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R V O

Claudia W asser m a n
Wasser
Professora Adjunta do Departamento de História da UFRGS.
Doutora em História Social pela UFRJ. Pesquisadora do CNPq.

Identidade Nacional
O Brasil para seus intelectuais

Este artigo pretende abordar o tema da This article goals to present the theme of
constituição da identidade nacional brasileira Brasilian’s national identity constitution
e o papel desempenhado pela intelectualidade and the role of the intelligence on this
neste processo. process.
Palavras-chave: identidade nacional, história Keywords: national identity, brazilian intellectual
intelectual brasileira, nação e nacionalidade. history, nation and nationality.

O
tema da identidade nacional renciais comuns ao conjunto da comuni-
tem sido bastante abordado dade nacional; e os políticos utilizam a
pelos meios acadêmicos, pela idéia de identidade nacional para fins
mídia e também pelos políticos. Os primei- programáticos e como forma de apelo aos
ros propõem-se a explicar as origens dos sentimentos comunitários.
sentimentos nacionais e da nação; a mídia
aplica o conceito indistintamente, carac- Possuir uma nacionalidade e buscar as
terizando os comportamentos e refe- origens da nação ou defender o naciona-

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lismo são considerados fatos corriquei- Hobsbawn chamou de “protonacionalismo


ros na história do século XX, nem sem- popular”. Além disso, o Estado político
pre tratados com tranqüilidade pelos mi- cria outros elementos objetivos, como
litantes da questão nacional, pelos espe- exército, moeda, fixação de fronteiras,
cialistas ou mesmo pelo cidadão comum. e inventa alguns elementos que são con-
Nação, nacionalidade e nacionalismo são cretos, mas funcionam como simbólicos,
temas controversos. Entre os historiado- como, por exemplo, hino nacional, ban-
res, a dificuldade parece aumentar, por- deira etc., aspectos relacionados com o
que, embora tenhamos como objeto as “patriotismo constituído pelo alto”. 4
sociedades humanas, parece difícil para
O fator subjetivo refere-se ao naciona-
a maioria de nós lidar com os sentimen-
lismo, ou seja, à intenção explícita de
tos, com os processos subjetivos, que não
construir e consolidar uma fraternidade
prescindem das condições materiais, mas
que ultrapasse os limites locais e regio-
também não se confundem com elas.
nais. Os nacionalismos são veículos por
Freqüentemente, nesta temática, compa-
meio dos quais se constroem as nações
recem as paixões humanas. Idéias idíli-
modernas; são eles que elaboram pro-
cas de pertencer a uma comunidade mais
gramas capazes de, em sociedades tão
ampla do que a local ou de ser protago-
desiguais como as nossas latino-america-
nista na construção de uma nacionalida-
nas, por exemplo, incorporar grande par-
de tornam o tema mais problemático
te da população e fazer com que todos
para os especialistas.
se sintam partícipes dessa comunidade
Este artigo pretende abordar o tema da imaginada.5
constituição da identidade nacional bra-
A tecnologia, que se refere à existência
sileira e o papel desempenhado pela
da imprensa e envolve a educação em
intelectualidade neste processo. Qual o
massa, a elaboração de cartilhas, a exis-
peso dos intelectuais na construção dos
tência de um mercado editorial e de pe-
sentimentos nacionalistas?
riódicos de circulação nacional, bem
Basicamente, a constituição de uma iden- como, eventualmente, do rádio, é neces-
tidade nacional, a construção de uma sária para a difusão dos elementos obje-
fraternidade entre pessoas que habitam tivos e do nacionalismo. Para que todos
um território delimitado, ocorre a partir tenham acesso à idéia de pertencimento
de elementos objetivos e subjetivos, da
1
a uma nacionalidade e ao conhecimen-
existência de tecnologia 2 e de uma im- to das datas nacionais, dos símbolos
portante dose de invenção, engenharia etc., é imprescindível que exista uma
política ou artefato. 3
tecnologia capaz de difundir essa
fraternidade.
Entre os elementos objetivos, existem
aqueles que advém das tradições, hábi- Finalmente, são necessárias pessoas que
tos, costumes e rituais dos setores co- juntem tudo isso e forneçam sentido ao
nhecidos como los de abajo , o que que está aparentemente solto ; que con-

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sigam realizar um amálgama de todos É possível periodizar as mudanças do


esses aspectos objetivos e subjetivos perfil intelectual brasileiro. Modificam-
e que saibam usar a tecnologia a favor se os lugares de enunciação (política, ar-
da difusão dessa nacionalidade; que quivos, centros de investigação, univer-
sejam convincentes e tenham autorida- sidades) e muda também o regime de
de para falar em nome de todos. Essas historicidade (os eixos centrais da aná-
pessoas são os intelectuais. Sujeitos lise e caracterização da história nacio-
bastante singulares, responsáveis por nal), mas em todas as épocas os inte-
criar e transmitir idéias que terão um lectuais desempenharam certas funções
efeito importante na constituição da na criação da narrativa a respeito da
identidade nacional. nação e da nacionalidade. Que funções

O
foram essas? Primeiramente, ressaltar
espaço social ocupado pelos in-
a importância das tradições, hábitos,
telectuais nas sociedades con-
costumes comuns, e rejeitar aqueles que
temporâneas fornece a eles um
eram diferentes; depois, conferir senti-
prestígio, como supostos portadores da
do àqueles elementos que antes se en-
razão, da verdade e de valores éticos de
contravam dispersos; realizar um
validade universal. O lugar de enunciação
amálgama de tradições, rituais, costu-
do discurso intelectual (academias, cen-
mes de los de abajo e de aspectos in-
tros de investigação da história nacional,
troduzidos pelo Estado, naturalizando a
arquivos de documentos históricos, esco-
existência de uma fraternidade entre to-
las e universidades) confere autoridade
dos esses elementos; realizar a propa-
aos que falam a partir dele. 6
ganda dos sentimentos de pertencimento
Os intelectuais tiveram um papel de
(programa do nacionalismo), utilizando
destaque na criação de uma narrativa
e estimulando os meios de difusão des-
que conferiu ao passado uma identida-
se programa nacionalista em escolas,
de; através dessa narrativa, esses su-
meios de comunicação e outros campos
jeitos puderam instaurar um significa-
de sociabilidade.
do na história nacional. Foram respon-
sáveis por aquilo que Ernest Gellner Existem vários discursos intelectuais
chama de engenharia, artefato ou inven- acerca da nação e da nacionalidade bra-
ção da nação. 7 sileira. Esses discursos são muitas vezes
Inicialmente, os intelectuais brasileiros, contraditórios e divergentes: um trata da
por exemplo, estiveram muito envolvidos precoce manutenção da unidade ter-
com a política. Alguns eram militares que ritorial e dos benefícios da manutenção
participaram do processo de independên- da família real portuguesa no pós-inde-
cia, outros, literatos. Depois foram so- pendência e atribuem ao país uma uni-
brevivendo em institutos e centros de dade nacional original, por vezes tratada
história, arquivos de história nacional e, como ontológica; 8 outro discurso aborda
mais tarde, nas universidades. a provisoriedade da nação brasileira e

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sua incompletude, as dificuldades de in- sentidos de nacionalidade ou nação. Não


corporação de grupos sociais subalternos, se sabe exatamente o porquê da eficá-
os males, problemas, desvios e defor- cia discursiva; o certo, no entanto, é que
mações que impediram a constituição os excessos de voluntarismo nem sem-
de uma autêntica nacionalidade; 9 exis- pre são suficientes para a consolidação
te, ainda, outra formação discursiva que de um axioma no que se refere à ques-
considera a especificidade do caráter tão nacional.
nacional, do modo de ser do brasileiro,
Assim, refletir sobre as forças que ins-
daquilo que o diferencia dos demais
tauram um sentido à nacionalidade e à
povos. 10
nação brasileira é tentar sistematizar a
Configura-se, a partir dessa mescla de mescla ideológica que conferiu ao Brasil
discursos e afirmações peremptórias de e aos brasileiros uma especificidade que
nacionalidade, o chamado discurso fun- os fazem diferentes dos outros.
dador, que funciona como referência
O discurso pós-independência tornou-se
básica no imaginário constitutivo do
um divisor de águas na construção da
país. A apreensão desses discursos fun-
nacionalidade, muito embora os marcos
dadores é feita nos meios de comunica-
da fundação do sentimento nacional te-
ção, nos livros de história e ciências
nham sido freqüentemente deslocados
sociais, na literatura nacional, nos ma-
para momentos anteriores à independên-
nifestos políticos e nos clichês acerca
cia. O historiador oficial da monarquia,
do modo de ser do brasileiro. A identi-
Francisco Adolfo de Varnhagen, defen-
dade nacional conforma-se a partir de
dia esse sistema e afirmava que “todos
uma conjunção entre esses discursos,
os indivíduos mais respeitáveis, tanto fun-
prevalecendo um ou outro, ou uma mes-
cionários como escritores ou simples
cla deles, conforme o momento históri-
pensadores, consideravam [...] possível
co e os sujeitos sociais que emitem opi-
e até vantajosa a continuação, ao me-
nião sobre o assunto.
nos ainda por algum tempo, da união a
Mesmo assim, como bem observava Portugal”.12 Mas, em outro momento, ma-
Hobsbawn, é muito difícil perceber o que nifestou abertamente a idéia da pree-
as pessoas comuns pensam acerca de xistência de um sentimento antilusitano
sua própria condição identitária: “é mui- fervoroso:
to provável que os soldados concla -
Os sentimentos em favor da indepen-
mados por Nelson a lutar na batalha de
dência manifestaram-se desde logo
Trafalgar tivessem realmente o sentimen-
to de patriotismo descrito ardentemen- tão fortes nos corações brasileiros,

te no discurso do comandante, mas não à chegada das primeiras notícias dos

podemos ter essa certeza absoluta”. 11 planos meditados pelas Cortes, no

Não existe possibilidade de controle co- mês de julho, de dividir o Brasil, que

letivo ou pessoal sobre a construção de conceberam desde logo a idéia, por

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certo ainda então demasiado prema- a ex-colônia mantivesse condições de


tura , de aclamarem o próprio prínci- igualdade jurídica e política com a antiga
pe imperador do Brasil. 13 metrópole. Em Var nhagen, a idéia de
existência originária de uma nação está
Varnhagen considerava prematura a em-
ligada ao esquecimento dos índios como
presa da independência, mas também
integrantes do país e ao estreito vínculo
não podia admitir, assim como os “cora-
construído entre a elite local e as cortes
ções brasileiros”, um processo de
portuguesas.
recolonização. Note-se que o ideal de
Var nhagen, de difícil apreensão numa Para José Bonifácio, livre-pensador, polí-
obra tão descritiva, era manter o Brasil tico do Império, dois problemas tinham
unido a Portugal, numa situação em que que ser solucionados para a felicidade da
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José Bonifácio, livre-pensador do Império

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nação; acreditava que a nação não esta- forjado a consciência nacional indispen-
ria “regenerada” se os índios e os negros sável ao “sete de setembro”. Em 1875,
não sofressem um processo de escreveu:
enquadramento, por meio de leis:
Os holandeses foram derrotados; os
Chegada a época feliz da regenera- paulistas transportaram para o seio
ção política da nação brasileira, e das florestas as epopéias que os por-
devendo todo cidadão honrado e tugueses tinham cinzelado nos sei-
instruído concorrer para tão grande os dos mares; em Pernambuco hou-
obra, também eu me lisonjeio que ve a guerra dos Mascates e alhures
poderei levar ante a Assembléia Ge- revoltas mais ou menos sangrentas;
ral Constituinte e Legislativa algu- os interesses reinóis e coloniais bi-
mas idéias, que o estudo e a expe- furcaram-se e tornaram-se antagôni-
riência têm em mim excitado e de- c o s ; o s e n tim e n to d e fr a te r n id a d e
senvolvido. começou a germinar [...]. A pouco e
pouco a emoção antiga foi desapa-
Como cidadão livre e deputado da
recendo; a emoção de superiorida-
nação dois objetos me parecem ser,
de rebentou, cresceu e deu-nos o
fora a Constituição, de maior inte-
sete de setembro, o dia-século de
resse para a prosperidade futura
nossa história. 15
deste império. O primeiro é um

novo regulamento para promover a Além de conceber a nação brasileira


civilização geral dos índios do Bra- como um dado cuja origem encontrava-
sil, que farão com o andar do tem- se em certas guerras e movimentos co-
po inúteis os escravos. Segundo, loniais, ao final dos Capítulos de histó-
uma nova lei sobre o comércio da ria colonial , Capistrano de Abreu seguia
escravatura, e tratamento miserável a mesma linha determinista e cien-

dos cativos. 14
tificista de seus contemporâneos para
demonstrar os problemas e dificuldades
O historiador Capistrano de Abreu, con- de se consolidar a nação. Descreveu a
temporâneo de Var nhagen, concebeu terra, o clima e os tipos característicos
seu livro Capítulos de história colonial das mais diversas regiões do país, para
(1500-1800) a partir dos últimos anos concluir que:
do século XIX, quando começou a re-
colher documentos na Biblioteca Na- Vida social não existia, porque não

cional, e chegou à conclusão de que havia sociedade; questões públicas

a formação do sentimento nacional bra- tão pouco interessavam e mesmo não

sileiro foi fruto de guerras e movimen- se conheciam [...]. É mesmo duvido-

tos como o dos bandeirantes paulistas. so se sentiam, não uma consciência


Essas revoltas e movimentos teriam nacional, mas ao menos capitanial,

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embora usassem tratar-se patrício e tuguês aversão ou desprezo, não

paisano. [...] se prezando, porém, uns aos ou-


tros de modo particular – eis em
Cinco grupos etnográficos, ligados
suma ao que se reduziu a obra de
pela comunidade ativa da língua e
t r ê s s é c u l o s . 16
passiva da religião, moldados pe-

las condições ambientais de cinco O mais interessante no pensamento de


regiões diversas, tendo pelas rique- Capistrano de Abreu é que, quando se
zas naturais da terra um entusias- referia às elites coloniais no período ime-
mo estrepitoso, sentindo pelo por- diatamente anterior à independência, ele

O clássico de Euclides da Cunha representa


uma tentativa de interpretação da nossa formação social

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identificava os sentimentos de consciên- nação ao país e de cidadania ao seu


cia e espírito nacionais, mas ao descre- povo, mas em vista das dificuldades de
ver os povos, o clima e a terra, parecia manutenção de ordenamentos políticos
se decepcionar com os resultados obti- estáveis e dos obstáculos enfrentados
dos com a emancipação. É, em verdade, para a construção de sociedades me-
uma forma de culpar o clima, a terra e nos desiguais, um sentimento de frus-
as etnias pela inatingibilidade da unida- tração acometia a intelectualidade.
de da nação. Apontavam as irregularidades na for-
mação nacional, identificando desvios
Prevaleceu também entre outros pensa-
e deformações em relação a um certo
dores do século XIX a idéia de que a na-
padrão de nação e nacionalidade elei-
ção existia como resultado do passado
to por eles como modelo e exemplo
pré-colonial, colonial ou do processo de
avançado de civilização. França e Es-
independência. Influenciados pelas idéi-
tados Unidos eram os parâmetros pre-
as deterministas, cientificistas e pelo
ferenciais dos brasileiros.
positivismo, os intelectuais do século XIX
sonhavam com a possibilidade de progres- A Primeira Guerra Mundial representou
so ilimitado, a exemplo dos países cen- uma certa crise no pensamento brasilei-
trais do capitalismo. Autores do começo ro e latino-americano a respeito da ques-
do século XX, como Euclides da Cunha, 17 tão nacional. O desencanto com a civili-
Manoel Bonfim,18 Sylvio Romero,19 Affonso zação ocidental levou intelectuais e polí-
Celso 20
e outros, encontravam obstáculos ticos a buscarem nas raízes autóctones
para a consolidação política e os interpre- as características essenciais da naciona-
tavam como desvios e deformações de lidade. O discurso dos anos de 1920 e
nossa formação nacional. Para Romero, 1930, exemplificado por Sérgio Buarque
por exemplo, “o maior mal do Brasil [...] de Holanda, 22 Gilberto Freire 23 e Caio
é pretendermos ser, como nação, como Prado Jr., 24 procurava saber quem so-
todo político-social o que não somos real- mos , quem fomos , como nos caracteri-
mente”. 21 zamos a partir de valores étnicos, regio-
nais, lingüísticos, elementos naturais res-
Para a maior parte dos autores do perío-
saltados como símbolos da singularida-
do, o que explicava a nação e a naciona-
de, originalidade e autenticidade brasi-
lidade era a terra, a geografia, o clima e
leiras. Sérgio Buarque de Holanda, por
as raças. Nação inacabada , Males da
exemplo, considerava o passado um obs-
nação , Nação enferma eram títulos bas-
táculo e preconizava a liquidação das
tante comuns na bibliografia da época e
raízes como um imperativo do desenvol-
refletiam o que pensavam os intelectu-
vimento nacional:
ais acerca da questão. Esses autores
organizavam todos os critérios objeti- A tentativa de implantação da cultu-

vos (como língua, etnia, origem histó- ra européia em extenso território,

rica, religião) para conceder status de dotado de condições naturais, se não

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adversas, largamente estranhas à sua vos e indolentes, cujo herói é sem cará-
tradição milenar, é, nas origens da ter e onde a Lei de Gerson prevalece”. 26
sociedade brasileira, o fato dominan- Predominava então uma identidade atri-

te e mais rico em conseqüências. buída pelas elites e assumida pelo povo

Trazendo de países distantes nossas brasileiro, em vista das dificuldades so-

formas de convívio, nossas institui-


ciais. Prevaleceram imagens precon-
ceituosas, impregnadas no imaginário
ções, nossas idéias, e timbrando em
popular em função da repetição e dos
manter tudo isso em ambiente mui-
problemas advindos da própria constru-
tas vezes desfavorável e hostil, so-
ção de uma nacionalidade, dentro dos
mos ainda hoje uns desterrados em
padrões de nação considerados pela eli-
nossa terra. 25
te como os mais adequados.

Eram discursos que recusavam imitações, Nesse discurso do modo de ser do brasi-
rechaçavam os estrangeirismos. Alguns se leiro, a sociedade percebe uma possível
constituíam como discursos de vanguar- unidade orgânica, que perpassa suas di-
da (Oswald de Andrade), manifestos que ferenças sociais, raciais, religiosas, polí-
se propunham a estabelecer critérios e ticas e estabelece um vínculo entre to-
parâmetros da unidade nacional. dos os brasileiros, de norte a sul. Mes-

M
mo que muitas vezes os enunciados da
ais tarde, entre os anos de
Lei de Gerson (levar vantagem em tudo),
1950 e 1970, observa-se a
do jeitinho brasileiro e do Deus é brasi-
dicotomia entre o discurso
leiro tenham sido utilizados de maneira
marxista e o nacional-desenvolvi-
pejorativa para proclamar uma indigna-
mentismo, tendo este último influencia-
ção ética, ainda assim eles funcionavam
do a maior parte da intelectualidade bra-
como fatores unificadores da brasilidade,
sileira. A disputa entre essas visões re-
sentidos que deveriam ser eliminados ou
fletia a paradoxal divisão do mundo en-
desconstruídos.
tre o internacionalismo e o nacionalismo,
a revolução e a reforma. Os primeiros Em função da dependência cultural, en-
eram vistos como inimigos da nação, ver- tretanto, construiu-se a idéia de que o
dadeiros obstáculos na consolidação do Brasil é um país que, tendo tudo para
desenvolvimento capitalista e da demo- crescer, desenvolver-se e igualar-se aos
cracia. Nessa fase, vencidos os supostos demais povos civilizados, não consegue
inimigos comunistas, e ainda com imen- realizar essas tendências naturais , pro-
sas dificuldades de consolidar politica- venientes de sua grandeza territorial,
mente o país, as elites brasileiras passa- humana e de recursos naturais. De certo
ram a culpar o modo de ser da gente do modo e, em muitos aspectos, a maior
Brasil, como responsável pelos males da parte dos estudos sobre a nacionalidade
nação: “Terra de Santa Cruz, reduto da continuam ressentindo-se de ausências e
malandragem, habitada por seres lasci- incompletudes.

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Em Classe e nação , editado no Brasil intrínseca da sociedade civil e o


em 1986, 27
Octávio Ianni adota a pers- maquiavelismo do Estado, visto como ins-
pectiva da “nação incompleta”: “A na- trumento das classes dominantes. Por
ção da burguesia não compreende a causa disso, Ianni ressalta que “a nação
nação do povo. Os camponeses, minei- não está pronta, acabada”. “Na América
ros, operários e outras categorias soci- Latina, a nação parece encontrar-se sem-
ais, ou índios, mestiços, negros, mula- pre em formação”, “as revoluções bur-
tos, brancos e outros constituem uma guesas verificadas nos países latino-ame-
espécie de nação invisível; aparente- ricanos não resolveram alguns aspectos
mente invisível”. 28
básicos da questão nacional” e “a
fisionomia da nação burguesa pouco ou
As análises de Octávio Ianni em seu últi-
nada reflete da cara do povo”. “Na Amé-
mo ensaio sobre o tema, O labirinto lati-
rica Latina, a história estaria atravessa-
no-americano, seguem a mesma direção.
da pelo precário, inacabado, mestiço,
O autor trabalha com dois conceitos por
exótico, deslocado, fora do lugar, folcló-
meio dos quais pretende interpretar a
rico. Nações sem povo, sem cidadãos,
questão nacional: Estado e sociedade ci-
apenas indivíduos e população”.31
vil. De seu ponto de vista, “o Estado é
[...] freqüentemente prisioneiro de pe- Apenas alguns autores contemporâneos
quenos grupos, as classes econômica, alertam para o perigo de se buscar as
política e militarmente mais fortes; os que origens da nação e indícios de identida-
mandam”, enquanto a sociedade civil é de nacional em período anterior ao de-
formada, predominantemente, por “cam- senvolvimento das condições materiais
poneses, mineiros, operários, emprega- para a constituição desta entidade.
dos e outros; em geral compreendendo
José Murilo de Carvalho, em seu estudo
índios, mestiços, negros, mulatos, ama-
sobre a simbologia republicana no Bra-
relos, brancos”. 29 E quanto à relação en-
sil, alerta para a necessária existência
tre esses dois conceitos, Ianni conside-
de um “anterior sentimento de comuni-
ra-a “conflituosa”. Observa que “a socie-
dade, de identidade coletiva, que antiga-
dade civil e o Estado encontram-se e
mente podia ser o de pertencer a uma
desencontram-se. Freqüentemente
cidade e que modernamente é o de per-
dissociam-se. A sucessão de crises, gol-
tencer a uma nação”, e diz:
pes de estado, ditaduras e interrupções
democráticas assinalam o periódico di- No Brasil do início da República,
vórcio entre as tendências predominan- inexistia tal sentimento. Havia, sem
tes na sociedade civil e as do Estado”. 30 dúvida, alguns elementos que em

Ao analisar mecanicamente esses concei- geral fazem parte de uma identidade

tos, Ianni separa-os como duas dimen- nacional, como a unidade da língua,

sões diferenciadas de uma mesma reali- da religião e mesmo a unidade políti-

dade, e poderia concluir pela bondade ca. A guerra contra o Paraguai na

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década de 1860 produzira, é certo, a época do modernismo como o período


um início de sentimento nacional. da fixação de sentidos nacionais, através
Mas fora muito limitado pelas com- da afirmação lingüística evocada pelos ma-

plicações impostas pela presença da nifestos culturais. Dispõe, também, que “o

escravidão. [...] contexto cultural da época dos manifestos


se caracteriza pela afirmação da identida-
A busca de uma identidade coletiva
de nacional [...] intensifica-se a preocupa-
para o país, de uma base para a cons- ção com a questão da língua nacional, ha-
trução da nação, seria tarefa que iria vendo um esforço para distinguir a língua
perseguir a geração intelectual da brasileira das demais, principalmente da
Primeira República. 32 portuguesa”.34

O estudo contemporâneo de José Horta Começam a surgir, no Brasil dos anos de


Nunes, Manifestos modernistas: a identi- 1990, estudos que divergem das posições
dade nacional no discurso e na língua, 33
recorrentes sobre desvios, anomalias,
remete às questões lingüísticas o proces- deformações, inimigos, incompletudes.
so de formação da nacionalidade e dispõe As construções estereotipadas sobre o

AN PH/FOT/ 2764(102)
Um mundo inculto e afastado do universo
do consumo coexiste com o mundo 'civilizado' das elites

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Brasil e o brasileiro são contestadas com enfim, a contradição entre universalismo


base em estudos historiográficos e na e particularismo volta a aparecer com
nova história política, especialmente atra- toda força. No mundo cada vez mais
vés da análise de discurso e de uma in- globalizado e homogêneo do ponto de
terpretação da realidade simbólica. Os vista político, econômico, comercial e fi-
novos aportes entendem a construção dos nanceiro, a cultura e a sociedade devol-
estereótipos como determinações histó- vem amplas doses de particularismos e
ricas, circunstanciais. Além disso, nos excentricidades.
novos estudos sobre a nação brasileira,
Os últimos acontecimentos mundiais res-
o conceito de cidadania passou a vincu-
saltam, inclusive, uma tendência ao in-
lar-se diretamente ao de nacionalidade,
cremento das identidades fundadas so-
como no trabalho de Maria Cristina Le-
bre bases religiosas e/ou étnicas. Con-
andro Ferreira: “Não há como falar de
siderados fanáticos e irracionais, esses
brasilidade sem trazer à tona o conceito
grupos, mais e mais numerosos, têm ca-
de cidadania. Este é um conceito crucial
racterísticas próprias, mas assumem
na compreensão dos sentidos que se atri-
cada vez mais as identidades que lhes
b u e m a o b r a s i l e i r o ” . 35 N o e n t a n t o ,
são atribuídas pelos seus detratores:
Ferreira também aponta uma separação
bárbaros. A idéia de que existe um ter-
inexistente entre Estado e sociedade ci-
ritório mundial civilizado e um mundo
vil: “no Brasil, o Estado sempre foi mais
bárbaro é recorrente na modernidade.
forte que a nação. [...] a ausência de uma
E uma das formas mais brutais de se
sociedade civil organizada resulta numa
resolver a questão é propor a elimina-
cidadania fraca, à qual se contrapõe um
ção da barbárie.
Estado forte, poderoso”.36
No Brasil, também se observa, ainda que
No Brasil, assim como no resto do mun- de maneira muito sutil, sobretudo devi-
do, a década de 1990 assistiu ao ques- do à sua posição periférica no cenário
tionamento da hegemonia da identidade internacional, o discurso da existência de
nacional sobre as demais formas de iden- dois mundos, duas nações e duas
tificação social. Houve uma verdadeira brasilidades: um lado civilizado e desen-
revisão no processo histórico de volvido, o mundo do consumo e das eli-
descontextualização ao qual haviam sido tes, e outro mundo inculto, o popular,
submetidas as múltiplas identidades ét- completamente afastado do consumo das
nicas, sociais, religiosas, familiares e grandes cidades brasileiras e das
sexuais existentes no mesmo Estado na- benesses do capitalismo. A mera existên-
cional. A partir do final do século XX, cia discursiva dessa dicotomia, a par da
assiste-se à emergência de movimentos sua existência concreta e fartamente
indígenas, antigos e novos regionalismos, documentada, guardadas as devidas pro-
afirmação de direitos ancestrais, feminis- porções, recobre um perigo tão grande
mo, fundamentalismo religioso e outros; quanto o que existe no resto do mundo.

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N O T A S
1. Eric Hobsbawn afirma que língua, território, etnia, traços culturais comuns, religião e
outros podem ser importantes, mas não fundamentais para definir a existência desses
agrupamentos humanos. Eric Hobsbawn, Nações e nacionalismo desde 1780 , Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1990, p. 15.
2. Eric Hobsbawn, op. cit.; Benedict Anderson, Nação e consciência nacional , São Paulo,
Ática, 1989.
3. Er nest Gellner, Nações e nacionalismo : trajectos, Lisboa, Gradiva, 1993, p. 89; Eric
Hobsbawn, op. cit.
4. Ambos os conceitos, protonacionalismo popular e patriotismo estatal, foram criados
por Eric Hobsbawn, op. cit.
5. Benedict Anderson, op. cit., p. 9-56.
6. Segundo Norberto Bobbio, “aquilo que os intelectuais pensam e dizem tem um valor
exemplar e, como tal, diretivo. Os intelectuais como guias morais da nação, ou mesmo da
humanidade”. Norberto Bobbio, Os intelectuais e o poder, São Paulo, Unesp, 1997, p. 62.
7. Er nest Gellner, op. cit., p. 89: “É o nacionalismo que dá origem às nações, e não o
contrário. [...] é possível revivificar línguas mortas, inventar tradições, restaurar antigas
essências bastante fictícias. No entanto, este aspecto, culturalmente criativo, imaginati-
vo, positivamente inventivo, do ardor nacionalista não deveria permitir que ninguém
concluísse erradamente que o nacionalismo é uma invenção ideológica, contingente e
artificial”.
8. Luiz Felipe de Alencastro, L´empire du Brésil, in Maurice Duverger, Le concept d´empire ,
Paris, PUF, 1980, p. 50-85.
9. Octávio Ianni, Classe e nação , Petrópolis, Vozes, 1986.
10. Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil , 13. ed., Rio de Janeiro, José Olympio,
1979, p. 3 e 121, 1. ed.: 1936.
11. Eric Hobsbawn, op. cit, p. 93.
12. Francisco Adolfo de Var nhagen, História geral do Brasil, antes de sua separação e inde-
pendência de Portugal , 7. ed., São Paulo, Melhoramentos, 1959, t. 1, p. 24, 1. ed.: t. 1,
1852.
13. Ibidem, p. 86, grifo nosso.
14. José de Andrada e Silva Bonifácio, Projetos para o Brasil , São Paulo, Companhia das
Letras; Publifolha, 2000, p. 23. Esse discurso é de 1823, bem como os projetos para
regulamentação do comércio de escravos e da situação indígena.
15. João Capistrano de Abreu, Ensaios e estudos, 1ª série , Rio de Janeiro, Briguiet, 1931,
p. 75-76.
16. Ibidem, p. 247.
17. Euclides da Cunha, Os sertões , São Paulo, Abril Cultural, 1979, p. 30-89, 1. ed.: 1901.
18. Manoel Bonfim, A América Latina : males de origem, Rio de Janeiro, Topbooks, 1993, p.
173, 1. ed.: 1903.
19. Sylvio Romero, Provocações e debates : contribuições para o estudo do Brasil social,
Porto, Chardron, 1910, p. 102.
20. Affonso Celso, Porque me ufano do meu país , 12. ed., Rio de Janeiro, Briguiet, 1943, 1.
ed.: 1900.
21. Sylvio Romero, op. cit., p. 102.
22. Sérgio Buarque de Holanda, op. cit., p. 3 e 121.
23. Gilberto Freire, Casa-grande e senzala , 22. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1983, 1.
ed.: 1933.
24. Caio Prado Jr., Evolução política do Brasil, 8. ed., São Paulo, Brasiliense, 1972, p. 48,
1. ed.: 1933.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 19, nº 1-2, p. 23-36, jan/dez 2006 - pág.35


A C E

25. Sérgio Buarque de Holanda, op. cit., p. 121.


26. Maria Cristina Leandro Ferreira, A antiética da vantagem e do jeitinho na terra em que
Deus é brasileiro: o funcionamento discursivo do clichê no processo de construção
da brasilidade, in Eni Puccinelli Orlandi, Discurso fundador , São Paulo, Pontes, 1993,
p. 69.
27. Octávio Ianni, op. cit.
28. Ibidem, p. 14-15.
29. Octávio Ianni, O labirinto latino-americano , Petrópolis, Vozes, 1993, p. 75.
30. Idem.
31. Ibidem, p. 77-78.
32. José Murilo de Carvalho, A formação das almas : o imaginário da República no Brasil, São
Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 32. O texto de Carvalho é extremamente agradá-
vel e rigoroso na utilização de fontes não escritas – monumentos e símbolos republica-
nos –, mas o que nos interessa é que ele é um dos primeiros autores brasileiros a situar
o aparecimento da nação na fase de implantação e consolidação do modo de produção
capitalista no país, pelo menos depois do advento da abolição.
33. José Horta Nunes, Manifestos modernistas: a identidade nacional no discurso e na lín-
gua, in Eni Puccinelli Orlandi, op. cit., p. 43-57.
34. Ibidem, p. 49.
35. Maria Cristina Leandro Ferreira, op. cit.
36. Ibidem, p. 74.

pág.36, jan/dez 2006

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