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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

O IDEALISMO TRANSCENDENTAL DE KANT


SOB A PERSPECTIVA DO SENTIDO NA LINGUAGEM

Trabalho apresentado como requisito parcial


para a obtenção do grau de Mestre em Filosofia,
sob a orientação do Professor Doutor Valério Rohden

Porto Alegre - RS
Janeiro de 1997

CÉSAR ROMERO FAGUNDES DE SOUZA

e-mail: caesarsouza@gmail.com
Para a Val, minha partner.
AGRADECIMENTOS

Eu gostaria de expressar meu agradecimento, inicialmente, ao Conselho Nacional de


Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq ), pelo financiamento de cinco semestres de
estudo e pesquisa para a realização deste trabalho; à Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS); ao Goethe Institut de Porto Alegre, pela concessão de incentivo financeiro para o estudo
do idioma alemão; aos colegas Alfredo Storck e Raquel Rodrigues; e ao Prof. Dr. Nelson Boeira do
Departamento de Filosofia da UFRGS.
Em especial, agradeço ao Prof. Dr. Valério Rohden por ter apoiado minha opção pelo tema e
pelo enfoque desta investigação, por ter estimulado minha criatividade e também por seu
acompanhamento crítico e contínuo no desenvolvimento das idéias contidas nesse trabalho. Ao
cumprir essa tarefa, ele demonstrou ser muito mais que um orientador, foi principalmente um
amigo.

3
SUMÁRIO
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 5

PRIMEIRA PARTE

Questão geral: Por que fazer a crítica ao uso puro da razão? 9


1. Esboço de uma fundamentação para uma leitura da Crítica da razão pura como uma 'Gramática
Transcendental' 14
I . O uso da palavra 'razão' na Crítica da razão pura 15
II. 'Razão' como 'linguagem': uma interpretação gramatical acerca do uso da palavra 'razão'
na Crítica da razão pura 18
III. A Crítica da razão pura como 'gramática transcendental' 23
2. A gramática transcendental do conhecer e do pensar 26
I. O juízo enquanto unidade do sentido 27
II. Os artífices do objeto do conhecimento e seus produtos 34
A. Sensibilidade e intuições puras e empíricas 34
B. Entendimento e conceitos puros e empíricos 36
C. Imaginação e esquemas puros e empíricos 48
D. Pensamento e conhecimento 59

SEGUNDA PARTE

1. Que é o idealismo transcendental 61


I. Percepção e apercepção: da consciência da representação de si à certeza da existência de
objetos externos 65
II. Idealismo empírico e realismo transcendental versus idealismo transcendental e realismo
empírico 67
III. O fenômeno como mera representação: a interpretação convencional do idealismo
transcendental 70
IV. A distinção transcendental e empírica entre aparência (fenômeno) e realidade (coisa em
si): a interpretação corrigida do idealismo transcendental 74
2. Como Kant chega ao idealismo transcendental 79
I . O contexto da descoberta: (a fase ''pré-crítica'') 79
A. Espaço e tempo como entes extensos: a posição de Newton
B. Espaço e tempo como ordenação das relações entre as coisas: a posição de Leibniz 84
C. A posição newtoniana de Kant acerca do espaço absoluto no texto das
contrapartidas incongruentes: a primeira refutação da posição de Leibniz 87
II. O contexto da justificação: (a fase ''crítica'') 90
A. Espaço e tempo como formas puras da intuição sensível 90
B. A ''prova direta'' do idealismo transcendental: as exposições 'metafísica' e
'transcendental' dos conceitos de espaço e tempo na Estética Transcendental 94
1. Sobre o caráter a priori do espaço e do tempo 97
a. O argumento da pressuposição 98
b. O argumento da necessidade 99
2. Sobre o caráter intuitivo do espaço e do tempo 101
a. O argumento do caráter singular 102
b. O argumento do caráter omnicompreensivo 104
c. Como podemos conceber o espaço como infinito? 104
d. Como podemos considerar espaço e tempo como dados? 105
3. Sobre o caráter ideal do espaço e do tempo 107
a. A parte ''se'' do argumento 110
b. A parte ''somente se'' do argumento 111

BIBLIOGRAFIA 114

4
APRESENTAÇÃO
O objetivo com o qual estive inicialmente comprometido nesse trabalho foi o de investigar os
pressupostos da doutrina crítica kantiana segundo a ordem das razões, i.e. investigar as razões da
formulação, desenvolvimento, justificação e defesa dos princípios fundamentais em que está
assentado o corpo da doutrina do idealismo transcendental de Kant; em especial, investigar quais os
motivos que levaram Kant a formular sua doutrina da idealidade transcendental das representações
do espaço e do tempo —não se tratando, portanto, de uma investigação histórica de seus conceitos.
Esta investigação deveria limitar-se estritamente à Primeira Crítica e aos trabalhos
próximos a ela, tanto os imediatamente anteriores quanto os imediatamente posteriores: no primeiro
caso, alguns escritos da fase pré-crítica, bem como a Dissertatio, e, no segundo caso, os
Prolegomena.
Através do exame desses textos, minha intenção era localizar os argumentos que Kant
apresenta em favor do caráter intuitivo, a priori e ideal das representações do espaço e do tempo,
sob a luz dos principais comentários. Com este procedimento, no percurso de minha investigação,
eu deveria poder responder, minimamente, as seguintes perguntas:
1. No que consiste a doutrina do espaço e do tempo de Kant?
2. A posição de Kant sobre o estatuto das representações do espaço e do tempo na Dissertatio difere
da sua posição acerca do estatuto dessas na Estética Transcendental?
3. Que significa considerar espaço e tempo como formas puras a priori da intuição sensível?
4. Espaço e tempo são a priori porque são ideais, i.e. a aprioridade destes depende da sua idealidade,
ou, ao contrário, espaço e tempo são ideais porque são a priori, i.e. a idealidade destes depende de
sua aprioridade?
5. Por que espaço e tempo não podem ser propriedades das coisas tais como são em si mesmas?
Em linhas gerais, penso tê-las respondido, especialmente na segunda parte do trabalho, na
qual me ocupo em pormenor desses pontos, com a chamada ''prova direta'' do idealismo
transcendental.
No entanto, minha investigação resulta em algo mais: termino por apresentar uma
interpretação do idealismo transcendental de Kant a partir de uma perspectiva um pouco diferente
da que freqüentemente estamos habituados a ver. A diferença consiste em supor que, subjacente à
doutrina do idealismo transcendental de Kant, tal como ele a desenvolve na KrV, podemos
encontrar uma investigação sobre as condições de possibilidade do sentido na linguagem. Em
outros termos, com base na afirmação de Loparic, em seu artigo Kant e o ceticismo, segundo a qual
o problema de Kant, ao fundamentar a priori a metafísica, consiste em ''estabelecer uma semântica a
priori de proposições sintéticas em geral, tanto a priori como a posteriori'', procuro indicar alguns
fundamentos para uma interpretação da KrV como uma 'Gramática Transcendental', e, com isso,
ver o Idealismo Transcendental de Kant como uma investigação gramatical acerca das condições
de possibilidade do sentido do juízo sintético em geral, ou seja, uma investigação acerca dos limites
do sentido na linguagem. 1
Nessa direção, procuro inicialmente mostrar que é possível, na KrV, ler a palavra 'razão'
como 'linguagem', fundamentando esta interpretação em Hamann, Herder, Cassirer (entre outros), e

1
Os fundamentos dessa interpretação podem ser encontrados, além do artigo de Loparic, no próprio Kant, nos seus
escritos 'pré-críticos', em particular, em 'Untersuchung über die Deutlichkeit der Grundsätze der Natürlichen Theologie
und der Moral (1763)', na 'Kritik der reinen Vernunft (A/B)', nos 'Vorlesungen über die Metaphysik (± 1775)' e nos
'Prolegomena'. A proposta dessa interpretação, porém, é resultado principalmente da influência das leituras dos
trabalhos de Wittgenstein, em especial, do "Tractatus logico-philosophicus" e das "philosophische Untersuchungen" e
do artigo ''Vernunft und Sprache'' do texto Urteilskraft und Vernunft: Kants ursprüngliche Fragenstellung, de Manfred
Riedel.
5
na Lingüística contemporânea, especialmente em Chomsky. A seguir, com o auxílio de
instrumentos da Lingüística contemporânea, procuro justificar o uso que Kant faz na KrV do termo
'razão' como um uso metonímico (pars pro toto); i.e. 'razão' estaria, na KrV, por 'linguagem'1. Com
base nisso, tento mostrar que a razão da qual Kant trata na KrV é uma ''razão lingüística''. 'Razão' é
'linguagem', mas uma ''linguagem de tipo especial''2, uma linguagem conceitual que obedece ao
princípio de contradição.
A partir disso, procuro apresentar elementos que possam fundamentar uma interpretação do
idealismo transcendental como uma Gramática Transcendental, pois, conforme Kant, nas
Vorlesungen über die Metaphysik, ''se nós analisássemos os conceitos transcendentais, isso seria
então uma Gramática Transcendental <transcendentale Grammatik>, que conteria o fundamento
<Grund> da linguagem humana <menschlichen Sprache>'', na qual “a Lógica conteria o uso formal
do entendimento''3, e a Estética, o uso material. Em outros termos, ver o Idealismo Transcendental
de Kant como uma semântica a priori de objetos (conforme Loparic), na qual as categorias (os
conceitos puros do entendimento) dariam as condições formais, e o espaço e o tempo (formas puras
a priori da sensibilidade) dariam as condições materiais para os objetos serem pensados pelo
entendimento. Desse modo, na Estética e na Lógica Transcendental Kant nos apresentaria as
condições universais da possibilidade do sentido de nossos juízos sobre objetos: a Estética
Transcendental, as condições fornecidas pela sensibilidade, e a Lógica Transcendental, as
condições fornecidas pelo entendimento (elementos de uma semântica transcendental, nos termos
de Loparic).
Loparic estabelece em Scientific problem-solving in Kant and Mach três condições de
possibilidade dos juízos sintéticos: uma condição formal, o princípio de contradição, e duas
condições semânticas, a saber: a aplicabilidade de conceitos a objetos e a interpretação sensível das
categorias e das formas lógicas do juízo 4. Eu procuro percorrer essas condições, dando ênfase ao
papel da imaginação e da sua respectiva operação o esquematismo na determinação do sentido
no caso dos juízos sintéticos.
A primeira parte dessa dissertação pode ser lida, portanto, como uma tentativa de
apresentar e desenvolver elementos básicos que possam levar-nos a ver o idealismo transcendental
como uma investigação sobre o sentido na linguagem. Mas eu me limito a isto, ou seja, procuro
apenas mostrar que e não como o idealismo transcendental pode ser interpretado como uma
investigação gramatical sobre as condições de possibilidade do sentido do juízo sintético em geral.
E sob este aspecto meu trabalho se apresenta incompleto, pois no trajeto de minha investigação
indico inúmeros caminhos que não chego a percorrer. Isto equivale a dizer que deixo muitos
pontos a descoberto nesse percurso. Por outro lado, estes mesmos pontos deixam indicado um

1
Riedel, no capítulo intitulado Vernunft und Sprache, denomina o problema sobre a determinação de como a filosofia
se manifesta exteriormente de ''problema esotérico da relação entre razão e linguagem'' <das esoterische Problem des
Verhältnises von Vernunft und Sprache>, p. 44. Para Riedel, há dois tipos de solução para este problema: a solução
lingüística e a racionalista. De acordo com a solução lingüística do problema da relação entre razão e linguagem, a
razão ''é lingüisticamente condicionada; ela se materializa em atos de fala <Sprechakten> e situações de fala
<Sprechsituationen>, que são relativas a uma comunidade lingüística espaço-temporalmente determinada''. Segundo a
solução racionalista, a razão ''excede a todos os atos e situações de fala; sua realização é interlingüística <interlingual>,
ou seja, não necessita de nenhuma comunidade lingüística espaço-temporal. Pela primeira solução se decidiu a crítica
da linguagem e a hermenêutica, enquanto a segunda, de acordo com os melhores aportes à especulação do 'logos' grego,
predomina na moderna filosofia da consciência de Descartes a E. Husserl. Ambas são no sentido dogmático, e de modo
algum poderiam considerar em seu respectivo princípio outras possibilidades teóricas senão: ou a razão fundamenta a
linguagem ou ao contrário aquela fundamenta esta, não existe uma terceira. Embora a solução lingüística relativize o
aspecto da razão e com isso favoreça mais o ceticismo, ela concorda com o postulado fundamental racionalista. Razão e
linguagem se relacionam uma e outra como forma e matéria, fundamento e fundamentado''. Op.cit., pp. 47-48.
2
Cf. Bennett, J. La ''Crítica de la razón pura'' de Kant, I, p. 96.
3
Cf. Kant, I.. Vorlesungen über die Methaphysik, pp. 77-78. Lemos uma posição bastante similar, quando Kant
comenta o trabalho que realizou na dedução das categorias, no § 39, A 118, dos Prolegomena, p. 92.
4
Ver Loparic, Z., Scientific problem-solving in Kant and Mach, pp. 9-10.
6
caminho para a pesquisa futura que deve dar continuidade ao aspecto do trabalho que aqui se
encontra apenas esboçado.
O prosseguimento dessa análise deve verificar se, na determinação do sentido tanto dos
juízos analíticos como dos metafísicos, concorre, além do princípio de contradição (a condição
formal), ao menos uma das duas condições semânticas supracitadas. Em outros termos, a fim de
estabelecer essa hipótese de interpretação em toda a sua extensão, eu deveria ainda verificar se o
sentido dos juízos analíticos (na Analítica) e metafísicos (na Dialética) obedecem às mesmas
condições a que estão submetidos os juízos sintéticos. Caso contrário, será necessário determinar
quais são as condições de possibilidade do sentido a que estão submetidas esses juízos.
Para tanto, além da Analítica Transcendental e da Dialética Transcendental, na KrV, devem
ser examinados pelo menos outros três trabalhos de Kant que parecem fundamentais no tratamento
dos temas com os quais estou ocupado aqui, a saber, as Reflexionen, a Correspondência e a
Controvérsia Kant-Eberhard, além dos comentários. Isso, então, permitirá proceder à apresentação
e ao exame do que Kant chamou, em B 534, a demonstração indireta do idealismo transcendental.1

1
Cf. Paton, nós devemos ter presente que a discussão acerca da idealidade transcendental do espaço e do tempo ''é o
primeiro dos três principais argumentos por meio dos quais Kant procura estabelecer seu idealismo transcendental —os
outros dois sendo a Dedução Transcendental das Categorias e as Antinomias.''. Paton, Kant's Metaphysic of Experience,
I, p. 184.
7
PRIMEIRA PARTE

8
Questão geral: Por que fazer a crítica ao uso puro da razão?
De acordo com a tradição, há inúmeros motivos que levaram Kant a escrever a KrV, dentre eles,
podemos destacar: os quatro problemas cosmológicos; o problema de Hume acerca da
impossibilidade de um princípio universal da causalidade; a controvérsia Leibniz x Newton
(Clarke) acerca do espaço e do tempo ou como relações entre os objetos ou como entes extensos.
Alguns autores defendem a posição —que o próprio Kant menciona várias vezes—,
segundo a qual o que o levou a escrever a KrV, na verdade, tenha sido o problema da causalidade
(ou da indução), posto por Hume. De acordo com essa posição, com a KrV, e com a determinação
da possibilidade dos juízos sintéticos a priori, Kant pretenderia refutar a tese de Hume de que o
princípio de causalidade não passaria de um juízo sintético a posteriori, com fundamento indutivo,
e, portanto, sem validade universal.
Kant formula o problema em torno da possibilidade desse princípio através da pergunta
acerca da possibilidade dos juízos sintéticos a priori —que se encontrariam nos princípios de toda
ciência. Esse modo de formular o problema só foi possível graças à distinção que ele estabeleceu
com nitidez entre dois tipos de juízos, os analíticos e os sintéticos, e as suas correspondentes
modalidades —oriundas de suas fontes—, a saber, o seu caráter a priori (com sede na razão) ou a
posteriori (com sede na experiência).
Na verdade, o que Kant diz pretender resolver, com a KrV, é o problema gerado pelo nosso
mau uso da razão na investigação de problemas que extrapolam os limites da experiência possível.
Pois, em determinados domínios do conhecimento, freqüentemente nos vemos envolvidos por
questões que nos são impostas pela natureza e cujas respostas ultrapassam as nossas possibilidades
racionais. Isso ocorre porque, na tentativa de darmos respostas a essas perguntas, partimos de
princípios empíricos, mas, por meio destes, elevamo-nos cada vez mais acima da própria
experiência, onde esses princípios não têm valor algum.1
Mas o que nos leva, então, a extrapolar por meio da razão os limites da experiência? Para
2
Kant , o que nos leva a isso é a busca por aquele elemento ou princípio que condiciona os objetos da
experiência, i.e. que é deles a sua causa ou condição. Pois nos defrontamos no domínio empírico
com um conjunto de objetos condicionados, e uma vez que um condicionado é dado, a nossa tarefa,
considerando o modo pelo qual operamos com a razão, é perguntar por aquele/aquilo que o
condiciona, e ir em busca dele. De acordo com Kant, esse elemento ou princípio é o
incondicionado.
Ao procedermos assim, mesmo partindo de princípios empíricos, distanciamo-nos tanto que
chegamos através da razão a domínios em que tais princípios não têm nenhum sentido, nenhuma
validade, onde, portanto, nada pode ser verificado. 3
Os filósofos, à época de Kant, estavam ocupados com esse tipo de perguntas. Mas por não
fazerem a distinção necessária dos limites até onde, por meio da razão, era possível ir com a
intenção de conhecer, ao darem respostas a essas perguntas, terminavam caindo no ceticismo ou no
dogmatismo. Tal procedimento transformou a Metafísica num campo de contradições e incertezas.
E foi devido a essa condição em que se encontrava a Metafísica que Kant propôs que se procedesse
a um exame do modo humano de conhecer, delimitando o campo em que pudéssemos operar com a
razão puramente, i.e. sem referência à experiência. Com isso, Kant pretendia livrar a razão de todos

1
Kant, I., Crítica da Razão Pura (Primeira Edição [A]) , tr. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão,
Gulbenkian, Lisboa, 1985., A VII.
2
Kant, I., Crítica da Razão Pura (Segunda Edição [B] ), trad. de Valério Rohden e Udo Moosburger, SP, 1980, B XX.
3
A VIII.

9
os nossos modos incorretos e viciados de pretendermos conhecer o incognoscível. Esta tarefa Kant
chamou de crítica da razão pura.1
Essa crítica da razão pura, para Kant, deve ser uma crítica da capacidade da razão,
considerada de modo geral, no que diz respeito a todos os conhecimentos a que podemos pretender
chegar, por meio dela, a priori. Nela, ele pretende apresentar o domínio em que podemos operar
com a razão, seus limites e objeto, procurando estabelecer, assim, a Metafísica como ciência, e com
isso eliminar todos os erros que pudéssemos cometer operando com a razão fora —para além—
dos limites da experiência2. E esses erros que cometemos, e a condição de freqüentemente nos
encontrarmos em situações judicativas em que colocamos nossa razão em conflito consigo mesma,
é o que Kant vai chamar de antinomias.
Em vez de pretender dar resposta à pergunta acerca da natureza da alma ou acerca do
começo do mundo —ocupação daqueles que seu trabalho quer criticar—, Kant se ocupará na KrV
da razão e do seu uso no pensar puro <reinen Denken>, cujo conhecimento nós devemos encontrar
em nós mesmos. 3
A pergunta essencial que Kant se coloca, portanto, nessa investigação é sobre até que ponto
ele pode pretender conhecer apoditicamente com a razão sem o concurso da experiência, i.e. a
priori. E, para Kant, interessa sobretudo esclarecer não como podemos conhecer com a razão, mas,
sim, o que e até onde podemos conhecer com ela, independentemente da experiência. 4
A sua ocupação primordial, na KrV, será portanto com a razão pura, tarefa essa que, segundo
5
Kant , pertence à Metafísica, que ''outra coisa não é senão o inventário, sistematicamente ordenado,
de tudo o que possuímos pela razão pura''. 6
Para Kant7, a Lógica Geral (Formal), que é aristotélica, encontra-se a seu tempo plenamente
acabada. Ela possui limites claramente determinados, sendo uma ciência que tem a função de expor
e provar —e não de demonstrar— com rigor as regras formais de todo o pensamento, a priori ou a
posteriori8. Para esse fim, conforme Kant 9, a Lógica é e deve ser limitada, abstraindo de todos os
objetos do conhecimento, restringindo-se à mera forma do entendimento enquanto tal10. Mas, no uso
da razão pelo entendimento, a razão11, além de se referir a si mesma, tem de se ocupar também de
objetos.
Para Kant, nós devemos buscar conhecimento através das ciências, mas nelas é sempre
pressuposta uma lógica que as julga. Nesse sentido, conforme Kant, há razão nas ciências; e é essa
parte racional delas que temos de conhecer a priori.
Este conhecimento por meio da razão, por sua vez, pode referir-se ao seu objeto de dois
modos: ou apenas para determinar esse conhecimento e seu conceito, que tem de ser dado de
antemão; ou para torná-lo efetivo. O primeiro tipo de conhecimento por meio da razão é
conhecimento teórico, e o segundo é conhecimento empírico. E, independentemente do conteúdo de

1
A XI-XII.
2
A XII.
3
A XIV.
4
Ibid., loc.cit.
5
A XX.
6
Ibid., loc.cit.
7
B VIII.
8
Ibid., loc.cit.
9
B IX.
10
Ibid, loc.cit..
11
Ibid., loc.cit.

10
tais conhecimentos, a parte pura de ambos, aquela em que determinamos por meio da razão ''o seu
objeto de modo completamente a priori, tem que ser exposta antes sozinha, sem com ela mesclar o
que provém de outras fontes''. E, para Kant, a Matemática 1 e a Física são exemplos de dois
conhecimentos teóricos da razão que determinam seus objetos a priori.
De acordo com Kant, a Metafísica, que é ''um conhecimento especulativo da razão
inteiramente isolado que através de simples conceitos [sem aplicá-los à intuição], se eleva
completamente acima do ensinamento da experiência na qual portanto a razão deve ser aluna de si
mesma''2, até seu tempo não conseguira atingir o estatuto de uma ciência, mesmo lidando com
meros conceitos. Por quê? Porque até então supôs-se que todo nosso conhecimento fosse empírico,
i.e. que ele tivesse ''que se regular pelos objetos; porém todas as tentativas de mediante conceitos
estabelecer algo a priori sobre os mesmos, através do que ampliaria o nosso conhecimento,
fracassaram sob esta pressuposição''.3
Para verificar o verdadeiro progresso da Metafísica, Kant sugere que admitamos que os
objetos tenham que se regular pelo nosso modo de conhecer, ''o que concorda melhor com a
requerida possibilidade de um conhecimento a priori dos objetos que deve estabelecer algo sobre os
mesmos antes de nos serem dados''4. Para tanto, ele propõe que na Metafísica se faça algo
semelhante ao que fez Copérnico na Física, onde, em vez de se conceber os astros como girando em
volta do observador, propôs que se concebesse este se movendo em torno daqueles; i.e. no que
concerne à intuição sensível dos objetos, se ela ''tivesse que se regular pela natureza dos objetos'',
não haveria como sabermos dela algo a priori. Mas se, ao contrário, o objeto, enquanto objeto dos
sentidos, se regulasse ''pela natureza de nossa faculdade de intuição'', esse conhecimento a priori da
Natureza seria possível. 5
Mas isso não basta para Kant, pois, caso pretendamos chegar a conhecimentos, essas
intuições não nos são suficientes, uma vez que necessitamos referi-las, enquanto representações, ''a
algo como objeto'' e determiná-lo através delas. Nesse caso, devemos supor ou que os ''conceitos
através dos quais realizo esta determinação também se regulam pelo objeto'', ou ''que os objetos ou,
o que é o mesmo, a experiência unicamente na qual são conhecidos (como objetos dados), se regula
por esses conceitos'': no primeiro caso, encontramo-nos novamente embaraçados quanto ao modo
como podemos ''saber algo a priori a respeito'' da Natureza; no segundo caso, encontramos uma
saída mais fácil porque a própria experiência é um modo de conhecimento que requer
entendimento, cuja regra tenho que pressupor a priori em mim ainda antes de me serem dados
objetos e que é expressa em conceitos a priori, pelos quais portanto todos os objetos da
experiência têm necessariamente que se regular e com eles concordar. 6
Conforme Kant, no que diz respeito aos objetos, enquanto podem ser pensados
necessariamente por meio da razão, sem que possam ser dados na experiência do mesmo modo que
por meio dela os pensamos, essas tentativas possíveis de pensar os objetos da experiência se

1
Porque ela é totalmente construída pela razão, tanto seus conceitos (que são factícios quanto à matéria e quanto à
forma) quanto seus objetos. Por exemplo: ''O primeiro a demonstrar o triângulo isósceles [gleichschenkligen Triangel]
(...) teve um lampejo, pois achou que não devia rastrear o que via na figura ou o simples conceito da mesma para
através disso aprender suas propriedades, mas que devia produzir (por construção) o que segundo conceitos ele mesmo
introduziu pensando e se representou a priori e que, para saber de modo seguro algo a priori, não precisava acrescentar
nada à coisa a não ser o que resultasse necessariamente daquilo que ele mesmo havia posto nela conforme seu
conceito''. Conforme B XI - XII. A esse respeito, ver Lógica de Jäsche, sobre os conceitos factícios e B 755, na
Anfibologia, sobre a definição.
2
B XIV.
3
Ibid., loc.cit.
4
B XVI.
5
B XVII.
6
B XVII-XVIII.

11
constituirão num ''método transformado da maneira de pensar, a saber, que das coisas conhecemos a
priori só o que nós mesmos colocamos nelas''. 1
Para Kant, se procedermos assim, podemos encaminhar a Metafísica ao desejado caminho
''de uma ciência". Pois é só com essa mudança na nossa maneira de pensar os objetos da experiência
que poderemos dar conta da ''possibilidade de um conhecimento a priori e, mais ainda, dotar de
provas satisfatórias as leis que subjazem a priori à natureza enquanto conjunto dos objetos da
experiência, coisas impossíveis segundo a maneira de proceder adotada'' até então.
De sua análise do estado das ciências bem estabelecidas em sua época (a Física e a
Matemática) e dos problemas que a Metafísica enfrentava, Kant chegou à conclusão de que era
necessário determinar como tarefa da Metafísica o estabelecimento de um corpo de conhecimentos
a priori, que estivessem nos princípios de todas as ciências. Esses princípios deveriam ter validade
universal, certeza apodítica, e serem totalmente a priori, i.e. independente da experiência empírica,
mas não de sua possibilidade. Em outros termos, tais princípios deveriam levar em conta como
objetos são dados na experiência humana finita. E tal tarefa deveria ser realizada no âmbito
exclusivo da razão puramente, i.e. sem a intervenção de qualquer elemento empírico.
Esses princípios, segundo Kant, seriam todos juízos sintéticos a priori. E determiná-los seria
tarefa de uma filosofia transcendental, que deveria levar em conta o modo como os objetos são
dados a uma experiência possível. Mas para Kant não basta, por meio da investigação
transcendental, descobrir aquilo que no entendimento podemos realizar meramente pelo seu uso
empírico, mesmo que tal saber acerca do uso do entendimento nos permita progredir em nosso
conhecimento. O fim principal da investigação transcendental tem de ser o de ''determinar para si
mesma os limites do seu uso e saber o que pode situar-se dentro ou fora de sua esfera total''. Caso
contrário, nós, de posse apenas do conhecimento sobre o funcionamento do entendimento em
relação ao seu uso empírico, estaríamos sempre a mercê de ultrapassarmos seus limites (os limites
da experiência possível) sem que o soubéssemos. Pois é necessário que tenhamos sempre presente a
regra que diz que só podemos fazer uso a priori dos princípios do entendimento ''ou de todos os
seus conceitos um uso empírico e jamais um uso transcendental''. 2
Para tanto, Kant diz ser necessário depurar a razão de modos viciados e incorretos de
conhecermos para além dos limites da experiência possível, domínio este no qual nada nos pode ser
dado a conhecimento, e portanto onde nenhum princípio que valha para a experiência tenha sentido.
Este procedimento comum até então à Metafísica, de ir por meio da razão pura para domínios que
ultrapassam seus limites, i.e. os limites humanos de conhecer, é o objeto da KrV de Kant.
A questão capital, portanto, que orientará sua investigação, i.e. aquilo que, ao ser
determinado enquanto possível, configurará todo o processo, será a determinação da possibilidade
dos juízos sintéticos a priori. Pois os limites da possibilidade destes coincide com os limites até
onde podemos ir com a razão puramente sem o concurso da experiência na intenção de conhecer.
Para esse fim, Kant nos convida então a investigar com a KrV a possibilidade dos juízos
sintéticos a priori, e com esta a determinação dos limites e objeto da razão pura, dos quais deve se
ocupar a Metafísica. E ao estabelecer a possibilidade de tais princípios, e com eles os limites do
conhecimento puro, Kant estaria também colocando a Metafísica em seu estado maduro ao lado das
demais ciências.
Retomando: Por que fazer a crítica ao uso puro da razão para além da experiência? Uma
crítica da razão pura seria uma crítica a todo o uso da razão para além das condições de
possibilidade da experiência; i.e. uma crítica ao uso dos conceitos puros do entendimento para
objetos que não podem ser dados —não podem ocorrer— na série empírica presente nem futura.
Esse uso não empírico dos conceitos puros do entendimento em juízos transcendentais —que Kant

1
B XVIII. Ver B XIX.
2
B 297.

12
condena já na Introdução à KrV— é um uso transcendente, e contraria toda a finalidade destes
conceitos, que devem ser apenas para uso empírico, que Kant chama de imanente. 1
Disso, Kant conclui que só o uso empírico de conceitos do entendimento pode ocorrer,
porque, dado um conceito do pensamento em geral, é necessário: (i) que se apresente a sua forma
lógica e (ii) que ele possa vir a se referir a um objeto; i.e. tem de ser possível aplicarmos esse
conceito a um objeto qualquer no domínio da experiência possível. Pois, sem ''esse objeto, o
conceito não possui nenhum sentido <Sinn> e é inteiramente vazio de conteúdo <Inhalt>''2, mesmo
que por meio dele realizemos a função lógica de converter determinados dados em um conceito.
Mas, conforme Kant, somente na intuição um objeto pode ser dado a um conceito. E sendo a
intuição pura a simples forma da intuição empírica (i.e. dos objetos segundo o modo pelo qual nos
são dados, a saber, enquanto fenômenos), ela é possível a priori antes do objeto, mas só podemos
obtê-lo, ''por conseguinte [, a sua] validez objetiva, mediante a intuição empírica''. 3
Para Kant, portanto, todos os conceitos e princípios do entendimento, mesmo que sejam
também possíveis a priori, têm de se referir a intuições empíricas, enquanto dados de uma
experiência possível. Caso contrário não são objetivamente válidos, reduzindo-se a mero jogo de
representações, seja da imaginação seja do entendimento.
Conforme Kant, na Matemática produzimos princípios e representações de objetos
''inteiramente a priori na mente <Gemüt>'', os quais ''não significariam absolutamente nada se não
pudéssemos sempre mostrar a sua significação <Bedeutung> nos fenômenos (objetos empíricos)''.
Para Kant, é necessário que se torne ''sensível um conceito abstrato'', mostrando ''na intuição o
objeto correspondente a ele''. Caso contrário, o conceito ''permaneceria (como se diz) privado de
sentido <Sinn>, isto é, de significação <Bedeutung>''.4
Para Kant, na Matemática, ao construirmos suas figuras, que são fenômenos presentes nos
sentidos (não obstante serem construídas de modo a priori), damos conta da exigência de ''tornar
sensível um conceito abstrato''. E mesmo que os conceitos, bem como todos os princípios sintéticos
e fórmulas produzidas por meio deles, sejam sempre produzidos a priori, o seu uso, porém, assim
como ''a sua relação com eventuais objetos não podem, enfim, ser procurados em nenhum outro
lugar a não ser na experiência, cuja possibilidade (segundo a forma) aqueles conceitos contêm a
priori''.5
De acordo com Kant, o mesmo ocorre com todas as categorias e também com os princípios
que delas são derivados, i.e. mesmo constituídas inteiramente a priori, e sendo portanto abstratas,

1
B 352-353. Ver também B 365, 383. Cf Kant, B 352-353, a sua tarefa na Dialética Transcendental não consiste em
tratar da ilusão empírica [...], que se encontra no uso empírico de regras, aliás, justas do entendimento, e pela qual a
capacidade de juízo é desviada pela influência da imaginação, e sim tratar unicamente da ilusão transcendental, que
influi sobre princípios cujo uso jamais se apóia na experiência [...] mas, contra todas as advertências da Crítica, conduz-
nos inteiramente para além do uso empírico das categorias e entretém-nos com a fantasmagoria de uma ampliação do
entendimento puro. Queremos denominar imanentes os princípios cuja aplicação se mantém completamente nos limites
de uma experiência possível; transcendentes, porém, aqueles princípios que devem sobrepassar tais limites. Por estes
não entendo o uso ou abuso transcendental das categorias que é um simples erro da capacidade de julgar que não é
refreada convenientemente pela crítica e que não presta suficientemente atenção aos únicos limites de terreno em que é
permitido o jogo do entendimento puro; mas entendo por eles princípios efetivos que nos impelem a derrubar aquelas
barreiras a atrever-se a um terreno completamente novo que em geral não conhece nenhuma demarcação. Por isso
transcendental e transcendente não são idênticos. Os princípios do entendimento puro [...] devem ser de uso meramente
empírico e não de uso transcendental, i.e. que ultrapasse os limites da experiência. Um princípio, porém, que elimina
esses limites, antes, ordene ultrapassá-los, denomina-se transcendente. Se a nossa crítica pode chegar ao ponto de
descobrir a ilusão destes pretensos princípios, então aqueles princípios do uso meramente empírico poderão denominar-
se, em oposição aos últimos, princípios imanentes do entendimento puro.'' Ver também B 593-4.
2
Ibid., loc.cit..
3
Ibid., loc.cit.
4
B 299.
5
Ibid., loc.cit.
13
tem de ser possível torná-las sensíveis, apresentando para elas um objeto ao qual se apliquem, caso
contrário, não têm sentido algum. Porque, segundo Kant,
[n]ão podemos definir de modo real <real> nenhuma categoria, i.e. tornar compreensível a
possibilidade de seu objeto sem descer imediatamente às condições da sensibilidade, por
conseguinte à forma dos fenômenos, aos quais, como seus únicos objetos, elas devem
conseqüentemente limitar-se; porque se esta condição é eliminada, desaparece toda
significação <Bedeutung>, i.e. a relação <Beziehung> com o objeto, e mediante nenhum
exemplo podemos compreender que espécie de coisa é propriamente entendida com tais
conceitos.1

1. Esboço de uma fundamentação para uma leitura da Crítica da razão pura como uma
'Gramática Transcendental'
Como vimos, Kant pretende com a KrV fazer uma 'crítica ao uso puro da razão para além da
experiência'. Mas, ao falar assim, o que Kant entende por 'razão'? Qual o significado desta palavra
no texto da KrV ? Na verdade, se quisermos entender o intento de Kant, o primeiro passo deve ser
dado na direção do esclarecimento do que parece ser o ponto fundamental da sua trama conceitual,
a saber, o conceito de 'razão'. Por quê? Principalmente, porque Kant não inicia sua exposição, na
KrV, dizendo o que ele entende por 'razão'; e, além disso, ao longo da KrV, não apresenta um uso
unívoco desta palavra, utilizando-a, muitas vezes, no lugar de outras —dentre essas, 'entendimento',
'pensamento' e 'linguagem'—, parecendo assim equivocar-se quanto ao significado dessas palavras.
Desse modo, o uso da palavra 'razão', na KrV, parece substituir o de outras palavras, cujos
significados são tratados, por meio desse uso, indiretamente.
Mas por que Kant assim o faz? Por que ele teria se descuidado de um aspecto tão
importante e polêmico de seu trabalho? Sugiro três hipóteses: ou (i) Kant realmente equivocou-se
quanto ao significado da palavra 'razão', tendo sido vítima de uma falta de precisão de seu
vocabulário; ou (ii) não havia necessidade de apresentar um conceito de 'razão', uma vez que seu
trabalho se encontrava ''colado'' a um contexto de discussão, no qual a palavra 'razão' era um
elemento do instrumental lingüístico vigente, cujo significado se encontrava muito bem assentado;
ou (iii) Kant tinha a intenção mesma de fazê-lo assim, valendo-se da especificidade do significado
da palavra 'razão', com o fim de, primeiro, elevar a sua argumentação a todo o domínio de
atividades humanas ao qual fosse aplicável o conjunto dos conceitos que ele enunciava em sua
doutrina, i.e. a todas as atividades humanas ditas racionais; e, segundo, com isso, obter uma
economia de palavras e de equívocos.
As suposições (ii) e (iii) parecem estar mais de acordo com o que se esperaria do trabalho
de Kant. Com a exposição que seguirá, pretendo desenvolver a hipótese de que Kant se vale de um
''princípio de economia lingüística'' ao utilizar a palavra 'razão' na KrV, i.e. 'razão' estaria por uma
formulação mais complexa, a saber: 'linguagem simbólica de tipo especial, que opera por meio de
conceitos2, segundo uma regra estrita, o princípio de contradição'.
Para demonstrar essa hipótese, primeiro, apresento uma breve reconstrução histórica do
contexto de discussão, à época de Kant, acerca do significado da palavra 'razão', do qual extraio a

1
B 300-2.
2
Apoio esta formulação na posição de Bennett acerca da 'linguagem humana como uma linguagem de tipo especial que
opera por meio de conceitos'. Bennett, em seu comentário à KrV, trata conceitos como 'capacidades e não como 'estados
mentais', uma vez que se diz que alguém possui um conceito quando é capaz de usá-lo; pois, alguém usa um conceito, e
os seus coligados, ''corretamente, i.e. de acordo como as normas que aceitam a maioria dos falantes não analfabetos'' de
uma língua em questão, quando ''entende estas palavras ou sabe o que significam''. Pois, para Bennett, a ''capacidade de
um homem para usar corretamente uma palavra, não só sugere, senão que prova que tem o conceito correspondente''.
Bennett, J. La ''Crítica da razón pura'' de Kant: 1. A Analítica (Kant's Analytic; Cambridge University Press, 1966); tr.
A. Montesinos, Alianza editorial, Madrid, 1979, p. 96.
14
afirmação de que 'razão é linguagem'; a seguir, desenvolvo duas provas: uma intrínseca e outra
extrínseca; a primeira se encontra na própria KrV, e sustenta que Kant se vale de um recurso
sintático-semântico na utilização da palavra 'razão'; e a segunda consiste em conceber a KrV como
uma 'gramática transcendental', que se ocuparia com estabelecer as condições de possibilidade do
sentido do juízo em geral. Essa prova —que se apoia no depoimento explícito de Kant acerca de
como poderíamos interpretar o que fez na KrV como uma gramática transcendental— se encontra
em dois outros trabalhos seus: um anterior e outro posterior à KrV, a saber, nas Vorlesungen über
die Metaphysik e nos Prolegomena.
Em termos mais precisos, pretendo, primeiro, justificar gramaticalmente a utilização que
Kant faz da palavra 'razão', em lugar dos seus ''afins'', freqüente na KrV, a partir da suposição de
que ele partiu de uma ''regra sintático-semântica'' de seleção lexical de elaboração frasal, a saber, a
metonímia, a qual pretendo explicitar. Esse recurso sintático-semântico, uma vez analisado, se
mostrará o mais acertado, no que diz respeito à clareza da sua exposição, na eliminação de um
possível desvio de objetivos, e, principalmente, porque assegura o caráter universal dos seus
resultados, para os fins a que se dirige. Esta análise, por sua vez, deverá preparar o caminho para
que possamos a seguir mostrar, segundo Kant —ao contrário do que alguns seguidores e
opositores contemporâneos seus afirmaram— que é possível ler a KrV enquanto uma investigação
acerca do uso da linguagem na e para além da experiência, i.e. acerca do uso tanto empírico quanto
puro da linguagem.

I . O uso da palavra 'razão' na Crítica da razão pura


No final do século XVIII, Kant foi ostensivamente acusado por autores contemporâneos seus, como
Hamann (em Metacrítica sobre o Purismo da Razão, de 1784), e Herder (em Abhandlung über den
Ursprung der Sprache, de 1772, e em Verstand und Erfahrung: Eine Metakritik sur Kritik der
reinen Vernunft, de 1799), de não ter reservado um lugar para o tratamento da linguagem em sua
doutrina crítica —mais especificamente, na Primeira Edição da KrV1. Com eles iniciou-se a reação à
chamada 'visão racionalista da linguagem'. Seus trabalhos introduziram os pressupostos do que se
denominou posteriormente a 'filosofia não-analítica da linguagem do romantismo alemão'2,
desenvolvida e aprofundada mais seriamente por Wilhelm von Humboldt (em especial, no seu Über
die Vershiedenheit des Menschlichen Sprachbaues, de 1836).
Dadas as nossas limitações, bem como as de nossa investigação, é impossível desenvolver
aqui, minimamente, os pormenores da discussão envolvida nesses trabalhos, cuja retomada das
idéias centrais impulsionou fortemente os estudos lingüísticos, bem como a própria filosofia da
linguagem, no início de nosso século 3. Proceder a semelhante tarefa fugiria completamente ao
caráter de nossos propósitos. No entanto, é necessário que, ao menos, procuremos situar a KrV no
contexto geral dessa discussão, a fim de determinarmos, tanto quanto possível, o conceito de
'razão' e de 'linguagem' vigente na época, e que, isso sim, interessa à nossa investigação, sobretudo
no que diz respeito ao fato de terem sido, muitas vezes, concebidos como termos sinônimos.
Ao examinarmos, com alguma atenção, o contexto dessa discussão, vemos que,
progressivamente, a palavra 'razão' foi sendo sobrepujada pela palavra 'linguagem'; e, mais que as

1
De acordo com Riedel, ''que o autor da 'Crítica da razão pura' não esclareceu esse problema, sim, passou por alto
calado, esta é uma das principais objeções <Haupteinwände>, que já tinham sido feitas a ele pelos seus primeiros
leitores. A crítica da razão de Kant, conforme o argumento de Herder, que se assemelha também ao de Hamann e
Jacob, que não procede de maneira suficientemente crítica, transcende a linguagem que nós falamos e com isso a
condição fundamental <Grundbedingung> da possibilidade da experiência, que o verdadeiro filósofo crítico tem de
investigar''. Riedel, M., Vernunft und Sprache, Grundmodell der transzendentalen Grammatik in Kants Lehre vom
Kategoriengebrauch (pp. 44-61), in: Urteilskraft und Vernunft, Kants ursprüngliche Fragenstellung, Suhrkamp Verlag
Frankfurt am Main, 1989, p. 45.
2
Cf. Chomsky, N. Linguagem e pensamento (Language and Mind), tr. Francisco M. Guimarães, Vozes, RJ, 1971.
3
Ver Chomsky: Lingüística Cartesiana, Linguagem e Pensamento, Sintatic Structures, Aspects of Sintax Theory.
15
palavras, podemos dizer que houve uma subsunção mesmo da própria noção de uma à da outra.
Por conseguinte, passou-se a reconhecer entre ambas uma relação de dependência, cuja ênfase era
dada na direção de uma subordinação da razão à linguagem como a sua verdadeira fonte 1.
Esse modo de encarar o problema acerca da relação entre razão e linguagem, e do estatuto
de ambas com respeito ao conhecimento humano servia bastante bem aos propósitos emergentes
do movimento romântico alemão —como veremos adiante—, que se enraizava no alargamento e
aprofundamento do conceito de 'subjetividade', que se encontrava, naquele momento, em
progressiva elaboração pela filosofia moderna.
Conforme Cassirer, o novo modo de conceber as 'atividades do espírito', i.e. o surgimento
de ''uma nova concepção verdadeiramente universal da espontaneidade do espírito'', trouxe
consigo, por assim dizer, um ''novo momento constitutivo da atividade da linguagem''. A
linguagem passa a ser vista não mais meramente como ''o signo e o delegado de uma
representação, mas também [como] o signo emocional do afeto e da pulsão sensível'' 2.
Em linhas gerais, o traço comum da posição desses autores, segundo Chomsky, era a
importância concedida ao ''aspecto criador do uso da linguagem, como característica essencial e
definidora da linguagem humana''3. Essa concepção da linguagem, por sua vez, derivava em
grande parte do desenvolvimento das posições fundamentais da chamada ''lingüística cartesiana''.
De acordo com Chomsky, Descartes4 atribuía a diferença entre o homem, o animal e um autômato
à natureza criadora da linguagem humana. Para Descartes, o uso da linguagem por parte dos
animais e por parte dos autômatos poderia ser explicado em termos meramente mecânicos, i.e.
como manifestações de impulsos e estímulos 5, mas o uso humano não6.
Segundo, ainda, Chomsky, a chamada concepção cartesiana da linguagem humana —
expressa tanto por Descartes, como por seus seguidores e opositores— consistia na admissão de
que, ''em seu uso normal, a linguagem humana é livre de controle de estímulos e não serve a uma
função meramente comunicativa, mas é antes um instrumento para a livre expressão do
pensamento e para a resposta apropriada às novas situações'' 7. (Considerada de um modo geral, era
essa a posição compartilhada em grande medida pelos seguidores do movimento romântico
alemão, dentre eles, Hamann, Herder, Humboldt, Schlegel) 8.

1
Cf. Cassirer, E., Antropologia Filosófica, trad. por Eugenio Ímaz, Fundo de Cultura Econômica, México, 1992, p. 48.
2
Cassirer, E. La philosophie des formes simboliques, 1. le langage; tr., de l'allemand Philosophie der symbolischen
Formen, par Ole Hansen-love et Jean Lacoste, Éditions de Minuit, Paris, 1972, p. 94.
3
Chomsky, N. Lingüística Cartesiana (Cartesian Linguistics, 1966), trad. de Francisco M. Guimarães, Vozes e Edusp,
1972, RJ, p. 30.
4
Ver Descartes, R., Discurso do Método, in: Obra Escolhida, tr. De Gilles-Gaston Granger, Difusão Européia do Livro,
SP, 1973, Parte V.
5
Cf. Bennett, ''A classe das linguagens possíveis se divide naqueles cujo uso consiste, e aqueles cujo uso não consiste,
unicamente em um padrão de respostas a estímulos sensoriais.'' Bennett, p. 112. Bennett trata com profundidade desse
assunto em Racionality (Londres, 1964, §§ 9-11).
6
Chomsky, Lingüística Cartesiana, pp. 13-23. Cf. Chomsky, ''O papel decisivo da linguagem no argumento de
Descartes é ressaltado ainda mais claramente em sua correspondência subseqüente. Em sua carta ao marquês de
Newcastle (1646), afirma que ''não há nenhuma de nossas ações externas que assegure aos que as examinam que nosso
corpo seja algo mais do que uma máquina que se move a si mesma, mas que tem em si também um espírito que pensa,
exceto as palavras ou outros sinais efetuados com relação a quaisquer objetos que se apresentam, sem referência a
alguma paixão''. Esta condição final é acrescentada para excluir ''os gritos de alegria, de dor e coisas semelhantes'',
assim como ''tudo aquilo que pode ser ensinado a algum animal pela arte''.''. Segundo Chomsky, para Descartes ''não
existe homem algum tão imperfeito que não use a linguagem para exprimir seus pensamentos e ''nenhum animal tão
perfeito que tenha feito uso de um sinal para informar os [sic.] outros animais sobre alguma coisa que não tenha relação
com suas paixões''...''. Chomsky, ibid., p. 15. A esse respeito, Chomsky comenta, em outro trabalho, o seguinte:
''segundo Descartes observou muito corretamente, a linguagem é um bem particular da espécie humana e mesmo em
níveis baixos de inteligência, em níveis patológicos, encontramos um domínio da linguagem totalmente inatingível por
uma macaco, o qual pode, em outros aspectos, sobrepujar um imbecil humano em capacidade de resolver problemas e
outros comportamentos adaptativos.''. Chomsky, Linguagem e Pensamento, p. 23.
7
Chomsky, Lingüística Cartesiana, p. 23.
8
Cf. Cassirer e Chomsky.
16
Os trabalhos de Hamann —um dos protagonistas dessa nova perspectiva acerca da
linguagem, e um dos iniciadores, portanto, da reação à concepção racionalista da linguagem—,
assim como os de Herder —que, inicialmente foi, além de aluno, seguidor de Kant—, têm por
alvo, fundamentalmente, as posições que Kant desenvolve na KrV.
Porém, ao lermos com atenção alguns de seus textos em que tratam de apresentar suas
posições acerca da origem e importância da linguagem, criticando o sistema e os conceitos
formulados por Kant, na KrV, vemos claramente que ambos demonstram não ter compreendido o
que estão a criticar: pois suas críticas às posições de Kant podem ser consideradas, sem dúvida,
além de mal formuladas, equívocas.
Todavia, fica claro que a notoriedade de seus trabalhos não marcou época pelos equívocos
em relação à doutrina crítica de Kant, mas pelo modo assistemático —sob a forma de ensaios—
com que formularam os pressupostos da nova perspectiva acerca do caráter criativo da linguagem.
Nesse sentido, as considerações que eles tecem serão, em inúmeros aspectos, de inestimável
importância para os desenvolvimentos futuros da pesquisa no campo da filosofia da linguagem,
bem como da lingüística.
Posteriormente, a partir do desenvolvimento das idéias contidas em germe na obra desses
dois autores, bem como da releitura séria da doutrina crítica de Kant, Humboldt irá construir os
fundamentos sólidos da nova visão acerca da função da linguagem nos processos cognitivos, ao
incluir, na descrição das línguas particulares, elementos culturais. Conforme Chomsky, para
Humboldt, '' uma língua humana, como totalidade organizada, interpõe-se entre o homem e 'a
1
natureza interna e externa que atua sobre ele' ''. Pois, mesmo que ''as línguas tenham propriedades
universais, atribuíveis à mentalidade humana enquanto tal, cada língua oferece um 'mundo de
pensamento' e um ponto de vista de tipo único. Ao atribuir este papel na determinação dos
processos mentais às línguas individuais, Humboldt separa-se radicalmente do quadro da
lingüística cartesiana, evidentemente, e adota um ponto de vista que é mais tipicamente
romântico''. Mas ao considerar a ''linguagem primordialmente como meio de pensamento e auto-
expressão mais do que como um sistema funcional de comunicação de tipo animal'', pois, para ele,
''o homem 'cerca-se de um mundo de sons para captar e elaborar em si mesmo o mundo dos
objetos'2'', Humboldt permanece dentro dos pressupostos gerais da lingüística cartesiana. De
acordo com Cassirer, para Humboldt,'' 'o que distingue as línguas, não são os sons e os signos, mas
as próprias visões do mundo.'3 É aí que se encontra em Humboldt, o fundamento objetivo último
de toda a pesquisa sobre a linguagem.''4.
Por outro lado, as considerações sobre razão e linguagem, tanto de Hamann como de
Herder, mesmo equívocas no que dizem respeito às suas interpretações ''críticas'' aos elementos da
doutrina crítica de Kant, interessam, sob inúmeros aspectos, aos propósitos de nossa investigação.
Porque algumas de suas formulações, tanto acerca da razão como da linguagem —mesmo contra a
pretensão desses autores—, podem ser utilizadas em nossa tentativa de mostrar que Kant, na KrV,
tinha claramente a intenção de fazer uma crítica ao uso da linguagem, principalmente, como
veremos, porque o objeto de sua crítica era o campo da formulação e da aplicação dos juízos da
Metafísica. Mas, se Kant tinha essa intenção, por que, em vez de falar em razão, não falou de
linguagem? Vejamos o que segue.

1
''[...] die innerlich und äusserlich auf ihn einwirkende Natur''. Humboldt, W., Über die Vershiedenheit des
Menschlichen Sprachbaues (1836), p.74., apud Chomsky, N., Lingüística Cartesiana, p. 31.
2
''[...] umgiebt sich mit einer Welt von Lauten, um die Welt von Gegenständen in sich aufzunehmen und zu bearbeiten''.
Humboldt, W., 1836, p. 70, apud Chomsky, N., ibid., p.31. Conforme Chomsky, esta posição é compartilhada por
Schlegel, em seu livro Kunstlehre, ao dizer que não ''podemos traçar analogias entre a função intelectual humana e a
animal. Os animais vivem num mundo de ''situações'' <Zustände>, não de ''objetos'' <Gegenstände> no sentido
humano...''. Schlegel, A.W. apud Chomsky, N., ibid., p. 29.
3
Humboldt, W., 1836, apud Cassirer, E., La philosophie des Formes Simboliques, p. 106-107.
4
Cassirer, ibid., p. 106-107.

17
II. 'Razão' como 'linguagem': uma interpretação gramatical acerca do uso da palavra 'razão'
na Crítica da razão pura
De acordo com Cassirer 1, a tradição identificou seguidamente a linguagem com a razão ''ou com a
verdadeira fonte da razão'', e pelo fato de possuir a linguagem o homem foi considerado um animal
racional. Conforme Cassirer, tal definição, porém, não permite com que vejamos todo o campo
recoberto pela linguagem. Por quê? Porque, sob essa perspectiva, deixa-se de ver uma diferenciação
importante, uma vez que o domínio da linguagem abrange também a esfera da linguagem racional, e
não apenas esta.
Conforme Cassirer, considerar a linguagem como razão é ter uma visão restrita da
linguagem, uma vez que, vista desse modo, ''uma parte se toma pelo todo: pars pro toto''2.
Enquanto meio objetivo de manifestação de estados subjetivos, toda a linguagem é constituída por
signos (sinais) sonoros, gráficos, gestuais, etc.. A linguagem dos animais —ou, ainda, formas mais
primitivas de linguagem— limita-se às manifestações emotivas3. E, nesse caso, o signo é imanente
àquilo do que ele é signo, ou seja, não há outra instância. Em outros termos, o signo está direta e
univocamente vinculado àquilo que ele sinaliza.
Consideremos isso de uma outra maneira. A linguagem, tal como a temos descrito, pode
ser considerada como um meio de representação, i.e. como algo que está por algo diferente dela. E
nesse sentido, mesmo uma linguagem primitiva, que se dá meramente por signos (sinais), é uma
linguagem representacional. Porque um signo qualquer, emitido como manifestação exterior de um
estado interior, é um algo que está por um algo diferente dele. Porém, nesse nível de linguagem, o
signo nunca ultrapassa o limite da referência, que é sempre imediata, seja interior seja exterior, i.e.
o signo nunca é signo de outro signo. Em outros termos, não há aqui ainda aquilo que chamamos
sentido.
O passo decisivo dado na direção de utilizar o signo não mais meramente como
representando algo físico ou subjetivo, i.e. um objeto exterior ou um estado emotivo, mas também
como representando outro signo, permitiu ao homem passar de uma linguagem ''sinalizante'' para
uma linguagem ''simbolizante''. É por meio desse uso da linguagem que o homem passa a poder
''descolar-se'' do real, reconstruindo o mundo dos objetos na ausência destes, simbolicamente 4.
Através desse uso da linguagem, o homem passa a elaborar abstratamente o mundo presente e o
vivido. O homem passa a poder enunciar o passado e a pré-enunciar seu futuro5. Este uso da
linguagem instaura o sentido no universo humano. De acordo com Kemp Smith, a passagem de

1
Cassirer, Antropologia Filosófica, p. 48.
2
Ibid., loc.cit.
3
Ver Herder, J.G., Abhandlung über den Ursprung der Sprache, in: Sprachphilosophische Schriften, von Erich Heitel,
Verlag von Felix Meiner, Hamburg, 1960, p. 3.
4
Bennett concorda com Kant quanto ao fato de ''que as criaturas que carecem de linguagem carecem de conceitos, ainda
que não pelo que parece ser sua razão, i.e. que as criaturas que carecem de linguagem não podem efetuar juízos''. Para
Bennett, ''uma criatura não pode ter conceitos salvo que sua linguagem seja de um tipo especial. Se a conduta lingüística
de alguém consiste unicamente em aplicar palavras aos fragmentos do mundo que se lhe apresentam, de maneira que
nunca faz afirmações gerais e portanto não dá razões para o que diz, que questões poderiam formular-se utilmente sobre
seus conceitos? [...] Uma linguagem que não contenha [aplicação para seus conceitos] seria unicamente um padrão de
respostas lingüísticas a estímulos sensoriais...''. Bennett, p. 110.
5
Cf. Bennett, ''as linguagens humanas têm meios para fazer ao menos dois tipos de enunciado ...: enunciados gerais, e
enunciados sobre o passado. Estes não têm que ser respostas a, ou operações sobre, contextos em que se formulam.
Mais ainda, expressam juízos que não podem expressar-se, salvo em uma linguagem. Existe um sentido natural, ainda
que débil, de 'expressar' no qual é verdadeiro que muitos tipos de juízo podem expressar-se mediante uma conduta não
lingüística; mas os juízos gerais e no tempo passado não se encontram entre eles. [...] Sem uma linguagem, não existe
nenhum modo de expressar juízos sobre o passado sem expressar ao mesmo tempo juízos gerais, ou de expressar juízos
gerais sem expressar ao mesmo tempo juízos sobre o passado.''. Bennett, p. 113.
18
um estágio a outro estabelece a diferença entre a inteligência animal e a inteligência humana, ou
seja, entre o mero uso do signo para a consciência do uso do signo como signo 1, pois conforme
Kemp Smith, ''nenhum animal mostrou conclusivamente ser capaz de apreender um signo como
um signo''. E se ''os animais são isentos de toda consciência de significado, a eles tem de ser
negado também qualquer coisa análoga ao que nós podemos significar pelo termo consciência'' 2.
Para Cassirer, o que caracteriza verdadeiramente a diferença entre a linguagem animal e a
humana é o fato do homem ter ultrapassado o limite do uso emotivo da linguagem. Para ele, é a
natureza simbólica da linguagem humana que a distingue da linguagem animal 3. E essa
característica simbólica da linguagem humana é o que vai estruturar todas as atividades humanas
em todos os domínios, sejam lingüísticos ou não. Por isso, podermos designar o universo humano
como simbólico, e mais, ''no lugar de definir o homem como um animal racional'', Cassirer propõe
que se defina o homem, não essencialmente, mas apenas funcionalmente 4, ''como um animal
simbólico''5.
Esse modo de definir, funcionalmente, o homem a partir da natureza da sua linguagem nos
encaminha, pela primeira vez até aqui, para uma resposta plausível à pergunta acerca do que é
razão. Nesse momento da exposição, é-nos possível, portanto, dar uma definição provisória da
palavra 'razão' como o nome que designa, em geral, o 'conjunto das operações simbólicas
humanas'. Reservemos esta definição para a retomarmos a seguir.
Se considerarmos a linguagem, de uma maneira abrangente, tal como Schlegel a define em
Briefe über Poesie, Silbenmaß und Sprach, como ''tudo aquilo pelo qual o interior se manifesta no
exterior''6, devemos, pois, distinguir, dentro do domínio total da linguagem, pelo menos duas
esferas, a saber: a esfera das manifestações emotivas e a esfera das manifestações não-emotivas,
portanto, racionais. Sob esta perspectiva, conforme Cassirer, a razão se mostra como ''um termo
verdadeiramente inadequado para abarcar as formas da vida cultural humana em toda sua riqueza e
diversidade''7, pois, basta observarmos o conjunto das atividades humanas, para vermos que, ''junto
à linguagem conceitual temos uma linguagem emotiva; junto à linguagem lógica ou científica, a
linguagem de uma imaginação poética''8. E, nesse sentido, a linguagem, enquanto um meio de
exteriorização, parece subsumir a razão, que se manifesta também por meio da linguagem.
Em um trecho de uma carta a Jacobi, de 6 de agosto de 1784, Hamann escreve o seguinte:
''a Razão é Linguagem, Logos. Eu não paro de roer este osso tão rico de substância e eu o roerei

1
Bennett defende a posição de que a diferença entre aqueles que podem efetuar juízos no passado e juízos gerais e
aqueles que não podem fazê-lo ''justifica a comum convicção de que existe uma diferença importante de classe entre as
capacidades intelectuais humanas e não humanas; [e esta diferença] está conectada com a noção de autoconsciência de
tal modo que justifica inteiramente a atenção exclusiva de Kant ao tipo de capacidade intelectual que inclui uma
capacidade para efetuar juízos sobre o passado e juízos gerais.''. Bennett, op. cit., p. 114.
2
Kemp Smith, Commentary to Kant's 'Critique of Pure Reason', London, 1918, p. XLIX.
3
Cf. Cassirer, é necessário ''distinguir cuidadosamente entre signos e símbolos. Parece um fato comprovado que se dá
um complexo sistema de signos e sinais na conduta animal, e até podemos dizer que alguns animais, especialmente os
domesticados, são extremamente suscetíveis a eles. [...] Mas há uma distância imensa destes fenômenos à inteligência
da linguagem simbólica e humana..., os símbolos, no sentido próprio desta palavra, não podem ser reduzidos a meros
sinais. Sinais e símbolos correspondem a dois universos diferentes do discurso: um sinal é uma parte do mundo físico
do ser; um símbolo é uma parte do mundo humano do sentido. Os sinais são ''operadores''; os símbolos são
''designadores''.''. Cassirer, La philosophie des Formes Simboliques, p.56-7
4
Cassirer, Antropologia Filosófica, p. 109.
5
Ibid., p. 49.
6
''[...] alles, wodurch sich das Innere im äussern offenbart, mit Recht Sprache heißt''. Schlegel apud Chomsky, N.,
Lingüística Cartesiana, p. 27.
7
Cassirer, Antropologia Filosófica, p. 49.
8
Ibid., p. 48.

19
até minha morte [sic.]...''1. Para Hamann, a essência autêntica da razão se encontra na linguagem,
que é seu organon; e é ''aí que se encontra a Razão pura e ao mesmo tempo sua crítica'' [sic.]2.
Herder, por sua vez, discípulo dissidente de Kant e seguidor das idéias de Hamann, afirma
que
a razão dispõe duma esfera própria: o imenso território dos pensamentos humanos, por
intermédio da palavra. Tudo o que puder ser expresso, retido ou tornado entendível, por meio
de qualquer sinal, pode também entregar-se confiadamente à razão3 [...]. Por meio da língua é-
lhe dado tudo o que for susceptível de ser expresso pela linguagem, no sentido mais vasto da
palavra. A razão é ela própria linguagem4.
Como vemos, aqui, as posições de Hamann e de Herder confluem na direção de conceber a razão
como linguagem. Examinemos um pouco de perto esta afirmação. Considere o seguinte: qual a
diferença entre dizer (i) 'razão é linguagem' e (ii) 'linguagem é razão'? Se a relação de atribuição
entre os termos das afirmações tem uma única direção, i.e. se não é reversível, a diferença
conceitual entre ambas parece simples: em (i) trata-se de conceber a classe daquilo que se
denomina 'razão' incluído na classe daquilo que se denomina 'linguagem'; e em (ii), ao contrário, a
classe daquilo que se denomina 'linguagem', na classe daquilo que se denomina 'razão'. Em outros
termos, isso equivale a dizer que, em (i) a razão está subordinada à linguagem, e em (ii) a
linguagem está subordinada à razão.
Como vimos, de acordo com Cassirer, a concepção expressa por (ii) se revelou equívoca,
uma vez que não levava em conta todas as manifestações possíveis que são levadas a cabo por
meio da linguagem. Se Kant fosse partidário dessa concepção, a crítica endereçada a ele pelos
filósofos românticos teria sido, sem dúvida, mais que acertada, pois tal visão da linguagem é, antes
de tudo, restrita. Mas a concepção expressa em (i), e que é professada por Hamann e Herder, é,
como querem estes autores, incompatível com o que Kant faz na KrV? E, supondo que Kant
partilhasse dessa concepção, por que ele não a explicitou, no texto da KrV, dando azo às críticas
que se seguiram? Em outros termos, por que ele, na KrV, não expressou textualmente a razão
como linguagem?
Se esta suposição procede, ou seja, se Kant era partidário de (i), a opção por ter utilizado,
na KrV, o termo 'razão' no lugar de 'linguagem' demonstra que ele assim o fez intencionalmente.
Ou seja, Kant sabia da distinção entre (i) e (ii). Mas, então, por que Kant fala em razão em vez de
linguagem?
Considere a linguagem do ponto de vista da sua estrutura. Tome a frase, enquanto unidade
menor de sentido, como o ponto de partida de qualquer análise lingüística. Quanto à estrutura,
podemos conceber duas dimensões de desenvolvimento progressivo da linguagem: a dimensão
horizontal e a dimensão vertical. A dimensão horizontal nos dá a ordem do arranjo entre os termos
da frase: o eixo sintagmático ou a linha de combinação 5; a dimensão vertical nos dá as
possibilidades lexicais de atualização nos sintagmas: o eixo paradigmático ou a linha de seleção.
Cada classe de palavras —do ponto de vista estrutural, gramatical— é mais geral, p.ex., o
substantivo, e, dentro desta, cada palavra (significante) primária, quanto ao significado —do ponto

1
Hamann, J.G., Carta a Jacobi de 6 de agosto de 1784, ed. em 1868, p. 122, VII, 151 sq., apud Cassirer, E., La
philosophie des Formes Simboliques, p. 97.
2
Hamann, J.G., Carta a Scheffner, de 11 de fevereiro de 1785, ed. em 1868, VII, p. 216, apud Cassirer, E., ibid., p. 97.
3
Cf. Herder, J.G. Extractos de Entendimento e Experiência (1799) —Uma Metacrítica à Crítica da Razão Pura— (Aus
''Verstand und Erfahrung'': Eine Metakritik zur Kritik der reinen Vernunft, 1799), tr. de José M. Justo et alii, in: Ergon
ou Energueia, Filosofia da Linguagem na Alemanha Sécs. XVIII e XIX, Apáginastantas, Lisboa, 1986, pp. 96-7. A
leitura da tradução desses ''Extractos'' foi cotejada com a edição do texto de Herder de Heitel:— Herder, J.G.
Sprachphilosophische Schriften, von Erich Heitel, Verlag von Felix Meiner, Hamburg, 1960.
4
''[...] Mittels der Sprache ist ihr alles gegeben, was sich durch Sprache im weitesten Sinne des Worts ausdrücken läßt.
Sie [die Vernunft] selbst ist und heißt Sprache''. Herder, Ibid., 10. Vernunft und Sprache, p. 226.
5
JAKOBSON, R., Lingüística e Comunicação, Cultrix, SP, 1995, pp. 39-40.
20
de vista semântico— é mais específica; o substantivo 'homem' possuiria um paradigma, p.ex., a
classe dos substantivos (sintagma): homem, menino, lobo, etc.; dentro da classe do substantivo
'homem' (paradigma): Pedro, animal pensante, jogador de futebol, e assim por diante. Teríamos,
portanto, duas direções de possibilidades de arranjos lexicais: a linha de combinação, no nível
sintagmático —i.e. entre os sintagmas—, e a linha de seleção, no nível paradigmático —i.e. dentro
do sintagma.
Segundo uma definição gramatical tradicional clássica, a figura polar de estilo metonímia é
a ''translação de sentido pela proximidade de idéias, que consiste, dentre outras combinações, em
tomar a parte pelo todo [pars pro toto] ou vice-versa''1. De acordo com a abordagem estrutural2,
mais contemporânea, a metonímia é a ''vinculação de um significante [palavra] a um significado
secundário associado por contigüidade com o significado primário'' 3, i.e. tal significante —que
pode ser primário—, p.ex., 'razão', é associado por contigüidade semântica ao significado primário
'linguagem de tipo especial', mas também pode ser vinculado a um significante secundário, p.ex.,
'entendimento' ou 'pensamento', por poder designar primariamente tais significantes aos quais os
traços semânticos que ele veicula primariamente pertencem a estes significantes secundariamente.
Isso posto, considere o caso que estamos examinando aqui, a propósito da correlação
sinonímica entre as palavras 'linguagem' e 'razão'. Conforme a direção em que se dirija a
metonímia —i.e. se do significante secundário ao significado primário, ou, ao contrário, do
significante primário ao significado secundário—, tal procedimento sintático-semântico é por isso
considerado como consistindo em tomar a parte pelo todo <pars pro toto>, ou, o contrário. Em
nosso caso, a linguagem pela razão, a razão pela linguagem, a razão pelo
pensamento/entendimento/sujeito pensante, etc.. Se estabelecermos uma hierarquia entre estes dois
significantes —'linguagem' e 'razão'—, a partir dos seus traços distintivos mínimos, teremos:

[LINGUAGEM] [RAZÃO]

/+signo/ /+signo/
/±símbolo/ /+símbolo/
/±ícone/ /±ícone/
/±instrumento/ /+instrumento/
/±número/ /±número/
/±palavra/ /±palavra/
/±emoção/ /-emoção/
/±pensamento/ /+pensamento/
/±humano/ /+humano/
/±sujeito ao princípio de contradição/ /+sujeito ao princípio de
contradição/

Ao utilizar 'linguagem' no lugar de 'razão', restrinjo a linguagem aos traços peculiares


somente às operações racionais, tomando uma parte do domínio da linguagem —aquele não-

1
Bechara, E., Moderna Gramática Portuguesa, CEN, SP, 1966, p. 418.
2
Sobre lingüística e semântica estrutural, ver: Stegmüller, Greimas, Palmer, Chomsky (1965), Jakobson, Katz e Fodor,
Lyons.
3
Jakobson, p. 113.

21
emotivo, que é expressão do pensamento, e que está sujeito ao princípio de contradição. No caso
de utilizar 'razão' no lugar de 'linguagem', como este é um significante menos determinado
semanticamente do que aquele, realizo a operação contrária, me valendo dos traços determinados e
decisivos do significante 'razão' —ser instrumento simbólico humano do pensamento, sujeito ao
princípio de contradição, etc. — e levo estes traços ao significante 'linguagem', que também inclui
tais traços, mas não só.
Ao vincular, portanto, o significante 'razão' ao significante 'linguagem', associo, por
contigüidade semântica —i.e. de traços semânticos— este significante primário a um significante
secundário, por este ser a ele contíguo quanto ao significado, ou seja, o significante secundário
'razão', por contigüidade semântica, pode ser associado ao significante primário 'linguagem', e
vice-versa. Em ambas as seleções lexicais, opero por meio da metonímia.
Em suma, segundo esta análise dos significantes, 'linguagem' inclui 'razão', como um
significante cujo campo semântico é mais geral, no entanto, o contrário não procede, pois a razão é
um tipo de linguagem simbólica que obedece ao princípio de contradição, mas nem toda
linguagem é uma linguagem simbólica que obedece ao princípio de contradição.
A resposta à pergunta acerca do fato de por que Kant utiliza 'razão' no lugar de 'linguagem'
se torna um pouco mais clara agora. Do que foi dito acima, depreendemos facilmente que, se Kant
se propusesse a fazer uma crítica ao uso da linguagem humana, deveria dar conta, em seu sistema
crítico, de problemas que não interessavam à filosofia, enquanto conhecimento a priori. Pois, uma
crítica ao uso da linguagem humana em geral implicaria uma crítica ao uso de todo o modo de
expressão humano, que deveria dar conta também de usos emotivos da linguagem. O que
certamente não interessava a Kant, na KrV. Claro está, porém, que isso não equivale a dizer que
Kant não se interessou pela linguagem, ao contrário, o objeto da KrV de Kant é, sim, o uso da
linguagem, mas o uso de um tipo específico de linguagem, conforme Bennett, 'uma linguagem de
tipo especial'1, aquela esfera do domínio da linguagem em que operamos por conceitos, e que deve
satisfazer o princípio regulador de todo pensamento, a saber, o princípio de contradição.
Proponho, portanto, chamar o uso que Kant faz da palavra 'razão' na KrV de uso
metonímico. Por quê? Porque Kant se apropria do caráter essencial da razão, que consiste na esfera
do domínio das operações simbólicas humanas. Em outros termos, por contigüidade semântica,
'razão' é utilizada, enquanto portador de um significado mais específico, para designar, em geral,
todas as operações simbólicas humanas que podem ser descritas como uma 'linguagem de tipo
especial que opera por meio de conceitos e obedece ao princípio de contradição'.
Em resumo, o que tem de ficar claro, aqui, sob a perspectiva que adotamos, é que podemos
conceber a razão (humana) como linguagem, mas não o contrário, uma vez que a linguagem é
mais do que operações simbólicas.
Assim, podemos compreender que regras, expressas e constituídas apenas por meio da
linguagem —os princípios de contradição e o do terceiro excluído— possam a priori determinar,
estruturar, restringir e orientar todas as operações racionais —simbólicas, representacionais— do
homem; e, por conseguinte, todo o seu pensar, assim como seus produtos, os conhecimentos
empíricos e puros, pois, nesse caso, as regras da linguagem podem coincidir com as da razão,
enquanto operações racionais.
Deve ficar claro também que tais regras se restringem ao uso da linguagem apenas no que
concerne às operações simbólicas relacionadas ao pensar e ao conhecer; objeto da filosofia e da
ciência de um modo geral. No que diz respeito ao uso da linguagem para outros domínios,
igualmente humanos, tais regras podem não ter valor algum, como p.ex. no domínio dos
sentimentos, desejos e paixões humanas em geral, assim como no domínio da espiritualidade
1
''Utilizarei a expressão 'linguagem que emprega conceitos' como abreviatura de 'linguagem do tipo altamente
desenvolvido em conexão com a qual pode proporcionar-se ao "conceito" uma verdadeira função, i.e. cuja
metalinguagem pode conter utilmente a palavra "conceito".''. Bennett, p. 110.
22
humana, domínios esses em que predomina a impossibilidade da determinação do verdadeiro e do
falso, seja pelo caráter inacessível dos seus objetos, seja pela nossa postura cambiante em relação a
eles, que, por conseguinte, sob a perspectiva racional, i.e. sob a perspectiva das regras que legislam
as atividades lingüísticas racionais, gera contradições.
Portanto, a linguagem da qual trata Kant na KrV é a linguagem ordinária em seu uso
normal, considerada não em toda a sua aplicação possível, mas somente aquela esfera desta que
procede segundo o princípio de contradição, que é o princípio supremo de todo o pensamento e do
sentido. Por isso, quando utilizarmos o termo 'razão' aqui, ao nos referirmos à KrV, teremos
sempre em mente o sentido que resultou de nossa investigação precedente, ou seja, quando nos
referirmos à razão, na KrV, estaremos considerando-a como uma 'linguagem simbólica de tipo
especial, que opera por meio de conceitos e obedece ao princípio de contradição'.

III. A Crítica da razão pura como 'gramática transcendental'


Convém, porém, delimitar o âmbito em que consideraremos aqui 'razão' como equivalente a
linguagem; e, por conseguinte, nessa direção, uma investigação das maneiras do dizer deverá estar
relacionada diretamente com uma investigação acerca das maneiras do pensar e do conhecer; em
outros termos, devemos explicitar em que medida uma investigação gramatical —portanto, uma
investigação acerca das maneiras de dizer— sobre as condições de possibilidade do sentido do juízo
sintético em geral —uma semântica a priori de objetos, nos termos de Loparic 1— tem a ver com
uma investigação —epistêmica, conforme Allison2— sobre as condições de possibilidade do
conhecimento em geral; ou seja, como são possíveis juízos em geral e, em especial, juízos sintéticos
a priori —condições de possibilidade de todas as ciências constitutivas do saber humano.
Por isso, será necessário partirmos de um conceito unívoco de 'gramática', que seja válido
para uma abordagem da razão sob a perspectiva das suas leis, no que diz respeito às condições de
possibilidade do discurso significativo no domínio do pensar e do conhecer, segundo o idealismo
transcendental de Kant.
À época de Kant, o paradigma vigente no tocante à teoria gramatical era a Gramática de
Port-Royal de 1660, de Arnauld e Lancelot. Esta obra deu início ao que veio a ser conhecido como
a tradição da gramática filosófica, cujos fundamentos foram inspirados por Descartes, continuados
por Leibniz e desenvolvidos de uma forma mais acabada por Humboldt na década de 1830.
Conforme Chomsky, ''uma das inovações da Gramática de Port-Royal de 1660 foi o
reconhecimento da importância da noção da frase como unidade gramatical'' 3, pois antes de Port-
Royal, a teoria gramatical consistia em um estudo de ''classes de palavras e de inflexões''. O
conceito de 'gramática' que temos em vista aqui é o mesmo expresso pela Gramática de Port-

1
Loparic, Z., Kant e o Ceticismo, in: Manuscrito, XI, 2 (1988), p. 73 et passim..
2
Allison, H.E., El Idealismo Trascendental de Kant: una interpretación y defensa, tr. de Dulce M. Granja Castro,
Barcelona, Anthropos, 1992.
3
Para Humboldt, de acordo com Chomsky, ''a pessoa que fala faz um uso infinito de meios finitos. Sua gramática,
portanto, deve conter um sistema infinito de estruturas profundas e superficiais, adequadamente relacionadas. Deve
também conter regras que relacionam estas estruturas abstratas com certas representações de som e significado,
representações que, presumivelmente, são constituídas de elementos pertencentes respectivamente à fonética universal e
à semântica universal. Na essência, este é o conceito de estrutura gramatical que está sendo desenvolvido e elaborado
hoje em dia''. Chomsky, Linguagem e Pensamento, pp. 30-31. Sob essa perspectiva, Chomsky considera uma língua
<language> como ''um conjunto (finito ou infinito) de sentenças, cada uma finita em extensão e construída a partir de
um conjunto finito de elementos. Todas as línguas <languages> naturais em sua forma escrita ou falada são línguas
<languages> nesse sentido, desde que cada língua <language> natural tenha um número finito de fonemas (ou letras
em seu alfabeto) e cada sentença seja representável como uma seqüência finita destes fonemas (ou letras), mesmo que
exista uma quantidade infinitamente grande de sentenças.''. Chomsky, N. Syntatic Structures (1957), Mouton, the
Hague, Paris, 1968, p. 13.
23
Royal, por Humboldt e por Chomsky1, a saber: considerando uma língua (linguagem) particular L
como uma relação entre som (signo) e significado, uma gramática G seria um conjunto finito de
regras para dar conta da produção de um número infinito de proposições P com sentido nessa
língua2.
Esta definição, aplicada ao domínio transcendental, i.e. aplicada ao domínio das condições
de possibilidade da linguagem humana enquanto tal, teria a seguinte formulação: considerando a
linguagem humana L enquanto tal, i.e. transcendentalmente, como uma relação entre signo e
significado, uma 'gramática transcendental' G seria um conjunto finito de regras para dar conta das
condições de possibilidade de construção de um número infinito de proposições P com sentido em
nossa linguagem.
Como procurei mais ou menos indicar até aqui, na KrV, Kant parte do juízo para falar do
conhecimento, da sua possibilidade e dos seus limites. A ocupação de Kant com a forma lógica
dos juízos, bem como com as condições transcendentais do sentido, já seriam suficientes para
entrevermos em sua investigação crítica um tipo de gramática, nos termos acima definidos. Pois, à
sua época, a teoria gramatical vigente, a de Port-Royal, como vimos, também partia da frase
(juízo) como unidade gramatical de sentido para estudar e estabelecer as relações da linguagem
com o pensamento, e, destas, às condições de possibilidade do discurso com sentido. Se estas
constatações não constituem prova suficiente, encontramos duas outras situações que vêm a
corroborar essa hipótese, nas quais Kant afirma explicitamente ser possível conceber o trabalho
que ele realizou na KrV como uma gramática transcendental.
A primeira destas afirmações, encontramos nas Vorlesungen über die Metaphysik, obra
quase contemporânea à Primeira Edição da KrV, usada por Kant para ministrar cursos
universitários, mas que, segundo de Vleeschauwer 3, menos que uma adaptação para fins didáticos,
continha já, em linhas gerais, muito do que viria ser o texto da KrV, pois ''no momento em que
Kant professa o curso, a Crítica lhe estava presente diante do espírito nas suas articulações
sistemáticas''4.

1
De acordo com Chomsky, na ''teoria cartesiana de Port-Royal, uma frase corresponde a uma idéia complexa, e uma
proposição é subdividida em frases consecutivas, que são a seguir subdivididas em frases e assim por diante, até ser
alcançado o nível da palavra. Deste modo, obtemos aquilo que poderia ser chamado a ''estrutura superficial'' da sentença
em questão. (...) Mas é interessante que, embora a Gramática de Port-Roytal tenha sido aparentemente a primeira a
repousar de modo inteiramente sistemático na análise da estrutura superficial, reconhecia também a insuficiência desta
análise. De acordo com a teoria de Port-Royal, a estrutura superficial corresponde apenas ao som, ao aspecto físico da
linguagem; mas quando o sinal é produzido, com sua estrutura superficial, tem lugar uma correspondente análise mental
daquilo que podemos chamar a estrutura profunda, uma estrutura formal que se relaciona diretamente não com o som
mas com o significado. (...) A estrutura profunda relaciona-se com a estrutura superficial por certas operações mentais,
—na moderna terminologia, por transformações gramaticais. Toda língua pode ser considerada como uma particular
relação entre som e significado. Seguindo a teoria de Port-Royal até suas conclusões lógicas, a gramática de uma língua
deve conter um sistema de regras que caracteriza as estruturas profunda e superficial e a relação de transformação entre
elas, e —se deve conter o aspecto criador do uso da linguagem— que faz isso em um domínio infinito de estruturas
profundas e superficiais conjugadas''. Chomsky, Linguagem e Pensamento, p. 30-31.
2
Conforme Chomsky, ''O principal objetivo na análise lingüística de uma linguagem L é separar as seqüências
gramaticais que são as sentenças de L das seqüências agramaticais que não são sentenças de L e estudar a estrutura das
seqüências gramaticais. A gramática de L será portanto um mecanismo que gera todas as seqüências gramaticais de L e
nenhuma das agramaticais. Um modo para testar a adequação de uma gramática proposta por L é determinar se as
seqüências que ela gera são atualmente gramaticais ou não, i.e. aceitáveis a um falante nativo, etc.''. Chomsky, Sintatic
Structures, p. 13.
3
Vleeschauwer, H.J., de. La Déduction Transcendentale dans l'Œuvre de Kant, v. I, ch. III: La Déduction avant la
Critique, D.: La Déduction transcendentale de 1770 à 1781, § 4: Vers la Critique de la Raison Pure, I. Les
''Vorlesungen über die Methaphysik'',
4
De acordo com de Vleeschauwer, as Vorlesungen constituem ''a exposição sistemática de uma doutrina, cuja metade,
representada pela ontologia, é a primeira exposição de uma maneira breve e precisa do criticismo, mas cuja outra
metade, formada pelas três disciplinas conexas à metafísica (cosmologia, psicologia e teologia racionais), não
apresentam um caráter uniforme, que nós possamos entender sob um único título de classificação. A organização do
curso evidencia que Kant repartiu sua matéria, neste momento, após o plano da Crítica, modificando sensivelmente a
ordem que os problemas seguem na obra definitiva. (...) Certos detalhes nos obrigam a aproximar o curso de metafísica
24
Na passagem das Vorlesungen, na parte I, intitulada Ontologie, no tópico intitulado Die
Transcendentale Philosophie, que nos interessa aqui, encontramos o seguinte:
A Filosofia Transcendental é a Filosofia dos princípios, dos elementos do conhecimento
humano a priori. Ela é ao mesmo tempo o fundamento de como uma Geometria a priori é
possível. É porém muito necessária para saber como uma ciência pode irromper de nós
mesmos, e como o entendimento humano poderá portanto ter produzido algo. Esta
investigação não consideraria a Geometria tão necessária, se nós não tivéssemos outros
conhecimentos a priori, que para nós são muito importantes e interessantes; p.ex. da origem
das coisas, da necessidade e acaso, e se o mundo é necessário ou não. Estes conhecimentos
não têm semelhante evidência, como a Geometria. Por isso, nós desejamos saber como um
conhecimento a priori é possível para o homem; assim nós temos que distinguir e investigar
todos os conhecimentos a priori; portanto, nós podemos determinar os limites do
entendimento humano, e de todas as quimeras, que aliás na Metafísica são possíveis, que
seriam produzidos sob princípios e regras determinados. Agora, nós distribuímos os
princípios do conhecimento humano a priori: 1) nos princípios da sensibilidade a priori, e
isto é a Estética Transcendental que comporta em si o conhecimento e os conceitos a priori
de espaço e tempo; e 2) nos princípios do conhecimento intelectual humano a priori, e isto é a
Lógica Transcendental. Estes princípios do conhecimento humano a priori são as categorias
do entendimento [...], e estas esgotam tudo aquilo que o entendimento concebe a priori nele,
destes porém mais tarde ainda outros conceitos podem ser deduzidos. Assim, se nós
analisássemos os conceitos transcendentais; isto seria então uma Gramática Transcendental
<transcendentale Grammatik>, que conteria o fundamento da linguagem humana [...]. Se
estabelecêssemos isto, teríamos então uma Gramática Transcendental <transcendentale
Grammatik>. A Lógica conteria o uso formal do entendimento. Portanto, a Filosofia
Transcendental poderia resultar na doutrina dos conceitos universais a priori.1
A outra passagem que abona a interpretação que estamos propondo, encontramos em sua
obra Prolegomena de 1783, que, conforme de Vleeschauwer, ''manifesta às vezes um caráter
explicativo e um caráter defensivo ou polêmico''2. Kant teria escrito os Prolegomena, a fim de
tornar mais claros os princípios desenvolvidos na KrV, e que não haviam sido compreendidos de
todo, tal o modo como tomaram suas formulações. Muito desse insucesso de Kant se deveu,
conforme de Vleeschauwer, principalmente ao desinteresse de seus contemporâneos em tomar
parte da discussão que ele propunha em seu trabalho inicial. De outra parte, essa dificuldade e
afastamento provinham ''da extensão e aridez escolástica do debate que Kant encetava nela''3. No §
39, A 118, dos Prolegomena, quando Kant comenta o trabalho que realizou na dedução das
categorias, na KrV, lemos o seguinte:
Extrair do conhecimento comum os conceitos que não se fundam em nenhuma experiência
particular e que, não obstante, ocorrem em todo o conhecimento de experiência, de que, por
assim dizer, constituem a simples forma de conexão, não exigia uma maior reflexão ou mais
discernimento do que extrair em geral, de uma língua, as regras do uso [efetivo <wiklichen>]
das palavras e reunir assim os elementos de uma gramática <Grammatik> (na realidade, estes
dois empreendimentos são entre si muito aparentados), sem no entanto poder indicar a razão
por que cada língua possui justamente esta característica formal e não outra, ainda menos

mais da situação de 1775, em vez de o colocar na vizinhança imediata da Crítica.'' (pp. 284-5). de Vleeschauwer
acredita que, devido a certos detalhes terminológicos, é possível ''tratar o curso [...] mais do que como uma adaptação da
Crítica às necessidades do ensinamento universitário''. Vleeschauwer, op.cit., pp. 285-6.
1
Kant, Immanuel. Vorlesungen über die Methaphysik, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt, 1988, pp. 77-78.
2
Cf. de Vleeschauwer, II, p. 420.
3
Ibid., p. 421.
25
porque é que, nem mais nem menos, se podem em geral encontrar tais determinações formais
da mesma. 1
Convém enfatizar aqui que eu não estou supondo que Kant é um gramático, no sentido
ordinário do termo, e que o que ele fez na KrV tenha sido uma gramática de alguma língua
particular. Nada disso. Tem de ficar claro, aqui, que aquilo que pretendo mostrar, tal como Kant
sugere, é que, subjacente ao idealismo transcendental, nós podemos entrever uma investigação
gramatical sobre o sentido na linguagem, e, sob essa perspectiva, a KrV pode ser vista,
analogamente, como uma 'Gramática Transcendental', mas somente na medida em que Kant esteja
interessado nas condições universais da possibilidade do sentido do juízo em geral. E isto significa
considerá-lo como estando ocupado, não com uma língua em particular, mas com a linguagem
humana enquanto tal, no que se refere, especificamente, à possibilidade do pensar e do conhecer no
sentido humano.
Portanto, como o próprio Kant sugere, o que ele realiza em seu trabalho pode ser comparado
ao que se faz em uma gramática de uma língua particular, o que não equivale a dizer que este é o
caso. Seu trabalho pode ser visto como uma gramática, mas somente no que diz respeito às
condições de possibilidade da linguagem humana, tal como pode ser visto na passagem das
Vorlesungen, supra-citada2. Vista assim, a KrV pode ser concebida como uma gramática apenas no
sentido transcendental, i.e. enquanto se ocupa dos fundamentos da razão humana —'linguagem de
tipo especial que obedece ao princípio de contradição'. Em outros termos, enquanto se ocupa com a
determinação das condições de possibilidade do sentido do juízo em geral, e, por conseguinte, das
condições de possibilidade do pensar e do conhecer.

2. A gramática transcendental do conhecer e do pensar


Para entendermos o que Kant diz, devemos ter uma noção inicial acerca do que ele entende por
conhecimento bem como dos elementos que este envolve. Comecemos, então, perguntando o
seguinte: que é conhecer? Podemos responder, provisoriamente, assim: conhecer é formular juízos.
Mas formulamos juízos acerca do quê? Acerca de objetos. E de que tipo de objetos tratam os
juízos? Objetos efetivos ou possíveis da experiência sensível. E como formulamos juízos, i.e. como
acessamos os objetos da experiência sensível? De um lado, pelo entendimento, de outro, pela
sensibilidade; i.e. por meio de conceitos e de intuições sensíveis. E por meio do que, de qual
instrumento, acessamos tanto o entendimento (com os conceitos) quanto a sensibilidade (com as
intuições sensíveis)? Por meio da razão, pura ou efetivamente. O uso puro da razão, nos dá
conhecimento do possível e do necessário; o uso efetivo, conhecimento do efetivo.
Perguntemos agora o seguinte: qual é a sede da razão (humana)? Na direção da
argumentação de Kant, na KrV, podemos dizer que a sede da razão é o entendimento. E qual a sede
do entendimento? A mente. Inicialmente, podemos dizer, seguindo Kant, que a mente <Gemüt>3, na

1
Kant, I., Prolegômenos a toda Metafísica futura, p. 103, trad. de Artur Morão, Edições 70, Portugal, 1987, cf.: Kant,
I., Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik, die als Wissenschaft wird auftrete können, p. 92, Philipp Reclam
Jun. Stuttgart, 1995.
2
Mesmo que Kant compare seu trabalho a uma gramática tradicional, i.e., como uma ''gramática de classes de palavras
e de inflexões'', na medida em que ele parte da proposição como unidade fundamental do sentido, eu estaria inclinado a
supor que, ao contrário, ele está mais perto da concepção inaugurada pela Grammaire de Port Royal, que, conforme
Chomsky, considera a construção de proposições sob duas perspectivas: a da estrutura de superfície e a da estrutura
profunda. Vista sob a perspectiva do idealismo transcendental, a primeira se ocuparia com o arranjo dos termos, tarefa
da lógica geral, e a segunda, com o significado dos conceitos e, por conseguinte, das condições de possibilidade do
sentido da proposição, tarefa da lógica transcendental. Isto, porém, tem de ser investigado.
3
Cf. Rohden, na Crítica da Faculdade do Juízo, ''Kant entende o Gemüt <ânimo> como o princípio unificador das
diversas faculdades em relação recíproca, tendo sentido transcendental cognitivo e também estético vivificante das
faculdades de conhecimento''. Já na ''Crítica da razão pura o Gemüt aparece como a totalidade das faculdades
transcendentais''. Rohden, V., em: O sentido do termo ''Gemüt'' em Kant, Rev. Analytica, v. 1, 1993, pp. 61-7. Utilizarei
'Gemüt', aqui, como mente <do latim mens, mentis>; opção ao termo ânimo <do latim animus> comentada por Rohden
26
perspectiva do conhecimento, é uma capacidade (faculdade) humana constituída por três outras sub-
capacidades, que são: o entendimento, a sensibilidade e a imaginação. Cada uma destas sub-
capacidades executa uma operação específica no processo cognitivo 1, produzindo três elementos,
sem os quais o juízo, e, por conseguinte, o conhecimento, não seria possível, a saber:
1. o entendimento, que é ativo, produz espontaneamente conceitos;
2. a sensibilidade, que é passiva, dá intuições sensíveis;
3. a imaginação, que é a capacidade mediadora, constrói os esquemas dos objetos de conhecimento.
Resumindo: a mente é uma capacidade (ou faculdade) humana, que é constituída por três outras
capacidades: o entendimento, que produz conceitos de objetos; a sensibilidade, que dá intuições
sensíveis múltiplas de manifestações externas aos sentidos; e a imaginação, que recolhe os dados
múltiplos da sensibilidade e os organiza segundo os conceitos do entendimento, formando o
esquema do objeto a ser conhecido. A intuição pura dá a forma da sensibilidade; o entendimento
puro dá a forma do pensamento; e a imaginação, com os dados puros da intuição e do entendimento
—i.e. com os conceitos puros e com as intuições puras—, constrói o esquema puro (transcendental)
do objeto, i.e. um objeto em geral. A razão, por sua vez, é o meio estruturante —simbólico e
conceitual, sujeito ao princípio de contradição 2— por meio do qual o entendimento realiza as
operações mentais envolvidas no processo de conhecimento.
Antes, porém, de analisarmos cada uma dessas sub-capacidades, bem como sua função no
processo cognitivo, a fim de evitar distorções lingüísticas e conceituais futuras, em nossa
interpretação, devemos determinar qual é e o que é o elemento que é o suporte inicial e final do
processo do conhecimento. Pois bem, qual é então este elemento: a mente, o entendimento, a
sensibilidade, a imaginação, ou a razão? Todos e nenhum em especial, pois 'aquele-que-conhece' é
o sujeito, que é dotado de razão e constituído por cada uma destas capacidades operativas. E que é
esse sujeito? Podemos definir, provisoriamente, esse 'sujeito-que-conhece', o sujeito cognoscente,
como a mente consciente (o eu) das operações realizadas pelo entendimento, por intermédio da
razão, sobre as demais capacidades. Esta consciência do sujeito de que representações são dadas em
sua mente, como veremos, é o que Kant chamará de apercepção transcendental (pura), da qual
provém a possibilidade e para a qual se encaminha todo o conhecimento, pois só através da unidade
do entendimento na apercepção transcendental é possível o conhecimento. (Isto ficará mais claro a
partir de II. C e D, e, em especial, na Segunda Parte deste trabalho).

I. O juízo enquanto unidade do sentido


A razão, enquanto meio de representação através de signos (sinais), opera segundo determinadas
formas (leis/regras). Estas formas se manifestam nos juízos; i.e. elas podem ser identificadas na

em seu trabalho, e que foi proposta por Kant. Mente <Gemüt> é utilizado na tradução brasileira da segunda edição da
KrV, por Rohden; diferentemente da tradução portuguesa, que utiliza espírito; e que, conforme advertência de Rohden,
não leva em conta as diferenças de significado que existem entre os termos Seele <alma>, Gemüt <ânimo, mente> e
Geist <espírito>, estabelecidas por Kant no próprio texto da KrV. Na introdução à Lógica Transcendental, de acordo
com a tradução brasileira, lemos o seguinte: ''Nosso conhecimento surge de duas fontes principais da mente <Gemüt>,
cuja primeira é receber as representações (a receptividade das impressões) e a segunda a faculdade de conhecer um
objeto por estas representações (espontaneidade dos conceitos)''. B 74.
1
Cf. Strawson, a meta-linguagem da KrV é psicológica, pois Kant concebeu a sua investigação, acerca da estrutura
geral e das idéias e princípios que são pressupostos em todo conhecimento empírico, ''como um estudo da estrutura e da
maneira de proceder das capacidades cognoscitivas de seres tal e como nós somos''. No que se refere à nossa concepção
da experiência, qualquer necessidade encontrada por Kant foi atribuída à natureza de nossas faculdades. Strawson, P.F.,
Los Limites del Sentido: Ensayo sobre la Crítica de da Razón Pura de Kant, trad. de Carlos Thiebault Luis-André,
Madrid, Rev. de Occidente, 1975, p. 17.
2
Cf. Kant, ''o critério meramente lógico da verdade, a saber, a concordância de um conhecimento com as leis universais
e formais do entendimento e da razão [o princípio de contradição], é em verdade a conditio sine qua non [...] de toda
verdade''. B 84. Ver, também, KrV, B 12 e seg., e Prolegomena, § 2, A 26.
27
maneira como estes são constituídos, pois os juízos são os veículos da razão para expressar
conhecimento. Enquanto tais, os juízos são entidades lingüísticas, constituídas ou:
1. por elementos da forma da razão apenas; ou
2. por elementos da forma da razão e por elementos da forma da experiência; ou
3. por elementos da forma da razão e por elementos da experiência segundo a sua forma.
Os primeiros são os juízos puros, que se referem a objetos necessários (à razão); os segundos são os
juízos puros, que se referem a objetos possíveis (na experiência); os terceiros são os juízos
empíricos, que se referem a objetos efetivos (da experiência). Os juízos puros de tipo 1 e 2 são
totalmente a priori, pois independem (como mostraremos abaixo) da experiência —ainda que os
juízos de tipo 2 não independam da forma da experiência. Os juízos empíricos do tipo 3 são a
posteriori, pois dependem parcialmente da experiência efetiva de objetos, pois em todo juízo há
uma parte pura a priori, tanto do lado da intuição (sua forma pura) como do lado do entendimento
(as categorias ou conceitos puros)1.
Que significa um juízo depender ou independer da experiência? De acordo com a
interpretação que estou propondo, um juízo depender ou não da experiência significa o seguinte: O
juízo, enquanto entidade (unidade) lingüística (enquanto produto da razão, portanto, da linguagem),
é um todo representacional: enquanto todo, é composto de partes; enquanto representacional, tem a
função de estar-por-algo diferente dele. Ora, se as partes que o compõem significam —i.e. referem-
se a algo que não elas—, o todo tem sentido, e cumpre a sua função; i.e. ele representa aquilo pelo
que está. Consideremos os juízos empíricos.
Conforme Kant, na Dissertatio, a verdade do juízo empírico consiste na concordância do
predicado com um sujeito dado. O sentido, i.e. a representação dos elementos do juízo, consiste na
referência relação <Beziehung>, na KrV do conceito do sujeito, enquanto fenômeno, à
faculdade sensível de conhecer, por meio da qual também são dados ''os predicados observáveis
sensivelmente''2. É portanto pelas mesmas leis que as representações do sujeito e do predicado se
constituem na mente, e, somente por isso, ''dão ocasião a um conhecimento totalmente verdadeiro''3.
Portanto, antes de verificarmos a verdade de um juízo, necessitamos determinar em que condições
ele pode ser verdadeiro, i.e. determinar os seus valores de verdade, o que equivale a verificar se ele
tem ou não sentido. Nos termos de Kant, equivale a verificar se nossas representações (os conceitos
nele expressos) se referem ou não a objetos efetivos ou possíveis 4.
Um juízo depender ou não depender da experiência, ou de sua forma, significa, portanto,
que ou o seu sentido depende da experiência ou da forma desta, ou não depende da experiência nem
de sua forma. Por isso, os juízos que não dependem da experiência efetiva de objetos para terem
sentido serem a priori; e os juízos que dependem da experiência efetiva, segundo sua forma, serem
a posteriori.
Todavia, é necessário distinguir nos juízos a priori, aqueles que não dependem da
experiência para terem sentido, mas que dependem da forma desta, i.e. da sua possibilidade, da

1
Pois, conforme Kant, em A 96, em cada experiência, encontramos conceitos que contêm a priori o pensamento puro,
estes conceitos são encontrados nas categorias.
2
Kant, Immanuel. Acerca da forma e dos princípios do mundo sensível e inteligível (Dissertatio) tr. Leonel Ribeiro dos
Santos, Imprensa Nacional, Lisboa, 1985, seção II, § 11.
3
Os fenômenos, conforme Kant, enquanto objetos indeterminados dos nossos sentidos, não são idéias dos objetos nem
apresentam suas qualidades internas e essenciais. E mesmo que estes sejam a única manifestação que podemos receber
dos objetos, são contudo passíveis de conhecimento verdadeiro. Porque, uma vez que são recebidos pelos sentidos,
enquanto conseqüência de algo diferente do que percebemos, testemunham a presença do objeto; e isto, conforme Kant,
contraria o idealismo, para o qual a existência dos objetos fora de nosso pensamento é duvidosa. Conforme Kant,
mesmo que, para nós, não sejam senão fenômenos, nós podemos conhecer as coisas sensíveis, das quais não há
intelecção real mas apenas lógica. Ibid., loc.cit.. A esse respeito, ver Parte II do trabalho.
4
B 300-2.
28
possibilidade de um objeto ser dado na série empírica futura (a experiência possível). Os juízos a
priori que não dependem da experiência nem da forma desta são juízos de esclarecimento
(analíticos, como veremos), e se dão no nível do entendimento apenas. Por meio deles o
entendimento apenas pensa e torna claro conceitos ou representações dadas de antemão. Com eles o
entendimento concebe as suas regras (os conceitos) —i.e. as regras para conhecer objetos, para
receber dados da experiência sensível como objetos. 1
Os juízos a priori que dependem da forma da experiência e os juízos a posteriori, que
dependem da experiência efetiva de objetos, segundo a sua forma, são juízos de ampliação
(sintéticos, como veremos) do conhecimento, que se dão no nível do entendimento também, mas
que recebem a contribuição da forma da experiência, no primeiro caso, e da experiência segundo a
sua forma, no segundo. Por meio deles o entendimento concebe objetos empíricos possíveis ou
efetivos.
Os juízos de esclarecimento são, conforme Kant, analíticos, pois não é necessário que
saiamos do entendimento para que determinemos seu sentido. Os juízos de ampliação (extensivos)2
são sintéticos, porque não basta analisar seus termos para determinarmos o seu sentido meramente
pelo entendimento, é necessário que saiamos deles a fim de consultarmos ou os dados da
sensibilidade, segundo a sua forma, ou a sua forma; tarefa esta que consiste em, por meio da
imaginação, fazermos a síntese <Synthesis> do múltiplo dado pela sensibilidade —segundo a forma
da experiência— sob a forma do pensamento3. Estes juízos (sintéticos) são, quanto à sua fonte —se
segundo a experiência ou à sua forma: ou a posteriori ou a priori.
Com isso, temos os seguintes tipos de juízos:
1. os juízos analíticos —que são sempre a priori— têm por objeto produtos do entendimento
(conceitos) ou as suas regras de funcionamento. Tais juízos não têm referência nem possível nem
efetiva fora do entendimento, pois tratam apenas do modo pelo qual estes objetos podem ser
pensados pelo entendimento, segundo suas regras, que são equivalentes às regras da razão, e têm
portanto referência necessária;
2. os juízos sintéticos a posteriori, que têm por objeto dados sensíveis segundo a forma da
sensibilidade, i.e. objetos efetivos. Tais juízos têm referência efetiva, pois tiram seu sentido de sua
correspondência efetiva com a realidade;
3. os juízos sintéticos a priori, que têm por objeto o modo segundo o qual objetos podem ser dados
na experiência, segundo a sua forma, i.e. objetos possíveis. Esses juízos têm referência apenas
possível, pois tiram seu sentido de sua correspondência com a forma segundo a qual objetos são
dados na experiência; seu objeto é possível à medida em que se refere ao modo como objetos
podem ser dados na experiência; têm por objeto, portanto, a possibilidade da experiência. Estes
juízos servem de regras de reconhecimento de experiência.
Portanto, por meio de 1 pensamos; por meio de 2 e 3, conhecemos.
Nos juízos sintéticos a priori, para verificarmos a atribuição do predicado ao sujeito (o seu
sentido), não basta analisar o conceito do sujeito e o do predicado; eu necessito sair do domínio
meramente judicativo, i.e. do entendimento. Porém, o fundamento dessa predicação não se encontra
no domínio da experiência. O que torna a síntese possível no juízo não é um recurso à experiência
nem tampouco a análise do conceito do sujeito e do predicado, mas um recurso à forma da
experiência. Kant dá como exemplo o juízo ''Tudo o que acontece tem uma causa''. Segundo Kant,
no conceito do que acontece pensamos a existência de algo que a precede no tempo. Mas o conceito

1
Ver Allison, pp. 64-65, sobre a noção de objeto como ''sujeito de um juízo possível''.
2
Ver §2 (A 24-30) dos Prolegomena.
3
Pois, conforme Kant, estas duas propriedades são essenciais, uma vez que sem ''sensibilidade nenhum objeto nos seria
dado, e sem entendimento nenhum seria pensado. Pensamentos <Gedanken> sem conteúdo são vazios, intuições sem
conceitos são cegas''. B 75.
29
de causa está completamente fora do conceito de sucessão e ''indica algo distinto daquilo que
acontece''1, não estando portanto contido nessa representação. Como então posso afirmar, a partir do
conhecimento de que algo em geral acontece, algo tão diverso dele como o conceito de causa
enquanto lhe pertencendo? Conforme Kant, o fundamento dessa síntese não pode ser a experiência,
porque ''o mencionado princípio acrescentou essa segunda representação à primeira não somente
com maior generalidade, mas também com a expressão da necessidade, por conseguinte,
completamente a priori e a partir de simples conceitos'' 2.
Quanto ao sentido e à verdade, os juízos analíticos são necessários, pois são verdadeiros a
priori, e seu contrário não é possível nem pensável; os juízos sintéticos a posteriori são efetivos,
pois são verdadeiros somente a posteriori, e seu contrário é possível e pensável; e os juízos
sintéticos a priori são apenas possíveis, pois, mesmo que sejam verdadeiros a priori, seu contrário
é, além de possível, pensável. Mas o seu contrário só é possível na série empírica, que é
condicionada por sua verdade. Como esses juízos estão no princípio de todas as ciências (como
axiomas) e, portanto, de todo nosso conhecimento, pois os condicionam, sua verdade é
indemonstrável. Por isso seu sentido ser determinado a priori, e sua verdade ser suposta.
O entendimento é estruturado pela razão, que funciona segundo regras. É por meio dessas
regras que o entendimento opera. E esta operação, por sua vez, é o pensamento. Para que o
entendimento funcione bem, ele deve pensar (operar) segundo essas regras. Pensar, nesse sentido, é,
essencialmente, operar a razão segundo regras. Essas regras estão na base, na estrutura, do
entendimento. São, pois, a forma como ele está estruturado, constituído. Nem o entendimento nem a
razão produzem essas formas (regras). Ele apenas as explicita nos juízos. Cabe a nós, refletindo
sobre como opera o entendimento, constituído segundo essas regras racionais, verificar os modos
como os juízos se constituem, i.e. como os formamos. Daí, se a forma do dizer (do juízo) é
equivalente à forma do logos (razão/ linguagem), ela é portanto lógica.
Dos modos segundo os quais os elementos, nos juízos, se relacionam, o entendimento extrai
as formas lógicas dos juízos. Estas, uma vez levantadas (na Tábua das Categorias, B 106), dão toda
a gama de possibilidades de combinação dos elementos que constituem o juízo; elas dão todas as
possibilidades de formação de juízos. Nesse sentido, essas formas são a priori, uma vez que
constituem a própria estrutura do entendimento, conforme leis inerentes. Se o entendimento opera
de acordo com estas formas lógicas, que podem ser verificadas nos juízos, todas as operações do
entendimento têm as mesmas formas; i.e. seguem (obedecem a) as mesmas regras, que são lógicas.
Um juízo, considerado segundo a sua forma, é uma estrutura composta por dois elementos
numa relação de atribuição (ou dois lugares lógicos a serem preenchidos) 3: ou seja, dois elementos
numa relação de atribuição de algo a algo. No nível da estrutura, portanto, do juízo, i.e. no nível
apenas lógico da relação de atribuição do entendimento, o lugar do elemento que recebe a atribuição
—o receptor do atributo— é o do sujeito, por isso chamado sujeito de atribuição; e o lugar da
atribuição e do atributo é o do predicado.
Estas formas, destituídas de uma relação efetiva ou possível, são vazias, e dizem respeito
apenas ao modo segundo o qual nosso entendimento funciona, i.e. o modo como formulamos
juízos. O estabelecimento dessas formas lógicas dos juízos é tarefa de uma lógica geral (formal),
segundo Kant. E uma tal lógica deve levar em conta apenas a forma segundo a qual juízos são
construídos, i.e. apenas a ''forma do pensamento em geral''4.

1
B 13.
2
Ibid., loc.cit.
3
Cf. Kant, em B 324, todo conceito é um lugar lógico.
4
Cf. Kant, em B 78: a lógica geral ''abstrai de todo o conteúdo do conhecimento do entendimento, bem como da
diversidade de seus objetos, não se ocupando senão com a simples forma do pensamento''. E, mais adiante em B 79: ''A
lógica geral abstrai [...] de todo o conteúdo do conhecimento, i.e. de toda referência do mesmo ao objeto, e só considera
a forma lógica na relação dos conhecimentos entre si, i.e. a forma do pensamento em geral''. Na Lógica, lemos o
seguinte em Ak 94/ A 144: ''Visto que a Lógica [geral] abstrai de todo conteúdo do conhecimento por conceitos, ou de
30
Conforme Kant, o princípio que rege toda a construção dos juízos é o de contradição.
Segundo esse princípio, nenhum pensamento pode contradizer-se a si próprio, no ato de sua
formulação, i.e. o predicado não pode afirmar e negar uma mesma propriedade do sujeito num
mesmo juízo. Este princípio garante a unidade do sentido do juízo, que é o veículo de todo nosso
conhecimento de objetos.
Como o interesse de Kant na KrV é o de estabelecer os limites do pensamento e demonstrar
a possibilidade dos juízos sintéticos a priori, podemos dizer que Kant não trata senão de juízos
analíticos e sintéticos, e, especialmente, que está ocupado com verificar a possibilidade destes
últimos, pois, somente por meio deles nós temos conhecimento acerca do mundo (dos objetos do
mundo).
Juízos analíticos e juízos sintéticos, segundo Kant, são juízos categóricos, e, por
conseguinte, se deixam formular segundo uma relação entre sujeito (S) e predicado (P)1. No caso do
juízo analítico, não é necessário recorrer ao domínio da experiência para determinar seu sentido e
sua verdade, pois o conceito do P está contido no conceito do S; i.e. tal juízo é analítico pois basta
analisar o conceito do S para verificar se o conceito do P se aplica a ele ou não. No caso do juízo
sintético, não basta analisar o conceito do S e do P, mas temos que recorrer ao domínio da
experiência para o determinarmos quanto ao sentido (tal como vimos acima).
Segundo Kant, a lógica geral descreve os juízos em geral como a ''representação de uma
relação entre dois conceitos''2, a saber, o conceito do sujeito e o do predicado. Kant, porém, diz que
esta descrição ''atende quando muito aos juízos categóricos, mas não aos hipotéticos e disjuntivos
(que como tais contêm uma relação não de conceitos e sim de juízos)''. Em B 100-101, Kant
apresenta as modalidades dos juízos —problemáticos, assertóricos e apodíticos— como uma função
destes que se refere ao ''valor da cópula com referência <Beziehung> ao pensamento em geral''.
Conforme Kant, os
[j]uízos problemáticos <[p]roblematische Urteile> são aqueles em que se admite o afirmar ou
o negar como meramente possível (arbitrário); juízos assertóricos aqueles em que se o
considera [o negar ou o afirmar] efetivo <wirklich> (verdadeiro) e juízos apodíticos aqueles
em que se o encara como necessário.3
Na Lógica 4, encontramos uma referência importante e elucidativa de Kant acerca da
necessária distinção entre juízo <Urteil> e proposição <Satz>, cujo fundamento residiria nas
modalidades do juízo. Nela, lemos o seguinte:

toda matéria do pensamento, ela só pode considerar o conceito com respeito à sua forma, quer dizer, apenas
subjetivamente; não como ele determina um objeto mediante uma característica, mas apenas como ele pode ser
relacionado a vários objetos. A Lógica geral não tem, pois, de investigar a fonte dos conceitos; não como os conceitos
se originam enquanto representações, mas unicamente como representações dadas se tornam conceitos no pensamento;
não importa, de resto, se esses conceitos contenham algo que tenha sido tirado da experiência, ou mesmo algo de
fictício, ou tomado da natureza do entendimento.'' Kant, I. , Lógica, tr. por Guido Antônio de Almeida (de Immanuel
Kants Logik ein Handbuch zu Vorlesungen), RJ, Tempo Brasileiro, 1992, p. 111-12.
1
De acordo com Leibniz, a proposição categórica é o fundamento de todas as demais proposições, i.e. as modais, as
hipotéticas e disjuntivas, pois a pressupõem. Proposição categórica, para Leibniz, é aquela que pode ser descrita sob a
forma ''A é B, ou A não é B —i.e. É falso que A é B— , complementada com uma variedade de 'signum' , de modo que
a proposição seja, ou universal e se entenda de todo sujeito, ou particular e se entende de algum''. Leibniz, G.W., Seis
escritos de lógica, tr. por Roberto Torretti, in: Dialogos, v. 51, 1988, p. 166.
2
B 140. Porém, segundo Kant, se investigamos mais de perto em cada juízo a ''referência de conhecimentos dados e,
enquanto pertencentes ao entendimento'' os distinguimos ''da relação segundo leis da imaginação reprodutiva (que
possui somente validade subjetiva)'', vemos ''que um juízo não é senão o modo de levar conhecimentos <Erkenntnisse
—intuições, cognições, conhecimentos> o dados à unidade objetiva da apercepção'' (B 141).
3
Na Lógica de Jäsche, A 169/Ak 108, § 30, lemos o seguinte: ''Quanto à modalidade, aspecto pelo qual está
determinada a relação do juízo inteiro com a faculdade de conhecer, os juízos são ou problemáticos, ou assertóricos, ou
apodícticos. Os problemáticos são acompanhados da consciência da mera possibilidade; os assertóricos, da consciência
da realidade efetiva; os apodícticos, por fim, da consciência da necessidade de julgar''. Kant, I., Lógica, op.cit..
4
Ibid., loc.cit.
31
É na distinção entre juízos problemáticos e assertóricos que se funda a verdadeira distinção
entre juízos e proposições, que de outro modo se costuma situar erroneamente na mera
expressão mediante palavras, sem a qual não se poderia jamais julgar. No juízo, a relação de
diferentes representações em vista da unidade da consciência é pensada como meramente
problemática; numa proposição, ao contrário, como assertórica. 1

Toda proposição, para Kant, portanto, é um juízo, mas nem todo juízo é uma proposição, pois, antes
''de ter uma proposição, tenho primeiro que julgar; e eu julgo sobre muita coisa que não decido, o
que porém tenho que fazer tão logo determino um juízo como proposição''. 2
Considere, agora, a seguinte passagem, no desdobramento de B 101, onde Kant parece
esclarecer a diferença entre a modalidade problemática e a assertórica:
A proposição problemática <problematische Satz> é, portanto, aquela que só expressa
possibilidade lógica (que não é objetiva), i.e. uma livre escolha de deixar valer uma tal
proposição, uma acolhida meramente arbitrária da mesma no entendimento. A proposição
assertórica diz da efetividade <Wirklichkeit> ou verdade <Wahrheit> lógica.
Em outros termos, a primeira se refere apenas à possibilidade, enquanto a segunda à verdade.
Na KrV, Kant se interessa por todos os tipos de juízos: os categóricos, os hipotéticos e os
disjuntivos. Com base nessa elucidação, para nossos fins, porém, suporei que, na KrV, Kant se
ocupará em pormenor da possibilidade dos juízos categóricos, em cuja classificação caem os juízos
analíticos e sintéticos, que podem ser descritos segundo a fórmula S é P, donde S e P são conceitos
colocados em relação pela cópula ''é''. Em outros termos, adoto a perspectiva segundo a qual Kant
está ocupado na KrV em investigar a possibilidade dos juízos categóricos, em especial, os
assertóricos, i.e. os que têm a ver com a verdade.
Supondo que, na KrV, Kant estivesse interessado, particularmente, em demonstrar a
possibilidade dos juízos categóricos assertóricos —a priori ou a posteriori3—, tal como propus,
como estes são proposições (conforme a Lógica), poderíamos dizer então que Kant estaria
interessado, na KrV, em investigar a possibilidade da proposição em geral, em outros termos,
investigar em que condições em geral uma proposição pode ter sentido.
Como procurei demonstrar nas linhas precedentes, é possível, portanto, ler a KrV como uma
investigação acerca do uso da linguagem. Pois, por detrás da formulação do objetivo de Kant, com a
KrV, i.e. por detrás da pergunta acerca da possibilidade dos juízos sintéticos a priori, podemos
encontrar uma intenção mais básica e, da mesma forma, universal, que seria a de estabelecer a
possibilidade, acima de tudo, dos juízos sintéticos em geral4. Em outros termos, com a KrV, Kant
estaria buscando responder a uma pergunta mais elementar e extremamente importante, a saber:
Como podemos falar —com sentido— acerca do mundo? Ou, em termos mais aproximados: Como
seriam possíveis juízos acerca de objetos?
Se seguirmos com atenção essa linha de raciocínio, o que encontramos por detrás da
pergunta acerca da possibilidade da proposição em geral é uma pergunta ainda mais básica, e esta

1
Observação 3, § 30 da Lógica, A 170/Ak 109.
2
Ibid., loc.cit.
3
Por exemplo, em B 189, na analítica dos princípios, Kant escreve o seguinte: ''[e]ntretanto, também temos que falar do
princípio dos juízos analíticos, e isto em oposição ao dos juízos sintéticos com os quais propriamente nos ocupamos
[...].''. [grifo meu].
4
Cf. Bennett, os ''usos da linguagem que não são meras respostas lingüísticas a estímulos, e que expressam juízos que
não podem ser expressos exceto em uma linguagem, se solapam ou coincidem com os usos que são mais pertinentes
para ver se uma linguagem dada emprega conceitos.''. Para Bennett, ''o interesse primário de Kant recai sobre os juízos
acerca de estados de fatos gerais e passados, e que é por isto que ele só se ocupa dos juízos expressáveis em uma
linguagem, e se limita ademais à linguagens do tipo desenvolvido que eu digo 'que empregam conceitos'.''. Bennett, p.
113.
32
sim essencial a todo o saber humano. Portanto, se estivermos de acordo com relação ao fato de todo
o conhecimento humano ser judicativo (discursivo) —que é o resultado da operação do
entendimento sobre os dados da intuição a partir dos conceitos puros—, i.e. ser mediado pela
linguagem, antes de estabelecermos a fonte dos juízos, i.e. se são a priori ou a posteriori, ou se são
analíticos ou sintéticos, o que temos de estabelecer é, na verdade, se tais construções sintáticas têm
ou não sentido, pois, caso contrário, não poderiam expressar pensamento algum, e muito menos
descrever algo verdadeira ou falsamente.
Visto dessa maneira, poderíamos interpretar a empresa de Kant com a KrV, antes, como uma
investigação acerca da possibilidade —ou condições— do sentido de nossas proposições, uma vez
que, de acordo com o próprio Kant, o maior problema da Metafísica no seu tempo era o fato de ela
não ter clareza acerca do que estava falando, não dando, por conseguinte, sentido às suas
proposições.
Sob essa perspectiva, o problema com o qual Kant se defrontaria na KrV assume outra
dimensão, uma vez que ele mesmo vai procurar colocar a Metafísica no seu devido lugar com o
estabelecimento do domínio, dos limites e do objeto em relação aos quais nós, racionalmente (i.e.
por meio da razão) podemos buscar conhecer, e até que ponto podemos ir legitimamente, com e sem
a experiência —o que, em outras palavras, seria determinar acerca do que nós, de posse do
instrumental da razão e do material da intuição, podemos falar com sentido. E isto nada mais seria
então do que estabelecer, por meio da investigação do processo da construção de juízos sobre
objetos, as condições de possibilidade de sentido desses juízos.
Como a lógica que Kant desenvolve na KrV não é uma lógica geral (formal) —que abstrai
do conteúdo do objeto—, mas sim uma lógica transcendental, que leva em conta, não o conteúdo
do objeto, mas sim que objetos são dados a uma intuição sensível segundo as formas puras do
espaço e do tempo, e que, por meio de conceitos do entendimento, deles formulamos juízos, se
interessando, portanto, pela fonte desses juízos, as condições transcendentais do sentido deverão
acompanhar toda a argumentação de Kant 1.
Com base nisso, proponho que na Estética e na Lógica Transcendental Kant nos apresenta
as condições universais da possibilidade do sentido de nossos juízos sobre objetos: a Estética
Transcendental nos apresenta as condições de possibilidade fornecidas pela sensibilidade, e a
Lógica Transcendental, as condições de possibilidade fornecidas pelo entendimento, em outros
termos, os elementos de uma semântica transcendental. (No presente trabalho, as condições de
possibilidade fornecidas pelo entendimento e pela imaginação —as categorias e os esquemas—,
objeto da Lógica Transcendental, serão tratadas apenas introdutoriamente para encaminhar e situar
a argumentação em torno das condições de possibilidade fornecidas pela sensibilidade —com que
nos ocuparemos aqui em pormenor, na Segunda Parte de nossa exposição—, e que são tratadas na
Estética Transcendental, a saber, o espaço e o tempo como formas puras da intuição sensível.)
Esta proposta de interpretação deverá poder apresentar uma resposta à pergunta que Kant se
faz na Carta a Marcus Herz, a saber: ''sobre que fundamento <Grund> repousa a relação daquilo
que se chama em nós representação <Vorstellung> com o objeto <Gegenstand>?''2. Em outras
palavras, como são possíveis conceitos de objetos, ou, ainda, como a linguagem pode referir-se ao

1
Em outros termos, a lógica de Kant não é formal, e é, portanto, transcendental, porque ele está interessado em
investigar como é possível em geral que nossas proposições tenham sentido; sua preocupação, portanto, é com a
possibilidade do objeto ser dado e com a fonte do juízo, e não meramente com a sua forma. De acordo com Kant, em A
XVI, a tarefa da Lógica Transcendental é determinar o valor objetivo dos conceitos puros do entendimento a priori, i.e.
a sua aplicabilidade a objetos da experiência possível.
2
Kant, I., Carta a Marcus Herz, tr. de António Marques, Imprensa Nacional, Lisboa, 1985, p. 142. A tradução
portuguesa desta Carta foi cotejada com a tradução francesa de ''Lettre à Marcus Herz'' de Alexis Philonenko, editada
junto com a tradução de Paul Mouy de ''La Dissertation de 1770'', Paris, Vrin, 1976.
33
mundo. Sob essa perspectiva, a tarefa de investigar a origem e a aplicabilidade de conceitos a
objetos se aproxima de uma investigação acerca da significação das palavras. 1
Visto dessa maneira, o objetivo de Kant na KrV é bastante assemelhado ao de Wittgenstein
no Tractatus2, uma vez que, conforme o modo como lemos o trabalho de Kant, ele, ao procurar
estabelecer os limites do conhecimento pela razão pura, sem a experiência, termina por estabelecer
os limites da razão. Mas para Wittgenstein, estabelecer tais limites implicaria fazer aquilo que se
quer evitar, uma vez que fora da razão não há sentido. Daí, não se poder falar dos limites da razão
sem sair desses limites e, portanto, falar sem sentido.
O que Kant faz na KrV é muito semelhante, uma vez que, ao estabelecer o noumeno ou
objeto transcendental como um parâmetro para a razão, i.e. ao estabelecer o noumeno como o limite
para o conhecer, transgride o próprio limite ao postular o empiricamente impossível, o
incognoscível; i.e. o próprio limite. Kant portanto infringe a regra que pretende estabelecer a fim de
estabelecer a regra; ou ainda, transgride os limites do conhecimento a fim de estabelecer este limite.
Se, com o estabelecimento do noumeno como limite para o conhecer, Kant estabelece o limite dos
juízos e com eles os limites a que a razão pura (a razão sem referência a objetos) tem de se ater no
caminho do conhecimento puro, Kant estabelece, ao mesmo tempo, os limites para o pensar com
sentido, que devem coincidir com os limites do discurso significativo.

II. Os artífices do objeto do conhecimento e seus produtos


A. Sensibilidade e intuições puras e empíricas
Tanto na Dissertatio como na KrV, Kant considera o conhecimento sob sua dupla origem, a saber, a
parte material (sensível) e a parte formal (intelectual, racional), que são, respectivamente,
fornecidas pela sensibilidade e pelo entendimento. Tanto uma como a outra provêm, segundo Kant,
de uma origem comum3: a ''natureza da mente <mentis naturae>''1.

1
Pois, se, conforme Hobbes, os nomes são signos de conceitos, e não os signos das próprias coisas (Hobbes, T.,
Elementorum philosophiae, sectio prima, De corpore, I, 2, sect.5 apud Cassirer, La philosophie des Formes
Simboliques, p. 80) ''[o] problema da construção dos conceitos caracteriza o instante em que o contato entre a lógica e a
filosofia da linguagem é mais estreito, onde um e outro parecem se fundir em uma unidade indissolúvel. Toda análise
lógica dos conceitos parece finalmente levar a um ponto onde estudar os conceitos lembra estudar as palavras e os
nomes. O nominalismo conseqüente reúne estes dois problemas: a seus olhos, a validade do conceito se reporta à
validade e à fecundidade da palavra. A verdade torna-se então uma determinação menos lógica que lingüística: ''Veritas
in dicto, non in re consistit''. Ela é o fato de uma concordância que não é procurada nas próprias coisas, nem nas idéias,
mas que se refere exclusivamente ao encadear dos signos, em particular dos signos fonéticos. Um pensamento
absolutamente ''puro'', que não falasse, que não conhecesse a oposição do verdadeiro e do falso, que não produzisse
senão na e pela fala. Assim a questão da validade e da origem do conceito é necessariamente referida aqui ao problema
da origem da palavra: a investigação da gênese das significações e das classes aparece como o único meio de tornar
inteligíveis o sentido imanente do conceito e sua função na elaboração do conhecimento.''. Cassirer, ibid., p. 247. Sobre
esta posição acerca da dificuldade de estabelecimento de um limite definido entre lógica (linguagens artificiais) e
semântica (linguagens naturais), ver Montague, R., Universal Grammar, in: Theoria, 36 (1970), pp. 373-398.
2
Wittgenstein, L., Tractatus Logico-Philosophicus, tr. Luiz Henrique Lopes dos Santos, Edusp, 1993.
3
Arendt sugere em seu ensaio A imaginação que esta raiz comum e desconhecida para nós é, para Kant, a imaginação.
Arendt chama atenção para a seguinte passagem da KrV, em A 124: ''Os dois extremos, a sensibilidade e o
entendimento, devem necessariamente articular-se graças a esta função transcendental da imaginação, pois de outra
maneira ambos dariam, sem dúvida, fenômenos, mas nenhum objeto de um conhecimento empírico e, portanto,
experiência alguma.''. Conforme Arendt, nessa passagem, ''Kant apela à imaginação para proporcionar a conexão entre
as duas faculdades, e, na primeira edição da Crítica da razão pura, ele chama a imaginação de a ''faculdade da síntese
em geral [überhaupt]'' [sic.]. Em outros lugares, onde fala diretamente do ''esquematismo'' envolvido em nosso
entendimento, chama-o de uma ''arte escondida nas profundezas da alma humana'' [B 180] [sic.] (isto é, temos uma
espécie de ''intuição'' de algo que nunca está presente); pelo que Kant sugere que a imaginação é de fato a raiz comum
das outras faculdades cognitivas, i.e. a ''raiz comum, mas para nós desconhecida'' [sic.], da sensibilidade e do
entendimento [B 29], sobre a qual ele fala na Introdução da Crítica da razão pura e em seu último capítulo, em que
menciona novamente essa faculdade, mas sem nomeá-la [B 863].''. Arendt, Hannah, Lições sobre a filosofia política de
Kant, trad. de Anfré Duarte de Macedo, RJ, Relume-Dumará, 1993, p. 103.
34
Na Dissertatio, Kant define sensibilidade <sensualitas> como a ''receptividade do sujeito
<receptivitas subiecti>, mediante a qual é possível que o seu estado representativo seja afetado de
uma certa maneira em presença de algum objeto''2; enquanto tal, ela é uma capacidade de receber
representações <Vorstellungen>, segundo a sua forma; é por isso uma receptividade
<Rezeptivität>.3
Na representação dos sentidos há uma forma e uma matéria: a forma é a espécie <species>
das coisas sensíveis, ''que se revela na medida em que as coisas que afetam os sentidos, mesmo
sendo múltiplas, são todavia coordenadas por uma certa lei natural da alma <animi lege
coordinatur>''4; a matéria é o efeito <Wirkung> do algo dado à sensibilidade <Sinnlichkeit> sobre a
capacidade de representação <Vorstellungfähigkeit>, e é chamada sensação <Empfindung>5. A
sensação do algo sensível dado à sensibilidade fornece à mente o material com o qual ela elabora a
representação deste algo. Este algo representado na mente é uma intuição6. Esta intuição, por se
referir ao objeto por meio da sensação, é empírica <empirisch> e, enquanto tal, é uma representação
indeterminada do objeto tal como ele é dado à sensibilidade; i.e. tal como aparece. E esta
representação indeterminada do objeto da sensibilidade é o fenômeno <Erscheinung> do objeto7.
Portanto, o objeto da sensibilidade é o sensível; e este, em relação ao objeto em si mesmo, é
chamado de phaenomenon <Erscheinung> do objeto; em relação à sensibilidade, intuição; e, em
relação à mente, representação indeterminada.
Como a matéria do fenômeno é o que é sentido, sua sensação, a forma do fenômeno <Form
der Erscheinung> é o modo como ele se apresenta (ordenado sob certas relações) à mente por meio
da sensibilidade; é o que permite organizar a multiplicidade do que é recebido na sensibilidade,
segundo certas relações, na mente. O modo como este múltiplo, recebido na sensibilidade, se
apresenta organizado na mente, segundo certas relações, é a forma do intuído empiricamente (o
fenômeno); e esta forma é conferida a esse múltiplo pela sensibilidade, i.e. o múltiplo sensível é
intuído segundo a forma da sensibilidade, e é concebido na mente, qua representação de um algo
ainda indeterminado como objeto, tal como este aparece, i.e. como fenômeno.
Conforme Kant, assim como a matéria da representação sensível indica a presença de algo
sensível, mas que depende da capacidade do sujeito ser afetado por objetos, do mesmo modo a
forma da representação sensível denuncia ''uma certa consideração e relação às coisas sentidas'' 8.
Esta forma, porém, segundo Kant, ''é apenas uma certa lei ínsita na mente <menti insita>, para esta
coordenar para si mesma as sensações nascidas da presença do objeto'' 9. Porque, na sensação, o que
os sentidos recebem não é a forma dos objetos, e para que as suas múltiplas propriedades possam
reunir-se num todo representacional, ''é necessário um princípio interno da mente'' 10, por meio do
qual este múltiplo possa ser ordenado de uma certa maneira ''segundo leis estáveis e inatas <stabiles

1
Dissertatio, I, § 1. A leitura da tradução portuguesa, acima citada, foi cotejada com a edição do ''De mundi sensibilis
atque intelligibilis forma et principiis'' dos ''Kleinere philosophische Schriften'', de Kant, in: ''Immanuel Kant's:
sämtliche Werke in sechs Bänden'', Band IV, Leipzig, 1923, e com a edição bilíngüe da tradução francesa de ''La
Dissertation de 1770'' de Paul Mouy, Paris, Vrin, 1976.
2
Ibid., II, § 3.
3
B 33.
4
Dissertatio, II, § 4.
5
B 34.
6
Cf. Paton, as intuições, ''nos seres humanos são sensíveis <sensuous>. Quer dizer, elas chegam até nós por meio da
sensibilidade passiva. Elas não são criadas por nós, mas simplesmente recebidas. Nós somos capazes de intuir somente
na medida em que um objeto é dado a nós, e um objeto é dado a nós somente na medida em que ele afeta nossa mente e
produz uma sensação''. Paton, H. J., Kant's Metaphysic of Experience, in two volumes, U.S.A., Humanities Press inc.,
1970, v. I, p. 95.
7
Sobre a noção de objeto, ver Paton, I, p. 96, e Allison, p. 64-65.
8
Dissertatio, II, § 4. Cf. Allison, na KrV , Kant nega ''a possibilidade de qualquer conhecimento teórico de entidades
inteligíveis''. Allison, H., The Non-Spatiotemporality of Things in Themselves for Kant, Journal of the history of
Philosophy, 1976, v. 14, p. 317.
9
Dissertatio, id., loc.cit.
10
Ibid., loc. cit.
35
et innatas leges>''1. Esta forma, conforme Kant, segundo a qual o intuído é ordenado na mente, de
acordo com o modo como é recebido na sensação, não pode, por sua vez, ser recebida na sensação;
i.e. não pode ser sentida; ela tem de estar a priori na mente, a fim de que a matéria do fenômeno
possa ser ordenada na mente sob certas relações e assim se tornar representação do objeto tal como
aparece. A matéria do fenômeno, a sensação, é recebida a posteriori na mente, segundo uma forma,
que é a priori. Por isso, a forma da sensação está separada dela 2. Só a matéria é percebida, a forma
não. Quando a matéria sensível é recebida na sensibilidade, ela já chega à mente segundo uma
determinada forma. A recepção da matéria do fenômeno na sensibilidade e sua recepção na mente
qua representação indeterminada do objeto pode ser dita um processo de ''formatação'' da matéria
sensível segundo a forma desta recepção. A mente já recebe o material da sensibilidade segundo
esta forma; não são dois momentos (no tempo) do processo de intuir o sensível, mas dois aspectos
do mesmo. Portanto, a formatação da matéria sensível na mente é simultânea à sua recepção na
sensação. (Ver Segunda Parte do trabalho).
Nós podemos, mentalmente, representar a forma da matéria da sensação sem sua matéria,
mas, não o contrário, i.e. podemos representarmo-nos a forma da sensação sem sua matéria, mas
não podemos representar essa matéria sem nenhuma forma; porque a representação da matéria
pressupõe sua forma. A representação desta forma sem a matéria da sensação, na mente, Kant
chama pura <rein>, em contraste com a representação da matéria da sensação segundo a forma da
intuição, que é empírica, porque é sensível. Kant chama a representação da forma pura <reine
Form> de representação a priori, e a representação da matéria da sensação de representação a
posteriori3. A forma pura da sensibilidade, que se encontra a priori na mente, é chamada de
intuição pura, pois é uma intuição em que a mente se representa algo sem nada do sensível,
empírico, i.e. ''vazia de sensações''. 4
Abstraídas todas as propriedades sensíveis do algo sensível dado à sensibilidade, restam
ainda formas —a extensão e a figura— que pertencem à intuição pura5; i.e. que ocorrem ''a priori na
mente como simples forma da sensibilidade''; e.g. posso pensar a extensão sem o extenso, mas não
posso pensar o extenso sem a extensão; ou, posso pensar, i.e. representar-me, mentalmente um
espaço vazio passível de ser preenchido por um algo sensível, mas não posso pensar um algo
sensível extenso fora do espaço6.

B. Entendimento e conceitos puros e empíricos


De acordo com a definição que propus acima de razão, permita que eu defina o entendimento como
a capacidade simbólica humana, i.e. a capacidade humana de operar por meio de símbolos.
Enquanto tal, o entendimento é a capacidade da mente que opera segundo as leis (a forma) da
razão; é o receptáculo das operações das outras duas capacidades. Por isso, nos termos de Kant, em

1
Ibid., loc.cit.
2
B 34.
3
B 35.
4
Dissertatio, II, § 12. Cf. Kant, ''só de uma maneira é possível que a minha intuição seja anterior à [efetividade do
objeto <Wirklichkeit des Gegenstandes>] e se produza como conhecimento a priori, quando nada mais contém além da
forma da sensibilidade que, no meu sujeito, precede todas as [impressões efetivas <wirklichen Eindrücken>] pelas
quais eu sou afetado pelos objetos.''. Prolegomena, § 9, A 52.
5
A intuição pura humana, conforme Kant, ''não é um conceito universal ou lógico sob o qual, mas sim um conceito
singular no qual quaisquer coisas sensíveis são pensadas e, por isso, contém os conceitos de espaço e de tempo'', que
são objetos de conhecimento. Ibid., loc.cit.
6
Cf. Paton, ''nós podemos ser conscientes do espaço e do tempo fora de qualquer objeto individual, embora não
possamos ser conscientes de qualquer objeto individual fora do espaço e do tempo''. Porém, nós não podemos,
conforme Paton, ''perceber o espaço e o tempo vazios''. De acordo com Paton, para que possamos perceber tempo e
espaço, nós devemos perceber coisas no tempo e no espaço, e nós obtemos idéias de espaço e tempo absoluto ou vazio
somente por eliminação ou pensando objetos distantes no tempo e no espaço''. Paton, I, p. 113.
36
A 126, o entendimento pode ser definido ''como a faculdade das regras''. Sob essa descrição ele é a
capacidade racional stricto sensu (a capacidade lingüística).
O entendimento opera por meio da razão de duas maneiras: pura ou efetivamente. Quando o
entendimento trabalha com a razão puramente, trabalha sem os dados da experiência sensível: pode
trabalhar com a forma desta, i.e. o modo segundo o qual tais dados são acessados, ou sem levar em
conta essa forma. Sob a primeira condição, o entendimento obtém conhecimento a priori de objetos
possíveis; sob a segunda, conhecimento a priori e necessário. Quando o entendimento trabalha com
a razão efetivamente, trabalha com os dados da experiência sensível, segundo a forma com que são
acessados pelo aparato perceptual humano. Sob esta condição, o entendimento obtém conhecimento
a posteriori de objetos efetivos da experiência.
Na Dissertatio, Kant chama esta distinção entre os dois usos do entendimento, na elaboração
das representações intelectuais, de uso lógico <usus logicus> (efetivo) e uso real <usus realis>
(puro). No uso lógico do entendimento, os conceitos inferiores, independente da sua origem, são
submetidos aos superiores, que contêm as características comuns, ''e comparados entre si segundo o
princípio de contradição''1. O que precede o uso lógico do entendimento se chama aparência
<apparentia>; e o que o sucede é o conhecimento reflexivo, que resulta da comparação de várias
aparências, e que se chama experiência <experientia>. É somente por meio da reflexão, e em
conformidade com o uso lógico do entendimento, que podemos passar da aparência para a
experiência. Os conceitos da experiência, que advêm da comparação de várias aparências, são
chamados empíricos <empirici> e os objetos, ainda indeterminados, da experiência são chamados,
como vimos, fenômenos <phaenomena>. Segundo Kant, as leis da experiência e de todo o
conhecimento empírico são chamadas ''leis dos fenômenos'' 2. Por isso, os conceitos empíricos nunca
podem tornar-se intelectuais ''na acepção real <in sensu reali> mediante a redução a uma maior
universalidade, e não ultrapassam o gênero do conhecimento sensível, mas, por muito que subam na
abstração''3, permanecem sempre empíricos4.
No uso real do entendimento, ''são dados os conceitos mesmos, seja das coisas seja das
relações''5, a partir da sua própria natureza, i.e. eles não são ''abstraídos de qualquer uso dos
sentidos, nem contêm forma alguma de conhecimento sensível enquanto tal'' 6. (Estes são os
conceitos intelectuais —que, na KrV, serão chamados conceitos puros do entendimento, as
categorias).
Conforme Kant, o ''uso lógico do entendimento é comum a todas as ciências, mas não o uso
real''7, pois em todas as ciências há uma parte racional, e é esta que devemos conhecer a priori8. O
uso lógico do entendimento, nos conhecimentos sensíveis, subordina as coisas sensíveis a outras

1
Dissertatio, II, § 5.
2
Ibid., loc.cit.
3
Ibid., loc.cit.
4
Conforme Kant, o homem não possui intuição dos noumenos —coisas intelectuais, inteligíveis, as coisas tal como são
em si mesmas— <intellectualium non datur (homini) intuitus>, mas apenas um conhecimento simbólico <cognitio
symbolica>. Nós só podemos pensar estes objetos por meio de conceitos universais, abstratamente, e não por meio de
''um singular concreto''. Toda a nossa intuição, que é apenas sensível, ''está limitada por um certo princípio da forma'',
unicamente pelo qual algo pode ser concebido pela mente imediatamente como um algo singular, e não ''apenas
discursivamente mediante conceitos gerais''. Este ''princípio formal da nossa intuição'' é a única ''condição sob a qual
algo pode ser objeto dos nossos sentidos'', e, como tal, ''como condição do conhecimento sensível, não serve de meio
para a intuição intelectual''. O conceito de noumeno, enquanto objeto meramente inteligível, está completamente
''destituído de todos os dados da intuição humana'', que é passiva e, portanto, ''só é possível na medida em que algo pode
afetar os nossos sentidos''. Ibid., II, § 10. Cf. Strawson, ou nós não podemos conhecer a coisa em si mesma, ou essa
coisa em si supra-sensível é criada por nossa consciência ''e não existe independentemente dela''. Pelo fato de
pensarmos esse supra-sensível como objeto possível de uma consciência não sensível (intuição intelectual) é que ele se
denomina ''noumeno''. Strawson, p. 212.
5
Dissertatio, II, § 5.
6
Ibid., § 6.
7
Ibid., § 5.
8
B IX-X.
37
''como seus conceitos comuns, e os fenômenos são subordinados às leis mais gerais dos
fenômenos''1. O uso real do entendimento cabe somente à metafísica, que, segundo Kant, é a
''filosofia que contém os primeiros princípios do uso do entendimento puro''2. Na metafísica, porém,
não podemos encontrar princípios empíricos, pois a origem de seus conceitos deve ser buscada ''na
própria natureza do entendimento puro, não como conceitos inatos <conceptus connati>, mas como
conceitos abstraídos das leis ínsitas na mente (atendendo às ações desta por ocasião da experiência),
sendo, por conseguinte, adquiridos <acquisiti>''3. Os conceitos de possibilidade, existência,
necessidade, substância, causa, são conceitos deste tipo, e, como tais, ''dado que nunca entram como
partes em nenhuma representação dos sentidos, de modo nenhum puderam ser daí abstraídos''. 4
Em boa parte dos escritos pré-críticos, bem como na KrV, Kant compara insistentemente a
filosofia com a matemática, e, em especial, com a geometria, que, segundo Kant, é constituída a
partir de juízos sintéticos a priori. Mas, ao iniciarmos a leitura da KrV, não sabemos bem ao certo o
que significa um juízo sintético a priori, mesmo que conheçamos o objeto e o método da geometria,
e por isso deixamos de entender por que Kant insiste tanto em reclamar para a filosofia um método
sintético a priori em comparação com aquela ciência, e em que consiste sua virtude que o faz
realçá-la tantas vezes. Na verdade, a terminologia com que Kant formula, na KrV, a sua comparação
da geometria com a filosofia não é acessível facilmente, desde um primeiro momento, e podemos
passar ao largo daquilo que é o mais importante por não entendermos adequadamente o que ele está
falando.
O texto pré-crítico Sobre a nitidez dos princípios da teologia natural e da moral 5, de 1763,
elucida-nos muita coisa a respeito dessa comparação, e, mais ainda, naquilo que toca à tarefa da
filosofia, qua elucidação de conceitos obscuros6, como uma ocupação com palavras e seus
significados. A construção desse texto é sobremaneira clara, e nos leva a entender como poucos
outros, em que medida, tanto a filosofia como a matemática, são atividades simbólicas; i.e. que
lidam com conceitos universais, aos quais podemos chegar de dois modos: ou pela síntese arbitrária
de conceitos ou pela análise da representação cognitiva. 7
Conforme Kant, a matemática chega aos seus conceitos, geralmente, por meio da síntese,
enquanto a filosofia, pela análise 8. Tanto a matemática quanto a filosofia consideram o universal por
meio de signos <Zeichen>9, porém, a diferença fundamental que há entre o procedimento simbólico
da matemática em relação ao da filosofia consiste no fato de que a matemática ''considera o
universal sob os signos <Zeichen> in concreto; a filosofia <Weltweisheit>, o universal mediante os
signos in abstracto''10. O que isto quer dizer? Basicamente que, na matemática, o conceito a ser
definido nunca é dado antes de sua definição; i.e. um conceito matemático —seu significado— é
dado ao ser definido in concreto. Por exemplo, na geometria, o conceito de reta: ao concebermos o

1
Dissertatio, II, § 5.
2
Ibid., § 8.
3
Ibid., loc.cit.
4
Ibid., loc.cit.
5
Kant, Immanuel. Sobre a nitidez dos princípios da teologia natural e da moral trad. por Roberto Torretti, in: Rev.
Dialogos, v. 27, novembro de 1974, pp. 57-87.. A leitura desta tradução foi cotejada com a edição de ''Untersuchung
über die Deutlichkeit der Grundzätze der Natürlichen Theologie und der Moral. Zur Beantwortetung der Frage, welche
die Königl.Akademie der Wissenscahften zu Berlin auf das Jahr 1763 Aufgegeben hat'', in:Immanuel Kant's, sämtliche
Werke, in sechs Bänden, Band IV, op. cit.
6
De acordo com Kant, esta diferença, porém, entre o claro e o obscuro, quanto a conceitos (entendimento) e
representações (sensibilidade), tão exaltada por Leibniz e outros, como a tarefa da filosofia, não é meramente lógica,
mas transcendental, pois se refere também à origem e ao conteúdo do conhecimento. B 61-62. Ver, também,
Dissertatio, II, § 7, de Vleeschauwer, tome I, pp. 150-151, Paton, I, p. 133.
7
Para uma análise mais detalhada e contemporânea desse ponto, sob essa perspectiva, ver o trabalho de Jeanne
Peijnenburg: Formal Proof or Linguistic Process? Beth and Hintikka on Kant‟s Use of „Analytic‟, Kant-Studien, 85,
pp. 160-178, 1994, especialmente, pp. 160-171.
8
Id. Sobre a nitidez dos princípios da teologia natural e da moral, pp. 60-1.
9
Ibid., p. 63.
10
Ibid., loc.cit.
38
conceito de reta como 'a menor distância entre dois pontos', devemos traçar no espaço —
mentalmente ou não— uma linha que ligue esses dois pontos quaisquer. Ou seja, quando definimos
o conceito de reta damos, ao mesmo tempo, o seu conceito e aquilo que ele representa (simboliza).
Quando definimos a reta, nós a construímos; inequivocamente, o conceito está relacionado com o
objeto. Uma reta é sempre uma reta, não importando onde seja traçada, por quem seja pensada nem
do que seja constituída. Ela é uma representação simbólica universal cujo signo representa o objeto
(o simbolizado) in concreto, i.e. mediante signos inequívocos determinados no espaço-tempo
sinteticamente e a priori, i.e. sob as condições da sensibilidade (como veremos) 1.
Por isso, conforme Kant, pelo fato de os signos da matemática serem
meios sensíveis de conhecimento, com a mesma confiança com que alguém se certifica do
que vê com seus próprios olhos se pode saber também que não se omitiu nenhum conceito,
que cada comparação particular se efetuou conforme a regras sensíveis, etc. A atenção se vê
muito facilitada porque não tem que considerar as coisas em sua representação geral senão
aos signos em seu conhecimento particular. 2
Por outro lado, o procedimento da filosofia é ''completamente distinto'', pois os
signos do discurso filosófico não são nunca mais que palavras, que exibem em sua
composição os conceitos parciais de que consta a idéia inteira a que a palavra aponta, nem são
aptos para consignar em suas combinações as relações entre os pensamentos filosóficos 3.
[Nesse sentido,] as palavras, como signos de conhecimento filosófico, servem unicamente
para evocar a memória dos conceitos universais que designam. 4
É por esse motivo que no tipo de conhecimento peculiar à filosofia, toda vez que refletimos sobre
algo temos de ''ter presente <vor Augen haben> seu significado de modo imediato, todo o tempo''5, e
somos levados a ''representar o universal in abstrato'', sem que possamos nos aproveitar do
''importante alívio que advém de manejar signos particulares <einzelne Zeichen> em lugar dos
conceitos gerais das coisas mesmas''. 6
Ao contrário da matemática, em que um conceito só é dado ao ser definido, a filosofia tem
de lidar com conceitos já dados no discurso ordinário, pois enquanto ''na matemática não tenho
nenhum conceito de meu objeto até que a definição o dê, na [filosofia] tenho um conceito que já me
foi dado, ainda que confusamente, e devo buscar o conceito nítido, minucioso e determinado

1
Ver, na KrV, a Doutrina Transcendental do Método, em especial, B 741-750, e, nos Prolegomena, o § 7 (A 49-50).
Cf. Strawson, ''nosso conhecimento das verdades da geometria, ainda que dependente da intuição, é independente da
intuição empírica. Não depende de modo algum da observação dos objetos físicos reais com os que conhecemos através
dos sentidos. Depende completamente do exercício da faculdade da intuição pura espacial. Podemos, se quisermos,
exercitar esta faculdade com a ajuda de umas linhas físicas desenhadas em um papel físico. Mas podemos fazê-lo
igualmente bem com a imaginação. Por tal exercício conhecemos não só as características necessárias das figuras
espaciais (p.ex., os triângulos e círculos) que construímos na intuição pura; conhecemos também as características
necessárias do espaço no qual as construímos, p.ex., que é infinito e tridimensional. Desta forma podemos descrever
com propriedade o mesmo espaço infinito (euclidiano) como uma intuição pura, quer dizer, como produto do exercício
da faculdade da intuição pura. A tese do idealismo transcendental, no que se refere ao espaço, é a complexa tese de que
a faculdade de intuição espacial, ou conhecimento espacial, que pode ser exercitada puramente, quer dizer, em total
independência de qualquer afecção de nossa constituição cognoscitiva pelas coisas como são em si, é a mesma
faculdade que, em um papel distinto, é, por assim dizer, excitada pelo efeito que sobre nós causam as coisas como são
em si e que é então responsável por nosso conhecimento, na intuição pura, de itens ordenados e caracterizados
espacialmente. E por esta razão, as matemáticas puras do espaço são as matemáticas do espaço físico, e as proposições
da geometria pura se confirmam nos objetos físicos da intuição empírica''. Strawson, op. cit., p. 60.
2
Sobre a nitidez..., p. 78.
3
Ibid., p. 63.
4
Ibid., p. 78.
5
Ibid., loc.cit.
6
Ibid., p. 64.
39
correspondente''1, verificando, cada vez que este conceito for diferentemente aplicado, se ele ''não
foi alterado, ainda que seu símbolo <Zeichen> siga sendo igual''. 2
A filosofia tem de lidar com palavras, cujo significado é conferido pelo uso destas no
discurso usual. Na matemática, porém, conforme Kant,
o significado <Bedeutung> dos signos <Zeichen> é seguro, pois alguém pode facilmente se
dar conta de qual é o que se quis conferir a eles. Na filosofia em geral e em particular na
metafísica [—que é uma filosofia acerca dos primeiros fundamentos de nosso
conhecimento3—] as palavras obtêm seu significado mediante o uso idiomático
<Redebraucht>, exceto quando se o determina com mais precisão por delimitação lógica. 4
Pois, para Kant, pelo fato de que costumamos usar
as mesmas palavras para expressar conceitos muito parecidos, que sem dúvida contêm oculta
uma diferença considerável, cada vez que se emprega um conceito neste campo, ainda que sua
denominação pareça exatamente apropriada conforme ao uso idiomático, temos que atender
com grande cuidado para ver se [efetivamente <wirklich>] é um mesmo conceito o que se
associa [em cada caso] ao mesmo signo. 5
Conforme a Lógica, ''[t]odos os conhecimentos, quer dizer, todas as representações
relacionadas a um objeto são ou intuições ou conceitos. A intuição é uma representação singular
(repraesentatio singularis), o conceito uma representação universal (repraesentatio per notas
communes), ou refletida (repraesentatio discursiva)'' [sic].6 De acordo com Kant, na KrV, fora da
intuição, nós só podemos conhecer por conceitos, por isso, o conhecimento —humanamente
considerado— de todo o entendimento —enquanto faculdade não sensível do conhecimento— é um
conhecimento por conceitos, e portanto discursivo e não intuitivo. Para Kant, os conceitos são
funções; e uma função é ''a unidade da ação de ordenar diversas representações sob uma
representação comum''. É por meio dos conceitos que o entendimento formula juízos; e como o
conceito é uma representação que nunca se refere imediatamente a um objeto, ''mas a alguma outra
representação qualquer deste'', o juízo é o ''conhecimento mediato de um objeto, por conseguinte a
representação de uma representação do mesmo''.7
De acordo com Kant, a lógica geral não leva em consideração em sua atividade o conteúdo
do conhecimento, mas apenas que representações sejam dadas e transformadas em conceitos 8. E
esse processo de sintetizar representações em conceitos, segundo Kant, é analítico. O que isto quer
dizer?

1
Ibid., p. 70.
2
Ibid., p. 76.
3
Ibid., p. 68.
4
Ibid., p. 71.
5
Ibid., loc.cit. Antes da doutrina do idealismo transcendental —especialmente no que se refere ao esquematismo dos
conceitos puros do entendimento, como veremos—, não era possível definir filosoficamente um conceito tal como o de
substância com tanta precisão quanto um conceito geométrico, tal como o de reta, sem dificuldades. Pois seria sempre
necessário fazer apelo ou a uma generalização ou a uma consideração empírica que antecede a definição desse conceito,
e que advém do seu uso na linguagem, i.e. partir ou de um exemplo muito geral ou de um particular, para só então
realizar a função de listar e reunir as notas características desse conceito, a fim de que ele pudesse ser um instrumento
de classificação de objetos empíricos. Cf. Kant, ''há conceitos tais que podemos muito bem produzir a priori, alguns
deles, sobretudo os que contêm unicamente o pensamento de um objeto em geral, sem que nos encontremos numa
relação imediata com o objeto, por exemplo, o conceito de quantidade, de causa, etc.; mas, [mesmo estes, para
conseguirem significado <Bedeutung> e sentido <Sinn>, necessitam <aber selbst diese bedürfen doch, um ihnen
Bedeutung und Sinn zu verschaffen>] de um certo uso <Gebrauch> in concreto, i.e. de uma aplicação a alguma intuição
<Anschauung>, através da qual nos seja dado um objeto <Gegenstand>''. Prolegomena, § 8, A 50-51.
6
Kant, Lógica, A 139/ Ak 91.
7
B 93.
8
B 102.
40
Segundo Longuenesse1, para Kant, ''todo juízo é síntese, quer dizer, ligação de
representações''; e o que esta ligação tem de específico, no que se refere à síntese sensível, é ''que
ela é ligação de conceitos'', i.e. ''ela tem por meio 'a unidade analítica da consciência' '' 2. De acordo
com Kant, a síntese de representações só é possível mediante ''a consciência dessa síntese'', pois, é
só porque ''posso, numa consciência, ligar um múltiplo de representações dadas, [que] é possível
que eu mesmo me represente, nessas representações, a identidade da consciência, isto é, a unidade
analítica da apercepção só é possível pressupondo alguma unidade sintética qualquer'' 3. E a
''unidade analítica da consciência'' eleva a unidade sintética de uma representação comum a coisas
diferentes ao estatuto de um conceito comum (conceptus communis)4. Isto equivale a dizer que a
relação de ''ser comum a vários'', que é a propriedade fundamental do conceito, é para Kant, a
''unidade analítica da consciência''.
Na Estética Transcendental encontramos o material dos conceitos puros do entendimento,
que serão trabalhados na Lógica Transcendental: um diverso da sensibilidade a priori. Sem este
diverso, dado como matéria, a Lógica Transcendental seria destituída de conteúdo, e, portanto,
vazia. Disso se segue o seguinte: a lógica geral se ocupa dos conceitos, desconsiderando os objetos;
a Lógica Transcendental, ao contrário, se ocupa dos objetos, quanto à sua fonte.5
Na introdução à Lógica Transcendental, na Crítica da razão pura, lemos que o ''nosso
conhecimento surge de duas fontes principais da mente, cuja primeira é receber as representações (a
receptividade das impressões)'' —a sensibilidade— ''e a segunda a faculdade de conhecer um
objeto por estas representações (espontaneidade dos conceitos)'' —o entendimento—; ''pela
primeira um objeto nos é dado; pela segunda [ele] é pensado em relação com essa representação''6.
O que Kant diz aqui é que o diverso de elementos da intuição pura a priori, que estão contidos no
espaço e no tempo, dizem respeito à nossa sensibilidade, que pode receber representações de
objetos. O entendimento, uma vez afetado por estas representações de objetos, deve poder produzir
conceitos, a fim de que possamos pensar estes objetos dados, mas, para tanto, é necessário que este
diverso dado de representações seja ''primeiro e de certo modo perpassado, acolhido e ligado para

1
Longuenesse, B., Kant et le Pouvoir de Juger Sensibilité et Discursivité dans l'analytique Transcendentale de la
Critique de la Raison Pure, Paris, P.U.F., 1993.
2
Ibid., pp. 91-3.
3
B 133. Conforme Longuenesse, para Kant, todo juízo é síntese, i.e. ligação de representações. A especificidade desta
ligação, no que diz respeito à síntese sensível, consiste em ser ligação de conceitos, ou seja, é realizada mediante a
unidade analítica da consciência. Para Longuenesse, é a presença deste dois elementos —síntese e análise— na
definição que Kant dá à forma lógica do juízo que é geradora de inúmeras incompreensões por parte de seus intérpretes,
pois estes costumam não desvincular a noção de análise da noção de juízo analítico, e este ao fato de que a lógica geral,
por tratar da forma lógica do juízo, só trata de juízos analíticos. Conforme Longuenesse, pelo fato de a tábua das
categorias apresentar uma função apenas arquitetônica na exposição de Kant, e só tomando em consideração as ''simples
formas do pensamento independentemente de todo o conteúdo, não pode nos ensinar nada do exercício do pensamento
em sua referência ao objeto''. Para Longuenesse, ''a unidade analítica da consciência'' é diferente da ''ligação de
conceitos em juízos analíticos''. A ''operação analítica'' , que opera sobre representações sensíveis e permite a formação
dos conceitos, ''acompanha a unidade analítica da consciência'' (unidade da apercepção), e difere da análise dos
conceitos (do sujeito e do predicado) formadores de juízos analíticos. Portanto, a ''unidade analítica'', de que fala Kant,
e que provê a ''forma lógica do juízo'' é a primeira e não a segunda, pois, conforme Longuenesse, ''não é pela ligação
analítica dos conceitos no juízo, mas a unidade analítica da consciência que 'se liga a todos os conceitos comuns como
tais' ''. Disso se segue que, do fato de o juízo ter por matéria conceitos, ele ''tem por prioridade necessariamente
representações dadas''. Para Longuenesse, só é possível compreender a tábua das categorias, de Kant, se entendermos
antes o que ele entende por ''forma lógica do juízo'', pois, conforme Longuenesse, é por meio destas formas que ''se
constitui o exercício do pensamento discursivo em geral''. Ibid., pp. 91-93; ver também pp. 221-223.
4
Conforme Allison, é importante observar, aqui, a razão pela qual Kant considera a tese referente à conexão entre
''apercepção e síntese como equivalente à tese de que a ''unidade analítica da apercepção é possível somente sob o
suposto de uma certa unidade sintética''. De acordo com Allison, Kant começa a elaborar aqui a ''conexão entre
apercepção e entendimento, uma conexão [...] crucial para a totalidade do argumento da Dedução''. Allison, pp. 233-4.
5
Uma outra maneira de formular a mesma posição encontramos no segundo parágrafo de B 104, onde lemos: ''Diversas
representações são postas analiticamente sob um conceito (tarefa concernente à lógica geral). A lógica transcendental,
todavia, ensina a reportar não as representações, mas a síntese pura das mesmas a conceitos''.
6
B 74.
41
que se faça disso um conhecimento''1. Este ato, Kant denomina síntese2. Porém, para que se torne
conhecimento propriamente dito, mesmo produzindo um primeiro conhecimento, essa síntese de um
diverso dado requer que o entendimento a reporte a conceitos.3
Para Kant, dada a sua distinção entre as duas fontes de conhecimento: a sensibilidade e o
entendimento, é necessário que se distinga também os objetos com que se está lidando ao se
formular conceitos, se objetos dados pela sensibilidade ou pelo entendimento puro, destituído de
todo elemento empírico, pois, conforme Kant, existe uma confusão, que se estabeleceu
freqüentemente na filosofia, entre os dois objetos e as duas faculdades, e que ele chama de
anfibologia transcendental.
A intuição sensível fornece os dados empíricos (o múltiplo dado na intuição sensível), ao
passo que o entendimento fornece os conceitos a priori e puros (as categorias), por meio dos quais
os dados empíricos serão pensados. E é operando sobre esses dados com o auxílio dos conceitos do
entendimento, que, por meio da razão, formamos os juízos, quer a posteriori (empíricos) quer a
priori.
No Apêndice à Dedução Transcendental, Kant vai se dedicar a fazer a crítica àqueles que na
filosofia não fizeram a distinção necessária entre: primeiro, fenômeno e noumeno; e, segundo, entre
operação do entendimento e operação da sensibilidade. Fundamentalmente esta sua crítica vai
incidir sobre dois filósofos que o antecederam, a saber: Leibniz e Locke. Leibniz é acusado por
Kant de cometer o erro grave de converter o fenômeno em noumeno —objeto do entendimento— e
lidar com ele apenas por meio de conceitos construídos pelo entendimento, intelectualizando
conceitos empíricos. Locke, por sua vez, ao contrário, converte o noumeno em fenômeno, valendo-
se apenas de princípios empíricos para construir conceitos de objetos da experiência, sensualizando
desse modo os conceitos.
O que Kant reclama no Apêndice é uma distinção entre dois tipos de reflexão que devem ser
levadas em conta ao serem elaborados conceitos, ou seja, devemos comparar os conceitos (reflexão
lógica), a fim de saber antes a que tipo de objeto estes conceitos se referem, se a objetos dados à
sensibilidade, portanto, objetos sensíveis, ou a objetos meramente inteligíveis, portanto, do
entendimento. E esta distinção é possível por meio da reflexão transcendental, pois, para Kant, a
reflexão lógica, ao não levar em conta a fonte do objeto em questão no conceito, não pode informar
nada acerca do conteúdo do conceito, não evitando assim que, devido ao mau uso dos dados da
sensibilidade e das operações do entendimento, se confundam propriedades dos objetos com
propriedades dos conceitos, ou melhor, propriedades dos objetos dados à sensibilidade com as dos
objetos do entendimento puro.
Conforme Longuenesse4, a forma de ligações discursivas advém de uma operação
fundamental: a comparação de representações —comparação de representações sensíveis em vista
da formação de conceitos que, por sua vez, são a ''forma que requer a faculdade de julgar''; ou seja,
a comparação de conceitos em vista da formação de juízos. Kant, no texto pré-crítico Acerca da
falsa sutileza das quatro figuras do silogismo 5, define assim o ato de julgar: ''Julgar é comparar

1
B 102.
2
Para Kant, B 103, síntese é ''a ação de acrescentar diversas representações umas às outras e de conceber a sua
multiplicidade num conhecimento''. Se esse múltiplo da intuição sensível não for dado empiricamente, ''mas a priori
(como o múltiplo no espaço e no tempo)'', a síntese é pura, caso contrário, ela é empírica.
3
B 103. Cf. Paton, o pensamento ''nos dá a síntese sem a qual não há unidade em objeto algum''. Esta síntese, conforme
Paton, é ignorada na Estética Transcendental. Paton, I, p. 98.
4
Longuenesse, pp. 131-137.
5
Kant, I., Textos Pré-críticos, trad. de José de Andrade e Alberto Reis, Porto, Editora, 1983, p.101. (Esta
observação é feita por Kemp Smith, pp. 181-182).
42
qualquer coisa, tomada como característica, com outra coisa''; donde, a ''própria coisa é o sujeito; a
característica é o predicado''. 1
Longuenesse reputa à noção de comparação, tão freqüentemente ignorada pelos intérpretes
de Kant, elevada importância no corpo de sua doutrina crítica. E, longe de possuir, no uso que dela
faz Kant, um caráter empirista —o que vai contra a sua intenção de privilegiar ''a determinação do
empírico pelo a priori''— apresenta-se como uma operação lógica na formação de conceitos.
De acordo com Longuenesse, Kant, na Anfibologia2, sugere que se distinga entre
comparação de objetos dados pela intuição sensível e comparação de conceitos. Esta comparação é
chamada lógica, e é a que ele chama de reflexão lógica e que se distingue da outra, que ele chama
de reflexão transcendental, que consiste em determinar a fonte a que pertence o objeto que é dado
ao entendimento. Em outros termos, a reflexão transcendental consiste em realizar ''a distinção entre
comparação de conceitos (comparação ou reflexão ''simplesmente lógica'') e comparação de objetos,
como fenômenos''3. (Uma outra versão da distinção entre os dois usos do entendimento: o lógico e o
real, tal como vimos acima).
A Lógica orienta acerca do modo como, no entendimento, produzimos conceitos. Ou seja,
como, de representações dadas, formamos conceitos e como estes se aplicam depois aos seus
objetos. Se considerarmos novamente a frase citada acima do texto pré-crítico: ''Julgar é comparar
qualquer coisa, tomada como característica com outra coisa'' e a compararmos com a definição de
conceito empírico que encontramos na Lógica, a saber, é aquele que ''se origina dos sentidos pela
comparação dos objetos da experiência e recebe mediante o entendimento unicamente a forma da
universalidade''4, podemos, de certo modo dizer que conceituar é julgar.
Os conceitos, de acordo com a Lógica, são notas características5, e estas são o fundamento
do nosso conhecimento, pois, da parte do entendimento, o conhecimento humano é ''discursivo;
quer dizer, ele tem lugar mediante representações que fazem daquilo que é comum a várias coisas o
fundamento do conhecimento, por conseguinte, mediante notas características enquanto tais''6. Ora,
se ''os nossos conceitos são notas características'' e ''pensar é representar por meio de notas
características'', então, o nosso pensamento representa por meio de conceitos 7. E um conceito é
gerado quanto à sua forma por meio dos três atos do uso lógico do entendimento: a comparação, a
reflexão e a abstração.8

1
''Etwas als ein Merkmal mit einem Dinge vergleichen heißt urteilen. Das Ding selber ist das Subjekt, das Merkmal das
Prädikat''. Kant, I., Die falsche Spitzfindigkeit der vier syllogistischen Figuren erwiesen, in: Immanuel Kant's sämtliche
Werke in sechs Bänden, op.cit., p. 95.
2
''Antes de todos os juízos objetivos, comparamos os conceitos para chegar à identidade (de muitas representações sob
um conceito) com vista aos juízos universais, ou à diversidade de tais representações para a produção de juízos
particulares; à concordância, da qual podem formar-se juízos afirmativos, e à oposição, da qual podem formar-se juízos
negativos, etc. Por essa razão deveríamos, como parece, denominar conceitos comparativos (conceptus comparationis)
os conceitos indicados.'' B 317-318.
3
Longuenesse, p. 134.
4
Kant, Lógica, A 141/Ak 92.
5
Em Ak 58/A 85, lemos o seguinte: ''(o) conhecimento humano é, da parte do entendimento, discursivo; quer dizer, ele
tem lugar mediante representações que fazem daquilo que é comum a várias coisas o fundamento do conhecimento, por
conseguinte, mediante notas características enquanto tais. Nós só reconhecemos <Erkennen>, pois, as coisas mediante
características [...]. Uma nota característica é aquilo que, numa coisa, constitui uma parte do conhecimento da mesma;
ou ... uma representação parcial na medida em que é considerada como uma razão de conhecimento da representação
inteira. Por conseguinte, todos os nossos conceitos são notas características e pensar nada mais é do que representar
mediante notas características.'' .
6
Ibid., Ak 58/A 85.
7
Conforme Kant, em B 94, ''todos os juízos são funções da unidade sob nossas representações'', pois, para que
possamos conhecer um objeto, é necessário uma representação mais elevada que inclua a dele e outras mais, a fim de
reunir num só conhecimento muitos conhecimentos possíveis. Para Kant, podemos ''reduzir todas as ações do
entendimento a juízos, de modo que o entendimento em geral pode ser representado como uma faculdade de julgar'',
porque ''é uma capacidade de pensar''. E pensar é conhecer mediante conceitos; estes, por sua vez, enquanto predicados
de juízos possíveis, ''referem-se a uma representação qualquer de um objeto ainda indeterminado''.
8
Longuenesse, p. 135.
43
Mas para que estabelecer a identidade, a diversidade, a concordância e a oposição, por meio
da comparação de conceitos antes de formar juízos objetivos? De acordo com Longuenesse, a
comparação que Kant tem em vista é ''aquela por meio da qual conceitos são formados pela
comparação de representações sensíveis''1. Esta comparação é aquela que permite que ''objetos
sensíveis sejam tornados representáveis e efetivamente representados por conceitos''2, uma vez que
todos os conceitos devem ter um uso empírico. Conforme Longuenesse, a ''comparação de
representações sensíveis que dá lugar à formação de conceitos é orientada em direção da busca de
caracteres comuns''3. Nesse sentido, há um procedimento de conversão de representações ou
intuições em conceitos.
A fim de produzir um conceito, conforme Longuenesse, as três operações do entendimento
trabalham de forma conjunta. Mas é somente porque está vinculada às outras duas que a
comparação se encaminha ao geral, i.e. ao conceito. De acordo com Longuenesse, comparar
representações em vista da formação de conceitos, é portanto comparar esquemas; e comparar
esquemas, graças aos três atos conjuntos da comparação propriamente dita, da reflexão e da
abstração, é acima de tudo suscitar estes esquemas na tensão mesma de suas identidades e
diferenças. 4
Como vimos, o objetivo da lógica geral, de acordo com Kant, é o de saber como o
entendimento pode referir-se a objetos em geral, ou seja, saber como ''representações dadas se
tornam conceitos no pensamento''5. Por isso, ela abstrai ''de todo conteúdo do conhecimento, isto é,
de toda referência <Beziehung> do mesmo ao objeto, e só considera a forma lógica na relação dos
conhecimentos entre si, isto é, a forma do pensamento em geral'' 6. Desse modo, não pode se ocupar
da matéria do conhecimento, mas apenas da sua forma, partindo apenas do fato de que
representações são dadas e são transformadas em conceitos.
Os conceitos são, segundo Kant, notas características obtidas mediante síntese de diversas
representações. É por intermédio da síntese que converto uma nota característica de um objeto dado
em conceito. Estas notas, por sua vez, podem ser analíticas ou sintéticas; as primeiras são os
conceitos da razão, as segundas, os conceitos da experiência. Com base nisso, podemos dizer o
seguinte: uma palavra simboliza (é signo de) um conceito, e este representa um objeto empírico ou
puro (universal) mediante notas características in abstracto. Se definir um conceito é, segundo
Kant, explicitar suas notas características <Merkmale>, i.e. apresentar o seu conteúdo <Inhalt> —
aquilo que ele representa—, esse conteúdo pode situar-se apenas no nível do pensamento ou não.
Quando definimos um conceito, damos o seu conteúdo, e, assim, apresentamos o significado (ou
sentido)7 da palavra que o designa. Desse modo, podemos dizer que um conceito tem um conteúdo e
a palavra que o designa, um significado. No entanto, Kant diz que um conceito tem significado, e
do mesmo modo que podemos dizer que uma palavra tem conteúdo. Nós podemos, porém, ter
palavras que não designam nenhum conceito, pois uma palavra pode designar um objeto
imediatamente, i.e. sem a mediação de um conceito; nesse caso, a designação se faz por ostensão,
puramente, e a palavra é dita não ter conteúdo nem significado, mas apenas referência, i.e. sentido.

1
Ibid., p. 136.
2
Ibid., p. 137.
3
Id., loc.cit.
4
Ibid., p. 139.
5
Kant, Lógica, A 144/Ak 94.
6
B 79.
7
Convém observar, porém, que, na KrV, Kant utiliza indiscriminadamente Bedeutung e Sinn, como expressões
sinônimas. Assim, temos, por exemplo, numa passagem de B 299, o seguinte: Conforme Kant, na Matemática
produzimos princípios e representações de objetos ''inteiramente a priori na mente <Gemüt>'', os quais ''não
significariam <bedeuten> absolutamente nada se não pudéssemos sempre mostrar a sua significação <Bedeutung> nos
fenômenos (objetos <Gegenständen> empíricos)''. Para Kant, é necessário que se torne ''sensível um conceito abstrato'',
mostrando ''na intuição o objeto correspondente a ele''. Caso contrário, o conceito ''permaneceria (como se diz) privado
de sentido <Sinn>, isto é, de significação <Bedeutung>''.
44
A pergunta é: o que é para Kant um conceito ter significado? Um conceito ter significado é
ele ser dado (ou usado) numa relação de determinação de um algo possível ou efetivo na
experiência1. O significado de um conceito —nome, palavra <Wort>— resulta da correta aplicação
do conjunto de suas notas características na determinação de um algo possível ou efetivo na
experiência. O significado de um conceito não é, por um lado, apenas sua aplicação arbitrária a um
algo dado nem, por outro, a explicitação de suas notas características, i.e. sua definição; que, desse
modo, não é filosófica, mas apenas gramatical. Um conceito ter significado é ser ele capaz de
representar um algo <Etwas> possível ou efetivo mediatamente, i.e. por meio de notas
características; em outras palavras, é ser ele capaz de representar um objeto possível ou efetivo
da/na série empírica. No primeiro caso, o conceito é puro, no segundo, empírico.
Um conceito se refere —significa, representa, está-por— um objeto, num juízo. Se os
conceitos nele relacionados —ou, se a relação expressa entre os conceitos no juízo— se referem a
algo possível ou efetivo, o juízo tem sentido <Sinn> e os conceitos têm significado <Bedeutung>.
Isto equivale a dizer que: um juízo tem sentido quando as palavras nele expressas estão na condição
de ''estar-por'' algo possível ou efetivo. Juízos que empregam conceitos que não têm significado, i.e.
que não se referem nem representam algo nem possível nem efetivo, na experiência, são juízos sem
sentido, e seus conceitos vazios, pois, conforme Kant,
não podemos compreender senão o que uma coisa correspondente às nossas palavras <unsern
Worten> traz consigo na intuição.2
'Possível' e 'efetivo', como vimos, dizem respeito às condições de possibilidade da
experiência, i.e. de algo poder ser ou ser dado na experiência. Portanto, um conceito ter significado
e um o juízo, sentido, equivale aos conceitos se referirem a algo possível ou efetivo e o juízo
descrever ou retratar um estado possível ou efetivo de objetos. Por isso, um símbolo <Zeichen> —
que pode ser um desenho, um número ou uma palavra— está por um objeto, imediata ou
mediatamente. No primeiro caso, ele está pelo objeto ostensivamente, sem a mediação de um
conceito, e, portanto, tal símbolo tem apenas sentido <Sinn> ou referência <Referenz>; no segundo,
ele está pelo objeto mediatamente, i.e. por meio das notas características expressas no conceito; e,
portanto, nesse caso, o símbolo tem um conteúdo, um significado. No primeiro caso, o símbolo está
pelo objeto individualmente, ao ser proferido ou utilizado; no segundo caso, o símbolo só está pelo
objeto em conexão com outros, num juízo. O que representa o objeto, portanto, nesse caso, não é o
símbolo nem seu conteúdo, mas a unidade do arranjo desses símbolos. Daí, podermos dizer com
Kant que um tal arranjo de símbolos indica <bezeichnet/bezeigt> um objeto —um estado de coisas
possível ou efetivo; i.e. tem sentido <Sinn>.
No entanto, temos conceitos para objetos que se encontram apenas no nível do pensamento,
e são transcendentais, i.e. não podem ser dados sob as condições da sensibilidade, mas apenas
pensados3. O 'círculo quadrado', p.ex., é um nome que designa um conceito contraditório, cujo

1
Que um conceito seja aplicável a um algo na experiência efetiva ou possível é o que Strawson chama de princípio de
significatividade <Principle of Significance>. Cf. Strawson, segundo este princípio, ''não podemos fazer nenhum uso
com significado de conceitos em proposições que pretendam expressar um conhecimento, a não ser que tenhamos
critérios empíricos de aplicação de tais conceitos''. (Strawson, p. 214). Este mesmo princípio, quando ''aplicado às
categorias, é derivado por Kant como uma conseqüência da natureza da parte que julga a faculdade do entendimento no
momento de ordenar a experiência, enquanto que a verdadeira possibilidade de conhecimento das características
necessárias da experiência depende do subjetivismo transcendental: a teoria da mente fabricando a Natureza''. Strawson,
p. 14-20.
2
B 333.
3
Porém, não é possível pensar fora da condição temporal do sentido interno, mesmo os juízos puros e os conceitos do
entendimento, bem como o próprio pensamento, estão sob a condição do tempo, que é condição de possibilidade de
todo o conhecimento. (Ver Giannotti, J. A., Forma do Juízo e Apresentação do Caso em Kant; em Apresentação do
mundo, pp. 297-307. Ver também B 182, A 98/99 —p. 60). Cf. Strawson, os conteúdos da auto-consciência empírica
não são conhecimentos ou consciências das coisas como são em si, mas fenômenos daquilo a que pertence tanto a
sensibilidade como o entendimento. ''Pois o poder de conceitualizar, ou o poder de pensar, se manifesta temporalmente
em todo reconhecimento ou classificação empíricos, e este poder, ainda que sua manifestação na experiência deva ser
45
objeto não pode ser pensado, pois infringe a regra de funcionamento do entendimento: o princípio
de contradição. Por outro lado, 'Deus' designa um conceito não-contraditório, mas cujo objeto
igualmente não pode ser pensado. Nesse caso, o objeto é posto analogamente pelo pensamento 1. Um
'círculo quadrado' é um conceito contraditório, i.e. sem sentido, nem significado; 'Deus', porém, é
um conceito sem sentido mas com significado possível apenas ao pensamento 2. É, portanto, um
conceito impossível empiricamente de um objeto transcendental, dável apenas pelo pensamento,
jamais aos sentidos.3
De acordo com o texto da Lógica, devemos distinguir a matéria do conceito da sua forma4.
Todos os conceitos, quanto à sua matéria, podem ser dados ou factícios. Os conceitos dados
podem, por sua vez, ser ou a priori ou a posteriori. Os conceitos dados a priori são as noções, os
que têm sua matéria fornecida pelo entendimento. Os conceitos dados a posteriori são os chamados
conceitos empíricos ou de experiência, e têm sua matéria fornecida pelos sentidos através da
comparação dos objetos da experiência, realizada pelo entendimento.5
Um conceito suficientemente distinto e adequado de um objeto é uma definição. Definir,
conforme Kant, consiste em ''apresentar originariamente, dentro de seus limites, o conceito
minucioso de uma coisa''6, i.e. as características enumeradas pelo conceito do objeto devem ser
claras, precisas, exaustivas, exclusivas e suficientes para determiná-lo. De acordo com Kant,
''[t]odas as definições ou são analíticas ou sintéticas'' 7; as definições analíticas são as que
apresentam um conceito dado (ou a priori ou a posteriori), i.e. são definições nocionais (noções); e
têm como matéria objetos ''produzidos'' pelo entendimento. As definições sintéticas são as que
apresentam um conceito factício (feito ou a priori ou a posteriori). Elas derivam da síntese de
conceitos factícios, que pode ser de dois tipos: (i) ''síntese da exposição dos (fenômenos)'', que
consiste na ''síntese de conceitos feitos empiricamente, a partir de fenômenos dados como a matéria
deles''; e (ii) ''síntese da construção'', que consiste na ''síntese de conceitos arbitrariamente feitos'',
i.e. conceitos cuja matéria é originada no intelecto, e.g. os conceitos matemáticos.
Todas as definições, tanto dos conceitos que derivam de (i) quanto dos que derivam de (ii),
''têm, pois, que ser feitas sinteticamente''. Pois também no caso dos conceitos que derivam de (i), os
conceitos empíricos, ''não devo analisar o que está neles, mas aprender pela experiência o que
pertence a eles''8. Nesse sentido, portanto, conforme a Lógica, ''[t]odos os conceitos empíricos têm,
pois, que ser considerados como conceitos factícios cuja síntese, porém, não é arbitrária, mas
empírica''9. Pois, quando lemos na Lógica que é necessário distinguir a matéria do conceito de sua
forma, e a primeira é apresentada como podendo ser ou dada ou factícia —e daí o conceito ser

temporal, é realmente idêntico à, ou tem sua fonte em, característica produtora de formas (entendimento) dessa coisa em
si temporal à que também pertence a característica outorgadora de formas (a sensibilidade)''. Strawson, p. 212. Ver
também Dissertatio, § 14.
1
Sobre a noção de idéia como um analogon de um esquema da sensibilidade, ver B 693.
2
Sobre a noção de 'Deus' como uma idéia da razão, ver B 611-670.
3
De acordo com Strawson, a ''ilusão de um conhecimento metafísico surgiria somente no momento em que se pensasse
que deveriam dar-se realidades que respondessem a tais idéias, assim como se fosse possível ter conhecimento de tais
realidades só com o puro pensar, sem o concurso da experiência. Era neste tipo de pensamento no qual se violava o
princípio de significatividade''. Boa parte da KrV está ocupada com a demonstração dos casos ''em que estamos tentados
a violar o princípio , assim como a demonstrar o caráter vazio, e em alguns casos conflitivo, das pretensões do
conhecimento metafísico que resulta deste modo de agir''. Strawson, op. cit., p. 15.
4
Conforme o texto da Lógica, em A 139/Ak 91, o conceito é ''uma representação universal ou uma representação
daquilo que é comum a diversos objetos, logo uma representação na medida em que pode estar contida em diferentes
objetos''. No conceito, é necessário distinguir uma matéria e uma forma. ''A matéria dos conceitos é o objeto; sua
forma, a universalidade.''.
5
''Todos os conceitos dados empiricamente ou a posteriori se denominam conceitos da experiência...''. Ibid., A 143/Ak
93.
6
B 755.
7
Id., Lógica, A 217/Ak 141.
8
Ibid., A 218/Ak 141.
9
Id., loc.cit.
46
dado ou factício quanto à matéria—, isso não significa que a forma do conceito pode também ser
dada ou factícia, mas apenas factícia, pois todos os conceitos, quanto à forma são elaborações do
entendimento, portanto, são ''coisas feitas'', e, por isso, factícios.
Convém enfatizar a distinção que Kant faz entre formar um conceito distinto, e tornar
distinto um conceito. O primeiro procedimento é sintético, o segundo, analítico. 1
Na Lógica2, encontramos a maneira pela qual podemos tornar distintos o conteúdo de um
conceito e a sua extensão ou esfera. Na verdade, tornar distinto o conteúdo de um conceito é
distinguir o que está contido no conceito, aquilo que o conceito contém em si —as suas notas
características—; tornar distinta a extensão de um conceito é distinguir o que está contido sob ele —
os objetos aos quais ele se aplica. A distinção do conteúdo de um conceito se faz: (i) mediante a
exposição, que é a explicitação exaustiva, uma a uma, de suas notas características; e (ii) mediante a
definição, que consiste na apresentação originária do ''conceito minucioso de uma coisa'' 3 dentro de
seus limites. Em outros termos, a definição de um conceito consiste na determinação pormenorizada
de todas as suas notas características.
Ora, considerando que um conceito empírico tem por matéria a síntese de um múltiplo de
representações dadas pela experiência sensível, essa exigência, de acordo com o texto da Lógica,
jamais pode ser satisfeita 4, pois é sempre possível que se encontre na experiência características a
mais do conceito que não tinham sido antes vistas. Para Kant, somente os conceitos arbitrários
podem ser definidos, pois o seu objeto não é dado nem a posteriori, pela experiência sensível, nem
a priori, pela natureza do entendimento, mas é inteiramente construído pelo pensamento. A síntese,
na definição do conceito arbitrário, é possível, pois eu ''tenho que saber o que eu quis pensar'' 5 com
ele, pois eu próprio o formei. Ou seja, ele pode ser totalmente delimitado, na apresentação de suas
notas características, tal como exige a definição.
A distinção da extensão ou esfera de um conceito, por sua vez, se faz mediante a divisão
lógica deste, que consiste na determinação de um conceito com relação a todos os ''objetos possíveis
contidos sob ele, enquanto se opõem, i.e. diferem um do outro'' 6. Dividir logicamente um conceito
consiste portanto em considerar o que está contido sob este conceito —sua extensão—, e não o que
está contido nele —seu conteúdo.
A fim de ilustrar melhor a nossa interpretação, tomemos um conceito empírico, e.g. o de
cachorro: 'cachorro é um animal quadrúpede latidor'. Dado o conceito empírico de cachorro: (i)
Como torno este conceito logicamente distinto? e (ii) Como, por meio deste conceito, torno o objeto
distinto?
(i) Torno o conceito acima logicamente distinto, desmembrando-o em suas partes constituintes e
elucidando-as uma a uma; ou seja, parto do conceito dado —do todo—, e analiso uma a uma as
1
''À síntese compete tornar distintos os objetos; à análise, tornar distintos os conceitos. Aqui o todo precede as partes, lá
as partes precedem o todo. O filósofo apenas torna distintos conceitos dados. Às vezes a gente procede sinteticamente,
mesmo que o conceito, que se quer tornar distinto dessa maneira, já esteja dado. Isso ocorre com freqüência com
proposições da experiência, na medida em que não se esteja satisfeito com as características já pensadas em um
conceito dado.''. Ibid., A 95-96/Ak 64. Conforme Kant, B 103, só quanto à forma um conceito é gerado analiticamente.
Quanto ao seu conteúdo, ele é gerado sinteticamente. Para Kant, necessitamos analisar as nossas representações. Antes,
porém, tais representações têm de nos ser dadas, pois ''a síntese de um múltiplo (seja dado empiricamente ou a priori)
produz primeiro um conhecimento'', que necessita da análise por poder ser inicialmente confuso, ''todavia, é a síntese
que coleta propriamente os elementos em conhecimentos e os reúne num certo conteúdo'', e é este conteúdo que
devemos considerar, antes de tudo, para que possamos ''julgar sobre a origem primeira de nosso conhecimento''.
2
''A consciência distinta do conteúdo dos conceitos é promovida pela exposição e definição dos mesmos; a consciência
distinta da sua extensão, ao contrário pela divisão lógica dos mesmos.''. Ibid., Ak 140/A 218.
3
B 755.
4
''Visto que a síntese dos conceitos empíricos não é arbitrária, mas empírica e, enquanto tal, jamais pode ser completa
(porque se podem sempre descobrir na experiência outras características mais do conceito), os conceitos empíricos
também não podem ser definidos.''. Id., Lógica, A 219/Ak 141-142.
5
B 755.
6
Id., Lógica, Ak 146/A 225.
47
notas características que o compõem —as suas partes. Para tanto, dentro do nosso exemplo, devo
apresentar o conceito de animal e o de quadrúpede, etc. Com isso, de acordo com Kant, ao
analisar os conceitos que compõem o conceito —tornando-os claros e distintos, e, assim fazendo,
tornando distinto o conceito em questão, pois torno mais clara a sua forma mediante a explicitação
de suas partes— eu não aumento o meu conhecimento quanto ao conteúdo do conceito, pois este
continua o mesmo, o que modifico é a sua forma, uma vez que, por meio da análise, ''eu aprendo
apenas a melhor distinguir ou a conhecer com mais clara consciência aquilo que já estava no
conceito dado''. 1
(ii) De acordo com Kant, eu formo um conceito empírico, a partir de representações dadas, por
intermédio dos três atos lógicos do entendimento, a saber: a comparação, a reflexão e a abstração.
Portanto, primeiro comparo as representações entre si; depois, reflito sobre o que há de comum
entre estas diferentes representações; e, por último, abstraio daquilo em que elas se diferenciam,
para somente então ficar com o que há de essencialmente comum a todas elas. Esta representação,
ou conjunto de representações comuns, das diversas representações dadas, é o meu conceito comum
a estas representações. Neste caso, eu vou das partes —as notas características comuns a várias
representações— ao todo —a síntese destas notas comuns num conceito dado. Portanto, torno
distinto o objeto com o conceito na medida em que eu formo este conceito. Ou melhor, no caso do
conceito empírico de cachorro, utilizado aqui como exemplo, quando formo este conceito, torno
distinto o objeto cachorro —e todos aqueles aos quais o conceito se aplica enquanto membros desta
classe por ele designada. Posso dizer, portanto, que, antes de formar o conceito de cachorro, não
podia distinguir esta representação das demais representações, e.g. da de cavalo, lobo, gato, etc.
A tarefa daquele filósofo, ocupado apenas com a forma lógica do conhecimento em geral, é
aquela descrita em (i), ou seja, ''tornar distintos conceitos dados''. É este ''procedimento analítico
para produzir distinção, o único do qual a Lógica [geral] pode se ocupar, é a primeira e mais
importante exigência quando se trata de tornar nosso conhecimento distinto'' 2. À medida, porém, em
que um conceito empírico dado é insuficiente para determinar um objeto da experiência, podemos
acrescentar, sinteticamente, uma característica nova às demais. No caso do conceito empírico de
cachorro, se não tivéssemos a característica diferenciadora 'latidor', por exemplo, poderíamos nos
encontrar, no domínio da experiência, embaraçados frente à necessidade de diferenciar entre este e
um cavalo, uma vez que 'animal quadrúpede' serviria para identificar tanto um quanto outro. Com o
conceito 'animal quadrúpede' eu poderia, sim, diferenciar cavalos, gatos e cachorros de homens,
por exemplo, mas não aqueles entre si.
Em resumo: a mente intui algo como objeto, por meio da sensibilidade, que fornece a
intuição do algo que afeta esta, segundo sua forma; e por meio do entendimento, que mediante
certas características <Merkmale> (conceitos) nos permite pensar a intuição do algo dado sensível
direta ou indiretamente. O algo dado à sensibilidade, como intuição, é indeterminado, e, portanto,
não é para a mente senão a representação da mera aparição do objeto (fenômeno) à sensibilidade. O
intuído só se torna objeto, uma vez que tenha sido submetido à unidade do conceito.

C. Imaginação e esquemas puros e empíricos


A passagem do conceito à intuição, porém, não se dá diretamente como se poderia pensar a partir
desse modo de descrever o processo de objetivação. É um equívoco afirmar que, para Kant, um
juízo é meramente a operação conjunta do conceito e da intuição, pois, caso fosse assim, seu
sistema não teria dito mais do que os de Aristóteles e Leibniz, por exemplo. O que diferencia a
doutrina do juízo de Kant é a apresentação de um mediador entre nossas duas fontes heterogêneas
de conhecimento, a saber, as nossas representações universais formais —os conceitos, que são
instrumentos de classificação de objetos—, e nossas representações singulares e materiais —as

1
Ibid., A 95/Ak 64.
2
Id., loc.cit.
48
intuições, que são os dados imediatos que permitem a individualização de objetos. Pois, conforme
Kant,
os conceitos puros do entendimento são completamente heterogêneos em confronto com as
intuições empíricas (até com as intuições sensíveis em geral) e não podem ser jamais
encontrados em qualquer intuição.1
Este elemento mediador entre a linguagem (o conceito) e a sensação (a intuição) é
indispensável para que possamos unificar o múltiplo sensível no juízo. Sua função, no caso do
conhecimento empírico, é transformar o conceito empírico aplicado ao múltiplo sensível em uma
imagem do objeto para a mente, no caso do conhecimento puro, em um esquema transcendental do
conceito puro. É a imaginação que realiza essa função de homogeneizar os produtos do
entendimento e da sensibilidade, gerando o esquema do objeto. Ela aplica os conceitos do
entendimento sobre os dados da intuição sensível, concebendo o objeto de conhecimento, ao qual
os juízos se referirão.
Como vimos, a possibilidade de toda a experiência está assentada sobre três fontes
primitivas, a saber: a sensibilidade, a imaginação e o entendimento2. Para Kant, só por meio da
união entre a receptividade da sensibilidade (capacidade de ser afetada) e a espontaneidade do
entendimento (capacidade de produzir conceitos) é possível o conhecimento 3. E é o caráter
espontâneo do entendimento que permite a realização de uma tripla síntese que é necessária em
todo o conhecimento, a saber:
1. a síntese da apreensão das representações como modificação da mente na intuição;
2. a síntese da reprodução dessas representações na imaginação; e
3. a síntese da sua recognição 4 no conceito.
Cada uma dessas sínteses remete a uma fonte subjetiva do conhecimento: a intuição pura, na
sensibilidade; o esquema transcendental, na imaginação; os conceitos puros, no entendimento.
Conforme Kant, a ''[c]apacidade da imaginação <Einbildungskraft> é a faculdade de
representar um objeto também sem a sua presença na intuição'' 5. (Esta capacidade, vista sob a
perspectiva da mera reprodutividade do fenômeno na mente, é também chamada de memória).
Conforme Kant, a imaginação pertence à sensibilidade6, porque, dado que ''toda a nossa intuição é
sensível'', a condição subjetiva é a única por meio da qual uma intuição, que corresponda aos
conceitos puros do entendimento, pode ser dada. Ela é o elemento que conecta o múltiplo da
intuição sensível, ''que depende do entendimento quanto à unidade de sua síntese intelectual e da
sensibilidade quanto à multiplicidade da apreensão''7. Porém, esta síntese é um exercício da
espontaneidade do entendimento, que é determinante, diferentemente da sensibilidade, que é
''meramente determinável''. Enquanto tal, a faculdade da imaginação pode determinar a

1
B 176.
2
A 94.
3
A 97 e 115.
4
Conforme Kant, A 125, tais ''princípios da recognição do diverso, na medida em que dizem respeito meramente à
forma de uma experiência em geral, são as categorias''; e é ''sobre elas que se funda toda a unidade formal na síntese da
imaginação e, mediante esta unidade, também a de todo o uso empírico desta faculdade (na recognição, reprodução,
associação, apreensão), descendo até aos fenômenos, porque estes últimos, só mediante esses elementos podem
pertencer ao conhecimento e, em geral, à nossa consciência e, portanto, a nós próprios''.
5
B 151.
6
De acordo com Kant, A 124, ''em si mesma, a síntese da imaginação, embora exercida a priori, é contudo sempre
sensível, porque apenas liga o diverso tal como aparece na intuição, p.ex., a figura de um triângulo [—o esquema—]. É
... pela relação do diverso à unidade da apercepção, que podem ser efetuados conceitos que pertencem ao entendimento,
mas apenas por intermédio da imaginação relativamente à intuição sensível''.
7
B 164.
49
sensibilidade a priori ''segundo a sua forma e de acordo com a unidade da apercepção'' 1, i.e. ela pode
determinar a priori a sensibilidade enquanto possibilidade.
A síntese das intuições, que a imaginação realiza em conformidade com as categorias, é uma
síntese transcendental da capacidade da imaginação, ''i.e. um efeito do entendimento sobre a
sensibilidade e a primeira aplicação'' deste entendimento, que é ''ao mesmo tempo o fundamento de
todas as demais'' aplicações, ''a objetos da intuição possível a nós''. 2
Conforme Kant, o ato de apreender o múltiplo sensível dado e o de reproduzi-lo na mente
são atos de síntese inseparáveis. A síntese da apreensão ''exprime o princípio transcendental da
possibilidade de todos os conhecimentos em geral (não só dos conhecimentos empíricos, mas
também dos conhecimentos puros a priori)'', e a ''síntese reprodutiva da imaginação pertence aos
atos transcendentais'' da mente <Gemüt>. Por isso, Kant denominará a imaginação de ''faculdade
transcendental da imaginação''. 3
De acordo com Kant, a síntese em geral —o esquema transcendental— ''é o simples efeito
da capacidade da imaginação <Einbildungskraft> [...] sem a qual de modo algum teríamos um
conhecimento''4. A função do entendimento é ''[r]eportar essa síntese a conceitos''. E é só mediante
tal função que passamos a ter conhecimento de algo ''em sentido próprio''. A síntese pura representa
algo de modo universal, fornecendo o conceito puro do entendimento. Esta síntese, conforme Kant,
é ''a que repousa sobre um fundamento da unidade sintética a priori''; por ex., a nossa ação de
enumerar ''é uma síntese segundo conceitos porque ocorre segundo um fundamento comum da
unidade''5. E é a lógica transcendental que nos ensina a reportar esta síntese pura das representações
a conceitos.
Portanto, para o conhecimento de um objeto que aparece, têm de nos ser dados a priori os
seguintes elementos: primeiro, o múltiplo da intuição pura; segundo, a síntese desse múltiplo
(esquema), realizada pela capacidade da imaginação; terceiro, os conceitos fornecidos pelo
entendimento, ''que dão unidade a essa síntese pura''. Tais conceitos ''consistem apenas na
representação desta unidade sintética necessária''. Com isso, temos a seguinte ordenação no ato de
aplicação de um conceito a um múltiplo sensível:
1. o múltiplo da intuição pura —dado à sensibilidade (segundo as formas puras da sensibilidade);
2. a síntese do múltiplo —realizada pela imaginação (que resulta nos esquemas transcendentais);
3. os conceitos unificadores da síntese do múltiplo —produzidos pelo entendimento (que são os
conceitos puros do entendimento ou categorias).
Conforme Kant, a intuição pura fundamenta a priori toda a percepção <Wahrnehmung>.
(Esse fundamento das percepções, enquanto representações, ''é o tempo, a forma da intuição
interna)''6. A síntese pura da imaginação —o esquema, como veremos— fundamenta a priori a
associação. E a apercepção pura —que é ''a completa identidade [da consciência] consigo mesma
em todas as representações''7— fundamenta a priori a consciência empírica.

1
B 151-152.
2
B 152.
3
A 102.
4
B 103.
5
B 104.
6
A 115-116.
7
Para Kant, B 154, a ''apercepção e a sua unidade sintética de modo algum é tão idêntica ao sentido interno; muito
antes, enquanto fonte de toda ligação aquela se dirige ao múltiplo das intuições em geral e sob o nome de categorias,
antes de toda intuição sensível, a objetos em geral. Ao contrário, o sentido interno contém a mera forma da intuição,
mas sem ligação do múltiplo na mesma, por conseguinte não contém ainda nenhuma intuição determinada, a qual só é
possível mediante a consciência da determinação do sentido interno pela ação transcendental da capacidade da
imaginação (influência sintética do entendimento sobre o sentido interno), ação'' que Kant denominou síntese figurada.
50
Conforme Kant, o exercício da faculdade da imaginação pressupõe a existência de uma
ligação em geral entre as substâncias no mundo. Essa ligação, que permite com que as
representações se encontrem em nossa mente associadas entre si, ''estabelecendo assim uma ligação
tal que, mesmo sem a presença do objeto, uma dessas representações'' faz a mente passar a outra
''representação segundo uma regra constante'', está fundada numa lei simplesmente empírica, que
pressupõe
que os próprios fenômenos estejam realmente submetidos a uma tal regra e que no diverso das
suas representações tenha lugar acompanhamento ou sucessão, segundo certas regras. [Caso
não fosse assim,] a nossa imaginação empírica não teria nunca nada a fazer que fosse
conforme à sua faculdade. 1
Sem a possibilidade de uma síntese (ligação) do múltiplo sensível dado, nem mesmo nossas
intuições puras poderiam resultar em conhecimento2. Pois a síntese que a imaginação realiza,
mesmo empírica, tem de estar fundada em um princípio a priori, que permita à imaginação uma
síntese transcendental, que fundamenta a possibilidade de toda a experiência. Sem que os
fenômenos pudessem ser reproduzidos na mente, nenhuma experiência seria possível, ou seja, se
por meio da imaginação não pudéssemos reter as representações em sua sucessão, i.e. se sempre nos
escapassem as representações precedentes, e, com isso, nunca obtivéssemos a representação de uma
sucessão de representações, jamais teríamos uma representação completa, nem mesmo ''as
representações fundamentais, mais puras e primeiras, do espaço e do tempo''. Portanto, para
obtermos conhecimento, é necessário que possamos reunir num todo como ligadas diversas
representações sucessivas, na mente.
A unidade do entendimento, i.e. a consciência <Bewußtsein> do sujeito de que
representações são dadas em sua mente, é a apercepção transcendental (pura). Conforme Kant, ''[a]
unidade transcendental da apercepção reporta-se [...] à síntese pura da imaginação, como a uma
condição a priori da possibilidade de toda a composição do diverso num conhecimento''. A síntese
produtiva da imaginação, por sua vez, tem de ser a priori, e, portanto, pura, ''pois a síntese
reprodutiva repousa sobre as condições da experiência''. Por isso, como vimos, conforme Kant,
[o] princípio da unidade necessária da síntese pura (produtiva) da imaginação é, pois,
anteriormente à apercepção, o fundamento da possibilidade de todo o conhecimento,
particularmente da experiência. 3
A síntese do diverso na imaginação é transcendental quando, ''em todas as intuições, sem as
distinguir umas das outras, se reporta a priori simplesmente à ligação do diverso''. A unidade dessa
síntese, por sua vez, é transcendental, ''quando, relativamente à unidade originária da apercepção, é
representada como necessária a priori''. Pelo fato dessa unidade servir de fundamento à
possibilidade de todos os conhecimentos,
a unidade transcendental da síntese da imaginação é a forma pura de todo o conhecimento
possível, mediante a qual, portanto, todos os objetos da experiência possível devem ser
representados a priori. 4
A imaginação realiza duas sínteses, uma empírica e outra pura: quanto à síntese empírica da
imaginação, a unidade da apercepção é o entendimento; quanto à síntese transcendental (pura) da
imaginação, a unidade da apercepção é o entendimento puro. As categorias (os conceitos puros do
entendimento), por sua vez, encerram a unidade necessária da síntese pura da imaginação quanto a
todos os fenômenos possíveis. Pois, conforme Kant,

1
A 110.
2
A 101-102.
3
A 118.
4
Ibid., loc.cit.
51
a faculdade empírica de conhecer, que o homem possui <die empirische Erkenntniskraft des
Menschen>, contém necessariamente um entendimento <Verstand>, que se reporta a todos os
objetos dos sentidos <Gegenstände der Sinne>, embora apenas mediante a intuição
<Anschauung> e a síntese que nela opera a imaginação <Einbildungskraft>; a esta intuição e
à sua síntese estão sujeitos todos os fenômenos, como dados de uma experiência possível. 1
Conforme Kant, sem ''esta relação dos fenômenos a uma experiência possível'', nenhum
conhecimento por meio dos fenômenos nos seria dado, nada seriam para nós. Por isso, tal relação é,
além de a priori, necessária. Disso se segue
que o entendimento puro é, por intermédio das categorias, um princípio formal e sintético de
todas as experiências e [que, por conseguinte,] os fenômenos têm uma relação necessária
<notwendige Beziehung> ao entendimento.2
Como se dá então o encadeamento necessário do entendimento com os fenômenos por meio
das categorias, de modo ascendente, a partir do empírico, i.e. segundo a ordem do que nos é dado ?
Conforme Kant, é necessário:
1. que primeiro seja dada uma percepção, que é uma representação com consciência, que resulta no
fenômeno3;
2. como o fenômeno é composto por um diverso de percepções, que se encontram dispersas na
mente, ''é necessária uma ligação entre elas [as percepções]'' 4, que a própria sensibilidade não
realiza; a faculdade ativa que sintetiza, em nós, este diverso do fenômeno é a imaginação; e a ação
da imaginação de sintetizar as diversas percepções contidas no fenômeno é a apreensão do múltiplo
do fenômeno pela imaginação 5;
3. a imaginação reduz a uma imagem o diverso da intuição, dado no fenômeno percebido; i.e. ela
deve ''receber previamente as impressões na sua atividade'', apreendendo-as. Mas, sem o princípio
subjetivo da capacidade reprodutiva da imaginação, que é uma faculdade apenas empírica capaz de
evocar uma percepção, ''esta apreensão do diverso não produziria, por si só, nem uma imagem
<Bild> nem um encadeamento de impressões''. 6
Conforme Kant, há uma regra para a reprodução de representações: um princípio subjetivo
empírico segundo o qual ''uma representação se une de preferência com esta do que a uma outra na
imaginação''7. Este princípio impede com que as representações se reproduzam na mente
indistintamente, o que impossibilitaria qualquer conhecimento. Mas a unidade da associação tem
também um princípio objetivo, sem o qual não seria possível à imaginação apreender os fenômenos
que estão subordinados à condição da possibilidade de uma unidade sintética dessa apreensão. De
acordo com Kant, é
somente porque refiro todas as percepções a uma consciência (à apercepção originária) que
posso dizer de todas as percepções que tenho consciência delas. [Portanto, deve] haver um
princípio objetivo, i.e. captável a priori anteriormente a todas as leis empíricas da imaginação,
sobre o qual repousam a possibilidade e mesmo a necessidade de uma lei extensiva a todos os

1
A 119.
2
Ibid., loc.cit.
3
Que, conforme Kant (A 120), ''se estiver ligado a uma consciência, se chama percepção (sem a relação a uma
consciência, pelo menos possível, o fenômeno nunca poderia ser para nós um objeto do conhecimento, não seria, pois
nada para nós e, porque não possui em si mesmo realidade objetiva alguma e apenas existe no conhecimento, não seria
absolutamente nada)''.
4
A 120.
5
Kant observa, aqui, que a imaginação não se limita, tal como os psicólogos à sua época pensavam, à mera reprodução
de percepções, ela constitui a própria percepção. Desse modo, ele atribui a ela um papel positivo no processo de
conhecimento, pois, até então, a imaginação estava negativamente associada com a mera ficção —ver Newton e
Leibniz, p.ex..
6
A 121.
7
Ibid., loc.cit.
52
fenômenos, que consiste em tê-los a todos como dados dos sentidos, suscetíveis de se
associarem entre si e sujeitos a regras universais de uma ligação completa na reprodução. A
este princípio objetivo de toda a associação dos fenômenos chamo afinidade dos mesmos. 1
Tal afinidade deve ser encontrada no princípio da unidade da apercepção, no que concerne à
totalidade dos conhecimentos ''que me devem pertencer''. Esse princípio exprime a regra segundo a
qual ''é necessário que todos os fenômenos, absolutamente, entrem'' na mente ''ou sejam apreendidos
de tal modo que se conformem com a unidade da apercepção'' que, ''sem unidade sintética no seu
encadeamento'', seria impossível, e que ''também é objetivamente necessária''.
Conforme Kant, a condição necessária de toda a apercepção 2 possível é a ''unidade objetiva
de toda a consciência (empírica) numa consciência (a da apercepção originária)''. E a ''afinidade
(próxima ou distante) de todos os fenômenos é uma conseqüência necessária de uma síntese na
imaginação, que está fundada a priori sobre regras''3. Conforme Kant, a imaginação é igualmente
uma faculdade de síntese a priori e é por isso que lhe damos o nome de imaginação produtora
e, na medida em que, relativamente a todo o diverso do fenômeno, não tem outro fim que não
seja a unidade necessária na síntese desse fenômeno, pode chamar-se a função transcendental
da imaginação.
Disso se segue que é somente através desta função transcendental da imaginação que se
tornam possíveis: a afinidade, a associação e a reprodução dos fenômenos segundo leis, e, com
estes, a própria experiência, ''porque sem ela não haveria jamais nenhuns conceitos de objetos na
experiência''4. Com isso temos, conforme Kant, uma ''imaginação pura'', que se constitui num
princípio a priori de todo o conhecimento humano. Por meio dela, ''ligamos o diverso da intuição,
por um lado, com a condição da unidade necessária da apercepção pura, por outro''. 5
Conforme Kant, as categorias, enquanto princípios da recognição do diverso, concernem
simplesmente à forma da experiência em geral. E é sobre elas
que se funda toda a unidade formal na síntese da imaginação e, mediante esta unidade,
também a de todo o uso empírico desta faculdade (na recognição, reprodução, associação,
apreensão), descendo até aos fenômenos, porque estes últimos, só mediante esses elementos
podem pertencer ao conhecimento e, em geral, à nossa consciência e, portanto, a nós
próprios.6
De acordo com Kant, tanto o modo como o múltiplo da representação sensível (intuição) é
dado a uma consciência, assim como o modo pelo qual tal múltiplo é pensado (categoria),
consistem em conhecimentos formais a priori de todos os objetos em geral. Por isso, a
síntese desses objetos pela imaginação pura, a unidade de todas as representações em relação
à apercepção originária, precede todo o conhecimento empírico. Os conceitos puros do
entendimento são possíveis a priori e, mesmo em relação à experiência, necessários, porque o
nosso conhecimento não trata com outra coisa que não sejam fenômenos, cuja possibilidade
reside em nós próprios, cuja ligação e unidade (na representação de um objeto) se encontram

1
A 122.
2
Conforme Kant, A 123-124, o ''eu fixo e permanente (da apercepção pura) constitui o correlato de todas as nossas
representações, na medida em que é simplesmente possível ter consciência dessas representações, e toda a consciência
pertence a uma apercepção pura, que tudo abarca, tal como toda a intuição sensível, como representação, pertence a
uma intuição interna pura, a saber, o tempo''.
3
A 123.
4
Segundo Kant, A 124, os ''dois extremos, a sensibilidade e o entendimento, devem necessariamente articular-se graças
a esta função transcendental da imaginação, pois de outra maneira ambos dariam, sem dúvida, fenômenos, mas nenhum
objeto de um conhecimento empírico e, portanto, experiência alguma''.
5
A 124.
6
A 125.
53
simplesmente em nós, por conseguinte, devem preceder toda a experiência e, antes de tudo,
torná-la possível quanto à forma.1
Isso posto, podemos considerar o seguinte: o entendimento torna possível, quanto à forma, a
experiência, por meio das categorias (os conceitos puros); a sensibilidade torna possível, quanto à
forma, a percepção (a intuição), por meio das formas puras subjetivas do espaço e do tempo; e a
imaginação torna possível a conexão entre ambos, através do esquema transcendental do objeto.
De acordo com Kant, os conceitos puros do entendimento,
além da função do entendimento na categoria, ainda precisam conter a priori condições
formais da sensibilidade (nomeadamente do sentido interno) que contêm a condição universal
unicamente sob a qual a categoria pode ser aplicada a um objeto qualquer. 2

Esta condição formal e pura da sensibilidade, que restringe o uso dos conceitos do entendimento
meramente aos fenômenos, Kant chama esquema dos conceitos do entendimento; e a ação do
entendimento por meio destes esquemas, esquematismo do entendimento puro3. Conforme Kant, o
''esquema <Schema> é em si mesmo sempre só um produto <Produkt> da capacidade de
imaginação''4. Quando a síntese que ela realiza se dá por meio de um conceito puro, não visa a uma
intuição singular, mas apenas à ''unidade na determinação da sensibilidade''. O resultado do
procedimento da imaginação é um esquema deste conceito puro. Porém, quando a síntese que a
imaginação realiza se dá por meio de um conceito empírico, ela visa a uma intuição singular, e o
resultado é uma imagem deste conceito empírico. A imagem distingue-se do esquema, pois uma
imagem de um conceito empírico se refere a uma intuição singular, enquanto o esquema de um
conceito puro, a uma intuição pura.5
De acordo com Kant, numa categoria pura, toda a condição da intuição sensível (a única que
nos é possível) é abstraída. Por meio dela, nenhum objeto é determinado, mas apenas a expressão de
diversos modos de pensar um objeto em geral. Para que possamos usar um conceito, é-nos
necessária uma função da capacidade de julgar, por meio da qual um objeto é subsumido, i.e. ''a
condição pelo menos formal sob a qual algo pode ser dado na intuição'' 6. Sem essa condição formal
da capacidade de julgar, por meio da qual um objeto é subsumido, o esquema, não podemos
subsumir um objeto a um conceito, pois, sem que algo seja dado, não há o que possa ser subsumido.

1
A 130. Aqui vemos o caráter idealista transcendental do conhecimento de objetos.
2
B 179.
3
Conforme Kant, B 177-178, o ''conceito do entendimento contém a unidade sintética pura do múltiplo em geral. Como
a condição formal do múltiplo do sentido interno, por conseguinte da conexão de todas as representações, o tempo
contém na intuição pura um múltiplo a priori. Ora, uma determinação transcendental do tempo é homogênea à categoria
(que constitui a unidade de tal determinação) na medida em que é universal e repousa numa regra a priori. Por outro
lado, a determinação do tempo é homogênea ao fenômeno, na medida em que o tempo está contido em toda
representação empírica do múltiplo. Logo, será possível uma aplicação da categoria a fenômenos mediante a
determinação transcendental do tempo que, como o esquema dos conceitos do entendimento, media a subsunção dos
fenômenos à primeira''.
4
B 180.
5
Conforme Kant, B 180, aos ''nossos conceitos sensíveis puros não subjazem imagens dos objetos, mas esquemas.
Nenhuma imagem de um triângulo em geral seria jamais adequada ao seu conceito. Com efeito, não alcançaria a
universalidade do conceito, a qual faz com que este valha para todos os triângulos, retângulos, isósceles, etc., mas se
restringiria sempre só a uma parte desta esfera. O esquema do triângulo não pode existir em nenhum outro lugar a não
ser no pensamento, e significa uma regra de síntese da capacidade de imaginação com vistas a figuras puras no espaço''.
Mas, para Kant (B 271), ''é somente porque o espaço é uma condição formal a priori das experiências exteriores que a
síntese figurativa, pela qual construímos um triângulo na imaginação, é inteiramente idêntica àquela que exercemos na
apreensão de um fenômeno para fazermos disso um conceito de experiência, que nos é possível conectar com este
conceito a representação da possibilidade de uma tal coisa''.
6
B 304.
54
Nos termos de Kant, se ''falta esta condição da capacidade de julgar (esquema), então fica suprimida
toda a subsunção, pois nada que [...] possa ser subsumido sob o conceito é dado''. 1
Portanto, é só mediante a ação do entendimento, que consiste na projeção do conceito puro
do entendimento (os traços gerais que caracterizam um objeto) sob a capacidade da imaginação,
segundo as formas puras da intuição sensível, mediante uma síntese pura, resultando num esquema
geral de um objeto, que pode ser efetivada a subsunção do múltiplo sensível dado ao conceito
empírico2. Portanto, para que um algo empírico seja dado ao nosso entendimento qua objeto, é
necessário que nele antes, por meio da ação da imaginação na aplicação da categoria à sensibilidade
em geral, construamos o esquema do objeto, para só então, com esse esquema, ''encobrirmos'' o
algo dado na intuição, agora, no entendimento, como objeto.3
De acordo com Kant, a imagem
é um produto da faculdade empírica da capacidade produtiva de imaginação. [Já] o esquema
dos conceitos sensíveis (como figuras no espaço) é um produto e como que um monograma
da capacidade pura a priori de imaginação pelo qual e segundo o qual as imagens tornam-se
primeiramente possíveis, mas as quais têm sempre que ser conectadas ao conceito somente
mediante o esquema ao qual designam, e em si não são plenamente congruentes com o
conceito. Ao contrário, o esquema de um conceito puro do entendimento é algo que não pode
ser levado a nenhuma imagem, mas é somente a síntese pura conforme uma regra da unidade,
segundo conceitos em geral que expressa a categoria e é um produto transcendental da
capacidade de imaginação que concerne à determinação do sentido interno em geral, segundo
condições de sua forma (o tempo), com vistas a todas as representações na medida em que
estas deveriam interconectar-se a priori num conceito conforme a unidade da apercepção. 4
Conforme Kant, os esquemas são ''determinações a priori de tempo segundo regras'' 5, que se
referem, de acordo com a ordem das categorias, à série, ao conteúdo, à ordem e ao conjunto do
tempo, quanto a possibilidade de todos os objetos empíricos. Através da síntese transcendental da
capacidade de imaginação, o esquematismo do entendimento constitui diretamente a unidade de
todo o múltiplo da intuição no sentido interno, e, indiretamente, a unidade da apercepção, que
consiste numa função da capacidade da sensibilidade, correspondente ao sentido interno. Somente
por meio dos esquemas é possível dar uma referência <Beziehung> objetiva aos conceitos puros do
entendimento, e, portanto, uma significação <Bedeutung>6. Por isso
as categorias não possuem [...] nenhum outro uso a não ser um empírico possível na medida
em que servem meramente para, mediante fundamentos de uma unidade necessária a priori
(devido à reunião necessária de toda a consciência numa apercepção originária), submeter os
fenômenos a regras universais da síntese, tornando-os assim apropriados para a conexão
completa numa experiência.
Conforme Kant, os esquemas transcendentais, além de realizarem as categorias, restringem-
nas, i.e. ''limitam-nas a condições que jazem fora do entendimento (a saber, na sensibilidade)''; por
isso, ''o esquema é propriamente só o fenômeno ou o conceito sensível de um objeto em

1
Ibid., loc.cit.
2
Cf. Strawson, o papel do esquematismo dos conceitos puros do entendimento é o de estabelecer ''a transição das
categorias puras às categorias-em-uso, interpretando as primeiras em termos de tempo''. Strawson, p. 26.
3
Conforme Kant (B 180), um objeto da experiência ou sua imagem não alcança o conceito empírico desse objeto senão
por meio do esquema, i.e. o conceito empírico do objeto ''sempre se refere imediatamente ao esquema da capacidade de
imaginação como uma regra da determinação de nossa intuição, conforme um certo conceito universal. O conceito de
cão significa uma regra segundo a qual minha capacidade de imaginação pode traçar universalmente a figura de um
animal quadrúpede, sem ficar restringida a uma única figura particular que a experiência me oferece ou também a
qualquer imagem possível que posso representar in concreto''.
4
B 181.
5
B 185.
6
''Also sind die Schemate der reinen Verstandesbegriffe die wahren und einzigen Bedingungen, diesen eine Beziehung
auf Objekt, mithin Bedeutung zu verschaffen''. ibid., loc.cit.
55
concordância com a categoria''1. As categorias, ao contrário dos seus esquemas, possuem uma
significação pura <reinen Bedeutung>, independente das condições da sensibilidade, que permite
com que possamos aplicá-las na representação das coisas não só como aparecem mas como são em
geral. Por isso, as categorias
possuem uma significação muito mais extensa e independente de todos os esquemas. Na
realidade, mesmo após a abstração de toda a condição empírica os conceitos puros do
entendimento mantêm uma significação apenas lógica <nur logische Bedeutung> da simples
unidade das representações, mas às quais não é dado nenhum objeto, por conseguinte também
nenhum significado, que possa fornecer um conceito do objeto.2
Conforme Kant, o que dá significação aos conceitos puros do entendimento são as intuições
empíricas —a sensibilidade—, mediante os esquemas, e, sem estes,
as categorias são apenas funções do entendimento para conceitos, [pois] não representam
objeto algum. Esta significação <Bedeutung> lhes advém da sensibilidade, que realiza o
entendimento na medida em que ao mesmo tempo o restringe. 3
No caso do juízo sintético, por exemplo, necessitamos ''sair de um conceito dado para compará-lo
sinteticamente com um outro''. Para isso, é necessário ''um terceiro termo unicamente no qual pode
surgir a síntese dos dois conceitos''. Este terceiro termo, que se constitui no meio pelo qual são
possíveis todos os juízos sintéticos é a imaginação, que é apenas o ''conjunto em que estão contidas
todas as nossas representações a saber, o sentido interno e sua forma a priori, o tempo'' 4. E,
conforme Kant, é na unidade da apercepção que devemos procurar a possibilidade dos juízos
sintéticos em geral, tanto empíricos quanto puros5, pois a ''síntese das representações repousa na
capacidade de imaginação, mas a sua unidade sintética (requerida para o juízo), na unidade da
apercepção''.
Como vimos, a Matemática procede sinteticamente na formulação de seus princípios e
juízos, pois todos os juízos matemáticos são sintéticos. Para Kant, os princípios matemáticos estão
sempre de acordo com o princípio de contradição e todas as referências dos matemáticos procedem
segundo esse mesmo princípio. Com base nisso, conforme Kant, os investigadores julgaram
erroneamente que a Matemática procedesse, no estabelecimento de seus princípios, igualmente,
segundo o princípio de contradição —do qual resultam proposições necessariamente verdadeiras
(característica dos axiomas matemáticos, que são apodíticos)—, e julgaram que a Matemática fosse,
por isso, analítica. Na verdade,
uma proposição sintética <synthetischer Satz> pode seguramente ser compreendida segundo o
princípio de contradição, mas somente de tal modo que se pressuponha uma outra proposição
sintética da qual a primeira possa ser inferida, jamais porém em si mesma. 6
As proposições da Matemática, ao contrário, são sintéticas, mas são a priori e não empíricas,
pois a sua necessidade não pode ser buscada na experiência. Kant 7, em B 15, cita o exemplo da
proposição ''7 + 5 = 12'', que não é analítica, porque não posso chegar ao resultado 12 pela mera
análise do conceito de 7 e do conceito de 5. Em outros termos, tal como a estrutura da proposição
analítica exigiria, o conceito de 12 não está contido no conceito de 7 e 5. É necessário, contudo, sair
desses conceitos em direção à intuição correspondente a cada um deles (a categoria da quantidade
esquematizada): cinco pontos, cinco lacunas, cinco traços, etc., acrescentando sucessivamente essas

1
B 186.
2
Ibid., loc.cit.
3
B 187. Ver também B 149.
4
B 194.
5
Conforme Kant , B 194, ''a partir de tais fundamentos estes últimos juízos antes serão mesmo necessários, caso deva se
constituir um conhecimento de objetos que repouse unicamente sobre a síntese das representações''.
6
B 14.
7
Ver também o § 2, A 28-29, dos Prolegomena, e Castañeda, H.N., '' ''7 + 5 = 12'' as synthetic proposition'', in:
Philosophy and Phenomenological research, v. XXI, n. 2, 1960, pp. 141-158.
56
unidades dadas na intuição do 5 ao conceito de 7. É necessário que o entendimento execute a função
sintetizadora de unificar dois números num que os contenha. Ou, em outros termos, é necessário ao
entendimento —que produz o conceito de 5 e de 7— além da intuição —que fornece as formas
puras: o espaço e o tempo—, o auxílio da imaginação —que elabora o esquema sucessivo da
representação de 5 e 7 seções—, para que ele possa executar a operação da soma: juntando duas
quantidades distintas numa outra quantidade que as contenha. 12 de modo algum é pensado
meramente na soma de 7 e 5. É necessário que o entendimento sintetize, unifique, na imaginação, o
referente esquematizado de 7 e 5, sucessivamente, formando o conceito de 12. 12, na verdade, é o
nome da quantidade que pode igualmente ser representada pela operação ''7 + 5''. Portanto, aquilo a
que o 12 se refere é algo que jaz fora da operação ''7 + 5''. É por isso que a operação —que
resulta no número 12— é sintética, e que a proposição ''7 + 5 = 12'' não é analítica. Pois é
necessário que eu recorra à intuição pura de cinco e sete unidades —coisas temporalmente
sucessivas, segundo o esquema da quantidade— para daí, ao percorrê-la como uma série única,
chegar ao número 12, que é agora o nome do número da nova quantidade formada pela soma das
quantidades representadas por 7 e 5. Fica claro, portanto, que a
proposição matemática é, portanto, sempre sintética; [ficando evidente que, quer] viremos e
reviremos os nossos conceitos como quisermos, sem tomar ajuda da intuição jamais
poderíamos encontrar a soma pelo simples desmembramento dos nossos conceitos.1
Para que haja conhecimento, portanto, é necessário o juízo; e, para este, é necessário o
concurso da intuição e do conceito. Mas não basta que, de um lado, nós tenhamos conceitos e de
outro, intuições, pois, isolados, nada são além de representações. É necessário que ambos sejam
homogeneizados, unificados, pelo esquema, que nos dá o objeto a que se aplicará o conceito no
juízo, pois,
[s]e um conhecimento <Erkenntnis> deve ter realidade objetiva <objektive Realität>, i.e.
referir-se a um objeto <Gegenstand> e ter significação <Bedeutung> e sentido <Sinn> nele,
então o objeto tem que poder ser dado de algum modo. Sem isso, os conceitos são vazios; na
verdade, pensou-se através deles, mas sem ter de fato conhecido algo através desse
pensamento, mas apenas jogado com representações. Dar um objeto —se por sua vez isto não
deve ser entendido apenas mediatamente, mas significa apresentar imediatamente na
intuição— não é outra coisa senão referir sua representação <Vorstellung> à experiência
<Erfahrung> (seja efetiva <wirkliche> ou possível <mögliche>).2
Portanto, conforme Kant, tudo o que tiramos do próprio entendimento será utilizado depois
na experiência. Os princípios do entendimento puro contêm apenas ''o esquema puro para a
experiência possível'' 3. A experiência possível só é unificada sinteticamente pelo concurso do
conceito e da intuição, porque através da imaginação realizamos a síntese, cuja unidade sintética
advém espontaneamente do entendimento. A nossa imaginação, por sua vez, tem de estar em
relação e concordância a priori com os fenômenos, na medida em que são dados para um
conhecimento possível. Para Kant, essas regras do entendimento (os esquemas), além de serem
válidas a priori, são a ''fonte de toda a verdade''. Pois a verdade é a concordância do nosso
conhecimento com objetos, que, por sua vez, possuem o fundamento da possibilidade da
experiência, que equivale ao conjunto de todo o conhecimento no qual objetos podem nos ser
dados. E a possibilidade da experiência4 é a referência dos juízos sintéticos a priori, que se encontra

1
B 16.
2
B 194-195.
3
B 295-296.
4
Pois, conforme Kant, B 196-197, ''enquanto síntese empírica a experiência é na sua possibilidade a única espécie de
conhecimento que dá realidade a toda a outra síntese, como conhecimento a priori esta então só possui verdade
(concordância com o objeto) pelo fato de nada mais conter senão o necessário à unidade sintética da experiência em
geral''.
57
nos esquemas transcendentais1. Conforme Kant, ''se o espaço não pudesse ser considerado como
condição dos fenômenos que perfazem a matéria para a experiência externa'', nosso conhecimento a
priori em juízos sintéticos das figuras que a imaginação traça no espaço em geral, mesmo que para
isso não necessitássemos de nenhuma experiência,
não seria absolutamente nada, a não ser ocupação com uma simples quimera. [Por isso,]
aqueles juízos sintéticos puros se referem, embora apenas mediatamente, a uma experiência
possível ou antes à sua própria possibilidade, e unicamente sobre tal fundam a validade
objetiva da sua síntese.
Em outros termos, é graças ao esquema, na imaginação, que podemos conhecer independentemente
da experiência, e, portanto, formularmos juízos sintéticos a priori.
Conforme Kant, o princípio que orienta toda a formação dos juízos sintéticos diz que todo
objeto tem de estar ''sob as condições da unidade sintética do múltiplo da intuição numa experiência
possível''2. Sendo assim, juízos sintéticos a priori são possíveis sob três condições:
1º) se referirmos ''as condições formais da intuição a priori'';
2º) se referirmos ''a síntese da capacidade de imaginação''; e
3º) se referirmos ''a unidade de tal síntese [—numa apercepção transcendental—] a um possível
conhecimento em geral de experiência''.
A isso, devemos anexar o seguinte, conforme Kant: que
as condições da possibilidade da experiência em geral são ao mesmo tempo condições da
possibilidade dos objetos da experiência e possuem, por isso, validade objetiva num juízo
sintético a priori.3
Os juízos sintéticos a priori são possíveis, portanto, somente através dos esquemas
transcendentais: a imaginação produz o esquema, que, por sua vez, permite a homogeneização entre
os conceitos puros (a linguagem) e as formas puras do diverso da intuição. De acordo com esse
modo de ver, o sentido é possível graças à projeção dos elementos do juízo, em conexão, segundo o
esquema transcendental; i.e. a projeção dos termos significativos da proposição, bem como de suas
conexões, deve se dar no esquema transcendental dessa proposição na imaginação. (Tome qualquer
proposição empírica, e.g. por mais geral ou abstrata que ela seja, para que a entendamos, antes,
necessitamos projetar esquematicamente uma idéia geral do seu sujeito bem como de suas
determinações, dadas no predicado). Portanto, (i) se o esquema transcendental só é possível graças,
de um lado, aos conceitos puros do entendimento, e, de outro, às formas puras do espaço e do
tempo, enquanto as formas de nossa intuição tanto pura como empírica; e (ii) se o sentido de nossos
juízos em geral só é possível através do esquematismo transcendental; então, (iii) as condições de
possibilidade do sentido do juízo sintético (seja a posteriori seja a priori) repousam tanto sobre o
entendimento, com seus conceitos puros, como sobre a sensibilidade, com suas formas puras —o
espaço e o tempo—, que conjuntamente, na imaginação, permitem a construção dos esquemas (ou
imagens mentais, no caso de objetos empíricos), tanto dos conceitos puros aplicados à intuição pura
—na determinação de um objeto em geral—, como destes em relação às intuições sensíveis —na
determinação de um objeto da experiência—, sem os quais, os conceitos puros do entendimento
jamais poderiam ser aplicados aos dados sensíveis quer puros quer empíricos.

1
Portanto, conforme Kant, B 196, ''à experiência subjazem princípios da sua forma a priori, a saber, regras universais da
unidade na síntese dos fenômenos cuja realidade objetiva, como condições necessárias, pode ser sempre mostrada na
experiência, antes mesmo, na possibilidade desta. Sem esta referência <Beziehung>, porém, as proposições sintéticas a
priori <syntetische Sätze a priori> são inteiramente impossíveis por não possuírem nenhum terceiro termo [—um
esquema—], a saber, um objeto em que a unidade sintética dos seus conceitos possa evidenciar uma realidade objetiva''.
2
B 197.
3
Ibid., loc.cit.
58
D. Pensamento e conhecimento
Com base na exposição precedente, podemos dizer agora que pensamento e conhecimento têm,
essencialmente, a forma judicativa: pensar é atribuir algo a algo; i.e. é representar algo numa
relação de atribuição; e conhecer é igualmente pensar algo representado numa relação de atribuição.
Porém, conhecer implica ainda a afirmação da representação de algo pensado numa relação de
atribuição, pois para conhecer é necessário determinar um pensamento como verdadeiro, i.e. como
efetiva ou possivelmente correspondente ao objeto. Pensar, portanto, não implica conhecer; mas
conhecer implica pensar. Nesse sentido, pensar equivale a julgar; e conhecer equivale a afirmar um
juízo como verdadeiro, i.e. determinar um juízo como proposição. Por isso, posso pensar (julgar)
sobre o que quiser, desde que não me contradiga, pois o pensamento não tem compromisso com a
verdade; mas só posso conhecer verdadeiramente, i.e. só posso afirmar juízos que sejam
representações efetivas ou possíveis de objetos, i.e. verdadeiras. O ato de conhecer, i.e. determinar
juízos sintéticos como proposições, tem um compromisso com uma representação efetiva (ou
possível) da realidade, e, portanto, com uma verdade efetiva e não apenas lógica.
Por fim, o pensamento é uma operação, que realizamos com o entendimento, que pode ser
independente dos objetos da experiência —bem como do modo (forma) como estes são dados
nela—, mas que não independe de objetos1. Pois, com o entendimento, podemos pensar sobre
objetos da experiência, mas com ele também podemos elaborar objetos para pensá-los. Os objetos
da experiência, sobre os quais pensamos com o entendimento, são empíricos; os objetos que, por
meio dele, elaboramos são puros2. O que não podemos porém é pensar objetos, sejam empíricos ou
puros, fora das leis lógicas do entendimento.
O conhecimento, por sua vez, é uma operação do entendimento que depende dos objetos da
experiência bem como do modo como estes são dados nela. Nós só podemos conhecer objetos da
experiência efetiva ou dáveis nela (i.e. possíveis). O que não podemos, porém, com o entendimento
é pretender conhecer para além dos limites da experiência possível. Os objetos da experiência, que
podemos, com o entendimento, conhecer, são sensíveis; constituídos a priori ou a posteriori 3.
Como só podemos, com o entendimento, conhecer objetos que ocorrem ou possam ocorrer na série
empírica, os nossos juízos sintéticos têm de expressar conhecimento efetivo ou possível de objetos.
Enquanto tais, estes juízos têm referência efetiva ou possível; i.e. têm sentido e são verdadeiros ou
falsos, desde que referidos ou à experiência ou à sua forma, i.e. à sua possibilidade.
Os juízos que expressam pensamento necessário não têm referência, são formulações
necessárias, pois concernem meramente à forma do pensamento, e são, portanto, tautologias. O
sentido e a verdade desses juízos não estão condicionados a nada fora do entendimento; no entanto,
são eles que determinam as condições do próprio pensar e do conhecer. Eles dão a forma do
conhecimento. Quando formulamos juízos para objetos que não são dáveis na experiência nem se
regem pela sua forma, i.e. por suas leis, estamos lidando com objetos impossíveis, para a nossa
experiência, e, portanto, aplicamos as regras e princípios do entendimento, que só valem para a
experiência possível, de maneira incorreta, e levamos a razão à contradição consigo mesma.

1
Kant dirá, porém, em B 304, que o ''pensamento é a ação de referir uma intuição dada a um objeto''. Sem que o modo
dessa intuição seja dado, o objeto pensado é transcendental (i.e. um objeto em geral) e o conceito do entendimento só
tem um uso transcendental, i.e. conforme Kant, ''a unidade do pensamento de um múltiplo em geral''.
2
Na Lógica, em Ak 92/A 141-2, lemos o seguinte: ''A idéia é um conceito da razão, cujo objeto não se pode de modo
algum encontrar na experiência''. E, mais adiante: ''Os conceitos da razão ou idéias não podem de modo algum levar a
objetos reais, porque todos estes têm que estar contidos numa experiência possível. Mas eles servem no entanto, por
intermédio da razão, para guiar o entendimento da maneira mais perfeita em vista da experiência e do uso das regras
desta, ou também para mostrar que nem todas as coisas possíveis são objetos da experiência, e que os princípios da
possibilidade destes últimos não valem das coisas em si mesmas, nem sequer dos objetos da experiência enquanto
coisas em si mesmas.''. Kant, I. , op.cit., p. 110. Ver, também, B 566-99.
3
Objetos tanto da intuição empírica como pura (geometria).
59
SEGUNDA PARTE

60
1. Que é o idealismo transcendental
Consideremos a doutrina crítica de Kant segundo duas de suas contribuições fundamentais, a saber:
a divisão de todos os objetos em geral em fenômenos e noumenos; e a divisão da faculdade humana
de conhecimento em dois troncos, advindo de uma raiz comum (a mente), a saber: sensibilidade e
entendimento. O primeiro, como vimos, nos dá o material do conhecimento; o segundo, processa-o
segundo a forma do entendimento. Até Kant, o problema em relação à filosofia —para a prática
filosófica enquanto tal— era o da delimitação confusa de seu campo de ação e de seu objeto, pois
até então não os tinham determinado com clareza e precisão. A Metafísica (Filosofia), até Kant,
confundia fenômeno com noumeno, ou seja, dados sensíveis com construções intelectuais
(conceituais).
Kant, na KrV, apresenta o problema em suas dimensões contemporâneas e procura
solucioná-lo, estabelecendo basicamente os limites ao acesso da Filosofia e do saber humano em
geral. O procedimento de Kant nessa tarefa foi o de colocar as coisas em seus devidos lugares,
organizando, por assim dizer, os elementos envolvidos no processo de conhecimento, que eram
trabalhados pela Metafísica e pelas ciências.
A crítica de Kant incidiu, como vimos, sobre o que ele considerou ''uma confusão
generalizada'' em que se encontrava a Metafísica à sua época, tanto no que se referia ao que
pretendia investigar quanto ao modo como o fazia. A solução que ele apresenta ao problema todo
começa por uma distinção, que se mostra fundamental, quanto ao próprio objeto de investigação.
Para Kant, ao contrário do que se pensava até então, nós não conhecemos as coisas tais como são
em si mesmas, mas sim como estas nos aparecem. Nosso conhecimento dos objetos de nossa
experiência está circunscrito à nossa constituição enquanto seres sensíveis. Portanto, conhecemos os
objetos de acordo com o nosso modo de os perceber, de acordo com o modo pelo qual temos acesso
a eles. Não é possível então que pretendamos conhecer o que não nos é dado ao conhecimento, a
saber: os objetos enquanto tais, como são em si mesmos, independentemente do nosso modo de os
perceber —receber pelos sentidos1. O estabelecimento desta distinção, ao que parece, foi uma das
contribuições mais importantes da KrV, pois dela se seguiram todas as demais distinções de não
menor importância.2
Para, Kant, portanto, o que nos é dado a conhecer dos objetos é o que ele chama de
fenômeno, i.e. o que aparece para nós, o que nós percebemos dos objetos, a aparência. 3
Há então, de um lado, os objetos em si mesmos, que de modo algum nos são dados a
conhecer, e são apenas necessariamente postulados pelo entendimento como existindo, e que Kant
chama de noumenos —objetos puros do entendimento—; de outro lado, o que percebemos dos
objetos, as suas manifestações no espaço-tempo, os fenômenos. Desse modo, segundo Kant, o único
conhecimento possível é o conhecimento de fenômenos: conhecimento do que aparece. Porém,
apresentando assim o objeto de conhecimento, Kant, em vez de clarear as coisas, parece turbá-las
ainda mais, pois antes havia ao menos a idéia de que era possível se conhecer o ser verdadeiro das
coisas, i.e. elas mesmas em suas determinações internas e externas.
Pois bem, mas o recurso apresentado por Kant não pára aí, e ele prossegue, agora, com a
bipartição do modo como procedemos ao investigarmos objetos em geral na nossa experiência
sensível. Esta bipartição consiste em, primeiro, um fenômeno ser dado aos sentidos e, segundo, em

1
De acordo com Paton, o que Kant pretende com sua teoria é estabelecer um limite. ''Deste lado do limite estão as
aparências [fenômenos] que têm de ser temporais e espaciais. Além deste limite estão as coisas em si mesmas, cujas
características nós não conhecemos, nem podemos conhecer, nada''. Paton, I, p. 181.
2
De acordo com Allison, ''a distinção transcendental entre aparências [fenômenos] e coisas em si ou, mais
precisamente, entre as coisas como aparecem e essas mesmas coisas como são em si, funciona como a grande linha
divisória na concepção kantiana da história da filosofia''. Allison, p. 48.
3
De acordo com Paton, ''quando nós dizemos que espaço e tempo são formas das aparências, nós implicamos que estas
aparências são coisas, não como são em si mesmas, mas somente como elas aparecem para nós''. Paton, I, p. 135.
61
ser pensado pelo entendimento. O conhecimento, para Kant, o conhecimento empírico, portanto,
possuiria uma parte sensível e outra não sensível —e este parece ter sido o problema por excelência
para a filosofia de um modo geral: a compatibilização do sensível com o não sensível. A parte
sensível seria o material do conhecimento, a não sensível seria a sua parte formal. À primeira Kant
chamou de sensação, à segunda, de conceito. À faculdade de receber as sensações Kant chamou
sensibilidade e à de construir os conceitos, entendimento. À aparência sensível que percebemos dos
objetos através dos sentidos, o dado sensorial —que para Kant é o fenômeno da aparição do objeto,
da sua presença aos sentidos—, Kant dá o nome de intuição sensível. O fenômeno —o que nos é
dado a conhecer dos objetos, e que se constitui no nosso objeto de conhecimento propriamente
dito— é uma intuição sensível. Donde, para Kant, os dois elementos fundamentais do nosso
conhecimento empírico de objetos: a intuição e o conceito.
Para dar conta, então, do modo como se processava o conhecimento empírico, como vimos
acima, Kant passa ao estudo crítico e teórico dos elementos do conhecimento. Para a matéria do
conhecimento, a sensação —o fenômeno, a intuição sensível, o dado sensorial stricto sensu—, Kant
apresenta uma estética, e como ela deve ser a de todos os sujeitos pensantes enquanto tais, e não de
um ou outro indivíduo considerado isoladamente, i.e. como devendo ser a forma universal de
perceber objetos em geral, o modo universal de perceber objetos dados aos sentidos, essa estética é
transcendental. Para a forma do conhecimento, o conceito, Kant apresenta uma lógica, e como se
trata da possibilidade universal de formação de conceitos em geral, esta lógica, de igual modo, é
transcendental. A primeira parte da doutrina de Kant, na KrV, trata dos elementos do conhecimento
humano, e consiste portanto em uma Estética e uma Lógica Transcendentais.
A Estética Transcendental fundamentalmente irá estabelecer que os fenômenos, os dados
sensíveis, que são a matéria propriamente dita do conhecimento empírico, têm uma forma e que
esta forma não é dada pelo próprio fenômeno mas sim pelo modo como a sensibilidade humana é
constituída. Para Kant, todas as percepções sensíveis de objetos externos a nós têm a forma espaco-
temporal. Espaço e tempo são portanto para Kant as formas puras universais da intuição sensível de
objetos externos; são as condições de possibilidade da experiência sensível de objetos. Pois, para
Kant, nós só podemos perceber objetos como externos a nós locados espaço-temporalmente.
Como estão no sujeito e não nos objetos, e como são a base necessária para que qualquer
experiência sensível se inicie, espaço e tempo são —enquanto formas da matéria dada pela sensação
do fenômeno— a priori, i.e. antecedem e condicionam a experiência de objetos empíricos de
fenômenos sensíveis, dados à sensibilidade. Espaço e tempo não são portanto propriedades das
coisas em si mesmas mas dos fenômenos, daquilo que se manifesta aos nossos sentidos, e que só
pertencem aos fenômenos na medida em que estes são dados a nós, ou seja, eles só são dados como
espaço-temporais porque nós só podemos perceber objetos externos a nós de uma forma espaço-
temporal. Eles mesmos não são nem espaço-temporais nem não o são. Como são, não sabemos, pois
não nos são dados de outro modo que não este, a saber: espaço-temporalmente.
Como vimos acima, da distinção que Kant estabelece entre as duas fontes de conhecimento:
a sensibilidade e o entendimento, é necessário que se distingam também os objetos com que se está
lidando ao se formular conceitos, se objetos dados pela sensibilidade ou pelo entendimento puro,
destituído de todo elemento empírico. Conforme Kant, existe uma confusão que se estabeleceu
freqüentemente na filosofia entre os dois objetos e as duas faculdades e que ele chamou de
anfibologia transcendental. No Apêndice à Dedução Transcendental, Kant vai se dedicar a fazer a
crítica àqueles que na Filosofia não fizeram a distinção necessária entre: primeiro, fenômeno e
noumeno; e, segundo, entre operação do entendimento e operação da sensibilidade.
Fundamentalmente esta sua crítica vai incidir sobre dois filósofos que o antecederam, a
saber: Leibniz e Locke. Leibniz é acusado por Kant de cometer o grave erro de converter o
fenômeno em noumeno —objeto do entendimento— e lidar com ele apenas por meio de conceitos

62
construídos pelo entendimento, intelectualizando conceitos empíricos 1. Locke, por sua vez, ao
contrário, converte o noumeno em fenômeno, valendo-se apenas de princípios empíricos para
construir conceitos de objetos da experiência, sensualizando desse modo os conceitos.
Se admitirmos que esta é a discussão mais antiga da Filosofia, poderemos encontrar o
mesmo procedimento em dois filósofos que possuem posições que estão na origem de toda a
reflexão filosófica realizada até aqui, a saber: Parmênides e Heráclito 2. Considerados também à
distância e de uma maneira crítica, tal como o faz Kant, as posições de ambos podem ser
consideradas erradas, sob o ponto de vista do idealismo transcendental, uma vez que ambos
desconheciam as distinções entre fenômeno e noumeno —propostas por Kant—, simetricamente,
um pode ser dito como tendo intelectualizado os fenômenos e outro como tendo sensualizado os
noumenos.
Parmênides, de acordo com sua posição física acerca do universo, considerava o ser como
uno, indivisível, limitado e estático; portanto, todas propriedades que eram atribuídas ao ser por
intermédio da razão e que eram exigidas logicamente para a verdade.
Parmênides, quanto às suas exigências para pensar a verdade, foi considerado como tendo
instaurado a condição lógica fundamental do pensamento que veio a ser conhecida como o princípio
de contradição. Acontece que o erro filosófico de Parmênides, ao negar a aparência mutável das
coisas sensíveis (o fenômeno), foi atribuir à realidade —aos fenômenos— propriedades que só
valiam para o funcionamento do pensamento (entendimento), pois ao considerar que o mundo
deveria ser visto segundo categorias lógicas do pensamento, ignorou as condições que regem a
sensibilidade e a dupla fonte do conhecimento de objetos sensíveis. Ao proceder assim, Parmênides,
como Leibniz, pode ser dito como tendo intelectualizado os fenômenos, ou melhor, como tendo
tornado intelectuais propriedades que deveriam ser empíricas.
Por seu turno, Heráclito, ao contrário de Parmênides, afirmou que era impossível conhecer o
verdadeiro acerca do ser, uma vez que priorizou, de acordo com sua visão física do universo, as
informações sensíveis —os fenômenos, a intuição sensível— como as únicas capazes de informar
sobre o ser, desconsiderando assim qualquer tentativa racional de chegar à verdade por meio de
categorias lógicas do pensamento. Desse modo, apresentou como racionais as próprias propriedades
empíricas dos objetos, como as únicas capazes de informar a verdade sobre eles.
O erro filosófico de Heráclito consistiu em tomar por propriedades do pensamento
propriedades sensíveis dos objetos, negando a possibilidade da verdade imutável acerca do real.
Para ele o mundo deveria ser pensado tal como aparece, mutável, e o conhecimento de objetos
deveria se regular pelas suas propriedades. Isto quer dizer que na formulação de qualquer juízo
acerca de objetos empíricos, nenhuma categoria lógica do pensamento entraria em jogo, uma vez
que quaisquer conceitos de objetos seriam construídos apenas com os dados sensíveis. Não levando
em consideração nenhuma diretriz lógica nesse procedimento de classificação, os conceitos
estariam sempre à mercê da mutabilidade incessante dos objetos da sensibilidade.
Ora, se esta reconstrução da posição de Heráclito é procedente, poderíamos dizer que ele,
assim como Locke, poderia ser acusado, de acordo com a crítica de Kant, de ter sensualizado
conceitos e propriedades do entendimento, desconsiderando assim regras lógicas e, portanto,
necessárias na formulação de conceitos e juízos empíricos.
O que Kant reclama no Apêndice, como vimos, é uma distinção entre dois tipos de reflexão
que devem ser levadas em conta ao serem elaborados conceitos, ou seja, antes de se comparar e

1
B 327. Cf. Allison, '' 'intelectualizar as aparências é fazer abstração de seu irredutível caráter sensível (espaço-
temporal). Mas, posto que este caráter é um traço que define ao que Kant chama aparência [fenômeno], e posto que a
independência dele é o traço que define a coisa em si, se vê claramente que esta acusação é equivalente à afirmação de
que Leibniz ''considerou as aparências como coisas em si''. ''. Allison, p. 55.
2
Cf. Kirk, G.S. e Raven, J.E.. Os filósofos pré-socráticos (The presocratic philosophers), Gulbenkian, Lisboa, 1982, pp.
183-218 e 269-293.
63
elaborar conceitos acerca de quaisquer objetos —reflexão lógica—, deve-se verificar antes a que
tipo de objeto estes conceitos se referem, se a objetos da sensibilidade ou do entendimento, e esta
distinção é possível por meio da reflexão transcendental. Pois, para Kant, a reflexão lógica, ao não
levar em conta a fonte do objeto em questão no conceito, não pode informar nada acerca do
conteúdo do conceito, não evitando assim que, devido ao mau uso dos dados da sensibilidade e das
operações do entendimento, se confundam propriedades dos objetos com propriedades dos
conceitos, ou melhor, propriedades dos objetos da sensibilidade com as dos objetos do
entendimento puro.
Na verdade, se olharmos com atenção, todos os sistemas filosóficos relevantes que trataram
do problema acerca do conhecimento empírico tinham clara a distinção entre o domínio do sensível
e o do não-sensível, e esta distinção remonta aos próprios físicos pré-socráticos que citamos acima,
Parmênides e Heráclito. (Encontra-se sem dúvida, também, em Platão, Aristóteles, nos Medievais,
em Descartes, em Berkeley, Locke e Leibniz).
O problema consiste ao que parece no fato de que, mesmo que tenham levado em conta a
fonte dupla do conhecimento empírico, de um modo geral não dissociaram no que disseram acerca
dos objetos da experiência o que era pertinente ao entendimento apenas e o que só poderia ser
atribuído aos objetos da sensibilidade, enquanto fenômenos. Não distinguiram, portanto, entre
fenômeno (aparência) e noumeno (a coisa-em-si).
Devido ao fato de não fazerem a distinção necessária entre o domínio da razão e o domínio
da sensibilidade, filósofos como Locke e Leibniz cometeram erros, que jogaram a Metafísica no
campo de incertezas e contradições em que se encontrava, quando Kant se impôs a sua tarefa de
fazer a crítica ao uso puro da razão para além da experiência. Um sensualizou conceitos, outro
conceitualizou sensações, intelectualizando conceitos empíricos.
Por quê? Principalmente porque não conheciam um meio para unir coisas tão heterogêneas
como conceitos da razão e dados sensíveis; coisa que só com Kant passou a ser possível, tal como
vimos, com a introdução dos esquemas transcendentais: os elementos mediadores e
homogeneizadores do conhecimento, que fazem a transição da sensação ao entendimento e deste à
experiência. Só com o concurso de ambos na unidade do juízo, é que é possível o conhecimento,
bem como o sentido do discurso que tem por objeto o mundo fenomênico. Se o conhecimento se
regulasse apenas pelos objetos, nenhuma certeza seria possível; se se regulasse apenas pela razão,
nenhuma experiência seria possível, e, portanto, nenhum conhecimento empírico também.
Ora, parece importante considerar que o primeiro passo que Kant tem de dar a fim de
resolver o problema é o de transferir as condições de possibilidade do sentido dos juízos, i.e. as
condições de possibilidade tanto do conhecimento empírico como do conhecimento puro, para o
sujeito, ou seja, para o modo como ele é constituído, o seu aparato perceptivo 1. Isso, porém, não
seria suficiente, pois pareceria que o conhecimento não teria a universalidade necessária requerida
pela ciência, sendo, portanto, relativo às condições subjetivas do sujeito. 2
Kant faz melhor: ele vai construir a condição da universalidade e da certeza apodítica com
um pé nas condições de possibilidade da experiência de objetos externos a nós e com outro nas
condições de possibilidade desses objetos da experiência serem por nós pensados; em outros
termos, com um pé na sensibilidade e outro no entendimento.
Como ele faz isso?
Através da faculdade da imaginação, que tem a função primordial de ordenar o múltiplo
dado na intuição sensível, sob a forma espaço-temporal, segundo a forma do pensamento, que é
dada pelos conceitos puros do entendimento (as categorias). Devemos poder dizer, com isso,
que o "pulo do gato" que Kant dá em relação a seus antecessores não é apenas, de um lado, o ter ele

1
O chamado aspecto psicológico da filosofia de Kant, segundo Strawson.
2
Como podemos ler na Dissertatio, II, §§ 4, pp. 35-7.
64
deduzido transcendentalmente os conceitos puros do entendimento —condições de possibilidade de
todo o pensamento e de todo o objeto de pensamento—; nem de outro, o ter ele deduzido
transcendentalmente as formas puras da intuição sensível —condição de possibilidade de toda a
experiência sensível de objetos, da significação de todos os conceitos puros do entendimento, e do
sentido de toda a proposição. Não foi apenas isso, pois seus antecessores imediatos, tal como o
próprio Leibniz, quase chegaram a algumas dessas conclusões. O passo mais importante, que só
pôde se seguir a esses, certamente, foi o de ter conseguido compatibilizar essas duas faces do
conhecimento através do esquema, como vimos, que se constitui não só na condição de
possibilidade do conhecimento empírico (a posteriori), mas principalmente na do conhecimento
puro (a priori), em que se encontram os juízos sintéticos a priori.1

I. Percepção e apercepção: da consciência da representação de si à certeza da existência de


objetos externos2
Conforme Leibniz, na Monadologia 3, toda substância simples (mônada) é criada, e, enquanto tal,
está sujeita à mudança4. O que difere as substâncias simples entre si é o conjunto de mudanças ao
qual cada uma está continuamente submetida. Qualquer mudança, porém, a que possam estar
sujeitas as substâncias, não pode provir de fora delas, e sim de um princípio interno a elas 5. Por isso,
é necessário, conforme Leibniz, além da mudança, um detalhe <détail> que indique a mudança
quando esta ocorrer à substância. A mudança, enquanto tal, envolve uma multiplicidade na unidade
da substância, que é o permanente da mudança. Por isso, mesmo que não tenha partes, é necessário
que haja ''uma pluralidade de afecções e relações na substância simples'' 6. Leibniz chama este
''estado passageiro'', que envolve e representa a multiplicidade na substância simples —a mudança,
portanto—, de percepção.
Para Kant, como vimos, a percepção é a condição para que possamos ter quaisquer intuições
sensíveis, pois é somente por meio dela que a matéria da sensação é dada para que possamos pensar
objetos da intuição sensível. Conforme Kant, a ''sensação <Empfindung> é aquilo que indica
<bezeichnet> uma [efetividade <Wirklichkeit>] no espaço e no tempo''7. Se a sensação dada se
aplica ''a um objeto em geral <Gegenstand überhaupt> sem o determinar'', ela é chamada percepção
<Wahrnehmung>8. Considerada apenas em relação às intuições externas, a percepção representa
uma efetividade, assim como ''o espaço representa uma simples possibilidade de coexistência''. 9
Segundo Leibniz, a percepção deve ser distinguida da apercepção, que é a consciência da
percepção, i.e. a percepção da percepção. Em outros termos, o estado passageiro que envolve e
representa a multiplicidade na substância simples, quando não é acompanhado da consciência deste
estado pela substância, é percepção, e, ao contrário, quando é acompanhado da consciência deste
estado, apercepção10. Portanto, quando uma substância simples se apercebe de suas percepções, ela
tem consciência delas e as pode distinguir uma da outra11. E, conforme Leibniz, é graças ao fato de
nos apercebermos de nossas percepções que podemos distingui-las umas das outras; caso contrário,

1
Ver B 295-296.
2
Ver Almeida, G.A. de. Consciência de si e Conhecimento Objetivo na ''Dedução Transcendental'' da ''Crítica da
Razão Pura'', in: Rev. Analytica , v. 1, n. 1, 1993, pp. 187-219, Paton, H.J. . Conscience and Kant, Kant-Studien, vol.
70-3, 1979, L. Baldacchino, L.. Kant's Theory of Self-Consciousness, Kant-Studien, vol. 71-4, 1980
3
Leibniz, Gottfried Wilhelm. Os princípios da filosofia ditos a Monadologia ("La Monadologie"), trad. de Marilena de
Souza Chauí Berlinck, Abril Cultural, SP, 1974.
4
Ibid., § 10.
5
Ibid., § 11.
6
Ibid., § 13.
7
A 373.
8
A 374.
9
Ibid., loc.cit.
10
Leibniz, § 14.
11
Ibid., § 24.
65
''viveríamos em constante atordoamento'', e não nos distinguiríamos das demais substâncias
simples, que, como tais, possuem percepções, e.g. os animais. 1
De acordo com Kant, na Estética, a mente possui duas propriedades por meio das quais
objetos são representados, a saber, o sentido externo (espaço) e o sentido interno (tempo). Mediante
o sentido externo <äußere Sinn> nos representamos objetos como fora de nós e todos juntos
(simultâneos). Nele ''são determinadas ou determináveis as suas figuras, magnitudes e relação
recíproca''. Mediante o sentido interno <innere Sinn>, ''a mente intui a si mesma ou o seu próprio
estado interno''. O sentido interno ''não proporciona nenhuma intuição da própria alma <Seele>
como um objeto <Objekt>'', ele é apenas uma forma <Form> determinada ''unicamente sob a qual é
possível a intuição'' do estado interno da mente, ''de modo a que tudo o que pertence às
determinações internas ser representado em relações de tempo''. 2
A mente possui, portanto, dois estados representacionais: o externo e o interno. O estado
externo é representado por meio do sentido externo, que permite com que objetos sejam
representados como fora de nós e simultâneos no espaço. O estado interno é representado por meio
do sentido interno, que permite com que a mente intua a si mesma ou seu estado interno, no que diz
respeito às suas determinações internas, em relações de tempo. Tudo o que é representado na mente,
seja relativo ao seu estado interno seja ao seu estado externo pertence às determinações do sentido
interno da mente; do contrário, a mente não poderia intuir-se ao representar-se objetos por meio do
seu sentido externo3. Este ato mental de auto-intuição, seja de representações do estado externo seja
do interno, é a consciência da mente de que representações estão nela, também chamado, como
vimos, apercepção.4
De acordo com a posição de Leibniz, se tomarmos a mente humana como uma substância
simples (uma mônada) 5, e, como tal, dotada de um princípio interno que permite que as mudanças
sejam manifestadas nela como percepções, podemos considerar este princípio interno da mente as
formas do espaço e do tempo (como veremos). Pois, se a mente é o receptáculo das nossas
percepções sensíveis —os fenômenos qua representações—, enquanto tal ela só pode ser afetada
em sua constituição através do modo pelo qual se permite afetar, i.e. espaço-temporalmente. Isso
significa dizer que não são os objetos externos à mente que imprimem nela sua forma, modificando-
a em sua capacidade representativa. Mas, ao contrário, a mente se deixa modificar em relação aos
objetos externos em virtude de sua forma representativa, que é espaço-temporal.
Outra consideração que podemos fazer em relação à posição de Leibniz, na tentativa de
entender a posição de Kant, é que, se a apercepção é a consciência da percepção, podemos então
dizer que a percepção é a condição da apercepção; i.e. sem percepções não há apercepção. Ora, se a
percepção é sempre externa —dada no ''sentido externo''—, e a apercepção sempre interna —dada
no ''sentido interno''—, então toda apercepção —i.e. toda consciência de um sujeito de que
representações são dadas em sua mente— está vinculada, por definição, a uma percepção. E, nesse,
sentido, podemos entender porque, para Kant (como veremos adiante), nossa consciência de nós

1
Ibid., loc.cit.
2
B 37.
3
De acordo com Paton, toda ''substância ou matéria do sentido interno (enquanto matéria do conhecimento) chega até
nós pelo sentido externo''. Porém, sentimentos e desejos, conforme Paton, assim como pensamentos, ''podem ser
conhecidos também por meio do sentido interno''. Paton, I, p. 99. De acordo com Kant, ''os corpos são simples
fenômenos do nosso sentido externo e não coisas em si. De acordo com isto, podemos dizer, com razão, que o nosso
sujeito pensante não é corpóreo, i.e. que nos é representado como objeto do sentido interno e não pode, na medida em
que pensa, ser um objeto do sentido externo, i.e. nenhum fenômeno no espaço. Isto quer dizer que os seres pensantes
nunca podem, como tais, apresentar-se a nós entre os fenômenos exteriores ou que não podemos intuir exteriormente os
seus pensamento, a sua consciência, os seus desejos, etc., pois tudo isto é do foro do sentido interno''. A 357.
4
Cf. Paton, quando ''nós dizemos que nossa consciência está no tempo, nós podemos dizer assim somente se nós
estamos conscientes de nossa consciência , conscientes, i.e. de uma sucessão em nossas idéias. E se nós perguntamos se
nossa consciência de nossa consciência não está também no tempo, nós embarcamos em um regresso ao infinito, em
qualquer estágio do qual Kant daria presumivelmente a mesma resposta''. Paton, I, p. 182.
5
Ibid., p. 183.
66
mesmos como seres pensantes, em nosso sentido interno, só é possível se pressupormos uma
experiência externa. Pois, conforme Kant, no Quarto Paralogismo, a minha consciência da
representação de objetos externos difere da minha consciência da representação de minha própria
existência como ser pensante, meramente porque, além de ser referida necessariamente ao meu
sentido interno, é também referida ao sentido externo da mente, pois ambas têm em comum o fato
de serem imediatamente percebidas pela mente a partir da minha consciência delas. Para Kant, tanto
os objetos do nosso sentido externo como do nosso sentido interno (de nossos pensamentos) são
representações, cuja efetividade <Wirklichkeit> lhes é conferida pela nossa consciência imediata de
que tais representações são dadas presentemente em nossa mente. 1

II. Idealismo empírico e realismo transcendental versus idealismo transcendental e realismo


empírico
De uma maneira muito geral, podemos dividir os diversos sistemas filosóficos ocidentais segundo
duas posições filosóficas gerais acerca do estatuto dos objetos da experiência, a saber: o realismo e
o idealismo. O realismo em geral considera como indubitável a existência de objetos da experiência
externa, independentemente de serem percebidos por nós. O idealismo em geral (ou empírico,
material), por sua vez, conforme Kant, em B 274, considera seus estados de consciência
temporalmente sucessivos (entidades mentais) como existentes e considera a existência dos objetos
exteriores (no espaço) duvidosa e indemonstrável ou falsa e impossível, pois ''só pode ser concluída
como uma causa de percepções dadas''2. Para Kant, esta é a natureza de todos os fenômenos
exteriores, pois sua existência não pode ser percebida imediatamente.
O primeiro tipo de idealismo é o problemático, representado por Descartes, para o qual a
única coisa certa e indubitável é a do eu penso, eu sou (o cogito ergo sum); o segundo é o idealismo
dogmático, representado por Berkeley, que, conforme Kant, ''declara o espaço, com todas as coisas
às quais adere como condição inseparável, algo impossível em si mesmo e por isso mesmo também
considera as coisas no espaço como simples ficções''3. Para Kant, não podemos evitar este
idealismo, caso consideremos o espaço e o tempo como propriedades das coisas em si mesmas.
O idealismo problemático de Descartes, por sua vez, defende apenas a posição de que somos
incapazes de provar alguma existência além da nossa através da experiência imediata. Para Kant,
esta posição é uma atitude racional e concorda ''com uma maneira filosófica de pensar bastante
meticulosa''4, pois não se permite emitir nenhum juízo decisivo acerca do mundo exterior ''sem que
antes tenha sido encontrada uma prova suficiente''. É perante o idealismo empírico representado
pela posição de Descartes que Kant terá de prestar contas, i.e. o idealismo transcendental tem de
provar que ''das coisas externas possuímos também experiência e não só imaginação'' 5. Mas,

1
A 371. Strawson enfatiza o fato de que ''a menos que os conceitos que se utilizam em sua aplicação à nossa
experiência não impliquem implicitamente a aplicação de algumas noções (as categorias) muito gerais, seria impossível
que se desse algo como o conhecimento auto-consciente da sucessão da experiência no tempo''. Strawson, p. 18. Kant
estende a percepção, inclusive externa, à certeza do cogito. Mas, nesse caso, não poderíamos ter o conhecimento de nós
temporalmente tal como somos? Kant salienta, conforme Strawson, que o conhecimento do múltiplo ordenado
temporalmente não é conhecimento de algo como é em si mesmo. Quando Kant afirma que conhecemos nossos estados
de consciência, temporalmente ordenados, não está afirmando, com isso, que conhecemos nós ou mesmo nossa mente
tal como são em si mesmos. No tempo (nosso sentido interno), o múltiplo sensível dado aparece ordenado como
''resultado de uma auto-afecção em nós tal como somos em nós mesmos''. E como somos nós o objeto dessa afecção,
este resultado será o ''fenômeno de nós mesmos'', e, nesse caso, podemos falar, conforme Strawson, ''de auto-consciência
empírica, e de ser conscientes de nossos próprios estados mentais (temporalmente ordenados), sempre e quando
recordemos que este não é um conhecimento de nós como realmente somos, senão somente como nos manifestamos''.
Ibid., p. 49.
2
A 366.
3
B 274.
4
B 275.
5
Cf. Strawson, ''a realização do programa de Kant em relação a uma metafísica positiva implica a recusa do que ele
chama de idealismo ''problemático'', inclusive se tal idealismo é somente o ponto de partida metodológico, mais que
67
segundo Kant, isto não será possível sem que ele prove antes que, ''mesmo nossa experiência
interna, indubitável para Descartes, só é possível pressupondo uma experiência externa''.1
Se considerarmos como ponto de partida comum a estas posições os fenômenos, podemos
dizer que a diferença mais evidente se estabelece entre a concepção idealista e a realista, uma vez
que a idealista considera os objetos da experiência meramente como fenômenos em nós, enquanto
que a realista considera os fenômenos como o efeito em nós das coisas-em-si mesmas, existentes
fora de nós. Nesse sentido, para o idealismo, os fenômenos são meramente ''entidades mentais'',
representações; enquanto que, para o realismo, os fenômenos são ''entidades extra-mentais'', coisas
materiais.
Para o idealismo tout court, somente aquilo que está em nós pode ser imediatamente
percebido pela mente, e apenas ''a minha própria existência pode ser objeto de uma simples
percepção''2, que, enquanto determinação da apercepção, é uma modificação do sentido interno da
mente. Por isso, Descartes ter afirmado, com razão, que a única coisa verdadeiramente indubitável é
a minha existência como ser pensante, pois, conforme Kant, ''o objeto do sentido interno (eu próprio
com todas as minhas representações) é imediatamente percepcionado e a sua existência não sofre
dúvida alguma''3. Como o que é externo a nós não está em nós, a existência de um objeto real fora
de mim só pode ser percebida enquanto relacionada a esta percepção, nunca diretamente, pois não
pode ser encontrada na nossa apercepção. Por isso, a sua existência tem de ser ''pensada
adicionalmente e, portanto, concluída como sua causa externa'' 4. Nesse sentido, a existência de
objetos exteriores é inferida, como um efeito, da minha percepção interna, i.e. a partir da
consciência de que uma representação é dada em minha mente. O que não fica claro nessa relação
da percepção à sua causa, conforme Kant, é se esta é interna ou externa, ''pois em nós mesmos pode
residir a causa das representações que atribuímos, talvez erroneamente, às coisas externas'' 5. Com
base nisso, Kant salienta que o idealismo não nega a existência dos objetos externos dos sentidos,
mas simplesmente que não podemos percebê-los imediatamente, e por isso ''nunca podemos estar
completamente seguros da sua [efetividade] pela experiência possível''. 6
De acordo com Kant, em A 369, este idealismo tradicional ou empírico (material) deve ser
distinguido de um idealismo transcendental (ou formal), que é a doutrina que considera tudo o que
''é intuído no espaço ou no tempo, portanto, todos os objetos de uma experiência possível para
nós''7, meramente como fenômenos, i.e. meras representações, e não coisas-em-si mesmas, e ''tal
qual são representados, como entes extensos ou séries de mudanças, não possuem uma existência
<Existenz> fora de nossos pensamentos <außer unseren Gedanken> e fundada em si''8. Segundo
esta doutrina, ''o tempo e o espaço são apenas formas sensíveis da nossa intuição'' e não
''determinações dadas por si, ou condições dos objetos considerados como coisas em si'' 9. Este
idealismo se distingue do empírico, que, mesmo aceitando a realidade própria do espaço, nega ou
considera duvidosa ''a existência dos entes extensos no mesmo'' 10, não diferindo com precisão entre
o sonho e a realidade. Ao idealismo transcendental, por sua vez, Kant opõe um realismo
transcendental, que considera os fenômenos exteriores como coisas-em-si, existentes fora de nós e

ponto de chegada, da reflexão filosófica. Qualquer filósofo que nos desafie a justificar nossa crença no mundo objetivo
saindo para fora, por assim dizer, desde os dados privados da consciência individual, demonstra com isto sua
incapacidade para compreender as condições de possibilidade da experiência em geral''. Conforme Strawson, filósofos
como Descartes e Hume, que se distinguem em inúmeros outros aspectos, incorreram neste erro. Strawson, p. 16-17.
1
B 275.
2
A 376.
3
A 368.
4
A 367.
5
B 276.
6
A 369.
7
B 518.
8
B 519.
9
A 369.
10
B 519.
68
independentemente de nós e da nossa sensibilidade, e para o qual o espaço e o tempo são entes
existentes dados em si mesmos, independentes da nossa sensibilidade.1
O idealismo transcendental, porém, é compatível com um realismo empírico, uma vez que
admite a existência de objetos externos ''sem sair da simples consciência de si próprio'', i.e. sem
necessitar mais do que a certeza do ''eu penso''2, pois ''tenho consciência das minhas representações;
logo, elas existem e eu próprio também, que tenho essas representações'' 3. Para este idealismo
transcendental tanto os objetos exteriores como sua própria possibilidade são meramente
fenômenos, que, sem que possam ser dados à nossa sensibilidade, não são coisa alguma para nós.
Estes fenômenos de objetos exteriores a nós são uma espécie de representações na mente, cuja
exterioridade não advém do fato de se referirem a objetos ''exteriores em si, mas porque referem as
percepções ao espaço [sentido externo], no qual todas as coisas se encontram separadas umas das
outras, enquanto o próprio espaço está em nós''. 4
A diferença entre o idealismo empírico e o idealismo transcendental consiste no fato de que
para este a existência efetiva do objeto como fenômeno não é meramente a conclusão de percepções
sensíveis dadas, mas é percebida imediatamente. O problema do realismo transcendental, por sua
vez, consiste em conceber os objetos dos sentidos como algo separado deles. O realismo
transcendental considera as ''modificações de nossa sensibilidade coisas subsistentes em si,
tratando, por conseguinte, meras representações como coisas em si mesmas''5. Como estes objetos

1
A 369.
2
A hipótese desenvolvida no trabalho consiste em afirmar que a condição de possibilidade do sentido dos juízos
sintéticos em geral depende da compatibilização das duas fontes de conhecimento, a saber, a sensibilidade e o
entendimento. O que permite esta compatibilização é a imaginação, por meio do esquematismo. Esta hipótese sustenta
que o sentido de um juízo depende da concorrência tanto dos conceitos puros do entendimento quanto das formas puras
da intuição sensível. Contra essa posição, foi-me objetado que, por ex., o sentido do juízo analítico 'O triângulo tem
três lados' independe das condições sensíveis puras, e que ele tem sentido meramente pelo princípio de contradição.
Dessa maneira, contrário a Kant, nem mesmo o princípio de contradição estaria submetido à condição do tempo. Esta
posição implica que o sentido dos juízos analíticos e mesmo dos metafísicos não estaria condicionado ao esquematismo.
O objetor afirma também que o ''eu penso'' no § 16, em B, tem a ver com a consciência transcendental e não com a
consciência do sentido interno. Isso implica que ele considera a consciência transcendental como não sujeita à condição
do tempo, que é a dimensão da consciência transcendental. Para ele, um dos resultados da Dedução Transcendental é
que o ''eu penso'' é a condição de possibilidade do sentido de qualquer juízo. A apercepção originária é diferente do ''eu
penso''; a primeira é condição da segunda. A apercepção originária é a mera consciência do múltiplo, é condição última
da unidade do múltiplo, é uma condição lógica, formal, da constituição do sujeito transcendental e empírico. Mas este
''eu penso'' não está igualmente submetido à condição do sentido interno, o tempo, mesmo que ele não se refira à
consciência do sentido interno mas à transcendental? Conforme Paton, quando ''nós dizemos que nossa consciência está
no tempo, nós podemos dizer assim somente se nós estamos conscientes de nossa consciência, conscientes, i.e., de uma
sucessão em nossas idéias. E se nós perguntamos se nossa consciência de nossa consciência não está também no tempo,
nós embarcamos em um regresso ao infinito, em qualquer estágio do qual Kant daria presumivelmente a mesma
resposta''. (Paton, I, 182). Ou seja, toda vez que acionamos nossa consciência, este ato se encontra no tempo. Se entendo
bem a posição contida nessa objeção, ele estaria afirmando que em juízos analíticos e metafísicos nós não necessitamos
esquematizar conceitos segundo as formas puras, ou mesmo apenas segundo a forma pura do sentido interno, o tempo,
para que tais juízos tenham sentido, bastando que tais juízos estejam de acordo com o princípio de contradição, que é o
princípio fundamental do pensamento. Mas isto implicaria, ao meu ver, que, na enunciação, ou na mera formulação
destes juízos no pensamento, nós não nós utilizássemos da capacidade da imaginação (transcendental) para afirmar ou
negar o predicado do sujeito nestes juízos. Se é assim, como estabelecer a diferença entre a enunciação do juízo
analítico 'O triângulo tem três lados', por parte de um papagaio, por parte de um gravador e por parte de um sujeito
empírico? O ''eu penso'' tem de poder acompanhar todas as minhas representações no sentido de que confere unidade de
significação ao juízo que representa um objeto determinado, pois do contrário, a representação não seria possível, ou
seja, eu não teria consciência dela, e, portanto, ela não seria coisa alguma.
3
A 370. Cf. Allison, quando Kant se diz um ''realista empírico e nega ser um idealista empírico, em realidade está
afirmando que nossa experiência não está limitada ao domínio privado de nossas próprias representações, senão que
inclui o encontro com os objetos espaço-temporais ''reais empiricamente''.''. Allison, p. 35.
4
A 370.
5
B 519. Cf. Allison, o problema com o realismo transcendental é que ele interpreta errado a realidade dos objetos
espaciais e, por isso, ''se vê obrigado a negar que a mente tenha uma experiência imediata de tais objetos''. Para Allison,
apresentado dessa maneira, o realismo transcendental se mostra ''como a fonte do pseudoproblema do mundo externo e
da versão cartesiana emblemática do ceticismo associado com ele''. Allison, p. 47.
69
não podem ser para nós nada mais do que meros fenômenos, ao considerá-los como existentes em si
mesmos independentemente de nós e da nossa sensibilidade, esse realismo termina por ter de
recorrer ao idealismo empírico, uma vez que, da certeza da mera consciência de nossa representação
desses objetos, por mais perfeita que ela seja, jamais poderíamos passar para a certeza da existência
efetiva desses objetos, dos quais temos representações conscientes, ''pois é simplesmente impossível
conceber como devemos chegar ao conhecimento da sua [efetividade <Wirklichkeit>] fora de nós,
apoiando-nos simplesmente na representação que está em nós''1. Resta sempre, para uma tal
posição, a tarefa de determinar a efetividade daquilo de que temos conscientemente representações,
e ainda se a causa dessas representações reside em nós ou fora de nós.2
O idealismo transcendental admite sem problemas a possibilidade da existência fora de nós
de algo, ''no sentido transcendental'', que seja a causa de nossas representações de objetos externos 3.
Porém, esse algo fora de nós, esse objeto transcendental, não pode para nós ser objeto de
conhecimento4. As representações dos objetos da experiência, dos quais falamos, nada mais são do
que fenômenos, que são ''simples modos de representação, que nunca se encontram senão em nós'',
dos quais a efetividade, ''tanto como a consciência dos meus próprios pensamentos, repousa na
consciência imediata''.5

III. O fenômeno como mera representação: a interpretação convencional do idealismo


transcendental
Conforme Allison, a interpretação convencional do idealismo transcendental de Kant, professada
dentre outros por Strawson, parte da equivalência entre fenômeno e mera representação. De acordo
com esta interpretação, ''o idealismo transcendental de Kant é uma teoria metafísica que afirma a
incognoscibilidade do ''real'' (coisas em si) e relega o conhecimento ao reino meramente subjetivo
das representações (aparências)''6. Considerados assim, nós só teríamos conhecimento de nossos
estados mentais, tal como expressa o idealismo empírico de Berkeley (como veremos abaixo). De
acordo com esta interpretação, Kant teria sido levado a considerar os fenômenos: (i) ou como
parecendo ser espaciais, levando-nos à mera aparência de objetos exteriores —tal como o
idealismo empírico—; ou (ii) como realmente espaciais, o que nos leva ao extremo oposto, i.e. a
considerar estados mentais como existentes materiais situados no espaço fora de nós —tal como o
realismo transcendental. 7
Segundo o idealismo transcendental, nós não temos consciência da existência efetiva de
objetos exteriores a nós, mas apenas das nossas representações desses objetos tal como eles nos são
dados na sensibilidade, pois, conforme Kant, todos os objetos exteriores (a matéria sob diversas
formas e transformações) ''são apenas meros fenômenos, i.e. representações em nós'', de cuja
efetividade <Wirklichkeit> ''temos imediatamente consciência''8. Pois, para Kant,

1
A 378.
2
Strawson considera filósofos tais como Berkeley e Locke como ''filósofos de mente científica''. Para ele, as teorias da
percepção destes, comparadas à de Kant, só induzem ao erro, pois, ''a teoria que, com traços de Locke, se baseia sobre a
análise científico-causal dos efeitos dos objetos em nosso aparato sensorial e nervoso, deixa lugar para considerar os
objetos como são em si (e também nosso aparato receptivo, como é evidente) como coisas espaço-temporais''.
Strawson, p. 225.
3
Cf. Allison, aqui reside a assim chamada inconsistência do idealismo de Kant —que gerou críticas tais como a de
Strawson—, uma vez que ele combina o ''idealismo fenomênico, essencialmente berkeleiano, com o postulado de um
reino inacessível de coisas em si''. Allison, p. 32.
4
Cf. Paton, seria mais acertado falar aqui da coisa-em-si como condição, em vez de causa, da aparência. Paton, I, p. 62.
5
A 372.
6
Paton, I, p. 30.
7
Ibid., pp. 33-34.
8
A 371-372.
70
ninguém pode sentir fora de si, mas somente em si mesmo e, por conseguinte, toda a
consciência de nós mesmos não nos fornece nada a não ser apenas as nossas próprias
determinações.1
De acordo com Strawson, ainda que possamos ter conhecimento imediato tanto de objetos
físicos do sentido externo como de nossos estados psicológicos, em nosso sentido interno, não
significa que possamos atribuir a mesma realidade a ambos, i.e. a corpos no espaço e a estados de
consciência. Mesmo considerados como fenômenos pelo idealismo transcendental, objetos
exteriores e estados de consciência não têm a mesma realidade empírica 2. Porém, conforme
Strawson, Kant não afirma, que ao sermos afetados em nossa sensibilidade por coisas em si
mesmas, nossa mente produza duas categorias diferentes de existência: a dos corpos espaciais e a
dos estados de consciência. Para Strawson, os efeitos reais das ''transações'' entre as coisas em si
mesmas e nossa sensibilidade ''são todos estados de consciência ordenados temporalmente; mas
nestes se incluem [...] estados de consciência que nós consideramos como percepções de corpos no
espaço''3. Por isso, devemos diferenciar as formas de nossa sensibilidade dos seus produtos, i.e. o
espaço do tempo e os objetos no espaço de nossos estados de consciência. Nos termos de Kant,
O eu representado no tempo pelo sentido interno e os objetos representados no espaço fora de
mim são, sem dúvida, fenômenos especificamente, completamente diferentes, mas não são
concebidos, por isso, como coisas distintas. 4
Os objetos no espaço, conforme Strawson, são fenômenos num sentido muito mais forte do
que os nossos estados de consciência ordenados temporalmente, que são meramente ''efeitos das
coisas como são em si''. Os objetos que percebemos como externos a nós não são de modo algum
efeitos das coisas em si, mas estados de consciência que temos de considerar ''como percepções de
corpos no espaço'', que, fora de nossa percepção, não são coisa alguma, i.e. só existem, tal como os
percebemos, para nós.5
Como vimos, o idealismo empírico e o transcendental parecem compartilhar de uma mesma
posição referente aos objetos da experiência, i.e. ambos consideram os fenômenos como
representações, que, como tais, só existem em nosso pensamento. Porém, este modo de apresentar o
idealismo empírico e o transcendental esconde uma diferença fundamental que reside exatamente na
noção de objeto da experiência. Para Kant os fenômenos são meras representações que, enquanto
tais, ''não possuem uma existência fora de nossos pensamentos <außer unseren Gedanken> e
fundada em si''. Existir dentro e fora do pensamento para o idealismo transcendental é diferente de
existir dentro e fora do pensamento para o idealismo empírico e para o realismo transcendental 6. É
aqui que encontramos a principal incompreensão dos defensores da interpretação convencional do
idealismo de Kant, pois não levam em consideração esta diferença. Mas em que consiste ela?
Os sentidos, em especial, a matéria que eles fornecem ao entendimento, desempenham um
papel extremamente relevante no sistema kantiano do idealismo transcendental, uma vez que é só
por meio deles que temos acesso à experiência de objetos. Por meio dos sentidos temos acesso aos

1
A 378. Conforme Paton, ''a doutrina de Kant (segundo a qual espaço e tempo são somente forma das aparências)
envolve a conseqüência de que nós conhecemos nós-mesmos somente como aparências, e a fortiori que nós
conhecemos outros somente como aparências''. Paton, I, p. 179.
2
Strawson afirma que Kant, por este motivo, está mais próximo de Berkeley do que gostaria de admitir. Strawson, p.
19. Cf. Allison, esta observação de Strawson é o traço característico e imanente de sua interpretação do idealismo
kantiano. Nos termos de Allison, para Strawson, ''Kant é um berkeleiano incoerente''. Allison, p. 32.
3
Strawson, p. 51.
4
A 379. Talvez aí resida o motivo de Kant, na KrV, ter dado menos ênfase à forma do tempo, na Estética, do que deu na
Dissertatio, inclusive invertendo a ordem da exposição naquela, iniciando, pois, pelo espaço, detalhando mais e melhor
a forma e os produtos espaciais.
5
Strawson, p. 51.
6
Paton chama a atenção para a confusão em relação ao uso das palavras 'dentro' e 'fora' em relação à mente. Pois, para
Paton, o espaço, por exemplo, ''está certamente 'em nós', se estar 'em nós' significa ser um objeto de conhecimento. Ele
está também 'em nós' tanto quanto fora de nós, se estar 'em nós' significa estar em nossos corpos''. Paton, I, p. 100.
71
objetos tais como estes aparecem, i.e. à sua aparência <Schein>, que para Kant é o fenômeno
<Erscheinung>. Descartes, e um grande número de filósofos racionalistas, recusou os sentidos
como fonte do conhecimento verdadeiro, exatamente por eles nos apresentarem apenas a aparência
dos objetos, que, como tal, pode estar em desconformidade com o que o objeto da experiência é em
si. Por isso, os sentidos, para Descartes, podem nos enganar, não nos permitindo, pois, ter acesso à
essência verdadeira do objeto, i.e. àquilo que ele é em si.
Segundo o idealismo empírico (ou dogmático) —o empirismo clássico ou materialismo— de
Berkeley, contra o qual o idealismo transcendental de Kant se volta, aquele que percebe (o
percipiente) e conhece, tanto as idéias como os objetos de conhecimento, é a mente, o eu. Ela é algo
distinto daquilo que ela percebe, e na qual tudo o que é percebido e pensado existe, pois, para
Berkeley, no Tratado sobre os princípios do conhecimento humano 1, ''a existência de uma idéia
consiste em ser percebida''2. Para ele, é impensável a existência de algo fora de nossa mente, pois
ser (ou existir) é ser percebido <esse est percipi> ou percipiente3. (Esta é a tese fundamental do
idealismo empírico de Berkeley). Isto implica dizer que tudo o que existe em nossa mente, ou como
idéias ou como sensações de objetos, tudo o que vemos e sentimos, nada mais é senão sensações ou
idéias, pois, para Berkeley, não podemos separar ''o ser de um objeto sensível do seu ser
percebido''4. Portanto, ter uma idéia, para Berkeley, ''é o mesmo que percebê-la'', daí, para ele, só
haver uma única substância: a mente do percipiente, e, conforme Kant, ''as restantes coisas, que
julgamos perceber na intuição, seriam apenas representações nos seres pensantes a que não
corresponderia, na realidade, nenhum objeto exterior''. 5
Mas Kant insiste em dizer que não é idealista neste sentido, pois, mesmo que não possamos
saber o que são em si mesmas, são-nos dadas coisas como exteriores a nós, mas das quais
conhecemos apenas os seus fenômenos, i.e. ''as representações que em nós produzem, ao afetarem
os nossos sentidos''6. Para Kant, existem corpos materiais fora de nós, mas, para nós, tanto estes
como sua matéria são meros fenômenos, que, fora da sensibilidade, não significam coisa alguma. A
matéria, os objetos materiais, existe externamente, não porque esteja em relação com objetos que
são externos em si mesmos, mas porque reportam as percepções ao espaço que está em nós. E,
conforme Kant, aquilo ao que chamamos fenômeno da coisa existente e exterior a nós, para nós
desconhecida tal como é em si mesma, existe tanto quanto esta, mas apenas segundo o modo como
imediatamente o recebemos na intuição sensível, i.e. espaço-temporalmente. E, conforme Strawson,
''dizer que conhecemos imediatamente os corpos é dizer, simplesmente, que temos representações
do sentido externo que estão conectadas de acordo com leis empíricas apropriadas''. 7
Para o idealismo de Berkeley, e, de um modo geral, para todo o idealismo empírico —
incluindo o de Descartes e Locke—, no objeto de conhecimento, i.e. no fenômeno, podemos
identificar e distinguir qualidades (propriedades, predicados) primárias (essenciais ao objeto) —
como extensão, figura...— e qualidades secundárias (acidentais no objeto) —como a cor, o som, o
sabor, etc.. Porém, esta distinção entre qualidades primárias e secundárias não procede se se as
atribui a uma coisa como existente fora da mente, na matéria, que não é percebida nem percipiente.
Porque, para Berkeley, as qualidades primárias tal como extensão, figura e movimento só podem
existir na mente, e, como tais, só podem assemelhar-se entre si, i.e. a idéias8. Propriedades primárias

1
Berkeley, G., Tratado sobre os princípios do conhecimento humano, 2ª ed., SP, Abril Cultural, 1980.
2
Ibid., § 2.
3
Ibid., § 3.
4
Ibid. § 6.
5
Kant, I., Prolegomena, § 13, Observação II, A 62.
6
Ibid., A 63.
7
Strawson, p. 229. Ver também, na KrV, A 376.
8
Cf. Paton, a ''diferença entre qualidades secundárias e primárias é uma diferença dentro da aparência, não uma
distinção entre aparência e realidade''. Paton, I, p. 61. De acordo com Paton, se concordarmos com Kant que espaço e
tempo dizem respeito tão somente à natureza de nossa sensibilidade, nós não podemos sequer sugerir que eles possam
pertencer igualmente às coisas como são em si mesmas. Por isso, ''é igualmente óbvio que as qualidades empíricas
reveladas em nossa sensação, embora elas sejam devidas à 'influência' das coisas independentes, não podem ser
72
(essenciais) e secundárias (acidentais) são propriedades relacionais, i.e. dizem respeito ao objeto
apenas enquanto referido ao sujeito percipiente. E, para Kant, o fato de essas propriedades não
pertencerem às coisas mesmas mas apenas ao seus fenômenos, não prejudica em nada a existência
das mesmas1. Por isto, não faz sentido tomar um objeto, tal como o percebemos, i.e. dotado das
propriedades primárias e secundárias que lhes atribuímos na sua relação à nossa percepção, como
extenso, i.e. como existente fora da substância pensante (fora de nós <außer uns>)2. A expressão
existir tem um sentido apenas relacional, i.e. somente se for referida a algo por alguém capaz de
conhecer. Falar na existência de objetos que não podem ser conhecidos, é falar sem sentido. Existir
só tem sentido se estiver relacionado à possibilidade do conhecimento.
Portanto, existir dentro do pensamento, segundo o idealismo empírico e o realismo
transcendental, consiste em ser apenas representação do sentido interno da mente, i.e. é existir
apenas psicologicamente como entidade mental. E existir fora do pensamento, segundo o idealismo
empírico e o realismo transcendental, é existir materialmente como coisa-em-si situada no espaço e
no tempo. Para o idealismo transcendental, ao contrário, existir dentro do pensamento não é existir
meramente como entidade psicológica, assim como existir fora do pensamento não é existir espaço-
temporalmente. Para o idealismo transcendental, existir dentro do pensamento <inner uns> é existir
como fenômeno, e existir fora do pensamento <außer uns> é existir como noumeno. É por
considerar todos os objetos da experiência como fenômenos, que, como tais, são representações do
sentido interno e/ou externo da mente, dos objetos tais como são dados aos sentidos, que eles são
ditos existirem apenas no pensamento. A diferença entre o idealismo e o realismo transcendentais,
por sua vez, consiste no fato de que este considera espaço e tempo como entes existentes em si
mesmos independente de nossa sensibilidade, enquanto que aquele os considera como formas de
nossa intuição sensível, como condições de possibilidade de toda nossa experiência de objetos.
De acordo com Kant, com isso se poderia objetar contra sua posição que ''todo o mundo
sensível <Sinnenwelt> se transformaria, mediante a idealidade do espaço e do tempo, em pura
aparência <lauter Schein>''3. Mas, quando Kant sustenta que os objetos são para nós meras

qualidades destas coisas como são em si mesmas; porque tais qualidades empíricas são necessariamente espaciais''.
Paton, I, p. 167.
1
Cf. Kant, ''se além disso, por razões importantes, também conto entre os simples fenômenos as restantes qualidades
dos corpos, que se chamam primárias, a extensão, o lugar e, em geral, o espaço com tudo o que lhe é inerente
(impenetrabilidade ou materialidade, forma, etc.), contra isso não pode aduzir-se o mínimo motivo para não o admitir; e
assim como aquele que não quer ver nas cores propriedades inerentes ao objeto em si mesmo, mas apenas ao [sentido
da visão <Sinn des Sehens>] enquanto suas modificações, não pode chamar-se um idealista, assim também a minha
doutrina não pode denominar-se idealista pela simples razão de que, na minha opinião, ainda mais propriedades, sim,
todas as propriedades que compõem a intuição de um corpo, pertencem apenas ao seu fenômeno; com efeito, a
existência da coisa que aparece não é deste modo suprimida, como no idealismo verdadeiro, mas mostra-se unicamente
que não a podemos conhecer pelos sentidos como ela é em si mesma''. Prolegomena, § 13, Observação II, A 63-64.
2
Cf. Strawson, as qualidades primárias são aquelas que seriam aplicáveis aos objetos tais como são em si mesmos,
enquanto as secundárias, aos objetos como fenômenos, i.e. tal como os percebemos. Nesse sentido, os ''objetos como
realmente são'' seriam aqueles ''pensados como possuidores realmente daquelas propriedades (primárias) que os torna
capazes de se manifestar de diferentes maneiras a seres dotados com aparatos sensíveis e nervosos distintos, mas não
como possuidores daquelas propriedades posteriores (secundárias), cuja aparente possessão fica explicada pelo efeito
das propriedades primárias sobre o mencionado aparato''. Strawson, p. 35. Cf. Strawson, ''o que Kant pretende dizer [...],
ao opor ''o que pertence à sensação'' a certa classe de conceitos espaciais, é que não dependemos dos resultados da
observação empírica das características e relações de objetos encontrados realmente na experiência para determinar que
certas propriedades pertencem necessariamente às coisas que caem sob conceitos pertencentes a esta classe.
Dependemos, na verdade, para este resultado, do exercício de nossa faculdade de intuição sensível: mas somente em seu
exercício ''puro'', não ''empírico''.'' Ibid., p. 56. Para Allison, o idealista empírico ''considera que a ''exterioridade'' dos
objetos espaço-temporais ''reais'', dos quais supostamente se ocupa a ciência, implica a independência de tais objetos
com relação às condições subjetivas do conhecimento humano. Isto seria perfeitamente aceitável se ao descrever
transcendentalmente estes objetos exteriores [o idealista] se abstivesse de atribuir a eles predicados espaciais ou
temporais. Neste caso, [ele] seria um bom idealista transcendental''. O problema com o idealista empírico consiste no
fato de ele confundir o sentido empírico de fora de nós <außer uns> com o sentido transcendental. Para Allison, esta
''confusão ou erro é o que gera o ceticismo vinculado com este tipo de idealismo''. Allison, p. 50.
3
Prolegomena, § 13, Observação III, A 64-65.
73
aparências, i.e. fenômenos, ele está dizendo o mesmo que Berkeley? 1 De acordo com Allison, para
os defensores da interpretação convencional, sim. Mas em que consiste, então, ser uma aparência,
para Kant?

IV. A distinção transcendental e empírica entre aparência (fenômeno) e realidade (coisa em si):
a interpretação corrigida do idealismo transcendental
Na Estética Transcendental, em B 62-63, Kant estabelece como necessária a distinção
transcendental e empírica na percepção dos fenômenos. E o erro fundamental em que incorreram,
em grande parte, os defensores da interpretação convencional, em especial Strawson, conforme
Allison, consistiu em não terem realizado uma separação rigorosa entre a versão empírica e
transcendental de duas distinções que Kant faz: as distinções entre idealidade e realidade, por um
lado, e, por outro, entre fenômenos e coisas em si 2. Conforme Allison, considerado de um modo
geral, idealidade, para Kant, significa depender da mente ou estar nela (em nós); e realidade
<Realität>, na medida em que se opõe à idealidade, significa o contrário, i.e. independer da mente
ou estar fora dela (fora de nós).3
No sentido empírico, conforme Allison, ''a distinção entre idealidade e realidade é
essencialmente, uma distinção entre os aspectos subjetivos e objetivos da experiência humana'': a
idealidade caracteriza os conteúdos mentais privados de um indivíduo —as idéias no sentido de
Berkeley, Locke, Descartes—, ou qualquer conteúdo de uma mente ''no sentido ordinário de
mental''; e a realidade, por sua vez, caracteriza o domínio dos objetos situados espaço-
temporalmente, aos quais os sujeitos têm acesso na experiência.
No sentido transcendental da distinção entre idealidade e realidade, que é o nível da reflexão
filosófica, conforme Allison, a idealidade caracteriza as condições sensíveis necessárias e
universais, a priori, do nosso conhecimento (o espaço e o tempo); e a realidade, por sua vez, é a
característica daquele objeto que só pode ocorrer independentemente do concurso das condições
sensíveis da nossa experiência de objetos. Por isso, conforme Allison, ser externo ou independente
da mente, no sentido transcendental, ''significa independência da sensibilidade e de suas condições''.
Um objeto nesse sentido é, portanto, um noumeno. 4
De acordo com Kant, a distinção transcendental consiste em distinguir o que é
essencialmente inerente à intuição do fenômeno ''e vale para todo o sentido humano em geral''
daquilo que é acidental nesta intuição e não vale para a sensibilidade em geral. O primeiro
conhecimento ''representa o objeto em si mesmo'', o segundo ''representa apenas o seu fenômeno'' 5.
A distinção empírica, por sua vez, consiste em distinguir o fenômeno da coisa-em-si, ou noumeno.
O primeiro é o único objeto passível de conhecimento no mundo sensível <Sinnenwelt>. Conforme
Allison, no nível empírico, fenômenos e coisas em si ''designam duas classes distintas de entidades
com dois distintos modos de ser'', a saber: entidades mentais e não mentais, no sentido usual (tal
como vimos acima, quando consideramos a diferença entre o idealista e o realista). No nível
transcendental, porém, a distinção entre fenômenos e coisas em si diz respeito a dois modos

1
Ser uma aparência para Kant não é ser objeto de uma percepção, mas é ser correlacionado com uma percepção
mediante as leis do progresso empírico. Kant expande o conceito de aparência do idealismo empírico.
2
Allison, p. 34.
3
Esta distinção deixa, acima de tudo, claro por que Kant utiliza o termo Wirklichkeit <efetividade> e seus cognatos
para falar dos objetos da experiência, no lugar de Realität <realidade>. Por isso, os objetos presentes na nossa
experiência sensível serem efetivos <wirkliche> e não reais <reale>. Cf. Allison, o termo Realität, usado como um dos
conceitos puros do entendimento, pertence à categoria de qualidade <Qualität>, e é contrastado com o de negação
<Negation>. Por isso, conforme Allison, ''quando Kant usa o termo realidade em contraste com idealidade, realidade
não deve ser considerado em sentido categorial. Sob esta perspectiva não-categorial, Kant, distingue realitas
phaenomenon e realitas noumenon''.'' Ibid., p. 35.
4
Ibid., p. 35-36.
5
B 62.
74
distintos de considerar os objetos empíricos, a saber: como aparecem e como são em si mesmos. No
primeiro caso, eles se relacionam com as condições subjetivas de nossa sensibilidade, i.e. dependem
dela; no segundo, ao contrário, são considerados independentemente destas condições 1. Mas qual a
natureza destas distinções? A natureza das distinções empírica e transcendental, como vimos, é
reflexivo-transcendental, pois se referem às fontes de ambos os conhecimentos2. De acordo com
Kant, o
ato pelo qual aproximo a comparação das representações em geral com a capacidade de
conhecimento, em que aquele é instituído, e pelo qual distingo se tais representações são
comparadas entre si como pertencentes ao entendimento puro ou à intuição sensível [é
chamado de] reflexão transcendental.3
O que, de fato, está em questão nestas distinções não é a natureza do objeto mas a dos
conceitos dados de fenômeno e de noumeno, portanto, a natureza do caráter discursivo das
reflexões. A reflexão empírica diz respeito à experiência imediata de objetos, e a transcendental, às
condições de possibilidade da experiência de objetos. Nós não podemos encontrar a distinção entre
fenômeno e noumeno na experiência, pois não podemos separar empiricamente um do outro, mas
apenas mentalmente, após refletirmos sobre a fonte de nossas representações. Ela é uma distinção
eminentemente conceitual e, portanto, discursiva.
Kant, em B 63, ilustra a distinção empírica e transcendental entre fenômeno e noumeno com
o exemplo da chuva e do arco-íris. Empiricamente considerado, o arco-íris, em relação à chuva
diante do sol, é um fenômeno, e a chuva é a coisa em si mesma. Conforme Kant, é correto falar
assim —na ''linguagem da experiência'', segundo Allison—, pois nós compreendemos, fisicamente,
o conceito de chuva ''como algo que numa experiência geral, segundo todas as diversas situações
dos sentidos, é não obstante determinado assim e não de outra maneira na intuição'' 4. Se agora
considerarmos o conceito empírico de chuva de uma maneira geral, sem levarmos em conta as
condições particulares da sensibilidade humana, e perguntarmos se ele representa um objeto em si
mesmo;
a pergunta da referência <Beziehung> da representação ao objeto é transcendental, e não
apenas essas gotas são meros fenômenos, mas mesmo a sua figura arredondada e até o próprio
espaço em que caem nada são em si mesmos, mas constituem simples modificações ou
fundamentos da nossa intuição sensível, permanecendo o objeto transcendental desconhecido
a nós.5
Se considerarmos o mesmo exemplo a partir da perspectiva do idealismo empírico, o arco-
íris seria a aparência (ilusória, enganadora) da chuva diante do sol. Mas, como vimos, segundo o
idealismo transcendental, tanto um como o outro são meros fenômenos, representações de objetos
transcendentais. 6

1
Allison, p. 37. Cf. Paton, não existem duas coisas, ''mas apenas uma considerada de dois modos diferentes: a coisa
como ela mesma é e como ela aparece para nós''. Paton, I, p. 61. Ver também B 306 e seg.
2
B 316.
3
B 317.
4
B 63.
5
Ibid., loc.cit.
6
Cf. Paton, Kant aceita a doutrina das qualidades primárias e secundárias, sustentando que as primárias são comuns a
todos os homens, enquanto as secundárias podem ser diferentes para diferentes homens. Kant fala, às vezes, ''como se as
qualidades primárias fossem puramente subjetivas, e em nenhum sentido poderiam ser atribuídas a objetos. Em outros
momentos, ele reconhece que a cor e o aroma da rosa podem ser atribuídos ao objeto em relação aos nossos sentidos.
Ele afirma, por outro lado, não somente que qualidades primárias são objetivas, mas mesmo que a física, do seu próprio
ponto de vista, está justificada no tratamento do arco-íris como uma mera aparência e em relação às gotas físicas de
chuva (com suas qualidades primárias) como coisas-em-si mesmas''. Paton, I, p. 60.
75
Conforme Allison, é graças à concepção de idealidade transcendental que Kant poderá
distinguir entre os dois sentidos de aparência <Schein1> —o empírico e o transcendental— e esta
da realidade (coisa em si) 2. Quando Kant afirma, na Estética, que no sentido interno e no externo a
mente representa os objetos exteriores a nós e a nós mesmos ''de acordo com o modo como afetam
nossos sentidos, i.e. como aparecem <wie es erscheint>''3, ele não está afirmando que estes objetos
sejam meramente uma aparência <Schein>. Os objetos, no fenômeno, bem como as propriedades
que atribuímos a eles, têm de ser considerados como algo efetivamente dado,
com a ressalva de que, na medida em que esta propriedade depende só do modo de intuição
do sujeito na relação que o objeto dado mantém com ele, este objeto como fenômeno é
distinguido de si mesmo como objeto em si.4
Por isso, quando Kant diz que existem corpos fora de nós ou que nós nos representamos a
nós mesmos em nossa auto-consciência, Kant não diz que isto parece <scheint> ocorrer assim, pelo
fato de tais representações serem dadas à mente de acordo com a forma do sentido interno e
externo, que pertence à maneira de intuirmos ''e não nestes em si'', mas que tais coisas efetivamente
ocorrem. Se atribuíssemos ao objeto em si aquilo que vale meramente para nós, i.e. o fenômeno tal
como o percebemos pelos sentidos, transformaríamos nossa percepção em aparência <Schein>
(ilusão).5
Os predicados que atribuímos ao fenômeno ''podem ser atribuídos ao próprio objeto em
relação ao nosso sentido''. Porém, ao atribuirmos o fenômeno ao objeto em si mesmo,
transformamos nossa representação em aparência <Schein>, pois atribuímos
ao objeto por si o que concerne a este apenas em relação aos sentidos ou em geral ao sujeito.
[Pois o] fenômeno é aquilo que de modo algum pode encontrar-se no objeto em si mesmo,
mas sempre na sua relação com o sujeito, sendo inseparável da representação do primeiro. 6
Se atribuímos as propriedades primárias e secundárias aos objetos tais como são em si mesmos, i.e.
cor, dureza, impenetrabilidade, extensão, sem levarmos em conta que tais propriedades só são
válidas para os objetos tais como nos são dados de acordo com a forma de nossa sensibilidade, i.e.
sem atentarmos ''para uma determinada relação destes objetos com o sujeito e sem [limitarmos o

1
Convém mencionar, aqui, uma consideração acerca da opção pela tradução do termo Schein por ilusão. Na edição B
da KrV, e em especial na Estética Transcendental, Kant utiliza o termo Schein <aparência>, geralmente, para designar
os objetos da experiência tal como aparecem <erscheinen> ou parecem <scheinen>, ao criticar a posição do idealismo
empírico. Porém, a opção por traduzir Schein, para o português, por ilusão, como o texto indica, está devidamente
comprometida com uma interpretação, que, no contexto da discussão, fica totalmente justificada. A esse respeito, em
uma Nota dos Tradutores da Edição brasileira da KrV, na Introdução à Dialética Transcendental, em B 349, onde
aparecem lado a lado Erscheinung <fenômeno> e Schein <aparência ou ilusão>, lemos o seguinte: ''Kant contrapõe
aqui os termos Erscheinung, no sentido de fenômeno, e Schein, no sentido de aparência ilusória. Ambas as palavras
originam-se do verbo scheinen, que significa brilhar em sentido próprio e parecer em sentido figurado''. Na Primeira
Edição, no Quarto Paralogismo (A 376), onde Kant discute o mesmo problema, ele utiliza Täuschung <ilusão> para se
referir às ''representações enganosas'' <trügliche Vorstellungen> que resultam em ''falsas aparências'' <falschen
Scheinen>. A propósito da mesma discussão, no texto de Kant ''Os progressos da Metafísica'', ocorre o termo Apparenz
<aparência>, que é utilizado como sinônimo de Schein. Uma vez estabelecidas as distinções que Kant parecia entrever
com relação ao seu uso destes termos, fica justificada, ao meu ver, a opção de tradução do termo Schein por ilusão
como a mais adequada ao contexto de discussão em questão, pois ilusão traz consigo o traço forte e indesejável da
aparência, segundo a tradição, a saber, o seu caráter falso e enganador.
2
Allison, p. 36. Cf. Paton, com a doutrina crítica de Kant, nós teremos de distinguir entre três coisas: as qualidades
secundárias, as primárias e estas das coisas em si mesmas, pois, de acordo com Paton, as qualidades secundárias e as
primárias, ''tomadas juntas, são opostas às coisas em si mesmas como a aparência à realidade''. Paton, I, pp. 60-61.
3
B 69.
4
Ibid., loc.cit.
5
Conforme Allison, para Kant, no sentido transcendental, falar de aparência ''é falar de entidades espaço-temporais
(fenômenos), i.e. das coisas enquanto se as considera submetidas às condições da sensibilidade humana''; e falar de
''coisas em si é falar de coisas consideradas independentemente dessas condições''. Ibid., p. 36.
6
B 70.
76
nosso] juízo a isso, então primeiramente surge a ilusão <Schein>''1. Por exemplo, se atribuíssemos à
chuva em si mesma, no sentido transcendental, o arco-íris, que vale para ela apenas enquanto
fenômeno, i.e. apenas relativamente ao modo segundo o qual ela nos é dada na experiência, então
converteríamos em ilusão perceptiva o algo dado em nossa sensibilidade, e esperaríamos corrigir
este erro perceptivo por meio de uma aproximação adequada do objeto aos nossos sentidos.
O idealismo empírico, que está assentado na distinção entre aparência e realidade,
considera a aparência uma mera ilusão perceptiva que advém do chamado ''erro dos sentidos'', ou
seja, percebemos mal um objeto por não estarmos com nossos sentidos numa posição adequada para
a correta percepção dele2. O problema da ilusão perceptiva, assim formulado, está mal colocado,
pois, segundo o idealismo transcendental, a ilusão perceptiva não advém de um erro de percepção,
mas, conforme Kant, de nossos juízos sobre tais percepções3. De acordo com Kant, o erro consiste
aqui em atribuir a ilusão perceptiva (aparência) aos sentidos e não ao nosso entendimento, pois é
somente por meio dele que podemos ''proferir um juízo objetivo a partir do fenômeno''. (É sobre
esta distinção que está assentado o idealismo transcendental).
De acordo com Kant, nos Prolegomena, a falsa aparência (ilusão) ou a verdade acerca do
fenômeno não depende da sua fonte (origem), que é sensível, mas simplesmente do uso que
fazemos de nossas representações sensíveis no entendimento 4, pois,
se eu considerar todas as representações dos sentidos com a sua forma, o espaço e o tempo,
apenas como fenômenos, e estes últimos, o espaço e o tempo, como uma simples forma da
sensibilidade, que fora dela não se encontra nos objetos, e se eu utilizar as mesmas
representações apenas em relação à experiência possível, não há aí o mínimo incitamento ao
erro nem a aparência de que eu os tome por simples fenômenos; pois, elas podem, apesar de
tudo, ser convenientemente ligadas na experiência segundo as regras da verdade.5
Com base nisso, Kant sugere a seguinte regra para escaparmos da ilusão (falsa aparência): ''O que
está de acordo com uma percepção segundo leis empíricas é [efetivo <wirklich>]''6. Porém, esta
regra, assim como a ilusão que ela pretende eliminar, é comum tanto ao idealismo tout court quanto
ao idealismo transcendental e seu correspondente empírico, o realismo empírico, pois neles se trata
apenas ''da forma da experiência''. Conforme Kant, basta, porém, que a percepção externa mostre,
imediatamente, uma efetividade no espaço, para que o idealismo empírico seja refutado. Pois, para
Kant, mesmo que o espaço, no qual os fenômenos externos nos são dados, em si mesmo não seja
senão a mera forma de nossa sensibilidade, ele tem uma realidade objetiva <objektive Realität> com
relação a todos os fenômenos externos enquanto meras representações (ver acima a distinção
empírica e transcendental entre idealidade e realidade).
Kant observa, ainda, que

1
Ibid., loc.cit.
2
Strawson, p. 224-225.
3
A 376. Strawson chama essa ambigüidade perceptiva de ''perspectiva corrigida''. Segundo esta perspectiva, quando
''dizemos que uma coisa se manifesta dessa e daquela maneira, mas que realmente não é assim, parece que implicamos
que há dois pontos de vista diferentes a partir dos quais é natural que se emitam juízos distintos e incompatíveis sobre a
mesma coisa, e que o juízo que se formula naturalmente a partir de um destes pontos de vista seria, em certo sentido,
uma correção do outro juízo, emitido naturalmente a partir de uma perspectiva diferente''. Ibid., p. 222-223.
4
Sem pretender concluir, o que seria demais, poderíamos constatar que, de uma maneira geral, o problema com relação
ao realismo e ao idealismo tout court não se refere ao modo como o mundo sensível <Sinnenwelt> é percebido, porém,
ao modo como ele é descrito (posto) em juízos, i.e. ao uso que fazemos de nossas percepções sensíveis em juízos. Cf.
Kant, na Introdução à Dialética Transcendental, em B 350, a ''verdade ou ilusão <Schein> não estão no objeto enquanto
é intuído, mas no juízo sobre ele, enquanto é pensado. Portanto, pode-se em verdade dizer corretamente que os sentidos
não erram, não, porém, porque eles sempre julguem corretamente, mas porque eles não julgam de modo algum.
Conseqüentemente, tanto a verdade quanto o erro, portanto, também a ilusão, enquanto induz ao último, podem
encontrar-se somente no juízo, i.e. na relação do objeto com o nosso entendimento''.
5
Prolegomena, § 13, III, A 67.
6
Cf. A 376: ''Was mit einer Wahrnehmung nach empirischen Gesetzen zusammenhängt, ist wirklich''.
77
sem a percepção, não são possíveis a própria ficção e o sonho e que, por isso, os nossos
sentidos externos, segundo os dados de onde pode provir a experiência, têm no espaço os seus
objetos [efetivos <wirkliche>] correspondentes.1
Pois, ainda que, segundo o idealismo transcendental, nem todo nosso conhecimento derive da
experiência, ele só se inicia mediante ela. 2
Conforme Allison, se Kant não tivesse feito a distinção empírica e transcendental entre
aparência e realidade, ele poderia ter sido considerado um idealista empírico —tal como o faz a
interpretação convencional— ao ''espacializar as aparências'', e um cético, ao afirmar que ''só
podemos conhecer as coisas como nos parecem (aparecem)''. Porém, tais interpretações consideram
a posição de Kant meramente a partir da distinção empírica. De acordo com Allison, considerada a
partir da distinção transcendental, a posição de Kant consiste numa tese epistemológica ''sobre a
dependência do conhecimento humano a certas condições a priori que refletem a estrutura do
aparato cognitivo humano''3. Tais condições ''não determinam o modo como os objetos nos
''parecem'' ou nos ''aparecem'' no sentido empírico'', mas apenas como, transcendentalmente, i.e. de
maneira universal, necessária e inteiramente a priori, nós podemos ''reconhecer algo como objeto
em geral''. 4
Por fim, as objeções postas pelas posições idealistas —a dogmática e a problemática— se
tornam úteis, conforme Kant, pois nos obrigam
a considerar todas as percepções, quer se chamem internas, quer externas, simplesmente como
uma consciência do que pertence à nossa sensibilidade, e os objetos externos dessas
percepções, não como coisas em si, mas apenas como representações de que podemos ter
imediatamente consciência, assim como de qualquer outra representação, e que se chamam
exteriores porque pertencem ao sentido que chamamos sentido externo, cuja intuição é o
espaço, o qual não é outra coisa que um modo interior de representação <eine innere
Vorstellungsart> onde certas percepções se encadeiam umas nas outras.5
Kant tem, portanto, que provar: (i) contra o idealismo empírico, que todos os objetos
empíricos possíveis do conhecimento não são fenômenos existentes apenas em nosso sentido
interno, mas que possuem uma existência fora de nós em nosso sentido externo; e (ii) contra o
realismo transcendental, que o espaço e o tempo não são propriedades das coisas em si mas apenas
formas puras da nossa sensibilidade. Para tanto, ele tem de mostrar que espaço e tempo, como
condição de possibilidade da percepção de fenômenos externos, residem em nós meramente como
formas de nossa intuição sensível, de maneira a priori, e, como constituem nossa própria
sensibilidade, uma vez que dão a forma de tudo o que percebemos como externo e interno, i.e. uma
vez que constituem a nossa capacidade perceptiva, são condições subjetivas da percepção, e
portanto ideais, pois são a condição transcendental da percepção de objetos da experiência dos
sujeitos em geral.

1
A 377.
2
B 1.
3
Allison, p. 39.
4
Ibid., loc.cit.. Desse modo, conforme Allison, ''a doutrina segundo a qual só podemos conhecer as coisas como
aparecem, e não como elas são em si, pode ser considerada como o equivalente da tese de que o conhecimento humano
está governado por tais condições. Se, em efeito, existem tais condições, e se operam da maneira que Kant sustenta,
dificilmente tem sentido acusá-lo de cético por negar a possibilidade do conhecimento das coisas com independência de
tais condições, i.e. por negar a possibilidade do conhecimento de coisas em si''. Ibid., p. 38.
5
A 378. Cf. Kant, todas as ilusões transcendentais produzidas pela metafísica podem ser evitadas, bastando para isso
que se leve em conta a seguinte observação, que resulta de seu sistema idealista transcendental, a saber: ''que o
fenômeno, enquanto for utilizado na experiência, suscita a verdade, mas logo que ultrapassa os limites da mesma e se
torna transcendente produz apenas a aparência''. Prolegomena, § 13, III, A 70.
78
2. Como Kant chega ao idealismo transcendental
I . O contexto da descoberta: (a fase ''pré-crítica'')
Como vimos, de acordo com Allison, a distinção empírica e transcendental entre realidade (coisa
em si) e aparência (fenômeno) nos permite distinguir entre aquilo que diz respeito às coisas em si
mesmas e aquilo que diz respeito ao nosso modo de recebê-las em nossa sensibilidade e julgá-las
em nosso entendimento. Em outros termos, esta distinção nos permite estabelecer o conjunto de
condições de possibilidade para que uma coisa nos seja dada como objeto de conhecimento.
Allison propõe chamar estas condições de condições epistêmicas ou objetivantes, pois é só
mediante elas que ''nossas representações se referem a objetos''. 1
De acordo com Allison, as condições epistêmicas devem ser distinguidas das condições
lógicas do pensamento, tal como o princípio de contradição. Esta diferença entre epistêmico e
lógico se refere à distinção mais ampla com a qual a KrV está comprometida, a saber, a distinção
entre lógica geral, que não leva em conta o conteúdo dos juízos, e lógica transcendental, que está
interessada na fonte destes, como vimos acima. De acordo com a proposta de interpretação de
Allison, ''a tarefa principal da lógica transcendental é estabelecer um conjunto de condições
epistêmicas, especificamente, os conceitos puros do entendimento'' 2. Nesse sentido, não só os
conceitos puros do entendimento, mas também o espaço e o tempo, enquanto formas puras da
intuição sensível, ''devem ser considerados como condições epistêmicas''. 3
Allison propõe que se distinga as condições epistêmicas das condições psicológicas e
ontológicas do conhecimento. A condição psicológica diz respeito ao fundamento do tipo de
explicação que se dá a um determinado conhecimento empírico ou crença, quando se baseia
meramente num apelo à constituição de nosso aparato cognitivo. De acordo com Allison, Kant
admite a necessidade de apelarmos a fatores psicológicos, tais como o hábito ou os costumes, ''para
explicar a origem de nossas crenças e percepções e inclusive nosso conhecimento ''na ordem do
tempo'', [mas] estes não podem explicar sua validade objetiva'' 4. Os argumentos de Hume contra a
possibilidade de um conhecimento sintético a priori estão fundados neste tipo de condição. Visto
desse modo, Hume teria confundido condições psicológicas da possibilidade do conhecimento com
condições epistêmicas.
A condição ontológica diz respeito às condições de possibilidade da existência das coisas em
si mesmas no sentido transcendental. E, segundo Allison, nesta modalidade de condições,
encontraríamos a noção newtoniana do espaço e do tempo absolutos. Nesse sentido, ele teria
confundido condições ontológicas da possibilidade das coisas em si e condições epistêmicas. 5
Com base em nosso desenvolvimento anterior acerca da diferença entre o idealismo
transcendental, de um lado, e o realismo transcendental e o idealismo empírico, de outro,
consideraremos, de acordo com Allison, toda a posição filosófica não-crítica (no sentido de Kant 6)
como realista transcendental, que como tal, conforme Allison, pode ser caracterizada ''em termos

1
Allison, p. 40.
2
Ibid., loc.cit.. Ver A XVI.
3
Ibid., loc.cit.
4
Ibid., p. 41.
5
Ibid., p. 43.
6
Kant, nos Prolegomena, em defesa de sua posição contra as más interpretações, propõe que se chame ao seu
idealismo, em vez de transcendental, de idealismo crítico. Pois, nos termos de Kant, ''o que eu chamei idealismo não diz
respeito à existência das coisas (a dúvida acerca da mesma é típica do idealismo no significado tradicional), já que
nunca me ocorreu duvidar delas, mas apenas à representação sensível das coisas, a que pertencem, acima de tudo, o
espaço e o tempo; acerca destes e, por conseguinte, a propósito de todos os fenômenos, mostrei simplesmente: que eles
não são coisas (mas simples modos de representação), nem também determinações inerentes às coisas em si mesmas. O
termo transcendental, porém, que em mim nunca significa uma relação do nosso conhecimento às coisas, mas apenas à
faculdade de conhecer, devia impedir este erro de interpretação. Mas, para que tal apelação doravante não mais a
provoque, prefiro retirá-la e quero que o meu idealismo seja chamado crítico''. Op.cit., § 13, Observação III, A 70-71.
79
de um projeto ou modelo teocêntrico de concepção do conhecimento''1. Conforme Allison, este
modelo de conhecimento tem como referencial regulativo um intelecto infinito ou absoluto para o
seu julgamento epistemológico acerca da possibilidade e limites do conhecimento humano. Um
intelecto infinito seria aquele que não estaria limitado pelas mesmas condições às quais o intelecto
humano se encontra limitado, e que, como tal, conheceria os objetos tais como são em si sub specie
aeternitatis. 2
O que importa neste método epistemológico, segundo Allison, é que ''uma hipotética ''visão
divina'' das coisas é o parâmetro segundo o qual se analisa a ''objetividade do conhecimento
humano''3. Em Newton e, especialmente, em Leibniz este modelo epistemológico é central, e é por
meio dele que podemos compreender a sua ''versão'' do realismo transcendental. Este modelo
epistemológico pode ser encontrado ainda no pensamento pré-crítico de Kant 4, como veremos,
especialmente no texto das contrapartidas incongruentes, e é em relação a este modo de considerar
os objetos do conhecimento bem como ao próprio conhecimento humano e sua possibilidade que
Kant procederá a sua revolução copernicana. Pois, sob a perspectiva do idealismo transcendental, o
conhecimento humano deixa de se regular pela natureza dos objetos e passa a se regular pelo nosso
modo de os receber na sensibilidade e conceber pelo entendimento.5
No que concerne aos argumentos de Kant quanto à idealidade do espaço e do tempo, tanto
na Dissertatio como na Estética Transcendental, vemos que ele está ocupado, basicamente, com a
refutação das posições realistas de Newton e Leibniz, bem como das conseqüências destas posições
para a teoria do conhecimento. De uma maneira geral, podemos dizer que o primeiro defendia o
caráter absoluto do espaço e do tempo, enquanto o segundo, o caráter relacional destes; ambos,

1
Allison, p. 45.
2
Cf. Cassirer, na ''metodologia gnoseológica de Leibniz, um corte rigoroso separa o ''conhecimento intuitivo'' do
''conhecimento simbólico''. E mesmo para o fundador da idéia de uma ''característica universal'', todo conhecimento por
símbolos é rebaixado ao lugar de ''conhecimento cego'' (cogitatio caeca) face à intuição, à visão pura, à ''vista'' própria
da idéia [Leibniz, 1684, IV, p. 422 sqq.]. O conhecimento humano não pode jamais abster-se das imagens e dos signos;
mas é precisamente o que o caracteriza como conhecimento humano, quer dizer limitado e finito, ao qual se opõe o
entendimento divino, perfeito e arquetípico. E mesmo em Kant, que localizou exatamente este ideal do ponto de vista
lógico determinando-o como conceito-limite do conhecimento, e que acreditou dominá-lo assim de um ponto de vista
crítico, encontra-se em uma passagem que é o ponto culminante do método na Critica da Faculdade de julgar, a
oposição entre o intellectus archetypus e o intellectus ectypus, e esta oposição entre o entendimento intuitivo e o
entendimento arquetípico e o entendimento discursivo, que ''tem necessidade de imagens'', é aí formulado com um
extremo rigor. Desta oposição parece necessariamente advir que a riqueza do conteúdo simbólico de uma consciência
está na relação inversa de seu conteúdo de essência.''. Cassirer, La philosophie des formes simboliques, p. 57. Ver
também Paton, I, pp. 178-180.
3
Allison, p. 52.
4
Cf. Torretti, nesta fase pré-crítica do pensamento de Kant, os seguidores de Newton e de Leibniz, assim como o
próprio Kant, compartilham de ''uma mesma representação do espaço e de suas propriedades, e seu desacordo concerne
unicamente ao modo de ser deste ente que se representam assim, ao tipo de coisa que julgam dizer que é. [...] conforme
a esta representação, o espaço em que os corpos se movem se distingue real ou pelo menos idealmente dos corpos, e,
considerado por si mesmo, como espaço puro —existente ou meramente pensado— tem todos os atributos necessários
para constituir o que hoje chamaríamos um ''modelo'' do espaço euclidiano. Isto significa dizer que Kant e seus
predecessores, dissessem ou não, representaram-se o espaço como uma multiplicidade homogênea, contínua,
tridimensional e ''plana''.''. Torretti, R., Manuel Kant. Estudio sobre los Fundamentos de la Filosofia Crítica, Chile,
1966, p. 78.
5
Ver B XVII. Para verificar o verdadeiro progresso da Metafísica, Kant sugere que admitamos que os objetos tenham
que se regular pelo nosso modo de conhecer, ''o que concorda melhor com a requerida possibilidade de um
conhecimento a priori dos objetos que deve estabelecer algo sobre os mesmos antes de nos serem dados''. Para tanto,
ele propõe que na Metafísica se faça algo semelhante ao que fez Copérnico na Física, onde, em vez de se conceber os
astros como girando em volta do observador, propôs que se concebesse este se movendo em torno daqueles; i.e. no que
concerne à intuição sensível dos objetos, se ela ''tivesse que se regular pela natureza dos objetos'', não haveria como
sabermos dela algo a priori. Mas se, ao contrário, o objeto, enquanto objeto dos sentidos, se regulasse ''pela natureza de
nossa faculdade de intuição'', esse conhecimento a priori da Natureza seria possível. B XVII.
80
porém, compartilhando da concepção de que espaço e tempo são independentes de nosso modo de
percepção sensível, porém, no caso de Leibniz, não da existência das coisas fora de nós. 1
A seguir, analisaremos rapidamente as posições fundamentais acerca do espaço e do tempo,
anteriores à KrV, seguindo a orientação de Allison, e as consideraremos, sob a perspectiva
contrastante do idealismo transcendental de Kant, como realistas transcendentais.2

A. Espaço e tempo como entes extensos: a posição de Newton


O realismo transcendental de Newton considera as coisas existentes fora de nós situadas no espaço
e no tempo, independentemente de nosso modo de as perceber. Além disso, o realismo
transcendental de Newton considera espaço e tempo como existentes em si, independentemente de
nós e das coisas que neles existem. Em outros termos, Newton considera que existem coisas fora de
nós, independentemente do nosso modo de as perceber, que se encontram situadas no espaço e no
tempo que, por sua vez, existem absoluta e independentemente delas e de nós assim como de nosso
modo de as perceber, como propriedades ou atributos de um ser infinito e eterno. E do espaço e do
tempo absolutos, por sua vez, dependem tanto as coisas tais como as percebemos, pois se
encontram situadas neles, assim como nosso padrão para medirmos e nos referir a essas coisas
relativas aos nossos sentidos, que, conforme Newton, dão-nos meramente aparências, e, portanto,
nunca a verdade.
Nós encontramos as posições de Newton sobre o tempo e o espaço formuladas em dois
textos, a saber: no Livro I dos seus Princípios Matemáticos e na Correspondência Leibniz-Clarke.
Este segundo texto apresenta a correspondência entre Leibniz e Clarke, que foi defensor das idéias
de Newton na Inglaterra e interlocutor factual de Leibniz na polêmica que ele estabeleceu com
Newton, especialmente, acerca de suas posições em relação ao espaço e ao tempo. Nestas cartas,
portanto, as posições de Newton são formuladas em nome de Clarke. No entanto, para simplificar a
exposição, ao me referir a Newton, mesmo quando se tratar de excertos da Correspondência,
referir-me-ei sempre a ele, como o portador de direito das idéias e posições expressas por Clarke.
De acordo com Newton, nos Princípios Matemáticos3, espaço e tempo são termos que
designam quantidades e estas são concebidas pelo homem comum apenas ''pela relação com as
coisas sensíveis''4. Nós não podemos perceber o espaço, por exemplo, tal como é em si, nem mesmo
suas partes, mas somente como ele nos aparece, pois, ''as partes do espaço imóvel em que os corpos
se movem de verdade não caem sob os sentidos''5. Conforme Newton, desse modo de conceber
essas quantidades nascem certos prejuízos que devem ser corrigidos. Por isso, Newton propõe
distinguir entre duas acepções dos termos espaço e tempo: a acepção absoluta e a relativa. Na

1
Carrier apresenta uma análise interessante sobre a teoria kantiana do espaço na qual considera toda a polêmica em
torno da discussão acerca da natureza do espaço como podendo ser enquadrada em duas classes, a saber; o
substantivalismo <substantivalism> e o relacionalismo <relationalism>. De acordo com Carrier, o primeiro ''sustenta
que ao espaço é um tipo de <container> de ou <arena> de eventos físicos. A estrutura do espaço é independente de seu
conteúdo material, i.e. dos eventos que possivelmente acontecem no espaço. A estrutura do espaço logicamente precede
as relações espaciais entre corpos físicos. O espaço é portanto absoluto. O relacionalismo [defende], por contraste, que
o espaço não é nada além da ordem espacial dos corpos. Somente relações espaciais entre corpos são fisicamente
significantes; não existe entidade espacial independente além destas relações''. Carrier, M. , Kant's Relational Theory of
Absolute Space, in: Kant-Studien, vol. 83-4, pp. 399-416, 1992, p. 399.
2
Cf. Allison, como vimos, a concepção newtoniana ''do espaço e do tempo absolutos pode ser considerada como
conseqüência da confusão entre condições epistêmicas e condições ontológicas e que isto equivale à confusão entre
aparência e coisa em si. Sem dúvida, não só Newton, senão também seu grande oponente, Leibniz, pode ser considerado
como um realista transcendental''. (p. 50). E, conforme Strawson, com o seu idealismo transcendental, Kant pretendia
reconciliar ''a verdade de ambas sem cair em seus respectivos erros''. Strawson, p. 52.
3
Newton, I.. Princípios Matemáticos, trad. de Carlos Lopes de Mattos e Pablo Rubén Mariconda, Abril Cultural, SP,
1974, Livro I, Definição VIII, Escólio.
4
Ibid., p. 14.
5
Ibid., p. 18.
81
primeira, tempo e espaço são considerados como são em si mesmos, independentemente de nós; e,
na segunda, tais como nos aparecem, i.e. tal com os percebemos por meio de nossos sentidos. A
primeira acepção é a única verdadeira, enquanto a outra é aparente, e, como tal, falsa.
O tempo absoluto é verdadeiro e matemático, ''flui sempre igual por si mesmo e por sua
natureza, sem relação com qualquer coisa externa'' e é chamado pelo nome de 'duração'. O tempo
relativo, por sua vez, é aparente e vulgar e consiste numa determinada ''medida sensível e externa de
duração por meio do movimento'', que é usada vulgarmente no lugar do ''tempo verdadeiro, como
são a hora, o dia, o mês, o ano''1. Portanto, o tempo absoluto equivale à duração e o relativo, ao
tempo no sentido usual do termo.
O espaço absoluto, para Newton, não se relaciona com coisa alguma e ''permanece sempre
semelhante e imóvel''. O espaço relativo, por sua vez, é uma ''certa medida ou dimensão móvel'' 2 do
espaço absoluto, que definimos por meio de nossos sentidos pela situação dos corpos em relação a
esse espaço.
Para Newton, tempo e espaço são como que lugares3, e estes lugares são, essencialmente,
primários e não podem mover-se de si mesmos; por isso são imóveis 4. De acordo com Newton, no
texto da Correspondência5, o
espaço é o lugar de todas as coisas e de todas as idéias, como a duração é a duração de todas
as coisas e de todas as idéias. [IV, 29]
Como quantidades absolutas, espaço e tempo não podem ser atribuídos à situação e à ordem
dos corpos no espaço relativo, nem dependem da existência destes, pois
o que precede ou o que segue constituem a situação ou a ordem, mas a distância, o intervalo
ou a quantidade do tempo e do espaço no qual uma coisa segue outra são algo totalmente
distinto da situação e da ordem, não constituindo nenhuma quantidade de situação ou de
ordem. [V, 54]
A situação e a ordem, por serem relativas às quantidades, caso fossem quantidades, seriam
quantidades de quantidades, e isto, conforme Newton, é absurdo. A situação e a ordem, ao contrário
do espaço e do tempo (que são quantidades absolutas), são proporções de quantidades. Tempo e
espaço não são da natureza das proporções, mas, conforme Newton, ''da natureza das quantidades
absolutas e invariáveis, que têm proporções diferentes'' [V, 54].
Para Newton, portanto, se ''se deve definir pelo uso o sentido das palavras'', devemos
entender pelos termos 'tempo' e 'espaço' as medidas relativas aos corpos tal como os percebemos6, e
não as quantidades medidas. Aqueles

1
Livro I, Definição VIII, Escólio, p. 14.
2
Ibid., Princípios, p. 14.
3
O lugar ''é uma parte do espaço que um corpo ocupa'' [p. 14]. ''O movimento do todo é o mesmo que a soma dos
movimentos das partes, ou seja, a translação do todo que sai de seu lugar é a mesma que a soma da translação das partes
que saem de seus lugares, e por isso o lugar do todo é o mesmo que a soma dos lugares das partes, sendo, por
conseguinte, interno e achando-se no corpo todo'' [p. 15]. '' Assim como a ordem das partes do tempo é imutável,
também o é a ordem das partes do espaço. Na hipótese de se moverem de seus lugares essas partes, também se
moveriam de si mesmas [...], pois os tempos e os espaços são como que os lugares de si mesmos e de todas as coisas.
Estas localizam-se no tempo quanto à ordem da sucessão, e no espaço quanto à ordem da situação. Da essência deles é
serem lugares, e é absurdo que os lugares primários se movam.'' [p. 15].
4
A hipótese do espaço imóvel (assim como a do tempo), subsistente, imperceptível é uma hipótese matemática que se
assemelha ao que Kant denominará de noumeno (objeto transcendental), e que serve de referência para a explicação do
movimento relativo dos corpos, tal como este é percebido pelos sentidos. [Ver Clarke, Réplica IV, § 13].
5
Leibniz, Gottfried Wilhelm. "Correspondência com Clarke", trad. de "Recueil de Lettres entre Leibniz et Clarke
(1715- ? )" por Carlos Lopes de Mattos, Abril Cultural, SP, 1974
6
Caráter notadamente idealista (não transcendental) da concepção de Newton.
82
que interpretam essas palavras como sendo das quantidades em si [vão contra a exatidão da
linguagem]. Nem menos maculam a matemática e a filosofia os que confundem as
verdadeiras quantidades com suas relações e medidas vulgares. [p. 18]
De acordo com Newton, tanto o espaço finito quanto o infinito são indivisíveis, mesmo pelo
pensamento,
porque não se pode imaginar que suas partes se separem uma da outra, sem imaginar que
saem por assim dizer fora de si mesmas1. [O] espaço infinito é absoluta e essencialmente
indivisível. [E é uma contradição evidente supor que] seja dividido, porque seria necessário
haver um espaço entre as partes que se supõem divididas, o que é supor que é e não é dividido
ao mesmo tempo. [III, 3]
Dizer que o espaço é composto de partes é, conforme Newton, usar o termo 'parte' indevidamente,
pois mesmo que por meio da imaginação pudéssemos conceber o espaço infinito como composto
por partes, dada a sua essência simples e absolutamente indivisível, tais partes não poderiam ser
senão ''imóveis e inseparáveis umas das outras'', uma vez que não podem ser movidas. [IV, 11-12].
O espaço não é uma substância nem um ''ser eterno e infinito, mas uma propriedade [...] de
um ser infinito e eterno'' [Réplica III, § 2]. O espaço, nesse sentido, é um atributo; ''e se é um
atributo de um ser necessário, deve (como todos os outros atributos de um ser necessário) existir
mais necessariamente que as próprias substâncias, que não são necessárias'' [Réplica IV, § 10].
Espaço e tempo existem, portanto, como conseqüência da existência de Deus [V, 45].
Assim como o tempo, o espaço é imenso, uno, idêntico, imutável e eterno. E estes não
existem senão em Deus, pois
são conseqüência necessária e imediata da sua existência, sem as quais ele não seria eterno e
presente em toda a parte. [V, 45]. [E dizer] que a imensidade não significa um espaço sem
limites, e que a eternidade não significa uma duração ou um tempo sem começo nem fim, é
[...] sustentar que as palavras não têm significação alguma. [V, 106]
Espaço e tempo absolutos não dependem da existência nem da situação dos corpos no
espaço e tempo relativos [Réplica III, § 16, IV, 14,16-17]. A ordem das coisas sucessivas no tempo
não é o próprio tempo, assim como a ordem da coexistência dos corpos no espaço não é o próprio
espaço, pois, mesmo que nenhuma criatura existisse, Deus e sua existência garantiriam a existência
absoluta do tempo e do espaço. [IV, 41].
Para Newton, não há espaço vazio 2, pois o espaço não é limitado pelos corpos, mas estes
existem nele. Um espaço onde não há corpos não é um espaço sem nada, mas apenas um espaço
sem seus corpos. Um espaço vazio não pode existir, mesmo quando nada pode ser nele percebido
por meio dos nossos sentidos, pois pode haver ''muitas outras substâncias, que não são materiais,
não podendo por conseguinte ser tangíveis ou percebidas por nenhum de nossos sentidos'' 3. [IV, 9].
Newton fundamenta a hipótese da independência do espaço em relação à existência dos
corpos na suposição segundo a qual, se o mundo fosse materialmente limitado, ele se moveria. E, ao
contrário, se o mundo fosse materialmente ilimitado, ele se encontraria localizado no espaço infinito
do mesmo modo que o mundo materialmente limitado, porém, ele seria imóvel. Por isso, a extensão
de um corpo ser necessariamente diferente do espaço que ele ocupa, pois, caso contrário, ao se

1
Réplica II, § 4, p. 411.
2
Em carta endereçada a Clarke, Leibniz acusa insistentemente Newton de, nos Princípios Matemáticos, ter admitido a
existência de um espaço vazio, concedendo à matéria uma importância muito secundária, uma vez que esta ocuparia,
segundo seu sistema ''uma parte muito pequena do espaço'' [Leibniz, Carta II, § 2]. Isto mostra, sem dúvida, que entre
eles não houve entendimento, pois, como vimos, Clarke afirmava que Newton defendia o contrário.
3
Conforme Newton, mesmo que o universo tenha uma extensão limitada, não significa que o espaço que está para além
do mundo seja imaginário. Ele é real, e mesmo os espaços vazios no mundo não são imaginários [Réplica IV, § 7].
83
dividir o corpo em partes, dividir-se-ia simultaneamente o espaço em que ele se encontra1. [V, 36-
53].
Temos, portanto, as seguintes teses de Newton: espaço e tempo são termos que designam:
1. quantidades absolutas, i.e. tal como coisas que são em si mesmas independentes da existência dos
corpos: entes extensos;
2. quantidades relativas (medidas) das coisas tal como as percebemos, i.e. dependentes da existência
dos corpos;
3. coisas absolutas que são como que lugares imóveis; daí, o espaço ser o lugar de todas as coisas e
idéias, e o tempo, a duração de todas as coisas e idéias;
4. coisas infinitas, que não são compostas por partes;
5. propriedades de um ser eterno e infinito; i.e. não são substâncias, mas atributos;
6. coisas que existem em conseqüência da existência de um ser infinito e eterno, i.e. Deus.

B. Espaço e tempo como ordenação das relações entre as coisas: a posição de Leibniz
O realismo transcendental de Leibniz difere do de Newton, basicamente, por não considerar espaço
e tempo como entes existentes em si, mas como propriedades abstraídas das relações de coisas
existentes em si fora de nós e independentemente de nossa percepção. Por outro lado, quanto ao
espaço e ao tempo, Leibniz poderia ser considerado um idealista empírico, uma vez que os toma
meramente por entes ideais abstraídos da ordem das relações de coexistência e sucessão das coisas
fora de nós. Mas, como vimos, o idealista empírico é, na base, um realista transcendental, uma vez
que concebe a existência de coisas fora de nós independentemente de nosso modo de as conhecer.
Poderíamos dizer que, para Leibniz, espaço e tempo seriam tão ideais quanto as aparências, que
percebemos das coisas, para Berkeley e Locke, na medida em que seriam meramente efeitos
derivados de causas externas, portanto, com fundamento numa coisa cuja natureza para nós é
incognoscível. Com efeito, apenas mediante um recurso a uma existência divina, suporte dessas
propriedades ou conhecedora delas, poderíamos assegurar, segundo esta posição, nosso
conhecimento, portanto, relativamente.
Para Leibniz (assim como para Newton), não há espaço vazio; para ele, todo espaço está
ocupado por matéria, pois, ''quanto mais matéria existir, mais Deus terá ocasião de exercer sua
sabedoria e seu poder'' [Carta II, 2]. O espaço vazio, para Leibniz, é uma abstração da imaginação
[IV, 7], uma vez que é inconcebível que Deus tenha feito um espaço vazio, quando poderia tê-lo
feito repleto de matéria, pois isto seria uma imperfeição [IV, Anexo].
A admissão da hipótese newtoniana do espaço como um ser real e absoluto levaria a muitas
dificuldades, segundo Leibniz, pois se teria de admiti-lo como um ser eterno e infinito, o que fez
com que muitos acreditassem que ele pudesse ser Deus. Porém, conforme Leibniz, ''como o espaço
tem partes, não é alguma coisa que possa convir a Deus'' [Carta III, 3], mas, ao contrário, tanto o
espaço, na ordem das coexistências, como o tempo, na ordem das sucessões, são puramente
relativos. [Carta III, 4].
O espaço, para Leibniz, não é uma substância absoluta, mas apenas a ordem ou relação das
coisas coexistentes no espaço, que não entra no modo de existir das coisas, mas apenas representa a

1
Kant apresenta uma posição contrária, na Monadologia Física, segundo o qual ''o espaço que [os corpos ocupam] é
divisível ao infinito e em conseqüência não [é composto] de partes primitivas e simples'', proposição III. KANT,
Immanuel. Monadologiam physicam (1756), tr. do latim por Roberto Torretti, in: Rev. Dialogos, v. 32, novembro de
1978.
84
possibilidade de nele ordená-las simultaneamente1 [III, 5]. Supondo que ele fosse uma coisa em si
mesma independente da ordem dos corpos nele postos, um ponto no espaço não diferiria em
absoluto de um outro ponto. E, como há uma razão suficiente para a existência de tudo, conforme
Leibniz, seria impossível que houvesse uma razão para Deus, ''conservando as mesmas situações
dos corpos entre si'', os tivesse ''colocado assim e não de outro modo'', e para que tudo não tivesse
sido feito ao contrário, ''trocando-se o Oriente pelo Ocidente''. A diferença entre esses pontos se
encontra apenas na suposição de que o espaço seja uma realidade em si mesma, fora da existência
das coisas. Mas como, para Leibniz, o espaço nada mais é do que a representação da possibilidade
de colocar e dispor as coisas simultaneamente, esses pontos não diferem entre si em nada, e
portanto não tem sentido perguntar pela ''razão de se preferir um ao outro''. [III, 5].
Tal como o espaço, o tempo, para Leibniz, não é algo fora das coisas temporais, mas
representa apenas a sua ordem sucessiva. Se o espaço e o tempo são uma certa ordem das coisas
quanto à sua coexistência e a sucessão, sem as coisas existentes, espaço e tempo nada significam 2.
Conforme Leibniz, do fato de o espaço depender da existência das coisas não se segue que ele
dependa da situação dos corpos nele, porém,
é essa ordem que faz com que os corpos sejam situáveis e pela qual eles têm uma situação
entre si ao existirem juntos, como o tempo é essa ordem com referência à posição sucessiva
dos mesmos. Se não houvesse, porém, criaturas, o espaço e o tempo não existiriam senão nas
idéias de Deus,
pois, sem criaturas, não há o que exista com extensão e duração [IV, 41]. Se
não existissem criaturas, não haveria nem tempos nem lugares, e por conseguinte nada de
espaço atual. A imensidade de Deus é independente do espaço, como sua eternidade não
depende do tempo.
Leibniz não admite que,
se só Deus existisse, haveria tempo e espaço como agora''. Para ele, ''não existiriam senão nas
idéias, como simples possibilidades. A imensidade e a eternidade de Deus são algo mais
eminente que a duração e a extensão das criaturas, não somente quanto à grandeza, mas ainda
com relação à natureza da coisa. Esses atributos divinos não precisam de coisas fora de Deus,
como são os lugares e os tempos atuais. [V, 106]
O espaço é apenas uma ordem da existência das coisas. Não há espaço real fora do universo
material; o espaço não é uma realidade absoluta. [V, 29-30]. Tomado em si mesmo, o espaço ''é
uma coisa ideal como o tempo'', e, fora do mundo, é uma abstração da imaginação. Por que espaço e
tempo são ideais, para Leibniz? Porque são apenas certa ordem das coisas, e, sem estas, não
existem. Por isso, não podem ser dois entes extensos existentes absolutamente. [V, 31-33].
Para Leibniz, a noção de espaço está vinculada à de lugar. E os homens chegam à noção de
espaço, segundo Leibniz, a partir da consideração das relações entre as coisas coexistentes
simultaneamente. Segundo Leibniz,
lugar é aquilo que é o mesmo em momentos diferentes de dois existentes, embora diferentes,
quando suas relações de coexistência com certos existentes, que desde um desses momentos
até outro são supostos fixos, convêm inteiramente. [O espaço, por sua vez,] é o que resulta
dos lugares tomados conjuntamente. [V, 47]

1
Sobre esta posição acerca do espaço e do tempo, segundo Leibniz, Torretti observa que a própria definição de espaço
pressupõe a temporalidade dos existentes neles, i.e. a sua simultaneidade, e, a definição de tempo pressupõe,
igualmente, um predicado temporal, pois, conforme Torretti, determinar ''o tempo como a ordem das coisas sucessivas
equivale a determiná-lo como a ordem das coisas temporalmente ordenadas''. Do mesmo modo, ele poderia ter definido
o espaço como '' a ordem das coisas mutuamente exteriores'', etc.. Torretti, p. 93.
2
Cf. Torretti, na dissertação de 1746 ''Sobre a verdadeira maneira de calcular as forças vivas'', Kant se manifesta
partidário da posição de Leibniz segundo a qual o espaço depende da existência das coisas nele. Torretti, p. 93.
85
Tanto o lugar como o espaço não poderiam ser senão ideais, ''contendo certa ordem em que
o espírito concebe a aplicação das relações'' entre os coexistentes. Leibniz enfatiza, porém, que o
espaço não é ''uma ordem ou uma situação, mas uma ordem das situações, ou uma ordem segundo a
qual as situações são ordenadas''. Essa ordem das situações é o espaço abstrato das situações
concebidas como possíveis; por isso ele é algo ideal [V, 104]. O espaço, para Leibniz, portanto,
equivale à ordem das situações das coisas coextensivas, assim como o tempo, à ordem das coisas
sucessivas. Para Leibniz,
os vestígios dos móveis, que eles deixam às vezes nos imóveis sobre os quais exercem seu
movimento, deram à imaginação dos homens a ocasião de conceber essa idéia, como se
restasse ainda algum vestígio mesmo sem a existência de qualquer coisa imóvel; mas isso não
é senão ideal, e traz somente como conseqüência que, se existisse algum imóvel, a gente o
poderia designar. E é essa analogia que faz com que se imaginem lugares, vestígios e espaços,
ainda que essas coisas não passem na verdade de relações e, de forma alguma, [...] sejam uma
realidade absoluta. [V, 47]
Conforme Leibniz, ''tudo quanto existe do tempo e da duração, sendo como é, sucessivo,
perece continuamente''. E como ''do tempo não existem jamais senão instantes, e estes não são nem
sequer uma parte do tempo'', o tempo não existe, e não é senão algo ideal. [V, 49].
Sem as coisas, perguntar pela razão pela qual algumas teriam ocorrido antes do momento
presente não tem sentido, pois o antes e o depois não podem ocorrer sem as coisas, e um momento
anterior ''não diferiria em nada e não poderia ser discernido daquele que existe agora''. [III, 6]. Sem
as coisas, o tempo é, como o espaço, uma mera possibilidade ideal destas. Conforme Leibniz,
o tempo deve coexistir com as criaturas, e não se concebe senão pela ordem e quantidade de
suas mudanças. [V, 55] [; e] quando se mostra que o começo, qualquer que seja, é sempre a
mesma coisa, cessa a questão de saber por que não foi de outro modo. [IV, 15]
A questão, portanto, acerca do começo do mundo no tempo simplesmente não se coloca,
pois, uma vez que Deus criou o mundo ''antes de qualquer tempo assinalável'', o mundo é eterno.
Porém,
o começo do mundo não vai contra a infinidade da duração a parte post ou posteriormente;
mas os limites do universo iriam contra a infinidade de sua duração. Assim é mais racional
pôr-lhes um começo que admitir limites para elas, a fim de conservar num caso e no outro o
caráter de um autor infinito. [V, 74]
Por isso, falar em um momento anterior no tempo assim como em um ponto diferente no
espaço, sem um existente, é falar sem sentido, pois, conforme Leibniz, os momentos no tempo e os
pontos no espaço, fora dos existentes, são absolutamente indiscerníveis. E, portanto,
a hipótese de que o universo poderia ter tido uma outra posição temporal e local do que a que
aconteceu efetivamente, e que entretanto todas as suas partes teriam a mesma posição relativa
que a recebida com efeito, é uma ficção impossível. [IV, 6]
Isto não significa que Leibniz considere dois pontos no espaço como um mesmo ponto, nem
dois instantes no tempo com um mesmo instante, mas simplesmente que ''se pode imaginar, por
falta de conhecimento, que há dois instantes diferentes onde não há senão um'' [V, 28].
Conforme Leibniz, a hipótese de que o espaço seja uma propriedade ou um atributo de uma
substância leva a dificuldades que a hipótese de concebê-lo como uma propriedade da ordem das
coisas não leva. Pois, no primeiro caso, dado que ele é uma propriedade ou um atributo de uma
substância, poderia ocorrer que, sendo o espaço finito mensurável, e a extensão, a afecção de um ser
externo, se nos deparássemos com um espaço vazio, ele seria ''um atributo sem sujeito, uma
extensão sem nenhum extenso'' [IV, 8], um nada, por conseguinte. E, no caso do espaço ser a
extensão do corpo que o ocupa, o corpo, ao mudar de lugar, mudaria de extensão. E isso é
impossível, ''pois um corpo pode mudar de espaço, mas não pode deixar sua extensão''. [V, 37]. É

86
necessário, pois, distinguir o espaço da extensão do corpo no espaço, bem como o tempo de sua
duração.
O espaço infinito não é a imensidão de Deus; e o espaço finito não é a extensão dos corpos,
como o tempo não é a duração. As coisas conservam sua extensão, mas nem sempre o seu
espaço. Toda coisa tem sua própria extensão, sua própria duração, mas não seu próprio tempo,
e não conserva seu próprio espaço. [V, 46]
Se se negar, portanto, que o espaço limitado possa ser uma afecção dos corpos limitados,
será necessário negar igualmente que o espaço possa ser uma propriedade de uma coisa infinita [V,
41]. Para Leibniz, falar do espaço e do tempo como propriedades de Deus é falar sem sentido, pois,
se
o espaço infinito é a imensidade de Deus, o tempo infinito será a eternidade de Deus. Ter-se-á
pois de dizer que o que se encontra no espaço está na imensidade de Deus, e por conseguinte
na sua essência; e que o que se acha no tempo está na eternidade de Deus. Frases estranhas e
que bem fazem ver que a gente está abusando dos termos. [V, 44]
Para Leibniz, as partes finitas estão para o espaço infinito do mesmo modo que os corpos
estão para o universo. Portanto, assim como os corpos constituem o universo —que, sem eles, não
existiria—, as partes finitas do espaço compõem o espaço infinito. Para Leibniz, a afirmação
newtoniana que diz
que o espaço infinito não tem partes equivale à afirmação de que os espaços finitos não o
compõem. E dizer que o espaço infinito poderia subsistir quando todos os espaços finitos
fossem reduzidos a nada, seria como se se asseverasse [...] que esse universo poderia subsistir
ainda que todos os corpos que o compõem fossem reduzidos a nada. [IV, 11]. [Mas as partes
do tempo e do espaço,] tomadas em si mesmas, são coisas ideais, parecendo-se assim como
duas unidades abstratas. [V, 27]
Para Leibniz, portanto, espaço e tempo são termos que designam entidades imateriais,
porém, portadoras de matéria (não vazias); i.e. não são substâncias existentes em si, são portanto
inextensas. Não são propriedades nem atributos de substâncias; mas propriedades da ordem das
coisas existentes. São divizíveis ao infinito, e, portanto, contrário a Newton, compostas de partes.
São relativas e não absolutas (como Newton). São entidades ideais que representam a possibilidade
de colocar e dispor as coisas simultânea e sucessivamente, i.e. representam a ordem das coisas
simultâneas (coexistentes no espaço) e sucessivas (no tempo). Mas são ideais num sentido diferente
do que são para Kant: são ideais na medida em que são meramente abstrações da ordem das coisas
existentes quanto à simultaneidade (coexistência) e à sucessão, e que, fora dos existentes, são
apenas representações da possibilidade da coexistência e da sucessão. Elas são, em si mesmas,
ideais, i.e. fora do mundo (dos existentes), são meras abstrações da nossa imaginação. São, nesse
sentido, abstrações da ordem das situações das coisas fora de nós, que, sem elas, não existem; i.e.
dependem da existência das coisas nelas, mas não do modo como estas se situam particularmente;
por isso são relativas.

C. A posição newtoniana de Kant acerca do espaço absoluto no texto das contrapartidas


incongruentes: a primeira refutação da posição de Leibniz
No texto pré-crítico Sobre o fundamento primeiro da diferença entre as regiões do espaço 1, de
1768, Kant procura fundamentar filosoficamente o conceito da diferença entre as regiões do espaço,
buscando, nos juízos intuitivos de extensão, tal como os da geometria1,

1
Traduzido por Torretti, R., in: Rev. Dialogos, vol. 22, 1972, pp. 139-152, e cotejado com o texto alemão Von dem
erten Grunde des Unterschiedes der Gegenden im Raume, in: ''Immanuel Kant's: sämtliche Werke in sechs Bänden'',
op. cit., pp. 315-325.
87
uma prova evidente de que o espaço absoluto tem uma realidade <Realität> própria,
independentemente da existência de toda matéria, e constitui inclusive o fundamento primeiro
da possibilidade da composição desta última. 2
Para Kant, deve ser possível encontrar uma prova para dar um conceito de espaço que não
seja o que surge pela mera abstração da relação das coisas existentes (como para Leibniz), que não
se presta para uma tentativa de fundamentar com precisão ''as mais universais leis do movimento''.
Kant pretende apresentar uma prova que permita sustentar a ''existência efetiva <Wirklichkeit> do
espaço absoluto''.
A posição realista transcendental de Kant (se nos é permitido aqui julgar um momento de
seu pensamento com um instrumental que ele só viria a conceber depois) fica desde o início
manifesta por, pelo menos, dois fatores: ( i ) pela sua afirmação clara, na primeira passagem citada
acima, de que o espaço tem de ter ''uma realidade <Realität> própria independentemente da
existência de toda a matéria''; e (ii), pelo fato de ele não observar a distinção (possível para ele
apenas mais tarde) entre Realität e Wirklichkeit, dado o uso que faz destes termos, como podemos
ver se compararmos os excertos citados acima 3. Aqui, ainda, o espaço tem, para Kant, uma
existência, em si, fora de nós e independentemente de nossa sensibilidade, não se constituindo,
ainda, meramente como forma de nossa percepção externa. Portanto, de acordo com a distinção
entre realidade e aparência, tal como vimos acima, o espaço, para Kant, neste seu trabalho, teria
uma existência para nós e independentemente de nós, i.e. como fenômeno e como noumeno.
De acordo com Kant, a posição de qualquer parte do espaço em referência a outra pressupõe
a região na qual estas partes relacionadas estão situadas, que consiste ''na relação do sistema destas
posições com o espaço cósmico absoluto''. Dado um objeto extenso qualquer no espaço, podemos
conhecer ''a posição relativa de suas partes'' a partir dele mesmo. A região, porém, em relação à qual
se referem as partes ordenadas do objeto, não se refere nem ao lugar destas partes nem ao do objeto,
mas ao espaço exterior. Por isso, as posições dessas partes ordenadas devem ser consideradas, numa
relação externa com o espaço universal, como constituindo uma ''unidade da qual cada extensão tem
que se considerar como parte''.
Dado um corpo no espaço, em relação às suas três dimensões, podem ser concebidos três
planos que se cortam perpendicularmente. E uma vez que só conhecemos
através dos sentidos tudo quanto está fora de nós somente na medida em que está em conexão
conosco4, não deve surpreender-nos que tomemos, da relação entre estes planos de interseção
e nosso corpo, o fundamento primeiro para gerar o conceito das regiões do espaço.5
Por isso, esquerda, direita, frente, atrás, etc. são predicados espaciais relativos ao sujeito e não ao
espaço enquanto tal. Do mesmo modo,
nossos juízos sobre as regiões do mundo estão subordinados ao conceito que temos das
regiões em geral enquanto se as determina em relação com os lados de nosso corpo.1

1
Para Strawson, o cerne da argumentação de Kant sobre a idealidade do espaço e do tempo, e em especial a do espaço,
na Estética Transcendental, está fundado ''na idéia que Kant tem das proposições da geometria''. Porém, sua teoria da
geometria não pode ser ''defendida com uma teoria das ''matemáticas do espaço'' e não tem força para provar as teses do
espaço do idealismo transcendental''. Strawson, p. 52. Allison partilha da mesma posição. Para ele, deve ser possível
interpretar os argumentos de Kant em favor da idealidade do espaço e do tempo nas Exposições sem o apelo à
possibilidade da Geometria. Allison, p. 174. Paton, ao contrário, vincula a força dos argumentos de Kant à
possibilidade ou não de fundamentar uma Geometria a priori. Paton, I, p. 130.
2
Ibid., p. 140.
3
Cf. Torretti, Kant rompe aqui com a posição, eminentemente leibiniziana, de seus escritos anteriores acerca do espaço
como dependente da existência das coisas, e passa a adotar a posição que defende a prioridade ontológica do espaço,
que é notadamente newtoniana. Para Torretti, porém, esta posição de Kant acerca do espaço não é incompatível com a
que adotará em 1770, na Dissertatio, e que oporá a Leibniz e a Newton. Torretti, p. 119. Cf. de Vleeschauwer, neste
escrito, Kant ''adota o espaço absoluto de Newton''. de Vleeschauwer, op.cit., p. 149.
4
Aqui, vemos a contrapartida de seu realismo transcendental, i.e. o caráter idealista empírico de sua posição.
5
Kant, ibid., p. 141.
88
Sem que possam ser referidas aos lados de nosso corpo, i.e. às nossas mãos direita e esquerda, o
conhecimento da posição do lugar de qualquer coisa não tem, para nós o menor valor. Para Kant há
uma certa ordem no mundo quanto à relação que as partes de um corpo no espaço mantêm entre si
que independe da posição relativa das partes nele justapostas, pois
o fundamento da determinação cabal de uma figura corpórea não depende unicamente da
mútua relação e da posição relativa de suas partes, senão apenas de uma relação com o espaço
geral absoluto.2
Para Kant, quando duas figuras situadas em um mesmo plano são iguais e semelhantes entre
si, são contrapartidas congruentes, i.e. uma pode estar contida nos mesmos limites da outra. Para
provar que dois corpos podem ser semelhantes em tudo e ainda assim serem incongruentes, i.e. não
poderem ocupar o mesmo lugar, Kant se vale do exemplo da constituição do corpo humano.
Conforme Kant, os membros do corpo humano ''estão ordenados simetricamente'' em relação ao
plano vertical em que este se encontra. A mão direita, p.ex., é idêntica em tudo à esquerda, no que
concerne ''à mútua proporção e à posição relativa das partes e ao tamanho do conjunto'', e, portanto,
''uma descrição completa de uma tem que se aplicar em todos os seus detalhes à outra''. No entanto,
uma não pode ocupar o lugar da outra, i.e. não pode estar contida nos mesmos limites da outra,
sendo, portanto, incongruentes. ''A um corpo que é inteiramente igual e semelhante a outro, mas que
não pode estar contido nos mesmos limites que este'', Kant chama sua ''contrapartida incongruente
<inkongruentes Gegenstück>''. Com esta explicação, Kant pretende ter demonstrado que é possível
que haja espaços idênticos, porém, incongruentes.
Para Kant, o caso da mão direita e esquerda serve para exemplificar que, mesmo que a
figura de um corpo seja ''inteiramente semelhante à figura de outro e a magnitude da extensão'' seja
a mesma, pode ainda restar ''uma diferença interna, a saber, que a superfície que contém um não
pode encerrar o outro''. E, uma vez que esta superfície limita o espaço corpóreo de um corpo mas
não o do outro, não importando como se o reordene em relação a esta superfície, a diferença interna
entre ambos tem de ter um fundamento igualmente interno, que ''não pode residir em um modo
diferente das partes do corpo se unirem entre si; pois [...] tudo pode ser inteiramente igual''. Pois,
caso se aceitasse a posição de Leibniz, segundo a qual
o espaço consiste unicamente nas relações externas das partes justapostas da matéria, no caso
indicado todo o espaço existente seria aquele que esta mão ocupa.3
No que concerne à mão direita ou esquerda, ''como não há nenhuma diferença nas relações mútuas
de suas partes'', a mão em questão estaria completamente indeterminada quanto à propriedade de ser
direita ou esquerda, pois ''calçaria com qualquer lado do corpo humano, o que é impossível''.
Por fim, devido ao fato de podermos ver na constituição dos corpos diferenças verdadeiras,
compreendemos por que as posições relativas das partes da matéria são conseqüência das
determinações do espaço e não o contrário 4. E essas diferenças, conforme Kant, referem-se
unicamente ao espaço absoluto e originário, porque só em virtude dele é possível a relação
das coisas corporais''. [Nesse sentido,] o espaço absoluto não é um dos objetos da sensação
externa, senão um conceito fundamental <Grundbegriff>, que torna possíveis todos eles [, e]
aquilo que na figura de um corpo concerne meramente a sua relação com o espaço puro
podemos percebê-lo só por confrontação com outros corpos.5

1
Ibid., p. 142.
2
Ibid., p. 143.
3
Ibid., p. 145.
4
Cf. Torretti, ''Kant parece entender que cada corpo, para ser o que é, tem que se vincular diretamente a este princípio
possibilitante único, o espaço universal do qual o volume que o corpo ocupa é só uma parte''. Torretti, p. 123.
5
Kant, ibid., p. 145.
89
O conceito de espaço, porém, ''não é um mero ente de razão <Gedankending>, ainda que não faltem
dificuldades em torno deste conceito'', quando se pretende dar conta da sua realidade <Realität>
apenas por meio da razão1.

II. O contexto da justificação: (a fase ''crítica'')


Nos termos da epistemologia contemporânea, no contexto em que emerge a teoria do idealismo
transcendental de Kant, podemos dizer que há três teorias concorrentes à vaga de paradigma 2 de
explicação do estatuto ontológico do espaço e do tempo, a saber: a de Newton, a de Leibniz e a de
Kant. Como vimos, a de Newton consistia, basicamente, em considerar o espaço e o tempo como
entes extensos existentes independentemente das coisas e de nossa percepção sensível; a de Leibniz,
que considerava espaço e tempo como entidades imaginárias abstraídas das relações entre as coisas
fora de nós; e, a de Kant, que propõe que se os considere meramente como formas de nossa intuição
sensível, e, como tais, constituindo nosso aparato perceptivo.
Ao observarmos os movimentos da ciência através da sua história, constatamos que uma
teoria científica, para se estabelecer como paradigma explicativo, necessita, dentre outros requisitos,
ser mais poderosa que suas concorrentes, i.e. ela tem, antes de tudo, de explicar e descrever com
mais eficácia um maior número de fatos da natureza. Porém, para que uma nova teoria se estabeleça
dentro da comunidade científica, não basta que ela supostamente se coloque como mais capaz
perante as outras, é necessário também que os praticantes da ciência, adeptos às teorias vigentes,
sejam convencidos da suposta eficácia e força explicativa da nova candidata, e venham a aderir a
ela. Se considerarmos as posições de Newton e de Leibniz, a respeito do espaço e do tempo, como
paradigmas vigentes à sua época, a tarefa de Kant, a fim de estabelecer sua teoria como paradigma
explicativo, era mostrar: (i) que ambas tinham limitações e não eram eficazes ao explicarem os
fenômenos que pretendiam explicar; e (ii) que a sua teoria era mais apta a isto e sem as limitações
de suas concorrentes.
De fato, o trabalho realizado por Kant, tanto na Dissertatio como na KrV, pode ser
interpretado como tendo sido, fundamentalmente, uma tentativa de refutar suas concorrentes e
provar que sua doutrina da idealidade transcendental do espaço e do tempo era a candidata mais
apta a paradigma explicativo. Portanto, é argumentando contra a realidade transcendental e a
idealidade empírica do espaço e do tempo que Kant estabelece sua idealidade transcendental. 3

A. Espaço e tempo como formas puras da intuição sensível


Nomes são rótulos (marcas) de algo diferente deles; i.e. são coisas que estão por coisas diferentes
deles. Nomes não existem senão na linguagem. Eles designam, nomeiam, aquilo que os usuários da
linguagem determinam que eles designem. De um certo modo, para Kant assim com para Newton e
Leibniz, como vimos, espaço e tempo também são nomes. Mas o que eles nomeiam? Segundo Kant,
espaço e tempo nomeiam os dois únicos modos sob os quais algo pode ser dado à percepção
sensível humana; em outros termos, eles nomeiam as duas únicas formas de recebermos algo na
nossa sensibilidade. São nomes de duas noções: a extensão e a duração. Se algo pode ser dado em
nossa sensibilidade, esse algo, para que o percebamos por meio de algum de nossos sentidos, deve
durar em nossa percepção. Esse algo que dura em nossa percepção, enquanto o percebemos, pode

1
Ibid., loc.cit. Carrier comenta que a posterior concepção kantiana do espaço absoluto, na tentativa de explicar o
movimento relativo, consistirá em concebê-lo como uma entidade imaginária, para a qual não é possível nenhum
referencial empírico, tal como as ''idéias de razão'', da KrV. Conforme Carrier, nesse sentido, ''o espaço absoluto de
Kant, em contraste com o newtoniano, não é uma entidade existente independentemente, mas, ao contrário, uma
estrutura ficcional introduzida por causa de uma coerente descrição do movimento''. Carrier, p. 403.
2
Sobre a noção de paradigma, ver Kuhn, T., Estrutura das Revoluções Científicas, Ed. Perspectiva, SP, 1987.
3
Cf. Radner, Michael and Daisie, Kantian Space and the Ontological Alternatives, Kant-Studien, vol. 78-4, 1987, p.
836.
90
ou não ter uma extensão. Se esse algo tem uma extensão, diz-se que ele possui a forma da
espacialidade; i.e. ele pode ser locado espacialmente, fora de nós. Porém, tenha ou não, esse algo
que dura em nossa percepção, uma extensão, ele tem uma duração, e, portanto, possui, por isso, a
forma da temporalidade, i.e. ele é determinado temporalmente, em nosso sentido interno (em nós).
Portanto, o espaço é o nome da forma do nosso sentido externo, i.e. daquilo que tem extensão e
figura; e o tempo é o nome da forma do nosso sentido interno, de todo algo que dura em nossa
percepção, e, por conseguinte, tudo o que recebemos em nossa sensibilidade (tudo o que
percebemos sensivelmente), e tudo o que concebemos em nosso pensamento, tem uma duração, i.e.
pode ser determinado temporalmente.
O que, para nós, tem extensão, pode estar ao lado esquerdo, direito, atrás, acima, à frente, de
nós, ou de um outro (ou outros) algo, dado em nossa percepção espacial (externa) num dado
momento do tempo. O que para nós tem duração, pode vir antes, depois, ao mesmo tempo,
sucessivamente, etc., em nossa percepção, tenha ou não extensão. Porém, o que para nós é dado em
nosso sentido externo como extenso tem de ser dado também em nosso sentido interno como algo
que dura. Portanto, algo pode ter para nós duração sem ter extensão: a série dos números naturais; já
o contrário não é possível.
Podemos considerar espaço e tempo sob duas perspectivas: quanto ao estatuto ontológico
daquilo que eles nomeiam e quanto ao estatuto gramatical destes enquanto nomes. No primeiro
caso, espaço e tempo, ontologicamente considerados, nomeiam as formas puras a priori, intuitivas e
subjetivas que constituem a capacidade perceptiva de todos os sujeitos, considerados
transcendentalmente. No segundo caso, espaço e tempo, gramaticalmente considerados, nomeiam
classes semânticas em que se encontram advérbios e adjetivos, com os quais realizamos as
operações lingüísticas de instanciação espaço-temporal, atribuímos propriedades relativas à
extensão, duração, etc.. Dos nomes espaço e tempo, portanto, se originam duas subclasses de
noções a eles relacionadas; noções tais como, no caso do modo espacial: aqui, ali, lá, acolá; e no
caso do modo temporal: agora, antes, depois, já, etc. Esses nomes que subsumem essas noções, e
que derivam dos significados de espaço e de tempo:
(i) são derivados da noção-matriz à qual cada um pertence, i.e. ou à do espaço ou à do tempo; e
(ii) são todos nomes de noções ou temporais ou espaciais, relativas ao sujeito cognoscente que os
utiliza, que é o referencial em relação ao qual todos esses nomes referem uma posição no espaço
fora dele e um momento do (no) tempo nele, no ato de sua elocução.
Espaço e tempo não podem ter existência alguma; pois eles, assim como suas noções derivadas, não
são coisas que possam subsistir por si só, nem mesmo propriedades de coisas que subsistam por si
só. Por quê? Porque eles são apenas nomes, e nomes não existem senão na linguagem, e não
significam senão na unidade da proposição com sentido.
No caso do espaço e do tempo, os nomes derivados de suas noções nada nomeiam de fato na
realidade. Espaço e tempo e seus cognatos nomeiam sempre em relação ao ato ilocucionário do
sujeito cognoscente. Espaço e tempo e seus cognatos são portanto nomes relativos de coisas
relativas (propriedades primárias e secundárias), a saber: posições de coisas fora de nós (no espaço)
e momentos de coisas em nós (no tempo) em relação a nós (o sujeito transcendental).
Considere agora o que vemos. Conforme a distância, algo, que está em nosso campo de
visão, pode parecer de um jeito ou de outro. Se nos aproximamos desse algo, vemos coisas que não
víamos nele, à distância. Se nos afastamos dele, deixamos de ver o que víamos quando estávamos
próximos. Agora, pelo fato de o que vemos de algo ser diferente, conforme estamos perto ou longe,
o algo que vemos, por sua vez, é igualmente diferente, variando conforme o que vemos? Mas, na
verdade, o que vemos: aquilo que vemos do algo (uma imagem) quando estamos perto ou longe, ou
o algo do qual vemos aquilo que vemos (uma imagem) quando estamos perto ou longe? Se o que
vemos do algo depende da distância, por exemplo, que dele nos encontramos (pois poderiam ser
considerados aqui outros fatores, tais como a luminosidade), alguma vez vemos o algo do qual

91
temos as diferentes imagens que recebemos em função da distância que dele nos encontramos?
Resposta: O que vemos do algo que dura em nossa percepção é o próprio algo que vemos. Não há,
para a nossa percepção (humana), a visão do algo, independentemente do modo como o vemos.
Portanto, o que vemos de algo é o algo que vemos. Esse algo que vemos é, por sua vez, espaço-
temporal. O que vemos é, para nós, necessariamente espaço-temporal. Caso não o fosse, não o
veríamos. Mas o algo do qual vemos o que vemos, relativamente à nossa proximidade ou distância
dele, é, por sua vez, tal como aquilo que vemos dele? O algo do qual vemos o que vemos está,
igualmente, submetido às mesmas condições sob as quais está submetido o que dele vemos? Em
outros termos, o algo do qual vemos algo que se apresenta à nossa percepção sensível do modo
espaço-temporal está submetido a essas mesmas formas? Tem ele a mesma forma espaço-temporal
daquilo que dele vemos? Resposta: Estas perguntas não têm sentido; estão mal-formuladas. E por
quê? Porque, se espaço e tempo são os nomes das formas sob as quais o que percebemos é por nós
percebido, por meio dos nossos sentidos, não há razão para perguntar se a forma do que não
percebemos é da forma do que percebemos; portanto, espaço-temporal. Se não percebemos, por
meio de nossa forma de o perceber, o algo não tem a forma segundo a qual nós podemos perceber
algo. É, portanto, não-espaço-temporal. 1
Considere a seguinte imagem: alguém olhando, com seus olhos desprovidos de quaisquer
instrumentos para aproximação ou afastamento da imagem, para um algo qualquer, digamos, X:
(a) a uma distância X + 1e (e equivale a uma unidade espacial de distanciamento) de X, esse alguém
vê algo X >;
(b) a uma distância X + 2e, algo X 2 > ;
(c) e assim por diante, até chegar a uma distância X + n >, em que não vê, desse algo, coisa alguma,
i.e. não tem dele nenhuma imagem, ou seja, está fora de seu campo de visão. Esse é o caso, por
exemplo, do nosso olhar em relação a corpos muitos distantes no sistema solar: porque não estão
em nosso campo de visão, não os podemos ver, evidentemente, o que de modo algum equivale a
dizer que não existem. 2
Agora, tome essa mesma imagem, e, em vez de se afastar de X, esse alguém,
gradativamente, vai-se aproximando:
(a') a uma distância X - 1e de X, esse alguém vê algo X <;
(b') a uma distância X - 2e, algo X 2 <; e assim por diante;
(c') até chegar a uma distância X - 0e (o equivalente à distância inexistente entre os olhos desse
alguém e o objeto X), onde não verá nitidamente coisa alguma de X, mas terá X diante dos olhos.
Agora imagine que esse alguém tem, entre seus olhos e o X que tem diante de si em seu
campo de visão, um par de lentes poderosíssimas, capazes de dilatar o X do campo de visão em nµ
(mícrons). O que ele vê agora diante de si? Ele vê mais de X do que via antes? Ele vê melhor X
agora? Podemos dizer que o que ele vê, em todos os diferentes momentos e distâncias, com olhar nu
ou provido de lentes, diz respeito ao mesmo X? O que é X, a essas alturas, para esse alguém: o que
esse alguém viu em a? b? c? a'? b'? c'? O que é esse X em si mesmo, independentemente das
diferentes maneiras com que esse alguém o viu? 3

1
Ver nota abaixo em comentário de Paton e Allison sobre a ''tosca analogia'' <rough analogy> de Körner em sua
interpretação da doutrina kantiana acerca do espaço e do tempo.
2
Ver Chenet, F.-X., Que sont donc l'Espace et le Temps? (les hypothèses considérés par Kant et la
lancinante objection de la ''troisième possibilité''), in: Kant-Studien, vol. 84-2, 1993, Réceptivité de la Sensibilité et
Subjectivité de la Réceptivité: la Question du Fondement de la Phénoménalité chez Kant, in: Revue de Metaphysique et
de la Morale, Armand Colin, Paris, vol. 4, 1988, e La Quatrième Remarque de l'Esthétique Transcendentale face
aux objections, in: Les Études Philosophiques, PUF, Paris, vol. 2, 1990.
3
Cf. Strawson, quando nos negamos a nos submeter ''à posição dogmática de que, ainda que não conheçamos tudo,
conheçamos ao menos todo tipo de coisa que realmente existe, não negamos que conheçamos coisas de certas classes de
coisas que realmente existem. O que fazemos, p.ex., é reconhecer com modéstia que igual seria absurdo que o cego
92
Independentemente de quão próximos possamos chegar de um objeto, seja por meio de
instrumentos seja por meio de nossos próprios órgãos sensíveis, sempre teremos deles meramente a
percepção de seu fenômeno, nunca do que seja em si1. Nós estamos aprisionados em nosso modo de
perceber o mundo. Não podemos perceber objetos da experiência senão sob as formas de nossa
sensibilidade. É isto que, em definitivo, Kant afirma. Daí, se quisermos utilizar nossos conceitos
puros, que são para uso empírico, i.e. de acordo com nosso modo de acesso à experiência, para
coisas que não são espaço-temporais, é culpa inteiramente nossa o cairmos num discurso vazio, pois
utilizamos nossos conceitos sem lhes emprestar significado algum. Espaço e tempo são os
princípios formais do universo enquanto fenômeno, e, como tais, são as condições de tudo o que é
sensível no conhecimento2. Um objeto da experiência externa ser dado espaço-temporalmente
equivale a dizer que ele tem de ser dado num tempo possível ou efetivo, a saber: no passado, no
presente ou no futuro, locável efetiva ou possivelmente no espaço em relação ao sujeito. Pelo
contrário, o múltiplo sensível espaço-temporal não é o ''objeto'' que afeta nossos sentidos, mas
apenas seus efeitos, os fenômenos que se manifestam a seres constituídos como nós, i.e. com uma
intuição sensível espaço-temporal3. Conforme Strawson, é nesse aspecto que reside todo o caráter
subjetivo da teoria de Kant. Dizer que tais formas da intuição sensível são a priori ''é simplesmente
acentuar a subjetividade'', uma vez que espaço e tempo estão em nós antes de toda e qualquer
experiência.
Nosso aparato cognitivo é constituído de tal maneira que só percebemos objetos sensíveis
sob as formas do espaço e do tempo. Por isso, tais formas serem as condições de possibilidade da
experiência sensível de objetos. E devido ao fato de os objetos nos serem dados só por meio da
intuição sensível, e esta nos fornecer apenas o fenômeno do objeto da experiência, não podemos de
modo algum conhecer o objeto tal como é em si mesmo, pois através de nossos sentidos não temos
acesso a eles, i.e. nós não podemos perceber os objetos tais como são em si mesmos, pois seu real
modo de ser não afeta nossos sentidos. Destes só sabemos que são diferentes de seu fenômeno e
que, por isso, são coisas não-espaço-temporais.
Espaço e tempo ''não são somente formas de nossa intuição, mas formas a priori da
intuição''4. São as condições ''inatas'' da constituição de nosso aparato perceptivo, sem as quais a
experiência de objetos não é possível. Basta, para isso, que tentemos eliminar mentalmente a
seqüência (sucessão e permanência) temporal da nossa experiência. Sem a condição temporal, para
nós, nem o pensamento seria possível, pois mesmo para pensar uma experiência fora da sucessão
temporal eu necessitaria dela para o representar, o que é uma contradição manifesta. Por isso,
conforme Strawson, ''a idéia da experiência em geral parece ser realmente inseparável da [idéia] da

negasse que as coisas que experimenta possuem um certo tipo de propriedade que ele não pode experimentar, assim
seria igualmente absurdo que os que vêem negassem a possibilidade de que com um equipamento de órgãos sensitivos
mais rico poderiam, eles também, descobrir propriedades dos objetos dos quais, tais como estão as coisas, não podem
formar-se concepção alguma. É uma verdade conhecida que segundo a ciência avança se reconhecem novos tipos de
propriedade e novos tipos de entidades individuais. (Às vezes, ainda que nem sempre, expressemos tais resultados em
termos de descobrimento sobre a composição e estrutura de indivíduos comuns.) Seria, de novo, absurdo sugerir que
descobrimentos deste tipo não possam voltar a ocorrer simplesmente porque não nos podemos fazer, no momento
presente, uma concepção sobre eles. Nem tampouco podemos supor que a recusa do dogmatismo restritivo deixa a porta
aberta nestas duas direções bastante específicas, sugeridas na experiência ordinária e na construção de teorias. Não
temos, nem podemos ter razão alguma para negar a priori a possibilidade de distintos tipos de revelação da realidade
objetiva para os quais não temos a fácil analogia de um novo órgão sensitivo ou de uma nova teoria científica. (Nem
temos, evidentemente, razão alguma para afirmar esta possibilidade.) A única coisa que podemos insistir é que qualquer
aspecto ulterior da realidade que possa aparecer deve estar em certa forma sistematicamente conectado com aqueles
outros aspectos que já conhecemos''. Strawson, pp. 237-238.
1
Ver Strawson, p. 239.
2
Kant, Dissertatio, III, § 13.
3
Strawson, p. 48.
4
Ibid., p. 45.
93
sucessão temporal da experiência''. 1Mas, em relação ao espaço (nosso ''sentido externo''), há a
mesma necessidade? Ou seja, é possível termos experiência sem a condição espacial?
Kant declarou (como vimos acima) que a condição necessária para que tivéssemos
percepção efetiva de objetos externos a nós era a percepção imediata de nossa consciência de que
tais representações fossem dadas em nossa mente; i.e. de que nos apercebêssemos de tais
representações. Parece, porém, que, para tanto, é necessário que tenhamos certeza de nós mesmos
como existentes no espaço enquanto seres pensantes, pois, para Kant, a nossa existência como
substâncias pensantes é a primeira e indubitável certeza a que temos acesso mediante nossas
faculdades cognitivas. Nesse sentido, pareceria que o sentido interno e externo seriam condições
indissociáveis da possibilidade da experiência em geral.
É porque são as formas por meio das quais nós ordenamos o múltiplo empírico dado pela
sensibilidade e os conhecemos como ordenados que espaço e tempo são ideais, i.e. formas
subjetivas da intuição sensível, e, como tais, são as ''formas da particularidade'', conforme Strawson,
pois é por meio deles que subsumimos um caso particular a um geral, i.e. uma intuição a um
conceito. Conforme Strawson, vista assim a teoria de Kant,
podemos supor que os objetos ''que afetam'', de cuja existência —dado que nossa intuição é
''sensível''— depende não-lógica ou causalmente nosso conhecimento dos casos particulares,
são simplesmente aqueles mesmos casos ordenados espacial e temporalmente aos que
aplicamos nossos conceitos gerais.2

B. A ''prova direta'' do idealismo transcendental: as exposições 'metafísica' e 'transcendental'


dos conceitos de espaço e tempo na Estética Transcendental
A Estética Transcendental pode ser considerada a menor seção da KrV. Robert Theis3 chama a
atenção para a desproporção que há, p.ex., entre a Estética Transcendental e a Lógica
Transcendental. Na verdade, conforme Theis, esta trata de problemas mais complexos e por isso
necessita de mais espaço para discuti-los. O que não significa que a Estética seja menos importante,
pois, conforme Theis, ela é, por assim dizer, ''o outro necessário da Lógica porque ela enuncia o
lugar mesmo no qual se inscreve legitimamente esta última em seu conceito crítico''. Nesse sentido,
nós podemos considerar a Estética, conforme Theis, como a ''ratio essendi da Lógica enquanto
transcendental''.4
Na Dissertatio, e em especial, na Estética Transcendental, conforme Allison, Kant procede
a uma ''prova direta'' do idealismo transcendental, tentando mostrar, através da análise das
representações do espaço e do tempo, que estas são a priori, intuitivas e ideais. 5
Na Dissertatio, Kant começa com a exposição do conceito de tempo e dá a ele uma ênfase
considerável, enquanto a forma unicamente mediante a qual todo o conhecimento é possível, e a do
conceito de espaço se segue a ele, quase com os mesmos passos argumentativos. Na Estética
Transcendental, Kant inverte a ordem da exposição dos conceitos de espaço e de tempo, começando
pelo de espaço e dando a ele maior ênfase e desenvolvimento, reservando ao tempo um tratamento
mais sumário6. Poderíamos, em princípio, levantar pelo menos dois motivos para Kant ter procedido

1
Ibid., p. 46.
2
Ibid., p. 48.
3
R. Theis, R., Aux sources de l'Esthétique Transcendentale, in: Kant-Studien, vol. 80-1, 1989, pp. 3-47.
4
Ibid., p. 3.
5
Allison, p. 141.
6
Cf. Paton, ''Kant falha freqüentemente em manter um paralelismo em suas diferentes considerações acerca do espaço e
do tempo. Isto é parcialmente devido ao descuido, mas parcialmente também ao fato de que as características do tempo
diferem em certa medida das do espaço''. Paton, I, p. 131. ''A Exposição Transcendental como um todo é mais forte em
relação ao espaço do que em relação ao tempo, porque a ciência temporal paralela para a geometria é, quando muito,
94
dessa maneira: (i) porque ele estava especialmente interessado em refutar a posição idealista
empírica, que defendia a impossibilidade de se dar uma prova satisfatória da existência de objetos
externos a nós, e por isso era mais importante dar conta de uma prova satisfatória acerca da
idealidade transcendental do sentido externo, uma vez que, basicamente, a Geometria e a Física se
ocupavam mais com proposições acerca da natureza do espaço do que com as da natureza do
tempo; e (ii) porque, sendo o tempo a condição de possibilidade de todo conhecimento e do próprio
pensamento —tal como Kant enfatiza na Dissertatio—, pois é a forma interna do sujeito intuir a si
mesmo como fenômeno bem como os próprios fenômenos externos, ele se encontraria, em
princípio, mais resguardado, uma vez que tanto o idealismo empírico como o realismo
transcendental partilhavam da natureza fenomênica (representacional) dos objetos da experiência.
(O que não o preservava, porém, da alegação de que poderia ser, além da forma do nosso sentido
interno, uma propriedade das coisas em si mesmas) 1. Porém, esta mudança de ênfase na abordagem
destes conceitos tem outras causas. De acordo com Paton,
Kant pode ter sentido que havia mais dificuldade em considerar o tempo como uma intuição
pura do que considerar o espaço como tal. A intuição é naturalmente pensada como uma
apreensão de simultâneos, e as partes do espaço são simultâneas, enquanto as partes do tempo
não.2
Todavia, na segunda edição, Kant irá enfatizar o fato de ser possível representar todas as relações de
tempo em termos de relações espaciais, externas, por intermédio de uma linha contínua infinita.
Ewing3 inicia seu comentário à Estética Transcendental perguntando o que Kant quer dizer
quando afirma que espaço e tempo são intuições a priori. Para Ewing, assim como para Paton4, a
expressão intuição a priori parece levar a uma contradição, pois, se, de acordo com Kant, uma
intuição é sempre sensível, como pode ser dada antes de uma percepção? O problema, segundo
Ewing, parece estar relacionado com o uso que Kant faz do termo a priori, pois é possível distinguir
—ainda que não separar— ao menos quatro sentidos para o uso, muitas vezes inconsistente, que
Kant faz desta expressão. Sucintamente, poderíamos dizer, conforme Ewing, que a priori pode
significar: (i) necessidade lógica (nos juízos); (ii) inderivabilidade de sensações particulares; (iii) o
que é pressuposto em toda nossa experiência; (iv) aquilo que é fornecido <contributed> por nós
mesmos5. Se espaço e tempo são a priori em algum dos três primeiros sentidos, eles têm de ser a
priori no quarto sentido, que se seguiria do primeiro. Pois, de acordo com Ewing, Kant afirma que
''se espaço e tempo não são provenientes das sensações, não existe outra alternativa senão a de que
eles sejam fornecidos por nós mesmos''6. Conforme Ewing, Kant só pode explicar o fato de que
espaço e tempo são pressupostos em toda nossa experiência pressupondo que eles são assim
fornecidos. Desse modo, espaço e tempo
são sensíveis e ainda a priori porque eles não são derivados de sensações particulares mas da
constituição geral de nossa natureza na medida em que somos adaptados a receber sensações.
Eles são elementos da nossa experiência sensível, que se devem a nós mesmos e não às coisas
em si agindo sobre nós.7

uma simples sombra. É por esta razão que na Estética Transcendental o espaço é mais proeminente que o tempo''. Paton,
I, p. 129.
1
Porém, em B 520, nós lemos que o tempo ' 'não pode sr a determinação de qualquer coisa em si mesma''.
2
Ibid., p. 121.
3
Ewing, A.C. , A short commentary on Kant's Critique of Pure Reason, published in London, 1938, reprint edition
1987, USA.
4
Paton, I, p. 122.
5
Ewing, pp. 29-30.
6
Ewing salienta a sua opção pela expressão '' ''fornecido por nós mesmos'' no lugar de ''fornecidos pela nossa mente''
porque a última frase sugere que eles sejam operação <work> do pensamento, visto que Kant insiste que eles têm, ao
contrário, que ser atribuídos à nossa natureza como seres sensíveis <sentient> e não como pensantes <thinkers>''.Ibid.,
p. 30.
7
Ibid., loc.cit.
95
Porém, é importante observar que esta explicação do a priori com relação ao espaço e ao tempo
implica que nós só podemos ter conhecimento a priori de aparências (fenômenos) e não da
realidade (coisas em si).1
Conforme Ewing, para Kant, além de formas da nossa sensibilidade, espaço e tempo são
também eles próprios intuições. Nós temos um tipo de representação de espaço e tempo como um
todo contínuo, e sempre que percebemos algo, este algo está situado espaço-temporalmente. Ewing,
reportando-se aos quatro sentidos da expressão a priori na Estética Transcendental, observa que as
passagens que afirmam a doutrina do caráter intuitivo do espaço e do tempo
devem ser interpretadas como implicando a aprioridade do espaço e do tempo em um quinto
sentido como significando que nossa apreensão deles precede temporalmente nossa apreensão
de quaisquer objetos no espaço e no tempo.2
Frente a esse modo de considerar espaço e tempo, pode ser formulada a seguinte pergunta:
do fato de que espaço e tempo constituem a forma da nossa sensibilidade, e não são derivados de
nenhuma sensação particular, se segue que tenhamos intuições do espaço e do tempo
temporalmente antes que possamos perceber qualquer objeto neles? Esta pergunta revela um
problema acerca do sentido de a priori, que, se for mal entendido pode comprometer a interpretação
da posição kantiana.
O modo como a pergunta se encontra formulada implica que sempre que percebemos um
objeto
nós também geramos intuições do espaço e do tempo e situamos os objetos em algum lugar
deste espaço e tempo, que seriam portanto anteriores às intuições particulares somente num
sentido lógico e não num sentido temporal. 3
Considerados assim, espaço e tempo seriam inatos (como Kant sustenta na Dissertatio), à
medida em que constituíssem nosso aparato perceptivo, i.e. à medida em que fossem inerentes ao
nosso modo de perceber os fenômenos, e não como sendo algo existente desde o início de nossa
vida. De acordo com Ewing, o primeiro sentido parece ter sido aquele no qual Kant os concebeu já
na própria Dissertatio, e que foi posteriormente incorporado à KrV4. Porém, muitas vezes ele parece
tomá-los de maneira confusa, no segundo sentido, incorrendo no grave erro de os considerar, aos
moldes das idéias inatas criticadas por Locke. Quanto a esta possível confusão, Ewing diz que

1
Ver abaixo a interpretação de Körner da doutrina kantiana do espaço e do tempo, a que Ewing alude aqui e que é
comentada com mais detalhes por Paton e Allison.
2
Ewing, p. 31. Strawson interpreta em dois sentidos a expressão 'a priori': (1) a interpretação rígida; e (2) a
interpretação idealista transcendental. De acordo com a primeira, ''um conceito ou característica (elemento) poderá
denominar-se a priori se for um elemento estrutural essencial em qualquer concepção da experiência que nós possamos
tornar inteligível. Na segunda interpretação [...], denominar a priori a um elemento [é] pretender que sua presença como
um traço da experiência [seja] totalmente atribuível à natureza de nossa constituição cognoscitiva e [que não é], em
absoluto, à natureza daquelas coisas, como são em si, que afetam essa constituição para produzir a experiência''.
Strawson, p. 61.
3
Ewing, , p. 31.
4
Strawson é contra a tese de que espaço e tempo sejam inatos. A discussão sobre as origens das faculdades sempre será
um campo estéril de discussão, pois todas as capacidades tais como pensar, reconhecer, classificar, etc. são adquiridas,
porém, a aquisição de tais faculdades pressupõe a capacidade para adquiri-las. De acordo com Strawson, ''Kant não teria
interesse algum em uma tese que mantivesse que as idéias de espaço e tempo estivessem ''em nós anteriormente à
experiência'' e que não levasse consigo a tese de que o espaço e o tempo mesmos estão em nós antes da experiência.
Mutatis mutandis, ele mesmo mais tarde faz uma indicação paralela de forma explícita ao rechaçar uma sugestão
paralela referente às categorias, os elementos a priori da experiência que se supõe são aportados pelo entendimento''.
Strawson, p. 62. Na Dissertatio, II, § 4, Kant menciona que as formas puras da intuição sensível são ''leis ínsitas (inatas)
da mente'', não, porém, que elas próprias sejam inatas.
96
Kant foi de certo modo cuidadoso no seu uso dos termos e nunca pretendeu afirmar mais do
que a prioridade lógica quando ele disse ''antes'', ou talvez somente que eles fossem antes de
qualquer experiência particular que nós pudéssemos querer nomear. 1
De acordo com Ewing, é importante salientar, ainda, que, do fato de que espaço e tempo,
enquanto formas a priori de nossa sensibilidade, sejam determinações de nossa natureza sensível e
não da realidade em si, não se segue também que a configuração dos fenômenos particulares de
objetos dados em nossa percepção seja, por isso, determinada por nós. Conforme Ewing, o fato de
os fenômenos de objetos particulares que percebemos terem para nós uma configuração e uma
duração depende de nós, i.e. do modo como nosso aparato perceptivo é constituído, porém,
''provavelmente, o que a configuração é depende da coisa em si mesma, como no caso análogo das
leis causais''. 2
Em outros termos, as diferenças que percebemos espaço-temporalmente nos objetos não
derivam de nosso modo de os perceber, mesmo que percebamos todos do mesmo modo, i.e. através
da nossa forma perceptiva espaço-temporal. Portanto, aquilo que a configuração dos objetos que
percebemos, tal como os percebemos, é depende tanto da nossa maneira de intuí-los, i.e. espaço-
temporalmente, como de ''algumas características não espaço-temporais das coisas em si mesmas,
que, todavia, podem somente aparecer para nós como espaciais''. 3
De acordo com Ewing, a exposição metafísica do conceito de espaço, na Estética
Transcendental, apresenta quatro argumentos acerca do espaço: dois para provar que o espaço é a
priori e dois para provar que ele é uma intuição 4. Vejamos, agora, como estes se articulam.

1. Sobre o caráter a priori do espaço e do tempo


Segundo Kant, a exposição metafísica de um conceito deve apresentar a representação clara daquilo
que lhe pertence enquanto este é dado a priori. Seguindo, aqui, a análise que Allison faz da
exposição metafísica do conceito de espaço na KrV, chamarei aos dois argumentos da exposição
metafísica em favor da aprioridade da representação do espaço na mente humana, respectivamente,
de argumento da pressuposição e da necessidade.
Para facilitar a referência ao texto de Kant em nossa análise, citarei, na íntegra, as passagens
da exposição metafísica da Segunda Edição (B) e da Primeira [A], nas quais são expostos estes
argumentos.

1
E ''dizer que temos intuições deles não é, todavia, equivalente a dizer que nós temos imagens deles, o que seria
absurdo, mas somente que nós somos imediatamente conscientes deles como existentes individuais''. Ewing, p. 32.
(Sobre a noção kantiana de imagem, ver acima, Parte 1, cap. II, a seção sobre a imaginação).
2
Ibid., p. 33.
3
Ibid., loc.cit.. Ewing alude aqui à imagem de Körner, comentada por Paton e por Allison, de acordo com a qual, se
tivéssemos nascido com lentes azuis <blue spectacles>, tudo o que víssemos seria azul, i.e. todos os fenômenos de
objetos particulares dados à nossa intuição sensível constituída pelas lentes azuis, porém, o azul <blueness> do que
víssemos fenomenicamente não poderia ser de modo algum atribuído àquilo que víssemos como azul, i.e. à coisa em si
da qual só teríamos o fenômeno em azul. Segundo esta interpretação, de acordo com Allison, ''se considera que a
pretensão kantiana de que espaço e tempo são formas da sensibilidade humana significa que a mente impõe, de alguma
maneira, uma forma espaço-temporal à experiência, da mesma maneira que as lentes de cor impõem sua própria cor a
tudo quanto se percebe mediante elas (com a grande diferença de que as formas da sensibilidade não podem ser
retiradas)''. Allison, p. 188. Conforme Paton, podemos notar ''incidentalmente que embora o que é azul <blueness> das
coisas seria imposto por nossas lentes, (1) nós não deveríamos ver, antes de tudo, as coisas como não-azuis, e portanto
vê-las como azuis; e (2) as diferenças nas configurações do azul seriam devidas, não às nossas lentes, mas às coisas''.
Paton, I, VIII, § 2, nota 1, p. 166. De acordo com Allison, o ''problema com este argumento é simplesmente que
funciona para as lentes de cor, mas não para as formas kantianas da sensibilidade''. Pois, a ''cor é uma propriedade que
pode pertencer perfeitamente às lentes ou aos objetos percebidos mediante elas. Em contraste, uma forma kantiana da
sensibilidade é [...] uma forma que só pertence aos objetos em virtude de nosso modo peculiar ou maneira de
representá-los''. Allison, ibid., loc.cit..
4
Ewing, p. 33.
97
a. O argumento da pressuposição
Conforme Kant, em B 38:
O espaço não é um conceito empírico abstraído de experiências externas. Pois a representação
de espaço já tem que estar subjacente <schon zum Grunde liegen>1 para certas sensações se
referirem a algo fora de mim <auf etwas außer mich> (i.e. a algo num lugar do espaço diverso
daquele em que me encontro <in einem andern Orte des Raumes, als darin ich mich
befinde>), e igualmente para eu poder representá-las como fora de mim e uma ao lado da
outra e por conseguinte não simplesmente como diferentes mas como situadas em lugares
diferentes. Logo, a representação do espaço não pode ser tomada emprestada, mediante a
experiência, das relações do fenômeno externo, mas esta própria experiência externa é
primeiramente possível só mediante referida representação.
De acordo com o argumento desta passagem, a representação do espaço seria uma
representação subjacente às nossas representações de coisas exteriores a nós e diferentes entre si,
que não poderia de modo algum ser concebida por abstração da nossa experiência externa como um
conceito derivado de características ou relações de fenômenos de objetos externos a nós, pois isto,
segundo Ewing, envolveria um ''círculo vicioso''. 2
O espaço tem de ser dado de uma maneira independente daquilo que percebemos (o
fenômeno) como externo a nós, pois aquilo que percebemos como externo já é percebido segundo
relações espaciais. Nesse sentido, a representação de fenômenos de coisas coexistentes pressupõe a
representação da noção de espaço como um todo. Ou seja, o espaço é uma representação não-
discursiva, que é condição para representações de fenômenos de coisas externas a nós e diferentes
de nós, locadas em lugares diferentes do nosso; e, enquanto tal, é uma representação que está na
origem de nossas representações de fenômenos externos, i.e. é uma representação subjacente às
nossas representações de fenômenos externos. Por isso, a sua representação é pressuposta em
quaisquer representações que tenhamos de fenômenos de objetos externos a nós.
O mesmo vale para o tempo, no argumento correspondente à exposição metafísica de seu
conceito, em B 46:
O tempo não é um conceito empírico abstraído de qualquer experiência. Com efeito, a
simultaneidade [no sentido externo] ou a sucessão [no sentido interno] nem sequer se
apresentaria à percepção se a representação do tempo não estivesse subjacente a priori 3.
Somente a pressupondo <Voraussetzung> pode-se representar que algo seja num e mesmo
tempo (simultâneo) ou em tempos diferentes (sucessivo).
A representação de coisas simultâneas e sucessivas pressupõe, portanto, a representação do tempo. 4
Porém, do fato de serem pressupostas não se segue que as representações do espaço e do
tempo tenham de ser a priori e meramente subjetivas, como sustenta Kant, pois a representação do
espaço, no qual se dá a representação de coisas coexistentes uma ao lado da outra, uma atrás da

1
Literalmente: estar na base de, estar na origem; portanto, (sub)jazer.
2
Ewing, p. 34.
3
''[...] das Zugleichsein oder Aufeinanderfolgen würde selbst nicht in die Wahrnehmung konnen, wenn die Vorstellung
der Zeit nicht a priori zum Grunde läge''.
4
Considere a passagem referente ao argumento de Kant em favor da aprioridade do tempo no § 14 da Dissertatio: ''A
idéia de tempo não nasce dos sentidos, mas é por eles suposta. Com efeito, as coisas que são dadas nos sentidos, quer
sejam simultâneas quer sejam sucessivas, não podem ser representadas a não ser mediante a idéia de tempo; e a
sucessão não engendra o conceito de tempo, mas apela para ele. É por isso que a noção de tempo é pessimamente
definida [referindo-se a Locke] como sendo a série dos atuais existentes uns após os outros, como se ela fosse adquirida
por meio da experiência. Com efeito, não entendo o que significa a expressão após a não ser já em virtude do conceito
prévio de tempo. Efetivamente, sucedem-se uma após as outras aquelas coisas que existem em tempos diferentes, do
mesmo modo que são simultâneas as que existem num mesmo tempo''.
98
outra, etc., no sentido externo da mente, pode ser uma parte de um espaço existente fora dela e
subsistente independentemente de nós. E esta é uma hipótese sustentável pelos newtonianos. (O
mesmo vale para o caso da representação do tempo, no qual se dá a representação de coisas
sucessivas no sentido interno da mente, que, enquanto tal, pode ser uma parte de um tempo
existente fora dela e subsistente independentemente de nós). Todavia, conforme Allison, as
objeções postas ao argumento de Kant acerca do caráter a priori do espaço desconsideram o que é
principal nele, a saber, que a representação do espaço funciona na experiência humana como um
meio ou veículo para a representação de objetos distintos do eu e distintos uns dos outros. 1

b. O argumento da necessidade
Conforme Kant, em B 38-39:
O espaço é uma representação a priori necessária que subjaz a todas as intuições externas <die
allen äußeren Anschauungen zum Grunde>. Jamais é possível fazer-se uma representação de
que não há espaço algum, embora se possa muito bem pensar que não se encontre objeto
algum nele. Ele é, portanto, considerado a condição de possibilidade dos fenômenos e não
uma determinação dependente destes; é uma representação a priori que subjaz
necessariamente aos fenômenos externos.
O espaço é uma representação a priori que independe da representação de fenômenos externos a
nós, mas que subjaz a estes. Nesse sentido, ele é uma representação logicamente a priori e
necessária à representação de fenômenos externos a nós, i.e. é necessário pressupor que sua
representação seja dada na mente a priori, pois só mediante ela é possível que nos representemos
fenômenos de objetos externos a nós. De acordo com Allison, o argumento da necessidade consiste
em considerar a representação do espaço como uma representação necessária que fundamenta toda
a intuição externa. Nos termos de Allison, a representação a priori do espaço, enquanto condição de
possibilidade da representação de fenômenos externos, é uma condição epistêmica do nosso
conhecimento sensível.
A força destes argumentos, segundo Allison, reside na afirmação de que não podemos nos
representar a ausência do espaço nem do tempo, embora possamos representá-los como vazios de
objetos, pela eliminação gradativa de suas propriedades 2. Allison sugere que Kant teria em mente o
seguinte argumento ao formular tais posições:
se x pode existir (ou ser representado) sem A, B e C e suas relações mútuas, mas A, B e C não
podem existir (ou ser representados) sem x, então x deve ser considerado como uma condição
de possibilidade de A, B e C e suas relações mútuas.3
Se aplicarmos esta ''fórmula'' tanto ao espaço como ao tempo, temos, conforme Kant: que o espaço
é
considerado a condição de possibilidade dos fenômenos e não uma determinação dependente
destes.4
e o tempo,
uma condição a priori de todo fenômeno em geral, e na verdade a condição imediata dos
fenômenos internos [...] e por isso mesmo também mediatamente a dos fenômenos externos. 5

1
Ver argumento de Paton, v. 1, p. 111, acerca de bloss verschieden como diversidade qualitativa e não quantitativa.
Para Allison, o argumento de Kant acerca da aprioridade do espaço não pode ser reduzido ao argumento leibniziano,
uma vez que aquele pretende ser uma refutação da ''teoria da natureza puramente relacional do espaço''. Allison, p. 147.
2
Allison, p. 149 e Ewing, p. 34.
3
Allison, id., loc.cit.
4
B 39.
5
B 46.
99
Conforme Allison, Kant não afirma que espaço e tempo sejam logicamente necessários, mas
epistemicamente necessários1, pois, logicamente, tanto nosso sentido externo como nosso sentido
interno poderiam ter outra forma de representação sensível. Conforme Allison, a ''doutrina kantiana
de que podemos pensar, ainda que não conhecer, as coisas como são em si mesmas exige admitir
esta possibilidade''2. De acordo com Paton, para Kant (na primeira parte da Exposição Metafísica),
''espaço e tempo não são 'determinações' logicamente dependentes das aparências; eles são as
condições da possibilidade das aparências e são logicamente anteriores a elas''. 3
A tese de Kant de que não é possível eliminarmos o tempo dos fenômenos porque ele é a
condição de sua representação, como vimos, é uma tese epistêmica e não psicológica. Conforme
Allison, nós vemos o aspecto epistêmico da representação do tempo no argumento em favor da
necessidade desta representação, na exposição metafísica do conceito de tempo, em B 46:
O tempo é uma representação necessária subjacente a todas as intuições 4. Com respeito aos
fenômenos em geral, não se pode suprimir o próprio tempo, não obstante se possa do tempo
muito bem eliminar os fenômenos. O tempo é, portanto, dado a priori. Só nele é possível toda
a realidade dos fenômenos. Os fenômenos podem cair todos fora, mas o próprio tempo (como
condição universal da sua possibilidade) não pode ser supresso.
O tempo é também uma representação necessária a priori. Porém, a representação do tempo
fundamenta não só a correspondente intuição interna, ela é a representação a priori e necessária da
possibilidade de representação de todos os fenômenos.
Allison salienta que, por não podermos pensar os fenômenos sem ser no espaço e no tempo,
não se segue daí que eles sejam a priori. A força do argumento da aprioridade das representações do
espaço e do tempo reside na operação contrária, ou seja, o argumento da aprioridade se encerra na
seguinte afirmação: não podemos pensar os fenômenos sem espaço e tempo, mas podemos pensar
espaço e tempo vazios de fenômenos. Esta é a prova, segundo Allison, de que espaço e tempo são
condições de possibilidade dos fenômenos, e de que são, portanto, a priori5. Ou seja, mesmo sem
objetos (fenômenos), nós podemos ter um conteúdo no pensamento. Conforme Allison, este ''é o
significado da pretensão de que podemos pensar espaço e tempo vazios de objetos''. 6

1
E é importante salientar, de acordo com Paton, que ''a necessidade da qual Kant fala é uma necessidade em relação à
experiência humana. É também freqüentemente esquecido que Kant está consistentemente protestando contra uma
metafísica que exige para o exercício da razão pura determinar as características necessárias da realidade última. Ele
está contente com a humilde tarefa de determinar o elemento de necessidade dentro da experiência humana enquanto
tal. Paton, I, p. 179.
2
Allison, p. 149.
3
Paton, I, p. 112.
4
''Die Zeit ist eine notwendige Vorstellung, die allen Anschauungen zum Grunde liegt''.
5
Allison, p. 151.
6
Allison, p. 153. Ewing reconstrói, muito superficialmente, o argumento de uma objeção bastante comum em relação
ao argumento que Allison apresenta, segundo o qual nós podemos representar um espaço e um tempo vazios. A objeção
consiste, conforme Ewing, em sustentar que este argumento só procede se nós pudermos ''representar o espaço vazio
num sentido no qual nós não podemos representar a ausência do espaço, i.e. ''pensar'' em ''pensar o espaço vazio de
objetos'' tem de ser entendido no mesmo sentido de ''representar'' em ''representar a ausência do espaço'', mas na verdade
nós podemos somente interpretar ''representar'' ou num sentido que nos permita representar ambos ou em um sentido
que não nos permita representar nenhum. Se ''representar'' significa ''pensar'' nós podemos representar ambos; se ele
significa ''fazer uma imagem mental de'' nós não podemos representar nenhum. Mas Kant certamente sustentava que
nós seríamos conscientes do espaço vazio de uma outra maneira, sem ser pela concepção (pensando), e ainda sustentava
que não poderíamos ter nenhuma imagem dele, e portanto ele evitaria o dilema, desde que nós realmente tenhamos esta
consciência peculiar do espaço e que ele não tenha que ser explicado como uma abstração ou generalização. Porque, se
isto é assim, existe um sentido em que nós podemos dizer que estamos sempre conscientes do espaço mesmo quando
todos os objetos espaciais particulares são retirados, mesmo que nós não sejamos conscientes neste sentido de alguma
coisa que não seja espacial ou temporal. Não parece obviamente inverdade dizer que alguma vaga consciência do
espaço como indefinidamente extenso ao nosso redor está sempre presente em nossa experiência e que, embora não haja
auto-contradição em supor que possa existir um mundo que seja não-espacial, existe ainda um sentido no qual o espaço
não pode ser eliminado do pensamento <thought away>, embora nenhum objeto condicione nosso pensamento no
100
As representações do espaço e do tempo possuem um conteúdo próprio ainda quando nelas
nada é representado. Este aspecto, além de salientar o caráter a priori destas representações, prepara
o caminho para Kant sustentar que são intuições puras1.
O argumento de acerca da aprioridade das representações do espaço e do tempo,
confrontado com o de Leibniz, mostra que este poderia satisfazer a primeira condição, mas não a
segunda, i.e. de acordo com a concepção de Leibniz acerca do espaço e do tempo nós, igualmente,
não poderíamos pensar objetos sem o espaço e o tempo, porém, como estes, para Leibniz, são
derivados da ordenação das relações de contigüidade, simultaneidade e sucessividade dos objetos
entre si, nós não poderíamos pensá-los sem os objetos. Há, porém um sentido, conforme Allison,
em que Leibniz concebe o espaço como um ente existente independente das coisas e de suas
relações. Mas o espaço concebido desse modo é, para Leibniz, como vimos, uma coisa imaginária.2
Conforme Paton, o argumento da aprioridade, nas 'Exposições', pode ser colocado assim:
Conhecimento a priori —conhecimento, i.e. que como necessário e universal é independente
da experiência— não pode ser derivado da experiência. Ele pode ser todavia derivado do
conhecimento da mente. Isto significa, para Kant, que o que quer que seja conhecido a priori
não pode ser dado pela coisa conhecida, mas tem de ser subvencionado pela própria mente. Se
nós aceitamos a visão que o espaço e tempo são conhecidos a priori, nós devemos todavia
sustentar que espaço e tempo são devidos à natureza da mente, neste caso à nossa
sensibilidade. 3
Em que medida então a representação do espaço pode ser considerada como sendo a priori,
e, portanto, como condição necessária para a percepção das coisas como distintas de nós e entre si?
Exatamente porque é uma condição epistêmica, conforme Allison, e, enquanto tal, é a condição de
possibilidade das representações externas a nós. Do mesmo modo o tempo: não podemos pensar ou
representar nada na mente senão supondo sua duração, i.e. sua temporalidade. O que significa dizer
que a representação de qualquer outra coisa no sentido interno da mente pressupõe a representação
do tempo.

2. Sobre o caráter intuitivo do espaço e do tempo


Os dois argumentos em favor do caráter intuitivo da representação do espaço se encontram em B 39
(item 4 da exposição metafísica, e, em A 25, item 4) e em B 40 (item 5, em A). Vejamos as duas
passagens em que se encontram.
O espaço não é um conceito discursivo ou, como se diz, um conceito universal de relações das
coisas em geral, mas sim uma intuição pura. Em primeiro lugar, só se pode representar um

sentido em que o espaço condiciona, mesmo que na verdade nós possamos ser sempre conscientes de nosso corpo e
causalmente condicionados por ele''. Ewing, pp. 34-35.
1
Allison, quando se refere, na nota 5 de seu trabalho, à posição de Ted Humprey no artigo The Historical and
Conceptual Relations between Kant's Metaphysics of Space and Philosophy of Geometry, Journal of Philosophy, 11
(1973), 503-504, salienta que ''a pretensão de que não podemos deixar de considerar espaço e tempo deve interpretar-se
de tal maneira que admita o pensamento das coisas como são em si'', já que, para Kant, é possível termos conhecimento
delas. Nós não podemos, é verdade, segundo a doutrina do idealismo transcendental, conhecer empiricamente uma coisa
tal como ela é, mas, no pensamento, mediante as categorias esquematizadas, podemos construir esquemas na
imaginação de objetos para os quais não há correspondência na experiência, utilizando-nos, para isso, dos conceitos
puros do entendimento e das formas puras da intuição sensível, e destes objetos, que, conforme Kant, seriam idéias da
razão, analogias dos objetos da experiência, podemos fazer juízos sintéticos a priori, e, portanto, chegar a ampliar nosso
conhecimento. Conforme Kant, ''a idéia da razão é um analogon de um esquema de sensibilidade, mas com a diferença
de que a aplicação dos conceitos do entendimento ao esquema da razão não é do mesmo modo um conhecimento do
próprio objeto (como no caso da aplicação das categorias aos seus esquemas sensíveis), mas só uma regra ou um
princípio da unidade sistemática de todo o uso do entendimento''. (B 693).
2
Ver B 57.
3
Paton, I, p. 131.
101
espaço uno <einen einigen Raum>, e quando se fala de muitos espaços entende-se com isso
apenas partes de um e mesmo espaço único. Essas partes não podem tampouco preceder o
espaço uno, que tudo compreende, com se fossem suas partes componentes (a partir das quais
seria possível sua composição), mas só ser pensadas nele <in ihm>. O espaço é
essencialmente uno; o múltiplo nele, por conseguinte também o conceito universal de espaços
em geral, repousa apenas sobre limitações. Disso se segue que, no tocante ao espaço, uma
intuição a priori (não empírica) subjaz a todos os conceitos do mesmo <allen Begriffen von
demselben zum Grunde liegt>. Assim todos os princípios geométricos, p.ex., que num
triângulo a soma de dois lados é maior do que o terceiro lado, jamais são derivados dos
conceitos universais linha e triângulo, mas sim da intuição, e isso a priori com certeza
apodítica. (B 39)
Sobre esta necessidade a priori fundam-se a certeza apodítica de todos os princípios
geométricos e a possibilidade da sua construção a priori. Efetivamente, se esta representação
do espaço fosse um conceito adquirido a posteriori, e haurido na experiência externa geral, os
princípios de determinação matemática outra coisa não seriam que percepções. Possuiriam,
assim, toda a contingência da percepção e não seria necessário que entre dois pontos houvesse
apenas uma só linha reta; a experiência é que nos ensinaria que sempre assim acontece. O que
deriva da experiência possui apenas uma generalidade relativa, i.e. por indução. Dever-se-ia,
portanto, unicamente dizer que, segundo as observações feitas até agora, não se descobriu
espaço algum com mais de três dimensões. [A 25]
O espaço é representado como uma magnitude infinita dada. Ora, é verdade que se precisa
pensar cada conceito como uma representação contida num número infinito de diversas
representações possíveis (como sua característica comum), portanto contendo sob si <unter
sich> tais representações; mas nenhum conceito como tal pode ser pensado como se
contivesse em si <in sich> um número infinito de representações. Não obstante, o espaço é
pensado desse modo (pois todas as partes do espaço são simultâneas ao infinito). A
representação originária do espaço é, portanto, intuição a priori e não conceito. (B 39-40)
Allison divide o argumento de Kant em favor do caráter intuitivo da representação do espaço em
duas partes: na primeira parte, em B, a tese central é da singularidade do espaço, pois, conforme
Kant, nós ''só podemos ter a representação de um espaço único'' 1; e na segunda parte, em B, a tese
central é a de que o espaço é omnicompreensivo —um todo que inclui tudo—, i.e. ele ''é
representado como uma magnitude infinita dada''2. Chamarei aqui os argumentos de Kant em favor
do caráter intuitivo da representação do espaço, respectivamente, de argumento do caráter singular
e argumento do caráter omnicompreensivo da representação do espaço.

a. O argumento do caráter singular


Conforme Kant, em B 39: ''O espaço não é um conceito discursivo ou, como se diz, um conceito
universal de relações das coisas em geral, mas sim uma intuição pura''. Por quê? Porque, para Kant,
de acordo com Ewing, nós só possuiríamos duas operações: o pensar e o sentir, e, portanto, o
espaço é um produto do entendimento ou da sensibilidade 3. Se ele fosse um produto do
entendimento, seria um conceito. Mas um conceito de espaço pressupõe, como vimos, a percepção
de coisas exteriores dadas espacialmente fora de nós, de modo que não poderia ser a priori mas
somente empírico. (E mesmo a própria atividade do pensamento, na elaboração de conceitos,

1
B 39.
2
Allison, p. 157.
3
Evidentemente, Ewing não leva em conta aqui a imaginação, enquanto sub-capacidade da mente, e suas operações.
102
pressupõe a representação do tempo 1). Só resta, então, que ele seja uma intuição, ou, nos termos de
Ewing, ''uma entidade individual sensível''. 2
Conforme Allison, para que Kant possa provar que as representações do espaço e do tempo
são intuições ele terá de mostrar que e porque o espaço e o tempo não são conceitos. Portanto, é a
partir da natureza da distinção entre conceito e intuição que Kant poderá provar a natureza intuitiva
da representação de espaço e de tempo3. Quando se trata de um conceito, as partes que o
compõem são logicamente anteriores ao todo. E como a nossa idéia tanto de um espaço como de
um tempo que incluam tudo <all-inclusive> são logicamente anteriores às nossas intuições de
diferentes espaços e tempos4, conforme Paton, esta idéia, no argumento da unidade do espaço e do
tempo, tem de ser uma intuição e não um conceito 5. Porque, para Kant, ''nós só podemos representar
um espaço uno, e quando se fala de muitos espaços entende-se com isso apenas partes de um e
mesmo espaço único''6. Nos termos de Allison, as partes do espaço não são meramente elementos ''a
partir dos quais a mente forma a idéia de um espaço único, as partes do espaço são dadas somente
em e mediante o espaço único que elas pressupõem''. 7
Uma intuição não é um conceito, de acordo com Paton, ''porque ela envolve uma relação
cognitiva imediata a um objeto individual'' 8. E como só existe um espaço e um tempo, tais
representações têm de ser intuições 9. Por exemplo, no caso do tempo, conforme Paton, o motivo
pelo qual a idéia de um tempo que inclua tudo não pode ser um conceito, em A 32, é ''porque as
partes de um conceito são logicamente anteriores ao próprio conceito''; e, em B 48, ''porque
conceitos contêm somente representações parciais''10. Daí se segue que, tanto espaço como tempo
não podem ser conceitos porque seus conceitos seriam derivados das respectivas representações de
espaço e tempo a priori na mente. E, de acordo com Allison, a tese de Kant da aprioridade da
representação do espaço está baseada exatamente no fato de que a intuição precede ''todos os
conceitos de espaço'', pois, na Estética Transcendental, Kant não nega que a conceitualização —que
é uma função do entendimento— intervenha ao elaborarmos a representação do espaço, porém, ''a
possibilidade de tal conceitualização repousa sobre um conteúdo dado, a saber, uma intuição''. 11

1
Cf. Kant, no § 14 da Dissertatio, ''está tão afastada a hipótese de que alguém, pelo poder da razão, alguma vez venha a
deduzir o conceito de tempo a partir de um outro, que o próprio princípio de contradição o supõe e a ele se subordina
como sua condição. Com efeito A e não A só repugnam se pensados simultaneamente (i.e. ao mesmo tempo) a
propósito de um mesmo sujeito, mas pensados um após o outro (em tempos diferentes), podem convir ao mesmo sujeito.
2
Ewing, p. 36. Veremos a seguir que, para Kant, porém, tanto as representações a priori do espaço e do tempo,
enquanto intuições e enquanto a priori, não podem ser sensíveis senão puras.
3
Conforme Paton, quando Kant fala que espaço e tempo não são conceitos, mas intuições, devemos ter em mente que
ele está se referindo a eles ''como coisas individuais intuídas e não meramente a caracteres comuns concebidos''. Pois,
conforme Paton, o espaço e o tempo ''(coisas individuais) devem ser distinguidos da espacialidade e temporalidade (os
caracteres comuns de todos os espaços e tempos)''. Paton, I, p. 95.
4
Cf. Strawson, para Kant a ''classe de itens relacionados espacialmente com cada um dos outros em um sistema
compreensivo, é apenas a classe de corpos físicos públicos, concebidos por nós como objetos de nossa percepção,
distintos de nossas percepções deles e dos estados de consciência em geral. É o espaço ocupado por tais corpos que ele
[Kant] afirma como unitário e único''. Strawson, p. 57.
5
Paton, I, p. 118.
6
B 39.
7
Allison, p. 156.
8
Paton, I, p. 105.
9
Cf. Kant, em B 347, aos ''conceitos de todo, muitos e uno, opõem-se aquele que suprime tudo, i.e. nenhuma coisa; e
assim o objeto de um conceito para o qual não se pode obter absolutamente nenhuma intuição correspondente é = nada,
i.e. um conceito sem objeto''.
10
Paton, I, pp. 118-119. Para Paton, o ponto principal da doutrina de Kant ''é que nossas idéias de espaço e tempo não
são conceitos de características ou relações comuns a diferentes objetos sensíveis tal com a 'exterioridade' ou a
'sucessividade' [como para Leibniz]. Uma coisa pode ser externa a outra somente se ambas estiverem no espaço. Ao
conhecer o espaço e o tempo nós não estamos abstraindo, ou extraindo, as qualidades relacionais comuns [...] de coisas:
nós estamos deixando fora ou eliminando objetos espaciais e temporais''. Paton, I, pp. 124-125.
11
Allison, pp. 156-157. Cf. Ewing, ''Kant na verdade várias vezes se refere ao espaço e ao tempo como ''conceitos''.
Tem-se sugerido que ele está usando aqui a palavra em um sentido amplo para cobrir todas as representações ou ao
menos todas aquelas das quais nós somos claramente conscientes, mas me parece inteiramente possível que o que era
103
b. O argumento do caráter omnicompreensivo
Considere agora as passagens de B, em que se encontram os dois argumentos em favor do caráter
intuitivo do espaço e do tempo. De acordo com Allison, como vimos acima, na primeira parte deste
argumento, em B 39, Kant parece contrastar a relação que há entre o espaço e espaços particulares
que o comporiam com a relação lógica entre um conceito e sua extensão; na segunda parte, em B
39-40, ele contrasta isto com a relação entre um conceito e sua intensão. Conforme Allison, Kant
mostra aqui os ''diferentes sentidos em que os conceitos e intuições implicam infinitude''. 1
Considerado sob sua forma lógica, todo conceito possui uma extensão e uma intensão. De
acordo com o texto da Lógica,
[t]odo conceito, enquanto conceito parcial, está contido na representação das coisas; enquanto
[...] nota característica, estas coisas estão contidas sob ele. Sob o primeiro aspecto, todo
conceito tem um conteúdo [intensão]; sob o segundo, uma extensão.
O conteúdo [intensão] e a extensão de um conceito estão numa relação inversa um com o
outro. Pois, quanto mais um conceito contenha sob si, tanto [menos] ele contém em si, e vice-
versa. 2
A primeira parte do argumento de B 39-40 se refere à extensão peculiar ao conceito, e diz que
temos de ''pensar cada conceito como uma representação contida num número infinito de diversas
representações possíveis (como sua característica comum), portanto contendo sob si tais
representações''; enquanto a segunda parte se refere à sua intensão (conteúdo), e diz que ''nenhum
conceito como tal pode ser pensado como se contivesse em si um número infinito de
representações'', caso contrário, o conceito em questão teria uma intensão (conteúdo) infinita, o que
é logicamente impossível3. E Kant acrescenta, a seguir, que, apesar disso, ''o espaço é pensado desse
modo'', i.e. como se contivesse nele um número infinito de partes (representadas como nele), pois,
devido ao modo como o concebemos, ''todas as partes do espaço são simultâneas ao infinito''. Um
conceito, por definição, não pode satisfazer a esta condição. A intuição, no entanto, ''pode ter nela
um número infinito de partes''. Daí, Kant poder concluir que a ''representação originária do espaço
é, portanto, intuição a priori e não conceito''.
A tese central que Kant apresenta neste segundo argumento, como vimos, é: ''O espaço é
representado como uma magnitude infinita dada''. Há, porém, dificuldades em torno deste
argumento, que é considerado mais complicado do que o primeiro pelos comentadores.
Considerarei aqui duas delas: a primeira é colocada por Ewing e diz respeito à nossa dificuldade em
concebermos como podemos intuir um espaço infinito; e a segunda é colocada por Allison, e se
refere ao ''dada'' afirmado na tese, pois como podemos conceber espaço e tempo como dados se
estes não são objetos de intuição? A resposta a esta pergunta, conforme Allison, é fundamental para
compreendermos o argumento de Kant em favor da idealidade transcendental do espaço e do tempo.

c. Como podemos conceber o espaço como infinito?


De acordo com Ewing, a resposta a esta pergunta pode ser encontrada numa observação na versão
da primeira edição [A] do segundo argumento, onde lemos, no lugar de 4 da edição B, o seguinte:

uma intuição como originalmente dada possa ser dito sem contradição tornar-se um conceito como um objeto do
pensamento reflexivo. Sua base é intuição e não, como no caso das categorias, pensamento, e todo seu conteúdo e
natureza é derivado da intuição, mesmo que quando subseqüentemente abstraída na reflexão não é ininteligível que ela
deva ser descrita com um conceito. Pode ser, e enfaticamente é na Estética, o objeto de pensamento conceitual, mas sua
origem repousa na intuição''. Ewing, p. 36.
1
Allison, p. 157.
2
Lógica, Ak 95/A 147-148.
3
Cf. Allison, ''um conceito não pode implicar infinitude com respeito à sua intensão, porque um conceito infinito [...]
não pode ser compreendido pela mente humana''. Allison, p. 158.
104
O espaço é representado como uma grandeza infinita. Um conceito geral de espaço [...] não
pode determinar nada com respeito à grandeza. [Não fosse a ilimitação <Grenzenlosigkeit> no
progresso <Fortgange> da intuição <Anschauung>], nenhum conceito de relação conteria em
si um princípio da sua infinidade. [A 25]
Conforme Ewing e Allison1, a nossa noção de infinitude do espaço, segundo o argumento de
Kant, advém da ''ilimitação no progresso da intuição''. O que isto quer dizer? Isto equivale a afirmar
que nossa noção de espaço como infinito é derivada de nossa percepção presente do espaço
imaginado como em expansão. O que não equivale a dizer que intuímos o espaço infinito, mas
apenas que nossa noção do espaço como infinito deriva ''das características do espaço como
sensivelmente intuído e imaginado''2. Esta é, porém, uma justificação psicológica. De acordo com
Ewing, nós concebemos o espaço como infinito porque não podemos imaginar nem perceber um
fim para o espaço. E ainda que pudéssemos estabelecer um tal limite, i.e. mesmo que pudéssemos
limitá-lo, isto exigiria um outro espaço fora deste no qual este se encontraria limitado. E isto nos
levaria a um regresso. A validade do argumento de Kant se estabelece por contraste, uma vez que
não podemos nem efetivar nem imaginar um limite absoluto para o espaço. O que equivale a dizer
que a força deste argumento, assim como o da aprioridade, parece residir nos limites de nossas
capacidades cognitivas. Porém, se o espaço como grandeza infinita pode ser provado pela nossa
incapacidade de percebê-lo ou imaginá-lo como limitado, ele tem de ser algo cuja natureza só pode
ser conhecida originalmente mediante uma representação de natureza não-conceitual, e, portanto,
intuitiva. Nesse sentido, o espaço, como uma grandeza infinita, é uma intuição a priori.

d. Como podemos considerar espaço e tempo como dados?


Para esclarecer este ponto, Allison propõe a exploração da distinção que Kant faz em nota à
segunda edição da Dedução Transcendental, B 160-161, entre forma da intuição (intuição pura
indeterminada) e intuição formal (intuição pura determinada). Segundo Allison, esta distinção, não
explorada por Kant na Estética Transcendental, esclarece pontos difusos da sua argumentação, uma
vez que, em B 34, por exemplo, ele considera intuição pura e forma pura da sensibilidade como
equivalentes.3
Na nota lemos o seguinte:
Representado como objeto (como realmente se requer na Geometria), o espaço contém mais
do que a simples forma da intuição, a saber, a compreensão do dado múltiplo segundo a
forma da sensibilidade numa representação intuitiva, de modo que a forma da intuição dá
somente o múltiplo, mas a intuição formal a unidade da representação. [...]
Se levarmos a sério esta distinção, será necessário distinguir, em vez de dois, três sentidos
da expressão geral intuição pura, pois além dos dois sentidos expressos, devemos distinguir dois
sentidos em que o primeiro se apresenta, pois a forma da intuição pode significar: : (i) a forma de
intuir4 o que é intuído como fenômeno, ou (ii) a forma do que é intuído como fenômeno. No
primeiro sentido, ela ''pode ser caracterizada como uma capacidade inata ou disposição de intuir as
coisas de uma certa maneira, i.e. espacial e temporalmente''. 5

1
Ewing, p. 37 e Allison, p. 159.
2
Ewing, p. 37.
3
Allison, p. 163.
4
Paton chama a atenção à ambigüidade do termo intuição em Kant. Conforme Paton, '' 'Minha intuição' pode significar
'meu intuir' <my intuing> ou 'o que eu intuo'.''. Paton, I, p. 94.
5
Allison, p. 163. Na interpretação de Paton, a ''forma da intuição é ou contém as relações (ou sistemas de relações) nas
quais as aparências se encontram. O conteúdo da intuição pura é estas mesmas relações, abstraídas das aparências
sensíveis, e tomadas juntas como formando um todo individual. Espaço e tempo são simultaneamente as formas das
aparências e o conteúdo da intuição pura. Na verdade, uma forma universal e necessária, se é conhecida por intuição,
deve ser conhecida por intuição pura; e a intuição pura, se tiver de ter um conteúdo, deve encontrar seu conteúdo na
forma pura e não na matéria sensível''. Paton, I, p. 104.
105
Conforme Allison, a noção forma de intuir parece não ter lugar na afirmação de Kant de que
o espaço é representado como uma ''grandeza infinita dada'', uma vez que não teria sentido supor
que ''uma mera capacidade de intuir coisas possa conter em si mesma uma diversidade'', mas, pelo
contrário, esta capacidade mesma é a ''fonte última ou fundamento da diversidade contida na
intuição real''. 1
A noção de forma do intuído, conforme Allison, é necessária para ''caracterizar o espaço
dado, infinito, singular e omnicompreensivo'' que abarca a multiplicidade de espaços. De acordo
com Allison, este espaço, objeto da Estética Transcendental, pelo fato de não ser intuído como
objeto em si, não pode ser descrito em termos de uma ''mera capacidade de intuir'' nem como uma
intuição formal2. Este espaço, conforme Allison, é uma forma ou estrutura ''pré-intuída que
condiciona e que é pressuposta pela representação atual das regiões ou configurações do espaço'' 3.
Este espaço, conforme Allison, é o espaço transcendentalmente ideal de Kant, para o qual este,
enquanto forma, resulta meramente do modo subjetivo da sensibilidade humana. 4
Uma intuição formal, conforme Allison, deve ser concebida como uma ''representação
intuitiva determinada de certas características ''formais'', ou universais e necessárias, dos objetos
enquanto intuídos''. E, enquanto determinada, uma intuição formal é constituída tanto pela forma
pura da intuição como pelo conceito que a determina como objeto para o pensamento. Nesse
sentido, conforme Allison, uma intuição espacial formal, objeto da Geometria, ''é a representação
intuitiva da forma ou propriedades essenciais da figura correspondente a um conceito geométrico
dado''. E o caráter sintético da Geometria, mesmo sendo uma ciência a priori, segundo Kant, advém
do fato de estar submetida não só às leis lógicas do pensamento, mas principalmente à natureza
dada (no sentido acima definido) do ''espaço como forma do intuído''. 5
Paton destaca ainda uma outra dificuldade residual que poderíamos identificar nos
argumentos de Kant em favor do caráter intuitivo das representações de espaço e tempo. Esta
dificuldade incide sobre a sua afirmação de que espaço e tempo são intuições puras. Ou seja, ao que
parece, uma coisa é considerar espaço e tempo como representações a priori, e outra, considerá-los
como intuições. Porém, quando se junta estas duas características das referidas representações numa
mesma afirmação, nós podemos perguntar: em que medida uma intuição é pura ou a priori?
Conforme Paton, uma intuição é pura (tal como vimos acima, na primeira parte deste trabalho),
quando ''ela elimina o elemento empírico da sensação, e contém somente as relações necessárias e
universais nas quais as coisas sensíveis aparecem''. 6
Por fim, os argumentos de Kant acerca do espaço e do tempo, não meramente como
intuições, mas como intuições puras ou a priori, podem ser assim resumidos, conforme Strawson:
as noções de um único espaço ilimitado ou infinito e de um único tempo ilimitado ou infinito
são em certo sentido anteriores a qualquer noção que possamos ter de espaços ou tempos
particulares ou limitados. Não podemos chegar à idéia de um espaço infinito
omnicompreensivo fazendo-a (compondo-a), por assim dizer, a partir de espaços constituintes
previamente dados; pelo contrário, só temos a idéia dos espaços particulares ao incluir a
limitação no único e infinito espaço omnicompreensivo. 7

1
Allison. p. 164.
2
Ibid., loc.cit.
3
Ver Prolegomena, § 38, e objeção à intuitividade do espaço, apresentada por Ewing em nota de rodapé redigida acima.
4
Allison, p. 165.
5
Ibid., loc.cit.
6
Paton, I., p. 105. De acordo com Paton, nossa ''idéia de tempo deve ser uma intuição, mesmo que suas partes sejam
tempos individuais; e na verdade ela deve ser uma intuição pura, porque somente assim ela pode ser uma idéia de um
tempo omnicompreensivo cujas partes (tempos individuais) são conhecidas somente como limitações do todo. Esta
intuição de um tempo omnicompreensivo não é somente anterior às nossas intuições de diferentes tempos: ela é também
anterior aos nossos conceitos de temporalidade, de nossos conceitos ou marcas comuns de diferentes tempos. Como
Kant disse, ela 'subjaz' a nossos conceitos''. Paton, I, p. 119.
7
Strawson, p. 59.
106
3. Sobre o caráter ideal do espaço e do tempo
Conforme Allison, nas Conclusões a partir dos conceitos acima, na Estética Transcendental,
encontramos o argumento de Kant acerca da idealidade transcendental do espaço e do tempo. É aqui
que Kant realiza a passagem do caráter representacional do espaço e do tempo para o estatuto
ontológico dessas representações1. Inicialmente, Kant apresenta duas conclusões acerca do caráter
ideal da representação do espaço, e, logo a seguir, no restante do texto, sustenta que o espaço é
empiricamente real e transcendentalmente ideal.
A primeira conclusão se expressa em termos negativos e sustenta simplesmente que o
espaço não é uma propriedade que pertença às coisas em si nem às suas relações recíprocas (tema
da chamada alternativa negligenciada). Fora das condições subjetivas da intuição, o espaço não
representa coisa alguma.
Na Exposição transcendental do conceito de espaço, ao responder à pergunta sobre como
podemos ter na mente uma intuição externa que antecede toda a intuição de fenômenos como
objetos externos, Kant nos encaminha a uma primeira consideração acerca da condição ideal da
representação do espaço. De acordo com Kant, uma intuição pode encontrar-se antes de qualquer
intuição de fenômenos como objetos externos somente na medida em que esta intuição consiste
numa disposição formal do sujeito para receber na mente representações como externas, uma
condição sujetiva, portanto, i.e. somente enquanto ela se apresenta ''como forma do sentido externo
em geral''. 2
A seguir, em B 42, na segunda conclusão, esta afirmação assume a seguinte formulação:
O espaço não é senão a forma de todos os fenômenos dos sentidos externos, i.e. a condição
subjetiva da sensibilidade unicamente sob a qual nos é possível intuição externa 3. Ora, visto
que a receptividade do sujeito ser afetado por objetos necessariamente precede toda intuição
destes objetos, compreende-se como a forma de todos os fenômenos pode ser dada na mente
antes de todas as percepções efetivas <wirklichen Wahrnehmungen>, por conseguinte a
priori4, e como ela, enquanto uma intuição pura na qual todos os objetos têm que ser
determinados, pode conter, antes de toda a experiência, princípios das relações dos mesmos.
Da maneira como Kant apresenta esta conclusão, ser a forma de todos os fenômenos
externos é equivalente a ser a condição subjetiva da sensibilidade humana. De acordo com Allison,
esta equivalência nos permite ver o mais importante na argumentação de Kant: que o conteúdo da
representação de espaço, aquilo que mentalmente representamos nele, ''é somente uma condição
subjetiva da sensibilidade humana''. 5
O que é fundamental na tese da idealidade transcendental da representação do espaço (assim
como do tempo) é que os predicados espaciais são aplicáveis somente ''às coisas na medida em que
nos aparecem'', i.e. aos fenômenos. A representação do espaço não significa nada se a aplicarmos às
coisas ''quando ponderadas em si mesmas pela razão'', sem levarmos em conta a nossa ''condição
subjetiva unicamente sob a qual podemos obter intuição externa, ou seja, o modo como podemos
ser afetados por objetos''6. Conforme Paton, nós podemos expressar a idealidade transcendental do
espaço e do tempo de Kant, dizendo que espaço e tempo, enquanto formas de nossa sensibilidade,

1
Allison, p. 171.
2
B 41.
3
''die subjektive Bedingung der Sinnlichkeit, unter der allein uns äußere Anschauung möglich ist''.
4
''wie die Form aller Erscheinungen vor allen wirklichen Wahrnehmungen, mithin a priori im Gemüte gegeben sein
könne''.
5
Allison, p. 173.
6
B 43-44.
107
não dizem respeito ''à natureza das coisas como aparecem aos sentidos, mas à natureza da
sensibilidade humana à qual estas coisas aparecem''. 1
Se, no lugar de considerarmos o espaço e tempo como condições epistêmicas da experiência
sensível, nós os considerarmos como ''algo subjacente às coisas em si mesmas'', eles não são coisa
alguma para nós, i.e. não têm significado algum. Isto é, em essência, o que sustenta a tese da
idealidade transcendental do espaço e do tempo.
Em correspondência, a tese da realidade empírica sustenta que estes predicados são
aplicáveis somente aos fenômenos externos, o que equivale a afirmar a ''realidade <Realität> (i.e. a
validade objetiva) do espaço no tocante a tudo o que pode nos ocorrer externamente como objeto''. 2
Conforme Allison, a partir da análise da função da representação na experiência se depreende a
realidade empírica do espaço 3. (O mesmo argumento vale para o tempo, no tocante aos objetos de
nossos sentidos internos e externos).
Por fim, conforme Kant,
o conceito transcendental dos fenômenos no espaço é uma advertência crítica de que em geral
nada intuído no espaço é uma coisa em si e de que o espaço tampouco é uma forma das coisas
que lhes é própria quiçá em si mesmas, mas sim que os objetos em si de modo algum nos são
conhecidos e que os por nós denominados objetos externos não passam de meras
representações da nossa sensibilidade, cuja forma é o espaço e cujo verdadeiro correlatum
contudo, i.e. a coisa em si mesma, não é nem pode ser conhecida com a mesma e pela qual
também jamais se pergunta na experiência. 4
As conclusões de Kant acerca da idealidade transcendental da representação do espaço (bem como
a do tempo) não permitem ver como ele passa da análise de que a representação do espaço é
aplicável aos objetos somente na medida em que estes podem ser experimentados por nós, i.e.
enquanto fenômenos, para a afirmação da idealidade transcendental do espaço. Kant não explicita o
nexo entre estas afirmações, de modo a que possamos tornar plausível o seu argumento em favor da
idealidade transcendental. Esta dificuldade, segundo Allison, permitiu a muitos comentadores crer,
por um lado, que o verdadeiro argumento de Kant se baseia no ''caráter sintético a priori da
geometria'' 5, e, por outro, os que acreditam num argumento independente do apelo à geometria, que
se basearia somente na ''mera conexão geral entre aprioridade e subjetividade'' 6. Porém, estas

1
Paton, I, p. 131.
2
B 44.
3
Allison, p. 174.
4
B 45.
5
Allison destaca que a prova da idealidade, diferentemente de muitos comentadores, deve prescindir da possibilidade
da Geometria. Para Paton, por exemplo, o argumento de Kant na Exposição transcendental pode ser visto de dois
modos: como oferecendo ''uma justificação da geometria pela sua teoria do espaço e do tempo'', e como justificando
''sua teoria do espaço e do tempo na base de que ela é consistente somente com a validade da geometria''. O primeiro
argumento é sintético —da condição ao condicionado—; o segundo é o analítico —do condicionado à condição. De
acordo com Paton, ''tomado por si própria a Exposição Transcendental pertence ao segundo tipo; mas tomada em
conjunto com a Exposição Metafísica ela pode caber em um argumento do primeiro tipo. A Exposição Metafísica
estabelece a teoria do espaço de Kant pelo exame da idéia do próprio espaço: a Exposição Transcendental mostra que a
teoria desta maneira independentemente estabelecida é somente capaz de dar conta da possibilidade da ciência
geométrica'' Paton, I, p. 130. De acordo com Strawson, ''qualificar o espaço e o tempo como a priori no sentido ou
sentidos do subjetivismo transcendental (em qualquer sentido que implique que estejam ''em nós anteriormente à
experiência''), tanto se se opta por declarar que o espaço e o tempo são intuições a priori como se considera que são
formas a priori da intuição (empírica), não descansa em um fundamento independente do argumento da geometria ou
em seu paralelo superficial no caso do tempo''. Strawson, p. 61. Ver nota sobre este ponto na apresentação do texto das
contrapartidas incongruentes, acima.
6
Cf. Paton, ''se nós podemos determinar a natureza do espaço e do tempo independentemente da experiência e assim
legislar para todos os objetos possíveis da experiência, isto pode somente ser (de acordo com Kant) porque espaço e
tempo são devidos à natureza da nossa sensibilidade. Nenhuma outra explicação pode dar conta do fato de que nosso
conhecimento abstrato do espaço e do tempo possui certeza apodítica e também se aplica a todos os objetos da
experiência. A teoria de Kant não é meramente possível ou provável. Ela exige a absoluta certeza''. Paton, I, p. 167.
108
propostas de argumentação deixam muito a desejar: não encontram um lugar para a exposição do
caráter intuitivo da representação do espaço no argumento da idealidade, e não explicam como a ''a
origem subjetiva da representação do espaço pode justificar a afirmação da idealidade
transcendental do espaço em si, i.e. a não aplicabilidade dos predicados espaciais às coisas em si''.
De acordo com Allison, a prova da idealidade transcendental do espaço e do tempo deve apresentar
um argumento capaz de articular as teses em favor do caráter a priori e intuitivo destas
representações, que resulte numa prova satisfatória acerca do estatuto ontológico das mesmas.1
Allison destaca um argumento de Kant nos Prolegomena, § 8, no qual ele tenta explicar
como podemos ter uma intuição pura, i.e. a priori, antes de um objeto da experiência, ou seja, como
podemos ter uma intuição antes de uma intuição. Nos termos de Kant,
como é possível ter uma intuição a priori? A intuição é uma representação que depende
imediatamente da presença do objeto. Por conseguinte, parece impossível ter lugar sem se
referir a um objeto anterior ou atualmente presente e, portanto, não poderia ser uma intuição.
Sem dúvida, há conceitos tais que podemos muito bem produzir a priori, alguns deles,
sobretudo os que contêm unicamente o pensamento de um objeto em geral, sem que nos
encontremos numa relação imediata com o objeto, por exemplo, o conceito de quantidade, de
causa, etc.; mas, até estes precisam, no entanto, para terem valor e significado, de um certo
uso in concreto, i.e. de uma aplicação a alguma intuição, através da qual nos seja dado um
objeto. Não obstante, como é que a intuição do objeto pode preceder o próprio objeto?
Allison ressalta, porém, que o modo como Kant formula o problema acerca da possibilidade
de uma intuição a priori nesta passagem pode gerar equívocos, uma vez que não permite ver qual é
o ponto que ele pretende destacar. Conforme Allison, ele se defronta aqui com o problema de
determinar a possibilidade de um conteúdo representacional a priori, e não com a atividade de intuir
a priori. Em termos mais precisos, ''como é possível uma intuição cujo conteúdo é não empírico, i.e.
não derivado de uma afecção produzida por um objeto?'' Para Kant, se nossa sensibilidade nos
permitisse ter acesso às coisas em si mesmas, i.e. se nós intuíssemos as coisas como são em si
mesmas, e não como elas nos são dadas, como fenômenos, isto seria impossível. Pois, conforme
Kant, se ''a nossa intuição fosse de natureza a representar coisas como elas são em si, não teria lugar
nenhuma intuição a priori, mas seria sempre empírica''2. E neste caso, supondo que não
representássemos senão fenômenos, mas, ao contrário, coisas em si mesmas, nem mesmo ''uma
intuição empírica seria impossível'' 3. Conforme Allison, Kant está envolvido aqui com o mesmo
problema que o ocupou na primeira edição da KrV, i.e. com a relação entre realismo transcendental
e idealismo empírico.
De acordo com Allison,
a impossibilidade de explicar a intuição (percepção) em termos de um contato direto entre a
mente e o independentemente real (como tentou fazê-lo a teoria escolástica) conduz,
inevitavelmente, a postular entidades representativas (idéias) como objetos imediatos de
conhecimento.4
Pois, conforme Kant, como podemos compreender que uma intuição de uma coisa presente aos
nossos sentidos possa ser conhecida tal como é em si, ''visto que as suas propriedades não podem
entrar na minha faculdade representativa''5. Como é possível, então, uma intuição a priori? Para
Kant,
só de uma maneira é possível que a minha intuição seja anterior à [efetividade
<Wirklichkeit>] do objeto e se produza como conhecimento a priori, quando nada mais

1
Allison, p. 174.
2
Kant, Prolegomena, § 9.
3
Allison, p. 175.
4
Allison, pp. 175-176.
5
Kant, Prolegomena, id.
109
contém além da forma da sensibilidade que, no meu sujeito, precede todas as impressões
[efetivas <wirklichen>] pelas quais eu sou afetado pelos objetos.
Conforme Allison, esta conclusão de Kant se refere à segunda conclusão do argumento da
KrV, e afirma ''que uma intuição a priori é possível, se e somente se, contém ou presenta à mente
uma forma de sua própria sensibilidade''. Conforme Allison, Kant aqui não faz referência explícita
nem ao espaço nem ao tempo. Seu argumento apresenta uma formulação, que, no entanto, ajuda-nos
a esclarecer os pontos difusos das conclusões dos seus argumentos na KrV. Allison sugere que há
duas partes no argumento implícito nesta passagem dos Prolegomena: a que sustenta que uma
intuição a priori é possível se contém ou apresenta à mente uma forma da sensibilidade; e a que
sustenta que esta intuição é possível somente se faz isto1. Para facilitar a referência às partes deste
argumento, sigo aqui no meu exame dos passos da argumentação de Kant, a mesma denominação
que Allison dá para ambas, a saber: a parte ''se'' e a parte ''somente se'' do argumento.

a. A parte ''se'' do argumento


Como vimos, a primeira parte do argumento afirma que uma intuição a priori é possível se contém
ou apresenta à mente uma forma da sensibilidade. Porém, conforme Allison, aqui se encontra um
problema, uma vez que Kant não utiliza a expressão forma da sensibilidade de maneira unívoca, e,
conforme Paton2, tende a considerar como sinônimas expressões como forma do fenômeno, forma
da intuição, forma da sensibilidade e, conforme Allison, mesmo intuição pura3. Conforme Allison,
esta aparente indiferenciação das expressões, por parte de Kant, termina por jogar numa questão de
definição dos termos a validade da conclusão de Kant de que uma intuição pura, para tal, tenha que
apresentar meramente a forma do fenômeno. Para evitar isso, convém, conforme Allison, levar em
conta algumas destas definições.
Conforme Allison, considerado no sentido ontologicamente neutro, fenômeno diz respeito
apenas aos objetos que nos são dados efetivamente na experiência, diferentemente dos objetos que
são simplesmente concebidos. A forma, por sua vez, é a condição ou determinação daquilo que é
por ela condicionado ou determinado, i.e. a matéria4. Nesse sentido, Kant define a forma do
fenômeno como ''aquilo que faz com que o múltiplo do fenômeno possa ser ordenado segundo
certas relações''.5
Se considerarmos a afirmação de Kant na segunda conclusão: ''O espaço não é senão a
forma de todos os fenômenos dos sentidos externos''. Quando Kant diz aqui que o ''espaço é a forma
de todos os fenômenos'', o que ele significa com a expressão ''forma do fenômeno''; a forma do
intuído ou a forma do intuir? Com base na exposição anterior sobre o caráter a priori da
representação do espaço, quando examinamos a distinção entre forma do intuído e forma do intuir,
podemos entender aqui forma do fenômeno como a forma de intuir, i.e. enquanto uma capacidade

1
Allison, p. 176.
2
Cf. Paton, a ''expressão 'forma da sensibilidade' tem uma certa ambigüidade. Ela pode ser aplicada, não ao espaço e ao
tempo, mas à característica de nossa sensibilidade em virtude da qual nós podemos sentir coisas somente em relações
temporais e espaciais. Esta característica existe realmente em todo ser humano mesmo antes da experiência iniciar''.
Quando usada neste sentido, conforme Paton, a forma da sensibilidade é a ''fonte do espaço e do tempo, mas ela não
pode ser comparada com o próprio espaço e tempo''. Paton, I, p. 102-103.
3
Porém, esta suposta equivalência entre as expressões propostas por Allison e Paton, que seriam devidas a uma não
delimitação precisa do campo semântico de cada uma delas, por parte de Kant, parece não ser totalmente aplicável.
Pois, ao observarmos com atenção a passagem final de B 36, vemos que Kant distingue, pelo menos, entre intuição
pura e forma do fenômeno. Nos termos de Kant: ''separaremos tudo o que pertence à sensação, a fim de que nada mais
reste senão a intuição pura e a mera forma dos fenômenos <reine Anschauung und die bloße Form der Erscheinungen>,
a única coisa que a sensibilidade pode fornecer a priori''. A indicação da intenção de Kant em distinguí-las pode ser
vista na estrutura da sentença, explicitamente, pelo uso da conjunção ''e'', que denota claramente que Kant as está
considerando individualmente.
4
Kant, KrV, B 322-325.
5
B 34.
110
pertencente ao nosso aparato perceptivo, por meio do qual intuímos as coisas de um modo espacial
(e temporal). Em outros termos, conforme Allison,
uma forma do fenômeno é uma característica do fenômeno em virtude da qual seus elementos
se consideram ordenados ou relacionados entre si na experiência. O primeiro argumento do
caráter a priori sustenta que a representação de espaço funciona como uma forma neste
sentido.1
A expressão forma da intuição, como temos visto, pode ter dois sentidos: a forma do intuído
ou a forma do intuir: no primeiro sentido esta expressão é ontologicamente neutra, uma vez que se
refere à forma dos fenômenos, no segundo sentido, porém, por conter uma referência explícita à
mente, é epistemicamente considerada, uma vez que é ''uma característica da mente,
especificamente de sua faculdade receptiva, e não uma característica das coisas como estas seriam
independentemente de sua relação à mente''. 2
Do mesmo modo, forma da sensibilidade pode ser interpretada em dois sentidos, porém,
contrariamente à primeira expressão, ambos se referem à mente. No primeiro sentido, ela pode
designar ''uma forma de intuir sensível'', também chamada por Kant de forma da receptividade; no
segundo, ela pode designar uma ''forma dos objetos enquanto intuídos sensivelmente''. Conforme
Allison, quando se afirma que uma forma dos fenômenos ou dos objetos intuídos é uma forma da
sensibilidade no segundo sentido, i.e. dos objetos enquanto intuídos sensivelmente, está se
afirmando igualmente que é uma ''forma que pertence a estes objetos em virtude da constituição
subjetiva da mente'', i.e. devido à sua forma de intuir sensível3. Este é o resultado, segundo Allison,
das Conclusões da KrV. Em suma, de acordo com Allison, a parte se do argumento dos
Prolegomena sustenta que
se o conteúdo de uma intuição dada é uma forma ou característica formal dos objetos da
intuição (o intuído) que pertence a estes objetos unicamente em virtude da constituição da
mente (sua forma de intuir), então a intuição deve ser a priori. Por isso, o conteúdo de tal
intuição seria, em primeiro lugar, universal e necessário (ao menos para todos os sujeitos
equipados com a mesma forma de intuir), e, em segundo lugar, sua fonte não residiria nos
objetos em si nem em algum dado sensível (sensações) produzido pela afecção da mente por
tais objetos. Pela segunda razão o conteúdo seria, além disso ''puro'', i.e. independente da
sensação.4

b. A parte ''somente se'' do argumento


Allison levanta a questão de se o argumento da Exposição metafísica do conceito de espaço elimina
efetivamente a concepção newtoniana do espaço. Para Allison, este argumento mostra a
inadequação da concepção relacional de Leibniz, mas, com relação à concepção de Newton do
espaço absoluto, não acontece o mesmo. Conforme Allison, para Paton, este argumento de Kant é
compatível com a concepção newtoniana, e a crítica de Kant à sua concepção se estabelece sobre
''outros fundamentos estritamente metafísicos'', como o da impossibilidade de conceber espaço e

1
Allison, p. 177.
2
Allison, p. 178.
3
Conforme Paton, nós ''podemos na verdade dizer que qualquer ser humano tem, segundo a teoria de Kant, mesmo
antes da experiência ter iniciado, uma tal natureza sensível que todos os objetos devem aparecer para ele no espaço e no
tempo''. Porém, a expressão 'forma da sensibilidade' é ambígua, pois pode ser usada tanto para a forma das aparências,
como pertencendo à natureza da nossa sensibilidade, e também à natureza da sensibilidade à qual pertence esta forma, e
por isso, ''nós podemos dizer que a forma da sensibilidade (no último sentido) precede toda a experiência. Mas mesmo
quando nós dissemos que a intuição pura deve anteceder a toda experiência, nós devemos tomar isto como significando
que ou que ela é logicamente anterior à experiência, uma condição da experiência e não uma generalização dela; ou que
nós podemos ter esta intuição pura antes de qualquer experiência particular que nos interesse nomear''. Paton, I, p. 137.
4
Allison, p. 178.
111
tempo como ''coisas reais''.(Veremos que Kant nega que espaço e tempo possam ser propriedades de
coisas em si). 1
Para Allison, se os argumentos de Kant acerca do caráter a priori e intuitivo das
representações de espaço e de tempo se limitam a refutar a concepção relacional de Leibniz e se são
compatíveis com a concepção de Newton, então a esperança de podermos encontrar na Estética
Transcendental uma ''prova direta'' do idealismo transcendental deve ser abandonada. Pois ela
consistiria em
demonstrar que somente se consideramos que espaço e tempo são formas da sensibilidade
humana podemos explicar as características [relevantes] de nossas representações de espaço e
tempo, a saber, que espaço e tempo são intuições a priori. 2
Boa parte da Exposição Metafísica é compatível com a concepção newtoniana do espaço. E
este fato parece colocar em risco todo o argumento da Estética Transcendental. Porém, Allison
salienta que devemos ter em consideração que a questão essencial que Kant se coloca na Exposição
Metafísica concerne à ''função do espaço como forma ou condição da experiência humana''. 3
Conforme Allison, a concepção de Kant acerca do espaço como condição de possibilidade
dos objetos e a sua tese de que podemos pensar o espaço vazio de objetos sem, no entanto,
podermos pensá-los sem o espaço, mesmo compatível com a posição acerca do espaço como uma
coisa real e uma condição ontológica das coisas em si mesmas, não seria aceita por Newton. Mesmo
Kant, como observa Allison, em sua fase pré-crítica, utilizou-se, como vimos, do exemplo das
contrapartidas congruentes (que aparece em outros contextos para ilustrar a intuitividade e a
aprioridade do espaço) para refutar a concepção de Leibniz e sustentar a sua posição acerca da
realidade do espaço absoluto, que era, nesse momento, notadamente newtoniana. Tal constatação
nos levaria a supor que ''o status epistemológico que Kant confere à representação do espaço seja
compatível com o status ontológico que Newton confere ao próprio espaço''. 4
Com base nisso, Allison formula duas perguntas que poderiam servir como duas provas ao
argumento da Exposição metafísica sobre a concepção kantiana do espaço:
(i) alguma teoria do espaço afirma que ele possa funcionar dessa maneira, i.e. como condição
epistêmica do conhecimento sensível de objetos? e, em caso afirmativo, (ii) ela pode explicar como
o espaço pode funcionar desta maneira?
Colocadas perante estas provas, a teoria de Leibniz falha em ambas, a de Newton, porém,
somente na segunda, i.e. a concepção newtoniana falha em explicar em que medida o espaço (qua
representação) pode funcionar como condição epistêmica da experiência humana5. Por quê? De
acordo com Allison, há três hipóteses para explicar por que a teoria newtoniana do espaço é incapaz
de explicar por que o espaço não pode ser uma condição de possibilidade da experiência humana,
ou, conforme Allison, porque ela não é compatível com a consideração do espaço como ''uma
condição ontológica e além disso epistêmica'':

1
Paton, I, p. 174, formula a pergunta que desemboca no problema da chamada alternativa negligenciada, que consiste
em afirmar que Kant teria deixado sem exame a possibilidade de o espaço e o tempo serem propriedades das coisas em
si mesmas. Na próxima seção, este problema será devidamente formulado e examinado mais de perto. Ver B 520.
2
Allison, p. 180.
3
Ibid., p. 181.
4
Allison chama a atenção para a posição ambígüa de Kant em relação à concepção newtoniana acerca do espaço em
várias passagens da KrV, como, por exemplo, em B 56-57, ao se referir aos leibnizianos (''teóricos metafísicos da
natureza'') e aos newtonianos (''investigadores matemáticos da natureza''), Kant diz que estes ''possuem a grande
vantagem de liberarem o campo dos fenômenos para as asserções matemáticas''. Allison, id., loc.cit.
5
Allison, p. 181.
112
(i) ou ''temos uma idéia inata do espaço, e entre esta idéia e o espaço existe uma harmonia ''pré-
estabelecida'' ''. (Segundo Allison, esta alternativa não é levada a sério por Kant, mesmo que, para o
caso das categorias, na segunda edição, ele chegue a considerar possível); 1
(ii) ou ''nossa idéia de espaço deriva da experiência destas ''coisas reais'' e representa uma
propriedade ou condição delas''. (Esta hipótese, igualmente à anterior, não é levada a sério por Kant,
principalmente porque, considerado assim, o espaço não pode servir de condição de possibilidade
da experiência sensível de coisas externas a nós, além de implicar uma contradição, como vimos
acima, fazer a condição de possibilidade dos objetos depender desta mesma experiência); 2
(iii) ou temos ''um conhecimento direto do espaço mesmo e que este possa funcionar com um uma
''condição'' da experiência no sentido de que proporciona uma estrutura fixa a respeito da qual
podemos nos orientar e distinguir o movimento real e aparente (relativo e absoluto) dos corpos''.
Mas Kant nega que espaço e tempo nos possam ser dados como tais objetos. Mesmo que a
posição de Newton também negue isto, ela concede ao espaço no sentido absoluto a função
epistêmica. Mas, para tanto, a concepção newtoniana tem de considerar o espaço como se fosse um
ente, um objeto, conforme Kant, eles ''precisam admitir dois não-entes eternos infinitos subsistentes
por si (espaço e tempo) que existem (mesmo sem serem algo real) somente para abarcar em si todo
o real''3. Conforme Allison, dessa necessária admissão ao que os newtonianos estão obrigados
surgem os absurdos metafísicos gerados pela concepção newtoniana do espaço e do tempo
absolutos, que, devido aos seus postulados realistas transcendentais, eles não podem reconhecer. 4
Allison observa, porém, que a argumentação de Kant contra a posição newtoniana em
nenhum momento recorre ''à concepção genética psicológica do a priori nem a nenhuma suposição
do caráter sintético a priori da geometria'', restringindo-se somente à função epistêmica da
representação do espaço na experiência humana'', estabelecida na Exposição metafísica.5
De acordo com Allison, se, quando Kant afirma que a representação do espaço é uma
intuição a priori, ele está efetivamente considerando esta representação como uma condição
epistêmica (condição de possibilidade) da experiência humana, então, em vez de se perguntar como
é possível ter uma intuição a priori, o que deve ser perguntado é, na verdade, ''como pode a
representação de espaço (ou tempo) desempenhar na experiência humana o papel fundacional que
se pretende na Exposição Metafísica?''. Para Allison, é isto o que de fato está em questão.
Sob esta perspectiva epistêmica, portanto, o argumento de Kant acerca da natureza da
representação do espaço se torna mais evidente. Como vimos, a representação do espaço pode
funcionar como uma condição de possibilidade da nossa experiência se, e somente se, o conteúdo
dessa representação é uma forma da sensibilidade humana. E, conforme Allison, ''uma vez
descartadas as alternativas leibniziana e newtoniana (interpretadas em sentido amplo), é difícil ver
sobre que outra base se poderia entender isto''6. Ou, conforme Kant, se das representações a priori
do espaço e do tempo
não se quiser fazer formas objetivas de todas as coisas, nada mais resta senão torná-las formas
subjetivas do nosso modo de intuição tanto externo quanto interno, o qual se chama sensível
por não ser originário, ou seja, um modo pelo qual é dada a própria existência do objeto da
intuição [...], mas depende da existência do objeto, por conseguinte só é possível pelo fato da
própria capacidade de representação do sujeito ser afetada por tal objeto. 7

1
Ibid., loc.cit.
2
Ibid., p. 182.
3
B 56.
4
Ibid., p. 183.
5
Ibid., p. 184.
6
Ibid., loc.cit. p. 184.
7
B 71-72.
113
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