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Civilização e barbárie

(ou ensaio sobre a nova ordem mundial)

Roberto Amaral

“Os Estados Unidos de hoje são o Michael


Jordan da geopolítica – o sistema esmagadora-
mente dominante”. Thomas L. Friedman,
The New York Times Magazine

“Boas idéias e boas tecnologias precisam de


uma forte potência que promova essas idéias
pelo próprio exemplo e que proteja essas idéias
ao sair vencedora do campo de batalha”.
Robert Kagan, historiador, citado por
Friedman

Sumário
1. A nova ordem mundial. 1.1. A pax
americana. 1.2. A ‘globalização’ da nova ordem
mundial. 1.3. Os Estados Unidos e a globalização:
um caso de sucesso econômico. 1.4. De novo (e
sempre) o velho complexo industrial-militar. 2.
A ‘guerra’ da OTAN. 2.1. A economia da guerra.
2.2. A guerra como ‘valor’. 3. E a América Latina?

1. A nova ordem mundial


O atormentado final de século consolida
a crise do Estado moderno: de um lado, o
Estado-nação ameaçado em sua soberania;
Roberto Amaral é Escritor, professor da de outro, o Estado-social esvaziado pelo
PUC-Rio, membro titular do Instituto dos neoliberalismo. Ambos sofrem, por igual, a
Advogados Brasileiros, IAB e Presidente do
crise da política, com todos os seus desdo-
Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos –
CEBELA. Editor da revista Comunicação&política. bramentos possíveis, inclusive a suprema-
Vice-presidente nacional do Partido Socialista cia da guerra sobre a détente e a negociação,
Brasileiro, PSB. o esvaziamento da ONU e a virtual falência
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do direito internacional, reduzidos a meros Como fase de polipoder denominamos
arcaísmos pela nova ordem mundial, presi- aqueles anos que medeiam a primeira e se-
dida pelo regime da potência única. gunda guerras mundiais, assinalados pela
Nesse quadro, as crises do Golfo Pérsico construção de vários pólos de poder econô-
(relembre-se: o Iraque continua vítima diá- mico, político e militar, tanto na Europa
ria dos bombardeios norte-americanos e in- (Alemanha, Itália, França, Inglaterra, URSS),
gleses, levados a cabo sem mandato da quanto na Ásia (Japão), quanto na América
ONU1) e dos Bálcãs são episódios paradig- (Estados Unidos). A bipolaridade é o
máticos, mas não encerram a história toda. período que se segue à derrota do nazi-
De fato, ao lado da ‘globalização’ econô- fascismo, com seus desdobramentos, a
mica (essencialmente um projeto político), saber, o controle político-militar sobre a
este final de século assinala a vigência de Alemanha dividida e partilhada, a desmili-
uma nova ordem mundial – caracterizada tarização do Japão sob controle norte-
pela unipolaridade política, econômica, americano, a construção do império sovié-
militar, tecnológica e cultural (que implica, tico, a liderança ideológica, cultural e
também, o monopólio da informação) –, fe- militar do ‘sistema ocidental’ pelos Estados
nômeno desconhecido pela comunidade das Unidos e, finalmente, a ‘guerra fria’.
nações nos últimos dois séculos, e bem mais A derrocada do ‘socialismo real’ e o con-
significativo que o imperialismo/colonia- seqüente (e articulado) desmantelamento da
lismo inglês, talvez só comparável à pax ro- União Soviética ensejam a unipolaridade,
mana, mas, sem dúvida alguma, mais pro- isto é, o império isolado, autônomo e incon-
fundo do que essa. Na verdade, ‘globaliza- testável dos Estados Unidos. Da condição
ção’ e nova ordem mundial se fundem como de unipotência econômica, militar e política
fenômenos intercomunicantes, cada um resulta o monopólio de intervenção nos ne-
causa e conseqüência do outro. Trata-se de gócios e interesses de outras soberanias,
um domínio político, planetário, construído posto que a política internacional, para esse
como desdobramento do império norte-ame- país, e em face dessa nova geopolítica, é
ricano sobre a economia de mercado, donde apenas o prolongamento de sua política
a balcanização/libanização dos demais Es- nacional, a saber, uma projeção de seus inte-
tados – que não mais podem aspirar à sobe- resses. De outra parte, e como desdobra-
rania –, cujas prerrogativas são crescente- mento inevitável dessa compreensão de
mente limitadas, reduzidas e condiciona- mundo, o que quer que seja que não sirva
das, do ponto-de-vista político, do ponto- aos interesses norte-americanos é entendido
de-vista econômico e do ponto-de-vista mi- como desservindo aos interesses norte-ame-
litar. O Estado tradicional entra em deca- ricanos, e, nessas condições, hostilizado.
dência e a humanidade volta a conviver com A unipolaridade – ou esta era de unipo-
protetorados de fato. tência – determina a falência dos organis-
Essa falência da soberania (donde a cri- mos internacionais (e do direito interna-
se dos Estados-nação e dos organismos cional público) — com destaque para o des-
internacionais) é uma das conseqüências da vanecimento da ONU – e, pari passu –, a des-
transição do mundo do polipoder (e da bipo- truição do Estado, dos Estados nacionais,
laridade e da ‘guerra fria’) para a unipolari- do Estado-nação e, inevitavelmente, da po-
dade, o período que vem do momento histó- lítica. Dito de outra forma, queremos assi-
rico identificado como ‘queda do muro de nalar que a chamada ‘crise do Estado’ é mais
Berlim’ (1989) até nossos dias, cujo marco é propriamente a crise da soberania, posto
a autonomia da OTAN (Organização do que, se é impossível a sobrevivência do Esta-
Tratado do Atlântico Norte) em face da ONU, do carente de soberania, é de igual modo
autoproclamando-se e agindo como uma inconcebível a sobrevivência da soberania
força erga-Estado, erga-direito. em face do regime da unipotência. E, assim,
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os Estados são reduzidos a simples territó- Poucos se dão conta do ‘novo’ autorita-
rios, e as nações a um anacronismo. rismo porque são preservados os marcos da
Daí, o fim da política. democracia formal: o povo – o grande de-
É essa a nova ordem mundial. senganado – ainda vota, e os meios de co-
No plano das relações internacionais, a municação circulam sem censura estatal.
falência da soberania (ou o fim da autode- Organizando essa fraude, a ação concer-
terminação, acentuado pela militarização tada dos meios de comunicação e da inte-
dos conflitos políticos) é a matéria-prima da lectualidade, inclusive acadêmica, cons-
interdependência global; no âmbito interno truindo o discurso único, dogmático, o
das nações, seu correspondente é o esvazia- monopólio da informação abundante e in-
mento da política. significante, desintegrada e desintegrado-
Porque o fim da política é também o rei- ra, dispersa e desestruturada e desestrutu-
no da política única, espinha dorsal ideoló- rante, uma visão cada vez mais despolitiza-
gica da ‘globalização’. da, incolor e inodora, desistoricizada e
A política, esvaziada, deixa de ser ins- desistoricizante, instantaneísta e descon-
trumento de realização dos fins sociais; tínua, atomizada e atomizante do mundo, o
abastardada, é a arte da mentira, do engo- mundo mediático, que, virtual, sobrepõe-se
do, da farsa, da fraude, do subterfúgio. Da ao mundo real, expulso da televisão. Daí a
coisa sempre menor, dos projetos indivi- videopolítica e a videodemocracia. A opi-
duais, da traição aos interesses coletivos. A nião pública é a opinião dos que controlam
política é reduzida a um inócuo exercício os grandes meios de comunicação, verda-
institucional, organizando eleições defrau- deiros partidos, ou o partido-único, porta-
dadas e corrompidas das quais emergem dor do discurso ideológico homogeneizado:
governos fraudulentos e corruptos, em elei- a inevitabilidade da ‘globalização’, o ‘fim
ções que não valem nada porque nada mu- do Estado’, o ‘fim da história’, a privatiza-
dam. Assim, o povo vai sendo expulso da ção e a desnacionalização como imperati-
ágora e cada vez menos se identifica com vos, donde o fim do debate e do contradi-
seus mandatários ou com as instituições de tório. Há uma unanimidade planetária dos
governo. E como se identificar com a cor- grandes meios de comunicação – impressos
rupção, com a traição do interesse público, e tecnológicos – em torno dos primados ideo-
a privatização do público pelos interesses lógicos da nova ordem internacional. A
do capital? As administrações controladas mesmice da imprensa brasileira2 é a repro-
pelos interesses do empresariado, o tráfico dução colonizada das matrizes do pensa-
de informações privilegiadas proporcio- mento internacional, de onde copiamos
nado por funcionários públicos em funções idéias, hábitos, costumes, visão de mundo,
estratégicas que transitam do serviço públi-
política, regime, amor e ódio. A política,
co para o empresariado privado e vice-ver-
assim, é o simulacro da política, a demo-
sa? O desvio, para fins privados, dos bens,
cracia (sem diálogo e sem representação)
benefícios e serviços públicos? O nepotismo,
o favorecimento, o clientelismo e a desmo- nega a democracia, a comunicação não
ralização do interesse público e do interesse informa: a ampla liberdade de imprensa é o
nacional, anatematizados como arcaísmos? manto que encobre a ausência de debate, o
Com o fim das conquistas republicanas – o contraditório e o confronto das idéias. A
fim do serviço público, o fim da igualdade cidadania é um puro engodo, quando mais
dos direitos, o fim do direito à educação, do direitos os cidadãos poderiam aspirar.
direito à saúde, à cultura, à arte e, final- Daí, a ideologia única, o discurso único,
mente, o fim do direito ao trabalho – insta- a economia única, o mercado (globalizado)
la-se na população a crise de desconfiança como religião. O monopólio da ortodoxia
no Estado e na prioridade do bem público. tecnocrática, exercido pelos novos evan-
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gelistas do novo mundo: a tecnoburocracia, tradição em termos): o monopólio estatal
os altos funcionários das grandes empre- pelo Estado único.
sas, os executivos dos organismos interna- O monopólio da economia.
cionais empunhando as bíblias e os alco- O monopólio do mercado.
rões do fundamentalismo neoliberal. A ‘glo- O monopólio dos valores.
balização’ torna-se uma fatalidade, o fim do O monopólio da informação e, final-
Estado, inevitável, a dependência, uma ne- mente, o monopólio da violência e da guerra.
cessidade. Apesar do fracasso do modelo Os Estados cedem poder e competência
neoliberal. É, uma vez mais, a vitória do dis- em proveito de organismos que não perten-
curso sobre a realidade. cem a qualquer categoria da soberania po-
O fundamento dessa nova ordem eco- pular ou da democracia representativa5. São
nômica é a liberdade dos indivíduos. Mas o o FMI, o BID, o Banco Mundial, o BIRD, a
que se vê é sua destruição: a violência do Microsoft, as General Motors, as IBM, as CNN,
desemprego, a precariedade da sobrevivên- a banca internacional e o capital especula-
cia física, o medo da insegurança: o homem tivo que ditam as regras do comércio e da
passou a temer o futuro. O reinado do mer- economia no planeta, o novo Leviatan do
cado implica o reinado do consumidor, o mundo neoliberalizado6.
substituto comercial (despolitizado) do ci- Uma só rede de televisão decide o que
dadão: o bem público é o bem privado, a podemos ver e ouvir, transformando o mun-
coisa pública é a coisa privada3. Dizem que do num espetáculo, num video game, redu-
as fronteiras entre Estados já não funcionam, zido o mundo a uma visão ideológica uni-
mas os trabalhadores não têm livre-trânsi- lateral, e os fatos, aos fatos que interessam a
to. Ao livre fluxo de mercadorias (no senti- essa visão. Em nossos países, onde reina o
do Norte-Sul) e do capital não corresponde monopólio da audiência7, as redes locais re-
o livre trânsito de homens; a mão-de-obra produzem a grande rede mundial. A aldeia
farta das antigas colônias e os conflitos reli- global macluhaniana funde-se com a pre-
giosos, estimulados, alimentam, na Europa monição orwelliana.
e em todo o mundo, políticas migratórias Finalmente, depois do mercado único8,
racistas e discriminatórias. Importam-se estabeleceu-se o exército único, mais pode-
empresas e mercadorias; exportam-se em- roso e mais impudico do que as legiões de
pregos e territórios: César, mais impiedoso com seus adversá-
“Importam-se empresas e expor- rios do que qualquer outro.
tam-se lugares. Impõe-se de fora do Mas o desmantelamento das Federações
país o que deve ser a produção, a cir- (o fim da União Soviética foi um só começo),
culação e a distribuição dentro do no que desfaz grandes Estados e enseja a
país, anarquizando a divisão interna multiplicação de pequenos entes políticos,
do trabalho com o reforço de uma di- sem capacidade de autonomia econômico-
visão internacional do trabalho que política e segurança militar, também alimen-
determina como e o que produzir e ta as reivindicações de nacionalidades e
exportar, de modo a manter desigual- reacende conflitos territoriais, religiosos e
mente repartidos, na escala planetária, étnicos de difícil controle9. Assim, provoca-
a produção, o emprego, a mais-valia, o da, a desconstituição da Iugoslávia está na
poder econômico e político”4. raiz dos conflitos entre sérvios e kosovares10,
E, em nome do mercado e da liberda- estimulando aqueles nacionalismos étnicos
de, do livre-câmbio e do neoliberalismo, que Tito havia posto sob o controle de uma
temos o monopólio absoluto ou mais per- federação (República Socialista Federativa
feito (e não estamos em face de uma con- da Iugoslávia).
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Como ignorar a história, descontextua- Afeganistão e na Argélia), não será o últi-
lizando os fatos, como se cada fato ou epi- mo. Outros virão, como desdobramento de
sódio fosse uma totalidade, uma realidade um processo já desencadeado, ou, se neces-
histórica desapartada do passado que a en- sário, virão estimulados de fora para dentro.
gendrou, como fazem os Estados Unidos e Como foi estimulada a guerra Iraque-Irã,
seus aliados, com a complacência de uma como foi estimulada a guerrilha talibã quan-
imprensa mundial comprometida com a do esta servia para desestabilizar o governo
ideologia da guerra? do Afeganistão, quando pró-soviético.
É preciso lembrar que os sérvios chega- Pergunta-se: a OTAN continuará inter-
ram à região hoje identificada como Kosovo vindo nos conflitos étnicos e religiosos que
no ano VI d.C. se multiplicarão pelo mundo, nas próximas
É preciso lembrar a Batalha de Kosovo décadas? Só nos Bálcãs os estrategistas da
em 1389, com a derrota do expansionismo guerra podem anotar as rivalidades entre
sérvio. cristãos (ortodoxos e católicos romanos) e
É preciso lembrar a primeira grande guerra. muçulmanos, divididos entre povos e etnias
É preciso lembrar a invasão da Iugoslá- os mais diversos como sérvios, croatas,
via por tropas alemãs, italianas, húngaras, eslovenos, macedônios, búlgaros, romenos,
romenas e búlgaras em abril de 1941, quan- húngaros, gregos, albaneses e turcos. Na
do a diplomacia de guerra de Hitler e Mus- região do Cáucaso, os atritos entre a Armê-
solini cunhou a expressão ‘Nova ordem nia e o Azerbaijão parecem incontornáveis,
mundial’, reatualizada pela OTAN. tanto quanto os confrontos com a guerrilha
É preciso lembrar a guerra da Bósnia. fundamentalista no Daguestão. Na Geórgia,
Como ignorar as seqüelas da guerra ci- eclodem os movimentos separatistas dos
vil da Bósnia (1992-1995), e o artificialismo Eslavos da Ossétia do Sul e da Abkhazia. A
do compromisso de paz firmado em Dayto- instabilidade e o conflito são as caracterís-
na (EUA) em 1995 por iniciativa dos Esta- ticas dos Estados muçulmanos: Turquia,
dos Unidos?11 Irã, Afeganistão e Paquistão. Há conflitos
É preciso lembrar o acordo de Daytona e com os curdos principalmente na Turquia e
a expulsão, pelos croatas do Presidente Fran- no Iraque. Na Europa, não foram resolvidas
jo Tudjman, de milhares de sérvios da re- as questões autonomistas no interior da
gião de Krijina, que já estava sob a proteção Espanha, nem o conflito religioso-político
da ONU, e que não esboçou qualquer sorte na Irlanda do Norte. Estão presentes as
de reação, reação que também não se conhe- disputas entre a Grécia, o Chipre e a Tur-
ceu, de qualquer organismo internacional, quia. No Líbano, no Marrocos, em todo o
quando o deslocamento de civis sérvios da Oriente, para além das disputas entre ára-
Croácia e da Bósnia criou um contigente de bes e judeus. Os conflitos são inumeráveis
cerca de 700 mil refugiados. na Ásia (Índia, Paquistão, Afeganistão, Ban-
“Os sérvios não esqueceram a sua histó- gladesh, Coréias, Taiwan…) e na África, mas
ria, como também não a esqueceram os ou- este continente não conta…
tros povos da região”12. Ora, certamente um dos objetivos da es-
A política de negar a guerra sem cons- tratégia da OTAN (isto é, dos Estados Uni-
truir a paz era o germe inevitável da segun- dos) nos Bálcãs é a pulverização dos Esta-
da fase da tragédia13. dos, mediante o estímulo à vontade autono-
Mas, se não é o primeiro confronto étni- mista de minorias e unidades federativas
co-religioso com desdobramentos político- que agora podem ter a esperança de que con-
militares (católicos e protestantes na Irlan- tarão com o maior exército do mundo para
da, o Irã dos aiatolás, os curdos no Iraque e avalizar seus pleitos diante dos Estados a
na Turquia, os conflitos no Paquistão, no que pertencem. Essa política, que começa a
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dilacerar o Leste europeu, não deverá ficar, cas e econômicas severíssimas (embargos,
necessariamente, contida no sub-Conti- sobretaxações e outras práticas protecio-
nente. Ao contrário, a expectativa a mais ra- nistas e retaliatórias) contra nações sobera-
zoável é que o mundo venha a assistir a uma nas. Mais da metade dos países do planeta
multiplicação de movimentos separatistas estão submetidos, foram vítimas ou estão
laicos, o que implica a multiplicação de fo- ameaçados por sanções econômicas ou
cos de conflito e guerra e o enfraquecimento comerciais decretadas por Washington.
dos Estados, criando condições favoráveis Estados como o Iraque, a Coréia do Norte, o
para a estratégia da potência hegemônica14. Sudão, Cuba ou a Líbia, condenados unila-
O episódio de Kosovo é, na essência, uma teralmente como ‘párias’ por Washington,
tomada de posição da OTAN em face de pagaram ou pagam alto por insistirem, cada
uma guerra civil autonomista, no seio da um ao seu modo, em sobreviver com um
Iugoslávia. E de aspirações como essa está mínimo de autodeterminação. Um deles, o
pontilhado o mundo de hoje, seja na Euro- Iraque, está submetido a uma liquidação de
pa (atingindo, além do Leste, países como a caráter genocida em conseqüência de um
França e a Espanha), seja na Ásia, seja na embargo cujos objetivos não obedecem mais
África. E onde esses movimentos não aten- a qualquer lógica razoável, salvo a auto-
dam a motivações históricas, culturais ou satisfação da implacável cólera norte-
étnicas, elas bem que podem ser provoca- americana15.
das, estimuladas, organizadas, financiadas, A discriminação comercial e o comércio
pois essa é a lógica da guerra. administrado de forma bilateral são postos
Não será exagero indicar, já como fruto em prática tendo como pano de fundo um
desse autonomismo despertado pela inter- discurso que proclama o livre-comércio e o
venção da OTAN, a inesperada iniciativa multilateralismo. As vítimas não têm a quem
de Taipé reivindicando do Governo de Pe- recorrer, emparedadas entre a unipotência
quim um tratamento de Estado-Estado en- e a inutilidade de uma Organização Mun-
tre a China e Taiwan. Ou os novos conflitos dial de Comércio (OMC) justamente esva-
no Cáucaso, onde o grupo rebelde funda- ziada e impotente, ademais de manipulada.
mentalista Wahhabi Islâmico ocupou, no Nem a diplomacia brasileira ousa ignorar:
início de agosto de 1999, três cidades da Re- “As potências econômicas e co-
pública russa do Daguestão. Seu objetivo é merciais são responsáveis pela maior
forçar a criação de um Estado islâmico ao parte das distorções no multilateralis-
norte do Cáucaso, ao lado da Chechênia. mo pela razão simples de que têm in-
1.1. A pax americana fluência determinante sobre as trocas
internacionais. A Rodada Uruguai foi
Essas são as características essenciais de pródiga em exemplos, que envolveram
uma nova ordem internacional presidida notadamente a questão dos subsídios
pelo que todos estão chamando de pax agrícolas (aplicados em larga escala
americana, estabelecendo, de um lado, a pela UE e, setorialmente, por america-
melancólica agonia da ONU e do direito nos e japoneses) e das barreiras prote-
internacional e, de outro, o império dos cionistas informais (caso flagrante
interesses norte-americanos sobre o mundo, dos sistemas de distribuição de mer-
daí o conflito com o Irã, os bombardeios pu- cadorias no Japão).
nitivos sobre o Iraque, o Sudão e a Iugoslá- “Os Estados Unidos, principal de-
via, a lei Helmans-Burton de pretendida apli- fensor das teses multilateralistas e li-
cação extraterritorial, os bloqueios econômi- beralizantes, revelam-se acentuada-
cos e políticos e o direito que se atribuem os mente protecionistas no que concerne
Estados Unidos de aplicar sanções políti- a ramais vitais da sua indústria (me-
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diante, por exemplo, os subsídios in- depois da vitória de Cipião sobre as tropas
diretos à microeletrônica por meio das de Aníbal decretando a queda de Cartago e
encomendas de material bélico). A o fim das guerras púnicas (264-146 a.C.).
administração Clinton, que desde a Porque o império norte-americano é mais
campanha eleitoral definiu priorida- extenso e mais profundo, política, ideoló-
des de política externa condicionadas gica e militarmente, muito mais planetário e
ao incremento da performance comer- muito mais poderoso do ponto de vista
cial dos produtos nacionais, atenta bélico, concentrando em suas mãos poderes
permanentemente contra o multila- de destruição inimagináveis por outros im-
teralismo ao promover o comércio périos em qualquer época da humanidade.
administrado com o Japão e ao multi- Poderes que jamais foram empregados
plicar as ameaças de aplicação da como hoje.
legislação comercial retaliatória de Ora, por inevitável, a ‘globalização’ eco-
que dispõe (Super 301), ignorando as nômica estaria a exigir um projeto também
instâncias multilaterais de recurso. globalizado de estratégia militar (mais pre-
“A combinação dessas duas carac- cisamente: econômico-militar) de segurança,
terísticas da ordem comercial interna- ditado, evidentemente, pelos interesses da
cional – multilateralismo regulado por unipotência. Assim, não é mais insólito que
consensos negociados e práticas co- a primeira ‘guerra’ da OTAN seja travada
merciais discriminatórias utilizadas após o fim do Pacto de Varsóvia e a débâcle
unilateralmente – parece configurar o da União Soviética e o fim do ‘fantasma’
cenário mais provável no horizonte comunista; que, ao invés de repelir uma
próximo”16. agressão comunista, promova o bombardeio
O déficit comercial recorde dos EUA de- de um país que até há pouco se considerava
verá fortalecer esse protecionismo e preju- europeu e ocidental… e que não havia inva-
dicar ainda mais as exportações dos países dido ou ameaçado a integridade territorial
emergentes (v.g. Brasil, Argentina, México, de nenhum outro país europeu.
‘tigres asiáticos’) às voltas com os rescaldos Mero desdobramento dessa lógica, a
nacionais da crise econômica mundial17. OTAN, a partir de Kosovo e da reunião de
A condição de único país com interesse Washington18, atribui-se o direito de inter-
global desaparta os Estados Unidos das li- vir onde quer que seja e, ademais de intervir
mitações legais: seus interesses, onde quer e bombardear o território que lhe parecer de
que estejam, são interesses ‘nacionais’ e seu seu direito bombardear, outorga-se também
direito não pode confinar-se a limitações o poder de estabelecer embargos econômi-
geográficas, até porque suas fronteiras se
cos, para obediência de todas as nações do
confundem com a extensão de seus interes-
mundo. Nessa reunião, a cúpula da Alian-
ses; são do tamanho do mundo. Os Estados
ça praticamente revogou o ‘Conceito estra-
Unidos, assim, não compreendem por que
teriam de partilhar sua soberania ou limitá- tégico’, aprovado em 1991, em Roma, quan-
la em face da soberania de outros países, do ainda existia a União Soviética, e cons-
quando podem exercer essa soberania de truiu uma linha de ação da chamada nova
forma absoluta e sem que ninguém, nenhum OTAN. Se, pelo estatuto original, os objeti-
país e nem mesmo as Nações Unidas, possa vos estratégicos da organização se limita-
contestá-los. Eis como se desfaz um dos vam à defesa diante de agressões de outros
pressupostos do direito: sua universalidade. países, pela nova ordem a OTAN pode in-
Essa, a conseqüência fática do regime de tervir fora de seu território, independente-
unipotência militar. mente de agressão e sem autorização prévia
Essa pax americana só semanticamente do Conselho da ONU, exigência do Presi-
remonta à pax romana imposta ao mundo dente norte-americano. Seu desafio, agora,
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“é combater novas ameaças, como o terro- “A mão oculta do mercado jamais
rismo, as armas de destruição em massa e funcionará sem um punho oculto – o
os conflitos regionais provocados por riva- McDonald’s não pode prosperar sem
lidades étnicas ou religiosas”19. a Mc Donnel Douglas, que projetou o
Tudo, como se vê. F-15. E o punho oculto que mantém o
Um colegiado de exércitos, assim auto- mundo seguro para as tecnologias do
transformado em instrumento de interven- Vale do Silício chama-se Forças
ção militar, sob o comando dos Estados Armadas, Força Aérea, Marinha e
Unidos age como se fora um organismo in- Fuzileiros Navais dos Estados
ternacional de direito, decretando a obso- Unidos”21.
lescência da Carta das Nações. O fim do A ‘globalização’, assim, precisa ser vis-
Estado se dá num processo moloch: cons- ta como um sistema articulado de poder pla-
truindo o Estado erga-Estado. netário (que abarca todas as esferas da ex-
pressão humana) e que atinge forçosamente
1.2. A ‘globalização’ da nova ordem a todos os países e povos, como engrena-
mundial gem que, para funcionar, não admite ponto-
morto. Os recalcitrantes serão punidos. A
Comecemos pelo óbvio: a nova ordem
‘globalização’ é a homogeneização do pen-
internacional (de que a autonomia dos exér-
samento e dos exércitos, o fim das nações e
citos norte-americanos é um só indicador) e
dos projetos regionais (e, se desaparecem as
a ‘globalização’ constituem fenômenos nações, devem desaparecer a cultura nacio-
interdependentes e complementares, um cir- nal e os exércitos nacionais), donde a redu-
cuito de vasos comunicantes. Sistema in- ção do mundo a um mercado a um só tempo
ternacional de poder que substitui a guerra- universal e único, com ideologia única, com
fria, a ‘globalização’ é a disseminação do projeto único, com vontade única, presidido
capitalismo financeiro sobre o capitalismo por uma unipotência, senhora do bem e do
de produção, a onipotência do mercado li- mal, portadora do ‘bem’ e inimiga do ‘mal’.
vre (sendo livre, tão-só, o fluxo Norte–Sul), E mal é tudo o que por ela for designado
com todos os seus ingredientes, não só eco- como tal. Para esse efeito, o império militar
nômicos quanto políticos, não só ideológi- precisa de uma causa, de um inimigo a per-
cos quanto militares, interligando mercado, seguir e a punir; se ele não existe, pode ser
ideologia e guerra. É perfeita a síntese de
criado. Daí as satanizações sucessivas: o
Thomas Friedman:
comunismo em geral e Cuba em particular,
“Nós, americanos, somos os após-
o Irã dos aiatolás, o Iraque de Saddam, a
tolos do mundo veloz, os profetas do
Iugoslávia de Milosevic. Até Granada22 e a
livre-mercado e os sumos sacerdotes
da alta tecnologia. Queremos a ‘am- República Dominicana23 já foram alvos de
pliação’ tanto dos nossos valores intervenção.
como de nossas Pizza Huts. O objeto da satanização pode ser um
“Queremos que o mundo siga a nos- regime, um país, um dirigente político ou
sa liderança e se torne democrático e uma causa, como o combate ao narcotráfi-
capitalista, com um web site em cada co, que pode amanhã justificar a balcaniza-
atividade, uma Pepsi nos lábios, o Win- ção da Colômbia, ou a defesa de recursos
dows da Microsoft em cada computador naturais indispensáveis à sobrevivência da
e com todos, em toda parte, colocando humanidade…
a própria gasolina”20. Nesse sentido é mesmo o fim da história…
Nunca a guerra foi tão exemplarmente a A crise dos Bálcãs é, pois, uma das exi-
continuação da política por outros meios. É gências da ‘globalização’ (via potência
o mesmo Friedman: única) vista como a sucessora da guerra fria.
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1.3. Os Estados Unidos e a nismo. Ou seja, mais restrições ao desenvol-
globalização: um caso de sucesso vimento da economia mundial, de particular
econômico. dos países chamados ‘emergentes’, Brasil
entre eles.
A ‘globalização’ se confunde com os Es-
tados Unidos e os Estados Unidos são os
maiores beneficiários da ‘globalização’. 1.4.De novo (e sempre) o velho
Os Estados Unidos são o único grande complexo industrial – militar
mercado consumidor que cresceu durante A expressão military-industrial complex
todo o período da crise global, iniciada em foi insuspeitadamente grafada pelo Presi-
julho de 1997, na Tailândia. São inumerá- dente General Dwight Eisenhower, no
veis, e incontroversas, as análises de obser- célebre discurso de transmissão do cargo de
vadores norte-americanos. Em recente co- Presidente dos Estados Unidos a John
mentário, o New York Times escreve: Kennedy (1961). Peça premonitória, guarda
“O grande afluxo de capitais dramática atualidade quase 40 anos passa-
impulsionou Wall Street: a soma do dos e muito pode-nos ajudar a compreender
valor de todas as Access negociadas a política militarista americana:
na Bolsa de Nova Iorque subiu de US$ (…) “fomos compelidos a criar
8,92 trilhões em junho de 1997, quan- uma indústria de armamentos perma-
do começou a etapa asiática da crise, nente de vastas proporções. Além dis-
para US$ 11,72 trilhões em dezembro so, três milhões e meio de homens e
do ano passado. Uma alta de 31%, no mulheres estão diretamente engajados
período em que outras Bolsas ditas no sistema de defesa. Gastamos anu-
emergentes, como a de Moscou, almente, com segurança militar, mais
acumulavam perdas de até 86%. que a renda líquida de todas as cor-
Simultaneamente, o desemprego ame- porações dos Estados Unidos. Esta
ricano caiu aos níveis mais baixos das conjunção de um imenso establishment
últimas três décadas e a economia cres- militar com uma grande indústria de
ceu em ritmo acelerado. No ano pas- armas é nova na experiência america-
sado, o Produto Interno Bruto (PIB) na. A influência total, econômica, po-
expandiu-se a uma taxa de 6,1%, a lítica e até espiritual se faz sentir em
melhor dos anos 90”24. cada cidade, em cada Assembléia, em
O Brasil, depois das ‘duas décadas per- cada repartição do governo federal.
didas’, deve ter, em 1999/2000, crescimen- Reconhecemos a necessidade impera-
to negativo em torno de -1% a -1,5%. tiva desse desenvolvimento. Não po-
O déficit comercial norte-americano de demos, porém, deixar de compreender
US$ 21,3 bilhões, revela, a um tempo, a ri- suas graves implicações. Nossas ati-
queza dos Estados Unidos e a pobreza do vidades, recursos e subsistência estão
mundo. Revela mais, que sua riqueza resul- todos envolvidos, bem como a própria
ta da pobreza do mundo, cuja capacidade estrutura de nossa sociedade. Nos
de compra vem caindo. Esse outro lado da conselhos de governo, devemos nos
‘globalização’ põe a nu a fragilidade da eco- prevenir contra a influência injustifi-
nomia mundial, dependente do poder de cada, buscada ou não, do complexo
compra, isto é, da vitalidade de uma só eco- militar-industrial (military-industrial
nomia cujo permanente boom pode levar a complex). O potencial para uma desas-
uma inflação (ameaça admitida pelo Fede- trosa emergência ou extravio de po-
ral Reserve Board) que, associada ao déficit, der existe e persistirá. Não devemos
será tratada pelos remédios clássicos do ca- jamais permitir que o peso dessa com-
pitalismo norte-americano: mais protecio- binação ameace nossas liberdades e
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nossos processos democráticos. Não mica das guerras e do círculo vicioso do de-
devemos dar nada como pronto e ga- senvolvimento industrial capitalista: a eco-
rantido. Somente uma cidadania aler- nomia de guerra gerando o desenvolvi-
ta e bem informada pode exigir a har- mento industrial que exige a guerra para
monização adequada do imenso apa- poder continuar crescendo.
rato industrial e militar de defesa com Não é, pois, destituído de lógica o fato
nossos métodos e objetivos pacíficos, de os Estados Unidos, hoje, finda a guerra
para que segurança e liberdade cami- fria e desmantelada a União Soviética e de-
nhem juntas. A revolução tecnológica sativado o Pacto de Varsóvia, gastarem com
das últimas décadas tem sido similar armamento mais que todos os países oci-
e em grande parte responsável pelas dentais juntos. O orçamento militar para
dramáticas transformações em nossa 1999 é 30% maior que o orçamento conjunto
postura militar-industrial. Nessa re- de todos os demais países da OTAN. Tanta
volução, a pesquisa tornou-se central; despesa deve ser justificada, esta já é uma
também tornou-se mais formal, com- boa razão. Uma pequena guerra é sempre
plexa e cara. Uma parte cada vez mai- bem vinda para os negócios. Para isso, é ne-
or é realizada, para, pela ou sob a di- cessário ter bons inimigos. Não tendo, é só
reção do governo federal. Hoje, o in- inventá-los: Coréia do Norte, Cuba de Fidel,
ventor solitário, trabalhando em sua Vietname, a República Dominicana de
oficina, foi substituído por forças-ta- Bosch, Granada, a Nicarágua dos sandinis-
refas de cientistas em laboratórios e tas, Noriega, o Irã dos aiatolás, a Líbia de
campos de prova. Do mesmo modo, a Kadafhi, o Iraque de Saddam, Ben Laden,
universidade gratuita – historicamen- Milosevic, a guerrilha colombiana…
te o berço das idéias livres e das des- Nos anos da pós-industrialização, nos
cobertas científicas – experimentou anos dessa nova ordem mundial, a tecnolo-
uma revolução na política de pesqui- gia da guerra – que se sofistica a cada dia –
sa. Em parte devido aos altos custos associa aos interesses industriais até mes-
envolvidos, o que passa a orientar a mo o desenvolvimento científico tecnológico:
pesquisa não é a curiosidade intelec- “Grande parte da prosperidade
tual, mas a possibilidade de um con- americana decorre dos investimentos
trato com o Governo. Para cada velho diretos e do comércio das megaempre-
quadro-negro existem agora centenas sas americanas no mundo. São eles
de novos computadores eletrônicos. A que colocam os Estados Unidos no
perspectiva de dominação dos nossos centro da economia e da política in-
scholars pelo emprego federal, pela ternacional. Essa situação hegemôni-
distribuição de projetos e pelo poder ca depende de sua liderança científi-
do dinheiro está sempre presente e ca e tecnológica. Na sociedade ameri-
deve ser considerada em sua gravida- cana, a intervenção do Estado na eco-
de. Mas, levando em consideração, nomia é vigorosamente rejeitada. As-
como é de nosso dever, a pesquisa ci- sim, a estratégia para poder investir
entífica e as invenções, precisamos em ciência e tecnologia, dínamo da
estar igualmente alertas para o perigo economia, utiliza o argumento da se-
de as políticas públicas se tornarem gurança nacional. Esse argumento,
cativas de uma elite científica e tecno- para ser crível, necessita de inimigos
lógica”25. e estes têm de ser eventualmente en-
Eis, na palavra de um velho cabo de guer- frentados e punidos, o que serve de
ra, comandante da maior potência do mun- teste para novos armamentos e novas
do, o reconhecimento da autonomia econô- estratégias. A definição de novos al-
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vos desafia a racionalidade e a poderio militar, econômico e tecnológico
previsão, como os exemplos de Gra- entre as partes é simplesmente abissal.
nada, do próprio Iraque e do Kosovo A propósito dessa nova doutrina de guer-
indicam”26. ra norte-americana, de guerra ‘segura’ e ‘lim-
Como, de outra forma, explicar o esforço pa’, na qual o pessoal e os equipamentos
de guerra norte-americano, os altos investi- militares são praticamente inatingíveis e
mentos em pesquisa e tecnologia, as inver- invulneráveis aos ataques, à defesa e às
sões vultosíssimas na pesquisa e produção represálias dos inimigos, Edward W. Saïd,
de novos armamentos, a manutenção de um professor de literatura comparada na Uni-
caríssimo exército que quase cobre toda a versidade de Colúmbia (Nova York), obser-
extensão do planeta, quando não há mais va, com Richard Falk, autor de direito inter-
inimigo a enfrentar? nacional por ele citado, que a estrutura des-
E, hoje, é de tal ordem a distância tecno- se tipo de guerra (v.g. Iraque e Iugoslávia)
lógico-bélico-econômica que separa os Es- assemelha-se às técnicas da tortura:
tados Unidos dos demais países que se re- enquanto o interrogador-algoz dispõe de
vela uma farsa qualquer tentativa de justifi- todos os poderes, podendo escolher e utili-
car a guerra – guerras, guerrinhas, invasões zar os métodos que desejar, sua vítima, à
etc. — com o argumento de sua defesa pre- disposição da vontade de seu perseguidor,
ventiva em face de uma ameaça presumível não dispõe de qualquer recurso27.
ou real. Não há ameaça ou quem quer que Em nome de uma ingerência humanitária
possa constituir-se em ameaça ao grande – caracterização de resto insustentável –, a
Império. Tudo o mais é retórica de guerra OTAN violou três princípios fundamentais
que o complexo industrial-militar-tecnoló- da convivência internacional, conquista que
gico-científico explica. nossa civilização supunha haver consoli-
dado em Yalta, ao preço de tantos sacrifí-
2. A ‘guerra’ da OTAN cios: a soberania dos Estados —que remon-
ta às revoluções americana (1776) e france-
“E a ironia da história é que, ao
sa (1789)28 –, a autodeterminação dos povos
contrário da fé marxista de que a his-
e a Carta da ONU29, da qual seus países
tória não se repete a não ser como uma
sócios são signatários, a grande maioria
farsa, nos Bálcãs ela parece se repetir:
fundadores e alguns são membros do
as forças internacionais provocaram Conselho de Segurança.
lá, e agora de novo, o apressamento Os bombardeios da OTAN contra a
da limpeza étnica, catalizaram a vio- Iugoslávia – matando civis30, atingindo al-
lência. Seria necessária uma forte dose vos civis, destruindo a infraestrutura do
de autocensura ou de ingenuidade país— foram desfechados sem o amparo em
para não perguntar: será que a OTAN qualquer deliberação da ONU. E, assinada
não queria exatamente provocar a a rendição, é ainda a OTAN quem decide a
limpeza étnica para organizar áreas composição da força internacional de paz.
homogêneas e impor assim uma paz Que papel resta à ONU? Fazer apelos à ca-
mais duradoura após a matança?” ridade internacional para que socorra os re-
(Leão Serva. ‘Bálcãs: onde as tragédias fugiados. Aliás, é da tradição norte-ameri-
da História se repetem’. Política cana o unilateralismo de suas ações, sem-
Externa vol. 8. N. 1) pre ao largo das Nações Unidas, seja a pura
Primeiro de tudo, não se pode chamar e simples intervenção militar (e a militari-
de guerra um conflito sem combate, uma zação dos conflitos políticos), tanto em sua
intervenção sem resistência, quando as bai- extensão geográfica latina (Panamá, Cuba,
xas só se dão de um lado e o desnível de Granada) quanto no Oriente, assim suas
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incursões no Irã, seus bombardeios puniti- levadas a cabo na Turquia, na Palestina e
vos no Iraque, no Sudão (destruindo meta- na África.
de da indústria farmacêutica desse paupér- Poder-se-á perguntar – pergunta que não
rimo país africano) e no Afeganistão; seja a se fez a imprensa brasileira, reflexa, reativa
assunção, pela sua diplomacia, das nego- – onde estavam os sentimentos humanita-
ciações internacionais (os acordos de ristas de norte-americanos e ingleses (dei-
Daytona sobre a Bósnia e os diversos acor- xamos de fazer referências ao humanita-
dos Israel-países árabes-palestinos), conde- rismo alemão para não lembrar o holocaus-
nando a plano secundário a função media- to e a segunda-guerra mundial…) quando
dora e arbitral da ONU, aquele papel que a violência se abatia sobre povos de outras
justificou sua criação. etnias (não-brancos) e de outros continen-
Dir-se-á que, no caso da ação da OTAN tes que não o europeu? A começar por uma
nos Bálcãs, tratava-se de salvar o povo ko- das primeiras limpezas étnicas do após-
sovar da fúria luciferina de um ditador san- guerra, aquela de 1948, da qual a Palestina
guinário. Isso justificaria a destruição da so- foi vítima e testemunha, e que por outros
berania iugoslava? Justificaria o assassinato meios prossegue até hoje. Assim, é preciso
de tantos civis (22 mil, segundo as autori- lembrar que, em Angola, diante da insensi-
dades de Belgrado)? A argüição de preten- bilidade de norte-americanos e ingleses, já
sas motivações humanitárias pode justifi- morreram, só este ano, vítimas da guerra
car o uso indiscriminado da força contra ad- (financiada de fora por grandes potências),
versários? Pode-se falar em intervenção 780 mil negros, e outros 650 deixam, diaria-
moral quando a desproporção militar e tec- mente, suas casas. Cerca de 70 mil angola-
nológica entre os supostos adversários é tão nos perderam braços e pernas nas explo-
colossal? Quando a morte – o bombardeio sões de minas terrestres. Aliás, esse povo é
de áreas civis, áreas residenciais, hospitais, vítima dos ataques da UNITA, um exército
embaixadas, escolas, pontes, ônibus, trens, de facínoras armado pela África do Sul ra-
sanatórios, comboios de refugiados etc. – é cista e pelos Estados Unidos e até recente-
reduzida à sua mais miserável insignifi- mente mantido com recursos norte-ameri-
cância ética: ‘acidente tecnológico’? Pode a canos. Justificativa ‘humanitária’: os gover-
proteção do povo kosovar justificar a amea- nos angolanos pós-descolonização eram
ça à sobrevivência dos sérvios? Afinal, pode apoiados por Cuba e pela URSS. No Sudão,
a barbárie justificar a barbárie?31 há pouco punido pelos Estados Unidos,
Se a vida humana é sagrada – e ela o é, e contam-se quatro milhões de vítimas da
a função dos Estados, isto é, das nações civi- guerra. Em todo o continente africano, são
lizadas é garanti-la –, ela não pode ser sa- 2,7 milhões de refugiados, quase 9 milhões
crificada, mesmo quando a vítima não seja de desabrigados. Na Ásia, no Afeganistão,
nem branca nem européia. contam-se 2,6 milhões. Na Indonésia, du-
Ademais da demanda ética, que não rante seu mandato, garantido pelos Estados
pode ser superada, a pergunta não é, tão-só, Unidos, e em nome da guerra fria, Suharto32
se é lícita a intervenção em defesa de direi- matou, em 1965, cerca de 500.000 adver-
tos humanos violados; mas: que Tribunal – sários políticos, que não contavam para o
fora do direito internacional – é competente humanitarismo do Pentágono e o Foreign
para julgar a violação e determinar a ação Office: eram todos, dizia o ditador sangui-
militar, e o caráter dessa ação? nário, comunistas. Também não se conhe-
Uma das exigências da regra moral é sua ceu o humanitarismo nem norte-americano
universalidade. Se era – e é! – crime a limpe- nem inglês no Zaire (ex-República Demo-
za étnica levada a cabo na Iugoslávia, tam- crática do Congo e ex-Congo Belga), onde o
bém foram e são crimes as limpezas étnicas general Mobutu, corrupto e genocida, a par-
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tir de um golpe-de-Estado instrumentaliza- falar no seu apoio à guerrilha talibã, ao seu
do pela C.I.A, que anteriormente já havia apoio inicial aos aiatolás, e no seu incita-
obtido a queda e assassinato (1961) do pri- mento e apoio ao Iraque (sempre uma dita-
meiro Ministro Patrice Lumumba, governou dura sob Saddam) na sua guerra contra o
até 1998, deixando o poder pouco antes de Irã, o financiamento dos cubanos anti-cas-
falecer, e quando, esgotada a guerra fria, não tristas...
tinha mais serventia. A ideologia do com- Em que recesso repousava o humanita-
bate aos ditadores, defesa dos direitos hu- rismo anglo-americano enquanto hutus e
manos e defesa das minorias, pretexto para tutsis se matavam (e se matam desde 1966)
intervenções de toda ordem, também não se na África central (só no último massacre,
viu no Chile, onde os ‘especialistas’ norte- em 1998, morreram mais de 500 mil homens,
americanos e sua diplomacia – Kissinger mas… negros), conflito que prossegue, per-
(Departamento de Estado) e Bush (CIA) à correndo essas etnias, em Ruanda, onde
frente – colaboraram com Pinochet no golpe começou, em Burundi, no Congo, no Zaire,
contra o governo constitucional de Salvador nada obstante o silêncio da imprensa inter-
Allende e no apoio à ditadura em todos os nacional, que, silenciando, tenta negar sua
anos de brutal repressão; também não se viu existência?
nem na Argentina dos militares e dos civis A repressão turca contra os curdos, se-
‘desaparecidos’, nem no Brasil da tortura. gundo os cálculos mais moderados, nada
A ‘teoria de valores’ da política externa fica a dever às atrocidades de Milosevic. No
norte-americana, para a qual os marines são início dos anos 90, cerca de um milhão de
seus melhores embaixadores e a guerra a curdos abandonaram o campo, enquanto o
melhor diplomacia, conhece apenas dois exército turco arrasava as zonas rurais. Nes-
postulados: seus interesses e o argumento sa época, denuncia Jonathan Randal,
da força bruta. Assim, jamais teve apreço, “a Turquia se transformou no maior
de princípio, seja pela democracia, seja importador individual de material
pelas ditaduras. Combateu essas quando os militar americano e, por conseguinte,
titulares eram adversários de seus interes- no maior comprador de armas do
ses e as defendeu quando postas a serviço mundo. Quando os grupos de direi-
da guerra fria (v.g. Indonésia, Brasil, Chile... ). tos humanos denunciaram que a Tur-
Jamais hesitou em golpear aqueles regimes quia havia utilizado aviões america-
democráticos – v.g. República Dominicana nos para bombardear povoações, o
de Bosch, Brasil de Goulart e Chile de governo Clinton encontrou formas de
Allende – que pudessem contrariar, ainda se esquivar às leis que exigiam a sus-
que minimamente, seus interesses. Assim pensão da entrega de armamentos”33.
também em face dos movimentos guerrilhei- A Turquia é uma base militar americana,
ros. Para ela, é insuportável a guerrilha na de extraordinária importância estratégica...
Colômbia, desestabilizando uma democra- E a morte de 560 mil iraquianos?
cia (vá lá o termo), ou em São Salvador: es- Não foi diferente no Camboja. Não se
ses guerrilheiros, esquerdistas, têm sempre sabe quantos milhares (ou milhão?) de cam-
objetivos totalitários… Mas essa mesma po- bojanos foram mortos pelo Kmer Vermelho,
lítica jamais deixou de apoiar os movimen- a serviço do regime de Pol Pot. Sabe-se que
tos guerrilheiros, de direita, que ameaça- os Estados Unidos, após a invasão do Viet-
vam a consolidação de regimes que podiam name, reconheceu o governo banido da
ser considerados adversários: os ‘contras’ Kampuchea Democrática como represen-
da Nicarágua desestruturando a democra- tante oficial do Camboja, por sua ‘continui-
cia sandinista; as tropas criminosas da dade’ com o regime de Pol Pot. O governo
UNITA destruindo o futuro de Angola. Sem americano apoiou o criminoso Kmer Verme-
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lho em suas carnificinas contra o povo do constitui crime de guerra, diga-se de
Camboja e puniu o Vietname com severíssi- passagem.
mas sanções, por havê-lo combatido. O humanitarismo estaria a exigir, se a
Anualmente, pelo menos 20 mil pessoas, intervenção tivesse realmente motivações
civis e camponeses, principalmente crian- éticas, a ingerência militar em outros países
ças, morrem ao pisarem em miniminas que onde povos igualmente com direito à vida
estão espalhadas por todo o território do estão sujeitos a toda sorte de expiação, no
Norte do Laos, Sudão (Sul), em Serra Leoa, no Tibet, em Ti-
“que, nos anos 60 e 70, foi alvo do que mor-Leste. A miséria de Biafra também a
provavelmente terão sido os maiores ninguém comove e não é porque não como-
e, seguramente, os mais cruéis bom- va as lentes da CNN que deixou de existir.
bardeios da história contra uma po- A mesma ética que se irritou com a inva-
pulação civil. As mortes foram causa- são do Kuwait (tão rico em petróleo – forne-
das pelas minibombas, diminutas ar- cedor do Japão e da Alemanha – e tão estra-
mas antipessoais muito piores do que tegicamente localizado em face do Golfo Pér-
as minas: são projetadas especifica- sico) silenciou em face da invasão e anexa-
mente para matar e mutilar, e não têm ção do Timor-Leste, pela Indonésia, e do Ti-
qualquer efeito sobre caminhões, edi- bet, pela China. Nada a falar sobre o Líbano,
fícios ou outros objetos. A planície fi- invadido de um lado por Israel, de outro pela
cou juncada de centenas de milhões Síria, e bombardeado quase diariamente,
desses projéteis. (…) O Grupo Consul- sem estar em guerra com quem quer que seja.
tivo sobre minas, com sede na Grã- Nada a dizer sobre a guerra de Moscou con-
Bretanha, está tentando limpar os tra os separatistas da Chechênia.
campos dessas armas letais; mas, se- Na verdade, o humanitarismo de
gundo a imprensa britânica, os Esta- Washington, determinando o belicismo da
dos Unidos se negam a emprestar seus OTAN, é uma pura manobra geopolítica, que
especialistas e seus ‘procedimentos’
visa a assegurar um caminho europeu para
que fariam o trabalho ‘com muito mais
o Oriente, afastar a influência russa36 (que
rapidez e segurança’. Esses procedi-
sempre teve interesses militares nos Bálcãs
mentos constituem segredo de Esta-
e no Adriático), colocar uma cunha entre a
do, como tudo que se relaciona com
Alemanha e a Rússia, enfim, a balcanização
este assunto nos EUA”34.
do Leste europeu, e, por meio do exército
Como é sabido, os Estados Unidos se
opõem ao tratado de Ottawa de prescrição coletivo consolidado, impedir a emergência,
das minas. na Europa, de qualquer sorte de formação
Que humanitarismo resiste à catástrofe militar independente.
ecológica que se abateu sobre a Iugoslávia? A questão fundamental está em que o
O bombardeio de usinas químicas que po- bombardeio do povo iugoslavo – sejam quais
luem rios e matam fauna e flora; o uso de forem as conseqüências para os kosovares
bombas com grafite que contêm componen- de origem albanesa, que permanecem em
tes cancerígenos; bombas de urânio provo- guerra contra os sérvios – assegura o forta-
cando radioatividade; bombas/minas de lecimento da OTAN, quando o lógico seria,
fragmentação e seus estilhaços não detona- após o fim da guerra fria, sua dissolução
dos que ficarão no solo agindo como minas, substituída por uma organização de defesa
atingindo civis, as mesmas bombas que, de- européia específica. Esse fortalecimento da
positadas no Adriático, ameaçam a popu- OTAN é peça preciosa na estratégia militar
lação civil que o utiliza?35 norte-americana, que, assim, bloqueia o sur-
Todos esses são armamentos proscritos gimento, na Europa, de um sistema estraté-
pelo direito internacional e cujo emprego gico rival37.
360 Revista de Informação Legislativa
Ela também lembra aos europeus quem aprofundamento dos conflitos entre as di-
é o chefe da firma. versas etnias, nações e regiões. Terminados
os bombardeios, os kosovares – que perma-
2. 1. A economia da guerra
necerão na Iugoslávia, ao contrário dos
Não podem ser descartadas as razões pilotos americanos e ingleses – não podem
puramente econômicas da economia de contar com qualquer vitória. Ao contrário, a
guerra, que envolve tantos bilhões de dóla- expectativa é que ficou ainda mais difícil
res em armamentos crescentemente sofisti- uma alternativa de paz com os sérvios, que
cados, e razões puramente tecnológicas, terminaram virtualmente expulsos do
pois, de fato, desde o experimento das Mal- Kosovo, que consideram o berço de sua
vinas, as grandes potências vêm investindo nação, e onde estão seus templos mais
maciçamente na sofisticada tecnologia de sagrados40.
guerra e episódios como esse servem de cam- Nesse episódio, perderam quase todos:
po para teste dos novos inventos38; princi- perderam os kosovares que não alcançaram
palmente considerando-se seu alto custo fi- a paz e retornam a um Kosovo destruído;
nanceiro – o que não é nada desagradável perderam os iugoslavos que quase perde-
para o complexo industrial-militar –, e o ram seu país, arrasado pelos bombardeios;
baixíssimo – na verdade nulo – custo ou perderam os sérvios que, num êxodo esti-
risco em vidas humanas, o que atende a mado em 100 mil, estão nas estradas em
uma das exigências da opinião pública busca de novas terras e território onde pos-
norte-americana39. De fato, em 78 dias de sam encontrar um mínimo de segurança;
bombardeios intensíssimos, não há o regis- perdeu a minoria sérvia de Kosovo, amea-
tro de um só militar a serviço da OTAN çada de ser chacinada pela maioria de
morto em ação. Mesmo a perda de material origem albanesa, que busca vingança para
é irrelevante. Após mais de 25 mil incursões seus mortos (e quem vai agora assegurar um
aéreas, apenas dois aviões foram declara- lar para os sérvios expulsos de Kosovo?);
dos perdidos (mas seus tripulantes salvos, perderam a Macedônia e Montenegro, cujas
resgatados em território inimigo) e um heli- economias, de si já frágeis, foram destroça-
cóptero tombou, em treinamento. das; perderam os países balcânicos; perdeu
O que poderia – por via política e diplo- a ONU; perdeu o direito internacional; per-
mática – ser obtido como encaminhamento, deu a paz; perdeu o princípio da negocia-
ainda gradual, de uma solução para uma ção e da arbitragem sobre a militarização
crise que tem raízes históricas vai deman- dos conflitos. E perderam os que lutam pela
dar mais algumas décadas de guerra e eliminação das armas nucleares.
frustração. Ganhou a indústria da guerra.
Terminada a ação punitiva dos Estados Perderam os defensores dos direitos
Unidos-OTAN contra os sérvios, verifica-se humanos.
que ela não impediu a limpeza étnica de Terminados (ou suspensos?) os bom-
Milosevic contra os kosovares albaneses. bardeios, arrasada a Iugoslávia, destruído
Nem destruiu o ditador. Ao contrário, os Kosovo, partilhada a antiga província sérvia
raids aéreos ilegais aceleraram a limpeza entre as potências agressoras e invasoras,
étnica contra os povos de origem albanesa e os Bálcãs terminam o século mais explosivos
o êxodo da população de Kosovo, e seu sal- do que nunca. O ódio religioso-étnico foi
do, assinada a rendição incondicional, é agravado, Turquia, Grécia e Chipre, membros
simplesmente macabro: milhares de iugos- da OTAN e aliados de Washington, mantêm
lavos, sérvios e descendentes de albaneses suas rivalidades históricas e disputas de
mortos, o exacerbamento do ódio, a impos- territórios e os conseqüentes conflitos sobre
sibilidade de qualquer solução política, o os respectivos espaços aéreos. A ‘guerra’
Brasília a. 36 n. 142 abr./jun. 1999 361
contra os sérvios – população agredida pe- segundo os quais norte-americanos não
los turcos, pelos austríacos, pelos nazistas seriam entregues ao Tribunal se fossem
e por seus aliados croatas – tornou iminen- acusados de crimes contra a humanidade,
tes os conflitos entre a Iugoslávia e a Albâ- de guerra ou genocídio. A afirmação é de
nia e aqueles países que serviram de base Pierre Sane, secretário-geral da Anistia
aos aviões aliados. Internacional41. Mas Washington não está
Terminados (ou suspensos?) os bombar- preocupada apenas com seus militares:
deios, milhares e milhares de iugoslavos, “(…) o governo americano procura
sérvios e croatas, retornam uns às suas ca- também garantir que os funcionários
sas perdidas, outros delas são expulsos. da Agência Central de Inteligência
Ninguém pode avaliar seu próprio futuro. (CIA) fiquem protegidos de ser extra-
Autodeterminação? Autonomia sob a sobe- ditados por solicitação do TPI. A
rania sérvia? Ocupação permanente pelas preocupação de Washington é que
tropas da OTAN? Partilha? Soberania par- operações como o atual bombardeio
tilhada? Quem protegerá os ‘sérvios de da OTAN contra a Iugoslávia façam
Kosovo? Nenhuma dessas interrogações com que dezenas de funcionários mi-
passou pela cabeça dos dirigentes da guerra. litares, civis e da inteligência sejam
A sorte do povo de Kosovo, massacrado processados pelo TPI”42.
por um governante imoral, parece um por- Mas, se o Sr. Milosevic foi, e justamente,
menor em tudo isso, até porque o conflito indiciado pelo Tribunal de Haia como cri-
étnico não foi resolvido, senão agravado, e minoso de guerra, qual deve ser a acusação
Milosevic continua no poder e nele ou fora a ser formulada contra os responsáveis pe-
dele deve permanecer impune, como impu- las agressões ao território e às populações
nes permanecerão genocidas pró-Ocidente civis do Líbano, do Iraque, do Irã, do Afega-
como Suharto, entre tantos outros. nistão, do Panamá, de Granada, do Sudão e
Uma alternativa poderia ser a criação de da Iugoslávia, violando as constituições de
um Tribunal penal internacional com po- seus próprios países, realizando guerras não
deres para julgar os autores de crimes con- declaradas nem autorizadas, violando a
tra a humanidade, imprescritíveis indepen- Carta das Nações Unidas.
dentemente do status do agente, e indepen-
dentemente mesmo de eventual decisão le- 2. 2. A guerra como ‘valor’
gal tomada por um Estado soberano. Mas Subsiste, por fim, a questão da guerra
os Estados Unidos são contra esse Tribunal justa. Mas haverá guerra justa? Quem deci-
e impedem sua constituição… de o que é uma guerra justa? O vencedor?
Além de haver votado contra a criação Ora qualquer argüição desse conceito, para
do Tribunal Penal Internacional, na reunião validar-se, terá, primeiro, de reabilitar o na-
de Roma, os Estados Unidos vêm-se opondo zifascismo (e suas autoproclamadas razões),
à competência de um Tribunal internacio- absolver os tiranos de todos os tempos e abrir
nal para processar acusados de crimes de um precedente moral de tal ordem que pode
guerra. Desde então o Ministério da Defesa significar o suicídio da humanidade.
vem advertindo a comunidade inter- É fácil de demonstrar.
nacional de que os Estados Unidos não As atrocidades do governo turco
poderão aprovar a criação de um Tribunal procuram justificativa no argumento de que
que tenha o poder de julgar militares ameri- está defendendo o país da ameaça de guer-
canos. Precatadamente, estão tentando rilheiros e terroristas. Na América Latina,
obrigar alguns governos – África do Sul, esse argumento foi utilizado, à saciedade,
Polônia, Hungria e República Tcheca são pelos governos militares para justificar o as-
citados nominalmente – a firmar acordos sassinato de seus adversários, na Argentina,
362 Revista de Informação Legislativa
no Brasil, no Chile, no Uruguai, no Peru, no Chang-Kai-Chek, apoiadas pelo Ocidente?
Paraguai, na Nicarágua. Foi repetido no Que tal Brasil e Portugal bombardearem a
Laos e no Camboja pelos assassinos do Kmer Indonésia para libertar os povos irmãos do
Vermelho. Na Argélia, o argumento do Timor-Leste, ou os libaneses bombardea-
Ocidente (França à frente) para impedir a rem a Síria e Israel para recuperar seu terri-
posse do governo legalmente eleito foi a tório e punir Tel-Aviv pelos raids crimino-
ameaça islâmica. Essa violência está na raiz sos que assassinam a população civil sob o
de todos os massacres que ali se repetem pretexto de perseguir guerrilheiros? O ar-
quase diariamente, prometendo transbordar gumento, dos sérvios, para justificar sua
para a Europa. O ataque do Japão à Mand- posse de Kosovo – a antigüidade – poderia
chúria, a invasão da Etiópia por Mussolini justificar uma reivindicação mexicana sobre
e a ocupação da Tchecoslováquia pelas tro- o Novo México e tantas outras terras suas
pas de Hitler foram acompanhadas de ele- perdidas para os Estados Unidos; por outro
vada retórica humanitária, ou simplesmente lado, o argumento (croata) da maioria, san-
do que Noam Chomsky prefere chamar: cionado pelos bombardeios, poderia justifi-
‘justificativas obscenas’. car uma reivindicação autonomista cubana
“O Japão ia construir um ‘paraí- sobre Miami, ou a expulsão, pelo Paraguai,
so’ terrestre enquanto defendia os ha- dos ‘brasilguaios’ que estão ocupando suas
bitantes da Mandchúria contra os terras e seus negócios. Evidentemente, a
‘bandidos chineses’. Mussolini esta- aplicação dessas teorias aos Estados
va libertando milhares de escravos Unidos parece mera excentricidade, até
enquanto realizava a ‘missão civili- porque o colosso militar está acima também
zadora’ do Ocidente. Hitler anunciou das doutrinas e das teorias. Mas, observa
a intenção alemã de aliviar as tensões Leão Serva, “nos Bálcãs elas se mostraram
étnicas e a violência, além de ‘salva- tão reais quanto recentemente se revelaram
guardar a individualidade dos povos reais na Palestina e em Chipre”46.
alemão e tcheco’. O presidente da Es- Se a ação da OTAN fosse legítima, se
lováquia pediu a Hitler que transfor- estivesse amparada no direito, estaríamos
masse seu país num protetorado”43. condenando a humanidade à barbárie. Se
A categoria determinante da moral é a fosse possível fazer valer como direito, isto
universalidade, ou, dito pelo anverso, tudo é, em regra universal, o direito a que se auto-
aquilo que não pode ser generalizado é imo- atribuem os Estados Unidos, a humanida-
ral, é anético. A legitimidade do direito deriva de sucumbiria, devorada numa chacina
da universalidade de sua vigência: só cons- autofágica.
titui direito aquela norma que se aplica a Os bombardeios contra a Iugoslávia,
todos ou que por todos pode ser acionada44. pela OTAN, constituem, de todos os modos,
Se a OTAN tem o direito de bombardear uma guerra inaugural, no sentido de sua
os sérvios para garantir a autonomia de Ko- justificativa, pois a OTAN não pode alegar
sovo – legalmente e historicamente uma de- a defesa de nenhum dos territórios de seus
pendência da Sérvia, que, ao lado de Mon- Estados-membros, objeto de sua criação, no
tenegro forma a Iugoslávia45 –, por que ou- fragor da ‘guerra fria’. As alegadas razões
tros povos, os curdos, os palestinos, os tibe- humanitárias de hoje, puramente ideológi-
tanos, os chechenos, os muçulmanos da cas, podem amanhã ser substituídas por
Caxemira, não têm o mesmo direito? Ou, têm outras, como a defesa de determinado sobe-
os tibetanos o direito de bombardear Pequim rano ou de um regime, ou de uma tese. A
para se livrarem da opressão chinesa? Ou salvação da humanidade, por exemplo,
Pequim pode bombardear Taiwan para re- pode amanhã justificar, manu militari, a ‘pro-
tomar sua ilha, roubada pelas tropas de teção’ de santuários ecológicos como a
Brasília a. 36 n. 142 abr./jun. 1999 363
Amazônia, ‘ameaçada de destruição’ por rem vistos por grande parte da humanida-
isso ou por aquilo. O combate ao narcotrá- de (chineses, russos, indianos, árabes, lati-
fico pode amanhã ser a justificativa do no-americanos e africanos) como inimigos
muito provável desembarque das tropas de suas sociedades.
norte-americanas na Colômbia. A ‘ameaça’ É claro que a ONU sai do episódio peri-
que à sua segurança pode representar a gosamente sem função. Há que repensá-la
consolidação de um regime nacional-popu- no regime da unipotência.
lar na Venezuela, pode justificar a interven- Não há dúvida de que os bombardeios
ção dos Estados Unidos na Venezuela… acabam por destruir o que restava da frágil
Ninguém se iluda: o regime da unipotên- ordem internacional, que já não pode ofere-
cia arrogante atualiza La Fontaine e a cer aos fracos qualquer grau de proteção
lógica do lobo. ante os Estados predadores.
A intervenção da OTAN, finalmente, Os Estados Unidos – a superpotência que
representa um salto no escuro para todas as não respeita a lei – estão assumindo, perante
nações do mundo que agora estão sabendo a humanidade, com o apoio de seus peões
que não há mais soberania absoluta, nem europeus, o papel de principal ameaça
direito internacional inquestionável, e que externa contra nossas sociedades e nossa
Estado nenhum pode entrar em conflito com civilização.
o Estado hegemônico. Não é de admirar, portanto, que o res-
Ontem Panamá, Vietname, Iraque. Hoje sentimento com relação aos Estados Unidos
Iugoslávia. Amanhã… esteja crescendo globalmente50.
(A propósito, a invasão do Panamá e se- Depois de relembrar uma antiga senten-
qüestro de seu Presidente custaram a morte ça do general De Gaulle (“Podem ter certeza
de mais de 2 mil pessoas, duas vezes mais de que os americanos cometerão todas as
que na derrubada de Ceausescu, na sua idiotices que puderem imaginar, mais algu-
maior parte civis. Mas ninguém fala aí nem mas que estão além do imaginável”), o jor-
em genocídio nem em carnificina)47. nalista brasileiro Márcio Moreira Alves51
Da convicção da comunidade internacio- comenta o estrago que os bombardeios fize-
nal de que ninguém está a salvo da esmaga- ram à ONU e às negociações para elimina-
dora superioridade militar dos Estados Uni- ção das armas nucleares. A professora Mary
dos e seus sócios da OTAN resultam conse- Wynne-Ashford, vice-presidente da organi-
qüências estratégicas e ideológicas. No pla- zação Físicos Internacionais pela Prevenção
no militar, a constituição de um eixo atômi- da Guerra Nuclear (FIPGN), por ele citada,
co anti-hegemônico, reunindo Rússia, Chi- revela o desalento de dois recentes seminá-
na e Índia48, que não tem mais qualquer ra- rios a que compareceu em Moscou e Esto-
zão para cumprir a promessa de assinar o colmo, e põe em destaque que “a opinião
tratado de não-realização de testes nuclea- pública antiamericana na Rússia é mais
res. A humanidade pode estar à beira de uma profunda e ampla do que nunca. ‘Hoje a
nova e catastrófica corrida atômica, enquan- Sérvia, amanhã a Rússia’ é uma opinião que
to a ação da OTAN está oferecendo a diri- se enraizou profundamente na consciência
gentes irresponsáveis um irrespondível áli- das pessoas”. Por fim, conclui o articulista
bi ideológico para a retomada do armamen- de O Globo :
tismo, criando emulações regionais de des- “Nós, no Brasil, não temos de re-
dobramento imprevisível49. E no plano polí- petir, por enquanto, o temor de Mos-
tico, os Estados Unidos deverão reforçar a cou: ‘Hoje a Sérvia; amanhã a Rússia’.
segurança de suas embaixadas em todo o Mas não custa pensar no assunto”.
mundo e assumir a responsabilidade de se- Pensemos.
364 Revista de Informação Legislativa
3. E a América Latina? Os colombianos vêem com espanto – mas
a opinião pública internacional latino-ame-
A experiência nos Bálcãs, no que depen-
ricana com indiferença – o interesse de
der dos Estados Unidos, deve ser levada
Washington em fornecer armas e recursos
para o resto do mundo. O primeiro alvo pode
destinados ao combate à guerrilha, em vez
ser o nosso Continente.
de ajudar a resolver a crise social mais
Senão, vejamos.
aguda de sua história55.
Na 29ª Assembléia Geral da Organiza-
Mas não é tudo. O exército americano
ção dos Estados Americanos (OEA), encer-
tem presença física e ativa em território
rada a 9 de junho de 1999, o delegado norte-
colombiano, sob o pretexto de ajudar as for-
americano propôs “que um grupo de paí-
ças armadas no combate à guerrilha e ao
ses, vizinhos ou simplesmente relacionados
tráfico. Há mais de 300 americanos na
política e economicamente, pudesse inter-
Colômbia, entre soldados (200) e agentes do
vir em conflitos internos de outra nação”52,
DEA (órgão de combate às drogas) e da CIA.
sem a necessidade de apelo à Assembléia.
São ‘assessores’ treinando mil colombianos
Teve o apoio do Brasil.
de um batalhão que deve entrar em opera-
No mês seguinte, o presidente Clinton,
ção em dezembro, para enfrentar os guerri-
em entrevista coletiva, declarou que a crise
lheiros. Em setembro, o governo de Pastra-
colombiana é assunto “de interesse da segu-
na receberá mais seis helicópteros de com-
rança nacional” dos Estados Unidos53. To-
bate para proteger os aviões que jogam des-
dos sabemos quais podem ser as conseqüên-
folhantes. O avião norte-americano que caiu
cias desse entendimento.
na selva estava equipado para vigiar a guer-
A Colômbia está às voltas, há pelo me-
rilha56. Também foi assim que tudo come-
nos três décadas, com uma verdadeira guer-
çou no Vietname. Aliás, por razões fáceis de
ra civil – que já produziu mais de um mi- compreender, os Estados Unidos unem, no
lhão de refugiados (mais que em Kosovo) e mesmo processo, a guerrilha esquerdista das
só nos últimos dez anos matou cerca de 35 FARC e o narcotráfico, identificado como fi-
mil pessoas (cerca da metade do seu territó- nanciador daquela57. Ninguém fala em com-
rio encontra-se sob o controle das Forças Ar- bater os paramilitares de direita e extrema
madas Revolucionárias da Colômbia- direita.
FARC) – e com a guerra do narcotráfico, o E a imprensa faz a sua parte. A brasi-
qual, diga-se de passagem, é alimentado leira Veja, ainda presa à retórica da guerra
pela demanda dos usuários norte-america- fria, diz que a situação da Colômbia é de
nos e pela incompetência dos Estados Uni- ‘emergência’ em face do ‘agravamento da
dos de controlarem suas próprias frontei- guerra civil e do envolvimento da guerrilha
ras. Esse complexo de crises já fez com que comunista (sic) com o narcotráfico’58. O bo-
aquele país se transformasse no terceiro do letim do Pentágono não escreveria melhor.
mundo em ajuda militar norte-americana Segundo o jornal argentino La Nación, o sem-
(logo após Israel e Egito): pre dócil governo Ménem (que acaba de ver
“Neste ano, a Colômbia receberá recusada sua ridícula autocandidatura à
US$ 289 milhões em ajuda militar dos OTAN) teria sido instado por Washington
EUA, e, no ano que vem, a quantia a assumir a iniciativa de propor a criação
pode subir para US$ 1 bilhão. Embo- de uma força conjunta de intervenção, à qual
ra o dinheiro só possa ser usado para os EUA depois se juntariam59. Argumentos
treinamento e missões de apoio, como não faltariam para essa nova ‘intervenção
vôos de observação, foi assim que os humanitária’: a guerra civil, o narcotráfico
EUA começaram seu envolvimento no e a ameaça de incursões da guerrilha nos
Vietname”54. territórios de fronteira, o que, aliás, já vem
Brasília a. 36 n. 142 abr./jun. 1999 365
sendo preventivamente manipulado pelas no percentual de renda total em mãos dos
imprensas locais. Ressalvada a gravidade 40% mais pobres de 11,5% em 1993 para
colombiana, que a transforma em um caso 10,5% em 1996, enquanto os 10% mais ricos
especial, também estão em crise, seja por da população viram sua fatia de renda au-
força do narcotráfico, seja pela sobrevivência mentar de 43% para 44,3%61. Numa popu-
da guerrilha, o Peru e a Bolívia. O Equador, lação estimada de 160 milhões de seres, so-
há anos, transita de uma crise econômica mos 15% de analfabetos, 35% com menos
para outra. Essa conjunção de fatores de quatro anos de educação, 36% de infec-
constitui o pano de fundo daquele que pode tados por parasitas. Em compensação, os
ser o cenário de maior apreensão: uma nova bancos privados brasileiros tiveram, no pri-
Venezuela de futuro imperscrutável, gover- meiro semestre de 1999, a melhor rentabili-
nada por um líder populista de raízes dade da história: 35,35%, duas vezes mais
militares que mantém o apoio quase con- que a média do setor (15%), que já se desta-
sensual de sua população, com um discurso ca como uma das maiores do mundo. Com
nacionalista, desenvolvimentista e até aqui base no estudo de 15 bancos, a consultoria
em nada comprometido com os interesses Austin Assis conclui que a rentabilidade
políticos, econômicos e ideológicos da nova dessas instituições saltou de R$ 194,5
ordem mundial. milhões no primeiro semestre de 1998 para
Não precisamos falar de Cuba. R$ 2,560 bilhões neste ano, o que equivale a
Mas esse é só um dos ingredientes que
um crescimento de 1.216% no intervalo de
podem transformar nosso Continente num
um ano! O que representa, principalmente,
explosivo caldeirão social.
uma brutal transferência de renda da popu-
Nem mesmo os néscios ignoram o preço
lação para os bancos, que, aliás, não pagam
social que nossos países estão pagando à
imposto, segundo declarou à Câmara dos
‘globalização’. O fundamentalismo dos que
Deputados (CPI do Sistema Financeiro) o
acreditam na magia do mercado tem sido a
Secretário da Receita Federal. O outro lado
causa da derrocada de nossos mercados, do
aumento da concentração de renda, da dessa moeda perversa é inevitável: aumen-
queda do PIB, e do aumento da recessão, do to das ocupações de propriedades, bloqueio
desemprego e da exclusão e da queda geral de estradas, greves e lock-outs, desabasteci-
da qualidade de vida. O PIB da América mento, aumento da violência urbana, con-
Latina deverá cair, em 1999, entre -0,5% e flito social, que pode-se manifestar por meio
-1,5%. Na Argentina, essa queda será de -3%, do ressurgimento de ações guerrilheiras e
no Equador de -5%, no Chile de -2,3%, no revolucionárias, e na retomada do tradicio-
Uruguai de -0,5%, na Colômbia de -1%, no nal autoritarismo latino-americano. Em
Brasil de -1% a -1,5% e na Venezuela de -6%60. qualquer hipótese, requer muita ingenuida-
Alguns países apresentarão taxas de desem- de apostar, nesse quadro, na segurança das
prego de 15%. Em compensação, o comércio instituições políticas democráticas.
internacional dos Estados Unidos só é su- As informações disponíveis indicam que
peravitário com a América Latina. Há 10 a diplomacia brasileira não estaria dispos-
anos, vendiam-nos 25 bilhões de dólares por ta a aprovar a idéia da intervenção militar,
ano; hoje, essa cifra saltou para 90 bilhões, conjunta ou não, na Colômbia. Nosso go-
informa a CEPAL. Com isso os Estados verno teria consciência de que essa opera-
Unidos ganharam 650 mil empregos. ção seria uma porta aberta para outras in-
A crise econômica aumenta as desigual- tervenções, notadamente nas regiões limí-
dades sociais, colocadas hoje em patamares trofes da Amazônia, por onde o Brasil tem
obscenos. Nesse campeonato, o Brasil man- fronteiras com o Peru, a Colômbia, a Vene-
tém a liderança: o país registrou uma queda zuela e também com a Bolívia.
366 Revista de Informação Legislativa
Sabe-se que nossas Forças Armadas, Goulart (ministros Afonso Arinos e San
justificadamente preocupadas com a inte- Thiago Dantas) e Geisel (ministro Azeredo
gridade da Amazônia brasileira, jamais da Silveira), nossa política internacional
veriam com bons olhos a presença de tropas tem-se caracterizado, principalmente a par-
estrangeiras na região, mesmo tratando-se tir da II Guerra Mundial, pelo alinhamento
do exército norte-americano. automático aos interesses norte-americanos,
Sabe-se, igualmente – dá conta o noticiá- nada obstante o notável contencioso eco-
rio da imprensa –, que Brasil e Estados Uni- nômico resultante das barreiras americanas
dos já discutem uma ação conjunta de ‘cer- às exportações brasileiras. Em abono à re-
co a guerrilheiros’ e uma ação militar brasi- núncia à vida independente, nem mesmo
leira. Foi esse o tema da conversa entre o difusos interesses de uma geopolítica co-
general Charles Whilhelm, chefe do Coman- mum podem hoje ser alegados, em face do
do Sul das Forças Armadas, e o Ministro da fim da guerra fria e da total irrisão da
Defesa do Brasil, Élcio Alvares62 em agosto ‘ameaça’ comunista. Nesses termos, portan-
de 1999. Enquanto espera a data certa para to, nada impediria o país de procurar uma
a ‘operação militar’, a Polícia Federal brasi- agenda própria, consolidando sua lide-
leira foi acionada para desencadear uma rança no Continente, ocupando na África o
“operação destinada a fechar as rotas de espaço que sua história nos oferece e
abastecimento de alimentos para as regiões procurando novos parceiros internacionais,
da Colômbia controladas pelas Forças como, por exemplo, a Índia, a China64 e a
Armadas Revolucionárias da Colômbia Rússia.
(Farc). A operação faz parte da estratégia Enfim, ocupar um espaço próprio, ade-
americana de cerco à área controlada pelos quado à sua importância territorial, à sua
guerrilheiros que foi desmilitarizada pelo economia, à sua história, e contribuir – por
governo colombiano em novembro de 1998 exemplo ao lado da China, da Índia, do Ja-
para viabilizar as negociações de paz”. A pão e de uma Rússia livre de seus atuais
‘operação’ coincidiu com a presença, em dirigentes – para a recuperação da multipo-
Brasília, do Chefe do Escritório de Controle laridade, fundamental para nosso desenvol-
de Drogas da Casa Branca, Barry MacCaffrey, vimento e mesmo para a sobrevivência da
que se encontrou com o Chefe da Casa humanidade.
Militar da Presidência da República, general Mas isso seria querer demais de nossas
Alberto Cardoso63... elites, pois significaria a busca de caminhos
Não se sabe, porém, qual é a política do próprios. E a história das elites brasileiras é
maior país da América do Sul e da América a permanente traição aos interesses nacio-
Latina para a América do Sul e a América nais, o total descompromisso com a cons-
Latina. Não se sabe, mesmo, se existe uma trução da nacionalidade, ou com a defesa
tal política. Como não se sabe qual é sua dos interesses de seu povo.
política para a África e a lusofonia. Em Não se trata de propor para nossos
matéria de política exterior, sabe-se, apenas, povos um quixotesco enfrentamento da
que o Brasil pleiteia um assento (talvez ‘globalização’ em condições de absoluta
rotativo) no Conselho de Segurança da desigualdade de forças, mas, tão-só, de
ONU. Para fazer o que, não se sabe. Para fortalecer o país e a nacionalidade para fazer
defender que programa, que idéias, que face aos desafios dessa forma moderna
política, não se sabe. de imperialismo.
Até aqui, temos sido incapazes de pro- A resistência passa pela liderança de
duzir uma política externa que não seja pu- nossos povos, da unificação da América
ramente reativa. Fora o curto período das Latina em torno de seus interesses, da asso-
administrações Jânio Quadros/João ciação com outros continentes e povos.
Brasília a. 36 n. 142 abr./jun. 1999 367
Separados e isolados até por imposição gresso e o bem-estar dos brasileiros e
da geopolítica colonizadora, precisamos en- sobre a possibilidade de ter o Brasil
cetar o processo do mútuo conhecimento, políticas econômicas próprias, volta-
assim descobrindo que temos mais unida- das para seus interesses”66.
de do que diversidade, mais aproximações A adesão brasileira à ALCA – que deve
do que divergência e que, respeitando nos- começar a funcionar a partir de 2005,
sas culturas e nossos projetos, de cada povo segundo compromissos do atual governo
e de cada país, podemos construir o projeto brasileiro 67 – pode representar nosso
do desenvolvimento comum. suicídio coletivo. Seria a modernidade
Mas tudo isso passa, antes de mais nada, ‘pós’-Kosovo.
por alterações na correlação de forças polí- A nova ordem mundial derivada do fim
ticas no interior de nossos países. da guerra fria coloca para os nossos povos
Com vistas à nossa integração, o MER- uma questão irrecusável: os Estados Uni-
COSUL pode ser um primeiro passo, agluti- dos e sua política econômico-militar (onde
nando, de princípio, os interesses dos paí- começa uma e termina a outra?) dirigida pelo
ses do cone-Sul. Nesse sentido, trata-se de interesse e pelo oportunismo – jamais por
projeto que precisa ser estimulado e preser- uma teoria de valores –, sem mesmo atender
vado, nada obstante suas limitações. Não a questões concretas de segurança, interes-
podemos nos iludir quanto à sua fragili- se nacional ou fins estratégicos claramente
dade, reflexo das limitações dos países- definidos, e levada a cabo com truculência e
membros. Simples acordo de mercado ou arrogância, continuarão a dirigir o mundo?
aduaneiro, o MERCOSUL pode-se transfor- Ou, é possível enxergar no horizonte de nos-
mar num grande instrumento tanto de inte- sas existências qualquer sorte de resistên-
gração econômica quanto de integração cul- cia, pelo menos intelectual e moral?
tural e política, fortalecendo nossos países A utopia é a recuperação do direito de
no diálogo com outros blocos e com o Norte, construir nosso próprio destino, em que
sobretudo com a União Européia e mesmo pese a nova ordem mundial.
na resistência à ALCA (Área de Livre Co-
mércio das Américas). Uma das últimas e
mais graves ameaças à sobrevivência de Notas
nossos países, ela representará, na prática,
a absorção, pela economia e pela política
1
Em 2 de agosto de 1990, o exército iraquiano
invadiu o Kuwait, de onde, semanas seguintes, foi
dos Estados Unidos, da política, da econo- expulso por tropas de 26 países lideradas pelos
mia, da autonomia e da soberania de nos- Estados Unidos. Um cessar-fogo foi firmado em
sos países. A ALCA, uma vez efetivada, in- 1991, e a ONU decidiu ditar uma série de embar-
corporará os territórios dos 33 países das gos, com o objetivo de assegurar-se do desarma-
mento do Iraque; os Estados Unidos estabeleceram,
Américas65 (12% do PIB da região) ao terri-
dentro do País, para proteção das minorias curdas,
tório dos Estados Unidos (88% do PIB), uma zona de exclusão (sobre a qual o Iraque deixa
absorvendo, com os territórios, a economia, de ter soberania) e outros embargos, econômicos e
a política, a autonomia, a independência e políticos. A ‘violação’, pela força aérea iraquiana,
do espaço aéreo correspondente a esse território tem
a cultura dos nossos países, que também
justificado os bombardeios norte-americanos e in-
terão renunciado ao direito à soberania e à gleses. Passados dez anos, o conflito perdura. Os
história própria, como observa Samuel embargos políticos e econômicos estão destruindo
Pinheiro Guimarães: o país e levando seu povo à miséria, mas o ditador
“As decisões de política econômi- Saddam Hussein permanece no poder, aparente-
mente inabalável; nada obstante os esforços norte-
ca tomadas por autoridades america- americanos visando à sua destruição, seja por meio
nas nos Estados Unidos passariam a dos bombardeios e de sabotagens, via CIA, seja
ter influência decisiva sobre o pro- mesmo mediante o apoio à oposição iraquiana.

368 Revista de Informação Legislativa


Assim, mediante o ‘Iraq Liberation Act’, de 31 de nenhum governo para a política interna. Natural-
outubro de 1998, Washington abriu um crédito de mente precisariam urgente de uma, mesmo quando
97 milhões de dólares para apoiar a oposição a não sob o seu ponto de vista. O país se auto gera.
Saddam. Até aqui os efeitos não se fizeram visíveis. Nixon queria dizer com isso que as empresas do
Sobre o tema, Le Monde Diplomatique elaborou um país conduziam os negócios do país. E neste negócio
dossiê (‘Cahier Iraq’), que está disponível em seu não se trata de outra coisa que não de dinheiro. O
sítio http://www.monde-diplomatique.fr/cahier/ presidente só é necessário para a política externa.
irak. Um demagogo experto poderia demonstrar essa
2
O papel da imprensa, instrumento da guerra cosa nostra das empresas. (…) Ele (Clinton) é apenas
– a guerra mediática em que objetivos militares se um empregado. Os presidentes não interessam. Eles
confundem com seus efeitos nos meios de comuni- podem fazer algumas besteiras na política externa,
cação de massa, na qual a imprensa é um instru- como agora em Kosovo, mas não na política interna.
mento de ação com objetivos em nada diversos dos O presidente americano pode ser porventura
bombardeiros e das bombas –, está a exigir um importante para os sérvios, mas não o é para os
ensaio à parte, o que extrapolaria os limites deste americanos. A América dos conglomerados
texto. Da imprensa brasileira – em face do distan-
emprega seus advogados, que tratam de seus
ciamento geográfico e da inexistência de interesses
interesses no Congresso e no governo. Para isso eles
envolvendo as economias brasileira e iugoslava –
são bem pagos; os donativos para as campanhas
poder-se-ia esperar um mínimo de não-passiona-
eleitorais fazem mais do que o necessário”. VIDAL,
lismo. Mas não foi o que se viu. Ao leitor brasileiro
Gore. Em entrevista a WINKLER, no Suddeutsche
foi transmitido um noticiário de segunda mão e
unilateral, fornecido por uma das partes em confli- Zeitung, edição de 2-3 de junho de 1999 (Tradução
to. Jamais a imprensa brasileira procurou conhecer de Susana de Castro Amaral).
um eventual outro lado da história. Quando en-
6
Escreve FRIEDMAN, Thomas, articulista do
viou seus próprios repórteres, foi para reforçar a The New York Times Magazine, no artigo ‘Manifesto
visão unilateral da guerra. Que Hollywood sirva ao para o mundo veloz’ traduzido pelo O Estado de
Pentágono e a CNN atenda ao Departamento de São Paulo e publicado na edição de 29-5-99: “O
Estado norte-americano, até que se entende. Mas o sistema da ‘globalização’ encontra-se erguido em
que a imprensa brasileira tem com isso? Sua sub- torno de três elementos de equilíbrio que se sobre-
serviência chega a pô-la em distonia com Brasília, põem e exercem influência entre si. É o tradicional
cuja posição foi sempre, ainda que exageradamen- equilíbrio entre Estados e Estados. O seguinte é o
te tímida, de condenação da guerra como meio de equilíbrio entre Estados e supermercados – os
solução dos conflitos políticos. gigantescos mercados globais de títulos e ações. Os
3
BURDIEU, Pierre. Contre-feux. Propos pour Estados Unidos podem destruir você jogando
servir à la résistence contre l’invasion néo-liberale. Liber- bombas e os supermercados podem destruir você
Raisons d’Agir. Paris. 1998. desvalorizando os seus títulos”.
4
SANTOS, Milton. Geógrafo, professor emérito 7
Cf. O Globo de 5-9-99: “67 das 70 maiores
da USP. In ‘Guerra dos lugares’. FSP. 8.8.1999. audiências do Brasil são da (TV) Globo”.
5
A crítica de Gore Vidal à ‘democracia repre- 8
Os mercados nacionais cedem lugar aos blocos
sentativa’ norte-americana pode ser aplicada a to- regionais (CEE, NAFTA, MERCOSUL, ALCA etc.),
das as democracias ocidentais. Depois de assina-
que, por seu turno, tendem à unificação; em nosso
lar, como fato triste, que em seu país não exista
Continente, a última pá de cal será a absorção do
mais política (o que seria uma das fontes da ‘polí-
MERCOSUL pela ALCA, projeto ostensivo da
tica’ de guerra), observa: “(…) Nós não possuímos
‘diplomacia’ norte-americana. Retomamos essa
uma democracia representativa. Quem foi eleito
temática em nossas considerações finais: 3. E a
para o Congresso não representa a Califórnia ou a
América Latina?
Virgínia Ocidental, senão a General Motors ou a
Boing. Todo mundo sabe disso, e as pessoas se
9
“A desaparição da URSS originou 15 novos
acostumaram com essa situação. (…) Nós, ameri- Estados, com graus variados de soberania efetiva
canos, temos de defender o nosso Bill of Rights ou mas dotados de representação internacional
já quase o perdemos. Um homem que durante vin- própria, forças armadas e sistemas de leis
te anos fez comerciais para a General Electric se particulares. A criação da CEI não foi capaz de
tornou um dia presidente dos Estados Unidos e fez evitar a deflagração de guerras abertas em
no seu novo emprego aquilo que melhor podia – repúblicas ex-soviéticas. Os conflitos latentes entre
comerciais para a General Motors. Estou-me refe- povos, etnias e nacionalidades que compunham o
rindo a Ronald Reagan. Os apresentadores talvez Estado soviético degeneraram em conflitos milita-
sejam trocados, mas o comercial para a empresa res e uma instabilidade estrutural se instalou na
permanece o mesmo. Richard Nixon não foi imbecil periferia da Comunidade e na região báltica”.
quando disse que os EUA não precisavam de MAGNOLI, Demétrio. Questões internacionais

Brasília a. 36 n. 142 abr./jun. 1999 369


contemporâneas. Fundação Alexandre Gusmão. 19
“Intervenção é a nova estratégia”, Oppenhei-
Brasília. 1995. P. 84. mer, W., in Jornal do Brasil, idem.
10
Escreve FARAH, Paulo Daniel ‘Os Bálcãs – 20
FRIEDMAN. Idem.
Qual será a próxima guerra?’ in Folha de São Paulo, 21
Idem Idem.
20-6-99: ‘O Ocidente viu o desmantelo da ex-Iu- 22
Só para lembrar: trata-se de uma das Anti-
goslávia como uma vitória sobre o comunismo’ (mas) lhas, um Estado independente com 344 km2 e 110
‘a ofensiva neoliberal contra os antigos Estados co- mil habitantes. Foi invadido pelos Estados Unidos
munistas produziu desordens na Europa que cau- (administração Reagan) em 1983 porque tinha um
saram o ressurgimento de comportamentos seme- governo sob forte influencia cubana, evidenciada
lhantes aos dos nazistas’. pela construção, em sua capital (São Jorge), de uma
11
O acordo de Daytona, “ao mesmo tempo que pista de aviões, que, podendo servir a um aeropor-
impôs uma paz armada, coroou a lógica da limpe- to internacional, também poderia servir de base para
za étnica e a separação entre os povos criando três uma agressão ao território norte-americano… A pis-
entidades nacionais (de um lado, com metade do ta ou o aeroporto eram construídos por engenhei-
território, as entidades croata e muçulmana reuni- ros ou técnicos cubanos.
das em uma federação; com a outra metade, uma 23
Só para lembrar: Estado independente da
entidade sérvia). Em cada um dos territórios, os América Central, situado na parte oriental da ilha
membros das demais etnias foram deslocados, do Haiti, com 48.400 km 2 e 7.500.000 de habitan-
impondo assim a lógica da separação, que era atri- tes; em 1983, foi invadido por tropas norte-ameri-
buída aos sérvios e cuja negação, supostamente, canas e de outros países da OEA, inclusive o Brasil
justificava toda ação dos aliados dos Estados Uni- (sob ditadura militar), para impedir a posse do
dos. Os acordos implicaram a renúncia sérvia a Presidente eleito, J. Bosch, de esquerda.
certos territórios. Eles, que tinham chegado a domi- 24
Citado pelo Jornal do Brasil de 1º- 3- 99.
nar 70% da Bósnia, ficaram com cerca de 50%. Os 25
A íntegra do discurso pode ser encontrada na
sérvios perderam terras, mas o acordo tornou ven- Internet, no seguinte endereço: CNN.com/Custom-
cedora a lógica da imposição de uma separação News. O autor agradece a colaboração de Pedro
entre os povos”. SERVA, Leão. In ‘Bálcãs: onde as Amaral.
tragédias da História se repetem (Nesta guerra, a 26
Samuel Pinheiro Guimarães, diretor do Insti-
primeira vítima é o leitor)”. Política Externa. Vol. 8. tuto de Pesquisas em Relações Internacionais do
N.1- junho- 1999. p-14. Itamarati, em entrevista ao Jornal do Brasil, 25-07-
12
Idem. P 3-15. Recomendamos sua leitura 99. Este texto já estava concluído quando nos che-
principalmente para aquele leitor que desejar uma gou às mãos seu livro Quinhentos anos de periferia.
indispensável contextualização da crise e do confli- A Universidade Federal do Rio Grande do Sul/Con-
to dos Bálcãs. traponto. 1999. O livro em si, ademais de seus ex-
13
“Como se poderia ter evitado a tragédia, já traordinários méritos, tem duas características bem
que se tratava de fragmentar a Iugoslávia? Como brasileiras: editado por uma Universidade, sofre
os 600 mil sérvios que viviam na Croácia poderiam uma comercialização amadora, não se encontra nas
viver a divisão senão como uma tragédia que leva- livrarias; de outra parte, vem merecendo significa-
ria à guerra e aos massacres?”. Peter Handke, em tivo silêncio dos diplomatas brasileiros que, no en-
entrevista ao Libération, FSP, 4 de abril de 1997, isto tanto, e justificadamente, não se cansam nas loas a
é, dois anos antes da invasão ‘humanitária’. livro de antigo chefe do Departamento de Estado
14
Cf. MARTINS, José Miguel Q., in ‘Nem a guer- Norte-Americano; a edição brasileira conta, até,
ra nem a paz’, apud Conjuntura política, Boletim de com declarações (‘comerciais’) do Ministro do Ex-
análise do Departamento de Ciência Política da terior brasileiro em anúncios de página inteira no
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Jornal do Brasil de 22-08-99.
UFMG, n. 7-maio/1999, p. 33-36.
27
Cit. Idem.
15
SAID, Edward W., ‘La trahision de los 28
Diz o artigo 3º da Declaração dos Direitos do
intelectuales’. In Le Monde Diplomatique, aoüt, Homem e do Cidadão: “Le príncipe de toute souve-
1999. P. 6-7. ranité réside essentiellement dans la nation”.
16
MAGNOLI, Demétrio. Ob. cit. . p-122-3. 29
A Carta da ONU proíbe a ameaça ou uso da
17
Cf. FSP, 26-6-1999. força, a não ser que o Conselho de Segurança o
18
Trata-se da Cimeira de 23 de abril pp. reali- tenha autorizado expressamente, depois de con-
zada em comemoração dos 50 anos do Tratado. cluir que os meios pacíficos fracassaram, ou em
Nessa reunião, a cúpula da OTAN decidiu, além defesa própria contra “agressão armada”, até que
de manter os ataques à Iugoslávia, adotar medi- o Conselho de Segurança atue.
das complementares como ‘aplicação intensificada 30
Jornal do Brasil, 19-6-99. “Nossos soberanos
de sanções econômicas e um embargo de produtos atacam do ar pessoas inocentes. Isto é tão ruim
petrolíferos’. Jornal do Brasil , 24 de abril de 1999. quanto tudo o que Milosevic faz. Milosevic, ao

370 Revista de Informação Legislativa


menos, menosprezava as pessoas que mata, contrato de serviço, entretanto, diz: não queremos
enquanto nós nem ao menos as conhecemos”. nenhum ferido e morto”. VIDAL, Gore. idem.
VIDAL, Gore. Cit. Idem. 40
“A região que hoje chamamos Kosovo é cha-
31
A dúvida se coloca mesmo para as autori- mada de Velha Sérvia pelos sérvios, que a reivindi-
dades americanas, como revela recente artigo do cam por ser a terra de seus ancestrais, porque ali
ex-presidente Jimmy Carter (New York Times, eles estavam no começo de sua história conhecida
27.5.99), no qual o antigo líder do Partido (antes, ágrafos, migraram para a região em torno
Democrata, de Clinton, após afirmar que a decisão do século VI d.C. expulsando outros moradores) e
de atacar toda a Iugoslávia tornara-se contrapro- ali perderam a batalha para os turcos otomanos e
ducente, e a destruição da vida civil ‘sem sentido e foram expulsos, tornando-se os que ficaram uma
brutal’, escreve: “Não estou certo de que nosso país minoria em sua terra natal. A seu modo de ver,
concorde em destruir vidas civis de um país inteiro ‘vencer os turcos’ é retomar Kosovo, desfazer o que
para tentar forçar um líder recalcitrante, que é um os otomanos fizeram. A mesma região é reivindica-
criminoso de guerra, a obedecer aos nossos desejos”. da pelos albaneses porque há muito são eles que
32
Defenestrado do poder quando não mais ser- fazem a maioria de seus habitantes, pelo menos
via ao regime da unipotência, o ditador encontra-se desde que a derrota dos sérvios forçou a migração
intocado e conduz um governo fantoche formado para o Norte e a hegemonia turca permitiu a chega-
por ex-auxiliares por ele mesmo indicados. da dos albaneses. Para um leitor brasileiro, cuja
33
CHOMSKY, Noam. “Lei, direitos humanos e totalidade da história escrita se mede em meio mi-
as lições da história”. Jornal do Brasil, 25-4-99. lênio, essas histórias podem parecer sem sentido.
34
Idem. Para povos cujas árvores genealógicas muitas ve-
35
Cf. RAMONET, Ignacio. ‘Nouvel ordre zes remontam a mil anos, a memória do passado
global’. Le Monde Diplomatique, juin 1999 p. 4. está escrita na história pessoal de cada um”. SER-
36
A Rússia tem laços históricos, culturais e VA, Leão. Idem. p-7.
cristãos ortodoxos com a Sérvia, à qual vende armas
41
HAQ, Farhab,. “EUA agem contra tribunal
e petróleo desde o fim da Segunda Guerra. Foi sua internacional”. Jornal do Brasil. 9-6-99.
aliada na Primeira e Segunda guerras mundiais.
42
Idem.
37
Cf. William Pfaf. ‘What Good is NATO if
43
CHOMSKY, Noam. Ob. Cit.
America Intends to Go Alone?’. In International
44
O preceito ‘não matarás’ não deriva de um
Herald Tribune. 20-1-1999. critério gravado por natureza no coração dos ho-
mens, como pretendiam os jusnaturalistas, mas do
38
José Meireles Passos, ‘A caminho da guerra
imperativo categórico (Kant), pois, se eu matar e
do futuro’ (O Globo), fazendo um resumo dos avan-
quiser, para me absolver a mim mesmo, transfor-
ços do Pentágono na direção da guerra tecnológica,
mar essa máxima em princípio, convertendo o as-
observa que “A tendência é que os combates se
sassinato em princípio universal, todos matariam,
tornem mais parecidos com um video game, uma
e, portanto, todos morreriam. Ouso sugerir duas
espécie de guerra virtual, só que, na prática, devas-
leituras: ‘Guerra santa ou guerra justa?’ e ‘Segun-
tadora. Em vez de produzir munição sólida, pesa-
das considerações éticas (ou: Cada história tem o
da, convencional, biológica, química ou nuclear,
Ricardo que merece)’, in HOUAISS, Antônio &
opta-se pelo cultivo de vírus de computador, da
AMARAL, Roberto. Socialismo, vida morte, ressur-
fabricação das chamadas bombas lógicas e das
reição (2ª ed.) Editora Vozes. Petrópolis, 1993.
bombas eletromagnéticas”. Acrescenta: “Já na Guer- 45
Relembre-se: a Iugoslávia, até o fim da guerra
ra do Golfo Pérsico, em janeiro de 1991, os EUA fria, isto é, antes de ser despedaçada, como a mai-
utilizaram uma dessas novas armas, na época ain- oria dos Estados do antigo Leste-europeu (como a
da em estágio inicial: em vez de explosivos, os mís- URSS e a Tchecoslováquia), era uma República
seis cruzadores Tomahawk levavam ogivas eletro- Socialista Federativa, formada por seis repúblicas:
magnéticas para destruir os sistemas eletrônicos Bósnia-Herzogovína, Croácia, Macedônia, Monte-
do Iraque”. negro, Sérvia (que incluía as províncias de Voivodi-
39
“Entre as coisas mais espertas que a direita na e Kosovo-Metohija) e Eslovênia. Compreendia
norte-americana poderia fazer está a revogação, um território de 255.805 km2 e uma população de
depois da guerra do Vietname, da obrigatoriedade 23.239.000 habitantes. Após a débâcle, a Iugoslá-
do serviço militar. Com a obrigatoriedade do servi- via, o mais aberto dos países do Leste, passou a
ço militar não seria possível uma tal campanha reunir apenas a Sérvia (com as províncias de Voi-
(Kosovo). Eles possuem mães e pais ricos e pode- vodina e Kosovo) e Montenegro, reduzida a um
rosos que diriam: meu filho não irá voar sobre território de 102.200 km 2 e a uma população de
Kosovo para vocês, seus idiotas! Por isso, o exército 10.500.000 habitantes. As guerras que se seguiram
americano recruta soldados entre os pobres, negros à partição da antiga Federação (Eslovênia, Croácia
e brancos na mesma medida. Esse exército assala- e Bósnia) mataram 250 mil pessoas e provocaram
riado é bem pago. Uma cláusula importante no a fuga de um milhão de refugiados.

Brasília a. 36 n. 142 abr./jun. 1999 371


SERVA, Leão… p-8.
46 56
Veja. Ano 32, edição 1.610, 11 de agosto de
Cf. RAMONET, Ignácio. La Tyrannie de la
47
1999. ‘A sombra do Vietnã’. p. 52-53.
communication. Galilée. Paris. 1999. p. 148. 57
“Antes de partir para a Colômbia, o gal.
48
A idéia desse eixo (ao qual se somariam, ine- Barry McCaffrey, chefe da luta contra o narcotráfi-
vitavelmente, o mundo islâmico e outras potên- co nos EUA, disse, em Milão, que os EUA não di-
cias) teria sido lançada por Primakov, ex-primeiro- ferenciam mais o combate ao narcotráfico do com-
ministro russo, em dezembro p.p. A proposta foi bate à guerrilha. Na visão americana, as FARC são
retomada a 11 de maio p.p., pelo embaixador da financiadas por uma extensa rede de narcotráfico”.
China na Índia, anunciando haver chegado a hora O GLOBO, 27 de julho de 1999. V., igualmente,
de os “três gigantes asiáticos se juntarem para ve- SEKLES, Flávia. Idem.
lar por sua segurança mútua num universo unipo- 58
Veja. Idem.
lar”. Cf. CARLOS, Newton. “Choque de civiliza- 59
SEKLES, Flávia. Idem.
ções?” in. Jornal do Brasil, 24-5-99. 60
“Instabilidade mostra sua cara. América La-
49
Noticia o Jornal do Brasil, edição de 9-6-99: “A tina revive tensão social com protestos e ameaças
importância da criação de um sistema de defesa
de estado de exceção”. O Globo, 1º de agosto de
da América do Sul foi levantada no seminário
1999.
‘Diálogo para o Milênio’, promovido ontem no Rio 61
Idem.
pelo Itamarati”. 62
‘EUA e Brasil discutem cerco a guerrilheiros’.
50
“Desde o colapso econômico da Rússia, em
O Globo. 18-08-99.
agosto, pesquisas mostram que uma parcela con- 63
‘Brasil cortará rotas para a Colômbia’. Jornal
siderável da população culpa os EUA pelas falhas
do Brasil. 20-08-99.
do país (…). Muitos russos acham que os EUA –
apesar de sua ajuda econômica e assessoria, ou
64
Observa Samuel Pinheiro Guimarães que “A
talvez por causa disso – têm uma política determi- China tem experimentado extraordinário crescimen-
nada de rebaixá-los e enfraquecê-los”. HOLMES, to de produção e das exportações de uma maneira
Charles W. ‘Jogo russo movido por patriotismo e independente, sem se submeter à política das agên-
mágoa’, in O Globo, 20-6-99. cias internacionais. A China, após resolver a ques-
51
‘Além de Kosovo’ in O Globo. 11-6-99. tão da unidade de seu território, com a reintegra-
52
Cf. Jornal do Brasil, ed. 11-6-99. ção de Taiwan, deverá desempenhar, em conjunto
53
Cf. CASTRO, Moacir Werneck de. ‘A porta com o Japão, outra economia heterodoxa, papel
aberta’, in Jornal do Brasil, 27 de julho de 1999. extraordinário internacional, o qual poderá recupe-
54
SEKLES, Flávia. ‘A guerra americana na Co- rar sua multipolaridade, o que é fundamental para
lômbia”. Jornal do Brasil, 1º de agosto de 1999. o Brasil”. Idem.
55
Cf. GARZÓN, Luis. Presidente da Central 65
Todos, menos Cuba.
Unitária dos Trabalhadores, CUT (Social- 66
GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. id. Idem.
democrata). ‘Intervenção dos EUA pode oficializar 67
Cf. ROSSI, Celso. ‘EUA cobram ‘plena atenção’
guerra civil’. Diário de Pernambuco. 7-8-99. à Alca’. FSP, 21 de julho de 1999.

Referências bibliográficas conforme original.


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