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A HERMENÊUTICA DA REFORMA

Gerald Bray

Traduzido por Jurandy Bravo e revisado por Jonathan Silveira

O legado medieval

O fato de toda geração de pensadores ser moldada pela obra de seus predecessores e não
ser compreendida sem eles é lugar-comum. Os reformadores protestantes do século 16
não foram exceção à regra. Criados em uma igreja formatada por desenvolvimentos
intelectuais que remontavam há mais de mil anos, o efeito cumulativo dessa longa
tradição fica evidente em seus escritos. A influência mais antiga e persistente sobre eles
vinha da tradição monástica, que fizera da preservação da Bíblia uma de suas atividades
mais importantes. Monges copiavam os antigos manuscritos e os anotavam para uso
devocional. Liam as Escrituras sem parar e de maneira sistemática, de modo que no
decorrer de um ano ou dois, cobriam o texto inteiro. Seus pregadores expunham a Bíblia
basicamente como uma revelação de Cristo, mesmo quando sua presença no texto
estava longe de ser óbvia. Isso era um problema em especial no Antigo Testamento, do
qual se interpretava algumas partes em termos alegóricos a fim de revelar uma
dimensão cristológica com frequência difícil de encontrar. De acordo com os princípios
da alegoria, a Bíblia tinha vários níveis de significado. Como o ser humano, composto
de corpo, alma e espírito, a Bíblia tem os sentidos literal, moral e espiritual que lhes
correspondem. Além desses três havia um quarto sentido, conhecido como “anagógico”,
para descrever a vida dos bem-aventurados no céu.
Desses quatro sentidos, o literal era o mais óbvio e, se satisfatório, aceito do jeito
que se apresentava. A doutrina cristã se fundamentava sempre no sentido literal do texto
e era utilizada como um padrão segundo o qual se julgava a validade dos demais
sentidos. Lia-se a maior parte do Novo Testamento literalmente, como um relato preciso
da vida de Jesus e do início da igreja. Mas se o sentido literal de determinado texto
fosse obscuro ou inaceitável por algum motivo, os intérpretes recorriam a um dos níveis
de alegoria a fim de lhe dar sentido. Por exemplo, o salmo 137.9 diz: “Feliz aquele [...]
que pegar as suas crianças e esmagá-las contra as pedras” (NTLH). O salmista escrevia
sobre o exílio na Babilônia e expressava rancor contra a nação que destruíra Jerusalém e
levara o povo cativo. Todavia, mais tarde seus leitores, em especial os cristãos,
consideraram imoral essa explosão impetuosa. Como poderia alguém ser abençoado por
Deus matando crianças? A resposta para o problema foi dizer que o verso precisava ser
lido como uma alegoria moral. O contexto não era o conflito histórico entre Babilônia e
Israel, mas a batalha espiritual da alma contra o pecado e o mal. As crianças não deviam
ser entendidas como seres humanos, mas como as tentações para pecar que invadem a
alma. O cristão tem de lutar contra elas e condená-las à morte antes que se tornem
poderosas o suficiente para tomar o controle de sua vida. É um bom conselho pastoral,
mas há que se discutir se foi mesmo o que o salmista quis dizer.
De semelhante modo, os adeptos das alegorias argumentavam que a maior parte
das diversas referências do Antigo Testamento a Jerusalém e Sião pretendiam ser
entendidas de maneira espiritual ou anagógica. Inspiravam-se no salmo 125, que diz:

Os que confiam no SENHOR são como o monte Sião, que não pode ser abalado, mas
permanece para sempre. Como os montes em volta de Jerusalém, assim está o SENHOR
em volta do seu povo, desde agora e para sempre.

Não se negava o sentido literal do texto, mas ele era considerado basicamente
irrelevante. Ninguém na igreja medieval se importava com a localização geográfica da
Jerusalém terrena. Para eles interessava a proteção do Senhor, tanto nesta vida quanto
na eternidade. A cidade era uma imagem da presença de Deus no meio do seu povo, e
desse modo, os intérpretes monásticos conseguiam dar uma aplicação pastoral
significativa ao texto. Esse método de leitura da Bíblia alcança seu nível mais elevado
na interpretação do Cântico dos Cânticos, provavelmente o livro do Antigo Testamento
mais popular na idade média. O que parecia um poema erótico era lido como uma
alegoria de Cristo e sua noiva, entendida de várias formas como a alma do crente ou
como a igreja. Para dar ao menos um exemplo bastante conhecido, Bernardo de
Claraval (1080-1147) pregou 86 sermões sobre esse livro sem jamais passar do capítulo
3, verso 5. Chegou a dedicar oito sermões ao primeiro verso, que diz: “Beije-me ele
com os beijos da sua boca...”.
Isso nos parece incrível, mas quando entendemos como Bernardo lia o texto,
somos capazes de avaliar como ele conseguiu essa façanha. Para Bernardo, o homem
que fala nos Cânticos não era Salomão mas Cristo, o sobre-excelente filho de Davi. A
mulher a quem ele se dirige era o crente e o beijo, o sopro do Espírito Santo. Portanto,
Bernardo estava dizendo que Cristo derrama o Espírito sobre a igreja e seus membros,
fazendo de sua exposição um estudo da vida cristã. Nesse aspecto, ele tem sido muito
valorizado por gerações de cristãos, incluindo os reformadores, que o consideravam o
mais espiritual dos intérpretes medievais das Escrituras, citando-o com frequência como
inspiração para seus ensinamentos.
A partir de uma perspectiva hermenêutica, a interpretação alegórica pode ser
comparada à astrologia. A astrologia é uma combinação da ciência objetiva da
astronomia com algo mais subjetivo — ou a profecia, ou o que hoje chamamos de
aconselhamento pastoral. Gente que lê horóscopo não o faz com o intuito de se informar
sobre o movimento das estrelas, mas para obter orientação para a vida diária. De
semelhante modo, quem dava ouvidos a homens como Bernardo de Claraval desejava
instrução sobre a vida do Espírito, acreditando ser possível encontrá-la no texto bíblico.
O problema para esse pessoal era que o sentido literal do texto não tinha aplicação
prática em suas vidas. Que lhes importava a mulher que Salomão beijara tantos séculos
antes? Se aquilo era a Palavra de Deus, então ela tinha de lhes falar na situação presente,
e a interpretação alegórica era uma forma de assegurar isso.
Contudo, ao mesmo tempo que Bernardo de Claraval pregava seus sermões
alegóricos, um desdobramento muito diferente tinha lugar nos cursos de direito de
Bologna e Paris. Em Bologna, um monge chamado Graciano (fl. c. 1140) codificava o
cânon legal da igreja, sobre o qual repousava a autoridade e a jurisdição do papado. Em
Paris, Pedro Lombardo (1090-1160) criava uma teologia sistemática baseada nos
escritos dos pais da igreja, em especial de Agostinho. O trabalho de Graciano surgiu
como o Decretum, compondo o âmago do que mais tarde se desenvolveu na Corpus
iuris canonici, a enciclopédia básica de lei canônica que permaneceu em vigor na igreja
católica até 1917. Pedro Lombardo redigiu suas Sentenças em quatro livros, adotados
como material didático teológico padrão nas universidades e sobre os quais todo
professor certificado tinha de escrever uma dissertação de doutorado — incluindo
Tomás de Aquino e Martinho Lutero! Tanto para Graciano quanto para Pedro, o sentido
literal da Bíblia era de longe o mais importante. Graciano adaptou as leis do Antigo
Testamento às necessidades da igreja cristã, considerando o sacerdócio católico
equivalente ao judaico. Ambos eram separados da sociedade mais ampla. Em Israel, os
sacerdotes vinham da tribo de Levi, que não tinha terra própria. Na igreja, dos
sacerdotes se esperava o celibato, de modo que não tinham filhos capazes de herdar a
propriedade da igreja a eles confiada. O batismo equivalia à circuncisão e a ceia do
Senhor, à Páscoa judaica. Como os antigos israelitas pagavam um décimo de seus
rendimentos aos sacerdotes todos os anos, também se esperava que os cristãos fizessem
o mesmo para o sustento do ministério da igreja. Os reis cristãos eram comparados aos
reis de Israel — alguns bons, na maioria maus, mas todos escolhidos e ungidos por
Deus para reinar sobre seu povo. Rebelar-se contra eles era pecado.
Aconteceu então que, depois de 1200, duas forças concorrentes operavam na
igreja romana. A tradicional influência monástica recebeu novo fôlego com a criação de
novas ordens de monges, as quais deram o máximo de si para recuperar o espírito de
simplicidade que acreditavam ter caracterizado a igreja primitiva. As escolas
emergentes de direito e teologia se consolidaram em universidades, onde os estudantes
aprendiam os métodos de debate que caracterizariam a vida acadêmica por séculos.
Foram essas as pessoas que propuseram perguntas como “Adão tinha umbigo?” e
“Quantos anjos conseguem ficar de pé sobre a cabeça de um alfinete?”. Hoje rimos ao
quando ouvimos esse tipo de coisa, mas o método delas era sério. O debate sobre o
umbigo de Adão na verdade tinha a ver com criação versus evolução, uma discussão
que permanece viva até hoje. De semelhante modo, a pergunta sobre os anjos tinha a ver
fundamentalmente sobre o relacionamento entre espírito e matéria, o qual também
podemos entender. As formas mudaram, mas a substância permanece muito parecida
hoje como na época.
A tradição monástica conseguiu conciliar o sentido literal das Escrituras com os
diferentes níveis de interpretação alegórica porque não tentou aplicar o texto bíblico
fora do âmbito da devoção diária. Advogados e teólogos, no entanto, precisavam usar a
Bíblia na administração da igreja e na organização da sociedade, o que era muito mais
complicado. Ambos se voltavam para a Bíblia como a fonte máxima de suas doutrinas,
mas essa fonte era suplementada pelos decretos legais dos concílios eclesiásticos e do
papado, bem como pelos escritos teológicos dos pais da igreja. Era inevitável que os
estudiosos medievais descobrissem diferenças de opinião nesse material secundário, e
novas disputas surgiram. Se duas fontes discordassem, qual seria a mais importante?
Em teoria, a Bíblia era a autoridade suprema, mas ela não fazia menção a todos os
problemas que precisavam ser resolvidos. Por exemplo, nada dizia sobre a ordenação ao
sacerdócio, ou sobre o santo matrimônio. Com que idade um homem podia se tornar
padre, ou desposar uma mulher: Ele podia fazer as duas coisas ou tinha de optar por
uma ou outra?
Foi para resolver essas dificuldades e outras semelhantes que a lei canônica e a
teologia sistemática continuaram a se desenvolver, fundamentadas no alicerce das
Escrituras, mas com frequência indo muito além. Isso parece errado, e até escandaloso
para nós, mas para muita gente na idade média, o aparecimento dessa tradição legal e
teológica foi considerada bênção de Deus.
Na igreja do fim da era medieval, as Escrituras e a tradição coexistiam, mas pelo
fato de uma ser fixa ao passo que a outra continuava a crescer e a se desenvolver, foi a
tradição que se tornou mais importante na prática. Em teoria, à igreja cabia considerá-la
uma interpretação da Bíblia, mas não demorou muito e ela estava formulando as
próprias doutrinas com pouco ou nenhum suporte bíblico. Para isso, ela às vezes
recorria a modelos de alegoria, que adaptava para usos dogmáticos, embora isso nunca
tivesse sido feito no passado. Foi desse modo que doutrinas como a concepção
imaculada da virgem Maria, a transubstanciação e o purgatório entraram na teologia da
igreja e se estabeleceram na devoção popular, embora Pedro Lombardo nada tivesse
dito sobre essas coisas.
A resistência a essa tendência não era desconhecida, mas teve grande insucesso.
Tomás de Aquino negou a concepção imaculada de Maria, mas não conseguiu impedir
que a crença nela se espalhasse. John Wycliffe (1328-1384) negou a transubstanciação e
justificou sua posição apelando para a Bíblia com a única autoridade em matéria de fé e
doutrina, mas sua objeção foi rejeitada e ele acabou condenado como herege. A opinião
predominante afirmava que se havia um aparente conflito entre a Bíblia e o ensinamento
da igreja era porque a Bíblia não estava sendo lida da maneira adequada. A igreja tinha
o poder e a responsabilidade de interpretar a Bíblia para o povo, desencorajado
efetivamente a lê-la devido ao perigo de que caísse em erro. Antes da invenção da
imprensa, praticava-se esse tipo de censura com relativa facilidade — os livros eram
raros e caros e havia poucas traduções da Bíblia além da Vulgata latina, texto oficial da
igreja.

O impacto da Renascença

Esse era o estado da igreja e sua teologia no início do século 16, mas as forças da
mudança começavam a se fazer sentir e os padrões tradicionais de vida eclesiástica
medieval não podiam conter o novo espírito de descoberta e invenção em andamento.
Dois desdobramentos em particular possibilitaram essa disseminação. O primeiro foi a
invenção da imprensa. Johann Gutenberg publicou sua Bíblia em latim em 1456, e no
fim do século 15, os livros impressos estavam se tornando o novo meio de
comunicação. Garantiam que a elite educada da Europa ocidental pudesse ler as mesmas
coisas ao mesmo tempo, uma revolução da informação comparável à criação recente da
Internet. O segundo foi a redescoberta de um vasto estoque de conhecimento antigo
anteriormente ignorado ou inexplorado. A isso chamamos de “renascimento”,
caracterizado por uma tendência cada vez mais secular (embora não irreligiosa)
geralmente conhecida como “humanismo”. Os estudiosos humanistas da Renascença
tinham consciência de que eram “homens novos”, atuando em um mundo desconhecido
para seus ancestrais. As grandes descobertas feitas ao mesmo tempo por exploradores
espanhóis e portugueses só lhes fortalecia a convicção. Durante séculos, estudiosos
haviam debatido se a Terra era redonda ou plana, mas os homens da península ibérica
deram um basta a essa discussão circum-navegando-a. Ninguém captou o espírito da
época melhor do que o grande poeta que escreveu sobre a própria nação:

Mas, entanto que cegos e sedentos


Andais de vosso sangue, ó gente insana,
Não faltarão Cristãos atrevimentos
Nesta pequena casa Lusitana:
De África tem marítimos assentos;
É na Ásia mais que todas soberana;
Na quarta parte nova os campos ara;
E, se mais mundo houvera, lá chegara.
(Os lusíadas, VII, 14)

E, se mais mundo houvera... Raras vezes uma geração teve mais consciência do
rompimento com seu passado do que a dos humanistas renascentistas, e a igreja não
podia fugir ao impacto do novo aprendizado. Em pouco tempo, tudo estava sendo
contestado, e não menos a autoridade do papa que, na data recente de 1494, dividira o
mundo entre Espanha e Portugal como se tivesse um mandato divino! Martinho Lutero
pertencia a essa era de contestações, e quando desafiou o papado, a princípio recebeu
muito mais apoio do que qualquer reformador anterior. Os reformadores nunca
afirmaram ter descoberto algo novo. Pelo contrário, argumentavam que não tinham feito
mais do que recuperar o antigo ensinamento da igreja, retornando às fontes e lendo-as
por si mesmos. Por outro lado, os reformadores também acreditavam que alguma coisa
dera muito errado com a teologia da igreja. Os estudiosos divergem quanto a se
pensavam que a igreja estava ensinando falsa doutrina propositalmente ou apenas
obscurecendo a verdade ao incentivar práticas devocionais deploráveis, mas todos
concordam que muitos cristãos do século 16 se sentiram confusos quanto à verdadeira
natureza da graça e da salvação. Isso ficava mais evidente no nível da piedade popular,
mas não só a igreja não estava fazendo nada para corrigir o problema como, em alguns
casos (por exemplo, na venda de indulgências) ela estava manipulando a credulidade
das massas em benefício próprio.
Os reformadores acreditavam que a resposta para esse problema era o retorno ao
ensino da Bíblia como autoridade suprema para a igreja. Sua mensagem fundamental
era bastante clara. As Escrituras ensinavam que o cristão é justificado só pela fé, e que a
igreja era o corpo místico de todos os fiéis. Queixavam-se de que o papado obscurecera
esse ensinamento e que os papas haviam se estabelecido como ditadores a ensinar o que
bem entendessem. Como os falsos apóstolos que atormentavam as igrejas gálatas, o
papa e seus apoiadores estavam impondo regras e regulamentações sobre os crentes que
subvertiam o significado do evangelho. Foi sob essa luz que Lutero reagiu contra a
tradição da igreja, a qual acreditava estar consagrada na lei canônica. Não à toa ele
supervisionou a queima dos livros de lei canônica em Wittenberg no ano de 1520. Não
foi apenas um ato de rebeldia contra o papado, mas também uma afirmação do princípio
da sola Scriptura — para Lutero e seus seguidores, só a Bíblia era a fonte da doutrina
cristã.

A formação de uma hermenêutica reformada

A primeira geração de reformadores se preocupou em estabelecer esse princípio da sola


Scriptura, com o que pretendia que tudo que não pudesse ser provado a partir do texto
bíblico não deveria ser convertido em exigência da fé cristã. Talvez a melhor declaração
do que a sola Scriptura significava para eles seja o resumo apresentado por Thomas
Cranmer, arcebispo da Cantuária, no quinto de seus 42 artigos sobre a religião:

As Escrituras sagradas contêm todo o necessário à salvação: de modo que seja o que for
que não possa ser lido nela, nem provado por ela, embora às vezes recebido pelo fiel
como piedoso e benéfico para a ordem e a decência: ainda assim nenhum homem deve
ser compelido a crer nisso como um artigo de fé, ou reputá-lo como condição para a
necessidade de salvação.

Ao lidar com questões de cânone e de precisão textual, a primeira geração de


reformadores não estava fazendo nada inédito, mas tomando partido em um debate que
começara mais de um milênio antes. A segunda geração, no entanto, motivada pelo
apelo a “só as Escrituras” (sola Scriptura) que marcou a Reforma desde o início,
avançou para uma concepção diferente do que essa doutrina significa para sua teologia.
A primeira geração se contentara em dizer que a Bíblia é a Palavra de Deus em forma
escrita e que tudo que não pode ser encontrado nela não deve ser imposto aos cristãos
como objeto de fé. Mas quando se tratava de coisas sobre as quais a Bíblia não falava,
toleravam a diversidade. Por exemplo, estavam preparados para aceitar formas
diferentes de governo eclesiástico, considerando os sistemas episcopal, presbiteriano e
congregacional igualmente válidos. Cada igreja local era livre para decidir sobre a
forma que melhor lhe convinha. Mesmo em questões de doutrina, os reformadores às
vezes podiam ser flexíveis. Todos acreditavam que o Novo Testamento ensinava que o
Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo é Deus, mas Calvino declarou de maneira
explícita que o uso de palavras como “pessoa” e “Trindade” constituía uma tradição da
igreja, não parte da revelação divina. Ele acreditava que fosse verdade, claro, e
defendeu a doutrina trinitária contra um homem como Miguel Servet, que a rejeitava em
bases filosóficas, e desconfiou daqueles que rejeitavam a tradição da igreja sem um bom
motivo. Argumentava que a expressão tradicional da Trindade era a melhor maneira de
exprimir o que era ensinado com clareza nas Escrituras, mas estava preparado para
reconhecer que isso não tinha a força da revelação em si, a qual, no contexto do tempo,
era uma posição relativamente liberal de se adotar.
A abordagem de Calvino se baseava na crença de que questões não expressas
abertamente na Bíblia eram dogmaticamente indiferentes e deveriam ser classificadas
como adiaphora. Muito do que antes fora declarado ortodoxo, portanto compulsório,
graças a uma invocação à tradição, agora entrava nessa categoria, mas às vezes era
difícil decidir se determinada prática era concorde com a Bíblia ou não. Por exemplo, a
devoção a Maria como a mãe de Deus podia ser permitida em uma igreja baseada na
Bíblia, onde tal devoção não está registrada? O batismo de bebês era uma prática
bíblica, embora não houvesse nenhum exemplo claro disso no Novo Testamento? Onde
se admitia o princípio da adiaphora, diferenças desse tipo podiam ser acomodadas
porque as pessoas tinham permissão para agir de acordo com a própria consciência,
como os primeiros cristãos eram livres para seguir a lei judaica desde que não tentassem
impô-la aos outros.
Essa tolerância relativa não sobreviveu até a próxima geração porque os
princípios básicos da teologia sistemática se tornaram sutilmente diferentes. As
primeiras confissões reformadas tinham seguido o padrão antigo e medieval,
começando com a doutrina de Deus e seguindo até a doutrina das Escrituras. Mas na
Segunda Confissão Helvética (Suíça) de 1566, a doutrina das Escrituras ocupou o
primeiro capítulo da exposição teológica, sobre o fundamento de que a Bíblia era a
fonte da qual todas as outras doutrinas cristãs se derivavam. Em teoria, isso queria dizer
que se alguma coisa não era encontrada na Bíblia, tinha de ser rejeitada, coisa que nem
sempre foi possível na prática. Na questão do governo eclesiástico, por exemplo, os
teólogos reformados da segunda geração viram-se obrigados a dizer que o Novo
Testamento prescrevia uma ordem em particular, a qual, portanto, queriam impor sobre
todas as igrejas. Mas se essa ordem era o presbiterianismo, em que igrejas individuais
faziam parte de uma associação mais ampla representada por um presbitério comum, ou
se era o congregacionalismo, em que cada igreja local se governava, não se chegou a
um acordo. O resultado foi a divisão, pois cada lado insistia em que sua visão era a
única correta. Desse modo, a flexibilidade dos reformadores originais se perdeu, e sola
Scriptura passou a ser aplicada de formas que pareceriam estranhas a Lutero ou
Calvino.
A verdade é que a segunda geração de teólogos reformados não contava com
nenhuma categoria de adiaphora. Na cabeça deles, a Bíblia dizia tudo que precisava ser
dito e seu ensinamento tinha de ser seguido. Defendiam o presbiterianismo ou o
congregacionalismo como ensinamento bíblico compulsório, e não como uma forma de
governo eclesiástico entre outras admissíveis, pois a Bíblia não prescrevia nenhuma
ordem particular para a igreja. O batismo de bebês não poderia ser deixado ao critério
dos pais, mas tinha de ser justificado (ou rejeitado) com base na evidência bíblica,
infelizmente ausente. Por conseguinte, ambos os lados desse debate afirmaram seguir o
ensinamento das Escrituras quando na verdade a Bíblia não trata da questão. Com isso,
hoje temos igrejas reformadas que se dividiram por questões como essas, de
importância secundária, como concorda a maioria das pessoas, mas que persistem como
barreiras poderosas à reconciliação dentro do mundo protestante.
Em uma tentativa de justificar sua posição sobre essas questões e criar uma
interpretação sistemática consistente da Bíblia, a segunda geração de reformadores
desenvolveu o que chamamos hoje de “teologia da aliança”.
O aspecto mais importante da teologia da aliança é como ela se apropria do
Antigo Testamento. Os reformadores em geral rejeitavam a alegoria por considerá-la
uma fantasia e preferirem a interpretação literal do texto bíblico como a única legítima.
Em alguns casos, claro, era difícil determinar qual o sentido literal — Cântico dos
Cânticos sendo um exemplo perfeito disso. O livro tem algo a ver com o Salomão
histórico? Pode ser interpretado como um poema ao amor humano e ainda ser
considerado Palavra de Deus? O que ele nos fala sobre Cristo, se é que fala alguma
coisa? Não deveríamos nos surpreender ao descobrir que os reformadores posteriores
com frequência recorriam à alegoria quando interpretavam este livro, mas ao fazê-lo,
justificavam a escolha com base em que ele fora concebido como poesia e não como um
registro histórico a ser lido em termos estritamente literais.
Desde o início, o ponto central da teologia da aliança era recuperar o sentido
literal do Antigo Testamento. A Lei de Moisés não devia ser interpretada como uma
espécie de charada em cujo texto se escondia a presença de Cristo, mas sim como um
estágio na revelação do plano de Deus para seu povo. Esse plano fora elaborado na
eternidade mas era revelado progressivamente desde a época de Abraão em diante.
Pouco a pouco ficava claro para os israelitas que eles eram o povo escolhido, governado
por uma combinação de profetas, sacerdotes e reis. Nenhum israelita foi essas três
coisas. Habacuque fora profeta e sacerdote, Davi, profeta e rei. Mas Israel não teve
nenhum rei-sacerdote — Melquisedeque seria uma exceção à regra, mas claro, não era
israelita! Jesus Cristo, no entanto, foi o cumprimento de todos os três ofícios da aliança,
não apenas por ser profeta, sacerdote e rei, mas por também por integralizar as funções
de cada um deles em si mesmo. Os antigos profetas recebiam uma palavra de Deus e a
transmitiam ao povo, mas Jesus era a Palavra e contou aos ouvintes que as Escrituras
falavam a seu respeito. Também era sacerdote como Melquisedeque, mas enquanto os
sacerdotes sacrificavam um cordeiro a fim de expiar os pecados do povo, Jesus se
entregou como sacrifício. Por fim, ele foi um rei que não governou sobre as pessoas
como fez Davi, mas que uniu seu reino em torno de si — era o cabeça e o reino, o seu
corpo.
Adotando essa hermenêutica, os reformadores conseguiram certificar o caráter
histórico do Antigo Testamento mas, ao mesmo, negar que ele tenha de ser seguido hoje
no sentido mais literal. O cumprimento da aliança em Cristo possibilita que
interpretemos a Lei de Moisés em e por meio do que o Filho de Deus realizou por seu
povo. Mas se a velha dispensação da graça abriu caminho para algo novo, sua
lembrança permanece de vital importância para os cristãos, pois a menos que
compreendamos o que ela era, jamais entenderemos a importância do que Cristo fez por
nós. Como disse o apóstolo Paulo: “A lei é um guia, levando-nos a Cristo”. Essa
perspectiva é a chave para se compreender a teologia da aliança e a hermenêutica dos
reformadores posteriores. Para que funcionasse bem, acreditavam que ela era necessária
de modo a confirmar a total exatidão e confiabilidade do sentido literal do texto bíblico.
Qualquer erro encontrado na Bíblia lançaria dúvida sobre a mensagem do evangelho e
levaria a uma perda de fé, que é exatamente o que aconteceu em várias partes do mundo
protestante quando a acuidade literal das Escrituras foi contestada e depois negada, a
partir do fim do século 17 em diante. Os proponentes do que hoje chamamos de
ortodoxia protestante (ou reformada) evitaram esse problema apegando-se à doutrina de
Calvino de que era pelo testemunho interior do Espírito Santo que uma pessoa teria
convicção da absoluta confiabilidade de sua Palavra inspirada e da fé no Cristo de quem
a Palavra dá testemunho.
A manifestação suprema da teologia da aliança e o ápice da hermenêutica
posterior das Escrituras podem ser encontrados na Confissão de Fé de Westminster,
publicada em 1646 e o mais significativo monumento do que hoje se conhece como
ortodoxia protestante (ou reformada). Como a Segunda Confissão Helvética de 1566, a
Confissão de Westminster começa com um capítulo inteiro sobre as Escrituras. Ele
explica que, embora a teologia natural (i.e., as obras da criação) possa nos dizer que
existe um Deus, ela nada diz sobre o que é necessário para a salvação. Por isso Deus se
revelou a seu povo, e a fim de proteger essa revelação da corrupção, logo em seguida a
passou para a forma escrita. Como a revelação direta cessou em nossos dias, as sagradas
Escrituras são o único meio de que dispomos para conhecer a vontade de Deus. A
autoridade das Escrituras não depende do testemunho humano mas de Deus, seu
verdadeiro autor e a fonte de toda verdade. Mas, mais importante ainda, embora a igreja
possa nos apontar para as Escrituras, cuja forma e conteúdo podem nos estimular à
reverência, o único modo de sermos convencidos de sua verdade e autoridade é pela
obra interna do Espírito Santo em nosso coração.
A Confissão de Westminster declara que todo o necessário à salvação está
estabelecido nas Escrituras, diretamente ou por dedução, e não precisa de acréscimos.
Mas seu conteúdo só pode ser compreendido pela iluminação do Espírito Santo. Como
ela diz: “A iluminação do Espírito de Deus é necessária para a compreensão salvadora
das coisas reveladas na Palavra”. Essa afirmação é de vital importância por ser um
reconhecimento de que a persuasão mental da verdade literal da Bíblia não basta para
uma fé viva. O livro que foi inspirado pelo Espírito Santo deve também ser interpretado
pelo mesmo Espírito, sem o qual a salvação em Cristo é impossível.
A Confissão de Westminster reconhece que nem tudo é claro nas Escrituras, ou
igualmente óbvio para todo o mundo, mas declara que a mensagem essencial é simples
o suficiente e pode ser compreendida por todo ser humano dotado de inteligência. Os
trechos difíceis das Escrituras devem ser interpretados pelos mais claros, tornando
desnecessário apelar para qualquer autoridade externa da igreja ou da academia. A
autoridade máxima em matéria de interpretação é o Espírito Santo, falando pelas
próprias Escrituras, e é a sua autoridade que a igreja deve se submeter. Dizendo isso, os
reformadores recorriam à tradição antiga, mas interpretando-a de uma nova maneira. A
diferença entre como os pais da igreja entendiam a obra do Espírito Santo na
interpretação das Escrituras e a abordagem da ortodoxia protestante pode ser vista com
mais clareza no modo como as dificuldades do texto literal eram tratadas. Na
antiguidade e nos tempos medievais, problemas de cronologia, gramática e assim por
diante eram considerados propositais, como um lembrete de Deus de que a Bíblia tem a
ver com coisas espirituais que não podem ser entendidas apenas por meios racionais. Os
estudiosos da ortodoxia protestante concordaram com eles nesse último ponto, mas não
recorreram à alegoria a fim de explicar dificuldades textuais. Em vez disso, acreditaram
ser possível encontrar soluções por meios racionais — um estudo mais profundo das
línguas originais, maior atenção à cronologia e assim por diante. Isso os abriu para a
possibilidade, e no fim para a probabilidade, de os textos terem sido editados por uma
sucessão de pessoas desconhecidas, capacitadas pelo Espírito Santo para isso. Desse
modo, tentaram manter uma unidade essencial entre os elementos humano e divino que
participaram da produção da Bíblia em sua forma atual.
Os proponentes da teologia da aliança acreditavam que quem entendia como o
Espírito Santo conduzira o desenvolvimento histórico do texto o interpretaria
corretamente, de modo que não havia nenhuma necessidade de ir além do que estava
escrito em busca de algum significado espiritual oculto. Assim, a ortodoxia protestante
rompeu com a antiga tradição hermenêutica da igreja sem abandonar sua convicção de
que as Escrituras foram inspiradas pelo Espírito Santo.
Se olharmos para o modo como os reformadores leem e interpretam a Bíblia,
podemos aceitar vários dos seus métodos — o apelo às línguas originais, por exemplo, e
a necessidade de estabelecer o texto correto. Podemos considerar nosso interesse
moderno em arqueologia e outras disciplinas afins como uma extensão da preocupação
deles com a precisão histórica e fazer pleno uso das técnicas desenvolvidas nos últimos
quinhentos anos. Com muita frequência seremos levados a conclusões diferentes, mas
isso porque nossos métodos se aperfeiçoaram ao longo do tempo, não porque são
fundamentalmente diferentes daqueles que os reformadores utilizavam. Nesse sentido,
somos filhos da Renascença tanto quanto Lutero e Calvino.
Mas, assim como na Renascença havia homens que não compreendiam a
mensagem espiritual que a Bíblia transmite, também hoje vemos a mesma cegueira em
operação em grande parte do mundo acadêmico. É possível concordar que o apóstolo
Paulo ensinou a justificação só pela fé, mas não ter tido a experiência espiritual que essa
doutrina proclama. Podemos aceitar que a Bíblia afirma ter sido inspirada pelo Espírito
Santo, mas não conhecer esse Espírito que opera em nosso coração.
Esse é o real desafio da hermenêutica da Reforma hoje. O que os reformadores
nos dizem é que precisamos conhecer Deus em nosso coração se quisermos
compreendê-lo em sua Palavra. A Bíblia revela seus segredos aos cristãos que têm olhos
para ver e ouvidos para ouvir sua mensagem. Os detalhes históricos que ela registra são
interessantes e importantes, mas é a mensagem espiritual que ela contém que muda a
vida das pessoas. A Reforma não tem a ver com educação, por importante que ela tenha
sido e ainda é. Tem a ver com transformação — uma mudança só possível em e por
meio da operação do Espírito Santo no coração e mente dos crentes. Essa é a verdadeira
hermenêutica da Reforma, e ela é relevante hoje como foi quinhentos ou mesmo dois
mil anos atrás.

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