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Estética e percepção em Bergson:

a arte como modelo da filosofia

Pablo Enrique Abraham Zunino


UFRB

I – O sentimento estético como problema filosófico.

No primeiro capítulo do Ensaio1, Bergson procura descrever o


que comumente entendemos por estado psicológico: os “estados de
consciência”, diz ele, são aquelas sensações, sentimentos ou paixões
que se exprimem através de esforços puramente internos. Não se trata,
portanto, de uma separação de estados, como se fossem coisas exterio-
res umas das outras, mas de um tipo de diferenciação que é gerada in-
ternamente. Essa diferença interna é notada, por exemplo, quando com-
pararmos um estado atual com outro anterior: “Nos parece evidente
que experimentamos uma dor mais intensa ao sentirmos que nos ar-
rancam um dente do que um cabelo” (DI, p. 8). Entretanto, admitir que
uma sensação de dor aumenta ou diminui significa aceitar tacitamente
um pressuposto filosófico (e uma tese científica) que confunde dois
elementos: (1) a qualidade da sensação e (2) o esforço corporal. Com
efeito, podemos quantificar (medir) as contrações musculares, mas
não a sensação pura. Por isso, dirá Bergson, a diferença qualitativa é ir-
redutível à diferença quantitativa. E para defender essa irredutibilidade,


1
BERGSON, H. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Œuvres. Édition du centenaire.
Paris: PUF, 1959. Doravante Ensaio, citado como DI.

Carvalho, M.; Solis, D. E. N.; Carrasco, A. de O. R. Filosofia Francesa Contemporânea. Coleção


XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 327-336, 2015.
Pablo Enrique Abraham Zunino

o filósofo se aproxima da estética, porquanto algumas sensações, como


o sentimento de beleza que experimentamos ao apreciar uma obra de
arte, permitem caracterizar mais nitidamente a qualidade pura.
Em outras palavras, ao formular o problema da intensidade dos
estados de consciência somos confrontados com o sentimento estético.
Afinal, por que não se pode medir a intensidade dos sentimentos e das
emoções associados à beleza e à arte? Assim como o sentimento estéti-
co, o simples sentimento de alegria parece ocorrer de maneira crescente,
porque nos invade ocupando progressivamente a nossa alma.2 Porém,
quando separamos intervalos e atribuímos fases sucessivas a um senti-
mento (mais alegre, menos alegre), perdemos o elemento propriamente
qualitativo. Desse modo, todo o progresso qualitativo é interpretado
como uma mudança de grandeza que chamamos de intensidade.
Esses “sentimentos profundos” aparecem de modo mais eviden-
te na experiência estética, na medida em que ela envolve progressão
e transformação.3 Ao assistir uma apresentação de dança – e nas artes
cênicas de modo geral, experimentamos um tipo de beleza peculiar: o
sentimento da graça.4 Pensemos num espectador que assiste à coreogra-
fia de uma bailarina: o que provoca nele o sentimento estético? Há três
elementos envolvidos no sentimento de beleza que acompanha a dança:
1) O primeiro aspecto é a desenvoltura, marcada pela leveza
como sinal de mobilidade. O movimento fácil tem uma finalidade in-
trínseca, diferentemente do movimento difícil, que possui finalidade
externa e supõe um trabalho contra a matéria. Assim, a desenvoltura
dos movimentos se manifesta virtualmente como algo que é sugerido,
como um movimento nascente, mas não realizado;
2) A segunda figura da experiência estética é a temporalidade. O
tempo aparece como um conteúdo que se sintetiza a si mesmo de ma-
neira imanente, conjugando continuidade e heterogeneidade no pró-
prio sentimento: “A percepção de uma facilidade nos movimentos vem
aqui fundir-se no prazer de interromper de alguma maneira a marcha

2
Como tantos outros “sentimentos diversos, cada um dos quais, anunciado já pelo preceden-
te, se torna visível e a seguir o eclipsa definitivamente” (DI, p. 13).

3
Cf. PINTO, D. “O tempo e seus momentos interiores: heterogeneidade qualitativa e diferen-
ça interna como marcas da duração bergsoniana”. Analytica, v. 9, nº 2. Rio de Janeiro: UFRJ,
2005, pp. 74-83.

4
Cf. PRADO Jr., B. Presença e campo transcendental: consciência e negatividade na filosofia de Berg-
son. São Paulo: Edusp, 1989, pp. 81-86.

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Estética e percepção em Bergson: a arte como modelo da filosofia

do tempo e de conter o futuro no presente” (DI, p.9).


3) A terceira figura do sentimento da graça é a simpatia física pro-
porcionada pelo ritmo e o compasso do acompanhamento musical:

O ritmo torna cúmplices o espetáculo e o espectador. O espec-


tador não é apenas o beneficiário intercambiável que recebe
passivamente a “beleza” do espetáculo; é ele que suspende pro-
visoriamente a legislação do mundo profano do trabalho e da
exterioridade. E é esta participação no ato que engendra o espetá-
culo, esta cumplicidade entre visão e visível que Bergson descre-
ve como uma espécie de simpatia física (PRADO Jr.,1989, p. 84).

Essa irresistível atração da beleza na dança afina com a simpatia


moral na medida em que supõe uma comoção, uma solidariedade no
movimento que incita o espectador a mover-se junto com a bailarina,
diluindo na temporalidade o espaço separador entre as partes. Desse
ponto de vista, o objetivo da arte é comparável a um estado de hipno-
se, uma vez que se trata de adormecer as potências ativas da nossa per-
sonalidade e levar-nos a um estado de docilidade no qual simpatizamos
com o sentimento estético expresso pela obra de arte.
Assim na música, por exemplo, o ritmo e o compasso suspendem
o fluxo normal de idéias e nos introduzem nos sentimentos que ela
expressa: a imitação de um gemido nos provocará tristeza. Na poe-
sia, o encanto e a beleza se exprimem através de sentimentos que se
desdobram em imagens. E estas, por sua vez, em palavras ritmadas.
A imagem traduz um sentimento e as palavras carregam a emoção.
Destaque para o ritmo, enquanto movimento que embala nossa alma e
a adormece: como em um sonho, ela passa a ver como o poeta.
Nas artes plásticas também encontramos esse contraste entre um
adormecer e um despertar provocado pelas mudanças que opera a arte
no curso ordinário da nossa vida. Na pintura, a fixidez que certas ima-
gens impõem à vida cotidiana, despertam a atenção do espectador; na
escultura, a pálida imobilidade da pedra transmite algo de eterno que
nos absorve; na arquitetura, existem efeitos análogos ao do ritmo: a
simetria das formas e a repetição indefinida de padrões. Nota-se, por-
tanto, que estas considerações sobre as diferentes manifestações artís-
ticas convergem na noção de ritmo:

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A arte visa assim, mais do que expressar, imprimir em nós senti-


mentos; sugere-os, prescindindo facilmente da imitação da natu-
reza quando depara com meios mais eficazes. A natureza proce-
de por sugestão como a arte, mas não dispõe do ritmo (DI, p. 14).

A sugestão, quando indica um sentimento, transfere a intenção


do artista para a obra de arte, que estabelece uma simpatia compará-
vel à atração de um ímã. Ela é capaz de despertar em nós uma aten-
ção mais abrangente, que inclui as partes e o todo da figura, e se dife-
rencia da atenção seletiva da percepção comum, sempre voltada para
a ação mais útil. O alargamento da faculdade de perceber é embalado
por uma harmonia em que nada interrompe o livre impulso da sen-
sibilidade. E essa emoção estética – ou simpática (sim-pathos: mesma
afecção) – supõe uma simultaneidade, isto é, uma coincidência entre
o artista, a obra e o espectador.5
Retomemos agora o problema da quantificação. Quando gira-
mos o controle de volume de som, notamos uma mudança de intensi-
dade na sensação auditiva (diferença qualitativa). Sabemos, contudo,
que essa mudança se relaciona com o aumento (quantitativo) do esfor-
ço muscular, isto é, com a força necessária para girar o botão (mesmo
que seja uma leve pressão na tela do smartphone). Além disso, a análise
do caráter estético nos mostra que existe uma diferença entre “causar”
(sem intenção, no caso da arte da natureza) e “sugerir” através da in-
tencionalidade artística.
Por analogia com o movimento muscular, podemos afirmar que
também na obra de arte a força do sentimento sugerido supõe graus
de intensidade. A riqueza desse sentimento (pluralidade qualitativa)
comporta graus de profundidade e elevação. Todos os pensamentos e
sentimentos que o artista sugere exprimem uma parte de sua história
e de sua vida. Nesse sentido, a arte que produz apenas sensações é
uma arte inferior se comparada à arte que produz também emoções.
Na verdade, existem milhares de sensações, sentimentos e idéias que
enriquecem uma emoção artística e formam com ela um estado único.

5
“O sentimento do belo não é um sentimento especial; todos os sentimentos que experimen-
tamos se revestem de um caráter estético, sempre que são sugeridos [pelo artista], e não ape-
nas causados [pela natureza ou pela vida]. Compreende-se então porque a emoção estética
nos parece admitir graus de intensidade e também graus de elevação” (DI, p. 15).

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Estética e percepção em Bergson: a arte como modelo da filosofia

Para apreendê-lo em sua originalidade estética, teríamos que viver a


vida do artista que experimentou esse estado emotivo: “o artista visa
introduzir-nos nesta emoção tão rica, tão pessoal, tão nova, e levar-nos
a experimentar o que não poderia fazer-nos compreender” (DI, p. 15-
16). Esse é o sentido exato do verbo “experimentar”, que implica sentir
ou viver por si mesmo uma emoção particular, ao passo que “com-
preender” já é pensar e racionalizar o que era apenas um sentimento
grávido de ideias.6
A emoção fundamental se compõe de vários fatos psíquicos im-
perceptíveis que em algo coincidem com a intenção original do artista,
mas em cada espectador podem repercutir de maneira singular, de-
notando o caráter de uma verdadeira diferença qualitativa. Quanto
mais fatos psíquicos elementares (sentimentos, idéias) estão presentes
em uma emoção estética fundamental, mais rica ela é. Assim, toda a
gama de diferenças qualitativas que pode produzir uma obra de arte
(mudanças de elevação e profundidade internas) se traduz em um au-
mento ou diminuição de intensidade emotiva, através de um processo
inconsciente de quantificação do sentimento estético.

II – Arte e percepção: a conversão da atenção.

Na conferência “A percepção da mudança”7, a reflexão sobre a arte


nos encaminha para uma das prerrogativas do método bergsoniano: vol-
tar à percepção e conseguir que ela se dilate e se estenda; um movimento
contrário ao da Primeira Meditação de Descartes8, que duvidava sistema-
ticamente da percepção e dos sentidos para enfatizar a prioridade do
conhecimento intelectual. Bergson aponta dois procedimentos reducio-
nistas na tradição inaugurada por Descartes: primeiro, a eliminação da
diferença qualitativa que impregna o real; segundo, a conservação e o


6
“Será tanto mais rico de idéias, cheio de sensações e emoções o sentimento em cuja área
nos introduziu, quanto mais a beleza expressa [na obra] tiver profundidade e elevação. As
intensidades sucessivas do sentimento estético correspondem a mudanças de estado [quali-
tativas] ocorridas em nós, e os graus de profundidade a um maior ou menor número de fatos
psíquicos elementares [quantitativos] que dificilmente distinguimos na emoção fundamen-
tal” (DI, p. 16).

7
BERGSON, H. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 154-159. Dora-
vante PM.

8
DESCARTES, R. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

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tratamento exclusivo da diferença quantitativa (de grau) que caracteriza


a substância extensa (matéria). Esses procedimentos empobrecem o real
e transformam o mundo em um objeto geométrico e matemático.
Ao invés disso, o nosso filósofo propõe um alargamento da per-
cepção, isto é, uma percepção mais abrangente que inclua também os
aspectos qualitativos do mundo. Ora, como pedir aos olhos do corpo
que vejam mais do que eles já vêem? A atenção pode tornar mais pre-
ciso um objeto, iluminar ou intensificar seus aspectos, mas não pode
fazer surgir no campo da percepção aquilo que não estava ali de início.
É possível, contudo, refutar essa tese. Eis o que Bergson descobre na
experiência da arte: “Há séculos que surgem homens capazes de ver
(e de nos fazer ver) o que não percebemos naturalmente. São os artis-
tas!” (PM, p.155). A arte nos mostra na natureza e no espírito, fora de
nós e em nós, coisas que não impressionavam nossos sentidos e nossa
consciência. As intervenções urbanas na arte contemporânea e as ins-
talações artísticas das Bienais são uma prova disso.
Mas há exemplos em todos os campos da arte. O poeta e o ro-
mancista (Proust, Fernando Pessoa ou Machado de Assis, para citar al-
guns) exprimem um estado de alma ao criarem matizes de emoção que
simpatizam, isto é, despertam em nós esses sentimentos. Assim como
na revelação fotográfica (anterior à fotografia digital), a imagem só
aparece depois de alguns minutos mergulhada no banho de revelação:
“O poeta é esse revelador!” – assevera Bergson. Também na pintura, o
artista isola uma visão e a fixa tão bem na tela que não podemos evitar
de aperceber na realidade aquilo que ele mesmo tinha visto nela.9
Se aceitarmos que, através desses exemplos, a arte nos revela
a possibilidade de alargar a faculdade de perceber, cabe então per-
guntar como é que se efetua essa extensão da percepção? O artista
sempre é caracterizado como um indivíduo “sonhador”, “distraído”,
muito menos preocupado que nós com os afazeres da vida prática.
No entanto, ele consegue ver mais coisas na realidade, sendo mais
desprendido dela. Esse paradoxo pode ser formulado da seguinte
maneira: quanto mais nos preocupamos com a vida cotidiana (viver),
menos nos inclinamos a contemplar.10
9 Lembro quando eu estive em Florência, Itália, visitando o Ponte Vecchio; buscava um ângulo
para a foto que fosse idêntico ao da famosa obra Dante and Beatrice (1884), de Henry Holiday.

10
Na atualidade, esse distanciamento da vida exigiria um desinteresse por certos aspectos
ligados à sociedade de consumo. Cf. ADORNO, Th. “O iluminismo como mistificação das
massas”. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

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Estética e percepção em Bergson: a arte como modelo da filosofia

De tempos em tempos – adverte Bergson – surgem homens desa-


pegados cuja consciência é menos aderente à vida (os artistas). Neles,
a natureza esqueceu de vincular as duas faculdades: a faculdade de
perceber e a faculdade de agir. Porque podemos olhar uma coisa nela
mesma (em si) ou em vista de sua utilidade (para mim). Perceber por
perceber significa perceber pelo prazer, apenas para contemplar, e não
para obter ou fazer algo com isso. A percepção não é somente um meio
para atingir certos fins, como poderia sugerir um certo pragmatismo11;
ela pode ser um fim em si mesmo, quando incorporamos a perspectiva
da estética e da filosofia da arte.
Esse “desprendimento” do artista diante das necessidades da vida
pode afetar apenas um sentido (visão, tato, ouvido) ou a consciência de
modo geral. Daí o surgimento dos pintores, escultores, músicos ou poe-
tas, de acordo com o sentido alargado, e a visão mais direta da realidade
que se encontra nas diferentes artes. Pelo fato do artista não pensar tanto
em utilizar sua percepção, ele percebe um maior número de coisas.
Se de tempos em tempos – como diz Bergson, a Natureza con-
cede esse privilegio a certos homens (os artistas), será que a filosofia
não poderia, de algum outro modo, proporcionar isso a todos? Essa
pergunta nos ajuda a compreender o papel que tem a filosofia para
Bergson, qual seja, conduzir-nos a uma percepção mais completa da
realidade graças a um deslocamento da atenção. Promover essa aber-
tura filosófica exige, primeiramente, afastar a atenção quase exclusiva
do lado praticamente interessante do universo e voltar-se para aquilo
que, praticamente, de nada serve.
Essa conversão da atenção seria a própria filosofia, mas esse é
apenas o ponto de partida da filosofia de Bergson, sempre centrada
no tema da temporalidade e seu correlato metódico: o método de intuição,
que requer um esforço supra-intelectual capaz de inverter a marcha ha-
bitual do trabalho do pensamento, conduzida pela inteligência.12

11
De modo geral, as necessidades da ação prática limitam nosso campo de visão (estético) na
medida em que o pragmatismo social exige um recorte, um empobrecimento do real. Esse
interesse prático nos leva a prestar atenção ao que é mais imediato: o aqui e agora. E a per-
cepção, nesse quadro, tem por função utilitária efetuar o recorte pragmático daquilo que nos
interessa para agir: ela não nos mostra as coisas como são; nos indica apenas para que nos
podem servir.

12
Cf. ZUNINO, P. O filósofo e o relógio de areia: vida e temporalidade em Bergson. Revista
Diálogos Possíveis. Salvador: FSBA, 2014 (no prelo).

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III – Arte e filosofia: a intuição como criação.

As ideias de tempo mecânico (trabalho) e de tempo lento (pen-


samento) podem ser pensadas no horizonte da oposição bergsoniana
entre aquilo que é repetitivo, de um lado, e aquilo que denota um pro-
cesso interno de diferenciação, de outro. Este último, como vimos, é
constitutivo da criação artística, mas a relação entre o artista e sua obra
exige que se distinga entre descoberta e invenção: “A descoberta refe-
re-se àquilo que já existe atual ou virtualmente: ela certamente viria
mais cedo ou mais tarde. A invenção doa o ser àquilo que não existia,
e poderia nunca vir”.13 Esse tipo de invenção ocorre naturalmente na
arte, visto que o artista é o inventor da sua obra. É assim que podemos
entender também o método da intuição, com base no modelo da cria-
ção e da invenção:

O estatuto da obra de arte e do artista não podem ser entendidas


como uma psicologia do ato criador. [...] O que mais interessa à
concepção bergsoniana da arte não é a gestação individual da
obra, mas o processo de identificação com a totalidade da qual
a obra se faz veiculo de revelação. Nesse sentido todo artista, no
plano da expressão, já é um intérprete de si mesmo, da mesma
forma que o filósofo, quando expressa sua intuição fundamental
em sistema, já é um discípulo de si mesmo. [...] A obra de arte, o
artista são manifestações da continuidade do Ato Criador.14

Talvez por isso Deleuze tenha definido a filosofia como uma dis-
ciplina que consiste em criar ou inventar conceitos.15 De fato, costuma-
-se dizer que ter uma intuição é ter uma ideia, mas o que é exatamen-
te “ter uma ideia”? Notemos, antes de tudo, que a criação enquanto
processo não supõe necessariamente um criador, uma vez que o su-
jeito passa a ser ele mesmo efeito do processo criativo. Abandona-se
de saída o pressuposto de um sujeito relaxado e passivo como subs-
trato de uma ação espontânea, mas também a intenção ou a finalidade
perseguida pela ação voluntária. Para compreender essa experiência

13
GOUHIER, H. Bergson dans l’histoire da la pensée occidentale. Paris: Vrin, 1989, p. 60.

14
Cf. LEOPOLDO E SILVA, F. Bergson: intuição e discurso filosófico. São Paulo: Loyola, 1994, p.
325-326.

15
DELEUZE, G. O ato de criação. Folha de São Paulo, 27 jun. 1999b. Caderno Mais!, p. 4-5.

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Estética e percepção em Bergson: a arte como modelo da filosofia

“sem piloto” que independe da vontade de um eu, podemos pensar


nos artistas que se dizem tomados por ideias como se elas os invadis-
sem. Ter uma ideia não resulta de um processo de busca ativa, já que
o ato criador assemelha-se mais a um “encontro” do que ao resultado
de uma busca. Isso não significa que a ideia surja espontaneamente:
“Não é uma busca orientada, mas também não é uma simples espera.
Trabalha-se para ter a possibilidade de receber a idéia. Melhor seria
referir-se a uma ativa receptividade”.16
Pensemos na atitude de um caminhante urbano. De um lado, te-
mos o trabalhador que se dirige quase automaticamente do lar até o
local de trabalho, seguindo uma linha reta; de outro, o turista, que é
completamente seduzido pela cidade e passeia aleatoriamente por ela;
entre esses dois extremos, estaria o caminhar do antropólogo, aquele
que parece distraído como um turista, mas está à espreita do insólito
como um caçador, deixando sempre uma margem para o inesperado.
Nesse sentido, o ato criativo tem algo de intuitivo, isto é, uma “atenção
ao mesmo tempo concentrada e sem foco, como aquela que caracteriza
a meditação budista” (KASTRUP, 2007, p. 62). Haveria um aspecto po-
sitivo da distração, na medida em que esta permite captar tudo aquilo
que está fora de foco e, desse modo, se distingue da simples dispersão:
“A distração é um funcionamento em que a atenção vagueia, experi-
menta uma errância, fugindo do foco da tarefa e indo na direção de um
campo mais amplo” (ibid.). A criação, portanto, envolve um trabalho
de composição, pois a ideia não é o pensado, mas o que faz pensar. Ela
cria uma necessidade que impulsiona o trabalho para além da vontade
pessoal do criador. Mais do que o esforço consciente, o que importa é
propiciar o encontro:

O encontro é o refluxo da busca, pois nele somos receptivos. Há


então um ritmo. Buscando uma coisa, podemos encontrar outra e
reorientar todo o processo. [...] Não podemos ser completamente
ativos num encontro, mas devemos deixar-nos afetar pelo que
encontramos (ibid., p. 66-67).

16
Cf. KASTRUP, V. Flutuações da atenção no processo de criação. In: LECERF, E. [et. al.]
(Org.). Imagens da imanência: escritos em memória de H. Bergson. Belo Horizonte: Autênti-
ca, 2007, p. 62.

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Pablo Enrique Abraham Zunino

Ao contrapor à atitude de busca uma atitude de encontro, essa


análise atenua a oposição entre tensão e relaxamento. Isso permite
confirmar a tese de Bergson segundo a qual haveria uma “atenção su-
plementar” para além da atenção à vida prática, isto é, para além do
alcance funcional e utilitário da experiência. Essa atenção suplementar
é a que caracteriza a intuição como uma “percepção alargada”, tal como
a que possuem naturalmente os artistas.

Referências

ADORNO, Th. “O iluminismo como mistificação das massas”. Indústria cultu-


ral e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
BERGSON, H. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Œuvres. Édition du
centenaire. Paris: PUF, 1959.
__________. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
DELEUZE, G. O ato de criação. Folha de São Paulo, 27 jun. 1999b. Caderno
Mais!
DESCARTES, R. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
GOUHIER, H. Bergson dans l’histoire da la pensée occidentale. Paris: Vrin, 1989.
KASTRUP, V. Flutuações da atenção no processo de criação. In: LECERF, E.
[et. al.] (Org.). Imagens da imanência: escritos em memória de H. Bergson. Belo
Horizonte: Autêntica, 2007.
LEOPOLDO E SILVA, F. Bergson: intuição e discurso filosófico. São Paulo: Loyo-
la, 1994.
PINTO, D. “O tempo e seus momentos interiores: heterogeneidade qualitati-
va e diferença interna como marcas da duração bergsoniana”. Analytica, v. 9,
nº 2. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005.
PRADO Jr., B. Presença e campo transcendental: consciência e negatividade na filo-
sofia de Bergson. São Paulo: Edusp, 1989.
ZUNINO, P. O filósofo e o relógio de areia: vida e temporalidade em Bergson.
Revista Diálogos Possíveis. Salvador: FSBA, 2014 (no prelo).

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