Gerald Bray
O legado medieval
O fato de toda geração de pensadores ser moldada pela obra de seus predecessores e não
ser compreendida sem eles é lugar-comum. Os reformadores protestantes do século 16
não foram exceção à regra. Criados em uma igreja formatada por desenvolvimentos
intelectuais que remontavam há mais de mil anos, o efeito cumulativo dessa longa
tradição fica evidente em seus escritos. A influência mais antiga e persistente sobre eles
vinha da tradição monástica, que fizera da preservação da Bíblia uma de suas atividades
mais importantes. Monges copiavam os antigos manuscritos e os anotavam para uso
devocional. Liam as Escrituras sem parar e de maneira sistemática, de modo que no
decorrer de um ano ou dois, cobriam o texto inteiro. Seus pregadores expunham a Bíblia
basicamente como uma revelação de Cristo, mesmo quando sua presença no texto
estava longe de ser óbvia. Isso era um problema em especial no Antigo Testamento, do
qual se interpretava algumas partes em termos alegóricos a fim de revelar uma
dimensão cristológica com frequência difícil de encontrar. De acordo com os princípios
da alegoria, a Bíblia tinha vários níveis de significado. Como o ser humano, composto
de corpo, alma e espírito, a Bíblia tem os sentidos literal, moral e espiritual que lhes
correspondem. Além desses três havia um quarto sentido, conhecido como “anagógico”,
para descrever a vida dos bem-aventurados no céu.
Desses quatro sentidos, o literal era o mais óbvio e, se satisfatório, aceito do jeito
que se apresentava. A doutrina cristã se fundamentava sempre no sentido literal do texto
e era utilizada como um padrão segundo o qual se julgava a validade dos demais
sentidos. Lia-se a maior parte do Novo Testamento literalmente, como um relato preciso
da vida de Jesus e do início da igreja. Mas se o sentido literal de determinado texto
fosse obscuro ou inaceitável por algum motivo, os intérpretes recorriam a um dos níveis
de alegoria a fim de lhe dar sentido. Por exemplo, o salmo 137.9 diz: “Feliz aquele [...]
que pegar as suas crianças e esmagá-las contra as pedras” (NTLH). O salmista escrevia
sobre o exílio na Babilônia e expressava rancor contra a nação que destruíra Jerusalém e
levara o povo cativo. Todavia, mais tarde seus leitores, em especial os cristãos,
consideraram imoral essa explosão impetuosa. Como poderia alguém ser abençoado por
Deus matando crianças? A resposta para o problema foi dizer que o verso precisava ser
lido como uma alegoria moral. O contexto não era o conflito histórico entre Babilônia e
Israel, mas a batalha espiritual da alma contra o pecado e o mal. As crianças não deviam
ser entendidas como seres humanos, mas como as tentações para pecar que invadem a
alma. O cristão tem de lutar contra elas e condená-las à morte antes que se tornem
poderosas o suficiente para tomar o controle de sua vida. É um bom conselho pastoral,
mas há que se discutir se foi mesmo o que o salmista quis dizer.
De semelhante modo, os adeptos das alegorias argumentavam que a maior parte
das diversas referências do Antigo Testamento a Jerusalém e Sião pretendiam ser
entendidas de maneira espiritual ou anagógica. Inspiravam-se no salmo 125, que diz:
Os que confiam no SENHOR são como o monte Sião, que não pode ser abalado, mas
permanece para sempre. Como os montes em volta de Jerusalém, assim está o SENHOR
em volta do seu povo, desde agora e para sempre.
Não se negava o sentido literal do texto, mas ele era considerado basicamente
irrelevante. Ninguém na igreja medieval se importava com a localização geográfica da
Jerusalém terrena. Para eles interessava a proteção do Senhor, tanto nesta vida quanto
na eternidade. A cidade era uma imagem da presença de Deus no meio do seu povo, e
desse modo, os intérpretes monásticos conseguiam dar uma aplicação pastoral
significativa ao texto. Esse método de leitura da Bíblia alcança seu nível mais elevado
na interpretação do Cântico dos Cânticos, provavelmente o livro do Antigo Testamento
mais popular na idade média. O que parecia um poema erótico era lido como uma
alegoria de Cristo e sua noiva, entendida de várias formas como a alma do crente ou
como a igreja. Para dar ao menos um exemplo bastante conhecido, Bernardo de
Claraval (1080-1147) pregou 86 sermões sobre esse livro sem jamais passar do capítulo
3, verso 5. Chegou a dedicar oito sermões ao primeiro verso, que diz: “Beije-me ele
com os beijos da sua boca...”.
Isso nos parece incrível, mas quando entendemos como Bernardo lia o texto,
somos capazes de avaliar como ele conseguiu essa façanha. Para Bernardo, o homem
que fala nos Cânticos não era Salomão mas Cristo, o sobre-excelente filho de Davi. A
mulher a quem ele se dirige era o crente e o beijo, o sopro do Espírito Santo. Portanto,
Bernardo estava dizendo que Cristo derrama o Espírito sobre a igreja e seus membros,
fazendo de sua exposição um estudo da vida cristã. Nesse aspecto, ele tem sido muito
valorizado por gerações de cristãos, incluindo os reformadores, que o consideravam o
mais espiritual dos intérpretes medievais das Escrituras, citando-o com frequência como
inspiração para seus ensinamentos.
A partir de uma perspectiva hermenêutica, a interpretação alegórica pode ser
comparada à astrologia. A astrologia é uma combinação da ciência objetiva da
astronomia com algo mais subjetivo — ou a profecia, ou o que hoje chamamos de
aconselhamento pastoral. Gente que lê horóscopo não o faz com o intuito de se informar
sobre o movimento das estrelas, mas para obter orientação para a vida diária. De
semelhante modo, quem dava ouvidos a homens como Bernardo de Claraval desejava
instrução sobre a vida do Espírito, acreditando ser possível encontrá-la no texto bíblico.
O problema para esse pessoal era que o sentido literal do texto não tinha aplicação
prática em suas vidas. Que lhes importava a mulher que Salomão beijara tantos séculos
antes? Se aquilo era a Palavra de Deus, então ela tinha de lhes falar na situação presente,
e a interpretação alegórica era uma forma de assegurar isso.
Contudo, ao mesmo tempo que Bernardo de Claraval pregava seus sermões
alegóricos, um desdobramento muito diferente tinha lugar nos cursos de direito de
Bologna e Paris. Em Bologna, um monge chamado Graciano (fl. c. 1140) codificava o
cânon legal da igreja, sobre o qual repousava a autoridade e a jurisdição do papado. Em
Paris, Pedro Lombardo (1090-1160) criava uma teologia sistemática baseada nos
escritos dos pais da igreja, em especial de Agostinho. O trabalho de Graciano surgiu
como o Decretum, compondo o âmago do que mais tarde se desenvolveu na Corpus
iuris canonici, a enciclopédia básica de lei canônica que permaneceu em vigor na igreja
católica até 1917. Pedro Lombardo redigiu suas Sentenças em quatro livros, adotados
como material didático teológico padrão nas universidades e sobre os quais todo
professor certificado tinha de escrever uma dissertação de doutorado — incluindo
Tomás de Aquino e Martinho Lutero! Tanto para Graciano quanto para Pedro, o sentido
literal da Bíblia era de longe o mais importante. Graciano adaptou as leis do Antigo
Testamento às necessidades da igreja cristã, considerando o sacerdócio católico
equivalente ao judaico. Ambos eram separados da sociedade mais ampla. Em Israel, os
sacerdotes vinham da tribo de Levi, que não tinha terra própria. Na igreja, dos
sacerdotes se esperava o celibato, de modo que não tinham filhos capazes de herdar a
propriedade da igreja a eles confiada. O batismo equivalia à circuncisão e a ceia do
Senhor, à Páscoa judaica. Como os antigos israelitas pagavam um décimo de seus
rendimentos aos sacerdotes todos os anos, também se esperava que os cristãos fizessem
o mesmo para o sustento do ministério da igreja. Os reis cristãos eram comparados aos
reis de Israel — alguns bons, na maioria maus, mas todos escolhidos e ungidos por
Deus para reinar sobre seu povo. Rebelar-se contra eles era pecado.
Aconteceu então que, depois de 1200, duas forças concorrentes operavam na
igreja romana. A tradicional influência monástica recebeu novo fôlego com a criação de
novas ordens de monges, as quais deram o máximo de si para recuperar o espírito de
simplicidade que acreditavam ter caracterizado a igreja primitiva. As escolas
emergentes de direito e teologia se consolidaram em universidades, onde os estudantes
aprendiam os métodos de debate que caracterizariam a vida acadêmica por séculos.
Foram essas as pessoas que propuseram perguntas como “Adão tinha umbigo?” e
“Quantos anjos conseguem ficar de pé sobre a cabeça de um alfinete?”. Hoje rimos ao
quando ouvimos esse tipo de coisa, mas o método delas era sério. O debate sobre o
umbigo de Adão na verdade tinha a ver com criação versus evolução, uma discussão
que permanece viva até hoje. De semelhante modo, a pergunta sobre os anjos tinha a ver
fundamentalmente sobre o relacionamento entre espírito e matéria, o qual também
podemos entender. As formas mudaram, mas a substância permanece muito parecida
hoje como na época.
A tradição monástica conseguiu conciliar o sentido literal das Escrituras com os
diferentes níveis de interpretação alegórica porque não tentou aplicar o texto bíblico
fora do âmbito da devoção diária. Advogados e teólogos, no entanto, precisavam usar a
Bíblia na administração da igreja e na organização da sociedade, o que era muito mais
complicado. Ambos se voltavam para a Bíblia como a fonte máxima de suas doutrinas,
mas essa fonte era suplementada pelos decretos legais dos concílios eclesiásticos e do
papado, bem como pelos escritos teológicos dos pais da igreja. Era inevitável que os
estudiosos medievais descobrissem diferenças de opinião nesse material secundário, e
novas disputas surgiram. Se duas fontes discordassem, qual seria a mais importante?
Em teoria, a Bíblia era a autoridade suprema, mas ela não fazia menção a todos os
problemas que precisavam ser resolvidos. Por exemplo, nada dizia sobre a ordenação ao
sacerdócio, ou sobre o santo matrimônio. Com que idade um homem podia se tornar
padre, ou desposar uma mulher: Ele podia fazer as duas coisas ou tinha de optar por
uma ou outra?
Foi para resolver essas dificuldades e outras semelhantes que a lei canônica e a
teologia sistemática continuaram a se desenvolver, fundamentadas no alicerce das
Escrituras, mas com frequência indo muito além. Isso parece errado, e até escandaloso
para nós, mas para muita gente na idade média, o aparecimento dessa tradição legal e
teológica foi considerada bênção de Deus.
Na igreja do fim da era medieval, as Escrituras e a tradição coexistiam, mas pelo
fato de uma ser fixa ao passo que a outra continuava a crescer e a se desenvolver, foi a
tradição que se tornou mais importante na prática. Em teoria, à igreja cabia considerá-la
uma interpretação da Bíblia, mas não demorou muito e ela estava formulando as
próprias doutrinas com pouco ou nenhum suporte bíblico. Para isso, ela às vezes
recorria a modelos de alegoria, que adaptava para usos dogmáticos, embora isso nunca
tivesse sido feito no passado. Foi desse modo que doutrinas como a concepção
imaculada da virgem Maria, a transubstanciação e o purgatório entraram na teologia da
igreja e se estabeleceram na devoção popular, embora Pedro Lombardo nada tivesse
dito sobre essas coisas.
A resistência a essa tendência não era desconhecida, mas teve grande insucesso.
Tomás de Aquino negou a concepção imaculada de Maria, mas não conseguiu impedir
que a crença nela se espalhasse. John Wycliffe (1328-1384) negou a transubstanciação e
justificou sua posição apelando para a Bíblia com a única autoridade em matéria de fé e
doutrina, mas sua objeção foi rejeitada e ele acabou condenado como herege. A opinião
predominante afirmava que se havia um aparente conflito entre a Bíblia e o ensinamento
da igreja era porque a Bíblia não estava sendo lida da maneira adequada. A igreja tinha
o poder e a responsabilidade de interpretar a Bíblia para o povo, desencorajado
efetivamente a lê-la devido ao perigo de que caísse em erro. Antes da invenção da
imprensa, praticava-se esse tipo de censura com relativa facilidade — os livros eram
raros e caros e havia poucas traduções da Bíblia além da Vulgata latina, texto oficial da
igreja.
O impacto da Renascença
Esse era o estado da igreja e sua teologia no início do século 16, mas as forças da
mudança começavam a se fazer sentir e os padrões tradicionais de vida eclesiástica
medieval não podiam conter o novo espírito de descoberta e invenção em andamento.
Dois desdobramentos em particular possibilitaram essa disseminação. O primeiro foi a
invenção da imprensa. Johann Gutenberg publicou sua Bíblia em latim em 1456, e no
fim do século 15, os livros impressos estavam se tornando o novo meio de
comunicação. Garantiam que a elite educada da Europa ocidental pudesse ler as mesmas
coisas ao mesmo tempo, uma revolução da informação comparável à criação recente da
Internet. O segundo foi a redescoberta de um vasto estoque de conhecimento antigo
anteriormente ignorado ou inexplorado. A isso chamamos de “renascimento”,
caracterizado por uma tendência cada vez mais secular (embora não irreligiosa)
geralmente conhecida como “humanismo”. Os estudiosos humanistas da Renascença
tinham consciência de que eram “homens novos”, atuando em um mundo desconhecido
para seus ancestrais. As grandes descobertas feitas ao mesmo tempo por exploradores
espanhóis e portugueses só lhes fortalecia a convicção. Durante séculos, estudiosos
haviam debatido se a Terra era redonda ou plana, mas os homens da península ibérica
deram um basta a essa discussão circum-navegando-a. Ninguém captou o espírito da
época melhor do que o grande poeta que escreveu sobre a própria nação:
E, se mais mundo houvera... Raras vezes uma geração teve mais consciência do
rompimento com seu passado do que a dos humanistas renascentistas, e a igreja não
podia fugir ao impacto do novo aprendizado. Em pouco tempo, tudo estava sendo
contestado, e não menos a autoridade do papa que, na data recente de 1494, dividira o
mundo entre Espanha e Portugal como se tivesse um mandato divino! Martinho Lutero
pertencia a essa era de contestações, e quando desafiou o papado, a princípio recebeu
muito mais apoio do que qualquer reformador anterior. Os reformadores nunca
afirmaram ter descoberto algo novo. Pelo contrário, argumentavam que não tinham feito
mais do que recuperar o antigo ensinamento da igreja, retornando às fontes e lendo-as
por si mesmos. Por outro lado, os reformadores também acreditavam que alguma coisa
dera muito errado com a teologia da igreja. Os estudiosos divergem quanto a se
pensavam que a igreja estava ensinando falsa doutrina propositalmente ou apenas
obscurecendo a verdade ao incentivar práticas devocionais deploráveis, mas todos
concordam que muitos cristãos do século 16 se sentiram confusos quanto à verdadeira
natureza da graça e da salvação. Isso ficava mais evidente no nível da piedade popular,
mas não só a igreja não estava fazendo nada para corrigir o problema como, em alguns
casos (por exemplo, na venda de indulgências) ela estava manipulando a credulidade
das massas em benefício próprio.
Os reformadores acreditavam que a resposta para esse problema era o retorno ao
ensino da Bíblia como autoridade suprema para a igreja. Sua mensagem fundamental
era bastante clara. As Escrituras ensinavam que o cristão é justificado só pela fé, e que a
igreja era o corpo místico de todos os fiéis. Queixavam-se de que o papado obscurecera
esse ensinamento e que os papas haviam se estabelecido como ditadores a ensinar o que
bem entendessem. Como os falsos apóstolos que atormentavam as igrejas gálatas, o
papa e seus apoiadores estavam impondo regras e regulamentações sobre os crentes que
subvertiam o significado do evangelho. Foi sob essa luz que Lutero reagiu contra a
tradição da igreja, a qual acreditava estar consagrada na lei canônica. Não à toa ele
supervisionou a queima dos livros de lei canônica em Wittenberg no ano de 1520. Não
foi apenas um ato de rebeldia contra o papado, mas também uma afirmação do princípio
da sola Scriptura — para Lutero e seus seguidores, só a Bíblia era a fonte da doutrina
cristã.
As Escrituras sagradas contêm todo o necessário à salvação: de modo que seja o que for
que não possa ser lido nela, nem provado por ela, embora às vezes recebido pelo fiel
como piedoso e benéfico para a ordem e a decência: ainda assim nenhum homem deve
ser compelido a crer nisso como um artigo de fé, ou reputá-lo como condição para a
necessidade de salvação.