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(em 2006, fui convidado pelo coordenador do www.forumpermanente.

org, a fazer um relato da fala


de Peter Pal Pélbart em 5 de agosto daquele ano, no ciclo de debates que antecedeu e preparou a 27a Bienal
de São Paulo, "Como viver junto" -- curadoria de Lisete Lagnado. Este texto é o meu relato reflexivo sobre a
fala de Pelbart, intitulada "Como viver-só")

VIVER JUNTO, VIVER SÓ, SÓ VIVER.

Certa vez, a propósito do conhecido isolamento de Jean-Luc Godard, Gilles


Deleuze descreveu uma solidão rica, "povoada". Peter Pal Pélbart fez menção a essa
entrevista, numa das muitas referências evocadas em sua fala no Fórum da Bienal, no
Porão da Bienal, no dia 5 de agosto passado -- batizada, ironicamente, Como viver-só.
Trata-se do reverso necessário -- do contracampo, diria Godard -- ao mote escolhido por
Lisette Lagnado para a presente Bienal de São Paulo. Bienal de um tempo em que "nos
arrastamos como zumbis pós-modernos", num "sobrevivencialismo pós-metafísico", no
dizer sombrio de Slavoj Zizek, que Pelbart também retoma. Juntos, campo e contracampo
enfeixam a dialética aparentemente inescapável da contemporaneidade, que a fala do
filósofo procura tatear, através de sua própria solidão, povoada de "Bartlebys", "Blooms",
"Gombros" e "Porotos": "Como sustentar um coletivo que preserve viva a dimensão da
singularidade?". No contexto descrito por Zizek -- sob o sítio da reordenação rizomática
do controle do vivível, sob um viés totalizante de uma escala nova, de uma violência
silenciante tão anunciada e previsível como desconhecida --, a arte se coloca a mesma
questão e se impõe como experiência cada vez mais necessária.

Já não sabemos estar sós, lembra Pelbart. Vivemos numa sociedade em que o
"capitalismo em rede enaltece ao máximo as conexões e esconjura a solidão", e nessa
hiperconectividade não pode haver singularidade, há só a "'solidão negativa', socialmente
produzida", não a "solidão positiva" de uma resistência à homogeneização, à
desertificação do vivido pela sua iluminação ao mesmo tempo indiferente e totalizadora. O
estar só impõe um saber dançar na obscuridade, brincar em mundos não iluminados -- ali
se encontram luzes de uma natureza outra: o poeta Itamar Assumpção dizia "É preciso
estar escuro/ para eu dormir em paz/ mas dentro de mim há uma luz/ que eu não consigo
apagar!". Também a solidão -- certamente insone -- de Itamar era ricamente povoada.

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Num contemporâneo de tal modo reduzido àquela dimensão "onde tudo flutua na
indiferença sem qualidades, em que ninguém mais se reconhece na trivialidade do mundo
de mercadorias" -- bem como pessoas -- "infinitamente intercambiáveis e substituíveis",
habitado de Blooms e outros Homo Otarius -- solidões menos ou mais reais do teatro
semi-adormecido das negociações da cretinice normativa cotidiana que sustenta o real --,
o engessamento do fluxo da subjetividade, e a imanente violência que daí deriva, não
apontam qualquer horizonte existencial a se abraçar. Mas seria mesmo uma questão
dialética? A tese do coletivo -- esse coletivo morno, adormecido em redes de controle --
versus a resistência misteriosa, que implode a lógica do real -- a resistência de um
Bartleby, um Gombro ou um Poroto e de outras subjetividades irrecuperáveis pela ordem
vigente? Não seria mais uma questão de pensar numa "multilética" (que me perdoem os
filósofos o abuso da palavra), já que as solidões povoadas são múltiplas, exponenciais, de
uma ordem tal que a mera oposição do par viver-junto/viver só não pode dar conta? No
recuperar a necessidade e a possibilidade do espaço transbordante das solidões
povoadas, o viver-só de que fala Pélbart implode em tantas direções a hegemonia do
sentido de um real esvaziado pelo cálculo do vivido, que a dialética da luz e da sombra,
do coletivo e do singular, parece, num relance, tornar-se ela mesma prisioneira da
armadilha que denuncia.

Mas não é assim. Pelbart censura também essa mesma recaída numa dicotomia
simplificadora em Sloterdijk, que tenta superar nosso "solipsismo antropológico" por meio
de um "ser dois", por uma "metafísica de duplo" que é preciso, justamente, ultrapassar. E
é curioso notar como Merleau-Ponty -- esse filósofo às vezes esquecido no aparente
radicalismo dos autores pós-modernos e seu embate com um mundo bem mais complexo
e cheio de especificidades --, já havia proposto pensar o real como empreendimento
coletivo, cuja riqueza de sentido deveria decorrer da pluralidade das singularidades, de
uma intersubjetividade aberta, inacabada. Não há nada nesse Merleau-Ponty que se
contraponha ao Deleuze que serve de guia ao viver-só de Pélbart: preservar a riqueza de
sentidos do vivido é abrigar, neste vivido -- na negociação dos sentidos do real -- múltiplas
subjetividades, às quais devemos ser capazes de ofertar ao menos a possibilidade de
constituir não simples conectividades eletrônicas, mas redes de afetos: o "desafio do
solitário (...) é sempre encontrar ou reencontrar um máximo de conexões, estender o mais
longe possível o fio de suas 'simpatias' vivas", diz, retomando Lawrence. Temos que ser
capazes de acolher, no solo mas também no vôo, o Superoutro de Edgard Navarro (num

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filme excepcional de 1987), que salta do alto do Elevador Lacerda, enquanto grita:
"Abaixo a gravidade!". É porque o coletivo quer ser homogêneo e as singularidades são,
ou deveriam ser, inúmeras, que não se pode falar em dialética.

E quando se toma a descrição de Pélbart do universo experimentado por aqueles


que viveram a clínica La Borde, com Félix Guattari -- Jean Oury, Marie Depussé -- ou dos
participantes do singular grupo de teatro que Pélbart coordena -- composto de usuários de
saúde mental --, parece mesmo que o limite tênue entre um sentido de realidade e
loucura, essa linha instável e tão difícil de habitar, é o único lugar em que o mundo é
ainda vivível. É apenas diante da visão dessa implosão dos sentidos, do alívio do vazio,
do êxtase do nada e da alegria da presença que daí deve emergir -- da perda de todo o
real e sua recuperação afinal como o único lugar possível -- que se pode falar em "viver
junto", em partilhar o mundo. Mas aí, talvez estejamos, finalmente, no domínio da
proposição artística e daquilo que se configura uma das tarefas da arte na
contemporaneidade.

Mas Merleau-Ponty também disse certa vez: "quando percebo o outro, há um grau
de violência que se torna impossível". Aqui, o conflito contemporâneo posto por Pelbart e
a problemática da arte se entrelaçam: intervir no campo sensível, guerrilhar na arena da
percepção, parece ser um caminho para que se abram as estreitas sendas que
possivelmente reconciliam meu mundo e o dos meus semelhantes. Porque se estamos
discutindo uma disposição simples, aquela de "perceber o outro"; e se, ao que parece,
não estamos, no nosso registro cotidiano, aptos a fazê-lo, é porque nossos laços
perceptivos, os "fios que me ligam ao real", estão de algum modo desbalanceados --
laceados, frouxos, alguns: aqueles que me vinculam à vida que merece ser vivida, que me
ligam aos meus semelhantes; tensos, rijos, outros: aqueles que me prendem nas redes de
controle, nas competições por produtividade, na devora de tudo aquilo que realmente
interessa, em nome dos desejos inventados pelo espetáculo -- a sociedade do controle é
também a da alienação do próprio desejo, e se não percebo o outro é porque não percebo
a mim mesmo. Enfim, se, como diz Pélbart "quando a consistência das formas que antes
asseguravam alguma consistência ao laço social apenas reitera a gregariedade
atomizada, cabe indagar o que poderia ainda sacudir-nos de tal estado de letargia",
parece ser ainda a arte a melhor resposta de que dispomos. Não que a questão se esgote
na dimensão poética e não transborde para a dimensão política -- e ainda: como se a

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intervenção no terreno do sensível não fosse essencialmente política, já que aí se define
a gênese dos sentidos do real, a possibilidade mesma da presentação de um mundo
como espaço vivível, que se constitúi no trânsito polifônico das diferentes subjetividades;
não se trata de crer que a poesia, por si própria, possa nos salvar: trata-se, antes, de
perceber que, sem ela, resta pouco o que salvar.

Em meio a tais embates de constituição de sentido, em meio à batalha pela posse


da experiência que tensiona hoje ao limite a questão mesma das instituições que têm se
apropriado da experiência inaugurada pela obra de arte, Deleuze-Pélbart reivindicam um
mundo em que se possa ir buscar uma solidão "suficiente", a "solidão absoluta" que é ao
mesmo tempo "a mais povoada do mundo". Ao ponto em que tal personalização absoluta
se converta novamente numa conexão completa, "O ponto mais singular abrindo para a
maior multiplicidade: rizoma. Por isso cabe sair do 'buraco negro do nosso eu' (...)
desfazer o rosto, tornar-se imperceptível, e pintar-se com as cores do mundo": o retornar
ao mundo do viver junto é aí um dissolver-se que não pode se sustentar na idéia
tradicional de sujeito, essa criação única da cultura ocidental -- portanto tampouco na
dialética que deriva desse sujeito, que constitui, por si só, autonomamente, o sentido do
mundo. Tampouco responde a essa superação do sujeito o agenciamento coletivo puro e
simples: crimes demais foram e são cometidos por essa alienação da singularidade em
nome da força do coletivo -- e, de mais a mais, já dizia Nélson Rodrigues, "toda a
unanimidade é burra". No vazio da impossibilidade do sujeito, e dos acordos tenebrosos
que por vezes articulam as pulsões coletivas, a impossibilidade da simples dialética do
viver junto versus viver-só não pode reunir "o cúmulo da solidão desejante e o cúmulo do
socius", como sugeriu Guattari. Talvez, conquistar a atenção que agencie a "polidez" (mas
também a "delicadeza", a "gentileza" ou a "suavidade" -- e talvez Pelbart me permita
acrescer aqui um "cuidado"), em que cada um possa "se apoderar de outro no seu
mundo, conservando-lhe, porém, as relações e o mundo próprios", como propõe Deleuze,
demande primeiro dissolver a própria relação campo-contracampo em que se coloca a
questão, abrindo uma linha de fuga que desloque, ou desterritorialize o problema.
Possivelmente, a poesia possa fazê-lo. Na década de 1970, Gilberto Gil -- então poeta,
que, aliás, logo seria bastante criticado justamente por sua suposta a-politização -- revirou
o sentido de uma bela canção e arrancou dali a inversão preciosa que abria um território
de significação renovada: eu preciso aprender a ser só tornou-se eu preciso aprender a
só ser. À generosa -- porém binária -- dialética do viver-junto e do viver-só, vem somar-

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se, então, como um presente do poeta à implosão das amarras da lógica, a fórmula
delicada do só-viver.

Sérgio Basbaum
Novembro 2006

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