essa antiga preocupação assume novas proporções à medida que se aceleram as mudan-
ças no mundo moderno. É cada vez mais importante preparar a criança para viver, con-
tinuamente, as novas experiências que lhe são colocadas. É cada vez mais necessário
ensiná-la a pensar, a aprender.
A escola não pode mais resumir seus objetivos na transmissão de conteúdos, por mais
essenciais que estes possam parecer. Espera-se que ela consiga mostrar à criança a estru-
tura e o processo do próprio conhecimento, dando-lhe flexibilidade e versatilidade sufi-
cientes para compreender e se adaptar a cada nova situação. Por isso, uma aprendi-
zagem sólida e eficiente precisa estar centrada nos processos cognitivos: o aluno precisa
ser preparado para usar os recursos do processo de conhecimento, sabendo assim utili-
zar sua capacidade de raciocínio de modo eficaz para aplicar cada aprendizado a novas
situações.
O Programa Alfa nasceu de uma séria pesquisa junto à rede oficial de ensino, sobre
reprovação e evasão, asssim como da discussão dos mecanismos psiconeurologicos
envolvidos na aprendizagem e das propostas metodológicas para o ensino fundamental.
Quatro princípios básicos resumem a proposta teórica de Alfa:
— centrar o currículo nas funções psiconeurológicas e nas operações cognitivas que são
a base fundamental do processo de alfabetização (discriminar, comparar, relacionar,
classificar etc);
ÁREAS INTEGRADAS
como os conteúdos são apresentados de modo integrado, eliminam-se as rígidas barreiras entre
as áreas, para reuni-las em grandes grupos: Linguagem, Matemática e Solução de Problemas.
As atividades da área de Linguagem têm por objetivo tornar o aluno capaz de se comunicar com
segurança e desenvoltura, oralmente e por escrito.
Ainda falando de Linguagem, é importante ressaltar que a alfabetização inicia-se com material
concreto, manipulado pelo aluno, tomando por base o universo vocabular das próprias crianças —
uma vez que trabalha com palavras sugeridas pela classe, numa didática que favorece a
motivação e o fortalecimento do autoconceito positivo. A leitura também tem lugar de destaque no
Programa Alfa, como recurso para fixar a alfabetização, desenvolver a capacidade de expressão
e enriquecer o vocabulário. Além dos textos contidos nos livros de exercícios, a partir de Alfa Dois
e também em Alfa Três existe uma biblioteca para a classe, com dicionário e livros de literatura
brasileira para crianças. Também a partir de Alfa Dois todas as noções indispensáveis ao uso cor-
reto e fluente da língua começam a ser sintetizadas por meio de exercícios orais e escritos, de
maneira agradável e divertida, sem exigir a memorização repetitiva de regras e exceções, mas
usando a gramática como instrumento para uma comunicação mais eficiente. Por outro lado, a
comunicação escrita, a redação, desenvolve-se através de exercícios constantes, variados, que
permitem à criança expressar também sua imaginação criadora.
INTRODUÇÃO
Em sua segunda etapa, no decorrer de 1982, o citado projeto foi desenvolvido na Uni-
versidade Federal de Uberlândia (MG) envolvendo 60 professores e especialistas em
educação pré-escolar, dos quais 36 exerciam suas funções na Escola Nossa Casinha,
freqüentada por crianças de 3 a 7 anos, filhas de funcionários e professores daquela
Universidade. O PROEPRE, atualmente, está sendo aplicado em todas as classes da Escola
Nossa Casinha. Além disso, uma equipe daquela Universidade, que participou do projeto de
formação, em 1982, está agora multiplicando o mesmo para outros professores.
Tendo em vista os resultados obtidos com a implantação de nosso programa em âmbito nacional,
o MEC, através da COEPRE, decidiu pela sua expansão envolvendo mais 10 Unidades da
Federação: Alagoas, Amazonas, Amapá, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Rio
Grande do Sul, Santa Catarina e Sergipe. Desta terceira etapa do Projeto de Formação de
Recursos Humanos para a Educação Pré-Escolar estão participando aproximadamente 550
professores.
OBJETIVOS
SISTEMÁTICA DE TRABALHO
São quatro cursos com a duração de 240 horas distribuídas no decorrer de um ano. O
primeiro curso, com 80 horas de duração, tem como conteúdo os fundamentos teóri-
cos do programa. Geralmente esse curso é realizado em dezembro.
O terceiro curso é realizado em julho, tem 80 horas de duração e seu conteúdo princi-
pal é a avaliação do desenvolvimento da criança e as orientações práticas para aplica-
ção da segunda fase do programa.
Finalmente, em dezembro realiza-se o quarto curso, com 40 horas, quando é feita uma
retomada teórica e prática dos conteúdos já abordados, bem como a análise de outros
tópicos muito importantes, tais como o envolvimento dos pais, administradores e
supervisores.
A sistemática adotada nesse projeto foi constantemente orientada por duas premissas
básicas, decorrentes da própria realidade educacional brasileira: o caráter de ação suple-
tiva do MEC no setor em que se dispôs a atuar e o reconhecimento e respeito pela
diversidade e peculiaridade de cada Unidade da Federação que se propôs a adotar o
PROEPRE. Neste sentido, pode-se afirmar que a implantação desse programa foi sem-
pre conduzida levando-se em consideração a autonomia das Unidades Federadas que
dele participaram e participam de forma criativa, abandonando-se a priori qualquer
possibilidade de se incorrer na proposição de um modelo único e inflexível de atuação
na área de educação pré-escolar. Pelo contrário, o objetivo mais amplo dessa atuação
foi o de conseguir, a médio prazo, a auto-suficiência das Secretarias de Educação na
implementação do programa, fato este que se concretizou quando equipes de especia-
listas e professores passaram a desenvolver o seu próprio programa de formação de professores
para a implantação do PROEPRE, multiplicando assim o número de classes em que o mesmo
está sendo aplicado. como é o caso já citado do Distrito Federal e de Minas Gerais, em que a
Secretaria de Educação está capacitando professores de várias delegacias de ensino do interior,
a Secretaria de Educação Municipal está fornecendo cursos de aperfeiçoamento aos seus
professores, o mesmo acontecendo com o SESI MlNAS e com o Instituto da Criança, que é uma
instituição particular.
Até aqui tentamos descrever em linhas gerais o projeto de formação de professores aos que se
interessam em conhecer e implantar o PROEPRE. A segunda parte deste trabalho será dedicada
a explicitar seus objetivos, características, princípios pedagógicos, atividades e a estrutura de um
dia de aula do programa.
Apresentação
Essa concepção deve se refletir na formulação dos objetivos, na metodologia e nos pro-
cedimentos de avaliação utilizados no PROEPRE e, sobretudo, na atitude do educador que
desenvolve esse programa.
No que se refere a sua rneta final, o PROEPRE pretende contribuir para a formação de pessoas
criativas, inventivas e descubridoras, que sejam capazes de criticar, comprovar e não aceitar sem
refletir tudo o que lhes é proposto. Pessoas que sejam capazes de pensar a realidade em que
vivem e transformá-la; que sejam livres para exercer sua liberdade e autonomia de acordo com
os valores sociais e morais que consideram válidos porque tiveram a oportunidade de reconstrui-
los. como se vê, o que se propõe não é uma educação conformista, nem tampouco uma
educação orientada segundo os preceitos do laissez-faire. Ao contrário, de acordo com os
princípios do PROEPRE, é preciso criar-se na pré-escola um ambiente físico e social que, desde
cedo, encoraje a autonomia, uma vez que se pretcnde formar personalidades intelectual e
moralmente autônomas. Não se pode esperar conseguir isso se as crianças, nos seus primeiros
anos, viverem submetidas a pressões e coerções impostas por aqueles que são os responsáveis
pela sua educação. É muito difícil que as crianças, de um momento para outro, comecem a ter
iniciativa e autonomia, sem terem tido anteriormente a oportunidade de decidir, escolher, opinar,
criticar, dizer o que pensam e sentem.
A educação pré-escolar que propomos tem como objetivo o desenvolvimento da
criança. A convicção de que se pode interferir nesse desenvolvimento de maneira a
favorecê-lo está subjacente a esse objetivo. Essa convicção não resulta apenas de uma
crença, mas sobretudo dos dados obtidos em nossa pesquisa, através da qual ficou com-
provado que as crianças submetidas ao PROEPRE apresentam nítido progresso no
desenvolvimento.
OBJETIVOS DO PROEPRE
Aspecto Cognitivo
Aspecto Afetivo
À criança deverá ser dada a oportunidade de satisfazer sua curiosidade natural, seus
interesses e valores, a fim de que ela seja capaz de iniciar as atividades e perseverar nelas
até conclui-las, realizando-as com prazer. Além disso o ambiente escolar deverá estimu-
lar a criatividade.
Os objetivos referentes ao aspecto afetivo são criar as condições adequadas para que a
criança:
Aspecto Social
Os objetivos do PROEPRE no que se refere ao aspecto social são criar condições ade-
quadas para que a criança:
Aspecto Perceptivo-Motor
À medida que a criança cresce suas habilidades motoras vão se aperfeiçoando e am-
pliando. Depois dos primeiros passos seu andar se torna cada vez mais firme e desen-
volto. Aos 3 anos, quando caminha já não bamboleia, corre bem, sobe e desce escadas
facilmente. No final da idade pré-escolar pula corda, salta agilmente sobre os dois pés
ou sobre um pé só.
a) desenvolva a habilidade de fazer com os músculos aquilo que deseja ou pensa fazer
(coordenação voluntária dos grandes músculos); e
b) desenvolva a habilidade de fazer com suas mãos aquilo que deseja ou pensa fazer
(coordenação voluntária dos pequenos músculos).
CARACTERISTICAS DO PROEPRE
Essa inter-relação também existe dentro de um mesmo aspecto. Por exemplo: a ativi-
dade de construir com blocos estimula ao mesmo tempo o conhecimento físico, o
conhecimento lógico-matemático, o conhecimento social e a função simbólica. Cremos
ser inútil dar outros exemplos dessa inter-relação, pois a professora terá oportunidade
de percebê-la a todo instante no dia-a-dia escolar e desde o momento em que
começar a analisar o PROEPRE. As atividades foram elaboradas com vistas à predomi-
nância de um determinado conhecimento ou aspecto do desenvolvimento.
PRINCIPIOS PEDAGÓGICOS
com exceção da atividade coletiva, as demais atividades podem ser realizadas simulta-
neamente. Nas classes muito numerosas as atividades coletivas apresentam alguma difi-
culdade. Nesse caso, a professora poderá dividir os alunos em três ou quatro grupos e
trabalhar com um grupo de cada vez, enquanto as mães ou auxiliares se responsabili-
zam pela orientação dos outros grupos.
O dia escolar pode ter uma rotina ou não. Alguns educadores preferem estabelecer
horários fixos para a realização de algumas atividades, por exemplo, as atividades no
pátio são realizadas antes da merenda, ouvir estórias no final do período. Outros
preferem utilizar o tempo de maneira mais flexível em que as diferentes atividades são
realizadas em horários variados. Há ainda aqueles que preferem que as crianças tomem
o lanche juntas, todos os dias, à mesma hora. Outros preferem que a hora da merenda
seja flexível para que as crianças não interrompam um jogo no qual estão interessadas
porque têm que merendar. Tais detalhes ficam a critério das professoras e da escola.
Convém lembrar que as decisões tomadas a favor ou contra uma maior ou menor
flexibilidade do horário das rotinas diárias devem ser baseadas nos objetivos
educacionais que se tem presentes.
Ao planejar o seu dia escolar e ao selecionar seus objetivos, a professora deverá obser-
var se está enfatizando igualmente todos os aspectos do desenvolvimento.
Recomendamos que algumas atividades tais como: planejamento do trabalho diário, arrumação e
limpeza da saia no final do período, avaliação individual e coletiva, lavar as mãos antes da
merenda e escovar os dentes depois, sejam realizadas diariamente.
AS ATIVIDADES
As sugestões de atividades apresentadas para os diferentes objetivos não são rígidas. Elas
devem servir apenas de orientação para o educador, pois a maneira de encaminhá-las depende
das respostas dadas pela criança. Assim sendo, uma mesma atividade pode variar de criança
para criança e de professora para professora.
Ao propor uma atividade para a criança a professora deverá partir, na maioria das vezes, do que
ela está fazendo. Desta forma, se a criança estiver fazendo classificações de objetos, a
professora poderá propor-lhe, por exemplo, que inclua outros elementos nas coleções já feitas.
Assim é possível assegurar que naquele momento a criança está motivada para fazer
classificações.
Ao planejar as atividades que serão desenvolvidas a professora precisa ter presente os objetivos
que pretcnde atingir com aquela atividade. A seleção das atividades é determinada por esses
objetivos.
Na sua interação com a criança a professora precisa ter cuidado para não induzir suas respostas.
Convém ressaltar também que as respostas erradas não devem ser corrigidas. A professora
poderá fornecer novos elementos, a partir dos quais a criança poderá ou não reformular seu
pensamento. Da mesma forma, quando a criança dá respostas certas é necessário colocar
contra-argumentos que permitam verificar até que ponto ela está convicta ou não.
Convém insistir que os procedimentos sugeridos para cada atividade devem servir de idéias,
diretrizes, e de maneira alguma podem ser usados como receitas. Não há "receitas pedagógicas"
para um programa piagetiano. O professor que utiliza o PROEPRE deve encontrar um meio de
colocar à disposição de seus alunos uma grande variedade de material, encorajá-los a serem
ativos e curiosos, responder às suas necessidades afetivas, favorecer a interação social entre
eles e criar condições favoráveis ao seu desenvolvimento motor.
Referências Bibliográficas
ALMY, Millie. La tarea del educador preescolar. Trad. por Luis Justo. Buenos Aires, Marymar,
1977.
KAMII, Constance & DEVRIES, Rheta. A teoria de Piaget e a educação pré-escolar. Trad. por
José Morgado. Lisboa Sociacultur, s. d.
ASSIS, Orly Z. Mantovani de. Estudo sobre a relação entre a solicitação do meio e a formação da
estrutura lógica no comportamento da criança. Campinas, UNICAMP/ INEP, 1977.
____________ uma nova metodologia de educação pré-escolar. São Paulo, Pioneira,
1979.
PIAGET, Jean. et alii. Los años postergados; a primeira infância. Buenos Aires, Paidós-Unicer,
1975.
O Projeto de Alfabetização de
Mogi das Cruzes - PRO LESTE
Ao se analisar a realidade do ensino de primeiro grau na rede pública, um dos problemas mais
relevantes relaciona-se com os resultados observados na primeira série, onde os objetivos estão
centrados na alfabetização das crianças. Dados recentes demonstram que no Brasil, da
população total matriculada na primeira série, somente 40 a 45% alcançam a segunda série no
ano seguinte, sendo as principais causas os altos índices de reprovação, seguida da "evasão
escolar".
Diante desses dados, qualquer intervenção planejada para a rede de ensino público deve ser
precedida de uma minuciosa análise das reais condições que mantêm o comportamento dos
indivíduos envolvidos e as práticas de ensino utilizadas pelos educadores.
Alguns desses fatores já são conhecidos. O autor tem observado que os chamados "métodos de
alfabetização" são na realidade determinados pela escolha da cartilha, cujos princípios de
aprendizagem subjacentes geralmente não estão explícitos. A análise dessas cartilhas tem
revelado sua inadequação não só quanto a seus aspectos formais (seqüência inadequada, falta
de instrução para professores, suposição dos pré-requisi-
CAUSAS de retenção escolar na 1ª série do ensino público do 1º grau: uma nova abordagem. In: REUNIÃO
ANUAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA PARA O PROGRESSO DA CIÊNCÏA. 31., Fortaleza. 1979. s.n.t.
tos etc.) mas também quanto aos conteúdos apresentados (valores ideológicos desvinculados da
realidade da população etc).
Tendo em vista essa realidade, pode-se afirmar que um projeto de ensino não se define somente
pela existência de um programa, por melhor que tenha sido planejado, desde que a intenção seja
efetivamente implantá-lo nas escolas de uma região. Neste trabalho, propõe-se que o conceito de
projeto de ensino seja compreendido em função de duas características básicas:
— uma estrutura onde estejam definidas as funções e relações entre o pessoal envolvido;
— a escolha dos dados a serem coletados e a definição dos instrumentos de coleta, o que
possibilitará a constante reavaliação das atividades bem como o controle do progresso dos
alunos;
O presente trabalho relata o Projeto de Alfabetização de Mogi das Cruzes, no seu primeiro ano de
implantação na rede de ensino estadual, envolvendo o programa, bem como as condições
planejadas para sua implantação e desenvolvimento.
2
HUNT. J. McV. Intelligence and experience. New York. Ronalde Press, 1961.
O PROGRAMA DE ALFABETIZAÇÃO UTILIZADO
Histórico
Já na caracterização das escolas da região, realizada naquele ano, o problema dos altos índices
de reprovação na primeira série exigiu uma análise mais detalhada, que culminou na realização
das primeiras pesquisas com o objetivo de desenvolver programas adequados às populações de
bairros periféricos da cidade, atendidas pelas chamadas "escolas carentes". As primeiras
atividades nesse sentido foram realizadas com a seleção de casos isolados de crianças que
mesmo após um semestre na primeira série já demonstravam grandes dificuldades de
aprendizagem em relação à média das respectivas classes. Essas crianças passaram a ser
atendidas individualmente por quintanistas e psicólogos, os quais após análise do repertório e
das características de aprendizagem dos alunos iniciaram o planejamento de programa de
alfabetização adaptado às condições presentes; esse programa uma vez aplicado, demonstrou
melhoras significativas no desempenho das crianças.
A etapa seguinte implicou na aplicação do programa a uma classe de alunos considerados com
"dificuldades de aprendizagem", pelo próprio professor, que recebeu treinamento e
acompanhamento constante durante todo o ano. Detalhes desse trabalho são encontrados em
3
Leite e col.
c) Avaliação constante e critério de avaliação: uma vez que a quantidade de estímulos era
pequena em cada passo e a aprendizagem de um era pré-requisito para os posteriores,
utilizou-se um procedimento de avaliação constante no final de cada passo, onde o critério
estabelecido era de 100% de acerto para progredir para o passo seguinte.
d) Correção e reforço imediatos: todas as atividades realizadas pelos alunos durante a aplicação
dos procedimentos deveriam ser seguidas por correção e reforço imediatos, este na forma de
atenção e incentivo do professor.
Fase I, Esperava-se que no final dessa fase os alunos fossem capazes de: a) ler e escrever
corretamente palavras formadas por sílabas simples, ou seja, as sílabas formadas por uma
consoante combinada com uma vogai ou encontro vocálico; b) escrever as letras na forma
manuscrita minúscula; e c) reconhecer as letras na forma imprensa minúscula. Essa fase
compreendia 17 passos, sendo que o 1 introduzia as vogais e encontros vocálicos e cada um dos
seguintes introduzia uma família silábica. As famílias do C e G eram combinadas somente com as
vogais A, O, U e as famílias d o R e S eram treinadas somente no início de palavras.
Fase II. Esperava-se que no final dessa fase os alunos fossem capazes de: a) ler e escrever
palavras e períodos simples formados por, além das sílabas simples, 16 tipos de dificuldades
ortográficas, excetuando-se os casos de homofonia e do H inicial; b) escrever as letras na forma
manuscrita maiúscula no início de operações e nomes próprios; e c) reconhecer as letras na
forma imprensa maiúscula. Essa fase compreendia 16 passos, cada um introduzindo um tipo de
dificuldade ortográfica, exceto os casos de homofonia e de H inicial.
Fase lII. Esperava-se que no final dessa fase os alunos fossem capazes de: a) ler e escrever
palavras e orações envolvendo todos os tipos de dificuldades, incluindo as homofo-
nias e H inicial; e b) utilizar corretamente o parágrafo e o ponto final. Essa fase era for-
mada por 9 passos, cada um introduzindo um dos casos de homofonia, além do H
inicial.
Procedimentos de Aplicação
Nos procedimentos delineados para a aplicação de cada um dos passos, exceto o passo
1 da fase I, distinguiram-se três momentos distintos: a) apresentação dos novos estí-
mulos; b) fixação; e c) avaliação. No primeiro momento planejou-se introduzir os estí-
mulos do passo, um por vez, apresentando-os através de sílabas-chave (até o passo 6 da
fase I) e de palavras-chave previamente escolhidas, formadas por um estímulo novo
combinado com outros já anteriormente treinados. Cada palavra-chave apresentava so-
mente um estímulo novo. No momento seguinte — fixação — foram previstas ativida-
des visando a formação de novas palavras ou orações (a partir da fase II), combinan-
do-se os estímulos novos do passo com os dos passos já treinados anteriormente. No
último momento, deveria ocorrer a avaliação por meio de um ditado onde cada estí-
mulo novo apresentado no passo aparecia um número constante de vezes.
Fase lII. uma vez que essa fase apresentava os casos de homofonia da língua, o proce-
dimento sofreu várias modificações. Cada palavra-chave era apresentada normalmente,
como nas fases anteriores, e após cada palavra ser trabalhada (treino de som, forma e
desvanecimento) o professor deveria destacar a nova dificuldade e apresentar uma série
de palavras previamente escolhidas, que apresentassem o mesmo tipo de dificuldade
da palavra-chave. As atividades nesse momento deveriam levar os alunos a lerem e escre-
verem essas palavras selecionadas. Só então o professor deveria passar para a segunda
palavra-chave, apresentando o mesmo tipo de dificuldade combinada com outra vogai.
O momento de fixação correspondia ao treino das palavras selecionadas apresentando
o tipo de dificuldade treinada, além de formação de orações e pequenas estórias. A ava-
liação era semelhante à da fase II.
A descrição dos procedimentos, bem como a relação de palavras utilizadas nas fases de
apresentação, fixação e avaliação podem ser encontradas em Leite.4
Material
Cada professor recebia, além dos guias com os procedimentos e os conteúdos a serem
desenvolvidos em cada passo, uma ficha de avaliação para cada passo, onde deveria
registrar o número de tentativas para cada aluno atingir os critérios de 100% e a data
de cada avaliação; recebia também folhas de avaliação para cada aluno, por passo. Além
desse material foram confeccionados jogos de cartolina para as crianças contendo as
vogais e sílabas impressas.
Avaliação do Programa
Dois conjuntos de dados forarn utilizados para avaliação do programa. O primeiro refe-
ria-se às informações relacionadas com o desempenho das crianças durante sua aplica-
ção e consistia de dois instrumentos: as avaliações aplicadas no final de cada passo e as
sondagens cumulativas. As avaliações informavam se as crianças atingiam os critérios
de 100%, o número de tentativas realizadas, o número de sessões necessárias e os tipos
de erros cometidos pelos alunos. As sondagens cumulativas eram ditados formados por
32 palavras nas fases I e II e 16 na fase lII, aplicados a cada quatro passos treinados.
Cada bloco de oito palavras de uma sondagem abrangia os conteúdos de somente qua-
tro passos do programa combinados entre si, sendo que cada familia silábica ou tipo de
LEITE, S. A. S. O projeto de alfabetização de Mogi das Cruzes: uma proposta para a rede de ensino
público. São Paulo, Universidade de São Paulo, Instituto de Psicologia, 1980. (Tese doutorado).
dificuldade aparecia um número constante de vezes. Esperava-se que na aplicação de
uma sondagem as crianças acertassem as palavras correspondentes aos conteúdos já
treinados. Além disso, esperava-se que em cada sondagem aplicada o grupo seguinte de
oito palavras apresentasse um aumento significativo de acertos, pois correspondia aos
quatro últimos passos treinados.
A primeira rneta estabelecida foi a formação de uma equipe de coordenação que viesse
a coordenar as atividades a serem desenvolvidas no projeto. Para tanto, o chefe da Divi-
são Regional de Ensino convocou 10 educadores que serviam junto àquela Divisão, os
quais iniciaram uma série de reuniões com o autor, onde se discutiram: o problema da
alfabetização nas escolas, as principais noções de aprendizagem e programação de con-
dições de ensino, o programa de alfabetização desenvolvido pelo autor e as necessida-
des para sua aplicação em escala mais ampla. Durante essas reuniões vários educadores
afastaram-se do grupo por diversos motivos, sendo que no final dessa série de estudos a
equipe estava reduzida a três elementos além do autor.
Escolha da População
A população inicial era formada por 579 alunos, divididos em 17 classes, dos quais
22% haviam cursado pré-escola e 33% eram repetentes. Somente 1% da população era
considerada de nível superior, de acordo com as categorias propostas por Gouveia e
Havighurst.5
Quanto aos professores, participaram cerca de 18, sendo somente um do sexo masculi-
no. Cerca de seis professores tinham mais de 10 anos de experiência no magistério;
outros seis tinham 5 a 9 anos; quatro tinham até três anos e um professor não tinha
experiência anterior.
Em seguida foi realizado um treinamento através de seis sessões com a participação de todos os
elementos envolvidos, inclusive os professores.
Procedimentos de Supervisão
a) observação do desempenho do professor em sala de aula: essa atividade era realizada pelos
coordenadores, principalmente nos dois primeiros meses de implantação. O coordenador
recebeu e discutiu um roteiro contendo os principais aspectos que deveriam ser observados
em sala de aula, durante períodos de no máximo 30 minutos, findos os quais deveria
conversar com o professor sobre seu desempenho;
b) reuniões diárias nas escolas: 20 minutos antes do final do período de aula, as crianças eram
dispensadas e o coordenador reunia-se com todos os professores para discutirem as
dificuldades encontradas e sugerirem alternativas para os problemas. Além disso relatavam-se
as atividades realizadas em sala, bem como seus efeitos. Após a realização de cada avaliação
no final do passo e da aplicação de uma sondagem, o professor deveria entregar ao
coordenador as folhas utilizadas pelos alunos e a folha de registro dos passos. O
coordenador, por sua vez, registrava os dados numa folha geral e encaminhava o material à
equipe de coordenação. Posteriormente, essas reuniões transformaram-se em um encontro
semanal com duas horas de duração;
d) visitas dos membros da equipe de coordenação às escolas: sempre que possível os membros
da equipe visitavam as escolas e participavam da reunião diária;
Além dessas atividades planejaram-se reuniões gerais de todos os envolvidos no final de cada
semestre para entrosamento, troca de experiências e encaminhamento de sugestões.
O Remanejamento
Após três semanas de implantação do projeto, com base nas folhas e fichas de avaliação, além
da opinião dos professores, os alunos foram remanejados, agrupandose crianças que
apresentavam ritmo de aprendizagem - que é o tempo necessário para os alunos atingirem os
critérios de 100% em cada passo — semelhante. Estabeleceram-se critérios tendo num extremo
os alunos que haviam conseguido 100% de acerto nas primeiras tentativas e no outro os alunos
que não haviam conseguido ainda atingir os critérios no passo 1. Além disso, as classes de ritmo
mais rápido foram formadas com um número de alunos superior à média enquanto que as
classes de ritmo lento reuniram um número abaixo da média, com no máximo 25 alunos.
RESULTADOS GERAIS
Foram considerados oficialmente aprovados os alunos que terminaram o ano até o último passo
da fase II, uma vez que os conteúdos previstos para a fase lII nos programas oficiais são
considerados de segunda série.
Os resultados gerais mostraram que em média 90% dos alunos nas três escolas foram
aprovados, sendo que 63% terminaram as três fases, 16% terminaram na fase Ill e 11% atingiram
o critério mínimo. A média de aprovação nas demais escolas da região onde o projeto não foi
instalado foi de 55%. com relação aos alunos oficialmente reprovados, 3,5% terminaram o ano
nos passos da fase II sem terem entretanto atingido os critérios de aprovação e 6,5% terminaram
a fase I.
No ano seguinte todas as classes foram mantidas com os mesmos alunos, o que possibilitou
reiniciar o programa a partir do passo em que haviam terminado, após uma rápida revisão dos
conteúdos já treinados.
Por questão de espaço não é possível reproduzir aqui toda a análise realizada. Deve-se notar,
entretanto, que os dados disponíveis permitiram: a) apresentar e analisar as porcentagens de
alunos aprovados nas diversas tentativas em cada passo, por fase (pelo menos 80% das
crianças conseguiram atingir o critério na primeira tentativa de todos os passos exceto nos cinco
primeiros da fase I); b) apresentar e analisar o número médio de sessões necessárias para se
atingirem os critérios em cada passo em todas as classes e nas classes de ritmo lento,
comparando-se com as demais; c) apresentar e analisar o número médio de ocorrência das
chances nos momentos de avaliação (a maioria dos professores não utilizou essa alternativa); d)
apresentar e analisar as porcentagens
de acertos nos blocos de oito palavras nas diversas sondagens aplicadas nas três fases; e)
classificar e verificar a freqüência dos tipos de erros cometidos tanto nas avaliações no final dos
passos quanto nas aplicações das sondagens; e f) verificar a freqüência dos vários tipos de
encontros e reuniões ocorridos durante a aplicação do projeto.
Todos os detalhes dos resultados, bem como a fundamentação teórica utilizada e as modificões
introduzidas a partir do primeiro ano de implantação do projeto, podem ser encontrados no
6
trabalho de Leite.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos anos subseqüentes o PROLESTE foi ampliado progressivamente para outras escolas da
região. Os mesmos critérios foram adotados para a escolha das novas escolas: altos índices de
reprovação, atender população de periferia e ter coordenador pedagógico. Em 1981,0 projeto
abrangia 5.604 alunos de primeira série, distribuídos por 165 classes, em 27 escolas. Além disso,
foram também introduzidos programas no período preparatório para as crianças novas que
chegam ás escolas, programas de redação para serem aplicados após o período de alfabetização
(até a terceira série) e o programa de matemática, também até a terceira série.
Embora a média de 90% de aprovação não se mantenha nos anos seguintes, em virtude de uma
série de fatores já conhecidos pela equipe, os índices de aprovação nas classes de primeira série
das escolas do PROLESTE têm sido em média de 20 a 25% acima dos índices médios das
escolas da região sem o projeto.
Os resultados obtidos com este projeto e em experiências semelhantes não podem ser
interpretados como os principais determinantes das grandes mudanças necessárias à Educação.
É ingênuo concluir que os problemas educacionais serão resolvidos na medida em que tais
experiências forem aplicadas em grande escala na rede de ensino; os problemas não serão
resolvidos somente através da adoção de medidas basicamente pedagógicas.
6
LEITE, S. A. S. Alfabetização: um projeto bem-sucedido. São Paulo, EDICON, 1982.
Outra questão que merece destaque é o papel da burocracia no sistema educacional. Pode-se
afirmar que um sistema burocratiza-se na medida em que perde a noção dos seus objetivos
terminais passando a ser controlado somente pela manutenção dos meios. Assim, a burocracia,
que deveria corresponder aos meios que possibilitassem aos sistemas educacionais a
consecução de seus objetivos, passa ela própria a controlar o comportamento dos indivíduos na
estrutura, assumindo o papel desses mesmos objetivos. A principal conseqüência é que o
sistema torna-se extremamente resistente a mudanças, pois as relações burocráticas tornam-se
tão complexas que é impossível modificar aspectos isolados; além disso, a própria legislação
passa a incorporar essa burocracia. Outra conseqüência é o efeito desse processo sobre os
indivíduos, levando-os a se distanciarem das preocupações fundamentais, passando a serem
controlados apenas pela manutenção dos meios.
Isto explica, em parte, o fato de que a grande maioria das decisões do cotidiano da escola são
tomadas sem que se analise, adequadamente, os efeitos das mesmas sobre o aluno,
teoricamente a razão de ser de todo o sistema educacional.
Nessas condições, embora ciente de que projetos como o aqui relatado não modificarão a
estrutura e os objetivos do sistema de ensino, entende-se que os mesmos devem ser
incentivados no sentido de se demonstrar que, mesmo dentro da rede de ensino público, é
possível uma ação educacional mais eficiente e de melhor qualidade.
Mas para isso esta ação deve necessariamente modificar os objetivos e práticas de ensino, além
de propor mudanças na própria burocracia instalada na escola. Dessa forma, um trabalho
educacional crítico e consciente deve mostrar caminhos alternativos para se enfrentar os grandes
desafios. Deve ser uma ação que vise descobrir, criar e propor novas formas concretas e viáveis
que não impliquem na manutenção de um status; uma ação que vise transformar as instituições a
partir das suas próprias práticas.
Teorias da Diferença e Teorias do Déficit:
Reflexões sobre Programas de Intervenção na
Pré-escola e na Alfabetização
Cláudia T. G. de Lemos
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
À GUISA DE INTRODUÇÃO
Não é fácil para mim assumir a função de debatedora em um painel no qual foram
apresentados programas de alfabetização e uma metodologia de educação pré-escolar.
Por um lado, o trabalho de pesquisa que tenho desenvolvido não inclui como objeto de
investigação a aquisição da escrita, mas a da linguagem oral. Por outro lado, até este
momento, não me propus a assumir os riscos de tomar os resultados do projeto de
Aquisição da Linguagem, por mim coordenado no Departamento de Lingüística do IEL,
UNICAMP, como base de elaboração de uma proposta pedagógica para a educação
pré-escolar. O que me permite, contudo, participar deste painel e contemplar a
possibilidade de fazer dessa participação uma contribuição ao debate dos programas
apresentados é a convicção que partilho com Emilia Ferreiro de que:
"Nenhum dos modelos correntes de aquisição de linguagem oral podem ser direta-
mente aplicados ao processo de alfabetização, mas tudo o que sabemos sobre como
a criança aprende a falar é relevante para o entendimento desse processo."1 (Tra-
dução e negritos meus).
É precisamente esta perspectiva processual mais geral, que possibilita uma reflexão
sobre a aquisição da escrita a partir de dados sobre a aquisição da linguagem oral, que
norteará minha contribuição a este debate. Em outras palavras: não é com base em um
possível inventário (ou repertório) lexical, morfológico ou sintático, construído através
da análise da produção oral de crianças no momento ou período da alfabetização, que
me parece possível e útil pensar a relação entre aquisição da linguagem oral e da escrita,
mas sim a partir da questão sobre como os processos pelos quais a linguagem oral é
adquirida podem ¡luminar a reflexão ou o debate sobre como a linguagem escrita é
adquirida ou aprendida.
Para tanto, faz-se necessário, antes de mais nada, tentar expor aqui, sob a forma resu-
mida a que a limitação de tempo me obriga, alguns dos aspectos mais gerais dos pro-
cessos que têm sido formulados no interior de uma proposta sócio-interacionista da
FERREIRO. E. What is written in a written sentence? Journal of Education, 160 (4):26, 1978.
aquisição da linguagem, por mim2 e por outros investigadores brasileiros, como Maia3,
Campos4, Gebara5, Lier6, Perroni7.
Conforme, principalmente, LEMOS, C. de. Sobre aquisição de linguagem e seu dilema (pecado) original, s.
I.. Boletim da ABRALIN, 3.97-126, 1982.
GEBARA, E. S. Intonation and the development of dialogue processes in brasilian Portuguese. London,
School of African and Oriental Studies. Tese de doutorado em preparação.
PERRONI, M. C. Ensaiando narrativas: do "jogo de contar" às proto-narrativas. Rio de Janeiro, PUC, 1978.
comunicação apresentada no II Encontro Nacional de Lingüística.
o
LEMOS, C. de. La specularitá come processo costitutivo e nell'acquisizione del linguaggio. In:
CAMAIONI, L., org. La teoria di Jean Piaget. Florença, G. Barbera, 1982. p. 64-74.
------ op. cit.
9
KARMILOFF-SMITH, A. Does metalinguistic awareness have any function in language acquisition
processes? s. n. t. mimeo.
enquanto atividade comunicativa. Implícita, mas não suficientemente elaborada na proposta da
autora, é a avaliação de quanto essa "tomada de consciência" ou descentração é dependente da
"tomada de consciência" da eficácia de sua atividade comunicativa ou dos conflitos sócio-
10
cognitivos através dos quais essa eficácia é posta a prova.
O que acabo de expor aponta, pois, para o percurso ontogenético seguinte: o que, de início, a
criança dispõe e exercita em sua atividade lingüística dialógica são procedimentos comunicativos
e cognitivos não-analisados, não-coordenados entre si, isto é, justapostos. É da eficácia desses
procedimentos, no sentido em que eles permitem agir sobre o seu interlocutor, e dele obter
objetos, ações sobre o mundo e sobre a própria linguagem, que a criança passa a atuar sobre
esses procedimentos enquanto objetos lingüísticos, coordenando-os, relacionando-os e, assim,
construindo subsistemas, que aumentam o grau de eficácia dessa mesma atividade comunicativa
e cognitiva.
Qualquer adulto atento à linguagem da criança por volta dos dois anos pode notar que, ao uso
eficaz de formas aparentemente "corretas" como fiz, comi, peguei, se sucedem formas como
fazei, comei ou fazi, pegui. Esse é apenas um dos inumeráveis exemplos de vária natureza
(morfológica, sintática e semântica) que ilustram a passagem de procedimentos justapostos não-
analisados para a análise ou segmentação de objetos lingüísticos e de sua coordenação,
reveladoras dos primórdios de uma atividade de categorização.
A afinidade dessa visão sócio-interacionista com o modelo piagetiano parece evidente. Contudo,
cabe chamar a atenção para o fato de que a hipótese construtivista que propomos se opõe
parcialmente à de Piaget e nos aproxima de Vygotsky, na medida em que tanto a interação
adulto-criança quanto a linguagem são consideradas como atividades constitutivas e mutuamente
transformadoras dos sujeitos e dos objetos através dela construídos.
Ao final desta quase-introdução, parece-me relevante dar ênfase a algo que me parece óbvio, a
saber: que o ler e o escrever são atividades e que graus de eficácia tanto comunicativa quanto
cognitiva, tanto social quanto individual lhes podem ser atribuídas. Não há dúvida também de
que a linguagem escrita se nos apresenta igualmente como um objeto que pode ser contemplado,
sobre o qual se pode agir, reelaborando, modificando, e até mesmo "corrigindo". A pergunta que
orientará minha reflexão sobre as propostas pedagógicas apresentadas neste painel será, pois, a
seguinte: na busca de entendimento de como se dá o processo de alfabetização, seria pertinente
introduzir a questão sobre quanto esse processo é determinado pela relação entre eficácia das
atividades de ler e escrever e operações sobre objetos lingüísticos escritos?
10
Conforme DOISE. W. Piaget e la spiegazione sociale delle'inteligenza. In: CAMAIONI, L., org. La teoria di
Jean Piaget. Florença, G. Barbèra, 1982. p. 77-85; e CARUGATI. F. et alii; Illusione egocentrica o
capacitádi decentrarsi? Per una comprensione socio-psicologica dello sviluppo cognitivo. In: CAMAIONI,
L., org. La teoria di Jean Piaget. Florença, G. Barbèra, 1982. p. 86-202.
tarefa de alfabetizar e, no caso do PROEPRE, apresentado por Orly Z. M. de Assis, da
pré-escola atender às necessidades psicossociais da criança em um período crucial de
seu desenvolvimento. Essa dificuldade, revelada pelo alto índice de reprovação na 1?
série do 1? grau e pelo fenômeno crescente da evasão escolar que dele parece decorrer,
recebe dos autores ou responsáveis por essas propostas uma interpretação semelhante
ou talvez um ponto de convergência entre elas: a de que o déficit não está no aprendiz,
mas na escola ou na pré-escola que não proporciona as condições adequadas a que
crianças de culturas e subculturas que diferem da cultura da classe média urbana das
regiões mais desenvolvidas do país, se desenvolvam e se alfabetizem.
Sérgio Leite, autor do projeto PROLESTE, explicita tal interpretação ao afirmar que:
"... a principal causa da reprovação está na maneira como a escola trata a pobreza:
não há esforço de adaptação aos alunos pobres, sendo os instrumentos e estratégias
de ensino mais adaptados às crianças de origem socioeconômica mais elevada."11
Geraldina Porto Witter, responsável pela elaboração dos materiais de instrução pro-
gramada Lendo e Escrevendo e Cartilha da Amazônia, não deixa claro, logo de início,
12
se as "inadequações ou falhas que marcam a etapa de alfabetização" têm origem em
um déficit do aprendiz ou da escola. Contudo, ao longo de sua exposição, revela uma
preocupação com "a integração funcional" da leitura e escrita ao "mundo cultural da
criança"13 que colocaria seu trabalho entre os que atribuem à escola a tarefa de ajustar-
se às diferenças culturais e não ao déficit que parece ser a tradução generalizada que a
escola faz dessas diferenças.
Menos clara, nesse sentido, é a posição de Orly Mantovani de Assis, autora e responsá-
vel pela aplicação do PROEPRE. Seu projeto, segundo ela própria relata, foi elaborado
a partir dos resultados de pesquisa por ela realizada e descritos como se segue:
ASSIS, O. Mantovani de. uma nova metodologia de educação pré-escolar. São Paulo, Pioneira, 1982.
Idem, ibidem, p. 6.
socioeconômicos representados na amostra. uma questão possível de ser colocada, a
este ponto, incidiria sobre os critérios que permitiram à investigadora definir toda urna
amostra de população brasileira como carente, ao invés de integrá-la no cómputo dessa
"média". Em outras palavras,qual é a cultura ou que comunidade fornece o padrão de
desempenho ou ponto de referência a nosso atraso e que critérios justificariam sua
escolha?
Note-se ainda que o atraso ou carência é deslocado do aprendiz, enquanto sujeito con-
siderado em termos de suas potencialidades psicológicas, para o ambiente, isto é, para
a cultura do aprendiz, já que segundo a autora,
"... mesmo as crianças oriundas de ambientes carentes, submetidas a uma dieta ali-
mentar baixa em proteínas e vitaminas, em situação de desnutrição, e, por outro
lado, a uma dieta psicológica pobre em estímulos, em situação de privação socio-
cultural, foram também capazes de desenvolver suas funções intelectuais"16
Quanto ao Projeto Alfa, a cujo material tive reduzido acesso, pode-se afirmar, a partir
da exposição feita por sua representante no painel, que ele parte da associação entre
marginalização cultural e carência, sendo essa carência representada, tanto no mate-
rial quanto nas diretrizes de sua elaboração, como ausência ou falhas do aprendiz no
que diz respeito a capacidades psiconeurológicas consideradas como pré-requisitos para
a alfabetização. Assim, a noção de marginalização cultural que, a meu ver, serviria para
mostrar como a diferença se torna um estigma, perde seu conteúdo de denúncia, incor-
porando o estigma, traduzindo-o como carência.
16
ASSIS, O. Mantovani de. op. cit., p. 7.
17
COLE, M. & BRUNER, J. S. Cultural differences and inferences about psychological processes.
No que se refere aos projetos que visam a alfabetização, pode-se dizer que eles consti-
tuem seqüências ou passos articulados segundo uma hierarquia de complexidade ins-
pirada na concepção de que objetos "escritos" podem ser apreendidos e produzidos
através:
— do estabelecimento de correspondência entre segmentos de objetos lingüísticos
acústicos (ou acústico-articulatórios) e objetos lingüísticos visuais (ou viso-mo-
tores);
Minha afirmação não parecerá tão absurda se se refletir sobre o quanto dé discrimina-
ção de objetos lingüísticos acústicos a criança que adquiriu sua língua materna já efe-,
tuou e efetua no seu cotidiano e sobre o quanto de discriminação visual lhe é necessá-
ria para a simples sobrevivência diária. Convém lembrar, a este ponto, a perplexidade
de Socorro Rodriguez18 diante do fracasso escolar e do desempenho pobre de crian-
ças indígenas da Costa Rica submetidas a provas piagetianas, crianças estas cujo per-
curso diário incluía intrincados caminhos na selva equatorial, orientando-se pelo canto
dos pássaros e pela presença de espécies vegetais, o que supõe o nível de discriminação
de um botânico.
Essa reflexão nos obriga a colocar as seguintes questões: Seriam essas atividades ou
capacidades suspensas ou bloqueadas diante do objeto "escrita"? Por que tal suspen-
são ou bloqueio não ocorre com a mesma freqüência em crianças da classe média,
algumas das quais aprendem a ler e a escrever sem qualquer instrução formal?19
Não me parece que a resposta à primeira questão tenha a ver com a complexidade da
correspondência a ser estabelecida entre material lingüístico acústico e material lingüís-
Respostas tanto à primeira quanto à segunda questão só poderiam, a meu ver, ser formuladas a
partir de Teorias da Diferença, a começar pelo abandono de pressupostos sobre a capacidade ou
incapacidade do aprendiz em favor da observação de como a criança atua no interior de seu
próprio universo cultural, de como a atividade lingüística oral e escrita é representada por ela e
pelos adultos desse mesmo universo ou, em outras palavras, que eficácia é a ela atribuída.
Abandono de pressupostos não equivale aqui, portanto, a tomar o uso de testes de prontidão ou
de qualquer avaliação da atuação de crianças em tarefas consideradas pré-requisitos para a
alfabetização como forma efetiva de observação. Esses testes ou tarefas partem dos mesmos
pressupostos que o adulto da classe média tem da relação entre oralidade e escrita, relação esta
20
mediada e condicionada pela própria escrita, como salienta Abaurre.
Tal concepção deixa de lado, na verdade, toda a reflexão e a pesquisa que a Sociolingüística e a
21
Lingüística Antropológica , a Psicolingüística e a Análise do Discurso têm feito no sentido de
definir as especificidades da linguagem oral e da linguagem escrita enquanto atividades
comunicativas e cognitivas socialmente estruturadas e estruturantes. Assim sendo, reduzem-se
as atividades de ler e escrever à mera decifração ou codificação, retirando-as do contexto em que
seu sentido ou eficácia se dá.
Tal concepção deixa de lado também as contribuições da Fonética que apontam para o fato de a
segmentação do contínuo acústico, que é a fala, ser de natureza diversa daquela supostamente
22
representada pela escrita alfabética.
Parece-me ainda que essa mesma concepção reducionista e objetificante das atividades
lingüísticas relacionadas à escrita está implícita nas técnicas de avaliação dos resultados da
implementação dos programas de alfabetização apresentados. Isso explicaria talvez o fato de, a
um alto índice de aprovação obtido ao fim da primeira ou das primeiras fases, seguir-se o
aparecimento de dificuldades com o chamado período de pós-alfabetização, em que a decifração
e codificação de sílabas, palavras e sentenças - ou a natureza fragmentadora dessas operações -
entram em conflito com tarefas como interpretação e produção de textos, diante das quais a
criança tem que se colocar como um sujeito capaz de avaliar o sentido e a eficácia da própria
atividade e da atividade da qual o texto é um produto. Em outras palavras: entra em conflito com
tarefas em que a criança deve recortar e organizar o continuum de sua experiência lingüística e
não
23
Crítica semalhante é feita por Teale à escola americana:
"The belief is that literacy development is a case of building competences in certain cognitive
operations with letters, words, sentences, which can be applied in a variety of situations. A
critical mistake here is that the motives, goals and conditions have been abstracted away from
the activity in the belief that this enables the student to "get down" to working on the essential
processes of the reading and writing. But, as has been argued before, these features are
critical aspects of the reading and writing themselves. By organizing instruction which omits
them, the teacher ignores how literacy is practiced and therefore learned and thereby creates a
situation in which the teaching is an unappropriate model for the learning. Some children are
able to maintain the whole and learn despite the teacher; others accept the teaching model as
24
a way of learning and become its victims. "
Retomando a afirmação final de Teale, poderíamos dizer que seria uma Teoria da Diferença que
nos ajudaria a refletir sobre o que distingue as crianças capazes de integrar operações de ordem
diversa, isto é, de superar o conflito, e as que dele se tornam vítimas. Empostada desse modo, a
incorporação da diferença em projetos de alfabetização não se restringiria a introdução de
"variantes" lexicais ou morfossintáticas nos materiais e cartilhas, nem mesmo na valorização de
léxico portador de maior carga motivacional para uma determinada comunidade. Nem eqüivaleria
também a tomar o "erro" como algo a ser evitado, eliminado ou incorporado como critério de
reformulação de um programa preestabelecido, mas como a brecha que deixa entrever as
hipóteses que a criança vai sucessivamente construindo sobre a escrita enquanto atividade social
significativa e enquanto objeto e produto dessa atividade.
Assim, a questão básica que, a meu ver, serve de ponto de partida para a elaboração de uma
Teoria da Diferença que forneça critérios para repensar os chamados "pré-requisitos" para a
alfabetização, a prática pedagógica e sua avaliação, seria a seguinte: quais são as atividades
lingüísticas relacionadas à escrita e que eficácia ou sentido é a elas atribuído nas diferentes
culturas ou subculturas a que pertence o aprendiz?
O trabalho que Emilia Ferreiro vem desenvolvendo, com a colaboração de outros pesquisadores,
desde 1975, na Argentina e, ultimamente, no México, parece-me a tentativa mais bem sucedida
de responder a parte desta questão, a saber, aquela que concerne às atividades lingüísticas
relacionadas à escrita. O conjunto de pesquisas efetuadas com crianças de 4 a 6 anos, de nível
socioeconômico médio e baixo, permitiu-lhe chegar a resultados que arrisco a resumir como se
segue:
23
TEALE, W. H. op. cil
TA
Idem, ibidem.
— essas hipóteses compõem um percurso ontogenético que se inicia pela relação da escrita com
a representação pictórica ou com o desenho e, só posteriormente, com a linguagem oral;
— as hipóteses sobre o que se pode ler e o que se pode escrever revelam a associação original
colocada acima, como por exemplo: só são passíveis de ler ou escrever "nomes" de coisas
que tenham referentes concretos, e não se escrevem, por exemplo, elementos como artigos,
negação etc;
— as hipóteses sobre o que está escrito supõem uma tentativa de recuperar o contexto social ou
comunicativo onde o elemento tido como "escrito" está inserido;
— a distinção entre desenho/texto escrito e representação gráfica se dá por etapas que vão de
grafismos primitivos, passam pela letra tomada apenas do ponto de vista gráfico ou
geométrico, pela sílaba como primeira relação entre oralidade e escrita, para finalmente,
chegar à busca de correspondências som/letra, peculiar à escrita alfabética;
"Esta 'defasagem' em termos de ritmos evolutivos das duas populações sociais comparadas
não nos deve surpreender, se tomarmos em consideração que a escrita é um objeto social
por excelência, possuído e utilizado por uma parte da população adulta, mas fora do alcance
de grande parte desta população (...).
Entre uma criança de classe média urbana e uma criança de um grupo urbano marginalizado
não há, necessáriamente, uma diferença quanto ao tipo de objetos portadores de textos com
os quais podem entrar em contacto. Mas, obviamente haverá uma diferença na variedade
desses objetos e na freqüência da presença desses objetos (...). Dissemos que, além dos
objetos físicos que apresentam inscrições (ou portadores de textos) existem as ações sociais
de produção e interpretação de textos. Aqui, novamente, as diferenças entre os dois grupos
de crianças estudadas é enorme e, por conseguinte, são também muito marcadas as
diferentes ocasiões de aprendizagem informal. uma criança de classe média assiste a atos de
leitura que não são dirigidos a ela, mas que a informam sobre o valor social da escrita: lê-se
ou comenta-se um jornal, lê-se uma carta que chega, lê-se a conta do telefone para saber
quanto se tem de pagar, lê-se um recado deixado por alguém que saiu, lêem-se instruções
sobre como utilizar este ou aquele aparelho, este ou aquele alimento enlatado (...). uma
criança de classe média assiste a atos de escrever que não lhe são dirigidos, mas que a
informam sobre as situações nas quais a escrita adquire um valor preciso; escreve-se um
recado acabado de ser dado por telefone, escreve-se a lista de compras
a fazer no supermercado, anota-se em uma caderneta um nome e um endereço, assina-se um
recibo etc. etc. (...) Assim, uma criança da classe média chega à escola primária, já equipada,
na maioria dos casos, do essencial dessas práticas sociais. Para a criança desta classe social
está claro que a escrita serve para alguma coisa (ainda que não saiba definir bem para quê),
que as letras não são simplesmente marcas sobre um papel mas objetos substitutivos (isto é,
objetos que representam alguma coisa), que há várias maneiras de escrever, distintos
25
contextos funcionais para a escrita e diferentes portadores de textos e de significação."
Poder-se-ia, contudo, dizer que, apesar do papel ativo dado à criança na perspectiva de Emilia
Ferreiro e de, coerentemente com essa posição, essa investigadora propor que a escola
anteponha a qualquer método de alfabetização as hipóteses que a própria criança tem sobre a
escrita, a Teoria da Diferença explícita no conjunto de seu trabalho assenta sobre a falta de certos
tipos de objetos escritos, como o livro e o jornal, entre outros, e sobre a ausência das práticas
sociais em que eles ganham sentido. Por outro lado, a relação entre oralidade e escrita penetra a
pesquisa e a reflexão sobre seus resultados apenas em função da correspondência entre sílaba e
sua representação gráfica, som e letra, ou melhor, em função das hipóteses que a criança faz
sobre esses tipos de correspondência numa determinada fase.
Na minha opinião, seria necessário pôr em cheque ainda mais o egocentrismo ou sociocentrismo
do pesquisador e da escola, colocandonos como questões básicas sobre a relação entre a
oralidade e escrita, no contexto de uma Teoria da Diferença, as seguintes indagações: A que
práticas orais em sociedades ágrafas e/ou em grupos sociais marginalizados se atribui a função
ou a eficácia de algumas das diferentes práticas escritas dos grupos ou classes privilegiadas?
Que tipos de discurso oral são produzidos em condições semelhantes às de produção de certos
discursos escritos?
A primeira indagação nos obrigaria a refletir sobre como a experiência é transmitida oralmente,
em como se dão instruções, na função da narrativa exemplar e dos provérbios, por exemplo, e me
faz lembrar minha avó italiana que, a cada situação problemática do cotidiano, tinha à mão uma
solução encapsulada sob a forma de um provérbio ou de uma pequena estória.
A segunda nos remete para uma característica do discurso escrito sempre mencionada no
contexto em que se enumeram as fontes de dificuldades que a redação representa para as
crianças e adolescentes. A saber: o grau de descentração que a ausência de um interlocutor
empírico impõe à escrita. Na discussão dessa dificuldade, muitas vezes se tem deixado de lado o
fato de, já por volta dos cinco anos, crianças de culturas e subculturas diversas serem capazes de
construir textos narrativos orais, cuja coesão e progressão não depende, como antes, das
26
perspectivas estruturantes instauradas pelas perguntas de seu interlocutor.
25
FERREIRO. E. & TEBEROSKY, A. Los sistemas da escritura en el desarrollo del niño. Mexico, Siglo XXI,
1979. p. 295-7.
Informações relevantes a este respeito se encontram nos trabalhos de PERRONI, M. C. (em preparação)
sobre crianças de classe média brasileira; WATSON-GEGEO, K. A. & BOGGS. S. T. From verbal play to
talk story: the role of routines in speech events among Hawai an children. In: ERWIN-TRIPP. S. &
MITCHELL-KERNAN. C, org. Children discourse. Londres, Academic Press, 1977. p. 67-90 sobre
crianças havaianas; KERNAN, K. T. Semantic and expressive elaborations in children's narratives. In:
ERWIN-TRIPP. S. & MITCHELL-KERNAN. C, org. op. cit., p. 91-102 sobre crianças de uma comunidade
negra urbana da costa ocidental americana.
Essas observações preliminares sobre certo grau de descentração já atingido em um cer-
to tipo de prática oral e aquele que parece ser exigido na prática escrita têm sua
pertinência confirmada pelo trabalho de R. e S. Scollon27 sobre como sua filha Rachel
aprendeu a ler e a escrever sem qualquer instrução formal. Estágio fundamental nesse
processo, foi, segundo eles, "a capacidade de ficcionalizar-se como sujeito", em outras
palavras, de colocar-se como o sujeito narrador que constrói a si mesmo como perso-
nagem, ou sujeito do narrado. Convém lembrar aqui que a descentração que essa capa-
cidade implica foi construída na situação interacional de ler livro de estória, em que o
livro — texto e ilustração — era mediador da situação dialógica, em contraste com
certos sujeitos da pesquisa de Emilia Ferreiro que, privados desse tipo de experiência,
tomavam a representação pictórica como o "lugar" da página onde algo era "contado".
Interrompendo uma reflexão que deve ser feita por todos nós - pedagogos e educa-
dores, lingüistas e antropólogos, psicólogos e fonoaudiólogos - gostaria de deixar aqui,
a título de conclusão preliminar, a idéia de que uma Teoria da Diferença, capaz de
servir de base para a formulação de quaisquer práticas pedagógicas, obrigaria a ir além
da observação daquele que é tomado como "diferente", e inverter a direção da obser-
vação. Assim, possivelmente, se chegaria a ver, através dos olhos daqueles que supomos
observar, como nós próprios somos observados e quanto fizemos da nossa "diferença"
o ponto de referência que define e cria a carência.
Grande parte das considerações feitas acima são, a meu ver, aplicáveis ao PROEPRE ou à
metodologia de educação pré-escolar proposta por Orly Z. M. de Assis, que vincula .
atraso ou aceleração de desenvolvimento à variação cultural:
"com efeito, de modo geral, estudos interculturais têm confirmado que a ordem de
sucessão de estágios é constante, embora tenham sido constatadas variações nas ida-
des médias que os caracterizam conforme o meio sociocultural."28
Note-se que o diagnóstico de atraso é feito a partir do desempenho das crianças nas
provas piagetianas de conservação, seriação e classificação, mas que o diagnóstico de
inadequação do ambiente cultural não passa de uma suposição, já que não resulta da
observação dos tipos de atividades que esse ambiente propicia ou deixa de propiciar à
criança.
O que, então, fornece o critério ou os critérios para a formulação do que é mais ade-
quado ou de como pode a pré-escola preencher seus objetivos? A resposta a esta
pergunta pode ser inferida do modo como a autora define o processo de estimulação
27
SCOLLON. R. & SCOLLON, S. Narrative, literacy and face in interethnic communications.
28
ASSIS, O. Mantovani de. op. cit.. p. 22.
Idem, ibidem, p. 2.
que preconiza como forma de superar o atraso. Este processo, em linhas gerais, consis-
te em "criar situações para ativar as estruturas operatórias da criança"30, ou, mais espe-
cificamente, "situações em que as noções de conservação, classificação e seriação este-
jam presentes."31 (negritos meus)
A mesma circularidade que define a relação entre o que é prova de nível de desenvol-
vimento e o que são condições para atingir esse nível está presente nos critérios de ade-
quação do material a ser utilizado nessas situações:
"O conhecimento provém da ação direta da criança no curso de sua própria expe-
riência. Deste ponto de vista, é indispensável que a pré-escola disponha de grande
diversidade de materiais concretos que, pela sua própria natureza permitam à crian-
ça: a) conhecer suas propriedades físicas (sic); b) estabelecer relações entre eles,
agrupando-os de acordo com suas semelhanças e ordenando-os segundo suas dife-
renças."32
Tal circularidade nos leva a supor que a prática pedagógica proposta se reduz a ativi-
dades que têm como paradigma ou modelo uma situação muito particular — descon-
textualizada e, portanto, reificada - que é a situação experimental. Isso equivale a
negar a capacidade de conservação, seriação e classificação que a criança demonstra
no cotidiano das mais variadas culturas, em atividades cuja eficácia é definida pela
própria cultura, sobre objetos cujo valor - lúdico ou não-lúdico - também é sociocultural.
30
ASSIS, O. Montavani de. op. cit., p. 21.
Idem, ibidem.
33
McGARRIGLE. J. & DONALDSON, M. Conservation accidents. Cognition, s. I.,s.' . (no prelo).
WALKERDINE. W. & SINHÁ, C. The internal triangle: language, reasoning and the social context. In:
MARKORA, I., org. The social context of language. New York, John Wiley, 1978. p. 151-76.
gem exposta pela autora do PROEPRE, mas, considerándose o que referi acima sobre
o trabalho de outra investigadora de inspiração piagetiana, que é Emilia Ferreiro, penso
que correria o risco de ser redundante.
À GUISA DE CONCLUSÃO
Queria apenas dar voz, não a mais um pesquisador, mas a Heitor, um menino de 5
anos, morador da periferia de Monterey, México, e sujeito da pesquisa de Ferreiro,
que, à pergunta sobre para que serviam letras, respondeu:
35
FERREIRO E. OD. cit.. D. 33.
Análise dos Programas de Alfabetização
Durante a manhã de hoje foram apresentados quatro programas que pretendem contribuir para a
solução da grave situação da alfabetização no Brasil, responsável em grande parte pela
repetência e evasão das primeiras séries do 19 grau: o material Lendo e Aprendendo e Cartilha
da Amazônia, da profª Geraldine Porto Witter; o PROLESTE, programa aplicado na região de
Mogi das Cruzes (SP), sob a coordenação do prof. Sergio Leite; a experiência do PROEPRE, em
que a profª Orly Zucatto Mantovani de Assis apresenta uma abordagem piagetiana para o período
pré-escolar; e, finalmente, o Programa Alfa, elaborado pela Fundação Carlos Chagas, sob a
3
coordenação da saudosa prof Ana Maria Poppovic.
Da leitura prévia do material e da apresentação realizada pude retirar algumas questões gerais
que valem a pena ser debatidas, bem como alguns questionamentos específicos a cada um
desses projetos.
Em primeiro lugar, verifica-se que foram aqui apresentados quatro programas de alfabetização
que possuem fundamentações científicas diferentes e que por isto se utilizam de processos
metodológicos diversos. Apesar disso, vimos que os quatro programas obtiveram, segundo seus
autores, resultados altamente satisfatórios. Por um lado, o sucesso descrito pode nos levar a
assumir uma posição otimista, na medida em que é comprovado que o processo de
aprendizagem é dinâmico e que o ser humano possui amplo espectro de adaptação às exigências
do meio. Considero este aspecto positivo, pois nos leva a encarar a educação formal não como
um processo fechado e totalmente sob controle mas como um processo aberto, dinâmico e que
deve ser organizado e reelaborado constantemente, na medida em que se desenvolve. Por outro
lado, o fato de que processos diferentes apresentam resultados positivos pode dar azo a uma
séria indagação: o que é ter resultados positivos na alfabetização? De acordo com as apre-
sentações, pode-se verificar que os critérios de avaliação foram diferentes, divergentes e até
contraditórios. A diversidade de critérios nos leva a levantar uma séria dúvida, qual seja, a de que
até o momento não sabemos, com certeza, como se processa a aquisição de linguagem escrita
pela criança.
Outro aspecto que me chamou a atenção foi o de que dois dos programas (Alfa e Lendo e
Aprendendo) partiram da elaboração de material para, através da sua utilização, influir no
processo de alfabetização, enquanto que os outros dois (PROEPRE e PROLESTE) fizeram o
caminho inverso, isto é, partiram de uma reformulação do proces-
so até chegar a um procedimento específico de alfabetização. Esta diferença de aborda-
gem sugere uma preocupação básica a nós alfabetizadores:
Finalmente, em termos gerais de análise dos programas, embora não seja a nossa inten-
ção diminuir o valor de cada um deles, entendemos que vale mais uma vez registrar, em
Seminário deste porte e projeção, que nenhum desses programas, ou de todos os pro-
gramas de alfabetização no Brasil, resolverão o problema enquanto não se modificar a
política educacional do país. As camadas populares não fazem parte das prioridades
do governo, como se verifica pela política assistencialista e paternalistica de questões
básicas como saúde, educação, habitação etc. O que se fez neste país, até o momen-
to, foi oferecer o mínimo indispensável (se tanto) para que a situação social não se
agravasse a níveis insuportáveis. Enquanto não houver uma política efetiva que vise a
real participação dessas camadas nos destinos nacionais, os resultados da educação
como um todo, e da alfabetização em particular, serão com certeza bastante insa-
tisfatórios.
Para finalizar, apresentarei alguns questionamentos específicos sobre cada um dos pro-
gramas apresentados.
PROLESTE
PROEPRE
PROGRAMA ALFA
Na apresentação dos diversos projetos de alfabetização que nos foi aqui oferecida,
fiquei positivamente impressionada por algumas virtudes que todos demonstraram:
Sem a menor dúvida, essa organização social dos projetos é um fator primordial para o
entusiasmo, a garra, a alegria de trabalho que emanaram de seus expositores, e para o
sucesso dos programas mesmos.
Acho que frisar este aspecto é muito importante, neste país, neste momento em que
estamos vendo e sentindo o fracasso em que redundaram estes anos de obscurantismo
político, em que a sociedade deixou de poder tomar parte ativa na construção dos seus
destinos, e foi sendo alvo de pacotes e mais pacotes, até que nos vemos inermes nesta
situação vergonhosa e explosiva de hoje.
Acho muito importante que cada vez mais pessoas compreendam que na medida em
que pequenos grupos, equipes, departamentos, empresas, faculdades, clubes, associa-
ções, sindicatos, partidos, aprendem a organizar-se e a funcionar democraticamente,
acabarão por tornar simplesmente absurda e incompatível com o modo de ser normal
da nação qualquer outra maneira de organizar-se e funcionar, em qualquer nivel, inclu-
sive nos altos níveis do governo. É uma revolução lenta, gradual, mas que mina impla-
cavelmente a possibilidade de existência de modos de organização em que o poder
venha imposto de cima para baixo. O preço é caro: somos todos responsáveis.
Outra coisa que notei no painel foi uma falta de correspondência entre a declaração de
princípios feita na descrição do projeto, segundo a qual se pretcndia respeitar o léxico
da criança, e os textos da cartilha ali exibidos. Os textos da cartilha são aqueles tradi-
cionais e barbitúricos textos instrutivos, voltados para o objetivo de instruir a criança
com informações supostamente relevantes e cívicas, textos cheios de frases no pre-
sente do indicativo, o tempo das definições, dos slogans, do habitual, do repetivivo,
que certamente não fazem parte do repertório discursivo habitual das crianças de qual-
quer parte do nosso planeta. Além disso, é plausível supor que bombardear mentes
infantis com sentenças da forma "A é B", sentenças do formato dos dogmas e das
receitas, seja pernicioso para a sua formação mental, pois pode veicular a mensagem de
que adquirir saber é ficar numa postura robotizada e passiva, engolindo fórmulas, cha-
vões, preceitos, receitas e dogmas. Por que queremos isso para este pobre povo?
Passo ao PRO LESTE, que me pareceu o mais sincero dos projetos aqui apresentados,
embora provavelmente deixe menos espaço para a criatividade dos professores do que
se afirmou na exposição. A pergunta que quero fazer a seus responsáveis é esta: de que
maneira eles encaixam os dados das variedades dialetais desprestigiadas (recrama-
ção, carma, operaro) dentro da sua hierarquia de dificuldades (sílabas simples, comple-
xidade exceto homofonia, complexidade com homofonia). Há alguma sistematicidade
na maneira de fazê-lo?
Quanto ao Projeto Alfa, não me sinto suficientemente informada para arriscar qual-
quer comentário.
CONCLUSÃO
O Seminário contou com 129 inscritos, além de professores dos Programas e de especialistas
convidados que apresentaram trabalhos, totalizando cerca de 150 participantes.
A discussão interdisciplinar foi uma realidade nesse Seminário, não tendo havido desencontros de
comunicação decorrentes da especificidade da linguagem de cada área. Esse sucesso pode ser
atribuído não apenas ao fato de todos os apresentadores terem se preocupado em dialogar
principalmente com educadores e fonoaudiólogos que trabalham diretamente ligados à prática da
alfabetização, como também á escolha feliz dos temas que se prestaram efetivamente a um
tratamento interdisciplinar.
Expositores Convidados
BERNADETTEGNERRE
Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP
Departamento de Lingüística
Cidade Universitária - Barão Geraldo
Caixa Postal 1170
13100 Campinas-SP
CLAUDIA G. LEMOS
Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP
Departamento de Lingüística
Cidade Universitária — Barão Geraldo
Caixa Postal 1170
13100 Campinas-SP
GOLDAW. SEGRE
End. resid: Rua São Martinho, 116 - Campos Elíseos
01202 São Paulo-SP
MADALENA WEFFORT
A/C Prof? Paulo Freire
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP
Rua Monte Alegre, 984 - Perdizes
05014 São Paulo-SP
MAURICIO GNERRE
Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP
Departamento de Lingüística Cidade
Universitária — Barão Geraldo Caixa
Postal 1170 13100 Campinas-SP
MÍRIAM LEMLE
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Av. Pasteur, 250 - Botafogo
20000 Rio de Janeiro-RJ
PAULO BEARZOTI
A/C Mauro Spinelli
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP
Pós-Graduação em Distúrbios da comunicação
Rua Monte Alegre, 984 - Perdizes
05014 São Paulo-SP