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Apresentação

A necessidade de traduzir a obra de Henri Alekan, do francês Des lumières et des


sombres (As luzes e as sombras), decorreu da minha entrada no doutoramento no Programa
de Pós-graduação em Ciências Sociais da UFRN e que resultou na tese Luz e sombra: uma
interpretação de suas significações imaginárias nas imagens do cinema expressionista
alemão e do cinema noir americano defendida em 2008 sob a orientação da professora
Lisabete Coradini. As anotações de Alekan com larga experiência em direção de fotografia
é ressaltada por Alain Robbe-Grillet no prefácio do livro: “um diretor de fotografia, talvez
o mais laureado de todo o cinema francês”. Este livro de Alekan foi a inspiração primeira
para que eu me dedicasse à análise da sombra e da luz nas imagens destas duas
cinematografias, a alemã e a estadunidense. Embora Alekan não mencione teóricos da
teoria do imaginário (Gilbert Durand e Mircea Eliade, por exemplo), sua obra está
impregnada dessa teoria. Não esperem encontrar aqui um manual técnico de iluminação,
mesmo que em alguns momentos tenhamos ilustrações de esquemas de luz empregadas em
filmes fotografados por Alekan. O autor aborda a luz no sentido de sua linguagem, o que
ela quer significar, o que a iluminação quer dizer, como ela contribui com a narrativa
proposta, como sua manifestação objetiva repercute no interior do espectador suscitando
emoções. Este é o grande apelo deste livro pleno de imagens de filmes, de pinturas e de
gravuras dos grandes mestres, referência para os grandes diretores de fotografia. Retomei
agora essa tradução feita às pressas, à época, para uma revisão mais atenta (não
significando que ela ficará livre de erros) e uma editoração tosca onde tentei colocar o
máximo de ilustrações, buscando uma fidelidade aproximada da obra original, ora
baixando imagens da internet, ora reproduzindo com um celular as fotos do livro. No total
são 88 imagens, bem aquém da quantidade usadas por Alekan, confiando que darão conta
de ilustrar o tema discutido. Algumas fotos incluídas na presente versão não estão
presentes no livro original, mas acredito que cumprem a mesma função. Incumbido de
ministrar uma disciplina de iluminação no Curso de Comunicação em Mídias Digitais,
resolvi desengavetar a tradução de onze anos atrás para preparar esse material para os meus
alunos, esperando também contribuir para a formação dos estudantes de cinema e
audiovisual e profissionais da área. Nessa jornada, agradeço a Torquato Joel, pelo
empréstimo da obra original, que me possibilitou a reprodução de diversas imagens, e a
Helder Bruno A. M. de Souza pela criação da capa1. Aproveito para alertar aos leitores que
a tradução ora apresentada não tem, de forma alguma, fins comerciais e que possíveis
citações desta obra em textos acadêmicos devem ser feitas a partir do original na língua
francesa.

Bertrand Lira

1
Imagem da capa: Morning in the Harbour (1634) de Claude Lorrain Gellée.

1
SUMÁRIO 42. Iluminação noturna com luz
artificial em estúdio.
42. Transformação de efeito solar em
lunar com luz dita <<noite
americana>>
A LUZ
A LUZ ARTIFICIAL
01. O papel da luz
01 Interpretação da luz 43. Iluminação e luz artificiais
04. O claro e o escuro 45. O solar e o anti-solar
05. A luz metafísica 47. Qualidade da luz
48. Princípios de iluminação artificial
48. Mecanismo de iluminação
A LUZ SOLAR 50. Iluminação direcional
51. Iluminação modeladora e plana
06. Características da luz solar 52. Arquitetura da luz
08. As principais opções da luz 54. Luz principal
09. A linguagem plástica da luz 54. Luzes complementares
12. A representação pictórica do Sol 55. Lugares cenográficos e interiores
16. Iluminação privilegiada com luz naturais
solar 58. Continuidade e unidade plástica
17. Significado da luz do amanhecer e 59. A luz artificial
da luz crepuscular 60. Modulação da luz artificial
18. A luz e a água 62. Luz temporal e luz atemporal
19. A luz e o tempo 63. Efeitos de Luz
21. A luz e o cosmos 64. Efeitos naturalistas e feitos
estetizantes
68. Hipótese criativa
23. COMPLEXO PLÁSTICO 69. Iluminação artificial em estúdio
72. Iluminação por fontes múltiplas
24. Orquestração da luz 74. Iluminação difusa em interior
25. Atmosfera cineplástica natural e em estúdio
29. Iluminação difusa ou 76. Iluminação de comédia e luz
multidirecional americana
30. Iluminação solar movente: Luz
flutuante 77. A LUZ DOS PINTORES E A LUZ
31. Significação da luz movente DOS CINEASTAS
32. Luz invernal e luz difusa natural
32. Iluminação composta crepuscular 91. Luz e composição
96. Iluminações neo-realistas
97. A luz da <<nouvelle vague>>
A LUZ NOTURNA 98. Luz não significante
99. Aventura e westerns
34. Psicologia da luz noturna 101. A luz e o ator
35. Iluminações noturnas naturais e 102. Dinamismo da luz
Iluminação arbitrária 103. Luz e mis-en-scène
36. Luz lunar 106. Luz e direção
36. Iluminação composta noturna 108. O irreal colado no real
40. Iluminação noturna artificial em 109. A luz e a cor
exteriores

2
A LUZ

O papel da luz
A luz é nosso “banho cotidiano”; é porque o homem que nasce, vive e morre num clima de
luz solar e luz artificial não parece lhe dar importância. Ele está tão habituado a ela que não
percebe seus efeitos; e no entanto, como escreveu Nicholas Schöeffer em O novo espírito
artístico (1), “[...] a luz natural e artificial é um problema fundamental; sua distribuição, o
ritmo de sua aparição ou de sua desaparição condiciona fisiologicamente o homem [...]”A
isto permitimos acrescentar: “e psicologicamente”.

Não é nosso propósito desenvolver os fenômenos físicos da luz solar, os quais múltiplas
obras já descreveram todos os seus aspectos. Nosso objetivo é de colocar em evidência a
ação da luz solar sobre a interioridade do homem e o desenvolvimento artístico e técnico
que consiste, a partir de uma iluminação pré-estabelecida, em recriar um clima psicológico
tal qual o conceberam os artistas.

Interpretação da luz
A significação e sua interpretação remonta a mais alta antiguidade, notadamente com os
egípcios, que colocavam sob o calor do Sol, quer dizer em plena luz, “o universo dos
vivos” e o dos mortos... “[...] no outro mundo que se encontra abaixo de nós, onde eles (os
mortos) podiam contemplar as metamorfoses do sol no curso de sua viagem noturna [...]”2

A noite era, para os egípcios, o habitat dos mortos, o que é, aliás, especificado na mesma
obra com [...] a luz das trevas, isto é, a do cone de sombra da Terra projetada no espaço, e a
qual toda alma se impregnará antes de se absorver na luz solar [...]”

Encontramos aqui uma das origens da significação de “obscuro” e de seu contrário


“claridade”, que é a recompensa acordada ao “[...] justificado, que não é mais um morto já
que ele aceito pelos deuses [...]” o qual [...] tem, aliás, a cabeça ornada de um disco
solar[...]”. Este justificado se tornará ele mesmo “alma-luz”. A luz é, alguns milênios antes
da era cristã, sinônimo de calor e criadora da vida.

É, pois normal que os artistas, no decorrer dos séculos que se seguiram, tenham traduzido
na arquitetura e na pintura a luz e as trevas lhes atribuindo os sentidos expostos nos mais
antigos textos (escritos descobertos nas pirâmides) como nos textos mais recentes, tais
como O Antigo e o Novo testamento.

Encontramos na arquitetura cristã a aplicação de textos sagrados, já que os edificadores das


igrejas orientavam os edifícios em função do Sol a fim de obrigar os fiéis a uma translação

2
Le livres des Morts, de Albert Champdor. Ed. Albin Michel.

1
de oeste para leste e a mostrá-los desta forma o caminho em direção à luz. O mistério
cristão é celebrado desde as primeiras eras no ritmo que o Sol impõe à natureza. O oeste
sendo o crepúsculo, quer dizer, a região das trevas, e o leste situando o sol nascente; está aí
o “signo do triunfo definitivo do Cristo sobre a morte”.

A igreja da Madeleine em Vézelay (Imagem 01) oferece o melhor exemplo da utilização


solar para fins espirituais. Os construtores dessa igreja calcularam com precisão o eixo da
nave e a altura das janelas para que a luz solar, segundo seu deslocamento, marcasse, nos
solstícios e nos equinócios3, os capitéis dos pilares e o solo da nave em lugares específicos.

No solstício de inverno, o Sol estando mais baixo em relação à linha do horizonte, seus
raios sobem ao máximo no interior da nave e atingem o mais alto das janelas situadas ao
sul, enquanto que os capitéis – o qual o célebre “moinho místico” – são acesos por uma
luz dourada. No Natal, as trevas começam a decrescer e os dias a se alongarem. A natureza
nos dá o significado da festa e as Escrituras comparam os pecados às trevas, que, após
terem atingido seu paroxismo – disse Grégoire
de Nysse – , são destruídos pela aparição do
Cristo, Luz verdadeira”.

No equinócio, ao meio-dia, o alto dos capitéis é


acariciado durante alguns instantes pela luz que
os designa ao olhar assim como as bases dos
pegões de baixo, lado sul. No solstício do verão,
as lajes resplandecem, em pleno centro da nave,
no eixo das pilhas, com uma rigorosa precisão,
ao meio-dia exatamente, como um verdadeiro
caminho de luz. É o dia onde o cristianismo
celebra João Batista, que celebra o triunfo da
luz.

Os arquitetos romanos nos mostram claramente


que o seu objetivo era estabelecer uma relação
íntima entre o cosmos e sua espiritualidade.

Agora, se esta linguagem simbolista e sua


transposição plástica transmitida ao longo de
gerações continuam a ser utilizadas sem ter relação direta com suas fontes religiosas, elas
permanecem tributárias das origens do homem e do despertar de sua consciência aos
mistérios da Terra.
A aparência das coisas, das formas, é o evento da luz. Sua ausência destrói o “objeto”, já
Imagem 1. Igreja da Madeleine em Vézelay que ele não é mais percebido. Mas o cérebro
memoriza o que foi visível.

3
Solstício é uma palavra oriunda do latim que significa “parado”. Esse fenômeno acontece no período do
ano em que a Terra recebe uma quantidade maior de luz sobre um hemisfério. Os solstícios ocorrem em
duas datas do ano: 21 de junho e 21 de dezembro. Época em que o Sol passa pela sua declinação boreal
(norte) ou austral (sul), e durante a qual cessa de afastar-se do equador.
Equinócio é uma palavra derivada do latim que significa “noites iguais”. Esse fenômeno acontece
quando os raios solares atingem com grande intensidade a zona intertropical, o que favorece uma
uniformidade quanto à quantidade de luz e calor recebida pelos dois hemisférios (Norte e Sul). Os
equinócios acontecem duas vezes por ano: 20 de março e 23 de setembro.

2
Dois tipos de imagens são visualizadas pelo cérebro: uma, objetiva, é aquela que é
registrada numa luz do tempo presente, a outra, subjetiva, é a que foi colocada na
memória na luz do tempo passado. O cineasta transcreve imagens objetivas quando ele
utiliza a luz natural no presente sem transmutá-la, e cria imagens subjetivas quando ele
reinventa o “objeto” e o transcende na luz de sua memória graças ao domínio artístico das
luzes artificiais que executam essa transmutação.

A luz dá “a ver”, porém, mais ainda, ela dá “a pensar”.

Mas como a luz e seu contrário, a não-luz, isto é, o obscuro, que é aqui o ponto de partida,
são elas sentidas pelo homem?

Antes da vida, não era o breu que nos precedeu, cercados, envoltos no seu tecido do nada
absoluto até o último momento de nosso nascimento? A luz é durante a nossa vida nosso
primeiro e invencível meio ambiente. Daí sua importância. Suas variações, suas
modulações, ao curso das horas, dos dias, das estações, dos climas, participam intimamente
de nossas alegrias e de nossos sofrimentos. Sua ausência provoca em nosso inconsciente
um apelo do nada original de nossa “ante-vida”. O Obscuro gera nossas angústias.

“O breu”, diz André Mauraux, “está ligado à morte.”4 Malraux não fez, parece, senão
retomar a significação ancestral que os homens têm atribuído às trevas pela simples razão
de que a ausência de luz priva o homem de toda comunicação com o universo.

O homem sem luz não é nada. Ele não se encontra somente impotente como é entregue às
forças naturais que se tornam muito mais temíveis. O escuro demonstra a fraqueza do
homem. Ora, não somente o breu suprime o homem do universo, já que ele não pode
percebê-lo, mas ele o paralisa, ação alguma sendo mais possível num universo de não-luz.
Neste mesmo universo obscuro, nenhuma imagem pode se memorizar, com a percepção
visual não mais se exercendo. O que existe então de mais próximo deste nada do que a
morte, o homem não podendo nem perceber, nem se mover, nem emitir, nem receber?

O breu é associado a uma morte mais mental do que física. O preto é símbolo e ponto
de partida de todas as interpretações dadas às cores.5

Neste estado de um homem colocado no mundo que ele não pode apreender se opõe o
universo do visível pela luz, fonte da inteligibilidade. A cada amanhecer, para o homem re-
descobrindo seu sentido visual, é uma verdadeira tomada de posse da natureza que se opera
e o que lhe escapava na obscuridade pode de novo ser dominado, domesticado,
escravizado. Se o breu é associado à morte, a luz é associada à vida. O simbólico do preto
e do branco encontra aqui sua origem e sua significação primitiva.

Se admitirmos esse postulado, todas as interpretações são possíveis. A criação de imagens,


o que quer que sejam, pela utilização de pretos e brancos, de claros e de sombras, com
densidades e opacidades nuançadas e variadas, tem um impacto fisiológico engendrando
correspondências psicológicas.

4
Entrevista realizada por Jean Marie Drot para a televisão francesa.
5
As interpretações simbólicas no Ocidente, segundo as filosofias e religiões, divergem das interpretações
orientais e extremo-orientais; nós aqui emitimos hipóteses sobre a origem da angústia e do medo do homem
face à natureza e sua tradução plástica pelos os pintores e cineastas ocidentais.

3
A inquietude, o temor, a angústia, o medo, o pavor, tornam-se “expressões visuais
significantes”, da mesma forma que a alegria, o contentamento, se encontram traduzidas
plasticamente, com valores e tonalidades sentidas pelo homem6 segundo uma escala
psicológica.

O Claro e o Escuro
Os artistas, e particularmente os pintores, utilizaram a gama de claros e de sombras com
esta significação, ora dramatizante ora desdramatizante.
Elie Faure, na sua introdução aos Desastres da guerra, de Franscisco Goya, escreveu:
“Nunca o preto e o branco tinha encontrado uma ocasião tão viva de manifestar a força de
oposições diametrais da luz e das trevas, das formas reveladas e dos atos misteriosos, da
bestialidade e do espírito [...] O preto e o branco por sua monotonia mesma, simboliza
inconscientemente as alternativas de desespero e de esperança as quais nossa espécie está
submetida para a eternidade.”

Para o cineasta, cuja obra a ser criada se move no tempo, um dos problemas maiores é
colocado pela inserção do seu tema no complexo “espaço-luz” em perpétuo movimento.
A natureza não está a seu serviço e ainda menos às suas ordens; também ele deve contar
com fenômenos climáticos e atmosferas variáveis e variadas para “jorrar” seu tema. Não
acontece da mesma forma para uma criação em iluminação artificial, onde todos os
elementos são manipulados pelo homem. Desenvolveremos esta questão mais adiante.

Essas relações “claridade-trevas” jogam subjetivamente, e devem objetivamente ser


tratados não em termos de superfície coberta, mas em termos de densidade ou de
opacidade. Desta forma, o complexo plástico integra nas suas estruturas elementos
concretos mensuráveis: as altas luzes comparadas às mais densas sombras. Estas relações
de contraste estabelecem matematicamente o que, até o presente, só apareciam como
princípios artísticos aleatórios.

O tom geral de um filme é dado por esses jogos de contrastes que imprimem o caráter à
obra através das imagens veiculando o drama, o mistério, a poesia ou, no oposto, a leveza,
a felicidade, a alegria, entusiasmo.

Esta descoberta influenciou fortemente os pintores do fim do século XIX nas suas
pesquisas picturais. Citemos em particular Paul Signac e George Seurat que foram os
chefes da escola dita neo-impressionista e que declararam “seguir um método preciso e
científico” enquanto seus predecessores obedeciam aos seus instintos.

Os fabricantes de suportes fílmicos indicam, para cada tipo de emulsão, as relações de


contrastes desejadas em função das características das películas, mas é freqüentemente
infringindo as regras que os artistas se revelam.

6
O branco puro é obtido pelo sulfato de bárito.

4
Imagem 2. As três cruzes, de Rembrandt Van Rijn (1633).

A luz cai abundante como um órgão simbólico. Com uma violência inaudita, ela
transpassa as nuvens sombrias rejeitadas à direita e à esquerda, enquanto que num
instante antes, elas recobriam todo o drama, que só podia se realizar na sombra. Esta
torrente de luz triangular nos guia espiritualmente em direção ao cume celeste, fora do
alcance dos homens, uma corrente ascendente de uma potência extraordinária.
O eterno conflito entre o bem e o mal e sua equivalência plástica opondo sombra e luz é
aqui interpretação mística prodigiosa e subversiva: o suplício se torna apoteose.

A Luz Metafísica
Se os pintores nos fornecem exemplos numerosos da utilização da luz solar ou artificial
numa intenção mística interpretativa, muito raro são os cineastas que ousaram abordar este
problema numa perspectiva metafísica.

A questão que se coloca é a de saber se um tema que aborda a espiritualidade pode ser
tratado plasticamente com os meios clássicos ou se não é necessário “repensar a luz” em
função de referências filosóficas e religiosas expressas num rico passado pictural.

A luz não é mística por ela mesma, mas se torna pela transcendência que o homem
inspirado lhe atribui. Ela abraça a forma que a vontade do artista lhe confere. Ela é

5
figuração de um pensamento filosófico ou religioso, expresso plasticamente através de
meios técnico-artísticos com o uso de símbolos.

Contudo, os símbolos gráficos, na qualidade de representação primitiva do Sol (portanto da


luz) não são a luz, mas somente uma forma esquemática portando objetivamente um valor.
A luz, por ser visível, toma estes símbolos gráficos enriquecendo-os de sua “aura”. Ela é
representada em forma de coroa, de disco, de roda, de círculo; ela é flamejante, radiante,
brilhante, e, qualquer que seja a religião a que a luz sirva, ela é derivada do astro solar, de
quem toma emprestada a forma, a intensidade e o poder de atração. Nas obras picturais ou
gráficas de tema místico, a luz polariza a atenção e se torna o centro de forças radiantes
que se conjugam para manter o espectador na meditação. No entanto, não é o papel da luz,
qualquer que seja o tema, o de nos obrigar a percorrer um espaço segundo a vontade do
artista, para nos aprisionar no labirinto de seus pensamentos e de nos impregnar
profundamente? (Imagem 03).

Esse percurso visual, que nos


conduz ao coração de toda criação
artística, toma emprestado, para
chegar os seus fins, dois elementos
sobre os quais repousa a constituição
das imagens picturais ou
cinematográficas: a composição e a
luz.

Imagem 3. A ceia em Emaús, Rembrandt Van Rijn (1629)

C aracterísticas da Luz Solar

Observada sob nossas latitudes, a luz solar, antes de toda análise psicológica, deve ser
estudada sob suas diversas manifestações e modulações cotidianas. Da aurora ao
crepúsculo, as variações da luz são consideradas em intensidade e em qualidade. A
posição do Sol no espaço, quer dizer, sua angulação com a superfície da Terra, cria
relações luz-objeto pela projeção de sombras de dimensões e intensidades variáveis, que
têm uma grande importância sobre nosso “percebido” interior.

6
A luz solar é sempre direcional, mas os fenômenos atmosféricos interferem na iluminação
solar, que pode se tornar, segundo as circunstâncias, unidirecional, com projeção de
sombras mais ou menos marcadas, ou totalmente difusa, sem sombras projetadas nem
sombras próprias.

A fonte da luz solar pode ser considerada como uma fonte pontual, mais ou menos
intensa. Ela submete os objetos que encontra e as superfícies que ela toca a um duplo
fenômeno: um puramente objetivo, a “iluminação”, outro subjetivo, já que atinge nosso
psiquismo, que chamaremos simplesmente de: “luz”.7

Ao amanhecer, o fluxo solar é de intensidade muito fraca – alguns lux8 – mas se amplifica
rapidamente de minuto a minuto, acompanhando-se de fenômenos de colorações variáveis
conforme a espessura da camada atmosférica que ele atravessa.

A iluminação da luz solar pode atingir aproximadamente de 100 000 lux no curso de um
mesmo dia. Nosso olho suporta esta intensidade considerável, enquanto que os suportes de
imagens (filmes, fitas ou suportes magnéticos ou eletrônicos) exigem diversos artifícios
técnicos (obturador, diafragma, filtro) para nos restituir um resultado plástico comparável
ao que nossa visão tolera. E ainda, é necessário não colocar no campo visual a imagem do
Sol ele mesmo, a variação de luminosidade entre a parte mais escura e a mais clara chega a
mais de 2 000 000 (2).

________________________________________

(2) L. P. Clerc, na sua obra La technique photographique (Paris, Publication Paul Montel), escreve: “As
medidas feitas, sejam diretamente feitas pela intermediação de clichês fotográficos, seja pela observação
direta de pontos interessantes através do brilhancímetro adaptado para tais medidas, permitiram designar os
valores numéricos da brilhância de diversos elementos de uma paisagem, de uma cena interior, de um
retrato...”

O quadro abaixo indica aproximativamente a relação de brilhâncias extremas para alguns temas.

Paisagem, com o sol no campo visual............................................................................................2 000 000


Interior com janela deixando ver uma paisagem ensolarada.............................................................1000
Retrato iluminado à contra-luz (roupas brancas)..............................................................................100
Paisagem com objeto branco no sol e sombra densa no primeiro plano...............................................60
Paisagem em luz difusa com primeiros planos sombreados................................................................20
Interior, o campo visual sem incluir nem janela e nem reflexo..........................................................15
A Terra vista de um ponto elevado (balão, avião, vista verticalmente).................................................4
Paisagem com névoa.........................................................................................................................2

7
Leonardo da Vinci escreveu no seu Tratado da pintura: “As luzes são de duas naturezas: uma se chama
original e outra derivada. A luz original é esta que provem do ardor do fogo, da luz do sol ou do ar, a luz
derivada é aquela que é refletida.
[...] A sombra provem de duas coisas dessemelhantes entre elas, uma sendo corporal e outra espiritual. A
coisa corporal é o corpo opaco, e o espiritual é a luz.”
8
Lux = unidade de iluminamento do Sistema Internacional, equivalente à produção de um fluxo luminoso
uniformemente distribuído sobre uma superfície na proporção de 1 lúmen por m2 [símb.: lx ].

7
Contudo, os pintores resolveram esse problema interpretando a potência do Sol para nos
dar uma visão pessoal que não tenta reproduzir o real, mas de transpô-lo como veremos
mais adiante.

Nessa transcrição, descartando o naturalismo, pela impossibilidade de “decalcar” a


realidade, o artista nos oferece um Sol transcendido esteticamente pelo percebido subjetivo
da luz. Estamos então longe dos problemas de variação de luminosidade próprios dos
cineastas, constrangidos por não terem encontrado ainda soluções totalmente satisfatórias.9

O pintor William Turner, na maioria de suas obras, demonstra magnificamente como a luz
solar envolve a natureza ao ponto de absorvê-la totalmente para nos entregá-la dissolvida
em brumas coloridas cujas nuances, os clarões, ou turbilhões, abrem a via de um
imaginário abstrativo (Imagem 04).

Imagem 4. Sol nascente no Castelo de Norham, 1845, William Turner (1775-1851).

As principais opções de Luz

Toda obra cinegráfica ou pictórica é “pensada”, pois “construída” em função de efeitos da


luz solar ou artificial. São as idéias sugeridas pela observação desses efeitos que orientam

9
Os meios técnicos empregados correntemente em fotografia e em cinematografia para equilibrar sobre uma
mesma imagem o Sol e uma paisagem são os filtros degradês corretores de contraste, as tramas parciais ou
os polarizadores.

8
o artista na sua escolha. A estação determina o clima geral. Mesmo se se trata de
iluminação artificial num estúdio, o respeito às posições solares no espaço e as diferentes
intensidades luminosas e os contrastes harmonizam o conjunto de elementos ativos – a
ação ou ações – e passivos – as locações e o cenário.

No inverno, o Sol sob nossas latitudes [na Europa], tem uma angularidade variando de 0
grau (ao amanhecer) a 17 graus apenas, em 21 de dezembro ao meio-dia. Isso é para dizer
qual a importância vão ter as sombras projetadas, já que, no melhor caso, no zênite [ponto
mai alto], elas engendrarão uma projeção do objeto de no máximo quatro vezes
aproximadamente da sua altura variável.

Se a escolha acontece numa iluminação de verão, sempre sob nossas latitudes, a


angularidade da luz solar varia então de 0 grau (no amanhecer) a 64 graus
aproximadamente, no zênite. As sombras projetadas serão, neste caso extremo, em torno da
metade menores do que o objeto que as cria.

Mas entre o amanhecer e o zênite, entre o zênite e o crepúsculo, a intensidade da luz solar
varia consideravelmente. Assim, ao nascer do sol, a intensidade cresce rapidamente e
duplica a cada cinco minutos, para atingir uma constância nas horas que se seguem (mais
de 1 000 000 lux).

O jogo de sombras projetadas se intensifica à medida que o sol se eleva no espaço. O


mesmo fenômeno se reproduz ao inverso quando da descida do sol: diminuição da
intensidade para chegar até o crepúsculo.

Em resumo, o jogo das sombras varia em direcionamento, em superfície e em densidade,


segundo os movimentos da luz solar, criando um complexo sombra-luz inseparável do
meio circunvizinho, o qual – segundo os materiais que o compõem – desempenha um
papel importante de superfície refletora, que dessatura a opacidade das sombras e as torna
transparentes.

A primeira escolha – estação e hora – não é senão o prelúdio a uma segunda escolha, talvez
mais importante, porque ela determina a forma do complexo pictural ou cineplástico:
clima-luz direcional ou clima-luz difusa, o que implica uma tomada de posição estética.

A
linguagem plástica da Luz

A arte da imagem – sua razão de ser – é sua faculdade de nos transmitir com uma
instantaneidade repercutente uma síntese compacta da relação “luz-sentimento” tal como é
percebida pelo artista, no momento singular de sua vontade interpretativa.

Daí a necessidade de adotar uma escritura plástica que possa permitir aos artistas, não
somente expressar, mas transmitir. É pela utilização de climas, encontrando suas
referências na natureza, que o contato se estabelece entre o artista e o espectador. Esses
climas estão todos sob a dependência dos grandes ritmos solares, com a alternância de

9
estações, dos dias e das noites, dos claros e dos escuros, dos quentes e frios, etc.,
provocando sensações e sentimentos, uns ligados aos outros.

O espectador diante de uma obra pintada ou filmada é colocado em condição de


receptividade graças a sua faculdade de memorização, a informação plástica diante da
qual ele é colocado desperta nele sensações e sentimentos pré-registrados pelos seus
contatos com a natureza.

A luz solar unidirecional, ou a luz solar multidirecional no seu desenrolar cotidiano, emite
fluxos variáveis em qualidade (diferença de temperatura de cor) em quantidade
(intensidade) e em angularidade (segundo as horas). Esta iluminação solar é
cientificamente definida. Psicologicamente, podemos qualificá-la de luz plenamente
expressiva, o contrário de uma iluminação vaga, indecisa, imprecisa, o que é próprio da luz
multidirecional difusa, isto é, de uma iluminação neutralizante.

A iluminação solar unidirecional é uma “luz partidária”, que ao modelar as formas e


contornos, desenha o “objeto”, insiste, separa, fatia, cinzela e sublinha o essencial das
formas, empurrando o secundário a um valor menor. É uma luz hierarquizante,
classificadora: uma luz “engajada”.

Em compensação, a iluminação difusa, pela sua multiplicidade de fluxos, que envolvem


o “objeto” de todos os lados, tem um papel objetivamente e subjetivamente dispersivo; ela
“submerge” o principal misturando-o ao secundário. A luz não sublinha mais, ela
amalgama, ela atenua, ela dissocia. É uma luz perturbadora: uma luz aniquilante.

Esses dois tipos de iluminação, opostas na sua estrutura física, conduzem artisticamente a
duas significações diferentes repercutindo-se poderosamente sobre os sentimentos.

É importante sublinhar que a iluminação solar unidirecional, com seus três componentes
(qualidade, intensidade e angularidade) e seu corolário de jogos de sombras variáveis,
oferece uma gama infinita de combinações e de relações que é uma verdadeira paleta
plástica emocional, enquanto que a iluminação multidirecional difusa só tem dois
componentes principais, temperatura de cor e intensidade (sendo o jogo de sombras
inexistente).

Tudo isto é considerável tratando-se da significação da luz tal qual ela foi anteriormente
anunciada. Pois a supressão das sombras e a redução dos componentes lumino-espaciais de
três para dois constituem uma amputação, contribuindo para a criação de um estado
subjetivo frustrante. A paleta plástica sendo reduzida, a estrutura da imagem filmica, por
seu aspecto mais frio10 e pela ausência de direção do fluxo solar, cria uma resultante
plástica de efeito dispersivo, num clima uniproporcional pouco compreensível em sua
estrutura, já que ele oferece ao olhar apenas um leque restrito de modulações luminosas.

10
Os dois componentes da iluminação difusa, intensidade e temperatura de cor, não têm nenhuma relação
entre eles, enquanto que em iluminação unidirecional a intensidade do fluxo luminoso solar engendrando
jogos de sombra cria, deste fato, relações de intensidade-densidade proporcionais ao flux luminoso que foi
gerador do complexo luz-sombra: quanto maior a intensidade mais a densidade das sombras é revelada, e
inversamente.

10
Imagem 5. Porto de mar ao por do sol, Claude Gellée, 1639, Museu do Louvre, Paris.

Não é necessário concluir que somente a imagem tratada em iluminação unidirecional tem
uma significação que ela não tem em iluminação difusa. Estas duas opções “luz” trazem
cada uma claras significações diametralmente opostas, sua escolha tendo uma implicação
direta com o tema tratado.

A arte do cineasta em exteriores é a de saber onde, quando e como seu tema poderá se
inserir numa luz natural a qual ele não a domesticou.11 Ele submete seu tema à luz,
enquanto que o pintor cria seu tema pela luz. Mas, durante a utilização da iluminação
artificial em estúdio, o completo domínio do clima lumino-espacial dá ao cineasta sua obra
única na história das artes pela faculdade de modular as luzes, em verdadeiras grandezas
no plano físico e psicológico.

11
Numa certa medida, os cineastas tentam modular a luz solar utilizando artifícios que permitem corrigir os
contrastes excessivos através dos projetores e luz, de rebatedores, ou de filtros colocados na objetiva da
câmera, mas estes procedimentos não afetam em nada a posição solar e o jogo de sombras.

11
A
representação pictórica do sol

Examinamos como a figuração solar foi expressa plasticamente por alguns artistas12.
Somos levados a constatar que a diferença é grande entre a imagem solar pictórica e a
imagem solar cinematográfica, pela simples razão que o clarão do sol tal qual se manifesta
não é reproduzível nas telas dos pintores com a força de seu brilho, não podendo ser o
ponto mais brilhante senão a reflexão da luz recebida sobre o branco pintado na tela.

O problema com os cineastas é igualmente o da brilhância, que não pode em nenhum caso
ser superior à reflexividade sobre a tela de projeção da fonte de luz artificial (lâmpada do
de zenon do projetor). Há, pois, em relação à natureza, nos dois casos, interpretação física
do fenômeno do brilho
do astro solar. Mas na
arte, pouco importa a
objetividade, o que conta
é o que emana da obra,
sua “alma”, sua
sensibilidade singular.

Sem dúvida, um dos


primeiros pintores que
estavam empenhados a
representar o sol sobre
uma tela, Claude Gelée,
não tentou mostrá-lo na
sua mais forte
luminosidade (Imagem
5). No entanto ele
escolheu um dos
momentos privilegiados Imagem 6. Impressão, sol nascente, Claude Monet, 1872, Museu
onde o homem pode Marmottan, Paris.
fixar seu

olhar sobre o astro sem temer a cegueira. “Efeito do sol nascente” e “Porto de mar ao pôr
do sol” nos fazem assistir maravilhados aos jogos de nuances do fluxo radiante que
atravessa a tela em profundidade, para vir irisar antigos prédios, arquitetura escolhida
propositadamente pelo artista para prender num breve instante nosso olhar, atraído por seus
motivos, e o obrigar, depois, a seguir em direção ao horizonte, nos fazendo descobrir um
fascinante desdobramento de cores.

12
Não podemos, nesta obra, tratar o conjunto da representação solar pictórica, representação que começa
desde os primeiros grafismos pré-históricos descobertos nas cavernas, tanto nos túmulos egípcios, como
também no Oriente , no México, etc. Nós aconselhamos aos leitores consultar: Le grand livre du soleil, das
edições Edita-Denöel.

12
Mas se existe nestas telas uma vontade do artista de nos fazer assistir a um verdadeiro
espetáculo, não encontramos aqui, apesar do encantamento que sentimos, senão aquele de
um transeunte diante de um fenômeno esplêndido, mas em suma natural. Nossa sede de
evasão nos projeta em direção a outros artistas que, mantendo a lição de Claude Gelée,
tentam se liberar da significação objetiva, para partir para uma representação mais
interpretativa.

William Turner, com Sol nascente no Castelo de Norham (1845), se libera da objetividade
para nos envolver numa visão de luz solar quase sem profundidade, o que era novo na
época e à frente do seu tempo; a cor é expressão, sem recursos ao modelado e nem à
anedota. Luz e cores nos mergulham num universo excepcional, sem espessura,
inteiramente em sensibilidade, leveza, graça, um mundo aéreo, quase espiritualizado.

No célebre quadro de Claude Monet Impressão, sol nascente, no museu Marmottan, o astro
solar se encontra colocado sobre a linha vertical, passando pelo número de ouro. Que seja
vontade calculada do artista ou intuição, o resultado é o mesmo quanto ao impacto
emocional. Aqui, as formas diluídas nos azuis nuançados são arquiteturas mais musicais
que realistas, tipo de fundo sonoro que exalta o avermelhamento do céu e os reflexos do
sol.

Estamos longe de uma representação precisa do nascer do sol 13. Nós assistimos, não mais
como Claude Gelée, a uma cena teatralizada, com atores, cenário e jogos de luz colocando
em cena a parte do homem (construção arquitetural) e a parte da natureza (força solar), mas
a uma evasão pela luz, como em Turner.

Em todas suas obras, uma constatação se impõe: a da representação do disco solar visto no
seu distanciamento real em relação à Terra, quer dizer, ao homem. O sol é reproduzido tal
qual a visão no-lo restitui: quer seja por Claude Gelée, Turner, Monet, o imaginário se
desenvolve em torno do sol e de seus efeitos físicos com repercussão e desenvolvimentos
estéticos, mas a descoberta de uma visão diferente, que não reproduziria a normalidade da
ótica humana, só pôde aparecer com as descobertas técnicas e científicas modernas. São as
objetivas fotográficas e notadamente as teleobjetivas que vão mostra aos artistas que o olho
do homem pode se enriquecer de uma paleta capaz de transformar ou sublimar o “objeto”.

Certamente, as lunetas astronômicas inventadas por Galileu puderam permitir aos artistas
de apreenderem o universo com uma visão multiplicadora crescente, e a invenção do
microscópio de fazer a investigação do infinitamente pequeno, extraindo todas as
conseqüências, pela via da extrapolação, para uma nova concepção da arte, sempre
inclinada para as transposições excepcionais, e até transcendentais.

Se lançarmos um breve olhar sobre a exploração deste universo, através dos


temperamentos do artista, somos surpreendidos pelo desenvolvimento do imaginário que,
sucessivamente, nos encanta e nos assusta, pela ruptura deliberada entre o “percebido” e o
“restituído”14.

13
Aliás, trata-se de um pôr do sol, mas o próprio Claude Monet, segundo Paul Durand-Ruel, teria
acrescentado ao título: Impressão, dado ao seu quadro sol nascente, sem prestar atenção suficiente.
14
George Rouault escreveu, sobre seu quadro Aux Rive du Jordain: “[...] não temos de lutar contra a
natureza, de fazer imitação rigorosa, mas como os músicos, podemos transpor”. E Cézanne: “A natureza, eu
quis copiá-la, não consegui [...] Fiquei contente quando descobri que o sol , por exemplo, não se podia
reproduzir, mas que era necessário representá-lo por outra coisa...pela cor...”.

13
Não é surpreendente, esta fotografia tomada no nascer do sol em Stonehenge, no dia 21 de
junho, na qual o círculo vermelho que se destaca do muro de pedra negra pela contraluz,
nos dá, ao mesmo tempo, uma imagem exata e interpretativa do astro solar? O círculo e os
raios vermelhos, obtidos graças aos fenômenos de difração no interior das lentes
fotográficas, nos revelam uma imagem próxima do imaginário concebido pelos artistas, a
começar pelos mais primitivos, como a representação do sol nas pinturas rupestres.
(imagem 7).

Imagem 7. O nascer do sol em Stonehenge, 21 de junho, por Dr. Georges Gerster.

Gustave Doré, numa ilustração de A Divina Comédia, nos faz entrar num mundo
metafísico, onde o sol é símbolo de entidade divina e luz original. Ele também se serve de
círculos concêntricos e de raios de luz para criar um espaço em profundeza sem artifícios
fotográficos (Imagem 8).

Le Semeur (O Semeador), com seu sol brilhante, radiante e cruel, fez dizer ao seu autor
Van Gogh: “Se a luz é o símbolo do bem, do belo, do verdadeiro, a fonte luminosa por
excelência, o sol só pode ser Deus.” (imagem 9).

Mas indo mais adiante na pesquisa interpretativa: o sol físico, metafísico, poético, etc.
Grandes artistas tais como Robert Delaunay com suas formas circulares, e Magritte, em O
Banquete, utilizaram o disco solar, um para nos levar nas girações coloridas dinamizantes;
outro para inventar um espaço estupefaciente por sua irrealidade.

14
Após esta curta incursão no domínio
pictórico, tentemos ver como os
cineastas, confrontados com o realismo
do “objeto solar”, souberam, eles
também, reinventar um universo
diferente segundo seu tema.

Digamos imediatamente que os


exemplos não são abundantes.
Geralmente, os cineastas se contentam
de utilizar o sol, não como elemento que
possa servir à psicologia de seu tema,
mas como representação física,
destinada a marcar o decorrer do tempo, Imagem 8. O paraíso, de Gustave Doré, 1882 – 1883)
uma sorte de pontuação visual.

Inumeráveis são os filmes onde o amanhecer aparece para marcar o início de uma
seqüência, e onde o pôr do sol serve para indicar a hora a fim de evitar um plano fechado
convencional de um relógio.

Imagem 9. O Semeador de Vincent Van Gogh, 1888.

15
Contudo, o emprego do sol e de sua luz excepcional – e, portanto, cotidiana – com fins
mais interiores, mais íntimos, estes fins que fazem com que o homem seja um instrumento
sensível às mínimas variações de seu calor, de suas nuanças, de seus caprichos, de seus
movimentos ascendentes e descendentes, de suas continuidades e descontinuidades, de
seus humores ao longo das estações, os climas, as paisagens...em suma, a face escondida
do sol, quem nos há revelado? Abel Gance, Dreyer, Ingmar Bergman, Poudovkine,
Eisenstein, de Vittorio de Sica, Fellini, Akira Kurosawa...e, mais próximos de nós, Alain
Resnais, Raul Ruiz, Eric Rohmer, François Truffaut e, parece, uma nova geração de
realizadores que, como os pintores, dão à luz, o lugar essencial que deve lhe caber, sem a
qual não há nem drama, nem comédia, nem meio de comunicação e de transferência entre
criador e espectador15.

A luz solar não toca somente o visual mas o tátil. No verão, sentimos o calor, e no inverno
sua ausência nos entrega às ofensivas do frio. Há uma íntima correspondência entre nossos
sentidos do tocar e de ver, ambos comunicando as impressões recebidas para ligá-las em
um todo indissolúvel na memória: a luz podendo alternadamente soprar o calor ou o frio.

Assim, o aparecimento da luz invernal numa obra pintada ou filmada desperta


rememoração de duplas impressões recebidas, as visuais engendrando imediatamente as
táteis. Os tons quentes ou frios não são nada mais que transposições coloridas das
impressões fisiológicas.

Mas não é tudo. A luz cria um clima físico objetivamente e subjetivamente, pois isto que se
convenciona de chamar “atmosfera” não é outra coisa que a correspondência entre o
fisiológico e o psicológico, um sendo o suporte e o outro a emanação, tais como o perfume
e o odor.

I luminação privilegiada com luz solar

A luz solar no seu ciclo cotidiano nos oferece dois momentos privilegiados pelo espetáculo
excepcional que ela nos dá: a aurora e o crepúsculo.

Não é somente o fator estético, graças às cores que se desdobram em torno do sol nascente
e poente, mas também a ressonância psíquica que fazem que, durante estes curtos instantes,
o homem saia de um estado particular por conta da noite (se se trata da aurora) ou do dia
(se for o crepúsculo) para entrar num estado novo: um estado “mental” em estreita
correspondência com a iluminação solar subindo ou declinando. São estas “passagens” que
são singulares por sua efêmera duração (alguns minutos), por sua fraca intensidade
(crescente ou decrescente), por sua angulosidade (alguns graus em relação ao horizonte),
por sua coloração (temperatura de cor variando a cada minuto), pela desproporção de

15
Citemos, entre os filmes recentes, o notável emprego, por Roman Polanski, de efeitos solares aplicados à
psicologia de um tema, na cena final de Tess; por Bruce Beresford no seu filme Breaker Morand na
seqüência final situada nos primeiros raios de sol: e pelo realizador Zoltan Huszárik sobre imagens de Peter
Junkura ilustrando soberbamente a vida do pintor T.K. Csontvary (1853-1991).

16
sombras se a gente as compara ao objeto (sombras desmesuradas, decrescentes ou
crescentes).

Enfim, a gente pode acrescentar a esses curtos instantes excepcionais de luz da aurora ou
crepuscular uma outra iluminação particular: a da luz zenital. Mas ela é pouco utilizada no
cinema. Em compensação, a gente a encontra nos pintores e alguns fotógrafos que
souberam atrair todo o interesse que há no emprego de uma luz rara.

Não será necessário deduzir que a luz solar, no seu desenvolvimento cotidiano, oferece
apenas três instantes notáveis, e que o resto do dia é só banalidade. A luz solar não é nunca
sem interesse, mas nós somos impelidos, para nosso estudo, a uma análise que separa o
excepcional (aurora e crepúsculo) do normal.

S ignificado da luz do amanhecer e da luz crepuscular

Imediatamente, que constatamos no nascer do sol?

Antes do aparecimento do sol, o clareamento do céu, considerado como uma vasta tela
luminosa, difunde sobre a paisagem uma iluminação neutra onde só as formas e as cores
tomam corpo, ao se desembaraçar progressivamente do envelope de sombra, onde a noite
os manteve.

Dois fenômenos intervêm então, um de ordem fisiológica e outra afetiva.

A retina do olho que, durante a noite, não percebia mais as cores, recomeça
progressivamente a captá-la à medida que aumenta o clareamento. O flou e o difuso que
acompanha a ausência de luz dão lugar a uma visão de “objeto” cada vez mais precisa.

Esta oscilação da escuridão para a claridade pela visão física se faz acompanhar de um
ressurgimento de experiências primitivas da memória, que associa o noturno a temores
ancestrais. A aurora, por sua claridade progressiva e rápida, cria uma transição e uma
passagem preparando o ciclo do cotidiano. A luz que se eleva é uma luz otimizante, pois
ele realiza a tarefa de caçar a escuridão responsável pela angústia e de preparar o “futuro”
das horas que se seguirão. O espírito do homem oscila entre dois pólos do passado noturno
revolto e de um futuro ao qual ele vai aceder. A aurora é a confiança que renasce após o
medo; é o sinal para o homem de sua superioridade sobre as forças maléficas da noite, é a
sua retomada de posse de uma natureza que lhe havia escapado.

Cotidianamente, o homem, desde a aurora, é portanto submetido a uma dupla ação: uma
física, pelo sentido da vista e o senso tátil, outra psíquica. Contudo é preciso considerar que
os dois fenômenos se interpenetram. A experiência humana que é armazenada sob a forma
de memória inconsciente, aciona a um momento preciso toda uma série de trocas entre o
físico e o psíquico, e inversamente. A visão do amanhecer é um prelúdio da aparição do sol
(transmissão desta informação ao cérebro). A memória “sabe” que o sol vai trazer
claridade e calor, sinônimos do fim da obscuridade e do frio da noite, daí o despertar de
um sentimento de bem-estar. As informações visuais fazem nascer as sensações e os
sentimentos.

17
O sentimento de bem-estar vai se reforçando à medida que o dia começa. Este sentimento é
acompanhado também da sensação tátil do aumento do calor, o que conforta a impressão
recebida.

O mecanismo interior do homem, com a troca permanente entre a visão física e o


percebido psíquico, cria um estado de espírito que é a resultante destes dois fenômenos
intimamente unidos.

O nascimento do dia, a aparição solar, a iluminação progressiva do céu, a suavidade das


penumbras, todo o fausto colorido da aurora, cuja paleta muda a cada segundo seguindo o
ritmo solar, são para o homem o signo de um porvir otimista, generoso, belo, feliz. Um dia
vai transcorrer com suas diversas tarefas; a aurora é uma promessa de um futuro imediato,
um dia para viver.

Ao inverso, a luz crepuscular, que mergulha progressivamente a paisagem numa


obscuridade cada vez mais densa, se acompanha igualmente de fenômenos fisiológicos e
psíquicos citados acima.

A mudança do visível para o invisível, caracterizado pela diminuição progressiva da luz,


constrói um estado mental de frustração, sentimento nascido do desaparecimento da
energia solar, já que o “objeto” escapa à apreensão humana: suas formas se suavizam, as
cores se dissolvem.

Quanto mais o “objeto” desaparece fisicamente, mais o “imaginário” é estimulado.

A luz crepuscular declinante marca o fim do presente cotidiano, cujo desenvolvimento vem
se realizar na iluminação solar, vivificante; ela abre o caminho a dúvidas, a angústias, aos
medos nascidos na ocultação do mundo mergulhado na escuridão noturna.

São estas iluminações “singulares” ou “privilegiadas” que muito têm tentado os artistas
pintores, mas apenas a alguns cineastas.

Isto que dizer que é preciso colocar toda ação de euforia numa iluminação de aurora e todo
drama numa luz crepuscular? Certamente não. Mas numerosos exemplos provam à
exaustão que os cineastas abrem ou terminam uma seqüência de seus filmes com a
aparição do sol ou com o seu declínio, sem ir mais longe na sua significação profunda.16

A luz e a água
A luz, como a expomos, se choca com os materiais sólidos, ela se quebra para nos revelá-
los, mas jamais ela os penetra. Com a água, elemento permeável, a luz não é mais a

16
Nota sobre a fisiologia do olho: Os fotoreceptores humanos são de dois tipos: os bastonetes (em torno de
130 milhões) e os cones (de 7 milhões). Os cones desempenham sua função diurna e dão uma visão em
cores. Os bastonetes só funcionam na luz fraca e noturna, fornecendo uma informação traduzida em
tonalidades que vão do preto ao cinza. As cores desaparecem, portanto, em uma visão noturna.

18
impalpável vestimenta das coisas, ela é plenamente participante ao se integrar ao elemento
líquido.

Que a água seja estagnada, selvagem ou domesticada, em tanque, lago, rio, cascata, ou
oceano, a luz a transfigura por uma sorte de alquimia poética na qual o solar se junta ao
aquático.

Intimamente ligada ao elemento líquido, a luz nos oferece fabulosos espetáculos que os
grandes artistas souberam captar e celebrar cada qual segundo sua vibração. A emoção
deles torna-se então a nossa.

A Luz e o tempo
A iluminação solar libera um fluxo luminoso que, da posição horizontal (na aurora) à
posição vertical (no zênite), engendra jogos de sombra horizontais, diagonais e verticais,
marcando concretamente, no curso do ciclo cotidiano, o desenrolar do tempo. O tempo,
valor abstrato, encontra no meio das sombras projetadas sua representação espacial
visualizada.

Contudo, no “espaço-tempo”, a duração dos fenômenos alvorada e crepúsculo, que


marcam tão profundamente o homem, é extremamente curta, apenas um vigésimo-quarto
de uma jornada normal de doze horas.

Trata-se, portanto, de uma relação entre, de uma parte a ação específica sobre o homem de
fenômenos que acompanham a alvorada e o crepúsculo e sua curta duração, e, de outra
parte, uma ação muito mais contínua no tempo (em torno de onze horas e meia sobre doze
horas), já que a luz age completamente ao longo do dia.

A natureza oferece aos artistas pintores ou aos cineastas, ao que chamamos de clima-luz,
iluminações “privilegiadas”, muito breves, e outros “normais”, ao longo do dia.

A conseqüência direta desta distinções aparecem logo.

A iluminação “normal” é o nosso meio ambiente o mais vivido. Quase todas as nossas
ações – podemos dizer, o principal de nossa vida – acontece nesse clima-luz banal; ele não
constrói pois reações tão particulares que a iluminação descrita anteriormente. Ele não é
recebido com acuidade. E, portanto, durante estas (quase) doze horas, passam-se muitas
coisas. A altura do fluxo solar varia em orientação, em intensidade, em coloração,
produzindo todo um cortejo de sombras e penumbras que é o que podemos chamar de
negativo ambulante dos objetos e das coisas...

Aqui algumas observações se impõem. A primeira é a presença das sombras projetadas sob
a pressão solar, sombras variáveis em direção, em densidade, em superfície. Sombras que
jamais tiveram uma vida própria, mas a vida momentânea do objeto que as fez nascer. O
objeto é uma realidade concreta, sua sombra é a reprodução impalpável, mas visível,
distorcida, comprimida ou amplificada, ambulante, colorida ou obscura, densa ou
transparente, humilde ou majestosa , segundo o ciclo e as variações da luz solar.

Da mesma forma que o objeto não escapa à sua sombra, a sombra lhe está colada como
uma raiz que o mantém ao solo. O objeto é imutável, invariável na suas formas, enquanto

19
que a sombra cotidiana é metamorfose e representação extravagante, esquisita, dele
mesmo. A sombra é a lembrança cotidiana da presença solar, ela ancora o objeto como um
navio e gira em torno dele num movimento permanente, marcando o inexorável passar do
tempo17. A luz solar, portanto, tão longe, parece próxima, quase palpável. O “celestial” é
colocado à porta do homem.

A segunda observação concerne à sombra projetada comparada ao objeto ao qual ela é


ligada num plano dimensional. Uma relação de forças se estabelece entre eles, relação
constantemente variável segundo a posição solar no espaço.

Quanto mais a sombra é importante, mais o objeto é minimizado, e inversamente, mais a


sombra é reduzida, mais o objeto aparece engrandecido.

O objeto, pois, encontra-se afetado nas suas dimensões reais pela relação que mantém com
sua sombra; ele adquire uma dimensão fictícia. Daí a importância do poder das sombras
que influem no nosso julgamento nos fazendo apreciar superficialmente como sendo
grande o que é pequeno, restrito o que é monumental, fabuloso o que é comum e
excepcional o que é banal. É pelo jogo das sombras que o fantástico é sugerido,
combinação do real e de ilusão.

A sombra, como a luz, não toma forma senão pelo encontro com a matéria. O confronto
desses elementos, o impalpável e o palpável, faz surgir sentimentos cuja intensidade e
duração estão ligadas ao solar. O complexo sombra-luz é arquitetura móvel e efêmera. É
um poderoso polo de atração visual e de vitalidade. Seu desaparecimento cotidiano, com o
crepúsculo e a noite, se acompanha de fenômenos físicos que se repercutem
psicologicamente no homem, fazendo nascer perturbações evocadas no capítulo destinado
aos efeitos crepusculares e noturnos.

Este grande jogo de sombras se encontra em numerosas representações pictóricas. Para os


cineastas, a utilização da luz artificial – por sua extrema fidelidade – deveria lhes permitir
estender o campo inexplorado da luz e das sombras fora do domínio solar, com todas as
implicações dramatúrgicas e psicológicas aí contidas.

As sombras projetadas têm uma importância considerável por sua presença física e seu
impacto psicológico: suas dimensões e sua densidade estão em relação direta com a
escolha das horas, das estações e da situação geográfica.

Sob a latitude de 50º Norte, ao meio-dia, no solstício de inverno, as sombras projetadas são
igual a quatro vezes a altura do assunto.

Sob a mesma latitude, ao meio-dia, no solstício de verão, as sombras projetadas tem


aproximadamente a metade da altura do assunto. (Imagem 10)

A França se encontra numa latitude média de 50º N. Sob os trópicos – latitude de 30º a
altura solar máxima ao meio-dia, no dia 21 de junho, é de 83º e, no dia 21 de dezembro é
de 37º – respectivamente com projeções de sombras dez vezes menos que o assunto no
verão e apenas maior do que o assunto no inverno.

17
Sem o efeito do sol, o tempo não é mais percebido. A experiência feita no fundo do abismo Berger em
1968 provou que a noção do tempo está ligada ao ciclo da luz solar.

20
Imagem 10. O tamanho da sombra projetada no solstício de inverno e verão.

A luz e o Cosmo

Existe uma luz solar capaz, ao iluminar um assunto terrestre, de produzir uma sombra de
uma tal densidade que a gente possa denominá-la “sombra absoluta”, isto é, sem traço de
luz nela?

Sem dúvida, esta iluminação solar existe, mas fora da superfície da terra. A camada da
nossa atmosfera cria, permanentemente, de dia como à noite, uma luz difusa com as
gotículas, as partículas de poeira, emanações de todo tipo que envolve nosso planeta18. A
luz do cosmo foi percebida e fotografada pelos astronautas. Numa tal iluminação, a
radiação do sol poderia, sem dúvida, ser qualificada de luz absoluta, com seu brilho, sua
temperatura de cor, suas múltiplas radiações sendo mensuráveis cientificamente. O que nos
interessa não são as constatações científicas, mas as conseqüências destas observações no
nosso julgamento estético.

18
O que Leonardo da Vinci chama no seu “Tratado da Pintura” de “a luz do ar”.

21
Com efeito, já que esta luz absoluta existe, sem nenhuma alteração, ele deve produzir
sombras puras, próxima do negro absoluto. A gama de nuanças intermediárias não mais
existindo, é um diálogo entre os dois extremos que se estabelece. O universo estético
terrestre não pode mais ter vez no espaço cósmico que, sob esta iluminação particular, cria
uma relação rítmica sobre duas notas repetitivas. (Imagem 11)

Imagem 11. Luz e sombra absolutas.

A iluminação solar, fora da Terra, não é mais luz variada, com nuances, portadora de
significações múltiplas, mas uma luz dura, intensa, cinzelante, de uma cruel monotonia. A
grande lição para tirar disso, para os cineastas, no plano estético e psicológico, é que esta
quase “bicromia cósmica” entra perfeitamente no jogo geral dos valores significantes, tais
como nós os concebemos, a aridez do branco e a profundeza do negro, onde o clarão da luz
oposta à densidade da sombra faz nascer sentimentos vigorosos ligados ao balanço
cadenciado existente entre os claros e as sombras.

Se este jogo não pode ser domesticado na luz solar, ele não é o mesmo na iluminação
artificial, com as fontes de luz sendo moduladas à vontade do artista.

Todavia, todos os problemas não podem ser resolvidos pela iluminação artificial, o poder
da luz solar não tem equivalente. As superfícies cobertas pela iluminação artificial são
sempre de superfícies restritas à potência elétrica disponível, e mesmo se as exigências
ditadas pelo assunto são consideráveis, elas restam sempre limitadas.

Mas voltemos à luz “absoluta”, aquela que produz a “sombra absoluta”, e que muito tentou
os artistas, quer sejam pintores, gravadores ou cineastas. A simplificação da gradação
plástica, por sua redução a duas forças contrárias, não pode ser obtida em estúdio (com luz
artificial) ou no exterior (com luz solar), senão por artifícios que suprimem por eliminação
toda modulação.

22
Assim, este procedimento de depuração de valores plásticos permitem nos fazer entrar no
universo próximo do cósmico.

Complexo plástico

Todo local, para ser perceptível, banha-se num clima de luz, quer seja uma iluminação
lunar, solar ou artificial. A obscuridade total, sozinha, não cria nenhuma imagem visível,
mas, ainda neste caso, devemos ter em contar uma imagem sugerida, invisível por nosso
sentido da visão, mas percebida, no entanto, no cérebro sob a forma de criação imaginária.
Desta forma, na noite escura, os locais e objetos anteriormente registrados pela memória
são “reimaginados” e se tornam “visíveis” sem o recurso do sentido da visão....Mas
deixemos de lado este problema , que não concerne diretamente a nosso propósito.

A iluminação (clareamento) é a face visível da luz; é seu aspecto físico. A gente pode
estudá-lo cientificamente: direcionamento dos raios luminosos, intensidade, cor, contraste,
etc., têm dados precisos e relações mensuráveis, enquanto que a luminação não é
apreendida senão por seus efeitos subjetivos nos nossos sentimentos.

O clima-luz é constituído pelo “clareamento” enriquecido da “luminação”; ele entra no


complexo plástico que é função do assunto e adere a ele. E lhe é inseparável. É neste clima
– dependendo de uma escolha particular pretendida pelo artista – que o conjunto plástico se
situa. O clima-luz é aqui a armadura material e imaterial. O complexo plástico pictórico
ou cinegráfico é um conjunto de superfícies, de volumes, de objetos móveis ou não,
colocados numa certa iluminação, cujo papel é o de “dar-se a ver” e principalmente “dar-se
a sentir”, isto é, simultaneamente criar o visível e sugerir o invisível. Henri Alekan cita o
exemplo desta cena do filme La Belle Captive, de Alan Robe-Grillet, que tem a direção de
fotografia do próprio Alekan (Imagem 12).

Imagem 12. “O olhar do espectador deve se dirigir imediatamente ao vestido suspenso para sugerir a
presença da bela cativa. Sem referência lógica na iluminação arbitrária. Ele polariza a atenção – no espaço de
um instante – sobre o elemento principal encarregado de transmitir o mistério da cena que vai se desenrolar.”

23
Todavia, não existe um só clima-luz, mas múltiplos climas que são os que os artistas
quiseram imaginar. Resta que estes climas-luz, na suas construções e intenções, podem ser
examinados nas suas grandes linhas a fim de captar o que é arte da luz e o que é apenas
falsificação.

O revelador de sentimentos que nascem em vista de uma obra pictórica ou cinegráfica é,


pois, a luz e não o “clareamento”. A luz, segundo sua divisão, suas nuances, suas
modulações, suas vibrações e ritmos, deve se impor com a mesma força de emoção que
aquela que foi a origem do ato criativo do artista. Esta transmissão de um indivíduo a outro
só pode se realizar plenamente por uma certa duração de um exame, quer dizer, num tempo
suficiente para que a imagem oferecida à visão possa dar todo seu conteúdo emocional.
Esta “carga psíquica” está inscrita na obra.

A obra pictórica tem esta vantagem sobre a obra cinematográfica: o tempo de análise pelo
amador não é medido; ele pode se impregnar inteiramente à vontade da obra e a considerar
sob todos os seus aspectos. A obra “cinegráfica” na sua constituição (estrutura luz e ação)
não pode se realizar da mesma maneira, já que o tempo deixado ao espectador, para
apreender suas imagens com seu conteúdo físico e psicológico, é destilado e imposto –
pelo ritmo da montagem – muitas vezes sem levar em conta a duração necessária à plena
recepção da carga emocional.

A imagem cinematográfica, para preencher totalmente sua missão, está, pois – em função
de sua duração efêmera – necessariamente estruturada por iluminações sintetizadas que
condensam e resumem o tema.

Orquestração da luz.

A ação subjetiva deste complexo de luzes e sombras é orquestrada, de uma lado, segundo
a disposição das superfícies voltadas às luzes em função das áreas de sombras, e, de outra,
pelas intensidades de luzes em função das densidades das sombras.

Uma mudança se opera, portanto, com permanência entre estes dois componentes, o
cérebro fazendo a síntese de impressões mais ou menos profundas segundo o “peso” das
luzes e das sombras, de claros e de escuros, verdadeiro balanceamento rítmico.

Em resumo, é segundo uma arquitetura de sombras e de luzes que um tema portador de


uma carga de emoções virtuais, entrará em ressonância mais ou menos profunda com o
espectador.

Mas esta estrutura é natural ou artificial? E, no caso onde não há sombras, não há também
sensações e emoções? É o que examinaremos mais adiante.

24
Imagem 13. A bela e a fera, de Jean Cocteau (1938), interior da casa do pai

Atmosfera cineplástica.

A atmosfera é a integração no complexo plástico dos elementos ativos (dinâmicos),


personagens, aos elementos passivos (estáticos), paisagem e cenário, num clima cuja
origem é sempre física e o objetivo sempre psicológico. A atmosfera é o “elo” do
componente fílmico ou pictórico.

É a “atmosfera” que dá o tom à obra. É através dela que o visual lembra a nossa memória –
que acumulou experiências vividas – que os fenômenos físicos: frio, chuva, neblina ou dias
ensolarados, calor, seca, etc., têm correspondências psíquicas que se traduzem por
incômodo, tristeza, mistério, medo, angústia ou conforto, alegria, felicidade, etc.

Os efeitos físicos provocam reações psicológicas e, por um fenômeno de reversibilidade, o


artista pintor ou cinegrafista traduzirá uma situação psicológica colocando na obra efeitos
físicos.

Para fazê-lo, os meios criativos são evidentemente muito diferentes se se tratar de obras
pictóricas ou fílmicas, já que, neste último caso, uma situação psicológica nasce no meio
de um meio ambiente criado artificialmente (efeitos atmosféricos, cenário, iluminação,
etc.), que é a complementariedade domesticada e não acidental de um lugar (natural ou
não).

25
Raramente as condições de uma “atmosfera” premeditada se encontram reunidas para
conjugar numa mesma imagem os climas físicos e psicológicos em lugares naturais. O
cineasta não pode contar com uma trovoada oportuna, nem com uma inundação, nem com
chuva ou neblina, enquanto que os pintores podem reinventar no ateliê todos os efeitos
naturais ou fazê-los nascer de sua imaginação fecunda.

É o que explica porque a escolha dos lugares é em função da atmosfera a ser criada. Não é
preciso dizer que o melhor e mais dócil instrumento de criação é o estúdio
cinematográfico, o que não exclui em nada os sítios naturais, muitas vezes insubstituíveis.

Exemplos pictóricos: Tempestade sobre Toledo, de Greco, inteiramente pintado no ateliê


assim como Le Radeau de la Méduse ( A Balsa da Medusa) , de Géricault, executado da
mesma forma em ateliê, e as principais obras de William Turner e Claude Gelée, de
sublimes efeitos solares (Imagens 13, 14, 15, 16)

Imagem 14. Tempestade sobre Toledo, El Greco (1596) Imagem 15. A barca da Medusa, Théodore
Géricault (1818-19)

Imagem 16. Um navio a vapor em uma tempestade Imagem 17. Claude Gellée (Le Lorrain) – Manhã no
1841, William Turner. Porto (1630)

26
Como exemplos cinematográficos: Quai des brumes, de Marcel Carné, realizado quase
inteiramente em estúdio nas admiráveis luzes de Eugen Shuftan, que não poderia ter levado
com tanta virtuosidade uma continuidade plástica se ela tivesse sido desenvolvida somente
em exteriores (Imagem 17).

Quanto ao filme de Abel Gance Austerlitz, algumas seqüências só foram possíveis graças à
utilização em estúdio, notadamente para as cenas que estabelecem um paralelo entre a
plástica pictórica de pintores napoleônicos (Gérard, Gros, Raffet, etc.) e a que foi adotada
para o filme (Imagem18).

Imagem 19. Austerlitz, de Abel Gance (1960), iluminação em


Imagem 18. Quai des brumes, de Marcel Carné estúdio.
(1938)

Iluminação modeladora
(direcional)
O clima-luz direcional subentende que toda a estrutura da imagem – e por conseqüência
sua significação – revestirá uma forma cujo princípio de base será o “modelado” obtido
através de uma verdadeira arquitetura de sombras e luzes, comparável a uma música
visual, e que se desenha de início na cabeça de seu autor, antes de se traduzir em
superfícies e volumes sobre os quais a luz cria zonas de atração e de repulsão graças ao
jogo de alternância de claros e sombras, de pretos e brancos, como também pela
justaposição ou oposições, de transições suaves ou nitidamente recortadas.

É por esta configuração que o olhar é submetido a um itinerário rítmico.

Os planos e a superfície de luz desempenham um papel “atrativo”, instantâneo, enquanto


que os planos de sombra representam um papel “repulsivo”. O olhar é guiado para esta
arquitetura, passando do claro à sombra, como uma corrente elétrica contínua que transita
do positivo ao negativo. Podemos ver exemplos nestas imagens dos filmes fotografados
por Henri Alekan (Imagens )

27
Imagem 20. Quarto das irmãs no filme A bela e a fera (1946), de Jean Cocteau.

Imagem 21. A bela e a fera (1946), dirigido por Jean Cocteau e direção de fotografia de Henri Alekan.

28
Iluminação difusa ou multidirecional
Nós explicamos o que é a luz “modeladora” (modelante). Examinemos agora uma outra
iluminação totalmente diferente que a gente encontra na natureza e nas interpretações
pictóricas e cinematográficas. Queremos falar da iluminação sem sombras projetadas e
nem sombras próprias. Neste clima-luz, o objeto sem sombras está em ruptura com o
solar, que o abandona sem força e sem calor. Ele se situa fora do tempo e parece flutuar no
espaço. Sem o elo solar, o objeto solitário não comunga mais com o homem (Imagem 22).

As características deste tipo de iluminação são diametralmente opostas à luz “modeladora”,


fisicamente e psicologicamente.

A ausência de sol dessatura as cores, elimina os relevos, apaga as sombras numa situação
frustrante: o homem não pode ter noção do decorrer do tempo. Esta intemporalidade
constrói um estado mental feito de dúvida e de incerteza, devido ao embaçamento do
“percebido” solar vivificante, ao qual se substitui o véu de uma luz diluída, imprecisa,
neutralizante.

Isto que dizer que estes sentimentos só podem nascer numa luz assim definida?
Certamente não, pois a vida nos prova que, em múltiplos casos, as emoções surgem sem
apresentar relações com o meio ambiente “luz”: tal alegria explode num cinza invernal, tal
angústia nos oprime num deslumbrante dia ensolarado. A natureza não tem nada a ver com
os nossos sentimentos...

Na luz solar, o assunto banhado por uma iluminação constantemente modulada pelos
tempos fortes e tempos fracos só entra em ressonância com o espectador se este encontra
um acordo perfeito entre seus próprios sentimentos e seus espelhos: o espetáculo da
natureza no qual se reflete então seu estado da alma.

Imagem 22. Ici et Maintenant, filme de Serge Bard: Luz difusa inquietante.

29
A iluminação natural pode exaltar os sentimentos ao se somar às predisposições
particulares do espectador num certo momento dado, ou entrar em conflito com seus
sentimentos, criando uma dissonância profunda.

É que existe um jogo e uma relação entre as forças abstratas, que ora se completam e se
exaltam, ora se aniquilam. A natureza, com seus diversos climas, se dá ao homem sem
nenhuma preocupação estética e nem artística: ela impõe seu ciclo universal com seu ritmo
próprio. O homem, diante do espetáculo cotidiano dos jogos da natureza, não se torna ele
mesmo artista que harmoniza seus próprios pensamentos organizando-os e os ritmando nas
leis naturais? É a aceitação da natureza, e não sua recusa, quem lhe dará esta qualidade.

Organizar e ritmar as luzes e as sombras sobre as quais a gente não tem o domínio. É,
parece, uma aposta e, portanto, é a função do artista a de fazer “inserir a natureza” num
conceito criativo e personalizado.

Iluminação solar em movimento


Luz flutuante
Do que acaba de ser exposto, a gente pode acreditar que toda iluminação solar oferece
apenas dois aspectos opostos, o direcional e o difuso. A verdade é que a iluminação solar
nos oferta, tanto no seu curso cotidiano como nos seus movimentos sazonais, efeitos
múltiplos, que são combinações infinitamente variadas, misturando o difuso ao direcional
segundo os caprichos da atmosfera.

Certos temas não admitem senão uma só iluminação, outros podem ser realizados numa
iluminação imprevisível, mas, em geral, é numa luz intencional que se registram as
imagens que são o espelho profundo do artista. Em exteriores, na luz solar flutuante, a
criação é um encadeamento de premeditações e de organizações a fim de que o tema
escolhido possa entrar em concordância com a natureza.

Há modulação da luz solar desde o momento que se apresenta, no campo de nosso olhar,
uma iluminação composta, onde nítidos fachos de luz se relacionam com a luz difusa.
Assim se oferecem à nossa visão as paisagens misturando o modelado e o filtrado, numa
justaposição feita de passagens e transição, gradações sutis provocadas pelos movimentos
da camada de nuvens sob o empurrão dos ventos ou diferenças de pressão.

Os pintores foram atentos à beleza destas iluminações cambiantes e de nuances,


principalmente Jacob Van Ruysdael e numerosos pintores holandeses do século XVII, que
souberam traduzir com fineza a luz filtrante através das nuvens e, para citar somente um
mestre entre muitos deles, Corot, na França, no século XIX (Imagens 23 e 24)*. Mas raros
são os cineastas que quiseram captar dinamicamente estas iluminações efêmeras. O célebre
operador-chefe de Eisenstein, G. Tissé, deveu à sorte e ao seu senso de oportunidade,
enquanto cinegrafista de atualidades, ter filmado as modulações de uma iluminação através
da neblina no porto de Odessa para o “Encouraçado Potemkin”19.

*Ver também imagem 15: A barca da Medusa, Théodore Géricault (1818-19)

19
<[...] As imagens de brumas no porto de Odessa, que representam uma das seqüências mais poéticas do
filme, foram filmadas num dia de ociosidade e sem ter sido planejada. Eisenstein as incluiu no filme por sua
significação e beleza plástica.” (Enciclopédia do Cinema, Rouger Boussinot, Bordas).

30
Na pintura, as iluminações são
“fixas” por um “estaticidade”
própria a esta arte; no cinema a
iluminação pode ser captada em
toda sua mobilidade natural. As
tomadas em acelerado ou lentas
proporcionam um meio de intervir
sobre a luz imprimindo-se um
dinamismo diferente pelo
alongamento ou compressão do
fenômeno temporal.

O cineasta se encontra sem trégua


confrontado com os problemas
colocados pelo seu tema e com a
Imagem 23. Paisagem com vista do Haarlem, do holandês Jacob maneira de expressá-lo numa luz
Van Ruisdael (1628-1682). particular, entendendo-se, a partir

de tudo que foi dito anteriormente, que a luz é o meio de expressão fundamental do
cinema: ela estrutura a
imagem, ela banaliza ou
valoriza um assunto, ela cria
um clima psicofisiológico,
ela é naturalista ou
interpretativa e estetizante.

Imagem 24. Jean-Baptiste Camille Corot (1796 - 1875)

Significação da
luz movente

A luz cambiante é, como os exemplos mostram, uma iluminação flutuante cuja


instabilidade e alternância entre o direcional e o difuso unem as superfícies de alto
contraste às zonas de baixo contraste, criando no interior do quadro uma arquitetura
flexível e móvel. Numa luz como esta, a “concentração mental” é difícil, o olhar não se
fixa, ele sobrevoa, passando sem se demorar, do “forte” ao “fraco”, do contrastado ao
nuançado. (Imagem 25)

Esta luz cambiante faz nascer sentimentos complexos, misturando o preciso e o impreciso,
o designado e o não revelado; é a luz hesitante das transições e do instável, poético,
romântico, melancólico e, às vezes, patético.

31
Luz do invernal
e luz difusa natural

Num tempo nublado, a luz do


inverno apresenta às vezes um
estranho acordo ligando céu e terra
num mesmo clima. A gama
plástica se suaviza mais para
alcançar uma uniformidade
próxima do novo absoluto que se
situaria numa brancura diluidora. A
ausência de sombra coloca
novamente o problema do
embaçamento solar, fenômeno
físico que se traduz psiquicamente
por um estado mental feito de
dúvidas, de apreensão, de mal-
estar. A atmosfera invernal, nevada
ou não, é a evidência do clima
próprio à ansiedade e à angústia,
como aliás todo o clima que corta
o homem de seus elos com o sol:
nevoeiro, neblina, chuva.
Imagem 25. Cena do dilúvio, de Anne-Louis Girodet (1806)

É evidente que a luz difusa, que concretiza o estado de ausência de sombras projetadas, é
“luz frustrante”, já que o homem não pode aqui ter comunicação com a “linha direta” solar
tal como se manifesta graças ao jogo de sombras. Num clima deste o homem se
desequilibra, ele não está mais submetido às certezas vitais que o sol lhe impõe; ele flutua
sobre uma terra que parece momentaneamente depreendida de sua ancoragem. Ele deriva.
A luz difusa cria um clima de incerteza.

A luz composta crepuscular


A iluminação composta crepuscular, como a iluminação composta da aurora, é a
superposição de duas “luzes” contraditórias que, no entanto, são integradas num complexo
lumino-espacial, alcançando um estranho clima psicofisiológico. Ele é resultante, de um
lado, da diminuição progressiva da luz solar que se acompanha, como vimos
anteriormente, do enfraquecimento de nossa visão e da oscilação da percepção das cores
em direção ao monocromatismo e, de outro lado, da abertura de uma “janela de luz”, que,
ao se inserir artificialmente num universo de sombras, lhe oferece de repente o refúgio de
seu calor. Há uma fusão de duas situações físicas contraditórias, a crepuscular e a artificial,
que constrói também sentimentos e emoções complexas.

A luz solar declinante, que a noite vai fazer desaparecer, é angustiante pelo que ela sugere.
Ela abandona o homem e o deixa entregue ao universo da noite. Neste instante de aflição,
se a luz dos homens, a do fogo, a que nasceu graças ao gênio inventivo, se manifesta e caça

32
a escuridão, este refúgio, então,
providencial pelo seu calor, pelo
reaparecimento das formas e da
variedade de cores, se impõe
com força como a certeza de um
universo recuperado.

É neste sentido que a luz


crepuscular, a qual se
sobrepõem efeitos factícios, nos
emociona, pois esta mistura de
uma luz solar, no desenrolar
inelutável com uma luz
domesticada pelo homem, cria
um complexo de sentimentos
Imagem 26. Na tela de René Magritte (1889-1967) O império das
luzes, um belo exemplo da luz mista crepuscular. divergentes, cuja origem reside
numa visão de efeitos físicos
opostos. (Imagens 26 e 27)

No plano estético, a parte reservada aos elementos constitutivos da imagem: céu, solo,
construções, está sujeita aos imperativos do efeito principal que sempre orquestra o
conjunto. É, portanto, em torno do efeito de luz artificial, de sua importância psicológica, e
em função de sua superfície e de sua intensidade, que são organizados ou esperados os
efeitos solares declinantes, cujos planos luminosos vão estruturar o espaço, diferenciando
o “solar” do “artificial” por suas tonalidades e intensidades e acrescentando à gama
plástica um registro com nuanças suplementar, com repercussões psicofisiológicas
profundas.

Imagem 27. Le toit de la baleine(1982) de Raul Ruiz, imagem de Henri Alekan.

33
A Luz Noturna

Psicologia da luz noturna

Nós tentamos anteriormente explicar como o homem primitivo percebia a luz solar e
porque esta “impregnação” solar, que nos banha desde tempos remotos, nos persegue e se
transmite de geração em geração com a mesma acuidade e, mais ou menos, com a mesma
significação, apesar das contribuições sucessivas das civilizações.

Se, “para os primeiros homens, o nascer do sol despertava no espírito humano um


sentimento de dependência, de impotência, de esperança, de alegria e de fé em forças
superiores, fonte de toda sabedoria e origem de todo religião....” (O Grande Livro do Sol),
a chegada progressiva das trevas e da noite, fazendo os homens perderem o sentido da
visão, era a marca incontestável do sobrenatural. O homem amputado de seu sentido mais
precioso estava então entregue às forças incontroláveis e hostis que poderiam surgir da
noite. A escuridão é sinônimo de perigo, de risco, de temor. Na noite, o homem perde o
domínio do mundo, ele toma consciência de sua fraqueza, de sua impotência. A noite é o
espaço-tempo não preênsil. Sua representação plástica pelo preto é o valor paroxístico da
angústia humana.

Imagem 28. Os fuzilamentos de três de maio de 1808 em Madri de Francisco de Goya.

34
A importância das sombras, das penumbras, dos pretos e suas significações psíquicas são
traduzidas pictorialmente e cinegraficamente pelas tonalidades que utilizam o leque do
cinza ao negro _ segundo proporções intuitivas _ justapostas às cores claras. Estes jogos de
contraste são somente equivalências plásticas do conflito ancestral entre o bem e o mal, a
felicidade e a infelicidade, a alegria e a dor, materializadas e dosadas em intensidade e em
densidade, distribuídas nas superfícies e volumes, feitos de claros e escuros, de luz e
sombras.

Dramatizar, ou banalizar um tema, é arquiteturar imagens mediante uma paleta


emocional de sombras e de luzes.

Iluminações noturnas naturais


e iluminação arbitrária

Podemos distinguir dois tipos de iluminação noturna: a iluminação lunar e a iluminação


composta, na qual os “efeitos” de luz artificial vêm interferir na luz lunar.

Abordaremos não o caso onde a luz lunar falta totalmente – o que chamamos de uma
“noite negra” – já que, como os
cineastas, os artistas jamais a
trabalharam, com a ausência de
iluminação não se pode evidentemente
construir imagens visíveis20.
Por “iluminação arbitrária” nós
entendemos toda iluminação cuja fonte
ou fontes intervêm sem nenhuma relação
com uma lógica direcional. É evidente
que a iluminação arbitrária não segue
senão as regras do imaginário ou da
fantasia, sem referências no mundo do
conhecido ou do convencional.

Imagem 29. A hipótese do quadro roubado, de Raul Ruiz.

Uma iluminação arbitrária é uma iluminação desconcertante, já que ela não se baseia mais
sobre o vivido e o racional.

Em compensação, a iluminação lunar é tranqüilizadora no sentido de que se funde com


nossa vida e, como a iluminação solar, ela evolui inelutavelmente no mesmo ritmo (nascer
e se pôr) e com os mesmos jogos de sombras. Ela é misteriosa e poética na medida em que
unifica e estiliza as formas ao revesti-las de um véu monocromático.

20
Existe, contudo, fotógrafos e cineastas que utilizam a radiação infravermelho, invisível ao olho humano,
para estudar o comportamento dos assuntos colocados na escuridão, ou para trabalhos científicos, industriais,
etc., mas isto não entra nos nossos propósitos.

35
Luz lunar
Sabemos que a iluminação lunar terrestre é devida ao reflexo da radiação solar sobre a
superfície da lua. Em lua cheia e céu claro, a luz emitida, embora fornecendo para a visão
humana uma imagem suficiente, é apenas um décimo de luz21.

Resulta que o registro de imagens nesta única iluminação só pode se efetuar com uma
técnica particular, empregando suportes fílmicos ou eletrônicos de alta sensibilidade,
utilizados com objetivas de grandes aberturas.

No estado atual das nossas técnicas, as tomadas com “efeitos de luz lunar”, sem artifícios
apropriados, são reservados a especialistas.

Os artistas pintores ou cinegrafistas que abordam o “efeito lunar” se confrontam com a


interpretação que a visão humana lhes oferece fisiologicamente e psicologicamente.

Imagem 30. Rebanho ao luar, J. F. Millet. Museu de Glasgow.

Iluminação composta noturna

Como uma paisagem é iluminada pela lua?

21
O olho humano só pode registrar uma imagem com um mínimo de iluminação de 10 candela (10.13
lumen). _ A luz crepuscular emite um fluxo de 10 lux; _ uma noite estrelada clara 10; _ uma noite com céu
coberto: 10 ; _ uma noite com lua cheia: 1/10 de lux; _ enquanto que um dia em pleno sol, a iluminação é de
10 lux

36
A luz lunar, na trajetória pelo espaço, produz uma angularidade variável que cria, como a
luz solar, sombras projetadas de densidade cambiante segundo a atmosfera nublada ou não.
Mas, o que é notável é que, contrariamente à luz solar, que produz sombras e penumbras
com uma certa transparência nas suas opacidades, graças à imensa tela refletidora
constituída pela atmosfera, a luz lunar produz sombras densas, opacas, o céu escuro não
oferece nenhuma possibilidade de reflexão por sua fraca radiação.

Quando a lua se oculta, assiste-se, como acontece com o sol, a efeitos flutuantes, cujas
conseqüências são a criação de zonas de luz modeladas, com brechas, enfraquecimentos e
reforços segundo a trajetória das nuvens e direção dos ventos.

Por outro lado, como vimos anteriormente no capítulo referente ao crepúsculo, a visão
humana, com a insuficiência da luz lunar, não pode registrar as cores. Daí uma visão quase
monocromática da paisagem. Sozinhos os “valores” nos fazem diferenciar os elementos
coloridos que se traduzem por superfícies de tons escuros cuja gama é pouco extensa. As
sombras e penumbras não são mais percebidas em cores, como no caso da iluminação
diurna.

O cineasta reduz sua paleta, portanto, ao mínimo de artifícios técnicos para dar a aparência
do efeito de luz lunar. A imagem de uma paisagem se reduz a três valores: o céu, as massas
da paisagem e o solo.

Não é raro encontrar lugares mergulhados simultaneamente numa luz suave lunar realçada
por fluxos luminosos artificiais. Uma paisagem campesina, uma estrada, um porto, uma rua
com lampadários de iluminação pública são suficientes para quebrar a unidade tonal
azulada da luz lunar pela intervenção de fontes luminosas de qualidades diferentes e
localizações variadas.

Num clima composto deste tipo, duas iluminações são justapostas e jogam paralelamente
com efeitos contraditórios oscilando entre o natural (luz do luar) e o artificial. Estas duas
iluminações se desdobram em diversos planos: os planos da cor, da intensidade, da
direcionalidade e da mobilidade.

A luz lunar se mostra azulada, já a luz artificial, quanto a sua coloração, é limitada pela
técnica que lhe é aplicada. Geralmente, ela aparece mais “quente” do que a luz lunar.

A luz lunar é muito fraca de intensidade, enquanto que a artificial é relativamente potente.

Enfim, e é de uma extrema importância observar que o luar é – como o sol – direcional e
móvel segundo sua trajetória noturna, enquanto que o artificial é único ou múltiplo,
pluridirecional, e numa posição determinada pelo homem.

A resultante é um combate entre forças opostas: luz lunar e artificial, uma simbolizando a
continuidade, a serenidade, a simplicidade, a melancolia, a poesia, a frieza, a morte, e a
outra, a vivacidade, a complexidade, a instabilidade, a materialidade, o calor, a vida22.

22
A instalação técnica de projetores levará em conta seu efeito duplo, as fontes de iluminação lunar estando
agrupadas segundo um efeito unidirecional e as fontes de efeitos dos lampadários sendo repartidas segundo
eixos múltiplos, como para toda iluminação multidirecional.

37
É num tal complexo de luzes que se expressaram numerosos pintores e, mais raramente, os
cineastas.

Van Gogh nos oferece um exemplo de iluminação composta totalmente particular e próprio
ao seu modo preferido de expressão, por planos [achatamentos] coloridos: uma noite
estrelada numa rua fortemente iluminada por um lampadário de um café.

A oposição entre o azulado de um céu noturno e a luz quente da iluminação pública cria
uma sensação de profundidade extraordinária, sem recorrer aos procedimentos de
perspectiva nem ao modelado. Tudo é jogo de cores, justaposição e oposição de tons frios
e quentes que sugerem sombras e claros. Toda sua tela é percorrida de intensas vibrações
que a animam a tal ponto que a gente acreditaria escutar barulhos de conversas no terraço
do café, os passos dos transeuntes e o casco dos cavalos no calçamento, enquanto que
como fundo sonoro as cigarras do campo circundante perfuram com seus gritos a noite
quente provençal.

Imagem 31. Terraço do café à noite (1888), de Van Gogh.

Magritte, em O Império das Luzes (imagem 26) nos propõe, ele também, um soberbo
exemplo de iluminação composta. Mas não é uma noite com luz lunar; ele trabalha sobre o

38
efêmero da aproximação da noite, sem mesmo recorrer à grandiloqüência de um céu
crepuscular carregado de cores. Magritte produz um efeito de noite sobre um fundo de céu
diurno, e esta deslocação nos perturba, nos incomoda e nos encanta tudo ao mesmo tempo
pelo inusitado, o não-convencional, fruto de um ruptura entre o natural e o irracional. Esta
casa à margem da água está sujeita a forças contraditórias, poderosas: as luzes artificiais,
situadas no interior, jogam reflexos arruivados, enquanto que um lampadário insólito
projeta sobre a fachada o clarão desenhado de uma fonte de luz mais fria, cujos efeitos
múltiplos cintilam na água; as árvores com seus contornos em silhueta criam
profundidades enquanto que nuvens múltiplas e leves são empurradas pelo vento. Os olhos
percorrem sem cessar esta morada de janelas fechadas, onde abrem-se sozinhas, como um
olhar, as duas janelas misteriosamente animadas pela luz, depois vagueiam em direção ao
céu leve para posar de novo sobre o enigmático candeeiro, centro ativo de nosso giro
cerebral. E a gente se sente prisioneiro desta obra, tanto sua força atrativa é poderosa.

Sem dúvida, os três elementos “luz”, o diurno, o noturno e o artificial, sustentam esta
magia pictórica.

Estudo de efeitos da luz lunar.


O aspecto de uma paisagem varia segundo a orientação lunar: iluminação de frente, de
perfil ou à contra-luz.
Os valores a reproduzir cinegraficamente ou a reconstituir em estúdio dependem da
escolha do cineasta.

A. Iluminação lunar dita “à contra-luz”.


Os valores principais aparecem assim (observações feitas no verão):

1. O céu é de um azul muito claro e transparente.


2. As massas (volumes) das árvores – se se tratar de um jardim – são muito negros, sem
nenhum detalhe e sem cores.
3. O chão (verdor, prado ou gramado) é verde claro, porém mais escuro do que o céu.
Donde uma esquematização da paisagem que se resume a três valores:

1. Céu (claro);
2. As árvores (muito sombrias);
3. O chão (sombrio).

B. Iluminação lunar lateral.


Os valores principais aparecem assim:

1. O céu é azul claro, porém mais escuro do que “à contra-luz”;


2. As massas das árvores revelam um certo modelado, mas sem nenhum detalhe;
3. O chão revela, segundo sua vegetação e matéria, um fraco relevo, o verdor é claro, os
seixos muito claros;

De onde, em resumo, uma relação se reduz a três valores de densidade diferente:

1. O céu (mediamente claro);

39
2. As massas das árvores (meio iluminadas, meio sombreadas);
3. O chão (mais sombrio do que o céu).

B. Iluminação lunar de frente.


A luz nas costas do observador.

1. O céu é de um azul muito denso;


2. As massas das árvores perdem seu modelado mas aparecem mais claras do que nos
outros dois caos, com detalhes muitos leves;
3. O chão é claro.

De onde uma relação de densidades de valores se classificam assim:

1. O céu se torna mais sombrio do que o chão;


2. As massas de árvores são menos sombrias do que nos casos precedentes;
3. O chão é claro, os relevos desaparecem.

Todos os contrastes são nitidamente reduzidos neste último caso, pela iluminação em
achatamento.
Enfim, a paisagem em efeito de luz lunar aparece com pouca nitidez e o “azulado” tão
comumente capturado pelos cineastas é de uma fraca densidade.

A substituição das cores por uma tradução apropriada e simplificada não é suficiente para
devolver o fenômeno fisiológico da visão noturna, a impressão azulada que acompanha o
efeito de noite é igualmente necessária, assim que o “flou”, que é próprio da
“transformação” da iluminação diurna em fraca iluminação noturna.

Em resumo, quatro elementos caracterizam o efeito noturno:

 Ausência de cores;
 Sombras densas, sem grande transparência;
 Dominante azul;
 Ausência de nitidez.

Iluminação noturna
artificial em exteriores

Em exteriores, para os cineastas, as opções prévias tomadas teoricamente se chocam


muitas vezes com as formas dos lugares naturais, os quais impõem o dispositivo geral da
iluminação que, pelas suas imposições técnicas, influi sobre o estilo. O cineasta é submisso
à locação, porque a escolha dos locais tem uma importância considerável.

Esta seleção se opera em função do tema e da ação, como também as técnicas de


iluminação. É mais freqüentemente um compromisso entre o “desejado” pelo realizador e
o “devolvido” por seus colaboradores que fornecessem a síntese do sonho e da realidade na
complexidade da iluminação artificial.

40
Imagem 32. Croqui explicativo de um efeito da luz lunar de um filme Deux hommes en fuite Joseph Losey23

Imagem 33. A bela e a fera de Jean Cocteau (1946) . Fotografia de Henri Alekan

23
A iluminação do filme de Joseph Losey Deus hommes en fuite (Dois homens em fuga), com figuras na
paisagem, colocou o problema de luzes artificiais em extensões muito vastas, sem recorrer ao procedimento
de “noite americana” condenado pelo realizador. A única solução residia no uso de projetores de forte
intensidade, como os arcos elétricos capazes de proporcionar uma grande potência luminosa. A uniformidade
da iluminação foi obtida pela adoção de uma direção de fluxos luminosos que criava a ilusão da luz lunar
bastante direcional. Dez linhas de texto, dez dias de trabalho...

41
Iluminação noturna
com luz artificial em estúdio
No caso onde há uma reconstituição em estúdio de cenários representando locais exteriores
tais como ruas, passeios, jardins, florestas, os problemas a solucionar se resumem em duas
opções de luz que estão em função da “convicção estética” do cineasta: iluminação natural
lunar ou iluminação arbitrária. Estas opções estão ligadas à temática do assunto abordado.

TRANSFORMAÇÃO DO EFEITO
SOLAR EM LUNAR
DITA “NOITE AMERICANA”

Muito freqüentemente, o cineasta esbarra na presença de um efeito de noite em exterior,


com dificuldades tais que ele não pode dominar o problema com iluminações artificiais
clássicas, sobretudo quando os locais são extensos ou quando algum projetor não pode
alcançar o objetivo proposto. É o caso de vastas paisagens, de exteriores nas montanhas
muito altas, de tomadas do mar ou em todos os locais de acesso difícil ou impossível.

A técnica utilizada – chamada de “noite americana” ou “dia por noite” – faz apelo à
mutação do efeito solar e de seu resultado de sombras projetadas em luz lunar filtrada
(difusa), azulada, misteriosa. Este efeito noturno, realizado em pleno dia, se baseia na
redução da gama de nuanças de uma paisagem ensolarada a três valores principais
concernentes ao céu, as massas da paisagem e o chão, sem deixar a legibilidade dos
detalhes como é o caso das verdadeiras noites naturais24.

A noite americana não é “criação”, mas somente “transposição” artificial da natureza. Ela
não emprega senão a técnica fotográfica. Para aceder a um nível superior, ela deve se
esforçar para romper a ordem solar integrando à imagem elementos perturbadores que
modificam as superfícies claras e sombrias segundo uma técnica própria do autor.

24
Este procedimento consiste em interpor filtros de seleção entre a objetiva e a paisagem para atingir o efeito
desejado.
Segundo os cineastas americanos, os filtros empregados para os filmes preto-e-branco são, por exemplo: 23A
da Kodak ou 25+X1, sob reserva de que as condições de iluminação sejam suficientemente contrastadas.
Eles são empregados com mais ou menos sorte dotando-os de um fator de exposição tal que, segundo a
sensibilidade do filme empregado, o resultado seja levemente subexposto a fim de tornar mais leve a
densidade do negativo para a obtenção de “positivos” densos que facilitem a ilusão de um efeito noturno.
Estes efeitos são completados nas tomadas pelo emprego de “difusores óticos” ou de “tramas” destinados a
“quebrar” o excesso de nitidez da maioria das objetivas modernas. Os procedimentos para filmes coloridos
são o emprego de filtros neutros degradês ou não, o que é aconselhado, como também os filtros
polarizadores.
É recomendado da mesma forma substituir o filtros 85 da Kodak por um filtro que modifique levemente a
temperatura da cor em direção ao azul utilizando, por exemplo, o 81 EF da Kodak.

42
A LUZ ARTIFICIAL

Iluminação e luzes artificiais


Antes de abordar o estudo da luz artificial na sua aplicação cinematográfica, nos parece
indispensável lançar um breve olhar sobre as origens da iluminação artificial.

É certo que os homens primitivos, antes de serem mestres do fogo, deveriam ter assistido,
impotentes, as manifestações da natureza que produziam a luz sob diversas formas: clarões
de relâmpagos que riscavam o céu, vulcões cuspindo torrentes de matérias incandescentes,
incêndios de florestas. Todos estes fenômenos naturais produziam a luz, de breve ou longa
duração. Mas o homem se submetia a esses efeitos sem os analisar e nem compreendê-los,
e os atribuía a forças superiores25.

Com o domínio do fogo, sem renegar as origens divinas, o homem, único ser sobre a terra
a poder criar fogo e a luz à sua vontade, chegou a se confortar no seu sentimento de
pertencer a uma espécie excepcional.

Imagem 34. Natureza Morta à luz de vela de Pieter Claenz (1597-1661)

25
Na mitologia grega, Prometeu tendo roubado o fogo do céu, foi punido por Zeus, que o amarrou no
Cáucaso onde um abutre lhe devorava o fígado. O fogo foi devolvido por Heráclito. Foi encontrada uma taça
do século VI A.C representando o suplício sofrido por Prometeu. Mas bem antes, uma pintura dos índios
najavos no seu mito do coyote, mostrou o fogo roubado dos deuses para dá-lo aos homens. (C.G. Young,
L’Homme et ses symboles. Paris, Pont-Royal).

43
O fogo é ao mesmo tempo o agente criador e destruidor, mas nós não abordaremos este
tema já tratado em numerosas obras26.

É sob o ângulo da iluminação produzida pelo fogo que nós começaremos este capítulo.

Antes de tudo, quais são as observações essenciais que a gente pode tirar da comparação
entre a iluminação solar e a iluminação emitida por uma fonte artificial, como a que resulta
da combustão de um fogo de madeira, de uma tocha, de uma vela ou de uma lâmpada?

Em primeiro lugar, é a fraca potência do “artificial” em relação ao “solar”. Exceto a luz


que produz a fricção atômica voluntariamente provocada pelo homem, nenhuma
iluminação artificial pode se igualar em potência à luz solar.

Em seguida, e é sem dúvida, para o cineasta, o elemento criativo o mais importante: a


iluminação artificial permite ter o domínio da localização das fontes de iluminação, de sua
intensidade e de seu direcionamento.

Lembremos que para o


observador terrestre o sol
descreve aparentemente
uma órbita cotidiana indo
de 0 a 180 graus; dito de
outra forma, a luz
partindo da horizontal, no
amanhecer, atinge a
horizontal, no crepúsculo.
É precisamente o que
diferencia essencialmente
a luz solar da luz artificial,
esta podendo ser emitida
por uma fonte
eventualmente colocada
abaixo da horizontal. Esta
particularidade é de um extremo interesse por sua implicação psicológica, que
abordaremos na seqüência.

Na luz artificial, o homem e seu ambiente se encontra banhado numa iluminação que pode
estar em acordo ou em oposição total com a iluminação solar. O fluxo luminoso artificial,
por suas múltiplas posições espaciais, permite explorar e, portanto, expressar, por uma
iluminação singular, o que a luz solar não pode pretender alcançar. Daí a revelação de um
universo submisso a duas forças ora contraditórias ora complementares, segundo a
iluminação solar ou artificial.

Na luz artificial, o complexo luz-sombra é dominado pelo homem.

Este domínio do posicionamento espacial da fonte é acompanhado de uma escolha


essencial: ou imitar a luz solar e, neste caso, colocar a fonte artificial entre 0 e 180 graus

26
Por exemplo: La Magie du feu, por Gaston Malherbe, Éditions Mondo, 1973.

44
em relação ao assunto ou descartar, liberando a fonte artificial de qualquer obrigação e,
consequentemente, utilizar todas as angularidades de 0 a 360 graus.

Está claro que, para o cineasta, uma iluminação artificial que posiciona as fontes de
iluminação de uma maneira repetitiva e sistemática – como é freqüente o caso nos estúdios
cinematográficos – sob um ângulo de 35 a 45 graus subentende uma opção “solar”, esta
angularidade podendo ser considerada como um meio correntemente utilizado.

 A esfera das iluminações:


A iluminação solar é limitada a um arco de cerca de 0 a 180º.
A iluminação artificial se cria sob todos os azimutes de 0 a 360º. Acima da horizontal,
ele imita a luz solar e abaixo ela tem sua própria personalidade e se torna luz anti-solar.

O solar e o anti-solar
Se a fonte de luz artificial está situada abaixo do horizonte imaginário, a luz muda de efeito
solar para anti-solar; daí a importância da posição da fonte de iluminações cujo
significado é totalmente diferente segundo a escolha adotada: uma baseada no ritmo solar
explora um mundo conhecido e repetitivo; a outra mostra o aspecto insólito do mundo
“fora da natureza”. A primeira transcreve um tema por meio da luz natural, o segundo
transmuta o assunto por meio da luz imaginária.

Imagem 35. O sonho de São José (1640) de George de La Tour.

45
O solar é único, sua radiação sobre a superfície terrestre é unidirecional ou multidirecional;
ele é constante no seu curso orbital, variável nos seus efeitos, mas inacessível ao homem.

O artificial é fonte única ou múltipla, unidirecional ou multidirecional; ela é “solar”


quando adota uma posição parecida à trajetória do sol; em compensação, ela é “anti-solar”
quando diverge da órbita solar e se singulariza pela multiplicidade de suas fontes e a
diversidade de suas posições espaciais; ela é então variável e com nuances nos seus efeitos,
é a imagem do homem e dominada por ele.

A importância do “artificial” é, portanto, considerável, porque o homem reconstrói pela luz


um espaço que aparenta, seja o mundo visível solar, seja seu contrário, revelando um
universo insuspeito até então.

O emprego da luz artificial neste domínio tão particular do anti-solar é caracterizado pelo
fato de que ela entra em conflito permanente com o solar. Ela faz nascer jogos de sombras
“não-solares” cujos direcionamento e densidade tem um poderoso impacto emocional pela
“anormalidade” dos fenômenos desenvolvidos, contrários aos jogos solares naturais. É
evidente que nenhuma fonte artificial, seja ela de uma grande potência, não pode nem se
igualar e nem ir de encontro à luz solar.

Imagem 36. Um corpo que cai (1958) de Alfred Hitchcock.

Mas o “artificial” explora maravilhosamente seu terreno específico, o universo da sombra,


da escuridão, da noite, e aí se encontra inigualável. É neste espaço fechado e entregue à

46
“não-luz”, do estúdio cinematográfico, lugar privilegiado, voltado à criação, que o
imaginário se libera para fazer desabrochar seus poemas ou seus fantasmas.

É aí, e não em outro lugar, que a luz afixa o irreal de suas estruturas sobre o real do
mundo das formas.

Qualidade da Luz
O direcionamento e as angulações dos fluxos da luz artificial não são os únicos critérios
nas opções propostas.

A “qualidade” do fluxo – nós entendemos como tal sua coloração, ou mais precisamente
sua temperatura de cor – desempenha um papel tão importante quanto este que acabamos
de ver anteriormente ao tratarmos do posicionamento das fontes de iluminação na criação
de uma obra.

A qualidade de uma fonte de luz artificial é, segundo sua natureza, equivalente ou não à
qualidade da luz do dia considerado na sua normalidade e não nos seus momentos de
exceção.

As diversas superfícies e objetos submetidos à luz solar ou iluminados por uma luz
artificial aparecem sob cores diferentes segundo a coloração da luz que eles recebem e o
poder de absorção ou de reflexão dos materiais que entram na sua composição.

Por exemplo, uma fonte de luz à baixa temperatura de cor, tal como a chama de uma
fogueira ou de uma vela, não formará ao seu redor os mesmos efeitos coloridos que uma
fonte de luz cujo espectro estaria próximo do da luz do dia.

A luz artificial permite, por sua fidelidade, organizar zonas de repartições de fluxos de
intensidades diferentes, criando brilhâncias e nuances, avivando ou atenuando as
colorações, demarcando os relevos, contornando os volumes, apagando áreas de sombra,
suscitando transgressões, opondo a profundeza das sombras e seu silêncio ao barulho das
cores. A luz é então elemento construtor e perturbador; ela rompe a monotonia de uma
superfície, sublinha os centros de interesse preferencial; ela divide, reparte, une, ritma,
ela é gama plástica, fisicamente e psicologicamente27.

A luz solar, cuja riqueza e beleza não colocamos em questão, é incompatível com uma
criação artificial como a que se pratica nos estúdios.

A grande revolução de nossa época, neste domínio da arte, é, precisamente, a ruptura entre
os meios de iluminação tradicional – ateliês dos pintores e estúdios dos primeiros
fotógrafos sujeitos a uma luz solar difusa e rebuscada como tal – e os meios de iluminação
moderna.

Na base da iluminação artificial moderna, tal como é concebida nos lugares especializados
que são os estúdios de fotografia, de cinema e de televisão, a gente constata que a luz é

27
O que C.V. Kandinsky disse para a cor no seu curso da Bahaus, permitirmos aplicar à luz: “A cor
é percebida opticamente e vivida psiquicamente.

47
emitida por fontes, sejam pontuais ou difusas, através de projetores especialmente
concebidos para este efeito.

Estes dois tipos de projetores (refletores) emitem radiações totalmente diferentes não
somente em potência, mas também em direcionamento segundo seu poder de
concentração de luz numa determinada direção, ou de sua capacidade de espalhar a luz,
isto é de sua difusão.

O emprego de tal técnica: luz direcional ou luz difusa, ou combinação das duas, possibilita
vencer as dificuldades de uma iluminação até então pouco domesticada, herdada da
iluminações dos ateliês dos fotógrafos do século XIX.

Princípios da iluminação artificial


Examinemos os princípios da iluminação artificial, e vejamos como elas foram
estabelecidas pelos cineastas e pelos pintores.

Antes de tudo, é necessário estabelecer que a luz é parte integrante de um tema. Raros são
os exemplares fílmicos nos quais a luz é o único elemento cênico. Mas isto é totalmente
concebível.

É o tema que vai impor a forma de iluminação, a qual vai se elaborar segundo duas fases
principais: de início o que podemos chamar de mecânica de iluminação e em seguida a
modulação da luz. A primeira é de ordem técnica, e a segunda, de ordem artística.

Mecânica de____________
iluminação._____________

“É o espírito sozinho que dá vida a toda técnica.” Goethe

Todo tema, que ele seja concreto ou abstrato, exige para sua visibilidade e sua
conservação, pelo registro sobre um suporte fílmico ou eletrônico, um certo nível de
iluminação que existe em função da sensibilidade do suporte empregado e de suas
características (cromatismo, contraste, etc.)28.

Para realizar esta primeira fase, uma seleção se opera entre uma gama de aparelhos de
iluminação escolhidos para preencher funções adaptadas ao assunto, segundo dois grandes
princípios: iluminação direcional ou iluminação difusa.

Examinemos mais próximo o mecanismo da luz sem, no momento, entrar mais


profundamente na sua psicologia.

Cada fonte artificial pode ser comparada (segundo seu tipo) seja a um emissor cujo fluxo
luminoso direcional é de forma cilíndrica ou cônica (se se trata de refletores/projetores
clássicos munidos de lentes de Fresnel ou de condensadores), seja a um emissor de fluxo

28
L.P. Clerc. La technique photographique, Paris, publication Paul Montel.

48
luminoso dispersivo, multidirecional (se se trata de lâmpadas ou de agrupamentos de
lâmpadas com luz difusa).

Os diferentes tipos e variedades de projetores são para o cineasta uma verdadeira paleta de
luzes com a qual ele “estrutura” o espaço que lhe é subordinado e o organiza cine-
plasticamente.

Já dissemos que é o tema que impõe a forma, impondo por sua vez os meios técnicos e, em
particular, os tipos de refletores/projetores segundo as opções tomadas: iluminação por luz
direcional (modelada) ou iluminação difusa (achatada), ou ainda iluminação mista, na qual
a luz artificial é acrescida à luz natural.

Imagem 37. Smaragdina (1980) de Jean-Claude Janet.

49
Iluminação________________
Direcional_________________
Esta opção em matéria de luz se baseia num conceito estético que propõe a ilustrar um
tema seja com uma visão naturalista, seja através de uma transposição irrealista. O
naturalismo é a imitação da luz natural, pela reprodução dos seus efeitos. Isto confina o
artista ao papel de copista, tarefa muitas vezes difícil que exige muita observação a fim de
restituir os fenômenos luminosos que acompanham a cotidianidade da vida. Mas, se
numerosos temas pedem esse tipo de iluminação realista – que aliás lhe bastam –, outros
procuram uma aproximação de um mundo visionário, aumentado cada vez as distâncias
entre o natural e o imaginário.

O cinema – pelo menos no seu período primitivo – utilizou a luz como um meio físico para
“permitir ver” e para fazê-lo, a iluminação era “naturalista”, pois se tratava da luz solar em
exterior como também em interiores (os estúdios eram iluminados pelas vidraças).

Mas, desde o surgimento da luz elétrica e com o abandono das vidraças que dispensaram a
iluminação solar, o “natural” abriu caminho para o “construído”. Infelizmente, os artistas
de então – estamos falando dos realizadores e operadores – tinham mais o cuidado em
“regar” a cena (era o termo empregado em matéria de iluminação) com uma profusão de
luz do que pensar que a cada assunto deveria corresponder uma iluminação particular. A
grande lição só foi percebida mais tarde.

Portanto, desde 1892, Adolfo Appia escreveu a respeito da encenação teatral: “Duas
reformas radicais me pareceram absolutamente indispensáveis: o papel dado à iluminação
e o dado às evoluções em profundidade e em altura, isto é, a necessidade de criar pela
iluminação uma atmosfera e de se servir do cenário”.

A iluminação naturalista, quando é “reinventada” em estúdio, está longe de ser uma


iluminação simplista. Muito pelo contrário, a observação de múltiplas nuances distribuídas
generosamente pela luz natural que atinge as superfícies, reveste os objetos, cinzela as
formas, organiza as sombras, cria o relevo. Eis a palavra-chave, verdadeiro “sésamo” da
arte da luz, que confina a imagem cinematográfica num princípio, quase um dogma,
durante mais de meio século: sugerir o relevo. Esta terceira dimensão, ilusória, vai
degenerar em convenção rotineira.

É em nome desse princípio que os cineastas não puderam, durante muito tempo, se livrar
do detestável hábito da iluminação dita “contra-luz”, a qual favorece a impressão de
relevo.

Longe de nós a idéia de querer banir todo o efeito de iluminação que tende a sugerir o
relevo, mas existe outros meios, tal como a utilização do efeito perspectiva pelas formas do
cenário, pelos objetos, os acessórios, as mobílias, pela escolha criteriosa de objetos
adequados, enfim pela mobilidade da ação ou da câmera e, sobretudo, pelos jogos e
relações de superfícies claras se opondo às superfícies sombrias.

A iluminação naturalista pode não se limitar à imitação: ela adquire então uma grandeza
incomparável ao se juntar à “mecânica da iluminação”, que regra o balé das luzes, a

50
pesquisa e a aplicação de uma nota “imprevista” que surge intuitivamente e que confere à
imagem, pela ruptura com o banal, um sabor plástico particular.

Esta entrada repentina de uma “terceira força”, deslocando os valores plásticos bem
organizados, contribui para “transcender” a imagem. De “naturalista” que era no início, a
luz pode então alçar a categoria de luz ou iluminação “irrealista” ou “surrealista”.

Qualquer que seja a organização das iluminações, é evidente que a escolha assim feita,
entre o real e o surreal, coloca o problema que decorre destas opções e que deve ser
resolvido anteriormente pelo artista: iluminação em pseudo-relevo, dita de outra forma,
“em modelado”, ou iluminação “em achatamento”.

Iluminação modelada e
plana_____________

Esta escolha repousa na concepção íntima e pessoal do artista. Nada, portanto, pode
permitir enaltecer a supremacia de tal tipo de iluminação sobre outra. A gente pode
somente estimar que a “modelada”, apoiando-se num certo realismo da natureza (já que
temos uma visão binocular, nós percebemos em relevo), tenta restituir o “objeto” com uma
pseudo-objetividade.

Imagem 38. A Vênus calipígia sob luz modelada, século I A.C

Ao contrário, “a luz achatada é uma atitude mental que despoja o “objeto” e tende a
sintetizar a natureza ao transformar em duas dimensões as formas percebidas em três
dimensões.

51
A luz empregada para este fim desempenha um papel simplificador pela eliminação do
modelado, e criador pelo seu poder de estilização29.

Imagem 39. Gabrielle d’Estrées e sua irmã (anônimo). A luz frontal


rejeita a dramaturgia das sombras para fazer aparecer a pureza das formas.

 A luz frontal rejeita a dramaturgia das sombras para fazer aparecer a pureza das formas.
 Harmonia das linhas, o apagamento do modelado, fusão de uma ação no seu meio ambiente.
 O achatamento com a iluminação solar ou artificial pode ser utilizada como efeito de
“desdramatização” pela eliminação quase total dos jogos de sombras o que confere à imagem
uma significação diferente.
 A ausência de superfícies escuras e o desaparecimento do modelado nos faz entrar num mundo
de formas sem espessuras através de suas linhas e não pelos seus volumes.

Arquitetura da_______
Luz__________________

Como, em tais opções, a imagem cinematográfica é estruturada?

Na iluminação “modelada”, os fluxos de luz são organizados segundo eixos imaginários


divididos em eixos principais, secundários e terciários, etc. Esta distribuição se opera
levando em conta o tema (trágico, cômico, naturalista, futurista, abstrato, etc.), a ação
(estática ou dinâmica) e pela avaliação:

_ das superfícies a cobrir (local, cenário);

29
Esta visão de mundo, diferente, é nova? Se os cineastas parecem descobri-la há pouco tempo, os pintores a
possuíam desde a mais alta antigüidade. Parece muito curioso que a natureza, percebida pelo homem com o
relevo que lhe é próprio, portanto, tinha sido traduzida pictorialmente pelos “achatamentos” durante vários
séculos, depois em modelado por alguns séculos, para reencontrar nos nossos dias artistas que recomeçam a
“explorar” um via que os ancestrais já tinham seguido cinco milênios antes.

52
_ da reflexibilidade dos materiais (absorventes ou refletores) e de sua cor;
_ dos efeitos exigidos pelo tema (iluminação diurna, noturna, acendimento ou apagamento
de lâmpadas);
_ das fontes de luz natural (janelas, aberturas, portas, etc.);
_ das fontes de luz artificial (lâmpadas, candelabros de parede, lâmpadas de teto, lareira,
etc.);
_ o posicionamento dos refletores (sobre passarelas, pantógrafos, tripés, etc.);
_ da potência dos projetores (de 250 W a 10 KW para iluminação com lâmpadas
incandescentes – de 80 a 225 A para arcos elétricos)30;
_ do tipo de refletores (de arcos, incandescentes, de iodeto);
_ da qualidade da luz (temperatura de cor);
_ do clima particular (interior ou exterior reconstituído, hora, estação, atmosfera climática,
etc.);
_ do campo abraçado (grande conjunto, plano parcial ou aproximado);
_ da mobilidade da câmera (travelling, grua);

Imagem 40. A bela e a fera de Jean Cocteau. Esquema de análise da Luz.

30
Atualmente, os refletores de arcos elétricos são raramente empregados.

53
O processo criativo da iluminação passa pela execução do princípio geral de base que
(salvo caso de exceção) é uma iluminação sugerida pela posição das fontes de luz natural,
tais como janelas, aberturas, vitrais, portas ou fontes de luz artificial: candelabros de
parede, lâmpadas de teto, lâmpadas em geral, etc.

A iluminação assim concebida toma arbitrariamente como eixo principal de luz uma das
fontes naturais (por exemplo, janelas dizem respeito à luz diurna enquanto que as lâmpadas
mostram um efeito de noite).

Luz principal
O eixo principal torna-se o lugar do desenvolvimento de toda a estrutura-luz que vai se
organizar em torno dele e com ele.

No caso de reconstituição totalmente artificial, por exemplo em estúdio cinematográfico, o


eixo principal direcional é o fluxo luminoso cuja potência vai dominar o conjunto.

O eixo principal exprime e orienta o esquema diretor da estrutura-luz. Ele cobre uma
certa superfície e, em princípio, ele vai reger o conjunto da construção através de seu
direcionamento e potência de seu fluxo; é a “luz-chave”.

Luzes ___________
Complementares_
LUZ SECUNDÁRIA

As luzes secundárias são organizadas em direcionamento e em potência em torno e de lado


do eixo da luz-chave. Elas são o complemento indispensáveis da luz principal,
contribuindo a construir o lugar cênico por um volume-luz. Os fluxos luminosos
secundários são (sempre em princípio, pois há exceções) de uma potência inferior à luz-
chave.

LUZ TERCIÁRIA

É a luz resultante dos múltiplos jogos nascidos das superfícies e materiais refletores. É por
excelência a luz das nuances e das transições.

Bem entendido, estes fluxos luminosos, inteiramente provenientes de múltiplas fontes,


respeitam a unidade cineplástica, que não podem ser transgredidas sem trazer prejuízo ao
tema.

LUZ DE AMBIENTE

Uma quarta luz, dita “de ambiente”, desempenha um papel preponderante na arquitetura da
luz e sua significação. Ela é muitas vezes estabelecida – segundo as concepções pessoais
dos cineastas e dos fotógrafos – desde a primeira fase da iluminação. Sua função essencial
é modular os contrastes pela dessaturação. Segundo sua intensidade, as sombras adquirem
uma certa transparência ou permanecem obscuras. Ela ritma por sua potência (bastante
variável) a escala de diversas densidades das superfícies de sombras. Esta hierarquia das

54
sombras, traduzidas em valores de contrastes diferentes, não é somente um jogo plástico de
origem estética, mas uma gama psicofisiológica que permite a mutação do “visível” em
“emocional”.

Em conclusão, no plano da prática da iluminação, uma divisão e uma densidade das


superfícies sombrias prevalecendo sobre as superfícies claras correspondem a uma
“dramatização” do tema. Ao inverso, uma dessaturação das sombras com predominância
de superfícies claras tem por efeito uma “desdramatização”, uma banalização do assunto.

Lugares cênicos e
Interiores naturais

São os locais escolhidos que determinam o tipo, o número e a potência dos refletores, em
função da superfície a iluminar e dos efeitos a obter. O suporte fílmico e suas
características, notadamente a sua sensibilidade, permitem estabelecer teoricamente a
potência dos fluxos luminosos necessários a iluminar lugares, quer sejam naturais ou
artificiais (cenários) nos estúdios cinematográficos31.

Em interiores naturais, a iluminação é inteiramente condicionada pela arquitetura dos


lugares e pela disposição das aberturas oferecidas à luz: janelas, frestas ou portas.

A iluminação com luz natural responde a necessidades funcionais e a considerações


estéticas, às vezes até espirituais. A luz natural num interior é sempre “autêntica”.
Entendemos por isso que ela se oferece ao nosso olhar com sua plena significação e sua
aparente simplicidade num local à sua medida, pois ele é concebido pelo homem para fazê-
la participar da harmonia do local que ela vivifica. Mas sua intensidade, seu
direcionamento, sua presença são cambiantes e caprichosas como as variações solares
cotidianas e os ritmos sazonais que lhe dão origem. É Poe isso que a intervenção da luz
artificial é indispensável, para toda obra fílmica, seja como acréscimo ou como iluminação
principal.

Para o cineasta colocado no contexto de cenários naturais, a iluminação “verdadeira” não


entra obrigatoriamente no seu propósito. Ele deve dominar a luz, moldá-la à sua
conveniência para fazê-la entrar no seu jogo. É o tema que comanda a luz, e não o inverso.
O esforço do cineasta é contrário ao do pintor para quem a luz pode criar o tema.

A luz natural se encontra confrontada ao imaginário do cineasta, que recorre ao artificial


afim de poder trabalhar seu assunto. A luz natural entra então em conflito com a luz
artificial e, para resolver este problema, o cineasta subordina uma a outra: se é a luz natural
que predomina, a artificial será secundária e se tornará a iluminação de complemento, mas
se a prioridade é dada à luz artificial, a luz natural se tornará sua subalterna por filtragem,
ocultação parcial ou total.

31
O equipamento técnico de um cenário natural ou artificial é baseado numa potência de iluminação média
exigindo 500W aproximadamente por m2 para um suporte-filme de sensibilidade 100 ISO e para uma
abertura de objetiva de f/ 2.8.

55
Imagem 41. Cais das Sombras (1938) de Marcel Carné. Imagem: Eugen Shuffan.

Praticamente, em todos os casos de interiores naturais, as fontes de luz artificial são


colocadas onde podem estar (por conta da configuração dos lugares), mas raramente onde
deveriam estar (em função do imaginário criativo), e no domínio da iluminação, enquanto
a arte da luz é substituída pela noção puramente física de iluminação necessária e
suficiente para a obtenção de uma imagem.

Não condenamos os interiores naturais, muitas vezes insubstituíveis, mas lamentamos sua
utilização cada vez que embaraços em matéria de iluminação fazem afundar a luz na mais
trivial banalidade. O interior natural, ou cenário natural, só encontra sua plena justificação
no caso onde a locação é excepcional pela sua arquitetura, sua dimensão, sua notoriedade
ou pelo seu caráter de obra única ou de lugar inimitável. Em tais casos, é evidente que a
“luz que se oferece” é sempre superior àquela que plagia; mas inúmeros são os exemplos
cinematográficos onde o verdadeiro não é sempre o verossímil, e a luz segue este
postulado. Por isso o cineasta se encontra freqüentemente obrigado em lugares
excepcionais a modificar o ordenamento da luz natural e aí de substituir sua própria visão.
Uma força de expressão aumentada jorra então desta não-observação do natural. Onde
estaria a arte se as regras da natureza não fossem transgredidas para serem sublimadas!
56
Não pode haver aqui princípio absoluto, os problemas postos se resolvem caso a caso. É
evidente que a luta é muito desigual entre o natural e o artificial e, tratando-se de
iluminação num interior natural, é às vezes preferível, se as conjunturas se apresentam
favoráveis, o que é raro, de deixar lugar livre aos jogos da luz solar. Luz inigualável, como
vimos nos capítulos a ela dedicados; mas ai de mim!, se o cineasta pode se permitir de
retirar daqui e de lá alguns magníficos “efeitos”, que são os da continuidade cineplástica de
seu tema? O maravilhoso com a iluminação solar é exatamente que ela é efêmera, o
cineasta tem necessidade para ilustrar seu tema de construí-lo numa certa continuidade.

Imagem 42. Cais das brumas (1938) de Marcel Carné.

Para o filme Cais das sombras, Eugen Shuftan , chefe-operador de Marcel Carné, utilizou em 1938
numerosos refletores de 2kW munidos de um sistema de focalização por deslocamento da lâmpada
colocada diante de um excelente espelho parabólico, mas desprovidos de lente de Fresnel.
A vantagem destes refletores – abandonados há vários anos por negligência dos fabricantes e
incompreensão dos profissionais – era permitir, num único refletor, um fluxo direcional revestido
de um fluxo difuso. Atualmente, o mesmo efeito só pode ser obtido recorrendo-se a dois refletores
ao mesmo tempo, um direcional e outro difuso, mas sem a possibilidade de evitar uma sombra
dupla, o que não era o caso com os refletores do tipo descrito.

57
Continuidade e unidade
Plástica_________________

Contrariamente à fotografia, que congela um momento do tempo no espaço banhado por


uma luz fugidia, o cineasta se encontra na presença de uma seqüência de momentos
modulados por iluminações variadas, segundo as horas, os locais, as estações, a situação
geográfica.

Ora, uma narrativa fílmica, qualquer que seja, coloca do início ao fim uma sucessão de
imagens cuja composição e estrutura são complexo de luz e sombras, que só trazem sua
plena significação pela relação às imagens que precedem e as que se seguem; daí a
necessidade de obter uma continuidade plástica através de uma continuidade ou seqüência
de cenas que atingem uma unidade visual, verdadeiro fio condutor da narração.

A pesquisa, cena por cena, de uma iluminação seja privilegiada ou banalizada, mantida
estruturalmente no espaço e no tempo durante uma cena, uma seqüência ou conjunto do
filme, cria a continuidade plástica.

A abundância de fontes de luz artificial não deve fazer esquecer uma das regras essenciais,
na nossa opinião, de toda a obra pictural ou cinematográfica: a da unidade plástica que,
sozinha, confere ao quadro ou ao filme sua coerência, seu pensamento interior, sua
densidade de expressão, sua personalidade, sua significação profunda.

Congelar a luz no espaço e no tempo, a fim de que o olhar possa captá-la na sua completa
plenitude e suas possibilidades, é, como expressamos, o problema dos fotógrafos. Mas é
também, de outra forma, para os cineastas, que utilizam o dinamismo cinematográfico para
restituir à luz sua mobilidade e nuanças. Todavia, nos é preciso constatar – fato único na
história das artes – que a breve aparição das imagens na tela não permite ao espectador
apreciar os efeitos das luzes muito sutis: é por “contração” e simplificação dos efeitos que
o efêmero pode ser sentido. Em compensação, uma sucessão mais lenta de imagens, que
deixa mais tempo ao espectador para apreendê-la em toda as suas possibilidades, pode
comportar de sutilezas e de nuanças, e de múltiplos efeitos enriquecedores. A arquitetura
das luzes e das sombras é uma construção que casa intimamente o tempo imposto pelo
desenvolvimento e a sucessão de lugares e ações.

Desta observação um princípio se desprende: quanto mais rápida uma sucessão de imagem,
menos ela pode comportar efeitos visuais e, ao contrário, quanto mais lenta uma sucessão
de imagens, mais ela pode suportar efeitos e variações.

58
A LUZ ARTIFICIAL

A vidraçaria que ocupava toda a superfície do teto emitia uma luz difusa, variável segundo
a luz solar exterior, as horas e as estações e condicionada aos caprichos atmosféricos. Os
cenários abertos e sem teto eram instalados como no teatro e constituídos de placas
pintadas com relevos suaves realizados graças a molduras, ornamentos de tecidos.

Imagem 43. O estúdio de Vincennnes em 1920, foto de Roger Viollet, o ator Krauss discutindo com o
operador Bayard.

A luz era filtrada, segundo a necessidade, por toldos esticados sob a vidraçaria e mantidos
por corrediças destinadas a facilitar o manuseio desses tecidos se o sol se apresentava
muito generosamente. Assim, a iluminação era igual, neutra e sem significância na sua
banalidade vertical. No entanto, ela cumpria seu papel de agente físico, os operadores se
contentavam de girar a manivela, a câmera estando fixa sem possibilidade de panorâmica a
uma altura constante sobre um tripé que se deslocava muito raramente.

59
Imagem 44. Filme Napoleão (1925) de Abel Gance. Abel Gance dá suas indicações ao jovem Bonaparte
interpretado por Roudenko.

Abel Gance e seus operadores só tinham, na época da realização de Napoleão (1925), no


estúdio de Billancourt, meios elétricos reduzidos a projetores de arcos e vapor de mercúrio,
os projetores de lâmpadas incandescentes não tinham sido criados pelos estúdios. A
dificuldade para dirigir ou modular a luz era considerável, a despeito dos obturadores
colocados sobre cada projetor.

MODULAÇÃO
DA LUZ ARTIFICIAL

Vimos anteriormente no assunto iluminação solar como, sob os efeitos das variações
atmosféricas, a luz solar é “nuançada” e oferece, nos seus momentos particulares, um leque
de tonalidades que certos pintores souberam captar com uma extrema sensibilidade.

Como uma tal equivalência pode se obter cinematograficamente através da luz artificial?

O mecanismo da luz, que é o primeiro passo na prática da iluminação, se investe de uma


segunda e importante fase que consiste em fazer participar a luz dos jogos de nuanças pelas
contribuições ou retoques sucessivos, acréscimos ou retiradas de brilhâncias,
esmaecimentos ou ganhos de luz, redução ou acréscimo de penumbras, todas estas
modificações tendendo a “transcender” o objeto ou a “neutraliza-lo” segundo o impacto
psicológico desejado.

60
Imagem 45. Napoleão (1925) de Abel Gance.

Sem dúvida é necessário voltar aqui a tratar da importância das opções tomadas:
iluminação modeladora ou iluminação difusa. A primeira, por sua directividade, é uma
iluminação que desenha o objeto com mais ou menos intensidade; a segunda, por sua
dispersão de fluxos luminosos, é uma iluminação que “banaliza” o objeto que ele envolve
num clima neutro, o acessório não estando diferenciado do essencial: é próprio da
iluminação achatada. Ao contrário, a luz direcional modeladora é sempre “partidária”,
visto que sublinha o “objeto”, destaca-o de um conjunto, o privilegia de alguma forma em
relação ao secundário, o qual desempenha um papel de valorizá-lo.

No primeiro caso, a estruturação da luz é baseada em fluxos nitidamente separados, como


se tratasse de volumes de luz (cone ou cilindros) não devendo interferir uns nos outros. O
“objeto” principal recebe os fluxos luminosos que são especialmente encarregados de
defini-lo ao olhar, de lhe atribuir sua significação particular, enquanto que o entorno do
“objeto” (ou da ação principal) pode ficar relegado ao segundo plano em meio de outros
fluxos luminosos que, por seu lado, não devem interferir de nenhuma maneira naqueles
que iluminam o tema principal.

Esta organização lumino-espacial é em função da duração imposta pelo cineasta ao olhar


do espectador, que deve poder apreender na instantaneidade da imagem todo o seu
conteúdo emocional.

Ao contrário, uma iluminação difusa, o problema se coloca de outra forma, pois a ação é
envolta num volume-luz atemporal indiferente ao tema e seu entorno.

61
“A música dispõe da duração. Mas a pintura oferece ao espectador o efeito massivo e
instantâneo do conteúdo de uma obra.” V. Kandisnky. Du Spirituel dans l’art. Edition
Denöel Gonthier.

LUZ TEMPORAL
E ATEMPORAL

Será melhor mostrar a diferença fundamental entre o direcional e o difuso examinando a


luz nos seus efeitos naturais, por exemplo sobre uma paisagem em iluminação solar em
tempo bom (luz unidirecional) e em dia nublado (luz multidirecional difusa).

A iluminação solar unidirecional é uma luz temporal, na medida em que a radiação solar
nos permite de situar sua fonte sobre sua trajetória cotidiana que marca a todo momento o
decorrer do tempo.

As sombras projetadas são, por suas formas, posições e densidades, a materialização de


uma situação solar temporal que torna perceptível a dimensão abstrata do decorrer do
tempo.

É dizer da importância das sombras, as quais permitem sugerir um clima psicológico sem
fazer aparecer no campo da imagem a fonte solar, mas somente seus efeitos. A paleta de
sombras é tão rica e variada quanto à das luzes; sua utilização enquanto elemento plástico
permite estabelecer uma relação luz-sombra que está ligada à potência e à posição da fonte.

Imagem 46. L’Ombre et La nuit (A sombra e a noite) de Jean-Louis Leconte. Imagem de Henri Alekan

62
Visto que a iluminação solar multidirecional difusa é o oposto da unidirecional pontual,
fica claro que a fonte, não estando situada no espaço, não está, portanto, no tempo e é uma
luz atemporal que é emitida.32

Em tal iluminação, a não-percepção do decorrer do tempo cria um sentimento totalmente


diferente. Enquanto a luz unidirecional é a que une o objeto ao universo terrestre pela
projeção de sombras; a luz difusa, por sua ausência de contrapartida de sombras deixa o
homem indeciso num universo não definido, não situado no tempo.

É a iluminação preferencial de alguns pintores e de fotógrafos da época dos pioneiros. As


obras assim “iluminadas” não refletem nenhuma indicação de “tempo”.

O emprego da luz artificial na cinematografia não escapa à regra geral da luz que exige a
escolha entre iluminações capazes de traduzir o “temporal” ou o “atemporal”. Daí a
utilização de sombras pontuais e de sombras difusas.

O Buda, de Odilon Redon


Uma luz sem hora e sem estação. É um extraordinário
clima de uma luz indeterminada. Personagem e
vegetação parecem flutuar num universo de elementos
destacado do terrestre.

EFEITOS DE LUZ

O termo “efeito” é aplicado a iluminações muito diversas. Trata-se de diferenciar o


“ordinário” do extraordinário”. De fato, estas iluminações de “efeitos” se colocam um
pouco por toda parte e vêm enriquecer um filme, às vezes com conhecimento de causa,
mas freqüentemente fora de propósito.

Embora a gente fale com frequencia de “efeito de dia” e de “efeito de noite”, é evidente
que estes são os climas normais de desenvolvimento dos temas. É preciso, portanto,

32
Nota: As técnicas modernas de iluminação utilizam indiferentemente fontes “diretas” e “indiretas”. O
procedimento consiste de iluminar superfícies brancas: telas, painéis, tetos, a fim de obter uma iluminação
difusora.

63
distingui-los de verdadeiros “efeitos” como, por exemplo, no interior de uma seqüência
diurna, uma iluminação solar projetando com brilho uma janela e seus recortes sobre a
superfície de uma parede, ou a projeção de uma fresta num local escuro criando um
quadrado luminoso na penumbra. Ou ainda os jogos fascinantes de chamas numa chaminé
com as luzes dançando em torno, da mesma forma que a extinção brusca de uma
iluminação num interior à noite, deixando como única fonte os “efeitos” provenientes de
uma iluminação pública exterior situada na rua; ou ainda o fechamento e abertura de
persianas, seja de dia, seja de noite... o que modifica toda a iluminação fazendo-a oscilar
do direcional ao difuso sobre uma mesma imagem.

Imagem 47. O retorno de Marcus Sexto do Barão Imagem 48. Le Verrou de Jean-Honoré Fragonard
Pierre Guérrin.

Os exemplos são infinitamente variados e está fora de questão examina-los todos. Mas
podemos sumariamente classifica-los em duas categorias: efeitos naturalistas e efeitos
estetizantes.

EFEITOS NATURALISTAS
E EFEITOS ESTETIZANTES

Os efeitos naturalistas são integrados ao tema e são, às vezes, o tema mesmo,


momentâneo, prevalecendo sobre a ação no tempo de um olhar. Eles mobilizam a atenção
porque são neste instante o “objeto principal”33. É preciso dizer do cuidado com o qual eles
devem ser criados artificialmente, pois está fora de questão para o cineasta esperar, numa
situação de luz natural, que surja, espontaneamente e no momento desejado, o efeito
excepcional pretendido.

33
A título de exemplo, citamos no filme de Yves Allégret Une si Jolie petite plage um quarto
miserável cujas janelas batem sob a força do vento, criando jogos de luz de penumbra cujas
intensidades pouco a pouco crescentes e decrescentes vêm romper a uniformidade do lugar e
pontuar as seqüências de um leitmotiv musical.

64
Os “efeitos naturalistas” e “estetizantes” vêm de uma iluminação cujo nível luminoso está
acima do nível médio geral de iluminação escolhida. Isto permite uma ruptura na
monotonia das superfícies e justifica seu emprego.

O efeito estetizante é a integração arbitrária de um plano de iluminação desigual de


superfície e de forma variáveis num conjunto ou sobre o “objeto”. O objetivo desse efeito
é, como para o efeito naturalista, quebrar a uniformidade ou a banalidade das superfícies
pela súbita aparição no campo do olhar de elementos subversivos.

Esta visão pictórica não pode, entretanto, ser aplicada a todos os assuntos. Em alguns
temas, ela engendra uma nova forma cineplástica na qual o efeito estetizante não é mais
considerado como um elemento entre outros destinados “ritmar as superfícies ou volumes”,
mas por extensão se torna o elemento plástico principal de toda a superfície da imagem. A
este propósito, não se pode falar mais de visão pictural, mas de expressão original, com a
verossimilitude do objeto sendo transposta para uma representação gráfica transcendental.

Os efeitos verossimilhantes e estetizantes podem, em certos casos, se conjugar, um


trazendo o naturalismo, e outro o sublime, sendo o resultado desses empreendimentos a
poética da luz.

Os cineastas que querem entrar neste jogo difícil têm geralmente recorrido à recriação
totalmente artificial de locações em estúdio, a fim de levar a seu modo ação e personagens,
integrando-os ao “complexo lumino-espacial”, cujo papel é dar corpo e unidade aos
elementos físicos de essência diferente. A luz pode ser considerada como o “elo” desses
elementos reunidos plasticamente e que, apesar das diferenças de natureza, se tornam o
lugar da expressividade intensa da imagem pelo poder sugestivo nascido de combinações
arquiteturais de sombras e luzes.34

Se a locação não é um estúdio, mas em interior real, ou no exterior, estas mesmas leis
plásticas de expressividade atuam, mas a dificuldade é maior para controlar os elementos
concomitantes.

O “efeito estetizante” toma tão bem seu lugar num conjunto como sobre um personagem, e
mesmo um rosto – um rosto sendo, em suma, não mais que uma paisagem humana, com
seus montes e vales, seus lagos e suas florestas.

A chegada de um elemento de ruptura na mecânica de iluminação, destruindo totalmente a


uniformidade, eleva a gama de luzes de um ou vários tons, segundo a potência dos novos
fluxos utilizados. Esta extensão da paleta tonal tem por conseqüência deslocar a
ordenação da estrutura das iluminações, a começar pela luz-chave (luz principal) que,
embora “em potência” fosse primeira, pode se encontrar inferior à nova luz de “efeito”.
Mas isto tem pouca importância, com o resultado sendo a criação de tensões diferenciais
entre as superfícies de menor interesses e os centros de interesse a privilegiar.

34
O efeito estetizante é arbitrário, é um elemento subversivo que quebra a monotonia das
superfícies, equilibra e ritma o espaço.

65
Mas se o “feito naturalista” tenta traduzir com
uma certa objetividade uma situação de
verossimilhança, como as citadas anteriormente:
o apagar e o acender de lâmpadas num interior,
fogo numa chaminé, projeção solar, etc., o “efeito
estetizante” é em essência subjetivo e por
conseqüência não discutível, ele implica uma
certa visão pictural na forma e no espírito da
imagem.

Imagem 49. Topkapi (1963) de Jules Dassim.


Imagem: Henri Alekan

Imagem 50. O estado das Coisas (1981) de Wim Wenders. Imagem de Henri Alekan

66
Imagem 51. Efeito de luz natural em exterior. A bela e a fera (1946) de Jean Cocteau. H. Alekan

Imagem 52. Efeito artificial do fogo numa chaminé. A bela e a fera (1946) de Jean Cocteau. H. Alekan

67
HIPÓTESE CRIATIVA

De uma maneira bastante geral, digamos que da posição das fontes, do seu número e de
suas qualidades vai depender toda a mecânica da iluminação cujo emprego está fundado
sobre uma criação hipotética e arbitrária da imagem. ILUMINAR UM TEMA É, ANTES
DE TUDO, PENSAR EM LUZ. Este pensamento é uma concepção da ocupação do
espaço (as formas fixas e móveis que aí se encontram) por fluxos de luz cujo papel é não-
somente a visão que proporciona sua materialidade ao objeto, mas a acessão a um estado
específico, que sublima o tema ou o banaliza, como expomos no capítulo dedicado à
modulação da luz.

Tomemos o exemplo da iluminação de uma rua em estúdio. Ela está situada num eixo
norte-sul, leste-oeste? Ela vai receber uma iluminação solar direta ou indireta? A ação será
dinâmica ou estática? A iluminação vai variar e se transformar de dia em noite de uma
seqüência a outra? Os efeitos particulares vão ser empregados? As lojas estão escuras ou
iluminadas? Há apagar e acender de painéis publicitários? Mudança de clima atmosférico,
chuva, vento ou névoa? A história se passa no verão ou no inverno? Etc.

Todas estas perguntas encontram geralmente uma resposta no estudo do roteiro, mas sua
aplicação prática, a transposição em “materialidade” daquilo que é “escritura ou anotação”
literária é uma hipótese de iluminação que só existe mentalmente sob a forma de imagem
imaginada. Portanto, esta transcrição não está isenta de distorção, na sua aplicação prática,
seja pelo aumento do potencial imaginário, o que é benéfico, seja pela retração na
realização da hipótese arquitetada, o que é nefasto.

Imagem 53. Le toit de la baleine de Raul Ruiz. Imagens de Henri Alekan

68
Estas distorções são o fato, por um lado, da intervenção de meios mecânicos e elétricos
entre a hipótese de iluminação e sua aplicação, e de outro, da interposição de elementos
humanos que oferecem ora uma dinâmica construtiva, ora uma inércia destrutiva.

É isto que desconhecem os pintores, cujos meios artísticos não conhecem outro
intermediário senão sua própria vontade entre o seu pensamento e a matéria suporte.

Daí a obrigação de levar a um nível superior as intenções de iluminação, a fim de atenuar


eventualmente os
desperdícios de energia
devidos às diversas inércias.

Não será necessário aí


deduzir que, sozinha, a
abundância de meios técnicos
permite, em estúdio, a
iluminação de filmes. A
verdade reside na
correspondência entre o tema
tratado e os meios técnicos
proporcionados ao assunto,
aumentados unicamente de
um certo fator que é o do
imprevisível ou do acidental.

ILUMINAÇÃO
_______________________
____________ARTIFICAL
EM ESTÚDIO

Em estúdio a iluminação
será, como em luz exterior, o
meio de expressão sensorial
e psicológico visto que ela
apela ao nosso sentido visual
para atingir nosso mecanismo
interno.

Imagem 54. Le toit et La baleine de Raul Ruiz. Imegem Henri Alekan

Mas diferente dos temas realizados na luz natural, que obrigam o cineasta a modelar seu
assunto numa luz pré-estabelecida, o trabalho em estúdio permite uma maior liberdade na
imaginação. Por esta razão, a iluminação não depende mais de uma submissão ao natural,
as escolhas e as opções vão do “solar” ao “anti-solar”, ocupando toda a gama tonal e
posicional dos fluxos da luz. Que riqueza, para os cineastas, ter à sua disposição esta escala
de luzes e de sombras, com as quais eles constroem o espaço, fisicamente e
psicologicamente.

69
Comecemos por examinar na sua maior simplicidade35 quando uma só fonte está em jogo,
e tomemos o exemplo de filmes: Os Malditos e A Bela e a Fera.

Uma vela iluminando um só personagem e seu entorno e a opção escolhida sendo “luz
modeladora”:

_ a primeira questão é a de examinar como uma luz desta se propaga no espaço;


_ a segunda concerne à sua posição em relação ao sujeito e seu entorno;
_ a terceira, sua potência;
_ a quarta, a qualidade de sua luz.

Uma iluminação emitida por uma vela ou um candelabro é considerada como uma fonte
pontual, com fluxos múltiplos irradiando em todas as direções. A gente pode imaginar uma
esfera de luz em expansão e cujo poder de clareamento diminui segundo o distanciamento
da fonte que a cria36. No exemplo escolhido, esta fonte de luz se encontra no nível do
personagem apoiado sobre uma mesa (Imagem 55).

Imagem 55. Natureza morta à luz de vela de Jean-Claude Janet.

35
Simplicidade puramente aparente, pois, como iremos ver, a chama é criadora de efeitos complexos,
difíceis de serem reconstituídas em estúdio.
36
Com uma fonte pontual, a iluminação de uma superfície diminui ao inverso do quadrado da sua distância à
fonte; se uma superfície recebe a iluminação de 1 lux a 1 metro da fonte, esta mesma superfície receberá uma
iluminação de 1/4 de lux a 2 metros da fonte, e uma iluminação de 1/16 de lux a 3 metros da fonte.
Com uma fonte linear, tais como os tubos fluorescentes, a iluminação varia segundo a distância entre a
superfície iluminada e a fonte.

70
Uma iluminação deste tipo coloca o problema da unidade fundamental de luz emitida por
uma única fonte, enquanto sua reprodução artificial vai empregar múltiplas fontes.

O ideal seria, sem dúvida, que a fonte, ela mesma fosse suficiente para iluminar o assunto,
sem acréscimo de luz artificial37, mas, mesmo numa tal eventualidade, a reprodução
mecânica destes efeitos não aproximaria em nada a transcendência dos jogos da luz tais
como os imagina um artista.

É preciso, portanto, organizar e repartir múltiplas fontes irradiantes em torno do assunto,


criando luzes, trabalhando sombras, jogando com suas disparidades tonais, os contrastes,
as nuanças.

ATENÇÃO: depois de alguns anos, progressos técnicos importantes permitem aos


cineastas domar mais as fontes de iluminação em estúdio pelo sistema chamado de
telecomando: os projetores fixados sobre pantógrafos e movidos eletricamente sobre trilhos
podem, por meio de caixas mantidas à distância pelo diretor de fotografia ou iluminador,
executar todas as manobras (acender, apagar, focalização, posição em todos os azimutes),
feitos até então manualmente. Memórias podem conservar os posicionamentos e restituir,
sob pedido, o esquema de iluminação dessa ou daquela cena.

A cor das fontes artificiais deve teoricamente se assemelhar à fonte visível que cria este
complexo. Mas, na verdade, a liberdade maior deve ser a única regra no estabelecimento
de relações de tonalidade que são a harmonia entre os elementos que compõem a imagem.

Vê-se, através destes exemplos, que aquilo que parece à primeira vista de uma grande
simplicidade é, finalmente, na sua realização cinematográfica, um conjunto complexo de
meios elétricos cuja resultante se situa ao mesmo tempo sobre um plano estético e sobre
um plano psicológico, a luz sendo um espelho de duas faces: uma que exalta as formas,
outra os sentimentos.

Imagem 56. Disposição de projetores para simular uma única fonte de luz. 1. Luzes direcionais. 2. Luzes
secundárias. 3. Luzes terciárias.

37
O diretor de fotografia Piero Portalupi se dedicou a várias tentativas para poder filmar a 24 imagens por
segundo com uma vela de verdade como única fonte de iluminação. Nos parece interessante comparar o
resultado com a imagem do filme Os Malditos cuja iluminação por lâmpada a óleo foi completada por
múltiplos projetores (Imagem 56).

71
Como o visual toca nossa sensibilidade e quais seus meios para, através da luz, conseguir
isso? Parece certo que uma imagem, qualquer que seja, é transmitida ao cérebro como uma
informação objetiva que adquire sua tonalidade subjetiva por um tipo de classificação dos
elementos recebidos segundo uma escala emocional psico-fisiológica convocada
anteriormente. A imagem desperta então em nós sentimentos segundo sua estruturação
plástica, cujos ritmos, feitos de superfície de sombra e luz, têm o poder singular de entrar
em ressonância com o humano.

Imagem 57. Madalena na velhice de George de La Tour. A fonte de luz se encontra exatamente na seção
áurea. 1. Forte intensidade 2. Menos forte 3. Intensidade média. 4. Fraca intensidade.

ILUMINAÇÃO POR
FONTES MÚLTIPLAS

Em interiores naturais ou imaginados, a iluminação coloca os mesmos problemas, que eles


sejam “verossímeis” ou “interpretativos”. O primeiro ato do “iluminador” é simples se
consiste de reproduzir os efeitos naturais da luz (que ela seja emitida por uma fonte única
ou de múltiplas fontes), sendo o cenário o primeiro “objeto” a ser identificado.

Os efeitos naturais podem servir para sugerir as direções gerais de fluxos luminosos e de
iluminações possíveis. Mas o cineasta deve reter, nesta “proposição” oferecida pela
natureza, apenas uma possibilidade entre outras para levar a bom termo sua tarefa. É o
tema que importa “colocar em luz” e os locais (cenários) não são, em geral, senão o
“continente” subordinado ao “conteúdo”, este permanecendo o “objeto” principal.

A iluminação solar real de lugares naturais pode ser prejudicial ao tema se a luz não
encontra correspondência com o assunto. Ela então entra em conflito e prejudica a ação em

72
lugar de privilegiá-la. É por isso que os sítios naturais são muitas vezes (re)iluminados em
função do roteiro.

Acontece da iluminação do cenário ser o primeiro ato do iluminador. É o caso do cenário


ser ele mesmo “ação principal” pelo impacto que ele deve provocar sobre o espectador. O
cenário é então “ator” e deve atrair e concentrar sobre ele todos os poderes de sugestão,
livre, mais tarde para se tornar “personagem secundário”. Como todos os elementos
constitutivos do tema, ele deve se submeter à arquitetura da luz que os “hierarquiza”
segundo sua importância cênica e dramática.

Os fluxos luminosos múltiplos são, em seguida, organizados após a iluminação do local,


seguindo a dinâmica da ação e o clima físico e psicológico adotado.

A “arquitetura-luz” é uma continuidade (ou descontinuidade) de fluxos luminosos que


situam a ação dentro da sua mobilidade espacial, seja em zonas de claridade, seja em zonas
de penumbra dispostas arbitrariamente ou não.

As fontes de iluminação aparentes (no caso de efeitos noturnos), tais como lampadários,
lâmpadas de teto ou de paredes, como “indicação e referência”, sugerem a direção da luz
nada mais.

A potência dos fluxos e seu direcionamento não devem ser embaraçadas por referências
realistas, mas simplesmente subordinadas ao clima e ao dinamismo da ação.
A única exceção é talvez com os temas neo-realistas, que procuram no naturalismo a
expressividade de seu assunto.

O cenário se torna “ator” quando concentra sobre ele toda a atenção do espectador.

Imagem 58. A bela e a fera de Jean Cocteau. Imagem Henri Alekan.

73
Imagem 59. L’Ombre et La nuit (1977) de Jean-Louis Laconte. Imagens Henri Alekan. Uma iluminação
naturalista premeditada.

ILUMINAÇÃO DIFUSA EM INTERIORES


E ILUMINAÇÃO NATURAL EM ESTÚDIO.

Numerosos são os casos onde a luz direcional é substituída, parcialmente ou totalmente,


em iluminação de luz difusa, dita <<luz de ambiente>>, já que ela é utilizada como
adicional à luz direcional.

Uma tal iluminação exige meios técnicos um pouco diferentes das utilizadas para a
iluminação direcional, mas, apesar de projetores especializados, os cineastas têm sempre
recorrido às aparelhagens clássicas munidos de sistemas difusores. A iluminação dita
<<indireta>> resulta da utilização de superfícies claras e brancas agindo como materiais
refletores de fluxos direcionais emitidos pelos projetores clássicos. Estes matérias são cada
vez mais utilizados nas técnicas de iluminação atuais.

A luz difusa é comparável à luz multidirecional solar produzida em tempo nublado com a
diferença que em estúdio é perfeitamente domesticada, enquanto que no exterior ela está
submissa a todos os caprichos da natureza.

As fontes de luz difusa combinadas com projetores de iluminação direcional permitem


criar uma <<iluminação composta>> mantendo ao mesmo tempo o direcional modelador e
o difuso amenizante.

74
Esta iluminação menos “estruturada” que o direcional é o tipo mesmo da luz empregada
nas comédias, onde os contrastes são amenizados consideravelmente a fim de enfraquecer
a densidade das sombras e dos pretos no seu papel de agente dramatizante.38

Imagem 60. En France comme si vous y étiez de Fernad Marzelle. Imagem Henri Alekan.

38
George Perinal que foi o “operador-chefe” dos principais filmes de René Clair utilizava a leveza e a
inteligibilidade da luz norte-americana combinando a luz modeladora com a luz difusa que é preciso não
confundir com o “flou artístico” como empregado no filme Le Million (1931) cujo procedimento, muito
difundido entre 1930 e 1940, consistia em colocar um difusor óptico sobre a objetiva.

75
ILUMINAÇÃO DE COMÉDIA
E LUZ AMERICANA

A iluminação de comédia ilustra o bom fundamento de uma psicologia da luz fundada


sobre as reações do homem face ao que é claro e ao que é sombrio.

Nós já estamos comprometidos a demonstrar, tanto no domínio pictórico quanto


cinematográfico, o “significado” dos climas obscuros (e das ações que aí se desenrolam
num objetivo de dramatização), convém explicar como o contrário, a “desdramatização”
repousa igualmente sobre fenômenos de luz percebidos e sentidos visualmente, e depois
interpretados psicologicamente.

É graças a essa concordância perfeita entre o “percebido” e o “sentido” que os temas da


comédia são tratados numa luz solar feita de sombras transparentes, de penumbras leves,
de solarização suavizado. Nas cenas noturnas nenhuma lógica rege a iluminação senão a
que a leveza de contrastes39, devendo conferir às imagens uma tonalidade geral de onde
todo sentimento de tristeza é excluído. A gente se encontra em plena interpretação “luz-
sentimento”, sobre uma maneira alegre, a ação como o meio ambiente banhando num
clima cuja continuidade plástica é voluntariamente desprendida de todo signo
dramatizante40.

Este tipo de iluminação, onde a arquitetura plástica simples convém particularmente às


comédias e aos filmes burlescos, foi aplicado a temas dramáticos, sem mudança notável de
estrutura geral – mas somente de contraste –, por grandes diretores de fotografia
americanos. Eles encontraram então a plena adesão dos atores, cujas expressões eram
perfeitamente legíveis qualquer que fosse a situação. Para os operadores-chefes europeus, a
luz era fundada principalmente sobre o clima psicológico (Ver os filmes franceses,
italianos, dinamarqueses, suecos, alemães, soviéticos, dos anos 1922 a 1937), e, por
conseqüência, “moduladas” segundo os temas, enquanto que para os americanos a luz
devia primeiro “destacar os atores”41. Daí um sistema de iluminação padrão cuja luz
principal emana de fontes de luz colocadas ao alto e de frente42.
39
A técnica empregada consiste em reduzir as relações de contrastes entre as superfícies claras e
escuras. Geralmente é pela elevação do nível da luz dita “ambiente” que a gente abaixa as
densidades utilizando uma iluminação neutralizante.
40
O cinema americano, particularmente nos anos 1930, nos deu maravilhosas comédias. Os
operadores desses filmes sobressaíram nessa luz particular ao ponto que a denominação “luz
americana” servir para definir esta iluminação própria das comédias.
41
Ler sobre este assunto na revista Cinématographe de junho de 1981a entrevista de Michel
Kelber, diretor de fotografia, que lembra que R. T. Kane, grande patrão da Paramount, dava como
ordem aos operadores: “Nós vendemos a voz e os atores...”.
42
Na mesma revista Cinématographe, lemos, sempre sob a pluma de Michel Kelber: “Era preciso
constantemente ficar nos atores, os filmar de frente, em plena luz, evitando tudo o que pudesse
desviar da expressão do rosto. Os americanos colocaram no foco um tipo de iluminação muito
particular a este respeito: uma luz única de frente.

76
A LUZ DOS PINTORES
E A DOS CINEASTAS

Nosso propósito não é fazer um histórico da luz na pintura, para seguir passo a passo todas
as manifestações até a nossa época. O assunto é tão abundante que nos afastaríamos do
nosso objetivo, que é uma aproximação comparativa entre o “percebido” dos pintores, com
suas interpretações, e o “percebido” dos cineastas. Limitaremos-nos a um breve sobrevôo
sobre a arte pictural através dos séculos, e somente no que concerne à luz, sem analisar os
temas.

Nem a pintura etrusca nem a arte pictural grega nos revelam o menor efeito solar, revelado
pelo modelado. No máximo encontramos nos egípcios um sutil e leve relevo, mas
geralmente estes artistas pesquisavam com evidência um achatamento mural.

Mais tarde, artistas romanos, nos afrescos encontrados em Pompéia e sobre mosaicos,
tentaram o modelado pela luz lateral para dar relevo aos corpos humanos.

A arte bizantina nos oferece, através dos seus mosaicos sagrados, notáveis exemplos de
sombras ligeiramente pintadas, vários séculos antes dos impressionistas, que acreditaram
ter descoberto as sombras coloridas.

Nem a pintura carolíngia, nas suas admiráveis miniaturas, nem a romana não se
preocupavam com a diretividade solar. Elas vivem intensamente num mundo de duas
dimensões, que reencontraremos na nossa época na pintura abstrata.

Vai ser preciso esperar o século XIV para ver aparecer em Florença, notadamente nos
quadros religiosos de Giotto, um verdadeiro modelado fundado sobre a posição solar: trata-
se de uma luz suave e transparente, avivando as cores, mas sem projetar nenhuma sombra
além daquelas criadas sobre os personagens eles mesmos. Ao achatado/plano, Giotto
substitui uma certa profundidade, com o entorno dos personagens constituindo de planos
posteriores cujas formas e cores escolhidas com cuidado servem pra empurrar ao plano
frontal os personagens numa verdadeira encenação cujo desenvolvimento é paralelo ao
suporte do afresco, isto é mural. Pela primeira vez, a luz solar participa, timidamente sem
dúvida, da ação geral. A luz “destaca” os personagens um dos outros, modela as formas e
valoriza o adorno dos tecidos. (Imagem 61)

São os pintores, e notadamente aqueles que foram os precursores na arte da luz e da


encenação, que nos interessam essencialmente. O estudo de algumas obras do pintor-
geômetra Paulo Uccello nos surpreende pois ele parece ser o primeiro a utilizar a luz nas
obras cujas ações se situam em exteriores com uma iluminação perfeitamente atemporal.
Em A Batalha de São Romano, no museu do Louvre como na Galeria Nacional, e nas
cenas de caça do museu de Oxford, a gente se encontra mergulhado num universo
fantástico, desorientado pela ausência de referência do universo solar: o céu está
perfeitamente escuro, o que poderia indicar que a batalha acontece à noite, e no entanto
toda a ação é perfeitamente visível numa luz muito levemente modeladora (Imagem 62)

77
Imagem 61. A lamentação de Cristo (1305) de Giotto de Bondone. Técnica: afresco. Pádua, Itália.

Imagem 62. A batalha de San Romano (1435) de Paolo Ucello. “Um universo não definido.”

78
A profundidade é criada pelo cenário e pelas ações situadas no plano posterior, sem ajuda
da luz. Um dinamismo extraordinário anima os personagens e, sem dúvidas pela primeira
vez também, a cor é utilizada de uma maneira perfeitamente irrealista, com cavalos azuis e
prados vermelhos, que reencontraremos muito mais tarde, por exemplo em Gauguin.

Quanto aos interiores, a gente se encontra na presença de iluminações que observam uma
direção dada pelas aberturas dos lugares, mas numa tal suavidade e difusão que nenhuma
sombra revela o solar. Esta luz atemporal se encontrará no século XIX, sobretudo nos
simbolistas e em Odilon Redon em particular.

É difícil analisar a luz sem acrescentar o espaço que ela anima: assim devemos ver as obras
de Domenico Veneziano, onde uma luz solar suave penetra nos largos espaços organizados
por uma perspectiva em profundidade.

Mas é nos afrescos de Masaccio que a gente “caminha” verdadeiramente em direção à


“realidade” da imagem, tanto pelas perspectivas calculadas quanto pela utilização de uma
iluminação que dramatiza seu tema. (Imagem 63)

Não devemos perder de vista que os artistas pintores desta época estavam confinados em
ateliês cuja luz natural se encontrava orientada e filtrada pela abertura de janelas ou de
portas, o que tinha por conseqüência a influência de sua arte pelo mecanismo da luz, que
faz banhar o “objeto” numa iluminação direcional, com jogos de contraste de intensidades
variáveis segundo o meio ambiente refletor43. Sem estar em contato direto com a natureza,
estes artistas tinham, então, seu “tema memorizado” e, em seguida, executado, seja em
atelier, seja em interiores de igreja, convento, palácio, etc.

Com Leonardo da Vinci, a arte florentina do século XV foi levada a sua mais alta
expressão e, como a descreveu André Chastel, “[...] a expressão e a proporção, a
perspectiva e a anatomia, a composição geométrica estrita e o “restituído” (revelação) do
detalhe, o relevo das figuras e sua integração à paisagem, todas essas exigências opostas
tornavam-se para Leonardo compatíveis graças ao claro-escuro: a luz e a sombra criando
na sua obra o espaço, envolvendo as formas, atenuando as distâncias, harmonizando as
cores...”44.

É a Leonardo da Vinci a quem devemos o claro-escuro, utilizado depois com mais mistério
por Rembrandt. Uma tal opção na escolha da iluminação implica um perfeito domínio no
ordenamento dos claros e das sombras manejados com delicadeza sob uma luz solar
sempre suavizada pela presença de um céu nublado “difusor”. As paisagens no plano
posterior, quase surreais, parecem ser mais um suporte aos nossos sonhos do que um
artifício pictural.

Se Caravaggio foi um “evento” na história da pintura européia pelo choque e pela corrente
artística que ele suscitou no século XVII como líder dos “luministas”, os cineastas parecem
ter sido muito pouco sensíveis a esta escola de “alto contraste”. Portanto, encontramos
nessas obras um emprego da luz hiper-realista chegando a uma transfiguração, tendendo ao

43
Caravaggio fechava a janela de seu atelier para deixar penetrar um raio raio de luz. Com esse
recurso, ele domava a direção da iluminação e elevava o contraste pela supressão de efeitos
suavizantes nascidos das múltiplas reflexões murais.
44
Extrato de L’Histoire iustrée dela peinture (Ed. Fernand Azan)

79
surreal. As iluminações laterais duras, de forma a atingir a brutalidade, recortam formas no
espaço deixando largas zonas de sombras densas que apaga o detalhe inútil45.

Imagem 63. Saint Pierre distribuindo esmolas de Masaccio.


Os primeiros passos em direção ao “realismo”

Quanto a George de la Tour, ele merece um lugar à parte, pois poucos pintores souberam
abordar e resolver, como ele soube fazer, o problema da iluminação noturna emanante de
uma fonte única (raramente de fontes múltiplas). Contudo, não é a proeza técnica ou
artística que nos comove; é como escreveu Luc Benoist46, “que ele tenha compreendido
que a verdadeira ênfase dramática não depende do assunto, mas da sombra e da luz, e que
45
Certas imagens de do filme de Jean Cocteau A Bela e a Fera oferecem exemplos da luz lateral
criadora de extremos modelados e de altos contrastes com o apagamento dos detalhes de interesse
secundário. No filme O Inferno de Rodin, a luz “cinzelante” corta com precisão as formas dos
condenados situados no sombrio universo evocado por Dante (A Divina Comédia), modelado por
Auguste Rodin para sua Porta do Inferno e repensado cineplasticamente pelo autor desse filme.
46
História Ilustrada da Pintura

80
se poderia extrair daí um sentimento mais intenso e mais perturbador que as violências
mais explícitas”.

Aqui, se está em pleno mistério pela escolha da luz radiante, a posição da fonte, sua
qualidade, sua intensidade, a distribuição dos fluxos que deslizam sobre as superfícies
encontradas: roupas, rostos, objetos, num silêncio meditativo. A noite decorre sem começo
e sem fim, numa tépida claridade que queima um rosto ou cinzela uma mão transparente
criando uma tela. A luz é fascinante, porque ela é o reflexo de um mundo interior
terrivelmente presente: a luz da alma.

É de se notar que muito poucos cineastas tenham sonhado em se inspirar nesta luz
extraordinária e que, quando quiseram tentar, se contentaram com a exploração de um
procedimento47 para nos sensibilizar face à estranha beleza nascida dos contrastes de
sombras e de luzes devidos à vontade criadora de um artista.

Examinemos de perto o mecanismo da luz nesta obra magistral, A Adoração dos Pastores,
para tentar entender como se dá a passagem do “sensorial” ao “emocional.” (Imagem 64).

De início, a gente se encontra atraído pela disposição geral de cinco personagens em semi-
círculo em torno da criança enfaixada que recebe de pleno açoite a luz da vela; nosso olho
poderia receber também esse clarão se a mão do velho não viesse oportunamente formar
uma tela protetora com duplo papel: o de evitar a ofuscação e de criar ante-planos muito
sombrios, ponto de partida para os efeitos de profundidade. A chama se encontra na
interseção do número de ouro (ou seção áurea) calculado em função das proporções da
tela. É um acaso ou uma premeditação? Muitos artistas utilizaram essa “proporção divina”
intuitivamente. Não nos cabe tratar esse problema apaixonante que ultrapassa o quadro
dessa obra.

“Graças à composição da iluminação, a gente pode “apagar”


certas coisas, dar importância a outras e fazer sobressair
com força o trabalho expressivo do ator.”
Pudovkin.

47
Stanley Kubrick, realizador do filme Barry Lyndon e John Alcott, seu diretor de fotografia,
utilizaram objetivas com aberturas muito grandes com o objetivo de se servir de velas verdadeiras
como só e único meio de iluminação para cenas de interior.
O resultado, por interessante que seja, coloca o problema primordial das relações entre a veracidade
e a arte. O dia (desejável, aliás) quando a sensibilidade cromática dos suportes fílmicos atingir à da
nossa visão, será aquele quando o direito do artista de fazer nascer emoções por uma reconstrução
imaginativa terá desaparecido? Da nossa parte, não acreditamos nisso. O erro é manter a ilusão de
que um progresso técnico no cinema se basta. (Ver a fotografia da luz verdadeira de uma vela no
capítulo: Iluminação artificial em estúdio).
Existem, felizmente, exceções nos cineastas e nós devemos citar alguns nomes entre os maiores:
A. Gance, M. L’Herbier, G. Dulac, Murnau, F. Lang, R. Wiene, G.W. Pabst, S.M. Eisenstein,
Pudovikinn, C. Dreyer, Bergman, Fellini, Mizoguchi... Todos souberam extrair lições de um
passado pictural prestigioso para aplicá-las a sua arte e, como se expressou tão justamente o pintor
Pignon, em relação ao tema da criação artística: “O homem é feito ao mesmo tempo do presente e
do passado, e quando ele crê recomeçar do zero ele reparte do pior...”(La Quête et la réalité. Ed
Gonthier)

81
Imagem 64. A adoração dos pastores de George La Tour:
uma iluminação construtiva, uma luz mística.

A luz se irradia como tantas esferas invisíveis que se imbricariam umas nas outras, cada
uma emitindo fluxos tão mais possantes quanto mais próximos eles se encontram da chama
da vela, e vice-versa. Georges de La Tour aplicou esta lei física da propagação da luz, ao
clarear mais o que está próximo da chama do que o que está distante. Por outro lado, ele se
deu conta da diversidade das matérias que absorvem ou refletem a luz com maior ou menor
intensidade, numa tonalidade geral feita de cores quentes que correspondem perfeitamente
à temperatura de cor da chama de uma vela. Enfim, a importância dada às superfícies de
sombras e penumbras arquiteturam a composição, obrigando o olhar a seguir um itinerário
plástico circular, que desliza sobre planos de cores cujos claros e escuros se sucedem numa
modulação comparável a uma música visual.

A luz modela as formas, cria volumes, dá vida às cores: a sucessão rítmica das superfícies
claras ou sombrias, brilhantes ou apagadas, provoca emoções pelos choques sensoriais e
pela repetição48.

48
Lemos na obra de Matile Ghyka Philosophie et mystique du nombre, Ed Payot, Paris: “[...] nós
encontramos, observando as obras as mais sucedidas de todos os tempos, que, em cada uma dessas
obras, uma forma fundamental se repete, e que as partes formam por sua composição e disposição
figuras semelhantes...”
“A harmonia resulta apenas da repetição da figura principal na obra nas suas subdivisões
(Die Proportion in der Architektur )”. Mas acrescenta Ghyka, “o princípio estabelecidos
por Thiersch, no seu Príncipe d’analogie dans les arts, se aplica muito bem à composição
pictural e à música.”

82
Voltemos ao quadro A Adoração dos pastores para examinar sob o ângulo da iluminação
no cinema. Como uma vela, fonte única de iluminação cênica, pode ser “imitada” nos seus
efeitos físicos e psicológicos?

No teatro, o efeito é facilitado pela extrema sensibilidade da visão humana, capaz de


registrar uma imagem de luminosidade muito fraca49; mas no cinema, a técnica atual não
permite descer abaixo do mínimo compatível com a sensibilidade dos suportes fílmicos ou
eletrônicos escolhidos. E mesmo se os progressos futuros permitirem o abaixamento do
limiar mínimo da sensibilidade, o principal problema será “deslocado”, mas não resolvido.

Imagem 65. A distribuição da luz de uma vela em A adoração dos pastores de Georges de La Tour.

No cinema – apesar de certos artifícios empregados para dar ilusão de uma fonte única –, o
recurso a vários projetores permite (por um posicionamento em leque) modular os
diferentes fluxos luminosos dosando as intensidades, corrigindo ou alterando
voluntariamente as cores, e nuançar as fontes segundo uma relação de distâncias supostas
entre os assuntos e a proveniência da luz emitida.

O estabelecimento dessa “mecânica da luz” deve ser corrigido em função dos imperativos
psicológicos, de situações cênicas e, o que não conhecem os pintores, em função do
dinamismo da ação tratada, assim como do fator “fotogênico” dos rostos, associado a sua
morfologia.

49
O mínimo de iluminação requerido para que o olho humano possa registrar uma imagem é de 10 candela.

83
Imagem 66. Cena noturna de A bela e a fera de Jean Cocteau. Direção de fotografia de Henri Alekan.

Imagem 67. Distribuição das fontes de iluminação para uma cena noturna de A bela e a fera.

84
Resulta que o ato criativo da luz no cinema não pode, em nenhum caso, plagiar os pintores,
mas somente se inspirar neles50, suas imagens estáticas sendo destinadas a penetrar nosso
“eu” por uma aproximação lenta de uma duração ilimitada, enquanto que no cinema, é pela
instantaneidade de uma imagem efêmera que nossas emoções são provocadas.

Se a gente estuda a arquitetura da iluminação de uma cena do filme de Jean Cocteau A


Bela e a Fera e quiser confrontá-la com a luz de A Adoração dos pastores, o parentesco é
evidente sobre o plano da pesquisa de uma diferenciação tonal entre os rostos dos
personagens agrupados em torno de uma única fonte de luz: uma lâmpada a óleo suspensa
por uma corrente.

Esta fonte fracamente luminosa basta para estruturar a imagem pela radiações circulares
(e esféricas) e a lhe conferir a unidade cineplástica procurada ao longo do filme, sempre
observando as regras propriamente cinegráficas e respondendo às exigências estéticas da
morfologia dos rostos. É por esta última razão que a localização dos projetores, cujos
numerosos fluxos simulam
uma fonte única
(pretensamente aquela da
lâmpada suspensa), não
respeitam uma altura
uniforme racional, mas de
diversidades muitas vezes
ilógicas, e contudo
necessárias. A imagem de
referência não pode
naturalmente mostrar como
a luz é integrada a uma ação Imagem 69. A vocação de São Mateus de Caravaggio (1599-1600)
dinâmica. Mas parece
indispensável sublinhar
neste assunto que o
deslocamento de uma ação
no interior de um
enquadramento estático ou
dinâmico implica uma
sucessão de atos criativos
assegurando uma Imagem 68. A vocação de São Mateus de Caravaggio (1599-1600)

permanência na continuidade fílmica, pela justaposição de fluxos emitidos pelos


projetores. Estes fluxos, bem entendido, são diversificados, e sua intensidade, coloração e
posicionamento entram no grande jogo imaginativo da arquitetura das luzes e das
sombras.

50
“O que me encanta na projeção é que a vontade de pintar quadros não existe nos
cineastas. Eles nascem do acaso das cenas e não as dominam. O perigo do cinema é que a
intenção de mostrar um Rembrandt termina num Roybert. Melhor é não pensar nisso e ele
chega a ver quadros de Vermeer.” Jean Cocteau no seu diário do filme A Bela e a Fera,
J.B. Janin Éditeur.

85
Imagem 70. A ceia em Emaús de Caravaggio Imagem 71. A ceia em Emaús de Rembrandt

Façamos novamente um retorno à pintura. Com Rembrandt, se aborda a luz sob um ângulo
diferente. Não é nossa intenção analisar sua obra, muitos autores já se debruçaram
intensamente sobre o que tem de excepcional neste mestre. Nossa contribuição é mais
modesta. Trata-se, antes de tudo, de ver como e por quais meios, Rembrandt chega, pela
luz e sua organização, assim como pelo jogo de sombra e sua intensidade, a atingir uma
dimensão desconhecida até aqui. Se existe uma luz mística, está aqui, em algumas obras-
primas pintadas ou gravadas, onde a gente pode descobri-la (Imagem 67).

Em Rembrandt, não há necessidade se servir da luz para cinzelar as formas: ela entra a
passos suaves por uma porta ou uma janela e se espalha sobre as superfícies que se
oferecem a ela sem lirismo e sem cintilação. Olhemos O Filósofo em meditação (Imagem
68). A luz é aí o principal ator. Ela não se excede, ela é presença difusa, suavemente
penetrante, envolvente, misteriosa pelo que deixa adivinhar nas penumbras. Que
penumbras! Indo da maior suavidade a maior densidade... Sem dúvida, aí está o segredo
desta música plástica na qual a cor abre mão de toda preponderância para dar lugar a uma
“quase” monocromia que nos leva ao sublime. Se a gente observa mais proximamente o
jogo de claros e de sombras, se constata que Rembrandt, na maioria de suas obras,
dedicava pouco lugar às superfícies claras, enquanto que conservava na sombra e nas
penumbras o máximo compatível com o seu assunto. Encontramos a confirmação do que
desenvolvemos anteriormente, a saber que a sombra, na sua significação angustiante ou
misteriosa, está ligada ao homem por profundas e ancestrais raízes. O emprego do claro-
escuro transpõe sobre o plano plástico pictural e cinegráfico uma entidade; ele nos assiste
na sua caminhada transcendental para nos sugerir concretamente a passagem do visível
ao invisível e reciprocamente, por um tipo de equilíbrio interior, como um jogo de espelhos
refletiria indefinidamente as imagens multiplicadas de nossas emoções, passando sem
parar do concreto ao abstrato.

86
Imagem 72. O filósofo em meditação de Rembrandt (1632): a luz como protagonista.

Imagem 73. Estudo da luz: 1. Luz principais direcionais


2. Luzes secundárias 3. Luzes terciárias

Já que acabamos de expor uma vez mais a importância das sombras na arte das imagens,
parece indispensável chamar a atenção dos cineastas sobre sua utilização, não somente nos

87
interiores naturais ou imaginários, mas nas paisagens. Naturalmente, não é uma regra,
trata-se de ilustrar um tema segundo uma linguagem plástica particular, que é a resultante
de uma confrontação entre o “objeto” – materializado pelas formas de uma paisagem ou
por uma ação cênica – e sua espiritualização.

Piranèse, nas suas gravuras e desenhos, nos oferece numerosos e maravilhosos exemplos
dessa arquitetura de sombras e luzes, “magnificada” tanto nos seus interiores monumentais
como nos seus exteriores.

O exame atento de quase todas suas obras, para não dizer todas, nos revela uma
extraordinária estrutura gráfica enriquecida por uma modelado de origem solar. A luz
conduz nosso olhar em direção às penumbras a fim de decifrar o misterioso universo do
obscuro. Piranèse é a arte de dramatizar pelo domínio do claro-escuro. Da mesma forma,
não se surpreenda se as superfícies muito claras e luminosas não representarem apenas um
quinto da superfície gravada. Quanto ao contraste, é preciso sublinhar, Piranèse não hesita
em nos dar negros absolutamente densos, mesmo se ele escolheu mostrar uma paisagem
ensolarada, tal qual as cascatas de Tivoli de 1766 (Imagem 70).

Imagem 74. As cascatas de Tivoli de Piranesi: redução a três valores as múltiplas tonalidades.

O que é igualmente excepcional neste artista é a vontade de síntese que reduz geralmente a
três os valores de seus desenhos: o claro (partes ensolaradas), a sombra (partes situadas nas
penumbras) o denso (partes situadas na escuridão). Essa esquematização, totalmente
aparente, aliás, nos faz retornar à observação da luz na natureza. Visto superficialmente,
apreendemos de uma paisagem três valores principais: o claro, o médio, a sombra. Esta
constatação nos leva outra vez à imagem fílmica que, geralmente, é arquitetada
plasticamente com um objetivo analítico simplificador, para responder às durações rítmicas
impostas pela montagem.

88
Outra observação essencial: o fato de reduzir as múltiplas tonalidades da natureza a três,
em vez de exprimir todas, intensifica o choque emocional, o que não será o caso com uma
tradução de todos os valores cujo efeito seria dispersivo. O cineasta tem, portanto, o maior
interesse de seguir os caminhos traçados por tais artistas, cujos passos estéticos podem
perfeitamente se aplicar à Sétima Arte, com, evidentemente, modificações e acréscimos
devidos à mobilidade da imagem.

Se o modelado, tal como concebiam os pintores, tem pouco influenciado os cineastas, em


compensação, o falso relevo obcecou os diretores e seus operadores ao ponto deles
considerarem a luz apenas como um meio de sugerir volumes sobre o plano da tela por um
facho de luz emitido por iluminações ditas “contra-luz”. Este método tem sido
sistematicamente e abusivamente utilizado em quase todos os filmes até um período
recente51. E, portanto, os exemplos pictóricos abundam para nos demonstrar, dos
primitivos aos modernos, que a luz pode se exprimir, seja pelo achatamento, seja pelo
modelado, mas que nenhum princípio pode confiná-la em regras estreitas. O
impressionismo, que foi o momento de liberação da luz tal como era concebido até aquele
momento, nos ensina como os artistas souberam apreender as aparências momentâneas do
objeto modificado pela iluminação. Numa espécie de exaltação lírica, muito distanciada do
naturalismo e do expressionismo que aparecerão mais tarde, eles “liberam” a forma de seu
contorno nítido sob a pressão da luz que o reveste e o atenua.

Antes de ser abandonada, a luz impressionista encontra uma nova forma de expressão no
neo-impressionismo, que se impõe por “um método preciso e científico” (dirá Signac), não
se confiando mais no instinto, mas nos trabalhos recentes dos físicos. O pintor é mais do
que um “olho que registra: uma inteligência que escolhe, calcula, ordena... Ai de nós! Ela
calcula demais, e à força de querer aplicar seu método, o neo-impresionismo muitas vezes
sufoca sua sensibilidade, empobrece a pintura”52. Parafraseando Cocteau, nós
acrescentamos: muita inteligência amedronta a poesia.53

A luz – força de energia que anima o objeto, enche o espaço, cria volumes e sugere os
climas fisicamente e espiritualmente – tinha encontrado nos simbolistas uma nova
grandeza pela diversidade de seu emprego. Tudo se reencontra neles, o temporal e o

51
Numa entrevista de Michel Kelber, diretor de fotografia, publicada pela revista Cinématographe,
junho de 1981, lemos: “Você poderia precisar as características desse estilo que você logrou muito
bem em meado dos anos trinta?”
Resposta de Michel Kelber: “[...] o contra-luz de início, que descolava os personagens da parede: o
preto e o branco acentua o caráter bidimensional do cinema, é preciso absolutamente encontrar uma
luz que destaque os elementos importantes, e o contra-luz servia justamente a isto. Em seguida, a
iluminação do cenário [...], que tinha por função dar um certo relevo à imagem...”.
52
Extraído de História ilustrada da pintura, E.J. Muller. Ed. Fernand Lazan.
53
Nota: Raros são os exemplos cinematográficos que levam em conta esses dados. Contudo, no
filme desaparecido de Joseph Losey, realizado na Itália em 1951, Embarco a mezzanote, todas as
paisagens eram submissas às estritas regras do direcionamento solar, de sua intensidade e da
importância das sombras, como algumas fotos inéditas que conservamos podem atestar.

Um curta-metragem, La Sarre, pleins feux, realizado por Ienri Bonnière e o autor em 1948,
testemunha o mesmo cuidado de dramatização das paisagens por meios pictóricos.

89
atemporal, o direcional e o difuso, o modelado e o plano. Só podemos definir seu objetivo
citando Odilon Redon “Tudo que ultrapassa, ilumina ou amplifica o objeto, sobreleva o
espírito, na região do mistério, na desordem irresoluta e de sua deliciosa quietude [...]”

Um grande passo numa via diferente para a luz foi alcançado pelos abstratos, que levaram
ao extremo o exemplo legado por Manet meio século antes deles, quando ele soube se
livrar dos hábitos tradicionais, reduzindo a profundidade, achatando os volumes e
substituindo o modelado pelas únicas inflexões dos contornos, abolindo as transições
nuançadas, substituídas por embates violentos54. A abstração é a herdeira desta visão
unidimensional da luz. (Imagem 71)

Os cineastas seguiram tais lições? Alguns utilizaram com proveito as pesquisas exemplares
dos mestres do passado, aplicando-as aos seus temas, mas geralmente a forma cinegráfica
foi negligenciada em benefício de um conceito nascido com o cinema e que dá
proeminência ao naturalismo. Felizmente, exceções existem, mas elas se encontram mais
particularmente nos trinta primeiros anos do cinema, quando são raríssimos na nossa
época.55

Com Serge Bard, jovem


realizador, uma tentativa de
expressão cinegráfica nova
introduz na linguagem fílmica
uma forma abstrativa pela
utilização da luz como parceira
privilegiada face aos atores
submetidos e dominados pela
força energética, ao ponto de
despersonalizá-los.

Imagem 75. Olympia de Edouard Manet (1863) que suscitou


enorme escândalo.

É no domínio dos filmes de investigação que a gente encontra o maior esforço criativo para
sair do fosso artístico onde se comprazem os realizadores. Infelizmente estes filmes só
interessam a um pequeno número de amadores e seu status “não-comercial” os relegam às
cinematecas inacessíveis56.

54
Em 1865, a Olympia de Manet suscitou um enorme escândalo.
55
Devemos citar os esforços de Jeann-Christophe Averty, cuja escritura cinegráfica e televisual é original e
se assemelha às pesquisas pictóricas modernas de quem ela abraça as formas.
56
O serviço de pesquisa do O.R.T.F, sob a direção de Pierre Schaeffer, produziu um grande número de
curtas e médias-metragens há uns quinze anos. Pesquisadores apaixonados puderam, nesta época, “colocar
em filme” alguns dos seus trabalhos. Alguns dignos de serem projetados para o maior interesse dos cineastas
com falta de idéias.

90
LUZ
E COMPOSIÇÃO
A composição pictórica ou cinematográfica pode se conceber por ela mesma, à parte de
iluminações modeladoras ou dramatizantes, como por exemplo, na arte rupestre ou na
pintura egípcia, etrusca, grega, romana, etc., sem esquecer a pintura moderna, do cubismo
ao abstrato. Mas a luz em estado puro, isolada, não pode, por sua substância impalpável,
entrar no universo do visível senão se apoiando na matéria, que ela seja sólida, líquida ou
gasosa. A luz desempenha um papel criador já que ela “veste” a matéria. O “objeto” assim
colocado num espaço tridimensional é logo submetido às proporções limitantes do quadro
que o insere numa superfície bidimensional, a tela do pintor ou o quadro do cineasta.
Estabelecem-se então relações de forças que evoluem no interior do quadro. Este
desempenha um papel “compressivo” pelo “aprisionamento” do tema, enquanto que a luz
joga um papel “expansivo”, não-limitador, pois sua fonte está fora do quadro, ela sugere
constantemente sua origem nos religando ao universo.

Mas, se se trata da luz artificial, a que o homem cria e domestica: luz nascida do fogo, da
vela, da lâmpada, cujas fontes são integradas ao tema, então a luz se expande, se distende,
desabrocha, inteiramente se chocando com as coisas que toca e que anima com muito mais
força as que estão próximas de sua fonte.

Mas, contrariamente ao “solar”, que nos apanha do exterior do quadro, a luz artificial nos
obriga a um olhar interior: ela nos carrega, nos aspira e nos prende como o faz um
turbilhão na água.

A luz do fogo nos religa à matéria, ao terrestre, ela sugere constantemente a presença e
atividade do homem já que ela está sob sua dependência. Ela é sua coisa, ela não nasce
senão por sua causa, e morre por sua vontade. Enquanto que a luz solar é sempre uma fuga
ou uma aspiração ao celeste e universal, já que ela é inacessível aos caprichos do homem.
Esta aspiração exterior é tão imperiosa que numerosos artistas vivenciaram a necessidade,
para escaparem ao seu apelo, de forçar a atenção para uma composição fechada nela
mesma através de artifícios plásticos. Esta fronteira, feita geralmente de superfície
sombrias, desempenha o papel de “passagem” progressiva entre o tema expresso e a evasão
em direção ao exterior. O quadro se torna subjetivamente permeável, deixando vagar fora
de seus limites a imaginação do seu espectador.

Os meios plásticos utilizados para domesticar as forças que se manifestam no interior do


quadro são de duas ordens: umas correspondem ao lugar da ação em relação aos limites do
quadro, as outras emanam da luz, de seu poder atrativo, e da “não-luz”, quer dizer do
obscuro, ao seu poder repulsivo. A justaposição destas duas forças opostas em proporções
desejadas cria no espaço fechado do quadro ou da tela interferências que tocam nossa
sensibilidade. Estes jogos de justaposição e de oposição entre claros e escuros estabelecem
uma dialética permanente na qual o equilíbrio de forças resulta de uma desproporção (e
não de uma igualdade) entre os brancos e negros, segundo o temperamento dos artistas e
das escolas.57

57
Os pintores abstratos, que se recusaram a expressar o volume, que distinguem as formas apenas pelos
contrastes das cores, são levados por seu instinto de equilíbrios fundamentais a opor, apesar de tudo, tons
claros e escuros.” (Charles Bouleau, la Géometrie secrete des peintres, Seuil, p. 189).

91
Imagem 76. Em France comme si vous y étiez (Na França como se você lá estivesse) de Fernand Marzelle.
Uma composição barroca num luz natural.

A composição da imagem cinematográfica estrutura o tema limitando nosso olhar a seguir


um itinerário revelado pelos jogos de luzes e sombras, cujo poder emocional é, como na
pintura, função das proporções, dos contrastes, das nuanças e dos claros, prisioneiros do
quadro onde a ação evolui.

A composição no cinema se diferencia essencialmente da pintura pela obrigação de


arquitetar dinamicamente o espaço abraçado por uma objetiva fixa ou móvel (travelling ou
panorâmica), em função da fugacidade das imagens, isto é, do tempo efêmero deixado à
visão de uma imagem para apreender todo seu conteúdo objetivo e subjetivo na sua
instantaneidade.

A luz não é o único elemento que entra como componente meditativo. As linhas, a
disposição do tema, o lugar reservado aos vazios e aos preenchidos são outro tanto de
estações onde o olhar se coloca num itinerário visual pretendido pelo artista e que nós,
espectadores, percorremos por nossa vez.

Com toda evidência, a verticalidade das linhas e, portanto, árvores, nas obras como as de
Maurice Denis ou de Emile Bernard, convida a dirigir nosso olhar ao espaço infinito fora
do quadro, o céu onde se situa tudo o que numerosas religiões reuniram num lugar de
felicidade perfeita. A horizontalidade é, como cada um pode experimentar, o espaço

92
terrestre onde o homem “vive sua morte”. Assim, a Madalena deitada se encontra já em
posição mortal; símbolos claros e inscritos plasticamente nos obriga, sob a pressão das
linhas, a percorrer um caminho visual que engendra uma profunda especulação (Imagens
77 e 78)

Imagem 78. Madaleine no bosque do amor (1888) de


Emile Bernard
Imagem 77. Paisagem de árvores verdes (1873) de
Maurice Denis

Quem são os cineastas que tentam abordar estes domínios até então reservados a artistas
inspirados?

Reportemo-nos à época do expressionismo alemão, com o célebre filme de Robert Wiene,


O Gabinete de Dr. Caligari, cujas imagens encantadoras ilustram perfeitamente a
significação das linhas, as quais nos arrasta aos meandros de um mundo onírico.58

De novo, entramos no domínio da composição que, voluntariamente, abordaremos apenas


sob suas relações com a luz, tendo numerosas obras sido publicadas sobre esta disciplina
essencial.59
Enquanto os artistas pintores dispõem de superfícies de dimensões variáveis escolhidas em
função daquilo que eles querem expressar, os cineastas se encontram, desde o início do

58
Lotte Einer, na sua obra A Tela demoníaca, consagrada ao cinema alemão, faz várias retomadas sobre a
importância das linhas e das formas, e cita notadamente Rudolf Kurtz, autor de Expressionismus und Film,
que se expressa assim: “[...] estas curvas, estas linhas, que fogem enviesadas, carregam nelas mesmas uma
significação nitidamente metafísica, porque a linha oblíqua exerce sobre o espectador um efeito
completamente diferente que a linha reta, e as curvas acentuadas provocam uma reação física de uma outra
ordem que a linhas de jatos harmoniosos.
59
Ler sobretudo La composition en photographie, de Haralde Mante (Ed. Dessain e Tolra) e a obra de
Charles Bouleau La geométrie secrete des peintres, assim como o livro de Vassili Kandinsky Point, ligne,
plan (Ed. Denoël/Gonthier).

93
cinema, obrigados a utilizar formatos retangulares cujas proporções lhe foram impostas
pelos inventores.60

Imagem 79. O gabinete do Dr. Caligari (1919) de Robert Imagem 80. Em Caligari, os significados funestos da
Wiene. A luz noturna é quase um personagem. noite estão materializados nas imagens em claro-escuro.

Aqui e ali, no decorrer dos anos, as modificações intervieram e as mais espetaculares


foram os formatos largos, que permitiram a imagem de se desdobrar sobre largas
superfícies da tela, como as projeções gigantes da Exposição Universal de 1900 registradas
em película “Lumière” de 70mm, depois a tela tripla de Abel Gance e finalmente, mais
próximo de nós, o cinemascope, assim como os formatos “panorâmicos”.

Não resta senão as imagens assim projetadas, quaisquer que sejam suas dimensões, são e
permanecem “reclusas” em enquadramentos cujas proporções impõem uma visão de
predominância horizontal, com tudo o que isto comporta de terrestre, de materialista e de
concreto.

A evasão em direção ao espiritual só se pode atingir quebrando os limites impostos pelas


paralelas horizontais do quadro e, na ausência de uma tela variável, recriando, pela
composição e luz, um espaço de dominantes verticais. Mas isto realça mais o artifício do
que um real domínio das superfícies pela utilização de formatos adaptados ao tema.

Num contexto como este, as sombras desempenham um papel primordial, pelo


“apagamento” de superfícies inúteis no meio de verdadeiros “reenquadramentos”
praticados no interior do formato cinematográfico imposto. Se certos temas, de
composições “abertas”, nos projetam fora do quadro da imagem, outros, ao contrário,
encontram sua expressividade no “enclausuramento” e o envolve sobre nós mesmos.61 É

60
J. Vivié, Historique et développement de La techinique cinématographique (Volume 1), Paris, Ed. B.P.I,
1944)
61
Na obra já citada de Ch. Bouleau, lemos ao tratar do tema do dinamismo na pintura que: “[...]
composições abertas ou fechadas, composições dinâmicas fazem brilhar o quadro [...] ele não é mais uma
fronteira, ele se tornou (por causa da pintura barroca) permeável. Ele é uma rede de clarabóia, os movimentos
presos no interior o transpassam e lhe escapam”. A isso acrescentamos: o que é verdadeiro na pintura se
aplica perfeitamente à imagem cinematográfica.

94
fazendo um apelo ao poder das sombras que uma imagem cercada de zonas escuras se
torna uma composição fechada, quer seja num interior ou numa paisagem.

Fora dos enquadramentos estáticos, que se assemelham às composições pictóricas, o


cinema explora o espaço e tenta nos restituí-lo plasticamente de uma maneira
completamente original em relação aos pintores, nos transmitindo esse espaço em
superfície ou em profundidade sobre a tela de projeção. Porque a invenção das
panorâmicas e dos travellings, horizontais e verticais, diagonais ou combinados, permite
continuidades de composições dinamizantes pela perseguição incessante da mobilidade
de uma ação fílmica. Daí as regras de composição dinâmica próprias do cinematógrafo.

Assim, a luz e as sombras vão por sua vez, em tais composições móveis, se tornar
dinâmicas pela sucessão de espaços claros ou sombrios, encontradas na iluminação natural
ou criadas voluntariamente na iluminação em estúdio. Esta modulação dinâmica se une
com a mobilidade da ação que cria esta dialética: quanto mais uma ação será movimentada
menos a luz deverá ser e, inversamente, quanto mais uma ação será estática, mais ela
suportará efeitos de luz dinâmica, quantitativamente e qualitativamente.

Se a luz e as sombras constroem o espaço em função de uma ação, situada num “quadro”
móvel ou não, a escolha e a repartição dos efeitos claros e escuros dependem igualmente
do campo de visão premeditado pelo cineasta. O “macro”, imagem como se vê com uma
lupa, o “médio”, plano visto a uma escala humana, e o “longe”, visão de conjunto, para
falar só dos casos gerais, são representantes de uma natureza transmutada pelos olhos de
cristal que constituem as objetivas fotográficas. Da escolha da objetiva vai depender um
certo enquadramento, com a composição de elementos heterogêneos, os quais, por sua
disposição, suas relações e mobilidade, vão coabitar estreitamente numa organização
espacial compacta, que é a imagem daquele que a concebe. Esta composição, selecionada,
canalizada, filtrada pela escolha de objetivas preferenciais, não é mais uma visão
correspondente à ótica humana, mas distorção, diminuição, afastamento ou aproximação,
ampliação, transmutação, magnificação, sublimação. É uma dinâmica visionária que possui
um duplo sentido: estético e psicológico.

A luz “inventada”, composta e estruturada, não é a única forma de imagem


cinematográfica; ela é utilizada segundo os temas como elemento naturalista ou não. As
escolas, os estilos, as diversas maneiras de apreender a natureza e de traduzi-la
plasticamente são visões marcadas pela época onde elas são concebidas. É certo que hoje,
sobre o plano psicológico, nossa visão da natureza é semelhante à dos homens que nos
precederam. É por uma lenta e constante evolução na expressão “artística” que o realismo
pictórico é percebido e traduzido muito diferentemente segundo as épocas, e o cinema
seguiu o mesmo percurso. O importante não reside, aliás, numa operação de transferência,
de decalque da natureza, mas numa maneira sempre renovada de perceber, de sentir, de nos
fazer interessar ou de nos emocionar.

Assim é uma certa forma de expressão pictórica e cinematográfica que tentou nos trazer –
fixando-os estaticamente ou dinamicamente – os grandes eventos da história. Numerosos
são os filmes que têm tratado temas históricos, mas raros são os que quiseram fazer
referência aos pintores de batalhas, notadamente aos do século XIX.

95
Sem dúvidas alguns realizadores preferiram se ater a um estilo pseudo-realista para tentar
melhor nos convencer, sem ter necessariamente conseguido, enquanto que outros, tais
como Eisenstein, Pudovkin, Dreyer, Gance, não hesitaram em tomar emprestado do
picturialismo o que ele tinha de poder persuasivo para daí tirar a quintessência aplicando-a
ao dinamismo da imagem. Citemos os célebres exemplos do Encouraçado Potenkin, de
Ivan, o Terrível, filmes sobre os quais Eisenstein e seu câmera Tissé se explicaram
longamente quanto à importância da luz e da composição da imagem, assim como Dreyer,
com a A Paixão de Joana Darc. Abel Gance, com Napoleão, não foi o primeiro a ser
utilizado um procedimento pictórico dinamizado, com sua invenção de uma tela tripla,
descendente direto dos trípticos? No seu filme Austerlitz, ele não hesitou em fazer
referência ao barão Gerard, pintor napoleônico, para situar um momento de sua epopéia.
Todos os exemplos citados neste capítulo poderiam deixar supor que um único cinema é
admissível, aquele que repousa unicamente sobre cânones estéticos. Não é precisamente o
julgamento que fazemos sobre a arte do cinema. Não cansaremos de dizer que, neste
domínio, tudo é subordinado a formas de pensamentos62, de sensação, de percepção, de
imaginação dos temas e de seu tratamento, com as maiores liberdades, sem entraves nem
limites, mas sem renegar o passado e seu prodigioso aporte.

ILUMINAÇÕES
NEO-REALISTAS

A adoção de um estilo próximo ao documento realista não exclui absolutamente a pesquisa


de composições estritas que estão sempre na base da significação da imagem e de seu
impacto sensorial, ainda assim a iluminação permanece o fator preponderante de um certo
clima. A luz, nesse gênero de estilo, deve ser buscada mais por sua ação física objetivante
do que por seu poder psicológico.

Esta característica fez o sucesso de todo um período do imediato pós-guerra, com o que foi
denominado “neo-realismo”, que viu florir, sob o pretexto da objetividade, um certo
“deixar-passar”, julgado por alguns como de bom quilate. Naturalmente, exceções são para
citar, tais como De Sica, Rossellini, Antonioni, Visconti.63

A iluminação neo-realista não excluiu de modo algum a continuidade plástica, que implica
uma atenção particular na escolha dos contrastes a respeitar e as opções tomadas: luz
direcional ou luz difusa, interior diurno ou noturno, iluminações artificiais, etc.

Não há dúvidas que, em certos casos, a luz natural exerce uma atração que não precisa de
arranjo particular para captar nossa atenção e revelar sentimentos, os quais ressurgem se
encontram imediatamente um terreno propício, isto é, a imagem física à qual eles aderem.
Mas estas concomitâncias são acasos, providências que estão ou não sobre nosso caminho
cotidiano. Aliás, a parada do nosso olhar sobre um ou outro assunto é positivamente um

62
Robert Bresson em vários filmes seus nos oferece exemplo de um grande rigor na luz e os enquadramentos
que ele impõe a seus colaboradores. Seu estilo plástico poderia, nos parece, se resumir por: expor o
necessário para a compreensão da narração, mas nada mais que o necessário. Banir o supérfluo, o enfeite, o
efeito. Ser estrito. Colocar a luz a serviço da austeridade.
63
No mesmo período, René Clément realizava, um após o outro, La Bataille du rail e Les Maudits.
Concebidos como documentos que seriam filmados “ao vivo”, eles ilustram o neo-realismo francês.

96
“enquadramento” inscrito numa
circunferência, pois o olho é
assim formado. A imagem
captada desta maneira se
“compõe”, por mais que se faça
nos limites onde a atenção
retém. Onde já se viu imagens
instantâneas “desenquadradas”?
O olho não permite, ele “centra”
sempre e automaticamente o
assunto principal, abandonando
o supérfluo.

Imagem 81. Ladrões de bicicleta (1948) de Vittorio de Sica: opção


pela luz natural e cenários reais.

A arte pictórica, como a arte cinematográfica, não nasce de acasos, ela é vontade
construtiva: o nascimento da expressão de um pensamento por um arranjo fortuito é raro.
Certamente, Jean Cocteau avaliava que o “acidente” em matéria de iluminação estava para
ser pesquisado, mas o fato mesmo de persegui-lo ou de provocá-lo já exclui o espontâneo,
o “acidente” providencial permanece raríssimo. Entre iluminação premeditada e luz
natural, tudo é subordinada ao tema.

Geralmente, os filmes de ficção utilizam várias opções: a luz é tanto natural como
artificial, freqüentemente composta. A título de exemplo, citemos o filme de Joseph Losey:
Figures in a landscape, no qual numerosas cenas diurnas e noturnas se sucedem.64

A LUZ “NOUVELLE VAGUE”

Com a aparição da nouvelle vague no cinema, uma certa forma de iluminação,


principalmente emprestada dos fotógrafos ingleses, tomou corpo, de início na França, antes
de ganhar o mundo inteiro, sob o pretexto de reação contra um certo academicismo.

A nouvelle vague nasceu, principalmente, do desejo de alguns cineastas de se expressar


fora dos lugares tradicionais da criatividade, e isto por razões claras de economia de
mercado, empreendendo uma ruptura com o meio clássico e um pouco rígido das
produções cinematográficas. Esta necessidade de criação, com meios técnicos e artísticos
reduzidos, contribuiu para colocar em questão os métodos de trabalho que tinham
tendência a se enraizar nas rotinas.

64
Qual é então a parte e o papel do “natural” e o do “artificial”? Estes dois elementos são imbricados tão
intimamente um no outro que só conta a intensidade emocional que daí se desprende.

97
Analisemos a luz sobre dois aspectos, técnico e artístico: lembremos que a iluminação nos
interiores reais (e não pré-fabricados em estúdio) não é um problema nascido com a
nouvelle vague. Desde os primórdios do cinema, as cenas eram filmadas nos interiores os
mais diversos: palácios, catedrais, castelos, halls de exposição, estações, etc.

A dificuldade principal, nos interiores naturais, foi sempre ligada à técnica das iluminações
que, durante muito tempo (até 1950), não tinha uma confiabilidade suficiente. As
iluminações em interiores naturais eram com freqüência um grande desafio para responder
ao mesmo tempo às exigências do roteiro e ao dinamismo da direção que não levava em
conta, muitas vezes, os imperativos ditados pela forma e o volume dos lugares, nem a
localização imposta de fato aos projetores nos sítios escolhidos.

Em tais condições, “o espírito da luz” muitas vezes faltava, com o objetivo principal se
limitando à iluminação
de uma ação. É
precisamente o que vai
acontecer com a
nouvelle vague: a
obrigação de situar a
luz a um nível de
iluminação suficiente
para a obtenção correta
da imagem, quaisquer
que fossem o lugar e a
ação, sem poder
“colocá-la em
ressonância” com o
tema.

Imagem 82. Acossado (1960) Jean-Luc Godard: a luz em estado bruto, sem
função psicológica apenas a que se dá por acaso.

A LUZ
“NÃO SIGNIFICANTE”

Resta examinar a não-intervenção “luz-matéria” praticada por diversos cineastas. É uma


opção corajosa porque muito minoritária: sua aplicação implica uma renúncia aos recursos
significantes da luz e, por conseqüência, uma recusa a todo recurso psicológico, na verdade
metafísico, unindo o homem à natureza. Esta rejeição da luz como meio colaborador para
explorar o universo do não-visível pelo visível é semelhante à pesquisa pictórica
contemporânea que, de despojo em despojo, nos dá uma imagem de um novo universo
percebido pelos artistas no qual “o objeto” de tal forma aniquilado (e reconstruído
totalmente como se estivesse fora da natureza) se põe a viver intensamente,
magnificamente solitário, mas tragicamente abandonado, pois está sem luz.

98
Imagem 83. Músicos com máscaras (1921) de Picasso:
percepção de mundo pela visão sem modelado e nem relevo.

Este mundo em duas dimensões reúne curiosamente o que evocamos no início desta obra, a
saber, que os artistas “primitivistas” traduziram sua percepção de mundo pela visão sem
modelado e nem relevo, com uma simplificação e um despojamento das formas que nós
reencontramos nos dias de hoje, através destas novas obras, como se um grande ciclo
milenar viesse nos provar que na arte tudo é recomeço.

AVENTURAS E WESTERNS

Não podemos passar em silêncio esse gênero de filmes, mesmo que nos detenhamos
apenas um breve instante. O cinema americano foi o primeiro a descobrir a imensa atração
que um grande público poderia experimentar por esse gênero, cujos cineastas
hollywoodianos foram incontestavelmente mestres.

A iluminação, geralmente muito realista, não deve nem surpreender nem decepcionar, daí
uma certa racionalidade – uma estandardização –, que confere a esses filmes uma excelente
legibilidade, sem esteticismo supérfluo e nem intelectualismo excessivo. É freqüentemente
sobre a busca de “enquadramentos” originais e de ângulos singulares, muito mais que
sobre a luz, que se apóia a direção, que só tem a fazer luzes muito estruturadas, cujas
intenções estão fora de propósitos.

99
Uma certa simplicidade convém perfeitamente ao dinamismo da maior parte das cenas,
cujo clima solar é a linha geral correntemente. O desenrolar da ação destes filmes, quando
ela se situa em interiores, utiliza muito mais a técnica própria aos estúdios que a
empregada em interiores reais, pela única razão que a economia e a eficacidade em matéria
de cinema reencontram aqui uma certa concepção de arte da luz. Luz que, em condições de
filmagem “naturalista”, é muitas vezes menos autêntica que “a verossimilhança artificial
reconstituída” em estúdio. Para ser claro, digamos que a luz “factícia” do estúdio, por sua
confiabilidade, apresenta-se mais verdadeira que uma iluminação “naturalista”,
forçadamente não-domesticada já que é imposta pela forma dos lugares.

Naturalmente, há notáveis exceções que marcaram presença na história dos filmes de


aventuras no cinema, tais como La Chevauchée fantastique, Le Train siffleras trois fois,
etc.

Nestes exemplos, é preciso constatar que são precisamente grandes operadores escolhidos
entre os maiores do cinema clássico hollywoodiano – e que tinham a grande experiência
dos filmes de ficção – que assinaram essas magníficas imagens nas quais uma certa
poetização da luz vem aqui e ali pontuar a ação dramática dando uma respiração visual ao
tema que alivia por meio de uma visão ampla, aérea, generosa da natureza como nós a
sentimos diante das obras dos grandes pintores paisagistas do século XVIII.

Imagem 84. Rastros de ódio (1956) de John Ford: uma certa poetização da luz

100
A LUZ E O ATOR

“Intervir sobre a luz, construí-


la, de maneira
a fazê-la entrar em composição
orgânica com o trabalho do
ator.”
V. Poudovikin

Pode parecer curioso, até


anormal, falar de cinema sem
evocar o papel dos atores que,
para o público, como para os
diretores e críticos, são os
elementos primordiais dos
filmes, a substância viva da
história contada.

Imagem 85. Vivien Leigh em Ana Karenina (1947) de J. Duvivier

É pelo cuidado da objetividade analítica que não falamos do assunto até aqui. Com efeito,
como “a árvore esconde a floresta” para um observador colocado muito próximo do seu
objeto, tivemos de eliminar provisoriamente o ator para melhor analisar a luz sob seus
diferentes aspectos.

A luz natural, com seus efeitos fastos e nefastos, envolve numa total indiferença o
conteúdo e o continente, o que é carne e o que é matéria, o que é “cenário” e o que está o
ocupando. Mas, para o analista, uma distinção se impõe: de uma parte, a luz e, de outro, a
matéria, viva ou não. Desta forma, o ator entra, como os lugares onde ele se move, num
“complexo lumino-espacial”, que vai se harmonizar com sua expressão verbal e corporal,
para afirmar e exaltar os sentimentos cuja luz é o elemento propagador.

É evidente que o cineasta deve saber onde, quando e como a luz deverá prolongar um
gesto, sublinhar uma intenção, se apagar parcial ou totalmente, “assistir” ao ator e seguir
passo a passo suas inflexões e seus movimentos, para ilustrar o tema num clima
determinado. Em nenhum caso, dramático ou não, a luz não deve multiplicar suas graças
para chamar a atenção sobre si em detrimento do tema ou dos atores com efeitos fora de
propósito. A luz é construtiva, mas ela pode ser também se tornar destrutiva quando é
utilizada sem discernimento.

O abuso dos efeitos da luz, em certas cenas, desempenha um papel nitidamente negativo
desviando a atenção para levá-la ao “secundário”.

101
Para os cineastas americanos, que estabeleceram uma verdadeira regra, a luz deve antes
sublinhar o aspecto físico do atores, qualquer que seja o lugar ou a ação, a fim de mostrá-
los sob a luz a mais favorável possível. Não esqueçamos que o star system atribui aos
atores um poder de atração fora do comum, que é preciso amplificar para melhor cativar os
espectadores. Num sistema assim, a luz deve ser concebida para reservar prioridade
absoluta na valorização do rosto, feminino ou masculino. O corpo vem depois. É o que
explica o grande desenvolvimento, no cinema, da arte da maquiagem, cujas bases são mais
estéticas do que psicológicas.

Uma hierarquia no ordenamento das iluminações se desenvolveu. Ela obriga os cineastas a


seguir as regras que decorrem do lugar privilegiado atribuído ao aspecto físico do ator, que
deve sempre ser vistos sob seu melhor ângulo, sob sua melhor iluminação, a fim de
magnificar sua presença: isto mantém o mito da superioridade (beleza, força, destreza,
habilidade, inteligência.), atribuído pelos espectadores aos atores, que se tornam
personagens excepcionais.

Esta hierarquia na iluminação foi codificada entre os cineastas americanos – Uma certa
esclerose é a conseqüência. Esta maneira de tratar a luz subordinando-a totalmente ao ator
resvala a arte de iluminação a um papel subalterno. Além do mais, o ator perde, numa
prática como esta, uma parte importante do que emana de sua expressividade, a força de
sua interpretação extraída de um conjunto: rosto, corpo e membros estreitamente ligados a
um meio ambiente banhado de um clima físico e psicológico. Dissociar o ator por uma
iluminação que o privilegia em detrimento de um todo é um nonsense. Às vezes é uma
necessidade, mas não podemos fazer disto uma regra.

O ator é portador de tantos signos que é lamentável privá-lo, banalizando-o com uma
iluminação insignificante, dos poderosos meios de comunicação que a luz possui.65

A hierarquia da luz tem somente um valor de classificação, o de ordenar na complexidade


das iluminações quem deve sempre entrar no grande jogo das luzes e sombras, com suas
significações plásticas e psicológicas próprias.

DINAMISMO DA LUZ

A direção em cinema é antes de tudo “a arte de imaginar e escolher”: atores e luzes são
figurações do imaginário, concretização de visões interiores próprias do artista que obriga
os elementos da imagem, o ativo (ator) e o passivo (o cenário) a coabitarem com um
terceiro elemento imaterial (a luz), cujo papel é ao mesmo tempo – repetimos – o de
permitir a ver e a ressentir. Na qualidade de agente de transmissão dos fenômenos da visão,
a luz nos descreve o local e a ação que aí se desenrola, mas com a espessura de um clima
físico e psicológico, e segundo um desenho estético concebido dentro de um fim preciso:

65
“Um ator iluminado somente de maneira a ser visível não passará de um objeto indiferenciado, indefinido.
Graças à composição da iluminação, podemos apagar certas coisas, dar importância a outras, fazer sobressair
com força o trabalho expressivo do ator...” V. Poudovkin, Théories du langage et expression filmique
(Revista Le Cinéma pratique nº 73, 1967).

102
criar um choque emocional. Ora, se, na arte pictórica, a emoção nasce da força dos
dispositivos estáticos que o pintor soube aí incluir – e que explodem em nós –,
na arte cinematográfica o impacto emocional não nasce necessariamente de uma tal
arquitetura estática, mas da mobilidade dos elementos constitutivos da imagem (citados
acima) que engendram um dinamismo da luz mesmo se ela é organizada estaticamente.

Neste ponto, os jogos de luz e de sombras assistem à ação nos seus mínimos movimentos,
obrigando-a a entrar em contato com as claridades, os brilhos, ou as sombras que ritmam o
espaço. Estas passagens das penumbras para a luz, estas alternâncias de claridade e de
obscuridade constroem os sentimentos associados à importância dos contrastes, à
densidade e a superfícies de zonas sombrias em relação às zonas claras. As sombras se
ocupam dos repousos visuais, os claros captam a atenção. Esta música visual modula o
espaço e a ação que aí se move dinamizando-a, ela é “arquitetura móvel” criadora de
emoção. A luz se torna dinamizante pelos deslocamentos de uma ação nos seus fluxos
estáticos, e não pelos movimentos que serão impressos nas fontes de luz elas mesmas.

No entanto, há casos onde a luz artificial pode ser utilizada pelo deslocamento de sua fonte
numa órbita, como a luz solar, cujo movimento cotidiano gera projeções de sombras
móveis, que podemos apreender imediatamente, em valor e significação, sendo dada a
lentidão dos seus deslocamentos. Foi através dos artifícios técnicos que o cineasta soube
captar na sua continuidade solar o itinerário cambiante das sombras apresentadas a fim de
nos restituí-lo sobre a tela de projeção, com um tempo acelerado que nos permite então de
experimentar o impacto psicológico. Esta “compressão do tempo”, tornada visível pelo
registro fílmico, é a materialização de fenômenos normalmente inapreensíveis na sua
continuidade: decorrer do tempo, trajetória da luz. Assim, graças a esta aceleração artificial
do percurso solar e de sua impressão terrestre, pelo deslocamento das sombras, o fenômeno
imaterial da duração é colocado a nossa porta; há a transmutação, o invisível torna-se
visível. Se utilizarmos a “reversibilidade”, deste fenômeno partindo do visível, poderemos
atingir e, de alguma maneira, reinventar o invisível? Sem dúvida, na condição de que este
“passo inverso” seja aplicado a um tema não-solar, quer dizer, a um assunto colocado em
luz artificial em vista de ter aí pleno controle.

A luz artificial que se move, com um tempo semelhante ao da luz solar, gera sensações que
correspondem à luz natural, mas se o tempo é dessemelhante (exemplo: um movimento
acelerado da luz em relação ao solar), os fenômenos de deslocamento das sombras que
resultarão estarão “em ruptura com o natural”, quer dizer que eles vão “quebrar” o
costumeiro, o habitual, para nos oferecer o “sobrenatural”: haverá passagem de expressão
objetiva à expressão de uma “impressão subjetiva”, do visível ao invisível.

Se os deslocamentos da luz principal ou da fonte de luz artificial engendram as emoções


que sentimos, as variações de intensidade e a multiplicidade das fontes elas também criam
tensões e provocam “arrebatamentos emocionais”.

Na natureza, são os fenômenos tempestuosos seguidos de relâmpagos que quebram a


harmonia solar pelo seu esplendor, sua violência, sua multiplicidade e desordem aparente
de sua explosão sobre o hemisfério celeste. O raio surge à direita, à esquerda, ao sul, ao
norte, de dia, de noite... sem ter em conta a bela ordem solar e sua evolução cotidiana, aos
quais estamos submetidos. É a intrusão de elementos “perturbadores” na ordenação da luz
celeste que nos perturba. Nosso ritmo solar se encontra afetado ao ponto de nos provocar
medo.

103
Os cineastas tentam com freqüência, pela imitação da natureza, provocar o pavor através
de meios artificiais. Mas, geralmente, a fraqueza dos meios técnicos empregados e
sobretudo a falta de observação dos fenômenos naturais chegam a uma aproximação que
não toca em nada o espectador; pois a luz emitida pelos relâmpagos, na sua mobilidade,
intensidade, complexidade, produz uma violenta dinâmica de clarões e sombras que tem
pouca relação com os exercícios teatrais rudimentares que nos são apresentados.

É surpreendente que o grande diretor S.M. Eisenstein tenha particularmente se dedicado a


analisar nos pintores o que caracteriza “o extraordinário” de sua arte para nos fazer sentir
quanto estão próximos os meios expressivos dos cineastas e dos pintores. Em relação a
Greco e de sua visão de Toledo [Tempestade sobre Toledo, de Greco], se pode ler em
Cinématisme66: “É ao mesmo tempo um sonho, nascido da fantasia incandescente e
encarnada num forte duelo da luz e das trevas, através desta paisagem e a imagem do fim
dos mundos [...] Toda existência singular se perde nesta vertigem de brilhos: as formas se
dissolvem, se fundem no informal. O espírito definitivamente venceu a matéria e
transformou a natureza em imagem de sua própria emoção.”

O que é notável nesta paisagem (Imagem 86) não é somente a influência emotiva que
exerce sobre nós, é o fenômeno de superposição de estados de luz sucessivos, que são aqui
conjugados sobre uma mesma superfície como outro tanto de impressões: o passar do
tempo se encontra aí “comprimido” graças ao gênio visionário do pintor, pelos efeitos
luminosos que, na realidade, não poderiam se realizar simultaneamente. Fulgurâncias de
relâmpagos iluminando construções e casa à direita, à esquerda, ou de frente; fachos de luz
tocando as ondulações segundo a mobilidade das nuvens, golpes de vento agitando
freneticamente as árvores e arbustos, grandioso recorte de nuvens sombrias empurradas
pela tempestade num movimento ascendente; luz lunar rompendo aqui e acolá, nuvens
prateadas ou arruivadas de formas fugidias.

Ficamos atraídos diante desta dinâmica da luz e das sombras, opressora, trágica.

Imagem 86. Tempestade sobre Toledo (1596) de El Greco:


superposição de estados de luz sucessivos.

66
Cinématisme, Peinture et cinéma, textos inéditos de S. M. Eisenstein.

104
O pintor superpõe momentos ordinários, singulares ou paroxísticos. O cineasta os justapõe,
deixando ao espectador o cuidado de fazer aí uma síntese interior através de um fenômeno
de “persistência memorial” que assegura uma continuidade ao que não passa de uma
sucessão de imagens fugidias.

O quadro da paisagem de Toledo nos faz assistir passivamente a “instantâneos” que, por
sua acumulação, adquirem uma potência decuplicada, a duração dos fenômenos e dos
efeitos luminosos condensados se tornam cargas explosivas. Esta transcendência não pode
ter equivalência cinematográfica senão por compressão ou alongamento da duração dos
fenômenos luminosos, como expomos antes. A aproximação de uma tempestade pode ser
precipitada pelo “acelerado” que reduz a duração; a aurora e o crepúsculo que se
acompanham dos fenômenos muito particulares podem igualmente sofrer alongamentos ou
encurtamentos no tempo.

Todo registro de fenômenos naturais tendo sido feito objeto de manipulação de sua
duração real apresenta uma “anormalidade” fílmica que gera reações extraordinárias
devidas às imagens frenéticas ou sublimes percebidas como fenômenos situados fora do
nosso campo de experiências humanas vividas segundo um desenrolar banal do tempo
solar.

Examinemos enfim os efeitos particulares, como o nascer do dia, ou a chegada do


crepúsculo, abertura ou fechadura de basculantes ou venezianas, liberando ou fechando
uma janela, em suma, os aumentos de luz ou escurecimentos progressivos ou regressivos.
São efeitos dinâmicos naturais. Para os cineastas como para os pintores, eles só são
interessantes para ilustrar momentos psicológicos. Não se trata de imitar a natureza, mas de
transcendê-la. De imediato, esses efeitos se tornam predominantes, pois são, eles mesmos,
o espaço de um instante, a ação principal que polariza a atenção. Em suma, é dizer quanto
a realização de tais efeitos é importante, já que eles devem, ao se impor com força, se
imbricar perfeitamente ao tema, a fim de não criar notas discordantes.

Finalmente, no music-hall, se vê com freqüência iluminações dinâmicas, que pretendem


estabelecer uma certa correspondência entre os clarões de luzes coloridas e de ritmos
musicais; geralmente esta coordenação não corresponde a nada na ação cênica. São
“aproximações” que dão a ilusão de uma correspondência rítmica.

Apenas a tentativa de Yannis Xénakis67 parece trazer um início de solução ao dinamismo


das luzes ritmadas musicalmente. No entanto, não estamos ainda convencidos de que os
efeitos luminosos assim obtidos trazem a adesão dos amantes da música moderna e dos
amantes da música visual, com a técnica utilizada sendo muito aparente para nos divertir e
nos fazer esquecer os suportes visíveis de infraestrutura, o que é o contrário da poesia.

67
Este compositor, aluno de Messiaen, discípulo e colaborador de Le Corbusier, é o inventor de músicas
calculadas executadas num espetáculo, le Diatope, “Gesto de luz e som”. Este músico arquiteto utiliza o
computador numa fusão de arte e ciência.
A composição visual do Diatope se apóia num dispositivo programado compreendendo 160 flashes
eletrônicos, 4 raios lasers 400 espelhos de reflexão e diversos ópticos.

105
LUZ
E DIREÇÃO
Não deveria ser necessário consagrar um capítulo especial às relações “luz-direção” pois
todas as observações e análises desta obra só as têm como objeto se elas se inserem num
conjunto cuja finalidade é a realização fílmica impropriamente chamada de “mise en
scène” (expressão que implica uma concepção teatral do cinema). Mas, já que esse termo
foi sempre utilizado, somos obrigados a nos submeter a ele.

Examinemos alguns casos, que nos foi dado experimentar, sem ter a pretensão de passar
em revista o imenso domínio dessas relações complexas. Lembremos que na época em que
o cinema tateava, os problemas de direção eram simples: de um lado, os filmes
“naturalistas”, filmados na rua ou em paisagens urbanas ou campesinas (documentários,
reportagens, fatos históricos), confiados aos primeiros operadores cujas tomadas eram
realizadas no ocorrer dos acontecimentos captados ao vivo ou reconstituídos, e, de outro
lado, os filmes rodados em estúdios, com luz natural, em cenários abertos, como no teatro.
As relações “direção-luz” eram apenas físicas e meteorológicas, com as flutuações do sol
se revelando através das vidraças, que dispensavam a iluminação artificial pelas mudanças
de luz, que os operadores tentavam, compensar ora ralentando ou acelerando a cadência do
rolar da película, ou modificando a abertura do diafragma da objetiva da câmera.

A introdução da luz artificial nos estúdios, cujas vidraças foram ocultadas, não mudou
nada a direção, com a iluminação elétrica sendo então considerada somente por sua função
de elemento racional, que dispensava a luz “à vontade” [sem controle], noturna ou diurna,
com uma constante intensidade, sem acasos e nem a inquietação com as variações
atmosféricas.

A direção e a luz se davam muito bem sem se preocupar um com o outro. Os diretores
faziam um tipo de teatro filmado numa iluminação neutra, que lhes satisfazia. Os
operadores, por sua vez, se esforçavam por modelar as imagens planas com iluminações
“frisantes” a fim de dar relevo às ações. As luzes colocadas em “contra-luz” eram o
máximo do fino em matéria de estética.

Após este período artesanal, e sem dúvidas graças ao atrativo deste novo meio de
expressão, verdadeiros artistas se interessaram pelo cinema e contribuíram então para sua
expansão.

“A arte da direção é a arte de projetar no espaço o que o dramaturgo só pôde projetar no


tempo”, escreveu A. Appia. “A luz, tanto quanto o ator, deve se tornar ativa; e para lhe
dar status de um meio de expressão dramática, é preciso colocá-la a serviço... do ator, que
é seu superior hierárquico, a serviço... da expressão dramática e plástica do ator [...]
Suponhamos que temos criado um espaço conveniente ao ator; a luz terá como obrigação
de convir igualmente a um e a outro [...] A luz é de uma flexibilidade quase miraculosa.
Ela possui todos os graus de claridade, todas as possibilidades de cores, tal uma paleta,
todas as mobilidades, ela pode criar sombras, derramar no espaço a harmonia de suas
vibrações, exatamente como faria a música. [...] Todas as tentativas modernas de reforma
cênica tocavam neste ponto essencial, isto é, à maneira de dar à luz seu total poder e,
através dela, ao ator e ao espaço cênico, seu valor plástico integral.” (Adolphe Appia,
“Acteur, Espace, Lumière, Peinture” in Théatre populaire, Paris, janvier-février 1954.)

106
A direção associada à luz só foi possível, por uma parte, em razão da descoberta por alguns
cineastas das relações pintura-cinema, e, por outra, sob os efeitos de progressos técnicos
importantes: luz incandescente, confiabilidade nos projetores, lente Fresnel, maiores
aberturas das objetivas, maior sensibilidade das películas, etc.

Imagem 87. Mis en scène em estúdio de 1907.

É a época em que Canudo68 inventou a expressão “Sétima Arte”. O cinema, enfim, não era
mais considerado como um ofício de saltimbanco. Era preciso ainda provar que ao utilizar
artistas eles trariam um sopro novo que, até aquele momento, parecia fazer falta.

Dreyer na Suécia, Griffith na América, Abel Gance na França, Eisenstein e Pudovkin na


União Soviética, Fritz Lang, Robert Wiene e Pabst, na Alemanha, Buñuel e Dali na
Espanha, sem falar de Fernand Léger, Germaine Dulac, Man Ray, René Clair, Marcel
L’Herbier, etc., trouxeram sua visão estética em filmes surpreendentes de novidade
plástica. De agora em diante, pintar e dirigir encontravam seu denominador comum: a luz.
Era-nos suficiente explorar este mundo das imagens para melhor perceber o fato que
direção e luz são inseparáveis: uma não existe senão pela magia de outra, e
reciprocamente.

A direção é um todo indissolúvel.


68
Crítico e teórico do cinema (1879-1923), ele foi o primeiro a tentar integrar o cinema no sistema das artes.
“O fosso entre as artes do tempo e as artes do espaço está preenchido [...] o cinematógrafo é nossa arte [...] a
Sétima”, escrevia Canudo, desde 1907.

107
O IRREAL ADERE AO REAL

“Em todas as civilizações, há um momento de atividade extrema, absoluta, aquele onde a


gente passa do real para ir em direção ao irreal, onde agente deixa o real para se dirigir
ao abstrato. Simbiose ativa entre as forças naturais exteriores e o desejo de sublimar as
coisas.” (AUJAME, propósitos recolhidos por A. Parinaud, Beaux Arts, janeiro 1956).

À verossimilhança de certas iluminações, os artistas propõem mutações originais,


transposições, alterações, acréscimos, que quebram o naturalismo pela substituição de sua
própria visão da natureza.

Sem dúvida, não será necessário limitar a alguns efeitos espetaculares este modo de
interpretação que, em suma, pode se aplicar a todos os temas cujo ponto de partida está
situado no “natural” e a finalidade na poética, o sobrenatural ou o extraordinário.

É sempre o “imaginário” que dita a forma e, para a luz lunar como para a luz solar, os
artistas se esforçam, com seus artifícios técnicos próprios a sua arte, para aderir o irreal e
o subjetivo de seus sentimentos sobre o concreto e o real da natureza.

A LUZ E A COR
“Quando as formas e as cores procuram
expressar alguma coisa, a luz, ela, diz:
eu sou, as formas e as cores não existem senão por mim.”
Adolphe APPIA
(La vie musicale, Lausanne, 1908)

Antes de abordar a cor no cinema, parece-nos indispensável lembrar o papel da luz


“magnificado” pelo emprego de filtros de cor, muito antes de sua utilização em fotografia,
à época dos primeiros vitrais das catedrais.

De fato, a luz solar, a qual somos cotidianamente submetidos sem lhe dar importância,
adquire uma significação particular pelo ordenamento e justaposição de filtros coloridos
constituídos pelos vitrais. É a primeira manifestação de uma vontade humana de modificar
a luz natural exaltando-a através das cores cuja intensidade, pela potência da radiação solar
direta, ultrapassa consideravelmente as obras pintadas vistas somente em luz refletida, o
que é muito diferente. Daí, uma repercussão considerável, por um espetáculo “fora da
natureza”, excepcional, de poder emocional prodigioso. Esta época atribuía uma
importância tão grande à espiritualidade da luz que se reservava, em lugares sagrados,
espaços animados pelos vitrais cujo brilho “sublimava” a luz, colocando assim o
“celestial” à porta dos homens para arrancá-los das contingências terrestres.

108
Estes vitrais coloridos nos guiam em
direção ao transcendental graças à
luz solar purificada pela seleção e
justaposição premeditada de cores
depuradas. Elas afirmam símbolos
claramente expostos: os vermelhos
significam a violência, os azuis
prolongam nossa meditação, os
verdes criam nossa esperança.

De perto, nosso olhar os segue na


plenitude de sua significação; de
longe, nossos olhos os fundem numa
brilhância multicolor, fogos de
artifícios silenciosos, engastados
sobre um fundo de sombras
profundas e graves.

Nós estamos talvez não muito longe,


com o cinema, do que os vitrais nos
têm oferecido: permitir a ver para
dar a pensar e a meditar.

Imagem 88. Vitrais da Catedral de Chartres, França.

O aparecimento da cor no cinema apela a várias observações concernentes: seu emprego


naturalista69; a dificuldade dos realizadores de superar vitoriosamente a prova de passagem
da imagem preto e branco à cor70; a escritura de roteiros cujos temas desenvolvem
narrativas anedóticas sem relação com as transposições coloridas71; enfim, as obras

69
Vale à pena lembrar que todas as publicidades feitas para os primeiros filmes em cores sublinhavam que o
novo procedimento era “em cores naturais” para marcar bem que não havia nenhuma interpretação e que se
distanciavam dos pintores por um espetáculo próximo do que oferece a natureza.
Citemos sobre este assunto o que diz Lo Duca no seu Histoire du Cinema: “As primeiras fórmulas, através
das quais jogamos ao público, como ossos suculentos, os novos filmes em cores, foram erros grosseiros.
Falamos de imitação da natureza, de cores naturais. Ora, para a arte, não pode haver caminho pior e mais
falso. A cor não tende a imitar a natureza, mas a interpretá-la, com a “imitação”, nascem o cromo e o cartão
postal.
70
Algumas exceções ilustram a história do cinema em cores. Citemos, sem que isto seja limitativo, Jean
Renoir, Fellini, Dreyer, Eisenstein, Losey. Tomamos emprestado de Carl Dreyer esta observação citada no
número 65 dos Cahiers du cinema: “Tudo é possível com a cor. Mas o filme em cores traz as correntes
naturalistas do filme preto e branco [...] A cor é um meio muito mais importante para chegar à abstração. A
intuição artística e a coragem são necessárias para escolher e justapor cores contrastadas, para manter a força
dramática e psicológica de um filme.”
71
Nos Cahiers du cinéma nº 115, lemos uma entrevista de George Cukor: “As cores, em geral, é estúpido,
não podemos prevê seu arranjo.”

109
fílmicas em cores tendo profundas ressonâncias sobre o espectador que só podem eclodir
através de um conhecimento maior da psicologia das cores e das regras que daí decorrem.72

Se o cinema em cores viveu seu período “naturalista” foi porque que os criadores,
roteiristas e diretores se agradavam desse gênero, pensando, sem dúvida, que um cinema
diferente não teria a aceitação do público. O exemplo dos pintores e de toda história das
artes, com suas evoluções e seus estilos, parece não ter repercussões entre dos cineastas.73

No entanto, como tentamos mostrar para o filme preto e branco, entre seu período
primitivo e o atual, gêneros diferentes foram tratados segundo estilos próprios aos muitos
criadores!

Sem dúvidas o “naturalismo” parece mais fácil na medida onde ele coloca a criatividade
sobre o plano do “ready-made” e não do “personalizado”. A imagem naturalista em cor de
uma paisagem é reprodução de uma porção desta paisagem estaticamente ou
dinamicamente, num enquadramento imposto pela ação e numa luz momentânea,
geralmente não controlada, com cores que se oferecem ao olhar, sem possibilidade de
mudar sua tonalidade nem de fazer variar sua disposição.

Daí a extrema dificuldade, para o cineasta, de modular as cores segundo uma concepção
estética e dramática. Quando muito ele pode jogar com uma gama reduzida de meios
técnicos, a fim de modificar os contrastes da imagem pela saturação ou dessaturação das
cores.

Além disso, há uma outra dificuldade, a da continuidade plástica colorida, que está para a
cor como os contrastes estão para o preto e branco. A unidade de um filme para manter um
certo clima dramático ou de comédia é uma obrigação que assegura uma coesão entre suas
diferentes seqüências ou frações de seqüências. Esta continuidade colorida não significa de
modo algum monotonia pela justaposição de uma mesma tonalidade inteiramente ao longo
do filme, mas escolhas deliberadas numa gama de cores selecionadas por sua significação
em relação ao tema e utilizadas, repetitivamente, segundo seu sentido estético ou
psicológico74. Goethe, no seu Tratado das cores escreveu: “O esquema por meio do qual

72
No seu nº 37, a revista Cinéma 59 publicava as observações de S. M. Eisenstein sobre a utilização da cor:
“A primeira condição de uma participação lógica do elemento cor num filme consiste no que esta cor se
integre no filme, de início, a título de fator dramático. Sob este olhar, a cor se encontra exatamente na mesma
situação que a música [...] A cor, como a música, está presentes em toda parte e toda vez uma ou outra, na
exclusão de todo outro elemento, exprime ou explicita com maior plenitude o que, no momento do
desenvolver da ação, deve ser dito, declarado, explicitado, sugerido. Por outro lado, a cor se dissimula
sempre que a situação dramática não a obriga a intervir como elemento dramatúrgico [...] Eu não falo de
cinema em cores mas de cores no cinema, para evitar toda associação de idéias com a colorização, a
iluminura.”
73
O cinema em cores naturais e antinaturais só conhecerá sua plena expansão pelo abandono da centralização
excessiva dos poderes artísticos, que dão unicamente ao “diretor”, o direito à criação. É por um “coletivo de
trabalho”, que reuniria cenógrafo, pintor, escritor, músico, operador e realizador, que uma escritura cromática
nova poderia ser a base de desenvolvimentos imaginativos coloridos sem raízes obrigatórias com o teatral e o
literário. (Nota do autor).
74
Jean Vivié, no seu livro Cinema e televisão em cores, Edição Paul Montel, trata o simbolismo das cores
com sua correspondência afetiva:
_ o vermelho exprime a vida, o fogo o sangue, o amor, a paixão, a revolução. Este mesmo vermelho
temperado por mistura com uma cor fria como o azul chega ao púrpura, cujo caráter de força é então
despojado da idéia de violência e se torna cor majestosa.

110
pode ser expresso a variedade das cores traduz relações primordiais que existem no
pensamento humano tão bem quanto na natureza; não podemos, por conseqüência, duvidar
que seja possível de se servir dessas relações de algum modo como de uma linguagem,
quando queremos exprimir relações primordiais que não são palpáveis com tanta força e
variedade.”

Kandinsky, nos seus cursos na Bauhaus75, trata do simbolismo das cores pelo que ele
chama de “observação óptico-psicológica”, de onde ele extrai equivalências entre a
impressão física recebida e sua ressonância psíquica: verde-esperança, amarelo-ciúme,
vermelho-cólera, azul pálido-inocente; rosa pálido-inocente. Ele nos lembra que para os
teósofos, o amarelo é “terrestre” e designa a razão, o azul é “celeste” e se aproxima do
sentido do religioso, enquanto que o vermelho é “fervura” e traz a cólera.

Sem dúvida, devemos lembrar que a primeira cor no desenvolvimento histórico é o


vermelho (grutas na Austrália, pinturas rupestres dos povos da África Negra, Altamira, os
primeiros pintores gregos segundo Plínio, e até nós os povos primitivos).76

Etimologicamente, segundo o Dr. Beckh, vermelho significa luz em sânscrito. “O


vermelho, tal como o imaginamos, escreve Kandinsky, cor sem limites, essencialmente
quente, age interiormente como uma cor transbordante de uma vida ardente e agitada. Ela,
contudo, não tem o caráter dissipado do amarelo, que se espalha e se excede por todos os
lados [...] o vermelho testemunha de uma imensa e irresistível força [...] o vermelho médio
(como o vermelho de Cinábrio) atinge a permanência de alguns estados intensos da alma”.
O azul profundo atrai o homem em direção ao infinito, ele desperta nele o desejo da
pureza e uma sede do sobrenatural [...] ele apazigua e acalma ao se aprofundar. Deslizando
em direção ao negro, ele se colore de uma tristeza que ultrapassa o humano [...] quando se
torna mais claro, o azul parece longe e indiferente como o céu alto e azul claro. À medida
que se clareia, o azul perde de sua sonoridade até não ser mais que um repouso silencioso
[...] o verde absoluto é a cor a mais calma que seja [...] ela não se acompanha nem de
alegria, nem de tristeza e nem de paixão [...] o verde é a cor dominante do verão, o tempo
do ano ou natureza, tendo triunfado da primavera e suas tempestades, se banha num
repousante contentamento de si [...] o branco é o adorno da alegria e da pureza sem
mancha, o negro, o do luto, da aflição profunda, o símbolo da morte.”77

_ o amarelo evoca o ouro, a riqueza, o esplendor e por prolongamento as paixões baixas da inveja e do
ciúme.
_ o azul concretiza o céu, e por extensão o divino, na tranqüilidade, a proteção e a fidelidade.
_ o violeta acentua, por outro lado, esta tendência para as tristezas da velhice e da morte.
_ o verde (encontro de dois grupos: maior quente e o menor frio) parece marcar o equilíbrio indicador de
frescura, repouso e de esperança.

Para André Coupleux, num relatório presente no Quinto Congresso Internacional de Estetismo em
Amsterdam, em 1964, a significação da cor e sua correspondência afetiva, pesquisada através de provas
psico-fisiológicas praticadas em indivíduos de quinze a vinte anos de mesma origem, confirma as simulações
psíquicas provocadas pelas cores. Esta aproximação científica do problema das cores associadas à sua
ressonância psíquica não era realizável certamente em 1910, quando Kandinsky escreveu suas observações
como sendo “o resultado de impressões psíquicas todas empíricas, afirmações que não são baseadas em
nenhum dado científico positivo” (Do Espiritual na arte).
75
Vassili Kandinsky. Cursos da Bauhaus. Edição Denöel-Gonthier
76
O desenvolvimento da sensibilidade às cores e sua expressão, in Der Pelikan nº 26, 1927.
77
Kandinsky, O espiritual na arte e na natureza em particular. Edição Denöel/Gonthier.

111
O naturalismo é uma forma de expressão cinematográfica que convém perfeitamente a
certos temas, cuja objetividade cromática só tem de realizar as preocupações estéticas e
psicológicas dos pintores. Não importa se as cores se entrechocam e se estilhaçam num
desabrochar desordenado, já que elas se apresentam assim totalmente nuas, totalmente
cruas.

Aceitemos, pois, esta maneira de colher imagens que respondam a uma concepção não
estruturada de uma narração fílmica “realista”.

Mas o emprego da cor, como infraestrutura de um tema, pode se conceber como tendo
tanta importância quanto à luz no “preto e branco” para sustentar o tema e assegurar a
continuidade e unidade de um clima cromático78.

Desta forma, os cineastas devem assumir pela pesquisa das cores a responsabilidade de
um modo de expressão baseado no dinamismo das imagens e sua duração efêmera, com
um arranjo e escolha destas cores que possam entrar em ressonância, na sua continuidade
temporal, com o espectador.

Afastamos-nos do naturalismo para entrar no “interpretado” vasto domínio onde o


imaginário nos empurra em direção aos sonhos impossíveis.

Que veio a ser a luz com o emprego da cor no cinema? É preciso lembrar que, sem a luz,
não há cor e que, em conseqüência, é com a luz, suas variações e sua nuanças que as cores
serão avivadas ou atenuadas, saturadas ou dessaturadas, para empregar a linguagem dos
cineastas e dos pintores. Uma mesma cor poderá, portanto, sem outra intervenção que não
a da luz, aparecer viva ou insípida. Daí a importância do domínio das iluminações no
resultado “expresso” das cores.

As grandes opções que estão na base das iluminações em preto e branco, o modelado ou o
plano, são igualmente escolhas estéticas que estão em curso no tratamento de um tema em
cores.

Enfim, pela utilização dos claros e escuros e, em geral, dos brancos e dos negros, nas
proporções desejadas pelo tema, as cores atingem, como para o “preto e branco”, um poder
de dramatização segundo sua “obscuridade”, duplicado de escolhas entre as cores quentes
e as cores frias.

Resta uma observação importante: a tomada de posição estética dos criadores, que segundo
seus gostos, suas aptidões, sua cultura, inclinam uns para uma aplicação naturalista da cor,
outros para uma interpretação e especulações imaginativas. Estas duas maneiras de ver e
sentir a cor devem, na nossa opinião, poder coabitar na maior liberdade deixada aos
cineastas para se expressar segundo seu temperamento: para uns, o “realismo”, para outros,

78
) É preciso ainda citar Eisenstein: “Nas obras dos melhores operadores, Tissé, Moskvine, Kosmatov, o
negro, o cinza, e o branco nunca são percebidos como uma ausência de cor, mas como uma certa gama de
cores na qual reside, não somente o estilo plástico da obra, como também sua unidade temática e seu
movimento geral.”

112
o “irrealismo”; para uns, a fidelidade à natureza, para outros, a infidelidade às formas e às
cores. A arte das imagens nasce e se enriquece destas contradições79.

É a Eisenstein que tomamos emprestado nossas conclusões: “[...] Não é preciso que a tela
nos ofereça seus cartões postais. Nos é preciso uma tela nova onde o jogo de cores se funde
organicamente com a imagem como também com o tema, com a idéia como também com a
intriga, com a ação como também com a música. Em comunhão com todos esses
elementos, a cor intervém como um novo elemento essencial da língua do cinema.”.80

Trechos do posfácio

A gente sai dessa obra com um olhar reeducado. Pouco importa que se trata
de cinema. As luzes e as sombras, segundo Alekan, nos leva a um tipo de
perturbação feliz de nossos hábitos de visão.

(...) Há de sacerdócio nesta obra, e não estou longe de perceber, aqui e ali,
as linhas de um misticismo contido.

(...) Nos banhamos, muitas vezes sem saber, no extraordinário da luz. E a


luz permanece também algo que nos ultrapassa. Talvez não saiamos
verdadeiramente do cotidiano senão quando a paleta de nossas emoções
pessoais transborda misteriosamente de cores da história de todos nós.

Marcel Moreau

79
Numa declaração publicada na revista Kodak, pelo seu 50º aniversário, escrevemos em conclusão de um
artigo sobre o emprego da cor no cinema: “Eu sou pela infidelidade à cor!”
80
A Cor, propostas estabelecidas por Philipe Duran in Cinema 59, nº 37.

113

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