Já não sabemos estar sós, lembra Pelbart. Vivemos numa sociedade em que o
"capitalismo em rede enaltece ao máximo as conexões e esconjura a solidão", e nessa
hiperconectividade não pode haver singularidade, há só a "'solidão negativa', socialmente
produzida", não a "solidão positiva" de uma resistência à homogeneização, à
desertificação do vivido pela sua iluminação ao mesmo tempo indiferente e totalizadora. O
estar só impõe um saber dançar na obscuridade, brincar em mundos não iluminados -- ali
se encontram luzes de uma natureza outra: o poeta Itamar Assumpção dizia "É preciso
estar escuro/ para eu dormir em paz/ mas dentro de mim há uma luz/ que eu não consigo
apagar!". Também a solidão -- certamente insone -- de Itamar era ricamente povoada.
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Num contemporâneo de tal modo reduzido àquela dimensão "onde tudo flutua na
indiferença sem qualidades, em que ninguém mais se reconhece na trivialidade do mundo
de mercadorias" -- bem como pessoas -- "infinitamente intercambiáveis e substituíveis",
habitado de Blooms e outros Homo Otarius -- solidões menos ou mais reais do teatro
semi-adormecido das negociações da cretinice normativa cotidiana que sustenta o real --,
o engessamento do fluxo da subjetividade, e a imanente violência que daí deriva, não
apontam qualquer horizonte existencial a se abraçar. Mas seria mesmo uma questão
dialética? A tese do coletivo -- esse coletivo morno, adormecido em redes de controle --
versus a resistência misteriosa, que implode a lógica do real -- a resistência de um
Bartleby, um Gombro ou um Poroto e de outras subjetividades irrecuperáveis pela ordem
vigente? Não seria mais uma questão de pensar numa "multilética" (que me perdoem os
filósofos o abuso da palavra), já que as solidões povoadas são múltiplas, exponenciais, de
uma ordem tal que a mera oposição do par viver-junto/viver só não pode dar conta? No
recuperar a necessidade e a possibilidade do espaço transbordante das solidões
povoadas, o viver-só de que fala Pélbart implode em tantas direções a hegemonia do
sentido de um real esvaziado pelo cálculo do vivido, que a dialética da luz e da sombra,
do coletivo e do singular, parece, num relance, tornar-se ela mesma prisioneira da
armadilha que denuncia.
Mas não é assim. Pelbart censura também essa mesma recaída numa dicotomia
simplificadora em Sloterdijk, que tenta superar nosso "solipsismo antropológico" por meio
de um "ser dois", por uma "metafísica de duplo" que é preciso, justamente, ultrapassar. E
é curioso notar como Merleau-Ponty -- esse filósofo às vezes esquecido no aparente
radicalismo dos autores pós-modernos e seu embate com um mundo bem mais complexo
e cheio de especificidades --, já havia proposto pensar o real como empreendimento
coletivo, cuja riqueza de sentido deveria decorrer da pluralidade das singularidades, de
uma intersubjetividade aberta, inacabada. Não há nada nesse Merleau-Ponty que se
contraponha ao Deleuze que serve de guia ao viver-só de Pélbart: preservar a riqueza de
sentidos do vivido é abrigar, neste vivido -- na negociação dos sentidos do real -- múltiplas
subjetividades, às quais devemos ser capazes de ofertar ao menos a possibilidade de
constituir não simples conectividades eletrônicas, mas redes de afetos: o "desafio do
solitário (...) é sempre encontrar ou reencontrar um máximo de conexões, estender o mais
longe possível o fio de suas 'simpatias' vivas", diz, retomando Lawrence. Temos que ser
capazes de acolher, no solo mas também no vôo, o Superoutro de Edgard Navarro (num
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filme excepcional de 1987), que salta do alto do Elevador Lacerda, enquanto grita:
"Abaixo a gravidade!". É porque o coletivo quer ser homogêneo e as singularidades são,
ou deveriam ser, inúmeras, que não se pode falar em dialética.
Mas Merleau-Ponty também disse certa vez: "quando percebo o outro, há um grau
de violência que se torna impossível". Aqui, o conflito contemporâneo posto por Pelbart e
a problemática da arte se entrelaçam: intervir no campo sensível, guerrilhar na arena da
percepção, parece ser um caminho para que se abram as estreitas sendas que
possivelmente reconciliam meu mundo e o dos meus semelhantes. Porque se estamos
discutindo uma disposição simples, aquela de "perceber o outro"; e se, ao que parece,
não estamos, no nosso registro cotidiano, aptos a fazê-lo, é porque nossos laços
perceptivos, os "fios que me ligam ao real", estão de algum modo desbalanceados --
laceados, frouxos, alguns: aqueles que me vinculam à vida que merece ser vivida, que me
ligam aos meus semelhantes; tensos, rijos, outros: aqueles que me prendem nas redes de
controle, nas competições por produtividade, na devora de tudo aquilo que realmente
interessa, em nome dos desejos inventados pelo espetáculo -- a sociedade do controle é
também a da alienação do próprio desejo, e se não percebo o outro é porque não percebo
a mim mesmo. Enfim, se, como diz Pélbart "quando a consistência das formas que antes
asseguravam alguma consistência ao laço social apenas reitera a gregariedade
atomizada, cabe indagar o que poderia ainda sacudir-nos de tal estado de letargia",
parece ser ainda a arte a melhor resposta de que dispomos. Não que a questão se esgote
na dimensão poética e não transborde para a dimensão política -- e ainda: como se a
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intervenção no terreno do sensível não fosse essencialmente política, já que aí se define
a gênese dos sentidos do real, a possibilidade mesma da presentação de um mundo
como espaço vivível, que se constitúi no trânsito polifônico das diferentes subjetividades;
não se trata de crer que a poesia, por si própria, possa nos salvar: trata-se, antes, de
perceber que, sem ela, resta pouco o que salvar.
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se, então, como um presente do poeta à implosão das amarras da lógica, a fórmula
delicada do só-viver.
Sérgio Basbaum
Novembro 2006