Anda di halaman 1dari 11

A EFICÁCIA DA LEI DE TORTURA

As provas
do crime de tortura

R. CEJ, Brasília, n. 14, p. 33-43, mai./ago. 2001 !!


Ivana Farina*

RESUMO

Traz dados sobre a coleta de prova dentro do sistema brasileiro de Justiça, especialmente em casos de prática de tortura e analisa a dificuldade de coleta de prova e a
necessidade de dar um fim a esta situação.
Sugere que, nos laudos ou formulários oficiais preenchidos pelos peritos, obrigatoriamente, devam-se constar quesitos que comprovem ou não a prática de tortura.
Por fim, trata da possibilidade de oferecimento de denúncia para a instauração de ação penal sem o inquérito policial.

PALAVRAS-CHAVE
Ministério Público; prova; crime de tortura.

Já me tiraram a comida e o sol. aguardarem-se anos e anos o julga- se conhecia o Mauro e disse que não.
Já levei chute e bofetada. mento pelo Tribunal do Júri. Não é, con- Nesse momento, Bertinho, isto é, José
Abriram as pernas da minha mulher. tudo, o caso de criticar-se a Justiça Roberto Correia Leite, vinha caminhan-
Arrancaram a roupa da minha mãe. Penal em relação ao crime de tortura, do pela rua e foi também abordado
Não tem mais o que tirar de mim. mas a Justiça lenta, morosa e que, pelos policiais. Bertinho foi submetido
Só ódio. como não entregue no tempo exato, nos à revista e com ele foi encontrada uma
dá a idéia de impunidade, de que pre- pequena garrucha de dois canos. En-
J.M.E., 31 anos, preso no Rio de Janeiro, valece a prescrição – como vemos, pro- tão, os policiais cochicharam e chama-
em depoimento à Comissão de Direitos cessos sendo objetos de declaração ram Bertinho para o alto de um morro,
Humanos da Câmara dos Deputados de prescrição – em que vidas se foram local onde havia dois carros, um verde
(Relatório da 2ª Caravana Nacional de e casos gravíssimos são ali relatados. e um preto. Ali foi agredido com três
Direitos Humanos – Uma Amostra Quando o Ministério Público de pauladas na cabeça e algemado com
da Realidade Prisional Brasileira, Goiás foi convidado para falar no semi- os braços prendendo as pernas.
setembro de 2000). nário A Eficácia da Lei de Tortura, isso Por rádio, os policiais pediram o
se deu por um fato, um caso concreto envio de uma viatura. Chegando a via-
que está em fase de instrução. Esse tura, tipo Toyota, foram conduzidos ao

S
e o texto é forte, creio que muito caso partiu de relato feito à Comissão quartel. No caminho, foi colocado um
mais forte é a indignação que de Direitos Humanos da Câmara dos capuz na cabeça da criança, que não
deve brotar daqueles que, con- Deputados em 1999. Em 1º de setem- sabe se colocaram outro em Bertinho,
forme afirma o Prof. Dalmo Dallari, bro daquele ano, uma criança, então embora ache que não. No quartel, a
cultuam a ética e a prática da justiça com 9 anos de idade, ali compareceu criança foi colocada em uma sala, e
social. Muito mais forte deve ser a von- e buscou relatar o desaparecimento de Bertinho levado para um quarto, no lo-
tade de se fazer prova dessas agres- José Roberto Correia Leite, conhecido cal onde ficaram as armas. Da sala,
sões e violações e de dar um basta a por Bertinho. Essa criança estava acom- ouvia-se Bertinho gritar por socorro. Ela
esta situação. Muito mais forte deve ser panhada dos pais do então desapare- ouviu, ainda, uma voz dizendo que, se
a voz de todos nós, homens e mulheres cido Bertinho, que procuravam auxílio Bertinho não entregasse Mauro, não
operadores do Direito, que atuam em para localizar o filho ou para que qual- sairia dali nem com os parentes.
um sistema de Justiça ainda moroso e quer outra explicação lhes fosse dada. Dez minutos depois, a criança
arcaico e que podem, por suas ações, O depoimento dessa criança traz um foi levada para o mesmo quarto onde
alterar esse quadro. trecho em que narra a abordagem po- encontrava-se Bertinho, que estava
Trago aqui, não um estudo téc- licial que recebeu, ao lado de Bertinho, com um capuz branco na cabeça. No
nico de prova, mas dados sobre a co- que tinha pouca idade – era um humil- interior do quarto, estavam três dos cin-
leta de prova dentro do sistema brasi- de carroceiro, com algumas passagens co policiais, que lhe mostraram uma
leiro de Justiça, especialmente em ca- pela polícia, como diz o jargão, mas arma de fogo, perguntando se ela per-
sos de prática de tortura, em que notí- não uma vítima “qualificada”, era po- tencia a Mauro. A criança e Bertinho
cias vêm da ocorrência de tortura. Os bre e residia em Novo Gama, municí- foram conduzidos aos fundos do quar-
números não nos trazem uma situação pio localizado no Entorno do Distrito Fe- tel. Algemado, Bertinho foi colocado
tendente a pensar que é fácil coletar deral, e por ele choravam o pai e a mãe. sentado em um pequeno carrinho, pa-
essa prova ou que o processo anda rá- A criança narra, então, que foi recido com um aparador de grama. Os
pido e que a responsabilização vem abordada na rua por cinco homens, po- policiais ligaram dois fios na algema
pronta. Ao contrário, a situação é de liciais militares, com armas pesadas, dele, momento em que passaram a ro-
poucos processos em andamento no tipo fuzil; que todos usavam boinas pre- dar uma manivela, produzindo cho-
País inteiro e de poucas condenações. tas e botinas curtas e vestiam camisas ques elétricos. Bertinho gritava e pula-
É preciso considerar, por exem- do exército e calças jeans. Tais pessoas va. Um policial gordo, baixo, moreno e
plo, que a prova para o crime de homi- a chamaram, dizendo: “Baixinho, venha de cabelo preto, apontava-lhe um re-
cídio é coletada, às vezes, com muito cá. Se correr, te mato”. A criança, que vólver mandando calar a boca, sob
mais facilidade, apesar de, não raro, se aproximou do grupo, foi indagada ameaça de morte.

______________________________________________________________________________________________________________
*
Texto produzido pela autora, baseado em notas taquigráficas de conferência proferida no Seminário Nacional A Eficácia da Lei de Tortura,
promovido pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, em Brasília – DF, de 30 de novembro a 1º de dezembro de
2000.

!" R. CEJ, Brasília, n. 14, p. 33-43, mai./ago. 2001


Depois desse depoimento, o lo afastamento de todos os integrantes também esforçou-se para produzir a
Ministério Público do Estado de Goiás do Comando daquele quartel, a pedi prova. Só que chegamos ao seguinte
recebeu o pedido de providências. É a do do Ministério Público. Em seguida, ponto: havia a prova da ilegalidade e
partir desse ponto que começo a abor- houve o encerramento do inquérito ci- da imoralidade de carros furtados no
dar a questão da prova e da dificulda- vil público, concluindo-se que muitos quartel; todos os agentes da chamada
de de coletá-la, quando não há a von- dos carros Gol que se encontravam no P2, a Polícia Especial, estavam afasta-
tade expressa de deixarmos os gabi- quartel eram produto de furto, e que as dos, mas não tínhamos como provar
netes, de tocarmos a nossa ação, sen- autoridades policiais se utilizavam de aquela primeira cena de tortura, em
tindo a dor de quem passou por esse instrumentos e práticas vedadas no que Bertinho pulava, dava gritos, rece-
quadro, e de renovarmos a nossa ca- âmbito da Polícia Militar, atos que ca- bia choques, levava pauladas. Faltava
pacidade de indignação. racterizam improbidade administrati- essa prova. No caso, não tínhamos mais
O depoimento de uma criança va. que o depoimento da criança para o
de 9 anos, perante a Câmara dos De- Não tínhamos o corpo. Bertinho fim de responsabilizar os autores da
putados, acompanhada dos pais da ví- era um desaparecido. Depois do quar- prática de tortura. Logo, havendo o
tima, pode não ser tecnicamente con- tel, ele nunca mais havia sido visto. Mas Ministério Público ajuizado ação civil
siderado elemento de prova, pode ser o Ministério Público não deu o caso por pública, pedindo o afastamento das
um indício muito frágil. A criança já se encerrado, tendo em vista o resultado funções de todos os policiais envolvi-
confundiu muitas vezes, foi ouvida mais da investigação desenvolvida para dos, mais ainda havia muito a se bus-
ou menos cinco vezes. Não quero rela- apurar ilegalidades praticadas no quar- car, sobretudo para a confirmação da
tar o que deve estar passando na ca- tel, em que foram encontrados capu- anunciada morte da vítima.
beça de uma criança de 9 anos, que zes, ataduras de gazes, algemas, lu- Quando esse assunto foi veicu-
presenciou esses fatos e que é chama- vas, álbuns de fotografias de crimino- lado pela mídia, uma perita da cidade
da a lembrá-los várias vezes, perante sos – alguns com sinais, outros sem –, de Anápolis, que não era a cidade de
juízes, promotores, policiais. A prova, bem como a tramitação do inquérito onde o Bertinho havia sumido (Novo
considerada isoladamente, seria mui- policial militar correspondente, pronta- Gama), ligou para a Procuradoria-Ge-
to frágil. Na verdade, seria nenhuma. mente instaurado, com a transferência ral de Justiça. Ela dizia que, pela foto
Não conseguiríamos nada apenas com de todos os agentes policias do local da carteira de identidade mostrada na
esse depoimento. Mas, também, não do crime e de suas funções. Durante o televisão, achava que tinha periciado
nos sentiríamos cumpridores do dever tempo de produção dessa prova, a aquele corpo – e essa lembrança não
se ficássemos com esse depoimento Polícia Militar, devo fazer o registro, foi é comum acontecer – e perguntou se
na gaveta aguardando novidade para bastante compreensiva. Digo mais: junto à família conseguiria dados das
o caso. vestimentas de Bertinho. Acima de tu-
Os membros do Ministério Pú- do, a perita queria saber se ele vestia
blico que atuaram no caso tocaram uma blusa rosa. Por certo ela estava
uma investigação. A criança lhes falara com o Laudo de Encontro de Cadáver
que, no quartel, Bertinho tinha sido al- nas mãos. Esse laudo traz o seguinte:
gemado nas grades da sala onde fica- Cadáver encontrado em Alexâ-
ra. Os promotores resolveram ir ao quar- nia em 16/08/99, sexo masculino, mais
tel para verificar essa sala e ver se ha- (...) as decisões judiciais ou menos cor clara, cabelos lisos, bigo-
via alguma semelhança com a narrati- devem ser arrojadas, no des rapados, magro, usava calça de
va. Chegando lá, não viram a tal grade moletom preta, camisa cor-de-rosa com
e perceberam adulteração do local, sentido de entender que mangas longas e tatuagem de dois co-
como se ali tivessem assentado uma o crime de tortura rações.
nova massa de cimento e nova tinta. Julgou-se mais importante per-
Requisitou-se uma perícia do local, e o envolve multiplicidade guntar à mãe se ele tinha tatuagem.
resultado veio a se constituir na primei- de agentes, de modo a Ela disse que sim e que era de dois
ra prova pericial do caso: o exame feito corações. Assim, foi dito à perita que
por peritos no quartel da Polícia Militar não possibilitar senão o procurasse os promotores que atuavam
de Novo Gama constatou que a janela, reconhecimento de que no caso, que por certo estavam perto
tipo veneziana, encontrava-se despro- de localizar o corpo. Realmente, o cor-
vida da grade interna de proteção. Exa- um tem o comando da po de Bertinho foi, usando uma expres-
minando os pontos onde a grade era violência na mão e os são conhecida, desovado na região de
fixada à veneziana, verificaram sinais Alexânia, também Entorno do Distrito
de recentidade de sua retirada, bem
outros o seguem. Nem o Federal. A perita havia feito um traba-
como a presença de lascas de tintas Ministério Público, nem o lho louvável de encontro de cadáver.
no interior dos sulcos. Portanto, o local corpo técnico, nem o Jamais, se não detalhada a prova, nes-
havia sido adulterado. se tipo de identificação (feita para um
A prova pericial trazia, então, Judiciário vão poder cadáver tido como desconhecido, sem
mais um motivo para que os promoto- detalhar as condições da qualquer identificação), poder-se-ia in-
res de justiça seguissem com a investi- dividualizar a vítima, como no caso.
gação (que apontava para práticas cri- prática criminosa coletiva Quando ela narra o local – “à margem
minosas e atos de improbidade admi- (plurissubjetiva). da rodovia” – e inclusive já aponta a
nistrativa por agentes públicos), requi- possibilidade de ser provada até a de-
sitando exames e documentos, além sova, pela fauna cadavérica, traz cir-
da já solicitada instauração do com- cunstância nova, absolutamente des-
petente inquérito policial militar. A pro- conhecida dos promotores de justiça
dução dessa prova foi seqüenciada pe- que atuavam no caso.

R. CEJ, Brasília, n. 14, p. 33-43, mai./ago. 2001 !#


Já ao descrever as lesões, a pe- crime de homicídio qualificado em con- Ele pediu que sua mãe ligasse para o
rita diz: curso com o crime de tortura. advogado, que compareceu à delega-
Apresentava três lesões pérfuro- Para nós, do Ministério Público, cia. Isso tornou possível a produção de
contusas situadas na parte posterior da o que nos importa aqui dizer? O que prova ali mesmo – os dois braços apre-
cabeça, explosão de crânio; face direi- falta, então, para que outros casos nos sentavam lesões muito recentes e tam-
ta e maxilares direitos: os orifícios de venham com tantos detalhes, sobretu- bém havia lesões por toda a região do
saída não foram detectados, devendo do quando as vítimas são submetidas pescoço e nas pernas, exatamente
os danos terem sido provocados por pro- a exame de corpo de delito? Importa- onde elas são amarradas. Tudo foi foto-
jéteis explosivos. Examinamos minu- nos que já passa da hora de, nos lau- grafado, e o exame médico de lesões
ciosamente o conteúdo craniano e não dos oficiais ou nos formulários oficiais corporais solicitado. Mais uma vez, va-
encontramos projéteis. Apresentava, preenchidos pelos peritos, obrigatori- le dizer: se a prova estivesse a depen-
ainda, nos membros e troncos, inúme- amente fazerem constar quesitos que der da autoridade policial, a mesma
ras lesões produzidas por instrumento sugiram ou não a questão do flagelo, que torturava, seria inexistente.
contundente, bem como três lesões pro- de tortura. No caso mostrado aqui, a Há ainda um terceiro caso, que
duzidas por instrumento pérfuro-cortan- narrativa veio, mas veio pelo assombro está em estudo porque não há denún-
te no antebraço esquerdo. provocado naquela perita. Não temos cia – há uma notícia dada pela Pasto-
Quando os promotores entra- hoje, nos formulários que são forneci- ral Carcerária da Igreja Católica de que
ram em contato com a perita, de pron- dos para preenchimento, qualquer presos haviam sido submetidos a le-
to ela disse que estávamos diante de menção à possibilidade ou à sugestão sões, em virtude da tentativa de rebe-
uma prova raríssima de um crime de de crime de tortura. E, se não os temos, lião no presídio. Essa discussão é por
tortura. Esse rapaz estava completamen- raramente vamos ter tantos detalhes. demais complexa, pois passa por en-
te machucado. Se somos profissionais interessados em tender como a polícia deve posicionar-
Para os estudiosos, essas lesões achar que 200 processos de tortura é se diante de uma rebelião. Será que
no antebraço mostram situação da muito, que não devia haver nenhum, ela é treinada para isso, sabe utilizar as
pessoa que tenta se defender, por cer- que a prática é abjeta e que não pode armas e munições e os policiais rece-
to, daquela pessoa que estava pulan- permanecer entre nós, temos de pro- bem o manual de utilização de bomba
do, gritando e tomando pauladas e mover as alterações. No mínimo, temos de gás lacrimogêneo, de efeito moral?
choques. O depoimento da criança já de tentar facilitar a coleta da prova. Passa por determinar o limite da legíti-
começava a ficar mais forte. Aí vem a Passo a abordar brevemente a ma e devida contenção da rebelião e
discussão da perita, sem que nada lhe questão da possibilidade de ofereci- da aplicação do castigo para os revol-
tivesse sido sugerido, constante do re- mento de denúncia para a instauração tosos. Será que há preparo para isso?
ferido laudo de encontro de cadáver: de ação penal sem o inquérito policial. Qual a distância em que a bomba po-
Em meio à vegetação, não cons- Em um caso como o de Novo Gama, é derá ser lançada? Onde ela não pode-
tatamos vestígio de veículos ou marcas óbvio que seria sem o inquérito poli- rá ser utilizada?
de sangue nas imediações. A posição cial. Se todas as autoridades do Co- Como a discussão é muito pal-
do corpo, das manchas de sangue e do mando da Polícia Militar de Novo Gama pitante, foram enviadas ao Ministério
conteúdo craniano sugerem ter sido a estavam envolvidas, como teríamos a Público as fotos dos presos que, de-
vítima executada naquele local, lá nas investigação feita por eles próprios? De pois de contida a rebelião, assim noti-
margens da rodovia. Foi encontrado, em maneira alguma a teríamos. Mas o Su- ciada, apresentavam lesões de quei-
meio à substância craniana, um frag- premo Tribunal Federal já se pronun- maduras. Vinha a indagação da Pas-
mento sintético aparentando pertencer ciou sobre a validade da denúncia que toral, pedindo que se apurasse se as
a algum tipo de munição, o qual foi re- não esteja acompanhada de inquérito lesões eram típicas de arremesso de
colhido e encaminhado para a seção policial. Portanto, a denúncia foi oferta- bombas de efeito moral para disper-
de balística. O laudo será encaminha- da e recebida, e os sete militares de- são ou se de lançamento de bombas
do oportunamente. nunciados – o processo está em fase diretamente contra os presos, para
A atadura hospitalar que envol- de instrução –, pronunciados e man- lesioná-los com queimaduras. O lau-
via o pescoço da vítima (descrita no dados a júri popular. Dessa decisão foi do pericial ficou pronto e, no primeiro
laudo pericial) foi apontada pela perita interposto recurso e, por isso, não te- momento, os peritos responderam que
como instrumento utilizado para servir mos ainda como saber qual será a res- se tratavam de queimaduras de ter-
de mordaça ou meio auxiliar de algum ponsabilização, mas devemos ter rigor ceiro grau.
tipo de flagelo. Por certo, esse é um na apuração desses crimes. A discussão está instalada, e
laudo pericial que favorece a instrução Em um outro caso de tortura, temos tido muita proximidade com os
de um processo e a prova de um crime cujo processo está em andamento em peritos para discutirmos, até porque
de tortura. A conclusão vem com a uti- Goiânia, a prova foi produzida de ma- muito pouco se sabe sobre as bombas
lização da arma de fogo e, aí sim, a pe- neira amadora. A vítima W.F.P. foi sub- de efeito moral, como a de gás lacri-
rita pediu que fosse fotografado tudo metida a uma sessão do famoso “pau- mogêneo. O Ministério Público prosse-
aquilo que havia ocorrido. Tivemos, de-arara”, e todos sabemos onde es- gue analisando, discutindo com a polí-
então, o seguinte material encaminha- tão as lesões de pau-de-arara, porque cia técnica, sabendo que, por certo,
do ao Ministério Público: o corpo foto- a posição é conhecida – as lesões nos haverá de tomar uma decisão para es-
grafado já não tinha identificação algu- braços, nas pernas e na região do pes- ses casos, podendo ou não estar confi-
ma, mas o branco da gaze se via bem. coço são as comuns na denúncia de gurado o crime de tortura.
O rosto foi inteiro deformado, como tortura de pau-de-arara. W.F.P. é um É inadmissível que continuemos
sempre ocorre em execuções para não pedreiro – também não era uma vítima com essa precariedade de coleta de
se identificar a vítima. De posse desse qualificada pelo poderio econômico prova.
material, além da ação civil pública já nem pelo status social – e havia traba- O Ministério Público tem algu-
ajuizada, foi instaurada ação penal, lhado na casa de um advogado, tam- mas sugestões a serem debatidas em
com o oferecimento de denúncia por bém promotor de justiça aposentado. relação ao laudo de exame de corpo

!$ R. CEJ, Brasília, n. 14, p. 33-43, mai./ago. 2001


de delito sobre lesão corporal. Hoje, no eles são, peculiares, que envolvem uma
terceiro quesito, temos a seguinte per- multiplicidade de agentes, em relação
gunta: Foi produzido por meio de vene- aos quais raramente poderemos indi-
no, fogo, explosivo, tortura ou por meio vidualizar a conduta. Não poderá a
insidioso cruel? Dali sugerimos seja re- denúncia apontar quais foram os agen-
tirada a expressão tortura, que configu- tes que deram o choque, a paulada e o
ra crime. Devemos inserir quesitos que tiro fatal. É impossível. A tortura é práti-
possibilitem a produção de prova nes- ca de porão, de alcova, de fundo de
se sentido, como: Há indícios de prá- quintal, de fundo de delegacia.
tica de algum tipo de flagelo físico ou Não temos prova fácil, mas as
mental? Em que consistiu a flagelação? decisões judiciais devem ser arrojadas,
É uma idéia, para que possamos com- no sentido de entender que o crime de
bater o crime de tortura. Teremos de tortura envolve multiplicidade de agen-
responsabilizar os atos de tortura que tes, de modo a não possibilitar senão o
são noticiados. Faremos isso pelo de- reconhecimento de que um tem o co-
vido processo legal e teremos de pro- mando da violência na mão e os outros
duzir provas. No caso do laudo do exa- o seguem. Nem o Ministério Público,
me cadavérico, temos a mesma suges- nem o corpo técnico, nem o Judiciário
tão: retirar a expressão tortura do item vão poder detalhar as condições da
que hoje traz o emprego de veneno, fo- prática criminosa coletiva (pluris-
go, assim como outras expressões qua- subjetiva). Nós é que devemos estudar
lificadoras e adotar o quesito flagelo fí- mais e aprimorar nossas teses nessas
sico ou mental e em que consistiu. questões singulares, que merecem a
Por ocasião deste seminário so- nossa mais elevada dedicação.
bre A Eficácia da Lei de Tortura, o Con-
selho Nacional de Procuradores-Gerais
de Justiça promoveu um levantamen-
to sobre as ações penais em andamen-
to relativas a denúncias por crime de ABSTRACT
tortura. Os dados levantados em 19
Estados mostram que temos com-
provadamente 240 casos. A partir des-
se levantamento parcial, a indagação This article presents data about
simplista pode ser a seguinte: é muito collecting evidence on the Brazilian Judicial
System, especially in cases of practicing of
ou pouco? Pelas notícias que temos de torture and analyses the difficulty in gathering
prática de tortura por todo o País, seria evidence.
muito pouco. Mas, pelo período de It suggests that forms and reports filled
edição da lei, três anos, e pela coleta by experts must necessarily have questions in
de prova realizada de forma tão precá- order to verify the practice of torture.
ria, como tentei mostrar, seria muito – At last, it refers to the possibility of
dependendo da iniciativa de homens initiating the public criminal prosecution without
the police investigation.
e mulheres que querem mais do que
ficar estudando o texto da lei, que que- KEYWORDS – Public Prosecution
rem fazer viva a lei, mudando a realida- service; evidence; torture crime.
de e transformando a vida desses
Bertinhos. Verificamos que, nesses 240
casos, a maioria das vítimas já é atingi-
da pela miséria, discriminação e desi-
gualdade. Torturamos duas vezes: não
temos políticas públicas que atendam
ao interesse social e nós, integrantes
do corpo do Estado, não promovemos
um meio decente e correto de interferir
também na vida dos Bertinhos. Esse é
o nosso dever.
O Ministério Público quer deixar,
como sugestão, que os quesitos ve-
nham a ser formulados doravante para
os peritos e que haja um intercâmbio
maior, principalmente entre o corpo
técnico e os membros do Ministério
Público, que são os titulares da ação.
Vale ressaltar, ainda, que de nada adi-
antará a boa vontade se, por exemplo,
no momento da decisão de pronúncia, Ivana Farina é procuradora-geral de Justiça
não tivermos julgadores corajosos que do Estado de Goiás e presidente do Conselho
passem a analisar esses crimes como Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça.

R. CEJ, Brasília, n. 14, p. 33-43, mai./ago. 2001 !%


Abel Fernandes Gomes*

RESUMO

Analisa as normas existentes no processo penal para o processamento e julgamento dos crimes de tortura, argumentando que a Lei n. 9.455/97 não chegou a citar
normas específicas para tal fim.
Examina os elementos dos tipos estabelecidos na Lei de tortura, para depois analisar as principais provas em espécie do crime de tortura, como o exame de corpo de
delito, perícias em geral, análise dos aspectos material e formal de informação, declaração ou confissão em documento escrito, entre outras.
Trata, também, da apuração da tortura praticada por agentes públicos policiais e da possibilidade de o Ministério Público promover diretamente a colheita de
depoimentos e diligências apuratórias de fato delituoso em circunstâncias especiais.

PALAVRAS-CHAVE
Tortura; Lei n. 9.455/97; tortura – prova; Ministério Público.

1 INTRODUÇÃO 2 A INSTRUÇÃO CRIMINAL vigente, quando por meio dele se reali-


NOS CRIMES DE TORTURA za uma interpretação sistemática, e

N
o que concerne ao tema em que diz respeito ao rito processual que
análise, qual seja as provas do A instrução criminal, como o deve ser adotado nestas ocasiões.
crime de tortura, alguns pontos conjunto de atos processuais dirigidos O crime de tortura praticado
relevantes chamam atenção para uma à colheita dos elementos de convicção pelo agente público, da forma como o
abordagem a seu respeito. pelo juiz por meio das provas produzi- legislador o concebeu, representa abu-
O primeiro deles diz respeito das pelas partes1, em regra, nos crimes so de autoridade3, pois afeta princípios
ao fato de que a Lei n. 9.455, de 7 de de tortura, ora seguirá o procedimento constitucionais fundamentais que as-
abril de 1997, que definiu o crime de comum dos crimes apenados com re- seguram direitos e garantias individu-
tortura e deu outras providências, não clusão de competência do juiz singu- ais, especificamente a liberdade indi-
chegou, entre estas últimas, a dispor lar, disposto nos arts. 394 a 405 e 498 a vidual, autodeterminação, paz e tran-
sobre normas processuais específicas 502 do CPP (art. 1º, incs. I e II, e seus qüilidade pessoais, integridade física
para o processamento e julgamento parágrafos 1º e 3º, da Lei n. 9.455/97); e psíquica e vida, quando o sujeito ati-
dos referidos crimes, valendo, por ora o procedimento dos crimes ape- vo se desvia da finalidade pública ou
isso, as normas já existentes sobre nados com detenção, previsto nos arts. extrapola o âmbito de legalidade de
processo penal e que a seguir serão 539 e 540 do mesmo CPP (art. 1º, § 2º, sua atuação, com o fim de obter infor-
analisadas. da Lei n. 9.455/97). mação, declaração ou confissão da ví-
Entretanto, algumas caracte- Com efeito, note-se que o legis- tima, bem como para aplicar-lhe casti-
rísticas ligadas aos tipos penais cria- lador optou por tipificar a tortura como go ou medida de caráter preventivo ile-
dos e à norma do art. 1º, § 4º, inc. I, da crime comum2, podendo ser praticado gítimas.
referida Lei, que estabelece causa de por qualquer pessoa, havendo distin- Sob este prisma, filio-me àque-
aumento, implicam que se analise o ção apenas com relação às penas de les que entendem que a prática de cri-
rito procedimental para a instrução cri- reclusão e detenção, cominadas dife- mes com abuso ou desvio de autorida-
minal nos crimes de tortura pratica- rentemente naqueles dispositivos le- de pode ocorrer de várias formas4: a)
dos por agentes públicos, sobretudo gais acima enumerados. como elementar nos crimes denomina-
à luz da Lei n. 4.898, de 9 de dezem- Nem mesmo a tortura seguida dos “funcionais”, que tutelam mais di-
bro de 1965, o que se fará no item se- de morte, prevista na segunda parte retamente o bom nome e a probidade
guinte. do art. 1º, § 3º, da Lei de regência, se- da Administração Pública e seu patri-
Num segundo momento, no que ria passível de apuração por meio do mônio (arts. 312 a 326 do CP); b) como
concerne à teoria da prova e sua ava- rito dos crimes de competência do tri- agravante genérica (art. 61, II, g, do
liação judicial, o crime de tortura reme- bunal do júri, já que se está diante de CP); c) como crime autônomo de abu-
te ao tratamento que deve merecer a crime preterdoloso, cujo resultado so de autoridade (art. 350, incs. I, II e IV,
palavra do ofendido, o exame pericial naturalístico morte não advém a título do CP e art. 4º da Lei n. 4.898/65) e d)
e a prova documental, principalmente de dolo. como circunstância legal ou causa de
como meios de prova mais ligados à Todavia, a Lei n. 9.455/97 distin- aumento (art. 150, § 2º e art. 151, § 3º,
demonstração da prática do crime de gue as hipóteses em que o crime de ambos do CP), aqui se inserindo tam-
tortura. tortura passa a ser praticado por agen- bém o crime de tortura (art. 1º, § 4º, inc.
Finalmente, recomenda revisão tes públicos, resultando daí uma con- I, da Lei n. 9.455/97).
a questão pertinente à função perse- seqüência expressa na própria Lei, que Se por um lado, os crimes fun-
cutória direta exercida pelo Ministério é o aumento da pena de um sexto até cionais do art. 312 a 326 do Código Pe-
Público em casos específicos de tortu- um terço (art. 1º, § 4º, inc. I). nal afetam mais diretamente à própria
ra praticada por agentes públicos, es- Sob o aspecto processual, de Administração Pública e seu patrimô-
pecialmente nas hipóteses do art. 1º, § nossa parte entendemos que ainda re- nio, os demais, a exemplo da tortura
2º, da Lei em estudo, quando ocorrer sulta uma segunda conseqüência não com a causa de aumento do § 4º, inc. I,
omissão daqueles que têm o dever de expressamente prevista, mas que se atentam ou ofendem exatamente o rol
evitá-la ou apurar sua prática. alcança à luz do ordenamento jurídico de direitos dispostos no art. 3º da Lei n.

_________________________________________________________________________________________________________________
*
Texto produzido pelo autor, baseado em notas taquigráficas de conferência proferida no Seminário Nacional A Eficácia da Lei de Tortura,
promovido pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, em Brasília – DF, de 30 de novembro a 1º de dezembro de 2000.

!& R. CEJ, Brasília, n. 14, p. 33-43, mai./ago. 2001


4.898, de 9 de dezembro de 1965, nor- art. 3º da Lei n. 4.898/65, integrarem
ma esta que traz expresso em sua seus pressupostos típicos.
ementa que a sua finalidade primordial
consiste em regular o direito de repre- 3 AS PROVAS EM ESPÉCIE
sentação e o processo de responsabili- (...)a Lei n. 9.455, DOS CRIMES DE TORTURA
dade administrativa, civil e penal nos
crimes de abuso de autoridade5, sujei-
de 7 de abril de Para a análise das principais
tando-se, portanto, a este procedimen- 1997, provas em espécie, tendentes à de-
to, a tortura praticada por agentes pú- que definiu o crime de monstração da prática do crime de tor-
blicos. tura, necessária se torna realizar uma
Com efeito, a nosso juízo, ao tortura e deu outras breve delimitação dos elementos dos
contrário do art. 4º, o art. 3º da Lei n. providências, tipos estabelecidos na Lei n. 9.455/97,
4.898/65, com aquela tamanha aber- e definir sua natureza quanto ao re-
tura e amplitude que encerra, jamais nãochegou, entre sultado.
poderia constituir a criação de um tipo estas últimas, a O art. 1º da Lei de regência dis-
penal. Na verdade, trata-se de norma põe: constitui crime de tortura, para
explicativa, que dá o contorno do que dispor sobre normas prosseguir estabelecendo os núcleos
constitui abuso de autoridade para processuais que traduzem a conduta. Tortura, por
efeitos de sujeitar o caso concreto ao sua vez, significa curvatura, dobra, vol-
procedimento célere que aquela Lei de específicas ta tortuosa, assim como sofrimento,
1965 prevê. para o processamento angústia e dor7.
Concluindo, enquanto os crimes Em sentido histórico significa a
funcionais contra a Administração Pú-
e julgamento dos ação de torcer ou dobrar o ânimo e a
blica e seu patrimônio, praticados com referidos crimes, resistência da vítima, por imposição de
abuso de autoridade, sujeitam-se ao valendo, por isso, sofrimento físico ou angústia (moral e
rito do art. 513 e seguintes do CPP, os psicológica), para a obtenção de algu-
crimes que traduzem abuso de autori- as normas já ma coisa em troca, podendo-se citar a
dade, por afetarem o elenco do art. 3º existentes sobre confissão de um crime, uma informa-
da Lei n. 4.898/65, como é o caso da ção objetivada, a resignação ou acei-
tortura praticada por agente público processo penal(...). tação de uma determinada vontade, ou
(art. 1º, § 4º, inc. I, da Lei n. 9.455/97), simplesmente a aplicação de um cas-
serão processados e julgados median- tigo.
te o rito sumaríssimo por ela instituído, Para Roberto Lyra8, ao comen-
o qual, além da celeridade e simplici- tar a tortura como circunstância agra-
dade, ainda apresenta outras vanta- vante de meio de execução de crimes
gens. em geral, o que distingue este recurso
A primeira delas é a possibilida- do direta e verbalmente na audiência é o desnecessário e extraordinário so-
de de o Ministério Público ou o ofendi- de instrução e julgamento (art. 14, § 1º). frimento físico ou moral imposto à víti-
do (em caso de ação privada subsidiá- Finalmente, frise-se que audiên- ma, distanciado da média de piedade
ria) apresentar suas testemunhas dire- cia de instrução e julgamento jamais esperada.
tamente na audiência de instrução e será obstada pela ausência, revelia ou Já Ribeiro Pontes9 define a tor-
julgamento (art. 14, § 2º, c/c art.18), in- fuga do réu, não deixando o crime de tura como sofrimento profundo, angús-
dependentemente de prévio arrola- tortura sem solução por este motivo. É tia e dor, produzidos por meio de pa-
mento na denúncia ou queixa, dispen- que por tratar-se de lei especial, com decimento desnecessário.
sando inclusive intimação prévia, o que escopo específico, o seu art. 19, pará- Como crime autônomo, é ele-
em caso de tortura praticada por agen- grafo único, não foi revogado pela Lei mentar à tortura, capitulada no art. 1º,
tes públicos pode ser bastante conve- n. 9.271/96, que alterou o art. 366 do incs. I e II e seu § 1º, da Lei n. 9.455/97,
niente, já que estes não terão oportuni- CPP, não aplicável à espécie. a produção do sofrimento físico ou
dade de conhecer os nomes daqueles Quanto ao único inconveniente moral como resultado previsto, o qual
que deporão em favor da vítima, a pon- que poderia derivar de uma primeira e não se compreende por que razão se
to mesmo de tentar influir em seus âni- literal interpretação do texto do art. 12 expressa como intenso no tipo do inc.
mos ou ameaçá-las. da Lei de Abuso de Autoridade, no que II, já que pela definição doutrinária aci-
Em segundo lugar, realce-se o se refere à representação da vítima, ma vista, a tortura sempre está adstrita
tratamento mais objetivo que foi dado note-se que ele não estabeleceu con- ao extraordinário sofrimento. Portanto,
à prova dos vestígios deixados pela dição de procedibilidade, muito me- nestas três modalidades, trata-se de
prática da infração, no caso da tortura nos se há de entender que, no crime crime material.
mais se assanhando as lesões à inte- de tortura praticado por agente públi- O resultado naturalístico não
gridade da vítima, já que esta pode vir co, a ação penal é pública e condicio- deve ser confundido com as finalida-
a ser liberada pelos algozes somente nada à representação do ofendido, des do agente, que no art. 1º, inc. I, po-
muito tempo após as sessões de tortu- advertindo Gilberto e Vladimir Passos de ser a obtenção de informação, de-
ra, quando o exame de corpo de delito de Freitas6, que a Lei n. 5.249, de 9 de claração ou confissão (alínea a), a prá-
direto se tornará mais difícil, podendo fevereiro de 1967, expressamente ex- tica de crime pela vítima, que acaba
ela provar o sofrimento padecido por cluiu essa hipótese mediante seu art. atuando como instrumento (alínea b)
meio de duas testemunhas levadas à 1º, sendo pública e incondicionada a ou a discriminação racial ou religiosa
audiência, sem contar também a pos- ação penal por crimes em que o abuso (alínea c), ao passo que no art. 1º, inc.
sibilidade de o perito (que no caso po- de autoridade, em qualquer daquelas II, a finalidade é a aplicação de castigo
derá ser somente um) apresentar o lau- modalidades de atentado previstas no ou medida de caráter preventivo.

R. CEJ, Brasília, n. 14, p. 33-43, mai./ago. 2001 !'


Note-se que para a consumação o qual é praticado, fazendo-o perder a O segundo meio de prova a se
do crime nesses dois casos sequer se serenidade e a completa percepção apresentar com mais pertinência à
exige que a vítima ceda à finalidade das coisas, a ponto de prejudicar-lhe o constatação da prática do crime de
do agente ou o castigo ou a medida testemunho sobre os fatos, sendo ela tortura, é o exame de corpo de delito e
sejam totalmente concluídos, bastan- de grau máximo nos crimes praticados as perícias em geral.
do que o sujeito passivo sofra padeci- contra a pessoa. Com efeito, afora a discussão
mento físico ou moral extraordinários e Não obstante a veracidade de sobre a natureza material ou formal do
desnecessários, estes sim resultados tais considerações, a técnica teórica crime em relação ao resultado natura-
típicos. sobre a avaliação e confronto de pro- lístico que se pretenda obter com o
Já em relação aos crimes do art. vas colhidas na instrução criminal, constrangimento da vítima a alguma
1º, § 2º, não exige o tipo a ocorrência quando bem exercitada, é capaz de coisa, certo é que, tratando-se de sofri-
de qualquer resultado naturalístico. afastar dúvidas e suspeição quanto ao mento físico ou mental imposto me-
Diante disso, em todas elas há depoimento do ofendido. diante violência ou grave ameaça, cer-
um ponto em comum, que é a utiliza- Recorrendo ao próprio tamente se estará diante de ofensa à
ção de meios insuportáveis, pungen- Mittermaier14, caberá ao juiz, quando da integridade física ou mental da vítima.
tes, dolorosos ou sanguinolentos (cru- realização das perguntas ao ofendido, Nesse ponto, há de se ter em vis-
éis)10, capazes de causar sofrimento ou verificar todas as circunstâncias que ta que tais ofensas, a exemplo do que
padecimento físico ou mental. envolvem a referida prova, pois como já é considerado para o crime de le-
Por outro lado, a imposição de frisa o professor tedesco: o estado de sões corporais, devem ser juridicamen-
tais meios cruéis, que desde há muito suspeição só repousa sobre presunções te apreciáveis, de modo que o exame
já representam circunstâncias de mai- que os fatos podem destruir, e assim afas- de corpo de delito deverá constatar a
or gravidade para a punição, como é o tar as hipóteses de interferência preju- existência das lesões físicas ou ofensa
caso da agravante do art. 61, II, e, e do dicial da percepção da vítima sobre os à saúde mental, e em relação a esta
art. 121, § 2º, III, do CP, aliada às finali- fatos, derivada, em primeiro lugar, de última observar se houve alteração do
dades visadas pelo agente: constran- elementos físico-ambientais que pos- funcionamento normal do psiquismo,
gimentos e submissão a castigos e sam prejudicar-lhe a fidedigna visão e mesmo que de breve duração, acarre-
medidas espúrias e ilegais, na prática, reconhecimento dos torturadores. tando distúrbios da memória, do senti-
certamente constituirão crimes pratica- Num segundo momento, have- mento, da esfera intelectiva e volitiva,
dos às escondidas ou quando muito rá o magistrado de perscrutar que re- ou pelo menos se agravou distúrbio
situados em ambientes restritos quase lações ou sentimentos que envolvem mental preexistente.
sempre à vítima e seus algozes. vítima e acusado, de modo a elucidar Para efeitos de constatar a gra-
Nesse contexto vislumbrado, é as suspeitas ligadas ao espírito de vin- vidade da lesão e portanto a qualifica-
possível considerar a pessoa da vítima gança ou outro qualquer que tenham dora do art. 1º, § 3º, da Lei n. 9.455/97,
como o principal objeto de prova, dela levado à acusação. o laudo deverá ainda fazer referência
derivando dois meios de prova que Finalmente, aquilatará o conteú- às conseqüências do sofrimento físico
certamente assumirão proeminência do e a forma do depoimento, a narrati- ou mental imposto, de acordo com o
nestas circunstâncias. va e coerência dos detalhes, a preci- disposto no art. 129, §§ 1º e 2º, do CP.
O primeiro deles é o que o Códi- são de dados e a autoridade do ânimo Finalmente, quando o crime de
go de Processo Penal relaciona no art. da testemunha, tudo, é claro, revestido tortura consistir no constrangimento da
201 como as perguntas ao ofendido, de um certo caráter de subjetividade vítima a produzir informação, declara-
que não assume a natureza jurídica do coletor da prova, inerente ao pró- ção ou confissão em documento escri-
precisa de prova testemunhal11 mas, prio Direito Processual. to (art. 1º, inc. I, a), é necessário que se
como acentuam os clássicos tratados Por outro lado, não se pode olvi- proceda à análise dos aspectos mate-
sobre a prova, com razões de sobra, dar que diante das características do rial e formal do documento, de modo a
tais depoimentos devem ser avaliados crime de tortura, do qual resulta o pa- aferir sua sinceridade.
à luz das causas de suspeição, che- decimento cruel do sujeito passivo, di- O exame da grafia e assinatura
gando a afirmar Mittermaier12 que o in- ficilmente este estará propenso a in- da vítima melhor poderá esclarecer o
teresse despertado pelo resultado do ventar ou fantasiar tão marcante e trau- perito, por meio de diversas compara-
processo pode ser considerado a mais matizante experiência, sem que se pos- ções, talvez possa traduzir se o papel
séria causa de suspeição. sa aferir com bastante evidência sua foi escrito e assinado em condições
Os motivos de tal assertiva resi- veracidade. normais pela vítima, ou se de alguma
dem no fato de que a vítima pode estar É precisamente em virtude de forma foi prejudicado ou alterado pela
imbuída de ódio ou ressentimento con- tudo isso que deverá prevalecer a orien- interferência de condições estranhas,
tra o agente, capazes de criar ou au- tação jurisprudencial assentada no o que pode indiciar a prática do cons-
mentar as circunstâncias de um fato sentido de se reconhecer eficácia trangimento ou sofrimento imposto
delituoso para prejudicá-lo; ter por es- probatória às declarações da vítima, para a obtenção do escrito.
peque a obtenção futura de uma inde- notadamente quando não lhe aproveita Ademais, o exame do conteúdo
nização derivada do ilícito penal ou, fi- a incriminação de terceiros15. e detalhes narrados no documento,
nalmente, o objetivo de prosseguir Ou como se tem decidido nos também poderá dar a idéia da liberda-
numa acusação que a princípio foi fei- crimes cuja clandestinidade é a marca de e veracidade com que fora produzi-
ta levianamente, com dúvida quanto à essencial: como no roubo em que já se do, conclusão à qual se pode chegar
autoria, mas que passa a prevalecer exarou: nos crimes onde a clandestini- por meio da comparação do nível e
como forma de evitar a punição pela dade figure como fator essencial para qualidade de informações que ele con-
calúnia ou denunciação caluniosa. sua realização, o depoimento pessoal tém, com as condições pessoais e cul-
Malatesta13, a seu turno, assina- da vítima é tido como elemento proba- turais da vítima e profundidade e co-
la que o próprio delito é capaz de per- tório e deve ser aceito, quando se mos- nhecimento de fatos que só a ela ca-
turbar a consciência do homem contra tra suficientemente seguro e coerente16. beria conhecer em sua extensão, de

" R. CEJ, Brasília, n. 14, p. 33-43, mai./ago. 2001


modo a aquilatar se o escrito foi mes- Na mesma linha, sobre a possi-
mo obra sua ou se se trata de palavras bilidade de o Ministério Público reali-
prontas as quais foi obrigada a subs- zar diretamente diligências investiga-
crever. tórias, confira-se estes dois julgados da
No caso da tortura Corte Superior de Justiça:
4 A APURAÇÃO DA TORTURA praticada por agentes
PRATICADA POR AGENTES Acórdão
PÚBLICOS POLICIAIS públicos policiais Decisão por unanimidade, ne-
especificamente, não se gar provimento ao recurso. Ementa PE-
Por último, importa ressuscitar NAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS-
questão que tem sido bastante discu- pode olvidar da CORPUS. AÇÃO PENAL. TRANCAMEN-
tida no meio jurídico, que diz respeito excepcionalidade que TO. MINISTÉRIO PÚBLICO. PRINCÍPIO
à possibilidade de o Ministério Público DA UNIDADE E INDIVISIBILIDADE.
promover diretamente a colheita de poderá reclamar VINCULAÇÃO DE PRONUNCIAMENTO
depoimentos e diligências apuratórias uma atuação direta do MP DE SEUS AGENTES. DENÚNCIA. INÉP-
de fato delituoso, em circunstâncias CIA. NÃO-CONFIGURAÇÃO. DESCRI-
especiais.
na apuração dos fatos, ÇÃO EM TESE DE CRIME. O princípio
No caso da tortura praticada por mormente quando a vítima se da unidade e da indivisibilidade do Mi-
agentes públicos policiais especifica- mostra temerosa ou nistério Público não implica vinculação
mente, não se pode olvidar da excep- de pronunciamentos de seus agentes
cionalidade que poderá reclamar uma submetida a trauma que a no processo, de modo a obrigar que um
atuação direta do MP na apuração dos impeça de recorrer à promotor que substitui outro observe
fatos, mormente quando a vítima se obrigatoriamente a linha de pensamen-
mostra temerosa ou submetida a trau- autoridade policial, to de seu antecessor. Para a proposi-
ma que a impeça de recorrer à autori- ainda que de hierarquia tura da ação penal pública, o Minis-
dade policial, ainda que de hierarquia tério Público pode efetuar diligências,
superior à praticante da tortura, ou de superior à praticante da colher depoimentos e investigar os
outro órgão policial estranho ao que a tortura, ou de outro órgão fatos, para o fim de poder oferecer
cometeu. denúncia pelo fato verdadeiramente
Tudo isso sem contar que o Bra- policial estranho ocorrido. O trancamento de ação penal
sil não se limita às capitais dos Esta- ao que a cometeu. por falta de justa causa, postulada na
dos, sendo um País jovem e possuidor via estreita do habeas-corpus, somente
de vários recônditos, onde por vezes se viabiliza quando, pela mera exposi-
poucas alternativas restam às vítimas ção dos fatos na denúncia, constata-se
de violência policial, senão procurar que há imputação de fato penalmente
diretamente o Ministério Público. atípico ou que inexiste qualquer elemen-
Nesse diapasão, deverá preva- crita no art. 1º, inc. I, da Lei n. 8.137/90 – to indiciário demonstrativo da autoria do
lecer a orientação jurisprudencial que inobservância do princípio do promotor delito pelo paciente. Não é inepta a de-
coaduna as atribuições constitucionais natural e falta de justa causa – inocor- núncia que descreve fatos que, em tese,
das polícias, estabelecidas no art. 144 rência – o Ministério Público tem a prer- apresentam a feição de crime e oferece
da Constituição Federal, com as atri- rogativa e o dever de promover a condições plenas para o exercício de
buições também constitucionais do persecução daqueles que violam a or- defesa. Recurso ordinário desprovido18.
Ministério Público contidas no art. 127 dem jurídica penal estabelecida – esta (Grifei).
(defesa da ordem jurídica, do regime prerrogativa é indelegável e irrenun-
democrático e dos interesses sociais e ciável, devendo ser exercida na sua Acórdão
individuais indisponíveis); art. 129, inc. integralidade – o princípio do promotor HC. PREFEITO MUNICIPAL.
I (exercício da ação penal pública) e natural tem sua matriz, de um lado, no DESVIO DE VERBA. NULIDADE DO
art. 129, inc. VII (exercício do controle princípio constitucional da independên- PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO
externo da atividade policial), agora à cia funcional, consagrado pelo § 1º, do QUE FUNDAMENTOU A DENÚNCIA.
luz de uma ponderação de interesses seu art. 127, e de outro, na garantia de PROMOÇÃO PELO MP. INOCORRÊN-
constitucionalmente assegurados, na inamovibilidade de seus membros (CF, CIA. COMPETÊNCIA PARA O PROCES-
qual a livre, ampla e eficaz apuração art. 128, § 5º, I, b) – este princípio não SO E JULGAMENTO DO FEITO. JUSTI-
do crime de tortura, como tutela maior inibe a ação do órgão ministerial que, ÇA ESTADUAL. AFASTAMENTO DO
ao princípio da dignidade da pessoa tomando conhecimento, pelos mais PREFEITO DO CARGO PELO TRIBUNAL
humana e proscrição expressa no art. diversos meios, da prática de atos cri- DE JUSTIÇA. POSSIBILIDADE. ORDEM
5º, inc. XLIII, da Magna Carta, em ca- minosos não fica impedido de agir DENEGADA.
sos tais poderá justificar a apuração diretamente, procedendo a averigua- I. Encontrando-se a denúncia for-
direta pelo Ministério Público, inclusi- ções, requisitando informações e do- malmente perfeita, eis que narra os fa-
ve sem ofensa ao princípio do promo- cumentos, (CF, art. 129, VI) instauran- tos e apresenta a materialidade e a au-
tor natural. do, desde logo, a instância penal – dis- toria, tem-se como descabido o propó-
Como exemplo de tal orientação pondo o titular da ação penal dos ele- sito de sua anulação, com base em dis-
merece transcrição integral a ementa mentos necessários ao oferecimento da cussão sobre atribuições do Ministério
do acórdão exarado pelo Tribunal Re- denúncia, como os documentos origi- Público em relação às investigações na
gional Federal da 2ª Região do seguin- nários do procedimento administrativo fase pré-processual, pois eventual vício
te teor: fiscal, a instauração do inquérito polici- lá ocorrido não macula a ação penal –
I – Penal – Habeas-Corpus – Pa- al é plenamente dispensável. que pode, inclusive, ser prosposta sem
ciente incurso na prática delituosa des- II – Ordem denegada17. inquérito policial.

R. CEJ, Brasília, n. 14, p. 33-43, mai./ago. 2001 "


II. O Órgão do Parquet pode art. 144 da Constituição da República, polícias, insculpida no art. 144 da CF,
proceder a investigações e diligênci- por outro não se pode olvidar que há deverá ser submetida ao exame de
as conforme determinado nas leis situações em que as circunstâncias de ponderação, caso a caso, frente ao dis-
orgânicas estaduais, sendo que tal atri- fato, e até mesmo a própria elementar posto nos arts. 127, 129, inc. I e 129,
buição fica ainda mais evidente se hou- do tipo penal, estão a recomendar ou- inc. VII, da mesma Carta Fundamental,
ve a determinação de abertura de inqué- tra direção. para que se efetive na prática o repú-
rito civil público, por meio do qual foram Vítima de tortura mediante pa- dio manifestado pelo legislador cons-
colhidos os elementos ensejadores da decimento intenso, praticada muitas titucional no art. 5º, incs. III e XLIII, da
acusação. vezes por agentes da própria polícia, é Constituição.
III. Nos termos das Súmulas 208 possível que o sujeito passivo do crime
e 209 desta Corte, e atentando-se ao fato esteja impossibilitado psicologica-
de que se apura desvio de verbas mente de travar qualquer contato com
advindas de convênios cuja prestação policiais, muito menos adentrar o pró- NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
de contas seria realizada entre a Prefei- prio prédio da referida instituição, dado
tura de Caldas Brandão e a Secretaria o estado de choque ou pavor advindo
de Infra-Estrutura da Paraíba, reafirma- do crime sofrido. O exercício da função
se a competência da Justiça Estadual já nos colocou em contato com situa- 1 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal.
para o seu processo e julgamento. ções deste tipo. São Paulo: Atlas, 1997. p. 469-470.
IV. O afastamento do Prefeito por Por vezes, a situação de fato re- 2 Esta opção do legislador recebeu críticas
da doutrina, por ter-se distanciado da orien-
decisão da Câmara dos Vereadores não presenta exatamente a incidência no tação internacionalmente seguida, no sen-
obsta a determinação do Poder Judici- tipo contido no art. 1º, § 2º, da Lei n. tido de representar um crime próprio de
ário no mesmo sentido. 9.455/97, quando o agente investiga- agentes do Estado, quando este pretende
V. Ordem denegada.19 (Grifei). do é aquela pessoa que se omitiu quan- impor diretrizes por meio de sua prática
do deveria evitar ou impedir que a tor- contra dissidentes políticos, rebeldes ou
5 CONCLUSÃO tura tivesse curso ou, o que é pior, quan- determinadas camadas da população,
do o agente é a própria autoridade que tudo com vistas à manutenção das estrutu-
ras dominantes vigentes, cf. TAVARES,
Podemos assim concluir que o deveria apurar sua prática. Mais com-
Juarez. A delimitação da autoria no crime
crime de tortura, integrante do rol de plicada fica ainda a situação, quando de tortura. Enfoque Jurídico, Brasília, p. 8,
crimes especificamente dispostos na nas duas vertentes o referido agente é abr./maio 1997. No mesmo sentido, SHE-
Constituição Federal como de proscri- integrante das polícias civil e federal. CAIRA, Sérgio Salomão. Nova lei de tortura.
ção e tratamento penal mais extremos Como se pode constatar, em to- Revista Consulex, n. 22, p. 42;43, out. 1998.
(art. 5º, incs. III e XLIII, da CF), encontra das estas hipóteses específicas, não De nossa parte, entendemos, todavia, que
no sistema jurídico vigente vários ins- é difícil imaginar o quanto seria de- nossa Lei alcança mais profundamente a
trumentos capazes de tornar célere e sarrazoada, inócua e impossível a apu- finalidade da repressão a este crime equi-
parado a hediondo, do momento em que
efetiva a sua apuração e punição. ração eficaz do crime de tortura, esti- relatos histórico-sociais revelam que a
Por tratar-se de crime que ofen- vesse ela entregue àquelas autorida- tortura não se circunscreve à sujeição ativa
de a liberdade de autodeterminação e des policiais. a cargo de agentes públicos, embora esta
a integridade física e psíquica do indi- As chances da vítima poder co- seja uma de suas modalidades mais gra-
víduo, quando praticado por agente laborar com espírito livre e intimorato ves. Quando da elaboração deste estudo
público com abuso de autoridade, con- seriam poucas, assim como seria re- mesmo, chegou-me por e-mail sentença
ta até mesmo com o rito processual duzida a probabilidade do espírito de do Juiz de Direito de Bataguaçu/MS, Dr.
Roberto Lemos dos Santos Filho, por meio
sumaríssimo e se procede mediante corpo ou o prosseguimento daquela
da qual são condenados dois indivíduos
ação penal pública incondicionada, a omissão de apuração não impedirem que, a pretexto de obterem confissão da
teor do disposto no art. 3º da Lei n. a punição dos responsáveis. autoria de eventual crime de furto, tortura-
4.898/65 c/c art. 1º da Lei n. 5.249/67. A Magna Carta expressa preo- ram a vítima amarrando-a com uma corda
No sistema legal e em prece- cupação importante com o crime de de nylon pelos órgãos genitais à carroceria
dentes jurisprudenciais referentes às tortura, por duas vezes repudiando-o de um automóvel, enquanto também a
provas, colhe-se orientação no sentido no art. 5º, destinado aos direitos e de- açoitavam.
de se valorizar a palavra da vítima e o veres individuais e coletivos (incs. III 3 STOCO, Rui. A tortura como figura típica
autônoma. Enfoque Jurídico, Brasília, p. 5,
exame de corpo de delito e as perícias e XLIII). abr./maio 1997. No mesmo sentido, FARIA,
em geral, tudo dentro daquela análise Mas a preocupação do consti- Antonio Celso Campos de Oliveira. O direito
característica do sistema da livre con- tuinte de nada valeria, assim como ine- à integridade física, psíquica e moral e a
vicção motivada em que não há pro- ficaz seria a repressão mais grave que pena privativa de liberdade. Revista dos
vas absolutas, devendo todas elas ser se faz abstratamente ao crime de tor- Tribunais, São Paulo, n. 22, p. 57, abr./jun.
avaliadas em conjunto dentro do con- tura por meio do art. 5º, inc. XLIII, da CF 1998.
texto. e da Lei n. 9.455/97, se de alguma for- 4 JESUS, Damásio de. Do abuso de autori-
dade. Justitia, v. 59, p. 39. Apud NOGUEI-
Finalmente, no pertinente ao ma tais dificuldades na apuração e RA, Paulo Lúcio. Leis Especiais (aspectos
ponto mais polêmico deste estudo, punição do crime estudado não tives- gerais). São Paulo: Leud, 1986. p. 206-
entendemos superada a questão liga- sem uma interpretação mais atenta à 207.
da à possibilidade da iniciativa direta realidade e às peculiaridades do caso 5 Sobre esta interpretação a respeito do al-
do Ministério Público para colher ele- concreto. cance da Lei n. 4.898, de 9 de dezembro
mentos da prática do crime de tortura. Por esta razão, e como estamos de 1965, NORONHA, Magalhães. Direito
Penal. São Paulo: Saraiva, 2000. v. 4, p.
Se por um lado a regra é a atri- situados numa moderna concepção de
407.
buição da investigação e da coleta de constitucionalismo, por meio da qual 6 FREITAS, Gilberto Passos de; FREITAS,
elementos preliminares a respeito do não se admitem direitos absolutos, ain- Vladimir Passos de. Abuso de Autoridade.
fato delituoso às polícias judiciárias ci- da que derivados da Constituição, é São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p.
vil e federal, por força do disposto no que a atribuição constitucional das 102-103.

" R. CEJ, Brasília, n. 14, p. 33-43, mai./ago. 2001


7 CALDAS AULETE. Dicionário Contempo-
râneo da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Delta, 1964. v. 5, p. 4009.
8 LYRA, Roberto. Comentários ao Código
Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. 2,
p. 290.
9 PONTES, Ribeiro. Código Penal Brasileiro.
3. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos.
p. 87.
10 CALDAS AULETE, op. cit., p. 1016.
11 MIRABETE, Júlio Fabbrini, op. cit., p. 286-
287. Para esse autor, embora o ofendido
não seja testemunha, pelo fato de o próprio
CPP incluir seu depoimento em capítulo
autônomo, não deixa de ser meio de prova.
12 MITTERMAIER, C. J. A. Tratado da prova
em matéria criminal. Tradução Herbert
Wüntzel Heinrich. Campinas: Bookseller,
1996. p. 257.
13 FRAMARINO DEI MALATESTA, Nicola. A
lógica das provas em matéria criminal.
Tradução Paolo Capitanio. Campinas:
Bookseller, 1996. p. 403-405.
14 MITTERMAIER, op. cit., p. 268.
15 Tribunal Regional Federal da 3ª Região.
Apelação Criminal n. 9334/00. 2ª Turma.
Rel. Juíza SYLVIA STEINER. DJ 12/04/00.
p. 224.
16 Tribunal Regional Federal da 3ª Região.
Apelação Criminal n. 9271/00. 2ª Turma.
Rel. Juíza VERA LUCIA JUCOVSKY. DJ 12/
04/00. p. 288.
17 Tribunal Regional Federal da 2ª Região.
Habeas-Corpus n. 97.02.16980-1/RJ. 4ª
Turma. Rel. Des. Fed. FREDERICO GUEI-
ROS. DJ 13/08/98, p. 357. (Grifei).
18 Superior Tribunal de Justiça. 6ª Turma. RHC
n. 8025. Relator Min. Vicente Leal. DJ 18/
12/1998. p. 416.
19 Superior Tribunal de Justiça. 5ª Turma. HC
n. 10725. Relator Min. Gilson Dipp. DJ 08/
03/2001. p. 137.

ABSTRACT

The paper analyzes the existing rules


of criminal procedure applied to the judgment
of torture crimes, sustaining that Law 9,455/97
did not provide specific rules for that purpose. It
examines the elements of the Law against
torture, and it analyzes the main proofs relating
to crimes of torture: corpus delicti, expert
examination, analysis of material and formal
aspects of written documents containing
information, declaration or confession, among
others. It also deals with the investigation of
torture practiced by police agents and the
possibility of public prosecution service to
promote directly the depositions and other
proceedings, in the investigation of criminal
facts, performed directly by the public
prosecutor, under special circumstances.

KEYWORDS – Torture; Law n. 9,455/


97; torture – proof; public prosecution service.

Abel Fernandes Gomes é Juiz Federal da 5ª


Vara Criminal da Seção Judiciária do Rio de
Janeiro.

R. CEJ, Brasília, n. 14, p. 33-43, mai./ago. 2001 "!

Anda mungkin juga menyukai