As provas
do crime de tortura
RESUMO
Traz dados sobre a coleta de prova dentro do sistema brasileiro de Justiça, especialmente em casos de prática de tortura e analisa a dificuldade de coleta de prova e a
necessidade de dar um fim a esta situação.
Sugere que, nos laudos ou formulários oficiais preenchidos pelos peritos, obrigatoriamente, devam-se constar quesitos que comprovem ou não a prática de tortura.
Por fim, trata da possibilidade de oferecimento de denúncia para a instauração de ação penal sem o inquérito policial.
PALAVRAS-CHAVE
Ministério Público; prova; crime de tortura.
Já me tiraram a comida e o sol. aguardarem-se anos e anos o julga- se conhecia o Mauro e disse que não.
Já levei chute e bofetada. mento pelo Tribunal do Júri. Não é, con- Nesse momento, Bertinho, isto é, José
Abriram as pernas da minha mulher. tudo, o caso de criticar-se a Justiça Roberto Correia Leite, vinha caminhan-
Arrancaram a roupa da minha mãe. Penal em relação ao crime de tortura, do pela rua e foi também abordado
Não tem mais o que tirar de mim. mas a Justiça lenta, morosa e que, pelos policiais. Bertinho foi submetido
Só ódio. como não entregue no tempo exato, nos à revista e com ele foi encontrada uma
dá a idéia de impunidade, de que pre- pequena garrucha de dois canos. En-
J.M.E., 31 anos, preso no Rio de Janeiro, valece a prescrição como vemos, pro- tão, os policiais cochicharam e chama-
em depoimento à Comissão de Direitos cessos sendo objetos de declaração ram Bertinho para o alto de um morro,
Humanos da Câmara dos Deputados de prescrição em que vidas se foram local onde havia dois carros, um verde
(Relatório da 2ª Caravana Nacional de e casos gravíssimos são ali relatados. e um preto. Ali foi agredido com três
Direitos Humanos Uma Amostra Quando o Ministério Público de pauladas na cabeça e algemado com
da Realidade Prisional Brasileira, Goiás foi convidado para falar no semi- os braços prendendo as pernas.
setembro de 2000). nário A Eficácia da Lei de Tortura, isso Por rádio, os policiais pediram o
se deu por um fato, um caso concreto envio de uma viatura. Chegando a via-
que está em fase de instrução. Esse tura, tipo Toyota, foram conduzidos ao
S
e o texto é forte, creio que muito caso partiu de relato feito à Comissão quartel. No caminho, foi colocado um
mais forte é a indignação que de Direitos Humanos da Câmara dos capuz na cabeça da criança, que não
deve brotar daqueles que, con- Deputados em 1999. Em 1º de setem- sabe se colocaram outro em Bertinho,
forme afirma o Prof. Dalmo Dallari, bro daquele ano, uma criança, então embora ache que não. No quartel, a
cultuam a ética e a prática da justiça com 9 anos de idade, ali compareceu criança foi colocada em uma sala, e
social. Muito mais forte deve ser a von- e buscou relatar o desaparecimento de Bertinho levado para um quarto, no lo-
tade de se fazer prova dessas agres- José Roberto Correia Leite, conhecido cal onde ficaram as armas. Da sala,
sões e violações e de dar um basta a por Bertinho. Essa criança estava acom- ouvia-se Bertinho gritar por socorro. Ela
esta situação. Muito mais forte deve ser panhada dos pais do então desapare- ouviu, ainda, uma voz dizendo que, se
a voz de todos nós, homens e mulheres cido Bertinho, que procuravam auxílio Bertinho não entregasse Mauro, não
operadores do Direito, que atuam em para localizar o filho ou para que qual- sairia dali nem com os parentes.
um sistema de Justiça ainda moroso e quer outra explicação lhes fosse dada. Dez minutos depois, a criança
arcaico e que podem, por suas ações, O depoimento dessa criança traz um foi levada para o mesmo quarto onde
alterar esse quadro. trecho em que narra a abordagem po- encontrava-se Bertinho, que estava
Trago aqui, não um estudo téc- licial que recebeu, ao lado de Bertinho, com um capuz branco na cabeça. No
nico de prova, mas dados sobre a co- que tinha pouca idade era um humil- interior do quarto, estavam três dos cin-
leta de prova dentro do sistema brasi- de carroceiro, com algumas passagens co policiais, que lhe mostraram uma
leiro de Justiça, especialmente em ca- pela polícia, como diz o jargão, mas arma de fogo, perguntando se ela per-
sos de prática de tortura, em que notí- não uma vítima qualificada, era po- tencia a Mauro. A criança e Bertinho
cias vêm da ocorrência de tortura. Os bre e residia em Novo Gama, municí- foram conduzidos aos fundos do quar-
números não nos trazem uma situação pio localizado no Entorno do Distrito Fe- tel. Algemado, Bertinho foi colocado
tendente a pensar que é fácil coletar deral, e por ele choravam o pai e a mãe. sentado em um pequeno carrinho, pa-
essa prova ou que o processo anda rá- A criança narra, então, que foi recido com um aparador de grama. Os
pido e que a responsabilização vem abordada na rua por cinco homens, po- policiais ligaram dois fios na algema
pronta. Ao contrário, a situação é de liciais militares, com armas pesadas, dele, momento em que passaram a ro-
poucos processos em andamento no tipo fuzil; que todos usavam boinas pre- dar uma manivela, produzindo cho-
País inteiro e de poucas condenações. tas e botinas curtas e vestiam camisas ques elétricos. Bertinho gritava e pula-
É preciso considerar, por exem- do exército e calças jeans. Tais pessoas va. Um policial gordo, baixo, moreno e
plo, que a prova para o crime de homi- a chamaram, dizendo: Baixinho, venha de cabelo preto, apontava-lhe um re-
cídio é coletada, às vezes, com muito cá. Se correr, te mato. A criança, que vólver mandando calar a boca, sob
mais facilidade, apesar de, não raro, se aproximou do grupo, foi indagada ameaça de morte.
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Texto produzido pela autora, baseado em notas taquigráficas de conferência proferida no Seminário Nacional A Eficácia da Lei de Tortura,
promovido pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, em Brasília DF, de 30 de novembro a 1º de dezembro de
2000.
RESUMO
Analisa as normas existentes no processo penal para o processamento e julgamento dos crimes de tortura, argumentando que a Lei n. 9.455/97 não chegou a citar
normas específicas para tal fim.
Examina os elementos dos tipos estabelecidos na Lei de tortura, para depois analisar as principais provas em espécie do crime de tortura, como o exame de corpo de
delito, perícias em geral, análise dos aspectos material e formal de informação, declaração ou confissão em documento escrito, entre outras.
Trata, também, da apuração da tortura praticada por agentes públicos policiais e da possibilidade de o Ministério Público promover diretamente a colheita de
depoimentos e diligências apuratórias de fato delituoso em circunstâncias especiais.
PALAVRAS-CHAVE
Tortura; Lei n. 9.455/97; tortura prova; Ministério Público.
N
o que concerne ao tema em que diz respeito ao rito processual que
análise, qual seja as provas do A instrução criminal, como o deve ser adotado nestas ocasiões.
crime de tortura, alguns pontos conjunto de atos processuais dirigidos O crime de tortura praticado
relevantes chamam atenção para uma à colheita dos elementos de convicção pelo agente público, da forma como o
abordagem a seu respeito. pelo juiz por meio das provas produzi- legislador o concebeu, representa abu-
O primeiro deles diz respeito das pelas partes1, em regra, nos crimes so de autoridade3, pois afeta princípios
ao fato de que a Lei n. 9.455, de 7 de de tortura, ora seguirá o procedimento constitucionais fundamentais que as-
abril de 1997, que definiu o crime de comum dos crimes apenados com re- seguram direitos e garantias individu-
tortura e deu outras providências, não clusão de competência do juiz singu- ais, especificamente a liberdade indi-
chegou, entre estas últimas, a dispor lar, disposto nos arts. 394 a 405 e 498 a vidual, autodeterminação, paz e tran-
sobre normas processuais específicas 502 do CPP (art. 1º, incs. I e II, e seus qüilidade pessoais, integridade física
para o processamento e julgamento parágrafos 1º e 3º, da Lei n. 9.455/97); e psíquica e vida, quando o sujeito ati-
dos referidos crimes, valendo, por ora o procedimento dos crimes ape- vo se desvia da finalidade pública ou
isso, as normas já existentes sobre nados com detenção, previsto nos arts. extrapola o âmbito de legalidade de
processo penal e que a seguir serão 539 e 540 do mesmo CPP (art. 1º, § 2º, sua atuação, com o fim de obter infor-
analisadas. da Lei n. 9.455/97). mação, declaração ou confissão da ví-
Entretanto, algumas caracte- Com efeito, note-se que o legis- tima, bem como para aplicar-lhe casti-
rísticas ligadas aos tipos penais cria- lador optou por tipificar a tortura como go ou medida de caráter preventivo ile-
dos e à norma do art. 1º, § 4º, inc. I, da crime comum2, podendo ser praticado gítimas.
referida Lei, que estabelece causa de por qualquer pessoa, havendo distin- Sob este prisma, filio-me àque-
aumento, implicam que se analise o ção apenas com relação às penas de les que entendem que a prática de cri-
rito procedimental para a instrução cri- reclusão e detenção, cominadas dife- mes com abuso ou desvio de autorida-
minal nos crimes de tortura pratica- rentemente naqueles dispositivos le- de pode ocorrer de várias formas4: a)
dos por agentes públicos, sobretudo gais acima enumerados. como elementar nos crimes denomina-
à luz da Lei n. 4.898, de 9 de dezem- Nem mesmo a tortura seguida dos funcionais, que tutelam mais di-
bro de 1965, o que se fará no item se- de morte, prevista na segunda parte retamente o bom nome e a probidade
guinte. do art. 1º, § 3º, da Lei de regência, se- da Administração Pública e seu patri-
Num segundo momento, no que ria passível de apuração por meio do mônio (arts. 312 a 326 do CP); b) como
concerne à teoria da prova e sua ava- rito dos crimes de competência do tri- agravante genérica (art. 61, II, g, do
liação judicial, o crime de tortura reme- bunal do júri, já que se está diante de CP); c) como crime autônomo de abu-
te ao tratamento que deve merecer a crime preterdoloso, cujo resultado so de autoridade (art. 350, incs. I, II e IV,
palavra do ofendido, o exame pericial naturalístico morte não advém a título do CP e art. 4º da Lei n. 4.898/65) e d)
e a prova documental, principalmente de dolo. como circunstância legal ou causa de
como meios de prova mais ligados à Todavia, a Lei n. 9.455/97 distin- aumento (art. 150, § 2º e art. 151, § 3º,
demonstração da prática do crime de gue as hipóteses em que o crime de ambos do CP), aqui se inserindo tam-
tortura. tortura passa a ser praticado por agen- bém o crime de tortura (art. 1º, § 4º, inc.
Finalmente, recomenda revisão tes públicos, resultando daí uma con- I, da Lei n. 9.455/97).
a questão pertinente à função perse- seqüência expressa na própria Lei, que Se por um lado, os crimes fun-
cutória direta exercida pelo Ministério é o aumento da pena de um sexto até cionais do art. 312 a 326 do Código Pe-
Público em casos específicos de tortu- um terço (art. 1º, § 4º, inc. I). nal afetam mais diretamente à própria
ra praticada por agentes públicos, es- Sob o aspecto processual, de Administração Pública e seu patrimô-
pecialmente nas hipóteses do art. 1º, § nossa parte entendemos que ainda re- nio, os demais, a exemplo da tortura
2º, da Lei em estudo, quando ocorrer sulta uma segunda conseqüência não com a causa de aumento do § 4º, inc. I,
omissão daqueles que têm o dever de expressamente prevista, mas que se atentam ou ofendem exatamente o rol
evitá-la ou apurar sua prática. alcança à luz do ordenamento jurídico de direitos dispostos no art. 3º da Lei n.
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Texto produzido pelo autor, baseado em notas taquigráficas de conferência proferida no Seminário Nacional A Eficácia da Lei de Tortura,
promovido pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, em Brasília DF, de 30 de novembro a 1º de dezembro de 2000.
ABSTRACT