Programa de Pós‐Graduação em Ensino de Ciência e Tecnologia ‐ PPGECT
Helena Rivelli
Márcio Silveira Lemgruber
Resumo
O presente texto constitui uma reflexão teórica sobre o uso da linguagem
analógica no ensino de Ciências à luz da teoria da argumentação de Perelman e
das reflexões de A formação do espírito científico, de Bachelard. Apesar de
substanciais diferenças, podem‐se considerar aspectos semelhantes em suas
concepções epistemológicas. Entretanto, o relevante para esse estudo é o fato de
que ambos se debruçam sobre um mesmo ponto: uma discussão que abarca o uso
das analogias e metáforas. Sua contribuição para a educação em Ciências se faz na
medida em que a linguagem analógica é recurso corrente no ensino e sua
influência no espírito em formação está em constante debate.
Abstract
Bachelard and Perelman – an intertext on the use of analogies in science
education
This text is a theoretical reflection about the use of analogical language in
science education from the perspective of the Perelman’s theory of
argumentation and the reflections of The Formation of the Scientific Mind of
Bachelard. Despite substantial differences can be considered similar aspects in
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07 a 09 de outubro de 2010 ISSN: 2178‐6135
Artigo número: 166
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Keywords: Bachelard, Perelman, analogical language, science education.
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Introdução
As lacunas que permeiam o ensino de Ciências emergem em estudos que visam um
balanço do cenário educacional nessa primeira década do século XXI. Em muitos casos, prevalece
a divulgação de uma ciência que os alunos são incapazes de abstrair e conhecer
significativamente. Assim, a construção do conhecimento científico por parte dos alunos no
ensino fundamental abarca uma série de processos que anseiam por estudos em várias temáticas.
Contemplar a construção desse conhecimento exige dos profissionais da educação um complexo
entendimento dos mecanismos que envolvem linguagem, ensino e aprendizagem, além do
domínio das bases do próprio conhecimento científico. Pressupõe‐se que ensinar Ciências é
inserir o estudante em uma nova cultura, com princípios, procedimentos e linguagem próprios e
que essa introdução em um universo cultural específico pode ser dificultada pelo distanciamento
entre o discurso científico e o discurso cotidiano dos estudantes (Mortimer e Bustamante, 2001;
Jimenez‐Aleixandre e Erduran, 2007). Destacando o papel do professor mediador que deve buscar
desenvolver estratégias de aproximação dos estudantes com os objetos da ciência, que não são
os fenômenos da natureza, mas construções desenvolvidas pela comunidade científica para
interpretar a natureza, o uso das analogias como prática docente merece destaque, já que
caracterizam um inegável recurso para a construção do conhecimento científico na sala de aula.
De acordo com Vygotsky (1987), ao construir seu lento caminho, um conceito cotidiano
desobstrui a trajetória para o conceito científico e seu desenvolvimento ascendente. Portanto,
quando um domínio é inacessível à experiência e à verificação, abstrato e desconhecido, uma
relação analógica pode ser estabelecida para seu esclarecimento. As analogias “transpõem para
outro domínio o que já é admitido para um domínio determinado” (Perelman, 1987, p. 259). A
partir da evocação dos saberes prévios dos alunos, a abstração dos conceitos científicos dá lugar a
uma relação em que algo concreto e cotidiano facilita a compreensão do que parece distante e
abstrato. A linguagem analógica é capaz de aproximar ainda mais o discurso científico
(supostamente o do professor) do discurso dos alunos, pois se apoia em seus saberes cotidianos.
Contudo, não é recente a preocupação com a influência que esses conhecimentos prévios têm na
formação científica. Bachelard já ressaltava, na década de 1930, que a abstração é um elo
essencial para a formação do espírito científico e que, tomadas fora da complexidade que lhes é
devida, “as metáforas seduzem a razão, tornando‐se esquemas gerais” (1996, p. 97). Parece cada
vez mais clara, então, a necessidade de reflexões sobre o uso da linguagem analógica no ensino
de Ciências.
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Entender como se dá o processo de ancoragem1 do conhecimento no espírito em
formação levou Vasconcelos (1997, p. 209) a salientar que:
O problema pedagógico básico que se coloca é quanto ao que fazer para que o
aluno possa se apropriar do saber de uma maneira o mais significativa,
concreta, transformadora e duradoura possível. Durante muito tempo, houve
uma preocupação muito grande em ‘como ensinar?’. Atualmente, se percebe
que para enfrentar esta questão, a ênfase tem que ser deslocada, ou seja,
deve‐se buscar um outro eixo de definição: ‘como o aluno aprende?’.
Entretanto, é possível que se coloque agora uma outra pergunta: qual a influência da linguagem
analógica na construção do conhecimento científico na sala de aula? Nas reflexões sobre essa
questão, duas teorias ganham destaque por sua real contribuição para esse estudo: a teoria de
Chaïm Perelman e as discussões de Gaston Bachelard. Busca‐se agora a compreensão de como
seria um possível diálogo entre elas a fim de obter um sólido referencial para a prática pedagógica
dos professores de Ciências.
O presente texto constitui, sem a pretensão de se esgotar o assunto, uma reflexão teórica
sobre a o uso da linguagem analógica no ensino de Ciências à luz da teoria da argumentação de
Perelman e das contribuições de A formação do espírito científico de Bachelard, visando
contribuições à prática docente.
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sua era, momento em que a Relatividade de Einstein e as contribuições da física quântica
deformam conceitos primordiais que eram tidos como fixados para sempre). Nessa obra, o autor
apresenta um rico discurso, sempre atual, sobre os obstáculos e principais dificuldades que
constituem resistências ao conhecimento científico. Reforça ainda que (Bachelard, 1996, p. 7)
“tornar geométrica a representação, delinear os fenômenos e ordenar em série os
acontecimentos decisivos de uma experiência ‐ eis a tarefa primordial em que se firma o espírito
científico”.
Acreditando na possibilidade de se distinguirem três estágios na formação científica – o
estado concreto; o estado concreto‐abstrato e o estado abstrato, é que a noção de obstáculo
epistemológico emerge. Esse se configura como uma barreira ao conhecimento, pois imagens
gerais podem permanecer como um obstáculo à abstração. Com efeito, ao examinar a evolução
do espírito científico, logo se percebe um movimento que vai do geométrico mais ou menos visual
para a abstração completa, procedimento normal e fecundo do raciocínio científico. Para
Bachelard (1996, p. 17), “o ato de conhecer dá‐se contra um conhecimento anterior, destruindo
conhecimentos mal estabelecidos, superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à
espiritualização”. Assim, as intuições/experiências primeiras e o senso comum (conhecimentos
gerais) se incrustam no conhecimento não questionado, impedindo a concretização dos três
estágios necessários à formação do espírito científico, porque “diante do real, aquilo que cremos
saber com clareza ofusca o que deveríamos saber” (Bachelard, 1996, p. 18).
É característica do espírito pré‐científico, que se aliena em intuições infundadas, apoiar‐se
em concepções próprias e ingênuas dos fenômenos do mundo para tirar suas conclusões. Os
grandes obstáculos epistemológicos (também aludidos como obstáculos pedagógicos) do espírito
pré‐científico, provenientes dessas primeiras experiências que concebem ingenuamente o mundo
natural e que se apresentam como barreiras também ao ensino de Ciências, apresentam‐se de
variadas formas. No obstáculo constituído por uma imagem geral, o acúmulo de imagens
prejudica evidentemente a razão, já que o concreto, apresentado sem prudência, impede a visão
abstrata e nítida dos problemas reais. O obstáculo substancialista se configura ao buscar na
essência das substâncias a explicação para os mais variados fenômenos. No obstáculo animista, a
natureza e todas as suas relações são envolvidas em uma teoria geral da vida, aplicada a todos os
fenômenos da matéria. Por fim, o obstáculo constituído pela libido se caracteriza, principalmente,
por intuições maniqueístas relativas ao ato gerador.
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Analisando o caminho da ciência nos últimos séculos, em especial no século XVIII,
observa‐se o quanto metáforas e analogias equivocadas embargaram o avanço e a objetividade2
do conhecimento científico. Essas metáforas, nem sempre passageiras, acabam por se tornar
esquemas gerais que dão lugar à busca pelo concreto, a experiências fortemente individualizadas,
obstruindo o caminho da abstração. Desse modo, são aos obstáculos epistemológicos que se
alude ao questionar a construção do conhecimento científico na sala de aula apoiado em
analogias. Segundo Bachelard (1996, p. 23):
Os professores de Ciências imaginam que o espírito começa como uma aula,
que é sempre possível reconstruir uma cultura falha pela repetição da lição,
que se pode fazer entender uma demonstração repetindo‐a ponto por ponto.
Não levam em conta que o adolescente entra na aula (...) com conhecimentos
empíricos já constituídos: não se trata, portanto, de adquirir uma cultura
experimental, mas sim de mudar de cultura experimental, de derrubar os
obstáculos já sedimentados pela vida cotidiana.
Pensar as analogias e metáforas como entraves ao conhecimento não é algo novo, uma
vez que Bachelard demonstrava essa preocupação em seus estudos na década de 1930. No
entanto, essa temática se torna cada vez mais atual, juntando‐se a concepções que exaltam o uso
desse recurso como facilitador no ensino de Ciências. Transpor as barreiras deixadas pelos
obstáculos pedagógicos é atividade que deve ser pensada e construída cautelosamente ao longo
da prática docente dos professores de Ciências. Estender todo o denso conhecimento proposto
na obra de Bachelard ao ensino da ciência nas escolas requer uma crítica posição do professor
frente às barreiras à construção do conhecimento científico. Cabe refletir então sobre como se
dá, no aluno, a abstração necessária a apropriação desse conhecimento.
2
Uma das características mais marcantes do conhecimento científico, segundo Bachelard.
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imersa na chamada racionalidade argumentativa3. Jamais abraçando o extremismo, questionou a
objetivação do meio físico e o método racional dedutivo, proposto inicialmente por Descartes,
como o único acesso seguro à verdade. Para Perelman, a racionalidade argumentativa é aquela
que prefere o verossímil ao verdadeiro (Perelman e Olbrechts‐Tyteca, 2005). Envolvido com as
formulações dessa nova retórica, dedicou‐se à elaboração de uma teoria da argumentação e,
juntamente com sua colaboradora Lucie Olbrechts‐Tyteca, organizou‐a em um tratado publicado
pela primeira vez em 1958, onde projeta todas as suas reflexões sobre o que considera como um
outro campo, para além do demonstrativo, que é desprezado pela lógica formal. É esse campo ao
qual deu o nome de argumentativo, ou seja, todo o discurso que não é passível de redução ao
cálculo. Sobre as discrepâncias entre o discurso demonstrativo característico das explanações
formais e o discurso argumentativo, acrescenta ainda que:
A argumentação é essencialmente comunicação, diálogo, discussão. Enquanto
a demonstração é independente de qualquer sujeito, até mesmo do orador,
uma vez que um cálculo pode ser efetuado por uma máquina, a argumentação
por sua vez necessita que se estabeleça um contato entre o orador que deseja
convencer e o auditório disposto a escutar (Perelman, 1987, p. 235).
Perelman e Olbrechts‐Tyteca (2005) consideram que o discurso argumentativo não é um
monólogo onde não existe qualquer preocupação com os outros: faz‐se através da interação.
Ampliam o conceito de auditório para além do referencial grego, onde era concebido como o
conjunto dos ouvintes presentes à ágora. O auditório se refere, então, a todos os ouvintes do
discurso, oral ou escrito, que o influenciam e são influenciados por ele. Desse modo, a linguagem
é meio importante para o discurso argumentativo, pois para que haja argumentação é necessária
uma comunidade efetiva dos espíritos. Portanto, o orador deve fazer um esforço para conhecer
de forma reflexiva seu auditório, a fim de obter a aceitação/persuasão no tocante a sua tese. No
auditório universal, aquele que se pretende como encarnação de todos os ouvintes possíveis, o
orador se vê embasado por premissas de senso comum. Por esse ângulo, é o que mais se
aproxima da sala de aula, em toda a sua diversidade. No auditório de elite, que se constitui pelo
conjunto de especialistas que compartilham de premissas basilares semelhantes, se não iguais, o
orador tem de argumentar com vistas a um público com teses já bem definidas. No auditório
particular, o orador se esforça para atingir ouvintes adeptos de determinadas crenças ou posições
3
Aquela que Perelman e Olbrechts‐Tyteca (2005) concebem como um dos campos da racionalidade
humana.
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políticas também já estabelecidas. A argumentação se faz, então, um espaço interativo em que
orador e ouvinte estabelecem uma ponte comunicativa por meio da linguagem onde
conhecimentos de ordem argumentativa, não redutíveis à lógica formal, se inter‐relacionam
visando um acordo.
Apesar da aparente distância entre a teoria da argumentação e a educação em Ciências,
há aí uma importante contribuição à mesma. Os métodos baseados em raciocínios lógico‐formais,
comuns nas ciências naturais, irradiam seus reflexos no ensino de Ciências, confundindo‐o e
dificultando a ancoragem dos conteúdos com formas pouco ou nada dialógicas de transmissão de
conceitos, apoiadas em atividades fundamentalmente demonstrativas e narrativas. Um ensino de
argumentativo pode se tornar alicerce àqueles que contemplam a sala de aula como espaço social
e, por isso, lugar de interação: onde os atores se encontram face a face e sofrem influência
recíproca uns dos outros (Cajal, 2003).
Para uma melhor compreensão dos recursos argumentativos, Perelman tece em sua
teoria uma densa teia de técnicas argumentativas. Estas ajudam a compreender como os
diferentes elementos do discurso interagem em toda a amplitude da argumentação. Os esquemas
argumentativos se caracterizam, assim, em processos de ligação e de dissociação. “Entendemos
por processos de ligação esquemas que aproximam elementos distintos e que visam estabelecer
entre eles uma solidariedade” (Perelman e Olbrechts‐Tyteca, 2005, p. 215). Já os processos de
dissociação correspondem a “técnicas de ruptura com o objetivo de dissociar, separar, desunir
elementos considerados um conjunto solidário dentro de um mesmo sistema de pensamento”
(Perelman e Olbrechts‐Tyteca, 2005, p. 215). Os elementos de ligação ainda são classificados em
três categorias intercambiáveis na dinâmica do discurso. Os argumentos quase‐lógicos
pretendem certa força de convicção, na medida em que se apresentam como comparáveis a
raciocínios formais. Os argumentos baseados na estrutura do real valem‐se do mesmo para
estabelecer uma solidariedade entre juízos admitidos e outros que se pretende admitir. As
ligações que fundamentam a estrutura do real tendem a generalizar o que é aceito a propósito de
um caso particular. É nessa categoria que se inserem, segundo Perelman, as metáforas e
analogias, elementos que merecem destaque nesse estudo.
Considera‐se que o uso da analogia consiste na aproximação de dois domínios
semelhantes, em que o primeiro representa o que se desejaria esclarecer, apoiado no segundo.
Nesse contexto, tem‐se a metáfora como uma analogia condensada, isto é, ao omitir o termo que
permite ligar dois elementos analógicos traduz as semelhanças de suas relações em identidade
(Perelman e Olbrechts‐Tyteca, 2005). Autores como Cachapuz (1989) e Nagem et al (2001)
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sustentam que a linguagem metafórica se apresenta como um estilo menos rígido e mais
expressivo de transferência de um domínio conceitual para outro, além de representar uma
forma interativa de se estruturar conceitos. As analogias fornecem, assim, uma similitude de
relações entre um termo que se deseja explicar e outro já conhecido, e não uma simples
comparação, imagem ou modelo a ser seguido.
Resta, agora, compreender como essa técnica argumentativa proposta por Perelman e
Olbrechts‐Tyteca poderá orientar a prática dos professores de Ciências na construção do
conhecimento na sala de aula.
Bachelard e Perelman: o intertexto no ensino de Ciências
A busca por uma educação científica que contemple a dialogicidade como realidade é
constante, visto que o enrijecimento do ensino com métodos exclusivamente demonstrativos há
muito se mostra incompatível com a formação do espírito científico. Partindo do pressuposto de
que, além da motivação e as experiências de cada indivíduo, a linguagem exerce importante papel
na criação, construção e aprendizagem de conhecimentos, tem‐se como ponto de partida em
estudos que visam um real avanço nos processos ensino‐aprendizagem de Ciências a relação
entre conhecimento e linguagem. Estabelecer uma relação dialógica entre as noções propostas
por Perelman e Bachelard não é tarefa simples, uma vez que cada um deles explora com suas
teorias diferentes campos do conhecimento. O primeiro busca promover um resgate de
pressupostos retóricos. Já o segundo, entretém‐se em explicitar as principais barreiras ao
conhecimento científico ao longo do tempo. Entretanto podem‐se considerar aspectos
semelhantes em suas concepções epistemológicas. Concebidas sob a ótica de uma perspectiva
regressiva, ambas salientam que o conhecimento não se apoia em verdades primeiras ou
axiomáticas, mas sim em primeiros erros. Com uma abordagem histórica, acentuam que todo o
conhecimento, assim como as conquistas da ciência, é historicamente datado. Suas reflexões não
são passíveis de extensão a todo e qualquer campo da razão humana, devido ao seu caráter sócio‐
histórico e setorial. No entanto, o interessante para esse estudo é o fato de que ambos se
debruçam sobre um mesmo ponto: uma discussão teórica que abarca o uso das analogias e
metáforas. Sua contribuição para a educação se faz na medida em que a linguagem analógica é
recurso corrente no ensino e sua influência no espírito em formação está em constante debate.
No que tange o ensino de Ciências se questiona como a teoria da argumentação de Perelman e A
formação do espírito científico de Bachelard podem contribuir para esse debate.
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Admitindo a barreira da linguagem como um importante entrave ao ensino do
conhecimento científico na sala de aula, estabelece‐se uma importante relação com a noção de
auditório. Para Perelman, orador, diálogo e auditório, mediados por uma linguagem comum, são
condições essenciais para um processo de comunicação eficiente. As percepções de orador e
auditório influenciam o discurso argumentativo, pois as opiniões de qualquer pessoa dependem
de seu meio social, de seu círculo, das pessoas que frequenta e com quem convive. O auditório se
apresenta como aquele que ouve e, portanto, deve ser ouvido para que haja contato intelectual
entre os espíritos. Assim, “o conhecimento daqueles que se pretende conquistar é, pois, uma
condição prévia de qualquer argumentação eficaz” (Perelman e Olbrechts‐Tyteca, 2005, p. 23).
Reportando tais reflexões a cenários reais de ensino fixa‐se como figura central o professor em
sua condição de orador, frente a um auditório não mais concebido como uma folha em branco,
mas como espíritos que, apesar de ainda em formação, têm uma longa trajetória de primeiras
experiências. Estas devem ser respeitadas, uma vez que o orador‐professor deve adaptar‐se a seu
auditório‐alunos de modo a transformar suas primeiras experiências em reflexão para um possível
conhecimento crítico da realidade. Por esse ângulo, os conhecimentos gerais ou de senso comum
representam as primeiras interpretações do aluno e têm importante papel no seu
desenvolvimento intelectual.
Esses primeiros dados que o aluno obtém da realidade através de suas próprias
experiências são também seus primeiros (pré)conceitos. Quando o estudante se apoia em
interpretações equivocadas para tecer a base de um conhecimento futuro cria para sua própria
formação um obstáculo epistemológico. Tendo incrustados em seu espírito conhecimentos não
questionados, pois se supõe verdadeiros, o aluno é incapaz de evoluir na construção do
conhecimento científico, uma vez que “chega o momento em que o espírito prefere o que
confirma seu saber àquilo que o contradiz, em que gosta mais de respostas do que de perguntas.
O instinto conservativo passa então a dominar, e cessa o crescimento espiritual” (Bachelard,
1996, p. 19). É devido a essa preocupação com os obstáculos pedagógicos que Bachelard se refere
aos saberes subjetivos a as intuições primeiras como contra‐pensamentos, ou seja, “a experiência
colocada antes e acima da crítica – crítica esta que é, necessariamente, elemento integrante do
espírito científico” (Bachelard, 1996, p. 29).
Nesse conturbado contexto, emergem as analogias e metáforas com a pretensão de
constituir um recurso pedagógico para o ensino de Ciências. Estabelecendo relações entre algo
que se deseja conhecer e um dado já conhecido, trazem à luz semelhanças que os alunos
atribuem ao novo conceito apresentado. Quando Perelman as inclui, em suas Técnicas
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Argumentativas, na classe dos argumentos que fundam a estrutura do real, supõe que extrapolem
o papel do modelo ou do exemplo, que generalizam o que é aceito em um caso particular. As
analogias também têm o papel de evocar certa presença a algo completamente desconhecido,
mas não se prestam a generalização do caso particular: “como uma forma de raciocínio, o
argumento por analogia e o uso das metáforas são indispensáveis a todo o pensamento criador”
(Perelman, 1987, p. 207). Longe de ser um meio de prova, a analogia, por oposição à proporção,
consiste na aproximação de dois domínios heterogêneos. Assim (Perelman, 1987, p. 208):
Nunca ninguém contestou o papel heurístico das analogias: quando se trata de
explorar um domínio desconhecido, de sugerir a idéia daquilo que não é
cognoscível, um modelo extraído de um domínio conhecido fornece um
instrumento indispensável para guiar a investigação e a imaginação.
O uso desse recurso, tal qual propõe Perelman, se mostra eficiente na construção do
conhecimento e possibilita ao professor transpor a barreira que a linguagem muitas vezes impõe
ao ensino de Ciências. Contudo, a busca por concretizar um conceito abstrato é, como sugere
Bachelard, apenas uma das etapas fundamentais da experiência científica.
Ao contemplar as etapas que convergem para a formação individual do espírito científico,
Bachelard apresenta notável preocupação com a capacidade de abstração. Segundo ele, no
estado concreto, o espírito se entretém com as primeiras imagens do fenômeno. No estado
concreto‐abstrato, o espírito acrescenta à experiência esquemas geométricos. No estado
abstrato, deve adotar informações voluntariamente subtraídas à intuição do espaço real,
voluntariamente desligadas da experiência imediata. Portanto (Bachelard, 1996, p. 10):
Dessa maneira, fica claro o quanto o desejo de atingir o concreto, aludido em
apropriações analógicas equivocadas, pode dificultar a apropriação do conhecimento por parte
dos alunos. A abstração se mostra, então, como um último estágio dessa construção. Os limites
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concreto‐abstrato norteiam o modo essencial como analogias e metáforas devem ser apropriadas
no ensino.
Dialogando sobre essa problemática, Bachelard tem como uma de suas preocupações os
momentos em que os saberes preconcebidos que os alunos trazem consigo, aliados
erroneamente ao pensamento analógico, constituem barreiras ao avanço do conhecimento
científico, pois se transformam em esquemas gerais que permanecem em vez de assumirem um
papel transitório (Ferry e Nagem, 2008). Quanto a isso, Perelman e Olbrechts‐Tyteca (2005)
destacam a complexidade do uso da linguagem analógica: já que traduz relações entre um termo
que se deseja explicar e outro já conhecido seu uso deve ser sistemático para que o aluno possa
captar a estrutura da analogia e integrá‐la de forma significativa em sua estrutura cognitiva. Para
alertar sobre o possível aspecto reducionista das analogias, Lemgruber (2007, p. 5) faz referência
ao exemplo do professor de Ciências que diz para seus alunos:
que o átomo é como um sistema solar em miniatura. Essa analogia, essa
comparação entre um campo que se quer conhecer (no caso, o átomo) com um
que se conhece – ou se pretende conhecer – (no caso, o sistema solar) permite
dar um chão a um conceito tão complexo, tão pouco palpável. O problema é
que esse modelo atômico já tem mais de 100 anos. Hoje atrapalha mais do que
ajuda. Ou seja, em algum momento essa analogia terá que ser desconstruída
para não passar a se constituir em um obstáculo pedagógico.
Assim, as diferenças entre os elementos da relação analógica devem também ser
explicitadas, para que não ocorram transferências indesejáveis. Para que a relação seja
suficientemente esclarecida, a analogia deve ser desconstruída4 ou desrealizada5 até o ponto em
que os alunos sejam capazes de compreender a finidade das relações. Portanto, o papel da
analogia “será o de andaimes em uma casa em construção que são retirados quando o edifício
está terminado” (Perelman, 1987, p.208).
Faz‐se referência aqui à analogia não como simples figura retórica, mas como um recurso
da linguagem capaz de auxiliar na compreensão daquilo que se concebe como realidade. Com a
desconstrução da analogia, a linguagem analógica é capaz de contribuir na evolução dos três
estágios, propostos por Bachelard, necessários à construção do conhecimento científico. Resta ao
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Perelman (2005).
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professor de Ciências articular sua prática pedagógica respeitando a tríade: primeiras imagens
busca pelo concreto abstração, na qual a analogia e sua desconstrução significam,
respectivamente, segundo e terceiro membros, lembrando sempre que o conhecimento efetivo
necessita da conclusão dessas três etapas. Acredita‐se que dessa forma o uso sistemático da
analogia contribui significativamente para o ensino de Ciências.
Considerações finais
A intenção aqui não é defender ou idealizar um ensino de Ciências que tenha por objetivo
formar cientistas, mas salientar sua responsabilidade frente à necessidade da formação de
cidadãos cientificamente conscientes. Apesar de o conhecimento científico ser obtido por
métodos tradicionalmente exatos, seu ensino nas escolas não prescinde de exatidão: ensinar
Ciências não é preciso. Portanto, mostra‐se urgente a discussão acerca de metodologias de ensino
que sejam capazes de contemplar o aluno com toda a sua “bagagem” cultural. As analogias e
metáforas constituem uma dessas metodologias. Seu uso, entretanto, requer uma lúcida reflexão
por parte do professor. Perelman e Bachelard podem guiá‐lo nesse estudo.
Tomando a apropriação como um processo de aprendizagem que conduz à interiorização
do conhecimento, faz‐se muitas vezes necessário o uso de recursos que estimulem tal processo.
A linguagem analógica é um desses recursos. Ignorando sua complexidade, muitos ainda utilizam
a analogia como um exemplo que generaliza um caso particular e ao qual o aluno se agarra para
estabelecer as bases de sua compreensão. Desse modo, como afirma Bachelard, cria em seu
processo de formação um obstáculo. Para evitar que isso ocorra, Perelman salienta que a relação
analógica é apenas um andaime, ou seja, algo que deve ser retirado quando o processo de
construção estiver concluído.
Admitindo as três etapas da formação científica – estado concreto, estado concreto‐
abstrato e estado abstrato – o professor de Ciências deve estar preparado para compreender o
papel do senso comum. O eu empírico representa aqueles conhecimentos que o aluno adquiriu
por força de suas próprias experiências – é o seu cotidiano adentrando a sala de aula. Nesse
momento, longe de ignorar as dificuldades dessa abordagem, é preciso que se opere a
dissociação entre senso comum e conhecimento científico, aproximando ao máximo este último
de situações vivenciadas pelos alunos. A linguagem analógica se apresenta eficaz nesse aspecto.
Superando a geometrização e atingindo a etapa da abstração, consideram‐se apropriados pelos
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alunos os novos conceitos propostos e o eu epistêmico pode agora refletir sobre os vários papéis
que a ciência desempenha em sua vida.
Referências
BACHELARD, G. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do
conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
CACHAPUZ, A. Linguagem metafórica e o ensino de Ciências. Revista Portuguesa de Educação,
Braga, v.2, n.3, 1989.
CAJAL, I. B. A interação de sala de aula: como o professor reage às falas iniciadas pelos alunos?
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II Simpósio Nacional de Ensino de Ciência e Tecnologia
07 a 09 de outubro de 2010 ISSN: 2178‐6135
Artigo número: 166
Universidade Tecnológica Federal do Paraná ‐ UTFPR
Programa de Pós‐Graduação em Ensino de Ciência e Tecnologia ‐ PPGECT
Helena Rivelli. Aluna do Programa de Mestrado em Educação da Universidade Federal de Juiz de
Fora. helenarivelli@yahoo.com.br
Márcio Silveira Lemgruber. Professor Doutor Associado da Faculdade de Educação – Universidade
Federal de Juiz de Fora. mslemgruber@gmail.com
II Simpósio Nacional de Ensino de Ciência e Tecnologia
07 a 09 de outubro de 2010 ISSN: 2178‐6135
Artigo número: 166